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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE DE LETRAS A CONSTRUÇÃO COM ADJETIVO ADVERBIAL: INVESTIGANDO SUA CONFIGURAÇÃO NO PORTUGUÊS BRASILEIRO DO SÉCULO XX Rodrigo Pinto Tiradentes Rio de Janeiro 2018

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

FACULDADE DE LETRAS

A CONSTRUÇÃO COM ADJETIVO ADVERBIAL: INVESTIGANDO SUA

CONFIGURAÇÃO NO PORTUGUÊS BRASILEIRO DO SÉCULO XX

Rodrigo Pinto Tiradentes

Rio de Janeiro

2018

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RODRIGO PINTO TIRADENTES

A CONSTRUÇÃO COM ADJETIVO ADVERBIAL: INVESTIGANDO SUA

CONFIGURAÇÃO NO PORTUGUÊS BRASILEIRO DO SÉCULO XX

Monografia submetida à Faculdade de Letras da

Universidade Federal do Rio de Janeiro, como

requisito parcial para obtenção do título de

Licenciado em Letras na habilitação

Português/Literaturas de Língua Portuguesa.

Orientadora: Profª Drª Priscilla Mouta Marques

RIO DE JANEIRO

2018

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CIP - Catalogação na Publicação

Elaborado pelo Sistema de Geração Automática da UFRJ com os dados fornecidos pelo(a)

autor(a), sob a responsabilidade de Miguel Romeu Amorim Neto - CRB-7/6283.

Tiradentes, Rodrigo Pinto

T596c A construção com adjetivo adverbial: investigando

sua configuração no português brasileiro do século

xx / Rodrigo Pinto Tiradentes. -- Rio de Janeiro,

2018.

56 f.

Orientadora: Priscilla Mouta Marques.

Trabalho de conclusão de curso (graduação) -

Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade

de Letras, Licenciado em Letras: Português -

Literaturas, 2018.

1. Linguística Funcional Centrada no Uso. 2.

Adjetivos adverbiais. 3. Construção. I. Marques, Priscilla Mouta, orient. II. Título.

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AGRADECIMENTOS

Termino esta monografia após dedicar quatro anos e meio à minha formação em Letras.

Esse foi um momento muito importante da minha vida, que me fez crescer como pessoa e

cidadão, que me trouxe muito aprendizado e que me apresentou pessoas queridas e especiais.

Por tudo de bom que a faculdade me proporcionou, agradeço sobretudo a Deus, que me

acompanhou todos os dias e me amparou nos momentos difíceis.

Agradeço também à minha família, que me apoiou nas felicidades e dificuldades da

graduação. Sem a sua paciência e a sua compreensão, não sei como eu concluiria o curso de

Letras. Muito obrigado por me entender e me sustentar, em todos os sentidos.

Obrigado também aos meus amigos, pelas boas risadas que demos juntos e pelos

conselhos valorosos que recebi. Aos amigos do tempo da escola, em especial Wallace e

Darison, sou muito grato por mantermos nossa amizade e por toda a força que me deram quando

eu não estava bem. Aos novos amigos, que tive a felicidade de conhecer na Letras, agradeço

por tornarem esses anos tão divertidos e lembrarem sempre de mim. Fabiana, Lucas, Gabriel,

Karen, Catarina, Andrei, Luísa, meu obrigado especial a vocês.

Com muito carinho, também agradeço ao meu querido Matheuszinho, que me apoiou

imensamente durante todo esse tempo. Obrigado por aguentar minha obsessão por assuntos de

faculdade, por me motivar a ser sempre uma pessoa melhor e por estar sempre comigo.

Minha gratidão também a todos do grupo de estudos Discurso & Gramática, pelo imenso

aprendizado e por todos os momentos felizes, como a viagem para São Paulo e as sessões

musicais. Obrigado à professora Karen Sampaio, que acreditou no meu potencial e me convidou

para o grupo; à professora Priscilla Marques, que me acolheu com ternura e me orientou com

atenção por quase quatro anos; à minha coorientadora Julia Langer, que sempre foi muito gentil

e prestativa; e aos meus colegas de iniciação científica, Ester, Matheus, Kleveland, Manuel e

Raíssa, que hoje são bons amigos. Aprendi certinho com todos vocês.

Enfim, obrigado aos excelentes professores de que tive a honra de ser aluno, aos ótimos

congressos de que participei e/ou em que pude apresentar minha pesquisa e à inesquecível

experiência de estagiar no Colégio de Aplicação da UFRJ com a brilhante professora Maria

Coelho, na companhia das minhas colegas Jéssica e Danielle.

E, sem me esquecer, meu último agradecimento àqueles que sempre acreditaram em

mim e me incentivaram a cursar Letras: os colegas e professores do Instituto Nossa Senhora

Auxiliadora, minha escola do coração, e todos da Oficina Literária San Juan de la Cruz.

Especialmente, recordo-me do professor Nelson Marques, que muito me marcou no período da

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escola e a quem sempre recorri como exemplo de professor; e dos amigos Gabriel Caldas e

Lenora Carraro, que foram essenciais para o meu crescimento enquanto cidadão reflexivo, que

me ensinaram o perdão e que continuam sendo amigos queridos.

Devo muito a todos vocês a pessoa, o cidadão e o professor que hoje sou. Um abraço

carinhoso em cada um!

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SUMÁRIO

1. Introdução ............................................................................................................................. 7

2. Fundamentação teórica ........................................................................................................ 9

2.1. Princípios e categorias de análise ...................................................................................... 11

2.1.1. Princípio da iconicidade ................................................................................................. 11

2.1.2. Princípio da marcação .................................................................................................... 12

2.1.3. Princípio da não-sinonímia ............................................................................................. 13

2.1.4. Informatividade .............................................................................................................. 14

2.1.5. Esquematicidade ............................................................................................................. 15

2.1.6. Produtividade .................................................................................................................. 16

2.1.7. Composicionalidade ....................................................................................................... 17

3. Revisão da Literatura ......................................................................................................... 19

3.1. Análise de Hummel: fatores discursivo-textuais e extralinguísticos na diacronia e

sincronia do Romance .............................................................................................................. 19

3.2. Análise de Barbosa: propriedades formais e semânticas sob a perspectiva da

gramaticalização ....................................................................................................................... 22

3.3. Análise de Virginio: a estrutura informacional em instanciações da construção com

adjetivo adverbializado ............................................................................................................. 25

4. Objetivos, hipóteses e metodologia.................................................................................... 28

4.1. Objetivos e hipóteses ......................................................................................................... 28

4.2. Metodologia ....................................................................................................................... 30

5. Análise de dados ................................................................................................................. 34

5.1. Padrão de ordenação .......................................................................................................... 34

5.2. Presença de elementos intervenientes................................................................................ 37

5.3. Tipos de verbo e de adjetivo .............................................................................................. 39

5.4. Itens verbais e adjetivais .................................................................................................... 42

5.5. Transitividade e foco informacional .................................................................................. 45

5.6. Modalidade e domínio discursivo ..................................................................................... 47

6. Considerações finais ........................................................................................................... 51

Referências .............................................................................................................................. 54

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1. Introdução

A fluidez categorial tem se constituído tópico de interesse de diferentes linguistas,

especialmente de funcionalistas e cognitivistas. No âmbito das estruturas adverbiais, chama a

atenção um grupo de adjetivos que assume função adverbial, denotando a existência de

flutuação entre as categorias adjetivo e advérbio. Esses adjetivos, comumente chamados de

adverbializados, provocam questionamentos sobre sua configuração na gramática e promovem

reflexões sobre a natureza fluida da língua.

À luz da teoria da Linguística Funcional Centrada no Uso (LFCU), assume-se, nesta

pesquisa, que tais adjetivos seriam elementos que compartilham propriedades com a categoria

dos adjetivos, mas que formam com o verbo ao qual se relacionam uma construção adverbial,

cuja notação é [V AA]1. O objeto deste estudo, portanto, não são esses adjetivos isoladamente,

mas sim a construção com adjetivo adverbial, dado que verbo e adjetivo apresentam forte

integração sintática e semântica de modo a formar um todo significativo. No exemplo abaixo,

observa-se um exemplo da construção em questão, em que o adjetivo ocorre em forma

invariável e modifica o escopo do verbo ao qual se vincula.

(1) “Passava um pouco das quatro. A delegacia estava quente e repleta de gente.

Falavam alto, os telefones tocavam ao mesmo tempo sem que ninguém atendesse, e de algum

lugar não localizável vinha o som rachado de um rádio de pilha.” (19:Fic:Br:Garcia:Silencio)

Assim, a atenção da pesquisa recai sobre a composição formal e discursivo-pragmática

da construção com adjetivo adverbial e sobre sua circunscrição na rede construcional.

Sobretudo, investiga-se a construção em estudo quanto ao seu padrão formal, aos seus sentidos

potencialmente gerados e aos contextos em que ocorre, bem como se analisam os verbos e os

adjetivos que a compõem.

Para alcançar esses objetivos, foram coletadas e analisadas ocorrências da construção

no Corpus do Português, uma plataforma online que compila textos de duas variedades do

português (brasileira e portuguesa) em diferentes modalidades e gêneros textuais/domínios

discursivos. Utilizando sua ferramenta de busca, a coleta restringiu-se à sincronia do português

brasileiro do século XX.

1 Entende-se por esta notação: construção composta por um verbo, um elemento interveniente não obrigatório e

não delimitado e um adjetivo adverbial, prototipicamente nesta ordem. Pode ser nomeada também como [Verbo

Adjetivo Adverbial].

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Com este trabalho, espera-se contribuir com os estudos da LFCU, especialmente sobre

a configuração da rede construcional, e com a pesquisa sobre os adjetivos adverbiais. Neste

ponto, considera-se de grande valor a vasta coleta de dados de uso real empreendida, uma vez

que poucos estudos sobre o tema utilizaram essa metodologia, que, segundo o aporte

funcionalista, é essencial para a compreensão da gramática de uma língua.

A fim de melhor apresentar a pesquisa, esta monografia organiza-se em seis capítulos.

No segundo, define-se a corrente da LFCU e expõem-se seus principais pressupostos teóricos,

relacionando-os à construção estudada. No terceiro capítulo, revisam-se a pesquisa norteadora

de Martin Hummel e dois estudos recentes sobre os adjetivos adverbiais que utilizaram aporte

teórico próximo ao da presente monografia. No quarto, exibem-se os objetivos do presente

trabalho, indicando as hipóteses e os fatores de análise a eles relacionados, e descreve-se a

metodologia utilizada. No capítulo 5, são apresentados os resultados quantitativos e qualitativos

para análise dos dados coletados. Por fim, no último capítulo, observam-se as conclusões

centrais da análise realizada, buscando postular a rede da construção com adjetivo adverbial.

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2. Fundamentação teórica

Com o desenvolvimento do Funcionalismo e da Linguística Cognitiva, pesquisadores

de ambas as correntes passaram a reconhecer fortes pontos de contato entre os arcabouços

teóricos e iniciam um diálogo que culmina com a constituição da Linguística Funcional

Centrada no Uso (Usage-Based Linguistics), também denominada Linguística Cognitivo-

Funcional (Cognitive-Functional Linguistics) por Tomasello (1998). De forma simplificada,

agregam-se o estudo funcionalista norte-americano sobre o uso real da língua e um modelo

cognitivista construcional de representação da gramática para compor uma teoria preocupada

com as estratégias comunicativas do discurso e com a configuração mental da gramática da

língua. Dentre os trabalhos que adotam essa teoria, distinguem-se Tomasello (1998, 2003),

Barlow e Kemmer (2000), Bybee (2006, 2010) e Traugott e Trousdale (2013).

De acordo com Martelotta e Alonso (2012), pode-se afirmar que, do ponto de vista

filosófico, a LFCU é resultado da convergência de dois modelos inseridos no paradigma

realista-experiencialista, já que concebem a construção do significado como um processo

dinâmico, condicionado sócio-historicamente, mas também gerador de padrões conceptuais. A

partir dessa posição filosófica, desenvolve-se todo um conjunto de postulados, dentre os quais

se destacam três fundamentais. Primeiramente, identifica-se a motivação do signo linguístico,

que se encontra através da correlação entre forma e função, na Linguística Funcionalista, e do

pensamento corporificado, na Linguística Cognitiva. Negando a arbitrariedade da língua, a

estrutura passa a se relacionar com o sentido e com o contexto de uso, somando ao estudo da

forma linguística a Semântica e a Pragmática, que na teoria cognitivista não se diferenciam

dicotomicamente. Por fim, o reconhecimento da língua como fenômeno sociocultural,

principalmente no Funcionalismo norte-americano, conduz à investigação empírica da língua

em uso, conferindo centralidade ao discurso.

Outras semelhanças também podem ser sublinhadas. Identifica-se que ambas as

correntes linguísticas não observam distinção estrita entre léxico e gramática; no lugar da

dicotomia, estabelecem um continuum, em que determinadas estruturas podem apresentar

natureza léxico-gramatical. A mesma noção de continuum é aplicada à categorização

linguística, um processo geral da cognição que também ocorre no domínio linguístico (Bybee,

2010); no tocante à língua, reconhecem-se semelhanças entre os diferentes elementos e

estruturas linguísticos e agrupam-se os mais próximos pelas semelhanças por eles apresentados

(a partir de características consideradas prototípicas). Dessa forma, as categorias não são

constituídas por propriedades necessárias e suficientes, bem definidas, mas por traços

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prototípicos dos quais os elementos podem se aproximar ou distanciar (Croft, 1990; Heine,

2003; Brinton e Traugott, 2005; Givón, 2005).

Reconhecendo o caráter dinâmico da língua, a LFCU admite ainda o equilíbrio entre

regularidade e instabilidade como um de seus princípios norteadores – como apontam Furtado

da Cunha, Bispo e Silva (2013). Entende-se basilarmente que a estrutura da língua emerge das

regularidades de uso e constantemente se reconfigura a partir das práticas discursivas (Kemmer

e Barlow, 1999, 2000; Bybee, 2010), isto é, a produção e compreensão do uso da língua pelos

falantes compõem a base para a formação do sistema linguístico. A gramática é, então,

consolidada e afetada pelo discurso, ao passo que este também é condicionado pelos padrões

abstratos da gramática.

Considerando a correlação entre gramática e discurso, a frequência de uso recebe

atenção especial nesta teoria, sendo agente relacionado tanto à conservação quanto à inovação

na língua – fato que se verifica em usos regulares e inovadores. Por um lado, os enunciados

reais recorrentemente ativados na gramática e efetivados no discurso constituem rotinas

discursivas. Esta repetição da frequência de uso molda a língua e implica em efeitos sobre suas

unidades. Dentre as consequências possíveis, pode haver, por exemplo, redução da forma,

generalização ou opacidade de conteúdo semântico e expansão ou mudança de sentido e função.

Tais efeitos relacionam-se a tendências mais gerais, que, tendo em vista a complexidade do

discurso, são apenas parcialmente previsíveis. Destacam-se duas trajetórias principais para os

elementos recorrentes: eles podem caminhar para a saída do sistema, tornando-se cada vez

menos expressivos até serem esvaziados completamente de função e sentido; ou caminhar para

a permanência na língua, mantendo sua expressividade ou entrincheirando-se no sistema.

Por outro lado, os enunciados podem conter estruturas inovadoras, que surgem de

intenções comunicativas de um falante individual ou de ressignificações de estruturas já

existentes. A inovação, contudo, representa um processo mais pontual na atividade

comunicativa, dependendo da frequência de uso para que o novo elemento seja compartilhado

coletivamente e ingresse na gramática, provocando-a a uma reconfiguração interna. Ademais,

recorrência e inovação podem estar relacionadas; a alta frequência de uso pode causar perda de

expressividade e, assim, possibilitar o surgimento de estruturas novas, mais expressivas ou mais

marcadas.

Ainda em relação à estruturação da língua, cabe destacar que a LFCU adota o conceito

de construção, advindo da Gramática de Construções. Embora o conceito seja concebido de

diferentes formas, Goldberg (2013 apud Traugott e Trousdale 2013) ressalta que todas as

vertentes construcionistas concordam com a definição de construção como um pareamento

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convencional de forma e significado2, que constitui a unidade mínima da gramática. Mais

especificamente, a LFCU filia-se aos modelos construcionais baseados no uso e considera a

importância do uso para a consolidação das construções, em sua relação dinâmica com os

construtos. Também se compreende que as construções podem ser de qualquer tamanho,

complexidade, esquematicidade ou composicionalidade, abarcando desde sentenças complexas

a morfemas, desde esquemas parcialmente abertos a expressões totalmente especificadas, desde

estruturas com sentido mais literal a expressões idiomáticas

As construções, constituindo a unidade básica da língua, relacionam-se e associam-se

em uma rede construcional (Hudson, 2007 e Traugott e Trousdale, 2013), que estrutura a língua

e compõe toda sua “arquitetura”. Através de aquisição “bottom-up” (Taylor, 2002), as

construções estabelecem-se como nós nessa rede e conectam-se através de links. Essa conexão

pode ser de herança, em que, através de links taxonômicos, construções mais específicas

descendem de construções mais esquemáticas, que, por sua vez, descendem de esquemas mais

abstratos; ou de expansão, em que, através de links relacionais, construções produtivas podem

licenciar novas características formais ou de sentido. Portanto, o modelo de rede não designa

parte do sistema linguístico, mas sim o descreve inteiramente, incluindo léxico e gramática sem

os dissociar. Cabe ainda recordar que a rede representa a organização cognitiva da experiência

linguística (Bybee, 2006), efetivando-se no discurso com as instanciações das construções no

uso, os chamados “construtos”.

Por fim, é importante realçar que o modelo construcional, tal como adotado pela LFCU,

reafirma a centralidade do discurso, não sendo possível a concepção da rede sem o uso da língua

em situações comunicativas. Dessa forma, o estudo da língua com base em dados

empiricamente testados é de extrema importância para a teoria, permitindo investigar temas

relacionados à emergência e à regularização de padrões construcionais e averiguar motivações

implicadas no uso desses padrões.

2.1. Princípios e categorias de análise

A seguir, são apresentados alguns princípios da Linguística Funcional Centrada no Uso

que são caros a esta pesquisa.

2.1.1. Princípio da iconicidade

2 Neste trabalho, adota-se a proposta de Croft (2001, 2013) e Traugott e Trousdale (2013), em que o termo “forma”

engloba sintaxe, morfologia e fonologia, enquanto “sentido” abrange semântica, discurso e pragmática.

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Um postulado fundamental da teoria funcionalista é o Princípio da iconicidade, definido

como a correlação natural e motivada entre forma e função (Givón, 1990, 1995). Em linhas

gerais, entende-se que a estrutura da língua reflete, de algum modo, o pensamento e este, por

sua vez, a experiência humana na realidade biossocial. Este princípio manifesta-se em três

subprincípios: o subprincípio da quantidade, o subprincípio da ordenação sequencial e o

subprincípio da proximidade. O primeiro postula que quanto maior, mais imprevisível ou mais

importante a informação for no ato comunicativo, tanto maior será a quantidade de forma para

decodificá-la. O segundo diz respeito tanto à ordenação linear, pressupondo que as orações são

dispostas no discurso seguindo a sequência temporal em que os eventos ocorreram no mundo,

quanto à relação entre ordenação e topicalidade, considerando que a informação mais tópica ou

mais importante tende a ser colocada em primeiro lugar no enunciado. O terceiro, também

denominado subprincípio da integração ou da adjacência, indica que os conteúdos mais

próximos cognitivamente tendem a estar mais próximos no discurso.

Neste trabalho, lidamos essencialmente com o último subprincípio. Como as

construções são unidades fortemente integradas e, consequentemente, regularizadas na língua,

é previsto que seus elementos formais constituintes ocorram encadeados, sem a presença de

elementos intervenientes. Desse modo, na construção com adjetivo adverbial, o item verbal e o

item adjetival tenderiam a se apresentar adjacentes, como é possível observar no exemplo

abaixo:

(2) “Cheguei por volta de nove horas e entrei no enorme salão, quase vazio. Numa

grande mesa, ao fundo, algumas pessoas riam alto, de maneira descontraída, como se fossem

os donos do lugar. Na cabeceira da mesa, Renato gesticulava e emitia sons guturais, com um

guardanapo amarrado na cabeça.” (19:Fic:Br:Costa:Sala)

2.1.2. Princípio da marcação

Outro conceito primordial é o Princípio da marcação (Givón, 1990, 1995), que postula

a oposição entre formas marcadas e não marcadas. A forma marcada corresponde àquela que

chama mais atenção ao interlocutor, por lhe soar menos comum, menos simples e/ou menos

previsível, e é caracterizada sumariamente por apresentar: (i) maior complexidade estrutural,

em termos de forma; (ii) maior complexidade cognitiva, em termos de esforço mental e tempo

de processamento; e (iii) menor frequência de distribuição, sendo menos frequente no discurso

ou restringindo-se a contextos de ocorrência mais específicos. Givón (1995) ainda ressalta que

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o contexto interfere diretamente na marcação, podendo uma estrutura ser marcada em um

contexto e não marcada em outro.

Retomando o exemplo acima e considerando que a ordenação apresentada é a mais

frequente para os construtos de [V AA], pode-se afirmar, por exemplo, que a sequência de verbo

seguido de adjetivo adverbial é o padrão de ordenação não marcado para a construção. Contudo,

algumas ocorrências com anteposição do item adjetival podem ser motivadas pelo contexto

linguístico, chamando menos atenção ao interlocutor do que outras ocorrências de anteposição,

como se pode verificar nos exemplos (3) e (4). Constatações como essa conduziram autoras

como Furtado da Cunha (2000) e Oliveira (2000) a argumentar pela concepção da marcação

como um conceito escalar, dispondo as formas em mais marcadas e menos marcadas.

(3) “Guardando-as, eu poderei fazer delas como pontos determinantes da trajetória da

minha vida e do meu espírito, e outro não é o meu fito. Aqui bem alto declaro que, se a morte

me surpreender, não permitindo que as inutilize, peço a quem se servir delas que se sirva com

o máximo cuidado e discrição, porque mesmo no túmulo eu poderia ter vergonha.”

(19:Fic:Br:Barreto:Diário)

(4) “Eu queria matá-lo, [...] nem esperamos o golpe de misericórdia, facas nas mãos,

retalhamos, arrancamos pedaços, disputamos o rabo e os olhos sem pedir licença à vida, já que

nem sabemos se estão mortos, e quanto mais alto mugem, mais apunhaladas recebem, quantos

rabos não cortei com o bicho ainda respirando [...]” (19:Fic:Br:Paiva:Brasil)

Embora ambos os exemplos apresentem o padrão de ordenação marcado, a motivação

para ocorrência da anteposição do adjetivo é diferente. No exemplo (3), a motivação é de ordem

mais comunicativa e estilística; há uma intenção comunicativa de conferir destaque informativo

ao volume da ação de “declarar”. Já no exemplo (4), a motivação é de natureza mais procedural;

a estrutura proporcional (“quanto mais..., mais...”) atrai o adjetivo para o início da sentença.

Por isso, pode-se afirmar que o construto em (3) é mais marcado que o construto em (4), que,

por sua vez, é mais marcado que o construto em (1).

2.1.3. Princípio da não-sinonímia

De acordo com Furtado da Cunha, Costa e Cezario (2015), o Princípio da iconicidade

postulado por Givón (1990, 1995) representa uma visão moderada sobre a correlação entre

forma e sentido. Nessa direção, Goldberg (1995) formula o Princípio da não-sinonímia, no qual

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concebe que construções diferentes sintaticamente também o são semântica ou

pragmaticamente, e assim considera que a biunivocidade pode ocorrer entre forma e conteúdo

ou entre forma e função pragmático-discursiva. Pontue-se ainda que Goldberg (op.cit.) inclui

na pragmática certas particularidades de estrutura informacional, como tópico e foco, e aspectos

estilísticos, como o registro.

A partir do Princípio da não-sinonímia, adota-se, nesta pesquisa, a posição já expressa

em Marques e Moraes Pinto (2016) de que as diferentes construções adverbiais da língua, por

mais que apresentem similaridade semântica, diferenciam-se por desempenhar diferentes

funções pragmático-discursivas. Então, a construção com adjetivo adverbial atingiria

propósitos comunicativos específicos, não alcançados pelas construções com advérbio em –

mente ou com locução adverbial de mesma base lexical. Entre “agir rápido”, “agir rapidamente”

e “agir com rapidez”, por exemplo, haveria fatores que os diferenciariam, como, por exemplo,

a noção de (inter)subjetividade proposta por Traugott e Dasher (2002).

2.1.4. Informatividade

Também relacionada ao Princípio da iconicidade está a noção de informatividade, que

diz respeito ao conteúdo informacional que os interlocutores compartilham ou supõem

compartilhar no momento da interação verbal (Furtado da Cunha, Costa e Cezario, 2015). Este

conceito se relaciona à estruturação do pensamento e, portanto, encontra paralelo no nível do

discurso, em que o pensamento é formalizado linguisticamente e efetivado contextualmente.

Assim, Lambrecht (1994) utiliza o conceito de estrutura informacional, descrita como o

componente da gramática responsável pela transmissão de proposições no nível sentencial, por

meio de estruturas léxico-gramaticais que são usadas e interpretadas pelos interlocutores como

unidades de informação em dados contextos discursivos. Entende-se, assim, que a estrutura

informacional é concernente não ao conteúdo lexical e proposicional em sentido abstrato, mas

à maneira como esse conteúdo é concretamente transmitido.

Nesta pesquisa, utiliza-se a noção de “foco” (Lambrecht, op.cit.), uma categoria de

análise da estrutura informacional compreendida como um componente semântico de uma

proposição pragmaticamente estruturada por meio do qual se distingue pressuposição de

asserção. A categoria “foco”, portanto, é de natureza semântico-pragmática, representa no

enunciado a informação em destaque ou imprevista ou pragmaticamente não recuperável e

reflete-se sintaticamente no discurso.

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Com respeito à construção em análise neste trabalho, identificam-se sentenças em que

o foco recai exclusivamente sobre o construto de [V AA] (isto é, em que há apenas uma

informação em realce, a qual é representada na estrutura sintática pelo construto) e sentenças

em que o foco recai de modo compartilhado tanto sobre o construto quanto sobre outro(s)

elementos (isto é, em que há mais de uma informação em destaque). No exemplo (5), a cláusula

“chorava-se alto” apresenta foco exclusivo sobre o construto de [V AA], dado que este traz uma

informação nova e compõe os únicos elementos da cláusula. Já no exemplo (6), a cláusula “a

moça chorava tão alto” é correlata à seguinte e o foco recai tanto sobre a sequência V AA quanto

sobre a oração seguinte, visto que representam uma semântica de causa e consequência.

(5) “A mãe de Lena [...] ainda agonizava (Leria tinha, então, 12 anos, usava meias

curtas). Um criado viera buscar a menina, levara-a pela mão até o acarto. Lá estava todo mundo,

inclusive Castro e D. Clara. Chorava-se alto, se bem que houvesse uma recomendação: ‘Não

chorem, que ela pode perceber’.” (19:Fic:Br:Rodriguez:Destino)

(6) “Arrumei os meus troços e de noite disse à moça que aquela era a última noite. Ela

chorou de cortar o coração. Me abri com ela. A minha ação com o velho não era de homem. Eu

comia os pirões dele e ainda por cima fazia aquela desgraça. A moça chorava tão alto que eu

tive até medo que acordasse o povo da casa. Podia acordar o velho.” (19:Fic:Br:Rego:Pedra)

2.1.5. Esquematicidade

Para compreensão da rede construcional, destacam-se os conceitos de esquematicidade,

produtividade e composicionalidade. Segundo Rosário e Oliveira (2016), cada conceito

concerne a um aspecto diferente da configuração das construções e da rede construcional: a

esquematicidade está relacionada ao “escopo construcional” (o grau de generalidade das

construções); a produtividade à “vitalidade construcional” (a frequência com que novas

instâncias de uso podem ser geradas por um esquema); e a composicionalidade ao “alinhamento

construcional” (o grau de previsibilidade das propriedades de um esquema a partir da soma de

seus componentes). Embora cruciais para as teorias construcionistas, tais conceitos não são

compreendidos de forma unânime. Por isso, são explanados um pouco mais neste trabalho,

conforme a definição que aqui se adota – a saber, a de Traugott e Trousdale (2013).

Segundo tais autores, a esquematicidade é uma propriedade de categorização que

envolve, sobremaneira, a capacidade de abstração. Em relação à língua, a esquematicidade é

concernente à captura de padrões mais gerais a partir de um grupo de construções. Dessa forma,

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compõem-se esquemas linguísticos, que são generalizações de construções que apresentam

similaridades semânticas de caráter procedural ou lexical. A partir dessa noção, observa-se uma

hierarquia taxonômica na rede construcional, em que se verificam padrões mais esquemáticos

(isto é, mais abstratos, mais gerais e com suas posições estruturais – os slots – menos

preenchidos) e menos esquemáticos (isto é, mais substantivos, mais específicos e com seus slots

mais preenchidos). Dessa forma, pode-se entender a propriedade da esquematicidade em termos

de níveis de generalidade e especificidade – como já apontava Langacker (2005). Nesta escala,

os esquemas são os padrões mais gerais, que agrupam subesquemas. Estes, por sua vez,

agrupam microconstruções, as quais são mais específicas e instanciam construtos, que são a

realização empírica da microconstrução em uma determinada ocasião, enunciada (ou escrita)

por um determinado falante (ou redator) com um propósito comunicativo específico. Cabe

ainda ressaltar que os esquemas da língua podem ser desenvolvidos ou perdidos ao longo do

tempo, considerando a natureza emergente da gramática.

Assim sendo, hipotetizando sobre a rede da construção com adjetivo adverbial, todos os

construtos até então apresentados nos exemplos de (1) a (6) acima estariam diretamente

relacionados a microconstruções do subesquema [V AA], o qual estaria relacionado junto a

outros subesquemas adverbiais ao esquema mais abstrato [Verbo Adverbial].

2.1.6. Produtividade

O segundo fator abordado por Traugott e Trosdaule (2013) é a produtividade,

compreendida como um parâmetro de análise que corresponde ao fenômeno linguístico de

geração de instanciações de uso por um esquema construcional. Os autores assumem o fator

como gradiente, pertinente ao nível dos esquemas e relacionado à sua extensibilidade, a qual

diz respeito tanto à ampliação quanto à restrição dos (sub)esquemas de uma construção. Dessa

forma, a produtividade refere-se ao grau em que esquemas licenciam construções menos

esquemáticas e ao grau em que esses esquemas são restringidos.

Muitos estudos sobre produtividade relacionam o conceito à frequência de uso.

Considera-se que fatores como aumento de frequência de uso e aumento de escopo colocacional

(também nomeado como expansão da classe hospedeira, por Himmelmann, 2004) podem

indicar aumento da produtividade de uma determinada construção. Bybee (2003, 2010) postula

a diferença entre frequência type (de tipo), que corresponde ao número de vezes que um mesmo

padrão ocorre sob expressões diferentes, e frequência token (de ocorrência), que corresponde

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ao número de vezes que determinada instância ocorre. Traugott e Trousdaule (2013) associam

tais conceitos à frequência da construção e frequência do construto, respectivamente.

2.1.7. Composicionalidade

O último fator construcional descrito por Traugott e Trousdale (2013) é a

composicionalidade, que diz respeito ao grau de transparência entre forma e sentido. Este

conceito refere-se tradicionalmente à combinação de elementos para compor uma estrutura

maior, seja no âmbito semântico (em que se combinam informações dentro de uma proposição),

seja no âmbito sintático (em que se combinam sintagmas dentro de uma oração). Assim, a

composicionalidade semântica refere-se ao fato de as estruturas serem compreendidas a partir

da soma de seus elementos ou entendidas como um bloco de informação que se especifica na

língua em graus de idiomaticidade. Já a composicionalidade sintática está relacionada ao fato

de os elementos da oração manterem ou não suas propriedades gramaticais ou sofrerem

restrições, ocorrendo de forma mais específica e restrita.

Traugott e Trousdale (op.cit.) seguem a tradição, mas preferem definir a

composicionalidade em termos de compatibilidade e incompatibilidade (match e mismatch)

entre forma e significado. Assim, por exemplo, um construto menos composicional é aquele

em que ocorre um mismatch entre a forma e o significado final.

Nesta pesquisa, este fator é importante porque pode indicar a existência de nós diferentes

na rede da construção com adjetivo adverbial, já que muitos estudos comprovam a tendência

de que mudança linguística implica em perda de composicionalidade. Observe o par de

exemplos abaixo:

(7.a) “O sol está quente. Na rua larga e suja, grupos de homens. As mulheres estão só

de calcinhas, sentadas nas janelas e nas escadas dos casarões se despencando. Na porta onde

Fumaça se encostou, as mulheres falam alto, riem, contam piadas. Uma delas inquieta-se com

a presença do garoto.” (19:Fic:Br:Louzeiro:Pixote)

(7.b) “Em seu discurso de chegada, no quadro da doutrina social da Igreja, ressaltou

com todas as letras as enormes e vergonhosas diferenças sociais que imperam no Brasil. Neste

momento, não cabe resposta do governo, não adianta mostrar o que Fernando Henrique está

fazendo. Os números da miséria brasileira falam mais alto. É melhor cultivar o silêncio ante

as denúncias, que têm muito mais a ver com a História, mas batem na consciência do presente.”

(19N:Br:Cur)

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Formalmente, os dois construtos são muito semelhantes, porque apresentam um mesmo

item verbal (“falam”), com igual flexão de pessoa, número, tempo e modo, seguido de um

mesmo item adjetival (“alto”); diferenciam-se apenas pela inclusão do elemento interveniente

“mais” no segundo exemplo. Contudo, cada construto expressa um significado diferente: no

primeiro, tem-se uma ação literal de falar, emitir enunciados em alto volume, enquanto no

segundo, tem-se uma atividade verbal tomada em sentido metafórico de “chamar atenção”,

“exercer influência”, “sobressair-se em uma comparação”. Nota-se, então, que o segundo

construto é semanticamente menos composicional que o primeiro, já que a soma dos

significados de seus elementos não permitiria a um falante entender seu sentido não literal.

Por fim, cabe pontuar que os fatores esquematicidade, produtividade e

composicionalidade podem relacionar-se durante a análise. Lambrecht (1994), por exemplo,

observa que a produtividade de uma construção parcialmente esquemática pode revelar

aspectos de sua composicionalidade semântica e estabelece uma generalização: “como regra

geral, quanto menos substituições a construção permitir em suas posições estruturais, tanto mais

serão percebidas como idiomáticas”3.

3 “As a general rule, the fewer substitutions a construction permits within the structural positions it provides, the

more it is perceived as idiomatic” (Lambrecht, 1994, p.34)

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3. Revisão da Literatura

A estrutura linguística tradicionalmente nomeada como “adjetivo adverbializado” já

despertou interesse de pesquisadores de diferentes correntes linguísticas, que propuseram

compreensões variadas sobre a sua natureza. Nesta seção, apresentam-se três investigações já

realizadas sobre este objeto de estudo, que aqui se perfilam por seus alinhamentos teóricos e

por suas principais contribuições. A primeira pesquisa, desenvolvida por Martin Hummel

(2002, 2003, 2013a e 2013b), tem relevância amplamente reconhecida e fundamenta trabalhos

de diferentes autores. O linguista observa as raízes históricas da estrutura e sua disposição frente

a fatores discursivo-textuais4 e extralinguísticos na sincronia do século XX em diversas línguas

românicas, incluindo a variedade brasileira do português.

As outras duas pesquisas são mais recentes e trazem novos questionamentos. Seguindo

uma orientação funcionalista, Mariana Barbosa (2006) defende que os adjetivos

adverbializados sejam resultado de gramaticalização e investiga propriedades formais e

semânticas da estrutura, bem como averigua as hipóteses de Hummel sobre os contextos de uso.

Em fundamentação cognitivista, Victor Virginio (2016) estuda as restrições de produtividade

das CCAAs, construções circunstanciais com adjetivo adverbializado (assim nomeadas por

ele), e insere no debate acadêmico mais um fator de análise, o foco informacional.

3.1. Análise de Hummel: fatores discursivo-textuais e extralinguísticos na diacronia e sincronia

do Romance

Martin Hummel apresenta uma vasta produção científica sobre o tradicionalmente

nomeado “adjetivo adverbializado”. O autor identifica que essa estrutura modifica o escopo de

um verbo e está inserida na classe dos atributos, na qual figuram os adjetivos e os advérbios de

modo. Hummel (2013b) esclarece que os atributos, em sua definição, são palavras que

expressam função de atribuir a outra unidade linguística traços semânticos de seu significado,

função esta que pode ser nomeada como atribuição, como prefere o autor, ou como

modificação. Dessa forma, de acordo com Hummel (2003), ainda que apresentem outros

comportamentos, os adjetivos são tipicamente atributos de um substantivo e os advérbios de

modo, atributos de um verbo.

4 Neste trabalho, propõe-se o termo “discursivo-textual” para designar os fatores que Hummel apresenta com

relação ao contexto de uso, que são muito diferentes entre si. Com esta nomenclatura, abarca-se tanto a noção de

discurso (tal como definida pelo Funcionalismo) quanto a de texto (sob a ótica da Linguística Textual).

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Inicialmente, Hummel (2002; 2003) considerava o adjetivo adverbializado um tipo de

advérbio formado por conversão de adjetivo em advérbio de modo. O advérbio que seria

resultante dessa conversão mantém sua forma original, mas se torna invariável e assume função

de modificar verbos. Segundo o autor, “adjetivo adverbializado” não é a melhor nomenclatura

possível para esse elemento, porque expressa que adjetivos passam a ser ocasionalmente

advérbios, enquanto se verifica diacronicamente que esse processo de conversão ocorre desde

o latim. Então, Hummel (2002) pondera que o elemento seria melhor descrito como “advérbio”,

ainda que o termo tradicional seja aceitável em perspectiva sincrônica, já que o processo de

conversão se mantém produtivo no português atual.

Pautando-se, então, em uma análise diacrônica, Hummel (2013a; 2013b) apresenta uma

compreensão mais elaborada sobre a classe dos atributos nas línguas românicas. O primeiro

passo do autor para a nova compreensão foi a identificação de que a conversão era o processo

mais geral das línguas indo-europeias e também o mais antigo no latim, seguida da postulação

de que o latim clássico e o latim vulgar diferiam largamente quanto ao uso de advérbios. Este

apresentaria apenas advérbios formados por conversão, enquanto aquele preferiria advérbios

formados por sufixação, embora também apresentasse, em menor quantidade e frequência,

adjetivos convertidos em advérbio. Na formação das línguas românicas, tal diferenciação teria

se perpetuado: a tradição oral das línguas teria mantido com mais força a conversão como

processo de formação de advérbio, e a tradição escrita, por sofrer maior pressão da

normatividade, teria fixado o uso de advérbios terminados em –ment(e) e os privilegiado frente

aos casos de conversão.

Por consequência, o segundo passo de Hummel foi observar que a linguagem falada no

português do século XX categoriza a classe dos atributos de forma diferente da linguagem

escrita, sendo necessário postular dois sistemas linguísticos. Há, então, um sistema bicategorial,

essencialmente escrito, em que os atributos se diferem entre adjetivos e advérbios de modo,

sendo estes exclusivamente os formados por acréscimo de –mente; e um sistema

monocategorial, essencialmente falado, em que a classe dos atributos não se subdivide, havendo

apenas uma forma, que pode assumir função adjetival ou adverbial. Conclui-se que o advérbio

em –mente pertence à tradição escrita e figura no sistema bicategorial, enquanto o “adjetivo

adverbializado” pertence à tradição oral e figura no sistema monocategorial.

Dessa forma, o papel do “adjetivo adverbializado” nas línguas românicas está

condicionado, conforme postulado por Hummel (2013a; 2013b), à atuação da escolarização e

da normatividade, que o marginalizam como a forma adverbial não prestigiada e o restringem

à modalidade oral e, por consequência, ao sistema monocategorial. Não havendo advérbios

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morfologicamente distintos de adjetivos nesse sistema, tais “adjetivos adverbializados”

constituem, em melhor análise, atributos em função adverbial.

Embora os “adjetivos adverbializados” estejam atrelados à tradição oral, Hummel

(2002; 2003) reconhece que no português brasileiro seu uso não está restrito à fala, sendo

bastante frequente também na escrita. Assim, a modalidade continua influenciando o uso da

estrutura, mas os fatores distintivos entre os atributos em função adverbial e os advérbios em –

mente no Brasil seriam, por hipótese, o nível de formalidade e a elaboração do discurso; aqueles

ocorreriam sobretudo em textos informais e mais coloquiais, enquanto estes ocorreriam

majoritariamente em textos formais, elaborados e cultos.

Ademais, Hummel também se dedicou a observar propriedades formais específicas do

“adjetivo adverbializado”. Tais considerações encontram-se principalmente em seu artigo de

2002 já citado, no qual o autor descreve suas “condições bastante restritivas” (p. 55), dentre

elas: sua posição sintagmática fixa logo após o verbo, podendo ocorrer entre verbo e “adjetivo

adverbializado” apenas um advérbio de intensidade; e sua tendência para metaforização e

fixação sintagmática. O autor salienta que essas condições são válidas para a maioria das

ocorrências e julga ser possível que haja algumas exceções no português brasileiro, devido ao

alto uso da estrutura na linguagem falada coloquial, o que a faz o esquema dominante.

Das condições observadas, apenas a última recebe maior atenção no desenvolvimento

da pesquisa de Hummel. No artigo supracitado, o autor identifica duas tendências sintagmáticas

de uso do “adjetivo adverbializado”: combinações fixas e esquemas mais livres. No artigo do

ano seguinte, já é apresentada uma classificação mais ampla da produtividade desse tipo de

advérbio. Distinguem-se, então, quatro grupos de adjetivo adverbializado, assim nomeados: (i)

sintagmas lexicalizados, em que figuram expressões cujo significado é ligado à totalidade do

sintagma, como “passar batido” e “dormir picado”; (ii) série de advérbios em oposição

paradigmática ligados a um verbo determinado, em que se encontram sequências de um

determinado verbo com diferentes advérbios, como “jogar aberto/duro/pesado/sujo” e “falar

claro/gozado/errado/grave/suave/ esquisito”; (iii) advérbios usuais empregados com qualquer

verbo, como “engordar fácil” e “comparecer urgente”; e (iv) adverbialização produtiva de

adjetivos, grupo que contém casos de conversão mais recente, como “pensar negativo” e “comer

escondido”, podendo, por isso, ser descritos como casos de adverbialização.

Essa análise desenvolvida nos dois artigos é especialmente interessante para a presente

pesquisa, pois se relaciona diretamente aos conceitos de produtividade, esquematicidade e

composicionalidade. A partir da perspectiva deste trabalho, reconhece-se na classificação de

Hummel (2003) a identificação de construtos menos composicionais (elencados como

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“sintagmas lexicalizados”), de verbos altamente produtivos e da extensão da produtividade da

construção em sincronias mais recentes, licenciando maior número de adjetivos. Contudo,

observa-se que tal análise necessita de aprimoramento, porque, como o autor admite, não há

uma delimitação rígida entre os grupos elencados, podendo uma mesma combinação figurar em

mais de um grupo. Além disso, embora seja descrita como relacionada à produtividade, a

classificação apreende, mais especificamente, os diferentes graus de esquematicidade dos

construtos, que podem ser mais substantivos (com o verbo e o item adjetival delimitados) ou

mais abstratos (com maior liberdade de licenciamento).

Outro ponto muito significativo que a análise sobre a produtividade de Hummel (2002;

2003) levanta é o reconhecimento de uma forte integração sintagmática entre algumas

combinações de verbo e “adjetivo adverbializado”, as quais são apreendidas pelo falante como

expressões da língua, como sequências lexicalizadas. Ao identificar essa tendência para

lexicalização, o autor denota que uma característica significativa do “adjetivo adverbializado”

é a sua alta frequência em expressões especializadas e metafóricas, fato que seria proveniente

do uso frequente do elemento adverbial na linguagem cotidiana. Essa constatação é relevante

ao presente trabalho na medida em que indica o grau de composicionalidade e a expressividade

de uso de muitos construtos. Mais além, a verificação de várias expressões lexicalizadas,

embora não seja o centro da atenção de Hummel, demonstra que há uma tendência de uso de

verbos específicos ao lado de “adjetivos adverbializados” específicos, apreendidos como um

único elemento, como um “bloco”.

3.2. Análise de Barbosa: propriedades formais e semânticas sob a perspectiva da

gramaticalização

Adotando os pressupostos teóricos do Funcionalismo, de modo particular a fluidez

categorial, Barbosa (2006) considera que os adjetivos adverbializados são resultado de um

processo de mudança gradual em que certos adjetivos, motivados por contextos de ambiguidade

ou oscilação categorial, passaram a se comportar sintática e semanticamente como advérbios.

Este processo que segue percurso unidirecional de classes mais lexicais (como o adjetivo) para

classes mais gramaticais (como o advérbio) denomina-se gramaticalização. Em sua dissertação,

a linguista objetiva comprovar o processo de gramaticalização e analisar os usos do adjetivo

adverbializado, observando fatores que propiciam suas ocorrências.

Resumidamente, verificam-se três argumentos que comprovam a gramaticalização. Em

primeiro lugar, Barbosa (op.cit.) constata, através de uma vasta revisão da literatura, que os

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adjetivos adverbializados não são uma estrutura particular do português brasileiro, mas sim

elementos que ocorrem em diversas línguas advindas do indo-europeu, inclusive já presentes

no latim clássico; assim, a autora observa que o processo de gramaticalização é bastante antigo

e recorrente entre as línguas. Em seguida, ratifica a unidirecionalidade do processo, examinando

casos complexos, em que o adjetivo adverbializado teria sido formado a partir de substantivos

ou verbos no particípio; em todos os casos analisados, o termo teria advindo de uma classe mais

lexical, passando pela classe dos adjetivos e se constituindo como um advérbio. Por fim,

demonstra como os adjetivos gramaticalizados em advérbios apresentam extensão de uso,

ocorrendo em textos escritos e/ou mais formais, como editoriais de jornal e romances literários5;

esses usos seriam possíveis devido à alta frequência do adjetivo adverbializado no português

brasileiro e expressariam a continuidade do processo de mudança, fazendo com que a estrutura

atinja novas funções e novos comportamentos sintáticos.

Para além do estudo sobre a mudança linguística, a autora investiga as propriedades do

adjetivo adverbializado com base em um grupo de fatores elencados. Destacam-se para esta

revisão três fatores, que representam pontos tradicionais de análise desse elemento adverbial,

mas que receberam nova investida e demonstraram-se bastante profícuos.

Primeiramente, focaliza-se a posição do adjetivo em relação ao verbo. A pesquisa de

Barbosa (2006) evidencia que em mais de 80% das ocorrências o adjetivo assume posição

imediatamente após o verbo. O percentual restante diz respeito a poucas ocorrências em que

consta um elemento interveniente entre o adjetivo e o verbo e a uma única ocorrência em que

constam dois elementos intervenientes. Na maioria das vezes, tais elementos intervenientes são

de curta extensão e apresentam-se, por natureza, como um marcador discursivo (como “assim”,

por exemplo), um complemento de verbo leve (como “amizade” na expressão “faço amizade”,

por exemplo) ou um pronome indefinido (os pronomes “tudo” e “nada”). Barbosa (2006)

verifica a ocorrência ainda de elementos intensificadores do adjetivo (como em “então ele ilude

mais rápido”6, por exemplo), mas considera que essas estruturas compõem com o adjetivo um

só sintagma; ocorrências com esses elementos foram computadas no grupo dos adjetivos em

posição imediatamente após o verbo. Dessa forma, a autora apura que o adjetivo adverbializado

se configura fortemente atrelado ao verbo, fixando-se logo após o verbo ou apresentando

elementos intervenientes de pouca expressividade.

5 Note-se que Barbosa assume a hipótese de Hummel (2002) de que o adjetivo adverbializado no português

brasileiro seria mais frequente em linguagem coloquial, informal e menos escolarizada. 6 Exemplo retirado de Barbosa (2006, p. 82).

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Em segundo lugar, dedica-se atenção aos itens adjetivais que passam pelo processo de

gramaticalização e aos verbos que os acompanham nas ocorrências coletadas. Ao todo, foram

identificados 21 adjetivos e 60 verbos diferentes. Em geral, adjetivos e verbos tendem a se

combinar de modo repetitivo e específico. Assim, muitos adjetivos combinam-se

repetitivamente com um mesmo verbo, como os itens “certo” (o mais frequente entre os

adjetivos adverbializados) e “alto”, por exemplo, que se combinam, respectivamente, com o

verbo “dar” em 25 de suas 28 ocorrências e com o verbo “falar” em 9 de suas 12 ocorrências.

Da mesma forma, a maioria dos verbos também se combina com um mesmo adjetivo, como os

itens “dar”, com todas as ocorrências associadas ao adjetivo “certo”; “falar”, com 9 das 13

ocorrências associadas ao adjetivo “alto”; e “ir”, com 9 das 10 ocorrências associadas ao

adjetivo “direto”.

Observando esses resultados, Barbosa (2006) identifica que os adjetivos adverbializados

tendem a formar expressões idiomáticas (de maior ou menor grau) com os verbos aos quais se

combinam ou padrões sintáticos de combinação. Para aprofundar sua conclusão, recorre a

conceitos da Gramática de Construções e assume que algumas dessas combinações “podem ser

tratadas como uma construção gramatical, sejam elas mais livres ou com níveis mais altos de

cristalização” (p. 90). De forma sucinta, exemplifica que as construções formadas podem ser

expressões substantivas (mais lexicalmente preenchidas), como “jogar sujo” e “dar certo”; ou

expressões formais (com uma lacuna menos preenchida, compondo padrões sintáticos

dedicados a propósitos semântico-pragmáticos), como “X direto”, em que o adjetivo se combina

com diferentes verbos, ou “falar X”, em que o verbo se combina com diferentes adjetivos.

Em terceira posição, enfoca-se a atuação de fatores extralinguísticos como possível

motivação para o uso de adjetivos adverbializados. São analisados, então, o grau de

escolaridade dos falantes e o nível de formalidade dos contextos comunicativos. Contudo,

ambos os fatores não apresentam resultados decisivos. Aparentemente, a ocorrência dos

adjetivos é maior entre falantes menos escolarizados e em contextos informais, porém os dados

ora não confirmam a hipótese, ora são pouco relevantes numericamente.

Por fim, pontuam-se ainda outros resultados de Barbosa (2006). A partir da observação

de outros fatores de análise, a autora constata que alguns adjetivos podem apresentar uso

intensificador, como o adjetivo “legal”, por exemplo, que apresenta duas semânticas: a

qualitativa (como em “então eu acho que ela fez legal...”) 7 e a intensificadora (como em “gosto

7 Os exemplos deste parágrafo foram retirados de Barbosa (2006, p. 59)

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deles legal...”); e que a maioria dos verbos que se combinam com os adjetivos são do tipo

material, embora estes possam se associar a verbos de qualquer tipo verbal.

Nota-se, portanto, que Mariana Barbosa realiza longo estudo sobre os adjetivos

adverbializados, cujas contribuições apoiam muitíssimo as hipóteses levantadas no próximo

capítulo. Apesar da importância de seu trabalho, é forçoso reconhecer que o funcionalismo de

vertente norte-americana se encontra em outra fase de desenvolvimento na contemporaneidade,

apresentando concepções mais avançadas sobre a gramaticalização e sobre as construções. Cabe

destacar que nesta pesquisa espera-se comprovar, por exemplo, que toda e qualquer ocorrência

de verbo + adjetivo adverbial pode ser compreendida como uma construção, e não apenas os

casos de maior integração entre verbo ou adjetivo ou de idiomatização, como expressa Barbosa.

A seguir, apresenta-se um estudo com embasamento na Gramática de Construções que

concebe plenamente os adjetivos adverbiais como parte de uma construção qualitativa do

português brasileiro, contrastando com a perspectiva teórica de Mariana Barbosa.

3.3. Análise de Virginio: a estrutura informacional em instanciações da construção com adjetivo

adverbializado

Em proximidade à pesquisa de Barbosa (2006), encontra-se a monografia de conclusão

de curso de Victor Virginio (2016), que se insere na tradição linguística de vertente funcional-

cognitiva. Este estudo, assim, privilegia uma gramática baseada no uso, em que a frequência de

uma estrutura linguística em uso real interfere e influencia em sua produtividade. No entanto,

cabe ressaltar que o referencial teórico de Virginio (2016) advém, em maior peso, da Linguística

Cognitiva, com especial atenção à abordagem da Gramática de Construções – o que diferencia

seu estudo da pesquisa de Barbosa (2006), por acrescentar fundamentação cognitivista e lidar

com conceitos que a pesquisadora apenas tangencia, como a noção de construção.

Este conceito, aliás, é central para a teoria que Virginio (2016) segue, a Gramática de

Construções Baseada no Uso (GCBU). Entende-se por construções gramaticais as unidades

fundamentais da língua, de caráter simbólico, que constituem pareamentos convencionais de

forma e sentido; tais construções articulam-se mutuamente em uma rede interconectada de

construções, compondo o conhecimento linguístico de um falante. Dessa forma, Virginio

(2016) identifica que o adjetivo adverbializado constitui com o verbo ao qual se combina uma

unidade de significado, uma construção.

O interesse do autor por essa construção em particular sucede do questionamento

essencial de sua pesquisa, que diz respeito à (semi)produtividade construcional: “por que certas

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combinações entre construções são possíveis, ao passo que outras combinações são

bloqueadas?” (2016, p.11). Virginio considera que o estudo dos adjetivos adverbializados pode

contribuir para o esclarecimento de respostas relativas à inquietação acima. Conforme o autor

justifica, a compreensão de por que certas combinações de verbo e adjetivo não parecerem bem

formuladas oferece subsídios para aprimorar o entendimento da produtividade das construções.

Para o desenvolvimento da reflexão proposta, o autor considera que se faz necessário

atentar para o conhecimento linguístico de que os falantes dispõem, a partir do qual observam

se uma instanciação formulada é compatível com as propriedades da construção, tendendo a

rejeitar combinações com elementos menos frequentemente requisitados para a construção ou

com elementos mais frequentemente licenciados para outra construção funcionalmente

equivalente. Desse modo, Virginio (2016) seleciona dois fatores para análise da construção com

adjetivo adverbializado: a estrutura informacional e o impacto da frequência de uso na

representação mental da construção. Para tanto, realiza coleta em corpora online de

instanciações de uso da construção estudada, verifica a frequência de ocorrência dos adjetivos

adverbializados, estabelece uma lista de adjetivos mais frequentes e outra de adjetivos menos

frequentes e, por fim, realiza testes psicolinguísticos de aceitabilidade, em que os informantes

são expostos a sentenças com diferentes estruturas informacionais (foco exclusivo ou

compartilhado) e construções com adjetivos das duas listas (mais frequentes ou menos

frequentes).

Como resultado preliminar, o autor identifica que os adjetivos adverbializados podem

figurar em duas construções diferentes: a Construção Circunstancial de Adjetivo

Adverbializado (CCAA) e a Construção Modalizadora de Adjetivo Adverbializado (CMAA).

As duas construções apresentam forma semelhante, mas semântica diferenciada em razão da

natureza circunstancial ou modalizadora do adjetivo. Ademais, distinguem-se também pela

produtividade, já que a segunda apresenta menores frequências type e token em comparação à

primeira, combinando-se com menor variedade de verbos e tendo menor recorrência. Assim,

em sua monografia, apenas a CCAA é estudada e incluída nos testes de aceitabilidade, porque

a outra construção não favoreceria o estudo da (semi)produtividade.

O primeiro resultado que se observa com os testes é a comprovação de que construções

que recebem foco exclusivo na sentença são mais bem aceitas pelos falantes do que construções

com foco compartilhado com outro elemento da sentença. Desse modo, comprova-se a

importância do fator “foco informacional” para a produtividade da construção.

Em seguida, verifica-se que as instanciações com combinações mais frequentes são

significativamente mais bem avaliadas pelos falantes. Em comparação às instanciações com

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adjetivos menos frequentes, os exemplos com adjetivos mais frequentes receberam maior grau

de aceitação – tanto em relação às sentenças com foco exclusivo quanto em relação às com foco

compartilhado. Dessa forma, confirma-se que a frequência de uso da instanciação interfere na

aceitabilidade das sentenças.

Com esses dois resultados, Virginio (2016) comprova a atuação do conhecimento

linguístico, seja em relação aos traços da construção seja em relação às implicações de uso mais

ou menos constante, sobre a (semi)produtividade da CCAA – resultado que se pode generalizar

para qualquer construção. O resultado referente ao foco informacional, contudo, precisa ser

melhor avaliado com relação às instanciações com adjetivos mais frequentes. Numericamente,

as avaliações do teste de aceitabilidade parecem indicar que a estrutura informacional não é um

fator determinante para a lista dos adjetivos mais frequentes, porém o tratamento estatístico não

valida essa interpretação. Virginio (2016), então, julga ser possível afirmar que a variação da

aceitabilidade não é significativa quando se trata de adjetivos adverbializados de alta

frequência, isto é, que as instanciações com adjetivos mais frequentes manteriam o mesmo grau

de avaliação alto independentemente da estrutura informacional em que estejam inseridas,

entretanto ressalva que essa conclusão não é categórica e carece de maior testagem. Em última

análise, isto significaria postular que o “foco informacional” atua como fator determinante

apenas para instanciações com adjetivos menos frequentes.

No entanto, a imprecisão do último ponto de análise não é considerada aqui suficiente

para invalidar os resultados obtidos por Victor Virginio. Pondera-se, antes, que seus resultados

são muito significativos e que podem ser corroborados em análise de corpora. Por outro lado,

considera-se que a estrutura informacional não deve ser encarada como o único fator de

restrição para a construção com adjetivo adverbializado, porque são muito elevados os graus de

aceitação das instanciações com adjetivos mais frequentes com foco compartilhado. Faz-se

necessário, portanto, investigar mais fatores de análise – conclusão esta que o próprio autor

reconhece.

Por fim, demarca-se que a corrente linguística seguida por Virginio (2016), embora

próxima à adotada nesta monografia e com ela concordante em vários aspectos, apresenta uma

perspectiva mais cognitivista da língua, enquanto se adota aqui uma postura funcionalista, em

maior medida. Essa diferença repercute na metodologia da pesquisa, que privilegia em maior

ou menor escala o trabalho de coleta e análise de corpora.

A seguir, no próximo capítulo, apresentam-se os fatores elencados para esta pesquisa,

pontuando como os textos revisados contribuem para a construção de algumas hipóteses. São

expostos também a metodologia e os objetivos deste estudo.

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4. Objetivos, hipóteses e metodologia

4.1. Objetivos e hipóteses

O objetivo geral deste trabalho é mapear a rede da construção com adjetivo adverbial

no português brasileiro do século XX. Mais do que à elaboração de uma representação, o

mapeamento corresponde à descrição – que resulta da análise de construtos de tal construção –

das propriedades formais e discursivo-funcionais a ela relacionadas e pertencentes, bem como

dos links estabelecidos entre subesquemas deste nó e entre outros nós na rede.

Para alcançar este objetivo, faz-se necessário analisar os fatores de caráter estrutural e

discursivo-pragmático relacionados à construção [V AA], os quais possibilitam identificar suas

propriedades prototípicas e distinguir suas microconstruções. Desse modo, os objetivos

específicos, apresentados a seguir, delineiam-se em relação aos fatores de investigação

elencados para a pesquisa: (i) observar a ordenação dos elementos que compõem a construção,

a fim de constatar o padrão de ordenação prototípico; (ii) verificar a possibilidade de presença

de elementos intervenientes e identificar a sua natureza morfossintática, avaliando o grau de

integração entre os elementos da construção; (iii) identificar os itens adjetivais e verbais que

são licenciados pela construção e analisar o papel de suas frequências na expansão da

produtividade da construção; (iv) investigar os tipos semânticos de verbos que são licenciados

pela construção; (v) investigar igualmente os tipos semânticos de adjetivos licenciados pela

construção; (vi) analisar a estrutura argumental dos verbos componentes dos construtos; (vii)

averiguar a estrutura informacional das cláusulas em que os construtos ocorrem, observando

sobre qual(quais) elemento(s) recai o foco; (viii) e examinar a frequência dos construtos em

textos de modalidade oral e escrita e de diferentes gêneros textuais/domínios discursivos.

Para cada um dos objetivos específicos, postulam-se hipóteses quanto aos resultados

esperados. Primeiramente, hipotetiza-se que a ordem mais frequente – e, por conseguinte, a

prototípica – seja aquela em que o adjetivo aparece posposto ao verbo, isto é, a ordem verbo +

adjetivo adverbial. Esta, em verdade, é considerada em toda a literatura revista a ordenação

canônica, quando não a única gramaticalmente possível – como pontua Hummel (2002, p. 56).

Também se considera, por hipótese, que o uso da outra ordem (adjetivo adverbial + verbo)

estaria relacionado a condicionamentos estruturais e comunicativos e apresentaria diferenças

semântico-pragmáticas.

Para o segundo objetivo, correspondente aos elementos componentes da construção,

postula-se que a maioria dos construtos não apresenta elementos intervenientes e que a minoria

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restante apresenta não mais que um elemento entre verbo e adjetivo adverbial, sendo este um

modificador graduador intensificador do adjetivo – como também aponta Hummel (2002). Esta

hipótese baseia-se no subprincípio da proximidade, concernente ao princípio da iconicidade

(Givón, 1990, 1995), por considerarmos que a forte integração entre verbo e adjetivo – que lhes

confere unidade e motiva a composição da construção como o enlace dos dois elementos –

estaria refletida na proximidade de ambos no discurso.

A terceira hipótese, por sua vez, fundamenta-se no posicionamento de Hummel (2002)

de que os adjetivos adverbiais seriam estruturas adverbiais relacionadas às situações

comunicativas da linguagem cotidiana e coloquial e de que seriam mais frequentes em registros

oral e informal do que em registros escrito e formal. Ademais, em razão da integração semântica

entre os elementos da construção, considera-se que também os itens verbais licenciados sejam

mais coloquiais e/ou informais.

Para além de sua natureza, postula-se que a alta frequência de um item – adjetival ou

verbal – possa implicar na instanciação de novos pareamentos. Os itens adjetivais mais

frequentes tenderiam a formar construtos com maior número de itens verbais do que os itens

adjetivais menos frequentes; e a mesma regra valeria para os itens verbais.

Com relação ao quarto objetivo, espera-se encontrar maior frequência de verbos

materiais, por serem aqueles que descrevem as ações e os processos humanos do cotidiano

sociocultural e que são mais comumente pareados na língua com estruturas de função adverbial

qualitativa – como previsto por Martelotta (2004) e comprovado por Barbosa (2006)8, Moraes

Pinto (2008) e Gonçalves (2018). Também é esperado que a maior parte dos itens verbais

licenciados sejam de tipo material.

Já em relação aos tipos de adjetivo, estabelece-se, por hipótese, que sejam licenciados

com maior frequência os adjetivos predicativos qualificadores polares, os quais correspondem

aos adjetivos de sentido qualitativo mais básico, uma vez que se pressupõe que a construção

tende a apresentar semântica qualitativa. Não obstante, considera-se possível que ocorram

adjetivos modalizadores ou intensificadores, como já foi identificado em Virginio (2016) e

Barbosa (2006), respectivamente. Assim como postulado para os itens verbais, espera-se um

licenciamento em maior número de itens adjetivais de tipo qualificador polar.

A sexta hipótese aventada é a de que os verbos que preenchem um dos slots da

construção em questão sejam intransitivos ou utilizados intransitivamente. Esta hipótese baseia-

8 Cabe ressaltar aqui o resultado verificado por Barbosa (2006) por ser mais relevante para esta pesquisa. A autora

verificou que aproximadamente 75% dos verbos modificados pelos adjetivos adverbializados coletados eram

materiais.

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se em trabalhos como os de Barbosa (2006) e Foltran (2010). Embora apresentem

argumentações teóricas diferentes, as autoras chegam a mesma conclusão no que concerne este

aspecto: Barbosa (op.cit.) verificou que em mais de 80% dos dados os verbos eram intransitivos

ou estavam em uso intransitivo; Foltran (op.cit.) considera que são raros os casos em que o

verbo pode apresentar argumento interno.

Quanto à análise da estrutura informacional, seguimos a hipótese levantada por Virgínio

(2016) de que a maior parte dos construtos da construção com adjetivo adverbial apresente foco

exclusivo, ou seja, que o foco recairia somente sobre a sequência verbo + adjetivo adverbial –

fato que se daria não só pela forte expressividade da construção, mas também pelo uso

intransitivo do elemento verbal nela presente.

Por último, também se recorre ao posicionamento de Hummel (2002) acerca da

frequência dos adjetivos adverbiais nos diferentes registros textuais – já expresso na terceira

hipótese – para postular que a construção [V AA] seja mais frequente em textos orais e/ou

informais do que em textos escritos e/ou formais. Entretanto, não se considera neste estudo que

a frequência no registro escrito e/ou formal seja baixa, porque, tomando como base o princípio

da não sinonímia (Goldberg, 1995), a construção com adjetivo adverbial seria a única

possibilidade disponível no sistema linguístico do falante para desempenhar um propósito

comunicativo específico, que não seria alcançado pelas demais construções adverbiais.

Com base nas hipóteses estipuladas, pode-se propor um modelo para a rede da

construção com adjetivo adverbial. Em síntese, as suposições aventadas indicam que os dados

apresentariam majoritariamente um mesmo arranjo formal (mesmo padrão de ordenação,

mesmas possibilidades de elemento interveniente, mesma transitividade, entre outros fatores) e

que os adjetivos dos construtos poderiam expressar diferentes semânticas. Tem-se, assim, uma

mesma constituição formal para diferentes sentidos, o que resultaria na existência de uma única

construção de caráter polissêmico.

4.2. Metodologia

Em consonância com a fundamentação teórico-metodológica adotada, que privilegia o

uso real da língua, a análise da construção em questão foi feita a partir da coleta de dados no

Corpus do Português, um corpus online, que comporta dois corpora: um histórico, composto

por textos de Portugal e do Brasil do século XIII ao século XX; e outro de dados da Web,

composto por textos de sites e blogs de Portugal, Brasil, Angola e Moçambique, escritos no

final do século XX e início do século XXI. Visto que a pesquisa se restringe à sincronia do

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português brasileiro do século XX, optou-se pela coleta no primeiro corpus, ainda na versão

original de 2006.

A escolha do corpus também se deveu a sua diversidade de gêneros textuais/domínios

discursivos. Ao todo, o corpus histórico (de 2006) do Corpus do Português é constituído de

mais de 45 milhões de palavras provenientes de pouco menos de 57 000 textos. Com relação

aos textos do Brasil do século XX, há um total aproximado de 10 milhões de palavras, que

constam em textos dispostos em quatro grupos: textos orais, textos ficcionais, periódicos e

textos acadêmicos.

Utilizando as ferramentas de busca do corpus online, selecionou-se a categoria dos

adjetivos e obteve-se a lista dos mil itens adjetivais mais frequentes em toda a língua. Em

seguida, descartamos de nossa análise os adjetivos flexionados no plural e/ou no gênero

feminino, assim como os pronomes em função adjetiva, restando-nos 430 adjetivos em flexão

masculina singular. Para cada um destes, foram realizados dois procedimentos preliminares: (i)

verificação das quatrocentas primeiras ocorrências listadas para cada item, com o intuito de

encontrar ao menos um construto de [V AA]; e (ii) busca por todos os dados referentes à

combinação de um verbo seguido imediatamente do item adjetival, a fim de encontrar ao menos

um dado da construção para o determinado adjetivo.

Os itens adjetivais que apresentaram ocorrências em pelo menos uma das buscas

mencionadas acima compuseram o escopo desta pesquisa e tiveram a sua lista de ocorrências

integralmente verificada. Os dados de construtos de [V AA] coletados foram submetidos, por

fim, a análise quantitativa e qualitativa, em que se observaram os fatores apresentados a seguir.

Para a análise quantitativa, foi utilizado o programa estatístico SPSS, versão 17.

(i) Ordenação dos elementos componentes da construção: foram observadas as duas

possibilidades de ordenação dos elementos dentro da construção: (a) adjetivo adverbial + verbo;

e (b) verbo + adjetivo adverbial, com o intuito de comparar a frequência de uso de cada padrão

de ordenação e identificar possível diferença de sentido entre os dois padrões.

(ii) Presença e natureza dos possíveis elementos intervenientes: foi realizada uma

investigação dos diferentes tipos de elementos que podem ocorrer em interveniência aos

elementos componentes da construção, isto é, à sequência formada por verbo e item adjetival.

(iii) Itens verbais e adjetivais licenciados pela construção: os itens verbais e adjetivais

licenciados pela construção foram elencados e quantificados em relação à sua frequência,

verificando seu papel na expansão da produtividade da construção.

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(iv) Tipos verbais: fez-se levantamento dos tipos de verbo licenciados pela construção.

Foi adotada a classificação semântica utilizada em Martelotta (2004), elaborada com base em

Scheibman (2001), classificação essa que categoriza os verbos em treze classes: verbos

corpóreos, de atividade verbal, de sentimento, de percepção, de percepção/relacional, materiais,

de cognição, de crença, existenciais, relacionais e possessivos/relacionais, modais e leves.

(v) Tipos adjetivais: fez-se igualmente levantamento dos tipos de adjetivo licenciados

pela construção. Os adjetivos encontrados na coleta de dados foram classificados

semanticamente de acordo com a proposta de Castilho (2010). O autor distingue três tipos de

adjetivos: predicativos, verificadores e dêiticos. Cada tipo é especificado em subtipos. Os

adjetivos predicativos, aqueles que se encaixam no sintagma verbal estabelecendo predicação,

compõem a classe semântica mais ramificada/complexa e se subdivide em: modalizadores, que

expressam uma avaliação pessoal do falante sobre o conteúdo da classe-escopo; qualificadores,

que interferem nas propriedades intencionais da classe, alterando-as de forma a agregar traços;

e quantificadores, que modificam a extensão da classe. Já os adjetivos verificadores

desempenham um papel descritivo de dispor o conteúdo do substantivo da classe-escopo em

diferentes perspectivas, operando como: classificadores, pátrios, gentílicos ou de cor. Por

último, os adjetivos dêiticos dispõem sua classe-escopo em uma perspectiva locativa (dêiticos

locativos) ou temporal (dêiticos temporais).

(vi) Estrutura argumental: os verbos foram classificados em: (i) verbos intransitivos ou

em uso intransitivo; e (ii) verbos transitivos ou em uso transitivo. A transitividade verbal foi

analisada de acordo com Rocha Lima (1994), que considera como argumento interno: o objeto

direto, o objeto indireto, o complemento relativo e o complemento circunstancial.

(vii) Estrutura informacional: foi considerado que os enunciados em que o foco recai

unicamente sobre a construção [V AA] são classificados como enunciados de foco exclusivo,

enquanto aqueles em que o foco recai sobre a construção e outro elemento são classificados

como enunciados de foco compartilhado. Para maior detalhamento da análise, distinguiram-se

duas incidências de foco compartilhado: a incidência na cláusula, em que há compartilhamento

de foco com outro elemento da mesma oração; e a incidência na sentença, em que há

compartilhamento de foco com uma cláusula subordinada à cláusula em que ocorre o construto

de [V AA].

(viii) Modalidade e domínio discursivo dos textos: por fim, observa-se a frequência

dos construtos nos diferentes registros textuais. Seguindo a perspectiva de Marcuschi (2009), o

fator modalidade é observado não pela dicotomia fala e escrita, mas sim através da concepção

do continuum entre oralidade e escrita, em que se encontram textos híbridos e fluidos. Os

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gêneros textuais e domínios discursivos também são observados conforme a compreensão de

Marcuschi (2009).

Tomando conhecimento das incongruências da classificação do corpus, foi estabelecida

uma nova classificação, procurando alterar o mínimo necessário a nomenclatura original. Para

analisar a modalidade, foram estipulados quatro grupos de textos: textos orais (em que se

inserem os corpora orais presentes no grupo dos “textos orais”9 e as citações de corpora orais

dentro do grupo de textos “acadêmicos”), textos híbridos 1 (em que se isolam as entrevistas

jornalísticas do grupo dos “textos orais”), textos híbridos 2 (em que se inserem os diálogos

presentes nos “textos ficcionais” e as transcrições de fala nas “notícias”) e textos escritos (em

que constam todos os textos “ficcionais” e “acadêmicos” e todas as “notícias”, com exceção

dos trechos identificados como híbridos). A criação de dois grupos de textos híbridos justifica-

se em razão da análise percentual, uma vez que os dados advêm de conjuntos diferentes de

texto.

Já com relação ao segundo fator de análise, reconheceu-se não ser possível trabalhar

com a categoria “gêneros textuais”; efetivamente, o corpus opera em sua classificação com a

noção de domínios discursivos. Por isso, para o estudo da ocorrência dos construtos nos

diferentes domínios, alterou-se a nomenclatura e agruparam-se as entrevistas jornalísticas junto

às “notícias”. Tem-se, portanto, quatro grupos de texto, referentes aos seguintes domínios:

interpessoal, ficcional, jornalístico e instrucional. O domínio interpessoal refere-se aqui aos

corpora linguísticos presentes no grupo “oral”; o ficcional aos textos no grupo “ficcional”; o

jornalístico aos textos do grupo “notícia” e às entrevistas jornalísticas; e o instrucional aos

textos do grupo “acadêmico”, a saber: enciclopédias, textos científicos e teses e dissertações.

Concluída a exposição destes dois últimos fatores (modalidade e domínio discursivo),

dá-se encerramento ao presente capítulo. Os objetivos apresentados, bem como suas respectivas

hipóteses, fundamentaram a delimitação dos fatores de análise desta pesquisa e influenciaram

na escolha da metodologia utilizada. No próximo capítulo, expõem-se os principais resultados

quantitativos e qualitativos da pesquisa, adquiridos com base na observação atenta dos fatores

estipulados, e procura-se alcançar respostas satisfatórias para os objetivos elencados.

9 Os termos entre aspas correspondem à nomenclatura original, presente no Corpus do Português.

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5. Análise de dados

O estudo aqui empreendido sobre os adjetivos adverbiais assume perspectiva

construcional, o que implica reconhecer que tais elementos têm sua natureza adverbial devido

à modificação que exercem sobre o verbo de uma cláusula e, desse modo, apresentam forte

vínculo de forma e conteúdo com os verbos que modificam. Logo, a construção em estudo não

é simplesmente o adjetivo em função adverbial, mas sim a ocorrência de um predicado

constituído por um verbo mais um adjetivo adverbial.

Neste capítulo, são apresentados os resultados que possibilitam depreender as

propriedades da construção com adjetivos adverbiais e compreender o seu padrão

construcional. Antes de partir para a análise dos fatores, porém, cabe destacar os resultados

gerais da coleta de dados. Do total de 430 adjetivos selecionados para pesquisa no corpus, como

indicado no capítulo anterior, identificou-se que 47 apresentam uso em função adverbial, isto

é, que 47 desses adjetivos figuram na construção com adjetivo adverbial. O conjunto de

ocorrências soma, ao todo, 1221 dados.

Cumpre ainda ressaltar que não foram incluídos nesta análise os dados que

apresentavam ambiguidade em relação ao papel do adjetivo (se adverbial ou não) ou que

continham construtos em processo maior ou menor de lexicalização, como “dar certo”, por

exemplo. Tais casos devem ser observados separadamente, porque podem enviesar a análise:

os casos de ambiguidade não constituem ocorrências plenas de adjetivo adverbial e os dados

mais lexicalizados formam outro nó na rede construcional.

5.1. Padrão de ordenação

De início, procurou-se observar a ordenação dos elementos principais da construção: o

item verbal e o item adjetival. Na tabela abaixo, encontram-se os resultados para cada um dos

quatro padrões de ordenação.

Padrão de ordenação

V AA AA V Vaux V AA AA Vaux V Total

1175 30 15 1 1221

96,2% 2,5% 1,2% 0,1% 100%

Tabela 1: Distribuição dos dados por padrão de ordenação

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Percebe-se nitidamente que o padrão correspondente a verbo na voz ativa e adjetivo

posposto é muito mais frequente que os demais padrões; e que os padrões que apresentam

adjetivo posposto ao verbo (V AA e Vaux V AA) são largamente mais frequentes que suas

respectivas contrapartes, que apresentam adjetivo anteposto (AA V e AA Vaux V). Dessa

forma, comprova-se a hipótese de que a posposição do adjetivo seria muito mais frequente que

a anteposição.

Além da alta frequência do padrão V AA, chama atenção também o total de ocorrências

do padrão AA V, que constitui um valor maior do que o esperado. De fato, os 30 dados

encontrados compõem um cenário relevante, pois são ocorrências com sete adjetivos diferentes:

raro (12 dados); rápido (7); alto (5); baixo (3); forte (1); certo (1); e súbito (1). Investigando

as motivações para os dados de anteposição, identificou-se que apenas uma minoria (2 dados)

não ocorreu em registro escrito. Este fato pode indicar que esse padrão está relacionado a um

discurso mais elaborado e, em verdade, parte das ocorrências compõe um uso mais marcado da

construção, em que se desloca o adjetivo para conferir ênfase ao conteúdo semântico do adjetivo

(como no exemplo (8)) ou para alocá-lo na posição de tópico da sentença (como no exemplo

(9)). No segundo caso, o conteúdo dos adjetivos é dado ou inferível no discurso e, por isso,

adequam-se bem à margem esquerda da sentença, geralmente associada com a posição de

tópico. Além disso, em outro grupo de ocorrências, a anteposição é motivada por um fator

formal (como no exemplo (10)): o construto aparece inserido em uma estrutura de orações

proporcionais, a qual tipicamente aproxima o adjetivo ou o advérbio da margem esquerda.

Tais casos apresentam clara motivação para uma ordenação menos frequente e menos

esperada. Contudo, há dois casos de ocorrências em que a ordem de anteposição do adjetivo

parece ser a prototípica. O primeiro se refere ao adjetivo raro: os 12 dados coletados

representam quase a totalidade de ocorrências de construtos com esse adjetivo (apenas 1 dado

não segue o padrão AA V). O segundo caso se refere à ocorrência com o adjetivo certo, em que

a semântica muda segundo a ordenação; como se observa no exemplo (12), o sentido de

indeterminação em “certo cerceou” não seria alcançado com a ordem “cerceou certo”, pois esta

indicaria firmeza.

Observam-se, portanto, cinco grupos de ocorrência para o padrão AA V: motivação por

ênfase (5 dados); motivação por informatividade (3); motivação por estrutura proporcional (9);

frequência prototípica (12); e incompatibilidade semântica (1). Os grupos são exemplificados,

respectivamente, a seguir:

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(8) “Guardando-as, eu poderei fazer delas como pontos determinantes da trajetória da

minha vida e do meu espírito, e outro não é o meu fito. Aqui bem alto declaro que, se a morte

me surpreender, não permitindo que as inutilize, peço a quem se servir delas que se sirva com

o máximo cuidado e discrição [...]”

(9) “As obscuras determinações das cousas, acertadamente, haviam-no erguido até ali,

e mais alto levá-lo-iam, visto que só ele, ele só e unicamente, seria capaz de fazer o país chegar

aos destinos que os antecedentes dele impunham...”

(10) “Quatro vídeos sobre os Oceanos Artico, Atlântico, Indico e Pacífico e mais outro

sobre o Espaço, estão espalhados pelo percurso e, durante as viagens, a criança deve descobrir

quais são os icones correspondentes. Quanto mais rápido se descobre estes símbolos,

mais rápido se torna um Explorador.”

(11) “Nem a cor, nem a forma, nem o aroma denunciam a semente que lhe deu origem;

tão sabido é que a tolerância absoluta raro germina na Terra. Cada um de nós pensa que da

nossa religião é que há de vir a felicidade ao mundo, porque só ela é perfeita e é verdadeira.”

(12) “não eu não cortei - ele joga futebol de salão - então eu expliquei direitinho que se

realmente for bom vocação eu - não impedirei de seguir - mas só para não dizer que a

gente certo cerceou - [ tolheu cerceou aquela - aquela ambição dele mas - - deixo praticar o

esporte tudo mais e deixo seguir a carreira”

Considera-se, por fim, que, para os três primeiros grupos, a ordem AA V é um uso mais

marcado da construção, cuja ordenação prototípica seria V AA. Os dois últimos grupos, por sua

vez, parecem indicar a existência de microconstruções que demonstram preferência pela ordem

AA V. Desse modo, confirma-se que a ordenação padrão da construção com adjetivo adverbial

é V AA, mas também surge a possibilidade de existência de um nó para uma construção de

ordem AA V na rede construcional.

Essa possibilidade não foi investigada na presente pesquisa, porque demanda maior

atenção. De igual modo, as ocorrências com verbos na voz passiva, que não eram esperadas,

também não foram estudadas, mas esses dados serão detalhadamente analisados em trabalho

posterior. Apresenta-se aqui apenas um exemplo do padrão Vaux V AA:

(13) “Com a queda da temperatura, teria ocorrido uma quebra de simetria no início do

Universo, do mesmo modo que, congelando água, se forma o gelo. Se ela for

congelada rápido, por exemplo, não se forma um cristal perfeito de gelo. Ele fica com várias

falhas” (19N:Br:Folha)

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5.2. Presença de elementos intervenientes

Ainda observando o padrão de configuração da construção em estudo, é importante

averiguar a ocorrência de elementos intervenientes à sequência verbo + adjetivo adverbial. Em

primeiro lugar, atestou-se a ocorrência desses elementos nos quatro padrões de ordenação

anteriormente apresentados. Em seguida, também se verificou que os padrões podiam conter

um, dois ou três elementos intervenientes. Dado que o interesse deste trabalho não recai sobre

as ocorrências com verbos na voz passiva, são expostos abaixo apenas os resultados relativos

aos padrões com voz ativa.

Padrão

Quantidade de elementos intervenientes no construto

Nenhum Um Dois Três Total

Padrão V AA 872

74,2%

272

23,1%

28

2,4%

3

0,3%

1175

100%

Padrão AA V 15

50%

11

36,6%

2

6,7%

2

6,7%

30

100%

Total 887

73,6%

283

23,5%

30

2,5%

5

0,4%

1205

100%

Tabela 2: Distribuição dos dados pela presença de elementos intervenientes

Como esperado, o conjunto de ocorrências sem elementos intervenientes é

percentualmente muito maior que os demais, que apresentam um ou mais elementos

intervenientes. Em geral, também se verifica a tendência de proporção inversa entre a presença

de elementos intervenientes e a frequência de ocorrência: quanto maior é a quantidade desses

elementos, tanto menor é o total de ocorrências. Assim, comprovam-se as hipóteses de que

somente a minoria dos dados apresentaria elementos em interveniência e de que, ainda assim,

a maior parte desses dados corresponderia a construtos com apenas um elemento interveniente.

Em verdade, os dados com dois ou mais desses elementos correspondem a pouco menos de 3%

do total.

Outro aspecto relevante para constatar a configuração da construção com adjetivo

adverbial é a natureza de tais elementos intervenientes. Foram considerados como

intervenientes os itens que ocorrem entre o verbo e o adjetivo adverbial ou que estão ligados ao

adjetivo. Dentre as ocorrências selecionadas, isto é, excetuando-se os dados com verbos na voz

passiva, foram encontrados, ao todo, 358 elementos intervenientes, os quais foram classificados

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segundo critérios morfossintáticos. Além das categorias previstas (adjunto graduador do

adjetivo; argumento interno; e argumento externo), foram identificados outros tipos:

complemento nominal do adjetivo; adjunto adverbial do verbo; predicativo do sujeito e

conjunção.

O tipo mais frequente foi o adjunto graduador do adjetivo, que soma quase 70% dos

dados. Em geral, esses adjuntos são intensificadores, mas há uma pequena parcela em que a

intensificação não é tão típica, por isso foi escolhido o termo “graduador” para se referir a tais

adjuntos. Dentre os intensificadores típicos, encontram-se, por exemplo, “bem e “mais” (como

nos exemplos (8), (9) e (10)); já dentre os menos exemplares, coletaram-se “meio” e “quase”

(como no exemplo (14)).

A alta frequência de adjuntos graduadores corrobora a hipótese de que tal categoria seria

a principal, já que corresponde ao tipo que menos interfere na integração entre verbo e adjetivo.

Outras categorias também intervêm pouco na relação entre esses elementos: o argumento

interno pronominal traz, com pouca massa fônica, uma informação velha; o argumento externo

ocorreu em instâncias próximas a diálogos ficcionais e também traz informação velha; e o

complemento nominal aparece sempre após o adjetivo (como se observa no exemplo (16)).

Estas três categorias somam 14% dos dados; os demais tipos, que apresentam maior

interferência à construção, apresentam baixa frequência, representando aproximadamente 17%

dos dados.

Abaixo, são apresentados alguns exemplos com presença de elemento interveniente. No

primeiro exemplo, ocorre um adjunto graduador; no segundo, um argumento interno; e no

terceiro, um argumento interno pronominal seguido de um predicativo do sujeito e um

complemento nominal do adjetivo “independente”.

(14) “Parou, enternecido, olhos no chão, aspirando o conhecido aroma dos jasmins

aljofrados de gotas de chuva, até que a malícia lhe distendeu de novo a face [...], e ele se

surpreendeu a murmurar quase alto, sorrindo: ‘Ainda lírio, sim! mas doida por me largar nas

mãos as pétalas da virtude...’” (19:Fic:Br:Moncorvo:Luta)

(15) “Mandei um e-mail pro Mike e ele respondeu na hora. Gravou tudo em um dia e

meio, ele é muito profissional, monta a batera rápido, já vem com o som meio pronto. Ainda

gravamos umas percussões.” (19Or:Br:Intrv:Web)

(16) “Estilhaçaram sua massa encefálica em partículas e seu corpo foi tomado por

convulsa febre. O que ali estava escrito ultrapassava o ponto crítico do inimaginável. Braços e

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pernas moveram-se agitados, independente do seu comando. Carnes e peles fibrilaram.”

(19:Fic:Br:Comparato:Guerra)

Enfim, os resultados relativos à presença e à natureza de elementos intervenientes

comprovam o postulado de que a construção com adjetivo adverbial apresentaria forte

integração entre verbo e adjetivo. Isto se verifica na baixa ocorrência de elementos

intervenientes, cuja maioria corresponde a tipos que pouco interferem na construção.

5.3. Tipos de verbo e de adjetivo

Após constatar o padrão construcional, faz-se necessário observar detidamente os

elementos que compõem a construção com adjetivo adverbial. De início, foi dedicada atenção

aos tipos semânticos de verbo que são licenciados pela construção, seguindo a classificação de

Scheibman (2001) em versão atualizada por Martelotta (2004). Abaixo segue uma tabela com

a frequência dos tipos verbais encontrados.

Tipo de verbo

Material

De atividade

verbal Corpóreo Existencial

De

percepção

De

cognição Outros Total

581 271 236 52 33 25 23 1221

47,6% 22,2% 19,3% 4,3% 2,7% 2% 1,9% 100%

Tabela 3: Distribuição dos dados por tipo de verbo

Ao todo, foram identificados verbos correspondentes a onze tipos semânticos diferentes.

Além dos seis mais frequentes, que estão expostos na tabela, foram encontrados os seguintes

tipos: de sentimento (8 dados), de percepção/relacional (6), modal (4), relacional (3) e leve (2).

Embora quase todos os tipos tenham sido licenciados, a maioria apresenta frequência muito

baixa; apenas três apresentam alta frequência percentual: os verbos materiais (com quase

metade dos dados), os de atividade verbal e os corpóreos (ambos com aproximadamente um

quinto dos dados). Estes resultados demonstram que a construção, apesar de licenciar a maioria

das categorias semânticas de verbo, é mais fortemente relacionada a três tipos determinados.

Para observar esses três tipos verbais, é possível retornar aos últimos exemplos apresentados: o

exemplo (14) apresenta um verbo de atividade verbal, o exemplo (15) um verbo material e o

exemplo (16) um verbo corpóreo.

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Entre os três mais frequentes, destaca-se o tipo material, que, como expresso, representa

aproximadamente 50% dos dados. Este é um valor alto, que demonstra a força deste tipo para

a construção. Contudo, outros dados indicam que o peso dos verbos materiais é ainda maior.

Primeiramente, a alta ocorrência nos padrões não prototípicos indica que o tipo material é o

mais básico na construção; observando o conjunto de dados referentes a esses padrões, nota-se

que o tipo material corresponde, respectivamente, a 66%, 96% e 100% dos verbos encontrados

nos padrões AA V, Vaux V AA e AA Vaux V. Em segundo lugar, os verbos materiais ocorrem

em grande quantidade em todos os domínios discursivos do corpus, enquanto os verbos de

atividade verbal estão essencialmente restritos aos textos ficcionais; 87% dos dados deste tipo

ocorreram no domínio ficcional. Por último, o tipo material é o que conglomerou o maior

número de itens verbais identificados nos dados coletados (pouco mais de 50% do total). Esse

conjunto de resultados comprova a hipótese de que os verbos materiais seriam os mais

frequentes e, consequentemente, os verbos prototípicos da construção.

Concluídas as considerações sobre os tipos verbais, direciona-se a atenção para os tipos

adjetivais. Utilizando a classificação de Castilho (2010), foram encontrados cinco tipos de

adjetivo, como descrito na tabela 4. Como esperado, todos os tipos identificados são de

adjetivos predicativos e o mais frequente foi o tipo qualificador polar, que foi agrupado junto

ao tipo dimensionador10.

Tipo de adjetivo

Modalizador Qualificador Quantificador

Ambiguidade Total epistêmico polar graduador aspectualizador aspectualizador

5 1098 36 63 14 5 1221

0,4% 89,9% 2,9% 5,2% 1,2% 0,4% 100%

Tabela 4: Distribuição dos dados por tipo de adjetivo

De fato, os adjetivos polares e dimensionadores somam quase 90% dos dados e

constituem o grupo que licenciou maior número de itens adjetivais e que apresenta os itens mais

frequentes. Ao todo, foram 41 itens licenciados, tendo sido os mais recorrentes: alto (232

ocorrências), direto (154), forte (126), rápido (100) e baixo (98).

10 Na classificação de Castilho (2010), os qualificadores dimensionadores são definidos, sobretudo, pela atribuição

de traços de dimensão a um substantivo. Esta definição gera dificuldades para a análise desta pesquisa, porque os

adjetivos na construção [V AA] predicam um verbo. Contudo, em alguns casos os adjetivos adverbiais parecem

relacionar-se também ao argumento interno do verbo, fato que poderia justificar a classificação dessas ocorrências

de adjetivo como dimensionadores. Dada a complexidade da questão, optou-se por não diferenciar os

dimensionadores dos polares, que são os adjetivos mais comuns e também os mais semelhantes aos dimensionadores.

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Dentre os outros tipos encontrados, apenas dois já haviam sido descritos na literatura

sobre os adjetivos adverbiais aqui revisada. Virginio (2016) já havia comentado a existência

dos modalizadores epistêmicos, ressaltando que são pouco produtivos e pouco frequentes. Os

dados comprovam sua colocação, uma vez que ocorreram somente 5 dados, provenientes de

dois itens: certo e claro. Barbosa (2006), por sua vez, indica a existência de adjetivos adverbiais

intensificadores. Nos dados desta pesquisa, aparecem os seguintes itens: forte (11), feio (7), alto

(5), imenso (5), duro (2), firme (2), legal (2), bonito (1) e sério (1). Averiguou-se, portanto, que

é um tipo produtivo, embora pouco frequente.

O mais frequente dos outros três tipos encontrados é o qualificador aspectualizador

(perfectivo e imperfectivo), que conta com cerca de 5% dos dados e que licenciou seis itens

adjetivais: rápido (44 ocorrências), urgente (11), direto (3), súbito (2), firme (2) e permanente

(1). E os adjetivos firme (em 1 dado) e raro (em todos os 13 seus dados) ocorreram como

quantificadores aspectualizadores.

Abaixo, apresentam-se exemplos de alguns desses tipos adjetivais. O último exemplo

refere-se ao caso de ambiguidade verificado entre qualificação polar e modalização epistêmica,

cujos dados ocorreram com os adjetivos certo e correto.

(17) “Foi uma grande oportunidade que o povo brasileiro teve. O povo brasileiro

votou certo, porque a cara da mudança era o Lula. Se eu estivesse ali como candidato, diria

que a cara da mudança era a minha.” (19Or:Br:Intrv:Web)

(18) “Possível conversa entre "gato escaldado" e personagem ainda desinformado:

– Fale pouco e fale rápido que eu estou com pressa.

– Estou ligando para saber do dinheiro... da grana.” (19N:Br:Cur)

(19) “Perguntei-me: terá ele a coragem de me prender? À esta pergunta se pode

responder com um sim. Sim, ele terá coragem de me prender desde que pense que poderá

convencer o mundo de que estará agindo certo.” (19:Fic:Br:Olinto:Trono)

No primeiro exemplo, observa-se que o adjetivo certo apresenta uma avaliação pessoal

sobre a ação de votar realizada, por isso foi classificado como modalizador epistêmico. Caso o

adjetivo expressasse o modo objetivo como o voto foi feito (por exemplo, a maneira como a

urna como foi manuseada), sua classificação seria de qualificador polar. Houve ainda a

possibilidade de ambiguidade entre esses dois tipos, como se verifica no exemplo (19), em que

a ação é considerada correta pela avaliação subjetiva do “mundo”, mas também pela apreciação

objetiva do cumprimento da lei. Ademais, tem-se ainda, no exemplo (18), o adjetivo rápido

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conferindo noção de aspecto perfectivo à ação de falar, em que esta fala deve ser breve, sem

demora (e não necessariamente com pronunciamento veloz das palavras).

5.4. Itens verbais e adjetivais

Tendo analisado a semântica dos elementos que compõem a construção, passa-se a

observar os itens verbais e adjetivais que foram licenciados. Ao todo, foram coletados 312

verbos e 47 adjetivos diferentes.

A quantidade de verbos constitui um valor pequeno, o que chama bastante atenção e

indica que certos itens verbais foram muito recorrentes. De fato, alguns itens (9, no total)

apresentam entre 20 e 40 ocorrências: bater (36), dizer (35), fazer (32), rir (30), custar (29),

sair (29), pagar (24), chutar (23) e pisar (23). Juntos, esses 9 itens somam 21% dos 1221 dados

coletados. De modo ainda mais surpreendente, dois verbos apresentam frequência muito alta e,

à semelhança, correspondem juntos a 19% dos dados: falar e ir, com respectivamente 140 e 88

ocorrências. Portanto, um pequeno grupo de 11 itens perfaz 40% das ocorrências, demonstrando

que a construção [V AA] tende a ocorrer com um conjunto restrito de verbos.

É importante ressaltar que muitos itens verbais ocorrem com mais de um adjetivo; ao

todo, são 94 itens verbais nessa condição, representando 30% dos itens verbais. A maior parte

desses verbos (81 deles) se combina com até 4 adjetivos, mas alguns se pareiam com sete ou

mais, a saber: entrar (com 7), ir (com 7 adjetivos), pisar (com 7), bater (com 8), sair (com 8),

fazer (com 9) e – em destaque – falar (com 15). Ademais, a repetição do item verbal com

diferentes adjetivos verificou-se uma tendência tanto entre os itens mais frequentes quanto entre

os menos frequentes. Logo, observa-se que a construção é pouca produtiva quanto ao

preenchimento da categoria “verbo”.

Quanto aos itens adjetivais, verifica-se que também um pequeno grupo corresponde a

uma parcela significativa dos dados. Os cinco adjetivos mais frequentes (alto, direto, rápido,

forte e baixo, respectivamente) somam 63,31% dos 1221 dados coletados. Além disso, sete

itens adjetivais ocorreram mais de 50 vezes, enquanto outros vinte e sete não chegaram a 10

ocorrências, cada um.

Com ocorrência mediana, entre 50 a 10 ocorrências, encontram-se treze itens adjetivais:

duro, certo, fácil, igual, diferente, barato, claro, sério, feio, raro, independente, seco e urgente.

Vale pontuar que muitos destes itens formam pares antonímicos, o que corrobora a classificação

dos adjetivos como polares; tem-se, por exemplo, alto/baixo, caro/barato, fácil/difícil,

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igual/diferente e feio/bonito. A lista completa de ocorrências completo encontra-se na tabela a

seguir.

Item adjetival N Item adjetival N Item adjetival N

Alto 237 Raro 13 Doce 2

Direto 157 Independente 12 Grave 2

Rápido 144 Seco 11 Indiferente 2

Forte 137 Urgente 11 Legal 2

Baixo 98 Livre 9 Lento 2

Caro 64 Fino 8 Súbito 2

Firme 56 Bonito 7 Bruto 1

Duro 29 Simples 6 Cheio 1

Certo 28 Imenso 5 Inconsciente 1

Fácil 27 Estranho 4 Individual 1

Igual 25 Curto 3 Inteiro 1

Diferente 21 Difícil 3 Natural 1

Barato 19 Leve 3 Permanente 1

Claro 19 Profundo 3 Suave 1

Sério 19 Tranquilo 3 Superficial 1

Feio 17 Correto 2

Tabela 5: Distribuição dos dados por item adjetival

Em geral, verifica-se que a maioria dos adjetivos são muito comuns em linguagem

coloquial e cotidiana. Os itens que causam maior estranhamento, como súbito, inconsciente,

individual e superficial, apresentam poucas ocorrências. Do mesmo modo, os itens verbais mais

frequentes são mais gerais e menos marcados em discurso coloquial. Alguns itens menos

comuns, mais elaborados e/ou mais formais ocorrem em menor número, como desacatar,

laborar, cingir e chuchurrear. Dessa forma, comprova-se a hipótese de que os itens verbais e

adjetivais seriam majoritariamente coloquiais.

Já a hipótese de que os itens mais frequentes formariam muitas combinações de verbo

mais adjetivo é parcialmente comprovada. De fato, os itens verbais mais frequentes dividem

suas ocorrências entre vários adjetivos, assim como os itens adjetivais mais recorrentes

aparecem ao lado de muitos verbos diferentes, porém se observa também que a divisão dos

itens verbais entre os adjetivos é desigual e que os itens adjetivais tendem a formar combinações

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muito frequentes com determinados itens verbais. Isto se verifica mais claramente com os sete

adjetivos mais frequentes (com exceção de rápido); por exemplo, 80 ocorrências com o adjetivo

direto (metade de seu total) são da sequência “ir direto”, e 54 dados com o adjetivo alto (22%

de seu total) correspondem a “falar alto”. Da mesma forma, “ir direto” corresponde a quase

todas as 88 ocorrências do verbo “ir”, e “falar alto” a pouco menos de 40% das ocorrências do

verbo “falar”. Mas, esta tendência também se verifica entre itens adjetivais menos frequentes,

como imenso, que teve 4 de suas 5 ocorrências com o verbo gostar; e tranquilo, que teve suas

3 ocorrências com o verbo dormir.

Observa-se, então, que os adjetivos costumam formar combinações frequentes com

certos verbos e que, a partir dessas combinações, novos verbos são instanciados para figurar ao

lado desses adjetivos. Um bom exemplo desse efeito ocorre entre os dados com o adjetivo alto:

muitos itens verbais são licenciados por semelhança semântica com o verbo falar. Dessa forma,

a hipótese não deixa de ser confirmada, porque os adjetivos mais frequentes acabam por parear-

se com grande número de verbos.

Mais interessante é observar que essas conclusões corroboram o entendimento de que a

combinação entre verbo e adjetivo forma uma construção. O adjetivo adverbial emerge na

gramática já em uma estrutura de item verbal + item adjetival, isto é, em uma construção [V

AA]. Esse conhecimento linguístico, embora se generalize em uma construção abstrata,

também comporta microconstruções mais preenchidas lexicalmente, como [V alto], por

exemplo, assim como armazena os construtos exemplares. Assim, o falante expande o uso da

microconstrução [V alto] a partir de seu exemplo prototípico “falar alto”, compondo novos

construtos, como “dizer alto”, “perguntar alto” e “miar alto”. A microconstrução como um todo,

então, assume uma semântica particular; [V alto], por exemplo, assume o sentido de

“realizar/produzir som alto”. Em alguns casos, a expansão dos itens verbais demonstra ainda

um efeito interessante, em que verbos inesperados passam a ser licenciados; tal é o caso de [V

alto], em que ocorrem: verbos que não focalizam produção de som, como “respirar” e “soprar”,

e verbos que não expressam produção de som, como “lembrar” e “constatar”. A fim de melhor

expor o fenômeno, apresentam-se exemplos de “respirar alto” e “constatar alto”.

(20) “Era o medo que a empolgava – tinha vontade de mover-se e temia esticar uma

perna, dobrar um braço, respirar mais alto. Que haveria debaixo da cama?”

(19:Fic:Br:Neto:Turbilhão)

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(21) “Virara o ferro e cumprimentava a terra com a bandeira. D. Vitorina começou a

contar o dinheiro de suas vendas: Quatro contos, duzentos e vinte e cinco mil réis, constatou

ela alto e sorrindo.” (19:Fic:Br:Morais:Igaraunas)

5.5. Transitividade e foco informacional

Encerrando a análise do padrão construcional, investigou-se a estrutura argumental das

cláusulas em que os construtos de [V AA] ocorrem. Relacionada a este fator, a estrutura

informacional também foi observada, a fim de avaliar a pertinência desta propriedade

discursivo-pragmática para a construção.

Seguindo o raciocínio proposto, é averiguada primeiro a estrutura argumental,

observando a transitividade dos verbos e o tipo de argumento interno selecionado. Como

resultado, o grupo de verbos intransitivos ou em uso intransitivo foi mais frequente que o grupo

de verbos transitivos ou em uso transitivo; do total de 1205 ocorrências, 758 (62,9%)

correspondem ao uso intransitivo da construção. Este dado corrobora a hipótese de que a

construção com adjetivo adverbial seria intransitiva; porém, a diferença percentual entre os dois

grupos é menor do que se esperava, uma vez que no trabalho de Barbosa (2006) os verbos

intransitivos constituíam 80% dos dados.

Este resultado torna necessário averiguar as ocorrências de verbo transitivo ou em uso

transitivo. O que se observa, então, é que a maioria das ocorrências não são de transitividade

prototípica. Do total de 447 dados, 139 correspondem a verbos que selecionaram somente

complementos circunstanciais, tipo de argumento interno que muito se assemelha a um adjunto

adverbial. Excetuando-se esses dados, verifica-se que os verbos transitivos prototípicos

correspondem a um número menos expressivo, representando 25,6% do total.

Além disso, parcela significativa dos verbos transitivos ocorreu no contexto específico

de diálogo reportado ou apresentação de diálogo direto entre personagens em textos ficcionais;

precisamente, foram 76 ocorrências de verbo transitivo de tipo dicendi selecionando

unicamente argumento interno oracional em textos de domínio ficcional – esse grupo representa

um quarto das 308 ocorrências de verbos em transitividade prototípica. Desse modo, constata-

se que, em muitos casos, a transitividade está relacionada a um contexto particular, que

proporciona a ocorrência de argumentos internos oracionais.

Em conclusão, compreende-se que a construção com adjetivo adverbial é

prototipicamente intransitiva, podendo instanciar construtos transitivos por razões contextuais.

Abaixo, são apresentados três exemplos, referentes respectivamente a construtos com

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argumentos prototípicos, com complementos circunstanciais e com argumento interno

oracional em contexto de diálogo ficcional.

(22) “Vinha gente de todo lado para se confessar com o vigariozinho de poucas luzes

intelectuais. [...] Mal o fiel se ajoelhava no confessionário, o Cura d'Ars via claro o seu passado

de pecador. Entendia a fraqueza de vontade daquele que acabava de absolver.”

(19:Fic:Br:Resende:Braco)

(23) “Embalada nessa onda, a Vasp criou dois novos vôos para a Argentina,

partindo direto de Curitiba. E quanto ao novo terminal que acaba de inaugurar, Canhedo

explica que faz parte de uma estratégia maior da nova política que está sendo implementada

pela Vasp no setor de cargas.” (19N:Br:Cur)

(24) “Tia Carlota se levantou. Sentada na cadeira de vime depois que o Dr. Samuel lhe

acendeu o cigarro compôs seu olhar mais perigoso e disse baixo:

- Perdoe a minha brincadeira de há pouco.” (19:Fic:Br:Castilho:Maria)

Tendo confirmado a hipótese sobre o caráter intransitivo da construção, passa-se a

observar a estrutura informacional dos enunciados em que os construtos ocorreram. Visto que

esses enunciados tendem a não apresentar argumentos, era esperado que o foco recaísse

exclusivamente sobre a sequência verbo + adjetivo adverbial (e seus possíveis elementos

intervenientes). Para análise mais acurada, a estrutura informacional foi observada em duas

instâncias: na cláusula (oração em que o construto ocorre) e na sentença (oração do construto

mais as suas orações subordinadas). Em geral, na maioria dos enunciados, o foco recai

exclusivamente sobre a sequência verbo e adjetivo adverbial, corroborando a hipótese para este

fator. Na cláusula, o foco incide unicamente sobre a sequência em quase 75% dos 1205 dados

(exatamente 889 ocorrências); na sentença, o mesmo fato ocorre em quase 90% do total de 1205

dados (exatamente 1051 ocorrências). Convém destacar que em 748 ocorrências

(aproximadamente 60% dos dados totais) o foco recaiu exclusivamente sobre o construto tanto

na cláusula quanto na sentença; e que em apenas 13 enunciados houve compartilhamento de

foco na cláusula e na sentença.

Os exemplos (19) e (24) são bons exemplos de enunciados com foco exclusivo sobre o

construto simultaneamente na cláusula e na sentença. Em (19), o foco é forçosamente exclusivo,

porque não há outros elementos na cláusula nem orações subordinadas à oração do construto;

e em (24) o argumento interno oracional compõe uma cláusula mais independente, de modo

que torna improcedente a avaliação de compartilhamento de foco para essa situação.

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Em outros dados, o argumento interno do verbo compartilha foco com o construto. Isto

procede nos exemplos (22) e (23), em que o argumento apresenta informação proeminente no

discurso. Nestes casos, o foco na cláusula é compartilhado e o foco na sentença é exclusivo. Já

no exemplo (25), o foco é compartilhado na sentença, mas exclusivo na cláusula; e no exemplo

(26), o foco é compartilhado nas duas instâncias. Note-se que as orações que compartilham foco

expressam finalidade e que o argumento interno “do presídio” em (25) não compartilha foco

porque é uma informação muito evidente no texto (trata-se de uma notícia sobre uma rebelião

em um presídio).

(25) “O fim das 191 horas de agonia foi festejado por parentes e amigos dos reféns que

saíram direto do presídio para fazer exames médicos. Os presos chegaram a algemar os reféns

em botijões de gás.” (19N:Br:SP)

(26) “E Sílvio tinha certeza de que se fechasse os olhos ouviria o córrego escorrendo,

sentiria o perfume da paineira grande do fundo, a maior, a que já estava completamente florida.

[...] Quando voltasse iria direto ao ponto em que costumava se deitar, a fim de examinar se

nada se tinha alterado com a sua ausência, se as formigas continuavam a construir ao pé da raiz

grossa, se a mãe teria vindo buscar o passarinho implume que caíra do ninho.”

(19:Fic:Br:Cardoso:Dias)

5.6. Modalidade e domínio discursivo

O último tópico de investigação é a ocorrência da construção com adjetivo adverbial em

diferentes grupos de textos, divididos por modalidade e por domínio discursivo. A inclusão

desses dois fatores permite observar se a construção apresenta restrições pragmático-

discursivas ou textuais.

Primeiramente, é analisada a ocorrência conforme a modalidade. Como apresentado no

capítulo anterior, os textos foram reorganizados em novos grupos – estipulados nesta pesquisa

– para adequar a classificação à compreensão de continuum entre fala e escrita. Dessa forma,

foram definidos quatro grupos: textos orais, textos híbridos 1, textos híbridos 2 e textos escritos.

Por o número de textos orais e escritos disponibilizados no corpus ser desigual, são

apresentadas nas tabelas a seguir a média de ocorrência da construção a cada 1000 palavras.

Alguns dados foram retirados dessa contagem para não enviesar os dados: os 9 construtos que

ocorreram em corpora de textos acadêmicos; outros 3 dados que ocorreram em textos escritos

citados dentro de textos acadêmicos; e todos os dados do grupo híbrido 2. A exclusão desses se

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deve à impossibilidade de discriminar a quantidade total de palavras em diálogos ficcionais,

transcrições de fala em notícia, corpora de textos acadêmicos e citações em texto acadêmico.

Grupo de textos por modalidade

Oral Híbrido 1 Escrito

Número de

construtos 64 98 909

Total de

palavras 403.170 675.416 9.192.436

Média a cada

1000 palavras 0,159 0,145 0,099

Tabela 6: Distribuição dos dados por modalidade textual (média relativa)

Verifica-se que, embora a maioria expressiva dos dados tenha ocorrido em textos

escritos, a média relativa ao total de palavras de cada grupo demonstra que a frequência da

construção em textos orais foi aproximadamente 1,6 vezes maior que em textos escritos. Dessa

forma, comprova-se a hipótese de que a construção [V AA] seria mais frequente em modalidade

oral do que em modalidade escrita, bem como se constata que a frequência diminui ao longo

do continuum fala-escrita.

Apesar dessa conclusão, é preciso considerar que há diferentes textos escritos no Corpus

do Português, pertencentes a gêneros textuais e domínios discursivos distintos. Em atenção a

este fato, é apresentada a tabela 7, que separa os textos escritos por domínio discursivo.

Grupos de texto escrito por domínio discursivo

Ficcional Jornalístico Instrucional

Enciclopédias Teses e dissertações

Número de

construtos 645 233 21 10

Total de

palavras 3.028.646 3.346.988 1.336.016 882.217

Média a cada

1000 palavras 0,213 0,070 0,016 0,011

Tabela 7: Distribuição dos dados em texto escrito por domínio discursivo (média relativa)

Observando as médias para cada grupo de texto escrito, observa-se que os textos

ficcionais propiciaram muito mais a ocorrência de construtos do que os demais textos.

Comparando os resultados da tabela 7 com a média dos textos orais presente na tabela 6,

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verifica-se que a frequência nos textos orais é largamente maior do que em todos os textos

escritos, com exceção dos dados escritos em textos ficcionais, cuja frequência supera a dos

textos orais. Dessa forma, reforça-se a conclusão de que a construção é mais frequente na fala,

porém se faz uma ressalva para textos de prosa literária.

A fim de averiguar todos os domínios discursivos incluídos na pesquisa, é apresentada

a tabela 8, que conta com os dados referentes ao grupo de textos híbridos 2, já que não há

necessidade de diferenciar diálogos e transcrições dos demais trechos escritos de textos

ficcionais e jornalísticos.

Domínio discursivo

Interpessoal Ficcional Jornalístico Instrucional

Número de

construtos 64 740 373 31

Total de

palavras 403.170 3.028.646 4.022.404 2.816.802

Média a cada

1000 palavras 0,159 0,244 0,093 0,011

Tabela 8: Distribuição dos dados por domínio discursivo (média relativa)

Com base nos dados da tabela 8, constata-se que a frequência em domínio ficcional é

muito mais alta que a frequência nos demais textos. Com mais este dado, atesta-se efetivamente

que a construção não apresenta restrição para textos ficcionais. Dentre os fatores que podem

favorecer a ocorrência da construção nesses textos, considera-se que os mais influentes sejam

a tipologia narrativa e a informalidade. Com efeito, os dois grupos com maior propensão à

informalidade (interpessoal e ficcional) apresentam as maiores frequências; e o grupo de maior

nível de formalidade (instrucional) apresenta a menor frequência. Ademais, a frequência no

domínio interpessoal, que corresponde aos textos que mais se aproximam de interações

espontâneas entre falantes, é muito alta, se comparada à frequência nos domínios jornalístico e

instrucional.

Por ser menos esperada a ocorrência em textos instrucionais, é apresentado abaixo um

exemplo de ocorrência em teses acadêmicas.

(27) “[...] no atacado estão os empacotadores, que, estrategicamente, se localizam nas

regiões consumidoras. Os empacotadores podem ser divididos em dois grupos, um, que

compra direto dos corretores nos locais de produção, ou corretores da bolsinha, e o outro, que

compra mercadoria através dos corretores nas regiões produtoras” (19Ac:Br:Lac:Thes)

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Por fim, demarca-se que todas as hipóteses para os fatores modalidade e domínio

discursivo foram comprovadas. Em geral, a construção está relacionada à linguagem mais oral

e/ou mais informal; e isto não impede a ocorrência em textos mais escritos e/ou mais formais,

porque a construção alcança objetivos comunicativos específicos e próprios. A frequência

nestes textos pode ainda ser bem expressiva, como se verifica entre os textos jornalísticos.

Feitas as últimas considerações sobre a ocorrência nos diferentes grupos de texto,

encerra-se o capítulo de análise. No próximo capítulo, são apresentadas as conclusões sobre a

pesquisa realizada, resumindo os resultados verificados para cada fator e indicando as

contribuições da análise para o mapeamento da construção com adjetivo adverbial.

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6. Considerações finais

Fundamentada sobre os pressupostos teóricos da Linguística Funcional Centrada no

Uso, esta pesquisa visou depreender as propriedades fundamentais da construção com adjetivo

adverbial, procurando mapear a rede dessa construção em particular. Compreendendo

construção como um pareamento de forma e sentido, era necessário averiguar as propriedades

de ordem formal e de ordem discursivo-pragmática dos construtos coletados, a fim de

comprovar a hipótese central de que haveria uma única construção com adjetivo adverbial, de

caráter polissêmico, que se ramificaria em três construções de mesma forma: uma construção

qualitativa, uma modalizadora e uma intensificadora.

O primeiro passo para a comprovação da proposta de rede aventada constitui em

verificar se todos os dados correspondem, verdadeiramente, a uma mesma configuração formal.

Os resultados confirmam essa parte da hipótese, demonstrando que a maioria expressiva dos

construtos segue o padrão [V AA]. Primeiramente, observou-se que a maior parte dos dados

apresenta o verbo na voz ativa, o adjetivo posposto ao verbo e ausência de elementos

intervenientes; estes, quando ocorrem, aparecem geralmente como apenas 1 adjunto graduador

intensificador entre o item verbal e o item adjetival. Os poucos casos de anteposição do adjetivo

ao verbo são justificados, em sua maioria, por motivações formais ou pragmáticas do contexto

discursivo. Contudo, uma minoria de construtos com adjetivo anteposto pode constituir um

padrão construcional diferente, bem como as ocorrências de verbo na voz passiva; estes dados

carecem de análise mais atenta, o que será feito em momento futuro; neste trabalho, considera-

se por hora que estas ocorrências não constituem uma nova construção.

Em segundo lugar, identificou-se que a construção tende a ser intransitiva; os construtos

com verbo transitivos, embora componham um grupo numeroso, apresentam, em boa parte,

argumento interno não prototípico (complemento circunstancial) ou motivado pelo domínio

ficcional (diálogo direto ou reportado como argumento interno oracional de um verbo de

atividade verbal). Dessa forma, os verbos transitivos de ocorrência mais geral, que não se

encaixam nas condições acima, representam 20% dos dados totais.

Com base nesses resultados, comprova-se que os elementos componentes da construção

são unicamente o verbo e o adjetivo adverbial, dispostos na ordenação V AA. Outros elementos,

como adjuntos graduadores do adjetivo ou argumentos internos do verbo, podem ocorrer nas

instanciações de uso da construção por questões contextuais.

Comprovada a homogeneidade no polo formal da construção, passa-se para o segundo

passo, correspondente à verificação do polo semântico e discursivo-pragmático. Nesta etapa,

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confirma-se a hipótese de que a construção apresentaria verbos de mesma semântica junto a

adjetivos de diferentes semânticas. Quanto ao verbo, notou-se que o tipo semântico mais

frequente é o material, que demonstrou também ser mais básico, mais produtivo e menos restrito

que os demais tipos. Quanto ao adjetivo, verificou-se a ocorrência de cinco tipos semânticos

(número maior do que o esperado), sendo o mais frequente o tipo qualificador polar; também

se identificaram casos ambíguos entre qualificador polar e modalizador epistêmico. Dado o

comportamento regular dos dados sobre as propriedades formais, julga-se que as ocorrências

de cada tipo adjetival correspondem a cinco construções diferentes, que são descendentes de

uma mesma construção; contudo, neste momento da pesquisa, esta é apenas uma hipótese, que

necessita uma análise mais detalhada.

Ainda nesta segunda etapa, observou-se o foco informacional e a ocorrência nos grupos

de texto por modalidade e por domínio discursivo. Acompanhando o resultado para a

transitividade verbal, verificou-se que o foco das cláusulas e das sentenças incidiu, na maioria

dos dados, exclusivamente sobre a sequência verbo + adjetivo adverbial. Também foi atestado

que a construção ocorre com maior frequência em textos orais e em textos de domínio

interpessoal e ficcional; a alta frequência em domínio interpessoal comprova o caráter mais

coloquial e mais informal da construção, enquanto a forte presença em domínio ficcional sugere

que o discurso literário apresenta predileção por essa construção adverbial e/ou que a tipologia

narrativa favorece a incidência de construtos. Ademais, comprovou-se que a construção é

bastante frequente e produtiva na escrita, tendo ocorrido em textos ficcionais, jornalísticos e

instrucionais.

Estes dados descrevem as situações de uso que melhor propiciam a ocorrência da

construção. No terceiro e último passo, avalia-se outro aspecto importante do uso: o

licenciamento de itens verbais e itens adjetivais para preencher as categorias V e AA. Em geral,

os itens ocorridos constituem um grupo pequeno (312 verbos e 47 adjetivos) e são bastante

frequentes em linguagem cotidiana e coloquial. Além disso, os itens verbais e adjetivais tendem

a formar combinações muito frequentes, a partir das quais se expande o licenciamento de novos

itens. Esses resultados indicam que a construção é pouco produtiva com relação ao

preenchimento de suas categorias componentes e reforça a compreensão de que a integração

construcional entre verbo e adjetivo é muito forte (já verificada na ausência de elementos

intervenientes).

Com base em todos os resultados apresentados, verifica-se que foram corroboradas

muitas hipóteses sobre a configuração da rede da construção com adjetivo adverbial, o que torna

possível postular um modelo para essa rede, apresentado na figura abaixo. No nível mais alto

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da hierarquia, situa-se o esquema mais abstrato [V AA][modificador]; dele são instanciados cinco

subesquemas, que são construções polissêmicas: [V AA][qualitativo], [V AA][intensificador], [V

AA][aspectual perfectivo], [V AA][aspectual iterativo] e [V AA][modalizador epistêmico]; e para cada subesquema,

descende uma microconstrução, que é preenchida lexicalmente.

Figura 1: Proposta para a rede da construção com adjetivo adverbial

Ao final deste trabalho, considera-se que a pesquisa foi muito produtiva e rendeu

resultados satisfatórios para uma boa análise da construção. A coleta e análise de dados de uso

real, de um lado, contribui significativamente para os estudos sobre o adjetivo adverbial, área

que carece de maior investigação de corpora, especialmente para comprovação da hipótese

sobre o uso da estrutura em textos orais, informais e/ou coloquiais; de outro, fornece material

para confirmação dos pressupostos teóricos da LFCU e maior investigação sobre a teoria

funcionalista.

Em momento futuro, intenciona-se dar prosseguimento à pesquisa, avaliando mais

detalhadamente os dados coletados para depreensão plena da rede construcional, o que envolve

crucialmente a correlação de fatores formais e discursivo-pragmáticos para confirmar se os

tipos semânticos de adjetivo encontrados formam construções polissêmicas ou pareamentos

diferentes de forma e sentido.

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