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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO Nilson Adauto Guimarães da Silva A REVOLTA NA OBRA DE ALBERT CAMUS: Posicionamento no campo literário, gênero, estética e ética Rio de Janeiro 2008

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

Nilson Adauto Guimarães da Silva

A REVOLTA NA OBRA DE ALBERT CAMUS: Posicionamento no campo literário, gênero, estética e ética

Rio de Janeiro

2008

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Nilson Adauto Guimarães da Silva

A REVOLTA NA OBRA DE ALBERT CAMUS: Posicionamento no campo literário, gênero, estética e ética

Tese de doutorado apresentada ao Programa de

Pós-Graduação em Letras Neolatinas,

Faculdade de Letras, Universidade Federal do

Rio de Janeiro, como parte dos requisitos

necessários à obtenção do título de Doutor em

Letras Neolatinas, área de concentração

Estudos Literários Neolatinos, opção

Literaturas de Língua Francesa.

Orientadora: Professora Doutora Celina

Maria Moreira de Mello

Rio de Janeiro

Junho de 2008

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FICHA CATALOGRÁFICA

Silva, Nilson Adauto Guimarães da.

A Revolta na obra de Albert Camus: Posicionamento

no campo literário, gênero, estética e ética/ Nilson

Adauto Guimarães da Silva.- Rio de Janeiro: UFRJ/FL,

2008.

x, 220f.; 31cm.

Orientadora: Celina Maria Moreira de Mello

Tese (Doutorado) – UFRJ/FL Programa de Pós-

graduação em Letras Neolatinas, 2008.

Referências Bibliográficas: f. 199 – 210.

1. Albert Camus. 2. Revolta. 3. Estética. 4. Ética. I.

Mello, Celina Maria Moreira de. II. Universiade Federal

do Rio de Janeiro, Faculdade de Letras, Programa de

Pós-graduação em Letras Neolatinas. III. Título.

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Nilson Adauto Guimarães da Silva

A REVOLTA NA OBRA DE ALBERT CAMUS:

Posicionamento no campo literário, gênero, estética e ética

Tese de doutorado apresentada ao Programa de

Pós-Graduação em Letras Neolatinas,

Faculdade de Letras, Universidade Federal do

Rio de Janeiro, como parte dos requisitos

necessários à obtenção do título de Doutor em

Letras Neolatinas, área de concentração

Estudos Literários Neolatinos, opção

Literaturas de Língua Francesa.

Rio de Janeiro, 19 de junho de 2008

____________________________________________________

Celina Maria Moreira de Mello, Professora Doutora,

Universidade Federal do Rio de Janeiro

____________________________________________________

Vera Lúcia de Carvalho Casa Nova, Professora Doutora,

Universidade Federal de Minas Gerais

____________________________________________________

Henrique Cairus, Professor Doutor,

Universidade Federal do Rio de Janeiro

____________________________________________________

Pedro Paulo Garcia Ferreira Catharina, Professor Doutor,

Universidade Federal do Rio de Janeiro

____________________________________________________

Latuf Isaias Mucci, Professor Doutor,

Universidade Federal Fluminense

___________________________________________________

Ângela Maria da Silva Corrêa, Professora Doutora,

Universidade Federal do Rio de Janeiro

____________________________________________________

Irineu Eduardo Jones Corrêa, Professor Doutor,

Fundação Biblioteca Nacional

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AGRADECIMENTO

À Professora Celina e ao Professor Henrique, pela confiança e pela cooperação sem as quais

não se teria realizado este trabalho;

A meus pais, por me ensinarem a importância de aprender, aos meus irmãos pela fraternidade

sincera, ao Rodolfo pelo companheirismo, aos meus amigos pela amizade essencial à vida.

À CAPES pela bolsa.

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"On ne trouve de meurtriers que par exception parmi les artistes."

(CAMUS, Albert. L'Homme révolté. In: Essais. Paris: Gallimard, 1965. Bibliothèque de

la Pléiade, p.678)

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RESUMO

SILVA, Nilson Adauto Guimarães da. A Revolta na obra de Albert Camus:

Posicionamento no campo literário, gênero, estética e ética. Rio de Janeiro, 2008. Tese.

(Doutorado em Letras Neolatinas, área de concentração Estudos Literários Neolatinos, opção

Literaturas de Língua Francesa) - Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de

Janeiro, Rio de Janeiro, 2008.

Estudo da noção de Revolta desenvolvida por Albert Camus, de suas implicações éticas e

estéticas e de suas ligações com a noção de Absurdo, a partir de textos pertencentes a gêneros

diversos − ensaio, dramaturgia, narrativa: L'Homme révolté, Les Justes e L’État de siège, La

Peste. As obras de Camus fazem freqüentemente referência umas às outras. A valorização da

linguagem mítica e a utilização de elementos oriundos da cultura grega clássica nos textos de

Camus revelam seu contato com tal cultura. A produção literária do autor remete a conflitos

históricos e a tomadas de atitudes em favor da justiça social, temática presente também em

seus ensaios e textos jornalísticos. Seu posicionamento ante questões polêmicas da história

política gerou igualmente controvérsias com outros escritores, sobretudo com Jean-Paul

Sartre. Isto define o posicionamento do autor nos campos literário e filosófico, pois ele recusa

uma literatura indiferente aos problemas da sociedade e, mesmo recusando igualmente a

literatura de tese, realiza uma produção engajada, com uma diversidade de gêneros, na qual

transparece a defesa de princípios éticos, cujos valores maiores são a vida humana e a

solidariedade entre as pessoas. Servimo-nos, sobretudo, dos trabalhos de Dominique

Maingueneau, Fréderic Cossutta e Dominique Combe.

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RÉSUMÉ

SILVA, Nilson Adauto Guimarães da. A Revolta na obra de Albert Camus:

Posicionamento no campo literário, gênero, estética e ética. Rio de Janeiro, 2008. Tese.

(Doutorado em Letras Neolatinas, área de concentração Estudos Literários Neolatinos, opção

Literaturas de Língua Francesa) - Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de

Janeiro, Rio de Janeiro, 2008.

Étude de la notion de Révolte chez Albert Camus, les implications éthiques et esthétiques et

les rapports de celle-ci avec la notion d'Absurde, d'après des textes qui relèvent de différents

genres − essai, théâtre, récit: L'Homme révolté, Les Justes et L’État de siège, La Peste. Ces

oeuvres de Camus renvoient les unes aux autres. La mise en valeur du langage mythique et

l'utilisation d'éléments issus de la culture grecque classique dans les textes de Camus montrent

la présence de cette culture dans son oeuvre. La production camusienne a pour toile de fond

les conflits historiques et les prises de positions de l'auteur en faveur de la justice sociale,

thèmes que l'on retrouve aussi bien dans les essais philosophiques que dans les textes de

Camus journaliste. De telles prises de positions ont engendré des polémiques avec d'autres

écrivains, particulièrement avec Jean-Paul Sartre. C'est par le biais de la polémique que l'on

peut définir le positionnement de l'auteur dans les champs littéraire et philosophique; Camus

refuse une littérature coupée des problèmes sociaux et, même s'il refuse également une

littérature à thèse, il acomplit une oeuvre engagée, dans une diversité de genres, dans laquelle

on décèle la défense de principes éthiques, dont les valeurs majeures sont la vie humaine et la

solidarité entre les hommes. Pour cette thèse nous avons utilisé surtout les travaux de

Dominique Maingueneau, Fréderic Cossutta et Dominique Combe.

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ABSTRACT

SILVA, Nilson Adauto Guimarães da. A Revolta na obra de Albert Camus:

Posicionamento no campo literário, gênero, estética e ética. Rio de Janeiro, 2008. Tese.

(Doutorado em Letras Neolatinas, área de concentração Estudos Literários Neolatinos, opção

Literaturas de Língua Francesa) - Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de

Janeiro, Rio de Janeiro, 2008.

Study of Revolt notion developed by Albert Camus, its ethical and esthetic implications and

its linkings with Nonsense notion, both present in texts of different genres − essays, dramas

and novels: L'Homme révolté; Les Justes and État de siège; La Peste. These Camus' works

refer very often to each other. Using a mythic language and elements from classic Greek

culture, Camus reveals his contact with this culture. The literary texts of the author make

reference to historic conflicts and to his attitude for social justice, themes also present in his

essays and journalistic texts. His take of position in face of historical and political polemic

situations generated polemics with writers, mainly with Jean-Paul Sartre. So is defined

Camus' position in literary and philosophical fields, since he rejects the literature unconcerned

to social problems. Even though he also rejects the literature of thesis, his engaged

production, in different genres, reveals the defense of ethical principles whose greatest values

are human being's life and sympathy between people. We have used mainly theoretical works

of Dominique Maingueneau, Fréderic Cossutta and Dominique Combe.

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO .................................................................................................................. 1

2 O INTRADISCURSO ....................................................................................................... 16

2.1 ELEMENTOS POÉTICOS E TEÓRICOS ................................................................ 16

2.2 O DIÁLOGO DAS OBRAS ...................................................................................... 22

2.3 MORTE E ABSTRAÇÃO ......................................................................................... 30

2.4 CAMUS E A GRÉCIA CLÁSSICA .......................................................................... 34

3 A PESTE NA CIDADE MODERNA ............................................................................... 46

3.1 O GOSTO PELO VIVIDO ........................................................................................ 46

3.2 UMA CRÔNICA TRÁGICA .................................................................................... 58

3.3 ADVERSÁRIOS DO FLAGELO ............................................................................. 70

4 REVOLTA OU REVOLUÇÃO ........................................................................................ 79

4.1 A OPÇÃO DE CAMUS PELO ENSAIO .................................................................. 79

4.2 A REVOLTA ............................................................................................................. 84

5 O INTERDISCURSO ....................................................................................................... 92

5.1 CAMUS ET LES TEMPS MODERNES .................................................................. 92

5.2 A INTERINCOMPREENSÃO .................................................................................. 99

6 CAMUS ANTE OS GÊNEROS ..................................................................................... 106

6.1 GÊNEROS E ÍNDICES PARATEXTUAIS ............................................................ 106

6.2 TIPOLOGIA DOS GÊNEROS ................................................................................ 112

6.3 A BUSCA DA ORTODOXIA ................................................................................. 123

6.4 A INTERPENETRAÇÃO DOS GÊNEROS ........................................................... 141

7 CONCLUSÃO, AINDA UMA LIÇÃO DE ÉTICA ....................................................... 161

8 BIBLIOGRAFIA ............................................................................................................. 199

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1 INTRODUÇÃO

Em 1957, Albert Camus já era um escritor muito conhecido, graças sobretudo a seus

romances L'Étranger e La Peste, e graças a seu trabalho no jornal Combat, associado a sua

atividade de resistente; entretanto, quando o prêmio Nobel de literatura lhe foi concedido, não

era ainda possível imaginar a importância que assumiria o escritor no cenário literário francês

e mundial. Camus conheceu um destino literário excepcional e seus personagens adquiriram

uma dimensão mítica ao encarnarem, simbolicamente, atitudes paradigmáticas diante de

questões prementes e dramáticas, próprias de seu tempo, de maneira sóbria e expressiva;

ainda hoje é um escritor muito lido e estudado, sua obra permanece atual, atingindo os leitores

de nossos dias e oferecendo aspectos a serem desvelados ou explicitados.

Após optar por trabalhar sobre o autor em nossa pesquisa de pós-graduação em

estudos literários franceses, foi necessário escolher o corpus e fazer um recorte dele. Com a

necessidade de delimitar o objeto de estudo, levamos em conta uma divisão que o próprio

Camus faz de sua obra e a adotamos em suas linhas gerais; trata-se da distribuição de seus

textos principais em dois ciclos, o do Absurdo e o da Revolta. O primeiro compreende o

romance L’Étranger (1942), as peças de teatro Caligula (1944) e Le Malentendu (1944) e o

ensaio filosófico Le Mythe de Sisyphe (1942). O Ciclo da Revolta reúne o romance La Peste

(1947), as peças L'État de siège (1948) e Les Justes (1950) e o ensaio L'Homme révolté

(1951).

Na pesquisa em vistas à dissertação de mestrado, a qual versava sobre o caráter

paratópico do autor, a dimensão poética do ensaio, o Absurdo e suas implicações estéticas,

trabalhamos com a primeira etapa da obra camusiana que, em torno do tema do Absurdo,

encarna a Negação e se desenvolve nas formas romanesca, dramática e "ideológica" − este

termo é do autor que rejeita a denominação "filosófica" para seus ensaios. Para a tese de

Doutorado − que tem como tema a inserção de Camus nos campos literário e filosófico, seu

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interesse pela cultura grega clássica, suas opções de gêneros e a noção de Revolta, em seus

desdobramentos éticos e estéticos e em sua relação com a problemática do Absurdo −

tomamos a segunda etapa da obra de Camus, a tetralogia que desenvolve o tema da Revolta,

ou o Positivo, e configura-se também em gêneros diferentes, o romance, as peças de teatro e o

ensaio filosófico. Além destas obras, fazemos referência a algumas anotações autobiográficas

dos "carnets" do escritor e alguns de seus textos jornalísticos, que definem seu

posicionamento estético, corroboram suas posições de defesa da justiça social e atestam a

diversidade genérica de sua produção.

O estudo da teoria literária e da história da literatura nos fornece um instrumental

teórico valioso para a análise de obras literárias as mais diversas. A experiência pessoal e o

contato com os textos também nos sugerem que, para ser melhor compreendido e apreciado,

cada grande autor exige um estudo particular, que leve em consideração seu contexto sócio-

histórico, seus projetos e suas concepções éticas e estéticas.

As noções básicas do pensamento de Camus, o Absurdo e a Revolta, estão diretamente

associadas a aspectos biográficos do autor e ao momento histórico em que foram elaboradas;

estas noções remetem a uma reflexão acerca da condição humana, destacando os aspectos

existenciais e os limites da própria razão, e se exprimem numa forma ensaística, plena de

figuras próprias do texto poético, contraposta à tradição da filosofia sistemática e conceitual.

Estas noções, desenvolvidas nos ensaios, constituem o pano de fundo dos romances e das

peças de teatro, que se propõem como texto literário autônomo, e não como obras de tese nem

simples meio de difusão de uma doutrina filosófica. Os textos jornalísticos, mais diretamente

ligados aos acontecimentos da história, constituem espaço privilegiado em que o autor

desenvolve uma reflexão relacionada com aquela presente nos ensaios.

Construindo um estilo e uma produção muito próprios, expressão da liberdade de

quem não se prende às exigências legitimadoras e limitadoras das instituições, Camus acaba

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por ocupar um lugar privilegiado no campo da filosofia e, particularmente, no campo da

literatura francesa do século XX. O momento agitado e violento no qual viveu, da mesma

forma que seu percurso intelectual, refletem-se em seus textos. Por isso levamos em conta a

importância dos elementos históricos na obra de Camus e inserimos nossa análise de suas

obras no conjunto de sua produção e no contexto de sua biografia. Camus foi extremamente

comprometido com seu tempo e engajado politicamente, entendendo-se aqui política em seu

sentido amplo. Os textos produzidos por ele, os quais o produziram enquanto escritor, estão

articulados com seu itinerário de intelectual que, inicialmente à margem das instituições

acadêmicas oficiais, torna-se mais tarde um autor consagrado. Tentamos assim articular os

campos da filosofia, da literatura e do jornalismo em Camus com o contexto conturbado no

qual ele viveu.

Buscamos desenvolver a noção de Revolta nos seus desdobramentos éticos e estéticos

e na sua relação com o Absurdo, ou seja, no movimento de passagem do Absurdo à Revolta.

Pretendemos considerar o papel das imagens e dos conceitos nos ensaios de Camus, abordar a

questão dos gêneros e do interdiscurso, e levar em conta a noção de campo, buscando as

relações entre as produções textuais e as instituições sócio-literárias. Ou seja, buscamos

caracterizar o posicionamento do autor nos campos literário e filosófico, compreendendo de

que forma, para ele, as origens, o percurso intelectual e a carreira se relacionam com a obra. A

liberdade com que Camus ―ensaia‖ suas técnicas de escrita e com que entrelaça gêneros e

campos diversos está associada à sua posição no espaço acadêmico. Além disso, sua inserção

―paratópica‖ nos campos literário e filosófico está intimamente relacionada com a dimensão

sócio-histórica de suas obras e com o aspecto ético desenvolvido, sobretudo, no Ciclo da

Revolta. Para abordarmos a noção de campos e o posicionamento do autor, bem como a

temática da polêmica como interdiscurso, valemo-nos, principalmente, de trabalhos da

Análise do Discurso, como aqueles de Dominique Maingueneau e de Fréderic Cossutta. Para

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tratarmos dos gêneros e das opções de Camus em face deles, valemo-nos, sobretudo, dos

trabalhos de Gérard Genette e de Dominique Combe.

Nosso trabalho se divide em cinco capítulos. No primeiro, apresentamos o conjunto

das obras principais de Camus e a interação entre tais obras, pertencentes a gêneros e a

campos diferentes; fazemos referências à produção de Camus nos gêneros dramático − com as

peças Les Justes e L'État de siège − jornalístico e autobiográfico; buscamos destacar os temas

mais valorizados e mais recorrentes e a importância da cultura grega para o autor. No segundo

capítulo abordamos o romance La Peste, com três subdivisões relativas a seus aspectos

autobiográfico, mítico-histórico e ideológico; no terceiro, o ensaio filosófico, L'Homme

révolté. No quarto abordamos as polêmicas que envolveram o autor, sobretudo aquela

suscitada pela publicação de L'Homme révolté, em 1951, e tratamos do diálogo tenso de

Camus com a tradição filosófica e com o marxismo que predominavam nos espaços

acadêmicos da época. No quinto capítulo, enfim, detemo-nos mais detalhadamente na

problemática genérica. Na conclusão desenvolvemos ainda alguns aspectos da ética em

Camus.

As citações dos textos de Camus são retiradas da edição ―Pléiade‖, da editora

Gallimard, o volume contendo teatro e narrativas com publicação de 1962, e o volume

contendo os ensaios com publicação de 1965. Trata-se da melhor edição para fins de pesquisa

por conter numerosas notas e textos introdutórios. Passamos a enumerar as principais obras de

teoria literária e sobre Albert Camus de nossa revisão bibliográfica.

Em Camus par lui-même (Paris: Seuil, 1963) Morvan LEBESQUE dedica à biografia

de Camus a parte inicial do livro, que é bastante longa em relação às demais e é permeada por

algumas citações do autor. Lebesque descreve a Argélia, desde a época de nascimento de

Camus até a independência da França, aborda os primeiros anos de estudos do autor e sua

iniciação no jornalismo e no teatro. Ao final desta primeira parte há uma abordagem de Noces

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à Tipasa. A partir de então, Lebesque passa à análise de L'Étranger, de Le Malentendu, de

Calígula e de Le Mythe de Sisyphe. Ele aborda, em seguida, a atividade de Camus no jornal

Combat e sua atuação na Resistência francesa durante a Segunda Guerra. Na seqüência, trata

das obras La Peste, L'État de Siège, Les Justes e L'Homme Révolté, fazendo rápida menção à

polêmica de Camus com Sartre. Daí, passa ao estudo de outras obras, como L'Exil et le

Royaume, La Chute e as adaptações feitas por Camus para o teatro, voltando ao conflito na

Argélia antes da separação da França. Finalmente, discute questões como o pensamento, o

estilo e a visão de literatura em Camus. Ao longo do livro, destacam-se aspectos da História

do século XX e da biografia do autor.

Com uma construção bastante próxima da deste livro, analisamos Camus, de Jean-

Claude BRISVILLE (Paris: Gallimard, 1959). Como vários outros dedicados ao escritor, são

livros de abordagem bastante geral, não muito aprofundada, que lembram o tratamento dos

manuais de literatura, mesmo se mais desenvolvidos, e cujo objetivo parece ser uma

apresentação do escritor e de seus textos principais, sem o embasamento de teorias literárias.

Nesta linha bio-bibliográfica pode-se mencionar ainda Albert Camus, La mer et les prisons,

de Roger QUILLIOT (Paris: Gallimard, 1956) um ensaio, bastante original, pioneiro em

algumas considerações retomadas e aprofundadas por outros estudiosos. Le Cas Albert

Camus, de Anne DURAND (Paris: Fischbacher, 1961), também entre os primeiros estudos

dedicados a Camus, de estilo ensaístico, em que a autora estuda as obras agrupadas nos ciclos

do Absurdo e da Revolta, seguindo a ordem cronológica de publicação. E, finalmente, Albert

Camus soleil et ombre, de Roger Grenier (Paris: Gallimard, 1987), um ensaio premiado, bem

mais recente e mais completo, em que o autor destaca na biografia de Camus e na História de

seu tempo os elementos mais diretamente ligados a suas obras; Roger Grenier aborda todas as

obras de Camus, com exceção de Le Premier Homme, à época ainda não publicado, seguindo

a ordem cronológica de publicação.

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Ainda nesta linha bio-bibliográfica podem ser citados Albert Camus tel qu'en lui-même

de François CHAVANES (Blida: du Tell, 2004) e Albert Camus et l'Algérie de Christiane

CHAULET–ACHOUR (Alger: Barzakh, 2004), autora argelina e atualmente professora em

Cergy-Pontoise. Ambos os livros, bastante recentes, foram publicados na Argélia. O segundo

apresenta uma análise mais aprofundada e destaca a presença do espaço e de elementos

argelinos nos textos de Camus, como em Noces, L'Étranger e Le Premier Homme. Além

disso, a autora mostra as relações de filiação, fraternidade ou rivalidade entre escritores

argelinos, contemporâneos ou posteriores, com Camus ou com sua obra; mostra ainda de que

maneira Camus se tornou uma referência quase obrigatória na Argélia, sendo que muitos

autores argelinos, ora o aprovando, ora o reprovando, fazem menção mais ou menos direta a

ele, e produzem obras que apresentam uma intertextualidade com as obras camusianas; é o

caso de escritores como Mohammed Dib, Taleb Ibrahimi, Blanche Balain, Emmanuel Roblès,

Jean Pélégri, René-Jean Clot, Marcel Moussy, André Rosfelder, Mouloud Feraoun, Kateb

Yacine.

Entre os primeiros trabalhos dedicados a Camus podemos destacar uma edição

especial da NRF, Hommage à Albert Camus 1913-1960 (nº 87, 1er. Mars 1960) com artigos

divididos em duas partes, L'homme e L'oeuvre, de cerca de cinqüenta escritores,

personalidades ou amigos de Camus, entre os quais Maurice Blanchot, Jean Grenier,

Emmanuel Roblès, Roger Grenier, Jean Starobinski, William Faulkner e Giacomo Antonini.

Publicada logo após a morte de Camus, a coletânea apresenta artigos extremamente diversos,

desde a lembrança de algum momento da vida de Camus rememorado por um amigo, relatos

de sua atividade jornalística e de teatro, até estudos ao mesmo tempo despretensiosos, mas

ricos em informações e em avaliações, sobre determinado aspecto ou determinado texto da

obra do autor. Nesta mesma linha se enquadra outra obra coletiva, publicada pela Librairie

Hachette (Camus, Paris: Hachette, 1964), com artigos de nove autores (René Marill Albérès,

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Pierre de Boisdeffre, Jean Daniel, Pierre Gascar, Morvan Lebesque, André Parinaud,

Emmanuel Roblès, Jules Roy e Pierre-Henri Simon). Também como uma homenagem ao

autor, com cinco seqüências de numerosas fotos e ilustrações, este livro, embora retomando

aspectos biográficos (como o engajamento, o envolvimento com o jornalismo e o teatro)

desenvolve com mais profundidade algumas de suas obras, e apresenta um interesse

acadêmico maior do que aquele da NRF.

Em Narrateur et narration dans L'Étranger d'Albert Camus – Analyse d'un fait

littéraire (Paris: Archives des Lettres Modernes nº 34, 1960) Brian T. FITCH faz uma análise

minuciosa do romance, destacando sua ambigüidade e os aspectos que o tornam "estranho",

como a diferença desconcertante entre a narração e o conteúdo desta narração. Embora

dedicado a L'Étranger, Fitch faz em seu livro referências a outras obras de Camus e toma

como ponto de partida o artigo de Sartre, "Explication de L'Étranger", publicado pela

primeira vez em 1943 e retomado em Situations I (Paris: Gallimard, 1947), que constitui uma

análise favorável, séria e aprofundada do romance, feita em contraponto com o ensaio Le

Mythe de Sisyphe, a primeira realizada por um crítico de renome.

Próximo da análise de Fitch, mas nalguns momentos se opondo a ela, encontra-se

L'Art du récit dans l'Étranger d'Albert Camus (Paris: A. G. Nizet, 1996), de M.-G.

BARRIER. Concentrando-se em L'Étranger, este autor também faz algumas referências a

outras obras de Camus e analisa o romance do ponto de vista da "maneira de escrever e de

contar" escolhida pelo autor. Barrier destaca de que maneira o romance parece romper com a

linguagem literária e com as marcas típicas do romanesco.

Les envers d'un échec – Étude sur le théâtre d'Albert Camus (Paris: Lettres Modernes,

1967), de Raymond GAY-CROSIER, é um dos primeiros escritos de um crítico que se tornou

especialista da obra de Camus e que vem publicando sobre ele, ao longo dos anos, numerosos

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trabalhos. O autor analisa os escritos de teatro de Camus, fazendo referências a outros textos e

a seu pensamento filosófico, sobretudo no que diz respeito à concepção do Absurdo.

Pour connaître la pensée de Camus (Paris-Montréal: Bordas, 1964), é uma obra em

que Paul GINESTIER se propõe, a partir da filosofia dos Ensaios de Camus, a mostrar como e

por quê o artista produziu uma obra engajada. Ginestier justapõe aos pontos de partida

filosóficos variados trechos das obras literárias, buscando assim desvelar os aspectos que

considera mais importantes da criação artística de Camus.

Anne-Marie AMIOT & Jean-François MATTÉI são os organizadores de Albert Camus

et la philosophie (Paris: PUF, 1997) e também seus colaboradores. O livro é composto de 16

artigos de autores diferentes, mas de mesmo tema. Trata-se de um dos poucos trabalhos, pelo

que conhecemos, que, discutindo aspectos lingüísticos, de estilo e de gênero, propõem-se a

analisar com seriedade os ensaios de Camus como obra propriamente filosófica. Os ensaios de

filosofia de Camus são abordados sobretudo em sua relação com a ética, com a política, com

o pensamento sistematizado e com o texto poético.

Outra obra que sublinha a reflexão filosófica de Camus, principalmente sua dimensão

ética, é Albert Camus – Um elogio do ensaio, de Manuel da Costa PINTO (São Paulo: Ateliê,

1998). O trabalho se divide em duas partes, sendo que na primeira o autor se dedica ao estudo

do gênero ensaio, retomando sua origem francesa em Montaigne, passando por Lukács e

Adorno e destacando sua dimensão de gênero fronteiriço, entre filosofia e texto ficcional ou

literário. Na segunda parte o autor se concentra na análise dos ensaios de Camus,

particularmente Le Mythe de Sisyphe e L'Homme révolté.

A obra Albert Camus e o teólogo (São Paulo: Carrenho, 2002), de Howard MUMMA,

destaca o aspecto humanista do pensamento de Camus, mas é bastante tendenciosa ao discutir

sua biografia. O autor, pastor protestante da Igreja Metodista (Americana) em Paris, teria tido,

na década de 50, encontros com Sartre e com Camus e descreve, sobretudo, suas conversas

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com Camus, apresentando-o como prestes a se converter ao cristianismo, às vésperas de sua

morte. Assim, trata-se de uma obra bastante suspeita, pela tentativa de "cristianizar"

postumamente Camus e por um excessivo escrúpulo religioso (por exemplo, fazendo menção

à visita do escritor ao Brasil, Mumma se refere ao ritual de macumba ao qual assistiu Camus

como sendo um "baile negro").

Camus à Combat, da série Cahiers Albert Camus nº 8 (Paris: Gallimard, 2002), é uma

coletânea completa dos artigos de Camus publicados no jornal Combat e não coincide

exatamente com aquela publicada na edição da coleção Pléiade. Os artigos estão dispostos

por ordem cronológica de publicação, mas a obra apresenta um "agrupamento temático",

sendo os artigos classificados em temas como "A libertação de Paris", "A continuação da

Guerra", "Política interna", "Política externa","Moral e política", etc., com títulos que

remetem à pagina em que se encontram. Esta coletânea traz ainda um longo prefácio,

apresentação e anotações de Jacqueline Lévi-Valensi, uma grande especialista de Camus.

Albert Camus une vie, de Olivier TODD (Paris: Gallimard, 1996) é uma vastíssima

biografia do autor, a mais recente e completa. De leitura às vezes difícil, devido à profusão de

detalhes que podem parecer irrelevantes ao leitor, a obra constitui, porém, um instrumental

valioso para os estudiosos. Além da precisão de datas, lugares e acontecimentos históricos ou

pessoais, Todd discute várias obras do autor, ainda que um pouco superficialmente,

contextualizando-as bem. Além de muitíssimas notas, o livro apresenta uma rica bibliografia

seletiva e um prático índice de nomes de autores e personalidades.

Os trabalhos de Jean-Paul SARTRE, Explication de L'Étranger e Réponse à Albert

Camus, retomados respectivamente em Situations I (Paris: Gallimard, 1947) e Situations IV

(Paris: Gallimard, 1964) e a compilação de artigos: Un théâtre de situations (Paris: Gallimard,

1992), com textos reunidos, apresentados e anotados por Michel Contat e Michel Rybalka,

bem como o livro de Francis JEANSON, Sartre. Rio de Janeiro: José Olympio, 1987, são

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úteis em nosso trabalho quando analisamos as relações deste autor com Camus, em particular

a polêmica entre os dois, depois da publicação de L'Homme révolté.

Acerca das relações e da polêmica entre Camus e Sartre, Ronald ARONSON, um

especialista norte-americano da obra de Sartre, publicou um vastíssimo livro (Camus &

Sartre, amitié et Combat. Paris: Alvik, 2005). Aronson acompanha o contato dos dois autores

desde que se encontraram em 1943 até depois da morte de Camus, pois julga que Sartre

continua fazendo referências ao adversário já morto, e sublinha que esta relação foi muito

mais próxima e muito mais forte do que se tem reconhecido. Trata-se de uma obra importante

e esclarecedora em muitos aspectos. Nela, Aronson denuncia o caráter partidário com que a

polêmica foi abordada por outros autores, entretanto ele próprio parece não alcançar a

objetividade desejada; especialista em Sartre, parece demonstrar uma preferência pela opções

políticas de Camus, mas, ao final do trabalho, apresenta como um engano gravíssimo a atitude

de Camus, de silêncio e de oposição à separação total em relação à França, durante a guerra

de independência da Argélia, atenuando, por outro lado, os silêncios e as "ilusões" de Sartre,

quando de sua defesa do stalinismo e de seus métodos, ilusões hoje apontadas por vários

autores como Michel Winock.

O livro de Michel WINOCK, Le Siècle des intellectuels (Paris: Seuil, 1999), traça a

história dos intelectuais franceses no século XX, iniciando-se, na verdade, na última década

do século XIX, com a questão Dreyfus, e prolongando-se até 1997, ano em que foi publicado

pela primeira vez. Constitui-se um material fundamental para se estabelecer datas e para se

situar em relação aos grandes movimentos políticos e aos grandes conflitos que marcaram o

século XX; com o posicionamento de muitos escritores, como Émile Zola, Maurice Barrès,

Anatole France, Charles Péguy, André Gide, André Malraux, Jean-Paul Sartre, Albert Camus,

Raymond Aron, François Mauriac, em relação às correntes ideológicas, políticas e literárias.

O livro traça ainda um histórico de editoras e de revistas, algumas destas publicadas até hoje.

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A revista Europe publicou um número dedicado a Albert Camus (77e. année – nº

846/Octobre 1999). São cerca de 20 artigos sobre os mais diversos temas presentes na obra de

Camus, os quais tratam da juventude do autor em Argel até aspectos de Le Premier homme.

Entre os autores, há grandes especialistas de Camus, como Jacqueline Lévi-Valensi, Pierre-

Louis Rey, Fernande Bartfeld, Jeanyves Guérin, Anne-Marie Amiot, Raymond Gay-Croisier,

Christiane Chaulet-Achour e Olivier Todd.

Écriture autobiographique et carnets: Albert Camus, Jean Grenier, Louis Guilloux

(Bédée: Folle Avoine, 2003) é o resultado de um encontro em Lourmarin, em 5 e 6 de outubro

de 2001. Os artigos dedicados a Camus destacam a importância da escrita autobiográfica para

o autor, que mantinha em seus Carnets numerosas anotações, posteriormente retomadas em

sua obra literária.

Em L'Effet tragique, essai sur le tragique dans l'oeuvre de Camus (Champion-

Slatkine: Paris-Genève, 1988) a autora, Fernande BARTFELD, volta-se não só para as peças

de teatro de Camus, como também para os textos de outros autores que ele adaptou para o

teatro; ela analisa ainda outros textos do autor, como L'Étranger, La Peste, La Chute e Le

Premier Homme, e concede uma atenção especial aos escritos "perigráficos" e ao tema do

mal-entendido, título de uma de suas peças e situação que o autor temia e da qual tentava em

vão escapar. A autora faz numerosas críticas a Camus, destacando aquilo que, para ela, torna

suas peças, sobretudo Caligula, mais próximas do melodrama do que da tragédia.

Camus L'absurde, la révolte, l'amour, de Arnaud CORBIC (Paris: L'Atelier, 2003) nos

pareceu uma das obras mais ricas, do ponto de vista da abordagem filosófica, publicadas nos

últimos anos. O autor, frade franciscano, filósofo e teólogo, demonstra uma honestidade

intelectual admirável e, sem forçar uma cristianização de Camus, desenvolve os temas básicos

do pensamento do autor, destacando sua superação do niilismo e sua abertura a um novo

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humanismo. Como o título indica, o autor valoriza muito apropriadamente a classificação que

Camus fez de sua obra, dividindo-a em três ciclos.

Alguns livros, mesmo não abordando diretamente a obra de Camus, nos ajudaram na

compreensão de movimentos políticos, sociais e culturais que compuseram o ambiente do

autor, tal é o caso de Condition de l’homme moderne, de Hannah ARENDT (Paris: Calmann-

Lévy, 1994). A autora desenvolve uma reflexão bastante próxima nalguns pontos daquela de

Camus, discutindo as noções de civilização, trabalho, ação, violência, papel da linguagem e

fazendo uma análise histórica dos sistemas totalitários, criticados por Camus. A autora,

considerando a singularidade da existência humana e ao mesmo tempo a objetividade do

mundo, desenvolve uma espécie de antropologia sociológica, destacando o valor da vida

como bem soberano e a importância do coletivo, do social e do político, aspectos valorizados

por Camus, como no romance La Peste. Na mesma linha do livro anterior, podemos citar

Communisme, anarchie et personnalisme, de Emmanuel MOUNIER (Paris: Seuil,1966). Em

Malraux Camus Sartre Bernanos – L‘espoir des désespérés, (Paris: Seuil, 1953) Emmanuel

MOUNIER aborda diretamente Camus, comparando-o com os outros escritores tratados, mas

sublinhando bem as particularidades de seu pensamento, sobretudo a reflexão desenvolvida

no Mythe de Sisyphe, em torno do Absurdo.

Para discutirmos o envolvimento de Camus com o campo do teatro e, particularmente,

da tragédia e sua filiação à cultura grega clássica, nossas leituras foram: Poétique des mythes

dans la Grèce antique (Paris: Hachette, 2000) de Claude CALAME; A Mitologia grega (São

Paulo: Brasiliense, 1982) de Pierre GRIMAL; Mythes, rêves et mystères (Paris:

Gallimard,1957), Aspects du mythe (Paris: Gallimard, 1963) e Mito e realidade (São Paulo:

Perspectiva, 2002) de Mircea ELIADE; Linguagem e mito (São Paulo: Perspectiva, 1972) de

Ernst CASSIRER; Le théâtre et son double (Paris : Gallimard, 1964) de Antonin ARTAUD;

Modern Tragedy (California: Stanford University Press, 1966) de Raymond WILLIAMS e,

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finalmente, La naissance de la tragédie (Paris: Christian Bourgois, 1991) de Friedrich

NIETZSCHE, visto que Camus faz algumas alusões ao autor.

Camus et la politique, sob a direção de Jeanyves GUÉRIN (Paris: L‘Harmattan, 1986)

é uma obra coletiva, resultante do Colloque de Nanterre, realizado de 5 a 7 de junho de 1985.

No geral, os autores mostram como Camus enfrentou os grandes embates políticos e sociais

de seu tempo, com lucidez e coragem, destacando sua atuação durante a Segunda Guerra e

pós Liberação e suas posições ante a Guerra da Argélia e o nacionalismo argelino; tratam

ainda da relação de Camus com o comunismo e com o socialismo franceses e analisam a

recepção das obras de Camus na Polonha, Tchecoslováquia, Alemanha (RFA) e Itália.

Semelhante ao anterior, porém mais recente é o livro Les trois guerres d’Albert

Camus, sob a organização de Lionel DUBOIS (Poitiers: Pont-Neuf, 1995). Trata-se também

de uma obra coletiva, fruto do Colloque International de Poitiers, realizado de 4 a 6 de maio

de 1995 (o 1º colóquio internacional sobre Albert Camus). O encontro foi constituído de

mesas redondas temáticas e de conferências públicas, contando com a contribuição de

especialistas em Camus vindos da Argélia, Canadá, EUA, China e Europa. Os trabalhos são

distribuídos em três pólos, a Segunda Guerra Mundial (que apresenta as atividade de Camus

como jornalista e combatente), a Primeira Guerra Mundial (que descreve a juventude de

Camus e o itinerário de seu pai, morto em batalha) e a Guerra da Argélia (vista como uma

tragédia pelo autor de Noces). Em seu artigo, SHAOYI WU mostra como Camus e seus textos

foram proscritos da China popular, de 1949 a 1979.

Destacamos ainda a obra Albert Camus, la penseé de Midi, de Jacques CHABOT

(Aix-en-Provence: Edisud, 2002), em que o autor destaca os aspecto mediterrâneo e a

dimensão ética na obra de Camus. Fugindo aos lugares comuns e ao estilo de manual

presentes em muitas obras, Chabot desenvolve um ensaio extremamente original em que se

destaca a atualidade das posições assumidas pelo escritor na defesa da justiça social.

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Como embasamento teórico, nossas referências principais foram Descartes et

l’argumentation philosophique (Paris: PUF, 1996), sob a direção de Frédéric COSSUTTA,

em especial os textos deste autor, a introdução em que ele se pergunta sobre as condições de

possibilidade de uma teoria da argumentação filosófica e o capítulo "Argumentation, ordre de

raisons et mode d'exposition dans l'oeuvre cartésienne"; e o capítulo escrito por Dominique

Maingueneau que tem por título "Éthos et argumentation philosophique. Le cas du Discours

de la méthode".

Dos trabalhos de Dominique MAINGUENEAU nos valemos de Sémantique de la

polémique. Discours religieux et ruptures idéologiques au XVIIe Siècle (Lausanne: L‘Âge

d‘homme, 1983) e Génèses du discours (Bruxeles: Pierre Mardaga, 1984) para o estudo do

texto polêmico e de Eléments de linguistique pour le texte littéraire (Paris: Bordas, 1990), Le

contexte de l'oeuvre littéraire (Paris: Dunod, 1993) e Le discours littéraire. Paratopie et scène

d'énonciation (Paris: Armand Colin, 2004) para o estudo do texto literário.

Para desenvolvermos a questão dos gêneros foram-nos fundamentais as obras: Théorie

des genres, de Gérard GENETTE et alii. (Paris: Seuil, 1986) e Les genres littéraires, de

Dominique COMBE (Paris: Hachette, 1992).

Servimo-nos ainda de trabalhos como A Literatura francesa e a pintura (Rio de

Janeiro: 7 Letras-Faculdade de Letras/UFRJ, 2004), de Celina Moreira de MELLO e Quadros

literários fin-de-siècle, um estudo de Às avessas, de Joris-Karl Huysmans (Rio de Janeiro: 7

Letras-Faculdade de Letras/UFRJ, 2005), de Pedro Paulo Garcia Ferreira CATHARINA. Não

são livros sobre Albert Camus, mas nos são úteis e constituem um valioso instrumental

teórico, por lidarem com clareza e propriedade com noções da Análise do Discurso que nos

interessam diretamente.

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Foram-nos úteis, enfim, os textos publicados por Dominique Maingueneau na internet,

no site de seu grupo de estudos, o CEDITEC (Centre d’étude des discours, images, textes,

écrits, communications):

http://www.univ-paris12.fr/www/labos/ceditec/maingueneau.html

Os textos seguintes foram consultados e impressos em 25/07/2006: "Typologie des

genres de discours"; "L'Ethos, de la rhétorique à l'analyse du discours"; "Scénographie

épistolaire"; "L'Énonciation philosophique comme institution discursive"; "Linguistique et

littérature: le tournant discursif" e "Self-constituting discourses".

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2 O INTRADISCURSO

2.1 ELEMENTOS POÉTICOS E TEÓRICOS

Dividindo seus escritos principais em dois ciclos, do Absurdo e da Revolta, Camus

desenvolveu uma obra projetada para muitos anos e figurada sob várias formas. Ele se

exprimiu em três grandes gêneros: a narrativa sob forma de romances e contos, as peças de

teatro e os ensaios filosóficos ou críticos, além dos escritos jornalísticos. No próprio interior

da obra narrativa apresenta-se uma real variedade de modos de narração. Tratando em modos

discursivos diferentes uma problemática comum que confere unidade ao conjunto, Camus

transita pelos campos da literatura, da filosofia e do jornalismo, e seus textos de ficção dão

uma versão romanesca da reflexão filosófica que ele prossegue em seus escritos teóricos. Ele

conjuga a criação poética com a reflexão ideológica: seus romances e peças de teatro têm

como pano de fundo sua visão filosófica do Absurdo e da Revolta, seus ensaios filosóficos

apresentam os recursos e as imagens próprios dos textos poéticos.

Camus privilegia uma determinada concepção de literatura e também de filosofia,

propõe um diálogo entre os campos do saber e busca se definir por oposição aos romancistas

de tese e aos filósofos profissionais. Ele não vê a filosofia como discussão abstrata e

sistematizada, como doutrina fechada, mas como reflexão crítica sobre as questões que mais

diretamente atingem o homem, como um questionamento que pode estar presente em textos

poéticos.

Camus afirma que não é filósofo: ―Je ne suis pas un philosophe et je n‘ai jamais

prétendu l‘être‖ (CAMUS, 1965, p.743). É verdade que ele ―não crê o bastante na razão para

crer num sistema‖ e se recusa a entrar nas formas reconhecidas e tradicionais da filosofia. O

filósofo tenta dar respostas de maneira abstrata, o romancista encarna questões, mais que

respostas, na consistência do mundo concreto; Camus é acima de tudo um artista. Por outro

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lado, esta afirmação parece funcionar como uma forma de prevenção às exigências que são

impostas àqueles que se propõem como filósofos. Antes dele, Nietzsche se propunha

inicialmente como filólogo, na busca de ocupar um espaço no campo da filosofia.

Criticando o conceito abstrato e defendendo a imagem, Camus propõe uma imbricação

entre os campos. À época de sua publicação, a dimensão poética dos ensaios Le Mythe de

Sisyphe e L'Homme révolté foi interpretada como ausência de rigor filosófico, porque

prevalecia, na França, a tradição do discurso filosófico de caráter teórico, construído

sobretudo a partir de conceitos. No entanto, este ―modelo‖ de escrita filosófica foi

questionado, da mesma forma que a exigência de separação definida entre as áreas do saber.

Como observa Michel Foucault:

É preciso também que nos inquietemos diante de certos recortes ou

agrupamentos que já nos são familiares. É possível admitir, tais como são, a

distinção dos grandes tipos de discurso ou a das formas ou dos gêneros que

opõem, umas às outras, ciência, literatura, filosofia, religião, história, ficção

etc., e que as tornam espécies de grandes individualidades históricas? Nós

próprios não estamos seguros do uso dessas distinções no nosso mundo de

discursos, e ainda mais quando se trata de analisar conjuntos de enunciados

que eram, na época de sua formulação, distribuídos, repartidos e

caracterizados de modo inteiramente diferente: afinal, a ―literatura‖ e a

―polìtica‖ são categorias recentes que só podem ser aplicadas à cultura

medieval, ou mesmo à cultura clássica, por uma hipótese retrospectiva e por

um jogo de analogias formais ou de semelhanças semânticas; mas nem a

literatura, nem a política, nem tampouco a filosofia e as ciências,

articulavam o campo do discurso no século XVII ou XVIII, como o

articularam no século XIX (FOUCAULT, 2002, p.25).

A classificação que Camus confere a seus textos se revela importante e de alguma

forma portadora de sentido e a vemos como ainda mais significativa ao considerarmos que

não foi feita a posteriori, só depois da conclusão ou publicação das obras. Ao contrário disso,

sabemos através de seus comentários em conferências ou entrevistas e através de anotações

em seus Carnets, desde 1941, que tal organização ou divisão de seus escritos foi elaborada

bastante cedo e funciona como um plano, um projeto de trabalho que ele impõe a si mesmo a

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partir de determinado momento. Ele fala deste plano preciso num discurso em Estocolmo, em

1957, ao receber o prêmio Nobel:

J‘avais un plan précis quand j‘ai commencé mon oeuvre: je voulais d‘abord

exprimer la négation. Sous trois formes. Romanesque: ce fut L’Étranger.

Dramatique: Caligula, Le Malentendu. Idéologique: Le Mythe de Sisyphe.

[...] je prévoyais le positif sous les trois formes encore. Romanesque: La

Peste. Dramatique: L’État de siège et Les Justes. Idéologique: L’Homme

révolté (CAMUS, 1965, p.1610).

Mas há anotações datadas de 1947 e outras bem anteriores; assim, em 21 de fevereiro

de 1941, Camus escreve em seu Carnet: ―Terminé Sisyphe. Les trois absurdes sont achevés‖

(CAMUS, 1962, p.224). Já invocando o engajamento sócio-político de Camus e sua busca de

uma ética, Roger Grenier faz alusão às noções de Absurdo e Revolta, a partir das quais se

constrói o plano de conjunto em que se organiza sua obra:

Peut-être parce qu‘il était d‘origine très humble et qu‘il avait dû se battre

pour conquérir le droit à la culture, il ne pouvait se contenter d‘être un

artiste. Il n‘a rien d‘un dilettante, ni d‘un sceptique, ni d‘un cynique. Il

cherche à se faire du monde une vision cohérente, dont découlera une

morale, c‘est-à-dire une règle de vie. Si sa première analyse le conduit à

conclure à l‘absurde, ce n‘est pas pour s‘y complaire, mais pour chercher

une issue, la révolte, l‘amour (GRENIER, 1987, p.9).

Nas classificações de sua obra, Camus começa com L’Étranger, não mencionando

Révolte dans les Asturies (1936), L’Envers et l’endroit (1937), Noces (1938) e La Mort

heureuse. Há ainda Lettres à un ami allemand (1945) e as obras que são posteriores a

L’Homme révolté: L’Été (1954), La Chute (1956), Réflexions sur la guillotine (1957) (cujo

tema está presente particularmente em L’Étranger e na Peste), L’Exil et le royaume (1957)

(coletânea de contos, da qual faz parte La Pierre qui pousse, fruto de sua visita ao Brasil) e Le

Premier homme (1995). Os textos de Camus escritos para jornais, geralmente editoriais, e

seus ensaios políticos foram publicados sob o título de Actuelles (1950), Actuelles II (1953) e

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Actuelles III (1958). Os textos agrupados sob os dois ciclos são as obras principais do escritor

mais conhecidas, lidas e estudadas, os demais textos não obtiveram o mesmo estatuto.

Não abordamos diretamente estes textos, mas consideramos que o fato de Camus não

os mencionar em suas classificações não significa que ele os visse como desprovidos de valor

literário; certamente não os julgava suficientemente elaborados, sobretudo os do início de sua

carreira. Eles têm, contudo, sua importância, principalmente L’Envers et l’endroit, o primeiro

a ser publicado, na Argélia em 1937 e na França só em 1958, que apresenta em esboço os

grandes temas desenvolvidos em trabalhos posteriores. Camus via nesta pequena obra a fonte

secreta que alimenta tudo mais que escreve, daí sua importância para o estudo de outros

textos.

Camus nunca negou sua origem proletária e destacou mais tarde como os primeiros

textos escritos no ambiente da terra onde nasceu e da origem pobre são marcantes para seu

futuro como escritor:

Pour moi, je sais que ma source est dans l’Envers et l’Endroit, dans ce

monde de pauvreté et de lumière où j‘ai longtemps vécu et dont le souvenir

me préserve encore des deux dangers contraires qui menacent tout artiste, le

ressentiment et la satisfaction (CAMUS, 1965, p.6).

Le Premier homme (1995), sua última obra, de publicação póstuma e bastante tardia,

constitui uma obra inacabada e não se pode esquecer seu caráter de redação incompleta e

provisória. Além dos temas do Absurdo e da Revolta, Camus pretendia prolongar sua obra

numa terceira etapa, que a morte prematura o impediu de concretizar, cujo tema seria o Amor.

De acordo com o testemunho de amigos, Camus projetava um grande romance "mais

elaborado" e longo em torno do tema do amor. Conforme as palavras de Salvador de

Madariaga:

Et puis Camus possédait au plus haut degré une qualité qui marque le génie,

et qui n‘est autre que la modestie. Si le talent peut être vaniteux et fat, le

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génie est toujours modeste. Quelques semaines avant sa mort, à Paris, me

parlant d‘un grand projet littéraire qui occupait son esprit, il me dit tout

simplement, avec une gentillesse presque enfantine : "Je ne sais pas encore si

je trouverai en moi la force de le mener à bout." Voilà, me disais-je, en

regardant ses yeux droits, l‘attitude naturelle au génie vraiment créateur [...]

(MADARIAGA In : BLANCHOT et alii, 1967, p.148).

Há ainda o testemunho de Giacomo Antonini, que retoma os ciclos em que se divide a

obra do autor:

[...] il me traça brièvement le plan de toute son oeuvre. Première étape :

L’Étranger, Le Mythe de Sisyphe, Caligula et Le Malentendu, la même idée

développée de trois manières différentes dans le domaine du roman, celui de

l‘essai et au théâtre. Deuxième étape : La Peste, L’Homme révolté, Les

Justes, où sa prise de position, sa réaction contre l‘absurde de l‘existence

dénoncé dans les oeuvres de la première étape trouvait son expression. La

Chute et les nouvelles qu‘il allait réunir dans le volume L’Exil et le Royaume

étaient un intermède avant la troisième étape, qui serait la plus importante et

qui commencerait avec un roman, un véritable roman. De ce roman, il me

parla la dernière fois que nous nous vîmes, quelques semaines avant sa fin si

affreuse, brusque et inattendue. A ce roman, il attachait beaucoup de prix.

Un essai devait d‘ailleurs suivre plus tard. Comme je lui faisais remarquer

que les offres qui lui parvenaient de tous les côtés auraient interféré dans son

travail de romancier en retardant l‘exécution de son projet, il me dit : "Non,

j‘ai tout refusé et je refuserai tout en 1960. Ce sera l‘année de mon roman.

J‘ai tracé le plan et je me suis mis sérieusement au travail. Ce sera long, mais

j‘y parviendrai." (ANTONINI In : BLANCHOT et alii, 1967, p.172)

Ao receber o prêmio Nobel Camus afirma que não se considera um autor "acabado" e

que sua obra ainda está por vir. O projeto de um romance pode ser também deduzido das

notas em que projeta, na seqüência do tema da Revolta, o tema do amor. De toda forma,

cremos que o romance do qual Camus chegou a falar aos amigos não pode ser identificado

com Le Premier homme. Não podemos tecer considerações sobre a obra que ele não pôde

concretizar, mas a existência deste projeto, mesmo não levado a cabo, lança uma luz sobre a

obra existente.

Neste sentido, ao conceber a produção como uma globalidade em que as obras

dialogam e ao mesmo tempo parecem caminhar num crescendo, as primeiras funcionando

como uma espécie de treinamento executado com muita liberdade, podemos considerar toda a

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obra de Camus, inclusive os dois grandes romances que o tornaram mundialmente conhecido,

como ensaios, ou essais, no sentido que o francês revela melhor, por abarcar ao mesmo tempo

a dimensão mais geral e corriqueira de tentativa ou "ensaio" e a dimensão de gênero

inaugurado na França por Montaigne (mesmo se vai sofrendo modificações ao longo do

tempo, a ponto de hoje se poder distinguir entre ensaio filosófico, literário, lírico etc.). Além

disso, estes romances, mesmo não constituindo obras de tese, podem ser considerados como

portadores de uma dimensão filosófica ou "ideológica" que lhes é subjacente, um pouco à

maneira dos romances de André Malraux (na Peste, o Dr Rieux, Rambert e Tarrou são

personagens de ação, mas, como os heróis de Malraux, refletem muito sobre o sentido desta

ação) ou daqueles de José Saramago (para tomarmos um autor mais recente, e que intitula

justamente Ensaio sobre a cegueira um romance que apresenta em alguns momentos

semelhanças tocantes com La Peste).

As adaptações de peças para o teatro são textos também particulares, sob certo

aspecto. Não são totalmente obras de Camus, visto que ele parte de textos prontos. Mas as

modificações por ele efetuadas são sinais de seu trabalho criativo e marcas de seu estilo. Além

disso, a própria opção de Camus ao escolher determinados autores e determinadas obras, ao

invés de outros, já é significativa. Esta escolha é uma forma de aprovação. Ele adapta La

dévotion à la croix, de Calderón de la Barca (1952), Les Esprits, de Pierre de Larivey (1953),

Un cas intéressant, de Dino Buzatti (1955), Le Chevalier d’Olmedo, de Lope de Vega

(1957), Requiem pour une none, de William Faulkner (1957) e Les Possédés, de Dostoievski

(1959).

De fato, ele toma peças de autores que admira, sendo que reconhece uma espécie de

filiação a alguns deles, como é o caso de Malraux et Dostoievski. O primeiro espetáculo do

"Théâtre du Travail", vinculado ao Partido Comunista e fundado por Camus quando estava

ainda na Argélia, foi Le Temps du mépris, adaptação do texto de Malraux, publicado na

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França em 1935. Como afirma Roger Grenier, "Le Temps du mépris avait le mérite d‘être la

première oeuvre littéraire, en France, à traiter du nazisme et des ses horreurs" (GRENIER,

1987, p.39). A opção de Camus por esta peça, encenada em 1936, e cuja arrecadação foi

destinada a apoiar um grupo de desempregados, mostra o despertar bastante precoce de sua

consciência política. Além disso, Camus faz uma transposição de um gênero para outro, não

retoma apenas peças, mas adapta romances para o teatro. E dá características de peças ao

romance: vale lembrar a estrutura de La Peste, da qual trataremos adiante, que é semelhante à

de uma peça de teatro.

2.2 O DIÁLOGO DAS OBRAS

Buscamos nos concentrar em nossa pesquisa sobre os textos de Camus que compõem

o Ciclo da Revolta, mas é preciso evocar de certa forma os textos da primeira fase, do Ciclo

do Absurdo, e outros escritos não agrupados nesta subdivisão, porque, da mesma forma que

Camus busca associar reflexão e texto poético, há também um diálogo subjacente entre suas

obras e as de autores que ele aprecia, como Jean Grenier, Malraux, Gide e Dostoievski, por

exemplo. E, finalmente, há um diálogo interno constante entre suas próprias obras que, de

alguma maneira, se referem umas às outras.

Em 1937, Camus publica uma coletânea de ensaios, L'envers et l'endroit, em que estão

presentes elementos autobiográficos e uma reflexão de ordem moral é filosófica. E ainda

temas que retornam em obras posteriores como a vida cotidiana, a solidão, a estranheza para

os outros e para si próprio, a beleza da natureza mediterrânea, a felicidade e a infelicidade de

viver, a condenação à morte. O ―eu‖ narrador dos ensaios afirma ao mesmo tempo sua

subjetividade e sua relação com o mundo. Em Noces há um ―nós‖ que valoriza a comunhão

com os outros, necessária ao pleno desenvolvimento da alegria, mesmo se não se trata ainda

do senso do coletivo, presente na Peste.

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L'État de siège é muito próximo da Peste e ante alguns críticos que viam na peça uma

transposição do romance, Camus afirma que não se trata de uma adaptação e que o projeto da

peça precedia o do romance. L'Étranger contém ―a história do Tchecoslovaco‖ que servirá de

tema ao Malentendu, e é toda a história do Malentendu, com a diferença de que, na peça, Jan

volta sem filho e que ele é dopado e em seguida afogado e não assassinado a golpes de

martelo:

Entre ma paillasse et la planche du lit, j‘avais trouvé, en effet, un vieux

morceau de journal presque collé à l‘étoffe, jauni et transparent. Il relatait un

fait divers dont le début manquait, mais qui avait dû se passer en

Tchécoslovaquie. Un homme était parti d‘un village tchèque pour faire

fortune. Au bout de vingt-cinq ans, riche, il était revenu avec une femme et

un enfant. Sa mère tenait un hôtel avec sa soeur dans son village natal. Pour

les surprendre, il avait laissé sa femme et son enfant dans un autre

établissement, était allé chez sa mère qui ne l‘avait pas reconnu quand il était

entré. Par plaisanterie, il avait eu l‘idée de prendre une chambre. Il avait

montré son argent. Dans la nuit, sa mère et sa soeur l‘avaient assassiné à

coups de marteau pour le voler et avaient jeté son corps dans la rivière. Le

matin, la femme était venue, avait révélé sans le savoir l‘identité du

voyageur. La mère s‘était pendue. La soeur s‘était jetée dans un puits. J‘ai dû

lire cette histoire des milliers de fois. D‘un côté, elle était invraisemblable.

D‘un autre, elle était naturelle. De toute façon, je trouvais que le voyageur

l‘avait un peu mérité et qu‘il ne faut jamais jouer (CAMUS, 1962, p.1182).

Este comentário, em L'Étranger, sobre a história é válido também para Le Malentendu

— “D‘un côté, elle était invraisemblable. D‘un autre, elle était naturelle‖ — e é retomado

quase literalmente na Peste: ―Ces faits paraîtront bien naturels à certains et, à d‘autres,

invraisemblables au contraire‖ (CAMUS, 1962, p.1221). Camus inseriu na Peste outra

referência a L'Étranger:

Grand avait même assisté à une scène curieuse chez la marchande de tabacs.

Au milieu d'une conversation animée, celle-ci avait parlé d'une arrestation

récente qui avait fait du bruit à Alger. Il s'agissait d'un jeune employé de

commerce qui avait tué un Arabe sur une plage. "Si l'on mettait toute cette

racaille en prison, avait dit la marchande, les honnêtes gens pourraient

respirer." (CAMUS, 1962, p.1262)

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La Peste também traz uma lembrança do Malentendu, pois aì se lê: ―Compreendi que

toda a infelicidade dos homens vinha do fato de que eles não mantinham uma linguagem

clara‖, e a falta de transparência na comunicação e na linguagem é justamente um dos temas

do Malentendu. Nos Carnets de Camus, em dezembro de 1938, há observações referentes a

Caligula, ao lado de notas ou de fragmentos para La Peste. O próprio Calígula surge como

encarnação da peste: ―C‘est moi qui remplace la peste‖ (CAMUS, 1962, p.94), o que mostra

que, para Camus, a noção de flagelo e o símbolo da peste são indissociáveis da representação

do mal.

As peças de teatro de Camus que ele inclui na temática da Revolta são L'État de siège

e Les Justes. Sobre estas peças, os escritos jornalísticos e os textos autobiográficos, não nos

detemos; fazemos referência a estes textos com o objetivo de destacar a diversidade de

gêneros com que se faz a produção de Camus.

Em 1935 Camus assumiu a Maison de Culture de Argel e, ainda em Argel, fundou, no

ano seguinte, o ―Théâtre du travail‖. Camus era membro do Partido Comunista, ao qual aderiu

em 1935 e no qual permaneceu até 1937. Suas atividades dentro do partido se concentravam

no recrutamento em meio muçulmano e na condução da companhia, que se propunha como

popular e revolucionária, e nela Camus trabalhou como animador, ator, diretor, encenador e

freqüentemente adaptador. Era a primeira manifestação de sua paixão pelo teatro. Seu

ingresso no campo do teatro, da mesma forma que sua entrada no jornalismo, está associado a

um posicionamento político, o que mostra que as atividades do escritor como jornalista e

como dramaturgo são inseparáveis, desde o início de sua carreira, de seu engajamento social.

Camus desenvolveu suas atividades teatrais no ―Théâtre du Travail‖ de 1935 a 1937.

Depois da ruptura com o PC fundou outra companhia teatral: ―L‘Équipe‖, e nela trabalhou de

1937 a 1939. Ele montou algumas peças, como Révolte dans les Asturies, que relata a revolta

dos trabalhadores das minas de Oviedo, em 1934. Esta peça era uma criação coletiva, escrita

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em parte e dirigida por ele; julgada subversiva pelo prefeito de Argel, teve por isso sua

representação proibida. Camus adaptou e montou ainda Le Retour de l’enfant prodigue, de

Gide, Le Temps du Mépris, de André Malraux, Le Paquebot Tenacity, de Vildrac, La Femme

silencieuse, de Ben Johnson, Le Prométhée, de Ésquilo e Os irmãos Karamazov, de

Dostoievski, entre outros.

Enquanto autor propriamente dito, Camus tem uma obra dramática bastante reduzida:

Caligula (1944), Le Malentendu (1944), L'État de siège (1948) e Les Justes (1950). A partir

de 1952, voltou de forma mais intensa ao teatro e retomou suas adaptações: La dévotion à la

croix, de Calderón de la Barca (1952), Les Esprits, de Pierre de Larivey (1953), Un cas

intéressant, de Dino Buzatti (1955), Le Chevalier d’Olmedo, de Lope de Vega (1957),

Requiem pour une none, de William Faulkner (1957) e Les Possédés, De Dostoïevsky

(1959). Além disso, o teatro foi para Camus uma de suas paixões, não só como forma de

escrita, mas principalmente como lugar de uma comunhão, graças a sua dimensão comunitária

e de equipe. Em 1958, numa entrevista, ele destacou a importância que dava ao teatro:

Je retrouve au théâtre cette amitié et cette aventure collective dont j‘ai besoin

et qui sont encore une des manières les plus généreuses de ne pas être seul.

[...] Avec la littérature, cette passion est au centre de ma vie. Je m‘en rends

mieux compte maintenant (CAMUS, 1962, p.1713).

Em Les Justes deparamo-nos com um grupo de revolucionários russos que, em 1905,

prepara um atentado contra o grão-duque. Kaliayev, o terrorista encarregado de lançar a

bomba não o faz na primeira tentativa porque ao lado do duque há duas crianças. Camus

levanta aqui o problema do terrorismo em suas relações com a Revolta e com a revolução.

Qual o valor de uma ação revolucionária se ela é contaminada pelo crime e pela desonra? É a

mesma questão que subjaz ao ensaio L'Homme révolté, como combater o mal e a injustiça

sem recair no crime, como lutar contra a violência sem agir violentamente? Como no ensaio, e

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como na Peste, as falas dos personagens assumem freqüentemente o tom de uma discussão

ética.

KALIAYEV: Non. Je sais ce qu‘il pense. Schweitzer le disait déjà: "Trop

extraordinaire pour être révolutionnaire." Je voudrais leur expliquer que je

ne suis pas extraordinaire. Ils me trouvent un peu fou, trop spontané.

Pourtant, je crois comme eux à l‘idée. Comme eux, je veux me sacrifier.

Mois aussi, je puis être adroit, taciturne, dissimulé, efficace. Seulement, la

vie continue de me paraître merveilleuse. J‘aime la beauté, le bonheur !

C‘est pour cela que je hais le despotisme. Comment leur expliquer ? La

révolution, bien sûr ! Mais la révolution pour la vie, pour donner une chance

à la vie, tu comprends ? (CAMUS, 1962, p.322)

"Les Meurtriers délicats", um capítulo de L'Homme révolté, trata dos terroristas russos

de 1905, o que nos permite pensar que a peça teve sua origem durante a longa preparação do

ensaio.

L'État de siège foi realizado com a colaboração de Jean-Louis Barrault que, após a

publicação da Peste, propôs a Camus a realização de um espetáculo sobre o tema. Não se trata

de uma peça de estrutura tradicional, mas de um espetáculo em que se busca reunir todas as

formas de expressão dramática, não é, contudo, como explicou Camus, uma adaptação do

romance. Pelo fato de que o único meio de vencer a peste é não ter medo, o tema da Revolta

se manifesta:

LA SECRÉTAIRE: Il y a une malfaçon, mon chéri. Du plus loin que je me

souvienne, il a toujours suffi qu‘un homme surmonte sa peur et se révolte

pour que leur machine commence à grincer. Je ne dis pas qu‘elle s‘arrête, il

s‘en faut. Mais enfin, elle grince et, quelquefois, elle finit vraiment par se

gripper (CAMUS, 1962, p.273).

Ao situar o desenvolvimento da ação em Cadix, Camus fez uma denúncia direta do

sistema de Franco na Espanha. A representação da peça, apesar da expectativa criada pela

associação entre um diretor e um autor já renomados, não obteve sucesso de público.

Os textos jornalísticos de Camus, em sua maioria editoriais, são textos de estatuto

particular. Pela sua especificidade, estão diretamente associados aos acontecimentos da

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história e se voltam prioritariamente para o momento em que são escritos, mas constituem ao

mesmo tempo espaço privilegiado para o autor desenvolver sua reflexão, estreitamente

relacionada com aquela presente nos ensaios. Para os estudiosos, estes textos podem despertar

um interesse especial e funcionar como fonte de esclarecimento para as demais produções do

autor, sobretudo porque transparecem neles, de forma mais direta, as concepções éticas e

políticas bem como os posicionamentos do autor na sociedade e nos campos dos saberes, e

estes textos jornalísticos refletem igualmente seu engajamento social.

Camus trabalhou como jornalista com entusiasmo e idealismo, esta atividade era para

ele uma verdadeira profissão. Ele propunha um jornalismo crítico e sério, criticava os meios

de comunicação que se preocupava mais em informar rapidamente do que em informar bem,

sem separar os fatos das interpretações, e criticava sobretudo a manipulação possível da

informação a que alguns jornais se entregavam. Ou seja, trata-se de um jornalismo crítico da

realidade histórica e, ao mesmo tempo, crítico sobre seu próprio papel.

Camus iniciou sua carreira de jornalista na Argélia, em outubro de 1938, trabalhando

no "Alger Républicain", o jornal do qual Pascal Pia era o redator-chefe e que fora fundado em

Argel para se constituir como órgão do ―Front populaire‖. Além de crônicas judiciárias e

literárias, Camus publicou comentários polêmicos da vida política de Argel, e fez reportagens

politizadas, como ―Misère de la Kabylie‖, de 1939. Por causa da Guerra, ―Alger Républicain‖

se tornou ―Le Soir Républicain‖, do qual Camus foi redator-chefe até inícios de 1940. Após

muitos problemas com a censura o jornal foi fechado definitivamente. Camus, sem trabalho,

deixou a Argélia e foi para a França; com exceção de uma estada no ano seguinte, ele só

voltará à Argélia de tempos em tempos.

No inìcio de 1940, Camus estava em Paris e trabalhava no jornal ―Paris-Soir‖, como

secretário de redação. Em 1943, ele se uniu aos dirigentes do movimento de resistência

―Combat‖, participou ativamente desse movimento e do jornal clandestino de mesmo nome,

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do qual foi redator-chefe de 1944 a 1947. Em 21 de agosto de 1944 saiu o primeiro número de

―Combat‖ fora da clandestinidade, com um notável editorial de Camus. Sua participação no

jornal foi intensa: em maio de 1945 protestou contra a repressão dos motins de Sétif, em

agosto foi um dos raros a denunciar o horror das bombas atômicas lançadas sobre Hiroshima e

Nagasaki: ―La civilisation mécanique vient de parvenir à son dernier degré de sauvagerie‖;

em 1946 publicou uma série de artigos: Ni victimes ni boureaux; em 1949 lançou um apelo

em favor dos comunistas gregos condenados à morte.

Durante algum tempo o jornal foi não só o mais lido como também o mais respeitado

da França, e a atividade de Camus em ―Combat‖ contribuiu muito para sua popularidade.

L'Étranger fora publicado em 1942 e obtivera um sucesso imediato. Dessa forma, a produção

literária aumentava o prestígio do editorialista, ao mesmo tempo em que a atividade do

editorialista refletia na divulgação de sua produção literária. Esta situação perdurou durante

um longo tempo, exceto nos países dominados pelo comunismo, como a Tchecoslováquia, a

Alemanha Oriental, a Hungria, a Polônia e a China, entre outros, nos quais o nome e a pessoa

do autor foram proscritos, depois que ele foi rotulado de anti-comunista em função de suas

críticas ao sistema. Conforme Shaoyi Wu: "À la suite de la fondation de la Chine populaire,

durant trente ans, de 1949 à 1979, la Chine a prohibé les oeuvres de l‘écrivain français Albert

Camus; et sa personne n‘a jamais été présentée dans ce pays." (WU. In : DUBOIS, 1995,

p.283)

Camus voltou ao jornalismo em 1955, com uma série de artigos no jornal

―L‘Express‖. Seus artigos em ―Alger Républicain‖ e em ―Soir Républicain‖, particularmente

a reportagem intitulada ―Misère de la Kabylie‖, sua posição em favor de uma paz verdadeira,

a participação na Resistência, os editoriais de ―Combat‖, são testemunhos de um engajamento

com a comunidade social, são modos de ação e mostram uma consideração da história e uma

luta em favor da justiça, da liberdade, da democracia, do respeito e da dignidade do homem.

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Os escritos mais diretamente autobiográficos de Camus assumiram a forma de

Carnets, que não constituem um diário, tratando-se, às vezes, de simples anotações em vistas

à elaboração de seus textos de narrativas ou ensaios. Na verdade, na Peste, as referências à

própria biografia feitas por Camus são extremamente discretas e sutis, evitando-se toda forma

de subjetividade exacerbada ou de narcisismo. São dados de um escritor engajado, mas

comuns a outros escritores engajados que viveram o mesmo momento do século XX. Há

ainda o caso de Le Premier Homme, que poderia ser visto como uma espécie de auto-ficção,

de romance/autobiografia, como também outros escritores parecem produzi-los, mesmo sem

se darem conta.

O primeiro volume dos Carnets de Camus foi publicado em 1962 com o título Carnets

I - mai 1935 - février 1942. Suas anotações feitas durante as viagens à América do Norte e à

América do Sul foram publicadas à parte, com o título de Journaux de voyage, 1946-1949. Há

de se observar que os Carnets de Camus eram, na verdade, cahiers e que o título Carnets foi

mantido pelos editores para se evitar confudi-los com os Cahiers Albert Camus, agrupamento

de textos de teóricos sobre o autor.

Ao apresentar suas observações e reflexões sob a denominação de Carnets, Camus

busca evitar a conotação narcisística ligada ao diário (Journal), principalmente se é

qualificado de "íntimo".

A escrita dos Carnets de Camus é mais próxima do texto "jornalístico" que do texto

de "diários": é uma forma simples, fragmentária, que registra notas, um instante, um palavra

ou uma cena. Neles Camus registra momentos vividos, conversas, paisagens, anedotas,

leituras, idéias, reflexões, projetos de obras futuras, títulos, fragmentos de diálogos, esboços

de personagens, etc. Trata-se de uma preparação para a atividade de escrita, sem uma

coerência verdadeira, como temática autobiográfica. Camus afirma: ―Une pensée profonde est

en continuel devenir, épouse l‘expérience d‘une vie et s‘y façonne. De même, la création

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unique d‘un homme se fortifie dans ses visages successifs et multiples que sont les oeuvres‖

(CAMUS, 1965, p.190). E ainda: ―Je ne crois pas, en ce qui me concerne aux livres isolés.

Chez certains écrivains, il me semble que leurs oeuvres forment un tout où chacune s‘éclaire

par les autres, et où toutes se regardent.‖ (CAMUS, 1965, p.743), o que mostra que, para o

autor, a interpenetração de suas obras e o diálogo entre elas não é um fenômeno casual, mas

corresponde a uma intenção deliberada.

2.3 MORTE E ABSTRAÇÃO

O tema da morte, relacionado com as noções de Absurdo e de Revolta, é um dos mais

recorrentes na obra de Camus. Através dele também se constrói o diálogo entre os textos.

Este tema está presente nas quatro peças de teatro: Caligula se estrutura em torno das mortes

de Drusila, a daqueles que Calígula manda executar e de sua própria morte; Le Malentendu

fala do assassinato por engano de Jan, cometido por sua mãe e sua irmã, que se suicidam; Les

Justes discute o assassinato como arma da revolução e questiona a morte dos inocentes; L'État

de Siège trata da morte "em massa", numa perspectiva muito próxima daquela desenvolvida

na Peste. O tema também é central nos dois romances e nos dois ensaios: L'Étranger se

desenvolve em torno de três mortes: a da mãe de Meursault, a do árabe e a do próprio

Meursault; La Peste mostra a todo momento a presença da morte como conseqüência do

flagelo. Le Mythe de Sisyphe se inicia com uma discussão sobre a morte voluntária, que é

vista como uma tentativa malograda de escapar ao Absurdo; em L'Homme révolté se discute a

morte imposta aos outros, como crime, muitas vezes justificado por uma ideologia.

Há aspectos que Camus considera absurdos na condição humana e que são inevitáveis,

o que não significa que devam ser aceitos com resignação; entretanto, o que lhe parece

duplamente absurdo são as "complicações" humanas, os sofrimentos criados pelos próprios

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homens. É por isso mesmo que se a morte é sempre um absurdo, mais absurda é a morte que

alguns homens impõem a outros.

Essa idéia de ―complicação‖ é evocada por Camus: ―Oui, tout est simple. Ce sont les

hommes qui compliquent les choses‖ (CAMUS, 1965, p.30); ela nos ajuda a entender que na

noção de Absurdo há pelo menos dois sentidos básicos: um primeiro, de gratuidade e de

contingência que engloba o aspecto do conflito entre os anseios humanos e a indiferença do

mundo (ou em outros termos, o aspecto do caráter não dedutível do mundo, da

impossibilidade de uma compreensão exaustiva da realidade e o aspecto do gratuito que

emerge na vida humana, aspectos que seriam inerentes à próxima situação humana, mesmo

numa realidade própria dos ideais de justiça e de liberdade); e um segundo sentido, de

absurdo enquanto ―complicação‖, ou seja, o aspecto ―irracional‖ da humanidade que atenta

contra si própria, tanto do ponto de vista individual quanto social, trata-se aqui do absurdo

enquanto soma de males que os homens trazem à precariedade já presente em sua existência.

Essa complicação, em sua versão extrema, conduz à condenação à morte, decorrência

de uma "ideologia", ou seja, de uma abstração que, por trás de um discurso baseado no

convencional e sustentado por posicionamentos intransigentes, justifica o crime. A crítica do

dogmatismo e do convencional, a condenação do burocrático e da "abstração" são temas

também presentes de maneira constante nos diferentes textos de Camus e estreitamente

relacionados com o tema da morte. Trata-se de uma crítica do crime e do convencional na

política, nas instituições que detêm o poder e na religião. Esta crítica, mais forte em textos

como Réflexions sur la guillotine e La Peste, está presente em obras anteriores,

particularmente em L'Étranger, através da sátira do aparelho judiciário e da denúncia das

conseqüências criminosas do discurso e do poder dos magistrados que agem de maneira

hipócrita, convencional e dogmática.

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No romance L'Étranger, duas mortes caracterizam bem essa distinção e são como que

reflexos marcando esse duplo sentido do Absurdo. A morte do árabe, mesmo configurando

um crime cometido por Meursault, não aparece com a força de um homicídio, por causa das

circunstâncias em que ocorreu, sem o elemento de premeditação e com Meursault num estado

de atordoamento; tanto que mesmo se ele é capaz, por um lado, de assumir as conseqüências

de seu ato, não consegue, por outro lado, explicar, nem para si mesmo, como foi capaz de

cometer tal crime; esta é uma das faces do Absurdo. A outra morte é a do próprio Meursault

que, mesmo aparecendo sob certo aspecto como uma punição e, portanto, como expressão da

justiça dos homens, pode ser vista como uma maquinação do aparelho judiciário e como uma

exigência criada pelos homens da lei. Ela aparece muito mais como uma necessidade forjada

pelo julgamento em si mesmo do que como uma sanção aplicada ao culpado. Por ser uma

pena desproporcional ao crime e por causa da forma como chegam a ela, ela pode figurar mais

como uma arbitrariedade de uma instituição do que como aplicação da justiça, de forma que o

leitor pode ter a impressão de que Meursault é muito mais vítima do que culpado; esta é a

outra face do Absurdo, enquanto atitude de pagar o mal com o mal e, sobretudo, enquanto

―complicação‖ feita pelos homens, no caso, os homens da lei que agem motivados muito mais

pelas convenções sociais e pelo desejo de vingança sobre uma presa fácil do que pelo ideal de

justiça.

Na Peste, a doença é a imagem de tudo que causa a morte. Há quem veja na

condenação à morte o tema central da obra, como Rachel Bespaloff, que afirma: ―le thème

central de son oeuvre [La Peste], c‘est la condamnation à mort. Peu importe, ici, que ce soit la

nature, le destin, la justice ou la cruauté humaines qui prononcent la sentence‖ (BESPALOFF,

1950, p.25). De fato, um elemento essencial no romance é a presença e a ameaça constante da

morte. Muitos morrem ao longo da história e um evento central, testemunhado por todos os

personagens principais, é a morte de uma criança. A luta contra a peste é, na verdade, um

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combate contra a morte, e o personagem Tarrou justifica sua luta contra o flagelo afirmando:

"J'ai horreur des condamnations à mort!" (CAMUS, 1962, p.1321) A relação estreita entre La

Peste e L'Homme revolté, do qual trataremos abaixo, manifesta-se pela recorrência do tema da

morte e pela crítica ao crime e à condenação à morte.

No Mythe de Sisyphe, Camus fala da morte voluntária, que é vista não só como uma

expressão do Absurdo, mas como uma busca vã de escapar a ele. O ensaio se inicia com uma

discussão sobre o suicídio, que é visto, da mesma forma que a esperança, como uma tentativa

de negar o Absurdo. O suicídio atesta a absurdidade da existência, ele é um sintoma de que o

indivíduo se dá conta de que a existência não tem sentido, entretanto, ele não se justifica.

Embora pareça, à primeira vista, que a conclusão mais lógica à descoberta da absurdidade seja

o suicídio, a reflexão do Mythe de Sisyphe se esforça para demonstrar que esta lógica é falsa.

Para Camus, é um erro supor que recusar um sentido à vida conduz necessariamente à

conclusão de que ela não vale a pena ser vivida (Cf. CAMUS, 1965, p.103). Assim, Camus vê

no suicídio uma tentativa de escapar ao Absurdo, mas defende que o Absurdo exige a

resistência e não o consentimento:

On peut croire que le suicide suit la révolte. Mais à tort. Car il ne figure pas

son aboutissement logique. Il est exactement son contraire, par le

consentement qu‘il suppose. Le suicide, comme le saut, est l‘acceptation à sa

limite. [...] A sa manière, le suicide résout l‘absurde. Il l‘entraîne dans la

même mort. Mais je sais que pour se maintenir, l‘absurde ne peut se résoudre

(CAMUS, 1965, p.138).

Essa discussão sobre o duplo sentido da absurdidade, sobre a morte e sobre o suicídio

enquanto entrega e não resistência ao Absurdo nos mostra que, mesmo se no segundo ciclo

camusiano, aquele da Revolta, o tema do Absurdo já não ocupa o primeiro plano, ele não é,

contudo, nem esquecido nem superado pela Revolta. Os temas do Absurdo e da Revolta estão

imbricados e supõem um ao outro, mas a Revolta não é a solução do Absurdo, pois este é

insolúvel por definição, existe sempre e existe sob a forma de uma constante tensão ou

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contestação. O importante é enfrentar este Absurdo, e ultrapassá-lo de certa maneira, através

do engajamento com a comunidade histórica.

2.4 CAMUS E A GRÉCIA CLÁSSICA

O diálogo com a cultura grega clássica presente em diferentes obras de Camus faz com

que estas obras se refiram umas às outras, reforçando assim o diálogo também entre elas.

Camus se interessava pelos gregos, conhecia os clássicos e muitas reescrituras de textos

clássicos por autores modernos. Os autores da Antigüidade são marcantes na formação

intelectual e na produção literária do escritor, que buscou entre os gregos modelos e motivos

de inspiração.

Admirador da Grécia clássica e estudioso de sua herança cultural, Camus associa a

cada ciclo de sua obra um mito grego e cada etapa se desenvolve à luz de uma figura

mitológica: Sísifo encarna o Absurdo e Prometeu, a Revolta; ao tema do Amor corresponderia

a figura de Nêmesis. Além disso, o "mito" constitui o fio condutor através do qual se

articulam imaginação e reflexão, como base da estética camusiana; e sua ética também é

marcada por elementos oriundos do pensamento grego, principalmente pela noção de "limite".

No Mythe de Sisyphe, a referência à mitologia está presente desde o título do ensaio.

Ao final desta obra, Camus desenvolve de maneira própria a versão grega do mito,

ressaltando alguns aspectos que ele valoriza de maneira especial: o gosto de Sísifo por este

mundo, pelo mar e pelo sol, seu desprezo pelos deuses, seu ódio contra a morte e seu amor

pela vida, enfim, sua lucidez: ―Si ce mythe est tragique, c‘est que son héros est conscient. Où

serait en effet sa peine, si à chaque pas l‘espoir de réussir le soutenait?‖ (CAMUS, 1965,

p.196)

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Sísifo foi condenado principalmente por se mostrar astucioso a ponto de enganar a

própria morte. Ele a prendeu de maneira que ela não pôde levá-lo aos Infernos. Ao se dar

conta de que ninguém mais morria, Zeus mandou que soltassem a morte. Mas Sísifo tinha

outros estratagemas e havia de antemão instruído sua esposa a não lhe fazer funerais

adequados. Assim, ele pôde convencer Hades a deixá-lo partir de novo para o convívio entre

os vivos. Uma vez de volta ao mundo, Sísifo se recusou a retornar para junto dos mortos. Foi

preciso que a morte viesse buscá-lo à força. Ele é condenado, então, a empurrar sem fim um

rochedo até o alto de uma montanha. Ao chegar a alguns passos do cume, suas forças lhe

faltam e a pedra rola de novo para baixo. Ele deve então recomeçar seu esforço, sem fim, pois

sempre suas forças acabam no último momento.

Camus retoma a figura mitológica de Sísifo para fazer dele o símbolo da condição

humana e propõe que o imaginemos feliz. Camus qualifica Sísifo como último herói absurdo,

no ensaio em que busca demonstrar por que a vida, apesar da absurdidade do destino, merece

ser vivida. A pena de Sísifo seria uma metáfora da própria vida, percebe-se a absurdidade do

personagem tanto no desespero de tentar escapar a uma morte inevitável quanto na tentativa

de concluir um trabalho interminável.

Quanto a Prometeu, ele criou com um bloco de argila o primeiro homem. Não

querendo deixar sua criatura desprovida de tudo, foi roubar no carro do Sol uma faísca para

oferecê-la aos homens que, em sua ausência, tinham se multiplicado. Prometeu enganou o

próprio Zeus e este decidiu se vingar dele e dos mortais. Aos últimos enviou Pandora, bela

jovem, que espalhou todos os males sobre a Terra, ao abrir sua famosa caixa. O primeiro foi

preso sobre o mais alto cume do monte Cáucaso, onde, todo dia, durante séculos, uma águia

vinha lhe roer o fígado, que sem cessar crescia de novo. Por ter advertido Zeus a não desposar

Tétis, se o deus não quisesse ter um filho que o destronasse, Prometeu teve direito à

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clemência e foi libertado. Para Camus, Prometeu é o grande amigo dos homens, o

philánthropos por excelência.

Nêmesis, na mitologia grega, é a deusa da proporção e da vingança dos crimes. Ela

representa a justiça distributiva e o ritmo do destino, encarnando a indignação face ao excesso

ou exagero. Ela castiga aqueles que "ultrapassam o limite", ou seja, que vivem um excesso de

felicidade entre os mortais, ou o orgulho excessivo entre os reis. Nas tragédias gregas

Nêmesis aparece principalmente como aquela que pune a hibris, o pecado da desmedida.

Associando diretamente as noções de Absurdo e de Revolta a personagens mitológicos

e cifrando os ciclos pela mitologia, Camus remete o conjunto de sua obra à cultura grega

clássica. Os mitos gregos fazem parte de seu universo intelectual: o Absurdo e a Revolta

tomaram definitivamente para ele as faces de Sísifo e de Prometeu. Na verdade, Camus se

interessou muito cedo pela antigüidade clássica e a presença dos gregos se manifesta em sua

concepção do teatro e também diretamente em outros textos, inclusive seu primeiro trabalho

acadêmico, uma monografia universitária que já revela um contato com o pensamento grego e

um interesse pelos clássicos. Em 1936, para a conclusão de seu curso universitário de

filosofia, ele escolheu como tema de sua monografia as relações entre helenismo e

cristianismo, abordando especificamente Plotino e Santo Agostinho; através do

neoplatonismo, é a Grécia que se revela objeto de sua escolha.

Camus era ao mesmo tempo alheio ao espírito religioso e profundamente marcado pela

inquietação metafísica. Na monografia universitária, confrontando cristianismo e pensamento

grego, Camus estuda a primeira tentativa de conciliação entre eles, aquela de Justino. Ele

aborda a Gnose, tentativa de conciliação entre o espírito de conhecimento e a busca de

salvação e, ao evocar Marcião, escreve já deixando transparecer sua própria visão de mundo,

ou seja, conjugando Absurdo e Revolta: ―Dans cette vue pessimiste sur le monde et ce refus

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orgueilleux d‘accepter, court la résonance d‘une sensibilité toute moderne. Aussi bien prend-

elle sa source dans le problème du mal‖ (CAMUS, 1965, p.1253).

Abordando Santo Agostinho, Camus o imagina dividido entre a sensualidade, o gosto

pelo racional e o desejo de fé que nasce da descoberta do mal. No trabalho, já aparecem as

reações pessoais de Camus, configuradas no Mythe de Sisyphe. Plotino fortalece nele o desejo

de compreender, Santo Agostinho opõe ao conhecimento limites intransponíveis. Plotino o

incita a desconfiar do arbitrário de toda fé, Santo Agostinho, dos devaneios da razão. Camus

parece então próximo dos gregos e fascinado por alguns temas cristãos. Admira Plotino que se

esforça para pôr o sentimento em formas lógicas, e é igualmente seduzido pela angústia

trágica de Santo Agostinho. A necessidade de coerência e a inquietude que Camus identifica

neste último parecem reflexos de suas próprias experiências. O trabalho demonstra ao mesmo

tempo uma simpatia pelo cristianismo, considerado como uma recusa da serenidade socrática,

como uma espécie de heroísmo espiritual, e também uma desconfiança ante o

providencialismo cristão.

Como afirma Roger Quilliot: ―Camus a peut-être plus appris sur lui-même en écrivant

ce diplôme que sur les pensées grecque et chrétienne: elles l‘ont simplement aidé à nommer

ses problèmes‖ (QUILLIOT in: CAMUS, 1965, p.1222). De fato, o Absurdo é em sua

origem, como aparece já em L'Envers et l'endroit, o apetite de conhecimento não satisfeito

nem pela razão nem pela fé; e o apetite de viver quebrado pela morte. Esta monografia,

enquanto uma das primeiras produções de Camus, revela seu desejo bastante precoce de

aprofundar seus conhecimentos sobre a filosofia grega.

Discutiremos à frente a relação entre elementos da cultura grega e os romances de

Camus, em particular La Peste, em que estão presentes uma dimensão mítica e trágica, e a

evocação direta de Orfeu e da simbologia a ele relacionada.

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Quanto aos ensaios literários, L'Été é uma coletânea de oito pequenos ensaios dos

quais dois fazem referência direta à cultura grega: L'Exil d'Hélène e Prométhée aux enfers.

Segundo Roger Quilliot, cada um dos textos ―reste fidèle à la technique du mythe qui, selon

Camus, permet à l‘artiste et au moraliste de se rassembler‖ (QUILLIOT, in: CAMUS, 1965,

p.1817).

L'Exil d'Hélène é um canto à Grécia. Neste texto, Camus estabelece uma relação com

os problemas evocados em sua monografia, aponta a dissipação da herança grega pela

civilização européia e discute duas questões marcantes para os gregos: a busca quase

obsessiva da beleza e a noção de limite, que se revela, inclusive, no interior das tragédias.

Para o autor, os gregos não levaram nada além dos extremos, nem o sagrado nem a razão,

porque não negaram nenhum dos dois, mas, buscando a totalidade, souberam equilibrar a

sombra e a luz; os gregos não disseram que o limite não poderia ser transposto, disseram que

ele existe e que quem ousasse ultrapassá-lo seria atingido sem piedade.

Camus sublinha o que há na Europa de diverso ou mesmo de oposto às concepções

gregas e, evocando Nêmesis, escreve:

Notre Europe, au contraire, lancée à la conquête de la totalité, est fille de la

démesure. [...] Némésis veille, déesse de la mesure, non de la vengeance.

Tous ceux qui dépassent la limite sont, par elle, impitoyablement châtiés

(CAMUS, 1965, p.853).

Assim, para se tornarem legítimos herdeiros dos gregos, os europeus precisariam

aprender a reconhecer a ignorância, recusar o fanatismo, descobrir os limites do mundo e do

homem, amar a beleza. Antes disso, não se podem proclamar filhos da Grécia:

Voilà pourquoi il est indécent de proclamer aujourd‘hui que nous sommes

les fils de la Grèce. Ou alors nous en sommes les fils renégats. Plaçant

l‘histoire sur le trône de Dieu, nous marchons vers la théocratie, comme

ceux que les Grecs appelaient Barbares et qu‘ils ont combattus jusqu‘à la

mort dans les eaux de Salamine (CAMUS, 1965, p.854).

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Prométhée aux enfers evoca a violência na qual a Europa se debatia há décadas e

levanta a questão do significado do mito no mundo moderno. Para Camus, Prometeu, figura

representativa da Revolta, é sempre um modelo para o homem de seu tempo:

Que signifie Prométhée pour l‘homme d‘aujourd‘hui? On pourrait dire sans

doute que ce révolté dressé contre les dieux est le modèle de l‘homme

contemporain et que cette protestation élévée, il y a des milliers d‘années,

dans les déserts de la Scythie, s‘achève aujourd‘hui dans une convulsion

historique qui n‘a pas son égale. Mais, en même temps, quelque chose nous

dit que ce persécuté continue de l‘être parmi nous et que nous sommes

encore sourds au grand cri de la révolte humaine dont il donne le signal

solitaire (CAMUS, 1965, p.841).

Segundo Camus, Prometeu é o herói que amou os homens o bastante para lhes dar ao

mesmo tempo o fogo e a liberdade, as técnicas e as artes. A humanidade moderna se preocupa

apenas com a máquina e com a técnica. Camus, mais uma vez, ressalta na figura mitológica

sua ousadia em desafiar os deuses e seu modelo de filantropia:

Le héros enchaîné maintient dans la foudre et le tonnerre divins sa foi

tranquille en l‘homme. C‘est ainsi qu‘il est plus dur que son rocher et plus

patient que son vautour. Mieux que la révolte contre les dieux, c‘est cette

longue obstination qui a du sens pour nous (CAMUS, 1965, p.844).

Camus conclui o ensaio evocando a importância e o significado dos mitos:

Les mythes n‘ont pas de vie par eux-mêmes. Ils attendent que nous les

incarnions. Qu‘un seul homme au monde réponde à leur appel, et ils nous

offrent leur sève intacte. [...] Si nous devons nous résigner à vivre sans la

beauté et la liberté qu‘elle signifie, le mythe de Prométhée est un de ceux qui

nous rappelleront que toute mutilation de l‘homme ne peut être que

provisoire et qu‘on ne sert rien de l‘homme si on ne le sert pas tout entier

(CAMUS, 1965, p.843).

Quanto ao teatro, Camus se interessou pelos grandes dramaturgos − Sófocles,

Eurìpides, Ésquilo, Aristófanes − e pelo teatro gregos, e particularmente pela tragédia. Ele

não reescreveu nenhuma peça grega, no entanto o Prometeu de Ésquilo foi uma das primeiras

peças encenadas por sua companhia teatral, o Théâtre du travail. A esta companhia sucedeu o

Théâtre de l’Équipe, em cujo manifesto encontramos referências a autores gregos e em cujo

projeto de repertório figuram peças clássicas:

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Ainsi se tournera-t-il vers les époques où l‘amour de la vie se mêlait au

désespoir de vivre: la Grèce antique (Eschyle, Aristophane), l‘Angleterre

élisabéthaine (Forster, Marlowe, Shakespeare), l‘Espagne (Fernando de

Rojas, Calderon, Cervantes), l‘Amérique (Faulkner, Caldwell), notre

littérature contemporaine (Claudel, Malraux) (CAMUS, 1962, p.1692).

Por ocasião de uma viagem à Grécia, em 1955, Camus fez uma conferência em

Atenas, Sur le futur de la tragédie, na qual destaca que as grandes tragédias surgiram em

épocas muito excepcionais que deveriam, por sua própria singularidade, nos ensinar algo

sobre as condições de expressão do trágico:

Notre époque est tout à fait intéressante, c‘est-à-dire qu‘elle est tragique.

Avons-nous du moins, pour nous purger de nos malheurs, le théâtre de notre

époque ou pouvons-nous espérer l‘avoir? Autrement dit la tragédie moderne

est-elle possible? [...] Les grandes périodes de l‘art tragique se placent, dans

l‘histoire, à des siècles charnières, à des moments où la vie des peuples est

lourde à la fois de gloire et de menaces, où l‘avenir est incertain et le présent

dramatique. Après tout, Eschyle est le combattant de deux guerres et

Shakespeare le contemporain d‘une assez belle suite d‘horreurs. En outre ils

se tiennent tous deux à une sorte de tournant dangereux dans l‘histoire de

leur civilisation (CAMUS, 1962, p.1701).

Em sua conferência, Camus desenvolve uma reflexão em torno do gênero dramático e

manifesta sua preferência pela tragédia. Ele se pergunta sobre o que seria a tragédia e, sem

querer defini-la, procede por comparação, observando em que a tragédia difere do drama ou

do melodrama. O conflito, ou tensão, presente na tragédia não é simples nem se confunde

com o maniqueísmo, ao qual se reduzem o melodrama e o enredo de muitas histórias e do

qual Camus busca se afastar em seus próprios romances:

Voici quelle me paraît être la différence: les forces qui s‘affrontent dans la

tragédie sont également légitimes, également armées en raison. Dans le

mélodrame ou le drame, au contraire, l‘une seulement est légitime.

Autrement dit, la tragédie est ambiguë, le drame simpliste. [...] Prométhée

est à la fois juste et injuste et Zeus qui l‘opprime sans pitié est aussi dans son

droit. [...] Le thème constant de la tragédie antique est ainsi la limite qu‘il ne

faut pas dépasser. De part et d‘autre de cette limite se rencontrent des forces

également légitimes dans un affrontement vibrant et ininterrompu (CAMUS,

1962, p.1705).

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Segundo Camus, uma vez que a tragédia se sustenta sobre um equilíbrio, tudo o que

no interior dela tende a romper este equilíbrio, tanto o domínio absoluto da ordem ou do

divino quanto a presença da individualidade pura, destroem a própria tragédia. Se a tragédia

termina na morte ou punição, o que é punido é a cegueira do herói que tenta negar o equilíbrio

ou a tensão. A situação trágica ideal seria aquela de Ésquilo, que permanece próximo das

origens religiosas e dionisíacas da tragédia. Em Sófocles, igualmente, o equilíbrio é absoluto,

e por isso ele é o maior tragediógrafo de todos os tempos. Já Eurípides desequilibra a balança

para o lado do indivíduo e da psicologia, assim ele anuncia o drama individualista, ou seja, a

decadência da tragédia.

Para o autor, a tragédia moderna ainda não existiria: ―C‘est assez dire que la vraie

tragédie moderne est celle que je ne vous lirai pas, puisqu‘elle n‘existe pas encore. Pour

naître, elle a besoin de notre patience et d‘un génie‖ (CAMUS, 1962, p.1711). Para haver um

renascimento da tragédia na modernidade, é preciso primeiro que o individualismo se

transforme e que, sob a pressão da história, o indivíduo reconheça pouco a pouco seus limites.

Para Camus, entre os gregos, o pensamento e o desejo de um conhecimento racional

estão associados à constatação dos limites da razão; a busca do racional se exprimindo

sobretudo na filosofia grega, a experiência do incompreensível e do que escapa à lógica

transparecendo, principalmente, nas tragédias. Segundo Camus, a concepção trágica do

mundo não foi completamente e em toda parte destruída pela ofensiva do espírito não-

dionisíaco. Entretanto, o mundo moderno estaria por inteiro preso nas redes da civilização

alexandrina, cujo ideal é o homem teórico, que superestima suas faculdades de conhecimento

e trabalha a serviço da ciência. Sócrates seria o protótipo e o ancestral desta civilização. Por

isso, para que haja o retorno da tragédia na civilização moderna, é preciso primeiro que a

pretensão científica e racionalista seja superada.

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Dos primeiros textos, como a monografia, até os últimos, como alguns ensaios de

L'Été, Camus esteve sempre refletindo sobre o legado da cultura grega, à qual ele faz

referências em suas obras; aqui não pretendemos analisar cada uma destas referências em

todas as suas obras, mas apenas as que consideramos mais significativas. Vale destacar a

importância do elemento "mítico" que está presente inclusive em seus ensaios filosóficos e

através do qual ele articula reflexão e criação poética.

Camus elabora em seus ensaios uma filosofia que se assemelha àquela dos pré-

socráticos, pois considera que a apresentação sistemática da filosofia é mais um prejuízo do

que uma vantagem, e se interessa pelos pensadores que não excluíam de suas produções a

presença do mito e a dimensão poética. O autor não reivindicava para si o estatuto de filósofo,

mas se autodefinia como ―un artiste qui crée des mythes à la mesure de sa passion et de son

angoisse‖ (CAMUS, 1964, p.325).

O apelo ao artístico e ao mítico está presente mesmo em seus ensaios de filosofia. Em

Le Mythe de Sisyphe, o personagem mitológico configura-se como o protótipo do homem

revoltado diante do Absurdo; em L'Homme révolté, Prometeu é apresentado como o solidário

por excelência dos humanos. Em ambos os ensaios, Camus cita e evoca tanto filósofos quanto

romancistas e emprega inúmeras imagens e figuras poéticas. O mito já é em si um

desenvolvimento conferido à imagem, uma síntese do literário e do filosófico, conjugando

reflexões próprias do pensamento filosófico e imagens poéticas evocadoras de realidades

concretas e sensíveis.

O aspecto de verdade do mito entre os primitivos diz respeito não a uma verdade

lógica, discursiva e expressa de forma clara pela razão, mas a uma verdade intuída, percebida

de maneira espontânea. O mito demonstra assim que, ao entrar em contato com o mundo, o

homem não é apenas racionalidade e pensamento, mas também sensibilidade, fantasia,

imaginação e emoção. Antes de interpretar a realidade, o homem vive nela, e a experimenta,

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desejando-a ou temendo-a; como afirma Camus: "Nous prenons l‘habitude de vivre avant

d‘acquérir celle de penser‖ (CAMUS, 1965, p.102).

O mito não é de forma absoluta anterior e oposto à filosofia, como uma primeira e

ingênua resposta aos fenômenos naturais, contrária ao pensamento racional, ele é também

contemporâneo e interno à reflexão filosófica. Pierre Grimal mostra que, a partir do século III

a. C., quando o pensamento grego foi sendo dominado pela filosofia, os mitos não fugiram a

esta evolução. A linguagem do mito foi utilizada não só pela reflexão sofística, mas também

pelos estóicos e muitos outros, inclusive Platão:

Nem mesmo os filósofos, quando o raciocínio alcançou seu ponto extremo,

deixaram de recorrer ao mito como a um modo de conhecimento capaz de

revelar o incognoscível. Assim, Platão – no Fédon, no Fedro, no Banquete,

na República e em outros diálogos – explicita seu pensamento através dos

mitos que inventa (GRIMAL, 1982, p.11).

Claude Calame, para quem o mito é uma história tradicional de alcance social que põe

em cena num tempo transcendental personagens de qualidades sobrenaturais e fabulosas, vê o

risco de se considerar o mito apenas como lenda e de se projetar sobre o uso do termo na

Antigüidade um sentido moderno. Para Calame o relato que nós apreendemos, através da

categoria moderna, como "mítico", só pode ser poesia ou literatura.1

Calame afirma que a idéia grega do produto poético como dividido, pelo efeito da

mímesis criativa, entre ficção e referência ao real, é vista como algo muito moderno e

corresponde aproximadamente ao que se designa pelo conceito de ficcional: ―En tant que

produit du processus symbolique, comme produit du poieîn créateur de mondes fictionnels,

tout récit à nos yeux mythiques est aussi un récit ‗poiétique‘ et poétique‖ (CALAME, 2000,

p.46).

1 Na tradição grega, mesmo na mais historiográfica que seja [...], as narrativas fundadoras

concernentes ao estabelecimento das relações dos homens com os deuses, às quais denominamos

mitos, estão inseparavelmente ligadas à forma poética, ou seja, à manifestação da linguagem que nós

consideramos como constituindo a própria essência da literatura (CALAME, 2000, p.19).

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Portanto, o mito está igualmente próximo da literatura e da filosofia. Como relato

figurado, ele se revela tão demonstrativo quanto o discurso verdadeiro e, neste sentido, o

lógos não se opõe ao mûthos; originariamente, os dois termos se equivalem:

[...] mûthos à l‘époque archaïque renvoie à toute espèce de discours qui a un

effet sur son public. [...] Quant à lógos, il désigne, chez les historiographes

contemporains de Xénophane, essentiellement des récits – récits rapportés

ou assumés par l‘historien désormais appelé logographe, et donnés pour

vrais ou au contraire considérés comme mensongers. Dans le langage de la

tragédie, les deux termes ont des sens largement équivalents (CALAME,

2000, p.13).

Para Raymond Williams, mesmo se estabelecemos uma diferença entre mito como

lenda histórica e mito no sentido nietzscheano de supra-racional ou sabedoria espiritual, há

sempre uma relação entre as duas conotações: ―The heroic legend, in the Greeks and others, is

neither rational nor irrational, in the modern sense, because it was primarily taken as history‖

(WILLIAMS, 1966, p.43).

Camus se posiciona contra a redução da filosofia a seu aspecto impessoal, puramente

racional e sistemático. Mesmo em seus ensaios filosóficos, ele pensa por intuições mais do

que por argumentos, por imagens mais do que por conceitos e parece atraído pela poesia tanto

quanto pela filosofia. Assim, Camus não elaborou nenhum sistema. É por isso que ele diz não

ser filósofo, mas a recusa do sistema pode ser ela própria filosófica: ―Ce n‘est pas la logique

que je réfute, mais l‘idéologie qui substitue à la réalité vivante une succession logique de

raisonnements‖ (CAMUS, 1965, p.741).

Através de Plotino, também Platão e os mitos de que se serve são analisados por

Camus, que percebe nesses mitos o recurso a uma linguagem poética. Em sua monografia,

Camus faz uma reflexão sobre o estilo e a paisagem conceitual em Plotino e conclui: ―La

philosophie de Plotin est un point de vue d‘artiste...C‘est donc avec sa sensibilité que Plotin se

saisist de l‘intelligible‖ (CAMUS, 1965, p.1271). Trata-se de um método próximo daquele

que o autor buscará utilizar em seus ensaios: pensar com a sensibilidade.

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Tanto Camus quanto Platão empregam o mito, como recurso a uma linguagem poética.

Entretanto, em Platão, o emprego da imagem parece proceder acima de tudo de uma função

persuasiva e argumentativa ou probatória, ao passo que, em Camus, mesmo se ele vê na

imagem um caminho para o conhecimento, esta se associa a uma valorização do poético

enquanto tal, como uma exigência deste.

Neste sentido, o emprego de imagens em Camus corresponde adequadamente à sua

posição de valorizar o sensível e não reduzir a filosofia à dimensão lógica. Depois de destacar

que a obra de arte não pode ser considerada como um refúgio face ao Absurdo, sendo ela

própria um fenômeno absurdo e expressão da Revolta, ele prossegue: "L‘oeuvre d‘art naît du

renoncement de l‘intelligence à raisonner le concret. Elle marque le triomphe du charnel‖

(CAMUS, 1965, p.176). O emprego do mito, das imagens e dos recursos poéticos constitui

assim uma forma coerente de tratar o Absurdo, de certo modo inefável.

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3 A PESTE NA CIDADE MODERNA

3.1 O GOSTO PELO VIVIDO

La Peste, publicada em 1947, é considerada como a obra de um escritor que atingiu a

maturidade e é vista como o primeiro grande romance francês do imediato pós-guerra. É fruto

de uma vasta pesquisa e de uma longa preparação; já em abril de 1941, Camus menciona em

seus Carnets o projeto do livro (Cf. CAMUS, 1962, p.229). Buscamos situar La Peste no

conjunto das obras de Camus e na evolução de seu pensamento, pois o romance faz referência

ao contexto contemporâneo do autor e apresenta uma relação com o ensaio L'Homme révolté.

Na Peste são marcantes os elementos relacionados com a biografia de Camus, também

se destacam os elementos históricos, como o ambiente da Segunda Guerra, da Ocupação e da

Resistência. Há ainda elementos próprios de uma reflexão, a crítica ao dogmatismo, à

burocracia, ao totalitarismo, a luta contra a morte e a miséria e em favor da liberdade, a defesa

da iniciativa e organização populares.

Olivier Todd se pergunta até que ponto se pode explorar os textos publicados de um

autor — sem usá-los em interpretações abusivas e apressadas — para balisar sua vida.

Poderíamos indagar também em que medida a biografia de um escritor pode nos esclarecer

sobre o conteúdo de suas obras. Todd retoma uma afirmação de Camus:

L‘idée que tout écrivain écrit forcément sur lui-même et se dépeint dans ses

livres est une des puérilités que le romantisme nous a léguées. Les oeuvres

d‘un homme retracent souvent l‘histoire de ses nostalgies ou de ses

tentations, presque jamais sa propre histoire (CAMUS, apud: TODD, 1996,

p.14).

Todd observa que, para além dos êxitos da transposição artística, a obra camusiana

parece, entretanto, muito biográfica. O próprio Camus afirma que só escreve sobre o que

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viveu: ―Je ne suis pas un philosophe, en effet, et je ne sais parler que de ce que j‘ai vécu‖

(CAMUS, 1965, p.753).

A recusa por parte de Camus da visão romântica e sua crítica à idéia, considerada uma

ilusão, de que um escritor fala sempre de si próprio em seus textos ficcionais podem parecer

contraditórias com sua própria obra, altamente autobiográfica e cheia de alusões a fatos que

ele próprio vivenciou. Mas o que ele critica no romantismo é o excesso de lirismo e a

produção carregada da subjetividade do autor. Camus foi um autor extremamente engajado

com a história e as experiências por ele vividas, e de alguma forma presentes em sua obra, não

são exclusivamente suas, são na verdade posicionamentos diante de questões prementes com

as quais se confrontou toda uma geração.

Esta articulação entre o indivíduo e a sociedade pode ser facilmente verificada,

sobretudo em se tratando de um escritor engajado. Neste sentido, Freud observa que, mesmo

entre a psicologia individual e a psicologia social, a oposição não é tão profunda. Só muito

raramente e em condições excepcionais, seria possível prescindir das relações do indivíduo

com seus semelhantes, pois na vida anímica individual aparece integrado sempre ―o outro‖,

como modelo, objeto, auxiliar ou adversário. O indivíduo é sempre membro de uma tribo, de

um povo, de uma casta, de uma classe social ou de uma instituição, ou elemento de uma

multidão humana. Através dos laços com os outros, o indivíduo influencia seu meio e está

sempre sob a influência exercida por um grande número de pessoas (Cf. FREUD, 1978, p.3).

Numa concepção bastante próxima desta, também Sartre destaca o vínculo entre o

indivíduo e os outros, ao comentar sua peça Huis Clos (1944) e particularmente a passagem

l’enfer c’est les autres que, segundo ele, foi sempre mal compreendida. Embora Sartre veja as

relações humanas sob o prisma do conflito, no qual os indivíduos são ao mesmo tempo

vítimas e carrascos uns dos outros, ele afirma que esta passagem foi interpretada como

significando que nossas relações com os outros são sempre envenenadas, sempre relações

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infernais, sendo que, na verdade, ele queria dizer outra coisa: a possibilidade de relações que

não de dependência e a importância de todos os outros para cada um.2

É nesta relação profunda entre o eu e o outro, entre o indivíduo e a sociedade, que

pensamos poder compreender os elementos ―autobiográficos‖ que Camus deixa transparecer

em seus textos ficcionais. O Ciclo da Revolta e La Peste, em particular, não podem ser

dissociados do engajamento político do escritor. Além disso, se não podemos falar de obra

autobiográfica em sentido próprio, há certamente um gosto pelo vivido e pela experiência

concreta que se manifesta em diversos textos e não só na Peste. Os escritos de Camus são

complexos pela simbologia e pela carga ideológica, mas são simples do ponto de vista da

intriga e do enredo, porque são relatos próximos da experiência cotidiana e se opõem à

"abstração", criticada como posicionamento filosófico no Mythe de Sisyphe, mas também

como atitude existencial na Peste. Assim, esta vontade de transpor o existencial para a

literatura é uma marca da literatura de Camus, na qual o gosto pelo concreto, pelo humano e

pelo vivido é sempre destacado: um pouco em L'Étranger, muito mais na Peste, repleta de

referências a dados biográficos ou históricos. L'État de Siège, como La Peste, remete à

História, Caligula e Les Justes se baseiam diretamente em personagens históricos e Le

Malentendu teria sido inspirada num fait-divers. Assim, alguns dos elementos identificados

no romance como mais ou menos diretamente relacionados com a biografia do autor merecem

ser destacados.

Desde seus primeiros estudos, Camus se interessou pela cultura grega clássica, em

particular pelo mito e pela tragédia. Apaixonado pelo teatro, e pela dimensão comunitária e de

2 Quero dizer que se nossas relações com o outro são distorcidas, viciadas, então o outro só pode ser o

inferno. Por que? Porque os outros são, no fundo, o que há de mais importante em nós mesmos para

nosso próprio auto-conheciemento. [...] Isto quer dizer que, se minhas relações são ruins, eu me ponho

sob a total dependência do outro. E então, de fato, eu estou no inferno. E existe uma imensidão de

pessoas no mundo que estão no inferno porque dependem demais do julgamento do outro. Mas isto

não quer dizer, de forma alguma, que não se possa ter outras relações com os outros. Isto mostra,

simplesmente, a importância essencial de todos os outros para cada um de nós. SARTRE, 1992, p.282-

283.

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equipe fundamental, foi um estudioso deste campo e nele trabalhou intensamente e em várias

funções, antes de escrever suas próprias peças; ele se interessava, sobretudo, pelos grandes

dramaturgos e pela tragédia grega. La Peste apresenta uma dimensão trágica e uma passagem

do romance evoca de maneira direta a figura mitológica de Orfeu. É uma curta passagem, que

pode passar despercebida ao leitor, mas que tem um papel significativo.

Tarrou e Cottard vão assistir à representação de ―Orfeu‖, uma ópera de Gluck, e um

ator atingido pela peste cai morto em cena, a platéia apavorada abandona a sala. Essa

representação configura a retomada en abîme do tema da separação: a ópera mostra a

separação entre Orfeu e Eurídice, e desde a primavera o grupo de artistas, isolado em Oran,

retoma sempre o mesmo espetáculo, o que ilustra a repetição e a monotonia características do

―estado de peste‖. A doença surge brutalmente em cena, quebrando a ilusão teatral e a ilusão

de vida normal que a noite no teatro poderia dar aos espectadores.

Orfeu é um elemento da cultura grega que na Peste remete ao tema da separação. A

separação é decorrência do "estado de peste", que funciona como um "estado de sítio". O

tema dos amantes separados, dos maridos afastados das esposas, presente no romance, lembra

uma experiência vivida pelo próprio Camus. No início de 1940 ele está em Paris, trabalhando

no jornal ―Paris-Soir‖; em maio termina L'Étranger e em dezembro se casa com Francine

Faure. Em inícios de 1941 está em Lyon e vai daí para Oran, onde dá aulas algum tempo e

termina Le Mythe de Sisyphe. Em inícios de 1942 está em Oran, a vida lá é difícil, ele sofre

uma recaída da tuberculose e, no verão desse ano, volta à França para se tratar, sua mulher o

acompanha, mas volta à Argélia pouco antes da chegada dos aliados à África do Norte, em

novembro de 1942. Em conseqüência da guerra, que estabelece uma separação total entre a

Metrópole e a África do Norte, Camus fica separado por mais de dois anos da mulher, da

família e de sua terra natal. Ele continua a elaboração de sua obra, mas vive dificilmente as

experiências da separação e da doença. Assim, para ele, o "exílio" e a separação não são

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simplesmente temas literários nem conceitos abstratos, mas uma experiência cruelmente

sentida e dolorosamente vivida.

Há uma ausência de personagens femininos importantes na Peste. Apenas algumas

silhuetas, geralmente anônimas, que atravessam o romance. As mulheres estão longe de Oran.

A mulher de Grand o deixou há muito tempo. Rambert deixou em Paris aquela que ele ama. A

mulher de Rieux deixa a cidade a fim de se tratar, logo no início da história. A ausência das

mulheres, geralmente esposas ou amantes dos personagens principais, vem reforçar a

impressão de isolamento e de exílio destes personagens. Esta ausência ilustra ainda o tema

dos amantes separados e o tema do amor, presente no romance, mesmo se não celebrado à

maneira dos românticos.

A mãe de Rieux é a única mulher que tem uma presença destacada no romance,

participando de muitas cenas. Ela é conhecida por suas palavras e atitudes, sendo descrita pelo

narrador e por Tarrou. Esta personagem, comovente na sua discrição, corresponde à imagem

da mãe de Camus, discreta e silenciosa, quase surda e que falava muito pouco, como ele a

descreve em outras obras, como em Le Premier homme. A respeito de Rieux e sua mãe, o

narrador afirma que eles sempre se amariam em silêncio. E acrescenta: ―Mais, cependant,

quelque chose changeait dans le visage de sa mère lorsqu‘il apparaissait. Tout ce qu‘une vie

laborieuse y avait mis de mutisme semblait s‘animer alors. Puis, elle retombait dans le

silence‖ (CAMUS, 1984, p.1319).

Desde muito jovem, Camus praticava esporte com prazer, em particular o futebol e a

natação. Há no romance um personagem, Gonzalès, que é jogador. Ele é procurado por

Rambert, que também aprecia o esporte; a paixão comum desencadeia uma conversa e uma

relação amistosa: "Le reste du déjeuner se passa à rechercher un sujet de conversation. Mais

tout devint très facile lorsque Rambert découvrit que le cheval était joueur de football. Lui-

même avait beaucoup pratiqué ce sport" (CAMUS, 1962, p.1340). Esse jogador, personagem

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de participação episódica, acaba por se envolver na luta contra a peste, trabalhando justamente

num estádio adaptado para receber os doentes:

C'est un dimanche après-midi que Tarrou et Rambert choisirent pour se

diriger vers le stade. Ils étaient accompagnés de Gonzalès, le joueur de

football, que Rambert avait retrouvé et qui avait fini par accepter de diriger

par roulement la surveillance du stade. [...] Gonzalès avait dit aux deux

hommes, au moment où ils s'étaient retrouvés, que c'était l'heure où, avant la

peste, il se mettait en tenue pour commencer son match. [...] Le ciel était à

moitié couvert et Gonzalès, le nez levé, remarqua avec regret que ce temps,

ni pluvieux ni chaud, était le plus favorable à une bonne partie (CAMUS,

1962, p.1414-1415).

Associado à natação e à natureza mediterrânea, duas grandes paixões de Camus, o mar

está presente no romance como um verdadeiro personagem ao qual se alude em muitos

momentos. Assim, por exemplo, diz-se dos habitantes de Oran: "ils ont du goût aussi pour les

joies simples, ils aiment les femmes, le cinéma et les bains de mer [...]" (CAMUS, 1962,

p.1220). Por causa deste gosto, "Le dimanche matin [...] les bains de mer font une

concurrence sérieuse à la messe" (CAMUS, 1962, p.1295). Naturalmente, os gostos e

costumes são alterados pela epidemia, mas antes dela, a cada verão, "La ville s'ouvrait alors

vers la mer et déversait sa jeunesse sur les plages" (CAMUS, 1962, p.1312). Quando o

narrador se desculpa por descrever os enterros, dizendo que estes constituíam uma grande

preocupação dos moradores durante a epidemia, ele fala do seu gosto pelo mar: "Ce n'est pas,

en tout cas, qu'il ait du goût pour ces sortes de cérémonies, préférant au contraire la société

des vivants et, pour donner un exemple, les bains de mer" (CAMUS, 1962, p.1359). A

propósito de Tarrou, afirma-se nas primeiras páginas do romance: "Dès le début du printemps,

on l'avait beaucoup vu sur les plages, nageant souvent et avec un plaisir manifeste" (CAMUS,

1962, p.1235). Uma das passagens mais belas do romance é o momento em que Rieux e

Tarrou, quebrando as leis de isolamento da cidade, vão tomar um banho de mar, como a selar

a amizade que os une:

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"Savez-vous, dit-il, ce que nous devrions faire pour l'amitié? [...] Prendre un

bain de mer." [...] "À la fin, c'est trop bête de ne vivre que dans la peste." [...]

Peu avant d'y arriver, l'odeur de l'iode et des algues leur annonça la mer. Puis

ils l'entendirent. [...] Habillés de nouveau, ils repartirent sans avoir prononcé

un mot. Mais ils avaient le même coeur et le souvenir de cette nuit leur était

doux (CAMUS, 1962, p.1428-29).

Camus trabalhou durante muito tempo como jornalista, e Rambert, um dos

personagens principais do romance, é um jornalista, que está em Oran fazendo uma

reportagem como aquela que Camus de fato fizera, sobre a miséria na Kabila, quando

trabalhava em Argel, de outubro de 1938 a janeiro de 1940. Camus desempenhou a profissão

de jornalista cheio de idealismo, propondo um jornalismo sério e criticando a manipulação

das informações.

Na Peste, os jornais de Oran anunciam em 29 de abril a alegria da primavera na cidade

da qual os ratos parecem ter desaparecido. Mas a normalidade é na verdade uma informação

enganosa, tanto que já no dia seguinte morre o porteiro do prédio onde mora o doutor Rieux.

Assim, os fatos desmentem os propósitos tranqüilizadores dos jornais. O narrador, numa

linguagem bastante irônica, denuncia a cegueira das populações e a falta de objetividade de

certos jornais, submetidos ao governo e à administração:

Les journaux, naturellement, obéissaient à la consigne d'optimisme à tout

prix qu'ils avaient reçue. À les lire, ce qui caractérisait la situation, c'était

"l'exemple émouvant de calme et de sang-froid" que donnait la population.

Mais dans une ville refermée sur elle-même, où rien ne pouvait demeurer

secret, personne ne se trompait sur "l'exemple" donné par la population

(CAMUS, 1962, p.1413).

Os jornais não compõem a documentação de que Rieux se serve, não têm nenhuma

utilidade durante a epidemia e só se interessam pelo espetacular: ―le Courrier de l’épidémie

[...] ce journal s‘est borné très rapidement à publier des annonces de nouveaux produits,

infaillibles pour prévenir la peste" (CAMUS, 1962, p.1316).

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O narrador, que foge de uma linguagem estereotipada, escreve baseando-se nas

anotações deixadas por Tarrou. Há, igualmente, grande espaço para as confidências e para a

oralidade. O próprio Rambert, jornalista, é um ―narrador‖ que não escreve. Os diálogos são

numerosos. A linguagem do padre Paneloux, como a linguagem dos juízes de L'Étranger, é

fria e carregada de chavões; marcada pela "abstração", ela é caricaturizada e através dela

aparece uma denúncia dos poderes da palavra, que pode mascarar a realidade e se tornar uma

sedução desonesta.

Camus é um escritor que se posiciona no campo literário como um amador, visto que

esteve afastado dos meios acadêmicos, desde que, por motivos de saúde, foi proibido de

seguir a carreira de professor. Outro personagem importante no romance se debate, na busca

obcecada da perfeição para escrever um romance e se tornar um escritor: Grand, um simples

funcionário da prefeitura, função que Camus exerceu em Argel, quando, fazendo seus estudos

superiores na Faculdade de Argel em condições difíceis, trabalhou como vendedor de

acessórios para automóveis, meteorologista, funcionário de uma agência marítima e da

prefeitura.

Camus manifesta um interesse pelos problemas da linguagem em textos como

L’intelligence et l’échafaud (1943) e Sur une philosophie de l’expression de Brice Parain

(1944), e ainda na Introduction aux Maximes de Chamfort (1944), escritos que transparecem,

de forma simplificada, nos tormentos existenciais de Grand, aspirando a se tornar escritor. Em

sua obsessão pelo termo exato, este personagem está sempre reiniciando seu escrito. Com

medo de não encontrar a palavra adequada, nunca escreveu à prefeitura, onde ele trabalha, a

carta de reclamação em que pensa há muito tempo; da mesma forma não encontrou, para se

dirigir à mulher que o abandonou, palavras que fossem capazes de retê-la:

Ce qu‘il aurait voulu, c‘est lui écrire une lettre pour se justifier. "Mais c‘est

difficile, disait-il. Il y a longtemps que j‘y pense. Tant que nous nous

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sommes aimés, nous nous sommes compris sans paroles. Mais on ne s‘aime

pas toujours. À un moment donné, j‘aurais dû trouver les mots qui l‘auraient

retenue, mais je n‘ai pas pu" (CAMUS, 1962, p.1286).

A presença de um personagem que quer se tornar escritor e que só consegue depois de

terminada a luta contra o flagelo, bem como a discussão sobre o poder e a função da

linguagem, remetem a uma reflexão sobre o próprio ato de escrever, que é apresentado como

algo que exige imensos esforços e que está em relação com o ambiente do escritor.

Num grau menor do que Grand, também Tarrou experimenta, às vezes, uma

dificuldade em escrever. A carreira de Grand, enquanto funcionário público, não avança, ele

permanece à margem porque é transparente e tem coragem de ter bons sentimentos, ou seja,

ele constitui a antítese do estereótipo dos empregados da administração à qual pertence. Antes

que se declarasse a peste, já tinha a convicção de que "il faut bien s'entraider" (CAMUS,

1962, p.1232).

As concepções políticas de Tarrou, bem como seu horror à pena de morte,

praticamente coincidem com as de Camus. O relato de Tarrou sobre seu pai, que condenava

criminosos à morte, evoca as Réflexions sur la guillotine (1957), um texto denso e profundo,

em que Camus critica a pena de morte. No início desse texto, Camus relembra a história

contada por sua mãe, sobre seu pai, que defendia a pena de morte, até o dia em que foi assistir

a uma execução e voltou para casa transtornado: essa experiência perturbadora diante da

execução é vivida e relatada pelo personagem Tarrou. Além disso, Camus integra a seu

romance seus próprios ―carnets‖, anotações cuja forma de escrita é semelhante àquela

presente nos ―carnets‖ de Tarrou. Este personagem corresponde ainda ao ex-militante que

discorda dos métodos violentos usados na luta revolucionária, o que remete à passagem de

Camus pelo Partido Comunista e à decepção de muitos de seus contemporâneos com o

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Partido. Além deste personagem, também o médico Rieux compartilha muitos pontos de vista

e opiniões que o autor defende em outros escritos.

A luta dos personagens contra a peste, uma metáfora da Guerra, remete à luta de

Camus e de muitos de seus contemporâneos contra a ocupação nazista. Camus busca não

ceder à tentação da obra de tese e condena a literatura de propaganda, mas produz uma

literatura de alcance filosófico e social. Ele não sacrifica sua ética nem sua estética às

exigências da filosofia ou do combate político, mas também não acredita na arte pela arte,

desligada das condições sociais e culturais que a tornam possível. Pensa, antes, que a

responsabilidade do escritor está à altura do lugar que ele ocupa no campo social. Retomando

a expressão de Pascal, afirma: "À partir du moment où l‘abstention elle-même est considérée

comme un choix, puni ou loué comme tel, l‘artiste, qu‘il le veuille ou non, est embarqué

(CAMUS, 1965, p.1079). E escreve ainda:

Les artistes du temps passé pouvaient au moins se taire devant la tyrannie.

Les tyrannies d‘aujourd‘hui se sont perfectionnées; elle n‘admettent plus le

silence, ni la neutralité. Il faut se prononcer, être pour ou contre. Bon, dans

ce cas, je suis contre (CAMUS, 1965, p.800).

A obra literária, filosófica e jornalística de Camus apresenta uma discussão ética e

uma defesa do comprometimento com o social, e sua atividade de escritor é em si mesma uma

forma de engajamento. Sua ação militante se revela também pela condenação dos excessos da

política colonial francesa e por sua atividade na Resistência. Camus se coloca como defensor

dos direitos do homem e contra todos os totalitarismos, inclusive aquele de Stalin.

Atravessando várias provações, Camus forma seu pensamento e sua escrita no estudo

da filosofia e na atividade teatral e jornalística. Aos 17 anos, foi atingido por uma tuberculose

que lhe fechou as portas à carreira de professor. Dedica-se então ao teatro e ao jornalismo, ao

mesmo tempo em que se engaja em atividades de ordem cultural e política, como a defesa de

uma cultura popular, a luta contra a ascensão dos totalitarismos europeus e a militância em

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favor dos republicanos espanhóis. Em 1933, Hitler chega ao poder na Alemanha. Camus

milita logo no movimento antifascista Amsterdam-Pleyel, fundado por Henri Barbuse e

Romain Rolland. Ele não separa o pensamento da ação e sua obra é exaltação da vida até na

exigência de revolta, que é também a consciência de uma ação em defesa não de interesses

próprios, mas em vista aos interesses de todos:

La pauvreté, d‘abord, n‘a jamais été un malheur pour moi: la lumière y

répandait ses richesses. Mêmes mes révoltes en ont été éclairées. Elles furent

presque toujours, je crois pouvoir le dire sans tricher, des révoltes pour tous,

et pour que la vie de tous soit élevée dans la lumière (CAMUS, 1965, p.6).

Em 1935, com 21 anos, Camus aderiu ao Partido Comunista e nele permaneceu

durante dois anos. Suas atividades se concentravam no recrutamento em meio muçulmano e

na liderança de uma troupe de teatro, o ―Théâtre du travail‖, que se pretendia popular e

revolucionário. Em 1937, torna-se jornalista de Alger Républicain, e em 1938, quando

trabalhava neste jornal, além de crônicas judiciárias e literárias, publicou comentários

polêmicos da vida polìtica de Argel, e fez reportagens politizadas, como a ―Miséria da

Kabila‖, que constitui uma clara e veemente crìtica do colonialismo e da exploração

capitalista.

Com a declaração de Guerra, ele tentou se alistar, mas foi dispensado por razões de

saúde. Alger Républicain se tornou Le Soir Républicain, no qual Camus trabalhou até 1940,

quando, por causa de problemas com a censura, o jornal foi fechado. Ele se dirigiu para a

França e teve uma participação direta e intensa na Resistência, sobretudo a partir de 1943, em

Paris, dentro do movimento de resistência ―Combat‖.

Em 1952, ele deixa a UNESCO, quando esta abre suas portas à Espanha de Franco.

Em novembro de 1954, a Guerra da Argélia é sentida como uma tragédia pessoal e, em

janeiro de 1956, ele tenta sem sucesso, em Argel, um ―Appel à la trêve civile‖. Em novembro

de 1956, protesta contra a violência soviética na Hungria; depois da revolta de Budapeste e da

repressão que se seguiu, convoca os escritores europeus a protestarem junto à ONU.

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Desde sua adesão ao Partido Comunista, até seu projeto de trégua civil para a Argélia,

Camus sempre afrontou os grandes problemas de seu tempo, o totalitarismo, o colonialismo, o

terrorismo e o racismo. No jornal Combat, ligado ao movimento de resistência de mesmo

nome, com sua reflexão vigilante, abordou o fascismo e o stalinismo, os direitos humanos, o

socialismo, a ação sindical, a guerra.

O período de elaboração da Peste corresponde ao período da Segunda Guerra, uma

época difícil, da qual Camus participou ativamente e ao longo da qual os acontecimentos não

deixaram de contribuir para a concepção do romance. Assim, a descrição de Oran liberada da

peste pode ser comparada com a experiência da ―Libération‖ de Paris, descrita nos editoriais

do Combat. Entretanto, Camus foi sempre muito discreto quanto a seu engajamento durante a

guerra e a Resistência e afirmava que os melhores entre os ―resistentes‖, que teriam o direito

de se pronunciar, já haviam morrido no combate. É um pouco a conclusão de Rieux, depois de

vencido o flagelo da peste: "Ceux qui se dévouèrent aux formations sanitaires n'eurent pas si

grand mérite à le faire, en effet, car ils savaient que c'était la seule chose à faire et c'est de ne

pas s'y décider qui alors eût été incroyable" (CAMUS, 1962, p.1327).

Na Peste, defende-se um engajamento que pressupõe a participação ativa dos

indivíduos na comunidade e que prescinde do controle do Estado, sem que se caia no caos. Ao

contrário disso, a organização popular para enfrentar o flagelo supera em eficiência a estrutura

enferrujada, fria e burocrática da administração. No romance, há uma crítica à ideologia e ao

dogmatismo e, por conseguinte, ao marxismo que assim se configurou, mas há, de forma não

menos veemente, uma crítica do conformismo e um manifesto em favor do engajamento na

busca da transformação da sociedade. Desse engajamento Camus deu um testemunho que

nem mesmo seus adversários, como Sartre e outros com quem travou polêmicas, puderam

negar.

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3.2 UMA CRÔNICA TRÁGICA

Camus se definia mais como um artista criador de mitos do que como filósofo ou

romancista (CAMUS, 1965, p.743). De fato, alguns críticos deploraram o caráter intuitivo das

bases do pensamento de Camus e tiveram dificuldade em classificar suas obras, tanto os

ensaios quanto os romances, construídas nas fronteiras dos campos e dos gêneros.

Falou-se de literatura referindo-se a Le Mythe de Sisyphe, em que mereceria destaque a

importância da ―fraseologia‖ (DURAND, 1961, p.96-97). Na obra L’Univers philosophique

(dir. A. Jacob, Paris: PUF, 1989), também L'Homme révolté foi classificado entre os textos

literários (AMIOT & MATTÉI, 1997, p.103). De fato, os ensaios filosóficos de Camus são

igualmente literários e seus temas básicos não são privilegiados pela tradição preponderante

do pensamento filosófico. Neles o autor cita e evoca tanto filósofos quanto romancistas.

Absurdo e Revolta, ensaio e romance, reflexão e poesia se imbricam e se misturam

nos escritos de Camus. Se um texto se acha na interseção de gêneros múltiplos e se as

tipologias tradicionais se revelam muito freqüentemente inoperantes, pode-se dizer que o

recurso a estes gêneros e não a outros é parte integrante da formação discursiva, da mesma

forma que o "conteúdo" (Cf. MAINGUENEAU, 1987, p.26). O ensaio é, dentre as formas do

discurso filosófico, aquela que mais se distancia do sistema frio e racionalmente organizado

do tratado e aquela que mais se aproxima das formas literárias (Cf. BARTHES, 1953, p.14).

Assim, a opção de Camus pelo ensaio poético e pelo "romance ideológico" revela a

preferência por uma filosofia não racionalista e por uma forma romanesca que não

corresponde àquelas reconhecidas e privilegiadas pelas instâncias institucionais e acadêmicas.

Ele se levanta contra a redução da filosofia a seu aspecto lógico e impessoal e se preocupa

mais com o sentido a dar à vida do que com puros problemas intelectuais, buscando uma

forma na qual a inteligência e a paixão se misturam (CAMUS, 1965, p.192).

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Os romances L'Étranger e La Peste foram vistos mais como testemunhos do que como

romances, no sentido tradicional do termo (GINESTIER, 1964, p.265). Le Mythe de Sisyphe

seria uma dissertação em forma de ensaio filosófico e L'Étranger uma dissertação em forma

de narrativa (AMIOT & MATTÉI, 1997, p.94-95). Já os primeiros estudiosos de Camus

observaram que a crítica sempre experimentou certa hesitação em enquadrar L'Étranger no

gênero romanesco, pois o livro romperia com uma série de convenções e procedimentos

considerados próprios de uma certa tradição do gênero romanesco e seria um texto de

construção revolucionária (BARRIER, 1966, p.16).

As marcas de L'Étranger que mais o distanciam do romance tradicional francês são

uma narração em primeira pessoa, paradoxalmente impessoal, no passado composto, um

tempo eminentemente anti-romanesco (LEBESQUE, 1967, p.45). O estilo "falado‖ dá

também a impressão de que se trata de um relato espontâneo, a que falta um "porte literário‖.

Assim, viu-se em L'Étranger uma espécie de ‗anti-romance‘ em que a intenção de recusar o

ritual das letras e romper com a tradição da literatura francesa é evidente (BARRIER, 1966,

p.7, 17 e 31). A dificuldade em interpretar ou classificar este romance de uma maneira

satisfatória viria também do fato de que se trata de uma obra ambígua por excelência (FITCH,

1968, p.76). Esta ambigüidade teria sido buscada pelo autor e estaria presente igualmente em

La Peste, marcada igualmente pela mistura de gêneros (Cf. CAMUS, 1965, p.201, 203).

O narrador da Peste apresenta seu relato como sendo uma crônica, o que remete à

história. Mas o romance pode ser visto também como uma tragédia e até mesmo como um

ensaio. A complexidade e diversidade de sentidos presentes no romance parecem buscadas

pelo autor, que afirma:

Je veux exprimer au moyen de la peste l‘étouffement dont nous avons

souffert et l‘atmosphère de menace et d‘exil dans laquelle nous avons vécu.

Je veux du même coup étendre cette interprétation à la notion d‘existence en

général. La peste donnera l‘image de ceux qui dans cette guerre ont eu la

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part de la réflexion, de silence – et celle de la souffrance morale (CAMUS,

1964, p.67).

Pela época em que escreve La Peste, Camus publica um estudo sobre L’espoir et

l’absurde dans l’oeuvre de Franz Kafka, que traz uma reflexão sobre o símbolo e a

ambigüidade em Kafka, elementos que Camus parece buscar também para sua obra. No

estudo, pode-se ler: ―Un symbole dépasse toujours celui qui en use, et lui fait dire en réalité

plus qu‘il n‘a conscience d‘exprimer‖ (CAMUS, 1965, p.201). La Peste é colocada sob a luz

de uma citação, tomada do Robson Crusoé de Daniel Defoe, que evoca os temas da prisão, da

representação imaginativa, dos poderes metafóricos e simbólicos da arte: "Il est aussi

raisonnable de représenter une espèce d'emprisonnement par une autre que de représenter

n'importe quelle chose qui existe réellement par quelque chose qui n'existe pas".

Camus admira também Melville, por ter construído seus símbolos sobre o concreto, e

não sobre o material do sonho, por ter inscrito seus mitos na concretude da realidade e não nas

nuvens fugidias da imaginação. Melville orienta a criação de Camus para o símbolo e o mito

ancorados na realidade; é isto que ele deseja para sua própria criação, em particular para La

Peste. Camus busca uma maneira de dizer, ao mesmo tempo, a história e o mito, o real e sua

transfiguração. No romance, há esta multiplicidade de significações: é uma crônica, mas de

uma epidemia imaginária; é um romance ao mesmo tempo, mas remete ao conhecimento do

que existe de fato no mundo.

Podemos distinguir entre os elementos mais característicos da crônica e aqueles

próprios da tragédia, mas na verdade eles se acham amalgamados no romance. Os diversos

aspectos e sentidos do texto se impõem simultaneamente: isso vale tanto para o sentido da

relação com a história, particularmente a Segunda Guerra, quanto para o sentido de tragédia,

alegoria e mito. Por isso podemos dizer que o romance propõe uma crônica mítica,

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misturando descrições realistas e evocações do fantástico, o natural e o inverossímil.3 No

início do relato, o narrador já prevenia: "Ces faits paraîtront bien naturels à certains et, à

d'autres, invraisemblables au contraire" (CAMUS, 1962, p.1221). Assim, para Véronique

Anglard, a realidade e o mito da peste se colocam lado a lado; a peste, como a vida, é natural

e inverossímil (Cf. ANGLARD, 1999, p.126).

Em 1958, no prefácio para a reedição de L'Envers et l'endroit (1937), Camus avalia

sua obra e afirma que se esforça para criar uma linguagem e fazer viver mitos. Este objetivo

transparece na Peste, em que a dimensão mítica e trágica está presente, como sublinha

Véronique Anglard, embora a autora identifique o mito como ―história atemporal‖, ao passo

que o próprio Camus destaca a relação entre o momento sócio-histórico da Grécia e o

surgimento dos mitos e da tragédia.

Camus, portanto, como romancista, busca construir mitos. O mito é uma linguagem e

a linguagem é, por natureza, simbólica. O mito pode designar ao mesmo tempo uma história

antiga e uma situação presente. Desta maneira, La Peste, pela riqueza das imagens e pela

dimensão simbólica, apresenta muitos sentidos, e, como observaram vários críticos, a

epidemia pode simbolizar ao mesmo tempo o nazismo, a guerra, a opressão, o Absurdo e o

mal.

Podemos destacar os elementos do romance que o aproximam de uma peça de teatro,

em especial de uma tragédia. Nas primeiras páginas do romance o leitor tem contato com

praticamente todos os personagens, pois a maioria deles aparece logo no início, numa forma

de apresentação que se assemelha à entrada de atores em cena. Eles recebem uma rápida

descrição física e, geralmente, tomam a palavra imediatamente; é o caso de Tarrou, Rambert,

3 Pela presença da natureza, pelas descrições do espaço, as ruas de Oran, o porto vazio, o hospital, pela

presença de personagens que sofrem ou morrem de maneira muito nítida, pela apresentação quase

clínica da peste, o romance parece se aproximar das formas mais visíveis de realismo. Mas a peste, a

presença do flagelo, as forças dos elementos remetem ao fantástico e se se aproximam do mítico, na

medida em que nos relatam uma história atemporal e que nos fala de nossa própria história.

ANGLARD, 1999, p.125

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Grand, Cottard e Rieux. Além disso, o livro não é dividido em capítulos, mas em 5 grandes

partes e, desta forma, a própria composição do romance remete explicitamente à estrutura da

tragédia clássica francesa:

1) A primeira parte, como um primeiro ato, situa a ação e anuncia a narrativa, relata o

aparecimento dos ratos, descreve o aumento da tensão e termina com a declaração do ―estado

de peste‖ e conseqüente fechamento da cidade.

2) A segunda parte mostra a instalação e o progresso da peste na cidade fechada, os

esforços para organizar a luta contra o flagelo, o aumento do medo, do sentimento de exílio e

de revolta. A peste atinge seu cume.

3) A terceira parte, central, descreve a situação geral, afirmando o reinado da peste,

descreve as violências, os enterros, os sofrimentos das pessoas separadas.

4) Na quarta parte se acentua o avanço da doença e do terror, que culmina na morte de

uma criança, mas a cura de Grand é um fato novo.

5) Na quinta e última parte a peste diminui e desaparece. As portas da cidade se abrem

e os habitantes recuperam a liberdade. Revela-se a identidade do narrador.

Assim, a estrutura de conjunto baseia-se no movimento da peste: chegada,

desenvolvimento, auge, diminuição, desaparecimento. A ameaça da morte é um elemento da

tragédia clássica, e esta está presente no romance. Nele a peste é a imagem de tudo que causa

a morte, a questão da pena de morte é discutida e a morte dolorosa de uma criança é descrita,

causando verdadeiro pavor e suscitando a discussão entre o cientista e o teólogo.

Camus se documentou sobre a doença e sobre as grandes pestes da história,

conseguindo informações, detalhes para a descrição da doença, números, anedotas e imagens,

que alimentam a fala do médico Rieux e a pregação do padre Paneloux. Ele leu Lucrécio,

Tucídides, Defoe. Leu ainda Le Théâtre et son double (1938), de Antonin Artaud, e parece ter

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sido tocado particularmente pelo capìtulo ―Le théâtre et la peste‖. Referências precisas à

Bíblia mostram que Camus não ignorou a dimensão religiosa do flagelo, que constitui com a

guerra e a fome as ―três flechas de Deus‖, e seu papel de castigo divino, do qual se lembra

Paneloux. Esta dimensão reforça a peste como símbolo do mal. A peste reúne sob as imagens

que lhe são específicas todas as manifestações do mal e da infelicidade de ordem física,

moral, metafísica e histórica.

Além do sentido clássico da tragédia, enquanto representação e gênero dramático,

Camus considera que seu próprio tempo — marcado por guerras, pela barbárie, pelos campos

de concentração, pelos crimes contra a humanidade e pelo terror totalitário — é um momento

histórico "trágico" por excelência:

L‘homme d‘aujourd‘hui, qui crie sa révolte en sachant que sa révolte a des

limites, qui exige sa liberté et subit la nécessité, cet homme contradictoire,

déchiré, désormais conscient de l‘ambiguïté de l‘homme et de son histoire,

cet homme est l‘homme tragique par excellence (CAMUS, 1962, p.1707).

Podemos, assim, destacar os elementos que acentuam o aspecto de crônica presente no

romance. A linguagem é sóbria e recusa a exaltação dos sentimentos heróicos ou líricos;

quanto mais as circunstâncias são trágicas, mais o tom da narrativa se faz impessoal, o que

não deixa de lembrar a técnica de Kafka, por exemplo, no Processo (1915). La peste é

marcada por referências, às vezes sutis, às vezes mais explícitas, ao momento da Segunda

Guerra. A comparação subjacente entre peste e guerra é o dado que mais estabelece a relação

do romance com a época que precedeu sua publicação. A peste e a guerra são vistas e julgadas

da mesma maneira, elas são permutáveis, as duas são um flagelo:

Les fléaux, en effet, sont une chose commune, mais on croit difficilement

aux fléaux lorsqu'ils vous tombent sur la tête. Il y a eu dans le monde autant

de pestes que de guerres. Et pourtant pestes et guerres trouvent les gens

toujours aussi dépourvus (CAMUS, 1962, p.1247).

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Evocando o imaginário da peste, sobretudo sua ação de mortalidade e devastação,

Rieux estabelece imediatamente a relação entre ela e a guerra. O campo lexical evocativo da

guerra é importante, fala-se em ―estado de peste‖, como se fala de ―estado de sìtio‖. O exìlio e

a prisão são temas centrais: "Ils éprouvaient ainsi la souffrance profonde de tous les

prisonniers et de tous les exilés, qui est de vivre avec une mémoire qui ne sert à rien"

(CAMUS, 1962, p.1278). O exílio se dá na própria terra: "Mais si c‘était l‘exil, dans la

majorité des cas c‘était l‘exil chez soi" (CAMUS, 1962, p.1278). O exílio em casa não torna a

separação menos dolorosa nem a solidão menos pesada.

Um dos sentidos da crônica se refere a uma reportagem, uma anotação do dia-a-dia, o

que lembra o papel do historiador, para o qual o tempo é fundamental. Entretanto, no

romance, não se indica o ano preciso, o que limita a exatidão da referência cronológica. Fala-

se apenas da década, 1940: "Les curieux événements qui font le sujet de cette chronique se

sont produits en 194..." (CAMUS, 1962, p.1219).

A cronologia se estende da ―manhã do dia 16 de abril‖ até ―uma manhã de fevereiro‖.

O tempo é marcado pelo ritmo das estações, que têm um papel importante na evolução da

epidemia: ela aparece na primavera, culmina no verão, fica estagnada no outono, diminui e

desaparece no inverno. Trata-se de uma crônica que, paradoxalmente, foge à datação precisa.

Além disso, os documentos recolhidos pelo narrador são bastante subjetivos: seu

próprio testemunho, as confidências dos outros personagens e ―os textos que caìram em suas

mãos‖; trata-se de um historiador amador: "Bien entendu, un historien, même s'il est un

amateur, a toujours des documents. Le narrateur de cette histoire a donc les siens" (CAMUS,

1962, p.1222). Ele não se pretende imparcial, mas testemunha privilegiada pelas

circunstâncias e pelo papel que veio a desempenhar; mais do que documentar sobre a peste,

ele se preocupa em mostrar a reação das pessoas diante dela.

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O narrador não só conhece o que se passou, podendo avaliar a extensão do mal, mas

busca também fazer justiça àqueles que mostraram resistência. O objeto normal das crônicas é

a comunidade, e desde o inìcio do romance, com o emprego de expressões como ―nossa

cidade‖, ―a gente‖, ―a opinião geral‖, a crônica afirma sua ambição coletiva. A partir do

momento em que se diz que ―a peste foi questão de todos nós‖, o ―nós‖ coletivo substitui

quase sempre os outros pronomes; este ―nós‖ se opõe assim ao ―eu‖ individual de Meursault,

em L'Étranger. A comunidade, no caso, é uma cidade: Oran. Trata-se de uma referência a

uma cidade que existe de fato, situada no norte da África, na Argélia, e a história se passa na

década de 1940. Assim, a situação espácio-temporal constitui um quadro realista. Pode-se

também ver em Oran uma cidade moderna por causa dos acontecimentos, das descrições

físicas e da forma como nela é apresentada a vida, organizada em função do sistema

capitalista avançado:

On pouvait cependant avoir d'autres sujets d'inquiétude par suite des

difficultés du ravitaillement qui croissaient avec le temps. La spéculation

s'en était mêlée et on offrait à des prix fabuleux des denrées de première

nécessité qui manquaient sur le marché ordinaire. Les familles pauvres se

trouvaient ainsi dans une situation très pénible, tandis que les familles riches

ne manquaient à peu près de rien. [...] la peste [...] rendait plus aigu dans le

coeur des hommes le sentiment de l'injustice. Il restait, bien entendu, l'égalité

irréprochable de la mort, mais de celle-là, personne ne voulait (CAMUS,

1962, p.1413).

O narrador sublinha o aspecto banal da cidade e da vida em Oran, que é apresentada

como uma cidade comum, feia, voltada para o comércio, fechada sobre si mesma, um lugar

bastante artificial e inumano, como muitas cidades grandes. Os habitantes não têm nada de

extraordinário, levam uma vida mecânica, presa aos hábitos do cotidiano; vivem numa

espécie de indiferença, sem refletir no sentido a dar a vida. A monotonia, o conformismo e a

despersonalização os absorvem. Passam a maior parte do tempo trabalhando, trabalham muito

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e gastam logo o pouco que ganham no consumo de mercadorias e de diversões (Cf. CAMUS,

1962, p.1219).

A descrição da invasão e da morte de milhares de ratos é bastante realista:

incredulidade e depois preocupação dos habitantes. A ação tem como quadro primeiro o

cenário da vida quotidiana e a primeira vítima é o porteiro de um imóvel, o representante

estereotipado de uma vida fundada sobre o hábito e os gestos cotidianos.

Antes da peste, em Oran, a vida é ritmada pelo trabalho, pelos prazeres do fim de

semana, pelos hábitos do cotidiano; o narrador acentua este aspecto ―comum‖ da cidade e da

vida de seus habitantes: "Ce qu'il fallait souligner, c'est l'aspect banal de la ville et de la vie.

[...] Du moment que notre ville favorise les habitudes, on peut dire que tout est pour le mieux"

(CAMUS, 1962, p.1221). No entanto, depois da declaração do estado de peste, o aspecto da

cidade se modifica, ela se torna uma cidade diferente, por causa das mudanças no espaço e

nos hábitos do cotidiano: "Oran prit ainsi un aspect singulier" (CAMUS, 1962, p.1283). Já o

fechamento das portas conduz a medidas de proibição e de racionamento, finalmente

instalando-se a desordem.

Num primeiro momento de desespero, os habitantes apelam para a religiosidade; logo

em seguida eles se entregam aos prazeres e exibem a riqueza, o luxo, as relações: "Au début,

quand ils croyaient que c‘était une maladie comme les autres, la religion était à sa place. Mais

quand ils ont vu que c‘était sérieux, ils se sont souvenus de la jouissance" (CAMUS, 1962,

p.1318). Já não vivem conforme o modo convencional nem se preocupam com o olhar

reprovador dos outros: "La peste avait supprimé les jugements de valeur. Et cela se voyait à la

façon dont personne ne s'occupait de la qualité des vêtements ou des aliments qu'on achetait"

(CAMUS, 1962, p.1368). Na Peste, passada a crise da doença, a maioria dos habitantes

retorna ao seu antigo estado de banalidade, superficialidade e alienação.

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As condições materiais da vida sob o domínio da peste são relatadas com detalhes: "Le

ravitaillement fut limité et l‘essence rationnée. On prescrivit même des économies

d‘électricité" (CAMUS, 1962, p.1283). Os problemas de abastecimento, as restrições, o

mercado negro, as dificuldades de comunicação, as cenas da vida cotidiana, são reflexo das

marcas de uma época: a ocupação alemã da França, o genocídio judeu, a Segunda Guerra com

toda sorte de sofrimentos que ela trouxe. Nalguns momentos a equivalência entre a peste e a

guerra são particularmente evidentes, como na descrição das refeições coletivas num campo

de futebol que abriga os doentes:

Puis les haut-parleurs qui, dans des temps meilleurs, servaient à annoncer le

résultat des matches ou à présenter les équipes, déclarèrent en nasillant que

les internes devaient regagner leurs tentes pour que le repas du soir pût être

distribué. [...] "C'est scientifique, dit Tarrou à l'administrateur (CAMUS,

1962, p.1417).

De forma semelhante, no auge da peste, a evocação, no texto, dos cadáveres

evacuados por bondes, num anonimato desumanizante, das fossas comuns e dos ―fornos

crematórios‖ é a imagem do extermìnio nos campos de concentração:

[...] un employé de la mairie facilita beaucoup la tâche des autorités en

conseillant d'utiliser les tramways qui, autrefois, desservaient la corniche

maritime, et qui se trouvaient sans emploi. À cet effet, on aménagea

l'intérieur des baladeuses et des motrices en enlevant les sièges, et on

détourna la voie à hauteur du four, qui devint ainsi une tête de ligne"

(CAMUS, 1962, p.1364).

Camus lembrou que o ―conteúdo evidente‖ da Peste era a luta da resistência contra o

nazismo e a descrição do domínio da peste remete ao momento da guerra. Mas a crítica da

administração burocrática e a condenação da pena de morte remetem também à questão da

revolução de tipo comunista e aos métodos do stalinismo, que fazem parte da história do

século XX. Assim, no romance, a doença simboliza a guerra, e também os totalitarismos e

autoritarismos, inclusive o comunista.

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Há no romance uma crítica da ideologia, do dogmatismo, da violência e do

totalitarismo, configurada pela sátira da administração e das instituições do poder político ou

social, marcadas pelo desinteresse, pela incompetência e pela burocracia: "Les mesures

arrêtées étaient insuffisantes, cela était bien clair. [...] Si l'épidémie ne s'arrêtait pas d'elle-

même, elle ne serait pas vaincue par les mesures que l'administration avait imaginées"

(CAMUS, 1962, p.1267). As instituições e tudo o que diz respeito ao poder político ou social

se exprimem em termos convencionais, mostrando o ridículo da rigidez inadaptada à situação

excepcional:

Ce qui était plus remarquable, et Rambert le remarqua en conséquence,

c‘était la manière dont, au plus fort d‘une catastrophe, un bureau pouvait

continuer son service et prendre des initiatives d‘un autre temps, souvent à

l‘insu des plus hautes autorités, pour la seule raison qu‘il était fait pour ce

service (CAMUS, 1962, p.1308).

Pela crítica da administração se faz a crítica do Estado, uma espécie de sistema

abstrato que se encarrega de ―pensar‖ e de reagir no lugar dos cidadãos, mas que se recusa a

encarar a situação com lucidez e não considera os dados novos, que se mostra incompetente,

autoritário e desumano:

J'ai appris que la préfecture envisage une sorte de service civil pour obliger

les hommes valides à participer au sauvetage général. [....]

— Pourquoi ne pas demander des volontaires?

— On l‘a fait par voie officielle, un peu sans y croire. Ce qui leur manque,

c‘est l‘imagination. Ils ne sont jamais à l‘échelle des fléaux. Et les remèdes

qu‘ils imaginent sont à peine à la hauteur d‘un rhume de cerveau. Si nous les

laissons faire, ils périront et nous avec eux.

— C'est probable, dit Rieux. Je dois dire qu'ils ont cependant pensé aussi aux

prisonniers, pour ce que j'appellerai les gros travaux.

— J'aimerais mieux que ce fût des hommes libres.

— Moi aussi. Mais pourquoi, en somme?

J'ai horreur des condamnations à mort!

Rieux regarda Tarrou:

— Alors? dit-il

— Alors, j'ai un plan d'organisation pour des formations sanitaires

volontaires. Autorisez-moi à m'en occuper et laissons l'administration de

côté (CAMUS, 1962, p.1320-21).

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A relação do romance com o comunismo ficou mais explícita depois da publicação do

ensaio L'Homme révolté e das polêmicas que ele suscitou. A "mensagem" da Peste já era clara

e humanista e expunha o autor naturalmente a uma crítica marxista. Camus previu este efeito

polêmico e satìrico do romance, ao escrever: ―La rencontre de l‘administration qui est une

entité abstraite et de la peste qui est la plus concrète de toutes les forces ne peut donner que

des résultats comiques et scandaleux‖ (CAMUS, 1964, p.67). O engajamento que Camus

pratica e propõe, e que transparece na Peste, está figurado no trabalho do doutor Rieux, que

pressupõe a participação ativa dos indivíduos na comunidade e prescinde, de certa forma, do

controle do Estado.

As concepções políticas de Camus transparecem de certa forma na Peste, através das

posições dos personagens Rieux e Tarrou. Este último é quem toma a iniciativa de organizar

as formações sanitárias e se entrega totalmente ao combate contra a peste. Ele já seguiu um

longo itinerário ao mesmo tempo moral e político, tem horror à pena de morte e questiona

toda decisão da justiça. Busca uma transformação social associada a exigências éticas e

orienta sua ação por um "limite" que desautoriza o crime e a morte. Inicialmente escolheu a

ação revolucionária, para lutar contra a sociedade que legitima a morte, mas compreende que

esta ação pode também levar ao assassinato:

Bien entendu, je savais que, nous aussi, nous prononcions, à l'occasion, des

condamnations. Mais on me disait que ces quelques morts étaient nécessaires

pour amener un monde où l'on ne tuerait plus personne. [...] Jusqu'au jour où

j'ai vu une exécution (c'était en Hongrie) et le même vertige qui avait saisi

l'enfant que j'étais a obscurci mes yeux d'homme. Vous n'avez jamais vu

fusiller un homme? J'ai compris alors que moi, du moins, je n'avais pas

cessé d'être un pestiféré pendant toutes ces longues années où pourtant, de

toute mon âme, je croyais lutter justement contre la peste. J'ai appris que

j'avais indirectement souscrit à la mort de milliers d'hommes, que j'avais

même provoqué cette mort en trouvant bons les actions et les principes qui

l'avaient fatalement entraînée. Depuis, je n'ai pas changé. Cela fait

longtemps que j'ai honte, honte à mourir d'avoir tué, fût-ce de loin, fût-ce

dans la bonne volonté, un meurtrier à mon tour. [...] Et c'est pourquoi j'ai

décidé de refuser tout ce qui, de près ou de loin, pour de bonnes ou de

mauvaises raisons, fait mourir ou justifie qu'on fasse mourir (CAMUS, 1962,

p.1423-1426).

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A linguagem de Tarrou é muito próxima daquela de Camus em Ni victimes ni

bourreaux (Cf. Camus, 1965, p.331-352). Para o personagem, a violência nunca pode

constituir um meio, nem pode uma causa nobre admitir a violência como meio. No romance, a

rejeição do dogmatismo, do totalitarismo e da violência, a crítica da revolução por todos os

meios, crítica que atinge diretamente o stalinismo, manifesta-se sobretudo através deste

depoimento que Tarrou faz de sua experiência, que corresponde àquela de muitos que se

decepcionaram com os métodos do comunismo.

Na Peste, muito mais do que em L'Étranger, transparecem os problemas e os conflitos

marcantes de uma época, mas Camus evita as alusões diretas demais aos acontecimentos

históricos, pois considera que a história e a filosofia, mesmo quando fornecem seus elementos

ao romance, não podem entrar diretamente na literatura. Ele vê na literatura de tese, na ―obra

que prova", conforme se lê no Mythe de Sisyphe, ―la plus haïssable de toutes, parce qu‘elle

s‘inspire d‘une pensée satisfaite‖ (CAMUS, 1965, p.191); e anota em seus Carnets: ―J‘aime

mieux les hommes engagés que les littératures engagées‖ (CAMUS, 1964, p.164).

3.3 ADVERSÁRIOS DO FLAGELO

La Peste é simultaneamente crônica, ou testemunho sobre a História, e tragédia, ou

fábula do tempo presente. O romance discute as condutas humanas, analisa os

comportamentos e convoca a reflexão moral, mostrando o combate do homem contra o mal, a

infelicidade, o sofrimento e a morte ou, numa linguagem camusiana, o trabalho de homens

que expressam sua revolta em face do Absurdo.

O enredo do romance não apresenta grandes intrigas. Trata-se de um relato bastante

realista de uma epidemia de peste que atinge durante vários meses a cidade de Oran, isolando-

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a do mundo, nos anos quarenta. Ante o flagelo, os personagens reagem cada um à sua

maneira, a maioria deles toma consciência da necessidade de uma ação solidária. Alguns

homens tentam organizar a luta contra a epidemia, à frente da equipe estão o médico Rieux e

Tarrou. Graças à coragem lúcida destes homens e à força de sua revolta contra o mal, a peste

será vencida; no fim do romance a peste desaparece. Mas para todos aqueles que viveram esta

horrível "tragédia", o estado de alerta será permanente, pois poderia voltar o dia em que ―a

peste acordaria seus ratos e os mandaria morrer numa cidade feliz‖. O narrador deixa a

conclusão em aberto, ante a perspectiva de um possìvel recomeço da peste cujo bacilo ―não

morre nem desaparece nunca‖ (CAMUS, 1962, p.1474).

No relato, destaca-se a atitude que os personagens tomam diante da ameaça. Alguns

parecem se colocar do lado do flagelo, pois acabam obtendo vantagens próprias com ele e

preferem o "estado de peste" à situação de normalidade; grande parte se revela adversários da

doença; o velho asmático encarna uma atitude de indiferença à quase tudo que se passa ao seu

redor; a maior parte, embora anônima, constitui-se das vítimas que tombam sob a peste. É

sobretudo em função do sentido simbólico e moral de que são portadores que os personagens

se definem.

O médico Rieux não pode se resignar à impotência da medicina diante da morte. Para

ele o sofrimento e a morte são sempre um escândalo inaceitável e ainda mais quando se trata

de uma criança inocente, como diz ao padre: "je refuserai jusqu'à la mort d'aimer cette

création où des enfants sont torturés" (CAMUS, 1962, p.1397).

Rieux, que está no centro da luta contra o flagelo, é o personagem narrador, só ao final

da crônica ele o revela. Adotando o tom do simples cronista, ele fala de si mesmo na terceira

pessoa e marca uma grande distância em relação a acontecimentos que o tocam de muito

perto. Além disso, este narrador multiplica os pontos de vista e é por meio das anotações de

Tarrou que o leitor faz uma idéia de seu próprio porte físico. Rieux é aberto à compreensão do

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outro. Ele se abstém de julgar e não condena ninguém, nem mesmo Cottard, que se beneficia

com a desgraça coletiva. O narrador não descreve moral ou psicologicamente seus

personagens, nem explica seu caráter, mas os apresenta situados e em ação, e não há no

romance um narrador onisciente.

Quando Rambert renuncia a fugir de Oran, Rieux lhe diz que não há vergonha em

preferir a felicidade. E Rambert lhe responde que pode haver vergonha em querer ser feliz

sozinho (Cf. CAMUS, 1962, p.1389). Diante da situação, o médico afirma que se sente

incapaz de julgar (Cf. CAMUS, 1962, p.1384).

Trata-se da busca de conciliar a felicidade individual com o bem da coletividade,

quando estes parecem se excluírem mutuamente. "Bien entendu, un homme doit se battre pour

les victimes. Mais s'il cesse de rien aimer par ailleurs, à quoi sert qu'il se batte?‖(CAMUS,

1962, p.1428), afirma Tarrou. Mas, na prática, estes personagens colocam os interesses da

comunidade acima de seus interesses pessoais.

Se cada personagem encarna uma maneira de reagir à epidemia, a diferença de

comportamentos se manifesta até mesmo dentro da classe médica. O velho Dr. Castel,

trabalha na pesquisa de um soro; já o jovem Dr. Richard, presidente da ordem dos médicos de

Oran, é evasivo e se recusa a entrar na luta contra o flagelo: "Mais je n'y puis rien, dit

Richard. Il faudrait des mesures préfecturales. D'ailleurs, qui vous dit qu'il y a risque de

contagion?" [...] Tout ce qu'il pouvait faire était d'en parler au préfet" (CAMUS, 1962,

p.1241).

O combate dos médicos Rieux e Castel, em antítese com a figura do padre Paneloux,

configura a luta da medicina em contraste com o discurso da religião e, ainda, a oposição

entre o relativo e o absoluto, entre a experiência e a abstração. O médico afirma: "Le salut de

l'homme est un trop grand mot pour moi. Je ne vais pas si loin. C'est sa santé qui m'intérresse,

sa santé d'abord" (CAMUS, 1962, p.1397). O padre, com um discurso autoritário e moralista,

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a princípio trata a epidemia como um castigo divino, do qual ele se exclui: "Mes frères, vous

êtes dans le malheur, mes frères, vous l‘avez mérité [...] Méditez cela et tombez à genou"

(CAMUS, 1962, p.1296-97). O conselho do padre, pronunciado com veemência no meio de

um silêncio absoluto, foi entendido e cumprido de forma literal, ou seja, após certa hesitação,

algumas pessoas deslizaram da cadeira para o genufexório, as outras acreditaram que era

preciso fazer o mesmo e assim logo todos estavam ajoelhados. Algumas páginas adiante a

mesma expressão do padre é retomada pelo narrador, mas para ser contestada: " [...] il fallait

lutter de telle ou telle façon et ne pas se mettre à genoux" (CAMUS, 1962, p.1327).

O padre Paneloux, um jesuíta erudito, faz dois sermões na cidade sitiada pela peste.

No primeiro ele se serve da doença para despertar sentimentos cristãos, jogando com o terror

suscitado pelas imagens sugestivas que emprega. Mas a noção de ―punição coletiva‖ e a

justificativa do sofrimento não são aceitas por Rieux. O sermão de Paneloux funciona como

uma revelação; ao nomear a peste e ao anunciá-la de forma dramática e dramatizada,

intensifica a presença da ameaça. A pregação do padre situa a peste na história e no contexto

bíblico e acentua a idéia de que todos "étaient condamnés, pour un crime inconnu‖ (CAMUS,

1962, p.1301).

O discurso de Paneloux segue as regras da exposição tradicional e o modelo da

oratória sacra; revela-se um discurso formal e frio, como uma paródia da eloqüência religiosa

e de seus clichês. O padre tem um tom de acusação, manipula as figuras de estilo e as

referências culturais para impor sua concepção pessoal do flagelo. Tocando a imaginação dos

ouvintes, afirma que os habitantes são responsáveis pela epidemia e que é preciso se entregar

a Deus. Paneloux encarna o abandono à fé. Na opinião de Rieux, ele encara a peste como algo

abstrato, e de fato ele ainda a desconhece. Trata-se aqui, mais uma vez, da crítica à abstração

separada do vivido:

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Paneloux est un homme d'études. Il n'a pas vu assez mourir et c'est pourquoi

il parle au nom d'une vérité. Mais le moindre prêtre de campagne qui

administre ses paroissiens et qui a entendu la respiration d'un mourant pense

comme moi. Il soignerait la misère avant de vouloir en démontrer

l'excellence (CAMUS, 1962, p.1322).

O padre assiste à agonia e à morte da criança, o filho do juiz Othon, a quem fora

aplicada a vacina produzida pelo doutor Castel. Ele está ao lado dos médicos e dos

personagens importantes da história, a experiência é terrível para todos e o que ele vê o

transforma:

Ils avaient déjà vu mourir des enfants puisque la terreur, depuis des mois, ne

choisissait pas, mais il n'avaient jamais encore suivi leurs souffrances minute

après minute, comme ils le faisaient depuis le matin. Et, bien entendu, la

douleur infligé à ces innocents n'avait jamais cessé de leur paraître ce qu'elle

était en vérité, c'est-à-dire un scandale. Mais jusque-là du moins, ils se

scandalisaient abstraitement, en quelque sorte, parce qu'ils n'avaient jamais

regardé en face, si longuement, l'agonie d'un innocent (CAMUS, 1962,

p.1394).

A um comentário do padre, Rieux não se contém e lhe responde com uma alusão ao

sermão e com a expressão de sua revolta: "Dans le même mouvement emporté, Rieux se

retourna et lui jeta avec violence: Ah! celui-là, au moins, était innocent, vous le savez bien!

[...] il y a des heures dans cette ville où je ne sens plus que ma révolte" (CAMUS, 1962,

p.1396-97).

Depois disso, o padre aceita se unir às equipes formadas por Tarrou, e Rieux se alegra

ao constatar que ele é ―melhor do que seu sermão‖. Camus explicou a presença do padre nas

formações sanitárias: ―Je devais, dans mon roman, rendre justice à ceux de mes amis chrétiens

que j‘ai rencontrés sous l‘occupation dans un combat qui était juste‖ (CAMUS, 1965, p.394).

Além da homenagem aos cristãos combatentes, é o problema da fé que se coloca, a

impossibilidade de conciliar a crença em Deus e a existência do mal. Com efeito, a religião

sempre colocou um problema a Camus porque, se ele põe em questão a existência de Deus e

nega qualquer "natureza humana", no sentido de uma essência imutável e pré-determinada por

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uma divindade, busca entretanto fundar as regras de uma moral propriamente humana. A

questão que se coloca é a do homem que prescinde da religião, mas não da ética, e busca

fundar seus próprios valores.

O segundo sermão do padre é muito diferente do primeiro, conforme Rieux, ele beira à

heresia, o que expressa a crise que ele atravessa. O narrador observa as mudanças:

"[Paneloux] parla d'un ton plus doux et plus réfléchi que la première fois et, à plusieurs

reprises, les assistants remarquèrent une certaine hésitation dans son débit. Chose curieuse

encore, il ne disait plus 'vous', mais 'nous' " (CAMUS, 1962, p.1401).

Tarrou é um personagem sobre o qual o romance fornece muitas informações, de

maneiras diversas: ele se revela diretamente por meio de seus ―carnets‖, ele se explica pela

confidência, é descrito por Rieux e aparece na maioria das cenas importantes. Mas mesmo

assim tem algo de misterioso, ―ninguém podia dizer de onde ele vinha, nem porque estava lá‖

(CAMUS, 1962, p.1235). Ele toma a iniciativa de organizar as formações sanitárias e se

entrega totalmente à luta contra a peste. Não está isolado como os outros, seu exílio é

voluntário. Não aceita a pena de morte e abandona a militância revolucionária por causa dos

seus métodos violentos. Demonstra uma consciência lúcida, adquirida com a experiência, e

critica o abuso de poder, a abstração e o crime.

Rambert, jovem jornalista de passagem por Oran, é estrangeiro na cidade, mas a peste

muda seus planos e o transforma profundamente. Num primeiro momento, ele protesta

dizendo ―eu não sou daqui‖, e só pensa em deixar a cidade para ir ao encontro da mulher que

ama; só depois de algum tempo vai reconhecer que a peste diz respeito a ele também e então

desiste de fugir de Oran:

— Docteur, dit Rambert, je ne pars pas et je veux rester avec vous.[…]

Rambert dit qu'il avait encore réfléchi, qu'il continuait à croire ce qu'il

croyait, mais que s'il partait, il aurait honte. [...] J'ai toujours pensé que j'étais

étranger à cette ville et que je n'avais rien à faire avec vous. Mais maintenant

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que j'ai vu ce que j'ai vu, je sais que je suis d'ici, que je le veuille ou non.

Cette histoire nous concerne tous (CAMUS, 1962, p.1389).

Para ele o que importa é o amor. O que o convence, finalmente, a trabalhar com Rieux

e a entrar na luta coletiva não são raciocìnios, mas a experiência, o fato de ―ter visto o que

viu‖ e também a descoberta de que Rieux é um homem capaz de amar que não vive na

abstração, como tinha imaginado. De fato, Rambert, quando queria deixar a cidade e ainda

não sabia que a mulher de Rieux estava ausente e com problemas de saúde, acusara o médico

de viver na abstração e de não compreender o que é o amor e a separação:

Peut-être ne vous rendez-vous pas compte de ce que signifie une séparation

comme celle-ci pour deux personnes qui s‘entendent bien. [...] vous ne

pouvez pas comprendre. Vous parlez le langage de la raison, vous êtes dans

l‘abstraction. [...] Vous n‘avez pensé à personne. Vous n‘avez pas tenu

compte de ceux qui étaient séparés. [...] Ah ! je vois, fit Rambert, vous allez

parler de service public. Mais le bien public est fait du bonheur de chacun

(CAMUS, 1962, p.1289-90).

Rambert termina por reconhecer a importância da comunidade e da existência do outro

e entra na luta contra a peste, retomando uma expressão de Rieux: "Cette histoire est stupide,

je sais bien, mais elle nous concerne tous" (CAMUS, 1962, p.1289). Duas verdades dividem o

coração de Rambert: a felicidade pessoal e a existência do outro. Ele considera que é errado

negar a felicidade e que é errado também negar a existência dos outros e agir como se

estivesse sozinho. Termina por priorizar a luta coletiva em detrimento de seus sentimentos

pessoais.

O personagem Grand leva uma vida medíocre, ele é um obscuro auxiliar da prefeitura,

mas vai trazer uma ajuda importante ao combater contra a peste:

À première vue, en effet, Joseph Grand n'était rien de plus que le petit

employé de mairie dont il avait l'allure. [...] Dans un certain sens, on peut

bien dire que sa vie était exemplaire. Il était de ces hommes, rares dans notre

ville comme ailleurs, qui ont toujours le courage de leurs bons sentiments

(CAMUS, 1962, p.1253-54).

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O narrador propõe que se veja nele o herói, ele é testemunha da boa vontade, pela

busca da palavra correta, por sua bondade e transparência:

Oui, s'il est vrai que les hommes tiennent à se proposer des exemples et des

modèles qu'ils appellent héros, et s'il faut absolument qu'il y en ait un dans

cette histoire, le narrateur propose justement ce héros insignifiant et effacé

qui n'avait pour lui qu'un peu de bonté au coeur et un idéal apparemment

ridicule (CAMUS, 1962, p.1331).

Grand, mesmo não encontrando as "palavras corretas", sente intuitivamente a verdade

dos seres, dando todo sentido às palavras e às expressões feitas. É ele que primeiro

compreende que Cottard ―tem alguma coisa a se repreender‖, dá a melhor definição de Rieux:

―o doutor é responsável‖, e formula o nìvel mais elementar da solidariedade: ―é preciso se

ajudar mutuamente‖.

Cottard está presente principalmente no início do romance, com sua tentativa de

suicídio, e no final, com sua prisão. É o único entre todos que fica contente com a peste, pois

esta faz dele um homem como os outros e não mais um condenado em potencial. A peste

desestabilizou a cidade e destruiu a ordem que devia condená-lo, assim ele só pode se alegrar

com a arbitrariedade: "Avec la peste, plus question d'enquêtes secrètes, de dossiers, de fiches,

d'instructions mystérieuses et d'arrestation imminente. [...] il n'y a que des condamnés qui

attendent [...] et, parmi eux, les policiers eux-mêmes" (CAMUS, 1962, p.1378). Ele diz que se

sente bem com a peste: "je me sens bien mieux ici depuis que nous avons la peste avec nous."

(CAMUS, 1962, p.1334) Ante a proposta de Tarrou, para que trabalhasse nas formações

sanitárias, mostra sua recusa: " 'Ce n'est pas mon métier.' [...] 'D'ailleurs je m'y trouve bien,

moi, dans la peste, et je ne vois pas pourquoi je me mêlerais de la faire cesser' " (CAMUS,

1962, p.1347).

Envolvendo-se com o contrabando de produtos racionados, sua evolução é inversa à

dos outros personagens: "Il revendait ainsi des cigarettes et du mauvais alcool dont les prix

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montaient sans cesse et qui étaient en train de lui rapporter une petite fortune" (CAMUS,

1962, p.1334). Ele se enriquece no meio da infelicidade geral: "De son côté, Cottard

prospérait et ses petites spéculations l'enrichissaient" (CAMUS, 1962 p.1431). Antes era

infeliz a ponto de querer se matar, mas, com a peste, toma novo gosto pela vida e volta ao

convívio social. É a desgraça comum, o castigo imposto a todos, que lhe garante a

impunidade. Não se sabe por que ele foge da polícia. Mas seu crime maior não é aquele que o

faz correr o risco de ser preso e que permanece um enigma para os outros personagens e para

o leitor, e sim, segundo Tarrou, ―ter aprovado em seu coração aquilo que fazia morrer

crianças e homens.‖ Cottard encarna a colaboração com o inimigo, representando a

colaboração com os nazistas durante a guerra.

O juiz Othon é descrito inicialmente como rigorista e pouco simpático, encarnando a

representação do rito social e da convenção. À custa dele e de toda a família Othon se

manifesta a ironia habitual de Camus para com os ritos sociais, como ocorre em L'Étranger.

Isto pelo menos até a morte da criança, o filho do juiz. A partir daí ele se transforma e

finalmente decide também fazer parte das formações sanitárias.

Os personagens representam pessoas comuns, o flagelo da peste funciona quase como

um teste experimental que faz reagir uma humanidade média, nada heróica. A epidemia

impõe certas condições de vida e certos comportamentos comuns; todos os habitantes são

prisioneiros e a maioria está ―separada‖, mas eles têm atitudes diferentes, mostrando a

liberdade e a escolha dos homens, sua vontade ou não de se dedicarem a uma causa comum,

enfim, sua atitude moral.

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4 REVOLTA OU REVOLUÇÃO

4.1 A OPÇÃO DE CAMUS PELO ENSAIO

Em sua obra Albert Camus soleil et ombre (1987), Roger Grenier passa em revista

todos os livros do autor, com exceção de Le Premier homme, seguindo a ordem cronológica

de publicação e valendo-se de elementos biográficos e históricos, de uma maneira bastante

lúcida, sem cair no anedótico, destacando a relação destes elementos com os textos.4 Não

podemos deixar de concordar com o procedimento de Grenier, na medida em que ele leva em

conta o contexto sócio-histórico de produção e recepção dos textos de Camus e busca não

excluir nada do que possa ser útil ao conhecimento da obra.

Sem nos reduzirmos a uma leitura "biográfica" dos textos do autor, pensamos que o

conhecimento do "contexto" da obra literária em seu sentido amplo é imprescindível para a

sua compreensão. Consideramos que a linha da Escola Francesa de Análise do Discurso pode

nos fornecer este instrumental teórico, pois ela não se reduz ao sociologismo, nem se contenta

com uma análise puramente estrutural ou lingüística das obras. Além disso, a Análise do

Discurso não restringe seu campo de estudo aos textos de ficção, mas aborda igualmente os

textos filosóficos, que constituem um campo a ser investigado quando se aborda a produção

de Camus. Assim, sem desconsiderar os aspectos lingüísticos e estruturais de um texto,

levamos em consideração os aspectos aparentemente extra-textuais, pois o ―contexto‖ em seu

sentido amplo se inscreve no interior do próprio discurso.

Num trabalho coletivo, Cossutta, Maingueneau e outros (COSSUTTA (dir.), 1996) se

propõem o estudo da argumentação filosófica em Descartes. Cossutta se pergunta sobre as

4 Cada um de seus livros manifesta o engajamento de sua reflexão e é inseparável dos acontecimentos de sua

vida, durante a qual ele nunca se manteve afastado dos combates, dos sofrimentos e das agitações da sociedade.

É por isso que este estudo sobre seus livros me levou muitas vezes a fazer referência à biografia, a dizer que

momento de sua existência ele atravessava quando escrevia esta ou aquela obra. Tomar partido a favor ou contra

Sainte-Beuve é uma iniciativa um pouco ingênua. Não se deve excluir nada do que é útil ao conhecimento de

uma obra. GRENIER, 1987, p.11

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condições de possibilidade de uma teoria da argumentação filosófica e trata particularmente

do discurso cartesiano; no entanto, pela diversidade e profundidade da discussão, bem como

pelos conceitos que desenvolve, fornece elementos para a análise de outros autores, como

Albert Camus.

Entre Descartes e Camus as diferenças são muitas, a começar pelo grande intervalo de

tempo que os separa. Descartes é um dos filósofos consagrados pela tradição acadêmica;

estabelece uma virada no pensamento ocidental e é o responsável por um discurso constituinte

que inaugura uma tradição filosófica subjetivista e racionalista, mesmo se, paradoxalmente,

seu discurso, que busca combater o ceticismo, acaba por lhe fomentar o desenvolvimento.

Camus é crítico dos poderes pretensamente absolutos da razão no domínio do conhecimento e

parece haver uma relação entre sua localização bastante à margem no campo da filosofia e sua

inserção numa linha de pensamento refratária ao dogmatismo em todas as suas expressões.

O paralelo entre estes escritores mostra de que maneira todo discurso filosófico é

passível de uma análise discursiva, que por sua vez constitui um avanço no estudo da

filosofia, em seu campo específico, pois, como afirma Cossutta, a consideração da dimensão

especificamente lingüística e discursiva do texto filosófico não tem apenas um valor

descritivo mas pode cumprir uma função heurística, na medida em que ela nos permite

expandir sua inteligibilidade e formular interpretações novas (Cf. COSSUTTA (dir.), 1996,

p.2). Assim, o estudo do discurso filosófico e a história da filosofia, com seus métodos e

aquisições próprios, podem se completar.

Conforme a reflexão proposta por Cossutta, mesmo quando lidamos com textos

filosóficos podemos abordar a linguagem, a materialidade discursiva, pois a "argumentação"

filosófica é indissociável da "doutrina", ou seja, os elementos retóricos não são uma camada

sobreposta, nem se separam da exposição de idéias, nem são, muito menos, apenas

ornamentos que poderiam ser encontrados apenas nos textos literários. Esta colocação nos

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permite atenuar fronteiras entre os campos dos saberes, fronteiras que são geralmente de

caráter institucional.

Camus optou por desenvolver sua reflexão filosófica em ensaios. Já os filósofos que se

expressam através de sistemas, gênero supostamente mais rigoroso, tendem a buscar uma

língua ideal, uma espécie de discurso com regras próprias, que se concentra no

desenvolvimento de conceitos e na exposição de uma verdade. Isto pode ser entendido como

uma busca de especificidade, visto que os campos da ciência, da filosofia e da literatura não

vêem a linguagem da mesma maneira nem com os mesmos objetivos. No entanto, a pretensão

de um discurso filosófico conceitual, que busca se colocar acima de todas as linguagens ou

diferente de todas elas, e que rejeita a retórica como um elemento enfraquecedor, não deveria

existir. Mesmo se é a crença nesta possibilidade que parece estar presente de forma subjacente

em muitas classificações que tentam justificar a superioridade de um discurso filosófico com

relação a outros em razão de sua linguagem supostamente mais objetiva, mais neutra, mais

rigorosa ou racional.

Pode-se estabelecer uma distinção entre a argumentação, ligada à retórica e à busca da

adesão do auditório, e a demonstração, ligada à lógica e às deduções dos raciocínios.

Entretanto, Cossutta esclarece que, na verdade, é difícil identificar num texto uma limitação

clara e distinta entre a argumentação retórica e a argumentação lógica. Mesmo o discurso

filosófico de maior pretensão lógica não consegue escapar do aspecto retórico, pelo fato de já

se construir como discurso.5

Cossutta mostra bem que, mesmo se distinguirmos entre a demonstração filosófica,

sob a forma dedutiva ou de prova, e a argumentação, que visa convencer ou persuadir, não as

podemos opor. O texto se constrói na interação entre estes dois pólos, que não são

5 Os modos de validação pelos quais uma doutrina configura seus enunciados e seus princípios não são

independentes de um contexto de motivação ou de legitimação que supõe a intervenção das dimensões

institucionais e biográficas, e que supõe igualmente a consideração das operações que definem as

condições de legibilidade de uma obra. COSSUTTA (dir.), 1996, p.36

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dissociáveis dos conteúdos doutrinais. Ou seja, não pode haver separação entre demonstração,

como forma privilegiada do discurso genuinamente filosófico, e argumentação, como

raciocínio em linguagem comum, baseado não sobre o necessariamente verdadeiro, mas sobre

o verossímil e sobre pressuposições.

Além disso, o argumentativo não é exclusividade do discurso filosófico e à obra

literária também pode estar subjacente um plano de conceitos, que origina um corpo de

doutrinas ou, como no caso de Camus, uma dimensão filosófica associada à elaboração de

obras diversas. Assim, a demonstração já não é vista como uma forma privilegiada e o

argumentativo é considerado como inerente à própria atividade lingüística, como um

componente próprio das línguas naturais.6

O discurso filosófico, seja de que gênero for, do tratado ao ensaio, não pode fugir às

limitações que são próprias de toda produção textual, visto que este discurso, mesmo que se

pretenda único ou especial, depende sempre de uma língua natural na qual ele se insere, da

mesma forma que o discurso dos literatos e cientistas. Assim, o discurso filosófico, mesmo

quando adota formas mais rigorosas, no sentido de mais teóricas e conceituais, nunca é

simplesmente demonstração. Esta envolve simultaneamente os aspectos mais demonstrativos

ou comprobatórios e os aspectos retóricos ou de busca de uma convicção (Cf. COSSUTTA

(dir.), 1996, p.2).

A tradição do discurso filosófico escamoteia as dimensões estilística, retórica e

pragmática da filosofia, privilegiando os textos dos quais tais dimensões estariam ausentes.

Há, contudo, exceções, uma delas é justamente o Discours de la méthode, no qual os

elementos retóricos são bastante evidentes. O Discours não foi escrito sob a forma de um

tratado, mas como uma introdução a uma obra de física e nele a narrativa se constitui como

6 Para definir a argumentação em filosofia, não se pode contentar em considerar o aparelho

demonstrativo que permite a validação das teses doutrinais, mas é preciso considerar o conjunto dos

meios discursivos postos a serviço de sua legitimação. COSSUTTA (dir.), 1996, p.90

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autobiográfica, e também como uma forma retórica bem conhecida, o exemplo. Trata-se, com

efeito, de uma obra da qual muitos aspectos escapam à aridez de um racionalismo puramente

demonstrativo e podem ser dissociados da armadura conceitual e lógica do próprio

cartesianismo.

Le Discours de la Méthode, por seu estatuto, é visto como uma obra filosófica à parte,

secundária no plano estritamente doutrinal e ao mesmo tempo um texto constituinte na

história da literatura. Para Frédéric Cossutta, como discurso constituinte, ele pertence ao

mesmo tempo ao campo filosófico e ao domínio da literatura (Cf. COSSUTTA (dir.), 1996,

p.14). Daí a possibilidade de se tratar a dimensão retórica da filosofia cartesiana que se

inscreve na história da literatura.

Cossutta identifica no Discours uma distância entre os filosofemas e o estilo, uma

distância interna entre a língua empregada por Descartes e o teor dos enunciados filosóficos.

Na estilística cartesiana, as imagens (comparações, analogias, metáforas) desempenham um

papel fundamental e, ao lado desta instância poética, há o papel das instâncias lógico-

conceituais. Sendo que a coerência é obtida não pelos esquemas doutrinais, e sim graças ao

papel estruturante dos esquemas de imagens, que situam o sistema sob a unidade de uma

visão de mundo (Cf. COSSUTTA (dir.), 1996, p.17-18).

Conforme Frédéric Cossutta, o estilo está associado às dimensões conceituais e seria

artificial querer separar a dimensão demonstrativa da argumentativa, a conceitual da

metafórica, a retórica da estilística. Cada filosofia explora modos de sustentação diversos, ou

privilegia alguns deles, a fim de legitimar e validar uma doutrina. Ou seja, o filósofo cria a

argumentação da qual ele precisa em função de suas razões próprias.7

7 Os fenômenos argumentativos devem, portanto, ser pensados em correlação com os conteúdos,

porque uns e outros são, de certa forma, inseparáveis, como o verso e o reverso de uma mesma página.

Assim, as formas da argumentação numa determinada doutrina são tributárias desta filosofia, e a

maneira segundo a qual um filósofo utiliza raciocínio, prova ou argumento não é independente da

natureza de sua filosofia. COSSUTTA (dir.), 1996, p.23

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Uma doutrina, explícita ou implicitamente, tematiza suas próprias condições de

argumentação. Camus, por sua vez, o faz de forma clara, ao optar pelo ensaio, ao exercer a

mistura de gêneros e ao defender o valor das imagens poéticas, onde o puro raciocínio se

mostra limitado e insuficiente. Seus ensaios exploram os recursos retóricos e, desta maneira,

nele, não há aquela distância que Cossutta identifica em Descartes entre doutrina e estilo. A

opção pelo ensaio está ligada à sua concepção de uma filosofia ciente dos limites do

conhecimento, esta opção também é significativa porque existe uma relação entre a escolha de

um gênero e o público ao qual se destina o texto.

Cada filosofia não só legitima suas próprias condições de possibilidade argumentativa,

como também elabora igualmente as condições gerais de uma validação do discurso, ou

subverte as pretensões à autojustificação das grandes formas especulativas ou positivas (Cf.

COSSUTTA (dir.), 1996, p.25). Camus, escolhendo o ensaio filosófico, contrapõe-se à

filosofia racionalista que é privilegiada pelas instituições acadêmicas e pela tradição filosófica

ocidental e que é expressa normalmente de forma conceitual em tratados ou sistemas. A

argumentação de Camus, ao mesmo tempo em que contesta uma tradição, busca a própria

legitimação. E as formas pelas quais exprime sua filosofia têm uma razão no interior desta

filosofia, no espaço em que ela constrói a imagem do outro.

4.2 A REVOLTA

A relação entre Revolta e Revolução é um tema desenvolvido no ensaio L’Homme

révolté, conforme escreve Camus em sua resposta à F. Jeanson, publicada pela revista Les

Temps Modernes: ―J‘ai entrepris avec L’Homme révolté une étude de l‘aspect idéologique des

révolutions‖ (CAMUS, 1965, p.759). Ou ainda, no prefácio a Moscou au temps de Lénine, de

Alfred Rosmer: ―La seule question qu‘on puisse poser à la révolution, la révolte seule est

fondée à la poser, comme la révolution est seule fondée à interroger la révolte. L‘une est la

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limite de l‘autre‖ (CAMUS, 1965, p.789). Trata-se de um ensaio em que Camus, mais do que

fazer uma história ou uma filosofia das revoluções, busca expor suas posições quanto à

temática da Revolta e trata de forma direta os métodos do stalinismo.

Camus refletia sobre a Revolta há algum tempo, desde 1943, pelo menos, e, em 1945,

redigiu algumas páginas sobre o tema. Em L’Homme révolté, publicado em 1951, ele retoma a

reflexão sobre a Revolta e aborda ao mesmo tempo a política, o social e o literário. Põe em

questão as ideologias falsificadoras do humano e da história e afirma sua recusa dos

totalitarismos e das ―utopias absolutas‖, questionando a revolução violenta de tipo comunista.

O ensaio de Camus exprime o estado de espírito de muitos homens decepcionados com o

comunismo e gera violentas polêmicas literárias e, sobretudo, políticas. A mais conhecida é

aquela que pôs fim à amizade entre ele e Sartre (TODD, 1996, p.755). Sartre se ofende,

sobretudo, com as críticas dirigidas à esquerda, para ele a revolução comunista não pode ser

posta em questão.

Embora apontado como superficial, por ocasião da polêmica com Les Temps

Modernes, L’Homme révolté é resultado de um vasto trabalho de pesquisa e de um longo

período de gestação, que vai de 1943 a 1951 e que coincide, em parte, com a redação da

Peste. No ensaio, Camus se pergunta se os fins justificam os meios e responde que nada

justifica o crime, daí sua crítica do marxismo configurado em stalinismo totalitário e violento.

Mas a Revolta é fundamentalmente afirmação e não recusa estéril. A Revolta é uma resposta

ao Absurdo, ela dá ao homem o meio de se definir a si próprio, de encontrar sua identidade ao

tomar consciência do que ele quer e do que ele rejeita.

Camus não aprova a revolução a qualquer preço e critica a violência que se manifesta

em todos os movimentos totalitários do século XX. Para ele, o comunismo stalinista se tornou

uma ideologia, justificando inumeráveis formas de repressão. A questão é buscar uma forma

de transformação social que não se sirva de uma violência presente e ―necessária‖ como

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justificativa de um hipotético futuro melhor. Neste sentido pensamos poder compreender sua

afirmativa: ―Mon projet dans l’Homme révolté a été constant: étudier une contradiction propre

à la pensée révoltée et en rechercher le dépassement‖ (CAMUS, 1965, p.750).

Assim, Camus não aprova os métodos violentos da revolução, mas destaca seu papel

como luta contra a situação de dominação; ele combate os sistemas políticos que perpetuam a

desigualdade entre os homens e a injustiça na sociedade e não aprova a atitude de resignação

nem de pretensa abstenção diante dos conflitos sociais e políticos. Para Camus o combate da

miséria deve estar associado à defesa da liberdade. É por causa do aspecto dogmático,

repressor e violento do partido comunista que Camus dele se afasta.

Camus foi um grande crítico de seu momento, marcado por desigualdades sociais, pelo

totalitarismo político e pela violência. Uma forma de engajamento buscada por ele, quando

era ainda jovem, foi a filiação ao Partido Comunista, visto certamente como uma alternativa

ao sistema vigente. Seu curto envolvimento com o partido comunista pode ser compreendido

à luz de sua batalha contra a miséria, que ele e sua família conheceram de perto na Argélia.

Camus conhecia as mazelas do sistema capitalista: sua luta por uma sociedade diferente e seu

combate em favor da liberdade e da justiça são formas de oposição a tal sistema. Por várias

vezes, afirma detestar a ―sociedade do dinheiro‖, mas sua discordância com relação ao

sistema capitalista se mostra mais pelo seu engajamento sócio-politico e por suas atividades

do que por seu discurso. Muito rapidamente, Camus se decepcionou com o Comunismo e dele

se desligou, pois este não correspondia a seus ideais de liberdade e de justiça social.

Mais tarde, depois da Segunda Guerra, Camus sabia que o mundo estava

extremamente polarizado e que quem não era aliado do Comunismo era considerado amigo do

capitalismo. Neste contexto, suas críticas ao partido estavam sujeitas, de imediato, a mal-

entendidos. Mesmo assim, preferiu se manter fiel a suas concepções e, sob o risco de ser

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acusado de defensor do capitalismo, criticou no Comunismo o dogmatismo, o totalitarismo, o

cerceamento da liberdade, a violência e a morte.

Camus considera que tanto o comunismo quanto o liberalismo ocidental se tornaram

ideologias por dissimularem e justificarem inumeráveis formas de repressão, cobertas com um

discurso de liberdade. Para ele nada justifica o crime, daí sua crítica do marxismo stalinista

totalitário e violento, que começa combatendo a injustiça e termina promovendo o crime e a

condenação à morte. O autor recusa o capitalismo, mas também o marxismo, porque geram a

violência em nome de uma visão de mundo fechada.

Sobre o existencialismo, Camus afirma que ele apresenta duas formas:

L'une avec Kierkegaard et Jaspers débouche dans la divinité par la critique

de la raison, l'autre, [...] l'existentialisme athée, avec Husserl, Heidegger et

bientôt Sartre, se termine aussi par une divinisation mais qui est simplement

celle de l'histoire, considérée comme le seul absolu. On ne croit plus en

Dieu, mais on croit à l'histoire (CAMUS, 1965, p.575).

Ambas as formas do existencialismo, da mesma maneira que o comunismo, divinizam

a história e se tornam uma espécie de religião. Portanto, em L'Homme révolté, Camus recusa

igualmente o cristianismo, o existencialismo e o marxismo. Em seu ensaio, ele não nega o

aspecto histórico da Revolta, mas critica a violência nos movimentos totalitários do século

XX, recusa o aspecto violento do comunismo, o totalitarismo do Estado e o aspecto

dogmático das ideologias.

Estas recusas de Camus se mostram presentes não só no ensaio, mas também na Peste,

em que o autor rejeita tanto a religiosidade do padre Paneloux quanto a ação revolucionária do

primeiro Tarrou, porque esta, mais cedo ou mais tarde, torna-se ideologia e cai na opressão e

no crime. Se identificamos, portanto, em L'Homme révolté, uma relação entre moral e

política, entre teoria e prática, essa relação está, igualmente, presente no romance, da mesma

forma que a recusa da dimensão teológica e religiosa. No romance, o que está em questão é

uma moral e não uma metafísica. A luta dos personagens é expressão da Revolta e mostra a

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dialética com o Absurdo: ―Il reste surtout ce bouleversant témoignage de la seule dignité de

l‘homme: la révolte tenace contre sa condition‖ (CAMUS, 1965, p.1190). Na Peste, a rejeição

do dogmatismo e da violência, e a crítica da revolução por todos os meios, crítica que atinge

diretamente o stalinismo, está presente de forma mais direta na caracterização do personagem

Tarrou e no relato sobre seu itinerário político (cf. acima p.45, 57 e 58).

A crítica de Camus ao espírito dogmático e burocrático, bem como a recusa da

violência e do crime já estava presente, de certa maneira, em L’Étranger, através do

personagem Meursault, que rejeita o consolo do padre e rejeita igualmente o dogmatismo

encarnado pelos juízes, pela convenção e pela burocracia, que resultam na pena capital, na

morte, que lhe é imposta. Por contraste com os magistrados e com o padre que o procura,

Meursault se destaca como alguém que não entra no jogo da sociedade corrompida pelo

desprezo à vida, pela hipocrisia, pela visão estreita e pela obediência servil às convenções; ele

se recusa a mentir.

Da mesma forma que a religião, seja ela qual for, não pode justificar o aniquilamento

da existência humana com a promessa de uma eternidade feliz, o comunismo não pode servir-

se da violência e da morte, ainda que de um só indivíduo, para estabelecer a sociedade futura

historicamente perfeita, mas configurada apenas como projeto. Se a religião tenta fornecer aos

homens uma explicação pronta dos acontecimentos, a ideologia política também pode se

tornar autoritária e controladora, assumindo a pretensão de agir no lugar dos cidadãos, que

seriam meros espectadores passivos ou agentes controlados pelas decisões tomadas de cima

para baixo. As ideologias, criticadas no ensaio, encontram na abstração um meio de sacrificar

a pessoa humana ao sistema.

Kant, em seu célebre artigo Réponse à la question: Qu’est-ce que les lumières,

identifica a religião e o Estado como as instituições que mais se esforçam por manter o

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homem em sua situação de minoridade, ou estado de tutela, que é exposta logo no início do

texto:

Les Lumières, c‘est la sortie de l‘homme hors de l‘état de tutelle dont il est

lui-même responsable. L‘état de tutelle est l‘incapacité à se servir de son

entendement sans la conduite d‘un autre. On est soi-même responsable de

cet état de tutelle quand la cause tient non pas à une insuffisance de

l‘entendement mais à une insuffisance de la résolution et du courage de s‘en

servir sans la conduite d‘un autre. Sapere aude! Aie le courage de te servir de

ton propre entendement! (KANT, 1991, p.43)

Camus, que se posiciona contra todos os sistemas muito certos de si mesmos, mostra-

se inimigo dos sectarismos e afirma que não se deve substituir um dogmatismo por outro.

Paradoxalmente, o comunismo ateu e crítico da crença religiosa acabou por se revelar um

substituto materialista do cristianismo, ao assumir o aspecto dogmático de uma religião, com

sua hierarquia burocrática e dominadora, com sua doutrina, seus ritos, sua ética, seu "index" e

sua "inquisição".

Num manual de literatura francesa, em volume único e que tenta abordar todos os

autores franceses do programa (conforme o subtítulo da obra : Anthologie-Histoire de la

Littérature française des origines à nos jours) e que, por isso mesmo os aborda de maneira

bastante sucinta, encontramos uma qualificação de L’Homme révolté como sendo uma obra

anticomunista (cf. DENOEU, 1967, p.536).

Há no manual uma página sobre dados biográficos de Camus e breves comentários

sobre suas obras, e seis páginas reproduzem um excerto da Peste, em que se narra a tentativa

fracassada do doutor Rieux para salvar o filho do juiz Othon, a agonia e a morte da criança. O

autor identifica uma espécie de virada na produção de Camus a partir de 1947 e escreve: "son

pessimisme s‘atténua; de plus en plus se fit jour dans son oeuvre un espoir concret pour la

destinée humaine".

Pensamos que se pode questionar tanto o rótulo de "pessimista" para o primeiro ciclo

da obra camusiana quanto esta guinada na produção de Camus, se considerarmos que o autor

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desenvolve a passagem do Absurdo à Revolta, de L’Étranger a La Peste, cumprindo um plano

pré-estabelecido, no qual um tema se desenvolve em função do outro.

O autor do manual conclui seus comentários afirmando que "Camus a condamné

l‘existentialisme". Para as obras posteriores a 1949, os comentários são mais concisos e dados

entre parênteses, após a data de publicação. Sobre L’Homme révolté, lemos o seguinte: "1951,

études anti-communistes sur des révoltés fameux : Satan, Caïn, Spartacus, Sade, Saint-Just,

Bakounine, Dostoïevski, Marx, Lautréamont, Rimbaud, Nietzsche, Lénine."

Chamou-nos a atenção o fato de que o autor do manual tenha destacado em sua análise

o aspecto "anticomunista" de L’Homme révolté. A classificação dualista, comunista ou

anticomunista, inerente ao manual se explica, em parte, pela tensão própria à época em que tal

manual foi lançado; a edição de que nos servimos é de 1967, mas ele foi publicado

primeiramente em 1957, portanto, em pleno período da guerra fria e da acentuada polaridade

entre Leste e Oeste, União Soviética e Estados Unidos, Comunismo e Capitalismo. Além do

momento, podemos considerar também o local de publicação, pois o livro foi lançado e

utilizado nos Estados Unidos, trazendo o prefácio e as notas em inglês (Cf. DENOEU, 1967,

p.536).

Marcar a obra de Camus como anticomunista é inexato, entretanto, o autor do manual,

mais do que cometer simplesmente um ato de desconhecimento ou de má-fé, parece mostrar

uma atitude típica do ambiente político em que se vivia e que atingia de alguma forma a

literatura e seu estudo. Como Camus, outros autores foram categoricamente taxados de

anticomunistas.

Esta maneira de se dividir autores e obras conforme seu posicionamento em face do

regime comunista parece ter sido provocada pela rivalidade norte-americana e pelo próprio

regime comunista que, como configuração ideológica fixa e radical, não admitia meios termos

nem questionamentos. Quem não era declaradamente comunista e fazia críticas ao sistema era

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marcado como anticomunista. O próprio regime classificava de forma dualista e maniqueísta

autores e obras. Camus, como outros autores, teve o acesso a suas obras proibido nos países

em que o comunismo era regime político oficial, como na China, onde seus livros foram

banidos durante décadas:

À la suite de la fondation de la Chine populaire, durant trente ans, de 1949 à

1979, la Chine a prohibé les oeuvres de l‘écrivain français Albert Camus ; et

sa personne n‘a jamais été présentée dans ce pays (WU, Shaoyi. In :

DUBOIS, 1995, p.283).

Também na França, muitos comunistas viram em L’Homme révolté uma obra

anticomunista, sobretudo depois das polêmicas de Camus com François Mauriac, André

Bréton e com Sartre a propósito do ensaio, e com Gabriel Marcel, a respeito de L’État de

siège. Destas polêmicas, a mais intensa foi aquela com Sartre e sua revista, Les Temps

Modernes; dela tratamos no capítulo seguinte.

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5 O INTERDISCURSO

5.1 CAMUS ET LES TEMPS MODERNES

As querelas, espaço privilegiado do interdiscurso, devido ao confronto de opiniões

divergentes, fazem parte da história da literatura francesa, marcada pela ação de escritores

engajados em questões sociais. Freqüentemente, as correntes literárias se impõem através da

oposição a posicionamentos anteriores. Uma polêmica opôs o humanismo devoto ao

jansenismo, no início do século XVII; no fim deste mesmo século, ocorre a famosa querela

entre "os Antigos e os Modernos", retomada de certa maneira pelos românticos, defensores da

liberdade e da inspiração do artista contra as regras formais do Classicismo. No século das

Luzes, Rousseau e Voltaire travaram uma verdadeira batalha. No início do século XX, "a

questão Dreyfus", desencadeada pelos intelectuais revisionistas, tornou-se, na França, uma

questão nacional.

Quanto a Camus, sua polêmica mais conhecida foi com Jean-Paul Sartre, em 1952.

Entre os numerosos grandes escritores do século XX, Sartre et Camus ocuparam uma posição

de destaque. Ambos atuaram em diversos campos, como o da literatura, da filosofia, da

dramaturgia e do jornalismo. Em 1952, já dispõem de um grande renome, obtido durante a

Resistência e o imediato pós-Segunda Guerra, e encarnam a figura do intelectual engajado.

Isto contribuiu para que a polêmica entre eles fosse amplamente mediatizada e adquirisse

grandes dimensões.

A controvérsia foi suscitada pela publicação de L’Homme révolté, em 1951, e, em

parte, prevista por Camus. Bom conhecedor do ambiente social, cultural e acadêmico de sua

época, ele pôde imaginar que as críticas dirigidas à revolução de tipo stalinista produziriam

reações adversas. O autor, que se engajou politicamente muito jovem, tendo inclusive se

filiado ao Partido Comunista na Argélia por um curto período, estava a par dos grandes

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embates políticos que se travavam na sociedade e já em 1935, através de seu teatro, entrava na

luta contra a ameaça nazista.

Camus conhecia igualmente o espaço editorial e mantinha contato com grandes

escritores, como André Malraux e André Gide, este último apadrinhava a revista L’Arabe,

criada em 1944, em Argel, e dirigida por Jean Amrouche, tendo como comitê diretor Maurice

Blanchot, Jacques Lassaigne e o próprio Camus. Nesta revista, Camus publicou, em fevereiro

de 1946, Le Minautore (DJEMAÏ, In: DUBOIS, 1995, p.62).

Camus e Sartre são contemporâneos e vivem num momento marcado por guerras,

revoluções e conflitos sociais. Eles propõem uma vasta transformação social e afirmam a

responsabilidade social do escritor que, colocado numa dada situação histórica, é condenado a

exercer sua liberdade tomando posição. Ateus, eles afrontam o problema de buscar as bases

de uma moral quando não se crê em Deus. Próximos sob muitos aspectos, os dois escritores

têm, contudo, particularidades essenciais e tomam posições estéticas e políticas diferentes e,

às vezes, conflitantes.

Toda obra, para além de seu interesse literário ou filosófico, inscreve-se num contexto

que lhe confere uma significação particular e, de forma especial, as obras de autores

preocupados com a sociedade da qual fazem parte. Camus e Sartre, e sua obras, são

inseparáveis de seu contexto, que é explicitamente discutido em função do engajamento dos

autores. A amizade entre eles teve seu apogeu imediatamente depois da "Liberação" e a

ruptura se deu sob o impacto da Guerra Fria e da agravação do conflito entre os Estados

Unidos e a União Soviética.

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Antes do contato pessoal, os dois escritores se conheceram através de seus textos. Em

1938, Camus tratou de La Nausée e, em 1939, de Le Mur.8 Em 1942, Sartre escreveu sobre

L'Étranger.9 Camus comunica a Jean Grenier seu sentimento sobre o artigo de Sartre:

L'article de Sartre est un modèle de "démontage". Bien sûr, il y a dans toute

création un élément instinctif qu'il n'invisage pas. L'intelligence n'a pas si

belle part. Mais en critique, c'est la règle du jeu et c'est très bien ainsi

puisqu'à plusieurs reprises il m'éclaire sur ce que je voulais faire. Je sais

aussi que la plupart de ses critiques sont justes, mais pourquoi ce ton acide?

(CAMUS & GRENIER, 1981, p.88)

Por fim, Camus encontra pessoalmente Sartre e Simone de Beauvoir, em junho de

1943, durante uma apresentação de Les Mouches. Camus não gosta de ver seu nome atrelado

ao de Sartre, mas este, viajando pelos Estados Unidos, em entrevistas, faz elogios a seu

amigo. Para a revista Vogue, em 1945, Sartre afirma que a Resistência ensina que a literatura

não é uma atividade fútil, independente da política e que se podem distinguir duas gerações de

escritores franceses, uma de antes da guerra – Maurice Blanchot, Georges Bataille e Jean

Anouilh, e outra que compreende Michel Leiris, Jean Cassou e Albert Camus. Para Sartre,

Camus seria o arquétipo do escritor engajado (cf. TODD, 1996, p.541).

Em seus encontros, Camus e Sartre discutem sobre política. Sartre pensa que é preciso

escolher: caminhar com os comunistas ou contra eles, com os Estados Unidos ou com a União

Soviética. Camus também tenta pensar a revolução, mas imagina uma Revolta que evitaria ao

máximo possível a violência e o sangue. Segundo Olivier Todd, Simone de Beauvoir e Sartre

teriam, diferentemente de Camus, pontos de vista muito maniqueístas (cf. TODD, 1996, p.542

e 545).

Em 1951, antes da publicação de L'Homme révolté, Camus publica fragmentos do

ensaio em algumas revistas; Les Cahiers du Sud publicam o capítulo sobre Lautréamont.

8 Os artigos foram publicados no jornal Alger républicain, respectivamente, em 20 de outubro de 1938

e 12 de março de 1939, e estão reunidos em CAMUS, 1965, p.1417-1422. 9 Trata-se do artigo "Explication de "L'Étranger", publicado em fevereiro de 1943. Cf. SARTRE,

1947. p.92-112

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Logo surge no semanário Arts um artigo de André Breton, que acusa Camus de conformismo.

Na sua resposta, Camus afirma que se esforçou para mostrar justamente que o niilismo é

gerador de conformismo e servidão e contrário às lições da Revolta.

O livro é lançado em novembro e os primeiros ataques vêm da imprensa comunista. A

imprensa de direita se limita a resumir ou parafrasear as passagens dedicadas ao comunismo e

a Marx, acentuando a crítica do marxismo presente no livro e ignorando praticamente as

considerações literárias, concentradas no capítulo "Révolte et art". A esquerda intelectual não-

comunista manifesta-se em France-Observateur, dirigido por Claude Bourdet, que define

Camus como um intelectual de esquerda não comunista. Para Bourdet, é preciso trabalhar

com os comunistas franceses, apesar de sua submissão aos Soviéticos. Camus recusa esta

posição.

Em novembro de 1951, Sartre solicita ao comitê de redação de sua revista Les Temps

Modernes um voluntário para fazer a resenha de L'Homme révolté. Em fevereiro de 1952,

Sartre encontra Camus num bar e lhe informa que a crítica da revista não vai ser favorável.

Francis Jeanson publica, em maio de 1952, em Les Temps Modernes, seu violento

artigo sobre o ensaio: ―Albert Camus ou l‘âme révoltée‖. Jeanson julga que Camus é incapaz

de passar da revolta metafísica à revolta histórica, que se configuraria na atuação do Estado

comunista; ele não admite que Camus tenha questionado Hegel e Marx e não aceita suas

simpatias pelo sindicalismo revolucionário ou sócio-democrata dos países escandinavos.

Camus teria feito uma pseudo-filosofia e uma pseudo-história das revoluções.

A revista informa a Camus que publicaria uma resposta sua. Datada de 30 de junho de

1952, a réplica é publicada no número de agosto de Temps modernes.10

Camus não nomeia

Jeanson e começa seu artigo com um ―Monsieur, le Directeur‖, por considerar que o diretor é

10

Essa resposta de Camus foi enviada em forma de carta a Les Temps modernes, Cf. CAMUS, 1965,

p.754.

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solidário do artigo, o que irrita Sartre. Em sua resposta, Camus tenta mostrar que seu livro não

nega a história, mas critica a atitude que busca fazer dela um absoluto. Ele lembra uma nota

do livro em que afirma que Marx mistura em sua doutrina ―um método crìtico muito válido e

um messianismo utópico muito contestável‖. Poucos sabem em Paris que Camus fora

membro do partido comunista.

Sartre responde por sua vez e ataca tanto a obra quanto seu autor; usa fórmulas

tocantes, nomeando seu adversário, e dá suas lições, dizendo que, para merecer o direito de

influenciar os homens que lutam, é preciso primeiro participar de seus combates; embora ele

próprio tivesse se preocupado pouco com as questões sociais antes da Segunda Guerra,

quando Camus já se engajava. Sartre suaviza o tom e conclui o artigo dizendo esperar que o

silêncio faça esquecer a polêmica. Entretanto, Jeanson escreve um novo artigo, com novos

insultos e a mesma violência.

À época, Sartre tentava conciliar existencialismo e marxismo e se aproximava dos

comunistas; para ele, o PCF representa a classe trabalhadora. Quanto à URSS, apesar dos

campos soviéticos, continua dando a imagem do socialismo. Sartre crê ainda no socialismo de

face humana, para o futuro. Ele não adere nem ao stalinismo nem ao PCF, mas não quer

romper com o partido, pois ainda acredita no empreendimento revolucionário que o PCF

encarnaria a longo prazo (cf. TODD, 1996, p.786). Para Camus, os crimes do totalitarismo

devem ser denunciados sem esperas nem circunstâncias atenuantes. Assim, para além dos

ataques pessoais ou literários, o núcleo da polêmica é a divergência quanto ao comunismo.

Em Les Mains Sales, Sartre levanta o problema dos fins e dos meios, mas numa ótica

deliberadamente política (cf. SARTRE, 1948). Hoederer e seus camaradas de partido são

confrontados a um problema concreto de tática e de aliança. A questão que lhes interessa não

é saber se é moral se "sujar as mãos", mas determinar o que é politicamente eficaz naquele

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momento. Assim, o tema de Les Mains sales mostra como seu autor aceita a violência nas

lutas por uma transformação social (cf. ARONSON, 2005, p.356).

Camus não concorda com a configuração dogmática e violenta do comunismo. Antes

de L'Homme révolté, a crítica ao totalitarismo de Estado, ao dogmatismo, ao autoritarismo e à

violência já estava presente em L'Étranger e, de forma especial, na Peste. Também na peça

Les Justes, ele questiona o valor da ação revolucionária contaminada pelo crime e pela

desonra. Para Camus, é preciso combater o mal e a injustiça, sem recair no crime, e lutar

contra a violência, sem agir violentamente.

As noções de Revolta e de Absurdo remetem a um comportamento ético e a um

engajamento sócio-político e os pressupõem. A passagem do Absurdo à Revolta constitui a

superação de uma atitude niilista em vistas à fundamentação de uma exigência ética. Na

encruzilhada entre seu pensamento filosófico e sua obra romanesca e dramática, encontra-se a

estética de Camus, associada à reflexão ética que, inspirada pela Revolta, dá as diretivas à

criação artística. Os textos em que mais diretamente podemos encontrar esta estética

camusiana são o artigo ―Le témoin de la liberté‖, publicado em 20 de dezembro de 1948 e

recolhido em Actuelles, o capítulo ―La création absurde‖ do Mythe de Sisyphe, e o capítulo

―Révolte et art‖, de L'Homme révolté.

A avaliação negativa de L'Homme révolté afeta retroativamente a leitura que se faz da

Peste. Ao criticarem o ensaio, Jeanson e Sartre voltam ao romance. Jeanson o classifica de

"metafísico" e de "crônica transcendental". Sartre, que já havia publicado sobre ele dois

artigos favoráveis, de colaboradores importantes, passa a considerá-lo de forma negativa,

como sendo uma "mistificação".11

Em sua resposta a Jeanson, Camus observa que Les Temps modernes se recusam a ver

uma evolução de L'Étranger a La Peste, no sentido da solidariedade e da participação. Com

11

Os artigos foram escritos por René Étiemble e Jean Pouillon e publicados em Les Temps modernes,

na edição de novembro de 1947.

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efeito, o ensaio e o romance fazem parte do mesmo "ciclo da Revolta". A passagem de

L'Étranger a La Peste, como a passagem de Le Mythe de Sisyphe a L'Homme révolté,

corresponde a uma mesma evolução: a experiência do Absurdo nasce do sentimento de que o

homem não está em harmonia com o mundo, e ela desemboca na expressão da Revolta, na

ação coletiva; encaminha-se da subjetividade para a sociedade, do herói solitário para o herói

solidário.

Camus não aprova a revolução a qualquer preço, mas também não aprova a atitude de

resignação, nem de pretensa abstenção diante dos conflitos sociais, pois não acredita que

exista neutralidade política. Seu engajamento político é bastante precoce. Ainda na Argélia,

afastado da carreira acadêmica por questões de saúde, Camus dedica-se ao teatro e ao

jornalismo e se engaja em atividades de ordem cultural e política.

Durante a polêmica com Sartre, Camus não faz alusão a sua passagem pelo partido,

retomando sua condenação das duas sociedades, a socialista e a capitalista. Camus conheceu

de perto a miséria, a desigualdade e as injustiças que imperavam entre o povo argelino e das

quais ele e sua famìlia sofreram, por isso afirma: ―Je n‘ai pas appris la liberté dans Marx. Il

est vrai: Je l‘ai apprise dans la misère‖ (cf. CAMUS, 1965, p.798).

Tardiamente, Jeanson e Sartre vêem bem que, antes de L'Homme révolté, na Peste já

havia uma relação entre moral e política, entre teoria e prática. O personagem Tarrou não

aceita a violência como meio, porque não se trata simplesmente de reverter o papel entre

explorado e explorador, mas de buscar uma forma de não ser ―nem vìtima nem carrasco‖ (cf.

CAMUS, 1965, p.331).

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5.2 A INTERINCOMPREENSÃO

Tanto Sartre quanto Camus consideram que é impossível manter-se ausente do embate

de forças antagônicas presentes na sociedade. Este jogo de forças característico da sociedade

como um todo faz parte também da sociedade literária. Dominique Maingueneau, retomando

os estudos sociológicos de Pierre Bourdieu, destaca bem o caráter social e institucional do

exercício da literatura e mostra que um autor não pode produzir enunciados literários sem se

colocar como escritor no campo do literário e sem se definir com relação às representações e

aos comportamentos associados a este estatuto. Assim, o "contexto" da obra literária não é

apenas a sociedade considerada em sua globalidade, mas, antes de tudo, o "campo literário",

que obedece a regras específicas e se inscreve na obra que por sua vez nele está i nscrita (cf.

MAINGUENEAU, 1993, p.28 e MAINGUENEAU, 2004, p.72).

A polêmica entre Camus e Sartre é uma situação típica do embate de forças e da busca

do escritor para ocupar seu espaço no campo. Por mais diferentes que sejam as posições

estéticas e ideológicas de Sartre e Camus, ambos fazem igualmente parte do campo literário,

campo que não se inscreve na sociedade como simples parte ou espaço dela, mas como um

espaço fronteiriço, distinto mas indissociável da sociedade como um todo.

O ambiente da polêmica e os textos produzidos sob seu calor demonstram de forma

explícita que o escritor não enuncia sobre um terreno neutro e estável, mas sobre um espaço

institucional, nutrindo sua obra do caráter problemático de sua participação no campo literário

e na sociedade. Sem "localização", não há instituições que permitam legitimar ou gerir a

produção e o consumo das obras, e conseqüentemente, não há literatura; mas sem

"deslocalização" não existe verdadeira literatura (cf. MAINGUENEAU, 1993, p.27).

Mediante o controle externo, como nos regimes totalitários e nos países dominados

por ditaduras, o escritor vigiado e conivente com o poder político pode chegar a uma

produção literária, mas não a "obras" literárias; pois o próprio pertencer problemático do

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escritor ao grupo supõe uma participação, mas não uma completa assimilação. Camus, ao ser

interrogado sobre os "valores da arte" na sociedade comunista, afirma numa linha de reflexão

muito próxima desta:

on ne dirige pas la littérature, on la supprime tout au plus. La Russie ne l'a

pas supprimée. Elle a cru pouvoir se servir de ses écrivains. Mais ces

écrivains, même de bonne volonté, seront toujours des hérétiques par leur

fonction même (CAMUS, 1965, p.382).

Maingueneau mostra como os discursos são objetos que aparecem ao mesmo tempo

integralmente lingüísticos e integralmente históricos. Ele denomina "paratopia" a localização

paradoxal e problemática, o pertencer ao campo literário que não é ausência de todo lugar,

mas uma difícil negociação entre o lugar e o não-lugar (cf. MAINGUENEAU, 2004, p.72).

O caráter de escritor e intelectual paratópico de Camus é acentuado por sua origem

proletária e por sua presença na França na condição de francês argelino, sentindo-se sempre

um pouco estrangeiro, nem somente argelino, nem inteiramente francês. De origem humilde,

ele conseguiu, através da educação, superar sua condição de pobreza. Camus se insere de

forma paratópica nos campos literários e filosóficos também porque se manteve afastado dos

círculos intelectuais e dos meios acadêmicos, desde que, por motivos de saúde, foi proibido de

seguir a carreira de professor. Ele permaneceu assim à margem do grupo dos filósofos de

profissão; e ele próprio se exclui de um certo campo, ao afirmar que não é um filósofo e que

não crê na razão o bastante para crer num sistema (CAMUS, 1965, p.1427). De fato, a

filosofia, desde Kant, é universitária, e ela o é mais do nunca na França, no momento em que

Camus escreve seus ensaios, marcados pela forma literária e contrários ao puro tratado de

exposição sistemática.

Sartre teve outra origem social, tipicamente burguesa, e cresceu no ambiente de uma

biblioteca. Apesar de seu engajamento político bastante tardio, mas radical, encarnou logo a

figura do intelectual simbólico tornado intocável por sua celebridade internacional; seu

aspecto de intelectual escandaloso e "maldito" parecem provocados e sua marginalidade

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reivindicada. Sartre passou pela Agregação e, como bom filósofo de formação, gosta dos

sistemas. É cartesiano e voltado para a especulação, não desconfiando da razão nem das

abstrações.

Camus foi precipitadamente associado à corrente ―existencialista‖, mas o

Existencialismo corresponde, em primeiro lugar, ao pensamento de Sartre. Afirmou-se, por

exemplo, a propósito de Calígula, que toda a peça não passaria de uma ilustração dos

princípios existencialistas de Sartre (TROYAT, H. In: GINESTIER, 1964, p.65). Dizendo não

ser nem filósofo nem existencialista, Camus já afirmava que não fazia parte da tribo de Sartre

(CAMUS, 1965, p.1424). Mesmo à época em que mantinham contato, Camus afirmava que

não era um existencialista; por ocasião da polêmica entre eles, as diferenças entre os dois

autores se reforçam e fica claro que eles não pertencem à mesma família intelectual.

Conforme os preceitos da Análise do Discurso estudados por Maingueneau, a obra

surge por meio das tensões do campo literário, no seio de comunidades restritas que disputam

um mesmo território institucional. Ela se constitui implicando os ritos, as normas e as relações

de força próprias dessas instituições literárias. Fazem parte da enunciação os problemas

levantados pela inscrição social desta enunciação. A partir do momento em que se escreve e

se publica não se pode sair do campo literário, campo que vive da tensão entre os integrantes

das tribos e os que permanecem à margem delas. Assim, as "tribos‖ se repartem no campo

literário baseadas em reivindicações estéticas distintas. Todo escritor se insere numa tribo, ou

mais, que ele elege — de escritores do passado ou contemporâneos, conhecidos pessoalmente

ou não — e o modo de vida, bem como as obras dessa tribo lhe permitem legitimar sua

própria enunciação (cf. MAINGUENEAU, 1993, p.30-31).

Neste sentido, Camus expõe de forma clara que o pensamento absurdo descende de

uma longa tradição. De fato, a noção de Absurdo teria suas origens desde o século III com

Tertuliano, continuando com Pascal e chegando a Kierkegaard (cf. GINESTIER, 1964, p.56).

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Ante as grandes tradições filosóficas racionalista e empirista, Camus se insere na linha de

filósofos marginais, como Kierkegaard, Schopenhauer e Nietzsche. Trata-se da ―tribo‖ que

prolonga a ―tradição do pensamento humilhado‖ e que critica o racionalismo (cf. CAMUS,

1965, p.114). A inserção de Camus nesta ―famìlia‖ mostra-se logo no início do Mythe de

Sisyphe quando o autor diz que sua sensibilidade absurda deve muito a certos espíritos

contemporâneos, que ele cita ao longo da obra.

Camus concorda com as premissas do existencialismo como estas se encontram em

Pascal, Nietzsche, Kierkegaard ou Chestov, pois estes autores partem do clima próprio do

Absurdo (CAMUS, 1965, p.114), mas discorda das conclusões dos existencialistas seus

contemporâneos, por acreditar que tais conclusões são contraditórias às premissas e

desembocam numa fuga. Por isso Camus chama "suicídio filosófico" a conclusão

existencialista (CAMUS, 1965, p.114, 122, 187, 208 e 312), uma fuga que desemboca num

princípio absoluto: o transcendente, a história absolutizada, ou um princípio racional

unificador do real.

Quanto aos literatos, Camus elegeu para si uma tribo de autores que são igualmente

criadores e teóricos, críticos que pensam a própria atividade, como Balzac, Sade, Melville,

Stendhal, Kafka, Proust, Malraux, Dostoievski, Tolstoi, Faulkner (CAMUS, 1965, p.178). Sua

inserção nesta tribo também se faz pela opção diante das obras que ele adaptou para o teatro,

obras de autores como Malraux, Calderón de la Barca, Larivey, Dino Buzzati, Faulkner, e

Lope de Vega (CAMUS & GRENIER, J., 1981, p.266, 268 e 269). Assim, se os escritores

formam geralmente ―microsociedades‖ de admiração mútua ou de rejeição, Camus deixa

claro quais são seus autores preferidos.

Em sua obra, Genèses du discours (1984), Dominique Maingueneau aborda os textos

sob o ponto de vista de sua gênese e de sua relação com o interdiscurso, levando em

consideração a relação de um discurso com seu "exterior" enunciativo. Maingueneau, na linha

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francesa de análise do discurso, afasta-se de uma certa vulgata estruturalista ao pôr em

questão "a suposta autarquia dos discursos". Trata-se de uma abordagem próxima da

pragmática, que busca articular no ato verbal enunciado e enunciação, linguagem e contexto,

palavra e ação, instituição lingüística e instituições sociais (cf. MAINGUENEAU, 1984,

p.15).

Assim, podemos tratar a controvérsia entre Sartre e Camus e os textos que dela

derivaram à luz dos estudos de Maingueneau, que vê na polêmica um processo de

interincompreensão. Conforme Maingueneau, o estudo da especificidade de um discurso

supõe relacioná-lo com outros. Nos textos da controvérsia, com a evocação explícita de uns

aos outros, podemos perceber mais claramente a presença do interdiscurso, como espaço

composto pelos diversos discursos.

A propósito de Marx, Sartre, em seu artigo, "Réponse à Albert Camus", publicado em

Les Temps Modernes, acusa Camus de brincar com conhecimentos de segunda mão.12

O tom

de Sartre é superior, como o de um professor que fala a um aluno. Mas pode-se perguntar se

seus conhecimentos sobre Marx são mais aprofundados do que os de Camus. Raymond Aron,

leitor paciente de Marx, estava persuadido de que ambos eram quanto a isto igualmente

limitados (cf. TODD, 1996, p.779 e 786). Ao acusar Camus de incompetência filosófica,

Sartre, na verdade, vale-se de um argumento de autoridade, servindo-se de sua posição no

campo, enquanto filósofo reconhecido, que passou pela Agregação.

Respondendo ao artigo de Jeanson, Camus fala de Sartre sem nomeá-lo. Sartre, por

sua vez, chamado de burguês, responde aplicando a Camus o mesmo qualificativo. A resposta

de um supõe e retoma de maneira direta o discurso do outro; de maneira explícita, o texto se

constrói como intertexto.

12

Artigo presente em Situations IV (SARTRE, 1964)

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Os textos desta polêmica têm uma cena de enunciação que parece a de uma

correspondência, já pela forma de apresentação, semelhante a uma carta. A seqüência, carta-

crítica, resposta e réplica lembra um diálogo, mas na verdade há apenas uma semelhança com

a correspondência pessoal, pois são cartas que, embora pese um aspecto de defesa pessoal,

tratam profundamente de posições estéticas, sociais e políticas e são publicadas em jornais e

revistas.

Tanto Camus, que não nomeia Sartre, quanto Sartre, que evoca diretamente seu

interlocutor, e com um reforço criado pela repetição, praticam um jogo retórico, pois na

verdade não se trata de uma carta privada. O interlocutor visa em primeiro lugar não tanto a

seu adversário direto, mas se dirige primariamente à comunidade acadêmica e política e, por

extensão, a toda a comunidade de leitores dos jornais e revistas em que os textos são

publicados.

No texto de Sartre, há um Camus visto sob a perspectiva sartriana. E Sartre igualmente

é descrito sob o ponto de vista de Camus, pois no texto polêmico cada um introduz o Outro

em seu fechamento, ao traduzir seus enunciados dentro da categoria do Mesmo e só se

relaciona com este Outro sob a forma do "simulacro" que constrói dele. Isto só acentua os

mal-entendidos (MAINGUENEAU, 1984, p.11).

Abordando uma peça de Sartre e antes de reproduzir um comentário dele, Francis

Jeanson escreve: "O autor de As mãos sujas, intrigado em razão de uma falsa interpretação de

sua peça, propôs-se a definir o verdadeiro sentido que ele desejava que lhe fosse dado"

(JEANSON, 1987, p.41). Camus, de sua parte, foi sensível, desde o início de sua carreira, ao

tema e à situação do mal-entendido – título de uma de suas peças – que ele combatia e que era

às vezes agravado por suas intervenções e que ele parecia viver com uma dolorosa

intensidade, como demonstram, além dos prefácios e textos introdutórios, suas cartas de

protesto (cf. BARTFELD, 1998, p.162).

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Camus revela que, mesmo antes da polêmica com Les Temps Modernes, a recepção

negativa de seu ensaio o incomodava. Ele parece tomar as críticas de Sartre como um ataque

pessoal e vive a querela durante muito tempo. Talvez porque, embora o aspecto

autobiográfico de Camus seja sutil em suas obras, estas dificilmente se separam de si próprio

e até em L'Homme révolté, de maneira contida, ele falou de si mesmo: "Sans en avoir l'air, je

m'y suis confessé", ele escreve a Mamaine Koestler (cf. TODD, 1996, p.767).

Mais do que discutir o desejo dos escritores de reivindicar um controle para a

interpretação de seus livros, importa observar como o mal-entendido não é um acidente de

percurso, acessório ou evitável, mas um constituinte mesmo do discurso. A relação polêmica

em seu sentido amplo está longe de ser um encontro acidental de dois discursos que se teriam

instituído independentemente um do outro e o conflito não vem se juntar do exterior a um

discurso auto-suficiente, mas é uma de suas condições de possibilidade. É o que defende

Maingueneau: não há, de um lado, o sentido e, de outro, certos "mal-entendidos" contingentes

na comunicação, mas, num só movimento, o sentido como mal-entendido (cf.

MAINGUENEAU, 1994, p.12).

Assim, se tentarmos pôr em paralelo os textos de Camus e Sartre e encontrar uma

relação entre eles, é interessante observar que tais textos foram construídos já numa relação de

interdependência, constituindo-se através da incompatibilidade e do conflito. Os discursos não

se constituem independentemente uns dos outros para serem em seguida postos em relação,

mas se formam já de maneira relacional no interior do interdiscurso. Desta maneira, a relação

interdiscursiva mostra a interação semântica entre os discursos como um processo de tradução

e de interincompreensão; nesta perspectiva, os textos publicados em Les Temps Modernes que

produziram entre Camus e Sartre uma polêmica foram ao mesmo tempo produzidos por ela.

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6 CAMUS ANTE OS GÊNEROS

6.1 GÊNEROS E ÍNDICES PARATEXTUAIS

A discussão acerca dos gêneros literários constitui uma tradição duradoura, que

remonta a Aristóteles e prevalece como central até Hegel, não deixando de ser um aspecto

ainda hoje importante no campo dos estudos literários. Trata-se de uma consideração dos

escritos poéticos que ultrapassa seus aspectos singulares em vistas a classificá-los conforme

seus traços mais gerais. Esta classificação dos textos conforme os gêneros, por sua

importância, tradição e abrangência, funciona como um quadro de orientação e como um fator

levado em conta pelo escritor ao produzir uma obra, e é considerado também pelo leitor, ainda

que de modo não refletido, no momento da leitura.

Assim, pode-se não concordar com a tripartição dos textos, atribuída a Platão e

Aristóteles, em poemas épicos, líricos ou dramáticos (ou nem mesmo com as classificações

modernas que incluem uma maior diversidade genérica), mas não se pode esquecer que tal

divisão é das mais conhecidas e aceitas e, por isso, é considerada pelo autor no momento em

que este imagina seus possíveis leitores. Juntamente com a previsão do interlocutor se

estabelecem a finalidade da produção textual e, também, os recursos retóricos que o autor

julga mais compatíveis com o gênero com o qual escolhe construir sua obra. Tanto o processo

de escrita quanto o processo de leitura se inscrevem nos limites da tradição dos gêneros,

ambos são de natureza fundamentalmente genérica. Depois da tradição estabelecida não se

pode criar sem considerar a problemática dos gêneros, ou seja, a escolha de um gênero é para

o autor uma forma de se posicionar no campo literário.

A classificação genérica determina de certa forma a obra, pois esta não é feita antes,

isoladamente, para só depois ser distribuída em gêneros, a obra é construída na consciência da

existência de gêneros distintos. Mesmo quando os escritores questionam as distinções dos

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gêneros, eles sabem que elas parecem ser tomadas como evidentes e jogam com esta

aceitação. Trata-se de uma norma reconhecida, e só a partir da norma pode haver as

transgressões, que são sempre significativas para o fazer literário, enquanto rupturas ou

questionamentos.

A História dos gêneros parece dividida entre dois extremos, desde uma adoção direta e

inquestionável do legado dos clássicos gregos, a partir do qual se chegou a considerar que há

apenas dois ou três gêneros singulares e imutáveis, até o outro extremo, o de que cada texto

teria seu próprio gênero. Entretanto, a discussão mais recente tem ampliado uma reflexão

aprofundada sobre o tema.

Entre os ―clássicos‖, para quem a poesia era ou épica, ou lìrica, ou dramática, a noção

de gênero era evidente, e sobre as literaturas antigas a tradição e a forma canônica exerciam

um poder muito grande; só com o romantismo esta autoridade, como todas, foi atacada. De

fato, desde o romantismo, o elemento formal ligado ao gênero não cessou de perder

importância. Sobretudo na poesia, a experiência subjetiva se afastou da tradição formal.

Entretanto, o declínio dos gêneros é um processo de dissolução bastante recente, do final do

século XVIII, e não é um termo definitivo, mas um capítulo a mais na história dos gêneros. O

interesse por eles voltou logo à tona.

Schlegel, Novalis e Hugo se insurgiram contra a noção de gênero e contra a retórica.

Hugo, em Odes et Ballades (1826), explicando no prefácio o título da coletânea, mostra uma

desenvoltura provocadora com relação à noção de gênero, significativa da estética moderna

hostil à retórica, em nome da liberdade do gênio criador. Também no prefácio de Cromwell

(1827), Hugo define o ―drama‖ contra a distinção ―clássica‖ entre a tragédia e a comédia;

recusar os gêneros é neste caso uma atitude perfeitamente nominalista, visto que esta recusa

da retórica era ainda uma retórica: aos antigos gêneros ―clássicos‖, os românticos vão

substituir novas distinções (cf. COMBE, 1992, p.4 e 7).

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Críticos e escritores dos anos 1960 também recusaram violentamente a noção de

gênero literário e fizeram dela seu principal adversário. Em nome do ―texto‖, a antiga

distinção dos gêneros era declarada ultrapassada; ela parecia não mais dar conta da

originalidade dos ―textos‖ modernos, rebeldes às categorias de ―poesia‖, de ―romance‖ ou de

―ensaio‖. A última destas ―recusas‖ provinha do surrealismo; Breton, hostil até mesmo à idéia

de ―literatura‖, preferia que o resultado da escritura automática fosse chamado não ―poema‖,

nem ―obra‖, mas ―texto surrealista‖.

É sob o signo da reabilitação de Aristóteles e em favor da reabilitação da retórica,

revisitada sobretudo por Tzvetan Todorov e Gerard Genette, que a noção de gênero

reapareceu. O gênero tornou-se um tema de reflexão e passou a despertar novo interesse.

A questão dos gêneros retornou, mesmo se muitas obras ―abertas‖ põem em questão as

classificações. Mesmo quando se agrupam autores sob a categoria de ―inclassificáveis‖, a

noção de gênero persiste e, excetuando-se alguns casos particulares, continua-se publicando

―romances‖, coletânea de ―poemas‖ e peças de teatro. Os prêmios literários reforçam os

cânones romanescos, e muitos autores nunca cessaram de reivindicar este ou aquele gênero. O

―texto‖ não suplantou os antigos gêneros, mesmo se estes se transformaram profundamente. O

discurso crítico e teórico atual corrobora a persistência da problemática dos gêneros.

Na literatura contemporânea, parece mais difícil de estabelecer classificações

genéricas, mas ela se presta ao estudo dos gêneros, o que pesa contra a tese romântica da a-

genericidade da literatura moderna. A aparente impossibilidade de se classificar esta literatura

se explica em parte pelo desenvolvimento da circulação literária (por causas tecnológicas e

sociais), que leva a uma multiplicação extrema dos modelos genéricos potenciais, ou seja,

quanto maior a multiplicação genérica, mais difícil sua classificação.

Dentre os adversários da noção de gênero destaca-se Benedetto Croce. Jauss observa

que foi Croce quem levou mais longe a crítica desenvolvida desde o século XVIII contra a

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universalidade normativa do cânone dos gêneros e quem mostrou ao mesmo tempo a

necessidade de fundar uma história estrutural dos gêneros literários. Para Croce, toda obra-

prima verdadeira violou a lei de um gênero estabelecido, semeando a confusão no espírito dos

críticos, que se viram obrigados a ampliar este gênero; por isso, para o teórico, o problema

dos gêneros se reduziria à questão da utilidade de um catálogo classificador (cf. COMBE,

1992, p.40-41). No fundo da ironia de Croce encontramos alguma razão, os gêneros são

realmente úteis para os que lidam com os catálogos, mas também para os leitores.

Gerard Genette, em Seuils (Seuil, 1985), denomina ―ìndices paratextuais‖ os

elementos que, numa obra publicada, sem pertencerem, propriamente falando, ao texto, o

cercam e permitem sua identificação. Para o editor, o que faz do manuscrito um livro é, além

de seu texto stricto sensu, seu título, seu índice, seus anexos, quadros e ilustrações, entre

outros. Para o leitor, que abre o livro pela primeira vez, todos estes parâmetros paratextuais

ajudam a situar o livro, ou seja, a identificar o gênero. Às vezes a operação é imediata,

sobretudo quando o título cumpre uma função metalingüística e traz a identidade da obra. Mas

às vezes esta evidência do título é enganadora (por exemplo, o Roman inachevé de Aragon é

uma coletânea poética), a grande maioria dos títulos não remete à natureza da obra. O

subtítulo às vezes cumpre este papel de determinação metalingüística, mas pode também ter

uma função irônica, provocadora ou paradoxal. Assim, aos critérios internos à obra que

completam o texto (ele próprio portador de índices necessários à sua identificação, como a

temática, a estrutura e o estilo) acrescentam-se elementos externos. Os livreiros e

bibliotecários são os que mais precisam de classificações e, sem poder ler todos os livros que

manuseiam, servem-se de resenhas, comentários e parâmetros paratextuais. Mas a escolha do

leitor também é guiada por outros índices, como o editor, a coleção e, muitas vezes, o autor.

Camus, quando publicou La Peste e L’Homme révolté, já era conhecido como

romancista, dramaturgo, ensaísta e, talvez principalmente, como jornalista. Muitos leitores

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esperavam suas obras e estavam dispostos a lê-las a partir de experiências de leituras

anteriores. Esta escolha guiada pelo autor é comum, sobretudo, no caso de escritores vivos.

O leitor potencial faz escolhas também em função de conselhos e sugestões de

livreiros, professores ou amigos e também em função das críticas que tenha lido. O leitor sabe

de antemão a que gênero pertence o livro, antes mesmo de tê-lo consultado. O discurso crítico

e o comentário pertencem, assim, aos parâmetros paratextuais que contribuem para a

identificação genérica (Cf. COMBE, 1992, p.10-11).

Dos diversos índices paratextuais de que fala Gerard Genette, os títulos das obras, no

caso dos textos de Camus, são sempre muito significativos; primeiramente, por remeterem

diretamente ao tema delas. Em L'Étranger, o título corresponde também a "estranho", pois a

sensação de "estranheza" perpassa a obra e o próprio Meursault, falando de si, diz "eu", mas

com a neutralidade de um "ele", estranho a si mesmo. Em La Peste, a epidemia, em sentido

próprio ou alegórico, é o tema do livro; Le Mythe de Sisyphe é uma referência direta à figura

mitológica que exerce um trabalho absurdo e, daí, referência ao Absurdo em geral; L'Homme

révolté trata das relações entre a Revolta e sua configuração degenerada na forma de

revolução violenta e totalitária. Nestas duas últimas obras, o subtítulo explícito refere-se

diretamente ao conteúdo da obra: são ensaios no sentido mais completo em que ele se

desenvolveu principalmente na França, desde Montaigne. É uma situação diferente daquela

que ocorre em O Ser e o nada, de Jean-Paul Sartre, em que, apesar da auto-classificação

estampada ao início da obra, o texto se apresenta muito mais sob a forma de um tratado, que,

embora leve em conta o aspecto subjetivo e "fenomenológico" da experiência humana, traduz-

se numa linguagem árida e numa organização sistemática que se pretende exaustiva. Como

afirma Karl Viëtor, tratando do gênero lírico, um poema pode pertencer ao gênero mesmo se o

poeta não o define expressamente como tal, pois não é o nome que decide, mas a estrutura

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genérica do poema. Quando um poema traz a etiqueta do gênero, uma relação verdadeira com

o gênero está, regra geral, presente, como pode também se revestir de outra forma.

O subtítulo, ou mesmo a ausência dele, é particularmente relevante no caso da Peste,

de Camus. A obra não traz nenhuma indicação genérica, não havendo a indicação "romance"

e nem mesmo "narrativa", que é uma caracterização dada a posteriori pelos críticos (ao lado

de "ensaios", "teatro" e "novelas") das obras de Camus para a edição "Pléiade". Dentre os

inúmeros elementos presentes na Peste, como uma forte ironia apontada pelos críticos,

podemos incluir a dimensão do "enigma" (título de um conto de Camus) ou mistério, que

existe com relação ao narrador. Tal narrador permanece oculto durante praticamente toda a

duração da narrativa. No início do primeiro capítulo lemos: "le narrateur, qu'on connaîtra

toujours à temps [...]" (CAMUS, 1962, p.1221) e só ao final do último temos a revelação:

Rieux décida alors de rédiger le récit qui s'achève ici, pour ne pas être de

ceux qui se taisent, pour témoigner en faveur de ces pestiférés, pour laisser

du moins un souvenir de l'injustice et de la violence qui leur avaient été

faites, et pour dire simplement ce qu'on apprend au milieu des fléaux, qu'il y

a dans les hommes plus de choses à admirer que de choses à mépriser. [...]

Car il savait ce que cette foule en joie ignorait, et qu'on peut lire dans les

livres, que le bacille de la peste ne meurt ni ne disparaît jamais, [...] et que,

peut-être, le jour viendrait où, pour le malheur et l'enseignement des

hommes, la peste réveillerait ses rats et les enverrait mourir dans une cité

heureuse (CAMUS, 1962, p.1474).

Podemos observar que o mistério ou suspense com relação ao narrador está ligado, de

certa forma, à falta de especificação "romance" ao início da obra e à ambigüidade com relação

a seu "gênero". La Peste, de início, como apontamos no capítulo 3, é marcada pela

diversidade de sentidos; a epígrafe, tomada de Daniel Defoe aponta para a polissemia,

característica da linguagem poética. Entretanto, as primeiras linhas do texto evocam o gênero

―crônica‖ e remetem, assim, ao trabalho do historiador ou jornalista, mais do que àquele do

médico (CAMUS 1962, p.1219).

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Camus, escritor já consagrado à época de publicação da Peste, era conhecido talvez

mais como jornalista do que como romancista. Para o leitor francês da década de 50, o

narrador parece ser, a princípio, ou Rambert, que é um jornalista (como Camus e que faz,

como ele, uma reportagem sobre a situação de miséria do povo da Kabila) ou Tarrou, que

partilha exatamente as opiniões políticas do autor, defendidas em seus textos jornalísticos,

como aqueles publicados no jornal Combat. Há um elemento de suspense para o leitor, com

relação ao narrador, e certa surpresa, ao se revelar que tal narrador é o médico, doutor Rieux.

6.2 TIPOLOGIA DOS GÊNEROS

Os índices paratextuais, título, subtítulo, editor, autor, definem uma tipologia dos

gêneros usuais sobre a qual, para aquém dos debates teóricos, leitores e autores, editores e

críticos se entendem implicitamente. Este consenso tácito, numa época e numa cultura dadas,

constitui o que H.-R. Jauss chamou um horizonte de espera e define um sistema de gêneros.

Os gêneros ―representam por assim dizer um a priori da realidade literária‖ e enquanto

"horizonte de espera‖ se constituem para o leitor por uma tradição ou uma série de obras já

conhecidas e pelo estado de espírito suscitado com a aparição de uma obra nova. 13

A relação do texto singular com a série de textos que constituem o gênero aparece

como um processo de criação e de modificação contínua de um horizonte. O novo texto evoca

para o leitor o horizonte de uma espera e de regras que ele conhece graças aos textos

anteriores, e que sofrem logo variações, retificações, modificações ou que são simplesmente

reproduzidas (cf. JAUSS, 1986, p.49). Jauss realça o aspecto sócio-histórico dos gêneros e

observa que eles não existem isoladamente, mas constituem as diferentes funções do sistema

literário da época e põem a obra individual em relação com este sistema. Ou seja, há uma

13

JAUSS, H. R. Littérature médiévale et théorie des genres. In : GENETTE, G. et alii. Théorie des

genres. p.37-76. Seuil, Paris: 1986. p.52

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relação entre sistemas literários, história social e realidade cotidiana; os gêneros literários

estão enraizados na vida e têm uma função social. É assim que o estudo das inter-relações

entre literatura e sociedade, entre a obra literária e o público reconstrói o horizonte de espera

dos gêneros que constitui preliminarmente a intenção das obras e a compreensão dos leitores

(cf. JAUSS, 1986, p.68-69).

Ao avaliar os problemas da classificação genérica, Jauss considera que a

sistematização moderna em três gêneros fundamentais não apenas excluiria a maioria dos

gêneros medievais, como também tornaria difícil descrever a epopéia popular, a poesia dos

trovadores e os Mistérios da Idade Média. Neste período, autores e público ainda

desconheciam todas as distinções modernas entre valor de uso ou arte pura, didatismo ou

ficção, imitação ou criação, tradição ou individualidade, que orientam a compreensão da

literatura desde a emancipação das ―Belas-artes‖. Assim, entre as formas e os gêneros da

Idade Média e a literatura atual não existiria continuidade histórica visível ou identificável.

Jauss observa que, mesmo se Croce condena o conceito normativo de gênero, ele

próprio, entretanto, considera que só se pode saber se uma obra de arte é expressão perfeita,

meio-sucesso ou fracasso, por meio de um julgamento estético que permite discernir na obra

de arte a expressão única daquilo que se tem o direito de esperar, daquilo que orienta a

percepção e compreensão do leitor; e este horizonte de espera já poderia ser a constituição de

um gênero (cf. JAUSS, 1986, p.39).

Como os traços característicos de um gênero não bastam por si mesmos para fundar a

qualidade artística de um texto literário, não podemos dizer que a perfeição de uma obra é

igual à pureza com a qual ela reproduz o modelo do gênero. Na literatura medieval são

justamente obras-primas como La Chanson de Roland, os textos de Chrétien de Troyes, as

primeiras "branches" do Roman de Renart, a alegoria amorosa de Guillaume de Lorris, A

Divina Comédia, que mostram a que ponto as convenções de um gênero podem ser

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ultrapassadas. Constata-se assim que os textos anteriores de cada gênero não seguiram uma

evolução necessária e previsível em direção a seu ponto de perfeição possível, da mesma

forma que as obras-primas não forneceram o modelo de um gênero que os seguidores só

teriam de reproduzir para garantirem o sucesso (cf. JAUSS, 1986, p.41 e 57).

Segundo Jauss, a evolução na história da literatura mostra uma predominância de

períodos de dominação, rivalidade e volta ao passado, sendo que os gêneros de sucesso da

literatura de uma época perdem progressivamente sua eficácia porque são continuamente

reproduzidos, eles são suplantados por gêneros novos, quando não são renovados por uma

modificação estrutural. E quanto mais um texto é a reprodução estereotipada das

características de um gênero, mais ele perde em valor artístico e em historicidade (cf. JAUSS,

1986, p.62 e 66).

Karl Viëtor é um dos teóricos que contribuíram para a retomada dos estudos sobre os

gêneros no século XX. Em um importante artigo dos anos 1930, ―A História dos gêneros

literários‖, ele tenta pôr ordem na terminologia dos gêneros, chegando a uma distinção entre

os gêneros propriamente ditos e seus traços essenciais. Viëtor mostra como Goethe, em suas

Notes et dissertations pour servir à l’intelligence du “Divan occidental-oriental”, não usa o

termo gênero, mas denomina a epopéia, a poesia lìrica e o drama ―formas naturais

(Naturformen) da poesia‖:

Há apenas três verdadeiras formas naturais de poesia : uma que conta

claramente, outra que se exalta e se entusiasma, uma terceira que age

pessoalmente. Estes três modos poéticos podem atuar juntos ou

separadamente.14

A expressão ―formas naturais‖ deixa entrever que se trata de uma concepção quase

metafísica dos gêneros literários. Haveria três grandes domínios da mesma e única poesia,

14

In : VIËTOR, K. L‘histoire des genres littéraires. In : GENETTE, G. et alii. Théorie des genres.

p.9-35. Seuil, Paris: 1986. p.11

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baseados sobre três atitudes fundamentais, naturais e últimas (ou seja, ontológicas) do poeta,

não só com relação ao objeto estético ou ao público, mas com relação à realidade.

Viëtor mostra ainda como Robert Hartl se inspira na distinção feita por Kant dos três

"fundamentos" da alma e relaciona o drama à ―faculdade de desejar‖, a epopéia à ―faculdade

de conhecer‖ e a poesia lìrica à ―sensação‖. Trata-se de uma reação (a cada vez diferente, do

homem em face da realidade apresentada pela experiência) que funda os três domínios das

formas poéticas: reações últimas, respostas criadoras, que correspondem à organização

elementar do homem. Viëtor concorda com este ponto de vista: três tipos ou grandes formas

naturais de comportamento humano face à realidade sobre os quais se enraízam e aos quais

correspondem três "formas naturais" da poesia:

O drama corresponde ao homem enquanto ser de desejo e de ação, "um ser

que quer‖; a epopéia lhe corresponde na medida em que ele é um ser que

conhece e que contempla; o lirismo na medida em que é um ser de

sentimento, votado a se exprimir (VIËTOR, 1986, p.11).

Esta distinção dos três domínios poéticos ou das três formas naturais, ainda que

questionável por seu embasamento supostamente ontológico, pode ser útil como ponto de

partida, pois, precedendo as classificações mais apuradas e sistemáticas dos especialistas, não

deixa de encontrar ecos numa visão mais elementar e faz parte do repertório interpretativo do

leitor comum.

Viëtor se pergunta de que seria feito um gênero literário e de que elementos ele tiraria

seu fundamento e sua particularidade com relação ao conjunto dos fenômenos estéticos. E

afirma que são as marcas formais que caracterizam necessária e principalmente o gênero.

Trata-se de elementos formais exteriores determinados, como o verso e a estrofe, mas também

de uma forma interna, uma construção característica, uma maneira determinada de organizar a

obra poética.

Os gêneros configurariam, assim, um círculo de possibilidades formais no interior de

um conteúdo dotado de uma estrutura particular. Mesmo no caso da poesia, não é apenas a

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forma externa, por exemplo, a disposição e quantidade de versos, que caracteriza o gênero; a

forma prosódica não basta para constituir o gênero. Ao aspecto exterior deve corresponder

uma ―forma interna‖; como o tom, que responda ao agrupamento externo. Assim, ―são três

coisas: o conteúdo específico, a forma interna e a forma externa, ambas específicas, que,

somente quando são tomadas conjuntamente, em sua unidade especìfica, fazem ‗o gênero‘ ‖

(VIËTOR, 1986, p.22). Ou seja, trata-se de um conteúdo dotado de uma estrutura particular, o

gênero não é nem simplesmente concentrado na forma prosódica, nem diretamente

constituído por ela.

Há uma mistura de forma externa, forma interna e conteúdo apropriado ao poema.

Forma e conteúdo não se separam e cada matéria requer sua própria forma. No interior do

gênero lírico, em virtude de sua disposição estrutural, conteúdos determinados já têm uma

aptidão natural para o gênero soneto, elegia, ode, etc. Um poema épico do século XVIII deve

ser diferente de uma epopéia antiga, pois um outro conteúdo histórico exige uma outra forma,

forma interna e forma prosódica, diferente daquela da tradição antiga (cf. VIËTOR, 1986,

p.19 e 22). É por isso que arrancar a obra do contexto de um sistema literário para transportá-

la em outro pode lhe dar nova coloração, outras características e até resultar em outro gênero.

Os gêneros literários teriam uma origem histórica obscura e as realizações poéticas

não seriam regradas de uma vez por todas, havendo uma renovação constante, mas há na

tradição literária obras formais criadas. Na história, o gênero aparece com as obras

individuais, mas ele não se esgota nelas, ele as "transcende". Ou seja, o gênero só é real nas

«suas » obras individuais, mas nenhuma peça particular pode representar efetivamente um

gênero. Um mesmo gênero pode reunir uma infinidade de obras, daí a dificuldade em

caracterizá-lo ou descrevê-lo a partir de uma única obra; os conhecimentos perdem sempre em

precisão do conteúdo o que eles ganham em extensão. Seria, então, necessário se desfazer da

idéia de uma justaposição dos gêneros fechados sobre eles mesmos e procurar suas inter-

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relações, que constituem o sistema literário num momento histórico determinado (cf.

VIËTOR, 1986, p.33-34).

A identificação do gênero, como o processo de interpretação em geral da obra, faz-se

gradativamente, num ir e vir constante entre o todo e as partes que caracteriza o círculo

hermenêutico, conforme denominação de Schleiermacher − o primeiro a descrever de que

maneira o ato de compreender se inicia por uma espécie de adivinhação, provisória e

hipotética, voltada para o todo, e de que maneira, em seguida, as partes e o todo se clareiam

de maneira progressiva e recíproca. A concepção genérica preliminar que um intérprete faz de

um texto é constitutiva de tudo o que ele compreende deste texto na seqüência, e é assim

enquanto esta concepção genérica não é modificada (cf. VIËTOR, 1986, p.31).

Robert Scholes, abordando especificamente o texto ficcional, reafirma também a

importância dos gêneros. Para o teórico, a idéia de uma poética da ficção é ela própria um

conceito genérico. A ficção seria um gênero distinto, com características, problemas e

potencialidades próprios, pois a ficção não funciona da mesma maneira que a poesia lírica, ou

outras construções verbais que não são de imitação nem de imaginação. Scholes também

realça o aspecto histórico dos gêneros, ao afirmar que todo escritor inscreve seu trabalho

numa tradição dada e que se podem medir perfeitamente suas realizações nos termos mesmos

da tradição em que este trabalho se inscreve.15

Scholes funda sua teoria modal ou teoria dos tipos ideais sobre a idéia de que todas as

obras de ficção são redutíveis a três tons fundamentais. Estes modos ficcionais de base seriam

por sua vez fundados sobre as três relações que podem existir entre um mundo ficcional, seja

ele qual for, e o mundo da experiência; assim, nosso sentimento da dignidade ou da baixeza

dos personagens e da absurdidade ou da significação do mundo deles vem da relação que une

os protagonistas a seu ambiente ficcional: um mundo ficcional pode ser melhor do que o

15

SCHOLES, Robert. Les modes de la fiction. In : GENETTE, G. et alii. Théorie des genres. p.77-88.

Seuil, Paris: 1986. p.77-78

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mundo da experiência, pior do que ele ou seu igual. Estes mundos ficcionais implicam

atitudes que aprendemos a denominar românticas, satíricas e realistas. A ficção pode nos

fornecer o mundo decaído da sátira, o mundo heróico do romance ou o mundo mimético da

história. Podem-se imaginar estes três modos de base da representação ficcional como sendo

os pontos médios e terminais de uma gama de possíveis, a saber: sátira, história, romance.

Assim, o romance pode ser satírico (entre a história e a sátira) ou romântico (entre a história e

a ―romance‖) (cf. SCHOLES, 1986, p.81-82).

Jean-Marie Schaeffer busca mostrar que a teoria tem tendência a considerar como

"natural", conforme um modelo biológico, o que é uma construção a posteriori. Os gêneros

seriam "classes" lógicas aplicadas ao campo literário, que não correspondem necessariamente

a seu objeto. Segundo Schaeffer, toda teoria sobre os gêneros se apóia sobre uma questão de

definição, a saber: o que seria um gênero. Possíveis respostas são: norma, essência ideal,

matriz de competência ou simples termo de classificação ao qual não corresponderia nenhuma

produtividade própria. Conforme esta última visão, de real haveria somente os textos

individuais, e seriam os gêneros apenas pseudo-conceitos, úteis no máximo para as

classificações de bibliotecários.

Perguntar o que é um gênero é indagar sobre a relação que liga os textos aos gêneros e

a relação entre determinado texto e ―seu‖ gênero. A maioria das teorias sobre os gêneros não

seriam realmente teorias literárias, mas, antes, teorias do conhecimento, uma vez que as

discussões, transcendendo a teoria literária, caem em querelas de ordem ontológica.16

Schaeffer critica a abordagem ontológica dos gêneros porque considera que ela

corresponde a uma ―exterioridade genérica‖. Exterioridade genérica é o procedimento que

consiste em "produzir" a noção de um gênero não a partir de uma rede de semelhanças

existentes entre um conjunto de textos, mas postulando-se um texto ideal, do qual os textos

16

SCHAEFFER, J.-M. Du texte au genre – Notes sur la problématique générique. In : GENETTE, G.

et alii. Théorie des genres. p.179-205. Seuil, Paris: 1986. p.179-180

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reais seriam apenas derivados mais ou menos conformes, da mesma forma que, segundo

Platão, os objetos empíricos são apenas cópias imperfeitas das idéias eternas (cf.

SCHAEFFER, 1986, p.190).

É importante observar que Platão e, sobretudo, Aristóteles não procederam desta

maneira, pois partiram de textos reais, que existiam de fato, anteriormente a qualquer

classificação genérica. Aristóteles tem como referência as obras de Homero e Sófocles e

pensa, pois, a teoria literária através da ―literatura‖ de seu tempo. Sua prática é indutiva, parte

da realidade efetiva dos gêneros em vigor em Atenas nos séculos V e IV e não prescritiva ou

normativa. Aristóteles, como bom naturalista, depreende as regras ou leis do gênero não em

sentido jurídico, mas científico, ou seja, como vindas da observação.

O ponto de vista de Schaeffer, ao criticar um modelo ideal de gênero, independente da

obra real, é próximo da concepção de Viëtor, quando este afirma que não há gênero

completamente puro e que em nenhuma obra o gênero em sua plenitude atinge sua realização

ideal, da mesma forma que nenhum exemplar particular pode ser considerado o tipo de um

gênero.

Na concepção ontológica, em que o gênero é visto como a essência da literatura,

constrói-se o gênero a partir de fontes supostas ou a partir de uma ―projeção retrospectiva‖,

pois postula-se primeiro um ―ideal de gênero‖ e depois encaixam-se os textos neste gênero, é

como construir um texto imaginário, ideal, do qual os outros, reais, seriam ecos. Assim, para

se discutir a questão das relações ontológicas entre textos e gêneros, é preciso primeiro tê-los

constituído numa exterioridade recíproca, o que corresponde a reificar o texto (cf.

SCHAEFFER, 1986, p.184 e 188).

Portanto, conforme Schaeffer, é preciso abandonar a reificação do texto e a idéia de

uma exterioridade de ordem ontológica entre texto e gênero; é preciso abandonar a idéia do

gênero como entidade extratextual e fundadora dos textos, concepção segundo a qual o texto

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literário seria um sistema autônomo, fechado e unificado, vindo unicamente de uma leitura

imanente e não referencial.

Para Schaeffer, o gênero não é a essência secreta da literatura, mas um modelo de

leitura, por isso o gênero deve ser construído por uma rede de semelhanças textuais, formais,

narrativas e temáticas. Ele busca, portanto, um critério empírico para o estudo dos gêneros,

defendendo a necessidade de uma definição textual e não ontológica de genericidade.

Conforme uma fenomenologia empírica, a teoria genérica supõe-se capaz de dar conta de um

conjunto de semelhanças textuais, formais e, sobretudo, temáticas. Schaeffer fala não de

gênero, mas de genericidade, que seria uma componente textual. Sendo a literatura por

definição institucional, a genericidade poderia perfeitamente "ser explicada por um jogo de

repetição, de imitações, de empréstimos, etc., de um texto com relação a um outro, ou a

outros" (SCHAEFFER, 1986, p.186).

Schaeffer reconhece que toda leitura resulta de pelo menos dois fatores, duas intenções

institucionalizadas: a do codificador e a do decodificador, mas afirma que recorrer à estética

da recepção não põe em xeque o postulado do texto-organismo fechado, pois, de acordo com

esta teoria, as condições de recepção apenas se sobrepõem a um texto já constituído na

plenitude de seu sentido. Para a estética da recepção o texto não seria um canal de

comunicação, mas um conteúdo transmitido (cf. SCHAEFFER, 1986, p.184).

Ele defende então o que chama de ―abordagem transtextual‖, que vai de encontro à

idéia segundo a qual o texto em sua interioridade pura seria algo como um sólido fragmento

de realidade, dotado de seu sentido único e definitivo, que o comentário só teria que

descobrir. Segundo a abordagem transtextual, é preciso observar a estrutura textual e os

índices transtextuais (que incluem elementos arquitextuais: pertença genérica; elementos

paratextuais: lugar de publicação, título, epígrafe, etc.; e, eventualmente, elementos

hipertextuais: texto-fonte, ou elementos metatextuais: tradição do comentário universitário,

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etc.) Para Schaeffer o ―gênero‖ seria apenas uma pura categoria de classificação, pois ele

pertence ao campo das categorias da leitura e estrutura um certo tipo de leitura, ao passo que a

―genericidade‖ é um fator produtivo da constituição da textualidade e uma norma de leitura

(cf. SCHAEFFER, 1986, p.195 e 199).

A leitura transtextual seria um enriquecimento com relação a uma leitura puramente

imanente, pois ela reinsere o texto individual na rede textual na qual ele é tomado e da qual a

leitura imanente o isola artificialmente. Trata-se de uma abordagem que valoriza o elemento

histórico e situacional dos textos, pois a problemática genérica é abordada não pelo ângulo do

gênero como categoria de classificação retrospectiva, mas pelo ângulo da genericidade como

função textual, considerando-se que a escolha de uma modalidade de enunciação é um

preliminar de todo texto. Assim, o caráter eminentemente institucional da literatura, portanto,

a circulação textual que está na base da genericidade, deve ser levado em conta. Um gênero é

sempre uma configuração histórica concreta e única (cf. SCHAEFFER, 1986, p.202 e 204).

Schaeffer critica a visão de Genette, para quem, como veremos abaixo, a

genericidade seria apenas uma categoria de classificação retrospectiva. Na terminologia

proposta por G. Genette, a genericidade, (ao lado dos tipos de discurso e das modalidades de

enunciação (narrativo/dramático/misto) é apenas um dos aspectos da arquitextualidade. E o

termo mais geral de ―transtextualidade‖ compreende, além da arquitextualidade, a

paratextualidade, a intertextualidade, a hipertextualidade e a metatextualidade.

Enquanto modelo de leitura, a transtextualidade, segundo Schaeffer, ativa mais

aspectos textuais do que a leitura puramente imanente, sem falar do fato de que ela permite

levar em conta a dimensão institucional da literatura enquanto conjunto de redes textuais.

Portanto, para Schaeffer, a genericidade se constrói por uma rede de semelhanças textuais,

semelhanças formais, narrativas e temáticas. Assim, os textos que funcionam como modelo

genérico estão de alguma forma presentes no texto com relação ao qual eles cumprem esta

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função, não, naturalmente, enquanto citação (e portanto intertextualidade), mas enquanto

ossatura formal, narrativa, temática, ideológica, etc. As semelhanças se dão em níveis textuais

diferentes: nível modal, formal e temático, e nem todas as semelhanças textuais são,

evidentemente, pertinentes do ponto de vista genérico, senão a genericidade se identificaria

com a totalidade dos estudos literários (cf. SCHAEFFER, 1986, p.194 e 202).

No interior dessas semelhanças, as diferenças são significativas; para Schaeffer, o

sistema de transformação genérica é o melhor terreno de estudo para a genericidade, enquanto

que o sistema de reduplicação não é tão interessante (cf. SCHAEFFER, 1986, p.204). Esta

opinião vai ao encontro daquela defendida por Jauss, quando afirma que a perfeição de uma

obra não corresponde a uma reprodução de um modelo de gênero e que, ao contrário disso,

quanto mais um texto é a reprodução estereotipada das características de um gênero, mais ele

perde em valor artístico e em historicidade.

Com base nas concepções de Jauss e Schaeffer, podemos destacar a originalidade da

produção literária de Camus. O autor, para classificar suas próprias obras, usa o termo

―formas‖: forma romanesca, dramática e ideológica, que correspondem aos romances e prosa

de ficção em geral, às peças de teatro e aos ensaios filosóficos. Mais do que a nomenclatura

em si (Camus também usa os termos ―peças‖ e ―ensaios‖) interessa o aspecto inovador do

escritor que, sem atacar diretamente a noção de gênero, tampouco se preocupa em enquadrar

suas obras num padrão formal pré-determinado.

Na Peste, a indefinição da pertença genérica é bastante explícita (trata-se de um

romance, de uma crônica, de uma tragédia, de uma reportagem, de uma ―narrativa alegórica‖,

da ―fundação de uma ética‖?); entretanto, já com relação a L'Étranger, os críticos observaram

aspectos caracterìsticos da inovação, o mais forte dele seria o uso do ―passé composé‖ tempo

verbal que em francês predomina na linguagem oral, sendo o ―passé simple‖, até então, o

tempo característico da ficção romanesca. No campo do teatro há uma variação desde a peça

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de estrutura mais tradicional, como Les Justes, até o esforço máximo de experimentação e de

junção de todos os recursos dramáticos, como acontece em L'État de siège, peça escrita em

colaboração com Jean-Louis Barrault. Com relação aos ensaios filosóficos, a crítica ao

dogmatismo e ao racionalismo é feita coerentemente numa forma não-sistemática e numa

linguagem carregada de imagens poéticas.

Tais procedimentos do escritor podem ter suscitado uma reação negativa em alguns

críticos, mas, na verdade, (conforme os termos empregados por Jauss) constituem uma não

reprodução estereotipada das características do gêneros, o que contribui para renová-los e

enriquecê-los.

6.3 A BUSCA DA ORTODOXIA

No início de seu célebre artigo, Introdução ao Arquitexto¸ Gerard Genette aborda a

teoria das três formas estéticas: a forma lírica, em que o artista apresenta sua imagem em

relação imediata consigo mesmo; a forma épica, em que ele apresenta sua imagem em relação

intermediária entre ele mesmo e os outros; e a forma dramática, em que ele apresenta sua

imagem em relação imediata com os outros.17

Para Genette, esta tripartição não é das mais originais, e há algum tempo ela vem

sendo atribuída a Aristóteles ou Platão. Ele observa em seguida que Irene Behrens mostrou

um exemplo em Ernest Bovet: ―Aristóteles tendo distinguido os gêneros lìrico, épico e

dramático...‖ para em seguida refutar esta atribuição, que ela declarava já muito difundida.

Mas, apesar do esclarecimento de Behrens, houve recaìdas, porque tal ―erro ou ilusão

retrospectiva tem raìzes profundas em nossa consciência, ou inconsciência literária.‖

(GENETTE, 1986, p.90) A própria autora do ―esclarecimento‖ não se libertou da tradição, e

17

GENETTE, G. Introduction à l‘architexte. In : GENETTE, G. et alii. Théorie des genres. p.89-159.

Seuil, Paris: 1986.

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se pergunta como é possível que a tripartição tradicional não esteja em Aristóteles, a que ela

responde que o lirismo grego era muito próximo da música para se ligar à poética.

Genette se propõe então, de maneira bem mais incisiva, a pôr um ponto final no mal-

entendido de longa data; busca mostrar que existe uma ausência do lírico na Poética de

Aristóteles e que a célebre tripartição dos gêneros em lírico, épico e dramático não é

aristotélica: o que aconteceu foi que projetaram sobre o texto clássico uma articulação da

poética ―moderna‖ ou, antes, romântica.

Usurpando uma filiação distante, a teoria relativamente recente dos "três gêneros

fundamentais" não apenas se atribui uma antigüidade — e, portanto, uma aparência ou

presunção de eternidade, e daí de evidência —: ela desvia em proveito de suas três instâncias

genéricas um fundamento natural que Aristóteles, e antes dele Platão, tinha talvez mais

legitimamente estabelecido para algo totalmente diferente (cf. GENETTE, 1986, p.90).

―Não pelo vão prazer de censurar alguns ótimos espìritos, mas para ilustrar com o

exemplo deles a difusão desta lectio facilior, aqui vão três ou quatro outras ocorrências mais

recentes...‖ (GENETTE, 1986, p.91), assim Genette elenca uma série de autores que teriam se

afastado da ortodoxia aristotélica; entre eles estão Austin Warren, Northrop Frye, Philippe

Lejeune, Robert Scholes, Hélène Cixous e Tzvetan Todorov, que faz remontar a tríade a

Platão e sua sistematização a Diomedes. Com efeito, já no século IV, Diomedes,

sistematizando Platão, apresenta o lírico como abrangendo obras em que apenas o autor fala,

o dramático como obras em que falam apenas os personagens e o épico seriam obras em que

autor e personagem têm igualmente direito à palavra.

Entre os hereges estaria ainda Mikhail Bakhtine, para quem a teoria dos gêneros não

pôde até nossos dias acrescentar muito de substancial ao que já havia sido feito por

Aristóteles, cuja poética permanece o fundamento imutável da teoria dos gêneros. Conforme

Genette, Bakhtine não atenta para o silêncio massivo da Poética sobre o gênero lírico, nem

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para a ilusão retrospectiva pela qual as poéticas modernas (pré-românticas e pós-românticas)

projetam cegamente sobre Aristóteles, ou Platão, suas próprias contribuições, e escondem

dessa forma sua própria diferença – sua própria modernidade (cf. GENETTE, 1986, p.92-93).

Mas esta atribuição errônea não data do século XIX, ela já existia no século XVIII, no

abade Batteux, que mostra como Aristóteles parece mesmo repartir três traços de estilo entre

três gêneros ou formas: o ditirâmbico, a epopéia e o diálogo de teatro. Mas nada autoriza a

apresentar o ditirâmbico como ilustração em Aristóteles (ou Platão) do ―gênero‖ lìrico. Todos

estes teóricos teriam projetado sobre o fundador da poética clássica uma articulação da

poética ―moderna‖ ou romântica, ou seja, a teoria dos três gêneros, embora relativamente

recente, usurpa uma filiação distante, para se atribuir evidência e legitimidade.

Genette se propõe então a abordar diretamente o ―sistema de gêneros‖ proposto por

Platão e explorado por Aristóteles, observando que a expressão ―sistema de gêneros‖ é

imprópria, sendo que ele a utiliza então como uma ―concessão provisória à vulgata‖.

Conforme Genette, no livro III da República, Platão motiva sua decisão de expulsar os

poetas da Cidade com duas séries de considerações. A primeira trata do conteúdo (logos) das

obras, que deve ser (e freqüentemente não é) moralizante. A segunda se refere à ―forma‖

(lexis), ou seja, o modo de representação. Todo poema, enquanto relato de acontecimentos,

pode tomar três formas: puramente narrativa, mimética (como no teatro, com diálogos entre

os personagens) ou mista (como em Homero, com narrativa e diálogo).

Em Aristóteles, segundo Genette, encontramos uma relação entre objeto imitado e a

maneira de imitar. O objeto imitado consiste unicamente em ações humanas (seres humanos

agindo); quanto à maneira de imitar, ela consiste seja em contar, seja em ―apresentar os

personagens em ato‖ (pô-los em cena agindo e falando, o que corresponde à representação

dramática). Desta forma, a classe do misto platônico desaparece. A ―maneira de imitar‖

equivale ao que Platão denominava lexis, não se trata de um sistema de gêneros, mas de

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modos ou situações de enunciação: no modo narrativo, o poeta fala em seu nome próprio, no

modo dramático são os próprios personagens, ou o poeta disfarçado em personagens.

Aristóteles, para estabelecer a diferenciação entre as artes de imitação, além de objeto imitado

e do modo de imitar, fala também dos ―meios‖ (pelo gesto, pela palavra, em grego, em verso,

em prosa) e este último nível responderia melhor ao que a tradição denomina forma (cf.

Genette, 1986, p.98).

As categorias de objeto e modo determinam uma grade de quatro classes de imitação,

a que correspondem o que a tradição clássica chama de gêneros. O poeta pode contar ou pôr

em cena ações de personagens superiores, e pode contar ou encenar ações de personagens

inferiores. O dramático superior define a tragédia, o narrativo superior a epopéia, ao

dramático inferior corresponde a comédia, ao narrativo inferior um gênero mal determinado,

que Aristóteles não denomina e que ele ilustra com ―paródias‖. Trata-se da narração cômica.

O filósofo, observando a existência de uma narrativa nobre, de um drama nobre e de um

drama baixo, deduz, por horror do vazio e gosto do equilíbrio, uma narrativa baixa que ele

identifica provisoriamente com a epopéia paródica; ele estaria assim reservando, sem

imaginar, um lugar para o romance realista (cf. GENETTE, 1986, p.126).

Em Aristóteles há uma valorização do superior sobre o inferior, inversão da posição

platônica a propósito de Homero (que intervém pouco como narrador e que se faz também

―imitador‖, ou seja, dramaturgo, poeta épico que deixa a palavra aos personagens). Assim,

Aristóteles, como Platão, não ignora o caráter ―misto‖ da narração homérica, mas defende a

superioridade da tragédia sobre a epopéia.

Durante séculos, a redução platônico-aristotélica do poético ao representativo vai

pesar sobre a teoria dos gêneros e criar confusão, caiu-se num menosprezo de tudo que não é

narrativo ou dramático. Genette passa então tratar a abordagem dos gregos feita por alguns

teóricos ao longo da história.

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127

O espanhol Francisco Cascales, em suas Tablas poéticas (1617) e Cartas philologicas

(1634) afirma, a propósito do soneto, que o lìrico tem por ―fábula‖ não uma ação, como o

épico e o dramático, mas um pensamento (concepto). Haveria aqui uma significativa distorsão

imposta à ortodoxia: o termo pensamento poderia corresponder ao termo aristotélico de

"dianoia". Mas a idéia de que um pensamento possa servir de fábula para algo seria

totalmente estranha ao espírito da Poética, que define expressamente a fábula (mythos) como

o "conjunto das ações" e em que a "dianoia" (o que os personagens dizem para demonstrar

algo ou declarar o que decidem) praticamente não recobre o aparelho argumentativo destes

personagens. Mesmo estendendo a definição ao pensamento do próprio poeta, tudo isto não

poderia constituir uma fábula no sentido aristotélico (cf. GENETTE, 1986, p.113).

Batteux se esforça por conciliar poética clássica e abertura, ou seja, mantendo a

imitação como princípio único de toda poesia, estende este princípio à poesia lírica. A poesia

lírica seria também imitação, ao imitar sentimentos (mesmo que fictícios), ou seja, ela imitaria

sentimentos e não ações, como as outras poesias. Assim seria integrada a poesia lírica à

poética clássica. Entretanto, afirma Genette, esta integração é forçada e distorcida, pois a

ficção do poema é tomada como essencial e não como possível, a imitação de ações torna-se

imitação puramente. A imitação é vista como sinônimo de ficção, mas esta não existe se o

sentimento é autêntico, e assim cai por terra toda uma poética (cf. GENETTE, 1986, p.115 e

119-120).

Philippe Lejeune vê a autobiografia, (que ele define como narrativa retrospectiva em

prosa que uma pessoa faz de sua própria existência, destacando sua vida individual, em

particular a história de sua personalidade ) um gênero relativamente recente, possível somente

na época moderna, mas a definição que ele propõe (feita com termos sem nehuma

determinação histórica) seria rigorosamente intemporal e tipicamente aristotélica, por

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combinar traços temáticos (o fazer-se de uma individualidade real), modais (narração

autodiegética retrospectiva) e formais (em prosa) (cf. GENETTE, 1986, p.155).

No século XX, ocorre uma ―acomodação‖: quando a enunciação é reservada ao poeta,

fala-se em lírico, quando a enunciação é alternada, em épico, e quando a enunciação é

reservada ao personagem, em dramático. Mas as definições modais não coincidem com as

genéricas. E mesmo assim, o novo sistema é abusivamente proclamado como sendo conforme

à doutrina clássica (cf. GENETTE, 1986, p.118).

Schlegel estabelece uma equivalência entre a ―forma‖ lìrica como sendo subjetiva, a

dramática, objetiva, e a épica subjetiva-objetiva. São os mesmos termos da divisão platônica

(enunciação pelo poeta, pelos personagens, por um e outros), mas a escolha dos adjetivos

desloca o critério do plano técnico para um psicológico ou existencial. Schlegel valoriza

explicitamente o estado misto, por ser ao mesmo tempo subjetivo e objetivo. Para ele, a

divisão platônica dos gêneros não é válida: da mesma forma que ao épico corresponde o

objetivo, ao lírico corresponde o subjetivo, e no dramático ocorre uma interpenetração de

ambos, trata-se do esquema: tese, antítese e síntese (cf. GENETTE, 1986, p.120-121).

Já Hölderlin valoriza o lírico (particularmente, a ode pindaresca) como união da

exposição épica e da paixão trágica. Finalmente, ele recusa qualquer hierarquia,

estabelecendo uma espiral ou imbricação entre os gêneros. Goethe opõe às simples ―espécies

poéticas‖ que são os gêneros particulares como o romance, a sátira ou a balada, as ―três

autênticas formas naturais‖ da poesia que são o épico, (narração pura), o lìrico (transporte

entusiasta) e o drama (representação viva). Os três modos podem agir juntos ou

separadamente. Assim, para Goethe, podem-se combinar estes três elementos (lírico, épico,

dramático) e fazer variar ao infinito os gêneros poéticos. Os sucessores de Schlegel e

Hölderlin, por sua vez, vêem no drama a forma mista (ou sintética) e superior.

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Na verdade, segundo Genette, não se pode saber que gênero precede historicamente o

outro, nem há por que dizer que o lírico é o modo mais subjetivo; por isso mesmo não se pode

fazer a correlação subjetivo-objetivo-misto em função de passado-presente-futuro. A história

da teoria dos gêneros seria toda ela marcada por estes esquemas que deformam a realidade

freqüentemente heterogênea do campo literário e pretendem descobrir um "sistema natural"

onde eles constroem uma simetria fictícia, ou seja, configurações forçadas (cf. GENETTE,

1986, p.122, 126 e 141).

A qualificação de "natural" para os gêneros é corrente sob a estética romântica. Para

Bovet, como para Hugo e os Românticos alemães, os três ―grandes gêneros‖ não são simples

formas, mas três modos essenciais de conceber a vida e o universo, que respondem a três eras

da evolução. Daí que os modos de enunciação poderiam ser qualificados de ―formas naturais‖.

Haveria uma atitude existencial, uma ―estrutura antropológica‖, uma "disposição mental‖, um

―esquema imaginativo‖ ou um ―sentimento‖, propriamente épico, lìrico, dramático – mas

também trágico, cômico, elegíaco, fantástico, romanesco, etc.

Para Genette, o ―tipo épico‖ não é nem mais nem menos natural do que os gêneros

―romance‖ e ―epopéia‖ que ele supõe englobar, e os três termos da trìade tradicional não

merecem nenhuma posição hierárquica particular: o épico, por exemplo, não está acima da

epopéia, romance, novela, contos, etc. senão quando se o entende como modo (=narrativo); se

o considerarmos como gênero (=epopéia) e se lhe dermos um conteúdo temático específico,

então ele não contém mais o romanesco, o fantástico, etc. Os ―tipos‖ ideais não seriam nem

mais gerais nem mais constantes. Trata-se, antes, de um conservadorismo da tradição clássica,

capaz de manter de pé, durante séculos, formas mumificadas (cf. GENETTE, 1986, p.144-

146).

Em Platão e Aristóteles a divisão fundamental tinha um estatuto bem determinado,

pois ela se baseava explicitamente no modo de enunciação dos textos. Os gêneros, quando

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levados em conta, se repartiam entre os modos enquanto provinham de tal ou tal atitude de

enunciação: o ditirâmbico, a narração pura, a epopéia. Cada gênero se definia por uma

especificação do conteúdo.

Toda intenção literária posta de lado, o usuário da língua deve, mesmo

inconscientemente, escolher entre atitudes de locução tais como discurso e história, citação

literal e estilo indireto, etc. A diferença de estatuto entre gêneros e modos estaria nisto: os

gêneros são categorias propriamente literárias, os modos categorias que vêm da lingüística (da

pragmática). A questão é que a tríade romântica não aparece mais como modos de

enunciação, mas sim como arquigêneros. A divisão romântica e a pós-romântica encaram o

lírico, o épico e o dramático não como simples modos de enunciação, mas como verdadeiros

gêneros, cuja definição comporta um elemento temático (cf. GENETTE, 1986, p.135, 140 e

142).

Assim, os teóricos teriam concebido e atribuído a Platão e Aristóteles uma divisão dos

―gêneros literários‖ que é recusada por sua ―poética‖. Esta atribuição ocorreu, no fim do

classicismo, por causa do respeito e necessidade de caução da ortodoxia e, no século XX, por

causa de uma ilusão retrospectiva. Mas o erro é o mesmo, trata-se de uma atribuição errônea

ou de uma confusão entre modos e gêneros.

Tal atribuição falaciosa projeta o privilégio de naturalidade que era legitimamente (―só

pode haver três maneiras de representar pela linguagem as ações, etc.‖) aquele dos três

modos: narração pura/narração mista/imitação dramática sobre a tríade dos gêneros, ou de

arquigêneros: lirismo/epopéia/drama (―só pode haver três atitudes poéticas fundamentais,

etc.‖): trata-se de uma confusão entre definição modal e definição genérica, as quais, na

verdade, são diferentes.

Os arquigêneros não podem ser tipos ideais ou naturais. Os modos (como a narrativa)

e os gêneros (como o romance) têm entre si uma relação complexa e não de simples inclusão,

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como sugere Aristóteles. Há determinações temáticas, modais e formais que se distinguem.

Enfim, a atribuição a Platão e a Aristóteles da teoria dos ―três gêneros fundamentais‖ é um

erro histórico e o fruto de uma confusão teórica (cf. GENETTE, 1986, p.147-148).

Genette observa que os três modos de lexis, na República de Platão, correspondem, no

plano do que será chamado mais tarde gêneros poéticos, à tragédia e à comédia para o

mimético puro, à epopéia para o misto e ao ditirâmbico para o narrativo puro. Platão trata

apenas das formas de poesia ―narrativa‖ em sentido largo, deixando de lado toda poesia não

representativa, o que chamamos por excelência poesia lírica, e toda outra forma de literatura

(como a representação em prosa, como nosso romance ou nosso teatro modernos).

Também, na Poética, conforme Genette, há apenas poema representativo. Ela define a

poesia como arte da imitação em verso, excluindo a imitação em prosa. Sem mencionar a

prosa não imitativa, como a eloqüência, a que é consagrada a Retórica.

É neste ponto que o esforço de Genette para restabelecer a "pureza" da doutrina dos

filósofos gregos se revela bastante estéril, pois fixar tais doutrinas no contexto em que

surgiram e na relação exclusiva com a poesia de então só evidencia a defasagem de tais

teorias para a abordagem da produção poética moderna e contemporânea; mais interessante

seria talvez relacionar as intuições dos clássicos com as transformações históricas dos

gêneros, isto seria uma forma de desenvolver a riqueza do pensamento grego e de lhe conferir

atualidade.

Para abordarmos a narrativa, sobretudo o romance, e mormente a partir do século XIX,

teríamos de nos valer tanto da poética quanto da retórica. A poética exclui a prosa não

imitativa, mas em muitos escritores modernos, e tal é o caso de Camus, a prosa de ficção é

repleta de passagens em que predominam a argumentação. Na literatura moderna

encontramos reunidos em uma mesma obra, diversos "conteúdos", e diversas "formas de

representação". La Peste de Camus seria muito mais do que um "poema misto" e,

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apresentando um fundo ético, seu conteúdo estaria longe de ser "moralizante". Há longas

passagens que, sob a forma despretensiosa de uma conversa informal entre amigos,

constituem na verdade discussões de conteúdo filosófico. Ou seja, trata-se de um "poema" que

engloba ao mesmo tempo aspectos poéticos, retóricos e éticos.

Na Peste, tais passagens geralmente surgem na fala de personagens e não na do

narrador. O narrador, nas obras em geral de Camus, nunca é onisciente. Isto não é uma

escolha aleatória para o autor, mas uma exigência necessária para que seja mantida a

coerência com seu pensamento que exclui a visão totalitária do universo. Um narrador

onisciente é, de certa forma, uma prática totalitária dentro do universo romanesco, que seria

mostrado por uma visão única. Camus adota uma prática contrária, pois estabelece inúmeros

pontos de vista e multiplica os olhares, as percepções e as verdades sobre um mesmo fato

narrado.

As passagens da Peste que mais diretamente remetem a um pensamento filosófico,

através da reflexão dos personagens, concentram-se principalmente nas falas de Rieux e

Tarrou e, secundariamente, naquelas de Rambert e de Grand; esporadicamente em fragmentos

de discurso de outros personagens. Com efeito, são digressões em que se foge totalmente à

narração pura, mas são essenciais no conjunto da obra, pois caracterizam os personagens e

justificam suas atitudes. Destacam-se algumas falas do doutor Rieux, na passagem seguinte

ele enuncia, principalmente, enquanto personagem:

un fils d'ouvrier comme moi. [...] mon dégoût croyait s'adresser à l'ordre

même du monde. [...] je ne suis toujours pas habitué à voir mourir. [...]

l'ordre du monde est réglé par la mort, peut-être vaut-il mieux pour Dieu

qu'on ne croie pas en lui et qu'on lutte de toutes ses forces contre la mort,

sans lever les yeux vers ce ciel où il se tait (CAMUS, 1962, p.1323).

Em outro momento Rieux enuncia, sobretudo, como narrador – ainda não identificado:

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Car on laisse supposer alors que des belles actions n'ont tant de prix que

parce qu'elles sont rares et que la méchanceté et l'indifférence sont des

moteurs bien plus fréquents dans les actions des hommes. C'est là une idée

que le narrateur ne partage pas. Le mal qui est dans le monde vient presque

toujours de l'ignorance, et la bonne volonté peut faire autant de dégâts que la

méchanceté, si elle n'est pas éclairée. Les hommes sont plutôt bons que

mauvais, et en vérité ce n'est pas la question. Mais ils ignorent plus ou

moins, et c'est ce qu'on appelle vertu ou vice, le vice le plus désespérant

étant celui de l'ignorance qui croit tout savoir et qui s'autorise alors à tuer

(CAMUS, 1962, p.1326).

Podemos destacar ainda uma passagem em que Tarrou, expondo suas opiniões

pessoais, anuncia, na verdade, um ideal ético, ao mesmo tempo em que faz referências a uma

crítica desenvolvida posteriormente em L’Homme révolté: fazer a história para o Estado

totalitário contemporâneo do autor inclui a desonra, o crime e o assassinato:

D'ici là, je sais que je ne vaux plus rien pour ce monde lui-même et qu'à

partir du moment où j'ai renoncé à tuer, je me suis condamné à un exil

définitif. Ce sont les autres qui feront l'histoire. Je sais aussi que je ne puis

apparement juger ces autres. [...] Je dis seulement qu'il y a sur cette terre des

fléaux et des victimes et qu'il faut, autant qu'il est possible, refuser d'être

avec le fléau. [...] Je n'ai pas de goût, je crois, pour l'héroïsme et la sainteté.

Ce qui m'intéresse, c'est d'être un homme (CAMUS, 1962, p.1427).

Tais discussões, mesmo fugindo à narrativa, são inseparáveis dela. É o conjunto de

narração e digressão que confere significado à obra. Há de se observar que o não-narrativo no

romance não se manifesta apenas nas falas que tratam de um problema ético, filosófico ou

existencial. O não-narrativo manifesta-se também nos trechos, bastante comuns, em que o

narrador comenta a própria história, por exemplo ao justificar as fontes documentais de sua

crônica e ainda, nas passagens em que ele parece dialogar com o leitor, como no trecho citado

acima: "C'est là une idée que le narrateur ne partage pas" (CAMUS, 1962, p.1326).

Genette denuncia a confusão entre "modos" e "gêneros". A suposta "tríade" não

apareceria na Poética de Aristóteles, que ignora deliberadamente o "lírico". Entretanto, como

observa muito bem Dominique Combe, e daí sua crítica a Genette, a distinção canônica da

―trìade‖ dos gêneros – épico, lírico, dramático – não deixa de remontar à Poética de

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Aristóteles, mesmo se o ―lìrico‖ é um terceiro termo acrescentado pela tradição pós-

aristotélica e que não figura na Poética. De toda forma, a Poética se acha de início colocada

sob o signo de uma taxonomia dos gêneros, chamados ―espécies‖.

Assim, quando no prefácio de Cromwell, Hugo atribui a Aristóteles as regras das três

unidades, importa pouco que a Poética não prescreva regras nem teorize a tragédia de Ésquilo

e de Sófocles, ou que as ―três unidades‖ não figurem nela. A partir do momento em que o

teatro ―clássico‖, para justificar suas próprias regras, se referiu – freqüentemente de maneira

incorreta ou tendenciosa – a Aristóteles, Hugo está fundado a denunciar aquilo que, mesmo

sem querer, está na origem de uma poética considerada redutora. Através de Aristóteles, é

preciso entender antes o aristotelismo que se impôs progressivamente pelas traduções da

Poética na Itália e que se difundiram por toda a Europa. Racine, Corneille, le Père Rapin,

Descartes e mesmo Diderot ou Lessing recorrem à autoridade de Aristóteles, que prevalece

muito forte até fins do século XVIII (cf. COMBE, 1992, p.25).

O que está em jogo, na verdade, é o problema do legado dos clássicos e sua

interpretação ao longo da história. Assim, a tragédia é definida por Aristóteles também por

seu efeito sobre o espectador, o que remete à problemática levantada pela estética da

recepção, efeito que ele considera no plano médico, terapêutico, e não tanto "moral",

conforme sugere o termo "catharsis", mais purgação que purificação.

A interpretação moralizante ou normativa das "regras" aristotélicas pelos clássicos, na

França, seria devida ao fato de que eles conhecem Aristóteles através de Horácio. Racine é

um dos raros dramaturgos a poder se referir diretamente à Poética. É Horácio que prepara a

―bienséance‖ moral dos clássicos, ausente em Aristóteles. Horácio tem uma perspectiva

moral, estreitamente ligada à função pragmática da obra, centrada sobre seu destinatário; ele

coloca o problema em termos retóricos, o que privilegia o efeito sobre o leitor ou público,

mais do que a qualidade intrínseca da obra.

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Já em Virgílio, o estilo reside numa harmonia entre a forma (épico/lírico) e o conteúdo

(alto/médio/baixo) e entre o autor e seu público. A elocução conveniente não deve se fazer

sem arte sobre questões de alta importância, nem solene sobre questões secundárias, nem um

termo florido sobre coisas comuns; e o louvável deve ser apresentado em termos admirativos.

Na Arte poética de Boileau, o problema central é o da adequação, do assunto ao autor,

da expressão à matéria, da obra a seu público ou do autor a seu leitor, e do ator ao texto. Em

matéria de tragédia, é preciso responder à expectativa do público, que se torna o principal

critério de sucesso, e daí, de definição dos gêneros. A idéia de adequação pertence, portanto,

à tradição retórica ciceroniana. A Arte poética sintetiza os valores retóricos do classicismo e

prescreve regras, mas trata-se de uma codificação a posteriori das obras clássicas (cf.

COMBE, 1992, p.36, 39-41). Da mesma forma, a visão redutora e essencialista dos gêneros é

fruto de um embasamento grego somado à carga interpretativa ao longo do tempo.

Aristóteles se interessa pela ―arte poética‖, pela poesia e não pelo que chamamos hoje

de ―literatura‖. Os gregos, além de terem uma visão de "poesia" muito diversa da nossa,

operavam uma distinção entre a retórica e a poética, entre os gêneros e as figuras, trata-se de

uma distinção que não existe mais. Hoje os recursos retóricos são mostrados e estudados

também nos textos literários, e mesmo nos textos em geral. E hoje se reconhece que os meios

de instruir e de persuadir podem ser os mesmos em filosofia, na eloqüência e na poesia.

A poética dos gêneros, na Antigüidade, é tributária da retórica, que Aristóteles tinha

porém cuidadosamente distinguido da poética, preparando a cisão entre a teoria moderna da

argumentação, ligada à lógica e, mais geralmente, à filosofia, e aquela das figuras, imputada à

literatura. Sabe-se, com efeito, que o objeto da poética é "o que não é mas que poderia ser" –

a ficção versossímil – enquanto que a retórica se ocupa apenas do que é. Porém, Aristóteles

não deixa de descrever a obra através de categorias tomadas da retórica.

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Já na Escolástica, com o Trivium, há uma retorização da poética e uma poetização da

retórica, a poética é vista como segunda retórica, à sombra de uma grande disciplina. Os

diferentes gêneros de eloqüência que os oradores distinguiram, o deliberativo (aconselha-se

ou dissuade-se seu interlocutor a agir em tal ou tal sentido), o demonstrativo (louvam-se ou

reprovam-se as qualidades do assunto tratado) e o judiciário (decidir pelo justo ou injusto a

propósito de uma ação já realizada), seriam da competência da arte poética, como da arte da

oratória. De fato, esta tripartição foi aproximada da tríade dos gêneros, a tragédia foi

associada à situação de eloqüência judiciária e a poesia lírica à eloqüência demonstrativa;

globalmente, é com o antigo gênero demonstrativo que a literatura moderna teria mais

afinidades (cf. COMBE, 1992, p.42-43).

Não se pode deixar de destacar o mérito de Genette ao suscitar e desenvolver

novamente a discussão acerca dos gêneros, entretanto alguns aspectos de sua discussão podem

ser questionados. Genette critica aqueles que, ao desenvolver uma teoria sobre gêneros,

usurpam uma filiação distante e atribuem, erroneamente, a teoria genérica aos clássicos

gregos, usando a autoridade dos antigos para se legitimarem. Contudo, com suas

interpretações próprias, tais teóricos não deixam de realmente beber na fonte da Poética.

Além disso, é uma prática constante, na cultura ocidental, a recorrência aos clássicos, seja

como ponto de partida histórico (sendo eles os primeiros a tematizar muitas questões ainda

hoje prementes), seja como fonte de inspiração, seja como forma de legitimação, a partir de

uma autoridade reconhecida. E o próprio Genette, sob a perspectiva de corrigir uma

interpretação errada e fazer uma leitura correta de Platão e Aristóteles, ―serve-se‖, ele próprio,

da autoridade dos clássicos, pois sua discussão se faz em nome da doutrina platônico-

aristotélica e de uma reabilitação da Poética clássica. Mesmo que a tripartição conhecida e

difundida dos gêneros em épico, lírico e dramático não esteja em Platão, se a vulgata a aceita

assim, é preciso levá-la em conta no desenvolvimento de novas teorias.

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O sistema da poética foi produzido num ambiente muito diferente do nosso, com uma

visão de ―poesia‖ narrativa e representativa, com uma concepção de ―literatura‖ muito

diversa; naturalmente para aplicá-lo hoje são necessárias modificações, segundo o princípio

de que a única maneira de dizer a mesma coisa, num contexto que mudou, é dizê-la de

maneira diferente. Modernamente estamos pouco acostumados a uma narrativa que não seja

em prosa, e o verso parece a muitos leitores como uma característica essencial da poesia.

Mesmo assim, se as categorias de Aristóteles podem ser aplicadas, isto só realça a

profundidade de suas concepções.

Os meios de que fala Platão parecem algo hoje muito evidente para funcionarem como

critério distintivo de um gênero, pois a literatura contemporânea é quase unicamente

difundida em forma de livros, ou seja, escrita e escrita numa língua nacional. Quanto ao

objeto imitado, pouco importa hoje se ele é nobre ou não, pois trata-se de uma distinção só

pertinente num contexto aristocrático, muito diferente do contemporâneo em que prevalecem

os valores burgueses ou éticos da modernidade. A distinção que conservou sua relevância, que

ainda faz sentido e se mostra evidente no texto literário, diz respeito aos modos: poesia,

narrativa, teatro, e assim se compreende porque tais ―modos‖ são associados aos gêneros.

A noção de "arquitexto" que Genette invoca no fim de sua obra visa a estabelecer uma

"estilística transcendente" acima dos gêneros históricos, mas ele não parece tão inovador, pois

se concentra nas categorias da Poética, não abordando os gêneros modernos, como o ensaio

literário ou filosófico, por exemplo, nem buscando uma relação entre essa prosa não imitativa,

mas poética ou filosófica, e os ―modos de representação‖ dos clássicos. Os autores, sobretudo

durante o romantismo, desejaram ultrapassar os limites dos gêneros, que eram vistos como

uma limitação à liberdade do criador, e por isso a idéia mesma de gênero foi violentamente

rejeitada; da mesma forma, o que os teóricos criticam, mais do que a distribuição dos textos

literários em gêneros distintos, é uma visão essencialista e normativa dos gêneros, visão que,

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de certa forma, Genette acentua, por causa de sua aparente obsessão pela correta interpretação

do legado dos clássicos.

Numa visão bem mais completa e moderna do que aquela de G. Genette, Dominique

Combe aborda a questão dos gêneros, mostrando como esta perpassa várias correntes teóricas

que se dedicam aos estudos literários. Combe dedica um enfoque especial ao ensaio, que

sequer é citado por Genette, e começa criticando aqueles que menosprezam a importância da

questão dos gêneros.

Conforme Combe, aqueles que negaram qualquer pertinência à noção de gênero foram

contra a experiência quotidiana do leitor comum, cuja prática é inteiramente governada pelos

gêneros literários. Pois, quer se queira ou não, é através dos gêneros que se aborda a literatura,

e eles estão estreitamente ligados à experiência quotidiana e à prática da leitura.

Naturalmente, não é necessário poder definir a noção de gênero para compreendê-la

intuitivamente e utilizá-la. A teoria dos gêneros é fato da "ciência" que os transforma, à

distância, num objeto de conhecimento; o gênero é o "horizonte" que guia a leitura (cf.

COMBE, 1992, p.13).

Segundo D. Combe, na ―atitude natural‖ do leitor comum percebem-se quatro grandes

―categorias‖ de textos, postuladas de maneira implìcita e, se não inconsciente, pelo menos

―irrefletida‖. A reclassificação dos textos nestas categorias se opera quase automaticamente

no leitor, sem que ele precise ―tematizar‖, ou explicitar as classes genéricas abstratas. A

leitura se desenvolve em seguida sobre o ―fundo‖, sobre o segundo plano destes gêneros que

condicionam o horizonte de espera (cf. COMBE, 1992, p.13).

As quatro grandes classes de textos que se podem hoje distinguir no horizonte da

consciência ―espontânea‖, modelada pelos hábitos de leitura, mas também pelo ensino e pelas

instituições, seriam: a ficção narrativa (romance, novela, conto, narrativa); a poesia (em verso

ou em prosa); o teatro (tragédia, drama, comédia) e o ensaio (discurso filosófico ou teórico,

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autobiografia, memórias, diário íntimo, correspondência, resenha, narrativa de viagem, etc.)

Além destes gêneros, há aqueles das obras ―em segundo grau‖ – comentários, ensaios críticos,

monografias, biografias, manuais, tratados, entrevistas, etc. Há uma fronteira entre o discurso

crìtico acadêmico, ou jornalìstico, e o ―ensaio‖ literário (cf. COMBE, 1992, p.14). Ou seja, na

prática, prevalece a distinção: teatro/poesia/prosa de ficção/ensaio.

A ficção narrativa é um gênero geralmente identificado com a ficção, excluindo a

poesia e o teatro, entre seus principais subgêneros estão o romance e conto. A distinção se

baseia no duplo critério implícito da narrativa e da imaginação. Narrativamente, o romance se

distingue da novela, do conto e do récit. Do ponto de vista imaginativo, estes gêneros se

distinguem, por serem ficcionais, dos relatos autobiográficos, das memórias, da história (cf.

COMBE, 1992, p.15).

Na poesia, a forma é geralmente versificada e percebida em sua disposição de início

pelo olhar (métrica, rima, jogos de sonoridade, tonalidade), embora o leitor hoje já tenha

integrado a idéia de uma poesia não versificada (poema em prosa, ou prosa/romance

poéticos). O desaparecimento do critério do verso teria se dado a partir dos anos 1860. Outros

critérios são a imagem, determinante desde Rimbaud, e a brevidade e intensidade da

linguagem. No teatro, o critério da representação, do ―espetáculo‖, é determinante; de todos

os gêneros é o que se impõe mais fortemente, por causa de sua forma dialógica.

O ensaio é sem dúvida o gênero menos claramente percebido, e a consciência o

reconhece freqüentemente por eliminação. São textos que não se inserem nem na ficção, nem

na poesia, nem no teatro. Hoje, o ensaio cumpre o papel que o romance pode ter cumprido em

suas origens – como gênero agregador dos excluídos dos "grandes gêneros", isto explica sem

dúvida sua heterogeneidade. Uma constante, contudo: o privilégio dado à reflexão, às idéias,

ao pensamento discursivo e não à imaginação, exaltada pela ficção. Esta dimensão discursiva

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orienta confusamente a "disposição" de espírito do leitor, que mobiliza suas faculdades

intelectuais – o entendimento e a razão mais do que a imaginação (cf. COMBE, 1992, p.16).

Estas categorias genéricas, que seriam um a priori da experiência estética, participam

diretamente da identificação do texto. Qualidades como ―dramático‖ e ―poético‖ são

essencialmente intuitivas no leitor, que tem dificuldade para justificar sua percepção. Mesmo

sem conhecimentos históricos e teóricos, estas intuições têm para o leitor a evidência do

afetivo, a que a crìtica americana chama ―mood‖, a ―tonalidade afetiva‖ ou simplesmente

―tom‖, que traduz finalmente o ethos da retórica grega (cf. COMBE, 1992, p.17).

A fenomenologia da leitura é a de um aprendizado e não de uma estrutura psíquica a

priori: quem nunca leu um livro ou assistiu a uma peça de teatro não pode saber o que é o

gênero. O leitor apanha os gêneros e as tonalidades afetivas ao mesmo tempo, num

movimento dialético que vai do particular ao geral e do geral ao particular, no movimento de

um círculo hermenêutico. O inegável é que a leitura de uma obra se faz sobre um fundo de

gênero e de categorias genéricas indissociáveis (cf. COMBE, 1992, p.21-22).

Lírico, épico e dramático estão no centro do sistema de gêneros definido pela antiga

retórica, que até hoje modela nossa pré-compreensão dos gêneros e orienta deste modo nossa

leitura. A fenomenologia da abordagem imediata dos gêneros mostra, além dos gêneros

modernos propriamente ditos (ficção narrativa, poesia, teatro, ensaio), categorias genéricas

que são ―tonalidades afetivas‖ na obra: poético, lìrico, dramático, cômico, didático.

M. Bakhtine, em Esthétique de la création verbale (Gallimard, 1984, p.265), relaciona

o problema dos gêneros a uma perspectiva pragmática, sem usar este termo. Ele considera que

os domínios da atividade humana, por mais variados que sejam, ligam-se à utilização da

linguagem, sendo que cada esfera de utilização da língua elabora seus tipos relativamente

estáveis de enunciados, é o que se chamam gêneros do discurso. Trata-se de uma abordagem

extremamente interessante, pois parte da prática lingüística e do hábito de se separar e

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agrupar, para facilitar sua compreensão, os diversos campos de atividade humana, entre eles o

domínio da fala, da escrita e da leitura. Assim, todos os gêneros literários correspondem a um

dos diversos gêneros discursivos. Além disso, a perspectiva ―dialógica‖ de Bakhtine escapa

aos esquemas gramaticais dos quais são prisioneiros muitos exegetas de Platão e Aristóteles.

Pois o ―enunciado‖, qualificado de "concreto" por Bakhtine, é encarado sempre "em

situação", ou seja, em relação com outros enunciados, que supõem eles próprios uma

comunicação dialógica do sujeito com outros sujeitos (cf. COMBE, 1992, p.91-92).

Para Todorov, os gêneros "históricos" nunca são apenas uma especificação dos

gêneros "téoricos", ele critica a concepção segundo a qual as estruturas literárias, e portanto

os próprios gêneros, se situam num nível abstrato, distanciado das obras existentes. Segundo

Todorov, pode-se dizer que uma obra manifesta um gênero, mas não que ele existe nesta obra,

sendo que não há necessidade alguma de que uma obra encarne fielmente seu gênero, há

apenas probabilidade. Uma obra pode, por exemplo, manifestar mais de uma categoria, mais

de um gênero (cf. TODOROV, 1970, p.25)

6.4 A INTERPENETRAÇÃO DOS GÊNEROS

A interpenetração de gêneros é natural, pois não há gênero totalmente puro. Pode-se

pensar que certas obras contêm o elemento genérico com mais pureza relativa do que outras,

mas não se pode dizer que nelas o "tipo" está realizado, ou que nelas o gênero em sua

plenitude e em sua história atinge sua realização ideal. Nenhum exemplar particular pode ser

considerado o tipo de um gênero, como nenhum animal individual pode ser erigido em

modelo de mamífero; conhecendo-se o conjunto das espécies é que se chega à abstração do

esquema ideal, e nas obras literárias não há uma caracterização tão simples como, por

exemplo, nos mamíferos: amamentar os filhotes (cf. VIËTOR, 1986, p.25 e 28).

A interpenetração de características genéricas está presente de alguma forma em

qualquer gênero, e pode ocorrer mesmo no interior de um subgênero, como o caso do soneto

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no gênero lírico, conforme um exemplo apresentado por Viëtor. Ele busca definir de maneira

provisória e hipotética as particularidades do gênero soneto e afirma que na poesia, gêneros

como o soneto e a ode, e mesmo a elegia, caracterizam-se por buscarem igualmente unir

sensação e reflexão. Entretanto, ainda que haja uma única característica comum ao soneto, à

ode e à elegia, não é este ponto comum entre eles o traço constitutivo de cada um dos três

gêneros; tal característica comum seria o fato de serem ao mesmo tempo poesia da idéia e

poesia do sentimento, o fato de desenvolverem juntamente o pensamento e o sentimento a

partir do canto sobre um único objeto e na unidade do poema.

A significação mais nobre do soneto seria a expressão concisa de uma sensação forte e

de um espírito profundo dado à reflexão (a unificação do espírito e da sensação, do

pensamento e do sentimento), mas esta união de sensação e reflexão também estaria presente

na ode. Para Viëtor, o soneto resolve a tensão entre a esfera do espírito e a do sentimento

visando a uma síntese e a uma solução no termo de um percurso de posições dialéticas. A ode

resolve esta tensão tentando ultrapassá-la do ponto de vista do espírito, donde seu tom

carregado de seriedade e de dignidade. A elegia, enfim (em sua variedade moderna e

sentimental) mantém esta tensão sem resolvê-la, ela oscila entre o conflito e a harmonia, a

tranqüilidade e o movimento, mas sobre o ritmo moderado e suavizado que corresponde às

proporções do metro (cf. VIËTOR, 1986, p.20-21).

O ensaio é um gênero moderno, que escapa à tripartição clássica, voltada unicamente

para a produção mimética, e dele não trata Viëtor. Entretanto, se buscarmos um paralelo com

as formas apresentadas, observaremos que ele se aproxima, conforme a concepção tripartida,

tanto do épico quanto do lírico, uma vez que a epopéia estaria relacionada com a faculdade de

conhecer e a poesia lírica com a sensação.

Em seus ensaios, Camus realça esta imbricação entre gêneros, associando ao aspecto

épico ou reflexivo do ensaio um aspecto lírico ou poético; o ensaio estaria próximo da epopéia

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por se relacionar com a ―faculdade de conhecer‖ e estaria igualmente próximo da lìrica, por

ser marcado pela ―sensação‖, traduzida em inúmeras figuras e elementos que remetem ao

mundo material e natural. Ou seja, Camus une a razão à sensibilidade, as faculdades humanas

de conhecer e de sentir, sem que elas se anulem mutuamente, e seus ensaios se situam entre o

desejo de conhecer e o sentimento do homem no mundo. Por isso se formos compará-lo a um

subgênero da lírica, o ensaio camusiano estaria próximo não do soneto nem da ode, porém

muito mais da elegia, em que os contrários coexistem, diferentemente também do que ocorre

num sistema, em que a tensão e a ambivalência são eliminadas, quando a tese e a antítese são

desfeitas ao se tornarem síntese, numa visão unilateral do mundo.

A célebre regra das três unidades – de tempo, espaço e ação – que os clássicos do

teatro francês codificam no século XVII e contra a qual se insurgem os românticos está latente

em Platão e Aristóteles, que privilegiam a narrativa pura. A Arte poética, de Boileau, desde a

abertura, coloca o problema da mistura dos gêneros para condená-lo em nome da unidade da

obra, cujo princípio é diretamente inspirado pela unidade de ação na tragédia. Segue-se a

lógica aristotélica, essencialista e que exige a separação dos temas, das formas, dos estilos e

dos gêneros (cf. COMBE, 1992, p.40).

Como mostrou Genette, Platão faz corresponder os ―gêneros‖ literários a ―modos‖ de

enunciação: a narrativa pura caracteriza o ditirâmbico, a imitação caracteriza a tragédia e a

comédia, o misto caracteriza a epopéia homérica. É por causa do caráter híbrido da Ilíada que

Homero é posto em questão por Platão. Em Aristóteles, a epopéia é caracterizada como o

modo narrativo, ainda que essencialmente misto ou impuro. O narrativo puro seria inexistente,

e o misto seria então o único narrativo. Assim, Platão fala em narrativo, misto e dramático; e

Aristóteles fala em dramático e narrativo, sendo este evidentemente misto (cf. GENETTE,

1986, p.104 e 106-107).

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O sistema inicial de Aristóteles não deixava espaço algum para o poema lírico e

esquece a distinção platônica entre o modo narrativo puro, ilustrado pelo ditirâmbico, e o

modo misto, ilustrado pela epopéia. Aristóteles reconhece e valoriza o caráter misto do modo

épico, o que desaparece nele é o status de ditirâmbico e, daí, a necessidade de distinguir entre

narrativo puro e narrativo impuro. Se para Platão a epopéia se caracteriza como o modo misto,

para Aristóteles ela se caracteriza como o modo narrativo, ainda que essencialmente misto ou

impuro, o que significa que o critério de pureza não tem mais relevância.

Com relação à tragédia, a obsessão pela pureza já não existe em Aritstóteles. Para o

filósofo a ação pode ser capaz de suscitar temor e compaixão na ausência de toda

representação cênica e ao simples enunciado dos fatos, ou seja, o assunto trágico pode ser

dissociado do modo dramático e confiado à simples narração sem por causa disto tornar-se

assunto épico; o critério de pureza parece não ter mais tanta relevância (cf. GENETTE, 1986,

p.102 e 104). O que nos ficou da Poética se reduz no essencial a uma teoria da tragédia. E a

tragédia seria uma especificação temática do drama nobre, como para nós o romance policial

é uma especificação temática do romance.

Aristóteles enuncia três critérios para distinguir as ―espécies‖ de mimésis, que diferem

por três aspectos: ou imitam por meios diferentes (como o verso e a prosa), ou imitam objetos

diferentes (homens nobres ou baixos), ou imitam segundo modos diferentes (como a

encenação do teatro). Ele retoma a problemática platônica dos ―modos‖ de enunciação, que

ele reduz a dois: a narrativa (epopéia) e a imitação (teatro), excluindo o modo ―misto‖ que é a

epopéia, segundo Platão.

De acordo com D. Combe, para Aristóteles a imitação é imitação de ações humanas e,

assim, toda a teoria da tragédia e da epopéia repousa sobre o tema do mythos, da história ou

intriga, e os caracteres viriam em segundo plano. É com referência à tragédia que a epopéia é

definida – ou seja, com referência ao mythos, da qual mudam apenas o "modo" e os "meios"

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da versificação. Por isso não há lírico em Aristóteles, por escapar ao narrativo, e não ter,

portanto, direito em poesia; menos ainda em Platão. A tríade se revela um monismo da

narrativa, que estaria na raiz da valorização ocidental dos gêneros que ―contam uma história‖

(cf. COMBE, 1992, p.37).

Platão é moralista e idealista, Aristóteles naturalista e realista, mas ambos acabam por

valorizar a tragédia como um ―modo‖ superior e ―puro‖, em detrimento da ―epopéia‖, vista

como uma forma bastarda, ou misturada, daí o caráter essencialista da poética grega. A

própria noção de gênero parece indissociável de uma preocupação com a ―pureza‖. E da

mesma forma que há nos defensores da retórica uma espécie de horror à ―mistura de gêneros‖

como necessidade de limitação das formas literárias para evitar a decadência, em autores

modernos encontramos também o sonho da poesia ou do romance puros, como em Mallarmé,

Valéry e Gide; trata-se da mesma lógica de delimitação e de ―triagem‖ que a definição

essencialista permite (cf. COMBE, 1992, p.45-46).

A literatura para Mallarmé se identifica ao ―verso‖ num sentido largo, ou seja, à

poesis, e exclui por natureza a narração, a descrição e o didatismo; a poesia deve ser ―pura‖ e

para isso ela precisa ser lírica. A oposição, em suma, do poético e do narrativo se substitui ao

mesmo tempo àquela da poesia e da prosa, e à tríade dos ―modos‖ e de seus gêneros

constituídos. Esta nova distribuição dos gêneros atesta, apesar de tudo, a perenidade da

taxonomia aristotélica. As categorias mudam um pouco, a hierarquia dos valores estéticos se

inverte, continua uma grande oposição binária – não mais entre tragédia e epopéia – mas entre

―mimesis de ação‖ (narrativa ou dramática) e a expansão lìrica da afetividade: a poesia lìrica

não relata. De Aristóteles a Mallarmé, o mythos parece sempre o critério de delimitação (cf.

COMBE, 1992, p.72-73).

Para Hegel, o gênero superior seria o drama, pois considera que a poesia dramática

reúne harmoniosamente o "objetivo" ao "subjetivo" de maneira que ela representa "a fase

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mais elevada da poesia e da arte". Hegel busca mostrar o encaminhamento dialético que,

através dos contrários que são o épico, votado à "objetividade" do mundo, e a poesia lírica,

votada à "subjectividade" absoluta do Eu do autor, leva até a reconciliação de ambos na

poesia dramática (cf. COMBE, 1992, p.60).

Hölderlin associa a divisão aristotélica dos três gêneros – épico, trágico, lírico – à

psicologia dos heróis homéricos que ele retira da Ilíada. O homem "natural" (ou "puro") está

em harmonia como o mundo, o homem "heróico", corajoso e violento, se opõe ao contrário

ao mundo com veemência; o homem "ideal", por sua vez, de espírito propenso à síntese,

abarca o todo, em detrimento do "detalhe", daí três tons: natural, heróico e ideal. O "tom

fundamental" deve obrigatoriamente se exteriorizar por seu "outro" – o "puro" deve se

transformar em sua expressão em "ideal", o "ideal" em "heróico", o "heróico" em "puro". Ou

seja, a poética de Hölderlin está fundamentada sobre a idéia de uma mistura dos gêneros (cf.

COMBE, 1992, p.57-58).

Para Staiger o "lírico" é absolutamente refratário ao raciocínio e à argumentação – à

retórica como instrumento de persuasão (cf. COMBE, 1992, p.138). Por isso, apesar da

atitude "essencialista" que ele adota, Staiger está em desacordo com a idéia de Mallarmé, mas

também néo-clássica, de uma "pureza" dos gêneros. Ele se mostra fiel à idéia romântica da

"mistura de gêneros", da benéfica síntese que permitiria transcender a classificação

aristotélica (cf. COMBE, 1992, p.141).

Com efeito, a idéia de que o absoluto da arte é atingido pela mistura, pela síntese, é

eminentemente romântica. Os românticos defendem a mistura dos gêneros, diferentemente de

Platão e em oposição a ele e aos clássicos em geral, mas não deixam de eleger, como Platão,

um gênero, ou modo superior que permitiria englobar todos os gêneros e que seria, para a

maioria deles, a poesia, embora Hugo defenda o "drama", e A.-W. Schlegel, o romance

(claro, concebido à sua maneira, que ele qualifica precisamente de "romântico"). O tema da

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fusão e a idéia da poesia como gênero supremo, estariam presentes até hoje, revelando a

perenidade deste modelo romântico.

Assim, no romantismo, a defesa da mistura dos gêneros está ligada à busca de uma

arte total. Na concepção romântica da poesia, o problema retórico das distinções entre os

gêneros é deslocado para um outro, filosófico, o da unidade da poesia que, forma primeira, é

também englobante. Este tema da "mistura dos gêneros", tão freqüentemente invocado pelos

românticos franceses, Hugo, em particular, seria inspirado pela reflexão do Athenäeum sobre

o projeto da "poesia romântica", chamada a abraçar todos os gêneros, separados artificialmene

pelo espírito clássico. De fato, W. A. Schlegel afirmava que, se a arte e a poesia antiga não

admitiam nunca a mistura dos gêneros heterogêneos, o espírito romântico, ao contrário, busca

uma aproximação contínua de coisas opostas, em que todas as antinomias se abraçam e se

confundem numa união estreita.

Esta aproximação incluiria, além dos "gêneros" históricos, os "modos", o verso e a

prosa, os estilos, constituindo o que chamamos hoje a "literatura", cujo conceito surgiu com o

romantismo de Iena, ela própria identificada com a filosofia. A poesia romântica seria uma

poesia universal progressiva e estaria destinada não só a reunir todos os gêneros separados da

poesia, mas também a fazer se tocarem poesia, filosofia e retórica. Donde seu objetivo de

tanto misturar quanto fundir juntamente poesia e prosa, genialidade e crítica, poesia de arte e

poesia natural (cf. COMBE, 1992, p.62).

O "terror" da vanguarda da estética romântica contra os gêneros e contra a retórica,

longe de abolir a noção de gênero, promoveu finalmente a poesia à posição de gênero superior

que englobaria todos os outros. Hugo realiza na prática esta mistura, quando seus poemas

apresentam uma tranformação estilística e, de épico se faz pouco a pouco lírico, dramático e

satírico, tornando incerto o estatuto retórico do texto em seu conjunto. Então, é a

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predominância deste ou daquele ato, e daí, desta ou daquela função, que permitiria determinar

a identidade do texto.

Hoje se reconhece que a qualidade artística de um texto literário não equivale à pureza

com que ele reproduz um modelo de gênero. Jauss, destacando o aspecto histórico dos

gêneros, fala não tanto de ―mistura de gêneros‖, mas antes da transformação por que eles

passam. Para Jauss, ―os gêneros se transformam ao participar da história e se inscrevem na

história ao se transformarem‖ (JAUSS, 1986, p.49). Uma manifestação histórica do gênero

pode variar ao longo da história, ou seja, a estrutura do gênero pode se modificar sem que este

perca sua particularidade; assim, tanto gêneros tradicionais quanto gêneros não consagrados

configuram não uma classificação lógica, mas o sistema literário próprio a uma dada situação

histórica. Na verdade toda obra apresenta uma dominante que governa o sistema do texto, a

particularidade de um gênero aparece num conjunto de características e de procedimentos dos

quais alguns prevalecem.

Também Viëtor destaca que as três ―formas naturais elementares‖, ou ―modos

poéticos‖, estão presentes, segundo proporções que mudam, em quase todas as obras.

Nenhuma obra realiza em si o tipo em toda a sua pureza, a obra épica e a obra dramática

podem mostrar nelas elementos líricos e vice-versa. Da mesma maneira que os tipos de

comportamento humano em face do mundo podem ―atuar‖ ao mesmo tempo num ato único

realizado, os três modos poéticos podem atuar separadamente ou juntos numa mesma e única

obra. Daí a possibilidade de os gêneros se mesclarem, ainda que um prevaleça (cf. VIËTOR,

1986, p.27).

Assim, a interpenetração de gêneros é natural também porque não há gênero

totalmente puro, ou seja, obra nenhuma pode ser o tipo perfeito de um gênero, contendo

características de apenas um gênero. É o prevalecer deste ou daquele traço que, finalmente,

define a obra. Somente no nível das "categorias genéricas" se pode encarar "significações

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ideais", e de forma alguma no nível das obras efetivas, reais, que são necessariamente

"misturadas", híbridas.

Neste sentido, mais importante do que definir em que gênero se enquadra uma obra,

como La Peste, de Camus, é interessante destacar quais as características de quais gêneros

estão nela presentes. Ou seja, ao invés de fechar a questão, dizendo que se trata de um

romance ou de uma crônica, ou de um ensaio, podemos dizer que a obra apresenta

características do romance, da crônica, da tragédia e do ensaio, e esta indefinição na

diversidade é, de fato, não apenas o elemento reivindicado pelo autor, mas o elemento com

que se faz a obra e com a qual ela adquire sua significação mais completa.

A própria noção de gênero parece às vezes se basear no postulado de que existem de

alguma maneira formas a priori, universais e intemporais, da literatura – os universais dos

quais seria possível tirar a "essência" em estado "puro". A teoria dos gêneros obedeceria por

conseguinte a uma lógica essencialista, idealista – e esta é, talvez, a razão pela qual as

vanguardas a atacaram tão violentamente. A retórica, em sua preocupação com a taxinomia, e

conseqüentemente com as distinções, privilegia de fato os gêneros "puros" em relação aos

"mistos", ou "híbridos", revelando assim seus postulados platônicos.

Se o estruturalismo escapa à história ao propor modelos abstratos, intemporais e

universais, o positivismo e o romantismo são eminentemente históricos. De fato, aos irmãos

August-Wilhelm e Friedrich Schlegel se deve a ―historicização‖ da noção de gênero. Eles,

pela primeira vez, interrogam como filósofos não só os gêneros, mas a noção mesma de

gênero, da qual são os primeiros teóricos. Fazem do conceito de gênero um elemento cultural

e não natural, sendo que tal conceito supõe a história e deve ser situado num lugar e numa

época (cf. COMBE, 1992, p.56-57).

Até a idade clássica, a poética, conforme sua etimologia, trata exclusivamente da

poesia, esta sendo identificada ao que chamarìamos hoje de ―literatura‖, cujo sentido moderno

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só se impôs verdadeiramente no século XIX. Inicialmente, os gêneros em prosa existiam, na

forma do romance, desprezado como um gênero frívolo, mas eles têm muitas vezes um

estatuto ambìguo, em razão da amplidão do campo das ―Belles-Lettres‖, que englobam

igualmente a história, a história natural, os ensaios jurídicos e filosóficos, de maneira que só a

poesia era considerada uma arte (cf. COMBE, 1992, p.69).

Assim, a idéia de gênero ―puro‖, associada a uma visão essencialista dos gêneros, não

encontra mais respaldo nem nas teorias modernas nem na prática literária contemporânea.

Muitos textos, como Les Chants de Maldoror (1869) de Lautréamont, Moralités légendaires

(1887) de Jules Laforgue, Une Saison en enfer (1873) de Rimbaud ou o Ulisses de Joyce, e a

maioria dos textos contemporâneos, porque são essencialmente polifônicos, plurais, não têm

por objetivo pertencer a um gênero único.

A retórica antiga, que distingue cuidadosamente os ―modos‖ e ―gêneros‖ da poesia,

não pode ser imposta aos textos modernos, pois a poesia se tornou praticamente indefinível.

Mesmo se é mantida a antiga tríade aristotélica, ou pseudo-aristotélica, na modernidade há

uma mistura da poesia e da prosa. Quanto à própria distinção entre ficção e não ficção,

importante para um estudo dos gêneros, a obra moderna foge às classificações e leva ao

extremo a confusão entre o real e o imaginário, entre a autobiografia e a ficção, a despeito dos

antigos gêneros (cf. COMBE, 1992, p.154-155).

É difícil encontrar um elemento comum à "poesia" dos clássicos gregos, às "Belles-

Lettres" dos modernos e à "literatura" dos contemporâneos. As concepções genéricas da

retórica antiga foram formuladas em função de (e se aplicam a) uma determinada produção

poética que não existe mais. Se a distinção entre o épico, o lírico e o dramático conserva seu

valor, a obsessão pela pureza e a defesa de um modo ou gênero superior já não fazem sentido.

O postulado da "pureza" – da existência ideal de gêneros essenciais – é inadequado a

uma literatura em que são valorizadas a "mistura", a intertextualidade, a "mestiçagem" das

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culturas. Vivemos o sonho simbolista da "obra total" e da "correspondência das artes", bem

mais do que a idéia "clássica" de uma distinção e de uma autonomia das artes. Desde o fim do

século XIX há uma vontade explícita de uma síntese dos gêneros que leve o autor a tomar

emprestados seus meios de uma outra arte. Hoje, as obras são identificadas mais pelo que elas

não são do que pelo que são. É pela recusa e pela transgressão que os gêneros modernos se

constituem (cf. COMBE, 1992, p.151 e 157).

Para os críticos modernos e contemporâneos, os gêneros colocam primeiramente um

problema prático de localização e de identificação, e não de definição abstrata; aqueles não se

interessam pelo gêneros senão para melhor compreender a obra, e não admitem as teorias

poéticas em que, ao contrário, a obra freqüentemente é apenas um pretexto. À perspectiva

normativa e essencialista da teoria dos gêneros, o comentador ou o crítico moderno, que tenta

buscar um caminho de leitura e de interpretação, substitui uma perspectiva empírica.

A história da noção de gênero – de Aristóteles a Jakobson – atesta pelo menos, apesar

da multiplicidade de definições, a permanência da divisão retórica entre o épico, o lírico e o

dramático. Se Genette mostrou bem que esta tripartição dos gêneros literários não figura na

Poética de Aristóteles, que se interessa na verdade apenas pela oposição entre o épico e o

dramático – entre Homero e Sófocles –, a ―trìade‖ não deixa de presidir à concepção dos

gêneros ao longo da história. Fundada sobre um mal-entendido, uma interpretação abusiva da

Poética, a tripartição é, porém, a base do edifício retórico e estético construído sobre os

gêneros. Mesmo não sendo assinada pela mão de Aristóteles, esta retórica pode, ainda assim,

ser qualificada de ―aristotélica‖ uma vez que a tradição a imputa, ainda que de maneira

indevida, a Aristóteles. Hoje o que parece ultrapassado são as definições normativas que a

tradição impôs aos gêneros, mais do que a noção mesma de gênero.

Schaeffer critica a abordagem ontológica, que "produz" a noção de um gênero não a

partir de uma rede de semelhanças existentes entre um conjunto de textos, mas a partir de um

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suposto texto ideal (cf. SCHAEFFER, 1986, p.190). Jauss realça o aspecto sócio-histórico dos

gêneros e observa que eles não existem isoladamente, mas fazem parte do sistema literário de

uma época (cf. JAUSS, 1986, p.68-69).

Estes aspectos são levados em conta na abordagem dos gêneros conforme a

perspectiva da Análise do discurso e estão presentes nos trabalhos de Dominique

Maingueneau que trata dos gêneros no contexto da instituição discursiva.

A noção de instituição discursiva pode se empregar não só para designar a vida

literária (os artistas, os editores, os prêmios, etc.), mas também o conjunto dos quadros sociais

da atividade dita literária: as representações coletivas que são feitas dos escritores, a

legislação, as instâncias de legitimação e de regulação das produções, usos, carreiras

previsíveis, etc.

Os termos de instituição e de discursivo se recobrem reciprocamente: o discurso só se

manifesta através das instituições de fala que são os gêneros de discurso, que são pensados

através das metáforas do ritual, do contrato, da encenação; por sua vez a instituição literária é

continuamente reconfigurada pelos discursos que ela torna possíveis.18

A Análise do discurso considera que a obra se enuncia através de uma situação que

não é preestabelecida nem fixa: ela pressupõe uma cena de fala determinada que é preciso

validar através de seu próprio enunciado. Ela se legitima através do mundo que ela realiza,

sendo preciso justificar tacitamente a cena de enunciação que ela impõe de início. Assim, a

obra, através do mundo que ela configura em seu texto, reflete ao legitimá-las, as condições

de sua própria atividade enunciativa (cf. MAINGUENEAU, 2004, p.42-43).

Na Peste, o personagem Rieux constrói-se por suas atitudes tanto quanto por suas

palavras, mas ao mesmo tempo suas palavras só podem advir de alguém com atitudes como as

suas. Rieux levanta a questão da autoridade do narrador e como narrador se mostra não

18

MAINGUENEAU, Dominique. Le Discours littéraire. Armand Colin: Paris, 2004. p.42

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totalmente responsável pela narração, mas como um enunciador que se serve de outros

documentos e de outras testemunhas, sendo que o objetivo final é conferir autoridade à

narrativa.

Na Peste há um entrelaçamento entre história e processo de narração, sendo que

freqüentemente Rieux, o narrador, comenta sua própria narrativa. Tal comentário faz parte da

obra, à qual ele está integrado. Esta imbricação dos níveis (enunciado e comentário sobre o

enunciado) ilustra a reflexividade do discurso literário, que deve motivar seu próprio quadro

de enunciação.

A epígrafe que abre La Peste destaca o aspecto alegórico da linguagem poética e

constitui a reivindicação de uma pluralidade de sentidos para a obra; tal reivindicação se

revela um mecanismo de legitimação, pois tem por efeito definir o público ―qualificado‖ para

sua leitura, o tipo de destinatário do qual é esperado o reconhecimento.

O fato de se omitir uma pertença genérica explícita, a falta de rótulo para a obra, é o

primeiro aspecto que cria um efeito de suspense e que instiga a reflexão sobre o gênero a que

pertence a obra. A pertença ao tipo de discurso literário ativa o processo hermenêutico no

leitor, pois o leva a construir subentendidos que têm a ver com referências últimas: a função

da arte, as relações entre a linguagem e o mundo, o destino do homem. Nas obras em que a

pertença genérica é definida, em que se escreve "romance" sobre a capa, institui-se de

imediato um contrato de leitura romanesca, que ativa a procura de uma intriga, de

personagens e de tudo o que geralmente compõe o universo do gênero romanesco.

A análise do discurso mostra a conexão entre o intradiscursivo e o extradiscursivo, a

intrincação de uma organização textual e de uma atividade enunciativa. A enunciação se

realiza como dispositivo de legitimação de seu próprio espaço, inclusive sobre seu espaço

institucional, ela articula a construção de um texto e de uma maneira de se inscrever no

universo social (cf. MAINGUENEAU, 2004, p.48).

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Esta abordagem ultrapassa antigas oposições da análise de texto: a ação e a

representação, o fundo e a forma, o texto e o contexto, a produção e a recepção. Ao invés de

opor conteúdos e modos de transmissão, um interior do texto e um ambiente de práticas não

verbais, é preciso identificar um dispositivo em que a atividade enunciativa se liga a uma

maneira de dizer, um modo de circulação dos enunciados e um certo tipo de relacionamento

dos homens. Tal abordagem também vai de encontro a outras oposições redutoras: a idéia de

que "a vida" e "a obra" seriam dois planos separados dos quais o primeiro seria "a expressão"

do outro, e a vulgata estruturalista, reforçada pela tese do Contre Sainte-Beuve, de Proust, que

estabelece existir um abismo entre o eu criador e o eu social (cf. MAINGUENEAU, 2004,

p.49).

A opção genérica é uma forma de posicionamento no campo literário. Ha uma relação

entre o posicionamento, a memória intertextual e o investimento em tal ou qual gênero. Ao

escrever "ballades" Victor Hugo pretende se colocar como "romântico", contra os defensores

do classissismo, ele volta a um gênero medieval. Quando Baudelaire escreve um "pantoum",

gênero poético considerado de origem malásia, ele abre sua poesia para o além exótico, como

um poeta simbolista pleno de nostalgia por alguma "vida anterior". Ao escrever, na abertura

do Mythe de Sisyphe e de L’Homme révolté, ―ensaio‖ Camus indica de inìcio sua oposição à

forma da filosofia sistemática.

Mesmo quando a obra parece ignorar a existência de posições concorrentes à sua, seu

fechamento só pode acontecer graças a tudo aquilo do qual ela se diferencia. Para se definir,

uma obra deve intervir num certo estado da hierarquia dos gêneros. A condenação de tal ou tal

gênero não é uma decisão externa à criação propriamente dita. Cada doutrina prefere certo

gênero, assim os naturalistas se posicionam ao investirem no gênero romance. Através dos

gêneros que ele mobiliza e aqueles que ele exclui, um posicionamento determinado indica

qual é para si o exercício legítimo da literatura (cf. MAINGUENEAU, 2004, p.130).

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A análise do discurso e as correntes pragmáticas colocaram a categoria do gênero no

centro de suas preocupações: é preciso relacionar a obra não só com temas ou mentalidades,

mas com a aparição de modalidades de comunicação específicas. Os gêneros não podem ser

considerados como "procedimentos" que o autor utilizaria como bem lhe parece para fazer

passar de formas diversas um mesmo "conteúdo" estável. O gênero faz parte do quadro de

sentido que a obra pressupõe e pretende impor, ele não é apenas embalagem ou coisa

periférica, ele não é algo exterior à obra, ele é uma das suas condições; contrariamente ao que

pensa Blanchot, para quem só importa o livro, longe dos gêneros e fora das rubricas, prosa,

poesia etc., e contrariamente ao que pensa Breton, para quem não há poema, nem literatura,

mas apenas o ―texto surrealista‖.

Para a Análise do discurso, o que o texto diz e o que ele faz em sua enunciação estão

ligados, sendo inseparáveis o dizer e o justificar seu dizer, por isso o gênero não é um quadro

contingente, mas um componente da obra. Tal abordagem considera o aspecto dinâmico das

produções e os processos de transformação e imbricação dos gêneros.

Camus adota múltiplas ―formas‖ em seus escritos: peças de teatro, ensaios, narrativas,

novelas, artigos para jornais e revistas, conferências, etc. Se tomarmos apenas os ensaios, eles

apresentam um gênero multiforme: se seguirmos a classificação da edição Gallimard (de 1962

e 1965) podemos distingui-los em ensaios literários (L’Envers et l’endroit, Noces, L’Été),

filosóficos (Le Mythe de Sisyphe, L’Homme révolté) e políticos (Lettres à um ami allemand,

Actuelles, Actuelles II, Choniques algériennes, Discours de Suède).

Camus busca reunir num mesmo texto não apenas características de gêneros diversos,

busca também aproximar campos do conhecimento aparentemente distantes, como a literatura

e a filosofia. A inovação de Camus, apesar das críticas negativas que tenha suscitado, não é

um processo revolucionário nem inédito, pois as fronteiras entre gêneros literários e entre

campos do saber não são fixas para sempre. Da mesma forma, são mutáveis as fronteiras entre

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autores ―marginais‖ e consagrados. Como escreve Maingueneau, a história da literatura

mostra a ininterrupta legitimação de textos antes julgados defeituosos, ou, inversamente, a

deslegitimação de textos até então consagrados. A produção literária opera na fronteira entre

obras de arquivos e obras em construção (cf. MAINGUENEAU, 2004, p.67).

Desde a Antigüidade se distinguem um regime ficcional e um especulativo, mas suas

fronteiras mudam incessantemente; de fato, não há tipos de discursos puros, mas sim mistos,

dos quais o grau de "reflexão filosófica" ou de "literalidade" depende em cada momento da

definição e da forma de identidade elaboradas em função dos quadros propostos numa época

dada e em função dos remanejamentos que estes quadros vão sofrendo (cf.

MAINGUENEAU, 2004, p.52).

Para Camus, romance e ensaio não são duas "expressões" equivalentes, mas são

gêneros próximos, pois em um estão presentes características do outro. Camus é um

romancista que não se contenta em ser apenas artista, no sentido da arte como finalidade

única, pois busca ao mesmo tempo levantar uma questão ética, política ou filosófica. Foucault

aponta para esta possibilidade, de que a literatura possa conter elementos próprios da reflexão

filosófica:

J‘ai essayé de faire [...] l‘histoire non pas tant de la pensée en général que celle

de tout ce qui "contient de la pensée" dans une culture, de tout ce en quoi il y a

de la pensée. Car il y a de la pensée dans la philosophie, mais aussi dans un

roman, dans une jurisprudence, dans le droit, même dans un système

administratif, dans une prison.19

De acordo com Gaétan Picon, no momento em que Camus escreve, e desde os anos

1930, muitas obras correspondem a uma amplificação das possibilidades do romance; os

romances se ligam ao presente do escritor, a uma inquietação pessoal, à configuração de um

momento, às responsabilidades que uma consciência descobre. Como decorrência desta

transformação pela qual passa o gênero, o romance não é mais "essencialmente" uma história.

19

FOUCAULT, Michel. Dits et écrits. Gallimard: Paris, 1994. p.503

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Ele se torna expressão da visão do escritor sobre o mundo, expressão de sua verdade interior e

dos mitos que a engrandecem. Por isso o romance se aproxima da confissão, do ensaio, do

tratado de moral e do poema. Afirma Picon:

Que le roman soit ici l'expression d'un univers plus vaste, et non

spécifiquement romanesque, un fait le prouve: tous ces écrivains,

parallèlement à leur oeuvre romanesque, poursuivent une oeuvre différente.

[...] Ce parallélisme et, peut-on dire, cette indifférence entre le roman et

l'essai, nous les retrouvons chez J.-P. Sartre, chez Albert Camus (PICON,

1976, p.53).

O romance de então, em marcante ruptura com o romance do século XIX, não se

contenta em narrar uma história, animar personagens, pintar caracteres, descrever tal ou tal

meio social; ele deseja ser um testemunho profundo sobre o homem, em sua experiência mais

universal possível, daí a aproximação entre literatura e filosofia. A literatura não é mais

apenas um jogo ou um documento, busca ser uma forma de engajamento, de liberdade e de

consciência. Trata-se de uma geração ética, provocada por uma questão: "como viver ?", que

remete ao sentido da existência − é a questão mais importante, conforme escreve Camus, no

início do Mythe de Sisyphe. Picon completa:

Il serait inexact de dire que Jean-Paul Sartre, ou Albert Camus, ou Simone

de Beauvoir n'écrivent des romans que pour incarner une image de l'homme

et une vision des choses qu'ils pensent préalablement: mais ils n'écrivent des

romans que dans la mesure où, en même temps, ils pensent. Aussi bien

voyons-nous L'Être et le Néant accompagner Les Chemins de la liberté;

Pyrrhus et Cinéas, L'Invitée; Le Mythe de Sisyphe, L'Étranger; L'Homme

révolté, La Peste. Nous sommes en présence d'une littérature de lucidité, et

non plus d'imagination (cf. PICON, 1976, p.107).

Da mesma forma que a narrativa de ficção de Camus, em particular La Peste,

aproxima-se do ensaio pela dimensão ética e reflexiva, assim também L'Homme révolté é

pleno de figuras e imagens características dos textos poéticos. Isto pareceu a muitos críticos

do autor uma falta grave, subjetivismo, ausência de rigor conceitual e bibliográfico e

proximidade em relação à escrita poética, objeções que se sintetizaram na acusação de

incompetência filosófica. Em seu ensaio Camus adotou um procedimento poético, distante da

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atitude sistemática, e recebeu os maiores ataques de Sartre. Na verdade, personificado nos

dois escritores, temos um conflito de duas tradições filosóficas: Sartre é mais ideológico e

dogmático, Camus, mais pragmático e moralista.

Com efeito, em L’Homme revolté, Camus procura interpretar filósofos como Platão,

Epicuro, Lucrécio, Hegel, Marx ou Nietzsche, mas analisa igualmente literatos como

Lautréamont, os surrealistas e Sade. O ensaio, como gênero de passagem entre o não-ficcional

e o ficcional, não se submete a uma forma fixa; nele as imagens poéticas são abundantes:

Autour de ce brasier dévorant, des combats d'ombres s'agitent un moment,

puis disparaissent, et des aveugles, touchant leurs paupières, s'écrient que

ceci est l'histoire. [...] L'arc se tord, le bois crie. Au sommet de la plus haute

tension va jaillir l'élan d'une droite flèche, du trait le plus dur et le plus libre

(CAMUS, 1965, p.708-709).

Ainda hoje, a forma hegemônica do escrito filosófico parece ser a exposição, a

dissertação, em tratados ou sistemas. Entretanto, ao longo dos séculos, os filósofos

escreveram Diálogos, Elementos, Problemas, Introduções (como o Discours de la Méthode).

Conforme Descombes, poderiam escrever igualmente romances, dramas, confissões e cantos

(cf. DESCOMBES, 1987, p.24).

Na verdade, é este o procedimento de Camus, ele fala de temas filosóficos, mas fala

enquanto romancista e não emprega conceitos, mas sobretudo imagens. Trata-se de uma

filosofia em sua vertente de ―sabedoria‖ (diferente de ciência ou conhecimento, pois supõe

uma relação entre a reflexão teórica e a existência concreta) que Camus reconheceu nos

gregos. Ele não cita Platão nem Aristóteles, mas os pré-socráticos, que falam por imagens e

por mitos, porque o mito é mais evocador e mais carregado de sentidos. O mito, como as

imagens poéticas, apresenta múltiplos sentidos, ao passo que o conceito apresenta apenas um.

Se para Hegel é possível atribuir um sentido unívoco a uma realidade, para Camus o sentido

só é atingido na multiplicidade: uma mesma realidade é carregada de muitíssimas

significações.

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Camus não teoriza a questão dos gêneros, não os aborda teoricamente. Mas ante este

problema a posição do autor é bastante moderada, ele não critica violentamente as

classificações nem a tripartição clássica, mas tampouco se limita a reproduzir um gênero,

antes escreve promovendo um processo de inovação, através de uma mistura, num mesmo

texto, de características próprias de gêneros diversos; Camus associa o lírico ao épico e ao

dramático, os três gêneros que exprimem, segundo Viëtor, três ―atitudes fundamentais‖,

respectivamente: sentimento, conhecimento, vontade e ação.

Assim, se Camus parece adotar um procedimento romântico, pela mistura de gêneros,

ele, na verdade, é crítico de muitos aspectos da estética romântica, e sua subversão no trato

com os gêneros não se faz em nome do privilégio, da exclusividade ou supremacia do autor

ante as normas. Camus não busca uma transgressão radical, nem atribui, como Gide, o nome

de um gênero, como um rótulo, a uma obra que parece não comportar as características de tal

gênero. La Peste, por exemplo, não traz nenhum subtítulo metalingüístico, nem romance, nem

narrativa, nem ficção, embora jogue com as classificações genéricas. E o tom solene da

narrativa corresponde ao assunto grave da Peste, em conformidade com a idéia de adequação,

típica da tradição retórica ciceroniana, e com a idéia de harmonia, presente em Virgílio.

Camus tampouco busca renovar gêneros arcaicos, como faz Gide ao retomar a sotie, o

que ele faz é misturar deliberadamente, num mesmo texto, características do lírico, do épico e

da reflexão retórica, ainda que em tal texto prevaleça uma forma genérica.

A mistura feita por Camus se deve a razões próprias, como uma ressonância de suas

reflexões filosóficas, que criticam o dualismo radical, a separação estanque entre as várias

áreas do conhecimento humano e a crença no domínio absoluto da razão separada das

emoções, das sensações e dos sentimentos. O autor defende e pratica uma mistura de gêneros

e de campos, mas numa atitude que não ostenta o espírito de rebeldia romântica,

diferentemente de Hugo e Breton, contra as classificações e nomenclaturas genéricas. Ele é

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crítico das classificações fechadas e redutoras, mas é igualmente afastado da tradição

romântica que privilegia a singularidade e a inspiração criadora do artista; pois se situa num

contexto diferente daquele da segunda metade do século XIX, depois de Baudelaire, em que a

transgressão e a síntese dos gêneros são elevadas à posição de princípio de criação. De toda

forma, os textos de Camus, como muitos textos modernos e contemporâneos, seguem a

tendência própria das obras literárias importantes e ambiciosas, de serem mistas por natureza,

enquanto que a paraliteratura (como o romance água-com-açúcar e as telenovelas) respeita

fielmente as definições e as limitações genéricas.

É simplista a ontologia dualista do romantismo, ao considerar que na Antigüidade

prevalece o objetivismo, o gênero dominando sobre as obras individuais, e que posteriormente

prevalece o subjetivismo, a subjetividade dominando sobre a objetividade. Os gêneros não são

sinônimo de limitação, mas configuram um círculo de possibilidades e, como afirma Viëtor,

no gênero conteúdo e forma, ou estrutura particular do texto, estão sempre relacionados.

Assim, ao se optar por um gênero ocorre uma mistura de limitação e de liberdade, o que vale

para toda figuração poética.

Como Nietzsche e Wittgenstein escrevem por aforismas, e Bataille escreve por

fragmentos, numa escrita próxima daquela de Pascal, Camus escreve por ensaios, que não são

um procedimento provisório, mas um gênero escolhido deliberadamente, pois é o único

adequado a seu pensamento. As escolhas de Camus não se fazem ao acaso; a opção pelo

ensaio, para os textos filosóficos, é determinada pelo que ele deseja exprimir, o mesmo

―conteúdo‖ seria outro se fosse expresso num tratado, se fosse adotada uma apresentação

sistemática demais a filosofia do Absurdo e da Revolta seria deformada.

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7 CONCLUSÃO, AINDA UMA LIÇÃO DE ÉTICA

Durante um Colóquio Internacional − "Albert Camus et les lettres algériennes: l'espace

de l'interdiscours", organizado pela Professora Afifa Bererhi, da Universidade de Argel, em

Argel e Tipasa, de 24 a 28 de abril de 2006 − do qual tivemos a satisfação de participar, após

uma sessão de comunicações, num momento dedicado aos debates, um aluno da Universidade

de Argel fez uma intervenção referindo-se ao escritor num tom extremamente hostil. Esta não

foi, aliás, a única colocação em tom muito negativo; houve inúmeras outras durante as

conferências, o que nos surpreendeu bastante. As críticas ferozes eram rebatidas e

acompanhadas de defesas e elogios, o que deu aos debates e discussões em geral uma calorosa

participação. Isto mostrou de que maneira Camus suscita reações diversas e mesmo opostas,

mas não deixa o leitor ou estudioso indiferente. No auge de conflitos como a Segunda Guerra

e o movimento de independência da Argélia, Camus sofreu muitas vezes ataques, geralmente

na impressa, que se baseavam mais em sua vida particular ou posições políticas e

"ideológicas" do que no conteúdo dos seus textos literários, isto ainda se revelou no Colóquio

de 2006: grande parte das críticas, mais do que literárias ou filosóficas, dirigiam-se a sua

oposição à proposta de independência total da Argélia em relação à França, nos anos 1950.

O aluno argelino a que nos referimos, no momento em que a discussão girava em

torno do engajamento social de Camus, levantou a questão: que espécie de autor engajado é

este que, agraciado com o Prêmio Nobel, não só o aceitou como o usou na compra de uma

bela casa e de um belo carro? A atitude de Camus foi, portanto, encarada como a de um

adepto e fiel seguidor do sistema capitalista, ele que soubera destacar o que o socialismo, o

sindicalismo e o cooperativismo ofereciam como crítica e alternativa às injustiças decorrentes

do "império do dinheiro". Na verdade, Camus, até então podia ser considerado um escritor

"pobre", que se mantinha com seu trabalho de jornalista e nunca tivera com o dinheiro uma

relação semelhante àquela de um burguês.

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Camus nasceu pobre e não miserável, a miséria pode tornar vil quando se torna

ressentimento. O miserável que inveja o rico e que lhe tem ódio pode se identificar a seu

agressor. A riqueza excessiva gera a miséria extrema, ambas são sub-produtos da economia

capitalista e do despotismo do dinheiro. Camus, pelo menos enquanto criança, viveu numa

época e num país em que se podia viver pobre e feliz. Talvez por isso mesmo ele rejeite o

conceito deturpado de ―luta de classes‖, deturpado quando o combate pela justiça social se

reduz a conquistar o poder. Desta ―luta‖, em que se limita a inverter os tiranos, Camus

guardou apenas a revolta contra a injustiça, rejeitando o ressentimento dos escravos, que

desejam tomar o lugar de seus senhores para ultrapassá-los em despotismo.

Camus nunca confundiu a pobreza com a condição econômica e social do proletariado,

porque ela pode ser uma força moral que gera e alimenta a revolta pela justiça, ele nunca

deixou de destacar as lições que aprendeu com sua família e no seu bairro, pobres, sem glória

e anônimos. Entretanto, nunca defendeu a pobreza em si enquanto um valor ético, pois ela não

pode ser considerada como tal. Não podemos deixar de lembrar a expressão bem humorada e

realista de nosso carnavalesco brasileiro, Joãozinho Trinta, quando afirma que pobre não

gosta de pobreza, gosta de luxo.

A defesa dos pobres implica o combate da pobreza e da miséria. Os movimentos

sociais, sejam eles de origem religiosa ou laica, que, de uma forma ou outra, combatem as

injustiças, as desigualdades e a miséria, devem ser conscientes de que, ao contrário de

buscarem se perpetuar, devem buscar fazer com que desapareçam, ou seja, provocarem

alguma mudança na sociedade, de forma que já não sejam necessários.

Outros participantes do Colóquio esclareceram que a casa adquirida por Camus foi

destinada a sua mãe, que nela permaneceu pouco tempo por não se adaptar à vida na França, e

que grande parte da soma recebida pelo autor foi revertida a jornais e movimentos sociais. Há

ainda o testemunho de contemporâneos de Camus, amigos seus, que revelam o

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desprendimento e a generosidade como marcas do caráter do autor. Tal generosidade seria

característica de sua ética e fruto de seu amor pela vida, como afirma J. Chabot: "O amor pela

vida é pai da generosidade: basta, com efeito, ter recebido muito dela para que se seja

espontaneamente pronto a oferecer" (cf. CHABOT, 2002, p.86). No Premier homme, é feito

um elogio do tio Étienne, como um bravo, amado pelos companheiros por seu bom humor e

sua generosidade:

[...] il y avait le fait que Joséphin gagnait un peu plus d‘argent qu‘Etienne et

que la prodigalité est toujours plus facile, dans le dénuement. Rares sont

ceux qui continuent d‘être prodigues après en avoir acquis les moyens.

Ceux-là sont les rois de la vie qu‘il faut saluer bien bas (CAMUS, 1995,

p.113).

Participantes do Colóquio referiram-se ainda à reação de Sartre, subentendida no

comentário do aluno, que justificou sua recusa do prêmio Nobel como uma não-submissão à

sociedade burguesa. Questão bastante complexa, pois, numa situação extremamente

confortável, Sartre não necessitava de tais recursos e com sua recusa acabou usufruindo de um

capital social, de que gostava bastante, e que veio em nome de uma repercussão de sua atitude

ainda mais ampla na mídia.

O questionamento do aluno argelino é paradigmático de uma atitude bastante comum

em face de autores engajados, e particularmente presente no caso de Camus. Para além da

aceitação ou recusa do prêmio Nobel, e para além do destino que o autor deu à soma recebida,

analisam-se as atitudes do autor como uma forma de testemunho de opiniões que ele defende

em seus escritos ou de coerência com uma determinada ideologia. E se há uma cobrança por

parte dos leitores em relação ao autor é porque suas idéias giram em torno de uma discussão

ética, e a ética se traduz não apenas num código de leis, mas, acima de tudo, numa forma de

comportamento ou atitude prática. Junto com o engajamento e os posicionamentos políticos e

sociais, os próprios textos defendem uma atitude ética e sugerem uma cobrança por parte do

público. Daí que a relação entre biografia e bibliografia, entre vida social dos autores e seus

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escritos, pode ser muito mais complexa do que se imagina, sobretudo em se tratando de

autores engajados. Quem se acomoda no quietismo não se submete a críticas, mas quem se

engaja socialmente se expõe. Camus nunca temeu as críticas e conflitos decorrentes de suas

tomadas de posição, embora − pouco afeito às polêmicas − se sentisse extremamente

desconfortável com elas e com toda situação de conflito.

Pode-se dizer que o valor de uma idéia nem sempre está diretamente relacionado com

a força dos argumentos com que ela é defendida. A propaganda comercial, por exemplo,

explora a língua, os gostos, as opiniões, a psicologia, etc, e mobiliza todos os recursos

persuasivos a fim de criar necessidades artificiais, propagar o consumismo e obter o lucro. Ou

ainda, há o caso de algumas igrejas cristãs evangélicas: o fanatismo proselitista com que seus

adeptos as defendem tem pouco ou quase nada a ver com o ―espìrito‖ do cristianismo; ao

contrário, tais seitas se baseiam numa leitura fundamentalista e particularista da Bíblia e

funcionam como empresas que, servindo-se da idéia de divindade e explorando a ignorância e

a miséria alheias, colhem os níqueis dos mais pobres para alimentar a ganância de

autodenominados bispos ou fundadores, charlatões e mercenários.

Podemos lembrar ainda o caso dos homens-bombas muçulmanos, cuja atitude não

corresponde ao ―espìrito‖ do Islamismo original, mas suscita uma aura de heroísmo e, em

conseqüência uma multidão de seguidores. Lavagem cerebral? Proposta de salvação para os

desesperados? A verdade é que, como se afirma no provérbio popular, os exemplos arrastam.

O testemunho e a coerência oferecem altíssima força de persuasão, ainda que esta possa se

basear mais na emoção ou no sentimento do que na ponderação razoável. Não há como negar

que a coerência individual entre as idéias e as atitudes é um aspecto essencial de uma posição

legitimamente ética, e, apesar das críticas recebidas, Camus foi extremamente coerente com a

defesa dos valores humanistas. Mesmo em seus textos, busca um equilíbrio, ou coerência,

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entre o que diz e o que é; referindo-se ao projeto do Premier homme, seu último texto

publicado, ele escreve:

Simplement, le jour où l‘équilibre s‘établira entre ce que je suis et ce que je

dis, ce jour-là, peut-être, et j‘ose à peine l‘écrire, je pourrai bâtir l‘oeuvre

dont je rêve. Ce que j‘ai voulu dire ici, c‘est qu‘elle ressemblera à L‘Envers

et l‘Endroit d‘une façon ou d‘une autre et qu‘elle parlera d‘une certaine

forme d‘amour (CAMUS, 1965, p.12).

A questão ética está relacionada com a questão das religiões. De fato, as religiões

consideradas principais, que vão além de um conjunto de crendices ou "filosofias" de mundo,

e que coincidem com as três religiões monoteístas, o judaísmo, o cristianismo e o islamismo,

apresentam três aspectos básicos: junto com um conjunto de rituais, chamados no catolicismo,

por exemplo, de liturgia, e com um conjunto de verdades sistematizadas (geralmente

fundamentadas num livro considerado sagrado e revelado), os dogmas, há um conjunto de

preceitos que se devem seguir na vida prática, ou seja, uma moral.

Teoricamente, essas grandes religiões apresentam uma "visão de mundo"

extremamente ética: um ser supremo, acima de todos os humanos, que se propõe como um pai

bom e não como um ditador, todos os seres humanos como essencialmente iguais, donde

todos passíveis dos mesmos direitos e deveres, e o mundo natural, com as coisas materiais em

geral, submisso aos homens; submissão que não implica evidentemente destruição. Em suas

configurações históricas, entretanto, a prática religiosa das grandes religiões não corresponde

à ideologia propagada. Assim, por exemplo, Jerusalém, talvez a cidade mais importante do

mundo, sede das três grandes religiões, não é um local onde os irmãos se encontram, mas um

palco constante de guerras, ao longo da história, onde os homens se enfrentam como inimigos

ferozes.

Camus, com relação à questão da crença religiosa é muito claro: não vê a possibilidade

de afirmar nem negar a existência de Deus, não se inquieta com tal questão e, pessoalmente,

não crê. Mais do que os sentimentos e as instituições religiosos em si, Camus critica a visão

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estreita e redutora da vida e do mundo, critica todo dogmatismo, toda pretensão à totalidade e

tudo o que pretende dar um sentido à vida, ou seja, toda idéia que se impõe como superior à

dignidade humana. Camus não aceita a idéia segundo a qual aquilo que dá sentido à vida é

mais importante do que a própria vida, ao contrário, as religiões e instituições em geral é que

deveriam ser medidas pelo lugar dado à vida, valor básico de sua ética.

A atitude de Camus, quando diz achar-se incapaz de fechar questão sobre a existência

de Deus, corresponde a uma atitude filosófica bastante razoável, pois do ponto de vista

estritamente racional, da mesma forma que não se pode ―provar‖ a existência de Deus,

também não se pode ―provar‖ sua inexistência. Trata-se de distinguir aquilo que, nas religiões

ou não, é irracional, que nega a razão ou vai contra ela, daquilo que supera os limites da razão

e vai além do entendimento humano. Adotar a perspectiva religiosa é de certa forma admitir a

limitação do conhecimento humano, pois a partir do momento em que se supõe que Deus é

mais que o homem, não se pode esperar que o homem tenha toda a compreensão da

divindade.

Ao lado da questão da existência de Deus, podemos lembrar a questão da presença do

mal no mundo, mal não como figura imaginária, mas sim como sofrimento do homem e como

aquilo que vai contra sua grandeza e felicidade. Tal questão, que inquietou a existência de

Agostinho de Hipona, inquietou igualmente a reflexão Camusiana: "Le Christ est venu

résoudre deux problèmes principaux, le mal et la mort, qui sont précisément les problèmes des

révoltés." (CAMUS, 1965, p.444). A estes e a outros problemas o cristianismo aplica o termo

Mistério, que, numa visão aberta, pode ser encarado não como um muro de encontro à face do

homem que busca entender, mas como um mar que se abre ante seus olhos, o qual, por mais

que nade, não poderá atravessar. Assim, podemos criar uma correlação entre, de um lado, a

concepção de um conhecimento limitado e a problemática do Absurdo em Camus, e de outro,

a visão religiosa do mistério. São espaços em aberto, que, entretanto, não podem ser

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preenchidos com qualquer coisa, ou seja, não podemos atribuir a Camus um sentimento

religioso que ele não tinha. Para Camus, o "salto kierkegaardiano", como toda forma de

esperança metafísica, é um suicídio filosófico.

Na verdade, avesso a questões ontológicas excessivamente abstratas e crescido num

ambiente "naturalmente" alheio à prática religiosa, Camus tampouco foi um "ateu praticante",

ou seja, não se empenhou num militante combate à idéia de Deus e das religiões, como o

fizeram, por exemplo, Nietzsche e Feuerbach. Com efeito, paradoxalmente, a idéia de uma

negação constante da divindade pode assumir ares de religião e corresponder a atitudes

religiosas. Até mesmo uma posição filosófica pode equivaler a uma religião, quando se adota

uma visão dogmática, irredutível ou fechada do universo, que passa a ser explicado ou

encarado sob a perspectiva de uma idéia única e estática.

A. Comte começa por negar a idéia religiosa, como estágio primitivo do entendimento

humano e termina por fundar uma religião... sem Deus. Há ainda o caso de evangélicos que,

mesmo considerando a existência de Deus, desenvolvem um discurso maniqueísta

fundamentado na existência do mal, personificado numa imagem mais folclórica e

supersticiosa do que religiosa, e tratam mais do mal, encarado sob uma visão radicalmente

dualista, do que de Deus. No contexto de um discurso de embromação, de falsas possessões e

falsas curas, tal figura maléfica serve de argumento com respaldo no imaginário e no medo

dos adeptos. O paradoxo é que, na guerra das religiões, este cristianismo das seitas repete,

com alguns séculos de atraso, as práticas do cristianismo católico medieval, que as seitas

criticam e imitam. Trata-se de visões religiosas que instrumentalizam o ser humano e

desprezam o valor da vida na terra, em nome de uma existência no mundo do além, visões,

por isso mesmo, não aceitas por Camus nem por tantos outros pensadores.

Camus, de acordo com seu princípio de tolerância, sabia dialogar com religiosos,

tendo feito uma conferência, em 1948, no convento dos dominicanos de Latour-Maubourg,

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intitulada "L'incroyant et les chrétiens". Mesmo na Peste, em que um dos personagens é um

padre, a imitação do estilo eclesiástico edificante é uma obra prima de humor, mas não de

ironia maldosa. À época em que escrevia a Peste, Camus devia esperar da Igreja posições

firmes contra o anti-semitismo e a violência generalizada, e via muitas vezes, ao contrário, a

hierarquia eclesiástica fazer-lhe vista grossa. Entretanto, Camus é complacente, na Peste, com

o representante da Igreja, porque sabia que, na prática, também havia católicos no bom

caminho. Camus poupa o religioso de uma crítica maior e o coloca finalmente como um

combatente contra a peste, em memória dos religiosos que foram, a seu lado, resistentes ao

nazismo e à Ocupação.

De fato, no âmbito das religiões, muitas vezes os extremos coexistem lado a lado: a

ética com o moralismo, a virtude com a hipocrisia; a visão mais apurada do humanismo, que

salvaguarda tudo o que preserva e dignifica o homem, com a superstição, o fanatismo e a

exploração.

Camus não tem nada de um anticlerical fanático e intolerante. Daí que não é correto

nem honesto com o escritor forçar uma interpretação para poder afirmar que ele estava prestes

a se converter às vésperas de sua morte. São atitudes de representantes de religiões

proselitistas que carecem de bons exemplos de mudanças radicais para serem apresentados

aos adeptos, reais ou em potência. A obra Albert Camus e o teólogo20

parece-nos um caso

deste, uma tentativa de cristianizar, post mortem e forçadamente, o autor.

No livro, o ministro da Igreja Americana de Paris, Howard Mumma, busca mostrar

que, em seus últimos anos de vida, Camus manifestava inquietações religiosas. Ao ministro

Camus teria se expresso nos seguintes termos:

– Sim, você está certo, Howard. A razão pela qual tenho vindo à igreja é

porque estou procurando. Estou quase em uma peregrinação, buscando algo

para preencher o vazio que estou experimentando, e ninguém sabe. [...]

existe algo que pode trazer novo significado a minha vida. Eu certamente

20

MUMMA, Howard. Albert Camus e o teólogo. São Paulo, Carrenho Editorial, 2002.

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não tenho esse algo, mas ele está lá. Nas manhãs de domingo, ouço que a

resposta é Deus (MUMMA, 2002, p.104-105).

Camus estaria disposto a receber o batismo e só não o teria feito por temer a opinião

publica, é o que H. Mumma deixa transparecer em seu livro: ―Eu não podia culpá-lo pela

hesitação. Camus era um dos franceses vivos mais famosos na sua época. [...] Uma

demonstração pública dessa espécie deixaria o país alvoroçado e, sem dúvida, muitos de seus

fãs sentiriam-se traìdos‖ (MUMMA, 2002, p.110).

Contrário ao sentimento religioso, ao dogmatismo e à metafísica da abstração, Camus

não se preocupa em decifrar a essência última do homem, e muito menos de Deus; ele parte

da realidade, de uma situação de maldade, em forma de limitação humana, em forma de

injustiça e de miséria, muitas vezes causada pelo próprio homem: ―L‘important n‘est donc pas

encore de remonter à la racine des choses, mais, le monde étant ce qu‘il est, de savoir

comment s‘y conduire" (CAMUS, 1965, p.414).

Mais do que a religião em si, e mais do que o marxismo em si, Camus critica o

pensamento totalitário, ou seja, dogmático, abstrato e que se supõe acima de tudo e de todos; é

por isso mesmo que emprega deliberadamente termos do vocabulário religioso para tratar da

revolta degenerada em revolução violenta. Como afirma Camus, a política não é religião ou,

se for, será uma inquisição (cf. CAMUS, 1965, p.705).

On ne s'étonnera donc pas qu'il [Marx] ait pu mêler dans sa doctrine la

méthode critique la plus valable et le messianisme utopique le plus

contestable. [...] Depuis la mort de Marx, en tout cas, une minorité de

disciples sont restés fidèles à sa méthode. Les marxistes qui ont fait l'histoire

se sont emparés, au contraire, de la prophétie, et des aspects apocalyptiques

de la doctrine, pour réaliser une révolution marxiste (CAMUS, 1965, p.593).

É o paradoxo da religião ideológica ou política, sem Deus, mas não menos dogmática

e repressora: ―Tuer la liberté pour faire régner la justice, revient à réhabiliter la notion de

grâce sans l'intercession divine‖ (CAMUS, 1965, p.694). Tal paradoxo estaria no centro da

aberração e das atrocidades nazistas:

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Les crimes hitlériens, et parmi eux le massacre des Juifs, sont sans

équivalent dans l'histoire parce que l'histoire ne rapporte aucun exemple

qu'une doctrine de destruction aussi totale ait jamais pu s'emparer des leviers

de commande d'une nation civilisée. Mais surtout, pour la première fois dans

l'histoire, des hommes de gouvernement ont appliqué leurs immenses forces

à instaurer une mystique en dehors de toute morale. [...] La révolution

nihiliste s'est exprimée historiquement dans la religion hitlérienne (CAMUS,

1965, p.590).

Diante da situação absurda, Camus vê na Revolta o primeiro passo para buscar mudar

a face deste mundo, donde sua ética laica e humana. O fato de ser um autor ainda muito lido e

estudado, tendo grande importância na Argélia, onde é uma referência, na França e em todo o

mundo, mostra a sua atualidade e o vigor da sua produção. Talvez seja a questão ética aquela

em que o autor continua mais marcante, oferecendo elementos para a discussão de questões da

contemporaneidade.

Em Albert Camus "la pensée de midi"21

, um dos trabalhos mais originais e

aprofundados sobre Camus, dentre os publicados nos últimos tempos, Jacques Chabot aborda

de alguma forma todas as obras do escritor, numa ordem inversa à cronologia de publicação,

começando por Le Premier homme. O livro traz, na capa, muito adequadamente ao que nele

se apresenta, uma foto de Camus descontraído, sereno e sorridente. Das inúmeras

considerações pertinentes no livro de J. Chabot, destacamos duas que consideramos

essenciais. O primeiro aspecto diz respeito à questão do "Pensamento mediterrâneo" (La

Pensée de midi), subtítulo da obra de Chabot, homônimo do último capítulo de L'Homme

révolté. O tema (que às vezes assume a forma de um "tom", de um ethos, de uma visão de

mundo ou mesmo de um traço de personalidade) perpassa, na verdade, não apenas as obras de

reflexão de Camus, mas também as obras literárias, estando presente desde as primeiras,

como L'Envers et l'endroit até as últimas, com La Chute e Le Premier homme.

21

CHABOT, Jacques. Albert Camus "la pensée de midi". Aix-en-Provence: Édisud, 2002.

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Quanto à segunda questão merecedora de destaque, trata-se do "processo" que Camus

sofreu, e que assumiu às vezes a dimensão de um linchamento intelectual, sobretudo na

seqüência imediata da publicação de L'Homme révolté. Consideramos que tal processo é

decorrente do aspecto "marginal" ou paratópico de Camus enquanto escritor ausente das

instituições universitárias, da sua produção filosófica como um todo, que reflete aquilo que

ele considera o que deve ser a filosofia (cujo cerne é uma discussão ética) e, finalmente,

decorrente das posições assumidas pelo autor ante os totalitarismos políticos e ideológicos do

século XX. Atitudes e opiniões filosóficas que se enraízam numa mesma visão ética.

Jacques Chabot observa que a maior crítica de Nietzsche dirigida aos cristãos, ele que

entretanto não poupou nem os dogmas nem a moral do cristianismo, é feita na seguinte

pergunta irônica: ―Por que eles não têm um ar de salvação?" (cf. CHABOT, 2002, p.172) O

contexto em que Chabot evoca a crítica nietzschiana é aquele do mito: Camus já afirmara que

os mitos não têm vida própria, sendo preciso que a imaginação e a vida os encarnem. Se os

cristãos são tristes e ranzinzas é porque não encarnam o mito do cristianismo, não fazem

como seu Deus, ou seja, não vivem na imitação do Cristo. A prova de que o mito está vivo é

que um único homem, ou mais ainda todo um povo, o faça viver atualmente, no duplo sentido

do termo, em ato e no presente. O resto deve ir para o museu das ideologias. Neste sentido, a

crítica de Nietzsche pode ser expressa da seguinte forma: por que a alegria da salvação dos

cristãos e a presença do Salvador neles não são visíveis em seus rostos? Questão de coerência

e de alegria de viver.

Em Camus, embora fosse ele ateu e não nutrisse forma alguma de esperança

metafísica, la pensée de midi traduz a alegria de viver sob o sol, expressa num modus vivendi,

que por sua vez se reflete em suas obras, sob a forma de uma visão não ingênua, mas otimista

do homem e da vida humana. Camus busca descrever a vida feliz, por mais tênue que seja esta

felicidade, para vivê-la em dobro, carnal e espiritualmente, e para defendê-la das sutis e

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grosseiras seduções da morte. Ele aposta na vida terrestre sem se preocupar com o Ser eterno,

da religião, nem com o nada, da filosofia niilista, porque ambos são juntos o mesmo avesso

do qual a existência humana é o direito.

L'Envers et l'endroit, primeira coletânea de ensaios do autor, mostra claramente, desde

o título, a ambigüidade de toda existência, com seu sol e sua sombra. Entretanto, a claridade

presente nas obras de Camus dá testemunho da vida, mesmo com a presença da morte, mesmo

com o Absurdo que dela faz parte, mesmo com suas contradições ilógicas e surpreendentes: o

avesso e o direito na existência humana celebram sem fim suas núpcias. Aliás, Camus não

recusa a morte; recusa os álibis que os homens inventam para não olhá-la nos olhos.

Se ele ama apaixonadamente a vida, é porque a acha bela e porque sabe que ela não é

para sempre, pois de uma hora para outra pode abandoná-lo. E nesta questão, de vida e de

amor, a lógica nada pode fazer, daí o sentimento, e não o conceito, de Absurdo.

Em L'Étranger, em que haveria uma ausência de verdadeiras relações, Meursault

conserva uma profunda ligação com o mundo material e natural porque, mesmo não sendo

razoável, este mundo permanece uma presença, diferentemente dos homens que são estranhos

uns aos outros − a começar pelo próprio Meursault, que parece não ser realmente "presente"

para ninguém. Em La Chute transparece uma impressão do autor sobre a cidade de Praga, da

qual ele não gostou e a qual ele marcou, juntamente com todos os países do Norte, com um

fantasma de morte, por causa do frio, ou antes, da frieza, tanto sensível quanto afetiva.

Camus pode ser considerado um espìrito mediterrâneo, um ―escritor do sul‖. Na

conclusão de L'Homme révolté ele opõe ao niilismo La pensée de midi, que já estava em

germe numa conferência pronunciada para a inauguração da "Maison de la culture" de Argel,

em 8 de fevereiro de 1937: ―La nouvelle culture méditerranéenne‖ (CAMUS, 1965,1321), aì

já se percebe de que maneira o pensamento de Camus busca ser libertário, ateniense e

mediterrâneo.

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Camus cria uma espécie de cosmogonia de tipo pré-socrática na qual ele funda sua

moral, esta cosmogonia é resolutamente contra a dialética. Camus afirma, de fato, a guerra

dos contrários no seio da natureza, e não a resolução lógica e histórica das contradições

humanas. Ante a luta mortal das consciências entregues às contradições da dominação e da

servidão, ele mantém a convicção de um acordo certo com a Natureza das coisas e de um

amor possível entre os seres que participam da natureza humana.

Em Le Premier homme, encontramos a passagem seguinte, que resume bem tanto a

ética quanto a estética de Camus, ambas baseadas em seu mito do mediterrâneo: ―je n‘ai pas

encore parlé du soleil. De même que j‘ai mis longtemps à comprendre mon attachement et

mon amour pour la pauvreté où s‘est passée mon enfance, c‘est maintenant seulement que

j‘entrevois la leçon du soleil et des pays qui m‘ont vu naître‖ (CAMUS, 1995, p.38). O mito

estético da Mère Méditerranée se associa, para Camus, ao mito ético do povo mediterrâneo,

ele não professa um estoicismo aristocrático, por fidelidade ao hedonismo lúcido e corajoso

de seus ancestrais populares. Camus afirma que precisamos imaginar Sísifo feliz, igualmente

podemos imaginar feliz, apesar de tudo, este filósofo sorridente que a absurdidade humana

não podia impedir nem de celebrar suas "núpcias com o mundo", nem de partilhar a

fraternidade da Revolta com os outros homens.

De fato, em suas obras, Camus rejeita a crítica triste vinda do ressentimento contra a

vida e prefere a ela o discernimento ativo, inseparável da vontade de viver contra tudo o que

diminui a vida ao entristecê-la. Conforme Chabot, a crítica vinda do ressentimento conduz ao

niilismo, ao qual se opõe radicalmente o humanismo de Camus (cf. CHABOT, 2002, p.88).

De fato, até mesmo a moral de Camus, inicialmente aprendida com os romances humanistas

lidos em sua juventude, que continuaram a tradição do Romantismo, e com seus semelhantes

de Argel, para os quais a pobreza não era sinônimo de miséria nem de tristeza, é uma moral

do não-ressentimento, da coragem e da alegria.

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―Ce contrepoids, cet esprit qui mesure la vie, est celui-là même qui anime la longue

tradition de ce qu'on peut appeler la pensée solaire et où, depuis les Grecs, la nature a toujours

été équilibrée au devenir‖ (CAMUS, 1965, p.701) escreve Camus, mostrando que seu

pensamento é inseparável de uma certa arte de viver que ―dá gosto à vida‖ sem cair no

―raciocìnio" e na "abstração‖. La pensée de Midi, além de remeter à alegria de viver, é uma

referência à Grécia clássica: uma forma de pensamento que não cai na pura abstração, porque

não perde de vista a concretude do mundo; um recurso constante ao mito, como linguagem

filosófica e ao mesmo tempo poética, quando recriado por uma imaginação que lhe dá vida; e

uma exploração de princípios éticos iniciados com os gregos.

―Il est des lieux où meurt l‘esprit pour que naisse une vérité qui est sa négation

même‖, afirma Camus; ele toma aqui ao avesso toda a tradição idealista da filosofia, para a

qual a verdade representa a perfeita adequação do espírito que conhece (e se conhece) com o

mundo que ele conhece. O conhecimento verdadeiro significaria a relação exata entre o

espírito e o mundo. Camus, entretanto, não tem nada de idealista e vê a verdade, de início,

como a realidade sentida.

De fato, a relação entre a sensação, o mundo e o pensamento constituem um dos

problemas filosóficos mais complexos. Camus, entretanto, revela um sensualismo nato, quase

ingênuo, e um empirismo elementar, para mostrar que o homem não contempla nada além das

coisas, ou seja, não há mistério oculto do qual as coisas seriam os intérpretes ou as imagens,

por isso não há simbolismo nem "mitos". Com efeito, Camus, que recorre constantemente aos

mitos, que os cria e recria, afirma: ―Bien pauvres sont ceux qui ont besoin de mythes‖

(CAMUS, 1965, 57). É preciso dizer então que espécie de mito ele rejeita.

Camus partilha com o povo de Argel, indiferente ao espírito, uma religião natural do

corpo e dos sentidos, que, como observa Chabot, não tem nada a ver com o ―naturismo‖, nem

com sua carga de pregação, de sistematização e de afetação, que ele desdenhava (cf.

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CHABOT, 2002, p.67). Camus critica os ―mitos‖ visando, como Nietzsche, o cristianismo,

que ele acusa de enganar a vida, e de traí-la, desacreditando-a em nome de uma ―outra vida‖:

―Autrement dit, l‘espoir en la vie éternelle ne console (mal) que les hommes sans amour et

sans foi pour la vie terrestre, la seule ‗intéressante‘‖.

Camus rejeita as divindades míticas, naturalmente, e também toda uma tradição da

literatura e da arte humanista e clássica que utiliza o "maravilhoso pagão", sem acreditar nele,

a título de ornamento alegórico. Isto numa época em que os poetas contemporâneos voltam à

mitologia; Gide, em particular, mestre do pensamento de Camus, mas também Giraudoux,

Cocteau, Valéry e muitos outros. Camus recusa apenas os mitos mortos, que não cumprem

mais nenhuma função propriamente religiosa, como cumpriam no tempo de Platão, e mal se

tornaram frias alegorias, e daí puras abstrações. Eles não são mais imagens vivas para a

sensibilidade, a crença ou o pensamento; apenas imagens murchas que se tornaram sutilezas

de retórica. Como afirma Camus, os mitos não têm vida própria, é preciso encarná-los e fazê-

los reviver através da imaginação.

Portanto, o processo dos mitos, em Camus, limita-se à crítica das mitologias

consoladoras que são o resíduo das religiões mortas. O que não o impede de recorrer a figuras

mitológicas gregas ou de inventar, para seu próprio uso, outros mitos que, não sendo

religiosos, são estéticos, reencarnados na atualidade da arte e da vida. Camus considera que os

primeiros pensadores foram poetas: eles não pensavam ainda por conceitos, mas por

metáforas, cada metáfora sendo um mito em miniatura.

Os povos antigos, criadores, inventavam histórias para dar um sentido à existência; no

mundo moderno alguns indivíduos imaginativos reanimam os mitos de antigamente

adaptando-os, para renová-los, à sua própria visão do mundo e da vida. São mitos pessoais,

enxertados sobre temas antigos. O poeta os moderniza, mas eles conservam, todavia, algo do

senso comum dos povos que os produziram. É neste sentido que Camus trouxe de volta à tona

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o mito de Sísifo; seu ensaio filosófico, Le Mythe de Sisyphe, não se reduz a uma alegoria e,

mesmo podendo ser considerado um tratado de estética e de moral, ou de moral estética, é

também uma tentativa de atualizar a linguagem da narrativa mítica (cf. CHABOT, 2002,

p.104 e 105).

O romance La Peste, igualmente, que sucede de pouco a catástrofe humanitária de

1939-45, esta nem tão distante daquela de 1914-18, pode sob este ponto de vista ser

considerado como ―histórico‖, ou como um mito da história. O mito é uma palavra

verdadeira, adequada à realidade, mesmo se, ou justamente porque, ela transpõe o real sob

uma forma metafórica, buscando não teorias, mas verdades práticas. Desde Homero, Sófocles,

Tucídides ou mesmo Lucrécio, desde os profetas de Israel, a peste, tanto quanto uma doença,

é um mito que dá origem a um comentário que os homens fazem do inexplicável para tentar

compreendê-lo. Eles substituem causas desconhecidas por imagens que tendem a dar um

sentido a coisas sem sentido. Assim, o mito trata a epidemia como crise coletiva da sociedade

humana em seu conjunto, partindo do sentido político, e não da causa fisiológica do flagelo. É

assim que a doença é vista como sintoma da fragilidade da saúde moral do corpo social e ela

exige não só uma terapia farmacêutica, mas uma interpretação moral e espiritual. É neste

sentido que o padre Paneloux vê como causa da doença não um bacilo, mas uma culpa.

Como os primeiros gregos, Camus é um filósofo que pensa por mitos e cujos mitos

dão a pensar. Os mitos podem ter, realmente, a linguagem poética da moral e da política. La

pensée de midi é, para Camus, um pensamento do retorno às origens da sabedoria grega, em

que ele busca não apenas o apego à concretude da vida e a linguagem dos mitos, mas também

uma filosofia eminentemente ética, baseada na noção de "medida" ou "limite". Camus

aprendeu com os gregos que é na razão e na justiça que se fundamentam a moral e a política

verdadeiramente humanas. E para os gregos sabedoria é a justa medida racional em todas as

coisas; adversários de todo despotismo, até daquele da razão, eles não deificaram nem

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idolatraram a razão. Ao lado do racionalismo, inventaram a tragédia, prevenção do idealismo:

ela atesta que o real não é totalmente racional e que o racional nem sempre é real: ―Cette loi

de la mesure s'étend aussi bien à toutes les antinomies de la pensée révoltée. Ni le réel n'est

entièrement rationnel ni le rationnel tout à fait réel‖ (CAMUS, 1965, p.698).

Há uma relação entre a moral de Camus e seu sentimento intenso e trágico da vida, e

essa moral privilegia a virtude da medida razoável, até na revolta. Em L'Homme révolté

Camus se levanta contra a falta de "medida". Os mitos se encadeiam e este ensaio, sob a égide

do mito de Prometeu, constrói-se sobre a base do mito de Sísifo e pressupõe o mito de

Nêmesis: ―Cette limite était symbolisée par Némésis, déesse de la mesure, fatale aux

démesurés. Une réflexion qui voudrait tenir compte des contradictions contemporaines de la

révolte devrait demander à cette déesse son inspiration‖ (CAMUS, 1965, p.699).

Em L'Homme révolté Camus critica a deificação da "razão", da ideologia e da

violência, mostrando que o velho mito da revolta degenerou em ideologia revolucionária. No

ensaio, o autor critica esta degenerescência da Revolução, opondo-lhe o mito da revolta, o

qual existe no povo que age para fazer justiça. A Revolta se prova na ação, na realização

concreta. A ideologia, ao contrário, desencarna o mito e o substitui por abstrações formais:

―La révolution sans honneur, la révolution du calcul qui, préférant un homme abstrait à

l'homme de chair, nie l'être autant de fois qu'il est nécessaire, met justement le ressentiment à

la place de l'amour‖ (CAMUS, 1965, p.707).

Por suas críticas lúcidas, por andar na contramão das correntes ideológicas então

dominantes, Camus pagou um preço alto. O mito do justo perseguido e levado à morte

injustamente se encarna nas pessoas do Cristo e de Sócrates, aos quais Chabot associa o

"processo" e a condenação aplicada a Camus. Tal condenação é a raiz da obra de Chabot, a

qual se propõe justamente como uma apologia e no início da qual se afirma:

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Au fond, les censeurs philosophiquement corrects qui méprisaient Camus

―philosophe pour classes terminales‖, dédaignaient superlativement, en lui,

―le littéraire‖, injure aggravée par le soupçon de ―romantisme‖ qui grevait sa

littérature d‘écrivain ―métaphorique‖ (CHABOT, 2002, p.21).

De fato, da mesma forma que Camus deixa transparecer em suas obras de ficção uma

visão de mundo que reflete suas concepções filosóficas, o que de certa forma é tolerado pelos

críticos, assim também, coerentemente com sua recusa de separação entre conhecimento e

realidade vivida e entre as diversas áreas e campos do conhecimento humano, ele atribui

características poéticas aos seus textos filosóficos, fato que os críticos e filósofos de profissão

não puderam aceitar.

Que a literatura seja filosófica pode ser aceito, mas uma filosofia poética parece

inadmissível. A questão é que os romancistas, e não apenas Camus, fogem às formas

padronizadas e consagradas de apresentação do gênero dissertativo, ou seja, os poetas e

romancistas pensam a existência de uma maneira original, eles a pensam através da imagem.

Não buscam ser nem filósofos nem historiadores, pois são poetas que fazem história e

filosofia. Entretanto, a filosofia pelas imagens é tanto (ou talvez mais) filosófica quanto a

filosofia conceitual.

Aristóteles já afirmava que a poesia é ―mais filosófica e de um caráter mais elevado

que a história, pois a poesia conta o geral e a história o particular‖.22

Ou seja, a poesia pode

ser filosófica. Camus é um desses poetas, pensa por imagens, metáforas e mitos em sua

prática de escritor. É preciso lembrar que ele critica a submissão de um campo a outro, e

rejeita sobretudo a instrumentalização ideológica da poesia, recusando "a intelectualização da

arte" e, em particular, les romans à thèse, porque eles explicam ao invés de imaginar.

A filosofia poética de Camus é inseparável dos ensaios, único gênero que corresponde

à expressão de um pensamento modesto, ou seja, ciente de seus limites e não totalitário. De

fato, antes de criticar filosoficamente o stalinismo, Camus critica o pensamento sobre o qual

22

Aristote, Poétique. Paris: Les Belles lettres, 1969, chap. 9, p.41-42

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ele se baseia: a pretensão à certeza absoluta. Com sua própria vivência no mundo e com a

sabedoria adquirida com os gregos, ele sabe olhar os dois, ou vários, lados das questões.

Como um antìpoda da dialética reducionista, o essencial da sabedoria do ―pensamento

mediterrenâneo" está fundamentado num embate, ou seja, num face-a-face de contrários, não

reconciliados, mas inseparáveis.

O antídoto ao totalitarismo da razão, arrogante mas ingênua, encontra-se na poesia,

que não perde de vista o contato com a realidade, por mais imaginativa que possa ser. É a

visão diversificada e ancorada na concretude do mundo e da existência que se faz presente no

Mythe de Sisyphe, em que Camus defende ―o pensamento humilhado‖. Na verdade, trata-se de

um pensamento mais humilde do que humilhado, pois ele partilha a humildade da condição

humana ao invés de transcendê-la em abstração totalitária.

J. Chabot mostra que Valéry também faz algo semelhante, pois, com suas imagens

poéticas, opera uma crítica filosoficamente precisa do formalismo do pensamento, ou seja, da

teoria fabricada pelo entendimento. Valéry mostra que o ser só se desvela de maneira

perfeitamente lógica a um entendimento que reproduz nele suas próprias categorias e o recria

à sua imagem (cf. CHABOT, 2002, p.93). Trata-se de um entendimento lógico tranqüilizador,

mas ilusório, pois impõe à realidade as fôrmas da lógica e só apreende da realidade o que cabe

nestas fôrmas, delimitado e organizado, mas parcial, restrito e diminuído, ou seja, deformado.

Tal raciocínio só pode chegar a um sofismo, é o resultado de uma lógica louca por unidade de

tanto medo da diversidade viva do real.

Como todos os grandes moralistas, Camus procede a uma crítica da ontologia, como

uma ideologia do Ser que pretende fundar a existência. Os jogos de sistematização de um

pensamento abstrato não respondem à questão: ―como viver?‖, que é uma questão de

sabedoria. Donde a crítica de Camus ao intelectualismo e ao racionalismo teórico, e sua

recusa simultânea de se entregar ao irracionalismo. Trata-se de marcar os limites da razão

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teórica, que são precisamente limites práticos: não colocar a lógica formal onde ela não está,

na vida cotidiana, na existência ao mesmo tempo grande e miserável: é o limite que Hegel não

respeitou:

On peut dire assurément que Hegel a rationalisé jusqu'à l'irrationnel. Mais,

en même temps, il donnait à la raison un frémissement déraisonnable, il y

introduisait une démesure dont les résultats sont devant nos yeux. Dans la

pensée fixe de son temps la pensée allemande a introduit tout d'un coup un

mouvement irrésistible. La vérité, la raison et la justice se sont brusquement

incarnées dans le devenir du monde. Mais, en les jetant dans une

accélération perpétuelle, l'idéologie allemande confondait leur être avec leur

mouvement et fixait l'achèvement de cet être à la fin du devenir historique,

s'il en était une. Quant aux moyens d'atteindre ces buts, c'est-à-dire la vie et

l'histoire, aucune valeur préexistante ne pouvait les guider. [...] La raison,

annexée par ce romantisme, n'est plus qu'une passion inflexible (CAMUS,

1965, p.541-542).

Trata-se de vencer as tentações do absolutismo da razão, pois é a própria existência, na

condição humana, que é humilhada pelo despotismo das ―idéias‖. O paradoxo abordado por

Camus consiste em tentar dar um sentido ao homem, admitir o irracional sem abdicar da

razão. Trata-se de uma resistência simultânea ao non-sense e ao Espírito absoluto; ao niilismo

da não-razão e ao totalitarismo da razão.

O posicionamento paratópico de Camus nos campos da literatura e da filosofia, o

embaralhamento de gêneros literários e de campos de conhecimento, a crítica do racionalismo

e a produção de uma filosofia em ensaios plenos de imagens poéticas, já contribuem para que

ele seja olhado de soslaio, mas a gota d'água que desencadeou "o processo" de sua

condenação é sua crítica, decorrente da crítica da razão totaliátária, ao totalitarismo da

ideologia stalinista.

―J‘ai entrepris, avec L’Homme révolté une étude de l‘aspect idéologique des

révolutions‖ (CAMUS, 1965,759), nesta definição do objetivo que Camus atribui a seu ensaio

está também o centro da polêmica levantada pela sua publicação. A ideologia da revolução se

configura na idolatria do Estado, que é na verdade um "mito", no sentido em que Camus o

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rejeita, apenas um ―ersatz de religião‖ (CAMUS, 1965, 1058). Neste sentido, o marxismo-

leninismo, como toda ideologia em ação, pode ser uma droga pior do que a religião:

Si, dans le monde sacré, on ne trouve pas le problème de la révolte, c‘est

qu‘en vérité on n‘y trouve aucune problématique réelle, toutes les réponses

étant données en une fois. La métaphysique est remplacée par le mythe. Il

n‘y a plus d‘interrogations, il n‘y a que des réponses et des commentaires

éternels, qui peuvent alors être métaphysiques (CAMUS, 1965, p.430).

A obra de Camus é expressão de um conflito político, poético e crítico entre o mito do

sol, mito que gera la pensée de midi na tradição do pensamento solar dos Gregos, e a

ideologia do niilismo pretensamente revolucionário. Em L'Homme révolté, especificamente,

Camus continua à sua maneira a interpretação histórica do mito da revolta e de sua aberrante

perversão em forma de ideologia revolucionária, ideologia como mito pervertido. Camus,

filósofo ―polìtico‖, moralista humanista e romântico revolucionário mantém, pois, o mito da

revolta contra a ideologia da revolução quando ela esquece suas origens revoltadas para

degenerar em ideologia do despotismo, a que ele chama precisamente ―o Império ideológico‖.

Camus é um crítico lúcido do positivismo científico e defende uma hipótese "absurda",

porque contraposta à cientificidade da doutrina garantida pelo KGB, o gulag e o Exército

vermelho. O escritor ousou criticar um dogma. Sua filosofia crítica não se dirige apenas

contra o socialismo e o comunismo, mas contra ―a evolução propriamente reacionária do

socialismo cesariano‖ (CAMUS, 1965, p.763). A tal ditadura ele opõe a tradição do

socialismo e do sindicalismo libertários, condenados pelos marxistas sob o termo de

―socialismo utópico‖ ou não ―cientìfico‖. Camus, sem fazer a menor concessão ao idealismo

hipocritamente teórico da democracia burguesa, recusa entregar ao stalinismo a revolta contra

todas as autoridades abusivas e injustificadas.

Assim, L'Homme révolté é um grande texto de história das idéias, ou seja, de crítica

das ideologias; em particular, mas não unicamente, das ideologias revolucionárias. De toda

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forma, o processo de Camus, aberto desde a publicação de L'Homme révolté, em 1951,

tornou-se logo um ―processo de Moscou‖. Conforme escreve J. Chabot,

Camus havia escrito um livro de crítica histórica e filosófica, um livro de

filosofia política sobre a revolta a partir do século XVIII, na Europa, e ele foi

acusado principalmente de anti-comunismo. De fato, mesmo se seus

acusadores se recusavam a reconhecê-lo, ele foi condenado por crime de

lesa-majestade com relação ao tirano moscovita. Como o processo ocorreu

em Paris, e não em Moscou, Camus não foi assassinado como Sócrates e

Jesus (CHABOT, 2002, p.11).

É por Camus ter sido vítima de um processo injusto e por já ter morrido à época em

que sobre ele escreve J. Chabot, que este último chama à obra dedicada ao filósofo uma

apologia, na linha do gênero que ficou consagrado por Platão, ao defender Sócrates: "Minha

apologia de Camus poderia se resumir nisso: ele nunca se dobrou à razão do mais forte, com

mais forte razão quando é a própria Razão, traída, que é erguida contra a justiça" (CHABOT,

2002, p.191).

O julgamento de Sócrates é exemplar, como o caso do justo injustamente perseguido.

O Cristo também é apresentado por Chabot como outro justo condenado, pelo crime duplo de

lesa-religião estabelecida e de lesa-majestade imperial. Jesus acabava de inventar o amor ao

próximo, não à humanidade distante como os conceitos e abstrações, mas a toda pessoa, com

uma preferência pelos pobres e miseráveis. A idéia revolucionária da igualdade e da

fraternidade de todos os homens sem exceção, igualmente filhos de um Deus pai e não tirano,

arruinava todos os edifícios da dominação e da servidão, fundados sobre a violência dos

grandes, sobre seu desprezo pelos mais fracos e sobre o assassinato legitimado pelo direito do

mais forte.

Condenado e assassinado o Cristo, os Evangelhos se constituem como uma apologia

de Jesus e como apólogos, ou seja, narrativas que contam sua vida para dela tirar uma lição

ética e religiosa. Os evangelistas, como Platão em sua Apologia de Sócrates, refazem o

processo para provar a inocência do acusado. Daí que, desde muito cedo, historiadores,

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filósofos e poetas puseram em paralelo o destino de Sócrates e aquele do Cristo para sublinhar

a semelhança entre eles: ambos são inocentes injustamente reconhecidos culpados por crimes

que não existiam, são bodes expiatórios de um povo ou de uma cidade em decorrência de um

processo iníquo.

Evidentemente, o paralelo feito por Chabot entre Camus e Jesus não visa, nem

indiretamente, a cristianizar Camus após sua morte, como tentou fazer H, Mumma. A filosofia

de Camus, conforme proposta em L'Homme révolté, defende sobretudo uma ética

eminentemente humana, mas laica e não religiosa. É a questão que Camus transfere para seu

personagem Tarrou, na Peste:

En somme, dit Tarrou avec humour, ce qui m‘intéresse c‘est de savoir

comment on devient un saint.

– Mais vous ne croyez pas en Dieu.

– Justement. Peut-on être un saint sans Dieu, c‘est le seul problème que je

reconnaisse aujourd‘hui (CAMUS, 1962, p.1427).

Camus recebeu a formação de um humanista, do humanismo que não havia ainda

recebido os golpes da crítica marxista, do existencialismo, da psicanálise e das ciências

humanas. É sobretudo após a Segunda Guerra que o humanismo, de clássico, tornou-se

―burguês‖ e foi banido do pensamento contemporâneo. Camus nunca renegou suas

humanidades clássicas, nunca teve vergonha de ser um humanista e, mesmo criticando a

polìtica e o pensamento dos ―burgueses‖, nunca ―jogou o bebê junto com a água do banho‖.

Não correu atrás da última moda intelectual e recusou ser catalogado como ―existencialista‖,

mesmo quando Sartre proclamava que o existencialismo era um humanismo. Intelectual de

esquerda humanista, Camus criticou não só a ideologia e a polìtica ―burguesas‖ como também

a outra ideologia então dominante nos meios da intelligentsia parisiense: o marxismo-

leninismo, pretensamente dialético e científico.

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À morte de Camus, num artigo publicado em 6 de janeiro de 1960 em France-

Observateur,23

Sartre escreve sobre o autor que ele representa ―en ce siècle et contre

l‘histoire, l‘héritier actuel de cette longue lignée de moralistes dont les oeuvres constituent

peut-être ce qu‘il y a de plus original dans les lettres françaises‖. Sartre reconhece a ética

humanista de Camus, embora, nas entrelinhas da passagem citada, possamos perceber

claramente sua censura: Camus é anacrônico e cometeu o erro filosófico e a falta política de

não marchar no sentido da História definida pelo marxismo-leninismo:

Son humanisme têtu, étroit et pur, austère et sensuel, livrait un combat

douteux contre les événements massifs et difformes de ce temps. Mais,

inversement, par l‘opiniâtreté de ses refus, il réaffirmait au coeur de notre

époque, contre les machiavéliens, contre le veau d‘or du réalisme,

l‘existence du fait moral.

Sartre reconhece em Camus o mérito de não ter sido um cata-vento, rodando conforme

as tendências, mesmo se ele atribui esta estabilidade na retidão a alguma "teimosia" mais do

que a sua inteligência. Sartre constata ―a reafirmação‖ por Camus ―do fato moral‖, mas pesa o

subentendido: este romancista que nos dá lições de moral não é um verdadeiro filósofo.

Chabot tem razão ao afirmar:

Comme Victor Hugo et André Malraux, Camus est un romancier qui pense

en racontant des histoires et qui raconte l‘existence humaine avant de

s‘interroger sur l‘Être des étants. Il préférait les images (porteuses d‘idées)

aux concepts. Il n‘avait pas de système. On pouvait donc le soupçonner

d‘être plus poète que théoricien (CHABOT, 2002, p.15).

Camus, por sua rejeição das abstrações redutoras, é de certa forma mais

―existencialista‖ do que Sartre e Heidegger, porque ele não se embaraça com a ontologia. Sua

ética reconhece o ritmo do mundo e busca lhe atribuir um sentido, mais do que reconhecer sua

verdadeira essência. Por falta de verdade sobre o Ser, o moralista deve se contentar com as

23

Texto compilado em SARTRE, Jean-Paul. Situations IV. Paris: Gallimard, 1964. Citado por:

TODD, Olivier. Albert Camus, une vie. Paris: Gallimard, 1996, p.1039; e por: CHABOT, Jacques.

Albert Camus "la pensée de midi". Aix-en-Provence: Édisud, 2002, p.16.

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certezas e convicções sobre a existência e em vivê-las para justificá-las, na presença dos

outros, ou seja, de um nós.

O processo de Camus retrata o processo do homem no século XX. Depois da

proclamação da ―morte de Deus‖, é a ―morte do homem‖ que se tornou o problema do século

XX, ou pelo menos de uma certa ―idéia de homem‖ elaborada desde o Renascimento pelo

humanismo, num retorno às fontes gregas e latinas, mas também bíblicas e cristãs. Quando

Camus se pergunta: ―Como ser um santo sem Deus?‖, no fundo está respondendo à

observação de Dostoievski: ―Se Deus não existe, tudo é permitido." A pergunta de Camus

poderia ser formulada em outros termos: Como não se permitir tudo na ausência de Deus? ou

ainda: Sobre o quê, ou quem, fundar uma moral? E sua resposta é: sobre o Homem. O

humanismo agnóstico de Camus supõe uma ―eminente dignidade‖ do Homem. Talvez por

isso a intelligentsia existencialista e marxista tenha suspeitado que Camus não fosse um

verdadeiro ateu. Mas para ele, mais do que ―a idéia de homem‖ o que interessa é ―a dignidade

humana‖. Tal dignidade impõe o respeito de todo ser humano. Ela não se prova demonstrativa

e teoricamente, ela se funda praticamente sobre atos de respeito pelos outros e por si mesmo.

O processo de Camus é o processo de um moralista em política, moralista irônico,

como ele se revela em La Chute, que sabe contornar o "sério" do dogmatismo ideológico; a

ironia, com certeza, pode funcionar como uma espécie de prova pelo absurdo, mais eficaz do

que a dialética. Nossos tempos são outros, do totalitarismo stalinista só temos notícia nos

livros de história, mas as tiranias continuam, apenas mudam a máscara para melhor se

perpetuarem ao longo do tempo. Quase ao final de sua obra, Chabot escreve:

Je ne reviendrai pas sur le procès de Camus: comme Socrate et Jésus, il l‘a

finalement gagné devant l‘histoire, lui qu‘on avait condamné pour son ―anti-

historicisme‖, alors qu‘il avait seulement dénoncé les errements d‘une raison

dialectique devenue folle au point de servir de caution ―scientifique‖ à un

système totalitaire d‘asservissement des hommes libres au déterminisme

absolu de l‘histoire (CHABOT, 2002, p.166).

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O processo de Camus é resultado das obras, da ética e do engajamento de um escritor

que recusa a futilidade na arte e pensa que um artista ou um filósofo tem algo a fazer na

sociedade, na política e na história do gênero humano, e só mesmo o artista cuja estética é

desprovida de toda moral pode não inquietar os tiranos. Camus criticou as filosofias da

História; radicalmente e antes de todos, ele ousou contestar e dessacralizar o historicismo

vulgar que legitimava a Razão de Estado (totalitária) na História e submetia a humanidade à

lei do vencedor. Agora que o totalitarismo da pretensa ―lei do Mercado‖ substituiu,

ultrapassando-os, o fascismo, o nazismo e o stalinismo, o pensamento de Camus permanece

ainda mais atual, contra o novo terror irracional que se pretende racional. Junto com seu vigor

literário, a atualidade de Camus está na força de sua ética, de cuja falta padecem nossas

sociedades contemporâneas.

Com la pensé de midi, Camus lembra que a própria razão deve ter uma moral e que a

humildade é sua primeira virtude. O mundo concreto passa sem a razão dominadora e resiste a

seu poder unificador e a seu imperialismo. La pensée de midi é uma inteligência ciente de

seus limites ao mesmo tempo que dos seus poderes, ela é herdeira do "limite" da razão grega

que é a medida de todas as coisas, inclusive da própria razão.

Com os gregos, Camus aprendeu que o homem racional é também político, pois é

somente na polis que os cidadãos podem viver juntos de acordo com leis que dão a si

mesmos, livremente. Trata-se da democracia, cujo princípio é a virtude política, que consiste

na obediência por livre consentimento a leis razoáveis estabelecidas em vistas do interesse

comum. Na moral de Camus, o homem é responsável por sua própria existência, para a qual

ele é criador de sentido, e este é seu valor. Somos todos responsáveis por nosso caráter

(ethos) e, portanto, por nossa ética, por nossa maneira de viver em sociedade, assim, a

responsabilidade por si é também uma responsabilidade pelos outros. A revolta individual

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toma todo seu sentido na medida em que ela se torna reconhecimento do valor de todos os

indivíduos e, em Camus, a revolta contra a injustiça é uma revolta em favor do outro.

Do cristianismo, Camus aprecia as obras e não a fé. De fato, a caridade, no amor e no

respeito a todo homem, mesmo sem Deus, é uma forma de solidariedade. Fraternidade

responsável, solidariedade, caridade são tantos nomes do amor que conhece seus limites, por

se reconhecer mortal, efêmero e relativo. E para os que amam, nenhuma lei é necessária, é o

que afirma Santo Agostinho: "Ama e faze o que quiseres". Daí que uma outra forma de

imaginar o inferno da mitologia católica é vê-lo como o espaço absoluto das leis, enquanto

que o céu seria o espaço da ausência total de leis. A lei é uma abstração destinada a reger e a

impor limites a uma totalidade, ao passo que o amor e a solidariedade são feitos de relações

humanas concretas e espontâneas. A noção de pecado é totalmente estranha a Camus.

Entretanto, ele reconhece que os homens são culpados diante de si próprios do mal que fazem

uns aos outros, e do qual devem assumir a responsabilidade para poder tratá-lo. Se Camus

pode qualificar de ―metafìsica‖ sua ética da solidariedade na defesa da liberdade e da

dignidade humanas, é porque considera, à sua maneira, o valor do ser humano como

"sagrado". Ele defende que o homem revoltado exige a dignidade e a fraternidade contra todas

as injustiças.

Ao buscarmos uma diferença de conotação entre moral e ética, observamos que a

moral está ligada sobretudo às leis e a ética ao amor, e então é o segundo termo que se aplica

melhor à reflexão filosófica de Camus. Ambos os termos se fundam sobre os costumes que

são uma criação humana, mas a ética é mais abrangente e menos normativa do que a moral. O

aspecto ético do comportamento humano está relacionado com as conseqüências dos atos dos

homens, assim, a ética em Camus se fundamenta no seguinte princípio: o que promove a vida

humana é ético, o que atenta contra ela é anti-ético. Adversário da pena de morte e,

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igualmente, do suicídio, seja ele físico ou metafísico, Camus edifica sua ética no amor pela

vida e no respeito pelos vivos. Por isso, J. Chabot pode afirmar:

Le fameux ―Je me révolte donc nous sommes‖, véritable cogitamus da la

révolte, implique, en effet, une sorte de syllogisme: je me révolte contre la

mort parce que je suis mortel; or tous les hommes sont mortels; donc tous les

hommes se révoltent ensemble contre la même mort qui est leur sort

commun. En un certain sens, la révolte, cette pensée en action, est l‘essence

même de l‘être humain individuel et collectif (CHABOT, 2002, p.179).

Já em L'Étranger está presente uma crítica da pena de morte, inseparável de uma

crítica da abstração. No universo do processo, a justiça formal, em nome de princípios

abstratos – a ideologia da justiça, portanto – assassina um homem concreto. Convencido de

que vivia no século do assassinato justificado pela lei e pelas ideologias políticas, Camus

nunca fez a menor concessão à pena de morte. É a fraternidade metafísica que inicia a

fraternidade política e social.

Ele escreve: ―s‘il y a évolution de L’Étranger à La Peste, elle s‘est faite dans le sens

de la solidarité et de la participation‖ (CAMUS, 1965, p.758); La Peste é um grande romance

humanista, uma descrição simbolicamente realista da miséria humana, e um apelo à

solidariedade fundamentada no amor e no respeito ao homem. Não se trata, contudo,

conforme os princípios estéticos de Camus, de um roman à thèse ou dogmático: por

multiplicar os pontos de vista sobre o flagelo ele o relativiza, e a polifonia das vozes

discordantes impede que se privilegie uma interpretação unilateral. La Peste não é um

romance "edificante", ao contrário, é carregada de ironia: Camus evita o roman à thèse e a

lição de moral.

De fato, a novidade da Peste em relação às obras anteriores está nisto: o ―homem

absurdo‖ não é mais um solitário, mas torna-se solidário dos outros, combatendo a

absurdidade com os meios mais comuns. Na Peste a solidão resulta da separação, ela não é

―em si‖, ela existe para homens que são forçados a não mais viver com a outra pessoa que eles

amam. Grand sofre por não saber se exprimir, ou seja, como Meursault, ele é "traído pelas

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palavras" e isto resulta para si numa terrível solidão. Para o doutor Rieux, o flagelo coletivo

exige um tratamento comum e a abnegação do prazer individual. É a esta conclusão que chega

também Rambert que, primeiramente um hedonista, se convence da necessidade de uma

moral humanista da solidariedade.

Para Camus, a única conseqüência adequada do Absurdo é a Revolta, expressa em

forma de solidariedade humana, e por isso ele recusa o niilismo. De fato, no Mythe de

Sisyphe, Camus constata a doença mortal de indivíduos e sociedades contemporâneas: o

niilismo como constatação do Absurdo, e para ele o niilismo coincide com valores

desencarnados e formais. De forma semelhante, em L'Homme révolté, recusa a estética de

Sade, por ver nela o fundo perverso do niilismo.

A análise sem complacência da obra de Sade e a condenação do sadismo contribuem

para esclarecer a moral de Camus. Ele ousou ir contra um dos dogmas menos criticados da

estética contemporânea, o da superioridade literária de Sade, quando afirmou que o puro

Sadismo não é literário e que de toda forma é uma literatura ruim. Aqui se revela a

heterodoxia camusiana em matéria de devoção estética, pois ousou criticar outro dogma

estético de seu tempo, o surrealismo. Para J. Chabot, esta heterodoxia de Camus "a pesé aussi

lourd dans son procès, que son indépendance critique vis-à-vis du catéchisme marxiste-

léniniste-stalinien." Quanto a Sade, ele representa para Camus ―o homem de letras perfeito‖,

no mau sentido do termo, aquele para quem a literatura é puro divertimento amoral e

desapegado de qualquer responsabilidade em face dos outros. Por isso, Chabot pode

completar: "Décidément les prêcheurs de vice et de crime sont encore plus d‘ennuyeux

radoteurs que les prédicateurs de vertu. La façon d‘écrire de Sade, inaugure une certaine

langue de bois de l‘amoralisme esthétique érigé en dogme poétique" (CHABOT, 2002,

p.138-139).

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Confrontando dois mitos – a peste e a revolta – não mais no absoluto da condição

humana, mas numa situação histórica atual, Camus inventa uma moral do engajamento.

Conforme Chabot, "Camus aurait aimé être médecin ou instituteur, pour faire un métier

social. Il fut journaliste, autre façon d‘exercer um service public par l‘instruction et la

prophylaxie (CHABOT, 2002, p.151). Jornalista e escritor engajado, ele se solidarizou com

seus contemporâneos em suas lutas com uma razão, a revolta não gratuita, mas pela justiça.

Camus constatou que os burgueses defendiam teoricamente os grandes princípios da

liberdade e da igualdade – esquecendo-se da fraternidade – e tomando o cuidado de não os

praticarem, por isso ele combateu não apenas o totalitarismo ideológico e violento do

stalinismo, combateu igualmente o formalismo da moral e da política do capitalismo

―democrático‖.

Atualmente, no século XXI, continuamos a viver sob o império do totalitarismo, pois a

globalização capitalista não tem nada a invejar aos horrores dos regimes totalitários do século

passado, e encontramos no pensamento e na prática de Camus o conhecimento e a coragem

para resistir à desmedida totalitária, seja qual for sua justificativa ideológica.

A ética multifacetada de Camus se apóia sobre diversos valores decorrentes da

dignidade humana. É uma ética da generosidade, da coragem, da sinceridade, da

compreensão, da solidariedade, do engajamento. No conto, La pierre qui pousse, que faz parte

da coletânea L'Exil et le royaume, uma pedra que cresce por milagre é substituída pela pedra

que se carrega junto, por solidariedade humana, para o bem de todos. É mais um mito da

fraternidade entre os homens, no combate pela justiça e por uma moral laica e humana. O

conto de Camus é fruto das lembranças de sua viagem ao Brasil, em 1949, onde fica chocado

pela proximidade entre o luxo e a miséria. No mundo atual os países ricos e poderosos

continuam dominando e explorando os "emergentes", ainda existem as guerras, todas com

suas justificativas "racionais", existem os conflitos étnicos e religiosos, existe a miséria. No

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Brasil ainda há a desigualdade gritante entre a ostentação e a fome. Não temos uma tradição

de intelectuais engajados e temos, ao contrário, uma cultura da falta de ética, no trânsito, no

comércio, nas instituições, nas relações pessoais. As pessoas honestas são consideradas tolas e

a preocupação com a vantagem individual, sob o nome de esperteza ou malandragem, é vista

como um valor.

No nosso país a bisbilhotice é promovida e defendida, a futilidade é recompensada,

incentiva-se apenas a competição e nunca a cooperação, a polícia é injusta, a justiça não

funciona, as religiões são a fachada de empresas mercenárias. A tolerância ante a

particularidades individuais é muitas vezes apenas o reflexo de uma prática da indiferença ao

outro. A lei comumente só se aplica ao cidadão comum, ou seja, desprovido de capital,

monetário, social, cultural, etc. Políticos, militares, autoridades, celebridades e milionários se

consideram acima do bem e do mal e contam com a condescendência das camadas populares

que os consideram como uma espécie de "nobreza", naturalmente privilegiada. Falta-nos, a

nós brasileiros, a consciência do bem-comum como necessidade social. Os bens públicos são

vistos como coisa de ninguém e a classe política é, muitas vezes, a concretização

potencializada desta mentalidade anti-ética, interesseira e individualista. Nossos políticos,

com um salário escandalosamente desproporcional ao do trabalhador comum, se apoderam,

através da corrupção, encarada como um prática normal de tão comum, do bem público e

defendem apenas seus interesses, legislando quase sempre em causa própria. Com raríssimas

exceções nossos políticos tratam o bem público como propriedade privada, não são

administradores ou representantes populares, mas exploradores gananciosos. Quem tem voz

não a levanta contra eles e o povo comum, ou vive alheio às questões políticas, por falta de

acesso mínimo à cultura, ou compartilha da imoralidade deles.

Para Camus, matar o homem não é apenas tirar-lhe a vida física, é também impedi-lo

de viver em sentido pleno, por causa do desrespeito a sua dignidade. A atualidade do

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pensamento de Camus encontra-se sobretudo no vigor de sua reflexão ética, como antídoto a

esta cultura da desonestidade, do egoísmo e da indiferença às desigualdades e injustiças;

dentre os vários valores éticos que ele defende como garantia da vida humana digna,

padecemos sobretudo da ausência de dois: o engajamento e a solidariedade, como os vimos na

Peste.

Publicado em 1947, La Peste teria sido iniciado bem antes, desde 1941, o que mostra

que os temas da Revolta surgiram na seqüência imediata da reflexão sobre o Absurdo. A

consciência do Absurdo é um ponto de partida e não deve ser separado, no universo

camusiano, da Revolta que ela provoca. Da mesma forma que as obras principais de Camus,

distribuídas em dois ciclos, articulam-se num conjunto orgânico, em que textos diversos

dialogam, interrogando, questionando e completando uns aos outros, assim também as noções

básicas de Absurdo e Revolta estão intimamente imbricadas e precisam ser compreendidas

uma em função da outra.

No prefácio a Le Mythe de Sisyphe, Camus afirma que o Absurdo não é uma

conclusão, mas um ponto de partida. As obras do Absurdo já contêm as sementes da Revolta e

as obras da Revolta se compreendem dentro do sentimento e da consciência do Absurdo. A

passagem de L'Étranger a La Peste corresponde à passagem de Le Mythe de Sisyphe a

L'Homme révolté. A experiência do Absurdo nasce do sentimento de que o homem não está

em harmonia com o mundo, ela desemboca na expressão da Revolta, na ação coletiva. Em

Remarque sur la révolte, texto publicado em 1945, lemos: ―Dans l‘expérience absurde, la

tragédie est individuelle. À partir du mouvement de la révolte, elle a conscience d‘être

collective. Elle est l‘aventure de tous. [...] Le mal qu‘éprouvait jusque-là un seul homme

devient peste collective‖ (CAMUS, 1965, p.1685).

O Absurdo, enquanto o dar-se conta do homem de que o mundo em que ele vive não

corresponde aos seus anseios fundamentais de compreensão e felicidade, de paz e justiça,

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conduz à Revolta, ou seja, ao esforço comum para alterar a face deste mundo. Assim, a

consciência do Absurdo é condição necessária para a passagem à Revolta.

O Absurdo aparece como um processo mental, mesmo se não pode ser reduzido a uma

simples noção, por causa de sua dimensão de experiência existencial, mas trata-se de uma

percepção do indivíduo de que a condição humana no mundo é permanentemente conflituosa.

Assim, mesmo se muitos homens podem constatar o Absurdo de sua condição, esta

constatação se faz por meio de uma experiência individual e pode se manter restrita à

consciência pessoal. Por isso, é difícil dizer que alguém agiu movido pelo Absurdo; antes, o

Absurdo sozinho está muito próximo do conformismo niilista.

A Revolta, por sua vez, enquanto conseqüência do Absurdo e reação a ele, é um

sentimento interior que exige uma expressão, e não pode se manter apenas no nível do

pensamento ou da reflexão, mas supõe necessariamente uma atitude. O homem que age

movido pelo Absurdo que ele constata e contesta é um homem revoltado. A Revolta exige

uma exteriorização, uma ação. Como o homem é um ser político e social, as suas atitudes têm

efeitos sobre os outros; por isso a Revolta visa ao social, ao grupo humano. Um homem

revoltado não pode buscar o isolamento. Essa caracterização que Camus confere a estes dois

termos filosóficos subsiste em suas obras literárias, cujo pano de fundo é constituído por tais

noções, donde a importância do coletivo na Peste.

Ao passo que L'Étranger é a história de um indivíduo, quase incomunicável e que se

debate interiormente diante da constatação do Absurdo e cuja vida é perturbada pela situação

absurda que se abate sobre ele, La Peste é a história de uma cidade, um microcosmo, metáfora

do macrocosmo. Trata-se aqui de um grupo de indivíduos que não apenas refletem e se

angustiam, mas também, e acima de tudo, agem e lutam juntos tentando vencer um flagelo

absurdo que os oprime.

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Na Peste os indivíduos não se isolam, mas procuram se associar. É o romance da

comunidade humana, contraposto ao romance do indivíduo. Nele os aspectos políticos,

econômicos e práticos se sobrepõem aos aspectos subjetivos. Se Meursault é o personagem

solitário, Rieux é o personagem solidário que, junto com outros, luta e age contra o mal que

os atormenta, mesmo se não consegue descobrir a origem nem compreender a razão da

existência deste mal.

Mas o próprio movimento que vai do Absurdo à Revolta obriga a se passar do

individual ao coletivo e, daí, a se inscrever na história. Sob a pressão da história, a revolta

inicialmente individual se torna coletiva. Apesar do que se disse à época da polêmica gerada

pela publicação de L'Homme révolté, Camus nunca rejeitou a história, recusou apenas a

concepção teleológica da história e recusou-se a sacralizá-la e a acreditar que ela pudesse dar

um sentido à vida ou ter um valor absoluto. Em seus Carnets, anota em setembro de 1939:

―La guerre a éclaté. [...] si ignoble que soit cette guerre, il n‘est pas permis d‘être en dehors‖

(CAMUS, 1962, p.166). A guerra, como a peste, ―diz respeito a todos‖ (CAMUS, 1962,

p.1273). Para alguns críticos, a dimensão política e histórica não é muito presente nos textos

do ciclo do Absurdo, mas o autor, na época em que escreve tais textos, já dá provas de uma

forte consciência política, já escreve seus artigos em jornal e luta na história, com um

engajamento bastante precoce.

Camus viveu num período da História marcado pela violência e por conflitos. As

guerras e revoluções do século XX tiveram grande impacto e repercussão sobre os

movimentos artísticos e culturais, sobre escritores e filósofos. A dúvida atinge numerosas

consciências após a Primeira Guerra Mundial, com a Segunda Guerra se acentua a

desconfiança para com os valores da sociedade ocidental que gerou tais monstruosidades.

Além disso, Camus conheceu de perto a miséria, a desigualdade e as injustiças que

imperavam entre o povo argelino e com quais ele e sua família sofreram. Com efeito, educado

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na pobreza, ele fez ainda muito jovem o aprendizado do engajamento político; afirma que não

aprendeu a liberdade com Marx, mas com a miséria, ou seja, não de maneira teórica, mas,

antes, muito concreta.

Sob o peso dos acontecimentos que marcaram a primeira metade do século XX, não é

difícil compreender a convergência e a recorrência de temas comuns que marcaram vários

escritores do entre guerras. Em suas obras podemos encontrar as mesmas interrogações.

Romancistas e filósofos são moralistas que, num período particularmente inquietante da

história, lembram que toda liberdade individual deve estar ligada à responsabilidade social.

Interrogando-se sobre o futuro da humanidade e desejando mudanças, há uma busca por

novas ciências, por novas teorias, políticas, morais, psicológicas e filosóficas, por novas

estéticas. Em todos os campos, o termo ―Revolução‖ é a palavra de ordem, que revela o

desejo de se buscar um novo ideal humano e social. De fato, essas interrogações comuns a

muitos autores estão presentes em toda a obra de Camus, com uma dimensão ética que

adquire maior relevância nas obras que compõem o Ciclo da Revolta.

Consciência do Absurdo e Revolta fundam um atitude diante do mundo, uma ética. Ou

seja, mesmo se Camus rejeita a realidade de uma essência ou de valores que existiriam fora

dos atos humanos, mesmo se ele se reconhece ateu e critica a moral abstrata, rejeita

igualmente a atitude niilista e tenta definir uma moral laica. Neste sentido, uma passagem das

Lettres à un ami allemand é significativa:

Vous n‘avez jamais cru au sens de ce monde et vous en avez tiré l‘idée que

tout était équivalent et que le bien et le mal se définissaient selon qu‘on le

voulait. Vous avez supposé qu‘en l‘absence de toute morale humaine ou

divine les seules valeurs étaient celles qui régissaient le monde animal, c‘est-

à-dire la violence et la ruse. [...] J‘ai choisi la justice au contraire, pour rester

fidèle à la terre. Je continue à croire que ce monde n‘a pas de sens supérieur.

Mais je sais que quelque chose en lui a du sens et c‘est l‘homme, parce qu‘il

est le seul être à exiger d‘en avoir. Ce monde a du moins la vérité de

l‘homme et notre tâche est de lui donner ses raison contre le destin lui-même

(CAMUS, 1965, p.240).

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Através de personagens como Rieux e Tarrou, La Peste nega o dogmatismo e a

abstração, a violência e o crime, as ideologias dos Estados totalitários, mas critica igualmente

a passividade e o conformismo, defendendo a luta contra a injustiça e a opressão, numa

demonstração da exigência de transformação social. Ante as três possíveis respostas ao

Absurdo: a morte (suicídio ou homicídio), a esperança (ou toda espécie de fuga metafísica) e

a Revolta, esta última é a única aceita por Camus. Diante do sofrimento e da consciência de

pertencer a uma coletividade, a Revolta é a primeira evidência que tira o indivíduo da sua

solidão. A peste, por um lado, é aquilo que desagrega a comunidade, ou seja, aquilo que

atenta contra o viver-junto; por outro lado, é ela que exige que os homens se lancem juntos na

ação e que tenham uma conduta solidária, em favor dos interesses da coletividade.

Na Peste, as formações sanitárias voluntárias, separadas dos serviços oficiais (mal

organizados, ineficazes e inadaptados), pouco a pouco, agregam quase todos os personagens

que, com a exceção maior que é Cottard, comprometem-se com a luta contra a doença, que

simboliza o mal. Desta maneira, a recusa de se resignar ao mal é a base de uma moral da

solidariedade, da responsabilidade e da resistência.

A ética derivada do Absurdo e da Revolta apresenta outros componentes, como a

exigência de lucidez. As obras de Camus convidam a uma tomada de consciência do Absurdo:

vida cotidiana repetitiva e desprovida de sentido, existência sujeita ao tempo, o escândalo da

morte. Daí a crítica da ordem social (os juízes de L'Étranger praticam a injustiça para salvar

as convenções), das concepções religiosas (como as do padre Paneloux) e da ação

revolucionária que recai na opressão e no crime (como o stalinismo).

Esta busca da lucidez vem junto com a exigência de sinceridade, vista como um valor

que fundamenta a autenticidade de comportamento. Nos romances de Camus, encontramos

uma sátira das linguagens estereotipadas ou marcadas pela convenção, como a dos juízes e

padres. Durante seu processo, Meursault dá aos juízes respostas de uma franqueza completa,

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ao passo que a oratória teatral dos juízes configura em L'Étranger a linguagem da enganação.

Toda a tragédia ocorrida no Malentendu é conseqüência de uma brincadeira que corresponde

a uma falta de sinceridade. À palavra demasiado convencional, os heróis de Camus preferem

em certos casos a intensidade de um silêncio.

Outra componente da ética camusiana é a exigência de uma conduta solidária. La

Peste nos mostra homens que se lançam na ação e na luta. Mesmo se esta atividade é de certa

forma desesperada, visto que todas as vitórias são sempre provisórias. Por sua luta contra o

flagelo, o homem mais simples, representado pelo personagem Grand, revela sua grandeza e

sua dignidade, encontrando uma razão de viver no exercício da solidariedade.

Na linha da reflexão ética da autenticidade e da solidariedade compreende-se a opinião

de Camus – que vai de par com sua atitude coerente enquanto artista engajado, uma vez que

ele nunca cessou de reagir aos problemas de seu tempo – segundo a qual ninguém é política e

moralmente neutro, pois não é possível manter-se ausente dos jogos de forças antagônicas da

sociedade. Neste sentido, não se levantar contra a corrente política injusta e predominante

numa sociedade configura-se de alguma forma como aprovação que reforça a perpetuação

dessa mesma tendência predominante.

Na introdução ao segundo volume das obras completas de Albert Camus da

Bibliothèque de la Pléiade, Roger Quilliot, ao explicar a escolha feita para o critério de

apresentação dos textos do autor, afirma que toda classificação se mostra um pouco arbitrária,

pois a política não se separa em Camus da reflexão filosófica e moral, nem da reflexão sobre a

arte ou da pesquisa literária. Este aspecto de uma reflexão diversificada, com temas

recorrentes que perpassam várias obras, ensaísticas e ficcionais, é válido sobretudo para a

reflexão filosófica de aspecto ético, que se encontra disseminada em vários textos do autor e

adquire maior relevância nos textos que compõem o Ciclo da Revolta. Este aspecto ideológico

está presente também nos romances e nas peças de teatro, mesmo se a literatura, para ele,

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nunca é apenas uma maneira de exprimir idéias. Camus não propõe sistema nem programa:

artista, jornalista, intelectual, ele propõe valores, exigências próprias da democracia e

interpela as forças políticas, a começar pela esquerda, a que chama sua família.

Se a época moderna pode ser caracterizada como um tempo em que tudo é absurdo,

mas nada é escandaloso, porque todos se acostumam a tudo, podemos caracterizar por

oposição o pensamento de Camus, para quem o Absurdo é sempre escandaloso. Discutindo a

Revolta que implica o Absurdo, Camus combate todo conformismo e toda indiferença ante a

injustiça e a opressão. Ele propõe ao mesmo tempo a tolerância ante as diferenças pessoais e a

capacidade de indignar-se diante de uma sociedade baseada nas desigualdades. Se o Absurdo

é sempre um escândalo, que nunca deve ser aceito como natural, a tendência mais perigosa é

o conformismo. Perigo apontado na Peste:

Nos concitoyens s'étaient mis au pas, ils s'étaient adaptés, comme on dit,

parce qu'il n'y avait pas moyen de faire autrement. Ils avaient encore,

naturellement, l'attitude du malheur et de la souffrance, mais ils n'en

ressentaient plus la pointe. Du reste, le docteur Rieux, par exemple,

considérait que c'était cela le malheur, justement, et que l'habitude du

désespoir est pire que le désespoir lui-même (CAMUS, 1962, p.1366).

Esta dimensão ética presente na Peste não deixa de estar ligada à dimensão estética

num escritor que afirma que a nobreza do ofício de escritor está na resistência à opressão e

para quem o senso de beleza é inseparável de um certo senso de humanidade.

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8 BIBLIOGRAFIA

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Narrativa:

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La Chute. Paris: Gallimard, 1956.

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Teatro:

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Caligula. Paris: Gallimard, 1944.

Le Malentendu. Paris: Gallimard, 1944.

L’État de Siège. Paris: Gallimard, 1948.

Les Justes. Paris: Gallimard, 1950.

Adaptações teatrais:

La dévotion à la croix, de Calderón de la Barca. Paris: Gallimard, 1952.

Les Esprits, de Pierre de Larivey. Paris: Gallimard, 1953.

Un cas intéressant, de Dino Buzatti. Paris: L‘avant-scène, 1955.

Le Chevalier d’Olmedo, de Lope de Vega. Paris: Gallimard, 1957.

Requiem pour une none, de William Faulkner. Paris: Gallimard, 1957.

Les Possédés. De Dostoïevsky. Paris: Gallimard, 1959.

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Ensaios filosóficos:

Le Mythe de Sisyphe. Paris: Gallimard, 1942.

L’Homme révolté. Paris: Gallimard, 1951.

Ensaios literários:

L’Envers et l’endroit. Alger: Charlot, 1937.

Noces. Alger: Charlot, 1938.

L’Été. Paris: Gallimard, 1954.

L’Exil et le royaume. Paris: Gallimard, 1957.

Ensaios políticos e escritos jornalísticos:

Lettres à un ami allemand. Paris: Gallimard, 1945.

Actuelles. Paris: Gallimard, 1950.

Actuelles II. Paris: Gallimard, 1953.

Réflexions sur la peine capitale. (avec Koestler) Paris: Calmann-Lévy, 1957.

Actuelles III. Paris: Gallimard, 1958.

Discours de Suède. Paris: Gallimard, 1958.

Cahiers Albert Camus 8 - Camus à Combat. Paris: Gallimard, 2002.

Obras autobiográficas:

Carnets, mai 1935 – février 1942. Paris: Gallimard, 1962.

Carnets II, janvier 1942 – mars 1951. Paris: Gallimard, 1964.

Carnets III, mars 1951 – décembre 1959. Paris: Gallimard, 1989.

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Journaux de voyage, 1946-1949. Paris: Gallimard, 1978.

Correspondência:

Avec Jean Grenier. Paris: Gallimard, 1981.

Avec Pascal Pia. Paris: Gallimard, 2000.

Edições críticas:

Théâtre, récits, nouvelles. Paris: Gallimard, 1962. Préface par Jean Grenier. Édition

établie et annotée par Roger Quilliot. Pléiade.

Essais. Paris: Gallimard, 1965. Introduction par Roger Quilliot. Édition établie et

annotée par Roger Quilliot et Louis Faucon. Pléiade.

Traduções:

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A Peste. Rio de Janeiro: Abril Cultural, 1984. Tradução de Valery Rumjanek.

O Mito de Sísifo. 3a ed. Rio de Janeiro: Guanabara, 1989.

O Primeiro homem. 2ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1994.

A Peste. Rio de Janeiro-São Paulo: Record, 2004. Tradução de Valerie Rumjanek.

Apresentação de Savas Karydakis.

O Homem revoltado. 6a ed. Rio de Janeiro-São Paulo: 2005. Tradução de Valerie

Rumjanek.

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Site CEDITEC:

(http://www.univ-paris12.fr/www/labos/ceditec/maingueneau.html)

Consulta e impressão de textos em 25/07/2006. Textos de D. MAINGUENEAU:

"Typologie des genres de discours"; "L'Ethos, de la rhétorique à l'analyse du discours";

"Scénographie épistolaire"; "L'Énonciation philosophique comme institution discursive";

"Linguistique et littérature: le tournant discursif" e "Self-constituting discourses".