UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO · RESUMO VINHAS, Valéria Quiroga. A injustiça da...

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1 UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO INSTITUTO COPPEAD DE ADMINISTRAÇÃO PROGRAMA DE DOUTORADO EM ADMINISTRAÇÃO VALÉRIA QUIROGA VINHAS A INJUSTIÇA DA JUSTIÇA: MAL-ESTAR NO TRABALHO NO PODER JUDICIÁRIO FEDERAL RIO DE JANEIRO 2012

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

INSTITUTO COPPEAD DE ADMINISTRAÇÃO

PROGRAMA DE DOUTORADO EM ADMINISTRAÇÃO

VALÉRIA QUIROGA VINHAS

A INJUSTIÇA DA JUSTIÇA: MAL-ESTAR NO TRABALHO

NO PODER JUDICIÁRIO FEDERAL

RIO DE JANEIRO

2012

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VALÉRIA QUIROGA VINHAS

A INJUSTIÇA DA JUSTIÇA: MAL-ESTAR NO TRABALHO

NO PODER JUDICIÁRIO FEDERAL

Tese de Doutorado apresentada ao Instituto

COPPEAD de Administração, da Universidade

Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos

necessários à obtenção do título de Doutor em

Administração.

Orientadora: Prof. Ursula Wetzel

RIO DE JANEIRO

2012

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V784i Vinhas, Valéria Quiroga.

A Injustiça da Justiça: mal-estar no trabalho no Poder

Judiciário Federal / Valéria Quiroga Vinhas. – Rio de Janeiro:

UFRJ, 2012.

281 f.; 30 cm.

Orientadora: Ursula Wetzel.

Tese (Doutorado)–Universidade Federal do Rio de Janeiro,

Instituto COPPEAD de Administração, Rio de Janeiro, 2012.

1. Assédio moral. 2. Poder Judiciário. 3. Sociologia Clínica.

I. Wetzel, Ursula. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Instituto COPPEAD de Administração. III. Título.

CDD 658.3145

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VALÉRIA QUIROGA VINHAS

A INJUSTIÇA DA JUSTIÇA: MAL-ESTAR NO TRABALHO NO PODER

JUDICIÁRIO FEDERAL

Tese de Doutorado submetida ao Instituto

COPPEAD de Administração, da Universidade

Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos

necessários à obtenção do grau de Doutor em

Administração.

Aprovada por:

_________________________________________________ Prof. Ursula Wetzel, D.Sc. – Orientadora –

Presidente da banca

(COPPEAD/UFRJ)

______________________________________________________ Prof. Vincent de Gaulejac , PhD.

(Université Paris-Diderot)

______________________________________________________ Prof. Letícia Moreira Casotti, D.Sc

(COPPEAD-UFRJ)

______________________________________________________ Prof. Angela da Rocha, D. Sc.

(PUC-RJ)

______________________________________________________ Prof. Lucia Barbosa de Oliveira, D.Sc.

(IBMEC-RJ)

______________________________________________________ Prof. Flávia de Souza Costa Neves Cavazotte, D. Sc.

(PUC-RJ)

______________________________________________________ Prof. Fernando José Gastal de Castro, D. Sc.

(Instituto de Psicologia/UFRJ)

RIO DE JANEIRO

2012

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RESUMO

VINHAS, Valéria Quiroga. A injustiça da justiça: mal-estar no trabalho no Poder Judiciário

Federal. Tese (Doutorado em Administração) - Instituto Coppead de Administração,

Universidade Federal do Rio e Janeiro, Rio de Janeiro, 2012.

Esta tese tem como objetivo principal estudar o mal-estar no trabalho no Poder Judiciário

Federal brasileiro em dois Estados. A problemática e os pressupostos de pesquisa inicialmente

delineados não tratavam do tema mal-estar, mas sim do assédio moral, assunto em torno do

qual versou parte do levantamento teórico e dos achados de tese. Porém, como será entendido

ao longo do texto, um dos resultados foi perceber a inadequação do uso do termo assédio

moral neste estudo, tendo em vista a vivência traduzida no discurso dos entrevistados e,

principalmente, a partir das bases epistemológicas desta pesquisa. Identificou-se a sociologia

clínica como abordagem adequada para transitar entre as dimensões social e individual,

permitindo avançar na compreensão do mal-estar revelado nas 41 entrevistas.

Palavras-chave: Assédio moral. Sociologia Clínica. Poder Judiciário Federal.

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ABSTRACT

VINHAS, Valéria Quiroga. The injustice of justice: suffering in the workplace in the

Brazilian Federal Judiciary Power. Doctoral Thesis. Coppead Institute of Management.

Federal University of Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2012.

The main objective of this thesis is to study suffering in the workplace in the Brazilian

Federal Judiciary Power in two states. The research problems and pretext initially outlined

dealt not with workplace suffering, but rather with moral harassment, a matter around which

part of the theoretic surveying and the thesis' findings revolved. Nevertheless, as will come to

be understood throughout the text, one of the results was to perceive the inadequacy of the use

of the term moral harassment in this study, in light of the life experiences conveyed in the

interviewees' discourse and, principally, stemming from the epistemological bases of this

research. Clinical sociology was identified as an appropriate approach to bridge the social and

individual dimensions, allowing for greater understanding of workplace suffering as revealed

by the 41 interviews.

Key-words: Moral harassment. Clinical sociology. Federal Judiciary Power.

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Dedico à minha família, por ser meu alicerce e ao meu

afilhado Pedro, na esperança de representar parte do seu.

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AGRADECIMENTOS

Este trabalho não teria sido possível sem a ajuda, participação ou simplesmente a presença de

algumas pessoas que fizeram desta etapa uma das experiências mais importantes da minha

vida. Portanto, não posso deixar de manifestar meus agradecimentos a todos aqueles que

contribuíram para a sua finalização.

À Esther, pela sensibilidade relativa à compreensão das exigências de concentração que uma

atividade intelectual demanda.

À Marcelle pelo apoio relativo à formatação da tese.

Ao Juan, por todo o carinho e esforço constante em me tranquilizar.

Aos entrevistados, por compartilharem suas experiências comigo. Sem eles, verdadeiramente

esta pesquisa não poderia ter sido realizada.

Às equipes dos Sindicatos dos Servidores dos Judiciários de ALFA e BETA.

Ao CNPq, pelo apoio institucional ao longo dos últimos quatro anos.

À minha orientadora, professora Ursula Wetzel, pelo apoio ao longo desta caminhada. Tenho

consciência de que, em muitos momentos, foi graças a ela que consegui dar continuidade à

pesquisa.

Aos membros da banca de qualificação, pelas relevantes contribuições.

A todos os professores e ao corpo admimistrativo do COPPEAD/UFRJ, em especial a

Lucianita, anjo protetor de todos os alunos de doutorado dessa instituição.

À CAPES por ter me proporcionado a incrível experiência da bolsa sanduíche na

Universidade Paris VII. O período que passei lá foi decisivo para a continuação e

concretização desta tese.

Aos amigos conquistados durante minha estadia em Paris, em especial a Guillaume e Gilles,

meus tradutores de plantão. Nunca conseguirei expressar o quanto a amizade, lealdade e

paciência desses dois grandes amigos me foram caras.

A todo corpo funcional administrativo da Universidade Paris VII, em especial a Evelyne

Pinard.

Aos professores que me incitaram a me aprofundar no entendimento da Sociologia Clínica,

bem como aqueles que tão bem me acolheram durante o estágio doutoral: Teresa Carreteiro,

Cristiane Girard, Jacqueline Barus-Michel, Florence Giust-Desprairies, Eugène Enriquez, e

especialmente a Vincent de Gaulejac, meu diretor de pesquisa em Paris.

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1 - Cronologia do processo de pesquisa de tese ............................................................ 23

Figura 2 - Estrutura do Poder Judiciário brasileiro ................................................................ 113

LISTA DE TABELAS

Tabela 1 - Assédio moral quanto à origem ............................................................................... 38

Tabela 2 - Metas do CNJ 2009-2011 ...................................................................................... 122

Tabela 3 - Entrevistados ......................................................................................................... 280

LISTA DE QUADROS

Quadro 1 - Portaria de Remoção de Sofia .............................................................................. 233

LISTA DE ABREVIAÇÕES

CRFB – Constituição da República Federativa do Brasil

CNJ – Conselho Nacional de Justiça

LIPT - Leymann Inventory of Psychological Terror

TRE – Tribunal Regional Eleitoral

TRT – Tribunal Regional do Trabalho

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ........................................................................................................................ 16

1 O PROCESSO DE CONSTRUÇÃO DO OBJETO DE PESQUISA: DO ASSÉDIO

MORAL AO SOFRIMENTO NO TRABALHO NO SISTEMA JUDICIÁRIO FEDERAL .. 18

2 O MUNDO DO TRABALHO E FORMAS DE VIOLÊNCIA A ELE RELACIONADAS . 24

2.1 CONTRADIÇÕES DO SUJEITO FACE À MUDANÇA .............................................. 27

2.2 O MAL-ESTAR E A SAÚDE NAS ORGANIZAÇÕES E O ASSÉDIO MORAL NO

CONTEXTO LABORAL ..................................................................................................... 28

3 O ASSÉDIO MORAL ........................................................................................................... 31

3.1 A ORIGEM DO TERMO ASSÉDIO MORAL .............................................................. 31

3.2 AS DEFINIÇÕES DE ASSÉDIO MORAL .................................................................... 32

3.3 MANIFESTAÇÃO DO ASSÉDIO MORAL .................................................................. 33

3.4 O QUE NÃO CARACTERIZA ASSÉDIO MORAL ..................................................... 35

3.5 CLASSIFICAÇÕES DE ASSÉDIO MORAL ................................................................ 38

3.5.1 Assédio moral quanto à origem ................................................................................ 38

3.5.2 Assédio moral quanto ao tipo ou lugar .................................................................... 40

3.6 O ASSÉDIO MORAL ORGANIZACIONAL ................................................................ 40

3.7 ASSÉDIO MORAL NO SETOR PÚBLICO .................................................................. 42

3.8 A COMPARAÇÃO COM EMPRESAS PRIVADAS: DURAÇÃO DO ASSÉDIO

MORAL ................................................................................................................................ 43

3.9 O EXERCÍCIO E AS DISPUTAS DE PODER .............................................................. 44

3.10 A QUESTÃO DA ESTABILIDADE NO CASO BRASILEIRO ................................. 45

3.11 O ASSÉDIO MORAL NO JUDICIÁRIO ..................................................................... 46

3.12 NOVAS LENTES DE ANÁLISE SOBRE O FENÔMENO DO ASSÉDIO MORAL E

A CONTRIBUIÇÃO DA SOCIOLOGIA CLÍNICA PARA A SUA COMPREENSÃO ...... 47

4 O POSICIONAMENTO EPISTEMOLÓGICO DA PESQUISA ......................................... 52

4.1 A DIMENSÃO DO SUJEITO NAS CIÊNCIAS SOCIAIS ........................................... 52

4.2 A SOCIOLOGIA CLÍNICA ............................................................................................ 54

4.3 SOCIOLOGIA CLÍNICA: UMA HISTÓRIA RECENTE? ............................................ 56

4.4 A ABORDAGEM CLÍNICA .......................................................................................... 59

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4.5 IMPLICAÇÃO EM RELAÇÃO AO OBJETO DE PESQUISA .................................... 63

4.6 A TRANSFERÊNCIA E A CONTRATRANSFERÊNCIA ............................................ 67

4.7 A COCONSTRUÇÃO NO CONTEXTO DA POSTURA CLÍNICA DE PESQUISA .. 68

4.8 A NECESSÁRIA INTERDISCIPLINARIDADE .......................................................... 69

4.9 A ANÁLISE CLÍNICA EM OPOSIÇÃO À POSTURA POSITIVISTA ....................... 71

4.10 A POSTURA CLÍNICA NOS ESTUDOS ORGANIZACIONAIS .............................. 73

5 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS E O DESENHO DA PESQUISA ..................... 76

5.1 OS MÉTODOS DE ANÁLISE MAIS USADOS EM PESQUISAS DE ASSÉDIO

MORAL ................................................................................................................................ 76

5.2 A ABORDAGEM QUALITATIVA DE PESQUISA E A CLÍNICA .............................. 80

5.3 DESAFIOS DA PESQUISA QUALITATIVA SOBRE TEMAS SENSÍVEIS ............... 82

5.4 O GRUPO DE PESQUISA ELEITO .............................................................................. 83

5.5 O MÉTODO DE ENTREVISTA E O ESPAÇO DE ESCUTA OFERECIDO PELA

CLÍNICA .............................................................................................................................. 84

5.6 A DIMENSÃO BIOGRÁFICA DAS ENTREVISTAS DE CAMPO ............................. 86

5.7 A EXECUÇÃO DAS ENTREVISTAS ........................................................................... 89

5.7.1 A escolha dos entrevistados em ALFA ..................................................................... 89

5.7.2 A nova postura frente ao grupo de entrevistados em ALFA ..................................... 91

5.7.3 A etapa inicial da pesquisa de campo: ALFA1, ALFA ............................................. 91

5.7.4 A continuação da pesquisa em ALFA1 ..................................................................... 94

5.7.5 Continuação da pesquisa em ALFA1 – a Justiça Federal ......................................... 97

5.7.6 O início da pesquisa em BETA ................................................................................ 99

5.7.7 A escolha dos entrevistados em BETA, impressões sobre a realização de entrevistas

e as fontes documentais ................................................................................................... 100

5.7.8 As fontes documentais ............................................................................................ 104

5.7.9 Metodologia de análise das informações de campo ............................................... 106

5.7.10 A restituição/devolução ........................................................................................ 106

6 O PODER JUDICIÁRIO ..................................................................................................... 108

6.1 A HISTÓRIA DO PODER JUDICIÁRIO NO BRASIL .............................................. 108

6.2 A ESTRUTURA DO PODER JUDICIÁRIO BRASILEIRO ....................................... 112

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6.3 CARACTERIZAÇÃO DA ORGANIZAÇÃO ............................................................. 115

6.4 ÁREA ADMINISTRATIVA ......................................................................................... 116

6.5 ÁREA JUDICIÁRIA .................................................................................................... 117

6.6 A CRISE E A REFORMA DO PODER JUDICIÁRIO ................................................ 119

6.7 A CRIAÇÃO DO CONSELHO NACIONAL DA JUSTIÇA (CNJ) ............................ 120

6.8 AS METAS ESTABELECIDAS PELO CNJ ................................................................ 122

6.9 OS PRINCIPAIS ATORES E INSTRUMENTOS MENCIONADOS AO LONGO DA

PESQUISA ......................................................................................................................... 124

6.9.1 Analista Judiciário – Área judiciária ...................................................................... 126

6.9.2 Técnico Judiciário .................................................................................................. 127

6.10 AS REMOÇÕES ......................................................................................................... 127

6.11 AS FUNÇÕES COMISSIONADAS E OS CARGOS EM COMISSÃO ................... 128

6.12 PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS ORIENTADORES .......................................... 129

7 ANÁLISE TRANSVERSAL DOS DADOS ....................................................................... 133

7.1 O JUDICIÁRIO COMO PODER ................................................................................. 134

7.2 O JUIZ COMO PODER: “O JUIZ PENSA QUE É DEUS” ........................................ 137

7.3 O “PODER DO LÁPIS” ................................................................................................ 141

7.4 A DIMENSÃO FORMALISTA DO PODER ............................................................... 144

7.4.1 O espaço físico ....................................................................................................... 144

7.4.2 O poder revelado no tratamento reverencial intra e extramuros ............................ 145

7.5 A SUBMISSÃO E O MEDO DA ESTIGMATIZAÇÃO .............................................. 147

7.6 RITMO DE TRABALHO: DO CONTEXTO DA PRESSÃO AO ELEVADO

DESEMPENHO .................................................................................................................. 151

7.6.1 A pressão pelo alcance das metas ........................................................................... 153

7.6.2 Informatização dos processos................................................................................. 155

7.6.3 O controle dentro e fora do Judiciário .................................................................... 156

7.6.4 As contradições entre o discurso e a prática: a reforma gerencial sem gerentes. ... 158

7.6.5 O impedimento de ficar doente .............................................................................. 160

7.7 O RECONHECIMENTO.............................................................................................. 160

7.7.1 O reconhecimento da atividade-fim do Judiciário ................................................. 165

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7.7.2 O reconhecimento no contexto do assédio moral................................................... 166

7.8 “TRATADOS COMO OBJETOS” ................................................................................. 166

7.9 A IMAGEM IDEALIZADA DO SERVIÇO PÚBLICO, DO TRABALHO DOS

SERVIDORES E DO SISTEMA JUDICIÁRIO FEDERAL .............................................. 168

7.10 A ESCOLHA DE SER SERVIDOR PÚBLICO E O PROJETO PARENTAL ........... 172

7.11 A CONFIRMAÇÃO DA IDEALIZAÇÃO INICIAL ................................................. 175

7.12 O DESENCANTO COMO PROCESSO DE DESIDEALIZAÇÃO .......................... 177

7.13 AS CONSEQUÊNCIAS DA DESIDEALIZAÇÃO E DO SOFRIMENTO NO

AMBIENTE DO JUDICIÁRIO .......................................................................................... 180

7.14 O IMPEDIMENTO DE PARTIR ................................................................................... 182

7.15 MAS E O ASSÉDIO MORAL? .................................................................................. 185

7.16 “A INJUSTIÇA DA JUSTIÇA” .................................................................................... 186

7.17 CONCLUSÃO DAS ANÁLISES TRANSVERSAIS ................................................ 192

8 ANÁLISE INDIVIDUAL DOS DADOS ............................................................................ 194

8.1 O CASO DE MANOELA – IDEALIZAÇÃO, RECONHECIMENTO E JUSTIÇA .. 194

8.1.1 Breve reflexão sobre a escolha desta entrevista ..................................................... 194

8.1.2 A execução das entrevistas ..................................................................................... 195

8.1.3 A história de Manoela ............................................................................................. 197

8.1.4 A estreia no Judiciário ............................................................................................ 199

8.1.5 O assédio moral ...................................................................................................... 202

8.1.6 A justiça .................................................................................................................. 205

8.1.7 A questão da justiça e sua relação com a doença ................................................... 206

8.1.8 O segundo tombo ................................................................................................... 207

8.1.9 O arrependimento e o retorno à religião................................................................. 209

8.1.10 As consequências.................................................................................................. 210

8.1.11 A análise do caso de Manoela ............................................................................... 212

8.2 O CASO DE PEDRO - O PODER DE DEUS E A JUSTIÇA DIVINA ...................... 218

8.2.1 Breve reflexão sobre a escolha desta entrevista ..................................................... 218

8.2.2 A chegada de Pedro ao Estado BETA .................................................................... 220

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8.2.3 O assédio ................................................................................................................ 221

8.2.4 A injustiça da justiça ............................................................................................... 224

8.2.5 A justiça de Deus .................................................................................................... 225

8.2.6 A análise do caso de Pedro ..................................................................................... 227

8.3 O CASO DE SOFIA – A REMOÇÃO FORÇADA E O RESPEITO PELO ESCRITO E

PELAS REGRAS ............................................................................................................... 229

8.3.1 Breve reflexão sobre a escolha desta entrevista ..................................................... 229

8.3.2 A boa remoção e a primeira volta para casa ........................................................... 230

8.3.3 A decisão de ingressar no Sistema Judiciário ......................................................... 230

8.3.4 A idealização e o grupo de trabalho como uma família ......................................... 231

8.3.6 O assédio moral – a remoção forçada e a separação total da “família” ................. 232

8.3.7 Compreensão da Justiça baseada na lei .................................................................. 233

8.3.8 A ausência de critérios e a interpretação “ao pé da letra” da lei ............................. 234

8.3.9 A mudança de cidade como isolamento ................................................................. 236

8.3.10 As consequências: “Perdi a vontade de estudar Direito” ..................................... 237

8.3.11 A análise do caso de Sofia .................................................................................... 238

9 CONCLUSÃO ..................................................................................................................... 242

9.1 A LIMITAÇÃO DO CONCEITO DE ASSÉDIO MORAL NA PRESENTE PESQUISA 243

9.2 DA VIOLÊNCIA E SOFRIMENTO NO TRABALHO AOS RISCOS PSICOSSOCIAIS 244

9.3 RETORNO À PROBLEMÁTICA E AOS PRESSUPOSTOS INICIAIS .................... 247

9.4 OS LIMITES DO ESTUDO E SUGESTÕES PARA PESQUISAS FUTURAS ......... 254

9.4.1 Utilização de mecanismos alternativos de investigação ........................................ 256

9.4.2 Explorar as consequências do novo modelo de gestão, ao longo do tempo........... 259

9.4.3 A contribuição da abordagem clínica e dos instrumentos de análise para a

administração .................................................................................................................. 259

9.5 A NECESSIDADE DE SER OUVIDO, A SENSAÇÃO DE INTERVENÇÃO E A

DEVOLUTIVA ................................................................................................................... 260

9.6 A MINHA NECESSIDADE DE SER OUVIDA .......................................................... 262

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9.7 IMPLICAÇÃO PRÁTICA DA PESQUISA ................................................................. 263

REFERÊNCIAS BIBLOGRÁFICAS .................................................................................... 264

ANEXO 1 ............................................................................................................................... 280

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INTRODUÇÃO

Esta pesquisa de tese tem como principal objetivo investigar o mal-estar no trabalho dos

servidores do Poder Judiciário Federal brasileiro de dois Estados identificados como ALFA e

BETA.

A problemática e os pressupostos de pesquisa inicialmente delineados não tratavam do

tema mal-estar, mas sim do assédio moral, assunto em torno do qual versou parte do

levantamento teórico e dos achados de tese. Porém, como será entendido ao longo do texto,

um dos resultados foi perceber a inadequação do uso do termo assédio moral neste estudo,

tendo em vista a vivência traduzida no discurso dos entrevistados e, principalmente, a partir

das bases epistemológicas desta pesquisa.

Entretanto, como será apresentado no próximo capítulo, optou-se por manter tanto a

problemática quanto os pressupostos de pesquisa na forma originalmente concebida, a fim de

levar o leitor a compreender com mais exatidão como se deu o processo reflexivo e de

produção da tese até a sua conclusão. Somente no último capítulo, os pressupostos serão

retomados e em sua reformulação justificar-se-á a opção de um título e de uma frase

introdutória, que parecem, à primeira vista, distantes do objeto inicial de pesquisa.

Essa dupla abordagem, ao mesmo tempo, fiel a meu percurso investigativo e aberta a

reflexões que me levassem a trilhar caminhos diferentes do inicialmente imaginado, permitiu

construir a pesquisa e analisar as diversas questões identificadas a partir do campo.

A organização dessa tese traduz um trajeto de pesquisa em nove capítulos. O primeiro

deles descreve o percurso investigativo e apresenta os motivos que me levaram a segui-lo da

maneira como ocorreu. No segundo capítulo, resgato a literatura que dá conta das mudanças

no mundo do trabalho a partir dos anos 1980. A importância desse capítulo reside na

apresentação do contexto social das organizações, que são palco desse estudo e responsáveis

pelo delineamento de um dos pressupostos da pesquisa.

Já no terceiro capítulo, caracteriza-se o fenômeno assédio moral a partir de literatura

nacional e internacional sobre o tema. Nele percebe-se a dominância, ainda existente, de uma

literatura psicologizante do fenômeno.

O quarto e o quinto capítulos abordam a epistemologia e procedimento metodológicos

adotados nessa tese. Eles objetivam demonstrar porque a escolha da sociologia clínica

responde aos anseios da pesquisa, bem como o que representa lançar mão de uma abordagem

clínica.

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A história do Poder Judiciário Federal brasileiro até a sua constituição atual é

apresentada no Capítulo 6. Esse capítulo também é responsável pela descrição das mudanças

ocorridas no âmbito da Reforma Judiciária, iniciada em 2004, bem como da estrutura do

Poder Judiciário Federal, o que permitirá uma melhor compreensão das análises realizadas

nos capítulos 7 e 8.

O Capítulo 7 dedica-se à apresentação das análises transversais das entrevistas

realizadas. Como o campo foi responsável pela ampliação do escopo da tese, a questão do

assédio moral foi abordada de maneira pontual em sua última seção. Esse capítulo permite

evidenciar a dimensão organizacional que perpassa o discurso dos entrevistados. Embora ele

também permita explorar a dimensão psíquica, esta será retomada no Capítulo 8, onde

aprofundar-se-á a análise de três casos individuais de servidores que se consideravam vítimas

de assédio moral: Manoela, Pedro e Sofia.

Finalmente, no último capítulo, alguns elementos analisados ao longo da tese são

retomados e os pressupostos de pesquisa rediscutidos.

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1 O PROCESSO DE CONSTRUÇÃO DO OBJETO DE PESQUISA: DO ASSÉDIO

MORAL AO SOFRIMENTO NO TRABALHO NO SISTEMA JUDICIÁRIO

FEDERAL

“Denúncias de assédio moral aumentam 588,2% em quatro anos no Rio de Janeiro”

(TRINDADE, 2009). Esta foi a manchete de uma matéria veiculada em agosto de 2009, que

alertou para o crescimento do número de casos de denúncias de assédio moral investigados

pelo Ministério Público do Trabalho (MPT). Ao lado de Minas Gerais, Espírito Santo e São

Paulo; o Rio de Janeiro, com 394 investigações em curso, era indicado como um dos quatro

Estados com maior número de queixas, noventa delas apresentadas só no primeiro semestre

de 2009.1

Quando essa matéria foi publicada, eu cursava o segundo ano do doutorado no Coppead

– Programa de Pós-graduação em Administração da Universidade Federal do Rio de Janeiro –

já havia me decidido pelo assédio moral organizacional como objeto de estudo doutoral e,

inclusive, iniciara o levantamento bibliográfico sobre o tema. O número de evidências de que

o assunto, de fato, merecia ser melhor compreendido era cada vez maior.

No ano seguinte, a 7ª Conferência Internacional sobre Bullying e Assédio Moral no

Trabalho (7th International Conference on Workplace Bullying & Harassment , realizada em

junho de 2010, em Cardiff, contou com duzentos e trinta inscritos, de trinta países. Além da

participação de um grupo de mais de vinte alunos de diferentes nacionalidades no Consórcio

Doutoral, realizado na véspera da conferência. O crescimento do número de inscritos em

relação à conferência realizada em 2008 em Montreal, com cento e sessenta participantes,

também foi percebido de forma positiva pelos guest speakers presentes em Cardiff. Para eles,

tratava-se do resultado do crescente interesse pela troca de experiências, informações e

produções entre acadêmicos e profissionais que lidam com o tema do assédio moral

organizacional em seu dia a dia. 2

No campo da administração, mais especificamente, mereceu destaque o fato de o tema

do Academy of Management, realizado em agosto de 2010 no Canadá, ter sido: Dare to Care:

Passion & Compassion in Management Practice & Research. Um de seus objetivos foi alertar

1 Uma vez que nem todas as queixas de assédio moral são formalizadas, não se pode afirmar sobre

crescimento ou agravamento do fenômeno em si. 2 YAMADA, David. Cardiff Workplace Bullying Conference, Day 3. New Work Place. Disponível em:

<http://newworkplace.wordpress.com/2010/06/page/2/>. Acesso em 1 jul. 2010.

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gestores e estudiosos da área de gestão a respeito do papel a ser desempenhado por aqueles,

que deve incluir a busca pelo bem-estar dos stakeholders (sejam eles clientes, empregados,

consumidores ou investidores). Trabalhos sobre diferenças culturais do bullying, experiências

de assédio em ambiente hospitalar e personalidade do agressor em assédio moral

organizacional são alguns exemplos de abordagens oferecidas no congresso.

Também foi possível perceber o crescente debate sobre o fenômeno do assédio moral na

mídia. No Brasil, por exemplo, o assunto começou a se popularizar quando alguns casos de

assédio moral foram denunciados e veiculados em jornais de grande circulação e em

programas de televisão. Casos como o da empresa Companhia de Bebidas da América

(Ambev), condenada a pagar indenização no valor de um milhão de reais em decorrência de

dano moral coletivo resultante de assédio moral, ganharam destaque nos meios de

comunicação.

As matérias não se limitavam às estatísticas do fenômeno no país, mas tratavam

também da identificação e prevenção do assédio moral no ambiente de trabalho. Somente no

primeiro semestre de 2010, três jornais de grande circulação publicaram matérias dessa

natureza, uma delas a fonte da frase de abertura deste capítulo.

Paralelamente ao aumento no número de denúncias de assédio moral, realizei o

levantamento bibliográfico desta tese. Visava me aprofundar no tema e conhecer o que já

havia sido produzido sobre o fenômeno do assédio moral. Entretanto, quanto mais avançava

na leitura sobre o assunto, mais me convencia de que as referências bibliográficas com as

quais me deparava não abordavam o fenômeno da forma pretendida.

A busca pela aproximação teórica ideal para estudar o assunto me fizeram convocar

uma variedade de disciplinas, evitando o meu enclausuramento numa única perspectiva. A

literatura sobre o assédio moral do ponto de vista da psicologia, do direito, da medicina, da

administração e da sociologia compuseram parte do levantamento teórico sobre o tema.

Ainda assim, permanecia certa inquietação referente a algumas dimensões:

- Como pensar a questão do sujeito face ao fenômeno do assédio moral?

- Diante de uma dada situação organizacional percebida como assédio moral pelos

sujeitos que a vivenciaram, como entender suas compreensões diferenciadas a respeito da

experiência, e as formas variadas de enfrentá-la?

- E, por fim, sobre que teorias apoiar a análise de duas dimensões: a do sujeito e a

organizacional?

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A partir da leitura da obra Gestão como doença social (tradução do original Société

Malade de la Gestion) de Vincent de Gaulejac, sociólogo francês, e do livro La Sociologie

Clinique: enjeux théorique et méthodologique abriu-se-me uma nova perspectiva. Foram

meus primeiros contatos com a abordagem socioclínica.

Identifiquei nessa perspectiva as seguintes vantagens, que serão aprofundadas ao longo

desta tese:

- Trata-se de uma abordagem que permite a análise dos fenômenos identificados em

ambientes organizacionais considerando a articulação entre as dimensões psíquica e o

contexto em que os sujeitos estão inscritos;

- Permite uma interpretação dos fenômenos que remete às estruturas sociais;

- Estimula o diálogo entre diversas disciplinas na tentativa de avançar no estudo dos

objetos de pesquisa.

Portanto, ainda que de forma incipiente, já no projeto de tese, defendido em novembro

de 2010 (ver Figura 1), sugeri uma abordagem que incluía a análise socioclínica do fenômeno

do assédio moral. Porém, no período de defesa do projeto de tese, minha compreensão sobre

as potencialidades da abordagem clínica no campo da administração ainda eram limitadas,

pois apenas havia começado o curso do Master 2 em Sociologie Clinique et Psychosociologie

(correspondente ao segundo ano do mestrado em Sociologia Clínica e Psicossociologia) no

Laboratoire de Changement Social (Laboratório de Mudança Social) na Universidade Paris

VII.

Embora à época isso ainda não fosse totalmente claro, hoje percebo que a melhor forma

de entender a abordagem da sociologia clínica – suas vantagens, propostas e metodologia –

era estudar em uma de suas escolas. Em algumas universidades brasileiras era possível

encontrar ofertas de disciplinas que versavam sobre o assunto, bem como iniciativas e

pesquisas conduzidas especialmente por acadêmicos que haviam passado pelo Laboratório de

Mudança Social de Paris em algum momento de suas carreiras. Entretanto, essas iniciativas

eram isoladas e fisicamente espalhadas pelo país.

A possibilidade de conquistar uma formação mais completa em um dos “berços da

sociologia clínica” me motivou a aceitar o convite do professor Vincent de Gaulejac para

conhecer mais de perto o trabalho de pesquisa daquele laboratório. Tive a oportunidade de

transformar meu estágio doutoral em um mestrado, cursando todas as disciplinas relativas ao

tema e realizando uma pesquisa final.

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Hoje, posso dizer que a distância e apenas com os livros aqui encontrados (ainda que

muitos fossem importados), provavelmente, não teria conseguido avançar no entendimento da

proposta e dos princípios que estão por trás de uma pesquisa de caráter clínico. Ao menos não

no prazo usual de um doutorado.

Assim, em setembro de 2010, antes da defesa do projeto de tese, viajei para a França

com o intuito de iniciar meu aprendizado metodológico. Quando defendi o projeto de tese,

havia transcorrido apenas um mês e meio da referida formação. Em novembro de 2010, em

cumprimento à formalidade do processo de qualificação, voltei ao Brasil para uma estadia de

três dias para defender meu projeto de tese intitulado “Pós-assédio moral organizacional e

identidade dos trabalhadores”.

Constituído basicamente pela teoria de assédio moral e com uma proposta incipiente de

uso da teoria da sociologia clínica, o projeto foi apresentado e aprovado. De posse das

sugestões da banca, voltei para completar a formação no curso da Universidade de Paris VII

ainda em novembro de 2010.

No ano seguinte, 2011, retornei ao Brasil durante alguns meses para realizar a pesquisa

de campo da tese, que se baseava na seguinte pergunta:

Como é que os servidores do Sistema Judiciário Federal vivenciam as situações por eles

consideradas como “assédio moral”?

O desenvolvimento dessa pergunta foi acompanhado pela apresentação dos seguintes

pressupostos de pesquisa, cuja elaboração origina-se das bases epistemológicas eleitas e da

teoria estudada, que serão apresentadas nos primeiros capítulos da tese:

- O fato de estarem inseridos em uma instituição pública confere ao processo de assédio

moral aí vivenciado contornos específicos;

- O processo entendido como de assédio moral está associado a determinados aspectos

da lógica organizacional do Judiciário;

- A transformação no modelo de gestão pela qual o Sistema Judiciário brasileiro

começou a passar a partir da Reforma do Judiciário e da criação do Conselho Nacional de

Justiça (CNJ) constitui, hoje, a principal fonte de assédio moral;

- A dimensão organizacional não é a única componente da experiência vivenciada como

assédio moral. Deve ser levada em conta a dimensão psíquica, bem como o grau de

implicação com a instituição e sua atividade-fim, cujos elementos podem ser encontrados nas

histórias de vida dos servidores, antes mesmo de seu ingresso no Sistema Judiciário.

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A despeito das infindáveis leituras acumuladas, foi especialmente a partir da etapa de

saída a campo que percebi que o tema de pesquisa referia-se a algo mais abrangente do que o

fenômeno conhecido na literatura como “assédio moral”.

Durante a pesquisa de campo, senti necessidade de agregar novos elementos de análise

levantados nos discursos dos entrevistados, e de me afastar, pouco a pouco, da utilização

exclusiva do construto “assédio moral”. Afinal, como será visto ao longo da tese, fechar a

análise em torno somente dessa temática poderia impedir a visualização e a exploração de

outros elementos de ordem social ou psíquica que refletem, de uma forma mais geral,

dimensões envolvidas no mal-estar gerado no ambiente do Sistema Judiciário, ainda que sob a

alcunha de “assédio moral”.

Em face do exposto até o momento e para encerrar de forma provisória a análise do meu

percurso de pesquisa, devo registrar que o processo de escrita e produção de um texto de tese

que refletisse esta trajetória se fazia necessário para cumprir os seguintes objetivos:

- Justificar as variações existentes entre o projeto de tese, defendido em novembro de

2010 e o produto final da pesquisa, na figura da presente tese, defendida dois anos depois, em

novembro de 2012. Trata-se, como será visto nos capítulos 4 e 5, do resultado de um processo

de pesquisa clínica;

- Permitir uma melhor compreensão das escolhas teóricas, epistemológicas e

metodológicas que serão apresentadas nas partes que se seguem nesta tese. Foi o percurso por

mim delineado que as definiu, e vice-versa.

O Capítulo 2, ao fazer um resgate sobre as mudanças no mundo do trabalho, tem como

objetivo contextualizar o tema desta tese e apresentar parte do referencial teórico que me

permitiu delinear os contornos dos pressupostos de pesquisa.

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Figura 1 - Cronologia do processo de pesquisa de tese

2008 e 2009

2010

2011

2012

Novembro

Defesa do projeto de tese, no Brasil

Retorno ao M2 Recherche no

Laboratoire de Changement Social

na Universidade Paris VII

Setembro

Início do M2 Recherche no

Laboratoire de Changement

Social na Universidade Paris VII

Disciplinas cursadas no programa de doutorado do Coppead/UFRJ e

etapa de prova escrita, referente à qualificação

Janeiro a Agosto

Preparação do projeto de tese

Janeiro

Continuação do M2 Recherche no

Laboratoire de Changement Social

na Universidade Paris VII

Fevereiro a maio

Parte da pesquisa de campo da

tese, no Brasil

Maio a outubro

Finalização do M2 Recherche no Laboratoire de

Changement Social na Universidade Paris VII

Janeiro a setembro

Retorno ao campo e elaboração do texto final da tese

Novembro

Defesa da tese

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2 O MUNDO DO TRABALHO E FORMAS DE VIOLÊNCIA A ELE

RELACIONADAS

Desde as últimas décadas do século XX, o mundo do trabalho tem passado por

sérias transformações, exigindo que as organizações adaptem suas configurações de

gestão, com reflexos importantes nas relações laborais.

A partir dos anos 1970/1980, com a crise do regime taylorista/fordista de

produção, nasce o modelo de acumulação flexível, que, no entanto, não representou uma

ruptura total com a era fordista enquanto padrão de acumulação capitalista. Com o

esgotamento do modelo taylorista/fordista, assiste-se à implantação do toyotismo,3 em

substituição ao modelo anterior ou mesclando-se com aquele. O novo regime é

caracterizado por uma reestruturação produtiva, responsável pela implementação de um

novo modelo de organização da produção e práticas de gestão que introduzem

princípios de administração do ideário japonês (HARVEY, 1994; ANTUNES, 2002).

Esse período é marcado por algumas transformações, como (HARVEY, 1994;

BOLTANSKI; CHIAPELLO, 1999; ANTUNES, 2002):

- Flexibilidade dos processos de trabalho, dos mercados, dos produtos e padrões de

consumo, com substituição da produção em série e de massa;

- Surgimento de novos setores de produção, novos serviços financeiros, novos mercados

com altas taxas de inovação comercial, tecnológica e organizacional, onde a automação,

a robótica e a microeletrônica invadem o universo fabril;

- Grande movimento no emprego do “setor de serviços” e no desenvolvimento de áreas

geográficas antes não privilegiadas;

- Compressão do espaço-tempo caracterizado por horizontes temporais de tomada de

decisões mais estreitos, comunicação via satélite e queda dos custos de transporte,

permitindo a difusão quase imediata das decisões num espaço cada vez mais amplo e

variado;

- Aumento da flexibilidade e da mobilidade, caracterizando um ambiente onde os

empregadores exercem mais poderes de pressão no controle do trabalho, utilizando-se

de novos padrões de gestão da força de trabalho.

3 Que do ponto de vista econômico revela uma mudança do fim do modelo fordista, característico do

capitalismo industrial, e a emergência de um novo modelo dominado pelo valor acionário.

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O mercado de trabalho, por sua vez, também passou por uma grande

reestruturação caracterizada por (HARVEY, 1994):

- Enfraquecimento da força de trabalho: aumento do desemprego, rápida destruição e

reconstrução de habilidades, ganhos modestos de salários reais e retrocesso do poder

sindical;

- Reestruturação do mercado de trabalho: como consequência do enfraquecimento dos

sindicatos e da mão de obra farta, as empresas passam a impor contratos de trabalho

mais flexíveis (horas de acordo com a demanda e redução do emprego regular);

- Estrutura do mercado de trabalho do tipo centro–periferia: com o centro cada vez mais

reduzido e formado por empregados mais qualificados, adaptáveis, flexíveis e com

mobilidade geográfica (o que não eliminou a subcontratação desse grupo) e com a

periferia constituída por trabalhadores menos qualificados;

- Efeitos agregados negativos com a reacentuação da vulnerabilidade dos

desprivilegiados.

Competência, trabalho em equipe e polivalência tornam-se expressões comumente

usadas, mas que refletem apenas um lado da moeda. Os aspectos de precarização

referentes à redução ou eliminação de diversas conquistas históricas que protegiam os

trabalhadores: da desregulamentação dos direitos do trabalho, do retrocesso sindical, da

diminuição de garantias de níveis salariais e de benefícios como o seguro, do elevado

nível de desemprego e da retração de um mercado de trabalho cada vez mais

competitivo, enfim, de todas as manifestações dessa transformação, as quais nem

sempre estão presentes nos discursos daqueles que levantaram a bandeira da

“flexibilidade” (HARVEY, 1994; BOLTANSKI; CHIAPELLO, 1999; ANTUNES,

2002).

Diversos trabalhos chamam a atenção sobre a dimensão da aceleração na

modernidade e suas consequências. Em uma de suas obras, Rosa (2010) tece críticas à

flexibilização utilizando-se do conceito do tempo, que nos anos 1980 torna-se categoria

fundamental da realidade social: “o fato de que a aceleração seja considerada como uma

transformação temporal benigna ou maligna depende naturalmente da tomada em conta

de suas consequências” (ROSA, 2010, p. 31).

Ainda para esse autor, a modernização é uma experiência de aceleração (sua força

motora) composta por três dimensões: a técnica (mais evidente), a de mudança social e

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a de ritmo de vida (que se refere ao aumento do número de episódios de ação ou de

experiências por unidade de tempo). A intensificação dos ritmos de vida estaria no

centro do diagnóstico da aceleração, composta pelas dimensões objetiva e subjetiva, que

colocam em evidência a relação paradoxal estabelecida com a aceleração técnica.4

Outros autores acrescentam que a relação com o tempo, marcada pela aceleração

contínua, leva os indivíduos a se violentarem na tentativa de dominá-lo e, com isso,

subtrair o máximo de lucro e prazer no âmbito da lógica capitalista onde “tempo é

dinheiro”. Em vez de se valerem do teórico ganho de tempo oferecido pelas novas

tecnologias, cuja instantaneidade permite uma ilusão acerca de sua metrização, os

indivíduos sofrem por não se sentirem detentores dele, revelando que o caráter de

urgência constitui uma violência do tempo (MOLENAT, 2006; GAULEJAC, 2009a).

Como consequência, o indivíduo torna-se prisioneiro, tiranizado pela urgência,

especialmente em sua vida profissional. A necessidade de responder a tudo em um

tempo cada vez menor faz com que, em última análise, “o indivíduo não possa nem

mesmo acessar a questão do sentido da sua ação” (AUBERT, 2004, p. 77; MOLENAT,

2006, p. 160).

E não é somente a ausência de fronteiras relativas ao tempo que se exige hoje dos

profissionais. Espera-se também que o indivíduo tenha mobilidade espacial e esteja

conectado de forma a poder executar inúmeras tarefas e ações simultaneamente,

eventualmente trabalhando de qualquer parte do mundo (GAULEJAC, 2007).

Entretanto, esta percepção sobre os contrastes nos indivíduos pode extrapolar a

instituição da empresa, o que revela que as noções de urgência e instantaneidade

interferem em outras dimensões da vida humana. Gaulejac (2011a, p. 133) alerta de que

esta reflexão pode ser aplicada em todas as organizações que “intermedeiam a relação

indivíduo/sociedade”, como é o caso do ambiente escolar ou do familiar, por exemplo.

Cournut (2005) oferece o exemplo da mãe que amamenta seu filho ao mesmo tempo em

que assiste à televisão. Com isso ela não oferece ao seu filho a mesma qualidade de “si e

de seu seio” daquela mãe que durante a amamentação dedica-se apenas à criança,

cantando e mirando-a (COURNUT, 2005, p. 70).

4 Para Rosa (2010), houve uma aceleração do ritmo de vida e exigências crescentes de produtividade, o

que vem trazendo a reboque sintomas de estresse. Tanto em Sennett (2004) quanto em Rosa encontra-

se o elemento tecnologia como chave para as mudanças vividas nos anos 1990, sendo que para Rosa

(2010) este elemento compõe a chamada aceleração social.

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Finalmente, ainda no que se refere à dimensão organizacional, é preciso registrar

que foi nesse mesmo contexto, nos anos 1980,5 que se assistiu à emergência do conceito

de Nova Administração Pública (New Public Management). Esse conceito refletiu a

propagação de mudanças no setor público, caracterizando-se, entre outras coisas, pela

introdução da cultura gerencial naquele ambiente.

No caso brasileiro a reforma gerencial do Estado brasileiro, deflagrada em 1995 e

inspirada em experiências internacionais, também recebeu influências dos princípios do

New Public Management. Apoiada nos pilares da flexibilidade, buscou “importar

ferramentas de gestão provenientes do setor privado, bem como a aplicação da lógica de

mercado dentro do setor público, focalizando o aumento da eficiência econômica do

Estado” (MATIAS-PEREIRA, 2008, p. 75).

Esse novo modo de gestão, cuja disseminação vem sendo acompanhada em

instituições públicas no mundo todo, traz como consequência a alteração profunda da

relação com o trabalho e da atividade dos funcionários em cada organização envolvida.

A partir da próxima seção serão exploradas algumas das consequências desta nova

realidade social, dos discursos e dos ambientes em que circulam os indivíduos, que

levam ao agravamento das contradições na relação indivíduo/sociedade.

2.1 CONTRADIÇÕES DO SUJEITO FACE À MUDANÇA

A disciplina da produção que prevaleceu ao longo de quase todo o século XX

pode ser compreendida a partir das análises de Michel Foucault sobre o tema, em

especial no que se refere ao poder disciplinar. Tratava-se de um sistema que tentava

enquadrar o tempo e o espaço, e tornar os corpos dóceis, úteis, produtivos e

disciplinados (FOUCAULT, 1987).

Diferentemente daquele modelo de produção taylorista/fordista, a nova

organização social do trabalho passou a exigir trabalhadores com perfil competitivo,

autônomo, livre, responsável, criativo, móvel, flexível, capaz de “tocar projetos”.6 Se

5 É digno de nota o fato de que a atual situação de crise, pela qual passa o mundo após 2008, pode

redirecionar a situação que se configurou nas décadas de 1980 e 1990 e os primeiros anos do século

XXI. 6 Ainda que, por outro lado, não tenha cessado sobre os mesmos indivíduos a demanda por enquadrar-

se nos modelos e nas normas estritas de bom aluno, diplomado. Aptos a passarem por filtros de

processos de seleção ou concursos e capazes de “aceitação de ordens, incorporação de hábitos,

interiorização de maneiras de ser e de fazer” (GAULEJAC, 2009a, p. 15, p. 134), o que os coloca em

uma situação paradoxal.

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antes os sujeitos se encaixavam em grupos sociais determinados (de classe, sexo ou

profissão , obedeciam a normas de comportamento estáveis e “encarnavam a tradição, a

herança e a continuidade tecnológica”, hoje eles “se incorporam na invenção de si-

mesmos, na flexibilidade e na mobilidade” (GAULEJAC, 2009a). Em uma época de

modernidade líquida, expressão popularizada por Bauman (2001),

[...] o retrato do indivíduo contemporâneo que se desenvolveu apresenta

facetas contraditórias: centrada sobre a satisfação imediata de seus desejos e

intolerância à frustração, ele continua, entretanto, nas novas formas de auto-

superação, uma busca permanente, sempre de atualidade. Transbordado de

solicitações, demandado de ter sempre melhor desempenho, pressionado pela

urgência, desenvolvedor de comportamentos compulsivos que objetivam

retirar de cada instante o máximo de intensidade, ele pode também cair em

um “excesso de inexistência” uma vez que a sociedade retire dele os suportes

indispensáveis para “ser um indivíduo no sentido pleno do termo”

(MOLENAT, 2006, p. 157).

Num ambiente desenhado desta forma, fruto de transformações, o sujeito parece

“lançado como uma bola em uma sociedade cada vez mais líquida” (GAULEJAC,

2009a, p. 15) tendo de conviver com as contradições impostas e, a despeito da

dificuldade de saber para onde se voltar, dar sentido à sua própria existência.

A forma como os sujeitos vivenciam tudo isso apresenta variações. Enquanto

alguns se encontram dominados por regras ou prescrições, sofrendo pelo seu excesso e

desejosos de liberdade; outros ressentem-se da sua total ausência e “permanecem

fechados em guetos, carentes de ter os meios que os permitam existir de fato como

sujeitos” (GAULEJAC, 2009a, p. 15, 134).

2.2 O MAL-ESTAR E A SAÚDE NAS ORGANIZAÇÕES E O ASSÉDIO MORAL

NO CONTEXTO LABORAL

Neste contexto, dominado pela noção de excesso de exigências de produtividade e

elevado desempenho, convive-se com uma busca pelo ideal (DUJARIER, 2006), pela

excelência (AUBERT; GAULEJAC, 1991), e com os efeitos desta busca sobre a

sociedade e seus indivíduos.

Alguns deles referem-se ao desenvolvimento de vícios (envolvendo substâncias

destinadas a sustentar um ritmo de desempenho no trabalho), distúrbios alimentares

(obesidade, anorexia, bulimia), cansaço físico e esgotamento psíquico (como burnout)

resultantes do hiperfuncionamento e da hiperatividade (DUJARIER, 2006) dos

indivíduos. Tais efeitos são vistos como patologias sociais da atualidade.

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Entre os sintomas que revelam os conflitos aos quais os trabalhadores se

encontram submetidos, destaca-se o aumento do número de tentativas de suicídio.

Alguns casos tornaram-se conhecidos após ganharem destaque na mídia, como o da

France Telecom e o da Renault, na França (GAULEJAC, 2011a; MERLO, 2009).7

Portanto, as novas exigências do mundo do trabalho a partir da década de 1980

constituíram-se geradoras potenciais de “modernas formas de adoecimento no trabalho”,

que passam a conviver com as clássicas, decorrentes de exposição a insalubridades,

sobrecarga física e psíquica, e intensificação do ritmo de atividades. Enquanto as formas

clássicas se revelavam em doenças do corpo, as modernas resultam em doenças

psíquicas (BENDASSOLLI; SOBOLL, 2010, p. 216).

Se antes, em termos de doenças profissionais e de saúde do trabalho, voltávamo-

nos para o estudo das doenças do corpo; nas últimas décadas, no cotidiano das

organizações, independente do setor, percebe-se que a precarização do trabalho

associada a uma maior pressão por resultados e maior insegurança têm deixado suas

marcas no ambiente laboral com reflexo na saúde e bem-estar dos trabalhadores, sem se

resumir à dimensão física. De fato, o agravamento dos malefícios à saúde de indivíduos

nas organizações, percebido pelos médicos e enfermeiros do trabalho, assistentes

sociais, psicólogos e inspetores do trabalho, vem sendo alvo de investigação de

estudiosos e interventores (CLOT, 2010, p. 6).

Como resposta aos novos contornos da situação laboral, alguns autores sustentam

que os trabalhadores passam a interiorizar o ideal exigido pela organização, o que se

revela como uma nova forma de violência mais sutil que as anteriores. Trata-se de uma

violência que insere os sujeitos em situações paradoxais nas empresas, que, se por um

lado, exigem a interiorização de seus ideais e o comprometimento com seus objetivos;

por outro, não oferecem as reais condições para tanto. Esta reprodução da nova forma

de gestão do trabalho, que acarreta um sofrimento da ordem do psíquico, não se

restringe a iniciativa privada.

Os sintomas de mal-estar gerados por esta situação podem ser observados no

conjunto do mundo do trabalho: no setor público ou privado, em todos os setores

econômicos (indústria, comércio, agricultura, serviços, entre profissionais liberais), bem

como em todos os níveis hierárquicos. Trata-se do que Gaulejac (2011a) chama de

7 O trabalho de Merlo (2009) traduz diversas matérias veiculadas no jornal francês Libération a respeito

dos suicídios na France Telecom, reconhecidamente vinculados à mudança no modelo de gestão da

empresa.

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fenômeno social total, ou seja, um fenômeno que se refere à sociedade no seu conjunto,

e que emerge em determinadas circunstâncias históricas (GAULEJAC, 2011a, p. 48).

É em meio a estas transformações no sistema de produção, com emprego de novas

formas de gestão, que a alcunha “assédio moral” ganha notoriedade. Identificado por

estudiosos como um dos tipos de violência psicológicas no ambiente laboral e uma das

causas do desenvolvimento do estresse, do esgotamento profissional, do burnout, de

diversas formas de depressão, de sofrimentos e de dores físicas e psicológicas que vêm

aumentando no mundo do trabalho (DUJARIER, 2006; GARBIN, 2009).

O capítulo a seguir visa a oferecer os contornos frequentemente apresentados na

literatura para o tema “assédio moral”. Como poderá ser acompanhado, a literatura

existente privilegia uma perspectiva individual e pessoal do fenômeno. Entretanto, a

despeito do entendimento de que os atores sociais não podem ser eximidos de suas

responsabilidades (SOBOLL, 2008), conclui-se o capítulo a seguir com a defesa de uma

análise que leve em consideração a importância da articulação com a organização do

trabalho.

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3 O ASSÉDIO MORAL

3.1 A ORIGEM DO TERMO ASSÉDIO MORAL

Embora o fenômeno do assédio moral seja antigo, somente a partir do trabalho

pioneiro do sueco Heinz Leymann, publicado na década de 1980, os estudos sobre

assédio moral passaram a ser mais sistemáticos, elevando o status do tema ao de

problema que afeta gravemente o ambiente de trabalho (MONKS et al., 2009;

LEYMANN, 1996; FREITAS, 2001). Mesmo na literatura sobre estresse, o termo

assédio era pouco abordado até meados da década de 1990, apesar da sua hoje

reconhecida importância (ZAPF; KNORZ; KULLA, 1996; MOAYED, 2006).

A terminologia do fenômeno varia de acordo com a origem do país pesquisado ou

do autor da pesquisa. Ele também é conhecido em outros idiomas como psicoterror

laboral ou ocaso moral (Espanha), bullying (Inglaterra), bossing, emotional abuse,

employee abuse, initimidation, mistreatment, victimization, work abuse harassment,

workplace bullying (Estados Unidos), harcèlement moral (França), murahashibu ou

ijime (Japão), mobbing (Itália, Alemanha, Inglaterra e países escandinavos)

(FONSECA, 2005; PARREIRA, 2007).

No Brasil, o fenômeno recebeu a alcunha de assédio moral, embora também seja

designado em países de língua portuguesa como terror psicológico, manipulação

perversa, psicoterror, coação moral, tortura psicológica, assassinato psíquico, violência

psicológica ou humilhações no trabalho (NASCIMENTO, 2006).

A psiquiatra e psicanalista francesa Marie-France Hirigoyen foi quem popularizou

o termo assédio moral ao levar em conta sua perspectiva ética (ANGELA; PIRES;

COSTA, 2008) em sua obra Le Harcèlement Moral: La violence perverse au quotidien

de 1998. A leitura de Hirigoyen era individualizada, parte do ponto de vista da vítima e,

ao discordar de alguns pressupostos teóricos, como os que atribuem parte da culpa pela

ocorrência do assédio aos indivíduos agredidos, oferece uma postura inovadora aos

debates então existentes. Talvez esse tenha sido um dos motivos da grande vendagem de

seu livro (HELOANI, 2003).

Independentemente da alcunha que se dê ao fenômeno, do ambiente onde ele se

instale e das pessoas envolvidas, alguns autores defendem elementos comuns em sua

ocorrência, como o abuso de poder e os comportamentos que o caracterizam. Estes têm

sido estudados não só em ambientes organizacionais e entre adultos, mas também em

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fases que compreendem da infância a adolescência dos indivíduos, bem como em outras

organizações que envolvam relações diferentes das relações laborais, como o ambiente

escolar (MONKS et al., 2009).

3.2 AS DEFINIÇÕES DE ASSÉDIO MORAL

Existem diversas definições, que variam de acordo com o enfoque que se deseja

atribuir ao estudo sobre assédio moral (médico, psicológico ou jurídico, por exemplo).

O sueco Heinz Leymann, psicólogo do trabalho e pioneiro no estudo sobre o

assunto, usa o termo mobbing,8 emprestado de outros estudos, para descrever

comportamentos no ambiente de trabalho identificados por ele nos anos 1980, e o define

como:

Comunicação hostil e não-ética que é direcionada de forma sistemática por

um ou mais indivíduos, principalmente para um indivíduo que, em função do

assédio, é empurrado em direção a uma posição de desamparo e impotência,

ali mantido como resultado da continuação das atividades de assédio.

(LEYMANN, s/d).

Na definição de Hirigoyen, que popularizou o termo, assédio moral é

[...] qualquer conduta abusiva (gesto, palavra, comportamento, atitude...) que

atente, por sua repetição ou sistematização, contra a dignidade ou integridade

psíquica ou física de uma pessoa, ameaçando seu emprego ou degradando o

clima de trabalho (HIRIGOYEN, 2005, p. 17).

Do ponto de vista organizacional, tal atitude no ambiente de trabalho já foi

estudada por alguns autores como Paulo Peli (2006), sendo por ele caracterizada como

“violência silenciosa, que corrói as entranhas do organismo formado pelos seus

empregados” (PELI, 2006, p. 20).

Freitas (2007) e Heloani (2004) também contribuem para o avanço no

conhecimento do tema, oferecendo algumas definições.

Nas palavras de Freitas (2007):

[...] assédio moral é uma conduta abusiva, intencional, frequente e repetida,

que visa a diminuir, humilhar, vexar, constranger, desqualificar e demolir

psiquicamente um indivíduo ou grupo, degradando suas condições de

trabalho, atingindo a sua dignidade e comprometendo a sua integridade

pessoal e profissional (FREITAS, 2007, p. 2)

8 Antes, este termo era empregado em pesquisas sobre comportamento destrutivo de um grupo de

animais em relação a um único animal ou de um grupo de crianças frente a uma delas. Internet.

Maiores detalhes disponíveis em: http://www.leymann.se/English/frame.html. Consultado em

15/01/09.

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Heloani (2004), por sua vez entende que:

[...] o assédio moral caracteriza-se pela intencionalidade; consiste na

constante e deliberada desqualificação da vítima, seguida de sua consequente

fragilização, com o intuito de neutralizá-la em termos de poder. Esse

enfraquecimento psíquico pode levar o indivíduo ou vitimizado a uma

paulatina despersonalização. Sem dúvida, trata-se de um processo

disciplinador em que se procura anular a vontade daquele que, para o

agressor, se apresenta como ameaça. (HELOANI, 2004, p. 5).

Destes conceitos é possível extrair os elementos gerais do assédio moral,

frequentemente apresentados na literatura e em definições do tema: conduta abusiva,

intencionalidade e repetição.

3.3 MANIFESTAÇÃO DO ASSÉDIO MORAL

As obras de Parreira, Barros (2004), Fonseca (2008) e Schmidt (2001) permitem

enquadrar os comportamentos configuradores de assédio moral em cinco grupos,

demarcados pelas técnicas utilizadas para desestabilizar as vítimas. Vale registrar,

entretanto, que o que será tratado nesta seção tem aspecto meramente ilustrativo do que

em geral é evocado na literatura sobre assédio moral, pois, como Jane Salvador (2005)

faz questão de lembrar, “a violência tem muitas faces e as formas de comportamento

pelas quais ela se manifesta não se esgotam em um estudo” (SALVADOR, 2005, p.

118):

1 – Técnicas de relacionamento, em que o assediador se recusa a dirigir a palavra

diretamente à vítima, nem mesmo para cumprimentos corriqueiros, ou seja, ignora sua

presença e se dirige somente a outras pessoas à sua volta. Muitas vezes, o agressor usa

colegas para delegar tarefas à vítima de forma indireta. Em outros momentos ele se

aproveita da ausência da vítima para deixar tarefas sobre sua mesa, em vez de solicitar

pessoalmente a execução do trabalho, e se comunica de maneira unidirecional por meio

de bilhetes, sem dar oportunidade à vítima de se expressar. Outra característica é a

interrupção frequente da fala da vítima, seja pelo superior hierárquico, seja por colegas,

muitas vezes por meio de recriminações. Quando se encontra em posição

hierarquicamente superior, o agressor costuma se dirigir aos funcionários em tom

elevado, gritando, e assume que sua maneira de trabalhar é a única aceitável. Ademais,

recusa-se a delegar tarefas por falta de confiança nos subalternos e, constantemente,

critica os assediados em público;

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2 – Técnicas de isolamento, que consistem em atribuição de funções que isolam a

vítima, desincumbindo-a de qualquer atividade, evitando contato entre ela e colegas de

trabalho, de forma a impedir possíveis queixas e eventuais manifestações de apoio como

contrapartida. Por outro lado, o isolamento facilita ainda mais o assédio, como afirma

Hirigoyen (2005). Em suas palavras, “(... o assédio é uma patologia da solidão. As

pessoas isoladas são prioritariamente as mais ameaçadas” (HIRIGOYEN, 2005, p. 51);

3 – Técnicas de ataque, nas quais o objetivo é desqualificar ou desacreditar a

vítima, desestabilizando-a, geralmente em público, diante de colegas ou até clientes.

Pode-se enquadrar nessas técnicas, a atitude de conferir à vítima tarefas de

complexidade flagrantemente elevada (em geral sem justificativa), com metas

inalcançáveis, a serem executadas em um curto espaço de tempo (ou cobrar urgência

desnecessária no cumprimento de uma tarefa), deixando evidente sua incompetência ou

até mesmo solicitar-lhe tarefas inferiores à sua capacidade, que não coadunem com a

sua qualificação funcional ou que estejam além das atribuições do seu cargo. Ainda

podem ser listadas a imputação de erros inexistentes, as orientações, ordens ou

instruções contraditórias e imprecisas, a supressão de documentos ou informações

importantes para a realização do trabalho. Todas estas técnicas, que em geral compõem

a categoria de deterioração proposital das condições de trabalho apresentada por

Hirigoyen (2005), são as mais visíveis quando o assédio moral é vertical descendente

(definição que será melhor aprofundada na seção 3.5.1).

4 – Técnicas punitivas, que consistem em pressionar a vítima, dentre outras

maneiras, por meio de relatórios sobre qualquer erro por ela cometido. Alguns autores

listam ainda, no rol de técnicas punitivas, procedimentos que dão tons concretos ao

assédio moral, como: controle do tempo gasto no banheiro, agressões e ameaças,

divulgação de doenças e problemas pessoais de forma indireta ou pública, exposição ao

ridículo com o, por exemplo, uso de fantasias, sem que isso tenha nenhuma relação com

a função da vítima, ou a inclusão da vítima no rol dos empregados de menor

produtividade (MENEZES, 2002).

5 – Outras técnicas em que a agressão se dá de forma dissimulada, por meio de

ações discretas, ou de atitudes que envolvam a comunicação não verbal, o que dificulta

o revide. Estas atitudes, segundo Parreira (2007) são ainda mais invisíveis e, em geral,

percebidas somente pela vítima, pois “para o alvo é que o perverso revela sua face

oculta” (PARREIRA, 2007, p. 22).

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Portanto, a exteriorização do assédio moral também pode ocorrer somente sob a

forma de manobras veladas, que são classificadas por Parreira (2007) como “técnicas de

infernização”: gestos, sorrisos, suspiros, erguer de ombros, olhar de desprezo, silêncio,

críticas indiretas, subentendidos malévolos, indiferença à presença e/ou existência do

agente passivo, silêncio forçado, menear da cabeça em sinal de discordância ou

desaprovação, até murmurar “tsc, tsc, tsc” rapidamente durante a aproximação e o

afastamento da vítima. Para a autora, com a repetição desses momentos de zombaria, de

gestos e olhares, pode-se afetar profundamente a paz de espírito que os trabalhadores

precisam no seu dia a dia (PARREIRA, 2007).

Como se vê, os meios de manifestação do assédio moral apontados na literatura

são diversos, em geral orais ou gestuais, e algumas atitudes, dependendo do contexto

em que são aplicadas, aparentemente têm conotação inofensiva, mas também podem

caracterizar o assédio moral. A sua detecção e percepção generalizada são mais difíceis

e, consequentemente, é penosa a comprovação de sua ocorrência.

3.4 O QUE NÃO CARACTERIZA ASSÉDIO MORAL

Nas seções anteriores tratou-se de apresentar condutas que na literatura dominante

são consideradas como próprias do assédio moral. Entretanto, considera-se que algumas

atitudes muitas vezes são classificadas de forma equivocada como tal. Esta seção

objetiva esclarecer que tipos de situações não permitem tal classificação, de acordo com

a literatura.

Hirigoyen (2005) dedica boa parte de sua obra a listar conceitos que não podem

ser confundidos com assédio moral. O primeiro refere-se ao estresse. Embora possa

fazer parte de alguma fase do assédio, o estresse só se torna destruidor pelo excesso, e o

assédio é pior do que ele. A autora entende, também, que em situações de estresse,

diferentemente do assédio moral, não existe uma intencionalidade de cunho maldoso e o

alvo não é tão individualizado, ou seja, as condições de trabalho mais duras, em virtude

das exigências de desempenho, não têm o objetivo de destruir os empregados, mas sim

melhorar o seu desempenho final, aumentar a eficiência e a rapidez do trabalho. Já no

assédio, o alvo é o indivíduo que se pretende prejudicar e o objetivo não é a

produtividade, e sim se livrar de alguém mediante uma perseguição deliberada a

determinado trabalhador.

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Outro comportamento que, na opinião de Hirigoyen (2005), não deve ser

confundido com assédio é o conflito. Semelhante a uma guerra estabelecida, explícita, o

conflito pode servir para, por exemplo, renovação e reorganização de funções na

empresa. Além disso, há o reconhecimento da existência de duas partes interlocutoras.

Mas, se os conflitos apresentam caráter duradouro e uma faceta velada, podem se

transformar em assédio moral, que, ao contrário do conflito, não ocorre numa situação

de simetria: ainda que ocorra entre colegas do mesmo nível hierárquico, existe uma

dominação psicológica do agressor, submetendo a vítima à força (HIRIGOYEN, 2005).

Neste mesmo sentido, diz-se que incidentes como explosões, desentendimentos e

discussões de caráter eventual tampouco podem ser caracterizados como assédio moral,

tendo em vista a necessária repetição dos mesmos (PARREIRA, 2007).

A chamada gestão por injúria, apesar de tratada frequentemente como assédio

moral, na verdade se refere a um “tipo de comportamento despótico de certos

administradores despreparados que submetem os empregados a uma pressão terrível ou

os tratam com violência, injuriando-os e insultando com total falta de respeito”

(HIRIGOYEN, 2005, p. 28). Para Hirigoyen (2005), a diferença reside no fato de que,

no assédio moral, os procedimentos que envolvem insultos ao pessoal, aos clientes e

fornecedores são vistos por todos e os empregados são maltratados sem distinção. Os

dirigentes tiranos podem estar ou não conscientes da forma brutal como agem e uma

ação coletiva dos trabalhadores pode pôr um fim ao assédio.

A característica de repetição, presente no assédio moral, também permite sua

distinção das agressões pontuais. Ainda que a agressão pontual seja um ato de violência

do empregador e tenha gerado consequências muito graves para a vítima, não se pode

qualificá-la como assédio moral. Neste, as reprimendas, às vezes acompanhadas de

injúrias, são mais constantes, têm um caráter de agressão mais duradouro, ao passo que

a “agressão pontual pode ser apenas uma expressão de reatividade ou impulsividade”

(HIRIGOYEN, 2005, p. 31).

Outras atitudes que compõem a chamada violência externa (agressão à mão

armada ou originária de cliente) não são classificadas como assédio moral, mas sim

como violência física (ainda que situações de assédio possam nela reverter) ou violência

sexual (HIRIGOYEN, 2005).

Más condições de trabalho, espaços exíguos, com instalações e iluminação

inadequadas também não podem ser confundidas com assédio moral, a não ser que

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somente um funcionário, de forma isolada, seja exposto a elas (permitindo neste caso

que o assédio apareça somente a partir da comparação com os colegas), ou caso haja

intenção de assim desmerecer o funcionário. Tampouco a sobrecarga de trabalho, como

já visto, a não ser quando exagerada ou com o objetivo de prejudicar o empregado de

forma consciente ou inconsciente, pode ser considerada assédio moral. Quando o

emprego é precário e as condições de trabalho são naturalmente ruins, qualquer

modificação imprevista de regras na organização é vista como injustiça. Caso a

alteração privilegie algum funcionário e desconsidere o caso de outro nas mesmas

condições, a atitude em relação a este último pode ser tomada como assédio moral

(HIRIGOYEN, 2005).

Finalmente, Hirigoyen (2005) adiciona ao rol de atitudes que não podem ser

confundidas com o caráter abusivo do assédio moral as decisões consideradas legítimas

da organização como, por exemplo, a necessidade de transferência e mudança de função

de acordo com o contrato de trabalho firmado com os funcionários, bem como eventuais

críticas e avaliações do trabalho realizado, caso não sejam usadas como represália. O

limite é tênue, mas existe, já que a diminuição da nota em avaliações de desempenho

também constitui elemento visível de um assédio moral.

Alguns contratos de trabalho incluem, por exemplo, objetivos a serem alcançados

por intermédio de constante pressão sobre os empregados. Estes, na tentativa de cumprir

as metas, muitas vezes comprometem sua saúde. Na França, é possível encontrar

jurisprudência que reconhece a determinação de objetivos não realizáveis, que

mantenham os empregados sob um estado de sujeição permanente, como uma forma de

assédio moral, que Alain Chirez, mencionado por Hirigoyen (2005), qualificou como

clausular. A rigor, o empregador é obrigado a fornecer ao assalariado os subsídios

morais para executar sua missão e a tarefa exigida deve corresponder às competências, à

situação e ao salário oferecido ao empregado.

Por outro lado, não configura assédio moral o poder diretivo do empregador.

Segundo o caput do artigo 2º da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), “Considera-

se empregador a empresa, individual ou coletiva, que, assumindo os riscos da atividade

econômica, admite, assalaria e dirige a prestação pessoal de serviço”. Com esta redação

evidencia-se que ao empregador é delegado o poder diretivo sobre a prestação de

serviços. Tal poder reflete as faculdades de controle, fiscalização e punição como reação

às atividades dos seus empregados, o que não o impede de alterar situações já

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constituídas e tampouco de observar preceitos legalmente estabelecidos. Assim, o

exercício deste poder pelo empregador, conquanto não extrapole os limites da lei e não

cause humilhações injustificadas, não configura assédio moral. O que tem sido levado

em conta nas decisões e na configuração do assédio moral é não só a exacerbação do

poder diretivo, mas também o resultado das atitudes, ou seja, a ocorrência ou não da

violação à intimidade ou integridade do trabalhador.

Por fim, o hábito de espionar alguém (tradução do termo stalking, em inglês) não

pode caracterizar assédio moral, se houver a ausência de outro elemento característico

levantado por alguns estudiosos do assunto: a intenção de eliminar o alvo. Tal

comportamento, porém, aproxima-se do que vem a ser assédio moral, de acordo com as

definições em geral, e pode evoluir tanto para este como para o assédio sexual,

dependendo do grau do assédio e das intenções do causador (PARREIRA, 2007).

3.5 CLASSIFICAÇÕES DE ASSÉDIO MORAL

3.5.1 Assédio moral quanto à origem

O assédio moral pode partir de vários agentes, ou seja, de chefes, colegas ou

subordinados.

Tabela 1 - Assédio moral quanto à origem

Quanto à origem (partindo de quem o inicia)

1. Assédio moral

vertical, que pode ser:

Vertical descendente É o mais comum, do chefe para o funcionário.

Vertical ascendente Praticado pelo funcionário contra o chefe (em geral, é coletivo: vários

funcionários perseguem um chefe).

2. Assédio moral

horizontal Praticado entre pessoas da mesma posição, ou posições semelhantes.

3. Assédio moral

coletivo

Vários contra um (por exemplo: vários alunos contra um professor, vários artistas

contra um artista novato ou contra um diretor, vários vendedores contra aquele

que está ultrapassando metas ; às vezes, costuma ser chamado de “consenso”.

4. Assédio moral

indireto (ou a

distância)

Quando o chefe, para não ser descoberto, manipula outros funcionários para que

persigam o alvo em seu lugar (o chefe é o mandante): assim, seu comportamento

fica menos evidente.

Fonte: PARREIRA, 2007, p. 34.

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Algumas pesquisas aplicadas verificaram que embora o assédio moral possa ser

identificado em diferentes níveis dentro de uma organização (horizontal e vertical),

ocorre mais comumente na relação assimétrica (em que o agressor se situa em posição

diferenciada, desigual em relação à vítima), vertical descendente (dos níveis

hierárquicos superiores para os inferiores), e suas soluções versam sobre indenização

(SCHMIDT, 2001; HIRIGOYEN, 2005; PARREIRA, 2007). Trata-se de um abuso de

direito do empregador sob o manto do exercício normal de suas prerrogativas patronais

(PARREIRA, 2007; SCHMIDT, 2001).

O vertical ascendente pode ser causado pelo subordinado ou grupo de

funcionários ou empregados que queiram causar sofrimento ao seu superior hierárquico

via boicote, por exemplo. No dizer de Filho (2007), a violência vertical ascendente não

é tão rara quanto se imagina. O exemplo ilustrativo de seu artigo refere-se a um

empregado designado para um cargo de confiança, sem que seus subordinados tenham

tomado ciência prévia. Muitas vezes os subordinados do novo chefe têm a expectativa

de que um colega de trabalho seja designado para determinado cargo de confiança ou de

mando. Para este autor, isso é muito comum no serviço público.

O assédio moral horizontal, praticado por um ou mais colegas de mesmo nível

hierárquico, pode ter por objetivo excluir algum indivíduo não desejado do grupo, o

que, muitas vezes, é motivado pelo sentimento de competição (SILVA, 2008). A atitude

face aos colegas, em alguns casos, pode ter sido copiada de algum superior que praticou

assédio moral com sua equipe. Seria, portanto, a reprodução entre os funcionários de um

certo tipo de comportamento (PARREIRA, 2007). Para Dejours (2007), o sofrimento

gerado por este tipo de assédio, no ambiente de trabalho, extrapola questões

relacionadas com a exigência de habilidade e competência. Ainda que os trabalhadores

tenham consciência do que deve ser feito, as pressões sociais muitas vezes os impedem,

como é o caso de obstáculos impostos pelos colegas de trabalho ou a degradação do

ambiente de trabalho pelo fato de os funcionários trabalharem de maneira individual,

sem cooperar mutuamente ou até mesmo sonegando informações entre si (PARREIRA,

2007).

Apoiada nos resultados de sua pesquisa, Hirigoyen (2005) lembra ainda a

existência do assédio moral misto, no qual o assédio moral vertical descendente

mistura-se com o horizontal. Filho (2007) destaca que o assédio moral misto exige a

presença de ao menos três sujeitos: o assediador vertical, o horizontal e o alvo. Ou seja,

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o assediado é atingido por todas as direções, reduzindo-se, então, o tempo que consegue

suportar essa situação.

3.5.2 Assédio moral quanto ao tipo ou lugar

O assédio moral pode ser praticado em quase todos os ambientes onde haja uma

coletividade, ou seja, não se trata de um privilégio da relação de emprego

(PAMPLONA, 2007; HIRIGOYEN, 2005). Ele pode ocorrer em ambientes como

escolas, comunidades eclesiásticas, corporações militares e universidades, entre outros

(PAMPLONA, 2007; HIRIGOYEN, 2005).

Contudo, para alguns autores, é na relação de trabalho, especialmente onde há

funcionários subordinados, que o assédio moral adquire uma forma mais dramática,

tendo em vista o grau de hipossuficiência de uma das partes, determinado pelo temor

reverencial e pelo medo de perder o emprego (PAMPLONA, 2007; HIRIGOYEN,

2005).

Por outro lado, ainda que se fale em relações de trabalho, o assédio moral pode

ocorrer em casos não relacionados diretamente a este, embora estejam direta ou

indiretamente ligados às relações trabalhistas (SILVA, 2007). Como observa Silva

(2007), é possível identificar a ocorrência de assédio moral fora do ambiente da empresa

e até mesmo fora do horário de trabalho, embora sempre relacionado com este, como é

o caso de festas de final de ano ou de comemoração das metas atingidas, eventos

promovidos pela empresa e que podem não acontecer necessariamente no ambiente de

trabalho, mas em um restaurante, por exemplo.

Nas palavras de Parreira (2007), nenhuma empresa está imune ao assédio moral.

Entretanto, ele é mais frequente em empresas onde as regras de conduta não são

claramente apresentadas aos empregados e predomina a impunidade. Para a autora, “em

qualquer parte do mundo, o assédio moral deve fazer ninho com mais facilidade nas

empresas que simplesmente ignoram o problema” (PARREIRA, 2007, p. 37).

3.6 O ASSÉDIO MORAL ORGANIZACIONAL

Internacionalmente considera-se que o assunto “assédio moral no ambiente de

trabalho” é subnotificado, a despeito de suas reconhecidas consequências negativas na

saúde das vítimas, seus amigos, colegas de trabalho e familiares (SPERRY; DUFFY,

2009). Ainda que se possa dizer que o tema já se encontra na sua “adolescência”

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(CRAWFORD, 1999), muitos trabalhos importantes constituem a sua infância, e sua

análise e recuperação são fundamentais para melhor compreender as mudanças do

fenômeno, e as possibilidades de estudo ainda existentes.

O assédio moral ao qual se refere esta tese aproxima-se do conceito de assédio

moral organizacional apresentado por SOBOLL (2008). O uso da expressão

“organizacional” associada ao assédio permite “destacar que esse tipo de prática se

estrutura a partir das estratégias de gestão e divisão do trabalho, ou seja, depende

principalmente da maneira como o trabalho está organizado” (SOBOLL, 2008, p. 86 .

Os autores que defendem a aplicação do termo “assédio moral organizacional” (ou

“assédio organizacional” distiguem-no do conceito de assédio moral, aplicado em

termos gerais, por aquele evidenciar os métodos de gestão adotados pela empresa como

principais instrumentos de assédio. Além disso, o assédio moral organizacional se

caracteriza pela desnecessária aferição da existência do dano (embora nem todos os

conceitos de assédio moral incluam este requisito) e por sua finalidade incluir a

conquista de metas desenhadas pela organização (GUIMARÃES, 2012).

Em busca realizada em bases de periódicos internacionais, foi possível identificar

pesquisas que já foram publicadas sobre o tema, realizadas em diferentes ambientes

organizacionais, além do empresarial, como: escolas (MONKS et al., 2009), academia

(MCKAY et al., 2008), presídios (IRELAND; ARCHER, 1996), hospitais (YILDIRIM;

YILDIRIM, 2007) e restaurantes (MATHISEN; EINARSEN; MYKLETUN, 2008).

Destes, o ambiente escolar é certamente o mais estudado (IRELAND; ARCHER, 1996),

mas é possível encontrar inúmeras pesquisas versando sobre hospitais e presídios, por

exemplo.

É possível encontrar também alguns estudos referentes a outros ambientes

organizacionais, como é o caso de empresa de mineração, onde se discute a relação

entre empregados da empresa contra terceirizados (JUNIOR et al., 2008), instituições

financeiras (MACIEL et al., 2007; SANTOS; SIQUEIRA; MENDES, 2009) ou

empresas públicas (FERREIRA et al., 2006; HIRIGOYEN, 2005; SCHMIDT, 2001;

VINHAS, 2009; BATALHA, 2006; SHALLCROSS; SHEEHAN; RAMSAY,

2008; SHALLCROSS; RAMSAY; BARKER, 2008), tidas como as instituições onde o

assédio moral ocorre com maior frequência. Algumas delas, como é o caso da categoria

bancária, sofreram mudanças de reestruturação produtiva ao longo dos anos 1980,

levando ao aumento no número de queixas (MACIEL et al., 2007).

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A importância da leitura dos estudos dedicados a um determinado ambiente

organizacional reside no fato de que o assédio moral apresenta especificidades não

somente em relação aos atores envolvidos, suas características e consequências, mas

também em relação ao ambiente em que ocorre (FERREIRA et al., 2006).

Nenhum tipo de empresa pode ser declarado imune ao assédio moral. Da mesma

forma, não existe vacina que imunize todos os funcionários das organizações contra este

mal, que pode ser parcialmente inibido com ameaças de punição (HIRIGOYEN,

2005; BATALHA, 2006; PARREIRA, 2007). Entretanto, algumas organizações são

identificadas na literatura como ambientes onde o assédio moral ocorre com mais

frequência ou em maior grau.

3.7 ASSÉDIO MORAL NO SETOR PÚBLICO9

Estudos nacionais e internacionais afirmam que é no serviço público que se

identifica o maior número de vítimas de assédio moral no trabalho (PRATA, 2008).

O serviço de Atendimento Nacional às denúncias de assédio moral na Grã-

Bretanha registrou, entre 1996 e 2004, mais de oito mil casos de assédio moral num

universo de 9.084 pessoas pesquisadas. Aproximadamente dois terços trabalhavam no

setor público (SCHMIDT, 2001; FIELD, s/d).

Em pesquisa realizada por Hirigoyen (2005), verificou-se que também na França

o assédio moral é mais acentuado no setor público do que no privado, embora assuma

formas diferentes nos dois setores.

Parreira (2007) chega a desencorajar os candidatos a cargos no serviço público ao

afirmar que “o que assusta um pouco é observar a corrida desenfreada das pessoas em

busca de um serviço público, sem saber o que as espera, uma vez lá dentro”

(PARREIRA, 2007, p. 116).

Hirigoyen (2005) também reúne alguns depoimentos em sua obra, e o texto a

seguir reflete a desilusão sofrida por uma funcionária pública que outrora idealizava seu

trabalho:

Mobbing, para mim, é o que acontece todos os dias no meu local de trabalho. Luto

com as minhas armas. Mas não estava preparada para isto: assédio, denúncias a

9 Nem todos os autores apresentados nas seções sobre assédio moral no setor público utilizam-se do

conceito de “assédio moral organizacional”, da forma como sustentada por Soboll (2008), por

exemplo. Entretanto, eles foram aqui referenciados tendo em mente a visão particular do assédio

moral no ambiente público.

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superiores, falsificação da minha assinatura, pressões psicológicas, etc. Acontece de

tudo. O pior é que, desde que esse chefe assumiu o cargo, algumas pessoas estão

sofrendo uma ou diversas formas de pressão desse déspota. Como é, ao mesmo tempo,

chefe de departamento e diretor, ele controla a si mesmo. Faz o que bem entende

conosco. Claro que eu luto. Mas não é fácil! Alguns o apóiam (sabe-se como...), outros

se calam. Esquecem. Como é possível? A única pessoa que ousou se queixar de assédio

foi tirada do departamento. Ele tem poder absoluto. A única pessoa acima dele é o

diretor-geral. E eu me dou conta da baixeza e da falta de vergonha de certas pessoas. O

que eu vi, “graças” à minha posição, não é nada bonito. Nem um pouco. Dezenas de

pessoas que foram embora depois que ele chegou, inúmeras crises de depressão etc. Ele

tem força, claro. Mas por que nossos chefes não tomam providências? O que mais

querem? Não entendo. E o que me deixa pior é que os empregados participam deste

festim diabólico. ‘Dividir para melhor reinar’: eu confirmo, isso funciona! Ele o provou.

(HIRIGOYEN, 2005, p. 126)

Neste relato encontrado por Hirigoyen (2005) na página da internet de um

importante órgão da Administração francesa, é possível identificar diversos elementos

caracterizadores do assédio moral já abordados ao longo deste capítulo, e ainda outros

que são tidos na literatura como próprios das empresas públicas.

Para Batalha (2006), um dos principais motivos para o grande número de vítimas

de assédio na administração pública é a expressiva quantidade de pessoas ali

empregadas. Ainda que nos pareça um argumento fraco, Parreira (2007) concorda com

ele e afirma que a maior parte dos casos pouco conhecidos vem das empresas públicas,

onde o assédio moral é praticado de forma mais impune, sem denúncia.

3.8 A COMPARAÇÃO COM EMPRESAS PRIVADAS: DURAÇÃO DO ASSÉDIO

MORAL

No setor privado, o assédio moral é percebido como mais evidente e com duração

menor, em geral culminando com a demissão da vítima. Já no setor público, aponta-se

na literatura, que o assédio moral pode ter longa duração e o fato de os agressores, em

princípio, não se sentirem ameaçados por eventual demissão contribui para isso.

Nesta linha, Hirigoyen (2005) afirma: “No setor público, o assédio moral pode

durar anos, pois, em princípio, as pessoas estão protegidas e não podem ser demitidas, a

não ser por uma falta muito grave” (HIRIGOYEN, 2005, p. 124). No setor público,

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portanto, os métodos de assédio moral podem ser ainda mais agressivos e resultar em

males de maior gravidade para a saúde dos trabalhadores.

O trabalho de Barreto (2005) também destaca que o tempo que uma pessoa pode

suportar o assédio moral varia de acordo com o setor. Na iniciativa privada e nas ONGs,

o assédio moral duraria entre seis e doze meses. Já nos órgãos públicos, em 60% dos

casos chega a se estender por mais de 37 meses. A duração da violência, o número de

pessoas atingidas, os dramas comuns e a abrangência dos setores onde o fato ocorre

demonstram, para a autora, que ninguém está imune a esse mal.

Segundo Parreira (2007), a própria forma como se desenvolve o assédio moral nas

empresas públicas é particular. Inicialmente, a vítima é desestabilizada, humilhada e

como consequência, adoece. Posteriormente, é desacreditada por seus pares e, se isso

não for suficiente para levar à sua exoneração, ela é perseguida através de processo

administrativo, quando o assediador aponta uma falta grave com o objetivo de acuá-la.

Nas empresas privadas, o ciclo provavelmente não seria tão longo e tortuoso, pois

quando o assediador persegue uma vítima, o faz até forçar sua demissão.

3.9 O EXERCÍCIO E AS DISPUTAS DE PODER

O exercício do poder de direção não pode ser confundido com assédio moral nas

intuições públicas. A orientação, fiscalização e punição em relação às atividades dos

empregados, conforme regulamentado no serviço público, desde que não causem

humilhação e ocorram dentro dos limites legais, não chegam a configurar a prática do

assédio moral, na opinião de Batalha (2006) e Spacil (2008).

Muitas vezes, porém, esses limites são extrapolados. Um dos motivos apontados

na literatura é a frequência com que chefes do setor público são indicados para os

cargos em função de laços de amizade ou relações políticas, aspectos que são levados

mais em conta do que sua qualificação técnica e preparo para o desempenho da função

(BATALHA, 2006; SPACIL, 2008).

Neste mesmo diapasão, Prata (2008) cita os estudos de Philippe Ravisky, segundo

o qual, no caso das empresas públicas, não é o corte de custos ou a reengenharia de

pessoal que tem maior peso no desencadeamento do processo de assédio moral, uma vez

que as instituições públicas não têm a mesma natureza competitiva da iniciativa privada

na busca por novos mercados nem são tão pressionados pelo paradigma da alta

produtividade. Nas empresas públicas, muitas vezes, impera a política do

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apadrinhamento, ou seja, “o desejo de colocar seus protegidos nos melhores postos” da

administração pública resultam na vitimização daqueles que disputam as funções

cobiçadas. Portanto, em suas palavras, “o comportamento do sujeito ativo é nesse caso

mais agressivo, pois a motivação é pessoal – inveja ou favoritismo, por exemplo – e não

apenas econômica” (PRATA, 2008, p. 84, grifo do autor).

Ainda Prata (2008 advoga que a cultura do silêncio (chamada de “política de

avestruz”, ou seja, de negar que o assédio exista e muitas vezes passar para o lado do

superior) é mais forte no serviço público do que no privado. Este fato, por um lado,

permite que cargos de direção sejam ocupados por chefes incompetentes, quer por

desvio de caráter, quer por perversão, e, por outro lado, leva a situações em que

funcionários que questionam tais atitudes, os mais competentes ou mais populares

dentro das equipes, se tornem alvos de perseguição.

Ainda sobre o setor público, Hirigoyen (2005) identifica a principal origem do

assédio moral não na questão da produtividade, mas na disputa pelo poder. O medo de

enfrentar os abusos resulta, muitas vezes, do fato de os aumentos salariais nas empresas

públicas dependerem de um quadro de evolução de carreira, atrelado a mecanismos de

avaliação que podem ser falhos ao não considerar corretamente a competência

individual dos funcionários.

3.10 A QUESTÃO DA ESTABILIDADE NO CASO BRASILEIRO

O artigo 41 da Constituição Federal de 1988 dispõe que os servidores públicos,

tanto celetistas quanto estatutários, que tenham passado por concurso público (seguindo

o princípio da máxima eficiência do servidor público) e tenham sido nomeados para

cargo de provimento efetivo, tornam-se estáveis após três anos de efetivo exercício.

Conforme o § 1º do mesmo dispositivo, eles poderão perder o cargo em virtude de

sentença judicial que tenha transitado em julgado.

Art. 41. São estáveis após três anos de efetivo exercício os servidores

nomeados para cargo de provimento efetivo em virtude de concurso público.

§ 1º O servidor público estável só perderá o cargo: (Redação dada pela

Emenda Constitucional nº 19, de 1998)

I - em virtude de sentença judicial transitada em julgado;

II - mediante processo administrativo em que lhe seja assegurada ampla

defesa;

III - mediante procedimento de avaliação periódica de desempenho, na forma

de lei complementar, assegurada ampla defesa.

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Para Fonseca (2008), é justamente na situação peculiar do funcionário público que

não sofre a ameaça da perda do emprego, ou em relação ao qual o poder potestativo de

dispensa imotivada é mitigado, que o mesmo se torna, paradoxalmente, vítima do

fenômeno. Esta situação ajuda a embasar a afirmação de que o objetivo nem sempre é a

retirada da vítima do emprego, e sim “a tentativa de desestabilizar o empregado

indesejado, para que ele, levado ao seu limite, resolva deixar ‘voluntariamente’ o

serviço”. Neste grupo se inserem, portanto, os empregados que gozam de maior

estabilidade, como é o caso dos funcionários públicos, ou com direito à garantia

provisória no emprego, como, por exemplo, os sindicalistas, cipeiros, acidentados, etc.

Portanto, se em empresas privadas, em geral, a não aceitação do assédio moral

pode levar ao abandono do emprego, nas empresas públicas o fato de não existir a

ameaça de demissão da forma como ocorre na iniciativa privada permite, em tese, que o

assédio moral ocorra com mais frequência. Neste ambiente, não podendo demitir o

trabalhador, o chefe passa a humilhá-lo e sobrecarregá-lo com tarefas entendidas como

inócuas (SPACIL, 2008).

3.11 O ASSÉDIO MORAL NO JUDICIÁRIO

Na década de 2000, problemas de insatisfação e adoecimento no seio da categoria

de trabalhadores do Judiciário tornaram-se mais frequentes (RIBEIRO, 2009; 2008).

Embora o Poder Judiciário raramente seja alvo de estudos, foi possível identificar a

produção de alguns trabalhos acadêmicos sobre as instituições que o compõem, bem

como sobre temas que buscassem dar conta da percepção de sofrimento naquele

ambiente (TAVAREZ, 2003; SCHUH JUNIOR; WIRTH, 2009; BRASIL, 2009).

Além disso, visitas às páginas de internet de diversos sindicatos de servidores do

Poder Judiciário Federal de diversos Estados brasileiros permitiram identificar a

disponibilização de inúmeras matérias sobre o tema específico de assédio moral. O

Sindicato dos Trabalhadores do Judiciário Federal no Estado de São Paulo (Sintrajud),

por exemplo, publicou uma cartilha sobre assédio moral, em decorrência de uma

pesquisa realizada em 2007 em que 30% dos 761 entrevistados afirmaram que sofriam

ou já haviam sofrido assédio moral no trabalho.10 O Sintrajud anuncia o crescimento do

10

SINTRAJUD. O assédio moral não pode ser segredo de Justiça. Disponível em:

<http://pt.scribd.com/doc/69526977/Cartilha-Assedio-Moral-Final>. Acesso em: 2 ago. 2012.

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fenômeno do assédio moral, ao qual atribui o elevado índice de afastamento dos

servidores por licença médica.

Na página da internet do Sindicato dos Servidores da Justiça do Rio Grande do

Sul (SINDJUS/RS),11 o anúncio de que a prática do assédio moral vem crescendo no

Judiciário é medido pelo número de denúncias crescentes que aquele Sindicato vem

recebendo. Neste sentido, o SINDJUS/RS, além de disponibilizar atendimento médico e

jurídico aos trabalhadores que sofrem assédio, mantém uma campanha permanente de

combate a prática.

Esta percepção constituiu-se em um dos motivadores para a escolha deste grupo

de profissionais para compor a pesquisa de campo da tese.

3.12 NOVAS LENTES DE ANÁLISE SOBRE O FENÔMENO DO ASSÉDIO

MORAL E A CONTRIBUIÇÃO DA SOCIOLOGIA CLÍNICA PARA A SUA

COMPREENSÃO

Alguns trabalhos nacionais contribuem no sentido de analisar o que já foi

produzido sobre o tema do assédio moral, propondo lentes de análise alternativas. É o

caso da pesquisa de Freitas (2007). Na opinião da autora, falta um esforço de estudos

que fujam do tratamento do tema do assédio moral como uma questão individual (de

submissão de um indivíduo em relação a outro, privilegiando suas consequências

nefastas, como doenças ou desemprego) e que partam para uma análise do ponto de

vista organizacional e social.

Para ela, a organização é identificada como o palco onde ocorrem as ações e

interpretações dos grupos de trabalho. Ali se ambientam as ocorrências do assédio moral

e as formas de controle existentes podem tanto facilitar a instalação de interações mais

saudáveis e produtivas, quanto dificultá-las, criando um terreno fértil para

comportamentos abusivos de caráter de humilhação, como o assédio moral. Afinal, a

falta de atuação dos dirigentes no sentido contrário, de coibir o assédio, seja por

ausência de resistências, regras, autoridade ou instâncias de punição, pode possibilitar a

cristalização da sua prática (FREITAS, 2007).

Ao analisar algumas pesquisas, Freitas (2005) conclui que é comum interpretar

problemas originados no ambiente organizacional como sendo pessoais e individuais, a

11

SINDJUS/RS. Tudo pronto para o Seminário Regional sobre Assédio Moral. Disponível em:

<http://www.sindjus.com.br/site/noticias.php?id=2557>. Acesso em: 26 set. 2012.

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exemplo das doenças físicas ou somáticas entendidas como decorrentes de problemas

familiares.

Outra crítica tecida por Freitas (2005) é a de que, em geral, as produções

acadêmicas da área de administração são tidas como funcionalistas e tratam as

organizações como neutras, pois cumprem funções produtivas, sem função política, e

silenciam sobre assuntos que, em geral, ferem a sua imagem. Porém, uma consolidação

da saúde moral que se exige das empresas na atualidade não deve canalizar as

preocupações unicamente para a divulgação do fato, mas também no esforço de

entendê-lo e resolvê-lo, colocando efetivamente o homem como preocupação central

nas organizações.

Nesse sentido, em vez de reduzir o discurso atual sobre ética nas organizações a

uma questão de caráter mais utilitário e instrumental, deve-se enriquecer a discussão

“com uma dimensão crítica, uma reflexão sistemática sobre os negócios em seus vários

níveis: econômico, corporativo, grupal e individual” (FREITAS, 2005, p. 24). Mesmo

no que se refere a mecanismos preventivos e de combate, estes dependem do papel ativo

dos dirigentes das organizações, por exemplo, punindo os responsáveis pelas ações de

assédio moral, independentemente das posições hierárquicas ocupadas, gerando

confiança no corpo funcional (FREITAS, 2007), ou mantendo atitudes críticas e

revendo as práticas internas e externas que mantenham o sentimento de justiça,

integridade e dignidade frente aos funcionários (FREITAS, 2005).

Sobre o assédio moral especificamente, Gaulejac (2008), afirma que este encontra

suas causas fundamentalmente em três fontes principais, que acabam por causar pressão

sobre a organização: as distâncias que separam os objetivos determinados pelas

empresas e os reais meios oferecidos para alcançá-los; o que é prescrito pela empresa e

as atividades desempenhadas pelos trabalhadores, e o que se ambiciona de recompensa

e as retribuições efetivamente recebidas. Todas elas relacionam-se à dimensão

organizacional.

No momento em que as expectativas são frustradas, instala-se um ressentimento

que juntamente com a tensão criada pela pressão no trabalho oferecem ingredientes que

permitem a criação de situações de assédio ou cerco (GAULEJAC, 2008). O cenário

paradoxal que se instala nas organizações contemporâneas, diz Gaulejac (2007, p. 239),

pode causar sofrimento psíquico, que, ao contrário do que se encontra em grande parte

da literatura sobre assédio moral, não deve ser entendido como resultante de uma

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situação individualizada. Diz o autor que mesmo que pareça mais simples focalizar o

sentimento de assédio moral sobre um sujeito, bastando que ele mude o comportamento

para que o problema seja solucionado, o contexto organizacional deve ser levado em

conta.

Nessa esteira, Gaulejac (2007, p. 238) acha equivocado entender o assédio moral

com base no “comportamento das pessoas, mais do que sobre os processos que os

geram”.

Por outro lado, não se pode ir também ao outro extremo e sustentar um discurso

de “antropomorfismo organizacional” (GAULEJAC, 2007, p. 238), no qual se fala de

uma organização perversa e, assim, se atribui a ela características eminentemente

humanas. Afinal, a organização, diz Gaulejac (2007), não é dotada de cabeça ou outros

membros, ou ainda de aparelho psíquico, inteligência ou sentimentos, ao contrário do

que é pregado por algumas obras da literatura de gestão.

Gaulejac (2007) faz ainda uma leitura do assédio moral como sintoma, ou

consequência de uma pressão globalizada no mundo do trabalho, onde a organização é

palco de modos de gerenciamento que podem favorecer sua instalação. O autor refere-

se, portanto, a um “sentimento generalizado de assédio moral”, de uma “tensão” sob a

qual se encontra a sociedade, oferecendo ao fenômeno uma dimensão social

(GAULEJAC, 2007, p. 13; GAULEJAC; HANIQUE; ROCHE, 2007, p. 54). Com isso,

o autor eleva a discussão ao nível social.

Portanto, em linha com a percepção de Martín e Guzmán (2002), Gaulejac (2009)

sugere que a competição generalizada acaba por pressionar a sociedade como um todo e

a cultura do desempenho leva à degradação das relações e condições de trabalho, bem

como à banalização da violência. Ao analisar as novas patologias do trabalho dentro do

contexto de uma sociedade de indivíduos sob pressão, decorrente das exigências da

gestão gerencial, o autor percebe que esta cultura gerencialista tem oferecido os

ingredientes para favorecer um contexto de assédio moral generalizado. Considera, por

exemplo, que o estresse e o hiperativismo, que também decorrem da cultura

gerencialista, antes de serem “doenças pessoais devem ser considerados fenômenos

sociais” (GAULEJAC, 2009, p. 230; GAULEJAC, 2007, p. 231). Esta visão, em

particular, encontra-se alinhada com o contexto do mundo do trabalho, na forma como

apresentado no capítulo anterior, e é uma das que me ajudou a delinear os pressupostos

de pesquisa e orientou a minha ida ao campo.

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Portanto, embora o fenômeno do assédio moral muitas vezes se traduza por

sintomas individuais (e assim seja estudado por diversos pesquisadores, em especial da

área de psicologia), ele provém de um mal-estar consequente das condições de trabalho.

Suas fontes não são puramente psicológicas, mas estão inscritas em tal modo de

funcionamento da organização (que reflete também o contexto social) que acaba por

desestabilizar o equilíbrio dos empregados, provocando mal-estar, que muitas vezes

desaparece quando a pressão do trabalho é aliviada. Esta visão pode influenciar

inclusive a maneira como o fenômeno é definido, bem como as atitudes que podem

caracterizá-lo.

Num contexto marcado por tantos fenômenos diferentes, que mobilizam os

sujeitos das mais variadas formas, pode-se perceber a dificuldade de estabelecer as

fronteiras entre cada um deles. Como será visto ao longo dos capítulos de análise das

entrevistas (7 e 8), a necessidade de denunciar as situações de mal-estar e sofrimento no

trabalho convive com a dificuldade de delimitar os contornos das situações classificadas

como de assédio moral.

Tendo em vista que as tomadas de decisão e o percurso traçado para alcançar os

objetivos propostos integram a prática da pesquisa, no próximo capítulo apresento as

dimensões teóricas, epistemológicas e ideológicas que ajudam a esclarecer o

posicionamento da minha pesquisa, enunciar a pergunta de tese e definir os

pressupostos de pesquisa. A maneira como construí meus questionamentos, inscritos em

opções epistemológicas e teóricas específicas, impôs-me o desafio de articular

dimensões sociais e subjetivas dos indivíduos, a partir da sociologia clínica.

Como será visto, mais do que se situar numa interseção entre dois campos

disciplinares distintos o termo sociologia clínica persegue três principais objetivos, a

saber: a dimensão do sujeito nas ciências humanas e sociais, a análise entre as

articulações e entre os determinismos sociais e psíquicos e a abordagem clínica como

condição necessária ao desenvolvimento de uma sociologia crítica (AUBERT et al.,

1997, p. 159).

Estes três objetivos guiaram a organização do próximo capítulo, que será iniciado

por uma discussão a respeito da dimensão do sujeito, seguida por uma apresentação da

sociologia clínica e finalizada pela apresentação da abordagem clínica.

Merece registro que em algumas passagens, usarei como referência, alguns

autores que se denominam psicossociólogos. Isso porque alguns autores entendem não

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haver forte demarcação entre a sociologia clínica e a psicossociologia. Parece que esta

última trabalha mais diretamente com grupos ou organizações em estado nascente ou

estabilizadas que tem de fronteiras reconhecidas, ao passo que a sociologia clínica

trabalha a maior parte do tempo no meio aberto como cidades, bairros, comunidades

rurais, onde as fronteiras são mais instáveis, podendo se formar ou deformar com

constância. Porém, trata-se mais de uma acentuação de olhar do que efetivamente de

uma diferença essencial (GAULEJAC; ROY, 1993, p. 11, 12, 27).

Ambas colocam no centro de suas preocupações a forma como os indivíduos e os

grupos são capazes de se desprender de suas determinações sociais e psíquicas e estão

preocupadas com os modos de articulação que podem se estabelecer entre o individual,

o grupal e o social (GAULEJAC; ROY, 1993, p. 30).

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4 O POSICIONAMENTO EPISTEMOLÓGICO DA PESQUISA

4.1 A DIMENSÃO DO SUJEITO NAS CIÊNCIAS SOCIAIS12

A aplicação das ciências sociais à organização data da segunda metade do século

XX, tendo como uma de suas primeiras grandes contribuições mostrar que todas as

pessoas em situação profissional são dotadas de capacidade de ação (que pode ser de

maior ou menor grau) no contexto de seu trabalho. Esta reflexão permitiu aos gestores

constatar que por um lado o funcionário é um “ator social” e por outro existem

determinadas relações de poder cuja compreensão é fundamental para a análise das

organizações (CHANLAT, 2011, p. 112). Este nível de reflexão permitiu que se

avançasse na compreensão das organizações.

Porém, se a noção de ator, central para a sociologia, por representar “o quanto

cada um dentre nós pode mais ou menos influenciar nosso ambiente imediato ao

utilizar, sozinho ou com os outros, nosso potencial de ação” contribuiu para a

compreensão de determinadas ações nas organizações, não se pode dizer que ela dá

conta da realidade humana. Deve-se reconhecer que os seres humanos não são somente

calculistas e estrategistas, e que “em todo ator social, há um sujeito, isto é, uma pessoa

que tem desejos, sonhos e ambições”, tendo, portanto, que se levar em conta a dimensão

da subjetividade (CHANLAT, 2011, p. 113-4).

No universo de gestão, diz Chanlat (2011, p. 113), muitas vezes a dimensão

subjetiva é esquecida, tal o seu foco em torno dos pólos racionais de medição

quantitativa. Entretanto, deve-se considerar que no mundo das organizações a vida

psíquica desempenha papel importante, dado que as relações de trabalho mobilizam

forte carga afetiva (CHANLAT, 2011, p. 114).

Se a percepção da contribuição das ciências sociais para a prática social da gestão

não é evidente, é importante registrar que também os sociólogos por muito tempo

deixaram de lado a questão do sujeito, relegando o tratamento da subjetividade

exclusivamente aos filósofos, psicólogos e psicanalistas (CHANLAT, 2011, p. 127;

TAKEUTI, 2002; GAULEJAC; HANIQUE; ROCHE, 2007, p. 132).

O sujeito era visto pela sociologia como nada mais do que um conjunto dos seus

determinantes sociais tendo sido considerado por muito tempo com uma ilusão

12

Esta seção será dedicada especialmente à dimensão do sujeito do ponto de vista da sociologia, já que

ela é introdutória à apresentação da sociologia clínica.

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(GAULEJAC; HANIQUE; ROCHE, 2007, p. 132; AUBERT et al., 1997, p. 160;

GAULEJAC, 1999, p. 214).

O “retorno do sujeito”13 é recente e sua reabilitação na sociologia contemporânea

inaugura a fase na qual a questão da subjetividade deixou de ser vista como sem valor

científico, irracional, inverdade, e passou a ser celebrada no campo das ciências

humanas (TAKEUTI, 2002; GAULEJAC; ROY, 1993, p. 19; GAULEJAC, 1999, p.

214).

Entretanto, dado que a sociologia por si só não dispõe de ferramentas para pensar

a dimensão “sociopsíquica”, sem redefinir suas fronteiras disciplinares, a abordagem

clínica e teórica da sociologia clínica permite esclarecer o pensamento dos autores que

se deparam com a questão do sujeito (GAULEJAC, 2009a).

Os sujeitos devem ser entendidos como sujeitos que falam, enunciam, agem,

intencionam, inventam, refletem, se projetam, e que contribuem a criar a sociedade

(GAULEJAC, 1999, p. 216; BARUS-MICHEL, 2004). Barus-Michel (2004) diz que em

uma perspectiva clínica, o sujeito deve ser visto como “inscrito em um contexto espaço-

temporal e social, trajeto, filiação, caminho, projeto do qual ele pretende reunir os

elementos para se apropriar (no sentido de “tornar próprio a si” dentro de uma

singularidade significante”. Seu objetivo é se reconhecer e se fazer reconhecer, o que o

posiciona em uma orientação do sentido e em uma relação com os outros.

De acordo com a abordagem14 da sociologia clínica, que será apresentada mais

detalhadamente a partir da próxima seção, não se pode fazer uma “economia da questão

do sujeito”, de sua história pessoal, de sua experiência, do seu permanente processo de

criação de si, da subjetividade e de suas complexas relações com o campo social.

Para o sociólogo clínico Gaulejac (1999, p. 214), pensar o sujeito exige inscrevê-

lo em uma dupla determinação: social e psíquica, dimensões irredutíveis e

indissociáveis (AUBERT et al., 1997, p. 162). O sujeito é, portanto,

“multideterminado”, produto de uma história que condensa de um lado fatores sócio-

históricos que intervêm no processo de socialização e de outro lado um conjunto de

fatores intrapsíquicos que determinam sua personalidade e sua capacidade de ação sobre

13

Expressão empregada por Alain Touraine, especialmente em sua obra Le retour de l´acteur, de 1984,

ao mencionar a aceitação por parte da sociologia de uma abordagem onde o sujeito passa a ocupar

lugar central. 14

Esta expressão será utilizada frequentemente como tradução do termo démarche, muito embora, como

será visto ao longo deste capítulo, alguns autores tenham inclusive optado pela manutenção do uso da

palavra démarche em trabalhos escritos em português.

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sua existência singular, com o contexto social no qual se inscreve (que se refere à

encarnação de relações sociais que caracterizam uma época, uma cultura, uma situação

social) (AUBERT et. al., 1997, p. 159, 152; GAULEJAC, 1999, p. 214).

4.2 A SOCIOLOGIA CLÍNICA

A sociologia clínica tem como tarefa “desvendar” de forma analítica os

diferentes registros entre o objetivo e o subjetivo, o social e o psíquico, a

interioridade e a exterioridade (GAULEJAC, 2009a, p. 189).

A escolha epistemológica não pode ser feita de forma aleatória, ou, retomando as

palavras de Pagès, de “forma fria e asséptica (... . Não elegemos uma epistemologia ou

outra como escolhemos um produto em um grande supermercado de ideias” (PAGÈS,

1997, p. 264).

A necessidade de identificar uma forma de conceber a minha investigação me

levou a perceber no “projeto científico” da sociologia clínica e, sobretudo na abordagem

clínica, o meio mais adequado para avançar no meu objeto de estudo (DUMONT, 1993;

RHÉAUME, 1993).

Savigni (1993) define a sociologia clínica como tendo um ponto de vista holístico

ou sendo uma sociologia dos fatos sociais totais que, conforme a definição de Marcel

Mauss, envolve variados níveis da realidade social: desde o macro, societal, ao micro,

individual, passando pelos níveis intermediários, de grupo e da organização.

Ainda que alguns autores tenham, no início da década de 1990, identificado a

existência de algumas grandes temáticas abordadas por estudos que se utilizavam da

sociologia clínica (RHÉAUME; SEVIGNY, 1994), a especificidade desta abordagem

clínica não reside em seu objeto de pesquisa (como, por exemplo, saúde, pobreza,

religião, desenvolvimento urbano). Isso porque existe largo corpo de produção científica

baseado no uso da sociologia clínica, o que dificulta afirmar que ela tenha objeto

próprio. O que se pode dizer é que a sua principal marca é a forma de abordar os

problemas (GAULEJAC; ROY, 1993, p. 30, 70).

Ruiz (2005, p. 41, 44), apud Araujo et al. (2010), lembra que, apesar de ser uma

disciplina clínica, a sociologia clínica não se inclui no campo das ciências da saúde, a

exemplo da medicina. Isto porque o enfoque clínico encontra-se na forma de abordar o

problema, oferecendo importância à singularidade do fenômeno sobre o qual se

debruça.

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55

Para Dumont (2007, p. 37), a sociologia clínica estaria na fronteira entre uma

ciência prioritariamente objetiva dos fatos sociais (em que se entende que é necessário

estudar os fenômenos sociais em si, tomando os sujeitos como coisas exteriores) e uma

sociologia do indivíduo. Esta visão admite que a condição individual repousa em

referências coletivas e corresponde a uma construção com recuperação do universo

social. Seu projeto é de compreender as relações entre “o ser do homem e o ser da

sociedade” (GAULEJAC; HANIQUE; ROCHE, 2007, p. 12-3) ressuscitando a ideia de

uma verdadeira ciência do homem em sociedade, forçando a revisita das fronteiras

disciplinares, em especial naquelas referentes às ciências humanas e sociais.

Sendo assim, a sociologia clínica trabalha com vários campos de estudo sem

negligenciar multidimensões do campo social-organizacional para analisar e

compreender situações e conflitos do mundo do trabalho em suas formas atuais de

gestão e organização. A alcunha “sociologia clínica” deriva da apreensão da dinâmica

das contradições sociais como fator de intervenção nos destinos individuais, apreensão

esta associada à análise dos processos sociopsicológicos por meio de uma experiência

de escuta profunda, que será abordada mais adiante.

Portanto, esta lente teórica coloca em tensão duas posturas que podem ser

entendidas como complementares e ao mesmo tempo contraditórias. A postura

sociológica posiciona-se ao lado do distanciamento, da exterioridade, da explicitação,

da análise de contexto, da desconstrução das representações, das crenças e dos valores.

Ela recusa a identificação do ponto de vista do sujeito. Já a postura clínica está ao lado

da implicação, da interioridade, da escuta sensível, da atenção ao que os sujeitos e os

grupos vivem, favorecendo uma proximidade e a tomada em conta da dimensão

existencial e psíquica.

A primeira busca analisar o social pelo social, construir teorias para entender a

determinação social e institucional que condicionam os comportamentos, as conduta e

as representações. A outra reside na subjetividade (ENRIQUEZ et al., 1993, p. 175)

“que conduz a se escutar a voz dos atores, a considerar que seu conhecimento dos

fenômenos sociais é essencial para analisar e compreender a sociedade” (GAULEJAC;

HANIQUE; ROCHE, 2007, p. 320).

A tarefa da sociologia clínica é, portanto, procurar a boa postura entre a

proximidade e a distância, entre a atenção ao vivido e a análise das determinações

sociais, entre levar em conta o sujeito como agente de historicidade implicado na

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produção da sociedade e a análise das condições de seu processo de subjetivação

(ENRIQUEZ et al., 1993, p. 175). Tal abordagem traz consequências não só teóricas

como também metodológicas e práticas (GAULEJAC; ROY, 1993. p. 318), que serão

expostas ao longo desta tese.

4.3 SOCIOLOGIA CLÍNICA: UMA HISTÓRIA RECENTE?

Embora Émile Durkheim seja constantemente lembrado pelos sociólogos como

objetivista e avesso à dimensão psíquica, tendo em vista sua regra de método

sociológico de “tratar os fatos sociais como coisas” (DURKHEIM, 1937

apud GAULEJAC; HANIQUE; ROCHE, 2007, p. 31), pode-se dizer que a partir 1895 o

autor passou a dar mais atenção aos “fatos sociopsíquicos”. Especialmente em sua

última obra, Le formes élémentaires de la vie religieuse (1912), ele evoca as ligações

existentes entre o que denomina psiquismo individual e o psiquismo coletivo, ao tratar

sobre o papel essencial das crenças e da atividade psíquica na vida coletiva

(GAULEJAC; HANIQUE; ROCHE, 2007, p. 31).

Desde Durkheim, numerosos sociólogos defenderam a necessidade de aprofundar

a relação entre sociologia e psicologia, a começar pelo seu sobrinho, Marcel Mauss.

Juntamente com Max Weber, ele ocupa papel de destaque no rol de pesquisadores

considerados precursores do que veio a ser chamado de sociologia clínica. Estes autores

contribuíram para colocar em evidência o fato de que o estudo das instituições sociais

passa pela compreensão da forma como os indivíduos as vivenciam, as apropriam e as

transformam (GAULEJAC; ROY, 1993, p. 23, 69; GAULEJAC; HANIQUE; ROCHE,

2007, p. 31).

Portanto, desde as origens da sociologia já era possível identificar na leitura de

alguns autores, como os abordados, premissas, objetos e temas que preocupam os hoje

chamados sociólogos clínicos (GAULEJAC; HANIQUE; ROCHE, 2007, p. 31).

Embora a sociologia clínica não possa ser considerada uma descoberta recente,

data somente de 1930 a primeira publicação de que se tem registro onde se associam os

termos “sociologia” e “clínica”. Naquele ano, Milton C. Winternitz, patologista e

decano da Faculdade de Medicina da Universidade de Yale, publicou um relatório

propondo a criação de um departamento de sociologia clínica (GAULEJAC; ROY,

1993, p. 24, 37).

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No ano seguinte, em 1931, Louis Wirth, considerado um dos sociólogos pioneiros

da Escola de Chicago, publicou um texto sobre a sociologia clínica (clinical sociology)

no American Journal of Sociology, destacando-a como “um setor importante da

sociologia” (SÉVIGNY, 1993, p. 28; GAULEJAC; HANIQUE; ROCHE, 2007, p. 37).

Posteriormente, nos anos 1960, Jacques e Marie Van Bockstaele publicaram

também um texto sobre a sociologia clínica, e Fernand Dumont e Yves Martin situaram

seus trabalhos sobre Saint-Jérôme no Quebec15 no contexto de uma sociologia clínica

(SÉVIGNY, 1993, p. 28; DUMONT, 2003, p. 31).

Na França, a sociologia clínica aparece nos anos 1980, e na década seguinte ela

começa a se impor como uma nova orientação no campo das ciências sociais. A

publicação de inúmeras pesquisas desenvolvidas em especial no Laboratório de

Mudança Social da Universidade Paris VII (onde realizei meu estágio doutoral), o

recebimento de prêmios de tese, a publicação de livros, a formação do Instituto

Internacional de Sociologia Clínica e a criação de uma rede temática de sociologia

clínica na fundação da Associação Francesa de Sociologia, em 2004, têm papel

importante no reconhecimento desta orientação (GAULEJAC; HANIQUE; ROCHE,

2007, p. 37).

Com o passar dos anos, já é possível perceber mudanças na orientação oferecida à

sociologia clínica por alguns autores. Vincent de Gaulejac, Max Pagès (que fala de

intevenção psicossociológica) e Nicole Aubert, por exemplo, avançaram na direção de

“uma perspectiva dialética”, baseada primordialmente nas contradições que permeiam o

trabalho nas organizações. Eles se utilizam do conceito de “sistema sociomental”, que

permite localizar as determinações num contexto em rede entre a sociedade, a

organização e o indivíduo (GAULEJAC; ROY, 1993, p. 26).

No Brasil, a origem de um esforço em incluir a sociologia clínica na agenda de

investigações remonta ao final da década de 1960. Nesta época, por intermédio de um

acordo de cooperação internacional com a Universidade Federal de Minas Gerais,

nomes importantes para a psicossociologia, como Max Pagès e André Lévy foram a

Belo Horizonte. Dentre seus legados destaca-se a reforma curricular do curso de

Psicologia, que passou a incorporar, em 1974, a disciplina de intervenção

psicossociológica (GOULART et al., 2007; LÉVY et al., 1994).

15

Trata-se de uma região no norte de Montreal.

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Posteriormente, as visitas sucessivas de Eugène Enriquez ao Brasil e sua

participação em inúmeros colóquios de sociologia clínica e psicossociologia realizados

no país ajudaram a disseminar ainda mais as abordagens por ele privilegiadas.

Os estudantes brasileiros de doutorado e de estágios doutorais na Universidade de

Paris Dauphine e no Laboratório de Mudança Social da Universidade de Paris VII16 nos

últimos vinte anos também podem ser vistos como disseminadores de conhecimento no

Brasil.17 Dentre os professores responsáveis pela formação desses alunos brasileiros,

além de Eugène Enriquez, destacam-se outros expoentes em sociologia clínica e

psicossociologia, como Vincent de Gaulejac, Florence Giust-Desprairies e Jacqueline

Barus-Michel.

A este contexto somam-se os avanços alcançados nas formações oferecidas de

maneira institucional, em especial como disciplinas universitárias brasileiras, oferecidas

por ex-alunos ou parceiros de pesquisa dos professores mencionados, com os quais, em

muitos dos casos, permanecem mantendo vínculo de pesquisa. Em comum entre estes

esforços nacionais está a opção por uma abordagem clínica de pesquisa, que tem como

pano de fundo a dimensão da relação com a ciência.

Trata-se não de estabelecer uma oposição infrutífera ao modelo científico

dominante, mas sim de lançar “um olhar diferente sobre a abordagem científica em

ciências humanas” (RHÉAUME; SÉVIGNY, 1994, p. 194), com uma tentativa de

contemplar a multiplicidade dos níveis de realidade imbricadas em situações de estudo

concretas com as quais os pesquisadores se deparam, supondo a confrontação e a

integração relativa da diversidade de olhares teóricos. Ela se apóia, deste modo, em uma

lógica global de argumentação, podendo basear-se em dados tanto de natureza

qualitativa quanto quantitativa, sobre a compreensão tanto dos pontos de vista expressos

pelos atores sociais quanto dos resultados de análise mais externos.

Portanto, a sociologia clínica funda-se em uma forma singular de fazer pesquisa (e

também intervenção) ao apreender os fenômenos sociais por meio da abordagem

clínica, que permite a costura das dimensões psíquicas e sociais em termos não só de

“tensões e conflitos, mas também de potencialidades e reencontros” (GIUST-

16

UNIVERSIDADE DE MINAS GERAIS. Eugène Enriquez, pioneiro da sociologia clínica, faz

conferência na UFMG amanhã. Disponível em:

<https://www.ufmg.br/online/arquivos/012406.shtml>. Acesso em: 23 abr. 2012. 17

Como Norma Missae Takeuti, Fernando José Gasta de Castro, Maria Ester de Freitas, Teresa Cristina

Othenio Cordeiro Carreteiro, Jose Newton Garcia de Araujo, Marcus Vinicius Soares Siqueira

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DESPRAIRIES, 2009, p. 235; GAULEJAC, 2009a, p. 203). A postura clínica não é, a

partir desta leitura, contraditória à pesquisa sociológica, mas sim lhe aporta um valor

(GAULEJAC; HANIQUE; ROCHE, 2007, p. 268).

Mas como definir uma pesquisa do tipo clínica? Quais são suas exigências?

As seções que se seguem objetivam apresentar as especificidades da clínica que

permitem identificar a sociologia clínica como uma “nova forma de fazer ciência social”

(GAULEJAC; ROY, 1993, p. 61), sem, no entanto, minimizar a dimensão do rigor,

tanto do ponto de vista epistemológico quanto metodológico.

4.4 A ABORDAGEM CLÍNICA

Assim como ocorre com a sociologia clínica, a literatura faz referência ao termo

“clínica” de diversas maneiras. Fala-se em posição clínica (JOBERT, 2006, p. 29),

postura, démarche (LÉVY, 2001), paradigma, metodologia (SÉVIGNY, 1993, p. 15),

abordagem (SÉVIGNY, 1993, p. 15), ciência (ENRIQUEZ et al., 1993, p. 181), arte de

pesquisa (ENRIQUEZ et al., 1993, p. 181). Privilegia-se na presente tese o uso do termo

“abordagem”.

Rhéaume e Sévigny (1994) resumem as características de uma pesquisa do tipo

clínica da forma que se segue:

- Um acento particular posto sobre a compreensão de significações e dos sentidos

produzidos pelos atores sociais implicados;

- Realização de estudo de situações singulares, seja ao nível individual, de grupo ou

organizacional em toda a sua complexidade.

- Elaboração de um saber específico sobre o próprio processo de interação e

intervenção, processo definido como condição da produção de conhecimentos;

- Dispositivo de pesquisa e de comunicação que reconhece a implicação do pesquisador

e a participação ativa da pessoa ou grupo visados pela pesquisa.

- Uma abordagem sistemática de coconstrução de novos saberes entre pesquisadores e

participantes da pesquisa;

- Pesquisa decorrente da necessidade de adotar uma perspectiva pluridisciplinar para

melhor apreender as situações sociais na sua complexidade.

Os aspectos levantados no rol anterior serão abordados ao longo desta e das

próximas seções.

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O adjetivo “clínico” origina-se dos termos klinikê, em grego, e clinicus, em latim,

que etimologicamente se referem ao que é feito “próximo à cama dos doentes”

(DANVERS, 2010, p. 105-6) ou “próximo ao pé da cama” (GAULEJAC; ROY, 1993,

p. 70; BARUS-MICHEL et al., 2006, p. 314). O método clínico advém, portanto, das

ciências médicas e designa o “momento no qual os médicos não se interessam mais,

somente pelo corpo doente, mas pelo próprio paciente e pelo que ele pode falar a

respeito de sua doença” (GAULEJAC, 2009a, p. 204).

Usada pela psicologia, aos poucos a abordagem clínica vem sendo aceita por

vários campos de conhecimento, como a antropologia e a sociologia (ENRIQUEZ et al.,

1993, p. 40).

Sua noção se desenvolveu nas ciências humanas primordialmente na área de

psicologia nos anos 1940, quando se ofereceram suas primeiras definições. Havia uma

necessidade de um método especificamente clínico, que se articulasse sobre a demanda

social, permitindo a compreensão da “condução humana em situação e em evolução”

(ENRIQUEZ et al., 1993, p. 65).

Tratava-se também de uma mudança relativa a uma epistemologia clássica, onde

havia uma distância assegurada de um lado por uma estrutura de representação

objetivante e, de outro lado, por um plano experimental (ENRIQUEZ et al., 1993, p.

65).

Quando trazida para as ciências humanas e sociais, a clínica se volta para a

compreensão da vivência dos atores sociais e para a escuta do que eles têm a dizer sobre

os fenômenos sociais que lhes concernem. Assim, a cama usada como referência no

conceito original de clínica passa a relacionar-se metaforicamente ao terreno, a uma

situação real, de sofrimento (onde a doença é metáfora para os problemas vivenciados),

na qual o demandante (metáfora para doente) espera encontrar ajuda para dar sentido e

resposta às suas indagações: “O que eu tenho, o que me acontece, o que isso quer

dizer?” (GAULEJAC; ROY, 1993, p. 70; DANVERS, 2010, p. 105-6; BARUS-

MICHEL et al., 2006, p. 314; ENRIQUEZ et al., 1993, p. 14).

Em se tratando dos pesquisadores (que se encontram implicados, como será visto

na próxima seção), pode-se dizer que eles não se encontram em posição de cura ou

tratamento, com postura terapêutica, mas sim apresentam-se com o objetivo de produzir

conhecimento “útil” para e com os demandantes, atores sociais com os quais

estabelecem uma relação de proximidade (RHÉAUME, 2009).

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Ao admitir essa definição metafórica, a clínica supõe, então, a existência de

alguém que se encontra em situação de sofrimento em relação a um outro que “se não

sabe, pelo menos permite o surgimento do significado” (BARUS-MICHEL et al., 2006,

p. 314).

É justamente mediante a noção de sofrimento, aliada à noção de demanda, que se

oferece um nível refinado à análise, reintroduzindo “o social em sua concretude”

(ENRIQUEZ et al., 1993, p. 58), ou seja, a percepção de que “não existe o social sem os

atores”, ou melhor, “sem os sujeitos e sem os sentidos que eles dão às suas vidas e suas

ações” (ENRIQUEZ et al., 1993, p. 58).

Para Lévy (2001 , a abordagem clínica envolve “um sujeito, ou (... um conjunto

de sujeitos reunidos em um grupo ou uma organização, às voltas com um sofrimento,

uma crise que os toca por inteiro; o clínico supõe sujeitos vivos, desejantes e pensantes”

(LÉVY, 2001, p. 20). Logo, o que os atores pensam, dizem ou imaginam é fundamental

para a análise clínica (GAULEJAC; ROY, 1993, p. 20).

Barus-Michel et al. (2006), por sua vez, definem a clínica como “uma abordagem

compreensiva das situações humanas onde o pesquisador é um participante discreto (...),

que também se coloca em um estado de recolher a experiência” (BARUS-MICHEL et

al., 2006, p. 313).

A clínica se preocupa com a articulação nos níveis individual (microssocial),

grupal e organizacional (mesossocial) e societal (macrossocial) mais significativamente,

dando importância a situações singulares como fonte de conhecimento científico

(RHÉAUME; SÉVIGNY, 1994). Logo, não são só os indivíduos que necessariamente

estão em causa, mas também grupos, organizações, eventos, situações sociais

particulares que são estudados sob o ângulo da individualidade ou especificidade

(ENRIQUEZ et al., 1993, p. 13).

É a relação entre o indivíduo e a sociedade que se encontra em causa, e a noção de

clínica implica a existência de um “indivíduo social” que se situa “no seio de estruturas

e relações sociais se caracterizando pela sua capacidade de ser sujeito e ator social”.

Seria essa dimensão que para Rhéaume (2006), evidencia a força da imagem da clínica,

colocando em primeiro plano “um sujeito existencial no coração da sociologia, tanto

sob um plano teórico quanto prático” (RHÉAUME, 2006, p. 196).

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Para Gratton (2007), a “clínica sociológica” supõe deixar cair toda a pretensão de

objetividade, de neutralidade e de universalidade (GAULEJAC; HANIQUE; ROCHE,

2007, p. 251).

A análise clínica no âmbito das ciências humanas e sociais pode ser caracterizada,

segundo Enriquez et al. (1993, p. 88) entre outras coisas, pela produção de

conhecimentos que podem ajudar e tornar mais eficaz:

- Lidar com a relação dialética entre teoria e ação (teoria para solucionar problemas de

ação que afetam as pessoas). Baseia-se na relação e interação entre o pesquisador e o

grupo populacional alvo da pesquisa. O grupo é visto como sujeito produtor de

conhecimento, dada sua situação própria. Logo, trata-se de um projeto de ação comum

que equivale os lados de pesquisador e participante.

- Desenvolver-se num contexto que favorece uma coconstrução de um saber entre o

pesquisador e seus parceiros.18

Se por um lado a pesquisa do tipo clínica pode ser considerada privilegiada em

função de seus objetivos e pelo trabalho constante de reflexão sobre métodos e sobre os

terrenos, por outro, ela apresenta risco derivado do encontro e da escuta de pessoas que

falam (D’ALLONNES et al., 1999; GAULEJAC; HANIQUE; ROCHE, 2007, p. 259).

Nesse tocante, Gastón (2007) avalia que a qualidade da pesquisa desta natureza não

reside na tentativa – impossível em sua opinião – de objetivar os resultados

encontrados, mas de levar em conta a subjetividade de cada sujeito que reconta sua

história, incluindo seus desejos e seus atos em relação com a própria subjetivação do

pesquisador.

Nessa linha, a análise clínica reserva importância destacada à dimensão relacional

entre pesquisador e o grupo-sujeito da pesquisa. Esteja aquele em posição de

observador, envolvido na vida do grupo estudado ou no papel de interventor, a “relação

com seu grupo faz parte integrante da abordagem da pesquisa” (ENRIQUEZ et al.,

1993, p. 93). Acima de tudo, a abordagem clínica carateriza-se por ser “interpessoal” e

trabalhar “dentro da relação e sobre a relação” (D’ALLONNES et al., p. 23).

Contudo, para tanto exige-se uma orientação e uma compreensão que são

condições da produção de conhecimento científico. A análise clínica, que objetiva fazer

surgir o sentido (ou não sentido) (ENRIQUEZ et al., 1993, p. 181), valoriza, de forma

18

Para Lévy (2001), a abordagem clínica ultrapassa a fronteira dos métodos e técnicas, podendo ser

definida não só como um “posicionamento global em relação ao outro, mas também em relação ao

saber e à elaboração entre pesquisa e ação, entre teoria e prática” (LÉVY, 2001, p. 19 .

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diferenciada de outros métodos, a “vantagem da dimensão de implicação do pesquisador

e a ligação com a ação social concreta” (ENRIQUEZ et al., 1993, p. 95).

Evidenciar essa dimensão torna-se obrigatório, portanto, cumpre abordar a

implicação, transferência e contratransferência no processo de pesquisa.

4.5 IMPLICAÇÃO19 EM RELAÇÃO AO OBJETO DE PESQUISA

[...] deve-se reconhecê-la [a implicação], e aceitar que nós escolhemos o

objeto de pesquisa tanto quando ele nos escolhe. (RIZET, 2007, p. 293)

O pesquisador deve, constantemente, interrogar sua postura em relação ao seu

objeto de investigação, pois a dimensão de implicação permeia todas as etapas da

pesquisa. A postura do pesquisador clínico tem a particularidade de se construir ao

longo de todo o processo: desde a experiência autobiográfica e teórica do pesquisador,

passando pela escolha do objeto de pesquisa e pela elaboração da problemática, até o

processo de interlocução com o sujeito da pesquisa, com a formalização das

interpretações permeando o trabalho de escrita. Esta última etapa, por sua vez, oferece

uma oportunidade de distanciamento do olhar do pesquisador sobre o material recolhido

e abre um espaço de elaboração (RIZET, 2007, p. 288; VANDEVELDE-ROUGALE,

2011).

Entretanto, o que vem a ser “implicação”?

Na concepção de Barus-Michel (2007, p. 195), a noção de implicação no sentido

clínico permite direcionar a atenção à presença do clínico, levando-o a perceber a

situação como um todo, evitando a realização de interpretação selvagem do que é

enunciado pela outra parte.20

Entende-se aqui ainda que a implicação relaciona-se com a capacidade de oferecer

sentido a partir do momento em que se permite reconhecê-lo, acolhê-lo e admitir onde

ele nos atravessa (BARUS-MICHEL, 1987, p. 77).

A implicação clínica permite, portanto, “um reconhecimento em profundidade e

na complexidade da experiência: trata-se de deixá-la ressoar, experimentá-la

suficientemente para também ouvir o explícito, o subentendido e o subjacente e não

perder a base, contaminados que estaríamos pela força do discurso ou das emoções.

Necessita-se de uma fineza de percepção das duplicidades da linguagem e dos atos-

19

O conceito de implicação é alvo do estudo de Paulon (2005). 20

Ou seja, uma interpretação precipitada.

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linguagem que supõem uma ressonância” (GAULEJAC; HANIQUE; ROCHE, 2007, p.

195, 196). A dimensão clínica inscreve o pesquisador numa relação com seu objeto de

pesquisa, que passa pela seleção de um ou de vários objetos. Portanto, “seu objeto não

pode ser visto a não ser dentro desta relação controlada que ele estabelece com seu

sujeito [de pesquisa], na análise da demanda, do dispositivo, do quadro [teórico] e dos

efeitos ocasionados ou pesquisados” (GIUST-DESPRAIRIES, 2009, p. 236).

Como assevera Bouilloud (2007 , definitivamente o “autor não é um

retranscriptor, neutro, idealizado, que não fará nada além de medir e constatar”

(BOUILLOUD, 2007, p. 78 . Este autor emprega o termo “autobiógrafo apesar dele”

para se referir à posição do autor na prática científica (BOUILLOUD, 2007, p. 79).

Afinal, a responsabilidade que deriva de seu posicionamento o impede de esconder ou

mascarar o caráter subjetivo de seu status. A dimensão autobiográfica, subjacente à obra

produzida, deve ser entendida como legítima no seio das ciências sociais, pois faz parte

do processo de produção do conhecimento (BOUILLOUD, 2007, p. 80).

Portanto, tendo em vista que a análise sobre a implicação seja ela explícita ou não,

permite avançar na compreensão do processo de pesquisa (GIUST-DESPRAIRIES,

2004, p. 105), apresento a seguir o resultado da interrogação sobre a minha implicação

em relação ao meu objeto de tese.

No contexto desta pesquisa de doutorado, a questão de minha implicação

relativamente ao meu objeto de estudo foi assumida gradativamente. Mais precisamente,

foi somente após a minha participação em seminários sobre sofrimento no trabalho

realizados no Instituto Internacional de Sociologia Clínica e de Implicação e Pesquisa,

oferecidos no segundo ano do mestrado em clínica da Universidade de Paris VII,

respectivamente em 2010 e 2011, que comecei a assumir o fato de que existia uma

relação entre minha trajetória de vida, minhas experiências profissionais e minha

escolha de objeto de tese. Ainda que durante anos, após a conclusão do mestrado, eu

tenha nutrido meu desejo de cursar o doutorado, dada minha paixão pela pesquisa,

minha decisão de começá-lo em 2008 foi fortemente motivada pela experiência de um

fenômeno interpretado por mim, à época, como sendo de assédio moral, do qual eu e

minha equipe de trabalho entendíamos estar sendo vítimas desde 2004.

Antes de me sentir estimulada a pensar sobre a dimensão de implicação na

pesquisa, durante os três primeiros anos do meu curso de doutorado (iniciado em 2008),

busquei oferecer aos meus amigos, colegas, familiares e comunidade acadêmica uma

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explicação que parecia ser “cientificamente” embasada e, a meu ver, legítima sobre a

escolha do meu tema de tese (que a princípio tratava do assédio moral nas instituições

públicas). Mesmo se para terceiros (que de alguma forma haviam presenciado ou

tomado conhecimento sobre minha experiência entendida como de “assédio” minha

motivação para realizar uma pesquisa dentro deste tema parecesse evidente, eu tinha

vergonha de assumi-la. Eu acreditava que reconhecer esta ligação com a minha

experiência pessoal poderia tornar minha escolha ilegítima, sobretudo diante da

comunidade científica, para quem eu deveria defender e submeter meu trabalho de

pesquisa para ser reconhecida como doutora. Esta vergonha me acompanhou por largo

tempo. Daí posso dizer que minhas opções epistemológicas e teóricas, que permitem

não somente que eu assuma minha implicação relativa ao meu objeto de tese, mas que

também são consideradas parte importante do processo de pesquisa, foram acertadas

inclusive deste ponto de vista.

Também entendo que não foi por acaso que decidi não utilizar funcionários da

empresa onde eu trabalhava como sujeitos da pesquisa. A percepção de que havia sido

vítima de assédio moral me levou a decidir entender as especificidades do fenômeno em

instituições públicas (natureza da empresa à qual eu me encontrava vinculada).

Entretanto, minha decisão de não fazer um estudo com funcionários da empresa onde eu

trabalhava foi tomada em paralelo ao entendimento da minha implicação relativa à

pesquisa. Percebi que ela não permitiria que eu conseguisse, no momento de realização

da tese, controlar e entender os mecanismos que estariam em jogo ao longo de todo o

processo de pesquisa, especialmente as transferências e contratransferências durante a

realização das entrevistas.

De igual forma, a escolha do grupo de servidores do judiciário não foi aleatória.

Ainda que eu seja diplomada em economia desde 1999, em 2003 iniciei uma

segunda formação universitária em direito, concluída em 2008, ano de ingresso no

doutorado. Como conclusão da minha graduação em direito, defendi uma monografia

intitulada “Assédio moral nas instituições públicas e privadas: riscos para a saúde e

dignidade do trabalhador”. Durante o curso de direito tive a oportunidade de

compartilhar experiências profissionais com colegas que trabalhavam em escritórios de

advocacia ou estagiavam no Sistema Judiciário. Eles me contavam situações que

envolviam jogos de poder, humilhação, sofrimento, que de alguma maneira pareciam ter

relação com a situação que eu entendia ter vivido na minha empresa. Ademais, mesmo

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sem pessoalmente ter tido a oportunidade de trabalhar com a prática do direito (uma vez

que era funcionária de uma empresa pública, e cursava a universidade à noite), tinha

contato permanente com juízes, procuradores e defensores que lecionavam diversas

disciplinas no curso. Estes professores frequentemente adotavam no ambiente

acadêmico uma exigência de postura reverencial e mantinham distância em relação ao

grupo de alunos, dando pistas de seu comportamento também dentro do ambiente do

Poder Judiciário.

Rizet (2007) lembra que “a implicação não constitui somente uma fonte de

confusão, um obstáculo metodológico a neutralizar, mas também o motor de uma

pesquisa e da tenacidade que é necessária, e a origem de numerosas descobertas”

(RIZET, 2007, p. 289).

Portanto, posso dizer que o processo de busca de uma “autocompreensão” sobre

minha própria experiência, antes de iniciar o trabalho de campo – e ao longo dele – foi

fundamental. Ele me permitiu perceber, na prática, o que eu vinha entendendo na teoria

de sociologia clínica: a possibilidade de observar em que medida os destinos individuais

(apesar de suas particularidades) são condicionados pela dimensão social, e como as

relações sociais pontuais e evolutivas influenciam a história e a vida psíquica dos

indivíduos, incluindo suas escolhas afetivas, ideológicas, profissionais, entre outras

(ENRIQUEZ, 1993, 173).

Todo este processo me auxiliou a melhor compreender e a levar em consideração

minha implicação em relação ao meu objeto de estudo, ao longo de todas as etapas da

pesquisa, permitindo entender a minha relação com os atores envolvidos (ENRIQUEZ

et al., 1993, p. 21), sabendo que eles reagiriam à minha presença e que minha percepção

do fenômeno estudado estaria relacionada de maneira íntima com minha história pessoal

(GAULEJAC; HANIQUE; ROCHE, 2007, p. 86).

É justamente esta tomada de consciência da nossa implicação na pesquisa que

permite, em seguida, o distanciamento (que nem sempre é fácil) (REVAULT apud

RIZET, 2007, p. 296). Este movimento de implicação e distanciamento é resultante do

acesso à dimensão mais subjetiva dos atores sociais, que implicam-se e compartilham

minimamente pontos em comum, por meio da interação e, ao mesmo tempo, alcança-se

uma distância crítica suficiente do pesquisador (GAULEJAC; ROY, 1993, p. 54).

Este processo, que, no meu caso, começou nos seminários e nas sessões do grupo

de implicação e de pesquisa, foi desenvolvido à medida que realizei as entrevistas-

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piloto. Posso dizer que o desenvolvimento da minha capacidade de escuta do discurso

dos entrevistados foi progressivo.

Em inúmeras oportunidades me interroguei acerca da relação com meu objeto de

pesquisa e sobre as consequências que isso poderia ter ao longo da realização das

entrevistas e após, ou seja, durante a etapa de análise. A leitura de autores que se

utilizam da pesquisa clínica, como Devereux (1980), notadamente na sua obra

L’angoisse de la méthode dans les sciences du comportement, me ajudaram a entender

que a implicação no trabalho realizado era parte integrante da postura de pesquisa que

havia privilegiado. Igualmente passei a aceitar que esta implicação juntamente com o

processo de transferência e contratransferência constituem meios de produção de

conhecimento.

4.6 A TRANSFERÊNCIA E A CONTRATRANSFERÊNCIA

Assim como a questão da implicação, a transferência e a contratransferência

devem ser assumidas no âmbito de uma pesquisa que se propõe clínica.

Para Giust-Despraries (2004),

[...] a clínica oferece um espaço para a palavra, não somente um lugar de

trocas, instituindo assim uma assimetria essencial na relação que autoriza o

uso metodológico da transferência e da contra-transferência, e ao fazer isso, o

acesso ao jogo de alteridades imaginárias e ao lugar do simbólico. A

abordagem via transferências não é somente uma escolha técnica inevitável.

Ela procede de uma representação do sujeito aprisionado nas ligações

intersubjetivas que se podem ver precisamente na análise das transferências

(GIUST-DESPRAIRIES, 2004, p. 91)

Uma situação de entrevista clínica acaba por favorecer o surgimento de atitudes

transferenciais, especialmente dada a disposição de tempo, de escuta de caráter neutro, e

da impressão de proteção em relação ao mundo exterior, tudo isso oferecido pelo clínico

ao entrevistado (CHILAND, 1983, p. 60).

Para G. Devereux (1980), a transferência deve ser vista

[...] em um quadro referencial puramente cognitivo, correspondente mais ou

menos à transferência de aprendizagem, tal como escutamos na teoria da

aprendizagem. O analisado, tendo desenvolvido reações características ao

olhar de uma pessoa efetivamente importante para ele, tende – às vezes quase

sob a forma de uma compulsão de repetição – a reagir ao analista como se ele

fosse esta pessoa, sob o preço eventual de uma deformação grosseira da

realidade (DEVEREUX, 1980, p. 74).

A contratransferência seria, por outro lado, um somatório do que Devereux (1980)

nomeia de deformações que afetam não só as percepções, mas também as reações do

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analista em direção ao seu paciente. Estas deformações consistem no que o analista

responde ao seu paciente, e nas reações decorrentes de suas próprias necessidades,

desejos e fantasmas inconscientes (DEVEREUX, 1980, p. 75).

Chiland (1983) ilustra a contratransferência a partir de uma situação em que o

interlocutor evoca uma situação passada identificada pelo clínico – por exemplo, em

relação à sua própria mãe ou à sua família. Esta reação pode impedi-lo de continuar a

compreender o outro, uma vez que “ele é tomado pela sua própria subjetividade e torna-

se inadequado para conduzir uma entrevista eficaz para o cliente e para si” (CHILAND,

1983, p. 57). Portanto, ao mesmo tempo em que os movimentos contratransferenciais

podem servir de motor para uma pesquisa, eles podem significar seus obstáculos

(CHILAND, 1983).

Blanchard-Laville (2007) entende que a subjetividade do pesquisador, presente na

contratransferência por ocasião da produção dos resultados, deve ser tratada de forma

diferente do processo ocorrido entre analista e paciente ou analista e supervisor.

Naqueles casos ela pode permanecer confidencial, ao passo que quando se trata de

pesquisadores, tornar públicos alguns elementos desta elaboração ajudam os leitores na

“apreensão da pertinência dos resultados”.

A percepção da minha implicação levou-me a estar permanentemente atenta em

relação à minha contratransferência. Esta dimensão será novamente analisada no

penúltimo capítulo, onde trabalho de maneira aprofundada em torno de três entrevistas.

4.7 A COCONSTRUÇÃO NO CONTEXTO DA POSTURA CLÍNICA DE PESQUISA

O método clínico admite que a questão do sentido não é privativa dos

pesquisadores, mas sim é, antes de tudo, da ordem dos sujeitos (ENRIQUEZ et al.,

1993, p. 58).

Barus-Michel (2006) caracteriza a relação clínica como “tensional”, baseada

numa troca e numa coconstrução do sentido, que ao mesmo tempo pode ser vista como

assimétrica (em função da posição e da subordinação face ao pesquisador em posição de

poder) ou como simétrica, admitindo-se a existência da implicação do pesquisador

(BARUS-MICHEL, 2006, p. 314-5).

No caso de uma entrevista do tipo clínica, o processo de coconstrução no contexto

de um trabalho compreensivo se dá em pelo menos dois momentos distintos: durante a

fala do entrevistado, permitindo-lhe realizar uma reflexão pessoal sobre sua história, e

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ao longo do processo de análise do resultado do discurso, levando o pesquisador a

aprofundar sua compreensão dos processos envolvidos. Em alguns casos, dependendo

dos dispositivos colocados em prática, este processo de coconstrução pode contar ainda

com um tempo final de restituição e troca com o sujeito entrevistado (VANDEVELDE-

ROUGALE, 2011).

Já o afastamento proporcionado na fase da escrita permite que o pesquisador se

interrogue sobre eventuais desconhecimentos (ignorâncias) e o leve a um movimento

recursivo entre o conjunto do material de pesquisa. Isso propicia a criação de uma

atividade “representativa, simbólica, compreensiva dos sujeitos (...) uma reapropriação

subjetiva das significações (em definição jamais alcançada)” no processo de pesquisa

(GIUST-DESPRAIRIES, 2004, p. 119; VANDEVELDE-ROUGALE, 2011), abrindo

possibilidades de reflexão dos fenômenos estudados.

O processo de escrita da tese (passagem à escrita) representa um novo espaço de

coconstrução, uma vez que ele permite que o pesquisador se afaste fisicamente do

momento de interlocução anterior, bem como de defesas inconscientes eventualmente

geradas por aquela interlocução (GIUST-DESPRAIRIES, 2004; VANDEVELDE-

ROUGALE, 2011). A escrita permite criar

[...] um outro tempo, um outro espaço de interioridade para o pesquisador que

favorece, se ele se mostra atento, novas vias de compreensão da relação entre

o pesquisador e seu terreno, tal como ele se construiu no curso de diferentes

fases da pesquisa (GIUST-DESPRAIRIES, 2004, p. 105, 119-20).

4.8 A NECESSÁRIA INTERDISCIPLINARIDADE

A análise clínica situa-se como “um estudo da complexidade” (ENRIQUEZ et al.,

1993, p. 93) no sentido de que objetiva dar conta dos variados níveis de realidade que se

encontram entrelaçados em situações concretas de estudo: “indivíduos e grupos,

organizações, comunidades de pertencimento, movimentos sociais, instituições, etc”.

Isso exige a confrontação de diversos olhares teóricos (como gestão, psicologia ou

sociologia) em uma perspectiva interdisciplinar.

Bertrand (1976) define a interdisciplinaridade como “o uso combinado de

algumas disciplinas, que resulta em transformações recíprocas dentro de cada uma

delas” (BERTRAND apud GAULEJAC; ROY, 1993, p. 300). Morval (1993) se utiliza

de definição semelhante, e acrescenta que a interdisciplinaridade só é possível em torno

de uma problemática comum, na confrontação de várias disciplinas sobre ou a partir de

um mesmo objeto, reconhecendo a complexidade do real e interrogando o discurso de

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diversas disciplinas relativas aos modos de significação, mais que seus conteúdos.

Trata-se acima de tudo de colocar as questões, mais que encontrar as respostas, não

existindo metodologias particulares de enfrentamento da pesquisa do tipo

interdisciplinar, mas sim estratégias de enfrentamento das dificuldades inerentes à

complexidade do objeto de pesquisa (MORVAL, 1993, p. 303).

Portanto, a clínica, por sua natureza de ato de compreensão, diz respeito à

interdisciplinaridade, sendo a exigência pelo uso de variadas disciplinas própria a este

tipo de análise (ENRIQUEZ et al., 1993, p. 99), seja ela evocada por sociólogos clínicos

ou psicossociólogos, entre outros. Isso não significa uma exigência de se tornar um

expert em outras disciplinas, mas sim uma busca por compreender outras linguagens e

delas tirar as implicações para a sua disciplina. Faz parte da própria coerência da

abordagem clínica a abertura de um olhar para outras abordagens e o uso de

conhecimentos produzidos por outras perspectivas, já que cada uma delas apresenta uma

forma de decompor e examinar facetas precisas da realidade, de um objeto singular.

Diferente de abordagens científicas que decompõem a realidade, examinando diversos

pedaços, mas deixando certos aspectos “na sombra”, o método clínico tenta contemplar

os mais variados níveis de análise, utilizando-se de mais de uma disciplina para fazer

suas abordagens (ENRIQUEZ et al., 1993, p. 27, 101, 105, 146).

Desse modo, ascender ao sentido remete à possibilidade de realizar uma análise a

partir de diversos níveis ou instâncias da realidade social, ainda que se saiba que ela será

balizada por competências próprias a cada pesquisador. A curiosidade intelectual,

portanto, embora seja um importante ingrediente da interdisciplinaridade, não pode

fazer os pesquisadores se esquecerem de seus limites, especialmente quando saem de

sua disciplina de origem. Decorre daí a recomendação pela colaboração entre

pesquisadores de diversas disciplinas (ENRIQUEZ et al., 1993, p. 104). Afinal,

dificilmente um pesquisador terá, individualmente, competência suficiente dos modos

de exploração das mais variadas instâncias de análise, tendendo a privilegiar algumas

em detrimento de outras. Os psicanalistas, por exemplo, se interessarão prioritariamente

por instâncias como a pulsional, a individual, ou a grupal, ao passo que o sociólogo

privilegiará os níveis de análise social ou institucional, e para os psicólogos são os

níveis interindividual, grupal ou organizacional que serão postos à frente de tudo

(GAULEJAC; ROY, 1993, p. 30).

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Embora o clínico tente usar todos os recursos teóricos disponíveis, uma

explicação ou uma interpretação emergente que não se encontre em nenhum quadro

teórico conhecido não será rejeitada. A ela será proposto um uso diferente da teoria ou

“uma forma particular de teorizar a partir de um problema ou situação” (ENRIQUEZ et

al., 1993, p. 21).

A interdisciplinaridade não pode ser vista como um luxo e não deve ser

economizada, mas sim entendida como uma demanda de pesquisas que querem dar

conta das diversas facetas do “ser humano”, por mostrar-se “essencial para a apreensão

de fenômenos complexos”, dentre os quais se inserem frequentemente aqueles

abordados por uma análise do tipo clínica (ENRIQUEZ et al., 1993, p. 101, 103).

Uma análise clínica da situação de pessoas socioeconomicamente desfavorecidas,

por exemplo, não deve restringir seu olhar às condições nas quais elas vivem, antes

estender-se às dificuldades psicológicas que aquelas pessoas podem enfrentar. Ou, ao

abordar as transformações tecnológicas, a análise pode se valer também das dimensões

demográfica, sociológica, econômica ou política.

Na sociologia clínica, a interdisciplinaridade permite apreender as ligações entre o

que pode ser considerado como “duas cenas”, ou seja, a do inconsciente (intrapsíquico)

e a do social, uma vez que a “noção de sujeito se inscreve em uma dupla determinação

social e psíquica” (ENRIQUEZ et al., 1993, p. 95). A própria alcunha de sociologia

clínica como uma “disciplina indisciplinada” (BOLLE DE BAL, 1995), reflete não

somente sua juventude, mas também seu caráter de “concepção aberta da pesquisa em

ciências sociais”. São os fenômenos-alvo do estudo em questão que determinam as

teorias que serão usadas como referência, e não o inverso.

Entretanto, esta mudança na forma usual de pensamento, que exige que se aprenda

a linguagem concernente a outras disciplinas e escolas de pensamento (GAULEJAC;

ROY, 1993, p. 299), bem como a incorporação de novos habitus de pensamento, não é

simples (TAKEUTI, 2002).

4.9 A ANÁLISE CLÍNICA EM OPOSIÇÃO À POSTURA POSITIVISTA

Com base no que foi descrito anteriormente, pode-se apresentar a análise do tipo

clínica como uma “abordagem científica completa”, que responde a critérios gerais de

um saber metódico, fundado em regras explícitas de produção: sistemático, no que se

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refere à organização do conhecimento, e crítico, com base no fundamento sócio-

histórico da produção do conhecimento (GAULEJAC; ROY, 1993, p. 91).

Para alguns autores, do ponto de vista epistemológico, a prática da clínica,

particularmente da sua proposta no campo das ciências humanas, afasta-se da

abordagem objetivante. Seja na teoria, seja na prática clínica, a posição subjetiva e a

situação intersubjetiva que se estabelece entre pesquisador e pesquisado, por exemplo,

se constituiriam em postulados centrais da análise clínica (FAVARO, 2010).

A análise clínica encontra-se em oposição a uma postura positivista, apoiando-se

sobre técnicas particulares e métodos específicos, sem, no entanto, se identificar em

exclusividade com eles. Para Enriquez et al. (1993), “a análise clínica é o conhecimento

dos ‘sujeitos’ a partir de sua situação subjetiva e não um conhecimento analítico-

objetivo; é um conhecimento qualitativo (baseado na expressão simbólica e significante

dos gestos e ações) mais que quantitativo (baseado na medida e na análise estatística); e

finalmente, ele é definido como uma abordagem compreensiva e não explicativa na

medida em que se ocupa com o sentido do processo singular e coletivo em andamento”.

No sentido compreensivo, o conhecimento visa a compreender ou interpretar o

universo simbólico dos significados produzidos pelos sujeitos sociais e está alinhado a

uma análise das situações singulares, históricas, implicando a subjetividade dos atores

sociais e a lógica do contexto social onde ocorre a interação.

Inversamente à postura positivista, a clínica não se baseia em uma ideia,

nomeadamente a ideia de que “o conhecimento pode evadir a subjetividade do

pesquisador”. Ao contrário, a subjetividade é considerada, como já exposto, como

componente da reflexão, e, desta forma, a vivência é um elemento essencial da realidade

que não pode ser neutralizado (GAULEJAC, 1996, p. 25).

Entretanto, seu posicionamento como tal não deve, na opinião de alguns autores,

ser apresentado no contexto de uma discussão dicotômica da ciência, onde de um lado

fala-se de uma abordagem científica própria das ciências humanas e sociais, e do outro,

em completa oposição, uma abordagem das ciências naturais (ENRIQUEZ et al., 1993,

p. 91). Deve-se tomar cuidado com esta dicotomia e evitar tratar a clínica como a única

abordagem legítima, considerando-a mais como uma “via alternativa”.

Assim, evita-se reduzir as ciências humanas à busca de uma “explicação causal”

(ENRIQUEZ et al., 1993, p. 119-20), abrindo a possibilidade de construir “um saber

global, uma teoria geral que possa ser aplicável a situações específicas, e ajudar a fazer

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a ligação entre o geral e o particular, entre a abstração e o caso concreto”. Esta

abordagem clínica em ciências humanas, à imagem do “saber clínico” tal como

podemos constituir em medicina ou psicologia, confere grande importância ao estudo

das situações sociais singulares historicamente situadas.

4.10 A POSTURA CLÍNICA NOS ESTUDOS ORGANIZACIONAIS

O estudo das organizações de um ponto de vista científico é frequentemente

remetido à Taylor. Alguns autores consideram que Taylor inaugura o estudo do tipo

clínico das organizações, não do ponto de vista de “proximidade da cama do doente”,

mas sim no que diz respeito a uma demanda de melhoria da performance ou da gestão

(GAULEJAC; ROY, 1993, p. 28). A complexificação da representação do homem e da

organização foi paralela ao desenvolvimento das ciências da organização, num contexto

de aplicação das ciências sociais e humanas da organização de um lado, e da

psicanálise, etnologia, psicologia e sociologia, por outra parte (GAULEJAC; ROY,

1993, p. 84-7).

Em uma pesquisa realizada na década de 1970 sobre o poder das organizações em

uma filial europeia da multinacional TLTX (PAGÈS et al., 1990), a abordagem clínica

no contexto de um estudo interdisciplinar permitiu que se avançasse em hipóteses sobre,

por exemplo, o papel das organizações não como coisas (típico de uma abordagem

positivista), mas como produto de contradições sociais e psicológicas. Avançou-se,

também, no entendimento das relações entre o inconsciente psicológico e as estruturas

sociais e organizacionais e na análise da dimensão imaginária dos funcionários em

relação à organização, evidenciando a possibilidade de compreensão da lógica

empresarial a partir da aplicação de determinadas ferramentas metodológicas, próprias

da clínica.

Outras obras avançam na avaliação do sofrimento daqueles que permanecem

dentro das organizações e restam sob a égide da organização hipermoderna. A autora

Dujarier (2006), em sua obra Idéal au travail, trabalha com o conceito de alta

performance e ideal. O comportamento do indivíduo hipermoderno, no contexto de uma

sociedade de hiperconsumo, sem limites, caracteriza-se fortemente pela noção de

excesso. O contexto de permanente mudança e de demanda por uma performance

crescente, caracterizam-no pela hiperatividade. No mundo do trabalho, o ideal acaba

tornando-se uma norma e os chefes exercem pressão em busca de altas performances,

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muitas vezes por afirmarem não ter outra alternativa. Entretanto, em sua visão, muitas

vezes as próprias contradições das organizações viram paradoxos para os indivíduos que

ali trabalham.

Ainda Dujarier (2006 lembra que “assistimos à generalização de um sistema de

assédio que é a causa maior do desenvolvimento do estresse, do esgotamento

profissional, do burnout, e de diferentes formas de depressão que não param de

aumentar no mundo do trabalho” (DUJARIER, 2006, p. VIII).

No livro Au Carrefour de l’exploitation, o autor Philonenko (1997), aluno da

Universidade Paris VII à época da concepção da obra, evoca sua experiência

profissional e as repercussões psicológicas individuais e coletivas do processo de

informatização, das novas formas de controle social, dos sistemas de avaliação e de

gestão por objetivos, das novas técnicas de gestão e pressão por resultados. Se por um

lado este conjunto de elementos gera resultados aparentes de produtividade, por outro

produzem estresse e exclusão (PHILONENKO, 1997, p. 10). Mobilizados sob o slogan

da empresa “no Carrefour não há problema, há solução”, com o tempo os funcionários

acabam internalizando e se acostumando com o ritmo de trabalho, que é o que os

oferece “a ilusão de ser sujeito” (PHILONENKO, 1997, p. 10).

Gaulejac (2007) sugere que a concorrência leva a uma pressão na sociedade e a

cultura da performance conduz à degradação das relações e das condições de trabalho, e

banaliza a violência. Ao examinar as patologias no contexto de uma sociedade de

indivíduos sob pressão, resultantes das exigências das empresas, o autor se dá conta de

que esta cultura gerencial forneceu os ingredientes que podem favorecer um contexto de

assédio moral generalizado. Ele considera, por exemplo, que o estresse e a

hiperatividade, que decorrem igualmente da cultura de gestão, antes de serem “uma

doença pessoal, devem ser consideradas como fenômenos sociais” (GAULEJAC, 2007,

p. 231). Nesse contexto, dominado pela noção de excesso e pelas exigências de

produtividade e performance, os efeitos nefastos se fazem sentir sobre a sociedade e

sobre os indivíduos. Alguns tornam-se dependentes de substâncias destinadas a permitir

a manutenção do ritmo de produtividade, outros sob a forma de perturbações

alimentares (obesidade, anorexia, bulimia), ou então por um cansaço físico ou

esgotamento psíquico (como o burnout) que, resultante do hiperfuncionamento ao qual

os indivíduos estão submetidos, constituem patologias sociais hipermodernas

(GAULEJAC, 2007, p. 157).

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Castro (2010) avançou na compreensão do desenvolvimento do burnout entre

bombeiros, situando-o no cruzamento entre um fracasso que alcança a história

individual dos profissionais, e do processo sócio-organizacional entendido como

paradoxal, resultante do novo modelo gerencial discutido no Capítulo 2.

Como já visto no Capítulo 3, os estudos clínicos de Gaulejac (2007) levam-no a

apresentar o assédio moral como decorrente de um mal-estar que é resultante das

condições de trabalho e não se resumem a fontes psicológicas. Este ponto de vista pode

até mesmo influenciar a maneira como o fenômeno é definido, bem como as atitudes

que podem caracterizá-lo. Uma definição da Sociologia Clínica, por exemplo, aporta

elementos sobre o ambiente das pessoas implicadas, e sobre o impacto da estrutura de

poder das organizações, diferentemente das definições presentes no Capítulo 6 sobre

assédio moral.

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5 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS E O DESENHO DA PESQUISA

Se nossas conclusões somente são possíveis em razão dos instrumentos que

utilizamos e da interpretação dos resultados a que o uso dos instrumentos

permite chegar, relatar procedimentos de pesquisa, mais do que cumprir uma

formalidade, oferece a outros a possibilidade de refazer o caminho e, desse

modo, avaliar com mais segurança as afirmações que fazemos (DUARTE,

2002, p. 115)

O objetivo deste capítulo é descrever os procedimentos metodológicos utilizados

na pesquisa de tese. Afinal, a pesquisa do tipo clínica, interessada em situações

concretas que envolvam pessoas, grupos, comunidades que exprimam alguma demanda

social, longe de ser uma metodologia pura, sem conteúdo, dá destaque à necessária

relação entre método e objeto de pesquisa (RHÉAUME; SÉVIGNY, 1994).

A seleção dos que seriam adotados iniciou-se com um levantamento dos métodos

de análise mais usados em pesquisas de assédio moral.

5.1 OS MÉTODOS DE ANÁLISE MAIS USADOS EM PESQUISAS DE ASSÉDIO

MORAL

Uma revisão dos artigos publicados sobre o tema assédio moral permite afirmar

que daqueles que envolvem pesquisas de campo, grande parte baseia-se no uso de

metodologia quantitativa.

Em atendimento a esta visão, que obedece ao paradigma clássico positivista, duas

maneiras de medir a exposição ao assédio moral no trabalho são as mais aplicadas. A

primeira delas usa uma abordagem subjetiva ou de autoavaliação, na qual se mede

subjetivamente a “vitimização” percebida pelos respondentes de pesquisas. A segunda

abordagem refere-se à percepção de exposição a comportamentos específicos de assédio

moral e trata-se de uma medida objetiva originada do trabalho de Heinz Leymann

(EINARSEN; HOEL; NOTELAERS, 2009).

Os trabalhos empíricos do tipo survey têm ancorado a mensuração do assédio

majoritariamente em dois instrumentos (HOEL; FARAGHER; COOPES, 2004; COWIE

et al., 2002; MORENO et al., 2007) que se utilizam de questionários aplicados em geral

na forma de autopreenchimento: o LIPT e o NAQ. Ambos são instrumentos utilizados

em pesquisas de abordagem objetiva, ou seja, nas quais os indivíduos não precisam

identificar-se diretamente como vítimas ou não vítimas do assédio moral.

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O primeiro deles, LIPT, é o instrumento popularizado pelo dr. Heinz Leymann

denominado Leymann Inventory of Psychological Terror. Seu princípio é medir o

assédio com auxílio de um questionário de exposição a comportamentos negativos. Ao

definir o critério de quando uma pessoa pode ser considerada assediada, a taxa de

ocorrência pode ser medida (HOEL; FARAGHER; COOPES, 2004). Este pesquisador

construiu uma tipologia de 45 atividades que podem ser usadas durante um processo de

assédio, agrupadas da seguinte forma (LEYMANN, 1996):

- impacto nas formas de comunicação das vítimas (por exemplo, o gerente retira

os meios de comunicação das vítimas, as vítimas são silenciadas, atacadas verbalmente

em relação às tarefas de trabalho, agredidas verbalmente, alvos de críticas etc.);

- efeitos nos contatos sociais (colegas não se comunicam mais com as vítimas,

essas são proibidas de se comunicarem com outros pelo gerente, isola-se a vítima

fisicamente etc.);

- efeitos na reputação pessoal (fofocas sobre elas, ridicularização, piadas sobre

problemas físicos, maneiras andar ou falar etc.);

- efeitos nas situações ocupacionais das vítimas (retirada das tarefas das vítimas,

atribuição de tarefas de menor importância ou que exigem menor competência etc.);

- impacto na saúde física da vítima (atribuição de tarefas perigosas, ameaças

físicas ou agressões psicológicas, assédio sexual de forma ativa etc.)

O método de Leymann define como vítima o respondente que tenha reportado

exposição a, pelo menos, um ato negativo especificado em seu questionário, em uma

base semanal ou diária, por um período de seis meses. Atos que ocorrem até a base

semanal são codificados como ato “1” e em outras frequências, como ato “0”. Após

somar todos os atos, o resultado zero indica que o respondente não é vítima de assédio

moral. Caso contrário, ele pode ser considerado como tal (EINARSEN; HOEL;

NOTELAERS, 2009).

Embora o LIPT, que possui inclusive uma versão revisada com 46 itens

(MORENO et al., 2007), praticamente não seja mais usado, é inegável sua contribuição

para a investigação da teoria de assédio moral, pois permitiu avaliar e resumir os

comportamentos que o refletem no ambiente organizacional. O assédio deixou de ter um

caráter abstrato, difícil de objetivar e definir e passou ser um problema dividido em

vários tipos de comportamento (MORENO et al., 2007).

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Atualmente, o instrumento que substituiu o LIPT e é mais frequentemente usado

para pesquisar exposição ao assédio no trabalho é o NAQ: Negative Acts Questionnaire

(MORENO et al., 2007; EINARSEN; HOEL; NOTELAERS, 2009). Neste método,

desenvolvido por Einarsen e Raknes, os entrevistados fazem uma autoavaliação e são

providos com uma definição prévia, oferecida pelo pesquisador, sobre o que vem a ser

assédio moral. Neste caso, é o pesquisador que, com base na escala criada, julga as

experiências como sendo de assédio ou não (MORENO et al, 2007; MATHISEN;

EINARSEN; MYKLETUN, 2008).

A versão original do NAQ era composta de 29 itens, posteriormente reduzidos

para 22 com base em uma escala Likert, na qual o número um significa nunca e o

número cinco, diariamente. Este instrumento objetiva mensurar a frequência de

exposição a vários atos negativos que podem ser considerados típicos de assédio ao

longo dos últimos seis meses anteriores à data da aplicação do questionário (MORENO

et al., 2007).

O NAQ tem sido traduzido e validado em diversas línguas para aplicação em

diversos países, como Espanha (MORENO et al., 2007), Estados Unidos (Lutgen-

Sandvik et al., 2007), Reino Unido (EINARSEN; HOEL; NOTELAERS, 2009) e

Noruega (SKOGSTAD; EINARSEN; MATTHIESEN, 2007), sendo que neste último

foi aplicado em uma versão revisada denominada NAQ-R. O NAQ-R faz uma revisão

do NAQ a partir da literatura e de vários estudos de caso, descrevendo atos negativos de

natureza pessoal e também relativos ao trabalho. A versão NAQ-R foi produzida quando

se validou o NAQ para a língua inglesa e alguns itens foram questionados, revelando

um viés cultural da escala original. Tornou-se, portanto, um instrumento feito

especialmente para as culturas anglo-americanas (MORENO et al., 2007; EINARSEN;

HOEL; NOTELAERS, 2009).

Com o NAQ acessam-se as experiências de assédio moral em cada país, de forma

que se permite uma comparação entre estudos internacionais, a despeito de eventual

aplicação em épocas diferentes (LUTGEN-SANDVIK et al., 2007).

Além do LIPT e do NAQ, é possível ainda encontrar alguns trabalhos que aplicam

questionários inspirados pelo menos em parte de algum deles (ONNER, 2007).

Entretanto, o uso de métodos quantitativos, como os surveys mencionados, é

criticado por alguns autores. Mckay et al. (2008), por exemplo, destacam que, uma vez

que os surveys são completados de forma voluntária, é possível que muitos

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respondentes sejam os que tenham sido assediados, devido à sua necessidade de

comunicar aos outros sobre suas experiências (MCKAY et al., 2008). Alternativamente

aqueles que se sentiram profundamente impactados também podem não querer

responder aos questionários por não se sentirem seguros em relação à confidencialidade

dos dados.

Salin (2003) lista uma série de críticas ao uso de surveys que, baseados em

pressupostos positivistas, podem limitar o entendimento do assédio moral

organizacional. Para a autora, em primeiro lugar, o uso de surveys torna difícil capturar

padrões, além de raramente proverem dados suficientes para permitir a identificação de

significados subjetivos e experiências dos alvos. Ademais, como muitos estudos são

feitos com base em dados transversais e desenhos correlacionais, torna-se difícil separar

antecedentes de consequências e examinar a importância dos círculos viciosos.

A mesma autora prossegue com sua análise crítica (reunindo opinião de outros

autores) e defende que entendimentos mais aprofundados do fenômeno, e dos processos

e fatores que o influenciam, dependem do desenvolvimento de um número mais

expressivo de estudos qualitativos e interpretativistas. A despeito das pesquisas que já

vêm sendo realizadas, sobre o assédio moral como reflexo de práticas organizacionais e

de gestão de recursos humanos atual, ainda há carência de estudos críticos sobre assédio

moral organizacional.

Na opinião de Salin (2003), estudos dessa natureza devem ser incentivados, uma

vez que os dados em profundidade permitem uma maior compreensão dos

comportamentos interpessoais hostis e têm a capacidade de oferecer visões alternativas.

Um exemplo de visão alternativa sobre o assédio moral é aquela que o identifica não

somente como um comportamento negativo e disfuncional do ponto de vista

organizacional, mas que também o vê como podendo ser usado para provocar

comportamentos nos funcionários desejados pela organização para aumentar a

produtividade.21

Em concordância com críticas tecidas em relação aos métodos tradicionalmente

usados para estudar o fenômeno do assédio moral, e estimulada a utilizar um método de

pesquisa que desse conta de suas dimensões subjetiva e organizacional, optei pela

adoção do método de pesquisa qualitativo. Para tanto, decidi entender como a

abordagem qualitativa é vista nas ciências humanas e sociais, onde se contextualiza a

21

A autora Rodrigues (2005) apontou isso em sua pesquisa.

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presente pesquisa, e o seu cotejamento com a abordagem clínica. Seguindo a postura de

BLANCHAR-LAVILLE (2006, p. 57), eu não objetivava negar que cada método tem

sua pertinência e utilidade em certos domínios e no tratamento de determinadas

informações, mas sim procurar aquele que possuía mais aderência ao que eu pretendia

estudar, com base na epistemologia adotada.

5.2 A ABORDAGEM QUALITATIVA DE PESQUISA E A CLÍNICA

Considerando que a abordagem qualitativa, enquanto exercício de pesquisa,

não se apresenta como uma proposta rigidamente estruturada, ela permite que

a imaginação e a criatividade levem os investigadores a propor trabalhos que

explorem novos enfoques (GODOY, 1995b, p. 23).

Os estudos atualmente conhecidos como de tipo qualitativo começaram a aparecer

na investigação social a partir da segunda metade do século XIX. A investigação

baseada na observação direta da realidade das famílias das classes trabalhadoras da

Europa, publicada em 1855 pelo sociólogo Frédéric Le Play é identificada como

pioneira desta tradição (GODOY, 1995b).

Os aspectos metodológicos do que hoje pode ser entendido com “abordagem

qualitativa” foram descritos pela primeira vez na obra Methods of social investigation,

publicada em 1932 pelos sociólogos britânicos Sidney e Beatrice Webb. A produção

científica de ambos baseava-se fortemente na descrição e na análise das instituições,

valorizando o uso de entrevistas, de análise documental e de observações (GODOY,

1995b).

O Departamento de Sociologia da Universidade de Chicago, nos Estados Unidos,

também ganhou notoriedade no que se refere às inúmeras pesquisas realizadas entre os

anos 1910 e 1940, baseadas na abordagem qualitativa (GODOY, 1995b). Um dos

trabalhos fundamentais produzidos pela Escola de Chicago à época foi o The polish

peasant in Europe and America, escrito em 1927. Conhecida como a obra responsável

pela fundação da sociologia americana, nela os autores William I. Thomas e Florian

Znaniecki dedicavam-se aos problemas sociais da época com o uso da abordagem

biográfica (GODOY, 1995b).

A partir de então, ainda que tenha continuado a ser adotada predominantemente

por antropólogos e sociólogos, a pesquisa qualitativa tornou-se também de aplicação

interdisciplinar. Foi neste período que a abordagem qualitativa começou a ganhar mais

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adeptos no campo da administração de empresas, bem como em áreas como psicologia e

educação, por exemplo. (TRAVERS, 2009; GODOY, 1995b).

A publicação de um número da revista Administrative Science Quaterly, em 1979,

dedicado ao tema de metodologia qualitativa, com uma coleção de artigos que

evidenciam a utilidade do uso de um enfoque qualitativo na área de administração é fato

notório do aumento do interesse pelo assunto (GODOY, 1995b).

Finalmente, os anos 1990 marcam uma atenuação do debate metodológico entre

pesquisa qualitativa e quantitativa, e pesquisadores de tradição quantitativa começaram

a perceber e a valorizar a possibilidade de uso de uma “diversidade de métodos de

trabalho, estilos de análise e a apresentação de resultados e diferentes considerações

quanto aos sujeitos” oferecidos pela perspectiva qualitativa (GODOY, 1995b, p. 62).

Um cotejamento das abordagens quantitativa e qualitativa permite afirmar que

ambas têm natureza diversa, sendo que esta caracteriza-se por auxiliar na compreensão

de fenômenos de natureza mais complexa (PAULILO, 1999).

Na opinião de Godoy (1995b), de forma geral, a diferença entre estudo qualitativo

e quantitativo baseia-se no fato de que enquanto no quantitativo o pesquisador se baseia

em um plano previamente especificado, em hipóteses definidas com uma preocupação

voltada para a medição de caráter objetivo e quantificada dos resultados, na pesquisa de

caráter qualitativo os focos de interesse se desenvolvem à medida que o estudo se

desenvolve, e baseia-se num processo interativo do pesquisador com a situação em

questão, na tentativa de entender os fenômenos a partir da ótica dos sujeitos.

Barus-Michel (2009) sublinha a oposição entre as posturas qualitativa e

quantitativa no que se refere às ciências humanas. Em suas palavras “os objetos das

ciências humanas são os sujeitos, associados ou confrontados, as dinâmicas e a estrutura

de suas relações, suas construções e produções e as experiências decorrentes. É difícil,

portanto, pretender tratar disto a distância e objetivamente” (BARUS-MICHEL, 2009,

p. 33).

Sabe-se que o paradigma da objetividade ainda é poderoso dentro das ciências

sociais e humanas (GAULEJAC, 1999, p. 216). Entretanto, mais que neutralizar a

subjetividade em nome de uma “cientificidade artificial”, é melhor situá-la no seio do

processo de produção do conhecimento, atentando aos seus efeitos (a exemplo do que

foi visto no capítulo anterior, sobre transferência e contratransferência nas pesquisas

clínicas). Isso permite a interrogação sobre a dimensão existencial e não leva a

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considerar o subjetivismo como resíduo ou obstáculo ao conhecimento, mas sim como

seu elemento, impedindo a identificação das ciências humanas como exatas

(GAULEJAC, 1999, p. 217).

Afinal, “as ciências humanas, quando não se querem experimentais, objetivas e

quantitativas, procuram analisar as significações que concernem aos sujeitos implicados

na situação, passando pelos processos que os suscitam” (BARUS-MICHEL, 2009, p.

45).

Portanto, dado o seu interesse na pesquisa clínica, pelo menos em última análise,

no universo do sentido, é possível evidenciar sua dimensão qualitativa. A prioridade do

trabalho clínico, antes de oferecer uma explicação para dado fenômeno, situação ou

problema é “analisar como ele é compreendido pelos próprios atores, como ele é

interpretado por eles” (ENRIQUEZ et al., 1993, p. 18).

A sociologia clínica se opera no coração “das contradições entre a análise e a

experiência, entre a objetividade e a subjetividade, entre a permanência de estruturas

sociais e a singularidade irredutível de cada história, de cada família, de cada indivíduo”

(GAULEJAC, 1999, p. 217).

Este desafio é alcançado pela abordagem qualitativa de pesquisa.

5.3 DESAFIOS DA PESQUISA QUALITATIVA SOBRE TEMAS SENSÍVEIS

Tradicionalmente a pesquisa qualitativa impõe inúmeras dificuldades e desafios

para os pesquisadores que optam pelo seu uso. Dentre os desafios, incluem-se a

manutenção do foco, o gerenciamento da relação com o pesquisado, das emoções, e o

saber como deixar o campo. Muitas das dificuldades típicas de pesquisas qualitativas

são agravadas quando envolvem temas sensíveis ou difíceis. Nesses casos, a pesquisa

pode inclusive ter impacto não somente nos pesquisados, mas também nos

pesquisadores (DICKSON-SWIFT et al., 2007).

Dickson-Swift et al. (2007), entrevistaram trinta pesquisadores, com o objetivo de

entender suas perspectivas sobre a experiência de aplicar pesquisas qualitativas em

tópicos sensíveis como: desabrigados, comportamentos sexuais, câncer, abuso de drogas

e álcool, violência, morte, suicídio, entre outros. Nas palavras de um dos entrevistados,

“em uma análise da experiência de pesquisa que aborde temas de saúde sensíveis, é

importante considerar primeiro o que é que nós, como pesquisadores qualitativos,

realmente fazemos. Entramos na vida de outras pessoas, às vezes num momento de crise

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e estresse, e pedimos a eles para falar em detalhes sobre suas experiências” (DICKSON-

SWIFT et al., 2007, p. 330). Os autores descrevem que em alguns casos os entrevistados

chegam a desenvolver sintomas semelhantes aos apresentados por seus entrevistados,

como é o caso do estresse.

De certa maneira, a abordagem clínica, como apresentada no capítulo anterior,

trata a questão do “impacto” sobre pesquisados e pesquisadores, nos termos de

transferência e contratransferência. Portanto, considera-se estes “impactos” como

elementos que, ao contrário de serem “combatidos”, devem ser admitidos e vistos como

constitutivos do processo de pesquisa.

Uma vez tendo caminhado na escolha de uma perspectiva qualitativa, clínica,

restava eleger as técnicas de coleta de dados de abordagem do campo. Inicialmente, eu

imaginava me restringir à realização de entrevistas em profundidade. Entretanto, um

conjunto de metodologias foram eleitas ao passo que eu realizava a pesquisa de campo e

percebia as oportunidades de fontes de informação com as quais eu me deparei. Ao

concluir a pesquisa, eu havia conseguido me valer das seguintes metodologias:

- Entrevista em profundidade;

- Análise documental;

- Observação não participante.

5.4 O GRUPO DE PESQUISA ELEITO

Como já adiantado nos capítulos 1 e 4, decidiu-se realizar a presente pesquisa com

os servidores do Poder Judiciário Federal brasileiro. Além das questões já descritas,

quais sejam, meu desejo de realizar a pesquisa com um grupo de funcionários ou

servidores públicos, bem como o fato de ter tido contato com o ambiente judiciário em

função da minha formação na faculdade de direito, devo adicionar dois outros fatores

que foram determinantes para a escolha deste grupo específico.

O primeiro remonta ao entendimento de que havia valor no estudo de uma única

organização. Isso permitiria oferecer um tratamento mais homogêneo aos fatores

organizacionais, cujo entendimento, tendo em vista o pressuposto epistemológico

adotado pela sociológica clínica, era fundamental para o avanço na pesquisa. Portanto,

eleger sujeitos que estivessem vinculados a um mesmo tipo de instituição levaria a uma

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análise mais profunda dos fatores organizacionais que influem no processo entendido

como de assédio moral.

O segundo foi o sentido de oportunidade de realizar um estudo sobre este grupo.

Eu já me encontrava em Paris, quando, em novembro de 2010, após retornar da defesa

do projeto de tese no Brasil, comecei a entrar em contato especialmente com alguns

sindicatos de categorias ligadas a órgãos públicos, com o intuito de identificar uma

instituição onde eu pudesse realizar a pesquisa de campo.

À época, avancei o contato com o grupo de funcionários e servidores de diversos

Estados brasileiros, pertencentes aos Correios, ao Judiciário Federal, à Caixa

Econômica Federal, à Advocacia Geral da União.

Em janeiro de 2011, a partir do contato com outra pesquisadora, consegui

oficializar a minha participação em uma pesquisa que já se encontrava em andamento

no Poder Judiciário Federal do Estado ALFA.

Decidi, portanto, fazer a pesquisa de campo sobre o Poder Judiciário Federal no

Brasil, entrevistando servidores de dois grupos distintos: uma amostra de servidores do

Sistema Judiciário Federal do Estado BETA, cujos contatos me foram oferecidos pelo

sindicato local e outra de servidores do Sistema Judiciário Federal do Estado ALFA,

onde havia a pesquisa em andamento e cuja forma de obtenção de acesso será explicada

mais adiante. Eu também tive a oportunidade de realizar uma entrevista com um juiz

federal e outras com três dirigentes do Sindicato dos Servidores da Justiça Federal do

Estado BETA. O número de entrevistas em cada Estado será apresentado mais adiante.

5.5 O MÉTODO DE ENTREVISTA E O ESPAÇO DE ESCUTA OFERECIDO PELA

CLÍNICA

Como já foi apontado, a sociologia clínica exige que se faça uma imersão na

vivência, na experiência pessoal de cada sujeito, na tentativa de compreender seu

sentido e seus vínculos profundos com os determinantes da realidade social e histórica.

Este mergulho na vivência permite produzir representações e explicitar o imaginário de

cada indivíduo como produto e produtor da realidade social sobre a qual se está

trabalhando. A experiência pessoal vivida singulariza a seu modo o universo social em

que está imerso. A teoria serve assim como um guia da análise (GAULEJAC; ROY,

1993, p. 322) e a investigação que leva em conta a articulação dos fatores sociais e

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psicológicos, pode ser feita a partir de uma série de ferramentas diferentes

(GAULEJAC, 1987, p. 267). Uma delas é a entrevista clínica, ferramenta privilegiada

do sociólogo clínico, afinada e elaborada de acordo com os participantes da pesquisa, de

forma a criar as condições ideais para recolher um conteúdo autêntico e confiável

(GAULEJAC; HANIQUE; ROCHE, 2007, p. 255).

A análise clínica, como anteriormente apresentada, privilegia o universo da

produção simbólica, baseando-se em: “discursos ou récits, testemunhos ou debates,

expressões simbólicas”, que diferem das formas mais clássicas de pesquisa, como a

entrevista tradicional, e do uso das análises estatísticas ou estrutural (ENRIQUEZ et al.,

1993, p. 95).

Contudo, o mecanismo de entrevista, assim como outros tipos de suportes

metodológicos (como trabalhos de grupo, organidrama, utilização de árvores

genealógicas, desenho do projeto parental, linha de vida, entre outros) necessitam de

condições ideais para sua realização, incluindo a vontade compartilhada e respeito entre

as partes envolvidas (ENRIQUEZ et al., 1993, p. 95-6).

Adicionalmente, a boa realização das entrevistas passa por um processo de

aprendizado que depende da experiência no campo. Isso envolve

[...] adquirir uma postura adequada à realização de entrevistas semi-

estruturadas, encontrar a melhor maneira de formular as perguntas, ser capaz

de avaliar o grau de indução da resposta contido numa dada questão, ter

algum controle das expressões corporais (evitando o máximo possível

[emitir] gestos de aprovação, rejeição, desconfiança, dúvida, entre outros),

competências que só se constroem na reflexão suscitada pelas leituras e pelo

exercício de trabalhos dessa natureza (DUARTE, 2002, p. 146).

Ao falar a respeito do papel do clínico na entrevista clínica, Chiland (1983, p.

17,18) evidencia o que Freud nomeou como neutralidade benevolente. Trata-se da

postura de deixar o cliente falar, interferindo o menos possível no decorrer do seu

discurso, facilitando a palavra. Porém, o caráter de neutralidade não se resume a não

deixar transparecer o sentimento do clínico, mas refere-se, sobretudo, à tomada de

consciência do que é sentido, experimentado.

Esta postura aplica-se tanto à entrevista clínica terapêutica, quanto à entrevista

clínica de pesquisa. Neste espaço, em última análise, a situação de entrevista clínica

favorece um trabalho de “elaboração de seu pensamento subjetivo” no entrevistado

(LÉVY, 2001, p. 90).

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As entrevistas por mim conduzidas foram inspiradas no método clínico. Em

primeiro lugar não havia uma preocupação com a quantidade de material recolhido, mas

sim com a profundidade da análise do material originado pelas entrevistas, incluindo o

tratamento das dimensões em torno da relação transferencial existente (transferência e

contratransferência), essencial para a compreensão dos processos psicossociais

envolvidos. Além disso, o dispositivo de entrevista consistiu, sobretudo, em criar um

espaço de palavra. Não objetivava-se eleger um grupo representativo dos servidores do

Judiciário Federal brasileiro, mas sim um grupo que permitisse entender a dimensão

sócio-organizacional presente em seus discursos sobre assédio moral (e mal-estar, como

será abordado ao longo da tese), bem como estudar os sujeitos na sua singularidade.

As entrevistas centradas nos sujeitos objetivaram levar à compreensão e

aproximação de suas vivências, envolvendo elementos de suas histórias de vida

(contadas através de um relato de vida), da situação social vivida por cada um, e

registros do simbólico e dos sentimentos e emoções envolvidos (PAILOT, 1998).

Por querer dar especial atenção à dimensão das trajetórias pessoais, mesmo

sabendo que a vivência não se resumia à história de vida, senti necessidade de adentrar a

literatura que a ela se refere.

5.6 A DIMENSÃO BIOGRÁFICA DAS ENTREVISTAS DE CAMPO

O modo de recolhimento de informações não é rígido. Ele deve ser adaptável a

cada situação, sem parecer imposto ou sem sentido para o participante da pesquisa

(GAULEJAC; HANIQUE; ROCHE, 2007, p. 256).

Recontar ou relatar (possível tradução para récit de vie) refere-se ao ato em que

um sujeito conta para alguém (que pode ser o pesquisador) um episódio qualquer da

experiência vivida. Ele significa que “a produção discursiva do sujeito tomou forma

narrativa” (GAULEJAC; HANIQUE; ROCHE, 2007, p. 257). Trata-se de “parente

próximo” de métodos clínicos como observação participante, pesquisa-ação, enquete

por entrevistas, etnometodologia ou etnosociologia e se inscreve numa tendência geral

que consiste em por o acento menos nas estruturas do que sobre os processos sociais e

psicológicos que estão por trás da condução individual, da maneira como são vividos,

lembrados, interpretados pelos sujeitos concretos (GAULEJAC; LÈVY, 2000).

Como já visto, a hipótese basilar da sociologia clínica e da sua forma de trabalho é

que a “história pessoal é produto de fatores psicológicos, sociais, ideológicos e

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culturais” (ENRIQUEZ, 1993, p. 323). Enriquez et al. (1993 sustentam que “é toda a

experiência biográfica de um indivíduo que marca o seu desenvolvimento e o constitui

como um ser psicossocial histórico” (ENRIQUEZ et al.,1993, p. 173).

Para Gaulejac e Roy (1993, p. 323), o método de história de vida permite avançar

na discussão sobre diversos problemas por:

- Permitir a sincronização da história individual e do contexto social em que se insere, e

considerar o indivíduo como produto de uma história pessoal, familiar e social;

- Adotar, adicionalmente, uma perspectiva dinâmica, por perceber o indivíduo como

produto de uma história, mas também como seu produtor;

- Articular as dimensões individual e coletiva, construindo dispositivos que permitem

aprofundar a escuta individual e colocar em perspectiva histórias individuais

relativamente a outras produzidas por pessoas que desfrutam das mesmas condições

sociais de existência.

O objetivo é fazer uma “interseção entre a abordagem objetivante da análise

sociológica e a abordagem subjetivante da realidade psíquica interna”, sem esquecer que

não se pode segmentar ou isolar as dimensões da vida (PAGÈS, 2000, p. 156).

Ferrarotti diz que

[…] o que parece único com o método biográfico é que ele permite alcançar

as facetas sociais e as estruturas de comportamento que, por seu caráter de

marginalidade e seus estados de exclusão social, escapam irremediavelmente

aos dados adquiridos e desenvolvidos formalmente, bem como imagens

oficiais que a sociedade oferece de si mesma (FERRAROTTI, 1990: p. 45).

A “abordagem biográfica não impõem por suas estruturas de investigação pré-

estabelecidas, como a maioria das formas de pesquisa, ela mantém-se ‘à escuta’”

(CABANES, 2000, p. 14). Esta escuta permitida pelo método do récit de vie é

necessária para que se conte as experiências “lá onde somos sujeitos, lá onde nós temos

o sentimento de ter feito as escolhas, lá onde há rupturas essenciais”, (MOMBERGER;

NIEWIADOMSKI, 2009, p. 27).

Neste diapasão, o material produzido em campo depende fortemente da

implicação oferecida por cada participante, ou seja, de capacidade individual de

mergulhar no passado, para colocar em jogo fatores estruturantes de sua história. Para

tanto, é possível lançar mão de alguns dispositivos metodológicos como o uso de

suportes que facilitam a emergência da história dos participantes, e a transversalidade

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do trabalho que permite o aprofundamento coletivo das histórias individuais,

conjugando cada uma com as dos demais participantes.

O objetivo metodológico do uso da história de vida (ou do récit) na sociologia

clínica é justamente criar condições em movimento duplo de distanciamento e

implicação a cada grupo de trabalho. Por um lado o distanciamento permite objetivar a

história individual, isolando-a da evolução das questões sociais. Mas, por outro, situa

cada história em relação a questões sociais, demonstrando que ela é produto da evolução

que atravessa os membros de uma dada classe social, cultura etc. Entretanto, o trabalho

só pode ser considerado completo se a análise é feita dentro da experiência subjetiva de

cada indivíduo (ENRIQUEZ, 1993, p. 324)

Enriquez et al. (1993) sustentam que se trata de explorar como a história

individual é socialmente determinada, ou seja, analisar em que medida os destinos

individuais, a despeito de sua irredutível singularidade, são condicionados pelo campo

social no qual se inscrevem e mostrar como as questões sociais que existem em um

momento dado, e que evoluíram, vão influenciar a maneira de ser, de pensar, as escolhas

afetivas, ideológicas, profissionais, econômicas, enfim, a história e a vida psíquica dos

indivíduos (ENRIQUEZ, 1993, p. 173).

Gaulejac e Legrand (2008) apresentam a história de vida como sendo

fundamentalmente “uma experiência subjetiva, individual e social, centrada sobre a

história de uma pessoa, mesmo quando o trabalho seja feito em grupo” (GAULEJAC;

LEGRAND (2008, p. 17). O grupo encontra-se, portanto, a serviço da expressão e da

análise das histórias individuais. As histórias de vida cruzadas (dos membros do

coletivo) servem de suporte a um método de análise das práticas profissionais, das

atividades do grupo, da implicação concreta e subjetiva dos participantes dentre estas

atividades. Neste contexto, a subjetividade não é um obstáculo, mas sim um elemento

central do processo. A objetividade não deve, portanto, erradicar a subjetividade, mas

ajudar a compreender como ela intervém dentro do processo (GAULEJAC;

LEGRAND, 2008).

Minha escolha pelo uso do método de história de vida resulta do desejo de

compreender a maneira pela qual os sujeitos interpretam o processo de assédio moral

que entendem ter sofrido. Este método permite identificar, em suas trajetórias,

elementos psíquicos e sociais importantes.

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Como mencionado, meu objetivo não é me restringir à dimensão psicológica do

fenômeno. Deve-se dar importância à explicação sócio-organizacional, afinal, pela ótica

da referência teórica que utilizo, há uma lógica de funcionamento sócio-organizacional

que coloca os indivíduos sob pressão, o que pode vir a causar assédio moral.

Embora a dimensão psicológica do fenômeno seja dominante, existe uma outra

que decorre da organização e gestão. As duas devem ser articuladas. Sendo assim, a

metodologia a ser aplicada, especialmente no que se refere às entrevistas realizadas, tem

que levar em conta estas duas dimensões, permitindo uma pesquisa em dois eixos:

- História de vida;

- Análise de trajetória social.

Estes métodos permitem que a partir da escuta dos indivíduos, entenda-se como

eles entendem o fenômeno do assédio moral e a sua causa, os elementos envolvidos, e

suas consequências. Trata-se da dimensão horizontal, individual de análise. A

compreensão da interpretação individual sobre o fenômeno reside no conhecimento da

trajetória de vida anterior de cada pessoa.

Entretanto, também deve-se atentar à dimensão vertical, que aparecerá nos

elementos discursivos dos indivíduos, relativos ao ambiente organizacional onde

estavam inseridos na ocorrência do assédio moral. Isso permitirá explorar a ligação

existente entre os conflitos vivenciados pelos indivíduos e as contradições dos sistemas

organizacionais.

5.7 A EXECUÇÃO DAS ENTREVISTAS

5.7.1 A escolha dos entrevistados em ALFA

Em ALFA, a escolha dos entrevistados foi feita no contexto de uma pesquisa pré-

existente.

Durante as semanas que antecederam a minha volta ao Brasil para a realização da

pesquisa de campo, em 2011,22 obtive a confirmação da possibilidade da minha

participação em uma pesquisa patrocinada pelo Sindicato dos Trabalhadores do Poder

Judiciário Federal do Estado ALFA. O objetivo da pesquisa era verificar as condições de

saúde e trabalho dos servidores do Judiciário Federal de ALFA para, a partir do

conhecimento desta realidade, propor soluções que respondessem às necessidades

identificadas para a categoria profissional.

22

Conforme a linha do tempo explicativa apresentada, anteriormente, na Figura 1.

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O convite para integrar a equipe me foi feito pela coordenadora do projeto, uma

pesquisadora que não pertencia ao quadro de funcionários do Sindicato, e com quem eu

vinha conversando desde 2010.

As tratativas para a realização da pesquisa no Tribunal Regional Eleitoral (TRE),

no Tribunal Regional do Trabalho (TRT) e na Justiça Federal de ALFA23 datavam, no

entanto, de 2009 e os depoimentos da coordenadora da pesquisa e dos membros do

Sindicato davam conta de que a longa fase de negociação que permitiria o acesso aos

corredores das três instituições. Havia sido muito difícil. Embora eu não tenha

participado dessa etapa, por ser anterior à minha inserção na equipe de pesquisa, minha

própria experiência, ao circular no interior dessas instituições, me permitiu vivenciar e

melhor compreender a sua dinâmica de funcionamento e identificar elementos que

podem estar na origem da sensação de dificuldade descrita pelo grupo responsável pelo

projeto.

A primeira etapa da pesquisa, cujo piloto já havia sido realizado pela

coordenadora do projeto em 2010, consistia em distribuir e coletar quase três mil

questionários dos servidores do TRE, do TRT e da Justiça Federal de ALFA.

Meu nome foi recomendado para compor a equipe de pesquisa, com o intuito de,

em um prazo de dois meses aplicar os questionários tanto na capital quanto em diversas

outras cidades do Estado ALFA. Tanto a coordenadora quanto a equipe do sindicato

local, responsável pela pesquisa, tinham o entendimento de que esse prazo seria

suficiente para a execução desta tarefa.

Além disso, imaginou-se que o uso dos questionários – e esta possibilidade me

motivava enormemente – permitiria criar um espaço de escuta de pessoas que sentiam

ter algo a dizer e, portanto, constituiriam um grupo voluntário de entrevistados. Isso

porque, a despeito de seu caráter anônimo, em sua última página, o questionário

oferecia ao servidor que assim desejasse, a possibilidade de deixar seu contato para

participar de uma entrevista individual, confidencial, em local a ser escolhido por ele.

Portanto, a partir de uma amostra de três mil servidores, certamente eu encontraria

pessoas que se considerassem vítimas de assédio moral, e cujas vivências e relatos

poderiam constituir material para a minha investigação. É importante destacar que, até

então, meu grupo-alvo restringia-se a “vítimas de assédio moral”. Entretanto, ao longo

da pesquisa de tese, o critério de eleição dos entrevistados sofreu algumas alterações,

23

Estas três instituições compõem o Sistema Judiciário Federal brasileiro.

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fruto também do processo de escuta e da sensibilidade frente ao grupo de servidores,

adotados com base na orientação da abordagem clínica de pesquisa.

5.7.2 A nova postura frente ao grupo de entrevistados em ALFA

Gradativamente, deixei de lado a ideia inicial de basear minha pesquisa

exclusivamente no conteúdo de entrevistas de servidores que se identificassem como

vítimas de assédio moral em ALFA, e me permiti escutar, de maneira sensível,24 os

depoimentos de parte do grupo dos servidores que haviam manifestado o desejo de falar

comigo. Seus discursos eram dominados por diversos aspectos relacionados ao

sofrimento no trabalho.

Eu gostaria de elaborar uma explicação da minha decisão de alargar o grupo de

entrevistados que constituiria a etapa de campo da minha pesquisa. Esta dimensão será

melhor explorada a seguir, mas posso adiantar que, fruto da flexibilidade permitida pela

epistemologia eleita, dos pedidos dos servidores que desejavam ser escutados, das pistas

que indicavam a existência de problemas e fontes de sofrimento que extrapolavam a

dimensão mais conceitual de assédio moral, eu me permiti ampliar o escopo da

pesquisa. Nas palavras do professor Vincent de Gaulejac, diante da minha hesitação

frente ao que me parecia uma mudança de rumo na realização da pesquisa, em reunião

realizada em Paris, logo após a finalização da pesquisa de campo: “é isto que é fazer

pesquisa”.

5.7.3 A etapa inicial da pesquisa de campo: ALFA1, ALFA

Quando concordei em participar da pesquisa em ALFA, o fiz dominada por uma

imagem idealizada relativa à receptividade que esperava obter por parte das instituições,

à maneira que eu imaginava que a pesquisa seria desenvolvida e apoiada pelo Sindicato

e à facilidade com a qual, consequentemente, eu reuniria parte do material para minha

pesquisa de tese.

Afinal de contas, meu objetivo não se resumia a participar do projeto original

coordenado pelo Sindicato de ALFA, mas incluía o seu aproveitamento como meio de

coleta de dados para a minha pesquisa.25

24

O conceito de escuta sensível será retomado em seção próxima, dedicada à sociologia clínica. 25

Este objetivo, devo dizer, havia sido informado e estava claro para os envolvidos na execução da

pesquisa de campo.

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Foi com estas informações e expectativas em mente que deixei Paris em fevereiro

de 2011 e cheguei no Estado ALFA duas semana depois. No último contato, antes do

meu embarque para o Brasil, me foi dito que, na data combinada, tudo estaria pronto

para o início da execução da pesquisa.

Após realizar a minha primeira reunião presencial com a equipe responsável pela

pesquisa no sindicato de ALFA, logo que cheguei àquele Estado, fui prevenida de que

não poderia iniciar meu trabalho de campo como previsto. Isso porque além da Justiça

Federal, cuja aprovação para a realização da pesquisa capitaneada pelo sindicato de

ALFA já datava de 2010 (a partir do qual foi permitida a realização da pesquisa piloto

naquela instituição), somente o TRE havia autorizado nosso acesso aos seus corredores

e, portanto, à execução dos trabalhos. Faltava, portanto, o TRT, onde se concentrava

grande número de servidores do Sistema Judiciário de ALFA.

Tendo em vista o contexto, decidimos26 iniciar a pesquisa pela Justiça Federal.

Ainda que estivéssemos de posse de uma autorização datada de 2010, como

mencionado, tomamos a precaução de, em primeiro lugar, passar no gabinete do diretor

para preveni-lo sobre a retomada das atividades.27 Neste momento, munidos da

autorização e de uma caixa repleta de questionários a já serem entregues naquele

mesmo dia, fomos surpreendidos por uma resposta negativa e uma indicação de que a

nossa demanda de continuidade das atividades de pesquisa deveriam ser novamente

submetidas ao departamento jurídico da Justiça Federal, para análise e posterior

aprovação. Esta situação, em adição aos depoimentos dos membros do Sindicato de

ALFA, relativos à experiências de contato com aquela gestão da Justiça Federal, me

transmitiu uma sensação de insegurança tanto sobre a resposta definitiva que o

departamento jurídico daria a respeito da possibilidade da continuação da pesquisa,

quanto sobre a duração deste processo de aprovação interna no TRT.

A frustração que tomou conta de mim naquele momento me impediu de perceber

de imediato que este incidente fornecia pistas importantes relativas àquela gestão e ao

funcionamento da instituição. Por trás daquele contexto de recusa, que sob um olhar

mais superficial referia-se a uma nova etapa de aprovação para a realização da pesquisa,

havia, na realidade, toda uma sorte de elementos. O modo de gestão particular a cada

diretor, os questionamentos a respeito de uma pesquisa que objetivava somente

26

O representante sindical e eu. 27

Considerando que a etapa piloto constitui a primeira etapa das atividades de pesquisa.

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estabelecer um diagnóstico sobre a saúde e trabalho dos servidores (que, teoricamente,

deveria fornecer resultados de interesse daquela instituição), e os conflitos políticos

ligados à iniciativa do sindicato local, patrocinador da pesquisa revelavam dimensões

que eu não poderia ignorar na etapa de análise do meu trabalho de tese. Ainda que eu

adotasse uma postura de distanciamento do jogo político que parecia estar estabelecido,

desejando somente executar um projeto de pesquisa com seriedade, não fechei os olhos

ao que ocorria à minha volta.

Porém, indubitavelmente, a sensação de estar à espera da resposta do Judiciário,

que teoricamente não havia demandado a realização da pesquisa sobre Saúde (pois esta

foi decidida pelo Sindicato, a partir da identificação de sua importância), foi

angustiante. O fato de que a distribuição dos questionários constituiria uma primeira

etapa da pesquisa – permitindo a seleção posterior de servidores para a realização de

entrevistas – agravava ainda mais a sensação de impotência e o medo de não alcançar o

resultado desejado.

Três semanas após a minha chegada ao Brasil, cujo objetivo era a entrada imediata

em campo, eu mal havia começado a distribuir os questionários em somente uma das

três instituições que constituíam o campo da pesquisa em ALFA: o TRE. Ela havia sido

a única a autorizar oficialmente, mas representava o menor quantitativo de pessoal no

quadro de servidores do Estado.

Consequentemente, tomei a decisão de, no mesmo dia em que recebi a resposta

negativa da Justiça Federal de ALFA (que se somava à do TRT), entrar em contato com

o Sindicato dos Servidores da Justiça Federal do Estado BETA, de cujos dirigentes eu já

havia recebido o aceite para a realização da minha pesquisa desde 2010. Entretanto, o

desenho inicial da execução do campo, dada a diferença de metodologias de acesso aos

entrevistados, havia sido imaginado tendo em vista o início da pesquisa em ALFA e

posteriormente em BETA.

Eu tinha a impressão de que deveria “mudar a estratégia relativa à etapa de

campo” dada a insegurança relativa ao desenrolar da pesquisa em ALFA, que impactava

na possibilidade real de contar com a realização de entrevistas naquela localidade.

Portanto, dado o cenário, onde talvez eu só pudesse contar com o grupo de servidores

entrevistados em BETA, iniciei o movimento que me permitiria começar as atividades

de pesquisa naquele Estado. A forma como se desenvolveu a pesquisa em BETA será

descrita posteriormente.

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5.7.4 A continuação da pesquisa em ALFA1

O início da pesquisa em BETA não interrompeu o prosseguimento da pesquisa em

ALFA1. Enquanto aguardava o aceite da Justiça Federal e da Justiça do Trabalho para

ingressar nas instituições, prossegui com a aplicação dos questionários28 no TRE, e fui

agendando entrevistas pessoais com aqueles que solicitaram.29

Como já dito, além das entrevistas, eu também lancei mão da observação

sistemática em ALFA1.

As entrevistas em BETA e ALFA foram combinadas com as observações

realizadas em campo, em ALFA1. Eu circulava nos corredores do Poder Judiciário,

munida de um diário, onde registrava observações de diversas naturezas. O conjunto de

notas de campo foi analisado e organizado ao longo do processo de pesquisa.

Blanchet (1987) diz que a observação é uma “abordagem de elaboração de um

saber, a serviço de múltiplas finalidades, que se inserem em um projeto global do

homem de descrever, compreender seu ambiente e os eventos que acontecem”

(BLANCHET, 1987, p. 17).

Eu me interessava em observar os ambientes dentro do Sistema Judiciário em

ALFA1, e também buscava estar atenta às reações dos participantes da pesquisa

(BLANCHET, 1987, p. 65), seja durante a entrega dos questionários, seja ao longo da

realização das entrevistas pessoais.

De forma análoga à qualidade de escuta exigida em uma análise do tipo clínica,

exercitei o que Hanique (2009) alcunhou de “olhar clínico ou complexo”, em uma

alusão ao nome escuta clínica ou complexa.

Não tive a preocupação em determinar a priori o que deveria ser alvo de minha

observação.

Para Hanique (2004), observar “não se resume somente a uma mobilização do

olhar” (HANIQUE, 2004, p. 27). Observar refere-se a perceber o que pode ser

considerado como “anomalia” de cada situação: “enrijecimento do corpo, olhares

furtivos, sorrisos, suspiros, movimento de fadiga, hesitações minúsculas... os indícios

28

Aqui a aplicação consistia na reunião dos servidores por divisão judiciária (exemplo: seção, vara,

etc.), para uma apresentação geral sobre o propósito da pesquisa encomendada pelo Sindicato,

entrega dos questionários e coleta dos mesmos no final do dia. 29

Lembrando que eles eram encontrados a partir dos contatos que haviam deixado, voluntariamente, na

última página do questionário.

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podem parecer tênues, mas constituem reais indicadores que convém não negligenciar:

eles condensam e teatralizam uma parte da dimensão da relação subjetiva de cada um ao

trabalho e ao mundo” (HANIQUE, 2004, p. 28). Portanto, tive de exercitar um estado

permanente de alerta.

Para tanto, adotei uma postura de “livre observação flutuante” que orienta os

pesquisadores a encontrarem-se disponíveis para receber as informações, sem se

mobilizarem sobre um objeto preciso (HANIQUE, 2004, p. 28). O conceito origina-se

da técnica de “atenção flutuante” retratada pela obra de Freud Estudos sobre a histeria,

publicado em 1895. Nela, uma de suas pacientes, Fraulen Elisabeth von R., cujo relato

clínico compõe a obra, pede a Freud para deixá-la falar espontaneamente.

Com a observação, aliada à realização de entrevistas, eu desejava avançar na

dimensão cara à sociologia clínica, de “conhecimento direto e íntimo do terreno”

(GAULEJAC; ROY, 1993, p. 54).

Durante quatro semanas, circulei quase diariamente nos corredores do Judiciário

Federal de ALFA1. Eu já era reconhecida e saudada pelos funcionários de cada edifício,

que me apelidaram de “a moça da pesquisa sobre saúde”. Alguns servidores, de forma

equivocada, achavam que era funcionária do Sindicato de ALFA. Em todo caso,

aparentemente, nenhum destes rótulos me impediu de me aproximar dos servidores, seja

para aplicar os questionários, seja para realizar as entrevistas.

A relação com o grupo alvo da pesquisa fazia parte da abordagem clínica por mim

eleita. “A relação de interação e implicação recíproca” (ENRIQUEZ et al., 1993, p. 93)

entre eu e o grupo era, portanto, vital, em todas as fases da pesquisa.

Percorrer os corredores do Judiciário foi um exercício enriquecedor.

Particularmente no momento de distribuição dos questionários e explicação sobre a

pesquisa de saúde patrocinada pelo Sindicato, tive a oportunidade de ter contato direto

com praticamente todos os servidores presentes e peceber diferenças entre as três

instituições: TRE, TRT e Justiça Federal.

A sede do TRE de ALFA1, por exemplo, atualmente funciona em um edifício

moderno, situado na região central da cidade. Ao entrar nesta instituição, a primeira

impressão era de um clima saudável. Fomos30 muito bem recebidos na etapa de

aplicação de questionários e no prédio percebia-se um ambiente agradável, sem a

presença de volumes de processos, com sistemas e instalações modernas para os

30

O representante sindical e eu.

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usuários. Entretanto, me surpreendi com o número de entrevistas solicitadas naquela

instituição: indício de que desejavam compartilhar alguma questão que consideravam

importante, a princípio relacionada à dimensão de saúde do servidor.

A observação não se resumiu ao momento de circulação nos corredores do

Judiciário de ALFA1, mas abrangeu também os momentos de realização das entrevistas.

Pedinielli e Fernandez (2011, p. 21) entendem que a postura do clínico baseia-se

na escuta, na atenção dada às associações livres do sujeito, na maneira como elabora

determinado enunciado, pensamentos, palavras, silêncios. Trata-se de uma escuta de um

discurso pouco racional, que depende de uma atenção flutuante, definida por elas como

“não centrada sobre a racionalidade do discurso”. Esta postura permite que se evite a

absorção pelos temas abordados e ajuda a permanecer receptivo à significação de

mudanças nos temas, encadeamentos traçados, lacunas nas associações.

Estas “situações de contato” permitiram o enriquecimento da análise, incluindo

percepções sobre a forma como os contatos eram estabelecidos, como eu era recebida

pelo entrevistado, o nível de disponibilidade para a entrevista, o local eleito para a

realização do encontro, os gestos, os sinais corporais, as pausas, as alterações de tons de

voz (DUARTE, 2002, p. 145).

Neste sentido, merece registro, que particularmente no TRE, alguns servidores

solicitaram realizar suas entrevistas no Ático, localizado no último andar do prédio,

onde havia um espaço com mesas e cadeiras.

Entretanto, ao longo das entrevistas foi visível o desconforto sentido por muitos

deles ao me confidenciarem seus sentimentos e suas visões sobre o funcionamento do

TRE. A cada ruído, olhavam em volta para controlar que pessoas estariam por lá

circulando. Talvez fosse o temor de ser visto dando uma entrevista de caráter

confidencial, para uma pesquisadora que acabara de percorrer os corredores do prédio

para a realização de uma pesquisa sobre Saúde. Portanto, aqueles que haviam pedido

para serem entrevistados, tinham algo a falar, mas, embora tivessem sugerido que fosse

feito no ambiente de trabalho, se sentiam amedrontados de que alguém eventualmente

os visse. Isso me fez, depois de algumas entrevistas, evitar a todo custo sua realização

naquele ambiente.

Ao finalizar o trabalho no TRE, que se caracteriza pela distância física entre os

servidores e a localização dos tribunais, recebi o aceite para iniciar a pesquisa na Justiça

Federal.

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5.7.5 Continuação da pesquisa em ALFA1 – a Justiça Federal

Na Justiça Federal, encontrei uma realidade física bem diferente do TRE. Situada

em um prédio mais antigo, dos anos 1980, havia salas com pilhas de processos físicos

acumulados, dois computadores por pessoa em cada mesa. Ao contrário do que ocorria

no prédio do TRE, onde, especialmente, por não ser ano de eleição, quase não havia

usuários externos circulando pelos corredores; na Justiça Federal, nos andares com

varas (onde ficam os processos) a circulação era maior, seja de usuários finais, seja de

advogados.

Dentro das salas, departamentos, seções e varas, encontrei muitos servidores

trabalhando com fone de ouvido para permitir maior concentração no trabalho. A

entrada no prédio era livre, sem a necessidade de identificação, como ocorria no TRE.

Minha rotina era distribuir os questionários ao maior número de funcionários por

dia, e de circular, ao final da jornada de trabalho, para recolhê-los. A ideia do Sindicato,

patrocinador da pesquisa, era que os servidores deveriam dedicar tempo, durante suas

jornadas de trabalho, para responder a esta pesquisa, cujo resultado lhes traria

importantes frutos futuros.31

Embora também tenha me sentido bem recebida pelos servidores no momento da

aplicação geral dos questionários, a indagação sobre objetivo da pesquisa e

principalmente sobre a forma de garantir a confidencialidade foi recorrente, muito mais

frequente e incisiva do que no TRE. Em alguns gabinetes32 (onde ficam juízes) alguns

servidores sequer quiseram segurar o questionário (era dada a possibilidade de lerem e

depois, caso não quisessem preencher, devolverem em branco). Com o passar dos dias

(eu passava em media oito horas diárias circulando no ambiente físico),33 eu mesma

comecei a mudar minha postura, internalizando histórias que meus colegas de faculdade

de direito, já profissionais do ramo, me contavam.

Minha postura era uma fora do gabinete e outra lá dentro. O fato de saber que

atrás da porta do gabinete (sempre fechada) encontrava-se um juiz, cuja figura era

31

O fato de recolher os questionários no mesmo dia também era importante para a execução da etapa de

pesquisa de tese, pois somente a partir do seu preenchimento era possível identificar, em sua última

página, se alguém havia solicitado por escrito a posterior realização de uma entrevista pessoal. 32

Tanto a Justiça Federal quanto o Tribunal Regional do Trabalho diferenciam-se do TRE pela

proximidade física e constante contato entre servidores e juízes. 33

As três instituições (TRE, TRT e Justiça Federal) funcionam de 12h a 19h.

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constantemente criticada pelos entrevistados, me fazia automaticamente baixar o tom de

voz de apresentação da pesquisa. Era quase como um desejo de proteger também

aqueles que trabalhavam próximos a ele.

Ademais, mesmo que não tenham me pedido ou ensinado, ao me referir ao juiz,

dentro daquele ambiente, falava de maneira respeitosa: doutor X. Ao longo das

entrevistas realizadas, constatei que os servidores carregam esta reverência, decorrente

da maneira como funciona a estrutura de Poder do Judiciário, mesmo para fora do

ambiente de trabalho, tema que será retomado no Capítulo 7.

O sentimento de pressão e correria dentro dos espaços da Justiça Federal (que

pareciam ser diferentes do TRE, onde os próprios entrevistados haviam indicado que

não se tratava de uma fonte de sofrimento, tendo em vista que o momento máximo de

aceleração do ritmo de trabalho ocorre em anos eleitorais, o que não era o caso) fez

também com que meu discurso relativo à obrigatoriedade de entrega do questionário no

mesmo dia mudasse. Eu não queria ser mais um fator de sofrimento e sentimento de

urgência naquele ambiente. Também não queria deixar de fora pessoas que muitas vezes

falavam: “adoraria participar, acho importante, mas aqui tenho prazos para cumprir. Não

tenho como preencher aqui dentro. Precisaria levar para casa e traria amanhã”. Se ela

quer, sente necessidade de participar, por que não permiti-lo?

Essa mudança de metodologia me exigiu fisicamente, pois além de entregar os

questionários, agora também tinha que percorrer várias vezes ao dia os departamentos

anteriores a fim de recolher, aos poucos, os questionários que às vezes levavam mais de

dois dias para serem devolvidos. Se por um lado eu me sentia mal de estar invadindo o

espaço de trabalho de pessoas que declaravam estar extremamente ocupadas, por outro

isso permitiu que minha circulação mais que dobrasse naquele prédio e muitas pessoas

começaram a confidenciar informações ou ter mais boa vontade para participar da

pesquisa.

As entrevistas com os funcionários da Justiça Federal foram realizadas, em geral,

em cafés perto do prédio. Somente funcionários da área de informática se utilizaram de

um ambiente isolado em seu andar, para fazer as entrevistas. Mas, eles pareciam não se

incomodar com presença de outros funcionários à sua volta, nem mesmo de serem

identificados nas entrevistas. Isso me pareceu bem particular deste grupo que mantêm

um discurso uníssono de competência da equipe, não reconhecimento de sua vital

importância para a sobrevivência do Sistema Judiciário (especialmente em função de

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todo o sistema de informatização pelo qual o Poder Judiciário brasileiro está passando),

dificuldade de lidar com a troca constante de diretorias da instituição e consequente

troca de mentalidade e prioridades.

As demais entrevistas realizadas fora do prédio foram dominadas por histórias de

sofrimento e queixas à estrutura de poder do Sistema Judiciário Federal, permitindo-me

aprofundar meu entendimento sobre as vivências dos que se identificaram como vítimas

de assédio moral naquele ambiente. Mas, me permiti também, assim como nas outras

duas instituições de ALFA1, não me resumir ao grupo de “vítimas” e ver diferentes

dimensões do sofrimento dentro do ambiente de trabalho do Judiciário. Com isso,

consegui avançar na escuta de diferentes discursos sobre variados níveis de sofrimento,

as representações dos servidores sobre sofrimento, os sentidos oferecidos a ele.

No TRT, cuja aplicação de questionários só foi permitida na última semana de

minha permanência em ALFA1, o conteúdo das entrevistas (que foram poucas, dado o

prazo para meu retorno) foi semelhante ao da Justiça Federal, no que tange à dimensão

social do fenômeno de sofrimento e eventual assédio moral, mas, claro, com

especificidades de vivências psíquicas dos entrevistados.

O desejo de falar se mostrou não só nas solicitações presentes nos questionários,

mas também nas abordagens físicas nos corredores. No TRT alguns chegaram a

perguntar: quando vocês vão aplicar a pesquisa no meu andar?

Isso só fazia aumentar um sentimento de angústia que ainda me consome. A

aplicação dos questionários, a resposta, e o grande número de solicitações para

participar das entrevistas em ALFA1, assim como a realização das entrevistas em

BETA, me fizeram sentir muito responsável pela continuidade da pesquisa, pela busca

de respostas, de soluções dos problemas deles. Talvez ela tenha sido aumentada por uma

sensação de que buscar isso para eles seria uma forma de protegê-los e ajudar a

reconstruir minha história também.

5.7.6 O início da pesquisa em BETA

Como já mencionado, ainda no início da pesquisa em ALFA, acionei os meus

contatos no sindicato de BETA, e estabeleci uma agenda de reuniões com seus

dirigentes, compatível com a agenda da pesquisa de ALFA.

Depois de realizar três reuniões, seguidas de contatos telefônicos, a equipe do

sindicato de BETA ofereceu-me acesso a alguns processos por ele patrocinados, de

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servidores que haviam procurado aquela instituição por se entenderem vítimas do que

denominavam assédio moral.34 Com base neste universo de processos que selecionei os

nomes dos servidores envolvidos, priorizando aqueles que os dirigentes do sindicato

consideravam pessoas chave em casos tidos como emblemáticos, dada a publicidade

alcançada no Sistema Judiciário (notadamente, sendo alvo de matérias no jornal do

sindicato).

Devo dizer que a maneira pela qual fui recebida pela equipe do sindicato do

Estado BETA e a situação de acesso aos entrevistados me colocou em uma posição

diferente em referência ao processo de pesquisa, e me fez vivenciá-la de forma

diferente. Naquela etapa eu já não me sentia uma intrusa na pesquisa de terceiros,

dependente da execução e da condução de uma fase anterior de negociações, para poder

executar a investigação que comporia o campo da tese.35 No Sindicato de BETA, eu

apresentei minha própria proposta de pesquisa e me senti, assim, com o controle da

situação.

5.7.7 A escolha dos entrevistados em BETA, impressões sobre a realização de

entrevistas e as fontes documentais

Em BETA, minha intenção era entrar em contato com servidores que se entendiam

vítimas, independente se situações haviam sido legalmente consideradas como assédio

moral ou se a procura pelo sindicato tenha dado início a algum processo formal ou,

ainda, independente da própria interpretação do Sindicato a respeito do ocorrido (ou

seja, tratando como sendo ou não uma situação de assédio moral). Eu desejava

compreender o ponto de vista dos sujeitos entrevistados, que se consideravam vítimas

de assédio moral, qualquer que fosse a definição do termo no qual se apoiavam.

A partir dos contatos oferecidos pelo Sindicato de BETA, telefonei diretamente

para os servidores, objetivando agendar uma entrevista. Na conversa telefônica

explicava o objetivo de minha pesquisa, sem utilizar a expressão “assédio moral”,

34

Por uma decisão metodológica, uma vez que eu desejava compreender que elementos eram

considerados pelos entrevistados como componentes do processo compreendido como assédio moral,

eu sempre tomava a precaução de evitar o uso da expressão ao longo das entrevistas, deixando que,

quando fosse o caso, elas aparecessem no discurso dos próprios servidores. O conceito de assédio

moral adotado não tinha importância central para a minha pesquisa. Já a situação, a forma como o

processo tinha sido vivenciado e interpretado por eles, sim. 35

O que não quer dizer que a execução destas fases em ALFA não tenha sido importantíssima fonte de

pesquisa.

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deixando claro que havia conseguido seus contatos com o sindicato de BETA, que, por

sua vez, estava de prontidão para assumir a responsabilidade por ter me confiado tais

informações.36 Isso diferenciou a escolha dos entrevistados daquela realizada em ALFA,

onde eu os elegia a partir de um grupo de pessoas que solicitavam a realização de uma

entrevista por um motivo particular que, inicialmente eu ignorava, mas ao qual tinha

acesso e compreendia, ao longo das entrevistas.37

Meu discurso de apresentação (por telefone) aos servidores seguia padrão

semelhante: “Meu nome é Valéria Quiroga Vinhas e estou em contato com o Sindicato

dos Servidores do Judiciario Federal de BETA desde o ano passado. Eu desenvolvo uma

pesquisa sobre os riscos psicossociais no ambiente de trabalho38 e a equipe do Sindicato

me forneceu uma lista de contatos que poderiam contribuir para o meu trabalho. Seu

nome encontra-se na lista e eu gostaria de saber se seria possível agendar uma

entrevista, de caráter confidencial, no lugar que você julgar mais apropriado. Os dados

pessoais dos participantes, como nome e função, jamais serão revelados”.

Esta etapa de contato inicial com os possíveis entrevistados de BETA se revelou

extremamente difícil para mim. Afinal, diferentemente de ALFA, onde, a iniciativa da

realização da entrevista partiria dos próprios servidores, que deixariam seus contatos

nos questionários, em BETA vivenciei a angústia de possíveis respostas negativas.

No que se refere ao medo da recusa, associei-o inicialmente ao temor de

eventualmente não conseguir realizar entrevistas suficientes para elaborar as minhas

análises. Esta necessidade de uma meta quantitativa de entrevistas era fruto de uma

postura anterior ao contato e à aproximação com a sociologia clínica. O processo de

compreensão desta teoria e de sua colocação em prática foi paralelo à realização da

pesquisa de campo, o que me permitiu reconhecer, gradativamente, que mais importante

do que o número de entrevistas, era a realização de uma escuta sensível junto aos

entrevistados.39 Por outro lado, este medo de uma resposta negativa à minha demanda

36

Tendo em vista este eventual contato entre o servidor e o Sindicato, após meu telefonema, pedi aos

dirigentes daquela instituição para evitarem o uso do termo “assédio moral”, ao se referirem à minha

pesquisa de tese. 37

O que não quer dizer, como ficará mais claro nos capítulos 7 e 8, de análise das entrevistas, que as

entrevistas dos servidores de BETA não tenham sido absolutamente reveladoras de novos elementos

importantes para a minha pesquisa. 38

A adoção do termo “risco psicossocial” deve-se à, já mencionada, tentativa de fazer com que a

eventual iniciativa de que seu uso partisse dos servidores entrevistados, mas também tem relação com

as vantagens do seu uso, do ponto de vista político, que serão aprofundadas posteriormente. 39

Voltarei a esta dimensão posteriormente.

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por entrevista também relacionava-se à uma crença inicial de que o caso de cada

servidor poderia me ajudar a compreender uma dimensão nova do assédio moral, que no

limite me aproximaria do entendimento total de seu funcionamento e de suas

características. Sendo assim, a ausência de cada testemunho poderia representar uma

“lacuna” na compreensão do fenômeno. Tratava-se, portanto, de um entendimento

“ilusório” de que o domínio do tema me faria, finalmente, entender um fenômeno do

qual, no início da pesquisa, eu também me considerei vítima.40

Mas, o sentimento de medo não vinha apenas no momento do primeiro contato

telefônico com os servidores. A ele associava-se uma sensação de angústia

(experimentada também ao longo da realização das entrevistas, especialmente as

primeiras) que independia do aceite ou da recusa da participação em uma futura

entrevista. Esta sensação era fruto da impressão de que aqueles poucos minutos de

apresentação da minha pesquisa, e do esclarecimento de como eu havia chegado em

seus nome, por si só, já poderia suscitar sentimentos ligados à experiência de sofrimento

pela qual todos eles já poderiam ter passado.

Pouco a pouco, à proporção que avançava na pesquisa de campo e na

compreensão da teoria, consegui amenizar este sentimento. Por um lado, isso se deu à

medida que compreendia a forma de realizar as entrevistas tendo em mente as

características da postura clínica, ou seja, de falar sobre sofrimento evitando causar

ainda mais sofrimento. A entrevista deveria constituir um espaço onde a pessoa se

permitia dizer o que desejava, mas também a não dizer aquilo que não quisesse.

Por outro lado, a diminuição do meu sofrimento foi também resultado do avanço

gradativo no trabalho sobre minha implicação relativa ao objeto de pesquisa. Se

inicialmente a solicitação para a realização de uma entrevista, e a sua própria execução,

me despertavam sentimentos e lembranças relativas à minha história pessoal, o trabalho

de implicação me permitiu aceitar este fato, e seu entendimento diminuiu a sensação de

angústia.

Finalmente, relativo ao processo de contato telefônico, merece ser registrado que

dois elementos ajudaram no processo de convencimento dos servidores para a realização

de uma entrevista: a confidencialidade das informações e o seu uso. Elas respondiam às

inseguranças frequentemente enunciadas pelos servidores, antes, durante, e após a

40

Como já mencionado, em especial como decorrência da minha participação e dos trabalhos feitos

junto ao “grupo de implicação e pesquisa”, identifiquei uma relação entre minha trajetória de vida,

minhas experiências profissionais e a escolha do meu objeto de pesquisa.

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realização das entrevistas. Desde o início, estas preocupações já revelavam elementos –

explorados com maior profundidade ao longo das entrevistas – que se relacionavam à

visão de justiça dentro do Poder Judiciário, onde os servidores se inseriam.

Portanto, o processo anteriormente descrito oferece alguns elementos da etapa de

agendamento das primeiras entrevistas em BETA, que, por sua vez, acabaram ocorrendo

antes mesmo das de ALFA, ao contrário do inicialmente planejado. Em ALFA, eu me

encontrava na etapa de aplicação dos questionários no TRE da capital, ao mesmo tempo

que, em BETA eu estava realizando entrevistas. Algumas destas foram realizadas a

partir de sexta-feira à noite, quando eu voltava de ALFA, incluindo os dias de final de

semana.

De todas as entrevistas realizadas em BETA, somente uma foi feita no ambiente

de trabalho do servidor, por sua própria demanda.41 Os demais encontros realizaram-se,

em geral, em lugares públicos, como restaurantes, cafés ou rodoviárias.

Estimulá-los a decidir o ambiente onde a entrevista seria realizada permitiu deixar

à vontade os servidores que haviam aceitado participar da pesquisa. De acordo com um

entrevistado, cujo depoimento reproduzimos em seguida, é possível identificar inúmeras

reprovações e queixas relativas ao modo de funcionamento do Poder Judiciário, esta

decisão foi importante.

“Se você falar com as pessoas na frente do diretor, do juiz, todos estão felizes.

[Eles falam] aqui, tudo está bem. Mas, se você falar com elas fora da instituição, como

você fez comigo, agora, você vai se dar conta de que o discurso será semelhante [ao

meu].”42

Algumas poucas entrevistas foram realizadas na residência dos servidores. Nestes

casos particulares, eu me surpreendi ao me dar conta do simbolismo existente no fato de

que eles abriam suas portas para uma desconhecida que os fez falar ou reviver inúmeras

situações de sofrimento, alvo de seus discursos.

A realização das entrevistas dependeu também do meu deslocamento para

diversas cidades, identificadas como BETA2, BETA3 e BETA4. Percebi-me em

contextos inusitados, como ao entrevistar mães que se ocupavam de seus filhos

enquanto conversavam comigo. O desejo de falar, por parte dos entrevistados, foi fator

41

Escolha que será alvo de análise posterior, dado que esta entrevista é uma das duas eleitas para a

análise aprofundada do Capítulo 8. 42

O que se encontra entre colchetes permite esclarecer a frase do entrevistado, dado que se trata de um

extrato e que sua forma isolada do restante do discurso dificulta a compreensão da ideia em tela.

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decisivo no processo de pesquisa, e era motor da minha disposição de ir ao seu

encontro, onde quer que fosse, na situação que melhor lhes conviesse.

Outras dimensões do processo de entrevista, que extrapolam o seu conteúdo

propriamente dito, serão retomados ao longo da tese. Um exemplo é o fato de que

mesmo que fosse realizada fora do ambiente de trabalho, alguns entrevistados baixavam

o tom de voz ao falar de seus juízes.43 Além disso, cada vez que mencionavam seus

nomes, em tom mais baixo, reiteravam sua preocupação com a confidencialidade da

pesquisa. O temor pelas eventuais consequências que a revelação de suas opiniões

poderia trazer era visível.

5.7.8 As fontes documentais

Além do contato direto do pesquisador com o grupo de pessoas estudadas, como é

o caso das entrevistas, também os documentos representam importante fonte de

informações. A pesquisa documental é aquela em que se examinam “materiais de

natureza diversa, que ainda não receberam um tratamento analítico, ou que podem ser

reexaminados, buscando-se novas e/ou interpretações complementares” (GODOY,

1995, p. 21, 24).

Os documentos podem compreender materiais escritos (desde jornais, revistas,

relatórios, até obras literárias ou cartas), estatísticas, e elementos iconográficos (como

imagens, filmes, fotografias). Os que foram produzidos pelos indivíduos que

vivenciaram o evento de forma direta são nomeados primários. Já os documentos que

foram coletados por sujeitos que não presenciaram o evento, são ditos secundários

(GODOY, 1995; MOGALAKWE, 2006).

Dentre as vantagens da pesquisa de natureza documental, Bailey, citado por

Godoy (2005), destaca: consistir em estudo de situações ou pessoas às quais não se pode

ter acesso físico (com é o caso de estudos sobre relações de trabalho em épocas remotas,

em que é impossível interagir com pessoas que tenham vivido aquela época), trata-se de

uma fonte não reativa, entre outros.

O sindicato de BETA, combativo no que se refere à questão do assédio moral,

permitiu o acesso, aos processos judiciais de alguns entrevistados. Isso levou a uma

melhor compreensão de alguns aspectos formais da situação de assédio moral vivida, de

43

Esta dimensão será melhor avaliada posteriormente.

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interpretações dadas pelos servidores que se consideraram vítimas, bem como de

argumentações de defesa da instituição judiciária.

A escolha dos documentos por mim consultados não foi realizada de maneira

aleatória. Os processos judiciais relativos a servidores que entendiam terem sido vítimas

de assédio moral me foram entregues.

Esta análise documental complementar, baseada nos processos judiciais, me levou

a questionar diversas dimensões. Como o próprio sindicato conduz o processo? Como

as vítimas constroem sua argumentação e como a instituição judiciária faz a sua defesa?

Será que o conteúdo das argumentações das três partes envolvidas (servidores,

instituição judiciária e sindicato) pode revelar alguma coisa?

Alguns elementos identificados nos documentos, também apareciam no conteúdo

das entrevistas. Entretanto, a análise documental e as entrevistas não tinham o mesmo

status epistemológico. Isso porque, no primeiro caso, o processo compreendido como

de assédio moral era descrito por meio de entrevistas realizadas diretamente com

servidores que haviam se considerado vítimas. Já no caso das documentações

consultadas, além da formalidade envolvida na redação dos textos, deve-se levar em

conta os diversos atores envolvidos em sua elaboração, como advogados, testemunhas e

o próprio sindicato.

Portanto, a análise documental de processos judiciais foi utilizada e analisada

priorizando determinadas temáticas, e de forma complementar, aprofundando temas

trabalhados a partir das entrevistas e de observações de campo.

Findo o processo de pesquisa no Brasil, com idas e vindas do ALFA1 e BETA, eis

o balanço:

- Foram realizadas 22 entrevistas em BETA, das quais três foram com dirigentes

sindicais e uma com um juiz federal;

- Em ALFA1, após a aplicação de quase oitocentos questionários, foram realizadas 19

entrevistas, sendo que algumas podem ser identificadas como de servidores que se

consideraram vítimas de assédio moral.

A duração das entrevistas foi variada. Em média duraram duas horas, sendo que

nos três casos eleitos para ilustrarem os estudos individuais (apresentados no Capítulo

8), foram realizadas de duas a três entrevistas com cada servidor.

O Anexo 1 resume as principais características de cada entrevistado da presente

pesquisa.

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Retornei a Paris, após a pesquisa de campo, com a sensação de possuir muitos dos

elementos necessários para a compreensão da situação de assédio moral identificada

pelos servidores, mas também do que começava a se configurar como um retrato mais

amplo do sofrimento no ambiente de trabalho do Judiciário. Ao perceber que possuía

material denso para avançar em minhas análises, percebi que era o momento de parar de

realizar as entrevistas. Os discursos dos sujeitos entrevistados, as observações realizadas

em campo e a leitura dos processos judiciais me permitiram avançar nas hipóteses

interpretativas.

5.7.9 Metodologia de análise das informações de campo

Na ausência de uma metodologia de análise de dados própria da sociologia

clínica, inspirei-me nas obras clínicas mencionadas nos capítulos anteriores

(especialmente na seção 4.9) para definir a forma de apresentação e análise dos dados

da presente tese. Com isso, estabeleci uma estrutura, na qual, inicialmente, apresento

uma análise transversal com base na totalidade das entrevistas realizadas e, em um

segundo momento, apresento uma análise aprofundada de três casos específicos. Eles

não se constituem em casos representativos do conjunto estudado, mas são apresentados

como ilustrativos de discussões e análises que de alguma forma estão endereçadas na

análise transversal.

A intenção, ademais, é levar o leitor a compreender a abordagem clínica, aplicada

à administração, através não só de uma análise transversal, mas também de análises

individuais que permitam evidenciar o interesse do método, deixando claro que não são

os casos individuais em si que permitem a construção de uma teoria.

Na presente tese, a teoria foi construída gradativamente, e os casos individuais são

usados como forma de ilustração da maneira como os fenômenos apontados na teoria

podem ser vivenciados. Portanto, é possível afirmar que a confecção da tese foi

permitida por um conjunto de fatores: entrevistas, trabalho de campo e leitura.

5.7.10 A restituição/devolução

Nas palavras de Gastón (2007, p. 264), “restituir é apresentar de outra forma ao

outro, o que ele nos enunciou”. Este momento permite dar significado ao trabalho que

acaba de ser cumprido, além de ir ao encontro, o mais claramente possível, às

expectativas dos participantes.

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A percepção dos efeitos clínicos potenciais provocados pelo trabalho publicado,

seja do ponto de vista individual ou coletivo exige um rigor ainda mais elevado no

decorrer da pesquisa. Isso inclui a opção de não publicação de certos elementos na

medida em que seja difícil acompanhar os seus efeitos (D’ALLONNES et al., 1999, p.

178).

A restituição pode assumir diversos formatos: personalizado, privado ou

público, debate, seminário, conferência ou publicação.

O objetivo é, no final das contas, restituir a autenticidade de uma proposta “ao

serviço de uma melhor compreensão dos processos que a sustentam” (GASTÓN, 2007,

p. 267), tendo sempre em mente o respeito à palavra do outro.

No que se refere à publicação da presente tese, a restituição foi feita seguindo

preceitos éticos. Em primeiro lugar, todos os nomes foram trocados, conforme

combinado ao longo das entrevistas, respeitando o anonimato total dos participantes,

evitando também realizar julgamento sobre o que eles falaram.

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6 O PODER JUDICIÁRIO

Tendo em vista que a pesquisa de campo foi realizada com servidores da Justiça

Federal, do Trabalho e Eleitoral, o objetivo desta seção é oferecer um breve resgate

sobre a história do Poder Judiciário Federal no Brasil,44 culminando com sua estrutura

atual. Especial destaque será dado às recentes mudanças ocorridas no Sistema

Judiciário, o que permite melhor contextualizar a presente pesquisa. Entretanto, merece

registro que alguns elementos referentes ao funcionamento desta organização serão

apresentados ao longo do Capítulo 7, dedicado à análise dos dados.

6.1 A HISTÓRIA DO PODER JUDICIÁRIO NO BRASIL

A origem dos marcos legais que levaram à estruturação do Poder Judiciário

brasileiro deve ser analisada ainda no Brasil Colônia. Considerando a realidade

administrativa de então, pode se dividir este período em duas fases.

A primeira apresenta características decorrentes das capitanias hereditárias, tendo

como dispositivos legais a legislação eclesiástica, as chamadas cartas de doação

(referentes a contratos enfitêuticos45 em que o donatário se constituía em perpétuo

tributário da Coroa) e cartais forais (que estabeleciam a legitimidade da posse e os

direitos e privilégios dos donatários) (DARÓS, 2007).

A segunda inicia-se a partir do fracasso das capitanias e da instalação dos

governos-gerais. A partir daquele momento, a legislação passou a incluir, além das

cartas de doação e forais das capitanias, cartas régias, alvarás, regimentos dos

governadores gerais, leis e ordenações reais. Adicionalmente, havia ainda leis

extravagantes tratando sobre matéria comercial, e as ordenações manuelinas, em 1521, e

as filipinas, em 1603 (DARÓS, 2007).

Da primeira para a segunda fase, saiu-se de uma lógica em que o donatário

praticava a justiça para um sistema que se iniciou com ouvidores e passou a uma

estrutura hierarquizada copiada de Portugal, envolvendo juízes de primeira (ordinários e

especiais), segunda (desembargadores dos Tribunais de Relação) e terceira instâncias

(Tribunal de Justiça Superior).

44

Que engloba aqueles três. 45

Ou seja, onde o proprietário de determinado bem não o transfere integralmente a terceiros. Apenas

cede seu domínio útil.

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Para ingressar na Magistratura era indispensável que o candidato fosse graduado

em Direito Civil ou Canônico na Universidade de Coimbra, tivesse exercido a profissão

ao menos por dois anos e sido selecionado por meio de exame de ingresso ao serviço

público pelo desembargador do Passo em Lisboa. Uma vez inserido na estrutura judicial

da Colônia, a promoção a desembargador se dava após experiência destacada na

administração judiciária (MATHIAS, 2009).

Com a independência do Brasil e a Constituição outorgada por D. Pedro I, a

independência46 e a vitaliciedade dos juízes passaram a ser reconhecidas.

Diferentemente do Brasil Colônia, os Juízes de Direito passaram a ser nomeados pelo

imperador e, como pré-requisito, deveriam ser bacharéis em direito, ter no mínimo vinte

e dois anos, gozar de boa reputação e comprovar ao menos um ano de prática forense

(MARTINS FILHO, 1999).

Nesta fase surgiram os Tribunais de Apelação, nas províncias, e o Supremo

Tribunal de Justiça, na capital do Império. Nesta última instância, cabia ao imperador o

exercício do Poder Moderador, e com base nele poderia perdoar ou diminuir as penas

impostas aos condenados. A proclamação da República e a implementação do sistema

federalista de Estado e do presidencialismo como forma de governo marcam o

surgimento da Justiça Federal, seguindo a configuração norte-americana de separação

de poderes (MARTINS FILHO, 1999).

No início, cada Estado e o Distrito Federal eram dotados de uma seção judiciária,

com sede na capital, além de um juiz federal, também chamado de juiz de seção e um

juiz substituto, ambos com exercício por um período de seis anos. A seção judiciária

representava a primeira instância da Justiça Federal, e a segunda cabia ao Supremo

Tribunal Federal. Os juízes seccionais eram nomeados pelo presidente da República,

com base em uma lista tríplice formada pelo Supremo Tribunal Federal. Para a

candidatura, deveriam atender às exigências de um mínimo de quatro anos de prática de

advocacia ou de magistratura, e, uma vez nomeados, gozavam das garantias de

vitaliciedade e inamovibilidade. A Constituição de 1934 inovou ao criar a Justiça

Eleitoral e instituir a Justiça do Trabalho como órgão meramente administrativo

(MARTINS FILHO, 1999).

46

O caráter de independência era relativo tendo em vista que o imperador, com o Poder Moderador,

poderia rever todas as decisões.

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Com a instalação do Estado Novo, a Justiça Federal foi extinta juntamente com a

Eleitoral, e o Supremo Tribunal Federal (denominado de Corte Suprema, à época)

passou a ser a segunda instância dos feitos julgados pelos Juízes de Direito (estaduais).

Em 1946, com a nova Constituição, para evitar o saturamento da Corte Suprema

criou-se o Tribunal Federal de Recursos, que passou a ser a segunda instância para

feitos envolvendo a União. Sua sede foi instalada na capital federal e os seus membros

eram chamados de ministros. Foi facultado que a lei criasse, em diferentes regiões do

país, outros Tribunais Federais de Recursos, mediante proposta do próprio Tribunal e

aprovação do Supremo Tribunal Federal (MARTINS FILHO, 1999).

A Carta Magna de 1946 ressuscitou a Justiça Eleitoral, extinta no Estado Novo, e

constitucionalizou a Justiça do Trabalho.

Somente com o Ato Institucional nº 2, de 1965 (que modificou a Constituição de

1946), houve o restabelecimento definitivo da Justiça Federal de primeiro grau. Naquele

momento estabeleceu-se que a nomeação dos juízes federais seria feita pelo presidente

da República a partir de uma lista de cinco cidadãos indicados pelo Supremo Tribunal

Federal. Além disso, cada Estado, Território e o Distrito Federal compunham uma seção

judiciária, com sede na capital (MARTINS FILHO, 1999).

Em seguida, a Lei nº 5.010/66 instituiu o concurso público como forma de

provimento do cargo de juiz federal substituto. Ela foi responsável pela definição de

suas atribuições e regulamentação da delegação de competência para os juízes estaduais

nas comarcas do interior, onde não funcionasse vara da Justiça Federal. As nomeações

de juiz federal e juiz federal substituto passaram a ser feitas pelo presidente da

República, sendo referendadas pelo Senado Federal e previu-se que, para o primeiro

provimento dos cargos nos serviços auxiliares, poder-se-ia fazer uso de servidores

estáveis da União e das Varas da Fazenda Nacional dos Estados (MARTINS FILHO,

1999).

A Constituição de 1967 manteve a Justiça Federal nos moldes delineados no Ato

Institucional nº 2/65 e da Lei nº 5.010/66 e estabeleceu que o ingresso na Magistratura

Federal dependeria de concurso público de provas e títulos, além de alargar a

competência da Justiça Federal (abrangendo também as causas referentes à

nacionalidade, à naturalização, entre outras).

O Ato Institucional nº 5 foi responsável pela suspensão das garantias

constitucionais de vitaliciedade, inamovibilidade e estabilidade dos juízes. Ao

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presidente da República resguardava-se o poder de demitir, aposentar ou pôr em

disponibilidade os que gozavam daquelas garantias, sem a necessidade de apreciação

judicial. A Emenda Constitucional nº 1, de 1969, retomou o tratamento unitário do

Poder Judiciário, que havia sido abandonado pela Constituição de 1946. Com isso, os

Tribunais e Juízes Estaduais foram integrados ao lado dos demais órgãos da Justiça da

União e houve a restauração das garantias supracitadas. Já a Emenda Constitucional nº

7, de 1977, foi responsável pela alteração do número de ministros do Tribunal Federal

de Recursos (passou de 13 para 27) e extinção do cargo de juiz federal substituto, ao

ditar que a lei poderia atribuir a juízes federais exclusivamente funções de substituição

e, ainda, a de auxílio a juízes titulares de varas. Essa mesma emenda criou, ainda, o

Conselho Nacional de Justiça, órgão disciplinar integrante do Poder Judiciário. A esse

órgão, composto por sete ministros escolhidos pelo Supremo Tribunal Federal, cabia o

conhecimento de reclamações contra membros de Tribunais, podendo avocar processos

disciplinares contra juízes de primeira instância, e determinar a disponibilidade ou

aposentadoria de magistrados, com vencimentos proporcionais ao tempo de serviço.

Tratava-se do embrião do atual Conselho Nacional de Justiça, que será abordado mais

adiante (MARTINS FILHO, 1999).

Na Assembleia Nacional Constituinte de 1987/1988 a possibilidade de extinguir a

Justiça Federal chegou a ser alvo de debates, pois havia um grupo que a denominava

“cria da ditadura”, identificando-a com o Movimento de 1964. O risco de sua nova

eliminação do Sistema Judiciário brasileiro exigia a realização de mudanças em sua

estrutura e funcionamento (DARÓS, 2007).

Diante disso, três fatos modificaram profundamente a Justiça Federal e lhe deram

uma nova face, consolidando-a e expandindo sua atuação: a interiorização; a

descentralização (com a criação dos Tribunais Regionais Federais) e a criação dos

Juizados Especiais Federais (DARÓS, 2007).

A interiorização permitiu a aproximação da Justiça Federal de primeiro grau com

o jurisdicionado, além de contribuir para uma distribuição mais racional do serviço

Judiciário, ou seja, tornando-a menos onerosa, prestigiando as comunidades em que tem

sido instalada, e facilitando o acesso à jurisdição. Este movimento calou as vozes que

pretendiam a extinção da Justiça Federal, e a Constituição de 1988 permitiu a sua

manutenção no Sistema Judiciário brasileiro, alterando sua estrutura e ampliando suas

competências (SOUZA, 2010).

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No que se refere à descentralização, criou-se o Superior Tribunal de Justiça, que

passou a exercer a competência do Supremo Tribunal Federal em relação ao contencioso

de direito federal comum, ou seja, passou a ter a responsabilidade pela integridade, pela

autoridade e pela uniformidade de interpretação do direito federal. Além disso, pela

nova disposição constitucional, os tribunais e juízes do trabalho, eleitorais e militares

foram prestigiados; os tribunais e juízes dos Estados e do Distrito Federal e Territórios

continuaram integrados como órgãos do Poder Judiciário nacional. Já a Justiça Federal

foi substancialmente alterada na sua estrutura, tendo sido criados os Tribunais Regionais

Federais em substituição ao Tribunal Federal de Recursos, mantendo a Justiça Federal

de primeiro grau. A criação dos Tribunais Regionais Federais trouxe melhorias ao

funcionamento da Justiça Federal de segundo grau, agilizando os julgamentos,

facilitando o acesso dos jurisdicionados e tornando-a menos onerosa.

Por fim, a criação dos Juizados Especiais Federais, autorizada pela Emenda

Constitucional nº 22, de 18/03/1999, foi o marco decisivo para a consolidação da Justiça

Federal no Brasil, servindo para o resgate da cidadania do povo brasileiro. Suas regras

de funcionamento representam uma nova sistemática e um avanço em direção ao

atendimento à demanda por uma justiça gratuita, ágil e efetiva, dando-se pleno acesso

ao jurisdicionado. Sua criação, portanto, trouxe maior celeridade e efetividade ao

processo, sem custos ou a custo muito baixo (DARÓS, 2007). 47

A intenção da próxima seção é oferecer um panorama geral da estrutura e

organização do Judiciário, fornecendo informações suficientes para a compreensão das

divisões, competências e principais atores que serão referenciados nos capítulos de

análise dos dados de campo. Vale lembrar que a pesquisa de campo se deu nos seguintes

órgãos do Judiciário Federal de ALFA e BETA: Justiça Federal, Tribunal Regional

Eleitoral e Tribunal Regional do Trabalho.

6.2 A ESTRUTURA DO PODER JUDICIÁRIO BRASILEIRO

Como resultado das transformações sofridas ao longo de sua história, atualmente,

a estrutura do Poder Judiciário no Brasil pode ser representada pela Figura 2 a seguir:

47

Caracterizam-se por terem recursos restritos e examinados por Turma Recursal, composta por juízes

de primeiro grau, que tem o poder de confirmar a sentença por seus próprios fundamentos, sem

reexame. Dá-se prioridade à conciliação, não se oferece prazos diferenciados e privilegiados, trata-se

as partes com isonomia e a sentença caracteriza-se por ser líquida. Finalmente, o cumprimento da

sentença dá-se com trânsito em julgado ou a partir de acordo celebrado que ocorre em prazo mais

célere, de sessenta dias. Neste prazo, o autor estará com o valor da condenação à sua disposição.

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Figura 2 - Estrutura do Poder Judiciário brasileiro

Fonte: elaboração própria.

Como pode ser apreciado no organograma da Figura 2, o Sistema Judiciário no

Brasil possui diversas divisões, como Justiça Comum, Justiças Especializadas, primeira

e segunda instâncias, tribunais superiores e juizados especiais. Não obstante, deve-se

destacar que a existência de âmbitos estaduais, federal e do Distrito Federal não implica

em dualidade de jurisdição, pois o Poder Judiciário, sendo de âmbito nacional, é todo

regido pela Constituição Federal.

Compõem a Justiça comum:

- A Justiça Estadual (Civil e Penal),48 que tem como objetivo a busca pela solução de

conflitos entre pessoas, empresas e instituições, impondo penas aos que cometerem

algum crime;

- A Justiça Federal, que julga os casos de interesse da União, das autarquias e das

empresas públicas.

As competências da Justiça Federal estão elencadas na Constituição Federal de

1988, cabendo à Justiça Estadual a competência residual, o que, no entanto, representa a

maior parte dos litígios cotidianos.

48

Representada pelo Tribunal de Justiça e Juízes de Direito na Figura 2.

Justiça comum Justiças especializadas

Supremo Tribunal Federal

Superior

Tribunal Militar Tribunal Superior

Eleitoral

Tribunal Superior

do Trabalho

Superior Tribunal

de Justiça

Tribunal de

Justiça

Tribunal

Regional

Federal

Tribunal

Regional do

Trabalho

Tribunal

Regional

Eleitoral

Juízes Militares Juízes Eleitorais Juízes do

Trabalho

Juízes

Federais

Juízes de

Direito

2ª Instância

1ª Instância

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Já a Justiça dita especializada é composta por:

- Justiça do Trabalho, a quem cabe resolver conflitos entre trabalhadores e

empregadores, abordar lides envolvendo as relações de trabalho em geral;

- Justiça Eleitoral, cujo propósito é organizar e garantir a lisura do processo

eleitoral; e

- Justiça Militar, que busca processar e julgar os crimes militares definidos em lei.

No que diz respeito às instâncias do Judiciário, pode-se dizer que:

- A primeira instância do Judiciário é composta por juízes (estaduais, federais,

trabalhistas, eleitorais e militares), conhecidos como órgãos da Justiça em primeiro

grau. Via de regra, é nos chamados Juízos de primeira instância, que se originam, as

ações judiciais. Destaque-se que o Juízo de primeira instância ou de primeiro grau é, em

geral, monocrático. A exceção é a Justiça Militar que possui uma estrutura coletiva.

Sendo a Justiça Militar sui generis, não será abordada mais profundamente, tendo em

vista não ser o escopo desta pesquisa.

- A segunda instância do Judiciário é composta por juízes denominados

desembargadores, que foram indicados e aprovados para esta função por antiguidade ou

merecimento, compondo estruturas colegiadas, ora denominadas câmaras (Justiça

Estadual comum) ora denominadas turmas (Justiça Federal comum e Justiça do

Trabalho). Em determinados assuntos todos os desembargadores votam no tribunal

pleno, conforme o artigo 93, XI da Constituição Federal.

Uma diferença entre a segunda instância da Justiça Estadual comum e a federal é

que os Tribunais de Justiça estaduais têm competência no âmbito da unidade federativa

em que se encontram, enquanto os Tribunais Regionais Federais abrangem diversas

unidades, conforme a Resolução n° 1/88 do antigo Tribunal Federal de Recursos. Assim,

existem 27 Tribunais de Justiça e cinco Tribunais Regionais Federais.

Em ambos os casos é aplicada a regra do chamado Quinto Constitucional,

devendo 1/5 dos membros dos tribunais corresponder a advogados com mais de 10 anos

de efetiva atividade profissional e membros do Ministério Público com mais de 10 anos

de carreira, conforme artigo 94 da Constituição Federal.

A Justiça Eleitoral é a única especializada que não possui um corpo de

magistrados próprios, sendo estes escolhidos a partir de outros órgãos do Judiciário,

respeitada a instância e com mandato fixo para “preservar a imparcialidade do

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Judiciário e afastar possibilidade de ingerências políticas nos Tribunais eleitorais”

(MORAES, 2005, p. 519, apud HADDAD et al., 2012).

Ainda outras informações são dignas de registro.

A Justiça do Trabalho, a partir da Emenda Constitucional n° 45/2004, estruturou a

sua organização nos moldes atuais, sendo análoga à Justiça Federal comum, e

sacramentando a sua competência em razão da matéria (artigo 114 da Constituição

Federal).

As Justiças especializadas têm cada uma seus órgãos superiores, a saber: Tribunal

Superior do Trabalho, Tribunal Superior Eleitoral e Superior Tribunal Militar. Destes

somente são cabíveis recursos nos limites estabelecidos pela Constituição ao Supremo

Tribunal Federal.

A justiça comum, tanto estadual quanto federal, possui como instância máxima o

Superior Tribunal de Justiça, ao qual os recursos também são restringidos. O STJ está

unicamente abaixo do STF, não se tratando, entretanto, de um tribunal de superposição.

Sua função precípua é guardar a autoridade do direito federal comum

infraconstitucional (HADDAD et al., 2012, p. 72). Seus membros são escolhidos

conforme o estipulado pelo artigo 104 da Constituição Federal, tendo a característica de

ser composto pela regra do terço constitucional: 1/3 da magistratura comum estadual,

1/3 da magistratura comum federal e 1/3 da advocacia e do Ministério Público.

O Supremo Tribunal Federal é o cume da estrutura do Judiciário nacional. Tem

como função guardar a Constituição, com jurisdição sobre todo o território nacional. A

escolha de seus membros é regida pelo artigo 101 da Constituição Federal, não havendo

em seu caso específico qualquer vínculo obrigatório com origem da magistratura ou do

Ministério Público, nem com quinto constitucional.

6.3 CARACTERIZAÇÃO DA ORGANIZAÇÃO

A forma de o Estado ditar o direito e fazer a justiça ocorre por intermédio da

tarefa de julgar. Este ato é atribuído ao Poder Judiciário, responsável por trazer a paz ao

conflito.

Portanto, pode-se dizer que a atividade-fim do Judiciário é a atividade

jurisdicional, ou seja, a prestação de serviços ao cliente externo. Entretanto, a sua

prestação exige a execução de uma série de atividades administrativas de suporte, que

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compreendem, por exemplo, a atividade ligada à direção do foro, exercida por um juiz e

a vice-diretoria por outro juiz.

Assim como ocorre na Justiça Trabalhista e Federal, a Justiça Eleitoral possui

atribuições administrativas que extrapolam a sua função jurisdicional, de resolução de

conflitos. Além das atividades administrativas que viabilizem a regularidade do

processo eleitoral, a Justiça Eleitoral goza da particularidade de ser dotada de uma

função executiva. Diferentemente das atividades-fim dos outros órgãos do Judiciário

brasileiro, que é julgar ou exercer jurisdição, a da Justiça Eleitoral é realizar as eleições.

Portanto, na Justiça Eleitoral existem duas frentes de trabalho na função administrativa:

a administração do próprio órgão judicial, necessária para o desempenho da função

jurisdicional, que seria a principal, e a de realizar as eleições, que seria uma

incumbência administrativa da Justiça Eleitoral. A primeira frente envolveria, por

exemplo, atividades referentes a recursos humanos, ao passo que a segunda teria como

objetivo primordial a realização de eleições, baseando-se na criação de zonas eleitorais,

convocação de mesários, registro e fiscalização de partidos, comando da eleição, entre

outras atividades. Tudo isso caracterizaria um conjunto de ações que em vez de serem

voltadas para os próprios interesses, seriam dedicadas a satisfazer “uma necessidade

própria do povo e não do órgão judicial, qual seja, a seleção dos mandatários do povo”

(CONEGLIAN, 2003, p. 117).

São raros os trabalhos que se dedicam a esmiuçar a estrutura dos diversos órgãos

do Judiciário. Uma das poucas pesquisas encontradas que se dedicou a tecer breves

linhas sobre o funcionamento da Justiça Federal do Ceará (JFCE) foi a de Ferro (2008).

Como na presente pesquisa de tese prima-se pela confidencialidade relativa à identidade

dos servidores entrevistados, dos tribunais e dos sindicatos envolvidos. Aproveitar-se-á

a descrição da estrutura da JFCE oferecida por Marcus (2008), tomando por base a não

existência de diferenças tão significativas nas estruturas da Justiça Federal no país.

6.4 ÁREA ADMINISTRATIVA

A área administrativa da Justiça Federal é presidida pelo juiz federal diretor do

foro, que, por sua vez, nomeia o diretor da Secretaria Administrativa que pode ou não

pertencer ao quadro de servidores. Abaixo dela existem diversos núcleos como o de

Administração Financeira, Recursos Humanos, Tecnologia da Informação, coordenados

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por seus respectivos diretores de núcleos. Cada núcleo abriga seções compostas por

supervisores e servidores.

Situação semelhante ocorre na Justiça Trabalhista e Eleitoral. Decidiu-se,

portanto, não precisar as diferenças eventualmente existentes, tendo em vista que elas

não se refletem nas análises realizadas nesta tese.

6.5 ÁREA JUDICIÁRIA

No que se refere à área judiciária, assim como na administrativa, existem

semelhanças amplas na estrutura da Justiça Federal e do Trabalho, com diferenças

restritas praticamente à nomenclatura adotada. Portanto, tratar-se-á este tema usando a

nomenclatura genérica no que tange a funções e competências.

A área judiciária, responsável pela atividade-fim do Judiciário é composta por

varas judiciais. Para a maioria dos processos, a vara é a primeira instância de

julgamento, ou seja, é lá que se originam os processos e onde são proferidas as decisões,

denominadas sentenças. Uma vez que qualquer uma das partes não se conforme com a

decisão, é cabível a interposição de recurso a estas sentenças. Nesses casos elas são

remetidas aos tribunais (segunda instância),49 para serem julgadas pela turma (grupo de

juízes-desembargadores), que decidem pela sua reformulação ou confirmação em

decisões denominadas acórdãos.50 Uma vez que não haja mais recursos, ou que tenham

sido julgados, inicia-se a fase de execução, na vara de origem, para a quitação dos

débitos ou obrigações de fazer decorrentes da decisão.

Em geral as varas, administrativamente subordinadas ao tribunal, ficam sob a

responsabilidade de dois juízes: um juiz substituto e um juiz federal titular (de carreira)

que toma predominantemente decisões judiciais e, complementarmente, decisões

administrativas que dizem respeito à sua secretaria, gabinete e servidores a ele

subordinados. Além disso, elas são compostas também de um diretor de secretaria

(indicado pelo juiz titular) e ainda por outros funcionários.

Aqui cabe um parênteses, destacando que na Justiça do Trabalho ainda não se

alcançou a meta de dois juízes por vara, sendo os substitutos usados para cobrir

49

Com algumas pequenas exceções, que dispensam aprofundamento aqui, mas que podem ser vistas

nos artigos 109, IV, primeira parte da CRFB\ e 102, II, b, CRFB). Ademais merece registro também

que sua competência não é só recursal. 50

Em casos previstos em lei, é possível ainda recorrer-se desta decisão prolatada na segunda instância,

sendo julgada nos Tribunais Superiores.

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eventuais férias, ausências e licenças dos titulares, ou em auxílios determinados pela

Corregedoria Regional. Em qualquer caso, são situações temporárias, estando os

magistrados substitutos vinculados somente aos processos que instruíram e onde

proferiram sentenças.

Finalmente, merece registro que, em alguns Estados da federação, os prédios dos

tribunais (que se encontram nas capitais) abrigam uma ou mais varas, ou seja, primeira

instância. Como será alvo de aprofundamento nesta tese, não raro as varas apresentam,

entre si, graus distintos de eficiência e eficácia na execução dos serviços, ainda que

estejam situadas numa mesma localidade.

Para o bom exercício da jurisdição, os juízes necessitam dispor de uma equipe de

auxiliares que se distribuem no gabinete e na secretaria:

- O gabinete do juiz é o local, onde os assessores dos juízes ajudam a examinar os

processos desde o seu início, ou seja, desde a peça escrita denominada pedido, passando

pelas perícias realizadas, documentos juntados como provas e depoimentos colhidos,

permitindo que o juiz julgue o processo;

- A secretaria é o local que, além de guardar e organizar os autos (que gradativamente

têm se transformado dos meios físicos para eletrônicos) permite o cumprimento das

determinações do juiz e daquilo que é determinado no processo. Cada vara possui uma

secretaria e é o seu diretor de secretaria (ou seja, seu chefe) que zela pelo cumprimento

das ordens emanadas das autoridades superiores. Fernandes (2009) recorda que muitas

funções hoje desempenhadas pelos oficiais de justiça, técnicos, auxiliares e analistas,

eram antigamente executadas pelo próprio juiz: ele recebia todos os documentos,

examinava-os e julgava. Com o passar do tempo, esta centralização na figura do juiz

passou a inviabilizar a prestação do serviço judicial com qualidade, exigindo que ele se

cercasse de pessoas preparadas para executar aquele trabalho. Esta foi a origem das

secretarias.

Destaque-se que no que tange à Justiça do Trabalho, verificou-se que, nas

localidades objeto desta pesquisa, por uma questão de espaço físico ou opção

administrativa, os gabinetes dos juízes não possuem estrutura ampla e apartada como os

da Justiça Federal. Eles se restringem às salas onde os magistrados têm seu local de

trabalho, sem a presença de outros servidores. Entretanto, as demais funções, conforme

descritas acima, permanecem independentemente da questão espacial.

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Na segunda instância, a estrutura se repete, há, neste caso, uma coincidência entre

a Justiça do Trabalho e a Justiça Federal. Entretanto, por já ser um órgão colegiado,

dentro de cada turma, o magistrado tem seu gabinete e secretaria próprios, independente

dos demais colegas. Situação semelhante ocorre na Justiça Eleitoral.

6.6 A CRISE E A REFORMA DO PODER JUDICIÁRIO

As críticas ao funcionamento das instituições responsáveis pela garantia da justiça

no Brasil acompanham a história dessas organizações no país (SADEK, 2004). Sadek

(2004) mostra que, se desde o período colonial a inoperância do modelo do Judiciário

adotado era alvo de críticas, elas só fizeram aumentar com a demanda crescente de

justiça. Estas eram decorrência natural do aumento da taxa de industrialização e

urbanização, que levavam a um maior número de tipos de conflito, com uma

probabilidade mais ampla de conversão de litígios em demanda por serviços do Sistema

Judiciário, a qual as instituições responderam de maneira refratária.

Logo, a insatisfação vis-à-vis a prestação jurisdicional provém, em grande

medida, de sua incapacidade de responder à quantidade crescente de demandas

(SADEK, 2004).

A despeito dos avanços alcançados a partir da promulgação da Constituição de

1988 no que se refere à racionalização de procedimentos, a estrutura judicial

responsável pelo tratamento das demandas caracteriza-se pela sua morosidade e por

problemas de gestão, com consequências na aplicação da própria justiça em

atendimento às garantias constitucionais individuais, impedindo a oferta de soluções em

um prazo razoável, previsível ou a um custo acessível aos cidadãos brasileiros.

Este contexto é considerado uma das principais origens do que foi nomeado

“Crise do Sistema Judiciário”, que levou o Poder Judiciário, ao longo dos anos 1990, a

começar a considerar mais seriamente a execução de uma reforma em sua gestão.

Depois de mais de uma década de discussões no Congresso Nacional, o debate

sobre a concretização do princípio da proteção judicial efetiva em atendimento à

demanda de acesso a uma justiça célere e eficiente, resultou na aprovação em

17/11/2004 e promulgação em 8/12/2004 da Emenda Constitucional n° 45, mais

conhecida como a “Reforma do Poder Judiciário”.

No contexto desta Reforma, foi incluído o inciso LXXVII, no artigo 5º, da

Constituição de 1988, com base no qual: “a todos, no âmbito judicial e administrativo,

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são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade

de sua tramitação”. Para alcançar esse fim, portanto, pregou-se a busca pela melhoria da

gestão administrativa, com a diminuição de custos e a maximização da eficácia dos

recursos.

A política de tentativa de modernização do Poder Judiciário pretendendo torná-lo

mais eficaz, com fundamentos de eficácia e produtividade inspirados em empresas

privadas, pode ser contextualizada nas sequenciais reformas da administração pública

de governos de países desenvolvidos, na direção de uma Nova Gestão Pública.

Esta ideologia domina progressivamente o setor público, sob palavras como

desburocratização, modernização da gestão pública, e por meio da adoção de técnicas de

gestão consagradas no setor privado. Os próprios termos usados para justificar a

imposição de mudanças corroboram o contexto mencionado.

Entretanto, ainda que todas as mudanças sejam consideradas positivas e

absolutamente necessárias para garantir um melhor funcionamento do Poder Judiciário,

elas apresentam um custo. Sua identificação e sua análise serão feitas ao longo das

próximas seções, nos capítulos 7 e 8.

6.7 A CRIAÇÃO DO CONSELHO NACIONAL DA JUSTIÇA (CNJ)

No que se refere a esta tese, parece importante insistir sobre uma das recentes

mudanças na estrutura do Poder Judiciário, resultante de uma das mais importantes

inovações trazidas pela Emenda Constitucional nº 45/2004, no contexto da Reforma

mencionada anteriormente: a criação do Conselho Nacional de Justiça.

O artigo 5º, inciso LXXVIII, serviu de fundamento para a criação do Conselho

Nacional de Justiça, como organização constitutiva da estrutura do Poder Judiciário.

Efetivamente instalado em junho de 2005, em Brasília, e composto por representantes

da Magistratura, do Ministério Público, da advocacia e da sociedade civil, o CNJ está

encarregado de realizar a supervisão da atuação administrativa e financeira do

Judiciário. Deve-se recordar que esta ideia remonta à década de 1970, quando houve a

primeira tentativa de estabelecimento de um órgão análogo, embora com competência

mais restrita, conforme apontado em seção anterior.

A criação deste órgão de controle externo, como é conhecido o CNJ, não objetiva

aumentar a autonomia e independência da magistratura ou impedir a ingerência de

outros Poderes no Poder Judiciário. Seu fim é permitir a integração e coordenação dos

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diversos órgãos jurisdicionais do país por intermédio de um organismo central com

atribuições de controle e fiscalização de natureza administrativa, financeira e

correicional, com fulcro no disposto no artigo 103-B, § 4º (CRFB/88).

Diante do fato de que no Brasil, tanto a autonomia quanto a independência do

Poder Judiciário (assim como dos demais Poderes da União) estarem asseguradas

plenamente desde a Constituição de 1988, a criação do Conselho Nacional de Justiça

procurou estabelecer mecanismos de controle, organização, coordenação e planejamento

eficazes da atividade administrativa dos diversos órgãos jurisdicionais.

Lenza (2011 sublinha que “por estarem as atribuições do CNJ restritas ao

controle da atuação administrativa, financeira e disciplinar dos órgãos do Poder

Judiciário a ele sujeitos, pode-se afirmar ser o CNJ um órgão meramente administrativo

(do Judiciário), não permitindo que o mesmo exerça fiscalização da atividade

jurisdicional dos magistrados e Tribunais”. Ele visa suprir as necessidades dos diversos

órgãos que compõem o Poder Judiciário brasileiro, tendo sempre como premissa que

são os primeiros responsáveis por seus atos e objetivos, atuando, portanto, somente ao

se constatar a incapacidade clara desses de cumprirem suas tarefas precípuas.

O Conselho Nacional de Justiça, assim, busca atrair para si as tarefas de

modernização e combate às deficiências da administração do Judiciário, muitas das

quais decorrentes de visões e práticas fragmentárias, que não se coordenavam ou

comunicavam entre si. Ao contribuir para a eficácia do trabalho jurisdicional, diz-se que

o CNJ está garantindo os princípios do artigo 37 da Constituição Federal, a saber:

legalidade, impessoalidade, moralidade, transparência e eficácia.

Conforme informações constantes na página da internet deste órgão,51 o seu

trabalho compreende, de forma mais detalhada:

- O planejamento estratégico e proposição de políticas do Judiciário;

- A modernização tecnológica do aparelho Judiciário;

- O aumento do acesso à justiça, à pacificação e à responsabilidade social;

- A garantia do respeito efetivo às liberdades públicas e execuções penais.

O CNJ se propõe, desde a sua criação, a estabelecer objetivos nacionais que

incluem: implementação de sistemas de gestão de projetos nos tribunais, modernização

dos sistemas informáticos, aceleração de procedimentos de julgamento. No que se refere

à implementação de um novo sistema informático e administrativo, é considerado como

51

CNJ. Sítio do órgão. Disponível em: <http://www.cnj.jus.br>. Acesso em: 11/08/2011.

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uma reengenharia na estrutura e modo de funcionamento dos tribunais. Trata-se,

portanto, de uma transição, cujas consequências serão exploradas na seção referente à

pressão por resultados, no Capítulo 7.

6.8 AS METAS ESTABELECIDAS PELO CNJ

Baseando-se na tendência de “desenvolvimento de sistemas de mensuração de

desempenho”, o CNJ passou, a partir de 2006, a reunir informações estatísticas ligadas a

indicadores de desempenho das organizações judiciárias (entre elas insumos, dotações

orçamentárias, litigiosidade e acesso à justiça).

Em sua página da internet este órgão passou a divulgar o relatório “Justiça em

números”, que reúne diversos resultados de desempenho das organizações judiciárias.

Mas, recentemente, outra abordagem de mensuração passou a ser usada e o CNJ lançou

então proposta de indicadores do planejamento estratégico do Sistema Judiciário.

No ano de 2009 foram estabelecidas as primeiras 10 metas de nivelamento do

Judiciário brasileiro (envolvendo todas as suas esferas), para proporcionar maior

agilidade e eficiência à tramitação dos processos, melhorar a qualidade do serviço

jurisdicional prestado e ampliar o acesso do cidadão brasileiro à justiça. Objetivando

atender o direito do cidadão à duração razoável do processo na Justiça, foi criada a Meta

2 daquele ano, que determinava que os tribunais identificassem e julgassem os

processos judiciais mais antigos, distribuídos aos magistrados até 31/12/2005.

No ano seguinte, 2010, as metas definidas priorizavam ainda a agilidade e a

eficiência da justiça e a Meta 2 passou a incluir, por exemplo, o ano de 2006.

A Tabela 2 resume as metas estabelecidas pelo CNJ até 2011.

Tabela 2 - Metas do CNJ 2009-2011

2009 2010 2011

Meta 1. Desenvolver e/ou alinhar

planejamento estratégico

plurianual (mínimo de 5 anos)

aos objetivos estratégicos do

Poder Judiciário, com aprovação

no Tribunal Pleno ou Órgão

Especial.

Meta 1. Julgar quantidade igual

à de processos de conhecimento

distribuídos em 2010 e parcela

do estoque, com

acompanhamento mensal;

Meta 1. Criar unidade de

gerenciamento de projetos para

auxiliar a implantação da gestão

estratégica.

Meta 2. Identificar os processos

judiciais mais antigos e adotar

medidas concretas para o

julgamento de todos os

distribuídos até 31/12/2005 (em

Meta 2. Julgar todos os

processos de conhecimento

distribuídos (em 1º grau, 2º grau

e tribunais superiores) até

31/12/2006 e, quanto aos

Meta 2. Implantar sistema de

registro audiovisual de audiências

em pelo menos uma unidade

judiciária de primeiro grau em

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1º, 2º grau ou tribunais

superiores).

processos trabalhistas,

eleitorais, militares e da

competência do tribunal do Júri,

até 31 de dezembro de 2007;

cada tribunal.

Meta 3. Informatizar todas as

unidades judiciárias e interligá-

las ao respectivo tribunal e à rede

mundial de computadores

(internet).

Meta 3. Reduzir em pelo menos

10% o acervo de processos na

fase de cumprimento ou de

execução e, em 20%, o acervo

de execuções fiscais (referência:

acervo em 31/12/2009);

Meta 3. Julgar quantidade igual a

de processos de conhecimento

distribuídos em 2011 e parcela do

estoque, com acompanhamento

mensal.

Meta 4. Informatizar e

automatizar a distribuição de

todos os processos e recursos.

Meta 4. Lavrar e publicar todos

os acórdãos em até 10 dias após

a sessão de julgamento;

Meta 4. Implantar pelo menos um

programa de esclarecimento ao

público sobre as funções,

atividades e órgãos do Poder

Judiciário em escolas ou

quaisquer espaços públicos.

Meta 5. Implantar sistema de

gestão eletrônica da execução

penal e mecanismo de

acompanhamento eletrônico das

prisões provisórias.

Meta 5. Implantar método de

gerenciamento de rotinas

(gestão de processos de

trabalho) em pelo menos 50%

das unidades judiciárias de 1º

grau;

Meta 5. Criar um núcleo de apoio

de execução (referente à Justiça

trabalhista)

Meta 6. Capacitar o

administrador de cada unidade

judiciária em gestão de pessoas e

de processos de trabalho, para

imediata implantação de métodos

de gerenciamento de rotinas.

Meta 6. Reduzir a pelo menos

2% o consumo per capita com

energia, telefone, papel, água e

combustível (ano de referência:

2009);

Meta 6. Disponibilizar nos sites

dos Tribunais Regionais Eleitorais

(TREs) até dezembro de 2011 o

sistema de planejamento

integrado das eleições. (referente

à Justiça Eleitoral)

Meta 7. Tornar acessíveis as

informações processuais nos

portais da rede mundial de

computadores (internet), com

andamento atualizado e conteúdo

das decisões de todos os

processos, respeitado o segredo

de justiça.

Meta 7. Disponibilizar

mensalmente a produtividade

dos magistrados no portal do

tribunal;

Meta 7. Implantar e divulgar a

“carta de serviços” da Justiça

Eleitoral em 100% das unidades

judiciárias de primeiro grau

(Zonas Eleitorais) em 2011

(referente à Justiça Eleitoral)

Meta 8. Cadastrar todos os

magistrados como usuários dos

sistemas eletrônicos de acesso a

informações sobre pessoas e bens

e de comunicação de ordens

judiciais (Bacenjud, Infojud,

Renajud).

Meta 8. Promover cursos de

capacitação em administração

judiciária, com no mínimo 40

horas, para 50% dos

magistrados;

Meta 8. Implantar a gestão de

processos em pelo menos 50%

das rotinas administrativas,

visando a implementação do

processo administrativo

eletrônico.

Meta 9. Implantar núcleo de

controle interno.

Meta 9. Ampliar para 2 Mbps a

velocidade dos links entre o

Tribunal e 100% das unidades

judiciárias instaladas na capital

e, no mínimo, 20% das unidades

do interior;

Meta 9. Implantar processo

eletrônico judicial e

administrativo em 70% das

unidades de primeiro e segundo

grau até dezembro de 2011.

Meta 10. Implantar o processo

eletrônico em parcela de suas

Meta 10. realizar, por meio

eletrônico, 90% das

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unidades judiciárias comunicações oficiais entre os

órgãos do Poder Judiciário.

Fonte: http://www.cnj.jus.br. Acesso em 10/01/2012.

O estágio de execução das metas constam dos relatórios anualmente emitidos,

vistos como uma radiografia do Poder Judiciário. É a partir desta radiografia que se

detectam as possíveis deficiências e são estabelecidas novas metas que objetivam

solucionar os problemas verificados. O relatório final com a apresentação das metas de

2009, por exemplo, permitiu observar que todas as metas de 2009 foram alcançadas

com resultado próximo a 100%, à exceção da Meta 2, que media em números com

vistas à celeridade processual (JÚNIOR, 2010). O mesmo documento elencava como

dificuldade para alcançar a Meta 2: a carência de peritos, servidores e juízes, e excesso

de processos recebidos com a ampliação da competências depois da Emenda

Constitucional nº 45/2004.

O destaque das metas de 2010, por outro lado, refere-se à atenção dada ao preparo

considerado necessário, da administração judiciária. Tessler (2010) defende que isso é

fruto do não aceite da “gestão denominada patrimonial ou regaliana, estando superada a

administração burocrática” e encontrando-se o CNJ e as altas administrações sensíveis à

“necessidade de qualificar para uma administração gerencial”.

Embora a criação do CNJ e o estabelecimento das metas tenha trazido ganhos para

o trabalho do Judiciário (ver referência), merece atenção a forma como elas vêm sendo

cobradas e os meios que estão sendo oferecidos para a sua realização. A fiscalização dos

números produzidos pelos tribunais e pelos juízes de primeiro grau tem produzido

estatísticas que podem ser acompanhados mensalmente na página do CNJ ou nas

páginas da internet dos próprios órgãos do Judiciário (MELO, 2012). As consequências

deste fato específico podem ser acompanhadas no capítulo a seguir.

6.9 OS PRINCIPAIS ATORES E INSTRUMENTOS MENCIONADOS AO LONGO

DA PESQUISA

A não familiarização com o universo do Sistema Judiciário tornou obrigatório o

entendimento mais aprofundado sobre os principais atores, instrumentos e carreiras

básicas do quadro da Justiça Federal, TRT e TRE. Antes de passar para a análise de

dados, no próximo capítulo, algumas seções serão dedicadas a apresentar estas

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informações de forma didática, tendo em vista que elas figuram nos capítulos dedicados

à análise dos dados coletados em campo.

- O jurisdicionado: é o cliente da prestação jurisdicional, que engloba a população

atendida pelo Judiciário. Ele espera uma solução para o conflito que leva ao

conhecimento do Poder Judiciário (MELO, 2012).

- O servidor público: é aquele que presta serviços para o Estado e para as pessoas

jurídicas da Administração Indireta (DI PIETRO, 2007). São os agentes contratados via

concurso público, que encontram-se submetidos a leis e direitos estabelecidos na

CRFB/88 (MORAES, 2005). Eles possuem estabilidade de emprego tal que só podem

ser demitidos mediante processo administrativo ou judicial.

- O juiz: dentre os chamados “operadores do Direito”,52 os juízes desempenham papel

relevante de proferir a palavra final acerca das controvérsias, litígios, delitos e direitos.

Seu ingresso na carreira de juiz, com cargo inicial de juiz substituto, ocorre via concurso

público de provas e títulos, com o mínimo de três anos de atividade jurídica

comprovada, conforme disposto no artigo 93, inciso I da CRFB.

Neste mesmo artigo, em seu inciso II, alínea c, identifica-se os critérios de sua

promoção:

[...]

c) aferição do merecimento conforme o desempenho e pelos critérios

objetivos de produtividade e presteza no exercício da jurisdição e pela

frequência e aproveitamento em cursos oficiais ou reconhecidos de

aperfeiçoamento.

Os juízes são tidos como agentes políticos ou funcionário públicos que gozam de

condições especiais, com responsabilidades diferenciadas. A eles são asseguradas

algumas garantias previstas na CRFB/88, como a vitaliciedade (estando sujeitos a

aposentadoria compulsória aos setenta anos), inamovibilidade (ou seja, só podem ser

removidos por iniciativa própria, à exceção de alguns casos previstos na CRFB artigos

93, VII; 95, II; 103B, § 4º, III)53 e a irredutibilidade de subsídio. Sua ascensão para

níveis mais altos da carreira dependem de nomeação do presidente da República

(BALARDIN, 2011).

52

Nomenclatura que envolve, dentre outros, advogados, promotores e juízes. 53

A justificativa para isso é a necessária garantia de imparcialidade e independência.

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A justificativa para a inamovibilidade é necessidade de garantir a imparcialidade e

independência do juiz, impedindo que ele se encontre em posição frágil frente a

pressões políticas ou de outra natureza (BALARDIN, 2011).

No que se refere às principais carreiras do Judiciário, pode-se dizer que, até 1988,

o ingresso nos órgãos que o compõem era feita via concurso público para os cargos de

Auxiliar ou Atendente Judiciário (atualmente denominados Técnicos Judiciários), e

estes últimos, à proporção que se capacitavam para executar serviços de natureza mais

complexa, chegavam ao cargo de técnico judiciário (atualmente denominado analista

judiciário), via concurso interno. A partir de 1988, passou-se a exigir a realização de

concurso público para o preenchimento do cargo de analista judiciário (antigo técnico

judiciário), extinguindo a possibilidade de ascensão para este cargo via concurso

interno.

Dentre as funções ligadas à atividade-fim dos tribunais destacam-se hoje o

analista judiciário – área judiciária (cuja exigência é graduação em direito) e técnico

judiciário (segundo grau completo). Suas atribuições precípuas envolvem:

6.9.1 Analista Judiciário – Área judiciária

Planejamento; organização; coordenação; supervisão técnica; assessoramento;

estudo; pesquisa; elaboração de laudos, pareceres ou informações e execução de tarefas

de elevado grau de complexidade compreendendo as atividades relacionadas ao

processamento de feitos; apoio a julgamentos; análise e pesquisa de legislação, de

doutrina e de jurisprudência nos vários ramos do direito; estudo e pesquisa do Sistema

Judiciário brasileiro; organização e funcionamento dos ofícios judiciais; prestar

atendimento ao público; executar e conferir redação de documentos; conferir

expedientes diversos; executar outras tarefas da mesma natureza e grau de

complexidade.

Dentro do grupo dos chamados analistas Judiciários, existe a função pública dos

que se dedicam à execução de mandados. Chamados de oficiais de justiça, cabe a estes

servidores, que obrigatoriamente são bacharéis em direito, realizar atos de comunicação

processual, ordenados pelos juízes. Destaca-se, de acordo com o artigo 143 do Código

de Processo Civil a seguinte função própria ao oficial de justiça:

I - fazer pessoalmente as citações, prisões, penhoras, arrestos e mais

diligências próprias do seu ofício, certificando no mandado o ocorrido, com

menção de lugar, dia e hora. A diligência, sempre que possível, realizar-se-á

na presença de duas testemunhas.

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6.9.2 Técnico Judiciário

Tarefas de suporte técnico e administrativo relacionadas à execução de tarefas de

apoio à atividade judiciária; de suporte técnico e administrativo às unidades

organizacionais; prestar informações às demais unidades do Tribunal e ao público sobre

as questões relacionadas a sua área de trabalho; arquivar documentos em geral;

organizar, atualizar e manusear arquivos de processos e documentos, fichários e livro de

controle; proceder ao recebimento, conferência, encaminhamento e arquivamento de

processos, documentos e material permanentes ao seu setor de trabalho; classificar e

autuar processos; executar trabalhos de redação, revisando-os; elaborar boletins,

relatórios, ofícios, declarações e certidões; auxiliar no controle do material permanente

e de consumo utilizados no setor; realizar estudos, pesquisas preliminares, bem como

rotinas administrativas concernentes aos campos de pessoal, material e financeiro;

executar outras tarefas da mesma natureza e grau de complexidade.

Nos capítulos que se dedicam à análise dos dados obtidos em campo, de maneira

geral não houve a necessidade de identificar se os trechos destacados de depoimentos

originavam-se de sujeitos com cargo de técnico ou analista do Judiciário. Afinal, os

discursos, salvo algumas exceções e particularidades que serão evidenciadas ao longo

das análises, apresentavam conteúdo semelhante.

Antes de finalizar este capítulo, entende-se serem merecedores de descrição, dois

instrumentos existentes no Sistema Judiciário, constantemente mencionados nos

discursos dos sujeitos entrevistados: a remoção e a função comissionada.

6.10 AS REMOÇÕES

A remoção consiste em um instituto jurídico usado pela Administração Pública

para promover o deslocamento dos respectivos servidores, com base em fundamentos

previstos em lei (AZEITUNO, 2012). A Lei nº 8.112, que regulamenta os direitos,

deveres e obrigações dos servidores públicos federais (e que está de acordo com as

normas da Constituição Federal Brasileira), garante o poder discricionário da

Administração para efetuar as remoções dos servidores, conforme os incisos I, II e III

do artigo 36, explicitados a seguir.

Art. 36. Remoção é o deslocamento do servidor, a pedido ou de ofício, no

âmbito do mesmo quadro, com ou sem mudança de sede.

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Parágrafo único. Dar-se-á a remoção, a pedido, para outra localidade,

independentemente de vaga, para acompanhar cônjuge ou companheiro, ou

por motivo de saúde do servidor, cônjuge, companheiro ou dependente,

condicionada à comprovação por junta médica.

Parágrafo único. Para fins do disposto neste artigo, entende-se por

modalidades de remoção: (Redação dada pela Lei nº 9.527, de 10.12.97)

I - de ofício, no interesse da Administração; (Incluído pela Lei nº 9.527, de

10.12.97)

II - a pedido, a critério da Administração; (Incluído pela Lei nº 9.527, de

10.12.97)

III - a pedido, para outra localidade, independentemente do interesse da

Administração: (Incluído pela Lei nº 9.527, de 10.12.97)

a) para acompanhar cônjuge ou companheiro, também servidor público civil

ou militar, de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito

Federal e dos Municípios, que foi deslocado no interesse da Administração;

(Incluído pela Lei nº 9.527, de 10.12.97)

b) por motivo de saúde do servidor, cônjuge, companheiro ou dependente que

viva às suas expensas e conste do seu assentamento funcional, condicionada à

comprovação por junta médica oficial; (Incluído pela Lei nº 9.527, de

10.12.97)

c) em virtude de processo seletivo promovido, na hipótese em que o número

de interessados for superior ao número de vagas, de acordo com normas

preestabelecidas pelo órgão ou entidade em que aqueles estejam

lotados.(Incluído pela Lei nº 9.527, de 10.12.97)

Portanto, pode-se depreender que o ato de remoção possui natureza de ato

administrativo unilateral, podendo ele ser praticado a pedido ou de ofício (AZEITUNO,

2012). O inciso II prevê um direito subjetivo do servidor (por motivos de saúde, por

exemplo) e, no caso de ele preencher os requisitos legais, sua solicitação deve ser

atendida. Este seria o caso de remoção a pedido.

Em sua obra, Diniz (2004) ressalta que uma vez que não se encontra capitulada

como penalidade disciplinar (conforme artigo 127 da CRFB), a remoção não poderia ser

utilizada como forma de punição do servidor. Contudo, como será visto nos capítulos 7

e 8, é exatamente desta forma que o mecanismo de remoção é vivenciado por alguns

servidores.

6.11 AS FUNÇÕES COMISSIONADAS E OS CARGOS EM COMISSÃO

A função comissionada refere-se à parcela salarial que se acrescenta à

remuneração normal do servidor concursado, sendo oferecida em razão das atribuições

do cargo. Este servidor não a ganha por exercer cargos em comissão, função de direção,

chefia ou assessoramento, pois para isso existe o chamado cargo em comissão. Os

cargos em comissão permitem flexibilizar a rigidez do cargo comum, cujo titular exerce

as funções normais da Administração Pública e podem ser atribuídos a postos de

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direção, chefia e assessoramento, ocupados por pessoas de confiança da autoridade com

poderes para designá-las sem concurso.

Os cargos em comissão, escalonados de CJ-1 a CJ-4; e as funções comissionadas,

escalonadas de FC-1 a FC-6, estão previstas no artigo 5º da Lei nº 11.416/06.

Diz, entretanto, o desembargador Silva (2005), que embora as funções

comissionadas tenham sido criadas para melhor remunerar o servidor em razão dos

atributos do cargo, em alguns tribunais elas foram generalizadas de tal forma que quase

a totalidade dos servidores a recebem, representando um importante aditivo ou

suplemento salarial.

Merece registro que dentre as sanções resultantes de processo disciplinar

administrativo, previstas na Lei nº 8.112/90, figura a destituição da função

comissionada.

Finalmente, antes de passar para análise dos dados, vale registrar quais são o

princípios constitucionais que regem a administração pública, já que eles também

permeiam os discursos que serão apresentados a partir do próximo capítulo.

6.12 PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS ORIENTADORES

O Poder Judiciário, que integra a Administração Pública, tem que observar os

princípios constitucionais que regem toda a Administração e os princípios que a ele são

aplicáveis. Os princípios constitucionais que regem a Administração Pública estão

explícitos no artigo 37, caput, da CRFB/88. São eles:

1. Princípio da Legalidade: Tal princípio surgiu com o Estado de Direito, confrontando-

se com qualquer forma de poder autoritário. Está contemplado no artigo 4º da

Declaração do Homem e do Cidadão, com previsão de forma expressa no artigo 37,

caput, além de verificado no artigo 5º, II, da CRFB/88, este com o seguinte teor:

“ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de

lei.”

Para entender a sua aplicação, tem-se que diferenciar o particular da

Administração Pública. Para o particular, o princípio da legalidade rege orientando-o no

sentido de que pode ser feito tudo que a lei não proíbe.

Por outro lado, a Administração só poderá fazer o que a lei permitir. Dessa forma,

a Administração deve atuar segundo a lei, e caso isso não ocorra, seus atos,

considerados ilegais, poderão (poder-dever) ser invalidados de ofício, neste caso

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exercendo a autotutela administrativa, ou pelo Poder Judiciário, conforme exposto na

Súmula 473 do Supremo Tribunal Federal.

2. Princípio da Impessoalidade: O objetivo do princípio é a igualdade de tratamento que

a Administração deve conferir aos administrados que se encontrem em semelhante

situação jurídica.

Por sua vez, para se verificar a impessoalidade, a Administração deve focar-se

exclusivamente no interesse público (interesse primário), e não no privado, sendo

vedado o favorecimento de algumas pessoas em detrimento de outras ou o prejuízo de

umas em favor de outras.

3. Princípio da Moralidade Administrativa: De acordo com esse princípio, a

Administração Pública deve agir com boa-fé, probidade, lealdade e ética, sendo

considerado um pressuposto de validade de todo ato da Administração Pública. Caso o

mesmo não seja observado, o ato ilegal pode sofrer invalidação por meio inclusive da

ação popular, conforme verificado no artigo 5º, LXXIII, da CRFB/88, com o seguinte

teor:

Artigo 5º, LXXIII - qualquer cidadão é parte legítima para propor ação

popular que vise a anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de

que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao

patrimônio histórico e cultural, ficando o autor, salvo comprovada má-fé,

isento de custas judiciais e do ônus da sucumbência.

Insta salientar que os atos do administrador público, não respeitando o princípio

da moralidade administrativa, são considerados atos de improbidade, previstos do artigo

37, § 4º, da Carta Magna, e importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da

função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário pelo agente

público, sem prejuízo da ação penal pública por crime contra a Administração Pública.

4. Princípio da Publicidade: Esse princípio está ligado à transparência, que é um

dever da Administração Pública e um direito da sociedade. Tal direito está assegurado

no artigo 5º, XXXIII, da CRFB/88, que possui o seguinte teor:

Artigo 5º, XXXIII - todos têm direito de receber dos órgãos públicos

informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que

serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas

aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado.

Caso esse preceito não seja observado, o particular poderá utilizar-se do habeas

data e do mandado de segurança, remédios constitucionais que possuem o papel de

garantir a concretização da transparência.

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5. Princípio da Eficiência: Foi acrescentado aos outros princípios pela Emenda

Constitucional nº 19/98, visando garantir maior qualidade na atividade pública e na

prestação dos serviços públicos. Nos dizeres de Alexandre de Moraes, o princípio da

eficiência “é aquele que impõe à Administração Pública direta e indireta e a seus

agentes a persecução do bem comum, por meio do exercício de suas competências de

forma imparcial, neutra, transparente, eficaz, sem burocracia e sempre em busca da

qualidade, primando pela adoção dos critérios legais e morais necessários para a melhor

utilização possível dos recursos públicos, de maneira a evitar-se desperdícios e garantir-

se uma melhor rentabilidade social” (MORAES, 2007).

Entre os princípios de observância obrigatória pelo Poder Judiciário, destacam-se:

1. Princípio da Motivação das decisões judiciais: Está diretamente ligado ao

princípio da imparcialidade, em que todas as decisões dos órgãos do Poder Judiciário

serão motivadas/fundamentadas, sob pena de nulidade, uma vez que sua finalidade é

garantir a imparcialidade do juiz e a justiça nas decisões. Está previsto no artigo 93, IX,

da CRFB/88.

2. Princípio do Juiz Natural: Estabelece que qualquer pessoa só poderá ser

processada e sentenciada pela autoridade competente, não podendo haver Juízo ou

tribunal de exceção, pois as regras de competência devem está preestabelecidas. Vem

estabelecido no artigo 5º, XXXVII e LIII, da CRFB/88.

3. Princípio do Contraditório e da Ampla Defesa: São dois princípios de suma

importância no âmbito jurisdicional. O primeiro princípio estabelece que as partes têm o

direito à informação sobre qualquer alegação contrária ao seu interesse, bem como a sua

contrariedade. Já o segundo é entendido como sendo o meio que assegura ao réu o

direito de defender-se das alegações feitas pelo autor do processo. Encontram-se

positivados no artigo 5º, LV, da CRFB/88.

Com a Emenda Constitucional nº 45/2004, que ocasionou a Reforma no

Judiciário, foram introduzidos, na Constituição de 1988, os seguintes princípios também

observância no âmbito da atividade jurisdicional.

4. Princípio da Transcendência: Esse princípio está ligado a um dos requisitos

para a admissão do Recurso Extraordinário: a repercussão geral da questão

constitucional, estabelecido nos artigos 102, § 3º, da CRFB/88, e no 896-A da CLT.

O presente requisito desempenha a função de filtragem recursal, uma vez que a

questão constitucional, nos termos do artigo 543-A do Código de Processo Civil, “deve

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ser considerada relevante no ponto de vista econômico, político, social ou jurídico, que

ultrapassem/transcendam (acréscimo nosso os interesses subjetivos da causa”, sob pena

de ser inadmitido o recurso extraordinário.

5. Princípio da Celeridade Processual: O princípio em referência foi criado para

que todos, buscando a efetividade do processo, tenham a prestação jurisdicional dentro

de um prazo razoável, sob pena de causar inutilidade e ineficácia do provimento

requerido.

Dessa forma, para se evitar tal consequência o Legislador tem o dever de criar

meios necessários para que o processo tenha sua tramitação de forma simples e rápida.

Esse princípio está previsto no artigo 5º, LXXVIII, da CRFB/88.

6. Princípio da Publicidade dos Atos Processuais: Estabelece que os julgamentos

do Poder Judiciários serão públicos, limitando-se os seus atos, em certos momentos, às

partes e seus advogados, ou somente a estes, desde que a preservação do direito à

intimidade do interessado não prejudique o interesse público à informação. Pode ser

verificado nos artigos 5º, LX, e 93, IX, da CRFB/88.

7. Princípio da Pluralidade dos Meios de Acesso à Justiça: Está ligado à

obrigatoriedade dos tribunais a instalarem a Justiça Itinerante, podendo também

funcionar descentralizadamente, por meio das Câmaras regionais, como forma de

facilitar o acesso à justiça por aqueles que residem distantes dos fóruns.

8. Princípio da Federalização das Graves Violações de Direitos Humanos:

Significa que poderá haver o deslocamento da competência para a Justiça Federal

quando houver o descumprimento das obrigações decorrentes de tratados internacionais

de direitos humanos em que o Brasil seja parte, desde que haja requerimento do

procurador-geral da República. Está disciplinado no artigo 109, V-A e § 5º, da

CRFB/88.

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7 ANÁLISE TRANSVERSAL DOS DADOS

O presente capítulo dedica-se à apresentação das análises realizadas

prioritariamente em torno das 41 entrevistas realizadas em ALFA e BETA.54 Lembrando

que alguns servidores deixaram comentários por escrito na última página dos

questionários entregues em ALFA, sempre que cabível, eles também foram aproveitados

nas seções de análise de dados que se seguem.

Com isso o status do questionário no âmbito desta pesquisa de tese, deixou de se

resumir a um veículo de aproximação dos entrevistados, permitindo o aproveitamento

de declarações de servidores que, receosos demais para o agendamento de uma

entrevista, acabaram por se manifestar somente de forma escrita. As declarações que

foram registradas por escrito nos questionários serão identificadas ao longo do texto, de

forma a diferenciá-las dos trechos destacados de entrevistas pessoais.

Todas as declarações emanadas pelos participantes (seja por escrito, seja na

entrevista pessoal), estarão apresentadas na forma itálica, entre aspas, tanto neste

capítulo, quanto no Capítulo 8, composto pela análise aprofundada de três casos.

As análises a seguir baseiam-se nos depoimentos coletados que não podem,

entretanto, ser considerados unânimes dentro do Sistema Judiciário. A função deste

capítulo é dar sentido ao conteúdo dos discursos de alguns atores do Judiciário,

evidenciando como as dimensões psíquica e social perpassam suas vivências e

experiências. No contexto de discursos marcados por situações de sofrimento e mal-

estar, uma das conclusões das análises realizadas é a importância de dimensões como

justiça na vivência dos servidores, que acabam por minimizar o destaque que se

esperava dos elementos mais próprios do assédio moral.

A seção de abertura será dedicada à apresentação da forma como a dimensão de

poder do Judiciário é vivenciada. Entretanto, não é o único momento em que ela

aparecerá neste capítulo. Sua importância é tal na estrutura do Sistema, que as análises

de outras seções não puderam ser delineadas sem referenciá-la.

54

Lembrando que se trata de 37 servidores, um juiz e três ocupantes de cargo diretivo do Sindicato dos

Servidores do Judiciário Federal de BETA.

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7.1 O JUDICIÁRIO COMO PODER

O Judiciário, no Brasil, é considerado como um Poder de Estado (ao lado do

Executivo e do Legislativo), sendo Estado brasileiro entendido como uma República

Federativa constituída pela união de Estados, Municípios e Distrito Federal (RIBEIRO,

2000).

Mas, como o poder, revelado a partir da própria denominação da instituição

(“Poder Judiciário”), é interpretado e vivenciado pelos membros que o compõem?

Asseveram Dubet et al. (2006) que, em algumas instituições, é possível identificar

o desenvolvimento de

[…] sentimentos de injustiça em relação a tudo o que possa ser considerado

como problema de poder e de autoridade – como casos de abuso de poder, de

autoritarismo, de competência ou de ausência de poder e de responsabilidade,

que deixam os atores em situação fluida, acentuando as tensões interpessoais

(DUBET et al., 2006, p. 38-39).

Como será visto nessta seção – e ao longo da análise de dados – parece que parte

da percepção de Dubet et al. (2006) se aplica às situações identificadas no discurso dos

servidores. A noção de poder autoritário apareceu como central nas análises de campo,

tendo sido no contexto do Poder Judiciário, considerado como originador de

sentimentos de injustiça para parte de seu corpo funcional.

Antes de continuar esta análise, remontar-se-á ao sentido da palavra poder.

A noção de poder pode ser abordada sob os mais diferentes ângulos, não devendo

ser limitado a um conjunto de técnicas que levem à sua obediência nem ser entendido

como um fato estabelecido pela força (ENRIQUEZ, 2007).

As primeiras experiências de poder, lembra Enriquez (2007) baseando-se na

psicanálise, acontecem entre pai e filho, onde aquele representa a lei, fixando os limites

da permissão e da proibição. O primeiro conflito surge com o Complexo de Édipo, no

momento em que o ser é confrontado, no contexto de uma relação triangular, com a

imposição de limites e o desejo de transgressão, com o sagrado, com a castração e com

a morte.

Para Barus-Michel e Enriquez (2006)

[...] o poder utiliza muitos meios: a força, mas também a persuasão, a

sedução, a legislação, o costume, tudo aquilo que revele um responsável entre

aqueles que são objetos e que tanto podem resistir como se submeter

voluntariamente ou à revelia (BARUS-MICHEL e ENRIQUEZ, 2006, p.

212).

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Os elementos de coação, de sedução e de manipulação das pessoas poderiam ser

entendidos, na opinião de Enriquez (2006), como uma verdadeira “tecnologia do

poder”. Dentre as principais fontes de poder, Enriquez (2006) elenca: a manipulação e a

aplicação de sanções, ou seja, a posse dos meios de sanção; a identificação com

membros dos grupos sociais; o amor-fusão, que originada da estrutura carismática de

Weber, revela a relação projetiva que se estabelece entre uma pessoa e seu líder; a

legitimidade onde o poder se estabelece via aceitação pela tradição; a competência

técnica; a estrutura de relações estabelecidas e, finalmente, a posse de bens e status na

sociedade.

O poder é, portanto, resultado de um conjunto de elementos que alimenta a sua

prática. A este respeito, Enriquez (2006) recorre à imagem de um polvo. À semelhança

do animal, o poder teria tentáculos que lhe permitiriam estar em todas as partes e seriam

utilizados como múltiplas técnicas de controle e de fiscalização.

Finalmente, convém assinalar o entendimento de Barus-Michel e Enriquez (2006)

a respeito da relação existente entre poder e lei, dado que ela pode ser útil para a análise

do que ocorre no Poder Judiciário Federal, segundo os entrevistados. Aqueles autores

sublinham que “as relações do poder e da lei são um problema de distância”. O poder

pode se confundir com a lei e permitir que se caia no arbitrário e no despotismo, único

desejo do detentor do poder fazendo lei, sem recursos. Alternativamente, o poder pode

se valer da lei e administrá-la, mas a ela se submetendo, permitindo o uso de recursos, é

sendo autoridade legítima (BARUS-MICHEL e ENRIQUEZ, 2006, p. 214).

O Poder Judiciário brasileiro é dotado da capacidade de julgar com base nas leis

criadas pelo Poder Legislativo, e na lei máxima que é a Constituição Federal, sobre as

quais ele exerce o poder de guardião. Porém, vale lembrar, que o povo é o titular do

poder constituinte, devendo ser entendido tal poder como a manifestação da sua vontade

política. É com este espírito que o parágrafo único do artigo 1º da CRFB/88 alude que

“Todo o poder emana do povo, que o exerce por meios de representantes eleitos ou

diretamente, nos termos desta Constituição”, sendo que o texto legal aplica-se a

qualquer poder dos atos estatais, o que valeria para os atos do Poder Judiciário.

Sendo assim, é possível aceitar o seguinte silogismo tão bem estabelecido por

Silvestre (2001) “Se todo o poder estatal emana do povo e, uma decisão judicial é um

ato de poder estatal, logo, a decisão judicial é um ato de poder que emana do povo”

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(SILVESTRE, 2001, p. 1). Diante deste quadro, percebe-se que a legitimidade do Poder

Judiciário e sua atuação estariam calcadas no poder do povo.

Entretanto, a dimensão de poder mais referenciada nos discursos dos entrevistados

em relação ao Judiciário parece ser aquela que compõem o que Enriquez (2006) chama

de “tecnologia do poder”. O modo de funcionamento das instâncias de resolução dos

conflitos internos, por exemplo, dá indícios da natureza do poder em questão.

Considerando-se vítima de uma remoção, um analista judiciário fala de sua

impossibilidade de enfrentar o que ele, seus colegas e seu atual supervisor entendem

como um ato “arbitrário” emanado por um juiz: “Eu tinha as mãos atadas, porque se

eu entro com uma representação contra um juiz, quem vai me julgar é quem me pôs

aqui”.

Nesta situação que acaba de ser descrita, dois elementos merecem atenção. O

primeiro refere-se à crítica de um ato considerado arbitrário, no qual um funcionário é

alvo de uma decisão que considera imotivada e de caráter subjetivo. Como será

aprofundado posteriormente, a despeito de existir previsão legal para a realização de

remoções de ofício (como visto no capítulo anterior), ou seja, a pedido da

Administração (representada por um juiz), o que causa o sentimento de arbitrariedade

vai além do fato de não estar presente a vontade expressa do funcionário. Parece tratar-

se da indignação frente à inexistência de clareza nas motivações, que sob a alegação de

“interesse da Administração”, esconde, na opinião de diversos entrevistados, um

importante mecanismo de poder do Sistema Judiciário.

O segundo elemento que a situação permite evidenciar refere-se à estrutura de

relações estabelecida no contexto do Poder Judiciário. Como visto no Capítulo 6, cabe à

Corregedoria controlar a legalidade e moralidade dos atos administrativos, tal qual a

remoção. Embora em uma primeira leitura esta instância e sua missão precípua pareçam

ir ao encontro dos anseios dos servidores, estes percebem-na como tendenciosa, dado

que é composta majoritariamente por juízes. Como consequência, alguns servidores têm

a impressão de não serem dotados de força para questionar oficialmente atos que

considerem abusivos.

As seções a seguir, serão dedicadas a tratar ainda de outras fontes de poder

mencionadas pelos servidores.

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7.2 O JUIZ COMO PODER: “O JUIZ PENSA QUE É DEUS”

O Judiciário confere poder às pessoas sem saber realmente quem elas são e

não presta a mínima atenção no que elas fazem.

O ambiente é bom, o trabalho é bom e os colegas, ótimos, tudo seria perfeito

se não trabalhasse com um juiz federal que pensa que é Deus, que manda e

desmanda como se não tivéssemos sentimentos, como se não fossemos

GENTE. Vivemos sob tensão diária. O dia em que ele se aposentar ou for

para o TRF Xª região, aqui será ótimo de trabalhar.55

Conhecido por seu alto grau de dificuldade, o concurso para se tornar juiz muitas

vezes reclama anos de estudos após a formação universitária em direito.

Como pôde ser apreciado no Capítulo 6, o sistema do Poder Judiciário, desde a

sua concepção, sempre foi fortemente apoiado sobre a autoridade pessoal do juiz.

“Deuses”, “reis”, “senhores de escravos”, são algumas das expressões

empregadas pelos servidores ao se referirem aos juízes. Elas carregam consigo a

dimensão do poder que lhes é atribuído, que leva a confundi-los com a própria figura do

Poder Judiciário.

Sua presença, como figura de autoridade, reforça ainda mais a estrutura de poder

da organização, a ponto de a percepção do clima de cada área do Judiciário depender do

juiz que se encontra em sua direção (no sentido de mando, e não necessariamente de

direção). Trata-se, portanto, de pequenas estruturas de poder dentro do Poder Judiciário:

“O juiz determina o aspecto que terá o departamento”. A cada mudança de juiz, percebe-

se uma mudança no “aspecto” do gabinete.

Porém, não são apenas os servidores que têm essa visão do juiz como

representante do poder. Embora a intenção inicial de programar uma entrevista com um

juiz me parecesse de difícil execução, muito em função do desencorajamento por parte

de pessoas ligadas ao Sistema Judiciário, tive a ocasião de conversar com um desses

“deuses”. Dotado de uma visão extremamente crítica, o juiz com quem conversei

reconheceu a existência de falhas no Sistema Judiciário e teceu fortes críticas à sua

categoria profissional. A seu ver, alguns “juízes pensam que isto [o Judiciário] lhes

pertence (...) serve para lhes dar conforto e não que estão lá para prestar um serviço à

comunidade ”.

Segundo seu ponto de vista, diversos juízes provêm de um nível social elevado,

sem terem tido, por exemplo, contato próximo com a realidade de classes sociais

desfavorecidas. A interiorização de seus próprios valores e crenças, seus hábitos, para

55

Declaração por escrito no questionário entregue em ALFA.

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lembrar a expressão de Bourdieu (1994),56 acabam se reproduzindo em suas ações e

decisões no Poder Judiciário.

A percepção da existência de juízes “militantes”, que não se distanciam dos

problemas sociais e que manifestam essa preocupação em suas decisões, é minoritária

entre os servidores entrevistados.

Um servidor relata: “O poder do juiz aparece também dentro da estrutura do

Judiciário através de práticas de nepotismo (...) aqui mesmo no TRE, nós temos casos,

que de uma certa maneira são contrários à moralidade pública, de parentes que ocupam

cargos de gestão, mesmo se existe uma regra contra isso, buscamos sempre formas

dissimuladas de manter este fato. É o resultado de uma prática que não vem de hoje, que

é quase secular, e perdura ao longo do tempo. Isso repercute na esfera administrativa

dos servidores e como consequência, eu sinto particularmente o clima organizacional

totalmente desfavorável para quem escolheu o serviço público no Judiciário como

forma de vida”.

Entretanto, existe também a percepção de que a “encarnação do poder” não é

atributo privativo dos juízes. Alguns servidores revelam sua manifestação em muitos

daqueles que passam a ocupar um cargo comissionado, por exemplo.

Entre os meios de demonstração de poder dos juízes mencionados pelos

servidores, o uso do mecanismo de remoção e da função comissionada foram os mais

citados. Como visto no Capítulo 6, a remoção é uma espécie de ato administrativo que

se desencadeia, por interesse da administração ou a pedido do servidor. Quando feita

por interesse da administração, a remoção dita por ofício deve ser feita dentro do Estado

da Federação para onde o servidor prestou concurso. Entretanto, dada a magnitude do

país, em alguns casos, ser alvo de uma remoção não desejada, ainda que dentro do

mesmo Estado, pode significar uma profunda violência com o servidor, dada a completa

mudança de local de residência e desconexão física total com o anterior local de

trabalho.

Os servidores ressaltam que o instituto de remoção por ofício, sob a justificativa

de melhorar o desempenho do Judiciário (tendo como fim a melhor prestação de

serviços e atendimento à supremacia do interesse público), indicador que tem natureza

56

Para quem traduziria o princípio gerador e unificador capaz de retraduzir características intrínsecas e

relacionais referentes a uma dada posição em um estilo de vida unitário (conjunto unitário de pessoas,

bens, práticas).

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supostamente inatacável (BALARDIN, 2011), tem sido abusivamente aplicado e

invocado com o espírito de punição:

Abriu a boca, eles mandam embora (...) não interessa se você é competente,

se você é inteligente, se você é um servidor exemplar, não interessa. O que

interessa é: está quietinho pra eu [juiz] permanecer no meu lugar, você fica.

Não está quietinho, você pode ser o mais importante, você vai ser jogado

fora.

Ao basear-se no princípio da legalidade que rege a Administração Pública

(conforme apresentado no Capítulo 6), a aplicação da remoção dificilmente pode ser

questionada, ainda que diversos servidores a entendam como mecanismo que permite

abuso de poder dissociado do interesse público, que acaba por encobrir eventual

arbitrariedade.

Tal percepção é confirmada na literatura. Balardin (2011) advoga que

[...] não é raro que, abusando ou desviando de seus poderes, administradores

públicos promovam a remoção de servidores por questão de desafeição

pessoal ou até mesmo por que determinado funcionário está exercendo suas

atribuições em estrita observância ao seu dever de cumprimento da lei,

circunstância que o torna parte inconveniente no gerenciamento de

determinados temas circundados por interesses de ordens diversas às que

convêm à boa administração pública (BALARDIN, 2001, p. 59).

Portanto, a despeito da existência de mecanismos formais de punição previstos na

legislação específica sob a qual se encontram regidos os servidores do Sistema

Judiciário, vigora entre alguns deles a percepção da existência de um controle

disciplinar que visa transformar seus corpos em dóceis e úteis, nos moldes do controle

disciplinar de Foucault. Ao tomar “os indivíduos ao mesmo tempo como objetos e como

instrumentos de seu exercício”, o poder disciplinar é um “poder que, em vez de se

apropriar e de retirar, tem como função maior ‘adestrar’; ou sem dúvida adestrar para

retirar e se apropriar ainda mais e melhor” (FOUCAULT, 1987, p. 143). O uso destas

sanções normalizadoras contribui para gerar um sentimento de transformação dos

sujeitos em objetos, conforme será abordado mais profundamente na seção 7.8.

Alguns servidores vivenciam a remoção, sobretudo com a mudança de local de

trabalho, como uma perda do emprego, que tem como uma de suas consequências a

perda de identidade do trabalhador e pode levar à desagregação de sua personalidade

(ENRIQUEZ, 1997). Uma técnica, durante o processo de transferência sem explicações

formais, o que a deixou durante algumas semanas sem saber qual seria seu destino final,

assim descreve seus sentimentos:

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Eu me via assim ó, isso foi interessante porque parecia que eu estava

desempregada procurando emprego e eu só me dei conta muito depois “meu

Deus, nada disso. Eles que me coloquem em algum lugar (...) Está tendo

conflito, alguma coisa errada. Uma funcionária que está sem trabalhar (...)

como é que deixam uma funcionária lotada sem fazer nada 7h por dia?”

Ninguém pensa. (...) Não se pensa no serviço.

Outra consequência nefasta da remoção, mencionada por alguns entrevistados

refere-se à separação física do núcleo familiar. Uma analista que trabalhava há mais de

16 anos como oficial de justiça em BETA, se sente vítima de assédio moral, em função

da perseguição sofrida, fruto de queixas sobre o ambiente de trabalho, cuja

infraestrutura é inadequada para o bom exercicio de sua atividade diária : “Se dividir os

computadores pelo número de oficiais, cada um vai ficar com no máximo uma letra do

teclado”, queixa-se ela, lembrando que trata-se de uma reivindicação de todo o grupo de

funcionários que exerce a mesma atividade, naquela localidade. Após desentendimento

com sua supervisora, motivado pelas interpretações divergentes a respeito dos

problemas de infraestrutura, a servidora foi surpreendida com uma solicitação de

remoção por parte da chefia. Ao referir-se à decisão de mudá-la de localidade, cita a

motivação como “uma opinião divergente [entendida pela chefia] como um ato de

indisciplina”. “Ela queria que eu fosse removida, queria que eu fosse para XXXXX 57

prejudicando toda a minha vida pessoal, familiar. Eu tenho uma mãe de oitenta anos,

tenho uma filha de 15 anos, marido”, queixava-se a servidora, durante a realização da

entrevista.

Mas, o descontentamento não decorre somente do resultado possível de uma

remoção por ofício, possibilidade da qual os servidores têm ciência desde seu ingresso

no Judiciário. Origina-se também da falta de clareza no que se refere aos critérios

usados como motivadores para a tomada de decisão por uma remoção:

Vai sair um cara mais novo, um cara mais velho, solteiro sem filhos. Se

tivesse um critério e, por exemplo, solteiro sem filho, eu ia “dançar”,58

não

ia reclamar. Eu ia ficar triste, aborrecida, mas eu sabia que era eu. Se for

servidor mais novo, daí eu jamais sairia, eu era das mais antigas do cartório.

Então, fica assim: pode ser qualquer um e o interesse é esse, que seja

qualquer um, o cidadão [superior hierárquico que decidiria sobre a

remoção] não foi com a sua cara e vai mandar você para fora. Ou se meu

sangue for ruim e o cara não tem peito para botar na ficha de avaliação,

melhor ir para fora nessa hora. (...) O cara que é bom sai. Então, você fica a

57

Cidade afastada. 58

No sentido de ser preterida.

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mercê das pessoas. Se o critério fosse objetivo, mas não é. O desencanto é

muito grande com o Judiciário.59

A ausência de critérios objetivos acaba tornando-se responsável pela existência de

uma zona cinza que leva à interpretação de aplicação injusta das regras internas, ou pela

permissão de elevado grau de subjetividade nas decisões tomadas.

Como resultado, verifica-se um discurso que exalta a clivagem entre os interesses

do grupo composto pelos “Deuses” do Judiciário e o interesse da coletividade dos

servidores, clivagem esta mantida e reforçada pelo poder disciplinar instaurado.

Finalmente, antes de prosseguir com a apresentação e análise de outras

declarações sobre a dinâmica do poder dentro do Judiciário, merece registro a existência

de uma percepção de um movimento crescente de remoções por ofício: “antigamente,

você só era removido se você queria”. Esta mudança pode ser uma pista sobre os

reflexos das novas formas de funcionamento do Judiciário a reboque das exigências da

Reforma Gerencial naquele Sistema.

7.3 O “PODER DO LÁPIS”

Esta seção destina-se a tratar, mais especificamente, de algumas percepções de

servidores que trabalham como assessores de juízes.

A realidade forense, na tentativa de diminuir a carga de trabalho dos juízes, inclui

um sistema de delegação de atos que seriam afetos à sua função, aos servidores que

trabalham nas Secretarias (ou Gabinetes). Alguns deles dedicam-se a redigir,

sistematicamente, o conteúdo de atos decisórios, que ao serem submetidos ao juiz

podem ser chancelados ou alvo de retificações (FIOREZE, 2009). Entretanto, ao mesmo

tempo em que esta delegação de atribuições originárias dos juízes é vivenciada por

alguns servidores como um reconhecimento do seu trabalho, ela também é origem de

sentimentos de sobrecarga de trabalho e humilhação.

Fioreze (2009) entende que esta delegação encontra-se justificada por vários

fundamentos. O primeiro deles é o de que a própria existência das figuras de oficial de

justiça e diretores de secretaria como auxiliares do juiz, implica um reconhecimento,

pelo ordenamento jurídico, da incapacidade material e profissional do juiz praticar, de

forma individual, todos os atos envolvidos na tramitação processual. A delegação

visaria, portanto, permitir maior adequação e eficiência aos atos sob sua incumbência. A

59

Este trecho será reapresentado no Caso de Sofia, no Capítulo 8.

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segunda explicação é a de que nem todos os atos atribuídos ao juiz tem o mesmo grau

de complexidade, cabendo a este agente, sempre que parecer inviável praticá-los em seu

conjunto, privilegiar os mais complexos e relacionados à atividade-fim jurisdicional.

Entretanto, em relação a esta explicação, merece registro que, a despeito dos limites

impostos em lei para a delegação do exercício da atividade jurisdictional,60 alguns

servidores declararam que trabalham na confecção de diversos documentos que seriam

atribuição do juiz, independente do grau de complexidade, cabendo a estes a revisão. É

justamente este fato que é vivenciado por alguns servidores como uma oportunidade de

aprendizado, enquanto que por outros, como origem do sentimento de humilhação.

Finalmente, Fioreze (2009) destaca a terceira e mais importante razão, para

explicar a delegação: o contexto atual em que a atividade jurisdicional encontra-se

inserida, que demanda máxima eficácia, com duração razoável do processo. Isso faz

com que se defenda que mais do que faculdade, a delegação seria, portanto, um dever

do juiz. Isso não dispensaria a sua intervenção, ainda que resumida “à conferência da

redação do seu conteúdo proposta pelos servidores e, com ela concordando, à assinatura

do respectivo expediente” (FIOREZE, 2009, p. 95 .

Entretanto, existindo ou não permissão legal para os atos de delegação praticados,

a forma de orientar e de controlar a manutenção de um padrão de redação e de

elaboração de atos decisórios revela, na opinião dos entrevistados, a dimensão do poder

presente na execução das atividades cotidianas:

Ah, ele [o juiz] era duro... ele me fazia sentir incompetente, sabia? Tudo o

que eu fazia, minhas decisões, os atos que eu fazia, era tudo errado. Eles

vinham riscados e ele riscava de novo e seu assessor também, minha própria

colega de faculdade, minha colega de classe, de trabalho... refeito por ela,

assim... Para mim era humilhante.

Dourlen (2005) caracteriza o sentimento de humilhação como

[...] um movimento emocional doloroso que pode ser provocado por um

incidente ou um evento trivial, afetando pontos vulneráveis da afetividade ou,

ao contrário, por um traumatismo onde os efeitos podem se manifestar

posteriormente e desestabilizar o indivíduo (DOURLEN, 2005, p. 49).

Na medida em que a constituição subjetiva do indivíduo é determinada pelo outro,

a maneira de criticar um trabalho pode gerar um sentimento de humilhação que, tal qual

um sintoma de ferida narcísica, traduz “o enfraquecimento da autoestima, do sentimento

60

Como o disposto no § 4º do artigo 162 do Código de Processo Civil.

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de unidade interior, de integridade” (DOURLEN, 2005, p. 49). O sujeito passa a ter a

sensação de que sua existência foi negada, sendo reduzido ao fracasso.

Gaulejac (2011) estabelece uma relação entre o poder e a humilhação ao defender

que

[...] o poder hierarquiza e estigmatiza. Ele confere valor aos objetos e às

pessoas e, por outro lado, desqualifica, invalida, exclui. Todos nós vivemos

essa situação na família, na escola, onde a autoridade se apoia no grupo para

“envergonhar” alguém. A humilhação é sempre um meio de reforçar a

autoridade. Mas não se trata aqui de culpa, de transgressão, de obediência.

Trata-se de inferioridade, de desqualificação, de privação (GAULEJAC,

2011, p. 82).

Já Enriquez (1997, 2006) pressupõe que o poder tem uma dimensão de domínio

através da palavra ou do discurso. Aquele que exerce o poder tem a capacidade de reunir

conhecimentos que não existem entre os dominados. Esta percepção pode ser transposta

para a realidade do Judiciário. Titulares legítimos de uma grande bagagem de

conhecimentos (dado o grau de reconhecida dificuldade dos concursos em que

passaram), o poder dos juízes impede que seus conhecimentos sejam questionados e

permite a manutenção de todos os seus direitos e privilégios (garantidos por lei),

anteriormente referenciados.

Alguns servidores criticam também as situações em que se veem privados de sua

criatividade e de sua individualidade, especialmente no desenvolvimento de pareceres.

Ao perceberem o poder do “lápis do juiz” em seus textos, veem posto em xeque até

mesmo a sua “dignidade”. Dubet et al. referem-se a essas reações como denúncias

contra “atentados à realização pessoal no trabalho” (DUBET et al., 2006, p. 26).

A contrario sensu, outros servidores evidenciam a competência de alguns juízes,

revelada pela forma como “respeitam” os textos produzidos a partir de atos delegados.

Como será possível acompanhar no caso de Manoela (ver Capítulo 8), o fato de seu “ex-

juiz” não ter a preocupação de corrigir cada vírgula dos documentos produzidos pelos

seus subordinados, e de dar a eles a liberdade de criação e de elaboração do texto de

sentenças, era motivo de sua admiração. Outra servidora declara sua satisfação relativa à

experiência com um dos magistrados: “[ele me oferecia] a liberdade de pensar e de

realizar o trabalho sem me sentir preocupada com que resultado ele queria que

alcançasse ou com o número de linhas que deveria escrever. Ele nos desafiava”.

O fato de “desafiar” os servidores pode ser interpretado como o reconhecimento

de sua capacidade e um investimento em seu potencial, bem como uma postura que

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pode impedir o desenvolvimento de um sentimento de contradição diante de uma

situação em que, a despeito de haver delegação de atos, há uma restrição da autonomia

que gera sofrimento nos servidores.

7.4 A DIMENSÃO FORMALISTA DO PODER

7.4.1 O espaço físico

A hierarquia é internalizada na própria instituição. O juiz tem

um gabinete que é só para ele, uma sala ampla, e os servidores

ficam todos juntos ali, menos ou mais amontoados. Enfim, o

juiz (...) tem uma ampla biblioteca que fica só para ele também.

Os servidores (...) não tem acesso direto a esses livros. Os

meus colegas e eu, nós temos que pegar livros na biblioteca lá

embaixo para fazer o nosso trabalho, não temos uma biblioteca

disponível (...) Eu acho que isso é uma relação de hierarquia

estabelecida na própria instituição e a gente internaliza isso. Eu

mesmo com toda essa crítica que eu faço em relação as

relações de poder, eu internalizo isso (...) o juiz fica isolado no

castelo dele. Se um advogado quer falar com um juiz, ele

primeiro passa por um servidor que atende ao balcão, depois

pelo diretor de secretaria que é o chefe da secretaria, depois

pelo assessor e depois que pode chegar no juiz. A palavra para

mim é encastelado. Fica no castelo dele protegido pelo fosso.

Essa questão da biblioteca por exemplo, é como se ele

monopolizasse o conhecimento para ele. Isso é uma relação de

poder.

A declaração anterior evidencia a maneira como até mesmo aspectos físico-

espaciais podem revelar a estrutura de poder existente no Judiciário. Se, como dito

linhas atrás, os juízes já são sabidamente detentores de elevado grau de conhecimento

técnico desde o seu ingresso no Judiciário, a manutenção de uma biblioteca privativa

remete à tradição do corpo de magistrados, colocando-se como fator de distinção e de

preservação de um habitus peculiar a este grupo. A despeito da modernização que vem

sendo historicamente acompanhada no Poder Judiciário, parece prevalecer ali, traços de

sua estrutura tradicional.

Durante a realização da pesquisa de campo em ALFA1, quando circulei em todos

prédios do Sistema Judiciário Federal com o objetivo de entregar os questionários e

realizar as entrevistas pessoais, pude fazer algumas observações relativas à estrutura

física ali encontrada. A entrada dos edifícios que compõem o Sistema Judiciário em

ALFA1 evidenciava a separação dos espaços do Judiciário do ambiente externo da

cidade, por grandes portas ou grandes escadarias. Os guichês e as cadeiras instaladas

para aguardar o início das audiências também destacavam a separação entre o espaço

dos cidadãos e o dos trabalhadores do Judiciário.

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No caso do gabinete dos juízes, essa demarcação de espaços era ainda mais

visível. Uma vez “invadido” (sensação que frequentemente me dominava, quando me

aproximava ou entrava nos gabinetes para falar com os servidores presentes) o espaço

de trabalho dos analistas e dos técnicos que trabalhavam como assistentes do juiz, era

possível identificar uma porta que dava acesso à sala reservada dos magistrados.

Segundo as palavras de um analista: “no interior encontra-se apenas o juiz. Do lado de

fora está a sala dos assessores, que é ‘apenas uma sala’”.

Ao circular pelos corredores do Sistema Judiciário da ALFA1, por ocasião da

aplicação dos questionários, eu jamais pude (ou me atrevi a) cruzar aquelas portas e, não

raro, me percebi, como já mencionado, abaixando meu tom de voz ao adentrar aqueles

espaços, de forma que o juiz “não notasse” a minha presença. Quanto a este temor,

tratava-se de um sentimento de proteção dos servidores, pois eu não sabia qual poderia

ser a reação dos juízes, ao notar que algum de seus subordinados estava conversando

com uma alguém que, em nome do Sindicato, realizava uma pesquisa sobre Saúde do

trabalhador.61

Os elementos descritos nesta seção compõem os laços de poder simbólico

estabelecidos pelo grupo de magistrados, a partir de uma perspectiva bourdiesiana. Sua

mensuração passa pela relação dos que se encontram dentro e fora de determinadas

estruturas físicas do Judiciário, domínio técnico, mas também envolve regras de

tratamento, conforme poderá ser depreendido na seção a seguir.

7.4.2 O poder revelado no tratamento reverencial intra e extramuros

“Dificilmente eu consigo falar com um juiz de igual para igual

(...) não é uma relação estritamente profissional objetiva. O juiz

está num plano acima. Se eu quero falar com um juiz, eu tenho

que pedir permissão. Isso praticamente todos servidores

internalizam ‘ah o juiz’. Tem servidor que idolatra o juiz, como

se o juiz fosse uma celebridade (...) Eu acho que a própria

instituição favorece isso.”

No ambiente do Judiciário, costumeiramente dispensa-se tratamento reverencial

aos juízes e aos diretores. Essa formalidade também se reflete na maneira como os

servidores se relacionam com seus superiores hierárquicos, estejam eles exercendo

funções de natureza jurídica ou administrativa. O relato de um servidor é esclarecedor:

61

Lembrando que esta pesquisa no Estado ALFA serviu também para que eu tivesse acesso aos servidores

que, posteriormente, demandaram a realização de uma entrevista.

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Frequentemente, você não pode chegar e criticar. Você deve se encher de

pompa para falar com eles, mesmo se eles dizem: “não... eu sou informal...

eu sou acessível”. Eles não são acessíveis. Nenhum diretor é, ainda que eles

pretendam ser acessíveis, ainda que eles sejam funcionários como você, eles

não são acessíveis, entende? Então, por isso, você tem que agir todo dia com

muita prudência, manter a postura, entendeu?

Rocha (2003) nomeia de habitus judicial a variedade de comportamentos e visões

de mundo que se desenvolvem e se incorporam nos indivíduos do Judiciário. Estas

disposições iniciam-se em alguns casos na convivência com familiares que têm algum

vínculo com carreiras jurídicas, avançam na graduação em direito, e completam-se nos

primeiros anos da carreira jurídica. Estabelece-se, portanto,

[...] uma visão do mundo através de categorias jurídicas, criando um universo

autônomo fechado às pressões externas, imune a tais questionamentos que

têm como ilegítimos, por virem de fora do campo jurídico, originando-se nos

interesses e lógicas próprios aos demais campos (ROCHA, 2003, p. 105).

Portanto, retomar o conceito de habitus de Bourdieu permite traduzir a força da

experiência biográfica e do determinismo social, e entender a reprodução dos

comportamentos tidos como dominantes, os quais permitem a manutenção da dinâmica

de poder existente no Judiciário. Alguns deles, mesmo fora do ambiente do Judiciário,

revelam a ligação entre o poder e a função de juiz,. Existe um culto à imagem do juiz

traduzido em uma profunda reverência incorporada por seus “subordinados”, que

perdura mesmo fora do ambiente de trabalho. Todos os entrevistados, nos encontros

realizados dentro e fora do local de trabalho, referiam-se aos juízes e aos diretores como

“seus juízes” ou “seus diretores”. Com raras exceções, evitavam chamá-los diretamente

pelos seus nomes. O tratamento diferenciado os levava a continuar se referindo a eles,

mesmo fora dos seus ambientes de trabalho, como “dr. Fulano”, “dr. Sicrano”,

caracterizando uma personalização do poder.

A força dessa reverência e submissão é tal que, em alguns casos, eu mesma me

percebi utilizando tratamento semelhante ao me referir, durante as entrevistas, ao juiz ou

diretor de determinada instituição judiciária.

Mas por que os servidores se submetem ao poder que lhes causa tanta

indignação?62

62

É preciso mencionar aqui o fato de que o próprio termo “servidores” utilizado para nomear os

funcionários públicos regidos pela Lei nº 8.112/90, inclusive os do Judiciário Federal, denota uma

submissão hierárquica dos servidores. Servidão provem da palavra servitus, que pode ser traduzida

como escravidão ou submissão.

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Em seu livro intitulado Discurso Sobre a Servidão Voluntária, o filósofo Etienne

de la Boétie (1982) afirma que os indivíduos sentem a necessidade de serem servis,

reconhecendo o poder e concedendo poder àqueles que consideram como autoridades.

Isso justificaria, portanto, a sujeição a qualquer um que, na essência, é igual a eles. O

que se poderia explicar, segundo Boétie, pela recusa em se considerarem iguais a Deus,

que os criou à sua imagem. Assim sendo, essa desobediência, dita primária, encontra-se

na origem da desigualdade e do servilismo do homem perante o próprio homem.

Embora Alves e Palmela (2011) interpretem o nome servidor como derivado da

posição de servidão frente ao Estado político, ou ainda, perante a sociedade, a forma

como eles revelam vivenciar o poder no interior do Judiciário parece traduzir, mais

precisamente, uma relação de servidão com os magistrados.

7.5 A SUBMISSÃO E O MEDO DA ESTIGMATIZAÇÃO

Ali embaixo [outro andar do edifício do Judiciário] eu acho que quem pegou

[o questionário] e respondeu, ele marca a pessoa… Aqui você trabalhando,

não chorando, não sentindo dor, você sendo um bom servidor, trabalhando,

cumprindo as sete horas do seu serviço, é nota dez.

Este trecho foi enunciado por uma servidora do Poder Judiciário de ALFA1. Ele

revela o temor percebido por aquela servidora em relação ao preenchimento do

questionário diante de superiores hierárquicos. Sua declaração traz à baila a noção do

medo de uma possível “marcação” de todos aqueles que tiveram a coragem de fazê-lo.

O temor de ser alvo de uma marcação esteve presente desde o momento de

entrega dos questionários da pesquisa encomendada pelo sindicato de ALFA, até a

realização das entrevistas, e influenciou também a decisão dos servidores em se

voluntariarem para participar de entrevistas pessoais.

A despeito do questionário a ser preenchido em ALFA1 ter natureza anônima

(como explicado no Capítulo 5), alguns servidores recusavam-se a preenchê-lo, ou até

mesmo recebê-lo. Talvez esta reação derivasse da mesma apreensão revelada pela

servidora judiciária de cuja entrevista destacou-se o trecho da abertura desta seção. Fato

é que em alguns gabinetes, por exemplo, foi possível sentir o desconforto63 dos

servidores que assessoram o juiz desde o momento de minha chegada e apresentação

oral dos objetivos da pesquisa, que antecedia a entrega dos questionários. Este

63

Um dos motivos pelos quais, como já foi abordado na seção anterior, comecei a baixar o tom de voz

ao apresentar a pesquisa nos gabinetes.

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desconforto traduziu-se na recusa em receber o questionário (nem mesmo para lê-lo e

eventualmente entregar em branco) por parte de grupos inteiros de servidores que

trabalham fisicamente ao lado dos juízes.

Em outras situações, embora os servidores tenham aceitado receber os

questionários, decidiram não preenchê-los. Inúmeros questionários foram devolvidos

totalmente em branco ou incompletos, ou seja, sem as informações pessoais da última

página (que, de igual sorte, não permitiam a identificação do entrevistado, mas tão

somente ajudavam a melhor caracterizar a amostra).

Ademais, em várias oportunidades, ao efetuar a coleta dos questionários já

preenchidos, me deparei com servidores preocupados em misturá-los ou embaralhá-los

com os de seus colegas, antes de inseri-los no envelope destinado para o

armazenamento. Tratava-se de uma tentativa de camuflar ainda mais o questionário que

havia sido preenchido por cada um, a despeito da impossibilidade de identificação do

servidor individual, dado que não havia nenhum campo que permitisse tal feito, e apesar

da explicação oral, na ocasião de entrega dos questionários, sobre o caráter de

confidencialidade da pesquisa. Insisto neste ponto.

Ao apresentar a intenção da investigação em curso para os servidores de cada

seção do Judiciário de ALFA, a equipe de pesquisa reforçava a dimensão de sigilo das

informações e de não necessidade de identificação dos funcionários em etapa alguma da

pesquisa, a começar pelo preenchimento do questionário, que era anônimo.

Adicionalmente, informava-se que os questionários seriam acessados única e

exclusivamente pelos pesquisadores envolvidos, o que significava dizer que nem

mesmo o sindicato local, patrocinador da pesquisa, teria esta permissão.

De forma semelhante, as entrevistas pessoais, quando feitas no prédio do

Judiciário (sempre a pedido do próprio entrevistado, uma vez que a minha opção ideal

era a de realizá-las fora dali) lhes deixavam apreensivos. Olhares atentos a cada vez que

um ruído anunciava a aproximação de alguém e tons de voz mais baixos a cada crítica

ou referência a algum servidor ou autoridade do Poder Judiciário são exemplos de

reações que me levaram a ter esta percepção.

Portanto, estas impressões trazidas pelo campo da pesquisa parecem ter relação

com a expressão “marcação”, empregadas em algumas entrevistas, cujo sentido

oferecido aproxima-se do conceito de estigma.

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Os gregos consideravam os estigmas corporais como expressão de algo não usual

no estatuto moral de quem os incorporava. Tratava-se de um sinal (como marcas ou

cortes) que serviam de advertência para evitar o contato com escravos ou criminosos,

por exemplo.

O sociólogo canadense Erving Goffman (1963), em sua obra Stigma - Notes on

the Management of Spoiled Identity conceitua estigma como “o fenômeno pelo qual um

indivíduo com um atributo profundamente desacreditado pela sua sociedade, é rejeitado

como resultado deste atributo”. Portanto, um comportamento considerado socialmente

inaceitável poderia ser, para o autor, motivo para banir determinados grupos.

Desta sorte, o temor de receber ou preencher um questionário, bem como ser visto

sendo entrevistado no contexto de uma pesquisa que visava obter informações sobre

saúde e trabalho no Poder Judiciário Federal, decorria, em grande medida, da

identificação de um potencial risco de passarem a ser vistos como algo ruim, que deva

ser evitado, estigmatizado como uma ameaça social. O conceito de estigma pode,

portanto, ser aplicado ao contexto do Judiciário.

Entretanto, a evocação da noção de marcação/estigmatização não se resume às

situações que envolviam a execução da pesquisa. Elas revelam somente a dimensão

visível na etapa de observação de campo, de como este conceito se manifesta no

Judiciário. Outras situações dela reveladoras me foram trazidas pelos servidores.

As pessoas que decidem procurar o Sindicato por sentirem algum de seus direitos

atingidos,64 que questionam o modo de funcionamento ou as decisões adotadas dentro

do Sistema Judiciário, também carregam um sentimento de “marcação”. Uma hipótese

geradora de tal sentimento é o fato de que, à semelhança da percepção de Lhuilier(2002)

em sua obra sobre isolamento organizacional (em francês placardization), este grupo de

servidores passa a ser visto como composto de “resistentes” à forma como se

estabelecem as relações no Sistema Judiciário. Sendo considerados estranhos à cultura

da instituição, sua ligação com ela passa então a ser atacada (LHUILIER, 2002, p. 35).

Essa mesma denominação de pessoas marcadas pode ser atribuída àqueles

servidores que estiveram, em determinados momentos de sua trajetória profissional,

afastados do ambiente de trabalho por motivos de doença (algumas das quais

64

Diversos entrevistados de BETA (os quais, cabe lembrar, apelaram ao Sindicato para apresentar suas

demandas, ou seja, tentaram abrir um processo administrativo e judicial contra o Poder Judiciário) se

autorotularam como “marcados” como resultado de terem seus nomes envolvidos em procedimentos

conduzidos pelo Sindicato.

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decorrentes de sofrimento causado no ambiente de trabalho), bem como aos que não

tiveram boas avaliações de seu trabalho.

Diante da inexistência de sinais corporais que sirvam como identificação dos

grupos indesejados no ambiente do Judiciário, uma servidora explica um dos

mecanismos utilizados:

[...] a famosa rádio corredor, né? (...) ”fulano de tal é problemático” (...)

aquela coisa do funcionário mal visto, funcionário que fica indo de uma

seção para outra, que os supervisores ficam sempre colocando à disposição,

porque o funcionário é pô, negligente, falta [ao] serviço, atrasa.

Outro servidor oferece um exemplo de como um profissional que é colocado à

disposição por motivos como negligência, insubordinação, ou desídia, acaba ficando

rotulado:

É aquela coisa... sempre cai no ouvido de alguém e aquele alguém vai

passando adiante. Então, quando ele vai para um outro setor, o supervisor do

outro setor ou o diretor ou o juiz da outra vara, sabe, vamos dizer assim, dá

a folha corrida do funcionário, entendeu? Se ele tem problemas, quais os

problemas que ele tem.

Portanto, embora não tenha caráter físico, os sistemas formais e informais de

comunicação (como a rádio corredor) ajudam na marcação, levando alguns servidores a

carregarem, ao longo de sua trajetória profissional, o histórico de características

indesejadas na instituição. Resta claro também que não são somente os superiores

hierárquicos que contribuem para marcar um servidor. Os próprios pares, contribuem

ativamente para reproduzir o sistema de identificação dos “maus servidores”, que em

oposição à ideia da frase de abertura desta seção sobre um “bom servidor”, seriam

aqueles que, ao causarem um sentimento de frustração das expectativas sociais em torno

dos atores do Judiciário, deram motivos para alguma sorte de marcação.

E quais seriam as consequências de uma possível marcação? O isolamento pode

ser uma delas. Um servidor analisa as consequências de sua atitude combativa, que

acabou por marcá-lo (ou estereotipá-lo, conforme expressão usada pelo próprio):

Me convenço cada vez mais que a minha postura fez com que a minha pessoa

fosse estereotipada aqui dentro. Eu até penso que talvez esse posicionamento

combativo tenha auxiliado aqueles que estão aí há muitos anos, há décadas

nos mesmos cargos, queiram me colocar de lado, vamos dizer assim,

queiram isolar a minha voz.

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Portanto, o sentimento de marginalização pode estar atrelado ao não

enquadramento no padrão de servidores dóceis (FOUCAULT, 1987), que “não sentem

dor”, que “cumprem a carga horária”, ou que não criticam a organização.

Mas o isolamento não é a única consequência possível para um servidor com essa

postura. O medo de ser rotulado está vinculado, em grande medida, ao temor de uma

possível sanção, praticada, por exemplo, via remoção ou pela perda de eventual função

comissionada, tendo em vista a ausência de critérios objetivos que embasem a tomada

de decisão para ambas as ações, conforme será retomado posteriormente.

7.6 RITMO DE TRABALHO: DO CONTEXTO DA PRESSÃO AO ELEVADO

DESEMPENHO

“Eu não gosto de trabalhar sob pressão. Ninguém gosta... mas

eu não podia imaginar que dentro de uma instituição pública,

pudesse haver tamanha pressão”.

“A pressão pela produtividade está causando uma degradação

da saúde física e mental. Até onde vamos aguentar”.65

“A informática tem facilitado em muito a vida do usuário

externo, mas prejudicado sobremaneira o trabalhador”.66

“A carga de trabalho é grande demais para a quantidade normal

de horas. Além de laborar mais horas, tem-se levado trabalho

para casa nos finais de semana. Tem-se investido em

racionalização de procedimentos que não funcionam em

análise de processos (trabalho intelectual). A única solução é

aumentar o número de servidores, já que o número de

processos não vai diminuir. Cabe à Administração encampar

essa meta e junto com o CNJ verificar o melhor meio para

gestão”. 67

No Capítulo 2 foram apresentadas inúmeras obras que revelam a faceta da

sociedade contemporânea, marcada pela globalização econômica, pela força da lei de

mercado e pela “cultura de urgência”, que impõe aos profissionais um ritmo acelerado e

demanda respostas imediatas (AUBERT, 2004, p. 75).

Trata-se de uma relação com o tempo, caracterizada por uma aceleração

constante, relação em que nos frustramos ao tentar, a todo custo, controlá-lo de forma a

tirar, assim, o máximo de proveito e satisfação dentro da lógica capitalista de que

“tempo é dinheiro”. Se, por um lado, a urgência se constitui em uma espécie de

65

Declaração por escrito no questionário entregue em ALFA. 66

Declaração por escrito no questionário entregue em ALFA. 67

Declaração por escrito no questionário entregue em ALFA.

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violência do tempo; por outro, ela dá uma sensação de instantaneidade, que cria a ilusão

de seu controle. Em lugar de usufruir o tempo ganho, oferecido pelas inovações

tecnológicas, os indivíduos sofrem pelo fato de não terem conseguido realmente o

controle almejado (GAULEJAC, 2009, p. 133).

Antes de iniciar a pesquisa de campo da tese, as leituras e as conversas informais

com alguns servidores do Judiciário com quem eu havia estudado na faculdade de

direito, me levaram a definir o pressuposto de pesquisa de que a pressão sofrida no

ambiente de trabalho destacava-se como uma importante explicação para um possível

sentimento de assédio moral.

Adicionalmente, essa pressão parecia, em grande medida, ser fruto da

informatização e das mudanças na forma de gestão recente, após a Reforma do Poder

Judiciário, mencionadas no Capítulo 6. A cada vez que os entrevistados mencionavam

um tipo de sofrimento resultante de um processo de perseguição, com elementos de uma

gestão moderna, eu acreditava que estava no caminho certo, ou seja, que minha

percepção inicial era correta.

Mas, pouco a pouco, ouvidos atentos, me foi sendo informado que, embora

constitua fonte importante de pressão, de perseguição e origem do sentimento de

assédio moral de alguns indivíduos, os depoimentos dos servidores não podem ser

resumidos às mudanças recentes impostas ao Sistema Judiciário. Entretanto, é inegável

que elas vêm ganhando força crescente.

Para entender os reflexos deste contexto de mudança, debrucei-me sobre algumas

obras sugeridas pela sociologia clínica. Em lugar de adentrar inteiramente por uma

ideologia de hipermodernidade caricata, tentei me aproximar dos indivíduos, para

compreender melhor quais são os impactos e as possíveis contradições vividas pelas

pessoas que trabalham no Sistema Judiciário. Tive que me esforçar para não correr o

risco de me alinhar com um discurso ideológico e de ficar presa a um esquema teórico

de hipermodernidade.

Essa possibilidade de pensar diferente me foi dada pelo fato de eu mesma ser

funcionária pública e, de certa maneira, não me reconhecer, ainda, como plenamente

inserida no discurso do indivíduo hipermoderno. Pude explorar, assim, os paradoxos e

os conflitos enfrentados pelos indivíduos que trabalham em instituições públicas que

tentam ou são, em certa medida, obrigadas a se adaptar aos novos discursos da

modernidade.

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A seguir serão explorados com mais detalhes algumas das modificações que vêm

sendo introduzidas o Sistema Judiciário, que acabam por produzir tensões entre a

cultura do serviço público, que lhe é própria, e a nova cultura gerencial.

7.6.1 A pressão pelo alcance das metas

“A Justiça virou uma grande fábrica de processos. [O esforço

das] pessoas inclusive, em termos de trabalho mental, é cada

vez menor. As pessoas não questionam, não existe trabalho

mental. Se tem sentença padrão e vai se reproduzindo em larga

escala”

A mesma servidora que enuncia a frase de abertura desta seção revela outras

consequências negativas do estabelecimento crescente de metas:

[...] dá até pra ter meta, mas (...) não é ter meta, é ter objetivo. É teu objetivo

aqui, “eu quero ver as coisas funcionais que tu tem feito e da melhor

maneira”. Cada um tem um ritmo, colocar meta não é real, não pode ser.

Você está eliminando um colega que não tem o teu ritmo, sabe?

Como será acompanhado ao longo desta e das próximas seções, para alguns

servidores, é como se existisse um “duplo discurso”, uma contradição entre o discurso e

a prática dentro da organização (AUBERT e GAULEJAC, 1991, p. 227).

“Metas”, “produtividade”, “resultados” são jargões que vêm fazendo parte da

“nova linguagem gestionária” (GAULEJAC, 2011 , aplicada ao contexto do Judiciário.

Em busca de uma excelência de resultados, elas vêm, ademais, sendo medidas

prioritariamente de maneira quantitativa.

No que tange ao sofrimento como reflexo do ritmo imposto ao trabalho, é

inegável que parte relaciona-se aos objetivos quantitativos estabelecidos pelo Conselho

Nacional de Justiça. Alguns entrevistados afirmaram ser obrigados a constantemente

terminar o trabalho fora dos horários de funcionamento do Poder Judiciário, dada a

pressão dos juízes e dos superiores hierárquicos para atingir os objetivos impostos.

Um analista que trabalha há vinte anos na Justiça Federal, oferece seu testemunho

sobre a maneira como tem vivenciado as mudanças no Sistema Judiciário:

Olha, a coisa vem vindo, vem caminhando. Eu não sei se eu já estou ficando

muito antigo, a coisa vem caminhando nesse sentido, cada vez mais a

maioria dos setores está se caracterizando por uma cobrança e cada vez

mais nítida, cada vez mais declarada, mais forte.

Mas, a reação face às exigências impostas pelo CNJ não é igual em todo o

Sistema Judiciário. Os funcionários descrevem de diferentes maneiras o impacto por

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eles sentido diante dos objetivos traçados pelo Conselho no âmbito da Reforma do

Judiciário. Segundo eles, as diferenças residem no “modo operante de cada tribunal”, ou

na maneira de trabalhar de cada juiz. Alguns juízes são considerados “mais humanos”

por alguns entrevistados, por não seguirem à risca as normas traçadas pelo CNJ. Por

outro lado, alguns funcionários queixam-se do fato de trabalharem com juízes que

“dirigem com estatísticas”, ou seja, informam e reforçam o quantitativo de decisões que

desejam alcançar no fim do mês, sob a ameaça (explícita ou velada) de punir o

funcionário: “Tem setor lá no tribunal que você tem que fazer X processos por semana.

Se você não fizer, [os juízes dizem]: ‘olha, muito obrigado, mas não quero você aqui

não’. A coisa já está mais ou menos nesse nível”, declara um analista judiciário,

denunciando o uso do mecanismo de remoção como instrumento de punição.

Seu testemunho resume o sentimento em relação às mudanças observadas na

maneira de trabalhar dentro do Judiciário. A reivindicação da sociedade, utilizada como

um dos fatores que levaram à Reforma do Judiciário, a atribuição de tarefas antes

exclusivas do juiz e a pressão por resultados, são os elementos citados por ele:

Por outro lado também, acho que cada tempo mais a Justiça, o Poder

Público é mais cobrado pela sociedade, é mais cobrado pela imprensa e isso

é coisa que também não existia. Talvez isso também esteja pressionando para

uma gama de mudanças que vão sendo implementadas (...) A mudança é

muito grande porque havia uma nítida distinção das tarefas do juiz, das

tarefas do servidor (...) Cada vez mais nós estamos com atribuições que, em

tese, seriam deles… despachar o processo, pesquisar uma jurisprudência,

fazer minutazinha de sentença, isso são coisas que naquela época não

existiam. Naquela época a secretaria processava. O juiz escrevia e a gente

cumpria. Agora não. Agora a gente escreve, ele confere e assina.

Basicamente é isso. Só restando para o juiz a orientação, como se fosse

aquela espécie de estudo dirigido. Ele dá aquela dirigibilidade tal e você tem

que ir fazendo aquilo que antes era mais deles. Isso forçou um

aprimoramento, mais estudo, mais atualização. Por um lado foi bom, por

outro lado é mais cobrança, é mais pressão se você não fizer. Tem lugar que

tem cota de produção e tem isso tudo.

Como a meta de cumprir os objetivos do CNJ causa impacto também na avaliação

dos juízes, os entrevistados referem-se a um tipo de competição estabelecida entre os

gabinetes, o que aumenta a pressão sobre os servidores que convivem,

permanentemente, com a lógica da excelência.

No entanto, merece ressalva que esta situação não varia somente em função do

juiz, como visto anteriormente. Entre os tribunais também percebe-se diferença sazonal

de pressão de trabalho: “Se este questionário fosse respondido em período eleitoral, as

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respostas seriam bem diferentes porque fica tudo mais difícil neste período”, avisa um

servidor do TRE.

7.6.2 Informatização dos processos

No ano de 2006, posterior à edição da Emenda Constitucional nº 45 que originou

a Reforma do Judiciário, editou-se a Lei nº 11.419, que dispõe sobre a informatização

do processo judicial. As principais mudanças exigidas no contexto desta informatização

envolveram a digitalização de documentos e dispensa do uso do papel, o arquivamento e

o manuseio virtual dos autos, bem como o acesso e a transmissão de dados, a prática de

atos processuais e a prestação de serviços judiciários por meio eletrônico, através da

internet.

A informatização dos processos, substituindo o processo judicial físico pelo meio

eletrônico, objetiva oferecer maior celeridade para algumas de suas fases, evitando

“pontos de estrangulamento”, como, por exemplo, a sua tramitação física, acesso a

documentos e consulta das peças.

Por um lado, é inegável que o Poder Judiciário não poderia escapar da onda de

modernização e do uso de recursos tecnológicos e informáticos nos seus procedimentos.

Afinal, teoricamente, eles trazem vantagens que estão alinhadas com alguns princípios

que regem a Administração Pública (já apresentados no Capítulo 6), bem como com os

objetivos impostos pelo CNJ, quais sejam: agilidade, publicidade, acessibilidade,

objetivando uma melhor prestação de serviços para a sociedade e a ampliação ao acesso

à justiça, em linha com o inciso LXXVIII do artigo 5º da Constituição da República

Federativa do Brasil de 1988 - CRFB/88 (SOARES, s/d).

Ademais, esta mudança beneficiou a administração em função da redução de

problemas de saúde derivados do manuseio das pilhas de processos físicos, a exemplo

de doenças respiratórias e de coluna, bem como da diminuição de custos com armários e

carrinhos de transporte de processo.

Por outro lado, avaliar os efeitos das mudanças somente a partir dos aspectos

positivos da sua dimensão tecnológica pode representar um reducionismo, deixando de

lado as consequências das adaptações à nova forma de trabalho exigida por este

contexto. Um servidor queixa-se, por exemplo, de seu setor se vangloriar de ser “o mais

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adiantado nos termos virtuais”,68 às custas de inúmeros sacrifícios de parte dos

servidores.

Do ponto de vista dos servidores, em que pese o avanço representado por estas

mudanças na prestação do serviço Judiciário, muitas vezes a migração para um sistema

em um ambiente virtual têm trazido a reboque outra sorte de consequências físicas

como LER69 ou problemas de visão, decorrentes do uso contínuo do computador.

Embora estas dimensões não tenham sido destacadas com tanta veemência nas

entrevistas realizadas, foram os questionários que revelaram a sua importância:70 “Com

a introdução do processo eletrônico, passo praticamente toda a carga horária

trabalhando com o computador. Tal situação vem gerando dores nas costas, ombros e

punhos”. 71

Ainda outras dimensões presentes na declaração dos servidores, como reflexo das

recentes mudanças trazidas pela Reforma não podem ser perdidas de vista.

7.6.3 O controle dentro e fora do Judiciário

O sistema de acompanhamento processual, a exemplo do E-process mencionado

por alguns entrevistados, se, por um lado, traduz ferramenta de informatização, por

outro, ao retratar em tempo real a movimentação dos processos e abranger quantidade

de informações crescente, permite ao juiz exercer a função de controle:

[...] o juiz para saber quantos processos você tem na sua mesa ele não

precisa nem sair da sala dele, ele acessa a sua mesa pelo computador dele e

vê o que você produziu hoje, quantos [processos] já despachou, quantas

sentenças, quantos ofícios, o que você mandou para quem, foi pra onde,

porque aquele processo está parado há tantos dias. O acompanhamento de

certa forma acontece em tempo real mesmo.

Esta função de controle permitida pelos autos eletrônicos pode ser ressentida

como um instrumento de “vigilância permanente, exaustiva, onipresente, capaz de

tornar tudo visível, mas com a condição de se tornar ela mesma invisível (...) e essa

incessante observação deve se acumular numa série de relatórios e de registros” tal

como o panóptico descrito por Foucault, ou seja, uma prisão caracterizada por uma

68

Implantação dos sistemas virtuais, que se insere dentre as metas listadas pelo CNJ. 69

Lesão por esforço repetitivo. 70

Uma das hipóteses para tanto pode ser o fato da pesquisa do Judiciário de ALFA ter sido feita com a

aplicação inicial de questionários cujo foco era investigar a saúde do trabalhador. 71

Declaração por escrito no questionário entregue em ALFA.

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vigilância constante, e registro de cada ação, sendo possível fonte de punição

(FOUCAULT, 1987, p. 176).

Adicionalmente, por orientação do CNJ, e em atendimento ao controle e princípio

de transparência administrativa e processual, os resultados de cada seção judiciária

passaram a ser publicados na página daquele órgão e em suas próprias páginas da

internet. O CNJ passou a publicar, a partir de 2004, o relatório “Justiça em números”,

que apresenta a toda a sociedade, informações sobre processos distribuídos e julgados

(permitindo o cálculo de taxa de congestionamento de processos), cargos de juízes

ocupados, número de habitantes por juiz.72 Estas informações permitem que os

servidores e juízes possam ser cobrados, portanto, não só internamente, pelo Tribunal,

mas pelos usuários do sistema, como advogados, cidadãos e outros órgãos de controle

(MELO, 2012).

Nas páginas de alguns tribunais é possível, a qualquer cidadão, acionar um atalho

com o nome de “Produtividade dos magistrados”, onde constam dados desde o ano de

2009. Na opinião de um dos dirigentes do Sindicato de BETA, a intenção é atender a

uma demanda de transparência a qualquer custo:

É aquela coisa de mostrar pro Público, que a Justiça funciona. Eu demorei a

entender isso, por quê? Porque na empresa privada, pelo menos, o objetivo é

claro. Qual o objetivo da empresa privada? É o lucro. Eu quero produção, eu

quero dinheiro, eu quero faturar, eu tenho que ganhar. Mas a Justiça

Federal, assim, não tem fins lucrativos. Como dizem, é servir ao público, é

um serviço público, então a imagem que ela quer preservar é: “eu sirvo bem

ao público”. Mas tem que botar assim “(vírgula) mesmo que eu tenha que

sacrificar todos os meus funcionários”. Que, por incrível que pareça também

é público, né?.

Entretanto, o instrumento de poder que parece derivar deste controle social,

apresenta uma dimensão que não é tão explícita quanto os números produzidos: a

impossibilidade de fazer frente ou questionar publicamente o que vem sendo pedido ao

corpo funcional do Judiciário, ou seja, alcance de metas, rapidez, produtividade. A

explanação da percepção destas demandas como nefastas, poderia reforçar o estigma do

servidor público do Judiciário como profissional descomprometido com os princípios de

eficiência, moralidade e efetividade, que se encontram por trás da busca de uma

prestação jurisdicional benéfica para a sociedade.

72

CNJ. Justiça em números. Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/programas-de-a-a-z/eficiencia-

modernizacao-e-transparencia/pj-justica-em-numeros. Acesso em: 03/08/2012.

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Esta situação de introdução de novas práticas acaba revelando algumas

contradições para os servidores, que embora não apareçam de forma explícita no

discurso de alguns, são revelados pelo sentimento de angústia, confusão e sofrimento:

- Como lidar com o fato de que exista uma transformação em curso, que vale para

todo o Sistema Judiciário, ou melhor, para toda a Administração Pública, mas saber que

existem diferentes graus e formas de cobrança que não derivam da personalidade do

juiz, mas da forma como estas figuras entendem a relação entre o poder do CNJ, o seu

poder e o poder do cidadão de exigir não só um trabalho célere, mas uma decisão de

conflitos bem analisada e fundamentada;

- Como vivenciar um contexto intermediário, no qual as cobranças pelo alcance de

metas quantitativas não necessariamente se traduzem em um reconhecimento, dado que,

por um lado, o sistema de avaliação por objetivos parece não existir e, por outro, a

atribuição de instrumentos de reconhecimento, como funções comissionadas,

permanecem tendo natureza eminentemente subjetiva? Este ponto será melhor tratado

mais adiante.

- Como entender as exigências contraditórias, de uso imperativo de meios que

acelerem a oferta de resultados para a população, sabendo que não necessariamente eles

irão ao encontro à atividade-fim do Judiciário, qual seja, resolver os conflitos de

maneira justa, seja para os cidadãos, seja do ponto de vista de conflitos internos ao

Judiciário.

- De que forma enfrentar a sensação de que, a despeito da cobrança crescente por

resultados, as exigências de uma melhor administração que vem a reboque não estarem

sendo cumpridas?

Esta última fonte de contradição será analisada na seção a seguir.

7.6.4 As contradições entre o discurso e a prática: a reforma gerencial sem

gerentes.

“Um administrador tem que ser um administrador. O diretor

que está aqui ele teria que ser um administrador.”

O discurso da eficiência exige o desenvolvimento de novos modelos de gestão na

organização Judiciária que permitam que se logre atender aos níveis de excelência

esperados. Essa preocupação vem sendo alvo de numerosos estudos que, consoante ao

discurso gerencialista, discutem a expectativa de que o juiz desenvolva competências

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gerenciais e de liderança alinhadas ao novo modelo judiciário planejado com a Reforma

Judiciária.

Aliada à queixa de pressão por resultados, o fato de que os cargos de direção não

são ocupados exclusivamente por pessoas formadas para tanto, gera críticas e

questionamentos por parte dos servidores entrevistados.

Normalmente os juízes são ineficientes como administradores. A nossa

formação de direito não é uma formação voltada para a eficiência (...) A

gente fica mais no plano abstrato discutindo o que é justiça e aplicando a lei,

não é voltado para alocação de recursos financeiros, de pessoal. Eu acho

que nós, bacharéis em direito, nós somos ineficientes como administradoras

de uma maneira geral. Pode ter exceções.

O corpo funcional, de alguma maneira, parece vir interiorizando as exigências de

capacitações gerenciais. A fase seguinte a esta interiorização é a percepção da falta de

conhecimentos sobre administração como motivo de não equacionamento da demanda

judicial (MELO, 2012), originando discursos como o que abre esta seção.

Merecem ser destacados alguns resultados encontrados por SANTOS,

CASTILHO e KILIMNIK (2006), em seu estudo junto a Juízes de Direito do Tribunal

de Justiça. A percepção dos entrevistados de sua pesquisa é de que a principal função do

juiz é a jurisdicional, ou seja, a de cumprir a lei ao julgar e conduzir um processo.

Somente “a partir do momento em que assumem o cargo de diretor do foro, eles se

deparam com a realidade do órgão e com as necessidades de um gestor, descobrindo

assim uma função paralela à função jurisdicional, que é a administrativa” (SANTOS,

CASTILHO e KILIMNIK, 2006, s/n). Sentindo-se despreparados, os entrevistados

declararam neste artigo não terem recebido informação suficiente para terem

desenvolvido conhecimento administrativo para gerir o foro, dado que o concurso exige

um preparo técnico jurídico (SANTOS, CASTILHO e KILIMNIK, 2006).

Portanto, o que se percebe é que também se espera do corpo funcional do Poder

Judiciário uma organização tal, que permita alcançar o bom exercício da função

administrativa, sem prejuízo jurisdicional. Com isso, almeja-se atender a uma demanda

apresentada pela sociedade, para quem, agora, presta-se conta das ações e decisões

tomadas dentro do Judiciário (sejam elas jurisdicionais ou administrativas), exigindo

que a visão de servidor público ou agente político leve-os a ultrapassar as fronteiras do

Judiciário.

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7.6.5 O impedimento de ficar doente

Finalmente, no contexto da pressão por resultados de parte desta “fábrica de

processos”, resoluções e portarias73 vêm sendo emitidas e interpretadas pelos dirigentes

sindicais como meios de institucionalizar medidas que visem a uma maior

produtividade, ou legitimar ações e tomadas de decisão que poderiam ser alvo de

questionamento. Um exemplo é a resolução interna de uma seção judiciária que delega

ao diretor de secretaria o poder de, a partir do 31° dia de licença médica de qualquer

servidor, colocá-lo à disposição, sem a necessidade de qualquer justificativa prévia.

Na opinião de um dos diretores do sindicato de ALFA, veda-se, assim, “um direito

constitucional que é o direito de licença. Ele não é só um direito do funcionário público,

é direito constitucional do trabalhador, de todo trabalhador”. Ainda em sua opinião,

trata-se de uma política da área de Recursos Humanos de elevar a produtividade do

servidor, e uma das consequências maléficas é a percepção de que, temeroso em relação

ao lugar para onde possa ser mandado (à luz das questões já tratadas, de ambientes bons

para trabalhar dependerem do juiz, e do fato de que possa ser mandado para localidade

afastada de sua residência, pelo mecanismo de remoção), “há servidores que voltam [a

trabalhar] debilitados, na esperança de não serem colocados à disposição”.

Uma entrevistada confirma esta informação ao falar de sua atual diretoria que, em

prol de “falsos argumentos moralizantes” estaria verificando os casos de licença e

estaria “perseguindo” oficiais de justiça (sua categoria) que se encontram em licença

médica.

7.7 O RECONHECIMENTO

Durante muito tempo eu trabalhei com isso, mas sempre

esperando pelo reconhecimento que poderia vir um dia.

Entendeu? A gente sempre espera por aquele reconhecimento.

Eu recebia retribuição financeira? Recebia, mas faltava o outro,

entendeu? Pra pessoa voltar satisfeita pra casa. O que

acontecia? Eu estava no setor, outra pessoa de fora era

promovida e trazida de fora pra ocupar o lugar dele. Por que

não seria meu, já que eu tinha habilidade com aquilo?

Em todo o tempo de profissão no TRT, nunca recebi um elogio

motivador por parte da chefia.74

73

Documentos internos que visam a estabelecer regras de funcionamento e procedimentos da

administração do tribunal. 74

Declaração por escrito no questionário entregue em ALFA.

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161

Numa empresa privada você vai distribuir [dinheiro] conforme

o lucro que o empregado está dando pra ti. Você não vai

demitir uma pessoa competente, nunca. O dono da empresa,

que vamos dizer assim, é o juiz, ele, mesmo que fosse ideia do

diretor botar o competente, a pessoa que dá lucro pra fora, o

dono da empresa não deixaria jamais. O juiz deixa, porque ele

não precisa do lucro. A empresa pública não sai do bolso dele.

A questão do reconhecimento no Sistema Judiciário pode ser analisada sob

diversos pontos de vista. Ele desempenha um papel chave na motivação laboral e na

transformação do sofrimento em prazer no trabalho. No momento em que o

reconhecimento exigido pelos trabalhadores é atingido, ele dá sentido ao sofrimento e

causa interferência na construção da identidade do sujeito (DEJOURS, 2007). Se os

funcionários não alcançam o reconhecimento almejado, não conseguem se apropriar do

sentido de sua relação com sua atividade profissional, e se veem reduzidos a uma

situação de sofrimento que pode levar à desintegração de sua identidade (DEJOURS,

2007).

A retribuição esperada pelo trabalhador, nos dizeres de Dejours (2004) tem caráter

material e simbólico. A dimensão de reconhecimento mais flagrante é a financeira, que

reflete a estratégia material de reconhecimento. Não é por menos que a dinâmica de

atribuição de funções comissionadas75, como já abordado, é uma das grandes fontes de

descontentamento revelado por diversos servidores. O não recebimento da função

comissionada, quando se considera meritório, especialmente em comparação com o

servidor a quem ela é atribuída gera frustração e desmotivação em alguns servidores

A comparação com o sistema privado aparece em alguns discursos de servidores

que se ressentem da ausência de um sistema que privilegie o mérito daqueles que são

considerados engajados no trabalho do Judiciário. Barbosa (1996) recorda que a

administração pública brasileira se desenvolveu baseada na ideia de meritocracia. Um

exemplo é o estabelecimento do critério do concurso público que traz de maneira

implícita o princípio da impessoalidade e anonimato, garantindo, teoricamente, a

seleção por mérito pessoal. Entretanto, embora o serviço público brasileiro encontre-se

aparelhado sob a forma de um sistema meritocrático (tanto para o ingresso quanto para a

mobilidade interna), a avaliação acaba sendo usada como instrumento de punição, na

opinião da autora.

75

Vale lembrar que em muitos casos, a função comissionada representa parcela importante da composição

da remuneração dos servidores.

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162

No tocante à remuneração, as funções comissionadas (atribuídas ou retiradas

pelos chefes, sem que haja explicações ou regras específicas para isso), muitas vezes

não são percebidas, segundo os entrevistados, como resultantes do reconhecimento do

trabalho realizado pelos funcionários. São, ao contrário, vivenciadas como uma forma

de o juiz demonstrar seu poder e exigir submissão:

Eu sempre falo: “gratificação hoje você está recebendo, amanhã você não tá.

Você nunca deve fazer plano em cima da gratificação, sempre em cima do

seu salário. Mas a galera quer comprar carro importado e não sei o que lá

por causa da gratificação, está ganhando bem. Depois a pressão vem e por

medo de perder a gratificação e poder honrar seus compromissos, daí pronto

meu amigo, o estresse mental vem”. Outro servidor avalia: “Você dá uma

função comissionada a ele [servidor] e ele vai se calar porque ele recebe um

adicional de salário que não contará para a aposentadoria, mas que ele

recebe naquele momento. Então (...) se ele abre a boca, é a porta, você

entende? Se eu mostro meu descontentamento, eu vou perder a função

comissionada, então eu fico calado.

Dado que a função comissionada representa suplemento salarial bastante

significativo, particularmente para os funcionários de nível técnico (podendo chegar a

valores próximos ao dobro do salário-base), os servidores convivem com a insegurança

de sofrer sua eventual retirada. Em decorrência deste temor, muitos deles policiam-se

para não darem motivos para não ganhar ou perder a função. Uma técnica que

testemunhava situações de assédio moral em seu ambiente de trabalho lembra como

reagiu ao receber uma função:

Primeiro era só eu vendo, presenciando, que já não era legal. Daí, ele

[diretor] me passou pro atendimento, eu ganhei uma função muito boa. Aí eu

pensei: “eu posso aguentar mais alguma coisa, [fico] enquanto eu puder

agüentar”. É uma função que eu sem curso superior, nunca vou conseguir

ganhar.

A função comissionada serve não só para silenciar os servidores. Existe também a

percepção de que a sua atribuição permite enfrentar a não realização no trabalho

Pode ocorrer de o funcionário aceitar uma função comissionada que não lhe

interessa apenas pela “remuneração adicional” associada. Um técnico diz:

Eu aceitei [a função comissionada] por questões simplesmente financeiras,

mas eu não me sinto feliz no departamento de informática, e amaria

trabalhar na parte administrativa, porque é onde eu poderia me exprimir,

utilizando conhecimentos que eu adquiri ao longo dos anos. É uma formação

na qual eu investi ao longo de muitos anos, mas ela não é bem aproveitada.

Formado em direito, este técnico sente que sua capacidade não foi aproveitada no

âmbito da Justiça Eleitoral. Ele atribui seu caso específico ao fato de a Justiça Eleitoral,

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pela especificidade de suas atividades, ter natureza particular, e não propor muitas

rotinas ligadas diretamente à área jurídica, ao contrário da Justiça Federal e da Justiça

do Trabalho.

Embora na opinião de diversos servidores, as funções comissionadas não

representem uma forma de reconhecimento do trabalho realizado pelos funcionários,

esta visão não é unânime dentro do Poder Judiciário. Alguns juízes podem estar mais

propensos a cumprir o objetivo original das funções comissionadas: recompensar os

méritos. O único juiz que foi entrevistado para esta pesquisa, declarou:

As funções comissionadas são gratificações que nem todo mundo da Vara vai

receber. Eu acho que é um instrumento da administração, quer dizer, você

tem que ter gente que assuma responsabilidades. Felizmente ou infelizmente,

a vida é assim, nem todo mundo está disposto a assumir responsabilidades. A

gente tem que respeitar isso. Tem gente que quer ganhar o salário, vir

trabalhar honestamente algumas horas e não quer abraçar nenhuma causa,

quer só trabalhar para sobreviver, quer ter outras coisas, quer ficar com os

filhos, vai jogar bola, tocar violão. Isso é ótimo, o cara é feliz desse jeito.

Tem outros que não (...). tem gente ali que é só balconista da loja e tem gente

que se sente dono da loja, dono no bom sentido, o cara que chega cedo para

abrir a loja e a gente precisa disso, precisa de quem abra a loja, de quem se

preocupa se fechou, se preocupe com o dia de amanhã (...) é impossível você

absorver tudo isso. Precisa realmente ter pessoas, para o teu negócio

funcionar e você também ter uma vida um pouco mais confortável, um pouco

mais saudável, você precisa de gente assim, que é um instrumento de

administração (...) você vai colocar nas mãos daquelas pessoas que você vê

que pegaram a chave da loja, estão com a chave da loja no bolso. [Mas], às

vezes o cara não está a fim de trabalhar e bota nas funções as pessoas que

dão para ele esse conforto de ele não trabalhar. É tudo a mesma coisa. Você

tem que decidir se aquilo é teu ou se aquilo é da sociedade e você está ali só

para fazer aquilo funcionar. Se você chega à conclusão de que aquilo ali não

é seu, que você está ali para fazer funcionar, você vai usar as funções

comissionadas para fazer o negócio funcionar. Deixo muito claro isso para

quem trabalha comigo, eu estou aqui para fazer o negócio funcionar Quer

seu meu amigo? Faz funcionar também. Agora, se o cara está disposto a não

trabalhar, a ficar no conforto e por aí adiante, ele vai usar isso pra esse

objetivo. Não é algo, esses instrumentos não fazem parte de outro sistema, é

tudo a mesma coisa. É tudo interligado e você vai decidir para o que serve

aquilo.

Do seu ponto de vista, portanto, a função comissionada pode sim funcionar como

um instrumento de reconhecimento, se aproximando do conceito de “norma da justiça”

de Dubet et al. (1996), e por isso não deveria ser contestada pelos atores envolvidos.

Dubet et al. (1996). entendem o mérito como “a única maneira de construir

desigualdades justas dentro de uma sociedade que, por outro lado, valoriza a igualdade

fundamental dos indivíduos” (DUBET et al., 1996, p. 21).

Entretanto, assim como Dejours (2004) chama a atenção, a retribuição esperada

pelos servidores não se resume à contrapartida monetária. Ela também abarca a

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retribuição de ordem simbólica como é o caso, por exemplo, da gratidão, ao se

reconhecer a contribuição que os servidores oferecem à organização judiciária.

Um servidor judiciário, por exemplo, vincula o reconhecimento a um

agradecimento:

Não é a questão salarial, entendeu? Porque já existe salário fixo. Tem a

função comissionada? Tem, é um dos reconhecimentos, mas assim, é... (...) te

agradecer, entendeu? “Pô fulaninho, que bom que você fez tal trabalho. Eu

sou diretor, fulano é juiz, mas nós sabemos que nós somos porque vocês estão

fazendo isso aqui” (...) porque está todo mundo trabalhando, a gente

trabalhou, todo mundo trabalhou pra manter gente lá em cima. E eu sempre

lá embaixo. Se tivesse no mínimo isso, entendeu? Um reconhecimento nesse

sentido ia ser tudo mais leve.

Portanto, alguns servidores não identificam nem a recompensa financeira nem

outros sinais de reconhecimento visíveis e valorizantes. Se alguns servidores temem

perder suas funções, outros falam de sua busca pelo reconhecimento que pode estar

combinada com um superinvestimento no trabalho, revelando outra faceta da dimensão

do reconhecimento como fonte de dominação (DEJOURS, 2006). Seria uma maneira de

compensar uma inferioridade, preencher uma falta, pagar uma dívida, como diz

Gaulejac (1987, p. 200).

Um técnico judiciário que havia conseguido, depois de anos de trabalho, a

oportunidade de assessorar um juiz, atividade desejada há tempos, avalia:

Eu trabalhava acima do que eu achava que eu deveria, pra forçar o

reconhecimento. Entendeu? Então assim, aquela situação de você não ser

filho de juiz e não ser puxa saco, eu achava que eu tinha que compensar de

alguma forma: trabalhando. Na crença de que de dessa forma eu estaria

garantido.

No caso anterior, o superinvestimento parece ser função de um sentimento de

“compensação” do fato de não figurar no rol daqueles que, no entendimento do servidor,

tem seu reconhecimento “garantido”. Mas, ele também pode ser resultante de um

sentimento de “dívida” diante de uma percepção de reconhecimento, como pondera uma

analista judiciária:

Mas nessa época... quando eu ganhei a função (...) igual a de Oficial de

Gabinete, que ela [a juíza] me valorizou, aí eu achei que eu estava em dívida

e continuei a trabalhar também. “Agora estou em dívida”, eu pensei, porque

ela me deu uma função dessa...

Logo o sentimento de injustiça vem acompanhado de duas reações proporcionais

à amplitude da decepção. A pessoa que comparativamente recebeu mais experimenta um

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sentimento de culpa e a que menos recebeu, de indignação (KELLERHALS;

LANGUIN, 2008).

7.7.1 O reconhecimento da atividade-fim do Judiciário

A sensação de falta de reconhecimento aparece também ligada à estigmatização da

classe de funcionários do Poder Judiciário. No imaginário da sociedade,

corriqueiramente, atribui-se ao funcionário público os qualificativos depreciativos de

parasita, oportunista e ineficaz (VENEU, 1990; FRANÇA, 1993). A ideia de que se

desperdiça dinheiro público com o número excessivo de servidores também é frequente

(DALLARI, 1989; TAVARES, 2003, FERREIRA e KITSUWA, 2010).

Alguns servidores negam esta imagem, como é o caso daqueles que se sentem

vítimas das mudanças recentes no Sistema Judiciário. Outros atribuem a imagem

negativa à própria estrutura do Judiciário. Para uma servidora,

A Justiça Federal tem um nível de servidor (...) Os servidores são bons, eles

trabalham. O que acontece é que ela é morosa, não adianta. O servidor

trabalha, mas ela ainda é morosa. A Justiça Federal cresceu muito (...) Eu

não vejo que não trabalha. Só tem que (...) ele [o servidor] tem o horário

dele. Não é a mesma coisa que a iniciativa privada. O servidor não se mata,

não se doa totalmente à instituição. Ele trabalha naquele horário, mas não

deixa de trabalhar, não. Inclusive tem alguns diretores de secretaria que

ficam pós-expediente, como é o dr. XXXXX que é um juiz que trabalhava

muito e a gente acabava tendo que trabalhar.

Como decorrência desta percepção, alguns entrevistados afirmam que não se

sentem reconhecidos nem pelos seus superiores hierárquicos, nem pela sociedade e que

sentem vergonha de dizer que trabalham no Sistema Judiciário:

Eu morro de vergonha de dizer e não digo que sou servidora pública da

Justiça Federal. Eu digo que sou servidora pública porque, quando ouço

críticas, como quando fui ao médico e ele me falou um bando de críticas, eu

só tinha que concordar com ele. Eu não abri a minha boca, porque ele tinha

razão em tudo. Era uma palhaçada, porque a Justiça se ocupa de pequenas

coisas e os grandes que cometem grandes crimes não respondem.

A citação anterior revela a impressão de ter um “trabalho sujo” (DUBET et al.,

2006, p. 196) que domina alguns servidores. Essa falta de reconhecimento é sentida

pelos funcionários quando acreditam que seu “status simbólico degradou-se” (DUBET

et al., 2006, p. 200), quando a sociedade os trata como representantes de uma instituição

pela qual ela não sente respeito. A vergonha está, portanto, vinculada ao reconhecimento

da dignidade e da utilidade de seu trabalho. O que eles parecem desejar é “ter um nome

e um rosto que independam de sua função, querem que sua competência e suas

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necessidades sejam reconhecidas e suas sugestões ouvidas” (DUBET et al., 2006, p.

39).

7.7.2 O reconhecimento no contexto do assédio moral

Alguns autores como Gaulejac (2008) e Prata (2008) inserem a questão do

reconhecimento em suas discussões sobre assédio moral. Para Gaulejac (2008), o

assédio encontra suas causas fundamentalmente em três fontes principais que acabam

por causar pressão sobre a organização: as distâncias que separam os objetivos

determinados pelas empresas e os reais meios oferecidos para alcançá-los, o que é

prescrito pela empresa e as atividades desempenhadas pelos trabalhadores e o que se

ambiciona de recompensa e as retribuições efetivamente recebidas.

No momento em que as expectativas são frustradas instala-se um ressentimento e

a tensão criada pela pressão no trabalho oferece ingredientes que permite a criação de

situações de assédio ou cerco (GAULEJAC, 2008).

A inclusão do reconhecimento (sua busca ou sua ausência) no rol das atitudes

presentes em situações de assédio moral não é frequente na literatura dedicada a este

assunto. Prata (2008) chama a atenção de que embora o reconhecimento não esteja

explícito nem nas legislações já existentes, ele pode ser listado ao lado de

situações/métodos mais comumente relacionados ao assédio moral, como ofensas. O

maior problema no seu tratamento é o fato de, por estar incorporado às relações sociais,

muitas vezes ter sua vinculação ao assédio moral dificultada, em especial quando visto

de forma isolada, descontextualizada.

O desejo de reconhecimento e a busca por justiça ou, como a denomina Gaulejac

em seu livro La lutte de places, a “recusa do desprezo”, manifestaram-se em todas as

entrevistas que fiz no âmbito do Judiciário.

7.8 “TRATADOS COMO OBJETOS”

A expressão acima caracteriza o sentimento manifestado por inúmeros

entrevistados.

As constantes remoções por decisão dos superiores e as perdas “arbitrárias” de

funções comissionadas, são exemplos de atos que causam, entre os servidores, a

sensação de estarem sendo tratados como objetos. Os sujeitos se sentem como parte de

um sistema que os percebe como elementos descartáveis, ideia que se aproxima da

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imagem de “lenços de papel usados”, citada por Aubert e Pagès (1989) na obra Le stress

professionnel. Nesses casos, “o indivíduo, dentro do sistema, não tem mais nenhum

valor ‘humano’” e sente-se completamente descartável (AUBERT; PAGÈS, 1989, p.

185).

Uma servidora remete-se, em diversos momentos de sua entrevista, à imagem e à

sensação causada pela maneira como soube, por uma colega, que, “da noite para o

dia”,76 ela não integraria mais a equipe de um departamento do Judiciário: “Eu fui

tratada como parte de seu mobiliário. Isso desvaloriza a pessoa”.

O fato de ser comunicada formalmente sobre uma decisão de remoção por

intermédio de um documento oficial que chega sempre “na sexta-feira às 17 horas”77 ou

no próprio dia da remoção provoca um sentimento de ter sido vítima de uma profunda

violência. Os servidores que passaram por experiência desta natureza sentiram sua

existência social reduzida ao status de um objeto, sentimento este que resulta da

negação do outro como sujeito (GAULEJAC, 1997a, p. 264).

A habituação do desrespeito leva ao que Honneth (2008) chama de reificação, que

é quando se olvida o reconhecimento da pessoa humana, considerado original, trata-se o

outro somente como objeto (HONNETH, 2008).

A questão do poder permeia estas situações. Além disso, sua demonstração, com

reflexos na sensação de tratamento como “objeto” não se resume aos níveis verticais.

Em certas ocasiões resulta também da luta pelo poder entre “pares”. Perder “seu”

funcionário permitindo que ele mude de área ou não, também se refere a uma

demonstração de poder dentro da instituição e perante os chefes, diretores ou juízes com

os quais, às vezes, concorrem. Devo dizer aqui que, mesmo que a questão do poder não

se resuma a isso, existe o fato de que os juízes passam por uma avaliação que,

dependendo dos resultados alcançados por seu gabinete, pode lhes valer uma promoção.

Portanto, deixar um funcionário partir pode significar, por exemplo, não ter outro para

substituí-lo ou correr o risco de receber alguém “menos produtivo”.

A técnica judiciária, de cujo relato selecionei a expressão “tratados como meros

objetos” para introduzir esta seção, recordou-se do período em que permaneceu em

disponibilidade, durante meses seguidos, enquanto esperava a solução de um conflito

entre os juízes relacionado com a sua vaga. Ela observava a disputa “de cima para

76

No sentido de repentinamente. 77

Expressão usada por um servidor judiciário para dizer que ocorreu quando menos se esperava.

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baixo” aguardando a decisão de qual dos dois juízes poderia levar “o móvel [ela]” para

seu departamento.

Os servidores declaram que, frequentemente, diante de um pedido para mudar de

posto, o juiz impõe a condição de encontrar outra pessoa para ocupar o cargo. Conforme

alguns depoimentos, essa busca é comumente feita pelo próprio funcionário e não pelo

departamento de Recursos Humanos do Sistema Judiciário. Existe, então, uma tentativa

de convencimento de parte a parte, entre juízes e servidores, destacando as vantagens de

cada mudança:

Logo, eu diria que você não passa num concurso para ser funcionário do

Governo, mas sim que você é funcionário de “tal juiz”, e eu não tinha

consciência disso. Aliás, ninguém tem, porque é uma coisa louca. Logo (...)

pela maioria dos juízes você só sai se outra pessoa te substitui.

Se o sinal de poder resulta no sentimento de ser tratado como um objeto de

decisão pessoal do juiz, acrescenta-se que o fato de não se sentirem prioridade provoca-

lhes sensação de violência.

Os funcionários que não se sentem “priorizados” também atribuem esta percepção

ao fato de trabalharem com uma infraestrutura inadequada, que, por sua vez, seria fruto

de uma gestão de recursos orientada para manter o poder. Uma servidora faz seu

diagnóstico:

Eu percebi que eles não pagaram a empresa de manutenção... nós ficamos

sem elevador por falta de manutenção. É uma falta de crédito, falta de

dinheiro, mas eles gastaram uma fortuna para inaugurar o novo edifício que

vai ter o nome deles na placa.

Mas, como ocorre o processo de percepção das fontes de sofrimento no

Judiciário? As seções que se seguem aprofundarão o debate em torno da questão de

idealização, elemento fundamental da construção do projeto de ser dos servidores.

7.9 A IMAGEM IDEALIZADA DO SERVIÇO PÚBLICO, DO TRABALHO DOS

SERVIDORES E DO SISTEMA JUDICIÁRIO FEDERAL

Eu entrei no Judiciário com um “Complexo de Cinderela”, não no sentido do

conto, mas de um tipo de “Complexo de Cinderela” que consiste em pensar

que tudo é perfeito.

Meu Deus, este edifício foi tão bem reformado que deve ser um lugar incrível

para trabalhar. Os trabalhadores daqui devem ser felizes (...) se eles fizeram

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isso com o edifício, imagina o que eles não podem fazer com a vida das

pessoas?78

Segundo pesquisa feita pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística)

em 2009, cerca de 10 milhões de pessoas estudaram em casa ou em um curso

preparatório para algum concurso público realizado naquele ano.79 Percebe-se ainda que

um contingente cada vez maior de recém-formados nas universidades sequer ingressa

no mercado de trabalho, objetivando se preparar desde cedo para concursos públicos.

Neste contexto, o concurso para ingresso no Sistema Judiciário Federal tem sido

cada vez mais disputado (FERRO, 2008), dado que a carreira pública no Brasil é vista

pelos candidatos como uma das melhores alternativas para aqueles que perderam seus

empregos, aqueles que desejam estabilidade, e os que já têm um emprego, mas almejam

segurança ou melhores salários.

De forma recorrente os entrevistados afirmam ter ingressado no serviço público

em busca, entre outras coisas, de uma solução para problemas de instabilidade

econômica, de desemprego, ou, ainda, de insatisfação com o ritmo de trabalho

estressante de suas experiências profissionais anteriores. Estes anseios contribuem para

a produção de uma imagem idealizada do Sistema Judiciário Federal. É preciso,

portanto, retomar o sentido de idealização.

A idealização é um processo psíquico que envolve a magnificação, a superestima

e a sobrevalorização do objeto (ou de si mesmo, visto como objeto) (BOURDIN, 2010,

p. 39). O dicionário de psicanálise define-a como

[...] um processo psíquico, através do qual o valor e as qualidades do objeto

são elevados a perfeição. A identificação com o objeto idealizado contribui

para a formação e o enriquecimento das instâncias ditas ideais da pessoa (o

eu ideal, o ideal do eu) (LA PLANCHE, 1967, p. 186).

Em seu trabalho, Bonnet (2010) se pergunta por que os seres humanos gostam de

“valorizar alguns objetos mais do que outros” e argumenta que

[...] isso é, em princípio, fruto de uma experiência de prazer muito precoce e

hoje esquecida, que deu ao indivíduo a impressão de que a satisfação

78

É o que responde uma servidora ao ser indagada sobre o que a motivou a prestar concurso para o

Judiciário. A entrevistada lembrou que, desde nova, quando viu como um antigo edifício havia sido

reformado para abrigar um dos órgãos do Judiciário, teve a percepção de que aquela instituição era

capaz de mudar a vida das pessoas que ali trabalhassem, para melhor. 79

AQUINO, W.; NICACIO, A.; GUEDES, F. Concurso: o sonho da estabilidade. Disponível em:

<http://www.istoe.com.br/reportagens/46397_CONCURSO+O+SONHO+DA+ESTABILIDADE>.

Acesso em: 30/01/2010.

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experimentada em determinado momento foi vital, necessária, insubstituível

e de que nenhuma outra poderia igualá-la (BONNET, 2010, p. 30).

A idealização tem a característica de “ser facilmente superdimensionada”. Uma

vez que ela se converte em prazer, há a tendência de inflar a idealização

exponencialmente, e o indivíduo perde, então, seus pontos de referência, chegando

muitas vezes a reações delirantes (BONNET, 2010, p. 31).

Isso faz parte, também, do sentimento de pertencer a uma instituição importante

por sua finalidade. Como escreve Linhart (2008),

[...] o sentimento de pertencer a uma grande entidade que se impõe por ser

poderosa, pela amplitude de seus conhecimentos globais e técnicos e pelo

alcance de suas metas, é, sem dúvida, constitutivo de uma identidade

particular (LINHART, 2008).

O investimento e o interesse inicial no trabalho judiciário formam um conjunto

com a oportunidade de estabilidade no emprego, a possibilidade de fazer carreira na

mesma empresa e a responsabilidade profissional e social de seu trabalho.

Alguns servidores declararam haver passado em concursos para várias instituições

públicas e o fato de que, antes mesmo de integrar o Sistema Judiciário, já possuíam uma

imagem idealizada da carreira de funcionário público, sobretudo em relação à

estabilidade, é claro nos depoimentos.

Mas, o que afinal os servidores querem dizer por estabilidade?

Instituto previsto no artigo 41 da CRFB/88, ela se traduz na garantia de

permanência dos servidores na Administração Pública, decorrido o cumprimento do

estágio probatório de três anos (período compreendido entre o início do exercício e a

aquisição da estabilidade), seguido de avaliação. Este prazo exigido visa permitir a

apuração das condições para exercício do cargo pelos funcionários no que se refere às

dimensões de moralidade, assiduidade, disciplina e eficiência (DI PIETRO, 2008).

Entretanto, embora seja visto como privilégio, sendo alvo frequente de críticas

lançadas pela sociedade, merece registro que ao lado da alusão à estabilidade no

emprego do servidor público, a CRFB/88 reserva espaço para a previsão de perda do

cargo pelos servidores nos casos que se enquadrarem naqueles elencados no artigo 41, §

1º e no artigo 169 § 4º da CRFB/88.

Para Vicente Paulo e Marcelo Alexandrino (2007, p 248), a preocupação trazida

pelo instituto da estabilidade na CRFB/88 era de evitar que servidores públicos, no

exercício de suas funções fossem vítimas de qualquer sorte de pressões ou ingerências

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políticas, visando o favorecimento de alguém, em detrimento do interesse público.

Ademais, objetivava permitir a profissionalização dos quadros de servidores, o que se

tornaria inviável caso eles estivessem à mercê de cortes de pessoal decorrentes de trocas

de governo.

Às vezes substituído pela palavra “segurança”, o termo “estabilidade”

constantemente evocado ao longo das entrevistas revela dimensões que extrapolam o

seu conceito na seara do Direito Administrativo. Para alguns ele refere-se à dimensão

“financeira”. Um servidor lembra que o que o levou a prestar concurso para a sua atual

instituição foi o fato de enxergar a oportunidade profissional como uma “bolsa de

estudos”, ou seja, uma possibilidade de, a partir de sua “independência financeira”,

continuar estudando para outros concursos, tendo em vista a sua “bem compensada”

jornada de trabalho de sete horas. Seu depoimento revela o que foi visto em muitas

entrevistas, especialmente de profissionais que ingressaram nos níveis técnicos do

Judiciário, que não exige formação superior, ou analistas, que não trabalham com a

atividade-fim do Judiciário: a busca por uma estabilidade financeira, “independente da

instituição”.

Uma analista que trabalha na área de informática da Justiça Federal de ALFA

recorda-se do momento em que prestava concursos, entre eles o daquela instituição:

“Fiz do Ministério Público do Estado, passei. Fiz da Justiça e passei (...) acabei

optando de vir para cá. Só que (...) como muita gente [que prestou o concurso], no

início não sabia o que era Justiça Federal”. Esta mesma entrevistada enfatiza que antes

de ingressar no Judiciário, trabalhou na iniciativa privada, onde “quem tinha um salário

melhor tinha dois empregos”. Não era um futuro que desejava para si, e por isso decidiu

buscar uma situação de “estabilidade com relação ao mercado”.

Como pode ser percebido no trecho anterior, frequentemente o termo estabilidade

é usado num contexto de clivagem entre o mal, que representaria o mercado, e o bem,

que seria o serviço público, ou o Judiciário, idealizado no momento de prestação do

concurso.

Outra analista, ao fazer uma comparação com a atividade advocatícia, enaltece a

dimensão de “estabilidade emocional” no fato de ser servidora do Judiciário. Essa

dimensão, em sua fala, reflete-se na clareza do objetivo final de pacificação social, por

um lado, e na possibilidade de melhor planejar a rotina de trabalho, no que se refere a

“horário”, “dinheiro”, ou seja, salário e “férias”, diferentemente da atividade

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advocatícia, que se baseia na ação constante de “angariar clientes”, por outro. Enquanto

o advogado precisa “lidar com convencimento”, o servidor tem com objetivo “fazer o

melhor, sempre”.

Voltando ao conceito do processo de idealização, o que poderá ser visto ao longo

das próximas seções, e nos casos individuais, é seu aspecto de superdimensionamento

mencionado por Bonnet (2010). Este processo que pode iniciar antes mesmo do

ingresso no Sistema Judiciário, dado o imaginário e as expectativas carregadas pelos

candidatos inscritos em seus concursos, muitas vezes é reforçado por experiências

iniciais depois de suas posses.

A seção a seguir ajudará a ilustrar o papel de terceiros na formação da imagem

idealizada do trabalho como servidor público.

7.10 A ESCOLHA DE SER SERVIDOR PÚBLICO E O PROJETO PARENTAL

Grande parte da minha família são servidores públicos, meus tios, tenho dez

tios e tias (...) onze irmãos (...) Todos, no mínimo, já passaram pelo serviço

público, desses onze.

A minha mãe sempre frisou: ´o importante é ter caráter´. Isso com certeza

moldou a minha relação com o serviço público. Eu não estou na Justiça por

um acaso, estou porque acredito no serviço público.

Meu pai era funcionário público e ele pensa que o serviço público é a única

forma de ter sucesso e de poder se aposentar com tranquilidade.

A família, os amigos e os responsáveis pela formação escolar dos, hoje, servidores

do Judiciário exerceram grande influência na construção de uma imagem idealizada do

serviço público, bem como na decisão de seguir uma carreira pública naquela

instituição. O discurso de que a função pública (não importa em que instituição) é uma

boa solução e uma excelente escolha profissional começa, muitas vezes, já na infância,

através da família, continua na universidade pelos professores e, mais tarde, encontra

eco nos amigos e círculos sociais.

Os discursos familiares parecem seguir a mesma direção, de enaltecer o serviço

público, apesar de eventualmente basearem-se em diferentes experiências e motivações.

Familiares que já tenham trabalhado em instituições públicas recomendam-nas como

boa opção profissional tendo em vista suas experiências positivas passadas e a

preocupação com a incerteza do mercado privado de trabalho, que em alguns casos pode

também ter sido motivadora para a escolha de uma carreira pública. Thélot (1982),

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analisando a sociedade francesa, entendeu que “existe mais ou menos o dobro de chance

de trabalhar no setor público se seu pai nele já trabalhou”, percentual este que pode ser

ainda maior à proporção que se sobe na escala de postos públicos (THÉLOT, 1982, p.

129).

Por outro lado, familiares que tiveram uma trajetória marcada, por exemplo, por

dificuldades de natureza financeira, atribuídas ao fato de trabalharem na iniciativa

privada, ajudam seus entes próximos a construir uma imagem idealizada do serviço

público como meio de evitar problemas de ordem econômica, possibilitando a

configuração de uma nova trajetória familiar. Este tipo de discurso sustentado não só

pela família, mas também pela sociedade em geral, reforça a clivagem entre os setores

público e privado.

Na família de certos funcionários, passar em um concurso público é símbolo de

sucesso familiar. Ver os filhos ascenderem ou se manterem no alto da escala social é

motivo de orgulho para os pais. Seguir em outra direção poderia significar, portanto, o

que Gaulejac (1987) chama de fracasso familiar (GAULEJAC, 1987, p. 33).

Um analista judiciário recorda que o apoio familiar remonta à sua escolha de

cursar a faculdade de direito, entendida como fundamental para a decisão de seguir a

carreira pública: “quando fui fazer vestibular, eu tinha dezessete anos (...) estava em

dúvida (...) não sabia se fazia arquitetura que eu adorava (...) Aí, minha mãe disse

assim: ‘faz direito. Faz direito que tu não vai te arrepender’”.80

Nesse caso, a idealização da carreira pública começou antes mesmo do ingresso

na universidade. Isso ilustra a influência que a família exerce sobre o estudante, sob o

pretexto de que cursar direito lhe garantirá amplo acesso ao emprego público ao

concluir os estudos universitários.

O exemplo do analista é representativo do discurso contraditório de que

[...] o filho realize todos os desejos que os pais não puderam satisfazer, que

faça tudo aquilo que eles não puderam fazer, que ele seja “alguém” ou seja

“outro”, por um lado e, por outro, que ele seja a continuação de suas vidas,

que ele se encontre nos pais, que se torne aquilo que eles são, que faça aquilo

que eles fizeram (GAULEJAC, 1987, p. 57).

Trata-se da ideia de projeto parental, que para Freud (1914) se insere no desejo da

imortalidade, da melhoria de vida através do filho, de realizar antigos sonhos e projetos.

80

No Brasil, a maioria dos concursos públicos (para a formação de funcionários públicos para diversas

instituições) que exigem formação superior, incluem, entre outras, a área do Direito.

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174

Outro servidor declara, em uma passagem de sua entrevista:

Minha mãe tem muito orgulho de mim, o meu pai também (...) Quando eu

desisti do curso de Engenharia para ir pro curso de Letras eles entraram em

desespero. Porque, de uma certa forma, por eles serem de classe média,

também sempre buscaram para os filhos a solidez, a segurança, a

estabilidade. O engenheiro vai ter isso, o professor de línguas não. Então

eles entraram em desespero. Depois eu passei no TRE e eles ficaram mais

tranquilos e quando fiz Direito eles retomaram o discurso tradicional,

porque o Direito é um curso tradicional, “agora então ele vai deslanchar”

[pensaram eles].

Em seu livro Destinos pessoais e estrutura de classe, Bertaux (1997) lança a

hipótese de que “as condições de trabalho, de salário e de vida dos funcionários os

levam a produzir novos funcionários através de seus filhos” (BERTAUX, 1977, p. 108 .

Bertaux (1997) mostra que a influência das famílias de funcionários públicos na

escolha dos filhos por seguir a carreira pública baseia-se, em muitos casos, também na

observação do cotidiano dos pais. Frequentemente as crianças conviviam com a imagem

de que o trabalho do funcionário público não é cansativo, dado que seus pais

retornavam ao lar com energia suficiente para o resto do dia. Este fator permitia às mães

trabalhar fora de casa sem negligenciar a organização da vida familiar (BERTAUX,

1977, p. 108).

Os pais também podem dar a ideia de que a vida profissional do funcionário

público segue uma carreira estruturada sobre a qual “poder-se-ia predizer, sem grandes

erros, as etapas a serem percorridas. A carreira conduz o indivíduo como uma esteira

rolante até a aposentadoria; ela traça uma linha ligeiramente ascendente, uma linha

suave, que chega a um limite, mas que se sabe, com certeza, jamais descenderá”

(BERTAUX, 1977, p. 106, 107). Esta dimensão oferece a segurança de saber o que o

profissional pode esperar de seu futuro dentro da Administração Pública.

O projeto parental é composto de desejos conscientes e inconscientes dos pais em

relação aos filhos, mas há também a importância do projeto social “portador das

aspirações do meio familiar e social, aspirações condicionadas por um contexto social

que favorece ou impede sua realização” (GAULEJAC, 1987, p. 55 . Trata-se, portanto,

de um

[...] projeto resultante do complexo sociopsicológico que reúne o nível

arcaico de constituição da idealização, o nível afetivo a partir do qual o

indivíduo se desenvolve por identificação ou diferenciação como resultado da

imitação das pessoas amadas, o nível ideológico a partir do qual o filho

assimila os valores, as normas e o ethos de seus modelos de identificação e

rejeita os antimodelos (GAULEJAC, 1987, p. 55).

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7.11 A CONFIRMAÇÃO DA IDEALIZAÇÃO INICIAL

Os funcionários entrevistados são, de um modo geral, indivíduos que procuraram

na carreira pública uma solução para os problemas da instabilidade econômica, do

desemprego, do descontentamento com o ritmo estressante em suas experiências

profissionais anteriores, de ausência de uma perspectiva de aumento salarial ou de

reconhecimento nos empregos anteriores, entre outros fatores.

Destarte, eles estão frequentemente à procura de uma “solução para suas vidas” e

encontram na carreira de funcionário público do Sistema Judiciário Federal uma

oportunidade de estabilidade, nos diversos significados que a expressão oferece

(conforme visto em seção anterior). Muitos, depois de ali ingressarem, acreditam ver

confirmada a imagem que idealizaram do Judiciário.

Em alguns casos, a primeira ou as primeiras experiências de trabalho no Judiciário

ocorrem em um local que, por ter um bom clima organizacional, por oferecer um leque

de oportunidade de aprendizado através de trabalho em atividades instigantes, entre

outros fatores (como as entrevistas individuais permitirão mostrar com mais detalhes),

dão aos funcionários a impressão de haver tido, já de início, a “chance” de estar

alocados em setores que consideram excelentes e de trabalhar em um quadro que está de

acordo com o que idealizaram.

Isso permite que “confirmem” suas expectativas e a imagem ideal iniciais. Uma

analista declara, ao lembrar de quando debutou no Judiciário:

Entrei iludida e o que eu enxerguei colaborou pra eu ter essa visão positiva,

né? Dessa Vara onde eu trabalhava. Naquela primeira. Durante muitos anos

se confirmou aquela visão de cada um dar o melhor. O objetivo do processo

era a satisfação do direito da parte e pronto. Se tu tiver isso sempre em

mente, não precisa nada mais. Eu tinha isso, eu enxergava isso. Depois eu fui

enxergando coisas meio estranhas e eu fui tentar entender porque as pessoas

agem assim e daí é o ego, né? É o ego. As pessoas fazem concurso pra juiz,

não é pra ser juiz, porque eles não se consideram servidores. Fazem pra ter o

nome numa placa, pra ter seu nome.

Um dos servidores entrevistados, ao descrever o que pensava do trabalho no

Sistema Judiciário, quando ali ingressou, diz: “os juízes são perfeitos, não existe

corrupção na Justiça”, completando com a seguinte reflexão: “aqui [no Judiciário]

não, isto não pode acontecer. Fora [do Judiciário], talvez”. Hoje, seu discurso sobre o

trabalho no Sistema Judiciário Federal é outro:

Aqui estamos decepcionados (...) vendo o perfil dos juízes de não ter

preparação para seus cargos. Eles não têm preparação para a vida, nem

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para a profissão. Eles passam em concursos somente pelo status ou por

dinheiro ou não sei o quê. Eu não vejo a responsabilidade social.

Ainda outro servidor, depois de vinte anos de serviço, recorda seus sentimentos no

início da carreira:

Eu adorava, eu me sentia muito importante, quer dizer, eu sou um

funcionário público federal, eu pertenço à Justiça. Eu estava muito contente

com esta situação, de verdade era muito importante para mim. Isto não quer

dizer que não é mais importante, mas a percepção mudou muito após todos

estes anos.

Os trechos apresentados carregam um discurso nostálgico de um passado marcado

por uma ilusão, por um encantamento e por experiências iniciais que só vem a

confirmar as expectativas reveladas nos discursos dos entrevistados em relação à

decisão de prestarem concurso público.

Entretanto, nas mesmas passagens é possível perceber que a saudade de um

passado glorioso frequentemente aparece em contraste com um discurso de “desencanto

com o Judiciário” (ver seção 7.12.), de um presente sombrio e desagradável.

Se a empresa (e também outras instituições) tentam assegurar a fidelidade de

seus membros, o que sabemos bem (...) é que ela é lugar de imaginário e que

somente o imaginário permite criar a cortina de ilusão necessária ao

estabelecimento da crença (ENRIQUEZ, 1997, p. 75).

Com esta frase, Enriquez (1997) inicia o terceiro capítulo de sua obra Le jeux du

pouvoir et du désir dans l’entreprise, onde demonstra que as empresas, de maneira

muito sutil, sabem jogar com os desejos mais profundos do ser humano.

Gaulejac lembra que

[...] as organizações são, inicialmente, projeções de sentidos que tomam

forma nas normas, nos procedimentos, dispositivos, instrumentos de gestão,

formas espaciais, processos de decisão (GAULEJAC, 2011, p. 284).

É a noção

[...] de imaginário organizacional que pode dar conta da imbricação entre as

dimensões objetiva e subjetiva, o concreto e o abstrato, o nível material e o

simbólico, a exterioridade e a interioridade, o mundo das imagens e o que é o

mundo real (GAULEJAC, 2011, p. 284).

Por um lado, a organização, que tem duas faces, oferece uma imagem enganadora,

que desperta ilusões ao se mostrar capaz de corresponder aos sentimentos dos

indivíduos (suas angústias, desejos, fantasmas, necessidades) (ENRIQUEZ, 1992, p.

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37). Ao fazê-lo, a empresa substitui a imagem de seus membros e tende a ocupar “a

totalidade dos seus espaços psíquicos” (ENRIQUEZ, 1990, p. 213).

Por outro lado, há um imaginário motor, pois a empresa desempenha o papel de

geradora das ações, que dá aos indivíduos espaço para seu imaginário criativo sem os

aprisionar em regras imperativas (ENRIQUEZ, 1992, p. 37).

Entre os dois, a empresa tende a desenvolver, sobretudo uma imagem falsa, uma

vez que o imaginário motor exige a existência de instâncias que favoreçam a liberdade

da palavra, a permissão para questionar, para interrogar, para um atividade reflexiva, o

que representa um desafio para o funcionamento das empresas (ENRIQUEZ, 1990, p.

214).

A empresa constrói, portanto, uma realidade aparente (falsa) que os indivíduos

consideram verdadeira. Porém, quando a máscara cai, quando o imaginário se revela

uma farsa e o indivíduo se confronta com a realidade da organização e consigo mesmo,

a linha de fratura aparece (ENRIQUEZ, 1992). “Ele vai ser assim duplamente

enganado, sem se dar conta: pelo seu fantasma e pela crença em uma organização que

porta seu próprio ideal (sabendo que a organização não pode ser, ela mesma, uma parte

além de uma criação imaginária)” (ENRIQUEZ, 1997, p. 93).

Esse imaginário cega (ENRIQUEZ, 1997, p. 90) as pessoas que nele creem e, por

isso, os servidores só começam a se interrogar acerca de sua experiência de mal-estar no

ambiente laboral e, efetivamente, a viver uma etapa de desencanto ou um processo de

desidealização quando enfrentam um momento de crise pessoal no Sistema Judiciário.

A análise desse processo será retomada e aprofundada nos casos individuais do

próximo capítulo, onde procurarei tecer uma ligação entre o nível social e o

funcionamento psíquico.

7.12 O DESENCANTO COMO PROCESSO DE DESIDEALIZAÇÃO

“O desencanto é muito grande com o Judiciário”

“Encontra-se prazer em idealizar, assim como em desidealizar” (BOURDIN,

2010, p. 31). Este duplo movimento permite evitar que o indivíduo permaneça sob o

domínio de determinados objetos importantes em certos momentos de sua

existência (BOURDIN, 2010, p. 31).

O processo de desidealização é identificado como gradativo, semelhante ao

“acordar do sonho de conto de fadas”. Um servidor explica como ocorreu em seu caso:

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Perceber como é a realidade é uma construção que dura muitos anos. Você

verá primeiro as relações, os atos (...) o Poder Judiciário é igualmente muito

tradicional, às vezes tem um lado de hábitos ruins, e as pessoas não se dão

conta. Nós começamos a ver pouco a pouco, a nos indignar, a criticar, a

aumentar a voz (...) nós construímos este desencantamento com o tempo,

porque nos damos conta que existem vícios, hábitos, tradições, que não

mudam. Quando eles mudam, é muito pouco.

A palavra desencanto é citada várias vezes nas entrevistas dos servidores, no

sentido oposto ao estado de encantamento inicial (tal como no conto de fadas a que a

entrevistada faz referência: Cinderela). A comparação com momentos de idealização

inicial leva alguns membros do Sistema Judiciário a sustentarem um discurso

nostálgico. Um funcionário, depois de vinte anos de serviço, recorda seus sentimentos

no início da carreira:

Eu gostava muito. Eu me achava muito importante, tipo assim, eu sou

funcionário público, sou federal, sou da justiça. Eu era muito feliz com

aquela situação, realmente era muito significativo aquilo pra mim. Não que

não seja agora, mas o enfoque muda bastante depois desse tempo todo.

Outro servidor reforça a sensação trazida pela mudança:

[...] a gente começa a passar de uma fase de deslumbramento a uma fase de

preocupação, será que eu estou cumprindo direito o meu papel? Será que eu

fiz o que eu tinha que fazer hoje? Será que ao longo da semana aquilo que eu

programei eu efetivamente vou conseguir dar conta? As responsabilidades

aumentaram, mesmo porque eu progredi na carreira. A visão mudou bastante

também. Eu não posso dizer a partir de que momento, eu posso dizer que é

um processo, é uma coisa que vai caminhando e hoje eu vejo a Justiça de

uma forma um pouco diferente do que eu via no começo (...) Hoje, eu vejo

como uma repartição muito cobrada, muito fiscalizada, que se esforça para

cumprir suas metas, aquilo que você programou, mas que por outro lado se

tornou desumana com seus próprios quadros. Eu entendo um pouco dessa

forma também.

Para alguns funcionários a desidealização é reflexo das transformações recentes

pelas quais vem passando o Sistema Judiciário, mas que não é percebida de maneira

uniforme por todo o seu corpo funcional, o que em parte resulta da existência de

micropoderes em seu interior.

Um técnico judiciário afirma que ficou decepcionado a partir do momento em que

se deu conta da maneira como ocorre o processo de reconhecimento do trabalho no

Sistema Judiciário. Ele decidiu cursar a faculdade de Direito estimulado pelos próprios

chefes que, na época, justificavam a falta de oportunidade de progredir na carreira pela

ausência de uma formação jurídica. Mas, depois de ter investido em sua formação e uma

vez tendo concluído o curso, até hoje ele se mostra insatisfeito com a função que ocupa

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no tribunal. Sente que sua capacidade e seus conhecimentos jurídicos adquiridos na

faculdade de Direito, são subutilizados, e que as oportunidades são oferecidas com base

em critérios pessoais e não em virtude das qualificações: “não vejo esperança nesse

sentido, está tudo dominado. Está tudo mapeado. Está tudo loteado. Então, é por isso o

desencanto”.

Idealização e desidealização podem estar ligadas também aos conceitos de

contrato narcisista e psicológico. O conceito de contrato narcisista tem sua origem na

psicanálise. É a ideia de que cada um, em cada geração, assimila o essencial do que foi

pensado e lhe foi transmitido, o que faz com que, efetivamente, cada um tenha sua

importância no processo de transformação (KAËS, 2003).

Nicole Aubert e Vincent de Gaulejac, no livro Le coût de l’excellence, utilizam o

conceito de contrato narcisista como uma forma de contrato estabelecido entre o

indivíduo e a empresa. Por um lado, a empresa propõe ao indivíduo

[...] um certo modo de se comportar, uma certa maneira de ser e de agir para

progredir e alcançar o objetivo e exige que ele invista sua energia (libido) em

um projeto determinado (AUBERT; GAULEJAC, 1992, p. 192).

Por outro lado, a empresa “lhe oferece reconhecimento, o sentimento de pertencer a ela,

valorização dele mesmo e de sua função” (AUBERT; GAULEJAC, 1992, p. 192). A

simbiose entre as exigências da empresa e o reconhecimento de seu trabalho

representam a concretização de seu ideal de sucesso.

O conceito de contrato narcisista utilizado segundo Aubert e Gaulejac (1992)

aproxima-se do conceito de contrato psicológico, que, por sua vez, é aplicado em

diversos trabalhos na área de gestão.

Em seu Psychological Contracts in Organization: Understanding Written and

Unwritten Agreements, considerado uma referência no assunto, a autora Denise M.

Rousseau define o contrato psicológico como “crenças individuais, geradas pela

organização, com base nos termos de uma convenção de troca entre indivíduos e sua

empresa”. Rousseau explica que

[...] um aspecto chave do contrato psicológico é que ele pressupõe uma

concordância individual voluntária em fazer e respeitar certas promessas

como ele ou ela o entende. É o que o indivíduo acredita em relação ao acordo

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passado e não o que projeta, essa é a essência do contrato.81

(ROUSSEAU,

392, p. 403).

Pelos depoimentos dos entrevistados, a motivação para prestar concurso para

ingressar no Sistema Judiciário é fortemente baseada no desejo de estabilidade,

conforme visto na seção 7.9. Portanto, esta dimensão parece traduzir-se em um

importante componente do contrato psicológico tacitamente acordado pelos servidores

quando iniciam seu trabalho no Judiciário. Entretanto, com o tempo de exercício da

profissão vêm as incertezas, seja em relação à possibilidade de manutenção de eventuais

funções comissionadas, seja em relação à expectativa de manter ou mudar para um bom

ambiente de trabalho dentro do Judiciário.

A dimensão de estabilidade é posta em xeque, uma vez que é “o juiz que ambienta

cada departamento de acordo com sua vontade” e eles mudam de localidade de tempos

em tempos. Põe-se em jogo a estabilidade emocional dos funcionários. Um servidor diz:

“Minha visão mudou muito. Agora é ‘até quando?’ A carreira dos juízes também não é

estável, eles nunca ficam na mesma vara, então, até quando aquela vara vai ter aquela

imagem?”

A partir do momento em que os servidores começam a perceber que há retração

em relação a uma situação anterior, algum grau de repressão do desejo, eles passam a ter

a impressão de estarem perdendo seu brilho, de estarem se transformando em meros

objetos.

7.13 AS CONSEQUÊNCIAS DA DESIDEALIZAÇÃO E DO SOFRIMENTO NO

AMBIENTE DO JUDICIÁRIO

Eu acordava de manhã e não tinha a mínima vontade de ir trabalhar. Eu

dormia muito pouco, tinha gastrite, úlcera, dores de cabeça, não dormia. Eu

dormia pensando em trabalho e levantava pensando em trabalho. (...) Eu

comia mal, me exercitava mal

81

A aplicação do conceito de contrato psicológico em diversas pesquisas desenvolveu-se no transcurso

dos anos 1980, no contexto da globalização e do meio competitivo que obrigou muitas empresas a

reduzir suas despesas e a reestruturar sua organização e seu programa de gestão. Postos de trabalho

foram suprimidos, promoções foram revistas e os empregados que mantiveram seus cargos, mas cujo

contrato psicológico permaneceu igual ao modelo anterior das empresas, adquiriram um sentimento

de insegurança, pederam a confiança e passaram a odiar a organização responsável pela destruição

unilateral do contrato psicológio. O contrato psicológico tem um caráter mais subjetivo do que o

contrato legal.

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O desequilíbrio psicológico afetou muitos servidores entrevistados. Um deles me

contou sobre sua tentativa de suicídio ao ser impedido por um juiz de mudar de área:

“me parece que aquela chama que eu tinha, se apagou (...) é claro que eu faço

acompanhamento terapêutico por causa do serviço público”.

“Chama apagada”, “brilho perdido” (expressões utilizadas por Manoela, caso que

será analisado com mais detalhes no Capítulo 8), são exemplos de expressões

empregadas para comparar as situações anterior, de idealização, de ilusão, e posterior,

de desidealização, de desilusão. Uma servidora conta: “eu amava o meu trabalho.

Agora, eu não quero mais ficar aqui”. Ela recorda que sempre alimentou o projeto de

trabalhar no setor público ao citar as vantagens de uma possível mudança para outro

cargo, através de novo concurso, para o Ministério Público: “No Ministério Público,

também vou encontrar a política, mas eu terei mais autonomia (...) eu me senti muito

desvalorizada [no Judiciário], é muito humilhante (...) Eu vou me dedicar ao que eu

queria antes [Ministério Público], eu vou voltar aos meus antigos projetos”.

A percepção do Judiciário como um ambiente que gera sofrimento leva alguns

servidores a decidir pela mudança de prioridade entre o trabalho e a família. Alguns

expressam arrependimento por um superinvestimento feito “em vão”, e passam a basear

seus discursos na priorização de dimensões que deixaram de lado.

Uma servidora avalia: “Eu mudei, no sentido de que agora eu dou mais valor à

minha vida familiar que à minha relação com o trabalho. Eu sempre fui uma pessoa que

me dedicava ao trabalho e eu acho que lhe dei mais importância do que eu deveria. E

como este problema [referindo-se a um problema que fez com que tivesse se sentido

desrespeitada no ambiente de trabalho] me tocou profundamente, eu vou separar a

casa do trabalho. Eu não faço mais horas do que eu devo. Eu prefiro ficar em casa. Eu

tento ao máximo não misturar as duas dimensões, pois eu tinha tendência a misturá-las.

Eu voltava muito tarde para casa”.

Ao serem perguntados sobre como se sentem hoje, diversos servidores

mencionam dimensões como submissão, resultante da resignação. Alguns assumem que

hoje, fruto do sofrimento constante dentro do Judiciário, passaram a aceitar as situações

com que se defrontam, geradoras de algum grau de sofrimento. “A resignação é um

modo de sobrevivência que aprisiona o indivíduo, atormentando-o e o destruindo pouco

a pouco”, diz Dubet (2006, p. 418).

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Em consequência desse processo, os servidores passam de um estado de

autonomia a um estado agentique, conceito utilizado por Milgram (1974), que

[...] designa a condição de uma vontade alheia em contraposição ao estado de

autonomia, (...). Um indivíduo se encontra em estado agentique de tal

maneira que aceita o controle total de uma pessoa com status mais elevado.

Neste caso, ele não se crê mais responsável por seus atos. Ele se vê como um

simples instrumento destinado a executar as vontades do outro (MILGRAM,

1974, p. 167).

Este é o estado agentique como consequência da desidealização, da submissão na

relação com superiores hierárquicos, e sensação de perda de autonomia.

No grupo de servidores que não se identificaram como vítimas de assédio moral,

alguns falam no desejo de deixar a instituição, mas, ao mesmo tempo, tratam-no como

impossível de ser concretizado.

Com base no que foi dito e retratado nesta seção, parece que os servidores buscam

o sentido e a coerência perdidos em consequência do sofrimento (BARUS-MICHEL,

2004).

Dar um novo sentido às suas vidas fora do Judiciário pode funcionar como uma

escapatória e a capacidade de resistir ou de superar as situações vividas depende em

grande medida de cada indivíduo e de sua própria trajetória, como será abordado no

capítulo a seguir.

Mas, o que se percebe é que, em geral, eles sofrem calados. O medo de uma

eventual retaliação por parte dos superiores hierárquicos impede o desenvolvimento da

prática de diálogo com as chefias (diretores ou juízes, por exemplo), na busca pela

compreensão daquilo que eles entendem como injustiça.

7.14 O IMPEDIMENTO DE PARTIR

Não possuo o trabalho dos meus sonhos, entretanto, devido às condições

pessoais tais como local onde moro, contas a pagar, responsabilidade com os

filhos não posso simplesmente, a esta altura da vida e [frente] às

dificuldades do mercado de trabalho, “chutar o balde”.82

Por isso tenho foco

no pessoal.83

82

Expressão no sentido de largar tudo, deixar tudo de lado. 83

Declaração por escrito no questionário entregue em ALFA.

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Sinto muito, mas não posso ir embora da organização. O salário é bom e

tenho estabilidade. Não seria justo com minha esposa e demais familiares.84

Se eu posso dizer... eu tenho enorme gratidão pelo meu trabalho (...) mesmo

pelas coisas más pelas quais passei, apesar de tudo, tudo o que tenho hoje é

fruto do meu trabalho e da instituição onde eu me encontro, que me deu o

suporte.

Embora o discurso de inúmeros entrevistados pareça caminhar na determinação de

deixar o Judiciário, muitas vezes sua conclusão vai em sentido contrário.

Mas, como eles responderam aos questionamentos, frequentemente trazidos por

mim, de por que permanecem na instituição que lhes causa tanto sofrimento?

A permanência dos servidores no Sistema Judiciário, sujeitando-se a um conjunto

de normas e valores aos quais teceram inúmeras críticas, encontra-se relacionada com

os tipos de vínculos que aí desenvolveram.

Dentre os motivos argumentados em relação ao vínculo dos servidores com a

organização judiciária destacam-se, sobretudo, as questões de ordem econômica. Alguns

servidores evocam a dimensão financeira para justificar a impossibilidade de mudar a

realidade que se coloca, funcionando como uma amarra que os mantém presos ao

Judiciário. Diante disso, isolam-se ou passam a se dedicar a outras atividades, na

tentativa de sobreviver em um ambiente onde o trabalho não tem sentido para eles. Este

movimento acaba sendo interpretado, externamente, como um sinal de “acomodação”,

crítica constante direcionada aos servidores de uma maneira geral.

O sentimento de incapacidade de mudar a situação que se coloca decorre também

da percepção de que não estão prontos para se prepararem para outro concurso e de não

cogitarem mudar (ou voltar) para o ambiente organizacional no setor privado. Essa

decisão não envolve somente a motivação psíquica ou emocional, mas também se

relaciona com as problemáticas que se impõem na conjuntura brasileira, onde, como já

visto, o concurso é uma solução.

Para outros servidores, a postura de permanência é reveladora não somente da

impossibilidade de não trabalhar no Judiciário, mas também da dificuldade em

transformar suas vidas: “Se eu tivesse uma chance de novo, com certeza eu não estaria

aqui. Eu teria ido buscar a minha felicidade, né?”, conta uma servidora, cujo sonho era

ter exercido alguma atividade artística. Manter-se no Judiciário pode, para ela, ser

preferível a enfrentar o desejo não realizado.

84

Declaração por escrito no questionário entregue em ALFA.

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184

Outro servidor justifica:

Decepcionado, desapontado, mas preciso permanecer, porque fiz há anos

atrás essa opção de vida, muito fizeram essa opção de vida. Eu, por exemplo,

sou formado em Direito, poderia largar tudo para advogar, tenho habilitação

na OAB, mas por uma questão de segurança pessoal, familiar até, tenho dois

filhos, não tenho essa ousadia de fazer isso. Mas acreditei durante muitos

anos que eu poderia construir uma carreira aqui dentro, acreditei muito

fortemente e por isso a decepção quando vem o desencantamento de mundo.

A negação de uma realidade desagradável como um mecanismo de defesa foi

utilizado, algumas vezes, pelos entrevistados. Em um mesmo discurso, ela concorre

com as passagens repletas de críticas e de relatos de inúmeros desgostos com o Sistema

Judiciário. Em certas passagens, os entrevistados interrompem a descrição das causas de

seu mal-estar para dizer o quão felizes e orgulhosos se sentem com seu trabalho.

Mas, mesmo que mencionem, em suas entrevistas, motivos que lhes parecem

razoáveis, podemos tentar encontrar outras interpretações plausíveis para a

permanência.

A busca pela justiça, segurança e estabilidade permite uma identificação dos

servidores com a instituição judiciária. Eles amam, acima de tudo, a instituição, que lhes

oferece, a seu ver, a perfeição que almejam para si próprios e, assim, pouco a pouco, “as

qualidades da organização se convertem em qualidades do próprio sujeito” (PAGÈS et

al., 1998, p. 205). A experiência de uma satisfação narcisista surge com a construção de

um ideal do Eu à imagem da finalidade de justiça da organização. Portanto, quando a

organização toma o lugar do ideal do Eu, ela recebe toda a energia dos indivíduos, mas

também os torna submissos (PAGÈS et al., 1998, p. 206). Isso significa que existe não

apenas uma dependência econômica em relação à organização, frequentemente

referenciada pelos entrevistados, mas também uma dependência psicológica iniciada

quando eles provam um sentimento de identidade, em dado momento “ligado à sua

atividade e às suas relações com seu entorno” (PAGÈS et al., 1998, p. 209).

Muitos entrevistados tiveram a chance de confirmar a imagem que faziam do

Judiciário durante suas primeiras experiências na instituição. A sensação de

impedimento de partir, apesar do sentimento de desilusão, pode ser visto como retrato

do exercício do poder das organizações sobre a psiquê dos indivíduos (ENRIQUEZ,

1990).

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7.15 MAS E O ASSÉDIO MORAL?

Ele sempre ridicularizava alguma coisa, roupa, cabelo, família. Antes eu não

tinha essa capacidade de reconhecer, mas hoje eu tenho. (...) Então, ele

jogava uma pessoa contra a outra, fofoca, intrigas, boatos. Ele

ridicularizava alguma característica sua, permitia que as outras pessoas

ridicularizassem você, defendia uns e largava outros. Quem era do grupinho,

era. Quem não era, que se dane.

É dentro desse contexto, onde se descrevem situações de instabilidade e de

consequente insegurança, que surge a expressão assédio moral no discurso de servidores

que se identificam como vítimas.

Sob a forma tradicionalmente estudada, em consonância com as definições

abordadas na teoria sobre o assunto (como já visto no Capítulo 4), o assédio moral

aparece, nas falas dos entrevistados, vinculado às seguintes expressões: “manipulação”,

“coerção”, “ele me ignorava completamente”, “ela me controlava até mesmo quando eu

ia ao banheiro”, “crise”, “humilhações”, “carga de trabalho irrazoável”, “medo”,

“perseguição”, “isolamento”.

Entretanto, estes elementos apareceram de forma coadjuvante nos discursos dos

entrevistados sobre a situação do assédio moral, representando somente a “ponta do

iceberg” da vivência de sofrimento e mal-estar dos servidores. No próximo capítulo

serão fornecidos exemplos mais detalhados sobre situações entendidas como de assédio

moral, vivenciadas por alguns servidores.

O que se pode dizer aqui é que colocando lado a lado os discursos de servidores

que se identificam como vítimas de assédio moral apresentam elementos muito

próximos dos discursos daqueles que não se identificam como tal. Ambos os grupos

falam sobre a estrutura organizacional do Judiciário, a dimensão do poder, do não

reconhecimento como origem do sofrimento, entre outros aspectos, ao se referirem

àquilo que consideram assédio moral ou à origem de sentimentos de sofrimento. Talvez

a nomeação de situações como sendo de assédio moral tenha na verdade, permitido a

alguns servidores oferecer maior legitimidade para seus discursos de sofrimento.

No conjunto, trata-se de discursos em torno de situações justas e injustas

compostas por elementos que podem também ser encontrados em definições e situações

entendidas pela literatura como assédio moral, mesmo que esta expressão não tenha sido

evocada em todas as entrevistas.

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As referências à expressão assédio moral aparecem frequentemente misturadas

com o conceito de justiça. A próxima seção destina-se à exploração deste conceito, e da

forma como ele aparece nos discursos dos entrevistados.

7.16 “A INJUSTIÇA DA JUSTIÇA”

“A Justiça pra mim é assim: Justiça é justiça. As pessoas

devem ser justas, as pessoas trabalham com justiça. Eu estudei

Direito, tinha aquele ideal de igualdade, legalidade, entendeu?

Valores morais? Muita gente em Direito também estudou isso.

Aí você pensa: ‘poxa, você trabalha em uma instituição como

essa? Poxa, que orgulho’. Quando você entra, você já começa a

ver que tem uma coisinha que não está fechando muito bem.

Favoritismo, tipo proteger o filho do desembargador, o filho do

juiz, o amiguinho, não tem nada a ver com Justiça. E você

começa a ver que... vou te dizer que não era aquilo que você

estava pensando. Ganho? Ganha, mas hoje eu vou ser bem

sincero, eu não trabalharia na Justiça. Por quê? Quem não

conhece pode achar muito bom, mas sabendo que o trabalho é

aquilo, é muito triste. Saber que eu trabalho com isso ainda.

Assim, sabendo que eu podia estar fazendo coisas diferentes,

sabe?”

“Você se sente um nada, né? Ficou dezesseis anos [trabalhando

no Judiciário] e você não é nada. Você fica muito triste porque

é uma instituição que era para fazer justiça, né? Na verdade, a

instituição é a Justiça e age de uma forma tão injusta. É uma

injustiça muito grande. Se eu tivesse batido boca, se tivesse

ofendida, se eu tivesse deixado de cumprir alguma ordem, mas

não, foi uma implicância de uma pessoa”.

Em determinado momento de seus discursos, todos os entrevistados se referiram

ao Poder Judiciário como a Justiça. Expressões como “trabalhar na Justiça” e

“injustiça da Justiça”, foram empregadas inúmeras vezes.

Se, por um lado, o uso da expressão no sentido acima mencionado, designando o

Poder Judiciário, revela a utilização do conceito objetivo de Justiça como local de

trabalho; por outro, não se pode minimizar a dimensão subjetiva à qual o seu emprego

também se encontra atrelado.

Justiça é uma palavra que carrega distintos significados e já foi alvo de inúmeras

explorações teóricas. Originada do vocábulo latino iustitia (ou alternativamente

justitia , ela pode ser definida como “conformidade com o Direito, dar a cada um o que

por direito lhe pertence, praticar a equidade” (CARDOSO; TEZZARI; GUATURA,

2011, p. 2).

Frequentemente, a justiça é representada pela deusa romana Justitia (equivalente à

Deusa grega Diké, filha de Zeus e de Themis) que sustenta a espada em uma mão

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(representando coragem, força, regra, ordem e a máxima de “dar a cada um o que é

seu”), uma balança em outra (representando igualdade, equilíbrio e ponderação), e

sustenta uma venda em seus olhos (reforçando a intenção de tratamento igualitário,

imparcial e objetivo). Estes elementos simbólicos intencionam traduzir que idealmente a

lei deveria ser igual para todos e o direito aplicado independentemente do sexo, da

idade, do status econômico, social e de opiniões políticas dos envolvidos.

Portanto, na mitologia já se identifica a tentativa de retratar a ideia de justiça

(PESSOA, 2007). Sem intencionar recuperar o desenvolvimento e os debates em torno

do conceito de justiça desde a filosofia grega até os autores contemporâneos, optou-se

por dedicar os próximos parágrafos à apresentação de algumas variações teóricas

existentes. Elas permitirão revelar distintas óticas que ajudam a avançar na resposta à

seguinte indagação: Qual seria o significado atribuído pelos servidores à palavra justiça,

quando a empregam em seus discursos, a exemplo dos trechos apresentadas no início

desta seção?

Inúmeros estudos apresentam a evolução da ideia de justiça de forma a auxiliar o

legislador, diante da amplitude de definições existentes, a optar pelo critério que irá

seguir, a partir de uma opção ideológica.

Nalini (2008) analisa a justiça a partir das teorias cognoscitivas e não

cognoscitivas. As primeiras podem ser subdivididas nas doutrinas naturalistas,

racionalistas e intuicionistas.

Para o grupo de naturalistas, a justiça é uma qualidade pertencente às normas,

fatos ou ações. Tal qual a sensação de frio em relação ao gelo, a justiça seria um atributo

que poderia ser comprovado empiricamente e, portanto, “qualquer pessoa poderia

distinguir o que é justo daquilo que é injusto” (NALINI, 2008, p. 69). Os racionalistas

diferenciam-se dos naturalistas por entenderem que o atributo da justiça revela-se

mediante o uso da razão, não sendo, portanto, alvo de comprovação. A busca da justiça

se daria, na concepção dos racionalistas, na própria racionalidade humana. Para

Immanuel Kant, o fundamento do justo leva a preterir a ordem natural, e o nascimento

do direito decorre justamente da necessidade de existir uma lei universal, jurídica, que

permita a coexistência das liberdades individuais com as dos demais.

Os intuicionistas compõem o terceiro grupo, e diferem-se dos anteriores por não

entenderem que a justiça é empiricamente ou racionalmente demonstrável. Ela seria

reconhecida pela intuição, instrumento privilegiado no processo de conhecimento,

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enquanto “faculdade de perceber, discernir ou pressentir coisas, fatos, acontecimentos,

independentemente do uso do raciocínio ou qualquer outra análise” (NALINI, 2008, p.

70). Os adeptos desta corrente enfatizam o valor do sentimento e da emoção, por meio

dos quais os sujeitos experimentam as sensações de justiça ou de injustiça.

As teorias não cognoscitivas da justiça, por sua vez, negam a possibilidade de

haver um conhecimento dos valores. O fundamento dos valores, para os adeptos desta

corrente, “só poderia ser perquerido na esfera da vontade ou do sentimento” (NALINI,

2008, p. 72).

O primeiro grande subgrupo dos adeptos das teorias não cognoscitivas é o dos

voluntaristas, que reconhecem a primazia da vontade. Uma das formas do voluntarismo

é o materialismo jurídico cujo discurso funda-se na ideia de que os indivíduos ou os

grupos mais fortes são aqueles que impõem as leis, ou seja, o direito representaria a

exteriorização das vontades predominantes. Daí decorre a expressão “a lei do mais

forte”. Outra manifestação do voluntarismo é o contratualismo, cujos adeptos entendem

que as leis teriam origem convencional e resultaria de um acordo de vontades formado

pelos homens livres. O materialismo e o contratualismo confluem no estatismo, sistema

no qual o Estado organiza, regulamenta e direciona a vida sociopolítico e econômica,

identificando-se com o positivismo jurídico, onde o Estado é o exclusivo responsável

pela produção de leis. Finalmente, no contexto das doutrinas voluntaristas destaca-se

ainda o teologismo, de acordo com o qual a justiça tem Deus por princípio e causa

transcendente (e é em sua vontade que se tem que inspirar).

Ainda entre as teorias não cognoscitivas, destaca-se o emotivismo (ou

emocionismo), que pode assumir duas formas: a psicológica e a sociológica. Para a

forma psicológica, dado comportamento será tido como justo caso quem o afirme o

aprove. Para a forma sociológica, por sua vez, isso dependerá da aprovação da maioria

das pessoas que integram o grupo social ao qual pertence quem o afirme.

De maneira geral, portanto, as teorias chamadas cognoscitivas tendem a

“absolutizar o critério de justiça” dada a identificação de critérios objetivos inerentes

aos objetos, sejam eles ações ou normas regulatórias. Por outro lado, as teorias não

cognoscitivas tendem a relativizar o critério de justiça, tomando-o como um critério

subjetivo, “nascido de um ato de vontade ou de um impulso do sentimento”.

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Diante desta amplitude de conceitos de justiça é que o aplicador do direito, que

não se resume à figura do juiz, deve estabelecer seus valores. Trata-se, antes de tudo, de

uma opção ideológica.

A teoria cognoscitiva da interpretação estaria, para PGE (2006), ligada, entre

outras coisas, à sujeição do juiz à lei e ao “mito da certeza do direito”, difundindo a

dogmática positivista do direito, do século XIX. Entretanto, embora esta teoria esteja

atualmente desacreditada entre alguns juristas, ela ainda influencia sobremaneira o

pensamento jurídico e o estilo argumentativo dos tribunais. Algumas concepções

vinculadas a esta teoria permanecem na filosofia do direito contemporâneo, a exemplo

da tese de que “toda questão de direito admite somente uma ‘resposta justa’”.

No que se refere à realidade brasileira, é sabido que historicamente, as instituições

jurídicas aqui situadas são dominadas pela ideologia positivista, baseada na crença da

“legalidade como fundamento de validade das condutas” (PGE, 2006). Neste prisma,

aquilo que se encontra na lei seria verdade e justo.

Enquanto operadores do direito, os servidores são influenciados pela ideologia

adotada no Poder Judiciário brasileiro e, mais especificamente, por aquela eleita pelos

juízes com quem trabalham. Portanto, em seu dia a dia laboral, a depender da “cara”

que o juiz oferece ao seu ambiente de trabalho (recuperando expressão utilizada por um

entrevistado e apresentada anteriormente), o servidor acaba se acostumando a buscar a

justiça através da aplicação do direito de forma mais ou menos absoluta, deixado de

lado a dimensão subjetiva dos critérios de justiça.

Entretanto, ainda que os servidores trabalhem com diferentes perfis de juízes, não

são somente as referências particulares de conduta, tais como as fontes legais objetivas,

que justificam como os sujeitos percebem algo como justo ou injusto. Na base da

explicação desta percepção sobre o que é justo ou não, encontra-se a dimensão

subjetiva, o papel dos valores, crenças, e sentimentos sobre as ações humanas, o que é

alvo da preocupação dos estudos da psicologia social da justiça desde os anos 1960. É

justamente o contexto organizacional do trabalho que se apresenta como tema central de

aplicação dos conhecimentos deste campo de estudos, sob a alcunha de Justiça

Organizacional (ASSMAR et al., 2005).

Assmar et al. (2005, p. 444) definem Justiça Organizacional como “a psicologia

da justiça aplicada aos ambientes organizacionais, sendo focalizadas as percepções de

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justiça existentes nas relações entre trabalhadores e suas organizações”. Ela pode ser

desdobrada em cinco dimensões:

- Justiça distributiva: refere-se à justiça dos resultados alcançados, ou seja, ao conteúdo

das distribuições de recursos, sejam eles positivos ou negativos (como, por exemplo,

bens, serviços, promoções, salários, sanções disciplinares);

- Justiça processual: associada à justiça dos processos e procedimentos adotados para

realizar as distribuições. Logo, a situação será justa, se os procedimentos de decisão são

justos, independente dos resultados;

- Justiça interacional: diz respeito à qualidade do tratamento interpessoal. Sua diferença

para a Justiça processual residiria no fato de que esta refere-se “ao grau com que os

procedimentos formais são desenvolvidos e usados na organização”, ao passo que a

Justiça interacional diria respeito à forma pela qual os procedimentos são postos em

prática;

- Justiça sistêmica: que estabelece vínculo entre a justiça da organização com o sistema

social;

- Justiça redistributiva: cuja preocupação é entender como as pessoas reagem à violação

de normas sociais e são processados os julgamentos sobre responsabilidade e aplicação

de sanções.

Embora a implementação de mudanças organizacionais seja vista como

importante antecedente para a questão de Justiça Organizacional, Assmar et al. (2005)

entendem que a cultura e as políticas organizacionais também devem ser percebidas

como engendradoras de percepções de justiça. Neste sentido caberia a seguinte

indagação: afinal, seriam os servidores mais sensíveis ao tema da Justiça por

pertencerem ao Sistema Judiciário?

Kaës (2003, p. 41) define a tarefa primária das instituições como “sua razão de

ser, sua finalidade, a razão que ela estabelece com os sujeitos: ela não sobrevive sem um

comprometimento. Portanto, a tarefa primária das instituições de tratamento é tratar”.

Nesta linha, a tarefa primordial da instituição judiciária é fazer justiça.

As declarações que compõem a abertura desta seção indicam que, a despeito da

percepção de que nem todos os atores do Judiciário se dedicam à realização da justiça,

esta tarefa primária compõe a expectativa de alguns servidores que trabalham no

Judiciário: “é uma instituição que era para fazer justiça, né?”. Ao terem suas

expectativas frustradas, a instituição passa a não sustentar o narcisismo de alguns de

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seus membros, que passam então a atacá-la, criticá-la, por não perceber como possível,

a realização da tarefa primária que os motivava a ali permanecerem (KAËS, 2003).

Adicionalmente, nos conteúdos das entrevistas também é possível identificar o

sofrimento resultante da percepção de situações como corretas ou erradas, adequadas ou

não. Os servidores, talvez como decorrência de sua relação com a instituição judiciária,

tendem a estabelecer uma clivagem profunda entre o que é considerado justo e injusto.

Algumas das situações identificadas como injustas, reveladoras de contradições no seio

do Judiciário, já foram tratadas ao longo das seções anteriores:

- Existência de salários-base diferenciados entre técnicos e analistas, que, na prática,

exercem as mesmas atividades e podem assumir os mesmos cargos comissionados (um

técnico pode inclusive ser diretor de uma vara, tendo como subalterno um grupo de

analistas, por exemplo);

- Relação interpessoal entre chefias e subordinados baseada no medo, na ameaça e no

uso de instrumentos de poder;

- Aplicação de procedimentos tidos como inadequados (e não explicados) no momento

em que são percebidos como instrumentos de poder (a exemplo da retirada ou oferta

aleatória de funções comissionadas ou remoções);

- Resolução de conflitos ou de demandas feitas pela sociedade ao Judiciário sem trazer

benefício para o elo fraco da relação (especialmente nos casos em que a justificativa foi

dada em atendimento à “letra fria da lei”);

- Existência de instâncias de resolução de conflitos internas (como a Corregedoria)

compostas por diversos representantes dos juízes;

- Demandas crescentes no ambiente de trabalho, sem oferecer condições ideais para a

sua realização.

O sistema de remunerações do Poder Judiciário Federal mostra-se fecundo para a

análise da dimensão da justiça, especialmente no que seriam suas dimensões distributiva

e procedural. Em relação à justiça distributiva, os servidores parecem se preocupar com

a “proporcionalidade entre o que investem no trabalho e na organização e as

recompensas que recebem, comparativamente a outros similares” (ASSMAR, 2005, p.

447).

Independente de ocuparem cargos de técnicos ou analistas, o fato de perderem

funções comissionadas, a despeito do investimento (ou superinvestimento) em seu

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trabalho, os preocupa; assim como a impossibilidade de acessar às informações sobre os

meios pelos quais as decisões de atribuição ou retirada de funções comissionadas são

tomadas, influencia a avaliação sobre a justiça dos procedimentos usados para suas

distribuições. Além do fato de haver uma crença na ideia da “equidade aritmética de

uma troca” (DUBET et al., 2006, p. 22), como base para a remuneração, também é com

a esfera de expectativas de reconhecimento frustradas que se deve fazer a ligação do

sentimento de injustiça (HONNETH, 2008).

À exceção do critério de justiça referente à diferença do salário-base dos analistas

e técnicos, que realizam as mesmas atividades, pode-se dizer que os demais critérios de

justiça dentre os servidores não parece ser afetada por variáveis organizacionais como

escolaridade, salário, tempo de serviço, área de atuação. Seus discursos são uníssonos.

7.17 CONCLUSÃO DAS ANÁLISES TRANSVERSAIS

No presente capítulo propus-me a, inspirada pela postura clínica, explorar o ponto

de vista dos atores individuais entrevistados, sem, no entanto, deixar de circunscrever o

contexto social ou coletivo das representações individuais. A relação dialética entre

estes dois pontos de vista ajuda a enriquecer a compreensão dos elementos trazidos nas

entrevistas (ENRIQUEZ et al., 1993, p. 19).

O objetivo desse capítulo foi o de elaborar uma análise transversal dos elementos

presentes nos discursos de todas as pessoas entrevistadas para esta pesquisa. Não foi por

acaso que a questão do assédio moral, tema original deste trabalho, não tenha aparecido

de forma dominante nesta análise. Mesmo os discursos dos entrevistados de BETA

envolveram diversos outros elementos, embora o assunto assédio moral tenha

predominado nas primeiras conversas, sobretudo em função da metodologia adotada

para a de escolha do grupo (pessoas que entendiam ter passado por situações de assédio

moral). Estes elementos, permanentemente citados na descrição do que seria, para eles,

assédio moral, não necessariamente compõem, como já dito, definições e entendimentos

teóricos sobre o tema. Além disso, eles se repetem, em grande medida, nos discursos de

servidores que não se veem como vítimas de assédio moral ou, ainda, que não se

remeteram a este conceito para explicar uma situação de sofrimento ou de injustiça.

Outrossim, buscamos os elementos que permitiriam compreender como o Poder

Judiciário é interpretado por aqueles que lá trabalham, combinando as dimensões

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relativas ao tema inicial da pesquisa: o assédio moral. O conjunto das entrevistas

ampliou essa questão central.

Além da pressão por resultados, cuja consequência sensível pôde ser percebida na

inquietação de alguns entrevistados, é possível identificar um sentimento de injustiça

relacionado aos problemas no sistema de remuneração, que não estão vinculados ao

desempenho ou as questões de poder no seio de instituições consideradas burocráticas,

mas que caminham em direção a um modelo gestionário. Há uma mudança de regras e

de interpretação das já existentes, em função de uma nova orientação voltada para a

“cultura de urgência”. O paradoxo vivido pelos funcionários em meio a tal situação foi

considerado uma espécie de intimidação. Eles definem, então, como injustas “todas as

situações que violam sua própria realização no trabalho” (DUBET et al., 2006, p. 26).

O capítulo a seguir será dedicado à apresentação e à análise das dimensões sociais

e psíquicas de três entrevistas com funcionários do Judiciário que se consideram vítimas

de assédio moral. Será feita uma articulação com alguns elementos evidenciados ao

longo do presente capítulo à luz da história de vida de cada servidor.

Não se pretende dar um tom representativo às entrevistas. Trata-se de material

que, por um lado, ajuda a ilustrar dimensões que, de alguma forma, foram tratadas ao

longo das análises transversais. Por outro, permite evidenciar que se os indivíduos são

produtos de uma história, ela é composta por fatores sociais que interferem no processo

de socialização e por fatores intrapsíquicos que ajudam no desenvolvimento da pessoa.

Longe de estabelecer uma oposição entre o social e o psíquico, trata-se de perceber que

eles obedecem a leis próprias, se suportam e se entrelaçam em combinações múltiplas.

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8 ANÁLISE INDIVIDUAL DOS DADOS

8.1 O CASO DE MANOELA – IDEALIZAÇÃO, RECONHECIMENTO E JUSTIÇA

8.1.1 Breve reflexão sobre a escolha desta entrevista

O diretor do sindicato dos funcionários do Poder Judiciário de BETA forneceu-me

o contato de Manoela por considerá-la “uma jovem combativa” e referência chave no

caso entendido como de assédio moral, denunciado ao sindicato por um grupo de

servidores de BETA2.

Foi com a imagem de que Manoela seria uma pessoa central para as minhas

entrevistas que a encontrei pela primeira vez. Saí da entrevista animada em função da

impressão de haver, já no primeiro encontro, conseguido material suficiente para

analisar seu caso, no contexto de uma situação entendida como de assédio moral.

Tudo parecia fazer sentido, até o momento em que, de posse da transcrição,

percebi que ao lado das declarações ricas em críticas e rancores relativos ao Sistema

Judiciário – em alguma medida, exploradas na entrevista inaugural –, figuravam pistas

lançadas por Manoela, mas deixadas de lado. Imaginei que encontrar-me na qualidade

de ex-vítima de uma situação entendida por mim, à época, como de assédio moral,

bastaria para qualificar meus ouvidos, tornando-os sensíveis à história de Manoela. Não

foi suficiente. Qual seria o motivo para isso? Por que eu não havia aproveitado os

inúmeros ganchos deixados por Manoela?

Entendi o abandono das pistas, sobretudo daquelas que se referiam à trajetória

pessoal de Manoela, como uma resistência de minha parte ao que eu entendia como uma

fuga do tema assédio moral. Até então,85 eu tinha a impressão de que não

poderia dominar o tema assédio moral, compreender seus componentes, seu modus

operandi e suas consequências, sem coletar o maior número possível de depoimentos e

descrições detalhadas.

Nesse sentido, saí do primeiro encontro satisfeita, pois havia conseguido mais

material para ajudar na minha compreensão do fenômeno. Mas, ao mesmo tempo,

atribui o não aproveitamento das pistas deixadas no primeiro encontro com Manoela ao

fato de, naquela oportunidade, ter imaginado que a tentativa de desvelar sua história

pessoal lhe causaria sofrimento igual ou superior ao da lembrança do processo de

assédio moral que ela enfrentara. Naquele momento, eu não queria me sentir

85

A entrevista inicial com Manoela foi uma das primeiras executadas para esta pesquisa de tese.

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responsável por um sentimento de tal natureza, pois eu entendia que com isso eu estaria

assumindo uma postura agressiva. E era justamente sobre situações vivenciadas como

de violência, que minha tese, afinal, tratava.

Ao realizar a transcrição da primeira entrevista, percebi sua potencialidade. Foi

quando decidi continuar a explorar o caso de Manoela, propondo um segundo encontro

que ajudasse a conseguir mais informações, destacadamente sobre sua história pessoal.

Isso me permitiu aprofundar algumas hipóteses, sobretudo em relação ao papel da

idealização, do reconhecimento e da justiça como componentes de sua interpretação do

processo por ela alcunhado como assédio moral.

8.1.2 A execução das entrevistas

Na primeira entrevista, Manoela tinha quarenta anos,86 era formada em Direito e

há 10 anos trabalhava no Sistema Judiciário Federal de BETA. Foi o diretor do sindicato

dos Funcionários da Justiça Federal de BETA quem me forneceu seu contato, uma vez

que ela fazia parte de um grupo de servidores que entrou em contato com aquele

sindicato para oferecer uma denúncia do que entendiam como assédio moral por parte

de um juiz.

Entrevistei Manoela duas vezes em um intervalo de três meses.

Para esta primeira entrevista, Manoela recebeu-me em sua casa localizada em

BETA2, uma região serrana do Estado BETA. Em estilo rústico, sua casa era bem

organizada e decorada com enfeites de madeira e de tecido feitos por ela mesma. Ela me

convidou para um chá e comentou que lamentava não poder sobreviver de sua produção

artesanal de bonecas. Segundo Manoela, esse trabalho, executado em seus momentos de

lazer, representava uma maneira de fugir do cotidiano.

86

O pseudônimo Manoela foi eleito pela própria entrevistada. Inicialmente sua escolha foi justificada

pelo fato de ser “um nome bonito”. Em um segundo momento, Manoela explicou que se tratava de

uma homenagem a uma antiga estagiária que trabalhava em seu departamento, à época da ocorrência

da situação que considerava como de assédio moral. Naquela ocasião, depois de haver testemunhado

a situação que envolvia diversos funcionários do departamento, a estagiária ofereceu um presente a

Manoela, que lembra com emoção: “no dia seguinte, ela veio com um vaso de flores para mim e um

cartão e ela dizia que tinha adorado me conhecer, que eu fui a melhor chefe que ela teve”. Aquele

gesto teve um significado importante para Manoela. Sentiu-se sobretudo reconhecida, e teve a

sensação de estar seguindo pelo caminho correto. Manoela interpretou: “No meio daquela coisa toda

desmoronando, o reconhecimento dela ali, do tipo assim, alguma coisa eu fiz certo, pelo menos tratar

a estagiária bem, ajudar ela em alguma coisa, a aprender alguma coisa, pelo menos isso. É uma

pessoa que tenho um carinho muito grande, se eu encontro ela hoje na rua a gente se abraça, apesar

de não ter contato constante mas é uma pessoa que me marcou na vara. Me lembrei dela”.

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Parece que (...) você se protege do mundo, (...) entra ali e é um mundo

mágico de fantasia, né. Faz aquela boneca, faz a carinha dela e pinta, parece

que você dá vida, transforma um monte de coisas. É igual a Emília,87

de um

bando de retalhos de pano nasceu uma boneca que fala, que não sei o que.

Então, é uma coisa assim, é mágico.

Infelizmente, a seu ver, o esforço dispendido nesse tipo de trabalho não é

reconhecido e as pessoas não lhe dão o devido valor.

Como aconteceu com outros servidores, exceto em alguns momentos de aparente

descontração, a primeira entrevista foi marcada fortemente pela descrição detalhada das

ocorrências que, em seu entender, caracterizavam o assédio moral que acreditava ter

vivido no Judiciário Federal de BETA. Sua fala foi interrompida por diversos episódios

de choro, reforçando os sentimentos de angústia e sofrimento que permaneceram ao

longo do nosso primeiro encontro. Seu discurso não foi linear, girando essencialmente

em torno da busca de uma explicação para a ocorrência do que ela entendia como

assédio moral.

Assim, como eu pude observar nas entrevistas de outros servidores, Manoela

enumerava os fatos, concluindo repetidas vezes com as expressões “entende?”,

“entendeu?”. Havia um desejo de me fazer compreender o sentido que ela oferecia à

situação, aos seus sentimentos e aos seus comportamentos. Parecia uma sustentação

oral, uma defesa, necessárias para meu convencimento, tal qual um advogado age

perante o juiz. Minha impressão era que ela construía seu discurso como se estivesse

sendo submetida a um interrogatório policial, ou dando continuidade ao processo de

defesa iniciado via Sindicato. Afinal, se Manoela não se sentia compreendida dentro do

Sistema Judiciário, eu, no papel de pesquisadora, parecia representar alguém que

poderia fazê-lo.

Depois da primeira entrevista, esforcei-me em analisar aspectos da história

pessoal e familiar de Manoela, mas as informações eram truncadas, não desenvolvidas.

Foi somente no segundo encontro que me senti apta a tratar de questões mais pessoais,

para as quais não obtivera respostas ou alcançara apenas informações superficiais na

primeira entrevista.

A segunda entrevista, por sugestão de Manoela, ocorreu na sala de atendimento

psicológico do Sindicato dos Funcionários da Justiça Federal em BETA. O local era de

87

Boneca de pano que é personagem das histórias do Sítio do Picapau Amarelo, de Monteiro Lobato.

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fácil acesso para nós duas e parecia oferecer uma atmosfera mais “protetora”.88 tendo

em vista localizar-se em uma instituição que, teoricamente, existia para defender sua

categoria profissional.

Naquele segundo encontro, quando abri a porta da sala de atendimento para

receber Manoela, deparei-me com uma mulher bem cuidada, transbordante de alegria.

Tinha os cabelos bem arrumados, estava maquiada e vestia roupa de cores vibrantes. Ela

transmitia uma imagem muito diferente da que eu havia guardado a partir da primeira

entrevista. Minha impressão foi a de que algo havia mudado no intervalo de três meses.

Permiti-me explorar esse sentimento ao longo de nossa conversa, o que funcionou bem.

8.1.3 A história de Manoela

Durante a segunda entrevista, Manoela recordou um grave problema de saúde que

havia enfrentado quando era jovem: “Minha história pessoal é uma história difícil, foi

de muito sofrimento, não dos piores, mas um problema sério de saúde... no meu

primeiro casamento tive uma gravidez interrompida com quatro meses”.

Aos vinte e dois anos, Manoela vivia plenamente sua juventude, estudava Direito,

surfava e frequentava a academia de ginástica. Da noite para o dia, o médico lhe impôs

restrições preventivas: ela tinha sido diagnostica com uma grave doença autoimune.

Contrariando a recomendação médica de suspender todas as suas atividades, continuou

frequentando o curso de Direito de dia e, após prestar outro vestibular, acumulou-o com

o estudo de Arqueologia, à noite.

No entanto, ao sentir que sua saúde estava fragilizada, Manoela interrompeu seus

estudos de Arqueologia, continuando apenas com o curso de Direito. Ela acelerava o

ritmo de estudos e tentava antecipar os períodos letivos da faculdade: “Tá bom, uma

faculdade só tá bom, mas vou puxar matéria, sei lá o que vai acontecer lá na frente!

Comecei a puxar matéria e fazer à noite, ansiosa porque eu queria acabar a

faculdade”.

O anúncio de sua doença chocou-a: “Muito difícil. Meus amigos eram da praia,

eu fiquei sem amigos, ia todo mundo para a praia e ainda me ligavam [dizendo]: ‘a

praia está maravilhosa, um dia lindo e maravilhoso’, aquilo me matava. A praia era o

único prazer que eu tinha. Como Deus me tirou a praia? Eu não ia para a noite, não

88

Coloquei entre aspas porque, durante nossa primeira entrevista, ele fez algumas críticas à maneira

como o sindicato a ajudara. Achava que ele deveria ter sido mais enérgico e dado mais importância ao

caso.

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tinha vontade de boate, essas coisas, eu não era da noite, eu era do dia, eu ia para a

praia, queria ir para a praia pegar onda e Ele me tirou isso. As pessoas iam. Você acha

que algum dia da vida, algum amigo deixou de ir para a praia para ficar o dia comigo?

Não ficou (...) ninguém nunca fez isso. Quem fica contigo nessas horas? Só Deus. Foi aí

que eu comecei a buscar a espiritualidade, a olhar para esse lado, apesar de no

primeiro momento você entender o que é o [nome da doença], uma doença que não tem

cura, mas eu quero ficar curada, não quero nem gripe, semana que vem quero estar

curada”.

Com essa motivação, Manoela começou a se voltar para a espiritualidade, na qual

se apoiou para poder alcançar a cura daquela doença autoimune.

Depois de se formar em Direito em 1992, Manoela trabalhou durante alguns

meses em escritórios de advocacia privados, até partir com seu marido para a cidade de

ZEDA, no sudeste do Brasil. Durante aquele período Manoela não pôde exercer a

profissão.

Eu deixei de entrar no mercado de trabalho, de procurar, entendeu? Eu ia

casar e morar lá em ZEDA, ia morar na roça porque meu ex-marido é

pecuarista. Então, eu ia cuidar de galinha.

Nesse período, Manoela teve seu segundo problema grave de saúde, o qual a

levou à interrupção de uma gravidez:

Quando você já recebe um filho, ainda que ele não tenha nascido, mas você

já recebe, ele já está formado, você já escutou o coração e de repente você

ter que interromper aquilo tudo. São traumas que você vai carregando e o

problema da doença, tive que fazer dois anos de quimioterapia, apesar de

não ser câncer, mas o tratamento que tinha era esse. Você vê o seu cabelo

caindo, você ficando deformada, toma cortisona, fica com a cara redonda,

você ainda tem que dar conta de um casamento, você casou com um matuto e

ele não tem a sensibilidade para nessa hora te abraçar e te botar no colo e

ainda nessa hora você tem que ser valente e dar conta de tudo.

Ela contou em detalhes sobre o período de tratamento quimioterápico ao qual foi

submetida no Estado BETA, afastada do Estado onde morava, ZEDA. Nesta época,

Manoela passou por dificuldades financeiras somadas às queixas de seu marido sobre

suas ausências em decorrência do tratamento em BETA. Era época de economizar seu

dinheiro, o que a leva a refletir: “por isso peço a Deus abençoar meu trabalho, por mais

que eu não goste, que abençoe”.

Alguns anos mais tarde, Manoela separou-se do marido (por quem não se viu

amparada em seu momento de fragillidade por conta do problema de saúde) e como

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consequência, voltou definitivamente à sua localidade de origem, BETA, onde passou a

residir com sua mãe (o pai de Manoela havia falecido quando ela tinha nove anos de

idade).

Foi então que Manoela decidiu prestar concurso público. Acreditava que aos trinta

anos de idade, tendo deixado a prática do direito pouco após a conclusão da faculdade, o

único caminho que lhe restava era passar em um concurso para se tornar funcionária

pública.

A questão era passar num concurso público para você ter uma certa garantia

e de início você ter uma certa tranquilidade. E aí, talvez depois você até

elaborasse outros planos. O negócio era você ter um trabalho.

Manoela retomou os estudos e obteve êxito no concurso do Judiciário Federal de

BETA. A decisão de prestar concurso para esta instituição baseava-se no fato de

considerá-lo um bom trabalho, com um excelente salário em comparação com a média

nacional e, acima de tudo, estável, o que, naquele momento, representava uma grande

vantagem para Manoela. A segurança, para ela, que enfrentara ao longo de sua vida

momentos de insegurança amorosa, profissional e de saúde, se constituíra um objetivo.

8.1.4 A estreia no Judiciário

Em 2001, Manoela começou a trabalhar no Sistema Judiciário em BETA1, capital

do Estado BETA. Durante quatro anos ela permaneceu no mesmo departamento,

assessorando o juiz XXXX considerado “ótima pessoa para se trabalhar”. A ela cabia a

análise de processos judiciais antes de enviá-los ao juiz (ela analisava o caso, elaborava

propostas e redigia pareceres):

Quer dizer, as pessoas têm seus problemas, têm alguns temperamentos,

coisas assim que você não concorda, mas dá para conviver com tudo isso.

Então eu digo que eu trabalhei ali numa bolha que é fora da justiça.89

Aquilo

ali, por um acaso, eu dei sorte e fiquei trabalhando sem conhecer o que é

realmente, o que eu conheço hoje, o meu conceito de Justiça Federal hoje, o

âmbito de trabalho nesse sentido.

Manoela guarda boas lembranças dos primeiros anos no Judiciário. Aqueles

quatro primeiros anos confirmariam a imagem ideal que fazia da instituição:

89

Muitas entrevistas evocam a instituição judiciária como a Justiça. Como explorado no Capítulo 7,

esta referência fala de um grau de idealização da instituição judiciária, pressupondo que nela impera a

justiça em todas as decisões tomadas, seja para o público interno, seja para o jurisdicionado.

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estabilidade, bom salário e um “bom juiz”, que possuía grandes qualidades, e com quem

diz ter aprendido bastante.

Ao longo das duas entrevistas realizadas, Manoela fez constantes referências

àquele juiz como uma pessoa que “marcou” sua trajetória profissional no Sistema

Judiciário, especialmente por ter uma forma de trabalhar e de julgar (tanto os

funcionários quanto os processos) bastante “justa”. Constantemente aquele juiz

reconhecia o trabalho dos funcionários não apenas do ponto de vista financeiro (ou seja,

concedendo cargos e funções comissionadas àqueles que julgava merecedores, com

base em critérios objetivos de decisão), mas também oferecia outros estímulos. Manoela

se identificava com aquele juiz e com aquela instituição, idealizando-a por meio dele. A

seu ver, aquele juiz encarnava, naquele momento, o ideal de justiça, de respeito pelo

outro e de verdade, tão vital para ela, face a sua trajetória de vida.

Quando eu entrei na justiça ou no Poder Judiciário, quando a gente toma

posse eles falam “vocês são servidores públicos federais do Poder

Judiciário”. A gente tem até que anotar porque é tanta coisa que eu sou que

eu nem sabia. É uma coisa assim “nossa, o que é isso?”. Eu fui parar lá e o

dr. XXXX foi a minha primeira referência nesse mundo jurídico. Ele

praticamente foi a minha referência. Então, eu tive sorte de trabalhar... Essa

é a minha opinião dele, como uma pessoa correta, que tem compromisso com

o seu trabalho, que trabalha, que comparece e é uma pessoa que não está

preocupada com fofoca, não está preocupada em te perseguir, não está

preocupada com os seus errinhos, com a vírgula que você não colocou. Ele

está preocupado em produzir e resolver as questões, entendeu? Se faltou uma

vírgula ali, ele não te devolve um processo. Ele não fica nessa murrinha,

nessa coisa. Com todo respeito, com toda consideração com quem faz, como

ele é uma pessoa objetiva e prática, eu me identifiquei com ele, entendeu?

Ele é objetivo e prático, ele quer resolver. Claro que nada é perfeito, mas de

forma geral era um ambiente bom. Ele tinha bons assessores, assessores

inteligentes. Tinha um assessor que não estava preocupado... Tem muita

gente nesse meio que fica preocupado em perder o cargo, entendeu? Por

causa disso eles te prejudicam, te passam para trás, têm sempre umas

artimanhas e se você não tem a malícia, você não se dá conta e cai na

armadilha. (...) O dr. XXXX não era preocupado com essas histórias, não

dava ouvido para essas histórias e ele criou um ambiente em que ele deixa

você se desenvolver, deixa você crescer e reconhece o seu crescimento,

entendeu? Então, isso é uma coisa que te estimula.

Para ilustrar o entusiasmo com o qual trabalhava com aquele juiz, Manoela

relembra um episódio em que, apesar de ser época de carnaval, decidiu deixar o feriado

de lado, tendo em vista estar preocupada com o processo de uma pessoa doente. A

demanda daquele jurisdicionado referia-se ao tratamento para uma doença grave,

fazendo-a traçar um paralelo com sua história de vida.

Segundo Manoela, o que despertava seu entusiasmo, como no exemplo citado, era

o fato de o juiz com quem trabalhava conceder aos seus funcionários “espaço de

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desenvolvimento, tempo para fazer as pesquisas jurídicas, sustentar as ideias

respeitando as sensibilidades de cada um, com forte base jurídica, claro”. Seu modo de

trabalhar levava-o a ser visto como uma pessoa “humilde”, por seu contato próximo

com os funcionários e por constantemente buscar resolver as situações com equilíbrio,

seja ao permitir que os funcionários mudassem para outros departamentos sempre que

manifestassem interesse, seja ao evitar, por exemplo, o ato, considerado humilhante, de

corrigir detalhadamente os textos redigidos pelos analistas.

Podemos, então, sustentar que o reconhecimento e o encorajamento à autonomia

de pensamento no Judiciário eram valores importantes para Manoela. O juiz dava aos

funcionários a liberdade de “criar” pareceres que, em alguns casos eram capazes de

mudar sua própria decisão final. Estes casos eram sinais de reconhecimento muito

significativos para ela, que lembrava orgulhosa de uma situação em que ela construiu

sozinha a defesa legal dos direitos de um trabalhador, com base na qual o juiz

convenceu seus pares, fazendo-os mudar de parecer. Ela dizia: “A minha vaidade foi que

eu consegui explicar para ele [o juiz] aquele direito daquele trabalhador, entendeu?”

A vaidade, na psicanálise, está estreitamente ligada ao narcisismo e, também, a

autoestima do indivíduo. Ter seu talento reconhecido pelo juiz e ser alvo de admiração

deixavam-na feliz com seu trabalho.

Foi neste contexto que Manoela ganhou uma função comissionada, como parte do

“reconhecimento justo” de seu juiz, que se utilizava da combinação dos critérios

“merecimento e antiguidade” para atribui-las.

Ela comparou aquele momento de felicidade com a situação oposta que contribuiu

para mudar seu investimento no trabalho, alguns anos mais tarde, já em outra cidade:

Quando você vai num lugar que se você fala... Se você coloca uma vírgula no

lugar errado já leva uma bronca danada, isso é uma coisa que vai te

definhando, entendeu? Você fica [pensando]: ”não preciso raciocinar, não

sou paga para raciocinar, vou ser paga para fazer exatamente como ele quer

que eu faça, que é o modelo dele”, aí você começa a agir dessa forma.

Então, você perde um pouco o estímulo, né?

Curiosa a respeito do contexto novo enfrentado por Manoela, bem como dos

incidentes que diz haver enfrentado, peço ela elaborar um pouco mais sobre o que

considerava como a origem da perda de estímulo.

Manoela conta, então, que depois de quatro anos trabalhando no Sistema

Judiciário em BETA1, em 2005, por não se acostumar a viver naquela cidade, decidiu

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mudar-se para BETA2, onde vive atualmente e onde acredita ter sido vítima de assédio

moral. Para ela, BETA2 é uma cidade que representa

Tudo. É o lugar que eu gosto. É um lugar que você conhece as pessoas,

acaba conhecendo todo mundo, parece que você sai na rua e fala com todo

mundo. É assim, é como se fosse uma grande família. Você é conhecida na

loja. Tem uma loja lá que eu compro roupa, eu posso sair com a roupa e

depois eu volto para pagar. Em vários outros lugares é assim: “depois você

volta para pagar”. Tem umas relações ainda de confiança, de cidade do

interior, tem um pouco disso. E a facilidade, é tudo perto, se você quiser vai

andando para o trabalho, vai de bicicleta. Enfim, não tem a poluição de

BETA2, não tem essa imundície do centro da cidade.

Ela decidiu pedir remoção, mesmo ciente de que perderia sua função

comissionada e que, provavelmente, não conseguiria outra tão cedo: “decidi deixá-lo

[referindo-se ao juiz], também, porque não queria me tornar escrava do dinheiro”.

Foi com tristeza (“foi bastante difícil abandonar o dr. X”) que ela deixou seu

posto em BETA1 e, graças a uma remoção oficial no âmbito do Judiciário, começou a

trabalhar em BETA2 com um juiz que também era conhecido por proporcionar um bom

ambiente de trabalho.

É possível dizer que, até aquele momento, ela continuava alimentando sua

imagem idealizada do Sistema.

Porém, o juiz de BETA2 permaneceu apenas dois meses no cargo. Com sua saída,

Manoela passou, então, a trabalhar com outro juiz, que logo lhe ofereceu um cargo

comissionado. Neste mesmo contexto, vários servidores, disse Manoela, deixaram

aquela instituição, tendo em vista a má fama que acompanhava aquele novo juiz. Foi

naquele momento, segundo ela, que começaram os problemas de assédio moral com ele

e com “sua supervisora”. Naquela ocasião ela começou, também, a analisar de outra

maneira o funcionamento da instituição judiciária.

8.1.5 O assédio moral

Manoela considera-se uma das vítimas do que os servidores à época consideraram

abuso de poder por parte do juiz federal titular e da diretora por ele indicada, na Vara

Federal de BETA2. Os depoimentos de Manoela, os documentos disponibilizados e

matérias publicadas pelo Sindicato dos Servidores das Justiças Federais do Estado

BETA, o conteúdo das entrevistas realizadas com um dos dirigentes daquele sindicato e

com um ex-colega de trabalho de Manoela permitiram evidenciar que dentre os

principais argumentos que fundamentavam a existência de um contexto de assédio

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moral figuravam: a falta de urbanidade no trato com os servidores, a oferta de funções

comissionadas aos funcionários considerados pelos denunciantes como menos

capacitados, a disseminação de um clima de terror na sala do Juizado, a atribuição de

tarefas incompatíveis e de menor significância aos analistas, a mudança de rotinas de

forma que os servidores não pudessem ter contato com o juiz substituto, com o qual

tinham boa relação, entre outras atitudes da diretora da vara que, consideradas

propositais, dificultavam o serviço dos servidores.

Tiago, ex-colega de Manoela oferece a seguinte descrição do ambiente em BETA2

à época:

O tempo passou, a situação se agravou bastante (...). Nós passamos a ser

perseguidos ostensivamente, não podíamos mais conversar, não podíamos

mais falar ao telefone, até o nosso acesso ao computador era controlado, a

gente trabalhando na sala e quando ela chegava ou o diretor chegava você

escutava os mosquitos. Eu levantava da cadeira e ia no banheiro, eu sentia o

olhar dela me acompanhando. Então, era vigiado assim ao extremo,

qualquer coisinha que eu fizesse, tome bronca (...) que eu posso dizer é que

foi uma experiência que realmente eu não vou esquecer, porque foi muito

marcante, foram meses e meses de uma perseguição feroz, a ponto de eu

voltar de férias e não estar mais nem sentado na mesma mesa. A gente ser

trocado de setor “assim”. Perde gratificação por nada, a gente é como se

não fosse nada, um zero à esquerda mesmo.

Manoela, por sua vez, recorda-se de como vivenciou estes episódios:

“Então, enfim, em algum momento eu me ausentei dessa sala, ela [a supervisora]

não estava, ela não viu, não ficou sabendo, então quando ela voltou para a sala

[perguntou]: ‘cadê a Manoela?’. Na hora ela procurou saber onde eu estava. Quando

eu voltei ela perguntou: ‘Onde você estava’? ‘Eu estava lá na sala dos oficiais porque

eu fui falar no telefone um assunto pessoal’, [respondi].”

Como consequência desse episódio, conta Manoela que perdeu pontos na

avaliação de desempenho com a justificativa baseada no quesito referente à ausência no

trabalho sem comunicar a chefia. Manoela questionava: “ausência de trabalho pra mim

é fora da vara de BETA2. Se eu estou na secretaria, assinando ponto, eu não estou

ausente. Eu nunca fui lá do lado de fora [da Vara] sem dar conhecimento à chefia”.

Este episódio contribuiu, no seu entender, para torná-la marcada pela supervisora.

Ainda como elemento do contexto de assédio moral, Manoela elenca o fato de sua

supervisora ter mudado suas funções. Desde o seu ingresso em BETA2, Manoela

dedicava-se ao trabalho de análise de processos, motivo pelo qual matinha contato

frequente com o juiz substituto, o que a seu ver, gerou descontentamento na supervisora:

“do juiz titular você não pode chegar perto, mas do juiz substituto você pode. E aí como

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ela [a diretora] vê que você está tendo contato com o juiz substituto ela resolve

simplesmente mudar a sua tarefa”.

Com a mudança de suas funções, Manoela se vê obrigada a se dedicar a atividades

consideradas por ela inferiores à sua formação, experiência e exigência de seu cargo de

analista: “Então, aí ela vai e muda suas tarefas: ‘Agora você vai só carregar processo.

Faz um malote pra cá, malote pra lá, carga para cá, carga para lá e você se limita a

isso’. É isso que eu vou fazer? É isso que eu quero para minha vida?”.

Neste mesmo contexto de mudança, a supervisora retira-lhe também sua função

comissionada, oferecendo-a um colega mais novo e com muito menos experiência no

Judiciário. Tal situação era totalmente diferente da anterior vivida por Manoela no

Sistema Judiciário, quando, então, “havia um gabinete super legal, com um juiz que

reconhecia o trabalho dos outros e tinha critérios de julgamento mais justos”.

A perda de uma relação privilegiada e do reconhecimento que Manoela vivenciara

com seu primeiro juiz constituía um contexto que propiciava um processo de

desidealização, com perda do sentido. Todas as ações que acabaram por desenhar um

contexto de assédio moral, na opinião dela e de outros servidores denunciantes,

pareciam ter um propósito comum.

Qual é o critério dele? Por que ele pega um servidor que chegou agora

formado em [área diferente de direito], que não tem nenhuma experiência

com direito para trabalhar no gabinete? Pega uma servidora para ser

supervisora, para supervisionar um setor a título de que, assim? Você vê que

é para manipular, para fazer intriga, entendeu? É para fazer fofoca, para

tomar conta de servidor, para punir os servidores, para ameaçar os

servidores, para eles ficarem acuados, para ninguém se manifestar. Então,

quando você vê que a função [comissionada] é usada para isso, eu vou dar

uma função para uma pessoa porque eu sei que ela vai servir aos meus

propósitos, que está extrajurídico. O propósito é tomar conta, é vigiar, é

trazer pra mim todas as informações, tudo que essa pessoa possa falar de

mim, então quando você questiona isso... é isso que eles fazem... e aí você

começa entender. Tudo bem, agora eu entendo, então, não me dê a função

porque eu não vou me sujeitar ao seu propósito. Porque o seu propósito não

é de trabalhar mais para produzir mais, que é o objetivo da justiça. O

propósito não é este, realmente a produção, a qualidade na produção não é...

Ela questiona desde os critérios de atribuição de tarefas, passando pela atribuição

de cargos em comissão (como o fato da supervisão ter sido destinada a uma outra

servidora que, para Manoela, não havia preenchido nenhum requisito objetivo para

obter o cargo) e alcançando as funções comissionadas.

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Manoela procura entender por que perdera a função comissionada e quais eram a

dinâmica e a lógica do sistema de reconhecimento dentro da instituição juidiciária, que

parecia diferente daquela que ela havia experimentado dentro da mesma organização

[...] se eu perco uma função é provavelmente porque alguma coisa não

estava bem, eu fiz algo errado... eu sei que o juiz pode retirá-la a qualquer

tempo, sem explicar nada. É fato de que o juiz não precisa me dar

explicação, ele pode me tratar como um lixo.

Ao não obter uma explicação formal, uma justificativa para a retirada de sua

função comissionada, A servidora sente-se vítima do poder arbitrário dentro do

Judiciário, caracterizado pela impossibilidade de discutir, de questionar ou de negociar a

situação que lhe era imposta.90 Aquela situação traduz-se em importante marco do

processo de perda de ilusões e “desidealização” da instituição judiciária, o que a leva a

refletir:

É isso que eu vou fazer? É isso que eu quero para minha vida? Aí com um

sacrifício muito grande porque você mora aqui, você já está instalada, você

já criou vínculos aqui. Hoje, eu tenho cinco cachorros, eu não tenho como

voltar para BETA1 e enfiar cinco cachorros num apartamento de, no

máximo, setenta metros quadrados. A minha mãe já se mudou para cá, mora

aqui também, quer dizer, você muda tudo aí de repente por uma

incompatibilidade muito grande você não consegue mais permanecer nesse

local. Ou eu permaneço e adoeço ou eu vou embora e seja lá o que Deus

quiser. Aí você vai [se muda] porque eu não vou me aliar a isso. Eu não vou

abaixar a cabeça para isso. E aí foi quando eu pedi para ir embora porque

muitas pessoas já tinham saído.

Manoela decide, então, abrir mão de morar e trabalhar em BETA2, e volta a

BETA1.

8.1.6 A justiça

Na trajetória pessoal de Manoela, anterior ao ingresso no Sistema Judiciário, e em

suas primeiras experiências ali dentro, é possível identificar as origens de sua busca

passional por justiça.

Por um lado, este verdadeiro desejo de justiça tem ligação com sua história

familiar, mais particularmente com a figura de sua avó materna. Depois do processo de

90 Assim como foi discutido no capítulo 6, as funções comissionadas são vistas como fonte importante

de insatisfação e do espírito de competição dentro do Judiciário. A ausência de obrigatoriedade de

apresentação de motivação formal para a sua concessão ou supressão permite o surgimento de

variadas interpretações para as suas ocorrências, por parte dos servidores. Na opinião de Manoela, a

ausência de critérios para atribuir a função comissionada a leva a acreditar que ela não reflete uma

forma de reconhecimento do trabalho dos funcionários. Por outro lado, os contextos em que identifica

sua atribuição ou retirada refletem seu uso como forma de demonstração de poder e exigência de

submissão dos servidores.

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separação de seus pais, quando Manoela tinha seis anos de idade, mudou-se com sua

mãe para o Estado LAMBDA, onde morava sua avó:

[…] quem me passou valores, exemplos de responsabilidade, de honestidade,

de caráter, foi praticamente a minha avó. Eu morei com ela cinco anos.

Depois quando meu pai faleceu voltamos para BETA, eu e a minha mãe...

essa foi a carga [princípios], essa bagagem veio.

A entrevistada lança mão de outras hipóteses para justificar a origem de seus

princípios de justiça:

Eu estudei no XXX, no colégio de freiras. A gente tem aula de religião,

aquela coisa toda. E também não sei se a gente já nasce com essa tendência,

né? É uma questão de você ver as desigualdades, as injustiças, as coisas

cruéis.

Se ela começa a construir seu ideal de justiça ainda na infância, este processo

continua em suas experiências pessoais, em seu curso Direito e na sua primeira

experiência no Sistema Judiciário Federal, que lhe ofereceu a oportunidade de confirmar

seu ideal.

A escolha pelo curso de Direito também resultou de seu desejo de fazer justiça.

Eu me lembro da frase seguinte que eu disse [para seus familiares]: vou para

a faculdade de Direito para tentar fazer mais justiça. Foi um erro grave, é

uma mentira, pois dentro da Justiça é onde há mais injustiça. Hoje minha

opinião é totalmente diferente. Se eu pudesse recomeçar, eu gostaria de fazer

algo diferente.

8.1.7 A questão da justiça e sua relação com a doença

A revolta da servidora não se resume às lembranças do período em que trabalhou

em BETA2. Este sentimento ressurge quando ela fala sobre as decisões jurídicas que

acompanhou ao longo de sua carreira no Judiciário, até a época de realização das

entrevistas (não mais com o dr. XXXX, “seu primeiro juiz”). Manoela recorda as

críticas que recebia por sua postura favorável às pessoas pobres que lutavam por seus

direitos. Frequentemente inclinada a “dar ao pobre trabalhador seu direito”, pode-se

dizer que Manoela desejava aplicar seu conceito de justiça no exercício de seu trabalho

no Sistema Judiciário.

Porém, ela se sentia incompreendida e, ao mesmo tempo, tinha extrema

dificuldade de aceitar decisões prolatadas em sentido desfavorável aos jurisdicionados,

em especial quando se tratava de processos e demandas que envolviam necessidades

urgentes de tratamentos de saúde. Ao recordar uma situação em que havia sido criticada

por defender que um jurisdicionado pudesse fazer uso de um mandado de segurança e

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com isso conseguisse “furar a fila” de espera para ser agraciado com um tratamento

urgente, Manoela lança mão de seus problemas pregressos de saúde como argumento:

Minha vontade era chegar para ele [desembargador que havia sido

contrário ao mandado] e falar: “graças a Deus nunca precisei disso não

porque senão teria morrido”. (...) Minha vontade era de falar... mas um cara

desses, que está tão longe da condição humana, ele nunca vai entender o que

é passar por isso, o que é precisar de uma cirurgia para ontem, que foi o meu

caso.

8.1.8 O segundo tombo

Depois de trabalhar durante seis anos em BETA2, Manoela consegue ter seu

pedido de remoção aceito, retorna ao Judiciário em BETA1, e volta a trabalhar com o

“seu primeiro juiz, dr. XXX”, até então, tido como sua referência no mundo do

judiciário. Ela aceita trabalhar novamente em BETA1, a despeito da dificuldade

representada pelo deslocamento diário, já que continuava morando com seu segundo

marido, em BETA2. O que importava era a possibilidade de se distanciar daquele

ambiente de trabalho em BETA2, entendido como palco de assédio moral. Ela se viu

obrigada a deixar o lugar onde pensou que poderia viver em paz. Havia perdido tudo: a

justiça, o juiz e aquele lugar, que julgava tranquilo.

Em BETA1, Manoela volta a trabalhar com o juiz pelo qual ela manifestava

profunda admiração, considerando-o responsável pelo estabelecimento de uma boa

relação de trabalho em sua primeira experiência em BETA1, contrariamente ao que

vivenciou em BETA2. Entretanto, é no departamento da Corregedoria, sob o mando do

juiz XXX, que ela sofre o segundo revés no ambiente de trabalho.

O departamento de Corregedoria no Sistema Judiciário exerce atividades de

natureza disciplinar, é responsável (de ofício ou por demanda) por assegurar a

observância dos direitos e proibições impostas aos juízes e aos servidores. Suas

atividades incluem também a busca de práticas irregulares, a adoção de mecanismos

preventivos, de sanções imediatas ou de possíveis problemas na administração do

Judiciário.

Coincidentemente, assim que retornou a BETA1 (para o departamento de

Corregedoria), Manoela, com o apoio do Sindicato, já havia ingressado com um

processo administrativo contra a diretora e o juiz de BETA2. Sendo assim, ela teve a

oportunidade de ver seu atual juiz, XXX, compondo o comitê que julgou seu caso na

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Corregedoria. Sem disfarçar a decepção com o fato de ele não ter acreditado em sua

versão dos fatos, Manoela lembra:

Ele decidiu se manter afastado. Ele tomou a decisão com imparcialidade. Ele

protegeu o outro juiz, de BETA2 e também a supervisora, que era protegida

daquele juiz (...) por trabalhar na Corregedoria eu tive mais contato com a

realidade do que é a Justiça Federal, do que é juiz, do que é corregedor

julgando juiz, do que é presidente com os problemas que envolvem juízes.

Então, eu cheguei muito perto disso (...) eu não posso relatar caso nenhum,

mas eu posso falar assim, que o que eu vi... eu tive uma grande decepção. Eu

não gostei. E eu acho que [a partir] dali, foi tipo assim: Gente não tem jeito.

Não tem jeito. É juiz julgando juiz.

Ela se sentia injustiçada pelo fato de o seu antigo juiz, que a conhecia, não tê-la

protegido. Sentiu-se só, impotente e vítima de mais uma desilusão, concluindo:

“Ali fechei o meu conceito de poder desse pessoal da justiça, é onde a gente vê

mais injustiça acontecer. Esse pessoal que está no poder, o poder é para eles, não é

para fazer justiça, não é compromisso com a causa, com a função deles ali. Eu,

sinceramente, tenho aversão, passei a ter aversão à instituição onde eu trabalho, mas

rezo todos os dias para que Deus me mantenha nesse emprego porque é isso que me

sustenta.”

Manoela era frequentemente acusada, de forma explicita ou velada, de estar

contrariada por ter perdido sua função comissionada e esse era um dos motivos pelos

quais suas tentativas de explicar a terceiros o processo de assédio moral, do qual ela

julgava ter sido vítima, frustravam-se:

[...] eu não gosto, realmente eu não gosto de tocar nesse assunto, eu não

gosto de falar disso porque as pessoas não conseguem entender o que eu

estou falando. Elas acham que eu estou reclamando porque um dia um juiz

tirou uma função. E não é isso. É como ele trata a gente, entendeu. É como

ele faz a coisa. Que passa por cima de uma consideração e de um respeito.

Então, ele tem que manter a função para você? Não é isso. Mas que ele não

precise humilhar as pessoas, ele não precisa criar confusão, situações

constrangedoras.

Na tentativa de se defender e de dar sentido àquela situação incompreendida pelos

outros, ela procura exemplos para provar que a origem de seu mal-estar não vinha da

perda da função comissionada, mas sim de um contexto de agressões e maus-tratos,

muitas vezes velados, com diversos funcionários:

Minha colega de setor também foi para o banheiro chorar. A coisa foi muito

agressiva. Por isso, essa história toda. Dizem assim: “só porque tirou uma

função”, você não estava lá para você ver. Se um senhor de idade não

consegue ficar num local, pede para ser liberado porque ficou atordoado, se

tem servidor e estagiário indo para os cantos chorar, se pára o atendimento

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ao público, você pode dizer que isso é uma coisa normal? É assim que se

faz?.

8.1.9 O arrependimento e o retorno à religião

Em sua segunda entrevista, Manoela declarou que se arrependera por ter iniciado

o processo contra o juiz e a supervisora de BETA2. No local em que ela trabalhava, à

época do nosso segundo encontro (após ter passado pela Corregedoria) ela era

constantemente referenciada como “a servidora que lançou acusações contra o juiz e a

supervisora de BETA2”. Ao avaliar as consequências de sua “marcação”, conclui:

[...] só saí no prejuízo nessa história toda porque, além de eu ter me exposto,

além de ter passado por esse desgaste todo, você fica uma pessoa marcada,

fica exilada, você é uma pessoa perigosa, qualquer juiz vai olhar torto para

você porque acha que a qualquer hora você pode entrar com uma

representação contra ele. É uma coisa complicada. Você fica marcada para

sempre, não tem jeito. É uma história que vira e mexe é jogada na tua cara

de novo.

Uma dimensão presente no trecho anterior refere-se à interpretação de sua atitude

de denúncia pelos profissionais do Judiciário. A instauração de um processo

administrativo, a formalização de uma insatisfação ou de um desacordo, como é o caso

da ação interposta contra o juiz e diretora, pelo grupo de servidores de BETA2, pode ser

interpretada pelos demais colegas como “um ataque contra a ligação narcisista” que

estes criaram com a instituição judiciária (KAËS, 2003, p. 50).

Ao ser indagada sobre no que encontrou apoiou ao longo de sua trajetória no

Judiciário, Manoela evoca a religião: “Em Deus. Nessa turbulência toda, a experiência

que se estreita é a tua conversa com Deus, aquilo ali, homem nenhum de poder, de

dinheiro, interfere, ali não tem como. Aquilo ali é você e Ele. Deus sabe o que cada um

faz, sabe o que vai no coração de cada um e a justiça está na mão dele, não dá para

confiar nos homens, mas nele a gente pode confiar. O que me sustenta nessa

peregrinação toda, nessa caminhada toda, no meio disso tudo que eu abomino e que

discordo, acho que o que faz é estreitar o meu caminho com Deus, a minha caminhada

com Deus. É eu, cada dia que passa, eu declarar para mim, não vou passar para o lado

deles. Para o lado deles eu não vou, nem que eu tenha que ser isolada, ir para uma

vara lá em ZZZZZ”.91

91

Uma cidade muito isolada no Brasil.

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Pouco após a ocorrência em BETA2, já trabalhando em BETA1, passando pelo

processo de divórcio de seu segundo marido, a servidora começa a frequentar a igreja.

Ela havia deixado de praticar a religião anos antes, por entender que não tinha mais

tempo para rezar no seu dia a dia. Naquele contexto, percebeu que o único que poderia

ajudá-la era Deus.

A entusiasmada Manoela que encontrei na segunda entrevista estava orgulhosa de

ter iniciado um curso de canto naquele mesmo dia. Desejo antigo, ela vê no canto no

coral da igreja uma maneira de se doar plenamente a Deus. Manoela diz:

[...] é como se eu me entregasse para Ele. Estou aqui, minha vida é para

louvar o Senhor, adorar o Senhor para fazer a tua vontade, não é a minha,

porque quando vou fazer a minha vontade dá tudo errado. Foi a decisão que

tomei, eu sou sua serva, estou aqui para fazer a tua vontade.

Ela encontra, assim, um novo ideal de justiça e vê Deus como símbolo do

julgamento verdadeiramente justo de todos os seres humanos.

8.1.10 As consequências

A partir do processo de desidealização do Judiciário, Manoela parece ter perdido

sua identificação com o trabalho e criado mecanismos de defesa contra futuros

sofrimentos:

Hoje, eu quero um canto, onde o juiz nem me veja. Que ele só lembre de mim

sei lá... se possível nunca. Não me veja, a relação dele é com o chefe de

gabinete e o chefe de gabinete me passa o que tiver que ser. Eu sei que se

tiver que corrigir alguma coisa ele vai me chamar lá, mas eu tento fazer o

melhor possível para ele não me chamar. Eu quero distância. Hoje em dia

pra mim é isso... distância dessas pessoas (...) Eu tenho pavor de gabinete.

Não me chama porque eu não vou. Eu tenho horror de gabinete… Hoje, se eu

posso ficar mais longe do juiz melhor. Engraçado que tem juízes que são

gente boa. Por mais que eu evite isso, mas tem juízes que querem ter uma

proximidade comigo, mas eu tenho um bloqueio, eu tenho assim comigo que

eu não posso esquecer nunca que é juiz. Eu fico sempre com um pé atrás, por

mais que eu ache super gente boa, mas eu ainda fico meio assustada.

Ela passa do estado de autonomia ao estado agentique, expressão proposta por

Milgram (1974, p. 167), mantendo-se como uma máquina, sem ter o que fazer diante de

tal situação. Seu discurso evoca a dimensão nociva de se submeter a este regime, que é

muito desestabilizante para ela. Seu desejo de se tornar invisível reflete uma tentativa de

autoproteção para não ser destruída e conseguir bloquear o poder arbitrário de

determinados atores do judiciário.

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Ao ser indagada se achava que sua relação com o trabalho mudara após o início

do processo do que ela acredita ser assédio moral, Manoela reitera a ideia de pavor de

voltar a trabalhar próxima, fisicamente, de juízes, e acrescenta a sensação nova de

desinvestimento no trabalho:

Perdi todo o brilho, enfim, não tenho mais nenhuma ilusão com esse negócio

da justiça. Eu tive quando eu trabalhei, logo no início, com o dr. XXX, e

talvez isso tenha favorecido, porque, logo no início, como não tinha

especialização à gente ainda pegou algumas reclamações trabalhistas bem

antigas quando a Justiça Federal ainda era competente para isso e muitas

ações previdenciárias. Então, através dessas ações assim, a gente conseguiu

fazer muita coisa boa. Eu vi ali muita coisa boa saindo, a gente conseguiu

ajudar muitas pessoas. E de certa forma era uma coisa assim que eu me

dedicava, era como se o direito fosse meu ali, então eu tomava aqueles

problemas como se fossem meus. Era uma dedicação muito maior, um

desenvolvimento muito maior para tentar chegar o mais perto possível do

que seria justo ali, naquele caso. Hoje em dia, assim, eu já não tenho mais

nenhuma satisfação, nenhuma ilusão, nenhum idealismo. Aquilo ali é

simplesmente um emprego como qualquer outro e que eu faço a minha parte.

Essa perda de brilho, com consequente desinvestimento no trabalho, retrata o

sentimento de perda de um “objeto interno”, expressão empregada por Aubert e Pagès

(1989, p. 211), em relação à “imagem idealizada de si mesma ligada a certas atividades

e maneiras de exercer a profissão” (AUBERT; PAGÈS, 1989, p. 211).

Para a Justiça eu não espero mais consideração de ninguém em relação a

ninguém. Hoje em dia é outra história. Eu não espero consideração de juiz,

de desembargador, de presidente do tribunal, de diretor de foro, nada. Eles

passam por cima da gente como se a gente nada fosse.

Mas, depois de tudo isso, por que ela continua no Judiciário? Seu discurso indica

razões objetivas: salário e emprego.

Hoje tomei esse nojo mesmo, tomei aversão, digo assim tranquila, com toda

a certeza, não gosto da instituição hoje. Eu trabalho porque tenho um bom

salário e peço a Deus para abençoar todo dia o meu emprego porque o

trabalho nesse mundo é o que te dá dignidade. Se você não tiver trabalho

você não tem crédito em lugar nenhum, não tem nem conta no banco.

Entretanto, pode-se inferir que uma mulher como Manoela, que lutou para ser

bem-sucedida durante toda a sua vida, que desde jovem vivenciou e enfrentou histórias

difíceis de sofrimento não podia se entregar diante dos obstáculos impostos em seu

ambiente de trabalho.

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8.1.11 A análise do caso de Manoela

Uma das maiores fontes de sofrimento de Manoela é o sentimento de não ser

compreendida.

A história de Manoela pode ser analisada como resultante da condensação de

fatores sociais “que interveem no processo de socialização” e intrapsíquicos “que

determinam a personalidade” (RHÉAUME, 2007, p. 52). Sua trajetória pode ser

reconstituída através de vários registros, percebendo-a como resultante “do conjunto de

contradições que ela enfrentou ao longo de sua vida” (RHÉAUME, 2007, p. 53).

Os elementos fornecidos por ela permitem o desenvolvimento de hipóteses sobre

como ocorre a construção de um ideal, a forma como o imaginário é nutrido e carregado

ao longo da vida, e o processo de virada e desidealização, que, entretanto, tem como

uma de suas consequências o ataque à dimensão psíquica dos sujeitos.

O objetivo era perceber os elementos que davam contorno ao que havia sido

nomeado como assédio moral. Um primeiro registro que merece ser feito refere-se à

dificuldade de delimitar e caracterizar a situação contada por Manoela. Todavia, esta

percepção não significa fazer o que constantemente parecia vir sendo feito com ela:

negar a ocorrência do assédio. A dificuldade revelou que o fenômeno não poderia ser

entendido a partir de suas dimensões objetivas. Os elementos biográficos trazidos por

Manoela, associados à análise das dimensões subjetivas presentes em seu discurso,

alargaram o entendimento do contexto que deu origem ao seu sofrimento no Judiciário.

A análise do caso de Manoela exige que se volte à época de sua infância, quando a

situação familiar a levou a conviver com a avó permitindo que a semente do princípio

da justiça fosse plantada. Cultivada ao longo de sua educação, valorizada como

consequência dos episódios de doenças graves, seu auge se dá em suas primeiras

experiências no Sistema Judiciário. É inegável, portanto, que o ideal de justiça faz eco

com sua história pessoal.

A aprovação em um disputado concurso nacional, que promete oferecer

estabilidade e bom salário, permitiu a entrada da instituição judiciária na vida de

Manoela. Sua realização narcisista decorre deste feito, e de sua identificação com o

Sistema Judiciário em função da concepção de justiça nutrida desde sua infância.

O seu apego à organização judiciária é fruto de um processo de idealização, que

vem a ser reforçado no começo de sua carreira, quando tem a oportunidade de trabalhar

com um juiz “bom e gentil”, que a compreende, a valoriza, e tem um modo de trabalhar

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em que busca ser justo com a sociedade e com seus colegas de equipe. Tudo isso

significava para ela, a exemplo do que Aubert e Pagès trazem em sua obra, “a prova de

que seu Eu ideal correspondia ao ideal organizacional desejado pela empresa”

(AUBERT; PAGÈS, 1989, p. 189), nesse caso, o Judiciário. Este primeiro período na

organização foi vivido como uma Idade de Ouro, que permitiu a confirmação dos

anseios de Manoela. Entretanto, isso acaba por tornar a futura desilusão e o início do

processo de desidealização ainda mais agudos.

A perda da excelente relação que Manoela nutria com seu juiz anterior representa

um elemento do “ideal do eu” que se desfaz e se “constitui em uma ruptura na ligação

afetiva” com o Sistema Judiciário.

As posições de sua nova supervisora e de seu novo juiz criam uma crise na

identificação de Manoela com a instituição, situação agravada com a violência do

processo, interpretado por ela como de assédio moral. Em outras palavras, compõe o

cenário de violência descrito pela servidora.

Percebe-se, ao longo das descrições, uma variedade de peças que compunham o

quebra-cabeça denominado assédio moral, que não comprendia apenas os atos mais

conhecidos na literatura sobre o assunto, como, por exemplo, a marcação. Ele

compreendia também o processo de desidealização da instituição, resultante do que ela

considerava uma contradição entre o discurso e a prática no Sistema Judiciário. Não é

por menos que a dimensão da justiça, contraposta à identificação de um contexto de

injustiça, é por diversas vezes referenciada em suas entrevistas.

Manoela explicita seu sentimento de justiça em oposição, por exemplo, ao sistema

de remuneração adotado, às regras que não são claras para aqueles que ingressam no

Judiciário, ao uso do poder arbitrário pelos juízes e diretores ou ainda à maneira como

os juízes realizam seu trabalho e elaboram suas sentenças (quanto a este último aspecto,

destaco um trecho de sua entrevista:

[...] os juízes, seus objetivos, são os resultados. Não são as pessoas

envolvidas. São as metas, seus nomes estarão ligados a uma meta, mas a

meta não quer dizer que as coisas estão sendo bem-feitas. Elas estão sendo

bem-feitas?

Manoela encontra-se diante da contradição do discurso inerente ao que Kaës

chama de “tarefa primária” (KAËS, 2003, p. 41) da instituição judiciária e da aplicação

da justiça percebida em seu trabalho cotidiano, seja do ponto de vista da atuação junto à

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sociedade, seja da porta para dentro do Judiciário, ou seja, nas relações com os próprios

servidores.

Portanto, o imaginário nutrido antes e durante a primeira fase profissional de

Manoela no Judiciário, do que entende por justiça, veio a revelar-se o inverso do

posteriormente encontrado.

Tudo isso provocou em Manoela uma ruptura generalizada, uma desestruturação

psíquica, vivenciada por ela na forma de um sentimento de profunda desilusão, que

deve ser compreendida face a sua trajetória individual. “Tratando-se de significações

ligados por um lado a expectativas específicas do outro, pode-se compreender porque a

mesma organização não será vivida da mesma maneira pelos diferentes atores”

(BARUS-MICHEL et al., 1996, p. 139).

O desencantamento traduzido por Manoela sob o nome de “perda de brilho” é

consequência da perda de um “objeto interno” (AUBERT; PAGÈS, 1989, p. 211), de

uma imagem idealizada de si mesma ligada a certas atividades e maneiras de exercer a

profissão no Sistema Judiciário. Em decorrência da perda do sentido de seu trabalho

(guiado pela busca de justiça), Manoela não consegue permanecer investindo nele seu

desejo de realização. Ocorre, portanto, o processo de desinvestimento no trabalho, que

não se traduz na diminuição do seu compromisso com a atividade-fim, mas em uma

menor disponibilidade para trabalhar com o assessoramento dos juízes, uma menor

identificação com a organização, e finalmente, com uma menor adesão aos valores e

missão reais do Sistema Judiciário. Todas configuram estratégias de defesa para fazer

frente ao sofrimento resultante do processo de desencantamento.

Mas, se Manoela considera não ter mais a mesma relação com o seu trabalho da

época em que ali ingressou, por que permanece no Judiciário?

Para além das razões econômicas, pode-se perceber que ela vive um conflito

psicológico em sua relação com a instituição judiciária. Ao mesmo tempo que lamenta

estar no Judiciário, agradece a Deus por trabalhar ali. Ela se sente ameaçada pela

maneira como funciona o sistema assim como se sente segura por ser funcionária do

mesmo sistema. Ela se encontra presa nas mesmas contradições que originam o seu

sofrimento.

Porém, a ideia de que é impossível permanecer no Judiciário pode ser

“psiquicamente intransitável” para Manoela, que se sente paralisada na empresa, sem

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esperanças de uma futura mudança. Portanto, além da perda da função comissionada há

uma perda de sentido.

Para Barus-Michel, o sofrimento representa “uma perda de sentido, a

impossibilidade de se pronunciar, de se explicar. De se representar, de simbolizar

(sofrimento indescritível, intraduzível, indizível, “os grandes sofrimentos são mudos”),

desordem de emoções entregues a elas mesmas, seguido pela desordem de sintomas”

(BARUS-MICHEL, 2004, p. 30).

A situação de BETA2 é entendida como de assédio moral em parte porque não foi

para aquele tipo de contexto que alguns funcionários ingressaram no Judiciário. Como

lidar com as “promessas” e idealizações de proteção? A situação revela-se como

contraditória, tal qual a de uma criança, que busca proteção de um agressor junto aos

seus pais, e estes acabam posicionando-se como seus agressores.

Na história de Manoela, seu ingresso no Judiciário se deu pela busca de

estabilidade e justiça. Suas fugas, ainda que internas, deram-se quando deparou-se com

situações que iam contra isso.

Hoje em dia, a religiosidade é vista como uma saída para que Manoela dê um

sentido à sua vida, e oferece um contraponto aos efeitos do trauma, permitindo que haja

uma reconstrução. É com auxílio da religião que Manoela tenta restaurar o Eu que lhe

resta. Com seu novo dom, de cantar, torna-se membro de uma família espiritual, o que

lhe permitirá, talvez, minimizar ou superar o sofrimento que ainda a acompanha. Ela diz

que Deus ofereceu um sentido à sua vida e que é o único capaz de conceder justiça.

Antes de passar para a análise do próximo caso, de Pedro, abro um último espaço

para lançar algumas hipóteses.

A análise deste caso inicia-se com a percepção de que Manoela sente-se

incompreendida. Indaga-se, em determinada parte de sua entrevista, o motivo pelo qual

sua supervisora e seu juiz agiram da forma classificada por ela como assédio moral.

A explicação lançada por Manoela reduz-se a uma discussão de cunho pessoal,

como frequentemente é visto em teorizações sobre o fenômeno assédio moral. O relato

envolve as figuras de assediado e assediador, sem, no entanto, permitir a extrapolação

para o nível, por exemplo, organizacional. Mas, ainda que não tenha sido explicitamente

argumentado por Manoela, é possível perceber alguns indícios da dialética

organizacional atravessarem a relação de assediador e assediado, implícitos em sua

descrição da situação.

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Aspectos tradicionais do poder da instituição judiciária podem ser entendidos

como crescentemente integrados com um sistema de trabalho que vem impondo

determinadas exigências e pressões de resultados, com mais vigor a partir da Reforma

do Judiciário, em 2004.

A situação descrita por Manoela ocorre após o início das mudanças no Poder

Judiciário como um todo. Portanto, o ambiente de pressão e exigência por resultados

mais céleres já começava a se impor. Neste sentido, algumas hipóteses podem ser

levantadas para avançar nas perguntas de Manoela: Por que perdi a função

comissionada? Por que eu fui preterida em relação a um funcionário mais novo? Por que

a situação de perseguição ocorreu? Quais eram as intenções daqueles que me

assediavam?

A gestão que foi responsável pela situação de assédio moral de Manoela já

trabalhava no contexto pós-Reforma do Judiciário. Como se viu ao longo das análises

transversais, as exigências que passaram a se impor neste ambiente levam a situações de

pressão em cadeia. Manoela, em sua busca pela justiça, parecia se integrar à

organização judiciária no formato anterior à Reforma, ao trabalhar com seu “primeiro

juiz”. Entretanto, com as modificações da organização e maior sobrecarga de trabalho, o

lidar com a justiça passou a ter conotação mais utilitarista, e o sentido do trabalho

começou a se perder.

Pode se desenvolver a hipótese de que supervisora e juiz tenham assimilado as

pressões da nova organização judiciária. Neste contexto, a busca da otimização de

resultados vinha gerando conflitos no dia a dia e levava a supervisora a oferecer a

função para alguém que se dispusesse a executar as tarefas de forma mais rápida, sem se

preocupar com o mérito das decisões, como Manoela se permitia fazer.

Portanto, a situação descrita por Manoela pode ser lida diferentemente de uma

situação de indisposição no ambiente de trabalho. O conflito pessoal é atravessado por

aspectos da organização judiciária como valores, escassez de pessoal, dominação,

elementos que podem dar a ideia de uma situação de assédio moral. Ainda assim, a

situação de Manoela ocorreu poucos anos depois do início da Reforma, o que

caracteriza um período histórico muito curto para que existam de fato mudanças muito

visíveis numa instituição como o Judiciário.

Sendo assim, pode-se lançar também a hipótese de que o Sistema Judiciário, à

época, ainda mantinha uma configuração própria do sistema burocrático, embora já

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pudessem ser vistos elementos de interiorização do discurso gestionário moderno. A

convivência dos dois sistemas gerava conflito, que agravava a sensação de

incompreensão de Manoela.

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8.2 O CASO DE PEDRO 92

- O PODER DE DEUS E A JUSTIÇA DIVINA

Eis que vos envio como ovelhas ao meio de lobos; portanto,

sede prudentes como as serpentes e simples como as pombas.93

(Mateus 10:16).

8.2.1 Breve reflexão sobre a escolha desta entrevista

Pedro conta que jamais sentiu medo, angústia ou sofrimento diante da situação de

assédio moral vivida por ele e seus colegas no Poder Judiciário em BETA3. Tal

afirmação, enunciada durante nosso primeiro encontro, surpreendeu-me. Afinal, naquele

momento eu ainda carregava uma imagem das vítimas de assédio moral como pessoas

traumatizadas por terem vivenciado situações de sofrimento. Esta percepção, fruto de

minha própria história de vida, havia sido reforçada por algumas entrevistas realizadas

com alguns servidores do Judiciário Federal que se consideravam vítimas de assédio

moral.

Diferente da ideia de violência identificada nos relatos dos outros entrevistados e

percebida em minha experiência pessoal, Pedro expressava um ponto de vista, a meu

ver, tão original, que logo após a primeira entrevista senti necessidade de ouvir o

depoimento de Carolina. Ela também era servidora do Judiciário e havia trabalhado na

mesma vara de Pedro na gestão tida como responsável pela situação de assédio moral

denunciada.

Até hoje, quase 10 anos após a ocorrência, a ex-colega de Pedro, Carolina, conta

ter frequentes pesadelos com o juiz de BETA3. Com a ajuda de acompanhamento

psicoterapêutico, ela declarou ter buscado apoio para resolver seu problema de

depressão. Seu relato sobre os episódios vividos em BETA3 não deixa dúvidas sobre a

maneira diferente pela qual a mesma situação foi vivenciada por Carolina e por Pedro.

Seus discursos iam em direções opostas.

92

Eu lhe perguntei, como a outros entrevistados que cito aqui, que pseudônimo gostaria de usar.

Respondeu-me que escolhesse o nome de qualquer apóstolo. Escolhi, então, Pedro, por ter sido o

primeiro porta-voz da igreja, o que foi prontamente aceito por ele. 93

Frase enunciada por Pedro. Ao longo de suas entrevistas (especialmente no segundo encontro), Pedro

recorre muitas vezes a passagens bíblicas, para definir sua posição. O versículo foi mencionado ao ser

perguntado sobre sua percpção a respeito do ambiente ideal para pregar a religião católica. Como

cristão, Pedro entende que “tem que saber se virar no meio de qualquer ambiente, tendo gente para

compartilhar ou não”, cabendo a ele, conforme o versículo, propagar as palavras de Jesus Cristo.

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Não se trata aqui de definir que visão estaria certa. O que me chamou a atenção

foi a diversidade de opiniões sobre um mesmo fenômeno, que refletia suas vivências

díspares. A percepção desta disparidade trazia tal desconforto para Carolina que, por não

entender a constante tranquilidade de Pedro frente à situação que considerava como de

assédio moral quando trabalhavam juntos, ela se referia a ele como “louco”. Recusando-

se a aceitar a possibilidade de que o processo de assédio não causasse nele o mesmo

sofrimento que ela sentia, Carolina adicionava à hipótese da loucura, a da negação como

mecanismo de defesa: “Ele jamais se queixou... mas eu sei que ele sofria... ele é

diferente, é perturbado”, dizia ela.

Fato é que vários aspectos do discurso de Pedro, que causavam incômodo em

Carolina, também ecoaram em mim. Como já adiantado, na primeira entrevista me senti

pouco à vontade diante de uma posição tão singular. Meu desconforto frente à postura

de Pedro, me levou a acelerar a conclusão daquele encontro inaugural, impedindo que

eu explorasse as muitas pistas deixadas por ele. Acredito que o fiz motivada pelo desejo

de não querer perder meu tempo com uma pessoa que sustentava um discurso que

embora parecesse indiferente ao sofrimento de seus colegas, refletia um mecanismo de

defesa para esconder suas angústias que forçosamente havia vivenciado.

Giust-Despraries explica que

[...] o clínico é levado a fazer uma experiência durante a consulta, quando

surge a dificuldade de identificar elementos nos discursos ou quando, mais

sutilmente, essa identificação exige dele um trabalho de desconstrução...

fazer a experiência, em sua escuta, de uma dificuldade quando aparecem nos

discursos os elementos com os quais ele tem problemas para se identificar ou,

mais sutilmente, cuja identificação exige dele um trabalho de desconstrução

em relação aos seus reparos espontâneos e habituais (GIUST-DESPRARIES,

2004, p. 109).

Destarte, instigada pelos dois depoimentos – de Pedro e de Carolina – e a fim de

melhor compreender a origem de uma postura que me parecia tão particular, optei pela

realização de uma segunda entrevista com Pedro. Percebi que seu caso poderia me

ajudar a evidenciar a dimensão subjetiva do processo de assédio moral e a avançar no

entendimento do fato de que diante de situações desta natureza, alguns sujeitos sofram

(como parece ter sido o caso de Carolina) e outros não (como parece ser o caso de

Pedro).

A primeira entrevista com Pedro trouxe-me poucas informações sobre sua

trajetória profissional antes e depois de seu ingresso no Judiciário, bem como sobre a

importância da religião em sua vida. Após ler e reler o conteúdo da primeira entrevista

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220

transcrita, percebi que a relação de Pedro com a religião revelava-se como importante

indício a ser aprofundado na segunda entrevista.

Impende destacar que, além da possibilidade de aprofundar pistas lançadas nas

primeiras entrevistas, a realização do segundo encontro, tanto com Manoela (cujo caso

particular foi apresentado na seção anterior) como com Pedro, permitiu diminuir a

resistência entre os entrevistados e eu. Isso decorreu, em parte, do meu avanço no

conhecimento e entendimento da postura clínica de pesquisa, à medida que realizava as

entrevistas da tese. Estar cada vez mais ciente de que, no dizer de Gaulejac (2011a) “a

consulta emocional funciona como uma câmara de ecos, ou seja, aceita-se as

ressonâncias que a história de vida do outro provoca, permitindo que se acompanhe o

narrador na exploração dos próprios sentimentos”, (GAULEJAC, 2011a, p. 299) foi

fundamental para entender minha postura a cada entrevista, permitindo que ela

compusesse o quadro geral de análise do material coletado.

8.2.2 A chegada de Pedro ao Estado BETA

Pedro tem cinquenta anos e atualmente é funcionário da Justiça Federal em

BETA3 no Estado BETA.

Originário de uma cidade no interior do Brasil, onde se encontra grande parte de

seus familiares, incluindo tios, primos e um irmão, Pedro decidiu mudar-se para a

capital de BETA em 1991, movido pela “curiosidade de como seria a vida naquele

Estado [BETA]”. Ao chegar em BETA1, capital de BETA, Pedro trazia uma imagem

idealizada da vida na cidade: “Todo mundo que nasce no interior vê televisão, vê

novela. Eu vi BETA1, pensei que era aquela maravilha toda e vim pra cá. Todo mundo

quer vir para cá”.

Após sua chegada em BETA1, Pedro começou a trabalhar no setor hoteleiro.

Depois de ficar desempregado, e por insistência de sua, então, namorada, que era

funcionária do Sistema Judiciário, decidiu se preparar para prestar concursos públicos.

Em 1998, Pedro conseguiu passar para o cargo de Técnico Judiciário da Justiça Federal

de BETA. Ao ser indagado sobre o motivo pelo qual havia optado por ingressar no

Sistema Judiciário, Pedro esclarece: “Eu não tinha imagem nenhuma. Eu só queria

estabilidade mesmo porque eu achava o setor privado muito instável. Você está

trabalhando hoje, amanhã você não está”.

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Sua explicação ia ao encontro do principal argumento usado pelos servidores

entrevistados para justificar a escolha pelo ingresso em uma carreira pública, no Sistema

Judiciário Federal. Pelo seu discurso, a estabilidade do ponto de vista econômico era o

único objetivo perseguido, pouco importando a instituição pública que a proporcionaria.

Após sua posse, Pedro permaneceu em um posto judicial em BETA1 durante

quatro meses antes de se mudar para BETA3. Por considerar-se uma pessoa típica “do

interior do Brasil”, pouco habituada à vida em uma cidade barulhenta, violenta e “sem

calor humano” como BETA1, Pedro sentiu-se estimulado a, logo que ingressou no

Judiciário, solicitar sua remoção de BETA1 para BETA3, o que foi prontamente

atendido.

8.2.3 O assédio

A primeira entrevista de Pedro girou, sobretudo, em torno do momento em que

começou a trabalhar no Judiciário em BETA3, trazendo elementos que permitem

analisar o processo considerado como de assédio moral.

O caso de BETA3 é conhecido como o primeiro grande caso de assédio moral em

que o Sindicato foi chamado a representar os servidores demandantes.

Em 2003, Pedro e outros três servidores foram acusados de supostos crimes de

prevaricação, crime contra a Administração Pública, que consiste em retardar ou se

omitir de praticar um ato atribuído ao seu cargo, ou a praticá-lo contrariamente aos

dispositivos da lei, para satisfazer um interesse ou um sentimento pessoal, conforme

artigo 319 do Código Penal Brasileiro. Por considerar a acusação como componente de

um contexto de assédio moral, os servidores procuraram a ajuda do Sindicato dos

Funcionários do Poder Judiciário de BETA, denunciando o ocorrido.

Pedro, que trabalhava no atendimento ao público, comenta o caso que deu origem

à acusação por prevaricação:

O pessoal quando inaugurou o pré-atendimento não tinha uma estrutura

legal, não tinha uma cadeira para o pessoal que vinha ser atendido. Aí a

colega XXX (...) pegou um banquinho de plástico na cozinha e trouxe uma

cadeira de madeira da casa dela para colocar lá na sala para o pessoal

poder sentar. Porque vinham aqueles velhinhos e ficavam em pé... ela ficou

com dó e trouxe. Aí um dia lá o diretor do Fórum veio passear e o juiz

quando entrou na sala e viu lá um banquinho de plástico e uma cadeira de

madeira... acho que ele não gostou e entrou com uma ação civil (...). Aí

poucos dias depois chegou um ofício.

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O juiz justificou sua atitude dizendo que Pedro e os outros funcionários queriam

desmoralizar o Judiciário colocando um banco de plástico e uma cadeira de madeira,

que não faziam parte do mobiliário, dentro do gabinete. O ofício por ele emitido causou

espanto nos servidores, porque o juiz jamais os havia procurado para apresentar queixa

alguma.

Inicialmente os servidores decidiram fazer uma denúncia anônima sobre o

ocorrido em BETA3. Entretanto, depois que o Sindicato foi a BETA3 para fazer uma

diligência a respeito do caso, ficou claro que todos os servidores eram os autores, à

exceção do diretor, do supervisor e do juiz, alvos da denúncia. Uma vez tendo

convencido os servidores a formalizar a denúncia, o Sindicato passou a adotar os

procedimentos de defesa daquele grupo, baseando-se na tipificação de crime de abuso

da autoridade por parte do juiz, sendo a denúncia formalmente encaminhada para a

Corregedoria a quem cabe, como visto no caso de Manoela (ver seção 8.1), a missão de

controlar a legalidade e moralidade dos atos administrativos.94

Pedro conta que a acusação lançada contra os servidores (peculato) refletia o

comportamento particular do juiz, que não costumava receber ninguém em seu

gabinete (nem advogados, nem funcionários), era conhecido por destratar todos à sua

volta, e havia sido autor de um incidente famoso entre os servidores de BETA3, quando

ameaçou processar uma profissional de limpeza, acusando-a de ter roubado uma caixa

de achocolatado que ele não conseguira encontrar em seu gabinete.

Na opinião de Pedro esses comportamentos eram consequência da relação daquele

juiz com o poder de seu cargo: “O poder nas mãos da pessoa. A pessoa não tem

equilíbrio emocional, então pensa que ‘eu sou Juiz, então sou Deus agora’”.

Os servidores de BETA3 encontravam-se psicologicamente abalados em

decorrência do ambiente microsocial dominado pelo medo, gerado em torno daquele

juiz. O temor referente a eventuais remoções e até demissões, como retaliação por parte

do juiz, caminhava junto com a tomada de consciência da vulnerabilidade que alguns

94

Interessante registrar o fato de que como decorrência da denúncia ter sido encaminhada para a

Corregedoria, conta o diretor do Sindicato dos Servidores do Judiciário de BETA que ele mesmo

passou a figurar como réu em um processo criminal por ter denunciado o juiz como autor de assédio

moral. Na opinião do diretor do Sindicato, o objetivo era intimidar tanto os servidores quanto os

dirigentes do Sindicato para que a denúncia não seguisse adiante. A sentença proferida anos depois

deu conta de que o Sindicato cumpria seu dever ao denunciar a situação que estava ocorrendo,

sendoportanto, anulada a acusação com o dirigente sindical.

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servidores haviam eventualmente deixado de vivenciar, por se crerem estáveis após o

ingresso no Judiciário.

Pedro assumia-se como exceção nesse ambiente de sofrimento, pois não

compartilhava do temor dos demais colegas. Quando indagado sobre eventuais

sentimentos que aquele contexto provocara, recordou-se:

Eu fiquei foi com raiva. Como é que um cara desequilibrado desse presta um

concurso, vai ser juiz, e vem com um papo furado desses. O juiz mesmo tinha

vergonha de mim. Quando ele me via na rua, ele baixava a cabeça. Ele só

andava com segurança aqui. Eu acho que ele ficava com medo de a gente

pegar ele e dar uns tapas (...) Não tive medo, pelo contrário, eu tive raiva da

coisa gratuita.

A análise dessa reação distinta de Pedro exigia uma maior compreensão sobre sua

história, o que só foi alcançado com a realização da segunda entrevista. Pedro não se

considerava atingido pela disseminação do medo em BETA3 por não acreditar que

poderia ser prejudicado, o que atribuía a dois fatores. Em primeiro lugar, à sua fé. “Fé.

Confiança em Deus. (...) Fiquei tranquilo”, afirmava ele, como será aprofundado na

mais adiante.

Em segundo lugar, Pedro entendia que “para tudo existem leis e regras”. Ele

exemplifica:

Pega o estatuto do funcionário público e você vai ver, não existe. Você não

tem que fazer hora extra, você tem que cumprir seu horário. O juiz não pode

atribuir a você função que não pertence a você. Você não pode cumprir um

mandado se você não é oficial de justiça. Você tem suas tarefas e tudo é lei.

Então seu horário, sua carga horária é de tal a tal hora e acabou, você não

tem que ficar mais que isso, não tem. Não tem obrigação nenhuma e nem o

juiz pode impor isso para você, você vai ficar até mais tarde, não pode. Ele

pode pedir até como favor, mas você aceita se quiser porque para tudo tem

regras, leis. Muito servidor público não sabe disso, ele estuda o estatuto do

servidor público e depois esquece tudo.

Pedro disse que executava suas atividades em horário estipulado pelo

regulamento, e que não se sentia obrigado a fazer hora extra. O que não significa que

não gostasse de seu trabalho. Pedro entendia que seu dever era “fazer o melhor

possível” em seu dia a dia laboral, o que traduzia a ideia de trabalhar bem, respeitando

os horários e as regras de funcionamento existentes. Segundo ele, seu trabalho sempre

foi muito bem avaliado.

Em sua opinião, diversos funcionários trabalhavam além do horário necessário

por causa da existência da função comissionada. Seria uma forma de se proteger da

ameaça: “obrigados a trabalhar para não perdê-la”.

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O próprio Pedro, à época da entrevista, gozava de uma função comissionada.

Entretanto, minimizava sua importância, tendo declarado à sua chefia que ela não é

necessária, podendo retomá-la quando bem entendesse. Pedro dizia não desejar essa

função, por achar que ela legitimava a atitude dos juízes fazerem o que quiserem com os

funcionários, inclusive “explorá-los”.

8.2.4 A injustiça da justiça

Em diversos momentos da entrevista, Pedro externalizou sua descrença em

relação à eficácia do Sistema Judiciário. Demonstrando indignação, lembrou de

processos cuja tramitação no Judiciário já durava mais de vinte anos, e de casos de

jurisdicionados que morreram à espera de soluções para suas demandas judiciais:

Já vi muita injustiça, muita. Não é possível um processo previdenciário durar

vinte e três anos. Você vê todo mundo morrendo. O que eu já vi de velhinhos

morrendo, nunca viram a justiça ser feita, nunca receberam seus direitos,

passa para os filhos, os filhos também morrem passa para os netos. Então, é

o absurdo do absurdo, é inadmissível isso...

Segundo sua lógica, o Poder Judiciário está falido, assim como o Poder

Legislativo e a política. Diante da insistência para que emitisse sua opinião sobre a

relação entre esta percepção e o caso de assédio moral que relatara, Pedro oferece uma

interpretação psicologizante, atribuindo o assédio aos “desequilibrados” que ingressam

no Sistema Judiciário:

[...] o povo brasileiro anda cada vez mais desequilibrado, mais alienado... o

cara passa no concurso e leva lá para dentro, não tem jeito. O judiciário está

cheio de maluco, muita gente fazendo tratamento psiquiátrico, análise.

Mas, para Pedro, a injustiça não se resume aos contornos do Judiciário. Ele

destaca sua dimensão social, concluindo que sua origem localiza-se no distanciamento

dos preceitos e da prática religiosa.

O povo está perdendo todos os parâmetros, se alienando totalmente de fé...

Absorvendo todas as maluquices da televisão, violência, todas as maluquices

da televisão o povo absorve aquilo com facilidade tudo que é mal, que é

errado, parece que o povo adora. O que acontece? (...) tem uma passagem

bíblica aonde Deus fala, ai daquele que chama o mal de bem e o bem de mal,

que faz das trevas luz e da luz trevas. Ou seja, ele muda totalmente o

conceito, aquilo que é bem ele fala que é mal, o que é certo ele fala que é

errado, aquilo que é errado ele fala que está certo. Daí começa a trocar

todos os parâmetros. O que está acontecendo com a sociedade hoje é isso,

com o mundo (...) É exatamente essa troca de valores, casamento gay agora,

homem com homem, mulher com mulher, aborto. Ou seja, tudo que é mal,

tudo que é errado o povo parece que quer botar dentro. Ser honesto hoje em

dia é uma coisa. Um funcionário acha uma carteira com não sei quantos

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reais lá, vai e devolve, sai na televisão como se (...) fosse (...) otário,(...) essa

troca de valores vai levando o povo, o povo vai ficando doente, doente.

Pedro conclui que sua dedicação ao trabalho, e a forma de tratamento cordial

dispensada ao jurisdicionado retratam o seu desejo por “fazer o bem” ao próximo no

sentido religioso, e não decorrem se sua identificação com a finalidade do Judiciário em

si.

8.2.5 A justiça de Deus

Quando fala de sua infância, Pedro recorda-se de ter sido um menino rebelde, que

não dava importância à prática religiosa: “não levava a vida mais a sério, era muito

rebelde”. Associava as dificuldades com as quais se deparou em sua trajetória de vida ao

fato de nem sempre ter respeitado as regras que deveria:

Não queria obedecer ordens de ninguém, nem da mãe e nem do pai, rebelde

como todo adolescente... Você tem que seguir as regras, se botar o carro na

frente dos bois vai dar com burro na água. Se você seguir as regras, a

probabilidade de se dar bem na vida são muito maiores.

Aos 28 anos, Pedro teve sua “primeira revelação”, sua primeira experiência

religiosa, em que afirma ter sentido que havia “alguém cuidando” dele. Desde então a

prática religiosa se incorporou ao seu cotidiano.

Devo registrar que, mesmo (ou justamente?) sabendo que eu não comungo da

religião católica, Pedro dedicou diversos momentos da entrevista à dissertação sobre o

Cristianismo. Embora inicialmente eu me sentisse distanciada de preocupações daquela

natureza, demonstrei curiosidade e me esforcei para estimular o diálogo, ao

compreender que em seu discurso religioso figuravam elementos importantes para

melhor desvelar sua trajetória de vida. Portanto, se por um lado, o fato de não comungar

das mesmas crenças, me permitia um distanciamento de seu discurso, facilitando a sua

interpretação; por outro, o fato de ouvi-lo com atenção, ajudou na minha aproximação

com relação a Pedro.

Eu lembro (...) a primeira vez que eu vi uma palestra lá em XXXX sobre

dízimos, nunca tinha ouvido falar disso. Que existem promessas de Deus com

relação a dízimos. Você vê Jesus Cristo falando que aquele que é mão aberta,

liberal com as coisas de Deus, Deus abençoa ele. Aquele que fecha a mão,

que é miserável, até aquilo que ele tem vai ser tirado dele e é interessante

isso. Então, eu vi uma palestra e achei curioso. Eu estava desempregado e

rezei, pedi para Deus me dar um emprego que vou ser dizimista para o resto

da vida. Na mesma semana arrumei emprego no cartório de protesto e eu

doido para chegar no fim do mês para pagar o dízimo. Daí levei na

secretaria da igreja o meu dízimo. No mesmo mês, no mês seguinte meu

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salário dobrou, dobrou, eu era muito bom datilógrafo e era um cartório de

protesto. Eu era muito bom datilógrafo (...) a galera antiga que estava lá

começou jogar o serviço tudo para mim e eu nem olhava. Daí o chefe do

cartório quando ele viu aquilo, (...) ele chegou e [disse]: Pedro, vou dobrar

seu salário esse mês, mês que vem vou te dar mais 50%. Daí eu me lembrei

do lance do dízimo, é engraçado isso. A galera começou ficar com ciúme, eu

com três meses que estava lá já estava ganhando mais que a galera que

estava lá há quatro, cinco anos. São coisas que acontecem que são

inexplicáveis.

Essa trajetória de exercício da fé cristã e devoção à igreja foi interrompida com

sua mudança para BETA1. E, portanto, a esta interrupção e distanciamento da prática

religiosa é que Pedro atribui os problemas vividos por ele durante a experiência na nova

cidade:

Quando vim para o BETA1 fiquei um tempão sem querer saber de igreja,

fiquei deslumbrado com BETA1, muita menina, muita mulher. Afastei

totalmente, não conseguia parar em emprego nenhum, fui ameaçado de

morte por traficante. Eu passei por cada uma que você nem queira imaginar.

Até que um dia, enquanto assistia à televisão, recebeu outro “chamado de Deus”.

Eu vi na televisão um padre falando: “você está desse jeito aí, abandonou a

Deus e volta para Deus”. Foi quando eu tomei uma atitude que as coisas

começaram a melhorar e entrar tudo no eixo. Você vê que tem alguma coisa,

eu estou falando, eu aprendi muito com isso, tem que andar pelas regras.

Decidiu, então, voltar a frequentar a igreja e praticar sua fé cristã. Sua vida em

BETA1 começou, a apresentar melhoras que levaram Pedro a concluir:

Não adianta inventar, quebrar as regras, vai dar com burro na água, é tudo

consequência, o que você planta você colhe. Você é hoje o que você plantou

ontem e você vai ser amanhã o que você plantar hoje.

Alguns meses depois da denúncia contra o juiz, apoiados pela forte pressão do

Sindicato, finalmente “a justiça foi feita (...) a paz reinou, o bem triunfou sobre o mal”.

O juiz foi afastado daquela seção judiciária, levando consigo seu diretor.

Pedro baseia-se novamente na religião para tentar explicar sua tranquilidade ao

longo de todo o processo.

Então, a fé te dá equilíbrio, força e paciência, porque a fé tem seus truques,

amor, paciência, você ter paciência para poder passar por tudo isso numa

boa, tranquilo. Então, como Cristo mesmo fala, viva nesse mundo como se

você não fizesse parte dele, a nossa verdadeira pátria não está aqui, somos

peregrinos, estamos de passagem aqui, temos uma eternidade esperando

todos nós. Um consolo que se passa com outro colega com dificuldades.

Quem não tem fé pensa que é só isso daqui e vai se apegar demais as coisas

aqui, ao carro, a casa, ao dinheiro, emprego, não posso perder aqui, não

posso perder isso.

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Por um certo lado se aprende isso desde a própria religião [que] tem suas

leis, suas regras. Tanto que a fé não é imposta, ela é proposta, você não pode

obrigar ninguém a acreditar em nada, você fala e acredita se quiser. A igreja

não tem poder de sansão, ela só te dá histórico, não pisa ali, se você pisar

você vai afundar. Você vai se quiser. Se quiser pisar e afundar, vai afundar e

a igreja não pode fazer nada. Eu leio as escrituras há muitos anos e você

aprende isso, existem regras estabelecidas. Por que o mar não invade a

terra? Porque já foi ordenado a não passar dali. Por que as estrelas não

caem? Por que o sol não despenca? Porque tudo são leis, tem regras.

8.2.6 A análise do caso de Pedro

O caso de Pedro é ilustrativo do fato de que fenômenos como o que havia sido

interpretado como de assédio moral, muito embora abarquem o espaço do trabalho

como um todo, atingem os sujeitos de forma e intensidade diferentes. Parte da

explicação para reações que à primeira vista podem ser tidas como peculiares, causando

dificuldade de aceitação, pode ser encontrada em fatores de ordem subjetiva como as

histórias pessoais, as idealizações, as expectativas em relação ao futuro.

Pedro diz que não sofreu. Afirma que não sentiu medo, nem mesmo no período

em que o juiz exerceu seu poder arbitrário no seu ambiente de trabalho. No início,

pensei que dizia isso apenas para negar a realidade vivida. Depois, enquanto Pedro

contava sua história, consegui reunir elementos, novas pistas para explicar essa reação

peculiar.

Em sua juventude, passou por algumas experiências que lhe provaram que seguir

as regras (de Deus) é a melhor maneira de obter o resultado desejado. Todas as vezes em

que não o fez foi punido. Portanto, “somente Deus pode indicar os bons ou os maus

caminhos”.

Ele aplica essa lógica no Judiciário. O fato de que as regras possam não ser

seguidas pelos Deuses do Sistema Judiciário, provoca medo em muitos funcionários;

não em Pedro. Afinal, ele confia em um nível de poder que para ele é incontestável. Por

um lado, acredita que as regras são feitas para serem respeitadas, o que garantirá que

tudo sairá bem. Por que, então, sentir medo no Judiciário se ele e sua equipe não

fizeram nada de mal? Se por um lado, Pedro assume a postura destemida, por não temer

eventuais perdas, como de remuneração, ou do próprio emprego, por outro, ele aplica

essa lógica porque sabe que se não houver justiça no mundo dos pagãos, haverá no

mundo do céu. Sua única certeza é, então, de que a justiça será feita de uma maneira ou

de outra, pois cabe a Deus fazê-la ser cumprida.

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Freud, em algumas de suas obras, faz considerações importantes sobre o

fenômeno da religião. No livro O futuro de uma ilusão, sua obra mais conhecida sobre

religião, que segue seu discurso cientificista (onde ele critica a religião como inimiga da

ciência), o autor interpreta a religião como uma ilusão.

Ele se refere a Deus como um protótipo do pai na primeira infância. O pai “entra

no jogo” assim que a união com a mãe, vivida durante os primeiros estágios da vida do

bebê, é interrompida por sua chegada como “portador da lei simbólica”. O

desenvolvimento da criança é construído a partir de então, associado à aceitação dessa

lei e de sua consequente castração simbólica (que faz referência às suas ambições

fálicas, componentes de seu narcisismo infantil).

A partir de então, a criança vive a experiência do conflito, a raiva da figura

paterna que causou a separação da mãe (perturbação da relação fusional) e seu desejo de

proteção e de amor alimentado por ele. Freud acredita que esse sentimento impregna

tanto a infância quanto a idade adulta. Consequentemente, Deus será a imagem

idealizada do pai, que para protegê-lo o levará a superar o abandono vivido em criança.

Guardar essa imagem mesmo na idade adulta caracteriza, segundo Freud, a dimensão

ilusória.

Já em seu artigo O mal-estar da civilização, Freud (1929) reconstitui as etapas do

desenvolvimento humano e fala das consequências trágicas da modernidade para a

subjetividade dos indivíduos, particularmente da impotência, fonte de dor e de

importantes desagregamentos psicológicos.

Assim, entre as medidas corretivas para poder resisitir às dificuldades, aos

sofrimentos e decepções, ele fala sobre aquilo que chama de derivados poderosos (como

a religião e a atividade científica), de satisfações substitutivas (geralmente as artes) e

daquelas que recebem a alcunha de substâncias tóxicas, que tornam o indivíduo

insensível ao sofrimento.

Para Barus-Michel, “o ingresso na religião, por mais benéfico que seja do ponto

de vista psíquico, significa a renúncia à vida em prol de uma “verdadeira vida”, em

meio a uma relação mística que se pode considerar ilusória, pelo menos não pertencente

a este mundo, mesmo quando (...) pretendem se inscrever na realidade do mundo

profano” (BARUS-MICHEL, 200, p. 170).

A autora continua, dizendo que há uma espécie de clivagem psicoafetiva, onde

existe, de um lado, o mundo espiritual, divino e, do outro, o mundo profano. O

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primeiro, efetivo após a morte, é privilegiado e o mundo atual é dominado pelo pecado.

O adepto do misticismo vive no mundo espiritual que lhe garantirá a “salvação pessoal”

enquanto ele espera a passagem do mundo atual para o seguinte (BARUS-MICHEL,

200, p. 171).

A clivagem psicoafetiva à qual se refere Barus-Michel também é uma explicação

para a menor implicação que Pedro parece demonstrar em relação ao seu trabalho no

Judiciário. Comparado com Manoela (do caso anteriormente analisado), ele demonstra

uma menor devoção e menor relação afetiva com seu cotidiano laboral e com a

instituição onde trabalha. Esta postura permitiu a sobrevivência psíquica de Pedro, e

pareceu coerente com a imagem de que “o cristão deve ter a capacidade de se adaptar

a todos os ambientes”.

8.3 O CASO DE SOFIA95

– A REMOÇÃO FORÇADA E O RESPEITO PELO

ESCRITO E PELAS REGRAS

8.3.1 Breve reflexão sobre a escolha desta entrevista

O contato de Sofia me fora oferecido pelo Sindicato por considerá-la uma “pessoa

chave” do “caso de BETA5”. Sua didática explicativa evidenciava o perfil de ex-

professora e o dom da palavra. Sua vontade de denunciar seu caso era muito grande: um

estímulo ainda maior à minha escuta: “Minha história é surreal. Você pode publicar um

livro sobre ela”, incitou Sofia.

Nosso primeiro encontro, que terminou tarde da noite em uma mesa de um centro

comercial, não foi suficiente nem para mim, nem para ela. “Você pode me contactar se

ainda tiver dúvidas ou questões”, disse ela no final da entrevista. Mais do que uma

gentileza, entendi sua frase como um indício de que ainda havia coisas a serem ditas.

Esta total disposição de sua parte, me fez decidir aprofundar sua história em uma

segunda entrevista.

A situação vivida por Sofia, a qual deu origem a um processo administrativo

iniciado em 2009, engloba, em seus dizeres, um conjunto de elementos que a levam a

considerar-se vítima de assédio moral. A exemplo dos casos de Manoela e Pedro, nem

todos os elementos do discurso de Sofia podem ser reconhecidos como constituintes de

95

Como nos dois casos precedentes, pedi à entrevistada que escolhesse um pseudôdimo. Ela justificou

sua escolha dizendo que Sofia significa sabedoria. Ela conta: “é o nome que eu gostaria de dar à

minha filha, se tiver uma no futuro”.

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um processo de assédio moral, conforme definição encontrada na literatura tradicional

referente ao tema. Não obstante, eles foram elencados por Sofia em sua argumentação.

8.3.2 A boa remoção e a primeira volta para casa

À época da primeira entrevista, Sofia, originária de BETA5, tinha quarenta anos e

era funcionária da seção judiciária do Estado BETA desde o ano 2000. Nos primeiros

seis meses, trabalhou no Judiciário de BETA7 (cidade na qual havia sido lotada após

tomar posse no concurso realizado para o Judiciário Federal do Estado BETA), onde era

responsável pela atividade de capacitação dos servidores. Ela conta orgulhosa: “Meu

trabalho era reconhecido e sem puxar saco de ninguém, era dentro de uma área que eu

conhecia que era lidar com gente, com documentos, com dados, redigir, então, era

muito bom”. A despeito de adorar suas atividades, seis meses depois de ingressar no

Judiciário, Sofia tem seu pedido atendido e consegue ser transferida para BETA5, sua

cidade de origem, da qual não desejava jamais ter partido. BETA5 é a cidade onde ela

cresceu, onde viviam sua mãe, seus amigos e outros membros da família.

8.3.3 A decisão de ingressar no Sistema Judiciário

Sofia diz ter nascido para ser professora, profissão que exerceu durante doze anos,

antes de entrar para o Judiciário. Filha, irmã, sobrinha e prima de professores em

atividade ou aposentados, ela trabalhou em escolas públicas, dando aulas de inglês, de

literatura e gramática, e foi diretora pedagógica em uma escola de música privada.

Passados doze anos, ela decidiu não continuar na carreira de professora. “Daí

decidi que não ia me aposentar professora, não que eu não goste da área, mas

professora do Estado é complicado”. Em nosso primeiro encontro, Sofia explicou o

significado de “complicado” e justificou sua decisão por motivos financeiros. Na

segunda entrevista, ela listou outros elementos que provocaram seu desencanto com o

magistério.

Lamentou naquela oportunidade que, mesmo apaixonada por sua profissão de

professora, seu trabalho não fosse suficientemente reconhecido. Se não viu

reconhecimento financeiro da parte do governo, tampouco o sentiu por parte de seus

alunos. Nem mesmo no curso de formação de professores, em que lecionava, percebeu

dedicação aos estudos por parte de suas alunas, que não manifestavam respeito por

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Sofia ou pela futura profissão:“Elas não me olhavam. Saíam da sala. Eu não via

nenhum resultado Eu tinha a impressão de perder tempo.”

Sofia decidiu, então, preparar-se para prestar concursos públicos, logrando passar

para o cargo de Técnica Judiciária em 2000.

8.3.4 A idealização e o grupo de trabalho como uma família

Durante os primeiros oito anos no Judiciário, já em BETA5, Sofia gozou de um

ambiente de trabalho agradável, onde a equipe se tratava como uma grande família.

Todos se conheciam, eram amigos das respectivas famílias e frequentemente viajavam

juntos. Sem jamais ter vivenciado situações de conflito, Sofia considerava-as somente

como fatos sobre os quais ouvia-se falar pelos corredores do Judiciário.

As relações pessoais, típicas de uma grande família, refletiam-se, também, na boa

produtividade. Apesar de terem muito trabalho a fazer, os funcionários “iam felizes para

o trabalho e produziam muito”.

Mesmo naquele contexto favorável, Sofia recorda sua dificuldade em

desempenhar uma atividade que desenvolveu durante anos: a de redigir documentos

para serem assinados pelos juízes. Ao avaliar esta dificuldade, Sofia remete-se à sua

profissão anterior, de professora:

Para mim o texto é muito importante e eu tinha que fazer um texto para o

cara [juiz] assinar segundo o que ele pensa. Como assim? Fez um nó na

minha cabeça. Eu tinha uma dificuldade. As outras colegas faziam, [mas eu]

vivia enchendo o saco do supervisor que era meu amigo (...). Custei a

entender o que era isso, a minha relação com o texto, como eu ia escrever

para o outro assinar com a cabeça dele? Isso não existe.

Sofia lembra ter conseguido superar essa dificuldade com a ajuda de seu

supervisor e de seu juiz. Eles tinham paciência para explicar a ela como desempenhar

suas tarefas, e aproveitavam qualquer ocasião para incentivá-la a aperfeiçoar seus

trabalhos:

O juiz, amigo meu, (...) redigia muito (...). A sala dele vivia empilhada de

processos físicos. Ele ensinava a gente também a fazer essas coisas, a gente

redigia, ele chamava e falava (...): “isso daqui está errado, isso está certo,

assim e assado”. Daí era um relação legal com o texto.

Apesar das dificuldades, ela trabalhava com satisfação, porque entendia estar

contribuindo para “otimizar o trabalho do judiciário”. Mas, já naquele momento,

alguns amigos a advertiram: “Sofia, isso [o Judiciário] não é sério. Nós achamos que

é... mas é uma questão de grande vaidade”.

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Pouco tempo depois, ela sofreria o primeiro dissabor no Sistema Judiciário.

8.3.6 O assédio moral – a remoção forçada e a separação total da “família”

No ano de 2007, após a saída do juiz titular, os servidores da vara de Sofia

tomaram ciência de que um novo juiz ocuparia o cargo, e chegaria a BETA5

acompanhado de dois outros servidores, que desempenhariam as funções de diretor de

secretaria e assistente de gabinete.

Contudo, a chegada destes dois novos servidores faria com que aquela seção do

Judiciário ficasse desenquadrada em relação ao número máximo de servidores

permitidos por na Vara, conforme regulamento interno. Convocaram uma reunião com o

objetivo de avisar sobre a necessidade de saída de dois servidores já lotados em BETA5

para a acomodação dos que viriam acompanhar o juiz.

Como medida paliativa, sugeriram a possibilidade de acomodar os servidores que

se voluntariassem, na área administrativa de BETA5, pois, era permitido a ela exceder o

número máximo de funcionários descrito no regulamento. O anúncio tinha por objetivo

evitar a remoção de qualquer servidor da seção de BETA5 para outra cidade.

Motivados por essa possibilidade de permanência em BETA5, dois servidores,

entre eles Sofia, candidataram-se à mudança de área, deixando de atuar na atividade-

fim, para trabalhar na atividade-meio do Judiciário Federal. Esta mudança foi

imediatamente aceita. Todavia, alguns dias depois da decisão, o diretor de Recursos

Humanos do Poder Judiciário Federal de BETA frustrou os voluntários não aprovando

aquela solução.

Diante desse fato e ainda preocupados em atender o disposto no regulamento

sobre o número de funcionários máximo por vara (e unidade administrativa),

perguntaram aos dois servidores que haviam se prontificado a ir para a área

administrativa de BETA5, se estariam dispostos a deixar a cidade de BETA5. Diante de

suas negativas, foi prometido encontrar a melhor solução para aquela situação.

Subitamente, Sofia e seu colega passaram de uma situação de mudança voluntária para a

mesma cidade; a outra, com um deslocamento obrigatório, em condições que, até então,

desconheciam.

Depois de um vaivém de negociações, os dois servidores tiveram todas as

possibilidades de remoção para cidades próximas a BETA5 frustradas. Diante desse fato

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e da impossibilidade de permanecer em BETA5, Sofia aceitou voltar para BETA1,

afastada quatrocentos quilômetros de BETA5.

O quadro a seguir reproduz o documento responsável pela oficialização da

remoção vivenciada como forçada por Sofia.

Quadro 1 - Portaria de Remoção de Sofia

Fonte: Adaptado de documento presente no processo de Sofia.

8.3.7 Compreensão da Justiça baseada na lei

Por meio de uma ação movida com a ajuda do sindicato em 2008, Sofia

demandava a anulação de sua remoção, que considerou arbitrária. Seus argumentos

envolviam o desrespeito às regras de recrutamento de pessoal por unidade e problemas

de ordem pessoal.

No que se refere ao argumento sobre o recrutamento, Sofia relatou em sua defesa

que, embora a Justiça Federal já contasse com número máximo de servidores permitidos

para a Vara de BETA5, permitiu-se ao juiz federal designado para aquela jurisdição

nomear dois novos servidores para acompanhá-lo. Sofia considerou tratar-se de ato

abusivo e ilegal aportar aqueles novos servidores, por já nascer baseado em desrespeito

PODER JUDICIÁRIO

JUSTIÇA FEDERAL

SEÇÃO JUDICIÁRIA DE BETA

PORTARIA Nº X-XXX-XXXX/XXXXX de XX de XXXX de XXXX.

O JUIZ FEDERAL – DIRETOR DA SUBSEÇÃO JUDICIÁRIA DE BETA5 – SEÇÃO JUDICIÁRIA

DE BETA, usando a competência que lhe foi delegada pela Portaria nº XX-XXX, de XX.XX XXXX, e

tendo em vista o disposto no Ofício sem número e encaminhado pelo Juiz Federal da Xª Vara Federal

de BETA5, resolve:

REMOVER a servidora SOFIA, Técnico Judiciário XX XXX, matrícula XX.XXXX, da Xª Vara Federal de

BETA5 para a Diretoria da Subseção Judiciária de BETA5, a partir de XX/XX/XXXX.

PUBLIQUE-SE, ENREGISTRE-SE, CUMPRA-SE.

XXXXXXX

Juiz Federal Diretor

Juge Fédéral, Directeur

Juge Fédéral, Directeur

Juge Fédéral, Directeur

Juge Fédéral, Directeur

Juge Fédéral, Directeur

Juge Fédéral, Directeur

Juge Fédéral, Directeur

Juge Fédéral, Directeur

Juge Fédéral, Directeur

Juge Fédéral, Directeur

Juge Fédéral, Directeur

Juge Fédéral, Directeur

Juge Fédéral, Directeur

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aos limites e critérios de recrutamento. O Regulamento 2009/00034, que define o limite

do número de servidores públicos na subseção de BETA5, dispõe:

Art. 5º. No caso de remoção de juízes, será autorizada a relotação de

servidores desde que atendidas as seguintes condições:

I-nenhuma vara ou juizado de destino ultrapasse o quantitativo médio de

servidores estabelecido no Anexo II

Logo, em seu entendimento, o recrutamento de servidores não poderia ocorrer,

segundo os termos da lei, a não ser que não fosse ultrapassada a capacidade da

jurisdição competente, conforme o artigo acima.

Do ponto de vista pessoal, Sofia argumentava que sua mãe, que enviuvara naquele

mesmo ano, estava passando por vários problemas de saúde, os quais exigiam cuidados

permanentes, tornando necessária a presença da filha perto dela em BETA5.

Sofia valia-se de seus conhecimentos de direito (adquiridos em sua atividade

diária, e também na faculdade de Direito, cursada com o objetivo de prestar concurso

para o Ministério Público) para oferecer embasamento jurídico aos seus argumentos.

Um deles era a alegação de que sua remoção contrariaria o princípio da união familiar.

O artigo 226 da Constituição Federal prevê que a família, base da sociedade, deve

receber proteção especial do Estado. Tendo sido enviada para longe sua mãe, alega que

se estaria rompendo a proteção familiar.

Ao longo do processo de construção de sua defesa para impedir sua remoção,

Sofia conta que criou o hábito de buscar decretos, leis, regulamentos e normativos

internos, disponibilizados na intranet do Judiciário, que pudessem fundamentar sua

demanda.

Ela tinha dificuldade de entender como a instituição que deveria primar pela boa

aplicação das leis, não se submetia às regras existentes. Além disso, a ausência de

critérios para a decisão de sua remoção, motivada inicialmente por um ato voluntário,

lhe causava revolta.

8.3.8 A ausência de critérios e a interpretação “ao pé da letra” da lei

Em seus anos de experiência no magistério, anteriores ao seu ingresso no

Judiciário, Sofia aplicava critérios bem definidos para corrigir os trabalhos e dar as

notas: “Sempre, sempre tive meus critérios para a correção, sempre, sempre”. Durante

as entrevistas, sua experiência como professora aflorava a cada vez que mencionava a

situação de incoerência entre as regras e a prática do Judiciário. Sua reação era

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exclamar: “Não está certo! Não está certo!”, tal qual um professor dirigindo-se aos

alunos.

Contrapor sua experiência passada com a situação vivida no Judiciário

atrapalhava sua compreensão. Em seu entendimento, assim como (ou ainda mais!) no

ambiente de ensino, no Judiciário também deveriam existir critérios para cada ação,

mesmo que esta aplicação pudesse resultar em seu prejuízo:

Vai sair um cara mais novo, um cara mais velho, solteiro sem filhos. Se

tivesse um critério, por exemplo solteiro sem filho, eu ia “dançar”,96

não ia

reclamar. Eu ia ficar triste, aborrecida, mas eu sabia que era eu. Se for

servidor mais novo, daí eu jamais sairia, eu era das mais antigas... Então,

fica assim: pode ser qualquer um e o interesse é esse, que seja qualquer um.

O cidadão [superior hierárquico que decidiria sobre a remoção] não foi com

a sua cara e vai mandar você para fora. Ou, se meu sangue for ruim e o cara

não tem peito97

para botar na ficha de avaliação, melhor ir para fora nessa

hora (...) o cara que é bom sai. Então você fica a mercê das pessoas. Se o

critério fosse objetivo mas não é, o desencanto é muito grande com o

Judiciário.

A ausência de critérios objetivos era responsável pela interpretação de aplicação

injusta das regras internas ou pela permissão de elevado grau de subjetividade nas

decisões tomadas.

Quanto mais Sofia estudava as regras do funcionamento interno do Judiciário,

mais dificuldade enfrentava para compreender a lógica aplicada nas escolhas realizadas:

“Eu sou professora de português, eu lia as portarias e dizia: ‘isso daqui tem duplo

sentido’. Ou seja, eu estava discutindo português e direito, eu sei discutir”.

Ainda naquele contexto, Sofia decepciona-se ao descobrir a falta de preparo do

serviço de recursos humanos que trabalhava à época:

Eu descobri que muita gente não tinha experiência na parte de

administração (...) tinha um monte de gente mais nova, que não conhecia

uma série de coisas do Judiciário, não conhecia as pessoas do Judiciário e

com certeza não queriam perder seus cargos e nem suas funções.

Sofia ressentia-se de não ter encontrado amparo nem mesmo naquele ambiente onde,

ironizava, encontravam-se os “cérebros do Judiciário”.

Em sua tentativa de compreender e de dar um sentido ao processo, Sofia lamenta

ter-se tornado vítima de uma injustiça, apesar das excelentes avaliações recebidas em

relação ao seu trabalho. O não reconhecimento prejudica sua autoestima e a faz sentir-se

um “lixo”: “A pressão psicológica é muito grande, você se sente o lixo, eu sempre tive

96

No sentido de que não seria agraciada. 97

No sentido de coragem.

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excelente avaliação, sempre tive excelente trato com os colegas, nunca tive reclamação

nenhuma. Não serviu para nada, eu dentro do Judiciário e o Judiciário não respeita a

lei.”

8.3.9 A mudança de cidade como isolamento

À época da realização da entrevista, dois anos após sua partida, Sofia ainda

permanecia em BETA1. Seu processo na Justiça ainda não havia sido encerrado, mas

ela já começava a perder a esperança de deixar BETA1 e voltar para BETA5, de onde

jamais gostaria de ter saído. O fato de ter perdido seu posto em BETA5 representava

para ela o risco de ser esquecida para sempre, uma das consequências da situação de

isolamento estudadas por Lhuilier (2002).

Ao longo das entrevistas, as histórias sobre sua vida pessoal e profissional

confundiam-se, e BETA1 representava um “acidente de percurso” diante da relação que

Sofia demonstrava ter com BETA5.

A segunda entrevista serviu para aprofundar o significado que BETA5 tem na vida

de Sofia. Em dado momento, quando lhe perguntei por que não desejava deixar BETA5,

Sofia tirou um pequeno álbum de família de sua bolsa e me mostrou a razão de sua

ligação com a cidade. Apresentou-me, então, todas as pessoas da família que lá vivem:

suas irmãs, suas sobrinhas, sua mãe, seus amigos. As fotos refletiam diversas situações e

ali figuravam até mesmo os animais de estimação, os amigos da família que a

conheciam desde criança, os amigos de infância, as lembranças de casamentos, de festas

de aniversário. Imagens de família, lembranças de relações duradouras e sólidas que

desenvolveu durante todos os anos que viveu em BETA5.

Sua história de amor com a cidade de BETA5 começou na infância, quando se

mudou com sua família: “As pessoas com quem tenho uma relação afetiva estão lá”.

Sua amizade com alguns moradores de BETA5 já durava mais de trinta anos. Sua

ligação estendia-se a grupos da igreja e parentes de amigos. Além do mais, era

professora de um grupo de teatro em BETA5, embora tivesse sido obrigada a

interromper após a mudança para BETA1.

Ao comparar BETA5 com BETA1, Sofia relatou sua dificuldade de adaptação:

Hoje já sei algumas coisas que eu tenho que fazer para não me desgastar

tanto. Porque aqui [BETA1] é tudo mais rápido, mais barulhento, os

estímulos são muitos e isso cansa um pouco, é muita luz, muito som, é muita

preocupação para atravessar a rua e não ser atropelado, não levar um tiro

não sei aonde. Se o cara está vigiando sua bolsa. Não que em BETA5 não

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tenha isso, mas é num nível muito menor, os ruídos são muito menores, tudo é

muito menor... Eu morava numa casa enorme, muita luz, pé direito alto,

esquadria de alumínio, vidro, quarto enorme e, então, eu tinha um espaço,

espaço claro. Aqui eu senti muita falta disso.

Em BETA1, até a data da segunda entrevista, Sofia morava em um pequeno

quarto na casa de sua prima. Tratava-se de uma situação provisória, tal qual considerava

a decisão do Judiciário de mantê-la em BETA1. Achava que a qualquer momento

conseguiria voltar à BETA5, embora considerasse esta possibilidade cada vez mais

remota.

Portanto, seu sofrimento residia principalmente no afastamento de BETA5 e na

dificuldade de adaptação a BETA1, e não referia-se a problemas de relacionamento com

a equipe de BETA1.

Na ocasião do encontro para nossa segunda entrevista, enviei a Sofia uma

mensagem eletrônica na qual aproveitei para lhe perguntar se estava tudo bem. Ela

respondeu, por escrito:

Estou bem, seguindo meu caminho. O ambiente do meu setor é tranquilo,

graças a Deus, mas tenho percebido que minha mágoa com o Judiciário

continua aqui no peito... haja terapia! além disso, de tempos em tempos são

publicadas novas portarias e regulamentos que demonstram, a meu ver, que

a mentalidade da instituição está piorando cada vez mais. A linha de

pensamento é a de que servidores servem apenas para servir (desculpe o

trocadilho), de preferência servir aos superiores, sem reclamar, sem

questionar, sem refletir (quem disse que servidor tem que pensar, não é?),

enqto98

os magistrados têm que ser servidos! Afinal, são superiores!!! Tenho

visto coisas cruéis acontecendo. Acho que meu caminho será o de retomar os

estudos e tentar outros concursos, não quero continuar sendo desrespeitada.

Enfim, projetos novos hão de surgir.

Para além da sensação de mal-estar, até hoje, com a mudança em sua rotina, ela

registra que vai a BETA5 quinzenalmente e entende que alguns laços têm-se fortalecido

e outros se perdido.

8.3.10 As consequências: “Perdi a vontade de estudar Direito”

Sofia, sempre muito estudiosa, esforçou-se para passar no concurso do Judiciário

Federal. Depois, concomitantemente com o trabalho no Judiciário, cursou a faculdade

de Direito preparando-se para prestar o concurso do Ministério Público.

A bagagem de conhecimento acumulada, associada à sua experiência profissional,

levava Sofia a acreditar que dominava o conhecimento sobre seus direitos, sobre o

98

Abreviação de enquanto.

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conteúdo da lei, sobre o que é justo ou não. No entanto, parte do que Sofia havia

aprendido sobre justiça, datava de sua infância, momento em que começou também a

desenvolver sua capacidade de argumentação:

[...] eu sempre tive sentimento de justiça, sempre... desde criança, sempre fui

muito correta com as coisas. Eu aprendi obedecer e argumentar também, o

que é certo é certo, o que é errado é errado, se é certo faça, se alguém fizer

errado com você, argumente. Eu aprendi isso em casa, meu pai não foi

condescendente com bastante coisa e nem minha mãe. O que é certo é certo,

o que é seu é seu, se for 10 centavos, não interessa. Então isso para mim é

muito forte e é muito absurdo.

O conjunto de elementos envolvidos em sua transferência traumática para BETA1

teve como consequência a aversão de Sofia ao estudo do Direito. Esse sentimento foi

citado por outros entrevistados. Um deles, por exemplo, justificou da seguinte maneira o

fato de não ter continuado seu curso de Direito:

Eu acho que isto tudo [sua situação vivenciada como traumática] me

incomoda tanto que já parei quatro vezes a faculdade de Direito. Eu acho

que me sinto desiludido com o Direito. Quando estou estudando, eu vejo que

não é nada daquilo. Eu estou lá dentro, entende? Isso não existe.

A reflexão de Sofia segue no mesmo sentido: “Como é que vou ler uma coisa que

eu sei que na prática não funciona?” É uma das consequências da desilusão e

desidealização do Sistema Judiciário, no qual acreditava, ao contrário do que ocorrera

com sua profissão anterior (de professora), poder ter seu trabalho reconhecido. Não

querer mais estudar direito é resultado do sentimento de que sua aplicação não é feita

como ela imaginava.

8.3.11 A análise do caso de Sofia

Sofia vê seu caso como uma negação da justiça, interpretando-o como uma

situação de assédio moral. Quando ela diz ter-se sentido assediada moralmente, refere-

se ao contexto e aos sentimentos despertados por sua remoção. Para ela o assédio moral

representa

[...] qualquer ordem ilegal, imoral, que um superior te dá e tira de você o

direito de se defender, que é uma garantia constitucional a contraditória a

sua defesa, isso é assédio. No meu caso usaram um documento que eles

tinham feito recentemente, ou seja, mudaram a regra do jogo no meio do

jogo sem dar tempo das pessoas se preparassem para isso. Isso implicaria

numa série de coisas. Não deram tempo que as pessoas se adaptassem, para

as pessoas pensarem no que ia acontecer e foram metralhando. Tudo que eu

argumentei foi por escrito e tirando a fundamentação de documentos que

ficam disponibilizados na nossa intranet. Ou seja, (...) eu não usei prova

ilícita, escuta telefônica, nada disso. Eu entrava na intranet, pesquisava e

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(...) eles ignoravam solenemente porque eles estavam com a faca e o queijo

na mão.

Desde sua preparação para o concurso do Judiciário, Sofia vinha estudando

matérias relacionadas ao direito e sua aplicação. Em suas experiências iniciais, ela teve

a oportunidade de aprender como usar este conhecimento. Entretanto, nos últimos anos,

a lei e os conhecimentos de direito têm sido evocados para construir sua defesa dentro e

contra o Sistema onde ela trabalha.

Para Bies e Shapiro “o uso de um procedimento, cujas consequências são

indesejáveis, permite que pareça maior a injustiça aparente da transação”

(KELLERHALS et al., 1997, p. 120).

Sofia não entende o motivo de sua “punição”, que é como ela interpreta a situação

vivida desde 2008. Ela acredita e afirma que seus direitos não foram respeitados.

No papel de pesquisadora, eu tive a oportunidade de ler, no Sindicato de BETA, os

documentos dos processos de algumas “vítimas” de situações de assédio moral, entre

eles o de Sofia. O lado interessante da observação de cada processo é que, a partir dos

argumentos utilizados (pois o advogado redige o documento baseado nas conversas com

seus clientes)99, é possível compreender as preocupações, a ordem de prioridade e as

interpretações individuais do porquê de a situação “não estar correta”.

Pessoalmente, o que choca Sofia é o fato de o diretor ter se aproveitado de uma

decisão tomada por ela em um contexto em que havia uma expectativa de permanência

em BETA5.

No documento presente em seu processo, a ausência de critérios claros para a

remoção é um dos fatores que lhe causa indignação. Em sua profissão de professora, ela

estava habituada a utilizar critérios na correção das tarefas dos alunos. Sofia fala de um

elo entre a existência de critérios e a justiça: por um lado, os critérios podem permitir

que as escolhas tenham seu caráter subjetivo minimizado. Por outro, eles permitem que

os servidores consigam se planejar e prever mudanças futuras.

O Judiciário se defendeu da argumentação sobre injustiça dizendo que havia

respeitado as regras. A decisão sobre a remoção de Sofia baseou-se em um documento

interno que autorizava a removê-la, mesmo não havendo critérios claros.

99

Sofia contou-me que redigira o documento de protesto junto com seu advogado. Efetivamente, há

pequenas anotações escritas por ela em várias partes dos documentos anexos ao processo. Ela reuniu

os documentos em que baseou sua defesa e também identificou os artigos mais importantes para

embasá-lo.

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Como escrevem Dubet et al.:

[...] não somente a negação do direito é uma injustiça, mas não basta que o

direito seja respeitado para que o sentimento de justiça seja satisfeito, pois a

maneira pela qual uns e outros se servem dele pode criar a impressão de ser

vítima de uma injustiça ainda mais grave (DUBET et al., 2006, p. 171).

Dito de outra forma, mesmo que o direito, em uma visão positivista, seja aplicado

(segundo opinião dos juízes) no caso das remoções por ofício, por necessidade de

Administração, ele pode não satisfazer a expectativa dos indivíduos. O respeito pelo

direito interpretado como atendimento à letra da lei, não foi vivenciado de uma forma

positiva por Sofia.

Para ela, os regramentos existentes sobre remoção permitem mais de uma

interpretação. Este é o segundo fator a causar indignação em Sofia, e está presente em

seu documento de defesa. Mesmo a argumentação de uma leitura e aplicação rigorosas

do conteúdo das leis, não minimizavam suas críticas. Seu rigor com a interpretação dos

normativos decorre de sua experiência de 12 anos de magistério (mais tempo, portanto,

do que os 11 anos em que trabalhava como técnica judiciária).

Finalmente, uma outra hipótese pode ser levantada.

Desde 2008, a remoção de BETA5 para BETA1 contra a vontade de Sofia, era

percebida como uma punição. A remoção, em seu discurso, pode ser entendida como

uma política institucionalizada pelo Sistema Judiciário que, à revelia das pessoas, tem

provocado sofrimento.100

Interessante observar que na França fundou-se um Observatório contra as

remoções forçadas,101 cujo objetivo é lutar diariamente contra o uso considerado

estratégico do estresse e das remoções forçadas pela direção da France Telecom. Ao

longo dos últimos anos, esta organização transformou-se em uma loja de vendas de

produtos, com metas de vendas, onde o papel dos engenheiros aproxima-se cada vez

mais do de vendedores. Passaram, então, a ser deslocados das cidades onde moravam

para outras onde se abriam lojas. Com a criação do Observatório, o sindicato local

passou a acompanhar e analisar mais de perto este fenômeno, para denunciar, discutir,

tomar medidas para mitigar suas consequências negativas.

100

Situação esta que, de acordo com depoimento de um servidor, não era comum anos antes. 101

Observatoire du stress et de mobilités forces à France Télécom. ORANGE et al. In:

http://www.observatoiredustressft.org/. Acessado em 10/09/2012.

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No caso de Sofia é possível ver a influência da política institucional em

transformação, sobre sua situação individual. A observação mais rígida de limitação de

funcionários por unidade, respeitando instrução do CNJ pode estar vinculada a uma

necessidade nova da instituição judiciária, reflexo das novas formas de organizar o

trabalho, que vem ocorrendo desde 2004.

Para o atendimento destes limites, lança-se mão do instrumento de remoção, que

embora já faça parte do rol de práticas do Judiciário desde antes de da ocorrência das

transformações do Sistema Judiciário, passa então a servir em prol do novo contexto.

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9 CONCLUSÃO

Embora ao longo da tese, algumas reflexões de caráter conclusivo já tenham sido

apresentadas, este capítulo permitirá apresentar de forma estruturada, os principais

resultados permitidos por este trabalho de tese.

Para avançar na compreensão do processo de vivência do assédio moral, fez-se

necessário levar em conta o processo de pesquisa em sua integralidade, desde o

arcabouço teórico e metodológico construído, passando pelo contexto institucional

posto e pelas as análises transversais e individuais realizadas.

A necessidade de integrar diversas disciplinas para estudar o fenômeno esteve

presente desde o início da pesquisa e foi fruto da abordagem clínica utilizada. Foram

elas que me ajudaram a dar conta das situações expostas pelos servidores, quando me

aproximei de “suas camas”, ou seja, quando tentei praticar a pesquisa da forma mais

próxima de suas vivências. Isso me permitiu oferecer sentido à desordem ou

incongruência que suas situações pareciam revelar, e que caraterizam a “cama” na

expressão acima, conforme Barus-Michel et al. (2006, p. 314).

A clínica constituiu-se instrumento privilegiado de análise da realidade dos

servidores, ao tentar dar conta, a um só tempo, dos elementos objetivos e dos

significados a eles atribuídos pelos sujeitos envolvidos. Nesse sentido, o uso dessa

abordagem, nessa pesquisa específica, permitiu também explorar a relação do sujeito

com sua história e memória, além de trazer para as análises a relação estabelecida entre

os entrevistados e eu, enquanto pesquisadora-entrevistadora.

A escolha da abordagem clínica pressupôs uma relação homotética na pesquisa, o

que significa, nas ciências humanas, que eu e os pesquisados tínhamos a mesma

natureza. Com isso, o fato de que eu me encontrava atravessada por problemáticas de

natureza semelhante à dos servidores pelos quais havia me interessado, não só não me

impedia de seguir adiante com a pesquisa, como integrava seu caráter epistemológico e

metodológico.

Ao mesmo tempo, a despeito dessa implicação, a atitude clínica levou-me a

centrar nos detalhes de cada sujeito, evitando que a tendência de ignorar determinadas

dimensões dominasse a pesquisa. Tentei trabalhar com um estado de observação que

envolvesse sentidos como olhar e escuta, centrando um “olhar novo” (ENRIQUEZ et

al., 1993, p. 121) nos servidores em sofrimento como “uma totalidade ou como uma

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243

configuração significante onde todos os detalhes tomam sentido” (ENRIQUEZ et al.,

1993, p. 121).

Tendo sido feitas estas considerações, as seções a seguir permitirão a retomada de

análises conclusivas, que de alguma forma já foram lançadas ao longo do trabalho, bem

como a discussão de novos aspectos referentes à pesquisa em tela.

9.1 A LIMITAÇÃO DO CONCEITO DE ASSÉDIO MORAL NA PRESENTE

PESQUISA

A noção de assédio moral revelou-se insuficiente para tratar do que, ao longo da

pesquisa aproximou-se mais de um conceito de mal-estar, conforme será discutido nas

próximas seções.

Pode-se dizer que alguns servidores ofereceram o nome de assédio moral ao

conjunto de eventos e elementos do contexto laboral do Judiciário, responsáveis pelo

sentimento de mal-estar. Não obstante, eles dizem mais do que aquilo que à primeira

vista parece estar refletido na expressão empregada. Nos discursos e registros escritos

dos servidores que se consideraram vítimas de assédio moral, foi possível encontrar um

vasto rol de situações de humilhação, de intimidações e de isolamento.

As menções a aspectos organizacionais (como os mecanismos de função

comissionada e remoção) também integraram algumas situações descritas como assédio

moral, na medida em que foram identificadas como “técnicas de punição”.

Embora utilizem-se desses elementos para explicar a situação de assédio, muitos

entrevistados pareceram fazer uma interpretação psicologizante e individualizante do

fenômeno, atribuindo a sua ocorrência as características individuais dos superiores

hierárquicos, por exemplo, deixando de lado o caráter organizacional.

Um fator que contribuiu para isso refere-se à produção discursiva em torno do

tema assédio moral. Garbin (2009) alerta de que

[...] as notícias reforçam esse imaginário ao abordar de modo psicologizante e

caricatural as manifestações das chefias e ao considerar que o sujeito atingido

aceita ou interioriza a condição imposta, desconsiderando o contexto de

trabalho em que ocorre o assédio moral. Reflete uma análise descolada do

processo histórico e social das relações de trabalho (GARBIN, 2009, p. 140).

Portanto, o próprio emprego desse termo por alguns dos servidores contribuiu

para mascarar a dimensão organizacional que se encontra nas entrelinhas de seus

discursos.

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244

Por outro lado, percebeu-se que os elementos constituintes das situações descritas

como de assédio moral também se encontraram nos discursos de entrevistados que

jamais empregaram este termo. Todos eles falam de falta de reconhecimento,

desidealização, desinvestimento, entre outros elementos que nem sempre são tratados na

literatura dedicada ao tema assédio moral.

O que parece ser comum em todos os depoimentos são os elementos de

sofrimento e mal-estar. Os servidores parecem evidenciar a descrição de uma violência

psicológica, experimentada de maneiras distintas e cuja origem, em diversas situações,

encontra-se nas contradições com as quais os servidores se deparam no ambiente do

Judiciário.

Embora o emprego do nome assédio moral seja criticável, é inegável que o seu

uso permitiu aos servidores oferecerem os significados que lhes convinham,

alimentando-os com os elementos que dariam vazão às suas necessidades de se fazerem

escutar e entender. Os servidores parecem ter buscado, em alguns casos, legitimar suas

vivências subjetivas, sofrimentos e mal-estar por meio do emprego do termo.

Mas, que alcunha poderia ser oferecida a tudo o que me foi dito, então? Este tema

será retomado na próxima seção.

9.2 DA VIOLÊNCIA E SOFRIMENTO NO TRABALHO AOS RISCOS

PSICOSSOCIAIS

Ao longo da última década, as noções tanto de violência no trabalho, quanto de

sofrimento foram gradativamente deixadas de lado. Atualmente, a noção que parece se

impor no meio político e sindical, bem como vem sendo retida pelos especialistas e

consultores é a de riscos psicossociais (RPS) (GAULEJAC, 2011a). Rapidamente

adotada para referir-se aos problemas e mal-estares relacionados ao trabalho nas

sociedades contemporâneas de forma geral, como o assédio sexual, moral, burnout,

estresse, álcool, drogas (PAULOS, 2009; GAULEJAC, 2011a).

Na opinião de Gaulejac (2011) a vantagem que permitiu a imposição da noção de

RPS é que ela parece “ser suficientemente neutra para não decidir entre a causalidade

psicológica e a causalidade social e suficientemente largo para recobrir uma

multiplicidade de situações” (GAULEJAC, 2011, p. 66 . Além disso, a expressão

permite que se problematize a partir de três polos diferentes: o risco, o psíquico e o

social, ao mesmo tempo em que oferece uma cientificidade ao problema investigado,

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245

vez que o afasta da carga afetiva e ideológica que se encontram presentes nos termos

sofrimento e violência.

Se por um lado, a expressão “violência” evoca uma responsabilidade da

organização e de sua forma de funcionar, a expressão “risco” parece ter um sentido mais

neutro, dada a designação de um fato potencial, um perigo eventual. Gaulejac (2011)

alerta ainda que “a palavra não ataca ninguém e autoriza a não se pronunciar sobre as

causas do fenômeno, de permanecer na imprecisão completa sobre as medidas a serem

tomadas para prevenir o risco” (GAULEJAC, 2011, p. 68 .

O componente psicossocial da expressão RPS só vem a reforçar este vazio. Se,

por um lado, existe a vantagem advinda do acento dado à dimensão psicológica, que

coloca em evidência as pessoas, os sintomas e o mal-estar individual, bem como

permite levar em conta a dimensão social, que envolve as condições de trabalho, os

contextos organizacionais e as situações sociais; por outro, ele tenta se afastar de uma

dimensão com maior ligação com o “mal”. Gaulejac (2011) conclui que o debate acaba

sendo neutralizado, pois “não se fala mais de sofrimento, de estresse, de assédio, de

violência, cria-se uma categoria inocente, vagamente científica e perfeitamente neutra”

(GAULEJAC, 2011, p. 68).

Conforme dito na metodologia desta tese, na tentativa de evitar que a expressão

assédio moral fosse evocada por mim no ato de agendamento das entrevistas com

servidores que se consideravam vítimas de assédio moral (de acordo com informações

oferecidas pelo Sindicato de ALFA), adotei, por uma questão metodológica, o uso da

expressão RPS. A partir de seu uso, dividi o objetivo da minha tese e expliquei o

interesse de realizar a entrevista com cada servidor em questão,

A neutralidade oferecida pelo termo, dimensão tão bem explorada por Gaulejac

(2011), permitiu que eu abordasse os entrevistados de forma mais isenta. Cada um deles

ofereceu à expressão RPS a significação que lhe parecia mais adequada. Naquele

momento, pareceu ser a escolha mais acertada. Contudo, uma vez concluída a análise

dos discursos dos servidores, que termo seria o mais adequado para que se fizesse

referência ao que eles pretendiam me fazer ouvir? Manter o termo assédio moral seria

equivocado, pois, como já discutido, nem todos parecem ter se sentido vítimas de tal

situação. E aqueles que assim se sentiram, não resumem seu discurso aos elementos

constitutivos de um fenômeno como aquele.

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Em relação ao termo mal-estar, Gaulejac (2011) defende que seu uso é mais

preciso do que RPS. Em primeiro lugar porque permite reforçar que há algo de mal, ou

seja, de negativo e destrutivo em pauta. Por outro lado, com o seu uso não se perde de

vista a dimensão subjetiva e o fato de que se trata de um mal que toca o ser.

O Judiciário, que deveria ser um lugar de proteção, torna-se um ambiente de

injustiças e sofrimento. O discurso dos servidores sobre o que pode ser entendido como

mal-estar no trabalho, varia nas formas e nos registros evocados. Eles parecem ter em

sua origem contradições enfrentadas pelos entrevistados, que podem ser classificados da

seguinte forma:

- As avaliações e comparação de resultados exigidos sob o codinome de metas,

impostos pelo CNJ, convivem com a permanência de instrumentos de reconhecimento

que se utilizam de critérios subjetivos para a sua atribuição, como é o caso das funções

comissionadas e da remoção;

- A convivência de um sistema organizacional eminentemente burocrático e

hierárquico, com o caráter objetivista e utilitarista da nova gestão pública, apresentando

novas exigências e permitindo que a contraposição de instrumentos existentes no

Judiciário e em empresas privadas aumente a sensação de contradição e a clivagem

entre estes dois mundos. Novas exigências como a de funções de juiz-administrador,

entendendo-se como tal, um juiz que seja dotado de características gerencialistas,

segundos preceitos existentes no mundo gerencial, ou seja, simplesmente, levando-se a

mentalidade gerencial para o mundo público, pode gerar sentimento de não adequação

tanto a este grupo de juízes, quanto aos servidores do Judiciário. Além disso, as

mudanças para um discurso de gestão podem levar à comparação de mecanismos como

função comissionada aos métodos de avaliação no sistema privado. Baseando-se em

resultados objetivos, eventualmente os servidores que se ressentem de não ganhar este

adicional remuneratório, ganhariam-no, com outro nome, em uma empresa privada, a

depender dos resultados por ele alcançados. Ou seja, o discurso de que o crescimento

depende dele próprio não parece coerente com a maneira como alguns mecanismos

ainda são aplicados no Sistema Judiciário.

- Os princípios de administração pública que estão por trás de ações e atos

administrativos e os efeitos que eles provocam nos servidores (por exemplo, sobre

impessoalidade, legalidade e remoção, ou eficiência e modernização do Sistema

Judiciário);

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- A contradição entre o discurso de finalidade e prática do Judiciário;

- Os conflitos entre os valores que levaram alguns servidores a escolher a

profissão de servidor do Judiciário Federal e as formas de exercício real dessa profissão.

Notadamente em dois aspectos:

a) A oposição dos ideais de justiça trazidos pelos servidores, com a sua percepção

do sistema de valores da organização. Os entrevistados ofereceram como exemplos a

qualidade das sentenças elaboradas e o tratamento dispensado aos servidores, em

contradição ao ideal de justiça. Esta tensão entre a lógica organizacional e institucional

é uma das principais causas de sofrimento dos servidores do Poder Judiciário. Os

servidores sentem-se confusos entre o que sua “chefia” demanda fazer e o que entendem

ser a missão do Judiciário. Kaës (2003) já havia identificado a força dessa contradição,

alertando que ela se agrava quando se trata de instituições que se encontram na base da

ordem social, com elementos estruturantes da sociedade. Afinal, os fins perseguidos

pelas instituições públicas, e particularmente pelo Poder Judiciário, não são os mesmos,

ou não se utilizam das mesmas lógicas que os organismos privados. Esta oposição de

ideais submete os servidores a um estado de tensão, por levá-los a confrontar um

sistema de valores contraditórios;

b) A oposição entre o entendimento de estabilidade econômica (e emocional) dos

servidores, e a segurança oferecida pelo Sistema Judiciário.

Uma vez tendo feito esta reflexão sobre o contexto da pesquisa e alguns

resultados encontrados, a seção seguinte dedicar-se-á à retomada da problemática e dos

pressupostos iniciais da pesquisa.

9.3 RETORNO À PROBLEMÁTICA E AOS PRESSUPOSTOS INICIAIS

A pergunta inicial da tese, conforme apresentado no Capítulo 1, era: Como é que

os servidores do Sistema Judiciário Federal vivenciam as situações por eles

consideradas como “assédio moral”.

O desenvolvimento dessa problemática foi acompanhado pela elaboração dos

seguintes pressupostos de pesquisa:

1) O fato de estarem inseridos em uma instituição pública, confere ao processo de

assédio moral aí vivenciado, contornos específicos;

2) O processo entendido como de assédio moral está associado a determinados

aspectos da lógica organizacional do Judiciário;

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3) A transformação no modelo de gestão pela qual o Sistema Judiciário brasileiro

começou a passar, a partir da Reforma do Judiciário e criação do CNJ constitui-se hoje

na principal fonte de assédio moral;

4) A dimensão organizacional não é o único componente da experiência vivida

como assédio moral. Deve ser levada em conta a dimensão psíquica, bem como o grau

de implicação com a instituição e sua atividade-fim, cujos elementos podem ser

encontrados nas histórias de vida dos servidores, antes mesmo de seu ingresso no

Sistema Judiciário.

Antes de mais nada, as reflexões apresentadas neste capítulo, permitem a revisão

do emprego do termo “assédio moral”. Como foi abordado em seções anteriores, os

dados do campo revelaram que as falas dos servidores pareciam referir-se a um

sentimento de mal-estar. Deste modo, os mesmos pressupostos serão aqui tratados da

forma como haviam sido inicialmente lançados, sem perder de vista, o avanço permitido

com esta tese. Iniciarei pelo terceiro pressuposto de pesquisa:

3) A transformação no modelo de gestão pela qual o Sistema Judiciário brasileiro

começou a passar, a partir da Reforma do Judiciário e criação do CNJ constitui-se hoje

na principal fonte de assédio moral.

O delineamento desse pressuposto baseou-se principalmente no entendimento dos

contornos das mudanças no mundo do trabalho, resultando em condições de trabalho

extremas, caracterizadas por pressões constantes em resposta à urgência, como

causadoras de situações de assédio e consequente sofrimento dos funcionários do

Judiciário Federal. O Sistema Judiciário Federal é uma organização inserida no contexto

da New Public Management e, por isso também reflete as contradições mencionadas no

Capítulo 2.

À época da definição do objeto da tese, muito se falava sobre o contexto da

Reforma do Judiciário, alinhada com a nova concepção de governança das empresas, e

em decorrência da reclamação do jurisdicionado por uma duração de processo em

tempo razoável; prega a cobrança e a fiscalização do Poder Judiciário, ou seja, estimula

a modificação da relação com o trabalho e com as atividades de cada ator dessa

instituição (MELO, 2012).

A dimensão positiva dessa mudança seria o resgate ou a criação de uma boa

imagem para o Judiciário, com base num discurso de melhoria da qualidade do serviço

oferecido para a sociedade, a um custo menor. Uma gestão mais eficiente no serviço

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público baseado na maior racionalização dos recursos utilizados, formalização de

rotinas, apuração de resultados, gastos e tempos despendidos, com centralização dos

dados estatísticos dos Tribunais, permitiriam um conhecimento mais apurado da

realidade do Judiciário, conferindo-lhe, assim, maior transparência, legitimidade e

credibilidade para as decisões judiciais (MELO, 2012). A implantação do modelo

gerencial levou o Judiciário a conviver com um vocabulário novo, de um discurso

semelhante ao usado na gestão privada, incluindo expressões como “produtividade”,

“metas”, “resultados”, mencionadas por alguns servidores entrevistados.

A dimensão negativa das novas tecnologias organizacionais, associadas à

introdução de novas regras de funcionamento do Poder Judiciário, reflete-se, por um

lado, na percepção de uma lógica incompatível com a concepção tradicional do serviço

público do Judiciário, à qual alguns servidores encontram-se profundamente ligados.

Por outro, reflete-se em problemas de saúde, advindos das consequentes exigências

sobre os trabalhadores, que incluem os servidores, mas não se resumem a eles (podendo

incluir aqueles que ocupam cargos diretivos e juízes) (KILIMNIK, 2010).

A preocupação com a saúde dos servidores não é novidade no Judiciário e alguns

estudos já vem sendo feitos neste sentido. O estudo que permitiu que eu circulasse nos

corredores do Poder Judiciário de ALFA é um exemplo. Encomendado e financiado pelo

sindicato local, seu objetivo era realizar uma pesquisa sobre as condições de trabalho e

sobre a saúde dos servidores do Poder Judiciário daquele local. A equipe de

pesquisadores contratada para a execução daquele estudo usava como referência

literatura que vem demonstrando, desde meados dos anos 1990, os reflexos das relações

de trabalho pautadas no modelo organizacional de gestão flexível. Portanto, partindo

deste pano de fundo, pretendia-se avaliar o impacto percebido da nova organização e

gestão do trabalho no sistema do Poder Judiciário Federal sobre a qualidade de vida e a

saúde ocupacional dos servidores da Justiça em ALFA.

Quando cheguei ao campo, carregava comigo a leitura que compõe o Capítulo 2, e

entendia que dada a relação existente entre as mudanças recentes no mundo do trabalho,

seus reflexos na Administração Pública, e o fato do assunto assédio moral estar em

pauta, havia uma relação entre todos os fenômenos.

Ao avançar com as entrevistas, foi possível perceber que o entendimento mais

adequado é de que as consequências da Reforma do Judiciário, em particular, compõem

uma das fontes do mal-estar declarado pelos entrevistados. Embora a Reforma e suas

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consequências também sejam entendidas como originadoras de contradições

organizacionais, elas situam-se ao lado de outras fontes de sofrimento. O fato de que

alguns servidores sequer tenham mencionado as mudanças provenientes da Reforma,

não impediu a elaboração de hipóteses a respeito dos seus reflexos, como pôde ser

acompanhado nas análises realizadas no capítulo anterior. Mas, o que chamou a atenção

foi o fato de que diversos servidores basearam seu discurso de sofrimento em elementos

que, em suas palavras, encontram suas origens em momentos anteriores,

cronologicamente, às mudanças impostas ao Sistema Judiciário. Afirmar que a origem

do mal-estar se encerra ou deve-se primordialmente às recentes transformações do

Judiciário seria incorrer em um reducionismo.

Entretanto, esta percepção não deve minimizar a importância dos reflexos da

Reforma. Afinal, o estudo do Sistema Judiciário brasileiro insere-se no contexto de uma

mudança no mundo do trabalho que pode ser vista como um “fenômeno social total”

(GAULEJAC, 2011).

É inegável que o Poder Judiciário passa por uma reformulação no sentido de

modernização de suas práticas, o que obrigatoriamente apresenta consequências no seu

corpo funcional, no qual é possível encontrar fontes de sofrimento e de assédio moral.

Dentre eles destacam-se a pressão por resultados, faceta mais conhecida das empresas

hipermodernas, ao lado do paradoxo enfrentado, dado o discurso gerencial que vem

sendo crescentemente instituído, num ambiente eminentemente burocrático e

tradicionalista.

O fato de não ter sido destacada no discurso da maioria dos servidores

entrevistados, não significa que a Reforma não seja sentida como importante fonte de

sofrimento por alguns atores do Judiciário, e mais do que isso, que os principais

reflexos desta mudança sejam sentidos com o passar dos anos. O discurso de alguns

servidores possibilitou-me inferir como era percebida a situação paradoxal resultante da

melhoria das condições objetivas de trabalho – ao eliminar o uso de papel no ambiente

de trabalho, agilizar a tramitação de documentos pelo processo eletrônico ou ao

estabelecer metas com o objetivo de melhorar a produtividade – frente aos sintomas que

se tornam cada vez mais frequentes naquele meio, como fadiga, estresse, pressão,

burnout.

O risco é que estas mudanças levem, com o passar dos anos, ao agravamento da

contradição que, hoje, já se faz sentir, entre a lógica organizacional, que vem sendo

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imposta ao Judiciário, e sua finalidade institucional (ou tarefa primária, para resgatar

expressão usada por Kaës (2003): a justiça.

Para Gaulejac (2011), o sentimento de mal-estar não é exclusividade do setor

privado. Em seu país, França, as instituições públicas têm sido alvo, do que é chamado

da nova gestão pública, no contexto da RGPP (Revisão Geral das Políticas Públicas).

Alguns estudos vêm mostrando os reflexos da RGPP, no contexto da Reforma do

Estado, sobre os funcionários públicos. Seu fundamento é uma modernização em todo o

aparelho do Estado, com base no argumento de que a administração é pouco eficaz e

custosa e que, portanto, necessita da introdução de uma nova concepção de gestão que a

torne mais eficiente. Para tanto a máxima sustentada naquele país é a necessidade de

substituir a cultura dos meios pela de resultados, a cultura de serviço público pela

comercial, a cultura administrativa pela gerencial (GAULEJAC, 2011). Este movimento

na França compreende setores como Saúde, Justiça, Polícia, Pesquisa, Ensino, Forças

armadas e Bombeiros.

O que se nota é que esta Revisão tem exacerbado as tensões existentes na função

pública, especialmente por oferecer objetivos que parecem contraditórios: melhorar a

qualidade do serviço prestado à população, com menos meios para tanto. Como

resultado, os agentes vivem sob tensão.

1) O processo entendido como de assédio moral está associado a determinados

aspectos da lógica organizacional do Judiciário;

Ao retomar o primeiro pressuposto, algumas considerações são dignas de nota.

Este pressuposto me levou a investigar se, no discurso dos servidores, havia

elementos da estrutura do Judiciário Federal tidos como facilitadores ou geradores de

situações de assédio moral. Os elementos foram identificados, e refletem, em grande

medida, as contradições do Sistema por eles mencionadas e listadas nos capítulos 7 e 8.

Em conjunto, desenham um contexto de trabalho que acaba se tornando favorável ao

surgimento de situações de sofrimento e mal-estar no ambiente do Judiciário. Se o uso

de instrumentos como a remoção por ofício ou a oferta e retirada de funções

comissionadas constituem-se na dimensão mais visível nos discursos de assédio moral

(ou não), o paradoxo entre a lógica anterior e em transformação do Poder Judiciário

Federal revelam sua faceta mais insidiosa.

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2) O fato de estarem inseridos em uma instituição pública, confere ao processo de

assédio moral aí vivenciado, contornos específicos;

O que se pôde avançar em relação a este pressuposto é que existem diversos

aspectos intrínsecos ao fato de a pesquisa ter sido feita em uma organização de natureza

pública. O primeiro deles refere-se ao momento antecedente ao ingresso dos servidores

no Judiciário. Ao prestarem o concurso exigido para a entrada naquela instituição,

muitos servidores já carregam uma imagem idealizada do Sistema Judiciário. A

construção dessa imagem é, em grande medida, fruto de suas histórias de vida, e é

necessária para a tomada de decisão de prestar o concurso.

O principal pilar dessa imagem idealizada é o caráter de estabilidade oferecido

pela Poder Judiciário, dada a sua natureza de instituição pública. Importante pré-

requisito para a escolha dessa organização como “lugar ideal para se trabalhar”, o

conceito de estabilidade, conforme explorado no Capítulo 7, de análise dos dados,

reflete não somente a dimensão financeira, mas também emocional e territorial.

À medida que a realidade revela-se diferente, inicia-se um processo de

desidealização da organização e consequente sofrimento relacionado à perda daqueles

elementos típicos de uma organização pública, responsável pela sua decisão de ali

trabalhar.

Ainda no que se refere ao instituto do concurso público, é importante mencionar

que servidores que ingressaram no cargo de técnicos, e posteriormente concluíram

alguma formação superior, com destaque para a carreira de direito, nem sempre

conseguem dar sentido ao fato de não poderem realizar as mesmas atividades que

analistas judiciários.

Adicionalmente, a relativa estabilidade existente naquela organização é vista, por

alguns entrevistados, como motivador do uso de alguns mecanismos interpretados como

punitivos, como a retirada de funções comissionadas ou remoção de servidores. Na

opinião de alguns entrevistados, lança-se mão destes instrumentos como alternativa à

demissão direta de “desafetos”.

4) Finalmente, no que se refere ao terceiro pressuposto, qual seja:

[…] a dimensão organizacional não é o único componente da experiência

vivida como assédio moral. Deve ser levada em conta a dimensão psíquica,

bem como o grau de implicação com a instituição e sua atividade-fim, cujos

elementos podem ser encontrados nas histórias de vida dos servidores, antes

mesmo de seu ingresso no Sistema Judiciário.

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É possível tecer alguns comentários.

Os casos de Manoela, Pedro e Sofia permitem identificar, elementos, em suas

trajetórias particulares, que explicam a maneira diferenciada como cada um vivenciou o

processo de assédio moral. Nas histórias de vida de Manoela e Sofia, por exemplo, é

possível localizar origens do processo de idealização do Judiciário na influência familiar

para a construção do ideal de busca por justiça. Em ambos os casos, a confirmação

inicial do Judiciário como um ambiente promotor daquele ideal, contribui para um

elevado investimento físico e psíquico inicial. Ambas encontram naquele ambiente

profissional uma fonte de investimento e realização. Posteriormente, a confrontação

com uma impossibilidade de concretizar este ideal no ambiente do Judiciário, ajuda a

compor o processo de sofrimento psíquico e a percepção de uma situação de assédio

moral no trabalho.

Entretanto, os elementos trazidos por cada uma são diferentes. Sofia, por

exemplo, demonstra que parte de seu sofrimento tem ligação com a sua relação com a

escrita, e com o não atendimento a regras, ou inexistências da mesmas. Já Manoela,

desilude-se com a própria atividade-fim do Judiciário. Em sua percepção, a ausência de

justiça refere-se não somente ao seu caso em particular, quando, por exemplo, perde sua

função comissionada, mas também à forma como as decisões são prolatadas naquele

ambiente.

Frente a todas as situações entendidas como fontes de sofrimento, as duas

servidoras passam a se perceber com meros objetos, concluindo o processo de

desinvestimento.

Pedro, por sua vez, parece vivenciar a situação de assédio moral de uma maneira

distante. Ao revelar nunca ter idealizado o trabalho no Judiciário, ele oferece parte da

explicação para a ausência declarada de sofrimento frente ao assédio moral. Porém,

outra explicação importante reside na sua religiosidade. Pedro transfere para Deus o

papel de ser justo com os humanos, o que ajuda a impedir o desenvolvimento dos

sintomas de mal-estar.

Portanto, a dimensão psíquica revela-se importante para completar a análise da

pesquisa seja ela sobre assédio moral, seja ela entendida como sendo sobre mal-estar no

trabalho.

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9.4 OS LIMITES DO ESTUDO E SUGESTÕES PARA PESQUISAS FUTURAS

A intenção deste trabalho não foi o de oferecer uma visão global ou esgotar o

tema do fenômeno assédio moral. Nem mesmo sobre o mal-estar no Sistema Judiciário,

alcunha mais apropriada para o que esta pesquisa acabou por revelar.

Se as 41 entrevistas realizadas desvendaram pistas que não estavam

necessariamente ligadas ao meu primeiro objeto de pesquisa, assédio moral, por outro

lado, deram-me a oportunidade de pensar de forma diferente, agregar novos pontos de

vista, situados na interseção das dimensões social e subjetiva do fenômeno de mal-estar

no trabalho.

Entretanto, ao reler as entrevistas, percebo que ainda há o que explorar, o que

revela, portanto, uma primeira limitação enfrentada pela pesquisa: o tempo. Apesar de

suficiente para a produção de uma tese, considerei-o curto demais para o que ainda

intencionava fazer.

Existem inúmeras novas abordagens e possibilidades de pesquisa ainda a serem

realizadas, como seu desdobramento. Sendo assim, este trabalho de tese constitui-se, na

verdade, em uma etapa de investigação, coerente com a abordagem clínica eleita, que

considera que a execução de uma pesquisa significa “por em perspectiva novas questões

e criar condições suscetíveis de fornecer um novo ponto de partida para outras pesquisas

e outras questões” (ENRIQUEZ et al., 1993, p. 133).

Ser capaz de fazer a pesquisa significa, também, saber se adaptar aos

contratempos que surgem, aceitá-los (embora com certa dificuldade) e aproveitar os

resultados obtidos para as etapas seguintes do trabalho. Assumo esta posição, a despeito

da dificuldade que ela me impõe e da a minha implicação com o objeto de pesquisa,

dimensão já explorada ao longo dessa tese.

A delimitação do espaço geográfico da pesquisa pode ser considerada como uma

segunda limitação ao meu trabalho. Embora nada impedisse a sua realização em outras

regiões do Brasil, devo assumir que tê-la aplicado em ALFA e BETA foi, também, uma

questão de oportunidade. Tive a chance de conseguir apoio para circular nos corredores

do Poder Judiciário de ALFA, bem como de obter uma lista de contatos e a

possibilidade de ler os processos judiciais dos servidores de BETA. Para uma pesquisa

sobre um tema sensível como o de assédio moral (ou mal-estar no trabalho) em uma

organização como o Judiciário, ambiente que reconhecidamente carece de pesquisas

acadêmicas (SADEK, 2010), pode-se considerar que tratava-se de um desafio. No caso

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de ALFA, esta conquista deve ser atribuída à equipe inicial de pesquisa que, juntamente

com o sindicato local, conseguiu sensibilizar os administradores da Justiça Federal,

Tribunal Regional do Trabalho e Tribunal Regional Eleitoral para a importância da

realização daquela investigação. Sem a longa negociação realizada, de onde não se pode

retirar a dimensão política envolvida, este Estado provavelmente não teria sido alvo da

pesquisa, da forma institucionalizada com acabou sendo.

Já em BETA, o feito de conseguir entrevistar 19 servidores deve-se em grande

medida à abertura e ao interesse do sindicato local pela realização da pesquisa. Contudo,

as tentativas de tornarem-na institucionalizada, no Poder Judiciário Federal localizado

em BETA, foram frustradas. Desta forma, a pesquisa baseou-se no contato direto com

os servidores, a partir de listagem fornecida pelo Sindicato. Tudo isto corrobora a

importância de aproveitar as oportunidades oferecidas, e que me levaram a focar a

pesquisa em ALFA e BETA.

Entretanto, é preciso salientar que a teoria, assim como as entrevistas permitiram-

me compreender que no Sistema Judiciário há muitas questões que não podem ser

generalizadas (o que não significa que eu gostaria de fazê-lo) e, nesse sentido, ampliá-la

para outras regiões do país, poderia significar uma compreensão ainda mais avançada

sobre o sofrimento no trabalho no Judiciário, bem como a construção de hipóteses

investigativas.102

Os próprios servidores têm a percepção de que a realidade muda, no Sistema

Judiciário, dependendo da região do país. Uma servidora do TRE, por exemplo, me

incentivou a investigar a realidade dos cartórios eleitorais no interior do país: “Você

deveria investigar o que acontece no interior do Estado (ALFA). A realidade de lá é

muito diferente da capital”. Finalmente, cabe ainda indicar uma terceira limitação desta

pesquisa: o grupo pesquisado. Para a presente pesquisa, apoiei-me em um grupo de

servidores constituído principalmente por técnicos e analistas do Poder Judiciário. Além

deles, logrei entrevistar também membros da diretoria do Sindicato de BETA, bem

como um juiz federal. A despeito da explicação da escolha de cada um dos

entrevistados, e do registro relativo à dificuldade de conseguir entrar em contato com a

classe de juízes para compor os personagens do Poder Judiciário (cujo esforço resultou

102

Os resultados produzidos pelo Poder Judiciário Federal, e percebidos pela sociedade variam nas

diferentes regiões do país (SADEK, 2004). A realização de entrevistas com servidores de outras

localidades poderia fazer parte de uma próxima etapa da pequisa.

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na realização de uma única entrevista com um representante dessa categoria), deixo aqui

a sugestão de insistência nesse grupo.

A teoria e as entrevistas dos servidores revelaram a contradição identificada entre

as competências cada vez mais exigidas dos juízes, que acumulam funções

jurisdicionais com a de administrador, como é explícito, por exemplo no caso de

funções diretivas e a direção do foro.

A introdução de novas regras de funcionamento do Sistema Judiciário, bem como

as mudanças organizacionais decorrentes, acarretam exigências direcionadas não

somente aos servidores, como explorado ao longo da tese, mas também àqueles que

ocupam cargos diretivos (KILIMNIK, 2010).

A busca pela eficiência dos serviços públicos de forma geral, no qual se insere o

Poder Judiciário, implica uma oferta de serviços de melhor qualidade, assim como a

aplicação de princípios de organização e métodos de gestão.

Como os juízes vivenciam esta contradição, e de que forma isso se reflete ou

eventualmente contribui para caracterização de um contexto de sofrimento no Poder

Judiciário? Esta contradição vem sendo eventualmente agravada pelas exigências de

modernização da gestão do Poder Judiciário, impostas pela sua Reforma? Estes são

exemplos de questões cujo aprofundamento dependeria da inclusão dos juízes no grupo

pesquisado, o que não pôde ser satisfatoriamente atendido no escopo desta tese.

Registro, portanto, uma sugestão de novas tentativas de ampliação dos atores

pesquisados, incluindo a categoria de juízes.

É possível acrescentar ainda, as seguintes sugestões de pesquisas futuras:

9.4.1 Utilização de mecanismos alternativos de investigação

Enriquez et al. (1993) lembram que

[...] sem oferecer atenção exclusiva a um ou a outro método e considerar a

entrevista como um documento único que por si só é suficiente, trata-se,

sobretudo de julgá-la como um método entre outros e de completá-la

(ENRIQUEZ et al., 1993, p. 154).

A despeito dos instrumentos eleitos para a investigação desta tese (entrevista,

observação e análise documental), não se pode olvidar a existência de diversos outros

mecanismos que poderiam trazer novos elementos para pesquisas da mesma natureza. A

abordagem clínica permite, por exemplo, a realização de trabalhos em grupo, o que

apresenta algumas vantagens.

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A primeira delas refere-se à criação de um “envelope grupal”, um espaço onde se

estimula a troca de experiências vividas, em um contexto onde a ligação estabelecida

pelo grupo leva a uma percepção de segurança.

Dado o aspecto transversal do trabalho, que permite o aprofundamento coletivo de

histórias individuais, religando cada uma a dos outros, permitindo a percepção do eco

que as histórias de um provoca nos outros, oferece-se um sentido aos participantes que

percebem que “não estão sozinhos em vivenciar o que os levaram a participar daquele

trabalho em grupo”.

Esse ambiente, que representa simbolicamente a sociedade e que favorece a troca

de palavras e elaboração das histórias de vida em grupo, permite que sentimentos como

sofrimento, inibição, vergonha, ganhem sentido, ajudando no trabalho de reconstrução

dos sujeitos. Como diz Gaulejac (2010c), estes trabalhos “permitem ao sujeito resistir,

mas também de existir, não mais sobreviver, mas de viver, tão simplesmente”

(GAULEJAC, 2010c, p. 33).

Este tipo de dinâmica pode ser alternativo ou aditivo à realização das entrevistas

individuais, cujo face a face, como explorado ao longo desta tese, é sabidamente

implicador.

Não se pode perder de vista que o material produzido no campo, seja de forma

individual, seja de forma coletiva, depende fortemente da implicação de cada

entrevistado, quer dizer, da capacidade individual de cada participante mergulhar no

passado, para fazer emergir os fatores estruturantes da sua história.

Outra vantagem desse tipo de trabalho é a forma como se desenvolve a discussão

reflexiva que retoma as dicussões realizadas no grupo, permitindo colocar em evidência

os ecos intelectuais, reflexivos, emocionais, corporais e psíquicos, que permitem aos

envolvidos avançar na compreensão dos fenômenos em evidência.

Uma outra ferramenta metodológica não usada nesta tese, mas que permite um

trabalho em grupo que articule fatores sociais e psicológicos, é o organidrama ou

organiscópio103 (GAULEJAC, 1987, p. 267). Trata-se de um dispositivo de trabalho em

grupo orientado para explorar ''a ligação entre os conflitos vividos e as contradições que

atravessam as organizações'' (VANDEVELDE-ROUGALE, 2011, p. 247). Suas raízes

103

Este dispositivo vem sendo praticado, por exemplo, nos Seminários de Implicação e Pesquisa,

oferecidos no Instituto Internacional de Sociologia Clínica, em Paris (http://www.sociologieclinique-

iisc.com/index.php) com grupos de diversas origens e trajetórias profissionais.

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encontram-se no sociodrama (cujo expoente é Jacob L. Moreno), no psicodrama

emocional (a partir de Max Pagès, que por sua vez inspira-se nos trabalhos de Carl

Rogers e Wilhelm Reich) e no teatro do oprimido (de Augusto Boal).

Sua prática, através da teatralização de uma situação conflituosa no ambiente de

trabalho, por exemplo, possibilita, a partir de uma situação singular, entender

mecanismos coletivos (GAULEJAC, 1987, p. 273) e a influência dos fatores sociais-

organizacionais sobre os sujeitos envolvidos ao levar os participantes a experimentar

sentimentos como tensão, revolta, mal-estar, prazer resultante do poder adquirido ou

submissão (VANDEVELDE-ROUGALE, 2011; GAULEJAC, 1987, p. 286). Sendo

assim o dispositivo do organidrama oferece aos participantes a oportunidade de

articular a implicação, experimentada durante a situação lúdica de cada um com o

conflito, e a distanciação reflexiva, especialmente durante o momento de discussões

coletivas (VANDEVELDE-ROUGALE, 2011; GAULEJAC, 1987, p. 287). Isso permite

a coconstrução de hipóteses sobre o sentido do processo em curso, com base na

distanciação de cada dos participantes em relação a si mesmo e ao mundo

organizacional, num melhor entendimento do processo socioclínico e na melhor

compreensão da implicação de cada um com as forças socio-organizacionais em curso

(VANDEVELDE-ROUGALE, 2011; GAULEJAC, 1987, p. 287).

O organidrama se revelou como um interessante suporte metodológico na

realização de intervenções e pesquisa em organizações. Em uma pesquisa realizada

sobre o poder das organizações em uma filial europeia da multinacional TLTX, na

década de 1970, (PAGÈS et al., 1990) seu uso, ao lado de outras ferramentas

metodológicas, permitiu que se avançasse em hipóteses sobre, por exemplo, o papel das

organizações como produto de contradições sociais e psicológicas e ainda analisar a

dimensão imaginária dos funcionários em relação à organização, evidenciando a

possibilidade de compreensão da lógica empresarial a partir de uma postura clínica. O

trabalho permitiu aos participantes distanciarem-se do real, levando-os a reproduzir em

cena, de maneira espontânea, a ideologia e os modelos gestionários instituídos na

empresa e permitindo que se avançasse nas hipóteses em relação às organizações como

sistemas ''sócio-psíquicos'' (PAGÈS et al., 1990; AUBERT e GAULEJAC, 2007).

Finalmente, cabe adicionar a possibilidade, também não explorada nesta tese, de o

pesquisador se servir de determinados instrumentos metodológicos como o uso de

suportes que facilitem a emergência da história destes participantes. Enriquez et al.

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(1993, p. 173) oferecem alguns exemplos da forma pela qual eles trabalham com os

participantes nas sessões chamadas romance familiar e trajetória social. Os autores

afirmam trabalhar as histórias de vida dos participantes, analisando em que medida os

destinos individuais, apesar de suas irredutíveis singularidades, estão socialmente

determinados, a partir de três elementos: histórias de vida (que em certa medida foram

usadas na tese, ainda que em um formato individual); suportes de objetivação destas

histórias (graças ao uso de árvores genealógicas, fotos, correspondências, diários,

cadernos de telefone), ou via suporte de projeção e expressão (como dramatização, cujas

vantagens já foram analisadas, mas também via desenhos, jogos em papel, e outras

técnicas).

O uso destes instrumentos tende a enriquecer o trabalho de investigação clínica,

especialmente num tema tão mobilizador de subjetividades quanto o mal-estar no

trabalho.

9.4.2 Explorar as consequências do novo modelo de gestão, ao longo do tempo

A mudança organizacional, iniciada especialmente depois de 2004 (fruto

principalmente da Reforma do Judiciário) vem tendo impactos que estão prestes a se

fortalecer e que foram sentidos de maneira diferenciada entre os indivíduos

entrevistados. Por um lado, graças ao poder disseminado entre os juízes, onde cada um

gere a questão dos resultados à sua maneira, conforme explorado no Capítulo 7. Por

outro lado porque a maneira de sentir as mudanças depende também da história pessoal

de cada um, como procurei mostrar, principalmente nas análises individuais. Talvez a

complexidade de uma situação que muda pouco a pouco, e que já tem consequências

nos servidores do Judiciário, possa vir a ser alvo de um novo trabalho de campo, em um

futuro próximo. O uso da sociologia clínica também parece ser oportuno para estudar a

maneira de ser, fazer, ressentir dos indivíduos face à mudança, que repercutem sobre o

que os indivíduos são, vivem e sofrem.

9.4.3 A contribuição da abordagem clínica e dos instrumentos de análise para a

administração

A administração enquanto ciência surgiu com a Revolução Industrial, dada a

demanda por um arcabouço teórico que permitisse responder pela racionalização da

utilização da força de trabalho objetivando a intensificação do processo de acumulação

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de capital. Foi a partir dos estudos de Taylor e Fayol que assitiu-se à aplicação dos

métodos da ciência ao gerenciamento do processo de trabalho, bem como o uso de um

modelo cartesiano de organização e gerenciamento. Posteriormente, a administração

ganhou força no campo das ciências sociais (MONTEIRO, 1993).

Os estudos no campo da administração enquanto ciências sociais aplicadas

objetivam o entendimento e a melhora do desempenho produtivo e dos negócios ao

permitir que recomendações, reestruturações e soluções de problemas pontuais levem à

melhoria da eficácia organizacional. Entretanto, a abordagem adotada para esta tese

permitiu avançar na compreensão de que o alcance desse objetivo do estudo da

administração depende não só do acesso à experiência concreta, como também da

apreensão da dimensão subjetiva envolvida.

Este trabalho permitiu construir uma tese em administração colocando essas duas

dimensões em perspectiva e mostrando as possibilidades trazidas a partir de um diálogo

de diferentes disciplinas e da adoção de uma abordagem clínica para compreender o

fenômeno social do assédio moral. Permitiu-se uma análise crítica por meio de

fundamentos epistemológicos e possibilidades metodológicas próprias da clínica, que

levaram ao avanço na compreensão da lógica organizacional atual e de suas

contradições, bem como, no fornecimento de novas bases para abordar as relações entre

sujeitos e organização.

Dado o caráter multidisciplinar da administração, enquanto ciência social

aplicada, deve-se valer do uso da sociologia clínica para compreender mais a fundo as

percepções sobre as mais diversas realidades organizacionais.

9.5 A NECESSIDADE DE SER OUVIDO, A SENSAÇÃO DE INTERVENÇÃO E A

DEVOLUTIVA

Você tem a minha gratidão por ter me escutado... muito

obrigada.

Foi um alívio falar disso tudo. Porque a gente guarda tudo isso

pra gente, não é?

Eu pedi para fazer esta entrevista porque, veja só que

interessante, eu tinha a necessidade de falar de tudo isso. Meu

desejo era que o conteúdo da minha entrevista pudesse ser

escutado pela administração pública... eu acho que durante a

nossa entrevista, eu falei de tudo o que eu tinha vontade. Que

minha voz seja por lá escutada.

Mas, eu acho assim, eu quero sair da Justiça, porque eu quero

ter uma autonomia maior. Eu quero realmente assim, eu não me

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imagino até o final sendo servidora. Depois de tudo que a gente

conversou agora, eu posso te dizer. Servidora eu não quero

ficar até o fim da minha vida não. Poxa, tu não fala nada, mas a

gente dá umas conclusões assim... eu não vou dizer que eu

quero sair agora porque é um inferno, não é não.

Yonnel Dervin, em seu livro Ils M'Ont Détruit! (cuja tradução poderia ser “Eles

me destruiram”), tece reflexões sobre sua dificuldade de falar e de ser escutado no seio

da France Telecom, quando ali trabalhava. Parecia ser mais fácil falar sobre o

sofrimento vivido na sua organização com um cliente do que com seu próprio gerente.

O caso desse ex-funcionário da France Telecom ganhou notoriedade após ser

transformado no livro em que são descritos os acontecimentos e o contexto que o

levaram (assim como mais de outros vinte funcionários, muitos com êxito) à tentativa

de suicídio no interior de sua empresa. Relata Dervin que em 2009 tentou se suicidar

diante do corpo diretivo da France Telecom, como uma reação simbólica ao seu

sentimento de progressiva “fragilização” e destruição psicológica. A percepção de que

não era eficaz em suas atividades por não responder à busca obstinada da direção da

empresa pela redução de custos, minou, aos poucos, o desejo de ir ao trabalho de

Dervin.

Assim como Dervin (2009), os funcionários do Sistema Judiciário Federal sentem

a necessidade de falar sobre as causas de seu sofrimento. Porém, embora desejem ser

ouvidos, nem sempre parecem encontrar algum canal adequado (interno ou externo ao

Sistema Judiciário), ou sentem medo de assumir a necessidade de falar sobre o

sofrimento vivenciado no ambiente de trabalho. Algumas causas desse temor foram

discutidas ao longo da tese, a exemplo do sistema de poder revelado no discurso dos

entrevistados, que instrumentalizado de diversas maneiras, reverte-se no sofrimento

silencioso do quadro de funcionários.

Por outro lado, a dificuldade em assumir o mal-estar pode advir do fato desse

grupo ser considerado elite privilegiada no país. Identificados como “marajás” desde o

governo de Fernando Collor, no final da década de 1980, que incitou a população contra

os servidores públicos de uma maneira geral. Esses profissionais permanecem com este

estigma e com a imagem desgastada até hoje. A situação foi agravada no governo de

Fernando Henrique Cardoso, responsável pela Reforma do Estado, a partir de 1995

(NUNES; LINS, 2009; PEREIRA, 1996). Como poderia um grupo considerado

privilegiado legitimar um discurso de sofrimento no ambiente de trabalho? Tal

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contradição povoa os conteúdos das entrevistas. Sem esquecer de agradecer a “Deus”,

por exemplo, pela oportunidade de ter um emprego desejado por tantos milhões de

brasileiros, os servidores entrevistados evocam sintomas de sofrimento tão parecidos e

importantes quanto os que se vê em empresas do setor privado (GAULEJAC, 2011).

Alguns servidores relataram que a entrevista realizada para esta tese representou a

primeira vez em que encontraram um “ouvido solícito” (GAULEJAC, 2007c, p. 46). A

exteriorização dos sentimentos guardados pode ter sido permitida pela identificação do

lado do bem-estar presente no ato da escuta, da empatia, do apoio identificado na figura

de uma pesquisadora interessada em avançar no conhecimento sobre a vivência

daqueles profissionais.

As três primeiras citações destacadas na introdução desta seção dão conta da

necessidade de serem ouvidos. O ato de ouvir, além de ter representado a forma de

coletar os depoimentos dos servidores, pode também ter ajudado no processo de

autocompreensão do sentimento de mal-estar vivenciado por eles.

Importante registrar que em ALFA, ao passo que eu avançava na realização de

algumas entrevistas, os próprios servidores entrevistados estimulavam seus colegas, a

realizar a entrevista comigo. Isso refletia um movimento crescente de percepção da

pesquisa (encomendada pelo Sindicato) como um importante instrumento de

“diagnóstico” da situação dos servidores, e um canal de denúncia isento das pressões do

Sistema Judiciário.

O quarto trecho destacado no início desta seção, avança na questão da

intervenção. Quando Barus-Michel se pergunta se é possível falar de uma pesquisa

clínica sem o efeito de uma intervenção, ela lembra que “a escuta já produz seus efeitos

sobre aquele ou aqueles que ela induz a palavra, e em seguida o retorno sobre esta

mesma palavra encoraja a mudança” (BARUS-MICHEL, 2006, p. 318). Ao tomar suas

conclusões, a partir da entrevista realizada, o servidor indica que aquele momento de

reflexão e coconstrução levou-o a avançar no seu autoconhecimento. Eu posso dizer,

então, que tive a oportunidade de produzir a intervenção como pesquisadora por

intermédio do dispositivo clínico (BARUS-MICHEL, 2006).

9.6 A MINHA NECESSIDADE DE SER OUVIDA

Quatro anos separaram a minha saída do trabalho motivada pela demanda de uma

licença sem vencimentos e a minha volta para outro departamento da mesma

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organização. Em março de 2008, saí do meu ambiente de trabalho em função da

urgência em dar sentido à experiência que eu havia vivenciado naquele ambiente

profissional nos anos anteriores. A despeito das tentativas, minha e de alguns colegas,

de discutir fatos e situações que entendíamos serem responsáveis por nosso esgotamento

pessoal e profissional à época, não nos sentimos ouvidos em nenhuma instância formal

da empresa. Assim, motivada pela necessidade de compreender o fenômeno de assédio

moral, do qual tantos profissionais entendem ser vítimas no mundo todo, busquei ajuda

nos bancos escolares.

É inegável que, independente dessa motivação, eu já nutria o desejo de dar

continuidade à atividade de pesquisa, desde que concluí meu mestrado. A ocorrência

serviu somente como um dos impulsionadores e como inspirador do tema que decidi

tratar nesta tese.

Chego nesta etapa conclusiva exaurida. Não se trata de fruto somente da

extenuante dedicação à sua produção, sobretudo em sua fase final. A sensação de

esgotamento resulta também da abordagem eleita para a realização desta pesquisa.

Saber como avançar na compreensão do que eu ouvia nas entrevistas, lia nos

documentos e percebia nos corredores do Judiciário, caminhava em paralelo com o

trabalho de escuta do eco que aquilo tudo provocava em mim.

9.7 IMPLICAÇÃO PRÁTICA DA PESQUISA

Finalmente, é na própria necessidade de ser ouvido que reside uma das principais

implicações práticas desta pesquisa de tese.

Embora esta pesquisa tenha como base a realidade do Poder Judiciário, diversas

conclusões aqui alcançadas podem ser aplicadas a outros contextos.

Atualmente não são todas as organizações que estão atentas ao que seus

funcionários necessitam dizer. Não se trata de um espaço terapêutico, porém, clínico,

que permita oferecer um olhar psicossocial ao discurso dos trabalhadores. É importante

que a partir das palavras dos sujeitos que compõem as organizações, perceba-se a

dimensão organizacional, e que uma análise crítica permita o combate dos sintomas de

mal-estar que os assolam.

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280

ANEXO 1

Tabela 3 - Entrevistados

Cargo Instituição Atividade Estado Anos de

Experiência no

Judiciário, em 2011

Sexo

1 Técnico TRT Atividade-fim ALFA 21 Feminino

2 Técnico TRT Atividade-fim ALFA 21 Feminino

3 Analista TRT Atividade-fim ALFA 12 Masculino

4 Analista Justiça Federal Atividade-fim ALFA 4,5 Masculino

5 Analista Justiça Federal Atividade-fim ALFA 10 Feminino

6 Analista Justiça Federal Atividade-meio ALFA 7 Feminino

7 Analista Justiça Federal Atividade-fim ALFA 15 Feminino

8 Técnico TRE Atividade-meio ALFA 1 Masculino

9 Analista TRE Atividade-fim ALFA 5 Feminino

10 Analista TRE Atividade-fim ALFA 5 Feminino

11 Técnico Justiça Federal Atividade-fim ALFA 9 Masculino

12 Analista Justiça Federal Atividade-fim ALFA 16 Feminino

13 Técnico Justiça Federal Atividade-meio ALFA 16 Masculino

14 Técnico Justiça Federal Atividade-meio ALFA 13 Feminino

15 Técnico TRE Atividade-fim ALFA 15 Masculino

16 Técnico Justiça Federal Atividade-fim ALFA 13 Feminino

17 Analista TRE Atividade-fim ALFA 22 Feminino

18 Técnico TRE Atividade-fim ALFA 5 Masculino

19 Analista Justiça Federal Atividade-meio ALFA 12 Masculino

20 Técnico Justiça Federal Atividade-fim BETA 13 Masculino

21 AnalistaEx

ecução de

Mandados

Justiça Federal Atividade-fim BETA 6 Masculino

22 Técnico Justiça Federal Atividade-fim BETA 14 Masculino

23 Técnica Justiça Federal Atividade-fim BETA 11 Feminino

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24 Analista Justiça Federal Atividade-fim BETA 10 Feminino

25 Técnico Justiça Federal Atividade-fim BETA 13 Feminino

26 Técnico TRT Atividade-fim BETA

16 Feminino

27 Técnico Justiça Federal Atividade-meio BETA

5 Masculino

28 Analista Justiça Federal Atividade-fim BETA

7 Feminino

29 Técnico TRE Atividade-fim BETA 8 Feminino

30 Técnico TRE Atividade-fim BETA 7 Masculino

31 AnalistaEx

ecução de

Mandados

Justiça Federal Atividade-fim BETA 16 Feminino

32 Técnico Justiça Federal Atividade-fim BETA 10 Feminino

33 Analista Justiça Federal Atividade-fim BETA 26 Masculino

34 Técnico Justiça Federal Atividade-fim BETA 6 Masculino

35 Analista Justiça Federal Atividade-fim BETA 11 Feminino

36 Técnico Justiça Federal Atividade-meio BETA 13 Feminino

37 Analista Justiça Federal Atividade-fim BETA 9 Masculino

38 Dirigente

Sindical 1

BETA Masculino

39 Dirigente

Sindical 1

BETA Masculino

40 Dirigente

Sindical 1

BETA Masculino

41 Juiz Federal BETA Masculino

Fonte: elaboração própria.