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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO Programa de Pós-Graduação em Letras A DIALÉTICA DO CAOS: UMA INTERPRETAÇÃO DE O CÃO E OS CALUANDAS DE PEPETELA Pedro Paulo Machado Nascimento Gloria Rio de Janeiro Fevereiro de 2016

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

Programa de Pós-Graduação em Letras

A DIALÉTICA DO CAOS: UMA INTERPRETAÇÃO DE O CÃO E OS

CALUANDAS DE PEPETELA

Pedro Paulo Machado Nascimento Gloria

Rio de Janeiro

Fevereiro de 2016

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A DIALÉTICA DO CAOS: UMA INTERPRETAÇÃO DE O CÃO E OS

CALUANDAS DE PEPETELA

Pedro Paulo Machado Nascimento Gloria

Dissertação de Mestrado submetida ao

Programa de Pós-Graduação em Letras

Clássicas da Universidade Federal do Rio

de Janeiro – UFRJ, como parte dos

requisitos necessários para a obtenção do

título de Mestre em Letras Vernáculas.

Orientadora: Profa. Doutora Maria Teresa

Salgado Guimarães da Silva.

Rio de Janeiro

Fevereiro de 2016

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Pedro Paulo Machado Nascimento Gloria

Orientadora: Professora Doutora Maria Teresa Salgado Guimarães da Silva

Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras

Vernáculas, Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ,

como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Mestre em Letras

Vernáculas.

Aprovada por:

Profª Drª Maria Teresa Salgado Guimarães da Silva(Presidente)

Profª Drª Gumercinda Gonda

Profª Drª Claudia Fabiana

Profª Drª Luana Antunes

(Suplente)

Prof. Dr. Mário César Lugarinho

(Suplente)

Rio de Janeiro

Fevereiro de 2016

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Gloria, Pedro Paulo Machado Nascimento.

A Dialética do caos: Uma interpretação de O Cão e os

Caluandas de Pepetela. - Rio de Janeiro: UFRJ/ Faculdade de

Letras, 2016. xi, 260f.: il.; 31 cm.

Orientador: Maria Teresa Salgado Guimarães da Silva

Dissertação (mestrado) – UFRJ/ Faculdade de Letras/

Programa de Pós-graduação em Letras Vernáculas, 2016.

Referências Bibliográficas: f. 89-95.

1.Literaturas Africanas em Língua Portuguesa. 2. Literatura

Angolana. I. Salgado, Maria Teresa. II. Universidade Federal

do Rio de Janeiro, Faculdade de Letras. III. Título.

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RESUMO

A DIALÉTICA DO CAOS: UMA INTERPRETAÇÃO DE O CÃO E OS

CALUANDAS DE PEPETELA

Pedro Paulo Machado Nascimento Gloria

Orientadora: Maria Teresa Salgado Guimarães da Silva

Resumo da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-graduação

em Letras Vernáculas, Faculdade de Letras, da Universidade Federal do Rio de Janeiro -

UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Letras

Vernáculas.

Muitos equívocos se cometem em relação à dialética quando utilizada como

justificativa de uma única doutrina ou visão de mundo. Isso não constitui dialética, visto

que, nesse caso, não se distingue contrários para diálogo, síntese ou superação, mas para

combate e posterior vitória de um deles, identificado com o bem. A partir desse ponto de

vista pseudo-dialético, maniqueísta por excelência, toda a realidade é julgada com base

nos padrões determinados pela doutrina “correta”: é nesse âmbito que interpretamos O

Cão e os caluandas de Pepetela como uma narrativa que provoca o questionamento dessa

pseudo-dialética que, na verdade, busca submeter o real a uma variedade de dualismos.

Esse questionamento se dá por um modo dialético de se lidar com o real que, na obra, se

revela pelos relatos feitos da presença de um cão andarilho pela cidade de Luanda. Este

simboliza o caos, porém não como um valor meramente negativo, mas como aquilo que

permite a criação do novo e do inesperado para além de qualquer dualismo intransigente.

O caos suscitado nos personagens pela chegada desse cão acaba por refutar dogmas

pessoais e sociais fundamentados numa visão de mundo maniqueísta.

Palavras-chave: Dialética; Literatura Angolana; Pepetela; Diálogo; Caos; Maniqueísmo.

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ABSTRACT

THE DIALECTS OF THE CHAOS: AN INTERPRETATION OF THE

PEPETELA’S O CÃO E OS CALUANDAS

Pedro Paulo Machado Nascimento Gloria

Orientadora: Maria Teresa Salgado Guimarães da Silva

Abstract da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-graduação

em Letras Vernáculas, Faculdade de Letras, da Universidade Federal do Rio de Janeiro -

UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Letras

Vernáculas.

Many misconceptions are made related with dialects when used to justify a single

doctrine or worldview. That is not what dialectics is made of, since, in this question, one

can not distinguish opponents for the dialogues, synthesis or overcoming, but to the fight

and victory of one of them, identified with the good. From this point of view, pseudo-

dialectical and Manichaeist, all reality is analysed inside very determined patterns pointed

by the “correct” doctrine: We inferred from this scope that Pepetela's O Cão e os

caluandas is a narrative that create a questioning of this pseudo-dialectics that, actually,

seek to submit the Real to a variety of dualities. This questioning is made through a

dialectic way to deal with the Real that, in this work, are revealed by the reports made in

the presence of a vagabond hound in Luanda City, It simbolizes the Chaos, though, not as

a mere negative value, but as something that enables the creation of a new and unexpected

thing beyond of any intransigent duality. The chaos provoked in the characters by the

arrival of this hound finishes to deny personal and social dogmas based in a manichaeist

view of the world.

Keywords: Dialectic; Angolan Literature; Pepetela; Dialogue; Chaos; Manichaeism.

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DEDICATÓRIA

Dedico esta dissertação aos poucos e raros que não se deixaram seduzir pela fatal

facilidade e falsa obviedade dos maniqueísmos politicos, religiosos e intelectuais deste

mundo.

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AGRADECIMENTOS

Aos professores Manuel Antônio de Castro, Cinda Gonda, Maria Teresa Salgado

e Antonio Jardim. A Fabrício Gonçalves, Verônica Filíppovna, Rogério Amorim e

Leonardo Perin. Tão diferentes caminhos de diálogo que, nos anos de graduação, me

despertaram as questões que deram origem a esta dissertação.

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SUMÁRIO

1. Introdução ......................................................................................................................... 1

2. Luanda Caótica: Lugar de escuta da Angola Polifônica .............................................. 6

2.1. Espaços ........................................................................................................................... 6

2.2. Vozes .............................................................................................................................. 7

2.3. O Cão: A Geografia de Luanda .................................................................................... 10

2.4. O Cão: A Memória de Luanda ..................................................................................... 11

2.5. O Caos .......................................................................................................................... 17

3. A Dialética do Caos: A Obra do Cão ............................................................................ 25

3.1. Dialética ........................................................................................................................ 25

3.2. A Obra do Cão .............................................................................................................. 29

4. Entre Judeus: A voz dialética do mulato e a ternura do judeu de Angola ............... 38

5. O Elogio da Ignorância: A condenação de Ngunga e a apoteose do

maniqueísmo .......................................................................................................................... 46

6. Os colonizados em Papelópolis e a Liberdade da Toninha: ou A Ordem

Burocrática e a Resistência da Utopia ................................................................................. 62

7. Conclusão ........................................................................................................................ 73

8. Referências Bibliográficas ............................................................................................. 76

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1. INTRODUÇÃO

Daí também que, ao nos debruçarmos

sobre a realidade angolana, estejamos de

fato, tentando o resgate de nossa própria

realidade. Porque apesar de todos os

rótulos que nos são impostos, apesar de

todas as crises fabricadas por interesses

financeiros, conseguimos manter a chama

da indignação e do pensamento.

(Cinda Gonda)

Previno que qualquer dissemelhança com

fatos ou pessoas pretendidos reais foi

involuntária.

(Pepetela, em O Cão e os caluandas)

Em tempos onde várias ideologias, por suposta boa intenção, se proclamam

como a melhor, a mais libertadora ou a mais correta, relegando todas as outras à esfera

do errado a ser erradicado para o bem das sociedades, é preciso relembrar da dialética

como um modo de interpretação do real que não se deixa esgotar e fossilizar nos

extremos do sim e do não. A pluralidade do pós-moderno pode iludir de que a

intolerância, a transformação do outro em um “não” a ser reprimido, é assunto passado;

porém, o que se tem visto é que a pluralidade, em vez de ser entendida como a

convivência tolerante dos múltiplos, tem sido interpretada como permissão para a

existência de múltiplos intolerantes. Chega-se mesmo a defender o direito de relegar o

outro à esfera do errado, do abominável e do que deve ser excluído, e tudo isso em

nome de uma suposta liberdade de expressão. O maniqueísmo tem resistido tenazmente

na pós-modernidade; a visão binária de mundo tem resistido mesmo nas mentes que

acreditam ter uma visão dialética da vida, pois sua “dialética” não passa de um estranho

embate entre tese e antítese, até que sua tese vença. Em tais tempos, em que a essência

da dialética deve ser relembrada e vivida, há escritores que cumprem essa demanda em

sua sociedade. Nas literaturas de língua portuguesa, nas últimas décadas, poucos tem

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sido tão incisivos no cumprimento dessa demanda social e artística como o angolano

Pepetela. Pelo modo como o faz, é genuinamente angolano, pois está profundamente

enraizado nos acontecimentos de sua nação; a tal ponto que sua obra acaba por se

confundir com a própria tentativa de (re)construção de Angola como nação. Porém,

pelo alcance com que tece literariamente a questão da dialética do real, seu apelo pode

ser universal. A percepção do tratamento universal da questão, da qual pensá-la em

nossa sociedade nos parece de extrema urgência, foi o motivo de termos escolhido uma

das obras de Pepetela para esta dissertação. A obra escolhida foi O Cão e os caluandas,

uma obra do período intermediário de Pepetela: está exatamente entre as obras utópicas

do período de luta pela libertação de Angola da colonização portuguesa e as obras de

desilusão com a utopia no período da guerra civil.

O Cão e os caluandas é um texto diferenciado em vários sentidos. Classificado

como um romance, apresenta uma estrutura narrativa aparentada com uma seleção de

segmentos narrativos, documentais e até teatrais que possuem em comum a presença de

um cão andarilho da cidade de Luanda. Cada um desses segmentos, cada qual com seu

narrador próprio, foram colhidos, escolhidos e dispostos por um narrador-organizador

sob o pretexto de procura desse cão. Será em torno, portanto, da figura desse cão que

será feita a interpretação contida nessa dissertação. Como não foi possível interpretar

cada um dos segmentos que compõe a obra, optamos por nos deter naqueles que nos

pareceram ser capitais na estrutura de O Cão e os caluandas, afim de nos

concentrarmos na questão dialética que perpassa não só essa obra, mas a visão crítica

do real presente nas obras pepetelianas. Estabeleceremos diálogo, principalmente, com

as obras As Aventuras de Ngunga, Mayombe (ambas anteriores a O Cão e os

caluandas) e A Geração da Utopia (posterior). Mostraremos também o elo da literatura

de Pepetela com importantes autores do pensamento ocidental a quem a própria obra

faz menções, sejam diretas, sejam “digeridas” literariamente. A linguagem simples e

direta, por vezes amável e simpática de Pepetela, não deve enganar: sua obra trata de

questões capitais a toda civilização e se alimenta de grandes referências tanto do

pensamento ocidental quanto da cultura dos povos africanos. Assim, sua literatura

cumpre seu papel de construir pontes e mostra ser aberta a acolher as faces mais

distintas do humano; é desse modo que devemos compreender o humanismo literário

de Pepetela.

No primeiro capítulo desta dissertação, “Luanda Caótica: Lugar de escuta da

Angola Polifônica”, empreendemos uma interpretação da narrativa O Cão e os

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Caluandas como interpretação dialética da realidade e construtora de uma geografia

literária luandense e angolana. Primeiro se fará a exposição e interpretação do espaço

inaugurado na obra a partir do espaço de Luanda, por sua vez, metáfora do espaço do

Estado Angolano. Faremos uso de algumas das noções de geografia literária na análise

dos meios pelos quais os relatos escritos acerca do cão escrevem a cartografia de

Luanda. Após a reflexão a partir desse espaço ficcional que não se confunde com o

físico, embora a ele faça referência e o ressignifique, e do papel descentralizador do cão

andarilho, se fará uma análise do povoamento desse espaço. Tal povoamento é feito

pela memória dos moradores de Luanda, acerca do que viram, ouviram falar ou mesmo

do que conviveram com o cão. Este, como memória, a partir da ausência e da presença,

do esquecimento e da lembrança, instaura a crise (maka, confusão), que permite a

construção de outros espaços e a trama da memória como realização. Desse modo, o

cão traz à tona aspectos da realidade que se encontravam silenciados, voluntariamente

ou não. É então que introduziremos a questão do caos como possibilitador dialético das

novas possibilidades de leitura e construção de espaço e memória, ou seja, realidade.

Três segmentos da obra foram selecionados para esse fim; são eles Luanda assim,

nossa, O primeiro oficial, O cão escapa de aparecer no jornal e os relatos da luta do

cão contra a buganvília. Porém, obviamente, a interpretação é feita tendo-se em vista e

fazendo-se referência a toda a obra, sem a qual não seria possível interpretar a figura do

cão, multifacetada, única, provocadora das mais diferentes reações emocionais e

questionamentos.

No segundo capítulo, “A Dialética do Caos: a Obra do Cão”, com o apoio

teórico das concepções de Gerd Borheim em sua Dialética: Teoria e Praxis, se refletirá

sobre uma visão dialética de mundo em contraposição a uma visão maniqueísta. A

visão dialética de mundo presente em O Cão e os caluandas, representada e

possibilitada pelo cão, dialogará por meio deste com a figura de Mefistófeles, um diabo

que aparece pela primeira vez a Fausto na forma de um cão na obra de Goethe, e com a

procura pelo ser e/ou não ser do diabo do personagem Riobaldo de Grande Sertão:

Veredas de Guimarães Rosa. A figura do cão passa a ser relacionada à figura do diabo,

porém destituído da visão negativa das doutrinas e concepções de fundo maniqueísta

que marca tanto algumas religiões quanto filosofias no Ocidente. O diabo passa a ser

considerado, numa visão de mundo dialética, como um princípio de retorno ao caos e

como um agente de desestabilização: Caos e desestabilização necessários para

promover a libertação quanto a estruturas caducas e possibilitadores da criação do

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novo. Pretendemos mostrar o quanto o cão de O Cão e os caluandas pertence a uma

visão africana das forças que foram relacionadas ao mal e ao “demoníaco” no Ocidente,

visão africana essa que as considera parte integrante da natureza e da existência, e não

mal a ser vencido ou suprimido.

No terceiro capítulo, “Entre Judeus: A voz dialética do mulato e a ternura do

judeu de Angola”, procuraremos mostrar o quanto, na obra pepeteliana, a figura do

mulato está ligada à um visão de mundo dialética, enunciada como o “talvez”, ignorado

e hostilizado num mundo maniqueísta de “sim” e “não”. Essa ligação não se dá por uma

relação racial ou de apologia à mestiçagem, mas por um viés apenas simbólico. Será

interpretado o segmento Entre Judeus de O Cão e os caluandas a partir do ponto de

vista acima exposto, concluindo-se numa reflexão acerca da “ternura” na obra de

Pepetela, relacionando o segmento supracitado com aspectos da obra As Aventuras de

Ngunga, do mesmo autor.

No quarto capítulo, “O Elogio da Ignorância: A condenação de Ngunga e a

apoteose do maniqueísmo” apontaremos as conseqüências do julgamento maniqueísta

da realidade. O Elogio da Ignorância, o primeiro dos dois segmentos em forma

dramática de O Cão e os caluandas, será interpretado como a não realização e até

negação, por parte da trajetória angolana até então, daquele ideal humanista

personificado no personagem Ngunga de As Aventuras de Ngunga. Buscaremos

explicar a relação paródica e de pensamento com o Elogio da Loucura de Erasmo de

Roterdã, que inclusive é citado nominalmente no segmento. Mostraremos, também, o

quanto a crítica pepeteliana contida nesse segmento crucial da obra, algo como que uma

miniatura dela mesma, dialoga de maneira bem próxima com o pensamento do

educador brasileiro Paulo Freire na obra Pedagogia do Oprimido, acerca do fracasso

dos movimentos libertadores ao buscarem mudar um estado social sem atentar em

remover certos padrões maniqueístas de julgamento herdados da estrutura social

anterior. A falta de diálogo, resultante da visão do outro como “coisa” útil a ser

manipulada para um fim maior, também será brevemente abordada a partir da

consideração das relações Eu-Tu e Eu-Isso na obra Eu e Tu de Martin Buber.

No quinto e último capítulo, “Os colonizados em Papelópolis e a Liberdade da

Toninha: ou A Ordem Burocrática e a Resistência da Utopia”, demonstraremos que o

fato de a utopia da democracia socialista em Angola ter acabado sufocada em meio a

um processo de administração social burocrático é uma das maiores críticas de O Cão e

os caluandas. Primeiramente, será exposta a natureza da burocracia; para tanto,

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recorreremos às noções de Max Weber em sua obra Economia e Sociedade, na qual a

burocracia é analisada como forma de opressão aceita por seu caráter aparentemente

neutro. Após interpretação de segmentos de O Cão e os caluandas compostos por

documentos burocráticos, interpretaremos a desilusão com a utopia inicial em vista da

realidade angolana no pós-independência. Porém não a interpretaremos como uma

desistência da utopia, mas como a permanência da utopia em outras formas. A utopia da

luta por um ideal de mudança social definitiva dá lugar à visão dialética da utopia do

inconformismo perante qualquer situação que se diz definitiva e imutável. A figura da

toninha, pela qual o cão se apaixona, revelará essa nova postura utópica, que não

pretende ajustar a realidade a um ideal, mas ouvir as demandas dessa realidade. A

utopia se estabelece como diálogo entre a fala do sonho e a fala da realidade.

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2 . LUANDA CAÓTICA: LUGAR DE ESCUTA DA ANGOLA POLIFÔNICA

A poesia do caos

Chegou sem avisar

Alvoroçou todos os pássaros

Fez muita gente debandar.

A poesia do caos

Pairou sobre as favelas

Como uma aurora boreal

E desfez todas mazelas.

A poesia do caos

Eclodiu no planalto

E fez o foco central

A postura de arauto.

A poesia do caos

Se fez presente na invenção

De dissertar a diferença

Entre tecnologia e evolução.

(Vício Primavera)

2.1. Espaços

A obra de arte é instauradora de espaço e tempo. Ao entrar no espaço e no

tempo de O Cão e os Caluandas de Pepetela, percebe-se um espaço que independe

daquele definido pelo Estado Angolano, embora seja construído a partir dessa

cartografia previamente definida e mesmo a ressignifique. De modo algum trata-se de

ver na obra um espaço alienado da realidade dos espaços angolanos históricos; há sim

na obra um espaço autônomo, fundado pela linguagem e que só existe a partir da

linguagem. Porém, justamente por, sendo literário e ficcional, existir a partir da

linguagem, esse espaço se configura como releitura dos espaços da realidade, mais

particularmente dos espaços da realidade angolana.

Tratando-se de uma nação africana, é importante distinguir Estado, nação e

povo, como bem observa Kwame Appiah:

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A história da Europa metropolitana no último século e meio foi a da

luta para estabelecer a condição de Estado para as nacionalidades.

Mas, na independência, a mesma Europa deixou a África com Estados

à procura de nações.

(Appiah, 1997, p.227)

Isso vai se refletir na construção do espaço em diversas obras literárias

africanas, entre as quais a presentemente estudada. Acerca disso o próprio Pepetela se

pronunciará numa entrevista a Michel Laban, ao ser perguntado se haveria algum tema

em comum nas suas obras: “Há um tema que é comum, que é o tema da formação da

nação angolana; isso faz o denominador comum” (In Laban, 1990, p.771).

Na obra pré-independência de Pepetela, seus personagens pareciam conceber a

construção dessa nação a partir da libertação quanto ao colonizador português, mas uma

obra como Mayombe já anunciava a possível intriga entre as várias etnias na tentativa

de governarem o mesmo Estado. Quando ocorre a independência, sendo Pepetela

ministro do governo, a escrita de O Cão e os Caluandas marca a grande decepção (não

tão inesperada) que vai culminar na desilusão profunda de A Geração da Utopia, já nos

tempos da guerra civil. A escolha de Luanda como símbolo de Angola não é gratuita:

Na verdade, a particularidade africana de Luanda permite defini-la

como uma multiplicidade, na medida em que ela seria, na realidade, a

junção de três cidades distintas [...] em sua multiplicidade é, também, e

talvez mesmo pelas contradições que a percorrem, a imagem símbolo

de Angola.[...] Não causa espécie, portanto, que a cidade seja referência

obrigatória no imaginário nacional e cenário privilegiado da literatura

produzida no país. Dessa forma, cremos que estudar a literatura

produzida em Angola é obrigatoriamente referir-se a Luanda, sua

história e sua gente. (Macêdo, 2008, p.13-14)

Desse modo, Luanda em Pepetela se torna mesmo a materialização da obra

literária, tal qual trataremos a seguir: não um local de escuta de um narrador, de uma

ideia, de uma estética ou de uma voz, mas local de escuta de vários narradores, de

várias ideias, de múltiplas estéticas e das mais variadas vozes. Luanda e a obra literária

tornam-se local de escuta de uma Angola polifônica, universalizada a ponto de

representar a polifonia do mundo em que todos os povos vivem.

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2.2. Vozes

O Cão e os Caluandas é um ponto sísmico na literatura angolana e uma obra

única, mesmo na tradição literária luciânica, a qual pertence pelo uso da paródia e da

sátira sem caráter moralizante, pela liberdade de imaginação e, principalmente, pela

mistura de gêneros que marca a obra.

Transcrições de depoimentos, entrevistas e conversas informais,

relatórios, atas, ofícios, requerimentos, diários, cenas em modo

dramático, matérias jornalísticas, entrelaçam-se constantemente, de

modo a dificultar ou impossibilitar a classificação genérica. [...]

Pepetela utiliza essa “instabilidade genérica” como estratégia

narrativa destinada a problematizar o estatuto ficcional, postura

afinada com o espírito e método da tradição luciânica. (Martins, 2008,

p.2)

Outra característica importante da tradição luciânica é o distanciamento do

narrador. No caso de O Cão e os Caluandas, o narrador se distancia de tal modo que

torna-se um organizador dos relatos de muitos narradores. Isso o próprio narrador-

organizador diz no seu “Aviso ao leitor” em que, inclusive, também se coloca

distanciado do tempo em que os relatos aconteceram:

Peço esforço para compreenderem a linguagem, que é a da época em

que aconteceram os casos. Os que conheceram o cão pastor-alemão

deixaram os documentos escritos ou gravados, que me resumi a pôr em

forma publicável. Foi preciso um inquérito rigoroso, muitas solas

gastas, a procurar as pessoas e, sobretudo, convencê-las a falar, a

escrever ou a darem-me na candonga fotocópias de documentos. O

pouco conseguido aí está. (Pepetela, 2006, p.9)

Não poderia mesmo ser única e contada por um só narrador essa obra que se

coloca como reflexo das angústias e contradições de um povo plural e de uma nação

fragmentada em tantas. Do mesmo modo, essa obra que também reflete um contundente

o desejo de unidade não poderia ser um mero emaranhado de fragmentos e vozes

narrativas dispersas. Assim, Pepetela constrói com mestria uma narrativa composta de

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narrativas independentes, cada qual com seu próprio narrador, sendo ordenadas na obra

por uma espécie de narrador organizador. É a polifonia, numa obra que traz as questões

de um povo plural, levada até as últimas consequências.

[..] as vozes, aqui, permanecem independentes e, como tais, combinam-

se numa unidade de ordem superior à homofonia. E se falarmos de

vontade individual, então é precisamente na polifonia que ocorre a

combinação de várias vontades individuais, realiza-se a saída de

princípio para além dos limites de uma vontade. Poder-se-ia dizer

assim: a vontade artística da polifonia é a vontade de combinação de

muitas vontades, a vontade do acontecimento. (Bakhtin, 2008, p.23).

Nesse aspecto, a polifonia da obra realiza a unidade da comunidade e não a

uniformidade do coletivo. O coletivo trataria da uniformização das vozes traduzida na

voz única do narrador; já a comunidade traz a audição das várias vozes narrativas no

espaço comum ofertado pela obra, numa intensa unidade. A unidade da comunidade

pressupõe a coexistência com a multiplicidade, a uniformidade do coletivo impõe a

transformação de cada um dos múltiplos em um só deles. Nisso reside, inclusive, a

principal característica do projeto de nação que perpassa toda obra pepeteliana, uma

unidade onde coexiste a multiplicidade e não uma uniformização em que, sendo

imposto um padrão, aquele que não se adequa a ele é eliminado e o que se adequa deixa

de ser pessoa para ser apenas mais uma peça de uma grande máquina. A obra pepeliana

faz-se, desse modo, lugar de escuta de uma Angola polifônica, onde nem mesmo o

narrador tem o direito de fazer sua voz se sobrepor às demais.

A estrutura de O cão e os calunas, mais que a de qualquer outra obra

pepeteliana, reflete essa polifonia. Ela é composta de seções ou segmentos, cada um

deles com um narrador diferente. Visto sua total descontinuidade e independência, é

preferível chamá-las seções ou segmentos e não capítulos. Um “Aviso ao leitor” de um

narrador organizador antecede todos os relatos e a obra se fecha com dois relatos

também da sua autoria. Os segmentos tem apenas duas coisas em comum, a procura de

um cão e a presença do cão entre os moradores de Luanda: o cão e os caluandas. O

pretexto é a busca do narrador organizador por esse cão; e para tal colhe relatos das

pessoas que o teriam visto. Entre eles, como que os amarrando, há um relato em forma

de diário que conta o cismar e a luta do cão contra uma buganvília que cresce tomando

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conta de todo o quintal. Essa luta é uma metáfora da realidade angolana no pós-

independência e mesmo da própria obra, como veremos na última seção deste capítulo.

2.3. O Cão: a Geografia de Luanda

Os relatos que formam a obra não são de forma alguma sobre o cão, mas acerca

do cão. À sua volta giram os relatos das vozes que vão formando sua imagem, como a

circunferência feita por um compasso, desenhada à volta e a partir do ponto central sem

jamais tocá-lo. Isso dá a cada relato que forma essa circunferência vários significados e

interpretações. Deve-se ter o cuidado de não se perder na linha do círculo e suas

nuances, nos relatos e no que se restringem apenas ao seu tempo e espaço, mas o centro

estará presente em cada visão do círculo, ainda que não observada antes, e causará

makas excentricamente no espaço de Luanda. Há em O Cão e os Caluandas o retrato e

a caricatura, o momento histórico e a mensagem imediata, mas não só isso, antes, todas

essas faces nada mais são que a circunferência.

Por ser centro e nunca fixar-se num ponto – o cão nunca se fixa num local e por isso

a multiplicidade de relatos – ele se torna um agente descentralizador do espaço

constituído. É seu andar que cria o espaço, e Luanda já não é um lugar por onde passa o

seu caminho, mas por onde passa seu caminho que se torna Luanda.

Atravessou toda a cidade, indiferente ao transito, às novas ruas e

prédios novos, aos polícias e buzinadelas. Luanda era mesmo só o

ponto de passagem obrigatória do Mussulo para o seu destino, uma

quinta próspera nos arredores de Viana, onde tinha vivido uma

menina que escrevia os seus dramas num diário. (Pepetela, 2006,

p.166)

Esse caminho é tanto estendido às ruas de Luanda quanto ao coração dos

caluandas, que sofrem verdadeiras metamorfoses após sua chegada. A cartografia de

Luanda é formada pelo caminhar de suas patas, feito real pelas palavras dos que o

viram: o caminho do cão, um caminho da linguagem.

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O que é um caminho? Caminho é o que se deixa alcançar. A saga do

dizer é o que, sendo encantado, nos deixa alcançar a fala da

linguagem. O próprio da linguagem abriga-se, portanto, no caminho

com o qual a saga do dizer deixa aqueles que a escutam alcançar a

linguagem. Só podemos ser esses que escutam à medida que

pertencermos ao dizer e sua saga. O deixar alcançar, isto é, o caminho

para a fala, vem precisamente de um deixar pertencer à saga do dizer.

(Heidegger, 2003, p.205)

Estamos diante de uma obra poética em que a linguagem, pelos relatos de um cão,

devolve à geografia seu sentido primordial, o de escrita do reconhecimento humano do

espaço onde está e do qual faz parte, tal como Max Sorre sinalizava no século XIX ao

dissertar sobre a Geografia Humana: “[...] não é possível fazer Geografia Humana sem

imaginação. Esta tem sido sempre necessária. Onde falta a imaginação não há sentido

da diferença, ou seja, da originalidade de cada combinação local (Sorre, 2003, p.142)”.

E esse último período da citação do eminente geógrafo francês já não surpreenderia na

boca de Pepetela ou de um crítico de suas obras ao comentá-las.

2.4. O Cão: a Memória construtora de Luanda

É o não fixar-se que permite ao cão desenhar um cartografia da cidade; afinal, na

obra, os lugares só existem a partir do momento em que o canino passa por elas. Porém

quem povoa esse espaço é a memória dos moradores de Luanda que o viram, e são

esses relatos que, por sua vez, formam a obra. Convém não confundir memória com

lembrança, pois “o esquecimento pode estar tão estreitamente confundido com a

memória, que pode ser considerado como uma de suas condições” (Ricoeur, 2007,

p.435). O cão não se deixa apreender em detalhes pela lembrança numa obra que,

ironicamente, é toda lembrança dele, ou melhor, lembranças, já que as lacunas do

esquecimento provocam a multiplicidade de vozes da lembrança do cão. Isso permite

que seja lembrado de formas completamente diferentes, de modo que nem pareça o

mesmo cão.

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No texto em questão, ele assume nomes de origem grega, portuguesa,

latina e africana, ao longo dos vários capítulos: Jasão, Leão dos

Mares, Cupido, Lucapa. Seu caráter polivalente abre-se, portanto a

inúmeras interpretações [...] à medida que ele circula pela cidade de

Luanda, vêm à tona as diversas contradições sociais, econômicas,

políticas e/ou afetivas, das personagens envolvidas nas situações.

(Salgado, 2009, p.298)

Porém, é a ausência do cão que reforça a sua presença como força ressignificadora

da realidade angolana, como presença que dá ver o que está presente e não se quer, ou

não se deixa, ver; como presença simbólica que faz pensar o que não se quer pensar,

que revela ser o que não se quer que seja.

Memória é fazer vibrar a presença do que está aparentemente ausente, é

fazer aparecer o que é o que tem vigência como ser, tem sentido como

ser. Desse modo, se poderia entender memória como pensar, tanto no

sentido de propiciar, dar ensejo à reflexão, quanto no sentido de colocar

um penso, pôr um curativo, curar. Curar diz restabelecer, recuperar,

restaurar. Memória diz, portanto, também de uma dinâmica de re-

estabelecimento, de recuperação, de restauração da unidade, do ser.

(Jardim, 2005, p.157)

Assim, o fundamento da memória, na obra, é o esquecimento, e dele emergem os

relatos, lembranças do cão, como flashes. Esse emergir é seletivo, um “abuso da

memória” como teoriza Paul Ricoeur:

Por que os abusos da memória são, de saída, abusos do esquecimento?

Nossa explicação, então, foi: por causa da função mediadora da

narrativa, os abusos de memória tornam-se abusos de esquecimento. De

fato, antes do abuso, há o uso, a saber, o caráter inelutavelmente

seletivo da narrativa. Assim como é impossível lembrar-se de tudo, é

impossível narrar tudo. A ideia de narração exaustiva é uma ideia

performaticamente impossível. A narrativa comporta necessariamente

uma dimensão seletiva.

(Ricoeur, 2007, 455)

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Assim, durante toda a obra o cão vai trazer seletivamente a lembrança do que estava

esquecido ou silenciado e alguns dos relatos que formam a obra se parecem menos

narração de fatos do que uma descrição de como o cão afetou os caluandas por fazer vir

à sua memória o que não queriam lembrar. Os relatos são memória dos afetos que o cão

provocou ao por em crise e ressignificar a realidade de cada um dos narradores e não

lembrança objetiva da sua imagem e paradeiro, tal como o narrador-organizador parece

ter desejado ao começar a colher relatos sobre o “seu” cão perdido. Durante os relatos,

o animal parece até mesmo perder sua materialidade, torna-se vários cães.

O mesmo cão, no mesmo dia, a mil quilômetros de distância. E esta?

[...] Que certeza essa que eu tinha de ser o mesmo cão? Não há muitos

cães pastor-alemão? Como podia eu seguir-lhe o rasto sem me perder

no labirinto de cheiros formados por todos os pastores-alemães de

Luanda? Não é essa a dúvida?

(Pepetela, 2006, 164)

Ele sempre some sem deixar rastros e, paradoxalmente, o relato dos que cruzaram

com ele são seus únicos rastros possíveis. Mesmo na seção intitulada O Cão escapa de

aparecer no jornal, que é um artigo de notícia de um jornal luandense, o cão desaparece

antes de ser fotografado para o jornal. Sua imagem não é apreensível, sempre escapa.

Assim, ele se torna invisível, sem dados objetivos precisos, algo quase do domínio da

lenda; porém, nesse esquecimento de sua materialidade, a memória dele persiste:

Aparece de certa forma como estranho, para uma concepção de

memória comprometida com a imagem, com o visual, que o que seja

constituidor da substantividade da memória seja alguma coisa invisível.

No entanto, cremos que assim é, pois concreto não é apenas o que tem

massa, mas o que desencadeia realidade. (Jardim, 2005, p.156)

Analisemos, por exemplo, a seção acima citada, intitulada O Cão escapa de

aparecer no jornal. É um dos relatos centrais da obra, apesar da sua brevidade e da sua

forma: uma notícia de jornal. Numa festa, na Feira Popular de Luanda, por conta do Dia

Mundial da Criança, um cão começou a ladrar insistentemente. Era um cão da raça

pastor-alemão, usado como cão policial pelos colonizadores antes da independência e

durante a guerra de libertação (fato que é lembrado várias vezes durante a obra), o que

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certamente fez que os mais velhos rememorassem nele toda uma lembrança amarga da

opressão colonial.

Alguns populares mais velhos até o quiseram afastar com pontapés.

Mas o animal insistia. Ladrava freneticamente para um embrulho que se

encontrava no chão, ao lado do sistema elétrico do carrossel. Tal foi a

confusão e a insistência, que apareceu o serviço-de-ordem. Um policial

avançou para o objeto misterioso e o cão calou-se logo. (Pepetela, 2006,

74)

Ao se verificar, descobriu-se que o cão havia achado uma bomba. Havia uma

bomba direcionada à futura geração, por mais que os mais velhos se incomodassem

com os latidos do cão. Obviamente, se pensa na guerra civil que se seguirá à escrita de

O Cão e os Caluandas. O ladrar do cão é um alerta quase profético do que estava por

vir. Diz o futuro ao fazer referência ao passado: memória. Nesse segmento da obra,

conseguiu-se desarmar a bomba e o cão herói desapareceu antes que o fotografassem,

como sempre sua imagem perdeu-se. Porém, em outros relatos fica bem claro que essa

bomba ainda está por desarmar, como no relato Luanda assim, nossa, em que seu

narrador, catetense, rememora com certo rancor dos malanjinos ao contar sobre seu

amigo Malaquias, que abrigou o cão. A briga acerca do cão fez com que o narrador

expusesse todo o seu ódio acerca do outro grupo e o título “Luanda assim, nossa” não

poderia ser mais irônico que nesse relato em que a presença do cão faz saltar aos olhos

a existência do conflito étnico, da Luanda dividida.

A maka foi fruto de ressentimentos antigos deles que ainda hoje estão

vivos; os malanjinos escondem, mas esperam a desforra. Digo-lhe,

deixem os malanjinos tentar levantar a cabeça que lha cortamos de vez.

Depois da maka acabar, ficamos amigos. É a única exceção que faço, é

o Malaquias. Porque em minha casa nem cão, nem gato, nem

malanjino. (Pepetela, 2006, p.30)

O cão, em tais relatos, se torna tanto alerta como presença real da guerra. Em

outros, se torna alerta e presença da colonização, mas uma colonização com outra

roupagem, que tem como máscara a hierarquia dos cargos públicos e a burocratização

dos serviços e como face o Sistema Econômico Mundial.

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O romance O Cão e os Caluandas não questiona apenas o estatuto de poder

europeu-ocidental, tal como traduzido e legado por Portugal, mas abarca em seu

questionamento a intenção de domínio de várias etnias angolanas sobre outras. Em As

Aventuras de Ngunga, obra anterior à independência, em plena guerrilha, isso já se

rascunhava: o valor da educação que ensina a questionar tanto a visão totalizadora do

colonizador português quanto a obediência cega, “dogmática”, ao velho negro (um dos

aspectos mais estereotipados da “tradição ancestral” angolana).

[...] Até que, uma noite, [o professor] resolveu dizer alguma coisa.

Contou a sua vida no kimbo do presidente Kafuxi. No fim, o

professor disse:

- Sim, eu conheço-o. A minha escola devia ser instalada lá. Mas ele

recusou dar-me de comer. Dizia que já dava aos guerrilheiros, que não

podia mais. O povo queria a escola, mas ele é o Presidente.

- Não se pode arranjar outro presidente? – perguntou Chivuala.

- A Imba falava-me muito da escola – disse Ngunga. – Ela queria

estudar. Assim, perdeu por causa do pai.

- O Kafuxi é o mais velho dali – disse União. – Ninguém tem coragem

de o tirar de Presidente. Já no tempo dos tugas ele era chefe do povo.

Mas não pensem que é só ele.

E Ngunga pensou que havia coisa que não estavam certas. Mas ele

ainda era miúdo...

(Pepetela, 1980, p.26)

Nos romances pós-independência, isso fica mais patente. Afinal, a liberdade

chegara, mas ninguém se sentia verdadeiramente livre; percebeu-se que, com o

colonizador português expulso, havia ainda outro colonizador, em nível mundial – O

Sistema Econômico que gera colonizados e colonizadores, opressores e oprimidos,

como o próprio Pepetela expõe lucidamente em entrevista a Wilson Bueno:

Esta geração realizou parte do seu projeto, a independência. Mas nós

lutávamos também pela criação de uma sociedade mais justa e mais

livre, por oposição à que conhecíamos sob o colonialismo. Por razões

várias (constantes interferências externas, desunião interna e erros de

governação), esse objetivo não foi atingido e hoje Angola ainda é um

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país que procura a paz e está destruído, economicamente

desestruturado e com uma população miserável, enquanto meia dúzia

de milionários esbanja e esconde fortunas no estrangeiro.

(Bueno,2000)

De fato, um romance como O Cão e os Caluandas é, numa fala aparentemente

bem-humorada, risonha e terna, uma compreensiva, amarga e dolorosa ironia da

“liberdade” de uma terra onde se formava um nova espécie de colonização através da

economia. Uma colonização perpetuada por um nacionalismo socialista apenas

nominal, por disputa de poder por parte de facções étnicas (estrategicamente fomentada

pelos portugueses durante a colonização) e por uma acomodação da maioria, como se a

maior libertação e felicidade a que o povo angolano pudesse chegar fosse a expulsão

dos portugueses. A guerra civil desmentiu isso dolorosamente e, terminada a mesma,

isso continuaria sendo desmentido pela perpetuação da miséria da maioria da população

angolana, cada vez mais “assimilada” a modelos culturais estrangeiros. A Geração da

Utopia, romance escrito imediatamente após a guerra civil, será talvez o marco de

maturação desse desencanto, pressentido em Mayombe e Ngunga e tornado fato em O

Cão e os caluandas:

- O problema fundamental é que o Malongo e o Vítor são os neo-

burgueses, os que enriqueceram ou pensam enriquecer à sombra do

Estado e têm comportamento de novos-ricos, com tudo de trágico e

ridículo que essa palavra comporta. E há os lumpen-burgueses, os

candongueiros de todas as espécies, os que começaram por pequenos

negócios de rua e vão crescendo, sem cultura nem ética. Qual das

duas classes comerá a outra? São classes com origens sociais

diferentes, mas de igual apetite insaciável. Chegarão a fazer uma

aliança e a criar um novo empresariado? Vão vender-se ao estrangeiro

ou serão capazes de o assimilar? Seguirei com curiosidade esse

combate que vai preencher o fim do século.

(Pepetela, 1991, p.307)

O cão de Pepetela parece lembrar a todo momento que o homem angolano havia

exemplarmente se voltado contra a colonização explicita do seu país; porém,

acomodara-se diante de uma colonização mais sutil, imposta por outros meios. Seus

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efeitos não parecem tão visíveis, mas são tão catastróficos quanto. Podem ser

percebidos nos falsos diálogos, onde uma voz se sobrepõe à outra, trazendo a conversa

como pretexto para censurar o outro ou para demonstrar pela retórica a sua

superioridade. No segmento intitulado O primeiro oficial, isso é verbalizado de forma

mesmo brutal quando o seu narrador, chefe de uma repartição, reage ao fato de uma das

crianças protestar contra ele ter prendido o cão:

Pois é, esses kandengues de agora, com as porcarias que andam a

aprender na escola e nas ruas, já refilam com os pais: que o povo tem o

direito à palavra e eles são o povo. Veja lá! Na minha casa, não. Eu falo

e o resto ouve. Quem traz o dinheiro para casa? Quando eles ganharem

o seu sustento e tiverem uma mulher em quem mandar e bater, então

aceito que venham discutir comigo. Antes não, sou eu o chefe. Com

este feitio energético é que subi na Repartição, se fosse um mole, um

pau-mandado, ainda hoje era escriturário-datilógrafo de segunda, como

na altura da independência. (Pepetela, 2005, p.24)

A desumanização do outro se arraigou tão forte em certos setores da sociedade

angolana, que muitos oprimidos interpretaram a independência como álibi para se

tornarem opressores. São, em sua maioria, efeitos da assimilação da época colonial,

resquícios de uma visão de mundo onde não há relação de diferentes senão colonizador-

colonizado, superior-inferior. Antes, esse mesmo personagem já havia até mesmo

verbalizado sua admiração pelo colonizador e seu senso de ordem e, em sua crítica um

tanto paradoxal à burocracia, justifica toda opressão colonial em nome do bom

ordenamento das coisas, lembrando do tempo colonial até como um bom tempo, um

tempo “em que as coisas funcionavam”.

A burocracia é reprovável, lembro-me dum escrito de Lenine sobre o

assunto, mas a ordem é necessária. E boas maneiras... Mas esta gente de

hoje já esqueceu a exploração colonial, julgam que têm todos os

direitos, mesmo de terem as coisas mal as pedem, como se no tempo

colonial fosse diferente... E devemos confessar […] que os tugas lá

nisso de administração sabiam fazer as coisas. Eu aprendi com eles e

não tenho vergonha de o dizer. Dava trabalho, às vezes um gajo bravava

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mesmo, mas era preciso. Os papéis sempre direitinhos, as cópias

certinhas, o classificador geral em ordem, os arquivos especiais, etc.,

tudo bem ordenadinho, limpo, sem uma ressalva, bem agrafados ou

furados, enfim, um gosto, um prazer, um orgulho de profissão.

(Pepetela, 2005, p.21)

Recorrente nesse trecho, assim como no Elogio da Ignorância, de que trataremos

especificamente em outro momento desta dissertação, é o uso artificial de teóricos

comunistas, fruto da ignorância quanto aos mesmos, que em Luanda assim, nossa é

verbalizado de forma altamente irônica para justificar o mais nefasto egoísmo

capitalista e o ranço racista do seu narrador:

- Marx disse: primeiro a barriga, depois as ideias e os sentimentos.

Malaquias abanou só a cabeça, não respondeu. Ficou esmagado com a

citação do seu ídolo, tinha o retrato desse branco judeu na sala de

visitas. (Pepetela, 2005, p.32)

2.5. O caos.

No segmento Luanda assim, nossa, seu narrador assim descreve Luanda após

fazer uma lista dos vários grupos que vivem na cidade:

Isto é uma Babilônia ingovernável, uma Torre de Babel. Os esgotos não

funcionam, as ruas parecem queijos, as árvores imitam as ovelhas da

Europa, tosquiadas rentes, os ratos confundem-se com coelhos, os

passeios sujos, os prédios a feder de podres, a luz elétrica sempre com

falhas, os jardins mortos.

(Pepetela, 2006, p.31)

Logo depois pergunta: “De quem a culpa?” A resposta: “[...] nós, os genuínos,

sabemos que o problema reside na diversidade da população”. E a solução: “Se me

deixassem, expulsava daqui todos os não-genuínos, todos, esses é que empestam a

cidade. Ia ver que num mês Luanda era uma cidade orgulho nosso”.

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A descrição desse caos urbano faz referência, ao contrário do que se possa

pensar, ao centro de Luanda e não à Luanda dos musseques. Quando o cão,

descentralizador, passa pelo centro da cidade, é instaurado o caos, ou seja, se expõe a

falta de qualquer centro ou princípio ordenador. O narrador do segmento citado, porém,

atribui o caos à diversidade, ou seja, atribui a crise do espaço à multiplicidade do seu

povoamento. Acontece que em O Cão e os Caluandas (e poderíamos dizer que na obra

de Pepetela em geral) o caos não é negativo, é ele que permite que o novo aconteça; a

ordem entendida como definitiva sempre aprisiona, a ordem necessita de um ordenador

e da manutenção desse ordenador para manter-se, porém só no caos é possível a

diversidade.

O caos é sobretudo o princípio da possibilidade de tudo. Trata-se de

uma experiência de ser e de realidade tão rica e inaugural que dela se

origina tudo, o que é e não é, nela se nutre toda a criação em qualquer

área ou nível, seja do real ou irreal, seja do necessário ou contingente.

(Leão, 2010, p.38)

Obviamente, aqui não se faz a apologia da bagunça gratuita, da falta de

infraestrutura urbana etc. O caos que se diz aqui é a crise, a maka que o cão sempre

instaura onde aparece, a exceção a toda ordem, o que permite o novo, e mesmo as

ordens não teriam sido possíveis se antes delas não houvesse o caos. Os narradores e

personagens de O Cão e os Caluandas são recém saídos de uma ordem em que eram

oprimidos, mas se assustam perante o caos, porque criar a partir dele é ainda mais

difícil que destruir a ordem opressora. Construir um país em liberdade exige construir a

partir do caos, pois a construção a partir de uma ordem já estabelecida já não é em

liberdade, mas readaptação de um antigo sistema opressor a novos opressores. Acerca

disso nos deteremos mais demoradamente no capítulo desta dissertação em que

trataremos do segmento intitulado Elogio da Ignorância, em diálogo com reflexões da

obra Pedagogia do Oprimido, do pensador e educador brasileiro Paulo Freire. A obra

de Pepetela é um constante chamado a criar a partir do caos e uma denúncia das

opressões explícitas ou não das diversas ordens que se colocam como salvadoras do

caos. A cartografia de Luanda apresentada por O cão e os caluandas é uma cartografia

do caos. Essa cartografia de modo algum limita ou define o caos, antes é a escrita do

caminho criativo no caos (do cão ou do leitor), afinal, fosse o caos cartograficamente

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definível e pensável, não seria mais o caos, mas tão somente um conglomerado de

coisas fora do lugar. Nesse caso, só seria possível rearranjar, mantendo o já estabelecido

com aparência diferente, mas nunca criar.

Ninguém nunca consegue pensar sobre o caos, por mais que se deseje

e se empenhe. Quem o pretendesse nem mesmo saberia o que estaria

fazendo, i.e., que não estaria pensando sobre o caos, mas sobre

uma coisa. Pois só é possível pensar sobre o que tem sentido, nunca

sobre o princípio de ordem e articulação da possibilidade de haver

sentido. (Leão, 2010, p.37)

A luta contra a diversidade acaba sendo também contra o caos que permite a

criação. Resta saber se as sociedades realmente prentendem destruir a diversidade a

favor de alguma ordem definitiva (como aliás sempre fizeram), a favor de uma “Luanda

cidade orgulho nosso”, na triste ambiguidade desse termo. Não é à toda que a presença

do cão, instauradora do caos, se dá pela memória de cada um dos que a relataram, na

multiplicidade de lembranças e esquecimentos constituindo a unidade da memória de

Luanda.

Pela memória que o ser humano se configura como um ser passível de

constituir mundo, ou melhor, mundos, na medida que é pela memória

que se estabelece a possibilidade de vigência da unidade. A memória

é um modo privilegiado de consolidação da unidade e, por isso, um

modo privilegiado de consolidação de toda a possibilidade de

relacionamento entre o que foi, o que é e o que será. Desse modo, é

pela memória que o caos pode ser converter em cosmos. É por meio

dela, memória, entre outras coisas, que o ser humano cria a

possibilidade de escapar dos estreitos limites impostos pela vigência

de uma espácio-temporalidade subjugada por critérios advindos

unicamente de imediatas relações inter-materiais, e, desse modo, ser

capaz de pleitear vigências espácio-temporais que se configurem a

partir da possibilidade.

(Jardim, 2005, p.157)

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Pela memória instaura-se o caos, que permite toda possibilidade, também pela

memória convoca-se a criar a partir dele. As andanças do cão denunciam uma Luanda

caótica não para simples constatação, mas convocando os que fazem parte do seu

caminho, os narradores e o leitor, à criação de uma Luanda que se configura em mundo,

em uma unidade.

A totalidade que denominamos mundo é, assim, um imenso

movimento em que precisamos perceber uma imensidão de diálogos,

possibilitado pelo “aberto”, pela condição da vida de ser uma

permanente doação. Dessa forma, dialogamos conosco mesmos, num

autodiálogo, e dialogamos com o outro, seja ele um ente próximo, ou

uma concepção de mundo completamente distante e diferente da

nossa. Também dialogamos com o passado e com as possibilidades

do futuro, dialogamos com os limites que encontramos e com o não-

limite que percebemos aberto ao homem. [...] quanto mais nos

abrimos aos diversos diálogos, mais amplo é o “nosso mundo”. Mas o

que é mais verdadeiramente este dialogar? Ele só é possível porque é

propriamente um estar no entre, uma travessia sobre a própria

liminaridade, na tensão de todas as possibilidades de realização.

(Tavares, 2014, p.164)

Assim, é o caos que abre a possibilidades de se constituir e realizar um mundo

sem entraves doutrinários maniqueístas. Essa realização, porém, não acontecerá senão

no diálogo, ou seja, na relação com o outro e, mais profundamente, na visão dialética da

realidade, onde passado e futuro, limite e não-limite, particular e universal, angolano e

não angolano não são mundos distintos e irreconciliáveis, mas faces diferente de um

mesmo mundo, de uma mesma unidade. Nesse âmbito, o particular e o universal não

são contrários; antes, um implica o outro.

É nesse ponto que talvez melhor se evidencie o universal na obra de Pepetela. O

que, num primeiro momento, se mostra um projeto de construção de Angola como

nação, ou seja, um caso particular, se torna algo de caráter universal, justamente pela

dialética que move esse projeto. As vozes que exprimem esse projeto em seus romances

não dizem o mesmo, como se fossem apenas fantoches ideológicos de um autor bom-

propagandista, antes dizem até mesmo contrários. Na sua obra, a unidade se dará não

por unificação das vozes, mas justamente pela diversidade das vozes. Será pelo caos

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polifônico que se fará a criação da unidade. Não há espaço na ficção pepeteliana para as

artificiais perfeição e ordem que as propagandas ideológicas tentam impor nas visões da

realidade que propagandeiam, a não ser como sátiras dessas propagandas enganosas,

que se querem universalistas, na arrogância de pretenderem que tudo o que exista

realmente seja como sua ideologia prega. Antes, a dialética do caos na realidade

angolana, que uma obra como O Cão e os Caluandas expressa e busca a ponto de

mesmo a estrutura da obra ser-lhe reflexo, permite que a obra de Pepetela sirva como

questionamento de qualquer estrutura social onde o diálogo não tem espaço, onde um

maniqueísmo estrutural diga quais vozes devem ser ouvidas e quais não o devem, o que

é e o que não deva ser. Esse questionamento universal só é possível pela radicalidade

com que Pepetela revela em seus personagens questões profundas da realidade

angolana. Acerca disso, são oportunas as observações de Lukács, tratando da obra de

Goethe, acerca do Particular e do Universal.

Existe uma grande diferença no fato do poeta buscar o Particular para

o Universal ou ver no Particular o Universal. No primeirio caso nasce

a alegoria, onde o Particular só tem valor enquanto exemplo do

Universal; no segundo, está propriamente a natureza da poesia, isto é,

no expressar um Particular sem pensar no Universal ou sem se referir

a ele. Quem concebe este Particular de um modo vivo expressa ao

mesmo tempo, ou logo em seguida, mesmo sem o perceber, também o

Universal.

(Lukács, 1978, p.150 apud Montez, 2006, p.200)

Tal pensamento pode se estender aos grandes ficcionistas em geral. Quanto a

Pepetela, não se pode negar o evidente engajamento político, porém suas obras não são

teses ou panfletos ideológicos estetizados, apesar do forte senso político que as anima;

mesmo em uma obra como As Aventuras de Ngunga, feita para ser uma cartilha

ideológica, surgem contradições nos homens (angolanos) e na sua realidade (angolana),

que a certeza ideológica não permitiria. Sua Luanda é mesmo Luanda, e não uma

alegoria para fins ideológicos. Por isso, o homem angolano de Pepetela pode estar

presente em todo homem e a Luanda caótica fundada pelas andanças do cão pode

causar identificação com várias sociedades.

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Surgir e morrer, criar e anular, nascimento e morte, alegria e dor, tudo

se mistura no mesmo sentido e na mesma medida; por isso, mesmo o

acontecimento mais particular se apresenta sempre como uma

imagem e um símbolo do mais universal.

(Lukács, 1978, p.150 apud Montez, 2006, p.200)

Dos relatos da obra, talvez o mais particularmente angolano, e ao mesmo tempo

de questões nitidamente universais, seja o relato fragmentado em forma de diário, que

entremeia todos os outros relatos, narrando a hostilidade cada vez maior e luta final do

cão contra uma buganvília, planta que aos poucos vai tomando conta de todo o quintal.

Esse relato recortado em várias partes é geralmente interpretado como algo à parte dos

relatos dos que viram o cão, mas todos eles são em essência luta do cão contra a

buganvília. A esse ponto de nossa interpretação já se compreende o que essa buganvília

pode trazer como questão e os esquecimentos e lembranças que ela traz à memória. Não

é somente a sociedade angolana que tem a sua buganvília, símbolo do Estado

burocratizado, do discurso e da ordem vazios, mas que se pretendem totalizadores da

realidade na sua prática totalitária.

Toda a ação desse cão se faz contra a tecnoburocracia instalada no

poder. Com muita ironia o escritor vai antecipando as formas rituais

de um socialismo epidérmico, que vive de falas vazias e não dá conta

dos problemas de seu país. O cão solidário não as aceita e as

desmascara em situações bem-humoradas. Termina já velho, sem

dentes, mas com uma força capaz de destruir uma simbólica

buganvília (o estado burocratizado) cujos galhos, em crescimento

avassalador, estão destruindo a casa angolana.

(Abdala Junior, 2006 , p.37)

Nesse último relato, um sonho do narrador organizador, a luta violentíssima e

dramática do cão contra a buganvília (até que, nas significativas palavras do narrador,

ele se tornasse “só ideia envolta em sangue”) e a sua vitória dizem que é possível não

deixar a buganvília tomar conta de todo quintal a ponto de nada mais caber nele.

- Patrão velho fica bravo se tocamos na buganvília.

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- Quem tem coragem de desobedecer ao patrão velho? – disse

Antônio – Nem a menina. Ela também queria cortar a buganvília.

Mas, haka! Tinha medo mesmo.

O cão, indiferente às dúvidas que provocara, num ronco esgotado,

desapareceu no meio dos destroços, atacando a última raiz, a mais

funda. Só se via o restolhar verde-vermelho do combate.

(Pepetela, 2006, p.116)

O cão não venceu a buganvília sozinho, os trabalhadores e o menino o

ajudaram, mas não a teria vencido em definitivo se não atacasse “a última raiz, a mais

funda”. E não seria essa uma crítica a todas ordens revolucionárias ou

antirevolucionárias, que num primeiro momento até derrubam a buganvília, mas

deixam suas raízes para que vinguem de novo? Ou seja, essa luta simbólica contra a

buganvília e contra a sua raiz põe em questão o combate a sistemas burocráticos e

totalitários sem que se lute contra a estrutura que os permite. A luta simbólica do cão

contra a buganvília ressignifica e põe em questão a luta do indivíduo contra a ordem

coletiva que anula toda individualidade em nome de um ideal econômico e político.

Após narrar a luta, a vitória do cão e seu gesto derradeiro, o narrador do último relato

da obra, um sonho seu (e, por que não, esperança sua), enuncia: “E o meu sonho... se

foi. Com ele começa a vossa fala”. Um verdadeiro “Faça-se!” enquanto a terra é ainda

sem forma e caótica. O Cão e os Caluandas oferece o mapa e a memória do caos, que

nele aprofundado saiba o leitor criar questionamentos e novos significados a sua

realidade. A verdadeira literatura não tem ordens a dar, nem a receber, como o cão vaga

por onde quer e instaura o questionamento por onde vaga.

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3. A DIALÉTICA DO CAOS: A OBRA DO CÃO

Eu vo-lo digo: é preciso ter um caos dentro

de si para dar à luz uma estrela cintilante.

Eu vo-lo digo: tendes ainda um caos dentro

de vós outros.

(Nietzche)

O diabo regula seu estado preto, nas

criaturas, nas mulheres, nos homens. Até:

nas crianças – eu digo. Pois não é ditado:

“menino – trem do diabo”? E nos usos, nas

plantas, nas águas, na terra, no vento...

Estrumes... o diabo na rua, no meio do

redemoinho...”

(Guimarães Rosa)

1.1. Dialética

Historicamente, as ideologias dominantes ocidentais tem o caos por um valor

negativo, ligado à crise, à destruição e à dúvida. Essas três palavras foram, por sua vez,

demonizadas religiosamente e atribuídas sempre à ação maligna pelas religiões cristãs

dominantes. Por outro lado, também foram renegadas ao obscurantismo e ao domínio

da ignorância pelas ciências e racionalismos que as acusam de obstruir o progresso do

conhecimento. Assim, são renegadas tanto pelos que as acusam de obstruir a salvação,

quanto pelos que as acusam de obstruir o progresso e a ciência. Mesmo quando a

“dúvida”, por exemplo, é reconsiderada, como em um Descartes, não passa de destacá-

la para mais gloriosamente vê-la vencida sob uma certeza mais verdadeira do que todas

as outras que a dúvida destruiu. A modernidade chegou ao paroxismo de fazer da crise

um modo estável de vida, da destruição uma norma de criação e da dúvida uma certeza

implacável, esvaziando essas experiências de toda força poética e de sabedoria que

implicam: tornaram-se modismo e regra desde as vanguardas européias. Isso provém do

fato de se considerá-las um dos lados de um suposto dualismo, onde destruição e

criação, por exemplo, se excluem mutuamente. Questiona-se sempre de qual lado do

dualismo se está, mas nunca se há mesmo o dualismo. Perde-se a dimensão dialética de

destruição e criação, para se incorrer em um simplório maniqueísmo onde quando não

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se defende uma forma absolutamente criada, tendo-se por conta de conservador do bem

absoluto, defende-se uma absoluta destruição, tendo-se por conta de salvador

revolucionário. É a falsa oposição de metafísicos e niilistas, que Nietzche já denunciava

como ambos limitadores da vida e redutores da realidade, essencialmente dialética.

Hegel, o pensador inaugural da dialética tal como a modernidade irá desdobrá-la, já

esclarecia a radicalidade do ser dialético:

[...] não é a vida que se atemoriza ante a morte e se conserva intacta

da devastação, mas é a vida que suporta a morte e nela se conserva,

que é a vida do espírito. O espírito só alcança sua verdade à medida

que se encontra a si mesmo no dilaceramento absoluto. Ele não é essa

potência como o positivo que se afasta do negativo – como ao dizer

de alguma coisa que é nula ou falsa, liquidamos com ela e passamos a

outro assunto. Ao contrário, o espírito só é essa potência enquanto

encara diretamente o negativo e se demora junto dele. Esse demorar-

se é o poder mágico que converte o negativo em ser.

(Hegel, 1992, p.38)

Em O Cão e os caluandas não há sequer resquício do caos como valor a ser

tomado como motivo de medo ou como algo a ser evitado. Há sim a esperança

profunda de superação do caos. Essa superação não se conquista a partir do afastar-se

do caos achegando-se a qualquer ordem, mas encarando esse caos. Na poética de O Cão

e os caluandas, o caos e o real se confundem no desejo de construção de uma ordem a

partir do encarar o caos, ou seja, encarar o real com todas as suas possibilidades,

previstas e imprevistas a toda ordem. Essa ordem construída, por sua vez, não será

definitiva, pois as questões do real escapam sempre a qualquer ordem. Torna-se preciso

um aprendizado não do aprender ou aceitar as coisas instituídas para, presunçosamente,

durarem para sempre, mas um aprendizado do lidar com a imprevisibilidade e

inesgotabilidade de questões do real, ou seja, do nunca acomodar-se. Um aprendizado

do encarar o caos sem atemorizar-se, sem condená-lo ou fingir que não há, mas com a

mesma clareza e firmeza, porém de imensa ternura, com que o estilo pepeteliano guia o

leitor nesse encaramento. O Cão e os caluandas, como denúncia e pensamento, é um

encarar o caos; como poética, uma chamada a criar a partir do caos.

A dialética presente na obra de Pepetela, porém, não é a dialética idealista, onde

o encontro dos opostos acontece apenas no plano das ideias, sendo a realidade o seu

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resultado; antes, está mais próxima da dialética tal como desenvolvida por Marx, onde a

contradição já se dá na realidade, de forma concreta, dela resultando as ideias. A

contradição se dá no real e não como discurso que pode ser resolvido em sutilezas

argumentativas.

Motor de toda transformação, a contradição é universal. Quando se

fala em “contradição”, os filósofos idealistas compreendem

simplesmente “luta de ideias”. Para eles a contradição não é

concebível, senão entre ideias que se opõem. Interpretam-na segundo

o sentido corrente da palavra (“dizer o contrário”). Mas a contradição

das ideias é apenas uma das formas da contradição: por ser a

contradição uma realidade objetiva, presente em todo o mundo, é que

se encontra, também, no “sujeito”, que ela se encontra no homem

(que faz parte do mundo).

(Politzer, 1986, p.80)

No entanto, de modo algum a obra de Pepetela se torna uma simples estetização

do materialismo dialético marxista. Ele é apenas o ponto de partida da sua observação e

reflexão sobre a realidade angolana. Primeiramente a realidade, depois a teoria: o que

está de acordo com o próprio materialismo dialético. Submeter a literatura, como

espelho da essência do real, a uma teoria dialética seria trair essa própria dialética,

fazendo do real o espelho de uma teoria, ou seja, uma tese única, sem antítese, um

enigma rebaixado a uma simples pergunta feita quando já se sabe a resposta. A postura

literária de Pepetela diante do real é bem diferente, conforme se deixa claro no início do

segmento Carnaval com Kianda de O Cão e os caluandas em que o narrador-

organizador escreve acerca da da verdadeira interpretação de um acontecimento:

[...] o caso a seguir teve tantas interpretações, tanta gente presenciou

as cenas, que deixou o anonimato pudico duma casa e passou a

acontecimento nacional (então tudo que se passa em Luanda não é

nacional?). Os muitos possíveis contadores descrevem a seu modo,

conforme a posição da sua bunda no caso. Recebi centenas de cartas e

descrever uma ou outra parte, houve mesmo reportagem no jornal e

entrevistas, a Rádio falou e refalou do feito, a Televisão filmou (é

verdade, por uma vez não deixou escapar). Cada um com sua versão.

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A verdade é como um diamante, reflete a luz do Sol de mim maneiras,

depende da face virada para nós.

(Pepetela, 2005, p.87)

Esse trecho poderia facilmente ser usado para descrever a procura da verdade

sobre o cão andarilho de Luanda ou para descrever a própria estrutura de O Cão e os

caluandas. A multiplicidade do real e a multiplicidade das interpretações do real ditam

a tônica da obra; as contradições não existem apesar da realidade, são elas mesmo que

constituem a realidade. Saber ler a realidade e O Cão e os caluandas, como monumento

literário dela mesma, exige saber perceber essas contradições e compreendê-las além do

rótulo do positivo e do negativo. Exige também, principalmente, não aceitar a resposta

de quem quer que seja, de índole religiosa, política, filosófica ou empírica, como única

e verdadeira interpretação do real.

[...] o objetivo da narrativa não parece ser apenas o de criticar uma

sociedade que faz pouco caso do ideal revolucionário, mas, sim, o de

atualizar a contradição como mola mestra de qualquer interpretação e

mesmo de qualquer ideal. O movimento de interpretar o texto torna-se

análogo ao que se estabelece com o mundo referencial, embora a

ficção não se confunda com ele. A frase “a verdade é como um

diamante, reflete a luz do sol de mil maneiras, depende da faceta

virada para nós”[...] exatamente na metade da obra, não é apenas uma

imagem poética. Tal declaração torna-se, de fato, uma constatação

básica para a presente narrativa, a qual se quer plural. Afinal, o

fundamental não é remeter o narrado ao referencial, mas levar o leitor

a perceber que não existe uma resposta verdadeira, seja em relação ao

texto literário seja em relação ao contexto histórico no qual ele se

insere.

(Salgado, 2009, p.269)

Sendo assim, a obra de Pepetela é dialética por excelência. Não é uma obra

política e ontológica, é ontológica porque é política; ao tratar do social, não é uma voz

coletiva que se faz ouvir, mas as vozes individuais se fazem ouvir bem distinguidas,

comunitariamente. Não é uma ordem ou a propaganda de um projeto de ordem que se

faz ouvir, mas as vozes do caos, que poeticamente se sugerem ao leitor. Essas vozes, na

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obra aqui interpretada, se fazem ouvir pela presença do cão, personagem do qual

trataremos exclusivamente no próximo tópico, visto seu papel incisivo no processo

dialético, os símbolos que evoca e as questões decisivas que traz ao texto.

Apesar de Pepetela, em toda sua obra até então publicada, caminhar na direção

do sugerir uma superação dos opostos, não cai no equívoco de não distinguir os

opostos, como se fossem apenas o mesmo com formas contrárias, nem incorre no

equívoco de descrever, determinando inexoravelmente, a superação dos opostos como o

fez Hegel ao tratar da grande síntese final, o Absoluto. Em Pepetela não há absolutos,

mas sempre o questionamento do absolutizante. Pretender determinar em um ideal a

unidade que a dialética propõe acaba resultando em propor uniformidade. Até porque os

caminhos da história de Hegel a Pepetela provaram não ser possível tal descrição, que

redunda inevitável em uma determinação do futuro e comodismo perante o presente.

Pepetela lança ao caos amorosamente, expõe a crise, pois sabe que só se pode

encontrar a si próprio no processo dialético da dilaceração absoluta e de todo absoluto.

Isso é concretizado embalando o leitor em linguagem de tal ternura que o caos não é

mais tenebroso nem improdutivo, mas um terno caminho de aprendizagem de

reencontro de si próprio: o encontro com um bonito cão que passa, desperta paixões e

até entra no lar de quem se deixar fascinar por ele.

3.2. A Obra do Cão

Em uma das obras canônicas da literatura ocidental, um cão chama a atenção do

velho Fausto, que o diz a Wagner, um estudante ávido de conhecimento científico, mas

pouco profundo. Wagner responde que vê apenas um cão preto, que aquilo que o

fascinado Fausto vê no cão, como se os enredasse, não passa de fantasia acerca daquele

cão comum, talvez demasiado bem adestrado. Acaba convencendo a Fausto, que leva o

gracioso canino, aparentemente inofensivo, à sua morada, seu quarto de estudos. O cão

da cena do Fausto de Goethe dialoga com o de O Cão e os caluandas não apenas por

este também ser cão e adentrar a casa de alguns dos principais narradores da obra, todos

presos por um fascínio inexplicável pelo belo cão, mas também pelo que esses cães

revelam e provocam dentro da casa a que foram levados.

Pois o Malaquias disse logo:

- Lindo cão! Abre-lhe a porta para ele entrar.

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- Tás doido? Sei lá quem ele é...

- Depois sai embora. É capaz de ter fome.

Não sei até hoje porquê acedi. Desses gestos que as pessoas têm! Juro

que em minha casa nunca entrou nem cão, nem gato, bicho só para

comer, era o que mais me faltava.

(Pepetela, 2006, p.29)

O meu pai apareceu um dia com o cão em casa. Disse andou sempre

a seguir-me, não me quer largar mais. Eu fiquei contente, um lindo

cão e inteligente. Demos-lhe o nome de Jasão, foi o meu pai que

escolhei o nome, pois gosta muito de lendas gregas. Jasão aprendeu

logo o nome, era esperto.

(Pepetela, 2006, p.43)

O meu marido trouxe um dia o cão para casa. Tinha-o encontrado na

Mutamba e o bicho não parou mais de o seguir [...]. Quando o pastor

alemão veio, não tínhamos pois filhos. Devo confessar que não me

agradou nada a ideia de o ter em casa. Primeiro, a comida; depois

vinha perturbar, mudar os hábitos; e um presentimento fúnebre,

desses pressentimentos femininos.

(Pepetela, 2006, p.77 e 78)

[...] Ia dizer-te que esse cão me apareceu – foi o único que pareceu –

como o tal príncipe encantado. Um príncipe encantado disfarçado de

cão. Claro que depois não acreditei, isso passou. Um pastor-alemão

me apanhou na Mutamba, ficou uns tempos lá em casa.

(Pepetela, 2006, p.133)

No Fausto de Goethe, enquanto o próprio Fausto em seu quarto de estudos diz o

famoso monólogo em que, inutilmente, tenta traduzir de maneira satisfatória para a

linguagem o Logós, que tudo origina e tudo une, o cão revela-se o disfarce de

Mefistófeles, um diabo. Inicia-se ali a jornada dialética de Fausto, o encontro de si

mesmo no “aniquilamento absoluto”, a encarada direta no negativo, demorando-se

junto dele, para usar termos hegelianos. Essa seria a perdição do Fausto da criação de

Goethe, não fosse ele salvo justamente pelo caminho que percorreu com Mefistófeles, o

ser que lança ao negativo total. Mefistófeles é um agente dialético, um ser negativo e

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identificado com o mal e a mentira num contexto ideológico e religioso em que o bem e

o mal, a vida e a morte, a verdade e a mentira, o positivo e o negativo são conceitos

estanques e definitivos. O diabo, porém, os confunde e aponta à dialética profunda que

subjaz a conceitos tão simploriamente maniqueístas.

FAUSTO

De vós outros, amigo, a natureza

Largamente no nome ler-se pode,

Que bem claro o demonstram vossos títulos

De Padre da mentira ou Deus das moscas.

Ora pois, quem és tu?

MEFISTÓFELES

Parte da força

Que tem no mal intento, e o bem só causa.

FAUSTO

Que queres tu dizer com esse enigma?

MEFISTÓFELES

O espírito sou que sempre nega!

E com razão: pois tudo quanto nasce

De extermínio total somente é digno;

Pelo que, nada haver melhor seria.

É, pois aquilo que chamais pecado,

Ruínas, em suma – o mal – meu elemento.

(Goethe, 2003, 72)

O Mefistófeles de Goethe, personagem de uma obra mestra da civilização

ocidental, escrita em um de seus maiores centros filosóficos e teológicos, precisa

explicar sua função e os mal entendidos que se fazem da sua função. O cão de Pepetela

não precisa dar essas explicações e nem mesmo mudar de forma para que se explique e

seja entendido. Pepetela escreve dentro uma sociedade que, embora tenha as influências

da cosmologia cristã presente no catolicismo português, imposto como religião oficial

durante os quase 500 anos de colonização em Angola, não vive majoritariamente a

cosmovisão cristã, antes cosmogonias africanas antigas, às vezes mesmo adaptadas a

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um cristianismo de fachada, em que a relação entre o que se denominou chamar Bem e

Mal, Vida e Morte, não exibe tão forte traço de dualismo, antes se relacionam numa

ampla gama de forças espirituais invisíveis e o que parece oposto numa doutrina

dogmática pode conviver como pluralidade apenas.

[...] hoje em dia, a maioria dos africanos, quer eles sejam ou não

convertidos ao islamismo ou ao cristianismo, ainda compartilha as

crenças de seus ancestrais numa ontologia de seres invisíveis. [...]

Essa crença na pluralidade de forças espirituais invisíveis possibilita o

espetáculo extraordinário – aos olhos ocidentais – de um bispo

católico rezando num casamento metodista, junto com o apelo

tradicional da realeza aos ancestrais. Para a maioria dos participantes

do casamento, é possível dirigir-se a Deus em diferentes estilos –

metodista, católico, anglicano, muçulmano, tradicional – e também é

possível dirigir-se aos ancestrais.

(Appiah, 1997, p.190,191)

Pelo lugar e pela cultura de onde escreve Pepetela, não faria sentido o cão

explicar seu ofício diabólico, defendendo-o, como o faz Mefistófeles e tal como é força

que façamos neste texto acadêmico. Ele não foi demonizado e estigmatizado como

“mal” para que precise que se faça sua defesa, antes é aceito como força que tem o seu

lugar num cosmos em que nada se exclui. O cão de O cão e os caluandas surge como

presença provocadora de uma força inconformista, que destrói e lança ao ridículo o

instituído e a certeza repressora de todo questionamento (força essa que para fins

filosóficos e teóricos nomeamos dialética), força que teologicamente caracteriza o

diabo, que politicamente se chama subversão e o racionalismo seco pode chamar de

poético ou, a contra-gosto, licença poética. Nas crenças de diversas etnias angolanas,

essa força se mostra como divindade, o que se refletiu, por exemplo, nas religiões afro-

brasileiras. Não é coincidência, portanto, que essas religiões de matriz africana sejam

identificadas por fundamentalistas de algumas outras religiões, majoritariamente cristãs

ou muçulmana, como religiões ligadas ao mal, ao diabólico como negativo a ser

excluído. O leitor que vive no seio da civilização ocidental e aprendeu, por longo

tempo, a procurar nas obras quais personagens representam o que é bom e quais

personagens representam o que é mal (sendo o mesmo leitor que não entende porque o

Fausto, personagem da obra de Goethe, merece ser salvo depois de uma jornada com

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um diabo) fica desconcertado com a figura do cão em O cão e os caluandas,

dificilmente classificável em termos maniqueístas.

A figura do cão mediatiza todo o discurso; embora não possua voz

narrativa, sua escolha como personagem simbólica não pode ser

subestimada. Seu significado é extremamente importante, não só nas

culturas africanas, mas também nas mitologias das mais diversas

civilizações. Ele pode incorporar, desde a imagem do herói, entre

alguns povos, como os bantos, até a figura do interdito e do imundo

nas sociedades muçulmana e cristã. No texto em questão, ele assume

nomes de origem grega, portuguesa, latina e africana, ao longo dos

vários capítulos: Jasão, Leão dos Mares, Cupido, Lucapa. Seu caráter

polivalente abre-se, portanto, a inúmeras interpretações: como cão de

guarda, simboliza a proteção, a defesa; mas como cão policial encarna

a repressão, o controle; é marca do poder colonial, porém representa,

também, a marginalidade e a vadiagem dos cães sem dono. À medida

que ele circula pela cidade de Luanda, vêm à tona as diversas

contradições sociais, econômicas, políticas, e/ou afetivas, das

personagens envolvidas nas situações.

(Salgado, 2009, p.268)

Um interpretação maniqueísta do cão sempre se mostra insuficiente. Seja para

julgá-lo bom ou mau, oprimido ou opressor, símbolo da libertação ou símbolo da

colonização. Haveria o recurso de recorrer ao foco narrativo, já que o narrador-

organizador parece nutrir certa simpatia pelo cão, mas tal recurso também se mostraria

insuficiente numa obra em que há multiplicidade de narradores, favoráveis ou não ao

cão. O narrador-organizador, justamente por se colocar no papel de organizador, desde

o prefácio da obra, e não de um censor, não emite julgamento claro acerca do cão. Sua

preocupação é procurar o cão, não valorá-lo. O fato do cão ser descrito na grande

maioria dos relatos como um cão pastor alemão, tal como os cães de guarda dos

colonizadores, poderia atrair sobre ele o julgamento negativo. Isso, porém, contrariaria

sua presença libertadora de consciência e verdadeira burladora de ordens ou desordens

instituídas. Portanto, não é no caminho de julgá-lo bom ou mau que se pode

empreender interpretação justa do cão. Ele não pode ser julgado moralmente, porém

não há como negar seu lugar ético. Não seria ele um personagem que, ao invés de se

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submeter aos padrões morais de bem e mal, do que deve ser e do que não deve ser, um

personagem que justamente questiona esses padrões? O que se percebe é que, assim que

o cão aparece em qualquer um dos relatos da obra, ele desestabiliza o sistema de

valores de cada um dos narradores, mostra furos numa teoria fechada do real, enfim,

expõe a dialética incessante do real.

Todos os episódios propõem um questionamento imaginativo, e não

uma mera interpretação antifrástica da ironia. Se não fosse assim,

bastava interpretarrmos o cão como um agente desmascarador do que

está por trás de cada uma das situações encenadas. O cão

desmacararia “Tico, o Poeta”, pretenso intelectual revolucionário,

mostrando que ele é, na verdade, um parasita social. O cão revelaria

como “o primeiro oficial”, supostamente defensor do sistema, deixa-

se corremper por esquemas e trocas de favores. O cão desvelaria o

racismo e o tribalismo, no relato “Luanda Assim Nossa”. O cão

exibiria um ex-militante, agora membro do governo, preocupado

apenas com a sua imagem, comportando-se com rispidez,

agressividade e radicalismo em relação à própria família, em “O Mal

É a Televisão”. De fato, o cão desmascara e revela a face oculta de

cada uma das personagens enfocadas. Mas poderíamos considerar

estas personagens como essencialmente negativas, pequenas e/ou

médias engrenagens do poder – retratos, oscilando entre o realismo e

a caricatura – que fazem pouco caso do ideal revolucionário? Ou

existiria no texto um atentar também para a estrutura maior, na qual

estão inseridas as próprias personagens, vítimas de sistemas que só

acirraram ainda mais as contradições?

(Salgado, 2009, p.268)

Se a presença do cão e as contradições que ela expõe apontassem a uma

dialética do real em direção a um fim utópico absoluto, ou seja, uma visão absoluta do

que é ou deva ser o real (tanto por meio de apologia quanto por condenação de

indivíduos) seria mais confortável interpretá-lo em relação a esse fim, mas o fato da

dialética do cão ser incessante causa o desconforto de não se poder responder a

pergunta “o que ele representa?”. Ao relacionarmos o cão com o diabo, a resposta

poderia ser “Representa o mal” ou “representa o bem”, dependendo da posição de quem

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responde, mas não há como falar de padrões de mal ou bem diante de um personagem

cuja presença justamente confunde e lança ao caos os padrões e as posições. Pode-se

dizer o que sua presença na obra provoca, mas não o que ele representa, nem o que ele

simboliza. A obra, aliás, é provocada pela sua presença na vida dos narradores. Suas

narrações do incidente caótico que, feliz ou infelizmente, o cão lhes causou se tornam

falas de análises de si mesmos.

O cão de Pepetela é um diabo, tal qual Mefistófeles, tal qual o animal tem sido

caracterizado em termos como “obra do cão” e a ponto do simples termo “o cão”

designar o próprio diabo. O mesmo diabo, aliás, com o qual se identifica o personagem

pícaro, andarilho travesso que provoca as instituições quase que ingenuamente, uma

espécie de diabo simpático e brincalhão, chamado significativamente “pobre diabo”, do

qual o cão de O cão e os caluandas tem características muito próximas, embora não

coincida completamente. Em Grande Sertão: Veredas de Guimarães Rosa, “Cara de

gente, cara de cão: determinaram – era o demo”, observa o personagem Riobaldo, nos

inícios da sua fala que, tendo a reflexão acerca do diabo como um dos fios, tece a saga

do humano num sertão cosmogônico, como a Luanda de O Cão e os caluandas. Esse

tecido poético roseano retorna ao silêncio primordial com as seguintes palavras: “O

diabo não há! É o que eu digo, se for... Existe é homem humano. Travessia”. Em O cão

e os caluandas o que há é a obra do cão, ou seja, o caminho, os abismos de questões

deixados como seu rastro, a profunda humanidade que sua travessia por Luanda

despertou dialeticamente em cada um dos narradores. O cão revela o “homem humano”

de cada um dos que encontra na sua travessia pela cidade. As duas obras são

estruturadas num diálogo constante e direto com o leitor, à procura do diabo ou do cão.

O que Riobaldo e o narrador-organizador de O cão e os caluandas encontram não é o

diabo nem o cão, mas o próprio sentido da busca incessante. Nas perguntas sem

resposta das narrativas de O cão e os caluandas, Pepetela põe essa questão de forma

explícita. São perguntas que ficam sem “sim” e sem “não”. Até mesmo quando essas

perguntas são supostamente respondidas, a resposta mantém o caráter de enigma. A

dialética não é um meio a um fim do humano, ela se torna a própria morada do humano,

assim como os relatos acerca do cão não são meios para chegar ao cão, mas acabam se

revelando a presença quase mítica do próprio cão.

Desde o princípio vocês tinham uma dúvida. Ela vinha, ela ia. Talvez

nem todos a tenham formulado. Mas ela lá estava: que certeza essa

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que eu tinha de ser o mesmo cão? Não há muitos cães pastor-alemão?

Como podia eu seguir-lhe o rasto sem me perder no labirinto de

cheios formados por todos os pastores-alemães de Luanda? Não é

essa a dúvida?

Fácil responder. Há qualquer coisa nesse cão, chamem feitiço, na

maneira como as pessoas se referem a ele, que o identifica

imediatamente. Uma magia? O Mundo está cheio dela. Mas eu, que

não sou cão, farejo-o nas estórias. E garanto-vos que a reportagem do

Cubal traz o cheiro característico dele.

Por isso vos digo: é preciso recomeçar tudo de novo. Este é o primeiro

episódio do meu livro. Agora leiam ao contrário, de trás para a frente,

se quiserem. O leitor deve ter sempre toda a liberdade.

Qual então o fio da estória? O cão? A toninha? O mar? Luanda? Ou

tudo isso e que afinal era a vida boa daqueles tempos pouco depois da

independência (anos hoje acinzentados pelos anos), em que a vida

estava na pedra de cada muro, no buraco de cada rua, na coragem toda

nova das pessoas de olharem para o fundo dum beco sem saída e

encontrarem força de sorrir?

(Pepetela, 2006, p.164)

Chega-se a duvidar da existência do cão, mas pouco importa se ele existe ou

não, ou se é o mesmo cão em todas as estórias, o que importa é sua travessia por

Luanda, tornada mais que lendária, quase mítica, pelo fascínio e mesmo pelas

incongruências dos relatos feitos dele. Esse aspecto atinge o ponto máximo na luta final

contra a buganvília, que o próprio narrador diz ter sido um sonho, confundindo mais

ainda quem, inutilmente, por toda a obra quis saber algum dado objetivo sobre o

paradeiro do cão. A pergunta “Onde está o cão?” ficou sem resposta e mesmo o

narrador-observador parece ter desistido de respondê-la, mas se encontrou nessa busca

um outro, o “homem humano” do Riobaldo de Rosa ou simplesmente o “talvez” que o

narrador pepeteliano enunciou em Mayombe, obra anterior a O cão e os caluandas,

numa fala que mostra a consciência dialética do homem com clareza, mas mantendo

todo o enigma desse inconciliável, sempre desdobrado dialeticamente em outro entre

outros. Trata-se da célebre auto-apresentação do personagem mulato Teoria, que será

exposta no próximo tópico do texto.

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O romance Mayombe denuncia que a história não pode lidar de modo

dualista. Opor meramente os “tugas” (portugueses) aos “turras”

(guerrilheiros do MPLA) é cair em uma análise simplista. Teoria é o

narrador que questiona esse maniqueísmo. Ele é o intelectual; reflete

sobre o lugar do mulato em uma revolução que apenas opõe negros e

brancos. Discutindo a possibilidade do “talvez”, propõe uma

interpretação histórica dialética.

(Secco, 2008, p.55)

O símbolo dialético na sociedade angolana, em Pepetela, será o mulato,

enquanto voz do que não se encaixa em nenhuma ordem limitadora do real.

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4.ENTRE JUDEUS: A VOZ DIALÉTICA DO MULATO E A TERNURA DO

JUDEU DE ANGOLA

Como é dramático ter sempre de escolher,

preferir um caminho a outro, o sim ou o

não! Porque no Mundo não há lugar para

o talvez?

(Pepetela, em Mayombe)

Escuta, eu não quero contar-te o meu desejo

Quero apenas contar-te a minha ternura

Ah se em troca de tanta felicidade que me dás

Eu te pudesse repor

Eu soubesse repor

No coração despedaçado

As mais puras alegrias de tua infância!

(Manuel Bandeira)

Neste tópico empreenderemos uma interpretação do mulato como símbolo

dialético na obra de Pepetela, a partir do segmento Entre Judeus de O Cão e os

Caluandas.

Talvez seja numa obra anterior a O Cão e os Caluandas que se encontra uma

das mais explícitas defesas da visão dialética da realidade na obra pepeteliana. Trata-se

do segmento de Mayombe em que o personagem mulato Teoria expõe sua relação com

a realidade em que vive:

Nasci na Gabela, na terra do café. Da terra recebi a cor escura do café,

vinda da mãe, misturada ao branco defunto do meu pai, comerciante

português. Trago em mim o inconciliável e é este o meu motor. Num

universo de sim ou não, branco ou negro, eu represento o talvez.

Talvez é não para quem quer ouvir sim e significa sim para quem

espera ouvir não. A culpa será minha se os homens exigem a pureza e

recusam as combinações? Sou eu que devo tornar-me em sim ou em

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não? Ou são os homens que devem aceitar o talvez? Face a este

problema capital, as pessoas dividem-se aos meus olhos em dois

grupos: os maniqueístas e os outros. É bom esclarecer que raros são

os outros; o mundo é geralmente maniqueísta.

(Pepetela, 1982, p.6)

Em O Cão e os Caluandas, a imagem do mulato, que fora tornada quase que

uma personificação da dialética em Mayombe, agregará a si uma imagem de felicidade

fundamentada na própria dialética que a situação do mulato representa. Tal afirmação

pareceria desprovida de um fundamento intelectual sério se por “felicidade”

entendemos apenas “alegria”, “utopia definitiva” ou, simploriamente, satisfação do

indivíduo, tal como prega qualquer manual de auto-ajuda. Porém, as noções de

“felicidade”, assim como todas as outras questões ideologicamente postas, são

historicamente condicionadas; portanto, dialeticamente construídas. Por essa razão não

nos sentimos tolhidos ao propor a presença de uma dialética da felicidade em certos

passos da obra de Pepetela, até mesmo como componente de sua visão humanística do

ser humano, especialmente no segmento Entre Judeus de O Cão e os Caluandas.

O enredo desse segmento é o seguinte: Um escritor conta como, num bar,

conheceu uma linda prostituta de luxo. Duas coisas os unem: o fato de serem mulatos e

de se interessarem por um enigmático cão andarilho de Luanda, cão esse que a

prostituta conta ter sido, com uma boneca da sua infância, a única coisa que amara. O

título do segmento provém do momento do diálogo em que reconhecem a sua condição

como mulatos na sociedade angolana e, nesse diálogo, a fala da prostituta é bem

elucidadora:

[...] Mas aqui nós os dois temos uma coisa em comum. A cor, sabes?

Mulato é o judeu de Angola. Ouvi isso dum amigo poeta e gostei da

ideia. Mulato-judeu-de-Angola! Os judeus sempre foram os tipos que

levaram de todos. Aqui é o mulato. Se alguma coisa corre mal, a

culpa é do mulato que estiver mais perto. Porque os negros têm a sua

tribo, as suas grandes famílias, defendem-se. Mulato não tem tribo.

Melhor, a sua tribo é a dos mulatos... Temos isso em comum. [...]

(Pepetela, 2006, p.130)

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O mulato ainda é representação visível daquele “talvez” dialético que em

Mayombe é hostilizado a favor da escolha de um dos lados propostos pelos

maniqueísmos. Porém, em Entre Judeus, é adicionada à ideia do “talvez” dialético do

mulato, uma ideia de felicidade. Apesar das várias correntes de opinião, moda e

pensamento filosófico o fazerem sinônimo de realização das vontades de um ego ou a

realização de um projeto de realidade ideal, o vernáculo “felicidade” tem raízes

etimológicas mais profundas. A palavra latina “felix” (genitivo “felicis”) significava

originalmente fértil, frutuoso, fecundo, pleno, e é no sentido de plenitude e fecundidade

de vida que pode ser interpretado na obra de Pepetela. Em sua obra a plenitude de ser

está muito mais ligada à realização poética da vida e à ternura. A fecundidade é o que

permite sempre a plenitude, porque não há nada na realidade que seja estéril de

poeticidade. Portanto, a felicidade de Pepetela está longe de ser a adequação do ser a

uma noção de como se deve ser feliz. Não há plano ou projeto para a felicidade, ela

apenas acontece, e todo o segmento Entre Judeus será como que a apreensão e

recriação pela linguagem desse acontecimento poético.

O dois mulatos, prostituta e escritor, alcançarão, em Entre Judeus, plenitude e

fecundidade de ser a partir da liberdade de ser e do erotismo da palavra. A situação

deles numa sociedade maniqueísta, dividida entre o negro e o branco, não faz com que

se sintam vítimas; pelo contrário, faz com que se sintam livres dos padrões ideológicos

que prendem negros e brancos. Nessa perspectiva, um certo tom de confidência entre

iguais percorre todo o texto. O mulato como símbolo dialético aparece ignorado por sua

sociedade, marginalizado, portanto, livre das suas obrigações. A escolha de uma

prostituta e de um escritor mulatos, nesse contexto, é altamente simbólica: a liberdade

do corpo e a liberdade da palavra.

No texto não se esclarece qual seria o nome de nenhum dos dois personagens.

Na verdade, ali não importam os seus nomes de registro civil (nem o nome de

profissão, no caso da “prostituta”), o que interessa são os “nomes de judeu” que um dá

ao outro: Samuel e Judite. Seus nomes sociais ou de profissão não nomeiam o seu ser,

já “Samuel” e “Judite” foram nomes que deram um ao outro quando um no outro se

reconheceu: quando se reconheceram “judeus de angola”, não apenas mulatos no

sentido racial do termo, mas aqueles que não se encaixam em nenhum padrão.

Como em diversas das histórias bíblicas judaicas (as dos patriarcas Abraão e

Israel, por exemplo), foram renomeados ao revelarem a si mesmos seu verdadeiro ser;

porém no texto de Pepetela, ao invés de acontecer essa revelação por uma maravilhosa

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teofania, acontece a partir do diálogo com o outro, do reconhecimento da semelhança

no diferente. Judite, a “quitata-de-luxo”, recebe o seu nome do escritor após contar

sobre o cão que amara. Pensando que o escritor vê com asco seu estranho amor pelo

cão, recebe dele a seguinte resposta:

- Estás enganada. A minha cara deve ser apenas de alguém que está

muito mais interessado do que pensas. O que dizes é bonito e

agradeço a sinceridade. Olha, nem sei teu nome, vais ficar Judite.

Não, não quero saber o teu nome. Para mim chamas-te Judite, nome

de judia.

(Pepetela, 2006, p.133)

O nome “Judite” remete à personagem homônima do conto de mesmo nome

presente na Torá e no Velho Testamento da Bíblia católica. Trata-se de uma

personagem que, utilizando-se da sua beleza, deixou o rei assírio, Holofernes, seduzir-

se por ela e o decapitou no leito, libertando assim o povo judeu do domínio dos assírios.

O nome de Judite permanece no Ocidente, bastante esvaziado do sentido religioso e

heroico original, ligado ou à prostituta que se utiliza da sua beleza para conseguir o que

quer dos homens e levá-los à ruína ou à prostituta que, marginalizada, se utiliza dos

meios que pode para ganhar a vida e conseguir se proteger dos perigos da sociedade.

Desse segundo estereótipo, o romance Nome de Guerra de Almada Negreiros é um

antecedente na literatura de língua portuguesa. Publicado em 1938, é possível que a

Judite de Entre Judeus seja uma espécie de paródia da Judite de Nome de Guerra. A

Judite de Nome de Guerra tem como angústia estar anônima sob esse nome-tipo

marginalizado socialmente. É por esse nome que se relaciona com a sociedade e, ao

mesmo tempo, com que se defende dela.

Nome de guerra, sobrenome, anonimato. Como sobreviver, como

viver em sociedade, defendendo nossa individualidade e assumindo,

ao mesmo tempo, um papel? Judite é encarada como aquela que é só

persona, como aquela que escolheu um papel — talvez para poder

enfrentar a sociedade —, que vive a maior parte do tempo como

Judite, age como Judite e até parece poucas vezes se lembrar de que

não é Judite. Mas, ou por prudência ou por incapacidade, não revela

seu verdadeiro nome: cala-se.

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(Chigres, 2015)

Já a Judite do texto de Pepetela é o total oposto. O nome, que deveria ser tipo

que aprisiona ou oculta o verdadeiro ser, torna-se o nome verdadeiro, dado pelo afeto

do outro e com o outro. Importante assinalar que no texto de Pepetela não se sabe nem

o nome de nascimento nem o “nome de guerra” da personagem, eles não importam

(como o próprio “escritor” dirá mais adiante), importa apenas o nome que se recebe no

diálogo e na identificação com o outro. Desse modo já se anuncia que o estereótipo será

quebrado, mostrando que um nome, mesmo que saturado e tornado clichê, pode tomar

novamente sua força originária no diálogo, onde dois seres se conhecem e até se auto-

conhecem ao abrir-se ao outro. O nome Judite em vez de ser veículo de ocultação de si

mesmo e defesa perante a sociedade que a marginaliza, um nome social, torna-se em

Pepetela uma revelação de seu verdadeiro ser, nome que permanece oculto à sociedade,

um nome íntimo, já que ela só existe como Judite para o escritor, para o outro com que

se relaciona:

- Ouve, Judite. Tive uma ideia, não sei o que vais achar. Pensei

escrever esta conversa que tivemos, fazer um conto, e oferecer ao meu

amigo. Se ele pensar que fica bem no livro, entra a estória que

escrevi. Vou chamar-te Judite, nome judeu, ninguém vai saber que és

tu, ninguém mesmo. [...]

(Pepetela, 2006, p.135)

Por sua vez, o escritor, recebe seu nome de Judite ao receber dela mesma a

permissão para escrever o que ela contara.

- Podes mesmo, Samuel. Chamo-te Samuel, nome de judeu. Também

não quero saber o teu nome. Podes escrever e dar ao teu amigo.

- Faine! Esta noite mesmo vou escrever, Judite. Sei que vai sair bem.

Se leres o livro, um dia, vais ver essa parte e vais saber que a Judite és

tu. E que te acho linda e uma garina fixe, fixe mesmo.

(Pepetela, 2006, p.136)

Já o nome Samuel remete à figura do último juiz e primeiro profeta judeu na

Terra Prometida, sendo ligado à imagem de educador e restaurador da unidade cultural

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de um povo. Essa imagem, desligada de toda conotação religiosa, talvez represente a

imagem do escritor angolano como aquele que, após a independência, tinha a função de

mostrar (ou criar) a unidade cultural angolana, apesar da aparentemente inviabilidade

de tal tarefa em vista da multiplicidade de etnias, sem contar dos resquícios da cultura

portuguesa, a começar pela própria língua. Essa função do escritor, construtor da

literatura nacional fica evidente no conhecido dito de Pepetela acerca da questão:

Creio que a literatura nacional é elemento indispensável, tão

importante como outro qualquer, para a consolidação da

independência. É um fator que ajuda a aumentar a unidade nacional,

por ser veículo de situações, modos de vida e de pensar, dentro do

País, [...] Pode ser exagero – é caso para se discutir – mas afirmo que

não há, não pode haver, a criação dum país verdadeiramente

independente sem uma literatura nacional própria, que mostre ao povo

aquilo que o povo sempre soube: isto é, que tem uma identidade

própria.

(Hildebrando, 2006, p.317)

O fato desse Samuel angolano, escritor pela unidade, ser mulato e discriminado

pelos demais grupos parece um presságio da guerra civil fraticida que virá, uma guerra

que será a extrema consequência da rejeição da utopia da unidade.

Ao se tornarem personagens do conto futuramente escrito, os dois personagens

são nomeados, e esse nomear torna-se uma união entre os dois pela linguagem, tão

intensa quanto a união corporal que virá adiante. Judite encontra plenitude em contar

sobre o cão, Samuel a encontra na noite com Judite. A expressão dessa plenitude de ser

mostra-se como um certo desprezo por uma lógica financeira da vida, que condiciona a

liberdade a troca ou acumulo de capital. Judite, porém, oferece liberdade amorosa

apenas pelo preço da liberdade da palavra.

Bebemos os uísques em silêncio. Depois ela disse:

- Esta noite não vais escrever o conto. Amanhã tens tempo.

- Porquê?

- Hoje vou dar uma de generosa. Vamos prá cama, fazer amor na tribo

mulata. A paga são esses uísques e o conto que vais escrever. Abro a

primeira exceção na minha vida.

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- Fazes feriado? Vais perder dinheiro.

- É, está decidido, sei que também queres. Leio nos olhos.

- Mas porque aceitas o que não pedi?

- Por isso mesmo. Ou porque és o meu primeiro escritor e um

borrachinho ainda por cima. Ou por solidariedade de judeus!

Na noite seguinte, na solidão do meu quarto de solteiro, escrevi este

conto que ofereço ao autor do livro. Que dele faça o que quiser.

(Pepetela, 2006, p.136)

Ao terminar seu conto o escritor, nomeado Samuel, pode ainda desdenhar de

bens considerados altíssimos e ideais num mundo consumista, como se tão alta e plena

fosse a noite com Judite que, ainda que os juntasse todos, não a pagariam. Em vez

desses bens, deu algo que considera mais precioso.

Só não falo do que se passou no quarto de Judite, ninguém tem nada

com isso. Mas adianto que se tivesse um Rolls Royce, um Boeing,

uma ilha no Atlântico, sei lá quê, lhe daria depois daquela noite. Só

tinha uma coisa para lhe dar e ela ansiava por ela. Foi o que dei:

ternura.

(Pepetela, 2006, p.136)

No final, plenos na liberdade que só a marginalidade mulata podia lhes dar, a

felicidade surge, indiferente ao lucro, como um curioso comércio entre Samuel e Judite,

judeus de Angola. Um insólito comércio: de ternura. Da mesma ternura com que o

narrador de As Aventuras de Ngunga recomenda com que reguemos e façamos crescer

o nosso Ngunga interior, ou seja, aquela parte de cada um que não se conforma os

estereótipos e maniqueísmos absolutos sacralizados pelas sociedade.

Não será numa parte desconhecida de ti próprio que se esconde

modestamente o pequeno Ngunga?

Ou talvez Ngunga tivesse um poder misterioso e esteja agora em

todos nós, nós os que recusamos viver no arama farpado, nós os que

recusamos o mundo dos patrões e dos criados, nós os que queremos o

mel para todos.

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Se Ngunga está em nós, que esperamos então para fazer crescer?

Como as árvores, como o massango e o milho, ele crescerá em nós se

o regarmos. Não com água do rio, mas com ações. Não com água do

rio, mas com o que Uassamba em sonhos oferecia a Ngunga: a

ternura.

(Pepetela, 1980, p. 59)

Impressiona que justamente na obra em que se inicia a desilusão com o ideal

revolucionário, em obra anterior personificado em Ngunga, reapareça a ternura que o

pode “fazer crescer”. Isso ocorre justamente num diálogo entre mulatos, “judeus de

angola”, que se sentem à margem no novo regime pós-“revolução”, assim como no

regime colonial. A ternura em Pepetela vai muito além da delicadeza e da meiguice,

está mais relacionada ao cuidado com o outro do que com o sentimentalismo subjetivo.

Somente esse cuidado com o outro pode ultrapassar os estereótipos, os regimes antigos

e novos que oprimem e marginalizam, as discriminações, os maniqueísmos ideológicos

e tantas outras formas de opressão que se fundam na total falta de diálogo e cuidado

com o outro. Não é, portanto, coincidência que a ternura pepeteliana apareça, no pós-

independência, primeiramente na figura do mulato, feito o “talvez” encarnado, pois

quando aí é mostrado o mulato sendo marginalizado e discriminado por todos os grupos

circundantes, não se faz nenhuma defesa da mestiçagem nem qualquer consideração de

cunho racial, mostra-se, na verdade, o quanto a visão pouco dialética e tão radicalmente

maniqueísta de mundo desses grupos negligencia justamente esse cuidado com o outro,

o quanto em nome de ideais, poderes e comércios perdem a ternura. Em Muana Puó,

primeiro romance pepeteliano, já se encontra acerca de um dos personagens: “Não

posso viver sem ternura, queixa-se ele, ainda morcego... esse é o meu mel!”. Não seria

esse mesmo buscar a ternura, o “mel para todos” da utopia de Ngunga, mais do que

uma simples divisão de bens materiais, mas a conquista de bens sociais? Não começaria

a justiça social justamente pela conscientização do cuidado, da ternura, para com o

outro? No final de As Aventuras de Ngunga, Pepetela sugestiona que essa ternura pode

estar escondida dentro de cada um, em O Cão e os caluandas ele denuncia os

comportamentos e estruturas que a escondem. No segmento Entre Judeus, a ternura dá

as caras, personificada no diálogo amoroso daqueles que esses comportamentos e

estruturas marginalizaram.

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5.O ELOGIO DA IGNORÂNCIA: A CONDENAÇÃO DE NGUNGA E A

APOTEOSE DO MANIQUEÍSMO

Um povo ignorante é um instrumento cego

da sua própria destruição.

(Simón Bolívar)

Esta geração realizou parte do seu projeto,

a independência. Mas nós lutávamos

também pela criação de uma sociedade

mais justa e mais livre, por oposição à que

conhecíamos sob o colonialismo. Por

razões várias (constantes interferências

externas, desunião e erros de governação),

este objetivo não foi atingido e hoje Angola

ainda é um país que procura a paz e está

destruído, economicamente desestruturado

e com uma população miserável, enquanto

meia dúzia de milionários esbanja e

esconde fortunas no estrangeiro.

(Pepetela)

Muitos equívocos se cometem em relação à dialética quando utilizada como

justificativa de uma única doutrina ou visão de mundo. Nesse caso, a dialética não

passará de um brutal maniqueísmo, onde a doutrina escolhida é tida como correta e

todas as outras são homogeneizadas na esfera do errado. Isso não constitui dialética,

visto que, nesse caso, não se distingue contrários para diálogo ou até síntese, mas para

combate e posterior vitória de um deles, geralmente identificado com o bem. A partir

desse ponto de vista pseudo-dialético, maniqueísta por excelência, toda a realidade é

julgada com base nos padrões determinados pela doutrina “correta”: o que se encaixar

rigorosamente neles é tido como bom, e pode sobreviver, o que escapa em um só ponto

desses padrões é relegado ao “errado” e deverá ser eliminado para que um dia haja

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finalmente a vitória do bem. É nesse âmbito que acontece a ação do segmento Elogio

da Ignorância, o primeiro dos segmentos dramáticos de O Cão e Os Caluandas.

As palavras do Apresentador da “peça” começam com um erro que talvez não

merecesse atenção, não fosse ele recorrente em outros segmentos da obra:

Erasmo escreveu a peça Elogio da Loucura. Vocês não viram, nem

eu. Aliás, não interessa. Parece que Erasmo era contra a Santa

Inquisição naqueles anos lá da Europa. A peça em que vão actuar

chama-se O Elogio da Ignorância. Qualquer semelhança de ideia,

conotada ou denotada, com Erasmo é pura maledicência e vontade de

queimar os autores-actores, isto é, vocês.

(Pepetela, 2006, p.63)

O Elogio da Loucura de Erasmo de Roterdã é, na verdade, um ensaio. As

palavras do apresentador deixam claro que ele, nem nenhum dos presentes, leram a

obra de Erasmo. Em O Cão e os Caluandas há outros exemplos desse conhecimento

“por ouvir falar” de obras da cultura ocidental, a maioria deles em relação ao

pensamento de Marx que, ironicamente, é seguido de maneira fanática e intransigente

sem que se tivesse lido pessoalmente qualquer linha de um livro de Marx. Criticar uma

obra sem antes ter lido, nada mais próprio para iniciar um Elogio da Ignorância.

Percebe-se nessa atitude mais que o simples equívoco de alguém que ignora uma obra,

torna-se evidente que assim como o europeu estereotipou as culturas africanas, entre

elas as diversas existentes em Angola, como reação a isso, também muitos angolanos

desenvolveram uma imagem estereotipada e hostil das culturas européias. Trata-se do

perigo da visão de mundo maniqueísta, em que só é possível reagir a uma opressão com

uma opressão contrária, ou seja, mudando-se o oprimido e o opressor. A ideologia de

opressão, porém, permanece intacta. A grande denúncia desse segmento talvez seja

análoga a uma das grandes reflexões do pensador e pedagogo brasileiro Paulo Freire:

O seu conhecimento de si mesmos, como oprimidos, se encontra,

contudo, prejudicado pela “imersão” em que se acham na realidade

opressora. “Reconhecerem-se”, a esse nível, contrários ao outro não

significa ainda lutar pela superação da contradição. Daí esta quase

aberração: um dos pólos da contradição, pretendendo não a libertação,

mas a identificação com o seu contrário.

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[...]

Até as revoluções, que transformam a situação concreta de opressão

em uma nova, em que a libertação se instaura como processo,

enfrentam esta manifestação da consciência oprimida. Muitos dos

oprimidos que, direta, ou indiretamente, participaram da revolução,

marcados pelos velhos mitos da estrutura anterior, pretendem fazer da

revolução a sua revolução privada. Perdura neles, de certo modo, a

sombra testemunhal do opressor antigo.

(Freire, 2011, p.44,45)

A denúncia é do fracasso das lideranças pós-independência em educar o povo ao

diálogo. Importante destacar que no momento de escrita de O Cão e os Caluandas

Pepetela é Ministro da Educação no governo de Agostinho Neto. Essa denúncia, por

trás do seu bom humor e tom de paródia, tão caros a Pepetela, não só alerta que várias

das estruturas de opressão permanecem intactas, como prevê a tônica da guerra civil

que se anuncia. Apesar desta afirmação do próprio autor a Michel Laban acerca de O

Cão e os Caluandas:

Os aspectos críticos que aparecem nesse livro não são

fundamentalmente críticas estruturais, são de comportamentos – que

eu considerava, e considero comportamentos errados... e aí já a

conciliação é mais possível – é vista em termos de militante, militante

que critica comportamentos errados, de maneira que havia o fim de

atingir um objetivo – objetivo esse que o governante percebe também.

A conciliação fazia-se a esse nível.

(Laban, 1991, p.779,780)

Ao se ler O Cão e os Caluandas percebe-se claramente que os “comportamentos

errados” são apenas aspectos externos e visíveis dos pensamentos ainda formados pelos

“velhos mitos da estrutura anterior”. Embora a crítica de O Cão e os Caluandas não

tenha sido fundamentalmente estrutural, mas de uma motivação de escrita quase

moralística e de objetivos situados historicamente, sua crítica satírica de costumes

acaba por fornecer os sintomas claros de um inegável equívoco a nível estrutural. Em

nenhuma outra parte de O Cão e os Caluandas eles aparecerão de maneira tão evidente

e ditos sem meios termos como no Elogio da Ignorância.

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A relação da Loucura do Elogio de Erasmo com a Ignorância do Elogio de

Pepetela só fica clara se levamos em conta que no ensaio de Erasmo quem fala é a

Loucura. O ensaio é a voz da própria Loucura personificada em indivíduo.

Embora os homens costumem ferir a minha reputação e eu saiba

muito bem quanto o meu nome soa mal aos ouvidos dos mais tolos,

orgulho-me de vos dizer que esta Loucura, sim, esta Loucura que

estais vendo é a única capaz de alegrar os deuses e os mortais. [...]

Sou eu mesma, como vedes; sou eu aquela verdadeira dispenseira de

bens, a que os latinos chamam Stultitia e os gregos Moria. E que

necessidade haveria de vo-lo dizer? O meu rosto já não diz o

bastante?

(Rotherdam, 1979, p.7)

Já no Elogio da Ignorância, ela não se personifica em um indivíduo para fazer

ouvir a sua voz, antes, a voz da Ignorância é uma voz coletiva e não individual, torna-se

mesmo até a própria voz de um coletivo que “ainda que de ignorantes, se quer

inquestionável” (Hildebrando, 2006, 328).

4ºACTOR – Está bem identificado o inimigo de classe. Esses que

andaram na escola.

[...]

3ºACTOR – Já ouvimos o bastante. Porque andou na escola, pensava

que já podia ser Director da peça.

4ºACTOR – Como se um coletivo de ignorantes não fosse capaz de

encenar esta peça sobre a ignorância...

[...]

APRESENTADOR (quase chorando) – Mas eu não aprendi nada na

escola. Ou antes, já esqueci tudo.

6ºACTOR – Os vícios nunca se esquecem.

APRESENTADOR – Juro-vos que esqueci. Como o vosso benéfico

contacto permanente...

[...]

4ºACTOR – Ele tem razão. O colectivo acima de tudo. Nada de

individualismos. [...]

(Pepetela, 2006, p.69,70)

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Enquanto a obra de Erasmo assume por vezes a aparência de monólogo de um

indivíduo que dá voz à Loucura, o Elogio de Pepetela torna-se um monólogo de muitos

que nunca chega a ser diálogo, e é essa a voz da Ignorância: um coletivo que se compõe

de indivíduos que só falam e não ouvem, a impossibilidade total de diálogo entre

indivíduos que já tem suas visões de mundo totalmente cristalizadas e, portanto,

qualquer palavra que se afaste da sua cartilha do que é certo já se torna motivo para a

discórdia e a hostilidade.

[...] a “incoerência” esconde, na realidade, uma crítica mordaz ao

desvirtuamento do conceito de coletivo, em que este não mais

significa a junção instável de várias individualidades, mas sim uma

autoridade responsável pela supressão de qualquer individualidade.

Toda originalidade passa a ser condenável. Assim, por exemplo,

numa sociedade onde o analfabetismo é regra, o personagem chamado

de apresentador, por ter estudado até o quinto ano, passa a ser

irrevogavelmente culpado. A peça se torna julgamento.

(Hildebrando, 2006, 328).

Nesse âmbito há uma possível afinidade histórica (embora não uma

equivalência, obviamente) entre a posição de Erasmo, que escreve na sociedade

renascentista cristã europeia, e a de Pepetela, que escreve num regime que se quer

socialista. Os pólos que se colocaram à época de Erasmo, exigindo-se a escolha de um

deles, foram o catolicismo romano e o protestantismo nascente. Erasmo rejeitou a

escolha, antes denunciou o absurdo da situação dessa escolha que, na verdade, nada

mais era que a falsa liberdade de se optar onde estar preso.

(houveram) insistentes pedidos de Lutero e dos outros reformadores,

no sentido de que Erasmo participasse das novas ideias religiosas,

pois afinal todos queriam basicamente as mesmas coisas e o célebre

humanista seria uma arma decisiva na luta, com toda sua cultura e

erudição muitíssimo superiores às dos demais. Do outro lado ocorre o

mesmo, com o Vaticano a solicitar a Erasmo que condenasse as teses

de Lutero, para isso chegando mesmo a oferecer-lhe um posto de

cardeal. Mas Erasmo não se deixa render, porque não concorda com

nenhum dos lados. A Igreja lhe parece podre e a exigir profundas

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modificações, mas os reformadores eram, a seu ver, bárbaros e

fanáticos. Além do mais, faz questão de conservar absoluta

independência pessoal, e isso implica não tomar partido. O que

poderia parecer covardia era, na verdade, o resultado de arraigada

convicção de que os dois lados estavam errados e o verdadeiro

caminho deveria ser criado pelo homem enquanto ser inteligente e

livre.

(Pessanha, 1979, 16,27)

O Elogio da Loucura foi a obra de Erasmo em que essa visão se evidenciou de

forma mais acessível ao leigo, tanto por sua natureza humorística quanto pela

dramaticidade como tratou alguns temas pela boca da própria Loucura, que afirma sem

pudor ser ela a mestra desses dois pólos aparentemente conflitantes. Por isso, tornou-se

essa obra um símbolo do humanismo que não reduz o humano a nenhuma teoria ou

doutrina sobre o que esse humano é ou que deva ser. É a esse humanismo que as obras

de Pepetela apontam e que indica a posição de sua obra dentro da Angola independente,

de regime socialista. Se a Loucura de Erasmo denuncia que em seus domínios estão os

fanáticos da religião, a Ignorância de Pepetela denuncia pelos seus ignorantes que em

seus domínios estão os fanáticos do coletivo.

Mais uma vez, entra-se nos domínios do maniqueísmo, cujos equívocos em

relação à compreensão do outro e da realidade permanecerão de forma inexorável

durante todo o Elogio da Ignorância. Essa visão maniqueísta já se pressupõe na

primeira fala, quando o apresentador adverte que não há semelhança com a obra do

europeu Erasmo, já que saber algo da cultura européia e de qualquer outro tipo de

erudição em matéria de cultura, como ficará claro mais adiante no segmento, é visto

como uma forma de orgulho e tentativa de se sobrepor arrogantemente ao coletivo.

Anular-se no coletivo se torna a lei, e é nesse âmbito que a voz da Ignorância se fará

ouvir. Não ignoramos aqui o fato de que a cultura européia foi imposta de maneira

opressora durante os quase quinhentos anos de colonização angolana, porém não deve-

se ignorar também que o próprio Pepetela entende a literatura angolana como uma

ponte e possível síntese entre as culturas africanas, americanas e européias, a começar

pelo próprio uso da língua portuguesa de forma completamente angolana.

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Evidentemente, eu penso que a nossa literatura precisa de ir à tradição

– e eu, sempre que posso, tento ir, procurar raízes. Isto é uma

sociedade com muitas fontes – não só fontes propriamente africanas,

mas que são diversas, conforme as regiões, conforme as culturas e

etnias; mas, depois toda a influência européia, quer de Portugal, quer

do resto da Europa, quer do próprio Brasil etc. Há um caldear de

culturas, aqui, e nós temos de ir procurando raízes daquilo que faz

uma certa identidade.

(Laban, 1991, p.779,780)

À uma visão de mundo maniqueísta não são necessárias pontes e diálogos, mas

a obrigação da escolha de um lado ou de outro; para tal, é preciso um absoluto cerco

ideológico que, primeiramente, convence da impossibilidade de qualquer diálogo e,

segundo, determina a coletivização do pensamento, condenando qualquer “desvio”

individual como uma agressão ao coletivo. Obviamente, há uma identificação

equivocada por parte dos personagens entre coletivo e povo, quanto, na verdade, a

coletivização seria mais repressão da individualidade dos indivíduos que juntos formam

o povo, ou seja, uma uniformização, a transformação do múltiplo em um só. Já o povo é

o conjunto de individualidades que convivem, ou seja, uma unidade, a convivência de

múltiplos em um só. Esse equívoco acarreta na total indiferença dos personagens à

liberdade do indivíduo, sendo ora chamada com desprezo de “originalidade”, ora de

“individualismo”. O personagem apresentador que havia iniciado a proposta da peça

sem enredo e texto prévio, livre, é acusado do seguinte modo:

4º ACTOR – Desde o princípio que está armado em original. A

desprezar o coletivo, a querer individualizar-se.

[...]

O coletivo acusa o Apresentador com todas as provas. Desviou o

rumo da peça pela sua introdução individualista. Intelectualista! Isso é

contrário à nossa linha.

[...]

4ºACTOR – O réu não reconhece a sua culpa?

APRESENTADOR – Claro que não.

4ºACTOR – É crime fazer uma apresentação original?

3ºACTOR – Já confessou o crime.

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[...]

4ºACTOR – É verdade, é. O réu quis substituir-se ao coletivo no

julgamento sobre as capacidade de um ator-autor.

3ºACTOR – Julga-se muito culto, com certeza. Muito conhecedor das

coisas.

(Pepetela, 2006, p.67)

A liberdade de pensamento do indivíduo torna-se uma ameaça ao coletivo, aos

conceitos com que se quer instituir o coletivo, ainda que a conquista dessa mesma

liberdade de pensamento que tenha permitido que se forjassem e aplicassem esses

conceitos com liberdade. É a contradição de muitas das revoluções que, especialmente

no momento de escrita dessa obra, Pepetela consegue perceber com mais clareza, fato

que em obra anteriores aparecia apenas como alerta e intuição. A luta contra a liberdade

é, antes, luta contra a educação libertadora, é a luta contra Ngunga, aquele guerrilheiro

que é formado tanto pelo conhecimento quanto pela experiência em As Aventuras de

Ngunga, obra escrita ainda nos tempos de guerrilha.

No tempo do colonialismo, ali nunca tinha havido escola, raros eram

os homens que sabiam ler e escrever. Mas agora o povo começava a

ser livre. O Movimento, que era de todos, criava a liberdade com as

armas. A escola era uma grande vitória sobre o colonialismo. O povo

devia ajudar o MPLA e o professor tem tudo. Assim, o seu trabalho

seria útil. As crianças deveriam aprender a ler e a escrever e, acima de

tudo, a defender a Revolução. Para bem defender a Revolução, que

era para o bem de todos, tinham de estudar e ser disciplinados.

(Pepetela, 1980, p.24)

Essa fala do Comandante Mavinga em As Aventuras de Ngunga, são a total

antítese da realidade do que se tornou a Revolução, conforme a contundente denúncia

do Elogio da Ignorância, feita da paródia e do absurdo, porque a absurda realidade que

se fez no pós-revolução não passava de uma cruel paródia dos ideais que animaram a

utopia que Ngunga personificou. O Elogio da Ignorância denuncia que a mente da

Angola pós-colonial acaba voltando-se contra os princípios que inspiraram a luta contra

o colonialismo e pela liberdade de Angola. Em O Cão e os caluandas acontece a

percepção de que a utopia da unidade, personificada anteriormente na figura do jovem

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Ngunga, além de não ter se realizado, encontra resistência tanto no senso comum de

muitos angolanos quanto nas práticas do próprio estado burocratizado.

Acreditamos que Ngunga, em função do contexto em que é gestado,

espelha todas as virtudes essenciais ao modelo de identidade angolana

com que o escritor em questão deseja ver formadas as novas gerações

de sua terra que deverão sustentar as conquistas já alcançadas e dar

continuidade ao aprofundamento das lutas pelas quais se garantirá o

futuro da nação que naquele momento está sendo construída.

(Campos, 2009, p.230)

Mais que o Apresentador, é o ideal personificado em Ngunga que é julgado e

condenado no Elogio da Ignorância. O Ngunga que dá ouvidos ao professor União e ao

Comandante Mavinga nos seus insistentes ensinamentos de que, para mudar sua

sociedade de forma realmente estrutural, Ngunga precisa, além da indignação e da

vontade, do conhecimento.

- Hei-de lutar para acabar com a compra das mulheres – gritou

Ngunga, raivoso. – Não são bois!

- Para isso precisas de estudar. Eu não sei sobre o alambamento.

Sempre se fez, os méus avós ensinaram-me isso. Mas, se achas que

está mal e é preciso acabar com ele, então deves estudar. Como

aceitarão o que dizes se fores um ignorante como nós?

(Pepetela, 1980, p.45)

Ngunga é julgado e condenado no Elogio da Ignorância em nome da mesma

liberdade pelo qual lutava. A Angola de O Cão e os caluandas parece não compreender

a Angola da verdadeira aventura de Ngunga, que não se constituiu de fatos guerreiros

nem se propagandas ideológicas, mas é “o processo de conscientização que o leva a

querer aprender mais e lutar para que o ‘mel’ seja de todos” (Hildebrando, 2006, p.320).

A educação, que antes da independência, n´As Aventuras de Ngunga, era estimulada

como arma contra o regime colonial, passa a ser considerada no regime de viés

socialista da Angola independente de O Cão e os caluandas uma arma contra qualquer

regime, pela liberdade de pensamento que propicia. Essa educação passa então a ser

hostilizada e a sua liberdade torna-se temida pelo próprio regime que ajudaram a

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construir. Já toma forma aqui a desilusão que tomará sua mais acabada forma literária

no romance A Geração da Utopia, nas palavras do autor, “estória sobre uma geração

que fez a independência de Angola e não soube fazer mais” (Bueno, 2000). Ngunga

passa a ser temido e visto com desconfiança em vez de ser uma face da utopia

angolana. A reflexão de Paulo Freire se torna aqui mais uma vez oportuna, acerca

daqueles que, tendo vencido a luta pela sua liberdade, agora temem que a liberdade

destrua o roteiro que escreveram para a história, de tanto que ainda são “marcados pelos

velhos mitos da estrutura anterior”:

Os oprimidos, que introjetam a “sombra” dos opressores e seguem

suas pautas, temem a liberdade, na medida em que esta, implicando a

expulsão desta sombra, exigiria deles que “preenchessem” o “vazio”

deixado pela expulsão com outro “conteúdo” – o de sua autonomia. O

de sua responsabilidade, sem o que não seriam livres. A liberdade,

que é uma conquista, e não uma doação, exige uma permanente

busca. Busca permanente que só existe no ato responsável de quem a

faz. Ninguém tem liberdade para ser livre: pelo contrário, luta por ela

precisamente porque não a tem.

[...]

Enquanto tocados pelo medo da liberdade, se negam a apelar a outros

e a escutar o apelo que se lhes faça ou que se tenham feito a si

mesmos, preferindo a gregarização à convivência autêntica.

Preferindo a adaptação em que sua não liberdade os mantém à

comunhão criadora a que a liberdade leva, até mesmo quando ainda

somente buscada.

(Freire, 2011, p.46,47)

O medo da liberdade, mais que o medo de que o roteiro que se escreveu para a história

seja contrariado, é medo de uma história sem roteiro, de uma história que tenha que ser

recriada a cada dia. Mais uma vez chegamos à presença do temido caos, da história sem

ordem instituída para prevê-la e dirigi-la. Para irromper esse caos, ou antes torná-lo

evidente, como em todos os outros relatos de O Cão e os Caluandas, deverá surgir o

cão na peça. Quando surge, a peça já se erigiu em julgamento. Como já havia uma

noção considerada a única correta da história, a da supremacia do coletivo, nada mais

natural que a história se transforme em julgamento e condenação de quem destoou

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dessa ideologia. Realmente, os livros de história escolares tem sido ainda, apesar dos

esforços de vários historiadores, o julgamento dos vencidos por parte dos vencedores,

que contam a história. Nesse âmbito, as obras de Pepetela tornam-se uma reação na

História às histórias dominantes que a querem monopolizar e moldar segundo interesses

egoístas travestidos de ideais e utopias.

É uma consciência histórica que leva a que a obra romanesca de

Pepetela funcione com uma lógica antiépica que acaba por referenciar

os ideais agônicos da revolução e do nacionalismo – e,claro,da

cidadania, que nem logrou vingar. E isso, por um lado, pela

“vulgaridade” das suas personagens (personagens comuns: mesmo as

figuras históricas têm uma postura simplesmente humana) e também

através do despertar de vozes e memórias que na utopia político-

social não tinham lugar. Pelo processo de vigília dessas vozes, antes

silentes e marginais, resgatadas da História, descobrem-se as sombras

do outro lado da realidade, vai-se modificando a paisagem da

cidadania e a nação começa a emergir diversa, colorida.

(Mata, 2006, p.49)

O Elogio da Ignorância torna-se, assim, também uma metáfora das histórias

humanas que tentaram e tentam se impor como a única História Humana. Mesmo,

porém, quando fazem dela um julgamento e a violentam como justificativa ideológica,

ela permanece sem roteiro e sem texto prévio; à frente de cada movimento histórico que

se quer o definitivo, sempre há um impulso ao caos que permitirá a criação do novo.

Sempre há o cão. A participação dele é pequena nesse segmento da obra, porém

altamente simbólica. Antes de aparecer fisicamente na peça, ele já era presente na

primeira fala do apresentador:

[...] Para os atores que nunca tenham comparecido antes, devo dizer

que esta peça não tem texto escrito. Como seria possível se o cão não

sabe ler? E o cão reage de maneira imprevisível, por isso cada

representação é sempre diferente da anterior. Ainda não aconteceu ele

morder alguém. Seria interessante improvisar um final com um dos

atores agarrado a uma canela. Final sangrento.

(Pepetela, 2006, p.63)

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É por causa da sua presença que a peça não terá roteiro, que a História não pode

ser determinada. Durante todo o segmento, tentará se prever o momento da entrada do

cão, ainda que o Apresentador já o tenha dito imprevisível. Ao final o cão não entra

fisicamente na “peça”, só se ouve seu latido do lado de fora. Em nenhum momento ele

aceita fazer parte da peça imprevisível que é composta dos seus personagens,

ignorantes, tentarem prevê-la e a transformarem num julgamento de acordo com suas

ideias (paradoxalmente, individuais) do que é o coletivo.

CÃO (de fora da cena) – Ão, ao, ao.

5º ATOR – Já chegou, já chegou. O meu amigo já chegou.

Naturalmente!

3º ATOR – Chama-o então, 5º. Que entre depressa. Temos de acabar

o julgamento para executar rápido o réu.

6º ATOR – Que se passa com esse meu inimigo? Não quer entrar?

Não costuma ser assim tão lento.

4º ATOR – Vai entrar. Ele não foge ao coletivo, é um cão muito

inteligente e disciplinado. Compreende melhor que o Apresentador o

peso do coletivo.

[...]

5º ATOR – E o cão?

6º ATOR (indo até a boca da cena e olhando para fora) – Parece que

foi embora. Hoje não vou poder chateá-lo.

[...]

2º ATOR (olhando também para fora) – Foi embora, sim. Não quer

ser cúmplice dessa injustiça.

5º ATOR - Mas eu sou amigo do cão. Sinceramente! Por que ele não

é meu amigo?

(Pepetela, 2006, p.70,71)

Na citação acima, em que ocorre a “participação” do cão, ocorre uma metáfora

da participação do cão em todo O Cão e os caluandas: Sua participação é justamente

não participar, desencadear todo narrar sem que interfira nele. Nota-se durante todo o

Elogio da Ignorância que o 5º e o 6º Atores só sabem interpretar a partir da antinomia

“amigo” e “inimigo”, o cão só pode ser interpretado de acordo com o relacionamento

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que tem com eles, ou seja, o eu deles é a medida para interpretar-classificar o outro.

Também pode-se notar a curiosa participação do 2º Ator, que parece ser o único lúcido

dos seis atores, porém seu posicionamento é apenas mais uma espécie de ignorância

diante dos ignorantes que querem julgar a seu bel prazer o outro e a história: Ele

reclama e se indigna, porém aceita o veredito final, a “injustiça”. Na verdade, sua

indignação perante a injustiça é apenas um meio de deixar a conciência limpa, de “lavar

as mãos”, não uma vontade efetiva de mudar a situação. Isso é provado pela sua última

fala na peça onde, prostrado após a votação “democrática” que termina aprovação da

“injustiça”, diz: “Inclino-me à vontade do coletivo”. Pouco antes, durante a votação,

pergunta-se ao Apresentador se não aceita a posição do coletivo, ao que ele responde:

“Da maioria , não do coletivo”. Já aí há a crítica tanto à passiva “consciência limpa” do

2º Ator quanto à falsa democracia que se acha justa apenas por obter maior número de

votos, apenas por servir à maioria e não à coletividade que ela tanto diz defender. A

democracia, se não baseada do diálogo, pode se transformar numa mera ditadura da

maioria. O que não há em todo o Elogio da Ignorância é o diálogo, há apenas palavras

trocadas, há conversa, porém não diálogo, que implica relacionamento, cuidado com o

outro, nos termos da ternura pepeteliana que citamos no capítulo anterior. A conversa

traz a fala como estabelecimento da posição do falante, mas o diálogo pressupõe a

escuta.

O diálogo é este encontro dos homens, mediatizados pelo mundo,

para pronunciá-lo, não se esgotando, portanto na relação eu-tu.

Esta é a razão por que não é possível o diálogo entre os que querem a

pronúncia do mundo e os que não a querem; entre os que negam aos

demais o direito de dizer a palavra e os que se acham negados deste

direito. É preciso primeiro que os que assim se encontram negados no

direito primordial de dizer a palavra reconquistem esse direito,

proibindo que este assalto desumanizante continue.

Se é dizendo a palavra com que, pronunciando o mundo, os homens o

transformam, o diálogo se impõe como caminho pelo qual os homens

ganham significação enquanto homens.

Por isto, o diálogo é uma exigência existencial. E, se ele é o encontro

em que se solidarizam o refletir e o agir de seus sujeitos endereçados

ao mundo a ser transformado e humanizado, não pode reduzir-se a um

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ato de depositar ideias de um sujeito no outro, nem tampouco tornar-

se simples troca de ideias a serem consumidas pelos permutantes.

(Freire, 2011, p.109)

A relação eu-tu, citada por Freire, é uma referência ao pensamento do judeu

Martin Buber na obra Eu e tu, em que se pensa os pares “eu-tu” e “eu-isso” como

símbolos das duas relações que o ser pode estabelecer com o outro. O “eu-tu” é diálogo,

relação, já o “eu-isso” pressupõe o outro como objeto de experiência subjetiva, onde o

subjetivo dita o que deve ser e o que não deve ser, independente do que realmente seja

ou não. O Elogio da Ignorância pode também ser interpretado como uma realização

dramática do “eu-isso”.

O mundo como experiência diz respeito à palavra-princípio EU-ISSO.

A palavra-princípio EU-TU fundamenta o mundo da relação.

[...]

O experimentador não participa do mundo: a experiência se realiza

“nele” e não entre ele e o mundo.

O mundo não toma parte da experiência.

Ele se deixa experienciar, mas ele nada tem a ver com ISSO, pois, ele

nada faz com ISSO e nada DISSO o atinge.

(Buber, 1979, p.6)

No Elogio da Ignorância realiza-se como que uma paródia do mundo como

experiência, ou seja, do primado da visão subjetiva do mundo sobre a própria existência

do mundo. Cada um dos personagens tenta impor ao mundo, que o outro também

constitui, sua visão subjetiva de como o mundo deve ser; por isso, tudo que há nesse

mundo torna-se “coisa” a ser administrada ou julgada por essa visão subjetiva que se

apresenta como teoria ou utopia social. Não é possível relação, diálogo, com uma

“coisa” que compõe o mundo, ela não pode ser chamada de TU, pois quem assim a

considera “coisa” não se rebaixaria a ela tratando-a como um igual. Só seria possível

chamá-la ISSO, o que implica distanciamento ao mesmo tempo que supõe uma falsa

objetividade, que subjuga tudo que há num mesmo nível, abaixo de um EU que impõe

seu subjetivo a toda realidade, como se ela estivesse nela e não o contrário. Importante

notar que, no pensamento de Buber, de modo algum o mundo como experiência é

ligado ao mal, nem se trata de um oposto cujo outro oposto seria o mundo da relação,

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do diálogo. Antes, o mundo da experiência, do EU-ISSO é necessário e pertence à

existência humana, ele torna-se nocivo apenas quando se torna o sentido último dessa

existência, quando o técnico, o burocrático, o doutrinário e a ordem são mais

valorizados que o humano, a multiplicidade e o diálogo. Quando o EU-ISSO reconhece

a primazia do diálogo, do EU-TU, na construção e percepção dos sentidos da

existência, ele é útil como instrumento de relação. Em O Cão e os caluandas, porém,

Pepetela começa a denunciar o quanto a relação EU-ISSO tornou-se o centro e o fim de

toda atividade na Angola independente. Isso é mostrado não só no uso de uma doutrina

social ridiculamente inflexível a qualquer movimento não previsto do homem e da

realidade, mas principalmente na burocracia que será representada em uma série de

segmentos de O Cão e os caluandas que constituem-se de documentos burocráticos,

cuja estrutura formal, padrão lingüístico de distanciamento, impessoalidade e fidelidade

a um sistema social fechado não conseguem acompanhar o fluxo da realidade e nem a

realidade social e humana. Analisando alguns esses “documentos” no próximo capítulo,

perceberemos o quanto Pepetela põe o documento burocrático como uma espécie de

monumento ao não-diálogo, à impessoalidade fria para com os semelhantes. Esses

documentos se tornarão os monumentos do mundo do Elogio da Ignorância.

O final do julgamento, aparentemente cômico, nesse que talvez seja o segmento

central de O Cão e os caluandas, torna-se altamente simbólico tanto da visão da

realidade nessa obra em especial quanto da percepção Pepeteliana da relação entre

ficção e realidade.

A sentença, tão inusitada quanto todo o resto, é proferida por todos,

em coro: “O réu é condenado à pena máxima. Paga uma grade de

cerveja”. Em meio aos gritos desesperados do réu, que é arrastado

pelos outros, avisa-nos o autor: “Cai o pano. Esburacado”.

Através dessa melancólica cortina esburacada que esconde e revela,

Pepetela passa a limpo, com seus personagens sem nomes,

numerados, o que ficou por realizar do projeto socialista que a

revolição angolana preconizava.

(Hildebrando, 2006, p.328,329)

O buraco na cortina, indicação final da cena dramática, significa muito mais que

um símbolo de pobreza ou uma simples indicação de viés cômico. Primeiramente, o

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buraco permite que a cortina, mesmo se fechando, não deixe de revelar: a denúncia e o

ridículo do Elogio da Ignorância são feridas expostas, que nenhuma cortina ideológica

e ideal pode esconder. Também, por conta desse buraco, a cortina deixa uma brecha na

sua função de separar drama e realidade. A realidade do Elogio da Ignorância e o drama

da sociedade angolana não se distinguem. O buraco na cortina se torna uma metáfora da

própria obra: O Cão e os caluandas não será a obra que as cortinas escondem e

revelam, mas foi escrita para ser justamente um revelador e incômodo buraco na

cortina. O ciclo utópico pepeleliano que tivera seu auge em Ngunga e em Mayombe

chega ao fim. A utopia, porém, permanecerá, após O Cão e os caluandas, não como

projeto de luta, mas como resistência da chamada geração da utopia, “uma geração

impedida de desistir de sonhar, talvez por escolha, destino, ou quem sabe, por

condenação” (Gonda, 2007, p.23)

O saldo intensamente negativo do Elogio da Ignorância é o diagnóstico do que

se tornou a sociedade angolana do pós-independência, às portas da guerra civil:

Inexistência de diálogo e de incentivo ao conhecimento e à conscientização do social,

resultando na presença constante do julgamento maniqueísta do outro, da realidade e da

história. É o julgamento e a condenação à morte de Ngunga, e seria também a execução

e o epitáfio, não fossem as aparições do cão a abrirem brechas insuspeitáveis para o

diálogo e a ternura no restante da obra.

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6. OS COLONIZADOS EM PAPELÓPOLIS E A LIBERDADE DA

TONINHA: OU A ORDEM BUROCRÁTICA E A RESISTÊNCIA DA

UTOPIA

ESCRAVO EM PAPELÓPOLIS

Ó burocratas!

Que ódio vos tenho, e se fosse apenas ódio...

É ainda o sentimento

da vida que perdi sendo um dos vossos.

(Carlos Drummond de Andrade)

Se a perseguição exclusiva de fins não-

utópicos resulta no que aí temos, no mundo

em redor, este mundo cujo horizonte

supremo é “operar com êxito nas

empresas”, não há que hesitar: a utopia

será, mais do que nunca, necessária.

(Carlos Felipe Moisés, em Poesia e

Utopia)

A sociedade refletida no Elogio da Ignorância tem como motor a administração

burocrática. Não é coincidência que dois dos segmentos de O Cão e os caluandas sejam

documentos burocráticos e em vários outros os personagens sejam funcionários

públicos. Antes, porém, de interpretar esses segmentos é preciso entender o que

significa a burocracia, para além do simples documentarismo. Para tanto, nos

basearemos no pensamento de Max Weber em seu clássico Economia e Sociedade. A

ignorância que, em o Cão e os caluandas, tem o seu Elogio como forma de dominação

de um povo, terá na burocracia seu monumento e seus agentes.

Para Weber, a burocracia é instrumento da instalação do poder, é uma forma

sutil de dominação que, a partir de quando recebe a legitimidade dos subordinados,

passa a funcionar como administração. Lembre-se a fala do personagem do segmento O

Primeiro Oficial, exposta no primeiro capítulo deste texto, em que o funcionário

público angolano de certo modo justifica a dominação portuguesa sob o pretexto de que

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pelo menos os portugueses sabiam administrar e manter a burocracia em ordem.

Naquele contexto, sua fala não só legitima a anterior dominação portuguesa como a sua

própria, funcionário da burocracia na Angola pós-independência, sob os outros

angolanos, que não saberiam manter as “coisas em ordem”, nem agir de maneira

“sensata”.

Todas as dominações procuram despertar e cultivar a crença em sua

legitimidade. Dependendo da natureza da legitimidade pretendida

difere o tipo de obediência e do quadro administrativo, destinado a

garanti-la, bem como o caráter do exercício da dominação.

Entre os diferentes tipos de dominação estudados por Weber, a

burocracia se insere na dominação legal-burocrática. Essa dominação

possui um caráter racional, fundamentado na crença da validade dos

regulamentos estabelecidos racionalmente e na legalidade dos chefes

designados nos termos da lei. Assim a relação entre dominantes e

dominados se estabelece, não por vontade própria, mas por estar

previsto, em estatuto, que determina quem deve mandar e quem deve

obedecer. Quem manda, assim o faz para obedecer ao estatuído. O

dominante, que está apenas exercendo uma função como dever

objetivo do cargo que ocupa, deve agir impessoalmente, sem

interferência subjetiva, sem consideração a pessoas, sem influência de

qualquer espécie. Deve agir de maneira estritamente formal, segundo

regras racionais.

(Santos, 2011, p.270)

A forma de dominação burocrática se funda também sobre a disciplina, o dever

de obediência. A hierarquização se torna essencial, ou seja, a base mesmo da sociedade.

Aparentemente, não há mais dominantes e dominados, pois a hierarquia administrativa

tem a aparência de ser escolhida e criada por meios racionais, que se supõe neutros. A

hierarquização burocrática dificilmente será considerada uma dominação a primeira

vista, visto que se funda sobre uma suposta razão natural a todos, como se ela fosse

realmente a lei última da realidade social.

Há na administração burocrática um processo de nivelamento de

dominantes e dominados porque, na verdade, todos obedecem a um

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estatuto previamente estabelecido. As classes laboriosas e as classes

dirigentes são apenas variantes do cidadão - a dominação fica

dissimulada e esta planificação surge como instrumento para exercer

o poder e justificar seu exercício. É uma forma sutil e perfeita pela

qual o autoritarismo se impõe no mundo capitalista. Na forma

burocrática de administrar aplica-se o princípio absoluto da separação

entre o quadro administrativo e os meios de administração e

produção. Substitui-se assim o governo das pessoas pela

administração das coisas e a racionalidade que a governa faz surgir a

crença de uma razão inscrita nas próprias coisas, na medida em que

esta razão estabelece uma sociedade inteligível de ponta a ponta. As

idéias de organização, controle, administração e planificação

transformam o universal abstrato em ação adequada a fins.

(Santos, 2011, p.271)

Por fim, a hierarquia burocrática se funda sobre a necessidade de centralização.

Esta garantiria a estabilidade da dominação.

A burocracia não é um aparelho qualquer à disposição de dirigentes

políticos; é um aparelho centralizado. A centralização diz respeito

tanto ao recrutamento quanto a administração de um pessoal colocado

sob a autoridade se não das mesmas regras, pelo menos de regras que

dependem dos mesmos princípios. E por ser centralizada é que este

tipo de administração tende a uma codificação mais ou menos

rigorosa que procura dar coerência a uma massa de leis, decretos,

regulamentos prolíficos e confusos. Administrar/dominar via

burocracia é estabelecer obediência por meio de um quadro

administrativo: cria-se uma infinidade de direitos e deveres, instala-se

uma hierarquia entre o séquito e este corpo administrativo. E isto

possibilita a estabilidade da dominação. Neste sentido, vemos que

Weber estabeleceu as estratégias usadas pelos dominantes para

assegurar a dominação e fazer com que os dominados aceitem-na.

(Santos, 2011, p.271)

Torna-se bem claro que a suposta neutralidade das leis que legitimam a

burocracia, sob a aparência de impessoalidade, torna-se simples coisificação dos

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membros da sociedade. É nesse âmbito que as pessoas acabam se tornando números de

estatísticas ou partes de um coletivo supostamente homogêneo. É a relação Eu-Isso, do

pensamento de Buber, em total predominância quanto a qualquer outro tipo de relação.

Para o sucesso da hierarquia burocrática e seu funcionamento, a desumanização torna-

se peça chave.

A peculiaridade da cultura moderna, especialmente a de sua base

técnico-econômica, exige precisamente esta "calculabilidade" do

resultado. A burocracia em seu desenvolvimento pleno encontra-se,

também, num sentido específico, sob o princípio sine ira ac studio.

Ela desenvolve sua peculiaridade específica, bem-vinda ao

capitalismo, com tanto maior perfeição quanto mais se "desumaniza",

vale dizer, quanto mais perfeitamente consegue realizar aquela

qualidade específica que é louvada como sua virtude: a eliminação do

amor, do ódio e de todos os elementos sentimentais, puramente

pessoais e, de modo geral, irracionais, que se subtraem ao cálculo, na

execução das tarefas oficiais. Em vez do senhor das ordens mais

antigas, movido por simpatia pessoal, favor, graça e gratidão, a

cultura moderna exige para o aparato externo em que se apóia o

especialista não-envolvido pessoalmente e, por isso, rigorosamente

"objetivo", e isto tanto mais quanto mais ela se complica e

especializa. E tudo isto a estrutura burocrática oferece numa

combinação favorável.

(Weber, 1999, p.213)

É nesse âmbito que a crítica de Pepetela inscreverá seus personagens. A

burocracia é mais que uma resposta ao caos, é a própria negação dele, um faz-de-contas

de que ele não existe. Trata-se de um embuste documental do que se chama ordem.

Eliminar o caos verdadeiramente implicaria eliminar tudo aquilo que escapa ao controle

de toda ordem, tudo aquilo que potencializa caos. Não é à toa que, nas ordens que se

querem perfeitas, sempre se quer a expulsão dos poetas e daquilo que, no humano, não

serve aos propósitos retilíneos do regime: a caótica humanidade do homem não serve às

ordens que buscam eficiência maquinal no agir sobre a realidade. Mais uma vez na

obra, é o cão que instaurará o caos, que fará com que as personagens relembrem da sua

humanidade para além dos tipos e das funções que lhe são dadas na nova ordem tecno-

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burocrática que se torna a Angola independente. Há dois segmentos de O Cão e os

caluandas que são expressamente documentos burocráticos. O primeiro deles

denomina-se Acta, o segundo denomina-se Que Raiva!. Neles, a presença irreverente do

cão no que relatam, além de expor ao ridículo a exigência burocrática do relato, quebra

a formalidade burocrática desses documentos que, paradoxalmente, acabam por expor

uma crítica à própria burocracia.

O primeiro desses segmentos é uma ata de uma reunião da Comissão sindical e

da Direção de uma empresa, e o que é relatado nessa ata se inscreve entre as

declarações do mulato Teoria em Mayombe e o absurdo do Elogio da Ignorância.

Trata-se da atitude de um técnico chamado João Venâncio dos Santos, que ao saber que

um outro funcionário roubando panos do armazém da firma, não o denunciou, posto

que João Venâncio era branco e o funcionário que praticara o roubo era negro.

[...] disse o Cds Venâncio que se bateu muito tempo na dúvida e até

pensou falar com o próprio Adriano a sós, para o convencer a ser

honesto. Mas teve medo [...] que o Adriano reagia mal e que saía por

aí embora a dizer se pensava que ele era ladrão por ser negro [...]. Por

isso às vezes ele (Venâncio) não sabia muito bem como proceder,

tinha medo de ir contra os princípios da república por falta de política

e por ideias caducas que ainda podiam estar na sua cabeça [...].

(Pepetela, 2006, p.37)

A situação do roubo só é exposta por causa do cão.

Felizmente apareceu aquele cão pastor-alemão, anjo vingador, [...] ao

se agarrar no pano cuja uma ponta andava sair das calças do Adriano

quando este pulou embora o muro da fábrica. Se não fosse o cão, até

hoje que o Adriano andava nas calmas, a fingir trabalhar e a roubar o

suor dos operários, tudo por culpa dele, Venâncio.

(Pepetela, 2006, p.36)

Mais que o roubo, o cão denuncia o absurdo da questão racial tomada de forma

simplista. Venâncio é alguém que, para usarmos os termos do mulato Teoria de

Mayombe, se perde entre os conceitos de negro e branco, que crê eternamente opostos,

só tendo dúvida de qual lado deles estar nas situações que a realidade dos homens lhe

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oferece. Venâncio nem desconfia do “talvez”, assim como os colegas que o julgaram. A

questão racial é tratada como posição burocrática e legal e não como conscientização, o

que fica bem claro quando na própria ata se registra que Venâncio não denunciou

Adriano por medo de estar agindo contra os princípios do novo regime. O segmento

Acta reflete o que pode acontecer quando questões importantes, como a racial, são

simplesmente impostas de lugar superior da hierarquia burocrática, em vez de se

investir numa educação e conscientização humanística do povo que inclua essa e outras

questões que envolvem dignidade humana e justiça social. Ainda aqui ecoam os

chamados de As Aventuras de Ngunga e Mayombe para a conscientização e instrução

do povo como pilar da revolução e do manter os resultados da revolução. Em vez disso,

achou-se que o estabelecimento da ordem burocrática, com sua rigidez e papelada que

se supõem neutras das intempéries da história, poderia manter tais conquistas. Em O

Cão e os caluandas, diante desse chamado não atendido, percebe-se melancolicamente

esses resultados se perdendo, ou pior, se degenerando, pouco a pouco. O segmento Acta

é um documento da degeneração, assim como o segundo segmento burocrático da obra,

Que Raiva!, que trata-se uma troca de remessas documentais, expressamente

burocráticas, entre funcionários públicos de várias alturas da hierarquia.

Esse segmento é um testemunho literário, ironicamente em forma de cartas e

despachos burocráticos, do quanto os problemas do povo são esquecidos e mesmo

piorados num sistema em que a resolução ou não desses problemas torna-se apenas

questão de retórica entre um documento e outro, além da transferência de

responsabilidades, tanto da parte mais baixa da hierarquia burocrática para a mais alta,

tanto da mais alta para a mais baixa. O povo sequer participa da tomada dessas decisões

urgentes a ele mesmo, que envolvem, por exemplo, no caso desse segmento, questões

de saúde pública. Tal é o retrato de um regime que se quer democrático, “popular”,

porém por esse segmento pode-se depreender que é apenas burocrático, no sentido

figurativo que a própria palavra sugere (bureau-cratos): o poder não nas mãos do povo,

mas daqueles que, atrás das mesas, em seus escritórios confortáveis, acham que podem

resolver os problemas humanos com um despacho ou assinatura em um documento

qualquer. Os problemas do povo chegam a seus escritórios como uma petição

documental, nada mais próprio que a solução seja apenas mais um documento.

O primeiro documento é uma petição de um técnico de saúde de Luanda que

alerta o Chefe da Seção sobre uma possível epidemia de raiva na cidade, inclusive cita

um tal cachorro pastor-alemão que persegue alguns passantes e do qual se suspeita que

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tenha raiva; termina o documento pedindo a tomada da seguinte previdência: aproveitar

o estoque de vacinas, que acabará estragando pelas más condições de armazenamento, e

vacinar todos os cachorros, antes que haja um surto.

Além do aumento indiscriminado de caninos que pululam à solta

nesta cidade, que é impossível combater pois há muito deixaram de

funcionar os chamados “carrosde cães”, que faziam as batidas pelas

ruas a capturar os animais sem coleira nem atestado de vacina anti-

rábica, que se juntam a matilhas de porcinos, ratazanas, palmípedes,

caprinos e outros animais não identificados, vários populares se têm

referido ao facto de que, na zona da Mutamba, em espécimen da rapa

pastor-alemão, de aspecto subalimentado, perseguir alguns passantes.

Nunca se registrou o caso de ele morder alguêm, mas o seu aspecto

geral e o fato de perseguir determinadas pessoas, cria suspeitas

justificadas de que esteja a germinar a raiva dentro de si. Medidas

adequadas deveriam e poderiam ser tomadas [...]

Essa petição é escrita no dia 2 de fevereiro de 1980, o Chefe de Setor envia

somente em 15 de Abril um documento sobre a situação e dificuldades do

empreendimento proposto pelo técnico de saúde ao Chefe de Departamento. Este, por

sua vez, envia a petição do mesmo em 27 de Julho ao Diretor, que finalmente autoriza a

Informação-Proposta do técnico de saúde no dia 5 de Outubro, pouco mais de 7 meses

após a petição. A resposta do técnico, após receber a aprovação para algo de urgência

depois de tanto tempo, é realmente “dolorosa”:

Infelizmente, cumpre-me o doloroso dever de informar que, face ao

tempo que decorreu, as condições humanas e materiais recolhidas se

perderam. As vacinas deterioraram-se, devido às más condições de

conservação a que já fizera alusão na minha proposta; muitos dos

quadros-operadores já arranjaram empregos noutros serviços que

pagam salários mais elevados e até o cão pastor-alemão que o Cda

Chefe de Departamento conhece deixou de aparecer na Mutamba há

meses.

É preciso pois fazer nova importação de vacinas, o que leva meses

senão anos, bem como formar novo pessoal, o que repõe o eterno

problema dos salários.

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(Pepetela, 2006, p.124)

A hierarquia burocrática funcionou, mas o problema, além de não ter sido

resolvido, demorará anos para uma nova possível solução. Até lá, as vidas que forem

ceifadas pelos problemas de saúde pública serão apenas mais números de outros

documentos. Ironicamente, por três vezes no fim de três dos documentos burocráticos

que permitiram essa situação, aparece o enunciado “O mais importante é resolver os

problemas do povo”, esvaziado de sentido, como um simples protocolo. O título do

segmento, “Que raiva!”, pode adquirir três sentidos: o espanto perante a iminente

ameaça de um surto de raiva que poderá vitimar a população, o desdém do processo

burocrático perante essa ameaça real e a revolta inconformada diante do desdém dos

processos burocráticos à realidade do povo. Resta saber se ainda haverá espaço para a

utopia nesse contexto. O terceiro sentido que o título desse segmento pode assumir

talvez seja a chave para se pensar a nova postura utópica pepeteliana, tornando

altamente significativo o aviso do técnico de saúde, exposto acima, de que há suspeitas

de que o cão esteja germinando a raiva dentro de si.

Se pode-se falar de uma desistência da utopia na obra de Pepetela a partir de O

Cão e os caluandas, trata-se apenas da utopia como “máquina de fazer felicidade”, da

utopia como eliminação do caos em favor de um plano de perfeição aplicado

homogeneamente a todos os indivíduos. Acerca dessa postura pepeteliana, é pertinente

citar o poema de Pessoa/Caeiro, também numa postura aparentemente anti-utópica:

Falas de civilização, e de não dever ser,

Ou de não dever ser assim.

Dizes que todos sofrem, ou a maioria de todos,

Com as cousas humanas postas desta maneira.

Dizes que se fossem diferentes, sofreriam menos.

Dizes que se fossem como tu queres, seria melhor.

Escuto sem te ouvir.

Para que te quereria eu ouvir?

Ouvindo-te nada ficaria sabendo.

Se as cousas fossem diferentes, seriam diferentes: eis tudo.

Se as cousas fossem como tu queres, seriam sócomo tu queres.

Ai de ti e de todos que levam a vida

A querer inventar a máquina de fazer felicidade!

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(Pessoa, 1993 , p.76)

A percepção pepeteliana de que a “máquina de fazer felicidade” do socialismo

angolano já não funcionava, ou antes nunca funcionou, prepara uma nova percepção da

utopia, que não parte de uma ideia a que a realidade que seja conformada, mas de

buscar ideias que nasçam diretamente da realidade angolana. Em O Cão e os caluandas

fica claro o quanto ideais sociais que não levam em conta a realidade imediata do povo

acabam por resultar no domínio da burocracia e na repressão do próprio povo.

Trata-se para a Angola revolucionária de criar novas estruturas de

poder, a partir dessas bases, respeitando-se as chamadas “condições

objetivas”. Esqueceram-se, como nos modelos estatais soviéticos, de

relevar as potencialidades subjetivas, quase sempre creditadas ao

revolucionário romântico que sonhou com uma sociedade libertária.

Depreende-se da leitura de O Cão e os caluandas como esse sonho

libertário acabou por ficar emperrado nas esferas administrativas.

Repetiram-se formas autoritárias, avassaladoras, e não a democracia

socialista desejada.

(Abdala Junior, 2006 , p.44)

No segmento Epílogo, a nova postura utópica pepeteliana aparece simbolizada

por uma toninha, que fascina o cão.

Estávamos os dois, ele e eu, sentados no pôr do Sol, a olhar o mar

alto. Eu a fumar o meu cachimbo, ele a pensar as suas vidas antigas. E

passou um grupo de golfinhos. O último vinha muito atrás do grupo e

a uns dez metros da costa: às vezes a arrebentação quase lhe atirava

para a areia. Era uma toninha, das coisas mais lindas que vi na minha

vida.

O cão, que ladra para tudo que aparece no mar, nem jamanta lhe faz

medo, ficou quietinho, calado, a olhar a toninha. Ela ondulava,

mergulhava e voltava, lançando a espuma das ondas para o ar e tons

azulados nos violetas do pôr do Sol.

(Pepetela, 2006. p.155,156)

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O cão “apaixona-se”pela toninha e mesmo ao vê-la perder-se no mar ao longe

continua procurando por ela todo pôr do Sol. Não seria essa toninha um símbolo da

esperança utópica? O próprio narrador dá pistas disso no final do segmento.

Creio que todos, homens do mar, temos uma toninha que só aparece

uma vez na vida e que, ao ir-se de vez, nos deixa um vazio no

coração. E dá vontade mesmo, quando o Sol morre no mar, ganir para

essa toninha que tem algas como cabelos. [...] temos de a deixar

seguir o seu caminho, mesmo que fiquemos na praia a perdê-la,

morrendo toda a vida.

(Pepetela, 2006)

O cão, que durante todos os segmentos da obra parece mostrar os absurdos e

corrupções de uma sociedade fundada sobre a utopia da libertação e da democracia

socialista, reencontra a utopia como paixão, como inconformação de um “vazio no

coração” deixado pelo fracasso das utopias e pelos problemas estruturais da sociedade

ainda não resolvidos. A utopia muda de forma para que permaneça, torna-se a

consciência da necessidade constante de mudança, ao invés de previsão de uma

mudança definitiva. A palavra de ordem “luta”, dá lugar à palavra “inconformação”. A

utopia, enfim, sai das mãos e dos projetos de um (indivíduo ou grupo) para assumir

formas distintas como a busca de cada um, em vez de propor a uniformização e a

mudança final, atinge a maturidade dialética de propor a unidade dos múltiplos e a

necessidade constante de mudança.

Práticas libertárias pressupõem sujeitos múltiplos, flexíveis e abertos

para a mudança inovadora. Em termos de construção de uma

sociedade libertária, implicam a criação de novos habitus, afastando-

se da ritualização acrítica. O problema é complexo, não obstante, pois

tais habitus estão arraigados no conjunto da vida social. Envolve a

construção de práxis abertas, quando o conjunto da população tem

suas formas de comportamento pautadas pela discriminação e o jogo

do mais forte. Só respeita formas homólogas àquelas que aprendeu a

respeitar. Ao mesmo tempo, há uma série formal que vem da

experiência do assim denominado socialismo real, que desembocou

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na prática para formas políticas, econômicas e sociais afins de um

capitalismo de Estado.

(Abdala Junior, 2006 , p.43,44)

Por fim, é preciso compreender O Cão e os caluandas para entender a

permanência da utopia como inconformação na obra posterior de Pepetela, e não

entender a crítica impiedosa à sociedade angolana que será feita em obras como A

Geração da Utopia e Predadores como um simples abandono desiludido da utopia. Tal

interpretação só interessaria aos que querem manter o estado das coisas, no pretexto de

que os sonhos, em relação às situações de realidade social, de nada adiantam.

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6. CONCLUSÃO

NADA É IMPOSSÍVEL DE MUDAR

Desconfiai do mais trivial,

Na aparência singelo.

E examinai, sobretudo, o que parece habitual.

Suplicamos expressamente:

Não aceiteis o que é de hábito

Como coisa natural,

Pois em tempo de desordem sangrenta,

De confusão organizada,

De arbitrariedade consciente,

De humanidade desumanizada,

Nada deve parecer natural

Nada deve ser impossível de mudar.

(Bertold Brecht)

A obra de Pepetela, deste O Cão e os caluandas, sob o prisma de uma nova

postura utópica, tem feito a crítica da sociedade angolana, tanto das partes mais altas da

hierarquia, pela sua corrupção, quanto das mais baixas, por seu conformismo, e até

mesmo do fato de haver a hierarquia. A situação do país se agravou, obviamente, após a

eclosão da guerra civil em Angola, mas ela só veio confirmar a denúncia presente em O

Cão e os caluandas e pressentida mesmo nos tempos da luta pela utopia, em Mayombe.

O sentimento de se estar presente em uma sociedade que traiu sua própria utopia é

onipresente nas suas obras desde então. As propostas de ordem que controlassem o caos

só trouxeram barbárie e o desejo de controle sobre o humano. Suas obras não

vislumbram em Angola nem a ordem, nem o caos, mas a simples bagunça resultante

das tentativas falidas de ordem: “desordem organizada” e “arbitrariedade consciente”,

para usar termos brechtianos. A intolerância da visão maniqueísta de mundo impediu a

unidade Angolana que era prevista nas guerras de libertação; mais que nenhuma outra

figura na obra de Pepetela, a do mulato personifica esse fato. Em O Cão e os

caluandas, Pepetela se distancia irremediavelmente da forma de utopia pregada nos

tempos de libertação do colonizador português e atesta o fracasso dela entre a

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corrupção, a burocracia insensível ao povo e o conformação do próprio povo. Porém, é

nessa mesma obra que ele se aproxima irremediavelmente da utopia, como ternura e

como inconformismo perante toda realidade opressora, sem ater-se a forma alguma que

prometa o controle do caos. Do homem (angolano) não mais se esperará o controle da

realidade e de sua imprevisibilidade, mas o saber lidar com a imprevisibilidade e os

viés do real sem, no entanto, deixar aprisionar-se por qualquer outro homem ou

ideologia que lhe prometam o controle e a extinção desse caos que se confunde com a

própria humanidade do homem, imprevisível e fértil em possibilidades. Como elemento

que mostra uma brecha libertadora de caos em toda ordem que se quer totalizadora do

real, a figura do cão apaixonado pela toninha que se vai no mar ao longe e nunca mais

retorna, é o retrato dessa utopia sempre presente, ainda que na ausência de formas

sociais absolutas que possam obrigar a realidade a se encaixar nelas. Uma utopia que

sobrevive aos colapsos inevitáveis dos sistemas utópicos absolutos diante de uma

realidade essencialmente dialética. A toninha persiste como memória e ternura no cão.

A figura do cão lutando contra a imensa buganvília que toma todo o quintal é o retrato

da luta tenaz contra os opressores, porém essa luta se dará por outros modos que não a

guerrilha e a doutrinação. O ponto inicial dessa luta talvez seja a inconformação e o

desejo do diálogo. Quando um dia for necessária a luta em termos materiais, será ela

consequência da inconformação e do desejo de liberdade ao diálogo e não apenas

defesa de uma ideia sem contato algum com o real como um todo, ou antes, arrogando-

se de ter resolvido todas as questões que vieram e virão nesse e desse real. A dialética

do caos não expõe o caos e as ordens possíveis como lados inconciliáveis de um

maniqueísmo, antes, compreende que do caos sempre nasça nova ordem e que em toda

ordem, finita e limitada, está presente o caos, que permitirá o nascimento do novo em

meio ao que já caduca. Os maniqueísmos intelectuais, religiosos e políticos, no seu afã

de manterem eternamente as ordens que caducam, as opõem ao caos e tentam reprimí-

lo, inutilmente. Não é à toa que, nos regimes totalitários que se iludem da própria

eternidade, o artístico e os afetos mais imprevisíveis e espontâneos do homem são ou

prontamente censurados ou submetidos a uma violenta carga de regras. A literatura de

Pepetela mostra o afloramento justamente desses afetos imprevisíveis e espontâneos do

homem angolano. A própria linguagem espontânea de suas obras, carregada de leve

humor e da ternura que chama ao diálogo, reflete esse afloramento, que simplesmente

se dá no real sem pedir permissão ao sistema político vigente, à visão de mundo tida

como verdadeira ou à moralidade dos homens para acontecer. A realidade sempre faz

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aflorar do caos um novo que não se limita nem ao “sim” nem ao “não” a que os

conceitos individuais e sociais julgam tê-la reduzido. Desse modo, a literatura

pepeteliana torna-se também o testemunho de uma sociedade da qual o povo não foi

ainda educado a uma visão dialética do outro, de si mesmo e da vida (o que talvez seja

a realidade na maioria das sociedades atuais, vítimas de fanáticos maniqueísmos

políticos e/ou religiosos) e do quanto essa situação só pode redundar em barbárie e

ignorância, não importa que nova ordem suba ao poder ou por qual projeto utópico

absoluto se lute. Ao mesmo tempo, é um convite à inconformação perante uma

realidade de desumanização e consumismo que se quer insuperável e pretende provar

sua perenidade mostrando o túmulo de todas as utopias que já tentaram depô-la do

poder. Um cão passa por Luanda e, no interior caótico dos caluandas e dos leitores, os

túmulos se abrem: vazios.

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7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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