MAINGUENEAU, Dominique - Novas Tendências em Análise do Discurso.pdf
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
Nilson Adauto Guimarães da Silva
A REVOLTA NA OBRA DE ALBERT CAMUS: Posicionamento no campo literário, gênero, estética e ética
Rio de Janeiro
2008
Nilson Adauto Guimarães da Silva
A REVOLTA NA OBRA DE ALBERT CAMUS: Posicionamento no campo literário, gênero, estética e ética
Tese de doutorado apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Letras Neolatinas,
Faculdade de Letras, Universidade Federal do
Rio de Janeiro, como parte dos requisitos
necessários à obtenção do título de Doutor em
Letras Neolatinas, área de concentração
Estudos Literários Neolatinos, opção
Literaturas de Língua Francesa.
Orientadora: Professora Doutora Celina
Maria Moreira de Mello
Rio de Janeiro
Junho de 2008
FICHA CATALOGRÁFICA
Silva, Nilson Adauto Guimarães da.
A Revolta na obra de Albert Camus: Posicionamento
no campo literário, gênero, estética e ética/ Nilson
Adauto Guimarães da Silva.- Rio de Janeiro: UFRJ/FL,
2008.
x, 220f.; 31cm.
Orientadora: Celina Maria Moreira de Mello
Tese (Doutorado) – UFRJ/FL Programa de Pós-
graduação em Letras Neolatinas, 2008.
Referências Bibliográficas: f. 199 – 210.
1. Albert Camus. 2. Revolta. 3. Estética. 4. Ética. I.
Mello, Celina Maria Moreira de. II. Universiade Federal
do Rio de Janeiro, Faculdade de Letras, Programa de
Pós-graduação em Letras Neolatinas. III. Título.
Nilson Adauto Guimarães da Silva
A REVOLTA NA OBRA DE ALBERT CAMUS:
Posicionamento no campo literário, gênero, estética e ética
Tese de doutorado apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Letras Neolatinas,
Faculdade de Letras, Universidade Federal do
Rio de Janeiro, como parte dos requisitos
necessários à obtenção do título de Doutor em
Letras Neolatinas, área de concentração
Estudos Literários Neolatinos, opção
Literaturas de Língua Francesa.
Rio de Janeiro, 19 de junho de 2008
____________________________________________________
Celina Maria Moreira de Mello, Professora Doutora,
Universidade Federal do Rio de Janeiro
____________________________________________________
Vera Lúcia de Carvalho Casa Nova, Professora Doutora,
Universidade Federal de Minas Gerais
____________________________________________________
Henrique Cairus, Professor Doutor,
Universidade Federal do Rio de Janeiro
____________________________________________________
Pedro Paulo Garcia Ferreira Catharina, Professor Doutor,
Universidade Federal do Rio de Janeiro
____________________________________________________
Latuf Isaias Mucci, Professor Doutor,
Universidade Federal Fluminense
___________________________________________________
Ângela Maria da Silva Corrêa, Professora Doutora,
Universidade Federal do Rio de Janeiro
____________________________________________________
Irineu Eduardo Jones Corrêa, Professor Doutor,
Fundação Biblioteca Nacional
AGRADECIMENTO
À Professora Celina e ao Professor Henrique, pela confiança e pela cooperação sem as quais
não se teria realizado este trabalho;
A meus pais, por me ensinarem a importância de aprender, aos meus irmãos pela fraternidade
sincera, ao Rodolfo pelo companheirismo, aos meus amigos pela amizade essencial à vida.
À CAPES pela bolsa.
"On ne trouve de meurtriers que par exception parmi les artistes."
(CAMUS, Albert. L'Homme révolté. In: Essais. Paris: Gallimard, 1965. Bibliothèque de
la Pléiade, p.678)
RESUMO
SILVA, Nilson Adauto Guimarães da. A Revolta na obra de Albert Camus:
Posicionamento no campo literário, gênero, estética e ética. Rio de Janeiro, 2008. Tese.
(Doutorado em Letras Neolatinas, área de concentração Estudos Literários Neolatinos, opção
Literaturas de Língua Francesa) - Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de
Janeiro, Rio de Janeiro, 2008.
Estudo da noção de Revolta desenvolvida por Albert Camus, de suas implicações éticas e
estéticas e de suas ligações com a noção de Absurdo, a partir de textos pertencentes a gêneros
diversos − ensaio, dramaturgia, narrativa: L'Homme révolté, Les Justes e L’État de siège, La
Peste. As obras de Camus fazem freqüentemente referência umas às outras. A valorização da
linguagem mítica e a utilização de elementos oriundos da cultura grega clássica nos textos de
Camus revelam seu contato com tal cultura. A produção literária do autor remete a conflitos
históricos e a tomadas de atitudes em favor da justiça social, temática presente também em
seus ensaios e textos jornalísticos. Seu posicionamento ante questões polêmicas da história
política gerou igualmente controvérsias com outros escritores, sobretudo com Jean-Paul
Sartre. Isto define o posicionamento do autor nos campos literário e filosófico, pois ele recusa
uma literatura indiferente aos problemas da sociedade e, mesmo recusando igualmente a
literatura de tese, realiza uma produção engajada, com uma diversidade de gêneros, na qual
transparece a defesa de princípios éticos, cujos valores maiores são a vida humana e a
solidariedade entre as pessoas. Servimo-nos, sobretudo, dos trabalhos de Dominique
Maingueneau, Fréderic Cossutta e Dominique Combe.
RÉSUMÉ
SILVA, Nilson Adauto Guimarães da. A Revolta na obra de Albert Camus:
Posicionamento no campo literário, gênero, estética e ética. Rio de Janeiro, 2008. Tese.
(Doutorado em Letras Neolatinas, área de concentração Estudos Literários Neolatinos, opção
Literaturas de Língua Francesa) - Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de
Janeiro, Rio de Janeiro, 2008.
Étude de la notion de Révolte chez Albert Camus, les implications éthiques et esthétiques et
les rapports de celle-ci avec la notion d'Absurde, d'après des textes qui relèvent de différents
genres − essai, théâtre, récit: L'Homme révolté, Les Justes et L’État de siège, La Peste. Ces
oeuvres de Camus renvoient les unes aux autres. La mise en valeur du langage mythique et
l'utilisation d'éléments issus de la culture grecque classique dans les textes de Camus montrent
la présence de cette culture dans son oeuvre. La production camusienne a pour toile de fond
les conflits historiques et les prises de positions de l'auteur en faveur de la justice sociale,
thèmes que l'on retrouve aussi bien dans les essais philosophiques que dans les textes de
Camus journaliste. De telles prises de positions ont engendré des polémiques avec d'autres
écrivains, particulièrement avec Jean-Paul Sartre. C'est par le biais de la polémique que l'on
peut définir le positionnement de l'auteur dans les champs littéraire et philosophique; Camus
refuse une littérature coupée des problèmes sociaux et, même s'il refuse également une
littérature à thèse, il acomplit une oeuvre engagée, dans une diversité de genres, dans laquelle
on décèle la défense de principes éthiques, dont les valeurs majeures sont la vie humaine et la
solidarité entre les hommes. Pour cette thèse nous avons utilisé surtout les travaux de
Dominique Maingueneau, Fréderic Cossutta et Dominique Combe.
ABSTRACT
SILVA, Nilson Adauto Guimarães da. A Revolta na obra de Albert Camus:
Posicionamento no campo literário, gênero, estética e ética. Rio de Janeiro, 2008. Tese.
(Doutorado em Letras Neolatinas, área de concentração Estudos Literários Neolatinos, opção
Literaturas de Língua Francesa) - Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de
Janeiro, Rio de Janeiro, 2008.
Study of Revolt notion developed by Albert Camus, its ethical and esthetic implications and
its linkings with Nonsense notion, both present in texts of different genres − essays, dramas
and novels: L'Homme révolté; Les Justes and État de siège; La Peste. These Camus' works
refer very often to each other. Using a mythic language and elements from classic Greek
culture, Camus reveals his contact with this culture. The literary texts of the author make
reference to historic conflicts and to his attitude for social justice, themes also present in his
essays and journalistic texts. His take of position in face of historical and political polemic
situations generated polemics with writers, mainly with Jean-Paul Sartre. So is defined
Camus' position in literary and philosophical fields, since he rejects the literature unconcerned
to social problems. Even though he also rejects the literature of thesis, his engaged
production, in different genres, reveals the defense of ethical principles whose greatest values
are human being's life and sympathy between people. We have used mainly theoretical works
of Dominique Maingueneau, Fréderic Cossutta and Dominique Combe.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO .................................................................................................................. 1
2 O INTRADISCURSO ....................................................................................................... 16
2.1 ELEMENTOS POÉTICOS E TEÓRICOS ................................................................ 16
2.2 O DIÁLOGO DAS OBRAS ...................................................................................... 22
2.3 MORTE E ABSTRAÇÃO ......................................................................................... 30
2.4 CAMUS E A GRÉCIA CLÁSSICA .......................................................................... 34
3 A PESTE NA CIDADE MODERNA ............................................................................... 46
3.1 O GOSTO PELO VIVIDO ........................................................................................ 46
3.2 UMA CRÔNICA TRÁGICA .................................................................................... 58
3.3 ADVERSÁRIOS DO FLAGELO ............................................................................. 70
4 REVOLTA OU REVOLUÇÃO ........................................................................................ 79
4.1 A OPÇÃO DE CAMUS PELO ENSAIO .................................................................. 79
4.2 A REVOLTA ............................................................................................................. 84
5 O INTERDISCURSO ....................................................................................................... 92
5.1 CAMUS ET LES TEMPS MODERNES .................................................................. 92
5.2 A INTERINCOMPREENSÃO .................................................................................. 99
6 CAMUS ANTE OS GÊNEROS ..................................................................................... 106
6.1 GÊNEROS E ÍNDICES PARATEXTUAIS ............................................................ 106
6.2 TIPOLOGIA DOS GÊNEROS ................................................................................ 112
6.3 A BUSCA DA ORTODOXIA ................................................................................. 123
6.4 A INTERPENETRAÇÃO DOS GÊNEROS ........................................................... 141
7 CONCLUSÃO, AINDA UMA LIÇÃO DE ÉTICA ....................................................... 161
8 BIBLIOGRAFIA ............................................................................................................. 199
1
1 INTRODUÇÃO
Em 1957, Albert Camus já era um escritor muito conhecido, graças sobretudo a seus
romances L'Étranger e La Peste, e graças a seu trabalho no jornal Combat, associado a sua
atividade de resistente; entretanto, quando o prêmio Nobel de literatura lhe foi concedido, não
era ainda possível imaginar a importância que assumiria o escritor no cenário literário francês
e mundial. Camus conheceu um destino literário excepcional e seus personagens adquiriram
uma dimensão mítica ao encarnarem, simbolicamente, atitudes paradigmáticas diante de
questões prementes e dramáticas, próprias de seu tempo, de maneira sóbria e expressiva;
ainda hoje é um escritor muito lido e estudado, sua obra permanece atual, atingindo os leitores
de nossos dias e oferecendo aspectos a serem desvelados ou explicitados.
Após optar por trabalhar sobre o autor em nossa pesquisa de pós-graduação em
estudos literários franceses, foi necessário escolher o corpus e fazer um recorte dele. Com a
necessidade de delimitar o objeto de estudo, levamos em conta uma divisão que o próprio
Camus faz de sua obra e a adotamos em suas linhas gerais; trata-se da distribuição de seus
textos principais em dois ciclos, o do Absurdo e o da Revolta. O primeiro compreende o
romance L’Étranger (1942), as peças de teatro Caligula (1944) e Le Malentendu (1944) e o
ensaio filosófico Le Mythe de Sisyphe (1942). O Ciclo da Revolta reúne o romance La Peste
(1947), as peças L'État de siège (1948) e Les Justes (1950) e o ensaio L'Homme révolté
(1951).
Na pesquisa em vistas à dissertação de mestrado, a qual versava sobre o caráter
paratópico do autor, a dimensão poética do ensaio, o Absurdo e suas implicações estéticas,
trabalhamos com a primeira etapa da obra camusiana que, em torno do tema do Absurdo,
encarna a Negação e se desenvolve nas formas romanesca, dramática e "ideológica" − este
termo é do autor que rejeita a denominação "filosófica" para seus ensaios. Para a tese de
Doutorado − que tem como tema a inserção de Camus nos campos literário e filosófico, seu
2
interesse pela cultura grega clássica, suas opções de gêneros e a noção de Revolta, em seus
desdobramentos éticos e estéticos e em sua relação com a problemática do Absurdo −
tomamos a segunda etapa da obra de Camus, a tetralogia que desenvolve o tema da Revolta,
ou o Positivo, e configura-se também em gêneros diferentes, o romance, as peças de teatro e o
ensaio filosófico. Além destas obras, fazemos referência a algumas anotações autobiográficas
dos "carnets" do escritor e alguns de seus textos jornalísticos, que definem seu
posicionamento estético, corroboram suas posições de defesa da justiça social e atestam a
diversidade genérica de sua produção.
O estudo da teoria literária e da história da literatura nos fornece um instrumental
teórico valioso para a análise de obras literárias as mais diversas. A experiência pessoal e o
contato com os textos também nos sugerem que, para ser melhor compreendido e apreciado,
cada grande autor exige um estudo particular, que leve em consideração seu contexto sócio-
histórico, seus projetos e suas concepções éticas e estéticas.
As noções básicas do pensamento de Camus, o Absurdo e a Revolta, estão diretamente
associadas a aspectos biográficos do autor e ao momento histórico em que foram elaboradas;
estas noções remetem a uma reflexão acerca da condição humana, destacando os aspectos
existenciais e os limites da própria razão, e se exprimem numa forma ensaística, plena de
figuras próprias do texto poético, contraposta à tradição da filosofia sistemática e conceitual.
Estas noções, desenvolvidas nos ensaios, constituem o pano de fundo dos romances e das
peças de teatro, que se propõem como texto literário autônomo, e não como obras de tese nem
simples meio de difusão de uma doutrina filosófica. Os textos jornalísticos, mais diretamente
ligados aos acontecimentos da história, constituem espaço privilegiado em que o autor
desenvolve uma reflexão relacionada com aquela presente nos ensaios.
Construindo um estilo e uma produção muito próprios, expressão da liberdade de
quem não se prende às exigências legitimadoras e limitadoras das instituições, Camus acaba
3
por ocupar um lugar privilegiado no campo da filosofia e, particularmente, no campo da
literatura francesa do século XX. O momento agitado e violento no qual viveu, da mesma
forma que seu percurso intelectual, refletem-se em seus textos. Por isso levamos em conta a
importância dos elementos históricos na obra de Camus e inserimos nossa análise de suas
obras no conjunto de sua produção e no contexto de sua biografia. Camus foi extremamente
comprometido com seu tempo e engajado politicamente, entendendo-se aqui política em seu
sentido amplo. Os textos produzidos por ele, os quais o produziram enquanto escritor, estão
articulados com seu itinerário de intelectual que, inicialmente à margem das instituições
acadêmicas oficiais, torna-se mais tarde um autor consagrado. Tentamos assim articular os
campos da filosofia, da literatura e do jornalismo em Camus com o contexto conturbado no
qual ele viveu.
Buscamos desenvolver a noção de Revolta nos seus desdobramentos éticos e estéticos
e na sua relação com o Absurdo, ou seja, no movimento de passagem do Absurdo à Revolta.
Pretendemos considerar o papel das imagens e dos conceitos nos ensaios de Camus, abordar a
questão dos gêneros e do interdiscurso, e levar em conta a noção de campo, buscando as
relações entre as produções textuais e as instituições sócio-literárias. Ou seja, buscamos
caracterizar o posicionamento do autor nos campos literário e filosófico, compreendendo de
que forma, para ele, as origens, o percurso intelectual e a carreira se relacionam com a obra. A
liberdade com que Camus ―ensaia‖ suas técnicas de escrita e com que entrelaça gêneros e
campos diversos está associada à sua posição no espaço acadêmico. Além disso, sua inserção
―paratópica‖ nos campos literário e filosófico está intimamente relacionada com a dimensão
sócio-histórica de suas obras e com o aspecto ético desenvolvido, sobretudo, no Ciclo da
Revolta. Para abordarmos a noção de campos e o posicionamento do autor, bem como a
temática da polêmica como interdiscurso, valemo-nos, principalmente, de trabalhos da
Análise do Discurso, como aqueles de Dominique Maingueneau e de Fréderic Cossutta. Para
4
tratarmos dos gêneros e das opções de Camus em face deles, valemo-nos, sobretudo, dos
trabalhos de Gérard Genette e de Dominique Combe.
Nosso trabalho se divide em cinco capítulos. No primeiro, apresentamos o conjunto
das obras principais de Camus e a interação entre tais obras, pertencentes a gêneros e a
campos diferentes; fazemos referências à produção de Camus nos gêneros dramático − com as
peças Les Justes e L'État de siège − jornalístico e autobiográfico; buscamos destacar os temas
mais valorizados e mais recorrentes e a importância da cultura grega para o autor. No segundo
capítulo abordamos o romance La Peste, com três subdivisões relativas a seus aspectos
autobiográfico, mítico-histórico e ideológico; no terceiro, o ensaio filosófico, L'Homme
révolté. No quarto abordamos as polêmicas que envolveram o autor, sobretudo aquela
suscitada pela publicação de L'Homme révolté, em 1951, e tratamos do diálogo tenso de
Camus com a tradição filosófica e com o marxismo que predominavam nos espaços
acadêmicos da época. No quinto capítulo, enfim, detemo-nos mais detalhadamente na
problemática genérica. Na conclusão desenvolvemos ainda alguns aspectos da ética em
Camus.
As citações dos textos de Camus são retiradas da edição ―Pléiade‖, da editora
Gallimard, o volume contendo teatro e narrativas com publicação de 1962, e o volume
contendo os ensaios com publicação de 1965. Trata-se da melhor edição para fins de pesquisa
por conter numerosas notas e textos introdutórios. Passamos a enumerar as principais obras de
teoria literária e sobre Albert Camus de nossa revisão bibliográfica.
Em Camus par lui-même (Paris: Seuil, 1963) Morvan LEBESQUE dedica à biografia
de Camus a parte inicial do livro, que é bastante longa em relação às demais e é permeada por
algumas citações do autor. Lebesque descreve a Argélia, desde a época de nascimento de
Camus até a independência da França, aborda os primeiros anos de estudos do autor e sua
iniciação no jornalismo e no teatro. Ao final desta primeira parte há uma abordagem de Noces
5
à Tipasa. A partir de então, Lebesque passa à análise de L'Étranger, de Le Malentendu, de
Calígula e de Le Mythe de Sisyphe. Ele aborda, em seguida, a atividade de Camus no jornal
Combat e sua atuação na Resistência francesa durante a Segunda Guerra. Na seqüência, trata
das obras La Peste, L'État de Siège, Les Justes e L'Homme Révolté, fazendo rápida menção à
polêmica de Camus com Sartre. Daí, passa ao estudo de outras obras, como L'Exil et le
Royaume, La Chute e as adaptações feitas por Camus para o teatro, voltando ao conflito na
Argélia antes da separação da França. Finalmente, discute questões como o pensamento, o
estilo e a visão de literatura em Camus. Ao longo do livro, destacam-se aspectos da História
do século XX e da biografia do autor.
Com uma construção bastante próxima da deste livro, analisamos Camus, de Jean-
Claude BRISVILLE (Paris: Gallimard, 1959). Como vários outros dedicados ao escritor, são
livros de abordagem bastante geral, não muito aprofundada, que lembram o tratamento dos
manuais de literatura, mesmo se mais desenvolvidos, e cujo objetivo parece ser uma
apresentação do escritor e de seus textos principais, sem o embasamento de teorias literárias.
Nesta linha bio-bibliográfica pode-se mencionar ainda Albert Camus, La mer et les prisons,
de Roger QUILLIOT (Paris: Gallimard, 1956) um ensaio, bastante original, pioneiro em
algumas considerações retomadas e aprofundadas por outros estudiosos. Le Cas Albert
Camus, de Anne DURAND (Paris: Fischbacher, 1961), também entre os primeiros estudos
dedicados a Camus, de estilo ensaístico, em que a autora estuda as obras agrupadas nos ciclos
do Absurdo e da Revolta, seguindo a ordem cronológica de publicação. E, finalmente, Albert
Camus soleil et ombre, de Roger Grenier (Paris: Gallimard, 1987), um ensaio premiado, bem
mais recente e mais completo, em que o autor destaca na biografia de Camus e na História de
seu tempo os elementos mais diretamente ligados a suas obras; Roger Grenier aborda todas as
obras de Camus, com exceção de Le Premier Homme, à época ainda não publicado, seguindo
a ordem cronológica de publicação.
6
Ainda nesta linha bio-bibliográfica podem ser citados Albert Camus tel qu'en lui-même
de François CHAVANES (Blida: du Tell, 2004) e Albert Camus et l'Algérie de Christiane
CHAULET–ACHOUR (Alger: Barzakh, 2004), autora argelina e atualmente professora em
Cergy-Pontoise. Ambos os livros, bastante recentes, foram publicados na Argélia. O segundo
apresenta uma análise mais aprofundada e destaca a presença do espaço e de elementos
argelinos nos textos de Camus, como em Noces, L'Étranger e Le Premier Homme. Além
disso, a autora mostra as relações de filiação, fraternidade ou rivalidade entre escritores
argelinos, contemporâneos ou posteriores, com Camus ou com sua obra; mostra ainda de que
maneira Camus se tornou uma referência quase obrigatória na Argélia, sendo que muitos
autores argelinos, ora o aprovando, ora o reprovando, fazem menção mais ou menos direta a
ele, e produzem obras que apresentam uma intertextualidade com as obras camusianas; é o
caso de escritores como Mohammed Dib, Taleb Ibrahimi, Blanche Balain, Emmanuel Roblès,
Jean Pélégri, René-Jean Clot, Marcel Moussy, André Rosfelder, Mouloud Feraoun, Kateb
Yacine.
Entre os primeiros trabalhos dedicados a Camus podemos destacar uma edição
especial da NRF, Hommage à Albert Camus 1913-1960 (nº 87, 1er. Mars 1960) com artigos
divididos em duas partes, L'homme e L'oeuvre, de cerca de cinqüenta escritores,
personalidades ou amigos de Camus, entre os quais Maurice Blanchot, Jean Grenier,
Emmanuel Roblès, Roger Grenier, Jean Starobinski, William Faulkner e Giacomo Antonini.
Publicada logo após a morte de Camus, a coletânea apresenta artigos extremamente diversos,
desde a lembrança de algum momento da vida de Camus rememorado por um amigo, relatos
de sua atividade jornalística e de teatro, até estudos ao mesmo tempo despretensiosos, mas
ricos em informações e em avaliações, sobre determinado aspecto ou determinado texto da
obra do autor. Nesta mesma linha se enquadra outra obra coletiva, publicada pela Librairie
Hachette (Camus, Paris: Hachette, 1964), com artigos de nove autores (René Marill Albérès,
7
Pierre de Boisdeffre, Jean Daniel, Pierre Gascar, Morvan Lebesque, André Parinaud,
Emmanuel Roblès, Jules Roy e Pierre-Henri Simon). Também como uma homenagem ao
autor, com cinco seqüências de numerosas fotos e ilustrações, este livro, embora retomando
aspectos biográficos (como o engajamento, o envolvimento com o jornalismo e o teatro)
desenvolve com mais profundidade algumas de suas obras, e apresenta um interesse
acadêmico maior do que aquele da NRF.
Em Narrateur et narration dans L'Étranger d'Albert Camus – Analyse d'un fait
littéraire (Paris: Archives des Lettres Modernes nº 34, 1960) Brian T. FITCH faz uma análise
minuciosa do romance, destacando sua ambigüidade e os aspectos que o tornam "estranho",
como a diferença desconcertante entre a narração e o conteúdo desta narração. Embora
dedicado a L'Étranger, Fitch faz em seu livro referências a outras obras de Camus e toma
como ponto de partida o artigo de Sartre, "Explication de L'Étranger", publicado pela
primeira vez em 1943 e retomado em Situations I (Paris: Gallimard, 1947), que constitui uma
análise favorável, séria e aprofundada do romance, feita em contraponto com o ensaio Le
Mythe de Sisyphe, a primeira realizada por um crítico de renome.
Próximo da análise de Fitch, mas nalguns momentos se opondo a ela, encontra-se
L'Art du récit dans l'Étranger d'Albert Camus (Paris: A. G. Nizet, 1996), de M.-G.
BARRIER. Concentrando-se em L'Étranger, este autor também faz algumas referências a
outras obras de Camus e analisa o romance do ponto de vista da "maneira de escrever e de
contar" escolhida pelo autor. Barrier destaca de que maneira o romance parece romper com a
linguagem literária e com as marcas típicas do romanesco.
Les envers d'un échec – Étude sur le théâtre d'Albert Camus (Paris: Lettres Modernes,
1967), de Raymond GAY-CROSIER, é um dos primeiros escritos de um crítico que se tornou
especialista da obra de Camus e que vem publicando sobre ele, ao longo dos anos, numerosos
8
trabalhos. O autor analisa os escritos de teatro de Camus, fazendo referências a outros textos e
a seu pensamento filosófico, sobretudo no que diz respeito à concepção do Absurdo.
Pour connaître la pensée de Camus (Paris-Montréal: Bordas, 1964), é uma obra em
que Paul GINESTIER se propõe, a partir da filosofia dos Ensaios de Camus, a mostrar como e
por quê o artista produziu uma obra engajada. Ginestier justapõe aos pontos de partida
filosóficos variados trechos das obras literárias, buscando assim desvelar os aspectos que
considera mais importantes da criação artística de Camus.
Anne-Marie AMIOT & Jean-François MATTÉI são os organizadores de Albert Camus
et la philosophie (Paris: PUF, 1997) e também seus colaboradores. O livro é composto de 16
artigos de autores diferentes, mas de mesmo tema. Trata-se de um dos poucos trabalhos, pelo
que conhecemos, que, discutindo aspectos lingüísticos, de estilo e de gênero, propõem-se a
analisar com seriedade os ensaios de Camus como obra propriamente filosófica. Os ensaios de
filosofia de Camus são abordados sobretudo em sua relação com a ética, com a política, com
o pensamento sistematizado e com o texto poético.
Outra obra que sublinha a reflexão filosófica de Camus, principalmente sua dimensão
ética, é Albert Camus – Um elogio do ensaio, de Manuel da Costa PINTO (São Paulo: Ateliê,
1998). O trabalho se divide em duas partes, sendo que na primeira o autor se dedica ao estudo
do gênero ensaio, retomando sua origem francesa em Montaigne, passando por Lukács e
Adorno e destacando sua dimensão de gênero fronteiriço, entre filosofia e texto ficcional ou
literário. Na segunda parte o autor se concentra na análise dos ensaios de Camus,
particularmente Le Mythe de Sisyphe e L'Homme révolté.
A obra Albert Camus e o teólogo (São Paulo: Carrenho, 2002), de Howard MUMMA,
destaca o aspecto humanista do pensamento de Camus, mas é bastante tendenciosa ao discutir
sua biografia. O autor, pastor protestante da Igreja Metodista (Americana) em Paris, teria tido,
na década de 50, encontros com Sartre e com Camus e descreve, sobretudo, suas conversas
9
com Camus, apresentando-o como prestes a se converter ao cristianismo, às vésperas de sua
morte. Assim, trata-se de uma obra bastante suspeita, pela tentativa de "cristianizar"
postumamente Camus e por um excessivo escrúpulo religioso (por exemplo, fazendo menção
à visita do escritor ao Brasil, Mumma se refere ao ritual de macumba ao qual assistiu Camus
como sendo um "baile negro").
Camus à Combat, da série Cahiers Albert Camus nº 8 (Paris: Gallimard, 2002), é uma
coletânea completa dos artigos de Camus publicados no jornal Combat e não coincide
exatamente com aquela publicada na edição da coleção Pléiade. Os artigos estão dispostos
por ordem cronológica de publicação, mas a obra apresenta um "agrupamento temático",
sendo os artigos classificados em temas como "A libertação de Paris", "A continuação da
Guerra", "Política interna", "Política externa","Moral e política", etc., com títulos que
remetem à pagina em que se encontram. Esta coletânea traz ainda um longo prefácio,
apresentação e anotações de Jacqueline Lévi-Valensi, uma grande especialista de Camus.
Albert Camus une vie, de Olivier TODD (Paris: Gallimard, 1996) é uma vastíssima
biografia do autor, a mais recente e completa. De leitura às vezes difícil, devido à profusão de
detalhes que podem parecer irrelevantes ao leitor, a obra constitui, porém, um instrumental
valioso para os estudiosos. Além da precisão de datas, lugares e acontecimentos históricos ou
pessoais, Todd discute várias obras do autor, ainda que um pouco superficialmente,
contextualizando-as bem. Além de muitíssimas notas, o livro apresenta uma rica bibliografia
seletiva e um prático índice de nomes de autores e personalidades.
Os trabalhos de Jean-Paul SARTRE, Explication de L'Étranger e Réponse à Albert
Camus, retomados respectivamente em Situations I (Paris: Gallimard, 1947) e Situations IV
(Paris: Gallimard, 1964) e a compilação de artigos: Un théâtre de situations (Paris: Gallimard,
1992), com textos reunidos, apresentados e anotados por Michel Contat e Michel Rybalka,
bem como o livro de Francis JEANSON, Sartre. Rio de Janeiro: José Olympio, 1987, são
10
úteis em nosso trabalho quando analisamos as relações deste autor com Camus, em particular
a polêmica entre os dois, depois da publicação de L'Homme révolté.
Acerca das relações e da polêmica entre Camus e Sartre, Ronald ARONSON, um
especialista norte-americano da obra de Sartre, publicou um vastíssimo livro (Camus &
Sartre, amitié et Combat. Paris: Alvik, 2005). Aronson acompanha o contato dos dois autores
desde que se encontraram em 1943 até depois da morte de Camus, pois julga que Sartre
continua fazendo referências ao adversário já morto, e sublinha que esta relação foi muito
mais próxima e muito mais forte do que se tem reconhecido. Trata-se de uma obra importante
e esclarecedora em muitos aspectos. Nela, Aronson denuncia o caráter partidário com que a
polêmica foi abordada por outros autores, entretanto ele próprio parece não alcançar a
objetividade desejada; especialista em Sartre, parece demonstrar uma preferência pela opções
políticas de Camus, mas, ao final do trabalho, apresenta como um engano gravíssimo a atitude
de Camus, de silêncio e de oposição à separação total em relação à França, durante a guerra
de independência da Argélia, atenuando, por outro lado, os silêncios e as "ilusões" de Sartre,
quando de sua defesa do stalinismo e de seus métodos, ilusões hoje apontadas por vários
autores como Michel Winock.
O livro de Michel WINOCK, Le Siècle des intellectuels (Paris: Seuil, 1999), traça a
história dos intelectuais franceses no século XX, iniciando-se, na verdade, na última década
do século XIX, com a questão Dreyfus, e prolongando-se até 1997, ano em que foi publicado
pela primeira vez. Constitui-se um material fundamental para se estabelecer datas e para se
situar em relação aos grandes movimentos políticos e aos grandes conflitos que marcaram o
século XX; com o posicionamento de muitos escritores, como Émile Zola, Maurice Barrès,
Anatole France, Charles Péguy, André Gide, André Malraux, Jean-Paul Sartre, Albert Camus,
Raymond Aron, François Mauriac, em relação às correntes ideológicas, políticas e literárias.
O livro traça ainda um histórico de editoras e de revistas, algumas destas publicadas até hoje.
11
A revista Europe publicou um número dedicado a Albert Camus (77e. année – nº
846/Octobre 1999). São cerca de 20 artigos sobre os mais diversos temas presentes na obra de
Camus, os quais tratam da juventude do autor em Argel até aspectos de Le Premier homme.
Entre os autores, há grandes especialistas de Camus, como Jacqueline Lévi-Valensi, Pierre-
Louis Rey, Fernande Bartfeld, Jeanyves Guérin, Anne-Marie Amiot, Raymond Gay-Croisier,
Christiane Chaulet-Achour e Olivier Todd.
Écriture autobiographique et carnets: Albert Camus, Jean Grenier, Louis Guilloux
(Bédée: Folle Avoine, 2003) é o resultado de um encontro em Lourmarin, em 5 e 6 de outubro
de 2001. Os artigos dedicados a Camus destacam a importância da escrita autobiográfica para
o autor, que mantinha em seus Carnets numerosas anotações, posteriormente retomadas em
sua obra literária.
Em L'Effet tragique, essai sur le tragique dans l'oeuvre de Camus (Champion-
Slatkine: Paris-Genève, 1988) a autora, Fernande BARTFELD, volta-se não só para as peças
de teatro de Camus, como também para os textos de outros autores que ele adaptou para o
teatro; ela analisa ainda outros textos do autor, como L'Étranger, La Peste, La Chute e Le
Premier Homme, e concede uma atenção especial aos escritos "perigráficos" e ao tema do
mal-entendido, título de uma de suas peças e situação que o autor temia e da qual tentava em
vão escapar. A autora faz numerosas críticas a Camus, destacando aquilo que, para ela, torna
suas peças, sobretudo Caligula, mais próximas do melodrama do que da tragédia.
Camus L'absurde, la révolte, l'amour, de Arnaud CORBIC (Paris: L'Atelier, 2003) nos
pareceu uma das obras mais ricas, do ponto de vista da abordagem filosófica, publicadas nos
últimos anos. O autor, frade franciscano, filósofo e teólogo, demonstra uma honestidade
intelectual admirável e, sem forçar uma cristianização de Camus, desenvolve os temas básicos
do pensamento do autor, destacando sua superação do niilismo e sua abertura a um novo
12
humanismo. Como o título indica, o autor valoriza muito apropriadamente a classificação que
Camus fez de sua obra, dividindo-a em três ciclos.
Alguns livros, mesmo não abordando diretamente a obra de Camus, nos ajudaram na
compreensão de movimentos políticos, sociais e culturais que compuseram o ambiente do
autor, tal é o caso de Condition de l’homme moderne, de Hannah ARENDT (Paris: Calmann-
Lévy, 1994). A autora desenvolve uma reflexão bastante próxima nalguns pontos daquela de
Camus, discutindo as noções de civilização, trabalho, ação, violência, papel da linguagem e
fazendo uma análise histórica dos sistemas totalitários, criticados por Camus. A autora,
considerando a singularidade da existência humana e ao mesmo tempo a objetividade do
mundo, desenvolve uma espécie de antropologia sociológica, destacando o valor da vida
como bem soberano e a importância do coletivo, do social e do político, aspectos valorizados
por Camus, como no romance La Peste. Na mesma linha do livro anterior, podemos citar
Communisme, anarchie et personnalisme, de Emmanuel MOUNIER (Paris: Seuil,1966). Em
Malraux Camus Sartre Bernanos – L‘espoir des désespérés, (Paris: Seuil, 1953) Emmanuel
MOUNIER aborda diretamente Camus, comparando-o com os outros escritores tratados, mas
sublinhando bem as particularidades de seu pensamento, sobretudo a reflexão desenvolvida
no Mythe de Sisyphe, em torno do Absurdo.
Para discutirmos o envolvimento de Camus com o campo do teatro e, particularmente,
da tragédia e sua filiação à cultura grega clássica, nossas leituras foram: Poétique des mythes
dans la Grèce antique (Paris: Hachette, 2000) de Claude CALAME; A Mitologia grega (São
Paulo: Brasiliense, 1982) de Pierre GRIMAL; Mythes, rêves et mystères (Paris:
Gallimard,1957), Aspects du mythe (Paris: Gallimard, 1963) e Mito e realidade (São Paulo:
Perspectiva, 2002) de Mircea ELIADE; Linguagem e mito (São Paulo: Perspectiva, 1972) de
Ernst CASSIRER; Le théâtre et son double (Paris : Gallimard, 1964) de Antonin ARTAUD;
Modern Tragedy (California: Stanford University Press, 1966) de Raymond WILLIAMS e,
13
finalmente, La naissance de la tragédie (Paris: Christian Bourgois, 1991) de Friedrich
NIETZSCHE, visto que Camus faz algumas alusões ao autor.
Camus et la politique, sob a direção de Jeanyves GUÉRIN (Paris: L‘Harmattan, 1986)
é uma obra coletiva, resultante do Colloque de Nanterre, realizado de 5 a 7 de junho de 1985.
No geral, os autores mostram como Camus enfrentou os grandes embates políticos e sociais
de seu tempo, com lucidez e coragem, destacando sua atuação durante a Segunda Guerra e
pós Liberação e suas posições ante a Guerra da Argélia e o nacionalismo argelino; tratam
ainda da relação de Camus com o comunismo e com o socialismo franceses e analisam a
recepção das obras de Camus na Polonha, Tchecoslováquia, Alemanha (RFA) e Itália.
Semelhante ao anterior, porém mais recente é o livro Les trois guerres d’Albert
Camus, sob a organização de Lionel DUBOIS (Poitiers: Pont-Neuf, 1995). Trata-se também
de uma obra coletiva, fruto do Colloque International de Poitiers, realizado de 4 a 6 de maio
de 1995 (o 1º colóquio internacional sobre Albert Camus). O encontro foi constituído de
mesas redondas temáticas e de conferências públicas, contando com a contribuição de
especialistas em Camus vindos da Argélia, Canadá, EUA, China e Europa. Os trabalhos são
distribuídos em três pólos, a Segunda Guerra Mundial (que apresenta as atividade de Camus
como jornalista e combatente), a Primeira Guerra Mundial (que descreve a juventude de
Camus e o itinerário de seu pai, morto em batalha) e a Guerra da Argélia (vista como uma
tragédia pelo autor de Noces). Em seu artigo, SHAOYI WU mostra como Camus e seus textos
foram proscritos da China popular, de 1949 a 1979.
Destacamos ainda a obra Albert Camus, la penseé de Midi, de Jacques CHABOT
(Aix-en-Provence: Edisud, 2002), em que o autor destaca os aspecto mediterrâneo e a
dimensão ética na obra de Camus. Fugindo aos lugares comuns e ao estilo de manual
presentes em muitas obras, Chabot desenvolve um ensaio extremamente original em que se
destaca a atualidade das posições assumidas pelo escritor na defesa da justiça social.
14
Como embasamento teórico, nossas referências principais foram Descartes et
l’argumentation philosophique (Paris: PUF, 1996), sob a direção de Frédéric COSSUTTA,
em especial os textos deste autor, a introdução em que ele se pergunta sobre as condições de
possibilidade de uma teoria da argumentação filosófica e o capítulo "Argumentation, ordre de
raisons et mode d'exposition dans l'oeuvre cartésienne"; e o capítulo escrito por Dominique
Maingueneau que tem por título "Éthos et argumentation philosophique. Le cas du Discours
de la méthode".
Dos trabalhos de Dominique MAINGUENEAU nos valemos de Sémantique de la
polémique. Discours religieux et ruptures idéologiques au XVIIe Siècle (Lausanne: L‘Âge
d‘homme, 1983) e Génèses du discours (Bruxeles: Pierre Mardaga, 1984) para o estudo do
texto polêmico e de Eléments de linguistique pour le texte littéraire (Paris: Bordas, 1990), Le
contexte de l'oeuvre littéraire (Paris: Dunod, 1993) e Le discours littéraire. Paratopie et scène
d'énonciation (Paris: Armand Colin, 2004) para o estudo do texto literário.
Para desenvolvermos a questão dos gêneros foram-nos fundamentais as obras: Théorie
des genres, de Gérard GENETTE et alii. (Paris: Seuil, 1986) e Les genres littéraires, de
Dominique COMBE (Paris: Hachette, 1992).
Servimo-nos ainda de trabalhos como A Literatura francesa e a pintura (Rio de
Janeiro: 7 Letras-Faculdade de Letras/UFRJ, 2004), de Celina Moreira de MELLO e Quadros
literários fin-de-siècle, um estudo de Às avessas, de Joris-Karl Huysmans (Rio de Janeiro: 7
Letras-Faculdade de Letras/UFRJ, 2005), de Pedro Paulo Garcia Ferreira CATHARINA. Não
são livros sobre Albert Camus, mas nos são úteis e constituem um valioso instrumental
teórico, por lidarem com clareza e propriedade com noções da Análise do Discurso que nos
interessam diretamente.
15
Foram-nos úteis, enfim, os textos publicados por Dominique Maingueneau na internet,
no site de seu grupo de estudos, o CEDITEC (Centre d’étude des discours, images, textes,
écrits, communications):
http://www.univ-paris12.fr/www/labos/ceditec/maingueneau.html
Os textos seguintes foram consultados e impressos em 25/07/2006: "Typologie des
genres de discours"; "L'Ethos, de la rhétorique à l'analyse du discours"; "Scénographie
épistolaire"; "L'Énonciation philosophique comme institution discursive"; "Linguistique et
littérature: le tournant discursif" e "Self-constituting discourses".
16
2 O INTRADISCURSO
2.1 ELEMENTOS POÉTICOS E TEÓRICOS
Dividindo seus escritos principais em dois ciclos, do Absurdo e da Revolta, Camus
desenvolveu uma obra projetada para muitos anos e figurada sob várias formas. Ele se
exprimiu em três grandes gêneros: a narrativa sob forma de romances e contos, as peças de
teatro e os ensaios filosóficos ou críticos, além dos escritos jornalísticos. No próprio interior
da obra narrativa apresenta-se uma real variedade de modos de narração. Tratando em modos
discursivos diferentes uma problemática comum que confere unidade ao conjunto, Camus
transita pelos campos da literatura, da filosofia e do jornalismo, e seus textos de ficção dão
uma versão romanesca da reflexão filosófica que ele prossegue em seus escritos teóricos. Ele
conjuga a criação poética com a reflexão ideológica: seus romances e peças de teatro têm
como pano de fundo sua visão filosófica do Absurdo e da Revolta, seus ensaios filosóficos
apresentam os recursos e as imagens próprios dos textos poéticos.
Camus privilegia uma determinada concepção de literatura e também de filosofia,
propõe um diálogo entre os campos do saber e busca se definir por oposição aos romancistas
de tese e aos filósofos profissionais. Ele não vê a filosofia como discussão abstrata e
sistematizada, como doutrina fechada, mas como reflexão crítica sobre as questões que mais
diretamente atingem o homem, como um questionamento que pode estar presente em textos
poéticos.
Camus afirma que não é filósofo: ―Je ne suis pas un philosophe et je n‘ai jamais
prétendu l‘être‖ (CAMUS, 1965, p.743). É verdade que ele ―não crê o bastante na razão para
crer num sistema‖ e se recusa a entrar nas formas reconhecidas e tradicionais da filosofia. O
filósofo tenta dar respostas de maneira abstrata, o romancista encarna questões, mais que
respostas, na consistência do mundo concreto; Camus é acima de tudo um artista. Por outro
17
lado, esta afirmação parece funcionar como uma forma de prevenção às exigências que são
impostas àqueles que se propõem como filósofos. Antes dele, Nietzsche se propunha
inicialmente como filólogo, na busca de ocupar um espaço no campo da filosofia.
Criticando o conceito abstrato e defendendo a imagem, Camus propõe uma imbricação
entre os campos. À época de sua publicação, a dimensão poética dos ensaios Le Mythe de
Sisyphe e L'Homme révolté foi interpretada como ausência de rigor filosófico, porque
prevalecia, na França, a tradição do discurso filosófico de caráter teórico, construído
sobretudo a partir de conceitos. No entanto, este ―modelo‖ de escrita filosófica foi
questionado, da mesma forma que a exigência de separação definida entre as áreas do saber.
Como observa Michel Foucault:
É preciso também que nos inquietemos diante de certos recortes ou
agrupamentos que já nos são familiares. É possível admitir, tais como são, a
distinção dos grandes tipos de discurso ou a das formas ou dos gêneros que
opõem, umas às outras, ciência, literatura, filosofia, religião, história, ficção
etc., e que as tornam espécies de grandes individualidades históricas? Nós
próprios não estamos seguros do uso dessas distinções no nosso mundo de
discursos, e ainda mais quando se trata de analisar conjuntos de enunciados
que eram, na época de sua formulação, distribuídos, repartidos e
caracterizados de modo inteiramente diferente: afinal, a ―literatura‖ e a
―polìtica‖ são categorias recentes que só podem ser aplicadas à cultura
medieval, ou mesmo à cultura clássica, por uma hipótese retrospectiva e por
um jogo de analogias formais ou de semelhanças semânticas; mas nem a
literatura, nem a política, nem tampouco a filosofia e as ciências,
articulavam o campo do discurso no século XVII ou XVIII, como o
articularam no século XIX (FOUCAULT, 2002, p.25).
A classificação que Camus confere a seus textos se revela importante e de alguma
forma portadora de sentido e a vemos como ainda mais significativa ao considerarmos que
não foi feita a posteriori, só depois da conclusão ou publicação das obras. Ao contrário disso,
sabemos através de seus comentários em conferências ou entrevistas e através de anotações
em seus Carnets, desde 1941, que tal organização ou divisão de seus escritos foi elaborada
bastante cedo e funciona como um plano, um projeto de trabalho que ele impõe a si mesmo a
18
partir de determinado momento. Ele fala deste plano preciso num discurso em Estocolmo, em
1957, ao receber o prêmio Nobel:
J‘avais un plan précis quand j‘ai commencé mon oeuvre: je voulais d‘abord
exprimer la négation. Sous trois formes. Romanesque: ce fut L’Étranger.
Dramatique: Caligula, Le Malentendu. Idéologique: Le Mythe de Sisyphe.
[...] je prévoyais le positif sous les trois formes encore. Romanesque: La
Peste. Dramatique: L’État de siège et Les Justes. Idéologique: L’Homme
révolté (CAMUS, 1965, p.1610).
Mas há anotações datadas de 1947 e outras bem anteriores; assim, em 21 de fevereiro
de 1941, Camus escreve em seu Carnet: ―Terminé Sisyphe. Les trois absurdes sont achevés‖
(CAMUS, 1962, p.224). Já invocando o engajamento sócio-político de Camus e sua busca de
uma ética, Roger Grenier faz alusão às noções de Absurdo e Revolta, a partir das quais se
constrói o plano de conjunto em que se organiza sua obra:
Peut-être parce qu‘il était d‘origine très humble et qu‘il avait dû se battre
pour conquérir le droit à la culture, il ne pouvait se contenter d‘être un
artiste. Il n‘a rien d‘un dilettante, ni d‘un sceptique, ni d‘un cynique. Il
cherche à se faire du monde une vision cohérente, dont découlera une
morale, c‘est-à-dire une règle de vie. Si sa première analyse le conduit à
conclure à l‘absurde, ce n‘est pas pour s‘y complaire, mais pour chercher
une issue, la révolte, l‘amour (GRENIER, 1987, p.9).
Nas classificações de sua obra, Camus começa com L’Étranger, não mencionando
Révolte dans les Asturies (1936), L’Envers et l’endroit (1937), Noces (1938) e La Mort
heureuse. Há ainda Lettres à un ami allemand (1945) e as obras que são posteriores a
L’Homme révolté: L’Été (1954), La Chute (1956), Réflexions sur la guillotine (1957) (cujo
tema está presente particularmente em L’Étranger e na Peste), L’Exil et le royaume (1957)
(coletânea de contos, da qual faz parte La Pierre qui pousse, fruto de sua visita ao Brasil) e Le
Premier homme (1995). Os textos de Camus escritos para jornais, geralmente editoriais, e
seus ensaios políticos foram publicados sob o título de Actuelles (1950), Actuelles II (1953) e
19
Actuelles III (1958). Os textos agrupados sob os dois ciclos são as obras principais do escritor
mais conhecidas, lidas e estudadas, os demais textos não obtiveram o mesmo estatuto.
Não abordamos diretamente estes textos, mas consideramos que o fato de Camus não
os mencionar em suas classificações não significa que ele os visse como desprovidos de valor
literário; certamente não os julgava suficientemente elaborados, sobretudo os do início de sua
carreira. Eles têm, contudo, sua importância, principalmente L’Envers et l’endroit, o primeiro
a ser publicado, na Argélia em 1937 e na França só em 1958, que apresenta em esboço os
grandes temas desenvolvidos em trabalhos posteriores. Camus via nesta pequena obra a fonte
secreta que alimenta tudo mais que escreve, daí sua importância para o estudo de outros
textos.
Camus nunca negou sua origem proletária e destacou mais tarde como os primeiros
textos escritos no ambiente da terra onde nasceu e da origem pobre são marcantes para seu
futuro como escritor:
Pour moi, je sais que ma source est dans l’Envers et l’Endroit, dans ce
monde de pauvreté et de lumière où j‘ai longtemps vécu et dont le souvenir
me préserve encore des deux dangers contraires qui menacent tout artiste, le
ressentiment et la satisfaction (CAMUS, 1965, p.6).
Le Premier homme (1995), sua última obra, de publicação póstuma e bastante tardia,
constitui uma obra inacabada e não se pode esquecer seu caráter de redação incompleta e
provisória. Além dos temas do Absurdo e da Revolta, Camus pretendia prolongar sua obra
numa terceira etapa, que a morte prematura o impediu de concretizar, cujo tema seria o Amor.
De acordo com o testemunho de amigos, Camus projetava um grande romance "mais
elaborado" e longo em torno do tema do amor. Conforme as palavras de Salvador de
Madariaga:
Et puis Camus possédait au plus haut degré une qualité qui marque le génie,
et qui n‘est autre que la modestie. Si le talent peut être vaniteux et fat, le
20
génie est toujours modeste. Quelques semaines avant sa mort, à Paris, me
parlant d‘un grand projet littéraire qui occupait son esprit, il me dit tout
simplement, avec une gentillesse presque enfantine : "Je ne sais pas encore si
je trouverai en moi la force de le mener à bout." Voilà, me disais-je, en
regardant ses yeux droits, l‘attitude naturelle au génie vraiment créateur [...]
(MADARIAGA In : BLANCHOT et alii, 1967, p.148).
Há ainda o testemunho de Giacomo Antonini, que retoma os ciclos em que se divide a
obra do autor:
[...] il me traça brièvement le plan de toute son oeuvre. Première étape :
L’Étranger, Le Mythe de Sisyphe, Caligula et Le Malentendu, la même idée
développée de trois manières différentes dans le domaine du roman, celui de
l‘essai et au théâtre. Deuxième étape : La Peste, L’Homme révolté, Les
Justes, où sa prise de position, sa réaction contre l‘absurde de l‘existence
dénoncé dans les oeuvres de la première étape trouvait son expression. La
Chute et les nouvelles qu‘il allait réunir dans le volume L’Exil et le Royaume
étaient un intermède avant la troisième étape, qui serait la plus importante et
qui commencerait avec un roman, un véritable roman. De ce roman, il me
parla la dernière fois que nous nous vîmes, quelques semaines avant sa fin si
affreuse, brusque et inattendue. A ce roman, il attachait beaucoup de prix.
Un essai devait d‘ailleurs suivre plus tard. Comme je lui faisais remarquer
que les offres qui lui parvenaient de tous les côtés auraient interféré dans son
travail de romancier en retardant l‘exécution de son projet, il me dit : "Non,
j‘ai tout refusé et je refuserai tout en 1960. Ce sera l‘année de mon roman.
J‘ai tracé le plan et je me suis mis sérieusement au travail. Ce sera long, mais
j‘y parviendrai." (ANTONINI In : BLANCHOT et alii, 1967, p.172)
Ao receber o prêmio Nobel Camus afirma que não se considera um autor "acabado" e
que sua obra ainda está por vir. O projeto de um romance pode ser também deduzido das
notas em que projeta, na seqüência do tema da Revolta, o tema do amor. De toda forma,
cremos que o romance do qual Camus chegou a falar aos amigos não pode ser identificado
com Le Premier homme. Não podemos tecer considerações sobre a obra que ele não pôde
concretizar, mas a existência deste projeto, mesmo não levado a cabo, lança uma luz sobre a
obra existente.
Neste sentido, ao conceber a produção como uma globalidade em que as obras
dialogam e ao mesmo tempo parecem caminhar num crescendo, as primeiras funcionando
como uma espécie de treinamento executado com muita liberdade, podemos considerar toda a
21
obra de Camus, inclusive os dois grandes romances que o tornaram mundialmente conhecido,
como ensaios, ou essais, no sentido que o francês revela melhor, por abarcar ao mesmo tempo
a dimensão mais geral e corriqueira de tentativa ou "ensaio" e a dimensão de gênero
inaugurado na França por Montaigne (mesmo se vai sofrendo modificações ao longo do
tempo, a ponto de hoje se poder distinguir entre ensaio filosófico, literário, lírico etc.). Além
disso, estes romances, mesmo não constituindo obras de tese, podem ser considerados como
portadores de uma dimensão filosófica ou "ideológica" que lhes é subjacente, um pouco à
maneira dos romances de André Malraux (na Peste, o Dr Rieux, Rambert e Tarrou são
personagens de ação, mas, como os heróis de Malraux, refletem muito sobre o sentido desta
ação) ou daqueles de José Saramago (para tomarmos um autor mais recente, e que intitula
justamente Ensaio sobre a cegueira um romance que apresenta em alguns momentos
semelhanças tocantes com La Peste).
As adaptações de peças para o teatro são textos também particulares, sob certo
aspecto. Não são totalmente obras de Camus, visto que ele parte de textos prontos. Mas as
modificações por ele efetuadas são sinais de seu trabalho criativo e marcas de seu estilo. Além
disso, a própria opção de Camus ao escolher determinados autores e determinadas obras, ao
invés de outros, já é significativa. Esta escolha é uma forma de aprovação. Ele adapta La
dévotion à la croix, de Calderón de la Barca (1952), Les Esprits, de Pierre de Larivey (1953),
Un cas intéressant, de Dino Buzatti (1955), Le Chevalier d’Olmedo, de Lope de Vega
(1957), Requiem pour une none, de William Faulkner (1957) e Les Possédés, de Dostoievski
(1959).
De fato, ele toma peças de autores que admira, sendo que reconhece uma espécie de
filiação a alguns deles, como é o caso de Malraux et Dostoievski. O primeiro espetáculo do
"Théâtre du Travail", vinculado ao Partido Comunista e fundado por Camus quando estava
ainda na Argélia, foi Le Temps du mépris, adaptação do texto de Malraux, publicado na
22
França em 1935. Como afirma Roger Grenier, "Le Temps du mépris avait le mérite d‘être la
première oeuvre littéraire, en France, à traiter du nazisme et des ses horreurs" (GRENIER,
1987, p.39). A opção de Camus por esta peça, encenada em 1936, e cuja arrecadação foi
destinada a apoiar um grupo de desempregados, mostra o despertar bastante precoce de sua
consciência política. Além disso, Camus faz uma transposição de um gênero para outro, não
retoma apenas peças, mas adapta romances para o teatro. E dá características de peças ao
romance: vale lembrar a estrutura de La Peste, da qual trataremos adiante, que é semelhante à
de uma peça de teatro.
2.2 O DIÁLOGO DAS OBRAS
Buscamos nos concentrar em nossa pesquisa sobre os textos de Camus que compõem
o Ciclo da Revolta, mas é preciso evocar de certa forma os textos da primeira fase, do Ciclo
do Absurdo, e outros escritos não agrupados nesta subdivisão, porque, da mesma forma que
Camus busca associar reflexão e texto poético, há também um diálogo subjacente entre suas
obras e as de autores que ele aprecia, como Jean Grenier, Malraux, Gide e Dostoievski, por
exemplo. E, finalmente, há um diálogo interno constante entre suas próprias obras que, de
alguma maneira, se referem umas às outras.
Em 1937, Camus publica uma coletânea de ensaios, L'envers et l'endroit, em que estão
presentes elementos autobiográficos e uma reflexão de ordem moral é filosófica. E ainda
temas que retornam em obras posteriores como a vida cotidiana, a solidão, a estranheza para
os outros e para si próprio, a beleza da natureza mediterrânea, a felicidade e a infelicidade de
viver, a condenação à morte. O ―eu‖ narrador dos ensaios afirma ao mesmo tempo sua
subjetividade e sua relação com o mundo. Em Noces há um ―nós‖ que valoriza a comunhão
com os outros, necessária ao pleno desenvolvimento da alegria, mesmo se não se trata ainda
do senso do coletivo, presente na Peste.
23
L'État de siège é muito próximo da Peste e ante alguns críticos que viam na peça uma
transposição do romance, Camus afirma que não se trata de uma adaptação e que o projeto da
peça precedia o do romance. L'Étranger contém ―a história do Tchecoslovaco‖ que servirá de
tema ao Malentendu, e é toda a história do Malentendu, com a diferença de que, na peça, Jan
volta sem filho e que ele é dopado e em seguida afogado e não assassinado a golpes de
martelo:
Entre ma paillasse et la planche du lit, j‘avais trouvé, en effet, un vieux
morceau de journal presque collé à l‘étoffe, jauni et transparent. Il relatait un
fait divers dont le début manquait, mais qui avait dû se passer en
Tchécoslovaquie. Un homme était parti d‘un village tchèque pour faire
fortune. Au bout de vingt-cinq ans, riche, il était revenu avec une femme et
un enfant. Sa mère tenait un hôtel avec sa soeur dans son village natal. Pour
les surprendre, il avait laissé sa femme et son enfant dans un autre
établissement, était allé chez sa mère qui ne l‘avait pas reconnu quand il était
entré. Par plaisanterie, il avait eu l‘idée de prendre une chambre. Il avait
montré son argent. Dans la nuit, sa mère et sa soeur l‘avaient assassiné à
coups de marteau pour le voler et avaient jeté son corps dans la rivière. Le
matin, la femme était venue, avait révélé sans le savoir l‘identité du
voyageur. La mère s‘était pendue. La soeur s‘était jetée dans un puits. J‘ai dû
lire cette histoire des milliers de fois. D‘un côté, elle était invraisemblable.
D‘un autre, elle était naturelle. De toute façon, je trouvais que le voyageur
l‘avait un peu mérité et qu‘il ne faut jamais jouer (CAMUS, 1962, p.1182).
Este comentário, em L'Étranger, sobre a história é válido também para Le Malentendu
— “D‘un côté, elle était invraisemblable. D‘un autre, elle était naturelle‖ — e é retomado
quase literalmente na Peste: ―Ces faits paraîtront bien naturels à certains et, à d‘autres,
invraisemblables au contraire‖ (CAMUS, 1962, p.1221). Camus inseriu na Peste outra
referência a L'Étranger:
Grand avait même assisté à une scène curieuse chez la marchande de tabacs.
Au milieu d'une conversation animée, celle-ci avait parlé d'une arrestation
récente qui avait fait du bruit à Alger. Il s'agissait d'un jeune employé de
commerce qui avait tué un Arabe sur une plage. "Si l'on mettait toute cette
racaille en prison, avait dit la marchande, les honnêtes gens pourraient
respirer." (CAMUS, 1962, p.1262)
24
La Peste também traz uma lembrança do Malentendu, pois aì se lê: ―Compreendi que
toda a infelicidade dos homens vinha do fato de que eles não mantinham uma linguagem
clara‖, e a falta de transparência na comunicação e na linguagem é justamente um dos temas
do Malentendu. Nos Carnets de Camus, em dezembro de 1938, há observações referentes a
Caligula, ao lado de notas ou de fragmentos para La Peste. O próprio Calígula surge como
encarnação da peste: ―C‘est moi qui remplace la peste‖ (CAMUS, 1962, p.94), o que mostra
que, para Camus, a noção de flagelo e o símbolo da peste são indissociáveis da representação
do mal.
As peças de teatro de Camus que ele inclui na temática da Revolta são L'État de siège
e Les Justes. Sobre estas peças, os escritos jornalísticos e os textos autobiográficos, não nos
detemos; fazemos referência a estes textos com o objetivo de destacar a diversidade de
gêneros com que se faz a produção de Camus.
Em 1935 Camus assumiu a Maison de Culture de Argel e, ainda em Argel, fundou, no
ano seguinte, o ―Théâtre du travail‖. Camus era membro do Partido Comunista, ao qual aderiu
em 1935 e no qual permaneceu até 1937. Suas atividades dentro do partido se concentravam
no recrutamento em meio muçulmano e na condução da companhia, que se propunha como
popular e revolucionária, e nela Camus trabalhou como animador, ator, diretor, encenador e
freqüentemente adaptador. Era a primeira manifestação de sua paixão pelo teatro. Seu
ingresso no campo do teatro, da mesma forma que sua entrada no jornalismo, está associado a
um posicionamento político, o que mostra que as atividades do escritor como jornalista e
como dramaturgo são inseparáveis, desde o início de sua carreira, de seu engajamento social.
Camus desenvolveu suas atividades teatrais no ―Théâtre du Travail‖ de 1935 a 1937.
Depois da ruptura com o PC fundou outra companhia teatral: ―L‘Équipe‖, e nela trabalhou de
1937 a 1939. Ele montou algumas peças, como Révolte dans les Asturies, que relata a revolta
dos trabalhadores das minas de Oviedo, em 1934. Esta peça era uma criação coletiva, escrita
25
em parte e dirigida por ele; julgada subversiva pelo prefeito de Argel, teve por isso sua
representação proibida. Camus adaptou e montou ainda Le Retour de l’enfant prodigue, de
Gide, Le Temps du Mépris, de André Malraux, Le Paquebot Tenacity, de Vildrac, La Femme
silencieuse, de Ben Johnson, Le Prométhée, de Ésquilo e Os irmãos Karamazov, de
Dostoievski, entre outros.
Enquanto autor propriamente dito, Camus tem uma obra dramática bastante reduzida:
Caligula (1944), Le Malentendu (1944), L'État de siège (1948) e Les Justes (1950). A partir
de 1952, voltou de forma mais intensa ao teatro e retomou suas adaptações: La dévotion à la
croix, de Calderón de la Barca (1952), Les Esprits, de Pierre de Larivey (1953), Un cas
intéressant, de Dino Buzatti (1955), Le Chevalier d’Olmedo, de Lope de Vega (1957),
Requiem pour une none, de William Faulkner (1957) e Les Possédés, De Dostoïevsky
(1959). Além disso, o teatro foi para Camus uma de suas paixões, não só como forma de
escrita, mas principalmente como lugar de uma comunhão, graças a sua dimensão comunitária
e de equipe. Em 1958, numa entrevista, ele destacou a importância que dava ao teatro:
Je retrouve au théâtre cette amitié et cette aventure collective dont j‘ai besoin
et qui sont encore une des manières les plus généreuses de ne pas être seul.
[...] Avec la littérature, cette passion est au centre de ma vie. Je m‘en rends
mieux compte maintenant (CAMUS, 1962, p.1713).
Em Les Justes deparamo-nos com um grupo de revolucionários russos que, em 1905,
prepara um atentado contra o grão-duque. Kaliayev, o terrorista encarregado de lançar a
bomba não o faz na primeira tentativa porque ao lado do duque há duas crianças. Camus
levanta aqui o problema do terrorismo em suas relações com a Revolta e com a revolução.
Qual o valor de uma ação revolucionária se ela é contaminada pelo crime e pela desonra? É a
mesma questão que subjaz ao ensaio L'Homme révolté, como combater o mal e a injustiça
sem recair no crime, como lutar contra a violência sem agir violentamente? Como no ensaio, e
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como na Peste, as falas dos personagens assumem freqüentemente o tom de uma discussão
ética.
KALIAYEV: Non. Je sais ce qu‘il pense. Schweitzer le disait déjà: "Trop
extraordinaire pour être révolutionnaire." Je voudrais leur expliquer que je
ne suis pas extraordinaire. Ils me trouvent un peu fou, trop spontané.
Pourtant, je crois comme eux à l‘idée. Comme eux, je veux me sacrifier.
Mois aussi, je puis être adroit, taciturne, dissimulé, efficace. Seulement, la
vie continue de me paraître merveilleuse. J‘aime la beauté, le bonheur !
C‘est pour cela que je hais le despotisme. Comment leur expliquer ? La
révolution, bien sûr ! Mais la révolution pour la vie, pour donner une chance
à la vie, tu comprends ? (CAMUS, 1962, p.322)
"Les Meurtriers délicats", um capítulo de L'Homme révolté, trata dos terroristas russos
de 1905, o que nos permite pensar que a peça teve sua origem durante a longa preparação do
ensaio.
L'État de siège foi realizado com a colaboração de Jean-Louis Barrault que, após a
publicação da Peste, propôs a Camus a realização de um espetáculo sobre o tema. Não se trata
de uma peça de estrutura tradicional, mas de um espetáculo em que se busca reunir todas as
formas de expressão dramática, não é, contudo, como explicou Camus, uma adaptação do
romance. Pelo fato de que o único meio de vencer a peste é não ter medo, o tema da Revolta
se manifesta:
LA SECRÉTAIRE: Il y a une malfaçon, mon chéri. Du plus loin que je me
souvienne, il a toujours suffi qu‘un homme surmonte sa peur et se révolte
pour que leur machine commence à grincer. Je ne dis pas qu‘elle s‘arrête, il
s‘en faut. Mais enfin, elle grince et, quelquefois, elle finit vraiment par se
gripper (CAMUS, 1962, p.273).
Ao situar o desenvolvimento da ação em Cadix, Camus fez uma denúncia direta do
sistema de Franco na Espanha. A representação da peça, apesar da expectativa criada pela
associação entre um diretor e um autor já renomados, não obteve sucesso de público.
Os textos jornalísticos de Camus, em sua maioria editoriais, são textos de estatuto
particular. Pela sua especificidade, estão diretamente associados aos acontecimentos da
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história e se voltam prioritariamente para o momento em que são escritos, mas constituem ao
mesmo tempo espaço privilegiado para o autor desenvolver sua reflexão, estreitamente
relacionada com aquela presente nos ensaios. Para os estudiosos, estes textos podem despertar
um interesse especial e funcionar como fonte de esclarecimento para as demais produções do
autor, sobretudo porque transparecem neles, de forma mais direta, as concepções éticas e
políticas bem como os posicionamentos do autor na sociedade e nos campos dos saberes, e
estes textos jornalísticos refletem igualmente seu engajamento social.
Camus trabalhou como jornalista com entusiasmo e idealismo, esta atividade era para
ele uma verdadeira profissão. Ele propunha um jornalismo crítico e sério, criticava os meios
de comunicação que se preocupava mais em informar rapidamente do que em informar bem,
sem separar os fatos das interpretações, e criticava sobretudo a manipulação possível da
informação a que alguns jornais se entregavam. Ou seja, trata-se de um jornalismo crítico da
realidade histórica e, ao mesmo tempo, crítico sobre seu próprio papel.
Camus iniciou sua carreira de jornalista na Argélia, em outubro de 1938, trabalhando
no "Alger Républicain", o jornal do qual Pascal Pia era o redator-chefe e que fora fundado em
Argel para se constituir como órgão do ―Front populaire‖. Além de crônicas judiciárias e
literárias, Camus publicou comentários polêmicos da vida política de Argel, e fez reportagens
politizadas, como ―Misère de la Kabylie‖, de 1939. Por causa da Guerra, ―Alger Républicain‖
se tornou ―Le Soir Républicain‖, do qual Camus foi redator-chefe até inícios de 1940. Após
muitos problemas com a censura o jornal foi fechado definitivamente. Camus, sem trabalho,
deixou a Argélia e foi para a França; com exceção de uma estada no ano seguinte, ele só
voltará à Argélia de tempos em tempos.
No inìcio de 1940, Camus estava em Paris e trabalhava no jornal ―Paris-Soir‖, como
secretário de redação. Em 1943, ele se uniu aos dirigentes do movimento de resistência
―Combat‖, participou ativamente desse movimento e do jornal clandestino de mesmo nome,
28
do qual foi redator-chefe de 1944 a 1947. Em 21 de agosto de 1944 saiu o primeiro número de
―Combat‖ fora da clandestinidade, com um notável editorial de Camus. Sua participação no
jornal foi intensa: em maio de 1945 protestou contra a repressão dos motins de Sétif, em
agosto foi um dos raros a denunciar o horror das bombas atômicas lançadas sobre Hiroshima e
Nagasaki: ―La civilisation mécanique vient de parvenir à son dernier degré de sauvagerie‖;
em 1946 publicou uma série de artigos: Ni victimes ni boureaux; em 1949 lançou um apelo
em favor dos comunistas gregos condenados à morte.
Durante algum tempo o jornal foi não só o mais lido como também o mais respeitado
da França, e a atividade de Camus em ―Combat‖ contribuiu muito para sua popularidade.
L'Étranger fora publicado em 1942 e obtivera um sucesso imediato. Dessa forma, a produção
literária aumentava o prestígio do editorialista, ao mesmo tempo em que a atividade do
editorialista refletia na divulgação de sua produção literária. Esta situação perdurou durante
um longo tempo, exceto nos países dominados pelo comunismo, como a Tchecoslováquia, a
Alemanha Oriental, a Hungria, a Polônia e a China, entre outros, nos quais o nome e a pessoa
do autor foram proscritos, depois que ele foi rotulado de anti-comunista em função de suas
críticas ao sistema. Conforme Shaoyi Wu: "À la suite de la fondation de la Chine populaire,
durant trente ans, de 1949 à 1979, la Chine a prohibé les oeuvres de l‘écrivain français Albert
Camus; et sa personne n‘a jamais été présentée dans ce pays." (WU. In : DUBOIS, 1995,
p.283)
Camus voltou ao jornalismo em 1955, com uma série de artigos no jornal
―L‘Express‖. Seus artigos em ―Alger Républicain‖ e em ―Soir Républicain‖, particularmente
a reportagem intitulada ―Misère de la Kabylie‖, sua posição em favor de uma paz verdadeira,
a participação na Resistência, os editoriais de ―Combat‖, são testemunhos de um engajamento
com a comunidade social, são modos de ação e mostram uma consideração da história e uma
luta em favor da justiça, da liberdade, da democracia, do respeito e da dignidade do homem.
29
Os escritos mais diretamente autobiográficos de Camus assumiram a forma de
Carnets, que não constituem um diário, tratando-se, às vezes, de simples anotações em vistas
à elaboração de seus textos de narrativas ou ensaios. Na verdade, na Peste, as referências à
própria biografia feitas por Camus são extremamente discretas e sutis, evitando-se toda forma
de subjetividade exacerbada ou de narcisismo. São dados de um escritor engajado, mas
comuns a outros escritores engajados que viveram o mesmo momento do século XX. Há
ainda o caso de Le Premier Homme, que poderia ser visto como uma espécie de auto-ficção,
de romance/autobiografia, como também outros escritores parecem produzi-los, mesmo sem
se darem conta.
O primeiro volume dos Carnets de Camus foi publicado em 1962 com o título Carnets
I - mai 1935 - février 1942. Suas anotações feitas durante as viagens à América do Norte e à
América do Sul foram publicadas à parte, com o título de Journaux de voyage, 1946-1949. Há
de se observar que os Carnets de Camus eram, na verdade, cahiers e que o título Carnets foi
mantido pelos editores para se evitar confudi-los com os Cahiers Albert Camus, agrupamento
de textos de teóricos sobre o autor.
Ao apresentar suas observações e reflexões sob a denominação de Carnets, Camus
busca evitar a conotação narcisística ligada ao diário (Journal), principalmente se é
qualificado de "íntimo".
A escrita dos Carnets de Camus é mais próxima do texto "jornalístico" que do texto
de "diários": é uma forma simples, fragmentária, que registra notas, um instante, um palavra
ou uma cena. Neles Camus registra momentos vividos, conversas, paisagens, anedotas,
leituras, idéias, reflexões, projetos de obras futuras, títulos, fragmentos de diálogos, esboços
de personagens, etc. Trata-se de uma preparação para a atividade de escrita, sem uma
coerência verdadeira, como temática autobiográfica. Camus afirma: ―Une pensée profonde est
en continuel devenir, épouse l‘expérience d‘une vie et s‘y façonne. De même, la création
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unique d‘un homme se fortifie dans ses visages successifs et multiples que sont les oeuvres‖
(CAMUS, 1965, p.190). E ainda: ―Je ne crois pas, en ce qui me concerne aux livres isolés.
Chez certains écrivains, il me semble que leurs oeuvres forment un tout où chacune s‘éclaire
par les autres, et où toutes se regardent.‖ (CAMUS, 1965, p.743), o que mostra que, para o
autor, a interpenetração de suas obras e o diálogo entre elas não é um fenômeno casual, mas
corresponde a uma intenção deliberada.
2.3 MORTE E ABSTRAÇÃO
O tema da morte, relacionado com as noções de Absurdo e de Revolta, é um dos mais
recorrentes na obra de Camus. Através dele também se constrói o diálogo entre os textos.
Este tema está presente nas quatro peças de teatro: Caligula se estrutura em torno das mortes
de Drusila, a daqueles que Calígula manda executar e de sua própria morte; Le Malentendu
fala do assassinato por engano de Jan, cometido por sua mãe e sua irmã, que se suicidam; Les
Justes discute o assassinato como arma da revolução e questiona a morte dos inocentes; L'État
de Siège trata da morte "em massa", numa perspectiva muito próxima daquela desenvolvida
na Peste. O tema também é central nos dois romances e nos dois ensaios: L'Étranger se
desenvolve em torno de três mortes: a da mãe de Meursault, a do árabe e a do próprio
Meursault; La Peste mostra a todo momento a presença da morte como conseqüência do
flagelo. Le Mythe de Sisyphe se inicia com uma discussão sobre a morte voluntária, que é
vista como uma tentativa malograda de escapar ao Absurdo; em L'Homme révolté se discute a
morte imposta aos outros, como crime, muitas vezes justificado por uma ideologia.
Há aspectos que Camus considera absurdos na condição humana e que são inevitáveis,
o que não significa que devam ser aceitos com resignação; entretanto, o que lhe parece
duplamente absurdo são as "complicações" humanas, os sofrimentos criados pelos próprios
31
homens. É por isso mesmo que se a morte é sempre um absurdo, mais absurda é a morte que
alguns homens impõem a outros.
Essa idéia de ―complicação‖ é evocada por Camus: ―Oui, tout est simple. Ce sont les
hommes qui compliquent les choses‖ (CAMUS, 1965, p.30); ela nos ajuda a entender que na
noção de Absurdo há pelo menos dois sentidos básicos: um primeiro, de gratuidade e de
contingência que engloba o aspecto do conflito entre os anseios humanos e a indiferença do
mundo (ou em outros termos, o aspecto do caráter não dedutível do mundo, da
impossibilidade de uma compreensão exaustiva da realidade e o aspecto do gratuito que
emerge na vida humana, aspectos que seriam inerentes à próxima situação humana, mesmo
numa realidade própria dos ideais de justiça e de liberdade); e um segundo sentido, de
absurdo enquanto ―complicação‖, ou seja, o aspecto ―irracional‖ da humanidade que atenta
contra si própria, tanto do ponto de vista individual quanto social, trata-se aqui do absurdo
enquanto soma de males que os homens trazem à precariedade já presente em sua existência.
Essa complicação, em sua versão extrema, conduz à condenação à morte, decorrência
de uma "ideologia", ou seja, de uma abstração que, por trás de um discurso baseado no
convencional e sustentado por posicionamentos intransigentes, justifica o crime. A crítica do
dogmatismo e do convencional, a condenação do burocrático e da "abstração" são temas
também presentes de maneira constante nos diferentes textos de Camus e estreitamente
relacionados com o tema da morte. Trata-se de uma crítica do crime e do convencional na
política, nas instituições que detêm o poder e na religião. Esta crítica, mais forte em textos
como Réflexions sur la guillotine e La Peste, está presente em obras anteriores,
particularmente em L'Étranger, através da sátira do aparelho judiciário e da denúncia das
conseqüências criminosas do discurso e do poder dos magistrados que agem de maneira
hipócrita, convencional e dogmática.
32
No romance L'Étranger, duas mortes caracterizam bem essa distinção e são como que
reflexos marcando esse duplo sentido do Absurdo. A morte do árabe, mesmo configurando
um crime cometido por Meursault, não aparece com a força de um homicídio, por causa das
circunstâncias em que ocorreu, sem o elemento de premeditação e com Meursault num estado
de atordoamento; tanto que mesmo se ele é capaz, por um lado, de assumir as conseqüências
de seu ato, não consegue, por outro lado, explicar, nem para si mesmo, como foi capaz de
cometer tal crime; esta é uma das faces do Absurdo. A outra morte é a do próprio Meursault
que, mesmo aparecendo sob certo aspecto como uma punição e, portanto, como expressão da
justiça dos homens, pode ser vista como uma maquinação do aparelho judiciário e como uma
exigência criada pelos homens da lei. Ela aparece muito mais como uma necessidade forjada
pelo julgamento em si mesmo do que como uma sanção aplicada ao culpado. Por ser uma
pena desproporcional ao crime e por causa da forma como chegam a ela, ela pode figurar mais
como uma arbitrariedade de uma instituição do que como aplicação da justiça, de forma que o
leitor pode ter a impressão de que Meursault é muito mais vítima do que culpado; esta é a
outra face do Absurdo, enquanto atitude de pagar o mal com o mal e, sobretudo, enquanto
―complicação‖ feita pelos homens, no caso, os homens da lei que agem motivados muito mais
pelas convenções sociais e pelo desejo de vingança sobre uma presa fácil do que pelo ideal de
justiça.
Na Peste, a doença é a imagem de tudo que causa a morte. Há quem veja na
condenação à morte o tema central da obra, como Rachel Bespaloff, que afirma: ―le thème
central de son oeuvre [La Peste], c‘est la condamnation à mort. Peu importe, ici, que ce soit la
nature, le destin, la justice ou la cruauté humaines qui prononcent la sentence‖ (BESPALOFF,
1950, p.25). De fato, um elemento essencial no romance é a presença e a ameaça constante da
morte. Muitos morrem ao longo da história e um evento central, testemunhado por todos os
personagens principais, é a morte de uma criança. A luta contra a peste é, na verdade, um
33
combate contra a morte, e o personagem Tarrou justifica sua luta contra o flagelo afirmando:
"J'ai horreur des condamnations à mort!" (CAMUS, 1962, p.1321) A relação estreita entre La
Peste e L'Homme revolté, do qual trataremos abaixo, manifesta-se pela recorrência do tema da
morte e pela crítica ao crime e à condenação à morte.
No Mythe de Sisyphe, Camus fala da morte voluntária, que é vista não só como uma
expressão do Absurdo, mas como uma busca vã de escapar a ele. O ensaio se inicia com uma
discussão sobre o suicídio, que é visto, da mesma forma que a esperança, como uma tentativa
de negar o Absurdo. O suicídio atesta a absurdidade da existência, ele é um sintoma de que o
indivíduo se dá conta de que a existência não tem sentido, entretanto, ele não se justifica.
Embora pareça, à primeira vista, que a conclusão mais lógica à descoberta da absurdidade seja
o suicídio, a reflexão do Mythe de Sisyphe se esforça para demonstrar que esta lógica é falsa.
Para Camus, é um erro supor que recusar um sentido à vida conduz necessariamente à
conclusão de que ela não vale a pena ser vivida (Cf. CAMUS, 1965, p.103). Assim, Camus vê
no suicídio uma tentativa de escapar ao Absurdo, mas defende que o Absurdo exige a
resistência e não o consentimento:
On peut croire que le suicide suit la révolte. Mais à tort. Car il ne figure pas
son aboutissement logique. Il est exactement son contraire, par le
consentement qu‘il suppose. Le suicide, comme le saut, est l‘acceptation à sa
limite. [...] A sa manière, le suicide résout l‘absurde. Il l‘entraîne dans la
même mort. Mais je sais que pour se maintenir, l‘absurde ne peut se résoudre
(CAMUS, 1965, p.138).
Essa discussão sobre o duplo sentido da absurdidade, sobre a morte e sobre o suicídio
enquanto entrega e não resistência ao Absurdo nos mostra que, mesmo se no segundo ciclo
camusiano, aquele da Revolta, o tema do Absurdo já não ocupa o primeiro plano, ele não é,
contudo, nem esquecido nem superado pela Revolta. Os temas do Absurdo e da Revolta estão
imbricados e supõem um ao outro, mas a Revolta não é a solução do Absurdo, pois este é
insolúvel por definição, existe sempre e existe sob a forma de uma constante tensão ou
34
contestação. O importante é enfrentar este Absurdo, e ultrapassá-lo de certa maneira, através
do engajamento com a comunidade histórica.
2.4 CAMUS E A GRÉCIA CLÁSSICA
O diálogo com a cultura grega clássica presente em diferentes obras de Camus faz com
que estas obras se refiram umas às outras, reforçando assim o diálogo também entre elas.
Camus se interessava pelos gregos, conhecia os clássicos e muitas reescrituras de textos
clássicos por autores modernos. Os autores da Antigüidade são marcantes na formação
intelectual e na produção literária do escritor, que buscou entre os gregos modelos e motivos
de inspiração.
Admirador da Grécia clássica e estudioso de sua herança cultural, Camus associa a
cada ciclo de sua obra um mito grego e cada etapa se desenvolve à luz de uma figura
mitológica: Sísifo encarna o Absurdo e Prometeu, a Revolta; ao tema do Amor corresponderia
a figura de Nêmesis. Além disso, o "mito" constitui o fio condutor através do qual se
articulam imaginação e reflexão, como base da estética camusiana; e sua ética também é
marcada por elementos oriundos do pensamento grego, principalmente pela noção de "limite".
No Mythe de Sisyphe, a referência à mitologia está presente desde o título do ensaio.
Ao final desta obra, Camus desenvolve de maneira própria a versão grega do mito,
ressaltando alguns aspectos que ele valoriza de maneira especial: o gosto de Sísifo por este
mundo, pelo mar e pelo sol, seu desprezo pelos deuses, seu ódio contra a morte e seu amor
pela vida, enfim, sua lucidez: ―Si ce mythe est tragique, c‘est que son héros est conscient. Où
serait en effet sa peine, si à chaque pas l‘espoir de réussir le soutenait?‖ (CAMUS, 1965,
p.196)
35
Sísifo foi condenado principalmente por se mostrar astucioso a ponto de enganar a
própria morte. Ele a prendeu de maneira que ela não pôde levá-lo aos Infernos. Ao se dar
conta de que ninguém mais morria, Zeus mandou que soltassem a morte. Mas Sísifo tinha
outros estratagemas e havia de antemão instruído sua esposa a não lhe fazer funerais
adequados. Assim, ele pôde convencer Hades a deixá-lo partir de novo para o convívio entre
os vivos. Uma vez de volta ao mundo, Sísifo se recusou a retornar para junto dos mortos. Foi
preciso que a morte viesse buscá-lo à força. Ele é condenado, então, a empurrar sem fim um
rochedo até o alto de uma montanha. Ao chegar a alguns passos do cume, suas forças lhe
faltam e a pedra rola de novo para baixo. Ele deve então recomeçar seu esforço, sem fim, pois
sempre suas forças acabam no último momento.
Camus retoma a figura mitológica de Sísifo para fazer dele o símbolo da condição
humana e propõe que o imaginemos feliz. Camus qualifica Sísifo como último herói absurdo,
no ensaio em que busca demonstrar por que a vida, apesar da absurdidade do destino, merece
ser vivida. A pena de Sísifo seria uma metáfora da própria vida, percebe-se a absurdidade do
personagem tanto no desespero de tentar escapar a uma morte inevitável quanto na tentativa
de concluir um trabalho interminável.
Quanto a Prometeu, ele criou com um bloco de argila o primeiro homem. Não
querendo deixar sua criatura desprovida de tudo, foi roubar no carro do Sol uma faísca para
oferecê-la aos homens que, em sua ausência, tinham se multiplicado. Prometeu enganou o
próprio Zeus e este decidiu se vingar dele e dos mortais. Aos últimos enviou Pandora, bela
jovem, que espalhou todos os males sobre a Terra, ao abrir sua famosa caixa. O primeiro foi
preso sobre o mais alto cume do monte Cáucaso, onde, todo dia, durante séculos, uma águia
vinha lhe roer o fígado, que sem cessar crescia de novo. Por ter advertido Zeus a não desposar
Tétis, se o deus não quisesse ter um filho que o destronasse, Prometeu teve direito à
36
clemência e foi libertado. Para Camus, Prometeu é o grande amigo dos homens, o
philánthropos por excelência.
Nêmesis, na mitologia grega, é a deusa da proporção e da vingança dos crimes. Ela
representa a justiça distributiva e o ritmo do destino, encarnando a indignação face ao excesso
ou exagero. Ela castiga aqueles que "ultrapassam o limite", ou seja, que vivem um excesso de
felicidade entre os mortais, ou o orgulho excessivo entre os reis. Nas tragédias gregas
Nêmesis aparece principalmente como aquela que pune a hibris, o pecado da desmedida.
Associando diretamente as noções de Absurdo e de Revolta a personagens mitológicos
e cifrando os ciclos pela mitologia, Camus remete o conjunto de sua obra à cultura grega
clássica. Os mitos gregos fazem parte de seu universo intelectual: o Absurdo e a Revolta
tomaram definitivamente para ele as faces de Sísifo e de Prometeu. Na verdade, Camus se
interessou muito cedo pela antigüidade clássica e a presença dos gregos se manifesta em sua
concepção do teatro e também diretamente em outros textos, inclusive seu primeiro trabalho
acadêmico, uma monografia universitária que já revela um contato com o pensamento grego e
um interesse pelos clássicos. Em 1936, para a conclusão de seu curso universitário de
filosofia, ele escolheu como tema de sua monografia as relações entre helenismo e
cristianismo, abordando especificamente Plotino e Santo Agostinho; através do
neoplatonismo, é a Grécia que se revela objeto de sua escolha.
Camus era ao mesmo tempo alheio ao espírito religioso e profundamente marcado pela
inquietação metafísica. Na monografia universitária, confrontando cristianismo e pensamento
grego, Camus estuda a primeira tentativa de conciliação entre eles, aquela de Justino. Ele
aborda a Gnose, tentativa de conciliação entre o espírito de conhecimento e a busca de
salvação e, ao evocar Marcião, escreve já deixando transparecer sua própria visão de mundo,
ou seja, conjugando Absurdo e Revolta: ―Dans cette vue pessimiste sur le monde et ce refus
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orgueilleux d‘accepter, court la résonance d‘une sensibilité toute moderne. Aussi bien prend-
elle sa source dans le problème du mal‖ (CAMUS, 1965, p.1253).
Abordando Santo Agostinho, Camus o imagina dividido entre a sensualidade, o gosto
pelo racional e o desejo de fé que nasce da descoberta do mal. No trabalho, já aparecem as
reações pessoais de Camus, configuradas no Mythe de Sisyphe. Plotino fortalece nele o desejo
de compreender, Santo Agostinho opõe ao conhecimento limites intransponíveis. Plotino o
incita a desconfiar do arbitrário de toda fé, Santo Agostinho, dos devaneios da razão. Camus
parece então próximo dos gregos e fascinado por alguns temas cristãos. Admira Plotino que se
esforça para pôr o sentimento em formas lógicas, e é igualmente seduzido pela angústia
trágica de Santo Agostinho. A necessidade de coerência e a inquietude que Camus identifica
neste último parecem reflexos de suas próprias experiências. O trabalho demonstra ao mesmo
tempo uma simpatia pelo cristianismo, considerado como uma recusa da serenidade socrática,
como uma espécie de heroísmo espiritual, e também uma desconfiança ante o
providencialismo cristão.
Como afirma Roger Quilliot: ―Camus a peut-être plus appris sur lui-même en écrivant
ce diplôme que sur les pensées grecque et chrétienne: elles l‘ont simplement aidé à nommer
ses problèmes‖ (QUILLIOT in: CAMUS, 1965, p.1222). De fato, o Absurdo é em sua
origem, como aparece já em L'Envers et l'endroit, o apetite de conhecimento não satisfeito
nem pela razão nem pela fé; e o apetite de viver quebrado pela morte. Esta monografia,
enquanto uma das primeiras produções de Camus, revela seu desejo bastante precoce de
aprofundar seus conhecimentos sobre a filosofia grega.
Discutiremos à frente a relação entre elementos da cultura grega e os romances de
Camus, em particular La Peste, em que estão presentes uma dimensão mítica e trágica, e a
evocação direta de Orfeu e da simbologia a ele relacionada.
38
Quanto aos ensaios literários, L'Été é uma coletânea de oito pequenos ensaios dos
quais dois fazem referência direta à cultura grega: L'Exil d'Hélène e Prométhée aux enfers.
Segundo Roger Quilliot, cada um dos textos ―reste fidèle à la technique du mythe qui, selon
Camus, permet à l‘artiste et au moraliste de se rassembler‖ (QUILLIOT, in: CAMUS, 1965,
p.1817).
L'Exil d'Hélène é um canto à Grécia. Neste texto, Camus estabelece uma relação com
os problemas evocados em sua monografia, aponta a dissipação da herança grega pela
civilização européia e discute duas questões marcantes para os gregos: a busca quase
obsessiva da beleza e a noção de limite, que se revela, inclusive, no interior das tragédias.
Para o autor, os gregos não levaram nada além dos extremos, nem o sagrado nem a razão,
porque não negaram nenhum dos dois, mas, buscando a totalidade, souberam equilibrar a
sombra e a luz; os gregos não disseram que o limite não poderia ser transposto, disseram que
ele existe e que quem ousasse ultrapassá-lo seria atingido sem piedade.
Camus sublinha o que há na Europa de diverso ou mesmo de oposto às concepções
gregas e, evocando Nêmesis, escreve:
Notre Europe, au contraire, lancée à la conquête de la totalité, est fille de la
démesure. [...] Némésis veille, déesse de la mesure, non de la vengeance.
Tous ceux qui dépassent la limite sont, par elle, impitoyablement châtiés
(CAMUS, 1965, p.853).
Assim, para se tornarem legítimos herdeiros dos gregos, os europeus precisariam
aprender a reconhecer a ignorância, recusar o fanatismo, descobrir os limites do mundo e do
homem, amar a beleza. Antes disso, não se podem proclamar filhos da Grécia:
Voilà pourquoi il est indécent de proclamer aujourd‘hui que nous sommes
les fils de la Grèce. Ou alors nous en sommes les fils renégats. Plaçant
l‘histoire sur le trône de Dieu, nous marchons vers la théocratie, comme
ceux que les Grecs appelaient Barbares et qu‘ils ont combattus jusqu‘à la
mort dans les eaux de Salamine (CAMUS, 1965, p.854).
39
Prométhée aux enfers evoca a violência na qual a Europa se debatia há décadas e
levanta a questão do significado do mito no mundo moderno. Para Camus, Prometeu, figura
representativa da Revolta, é sempre um modelo para o homem de seu tempo:
Que signifie Prométhée pour l‘homme d‘aujourd‘hui? On pourrait dire sans
doute que ce révolté dressé contre les dieux est le modèle de l‘homme
contemporain et que cette protestation élévée, il y a des milliers d‘années,
dans les déserts de la Scythie, s‘achève aujourd‘hui dans une convulsion
historique qui n‘a pas son égale. Mais, en même temps, quelque chose nous
dit que ce persécuté continue de l‘être parmi nous et que nous sommes
encore sourds au grand cri de la révolte humaine dont il donne le signal
solitaire (CAMUS, 1965, p.841).
Segundo Camus, Prometeu é o herói que amou os homens o bastante para lhes dar ao
mesmo tempo o fogo e a liberdade, as técnicas e as artes. A humanidade moderna se preocupa
apenas com a máquina e com a técnica. Camus, mais uma vez, ressalta na figura mitológica
sua ousadia em desafiar os deuses e seu modelo de filantropia:
Le héros enchaîné maintient dans la foudre et le tonnerre divins sa foi
tranquille en l‘homme. C‘est ainsi qu‘il est plus dur que son rocher et plus
patient que son vautour. Mieux que la révolte contre les dieux, c‘est cette
longue obstination qui a du sens pour nous (CAMUS, 1965, p.844).
Camus conclui o ensaio evocando a importância e o significado dos mitos:
Les mythes n‘ont pas de vie par eux-mêmes. Ils attendent que nous les
incarnions. Qu‘un seul homme au monde réponde à leur appel, et ils nous
offrent leur sève intacte. [...] Si nous devons nous résigner à vivre sans la
beauté et la liberté qu‘elle signifie, le mythe de Prométhée est un de ceux qui
nous rappelleront que toute mutilation de l‘homme ne peut être que
provisoire et qu‘on ne sert rien de l‘homme si on ne le sert pas tout entier
(CAMUS, 1965, p.843).
Quanto ao teatro, Camus se interessou pelos grandes dramaturgos − Sófocles,
Eurìpides, Ésquilo, Aristófanes − e pelo teatro gregos, e particularmente pela tragédia. Ele
não reescreveu nenhuma peça grega, no entanto o Prometeu de Ésquilo foi uma das primeiras
peças encenadas por sua companhia teatral, o Théâtre du travail. A esta companhia sucedeu o
Théâtre de l’Équipe, em cujo manifesto encontramos referências a autores gregos e em cujo
projeto de repertório figuram peças clássicas:
40
Ainsi se tournera-t-il vers les époques où l‘amour de la vie se mêlait au
désespoir de vivre: la Grèce antique (Eschyle, Aristophane), l‘Angleterre
élisabéthaine (Forster, Marlowe, Shakespeare), l‘Espagne (Fernando de
Rojas, Calderon, Cervantes), l‘Amérique (Faulkner, Caldwell), notre
littérature contemporaine (Claudel, Malraux) (CAMUS, 1962, p.1692).
Por ocasião de uma viagem à Grécia, em 1955, Camus fez uma conferência em
Atenas, Sur le futur de la tragédie, na qual destaca que as grandes tragédias surgiram em
épocas muito excepcionais que deveriam, por sua própria singularidade, nos ensinar algo
sobre as condições de expressão do trágico:
Notre époque est tout à fait intéressante, c‘est-à-dire qu‘elle est tragique.
Avons-nous du moins, pour nous purger de nos malheurs, le théâtre de notre
époque ou pouvons-nous espérer l‘avoir? Autrement dit la tragédie moderne
est-elle possible? [...] Les grandes périodes de l‘art tragique se placent, dans
l‘histoire, à des siècles charnières, à des moments où la vie des peuples est
lourde à la fois de gloire et de menaces, où l‘avenir est incertain et le présent
dramatique. Après tout, Eschyle est le combattant de deux guerres et
Shakespeare le contemporain d‘une assez belle suite d‘horreurs. En outre ils
se tiennent tous deux à une sorte de tournant dangereux dans l‘histoire de
leur civilisation (CAMUS, 1962, p.1701).
Em sua conferência, Camus desenvolve uma reflexão em torno do gênero dramático e
manifesta sua preferência pela tragédia. Ele se pergunta sobre o que seria a tragédia e, sem
querer defini-la, procede por comparação, observando em que a tragédia difere do drama ou
do melodrama. O conflito, ou tensão, presente na tragédia não é simples nem se confunde
com o maniqueísmo, ao qual se reduzem o melodrama e o enredo de muitas histórias e do
qual Camus busca se afastar em seus próprios romances:
Voici quelle me paraît être la différence: les forces qui s‘affrontent dans la
tragédie sont également légitimes, également armées en raison. Dans le
mélodrame ou le drame, au contraire, l‘une seulement est légitime.
Autrement dit, la tragédie est ambiguë, le drame simpliste. [...] Prométhée
est à la fois juste et injuste et Zeus qui l‘opprime sans pitié est aussi dans son
droit. [...] Le thème constant de la tragédie antique est ainsi la limite qu‘il ne
faut pas dépasser. De part et d‘autre de cette limite se rencontrent des forces
également légitimes dans un affrontement vibrant et ininterrompu (CAMUS,
1962, p.1705).
41
Segundo Camus, uma vez que a tragédia se sustenta sobre um equilíbrio, tudo o que
no interior dela tende a romper este equilíbrio, tanto o domínio absoluto da ordem ou do
divino quanto a presença da individualidade pura, destroem a própria tragédia. Se a tragédia
termina na morte ou punição, o que é punido é a cegueira do herói que tenta negar o equilíbrio
ou a tensão. A situação trágica ideal seria aquela de Ésquilo, que permanece próximo das
origens religiosas e dionisíacas da tragédia. Em Sófocles, igualmente, o equilíbrio é absoluto,
e por isso ele é o maior tragediógrafo de todos os tempos. Já Eurípides desequilibra a balança
para o lado do indivíduo e da psicologia, assim ele anuncia o drama individualista, ou seja, a
decadência da tragédia.
Para o autor, a tragédia moderna ainda não existiria: ―C‘est assez dire que la vraie
tragédie moderne est celle que je ne vous lirai pas, puisqu‘elle n‘existe pas encore. Pour
naître, elle a besoin de notre patience et d‘un génie‖ (CAMUS, 1962, p.1711). Para haver um
renascimento da tragédia na modernidade, é preciso primeiro que o individualismo se
transforme e que, sob a pressão da história, o indivíduo reconheça pouco a pouco seus limites.
Para Camus, entre os gregos, o pensamento e o desejo de um conhecimento racional
estão associados à constatação dos limites da razão; a busca do racional se exprimindo
sobretudo na filosofia grega, a experiência do incompreensível e do que escapa à lógica
transparecendo, principalmente, nas tragédias. Segundo Camus, a concepção trágica do
mundo não foi completamente e em toda parte destruída pela ofensiva do espírito não-
dionisíaco. Entretanto, o mundo moderno estaria por inteiro preso nas redes da civilização
alexandrina, cujo ideal é o homem teórico, que superestima suas faculdades de conhecimento
e trabalha a serviço da ciência. Sócrates seria o protótipo e o ancestral desta civilização. Por
isso, para que haja o retorno da tragédia na civilização moderna, é preciso primeiro que a
pretensão científica e racionalista seja superada.
42
Dos primeiros textos, como a monografia, até os últimos, como alguns ensaios de
L'Été, Camus esteve sempre refletindo sobre o legado da cultura grega, à qual ele faz
referências em suas obras; aqui não pretendemos analisar cada uma destas referências em
todas as suas obras, mas apenas as que consideramos mais significativas. Vale destacar a
importância do elemento "mítico" que está presente inclusive em seus ensaios filosóficos e
através do qual ele articula reflexão e criação poética.
Camus elabora em seus ensaios uma filosofia que se assemelha àquela dos pré-
socráticos, pois considera que a apresentação sistemática da filosofia é mais um prejuízo do
que uma vantagem, e se interessa pelos pensadores que não excluíam de suas produções a
presença do mito e a dimensão poética. O autor não reivindicava para si o estatuto de filósofo,
mas se autodefinia como ―un artiste qui crée des mythes à la mesure de sa passion et de son
angoisse‖ (CAMUS, 1964, p.325).
O apelo ao artístico e ao mítico está presente mesmo em seus ensaios de filosofia. Em
Le Mythe de Sisyphe, o personagem mitológico configura-se como o protótipo do homem
revoltado diante do Absurdo; em L'Homme révolté, Prometeu é apresentado como o solidário
por excelência dos humanos. Em ambos os ensaios, Camus cita e evoca tanto filósofos quanto
romancistas e emprega inúmeras imagens e figuras poéticas. O mito já é em si um
desenvolvimento conferido à imagem, uma síntese do literário e do filosófico, conjugando
reflexões próprias do pensamento filosófico e imagens poéticas evocadoras de realidades
concretas e sensíveis.
O aspecto de verdade do mito entre os primitivos diz respeito não a uma verdade
lógica, discursiva e expressa de forma clara pela razão, mas a uma verdade intuída, percebida
de maneira espontânea. O mito demonstra assim que, ao entrar em contato com o mundo, o
homem não é apenas racionalidade e pensamento, mas também sensibilidade, fantasia,
imaginação e emoção. Antes de interpretar a realidade, o homem vive nela, e a experimenta,
43
desejando-a ou temendo-a; como afirma Camus: "Nous prenons l‘habitude de vivre avant
d‘acquérir celle de penser‖ (CAMUS, 1965, p.102).
O mito não é de forma absoluta anterior e oposto à filosofia, como uma primeira e
ingênua resposta aos fenômenos naturais, contrária ao pensamento racional, ele é também
contemporâneo e interno à reflexão filosófica. Pierre Grimal mostra que, a partir do século III
a. C., quando o pensamento grego foi sendo dominado pela filosofia, os mitos não fugiram a
esta evolução. A linguagem do mito foi utilizada não só pela reflexão sofística, mas também
pelos estóicos e muitos outros, inclusive Platão:
Nem mesmo os filósofos, quando o raciocínio alcançou seu ponto extremo,
deixaram de recorrer ao mito como a um modo de conhecimento capaz de
revelar o incognoscível. Assim, Platão – no Fédon, no Fedro, no Banquete,
na República e em outros diálogos – explicita seu pensamento através dos
mitos que inventa (GRIMAL, 1982, p.11).
Claude Calame, para quem o mito é uma história tradicional de alcance social que põe
em cena num tempo transcendental personagens de qualidades sobrenaturais e fabulosas, vê o
risco de se considerar o mito apenas como lenda e de se projetar sobre o uso do termo na
Antigüidade um sentido moderno. Para Calame o relato que nós apreendemos, através da
categoria moderna, como "mítico", só pode ser poesia ou literatura.1
Calame afirma que a idéia grega do produto poético como dividido, pelo efeito da
mímesis criativa, entre ficção e referência ao real, é vista como algo muito moderno e
corresponde aproximadamente ao que se designa pelo conceito de ficcional: ―En tant que
produit du processus symbolique, comme produit du poieîn créateur de mondes fictionnels,
tout récit à nos yeux mythiques est aussi un récit ‗poiétique‘ et poétique‖ (CALAME, 2000,
p.46).
1 Na tradição grega, mesmo na mais historiográfica que seja [...], as narrativas fundadoras
concernentes ao estabelecimento das relações dos homens com os deuses, às quais denominamos
mitos, estão inseparavelmente ligadas à forma poética, ou seja, à manifestação da linguagem que nós
consideramos como constituindo a própria essência da literatura (CALAME, 2000, p.19).
44
Portanto, o mito está igualmente próximo da literatura e da filosofia. Como relato
figurado, ele se revela tão demonstrativo quanto o discurso verdadeiro e, neste sentido, o
lógos não se opõe ao mûthos; originariamente, os dois termos se equivalem:
[...] mûthos à l‘époque archaïque renvoie à toute espèce de discours qui a un
effet sur son public. [...] Quant à lógos, il désigne, chez les historiographes
contemporains de Xénophane, essentiellement des récits – récits rapportés
ou assumés par l‘historien désormais appelé logographe, et donnés pour
vrais ou au contraire considérés comme mensongers. Dans le langage de la
tragédie, les deux termes ont des sens largement équivalents (CALAME,
2000, p.13).
Para Raymond Williams, mesmo se estabelecemos uma diferença entre mito como
lenda histórica e mito no sentido nietzscheano de supra-racional ou sabedoria espiritual, há
sempre uma relação entre as duas conotações: ―The heroic legend, in the Greeks and others, is
neither rational nor irrational, in the modern sense, because it was primarily taken as history‖
(WILLIAMS, 1966, p.43).
Camus se posiciona contra a redução da filosofia a seu aspecto impessoal, puramente
racional e sistemático. Mesmo em seus ensaios filosóficos, ele pensa por intuições mais do
que por argumentos, por imagens mais do que por conceitos e parece atraído pela poesia tanto
quanto pela filosofia. Assim, Camus não elaborou nenhum sistema. É por isso que ele diz não
ser filósofo, mas a recusa do sistema pode ser ela própria filosófica: ―Ce n‘est pas la logique
que je réfute, mais l‘idéologie qui substitue à la réalité vivante une succession logique de
raisonnements‖ (CAMUS, 1965, p.741).
Através de Plotino, também Platão e os mitos de que se serve são analisados por
Camus, que percebe nesses mitos o recurso a uma linguagem poética. Em sua monografia,
Camus faz uma reflexão sobre o estilo e a paisagem conceitual em Plotino e conclui: ―La
philosophie de Plotin est un point de vue d‘artiste...C‘est donc avec sa sensibilité que Plotin se
saisist de l‘intelligible‖ (CAMUS, 1965, p.1271). Trata-se de um método próximo daquele
que o autor buscará utilizar em seus ensaios: pensar com a sensibilidade.
45
Tanto Camus quanto Platão empregam o mito, como recurso a uma linguagem poética.
Entretanto, em Platão, o emprego da imagem parece proceder acima de tudo de uma função
persuasiva e argumentativa ou probatória, ao passo que, em Camus, mesmo se ele vê na
imagem um caminho para o conhecimento, esta se associa a uma valorização do poético
enquanto tal, como uma exigência deste.
Neste sentido, o emprego de imagens em Camus corresponde adequadamente à sua
posição de valorizar o sensível e não reduzir a filosofia à dimensão lógica. Depois de destacar
que a obra de arte não pode ser considerada como um refúgio face ao Absurdo, sendo ela
própria um fenômeno absurdo e expressão da Revolta, ele prossegue: "L‘oeuvre d‘art naît du
renoncement de l‘intelligence à raisonner le concret. Elle marque le triomphe du charnel‖
(CAMUS, 1965, p.176). O emprego do mito, das imagens e dos recursos poéticos constitui
assim uma forma coerente de tratar o Absurdo, de certo modo inefável.
46
3 A PESTE NA CIDADE MODERNA
3.1 O GOSTO PELO VIVIDO
La Peste, publicada em 1947, é considerada como a obra de um escritor que atingiu a
maturidade e é vista como o primeiro grande romance francês do imediato pós-guerra. É fruto
de uma vasta pesquisa e de uma longa preparação; já em abril de 1941, Camus menciona em
seus Carnets o projeto do livro (Cf. CAMUS, 1962, p.229). Buscamos situar La Peste no
conjunto das obras de Camus e na evolução de seu pensamento, pois o romance faz referência
ao contexto contemporâneo do autor e apresenta uma relação com o ensaio L'Homme révolté.
Na Peste são marcantes os elementos relacionados com a biografia de Camus, também
se destacam os elementos históricos, como o ambiente da Segunda Guerra, da Ocupação e da
Resistência. Há ainda elementos próprios de uma reflexão, a crítica ao dogmatismo, à
burocracia, ao totalitarismo, a luta contra a morte e a miséria e em favor da liberdade, a defesa
da iniciativa e organização populares.
Olivier Todd se pergunta até que ponto se pode explorar os textos publicados de um
autor — sem usá-los em interpretações abusivas e apressadas — para balisar sua vida.
Poderíamos indagar também em que medida a biografia de um escritor pode nos esclarecer
sobre o conteúdo de suas obras. Todd retoma uma afirmação de Camus:
L‘idée que tout écrivain écrit forcément sur lui-même et se dépeint dans ses
livres est une des puérilités que le romantisme nous a léguées. Les oeuvres
d‘un homme retracent souvent l‘histoire de ses nostalgies ou de ses
tentations, presque jamais sa propre histoire (CAMUS, apud: TODD, 1996,
p.14).
Todd observa que, para além dos êxitos da transposição artística, a obra camusiana
parece, entretanto, muito biográfica. O próprio Camus afirma que só escreve sobre o que
47
viveu: ―Je ne suis pas un philosophe, en effet, et je ne sais parler que de ce que j‘ai vécu‖
(CAMUS, 1965, p.753).
A recusa por parte de Camus da visão romântica e sua crítica à idéia, considerada uma
ilusão, de que um escritor fala sempre de si próprio em seus textos ficcionais podem parecer
contraditórias com sua própria obra, altamente autobiográfica e cheia de alusões a fatos que
ele próprio vivenciou. Mas o que ele critica no romantismo é o excesso de lirismo e a
produção carregada da subjetividade do autor. Camus foi um autor extremamente engajado
com a história e as experiências por ele vividas, e de alguma forma presentes em sua obra, não
são exclusivamente suas, são na verdade posicionamentos diante de questões prementes com
as quais se confrontou toda uma geração.
Esta articulação entre o indivíduo e a sociedade pode ser facilmente verificada,
sobretudo em se tratando de um escritor engajado. Neste sentido, Freud observa que, mesmo
entre a psicologia individual e a psicologia social, a oposição não é tão profunda. Só muito
raramente e em condições excepcionais, seria possível prescindir das relações do indivíduo
com seus semelhantes, pois na vida anímica individual aparece integrado sempre ―o outro‖,
como modelo, objeto, auxiliar ou adversário. O indivíduo é sempre membro de uma tribo, de
um povo, de uma casta, de uma classe social ou de uma instituição, ou elemento de uma
multidão humana. Através dos laços com os outros, o indivíduo influencia seu meio e está
sempre sob a influência exercida por um grande número de pessoas (Cf. FREUD, 1978, p.3).
Numa concepção bastante próxima desta, também Sartre destaca o vínculo entre o
indivíduo e os outros, ao comentar sua peça Huis Clos (1944) e particularmente a passagem
l’enfer c’est les autres que, segundo ele, foi sempre mal compreendida. Embora Sartre veja as
relações humanas sob o prisma do conflito, no qual os indivíduos são ao mesmo tempo
vítimas e carrascos uns dos outros, ele afirma que esta passagem foi interpretada como
significando que nossas relações com os outros são sempre envenenadas, sempre relações
48
infernais, sendo que, na verdade, ele queria dizer outra coisa: a possibilidade de relações que
não de dependência e a importância de todos os outros para cada um.2
É nesta relação profunda entre o eu e o outro, entre o indivíduo e a sociedade, que
pensamos poder compreender os elementos ―autobiográficos‖ que Camus deixa transparecer
em seus textos ficcionais. O Ciclo da Revolta e La Peste, em particular, não podem ser
dissociados do engajamento político do escritor. Além disso, se não podemos falar de obra
autobiográfica em sentido próprio, há certamente um gosto pelo vivido e pela experiência
concreta que se manifesta em diversos textos e não só na Peste. Os escritos de Camus são
complexos pela simbologia e pela carga ideológica, mas são simples do ponto de vista da
intriga e do enredo, porque são relatos próximos da experiência cotidiana e se opõem à
"abstração", criticada como posicionamento filosófico no Mythe de Sisyphe, mas também
como atitude existencial na Peste. Assim, esta vontade de transpor o existencial para a
literatura é uma marca da literatura de Camus, na qual o gosto pelo concreto, pelo humano e
pelo vivido é sempre destacado: um pouco em L'Étranger, muito mais na Peste, repleta de
referências a dados biográficos ou históricos. L'État de Siège, como La Peste, remete à
História, Caligula e Les Justes se baseiam diretamente em personagens históricos e Le
Malentendu teria sido inspirada num fait-divers. Assim, alguns dos elementos identificados
no romance como mais ou menos diretamente relacionados com a biografia do autor merecem
ser destacados.
Desde seus primeiros estudos, Camus se interessou pela cultura grega clássica, em
particular pelo mito e pela tragédia. Apaixonado pelo teatro, e pela dimensão comunitária e de
2 Quero dizer que se nossas relações com o outro são distorcidas, viciadas, então o outro só pode ser o
inferno. Por que? Porque os outros são, no fundo, o que há de mais importante em nós mesmos para
nosso próprio auto-conheciemento. [...] Isto quer dizer que, se minhas relações são ruins, eu me ponho
sob a total dependência do outro. E então, de fato, eu estou no inferno. E existe uma imensidão de
pessoas no mundo que estão no inferno porque dependem demais do julgamento do outro. Mas isto
não quer dizer, de forma alguma, que não se possa ter outras relações com os outros. Isto mostra,
simplesmente, a importância essencial de todos os outros para cada um de nós. SARTRE, 1992, p.282-
283.
49
equipe fundamental, foi um estudioso deste campo e nele trabalhou intensamente e em várias
funções, antes de escrever suas próprias peças; ele se interessava, sobretudo, pelos grandes
dramaturgos e pela tragédia grega. La Peste apresenta uma dimensão trágica e uma passagem
do romance evoca de maneira direta a figura mitológica de Orfeu. É uma curta passagem, que
pode passar despercebida ao leitor, mas que tem um papel significativo.
Tarrou e Cottard vão assistir à representação de ―Orfeu‖, uma ópera de Gluck, e um
ator atingido pela peste cai morto em cena, a platéia apavorada abandona a sala. Essa
representação configura a retomada en abîme do tema da separação: a ópera mostra a
separação entre Orfeu e Eurídice, e desde a primavera o grupo de artistas, isolado em Oran,
retoma sempre o mesmo espetáculo, o que ilustra a repetição e a monotonia características do
―estado de peste‖. A doença surge brutalmente em cena, quebrando a ilusão teatral e a ilusão
de vida normal que a noite no teatro poderia dar aos espectadores.
Orfeu é um elemento da cultura grega que na Peste remete ao tema da separação. A
separação é decorrência do "estado de peste", que funciona como um "estado de sítio". O
tema dos amantes separados, dos maridos afastados das esposas, presente no romance, lembra
uma experiência vivida pelo próprio Camus. No início de 1940 ele está em Paris, trabalhando
no jornal ―Paris-Soir‖; em maio termina L'Étranger e em dezembro se casa com Francine
Faure. Em inícios de 1941 está em Lyon e vai daí para Oran, onde dá aulas algum tempo e
termina Le Mythe de Sisyphe. Em inícios de 1942 está em Oran, a vida lá é difícil, ele sofre
uma recaída da tuberculose e, no verão desse ano, volta à França para se tratar, sua mulher o
acompanha, mas volta à Argélia pouco antes da chegada dos aliados à África do Norte, em
novembro de 1942. Em conseqüência da guerra, que estabelece uma separação total entre a
Metrópole e a África do Norte, Camus fica separado por mais de dois anos da mulher, da
família e de sua terra natal. Ele continua a elaboração de sua obra, mas vive dificilmente as
experiências da separação e da doença. Assim, para ele, o "exílio" e a separação não são
50
simplesmente temas literários nem conceitos abstratos, mas uma experiência cruelmente
sentida e dolorosamente vivida.
Há uma ausência de personagens femininos importantes na Peste. Apenas algumas
silhuetas, geralmente anônimas, que atravessam o romance. As mulheres estão longe de Oran.
A mulher de Grand o deixou há muito tempo. Rambert deixou em Paris aquela que ele ama. A
mulher de Rieux deixa a cidade a fim de se tratar, logo no início da história. A ausência das
mulheres, geralmente esposas ou amantes dos personagens principais, vem reforçar a
impressão de isolamento e de exílio destes personagens. Esta ausência ilustra ainda o tema
dos amantes separados e o tema do amor, presente no romance, mesmo se não celebrado à
maneira dos românticos.
A mãe de Rieux é a única mulher que tem uma presença destacada no romance,
participando de muitas cenas. Ela é conhecida por suas palavras e atitudes, sendo descrita pelo
narrador e por Tarrou. Esta personagem, comovente na sua discrição, corresponde à imagem
da mãe de Camus, discreta e silenciosa, quase surda e que falava muito pouco, como ele a
descreve em outras obras, como em Le Premier homme. A respeito de Rieux e sua mãe, o
narrador afirma que eles sempre se amariam em silêncio. E acrescenta: ―Mais, cependant,
quelque chose changeait dans le visage de sa mère lorsqu‘il apparaissait. Tout ce qu‘une vie
laborieuse y avait mis de mutisme semblait s‘animer alors. Puis, elle retombait dans le
silence‖ (CAMUS, 1984, p.1319).
Desde muito jovem, Camus praticava esporte com prazer, em particular o futebol e a
natação. Há no romance um personagem, Gonzalès, que é jogador. Ele é procurado por
Rambert, que também aprecia o esporte; a paixão comum desencadeia uma conversa e uma
relação amistosa: "Le reste du déjeuner se passa à rechercher un sujet de conversation. Mais
tout devint très facile lorsque Rambert découvrit que le cheval était joueur de football. Lui-
même avait beaucoup pratiqué ce sport" (CAMUS, 1962, p.1340). Esse jogador, personagem
51
de participação episódica, acaba por se envolver na luta contra a peste, trabalhando justamente
num estádio adaptado para receber os doentes:
C'est un dimanche après-midi que Tarrou et Rambert choisirent pour se
diriger vers le stade. Ils étaient accompagnés de Gonzalès, le joueur de
football, que Rambert avait retrouvé et qui avait fini par accepter de diriger
par roulement la surveillance du stade. [...] Gonzalès avait dit aux deux
hommes, au moment où ils s'étaient retrouvés, que c'était l'heure où, avant la
peste, il se mettait en tenue pour commencer son match. [...] Le ciel était à
moitié couvert et Gonzalès, le nez levé, remarqua avec regret que ce temps,
ni pluvieux ni chaud, était le plus favorable à une bonne partie (CAMUS,
1962, p.1414-1415).
Associado à natação e à natureza mediterrânea, duas grandes paixões de Camus, o mar
está presente no romance como um verdadeiro personagem ao qual se alude em muitos
momentos. Assim, por exemplo, diz-se dos habitantes de Oran: "ils ont du goût aussi pour les
joies simples, ils aiment les femmes, le cinéma et les bains de mer [...]" (CAMUS, 1962,
p.1220). Por causa deste gosto, "Le dimanche matin [...] les bains de mer font une
concurrence sérieuse à la messe" (CAMUS, 1962, p.1295). Naturalmente, os gostos e
costumes são alterados pela epidemia, mas antes dela, a cada verão, "La ville s'ouvrait alors
vers la mer et déversait sa jeunesse sur les plages" (CAMUS, 1962, p.1312). Quando o
narrador se desculpa por descrever os enterros, dizendo que estes constituíam uma grande
preocupação dos moradores durante a epidemia, ele fala do seu gosto pelo mar: "Ce n'est pas,
en tout cas, qu'il ait du goût pour ces sortes de cérémonies, préférant au contraire la société
des vivants et, pour donner un exemple, les bains de mer" (CAMUS, 1962, p.1359). A
propósito de Tarrou, afirma-se nas primeiras páginas do romance: "Dès le début du printemps,
on l'avait beaucoup vu sur les plages, nageant souvent et avec un plaisir manifeste" (CAMUS,
1962, p.1235). Uma das passagens mais belas do romance é o momento em que Rieux e
Tarrou, quebrando as leis de isolamento da cidade, vão tomar um banho de mar, como a selar
a amizade que os une:
52
"Savez-vous, dit-il, ce que nous devrions faire pour l'amitié? [...] Prendre un
bain de mer." [...] "À la fin, c'est trop bête de ne vivre que dans la peste." [...]
Peu avant d'y arriver, l'odeur de l'iode et des algues leur annonça la mer. Puis
ils l'entendirent. [...] Habillés de nouveau, ils repartirent sans avoir prononcé
un mot. Mais ils avaient le même coeur et le souvenir de cette nuit leur était
doux (CAMUS, 1962, p.1428-29).
Camus trabalhou durante muito tempo como jornalista, e Rambert, um dos
personagens principais do romance, é um jornalista, que está em Oran fazendo uma
reportagem como aquela que Camus de fato fizera, sobre a miséria na Kabila, quando
trabalhava em Argel, de outubro de 1938 a janeiro de 1940. Camus desempenhou a profissão
de jornalista cheio de idealismo, propondo um jornalismo sério e criticando a manipulação
das informações.
Na Peste, os jornais de Oran anunciam em 29 de abril a alegria da primavera na cidade
da qual os ratos parecem ter desaparecido. Mas a normalidade é na verdade uma informação
enganosa, tanto que já no dia seguinte morre o porteiro do prédio onde mora o doutor Rieux.
Assim, os fatos desmentem os propósitos tranqüilizadores dos jornais. O narrador, numa
linguagem bastante irônica, denuncia a cegueira das populações e a falta de objetividade de
certos jornais, submetidos ao governo e à administração:
Les journaux, naturellement, obéissaient à la consigne d'optimisme à tout
prix qu'ils avaient reçue. À les lire, ce qui caractérisait la situation, c'était
"l'exemple émouvant de calme et de sang-froid" que donnait la population.
Mais dans une ville refermée sur elle-même, où rien ne pouvait demeurer
secret, personne ne se trompait sur "l'exemple" donné par la population
(CAMUS, 1962, p.1413).
Os jornais não compõem a documentação de que Rieux se serve, não têm nenhuma
utilidade durante a epidemia e só se interessam pelo espetacular: ―le Courrier de l’épidémie
[...] ce journal s‘est borné très rapidement à publier des annonces de nouveaux produits,
infaillibles pour prévenir la peste" (CAMUS, 1962, p.1316).
53
O narrador, que foge de uma linguagem estereotipada, escreve baseando-se nas
anotações deixadas por Tarrou. Há, igualmente, grande espaço para as confidências e para a
oralidade. O próprio Rambert, jornalista, é um ―narrador‖ que não escreve. Os diálogos são
numerosos. A linguagem do padre Paneloux, como a linguagem dos juízes de L'Étranger, é
fria e carregada de chavões; marcada pela "abstração", ela é caricaturizada e através dela
aparece uma denúncia dos poderes da palavra, que pode mascarar a realidade e se tornar uma
sedução desonesta.
Camus é um escritor que se posiciona no campo literário como um amador, visto que
esteve afastado dos meios acadêmicos, desde que, por motivos de saúde, foi proibido de
seguir a carreira de professor. Outro personagem importante no romance se debate, na busca
obcecada da perfeição para escrever um romance e se tornar um escritor: Grand, um simples
funcionário da prefeitura, função que Camus exerceu em Argel, quando, fazendo seus estudos
superiores na Faculdade de Argel em condições difíceis, trabalhou como vendedor de
acessórios para automóveis, meteorologista, funcionário de uma agência marítima e da
prefeitura.
Camus manifesta um interesse pelos problemas da linguagem em textos como
L’intelligence et l’échafaud (1943) e Sur une philosophie de l’expression de Brice Parain
(1944), e ainda na Introduction aux Maximes de Chamfort (1944), escritos que transparecem,
de forma simplificada, nos tormentos existenciais de Grand, aspirando a se tornar escritor. Em
sua obsessão pelo termo exato, este personagem está sempre reiniciando seu escrito. Com
medo de não encontrar a palavra adequada, nunca escreveu à prefeitura, onde ele trabalha, a
carta de reclamação em que pensa há muito tempo; da mesma forma não encontrou, para se
dirigir à mulher que o abandonou, palavras que fossem capazes de retê-la:
Ce qu‘il aurait voulu, c‘est lui écrire une lettre pour se justifier. "Mais c‘est
difficile, disait-il. Il y a longtemps que j‘y pense. Tant que nous nous
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sommes aimés, nous nous sommes compris sans paroles. Mais on ne s‘aime
pas toujours. À un moment donné, j‘aurais dû trouver les mots qui l‘auraient
retenue, mais je n‘ai pas pu" (CAMUS, 1962, p.1286).
A presença de um personagem que quer se tornar escritor e que só consegue depois de
terminada a luta contra o flagelo, bem como a discussão sobre o poder e a função da
linguagem, remetem a uma reflexão sobre o próprio ato de escrever, que é apresentado como
algo que exige imensos esforços e que está em relação com o ambiente do escritor.
Num grau menor do que Grand, também Tarrou experimenta, às vezes, uma
dificuldade em escrever. A carreira de Grand, enquanto funcionário público, não avança, ele
permanece à margem porque é transparente e tem coragem de ter bons sentimentos, ou seja,
ele constitui a antítese do estereótipo dos empregados da administração à qual pertence. Antes
que se declarasse a peste, já tinha a convicção de que "il faut bien s'entraider" (CAMUS,
1962, p.1232).
As concepções políticas de Tarrou, bem como seu horror à pena de morte,
praticamente coincidem com as de Camus. O relato de Tarrou sobre seu pai, que condenava
criminosos à morte, evoca as Réflexions sur la guillotine (1957), um texto denso e profundo,
em que Camus critica a pena de morte. No início desse texto, Camus relembra a história
contada por sua mãe, sobre seu pai, que defendia a pena de morte, até o dia em que foi assistir
a uma execução e voltou para casa transtornado: essa experiência perturbadora diante da
execução é vivida e relatada pelo personagem Tarrou. Além disso, Camus integra a seu
romance seus próprios ―carnets‖, anotações cuja forma de escrita é semelhante àquela
presente nos ―carnets‖ de Tarrou. Este personagem corresponde ainda ao ex-militante que
discorda dos métodos violentos usados na luta revolucionária, o que remete à passagem de
Camus pelo Partido Comunista e à decepção de muitos de seus contemporâneos com o
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Partido. Além deste personagem, também o médico Rieux compartilha muitos pontos de vista
e opiniões que o autor defende em outros escritos.
A luta dos personagens contra a peste, uma metáfora da Guerra, remete à luta de
Camus e de muitos de seus contemporâneos contra a ocupação nazista. Camus busca não
ceder à tentação da obra de tese e condena a literatura de propaganda, mas produz uma
literatura de alcance filosófico e social. Ele não sacrifica sua ética nem sua estética às
exigências da filosofia ou do combate político, mas também não acredita na arte pela arte,
desligada das condições sociais e culturais que a tornam possível. Pensa, antes, que a
responsabilidade do escritor está à altura do lugar que ele ocupa no campo social. Retomando
a expressão de Pascal, afirma: "À partir du moment où l‘abstention elle-même est considérée
comme un choix, puni ou loué comme tel, l‘artiste, qu‘il le veuille ou non, est embarqué
(CAMUS, 1965, p.1079). E escreve ainda:
Les artistes du temps passé pouvaient au moins se taire devant la tyrannie.
Les tyrannies d‘aujourd‘hui se sont perfectionnées; elle n‘admettent plus le
silence, ni la neutralité. Il faut se prononcer, être pour ou contre. Bon, dans
ce cas, je suis contre (CAMUS, 1965, p.800).
A obra literária, filosófica e jornalística de Camus apresenta uma discussão ética e
uma defesa do comprometimento com o social, e sua atividade de escritor é em si mesma uma
forma de engajamento. Sua ação militante se revela também pela condenação dos excessos da
política colonial francesa e por sua atividade na Resistência. Camus se coloca como defensor
dos direitos do homem e contra todos os totalitarismos, inclusive aquele de Stalin.
Atravessando várias provações, Camus forma seu pensamento e sua escrita no estudo
da filosofia e na atividade teatral e jornalística. Aos 17 anos, foi atingido por uma tuberculose
que lhe fechou as portas à carreira de professor. Dedica-se então ao teatro e ao jornalismo, ao
mesmo tempo em que se engaja em atividades de ordem cultural e política, como a defesa de
uma cultura popular, a luta contra a ascensão dos totalitarismos europeus e a militância em
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favor dos republicanos espanhóis. Em 1933, Hitler chega ao poder na Alemanha. Camus
milita logo no movimento antifascista Amsterdam-Pleyel, fundado por Henri Barbuse e
Romain Rolland. Ele não separa o pensamento da ação e sua obra é exaltação da vida até na
exigência de revolta, que é também a consciência de uma ação em defesa não de interesses
próprios, mas em vista aos interesses de todos:
La pauvreté, d‘abord, n‘a jamais été un malheur pour moi: la lumière y
répandait ses richesses. Mêmes mes révoltes en ont été éclairées. Elles furent
presque toujours, je crois pouvoir le dire sans tricher, des révoltes pour tous,
et pour que la vie de tous soit élevée dans la lumière (CAMUS, 1965, p.6).
Em 1935, com 21 anos, Camus aderiu ao Partido Comunista e nele permaneceu
durante dois anos. Suas atividades se concentravam no recrutamento em meio muçulmano e
na liderança de uma troupe de teatro, o ―Théâtre du travail‖, que se pretendia popular e
revolucionário. Em 1937, torna-se jornalista de Alger Républicain, e em 1938, quando
trabalhava neste jornal, além de crônicas judiciárias e literárias, publicou comentários
polêmicos da vida polìtica de Argel, e fez reportagens politizadas, como a ―Miséria da
Kabila‖, que constitui uma clara e veemente crìtica do colonialismo e da exploração
capitalista.
Com a declaração de Guerra, ele tentou se alistar, mas foi dispensado por razões de
saúde. Alger Républicain se tornou Le Soir Républicain, no qual Camus trabalhou até 1940,
quando, por causa de problemas com a censura, o jornal foi fechado. Ele se dirigiu para a
França e teve uma participação direta e intensa na Resistência, sobretudo a partir de 1943, em
Paris, dentro do movimento de resistência ―Combat‖.
Em 1952, ele deixa a UNESCO, quando esta abre suas portas à Espanha de Franco.
Em novembro de 1954, a Guerra da Argélia é sentida como uma tragédia pessoal e, em
janeiro de 1956, ele tenta sem sucesso, em Argel, um ―Appel à la trêve civile‖. Em novembro
de 1956, protesta contra a violência soviética na Hungria; depois da revolta de Budapeste e da
repressão que se seguiu, convoca os escritores europeus a protestarem junto à ONU.
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Desde sua adesão ao Partido Comunista, até seu projeto de trégua civil para a Argélia,
Camus sempre afrontou os grandes problemas de seu tempo, o totalitarismo, o colonialismo, o
terrorismo e o racismo. No jornal Combat, ligado ao movimento de resistência de mesmo
nome, com sua reflexão vigilante, abordou o fascismo e o stalinismo, os direitos humanos, o
socialismo, a ação sindical, a guerra.
O período de elaboração da Peste corresponde ao período da Segunda Guerra, uma
época difícil, da qual Camus participou ativamente e ao longo da qual os acontecimentos não
deixaram de contribuir para a concepção do romance. Assim, a descrição de Oran liberada da
peste pode ser comparada com a experiência da ―Libération‖ de Paris, descrita nos editoriais
do Combat. Entretanto, Camus foi sempre muito discreto quanto a seu engajamento durante a
guerra e a Resistência e afirmava que os melhores entre os ―resistentes‖, que teriam o direito
de se pronunciar, já haviam morrido no combate. É um pouco a conclusão de Rieux, depois de
vencido o flagelo da peste: "Ceux qui se dévouèrent aux formations sanitaires n'eurent pas si
grand mérite à le faire, en effet, car ils savaient que c'était la seule chose à faire et c'est de ne
pas s'y décider qui alors eût été incroyable" (CAMUS, 1962, p.1327).
Na Peste, defende-se um engajamento que pressupõe a participação ativa dos
indivíduos na comunidade e que prescinde do controle do Estado, sem que se caia no caos. Ao
contrário disso, a organização popular para enfrentar o flagelo supera em eficiência a estrutura
enferrujada, fria e burocrática da administração. No romance, há uma crítica à ideologia e ao
dogmatismo e, por conseguinte, ao marxismo que assim se configurou, mas há, de forma não
menos veemente, uma crítica do conformismo e um manifesto em favor do engajamento na
busca da transformação da sociedade. Desse engajamento Camus deu um testemunho que
nem mesmo seus adversários, como Sartre e outros com quem travou polêmicas, puderam
negar.
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3.2 UMA CRÔNICA TRÁGICA
Camus se definia mais como um artista criador de mitos do que como filósofo ou
romancista (CAMUS, 1965, p.743). De fato, alguns críticos deploraram o caráter intuitivo das
bases do pensamento de Camus e tiveram dificuldade em classificar suas obras, tanto os
ensaios quanto os romances, construídas nas fronteiras dos campos e dos gêneros.
Falou-se de literatura referindo-se a Le Mythe de Sisyphe, em que mereceria destaque a
importância da ―fraseologia‖ (DURAND, 1961, p.96-97). Na obra L’Univers philosophique
(dir. A. Jacob, Paris: PUF, 1989), também L'Homme révolté foi classificado entre os textos
literários (AMIOT & MATTÉI, 1997, p.103). De fato, os ensaios filosóficos de Camus são
igualmente literários e seus temas básicos não são privilegiados pela tradição preponderante
do pensamento filosófico. Neles o autor cita e evoca tanto filósofos quanto romancistas.
Absurdo e Revolta, ensaio e romance, reflexão e poesia se imbricam e se misturam
nos escritos de Camus. Se um texto se acha na interseção de gêneros múltiplos e se as
tipologias tradicionais se revelam muito freqüentemente inoperantes, pode-se dizer que o
recurso a estes gêneros e não a outros é parte integrante da formação discursiva, da mesma
forma que o "conteúdo" (Cf. MAINGUENEAU, 1987, p.26). O ensaio é, dentre as formas do
discurso filosófico, aquela que mais se distancia do sistema frio e racionalmente organizado
do tratado e aquela que mais se aproxima das formas literárias (Cf. BARTHES, 1953, p.14).
Assim, a opção de Camus pelo ensaio poético e pelo "romance ideológico" revela a
preferência por uma filosofia não racionalista e por uma forma romanesca que não
corresponde àquelas reconhecidas e privilegiadas pelas instâncias institucionais e acadêmicas.
Ele se levanta contra a redução da filosofia a seu aspecto lógico e impessoal e se preocupa
mais com o sentido a dar à vida do que com puros problemas intelectuais, buscando uma
forma na qual a inteligência e a paixão se misturam (CAMUS, 1965, p.192).
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Os romances L'Étranger e La Peste foram vistos mais como testemunhos do que como
romances, no sentido tradicional do termo (GINESTIER, 1964, p.265). Le Mythe de Sisyphe
seria uma dissertação em forma de ensaio filosófico e L'Étranger uma dissertação em forma
de narrativa (AMIOT & MATTÉI, 1997, p.94-95). Já os primeiros estudiosos de Camus
observaram que a crítica sempre experimentou certa hesitação em enquadrar L'Étranger no
gênero romanesco, pois o livro romperia com uma série de convenções e procedimentos
considerados próprios de uma certa tradição do gênero romanesco e seria um texto de
construção revolucionária (BARRIER, 1966, p.16).
As marcas de L'Étranger que mais o distanciam do romance tradicional francês são
uma narração em primeira pessoa, paradoxalmente impessoal, no passado composto, um
tempo eminentemente anti-romanesco (LEBESQUE, 1967, p.45). O estilo "falado‖ dá
também a impressão de que se trata de um relato espontâneo, a que falta um "porte literário‖.
Assim, viu-se em L'Étranger uma espécie de ‗anti-romance‘ em que a intenção de recusar o
ritual das letras e romper com a tradição da literatura francesa é evidente (BARRIER, 1966,
p.7, 17 e 31). A dificuldade em interpretar ou classificar este romance de uma maneira
satisfatória viria também do fato de que se trata de uma obra ambígua por excelência (FITCH,
1968, p.76). Esta ambigüidade teria sido buscada pelo autor e estaria presente igualmente em
La Peste, marcada igualmente pela mistura de gêneros (Cf. CAMUS, 1965, p.201, 203).
O narrador da Peste apresenta seu relato como sendo uma crônica, o que remete à
história. Mas o romance pode ser visto também como uma tragédia e até mesmo como um
ensaio. A complexidade e diversidade de sentidos presentes no romance parecem buscadas
pelo autor, que afirma:
Je veux exprimer au moyen de la peste l‘étouffement dont nous avons
souffert et l‘atmosphère de menace et d‘exil dans laquelle nous avons vécu.
Je veux du même coup étendre cette interprétation à la notion d‘existence en
général. La peste donnera l‘image de ceux qui dans cette guerre ont eu la
60
part de la réflexion, de silence – et celle de la souffrance morale (CAMUS,
1964, p.67).
Pela época em que escreve La Peste, Camus publica um estudo sobre L’espoir et
l’absurde dans l’oeuvre de Franz Kafka, que traz uma reflexão sobre o símbolo e a
ambigüidade em Kafka, elementos que Camus parece buscar também para sua obra. No
estudo, pode-se ler: ―Un symbole dépasse toujours celui qui en use, et lui fait dire en réalité
plus qu‘il n‘a conscience d‘exprimer‖ (CAMUS, 1965, p.201). La Peste é colocada sob a luz
de uma citação, tomada do Robson Crusoé de Daniel Defoe, que evoca os temas da prisão, da
representação imaginativa, dos poderes metafóricos e simbólicos da arte: "Il est aussi
raisonnable de représenter une espèce d'emprisonnement par une autre que de représenter
n'importe quelle chose qui existe réellement par quelque chose qui n'existe pas".
Camus admira também Melville, por ter construído seus símbolos sobre o concreto, e
não sobre o material do sonho, por ter inscrito seus mitos na concretude da realidade e não nas
nuvens fugidias da imaginação. Melville orienta a criação de Camus para o símbolo e o mito
ancorados na realidade; é isto que ele deseja para sua própria criação, em particular para La
Peste. Camus busca uma maneira de dizer, ao mesmo tempo, a história e o mito, o real e sua
transfiguração. No romance, há esta multiplicidade de significações: é uma crônica, mas de
uma epidemia imaginária; é um romance ao mesmo tempo, mas remete ao conhecimento do
que existe de fato no mundo.
Podemos distinguir entre os elementos mais característicos da crônica e aqueles
próprios da tragédia, mas na verdade eles se acham amalgamados no romance. Os diversos
aspectos e sentidos do texto se impõem simultaneamente: isso vale tanto para o sentido da
relação com a história, particularmente a Segunda Guerra, quanto para o sentido de tragédia,
alegoria e mito. Por isso podemos dizer que o romance propõe uma crônica mítica,
61
misturando descrições realistas e evocações do fantástico, o natural e o inverossímil.3 No
início do relato, o narrador já prevenia: "Ces faits paraîtront bien naturels à certains et, à
d'autres, invraisemblables au contraire" (CAMUS, 1962, p.1221). Assim, para Véronique
Anglard, a realidade e o mito da peste se colocam lado a lado; a peste, como a vida, é natural
e inverossímil (Cf. ANGLARD, 1999, p.126).
Em 1958, no prefácio para a reedição de L'Envers et l'endroit (1937), Camus avalia
sua obra e afirma que se esforça para criar uma linguagem e fazer viver mitos. Este objetivo
transparece na Peste, em que a dimensão mítica e trágica está presente, como sublinha
Véronique Anglard, embora a autora identifique o mito como ―história atemporal‖, ao passo
que o próprio Camus destaca a relação entre o momento sócio-histórico da Grécia e o
surgimento dos mitos e da tragédia.
Camus, portanto, como romancista, busca construir mitos. O mito é uma linguagem e
a linguagem é, por natureza, simbólica. O mito pode designar ao mesmo tempo uma história
antiga e uma situação presente. Desta maneira, La Peste, pela riqueza das imagens e pela
dimensão simbólica, apresenta muitos sentidos, e, como observaram vários críticos, a
epidemia pode simbolizar ao mesmo tempo o nazismo, a guerra, a opressão, o Absurdo e o
mal.
Podemos destacar os elementos do romance que o aproximam de uma peça de teatro,
em especial de uma tragédia. Nas primeiras páginas do romance o leitor tem contato com
praticamente todos os personagens, pois a maioria deles aparece logo no início, numa forma
de apresentação que se assemelha à entrada de atores em cena. Eles recebem uma rápida
descrição física e, geralmente, tomam a palavra imediatamente; é o caso de Tarrou, Rambert,
3 Pela presença da natureza, pelas descrições do espaço, as ruas de Oran, o porto vazio, o hospital, pela
presença de personagens que sofrem ou morrem de maneira muito nítida, pela apresentação quase
clínica da peste, o romance parece se aproximar das formas mais visíveis de realismo. Mas a peste, a
presença do flagelo, as forças dos elementos remetem ao fantástico e se se aproximam do mítico, na
medida em que nos relatam uma história atemporal e que nos fala de nossa própria história.
ANGLARD, 1999, p.125
62
Grand, Cottard e Rieux. Além disso, o livro não é dividido em capítulos, mas em 5 grandes
partes e, desta forma, a própria composição do romance remete explicitamente à estrutura da
tragédia clássica francesa:
1) A primeira parte, como um primeiro ato, situa a ação e anuncia a narrativa, relata o
aparecimento dos ratos, descreve o aumento da tensão e termina com a declaração do ―estado
de peste‖ e conseqüente fechamento da cidade.
2) A segunda parte mostra a instalação e o progresso da peste na cidade fechada, os
esforços para organizar a luta contra o flagelo, o aumento do medo, do sentimento de exílio e
de revolta. A peste atinge seu cume.
3) A terceira parte, central, descreve a situação geral, afirmando o reinado da peste,
descreve as violências, os enterros, os sofrimentos das pessoas separadas.
4) Na quarta parte se acentua o avanço da doença e do terror, que culmina na morte de
uma criança, mas a cura de Grand é um fato novo.
5) Na quinta e última parte a peste diminui e desaparece. As portas da cidade se abrem
e os habitantes recuperam a liberdade. Revela-se a identidade do narrador.
Assim, a estrutura de conjunto baseia-se no movimento da peste: chegada,
desenvolvimento, auge, diminuição, desaparecimento. A ameaça da morte é um elemento da
tragédia clássica, e esta está presente no romance. Nele a peste é a imagem de tudo que causa
a morte, a questão da pena de morte é discutida e a morte dolorosa de uma criança é descrita,
causando verdadeiro pavor e suscitando a discussão entre o cientista e o teólogo.
Camus se documentou sobre a doença e sobre as grandes pestes da história,
conseguindo informações, detalhes para a descrição da doença, números, anedotas e imagens,
que alimentam a fala do médico Rieux e a pregação do padre Paneloux. Ele leu Lucrécio,
Tucídides, Defoe. Leu ainda Le Théâtre et son double (1938), de Antonin Artaud, e parece ter
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sido tocado particularmente pelo capìtulo ―Le théâtre et la peste‖. Referências precisas à
Bíblia mostram que Camus não ignorou a dimensão religiosa do flagelo, que constitui com a
guerra e a fome as ―três flechas de Deus‖, e seu papel de castigo divino, do qual se lembra
Paneloux. Esta dimensão reforça a peste como símbolo do mal. A peste reúne sob as imagens
que lhe são específicas todas as manifestações do mal e da infelicidade de ordem física,
moral, metafísica e histórica.
Além do sentido clássico da tragédia, enquanto representação e gênero dramático,
Camus considera que seu próprio tempo — marcado por guerras, pela barbárie, pelos campos
de concentração, pelos crimes contra a humanidade e pelo terror totalitário — é um momento
histórico "trágico" por excelência:
L‘homme d‘aujourd‘hui, qui crie sa révolte en sachant que sa révolte a des
limites, qui exige sa liberté et subit la nécessité, cet homme contradictoire,
déchiré, désormais conscient de l‘ambiguïté de l‘homme et de son histoire,
cet homme est l‘homme tragique par excellence (CAMUS, 1962, p.1707).
Podemos, assim, destacar os elementos que acentuam o aspecto de crônica presente no
romance. A linguagem é sóbria e recusa a exaltação dos sentimentos heróicos ou líricos;
quanto mais as circunstâncias são trágicas, mais o tom da narrativa se faz impessoal, o que
não deixa de lembrar a técnica de Kafka, por exemplo, no Processo (1915). La peste é
marcada por referências, às vezes sutis, às vezes mais explícitas, ao momento da Segunda
Guerra. A comparação subjacente entre peste e guerra é o dado que mais estabelece a relação
do romance com a época que precedeu sua publicação. A peste e a guerra são vistas e julgadas
da mesma maneira, elas são permutáveis, as duas são um flagelo:
Les fléaux, en effet, sont une chose commune, mais on croit difficilement
aux fléaux lorsqu'ils vous tombent sur la tête. Il y a eu dans le monde autant
de pestes que de guerres. Et pourtant pestes et guerres trouvent les gens
toujours aussi dépourvus (CAMUS, 1962, p.1247).
64
Evocando o imaginário da peste, sobretudo sua ação de mortalidade e devastação,
Rieux estabelece imediatamente a relação entre ela e a guerra. O campo lexical evocativo da
guerra é importante, fala-se em ―estado de peste‖, como se fala de ―estado de sìtio‖. O exìlio e
a prisão são temas centrais: "Ils éprouvaient ainsi la souffrance profonde de tous les
prisonniers et de tous les exilés, qui est de vivre avec une mémoire qui ne sert à rien"
(CAMUS, 1962, p.1278). O exílio se dá na própria terra: "Mais si c‘était l‘exil, dans la
majorité des cas c‘était l‘exil chez soi" (CAMUS, 1962, p.1278). O exílio em casa não torna a
separação menos dolorosa nem a solidão menos pesada.
Um dos sentidos da crônica se refere a uma reportagem, uma anotação do dia-a-dia, o
que lembra o papel do historiador, para o qual o tempo é fundamental. Entretanto, no
romance, não se indica o ano preciso, o que limita a exatidão da referência cronológica. Fala-
se apenas da década, 1940: "Les curieux événements qui font le sujet de cette chronique se
sont produits en 194..." (CAMUS, 1962, p.1219).
A cronologia se estende da ―manhã do dia 16 de abril‖ até ―uma manhã de fevereiro‖.
O tempo é marcado pelo ritmo das estações, que têm um papel importante na evolução da
epidemia: ela aparece na primavera, culmina no verão, fica estagnada no outono, diminui e
desaparece no inverno. Trata-se de uma crônica que, paradoxalmente, foge à datação precisa.
Além disso, os documentos recolhidos pelo narrador são bastante subjetivos: seu
próprio testemunho, as confidências dos outros personagens e ―os textos que caìram em suas
mãos‖; trata-se de um historiador amador: "Bien entendu, un historien, même s'il est un
amateur, a toujours des documents. Le narrateur de cette histoire a donc les siens" (CAMUS,
1962, p.1222). Ele não se pretende imparcial, mas testemunha privilegiada pelas
circunstâncias e pelo papel que veio a desempenhar; mais do que documentar sobre a peste,
ele se preocupa em mostrar a reação das pessoas diante dela.
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O narrador não só conhece o que se passou, podendo avaliar a extensão do mal, mas
busca também fazer justiça àqueles que mostraram resistência. O objeto normal das crônicas é
a comunidade, e desde o inìcio do romance, com o emprego de expressões como ―nossa
cidade‖, ―a gente‖, ―a opinião geral‖, a crônica afirma sua ambição coletiva. A partir do
momento em que se diz que ―a peste foi questão de todos nós‖, o ―nós‖ coletivo substitui
quase sempre os outros pronomes; este ―nós‖ se opõe assim ao ―eu‖ individual de Meursault,
em L'Étranger. A comunidade, no caso, é uma cidade: Oran. Trata-se de uma referência a
uma cidade que existe de fato, situada no norte da África, na Argélia, e a história se passa na
década de 1940. Assim, a situação espácio-temporal constitui um quadro realista. Pode-se
também ver em Oran uma cidade moderna por causa dos acontecimentos, das descrições
físicas e da forma como nela é apresentada a vida, organizada em função do sistema
capitalista avançado:
On pouvait cependant avoir d'autres sujets d'inquiétude par suite des
difficultés du ravitaillement qui croissaient avec le temps. La spéculation
s'en était mêlée et on offrait à des prix fabuleux des denrées de première
nécessité qui manquaient sur le marché ordinaire. Les familles pauvres se
trouvaient ainsi dans une situation très pénible, tandis que les familles riches
ne manquaient à peu près de rien. [...] la peste [...] rendait plus aigu dans le
coeur des hommes le sentiment de l'injustice. Il restait, bien entendu, l'égalité
irréprochable de la mort, mais de celle-là, personne ne voulait (CAMUS,
1962, p.1413).
O narrador sublinha o aspecto banal da cidade e da vida em Oran, que é apresentada
como uma cidade comum, feia, voltada para o comércio, fechada sobre si mesma, um lugar
bastante artificial e inumano, como muitas cidades grandes. Os habitantes não têm nada de
extraordinário, levam uma vida mecânica, presa aos hábitos do cotidiano; vivem numa
espécie de indiferença, sem refletir no sentido a dar a vida. A monotonia, o conformismo e a
despersonalização os absorvem. Passam a maior parte do tempo trabalhando, trabalham muito
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e gastam logo o pouco que ganham no consumo de mercadorias e de diversões (Cf. CAMUS,
1962, p.1219).
A descrição da invasão e da morte de milhares de ratos é bastante realista:
incredulidade e depois preocupação dos habitantes. A ação tem como quadro primeiro o
cenário da vida quotidiana e a primeira vítima é o porteiro de um imóvel, o representante
estereotipado de uma vida fundada sobre o hábito e os gestos cotidianos.
Antes da peste, em Oran, a vida é ritmada pelo trabalho, pelos prazeres do fim de
semana, pelos hábitos do cotidiano; o narrador acentua este aspecto ―comum‖ da cidade e da
vida de seus habitantes: "Ce qu'il fallait souligner, c'est l'aspect banal de la ville et de la vie.
[...] Du moment que notre ville favorise les habitudes, on peut dire que tout est pour le mieux"
(CAMUS, 1962, p.1221). No entanto, depois da declaração do estado de peste, o aspecto da
cidade se modifica, ela se torna uma cidade diferente, por causa das mudanças no espaço e
nos hábitos do cotidiano: "Oran prit ainsi un aspect singulier" (CAMUS, 1962, p.1283). Já o
fechamento das portas conduz a medidas de proibição e de racionamento, finalmente
instalando-se a desordem.
Num primeiro momento de desespero, os habitantes apelam para a religiosidade; logo
em seguida eles se entregam aos prazeres e exibem a riqueza, o luxo, as relações: "Au début,
quand ils croyaient que c‘était une maladie comme les autres, la religion était à sa place. Mais
quand ils ont vu que c‘était sérieux, ils se sont souvenus de la jouissance" (CAMUS, 1962,
p.1318). Já não vivem conforme o modo convencional nem se preocupam com o olhar
reprovador dos outros: "La peste avait supprimé les jugements de valeur. Et cela se voyait à la
façon dont personne ne s'occupait de la qualité des vêtements ou des aliments qu'on achetait"
(CAMUS, 1962, p.1368). Na Peste, passada a crise da doença, a maioria dos habitantes
retorna ao seu antigo estado de banalidade, superficialidade e alienação.
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As condições materiais da vida sob o domínio da peste são relatadas com detalhes: "Le
ravitaillement fut limité et l‘essence rationnée. On prescrivit même des économies
d‘électricité" (CAMUS, 1962, p.1283). Os problemas de abastecimento, as restrições, o
mercado negro, as dificuldades de comunicação, as cenas da vida cotidiana, são reflexo das
marcas de uma época: a ocupação alemã da França, o genocídio judeu, a Segunda Guerra com
toda sorte de sofrimentos que ela trouxe. Nalguns momentos a equivalência entre a peste e a
guerra são particularmente evidentes, como na descrição das refeições coletivas num campo
de futebol que abriga os doentes:
Puis les haut-parleurs qui, dans des temps meilleurs, servaient à annoncer le
résultat des matches ou à présenter les équipes, déclarèrent en nasillant que
les internes devaient regagner leurs tentes pour que le repas du soir pût être
distribué. [...] "C'est scientifique, dit Tarrou à l'administrateur (CAMUS,
1962, p.1417).
De forma semelhante, no auge da peste, a evocação, no texto, dos cadáveres
evacuados por bondes, num anonimato desumanizante, das fossas comuns e dos ―fornos
crematórios‖ é a imagem do extermìnio nos campos de concentração:
[...] un employé de la mairie facilita beaucoup la tâche des autorités en
conseillant d'utiliser les tramways qui, autrefois, desservaient la corniche
maritime, et qui se trouvaient sans emploi. À cet effet, on aménagea
l'intérieur des baladeuses et des motrices en enlevant les sièges, et on
détourna la voie à hauteur du four, qui devint ainsi une tête de ligne"
(CAMUS, 1962, p.1364).
Camus lembrou que o ―conteúdo evidente‖ da Peste era a luta da resistência contra o
nazismo e a descrição do domínio da peste remete ao momento da guerra. Mas a crítica da
administração burocrática e a condenação da pena de morte remetem também à questão da
revolução de tipo comunista e aos métodos do stalinismo, que fazem parte da história do
século XX. Assim, no romance, a doença simboliza a guerra, e também os totalitarismos e
autoritarismos, inclusive o comunista.
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Há no romance uma crítica da ideologia, do dogmatismo, da violência e do
totalitarismo, configurada pela sátira da administração e das instituições do poder político ou
social, marcadas pelo desinteresse, pela incompetência e pela burocracia: "Les mesures
arrêtées étaient insuffisantes, cela était bien clair. [...] Si l'épidémie ne s'arrêtait pas d'elle-
même, elle ne serait pas vaincue par les mesures que l'administration avait imaginées"
(CAMUS, 1962, p.1267). As instituições e tudo o que diz respeito ao poder político ou social
se exprimem em termos convencionais, mostrando o ridículo da rigidez inadaptada à situação
excepcional:
Ce qui était plus remarquable, et Rambert le remarqua en conséquence,
c‘était la manière dont, au plus fort d‘une catastrophe, un bureau pouvait
continuer son service et prendre des initiatives d‘un autre temps, souvent à
l‘insu des plus hautes autorités, pour la seule raison qu‘il était fait pour ce
service (CAMUS, 1962, p.1308).
Pela crítica da administração se faz a crítica do Estado, uma espécie de sistema
abstrato que se encarrega de ―pensar‖ e de reagir no lugar dos cidadãos, mas que se recusa a
encarar a situação com lucidez e não considera os dados novos, que se mostra incompetente,
autoritário e desumano:
J'ai appris que la préfecture envisage une sorte de service civil pour obliger
les hommes valides à participer au sauvetage général. [....]
— Pourquoi ne pas demander des volontaires?
— On l‘a fait par voie officielle, un peu sans y croire. Ce qui leur manque,
c‘est l‘imagination. Ils ne sont jamais à l‘échelle des fléaux. Et les remèdes
qu‘ils imaginent sont à peine à la hauteur d‘un rhume de cerveau. Si nous les
laissons faire, ils périront et nous avec eux.
— C'est probable, dit Rieux. Je dois dire qu'ils ont cependant pensé aussi aux
prisonniers, pour ce que j'appellerai les gros travaux.
— J'aimerais mieux que ce fût des hommes libres.
— Moi aussi. Mais pourquoi, en somme?
J'ai horreur des condamnations à mort!
Rieux regarda Tarrou:
— Alors? dit-il
— Alors, j'ai un plan d'organisation pour des formations sanitaires
volontaires. Autorisez-moi à m'en occuper et laissons l'administration de
côté (CAMUS, 1962, p.1320-21).
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A relação do romance com o comunismo ficou mais explícita depois da publicação do
ensaio L'Homme révolté e das polêmicas que ele suscitou. A "mensagem" da Peste já era clara
e humanista e expunha o autor naturalmente a uma crítica marxista. Camus previu este efeito
polêmico e satìrico do romance, ao escrever: ―La rencontre de l‘administration qui est une
entité abstraite et de la peste qui est la plus concrète de toutes les forces ne peut donner que
des résultats comiques et scandaleux‖ (CAMUS, 1964, p.67). O engajamento que Camus
pratica e propõe, e que transparece na Peste, está figurado no trabalho do doutor Rieux, que
pressupõe a participação ativa dos indivíduos na comunidade e prescinde, de certa forma, do
controle do Estado.
As concepções políticas de Camus transparecem de certa forma na Peste, através das
posições dos personagens Rieux e Tarrou. Este último é quem toma a iniciativa de organizar
as formações sanitárias e se entrega totalmente ao combate contra a peste. Ele já seguiu um
longo itinerário ao mesmo tempo moral e político, tem horror à pena de morte e questiona
toda decisão da justiça. Busca uma transformação social associada a exigências éticas e
orienta sua ação por um "limite" que desautoriza o crime e a morte. Inicialmente escolheu a
ação revolucionária, para lutar contra a sociedade que legitima a morte, mas compreende que
esta ação pode também levar ao assassinato:
Bien entendu, je savais que, nous aussi, nous prononcions, à l'occasion, des
condamnations. Mais on me disait que ces quelques morts étaient nécessaires
pour amener un monde où l'on ne tuerait plus personne. [...] Jusqu'au jour où
j'ai vu une exécution (c'était en Hongrie) et le même vertige qui avait saisi
l'enfant que j'étais a obscurci mes yeux d'homme. Vous n'avez jamais vu
fusiller un homme? J'ai compris alors que moi, du moins, je n'avais pas
cessé d'être un pestiféré pendant toutes ces longues années où pourtant, de
toute mon âme, je croyais lutter justement contre la peste. J'ai appris que
j'avais indirectement souscrit à la mort de milliers d'hommes, que j'avais
même provoqué cette mort en trouvant bons les actions et les principes qui
l'avaient fatalement entraînée. Depuis, je n'ai pas changé. Cela fait
longtemps que j'ai honte, honte à mourir d'avoir tué, fût-ce de loin, fût-ce
dans la bonne volonté, un meurtrier à mon tour. [...] Et c'est pourquoi j'ai
décidé de refuser tout ce qui, de près ou de loin, pour de bonnes ou de
mauvaises raisons, fait mourir ou justifie qu'on fasse mourir (CAMUS, 1962,
p.1423-1426).
70
A linguagem de Tarrou é muito próxima daquela de Camus em Ni victimes ni
bourreaux (Cf. Camus, 1965, p.331-352). Para o personagem, a violência nunca pode
constituir um meio, nem pode uma causa nobre admitir a violência como meio. No romance, a
rejeição do dogmatismo, do totalitarismo e da violência, a crítica da revolução por todos os
meios, crítica que atinge diretamente o stalinismo, manifesta-se sobretudo através deste
depoimento que Tarrou faz de sua experiência, que corresponde àquela de muitos que se
decepcionaram com os métodos do comunismo.
Na Peste, muito mais do que em L'Étranger, transparecem os problemas e os conflitos
marcantes de uma época, mas Camus evita as alusões diretas demais aos acontecimentos
históricos, pois considera que a história e a filosofia, mesmo quando fornecem seus elementos
ao romance, não podem entrar diretamente na literatura. Ele vê na literatura de tese, na ―obra
que prova", conforme se lê no Mythe de Sisyphe, ―la plus haïssable de toutes, parce qu‘elle
s‘inspire d‘une pensée satisfaite‖ (CAMUS, 1965, p.191); e anota em seus Carnets: ―J‘aime
mieux les hommes engagés que les littératures engagées‖ (CAMUS, 1964, p.164).
3.3 ADVERSÁRIOS DO FLAGELO
La Peste é simultaneamente crônica, ou testemunho sobre a História, e tragédia, ou
fábula do tempo presente. O romance discute as condutas humanas, analisa os
comportamentos e convoca a reflexão moral, mostrando o combate do homem contra o mal, a
infelicidade, o sofrimento e a morte ou, numa linguagem camusiana, o trabalho de homens
que expressam sua revolta em face do Absurdo.
O enredo do romance não apresenta grandes intrigas. Trata-se de um relato bastante
realista de uma epidemia de peste que atinge durante vários meses a cidade de Oran, isolando-
71
a do mundo, nos anos quarenta. Ante o flagelo, os personagens reagem cada um à sua
maneira, a maioria deles toma consciência da necessidade de uma ação solidária. Alguns
homens tentam organizar a luta contra a epidemia, à frente da equipe estão o médico Rieux e
Tarrou. Graças à coragem lúcida destes homens e à força de sua revolta contra o mal, a peste
será vencida; no fim do romance a peste desaparece. Mas para todos aqueles que viveram esta
horrível "tragédia", o estado de alerta será permanente, pois poderia voltar o dia em que ―a
peste acordaria seus ratos e os mandaria morrer numa cidade feliz‖. O narrador deixa a
conclusão em aberto, ante a perspectiva de um possìvel recomeço da peste cujo bacilo ―não
morre nem desaparece nunca‖ (CAMUS, 1962, p.1474).
No relato, destaca-se a atitude que os personagens tomam diante da ameaça. Alguns
parecem se colocar do lado do flagelo, pois acabam obtendo vantagens próprias com ele e
preferem o "estado de peste" à situação de normalidade; grande parte se revela adversários da
doença; o velho asmático encarna uma atitude de indiferença à quase tudo que se passa ao seu
redor; a maior parte, embora anônima, constitui-se das vítimas que tombam sob a peste. É
sobretudo em função do sentido simbólico e moral de que são portadores que os personagens
se definem.
O médico Rieux não pode se resignar à impotência da medicina diante da morte. Para
ele o sofrimento e a morte são sempre um escândalo inaceitável e ainda mais quando se trata
de uma criança inocente, como diz ao padre: "je refuserai jusqu'à la mort d'aimer cette
création où des enfants sont torturés" (CAMUS, 1962, p.1397).
Rieux, que está no centro da luta contra o flagelo, é o personagem narrador, só ao final
da crônica ele o revela. Adotando o tom do simples cronista, ele fala de si mesmo na terceira
pessoa e marca uma grande distância em relação a acontecimentos que o tocam de muito
perto. Além disso, este narrador multiplica os pontos de vista e é por meio das anotações de
Tarrou que o leitor faz uma idéia de seu próprio porte físico. Rieux é aberto à compreensão do
72
outro. Ele se abstém de julgar e não condena ninguém, nem mesmo Cottard, que se beneficia
com a desgraça coletiva. O narrador não descreve moral ou psicologicamente seus
personagens, nem explica seu caráter, mas os apresenta situados e em ação, e não há no
romance um narrador onisciente.
Quando Rambert renuncia a fugir de Oran, Rieux lhe diz que não há vergonha em
preferir a felicidade. E Rambert lhe responde que pode haver vergonha em querer ser feliz
sozinho (Cf. CAMUS, 1962, p.1389). Diante da situação, o médico afirma que se sente
incapaz de julgar (Cf. CAMUS, 1962, p.1384).
Trata-se da busca de conciliar a felicidade individual com o bem da coletividade,
quando estes parecem se excluírem mutuamente. "Bien entendu, un homme doit se battre pour
les victimes. Mais s'il cesse de rien aimer par ailleurs, à quoi sert qu'il se batte?‖(CAMUS,
1962, p.1428), afirma Tarrou. Mas, na prática, estes personagens colocam os interesses da
comunidade acima de seus interesses pessoais.
Se cada personagem encarna uma maneira de reagir à epidemia, a diferença de
comportamentos se manifesta até mesmo dentro da classe médica. O velho Dr. Castel,
trabalha na pesquisa de um soro; já o jovem Dr. Richard, presidente da ordem dos médicos de
Oran, é evasivo e se recusa a entrar na luta contra o flagelo: "Mais je n'y puis rien, dit
Richard. Il faudrait des mesures préfecturales. D'ailleurs, qui vous dit qu'il y a risque de
contagion?" [...] Tout ce qu'il pouvait faire était d'en parler au préfet" (CAMUS, 1962,
p.1241).
O combate dos médicos Rieux e Castel, em antítese com a figura do padre Paneloux,
configura a luta da medicina em contraste com o discurso da religião e, ainda, a oposição
entre o relativo e o absoluto, entre a experiência e a abstração. O médico afirma: "Le salut de
l'homme est un trop grand mot pour moi. Je ne vais pas si loin. C'est sa santé qui m'intérresse,
sa santé d'abord" (CAMUS, 1962, p.1397). O padre, com um discurso autoritário e moralista,
73
a princípio trata a epidemia como um castigo divino, do qual ele se exclui: "Mes frères, vous
êtes dans le malheur, mes frères, vous l‘avez mérité [...] Méditez cela et tombez à genou"
(CAMUS, 1962, p.1296-97). O conselho do padre, pronunciado com veemência no meio de
um silêncio absoluto, foi entendido e cumprido de forma literal, ou seja, após certa hesitação,
algumas pessoas deslizaram da cadeira para o genufexório, as outras acreditaram que era
preciso fazer o mesmo e assim logo todos estavam ajoelhados. Algumas páginas adiante a
mesma expressão do padre é retomada pelo narrador, mas para ser contestada: " [...] il fallait
lutter de telle ou telle façon et ne pas se mettre à genoux" (CAMUS, 1962, p.1327).
O padre Paneloux, um jesuíta erudito, faz dois sermões na cidade sitiada pela peste.
No primeiro ele se serve da doença para despertar sentimentos cristãos, jogando com o terror
suscitado pelas imagens sugestivas que emprega. Mas a noção de ―punição coletiva‖ e a
justificativa do sofrimento não são aceitas por Rieux. O sermão de Paneloux funciona como
uma revelação; ao nomear a peste e ao anunciá-la de forma dramática e dramatizada,
intensifica a presença da ameaça. A pregação do padre situa a peste na história e no contexto
bíblico e acentua a idéia de que todos "étaient condamnés, pour un crime inconnu‖ (CAMUS,
1962, p.1301).
O discurso de Paneloux segue as regras da exposição tradicional e o modelo da
oratória sacra; revela-se um discurso formal e frio, como uma paródia da eloqüência religiosa
e de seus clichês. O padre tem um tom de acusação, manipula as figuras de estilo e as
referências culturais para impor sua concepção pessoal do flagelo. Tocando a imaginação dos
ouvintes, afirma que os habitantes são responsáveis pela epidemia e que é preciso se entregar
a Deus. Paneloux encarna o abandono à fé. Na opinião de Rieux, ele encara a peste como algo
abstrato, e de fato ele ainda a desconhece. Trata-se aqui, mais uma vez, da crítica à abstração
separada do vivido:
74
Paneloux est un homme d'études. Il n'a pas vu assez mourir et c'est pourquoi
il parle au nom d'une vérité. Mais le moindre prêtre de campagne qui
administre ses paroissiens et qui a entendu la respiration d'un mourant pense
comme moi. Il soignerait la misère avant de vouloir en démontrer
l'excellence (CAMUS, 1962, p.1322).
O padre assiste à agonia e à morte da criança, o filho do juiz Othon, a quem fora
aplicada a vacina produzida pelo doutor Castel. Ele está ao lado dos médicos e dos
personagens importantes da história, a experiência é terrível para todos e o que ele vê o
transforma:
Ils avaient déjà vu mourir des enfants puisque la terreur, depuis des mois, ne
choisissait pas, mais il n'avaient jamais encore suivi leurs souffrances minute
après minute, comme ils le faisaient depuis le matin. Et, bien entendu, la
douleur infligé à ces innocents n'avait jamais cessé de leur paraître ce qu'elle
était en vérité, c'est-à-dire un scandale. Mais jusque-là du moins, ils se
scandalisaient abstraitement, en quelque sorte, parce qu'ils n'avaient jamais
regardé en face, si longuement, l'agonie d'un innocent (CAMUS, 1962,
p.1394).
A um comentário do padre, Rieux não se contém e lhe responde com uma alusão ao
sermão e com a expressão de sua revolta: "Dans le même mouvement emporté, Rieux se
retourna et lui jeta avec violence: Ah! celui-là, au moins, était innocent, vous le savez bien!
[...] il y a des heures dans cette ville où je ne sens plus que ma révolte" (CAMUS, 1962,
p.1396-97).
Depois disso, o padre aceita se unir às equipes formadas por Tarrou, e Rieux se alegra
ao constatar que ele é ―melhor do que seu sermão‖. Camus explicou a presença do padre nas
formações sanitárias: ―Je devais, dans mon roman, rendre justice à ceux de mes amis chrétiens
que j‘ai rencontrés sous l‘occupation dans un combat qui était juste‖ (CAMUS, 1965, p.394).
Além da homenagem aos cristãos combatentes, é o problema da fé que se coloca, a
impossibilidade de conciliar a crença em Deus e a existência do mal. Com efeito, a religião
sempre colocou um problema a Camus porque, se ele põe em questão a existência de Deus e
nega qualquer "natureza humana", no sentido de uma essência imutável e pré-determinada por
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uma divindade, busca entretanto fundar as regras de uma moral propriamente humana. A
questão que se coloca é a do homem que prescinde da religião, mas não da ética, e busca
fundar seus próprios valores.
O segundo sermão do padre é muito diferente do primeiro, conforme Rieux, ele beira à
heresia, o que expressa a crise que ele atravessa. O narrador observa as mudanças:
"[Paneloux] parla d'un ton plus doux et plus réfléchi que la première fois et, à plusieurs
reprises, les assistants remarquèrent une certaine hésitation dans son débit. Chose curieuse
encore, il ne disait plus 'vous', mais 'nous' " (CAMUS, 1962, p.1401).
Tarrou é um personagem sobre o qual o romance fornece muitas informações, de
maneiras diversas: ele se revela diretamente por meio de seus ―carnets‖, ele se explica pela
confidência, é descrito por Rieux e aparece na maioria das cenas importantes. Mas mesmo
assim tem algo de misterioso, ―ninguém podia dizer de onde ele vinha, nem porque estava lá‖
(CAMUS, 1962, p.1235). Ele toma a iniciativa de organizar as formações sanitárias e se
entrega totalmente à luta contra a peste. Não está isolado como os outros, seu exílio é
voluntário. Não aceita a pena de morte e abandona a militância revolucionária por causa dos
seus métodos violentos. Demonstra uma consciência lúcida, adquirida com a experiência, e
critica o abuso de poder, a abstração e o crime.
Rambert, jovem jornalista de passagem por Oran, é estrangeiro na cidade, mas a peste
muda seus planos e o transforma profundamente. Num primeiro momento, ele protesta
dizendo ―eu não sou daqui‖, e só pensa em deixar a cidade para ir ao encontro da mulher que
ama; só depois de algum tempo vai reconhecer que a peste diz respeito a ele também e então
desiste de fugir de Oran:
— Docteur, dit Rambert, je ne pars pas et je veux rester avec vous.[…]
Rambert dit qu'il avait encore réfléchi, qu'il continuait à croire ce qu'il
croyait, mais que s'il partait, il aurait honte. [...] J'ai toujours pensé que j'étais
étranger à cette ville et que je n'avais rien à faire avec vous. Mais maintenant
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que j'ai vu ce que j'ai vu, je sais que je suis d'ici, que je le veuille ou non.
Cette histoire nous concerne tous (CAMUS, 1962, p.1389).
Para ele o que importa é o amor. O que o convence, finalmente, a trabalhar com Rieux
e a entrar na luta coletiva não são raciocìnios, mas a experiência, o fato de ―ter visto o que
viu‖ e também a descoberta de que Rieux é um homem capaz de amar que não vive na
abstração, como tinha imaginado. De fato, Rambert, quando queria deixar a cidade e ainda
não sabia que a mulher de Rieux estava ausente e com problemas de saúde, acusara o médico
de viver na abstração e de não compreender o que é o amor e a separação:
Peut-être ne vous rendez-vous pas compte de ce que signifie une séparation
comme celle-ci pour deux personnes qui s‘entendent bien. [...] vous ne
pouvez pas comprendre. Vous parlez le langage de la raison, vous êtes dans
l‘abstraction. [...] Vous n‘avez pensé à personne. Vous n‘avez pas tenu
compte de ceux qui étaient séparés. [...] Ah ! je vois, fit Rambert, vous allez
parler de service public. Mais le bien public est fait du bonheur de chacun
(CAMUS, 1962, p.1289-90).
Rambert termina por reconhecer a importância da comunidade e da existência do outro
e entra na luta contra a peste, retomando uma expressão de Rieux: "Cette histoire est stupide,
je sais bien, mais elle nous concerne tous" (CAMUS, 1962, p.1289). Duas verdades dividem o
coração de Rambert: a felicidade pessoal e a existência do outro. Ele considera que é errado
negar a felicidade e que é errado também negar a existência dos outros e agir como se
estivesse sozinho. Termina por priorizar a luta coletiva em detrimento de seus sentimentos
pessoais.
O personagem Grand leva uma vida medíocre, ele é um obscuro auxiliar da prefeitura,
mas vai trazer uma ajuda importante ao combater contra a peste:
À première vue, en effet, Joseph Grand n'était rien de plus que le petit
employé de mairie dont il avait l'allure. [...] Dans un certain sens, on peut
bien dire que sa vie était exemplaire. Il était de ces hommes, rares dans notre
ville comme ailleurs, qui ont toujours le courage de leurs bons sentiments
(CAMUS, 1962, p.1253-54).
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O narrador propõe que se veja nele o herói, ele é testemunha da boa vontade, pela
busca da palavra correta, por sua bondade e transparência:
Oui, s'il est vrai que les hommes tiennent à se proposer des exemples et des
modèles qu'ils appellent héros, et s'il faut absolument qu'il y en ait un dans
cette histoire, le narrateur propose justement ce héros insignifiant et effacé
qui n'avait pour lui qu'un peu de bonté au coeur et un idéal apparemment
ridicule (CAMUS, 1962, p.1331).
Grand, mesmo não encontrando as "palavras corretas", sente intuitivamente a verdade
dos seres, dando todo sentido às palavras e às expressões feitas. É ele que primeiro
compreende que Cottard ―tem alguma coisa a se repreender‖, dá a melhor definição de Rieux:
―o doutor é responsável‖, e formula o nìvel mais elementar da solidariedade: ―é preciso se
ajudar mutuamente‖.
Cottard está presente principalmente no início do romance, com sua tentativa de
suicídio, e no final, com sua prisão. É o único entre todos que fica contente com a peste, pois
esta faz dele um homem como os outros e não mais um condenado em potencial. A peste
desestabilizou a cidade e destruiu a ordem que devia condená-lo, assim ele só pode se alegrar
com a arbitrariedade: "Avec la peste, plus question d'enquêtes secrètes, de dossiers, de fiches,
d'instructions mystérieuses et d'arrestation imminente. [...] il n'y a que des condamnés qui
attendent [...] et, parmi eux, les policiers eux-mêmes" (CAMUS, 1962, p.1378). Ele diz que se
sente bem com a peste: "je me sens bien mieux ici depuis que nous avons la peste avec nous."
(CAMUS, 1962, p.1334) Ante a proposta de Tarrou, para que trabalhasse nas formações
sanitárias, mostra sua recusa: " 'Ce n'est pas mon métier.' [...] 'D'ailleurs je m'y trouve bien,
moi, dans la peste, et je ne vois pas pourquoi je me mêlerais de la faire cesser' " (CAMUS,
1962, p.1347).
Envolvendo-se com o contrabando de produtos racionados, sua evolução é inversa à
dos outros personagens: "Il revendait ainsi des cigarettes et du mauvais alcool dont les prix
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montaient sans cesse et qui étaient en train de lui rapporter une petite fortune" (CAMUS,
1962, p.1334). Ele se enriquece no meio da infelicidade geral: "De son côté, Cottard
prospérait et ses petites spéculations l'enrichissaient" (CAMUS, 1962 p.1431). Antes era
infeliz a ponto de querer se matar, mas, com a peste, toma novo gosto pela vida e volta ao
convívio social. É a desgraça comum, o castigo imposto a todos, que lhe garante a
impunidade. Não se sabe por que ele foge da polícia. Mas seu crime maior não é aquele que o
faz correr o risco de ser preso e que permanece um enigma para os outros personagens e para
o leitor, e sim, segundo Tarrou, ―ter aprovado em seu coração aquilo que fazia morrer
crianças e homens.‖ Cottard encarna a colaboração com o inimigo, representando a
colaboração com os nazistas durante a guerra.
O juiz Othon é descrito inicialmente como rigorista e pouco simpático, encarnando a
representação do rito social e da convenção. À custa dele e de toda a família Othon se
manifesta a ironia habitual de Camus para com os ritos sociais, como ocorre em L'Étranger.
Isto pelo menos até a morte da criança, o filho do juiz. A partir daí ele se transforma e
finalmente decide também fazer parte das formações sanitárias.
Os personagens representam pessoas comuns, o flagelo da peste funciona quase como
um teste experimental que faz reagir uma humanidade média, nada heróica. A epidemia
impõe certas condições de vida e certos comportamentos comuns; todos os habitantes são
prisioneiros e a maioria está ―separada‖, mas eles têm atitudes diferentes, mostrando a
liberdade e a escolha dos homens, sua vontade ou não de se dedicarem a uma causa comum,
enfim, sua atitude moral.
79
4 REVOLTA OU REVOLUÇÃO
4.1 A OPÇÃO DE CAMUS PELO ENSAIO
Em sua obra Albert Camus soleil et ombre (1987), Roger Grenier passa em revista
todos os livros do autor, com exceção de Le Premier homme, seguindo a ordem cronológica
de publicação e valendo-se de elementos biográficos e históricos, de uma maneira bastante
lúcida, sem cair no anedótico, destacando a relação destes elementos com os textos.4 Não
podemos deixar de concordar com o procedimento de Grenier, na medida em que ele leva em
conta o contexto sócio-histórico de produção e recepção dos textos de Camus e busca não
excluir nada do que possa ser útil ao conhecimento da obra.
Sem nos reduzirmos a uma leitura "biográfica" dos textos do autor, pensamos que o
conhecimento do "contexto" da obra literária em seu sentido amplo é imprescindível para a
sua compreensão. Consideramos que a linha da Escola Francesa de Análise do Discurso pode
nos fornecer este instrumental teórico, pois ela não se reduz ao sociologismo, nem se contenta
com uma análise puramente estrutural ou lingüística das obras. Além disso, a Análise do
Discurso não restringe seu campo de estudo aos textos de ficção, mas aborda igualmente os
textos filosóficos, que constituem um campo a ser investigado quando se aborda a produção
de Camus. Assim, sem desconsiderar os aspectos lingüísticos e estruturais de um texto,
levamos em consideração os aspectos aparentemente extra-textuais, pois o ―contexto‖ em seu
sentido amplo se inscreve no interior do próprio discurso.
Num trabalho coletivo, Cossutta, Maingueneau e outros (COSSUTTA (dir.), 1996) se
propõem o estudo da argumentação filosófica em Descartes. Cossutta se pergunta sobre as
4 Cada um de seus livros manifesta o engajamento de sua reflexão e é inseparável dos acontecimentos de sua
vida, durante a qual ele nunca se manteve afastado dos combates, dos sofrimentos e das agitações da sociedade.
É por isso que este estudo sobre seus livros me levou muitas vezes a fazer referência à biografia, a dizer que
momento de sua existência ele atravessava quando escrevia esta ou aquela obra. Tomar partido a favor ou contra
Sainte-Beuve é uma iniciativa um pouco ingênua. Não se deve excluir nada do que é útil ao conhecimento de
uma obra. GRENIER, 1987, p.11
80
condições de possibilidade de uma teoria da argumentação filosófica e trata particularmente
do discurso cartesiano; no entanto, pela diversidade e profundidade da discussão, bem como
pelos conceitos que desenvolve, fornece elementos para a análise de outros autores, como
Albert Camus.
Entre Descartes e Camus as diferenças são muitas, a começar pelo grande intervalo de
tempo que os separa. Descartes é um dos filósofos consagrados pela tradição acadêmica;
estabelece uma virada no pensamento ocidental e é o responsável por um discurso constituinte
que inaugura uma tradição filosófica subjetivista e racionalista, mesmo se, paradoxalmente,
seu discurso, que busca combater o ceticismo, acaba por lhe fomentar o desenvolvimento.
Camus é crítico dos poderes pretensamente absolutos da razão no domínio do conhecimento e
parece haver uma relação entre sua localização bastante à margem no campo da filosofia e sua
inserção numa linha de pensamento refratária ao dogmatismo em todas as suas expressões.
O paralelo entre estes escritores mostra de que maneira todo discurso filosófico é
passível de uma análise discursiva, que por sua vez constitui um avanço no estudo da
filosofia, em seu campo específico, pois, como afirma Cossutta, a consideração da dimensão
especificamente lingüística e discursiva do texto filosófico não tem apenas um valor
descritivo mas pode cumprir uma função heurística, na medida em que ela nos permite
expandir sua inteligibilidade e formular interpretações novas (Cf. COSSUTTA (dir.), 1996,
p.2). Assim, o estudo do discurso filosófico e a história da filosofia, com seus métodos e
aquisições próprios, podem se completar.
Conforme a reflexão proposta por Cossutta, mesmo quando lidamos com textos
filosóficos podemos abordar a linguagem, a materialidade discursiva, pois a "argumentação"
filosófica é indissociável da "doutrina", ou seja, os elementos retóricos não são uma camada
sobreposta, nem se separam da exposição de idéias, nem são, muito menos, apenas
ornamentos que poderiam ser encontrados apenas nos textos literários. Esta colocação nos
81
permite atenuar fronteiras entre os campos dos saberes, fronteiras que são geralmente de
caráter institucional.
Camus optou por desenvolver sua reflexão filosófica em ensaios. Já os filósofos que se
expressam através de sistemas, gênero supostamente mais rigoroso, tendem a buscar uma
língua ideal, uma espécie de discurso com regras próprias, que se concentra no
desenvolvimento de conceitos e na exposição de uma verdade. Isto pode ser entendido como
uma busca de especificidade, visto que os campos da ciência, da filosofia e da literatura não
vêem a linguagem da mesma maneira nem com os mesmos objetivos. No entanto, a pretensão
de um discurso filosófico conceitual, que busca se colocar acima de todas as linguagens ou
diferente de todas elas, e que rejeita a retórica como um elemento enfraquecedor, não deveria
existir. Mesmo se é a crença nesta possibilidade que parece estar presente de forma subjacente
em muitas classificações que tentam justificar a superioridade de um discurso filosófico com
relação a outros em razão de sua linguagem supostamente mais objetiva, mais neutra, mais
rigorosa ou racional.
Pode-se estabelecer uma distinção entre a argumentação, ligada à retórica e à busca da
adesão do auditório, e a demonstração, ligada à lógica e às deduções dos raciocínios.
Entretanto, Cossutta esclarece que, na verdade, é difícil identificar num texto uma limitação
clara e distinta entre a argumentação retórica e a argumentação lógica. Mesmo o discurso
filosófico de maior pretensão lógica não consegue escapar do aspecto retórico, pelo fato de já
se construir como discurso.5
Cossutta mostra bem que, mesmo se distinguirmos entre a demonstração filosófica,
sob a forma dedutiva ou de prova, e a argumentação, que visa convencer ou persuadir, não as
podemos opor. O texto se constrói na interação entre estes dois pólos, que não são
5 Os modos de validação pelos quais uma doutrina configura seus enunciados e seus princípios não são
independentes de um contexto de motivação ou de legitimação que supõe a intervenção das dimensões
institucionais e biográficas, e que supõe igualmente a consideração das operações que definem as
condições de legibilidade de uma obra. COSSUTTA (dir.), 1996, p.36
82
dissociáveis dos conteúdos doutrinais. Ou seja, não pode haver separação entre demonstração,
como forma privilegiada do discurso genuinamente filosófico, e argumentação, como
raciocínio em linguagem comum, baseado não sobre o necessariamente verdadeiro, mas sobre
o verossímil e sobre pressuposições.
Além disso, o argumentativo não é exclusividade do discurso filosófico e à obra
literária também pode estar subjacente um plano de conceitos, que origina um corpo de
doutrinas ou, como no caso de Camus, uma dimensão filosófica associada à elaboração de
obras diversas. Assim, a demonstração já não é vista como uma forma privilegiada e o
argumentativo é considerado como inerente à própria atividade lingüística, como um
componente próprio das línguas naturais.6
O discurso filosófico, seja de que gênero for, do tratado ao ensaio, não pode fugir às
limitações que são próprias de toda produção textual, visto que este discurso, mesmo que se
pretenda único ou especial, depende sempre de uma língua natural na qual ele se insere, da
mesma forma que o discurso dos literatos e cientistas. Assim, o discurso filosófico, mesmo
quando adota formas mais rigorosas, no sentido de mais teóricas e conceituais, nunca é
simplesmente demonstração. Esta envolve simultaneamente os aspectos mais demonstrativos
ou comprobatórios e os aspectos retóricos ou de busca de uma convicção (Cf. COSSUTTA
(dir.), 1996, p.2).
A tradição do discurso filosófico escamoteia as dimensões estilística, retórica e
pragmática da filosofia, privilegiando os textos dos quais tais dimensões estariam ausentes.
Há, contudo, exceções, uma delas é justamente o Discours de la méthode, no qual os
elementos retóricos são bastante evidentes. O Discours não foi escrito sob a forma de um
tratado, mas como uma introdução a uma obra de física e nele a narrativa se constitui como
6 Para definir a argumentação em filosofia, não se pode contentar em considerar o aparelho
demonstrativo que permite a validação das teses doutrinais, mas é preciso considerar o conjunto dos
meios discursivos postos a serviço de sua legitimação. COSSUTTA (dir.), 1996, p.90
83
autobiográfica, e também como uma forma retórica bem conhecida, o exemplo. Trata-se, com
efeito, de uma obra da qual muitos aspectos escapam à aridez de um racionalismo puramente
demonstrativo e podem ser dissociados da armadura conceitual e lógica do próprio
cartesianismo.
Le Discours de la Méthode, por seu estatuto, é visto como uma obra filosófica à parte,
secundária no plano estritamente doutrinal e ao mesmo tempo um texto constituinte na
história da literatura. Para Frédéric Cossutta, como discurso constituinte, ele pertence ao
mesmo tempo ao campo filosófico e ao domínio da literatura (Cf. COSSUTTA (dir.), 1996,
p.14). Daí a possibilidade de se tratar a dimensão retórica da filosofia cartesiana que se
inscreve na história da literatura.
Cossutta identifica no Discours uma distância entre os filosofemas e o estilo, uma
distância interna entre a língua empregada por Descartes e o teor dos enunciados filosóficos.
Na estilística cartesiana, as imagens (comparações, analogias, metáforas) desempenham um
papel fundamental e, ao lado desta instância poética, há o papel das instâncias lógico-
conceituais. Sendo que a coerência é obtida não pelos esquemas doutrinais, e sim graças ao
papel estruturante dos esquemas de imagens, que situam o sistema sob a unidade de uma
visão de mundo (Cf. COSSUTTA (dir.), 1996, p.17-18).
Conforme Frédéric Cossutta, o estilo está associado às dimensões conceituais e seria
artificial querer separar a dimensão demonstrativa da argumentativa, a conceitual da
metafórica, a retórica da estilística. Cada filosofia explora modos de sustentação diversos, ou
privilegia alguns deles, a fim de legitimar e validar uma doutrina. Ou seja, o filósofo cria a
argumentação da qual ele precisa em função de suas razões próprias.7
7 Os fenômenos argumentativos devem, portanto, ser pensados em correlação com os conteúdos,
porque uns e outros são, de certa forma, inseparáveis, como o verso e o reverso de uma mesma página.
Assim, as formas da argumentação numa determinada doutrina são tributárias desta filosofia, e a
maneira segundo a qual um filósofo utiliza raciocínio, prova ou argumento não é independente da
natureza de sua filosofia. COSSUTTA (dir.), 1996, p.23
84
Uma doutrina, explícita ou implicitamente, tematiza suas próprias condições de
argumentação. Camus, por sua vez, o faz de forma clara, ao optar pelo ensaio, ao exercer a
mistura de gêneros e ao defender o valor das imagens poéticas, onde o puro raciocínio se
mostra limitado e insuficiente. Seus ensaios exploram os recursos retóricos e, desta maneira,
nele, não há aquela distância que Cossutta identifica em Descartes entre doutrina e estilo. A
opção pelo ensaio está ligada à sua concepção de uma filosofia ciente dos limites do
conhecimento, esta opção também é significativa porque existe uma relação entre a escolha de
um gênero e o público ao qual se destina o texto.
Cada filosofia não só legitima suas próprias condições de possibilidade argumentativa,
como também elabora igualmente as condições gerais de uma validação do discurso, ou
subverte as pretensões à autojustificação das grandes formas especulativas ou positivas (Cf.
COSSUTTA (dir.), 1996, p.25). Camus, escolhendo o ensaio filosófico, contrapõe-se à
filosofia racionalista que é privilegiada pelas instituições acadêmicas e pela tradição filosófica
ocidental e que é expressa normalmente de forma conceitual em tratados ou sistemas. A
argumentação de Camus, ao mesmo tempo em que contesta uma tradição, busca a própria
legitimação. E as formas pelas quais exprime sua filosofia têm uma razão no interior desta
filosofia, no espaço em que ela constrói a imagem do outro.
4.2 A REVOLTA
A relação entre Revolta e Revolução é um tema desenvolvido no ensaio L’Homme
révolté, conforme escreve Camus em sua resposta à F. Jeanson, publicada pela revista Les
Temps Modernes: ―J‘ai entrepris avec L’Homme révolté une étude de l‘aspect idéologique des
révolutions‖ (CAMUS, 1965, p.759). Ou ainda, no prefácio a Moscou au temps de Lénine, de
Alfred Rosmer: ―La seule question qu‘on puisse poser à la révolution, la révolte seule est
fondée à la poser, comme la révolution est seule fondée à interroger la révolte. L‘une est la
85
limite de l‘autre‖ (CAMUS, 1965, p.789). Trata-se de um ensaio em que Camus, mais do que
fazer uma história ou uma filosofia das revoluções, busca expor suas posições quanto à
temática da Revolta e trata de forma direta os métodos do stalinismo.
Camus refletia sobre a Revolta há algum tempo, desde 1943, pelo menos, e, em 1945,
redigiu algumas páginas sobre o tema. Em L’Homme révolté, publicado em 1951, ele retoma a
reflexão sobre a Revolta e aborda ao mesmo tempo a política, o social e o literário. Põe em
questão as ideologias falsificadoras do humano e da história e afirma sua recusa dos
totalitarismos e das ―utopias absolutas‖, questionando a revolução violenta de tipo comunista.
O ensaio de Camus exprime o estado de espírito de muitos homens decepcionados com o
comunismo e gera violentas polêmicas literárias e, sobretudo, políticas. A mais conhecida é
aquela que pôs fim à amizade entre ele e Sartre (TODD, 1996, p.755). Sartre se ofende,
sobretudo, com as críticas dirigidas à esquerda, para ele a revolução comunista não pode ser
posta em questão.
Embora apontado como superficial, por ocasião da polêmica com Les Temps
Modernes, L’Homme révolté é resultado de um vasto trabalho de pesquisa e de um longo
período de gestação, que vai de 1943 a 1951 e que coincide, em parte, com a redação da
Peste. No ensaio, Camus se pergunta se os fins justificam os meios e responde que nada
justifica o crime, daí sua crítica do marxismo configurado em stalinismo totalitário e violento.
Mas a Revolta é fundamentalmente afirmação e não recusa estéril. A Revolta é uma resposta
ao Absurdo, ela dá ao homem o meio de se definir a si próprio, de encontrar sua identidade ao
tomar consciência do que ele quer e do que ele rejeita.
Camus não aprova a revolução a qualquer preço e critica a violência que se manifesta
em todos os movimentos totalitários do século XX. Para ele, o comunismo stalinista se tornou
uma ideologia, justificando inumeráveis formas de repressão. A questão é buscar uma forma
de transformação social que não se sirva de uma violência presente e ―necessária‖ como
86
justificativa de um hipotético futuro melhor. Neste sentido pensamos poder compreender sua
afirmativa: ―Mon projet dans l’Homme révolté a été constant: étudier une contradiction propre
à la pensée révoltée et en rechercher le dépassement‖ (CAMUS, 1965, p.750).
Assim, Camus não aprova os métodos violentos da revolução, mas destaca seu papel
como luta contra a situação de dominação; ele combate os sistemas políticos que perpetuam a
desigualdade entre os homens e a injustiça na sociedade e não aprova a atitude de resignação
nem de pretensa abstenção diante dos conflitos sociais e políticos. Para Camus o combate da
miséria deve estar associado à defesa da liberdade. É por causa do aspecto dogmático,
repressor e violento do partido comunista que Camus dele se afasta.
Camus foi um grande crítico de seu momento, marcado por desigualdades sociais, pelo
totalitarismo político e pela violência. Uma forma de engajamento buscada por ele, quando
era ainda jovem, foi a filiação ao Partido Comunista, visto certamente como uma alternativa
ao sistema vigente. Seu curto envolvimento com o partido comunista pode ser compreendido
à luz de sua batalha contra a miséria, que ele e sua família conheceram de perto na Argélia.
Camus conhecia as mazelas do sistema capitalista: sua luta por uma sociedade diferente e seu
combate em favor da liberdade e da justiça são formas de oposição a tal sistema. Por várias
vezes, afirma detestar a ―sociedade do dinheiro‖, mas sua discordância com relação ao
sistema capitalista se mostra mais pelo seu engajamento sócio-politico e por suas atividades
do que por seu discurso. Muito rapidamente, Camus se decepcionou com o Comunismo e dele
se desligou, pois este não correspondia a seus ideais de liberdade e de justiça social.
Mais tarde, depois da Segunda Guerra, Camus sabia que o mundo estava
extremamente polarizado e que quem não era aliado do Comunismo era considerado amigo do
capitalismo. Neste contexto, suas críticas ao partido estavam sujeitas, de imediato, a mal-
entendidos. Mesmo assim, preferiu se manter fiel a suas concepções e, sob o risco de ser
87
acusado de defensor do capitalismo, criticou no Comunismo o dogmatismo, o totalitarismo, o
cerceamento da liberdade, a violência e a morte.
Camus considera que tanto o comunismo quanto o liberalismo ocidental se tornaram
ideologias por dissimularem e justificarem inumeráveis formas de repressão, cobertas com um
discurso de liberdade. Para ele nada justifica o crime, daí sua crítica do marxismo stalinista
totalitário e violento, que começa combatendo a injustiça e termina promovendo o crime e a
condenação à morte. O autor recusa o capitalismo, mas também o marxismo, porque geram a
violência em nome de uma visão de mundo fechada.
Sobre o existencialismo, Camus afirma que ele apresenta duas formas:
L'une avec Kierkegaard et Jaspers débouche dans la divinité par la critique
de la raison, l'autre, [...] l'existentialisme athée, avec Husserl, Heidegger et
bientôt Sartre, se termine aussi par une divinisation mais qui est simplement
celle de l'histoire, considérée comme le seul absolu. On ne croit plus en
Dieu, mais on croit à l'histoire (CAMUS, 1965, p.575).
Ambas as formas do existencialismo, da mesma maneira que o comunismo, divinizam
a história e se tornam uma espécie de religião. Portanto, em L'Homme révolté, Camus recusa
igualmente o cristianismo, o existencialismo e o marxismo. Em seu ensaio, ele não nega o
aspecto histórico da Revolta, mas critica a violência nos movimentos totalitários do século
XX, recusa o aspecto violento do comunismo, o totalitarismo do Estado e o aspecto
dogmático das ideologias.
Estas recusas de Camus se mostram presentes não só no ensaio, mas também na Peste,
em que o autor rejeita tanto a religiosidade do padre Paneloux quanto a ação revolucionária do
primeiro Tarrou, porque esta, mais cedo ou mais tarde, torna-se ideologia e cai na opressão e
no crime. Se identificamos, portanto, em L'Homme révolté, uma relação entre moral e
política, entre teoria e prática, essa relação está, igualmente, presente no romance, da mesma
forma que a recusa da dimensão teológica e religiosa. No romance, o que está em questão é
uma moral e não uma metafísica. A luta dos personagens é expressão da Revolta e mostra a
88
dialética com o Absurdo: ―Il reste surtout ce bouleversant témoignage de la seule dignité de
l‘homme: la révolte tenace contre sa condition‖ (CAMUS, 1965, p.1190). Na Peste, a rejeição
do dogmatismo e da violência, e a crítica da revolução por todos os meios, crítica que atinge
diretamente o stalinismo, está presente de forma mais direta na caracterização do personagem
Tarrou e no relato sobre seu itinerário político (cf. acima p.45, 57 e 58).
A crítica de Camus ao espírito dogmático e burocrático, bem como a recusa da
violência e do crime já estava presente, de certa maneira, em L’Étranger, através do
personagem Meursault, que rejeita o consolo do padre e rejeita igualmente o dogmatismo
encarnado pelos juízes, pela convenção e pela burocracia, que resultam na pena capital, na
morte, que lhe é imposta. Por contraste com os magistrados e com o padre que o procura,
Meursault se destaca como alguém que não entra no jogo da sociedade corrompida pelo
desprezo à vida, pela hipocrisia, pela visão estreita e pela obediência servil às convenções; ele
se recusa a mentir.
Da mesma forma que a religião, seja ela qual for, não pode justificar o aniquilamento
da existência humana com a promessa de uma eternidade feliz, o comunismo não pode servir-
se da violência e da morte, ainda que de um só indivíduo, para estabelecer a sociedade futura
historicamente perfeita, mas configurada apenas como projeto. Se a religião tenta fornecer aos
homens uma explicação pronta dos acontecimentos, a ideologia política também pode se
tornar autoritária e controladora, assumindo a pretensão de agir no lugar dos cidadãos, que
seriam meros espectadores passivos ou agentes controlados pelas decisões tomadas de cima
para baixo. As ideologias, criticadas no ensaio, encontram na abstração um meio de sacrificar
a pessoa humana ao sistema.
Kant, em seu célebre artigo Réponse à la question: Qu’est-ce que les lumières,
identifica a religião e o Estado como as instituições que mais se esforçam por manter o
89
homem em sua situação de minoridade, ou estado de tutela, que é exposta logo no início do
texto:
Les Lumières, c‘est la sortie de l‘homme hors de l‘état de tutelle dont il est
lui-même responsable. L‘état de tutelle est l‘incapacité à se servir de son
entendement sans la conduite d‘un autre. On est soi-même responsable de
cet état de tutelle quand la cause tient non pas à une insuffisance de
l‘entendement mais à une insuffisance de la résolution et du courage de s‘en
servir sans la conduite d‘un autre. Sapere aude! Aie le courage de te servir de
ton propre entendement! (KANT, 1991, p.43)
Camus, que se posiciona contra todos os sistemas muito certos de si mesmos, mostra-
se inimigo dos sectarismos e afirma que não se deve substituir um dogmatismo por outro.
Paradoxalmente, o comunismo ateu e crítico da crença religiosa acabou por se revelar um
substituto materialista do cristianismo, ao assumir o aspecto dogmático de uma religião, com
sua hierarquia burocrática e dominadora, com sua doutrina, seus ritos, sua ética, seu "index" e
sua "inquisição".
Num manual de literatura francesa, em volume único e que tenta abordar todos os
autores franceses do programa (conforme o subtítulo da obra : Anthologie-Histoire de la
Littérature française des origines à nos jours) e que, por isso mesmo os aborda de maneira
bastante sucinta, encontramos uma qualificação de L’Homme révolté como sendo uma obra
anticomunista (cf. DENOEU, 1967, p.536).
Há no manual uma página sobre dados biográficos de Camus e breves comentários
sobre suas obras, e seis páginas reproduzem um excerto da Peste, em que se narra a tentativa
fracassada do doutor Rieux para salvar o filho do juiz Othon, a agonia e a morte da criança. O
autor identifica uma espécie de virada na produção de Camus a partir de 1947 e escreve: "son
pessimisme s‘atténua; de plus en plus se fit jour dans son oeuvre un espoir concret pour la
destinée humaine".
Pensamos que se pode questionar tanto o rótulo de "pessimista" para o primeiro ciclo
da obra camusiana quanto esta guinada na produção de Camus, se considerarmos que o autor
90
desenvolve a passagem do Absurdo à Revolta, de L’Étranger a La Peste, cumprindo um plano
pré-estabelecido, no qual um tema se desenvolve em função do outro.
O autor do manual conclui seus comentários afirmando que "Camus a condamné
l‘existentialisme". Para as obras posteriores a 1949, os comentários são mais concisos e dados
entre parênteses, após a data de publicação. Sobre L’Homme révolté, lemos o seguinte: "1951,
études anti-communistes sur des révoltés fameux : Satan, Caïn, Spartacus, Sade, Saint-Just,
Bakounine, Dostoïevski, Marx, Lautréamont, Rimbaud, Nietzsche, Lénine."
Chamou-nos a atenção o fato de que o autor do manual tenha destacado em sua análise
o aspecto "anticomunista" de L’Homme révolté. A classificação dualista, comunista ou
anticomunista, inerente ao manual se explica, em parte, pela tensão própria à época em que tal
manual foi lançado; a edição de que nos servimos é de 1967, mas ele foi publicado
primeiramente em 1957, portanto, em pleno período da guerra fria e da acentuada polaridade
entre Leste e Oeste, União Soviética e Estados Unidos, Comunismo e Capitalismo. Além do
momento, podemos considerar também o local de publicação, pois o livro foi lançado e
utilizado nos Estados Unidos, trazendo o prefácio e as notas em inglês (Cf. DENOEU, 1967,
p.536).
Marcar a obra de Camus como anticomunista é inexato, entretanto, o autor do manual,
mais do que cometer simplesmente um ato de desconhecimento ou de má-fé, parece mostrar
uma atitude típica do ambiente político em que se vivia e que atingia de alguma forma a
literatura e seu estudo. Como Camus, outros autores foram categoricamente taxados de
anticomunistas.
Esta maneira de se dividir autores e obras conforme seu posicionamento em face do
regime comunista parece ter sido provocada pela rivalidade norte-americana e pelo próprio
regime comunista que, como configuração ideológica fixa e radical, não admitia meios termos
nem questionamentos. Quem não era declaradamente comunista e fazia críticas ao sistema era
91
marcado como anticomunista. O próprio regime classificava de forma dualista e maniqueísta
autores e obras. Camus, como outros autores, teve o acesso a suas obras proibido nos países
em que o comunismo era regime político oficial, como na China, onde seus livros foram
banidos durante décadas:
À la suite de la fondation de la Chine populaire, durant trente ans, de 1949 à
1979, la Chine a prohibé les oeuvres de l‘écrivain français Albert Camus ; et
sa personne n‘a jamais été présentée dans ce pays (WU, Shaoyi. In :
DUBOIS, 1995, p.283).
Também na França, muitos comunistas viram em L’Homme révolté uma obra
anticomunista, sobretudo depois das polêmicas de Camus com François Mauriac, André
Bréton e com Sartre a propósito do ensaio, e com Gabriel Marcel, a respeito de L’État de
siège. Destas polêmicas, a mais intensa foi aquela com Sartre e sua revista, Les Temps
Modernes; dela tratamos no capítulo seguinte.
92
5 O INTERDISCURSO
5.1 CAMUS ET LES TEMPS MODERNES
As querelas, espaço privilegiado do interdiscurso, devido ao confronto de opiniões
divergentes, fazem parte da história da literatura francesa, marcada pela ação de escritores
engajados em questões sociais. Freqüentemente, as correntes literárias se impõem através da
oposição a posicionamentos anteriores. Uma polêmica opôs o humanismo devoto ao
jansenismo, no início do século XVII; no fim deste mesmo século, ocorre a famosa querela
entre "os Antigos e os Modernos", retomada de certa maneira pelos românticos, defensores da
liberdade e da inspiração do artista contra as regras formais do Classicismo. No século das
Luzes, Rousseau e Voltaire travaram uma verdadeira batalha. No início do século XX, "a
questão Dreyfus", desencadeada pelos intelectuais revisionistas, tornou-se, na França, uma
questão nacional.
Quanto a Camus, sua polêmica mais conhecida foi com Jean-Paul Sartre, em 1952.
Entre os numerosos grandes escritores do século XX, Sartre et Camus ocuparam uma posição
de destaque. Ambos atuaram em diversos campos, como o da literatura, da filosofia, da
dramaturgia e do jornalismo. Em 1952, já dispõem de um grande renome, obtido durante a
Resistência e o imediato pós-Segunda Guerra, e encarnam a figura do intelectual engajado.
Isto contribuiu para que a polêmica entre eles fosse amplamente mediatizada e adquirisse
grandes dimensões.
A controvérsia foi suscitada pela publicação de L’Homme révolté, em 1951, e, em
parte, prevista por Camus. Bom conhecedor do ambiente social, cultural e acadêmico de sua
época, ele pôde imaginar que as críticas dirigidas à revolução de tipo stalinista produziriam
reações adversas. O autor, que se engajou politicamente muito jovem, tendo inclusive se
filiado ao Partido Comunista na Argélia por um curto período, estava a par dos grandes
93
embates políticos que se travavam na sociedade e já em 1935, através de seu teatro, entrava na
luta contra a ameaça nazista.
Camus conhecia igualmente o espaço editorial e mantinha contato com grandes
escritores, como André Malraux e André Gide, este último apadrinhava a revista L’Arabe,
criada em 1944, em Argel, e dirigida por Jean Amrouche, tendo como comitê diretor Maurice
Blanchot, Jacques Lassaigne e o próprio Camus. Nesta revista, Camus publicou, em fevereiro
de 1946, Le Minautore (DJEMAÏ, In: DUBOIS, 1995, p.62).
Camus e Sartre são contemporâneos e vivem num momento marcado por guerras,
revoluções e conflitos sociais. Eles propõem uma vasta transformação social e afirmam a
responsabilidade social do escritor que, colocado numa dada situação histórica, é condenado a
exercer sua liberdade tomando posição. Ateus, eles afrontam o problema de buscar as bases
de uma moral quando não se crê em Deus. Próximos sob muitos aspectos, os dois escritores
têm, contudo, particularidades essenciais e tomam posições estéticas e políticas diferentes e,
às vezes, conflitantes.
Toda obra, para além de seu interesse literário ou filosófico, inscreve-se num contexto
que lhe confere uma significação particular e, de forma especial, as obras de autores
preocupados com a sociedade da qual fazem parte. Camus e Sartre, e sua obras, são
inseparáveis de seu contexto, que é explicitamente discutido em função do engajamento dos
autores. A amizade entre eles teve seu apogeu imediatamente depois da "Liberação" e a
ruptura se deu sob o impacto da Guerra Fria e da agravação do conflito entre os Estados
Unidos e a União Soviética.
94
Antes do contato pessoal, os dois escritores se conheceram através de seus textos. Em
1938, Camus tratou de La Nausée e, em 1939, de Le Mur.8 Em 1942, Sartre escreveu sobre
L'Étranger.9 Camus comunica a Jean Grenier seu sentimento sobre o artigo de Sartre:
L'article de Sartre est un modèle de "démontage". Bien sûr, il y a dans toute
création un élément instinctif qu'il n'invisage pas. L'intelligence n'a pas si
belle part. Mais en critique, c'est la règle du jeu et c'est très bien ainsi
puisqu'à plusieurs reprises il m'éclaire sur ce que je voulais faire. Je sais
aussi que la plupart de ses critiques sont justes, mais pourquoi ce ton acide?
(CAMUS & GRENIER, 1981, p.88)
Por fim, Camus encontra pessoalmente Sartre e Simone de Beauvoir, em junho de
1943, durante uma apresentação de Les Mouches. Camus não gosta de ver seu nome atrelado
ao de Sartre, mas este, viajando pelos Estados Unidos, em entrevistas, faz elogios a seu
amigo. Para a revista Vogue, em 1945, Sartre afirma que a Resistência ensina que a literatura
não é uma atividade fútil, independente da política e que se podem distinguir duas gerações de
escritores franceses, uma de antes da guerra – Maurice Blanchot, Georges Bataille e Jean
Anouilh, e outra que compreende Michel Leiris, Jean Cassou e Albert Camus. Para Sartre,
Camus seria o arquétipo do escritor engajado (cf. TODD, 1996, p.541).
Em seus encontros, Camus e Sartre discutem sobre política. Sartre pensa que é preciso
escolher: caminhar com os comunistas ou contra eles, com os Estados Unidos ou com a União
Soviética. Camus também tenta pensar a revolução, mas imagina uma Revolta que evitaria ao
máximo possível a violência e o sangue. Segundo Olivier Todd, Simone de Beauvoir e Sartre
teriam, diferentemente de Camus, pontos de vista muito maniqueístas (cf. TODD, 1996, p.542
e 545).
Em 1951, antes da publicação de L'Homme révolté, Camus publica fragmentos do
ensaio em algumas revistas; Les Cahiers du Sud publicam o capítulo sobre Lautréamont.
8 Os artigos foram publicados no jornal Alger républicain, respectivamente, em 20 de outubro de 1938
e 12 de março de 1939, e estão reunidos em CAMUS, 1965, p.1417-1422. 9 Trata-se do artigo "Explication de "L'Étranger", publicado em fevereiro de 1943. Cf. SARTRE,
1947. p.92-112
95
Logo surge no semanário Arts um artigo de André Breton, que acusa Camus de conformismo.
Na sua resposta, Camus afirma que se esforçou para mostrar justamente que o niilismo é
gerador de conformismo e servidão e contrário às lições da Revolta.
O livro é lançado em novembro e os primeiros ataques vêm da imprensa comunista. A
imprensa de direita se limita a resumir ou parafrasear as passagens dedicadas ao comunismo e
a Marx, acentuando a crítica do marxismo presente no livro e ignorando praticamente as
considerações literárias, concentradas no capítulo "Révolte et art". A esquerda intelectual não-
comunista manifesta-se em France-Observateur, dirigido por Claude Bourdet, que define
Camus como um intelectual de esquerda não comunista. Para Bourdet, é preciso trabalhar
com os comunistas franceses, apesar de sua submissão aos Soviéticos. Camus recusa esta
posição.
Em novembro de 1951, Sartre solicita ao comitê de redação de sua revista Les Temps
Modernes um voluntário para fazer a resenha de L'Homme révolté. Em fevereiro de 1952,
Sartre encontra Camus num bar e lhe informa que a crítica da revista não vai ser favorável.
Francis Jeanson publica, em maio de 1952, em Les Temps Modernes, seu violento
artigo sobre o ensaio: ―Albert Camus ou l‘âme révoltée‖. Jeanson julga que Camus é incapaz
de passar da revolta metafísica à revolta histórica, que se configuraria na atuação do Estado
comunista; ele não admite que Camus tenha questionado Hegel e Marx e não aceita suas
simpatias pelo sindicalismo revolucionário ou sócio-democrata dos países escandinavos.
Camus teria feito uma pseudo-filosofia e uma pseudo-história das revoluções.
A revista informa a Camus que publicaria uma resposta sua. Datada de 30 de junho de
1952, a réplica é publicada no número de agosto de Temps modernes.10
Camus não nomeia
Jeanson e começa seu artigo com um ―Monsieur, le Directeur‖, por considerar que o diretor é
10
Essa resposta de Camus foi enviada em forma de carta a Les Temps modernes, Cf. CAMUS, 1965,
p.754.
96
solidário do artigo, o que irrita Sartre. Em sua resposta, Camus tenta mostrar que seu livro não
nega a história, mas critica a atitude que busca fazer dela um absoluto. Ele lembra uma nota
do livro em que afirma que Marx mistura em sua doutrina ―um método crìtico muito válido e
um messianismo utópico muito contestável‖. Poucos sabem em Paris que Camus fora
membro do partido comunista.
Sartre responde por sua vez e ataca tanto a obra quanto seu autor; usa fórmulas
tocantes, nomeando seu adversário, e dá suas lições, dizendo que, para merecer o direito de
influenciar os homens que lutam, é preciso primeiro participar de seus combates; embora ele
próprio tivesse se preocupado pouco com as questões sociais antes da Segunda Guerra,
quando Camus já se engajava. Sartre suaviza o tom e conclui o artigo dizendo esperar que o
silêncio faça esquecer a polêmica. Entretanto, Jeanson escreve um novo artigo, com novos
insultos e a mesma violência.
À época, Sartre tentava conciliar existencialismo e marxismo e se aproximava dos
comunistas; para ele, o PCF representa a classe trabalhadora. Quanto à URSS, apesar dos
campos soviéticos, continua dando a imagem do socialismo. Sartre crê ainda no socialismo de
face humana, para o futuro. Ele não adere nem ao stalinismo nem ao PCF, mas não quer
romper com o partido, pois ainda acredita no empreendimento revolucionário que o PCF
encarnaria a longo prazo (cf. TODD, 1996, p.786). Para Camus, os crimes do totalitarismo
devem ser denunciados sem esperas nem circunstâncias atenuantes. Assim, para além dos
ataques pessoais ou literários, o núcleo da polêmica é a divergência quanto ao comunismo.
Em Les Mains Sales, Sartre levanta o problema dos fins e dos meios, mas numa ótica
deliberadamente política (cf. SARTRE, 1948). Hoederer e seus camaradas de partido são
confrontados a um problema concreto de tática e de aliança. A questão que lhes interessa não
é saber se é moral se "sujar as mãos", mas determinar o que é politicamente eficaz naquele
97
momento. Assim, o tema de Les Mains sales mostra como seu autor aceita a violência nas
lutas por uma transformação social (cf. ARONSON, 2005, p.356).
Camus não concorda com a configuração dogmática e violenta do comunismo. Antes
de L'Homme révolté, a crítica ao totalitarismo de Estado, ao dogmatismo, ao autoritarismo e à
violência já estava presente em L'Étranger e, de forma especial, na Peste. Também na peça
Les Justes, ele questiona o valor da ação revolucionária contaminada pelo crime e pela
desonra. Para Camus, é preciso combater o mal e a injustiça, sem recair no crime, e lutar
contra a violência, sem agir violentamente.
As noções de Revolta e de Absurdo remetem a um comportamento ético e a um
engajamento sócio-político e os pressupõem. A passagem do Absurdo à Revolta constitui a
superação de uma atitude niilista em vistas à fundamentação de uma exigência ética. Na
encruzilhada entre seu pensamento filosófico e sua obra romanesca e dramática, encontra-se a
estética de Camus, associada à reflexão ética que, inspirada pela Revolta, dá as diretivas à
criação artística. Os textos em que mais diretamente podemos encontrar esta estética
camusiana são o artigo ―Le témoin de la liberté‖, publicado em 20 de dezembro de 1948 e
recolhido em Actuelles, o capítulo ―La création absurde‖ do Mythe de Sisyphe, e o capítulo
―Révolte et art‖, de L'Homme révolté.
A avaliação negativa de L'Homme révolté afeta retroativamente a leitura que se faz da
Peste. Ao criticarem o ensaio, Jeanson e Sartre voltam ao romance. Jeanson o classifica de
"metafísico" e de "crônica transcendental". Sartre, que já havia publicado sobre ele dois
artigos favoráveis, de colaboradores importantes, passa a considerá-lo de forma negativa,
como sendo uma "mistificação".11
Em sua resposta a Jeanson, Camus observa que Les Temps modernes se recusam a ver
uma evolução de L'Étranger a La Peste, no sentido da solidariedade e da participação. Com
11
Os artigos foram escritos por René Étiemble e Jean Pouillon e publicados em Les Temps modernes,
na edição de novembro de 1947.
98
efeito, o ensaio e o romance fazem parte do mesmo "ciclo da Revolta". A passagem de
L'Étranger a La Peste, como a passagem de Le Mythe de Sisyphe a L'Homme révolté,
corresponde a uma mesma evolução: a experiência do Absurdo nasce do sentimento de que o
homem não está em harmonia com o mundo, e ela desemboca na expressão da Revolta, na
ação coletiva; encaminha-se da subjetividade para a sociedade, do herói solitário para o herói
solidário.
Camus não aprova a revolução a qualquer preço, mas também não aprova a atitude de
resignação, nem de pretensa abstenção diante dos conflitos sociais, pois não acredita que
exista neutralidade política. Seu engajamento político é bastante precoce. Ainda na Argélia,
afastado da carreira acadêmica por questões de saúde, Camus dedica-se ao teatro e ao
jornalismo e se engaja em atividades de ordem cultural e política.
Durante a polêmica com Sartre, Camus não faz alusão a sua passagem pelo partido,
retomando sua condenação das duas sociedades, a socialista e a capitalista. Camus conheceu
de perto a miséria, a desigualdade e as injustiças que imperavam entre o povo argelino e das
quais ele e sua famìlia sofreram, por isso afirma: ―Je n‘ai pas appris la liberté dans Marx. Il
est vrai: Je l‘ai apprise dans la misère‖ (cf. CAMUS, 1965, p.798).
Tardiamente, Jeanson e Sartre vêem bem que, antes de L'Homme révolté, na Peste já
havia uma relação entre moral e política, entre teoria e prática. O personagem Tarrou não
aceita a violência como meio, porque não se trata simplesmente de reverter o papel entre
explorado e explorador, mas de buscar uma forma de não ser ―nem vìtima nem carrasco‖ (cf.
CAMUS, 1965, p.331).
99
5.2 A INTERINCOMPREENSÃO
Tanto Sartre quanto Camus consideram que é impossível manter-se ausente do embate
de forças antagônicas presentes na sociedade. Este jogo de forças característico da sociedade
como um todo faz parte também da sociedade literária. Dominique Maingueneau, retomando
os estudos sociológicos de Pierre Bourdieu, destaca bem o caráter social e institucional do
exercício da literatura e mostra que um autor não pode produzir enunciados literários sem se
colocar como escritor no campo do literário e sem se definir com relação às representações e
aos comportamentos associados a este estatuto. Assim, o "contexto" da obra literária não é
apenas a sociedade considerada em sua globalidade, mas, antes de tudo, o "campo literário",
que obedece a regras específicas e se inscreve na obra que por sua vez nele está i nscrita (cf.
MAINGUENEAU, 1993, p.28 e MAINGUENEAU, 2004, p.72).
A polêmica entre Camus e Sartre é uma situação típica do embate de forças e da busca
do escritor para ocupar seu espaço no campo. Por mais diferentes que sejam as posições
estéticas e ideológicas de Sartre e Camus, ambos fazem igualmente parte do campo literário,
campo que não se inscreve na sociedade como simples parte ou espaço dela, mas como um
espaço fronteiriço, distinto mas indissociável da sociedade como um todo.
O ambiente da polêmica e os textos produzidos sob seu calor demonstram de forma
explícita que o escritor não enuncia sobre um terreno neutro e estável, mas sobre um espaço
institucional, nutrindo sua obra do caráter problemático de sua participação no campo literário
e na sociedade. Sem "localização", não há instituições que permitam legitimar ou gerir a
produção e o consumo das obras, e conseqüentemente, não há literatura; mas sem
"deslocalização" não existe verdadeira literatura (cf. MAINGUENEAU, 1993, p.27).
Mediante o controle externo, como nos regimes totalitários e nos países dominados
por ditaduras, o escritor vigiado e conivente com o poder político pode chegar a uma
produção literária, mas não a "obras" literárias; pois o próprio pertencer problemático do
100
escritor ao grupo supõe uma participação, mas não uma completa assimilação. Camus, ao ser
interrogado sobre os "valores da arte" na sociedade comunista, afirma numa linha de reflexão
muito próxima desta:
on ne dirige pas la littérature, on la supprime tout au plus. La Russie ne l'a
pas supprimée. Elle a cru pouvoir se servir de ses écrivains. Mais ces
écrivains, même de bonne volonté, seront toujours des hérétiques par leur
fonction même (CAMUS, 1965, p.382).
Maingueneau mostra como os discursos são objetos que aparecem ao mesmo tempo
integralmente lingüísticos e integralmente históricos. Ele denomina "paratopia" a localização
paradoxal e problemática, o pertencer ao campo literário que não é ausência de todo lugar,
mas uma difícil negociação entre o lugar e o não-lugar (cf. MAINGUENEAU, 2004, p.72).
O caráter de escritor e intelectual paratópico de Camus é acentuado por sua origem
proletária e por sua presença na França na condição de francês argelino, sentindo-se sempre
um pouco estrangeiro, nem somente argelino, nem inteiramente francês. De origem humilde,
ele conseguiu, através da educação, superar sua condição de pobreza. Camus se insere de
forma paratópica nos campos literários e filosóficos também porque se manteve afastado dos
círculos intelectuais e dos meios acadêmicos, desde que, por motivos de saúde, foi proibido de
seguir a carreira de professor. Ele permaneceu assim à margem do grupo dos filósofos de
profissão; e ele próprio se exclui de um certo campo, ao afirmar que não é um filósofo e que
não crê na razão o bastante para crer num sistema (CAMUS, 1965, p.1427). De fato, a
filosofia, desde Kant, é universitária, e ela o é mais do nunca na França, no momento em que
Camus escreve seus ensaios, marcados pela forma literária e contrários ao puro tratado de
exposição sistemática.
Sartre teve outra origem social, tipicamente burguesa, e cresceu no ambiente de uma
biblioteca. Apesar de seu engajamento político bastante tardio, mas radical, encarnou logo a
figura do intelectual simbólico tornado intocável por sua celebridade internacional; seu
aspecto de intelectual escandaloso e "maldito" parecem provocados e sua marginalidade
101
reivindicada. Sartre passou pela Agregação e, como bom filósofo de formação, gosta dos
sistemas. É cartesiano e voltado para a especulação, não desconfiando da razão nem das
abstrações.
Camus foi precipitadamente associado à corrente ―existencialista‖, mas o
Existencialismo corresponde, em primeiro lugar, ao pensamento de Sartre. Afirmou-se, por
exemplo, a propósito de Calígula, que toda a peça não passaria de uma ilustração dos
princípios existencialistas de Sartre (TROYAT, H. In: GINESTIER, 1964, p.65). Dizendo não
ser nem filósofo nem existencialista, Camus já afirmava que não fazia parte da tribo de Sartre
(CAMUS, 1965, p.1424). Mesmo à época em que mantinham contato, Camus afirmava que
não era um existencialista; por ocasião da polêmica entre eles, as diferenças entre os dois
autores se reforçam e fica claro que eles não pertencem à mesma família intelectual.
Conforme os preceitos da Análise do Discurso estudados por Maingueneau, a obra
surge por meio das tensões do campo literário, no seio de comunidades restritas que disputam
um mesmo território institucional. Ela se constitui implicando os ritos, as normas e as relações
de força próprias dessas instituições literárias. Fazem parte da enunciação os problemas
levantados pela inscrição social desta enunciação. A partir do momento em que se escreve e
se publica não se pode sair do campo literário, campo que vive da tensão entre os integrantes
das tribos e os que permanecem à margem delas. Assim, as "tribos‖ se repartem no campo
literário baseadas em reivindicações estéticas distintas. Todo escritor se insere numa tribo, ou
mais, que ele elege — de escritores do passado ou contemporâneos, conhecidos pessoalmente
ou não — e o modo de vida, bem como as obras dessa tribo lhe permitem legitimar sua
própria enunciação (cf. MAINGUENEAU, 1993, p.30-31).
Neste sentido, Camus expõe de forma clara que o pensamento absurdo descende de
uma longa tradição. De fato, a noção de Absurdo teria suas origens desde o século III com
Tertuliano, continuando com Pascal e chegando a Kierkegaard (cf. GINESTIER, 1964, p.56).
102
Ante as grandes tradições filosóficas racionalista e empirista, Camus se insere na linha de
filósofos marginais, como Kierkegaard, Schopenhauer e Nietzsche. Trata-se da ―tribo‖ que
prolonga a ―tradição do pensamento humilhado‖ e que critica o racionalismo (cf. CAMUS,
1965, p.114). A inserção de Camus nesta ―famìlia‖ mostra-se logo no início do Mythe de
Sisyphe quando o autor diz que sua sensibilidade absurda deve muito a certos espíritos
contemporâneos, que ele cita ao longo da obra.
Camus concorda com as premissas do existencialismo como estas se encontram em
Pascal, Nietzsche, Kierkegaard ou Chestov, pois estes autores partem do clima próprio do
Absurdo (CAMUS, 1965, p.114), mas discorda das conclusões dos existencialistas seus
contemporâneos, por acreditar que tais conclusões são contraditórias às premissas e
desembocam numa fuga. Por isso Camus chama "suicídio filosófico" a conclusão
existencialista (CAMUS, 1965, p.114, 122, 187, 208 e 312), uma fuga que desemboca num
princípio absoluto: o transcendente, a história absolutizada, ou um princípio racional
unificador do real.
Quanto aos literatos, Camus elegeu para si uma tribo de autores que são igualmente
criadores e teóricos, críticos que pensam a própria atividade, como Balzac, Sade, Melville,
Stendhal, Kafka, Proust, Malraux, Dostoievski, Tolstoi, Faulkner (CAMUS, 1965, p.178). Sua
inserção nesta tribo também se faz pela opção diante das obras que ele adaptou para o teatro,
obras de autores como Malraux, Calderón de la Barca, Larivey, Dino Buzzati, Faulkner, e
Lope de Vega (CAMUS & GRENIER, J., 1981, p.266, 268 e 269). Assim, se os escritores
formam geralmente ―microsociedades‖ de admiração mútua ou de rejeição, Camus deixa
claro quais são seus autores preferidos.
Em sua obra, Genèses du discours (1984), Dominique Maingueneau aborda os textos
sob o ponto de vista de sua gênese e de sua relação com o interdiscurso, levando em
consideração a relação de um discurso com seu "exterior" enunciativo. Maingueneau, na linha
103
francesa de análise do discurso, afasta-se de uma certa vulgata estruturalista ao pôr em
questão "a suposta autarquia dos discursos". Trata-se de uma abordagem próxima da
pragmática, que busca articular no ato verbal enunciado e enunciação, linguagem e contexto,
palavra e ação, instituição lingüística e instituições sociais (cf. MAINGUENEAU, 1984,
p.15).
Assim, podemos tratar a controvérsia entre Sartre e Camus e os textos que dela
derivaram à luz dos estudos de Maingueneau, que vê na polêmica um processo de
interincompreensão. Conforme Maingueneau, o estudo da especificidade de um discurso
supõe relacioná-lo com outros. Nos textos da controvérsia, com a evocação explícita de uns
aos outros, podemos perceber mais claramente a presença do interdiscurso, como espaço
composto pelos diversos discursos.
A propósito de Marx, Sartre, em seu artigo, "Réponse à Albert Camus", publicado em
Les Temps Modernes, acusa Camus de brincar com conhecimentos de segunda mão.12
O tom
de Sartre é superior, como o de um professor que fala a um aluno. Mas pode-se perguntar se
seus conhecimentos sobre Marx são mais aprofundados do que os de Camus. Raymond Aron,
leitor paciente de Marx, estava persuadido de que ambos eram quanto a isto igualmente
limitados (cf. TODD, 1996, p.779 e 786). Ao acusar Camus de incompetência filosófica,
Sartre, na verdade, vale-se de um argumento de autoridade, servindo-se de sua posição no
campo, enquanto filósofo reconhecido, que passou pela Agregação.
Respondendo ao artigo de Jeanson, Camus fala de Sartre sem nomeá-lo. Sartre, por
sua vez, chamado de burguês, responde aplicando a Camus o mesmo qualificativo. A resposta
de um supõe e retoma de maneira direta o discurso do outro; de maneira explícita, o texto se
constrói como intertexto.
12
Artigo presente em Situations IV (SARTRE, 1964)
104
Os textos desta polêmica têm uma cena de enunciação que parece a de uma
correspondência, já pela forma de apresentação, semelhante a uma carta. A seqüência, carta-
crítica, resposta e réplica lembra um diálogo, mas na verdade há apenas uma semelhança com
a correspondência pessoal, pois são cartas que, embora pese um aspecto de defesa pessoal,
tratam profundamente de posições estéticas, sociais e políticas e são publicadas em jornais e
revistas.
Tanto Camus, que não nomeia Sartre, quanto Sartre, que evoca diretamente seu
interlocutor, e com um reforço criado pela repetição, praticam um jogo retórico, pois na
verdade não se trata de uma carta privada. O interlocutor visa em primeiro lugar não tanto a
seu adversário direto, mas se dirige primariamente à comunidade acadêmica e política e, por
extensão, a toda a comunidade de leitores dos jornais e revistas em que os textos são
publicados.
No texto de Sartre, há um Camus visto sob a perspectiva sartriana. E Sartre igualmente
é descrito sob o ponto de vista de Camus, pois no texto polêmico cada um introduz o Outro
em seu fechamento, ao traduzir seus enunciados dentro da categoria do Mesmo e só se
relaciona com este Outro sob a forma do "simulacro" que constrói dele. Isto só acentua os
mal-entendidos (MAINGUENEAU, 1984, p.11).
Abordando uma peça de Sartre e antes de reproduzir um comentário dele, Francis
Jeanson escreve: "O autor de As mãos sujas, intrigado em razão de uma falsa interpretação de
sua peça, propôs-se a definir o verdadeiro sentido que ele desejava que lhe fosse dado"
(JEANSON, 1987, p.41). Camus, de sua parte, foi sensível, desde o início de sua carreira, ao
tema e à situação do mal-entendido – título de uma de suas peças – que ele combatia e que era
às vezes agravado por suas intervenções e que ele parecia viver com uma dolorosa
intensidade, como demonstram, além dos prefácios e textos introdutórios, suas cartas de
protesto (cf. BARTFELD, 1998, p.162).
105
Camus revela que, mesmo antes da polêmica com Les Temps Modernes, a recepção
negativa de seu ensaio o incomodava. Ele parece tomar as críticas de Sartre como um ataque
pessoal e vive a querela durante muito tempo. Talvez porque, embora o aspecto
autobiográfico de Camus seja sutil em suas obras, estas dificilmente se separam de si próprio
e até em L'Homme révolté, de maneira contida, ele falou de si mesmo: "Sans en avoir l'air, je
m'y suis confessé", ele escreve a Mamaine Koestler (cf. TODD, 1996, p.767).
Mais do que discutir o desejo dos escritores de reivindicar um controle para a
interpretação de seus livros, importa observar como o mal-entendido não é um acidente de
percurso, acessório ou evitável, mas um constituinte mesmo do discurso. A relação polêmica
em seu sentido amplo está longe de ser um encontro acidental de dois discursos que se teriam
instituído independentemente um do outro e o conflito não vem se juntar do exterior a um
discurso auto-suficiente, mas é uma de suas condições de possibilidade. É o que defende
Maingueneau: não há, de um lado, o sentido e, de outro, certos "mal-entendidos" contingentes
na comunicação, mas, num só movimento, o sentido como mal-entendido (cf.
MAINGUENEAU, 1994, p.12).
Assim, se tentarmos pôr em paralelo os textos de Camus e Sartre e encontrar uma
relação entre eles, é interessante observar que tais textos foram construídos já numa relação de
interdependência, constituindo-se através da incompatibilidade e do conflito. Os discursos não
se constituem independentemente uns dos outros para serem em seguida postos em relação,
mas se formam já de maneira relacional no interior do interdiscurso. Desta maneira, a relação
interdiscursiva mostra a interação semântica entre os discursos como um processo de tradução
e de interincompreensão; nesta perspectiva, os textos publicados em Les Temps Modernes que
produziram entre Camus e Sartre uma polêmica foram ao mesmo tempo produzidos por ela.
106
6 CAMUS ANTE OS GÊNEROS
6.1 GÊNEROS E ÍNDICES PARATEXTUAIS
A discussão acerca dos gêneros literários constitui uma tradição duradoura, que
remonta a Aristóteles e prevalece como central até Hegel, não deixando de ser um aspecto
ainda hoje importante no campo dos estudos literários. Trata-se de uma consideração dos
escritos poéticos que ultrapassa seus aspectos singulares em vistas a classificá-los conforme
seus traços mais gerais. Esta classificação dos textos conforme os gêneros, por sua
importância, tradição e abrangência, funciona como um quadro de orientação e como um fator
levado em conta pelo escritor ao produzir uma obra, e é considerado também pelo leitor, ainda
que de modo não refletido, no momento da leitura.
Assim, pode-se não concordar com a tripartição dos textos, atribuída a Platão e
Aristóteles, em poemas épicos, líricos ou dramáticos (ou nem mesmo com as classificações
modernas que incluem uma maior diversidade genérica), mas não se pode esquecer que tal
divisão é das mais conhecidas e aceitas e, por isso, é considerada pelo autor no momento em
que este imagina seus possíveis leitores. Juntamente com a previsão do interlocutor se
estabelecem a finalidade da produção textual e, também, os recursos retóricos que o autor
julga mais compatíveis com o gênero com o qual escolhe construir sua obra. Tanto o processo
de escrita quanto o processo de leitura se inscrevem nos limites da tradição dos gêneros,
ambos são de natureza fundamentalmente genérica. Depois da tradição estabelecida não se
pode criar sem considerar a problemática dos gêneros, ou seja, a escolha de um gênero é para
o autor uma forma de se posicionar no campo literário.
A classificação genérica determina de certa forma a obra, pois esta não é feita antes,
isoladamente, para só depois ser distribuída em gêneros, a obra é construída na consciência da
existência de gêneros distintos. Mesmo quando os escritores questionam as distinções dos
107
gêneros, eles sabem que elas parecem ser tomadas como evidentes e jogam com esta
aceitação. Trata-se de uma norma reconhecida, e só a partir da norma pode haver as
transgressões, que são sempre significativas para o fazer literário, enquanto rupturas ou
questionamentos.
A História dos gêneros parece dividida entre dois extremos, desde uma adoção direta e
inquestionável do legado dos clássicos gregos, a partir do qual se chegou a considerar que há
apenas dois ou três gêneros singulares e imutáveis, até o outro extremo, o de que cada texto
teria seu próprio gênero. Entretanto, a discussão mais recente tem ampliado uma reflexão
aprofundada sobre o tema.
Entre os ―clássicos‖, para quem a poesia era ou épica, ou lìrica, ou dramática, a noção
de gênero era evidente, e sobre as literaturas antigas a tradição e a forma canônica exerciam
um poder muito grande; só com o romantismo esta autoridade, como todas, foi atacada. De
fato, desde o romantismo, o elemento formal ligado ao gênero não cessou de perder
importância. Sobretudo na poesia, a experiência subjetiva se afastou da tradição formal.
Entretanto, o declínio dos gêneros é um processo de dissolução bastante recente, do final do
século XVIII, e não é um termo definitivo, mas um capítulo a mais na história dos gêneros. O
interesse por eles voltou logo à tona.
Schlegel, Novalis e Hugo se insurgiram contra a noção de gênero e contra a retórica.
Hugo, em Odes et Ballades (1826), explicando no prefácio o título da coletânea, mostra uma
desenvoltura provocadora com relação à noção de gênero, significativa da estética moderna
hostil à retórica, em nome da liberdade do gênio criador. Também no prefácio de Cromwell
(1827), Hugo define o ―drama‖ contra a distinção ―clássica‖ entre a tragédia e a comédia;
recusar os gêneros é neste caso uma atitude perfeitamente nominalista, visto que esta recusa
da retórica era ainda uma retórica: aos antigos gêneros ―clássicos‖, os românticos vão
substituir novas distinções (cf. COMBE, 1992, p.4 e 7).
108
Críticos e escritores dos anos 1960 também recusaram violentamente a noção de
gênero literário e fizeram dela seu principal adversário. Em nome do ―texto‖, a antiga
distinção dos gêneros era declarada ultrapassada; ela parecia não mais dar conta da
originalidade dos ―textos‖ modernos, rebeldes às categorias de ―poesia‖, de ―romance‖ ou de
―ensaio‖. A última destas ―recusas‖ provinha do surrealismo; Breton, hostil até mesmo à idéia
de ―literatura‖, preferia que o resultado da escritura automática fosse chamado não ―poema‖,
nem ―obra‖, mas ―texto surrealista‖.
É sob o signo da reabilitação de Aristóteles e em favor da reabilitação da retórica,
revisitada sobretudo por Tzvetan Todorov e Gerard Genette, que a noção de gênero
reapareceu. O gênero tornou-se um tema de reflexão e passou a despertar novo interesse.
A questão dos gêneros retornou, mesmo se muitas obras ―abertas‖ põem em questão as
classificações. Mesmo quando se agrupam autores sob a categoria de ―inclassificáveis‖, a
noção de gênero persiste e, excetuando-se alguns casos particulares, continua-se publicando
―romances‖, coletânea de ―poemas‖ e peças de teatro. Os prêmios literários reforçam os
cânones romanescos, e muitos autores nunca cessaram de reivindicar este ou aquele gênero. O
―texto‖ não suplantou os antigos gêneros, mesmo se estes se transformaram profundamente. O
discurso crítico e teórico atual corrobora a persistência da problemática dos gêneros.
Na literatura contemporânea, parece mais difícil de estabelecer classificações
genéricas, mas ela se presta ao estudo dos gêneros, o que pesa contra a tese romântica da a-
genericidade da literatura moderna. A aparente impossibilidade de se classificar esta literatura
se explica em parte pelo desenvolvimento da circulação literária (por causas tecnológicas e
sociais), que leva a uma multiplicação extrema dos modelos genéricos potenciais, ou seja,
quanto maior a multiplicação genérica, mais difícil sua classificação.
Dentre os adversários da noção de gênero destaca-se Benedetto Croce. Jauss observa
que foi Croce quem levou mais longe a crítica desenvolvida desde o século XVIII contra a
109
universalidade normativa do cânone dos gêneros e quem mostrou ao mesmo tempo a
necessidade de fundar uma história estrutural dos gêneros literários. Para Croce, toda obra-
prima verdadeira violou a lei de um gênero estabelecido, semeando a confusão no espírito dos
críticos, que se viram obrigados a ampliar este gênero; por isso, para o teórico, o problema
dos gêneros se reduziria à questão da utilidade de um catálogo classificador (cf. COMBE,
1992, p.40-41). No fundo da ironia de Croce encontramos alguma razão, os gêneros são
realmente úteis para os que lidam com os catálogos, mas também para os leitores.
Gerard Genette, em Seuils (Seuil, 1985), denomina ―ìndices paratextuais‖ os
elementos que, numa obra publicada, sem pertencerem, propriamente falando, ao texto, o
cercam e permitem sua identificação. Para o editor, o que faz do manuscrito um livro é, além
de seu texto stricto sensu, seu título, seu índice, seus anexos, quadros e ilustrações, entre
outros. Para o leitor, que abre o livro pela primeira vez, todos estes parâmetros paratextuais
ajudam a situar o livro, ou seja, a identificar o gênero. Às vezes a operação é imediata,
sobretudo quando o título cumpre uma função metalingüística e traz a identidade da obra. Mas
às vezes esta evidência do título é enganadora (por exemplo, o Roman inachevé de Aragon é
uma coletânea poética), a grande maioria dos títulos não remete à natureza da obra. O
subtítulo às vezes cumpre este papel de determinação metalingüística, mas pode também ter
uma função irônica, provocadora ou paradoxal. Assim, aos critérios internos à obra que
completam o texto (ele próprio portador de índices necessários à sua identificação, como a
temática, a estrutura e o estilo) acrescentam-se elementos externos. Os livreiros e
bibliotecários são os que mais precisam de classificações e, sem poder ler todos os livros que
manuseiam, servem-se de resenhas, comentários e parâmetros paratextuais. Mas a escolha do
leitor também é guiada por outros índices, como o editor, a coleção e, muitas vezes, o autor.
Camus, quando publicou La Peste e L’Homme révolté, já era conhecido como
romancista, dramaturgo, ensaísta e, talvez principalmente, como jornalista. Muitos leitores
110
esperavam suas obras e estavam dispostos a lê-las a partir de experiências de leituras
anteriores. Esta escolha guiada pelo autor é comum, sobretudo, no caso de escritores vivos.
O leitor potencial faz escolhas também em função de conselhos e sugestões de
livreiros, professores ou amigos e também em função das críticas que tenha lido. O leitor sabe
de antemão a que gênero pertence o livro, antes mesmo de tê-lo consultado. O discurso crítico
e o comentário pertencem, assim, aos parâmetros paratextuais que contribuem para a
identificação genérica (Cf. COMBE, 1992, p.10-11).
Dos diversos índices paratextuais de que fala Gerard Genette, os títulos das obras, no
caso dos textos de Camus, são sempre muito significativos; primeiramente, por remeterem
diretamente ao tema delas. Em L'Étranger, o título corresponde também a "estranho", pois a
sensação de "estranheza" perpassa a obra e o próprio Meursault, falando de si, diz "eu", mas
com a neutralidade de um "ele", estranho a si mesmo. Em La Peste, a epidemia, em sentido
próprio ou alegórico, é o tema do livro; Le Mythe de Sisyphe é uma referência direta à figura
mitológica que exerce um trabalho absurdo e, daí, referência ao Absurdo em geral; L'Homme
révolté trata das relações entre a Revolta e sua configuração degenerada na forma de
revolução violenta e totalitária. Nestas duas últimas obras, o subtítulo explícito refere-se
diretamente ao conteúdo da obra: são ensaios no sentido mais completo em que ele se
desenvolveu principalmente na França, desde Montaigne. É uma situação diferente daquela
que ocorre em O Ser e o nada, de Jean-Paul Sartre, em que, apesar da auto-classificação
estampada ao início da obra, o texto se apresenta muito mais sob a forma de um tratado, que,
embora leve em conta o aspecto subjetivo e "fenomenológico" da experiência humana, traduz-
se numa linguagem árida e numa organização sistemática que se pretende exaustiva. Como
afirma Karl Viëtor, tratando do gênero lírico, um poema pode pertencer ao gênero mesmo se o
poeta não o define expressamente como tal, pois não é o nome que decide, mas a estrutura
111
genérica do poema. Quando um poema traz a etiqueta do gênero, uma relação verdadeira com
o gênero está, regra geral, presente, como pode também se revestir de outra forma.
O subtítulo, ou mesmo a ausência dele, é particularmente relevante no caso da Peste,
de Camus. A obra não traz nenhuma indicação genérica, não havendo a indicação "romance"
e nem mesmo "narrativa", que é uma caracterização dada a posteriori pelos críticos (ao lado
de "ensaios", "teatro" e "novelas") das obras de Camus para a edição "Pléiade". Dentre os
inúmeros elementos presentes na Peste, como uma forte ironia apontada pelos críticos,
podemos incluir a dimensão do "enigma" (título de um conto de Camus) ou mistério, que
existe com relação ao narrador. Tal narrador permanece oculto durante praticamente toda a
duração da narrativa. No início do primeiro capítulo lemos: "le narrateur, qu'on connaîtra
toujours à temps [...]" (CAMUS, 1962, p.1221) e só ao final do último temos a revelação:
Rieux décida alors de rédiger le récit qui s'achève ici, pour ne pas être de
ceux qui se taisent, pour témoigner en faveur de ces pestiférés, pour laisser
du moins un souvenir de l'injustice et de la violence qui leur avaient été
faites, et pour dire simplement ce qu'on apprend au milieu des fléaux, qu'il y
a dans les hommes plus de choses à admirer que de choses à mépriser. [...]
Car il savait ce que cette foule en joie ignorait, et qu'on peut lire dans les
livres, que le bacille de la peste ne meurt ni ne disparaît jamais, [...] et que,
peut-être, le jour viendrait où, pour le malheur et l'enseignement des
hommes, la peste réveillerait ses rats et les enverrait mourir dans une cité
heureuse (CAMUS, 1962, p.1474).
Podemos observar que o mistério ou suspense com relação ao narrador está ligado, de
certa forma, à falta de especificação "romance" ao início da obra e à ambigüidade com relação
a seu "gênero". La Peste, de início, como apontamos no capítulo 3, é marcada pela
diversidade de sentidos; a epígrafe, tomada de Daniel Defoe aponta para a polissemia,
característica da linguagem poética. Entretanto, as primeiras linhas do texto evocam o gênero
―crônica‖ e remetem, assim, ao trabalho do historiador ou jornalista, mais do que àquele do
médico (CAMUS 1962, p.1219).
112
Camus, escritor já consagrado à época de publicação da Peste, era conhecido talvez
mais como jornalista do que como romancista. Para o leitor francês da década de 50, o
narrador parece ser, a princípio, ou Rambert, que é um jornalista (como Camus e que faz,
como ele, uma reportagem sobre a situação de miséria do povo da Kabila) ou Tarrou, que
partilha exatamente as opiniões políticas do autor, defendidas em seus textos jornalísticos,
como aqueles publicados no jornal Combat. Há um elemento de suspense para o leitor, com
relação ao narrador, e certa surpresa, ao se revelar que tal narrador é o médico, doutor Rieux.
6.2 TIPOLOGIA DOS GÊNEROS
Os índices paratextuais, título, subtítulo, editor, autor, definem uma tipologia dos
gêneros usuais sobre a qual, para aquém dos debates teóricos, leitores e autores, editores e
críticos se entendem implicitamente. Este consenso tácito, numa época e numa cultura dadas,
constitui o que H.-R. Jauss chamou um horizonte de espera e define um sistema de gêneros.
Os gêneros ―representam por assim dizer um a priori da realidade literária‖ e enquanto
"horizonte de espera‖ se constituem para o leitor por uma tradição ou uma série de obras já
conhecidas e pelo estado de espírito suscitado com a aparição de uma obra nova. 13
A relação do texto singular com a série de textos que constituem o gênero aparece
como um processo de criação e de modificação contínua de um horizonte. O novo texto evoca
para o leitor o horizonte de uma espera e de regras que ele conhece graças aos textos
anteriores, e que sofrem logo variações, retificações, modificações ou que são simplesmente
reproduzidas (cf. JAUSS, 1986, p.49). Jauss realça o aspecto sócio-histórico dos gêneros e
observa que eles não existem isoladamente, mas constituem as diferentes funções do sistema
literário da época e põem a obra individual em relação com este sistema. Ou seja, há uma
13
JAUSS, H. R. Littérature médiévale et théorie des genres. In : GENETTE, G. et alii. Théorie des
genres. p.37-76. Seuil, Paris: 1986. p.52
113
relação entre sistemas literários, história social e realidade cotidiana; os gêneros literários
estão enraizados na vida e têm uma função social. É assim que o estudo das inter-relações
entre literatura e sociedade, entre a obra literária e o público reconstrói o horizonte de espera
dos gêneros que constitui preliminarmente a intenção das obras e a compreensão dos leitores
(cf. JAUSS, 1986, p.68-69).
Ao avaliar os problemas da classificação genérica, Jauss considera que a
sistematização moderna em três gêneros fundamentais não apenas excluiria a maioria dos
gêneros medievais, como também tornaria difícil descrever a epopéia popular, a poesia dos
trovadores e os Mistérios da Idade Média. Neste período, autores e público ainda
desconheciam todas as distinções modernas entre valor de uso ou arte pura, didatismo ou
ficção, imitação ou criação, tradição ou individualidade, que orientam a compreensão da
literatura desde a emancipação das ―Belas-artes‖. Assim, entre as formas e os gêneros da
Idade Média e a literatura atual não existiria continuidade histórica visível ou identificável.
Jauss observa que, mesmo se Croce condena o conceito normativo de gênero, ele
próprio, entretanto, considera que só se pode saber se uma obra de arte é expressão perfeita,
meio-sucesso ou fracasso, por meio de um julgamento estético que permite discernir na obra
de arte a expressão única daquilo que se tem o direito de esperar, daquilo que orienta a
percepção e compreensão do leitor; e este horizonte de espera já poderia ser a constituição de
um gênero (cf. JAUSS, 1986, p.39).
Como os traços característicos de um gênero não bastam por si mesmos para fundar a
qualidade artística de um texto literário, não podemos dizer que a perfeição de uma obra é
igual à pureza com a qual ela reproduz o modelo do gênero. Na literatura medieval são
justamente obras-primas como La Chanson de Roland, os textos de Chrétien de Troyes, as
primeiras "branches" do Roman de Renart, a alegoria amorosa de Guillaume de Lorris, A
Divina Comédia, que mostram a que ponto as convenções de um gênero podem ser
114
ultrapassadas. Constata-se assim que os textos anteriores de cada gênero não seguiram uma
evolução necessária e previsível em direção a seu ponto de perfeição possível, da mesma
forma que as obras-primas não forneceram o modelo de um gênero que os seguidores só
teriam de reproduzir para garantirem o sucesso (cf. JAUSS, 1986, p.41 e 57).
Segundo Jauss, a evolução na história da literatura mostra uma predominância de
períodos de dominação, rivalidade e volta ao passado, sendo que os gêneros de sucesso da
literatura de uma época perdem progressivamente sua eficácia porque são continuamente
reproduzidos, eles são suplantados por gêneros novos, quando não são renovados por uma
modificação estrutural. E quanto mais um texto é a reprodução estereotipada das
características de um gênero, mais ele perde em valor artístico e em historicidade (cf. JAUSS,
1986, p.62 e 66).
Karl Viëtor é um dos teóricos que contribuíram para a retomada dos estudos sobre os
gêneros no século XX. Em um importante artigo dos anos 1930, ―A História dos gêneros
literários‖, ele tenta pôr ordem na terminologia dos gêneros, chegando a uma distinção entre
os gêneros propriamente ditos e seus traços essenciais. Viëtor mostra como Goethe, em suas
Notes et dissertations pour servir à l’intelligence du “Divan occidental-oriental”, não usa o
termo gênero, mas denomina a epopéia, a poesia lìrica e o drama ―formas naturais
(Naturformen) da poesia‖:
Há apenas três verdadeiras formas naturais de poesia : uma que conta
claramente, outra que se exalta e se entusiasma, uma terceira que age
pessoalmente. Estes três modos poéticos podem atuar juntos ou
separadamente.14
A expressão ―formas naturais‖ deixa entrever que se trata de uma concepção quase
metafísica dos gêneros literários. Haveria três grandes domínios da mesma e única poesia,
14
In : VIËTOR, K. L‘histoire des genres littéraires. In : GENETTE, G. et alii. Théorie des genres.
p.9-35. Seuil, Paris: 1986. p.11
115
baseados sobre três atitudes fundamentais, naturais e últimas (ou seja, ontológicas) do poeta,
não só com relação ao objeto estético ou ao público, mas com relação à realidade.
Viëtor mostra ainda como Robert Hartl se inspira na distinção feita por Kant dos três
"fundamentos" da alma e relaciona o drama à ―faculdade de desejar‖, a epopéia à ―faculdade
de conhecer‖ e a poesia lìrica à ―sensação‖. Trata-se de uma reação (a cada vez diferente, do
homem em face da realidade apresentada pela experiência) que funda os três domínios das
formas poéticas: reações últimas, respostas criadoras, que correspondem à organização
elementar do homem. Viëtor concorda com este ponto de vista: três tipos ou grandes formas
naturais de comportamento humano face à realidade sobre os quais se enraízam e aos quais
correspondem três "formas naturais" da poesia:
O drama corresponde ao homem enquanto ser de desejo e de ação, "um ser
que quer‖; a epopéia lhe corresponde na medida em que ele é um ser que
conhece e que contempla; o lirismo na medida em que é um ser de
sentimento, votado a se exprimir (VIËTOR, 1986, p.11).
Esta distinção dos três domínios poéticos ou das três formas naturais, ainda que
questionável por seu embasamento supostamente ontológico, pode ser útil como ponto de
partida, pois, precedendo as classificações mais apuradas e sistemáticas dos especialistas, não
deixa de encontrar ecos numa visão mais elementar e faz parte do repertório interpretativo do
leitor comum.
Viëtor se pergunta de que seria feito um gênero literário e de que elementos ele tiraria
seu fundamento e sua particularidade com relação ao conjunto dos fenômenos estéticos. E
afirma que são as marcas formais que caracterizam necessária e principalmente o gênero.
Trata-se de elementos formais exteriores determinados, como o verso e a estrofe, mas também
de uma forma interna, uma construção característica, uma maneira determinada de organizar a
obra poética.
Os gêneros configurariam, assim, um círculo de possibilidades formais no interior de
um conteúdo dotado de uma estrutura particular. Mesmo no caso da poesia, não é apenas a
116
forma externa, por exemplo, a disposição e quantidade de versos, que caracteriza o gênero; a
forma prosódica não basta para constituir o gênero. Ao aspecto exterior deve corresponder
uma ―forma interna‖; como o tom, que responda ao agrupamento externo. Assim, ―são três
coisas: o conteúdo específico, a forma interna e a forma externa, ambas específicas, que,
somente quando são tomadas conjuntamente, em sua unidade especìfica, fazem ‗o gênero‘ ‖
(VIËTOR, 1986, p.22). Ou seja, trata-se de um conteúdo dotado de uma estrutura particular, o
gênero não é nem simplesmente concentrado na forma prosódica, nem diretamente
constituído por ela.
Há uma mistura de forma externa, forma interna e conteúdo apropriado ao poema.
Forma e conteúdo não se separam e cada matéria requer sua própria forma. No interior do
gênero lírico, em virtude de sua disposição estrutural, conteúdos determinados já têm uma
aptidão natural para o gênero soneto, elegia, ode, etc. Um poema épico do século XVIII deve
ser diferente de uma epopéia antiga, pois um outro conteúdo histórico exige uma outra forma,
forma interna e forma prosódica, diferente daquela da tradição antiga (cf. VIËTOR, 1986,
p.19 e 22). É por isso que arrancar a obra do contexto de um sistema literário para transportá-
la em outro pode lhe dar nova coloração, outras características e até resultar em outro gênero.
Os gêneros literários teriam uma origem histórica obscura e as realizações poéticas
não seriam regradas de uma vez por todas, havendo uma renovação constante, mas há na
tradição literária obras formais criadas. Na história, o gênero aparece com as obras
individuais, mas ele não se esgota nelas, ele as "transcende". Ou seja, o gênero só é real nas
«suas » obras individuais, mas nenhuma peça particular pode representar efetivamente um
gênero. Um mesmo gênero pode reunir uma infinidade de obras, daí a dificuldade em
caracterizá-lo ou descrevê-lo a partir de uma única obra; os conhecimentos perdem sempre em
precisão do conteúdo o que eles ganham em extensão. Seria, então, necessário se desfazer da
idéia de uma justaposição dos gêneros fechados sobre eles mesmos e procurar suas inter-
117
relações, que constituem o sistema literário num momento histórico determinado (cf.
VIËTOR, 1986, p.33-34).
A identificação do gênero, como o processo de interpretação em geral da obra, faz-se
gradativamente, num ir e vir constante entre o todo e as partes que caracteriza o círculo
hermenêutico, conforme denominação de Schleiermacher − o primeiro a descrever de que
maneira o ato de compreender se inicia por uma espécie de adivinhação, provisória e
hipotética, voltada para o todo, e de que maneira, em seguida, as partes e o todo se clareiam
de maneira progressiva e recíproca. A concepção genérica preliminar que um intérprete faz de
um texto é constitutiva de tudo o que ele compreende deste texto na seqüência, e é assim
enquanto esta concepção genérica não é modificada (cf. VIËTOR, 1986, p.31).
Robert Scholes, abordando especificamente o texto ficcional, reafirma também a
importância dos gêneros. Para o teórico, a idéia de uma poética da ficção é ela própria um
conceito genérico. A ficção seria um gênero distinto, com características, problemas e
potencialidades próprios, pois a ficção não funciona da mesma maneira que a poesia lírica, ou
outras construções verbais que não são de imitação nem de imaginação. Scholes também
realça o aspecto histórico dos gêneros, ao afirmar que todo escritor inscreve seu trabalho
numa tradição dada e que se podem medir perfeitamente suas realizações nos termos mesmos
da tradição em que este trabalho se inscreve.15
Scholes funda sua teoria modal ou teoria dos tipos ideais sobre a idéia de que todas as
obras de ficção são redutíveis a três tons fundamentais. Estes modos ficcionais de base seriam
por sua vez fundados sobre as três relações que podem existir entre um mundo ficcional, seja
ele qual for, e o mundo da experiência; assim, nosso sentimento da dignidade ou da baixeza
dos personagens e da absurdidade ou da significação do mundo deles vem da relação que une
os protagonistas a seu ambiente ficcional: um mundo ficcional pode ser melhor do que o
15
SCHOLES, Robert. Les modes de la fiction. In : GENETTE, G. et alii. Théorie des genres. p.77-88.
Seuil, Paris: 1986. p.77-78
118
mundo da experiência, pior do que ele ou seu igual. Estes mundos ficcionais implicam
atitudes que aprendemos a denominar românticas, satíricas e realistas. A ficção pode nos
fornecer o mundo decaído da sátira, o mundo heróico do romance ou o mundo mimético da
história. Podem-se imaginar estes três modos de base da representação ficcional como sendo
os pontos médios e terminais de uma gama de possíveis, a saber: sátira, história, romance.
Assim, o romance pode ser satírico (entre a história e a sátira) ou romântico (entre a história e
a ―romance‖) (cf. SCHOLES, 1986, p.81-82).
Jean-Marie Schaeffer busca mostrar que a teoria tem tendência a considerar como
"natural", conforme um modelo biológico, o que é uma construção a posteriori. Os gêneros
seriam "classes" lógicas aplicadas ao campo literário, que não correspondem necessariamente
a seu objeto. Segundo Schaeffer, toda teoria sobre os gêneros se apóia sobre uma questão de
definição, a saber: o que seria um gênero. Possíveis respostas são: norma, essência ideal,
matriz de competência ou simples termo de classificação ao qual não corresponderia nenhuma
produtividade própria. Conforme esta última visão, de real haveria somente os textos
individuais, e seriam os gêneros apenas pseudo-conceitos, úteis no máximo para as
classificações de bibliotecários.
Perguntar o que é um gênero é indagar sobre a relação que liga os textos aos gêneros e
a relação entre determinado texto e ―seu‖ gênero. A maioria das teorias sobre os gêneros não
seriam realmente teorias literárias, mas, antes, teorias do conhecimento, uma vez que as
discussões, transcendendo a teoria literária, caem em querelas de ordem ontológica.16
Schaeffer critica a abordagem ontológica dos gêneros porque considera que ela
corresponde a uma ―exterioridade genérica‖. Exterioridade genérica é o procedimento que
consiste em "produzir" a noção de um gênero não a partir de uma rede de semelhanças
existentes entre um conjunto de textos, mas postulando-se um texto ideal, do qual os textos
16
SCHAEFFER, J.-M. Du texte au genre – Notes sur la problématique générique. In : GENETTE, G.
et alii. Théorie des genres. p.179-205. Seuil, Paris: 1986. p.179-180
119
reais seriam apenas derivados mais ou menos conformes, da mesma forma que, segundo
Platão, os objetos empíricos são apenas cópias imperfeitas das idéias eternas (cf.
SCHAEFFER, 1986, p.190).
É importante observar que Platão e, sobretudo, Aristóteles não procederam desta
maneira, pois partiram de textos reais, que existiam de fato, anteriormente a qualquer
classificação genérica. Aristóteles tem como referência as obras de Homero e Sófocles e
pensa, pois, a teoria literária através da ―literatura‖ de seu tempo. Sua prática é indutiva, parte
da realidade efetiva dos gêneros em vigor em Atenas nos séculos V e IV e não prescritiva ou
normativa. Aristóteles, como bom naturalista, depreende as regras ou leis do gênero não em
sentido jurídico, mas científico, ou seja, como vindas da observação.
O ponto de vista de Schaeffer, ao criticar um modelo ideal de gênero, independente da
obra real, é próximo da concepção de Viëtor, quando este afirma que não há gênero
completamente puro e que em nenhuma obra o gênero em sua plenitude atinge sua realização
ideal, da mesma forma que nenhum exemplar particular pode ser considerado o tipo de um
gênero.
Na concepção ontológica, em que o gênero é visto como a essência da literatura,
constrói-se o gênero a partir de fontes supostas ou a partir de uma ―projeção retrospectiva‖,
pois postula-se primeiro um ―ideal de gênero‖ e depois encaixam-se os textos neste gênero, é
como construir um texto imaginário, ideal, do qual os outros, reais, seriam ecos. Assim, para
se discutir a questão das relações ontológicas entre textos e gêneros, é preciso primeiro tê-los
constituído numa exterioridade recíproca, o que corresponde a reificar o texto (cf.
SCHAEFFER, 1986, p.184 e 188).
Portanto, conforme Schaeffer, é preciso abandonar a reificação do texto e a idéia de
uma exterioridade de ordem ontológica entre texto e gênero; é preciso abandonar a idéia do
gênero como entidade extratextual e fundadora dos textos, concepção segundo a qual o texto
120
literário seria um sistema autônomo, fechado e unificado, vindo unicamente de uma leitura
imanente e não referencial.
Para Schaeffer, o gênero não é a essência secreta da literatura, mas um modelo de
leitura, por isso o gênero deve ser construído por uma rede de semelhanças textuais, formais,
narrativas e temáticas. Ele busca, portanto, um critério empírico para o estudo dos gêneros,
defendendo a necessidade de uma definição textual e não ontológica de genericidade.
Conforme uma fenomenologia empírica, a teoria genérica supõe-se capaz de dar conta de um
conjunto de semelhanças textuais, formais e, sobretudo, temáticas. Schaeffer fala não de
gênero, mas de genericidade, que seria uma componente textual. Sendo a literatura por
definição institucional, a genericidade poderia perfeitamente "ser explicada por um jogo de
repetição, de imitações, de empréstimos, etc., de um texto com relação a um outro, ou a
outros" (SCHAEFFER, 1986, p.186).
Schaeffer reconhece que toda leitura resulta de pelo menos dois fatores, duas intenções
institucionalizadas: a do codificador e a do decodificador, mas afirma que recorrer à estética
da recepção não põe em xeque o postulado do texto-organismo fechado, pois, de acordo com
esta teoria, as condições de recepção apenas se sobrepõem a um texto já constituído na
plenitude de seu sentido. Para a estética da recepção o texto não seria um canal de
comunicação, mas um conteúdo transmitido (cf. SCHAEFFER, 1986, p.184).
Ele defende então o que chama de ―abordagem transtextual‖, que vai de encontro à
idéia segundo a qual o texto em sua interioridade pura seria algo como um sólido fragmento
de realidade, dotado de seu sentido único e definitivo, que o comentário só teria que
descobrir. Segundo a abordagem transtextual, é preciso observar a estrutura textual e os
índices transtextuais (que incluem elementos arquitextuais: pertença genérica; elementos
paratextuais: lugar de publicação, título, epígrafe, etc.; e, eventualmente, elementos
hipertextuais: texto-fonte, ou elementos metatextuais: tradição do comentário universitário,
121
etc.) Para Schaeffer o ―gênero‖ seria apenas uma pura categoria de classificação, pois ele
pertence ao campo das categorias da leitura e estrutura um certo tipo de leitura, ao passo que a
―genericidade‖ é um fator produtivo da constituição da textualidade e uma norma de leitura
(cf. SCHAEFFER, 1986, p.195 e 199).
A leitura transtextual seria um enriquecimento com relação a uma leitura puramente
imanente, pois ela reinsere o texto individual na rede textual na qual ele é tomado e da qual a
leitura imanente o isola artificialmente. Trata-se de uma abordagem que valoriza o elemento
histórico e situacional dos textos, pois a problemática genérica é abordada não pelo ângulo do
gênero como categoria de classificação retrospectiva, mas pelo ângulo da genericidade como
função textual, considerando-se que a escolha de uma modalidade de enunciação é um
preliminar de todo texto. Assim, o caráter eminentemente institucional da literatura, portanto,
a circulação textual que está na base da genericidade, deve ser levado em conta. Um gênero é
sempre uma configuração histórica concreta e única (cf. SCHAEFFER, 1986, p.202 e 204).
Schaeffer critica a visão de Genette, para quem, como veremos abaixo, a
genericidade seria apenas uma categoria de classificação retrospectiva. Na terminologia
proposta por G. Genette, a genericidade, (ao lado dos tipos de discurso e das modalidades de
enunciação (narrativo/dramático/misto) é apenas um dos aspectos da arquitextualidade. E o
termo mais geral de ―transtextualidade‖ compreende, além da arquitextualidade, a
paratextualidade, a intertextualidade, a hipertextualidade e a metatextualidade.
Enquanto modelo de leitura, a transtextualidade, segundo Schaeffer, ativa mais
aspectos textuais do que a leitura puramente imanente, sem falar do fato de que ela permite
levar em conta a dimensão institucional da literatura enquanto conjunto de redes textuais.
Portanto, para Schaeffer, a genericidade se constrói por uma rede de semelhanças textuais,
semelhanças formais, narrativas e temáticas. Assim, os textos que funcionam como modelo
genérico estão de alguma forma presentes no texto com relação ao qual eles cumprem esta
122
função, não, naturalmente, enquanto citação (e portanto intertextualidade), mas enquanto
ossatura formal, narrativa, temática, ideológica, etc. As semelhanças se dão em níveis textuais
diferentes: nível modal, formal e temático, e nem todas as semelhanças textuais são,
evidentemente, pertinentes do ponto de vista genérico, senão a genericidade se identificaria
com a totalidade dos estudos literários (cf. SCHAEFFER, 1986, p.194 e 202).
No interior dessas semelhanças, as diferenças são significativas; para Schaeffer, o
sistema de transformação genérica é o melhor terreno de estudo para a genericidade, enquanto
que o sistema de reduplicação não é tão interessante (cf. SCHAEFFER, 1986, p.204). Esta
opinião vai ao encontro daquela defendida por Jauss, quando afirma que a perfeição de uma
obra não corresponde a uma reprodução de um modelo de gênero e que, ao contrário disso,
quanto mais um texto é a reprodução estereotipada das características de um gênero, mais ele
perde em valor artístico e em historicidade.
Com base nas concepções de Jauss e Schaeffer, podemos destacar a originalidade da
produção literária de Camus. O autor, para classificar suas próprias obras, usa o termo
―formas‖: forma romanesca, dramática e ideológica, que correspondem aos romances e prosa
de ficção em geral, às peças de teatro e aos ensaios filosóficos. Mais do que a nomenclatura
em si (Camus também usa os termos ―peças‖ e ―ensaios‖) interessa o aspecto inovador do
escritor que, sem atacar diretamente a noção de gênero, tampouco se preocupa em enquadrar
suas obras num padrão formal pré-determinado.
Na Peste, a indefinição da pertença genérica é bastante explícita (trata-se de um
romance, de uma crônica, de uma tragédia, de uma reportagem, de uma ―narrativa alegórica‖,
da ―fundação de uma ética‖?); entretanto, já com relação a L'Étranger, os críticos observaram
aspectos caracterìsticos da inovação, o mais forte dele seria o uso do ―passé composé‖ tempo
verbal que em francês predomina na linguagem oral, sendo o ―passé simple‖, até então, o
tempo característico da ficção romanesca. No campo do teatro há uma variação desde a peça
123
de estrutura mais tradicional, como Les Justes, até o esforço máximo de experimentação e de
junção de todos os recursos dramáticos, como acontece em L'État de siège, peça escrita em
colaboração com Jean-Louis Barrault. Com relação aos ensaios filosóficos, a crítica ao
dogmatismo e ao racionalismo é feita coerentemente numa forma não-sistemática e numa
linguagem carregada de imagens poéticas.
Tais procedimentos do escritor podem ter suscitado uma reação negativa em alguns
críticos, mas, na verdade, (conforme os termos empregados por Jauss) constituem uma não
reprodução estereotipada das características do gêneros, o que contribui para renová-los e
enriquecê-los.
6.3 A BUSCA DA ORTODOXIA
No início de seu célebre artigo, Introdução ao Arquitexto¸ Gerard Genette aborda a
teoria das três formas estéticas: a forma lírica, em que o artista apresenta sua imagem em
relação imediata consigo mesmo; a forma épica, em que ele apresenta sua imagem em relação
intermediária entre ele mesmo e os outros; e a forma dramática, em que ele apresenta sua
imagem em relação imediata com os outros.17
Para Genette, esta tripartição não é das mais originais, e há algum tempo ela vem
sendo atribuída a Aristóteles ou Platão. Ele observa em seguida que Irene Behrens mostrou
um exemplo em Ernest Bovet: ―Aristóteles tendo distinguido os gêneros lìrico, épico e
dramático...‖ para em seguida refutar esta atribuição, que ela declarava já muito difundida.
Mas, apesar do esclarecimento de Behrens, houve recaìdas, porque tal ―erro ou ilusão
retrospectiva tem raìzes profundas em nossa consciência, ou inconsciência literária.‖
(GENETTE, 1986, p.90) A própria autora do ―esclarecimento‖ não se libertou da tradição, e
17
GENETTE, G. Introduction à l‘architexte. In : GENETTE, G. et alii. Théorie des genres. p.89-159.
Seuil, Paris: 1986.
124
se pergunta como é possível que a tripartição tradicional não esteja em Aristóteles, a que ela
responde que o lirismo grego era muito próximo da música para se ligar à poética.
Genette se propõe então, de maneira bem mais incisiva, a pôr um ponto final no mal-
entendido de longa data; busca mostrar que existe uma ausência do lírico na Poética de
Aristóteles e que a célebre tripartição dos gêneros em lírico, épico e dramático não é
aristotélica: o que aconteceu foi que projetaram sobre o texto clássico uma articulação da
poética ―moderna‖ ou, antes, romântica.
Usurpando uma filiação distante, a teoria relativamente recente dos "três gêneros
fundamentais" não apenas se atribui uma antigüidade — e, portanto, uma aparência ou
presunção de eternidade, e daí de evidência —: ela desvia em proveito de suas três instâncias
genéricas um fundamento natural que Aristóteles, e antes dele Platão, tinha talvez mais
legitimamente estabelecido para algo totalmente diferente (cf. GENETTE, 1986, p.90).
―Não pelo vão prazer de censurar alguns ótimos espìritos, mas para ilustrar com o
exemplo deles a difusão desta lectio facilior, aqui vão três ou quatro outras ocorrências mais
recentes...‖ (GENETTE, 1986, p.91), assim Genette elenca uma série de autores que teriam se
afastado da ortodoxia aristotélica; entre eles estão Austin Warren, Northrop Frye, Philippe
Lejeune, Robert Scholes, Hélène Cixous e Tzvetan Todorov, que faz remontar a tríade a
Platão e sua sistematização a Diomedes. Com efeito, já no século IV, Diomedes,
sistematizando Platão, apresenta o lírico como abrangendo obras em que apenas o autor fala,
o dramático como obras em que falam apenas os personagens e o épico seriam obras em que
autor e personagem têm igualmente direito à palavra.
Entre os hereges estaria ainda Mikhail Bakhtine, para quem a teoria dos gêneros não
pôde até nossos dias acrescentar muito de substancial ao que já havia sido feito por
Aristóteles, cuja poética permanece o fundamento imutável da teoria dos gêneros. Conforme
Genette, Bakhtine não atenta para o silêncio massivo da Poética sobre o gênero lírico, nem
125
para a ilusão retrospectiva pela qual as poéticas modernas (pré-românticas e pós-românticas)
projetam cegamente sobre Aristóteles, ou Platão, suas próprias contribuições, e escondem
dessa forma sua própria diferença – sua própria modernidade (cf. GENETTE, 1986, p.92-93).
Mas esta atribuição errônea não data do século XIX, ela já existia no século XVIII, no
abade Batteux, que mostra como Aristóteles parece mesmo repartir três traços de estilo entre
três gêneros ou formas: o ditirâmbico, a epopéia e o diálogo de teatro. Mas nada autoriza a
apresentar o ditirâmbico como ilustração em Aristóteles (ou Platão) do ―gênero‖ lìrico. Todos
estes teóricos teriam projetado sobre o fundador da poética clássica uma articulação da
poética ―moderna‖ ou romântica, ou seja, a teoria dos três gêneros, embora relativamente
recente, usurpa uma filiação distante, para se atribuir evidência e legitimidade.
Genette se propõe então a abordar diretamente o ―sistema de gêneros‖ proposto por
Platão e explorado por Aristóteles, observando que a expressão ―sistema de gêneros‖ é
imprópria, sendo que ele a utiliza então como uma ―concessão provisória à vulgata‖.
Conforme Genette, no livro III da República, Platão motiva sua decisão de expulsar os
poetas da Cidade com duas séries de considerações. A primeira trata do conteúdo (logos) das
obras, que deve ser (e freqüentemente não é) moralizante. A segunda se refere à ―forma‖
(lexis), ou seja, o modo de representação. Todo poema, enquanto relato de acontecimentos,
pode tomar três formas: puramente narrativa, mimética (como no teatro, com diálogos entre
os personagens) ou mista (como em Homero, com narrativa e diálogo).
Em Aristóteles, segundo Genette, encontramos uma relação entre objeto imitado e a
maneira de imitar. O objeto imitado consiste unicamente em ações humanas (seres humanos
agindo); quanto à maneira de imitar, ela consiste seja em contar, seja em ―apresentar os
personagens em ato‖ (pô-los em cena agindo e falando, o que corresponde à representação
dramática). Desta forma, a classe do misto platônico desaparece. A ―maneira de imitar‖
equivale ao que Platão denominava lexis, não se trata de um sistema de gêneros, mas de
126
modos ou situações de enunciação: no modo narrativo, o poeta fala em seu nome próprio, no
modo dramático são os próprios personagens, ou o poeta disfarçado em personagens.
Aristóteles, para estabelecer a diferenciação entre as artes de imitação, além de objeto imitado
e do modo de imitar, fala também dos ―meios‖ (pelo gesto, pela palavra, em grego, em verso,
em prosa) e este último nível responderia melhor ao que a tradição denomina forma (cf.
Genette, 1986, p.98).
As categorias de objeto e modo determinam uma grade de quatro classes de imitação,
a que correspondem o que a tradição clássica chama de gêneros. O poeta pode contar ou pôr
em cena ações de personagens superiores, e pode contar ou encenar ações de personagens
inferiores. O dramático superior define a tragédia, o narrativo superior a epopéia, ao
dramático inferior corresponde a comédia, ao narrativo inferior um gênero mal determinado,
que Aristóteles não denomina e que ele ilustra com ―paródias‖. Trata-se da narração cômica.
O filósofo, observando a existência de uma narrativa nobre, de um drama nobre e de um
drama baixo, deduz, por horror do vazio e gosto do equilíbrio, uma narrativa baixa que ele
identifica provisoriamente com a epopéia paródica; ele estaria assim reservando, sem
imaginar, um lugar para o romance realista (cf. GENETTE, 1986, p.126).
Em Aristóteles há uma valorização do superior sobre o inferior, inversão da posição
platônica a propósito de Homero (que intervém pouco como narrador e que se faz também
―imitador‖, ou seja, dramaturgo, poeta épico que deixa a palavra aos personagens). Assim,
Aristóteles, como Platão, não ignora o caráter ―misto‖ da narração homérica, mas defende a
superioridade da tragédia sobre a epopéia.
Durante séculos, a redução platônico-aristotélica do poético ao representativo vai
pesar sobre a teoria dos gêneros e criar confusão, caiu-se num menosprezo de tudo que não é
narrativo ou dramático. Genette passa então tratar a abordagem dos gregos feita por alguns
teóricos ao longo da história.
127
O espanhol Francisco Cascales, em suas Tablas poéticas (1617) e Cartas philologicas
(1634) afirma, a propósito do soneto, que o lìrico tem por ―fábula‖ não uma ação, como o
épico e o dramático, mas um pensamento (concepto). Haveria aqui uma significativa distorsão
imposta à ortodoxia: o termo pensamento poderia corresponder ao termo aristotélico de
"dianoia". Mas a idéia de que um pensamento possa servir de fábula para algo seria
totalmente estranha ao espírito da Poética, que define expressamente a fábula (mythos) como
o "conjunto das ações" e em que a "dianoia" (o que os personagens dizem para demonstrar
algo ou declarar o que decidem) praticamente não recobre o aparelho argumentativo destes
personagens. Mesmo estendendo a definição ao pensamento do próprio poeta, tudo isto não
poderia constituir uma fábula no sentido aristotélico (cf. GENETTE, 1986, p.113).
Batteux se esforça por conciliar poética clássica e abertura, ou seja, mantendo a
imitação como princípio único de toda poesia, estende este princípio à poesia lírica. A poesia
lírica seria também imitação, ao imitar sentimentos (mesmo que fictícios), ou seja, ela imitaria
sentimentos e não ações, como as outras poesias. Assim seria integrada a poesia lírica à
poética clássica. Entretanto, afirma Genette, esta integração é forçada e distorcida, pois a
ficção do poema é tomada como essencial e não como possível, a imitação de ações torna-se
imitação puramente. A imitação é vista como sinônimo de ficção, mas esta não existe se o
sentimento é autêntico, e assim cai por terra toda uma poética (cf. GENETTE, 1986, p.115 e
119-120).
Philippe Lejeune vê a autobiografia, (que ele define como narrativa retrospectiva em
prosa que uma pessoa faz de sua própria existência, destacando sua vida individual, em
particular a história de sua personalidade ) um gênero relativamente recente, possível somente
na época moderna, mas a definição que ele propõe (feita com termos sem nehuma
determinação histórica) seria rigorosamente intemporal e tipicamente aristotélica, por
128
combinar traços temáticos (o fazer-se de uma individualidade real), modais (narração
autodiegética retrospectiva) e formais (em prosa) (cf. GENETTE, 1986, p.155).
No século XX, ocorre uma ―acomodação‖: quando a enunciação é reservada ao poeta,
fala-se em lírico, quando a enunciação é alternada, em épico, e quando a enunciação é
reservada ao personagem, em dramático. Mas as definições modais não coincidem com as
genéricas. E mesmo assim, o novo sistema é abusivamente proclamado como sendo conforme
à doutrina clássica (cf. GENETTE, 1986, p.118).
Schlegel estabelece uma equivalência entre a ―forma‖ lìrica como sendo subjetiva, a
dramática, objetiva, e a épica subjetiva-objetiva. São os mesmos termos da divisão platônica
(enunciação pelo poeta, pelos personagens, por um e outros), mas a escolha dos adjetivos
desloca o critério do plano técnico para um psicológico ou existencial. Schlegel valoriza
explicitamente o estado misto, por ser ao mesmo tempo subjetivo e objetivo. Para ele, a
divisão platônica dos gêneros não é válida: da mesma forma que ao épico corresponde o
objetivo, ao lírico corresponde o subjetivo, e no dramático ocorre uma interpenetração de
ambos, trata-se do esquema: tese, antítese e síntese (cf. GENETTE, 1986, p.120-121).
Já Hölderlin valoriza o lírico (particularmente, a ode pindaresca) como união da
exposição épica e da paixão trágica. Finalmente, ele recusa qualquer hierarquia,
estabelecendo uma espiral ou imbricação entre os gêneros. Goethe opõe às simples ―espécies
poéticas‖ que são os gêneros particulares como o romance, a sátira ou a balada, as ―três
autênticas formas naturais‖ da poesia que são o épico, (narração pura), o lìrico (transporte
entusiasta) e o drama (representação viva). Os três modos podem agir juntos ou
separadamente. Assim, para Goethe, podem-se combinar estes três elementos (lírico, épico,
dramático) e fazer variar ao infinito os gêneros poéticos. Os sucessores de Schlegel e
Hölderlin, por sua vez, vêem no drama a forma mista (ou sintética) e superior.
129
Na verdade, segundo Genette, não se pode saber que gênero precede historicamente o
outro, nem há por que dizer que o lírico é o modo mais subjetivo; por isso mesmo não se pode
fazer a correlação subjetivo-objetivo-misto em função de passado-presente-futuro. A história
da teoria dos gêneros seria toda ela marcada por estes esquemas que deformam a realidade
freqüentemente heterogênea do campo literário e pretendem descobrir um "sistema natural"
onde eles constroem uma simetria fictícia, ou seja, configurações forçadas (cf. GENETTE,
1986, p.122, 126 e 141).
A qualificação de "natural" para os gêneros é corrente sob a estética romântica. Para
Bovet, como para Hugo e os Românticos alemães, os três ―grandes gêneros‖ não são simples
formas, mas três modos essenciais de conceber a vida e o universo, que respondem a três eras
da evolução. Daí que os modos de enunciação poderiam ser qualificados de ―formas naturais‖.
Haveria uma atitude existencial, uma ―estrutura antropológica‖, uma "disposição mental‖, um
―esquema imaginativo‖ ou um ―sentimento‖, propriamente épico, lìrico, dramático – mas
também trágico, cômico, elegíaco, fantástico, romanesco, etc.
Para Genette, o ―tipo épico‖ não é nem mais nem menos natural do que os gêneros
―romance‖ e ―epopéia‖ que ele supõe englobar, e os três termos da trìade tradicional não
merecem nenhuma posição hierárquica particular: o épico, por exemplo, não está acima da
epopéia, romance, novela, contos, etc. senão quando se o entende como modo (=narrativo); se
o considerarmos como gênero (=epopéia) e se lhe dermos um conteúdo temático específico,
então ele não contém mais o romanesco, o fantástico, etc. Os ―tipos‖ ideais não seriam nem
mais gerais nem mais constantes. Trata-se, antes, de um conservadorismo da tradição clássica,
capaz de manter de pé, durante séculos, formas mumificadas (cf. GENETTE, 1986, p.144-
146).
Em Platão e Aristóteles a divisão fundamental tinha um estatuto bem determinado,
pois ela se baseava explicitamente no modo de enunciação dos textos. Os gêneros, quando
130
levados em conta, se repartiam entre os modos enquanto provinham de tal ou tal atitude de
enunciação: o ditirâmbico, a narração pura, a epopéia. Cada gênero se definia por uma
especificação do conteúdo.
Toda intenção literária posta de lado, o usuário da língua deve, mesmo
inconscientemente, escolher entre atitudes de locução tais como discurso e história, citação
literal e estilo indireto, etc. A diferença de estatuto entre gêneros e modos estaria nisto: os
gêneros são categorias propriamente literárias, os modos categorias que vêm da lingüística (da
pragmática). A questão é que a tríade romântica não aparece mais como modos de
enunciação, mas sim como arquigêneros. A divisão romântica e a pós-romântica encaram o
lírico, o épico e o dramático não como simples modos de enunciação, mas como verdadeiros
gêneros, cuja definição comporta um elemento temático (cf. GENETTE, 1986, p.135, 140 e
142).
Assim, os teóricos teriam concebido e atribuído a Platão e Aristóteles uma divisão dos
―gêneros literários‖ que é recusada por sua ―poética‖. Esta atribuição ocorreu, no fim do
classicismo, por causa do respeito e necessidade de caução da ortodoxia e, no século XX, por
causa de uma ilusão retrospectiva. Mas o erro é o mesmo, trata-se de uma atribuição errônea
ou de uma confusão entre modos e gêneros.
Tal atribuição falaciosa projeta o privilégio de naturalidade que era legitimamente (―só
pode haver três maneiras de representar pela linguagem as ações, etc.‖) aquele dos três
modos: narração pura/narração mista/imitação dramática sobre a tríade dos gêneros, ou de
arquigêneros: lirismo/epopéia/drama (―só pode haver três atitudes poéticas fundamentais,
etc.‖): trata-se de uma confusão entre definição modal e definição genérica, as quais, na
verdade, são diferentes.
Os arquigêneros não podem ser tipos ideais ou naturais. Os modos (como a narrativa)
e os gêneros (como o romance) têm entre si uma relação complexa e não de simples inclusão,
131
como sugere Aristóteles. Há determinações temáticas, modais e formais que se distinguem.
Enfim, a atribuição a Platão e a Aristóteles da teoria dos ―três gêneros fundamentais‖ é um
erro histórico e o fruto de uma confusão teórica (cf. GENETTE, 1986, p.147-148).
Genette observa que os três modos de lexis, na República de Platão, correspondem, no
plano do que será chamado mais tarde gêneros poéticos, à tragédia e à comédia para o
mimético puro, à epopéia para o misto e ao ditirâmbico para o narrativo puro. Platão trata
apenas das formas de poesia ―narrativa‖ em sentido largo, deixando de lado toda poesia não
representativa, o que chamamos por excelência poesia lírica, e toda outra forma de literatura
(como a representação em prosa, como nosso romance ou nosso teatro modernos).
Também, na Poética, conforme Genette, há apenas poema representativo. Ela define a
poesia como arte da imitação em verso, excluindo a imitação em prosa. Sem mencionar a
prosa não imitativa, como a eloqüência, a que é consagrada a Retórica.
É neste ponto que o esforço de Genette para restabelecer a "pureza" da doutrina dos
filósofos gregos se revela bastante estéril, pois fixar tais doutrinas no contexto em que
surgiram e na relação exclusiva com a poesia de então só evidencia a defasagem de tais
teorias para a abordagem da produção poética moderna e contemporânea; mais interessante
seria talvez relacionar as intuições dos clássicos com as transformações históricas dos
gêneros, isto seria uma forma de desenvolver a riqueza do pensamento grego e de lhe conferir
atualidade.
Para abordarmos a narrativa, sobretudo o romance, e mormente a partir do século XIX,
teríamos de nos valer tanto da poética quanto da retórica. A poética exclui a prosa não
imitativa, mas em muitos escritores modernos, e tal é o caso de Camus, a prosa de ficção é
repleta de passagens em que predominam a argumentação. Na literatura moderna
encontramos reunidos em uma mesma obra, diversos "conteúdos", e diversas "formas de
representação". La Peste de Camus seria muito mais do que um "poema misto" e,
132
apresentando um fundo ético, seu conteúdo estaria longe de ser "moralizante". Há longas
passagens que, sob a forma despretensiosa de uma conversa informal entre amigos,
constituem na verdade discussões de conteúdo filosófico. Ou seja, trata-se de um "poema" que
engloba ao mesmo tempo aspectos poéticos, retóricos e éticos.
Na Peste, tais passagens geralmente surgem na fala de personagens e não na do
narrador. O narrador, nas obras em geral de Camus, nunca é onisciente. Isto não é uma
escolha aleatória para o autor, mas uma exigência necessária para que seja mantida a
coerência com seu pensamento que exclui a visão totalitária do universo. Um narrador
onisciente é, de certa forma, uma prática totalitária dentro do universo romanesco, que seria
mostrado por uma visão única. Camus adota uma prática contrária, pois estabelece inúmeros
pontos de vista e multiplica os olhares, as percepções e as verdades sobre um mesmo fato
narrado.
As passagens da Peste que mais diretamente remetem a um pensamento filosófico,
através da reflexão dos personagens, concentram-se principalmente nas falas de Rieux e
Tarrou e, secundariamente, naquelas de Rambert e de Grand; esporadicamente em fragmentos
de discurso de outros personagens. Com efeito, são digressões em que se foge totalmente à
narração pura, mas são essenciais no conjunto da obra, pois caracterizam os personagens e
justificam suas atitudes. Destacam-se algumas falas do doutor Rieux, na passagem seguinte
ele enuncia, principalmente, enquanto personagem:
un fils d'ouvrier comme moi. [...] mon dégoût croyait s'adresser à l'ordre
même du monde. [...] je ne suis toujours pas habitué à voir mourir. [...]
l'ordre du monde est réglé par la mort, peut-être vaut-il mieux pour Dieu
qu'on ne croie pas en lui et qu'on lutte de toutes ses forces contre la mort,
sans lever les yeux vers ce ciel où il se tait (CAMUS, 1962, p.1323).
Em outro momento Rieux enuncia, sobretudo, como narrador – ainda não identificado:
133
Car on laisse supposer alors que des belles actions n'ont tant de prix que
parce qu'elles sont rares et que la méchanceté et l'indifférence sont des
moteurs bien plus fréquents dans les actions des hommes. C'est là une idée
que le narrateur ne partage pas. Le mal qui est dans le monde vient presque
toujours de l'ignorance, et la bonne volonté peut faire autant de dégâts que la
méchanceté, si elle n'est pas éclairée. Les hommes sont plutôt bons que
mauvais, et en vérité ce n'est pas la question. Mais ils ignorent plus ou
moins, et c'est ce qu'on appelle vertu ou vice, le vice le plus désespérant
étant celui de l'ignorance qui croit tout savoir et qui s'autorise alors à tuer
(CAMUS, 1962, p.1326).
Podemos destacar ainda uma passagem em que Tarrou, expondo suas opiniões
pessoais, anuncia, na verdade, um ideal ético, ao mesmo tempo em que faz referências a uma
crítica desenvolvida posteriormente em L’Homme révolté: fazer a história para o Estado
totalitário contemporâneo do autor inclui a desonra, o crime e o assassinato:
D'ici là, je sais que je ne vaux plus rien pour ce monde lui-même et qu'à
partir du moment où j'ai renoncé à tuer, je me suis condamné à un exil
définitif. Ce sont les autres qui feront l'histoire. Je sais aussi que je ne puis
apparement juger ces autres. [...] Je dis seulement qu'il y a sur cette terre des
fléaux et des victimes et qu'il faut, autant qu'il est possible, refuser d'être
avec le fléau. [...] Je n'ai pas de goût, je crois, pour l'héroïsme et la sainteté.
Ce qui m'intéresse, c'est d'être un homme (CAMUS, 1962, p.1427).
Tais discussões, mesmo fugindo à narrativa, são inseparáveis dela. É o conjunto de
narração e digressão que confere significado à obra. Há de se observar que o não-narrativo no
romance não se manifesta apenas nas falas que tratam de um problema ético, filosófico ou
existencial. O não-narrativo manifesta-se também nos trechos, bastante comuns, em que o
narrador comenta a própria história, por exemplo ao justificar as fontes documentais de sua
crônica e ainda, nas passagens em que ele parece dialogar com o leitor, como no trecho citado
acima: "C'est là une idée que le narrateur ne partage pas" (CAMUS, 1962, p.1326).
Genette denuncia a confusão entre "modos" e "gêneros". A suposta "tríade" não
apareceria na Poética de Aristóteles, que ignora deliberadamente o "lírico". Entretanto, como
observa muito bem Dominique Combe, e daí sua crítica a Genette, a distinção canônica da
―trìade‖ dos gêneros – épico, lírico, dramático – não deixa de remontar à Poética de
134
Aristóteles, mesmo se o ―lìrico‖ é um terceiro termo acrescentado pela tradição pós-
aristotélica e que não figura na Poética. De toda forma, a Poética se acha de início colocada
sob o signo de uma taxonomia dos gêneros, chamados ―espécies‖.
Assim, quando no prefácio de Cromwell, Hugo atribui a Aristóteles as regras das três
unidades, importa pouco que a Poética não prescreva regras nem teorize a tragédia de Ésquilo
e de Sófocles, ou que as ―três unidades‖ não figurem nela. A partir do momento em que o
teatro ―clássico‖, para justificar suas próprias regras, se referiu – freqüentemente de maneira
incorreta ou tendenciosa – a Aristóteles, Hugo está fundado a denunciar aquilo que, mesmo
sem querer, está na origem de uma poética considerada redutora. Através de Aristóteles, é
preciso entender antes o aristotelismo que se impôs progressivamente pelas traduções da
Poética na Itália e que se difundiram por toda a Europa. Racine, Corneille, le Père Rapin,
Descartes e mesmo Diderot ou Lessing recorrem à autoridade de Aristóteles, que prevalece
muito forte até fins do século XVIII (cf. COMBE, 1992, p.25).
O que está em jogo, na verdade, é o problema do legado dos clássicos e sua
interpretação ao longo da história. Assim, a tragédia é definida por Aristóteles também por
seu efeito sobre o espectador, o que remete à problemática levantada pela estética da
recepção, efeito que ele considera no plano médico, terapêutico, e não tanto "moral",
conforme sugere o termo "catharsis", mais purgação que purificação.
A interpretação moralizante ou normativa das "regras" aristotélicas pelos clássicos, na
França, seria devida ao fato de que eles conhecem Aristóteles através de Horácio. Racine é
um dos raros dramaturgos a poder se referir diretamente à Poética. É Horácio que prepara a
―bienséance‖ moral dos clássicos, ausente em Aristóteles. Horácio tem uma perspectiva
moral, estreitamente ligada à função pragmática da obra, centrada sobre seu destinatário; ele
coloca o problema em termos retóricos, o que privilegia o efeito sobre o leitor ou público,
mais do que a qualidade intrínseca da obra.
135
Já em Virgílio, o estilo reside numa harmonia entre a forma (épico/lírico) e o conteúdo
(alto/médio/baixo) e entre o autor e seu público. A elocução conveniente não deve se fazer
sem arte sobre questões de alta importância, nem solene sobre questões secundárias, nem um
termo florido sobre coisas comuns; e o louvável deve ser apresentado em termos admirativos.
Na Arte poética de Boileau, o problema central é o da adequação, do assunto ao autor,
da expressão à matéria, da obra a seu público ou do autor a seu leitor, e do ator ao texto. Em
matéria de tragédia, é preciso responder à expectativa do público, que se torna o principal
critério de sucesso, e daí, de definição dos gêneros. A idéia de adequação pertence, portanto,
à tradição retórica ciceroniana. A Arte poética sintetiza os valores retóricos do classicismo e
prescreve regras, mas trata-se de uma codificação a posteriori das obras clássicas (cf.
COMBE, 1992, p.36, 39-41). Da mesma forma, a visão redutora e essencialista dos gêneros é
fruto de um embasamento grego somado à carga interpretativa ao longo do tempo.
Aristóteles se interessa pela ―arte poética‖, pela poesia e não pelo que chamamos hoje
de ―literatura‖. Os gregos, além de terem uma visão de "poesia" muito diversa da nossa,
operavam uma distinção entre a retórica e a poética, entre os gêneros e as figuras, trata-se de
uma distinção que não existe mais. Hoje os recursos retóricos são mostrados e estudados
também nos textos literários, e mesmo nos textos em geral. E hoje se reconhece que os meios
de instruir e de persuadir podem ser os mesmos em filosofia, na eloqüência e na poesia.
A poética dos gêneros, na Antigüidade, é tributária da retórica, que Aristóteles tinha
porém cuidadosamente distinguido da poética, preparando a cisão entre a teoria moderna da
argumentação, ligada à lógica e, mais geralmente, à filosofia, e aquela das figuras, imputada à
literatura. Sabe-se, com efeito, que o objeto da poética é "o que não é mas que poderia ser" –
a ficção versossímil – enquanto que a retórica se ocupa apenas do que é. Porém, Aristóteles
não deixa de descrever a obra através de categorias tomadas da retórica.
136
Já na Escolástica, com o Trivium, há uma retorização da poética e uma poetização da
retórica, a poética é vista como segunda retórica, à sombra de uma grande disciplina. Os
diferentes gêneros de eloqüência que os oradores distinguiram, o deliberativo (aconselha-se
ou dissuade-se seu interlocutor a agir em tal ou tal sentido), o demonstrativo (louvam-se ou
reprovam-se as qualidades do assunto tratado) e o judiciário (decidir pelo justo ou injusto a
propósito de uma ação já realizada), seriam da competência da arte poética, como da arte da
oratória. De fato, esta tripartição foi aproximada da tríade dos gêneros, a tragédia foi
associada à situação de eloqüência judiciária e a poesia lírica à eloqüência demonstrativa;
globalmente, é com o antigo gênero demonstrativo que a literatura moderna teria mais
afinidades (cf. COMBE, 1992, p.42-43).
Não se pode deixar de destacar o mérito de Genette ao suscitar e desenvolver
novamente a discussão acerca dos gêneros, entretanto alguns aspectos de sua discussão podem
ser questionados. Genette critica aqueles que, ao desenvolver uma teoria sobre gêneros,
usurpam uma filiação distante e atribuem, erroneamente, a teoria genérica aos clássicos
gregos, usando a autoridade dos antigos para se legitimarem. Contudo, com suas
interpretações próprias, tais teóricos não deixam de realmente beber na fonte da Poética.
Além disso, é uma prática constante, na cultura ocidental, a recorrência aos clássicos, seja
como ponto de partida histórico (sendo eles os primeiros a tematizar muitas questões ainda
hoje prementes), seja como fonte de inspiração, seja como forma de legitimação, a partir de
uma autoridade reconhecida. E o próprio Genette, sob a perspectiva de corrigir uma
interpretação errada e fazer uma leitura correta de Platão e Aristóteles, ―serve-se‖, ele próprio,
da autoridade dos clássicos, pois sua discussão se faz em nome da doutrina platônico-
aristotélica e de uma reabilitação da Poética clássica. Mesmo que a tripartição conhecida e
difundida dos gêneros em épico, lírico e dramático não esteja em Platão, se a vulgata a aceita
assim, é preciso levá-la em conta no desenvolvimento de novas teorias.
137
O sistema da poética foi produzido num ambiente muito diferente do nosso, com uma
visão de ―poesia‖ narrativa e representativa, com uma concepção de ―literatura‖ muito
diversa; naturalmente para aplicá-lo hoje são necessárias modificações, segundo o princípio
de que a única maneira de dizer a mesma coisa, num contexto que mudou, é dizê-la de
maneira diferente. Modernamente estamos pouco acostumados a uma narrativa que não seja
em prosa, e o verso parece a muitos leitores como uma característica essencial da poesia.
Mesmo assim, se as categorias de Aristóteles podem ser aplicadas, isto só realça a
profundidade de suas concepções.
Os meios de que fala Platão parecem algo hoje muito evidente para funcionarem como
critério distintivo de um gênero, pois a literatura contemporânea é quase unicamente
difundida em forma de livros, ou seja, escrita e escrita numa língua nacional. Quanto ao
objeto imitado, pouco importa hoje se ele é nobre ou não, pois trata-se de uma distinção só
pertinente num contexto aristocrático, muito diferente do contemporâneo em que prevalecem
os valores burgueses ou éticos da modernidade. A distinção que conservou sua relevância, que
ainda faz sentido e se mostra evidente no texto literário, diz respeito aos modos: poesia,
narrativa, teatro, e assim se compreende porque tais ―modos‖ são associados aos gêneros.
A noção de "arquitexto" que Genette invoca no fim de sua obra visa a estabelecer uma
"estilística transcendente" acima dos gêneros históricos, mas ele não parece tão inovador, pois
se concentra nas categorias da Poética, não abordando os gêneros modernos, como o ensaio
literário ou filosófico, por exemplo, nem buscando uma relação entre essa prosa não imitativa,
mas poética ou filosófica, e os ―modos de representação‖ dos clássicos. Os autores, sobretudo
durante o romantismo, desejaram ultrapassar os limites dos gêneros, que eram vistos como
uma limitação à liberdade do criador, e por isso a idéia mesma de gênero foi violentamente
rejeitada; da mesma forma, o que os teóricos criticam, mais do que a distribuição dos textos
literários em gêneros distintos, é uma visão essencialista e normativa dos gêneros, visão que,
138
de certa forma, Genette acentua, por causa de sua aparente obsessão pela correta interpretação
do legado dos clássicos.
Numa visão bem mais completa e moderna do que aquela de G. Genette, Dominique
Combe aborda a questão dos gêneros, mostrando como esta perpassa várias correntes teóricas
que se dedicam aos estudos literários. Combe dedica um enfoque especial ao ensaio, que
sequer é citado por Genette, e começa criticando aqueles que menosprezam a importância da
questão dos gêneros.
Conforme Combe, aqueles que negaram qualquer pertinência à noção de gênero foram
contra a experiência quotidiana do leitor comum, cuja prática é inteiramente governada pelos
gêneros literários. Pois, quer se queira ou não, é através dos gêneros que se aborda a literatura,
e eles estão estreitamente ligados à experiência quotidiana e à prática da leitura.
Naturalmente, não é necessário poder definir a noção de gênero para compreendê-la
intuitivamente e utilizá-la. A teoria dos gêneros é fato da "ciência" que os transforma, à
distância, num objeto de conhecimento; o gênero é o "horizonte" que guia a leitura (cf.
COMBE, 1992, p.13).
Segundo D. Combe, na ―atitude natural‖ do leitor comum percebem-se quatro grandes
―categorias‖ de textos, postuladas de maneira implìcita e, se não inconsciente, pelo menos
―irrefletida‖. A reclassificação dos textos nestas categorias se opera quase automaticamente
no leitor, sem que ele precise ―tematizar‖, ou explicitar as classes genéricas abstratas. A
leitura se desenvolve em seguida sobre o ―fundo‖, sobre o segundo plano destes gêneros que
condicionam o horizonte de espera (cf. COMBE, 1992, p.13).
As quatro grandes classes de textos que se podem hoje distinguir no horizonte da
consciência ―espontânea‖, modelada pelos hábitos de leitura, mas também pelo ensino e pelas
instituições, seriam: a ficção narrativa (romance, novela, conto, narrativa); a poesia (em verso
ou em prosa); o teatro (tragédia, drama, comédia) e o ensaio (discurso filosófico ou teórico,
139
autobiografia, memórias, diário íntimo, correspondência, resenha, narrativa de viagem, etc.)
Além destes gêneros, há aqueles das obras ―em segundo grau‖ – comentários, ensaios críticos,
monografias, biografias, manuais, tratados, entrevistas, etc. Há uma fronteira entre o discurso
crìtico acadêmico, ou jornalìstico, e o ―ensaio‖ literário (cf. COMBE, 1992, p.14). Ou seja, na
prática, prevalece a distinção: teatro/poesia/prosa de ficção/ensaio.
A ficção narrativa é um gênero geralmente identificado com a ficção, excluindo a
poesia e o teatro, entre seus principais subgêneros estão o romance e conto. A distinção se
baseia no duplo critério implícito da narrativa e da imaginação. Narrativamente, o romance se
distingue da novela, do conto e do récit. Do ponto de vista imaginativo, estes gêneros se
distinguem, por serem ficcionais, dos relatos autobiográficos, das memórias, da história (cf.
COMBE, 1992, p.15).
Na poesia, a forma é geralmente versificada e percebida em sua disposição de início
pelo olhar (métrica, rima, jogos de sonoridade, tonalidade), embora o leitor hoje já tenha
integrado a idéia de uma poesia não versificada (poema em prosa, ou prosa/romance
poéticos). O desaparecimento do critério do verso teria se dado a partir dos anos 1860. Outros
critérios são a imagem, determinante desde Rimbaud, e a brevidade e intensidade da
linguagem. No teatro, o critério da representação, do ―espetáculo‖, é determinante; de todos
os gêneros é o que se impõe mais fortemente, por causa de sua forma dialógica.
O ensaio é sem dúvida o gênero menos claramente percebido, e a consciência o
reconhece freqüentemente por eliminação. São textos que não se inserem nem na ficção, nem
na poesia, nem no teatro. Hoje, o ensaio cumpre o papel que o romance pode ter cumprido em
suas origens – como gênero agregador dos excluídos dos "grandes gêneros", isto explica sem
dúvida sua heterogeneidade. Uma constante, contudo: o privilégio dado à reflexão, às idéias,
ao pensamento discursivo e não à imaginação, exaltada pela ficção. Esta dimensão discursiva
140
orienta confusamente a "disposição" de espírito do leitor, que mobiliza suas faculdades
intelectuais – o entendimento e a razão mais do que a imaginação (cf. COMBE, 1992, p.16).
Estas categorias genéricas, que seriam um a priori da experiência estética, participam
diretamente da identificação do texto. Qualidades como ―dramático‖ e ―poético‖ são
essencialmente intuitivas no leitor, que tem dificuldade para justificar sua percepção. Mesmo
sem conhecimentos históricos e teóricos, estas intuições têm para o leitor a evidência do
afetivo, a que a crìtica americana chama ―mood‖, a ―tonalidade afetiva‖ ou simplesmente
―tom‖, que traduz finalmente o ethos da retórica grega (cf. COMBE, 1992, p.17).
A fenomenologia da leitura é a de um aprendizado e não de uma estrutura psíquica a
priori: quem nunca leu um livro ou assistiu a uma peça de teatro não pode saber o que é o
gênero. O leitor apanha os gêneros e as tonalidades afetivas ao mesmo tempo, num
movimento dialético que vai do particular ao geral e do geral ao particular, no movimento de
um círculo hermenêutico. O inegável é que a leitura de uma obra se faz sobre um fundo de
gênero e de categorias genéricas indissociáveis (cf. COMBE, 1992, p.21-22).
Lírico, épico e dramático estão no centro do sistema de gêneros definido pela antiga
retórica, que até hoje modela nossa pré-compreensão dos gêneros e orienta deste modo nossa
leitura. A fenomenologia da abordagem imediata dos gêneros mostra, além dos gêneros
modernos propriamente ditos (ficção narrativa, poesia, teatro, ensaio), categorias genéricas
que são ―tonalidades afetivas‖ na obra: poético, lìrico, dramático, cômico, didático.
M. Bakhtine, em Esthétique de la création verbale (Gallimard, 1984, p.265), relaciona
o problema dos gêneros a uma perspectiva pragmática, sem usar este termo. Ele considera que
os domínios da atividade humana, por mais variados que sejam, ligam-se à utilização da
linguagem, sendo que cada esfera de utilização da língua elabora seus tipos relativamente
estáveis de enunciados, é o que se chamam gêneros do discurso. Trata-se de uma abordagem
extremamente interessante, pois parte da prática lingüística e do hábito de se separar e
141
agrupar, para facilitar sua compreensão, os diversos campos de atividade humana, entre eles o
domínio da fala, da escrita e da leitura. Assim, todos os gêneros literários correspondem a um
dos diversos gêneros discursivos. Além disso, a perspectiva ―dialógica‖ de Bakhtine escapa
aos esquemas gramaticais dos quais são prisioneiros muitos exegetas de Platão e Aristóteles.
Pois o ―enunciado‖, qualificado de "concreto" por Bakhtine, é encarado sempre "em
situação", ou seja, em relação com outros enunciados, que supõem eles próprios uma
comunicação dialógica do sujeito com outros sujeitos (cf. COMBE, 1992, p.91-92).
Para Todorov, os gêneros "históricos" nunca são apenas uma especificação dos
gêneros "téoricos", ele critica a concepção segundo a qual as estruturas literárias, e portanto
os próprios gêneros, se situam num nível abstrato, distanciado das obras existentes. Segundo
Todorov, pode-se dizer que uma obra manifesta um gênero, mas não que ele existe nesta obra,
sendo que não há necessidade alguma de que uma obra encarne fielmente seu gênero, há
apenas probabilidade. Uma obra pode, por exemplo, manifestar mais de uma categoria, mais
de um gênero (cf. TODOROV, 1970, p.25)
6.4 A INTERPENETRAÇÃO DOS GÊNEROS
A interpenetração de gêneros é natural, pois não há gênero totalmente puro. Pode-se
pensar que certas obras contêm o elemento genérico com mais pureza relativa do que outras,
mas não se pode dizer que nelas o "tipo" está realizado, ou que nelas o gênero em sua
plenitude e em sua história atinge sua realização ideal. Nenhum exemplar particular pode ser
considerado o tipo de um gênero, como nenhum animal individual pode ser erigido em
modelo de mamífero; conhecendo-se o conjunto das espécies é que se chega à abstração do
esquema ideal, e nas obras literárias não há uma caracterização tão simples como, por
exemplo, nos mamíferos: amamentar os filhotes (cf. VIËTOR, 1986, p.25 e 28).
A interpenetração de características genéricas está presente de alguma forma em
qualquer gênero, e pode ocorrer mesmo no interior de um subgênero, como o caso do soneto
142
no gênero lírico, conforme um exemplo apresentado por Viëtor. Ele busca definir de maneira
provisória e hipotética as particularidades do gênero soneto e afirma que na poesia, gêneros
como o soneto e a ode, e mesmo a elegia, caracterizam-se por buscarem igualmente unir
sensação e reflexão. Entretanto, ainda que haja uma única característica comum ao soneto, à
ode e à elegia, não é este ponto comum entre eles o traço constitutivo de cada um dos três
gêneros; tal característica comum seria o fato de serem ao mesmo tempo poesia da idéia e
poesia do sentimento, o fato de desenvolverem juntamente o pensamento e o sentimento a
partir do canto sobre um único objeto e na unidade do poema.
A significação mais nobre do soneto seria a expressão concisa de uma sensação forte e
de um espírito profundo dado à reflexão (a unificação do espírito e da sensação, do
pensamento e do sentimento), mas esta união de sensação e reflexão também estaria presente
na ode. Para Viëtor, o soneto resolve a tensão entre a esfera do espírito e a do sentimento
visando a uma síntese e a uma solução no termo de um percurso de posições dialéticas. A ode
resolve esta tensão tentando ultrapassá-la do ponto de vista do espírito, donde seu tom
carregado de seriedade e de dignidade. A elegia, enfim (em sua variedade moderna e
sentimental) mantém esta tensão sem resolvê-la, ela oscila entre o conflito e a harmonia, a
tranqüilidade e o movimento, mas sobre o ritmo moderado e suavizado que corresponde às
proporções do metro (cf. VIËTOR, 1986, p.20-21).
O ensaio é um gênero moderno, que escapa à tripartição clássica, voltada unicamente
para a produção mimética, e dele não trata Viëtor. Entretanto, se buscarmos um paralelo com
as formas apresentadas, observaremos que ele se aproxima, conforme a concepção tripartida,
tanto do épico quanto do lírico, uma vez que a epopéia estaria relacionada com a faculdade de
conhecer e a poesia lírica com a sensação.
Em seus ensaios, Camus realça esta imbricação entre gêneros, associando ao aspecto
épico ou reflexivo do ensaio um aspecto lírico ou poético; o ensaio estaria próximo da epopéia
143
por se relacionar com a ―faculdade de conhecer‖ e estaria igualmente próximo da lìrica, por
ser marcado pela ―sensação‖, traduzida em inúmeras figuras e elementos que remetem ao
mundo material e natural. Ou seja, Camus une a razão à sensibilidade, as faculdades humanas
de conhecer e de sentir, sem que elas se anulem mutuamente, e seus ensaios se situam entre o
desejo de conhecer e o sentimento do homem no mundo. Por isso se formos compará-lo a um
subgênero da lírica, o ensaio camusiano estaria próximo não do soneto nem da ode, porém
muito mais da elegia, em que os contrários coexistem, diferentemente também do que ocorre
num sistema, em que a tensão e a ambivalência são eliminadas, quando a tese e a antítese são
desfeitas ao se tornarem síntese, numa visão unilateral do mundo.
A célebre regra das três unidades – de tempo, espaço e ação – que os clássicos do
teatro francês codificam no século XVII e contra a qual se insurgem os românticos está latente
em Platão e Aristóteles, que privilegiam a narrativa pura. A Arte poética, de Boileau, desde a
abertura, coloca o problema da mistura dos gêneros para condená-lo em nome da unidade da
obra, cujo princípio é diretamente inspirado pela unidade de ação na tragédia. Segue-se a
lógica aristotélica, essencialista e que exige a separação dos temas, das formas, dos estilos e
dos gêneros (cf. COMBE, 1992, p.40).
Como mostrou Genette, Platão faz corresponder os ―gêneros‖ literários a ―modos‖ de
enunciação: a narrativa pura caracteriza o ditirâmbico, a imitação caracteriza a tragédia e a
comédia, o misto caracteriza a epopéia homérica. É por causa do caráter híbrido da Ilíada que
Homero é posto em questão por Platão. Em Aristóteles, a epopéia é caracterizada como o
modo narrativo, ainda que essencialmente misto ou impuro. O narrativo puro seria inexistente,
e o misto seria então o único narrativo. Assim, Platão fala em narrativo, misto e dramático; e
Aristóteles fala em dramático e narrativo, sendo este evidentemente misto (cf. GENETTE,
1986, p.104 e 106-107).
144
O sistema inicial de Aristóteles não deixava espaço algum para o poema lírico e
esquece a distinção platônica entre o modo narrativo puro, ilustrado pelo ditirâmbico, e o
modo misto, ilustrado pela epopéia. Aristóteles reconhece e valoriza o caráter misto do modo
épico, o que desaparece nele é o status de ditirâmbico e, daí, a necessidade de distinguir entre
narrativo puro e narrativo impuro. Se para Platão a epopéia se caracteriza como o modo misto,
para Aristóteles ela se caracteriza como o modo narrativo, ainda que essencialmente misto ou
impuro, o que significa que o critério de pureza não tem mais relevância.
Com relação à tragédia, a obsessão pela pureza já não existe em Aritstóteles. Para o
filósofo a ação pode ser capaz de suscitar temor e compaixão na ausência de toda
representação cênica e ao simples enunciado dos fatos, ou seja, o assunto trágico pode ser
dissociado do modo dramático e confiado à simples narração sem por causa disto tornar-se
assunto épico; o critério de pureza parece não ter mais tanta relevância (cf. GENETTE, 1986,
p.102 e 104). O que nos ficou da Poética se reduz no essencial a uma teoria da tragédia. E a
tragédia seria uma especificação temática do drama nobre, como para nós o romance policial
é uma especificação temática do romance.
Aristóteles enuncia três critérios para distinguir as ―espécies‖ de mimésis, que diferem
por três aspectos: ou imitam por meios diferentes (como o verso e a prosa), ou imitam objetos
diferentes (homens nobres ou baixos), ou imitam segundo modos diferentes (como a
encenação do teatro). Ele retoma a problemática platônica dos ―modos‖ de enunciação, que
ele reduz a dois: a narrativa (epopéia) e a imitação (teatro), excluindo o modo ―misto‖ que é a
epopéia, segundo Platão.
De acordo com D. Combe, para Aristóteles a imitação é imitação de ações humanas e,
assim, toda a teoria da tragédia e da epopéia repousa sobre o tema do mythos, da história ou
intriga, e os caracteres viriam em segundo plano. É com referência à tragédia que a epopéia é
definida – ou seja, com referência ao mythos, da qual mudam apenas o "modo" e os "meios"
145
da versificação. Por isso não há lírico em Aristóteles, por escapar ao narrativo, e não ter,
portanto, direito em poesia; menos ainda em Platão. A tríade se revela um monismo da
narrativa, que estaria na raiz da valorização ocidental dos gêneros que ―contam uma história‖
(cf. COMBE, 1992, p.37).
Platão é moralista e idealista, Aristóteles naturalista e realista, mas ambos acabam por
valorizar a tragédia como um ―modo‖ superior e ―puro‖, em detrimento da ―epopéia‖, vista
como uma forma bastarda, ou misturada, daí o caráter essencialista da poética grega. A
própria noção de gênero parece indissociável de uma preocupação com a ―pureza‖. E da
mesma forma que há nos defensores da retórica uma espécie de horror à ―mistura de gêneros‖
como necessidade de limitação das formas literárias para evitar a decadência, em autores
modernos encontramos também o sonho da poesia ou do romance puros, como em Mallarmé,
Valéry e Gide; trata-se da mesma lógica de delimitação e de ―triagem‖ que a definição
essencialista permite (cf. COMBE, 1992, p.45-46).
A literatura para Mallarmé se identifica ao ―verso‖ num sentido largo, ou seja, à
poesis, e exclui por natureza a narração, a descrição e o didatismo; a poesia deve ser ―pura‖ e
para isso ela precisa ser lírica. A oposição, em suma, do poético e do narrativo se substitui ao
mesmo tempo àquela da poesia e da prosa, e à tríade dos ―modos‖ e de seus gêneros
constituídos. Esta nova distribuição dos gêneros atesta, apesar de tudo, a perenidade da
taxonomia aristotélica. As categorias mudam um pouco, a hierarquia dos valores estéticos se
inverte, continua uma grande oposição binária – não mais entre tragédia e epopéia – mas entre
―mimesis de ação‖ (narrativa ou dramática) e a expansão lìrica da afetividade: a poesia lìrica
não relata. De Aristóteles a Mallarmé, o mythos parece sempre o critério de delimitação (cf.
COMBE, 1992, p.72-73).
Para Hegel, o gênero superior seria o drama, pois considera que a poesia dramática
reúne harmoniosamente o "objetivo" ao "subjetivo" de maneira que ela representa "a fase
146
mais elevada da poesia e da arte". Hegel busca mostrar o encaminhamento dialético que,
através dos contrários que são o épico, votado à "objetividade" do mundo, e a poesia lírica,
votada à "subjectividade" absoluta do Eu do autor, leva até a reconciliação de ambos na
poesia dramática (cf. COMBE, 1992, p.60).
Hölderlin associa a divisão aristotélica dos três gêneros – épico, trágico, lírico – à
psicologia dos heróis homéricos que ele retira da Ilíada. O homem "natural" (ou "puro") está
em harmonia como o mundo, o homem "heróico", corajoso e violento, se opõe ao contrário
ao mundo com veemência; o homem "ideal", por sua vez, de espírito propenso à síntese,
abarca o todo, em detrimento do "detalhe", daí três tons: natural, heróico e ideal. O "tom
fundamental" deve obrigatoriamente se exteriorizar por seu "outro" – o "puro" deve se
transformar em sua expressão em "ideal", o "ideal" em "heróico", o "heróico" em "puro". Ou
seja, a poética de Hölderlin está fundamentada sobre a idéia de uma mistura dos gêneros (cf.
COMBE, 1992, p.57-58).
Para Staiger o "lírico" é absolutamente refratário ao raciocínio e à argumentação – à
retórica como instrumento de persuasão (cf. COMBE, 1992, p.138). Por isso, apesar da
atitude "essencialista" que ele adota, Staiger está em desacordo com a idéia de Mallarmé, mas
também néo-clássica, de uma "pureza" dos gêneros. Ele se mostra fiel à idéia romântica da
"mistura de gêneros", da benéfica síntese que permitiria transcender a classificação
aristotélica (cf. COMBE, 1992, p.141).
Com efeito, a idéia de que o absoluto da arte é atingido pela mistura, pela síntese, é
eminentemente romântica. Os românticos defendem a mistura dos gêneros, diferentemente de
Platão e em oposição a ele e aos clássicos em geral, mas não deixam de eleger, como Platão,
um gênero, ou modo superior que permitiria englobar todos os gêneros e que seria, para a
maioria deles, a poesia, embora Hugo defenda o "drama", e A.-W. Schlegel, o romance
(claro, concebido à sua maneira, que ele qualifica precisamente de "romântico"). O tema da
147
fusão e a idéia da poesia como gênero supremo, estariam presentes até hoje, revelando a
perenidade deste modelo romântico.
Assim, no romantismo, a defesa da mistura dos gêneros está ligada à busca de uma
arte total. Na concepção romântica da poesia, o problema retórico das distinções entre os
gêneros é deslocado para um outro, filosófico, o da unidade da poesia que, forma primeira, é
também englobante. Este tema da "mistura dos gêneros", tão freqüentemente invocado pelos
românticos franceses, Hugo, em particular, seria inspirado pela reflexão do Athenäeum sobre
o projeto da "poesia romântica", chamada a abraçar todos os gêneros, separados artificialmene
pelo espírito clássico. De fato, W. A. Schlegel afirmava que, se a arte e a poesia antiga não
admitiam nunca a mistura dos gêneros heterogêneos, o espírito romântico, ao contrário, busca
uma aproximação contínua de coisas opostas, em que todas as antinomias se abraçam e se
confundem numa união estreita.
Esta aproximação incluiria, além dos "gêneros" históricos, os "modos", o verso e a
prosa, os estilos, constituindo o que chamamos hoje a "literatura", cujo conceito surgiu com o
romantismo de Iena, ela própria identificada com a filosofia. A poesia romântica seria uma
poesia universal progressiva e estaria destinada não só a reunir todos os gêneros separados da
poesia, mas também a fazer se tocarem poesia, filosofia e retórica. Donde seu objetivo de
tanto misturar quanto fundir juntamente poesia e prosa, genialidade e crítica, poesia de arte e
poesia natural (cf. COMBE, 1992, p.62).
O "terror" da vanguarda da estética romântica contra os gêneros e contra a retórica,
longe de abolir a noção de gênero, promoveu finalmente a poesia à posição de gênero superior
que englobaria todos os outros. Hugo realiza na prática esta mistura, quando seus poemas
apresentam uma tranformação estilística e, de épico se faz pouco a pouco lírico, dramático e
satírico, tornando incerto o estatuto retórico do texto em seu conjunto. Então, é a
148
predominância deste ou daquele ato, e daí, desta ou daquela função, que permitiria determinar
a identidade do texto.
Hoje se reconhece que a qualidade artística de um texto literário não equivale à pureza
com que ele reproduz um modelo de gênero. Jauss, destacando o aspecto histórico dos
gêneros, fala não tanto de ―mistura de gêneros‖, mas antes da transformação por que eles
passam. Para Jauss, ―os gêneros se transformam ao participar da história e se inscrevem na
história ao se transformarem‖ (JAUSS, 1986, p.49). Uma manifestação histórica do gênero
pode variar ao longo da história, ou seja, a estrutura do gênero pode se modificar sem que este
perca sua particularidade; assim, tanto gêneros tradicionais quanto gêneros não consagrados
configuram não uma classificação lógica, mas o sistema literário próprio a uma dada situação
histórica. Na verdade toda obra apresenta uma dominante que governa o sistema do texto, a
particularidade de um gênero aparece num conjunto de características e de procedimentos dos
quais alguns prevalecem.
Também Viëtor destaca que as três ―formas naturais elementares‖, ou ―modos
poéticos‖, estão presentes, segundo proporções que mudam, em quase todas as obras.
Nenhuma obra realiza em si o tipo em toda a sua pureza, a obra épica e a obra dramática
podem mostrar nelas elementos líricos e vice-versa. Da mesma maneira que os tipos de
comportamento humano em face do mundo podem ―atuar‖ ao mesmo tempo num ato único
realizado, os três modos poéticos podem atuar separadamente ou juntos numa mesma e única
obra. Daí a possibilidade de os gêneros se mesclarem, ainda que um prevaleça (cf. VIËTOR,
1986, p.27).
Assim, a interpenetração de gêneros é natural também porque não há gênero
totalmente puro, ou seja, obra nenhuma pode ser o tipo perfeito de um gênero, contendo
características de apenas um gênero. É o prevalecer deste ou daquele traço que, finalmente,
define a obra. Somente no nível das "categorias genéricas" se pode encarar "significações
149
ideais", e de forma alguma no nível das obras efetivas, reais, que são necessariamente
"misturadas", híbridas.
Neste sentido, mais importante do que definir em que gênero se enquadra uma obra,
como La Peste, de Camus, é interessante destacar quais as características de quais gêneros
estão nela presentes. Ou seja, ao invés de fechar a questão, dizendo que se trata de um
romance ou de uma crônica, ou de um ensaio, podemos dizer que a obra apresenta
características do romance, da crônica, da tragédia e do ensaio, e esta indefinição na
diversidade é, de fato, não apenas o elemento reivindicado pelo autor, mas o elemento com
que se faz a obra e com a qual ela adquire sua significação mais completa.
A própria noção de gênero parece às vezes se basear no postulado de que existem de
alguma maneira formas a priori, universais e intemporais, da literatura – os universais dos
quais seria possível tirar a "essência" em estado "puro". A teoria dos gêneros obedeceria por
conseguinte a uma lógica essencialista, idealista – e esta é, talvez, a razão pela qual as
vanguardas a atacaram tão violentamente. A retórica, em sua preocupação com a taxinomia, e
conseqüentemente com as distinções, privilegia de fato os gêneros "puros" em relação aos
"mistos", ou "híbridos", revelando assim seus postulados platônicos.
Se o estruturalismo escapa à história ao propor modelos abstratos, intemporais e
universais, o positivismo e o romantismo são eminentemente históricos. De fato, aos irmãos
August-Wilhelm e Friedrich Schlegel se deve a ―historicização‖ da noção de gênero. Eles,
pela primeira vez, interrogam como filósofos não só os gêneros, mas a noção mesma de
gênero, da qual são os primeiros teóricos. Fazem do conceito de gênero um elemento cultural
e não natural, sendo que tal conceito supõe a história e deve ser situado num lugar e numa
época (cf. COMBE, 1992, p.56-57).
Até a idade clássica, a poética, conforme sua etimologia, trata exclusivamente da
poesia, esta sendo identificada ao que chamarìamos hoje de ―literatura‖, cujo sentido moderno
150
só se impôs verdadeiramente no século XIX. Inicialmente, os gêneros em prosa existiam, na
forma do romance, desprezado como um gênero frívolo, mas eles têm muitas vezes um
estatuto ambìguo, em razão da amplidão do campo das ―Belles-Lettres‖, que englobam
igualmente a história, a história natural, os ensaios jurídicos e filosóficos, de maneira que só a
poesia era considerada uma arte (cf. COMBE, 1992, p.69).
Assim, a idéia de gênero ―puro‖, associada a uma visão essencialista dos gêneros, não
encontra mais respaldo nem nas teorias modernas nem na prática literária contemporânea.
Muitos textos, como Les Chants de Maldoror (1869) de Lautréamont, Moralités légendaires
(1887) de Jules Laforgue, Une Saison en enfer (1873) de Rimbaud ou o Ulisses de Joyce, e a
maioria dos textos contemporâneos, porque são essencialmente polifônicos, plurais, não têm
por objetivo pertencer a um gênero único.
A retórica antiga, que distingue cuidadosamente os ―modos‖ e ―gêneros‖ da poesia,
não pode ser imposta aos textos modernos, pois a poesia se tornou praticamente indefinível.
Mesmo se é mantida a antiga tríade aristotélica, ou pseudo-aristotélica, na modernidade há
uma mistura da poesia e da prosa. Quanto à própria distinção entre ficção e não ficção,
importante para um estudo dos gêneros, a obra moderna foge às classificações e leva ao
extremo a confusão entre o real e o imaginário, entre a autobiografia e a ficção, a despeito dos
antigos gêneros (cf. COMBE, 1992, p.154-155).
É difícil encontrar um elemento comum à "poesia" dos clássicos gregos, às "Belles-
Lettres" dos modernos e à "literatura" dos contemporâneos. As concepções genéricas da
retórica antiga foram formuladas em função de (e se aplicam a) uma determinada produção
poética que não existe mais. Se a distinção entre o épico, o lírico e o dramático conserva seu
valor, a obsessão pela pureza e a defesa de um modo ou gênero superior já não fazem sentido.
O postulado da "pureza" – da existência ideal de gêneros essenciais – é inadequado a
uma literatura em que são valorizadas a "mistura", a intertextualidade, a "mestiçagem" das
151
culturas. Vivemos o sonho simbolista da "obra total" e da "correspondência das artes", bem
mais do que a idéia "clássica" de uma distinção e de uma autonomia das artes. Desde o fim do
século XIX há uma vontade explícita de uma síntese dos gêneros que leve o autor a tomar
emprestados seus meios de uma outra arte. Hoje, as obras são identificadas mais pelo que elas
não são do que pelo que são. É pela recusa e pela transgressão que os gêneros modernos se
constituem (cf. COMBE, 1992, p.151 e 157).
Para os críticos modernos e contemporâneos, os gêneros colocam primeiramente um
problema prático de localização e de identificação, e não de definição abstrata; aqueles não se
interessam pelo gêneros senão para melhor compreender a obra, e não admitem as teorias
poéticas em que, ao contrário, a obra freqüentemente é apenas um pretexto. À perspectiva
normativa e essencialista da teoria dos gêneros, o comentador ou o crítico moderno, que tenta
buscar um caminho de leitura e de interpretação, substitui uma perspectiva empírica.
A história da noção de gênero – de Aristóteles a Jakobson – atesta pelo menos, apesar
da multiplicidade de definições, a permanência da divisão retórica entre o épico, o lírico e o
dramático. Se Genette mostrou bem que esta tripartição dos gêneros literários não figura na
Poética de Aristóteles, que se interessa na verdade apenas pela oposição entre o épico e o
dramático – entre Homero e Sófocles –, a ―trìade‖ não deixa de presidir à concepção dos
gêneros ao longo da história. Fundada sobre um mal-entendido, uma interpretação abusiva da
Poética, a tripartição é, porém, a base do edifício retórico e estético construído sobre os
gêneros. Mesmo não sendo assinada pela mão de Aristóteles, esta retórica pode, ainda assim,
ser qualificada de ―aristotélica‖ uma vez que a tradição a imputa, ainda que de maneira
indevida, a Aristóteles. Hoje o que parece ultrapassado são as definições normativas que a
tradição impôs aos gêneros, mais do que a noção mesma de gênero.
Schaeffer critica a abordagem ontológica, que "produz" a noção de um gênero não a
partir de uma rede de semelhanças existentes entre um conjunto de textos, mas a partir de um
152
suposto texto ideal (cf. SCHAEFFER, 1986, p.190). Jauss realça o aspecto sócio-histórico dos
gêneros e observa que eles não existem isoladamente, mas fazem parte do sistema literário de
uma época (cf. JAUSS, 1986, p.68-69).
Estes aspectos são levados em conta na abordagem dos gêneros conforme a
perspectiva da Análise do discurso e estão presentes nos trabalhos de Dominique
Maingueneau que trata dos gêneros no contexto da instituição discursiva.
A noção de instituição discursiva pode se empregar não só para designar a vida
literária (os artistas, os editores, os prêmios, etc.), mas também o conjunto dos quadros sociais
da atividade dita literária: as representações coletivas que são feitas dos escritores, a
legislação, as instâncias de legitimação e de regulação das produções, usos, carreiras
previsíveis, etc.
Os termos de instituição e de discursivo se recobrem reciprocamente: o discurso só se
manifesta através das instituições de fala que são os gêneros de discurso, que são pensados
através das metáforas do ritual, do contrato, da encenação; por sua vez a instituição literária é
continuamente reconfigurada pelos discursos que ela torna possíveis.18
A Análise do discurso considera que a obra se enuncia através de uma situação que
não é preestabelecida nem fixa: ela pressupõe uma cena de fala determinada que é preciso
validar através de seu próprio enunciado. Ela se legitima através do mundo que ela realiza,
sendo preciso justificar tacitamente a cena de enunciação que ela impõe de início. Assim, a
obra, através do mundo que ela configura em seu texto, reflete ao legitimá-las, as condições
de sua própria atividade enunciativa (cf. MAINGUENEAU, 2004, p.42-43).
Na Peste, o personagem Rieux constrói-se por suas atitudes tanto quanto por suas
palavras, mas ao mesmo tempo suas palavras só podem advir de alguém com atitudes como as
suas. Rieux levanta a questão da autoridade do narrador e como narrador se mostra não
18
MAINGUENEAU, Dominique. Le Discours littéraire. Armand Colin: Paris, 2004. p.42
153
totalmente responsável pela narração, mas como um enunciador que se serve de outros
documentos e de outras testemunhas, sendo que o objetivo final é conferir autoridade à
narrativa.
Na Peste há um entrelaçamento entre história e processo de narração, sendo que
freqüentemente Rieux, o narrador, comenta sua própria narrativa. Tal comentário faz parte da
obra, à qual ele está integrado. Esta imbricação dos níveis (enunciado e comentário sobre o
enunciado) ilustra a reflexividade do discurso literário, que deve motivar seu próprio quadro
de enunciação.
A epígrafe que abre La Peste destaca o aspecto alegórico da linguagem poética e
constitui a reivindicação de uma pluralidade de sentidos para a obra; tal reivindicação se
revela um mecanismo de legitimação, pois tem por efeito definir o público ―qualificado‖ para
sua leitura, o tipo de destinatário do qual é esperado o reconhecimento.
O fato de se omitir uma pertença genérica explícita, a falta de rótulo para a obra, é o
primeiro aspecto que cria um efeito de suspense e que instiga a reflexão sobre o gênero a que
pertence a obra. A pertença ao tipo de discurso literário ativa o processo hermenêutico no
leitor, pois o leva a construir subentendidos que têm a ver com referências últimas: a função
da arte, as relações entre a linguagem e o mundo, o destino do homem. Nas obras em que a
pertença genérica é definida, em que se escreve "romance" sobre a capa, institui-se de
imediato um contrato de leitura romanesca, que ativa a procura de uma intriga, de
personagens e de tudo o que geralmente compõe o universo do gênero romanesco.
A análise do discurso mostra a conexão entre o intradiscursivo e o extradiscursivo, a
intrincação de uma organização textual e de uma atividade enunciativa. A enunciação se
realiza como dispositivo de legitimação de seu próprio espaço, inclusive sobre seu espaço
institucional, ela articula a construção de um texto e de uma maneira de se inscrever no
universo social (cf. MAINGUENEAU, 2004, p.48).
154
Esta abordagem ultrapassa antigas oposições da análise de texto: a ação e a
representação, o fundo e a forma, o texto e o contexto, a produção e a recepção. Ao invés de
opor conteúdos e modos de transmissão, um interior do texto e um ambiente de práticas não
verbais, é preciso identificar um dispositivo em que a atividade enunciativa se liga a uma
maneira de dizer, um modo de circulação dos enunciados e um certo tipo de relacionamento
dos homens. Tal abordagem também vai de encontro a outras oposições redutoras: a idéia de
que "a vida" e "a obra" seriam dois planos separados dos quais o primeiro seria "a expressão"
do outro, e a vulgata estruturalista, reforçada pela tese do Contre Sainte-Beuve, de Proust, que
estabelece existir um abismo entre o eu criador e o eu social (cf. MAINGUENEAU, 2004,
p.49).
A opção genérica é uma forma de posicionamento no campo literário. Ha uma relação
entre o posicionamento, a memória intertextual e o investimento em tal ou qual gênero. Ao
escrever "ballades" Victor Hugo pretende se colocar como "romântico", contra os defensores
do classissismo, ele volta a um gênero medieval. Quando Baudelaire escreve um "pantoum",
gênero poético considerado de origem malásia, ele abre sua poesia para o além exótico, como
um poeta simbolista pleno de nostalgia por alguma "vida anterior". Ao escrever, na abertura
do Mythe de Sisyphe e de L’Homme révolté, ―ensaio‖ Camus indica de inìcio sua oposição à
forma da filosofia sistemática.
Mesmo quando a obra parece ignorar a existência de posições concorrentes à sua, seu
fechamento só pode acontecer graças a tudo aquilo do qual ela se diferencia. Para se definir,
uma obra deve intervir num certo estado da hierarquia dos gêneros. A condenação de tal ou tal
gênero não é uma decisão externa à criação propriamente dita. Cada doutrina prefere certo
gênero, assim os naturalistas se posicionam ao investirem no gênero romance. Através dos
gêneros que ele mobiliza e aqueles que ele exclui, um posicionamento determinado indica
qual é para si o exercício legítimo da literatura (cf. MAINGUENEAU, 2004, p.130).
155
A análise do discurso e as correntes pragmáticas colocaram a categoria do gênero no
centro de suas preocupações: é preciso relacionar a obra não só com temas ou mentalidades,
mas com a aparição de modalidades de comunicação específicas. Os gêneros não podem ser
considerados como "procedimentos" que o autor utilizaria como bem lhe parece para fazer
passar de formas diversas um mesmo "conteúdo" estável. O gênero faz parte do quadro de
sentido que a obra pressupõe e pretende impor, ele não é apenas embalagem ou coisa
periférica, ele não é algo exterior à obra, ele é uma das suas condições; contrariamente ao que
pensa Blanchot, para quem só importa o livro, longe dos gêneros e fora das rubricas, prosa,
poesia etc., e contrariamente ao que pensa Breton, para quem não há poema, nem literatura,
mas apenas o ―texto surrealista‖.
Para a Análise do discurso, o que o texto diz e o que ele faz em sua enunciação estão
ligados, sendo inseparáveis o dizer e o justificar seu dizer, por isso o gênero não é um quadro
contingente, mas um componente da obra. Tal abordagem considera o aspecto dinâmico das
produções e os processos de transformação e imbricação dos gêneros.
Camus adota múltiplas ―formas‖ em seus escritos: peças de teatro, ensaios, narrativas,
novelas, artigos para jornais e revistas, conferências, etc. Se tomarmos apenas os ensaios, eles
apresentam um gênero multiforme: se seguirmos a classificação da edição Gallimard (de 1962
e 1965) podemos distingui-los em ensaios literários (L’Envers et l’endroit, Noces, L’Été),
filosóficos (Le Mythe de Sisyphe, L’Homme révolté) e políticos (Lettres à um ami allemand,
Actuelles, Actuelles II, Choniques algériennes, Discours de Suède).
Camus busca reunir num mesmo texto não apenas características de gêneros diversos,
busca também aproximar campos do conhecimento aparentemente distantes, como a literatura
e a filosofia. A inovação de Camus, apesar das críticas negativas que tenha suscitado, não é
um processo revolucionário nem inédito, pois as fronteiras entre gêneros literários e entre
campos do saber não são fixas para sempre. Da mesma forma, são mutáveis as fronteiras entre
156
autores ―marginais‖ e consagrados. Como escreve Maingueneau, a história da literatura
mostra a ininterrupta legitimação de textos antes julgados defeituosos, ou, inversamente, a
deslegitimação de textos até então consagrados. A produção literária opera na fronteira entre
obras de arquivos e obras em construção (cf. MAINGUENEAU, 2004, p.67).
Desde a Antigüidade se distinguem um regime ficcional e um especulativo, mas suas
fronteiras mudam incessantemente; de fato, não há tipos de discursos puros, mas sim mistos,
dos quais o grau de "reflexão filosófica" ou de "literalidade" depende em cada momento da
definição e da forma de identidade elaboradas em função dos quadros propostos numa época
dada e em função dos remanejamentos que estes quadros vão sofrendo (cf.
MAINGUENEAU, 2004, p.52).
Para Camus, romance e ensaio não são duas "expressões" equivalentes, mas são
gêneros próximos, pois em um estão presentes características do outro. Camus é um
romancista que não se contenta em ser apenas artista, no sentido da arte como finalidade
única, pois busca ao mesmo tempo levantar uma questão ética, política ou filosófica. Foucault
aponta para esta possibilidade, de que a literatura possa conter elementos próprios da reflexão
filosófica:
J‘ai essayé de faire [...] l‘histoire non pas tant de la pensée en général que celle
de tout ce qui "contient de la pensée" dans une culture, de tout ce en quoi il y a
de la pensée. Car il y a de la pensée dans la philosophie, mais aussi dans un
roman, dans une jurisprudence, dans le droit, même dans un système
administratif, dans une prison.19
De acordo com Gaétan Picon, no momento em que Camus escreve, e desde os anos
1930, muitas obras correspondem a uma amplificação das possibilidades do romance; os
romances se ligam ao presente do escritor, a uma inquietação pessoal, à configuração de um
momento, às responsabilidades que uma consciência descobre. Como decorrência desta
transformação pela qual passa o gênero, o romance não é mais "essencialmente" uma história.
19
FOUCAULT, Michel. Dits et écrits. Gallimard: Paris, 1994. p.503
157
Ele se torna expressão da visão do escritor sobre o mundo, expressão de sua verdade interior e
dos mitos que a engrandecem. Por isso o romance se aproxima da confissão, do ensaio, do
tratado de moral e do poema. Afirma Picon:
Que le roman soit ici l'expression d'un univers plus vaste, et non
spécifiquement romanesque, un fait le prouve: tous ces écrivains,
parallèlement à leur oeuvre romanesque, poursuivent une oeuvre différente.
[...] Ce parallélisme et, peut-on dire, cette indifférence entre le roman et
l'essai, nous les retrouvons chez J.-P. Sartre, chez Albert Camus (PICON,
1976, p.53).
O romance de então, em marcante ruptura com o romance do século XIX, não se
contenta em narrar uma história, animar personagens, pintar caracteres, descrever tal ou tal
meio social; ele deseja ser um testemunho profundo sobre o homem, em sua experiência mais
universal possível, daí a aproximação entre literatura e filosofia. A literatura não é mais
apenas um jogo ou um documento, busca ser uma forma de engajamento, de liberdade e de
consciência. Trata-se de uma geração ética, provocada por uma questão: "como viver ?", que
remete ao sentido da existência − é a questão mais importante, conforme escreve Camus, no
início do Mythe de Sisyphe. Picon completa:
Il serait inexact de dire que Jean-Paul Sartre, ou Albert Camus, ou Simone
de Beauvoir n'écrivent des romans que pour incarner une image de l'homme
et une vision des choses qu'ils pensent préalablement: mais ils n'écrivent des
romans que dans la mesure où, en même temps, ils pensent. Aussi bien
voyons-nous L'Être et le Néant accompagner Les Chemins de la liberté;
Pyrrhus et Cinéas, L'Invitée; Le Mythe de Sisyphe, L'Étranger; L'Homme
révolté, La Peste. Nous sommes en présence d'une littérature de lucidité, et
non plus d'imagination (cf. PICON, 1976, p.107).
Da mesma forma que a narrativa de ficção de Camus, em particular La Peste,
aproxima-se do ensaio pela dimensão ética e reflexiva, assim também L'Homme révolté é
pleno de figuras e imagens características dos textos poéticos. Isto pareceu a muitos críticos
do autor uma falta grave, subjetivismo, ausência de rigor conceitual e bibliográfico e
proximidade em relação à escrita poética, objeções que se sintetizaram na acusação de
incompetência filosófica. Em seu ensaio Camus adotou um procedimento poético, distante da
158
atitude sistemática, e recebeu os maiores ataques de Sartre. Na verdade, personificado nos
dois escritores, temos um conflito de duas tradições filosóficas: Sartre é mais ideológico e
dogmático, Camus, mais pragmático e moralista.
Com efeito, em L’Homme revolté, Camus procura interpretar filósofos como Platão,
Epicuro, Lucrécio, Hegel, Marx ou Nietzsche, mas analisa igualmente literatos como
Lautréamont, os surrealistas e Sade. O ensaio, como gênero de passagem entre o não-ficcional
e o ficcional, não se submete a uma forma fixa; nele as imagens poéticas são abundantes:
Autour de ce brasier dévorant, des combats d'ombres s'agitent un moment,
puis disparaissent, et des aveugles, touchant leurs paupières, s'écrient que
ceci est l'histoire. [...] L'arc se tord, le bois crie. Au sommet de la plus haute
tension va jaillir l'élan d'une droite flèche, du trait le plus dur et le plus libre
(CAMUS, 1965, p.708-709).
Ainda hoje, a forma hegemônica do escrito filosófico parece ser a exposição, a
dissertação, em tratados ou sistemas. Entretanto, ao longo dos séculos, os filósofos
escreveram Diálogos, Elementos, Problemas, Introduções (como o Discours de la Méthode).
Conforme Descombes, poderiam escrever igualmente romances, dramas, confissões e cantos
(cf. DESCOMBES, 1987, p.24).
Na verdade, é este o procedimento de Camus, ele fala de temas filosóficos, mas fala
enquanto romancista e não emprega conceitos, mas sobretudo imagens. Trata-se de uma
filosofia em sua vertente de ―sabedoria‖ (diferente de ciência ou conhecimento, pois supõe
uma relação entre a reflexão teórica e a existência concreta) que Camus reconheceu nos
gregos. Ele não cita Platão nem Aristóteles, mas os pré-socráticos, que falam por imagens e
por mitos, porque o mito é mais evocador e mais carregado de sentidos. O mito, como as
imagens poéticas, apresenta múltiplos sentidos, ao passo que o conceito apresenta apenas um.
Se para Hegel é possível atribuir um sentido unívoco a uma realidade, para Camus o sentido
só é atingido na multiplicidade: uma mesma realidade é carregada de muitíssimas
significações.
159
Camus não teoriza a questão dos gêneros, não os aborda teoricamente. Mas ante este
problema a posição do autor é bastante moderada, ele não critica violentamente as
classificações nem a tripartição clássica, mas tampouco se limita a reproduzir um gênero,
antes escreve promovendo um processo de inovação, através de uma mistura, num mesmo
texto, de características próprias de gêneros diversos; Camus associa o lírico ao épico e ao
dramático, os três gêneros que exprimem, segundo Viëtor, três ―atitudes fundamentais‖,
respectivamente: sentimento, conhecimento, vontade e ação.
Assim, se Camus parece adotar um procedimento romântico, pela mistura de gêneros,
ele, na verdade, é crítico de muitos aspectos da estética romântica, e sua subversão no trato
com os gêneros não se faz em nome do privilégio, da exclusividade ou supremacia do autor
ante as normas. Camus não busca uma transgressão radical, nem atribui, como Gide, o nome
de um gênero, como um rótulo, a uma obra que parece não comportar as características de tal
gênero. La Peste, por exemplo, não traz nenhum subtítulo metalingüístico, nem romance, nem
narrativa, nem ficção, embora jogue com as classificações genéricas. E o tom solene da
narrativa corresponde ao assunto grave da Peste, em conformidade com a idéia de adequação,
típica da tradição retórica ciceroniana, e com a idéia de harmonia, presente em Virgílio.
Camus tampouco busca renovar gêneros arcaicos, como faz Gide ao retomar a sotie, o
que ele faz é misturar deliberadamente, num mesmo texto, características do lírico, do épico e
da reflexão retórica, ainda que em tal texto prevaleça uma forma genérica.
A mistura feita por Camus se deve a razões próprias, como uma ressonância de suas
reflexões filosóficas, que criticam o dualismo radical, a separação estanque entre as várias
áreas do conhecimento humano e a crença no domínio absoluto da razão separada das
emoções, das sensações e dos sentimentos. O autor defende e pratica uma mistura de gêneros
e de campos, mas numa atitude que não ostenta o espírito de rebeldia romântica,
diferentemente de Hugo e Breton, contra as classificações e nomenclaturas genéricas. Ele é
160
crítico das classificações fechadas e redutoras, mas é igualmente afastado da tradição
romântica que privilegia a singularidade e a inspiração criadora do artista; pois se situa num
contexto diferente daquele da segunda metade do século XIX, depois de Baudelaire, em que a
transgressão e a síntese dos gêneros são elevadas à posição de princípio de criação. De toda
forma, os textos de Camus, como muitos textos modernos e contemporâneos, seguem a
tendência própria das obras literárias importantes e ambiciosas, de serem mistas por natureza,
enquanto que a paraliteratura (como o romance água-com-açúcar e as telenovelas) respeita
fielmente as definições e as limitações genéricas.
É simplista a ontologia dualista do romantismo, ao considerar que na Antigüidade
prevalece o objetivismo, o gênero dominando sobre as obras individuais, e que posteriormente
prevalece o subjetivismo, a subjetividade dominando sobre a objetividade. Os gêneros não são
sinônimo de limitação, mas configuram um círculo de possibilidades e, como afirma Viëtor,
no gênero conteúdo e forma, ou estrutura particular do texto, estão sempre relacionados.
Assim, ao se optar por um gênero ocorre uma mistura de limitação e de liberdade, o que vale
para toda figuração poética.
Como Nietzsche e Wittgenstein escrevem por aforismas, e Bataille escreve por
fragmentos, numa escrita próxima daquela de Pascal, Camus escreve por ensaios, que não são
um procedimento provisório, mas um gênero escolhido deliberadamente, pois é o único
adequado a seu pensamento. As escolhas de Camus não se fazem ao acaso; a opção pelo
ensaio, para os textos filosóficos, é determinada pelo que ele deseja exprimir, o mesmo
―conteúdo‖ seria outro se fosse expresso num tratado, se fosse adotada uma apresentação
sistemática demais a filosofia do Absurdo e da Revolta seria deformada.
161
7 CONCLUSÃO, AINDA UMA LIÇÃO DE ÉTICA
Durante um Colóquio Internacional − "Albert Camus et les lettres algériennes: l'espace
de l'interdiscours", organizado pela Professora Afifa Bererhi, da Universidade de Argel, em
Argel e Tipasa, de 24 a 28 de abril de 2006 − do qual tivemos a satisfação de participar, após
uma sessão de comunicações, num momento dedicado aos debates, um aluno da Universidade
de Argel fez uma intervenção referindo-se ao escritor num tom extremamente hostil. Esta não
foi, aliás, a única colocação em tom muito negativo; houve inúmeras outras durante as
conferências, o que nos surpreendeu bastante. As críticas ferozes eram rebatidas e
acompanhadas de defesas e elogios, o que deu aos debates e discussões em geral uma calorosa
participação. Isto mostrou de que maneira Camus suscita reações diversas e mesmo opostas,
mas não deixa o leitor ou estudioso indiferente. No auge de conflitos como a Segunda Guerra
e o movimento de independência da Argélia, Camus sofreu muitas vezes ataques, geralmente
na impressa, que se baseavam mais em sua vida particular ou posições políticas e
"ideológicas" do que no conteúdo dos seus textos literários, isto ainda se revelou no Colóquio
de 2006: grande parte das críticas, mais do que literárias ou filosóficas, dirigiam-se a sua
oposição à proposta de independência total da Argélia em relação à França, nos anos 1950.
O aluno argelino a que nos referimos, no momento em que a discussão girava em
torno do engajamento social de Camus, levantou a questão: que espécie de autor engajado é
este que, agraciado com o Prêmio Nobel, não só o aceitou como o usou na compra de uma
bela casa e de um belo carro? A atitude de Camus foi, portanto, encarada como a de um
adepto e fiel seguidor do sistema capitalista, ele que soubera destacar o que o socialismo, o
sindicalismo e o cooperativismo ofereciam como crítica e alternativa às injustiças decorrentes
do "império do dinheiro". Na verdade, Camus, até então podia ser considerado um escritor
"pobre", que se mantinha com seu trabalho de jornalista e nunca tivera com o dinheiro uma
relação semelhante àquela de um burguês.
162
Camus nasceu pobre e não miserável, a miséria pode tornar vil quando se torna
ressentimento. O miserável que inveja o rico e que lhe tem ódio pode se identificar a seu
agressor. A riqueza excessiva gera a miséria extrema, ambas são sub-produtos da economia
capitalista e do despotismo do dinheiro. Camus, pelo menos enquanto criança, viveu numa
época e num país em que se podia viver pobre e feliz. Talvez por isso mesmo ele rejeite o
conceito deturpado de ―luta de classes‖, deturpado quando o combate pela justiça social se
reduz a conquistar o poder. Desta ―luta‖, em que se limita a inverter os tiranos, Camus
guardou apenas a revolta contra a injustiça, rejeitando o ressentimento dos escravos, que
desejam tomar o lugar de seus senhores para ultrapassá-los em despotismo.
Camus nunca confundiu a pobreza com a condição econômica e social do proletariado,
porque ela pode ser uma força moral que gera e alimenta a revolta pela justiça, ele nunca
deixou de destacar as lições que aprendeu com sua família e no seu bairro, pobres, sem glória
e anônimos. Entretanto, nunca defendeu a pobreza em si enquanto um valor ético, pois ela não
pode ser considerada como tal. Não podemos deixar de lembrar a expressão bem humorada e
realista de nosso carnavalesco brasileiro, Joãozinho Trinta, quando afirma que pobre não
gosta de pobreza, gosta de luxo.
A defesa dos pobres implica o combate da pobreza e da miséria. Os movimentos
sociais, sejam eles de origem religiosa ou laica, que, de uma forma ou outra, combatem as
injustiças, as desigualdades e a miséria, devem ser conscientes de que, ao contrário de
buscarem se perpetuar, devem buscar fazer com que desapareçam, ou seja, provocarem
alguma mudança na sociedade, de forma que já não sejam necessários.
Outros participantes do Colóquio esclareceram que a casa adquirida por Camus foi
destinada a sua mãe, que nela permaneceu pouco tempo por não se adaptar à vida na França, e
que grande parte da soma recebida pelo autor foi revertida a jornais e movimentos sociais. Há
ainda o testemunho de contemporâneos de Camus, amigos seus, que revelam o
163
desprendimento e a generosidade como marcas do caráter do autor. Tal generosidade seria
característica de sua ética e fruto de seu amor pela vida, como afirma J. Chabot: "O amor pela
vida é pai da generosidade: basta, com efeito, ter recebido muito dela para que se seja
espontaneamente pronto a oferecer" (cf. CHABOT, 2002, p.86). No Premier homme, é feito
um elogio do tio Étienne, como um bravo, amado pelos companheiros por seu bom humor e
sua generosidade:
[...] il y avait le fait que Joséphin gagnait un peu plus d‘argent qu‘Etienne et
que la prodigalité est toujours plus facile, dans le dénuement. Rares sont
ceux qui continuent d‘être prodigues après en avoir acquis les moyens.
Ceux-là sont les rois de la vie qu‘il faut saluer bien bas (CAMUS, 1995,
p.113).
Participantes do Colóquio referiram-se ainda à reação de Sartre, subentendida no
comentário do aluno, que justificou sua recusa do prêmio Nobel como uma não-submissão à
sociedade burguesa. Questão bastante complexa, pois, numa situação extremamente
confortável, Sartre não necessitava de tais recursos e com sua recusa acabou usufruindo de um
capital social, de que gostava bastante, e que veio em nome de uma repercussão de sua atitude
ainda mais ampla na mídia.
O questionamento do aluno argelino é paradigmático de uma atitude bastante comum
em face de autores engajados, e particularmente presente no caso de Camus. Para além da
aceitação ou recusa do prêmio Nobel, e para além do destino que o autor deu à soma recebida,
analisam-se as atitudes do autor como uma forma de testemunho de opiniões que ele defende
em seus escritos ou de coerência com uma determinada ideologia. E se há uma cobrança por
parte dos leitores em relação ao autor é porque suas idéias giram em torno de uma discussão
ética, e a ética se traduz não apenas num código de leis, mas, acima de tudo, numa forma de
comportamento ou atitude prática. Junto com o engajamento e os posicionamentos políticos e
sociais, os próprios textos defendem uma atitude ética e sugerem uma cobrança por parte do
público. Daí que a relação entre biografia e bibliografia, entre vida social dos autores e seus
164
escritos, pode ser muito mais complexa do que se imagina, sobretudo em se tratando de
autores engajados. Quem se acomoda no quietismo não se submete a críticas, mas quem se
engaja socialmente se expõe. Camus nunca temeu as críticas e conflitos decorrentes de suas
tomadas de posição, embora − pouco afeito às polêmicas − se sentisse extremamente
desconfortável com elas e com toda situação de conflito.
Pode-se dizer que o valor de uma idéia nem sempre está diretamente relacionado com
a força dos argumentos com que ela é defendida. A propaganda comercial, por exemplo,
explora a língua, os gostos, as opiniões, a psicologia, etc, e mobiliza todos os recursos
persuasivos a fim de criar necessidades artificiais, propagar o consumismo e obter o lucro. Ou
ainda, há o caso de algumas igrejas cristãs evangélicas: o fanatismo proselitista com que seus
adeptos as defendem tem pouco ou quase nada a ver com o ―espìrito‖ do cristianismo; ao
contrário, tais seitas se baseiam numa leitura fundamentalista e particularista da Bíblia e
funcionam como empresas que, servindo-se da idéia de divindade e explorando a ignorância e
a miséria alheias, colhem os níqueis dos mais pobres para alimentar a ganância de
autodenominados bispos ou fundadores, charlatões e mercenários.
Podemos lembrar ainda o caso dos homens-bombas muçulmanos, cuja atitude não
corresponde ao ―espìrito‖ do Islamismo original, mas suscita uma aura de heroísmo e, em
conseqüência uma multidão de seguidores. Lavagem cerebral? Proposta de salvação para os
desesperados? A verdade é que, como se afirma no provérbio popular, os exemplos arrastam.
O testemunho e a coerência oferecem altíssima força de persuasão, ainda que esta possa se
basear mais na emoção ou no sentimento do que na ponderação razoável. Não há como negar
que a coerência individual entre as idéias e as atitudes é um aspecto essencial de uma posição
legitimamente ética, e, apesar das críticas recebidas, Camus foi extremamente coerente com a
defesa dos valores humanistas. Mesmo em seus textos, busca um equilíbrio, ou coerência,
165
entre o que diz e o que é; referindo-se ao projeto do Premier homme, seu último texto
publicado, ele escreve:
Simplement, le jour où l‘équilibre s‘établira entre ce que je suis et ce que je
dis, ce jour-là, peut-être, et j‘ose à peine l‘écrire, je pourrai bâtir l‘oeuvre
dont je rêve. Ce que j‘ai voulu dire ici, c‘est qu‘elle ressemblera à L‘Envers
et l‘Endroit d‘une façon ou d‘une autre et qu‘elle parlera d‘une certaine
forme d‘amour (CAMUS, 1965, p.12).
A questão ética está relacionada com a questão das religiões. De fato, as religiões
consideradas principais, que vão além de um conjunto de crendices ou "filosofias" de mundo,
e que coincidem com as três religiões monoteístas, o judaísmo, o cristianismo e o islamismo,
apresentam três aspectos básicos: junto com um conjunto de rituais, chamados no catolicismo,
por exemplo, de liturgia, e com um conjunto de verdades sistematizadas (geralmente
fundamentadas num livro considerado sagrado e revelado), os dogmas, há um conjunto de
preceitos que se devem seguir na vida prática, ou seja, uma moral.
Teoricamente, essas grandes religiões apresentam uma "visão de mundo"
extremamente ética: um ser supremo, acima de todos os humanos, que se propõe como um pai
bom e não como um ditador, todos os seres humanos como essencialmente iguais, donde
todos passíveis dos mesmos direitos e deveres, e o mundo natural, com as coisas materiais em
geral, submisso aos homens; submissão que não implica evidentemente destruição. Em suas
configurações históricas, entretanto, a prática religiosa das grandes religiões não corresponde
à ideologia propagada. Assim, por exemplo, Jerusalém, talvez a cidade mais importante do
mundo, sede das três grandes religiões, não é um local onde os irmãos se encontram, mas um
palco constante de guerras, ao longo da história, onde os homens se enfrentam como inimigos
ferozes.
Camus, com relação à questão da crença religiosa é muito claro: não vê a possibilidade
de afirmar nem negar a existência de Deus, não se inquieta com tal questão e, pessoalmente,
não crê. Mais do que os sentimentos e as instituições religiosos em si, Camus critica a visão
166
estreita e redutora da vida e do mundo, critica todo dogmatismo, toda pretensão à totalidade e
tudo o que pretende dar um sentido à vida, ou seja, toda idéia que se impõe como superior à
dignidade humana. Camus não aceita a idéia segundo a qual aquilo que dá sentido à vida é
mais importante do que a própria vida, ao contrário, as religiões e instituições em geral é que
deveriam ser medidas pelo lugar dado à vida, valor básico de sua ética.
A atitude de Camus, quando diz achar-se incapaz de fechar questão sobre a existência
de Deus, corresponde a uma atitude filosófica bastante razoável, pois do ponto de vista
estritamente racional, da mesma forma que não se pode ―provar‖ a existência de Deus,
também não se pode ―provar‖ sua inexistência. Trata-se de distinguir aquilo que, nas religiões
ou não, é irracional, que nega a razão ou vai contra ela, daquilo que supera os limites da razão
e vai além do entendimento humano. Adotar a perspectiva religiosa é de certa forma admitir a
limitação do conhecimento humano, pois a partir do momento em que se supõe que Deus é
mais que o homem, não se pode esperar que o homem tenha toda a compreensão da
divindade.
Ao lado da questão da existência de Deus, podemos lembrar a questão da presença do
mal no mundo, mal não como figura imaginária, mas sim como sofrimento do homem e como
aquilo que vai contra sua grandeza e felicidade. Tal questão, que inquietou a existência de
Agostinho de Hipona, inquietou igualmente a reflexão Camusiana: "Le Christ est venu
résoudre deux problèmes principaux, le mal et la mort, qui sont précisément les problèmes des
révoltés." (CAMUS, 1965, p.444). A estes e a outros problemas o cristianismo aplica o termo
Mistério, que, numa visão aberta, pode ser encarado não como um muro de encontro à face do
homem que busca entender, mas como um mar que se abre ante seus olhos, o qual, por mais
que nade, não poderá atravessar. Assim, podemos criar uma correlação entre, de um lado, a
concepção de um conhecimento limitado e a problemática do Absurdo em Camus, e de outro,
a visão religiosa do mistério. São espaços em aberto, que, entretanto, não podem ser
167
preenchidos com qualquer coisa, ou seja, não podemos atribuir a Camus um sentimento
religioso que ele não tinha. Para Camus, o "salto kierkegaardiano", como toda forma de
esperança metafísica, é um suicídio filosófico.
Na verdade, avesso a questões ontológicas excessivamente abstratas e crescido num
ambiente "naturalmente" alheio à prática religiosa, Camus tampouco foi um "ateu praticante",
ou seja, não se empenhou num militante combate à idéia de Deus e das religiões, como o
fizeram, por exemplo, Nietzsche e Feuerbach. Com efeito, paradoxalmente, a idéia de uma
negação constante da divindade pode assumir ares de religião e corresponder a atitudes
religiosas. Até mesmo uma posição filosófica pode equivaler a uma religião, quando se adota
uma visão dogmática, irredutível ou fechada do universo, que passa a ser explicado ou
encarado sob a perspectiva de uma idéia única e estática.
A. Comte começa por negar a idéia religiosa, como estágio primitivo do entendimento
humano e termina por fundar uma religião... sem Deus. Há ainda o caso de evangélicos que,
mesmo considerando a existência de Deus, desenvolvem um discurso maniqueísta
fundamentado na existência do mal, personificado numa imagem mais folclórica e
supersticiosa do que religiosa, e tratam mais do mal, encarado sob uma visão radicalmente
dualista, do que de Deus. No contexto de um discurso de embromação, de falsas possessões e
falsas curas, tal figura maléfica serve de argumento com respaldo no imaginário e no medo
dos adeptos. O paradoxo é que, na guerra das religiões, este cristianismo das seitas repete,
com alguns séculos de atraso, as práticas do cristianismo católico medieval, que as seitas
criticam e imitam. Trata-se de visões religiosas que instrumentalizam o ser humano e
desprezam o valor da vida na terra, em nome de uma existência no mundo do além, visões,
por isso mesmo, não aceitas por Camus nem por tantos outros pensadores.
Camus, de acordo com seu princípio de tolerância, sabia dialogar com religiosos,
tendo feito uma conferência, em 1948, no convento dos dominicanos de Latour-Maubourg,
168
intitulada "L'incroyant et les chrétiens". Mesmo na Peste, em que um dos personagens é um
padre, a imitação do estilo eclesiástico edificante é uma obra prima de humor, mas não de
ironia maldosa. À época em que escrevia a Peste, Camus devia esperar da Igreja posições
firmes contra o anti-semitismo e a violência generalizada, e via muitas vezes, ao contrário, a
hierarquia eclesiástica fazer-lhe vista grossa. Entretanto, Camus é complacente, na Peste, com
o representante da Igreja, porque sabia que, na prática, também havia católicos no bom
caminho. Camus poupa o religioso de uma crítica maior e o coloca finalmente como um
combatente contra a peste, em memória dos religiosos que foram, a seu lado, resistentes ao
nazismo e à Ocupação.
De fato, no âmbito das religiões, muitas vezes os extremos coexistem lado a lado: a
ética com o moralismo, a virtude com a hipocrisia; a visão mais apurada do humanismo, que
salvaguarda tudo o que preserva e dignifica o homem, com a superstição, o fanatismo e a
exploração.
Camus não tem nada de um anticlerical fanático e intolerante. Daí que não é correto
nem honesto com o escritor forçar uma interpretação para poder afirmar que ele estava prestes
a se converter às vésperas de sua morte. São atitudes de representantes de religiões
proselitistas que carecem de bons exemplos de mudanças radicais para serem apresentados
aos adeptos, reais ou em potência. A obra Albert Camus e o teólogo20
parece-nos um caso
deste, uma tentativa de cristianizar, post mortem e forçadamente, o autor.
No livro, o ministro da Igreja Americana de Paris, Howard Mumma, busca mostrar
que, em seus últimos anos de vida, Camus manifestava inquietações religiosas. Ao ministro
Camus teria se expresso nos seguintes termos:
– Sim, você está certo, Howard. A razão pela qual tenho vindo à igreja é
porque estou procurando. Estou quase em uma peregrinação, buscando algo
para preencher o vazio que estou experimentando, e ninguém sabe. [...]
existe algo que pode trazer novo significado a minha vida. Eu certamente
20
MUMMA, Howard. Albert Camus e o teólogo. São Paulo, Carrenho Editorial, 2002.
169
não tenho esse algo, mas ele está lá. Nas manhãs de domingo, ouço que a
resposta é Deus (MUMMA, 2002, p.104-105).
Camus estaria disposto a receber o batismo e só não o teria feito por temer a opinião
publica, é o que H. Mumma deixa transparecer em seu livro: ―Eu não podia culpá-lo pela
hesitação. Camus era um dos franceses vivos mais famosos na sua época. [...] Uma
demonstração pública dessa espécie deixaria o país alvoroçado e, sem dúvida, muitos de seus
fãs sentiriam-se traìdos‖ (MUMMA, 2002, p.110).
Contrário ao sentimento religioso, ao dogmatismo e à metafísica da abstração, Camus
não se preocupa em decifrar a essência última do homem, e muito menos de Deus; ele parte
da realidade, de uma situação de maldade, em forma de limitação humana, em forma de
injustiça e de miséria, muitas vezes causada pelo próprio homem: ―L‘important n‘est donc pas
encore de remonter à la racine des choses, mais, le monde étant ce qu‘il est, de savoir
comment s‘y conduire" (CAMUS, 1965, p.414).
Mais do que a religião em si, e mais do que o marxismo em si, Camus critica o
pensamento totalitário, ou seja, dogmático, abstrato e que se supõe acima de tudo e de todos; é
por isso mesmo que emprega deliberadamente termos do vocabulário religioso para tratar da
revolta degenerada em revolução violenta. Como afirma Camus, a política não é religião ou,
se for, será uma inquisição (cf. CAMUS, 1965, p.705).
On ne s'étonnera donc pas qu'il [Marx] ait pu mêler dans sa doctrine la
méthode critique la plus valable et le messianisme utopique le plus
contestable. [...] Depuis la mort de Marx, en tout cas, une minorité de
disciples sont restés fidèles à sa méthode. Les marxistes qui ont fait l'histoire
se sont emparés, au contraire, de la prophétie, et des aspects apocalyptiques
de la doctrine, pour réaliser une révolution marxiste (CAMUS, 1965, p.593).
É o paradoxo da religião ideológica ou política, sem Deus, mas não menos dogmática
e repressora: ―Tuer la liberté pour faire régner la justice, revient à réhabiliter la notion de
grâce sans l'intercession divine‖ (CAMUS, 1965, p.694). Tal paradoxo estaria no centro da
aberração e das atrocidades nazistas:
170
Les crimes hitlériens, et parmi eux le massacre des Juifs, sont sans
équivalent dans l'histoire parce que l'histoire ne rapporte aucun exemple
qu'une doctrine de destruction aussi totale ait jamais pu s'emparer des leviers
de commande d'une nation civilisée. Mais surtout, pour la première fois dans
l'histoire, des hommes de gouvernement ont appliqué leurs immenses forces
à instaurer une mystique en dehors de toute morale. [...] La révolution
nihiliste s'est exprimée historiquement dans la religion hitlérienne (CAMUS,
1965, p.590).
Diante da situação absurda, Camus vê na Revolta o primeiro passo para buscar mudar
a face deste mundo, donde sua ética laica e humana. O fato de ser um autor ainda muito lido e
estudado, tendo grande importância na Argélia, onde é uma referência, na França e em todo o
mundo, mostra a sua atualidade e o vigor da sua produção. Talvez seja a questão ética aquela
em que o autor continua mais marcante, oferecendo elementos para a discussão de questões da
contemporaneidade.
Em Albert Camus "la pensée de midi"21
, um dos trabalhos mais originais e
aprofundados sobre Camus, dentre os publicados nos últimos tempos, Jacques Chabot aborda
de alguma forma todas as obras do escritor, numa ordem inversa à cronologia de publicação,
começando por Le Premier homme. O livro traz, na capa, muito adequadamente ao que nele
se apresenta, uma foto de Camus descontraído, sereno e sorridente. Das inúmeras
considerações pertinentes no livro de J. Chabot, destacamos duas que consideramos
essenciais. O primeiro aspecto diz respeito à questão do "Pensamento mediterrâneo" (La
Pensée de midi), subtítulo da obra de Chabot, homônimo do último capítulo de L'Homme
révolté. O tema (que às vezes assume a forma de um "tom", de um ethos, de uma visão de
mundo ou mesmo de um traço de personalidade) perpassa, na verdade, não apenas as obras de
reflexão de Camus, mas também as obras literárias, estando presente desde as primeiras,
como L'Envers et l'endroit até as últimas, com La Chute e Le Premier homme.
21
CHABOT, Jacques. Albert Camus "la pensée de midi". Aix-en-Provence: Édisud, 2002.
171
Quanto à segunda questão merecedora de destaque, trata-se do "processo" que Camus
sofreu, e que assumiu às vezes a dimensão de um linchamento intelectual, sobretudo na
seqüência imediata da publicação de L'Homme révolté. Consideramos que tal processo é
decorrente do aspecto "marginal" ou paratópico de Camus enquanto escritor ausente das
instituições universitárias, da sua produção filosófica como um todo, que reflete aquilo que
ele considera o que deve ser a filosofia (cujo cerne é uma discussão ética) e, finalmente,
decorrente das posições assumidas pelo autor ante os totalitarismos políticos e ideológicos do
século XX. Atitudes e opiniões filosóficas que se enraízam numa mesma visão ética.
Jacques Chabot observa que a maior crítica de Nietzsche dirigida aos cristãos, ele que
entretanto não poupou nem os dogmas nem a moral do cristianismo, é feita na seguinte
pergunta irônica: ―Por que eles não têm um ar de salvação?" (cf. CHABOT, 2002, p.172) O
contexto em que Chabot evoca a crítica nietzschiana é aquele do mito: Camus já afirmara que
os mitos não têm vida própria, sendo preciso que a imaginação e a vida os encarnem. Se os
cristãos são tristes e ranzinzas é porque não encarnam o mito do cristianismo, não fazem
como seu Deus, ou seja, não vivem na imitação do Cristo. A prova de que o mito está vivo é
que um único homem, ou mais ainda todo um povo, o faça viver atualmente, no duplo sentido
do termo, em ato e no presente. O resto deve ir para o museu das ideologias. Neste sentido, a
crítica de Nietzsche pode ser expressa da seguinte forma: por que a alegria da salvação dos
cristãos e a presença do Salvador neles não são visíveis em seus rostos? Questão de coerência
e de alegria de viver.
Em Camus, embora fosse ele ateu e não nutrisse forma alguma de esperança
metafísica, la pensée de midi traduz a alegria de viver sob o sol, expressa num modus vivendi,
que por sua vez se reflete em suas obras, sob a forma de uma visão não ingênua, mas otimista
do homem e da vida humana. Camus busca descrever a vida feliz, por mais tênue que seja esta
felicidade, para vivê-la em dobro, carnal e espiritualmente, e para defendê-la das sutis e
172
grosseiras seduções da morte. Ele aposta na vida terrestre sem se preocupar com o Ser eterno,
da religião, nem com o nada, da filosofia niilista, porque ambos são juntos o mesmo avesso
do qual a existência humana é o direito.
L'Envers et l'endroit, primeira coletânea de ensaios do autor, mostra claramente, desde
o título, a ambigüidade de toda existência, com seu sol e sua sombra. Entretanto, a claridade
presente nas obras de Camus dá testemunho da vida, mesmo com a presença da morte, mesmo
com o Absurdo que dela faz parte, mesmo com suas contradições ilógicas e surpreendentes: o
avesso e o direito na existência humana celebram sem fim suas núpcias. Aliás, Camus não
recusa a morte; recusa os álibis que os homens inventam para não olhá-la nos olhos.
Se ele ama apaixonadamente a vida, é porque a acha bela e porque sabe que ela não é
para sempre, pois de uma hora para outra pode abandoná-lo. E nesta questão, de vida e de
amor, a lógica nada pode fazer, daí o sentimento, e não o conceito, de Absurdo.
Em L'Étranger, em que haveria uma ausência de verdadeiras relações, Meursault
conserva uma profunda ligação com o mundo material e natural porque, mesmo não sendo
razoável, este mundo permanece uma presença, diferentemente dos homens que são estranhos
uns aos outros − a começar pelo próprio Meursault, que parece não ser realmente "presente"
para ninguém. Em La Chute transparece uma impressão do autor sobre a cidade de Praga, da
qual ele não gostou e a qual ele marcou, juntamente com todos os países do Norte, com um
fantasma de morte, por causa do frio, ou antes, da frieza, tanto sensível quanto afetiva.
Camus pode ser considerado um espìrito mediterrâneo, um ―escritor do sul‖. Na
conclusão de L'Homme révolté ele opõe ao niilismo La pensée de midi, que já estava em
germe numa conferência pronunciada para a inauguração da "Maison de la culture" de Argel,
em 8 de fevereiro de 1937: ―La nouvelle culture méditerranéenne‖ (CAMUS, 1965,1321), aì
já se percebe de que maneira o pensamento de Camus busca ser libertário, ateniense e
mediterrâneo.
173
Camus cria uma espécie de cosmogonia de tipo pré-socrática na qual ele funda sua
moral, esta cosmogonia é resolutamente contra a dialética. Camus afirma, de fato, a guerra
dos contrários no seio da natureza, e não a resolução lógica e histórica das contradições
humanas. Ante a luta mortal das consciências entregues às contradições da dominação e da
servidão, ele mantém a convicção de um acordo certo com a Natureza das coisas e de um
amor possível entre os seres que participam da natureza humana.
Em Le Premier homme, encontramos a passagem seguinte, que resume bem tanto a
ética quanto a estética de Camus, ambas baseadas em seu mito do mediterrâneo: ―je n‘ai pas
encore parlé du soleil. De même que j‘ai mis longtemps à comprendre mon attachement et
mon amour pour la pauvreté où s‘est passée mon enfance, c‘est maintenant seulement que
j‘entrevois la leçon du soleil et des pays qui m‘ont vu naître‖ (CAMUS, 1995, p.38). O mito
estético da Mère Méditerranée se associa, para Camus, ao mito ético do povo mediterrâneo,
ele não professa um estoicismo aristocrático, por fidelidade ao hedonismo lúcido e corajoso
de seus ancestrais populares. Camus afirma que precisamos imaginar Sísifo feliz, igualmente
podemos imaginar feliz, apesar de tudo, este filósofo sorridente que a absurdidade humana
não podia impedir nem de celebrar suas "núpcias com o mundo", nem de partilhar a
fraternidade da Revolta com os outros homens.
De fato, em suas obras, Camus rejeita a crítica triste vinda do ressentimento contra a
vida e prefere a ela o discernimento ativo, inseparável da vontade de viver contra tudo o que
diminui a vida ao entristecê-la. Conforme Chabot, a crítica vinda do ressentimento conduz ao
niilismo, ao qual se opõe radicalmente o humanismo de Camus (cf. CHABOT, 2002, p.88).
De fato, até mesmo a moral de Camus, inicialmente aprendida com os romances humanistas
lidos em sua juventude, que continuaram a tradição do Romantismo, e com seus semelhantes
de Argel, para os quais a pobreza não era sinônimo de miséria nem de tristeza, é uma moral
do não-ressentimento, da coragem e da alegria.
174
―Ce contrepoids, cet esprit qui mesure la vie, est celui-là même qui anime la longue
tradition de ce qu'on peut appeler la pensée solaire et où, depuis les Grecs, la nature a toujours
été équilibrée au devenir‖ (CAMUS, 1965, p.701) escreve Camus, mostrando que seu
pensamento é inseparável de uma certa arte de viver que ―dá gosto à vida‖ sem cair no
―raciocìnio" e na "abstração‖. La pensée de Midi, além de remeter à alegria de viver, é uma
referência à Grécia clássica: uma forma de pensamento que não cai na pura abstração, porque
não perde de vista a concretude do mundo; um recurso constante ao mito, como linguagem
filosófica e ao mesmo tempo poética, quando recriado por uma imaginação que lhe dá vida; e
uma exploração de princípios éticos iniciados com os gregos.
―Il est des lieux où meurt l‘esprit pour que naisse une vérité qui est sa négation
même‖, afirma Camus; ele toma aqui ao avesso toda a tradição idealista da filosofia, para a
qual a verdade representa a perfeita adequação do espírito que conhece (e se conhece) com o
mundo que ele conhece. O conhecimento verdadeiro significaria a relação exata entre o
espírito e o mundo. Camus, entretanto, não tem nada de idealista e vê a verdade, de início,
como a realidade sentida.
De fato, a relação entre a sensação, o mundo e o pensamento constituem um dos
problemas filosóficos mais complexos. Camus, entretanto, revela um sensualismo nato, quase
ingênuo, e um empirismo elementar, para mostrar que o homem não contempla nada além das
coisas, ou seja, não há mistério oculto do qual as coisas seriam os intérpretes ou as imagens,
por isso não há simbolismo nem "mitos". Com efeito, Camus, que recorre constantemente aos
mitos, que os cria e recria, afirma: ―Bien pauvres sont ceux qui ont besoin de mythes‖
(CAMUS, 1965, 57). É preciso dizer então que espécie de mito ele rejeita.
Camus partilha com o povo de Argel, indiferente ao espírito, uma religião natural do
corpo e dos sentidos, que, como observa Chabot, não tem nada a ver com o ―naturismo‖, nem
com sua carga de pregação, de sistematização e de afetação, que ele desdenhava (cf.
175
CHABOT, 2002, p.67). Camus critica os ―mitos‖ visando, como Nietzsche, o cristianismo,
que ele acusa de enganar a vida, e de traí-la, desacreditando-a em nome de uma ―outra vida‖:
―Autrement dit, l‘espoir en la vie éternelle ne console (mal) que les hommes sans amour et
sans foi pour la vie terrestre, la seule ‗intéressante‘‖.
Camus rejeita as divindades míticas, naturalmente, e também toda uma tradição da
literatura e da arte humanista e clássica que utiliza o "maravilhoso pagão", sem acreditar nele,
a título de ornamento alegórico. Isto numa época em que os poetas contemporâneos voltam à
mitologia; Gide, em particular, mestre do pensamento de Camus, mas também Giraudoux,
Cocteau, Valéry e muitos outros. Camus recusa apenas os mitos mortos, que não cumprem
mais nenhuma função propriamente religiosa, como cumpriam no tempo de Platão, e mal se
tornaram frias alegorias, e daí puras abstrações. Eles não são mais imagens vivas para a
sensibilidade, a crença ou o pensamento; apenas imagens murchas que se tornaram sutilezas
de retórica. Como afirma Camus, os mitos não têm vida própria, é preciso encarná-los e fazê-
los reviver através da imaginação.
Portanto, o processo dos mitos, em Camus, limita-se à crítica das mitologias
consoladoras que são o resíduo das religiões mortas. O que não o impede de recorrer a figuras
mitológicas gregas ou de inventar, para seu próprio uso, outros mitos que, não sendo
religiosos, são estéticos, reencarnados na atualidade da arte e da vida. Camus considera que os
primeiros pensadores foram poetas: eles não pensavam ainda por conceitos, mas por
metáforas, cada metáfora sendo um mito em miniatura.
Os povos antigos, criadores, inventavam histórias para dar um sentido à existência; no
mundo moderno alguns indivíduos imaginativos reanimam os mitos de antigamente
adaptando-os, para renová-los, à sua própria visão do mundo e da vida. São mitos pessoais,
enxertados sobre temas antigos. O poeta os moderniza, mas eles conservam, todavia, algo do
senso comum dos povos que os produziram. É neste sentido que Camus trouxe de volta à tona
176
o mito de Sísifo; seu ensaio filosófico, Le Mythe de Sisyphe, não se reduz a uma alegoria e,
mesmo podendo ser considerado um tratado de estética e de moral, ou de moral estética, é
também uma tentativa de atualizar a linguagem da narrativa mítica (cf. CHABOT, 2002,
p.104 e 105).
O romance La Peste, igualmente, que sucede de pouco a catástrofe humanitária de
1939-45, esta nem tão distante daquela de 1914-18, pode sob este ponto de vista ser
considerado como ―histórico‖, ou como um mito da história. O mito é uma palavra
verdadeira, adequada à realidade, mesmo se, ou justamente porque, ela transpõe o real sob
uma forma metafórica, buscando não teorias, mas verdades práticas. Desde Homero, Sófocles,
Tucídides ou mesmo Lucrécio, desde os profetas de Israel, a peste, tanto quanto uma doença,
é um mito que dá origem a um comentário que os homens fazem do inexplicável para tentar
compreendê-lo. Eles substituem causas desconhecidas por imagens que tendem a dar um
sentido a coisas sem sentido. Assim, o mito trata a epidemia como crise coletiva da sociedade
humana em seu conjunto, partindo do sentido político, e não da causa fisiológica do flagelo. É
assim que a doença é vista como sintoma da fragilidade da saúde moral do corpo social e ela
exige não só uma terapia farmacêutica, mas uma interpretação moral e espiritual. É neste
sentido que o padre Paneloux vê como causa da doença não um bacilo, mas uma culpa.
Como os primeiros gregos, Camus é um filósofo que pensa por mitos e cujos mitos
dão a pensar. Os mitos podem ter, realmente, a linguagem poética da moral e da política. La
pensée de midi é, para Camus, um pensamento do retorno às origens da sabedoria grega, em
que ele busca não apenas o apego à concretude da vida e a linguagem dos mitos, mas também
uma filosofia eminentemente ética, baseada na noção de "medida" ou "limite". Camus
aprendeu com os gregos que é na razão e na justiça que se fundamentam a moral e a política
verdadeiramente humanas. E para os gregos sabedoria é a justa medida racional em todas as
coisas; adversários de todo despotismo, até daquele da razão, eles não deificaram nem
177
idolatraram a razão. Ao lado do racionalismo, inventaram a tragédia, prevenção do idealismo:
ela atesta que o real não é totalmente racional e que o racional nem sempre é real: ―Cette loi
de la mesure s'étend aussi bien à toutes les antinomies de la pensée révoltée. Ni le réel n'est
entièrement rationnel ni le rationnel tout à fait réel‖ (CAMUS, 1965, p.698).
Há uma relação entre a moral de Camus e seu sentimento intenso e trágico da vida, e
essa moral privilegia a virtude da medida razoável, até na revolta. Em L'Homme révolté
Camus se levanta contra a falta de "medida". Os mitos se encadeiam e este ensaio, sob a égide
do mito de Prometeu, constrói-se sobre a base do mito de Sísifo e pressupõe o mito de
Nêmesis: ―Cette limite était symbolisée par Némésis, déesse de la mesure, fatale aux
démesurés. Une réflexion qui voudrait tenir compte des contradictions contemporaines de la
révolte devrait demander à cette déesse son inspiration‖ (CAMUS, 1965, p.699).
Em L'Homme révolté Camus critica a deificação da "razão", da ideologia e da
violência, mostrando que o velho mito da revolta degenerou em ideologia revolucionária. No
ensaio, o autor critica esta degenerescência da Revolução, opondo-lhe o mito da revolta, o
qual existe no povo que age para fazer justiça. A Revolta se prova na ação, na realização
concreta. A ideologia, ao contrário, desencarna o mito e o substitui por abstrações formais:
―La révolution sans honneur, la révolution du calcul qui, préférant un homme abstrait à
l'homme de chair, nie l'être autant de fois qu'il est nécessaire, met justement le ressentiment à
la place de l'amour‖ (CAMUS, 1965, p.707).
Por suas críticas lúcidas, por andar na contramão das correntes ideológicas então
dominantes, Camus pagou um preço alto. O mito do justo perseguido e levado à morte
injustamente se encarna nas pessoas do Cristo e de Sócrates, aos quais Chabot associa o
"processo" e a condenação aplicada a Camus. Tal condenação é a raiz da obra de Chabot, a
qual se propõe justamente como uma apologia e no início da qual se afirma:
178
Au fond, les censeurs philosophiquement corrects qui méprisaient Camus
―philosophe pour classes terminales‖, dédaignaient superlativement, en lui,
―le littéraire‖, injure aggravée par le soupçon de ―romantisme‖ qui grevait sa
littérature d‘écrivain ―métaphorique‖ (CHABOT, 2002, p.21).
De fato, da mesma forma que Camus deixa transparecer em suas obras de ficção uma
visão de mundo que reflete suas concepções filosóficas, o que de certa forma é tolerado pelos
críticos, assim também, coerentemente com sua recusa de separação entre conhecimento e
realidade vivida e entre as diversas áreas e campos do conhecimento humano, ele atribui
características poéticas aos seus textos filosóficos, fato que os críticos e filósofos de profissão
não puderam aceitar.
Que a literatura seja filosófica pode ser aceito, mas uma filosofia poética parece
inadmissível. A questão é que os romancistas, e não apenas Camus, fogem às formas
padronizadas e consagradas de apresentação do gênero dissertativo, ou seja, os poetas e
romancistas pensam a existência de uma maneira original, eles a pensam através da imagem.
Não buscam ser nem filósofos nem historiadores, pois são poetas que fazem história e
filosofia. Entretanto, a filosofia pelas imagens é tanto (ou talvez mais) filosófica quanto a
filosofia conceitual.
Aristóteles já afirmava que a poesia é ―mais filosófica e de um caráter mais elevado
que a história, pois a poesia conta o geral e a história o particular‖.22
Ou seja, a poesia pode
ser filosófica. Camus é um desses poetas, pensa por imagens, metáforas e mitos em sua
prática de escritor. É preciso lembrar que ele critica a submissão de um campo a outro, e
rejeita sobretudo a instrumentalização ideológica da poesia, recusando "a intelectualização da
arte" e, em particular, les romans à thèse, porque eles explicam ao invés de imaginar.
A filosofia poética de Camus é inseparável dos ensaios, único gênero que corresponde
à expressão de um pensamento modesto, ou seja, ciente de seus limites e não totalitário. De
fato, antes de criticar filosoficamente o stalinismo, Camus critica o pensamento sobre o qual
22
Aristote, Poétique. Paris: Les Belles lettres, 1969, chap. 9, p.41-42
179
ele se baseia: a pretensão à certeza absoluta. Com sua própria vivência no mundo e com a
sabedoria adquirida com os gregos, ele sabe olhar os dois, ou vários, lados das questões.
Como um antìpoda da dialética reducionista, o essencial da sabedoria do ―pensamento
mediterrenâneo" está fundamentado num embate, ou seja, num face-a-face de contrários, não
reconciliados, mas inseparáveis.
O antídoto ao totalitarismo da razão, arrogante mas ingênua, encontra-se na poesia,
que não perde de vista o contato com a realidade, por mais imaginativa que possa ser. É a
visão diversificada e ancorada na concretude do mundo e da existência que se faz presente no
Mythe de Sisyphe, em que Camus defende ―o pensamento humilhado‖. Na verdade, trata-se de
um pensamento mais humilde do que humilhado, pois ele partilha a humildade da condição
humana ao invés de transcendê-la em abstração totalitária.
J. Chabot mostra que Valéry também faz algo semelhante, pois, com suas imagens
poéticas, opera uma crítica filosoficamente precisa do formalismo do pensamento, ou seja, da
teoria fabricada pelo entendimento. Valéry mostra que o ser só se desvela de maneira
perfeitamente lógica a um entendimento que reproduz nele suas próprias categorias e o recria
à sua imagem (cf. CHABOT, 2002, p.93). Trata-se de um entendimento lógico tranqüilizador,
mas ilusório, pois impõe à realidade as fôrmas da lógica e só apreende da realidade o que cabe
nestas fôrmas, delimitado e organizado, mas parcial, restrito e diminuído, ou seja, deformado.
Tal raciocínio só pode chegar a um sofismo, é o resultado de uma lógica louca por unidade de
tanto medo da diversidade viva do real.
Como todos os grandes moralistas, Camus procede a uma crítica da ontologia, como
uma ideologia do Ser que pretende fundar a existência. Os jogos de sistematização de um
pensamento abstrato não respondem à questão: ―como viver?‖, que é uma questão de
sabedoria. Donde a crítica de Camus ao intelectualismo e ao racionalismo teórico, e sua
recusa simultânea de se entregar ao irracionalismo. Trata-se de marcar os limites da razão
180
teórica, que são precisamente limites práticos: não colocar a lógica formal onde ela não está,
na vida cotidiana, na existência ao mesmo tempo grande e miserável: é o limite que Hegel não
respeitou:
On peut dire assurément que Hegel a rationalisé jusqu'à l'irrationnel. Mais,
en même temps, il donnait à la raison un frémissement déraisonnable, il y
introduisait une démesure dont les résultats sont devant nos yeux. Dans la
pensée fixe de son temps la pensée allemande a introduit tout d'un coup un
mouvement irrésistible. La vérité, la raison et la justice se sont brusquement
incarnées dans le devenir du monde. Mais, en les jetant dans une
accélération perpétuelle, l'idéologie allemande confondait leur être avec leur
mouvement et fixait l'achèvement de cet être à la fin du devenir historique,
s'il en était une. Quant aux moyens d'atteindre ces buts, c'est-à-dire la vie et
l'histoire, aucune valeur préexistante ne pouvait les guider. [...] La raison,
annexée par ce romantisme, n'est plus qu'une passion inflexible (CAMUS,
1965, p.541-542).
Trata-se de vencer as tentações do absolutismo da razão, pois é a própria existência, na
condição humana, que é humilhada pelo despotismo das ―idéias‖. O paradoxo abordado por
Camus consiste em tentar dar um sentido ao homem, admitir o irracional sem abdicar da
razão. Trata-se de uma resistência simultânea ao non-sense e ao Espírito absoluto; ao niilismo
da não-razão e ao totalitarismo da razão.
O posicionamento paratópico de Camus nos campos da literatura e da filosofia, o
embaralhamento de gêneros literários e de campos de conhecimento, a crítica do racionalismo
e a produção de uma filosofia em ensaios plenos de imagens poéticas, já contribuem para que
ele seja olhado de soslaio, mas a gota d'água que desencadeou "o processo" de sua
condenação é sua crítica, decorrente da crítica da razão totaliátária, ao totalitarismo da
ideologia stalinista.
―J‘ai entrepris, avec L’Homme révolté une étude de l‘aspect idéologique des
révolutions‖ (CAMUS, 1965,759), nesta definição do objetivo que Camus atribui a seu ensaio
está também o centro da polêmica levantada pela sua publicação. A ideologia da revolução se
configura na idolatria do Estado, que é na verdade um "mito", no sentido em que Camus o
181
rejeita, apenas um ―ersatz de religião‖ (CAMUS, 1965, 1058). Neste sentido, o marxismo-
leninismo, como toda ideologia em ação, pode ser uma droga pior do que a religião:
Si, dans le monde sacré, on ne trouve pas le problème de la révolte, c‘est
qu‘en vérité on n‘y trouve aucune problématique réelle, toutes les réponses
étant données en une fois. La métaphysique est remplacée par le mythe. Il
n‘y a plus d‘interrogations, il n‘y a que des réponses et des commentaires
éternels, qui peuvent alors être métaphysiques (CAMUS, 1965, p.430).
A obra de Camus é expressão de um conflito político, poético e crítico entre o mito do
sol, mito que gera la pensée de midi na tradição do pensamento solar dos Gregos, e a
ideologia do niilismo pretensamente revolucionário. Em L'Homme révolté, especificamente,
Camus continua à sua maneira a interpretação histórica do mito da revolta e de sua aberrante
perversão em forma de ideologia revolucionária, ideologia como mito pervertido. Camus,
filósofo ―polìtico‖, moralista humanista e romântico revolucionário mantém, pois, o mito da
revolta contra a ideologia da revolução quando ela esquece suas origens revoltadas para
degenerar em ideologia do despotismo, a que ele chama precisamente ―o Império ideológico‖.
Camus é um crítico lúcido do positivismo científico e defende uma hipótese "absurda",
porque contraposta à cientificidade da doutrina garantida pelo KGB, o gulag e o Exército
vermelho. O escritor ousou criticar um dogma. Sua filosofia crítica não se dirige apenas
contra o socialismo e o comunismo, mas contra ―a evolução propriamente reacionária do
socialismo cesariano‖ (CAMUS, 1965, p.763). A tal ditadura ele opõe a tradição do
socialismo e do sindicalismo libertários, condenados pelos marxistas sob o termo de
―socialismo utópico‖ ou não ―cientìfico‖. Camus, sem fazer a menor concessão ao idealismo
hipocritamente teórico da democracia burguesa, recusa entregar ao stalinismo a revolta contra
todas as autoridades abusivas e injustificadas.
Assim, L'Homme révolté é um grande texto de história das idéias, ou seja, de crítica
das ideologias; em particular, mas não unicamente, das ideologias revolucionárias. De toda
182
forma, o processo de Camus, aberto desde a publicação de L'Homme révolté, em 1951,
tornou-se logo um ―processo de Moscou‖. Conforme escreve J. Chabot,
Camus havia escrito um livro de crítica histórica e filosófica, um livro de
filosofia política sobre a revolta a partir do século XVIII, na Europa, e ele foi
acusado principalmente de anti-comunismo. De fato, mesmo se seus
acusadores se recusavam a reconhecê-lo, ele foi condenado por crime de
lesa-majestade com relação ao tirano moscovita. Como o processo ocorreu
em Paris, e não em Moscou, Camus não foi assassinado como Sócrates e
Jesus (CHABOT, 2002, p.11).
É por Camus ter sido vítima de um processo injusto e por já ter morrido à época em
que sobre ele escreve J. Chabot, que este último chama à obra dedicada ao filósofo uma
apologia, na linha do gênero que ficou consagrado por Platão, ao defender Sócrates: "Minha
apologia de Camus poderia se resumir nisso: ele nunca se dobrou à razão do mais forte, com
mais forte razão quando é a própria Razão, traída, que é erguida contra a justiça" (CHABOT,
2002, p.191).
O julgamento de Sócrates é exemplar, como o caso do justo injustamente perseguido.
O Cristo também é apresentado por Chabot como outro justo condenado, pelo crime duplo de
lesa-religião estabelecida e de lesa-majestade imperial. Jesus acabava de inventar o amor ao
próximo, não à humanidade distante como os conceitos e abstrações, mas a toda pessoa, com
uma preferência pelos pobres e miseráveis. A idéia revolucionária da igualdade e da
fraternidade de todos os homens sem exceção, igualmente filhos de um Deus pai e não tirano,
arruinava todos os edifícios da dominação e da servidão, fundados sobre a violência dos
grandes, sobre seu desprezo pelos mais fracos e sobre o assassinato legitimado pelo direito do
mais forte.
Condenado e assassinado o Cristo, os Evangelhos se constituem como uma apologia
de Jesus e como apólogos, ou seja, narrativas que contam sua vida para dela tirar uma lição
ética e religiosa. Os evangelistas, como Platão em sua Apologia de Sócrates, refazem o
processo para provar a inocência do acusado. Daí que, desde muito cedo, historiadores,
183
filósofos e poetas puseram em paralelo o destino de Sócrates e aquele do Cristo para sublinhar
a semelhança entre eles: ambos são inocentes injustamente reconhecidos culpados por crimes
que não existiam, são bodes expiatórios de um povo ou de uma cidade em decorrência de um
processo iníquo.
Evidentemente, o paralelo feito por Chabot entre Camus e Jesus não visa, nem
indiretamente, a cristianizar Camus após sua morte, como tentou fazer H, Mumma. A filosofia
de Camus, conforme proposta em L'Homme révolté, defende sobretudo uma ética
eminentemente humana, mas laica e não religiosa. É a questão que Camus transfere para seu
personagem Tarrou, na Peste:
En somme, dit Tarrou avec humour, ce qui m‘intéresse c‘est de savoir
comment on devient un saint.
– Mais vous ne croyez pas en Dieu.
– Justement. Peut-on être un saint sans Dieu, c‘est le seul problème que je
reconnaisse aujourd‘hui (CAMUS, 1962, p.1427).
Camus recebeu a formação de um humanista, do humanismo que não havia ainda
recebido os golpes da crítica marxista, do existencialismo, da psicanálise e das ciências
humanas. É sobretudo após a Segunda Guerra que o humanismo, de clássico, tornou-se
―burguês‖ e foi banido do pensamento contemporâneo. Camus nunca renegou suas
humanidades clássicas, nunca teve vergonha de ser um humanista e, mesmo criticando a
polìtica e o pensamento dos ―burgueses‖, nunca ―jogou o bebê junto com a água do banho‖.
Não correu atrás da última moda intelectual e recusou ser catalogado como ―existencialista‖,
mesmo quando Sartre proclamava que o existencialismo era um humanismo. Intelectual de
esquerda humanista, Camus criticou não só a ideologia e a polìtica ―burguesas‖ como também
a outra ideologia então dominante nos meios da intelligentsia parisiense: o marxismo-
leninismo, pretensamente dialético e científico.
184
À morte de Camus, num artigo publicado em 6 de janeiro de 1960 em France-
Observateur,23
Sartre escreve sobre o autor que ele representa ―en ce siècle et contre
l‘histoire, l‘héritier actuel de cette longue lignée de moralistes dont les oeuvres constituent
peut-être ce qu‘il y a de plus original dans les lettres françaises‖. Sartre reconhece a ética
humanista de Camus, embora, nas entrelinhas da passagem citada, possamos perceber
claramente sua censura: Camus é anacrônico e cometeu o erro filosófico e a falta política de
não marchar no sentido da História definida pelo marxismo-leninismo:
Son humanisme têtu, étroit et pur, austère et sensuel, livrait un combat
douteux contre les événements massifs et difformes de ce temps. Mais,
inversement, par l‘opiniâtreté de ses refus, il réaffirmait au coeur de notre
époque, contre les machiavéliens, contre le veau d‘or du réalisme,
l‘existence du fait moral.
Sartre reconhece em Camus o mérito de não ter sido um cata-vento, rodando conforme
as tendências, mesmo se ele atribui esta estabilidade na retidão a alguma "teimosia" mais do
que a sua inteligência. Sartre constata ―a reafirmação‖ por Camus ―do fato moral‖, mas pesa o
subentendido: este romancista que nos dá lições de moral não é um verdadeiro filósofo.
Chabot tem razão ao afirmar:
Comme Victor Hugo et André Malraux, Camus est un romancier qui pense
en racontant des histoires et qui raconte l‘existence humaine avant de
s‘interroger sur l‘Être des étants. Il préférait les images (porteuses d‘idées)
aux concepts. Il n‘avait pas de système. On pouvait donc le soupçonner
d‘être plus poète que théoricien (CHABOT, 2002, p.15).
Camus, por sua rejeição das abstrações redutoras, é de certa forma mais
―existencialista‖ do que Sartre e Heidegger, porque ele não se embaraça com a ontologia. Sua
ética reconhece o ritmo do mundo e busca lhe atribuir um sentido, mais do que reconhecer sua
verdadeira essência. Por falta de verdade sobre o Ser, o moralista deve se contentar com as
23
Texto compilado em SARTRE, Jean-Paul. Situations IV. Paris: Gallimard, 1964. Citado por:
TODD, Olivier. Albert Camus, une vie. Paris: Gallimard, 1996, p.1039; e por: CHABOT, Jacques.
Albert Camus "la pensée de midi". Aix-en-Provence: Édisud, 2002, p.16.
185
certezas e convicções sobre a existência e em vivê-las para justificá-las, na presença dos
outros, ou seja, de um nós.
O processo de Camus retrata o processo do homem no século XX. Depois da
proclamação da ―morte de Deus‖, é a ―morte do homem‖ que se tornou o problema do século
XX, ou pelo menos de uma certa ―idéia de homem‖ elaborada desde o Renascimento pelo
humanismo, num retorno às fontes gregas e latinas, mas também bíblicas e cristãs. Quando
Camus se pergunta: ―Como ser um santo sem Deus?‖, no fundo está respondendo à
observação de Dostoievski: ―Se Deus não existe, tudo é permitido." A pergunta de Camus
poderia ser formulada em outros termos: Como não se permitir tudo na ausência de Deus? ou
ainda: Sobre o quê, ou quem, fundar uma moral? E sua resposta é: sobre o Homem. O
humanismo agnóstico de Camus supõe uma ―eminente dignidade‖ do Homem. Talvez por
isso a intelligentsia existencialista e marxista tenha suspeitado que Camus não fosse um
verdadeiro ateu. Mas para ele, mais do que ―a idéia de homem‖ o que interessa é ―a dignidade
humana‖. Tal dignidade impõe o respeito de todo ser humano. Ela não se prova demonstrativa
e teoricamente, ela se funda praticamente sobre atos de respeito pelos outros e por si mesmo.
O processo de Camus é o processo de um moralista em política, moralista irônico,
como ele se revela em La Chute, que sabe contornar o "sério" do dogmatismo ideológico; a
ironia, com certeza, pode funcionar como uma espécie de prova pelo absurdo, mais eficaz do
que a dialética. Nossos tempos são outros, do totalitarismo stalinista só temos notícia nos
livros de história, mas as tiranias continuam, apenas mudam a máscara para melhor se
perpetuarem ao longo do tempo. Quase ao final de sua obra, Chabot escreve:
Je ne reviendrai pas sur le procès de Camus: comme Socrate et Jésus, il l‘a
finalement gagné devant l‘histoire, lui qu‘on avait condamné pour son ―anti-
historicisme‖, alors qu‘il avait seulement dénoncé les errements d‘une raison
dialectique devenue folle au point de servir de caution ―scientifique‖ à un
système totalitaire d‘asservissement des hommes libres au déterminisme
absolu de l‘histoire (CHABOT, 2002, p.166).
186
O processo de Camus é resultado das obras, da ética e do engajamento de um escritor
que recusa a futilidade na arte e pensa que um artista ou um filósofo tem algo a fazer na
sociedade, na política e na história do gênero humano, e só mesmo o artista cuja estética é
desprovida de toda moral pode não inquietar os tiranos. Camus criticou as filosofias da
História; radicalmente e antes de todos, ele ousou contestar e dessacralizar o historicismo
vulgar que legitimava a Razão de Estado (totalitária) na História e submetia a humanidade à
lei do vencedor. Agora que o totalitarismo da pretensa ―lei do Mercado‖ substituiu,
ultrapassando-os, o fascismo, o nazismo e o stalinismo, o pensamento de Camus permanece
ainda mais atual, contra o novo terror irracional que se pretende racional. Junto com seu vigor
literário, a atualidade de Camus está na força de sua ética, de cuja falta padecem nossas
sociedades contemporâneas.
Com la pensé de midi, Camus lembra que a própria razão deve ter uma moral e que a
humildade é sua primeira virtude. O mundo concreto passa sem a razão dominadora e resiste a
seu poder unificador e a seu imperialismo. La pensée de midi é uma inteligência ciente de
seus limites ao mesmo tempo que dos seus poderes, ela é herdeira do "limite" da razão grega
que é a medida de todas as coisas, inclusive da própria razão.
Com os gregos, Camus aprendeu que o homem racional é também político, pois é
somente na polis que os cidadãos podem viver juntos de acordo com leis que dão a si
mesmos, livremente. Trata-se da democracia, cujo princípio é a virtude política, que consiste
na obediência por livre consentimento a leis razoáveis estabelecidas em vistas do interesse
comum. Na moral de Camus, o homem é responsável por sua própria existência, para a qual
ele é criador de sentido, e este é seu valor. Somos todos responsáveis por nosso caráter
(ethos) e, portanto, por nossa ética, por nossa maneira de viver em sociedade, assim, a
responsabilidade por si é também uma responsabilidade pelos outros. A revolta individual
187
toma todo seu sentido na medida em que ela se torna reconhecimento do valor de todos os
indivíduos e, em Camus, a revolta contra a injustiça é uma revolta em favor do outro.
Do cristianismo, Camus aprecia as obras e não a fé. De fato, a caridade, no amor e no
respeito a todo homem, mesmo sem Deus, é uma forma de solidariedade. Fraternidade
responsável, solidariedade, caridade são tantos nomes do amor que conhece seus limites, por
se reconhecer mortal, efêmero e relativo. E para os que amam, nenhuma lei é necessária, é o
que afirma Santo Agostinho: "Ama e faze o que quiseres". Daí que uma outra forma de
imaginar o inferno da mitologia católica é vê-lo como o espaço absoluto das leis, enquanto
que o céu seria o espaço da ausência total de leis. A lei é uma abstração destinada a reger e a
impor limites a uma totalidade, ao passo que o amor e a solidariedade são feitos de relações
humanas concretas e espontâneas. A noção de pecado é totalmente estranha a Camus.
Entretanto, ele reconhece que os homens são culpados diante de si próprios do mal que fazem
uns aos outros, e do qual devem assumir a responsabilidade para poder tratá-lo. Se Camus
pode qualificar de ―metafìsica‖ sua ética da solidariedade na defesa da liberdade e da
dignidade humanas, é porque considera, à sua maneira, o valor do ser humano como
"sagrado". Ele defende que o homem revoltado exige a dignidade e a fraternidade contra todas
as injustiças.
Ao buscarmos uma diferença de conotação entre moral e ética, observamos que a
moral está ligada sobretudo às leis e a ética ao amor, e então é o segundo termo que se aplica
melhor à reflexão filosófica de Camus. Ambos os termos se fundam sobre os costumes que
são uma criação humana, mas a ética é mais abrangente e menos normativa do que a moral. O
aspecto ético do comportamento humano está relacionado com as conseqüências dos atos dos
homens, assim, a ética em Camus se fundamenta no seguinte princípio: o que promove a vida
humana é ético, o que atenta contra ela é anti-ético. Adversário da pena de morte e,
188
igualmente, do suicídio, seja ele físico ou metafísico, Camus edifica sua ética no amor pela
vida e no respeito pelos vivos. Por isso, J. Chabot pode afirmar:
Le fameux ―Je me révolte donc nous sommes‖, véritable cogitamus da la
révolte, implique, en effet, une sorte de syllogisme: je me révolte contre la
mort parce que je suis mortel; or tous les hommes sont mortels; donc tous les
hommes se révoltent ensemble contre la même mort qui est leur sort
commun. En un certain sens, la révolte, cette pensée en action, est l‘essence
même de l‘être humain individuel et collectif (CHABOT, 2002, p.179).
Já em L'Étranger está presente uma crítica da pena de morte, inseparável de uma
crítica da abstração. No universo do processo, a justiça formal, em nome de princípios
abstratos – a ideologia da justiça, portanto – assassina um homem concreto. Convencido de
que vivia no século do assassinato justificado pela lei e pelas ideologias políticas, Camus
nunca fez a menor concessão à pena de morte. É a fraternidade metafísica que inicia a
fraternidade política e social.
Ele escreve: ―s‘il y a évolution de L’Étranger à La Peste, elle s‘est faite dans le sens
de la solidarité et de la participation‖ (CAMUS, 1965, p.758); La Peste é um grande romance
humanista, uma descrição simbolicamente realista da miséria humana, e um apelo à
solidariedade fundamentada no amor e no respeito ao homem. Não se trata, contudo,
conforme os princípios estéticos de Camus, de um roman à thèse ou dogmático: por
multiplicar os pontos de vista sobre o flagelo ele o relativiza, e a polifonia das vozes
discordantes impede que se privilegie uma interpretação unilateral. La Peste não é um
romance "edificante", ao contrário, é carregada de ironia: Camus evita o roman à thèse e a
lição de moral.
De fato, a novidade da Peste em relação às obras anteriores está nisto: o ―homem
absurdo‖ não é mais um solitário, mas torna-se solidário dos outros, combatendo a
absurdidade com os meios mais comuns. Na Peste a solidão resulta da separação, ela não é
―em si‖, ela existe para homens que são forçados a não mais viver com a outra pessoa que eles
amam. Grand sofre por não saber se exprimir, ou seja, como Meursault, ele é "traído pelas
189
palavras" e isto resulta para si numa terrível solidão. Para o doutor Rieux, o flagelo coletivo
exige um tratamento comum e a abnegação do prazer individual. É a esta conclusão que chega
também Rambert que, primeiramente um hedonista, se convence da necessidade de uma
moral humanista da solidariedade.
Para Camus, a única conseqüência adequada do Absurdo é a Revolta, expressa em
forma de solidariedade humana, e por isso ele recusa o niilismo. De fato, no Mythe de
Sisyphe, Camus constata a doença mortal de indivíduos e sociedades contemporâneas: o
niilismo como constatação do Absurdo, e para ele o niilismo coincide com valores
desencarnados e formais. De forma semelhante, em L'Homme révolté, recusa a estética de
Sade, por ver nela o fundo perverso do niilismo.
A análise sem complacência da obra de Sade e a condenação do sadismo contribuem
para esclarecer a moral de Camus. Ele ousou ir contra um dos dogmas menos criticados da
estética contemporânea, o da superioridade literária de Sade, quando afirmou que o puro
Sadismo não é literário e que de toda forma é uma literatura ruim. Aqui se revela a
heterodoxia camusiana em matéria de devoção estética, pois ousou criticar outro dogma
estético de seu tempo, o surrealismo. Para J. Chabot, esta heterodoxia de Camus "a pesé aussi
lourd dans son procès, que son indépendance critique vis-à-vis du catéchisme marxiste-
léniniste-stalinien." Quanto a Sade, ele representa para Camus ―o homem de letras perfeito‖,
no mau sentido do termo, aquele para quem a literatura é puro divertimento amoral e
desapegado de qualquer responsabilidade em face dos outros. Por isso, Chabot pode
completar: "Décidément les prêcheurs de vice et de crime sont encore plus d‘ennuyeux
radoteurs que les prédicateurs de vertu. La façon d‘écrire de Sade, inaugure une certaine
langue de bois de l‘amoralisme esthétique érigé en dogme poétique" (CHABOT, 2002,
p.138-139).
190
Confrontando dois mitos – a peste e a revolta – não mais no absoluto da condição
humana, mas numa situação histórica atual, Camus inventa uma moral do engajamento.
Conforme Chabot, "Camus aurait aimé être médecin ou instituteur, pour faire un métier
social. Il fut journaliste, autre façon d‘exercer um service public par l‘instruction et la
prophylaxie (CHABOT, 2002, p.151). Jornalista e escritor engajado, ele se solidarizou com
seus contemporâneos em suas lutas com uma razão, a revolta não gratuita, mas pela justiça.
Camus constatou que os burgueses defendiam teoricamente os grandes princípios da
liberdade e da igualdade – esquecendo-se da fraternidade – e tomando o cuidado de não os
praticarem, por isso ele combateu não apenas o totalitarismo ideológico e violento do
stalinismo, combateu igualmente o formalismo da moral e da política do capitalismo
―democrático‖.
Atualmente, no século XXI, continuamos a viver sob o império do totalitarismo, pois a
globalização capitalista não tem nada a invejar aos horrores dos regimes totalitários do século
passado, e encontramos no pensamento e na prática de Camus o conhecimento e a coragem
para resistir à desmedida totalitária, seja qual for sua justificativa ideológica.
A ética multifacetada de Camus se apóia sobre diversos valores decorrentes da
dignidade humana. É uma ética da generosidade, da coragem, da sinceridade, da
compreensão, da solidariedade, do engajamento. No conto, La pierre qui pousse, que faz parte
da coletânea L'Exil et le royaume, uma pedra que cresce por milagre é substituída pela pedra
que se carrega junto, por solidariedade humana, para o bem de todos. É mais um mito da
fraternidade entre os homens, no combate pela justiça e por uma moral laica e humana. O
conto de Camus é fruto das lembranças de sua viagem ao Brasil, em 1949, onde fica chocado
pela proximidade entre o luxo e a miséria. No mundo atual os países ricos e poderosos
continuam dominando e explorando os "emergentes", ainda existem as guerras, todas com
suas justificativas "racionais", existem os conflitos étnicos e religiosos, existe a miséria. No
191
Brasil ainda há a desigualdade gritante entre a ostentação e a fome. Não temos uma tradição
de intelectuais engajados e temos, ao contrário, uma cultura da falta de ética, no trânsito, no
comércio, nas instituições, nas relações pessoais. As pessoas honestas são consideradas tolas e
a preocupação com a vantagem individual, sob o nome de esperteza ou malandragem, é vista
como um valor.
No nosso país a bisbilhotice é promovida e defendida, a futilidade é recompensada,
incentiva-se apenas a competição e nunca a cooperação, a polícia é injusta, a justiça não
funciona, as religiões são a fachada de empresas mercenárias. A tolerância ante a
particularidades individuais é muitas vezes apenas o reflexo de uma prática da indiferença ao
outro. A lei comumente só se aplica ao cidadão comum, ou seja, desprovido de capital,
monetário, social, cultural, etc. Políticos, militares, autoridades, celebridades e milionários se
consideram acima do bem e do mal e contam com a condescendência das camadas populares
que os consideram como uma espécie de "nobreza", naturalmente privilegiada. Falta-nos, a
nós brasileiros, a consciência do bem-comum como necessidade social. Os bens públicos são
vistos como coisa de ninguém e a classe política é, muitas vezes, a concretização
potencializada desta mentalidade anti-ética, interesseira e individualista. Nossos políticos,
com um salário escandalosamente desproporcional ao do trabalhador comum, se apoderam,
através da corrupção, encarada como um prática normal de tão comum, do bem público e
defendem apenas seus interesses, legislando quase sempre em causa própria. Com raríssimas
exceções nossos políticos tratam o bem público como propriedade privada, não são
administradores ou representantes populares, mas exploradores gananciosos. Quem tem voz
não a levanta contra eles e o povo comum, ou vive alheio às questões políticas, por falta de
acesso mínimo à cultura, ou compartilha da imoralidade deles.
Para Camus, matar o homem não é apenas tirar-lhe a vida física, é também impedi-lo
de viver em sentido pleno, por causa do desrespeito a sua dignidade. A atualidade do
192
pensamento de Camus encontra-se sobretudo no vigor de sua reflexão ética, como antídoto a
esta cultura da desonestidade, do egoísmo e da indiferença às desigualdades e injustiças;
dentre os vários valores éticos que ele defende como garantia da vida humana digna,
padecemos sobretudo da ausência de dois: o engajamento e a solidariedade, como os vimos na
Peste.
Publicado em 1947, La Peste teria sido iniciado bem antes, desde 1941, o que mostra
que os temas da Revolta surgiram na seqüência imediata da reflexão sobre o Absurdo. A
consciência do Absurdo é um ponto de partida e não deve ser separado, no universo
camusiano, da Revolta que ela provoca. Da mesma forma que as obras principais de Camus,
distribuídas em dois ciclos, articulam-se num conjunto orgânico, em que textos diversos
dialogam, interrogando, questionando e completando uns aos outros, assim também as noções
básicas de Absurdo e Revolta estão intimamente imbricadas e precisam ser compreendidas
uma em função da outra.
No prefácio a Le Mythe de Sisyphe, Camus afirma que o Absurdo não é uma
conclusão, mas um ponto de partida. As obras do Absurdo já contêm as sementes da Revolta e
as obras da Revolta se compreendem dentro do sentimento e da consciência do Absurdo. A
passagem de L'Étranger a La Peste corresponde à passagem de Le Mythe de Sisyphe a
L'Homme révolté. A experiência do Absurdo nasce do sentimento de que o homem não está
em harmonia com o mundo, ela desemboca na expressão da Revolta, na ação coletiva. Em
Remarque sur la révolte, texto publicado em 1945, lemos: ―Dans l‘expérience absurde, la
tragédie est individuelle. À partir du mouvement de la révolte, elle a conscience d‘être
collective. Elle est l‘aventure de tous. [...] Le mal qu‘éprouvait jusque-là un seul homme
devient peste collective‖ (CAMUS, 1965, p.1685).
O Absurdo, enquanto o dar-se conta do homem de que o mundo em que ele vive não
corresponde aos seus anseios fundamentais de compreensão e felicidade, de paz e justiça,
193
conduz à Revolta, ou seja, ao esforço comum para alterar a face deste mundo. Assim, a
consciência do Absurdo é condição necessária para a passagem à Revolta.
O Absurdo aparece como um processo mental, mesmo se não pode ser reduzido a uma
simples noção, por causa de sua dimensão de experiência existencial, mas trata-se de uma
percepção do indivíduo de que a condição humana no mundo é permanentemente conflituosa.
Assim, mesmo se muitos homens podem constatar o Absurdo de sua condição, esta
constatação se faz por meio de uma experiência individual e pode se manter restrita à
consciência pessoal. Por isso, é difícil dizer que alguém agiu movido pelo Absurdo; antes, o
Absurdo sozinho está muito próximo do conformismo niilista.
A Revolta, por sua vez, enquanto conseqüência do Absurdo e reação a ele, é um
sentimento interior que exige uma expressão, e não pode se manter apenas no nível do
pensamento ou da reflexão, mas supõe necessariamente uma atitude. O homem que age
movido pelo Absurdo que ele constata e contesta é um homem revoltado. A Revolta exige
uma exteriorização, uma ação. Como o homem é um ser político e social, as suas atitudes têm
efeitos sobre os outros; por isso a Revolta visa ao social, ao grupo humano. Um homem
revoltado não pode buscar o isolamento. Essa caracterização que Camus confere a estes dois
termos filosóficos subsiste em suas obras literárias, cujo pano de fundo é constituído por tais
noções, donde a importância do coletivo na Peste.
Ao passo que L'Étranger é a história de um indivíduo, quase incomunicável e que se
debate interiormente diante da constatação do Absurdo e cuja vida é perturbada pela situação
absurda que se abate sobre ele, La Peste é a história de uma cidade, um microcosmo, metáfora
do macrocosmo. Trata-se aqui de um grupo de indivíduos que não apenas refletem e se
angustiam, mas também, e acima de tudo, agem e lutam juntos tentando vencer um flagelo
absurdo que os oprime.
194
Na Peste os indivíduos não se isolam, mas procuram se associar. É o romance da
comunidade humana, contraposto ao romance do indivíduo. Nele os aspectos políticos,
econômicos e práticos se sobrepõem aos aspectos subjetivos. Se Meursault é o personagem
solitário, Rieux é o personagem solidário que, junto com outros, luta e age contra o mal que
os atormenta, mesmo se não consegue descobrir a origem nem compreender a razão da
existência deste mal.
Mas o próprio movimento que vai do Absurdo à Revolta obriga a se passar do
individual ao coletivo e, daí, a se inscrever na história. Sob a pressão da história, a revolta
inicialmente individual se torna coletiva. Apesar do que se disse à época da polêmica gerada
pela publicação de L'Homme révolté, Camus nunca rejeitou a história, recusou apenas a
concepção teleológica da história e recusou-se a sacralizá-la e a acreditar que ela pudesse dar
um sentido à vida ou ter um valor absoluto. Em seus Carnets, anota em setembro de 1939:
―La guerre a éclaté. [...] si ignoble que soit cette guerre, il n‘est pas permis d‘être en dehors‖
(CAMUS, 1962, p.166). A guerra, como a peste, ―diz respeito a todos‖ (CAMUS, 1962,
p.1273). Para alguns críticos, a dimensão política e histórica não é muito presente nos textos
do ciclo do Absurdo, mas o autor, na época em que escreve tais textos, já dá provas de uma
forte consciência política, já escreve seus artigos em jornal e luta na história, com um
engajamento bastante precoce.
Camus viveu num período da História marcado pela violência e por conflitos. As
guerras e revoluções do século XX tiveram grande impacto e repercussão sobre os
movimentos artísticos e culturais, sobre escritores e filósofos. A dúvida atinge numerosas
consciências após a Primeira Guerra Mundial, com a Segunda Guerra se acentua a
desconfiança para com os valores da sociedade ocidental que gerou tais monstruosidades.
Além disso, Camus conheceu de perto a miséria, a desigualdade e as injustiças que
imperavam entre o povo argelino e com quais ele e sua família sofreram. Com efeito, educado
195
na pobreza, ele fez ainda muito jovem o aprendizado do engajamento político; afirma que não
aprendeu a liberdade com Marx, mas com a miséria, ou seja, não de maneira teórica, mas,
antes, muito concreta.
Sob o peso dos acontecimentos que marcaram a primeira metade do século XX, não é
difícil compreender a convergência e a recorrência de temas comuns que marcaram vários
escritores do entre guerras. Em suas obras podemos encontrar as mesmas interrogações.
Romancistas e filósofos são moralistas que, num período particularmente inquietante da
história, lembram que toda liberdade individual deve estar ligada à responsabilidade social.
Interrogando-se sobre o futuro da humanidade e desejando mudanças, há uma busca por
novas ciências, por novas teorias, políticas, morais, psicológicas e filosóficas, por novas
estéticas. Em todos os campos, o termo ―Revolução‖ é a palavra de ordem, que revela o
desejo de se buscar um novo ideal humano e social. De fato, essas interrogações comuns a
muitos autores estão presentes em toda a obra de Camus, com uma dimensão ética que
adquire maior relevância nas obras que compõem o Ciclo da Revolta.
Consciência do Absurdo e Revolta fundam um atitude diante do mundo, uma ética. Ou
seja, mesmo se Camus rejeita a realidade de uma essência ou de valores que existiriam fora
dos atos humanos, mesmo se ele se reconhece ateu e critica a moral abstrata, rejeita
igualmente a atitude niilista e tenta definir uma moral laica. Neste sentido, uma passagem das
Lettres à un ami allemand é significativa:
Vous n‘avez jamais cru au sens de ce monde et vous en avez tiré l‘idée que
tout était équivalent et que le bien et le mal se définissaient selon qu‘on le
voulait. Vous avez supposé qu‘en l‘absence de toute morale humaine ou
divine les seules valeurs étaient celles qui régissaient le monde animal, c‘est-
à-dire la violence et la ruse. [...] J‘ai choisi la justice au contraire, pour rester
fidèle à la terre. Je continue à croire que ce monde n‘a pas de sens supérieur.
Mais je sais que quelque chose en lui a du sens et c‘est l‘homme, parce qu‘il
est le seul être à exiger d‘en avoir. Ce monde a du moins la vérité de
l‘homme et notre tâche est de lui donner ses raison contre le destin lui-même
(CAMUS, 1965, p.240).
196
Através de personagens como Rieux e Tarrou, La Peste nega o dogmatismo e a
abstração, a violência e o crime, as ideologias dos Estados totalitários, mas critica igualmente
a passividade e o conformismo, defendendo a luta contra a injustiça e a opressão, numa
demonstração da exigência de transformação social. Ante as três possíveis respostas ao
Absurdo: a morte (suicídio ou homicídio), a esperança (ou toda espécie de fuga metafísica) e
a Revolta, esta última é a única aceita por Camus. Diante do sofrimento e da consciência de
pertencer a uma coletividade, a Revolta é a primeira evidência que tira o indivíduo da sua
solidão. A peste, por um lado, é aquilo que desagrega a comunidade, ou seja, aquilo que
atenta contra o viver-junto; por outro lado, é ela que exige que os homens se lancem juntos na
ação e que tenham uma conduta solidária, em favor dos interesses da coletividade.
Na Peste, as formações sanitárias voluntárias, separadas dos serviços oficiais (mal
organizados, ineficazes e inadaptados), pouco a pouco, agregam quase todos os personagens
que, com a exceção maior que é Cottard, comprometem-se com a luta contra a doença, que
simboliza o mal. Desta maneira, a recusa de se resignar ao mal é a base de uma moral da
solidariedade, da responsabilidade e da resistência.
A ética derivada do Absurdo e da Revolta apresenta outros componentes, como a
exigência de lucidez. As obras de Camus convidam a uma tomada de consciência do Absurdo:
vida cotidiana repetitiva e desprovida de sentido, existência sujeita ao tempo, o escândalo da
morte. Daí a crítica da ordem social (os juízes de L'Étranger praticam a injustiça para salvar
as convenções), das concepções religiosas (como as do padre Paneloux) e da ação
revolucionária que recai na opressão e no crime (como o stalinismo).
Esta busca da lucidez vem junto com a exigência de sinceridade, vista como um valor
que fundamenta a autenticidade de comportamento. Nos romances de Camus, encontramos
uma sátira das linguagens estereotipadas ou marcadas pela convenção, como a dos juízes e
padres. Durante seu processo, Meursault dá aos juízes respostas de uma franqueza completa,
197
ao passo que a oratória teatral dos juízes configura em L'Étranger a linguagem da enganação.
Toda a tragédia ocorrida no Malentendu é conseqüência de uma brincadeira que corresponde
a uma falta de sinceridade. À palavra demasiado convencional, os heróis de Camus preferem
em certos casos a intensidade de um silêncio.
Outra componente da ética camusiana é a exigência de uma conduta solidária. La
Peste nos mostra homens que se lançam na ação e na luta. Mesmo se esta atividade é de certa
forma desesperada, visto que todas as vitórias são sempre provisórias. Por sua luta contra o
flagelo, o homem mais simples, representado pelo personagem Grand, revela sua grandeza e
sua dignidade, encontrando uma razão de viver no exercício da solidariedade.
Na linha da reflexão ética da autenticidade e da solidariedade compreende-se a opinião
de Camus – que vai de par com sua atitude coerente enquanto artista engajado, uma vez que
ele nunca cessou de reagir aos problemas de seu tempo – segundo a qual ninguém é política e
moralmente neutro, pois não é possível manter-se ausente dos jogos de forças antagônicas da
sociedade. Neste sentido, não se levantar contra a corrente política injusta e predominante
numa sociedade configura-se de alguma forma como aprovação que reforça a perpetuação
dessa mesma tendência predominante.
Na introdução ao segundo volume das obras completas de Albert Camus da
Bibliothèque de la Pléiade, Roger Quilliot, ao explicar a escolha feita para o critério de
apresentação dos textos do autor, afirma que toda classificação se mostra um pouco arbitrária,
pois a política não se separa em Camus da reflexão filosófica e moral, nem da reflexão sobre a
arte ou da pesquisa literária. Este aspecto de uma reflexão diversificada, com temas
recorrentes que perpassam várias obras, ensaísticas e ficcionais, é válido sobretudo para a
reflexão filosófica de aspecto ético, que se encontra disseminada em vários textos do autor e
adquire maior relevância nos textos que compõem o Ciclo da Revolta. Este aspecto ideológico
está presente também nos romances e nas peças de teatro, mesmo se a literatura, para ele,
198
nunca é apenas uma maneira de exprimir idéias. Camus não propõe sistema nem programa:
artista, jornalista, intelectual, ele propõe valores, exigências próprias da democracia e
interpela as forças políticas, a começar pela esquerda, a que chama sua família.
Se a época moderna pode ser caracterizada como um tempo em que tudo é absurdo,
mas nada é escandaloso, porque todos se acostumam a tudo, podemos caracterizar por
oposição o pensamento de Camus, para quem o Absurdo é sempre escandaloso. Discutindo a
Revolta que implica o Absurdo, Camus combate todo conformismo e toda indiferença ante a
injustiça e a opressão. Ele propõe ao mesmo tempo a tolerância ante as diferenças pessoais e a
capacidade de indignar-se diante de uma sociedade baseada nas desigualdades. Se o Absurdo
é sempre um escândalo, que nunca deve ser aceito como natural, a tendência mais perigosa é
o conformismo. Perigo apontado na Peste:
Nos concitoyens s'étaient mis au pas, ils s'étaient adaptés, comme on dit,
parce qu'il n'y avait pas moyen de faire autrement. Ils avaient encore,
naturellement, l'attitude du malheur et de la souffrance, mais ils n'en
ressentaient plus la pointe. Du reste, le docteur Rieux, par exemple,
considérait que c'était cela le malheur, justement, et que l'habitude du
désespoir est pire que le désespoir lui-même (CAMUS, 1962, p.1366).
Esta dimensão ética presente na Peste não deixa de estar ligada à dimensão estética
num escritor que afirma que a nobreza do ofício de escritor está na resistência à opressão e
para quem o senso de beleza é inseparável de um certo senso de humanidade.
199
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Consulta e impressão de textos em 25/07/2006. Textos de D. MAINGUENEAU:
"Typologie des genres de discours"; "L'Ethos, de la rhétorique à l'analyse du discours";
"Scénographie épistolaire"; "L'Énonciation philosophique comme institution discursive";
"Linguistique et littérature: le tournant discursif" e "Self-constituting discourses".