UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira...

196
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO OLIVEIRA RAMIRES PINHEIRO A INVERSÃO DO SUJEITO NO PORTUGUÊS BRASILEIRO: UMA ABORDAGEM COGNITIVISTA Rio de Janeiro Abril de 2013

Transcript of UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira...

Page 1: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

DIOGO OLIVEIRA RAMIRES PINHEIRO

A INVERSÃO DO SUJEITO NO PORTUGUÊS BRASILEIRO:

UMA ABORDAGEM COGNITIVISTA

Rio de Janeiro

Abril de 2013

Page 2: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

A INVERSÃO DO SUJEITO NO PORTUGUÊS BRASILEIRO:

UMA ABORDAGEM COGNITIVISTA

Diogo Oliveira Ramires Pinheiro

Tese de Doutorado submetida ao Programa

de Pós-Graduação em Linguística da

Universidade Federal do Rio de Janeiro –

UFRJ, como parte dos requisitos

necessários para a obtenção do título de

Doutor em Linguística.

Orientador: Profa. Doutora Lilian Vieira

Ferrari

Rio de Janeiro

Abril de 2013

Page 3: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

A inversão do sujeito no português brasileiro: uma abordagem cognitivista

Diogo Oliveira Ramires Pinheiro

Orientador: Profa. Doutora Lilian Vieira Ferrari

Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Linguística da

Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários

para a obtenção do título de Doutor em Linguística.

Examinada por:

______________________________________________________________________

Presidente, Profa Doutora Lilian Vieira Ferrari

______________________________________________________________________

Profa. Doutora Mariangela Rios de Oliveira – UFF

______________________________________________________________________

Profa. Doutora Sandra Pereira Bernardo – UERJ

______________________________________________________________________

Profa. Doutora Maria Lúcia Leitão de Almeida – PPG Letras Vernáculas – UFRJ.

______________________________________________________________________

Prof. Doutor Mauro José Rocha do Nascimento – Departamento de Letras Vernáculas –

UFRJ.

______________________________________________________________________

Profa. Doutora Ana Flávia Lopes Magela Gerhardt – PPG Letras Vernáculas – UFRJ,

Suplente

______________________________________________________________________

Profa. Doutora Maria Luiza Braga – PPG Linguística – UFRJ, Suplente

Rio de Janeiro

Abril de 2013

Page 4: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

AGRADECIMENTOS

À professora Lilian Ferrari, por me apresentar uma área nova e instigante da Linguística

Cognitiva, que alia espaços mentais, ponto de vista e subjetividade; por me ensinar

sobre o assunto e, além disso, me ensinar a fazer pesquisa sobre o assunto; e, de modo

geral, pela orientação ao mesmo tempo inteligente e sensata, perspicaz e paciente.

Aos professores Maria Lúcia Leitão de Almeida e Mauro José Rocha do Nascimento,

por todas as lições de Linguística Cognitiva e, em particular, pelos valiosos comentários

e sugestões feitos durante o Exame de Qualificação.

Ao Francisco, cuja companhia decididamente única torna muitos momentos mais

agradáveis, divertidos e inteligentes. E, por fim, à Liana, pela sua capacidade de tornar

cada momento pleno e inesquecível.

Page 5: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

CRAIG (as Maxine, fascinated) Tell me, Craig, why do you love puppeteering?

(as Craig) Well, Maxine, I'm not sure exactly. Perhaps it's the idea of becoming

someone else for a little while. Being inside another skin. Moving differently,

thinking differently, feeling differently.

CRAIG: If only, I've been thinking to myself, if only I could actually

feel what Malkovich feels, rather than just see what he sees...

(Being John Malkovich)

Page 6: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. A inversão do sujeito no português brasileiro:

uma abordagem cognitivista. Tese (Doutorado em Linguística) – Programa de Pós-

Graduação em Linguística, Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de

Janeiro, Rio de Janeiro, 2010.

RESUMO

Esta tese se propõe a investigar a inversão do sujeito no português brasileiro

falado à luz da Linguística Cognitiva. Para isso, são combinados dois modelos teóricos

complementares: uma versão recente da Teoria dos Espaços Mentais (SANDERS;

SANDERS; SWEETSER, 2009; 2012; FERRARI; SWEETSER, 2012) e a Gramática

de Construções goldbergiana. Assumindo o Princípio da Não-sinonímia (GOLDBERG,

1995), e considerando que sentenças SV e VS frequentemente expressam o mesmo

conteúdo objetivo, toma-se como ponto de partida a seguinte pergunta: qual é a

diferença semântica e/ou pragmática entre as duas estruturas?

As principais descobertas são as seguintes: (i) As estruturas SV e VS ativam

redes distintas de espaços mentais: a primeira instrui o ouvinte a posicionar o Ponto de

Vista no Espaço de Ato de Fala, localizado no ground comunicativo, ao passo que a

segunda promove o deslocamento do Ponto de Vista para o Domínio do Conteúdo;

como resultado, sentenças VS envolvem uma redução da distância entre sujeito

conceptualizador e objeto conceptualizado; e (ii) a construção VS predica uma cena de

experiência perceptual direta que inclui três elementos (Observador, Campo Visual e

Entidade Focalizada), dos quais apenas o último é perfilado (os demais permanecem

pressupostos).

A principal contribuição do trabalho consiste na sugestão de que a ordem VS

pode ser explicada com base na ideia de deslocamento do ponto de vista, na medida em

que a posição pós-verbal do sujeito fornece instruções específicas a respeito do

estabelecimento da rede de espaços mentais e das projeções entre esses espaços.

Palavras-chave: Ordem VS. Ponto de Vista. Espaços Mentais. Gramática de

Construções.

Page 7: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a

cognitive linguistics approach. Dissertation (Doctorate in Linguistics) – Programa de

Pós-Graduação em Linguística, Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de

Janeiro, Rio de Janeiro, 2010.

ABSTRACT

This dissertation aims to investigate subject inversion in spoken Brazilian

Portuguese (BP) within the framework of cognitive linguistics. Two complementary

models are combined: a recently developed version of Mental Spaces Theory

(SANDERS; SANDERS; SWEETSER, 2009; 2012; FERRARI; SWEETSER, 2012)

and Goldberg’s Construction Grammar (GOLDBERG, 1995; 2006). Given that

canonical SV sentences and inverted VS sentences frequently convey the same

objective content, the first question to be raised, based on the Non-Synonymy Principle

(GOLDBERG, 1995), is the following: what is the semantic and/or pragmatic difference

between them?

The main findings are: (i) SV and VS strucutures evoke different mental spaces

networks: the former instructs the hearer to set Viewpoint in the Speech Act Space,

located in the Deictic Centre of Communication, whereas the latter signals Viewpoint

dislocation to the Content Domain; therefore subject inversion implies shortening the

distance between the subject and object of conceptualization; and (ii) VS construction

predicates an experiential gestalt that includes three conceptual elements (Observer,

Visual Field and Focused Entity), out of which only the latter is profiled (the other two

remain presupposed).

The main contribution of this research consists in the suggestion that VS order

can be accounted for in terms of Viewpoint dislocation, since post-verbal subject

position provides specific instructions regarding the establishment of mental space

networks and the connections between them.

Key-words: VS order. Viewpoint. Mental Spaces. Construction Grammar.

Page 8: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO 13

1.1 DELIMITAÇÃO DO OBJETO 14

1.2 OBJETIVOS 18

1.2.1 Primeiro objetivo: identificar a motivação conceptual da alternância

SV/VS

18

1.2.2 Segundo objetivo: descrever a construção gramatical VS 20

1.3 ESTRUTURA DO TRABALHO 21

2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA: CAMINHOS DA LINGUISTICA

COGNITIVA

23

2.1 TEORIA DOS ESPAÇOS MENTAIS 25

2.1.1 O funcionamento do modelo (I) space builders e projeção entre domínios 28

2.1.2 O funcionamento do modelo (II): os primitivos discursivos 37

2.1.3 A versão BCSN 43

2.1.4 A mesclagem conceptual 49

2.2 GRAMÁTICA COGNITIVA 54

2.2.1 Proeminência focal: a questão do perfilamento 56

2.3 A GRAMÁTICA DE CONSTRUÇÕES 60

2.3.1 A Cognitive Construction Grammar 70

2.3.1.1 Princípios psicológicos de organização da linguagem 73

2.4 SÍNTESE 77

3 METODOLOGIA

79

3.1 CORPORA E ANÁLISE DE DADOS 79

3.2 TESTES DE ACEITABILIDADE 83

3.3 Síntese e encaminhamentos

4 INVERSÃO DO SUJEITO E PONTO DE VISTA: UMA ABORDAGEM

BASEADA EM ESPAÇOS MENTAIS

85

86

4.1 A HIPÓTESE GERAL: CORRELAÇÃO ENTRE PONTO DE VISTA E

POSIÇÃO DO SUJEITO

87

4.1.1 Desdobramentos da hipótese geral 93

Page 9: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

4.2 ALTERNÂNCIA SV/VS E FLUTUAÇÃO DE PONTO DE VISTA:

ANÁLISE DE DADOS

99

4.3 UMA TIPOLOGIA PARA OS USOS VS 120

4.4 ORDEM VS E MESCLAGEM DE PONTO DE VISTA 129

4.5 SÍNTESE E ENCAMINHAMENTOS 136

5 INVERSÃO DO SUJEITO E SEMÂNTICA DE FRAMES: UMA

ABORDAGEM CONSTRUCIONAL

137

5.1 INVERSÃO DO SUJEITO E SEMÂNTICA DE FRAMES: UMA BASE

CONCEPTUAL PARA A CONSTRUÇÃO VS

137

5.2 FORMALIZANDO A CONSTRUÇÃO VS: O ALINHAMENTO

SINTAXE-SEMÂNTICA

142

5.3 COMPATIBILIZAÇÃO ENTRE CLASSES VERBAIS E CONSTRUÇÃO

VS

149

5.3.1 Verbos de aparição 150

5.3.2 Verbos locativos estativos 152

5.3.3 Verbos de movimento 154

5.3.4 Verbos de mudança de estado 158

5.3.5 Verbos sensoriais 161

5.3.6 Verbos de ação 163

5.4 SÍNTESE E ENCAMINHAMENTOS 166

6 RESTRIÇÕES FORMAIS E FUNCIONAIS À INVERSÃO DO

SUJEITO: DISCUSSÃO TEÓRICA

168

6.1 UM TRATAMENTO DO FORMAL PARA A ORDEM VS:

MONOARGUMENTALIDADE E INACUSATIVIDADE

169

6.2 UM TRATAMENTO FUNCIONAL PARA A ORDEM VS:

ACESSIBILIDADE REFERENCIAL E TOPICALIDADE

172

6.3 SÍNTESE 183

7. CONSIDERAÇÕES FINAIS

184

REFERÊNCIAS

187

ANEXO

193

Page 10: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

LISTA DE FIGURAS

Figura 1 Representação de O Rafinha é craque 29

Figura 2 Representação de No futuro, O Rafinha será craque 31

Figura 3 Representação da ambiguidade referencial em (9) 33

Figura 4 Representação da leitura genérica de (10) 35

Figura 5 Representação da leitura específica de (10) 35

Figura 6 Representação de Mari tem 30 anos 39

Figura 7 Representação de Em 2008, ela morou na Inglaterra 40

Figura 8 Representação de Em 2009, ela se mudaria para Roma. 41

Figura 9 Representação de Mas, em 2008, ela se apaixonou e... 42

Figura 10 Representação simplificada do modelo BCSN da TEM 44

Figura 11 Esquema do arranjo de visualização, segundo Verhagen (2005) 46

Figura 12 Basic Communicative Spaces Network 48

Figura 13 Representação do processo de integração conceptual em (13) 52

Figura 14 Esquema HIPOTENUSA, segundo a Gramática Cognitiva 56

Figura 15 Esquema de PAI, segundo a Gramática Cognitiva 58

Figura 16 Esquema de FILHO, segundo a Gramática Cognitiva 58

Figura 17 Perfilamentos possíveis da cadeia agentiva, segundo Langacker

(1991) 59

Figura 18 Representação da construção de movimento causado 72

Figura 19 Representação do padrão SV segundo a Teoria dos Espaços

Mentais 91

Figura 20 Representação do padrão VS segundo a Teoria dos Espaços

Mentais 92

Figura 21 Níveis de conceptualização dos exemplos (3) e (4) 101

Figura 22 Representação de o Dourado entrou aqui 102

Figura 23 Representação de esse meu amigo tava lá no camarim esperando 103

Figura 24 Representação de esse meu amigo tava lá no camarim esperando

aí daqui a pouco entrou esse tal de Marcelo 105

Figura 25 Representação de tá tocando o telefone 114

Figura 26 Representação de tá batendo o cansaço agora 117

Figura 27 Representação de o cansaço tá batendo agora 119

Figura 28 Tipologia dos usos VS segundo o tipo de Observador 121

Page 11: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

Figura 29 Representação de eu tava assim no quarto descansando né’’ aí

do nada entrou o Dourado 122

Figura 30 Representação de e quando eu dei por conta... pô...só estava eu e

uns... dois no/ naquele vagão... 125

Figura 31 Representação de aparece dois garotos 131

Figura 32 Representação de aí ele foi atravessar a rua... aí veio um carro

disparado... 133

Figura 33 Representação de quando abre a porta do banheiro tá ele no

vaso 134

Figura 34 Cena de Focalização da Atenção 138

Figura 35 Esquema imagético do contêiner: cena de locação 140

Figura 36 Representação esquemática de tá seu chapéu no banquinho

vermelho 141

Figura 37 Alinhamento sintaxe-semântica na construção VS 145

Page 12: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

LISTA DE TABELAS

Tabela 1 Levantamento preliminar das construções de inversão do sujeito no

PB 15

Tabela 2 Tipologia não exaustiva de space builders 30

Tabela 3 Continuum de construções gramaticais, segundo Goldberg (2003) 69

Tabela 4 Caracterização informal das construções de Estrutura Argumental 71

Tabela 5 Contraste entre as construções SV e VS 98

Page 13: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

13

1 Introdução

O que motiva a inversão do sujeito no português brasileiro (PB) falado? Que

fatores estão associados à opção pela ordem VS (verbo-sujeito), em detrimento da

ordem canônica SV (sujeito-verbo)? Ou ainda: como explicar a possibilidade ou

impossibilidade de posposição do sujeito em diferentes contextos?

Depois de décadas de pesquisas, a quantidade de respostas sugeridas para essas

perguntas é de tirar o fôlego. Um breve levantamento da literatura mostra que a ordem

VS do português brasileiro já foi associada, pelo menos, aos seguintes fatores: a

monoargumentalidade, a inacusatividade, o peso fonético do sujeito, a indefinitude do

SN, a função apresentativa da sentença, o baixo grau de transitividade do verbo, o

caráter “novo” do referente do sintagma nominal e a baixa topicalidade do sujeito1. A

despeito da sua diversidade, essas explicações podem ser divididas – com alguma

simplificação inevitável – em dois grandes grupos: restrições de natureza formal (as

quatro primeiras) e motivações funcionais (as quatro últimas).

Este trabalho, por seu turno, investe em uma terceira via: seu objetivo é explicar

a inversão do sujeito no PB falado com base no paradigma da Linguística Cognitiva

(LC). Para isso, são recrutados, primordialmente, dois modelos teóricos que integram o

arcabouço da LC: de um lado, a Teoria dos Espaços Mentais, que será referida

eventualmente pela sigla TEM (FAUCONNIER, 1994 [1985]; 1997; SANDERS;

SANDERS; SWEETSER, 2009; 2012; FERRARI; SWEETSER, 2012); de outro, a

Gramática de Construções (GC), em particular a vertente sistematizada por Adele

Goldberg (1995; 2006).

1 No capítulo 7, irei comentar algumas dessas propostas a fim de compará-las com a abordagem

desenvolvida neste trabalho.

Page 14: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

14

Esses dois modelos teóricos estão associados aos dois objetivos específicos desta

tese. A saber: (i) identificar a motivação semântico-conceptual subjacente à alternância

entre usos SV e VS; e (ii) descrever, sistematicamente, o padrão verbo-sujeito como

uma construção gramatical do português, ou seja, um pareamento convencional de

forma e significado2.

Esta introdução está organizada da seguinte maneira. A próxima seção, partindo

da constatação de que a inversão do sujeito no PB é um fenômeno complexo e

multifacetado, dedica-se a circunscrever com mais precisão o objeto de estudo da tese.

Em seguida, a seção 1.2 se detém sobre cada um dos dois objetivos específicos

elencados acima. Por fim, a seção 1.3 apresenta a estrutura geral do trabalho.

1.1 Delimitação do objeto

Como veremos no capítulo 2, o modelo da Gramática de Construções

compreende a língua como uma vasta e articulada rede de unidades simbólicas

(pareamentos de forma e significado), conhecidas como construções gramaticais. À luz

dessa concepção, a delimitação do objeto de investigação desta tese passa pela seguinte

pergunta: ao se debruçar sobre a ordem VS no português brasileiro, que porção da rede

construcional dessa língua o trabalho se propõe a descrever?

Ao que tudo indica, a inversão do sujeito no PB é um fenômeno complexo e

multifacetado, que se manifesta em diferentes contextos e pode estar associado a

funções pragmático-funcionais variadas. Sob uma perspectiva construcional, isso

significa que a ordem verbo-sujeito não corresponde a uma construção gramatical única,

2 O conceito de construção gramatical será esclarecido no próximo capítulo (seção 2.3), quando

apresentarei, em linhas gerais, o modelo da Gramática de Construções.

Page 15: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

15

mas a uma família de construções inter-relacionadas3. A título de levantamento

preliminar, proponho um elenco de nove construções gramaticais nas quais a ordem VS

pode se manifestar4:

CONSTRUÇÃO GRAMATICAL EXEMPLO

1. Marcação de foco sentencial Furou o pneu.

2. Marcação de foco identificacional Até agora, chegou o Carlos e o José.

3. Interrogativa sim/não Seria ele a pessoa certa?

4. Construção optativa Queira Deus que ele volte logo.

5. Construção imperativa Vem pra Caixa você também!

6. Construção contrafactual diretiva Chegasse você mais cedo, então!

7. Construção contrafactual

condicional

Fosse você menos teimoso,

tudo estaria bem.

8. Construção condicional correlativa A data vai mudar, queira você ou não.

9. Construção completiva não-finita Garantiu ser ele a pessoa certa.

Tabela 1: levantamento preliminar das construções de inversão do sujeito no PB

O quadro acima é bastante heterogêneo. Em um primeiro corte, as duas

primeiras construções se distinguem de todas as demais, pela seguinte razão:

diferentemente dos padrões 1 e 2, as construções 3 a 9 apresentam restrições referentes

à morfologia verbal e, em pelo menos dois casos, exibem ainda algum tipo de

especificação lexical. Vejamos: a construção 3 especifica que o verbo deve vir no futuro

(do pretérito ou do presente), a construção 4 exige o chamado modo optativo, a

construção 5 demanda modo imperativo, as construções 6 e 7 requerem pretérito

imperfeito do subjuntivo, a construção 8 pressupõe presente do subjuntivo e a

3 O fato de as diferentes construções que manifestam ordem VS estarem relacionadas é uma hipótese de

trabalho, que decorre do Princípio da Motivação Maximizada (GOLBDERG , 1995), a ser apresentado no

próximo capítulo. Segundo esse princípio, padrões com uma mesma especificação formal devem

apresentar alguma afinidade semântica.

4 Essa lista é uma adaptação do quadro proposto em Pinheiro (2009).

Page 16: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

16

construção 9 exige que o verbo esteja no infinitivo. Além disso, o padrão 8 especifica

necessariamente a sequência “ou não”, e é provável que o padrão 4 esteja estocado na

memória do falante sob a forma “Queira Deus que X”. Isso significa que ele demanda

não apenas um tempo/modo determinado, mas especificamente o verbo “querer” e o

sujeito “Deus”.

Nada disso, porém, se verifica nas construções 1 e 2. Aqui, não parece haver

restrição ao tempo/modo verbal (Furou o pneu, Furava o pneu; Chegou o Carlos e o

José, Vão chegar o Carlos e o José) ou qualquer especificação lexical prévia. O que

essa breve discussão sugere é que as construções 1 e 2 são mais abertas, ao passo que as

demais são mais fechadas ou restritivas, constituindo-se como padrões com maior grau

de cristalização5. Essa divisão inicial conduz a uma primeira delimitação do objeto de

estudo: aqui, os usos mais cristalizados não serão investigados. Por essa razão,

enunciados que manifestem as construções 3 a 9 estão excluídos da análise.

Isso, porém, não esgota a questão. Nesta tese, assumirei, ao menos como

hipótese inicial de trabalho, que as sentenças em 1 e 2 são instâncias de construções

gramaticais distintas. A razão para isso está indicada no próprio nome sugerido para

cada construção: elas apresentam estruturas informacionais diversas, na medida em que

a porção do enunciado correspondente ao domínio do foco não é a mesma nos dois

casos.

Explica-se. Com base em Lambrecht (1994), é possível assumir que a construção

1 sinaliza foco sentencial, às vezes referido na literatura como foco largo. Enunciados

que manifestam esse tipo de estrutura focal são chamados por Lambrecht (1994; 2001)

de “all-new sentences”, uma vez que sua propriedade definidora é a ausência de

conteúdo pressuposto. Trocando em miúdos, isso significa que a totalidade do conteúdo

5 No próximo capítulo (seção 2.3), veremos que as construções gramaticais se dispõem em um continuum

que vai dos padrões inteiramente abertos àqueles completamente fechados, passando por estágios

intermediários.

Page 17: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

17

da sentença corresponde a informação nova. Na literatura sobre estrutura informacional,

o foco sentencial costuma ser identificado por meio da pergunta “O que aconteceu?”.

Como o enunciado Furou o pneu é apropriado como resposta a essa pergunta, entende-

se que ele manifesta foco sentencial.

Em contrapartida, o foco identificacional (ou foco estreito) envolve conteúdo

pressuposto. Um enunciado como Até agora, chegou o Carlos e o José é

pragmaticamente mais apropriado como resposta a uma pergunta do tipo “Quem

chegou?” do que como resposta à pergunta genérica “O que aconteceu?”. Na prática,

isso significa que esse enunciado evoca uma informação pressuposta, qual seja, a

informação de que alguém chegou. Ao mesmo tempo, sua função é identificar o

referente desse “alguém”. Em outras palavras, um enunciado como aquele que ilustra o

padrão 2 é usado com o propósito de especificar quem, em meio ao conjunto de

convidados, já chegou ao evento.

Neste trabalho, vale reiterar, tomarei essa diferença como base para a postulação

de duas construções gramaticais distintas (ainda que, muito provavelmente,

relacionadas): uma construção cuja função é marcar foco sentencial e outra

especializada na sinalização de foco identificacional. Essa distinção permite, enfim,

delimitar o objeto desta tese: aqui, irei me restringir aos casos de foco sentencial.

Estabelecida essa delimitação, passarei, a partir de agora, a me referir simplesmente à

“construção VS”. O leitor deverá ter em mente que, quando usado ao longo deste

trabalho, esse rótulo faz referência a apenas uma das (possíveis) nove construções

gramaticais de inversão do sujeito do português brasileiro.

Page 18: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

18

1.2 Objetivos

Se o objeto desta tese é, especificamente, a construção VS de foco sentencial,

seu objetivo, conforme já ficou dito, é duplo: de um lado, explicar, à luz da TEM, a

motivação da alternância SV / VS; de outro, descrever, com base na GC goldbergiana, a

construção gramatical VS. Esta seção se debruça sobre cada um desses objetivos.

1.2.1 Primeiro objetivo: identificar a motivação conceptual da alternância SV / VS

Quando linguistas falam em alternância, eles se referem à possibilidade de

expressar um mesmo conteúdo objetivo por meio de duas estruturas sintáticas distintas.

Alguns exemplos famosos são as alternâncias bitransitiva (Mina sent a book to Mel X

Mina sent Mel a book), locativa (Pat loaded the wagon with the hay X Pat loaded the

hay onto the wagon), ergativa (O sol derreteu o gelo X O gelo derreteu) e ativa/passiva

(A Liana ouviu a música dos Beatles X A música dos Beatles foi ouvida pela Liana). A

“variação” entre estruturas SV e VS também pode, naturalmente, ser encarada como um

fenômeno de alternância, como mostram os exemplos (1) e (2) abaixo:

(1) A polícia chegou

(2) Chegou a polícia

De uma maneira geral, pesquisadores funcionalistas e cognitivistas têm

compartilhado a crença de que as línguas tendem a evitar sinônimos perfeitos6. No

âmbito da LC, essa ideia já foi sintetizada sob a forma do Princípio da Não Sinonímia

(GOLDBERG, 1995) e do Princípio do Contraste (CROFT, 2001). Ambos traduzem o

mesmo insight fundamental: diferenças na forma implicam diferenças no significado

6 Estou assumindo que a relação de sinonímia se aplica não apenas ao léxico, mas também a estruturas

sintáticas (correspondendo, neste caso, à ideia de paráfrase).

Page 19: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

19

(aqui, tomado em sentido amplo e envolvendo, portanto, aspectos semânticos,

pragmáticos, discursivos ou funcionais)7. À luz desse insight, uma alternância como

aquela exibida em (1) e (2) demanda algum tipo de explicação: qual é, afinal, a

diferença de significado entre A polícia chegou e Chegou a polícia?

Neste trabalho, argumentarei que a alternância SV / VS é a manifestação

sintática de uma habilidade cognitiva geral, qual seja, a habilidade de deslocamento do

ponto de vista. Como se vê, o que está em jogo aqui é um processo cognitivo que

pertence, primariamente, ao domínio da percepção: temos a capacidade de apreender

um mesmo objeto (seja no mundo real ou na imaginação) a partir de diferentes pontos

de vista. O que este trabalho sugere é que essa capacidade encontra eco na sintaxe:

alternar entre um uso SV (como A polícia chegou) e sua contraparte VS (Chegou a

polícia) seria, então, em alguma medida análogo a alterar a localização a partir da qual

observamos uma determinada cena8. Nesse sentido, as sentenças em (1) e (2) devem ser

consideradas semanticamente dessemelhantes na medida em que traduzem

conceptualizações distintas de um mesmo cenário.

É a sugestão de que alternância SV / VS envolve deslocamento de ponto de vista

que explica a opção pela Teoria dos Espaços Mentais para dar conta do primeiro

objetivo desta tese. Com efeito, uma série de trabalhos em Linguística Cognitiva se

socorre da TEM para explicar fenômenos que envolvem, de alguma maneira, a noção de

perspectiva. Nessa lista, está o estudo clássico de Cutrer (1994) sobre tempos verbais,

uma série de trabalhos que se debruçam sobre o gerenciamento de pontos de vista

conflitantes no discurso indireto livre (SANDERS; REDEKER, 1996;

7 Outros autores, inclusive alinhados à linguística gerativa, também propuseram alguma versão de um

mecanismo anti-sinonímia. Voltarei a esse ponto no próximo capítulo (seção 2.3.1.1).

8 Por trás desse tipo de explicação, está a crença cognitivista na motivação conceptual da gramática. Em

poucas palavras, trata-se da ideia de que fenômenos gramaticais refletem, em alguma medida, processos

cognitivos gerais, ou seja, não especificamente linguísticos. Voltarei a esse ponto no capítulo 2.

Page 20: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

20

VANDELANOTTE, 2012; NIKIFORIDOU, 2012) e ainda, talvez mais

surpreendentemente, estudos que revelam a importância da noção de ponto de vista na

construção da ironia (TOBIN; ISRAEL, 2012) e em processos de subjetificação

(FERRARI; SWEETSER, 2012). Esta tese pode ser entendida, ao menos parcialmente,

como parte integrante dessa tradição: aqui, irei recrutar o arsenal teórico-descritivo da

Teoria dos Espaços Mentais para explicar a diferença de perspectiva que parece motivar

a alternância entre usos SV e VS no português brasileiro.

1.2.2 Segundo objetivo: descrever a construção gramatical VS

Mais do que um modelo único, o rótulo Gramática de Construções (GC) abrange

um conjunto heterogêneo de modelos teóricos mais ou menos afins. A despeito das

diferenças, todos eles compartilham uma visão comum no que tange à arquitetura da

gramática. Em poucas palavras, trata-se de compreender a gramática das línguas

naturais como uma vasta rede articulada de unidades simbólicas (pareamentos de forma

e significado), que serão chamadas de construções gramaticais. À luz dessa concepção,

o segundo objetivo deste trabalho consiste na caracterização do padrão verbo-sujeito

como uma construção gramatical do português brasileiro.

Para isso, recorrerei, especificamente, à vertente goldbergiana da Gramática de

Construções (GOLBERG, 1995; 2006). A caracterização da construção VS envolverá

dois movimentos. Inicialmente, procedo à descrição do próprio padrão abstrato verbo-

sujeito. Nesse momento, irei sugerir que esse padrão evoca uma cena conceptual

específica – que será denominada Cena de Focalização de Atenção (CFA) – na qual um

indivíduo experiencia diretamente a entrada de uma entidade no seu campo visual. Para

descrever a CFA, recrutarei o arsenal teórico da Gramática Cognitiva de Ronald

Langacker (1987; 1991; 2008). Em seguida, mostrarei como os elementos presentes

Page 21: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

21

nessa cena se associam às relações gramaticais disponíveis no padrão sintático verbo-

sujeito.

Concluída a descrição desse padrão sintático, tratarei, em um segundo momento,

do problema da interação verbo-construção. Nesse momento, dividirei os diversos usos

VS de acordo com as classes de predicadores que instanciam a construção, de maneira a

mostrar como se dá a compatibilização entre o sentido dos verbos e a própria semântica

do padrão abstrato, associada à Cena de Focalização da Atenção.

1.3 Estrutura do trabalho

O próximo capítulo será destinado à fundamentação teórica do trabalho. Como

veremos, a Linguística Cognitiva não constitui um corpo teórico homogêneo e

delimitado; antes, trata-se de um paradigma que abriga um conjunto multifacetado de

modelos e teorias. O capítulo 2 tratará especificamente dos três modelos recrutados

nesta tese e já mencionados acima: a Teoria dos Espaços Mentais, a Gramática de

Construções (com ênfase sobre a vertente golbergiana) e a Gramática Cognitiva de

Ronald Langacker. Em seguida, o capítulo 3 apresenta os procedimentos metodológicos

da pesquisa.

Na sequência, os capítulos 4, 5 e 6 constituem o cerne do trabalho. No capítulo

4, procuro levar a cabo o primeiro dentre os dois objetivos destacados acima: explicar a

alternância SV / VS com base na Teoria dos Espaços Mentais. O capítulo 5, por seu

turno, se ocupa do segundo objetivo: descrever a construção verbo-sujeito com base na

Gramática de Construções goldbergiana e, de forma complementar, na Gramática

Cognitiva langackeriana. Finalmente, o capítulo 6 propõe um diálogo entre a abordagem

desenvolvida nesta tese, ao longo dos capítulos 4 e 5, e outras hipóteses já sugeridas na

literatura para dar conta da inversão do sujeito no PB.

Page 22: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

22

Por último, o capítulo 7 encerra a tese com uma retomada das principais

descobertas e, ao mesmo tempo, com um olhar prospectivo, buscando avaliar os

desdobramentos futuros de uma pesquisa de base cognitivista e construcional sobre a

inversão do sujeito no português brasileiro.

Page 23: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

23

2 Fundamentação teórica:

caminhos da Linguística Cognitiva

A história da Linguística Cognitiva (LC) se inicia em fins da década de 70 do

século passado. É nesse momento que um pequeno grupo de pesquisadores, trabalhando

de forma independente, começa a questionar o princípio gerativista da autonomia da

forma gramatical. Embora desenvolvidos a partir de interesses teóricos diversos, os

trabalhos pioneiros de George Lakoff, Ronald Langacker, Leonard Talmy, Charles

Fillmore e Gilles Faucconier compartilham a crença de que a linguagem humana é

conceptualmente motivada. Na prática, isso significa que a forma linguística não se

encerra nos limites estreitos da própria forma. Em vez disso, ela reflete, em larga

medida, habilidades cognitivas gerais (quer dizer, não especificamente linguísticas),

como a capacidade de estabelecer relações analógicas entre domínios, categorizar

entidades, deslocar o foco de atenção e assumir diferentes pontos de vista, dentre muitas

outras. Em suma, para citar o slogan apenas aparentemente tautológico de Goldberg

(1995, p. 5), a ideia fundamental é a de que “conhecimento linguístico é conhecimento”.

A ênfase sobre as habilidades cognitivas do sujeito aponta para uma segunda

característica marcante da LC: a opção por uma semântica subjetivista. Por

subjetivismo, entende-se a preocupação não apenas com o conteúdo objetivo de uma

determinada unidade linguística (o objeto conceptualizado), mas também com os

indivíduos responsáveis por construir esse conteúdo (os sujeitos conceptualizadores).

Por essa razão, praticantes da Linguística Cognitiva têm se interessado pelos

mecanismos que permitem enquadrar eventos e cenários de diferentes maneiras – por

Page 24: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

24

exemplo, deslocando a perspectiva, invertendo a relação figura/fundo, aumentando ou

diminuindo o zoom, etc.

De fins dos anos 70 para cá, essa posição teórica ganhou corpo, conquistou

adeptos e acabou por originar um “movimento autoconsciente” (LANGACKER, 1991b,

p. ix), que veio a ser conhecido como Linguística Cognitiva. Para Langacker (1991), é o

ano de 1989 que marca a institucionalização desse movimento: foi quando aconteceu a I

Conferência Internacional de Linguística Cognitiva, na qual se decidiu pela criação da

ICLA (International Cognitive Linguistics Association) e se anunciou o lançamento do

periódico Cognitive Linguistics, cujo primeiro número viria à luz no ano seguinte.

Se a partir deste momento a LC ganha ares de movimento coeso, cujo inimigo

declarado é a linguística gerativa e sua crença na autonomia da gramática, a verdade é

que a empreitada cognitivista nunca chegou a se constituir como uma teoria unificada

da linguagem. Não surpreendentemente, Geeraerts (2006, p. 2) se refere à Linguística

Cognitiva como um “arquipélago”, e Geeraerts e Cuyckens (2007, p. 5) sugerem que a

LC deve ser entendida, ela própria, como uma categoria do tipo family resemblance

(“semelhança de família”): um “aglomerado de diversas abordagens parcialmente

coincidentes”.

Trata-se, certamente, de uma família numerosa – ou de um arquipélago extenso.

No mínimo, ele inclui ilhas como o a Teoria dos Protótipos, a Teoria da Metáfora

Conceptual, a Gramática Cognitiva, a Teoria dos Espaços Mentais, a Teoria da

Integração Conceptual, a Semântica de Frames e a Gramática de Construções9 – para

citar apenas algumas das mais conhecidas10

. Este capítulo, claro, não promoverá um

9 Que poderia, ela própria, ser tratada como uma categoria por semelhanças de família, dada a

multiplicidade de “gramáticas de construções” mais ou menos afins.

10

Para uma problematização do status de diferentes conceitos, modelos e teorias que gravitam na órbita

da LC, ver Gerhardt (2003).

Page 25: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

25

tour por todas as ilhas, mas apenas por aquelas que se mostram diretamente relevantes

para a proposta desenvolvida nos capítulos 4 e 5.

E quais são elas? Como vimos, o fenômeno da inversão do sujeito no PB será

investigado aqui a partir de duas perspectivas complementares. No capítulo 4, ele é

observado através das lentes da Teoria dos Espaços Mentais (FAUCONNNIER, 1994;

1997; SANDERS; SANDERS; SWEETSER; 2009; 2012; FERRARI; SWEETSER,

2012), aí incluído um de seus desdobramentos mais interessantes: a chamada Teoria da

Integração Conceptual (FAUCONNIER; TURNER, 2002). O capítulo 5, por sua vez,

procura descrever a ordem VS, de maneira sistemática, como uma construção

gramatical, ou seja, um pareamento convencional de forma e significado. Esse

tratamento segue as linhas gerais da versão goldbergiana da Gramática de Construções,

cujas obras-síntese são Goldberg (1995; 2006). Nesse momento, com o objetivo de

caracterizar com mais precisão o polo semântico da construção VS, recorro ainda ao

instrumental descritivo da Gramática Cognitiva langackeriana (LANGACKER, 1987;

1991; 2008).

São três, portanto, as ilhas teóricas a serem exploradas ao longo deste capítulo: a

Teoria dos Espaços Mentais (aí incluída a mesclagem conceptual), apresentada na seção

2.1; a Gramática Cognitiva langackeriana, que terá alguns dos seus conceitos básicos

discutidos na seção 2.2; e a Gramática de Construções (em particular, a vertente

goldbergiana), cujas premissas centrais são expostas na seção 2.3. Por fim, a seção 2.4

sintetiza os pontos mais importantes.

2.1 A Teoria dos Espaços Mentais

Hoje uma das ilhas mais vistosas do arquipélago cognitivista, a Teoria dos

Espaços Mentais (TEM), começou a se desenvolver em meados da década de 70, graças

Page 26: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

26

ao trabalho pioneiro de Gilles Fauconnier. Como deixa clara a primeira obra publicada

sobre o modelo (FAUCONNIER, 1994 [1985]), a intenção original era oferecer

soluções simples e elegantes para certos problemas teóricos – fundamentalmente,

ambiguidades referenciais e transferência de pressuposição – que vinham se mostrando

especialmente resistentes a abordagens realistas e lógico-formais do significado,

tributárias da tradição da filosofia analítica.

Um exemplo clássico de ambiguidade referencial é dado pela seguinte sentença,

discutida por Fauconnier (1994, p. 49):

(3) Édipo acredita que vai se casar com sua mãe.

Essa sentença vincula-se a pelo menos dois significados, capturados pelas

paráfrases (3a) e (3b) abaixo: a primeira corresponde ao que é tradicionalmente

conhecido como interpretação transparente (ou de re), em que nomes e descrições são

atribuíveis ao falante; a segunda corresponde à interpretação opaca (ou de dicto), em

que nomes e descrições são atribuíveis ao “pensador” (o indivíduo cujo pensamento está

sendo linguisticamente expresso; neste caso, Édipo).

(3a) Édipo acredita que vai se casar com a pessoa que nós sabemos ser sua mãe

(embora ele não o saiba).

(3b) Édipo acredita que vai se casar com uma a pessoa que ele acredita ser sua

mãe.

Por que usos como (3) se mostraram historicamente problemáticos à luz das

semânticas formais e vericondicionais? Como observa Fauconnier (2007), uma fonte de

Page 27: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

27

dificuldade reside no fato de que sentenças com contextos opacos têm o potencial de

infringir a Lei de Leibniz (ou lei de substituição dos idênticos), segundo a qual, se a = b,

então os dois termos são intercambiáveis em uma proposição sem que isso altere seu

valor de verdade. Ocorre que, se uma sentença como (3) pode ser falsa (caso se

considere a leitura (3b)), a substituição de “sua mãe” por “Jocasta” a torna

necessariamente verdadeira. Aqui, portanto, a “substituição de idênticos” parece falhar,

já que ela pode promover a alteração do valor de verdade da proposição.

A resposta tradicional a esse problema envolve a postulação de “mundos

possíveis”, ou realidades alternativas: assim, teríamos o mundo real (em que Jocasta é a

mãe de Édipo) e o mundo da crença de Édipo (no qual Jocasta não é sua mãe). Croft e

Cruse (2004) notam que, de um ponto de vista filosófico, esse tipo de solução dá

margem ao seguinte questionamento: em que consistem exatamente esses mundos

possíveis? Em se tratando de uma perspectiva realista, a resposta está longe de ser

óbvia. Se não se trata do próprio mundo real, então onde encontrá-los? Trocando em

miúdos: qual a natureza desses “mundos possíveis”11

?

A solução proposta por Fauconnier passa pela substituição de uma visada

realista por uma abordagem cognitivista. Com isso, no lugar dos mundos possíveis,

entram os espaços mentais. Em poucas palavras, espaços mentais são estruturas

cognitivas efêmeras criadas continuamente durante o desenrolar de uma interação

11

Além da sua implausibilidade metafísica, os “mundos possíveis” padecem de um segundo problema,

observado por Fauconnier (1994, p.xxxvi). Em uma perspectiva realista, o significado de um nome ou

descrição decorre da relação de referência direta que ele estabelece com uma determinada entidade

(situada no mundo real ou, vá lá, em algum mundo possível). Mas, com frequência, nomes e descrições

linguísticas (incluindo descrições definidas) não se referem a entidades individuais, e sim a papéis ou

categorias (“roles”) – e, nesses casos, não é possível falar em uma relação de referência direta. É o que

ocorre em usos como “Ele gosta de usar o boné com a aba pra trás”, em que a descrição definida “o boné”

se refere a uma categoria geral, e não a um boné específico. Mesmo (1) pode apresentar uma leitura

genérica desse tipo, como notado por Fauconnier (1994, p. 50). Trata-se da seguinte interpretação: Édipo

acredita que quem quer que se descubra ser sua mãe é a pessoa com quem ele irá se casar. Nesse caso, a

descrição “sua mãe” não corresponde a um referente individual (seja ele Jocasta ou Mérope), mas

meramente a uma categoria.

Page 28: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

28

comunicativa e utilizadas para compartimentar e gerenciar o fluxo de informação. Isso

resolve o problema filosófico levantado por Croft e Cruse. Afinal, não é difícil apontar a

natureza e a localização dos espaços mentais: trata-se de estruturas cognitivas, que,

como tais, existem na mente dos interlocutores – e, ainda mais concretamente, no

cérebro12

.

Nesse sentido, a explicação de Fauconnier para a ambiguidade de (3) não

envolve a postulação de dois “mundos possíveis”, mas de dois espaços mentais: um

Espaço da Realidade (também chamado de Espaço Base) correspondente ao mundo real

(do mito), no qual a mãe de Édipo é Jocasta, e um espaço M correspondente às crenças

de Édipo, no qual a mãe de Édipo não é Jocasta, mas Mérope.

Até este ponto, procurei apresentar o contexto de surgimento da TEM – a reação

às abordagens realistas e lógico-formais do significado – bem como definir seu conceito

central, qual seja, a noção de espaço mental. A partir de agora, volto-me para um outro

tipo de questão. A saber: como a teoria funciona na prática, operacionalizando a análise

e representação de sentenças como (3)? É o que veremos nas próximas seções.

2.1.1 O funcionamento do modelo (I): space builders e projeções entre domínios

Observem-se as sentenças abaixo:

(4) O Rafinha é craque.

(5) No futuro, o Rafinha será craque.

(6) O Fafá acredita que o Rafinha é craque.

(7) Na cabeça maluca do Fafá, o Rafinha é craque.

(8) O Fafá quer que o Rafinha seja craque.

12

Ver Coulson, Urbach e Kutas (2006) para evidências a favor da realidade psicológica dos espaços

mentais e das projeções entre eles.

Page 29: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

29

A sentença em (4) é interpretada, tipicamente, como uma informação relativa à

realidade imediata dos interlocutores. Na Teoria dos Espaços Mentais (ao menos, na sua

versão mais tradicional, como veremos adiante), isso significa que ela será construída

no Espaço Base (B), definido como âncora ou ponto de partida do discurso e

normalmente identificado com o aqui-e-agora da interlocução13

. Aqui, portanto, apenas

o Espaço Base está envolvido na interpretação da sentença, como se vê abaixo:

r

Espaço Base

Figura 1: Representação de O Rafinha é craque

Como se vê, o elemento r (Rafinha) está presente no próprio Espaço Base,

representando o fato de que a situação RAFINHA SER CRAQUE é interpretada como um

fato presente e real (interpretação default, adotada na ausência de sinalização em

contrário).

O mesmo não vale, porém, para os demais exemplos: em todos eles, a situação

RAFINHA SER CRAQUE é compreendida como uma informação que se aplica não à Base,

mas a algum outro domínio de interpretação (ou seja, outro espaço mental). Esses

domínios são os seguintes: em (5), o tempo futuro; em (6) e (7), a crença do Fafá; em

(8), o desejo do Fafá. Na prática, portanto, as representações de (5) a (8) irão se

13

Em Fauconnier (1994 [1985]), o Espaço Base é chamado de Espaço da Realidade (R).

r: Rafinha

CRAQUE r

Page 30: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

30

distinguir da de (4) por incluírem dois espaços mentais: o Espaço Base e algum espaço

adicional, quer seja de futuro, crença ou desejo.

Em todos esses exemplos, a abertura desse espaço adicional é sinalizada de

maneira explícita, por meio de alguma expressão linguística. Expressões desse tipo,

cujo propósito é fornecer instruções para a ativação de um novo espaço mental, são

chamadas de space builders, ou construtores de espaços. Em (5), os spaces builders

responsáveis por promover a abertura do Espaço de Futuro são o sintagma

preposicionado e o sufixo modo-temporal do verbo. Em (6) e (7), a abertura de um

mesmo Espaço de Crença é indicada por estruturas formalmente distintas: no primeiro

caso, o verbo “acreditar”; no segundo, o sintagma preposicionado. Por fim, em (8), é o

verbo “querer” que funciona como space builder do Espaço de Desejo. Ferrari (2011, p.

111-112) apresenta a seguinte lista ilustrativa dos tipos mais comuns de space builders:

TIPO DE ESPAÇO CRIADO EXEMPLO

Espaços geográficos Na Índia, as vacas são animais sagrados

Espaços temporais Em 1964, Martin Luther King ganhou o Prêmio Nobel da Paz

Espaços condicionais Se o presidente viajar, o vice assumirá o cargo.

Espaços contrafactuais Como seria a Terra, se tivesse anéis como os de Saturno?

Espaços de representação No quadro, a moça de cabelo louro contempla a paisagem.

Espaços de domínios de atividade

No futebol americano, há jogadores que apenas defendem.

Tabela 2: Tipologia não-exaustiva de space builders (FERRARI, 2011)

Page 31: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

31

Se é verdade que (5) a (8) se distinguem de (4) por incluírem um espaço

adicional (e um space builder que sinaliza a abertura desse espaço), também é fato que

essa não é a única diferença. Outro ponto importante é o seguinte: enquanto (4) conta

com apenas um Rafinha (aquele representado pelo elemento r no Espaço Base), os

demais exemplos incluem, por assim dizer, “dois Rafinhas”. Por um lado, há o Rafinha

do Espaço de Futuro, ou de Crença, ou de Desejo: aquele a quem se aplica o atributo

“craque”. Por outro, deverá haver também uma representação para o jogador Rafinha no

Espaço Base, na medida em que esse indivíduo já existe aqui e agora (embora não com

o atributo de craque). A título de ilustração, vejamos o esquema de (5):

r

Espaço Base (B)

r’

Espaço de Futuro (F)

Figura 2: Representação de No futuro, o Rafinha será craque

O diagrama acima mostra claramente os “dois Rafinhas”: aquele representado

por r (B), que não é craque, e aquele representado por r’ (F), que é craque. Aqui, é

importante atentar para a linha que vincula os dois elementos: ela traduz visualmente a

r’: Rafinha

CRAQUE r

r: Rafinha

Page 32: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

32

ideia de que r e r’ se referem, em alguma medida, à mesma pessoa (mas só “em alguma

medida”, porque o segundo tem uma propriedade que o primeiro não tem).

Essa conexão entre elementos de espaços distintos é um dos mecanismos mais

importantes da TEM. Em Fauconnier (1994, p. 3), ele é formalizado por meio do

Princípio da Identidade (ou Princípio do Acesso), que estabelece o seguinte:

Se dois objetos (em sentido maximamente abrangente), a e b,

estão ligados por uma função pragmática F (b = F(a)), uma

descrição de a, da, pode ser usada para identificar sua

contraparte b.

Assim, de acordo com o Princípio de Identidade, temos, nos exemplos (5) a (8),

uma função pragmática ligando r (o Rafinha real e presente, que não é craque) a r’ (o

Rafinha craque, esteja ele no futuro, na crença do Fafá ou no desejo do Fafá).

Em suma, até aqui vimos algumas das categorias que compõem o arsenal

teórico-descritivo da TEM: os espaços mentais, os space builders e a função

pragmática, que evidencia as conexões ou correspondências entre espaços. Munidos

desse aparato, podemos ver agora como a teoria explica a ambiguidade de (3) (leitura

transparente versus leitura opaca), retomado e renumerado abaixo:

(9) Édipo acredita que vai se casar com sua mãe.

Conforme já comentado, temos aqui dois espaços mentais: um Espaço da

Realidade ou Espaço Base, indicado pela letra R e correspondente ao mundo real (do

mito), e um espaço M correspondente às crenças de Édipo (que, como sabemos, não

Page 33: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

33

correspondem aos fatos). Esses dois espaços, com seus respectivos elementos e ligações

entre eles, estão representados na figura 3.

m m’

j1 j2

p1 p2

R M

Figura 3: Representação da ambiguidade referencial em (9), segundo Fauconnier (1994 [1985])

Como se vê, ambos os espaços incluem referentes que correspondem (i) ao papel

de mãe de Édipo (m no espaço R e sua contraparte m’ no espaço M), (ii) a Jocasta, sua

mãe verdadeira (j1 no espaço R e sua contraparte j2 no espaço M) e (iii) a Mérope, a

mulher que ele acredita ser sua mãe (p1 no espaço R e sua contraparte p2 no espaço M).

De resto, as linhas que vinculam m a m’, j1 a j2 e p1 a p2 traduzem visualmente a ideia

de que esses referentes dizem respeito, em alguma medida, à mesma entidade ou

conceito.

As semelhanças, contudo, terminam aí. Em R, como se vê, existe uma ligação,

indicada pela seta pontilhada, entre m e j1, sugerindo que, nesse espaço, é Jocasta quem

desempenha o papel de mãe de Édipo. Por outro lado, em M, a ligação se dá entre m’ e

m: mãe de Édipo (papel)

j1: Jocasta

p1: Mérope

m’: mãe de Édipo (papel)

j2: Jocasta

p2: Mérope

Page 34: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

34

p2, traduzindo o engano de Édipo em relação a sua ascendência. Diante disso, a

diferença entre as leituras em (3a) e (3b) pode ser explicada como segue. Na primeira, a

descrição definida “sua mãe” se aplica a j1 (que se liga j2 a por uma relação de

identidade), representando a seguinte ideia: a pessoa com quem Édipo acredita que vai

se casar é a mulher que nós sabemos ser sua mãe (interpretação transparente,

verdadeira). Na segunda, a mesma descrição se aplica a p2 (que se liga p1 por uma

relação de identidade), representando a seguinte ideia: a pessoa com quem Édipo

acredita que vai se casar é a mulher que ele sabe ser sua mãe (intepretação opaca,

falsa)14

.

Outro tipo de ambiguidade explicada de forma elegante pela TEM diz respeito

aos casos em que descrições indefinidas podem receber duas interpretações. Um

exemplo é a sentença em (10), abaixo.

(10) O Flamengo quer contratar um atacante famoso.

Essa sentença admite duas leituras: uma genérica, na qual o Flamengo quer

contratar qualquer atacante que seja famoso, e outra específica, segundo a qual

Flamengo quer contratar um atacante determinado (digamos, o Messi), o qual é famoso.

A primeira intepretação está representada na figura 4, ao passo que a segunda é

traduzida visualmente pela figura 5.

14

Talvez o leitor esteja sentindo falta aqui de alguma categoria que traduza a ideia de ponto de vista, o

que tornaria tudo mais simples: a leitura em (2a) envolve o ponto de vista do falante, enquanto a de (2b)

se funda na perspectiva do próprio Édipo. Com efeito, Vandelanotte (2012), em uma análise baseada em

espaços mentais, explica a ambiguidade de Oedipus said that his mother was beautiful a partir da

alternância de ponto de vista no discurso indireto (ponto de vista do falante ou do personagem cujo

discurso é reportado). Ocorre, porém, que a explicação apresentada aqui é aquela de Fauconnier (1994

[1985]), obra que marca o estágio inicial de desenvolvimento da teoria, quando a noção de Ponto de Vista

ainda não havia sido incorporada. Isso ficará mais claro na seção 2.1.2.

Page 35: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

35

a’

a

m’

R F

Figura 4: Representação da leitura genérica de (10)

a a’

m m’

R F

Figura 5: Representação da leitura específica de (10)

No segundo caso, o referente m’, do espaço F (espaço do desejo do Flamengo),

tem uma contraparte m no espaço R (espaço da realidade), indicando que o atacante

desejado pelo clube corresponde a um indivíduo determinado do mundo real. No

primeiro caso, o referente m’, embora se ligue a a’ (que corresponde ao papel atacante

a: atacante famoso (papel) a’: atacante famoso (papel)

m’: atacante famoso

a’: atacante famoso (papel)

m’: atacante famoso

a: atacante famoso (papel)

m: atacante famoso

Page 36: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

36

famoso), não tem contraparte em R, sugerindo a leitura genérica: trata-se de qualquer

um que se insira na categoria de atacante famoso, sem correspondência com algum

jogador específico.

Assim como o problema da opacidade referencial, a questão do “escopo dos

indefinidos” também desafia as semânticas de inspiração lógico-formal. A saída clássica

consiste em considerar que o indefinido pode ter dois significados: um específico,

correspondente em forma lógica ao quantificador existencial, e outro genérico,

traduzido pelo quantificador universal. Em uma abordagem baseada em espaços

mentais, por outro lado, essa diferença é apenas um efeito incidental da aplicação do

Princípio de Acesso: em uma leitura, há uma relação de identidade entre m e m’, ao

passo que na outra interpretação esse vínculo está ausente. Como notam Lakoff e

Sweetser (1994), essa explicação é mais econômica porque não é preciso postular dois

sentidos diferentes para o artigo indefinido. Em vez disso, entende-se que esse artigo

tem uma função semântica única e invariante: introduzir um novo elemento em um

determinado espaço mental.

Uma evidência bastante convincente da superioridade dessa abordagem é a

seguinte: por postular diretamente dois sentidos para o determinante indefinido (um

existencial/específico e um universal), o tratamento lógico-formal naturalmente só

poderá explicar os casos em que a ambiguidade das descrições indefinidas remonta à

oposição entre especificidade e generalidade. Mas como explicar a ambiguidade de uma

sentença como (11), adaptada de Fauconnier (1994, p. 24)?

(11) Liana pintou uma árvore.

Page 37: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

37

Aqui, o sintagma “uma árvore” pode se referir tanto ao “modelo” que foi pintado

por Liana (na interpretação mais imediata, a árvore do mundo real cuja aparência a

pintora procurou reproduzir na tela) quanto à representação pictórica. Neste caso, ambas

as interpretações são específicas; portanto, não é possível explicá-las por meio do

tratamento lógico-formal clássico para a ambiguidade das descrições indefinidas.

Por outro lado, a TEM prevê diretamente a possibilidade de ambiguidade em

(11). Como o verbo “pintar” é um space builder, temos aqui um Espaço de

Representação R, no qual há um referente a’ representando a árvore. Além disso, temos

também, por definição, um Espaço Base, no qual pode ou não haver um elemento a

correspondendo à árvore real (na interpretação em que o sintagma indefinido

corresponde à árvore pictórica, não necessariamente há um modelo do mundo real).

Assim, a descrição indefinida pode se referir diretamente a a’ (com ou sem

correspondência com uma contraparte a no Espaço Base) ou pode se referir diretamente

a a, no Espaço Base, e apenas indiretamente, via Princípio de Acesso, a a’ no Espaço da

Representação.

Os exemplos (4) a (11) devem ter dado uma boa ideia inicial sobre como a TEM

lida, na prática, com problemas de referência, graças a constructos teóricos como

espaços mentais, funções pragmáticas e space builders. Mas o fato é que, depois do

trabalho seminal de Fauconnier (1994 [1985]), a teoria incorporou novos conceitos e,

principalmente, ampliou seu raio de ação. É o que veremos a seguir.

2.1.2 O funcionamento do modelo (II): os primitivos discursivos

Vimos que, nos seus estágios iniciais, a TEM se desenvolveu como uma reação

às semânticas de inspiração formalista. Isso explica o conjunto de fenômenos

contemplado em Fauconnier (1994 [1985]): fundamentalmente, problemas ligados à

Page 38: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

38

ambiguidade referencial e à questão da transferência de pressuposição. Outros autores,

porém, não demoraram a se dar conta de que o modelo poderia explicar, de forma

igualmente elegante e econômica, uma série de outros fenômenos linguísticos. Um

marco desse segundo momento é a tese de doutorado de Cutrer (1994) sobre tempos

verbais15

.

A contribuição fundamental de Cutrer é a sistematização dos chamados

primitivos discursivos. Trata-se de quatro constructos teóricos, correspondentes a tipos

distintos de espaços mentais, que se mostram necessários para dar conta do novo objeto

sobre o qual a TEM se debruçava: a representação linguística do Tempo (“time”) por

meio dos tempos verbais (“tenses”). Os primitivos discursivos propostos por Cutrer

(1994) são os seguintes: Base, Foco, Ponto de Vista e Evento16

.

O Espaço Base, como já ficou dito, é o ponto de partida ou âncora do discurso:

ele diz respeito à realidade compartilhada inicialmente entre os interlocutores, a partir

da qual outras realidades poderão ser criadas. O Espaço Foco (F), por sua vez, é aquele

no qual se estrutura a informação que está sendo veiculada num dado momento: é

sempre, portanto, o espaço correntemente ativado. O Espaço Ponto de Vista (PV) é

aquele a partir do qual a informação contida em outro espaço é acessada: trata-se do

“centro de conceptualização e consciência do self a quem o enunciado é atribuído”

(CUTRER, 1994, p. 73)17

. Por fim, o Espaço de Evento é o espaço temporal que

corresponde ao momento de ocorrência do evento expresso pelo verbo.

15

Fauconnier (1994) menciona o livro Partitioned representations, de John Dinsmore, publicado em

1991, como um antecedente importante da proposta de Cutrer (1994).

16

O primeiro, como vimos, já está presente na versão anterior do modelo, sendo chamado de Espaço de

Realidade em Fauconnier (1994 [1985]). O segundo, como notam tanto Cutrer (1994) quanto Fauconnier

(1994), aparece na obra já citada de John Dinsmore, que também trata de tempos verbais.

17

Como nota Ferrari (2011), esse self corresponde em geral ao próprio falante. Mas isso não é obrigatório

– e, com efeito, a possibilidade de que cenários sejam conceptualizados a partir de pontos de vista

alternativos, diferentes daquele do falante, é crucial para este trabalho. Esse ponto ficará mais claro no

capítulo 4.

Page 39: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

39

Para ilustrar esses conceitos, recorro ao breve texto abaixo, uma adaptação de

um exemplo discutido por Fauconnier (1994, p. 73):

(12) Mari tem 30 anos. Em 2008, ela morou na Inglaterra. Em 2009, ela se

mudaria para Roma. Mas, em 2008, ela se apaixonou e decidiu permanecer

na Inglaterra.

A representação de (12) se inicia pelo Espaço Base, onde se estrutura a

informação sobre a idade de Mari. Nesse momento, o Espaço Base é o único disponível,

correspondendo também ao Espaço Foco, Ponto de Vista e de Evento. Assim:

BASE

m FOCO

PV

t EVENTO

Figura 6: Representação de Mari tem 30 anos

A informação da sentença seguinte é construída em um novo espaço mental,

aberto pelo space builder “Em 2008”. O Foco e o Evento se deslocam para esse novo

espaço, já que a sentença agora fala diretamente sobre um fato passado. No entanto, o

Ponto de Vista segue na Base: afinal, é a partir do momento presente (da interação) que

“olhamos” para esse evento passado e o conceptualizamos:

m: Mari

t: 30 anos

TER m, t

Page 40: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

40

m BASE

PV

t

FOCO

m’ EVENTO

i

Espaço de Passado

(Em 2008)

Figura 7: Representação de Em 2008, ela morou na Inglaterra

Com a sentença seguinte, e a abertura de um novo espaço mental por meio do

space builder “Em 2009”, o Ponto de Vista é finalmente deslocado. Note-se que, neste

caso, a informação MARI MUDAR-SE PARA ROMA é apresentada como um fato futuro em

relação ao ano de 2008 (que, como vimos, é passado em relação ao momento de fala).

Aqui, portanto, o espaço aberto pelo sintagma “Em 2008”, que na passagem anterior

estava em Foco, passa a abrigar o Ponto de Vista (em outras palavras, estamos falando

aqui do valor semântico clássico do futuro do pretérito):

m’: Mari

i: Inglaterra

MORAR m’, i

Page 41: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

41

m BASE

t

PV m’

i Espaço de

Passado

(Em 2008)

r FOCO

m’’ EVENTO

Espaço de Futuro

(em 2009)

Figura 8: Representação de Em 2009, ela se mudaria para Roma

Finalmente, a última sentença nos leva de volta para o espaço correspondente ao

ano de 2008. Esse espaço, portanto, volta a abrigar os primitivos Foco e Evento – e, da

mesma maneira, o Ponto de Vista retorna para a Base. São acrescentadas duas

informações ao Espaço Foco: a de que Mari se apaixonou e a de que ela decidiu

permanecer na Inglaterra.

m’: Mari

r: Roma

MUDAR-SE m’’, r

Page 42: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

42

m BASE

PV

t

FOCO

m’ EVENTO

i Espaço de

Passado

(Em 2008)

r

m’’

Espaço de Futuro

(Em 2009)

Figura 9: representação de Mas, em 2008, ela se apaixonou e...

A despeito da artificialidade desse texto (ou talvez por isso mesmo), ele deve ter

dado uma boa ideia de como funciona o gerenciamento dos primitivos discursivos

sistematizados por Cutrer (1994). Como se vê, compreender esse passagem envolve não

apenas fracionar as informações em diferentes espaços mentais como também

manipular os primitivos discursivos a partir das instruções fornecidas pelos elementos

linguísticos (neste caso, os advérbios temporais e os morfemas modo-temporais dos

verbos).

m’: Mari

i: Inglaterra

MORAR m’, i

APAIXONAR-SE m’

PERMANECER m’, i

Page 43: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

43

2.1.3 A versão BCSN

Vimos acima que a tese de Cutrer (1994), precedida pelo trabalho de John

Dinsmore, alargou as fronteiras da TEM ao propor um tratamento para a expressão

linguística do tempo e, ao mesmo tempo, sistematizar um conjunto de primitivos

discursivos. Novas pesquisas, porém, conduziram a desenvolvimentos ainda mais

instigantes. Nesta seção, apresento a versão da Teoria dos Espaços Mentais

desenvolvida por Sanders, Sanders e Sweetser (2009; 2012) e por Ferrari e Sweetser

(2012). Por razões que ficarão mais claras ao final da seção, esse modelo será referido

como BCSN, sigla para Basic Communicative Spaces Network.

As inovações trazidas pela versão BCSN decorrem de dois insights

fundamentais. O primeiro diz respeito à necessidade de estabelecer uma separação entre

o ato de interação em si mesmo e o conteúdo efetivamente comunicado. Pensemos no

exemplo (12), discutido na seção anterior. Como vimos, a informação associada à

sentença “Mari tem 30 anos” é estruturada no Espaço Base. Isso se justifica pelo fato de

se tratar de uma informação presente e real, que coincide com o aqui-e-agora dos

interactantes. Ou seja: a Base é, ao mesmo tempo, o “lugar” onde estão os

interlocutores, sujeitos de comunicação e conceptualização, e o espaço onde está a Mari,

objeto comunicado e conceptualizado. O problema está, precisamente, na mistura entre

esses dois planos. Embora, neste caso, exista uma coincidência temporal entre eles,

trata-se de níveis qualitativamente distintos: uma coisa é o ato de interação em que os

interlocutores se alternam nos papéis de falante e ouvinte(s); outra é o conteúdo

efetivamente conceptualizado e veiculado pelo discurso.

Essa separação, reitere-se, é um dos pilares da versão BCSN. O plano da

situação comunicativa (o aqui-e-agora interacional) tem sido chamado alternativamente

de Centro Dêitico da Comunicação (SANDERS; SANDERS; SWEETSER, 2009; 2012)

Page 44: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

44

e de ground (FERRARI; SWEETSER, 2012), termo também empregado na gramática

langackeriana e definido da seguinte maneira: “O evento de fala, seus participantes e

suas circunstâncias imediatas” (LANGACKER, 1991, p. 548). Por seu turno, o plano do

conteúdo efetivamente comunicado/conceptualizado corresponde ao Domínio do

Conteúdo (DC). Em uma representação simplificada (a ser incrementada adiante), essa

divisão pode ser capturada assim:

Espaço Base Espaço de Conteúdo

Figura 10: Representação simplificada do modelo BSCN da Teoria dos Espaços Mentais

Em um modelo desse tipo, portanto, a situação comunicativa é representada

separadamente do conteúdo veiculado. Assim, diferentemente do que vimos na

representação dos espaços mentais de (12), o Espaço Base não incluirá mais os

referentes sobre os quais se fala, e sim as próprias circunstâncias da interação –

notadamente, o falante, o ouvinte, o momento de fala e o espaço onde transcorre o ato

de comunicação. É claro que nós podemos transformar esses elementos em objetos de

enunciação – é isso que fazem os dêiticos, afinal de contas. Mas, nesse caso, eles serão

representados duas vezes (e associados via função pragmática): no Centro Dêitico da

Centro Dêitico Domínio da Comunicação do Conteúdo (Ground)

Page 45: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

45

Comunicação, como elementos integrantes da própria situação comunicativa, e no

Domínio de Conteúdo, na condição de referentes sobre os quais se está falando.

A mesma separação representada na figura 10 é capturada por meio do conceito

langackeriano de “viewing arrangement”, ou arranjo de visualização (LANGACKER,

1991; 2008). Definido de maneira ampla, um arranjo de visualização consiste em uma

relação assimétrica entre um sujeito visualizador (“viewer”) e um objeto visualizado.

Langacker (2008) sugere que o termo deve ser entendido de forma abrangente, podendo

ser aplicado tanto a situações de uso linguístico quanto a casos em que a relação não é

mediada pela linguagem. Por exemplo, a relação estritamente perceptual entre um

observador de pássaros e os pássaros observados é um tipo de arranjo de visualização

que não envolve interação linguística. Por outro lado, toda situação comunicativa se

organiza a partir de um arranjo de visualização. Neste caso, os “visualizadores” (ou

conceptualizadores) são o falante e o ouvinte, ao passo que a “situação visualizada” (ou

conceptualizada) corresponde ao próprio significado das expressões linguísticas

(LANGACKER, 2008, p. 73-74). Neste trabalho, para me referir ao visualizador em

sentido amplo (quer se trate, por exemplo, de um falante ou de um observador de

pássaros), empregarei indiferentemente as expressões sujeito conceptualizador, sujeito

cognoscente ou sujeito de consciência (esta última, utilizada também por Sanders,

Sanders e Sweetser (2009; 2012))18

.

No que se refere, especificamente, ao arranjo de visualização que estrutura a

interação linguística, Verhagen (2005, p. 8) o esquematiza da seguinte maneira:

18

Voltarei a este ponto no capítulo 4, quando procurarei demonstrar a utilidade de distinguir entre os dois

tipos de arranjo visualização para explicar a semântica da ordem VS.

Page 46: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

46

Nível O: objeto de conceptualização

Nível S: sujeito de conceptualização

Figura 11: Esquema do arranjo de visualização, segundo Verhagen (2005)

Neste esquema, o nível S corresponde ao aqui-e-agora interacional, vale dizer,

ao plano da situação comunicativa (cada círculo da metade de baixo representa um

interlocutor). Ele equivale, portanto, ao ground ou Centro Dêitico da Comunicação. Por

sua vez, o nível O diz respeito às informações efetivamente comunicadas e

conceptualizadas pelos interlocutores, correspondendo assim ao Domínio do Conteúdo.

Neste trabalho, tomarei como sinônimos os termos Centro Dêitico da Comunicação,

ground e nível do sujeito (ou nível S), bem como os termos Domínio do Conteúdo e

nível do objeto (ou nível O)19

.

A separação entre o ground e Domínio do Conteúdo é, no entanto, apenas o

primeiro dos dois insights que motivam a versão BCSN. O segundo é a ideia de que o

19

Que ganho teórico se obtém ao incorporar a noção langackeriana de arranjo de visualização – a relação

assimétrica entre sujeitos conceptualizadores (ground) e objeto conceptualizado (conteúdo) – à Teoria dos

Espaços Mentais? Fundamentalmente, esse incremento torna a teoria apta para lidar com um fenômeno

discutido pioneiramente, no âmbito da Linguística Cognitiva, por Ronald Langacker (1990): a questão da

subjetividade / subjetificação. Simplificadamente, o grau de subjetividade / objetividade de expressões

linguísticas reside da interação entre os níveis S e O. Desse modo, ao formalizar uma representação

separada para cada um desses níveis, o modelo BSCN permite que a Teoria dos Espaços Mentais

desenvolva mecanismos capazes de explicar fenômenos de subjetificação, tanto em perspectiva sincrônica

quanto diacrônica. Para a análise de casos concretos, ver Sanders, Sanders e Sweetser (2009; 2012),

Ferarri e Alonso (2009) e Ferrari e Sweetser (2012).

Page 47: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

47

self não é unificado, mas heterogêneo20

. Dito informalmente, os interlocutores não são

apenas sujeitos que, estando engajados em uma situação comunicativa, executam atos

de fala. Eles têm, ainda, pelo menos outras duas facetas: são pessoas físicas localizadas

em um determinado espaço-tempo real e são seres pensantes, ou seja, dotados de

estados mentais. Se o self é múltiplo, ou multifacetado, faz sentido que os interlocutores

sejam representados diversas vezes no Centro Dêitico da Comunicação. Na versão

BCSN, cada faceta do falante e do ouvinte é representada em um espaço mental distinto,

todos eles integrantes do ground ou CDC (e essas facetas serão vinculadas,

presumivelmente, por meio de funções pragmáticas, via Princípio de Identidade). As

facetas mencionadas acima correspondem aos seguintes espaços: Espaço Real (falante e

ouvinte como pessoas físicas), Espaço de Ato de Fala (falante e ouvinte como

interlocutores engajados em uma ação linguística intersubjetiva) e Espaço Epistêmico

(falante e ouvinte como sujeitos cognitivos, dotados de estados / processos mentais).

Para além desses três espaços, dois outros têm sido citados como integrantes da

rede de espaços mentais que compõem o ground: um Espaço Metalinguístico, que inclui

um conjunto de pareamentos forma-significado, e um Espaço Metatextual, que registra

o histórico da conversação em curso.

Ao fim e ao cabo, portanto, ficamos com a seguinte imagem geral. Toda situação

comunicativa evoca uma rede de espaços mentais dividida em dois planos: ground e

Domínio do Conteúdo. Esse ground não corresponde a um espaço mental único – o

Espaço Base unitário das versões anteriores da TEM –, mas a um conjunto de cinco

espaços mentais, que podem ser divididos em dois grupos: de um lado, o Espaço Real, o

Espaço de Ato de Fala e o Espaço Epistêmico (aqueles que incluem uma representação

20

Boa parte da carreira do psicólogo americano Ulric Neisser foi devotada a desenvolver esse mesmo

insight à luz da psicologia cognitiva. A esse respeito, vale a pena ler o clássico Five kinds of self

knowledge (NEISSER, 1988).

Page 48: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

48

dos interlocutores, com suas diferentes facetas); de outro, o Espaço Metalinguístico e o

Espaço Metatextual (que não incluem tal representação). A figura abaixo, adaptada de

Ferrari e Sweetser (2012), representa essa rede:

Figura 12: Basic Communicative Spaces Network

Como enfatizam Sanders, Sanders e Sweetser (2009; 2012), a ideia central do

modelo é a de que esses espaços são aqueles dados a priori em qualquer interação

comunicativa. Quer dizer: todo ato de comunicação ocorre em um determinado espaço-

tempo, onde se situam pelo menos dois indivíduos (Base Real), que atuam como

interlocutores (Espaço de Ato de Fala), ao mesmo tempo em que são sujeitos

cognitivos, dotados de estados mentais (Espaço Epistêmico). Esses indivíduos,

recorrendo a um certo conjunto de formas linguísticas (Espaço Metalinguístico), falam

sobre um determinado assunto (Domínio do Conteúdo). Com o desenrolar do discurso,

Metalinguístico

Metatextual Ato de fala: interação

Epistêmico : processos mentais

do falante

Epistêmico : processos mentais

do ouvinte

(fisicamente presentes)

espaço real

tempo real

CONTEÚDO

Ground

Foco

Base Real

falante ouvinte

Page 49: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

49

as informações transmitidas passam a fazer a parte da realidade imediata dos

interlocutores, podendo então ser acessadas por eles (Espaço Metatextual). A rede

formada pela soma de todos esses espaços será então chamada de Basic Communicative

Spaces Network (BCSN), já que ela é composta por espaços mentais automática e

necessariamente disponíveis – daí serem “básicos” – sempre que se instaura uma

situação comunicativa.

É a versão BCSN da Teoria dos Espaços Mentais, seu desenvolvimento mais

recente, que será empregada neste trabalho. A análise desenvolvida, contudo, não irá

lançar mão de todos os espaços que constituem essa rede. Como se verá no capítulo 4, o

contraste fundamental se dará entre o Espaço de Ato de Fala, pertencente ao Centro

Dêitico da Comunicação, e um espaço mental pertencente ao Domínio do Conteúdo.

Além disso, em algumas análises, farei referência também ao Espaço Metatextual. Em

nome da clareza visual, irei representar, em cada caso, apenas os espaços relevantes

para a análise do exemplo em pauta.

2.1.4 Mesclagem conceptual

De todas as descobertas decorrentes das pesquisas sobre espaços mentais, é

provável que a mais celebrada seja a operação cognitiva conhecida como mesclagem ou

integração conceptual (a ponto de ela ter recebido status de teoria independente, sendo

frequentemente referida como Teoria da Integração Conceptual). Esse processo, que

tem sido reconhecido como uma operação imaginativa ao mesmo tempo poderosa e

inconsciente, permite projetar elementos de cenários distintos em um cenário único,

criando mentalmente, a partir dessa fusão, um mundo alternativo. Isso não significa, a

despeito do que essa descrição sumária possa sugerir, que a mesclagem seja atributo

exclusivo da imaginação artística. Pelo contrário: trata-se do modus operandi básico do

Page 50: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

50

pensamento ordinário, responsável, segundo se tem alegado, por conquistas evolutivas

tão profundas quanto o raciocínio matemático (NUÑEZ, 2004) e a própria linguagem

humana (FAUCONNIER; TURNER, 2008).

Tecnicamente, a operação de mesclagem envolve as seguintes etapas: (i)

estabelecimento de uma analogia entre elementos pertencentes a espaços mentais

distintos; (ii) projeção de elementos de pelos menos dois espaços mentais (espaços

input) sobre um terceiro (espaço mescla); e (iii) como resultado, produção, no espaço

mescla, de um significado novo (estrutura emergente), não presente em nenhum dos

espaços input. Para que esse processo aconteça, é necessário que existam, pelo menos,

quatro espaços mentais. A saber:

Espaço genérico: representa a estrutura abstrata comum aos espaços input,

assegurando a possibilidade de estabelecer uma vinculação entre eles.

Espaço input 1 e espaço input 2: são os espaços originais que contêm as

informações a serem projetadas e mescladas.

Espaço-mescla: espaço que recebe as informações projetadas dos espaços input,

constituindo-se, portanto, como o espaço onde se produz a estrutura emergente.

Esse processo pode ser exemplificado por meio do anúncio abaixo, parte

integrante de uma campanha publicitária lançada por uma companhia farmacêutica

norte-americana com o objetivo de popularizar o teste para detecção do vírus HIV21

.

21

Uma análise mais detalhada do anúncio pode ser encontrada em Pinheiro e Nascimento (2010).

Page 51: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

51

(13)

Como se vê, a imagem representa uma relação sexual peculiar. Embora pareça

haver apenas duas pessoas envolvidas, é possível enxergar uma profusão de braços. O

texto do anúncio esclarece o mistério: ao dormir com alguém, você está, indiretamente,

se relacionando com todos os parceiros prévios dessa pessoa.

O interessante, porém, é que a imagem representa essas relações como se elas

fossem diretas. Quer dizer: no mundo real, cada indivíduo só se relaciona de forma

indireta – “por tabela” – com os demais parceiros do seu parceiro. Mas, no mundo

ficcional (mesclado) criado pela imagem, a situação muda de figura: tudo se passa como

se o homem e a mulher estivessem tendo contato direto com os parceiros anteriores do

outro (o que, sem dúvida, torna a argumentação muito mais contundente e convincente,

aumentando as chances de que o anúncio atinja seu objetivo). Em outras palavras,

diversas relações sexuais afastadas no tempo e no espaço são comprimidas em um único

frame espaço-temporal.

Page 52: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

52

Isso quer dizer que o espaço genérico – aquilo que existe em comum a todos os

inputs – inclui o conceito de relação sexual (que pode ser tratado como um Modelo

Cognitivo Idealizado, nos termos de Lakoff (1987)). Ao mesmo tempo, cada input (no

esquema abaixo, I1, I2 e I3) – e, neste caso, pode-se supor uma série potencialmente

infinita de inputs – representa uma relação sexual particular. Por isso, cada um desses

espaços inclui um referente h (homem) e um referente m (mulher).

Espaço Genérico

(Relação Sexual)

Input 1

Input 2

Input 3

Figura 13: Representação do processo de integração conceptual em (13)

Todos os referentes indicados pela letra m são ligados por uma relação simples

de identidade, indicando que se trata da mesma pessoa física. O mesmo não acontece

com os referentes indicados pela letra h: eles também são conectados entre si, mas não

por corresponderem à mesma pessoa, e sim por desempenharem o mesmo papel,

h1

m1 h2

m2

h3

m3

h1

h2 h3

m’

h m

Page 53: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

53

previsto no espaço genérico: o de parceiro masculino da relação sexual. Uma vez

conectados, todos esses homens (h1, h2 e h3) são projetados, juntos, no espaço mescla,

o que transparece na imagem. Como resultado, produz-se no espaço mescla um

significado que não existia em nenhum dos espaços input: uma relação com múltiplos

parceiros. Esta é, portanto, a estrutura emergente.

Nesta tese, procurarei demonstrar que alguns enunciados VS exibem um tipo

específico de mesclagem, que envolve a fusão de dois pontos de vista distintos. Trata-se

de um fenômeno que já foi identificado em casos de discurso indireto livre, como

mostram os exemplos abaixo.

(14) She closed the door in Mommy’s face.

(15) They now saw, tied to the fence, Ratliff’s buckboard and team. (William

Faulkner, The Hamlet).

No primeiro exemplo, discutido em Sanders, Sanders e Sweetser (2009, p. 27),

consideremos apenas a interpretação segundo a qual a sentença se refere à mãe do

agente representado pelo pronome “she” (e não à mãe do falante ou narrador). Nesse

caso, sua interpretação envolve dois pontos de vista distintos: o do narrador, marcado

pela terceira pessoa “She”, e o do agente/personagem, sinalizado pela escolha da forma

“Mommy” (quando o narrador tenderia a optar por algo como “her mother”).

Também no segundo exemplo, discutido em Nikiforidou (2012), temos um

evento construído, simultaneamente, a partir de duas perspectivas: enquanto o tempo

verbal da forma “saw” aponta para o ponto de vista do narrador, o dêitico “now” invoca

a perspectiva dos personagens referidos pelo pronome “they”, fazendo com que o

evento seja interpretado “como experienciado, em vez de relatado” (NIKIFORIDOU,

2012).

Page 54: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

54

No capítulo 4, procurarei mostrar que um fenômeno semelhante de mesclagem

de pontos de vista pode ser verificado em alguns usos da construção verbo-sujeito,

aproximando-a, talvez de forma surpreendente, dos casos de discurso indireto livre.

2.2 Gramática Cognitiva

Assim como a Teoria dos Espaços Mentais, também a Cognitive Grammar de

Ronald Langacker começou a ser desenvolvida nos anos 70, inicialmente sob o rótulo

de Space Grammar. Sua motivação original foi a constatação de que as “guerras

linguísticas”, que então se desenrolavam entre os adeptos da Semântica Gerativa e da

Semântica Interpretativa, haviam se revelado uma disputa inócua. Nas palavras do

autor, era necessária “uma maneira inteiramente nova de pensar a linguagem”

(LANGACKER, 2007, p. 421). Com o tempo, porém, o que era marginal acabou se

tornando, em alguma medida, mainstream – ou, no mínimo, mais natural e palatável. E

o modelo desenvolvido por Langacker, inicialmente de forma independente, acabou por

se integrar à empreitada mais ampla da Linguística Cognitiva. O que é apenas

previsível, dado seu compromisso com a premissa central da LC: a ideia de que a

gramática “reflete nossa experiência básica de movimentação, percepção e ação sobre o

mundo” (LANGACKER, 2008, p. 4).

Diante disso, não surpreende que um dos conceitos centrais da Gramática

Cognitiva seja o de construal, ou conceptualização, que se refere à maneira como um

determinado cenário é construído ou conceptualizado pelo sujeito. A ideia fundamental

aqui é a de que podemos “enxergar” uma mesma cena de diferentes formas. Não se

trata, claro, de uma habilidade especificamente – ou mesmo primariamente – linguística.

Por exemplo: durante uma aula, tomando uma determinada região da sala como a

totalidade do meu campo visual, posso optar por focalizar o aluno que me olha com

Page 55: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

55

interesse ou seu colega, logo ao lado, que parece dormir. Ou ainda: ao ouvir uma

música, posso me concentrar especificamente nos sons produzidos pela guitarra ou pelo

baixo. Em cada caso, a situação objetivamente acessada é a mesma (no primeiro

exemplo, uma região específica da sala de aula, incluindo seus ocupantes; no segundo,

uma determinada música), mas o sujeito a constrói de modos distintos conforme opta

por (ou é levado a) alocar a maior parte da sua atenção sobre uma ou outra parte da

cena.

Do ponto de vista da LC, o que realmente importa é o fato de que essa

habilidade se reflete na gramática, motivando frequentemente a escolha de uma ou outra

forma linguística. Exemplos clássicos são a alternância ativa/passiva ou a chamada

alternância ergativa (por exemplo, o menino quebrou o copo e o copo quebrou). Nesse

sentido, uma maneira simples de explicar a diferença semântica entre Liana devorou

todas as revistas e Todas as revistas foram devoradas por Liana envolve uma alteração

na proeminência relativa dos participantes da cena: ainda que as duas sentenças

evoquem um mesmo cenário objetivo (seu “valor de verdade” é idêntico), seu conteúdo

é construído ou conceptualizado de formas distintas pelo falante (e, consequentemente,

pelo ouvinte).

Langacker (2008) enumera quatro grandes tipos de operações de

conceptualização (ou “construal operations”), identificados a partir das seguintes

categorias semânticas: especificidade, focalização, proeminência e perspectiva22

. No

capítulo 5 desta tese, ao descrever o polo semântico da construção VS, irei lançar mão,

22

Essa divisão – como qualquer outra tentativa de catalogar e classificar essas operações – é em larga

medida arbitrária. Verhagen (2007) compara as tipologias propostas por Langacker (1987), Talmy (2000),

Croft e Cruse (2004) e Langacker (2007) para ao final demonstrar, convincentemente, que “um esquema

classificatório geral para as operações de conceptualização não é exequível” (VERHAGEN, 2007, p. 49).

Langacker (2007) parece concordar com essa posição, ao observar que classificações dessa natureza são

utilizadas apenas por uma questão de conveniência didática.

Page 56: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

56

especificamente, de conceitos relacionados à categoria de proeminência. É dessa

categoria, portanto, que se ocupa a próxima seção.

2.2.1 Proeminência focal: a questão do perfilamento

Langacker (2008) identifica dois tipos de relações conceptuais ligadas à noção

de proeminência: a dicotomia base/perfil e o alinhamento trajetor/marco. Aqui, vou me

limitar à primeira dessas relações, uma vez que as noções de trajetor e marco não serão

recrutadas mais adiante para descrever a semântica da construção VS.

Na Gramática Cognitiva langackeriana, uma apresentação inicial dos conceitos

de base e perfil costuma partir de exemplos visuais, e mesmo geométricos, o que se

explica tanto pelo potencial didático desses exemplos quanto pelo próprio espírito da

Cognitive Gramar, que tende a enfatizar o papel das habilidades perceptuais humanas

(vale lembrar que o nome original da teoria era Space Grammar). Com efeito, dois

exemplos citados frequentemente para distinguir as noções de base e perfil são as

palavras “hipotenusa” e “raio” (no seu sentido geométrico).

O ponto fundamental aqui é o seguinte: compreender a ideia de hipotenusa

pressupõe, necessariamente, que se entenda o conceito de triângulo retângulo (o mesmo

vale, claro, para a noção de circunferência em relação à palavra “raio”). A figura abaixo

representa, no estilo langackeriano, o significado da palavra “hipotenusa”:

Figura 14: Esquema de HIPOTENUSA, segundo a Gramática Cognitiva

Page 57: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

57

A figura acima traduz a ideia de que o conceito de hipotenusa depende

inapelavelmente de alguma referência à noção de triângulo retângulo. Com efeito, uma

linha em tudo idêntica àquela destacada na figura 14, mas sem o triângulo fundo, não

seria uma hipotenusa: seria apenas uma reta. Nos termos da Cognitive Grammar, a parte

destacada do esquema é chamada de perfil (“profile”): trata-se do conceito diretamente

representado pela palavra. Por outro lado, a área sem destaque gráfico corresponde ao

domínio conceptual pressuposto: um aspecto do “conhecimento de mundo” que, embora

não seja diretamente referido pela palavra “hipotenusa”, deve necessariamente ser

evocado para que essa palavra seja interpretada adequadamente. A esse domínio

pressuposto, Langacker se refere como base (“base”)23

. Nesse sentido, a diferença entre

“hipotenusa” e (digamos) “cateto maior” é entendida como uma questão de

perfilamento: ambos os termos evocam a mesma base, mas perfilam porções distintas.

Ainda nos termos da Gramática Cognitiva, o par base / perfil está relacionado à

diferença entre designação e predicação. O verbo “predicar” é utilizado para fazer

referência à totalidade do polo semântico de uma unidade linguística: no caso da palavra

“hipotenusa”, diremos que ela predica toda a cena representada na figura 14. O verbo

“designar”, contudo, diz respeito apenas à parte perfilada da predicação: assim, diremos

que o substantivo “hipotenusa”, embora predique o triângulo retângulo como um todo,

designa (ou perfila) apenas o seu lado maior.

Embora, como já ficou dito, a gramática langackeriana recorra com frequência a

exemplos marcadamente visuais, é evidente que seus conceitos deverão se aplicar a

quaisquer domínios de experiência. Isso pode ser ilustrado por outro exemplo clássico:

os substantivos que se referem a formas de parentesco. Os esquemas abaixo, adaptados

23

Nesse sentido, como observam Croft e Cruse (2004), o conceito langackeriano de base não se distingue

fundamentalmente do frame fillmoreano.

Page 58: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

58

de Langacker (2008, p. 67), representam o aporte semântico das palavras “pai” e

“filho”:

Figura 15: Esquema de PAI, Figura 16: Esquema de FILHO,

segundo a Gramática Cognitiva segundo a Gramática Cognitiva

Como mostram os diagramas acima, as palavras “pai” e “filho” evocam uma

mesma base: um domínio abstrato que corresponde a um determinado tipo de relação

familiar. A diferença entre esses substantivos, portanto, diz respeito ao perfilamento:

cada um deles designa uma porção distinta desse domínio abstrato.

Se a distinção langackeriana entre base e perfil se mostra útil na área da

semântica lexical, talvez seja no campo da sintaxe – ou, mais precisamente, da interface

sintaxe-semântica – que seu poder explicativo se revele de forma mais instigante.

Langacker (1991, p. 332-333) mostra como esses conceitos podem explicar um caso

clássico de “alternância de valência”. Observem-se as sentenças abaixo24

:

(16) a. O ladrão abriu a porta com o pé-de-cabra.

b. O pé-de-cabra abriu a porta.

c. A porta abriu

24

Essa discussão pode ser vista também em Leitão et alii (2009, p. 29-31).

Page 59: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

59

A ideia central é a seguinte: essas três sentenças fazem referência a uma mesma

base, mas estabelecem perfilamentos distintos a partir dela. A base, aqui, não é um

cenário específico no qual um ladrão usa um pé-de-cabra para abrir a porta (formulada

com esse grau de detalhamento, ela não se aplicaria necessariamente a (16b) ou a (16c)),

mas uma cena arquetípica abstrata: uma cadeia causal cujo fluxo de energia se origina

no agente, passa por um instrumento e termina no tema. Os diagramas abaixo

representam a configuração semântica de cada sentença25

:

a.

b.

c.

Figura 17: Perfilamentos possíveis da cadeia agentiva, segundo Langacker (1991)

No esquema correspondente a (16a), a totalidade da cadeia causal é perfilada:

aqui, portanto, o perfil coincide com a base. Nos outros casos, o perfilamento é parcial:

em (16b), apenas o agente fica pressuposto, ao passo que em (16c) tanto o agente

quanto o instrumento pertencem à base. Em resumo, a alternância de valência ilustrada

25

Os círculos pontilhados indicam participantes que podem ou não ser expressos sintaticamente.

Page 60: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

60

em (16a) a (16c) reflete, na forma sintática, diferentes possibilidades de construção ou

conceptualização de um mesmo cenário: a cadeia causal arquetípica representa nos

diagramas da figura 1726

.

Os exemplos discutidos até aqui devem ter dado uma boa ideia do tratamento

langackeriano para a categoria de proeminência – e, em particular, para os conceitos de

base e perfil. No capítulo 5 desta tese, esses conceitos serão mobilizados para descrever

o polo semântico da construção verbo-sujeito.

2.3 Gramática de Construções

Qualquer apresentação da Gramática de Construções (GC) deve começar com

uma ressalva: não existe apenas uma GC, mas um conjunto razoavelmente heterogêneo

de abordagens construcionais da gramática. Com efeito, é possível contabilizar pelo

menos os seguintes modelos: a Unification Construction Grammar, associada

principalmente aos nomes de Charles Fillmore e Paul Kay; a Radical Construction

Grammar, proposta por William Croft (CROFT, 2001); a Cognitive Construcion

Grammar, desenvolvida sobretudo por Adele Goldberg a partir do trabalho pioneiro de

George Lakoff (LAKOFF, 1987; GOLDBERG, 1995; 2006); a Embodied Construction

Grammar, proposta por Benjamin Bergen e Nancy Chang (BERGEN; CHANG, 2005);

e a abordagem de Mandelblit (1997), baseada em espaços mentais e integração

26

Langacker (1991) demonstra, convincentemente, as vantagens dessa abordagem. No hoje clássico The

case for case, Fillmore (1968) propõe sua famosa hierarquia temática para a determinação do sujeito:

AGENTE > INSTRUMENTO > TEMA. Ou seja: numa sentença que contenha agente, instrumento e

tema, o primeiro será o sujeito; caso o agente não esteja presente, a relação de sujeito será desempenhada

pelo instrumento; por fim, o tema só será sujeito no caso de os outros dois papéis temáticos estarem

indisponíveis. O interessante é notar que, à luz da abordagem langackeriana, que lança mão das noções de

base e perfil, essa hierarquia não precisa ser postulada. Em vez disso, ela pode ser apreendida a partir da

seguinte formulação geral: o papel de sujeito será desempenhado pelo elemento conceptual mais próximo

da origem do fluxo de energia dentre os elementos perfilados.

Page 61: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

61

conceptual. Como se não bastasse, a própria Gramática Cognitiva de Ronald Langacker

(1987; 1991; 2008) tem sido tratada como uma vertente da GC27

.

Feita essa ressalva, é o caso de perguntar: o que todas essas abordagens têm em

comum? De imediato, é possível responder pela negação: a perspectiva construcional

recusa a concepção gerativista segundo a qual a gramática das línguas naturais consiste

em um conjunto de regras aplicadas sobre itens lexicais. Mas há ainda a resposta

positiva: a despeito das divergências, todas as linhagens da GC compreendem a

gramática como uma rede estruturada de construções gramaticais, entendidas como

pareamentos convencionais de forma e significado.

Como enfatizam diversos praticantes da GC (FILLMORE; KAY; O’CONNOR,

1988; GOLDBERG, 2006; CROFT, 2007), a noção de construção gramatical está

presente, ainda que de forma intuitiva e pré-teórica, nos estudos gramaticais

tradicionais, tendo sido responsável pelos “maiores avanços no estudo da gramática

desde os antigos estoicos” (GOLDBERG, 2006, p. 1)28

. No entanto, com o

desenvolvimento da linguística gerativa, em especial a partir da década de 70, essa

noção foi destituída de qualquer estatuto teórico relevante, passando a ser vista como

mero epifenômeno. A seguinte passagem de Chomsky (1993, p. 4) é especialmente

elucidativa a esse respeito:

“A GU [Gramática Universal] fornece um sistema de princípios fixos

de parâmetros cujas possibilidades de marcação são limitadas. As

27

Comparações entre esses modelos têm sido relativamente frequentes na literatura especializada, e

podem ser encontradas em Croft e Cruse (2004, cap. 10), Goldberg (2006, cap. 10), Evans e Green (2006,

cap. 20) e Croft (2007).

28

Em outro lugar (PINHEIRO, 2007), dei o seguinte exemplo de emprego intuitivo da noção de

construção gramatical brasileira na tradição gramatical brasileira: a Gramática Contemporânea da Língua

Portuguesa (CUNHA; CINTRA, 1994) faz referência ao padrão formal “predicativo + verbo”,

associando-o diretamente, entre outros fatores, à expressão de afetividade. Trata-se de um tipo de análise

próprio às abordagens construcionais, ainda que, naturalmente, esse tipo de afirmação não esteja

fundamentado em um modelo teórico-descritivo explícito.

Page 62: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

62

regras particulares a uma determinada língua se reduzem à escolha de

valores dentro desses parâmetros. A noção de construção gramatical é

eliminada – e, com ela, as regras particulares a uma determinada

construção.”

Se, a partir da década de 1970, a gramática gerativa passa a se mover

consistentemente em direção a regras sintáticas cada vez mais gerais e abstratas, o

contraponto a essa opção não demora a aparecer. E ele vem na forma do hoje clássico

Innocence: a second idealization in linguistics, artigo publicado por Charles Fillmore

em 1979. Nesse texto, o autor estabelece uma analogia com a celebrada idealização

chomskiana do falante/ouvinte ideal (aquele que pertence a uma comunidade linguística

homogênea e não é perturbado por problemas de desempenho). Fillmore sustenta que os

linguistas estariam operando também, e inadvertidamente, com uma segunda

idealização, que deveria ser explicitada: a do falante/ouvinte inocente.

Em resumo, o falante/ouvinte inocente é um indivíduo capaz de construir ou

decodificar sentenças composicionais – com base no conhecimento de suas partes e

princípios de organização –, mas inapto para compreender e produzir enunciados que

contenham algum grau de opacidade. Ao mostrar que um indivíduo como este teria sua

fluência seriamente comprometida, Fillmore chama a atenção para algo vinha passando

despercebido: o fato de que a idiomaticidade é um fenômeno muito mais central, e

recorrente, do que se costuma – ou se costumava – supor.

É o interesse por usos idiomáticos que abre espaço para o primeiro momento da

Gramática de Construções, capitaneado por Charles Fillmore e Paul Kay. A razão é

simples: como padrões idiomáticos não podem ser explicados a partir princípios gerais

de composição semântica, é preciso descrevê-los individualmente, compreendendo-os

como uma estrutura formal direta e convencionalmente associada a algum tipo de

Page 63: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

63

especificação semântico-pragmática. Em uma palavra, é preciso tratá-los como uma

construção gramatical.

Um exemplo desse tipo de investigação é o estudo sobre a construção WXDY,

sigla para What’s X doing Y?, desenvolvido por Paul Kay e Charles Fillmore (KAY;

FILLMORE, 1999). Segundo os autores, a construção WXDY, ilustrada por sentenças

como (17) e (18), é um padrão formal convencionalmente associado a um conteúdo

semântico-pragmático próprio: a noção de incongruência, surpresa ou mesmo

repreensão.

(17) Waiter, what is this fly doing in my soup?

(18) What was Mary doing under the bed?

Como observam os autores, alguém poderia alegar que a postulação de uma

construção gramatical independente seria desnecessária, já que o significado de (17) e

(18) poderia, em tese, ser calculado com os instrumentos da pragmática griceana. Basta

pensar que o juízo de valor negativo (diante de uma situação vista como inapropriada)

só emerge quando alguém já sabe, por exemplo, o que Mary estava fazendo debaixo da

cama – ou seja, quando não se trata de uma pergunta sincera. Nesse caso, a pergunta

violaria a máxima da quantidade, o que levaria por implicatura ao significado

pretendido – na paráfrase de Fillmore e Kay, algo como “How come Mary is under the

bed?”.

Embora os autores reconheçam que esse mecanismo está, provavelmente, na

origem da construção WXDY, eles mostram que nem sempre o significado de seus usos

concretos pode ser obtido pela via griceana. Fundamentais para comprovar esse ponto

são exemplos como (19), (20) e (21), abaixo. Fillmore e Kay lembram que a implicatura

Page 64: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

64

pressupõe, em um primeiro momento, a construção de um sentido literal, a ser

posteriormente recusado em virtude da violação a alguma máxima conversacional. No

entanto, como nesses exemplos o referente do sujeito é inanimado, sequer existe algum

sentido literal prévio que possa ser construído.

(19) What is this scratch doing on the table?

(20) What do you think your name is doing in my book?

(21) I wonder what the salesman will say this house is doing without a kitchen.

A moral da história é a seguinte: o significado de sentenças como (19) a (21) não

pode ser obtido por meio de princípios semântico-pragmáticos mais gerais. Por essa

razão, o padrão WXYD deve ser postulado como uma unidade linguística independente

– vale dizer, uma construção gramatical.

O trabalho de Wierzbicka (1987) aponta na mesma direção. Vejamos os usos

abaixo:

(22) Boys will be boys.

(23) Students will be students.

Assim como ocorre com a construção WXDY (ao menos, em algumas

instâncias), também a interpretação de (22) e (23) pareça estar relacionada à violação

máxima de quantidade – neste caso, a máxima da quantidade. A autora, porém, chama a

atenção para o fato de que essas sentenças não poderiam ser traduzidas literalmente em

uma série de línguas – o que, por si só, é sintomático do seu caráter convencional. Isso

Page 65: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

65

fica ainda mais evidente quando se observa que, mesmo em inglês, usos como (24) e

(25) não são possíveis.

(24) *Wars will be wars.

(25) *Business will be business.

Essa impossibilidade não pode ser prevista em uma abordagem que conte apenas

com princípios pragmáticos gerais. É por isso que a autora postula a existência de uma

construção gramatical independente com a forma Nplural will be Nplural e uma

especificação semântica associada à ideia de “tolerância com a natureza humana”

(WIERZBICKA, 1987, p. 106). Apenas dessa maneira é possível explicar a

gramaticalidade de (22) e (23), em oposição à agramaticalidade de (24) e (25).

Os exemplos discutidos até aqui ilustram, em suma, o seguinte ponto: o conceito

de construção gramatical é necessário para dar conta de usos que exibem algum grau de

idiomaticidade, uma vez que eles não podem ser explicados a partir de princípios gerais

de combinação sintática e interpretação semântico-pragmática. A GC, no entanto, não

alcançaria a maturidade até que um segundo passo fosse dado: a generalização do

conceito de construção gramatical para a totalidade dos usos linguísticos, aí incluídas

as sentenças perfeitamente composicionais da “core gramar”. Vejamos os exemplos

abaixo:

(26) Liana arremessou o gato para fora do quarto.

(27) Rafinha cabeceou a bola para o gol.

Page 66: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

66

Ao contrário dos exemplos (19) a (23), as sentenças em (26) e (27) não são

inerentemente problemáticas para modelos composicionais. Em linhas gerais,

abordagens desse tipo tendem a assumir que a interpretação de expressões causativas

resulta da combinação de duas predicações: uma estabelecida pelo verbo (Liana

arremessar o gato; Rafinha cabecear a bola) e a outra, pela preposição (gato para fora

do quarto; bola para o gol). A ideia é a de que cada predicador conta com sua própria

estrutura de evento: o verbo exprime um processo, ao passo que a preposição indica um

lugar. Assim, a combinação das duas predicações, viabilizada pelo fato de que os

predicadores compartilham um argumento comum, resulta na interpretação de mudança

de lugar.

Neste ponto, cabem duas observações. Em primeiro lugar, é preciso notar que as

sentenças acima também são passíveis de um tratamento construcional. Para isso, basta

postular um esquema sintático geral (sujeito + objeto + oblíquo) associado a uma

configuração semântica específica, na qual uma causa externa (que corresponde

sintaticamente ao sujeito) provoca o deslocamento de um tema (correspondente ao

objeto) em direção a um alvo (que se manifesta como um oblíquo). O caráter inovador

dessa proposta não deve passar despercebido: ela implica a associação direta entre uma

forma sintática abstrata – ou seja, sem qualquer tipo de especificação fonológica/lexical

– e um determinado conteúdo semântico. Sob esse ponto de vista, os usos em (26) e

(27) serão tratados como instâncias de um mesmo padrão sintático-semântico geral, que

tem sido chamado de construção de movimento causado (GOLDBERG, 1995).

Mas há ainda um segundo ponto, talvez mais relevante para a argumentação

desenvolvida aqui. Como mostra Goldberg (1995, cap. 7), abordagens composicionais

como aquela esboçada acima esbarram em algumas dificuldades. Uma delas é ilustrada

pelas sentenças (28) e (29), abaixo.

Page 67: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

67

(28) Kiko espirrou o guardanapo para fora da mesa.

(29) Aírton correu as crianças para fora do quarto.

O problema de explicar (28) e (29) de maneira análoga ao tratamento

composicional esboçado para (26) e (27) é o seguinte: como “espirrar” e “correr” são

verbos monoargumentais, não é possível postular uma predicação do tipo “Kiko espirrar

o guardanapo” ou “Aírton correr as crianças”, cujo segundo argumento seria

compartilhado com a predicação estabelecida pela preposição. Sem esse

compartilhamento, perde-se o link entre as duas estruturas de evento, inviabilizando a

regra composicional29

.

Diante desse tipo dificuldade, como nota Goldberg (1995, p. 156), uma solução

típica seria postular sentidos adicionais para cada um dos verbos (acrescentando alguma

nuance causativa). Embora uma saída desse tipo acabe, na prática, por explicar a

possibilidade de usos como (28) e (29), ela incorre no problema óbvio da falta de

economia descritiva: no extremo, essa solução poderia conduzir a uma proliferação

desenfreada de sentidos novos (e frequentemente implausíveis) para um sem-número de

verbos, o que é no mínimo contraintuitivo.

Em uma abordagem construcional, ao contrário, (28) e (29) não constituem um

problema. Isso porque a semântica de movimento causado é atribuída direta e

convencionalmente ao próprio esquema sintático abstrato. A ideia que emerge aqui,

portanto, é a de que o significado do enunciado decorre de uma divisão de tarefas entre

os itens lexicais (privilegiadamente, o verbo) e a construção gramatical abstrata. No

caso de (28), por exemplo, a divisão se dá nos seguintes termos: o evento expresso pelo

padrão sintático (“fazer mover”, ou seja, a própria noção de movimento causado) é

29

Goldberg (1995, cap. 7) mostra que alguns autores procuraram apontar saídas para esse tipo de

dificuldade e discute, com algum aprofundamento, as inconsistências das soluções propostas.

Page 68: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

68

entendido como resultado do evento expresso pelo verbo (ou, inversamente, o evento

expresso pelo verbo – o ato de espirrar – é o meio que viabiliza o evento expresso pela

construção).

Em resumo, a discussão dos exemplos (26) a (29) deve ter servido para

evidenciar as vantagens de uma abordagem construcional mesmo nos casos em que se

está diante de usos perfeitamente regulares e previsíveis, como (26) e (27). As

implicações teóricas dessa proposta não são nada desprezíveis. Ao fim e ao cabo, a lição

que ela deixa é a seguinte: o conceito de construção gramatical, identificado

originalmente com os usos em alguma medida idiomáticos / opacos / irregulares, pode

ser facilmente estendido para explicar enunciados perfeitamente regulares e

composicionais.

Como resultado, emerge uma concepção inovadora de gramática, que passa a ser

entendida como um repositório imensamente vasto e altamente estruturado de

construções gramaticais. Sob esse ponto de vista, a totalidade do conhecimento

gramatical do falante pode ser representada por meio de pareamentos de forma e

significado: para citar o slogan de Goldberg (2003, p. 223), temos “constructions all the

way down”. Essa ideia é ilustrada pela tabela abaixo, retirada de Goldberg (2003, p.

220):

Page 69: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

69

CONSTRUÇÃO FORMA/EXEMPLO FUNÇÃO

Morfema ex. anti-, pre-, -ing

Palavra ex. Avocado, anaconda, and

Palavra complexa ex. Daredevil, shoo-in

Idioma (preenchido) ex. Going great guns

Idioma (parcialmente preenchido)

ex. Jog (someone’s) memory

Construção condicional co-variacional

Forma: The Xer the Yer(ex. The more you think about it, the less you understand)

Significado: variáveis dependente e independente conectadas

Construção bitransitiva (objeto duplo)

Forma: Suj [V Obj1 Obj2] (ex. He gave her a Coke; He baked her a muffin)

Significado: transferência (real ou pretendida)

Passiva

Forma: Suj aux VPpp (PPby) (ex. The armadillo was hit by a car)

Função discursiva: tornar o paciente tópico e/ou o agente não-tópico

Tabela 3: Continuum de construções gramaticais, segundo Goldberg (2003)

Essa nova compreensão acarreta algumas rupturas. Notadamente, deixam de

fazer sentido dicotomias como léxico / sintaxe (ou gramática) e idiomaticidade /

composicionalidade. Afinal, do ponto de vista da GC, não há distinção qualitativa entre

palavras, padrões idiomáticos (inteira ou parcialmente preenchidos) e esquemas

sintático-semânticos abstratos: trata-se, em todos os casos, de construções gramaticais.

A distinção entre elas não é de tipo, mas de grau: como se vê na tabela acima, existe um

continuum de preenchimento fonológico cujos extremos são, de um lado, as construções

inteiramente preenchidas (ilustradas nas quatro primeiras linhas da tabela) e, de outro,

os padrões totalmente abertos (ilustrados nas duas últimas linhas).

No cenário das abordagens construcionais, o modelo desenvolvido por Goldberg

(1995; 2006) se ocupa, privilegiadamente, das construções inteiramente abertas – e, em

Page 70: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

70

especial, das chamadas construções de estrutura argumental. Como o nome sugere,

trata-se de esquemas sintático-semânticos que representam grades temático-

argumentais. Na tabela acima, essa classe de construções está ilustrada pelo padrão

bitransitivo (“objeto duplo”), na penúltima linha. Esse padrão inclui três argumentos

sintáticos (sujeito, objeto 1 e objeto 2), que se ligam – embora a tabela não mostre – a

três papéis semânticos (agente, beneficiário e paciente). Outro exemplo discutido aqui é

a construção de movimento causado, que subjaz às sentenças (26) a (29). Como vimos,

ela associa as relações gramaticais de sujeito, objeto e oblíquo aos papéis semânticos de

causa, tema e alvo.

No capítulo 5 deste trabalho, é a vertente goldbergiana da GC, às vezes referida

como Cognitive Construction Grammar, que será utilizada para descrever a ordem VS

como uma construção gramatical do português brasileiro. Embora se trate de um

esquema sintático inteiramente aberto (sem especificação lexical), o padrão verbo-

sujeito certamente não se qualifica como uma construção de estrutura argumental. A

rigor, ele se assemelha mais à construção passiva (última linha do quadro acima) do que

a construções como a bitransitiva ou a de movimento causado. Apesar disso, procurarei

mostrar, no capítulo 5, que o modelo desenvolvido por Goldberg pode ser útil para

capturar algumas generalizações relevantes acerca da ordem VS no PB. Dada a sua

importância para este trabalho, as linhas gerais desse modelo são apresentadas na

próxima seção.

2.3.1 A Cognitive Construction Grammar (GOLDBERG, 1995; 2006)

Como já ficou dito, o modelo goldbergiano foi desenvolvido para dar conta das

construções de estrutura argumental. Especificamente, Goldberg (1995) investiga, de

Page 71: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

71

forma particularmente detalhada, três construções de estrutura argumental do inglês: a

construção bitransitiva, a construção de movimento causado e a construção resultativa.

Um dos pontos de partida da autora é a Hipótese da Codificação de Cenas

(“Scene Encoding Hypothesis”). Segundo essa hipótese, construções de estrutura

argumental representam cenas básicas da experiência humana: gestalts experienciais

que correspondem a tipos de eventos definidos de forma bastante geral e abstrata, tais

como “alguém causando algo, alguém experienciando algo, algo se movendo, algo em

um determinado estado, alguém possuindo algo, algo causando uma mudança de estado

ou locação e algo produzindo um efeito sobre alguém” (GOLDBERG, 1995, p. 39). No

que se refere às três construções estudadas com maior profundidade em Goldberg

(1995), suas cenas básicas estão sintetizadas na tabela abaixo, bem como sua forma

sintática:

CONSTRUÇÃO FORMA SIGNIFICADO EXEMPLO

Construção ditransitiva

SUJ V OBJ1 OBJ2

X FAZER Y RECEBER Z

She gave John a cake

Construção de

movimento causado

SUJ V OBJ OBL

X FAZER Y

MOVER-SE PARA Z

Frank kicked the dog

into the bathroom

Construção resultativa

SUJ V OBJ OBL

X FAZER Y

TORNAR-SE Z

He wiped thetable clean

Tabela 4: Caracterização informal das construções de estrutura argumental (GOLDBERG, 1995)

No modelo goldbergiano, os elementos semânticos associados aos eventos

expressos por uma construção são chamados de papéis argumentais. Em alguma

medida, eles coincidem com os papéis temáticos tradicionais, como agente, tema, alvo,

Page 72: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

72

etc. É importante, porém, resistir à tentação de equacionar essas duas categorias, como

se fossem apenas rótulos distintos para conceitos idênticos. Definitivamente, este não é

o caso, e por duas razões relacionadas. Em primeiro lugar, papéis temáticos são

tipicamente entendidos como primitivos teóricos universais e largamente independentes

das suas propriedades distribucionais. Papéis argumentais, ao contrário, não existem a

priori, independentemente das construções das quais fazem parte. Na verdade, eles

devem ser pensados como rótulos úteis para capturar o papel relativo de cada elemento

conceptual na cena básica subjacente à construção. E é isso que conduz à segunda

diferença. Como os papéis argumentais são definidos “em termos de exigências

semânticas de construções particulares”, eles tenderão a ser “mais específicos e mais

numerosos que os papéis temáticos tradicionais”30

(GOLDBERG, 2006, p. 39).

Em uma construção de estrutura argumental, cada papel argumental é vinculado

a uma relação gramatical (papel sintático). A título de ilustração, vejamos como é

representado o alinhamento sintaxe-semântica da construção de movimento causado:

Sem FAZER-MOVER < causa alvo tema >

PRED < >

Sin

V

SUJ

OBL

OBJ

Figura 18: Representação da construção de movimento causado (GOLDBERG, 1995)

Sintetizando, temos até aqui a seguinte situação. A construção de movimento

causado reflete uma gestalt experiencial básica que pode ser capturada pela expressão

30

Este é um ponto de convergência extremamente relevante entre a Cognitive Construcion Grammar de

Adele Goldberg e a Radical Construction Grammar de William Croft.

Page 73: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

73

algo causando uma mudança de locação – ou, de modo menos informal, pela

proposição “X fazer Y mover-se para Z”. Cada um dos três elementos conceptuais

presentes nessa cena corresponde a um papel argumental disponível no polo semântico

da construção: causa, tema e alvo. Além disso, cada um desses papéis se vincula a uma

representação sintática presente no polo formal: respectivamente, sujeito, objeto direto e

oblíquo. Por fim, o tipo de evento abstrato representado pela construção associa-se ao

slot sintático destinado ao verbo. Nesta tese, recorrerei a esse tipo de representação,

próprio do modelo goldbergiano, a fim de formalizar a construção verbo-sujeito do

português brasileiro.

2.3.1.1 Princípios psicológicos de organização da linguagem

Goldberg (1995) elenca um conjunto de quatro princípios psicológicos que

ajudam a moldar a rede construcional das línguas naturais. Para este trabalho, apenas

dois deles são diretamente relevantes: o Princípio da Motivação Maximizada e o

Princípio da Não-sinonímia. Ambos regulam a relação entre forma e função.

O Princípio da Motivação Maximizada estabelece uma associação entre

afinidade formal e afinidade semântica. De acordo com esse princípio, se duas

construções são relacionadas sintaticamente, então elas também manifestarão algum

vínculo de significado. No capítulo anterior, como vimos, eu sugeri que o português

brasileiro exibe um conjunto de nove construções gramaticais de inversão do sujeito.

Dado que todas manifestam a ordem linear verbo-sujeito, é de se esperar, a julgar pelo

Princípio da Motivação Maximizada, que elas estejam semanticamente conectadas, em

maior ou menor grau. Para os propósitos desta tese, este é o princípio menos relevante

dentre os dois mencionados acima: ele voltará a aparecer apenas no capítulo 7, dedicado

Page 74: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

74

às considerações finais, quando retomarei a ideia de que o elenco de construções VS do

português brasileiro constitui uma família de construções inter-relacionadas.

Mais importante aqui é o segundo princípio goldbergiano, que consiste em um

mecanismo anti-sinonímia. No interior de diferentes quadros teóricos, e movidos por

interesses diversos, muitos pesquisadores já chamaram a atenção para o fato de que as

línguas tendem a evitar sinônimos perfeitos. É conhecida a declaração de Bolinger

(1977, p. ix) segundo a qual “toda palavra cuja sobrevivência é permitida pela língua

deve fazer a sua contribuição semântica”. Nessa trilha, mas trabalhando na seara da

aquisição da linguagem, Clark postula o seu Princípio do Contraste, segundo o qual

“Palavras diferentes significam coisas diferentes. Quer dizer, em se tratando de

linguagem, onde quer que haja uma diferença na forma haverá uma diferença no

significado” (CLARK, 1987, p. 1 [grifo no original]).

No âmbito específico da Gramática de Construções, Croft (2001, p. 111)

também propõe o seu Princípio do Contraste, formulado nos seguintes termos: “se duas

estruturas gramaticais ocorrem na mesma língua para descrever a ‘mesma’ experiência,

elas irão se diferenciar quanto à conceptualização dessa experiência, de acordo com as

diferenças entre as estruturas”. O Princípio da Não-sinonímia nada mais é que a versão

goldbergiana desse insight. Resumidamente, ele sustenta o seguinte: “Se duas

construções são sintaticamente distintas, elas também deverão ser semântica ou

pragmaticamente distintas” (GOLDBERG, 1995, p. 67)31

.

31

Pode ser interessante observar que linguistas de inclinação formalistas também têm recorrido à mesma

ideia básica. No âmbito da morfologia gerativa, por exemplo, Aronoff (1976) sugere (ou resgata) o

mecanismo de bloqueio, segundo o qual uma nova palavra não poderá ser criada caso já exista uma outra

palavra no léxico capaz de cumprir a mesma função. No terreno da linguística histórica, Kroch (1994),

citando explicitamente o bloqueio de Aronoff como fonte de inspiração, expande essa noção para

estruturas sintáticas: o autor sugere que a existência de dois padrões estruturais semanticamente

equivalentes, funcionando como “dublês” sintáticos, deverá gerar uma situação de instabilidade capaz de

conduzir à mudança linguística.

Page 75: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

75

O arsenal teórico-descritivo da Linguística Cognitiva, ao permitir a detecção de

nuances de significado frequentemente sutis, tem se mostrado especialmente bem

sucedido na tarefa de evidenciar diferenças semânticas entre estruturas sintáticas que

pareciam perfeitamente equivalentes. Um exemplo recente interessante é o estudo de

Almeida e Ferrari (2012) sobre as construções de complementação epistêmica do inglês.

Nesse trabalho, as autoras procuram evidenciar a diferença pragmática entre as

construções de complementação epistêmica com e sem o complementizador “that”.

Partindo do princípio goldbergiano da não-sinonímia, a pergunta que elas se colocam é

a seguinte: qual a diferença de significado entre as construções X thinks that Y e X

thinks Y?32

.

A resposta oferecida é surpreendente em sua simplicidade. Fundamentalmente,

as autoras demonstram que, embora ambas as construções sejam marcas de

intersubjetividade (já que sinalizam o ponto de vista do falante em relação a outros

pontos de vista disponíveis no discurso), a construção sem complementizador sugere

conjunção cognitiva, ao passo que a construção com complementizador sugere

disjunção cognitiva. Vejamos na prática como isso acontece:

(30) Speak up: Yet when Lisa See met with Speak up, she talked about China

of today. We asked her how many prejudices westerners still had about the

country.

Lisa See: A lot, I think, a lot. You know, I think people hear, “Oh, this will

one day be a superpower”, but I don’t think people have a concept of

what that really means and how much China has changed and how

different it is today. (SpeakUp 240, 2007: 13)

32

Na verdade, outros verbos epistêmicos, como “guess” e “believe”, também são levados em conta. Aqui,

no entanto, a título de ilustração, discutirei apenas exemplos com “think”.

Page 76: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

76

Em (30), como se vê, a pergunta do entrevistador pressupõe a existência de

preconceitos em relação à China. Segunda as autoras, o que motiva o emprego da

construção sem o complementizador “that” é o alinhamento do ponto de vista da

entrevistada em relação a essa concepção implícita (conjunção cognitiva). Em (31),

porém, acontece o oposto:

(31) Noam Chomsky: I think the World Social Forum should be considered not

as a place for the excluded members of society but for society.

Speak up: He was asked about Latin America, whether the continent

should make institutions of its own.

Noam Chomsky: I don’t think that there should be a Latin American

alternative to OPEC or the IMF, but rather worldwide alternatives (Speak

up 191, 2004:17).

Neste caso, a pergunta dirigida a Chomsky e reproduzida pela revista SpeakUp

ativa o pressuposto de que a América Latina deveria criar instituições próprias. Como se

vê na sequência, esse pressuposto corresponde a um ponto de vista em relação ao qual

Chomsky irá divergir: ele defenderá a criação de instituições mundiais, e não

continentais. O que se vê, portanto, é o seguinte: também aqui a construção de

complementação epistêmica sinaliza um posicionamento intersubjetivo; neste caso,

contudo, o que se marca é o não-alinhamento em relação ao ponto de vista disponível no

discurso (disjunção cognitiva).

A comparação entre (30) e (31) deve ter servido para mostrar o Princípio da

Não-sinonímia em ação: como se trata de formas distintas (com e sem

complementizador), espera-se que haja também uma diferença no polo semântico (em

Page 77: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

77

sentido amplo) da construção, o que foi comprovado pela análise de Almeida e Ferrari

(201).

Como vimos no capítulo anterior, o Princípio da Não-sinonímia também cumpre

um papel relevante como ponto de partida desta tese. Afinal de contas, um dos objetivos

do trabalho é identificar a motivação semântica que subjaz à escolha da ordem VS, em

detrimento da ordem canônica SV. Conforme já ficou dito, uma maneira de formular

essa questão é a seguinte: dado o princípio goldbergiano da não-sinonímia, qual a

diferença entre as construções sujeito-verbo e verbo-sujeito? Em outras palavras, que

diferença semântica existe entre um uso como O pneu furou e sua contraparte Furou o

pneu? É o que tentarei responder no capítulo 4.

2.4 Síntese

Este capítulo apresentou um breve tour por três das “ilhas” que compõem o

“arquipélago” da Linguística Cognitiva: os três modelos teóricos que serão mobilizados,

nos capítulos 4 e 5 deste trabalho, para descrever as propriedades semânticas associadas

à construção VS do português brasileiro. Em relação à Teoria dos Espaços Mentais,

destaquei o Princípio de Identidade, o conceito de space builder e os chamados

primitivos discursivos, em especial o Foco e o Ponto de Vista. Além disso, apresentei a

versão BCSN e a operação de mesclagem conceptual, chamando a atenção,

particularmente, para a possibilidade de mesclagem de pontos de vista. Todo esse

arsenal teórico será recrutado no capítulo 4.

Em relação à Gramática Cognitiva de Ronald Langacker, destaquei a noção de

“construal” (conceptualização) e, em particular, a categoria de proeminência. No que

respeita a essa categoria, apresentei a distinção entre base e perfil e chamei a atenção

para o emprego dos termos predicação e designação no âmbito desse quadro teórico. O

Page 78: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

78

instrumental da Gramática Cognitiva será mobilizado no capítulo 5, para descrever o

polo semântico da construção VS.

Por fim, apresentei um histórico da Gramática de Construções, procurando

justificar a necessidade de recorrer ao conceito de construção gramatical. Em seguida,

expus em linhas gerais o modelo goldbergiano, destacando em especial a Hipótese da

Codificação de Cenas, a noção de papel argumental e os Princípio da Motivação

Maximizada e da Não-sinonímia.

Page 79: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

79

3 Metodologia

Para investigar a inversão do sujeito no português brasileiro, este trabalho

recorre a dois expedientes metodológicos: primariamente, análise qualitativa de dados

reais de língua falada; de forma complementar, testes empíricos de aceitabilidade

aplicados a falantes nativos do PB. Neste capítulo, tratarei separadamente de cada um

deles.

3.1 Corpora e análise de dados

Os dados analisados foram coletados dos corpora BBB 10 e Discurso &

Gramática. O primeiro consiste em 224 horas e 38 minutos de gravações da décima

edição do pay-per-view (transmissão 24 horas) do programa Big Brother Brasil 10,

veiculado pela Rede Globo de Televisão no ano de 2010. Essas gravações foram

divididas em 26 DVDs com durações desiguais, dos quais os oito primeiros foram

transcritos e analisados para esta tese, totalizando aproximadamente 60 horas de

gravações. É importante destacar que o corpus BBB 10 integra o corpus LINC, que vem

sendo construído por integrantes do Grupo de Pesquisas em Linguística Cognitiva

(LINC / UFRJ) e conta com amostras de língua falada e escrita do português brasileiro.

A transcrição do corpus BBB 10 obedeceu às seguintes convenções:

[ ] sobreposição de vozes localizada

(+) pausa breve

/ truncamento brusco

MAIÚSCULAS ênfase ou acento forte

Page 80: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

80

(( )) comentários do analista

:: alongamento da vogal

” subida rápida (equivale aproximadamente a um ponto de

interrogação)

’ subida leve (equivale aproximadamente a uma vírgula)

Por sua vez, o corpus Discurso & Gramática (D&G), disponível no endereço

eletrônico http://www.discursoegramatica.letras.ufrj.br/, inclui dados de língua falada e

escrita relativos a cinco municípios brasileiros (Rio de Janeiro, Natal, Rio Grande, Juiz

de Fora e Niterói) e divididos de acordo com cinco modalidades textuais (narrativa de

experiência pessoal, narrativa recontada, descrição de local, relato de procedimento e

relato de opinião). Para este trabalho, foram utilizados apenas os dados de língua falada.

É importante destacar que a análise de dados restringiu-se às sentenças

declarativas, afirmativas, ativas e sintaticamente independentes. Uma consequência

dessa opção metodológica é a exclusão das construções gramaticais VS mais fechadas

ou restritivas (conforme Tabela 1 da Introdução). Foram excluídas também as sentenças

existenciais com os verbos “ter” e “haver”. Essa decisão, razoavelmente comum nos

estudos sobre inversão do sujeito no PB (NARO; VOTRE, 1999; SPANÓ, 2008), foi

motivada pelo fato de que essas sentenças são fortemente refratárias à anteposição do

sujeito, virtualmente eliminando a possibilidade de alternância SV / VS.

Além disso, foram excluídos ainda os usos com verbo “existir”. Esse expediente

não é tão comum, mas tampouco é inédito (TAVARES SILVA, 2010). Neste caso, não

há impossibilidade absoluta (ou quase absoluta) de anteposição do sujeito, já que

enunciados SV com verbo “existir” não são propriamente incomuns. No entanto, é

importante notar que, em muitos casos, a anteposição é fortemente desfavorecida (se

Page 81: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

81

não impossível). É o que ocorre em sentenças como Existe uma falha na sua

argumentação.

A fixação da ordem VS nesses contextos parece estar ligada ao problema das

“duas existências”, discutido tanto por Heine (1997) quanto por Langacker (2004,

2009). Ainda que motivados por preocupações diversas, os dois autores sustentam que o

grupo das sentenças existenciais recobre, a rigor, dois usos distintos. Em estudo sobre a

gramaticalização das construções de posse, Heine (1997) diferencia o esquema

existencial monoargumental (Y exists) dos esquemas existenciais biargumentais (X’s Y

exists, Y exists for/to Y e As for X, Y exists). Movendo-se na mesma direção, ainda que

no interior de um quadro teórico sensivelmente distinto, Langacker (2004; 2009)

preocupa-se em diferenciar conceptualmente sentenças do tipo An unicorn is in the

garden de outras como An unicorn exists: no primeiro exemplo, restringe-se a “locação

[do unicórnio] a uma região delimitada, o que implica que, se alguém procurar nessa

região, irá encontrá-lo” (LANGACKER, 2009, p. 98); no segundo, a especificação

locativa é “generalizada, maximamente esquemática” (LANGACKER, 2009, p. 98).

No que diz respeito à gramática do PB, Bechara (2006), em investigação de base

funcionalista, sugere que o verbo “existir” se associa a duas “estruturas de predicação”

distintas. Essas estruturas correspondem, precisamente, aos dois tipos de existência

identificados por Heine (1997) e por Langacker (2004; 2009), embora o autor não cite

esses trabalhos. Assim, Bechara diferencia usos do tipo Existem leões na África de

outros como Deus existe, sugerindo a seguinte distinção entre eles: no primeiro caso

(chamado de existir1), temos um “predicado verbal pseudo-transitivo”, com SN

normalmente indefinido posicionado à direita do verbo; no segundo (chamado de

existir2), temos um “predicado predicativo existencial”, com SN normalmente definido

Page 82: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

82

precedendo o verbo. Crucialmente, o autor argumenta que apenas existir1 é sinônimo de

“ter” e “haver”.

A julgar pelo trabalho de Bechara (2006), portanto, as sentenças existenciais

com sujeito pós-verbal seriam especializadas nos usos locativos associados aos verbos

“ter” e “haver” (nos quais se verifica o que Langacker chama de “região delimitada”).

E, mais importante, essa especialização pode explicar a estranheza sentida quando se

tenta antepor o sujeito de Existe uma falha na sua argumentação. A consequência disso

é que enunciados com a forma SN existir expressariam um conteúdo objetivo distinto

daquele associado a enunciados do tipo existir SN: para usar a terminologia de

Langacker, no primeiro caso teríamos existência e no segundo, locação33

. Dessa análise

decorre que, assim como “ter” e “haver”, também o verbo “existir” não manifestaria de

fato alternância SV / VS.

A questão é certamente complexa, e é possível que a distinção entre existir1 e

existir2 não seja tão absoluta – com efeito, Bechara (2006) chega a mencionar situações

de “cruzamento de estruturas”. De qualquer maneira, parece haver evidências

suficientes de que o verbo “existir” apresenta certas particularidades, as quais ameaçam

a interpretação do contraste SN existir / existir SN como um caso de alternância. Embora

sejam necessários mais estudos para esclarecer essas particularidades – ou talvez por

isso mesmo –, optei por excluir as sentenças com esse verbo do conjunto de dados

analisados.

Em suma, esta pesquisa se valeu primordialmente da análise qualitativa de dados

reais do PB falado extraídos de dois corpora, com a exclusão de sentenças existenciais

33

Isso sugere que o PB talvez esteja caminhando rumo a uma lexicalização do verbo “existir”, com duas

representações separadas para esse predicador. Com efeito, Bechara (2006) chega a levantar essa questão

– embora não fale em lexicalização –, ao se perguntar se “acaso temos dois verbos existir, ou apenas um

existir multifuncional” (p. 668). O autor, porém, não se propõe a responder essa pergunta.

Page 83: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

83

com “ter”, “haver” e “existir” motivada pelo fato de que esses verbos parecem não

manifestar de fato alternância SV / VS (ainda que por razões distintas).

3.2 Testes de aceitabilidade

Para além da análise qualitativa de dados reais, o trabalho se valeu ainda, de

forma complementar, de testes empíricos de aceitabilidade. Como se verá, a

argumentação desenvolvida no capítulo 4 envolve, em alguns momentos, um

julgamento acerca da possibilidade de inversão do sujeito com certos enunciados

originalmente proferidos com ordem SV (ou, ao contrário, da possibilidade de

anteposição do sujeito em usos VS). Sabe-se, no entanto, que a introspecção do analista

nem sempre é confiável para esse tipo de avaliação. Por esse motivo, é importante que

se tente acessar a percepção de um grupo de falantes nativos não-especialistas34

.

Diante disso, com o objetivo de fortalecer a argumentação desenvolvida neste

trabalho, optei por desenvolver um pequeno teste de aceitabilidade, que pode ser visto

no anexo desta tese. Nesse experimento, a tarefa dos informantes era avaliar o grau de

aceitabilidade das sentenças-alvo, escolhendo uma dentre as seguintes alternativas

apresentadas: totalmente aceitável, aceitável porém estranha ou inaceitável. Ao todo,

havia cinco sentenças-alvo, das quais quatro com sujeito pós-verbal e uma com sujeito

pré-verbal35

.

O teste foi aplicado a um grupo de 38 falantes nativos do português brasileiro,

todos eles estudantes de primeiro ou segundo período do curso de Engenharia

34

A Linguística Cognitiva já foi alvo de ataques violentos em função de uma alegada tendência a confiar

excessivamente na introspecção do analista, abrindo mão do recurso a testes experimentais (SANDRA;

RICE, 1995; PEETERS, 2001). É preciso dizer, no entanto, que a situação já mudou muito, e atualmente

uma porção considerável da literatura em LC é composta por estudos empíricos.

35

Em seu estudo sobre a inversão do sujeito no inglês, Chen (2003) lança mão de um recurso semelhante:

em alguns pontos da sua obra, o autor faz referência à intuição de falantes consultados informalmente

acerca da possibilidade ou impossibilidade de posposição do sujeito com determinada sentença.

Page 84: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

84

Ambiental da Universidade Federal da Fronteira Sul. Para produzir as sequências

linguísticas apresentadas, tomei como ponto de partida enunciados que constam dos

corpora BBB 10 e Discurso & Gramática. Em relação aos enunciados originais, foram

feitas as seguintes modificações: (i) a posição do sujeito foi alterada, de maneira que ele

foi deslocado para a posição imediatamente à esquerda ou imediatamente à direita do

verbo (conforme o caso); (ii) em prol da inteligibilidade, as marcas de conversação oral

(como hesitações, falsos começos e sobreposições) foram eliminadas, bem como foram

abolidas as convenções de transcrição, tendo sido substituídas pelos sinais de pontuação

próprios do sistema ortográfico; e (iii) usos que divergiam da norma culta do PB foram

substituídos pelas formas prestigiadas, a fim de evitar que influenciassem a resposta do

informante. No texto, todas as sentenças eram precedidas por uma sequência com

função contextualizadora.

Antes do início da aplicação, eu li as instruções em voz alta e reforcei-as

oralmente, procurando deixar claro que o objetivo era conhecer a intuição do falante

nativo acerca da aceitabilidade ou naturalidade dos usos destacados nos contextos em

que apareciam – e não a correção gramatical desses usos à luz da norma padrão.

Após a aplicação do teste, as respostas fornecidas pelos informantes foram

convertidas em números, seguindo uma fórmula bastante simples: a indicação

totalmente aceitável foi transformada em grau 2, a resposta aceitável porém estranha

passou a equivaler a grau 1 e a marcação inaceitável recebeu grau zero. Ao final, o valor

obtido por cada sentença foi dividido pelo número total de respostas36

. O resultado da

divisão traduz, assim, o grau médio de aceitabilidade de cada sentença-alvo. Foi

possível, desse modo, criar uma escala de aceitabilidade cujos extremos são os valores 0

36

Nem sempre esse número é igual a 38, porque alguns informantes “pularam” uma ou mais sentenças.

Page 85: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

85

e 2. Nessa escala, quanto mais próximo de 2, maior a aceitabilidade do uso VS em

pauta; inversamente, quanto mais próximo de 0, menor a sua aceitabilidade.

O próprio desenho do experimento embute a suposição de que a aceitabilidade

de uma sentença não pode ser apreendida de forma dicotômica, reduzindo-se às opções

aceitável e não-aceitável. Na verdade, trata-se de um continuum, de modo que os usos

linguísticos podem ser julgados, comparativamente, como mais ou menos aceitáveis. A

apresentação de apenas três possibilidades de resposta envolve uma inevitável

arbitrariedade: a rigor, seis sentenças poderiam, em tese, receber seis avaliações

distintas. Aqui, porém, optei por um desenho mais simples, uma vez que o teste

experimental cumpre, neste trabalho, um papel meramente acessório e complementar.

3.3 Síntese e encaminhamentos

Em resumo, esta pesquisa se valeu de dois recursos metodológicos: análise

qualitativa de dados reais de língua falada e testes experimentais de aceitabilidade.

Esses expedientes poderão ser vistos nos capítulos 4 a 6. O primeiro dekles, que se

constitui como o procedimento metodológico principal da pesquisa, marca presença em

todos esses três capítulos. Por sua vez, o teste experimental é utilizado apenas no

capítulo 4, já que sua função é medir a possibilidade de alternância SV / VS em

determinados contextos.

Page 86: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

86

4 Inversão do sujeito e Ponto de Vista:

uma abordagem baseada em

espaços mentais

Como vimos no capítulo 2, uma das características mais marcantes da

Linguística Cognitiva é sua opção por uma semântica subjetivista (em oposição às

semânticas de inspiração realista / objetivista). Conforme já ficou dito, essa posição

teórica ajuda a explicar o interesse dos linguistas cognitivistas pelas chamadas

“operações de conceptualização” (“construal operations”): mecanismos conceptuais que

permitem enquadrar eventos e cenários de diferentes maneiras.

Em meio aos diversos mecanismos desse tipo já propostos na literatura, um

papel de destaque vem sendo atribuído à noção de perspectiva. Com efeito, ela

comparece em muitas das linhagens teóricas que participam da empreitada cognitivista,

como a semântica cognitiva de Leonard Talmy, a Gramática Cognitiva de Ronald

Langacker e a Teoria dos Espaços Mentais. Não surpreendentemente, a ideia de

deslocamento de perspectiva tem sido mobilizada para explicar uma vasta gama de

fenômenos linguísticos, dentre os quais se incluem a dinâmica de interpretação dos

tempos verbais (CUTRER, 1994; LANGACKER, 2009); os diferentes tipos de discurso

em narrativas (SANDERS; REDEKER, 1996); a construção online da ironia (TOBIN;

ISRAEL; 2012); ou a diferença entre condicionais de futuro canônicas e com recuo

temporal (FERRARI, 2012). Neste capítulo, argumentarei que a alternância de

perspectiva também está por trás da variação na posição do sujeito no PB falado

contemporâneo. Em outras palavras, tentarei mostrar que a opção por uma estrutura SV

ou VS é, fundamentalmente, uma questão de ponto de vista.

Page 87: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

87

O capítulo está organizado como segue. Na seção 4.1, apresento uma hipótese

geral para a inversão do sujeito no PB falado contemporâneo e procuro formalizá-la à

luz da Teoria dos Espaços Mentais. Na sequência, a seção 4.2 busca analisar usos SV e

VS a fim de demonstrar, por meio da análise de dados reais, como se manifesta na

prática a hipótese apresentada anteriormente. Na sequência, a seção 4.3 propõe uma

tipologia para os usos VS e a seção 4.4 discute casos de mesclagem de Ponto de Vista.

Finalmente, a seção 4.5 sintetiza os pontos mais importantes e inicia a transição para o

capítulo seguinte.

4.1 A hipótese geral: correlação entre ponto de vista e posição do sujeito

Por um lado, é inegável que o português brasileiro falado exibe, ainda hoje, a

possibilidade de alternância SV/VS, admitindo tanto enunciados como O pneu furou e

O João apareceu quanto enunciados do tipo Furou o pneu e Apareceu o João. Por outro

lado, diversos pesquisadores têm sugerido que, se duas estruturas são formalmente

distintas, então elas não deverão ser inteiramente equivalentes do ponto de vista

semântico-pragmático (um insight que, como vimos, foi formalizado por Goldberg

(1995) nos termos do Princípio da Não-sinonímia da Forma Gramatical). Diante disso, a

pergunta que se coloca é a seguinte: qual é a diferença semântica (em sentido amplo)

entre uma sentença com sujeito pré-verbal e sua “contraparte” VS?

A ideia básica é a seguinte. Ao codificar linguisticamente um evento, o falante

tem, amplamente falando, duas opções, no que concerne à perspectiva adotada. Uma

possibilidade é preservar a situação default, na qual a cena designada37

é construída a

partir do seu próprio ponto de vista; uma segunda possibilidade é alinhar-se à

perspectiva de outro sujeito cognoscente disponível (outra “subjetividade”, nos termos

37

Ao longo desta tese, empregarei o verbo “designar”, bem como “predicar”, com o sentido que eles

assumem no âmbito da cognitive grammar langackeriana (conforme seção 2.2.1).

Page 88: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

88

de Dancygier (2012)), passando a construir o evento segundo o ponto de vista desse

indivíduo. Ao longo desta tese, defenderei que a ordem SV está associada à primeira

opção, enquanto a ordem VS manifesta a segunda alternativa. Nesse sentido, a inversão

do sujeito rompe a configuração dêitica padrão, enquanto a anteposição a preserva.

Para termos uma noção, ainda que por ora apenas intuitiva, de como isso

funciona na prática, comecemos pelo exemplo abaixo. Trata-se de uma fala da

participante Fernanda, do BBB 10, dirigida a Dicésar em um momento em que os dois

se cruzam na casa38

.

(1) F: Di seu chapéu tá no banquinho vermelho (Corpus BBB 10)

No contexto pragmático em que foi enunciada, a sentença em destaque parece

fortemente resistente à inversão do sujeito, como mostra (1b):

(1b) # Di, tá seu chapéu no banquinho vermelho39

De fato, o grau médio de aceitabilidade de (1b) para os informantes consultados

foi de 0,6, indicando, portanto, baixa aceitabilidade. Por outro lado, um contexto

narrativo apropriado, ainda que mínimo, parece capaz de “salvar” a ordem VS. É o que

ocorre em (1c):

(1c) Aí, quando eu olho, tá seu chapéu no banquinho vermelho.

38

A partir deste capítulo, a numeração dos exemplos será reiniciada.

39

Mais aceitável aqui seria o emprego da construção de antitópico (LAMBRECHT, 1994) – “Tá no

banquinho vermelho, seu chapéu” –, mas, neste caso, já estamos diante de uma construção gramatical

sensivelmente distinta.

Page 89: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

89

Como explicar a diferença de aceitabilidade ou naturalidade entre (1b) e (1c)? O

ponto crucial é que sequência quando eu olho sugere a existência de algum personagem

de uma narrativa mais ampla que, em determinado momento, teria se deparado com o

“chapéu” jogado sobre o “banquinho vermelho”. O que a comparação entre (1b) e (1c)

sugere é que a inserção dessa “subjetividade” – para recorrermos novamente ao termo

de Dancygier (2012) – contribui para o êxito pragmático do enunciado. Com efeito, o

uso real em (2) é bastante semelhante a (1c):

(2) DO: cara daí eu bah me apaixonei pelo bicho’ daí eu falei ah mãe deixa eu

ficar’ daí minha mãe’ e ele não saía meu’ minha mãe tentava’ sai não sei o

quê’ ele pegava saía e depois voltava (+) até que um dia mesma coisa ela’ sai

sai’ aí ela foi fazer sei lá o que na rua’ quando ela volta tá ele dentro da

casa (+) ele tinha conseguido entrar (Corpus BBB 10)

Vale apenas comparar os enunciados em negrito em (1) e em (2). Por um lado,

ambas as sentenças destacadas designam uma cena objetiva de locação: no primeiro

caso, a continência do “chapéu” no espaço do “banquinho vermelho”; no segundo, a

continência do cachorro (“ele”) no interior da casa. Mas a maneira como essa cena é

construída difere em cada caso. Intuitivamente, é possível dizer que, em (1), o falante

está apenas informando ou comunicando a localização do chapéu ao ouvinte, ao passo

que o uso em (2) parece reproduzir ou simular uma experiência original de percepção,

de maneira que a cena de locação é apresentada “pelos olhos” da personagem – a mãe

do narrador – que, a certa altura, se depara inesperadamente com o animal dentro da sua

casa.

Uma maneira informal, mas possivelmente esclarecedora, de formular essa

distinção é a seguinte: o uso SV em (1) comunica simplesmente a existência do

Page 90: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

90

“chapéu” no espaço do “banquinho vermelho”; por outro lado, o uso VS em (2)

comunica que alguém testemunhou a existência do cachorro na região “dentro da casa”.

Essa distinção pode ser representada por meio da versão BCSN da Teoria dos

Espaços Mentais. Como vimos no capítulo 2, esse modelo parte de uma separação entre

dois planos: o ground comunicativo – aquilo a que Sanders, Sanders e Sweetser (2009;

2012) se referem como Centro Dêitico da Comunicação (CDC) e que Verhagen (2005)

chama de nível S ou nível do Sujeito – e o Domínio do Conteúdo (DC), correspondente

ao que Verhagen (2005) chama de nível O ou nível do Objeto. O primeiro plano, vale

lembrar, captura os aspectos relativos à própria situação comunicativa, correspondendo,

portanto, ao aqui-e-agora da interação em curso; o segundo, por sua vez, diz respeito ao

conteúdo efetivamente expresso pelo uso linguístico. Nesse sentido, o Espaço Foco

estará sempre situado no DC, mas o Ponto de Vista pode ser manipulado, posicionando-

se ora no nível O, ora no nível S.

É precisamente essa flutuação do Ponto de Vista que se vê nas figuras abaixo. A

figura 19 representa o padrão SV, ilustrado em (1). Aqui, o posicionamento do PV no

ground, ou Centro Dêitico da Comunicação, procura traduzir o fato de que a cena

designada – e representada no Domínio do Conteúdo – está sendo construída por

alguém que está afastado dela. Vale dizer, alguém que fala sobre o evento (no aqui-e-

agora da interação em curso), mas não o presencia diretamente (no aqui-e-agora dos

fatos narrados). Neste ponto, é preciso lembrar que o ground, no modelo BCSN, não

corresponde a um espaço mental único, mas a uma espécie de arquidomínio: uma rede

de espaços vinculados a diferentes facetas do aqui-e-agora comunicativo. A razão pela

qual eu proponho que o Ponto de Vista do padrão SV está localizado, especificamente,

no Espaço de Ato de Fala deverá ficar mais clara na próxima seção. Por ora, o mais

Page 91: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

91

relevante é notar que a construção SV associa-se à perspectiva do Centro Dêitico da

Comunicação (em oposição ao Domínio do Conteúdo).

Por sua vez, a figura 20 representa o padrão VS, ilustrado em (2). Como vimos,

a sentença em destaque nesse exemplo pressupõe, para além dos próprios interlocutores,

uma “subjetividade” adicional localizada no aqui-e-agora da narrativa: um

personagem – a mãe do narrador – que presencia a cena designada “diante dos seus

olhos”. Isso é representado pelo fato de esse sujeito cognoscente estar situado no

Domínio do Conteúdo, compartilhando o mesmo espaço-tempo da cena focalizada. Em

(2), portanto, o ponto de vista é – em alguma medida – terceirizado: o falante opta por

construir o evento a partir de uma perspectiva in loco.

Centro Dêitico da Domínio do

Comunicação Conteúdo

PV FOCO

Espaço de

Ato de Fala

Figura 19: representação do padrão SV segundo a Teoria dos Espaços Mentais

Page 92: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

92

Centro Dêitico da Domínio do

Comunicação Conteúdo

PV’

PV

FOCO

Espaço de

Ato de Fala

Espaço de

Percepção

Figura 20: representação do padrão VS segundo a Teoria dos Espaços Mentais

Em suma, proponho sintetizar da seguinte maneira a diferença semântico-

conceptual entre as construções SV e VS: a construção gramatical SV serve como pista

para que o Ponto de Vista seja posicionado no Centro Dêitico da Comunicação (mais

especificamente, no Espaço de Ato de Fala); inversamente, a construção VS serve como

pista para que o Ponto de Vista seja posicionado no próprio Domínio do Conteúdo. Na

prática, isso significa que a inversão do sujeito associa-se a uma configuração de

espaços mentais na qual os primitivos discursivos Foco e Ponto de Vista compartilham

o mesmo domínio na BCSN: o Domínio do Conteúdo.

Como se vê, o contraste entre as construções SV e VS diz respeito,

fundamentalmente, à distância entre Ponto de Vista e evento em Foco. Quando

cotejados, os dois diagramas traduzem visualmente a ideia de que o padrão VS envolve

uma maior proximidade entre sujeito conceptualizador (PV) e objeto conceptualizado

Page 93: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

93

(Foco), em comparação com padrão SV. Para fazer referência a esse ponto de vista

aproximado, vou recorrer à expressão perspectiva in loco.

4.1.1 Desdobramentos da hipótese geral

Para explorar os desdobramentos da hipótese da perspectiva in loco, gostaria de

retomar aqui o conceito de arranjo de visualização (“viewing arrangement”), discutido

no capítulo 2. Como já ficou dito, Langacker (2008, p. 73) define o arranjo de

visualização como qualquer tipo de relação assimétrica entre “visualizadores”

(“viewers”) e situação “visualizada” (“situation being viewed”). Quando se trata de usos

linguísticos, os “visualizadores” são os indivíduos que conceptualizam ou apreendem o

significado de expressões linguísticas – ou seja, o falante e o ouvinte. Por sua vez, a

situação “visualizada” é o próprio significado apreendido (LANGACKER, 2008).

Vimos, porém, que nem todo arranjo de visualização envolve uma situação

comunicativa ou uso linguístico. Com efeito, esse tipo de arranjo está presente em toda

situação na qual um sujeito cognoscente captura ou apreende diretamente algum aspecto

da realidade não-linguística: por exemplo, um apaixonado contemplando as estrelas, um

adolescente ouvindo a música da moda, um paciente sentindo dor, um expatriado

pensando na sua terra natal, um linguista tendo uma ideia. Em todos esses casos, existe

uma relação assimétrica de conceptualização na qual o apaixonado, o adolescente, o

paciente, o expatriado e o linguista atuam como sujeitos conceptualizadores – enquanto

as estrelas, a música, a dor, a terra natal e a ideia são os objetos de conceptualização.

Neste trabalho, reservarei o termo percepção para fazer referência a esse tipo de arranjo

de visualização40

.

40

O termo não é exato, já que o tipo de apreensão direta a que eu me refiro aqui nem sempre é motivado

por um estímulo externo; por essa razão, algumas dessas experiências seriam mais propriamente

caracterizadas como memória ou imaginação do que como percepção (por exemplo, “veio uma ideia na

minha cabeça”).

Page 94: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

94

A distinção entre as duas modalidades de arranjo de visualização oferece um

caminho para explorarmos as diferenças entre os padrões SV e VS. A figura 19

representa apenas um tipo de arranjo de visualização: aquele que se dá entre os

interlocutores engajados em uma situação comunicativa e a cena evocada por um

enunciado linguístico. Como vimos, o acesso desses interlocutores à cena focalizada

não é direto (eles não veem a cena propriamente), mas indireto (eles se limitam a

interpretar o enunciado linguístico que designa a cena). Por essa razão, esses

conceptualizadores não desempenham o papel de Observadores, e sim os papéis de

Falante e Ouvinte41

. Neste trabalho, vou adotar, por padrão, a perspectiva de quem

codifica linguisticamente um determinado conteúdo, razão pela qual irei me referir ao

ponto de vista do Falante, tomando-o como o sujeito conceptualizador associado ao

Espaço de Ato de Fala (e, portanto, ao padrão SV). Nesse particular, sigo de perto a

opção de Sanders, Sanders e Sweetser (2009; 2012)42

.

A figura 20, por seu turno, mostra os dois tipos de arranjo de visualização. Além

da relação entre interlocutores e significado da expressão linguística (presente, por

definição, em qualquer situação de uso linguístico e, consequentemente, também na

figura 19), esse diagrama representa, no Domínio de Conteúdo, o segundo tipo de

arranjo de visualização: aquele que se estabelece entre um sujeito cognoscente in loco

(PV’) e um evento não-linguístico (cena em Foco). Nesse caso, portanto, o

41

Irei utilizar inicial maiúscula para me referir aos papéis conceptuais de Falante e Ouvinte – ou seja, os

papéis de interlocutores engajados em uma situação comunicativa, e associados ao Espaço de Ato de Fala

do modelo BCSN. Isso permitirá distinguir o falante e o ouvinte como pessoas físicas ou seres-no-mundo

(grafados com inicial minúscula) dos papéis conceptuais de Falante e Ouvinte (grafados com inicial

maiúscula). A importância dessa distinção ficará clara mais à frente, na análise dos exemplos.

42

Essa opção não tem implicações profundas, e sua motivação é quase trivial. Ocorre que é o próprio

material linguístico – as escolhas léxico-gramaticais – que franqueia ao analista algum acesso aos estados

mentais do conceptualizador. E quem faz essas escolhas é, muito naturalmente, o Falante. Por esse

motivo, é só em relação aos estados mentais do Falante que podemos fazer afirmações com alguma

segurança. Isso não implica, porém, qualquer desconsideração pelo caráter notoriamente intersubjetivo da

construção do significado.

Page 95: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

95

conceptualizador não é um indivíduo que constrói o sentido de um enunciado

linguístico, mas alguém que apreende diretamente um evento, envolvendo-se, assim, em

uma experiência de percepção. Por essa razão, direi que o sujeito conceptualizador

próprio do padrão VS – aquele representado pelo PV’ do Domínio de Conteúdo –

desempenha o papel de Observador43

.

Essa distinção é capaz de explicar os efeitos de sentidos diversos que as

sentenças SV e VS parecem produzir. No segundo caso, como o conteúdo proposicional

da sentença é construído sob o ponto de vista de um Observador, tudo se passa como se

tivéssemos sido transportados ou projetados para o espaço-tempo onde se passam os

eventos designados. A aproximação entre sujeito e objeto gera, como resultado, um

efeito de experiência direta. Do ponto de vista estilístico, isso produz a impressão de

que enunciados com sujeito pós-verbal são mais vívidos ou expressivos do que aqueles

com sujeito anteposto44

.

Por seu turno, sentenças SV são interpretadas segundo a perspectiva do próprio

Falante, ou seja, um sujeito localizado no Centro Dêitico da Comunicação (e não no

Domínio de Conteúdo). Em outras palavras, quando se trata de um uso VS, o

conceptualizador é construído como um indivíduo espaço-temporalmente afastado do

evento em Foco. Como resultado, a construção SV não se associa ao efeito de

experiência direta. Na verdade, o conteúdo do enunciado será construído como algo que

está sendo comunicado interacionalmente (em oposição a presenciado ou testemunhado

43

Como é praxe na linguística cognitiva, em especial nas vertentes de Leonard Talmy e Ronald

Langacker, uso o domínio visual apenas como ponto de partida. Nesse sentido, nem sempre a palavra

“Observador” será empregada em sua acepção literal. Às vezes, a sentença VS evoca uma percepção

baseada em outro domínio sensorial (por exemplo, a audição), de maneira que o termo deverá ser

interpretado metonimicamente. Em outros casos, temos um espaço abstrato (não sensorial), envolvendo,

portanto, uma projeção metafórica.

44

Interessantemente, Bolinger (1977), ao discutir a inversão verbos-sujeito no inglês, insiste bastante na

ideia de vivacidade (“vividness”). Até onde eu tenho conhecimento, esse efeito nunca foi associado à

estrutura VS no português brasileiro. A mim, no entanto, parece intuitivo que usos VS exibem uma

vivacidade ou dramaticidade que contrasta com o distanciamento possibilitado pelos usos SV – e a

proposta desenvolvida aqui, em termos de espaços mentais, permite explicar essa sensação.

Page 96: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

96

diretamente). Do ponto de vista estilístico, o afastamento entre sujeito e objeto produz a

impressão de que enunciados com sujeito pré-verbal são mais frios ou objetivos do que

aqueles com sujeito posposto.

A esta altura, já devem estar claras as razões para a sugestão de que, em se

tratando de sentenças SV, o Ponto de Vista se situa especificamente no Espaço de Ato

de Fala: ocorre que a responsabilidade pela construção do conteúdo é atribuída ao

Falante como tal (entendido como realizador de uma ação verbal em uma situação

comunicativa, como vimos no capítulo 2), de maneira que o enunciado é interpretado

como um ato de comunicação verbal dirigido ao Ouvinte (e não como a representação

de processos mentais, o que está ligado ao Espaço Epistêmico, nem como o fato em si

mesmo, tomado objetivamente e “independente” do falante, o que está ligado ao

Domínio do Conteúdo).

É interessante notar que todas as propriedades que distinguem as estruturas SV e

VS podem ser deduzidas diretamente das redes de espaços mentais representadas nas

figuras 19 e 20. No caso do padrão SV, o Ponto de Vista se localiza no aqui-e-agora da

interação (Centro Dêitico da Comunicação), o que é compatível com o fato de que o

sujeito conceptualizador não tem acesso direto ao objeto conceptualizado (perspectiva

distanciada). Além disso, mais especificamente, o PV se encontra no Espaço de Ato de

Fala, o que é coerente com o fato de que o sujeito conceptualizador se constrói como

Falante, sendo entendido como o indivíduo que comunica linguisticamente uma

informação.

Por outro lado, no caso do padrão VS, o Ponto de Vista se localiza no aqui-e-

agora do evento designado (o Domínio do Conteúdo), o que é compatível com o fato de

que o conceptualizador tem acesso direto a esse evento (perspectiva in loco). Além

disso, é importante notar que: (i) o Espaço Foco se configura como um Espaço de

Page 97: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

97

Percepção e (ii) esse Espaço de Percepção está diretamente subordinado ao espaço

mental onde se situa o Ponto de Vista. Essas duas propriedades são compatíveis com o

fato de que o sujeito conceptualizador desempenha o papel de Observador.

O quadro delineado até aqui pode ser sintetizado como segue. A ordem VS ativa

uma configuração de espaços mentais na qual o Ponto de Vista se localiza no Domínio

do Conteúdo e o Foco se situa em um Espaço de Percepção. Isso implica que a cena

focalizada deve ser interpretada segundo a perspectiva de um sujeito conceptualizador

com acesso direto ao objeto conceptualizado (perspectiva in loco). Ao evocar essa

proximidade, o padrão VS produz o efeito de experiência direta, o que significa que o

conceptualizador se constrói como (desempenha o papel de) Observador. Por seu turno,

a ordem SV ativa uma configuração de espaços mentais na qual o Ponto de Vista se

localiza no Centro Dêitico da Comunicação; mais especificamente, no Espaço do Ato de

Fala. Isso implica que o sujeito conceptualizador não tem acesso direto ao objeto

conceptualizado (perspectiva distanciada). Ao evocar esse afastamento, o padrão SV

produz o efeito de apreensão indireta da cena focalizada (via comunicação verbal), o

que significa que o conceptualizador se constrói como (desempenha o papel de)

Falante.

O alinhamento entre todas essas propriedades está sintetizado na tabela abaixo:

Page 98: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

98

Tabela 5: contraste entre as construções SV e VS

Forma sintática

Posição do Ponto de

Vista

Distância relativa entre PV imediato

e Foco

Papel do sujeito de consciência

(sujeito responsável pela construção do

evento em Foco)

Efeito de sentido

Efeito Estilístico

SV

Centro

Dêitico da Comunicação

(Espaço de Ato de Fala)

Relação de

distanciamento

Falante

Apreensão indireta

do evento focalizado (via comunicação

verbal)

Apresentação

mais fria, objetiva,

distanciada

VS

Domínio do Conteúdo

Relação de

proximidade (perspectiva

in loco)

Observador

Experiência

direta

Apresentação mais vívida e

expressiva

Page 99: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

99

Em suma, até este momento procurei desenvolver a hipótese central desta tese,

segundo a qual a alternância SV / VS reflete uma flutuação do Ponto de Vista na rede de

espaços mentais, de maneira que a inversão do sujeito está associada a uma situação em

que o sujeito conceptualizador (Ponto de Vista) compartilha o mesmo espaço-tempo do

objeto conceptualizado (Foco).

4.2 Alternância SV/VS e flutuação de Ponto de Vista: análise de dados

Para verificar, na prática, a diferença de perspectiva associada aos usos SV e VS,

comecemos comparando os dois exemplos abaixo. O primeiro é enunciado no seguinte

contexto. Num primeiro momento, o participante Dourado, do BBB 10, entra na sala

onde estão conversando Dicésar e Fernanda, que o ignoram. Depois que ele se afasta,

Anamara se junta ao grupo e Dicésar relata, com a ajuda de Fernanda, o episódio que

acabara de acontecer. Já em (4), o mesmo participante Dicésar narra para Fernanda e

Serginho uma história que lhe fora contada por um amigo.

(3) DI: Maroca ouve essa’ o Dourado entrou aqui’ olhou pra cara de nós

dois’ pra ver se a gente dava bola aí pegou e foi embora

F: ele ia falar alguma coisa

DI: ele ia falar alguma coisa

(Corpus BBB 10)

(4) DI: não bi olha isso’ aí esse meu amigo tava lá no camarim né’ e/ é::

esperando (+) aí daqui a pouco entrou esse tal de Marcelo

Embora os usos em destaque em (3) e (4) designem cenas objetivas semelhantes,

parece claro, mesmo intuitivamente, que elas são construídas de formas distintas. Do

Page 100: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

100

ponto de vista interpretativo, essa diferença pode ser formulada da seguinte maneira: em

(3), a sentença veicula uma simples informação objetiva transmitida aqui e agora – no

ground interacional – do Falante para o Ouvinte; em (4), diferentemente, o uso VS se

configura com uma tentativa de reproduzir uma experiência original de percepção.

Informalmente, é possível formular essa distinção nos mesmos termos propostos para

capturar a diferença entre (1) e (2): no primeiro caso, o Falante apenas comunica o

evento de entrada de Dourado; no segundo, o Falante comunica que alguém presenciou

o evento de entrada do Marcelo45

.

A julgar pela fala de Dicésar em (3), podemos presumir com segurança que, em

algum momento, ele próprio e a participante Fernanda presenciaram diretamente a

entrada de Dourado no cômodo onde ambos estavam – assim como aconteceu com

“esse meu amigo” diante do aparecimento do “tal de Marcelo”, como nos informa o

exemplo (4). A diferença entre os dois casos, portanto, não tem a ver com os episódios

objetivos a que cada sentença alude. Tem a ver, isso sim, com construções conceptuais

– e, paralelamente, estratégias discursivas/interacionais – diversas. Assim, apenas em

(4) o Falante traz à tona o instante em que ocorre o evento de entrada, em alguma

medida presentificando-o e reproduzindo (ou pelo menos simulando) a experiência de

percepção vivenciada por algum sujeito de consciência in loco (vale dizer, alguém que

estava no camarim quando se deparou com o aparecimento do Marcelo). Em (5),

diferentemente, o Falante opta por não “reviver” esse momento, limitando-se a veicular

uma informação de que ele dispõe.

Essa caracterização sugere que a diferença entre esses dois usos diz respeito ao

número de níveis de conceptualização envolvidos na interpretação do enunciado.

Assim: em (3), o Falante é o sujeito responsável por construir diretamente o evento

45

Mas, como veremos no próximo capítulo, a parte do “presenciamento” não é designada pela sentença

VS; em vez disso, ela faz parte da base, compondo a porção pressuposta da predicação (LANGACKER,

1987; 1991; 2008).

Page 101: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

101

designado; em (4), porém, ele opta por apresentar esse evento “através dos olhos” de um

outro sujeito cognoscente – vale dizer, uma “testemunha ocular” da cena – que se torna,

então, o conceptualizador imediato do evento. A esse sujeito cognoscente in loco, vale

lembrar, tenho me referido como Observador. Aqui, portanto, o Falante (em alguma

medida) “terceiriza” o ponto de vista para o personagem, que desempenha o papel de

Observador. Ao fim e ao cabo, ficamos com a seguinte situação: o uso em (3) conta com

apenas um nível de conceptualização, ao passo que (4) envolve dois níveis. Essa

diferença pode ser diagramada assim:

(3) Falante Evento em Foco

(4) Falante Observador Evento em Foco

Figura 21: níveis de conceptualização dos exemplos (3) e (4)

A versão BCSN da Teoria dos Espaços Mentais permite captar essa diferença de

maneira engenhosa. Em (3), se o evento designado – a entrada de Dourado – é

construído diretamente pelo Falante, isso significa que o Ponto de Vista está localizado

no ground (mais especificamente, no Espaço de Ato de Fala). Isso é compatível com a

interpretação de que o uso SV nesse exemplo é interpretado tão-somente como uma

informação transmitida aqui e agora ao Ouvinte pelo Falante. Eis o diagrama:

Page 102: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

102

Centro Dêitico da Domínio do

Comunicação Conteúdo

FOCO

PV

a c

b d

Espaço de Espaço de

Ato de Fala Passado

Figura 22: Representação de o Dourado entrou aqui

O caso de (4) é mais complexo. A primeira sequência da fala de Dicésar – não

bi’ olha isso – tem um caráter marcadamente diretivo, configurando-se como um pedido

de turno. Na sequência, o Falante inicia uma narrativa, prenunciada pelo item “aí”, que

funciona então como space builder. Direi, então, que esse space builder abre um Espaço

da Narrativa 1, dentro do qual é interpretada a sequência esse meu amigo tava lá no

camarim né’ esperando. Note-se que, embora o Foco esteja localizado no Domínio do

Conteúdo, o Ponto de Vista está no Espaço de Ato de Fala – portanto, no ground –,

representando o fato de que é o Falante que está construindo diretamente esse evento.

c: Dourado

d: aqui

ENTRAR c, d

a: Dicésar

b: Fernanda

Page 103: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

103

Centro Dêitico da Domínio do

Comunicação Conteúdo

FOCO

PV

a d

b e

c f

Espaço de Espaço da

Ato de Fala Narrativa 1

Figura 23: Representação de esse meu amigo tava lá no camarim esperando

É importante perceber que o evento interpretado no Espaço da Narrativa 1 tem

uma função contextualizadora: ele corresponde ao movimento narrativo a que Labov se

refere como “orientação”, cujo propósito é o de identificar “o tempo, o lugar, as pessoas

e sua atividade ou a situação” (LABOV, 1972, p. 364). E qual a importância dessa

orientação para o uso VS em (4)? Eis a resposta: é ela que define o cenário onde irá

ocorrer a experiência de percepção direta predicada por essa sentença, ao mesmo tempo

em que estabelece textualmente o sujeito de consciência que irá vivenciar essa

experiência – neste caso, o personagem referido como “esse meu amigo”). Na prática,

d: amigo

e: camarim

f: hora de entrar

ESTAR d, e

ESPERAR d, f

a: Dicésar

b: Fernanda

c: Serginho

Page 104: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

104

portanto, a evocação do Espaço de Narrativa 1 disponibiliza uma “subjetividade”

(DANCYGIER, 2012) adicional para a conceptualização do evento subsequente.

Como se vê, esse evento subsequente – a entrada do Marcelo – constitui o

segundo momento da narrativa; por isso, chamarei de Espaço da Narrativa 2 o espaço

mental dentro do qual ele é interpretado. Ao mesmo tempo, ele se configura como um

Espaço de Percepção (EP), na medida em que a cena de entrada do Marcelo é construída

como um evento que ocorre dentro do campo visual do “amigo” e é percebido por ele.

Neste ponto, é relevante notar que a abertura desse EP é sinalizada pelo space

builder “daqui a pouco”. Do ponto de vista semântico, esse sintagma preposicionado

tem duas propriedades interessantes: além de sugerir uma passagem de tempo, ele se

alinha a um centro dêitico deslocado, na medida em que esse “aqui” não diz respeito à

localização temporal dos interlocutores no ground, mas à localização temporal do

“amigo” no camarim. Dessa maneira, esse sintagma prenuncia a ocorrência futura de

um evento a partir do centro dêitico desse personagem.

Em suma, a ideia é a seguinte: se o Falante (situado no Centro Dêitico da

Comunicação, ou seja, no aqui-e-agora da interação em curso) é um sujeito cognoscente

dotado de perspectiva, também o “amigo” (localizado no Domínio do Conteúdo, ou

seja, no aqui-e-agora dos fatos narrados) se configura como locus de consciência

potencial. Neste momento, portanto, temos dois Pontos de Vista disponíveis para a

construção do evento subsequente (a entrada de Marcelo): o PV do ground (Falante) e o

PV’ do Domínio do Conteúdo (Observador). O primeiro, por encontrar-se em outro

contexto temporal (perspectiva distanciada), não tem acesso perceptual direto ao evento.

O segundo, ao contrário, compartilha o mesmo contexto temporal do evento

subsequente (perspectiva in loco), o que lhe franqueia acesso perceptual direto a ele.

Page 105: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

105

De acordo com a hipótese da perspectiva in loco, este é um contexto altamente

propício à ordem VS, já que existe, neste ponto do discurso, um sujeito cognoscente in

loco disponível e ativado: um bom candidato, portanto, a Observador. E, de fato, temos

aqui dois elementos formais que favorecem o deslocamento do centro dêitico e a

construção da cena a partir de uma perspectiva in loco: a própria ordem linear verbo-

sujeito e, como já se viu, o dêitico deslocado “aqui” (da expressão “daqui a pouco”). A

rede de espaços mentais que traduz a conceptualização do evento em foco a partir desse

ponto de vista in loco está representada abaixo:

Centro Dêitico da Domínio do Conteúdo

Comunicação

d PV’

PV

a e f

b

c

Espaço de FOCO

Ato de Fala g

Espaço de Percepção

(Espaço da Narrativa 2)

Figura 24: Representação de esse meu amigo tava lá no camarim esperando

aí daqui a pouco entrou esse tal de Marcelo

g: Marcelo

ENTRAR f

a: Dourado

b: Lia

c: Cadu

d: amigo

e: camarim

f: hora de entrar

ESTAR d,e

ESPERAR d, f

Page 106: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

106

O contraste entre as figuras 22 e 24 traduz visualmente a diferença de

interpretação entre os usos destacados em (3) e (4). No primeiro caso, o enunciado SV é

entendido como uma simples informação transmitida pelo Falante ao Ouvinte, o que

significa que o próprio Falante é o responsável direto pela construção do evento em

foco. Isso é representado pelo fato de que o PV se situa no ground comunicativo – mais

especificamente, no Espaço de Ato de Fala – e, coerentemente com isso, pelo fato de

que o evento em foco não é construído em um Espaço de Percepção. No segundo caso,

por outro lado, o enunciado VS parece reproduzir uma experiência original de

percepção. Nesse sentido, o Falante não constrói diretamente o evento em foco; em vez

disso, ele o apresenta “pelos olhos” do indivíduo que o vivenciou originalmente,

reproduzindo assim, em certa medida, essa experiência original. Isso é representado

pelo fato de que o ponto de vista adotado é o PV’ do Domínio de Conteúdo e,

coerentemente com isso, pelo fato de que o evento em foco é interpretado em um

Espaço de Percepção (e, portanto, construído como objeto de percepção de algum

sujeito in loco).

Não devem passar despercebidas aqui as diferenças referentes à construção

discursiva dos exemplos (3) e (4). A distinção crucial diz respeito à disponibilização,

em (4), de uma sequência linguística preparatória, anterior ao evento ENTRADA DE

MARCELO, cujo papel é mapear o terreno e identificar o local e personagens envolvidos

na narrativa (trata-se do movimento narrativo a que Labov (1972) se refere como

“orientação”). Como se vê, essa sequência insere explicitamente, no Domínio do

Conteúdo, um referente que corresponde a um sujeito cognoscente (o “meu amigo”).

Em (3), em contrapartida, o evento de ENTRADA DE DOURADO é apresentado

imediatamente após a sequência inicial com função intersubjetiva (Maroca’ ouve essa).

Page 107: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

107

É provável que a diferença de construção discursiva entre os dois casos esteja

relacionada à opção pela ordenação SV e VS, respectiv\aamente. Em (4), a sequência

preparatória cumpre o papel de estabelecer explicitamente um referente no Espaço da

Narrativa 1 (o “amigo”), disponibilizando, portanto, um Observador como locus de

consciência potencial para a conceptualização do evento subsequente. Em (3), por outro

lado, a ausência dessa “orientação”, somada à enunciação de uma sentença

marcadamente diretiva/intersubjetiva no instante imediatamente anterior, alinha-se com

a adoção da perspectiva do Falante, localizado no ground.

O que eu estou propondo é que, em (4), o movimento narrativo de “orientação”,

ao inserir explicitamente na rede de espaços mentais um sujeito cognoscente, produz um

contexto discursivo altamente propício à inversão do sujeito. No entanto, o Ponto de

Vista do Falante segue, por definição, presente e disponível, conforme representado na

figura 24 pela existência de um PV no Espaço de Ato de Fala. Em face disso, a hipótese

prevê que a ordem SV também é uma possibilidade. Essa previsão foi confirmada pela

intuição de falantes consultados: a versão de (4) com sujeito pré-verbal teve média de

aceitabilidade 1,8.

De todo modo, o ponto crucial é que as “alternativas” SV e VS, ainda que

possivelmente aceitáveis em um mesmo contexto, parecem sinalizar para

conceptualizações sutilmente distintas do cenário em foco. Com efeito, os mesmos

falantes consultados para avaliar a possibilidade da anteposição de sujeito em (4)

manifestaram a percepção de que as duas “alternativas” não constroem a cena

precisamente da mesma maneira. De modo geral, eles sugeriram que a sentença VS

produz um efeito de surpresa (pela chegada do Marcelo), ao contrário do uso SV. Isso é

coerente com a ideia de que as codificações SV e VS fornecem instruções de sentido

relacionadas, respectivamente, aos Pontos de Vista do ground e do Domínio do

Page 108: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

108

Conteúdo: o Falante está simplesmente comunicando uma informação de que ele já

dispõe, ao passo que o Observador se depara, naquela momento, com o aparecimento do

Marcelo no camarim.

Esse mesmo contraste pode ser verificado no par abaixo. Ambos os exemplos

foram extraídos do corpus Discurso & Gramática e não há entre eles qualquer ruptura

ou descontinuidade. Aqui, eles foram separados apenas para facilitar a referência

posterior.

(5) o Alexandre pegou o carro dele e foi... comprar cerveja... aí estava descendo

pela Conde de Bonfim... né? e ia dobrar... numa rua à esquerda... que era

contramão ((riso)) pra ir no/ na... na padaria que estava aberto lá pra

comprar cerveja... no bar que estava aberto pra comprar cerveja... aí ele...

pô... ligou a seta... reduziu... quando ele virou pra esquerda pra cruzar a

Conde de Bonfim... vinha um táxi... ((interrupção de colega de trabalho))

vinha um táxi correndo pra caramba... e bateu... na porta dele... do lado

dele assim... acabou o carro... pô... ele se machucou na cara... cortou a cara...

entrou vidro dentro do olho dele... mas não chegou a se... a se ferir

gravemente não... foi só assim leve... né? e pô:: o mais engraçado é que ele

saltou do carro... pô... putão... e o motorista do táxi tranquilíssimo... ligando

já pra::/ pegou o rádio lá que tem no táxi e ligando lá pra Central... pediu

reboque e não sei o quê... não deu nem atenção pra ele... aí pararam ((riso))

parou uma porção de tá::xi... aí os caras do táxi começaram a arrumar

confusão... com ele... pô... ele falou que... os caras do táxi falando pra ele

assim “pô... ninguém vai pagar teu prejuízo mesmo... sai fora” ((riso)) e::...

e não pagaram mesmo não... o cara/ veio a polícia... registraram a

Page 109: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

109

ocorrência... o próprio policial falou que não adiantava nada que... entrar na

justiça... demora anos... e dificilmente a empresa de táxi vai pagar... você só

leva prejuízo... (Corpus D & G – Narrativa recontada – Rio de Janeiro 1)

(6) E: mas ele também estava errado... né? entrar na contramão...

I: não... ele estava errado... mas o táxi veio cortando pela contramão

também... o cara do táxi que estava mais errado do que ele ainda... e tanto

o policial falou que o cara/ ele tinha toda chance de ganhar no tribunal... só

que... pô... ia demorar anos e::... no final a companhia ainda ia recorrer... se

bobear ne... nem pagava... (Corpus D & G – Narrativa recontada – Rio de Janeiro 1)

Como se vê, o uso VS em (5) está inserido em uma narrativa mais ampla,

protagonizada pelo motorista Alexandre. É fácil notar que toda a sequência de

acontecimentos é apresentada sob a perspectiva desse personagem: o ouvinte/leitor só

tem acesso a novos cenários ou paisagens na medida em que o seu campo visual vai se

alterando. À luz da TEM, o Alexandre atua como um sujeito cognoscente descentrado

que está disponível para a conceptualização dos eventos apresentados.

A certa altura da narrativa, a sequência quando ele virou pra esquerda pra

cruzar a Conde de Bonfim sugere a abertura de um novo campo visual para o motorista

– o que significa, em outras palavras, que essa sequência funciona como um space

builder que promove a abertura de um Espaço de Percepção. E é dentro desse espaço

mental que o evento subsequente será interpretado – o que significa que a cena da vinda

do táxi é enquadrada como objeto de percepção direta do motorista Alexandre.

Ao final da narrativa, no entanto, a entrevistadora intervém, aparentemente

incomodada com a tese implícita na fala do informante (segundo a qual o motorista

Page 110: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

110

Alexandre não teria tido responsabilidade pelo acidente). Procurando evidenciar a

fragilidade dessa tese, ela comenta: mas ele também estava errado... né? entrar na

contramão.... Neste ponto, o informante parece sentir-se na obrigação de contra-

argumentar – e o que era uma narrativa se transforma, definitivamente, em um breve

embate argumentativo. É nesse momento que ele enuncia a sentença SV em destaque.

Por meio dela, ele procura reafirmar sua tese, a favor da qual reúne mais adiante alguns

argumentos (aí incluída a opinião do policial).

Nesse contexto, a sentença destacada em (6) não é entendida – diferentemente

do que se vê em (5) – como uma tentativa de reproduzir a experiência original de

percepção vivenciada pelo Observador. Em vez disso, ela é interpretada como um

argumento (portanto, um ato linguístico e intersubjetivo) trazido à tona pelo Falante, no

interior de uma disputa retórica com o Ouvinte, a fim de refutar a tese contrária e

reafirmar sua posição.

A esta altura, deve estar claro que a diferença de intepretação entre (5) e (6) está

diretamente relacionada a uma diferença de Ponto de Vista: no segundo caso,

atribuímos a construção do evento em foco ao próprio Falante; no primeiro, enxergamos

o evento em foco “pelos olhos” de um Observador in loco, como se estivéssemos dentro

da cena presenciando a aproximação do táxi.

Também aqui, essa distinção é coerente com os diferentes contextos de uso de

(5) e (6). Em (5), o ouvinte/leitor acompanha uma narrativa, o que favorece que ele,

imaginativamente, se coloque no lugar de um dos personagens – propiciando a

construção do evento em foco (a aproximação do táxi) segundo a perspectiva do

Alexandre. É por isso que, na prática, tudo se passa como se estivéssemos revivendo a

situação original. Por outro lado, quando o enunciado SV é proferido, a narrativa já foi

interrompida e o contexto é o de uma disputa argumentativa. Assim, nesse caso, o

Page 111: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

111

evento de aproximação do táxi não é mais apresentado como a percepção vívida (e

assustadora) experienciada por um determinado personagem, e sim como um argumento

apresentado pelo Falante.

Não surpreendentemente, os falantes que participaram do teste experimental

julgaram a contraparte VS de (6) – mas veio o táxi cortando pela contramão também...

– bem pouco natural: seu grau médio de aceitabilidade foi 0,8. Esse resultado pode ser

explicado pela presença do conectivo “mas” e do focalizador “também”. Ambos os

elementos atuam diretamente na negociação intersubjetiva entre os interlocutores: o

primeiro sinaliza a introdução de um argumento que contraria a tese do informante,

enquanto o segundo é usado pela entrevistadora para focalizar uma informação presente

na fala do informante (a informação expressa pelo sintagma “na contramão”). Como

consequência, esses dois elementos sugerem que a própria Falante é a responsável pela

construção do evento designado (a vinda do táxi pela contramão). A ordem VS, por

outro lado, aponta para a perspectiva do Observador. Assim, produz-se um conflito

entre a posição do sujeito, de um lado, e o emprego dos itens “mas” e “também”, de

outro. Presumivelmente, é esse conflito que produz a sensação de estranheza em (6),

revelada pelas respostas dos falantes que responderam ao teste de aceitabilidade.

Esse contraste é bastante semelhante ao que se vê abaixo:

(7) DI: você viu bem’ muito bem quem é os três’ o Cadu é uma pessoa

maravilhosa mas ele tá influenciado com tudo isso’ ele tá protegendo a

amiga dele (Corpus BBB 10)

Page 112: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

112

(8) C: não’ é é é a Fernanda foi procurar ele’ e ela ficou um tempão

procurando’ tempão tempão tempão tempão’ aí daqui a pouco ela olha pro

lado’ tá o moleque dormindo na cadeira (Corpus BBB 10)

Semelhantemente ao vimos em (6), os informantes consultados consideraram

bem pouco natural a inversão do sujeito da sentença destacada em (7): a contraparte VS

do enunciado em negrito obteve média de aceitabilidade 0,5, revelando claramente a

estranheza provocada por essa opção.

À luz da hipótese da perspectiva in loco, não é difícil explicar essa estranheza,

bem como a naturalidade do enunciado em negrito em (8). Ocorre que, em (7), não é

possível atribuir a conceptualização da cena designada a um Observador. Afinal, o

conteúdo do enunciado em destaque não é construído como um objeto de percepção de

algum sujeito cognoscente in loco. Trata-se, em vez disso, de uma simples declaração

produzida pelo Falante. Em (8), por outro lado, a narrativa “transporta” os interlocutores

para o aqui-e-agora dos fatos narrados, de maneira que a cena em foco é construída sob

a ótica da Fernanda, produzindo o efeito de experiência direta. Uma evidência adicional

desse deslocamento dêitico é o advérbio “aqui” (na expressão “daqui a pouco”), cuja

base interpretativa é a localização temporal da personagem Fernanda, e não o momento

da enunciação.

Vejamos agora o uso VS em (9). Defenderei que ele pode ser interpretado nos

mesmos moldes de (4), (5) e (8), ou seja, como uma sentença que traduz uma relação de

experiência perceptual direta entre um sujeito cognoscente in loco e um determinado

objeto de percepção.

(9) DO: ó (+) ó tá tocando o telefone’ cês tão ouvindo’’ (Corpus BBB 10)

Page 113: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

113

O enunciado em (9) é proferido por Dourado logo depois que ele ouve um toque

de telefone ao longe; seu objetivo é chamar a atenção dos jogadores Lia e Cadu, aos

quais ele se dirige diretamente. Aqui, defenderei que (9) expressa a própria experiência

de percepção ou constatação in loco desse toque. Nesse sentido, a única particularidade

desse uso, em oposição a (4), (5) e (8), reside no fato de que o lapso temporal entre a

experiência de percepção e sua veiculação linguística é mínimo. Relacionado a isso, está

a fato de que, em (9), o Observador não é evocado lexicalmente, mas apenas

situacionalmente; nos demais exemplos de uso VS, ao contrário, esse Observador é

referido textualmente em uma sequência prévia (no primeiro caso, o SN “esse meu

amigo”; no segundo, o nome “Alexandre” e o pronome “ele”; no terceiro, o SN “a

Fernanda”).

Diante disso, a análise que proponho para (9) é a seguinte. O participante

Dourado desempenha (pelo menos) dois papéis distintos: ele é o Falante, responsável

por proferir o enunciado, e o Observador, ou seja, o indivíduo que acaba de vivenciar a

experiência de ouvir o toque do telefone46

. Por essa razão, reitere-se, proponho que (9)

não se distingue fundamentalmente de (4), (5) e (8): em todos esses exemplos, o evento

em foco é construído segundo a perspectiva do Observador (em oposição à perspectiva

do Falante). Como resultado, obtém-se a seguinte rede de espaços mentais:

46

Neste caso, o termo “Observador” não deve ser entendido de modo literal, mas metonímico: no

domínio sensorial, a audição é substituída pela visão (cf. seção 4.1.1, nota 7).

Page 114: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

114

Centro Dêitico da Domínio do

Comunicação Conteúdo

PV’

PV a’

a

b

c

Espaço de FOCO

Ato de Fala d

Espaço de Percepção

(Espaço da Narrativa 2)

Figura 25: Representação de tá tocando o telefone

O ponto fundamental, em suma, é que o uso em (9) envolve uma experiência de

percepção direta: Dourado ouvindo o toque do telefone. E, se há uma experiência de

percepção, então deve haver um experienciador – ou um Observador, para manter o

termo que tem sido empregado neste trabalho. Ao fim e ao cabo, é precisamente a

disponibilidade desse Observador que licencia a ordem VS neste exemplo.

Isso fica claro quando (9) é contrastado a um uso como (10), que parece

desfavorecer fortemente a inversão do sujeito, como se vê em (10b).

(10) L: não’ tá uma pobreza’ vou te enganar não

DI: de trabalho’’

d: telefone

TOCAR d

a: Dourado-Falante

b: Lia

c: Cadu

a’: Dourado-

Observador

Page 115: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

115

L: é’ de trabalho’ tá FOda’ meu (+) meu celular tá tocando cada vez

menos (Corpus BBB 10)

Se em (9) o evento de toque do telefone é codificado por meio de uma sentença

VS, o mesmo não parece possível aqui, como mostra (10b):

(10b) # É, de trabalho, tá tocando meu celular cada vez menos

Com efeito, a média do grau de aceitabilidade de (10b), de acordo com os

informantes consultados, foi de 0,9, sugerindo que a sentença foi percebida como pouco

natural.

Como explicar esse resultado? Ocorre que, diferentemente de (9), o uso em (10)

não predica uma experiência de percepção. Isso porque o conteúdo dessa sentença

corresponde a uma abstração: o sintagma “cada vez menos” deixa claro que a Falante

Lia não está evocando uma experiência perceptual específica, mas formulando uma

generalização com base em experiências individuais. Isso está relacionado à diferença

semântica entre as perífrases verbais de (9) e (10): embora as marcas morfológicas dos

verbos sejam as mesmas, apenas no primeiro caso a sentença designa um evento

simultâneo ou quase-simultâneo ao momento da fala; no segundo caso, o sentido da

perífrase verbal é próximo ao do chamado pretérito perfeito composto47

.

Esse tipo de formulação linguística – generalizações, abstrações – parece ser

pouco compatível com a perspectiva do Observador. Isso porque generalizar, ou

abstrair, demanda um distanciamento em relação ao fato (ou melhor, em relação a uma

47

Vale a pena atentar para a complexidade da interpretação dessa sentença. Note-se que ela faz alusão,

metonimicamente, à escassez de propostas de trabalho. Quer dizer: dentro de uma cena complexa, na qual

há uma relação entre o toque do celular e o recebimento de propostas de trabalho, a Falante seleciona o

primeiro evento para fazer referência ao todo. Esse tipo de designação metonímica é compatível com o

que foi dito antes: (10) não simula uma experiência perceptual direta (PV’ do Observador); em vez disso,

trata-se de uma informação transmitida pela Falante a partir de um ponto de vantagem distanciado.

Page 116: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

116

série de fatos particulares). E, naturalmente, o ponto de vantagem do Observador –

alguém situado in loco, no calor dos acontecimentos – não proporciona esse

distanciamento. Em resumo, se é verdade que o padrão VS simula ou evoca o instante

em que se dá a experiência de acesso direto a um objeto, decorre que esse padrão está

impregnado de uma espécie de imediatismo perceptual que o torna pouco apropriado

para expressar conteúdos generalizantes como o de (10).

Um dado de uso VS análogo a (9) – em que o Observador não é evocado

textualmente, mas está disponível situacionalmente – aparece em (11). Aqui,

acompanhamos um diálogo que transcorre algum tempo depois de uma prova de

resistência do BBB 1048

:

(11) C: nossa eu tô cansado (+) tá batendo a:: a::

L: [a lombeira]

C: [o cansaço] agora

(Corpus BBB 10)

Assim como em (9), é possível atribuir aqui dois papéis conceptuais ao falante

Cadu: o de Falante propriamente dito e o de Observador49

, ou seja, o indivíduo que

experienciou a sensação subjetiva de cansaço. Por isso, na rede de espaços mentais, o

Cadu corresponderá a dois referentes – disponibilizando, portanto, dois pontos de vista

para a conceptualização do evento em foco (o surgimento do cansaço). Diante disso,

proponho que o enunciado acima, sendo constituído por uma sentença VS, implica a

48

As provas de resistência costumam durar muitas horas (iniciam-se à noite e terminam, em geral, apenas

na manhã seguinte) e frequentemente exigem que os concorrentes passem toda a madrugada em uma

mesma posição ou realizando a mesma tarefa repetitiva.

49

Assim como em (9), também aqui a observação não deve ser entendida literalmente.

Page 117: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

117

adoção da perspectiva in loco do Cadu-Observador. Neste caso, a rede de espaços

mentais é perfeitamente análoga à do exemplo (9). Vejamos.

Centro Dêitico da Domínio do

Comunicação Conteúdo

PV’

PV a’

a

b

Espaço de FOCO

Ato de Fala c

Espaço de Percepção

(Espaço da Narrativa 2)

Figura 26: Representação de tá batendo o cansaço agora

É interessante notar como esse exemplo contrasta sutilmente com o uso abaixo.

Depois de sair da cozinha, onde havia travado com a participante Lia um breve diálogo

do qual (11) é uma parte, Cadu encontra Dourado no quarto. É nesse momento que ele

profere o seguinte enunciado:

(12) C: cara tu tinha razão’ o cansaço tá batendo agora

(Corpus BBB 10)

c: cansaço

BATER c

a: Cadu-Falante

b: Lia

a’: Cadu-

Observador

(Experienciador)

Page 118: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

118

A sequência cara’ tu tinha razão denuncia: essa fala de Cadu remete a uma

conversa anterior entre ele e Dourado a respeito das “provas de resistência” (em que os

concorrentes frequentemente devem atravessar a madrugada sem mudar de posição).

Nessa conversa, Dourado havia previsto não que os participantes da prova de resistência

iriam se cansar – isso é autoevidente –, mas que o cansaço seria sentido tardiamente

(porque logo após a prova a adrenalina estaria alta). Nesse contexto, a fala de Cadu em

(12) funciona como um testemunho de que a previsão de Dourado estava correta. Do

ponto de vista da estrutura informacional, o foco da sentença em destaque reside no

denotatum do advérbio “agora”: grosso modo, ela equivale a “é agora que o cansaço tá

batendo (conforme você havia previsto)”. Mas o que tudo isso tem a ver com o ponto de

vista e, consequentemente, a posição sintática do sujeito?

Ocorre que, ao enunciar (12), Cadu não está reproduzindo a experiência de

surgimento do cansaço. Diferentemente de (11), não se trata neste caso do Cadu-

Observador sendo invadido aqui-e-agora pela sensação de cansaço, mas do Cadu-

Falante concordando com uma afirmação expressa pelo seu interlocutor em uma

situação comunicativa anterior (e trazida à tona neste momento). Informalmente, o

“cansaço” de (11) é apenas uma entidade abstrata pertencente ao conhecimento de

mundo dos falantes, ao passo que, em (12), trata-se “daquele cansaço ao qual você se

referiu em outro momento”. Do ponto de vista pragmático-funcional, a distinção é a

seguinte: embora em ambos os casos tenhamos um SN definido, em (11) essa definitude

formal se deve apenas ao fato de que se trata de um referente identificável; em (12),

diferentemente, trata-se de um referente que está sendo reativado no contexto da

interação entre aqueles dois interlocutores.

Essa diferença de interpretação é compatível com o uso VS no primeiro caso e

SV no segundo. Afinal, tudo o que um Observador pode fazer, a partir do seu ponto de

Page 119: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

119

vantagem in loco, é vivenciar diretamente uma experiência; por outro lado só quem

pode agir intersubjetivamente, reagindo ou respondendo à fala do interlocutor (para

concordar, discordar, justificar, etc.) – e acessando para isso registros de um diálogo

anterior – é, naturalmente, o Falante, ou seja, alguém que se situa no Espaço de Ato de

Fala e está engajado em uma situação comunicativa. Isso explica por que a rede de

espaços mentais ativada por (12) é sensivelmente diferente daquela de (11):

Centro Dêitico da Domínio do

Comunicação Conteúdo

c

d

Espaço

Metatextual

FOCO PV ’

a c’

b

Espaço de Espaço de Presente

Ato de Fala

Figura 27: Representação de o cansaço tá batendo agora

Note-se que, nessa rede, estão representados dois referentes para a entidade

abstrata CANSAÇO: c no Espaço Metatextual e sua contraparte c’ no Espaço Foco. E,

mais do que isso, eles estão ligados por uma função pragmática, sugerindo a existência

c: cansaço

BATER c a: Cadu-Falante

b: Dourado

c: cansaço

d: logo após a prova

NÃO BATER c, d

Page 120: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

120

de uma relação entre o cansaço que o Cadu-Observador está efetivamente sentindo

“agora” e o cansaço que Dourado havia previsto em conversa anterior.

Ao fim e ao cabo, enunciados VS como os de (9) e (11) são análogos a usos

como “caiu uma gota de chuva na minha cabeça”, “entrou um cisco no meu olho”,

“parou a música” ou “veio uma pontada forte na barriga agora”, dentre tantos outros,

quando proferidos “do nada” (não inseridos em uma sequência linguística mais ampla) e

pouco depois (às vezes imediatamente depois) da ocorrência do evento designado: todos

eles registram/relatam a experiência de percepção pela qual o Observador está passando

ou acaba de passar.

Em resumo, esta seção procurou analisar contrastivamente usos SV e VS, a fim

de verificar a hipótese de que essa alternância é motivada por um processo conceptual

de deslocamento do Ponto de Vista. Dessa maneira, o padrão SV preserva o arranjo de

visualização default (PV do Falante, localizado no Espaço de Ato de Fala, que pertence

ao Centro Dêitico da Comunicação, ou seja, ao aqui-e-agora da interação em curso) ao

passo que o padrão VS se associa a um arranjo alternativo (PV’ do Observador,

localizado no Domínio do Conteúdo, ou seja, no aqui-e-agora do evento em foco).

4.3 Uma tipologia para os usos VS

Ao discutir os exemplos de uso VS na seção 4.2, vimos casos em que o

Observador não coincide com o Falante (exemplos (4) e (5)) e outros em que Falante e

Observador correspondem à mesma pessoa física (exemplos (9) e (11)). Essa distinção

pode servir como ponto de partida para uma tipologia dos usos VS, cujo fundamento é o

tipo de Observador. Nesta seção, procurarei sistematizar essa tipologia, que está

sintetizada no diagrama abaixo:

Page 121: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

121

Figura 28: tipologia dos usos VS segundo o tipo de Observador

A figura acima distingue os diferentes usos VS com base em propriedades

semânticas do Observador. Todos os exemplos discutidos até aqui apresentam um

Observador determinado, ou seja, um Observador que corresponde a um (ou mais de

um) referente cuja identidade é recuperável. Vejamos dois desses casos:

(13) o meu colega me contou... que ele estava os dois indo... aí ele foi

atravessar a rua... aí veio um carro disparado... e atropelou ele...

(Corpus D&G – Narrativa recontada – Rio de Janeiro 2)

(14) C: não Lia deixa eu falar’ eu tava assim no quarto descansando né’’ aí do

nada entrou o Dourado MUIto revoltado’ aí eu assim’ que foi cara’’

(Corpus BBB 10)

Fundamentalmente, os dois usos destacados acima podem ser analisados nos

mesmos moldes de todos os enunciados discutidos até aqui, ou seja, como

representações de uma experiência perceptual direta (Ponto de Vista situado no

Domínio do Conteúdo). Além disso, nos dois casos, o experienciador, ou Observador, é

textualmente evocado em uma sequência prévia, sendo explicitamente disponibilizado

coincidente com Falante

TIPO DE

Determinado

não-coincidente com o Falante

OBSERVADOR Indeterminado/Genérico

Page 122: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

122

como locus de consciência potencial para a construção do evento subsequente (aí ele foi

atravessar a rua; eu tava assim no quarto descansando né).

Apesar disso, há uma diferença interessante. Se, em (13), não se verifica uma

relação de identidade entre os referentes que desempenham os papéis de Falante e de

Observador, em (14), a pessoa física do falante é conceptualmente cindida, sendo

representada em dois planos distintos: no Centro Dêitico da Comunicação, na condição

de Falante (o sujeito responsável pelo proferimento dos enunciados) e no Domínio do

Conteúdo, na condição de Observador (o sujeito responsável pela experiência de

percepção). Aqui, portanto, pode-se falar na existência de “dois Cadus”: o Cadu-Falante

(narrador), localizado no aqui-e-agora da interação (portanto, no Centro Dêitico da

Comunicação), e o Cadu-Observador (personagem), localizado no aqui-e-agora dos

fatos narrados (portanto, no Domínio do Conteúdo). Vejamos:

Centro Dêitico da Comunicação Domínio do Conteúdo

PV’

PV a’

c

a

b

Espaço de FOCO

Ato de Fala d

Espaço de Percepção

(Espaço da Narrativa 2)

Figura 29: Representação de eu tava assim no quarto descansando né’’ aí do nada entrou o Dourado

d: Dourado

ENTRAR d

a: Cadu-Falante

b: Lia

a’: Cadu-bservador

c: quarto

ESTAR

DESCANSANDO

a’, c

Page 123: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

123

Na figura acima, a linha tracejada representa uma função pragmática ligando o

Cadu-Falante ao Cadu-Observador. Como prevê o Princípio da Identidade (seção 2.1.1),

quando dois referentes estão ligados por uma função pragmática, a descrição de um

deles pode ser usada para acessar o outro. É o que se verifica aqui: se o pronome “eu” se

refere ao Falante (referente a), ele é usado também para acessar um personagem da

narrativa (referente a’). O modelo BCSN fornece meios de representar separadamente

esses dois papéis desempenhados pelo falante, possibilitando capturar com mais

precisão tanto o fracionamento quanto a interconexão das informações disponibilizadas

em uma determinada situação comunicativa.

São abundantes os dados que exibem o tipo de cisão conceptual do falante

representado na figura acima; os usos VS em (15) e (16) servem como ilustração

adicional.

(15) C: e ele assi/ ele dorme muito’ é ele que eu te falei que tipo tem vezes que

a gente vai se arrumar na casa dele aí fica esquen/ na/ no/ tipo tomando

uma birita antes tipo aí tô lá pronto na casa dele’ daqui a pouco Bruno’

Bruno’ Bruno’ Bruno’ ((simula batidas na porta)) quando abre a porta do

banheiro tá ele no vaso ó ((simula ronco)) dormindo

(Corpus BBB 10)

(16) A: não Dimmy’ inacrediTÁvel (+) a gente tava lá almoçando’ tudo bem’

tudo normal’ de rePENte veio Dourado’ dizer que a gente não pode

chamar ele de chato’ porque ele não deu liberdade pra GENte

(Corpus BBB 10)

Page 124: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

124

Nestes dois casos, o falante desempenha simultaneamente os papéis de Falante e

de Observador. Em (15), o Cadu-Falante narra uma história na qual, a certa altura, o

Cadu-personagem abre a porta do banheiro e se depara com seu amigo Bruno “no

vaso”; em (16), a Anamara-Falante conta um episódio no qual a Anamara-personagem

está almoçando calmamente quando é surpreendida pela aproximação de Dourado.

Neste ponto, é preciso registrar ainda a possibilidade de usos como (9), repetido

e renumerado abaixo:

(17) DO: ó (+) ó tá tocando o telefone’ cês tão ouvindo’’ (Corpus BBB 10)

O caso de (17) é fundamentalmente semelhante ao de (14), (15) e (16): como já

vimos (figura 25), há aqui uma cisão conceptual que produz a existência de “dois

Dourados”. A única diferença é que, neste caso, o Observador é evocado apenas

situacionalmente. Conforme já ficou dito, isso é possível em função da quase-

sobreposição temporal entre o evento de percepção e o evento de enunciação.

Mais interessante ainda, do ponto de vista das “acrobacias cognitivas”

(FERRARI, 2012) envolvidas na construção do significado, é a possibilidade de que um

determinado indivíduo seja cindido não em dois, mas em três referentes distintos na

rede de espaços mentais. É o que ocorre no exemplo abaixo.

(18) eu estava segurando/ eu estava ali em pé segurando naquela chupeta... aí

eu... sem entender... eu estou vendo aquele tumulto vindo na minha

direção... e quando eu dei por conta... pô...só estava eu e uns... dois no/

naquele vagão... a gente ficou preocupado... (Corpus D & G – Relato de

experiência pessoal – Rio de Janeiro 1)

Page 125: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

125

Neste exemplo, o informante corresponde, naturalmente, ao Falante, localizado

no Espaço de Ato de Fala do Centro Dêitico da Comunicação. Mas, além disso, ele

aparece duas vezes no Domínio do Conteúdo: por um lado, ele é o sujeito de

consciência que presencia a cena designada pela sentença VS (quando eu dei por

conta); por outro, esse indivíduo faz parte da cena percebida por ele mesmo (só estava

eu e uns... dois). Trata-se, portanto, de um caso em que um determinado sujeito

conceptualizador toma consciência da sua própria condição, voltando suas atenções para

si mesmo e para a situação em que ele está inserido. Vejamos como essa situação pode

ser representada nos termos do modelo BCSN:

Centro Dêitico da Domínio do

Comunicação Conteúdo

PV’

PV a’

a

b

Espaço de

Ato de Fala

a’’

c d FOCO

Espaço de Percepção

Figura 30: Representação de e quando eu dei por conta...

pô...só estava eu e uns... dois no/ naquele vagão...

a’’: informante-objeto

c: “uns dois”

d: vagão

ESTAR a’’, c, d

a: informante-Falante

b: entrevistador

a’: informante-

Observador

DAR POR CONTA a’

Page 126: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

126

O que a figura 30 mostra é que, em (18), o informante desempenha três papéis

conceptuais: o de Falante, o de Observador (sujeito da experiência de percepção) e o de

objeto da experiência de percepção. De acordo com o Princípio da Identidade (seção

2.2.1), a função pragmática representada pela linha tracejada permite que o pronome

“eu”, cujo propósito primário é designar o Falante a, seja usado para acessar também o

Observador a’ e o objeto de percepção a’’.

Até este ponto, todos os exemplos discutidos envolvem um Observador

determinado. Mas, como mostra a figura 28, há casos em que o Observador é genérico

ou indeterminado. É o caso de (19).

(19) DI: Serginho’ pensa no seu close

C: o Brasil vai ficar lou::co

S: por que’’ por que eu dou bafão’’

C: pô nego vai olhar vai tá tu e a Fernanda se agarrando na cama

(Corpus BBB 10)

Compreender este exemplo requer alguma contextualização. No momento em

que a conversa acontece, os participantes Serginho e Dicésar estão no “paredão”, e no

dia seguinte um dos dois será eliminado do programa. Aqui, a palavra “close” se refere

ao clipe com os melhores momentos dos “emparedados”, que sempre vai ao ar nos dias

de eliminação. Nesse diálogo, Cadu prevê que uma das cenas do “close” será o

momento em que Serginho e Fernanda trocam carícias na cama.

O que explica a inversão do sujeito neste caso? Aqui, uma das palavras-chave

parece ser o substantivo “close”: ela nos ajuda a construir a cena designada pela

sentença VS como objeto de percepção do telespectador. Isso, claro, é reforçado pela

Page 127: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

127

sentença nego vai olhar, em que o verbo perceptual funciona como space builder capaz

de disparar a abertura do Espaço de Percepção onde o conteúdo do enunciado VS será

interpretado. Aqui, como se vê, o Observador, evocado lexicalmente pela palavra

“nego”, corresponde a qualquer potencial telespectador do programa, conforme as

informações cotextuais permitem inferir.

Um exemplo análogo é (20), em que o Observador também é genérico. A única

diferença é que, neste caso, ele é evocado pelo sintagma nominal “o cara”:

(20) DO: é muito BOM (+) a gente é big brother’ a gente é né’’

F: eu vou comprar’ eu vou comprar

DO: cara a gente tem que tirar uma onda também’ o cara chega lá em casa’

tá você lá

F: com o roupão

(Corpus BBB 10)

Neste exemplo, os participantes Dourado e Fernanda, do BBB 10, conversam

sobre a possibilidade de adquirir o roupão com a marca do Big Brother Brasil. O

primeiro defende essa ideia, sob o argumento de que a gente tem que tirar uma onda

também. É só a partir desse ponto que ele inicia uma narrativa hipotética (co-narrada

por Fernanda). Nessa narrativa, um indivíduo (“alguém”) se desloca até um

determinado local (“lá em casa”) e, ao chegar, se depara com uma determinada cena

(“você lá com o roupão”).

Sob diversos aspectos, o uso em (20) é notavelmente semelhante a todos os usos

VS discutidos até aqui, na medida em que a cena designada pela sentença VS em

destaque é apresentada segundo a perspectiva de um sujeito in loco. A única diferença

sensível, reitere-se, é que o Observador, evocado pelo sintagma nominal “o cara”, tem

Page 128: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

128

referência genérica: trata-se de qualquer um que venha a chegar “lá em casa” e a se

depare com “você lá com o roupão”.

Por fim, é preciso considerar casos em que o Observador genérico não é evocado

lexicalmente, e sim inferido. É o que se vê em (21).

(21) L: e a menininha ficou’’

DO: eles se perdem dela’ e ele fica sempre pensando nela

C: por que ele largou’’

DO: porque era filho da PUta’ era filho da puta

L: ah um dos irmãos era filho da puta

C: o irmão maior era filho da puta (+) e aí ele pega e larga ela (+) e aí ele/

ele/ aparece ele criança vendendo’ roubando comida no trem’ viviam

em cima do trem (Corpus BBB 10)

Nesta passagem, o participante Dourado relata, para Lia e Cadu, a história do

filme Quem quer ser o milionário?. Essa parte do relato diz respeito, especificamente, à

sequência em que o protagonista Jamal e seu irmão, ainda crianças, deixam para trás

uma “menininha” e, na cena seguinte, são vistos vendendo’ roubando comida no trem.

Como se pode notar, o evento designado é construído sob a ótica do espectador

do filme. É esse espectador, portanto, que desempenha o papel de Observador, já que

ele presencia diretamente a cena designada. Assim como em (19) e (20), trata-se de um

Observador genérico; neste caso, qualquer um que se disponha a assistir ao filme. Mas,

diferente desses dois exemplos, em (21) o Observador não é evocado lexicalmente; em

vez disso, ele deve ser inferido com base em informações cotextuais e no nosso

“conhecimento de mundo” (sabemos que filmes pressupõem espectadores).

Page 129: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

129

Ao fim e ao cabo, o que os usos VS discutidos sugerem é que, a despeito da

referência semântica do Observador (determinado ou genérico, coincidente ou não com

o Falante), o padrão verbo-sujeito parece de fato sinalizar para a construção da cena a

partir de uma perspectiva in loco, promovendo um movimento de aproximação entre

sujeito conceptualizador e objeto conceptualizado e frequentemente produzindo, como

resultado, um efeito de maior expressividade ou vivacidade.

4.4 Ordem VS e mesclagem de ponto de vista

Até aqui, argumentei que o padrão VS funciona como pista formal que instrui o

ouvinte a interpretar o evento em foco a partir de um centro dêitico deslocado,

assumindo a perspectiva de um sujeito cognoscente in loco. Nesse sentido, interpretar

uma sentença como “tá ele no vaso” envolve uma “acrobacia cognitiva” (FERRARI,

2012) por meio da qual nos projetamos para o espaço-tempo da narrativa, colocando-

nos no lugar do Observador, ou seja, o Cadu-personagem. Da mesma maneira,

interpretar um uso do tipo “vinha um táxi correndo pra caramba” implica assumir o

ponto de vantagem do motorista Alexandre, localizado no aqui-e-agora do evento em

foco. Implica, em outras palavras, ver o mundo “pelos olhos” desse personagem.

Acontece que, se a ordem linear verbo-sujeito sugere, ou promove, um

afastamento em relação à situação comunicativa, é fato que enunciados VS concretos

frequentemente exibem outras marcas formais que, atuando no sentido contrário,

demandam o acesso ao ground interacional. Aqui, vou me concentrar em duas delas: a

morfologia do verbo e a forma do sintagma nominal em relação de sujeito.

Comecemos pelo exemplo (22), em que o informante relata uma tentativa de

assalto de que seu tio foi vítima.

Page 130: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

130

(22) ele comprou o relógio... e voltou... quando voltou... para casa... estava um

pouco/ ah... meu Deus... estava assustado... com... com medo... porque... se

alguém... iria roubar o relógio... de repente... aparece do... dois garotos...

que ro/ queriam roubar o relógio dele... (Corpus D&G – Narrativa recontada

– Rio de Janeiro 2)

Neste exemplo, verifica-se o chamado presente histórico ou presente narrativo.

Como diversos autores já mostraram (LANGACKER, 1991; CUTRER, 1994;

GERHARDT, 2002), esse uso do presente do indicativo envolve o mesmo movimento

conceptual associado ao padrão VS: deslocamento do centro dêitico, com adoção de um

ponto de vista descentrado50

. Ao mesmo tempo, o sintagma nominal é pragmaticamente

não-identificável (LAMBRECHT, 1994). Isso significa que a interpretação desse

sintagma não demanda acesso a informações disponibilizadas no ground, quer sejam

informações disponíveis situacionalmente (e presentes, portanto, no Ground Real), quer

sejam informações disponibilizadas textualmente, ao longo da interação em curso (e

registradas, portanto, no Espaço Metatextual).

Nesse sentido, tanto a forma verbal quanto a estrutura do SN fornecem

instruções compatíveis com a da ordem VS, quais sejam, a adoção de um Ponto de Vista

distanciado do ground comunicativo. Por isso, neste caso, há uniformidade na adoção

de uma perspectiva descentrada. Isso não significa que a perspectiva do Falante esteja

inteiramente ausente; quer dizer apenas que o ground está tão subfocalizado quanto

possível, com a perspectiva do Falante permanecendo maximamente implícita. Como

resultado, obtém-se a seguinte configuração de espaços mentais:

50

Dos três trabalhos citados, o de Cutrer (1994) é o único que se baseia primariamente na Teoria dos

Espaços Mentais. Interessantemente, sua análise do presente histórico (CUTRER, 1994, cap. 7) se

aproxima bastante do tratamento desenvolvido nesta tese para a inversão do sujeito no PB falado: a autora

sustenta que o presente histórico estabelece uma nova base para a conceptualização do evento em foco.

Page 131: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

131

Centro Dêitico da Domínio do

Comunicação Conteúdo

PV’

PV c

a

b

Espaço de FOCO

Ato de Fala d

Espaço de Percepção

Figura 31: Representação de aparece dois garotos

O caso de (23), contudo, é diferente. Aqui, o informante reconta uma situação

trágica vivenciada por um “colega”:

(23) o meu colega me contou... que ele estava os dois indo... aí ele foi

atravessar a rua... aí veio um carro disparado... e atropelou ele... (Corpus

D&G – Narrativa recontada – Rio de Janeiro 2)

Neste exemplo, embora o SN não demande acesso a informações do ground, o

tempo verbal toma como referência o aqui-e-agora da comunicação. Afinal, ao contrário

d: dois garotos

APARECER c

a: informante

b: entrevistador

c: “ele”

(Observador)

ASSUSTADO,

COM MEDO c

Page 132: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

132

da forma de presente quando usada no relato de fatos passados (presente histórico ou

narrativo), a forma de pretérito não promove deslocamento dêitico – pelo contrário, ela

mantém a ancoragem dêitica no ground. Portanto, neste caso, a forma verbal nos instrui

a “olhar” para o fato passado (o evento designado pela sentença VS) a partir do ponto de

vantagem do Centro Dêitico da Comunicação. Em outras palavras, interpretar essa

forma verbal demanda que se acesse – e não que se abstraia – o momento da enunciação

(o Ground Real, nos termos do modelo BCSN). Ocorre que só quem pode acessar esse

momento são os interlocutores engajados na situação comunicativa – o Observador in

loco (neste caso, o “colega”) naturalmente não tem essa possibilidade, já que ele

“existe” em outro plano, participando do aqui-e-agora dos fatos narrados.

Na prática, isso significa que a sentença destacada em (23) apresenta duas

marcas formais conflitantes no que diz respeito ao posicionamento do Ponto de Vista:

enquanto a ordem VS implica a adoção do PV’ do Domínio do Conteúdo (Observador),

a opção pelo pretérito perfeito associa-se ao PV do ground (Falante). Neste caso,

portanto, a interpretação da sentença demanda o monitoramento simultâneo de duas

perspectivas: ao mesmo tempo em que “olhamos” para o evento em foco a partir do

ponto de vantagem do aqui-e-agora interacional, conforme a instrução semântica da

forma de pretérito, também o percebemos segundo uma perspectiva in loco, “pelos

olhos” do personagem que se deparou com a aproximação do carro.

Trata-se, portanto, de um caso de mesclagem de pontos de vista: se o uso

concreto resulta da combinação de diferentes construções gramaticais, duas delas – o

padrão verbo-sujeito e a construção morfológica de pretérito – fornecem instruções

conflitantes, resultando em um enunciado concreto com ponto de vista mesclado,

conforme o esquema abaixo:

Page 133: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

133

Centro Dêitico da Domínio do

Comunicação Conteúdo

PV’

a Espaço de c

Ato de Fala d

b

PV a’

b’

e

Ground Real

Espaço de Percepção

(Espaço-mescla)

Figura 32: Representação de aí ele foi atravessar a rua... aí veio um carro disparado...

Um caso ligeiramente distinto – mas idêntico no fundamental – é o de (15),

retomado, editado e renumerado abaixo:

(24) C: daqui a pouco Bruno’ Bruno’ Bruno’ Bruno’ quando abre a porta do

banheiro tá ele no vaso ó ((simula ronco)) dormindo (Corpus BBB 10)

Se em (23) o PV do ground está ligado à forma do verbo, em (24) ele fica

evidenciado pela forma do sintagma nominal com relação de sujeito. Na medida em que

e: carro

VIR DISPARADO e

a e a’: informante

b e b’: entrevistador

c: “ele” / colega

(Observador)

d: rua

IR ATRAVESSAR c, d

Page 134: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

134

se trata de um sujeito pronominal de terceira pessoa, sua interpretação demanda acesso a

informações disponibilizadas em porções anteriores do discurso, as quais, estando

registradas no Espaço Metatextual, só podem ser acessadas a partir do ground. Ao

mesmo tempo, e mais uma vez, a ordem linear verbo-sujeito aponta para a adoção do

ponto de vista descentrado do Domínio de Conteúdo. Com isso, a mesclagem de

perspectiva resultante se dá nos seguintes termos:

Centro Dêitico da Domínio do

Comunicação Conteúdo

Espaço Metatextual PV’

d

c e

PV a

b

c

Espaço de f

Ato de Fala

Espaço de Percepção

(Espaço-mescla)

Figura 33: Representação de quando abre a porta do banheiro tá ele no vaso

Por fim, é preciso dizer ainda que pode acontecer o contrário: enquanto o padrão

sintático sinaliza para o PV do ground, outras marcas formais, como a estrutura

c’: “ele” (Bruno)

f: vaso

ESTAR c’, f

a: informante

b: entrevistador

d: agente

(Cadu-Observador)

e: porta do banheiro

ABRIR d, e

c: Bruno

Page 135: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

135

morfológica do verbo, apontam para o deslocamento dêitico, levando à adoção do PV’

do Domínio do Conteúdo. É precisamente isso que se vê no exemplo abaixo, em que a

participante Fernanda imagina a surpresa sentida por um “brother” hipotético que ganha

um carro durante o programa e mais tarde, ao chegar em casa, se depara com esse carro

(“ele”) “na sua garagem”

(25) F: não mas imagina que delícia’ cê chega na sua casa’ ele tá na sua

garagem (Corpus BBB 10)

Nesse caso, somos transportados para o mundo da narrativa (ou seja, colocamo-

nos no lugar do personagem representado pelo pronome “cê”) não por causa da ordem

sintática, que sinaliza para perspectiva distanciada, mas em função da forma de

presente, que aponta para a construção do cenário a partir do centro dêitico deslocado.

Aqui, portanto, o enunciado resultante envolve, mais uma vez, Ponto de Vista mesclado,

mas de maneira inversa à que se viu nos exemplos anteriores: neste caso, é a morfologia

do verbo, e não a ordem sintática, a marca formal responsável por convocar a

perspectiva in loco do Observador.

Em suma, esta seção procurou observar a construção do sentido de alguns

enunciados concretos. Como vimos, é possível que, em um mesmo enunciado,

construções distintas forneçam instruções semânticas divergentes. Nos exemplos (23) a

(25), verificamos como isso pode acontecer no que diz respeito à localização do Ponto

de Vista: com notável frequência, a intepretação de um enunciado envolve o

gerenciamento simultâneo de duas perspectivas distintas, de uma maneira que um

evento pode ser construído ao mesmo tempo a partir dos pontos de vantagem do ground

e do Domínio do Conteúdo. Aqui, procurei mostrar que isso caracteriza uma situação de

mesclagem de Pontos de Vista.

Page 136: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

136

4.5 Síntese e encaminhamentos

Este capítulo propôs uma abordagem baseada em espaços mentais para o

fenômeno da inversão do sujeito no português brasileiro: seu objetivo foi desenvolver e

demonstrar, por meio da análise de dados reais, a hipótese da perspectiva in loco,

segundo a qual a ordem VS serve como pista formal que aponta para o posicionamento

do Ponto de Vista no Domínio do Conteúdo. Cumprida essa etapa, o próximo capítulo

parte para uma abordagem complementar, fundamentada na Gramática de Construções:

seu objetivo é formalizar o tratamento da ordem VS como uma construção gramatical,

ou seja, como um pareamento convencional de forma e significado.

Page 137: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

137

5 Inversão do sujeito e semântica de

frames: uma abordagem construcional

No capítulo anterior, procurei desenvolver e demonstrar, por meio da análise de

dados reais, a hipótese central desta tese, segundo a qual a inversão do sujeito está

associada à perspectiva in loco. Com base nessa ideia, mostrei como a alternância

sintática SV / VS decorre de uma possibilidade de flutuação do Ponto de Vista na rede

de espaços mentais.

A partir de agora, passo a tratar sistematicamente a ordem VS como uma

construção gramatical, ou seja, como um pareamento convencional de forma e

significado. Na próxima seção, procuro delinear o fundamento semântico da construção

verbo-sujeito, nos termos da Gramática Cognitiva langackeriana. Em seguida, parto da

caracterização proposta para descrever seu alinhamento entre sintaxe e semântica,

formalizando-o segundo as linhas gerais do modelo construcional de Goldberg (cujas

obras-síntese são Goldberg (1995; 2006)). Por seu turno, essa sistematização permite

investigar, na seção 5.3, o problema da compatibilidade entre a construção verbo-sujeito

e diferentes classes verbais. Por fim, a seção 5.4 sintetiza os pontos mais relevantes e

prepara a transição para o capítulo seguinte.

5.1 Inversão do sujeito e semântica de frames: uma base conceptual para a

construção VS

Se a ordem verbo-sujeito se qualifica como uma construção gramatical, isso

significa que ela deve apresentar não apenas uma estrutura sintática, mas também uma

Page 138: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

138

especificação semântica própria. Nesse sentido, o objetivo desta seção é descrever o

significado convencionalmente associado à construção VS.

Até agora, argumentei que o padrão verbo-sujeito está associado à perspectiva in

loco: a cena designada pela sentença VS é apresentada sob a ótica de um sujeito que

atua como “testemunha ocular”, localizada no aqui-e-agora do evento em foco. Essa

caracterização serve como ponto de partida: podemos assumir que o polo semântico da

construção VS corresponderá à cena conceptual representada no Domínio do Conteúdo.

Como vimos, trata-se de uma cena de experiência direta: uma situação na qual um

sujeito cognoscente in loco acessa / experiencia diretamente um determinado evento.

Neste ponto, gostaria de sugerir que essa cena corresponde a uma gestalt

experiencial específica, à qual irei me referir como Cena de Focalização de Atenção

(CFA). O diagrama abaixo procura traduzir visualmente essa gestalt, que deve ser

entendida como o frame semântico convencionalmente associado ao padrão sintático

verbo-sujeito.

= Observador

X = Entidade Focalizada

= Trajetória do foco

de atenção

= Campo Visual

Figura 34: Cena de Focalização da Atenção

X

Page 139: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

139

Como se vê, a CFA inclui os seguintes elementos conceptuais: o Observador, o

Campo Visual e a Entidade Focalizada (EF)51

. Em poucas palavras, trata-se de um

cenário no qual o Observador volta sua atenção para uma determinada entidade,

passando a focalizá-la. Nesse cenário, o Campo Visual corresponde simplesmente à

totalidade do horizonte perceptual acessível ao Observador em um dado momento

(incluindo seus estados internos). No conjunto, a CFA procura representar um processo

de (re)alocação da atenção: ao centrar sua atenção sobre uma entidade que até então

não estava focalizada, o Observador produz, como resultado, o aumento do foco de

atenção sobre ela. Vejamos um exemplo concreto:

(26) o meu colega me contou... que ele estava os dois indo... aí ele foi

atravessar a rua... aí veio um carro disparado... e atropelou ele...

(Corpus D&G – Narrativa recontada – Rio de Janeiro 2)

Minha proposta é a de que a sentença VS em destaque evoca uma Cena de

Focalização de Atenção, na qual um Observador (por definição, como já sabemos, um

sujeito cognoscente in loco, ou seja, inserido no universo da narrativa) passa a focalizar

uma nova Entidade, que ingressa no seu Campo Visual. No exemplo acima, o

Observador é o personagem da narrativa identificado alternativamente como “meu

colega” e “ele”. Por seu turno, o Campo Visual é a totalidade do horizonte perceptual

acessível a esse sujeito no momento de ocorrência do evento designado pela sentença

em destaque. E, finalmente, a Entidade Focalizada, aquela sobre a qual o Observador

passa a alocar sua atenção, é o carro.

51

Vale lembrar, conforme ressalva feita no capítulo anterior, que o domínio visual é apenas um ponto de

partida, de maneira que o termo “Observador” deverá, em muitos casos, ser interpretado figurativamente.

Quanto ao Campo Visual, ele será, em alguns momentos, referido também como horizonte visual,

horizonte perceptual ou horizonte de consciência.

Page 140: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

140

Na figura 34, é importante notar que apenas um elemento da CFA aparece

representado com linhas cheias: o “X”, correspondente ao elemento conceptual rotulado

como Entidade Focalizada. Por outro lado, tanto o Observador quanto o Campo Visual

são representados com linhas pontilhadas. Nos termos da Gramática Cognitiva, isso

significa que apenas a Entidade Focalizada corresponde a um elemento perfilado, ao

passo que Observador e o Campo Visual participam da base da predicação, compondo a

sua parte pressuposta.

O contraste entre os exemplos (1) e (1c), retomados e renumerados abaixo, pode

ilustrar a importância dessa caracterização.

(27) F: Di seu chapéu tá no banquinho vermelho (Corpus BBB 10)

(27b) Ai, quando eu olho, tá seu chapéu no banquinho vermelho.

É fácil notar que as sentenças destacadas em (27) e (27b) designam a mesma

cena objetiva: trata-se de uma cena de locação de uma entidade (o “chapéu”) em um

espaço (a região do “banquinho vermelho”). Para representar essa cena, podemos

recorrer ao esquema imagético do contêiner (JOHNSON, 1987). Nesse esquema, o

chapéu corresponde ao X, enquanto a região do banquinho corresponde ao círculo:

Figura 35: esquema imagético do contêiner:

cena de locação

X

Page 141: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

141

A despeito dessa semelhança, as duas sentenças em negrito não são

semanticamente idênticas. E essa diferença pode ser explicada à luz da gramática

cognitiva langackeriana. Assim: se, por um lado, ambas as sentenças designam a mesma

cena objetiva (aquela representada na figura 35), na medida em que perfilam

precisamente os mesmos elementos, elas, por outro lado, predicam cenas distintas. Isso

porque, enquanto a sentença SV em (27) predica apenas a cena de locação codificada no

esquema do contêiner, o que (27b) efetivamente predica é um evento de percepção (ou

observação) – em outras palavras, uma Cena de Focalização da Atenção. Dentro desse

cenário predicado pelas sentenças VS, o Observador fica pressuposto (pertence,

portanto, à base), enquanto o “chapéu” e o “banquinho vermelho” são perfilados

(compondo, portanto, a parte efetivamente designada da predicação). Assim:

X = Cena de continência

Figura 36: Representação esquemática de tá seu chapéu no banquinho vermelho em (27b)

A comparação entre os exemplos (27) e (27b) deve ter servido para tornar

evidente a generalização proposta nesta seção, segundo a qual sentenças VS predicam

uma Cena de Focalização da Atenção. Dito de outra maneira, sentenças VS podem

designar diferentes tipos de eventos, mas deverão predicar, em última instância, um

evento (ou uma experiência) de percepção. Isso se aplica, como vimos, à sentença VS

X

Page 142: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

142

em (27b): se alguém diz tá seu chapéu no banquinho vermelho, o que a sentença

informa não é apenas que há um chapéu sobre o banco, mas que alguém está

constatando diretamente a existência do chapéu sobre o banco (com a ressalva de que a

parte de “alguém constatar diretamente” não é evocada lexicalmente, mas apenas

sinalizada pela própria inversão da ordem canônica).

5.2 Formalizando a construção VS: o alinhamento sintaxe-semântica

Na seção anterior, propus que a Cena de Focalização da Atenção é o fundamento

semântico-conceptual da construção verbo-sujeito. Diante disso, a questão que se coloca

a partir de agora é a seguinte: como essa cena é codificada sintaticamente? Em outras

palavras, como representar o pareamento sintaxe-semântica da construção VS, nos

termos da Gramática de Construções (GC)? Nesta seção, procuro responder a essa

pergunta, valendo-me para isso, em linhas gerais, do modelo goldbergiano

(GOLDBERG, 1995; 2006).

O ponto fundamental, no que se refere à estrutura sintática, é que a construção

VS prevê apenas um argumento: aquele correspondente ao sujeito. Assim, temos a

seguinte situação. Por um lado, os elementos conceptuais não-perfilados (Observador e

Campo Visual) não são sintaticamente codificados pela construção, ou seja, não se

realizam como argumentos previstos no próprio padrão construcional. Por outro lado, o

elemento perfilado (a Entidade Focalizada) apresenta correspondência com um

argumento sintático, sendo realizado como sujeito. Isso pode ser visto nos exemplos

abaixo:

(28) começa a chover assim... torrencialmente... e fura o pneu... fura o pneu do

carro dela... (Corpus D&G – Narrativa de experiência pessoal – Rio de Janeiro 1)

Page 143: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

143

(29) aí a gente::... caiu sentada... mas a gente não se machucou... ficou

doendo... aí... aí... bateu o sinal... aí a gente foi formar... (Corpus D&G –

Narrativa de experiência pessoal – Rio de Janeiro 1)

Em (28) e (29), a sentença VS apresenta de fato apenas um argumento, que

corresponde semanticamente à Entidade Focalizada e sintaticamente ao sujeito. Tem-se,

portanto, uma situação na qual os sujeitos “o pneu” e “o sinal” são, simultaneamente,

argumentos da construção e dos verbos respectivos. Em outras palavras, o papel

argumental Entidade Focalizada se funde, em (28), ao papel participante “coisa furada”

e, em (29), ao papel participante “coisa batida”.

A situação, porém, é um pouco diferente em (30) a (32):

(30) eles ficaram conversando com... com... o pessoal de lá... daqui a pouco

começou a correr gente lá pra esquina... (Corpus D&G – Narrativa recontada

– Rio de Janeiro 2)

(31) S: bi’ entrou uma mariposa desse tamanho no:: na cozinha (+)

começou a voar’ não consegui nem comer direito (Corpus BBB 10)

(32) aí quase acabando o baile... quase todo mundo já indo embora... aí chegou

a polícia entrou dentro do baile... (Corpus D&G – Narrativa de experiência

pessoal – Niterói)

Minha análise para os exemplos acima é a que segue. Em (30), temos, além do

sujeito “gente”, argumento obrigatório tanto do padrão VS quanto do verbo “correr”,

Page 144: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

144

um sintagma preposicionado que corresponde a um adjunto tradicional (GOLDBERG,

2006), na medida em que não é argumento nem da construção nem do verbo. Já em (31)

e em (32), temos, para além do sujeito, um sintagma locativo preposicionado que é

argumento do verbo, mas não da construção – com a diferença de que, no primeiro caso,

ele está foneticamente expresso (“no:: na cozinha”) e, no segundo, foneticamente nulo

(um argumento zero que retoma anaforicamente o “baile”). Isso quer dizer o seguinte:

em (31) e (32), os sujeitos (respectivamente, “uma mariposa desse tamanho” e “a

polícia”) resultam da fusão de um papel argumental da construção VS com o papel

participante do verbo, mas os sintagmas locativos não correspondem a qualquer papel

argumental previsto no padrão verbo-sujeito52

.

Ao fim e ao cabo, ficamos com a seguinte situação. A construção VS evoca um

frame com três elementos conceptuais – Observador, Campo Visual e Entidade

Focalizada – que se relacionam de maneira específica, configurando a Cena de

Focalização da Atenção. No entanto, apenas um desses elementos é perfilado (tem

maior grau de proeminência focal), sendo o único representado sintaticamente pela

construção: a Entidade Focalizada, que corresponde à relação gramatical de sujeito. Nos

termos da notação desenvolvida por Goldberg (1995), na qual são representados apenas

papéis argumentais com contraparte sintática, o alinhamento sintaxe-semântica da

construção VS pode ser sintetizado assim:

52

A situação, na realidade, é um pouco mais complicada. O padrão VS não é a única construção sintática

envolvida nas sentenças destacadas em (30) a (32): todas elas incluem também uma construção de

estrutura argumental. Assim, em (31) e (32), embora o sintagma locativo não seja argumento do padrão

construcional VS, ele corresponde a um papel previsto na construção de estrutura argumental subjacente

(em ambos os casos, trata-se de uma construção de movimento intransitivo, nos termos de Goldberg

(1995)).

Page 145: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

145

Figura 37: Alinhamento sintaxe-semântica na construção VS

O diagrama acima fornece duas informações fundamentais. Primeira: o tipo de

evento convencionalmente associado ao padrão VS é um evento de focalização de

atenção, vale dizer, uma situação na qual um observador in loco direciona sua atenção

para uma determinada entidade. Essa ideia é capturada pela proposição FOCALIZAR

ATENÇÃO, ligada ao predicador verbal. Segunda: o sujeito da construção VS deve ser

semanticamente construído como uma Entidade Focalizada. Essas duas restrições são,

na verdade, partes componentes de uma generalização maior, a saber: os itens lexicais

que instanciam a construção VS devem ser construídos como compatíveis com a Cena

de Focalização da Atenção.

Sob a perspectiva da Gramática de Construções, é isso que fica evidenciado pelo

contraste entre (27) e (27b). Em ambos os casos, o sujeito “seu chapéu” recebe o mesmo

papel temático: trata-se de um tema, na medida em que corresponde a uma entidade

locada em um determinado espaço. Ocorre que esse rótulo comum obscurece uma

diferença semântica que, a meu ver, é relevante sintaticamente: apenas no segundo caso

esse tema é construído como objeto de percepção de um sujeito in loco – em outras

palavras, como aquilo que tenho chamado de Entidade Focalizada. A proposta, portanto,

é a seguinte: como, em (27), o sintagma nominal “seu chapéu” não é construído como

Entidade Focalizada, ele não é admitido no slot de sujeito da construção VS,

inviabilizando a posposição. No entanto, em (27b), a cláusula temporal permite que o

SEMÂNTICA Focalizar Atenção < Entidade Focalizada >

PRED

SINTAXE V Sujeito

Page 146: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

146

mesmo sintagma nominal seja interpretado como Entidade Focalizada, o que acaba por

licenciá-lo na construção VS.

A mesma restrição que proíbe (ou torna pouco natural) a inversão do sujeito em

(27) volta a bloquear o uso VS no exemplo abaixo:

(33) L: não’ eu achei que a Camila tinha entrado’ eu achei que ela tinha

entrado’ cheguei a contar pras minhas amigas’ pô olha que legal a Camila

entrou no Big Brother’ mas não meu’ foi por um triz na verdade (Corpus

BBB 10)

A passagem acima é proferida em uma situação na qual a participante Lia, do

BBB 10, descobre alguns conhecidos em comum com o jogador Dicésar. Nesse

contexto, ela conta uma história que envolve uma dessas pessoas, referida como Camila.

Note-se que o referente do sujeito não pode ser interpretado como Entidade Focalizada,

já que não se trata, aqui, de um Observador in loco constatando o ingresso da Camila no

seu Campo Visual (dito de outra maneira, não há uma Cena de Focalização da Atenção,

e sim um relato no qual o Falante reporta seu próprio discurso). Consequentemente, ele

não pode ocupar o slot de sujeito da construção VS, o que explica a pouca naturalidade

da inversão neste caso:

(33b) Eu achei que ela tinha entrado, cheguei a contar pras minhas amigas: pô

olha que legal # entrou a Camila no Big Brother

Na verdade, para que uma sentença como esta fosse licenciada, ela deveria ser

interpretada como a expressão da experiência de um Observador in loco: alguém que

testemunha a entrada da Camila. Dessa maneira, o referente do sujeito cumpriria o

Page 147: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

147

requisito semântico necessário à sua instanciação na construção VS, sendo construído

como uma EF. É o que se vê no exemplo abaixo:

(34) C: ontem eu tava que nem um ovo frito na cama’ eu

S: ((incompreensível))

C: pô’ virava prum lado’ pro outro’ nada de dormir

S: mee too

C: aí levantei’ tava a Maroca e a Lia ainda aqui fora

S: é’ aí entrou a Maroca no quarto’ ligou o abajur e deixou ligado

(Corpus BBB 10)

Este uso, como se vê, se conforma perfeitamente à Cena de Focalização de

Atenção. Aqui, o referente de “a Maroca” desempenha o papel de Entidade Focalizada,

permitindo que ele seja instanciado no slot reservado ao sujeito da construção VS – e,

dessa forma, viabilizando a inversão do sujeito.

O contraste entre (33) e (34) reaparece na diferença entre (35) e (36):

(35) E: sabe... é a cor... tudo bem... tem... tem isso sim... agora as camadas

dessa montanha eu acho muito estranhas... num entendo porque que elas

tenham essas camadas... com cores diferentes... inclusive por se tratar de

uma fotografia... eu fico pensando... existe uma montanha desse jeito?

I: a luz tá incidindo sobre elas e dando essa variação de cores... desse tipo

aí...

E: se eu fosse...

I: a luz vem lá detrás dessa montanha... tá bom?

(Corpus D&G – Relato de procedimento – Natal)

Page 148: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

148

(36) aí eu tentei sair com o carro não tinha jeito... o carro quebrou tudo... aí...

pô... saltei do carro pra... pedir ajuda... né? aí eu comecei a andar... aí na

minha frente ((riso)) tinha um... um Voyage parado... batido também... aí

eu fui conversar com os caras do carro... né? pô... vem ((riso)) eu doidão...

não me lembrava de nada da batida mais... aí eu cheguei pros caras e

perguntei “pô... cara... tu bateu com o carro aqui também? que

coincidência...” aí o cara veio pra cima de mim... querer me bater... (Corpus

D&G – Narrativa de experiência pessoal – Rio de Janeiro 1)

No primeiro exemplo, a sentença em destaque não predica o aparecimento de

uma Entidade no Campo Visual de um Observador; em outras palavras, não evoca uma

Cena de Focalização da Atenção. Na prática, isso quer dizer, que, do ponto de vista

semântico, o referente de “a luz” não se qualifica como uma EF. Sob uma visada

construcional, essa é a razão pela qual esse sintagma não pode ocupar o slot disponível

para o sujeito da construção VS – o que explica a impossibilidade, ou baixa

naturalidade, da inversão do sujeito neste caso.

Por outro lado, em (36), a sentença em destaque envolve uma CFA: aqui, a

sentença VS evoca um cenário no qual uma determinada entidade, referida pelo

pronome “eu”, ingressa no Campo Visual de sujeitos cognoscentes inseridos no mundo

dos fatos narrados – os ocupantes do Voyage, que desempenham, portanto, o papel de

Observadores. Como resultado, o referente do pronome “eu” se caracteriza claramente

como uma Entidade Focalizada – e é isso que licencia seu emprego no padrão

construcional verbo-sujeito.

Em suma, procurei nesta seção (i) apresentar o pareamento forma-significado da

construção VS, mostrando que, dos três elementos conceptuais presentes no frame da

construção, apenas um, a Entidade Focalizada, tem contraparte sintática,

Page 149: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

149

correspondendo ao sujeito da construção, e (ii) mostrar que esse pareamento impõe uma

restrição à inversão do sujeito: apenas referentes que possam ser construídos /

interpretados como uma Entidade Focalizada serão licenciados na construção VS, o que

explica, em termos construcionais, a naturalidade da inversão em (27b), (34) e (36),

bem como a opção pela ordem SV em (27), (33) e (35).

Por que certos verbos admitem com facilidade a inversão do sujeito, ao passo

que outros parecem fortemente refratários à ordem VS? Nesta seção, procuro enfrentar

essa questão a partir de um enfoque construcional.

Na seção anterior, vimos que o padrão VS está convencionalmente associado ao

um frame semântico específico, ao qual denominei Cena de Focalização da Atenção. A

figura 37, que representa o pareamento forma-significado da construção, procura

traduzir essa ideia por meio da proposição FOCALIZAR ATENÇÃO. Diante disso, a

ideia básica é a seguinte: para poder ser instanciado na construção VS, um determinado

predicador deve ser compatível com o evento convencionalmente associado a ela, qual

seja, o evento de focalização da atenção.

5.3 Compatibilização entre classes verbais e construção VS

Os candidatos mais óbvios, nesse sentido, são os verbos de aparição. De fato,

sentenças como “Apareceu uma mosca na minha sopa” e “Surgiu uma luz no fim do

túnel” parecem se conformar à perfeição ao cenário delineado pela CFA: uma Entidade

ingressa no Campo Visual do Observador e passa, então, a ser focalizada por ele. Mas

outras classes de verbos também podem instanciar o padrão VS. Nesta seção, vou

investigar essas possibilidades de compatibilização, dividindo os verbos em seis grupos:

verbos de aparição, locativos estativos, de movimento, de mudança de estado, sensoriais

e de ação.

Page 150: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

150

5.3.1 Verbos de aparição

Verbos de aparição podem ser facilmente instanciados na construção VS em

função da compatibilidade entre sua estrutura semântica e a Cena de Focalização de

Atenção. Afinal, tanto os verbos de aparição quanto a CFA representam um evento de

aparecimento, de maneira que o referente do sujeito desses verbos é facilmente

construído ou enquadrado como uma Entidade Focalizada. Isso os torna bastante

propícios à inversão do sujeito, como se vê abaixo.

(37) ele comprou o relógio... e voltou... quando voltou... para casa... estava um

pouco/ ah... meu Deus... estava assustado... com... com medo... porque... se

alguém... iria roubar o relógio...de repente... aparece do... dois garotos...

que ro/ queriam roubar o relógio dele... (Corpus D&G – Narrativa recontada

– Rio de Janeiro 2)

(38) C: o irmão maior era filha da puta (+) e aí ele pega e larga ela (+) e aí ele/

ele/ aparece ele criança vendendo’ roubando comida no trem’ viviam

em cima do trem (Corpus BBB 10)

(39) você é obrigado a pagar seu colégio e às vezes os particulares que

exploram e num são bem dados... quer dizer... você é obrigado a tudo...

você não tem direito a nada e você só tem direito a ser um cidadão se tiver

é:: se você tiver saúde... tiver uma educação e tiver segurança... aí surge

aquela pergunta... então aquelas pessoas que... como do sertão... elas não

têm direito à saúde... a educação?... são o quê? são gentes? são brasileiros?

ou são só indivíduos? (Corpus D&G – Relato de opinião – Natal)

Page 151: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

151

Todos os exemplos destacados acima são manifestações linguísticas da CFA. Os

dois primeiros casos já são conhecidos. Em (37), o surgimento dos “dois garotos”

captura atenção do Observador, papel desempenhado aqui pelo personagem da narrativa

identificado como “ele”. Em (38), é a nova cena – eles criança roubando’ vendendo

comida no trem – que se faz presente no Campo Visual de um Observador genérico,

correspondente a qualquer potencial espectador do filme.

Por fim, em (39), temos um Observador genérico, que corresponde a qualquer

cidadão que, em determinado momento, tendo tomado consciência das disparidades

sociais presentes na realidade brasileira, se sente invadido por uma “pergunta” (um

questionamento, um sentimento de indignação). Aqui, a experiência perceptual é

interna, mental (e este é, portanto, um dos casos em que o termo “Observador” não deve

ser entendido literalmente). De todo modo, temos claramente um evento de focalização

de atenção: num determinado momento, o Observador genérico não está pensando na

“pergunta”; no momento seguinte, ele se percebe mentalmente tomado por ela, e sua

atenção se volta para esse questionamento53

.

O exemplo abaixo é um pouco diferente porque, neste caso, a Entidade

Focalizada é construída como algo que se estende no tempo (e não apenas existe no

espaço). É isso que justifica a escolha do verbo “começar”, que marca aspecto

inceptivo54

:

53

Neste ponto, talvez seja o caso de lembrar o seguinte: não estou propondo que verbos de aparição

sempre instanciam o padrão VS, mas apenas que eles são altamente compatíveis com esse padrão, em

função da sua afinidade semântica com a Cena de Focalização da Atenção. De todo modo, está claro que

esses verbos também podem instanciar a construção SV, participando, portanto, de enunciados que

sinalizam distanciamento entre sujeito conceptualizador e objeto conceptualizado. É o que ocorre na

seguinte passagem de discurso reportado, retirada do corpus D & G (Relato de procedimento / Natal):

“Edson... quem... quem fez esse... essa... essas ... essas telinhas?” ele disse ... “olha isso aí é um senhor...

que faz e deixa aqui pra vender... mas ele aparece muito pouco aqui”. Esse uso é semelhante ao de (10),

na medida em que corresponde a uma generalização, e não a uma experiência perceptual direta. Diante

disso, só é possível atribuir a construção do conteúdo do enunciado ao próprio Falante (PV do ground), o

que explica a anteposição do sujeito. Essa sentença, portanto, não é uma manifestação da CFA.

54

Como se vê, estou incluindo o verbo “começar” na categoria dos verbos de aparição. A meu ver, esse

agrupamento traduz uma generalização interessante: enquanto “aparecer” e “surgir” designam o

Page 152: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

152

(40) tinha um cara que eu fiquei conhecendo... um cara que fazia economia

na... Federal do Ceará... e estava martelando demais comigo... que não era

assim “você não pode construir sua felicidade em cima da infelicidade dos

seus pais... seus pais já devem estar desespera::dos...” esse tipo de coisa...

aí eu resolvi ligar... né? mas aí liguei... aí começou a chantagem

emocional... quer dizer/ e fora isso... quer dizer... fora essa pressão que

havia pra... pra eu fazer alguma coisa... né? pra não ficar à toa... (Corpus

D&G – Narrativa de experiência pessoal – Juiz de Fora)

Temos aqui o relato de um episódio em que o informante foge de casa aos 18

anos. A passagem acima apresenta, especificamente, o momento em que ele decide ligar

para os pais depois de um mês longe de casa. Também este exemplo pode ser entendido

como uma manifestação da CFA, na medida em que se predica uma situação em que

uma determina entidade (a chantagem emocional) passa a existir no horizonte de

consciência de um Observador (o protagonista da história, que é o indivíduo que

vivencia/percebe o início da chantagem emocional).

5.3.2 Verbos locativos estativos

Como vimos, um verbo locativo estativo como “estar” não pode denotar, em si

mesmo, uma experiência de focalização da atenção, mas tão-somente uma cena de

locação. Isso explica por que ele parece mais resistente à inversão do sujeito do que os

verbos de aparição, como “aparecer”, “surgir” e “começar”. Com efeito, é essa

aparecimento no espaço de uma entidade sem estrutura temporal interna, “começar” designa o

aparecimento de uma entidade que se desenrola no tempo (“começou a novela, apareceu seu ator

preferido”).

Page 153: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

153

resistência que fica exemplificada pelo contraste entre (1) e (1b), repetidos e

renumerados abaixo:

(41) a. F: Di seu chapéu tá no banquinho vermelho (Corpus BBB 10)

b. # Di, tá seu chapéu no banquinho vermelho

Por outro lado, dado o contexto discursivo apropriado, o verbo “estar” pode, sim,

amoldar-se à semântica da Cena de Focalização da Atenção, passando a predicar o

aparecimento de uma Entidade diante de um Observador. E o que seria esse contexto

apropriado? Fundamentalmente, trata-se de disponibilizar um Observador. É o que

ocorre em todos os exemplos já citados de uso VS com o verbo “estar”, bem como nos

usos abaixo55

:

(42) agora vai tá piorando e a gente vê aí os brasileiros... os nordestinos... os

sertanejo... ninguém abre os olhos... tá todo mundo iludido... todo mundo

pensando em como se divertir... todo mundo pensando em ter amanhã o

dia melhor... mas num abre pra situação econômica... que vai melhorar sua

vida... num vê... num tenta enxergar o que tá na sua frente... ele procura

sempre não querer aceitar a responsabilidade que tá nas suas mãos... eu

posso até dizer assim... eu posso até dizer assim... é como se ele visse...

ele olhasse pra um lado... olhasse pra outro e visse tá aqui a solu/ a

solução... tá nas minhas mãos... (Corpus D&G – Relato de opinião – Natal)

55

Como mostram os exemplos, optei por agrupar, sob o rótulo de “verbo locativo estativo”, duas

acepções distintas do verbo “estar”: seu uso propriamente locativo, ilustrado em (42), e seu uso como

verbo “de ligação”, ilustrado em (43). É a metáfora ESTADOS SÃO LUGARES (LAKOFF; JOHNSON,

1980) que permite estabelecer esse agrupamento.

Page 154: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

154

(43) o caminhão foi andando uns duzentos metros... e ela está ali embaixo

naquele desespero todo e sem poder... tá entendendo? fazer nada...

porque... o motorista não estava vendo... só quando o pessoal começou a

gritar mesmo... que:: ele só/ foi escutar e parou o caminhão... quando ele

parou o caminhão... estava a rua toda cheia de sangue... e ela estava

toda... sabe? já estava... sem a/ o rosto... (Corpus D&G – Narrativa recontada –

Rio de Janeiro 1)

Note-se que, em (42), a sentença em destaque não predica simplesmente a

existência/presença da “solução” no espaço designado pelo advérbio “aqui” – e sim o

aparecimento dessa solução diante de um sujeito cognoscente in loco (aqui, um

Observador genérico). Analogamente, em (43), o enunciado em negrito não predica

apenas um cenário em que a rua está cheia de sangue, mas reproduz, de maneira

especialmente vívida e dramática, a percepção de um sujeito in loco (aqui, o motorista

do caminhão) acerca desse cenário. Nesse sentido, ambos os usos predicam a Cena de

Focalização, o que os torna compatíveis com o padrão VS.

5.3.3 Verbos de movimento

Assim como verbos de aparição e locativos estativos, verbos de movimento

instanciam com frequência o padrão VS. O que explica a compatibilização desses

verbos com a CFA? A resposta é simples. Por um lado, verbos de movimento

(diferentemente dos verbos de aparição) não predicam inerentemente o surgimento de

uma entidade em um determinado espaço, e sim o deslocamento dessa entidade. Em

muitos casos, Ocorre, esse deslocamento produz, como resultado, o aparecimento da

entidade no horizonte perceptual de um determinado sujeito cognoscente – o que

Page 155: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

155

permite que ela seja conceptualizada como Entidade Focalizada e, por conseguinte,

torna o verbo de movimento compatível com a construção VS.

Em suma, tem-se a seguinte “divisão de trabalho” entre construção gramatical

abstrata e verbo que a instancia: a primeira exprime o resultado do processo (o

aparecimento do referente do sujeito no Campo Visual do Observador, atraindo sua

atenção), enquanto o segundo diz respeito ao meio que produz esse resultado (o

deslocamento, concreto ou abstrato). É essa “divisão de trabalho”, reitere-se, que

assegura a alta compatibilidade entre construção VS e verbos de movimento.

Um exemplo dessa compatibilidade pode ser visto em (44). Aqui, o

deslocamento da mariposa, designado pelo verbo “entrar”, acaba por fazê-la ingressar

no horizonte visual do Serginho-personagem (Observador), sendo construída, assim,

como Entidade Focalizada. Aqui, portanto, vemos que o aparecimento da Entidade

Focalizada é resultado do seu deslocamento.

(44) S: bi entrou uma mariposa desse tamanho no:: na cozinha (+) começou

a voar’ não consegui nem comer direito (Corpus BBB 10)

A mesma ideia pode ser aplicada a um sem-número de exemplos, como se vê

abaixo:

(45) I: aí eu e ela estava brincando embaixo na::... varanda... aí de repente

chegou uma mulher... e um homem com uma faca... perguntando se a::

minha mãe estava lá... (Corpus D&G – Narrativa de experiência pessoal – Juiz de

Fora)

Page 156: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

156

(46) DI: daí eu falei pro serginho’ serginho caiu uma gota de água quente na

minha cabeça’ parece um cagado de pombo.. TUF (+) o Serginho

começou a rir ((risos)) (Corpus BBB 10)

(47) olha... a... minha história foi... pra mim tinha/eh... acabou o mundo naquele

dia... eu estava no colégio... era da quinta série... na/ nesse colégio

mesmo... escola Mafalda... aí eu estava no colégio... era... aula de

ciências... eu acho/ é... isso mesmo... aí depois veio uma inspetora...

pediu pra mim descer... (Corpus D&G – Narrativa de experiência pessoal – Rio de

Janeiro 2)

(48) C: ontem eu tava que nem um ovo frito na cama’ eu

S: (incompreensível)

C: pô’ virava prum lado’ pro outro’ nada de dormir

S: mee too

C: aí levantei’ tava a Maroca e a Lia ainda aqui fora

S: é’ aí entrou Maroca no quarto’ ligou o abajur e deixou ligado

(Corpus BBB 10)

(49) DO: não mas é uma viAgem porque na pororoca é uma onda mas daqui a

pouco passa boi morto’ pedaço de árvore (Corpus BBB 10)

Todos os usos VS acima predicam a Cena de Focalização da Atenção. Senão,

vejamos. Em (45), temos dois sujeitos in loco determinados (referidos por meio dos

pronomes “eu” e “ela”) que estão brincando “na varanda” quando se deparam com

“uma mulher... e um homem com uma faca”, passando a focalizá-los. Em (46), que

Page 157: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

157

apresenta um uso de discurso reportado, o Observador in loco é o Dicésar-personagem,

que volta sua atenção para a “gota de água quente” no momento em que ela atinge sua

cabeça. Em (47), o Observador é o eu-personagem, cuja atenção é redirecionada para a

“inspetora” no momento em que ela se aproxima. Em (48), quem desempenha o papel

conceptual de Observador é (novamente) o Serginho-personagem, que está no quarto

tentando dormir no momento em que a Maroca ingressa (de maneira aparentemente

pouco cuidadosa) em seu horizonte perceptual. Finalmente, em (49), pressupõe-se um

Observador genérico que está assistindo à pororoca e se depara com “boi morto” e

“pedaço de árvore”. Neste caso, vale notar o emprego da expressão “daqui a pouco”, em

que o centro dêitico temporal para a interpretação do advérbio “aqui” é o ponto de

vantagem temporal desse Observador, denunciando a perspectiva in loco.

Neste ponto, é importante notar que o deslocamento pode também ser

metafórico, como nos seguintes exemplos:

(50) DI: eu já fiz também de enfermeira’ um show’ aquela:: do Kill Bill

((assovia a música)) com tapão no olho’’ incrível (+) daí entrava a

música’ é bem engraçada’ (Corpus BBB 10)

(51) “pô... você vai ficar nessa? sai dessa... procura outro... vou arrumar outro

pra você” eu “não... gente... não precisa” não sei quê... aí me apresentaram

um garoto chamado Rogério... aí rolou o clima lá... né? (Corpus D&G –

Narrativa de experiência pessoal – Juiz de Fora)

(52) minha mãe é muito vaidosa... é uma pessoa muito vaidosa... muito...

cuidadosa... e o meu quarto tem um sério problema... quando eu saio ele

está uma zona... e quando eu chego ele se torna uma zona... porque minha

Page 158: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

158

mãe tem aquele trabalho todo de arrumar o quarto e quando eu chego volta

aquela bagunça toda... (Corpus D&G – Descrição de lugar – Rio de Janeiro 1)

Esses exemplos parecem comprovar a divisão de trabalho proposta acima entre a

semântica da construção gramatical, que denota o resultado do processo (ou seja, o

aparecimento da Entidade no Campo Visual do Observador), e a semântica do

predicador verbal, que denota o meio que conduz a esse resultado (ou seja, o

deslocamento da Entidade). Trocando em miúdos: como resultado de um deslocamento

(o processo de entrar, chegar, cair, vir, passar, rolar ou voltar), uma determinada

Entidade se faz visível no Campo Visual de um Observador, passando a ser focalizada

por ele.

5.3.4 Verbos de mudança de estado

Outra categoria que pode instanciar a construção VS são os verbos de mudança

de estado. Isso também é esperado, na medida em que a semântica desses verbos é

compatível com a Cena de Focalização da Atenção: assim como o deslocamento de uma

entidade pode produzir, como resultado, o seu aparecimento no horizonte de

consciência de um sujeito conceptualizador, o mesmo se dá com a mudança de estado.

Em outras palavras, é comum que passemos a atentar para uma determinada entidade

em função de uma alteração no seu estado. O exemplo abaixo ilustra essa possibilidade:

(53) aí fomos as duas e tal... chegamos lá... resolvemos o que tinha que

resolver... na volta / bom... foi tudo tranquilo... almoçamos lá... quando a

gente está voltando... começa a chover assim... torrencialmente... e fura o

Page 159: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

159

pneu... fura o pneu do carro dela... (Corpus D&G – Narrativa de experiência

pessoal – Rio de Janeiro 1)

Neste exemplo, a cena designada pela sentença VS é construída sob a

perspectiva das duas amigas que estão dentro do carro quando o pneu fura; são elas que

desempenham, portanto, o papel de Observador. Note-se que, num primeiro momento, o

pneu não está incluído no horizonte de consciência das duas personagens – vale dizer,

não faz parte da representação de mundo correntemente ativada para elas. A sentença

VS, por outro lado, traduz o momento em que o pneu se insere no seu Campo Visual,

tornando-se “visível” para elas graças ao fato de ter furado. Aqui, portanto, ocorre algo

semelhante ao que vimos na seção anterior: o evento denotado pelo verbo (o estouro do

pneu) corresponde ao meio que produz como resultado o evento denotado pela própria

construção gramatical VS (o aparecimento do pneu no horizonte de consciência do

Observador).

Algo semelhante pode ser visto nos exemplos abaixo:

(54) e pô:: o mais engraçado é que ele saltou do carro... pô... putão... e o

motorista do táxi tranquilíssimo... ligando já pra::/ pegou o rádio lá que

tem no táxi e ligando lá pra Central... pediu reboque e não sei o quê... não

deu nem atenção pra ele... aí pararam ((riso)) parou uma porção de

táxi... aí os caras do táxi começaram a arrumar confusão... com ele...

(Corpus D&G – Narrativa recontada – Rio de Janeiro 1)

(55) DI: bi só que a bicha acho não pode coçar o cabelo né’’ coça’ o bicho

entorta

F: mas eu achei engraçado homem de peruca

Page 160: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

160

DI: não se ficar ridículo daí eu não ponho não’ porque o careca usar’

dormir de boné (+) uma vez uma ami/ um amigo nosso espirrou ((simula

espirro)) descolou a peruca (Corpus BBB 10)

(56) L: e sabe quando você começa a sentir’’ uma coisa compensando a outra’’

eu comecei a sentir a dor no joelho (+) começou a doer o joelho (+) aí eu

comecei a sentir o ciático pegar (Corpus BBB 10)

(57) DI: tem que ficar assim ó’’ pode ficar assim’’

F: pode (+) pera aí’ eu vou fazer mais

DI: ai tá ardendo meu dedo

F: ai tá ardendo’’ por quê’’ deve ter algum machucadinho

Em todos os exemplos acima, as sentenças VS predicam uma Cena de

Focalização da Atenção. O exemplo (54) traduz o momento que o protagonista da

história, que desempenha o papel de Observador, tem seu olhar atraído pelo conjunto de

táxis que param no local do acidente, passando a focalizá-los. Em (55), a atenção dos

participantes da cena narrada (os Observadores) é atraída para a peruca no momento em

que ela sofre o descolamento. O uso em (56) é proferido numa situação em que a

participante Lia, do BBB 10, está relembrando as dificuldades enfrentadas em uma

prova de resistência. Aqui, a Lia-personagem, que desempenha o papel de Observador,

só passa a atentar para o seu próprio joelho no momento em que ele começa a doer. Por

fim, o caso de (57) é bastante parecido. Aqui, Dicésar está passando, com a ajuda de

Fernanda, um produto para descolorir os pelos. Neste exemplo, o enunciado em

Page 161: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

161

destaque traduz o instante em que o Dicésar-personagem volta suas atenções para o

próprio dedo, o que só acontece graças ao início da ardência.

Ao fim e ao cabo, a lição que fica aqui é a seguinte: ao sofrer uma mudança de

estado (furar, parar, descolar, doer, arder), uma entidade que até então não estava sendo

focalizada pode atrair ou capturar o olhar de um Observador, passando a se constituir

como foco de atenção. É isso que torna os verbos de mudança de estado tão compatíveis

com a construção VS, convencionalmente associada à Cena de Focalização da Atenção.

Como se vê, a “divisão de trabalho” entre verbo e construção é idêntica à dos verbos de

movimento: enquanto a construção denota o resultado do processo (o aparecimento ou

focalização de uma determinada Entidade), o verbo de mudança de estado designa o

meio que conduz a esse resultado. É essa possibilidade de divisão de tarefas, reitere-se,

que assegura afinidade ou compatibilidade entre os verbos de mudança de estado e a

construção gramatical VS.

5.3.5 Verbos sensoriais

O mecanismo que permite a compatibilização de verbos sensoriais com o padrão

VS é fundamentalmente idêntico àquele que verificamos para os verbos de movimento e

mudança de estado. Ou seja: mais uma vez, a construção gramatical evoca a experiência

de percepção (o evento de focalização da atenção), ao mesmo tempo em que o verbo

designa o meio que produzirá, como resultado, essa experiência. Vejamos.

(58) quando o outro trem cortou na frente dele... bateu no... no bico do trem que

eu estava no primeiro vagão... e começou a balançar o vagão para um

lado e para o outro... e eu estava segurando/eu estava ali em pé segurando

naquela chupeta... (Corpus D&G – Narrativa recontada – Rio de Janeiro 1)

Page 162: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

162

(59) C: nossa eu tô cansado (+) tá batendo a:: a::

L: [a lombeira]

C: [o cansaço] agora

(Corpus BBB 10)

(60) aí a gente::... caiu sentada... mas a gente não se machucou... ficou

doendo... aí... aí... bateu o sinal... aí a gente foi formar... (Corpus D&G –

Narrativa de experiência pessoal – Rio de Janeiro 1)

(61) C: não foi engraçado pra caRAlho’ ouve essa’ eu tava lá me arrumando

né’’ aí daqui a pouco toca o telefone’ aí é a Mônica’ Cadu vem me

buscar’’ (Corpus BBB 10)

Em (58), o movimento do vagão leva o eu-personagem, que aqui desempenha o

papel de Observador, a voltar sua atenção para o próprio vagão onde ele se encontra

(antes, muito embora ele estivesse dentro do vagão, podemos assumir que o vagão não

estava correntemente ativado na sua imagem mental da realidade). Em (59), um

exemplo já discutido no capítulo anterior, o Cadu-personagem tem sua atenção atraída

pelo impacto interno provocado pelo cansaço. No caso de (60), o som produzido pelo

sinal captura a atenção dos personagens referidos por meio do pronome “a gente”. Por

fim, em (61), a situação é muito semelhante: o Cadu-personagem está se arrumando

quando, a certa altura, é surpreendido pelo toque do telefone, voltando assim sua

atenção para ele.

Ao fim e ao cabo, os eventos designados pelos verbos (o balançar do vagão; a

“batida”, ou o impacto interno, do cansaço; o toque do sinal; o toque do telefone)

Page 163: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

163

produzem, como resultado, o ingresso do referente do sujeito no Campo Visual do

Observador. Mais uma vez, é essa divisão de tarefas entre meio (representado pelo

verbo) e resultado (representado pela construção sintática) que permite a

compatibilização semântica entre os verbos acima e o padrão VS.

5.3.6 Verbos de ação

Embora seja bastante raro (BERLINCK, 1989; COELHO, 2000; SPANÓ, 2008),

é fato que verbos de ação podem, em alguns casos, exibir sujeito posposto. E, o mais

interessante, esses casos não são fundamentalmente diferentes daqueles que envolvem

verbos de movimento, de mudança de estado e de percepção sensorial, uma vez que a

divisão de trabalho é idêntica: também aqui o verbo denota o meio que produz como

resultado o ingresso do referente do sujeito no horizonte de consciência do Observador.

É o que se vê no exemplo abaixo.

(62) tá... outro dia... minha mãe costumava ir numa rua de cima ali... porque

nós temos muitos conhecidos... eu já morei ali... sabe? foi ela e meu

irmão... aí ela me contou... que chegando lá... eles ficaram conversando

com... com... o pessoal de lá... daqui a pouco começou a correr gente lá

pra esquina... correr gente assim... correr bastante gente... ela foi...

chegando lá... tinha um colega nosso... um garotinho... (Corpus D&G –

Narrativa recontada – Rio de Janeiro 2)

Aqui, a narrativa é apresentada sob o ponto de vista da “minha mãe” e do “meu

irmão” – os dois indivíduos que decidem “ir numa rua de cima ali”, como se observa no

início do relato. Num primeiro momento, marcado pela sequência eles ficaram

conversando com... com... o pessoal de lá..., há uma situação de estabilidade – a já

Page 164: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

164

mencionada “orientação” da narrativa, segundo a terminologia de Labov (1972). Num

segundo momento, introduzido pelo space builder “daqui a pouco”, o olhar da mãe e do

irmão é subitamente atraído pela movimentação dos passantes. Neste caso, a cena

designada pela sentença VS – a correria das pessoas “lá pra esquina” – é construída

como um evento de percepção vivenciado por esses dois personagens.

A moral da história é a seguinte: mais do que exprimir o evento de corrida em si

mesmo, a sentença VS destacada procura representar a percepção súbita dos

Observadores em relação a esse evento, reproduzindo, em alguma medida, a experiência

original de surpresa dos indivíduos que presenciaram os fatos. Neste caso, portanto, a

compatibilização entre a semântica do verbo e a semântica da construção gramatical se

dá segundo as mesmas linhas gerais do que vimos para os verbos de movimento, de

mudança de estado e sensoriais. Ou seja: o evento designado pelo verbo produz como

resultado a focalização de uma determinada entidade por parte de um Observador.

Trocando em miúdos: se (por exemplo) o estouro do pneu faz um sujeito

cognoscente voltar sua atenção para ele, a súbita corrida desabalada de um grupo de

pessoas provoca o mesmo efeito: trata-se de uma alteração do estado de coisas com

potencial para atrair o olhar de um Observador.

Um exemplo análogo aparece abaixo:

(63) teve uma festa que eu fui...mi/ aí minha irmã também/ ela ia só que ela não

queria que eu fosse com ela... então eu fiquei chorando em casa... não fui

pra festa... aí ela foi... só que aí bateu uma amiga minha lá na porta de

casa me chamando pra ir... em seguida eu fui... aí chegando lá tive a maior

decepção... fiquei sabendo que a minha irmã gostava do mesmo menino...

(Corpus D&G – Narrativa de experiência pessoal – Niterói)

Page 165: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

165

A análise proposta para (62) também se aplica a este caso. Aqui, mais do que

representar a ação realizada pela “amiga minha” (em termos langackerianos, o ato de

transferência de energia dessa amiga para a porta), a sentença predica o resultado dessa

ação, qual seja, o ingresso do referente do sujeito no horizonte de consciência do

Observador (o eu-personagem). Em termos informais, tudo indica que, em (63), importa

menos a ação realizada pela amiga do que o resultado dessa ação. Tanto assim que,

neste contexto, a informante poderia ter optado por formular a sentença da seguinte

maneira: só que aí apareceu uma amiga lá em casa me chamando pra ir. Não estou

propondo, é claro, que essa paráfrase é perfeitamente equivalente ao uso original; o

objetivo aqui é apenas evidenciar o fato de que, ao fim e ao cabo, o enunciado em

destaque em (63) parece representar, primariamente, uma experiência de percepção in

loco – e não uma ação prototípica de transferência de energia.

O mesmo pode ser dito a respeito do uso abaixo:

(64) C: hein Dourado’ escuta essa’ eu tava lá no:: tipo:: andando na rua né’ na::

ali na Barra’ aí daqui a pouco grita um maluco lá do outro lado

(Corpus BBB 10)

Também aqui, temos um verbo de ação, na medida em que o referente do seu

sujeito se qualifica como agente. Mas, novamente, é importante notar que a narrativa é

contada segundo a ótica do Cadu-personagem. Nesse sentido, parece razoável supor

que, neste caso, mais que a ação realizada pelo “maluco”, o que a sentença expressa é a

experiência de percepção do protagonista, que é surpreendido pelo grito. Assim como

em (63) é a batida na porta que faz a “amiga” ingressar no Campo Visual da

Observadora, neste caso é o grito que provoca a entrada do “maluco” no horizonte de

consciência do Observador. Temos, portanto, mais uma vez, uma CFA, de maneira que

Page 166: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

166

a sentença VS predica uma situação de refocalização da atenção por parte de um sujeito

cognoscente in loco.

Finalmente, um uso real ouvido por mim pode ser usado para ilustrar essa

mesma situação. Falando sobre a experiência de lecionar em uma sala de aula lotada

para vestibulandos de Medicina especialmente bem preparados, um professor proferiu o

seguinte enunciado56

:

(65) Aí eu tô dando aula sobre fisiologia animal, de repente levanta a mão

uma aluna lá no fundo da sala.

Assim como acontece com “bater” e com “gritar”, o referente do sujeito de

“levantar” desempenha papel de agente, na medida em que tem controle sobre o

processo designado pelo verbo e o inicia por vontade própria. Nesse caso, porém, o

“ponto” da sentença em destaque parece ser primariamente o de predicar a experiência

de percepção (ou focalização de atenção) do eu-personagem, que, durante a explicação,

constatou o ingresso da “aluna” no seu Campo Visual, graças ao gesto realizado por ela.

Por fim, vale notar que, também aqui, não há diferenças quanto à divisão de tarefas

entre verbo e construção: novamente, o evento designado pelo verbo (“levantar”)

constitui o meio que leva ao resultado predicado pela construção VS (o aparecimento da

“aluna” no campo visual do professor).

5.4 Síntese e encaminhamentos

Se o capítulo anterior discutiu a inversão do sujeito à luz da Teoria dos Espaços

Mentais, este capítulo procurou sistematizar uma descrição de base construcional para o

56

O exemplo reproduz as exatas palavras do enunciado original.

Page 167: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

167

padrão VS. Para isso, descrevi a cena conceptual evocada pelo padrão e identifiquei o

grau de proeminência focal dos elementos que a compõem (porção perfilada e porção

pressuposta), mapeando-a em seguida sobre a representação sintática da construção

verbo-sujeito. Em seguida, procurei explicar a compatibilidade entre essa construção e

diferentes classes semânticas de verbos.

Juntos, os capítulos 4 e 5 constituem o cerne deste trabalho: as abordagens via

espaços mentais e Gramática das Construções se complementam para explicar, à luz da

linguística cognitiva, o fenômeno da inversão do sujeito no PB atual. Concluída essa

etapa, as perguntas que se colocam são as seguintes: (i) em que essa proposta se

diferencia de abordagens anteriores?; e (ii) quais as vantagens do tratamento

cognitivista? É disso que trata o próximo capítulo.

Page 168: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

168

6 Restrições formais e funcionais à

inversão do sujeito: discussão teórica

Na seara dos estudos sobre a gramática do PB, o tema da posição do sujeito

exibe uma admirável recalcitrância, tendo despertado o interesse de pesquisadores

alinhados às mais diversas correntes teóricas. O entusiasmo não surpreende, dado que o

fenômeno tem se mostrado sensível tanto a fatores formais quanto a motivações de

ordem funcional. Dentre as propriedades mais comumente associadas à posição do

sujeito, destacam-se o estatuto informacional do SN (BERLINCK, 1989; FERRARI,

1990; SPANÓ, 2008; MARQUES, 2012), o número de argumentos e transitividade do

verbo (LIRA, 1986; BERLINCK, 1989; COELHO, 2000; SPANÕ, 2008; MARQUES,

2012) e o grau de topicalidade do sujeito (FERRARI, 1990; NARO; VOTRE, 1999)57

.

Neste capítulo, dividirei essas abordagens em dois grandes grupos. De um lado,

abordagens de inspiração formalista, as quais se concentram, privilegiadamente, na

questão do tipo de verbo, associando-o a mudanças paramétricas que estariam em curso

no português brasileiro. De outro, abordagens voltadas para aspectos funcionais, que se

ocupam principalmente de dois fatores de natureza discursiva: o estatuto informacional

do referente do SN e o grau de topicalidade do sujeito. Essa divisão, no entanto, não

servirá apenas para que seja feita uma resenha de cada vertente58

. Aqui, o objetivo

57

Esses fatores estão longe de esgotar o amplo leque de propriedades já associadas à posição do sujeito

na vasta literatura sobre o tema, que incluem ainda aspectos como o peso fonético ou extensão do SN

(FIGUEIREDO SILVA, 1996; SPANÓ, 2008; SANTOS; SOARES DA SILVA, 2012), sua definitude

(LIRA, 1986; FIGUEIREDO SILVA, 1996; SPANÓ, 2008; SANTOS; SOARES DA SILVA, 2012) e

uma pletora de propriedades semânticas (BERLINCK, 1989; FERRARI, 1990; SPANÕ, 2008). Como é

virtualmente impossível contemplar todos os fatores já investigados, irei me deter aqui sobre os fatores

mencionados acima.

58

A propósito, uma revisão excelente sobre o tema encontra-se em Menuzzi (2004).

Page 169: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

169

primordial é estabelecer um diálogo entre essas frentes de tratamento do problema e a

proposta desenvolvida nesta tese.

6.1 Um tratamento do formal para a ordem VS: monoargumentalidade e

inacusatividade

Em estudo hoje clássico sobre o fenômeno da ordenação vocabular, Berlinck

(1989) demonstra que o português brasileiro vem sofrendo um processo de progressivo

enrijecimento da ordem sintática, com a diminuição gradual de sujeitos pospostos

acompanhada pelo incremento dos sujeitos pré-verbais. Em poucas palavras, a autora

sugere que, entre os séculos XVIII e XX, o fator predominante para explicar a inversão

do sujeito vai deixando de ser o estatuto informacional do SN (propriedade funcional) e

vai passando a ser a transitividade do verbo (propriedade (tomada como) formal).

Especificamente, Berlinck (1989) mostra que a ordem VS vai, progressivamente,

passando a se limitar aos contextos mais intransitivos.

Tipicamente, esse enrijecimento é explicado pelo fato de que o português

brasileiro estaria passando por um processo de mudança paramétrica, deixando com isso

de ser uma língua de sujeito nulo e passando a língua de sujeito pleno. De acordo com

Chomsky (1981), essa mudança estaria relacionada à perda da “inversão livre” do

sujeito, o que ajudaria a explicar o processo de enrijecimento detectado por Berlinck

(1989).

Com efeito, Lira (1986), em estudo clássico sobre a ordem verbo-sujeito no PB,

constata que verbos de ligação e verbos transitivos praticamente excluem a

possibilidade de posposição do sujeito, apresentando inversão em apenas 8% e 0,8% das

ocorrências, respectivamente. Restaria aqui, como contexto menos refratário à

posposição, o caso dos verbos intransitivos, com 21% dos sujeitos em posição pós-

Page 170: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

170

verbal. De fato, a conclusão de que verbos transitivos proíbem ou, pelo menos, inibem

fortemente a posposição no PB parece ser um dos principais consensos já alcançados a

respeito do tema. Nas palavras de Coelho, Werner & Aduin (2001, p.7),

o ponto de maior unanimidade entre os trabalhos variacionistas diz

respeito à monoargumentalidade, indicada, consensualmente, como

um fator favorável à ocorrência de VS, enquanto a pluri-

argumentalidade é indicada como inibidora dessa mesma ordem.

Após o trabalho de Lira (1986), que tratava os verbos monoargumentais como

uma classe única, um sem-número de estudos passa a levar em conta a distinção entre os

monoargumentais inacusativos e os inergativos (ou verdadeiros intransitivos). Embora

clara nos casos prototípicos, essa diferença é, a rigor, bastante controversa59

. Aqui,

porém, não cabe aprofundar essa discussão; o ponto relevante é notar que, segundo a

grande maioria dos estudos de inspiração formalista, são os verbos tipicamente tratados

como inacusativos que ainda licenciam a inversão do sujeito no PB contemporâneo. Nos

termos de Coelho (2000, p. 91), “uma construção intransitiva privilegia a ordem NP V,

enquanto a inacusatividade da construção caracteriza-se como o requisito fundamental

de ocorrência da variação, ordem NP V e ordem V NP”.

Como observa Menuzzi (2004), essa correlação é tipicamente explicada a partir

de um critério formal: verbos inacusativos teriam a ordem VS como natural ou básica

porque o seu sujeito seria, a rigor, argumento interno (e não argumento externo) do

verbo. Ao mesmo tempo, esse autor nota que pesquisadores alinhados à linguística

gerativa estão “cientes da existência de casos que não se conformam às suas

generalizações básicas” (MENUZZI, 2004, p. 358), dentre as quais se inclui o

59

A ponto de Cançado & Ciríaco (2004) proporem que essas duas categorias, em vez de serem tratadas

como classes estanques, devem ser entendidas apenas como extremos de um continuum.

Page 171: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

171

imperativo da inacusatividade. Nesse sentido, o autor prossegue, devem tratar essas

situações como “casos excepcionais”, quer sejam resultado da interferência da norma

escolar, “relíquias históricas” ou estruturas sintáticas distintas da verdadeira inversão do

sujeito.

Neste ponto, eu gostaria de argumentar o seguinte: a abordagem de base

construcional proposta nesta tese permite explicar, indiferenciadamente, a possibilidade

de inversão do sujeito com verbos inacusativos, inergativos ou transitivos. Comecemos

notando que a maior parte dos verbos discutidos na seção 5.2 está entre aqueles tratados

usualmente como inacusativos: nesta classe, incluem-se pelo menos os verbos de

aparição como “aparecer” e “surgir”, os verbos locativos como “estar”, os verbos de

movimento como “chegar”, “passar” e “vir” e os verbos de mudança de estado como

“furar” e “descolar” – mas também outros, como “balançar” e “tocar”. Conforme

procurei desenvolver no capítulo anterior, todos eles são semanticamente compatíveis

com a construção VS, na medida em que os referentes dos sujeitos desses verbos podem

(às vezes, apenas nas condições discursivas apropriadas) ser construídos como

Entidades Focalizadas (e não meramente como temas ou agentes). Isso permite que eles

representem uma experiência de percepção, tornando-se instanciáveis na construção

verbo-sujeito, a qual, como vimos, predica uma Cena de Focalização de Atenção. Nesse

sentido, a proposta apresentada aqui é capaz de explicar o fato objetivo de que verbos

inacusativos são especialmente propícios à inversão – mas a razão para isso não é

alguma propriedade sintática, como a existência de um argumento interno que é alçado

à posição de sujeito, e sim a compatibilidade semântica desses verbos com o padrão VS.

O que nos conduz ao ponto mais interessante. Como vimos no capítulo anterior,

nos casos de verbos de movimento, de mudança de estado e sensoriais, essa

compatibilidade semântica decorre da seguinte divisão harmoniosa de trabalho entre

Page 172: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

172

verbo e construção: a segunda expressa o resultado de um processo (o aparecimento ou

focalização de uma Entidade por parte de um Observador), ao passo que o primeiro

expressa o meio que conduz a esse processo. Vimos ainda que essa mesma divisão de

tarefas pode se aplicar a verbos de ação, ou seja, não-inacusativos. Em 5.3.6, foram

analisados dois casos de verbos inergativos (“correr” e “gritar”) e dois casos de verbos

transitivos (“bater” e “levantar”). E, em todos eles, verificamos que o evento designado

pelo verbo (a correria, o grito, a batida e o gesto de mão) são o meio que conduz ao

aparecimento de uma entidade (respectivamente, os passantes, o “maluco”, a amiga e a

aluna) no Campo Visual do Observador. Portanto, também nesses casos, os referentes

dos sujeitos têm a possibilidade de ser construídos semanticamente como Entidades

Focalizadas. E é essa possibilidade que, a meu ver, licencia a ordem VS com esses

verbos não-inacusativos nos contextos analisados.

Em suma, a principal vantagem dessa análise reside no fato de que ela é capaz

de dar conta, de maneira uniforme, do licenciamento da ordem VS tanto com verbos

inacusativos quanto, nos contextos apropriados, com verbos não-inacusativos, sem a

necessidade de recorrer a mecanismos extraordinários ou “excepcionais” para estes

últimos.

6.2 Um tratamento funcional para a ordem VS: acessibilidade referencial e

topicalidade

Sob uma perspectiva discursivo-funcional, é conhecida – ou, nos termos de

Berlinck (1997, p. 57), “corrente” – a associação entre ordem VS e função

apresentativa, de acordo com a qual o sujeito posposto corresponderia a “informação

nova”60

. Como observa Pontes (1986, p. 34),

60

Mesmos estudos de orientação formalista investem, com alguma frequência, nessa correlação, como se

vê em Negase (2007).

Page 173: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

173

essa explicação é coerente com o ensinamento da Escola de Praga, ou

seja, o princípio pelo qual a informação nova vem no fim da S: o

sujeito posposto vem no fim da S porque ele não é tópico, ele carrega

a informação nova.

Essa hipótese, contudo, foi rapidamente descartada, ao menos como correlação

categórica. Em artigo sintomaticamente intitulado Nem tudo que é posposto é novo:

estatuto informacional do SN e posição do sujeito em português, Berlink (1995, p. 58)

se propõe a “questionar a associação ‘pré-verbal – dado / pós-verbal – novo’”. E esta

autora está longe de ser a única. Com efeito, Ferrari (1990, p. 659) já sugerira, com

base em entrevistas com alunos de 4ª série do Ensino Fundamental, que

sintagmas nominais que apresentam menor controle (e são, portanto,

menos agentivos) e que exibem baixa topicalidade (tendendo a não

ser evocados novamente no discurso) assumem a ordem VS,

independentemente do fato de terem sido mencionados anteriormente.

Nessa trilha, o levantamento apresentado em Naro e Votre (1999), baseado na

acessibilidade cognitiva dos referentes de sintagmas em função de sujeito61

, mostrou

que a frequência de referentes evocados ou disponíveis (portanto, não-novos) em

sentenças VS foi bastante significativa, correspondendo a 77% dos casos (ainda que

inferior à frequência de 92,6% apresentada por sentenças SV). Ao mesmo tempo, os

autores também demonstram que, contrariando as expectativas, sentenças SV

apresentaram sujeitos parcial ou completamente novos em 7,5% dos casos. Ainda que

61

Os autores se valem de quatro grandes categorias: evocado, disponível, parcialmente novo e

completamente novo. Enquanto a primeira diz respeito a referentes previamente mencionados no

discurso, a segunda envolve conceitos facilmente acessíveis para o ouvinte, dividindo-se em

permanentemente disponíveis (ex. a Lua está linda) e localmente disponíveis (ex. A padaria está fechada;

em referência à padaria do bairro). A terceira diz respeito a conceitos que, embora não disponíveis nem

referidos previamente, são introduzidos por meio de uma conexão com um referente evocado ou

disponível (novos ancorados; ex. Meu carro apareceu) ou acompanhados de alguma informação que

atenue seu grau de novidade (novos atenuados; ex. Chegaram uns caras malucos aí). A quarta, por fim,

inclui os conceitos novos sem qualquer tipo de ancoragem ou atenuação (ex. Apareceu um carro).

Page 174: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

174

essa frequência seja menor do que a encontrada para referentes novos em sentenças VS

(23%), essa constatação representa mais uma evidência de que a acessibilidade

referencial não é suficiente para explicar a ordem vocabular.

O que todos esses dados sugerem é o seguinte: a correlação entre posposição do

sujeito e novidade referencial (e anteposição do sujeito e acessibilidade referencial) tem

alguma razão de ser, mas nem de longe explica todas as ocorrências. Por um lado, a

proporção de referentes evocados e disponíveis é de fato maior em sentenças SV, assim

como a proporção de referentes parcial ou completamente novos é bem maior em

sentenças VS. Embora isso confira alguma plausibilidade à generalização sobre usos

apresentativos, a quantidade de ocorrências de VS com referentes “dados” é alta o

suficiente para torná-la largamente insatisfatória. Basta observar que a maior parte dos

referentes dos sujeitos das sentenças VS (38,6%) recai na categoria dos evocados –

precisamente aqueles já mencionados no discurso precedente.

E é exatamente para desafiar a relação entre posposição do sujeito e novidade

referencial que Naro e Votre (1999) desenvolvem uma hipótese diferente, à qual vou

me referir como Hipótese da Topicalidade Baixa (HTB). Os autores definem tópico

como “o constituinte que é apresentado como central no nível oracional em um

determinado momento da comunicação” (NARO; VOTRE, 1999, p. 77). Para fins

práticos, eles consideram como tópico o primeiro elemento (nominal) de cada cláusula.

Segundo a HTB, sujeitos invertidos não podem corresponder a referentes tópicos. O

contraste entre os exemplos abaixo ajudará a esclarecer esse ponto:

(66) O carro da minha senhora, ο ΤΝ 4937– era um TL – foi roubado. Foi

roubado e ficou três dias desaparecido. Depois esse carro apareceu aqui,

numa delegacia aqui. (NARO; VOTRE, 1999, p. 79)

Page 175: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

175

(67) Foi o cara, sabe? Ele estava perdido, assim. Apareceu uns homens. Ai,

ele brigou, brigou. Ai, ele näo conseguiu, sabe? Não conseguiu liquidá-

los. (NARO; VOTRE, 1999, p. 80)

Os autores mostram que, em (66), o referente CARRO “é o receptor de diversas

informações, como o número da licença, o modelo, o fato de que ele foi roubado, o

tempo durante o qual ficou desaparecido e o lugar onde reapareceu” (NARO; VOTRE,

p. 79). Para eles, é o fato de que esse referente se estabelece como tópico em um fluxo

discursivo que justifica que ele seja codificado como sujeito anteposto mesmo com o

verbo “aparecer”, que “frequentemente exibe ordem VS sob outras circunstâncias

discursivas”.

O caso de (67), por outro lado, é o inverso. Aqui, a passagem se inicia com a

introdução de um tópico – o referente do SN “o cara” – que se mantém na sequência

seguinte, já que a informação sobre estar perdido diz respeito a esse mesmo referente.

Neste caso, portanto, a sentença em negrito representa uma interrupção da sequência

tópica (uma interrupção provisória, diga-se), de maneira que o referente do sujeito de

“Apareceu” não se qualifica como tópico – o que, segundo os autores, licencia sua

inversão.

Esses dois exemplos, contudo, poderiam fornecer suporte à hipótese da função

apresentativa. A fim de demonstrar a insuficiência dessa hipótese, os autores recorrem

ao seguinte exemplo:

(68) De noite eu ia para ali perto do – na rua Riachuelo, né? Tinha um depósito

de jornal O Dia. Comprava o jornal ia para Copacabana vender dentro dos

Page 176: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

176

önibus. Ai, quando dava assim três e meia, mais ou menos, acabava o

jornal. Ai, quatro horas pegava o trem para Japeri. (NARO; VOTRE,

1999, p. 81)

Esse exemplo ilustra com clareza o fato de que o sujeito invertido não precisa,

necessariamente, apresentar referente novo: como se vê, o referente de “o jornal” já

havia sido evocado em dois momentos anteriores. No entanto, o ponto fundamental,

para Naro e Votre, reside no fato de que o tópico predominante em toda a passagem

corresponde ao referente do pronome “eu”. Nesse sentido, nas duas menções anteriores

ao “jornal”, sua topicalidade era baixa – nos termos de Naro e Votre (1999, p. 81), eles

ocupavam uma “posição marginal na sequência tópica”. Assim, no momento em que a

sentença em destaque é enunciada, o JORNAL não é o referente tópico, de maneira que

ele pode ser codificado por meio de um sujeito posposto.

A HTB certamente dá conta da maioria dos usos VS em contextos narrativos,

como os autores demonstram. Segundo Naro e Votre, dos 391 usos VS analisados,

apenas 10 (2,6%) apresentavam sujeito tópico (ou com alto grau de topicalidade), dos

quais seis apareciam “em passagens discursivas que exibem marcas independentes de

expressão disfluente” (NARO; VOTRE, 1999, p. 83). Isso resulta em quatro

contraexemplos à HTB.

Embora pouco significativos do ponto de vista estatístico na amostra de Naro e

Votre (1999), não me parece que os contraexemplos à HTB possam ser descartados

sumariamente. Neste ponto, portanto, gostaria de me concentrar em alguns deles, na

medida em que esses usos parecem ser bastante reveladores das diferenças entre a HTB

e a hipótese defendida nesta tese. Comecemos pelo exemplo abaixo, que consta do

corpus Discurso & Gramática:

Page 177: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

177

(69) aí bati num Voyage ((riso)) perdi a direção do carro e fui raspando o carro

pelo paredão do túnel assim... uns cem metros... aí eu parei o carro e pô...

a garota que estava comigo... desesperada... que a foligem tinha ( )

crioula... assim legal ((riso)) aí eu tentei sair com o carro não tinha jeito...

o carro quebrou tudo... aí... pô... saltei do carro pra... pedir ajuda... né? aí

eu comecei a andar... aí na minha frente ((riso)) tinha um... um Voyage

parado... batido também... aí eu fui conversar com os caras do carro... né?

pô... vem ((riso)) eu doidão... não me lembrava de nada da batida mais...

aí eu cheguei pros caras e perguntei “pô... cara... tu bateu com o carro aqui

também? que coincidência...” aí o cara veio pra cima de mim... querer me

bater... (Corpus D&G – Narrativa de experiência pessoal – Rio de Janeiro 1)

Neste caso, o referente do pronome “eu” é tópico da sentença imediatamente

anterior ao uso VS em destaque (“eu fui conversar com os caras do carro”). Nesse caso,

portanto, o enunciado VS não constituiria quebra da sequência tópica. Diante disso,

como justificar a inversão do sujeito?

É fácil verificar que esse uso é perfeitamente compatível com a hipótese da

perspectiva in loco. Aqui, temos um caso em que a pessoa física do falante está

conceptualmente cindida, desempenhando os papéis de Falante (no ground

comunicativo) e de objeto da percepção (no Domínio do Conteúdo)62

. Disso resulta

uma situação curiosa: embora o narrador faça parte da história narrada, ele opta por

apresentar o evento em foco (a sua própria aproximação) sob a ótica de outros

62

Trata-se de um uso semelhante ao do exemplo (18), discutido no capítulo 4 (“só estava eu e uns dois

naquele vagão”), na medida em que se verifica identidade entre o Falante e o objeto de percepção. O caso

de (18), porém, é um pouco mais complexo, já que a fragmentação conceptual do enunciador é tripla, e

não dupla: além de Falante e objeto, ele corresponde, ainda, ao Observador.

Page 178: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

178

personagens: os ocupantes do Voyage. Essa opção parece cumprir, na construção da

narrativa, uma função de autocrítica: ao apresentar a si mesmo sob o olhar do outro, o

narrador parece querer evidenciar a inadequação do seu próprio comportamento,

ressaltando (talvez para fins humorísticos) o absurdo da situação.

É muito interessante observar que a sentença destacada acima apresenta três

evidências adicionais de deslocamento dêitico (para além da própria ordem VS). Uma

delas é a forma de presente do indicativo, caracterizando um caso de presente histórico:

conforme já comentado (seção 4.4), a forma de presente, quando empregada em

referência a um fato passado, promove deslocamento do centro dêitico, produzindo uma

situação fictícia na qual sujeito conceptualizador e objeto conceptualizado

compartilham o mesmo locus espaço-temporal.

Além disso, a própria escolha do verbo “vir”, pelo seu caráter dêitico, denuncia

que o evento deve ser construído sob a ótica dos “caras do carro”, os indivíduos em

direção aos quais o eu-personagem caminha. Por fim, é provável que mesmo a forma

verbal em terceira pessoa (portanto, sem concordância com o pronome sujeito) possa

ser explicada pelo deslocamento do ponto de vista. A ideia é a seguinte: se o evento é

construído a partir da perspectiva dos “caras do carro”, esse “eu” é, na verdade, um

outro, um “ele”. Em outras palavras, o “eu” não é construído como primeira pessoa

porque o ponto de vista adotado não é o do Falante. Todas essas marcas formais

sugerem que a cena designada pela sentença em negrito está sendo apresentada “através

dos olhos” dos ocupantes do Voyage. Segundo a hipótese da perspectiva in loco, é isso

que motiva a inversão do sujeito.

Mas, afinal, por que a HTB, embora dê conta da grande maioria dos usos VS em

contextos narrativos, não é capaz de explicar satisfatoriamente um enunciado como

(69)? Para responder essa pergunta, observem-se inicialmente os exemplos abaixo:

Page 179: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

179

(70) eh... minha colega... foi pro::... Tijuca Off Shopping... foi/ aí pegaram o

meia vinte e dois... aí então... entraram... aí nisso ela está prestando

atenção... entrou um rapaz correndo... atrás dela... sentou do lado dela

dentro do ônibus... (Corpus D&G – Narrativa recontada – Rio de Janeiro 1)

(71) DI: ai é todo dia a mesma coisa viu’’ eu fico essa hora aqui fora pensando

na vida’ aí vem quinhentos mil mosquito em cima de mim

(Corpus BBB 10)

Em (70), existe uma sequência inicial na qual o Observador é estabelecido:

trata-se da “colega”, referida logo a seguir como “ela”: aí nisso ela está prestando

atenção... No que se refere ao fluxo discursivo, isso significa que, neste momento, o

referente de “ela” funciona como tópico. Assim, quando a sentença VS é enunciada, o

referente do sujeito – “um rapaz” – de fato não tem caráter tópico, de maneira que um

uso como este é compatível com a HTB.

Em (71), mais uma vez, o Observador é estabelecido textualmente antes da

sentença VS, por meio do pronome “eu”: trata-se do Dicésar-personagem (em oposição

ao Dicésar-narrador). No que se refere à sequência discursiva, isso quer dizer que o

referente de “eu” se torna tópico. Dessa maneira, quando a sentença VS é proferida,

indicando o aparecimento do referente do sujeito invertido no Campo Visual do

Observador, esse referente não tem caráter tópico, confirmando, portanto, a HTB.

Os exemplos (70) e (71) ilustram o modo mais comum de organização

discursiva em sequências narrativas nas quais se verifica um enunciado VS: primeiro, o

Observador é estabelecido no texto e passa a funcionar como tópico; só depois é

apresentado o evento codificado pela sentença VS, que marca uma interrupção ou

Page 180: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

180

ruptura do estado de coisas anterior. Quando isso acontece, o referente do sujeito pós-

verbal apresenta, de fato, topicalidade baixa, já que ele interrompe a sequência na qual

o Observador se constitui como tópico. É precisamente isso que se vê tanto em (70)

quanto em (71).

Ocorre, porém, que essa organização discursiva não é obrigatória, como fica

evidente no exemplo (69). Vejamos abaixo uma comparação entre esse exemplo,

renumerado como (72b), e sua versão adaptada (72a):

(72a) Tinha um Voyage parado, batido também... aí eu fui conversar com os

caras do carro, né? Eles estavam lá parados, discutindo o que fazer, aí

vem eu doidão.

(72b) aí eu fui conversar com os caras do carro... né? pô... vem ((riso)) eu

doidão... não me lembrava de nada da batida mais... (Corpus D&G –

Narrativa de experiência pessoal – Rio de Janeiro 1)

A versão adaptada em (72a) exibe a organização discursiva padrão:

inicialmente, o Observador é estabelecido, e seu referente desempenha papel tópico

(Eles estavam lá parados, discutindo o que fazer); em seguida, o evento codificado pela

sentença VS marca uma ruptura no estado de coisas anterior, interrompendo a

sequência tópica (vem eu doidão). Se tivesse organizado seu discurso dessa maneira, o

enunciador de (69) teria produzido uma sequência narrativa pragmaticamente análoga à

de (70) e (71).

Mas não foi isso que aconteceu: o texto real é aquele de (72b). E, nesse caso, no

momento da enunciação da sentença VS, quem está estabelecido como tópico é o

referente de “eu” (que corresponderá à Entidade Focalizada ou objeto de percepção,

Page 181: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

181

realizado como sujeito pós-verbal), e não o referente que desempenhará o papel de

Observador. Assim, levando-se em conta simplesmente o fluxo linear do discurso, o

exemplo de (72b) não deixa dúvidas de que o referente do sujeito posposto pode

corresponder ao tópico das sequências imediatamente anteriores.

E isso não parece ser especialmente raro, nem produz sequências

particularmente estranhas ou pragmaticamente mal-sucedidas. Vejamos mais três casos:

(73) C: ele’ não tô bem’ tô bem’ aí começo/ na hora que a mulher cutucou ele

começou a desenrolar com a mulher’ aí pegou a menina’ ficou com a

menina tipo’ aí daqui a pouco vem ele assim (Corpus BBB 10)

(74) C: aí teve uma hora BUM’ ele sumiu’ sumiu com a menina’ sumiu sumiu

sumiu’ desapareceu’ e a gente querendo ir embora querendo ir embora’

cadê o bruno cadê o bruno cadê o bruno’ daqui a pouco a irmã da Mônica

foi dar uma volta’ achou ele’ aí volta a irmã da Mónica’ Fernanda né o

nome dela’ (Corpus BBB 10)

(75) DO: o irmão maior era filha da puta (+) e aí ele pega e larga ela (+) e aí

ele/ ele/ aparece ele criança vendendo’ roubando comida no trem’

viviam em cima do trem (Corpus BBB 10)

Em (73), o referente de “ele” tem claramente papel tópico a partir de “ele

começou”. Nos termos de Naro e Votre (1999), esse referente é receptor de duas

informações: ele desenrola e pega/fica com “a menina”. Nesse contexto, a HTB faria a

previsão de que o evento ELE VIR ASSIM não poderia ser codificado por meio de uma

sentença VS. O exemplo (73), no entanto, contraria essa previsão.

Page 182: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

182

Os casos de (74) e (75) são idênticos. Em (74), o referente de “a irmã da

Mônica” se qualifica, a certa altura, como tópico, sendo receptor de duas informações:

“deu uma volta” e “achou”. Nesse sentido, a sentença VS a seguir (volta a irmã da

Mônica) não constitui uma quebra da sequência tópica, contrariando a HTB. Em (75),

analogamente, o “irmão maior” desempenha papel tópico desde o início do turno: a ele

são atribuídas a propriedade de ser “filha da puta” e as ações de pegar e largar uma

menina que tentava acompanhá-lo. Na sequência, porém, esse mesmo indivíduo

aparece em um enunciado VS (aparece ele criança vendendo’ roubando comida no

trem”), realizado sob a forma de um sujeito pronominal.

Minha sugestão é que, por trás da insuficiência da HTB, parece estar (i) o

tratamento do fluxo discursivo como uma sequência linguística indiferenciada (e não

compartimentada em espaços mentais distintos) e (ii) relacionada a isso, a suposição

tácita de que a única perspectiva relevante é a do ground, ou seja, a dos interlocutores.

O problema é que, se o papel da sentença VS é precisamente promover o deslocamento

dêitico e evocar um ponto de vista alternativo, a atenção exclusiva às porções anteriores

do discurso – central quando se trata da tarefa de acompanhar o desenrolar da sequência

tópica – pode se revelar insuficiente.

Vejamos o caso de (69). A sentença aí eu fui conversar com os caras

claramente estabelece o referente de “eu” como tópico para o ouvinte (o entrevistador)

ou para os leitores da entrevista registrada no corpus. Ocorre que, a julgar pela hipótese

desta tese, a sentença seguinte não deve ser construída a partir da perspectiva do

ground, mas a partir ponto de vista dos “caras do carro”. É nesse sentido que a

construção VS promove uma “acrobacia cognitiva” (FERRARI, 2012) por meio da qual

o evento em foco é construído “pelos olhos” de um indivíduo que vivencia diretamente

os fatos. Ora, como esse indivíduo não está situado no ground, as porções anteriores do

Page 183: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

183

discurso – a sequência tópica desenvolvida até então – simplesmente não existem para

ele. Tecnicamente, nos termos do modelo BCSN, isso significa que o sujeito de

consciência do evento em foco, estando localizado do Domínio do Conteúdo (nível O),

não tem acesso ao Espaço Metatextual, que faz parte do ground (nível S). Em termos

práticos, esse sujeito não pode ter tido acesso ao estabelecimento prévio do referente de

“eu” como tópico.

O ponto crucial, portanto, é o seguinte: quando se leva em conta apenas o fluxo

discursivo linear, parece haver uma suposição tácita de que o único ponto de vista a ser

considerado (a única “subjetividade” linguisticamente relevante) é o dos interlocutores.

No entanto, se é verdade que a ordem VS pode, por si só, promover um deslocamento

do ponto de vista, o que era tópico pode deixar de ser – sem que haja a necessidade de

qualquer sequência linguística interveniente para efetivar a destopicalização. Mas, para

isso, é preciso não apenas considerar a possibilidade de múltiplos pontos de vista como

reconhecer a compartimentação do fluxo discursivo em diferentes espaços mentais (em

vez de entendê-lo como uma sequência linear indiferenciada).

6.3 Síntese

Neste capítulo, procurei estabelecer um diálogo entre a hipótese da perspectiva

in loco, defendida neste trabalho, e abordagens anteriores da inversão do sujeito no PB.

Em particular, procurei dialogar com duas grandes vertentes de investigação: de um

lado, abordagens formalistas voltadas para a questão da transitividade e do número de

argumentos do predicador; de outro, abordagens de cunho funcional dedicadas a

questões de acessibilidade referencial e, especialmente, grau de topicalidade do sujeito.

Em ambos os casos, busquei evidenciar o potencial da hipótese da perspectiva in loco

no sentido de enriquecer a compreensão do fenômeno.

Page 184: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

184

7 Considerações finais

Ao se debruçar sobre o fenômeno da inversão do sujeito no português brasileiro

falado, esta tese procurou cumprir dois objetivos: (i) oferecer uma explicação de base

cognitivista – especificamente, à luz da Teoria dos Espaços Mentais – para a alternância

SV / VS e (ii) descrever, nos moldes da Gramática de Construções goldbergiana, a

construção verbo-sujeito.

Com relação ao primeiro objetivo, propus que a diferença entre os padrões SV e

VS envolve deslocamento de ponto de vista. Com base na versão BCSN da TEM,

sustentei que a ordem sujeito-verbo sinaliza para o posicionamento de Ponto de Vista no

ground comunicativo (especificamente, no Espaço de Ato de Fala), de maneira que o

sujeito conceptualizador se constrói como Falante. Inversamente, a ordem verbo-sujeito

funciona como uma instrução formal para o posicionamento do PV no Domínio de

Conteúdo, com o Espaço-Foco correspondendo a um Espaço de Percepção; como

resultado, o sujeito conceptualizador se constrói como Observador. Isso explica por que

usos VS frequentemente produzem um efeito de apreensão direta do evento em foco,

como se ele estivesse sendo testemunhado, e não relatado.

Com relação ao segundo objetivo, sugeri que o polo semântico da construção VS

está associado à Cena de Focalização de Atenção, delineada com o auxílio do

instrumental teórico da Cognitive Grammar langackeriana. Procurei mostrar que essa

cena inclui três elementos conceptuais, dos quais dois ficam pressupostos (o Observador

e seu Campo Visual) e apenas um é perfilado (a Entidade Focalizada). Do ponto de vista

formal, isso significa que somente a Entidade Focalizada corresponde a um papel

argumental da construção VS, vinculando-se, nela, a uma relação gramatical e se

realizando, assim, como sujeito. Por fim, investiguei a compatibilização da construção

Page 185: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

185

VS com seis classes de predicadores verbais (verbos de aparição, locativos estativos, de

movimento, de mudança de estado, sensoriais e de ação), buscando compreender como

se dá a “divisão de tarefas” entre o significado do verbo e a especificação semântica da

própria construção sintática abstrata.

Qual é o próximo passo? Aqui, é possível retomar, ciclicamente, o que já foi dito

na Introdução. Como vimos, a ordem VS parece se manifestar, no português brasileiro,

em um grupo aparentemente heterogêneo de nove construções gramaticais. Esse

levantamento preliminar deve ser encarado como uma hipótese inicial de trabalho – e,

mais do que isso, como uma agenda de pesquisas para um tratamento construcional da

ordem VS no PB. Nesse sentido, a continuação natural desta tese consiste em descrever,

nos seus próprios termos, as demais subconstruções.

Isso, porém, não esgota o problema. Mais do que obter uma descrição de cada

subconstrução individual, é preciso enfrentar o problema da relação que elas

estabelecem entre si. Explica-se: assumindo o Princípio da Motivação Maximizada

(GOLDBERG, 1995), apresentado no capítulo 2, é de se supor que as subconstruções

elencadas exibam alguma afinidade semântica. Nesse caso, estamos diante de uma

família de construções gramaticais de inversão do sujeito inter-relacionadas – ou, dito

de outro modo, um inventário de subconstruções vinculadas a uma construção VS mais

geral e abstrata. Diante disso, a pergunta que se coloca é a seguinte: como irmanar todas

as subconstruções VS em uma categoria única? Em outras palavras: qual a motivação

semântica / pragmática / funcional da categoria VS63

?

63

Essa indagação é muito semelhante à dúvida que motivou o estudo de Goldberg (2006, cap. 8) sobre a

inversão sujeito-auxiliar (ISA) no inglês. Ao identificar um conjunto de oito construções ISA, cada qual

associada a uma especificação semântico-pragmática própria – sentenças interrogativas, condicionais

contrafactuais, cláusulas comparativas, dentre outras –, a autora se pergunta que afinidade semântica

permite irmanar todas elas em uma mesma categoria. Sua resposta envolve a postulação de uma rede

radial, na qual as oito subconstruções se organizam em torno de uma construção ISA abstrata, definida

como o protótipo da categoria.

Page 186: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

186

Esse tipo de indagação é particularmente importante para um paradigma não-

formalista, como é o caso da Linguística Cognitiva. Afinal, admitir que a mesma forma

verbo-sujeito se faz presente em um conjunto de construções inteiramente

independentes do ponto de vista semântico significaria aceitar a existência de

generalizações puramente formais. Na prática, isso equivaleria a assumir que a forma

sintática decorre, ao menos em alguns casos, de mecanismos formais internos. Essa

suposição, como se sabe, contraria tanto as premissas básicas da Linguística Cognitiva

(com sua associação estreita entre forma gramatical e conceptualização) quanto a ideia

fundadora das abordagens construcionais (segundo as quais a unidade básica da língua

são pareamentos de forma e significado).

É por essa razão que uma abordagem cognitivista da ordem VS deve se

preocupar não apenas em descrever as diversas construções de inversão do sujeito, mas

também em esclarecer que tipo de relação funcional (em sentido amplo) elas guardam

entre si. Para isso, pode ser produtivo partir da proposta desenvolvida neste trabalho: as

demais construções VS (ou pelo menos algum subconjunto delas) também se

caracterizam por apresentar perspectiva in loco? A noção de experiência direta também

se faz presente em outros casos de inversão do sujeito? Em que medida, em suma, a

hipótese defendida nesta tese, baseada fundamentalmente no conceito de Ponto de

Vista, se mostra útil para explicar a categoria VS como um todo?

Como de praxe, o trabalho se encerra com mais perguntas do que respostas. O

que, naturalmente, é um bom sinal. Afinal, ele terá cumprido sua missão se vier a servir

como ponto de partida – e, melhor ainda, como ponto de vista! – para novas

empreitadas. Nesse caso, é possível que algumas das questões em aberto sejam

respondidas. E é certo, para concluir com um enunciado VS, que surgirão perguntas

novas e instigantes.

Page 187: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

187

Referências

ALMEIDA, M. L. L. et alii. (Org.). Linguística Cognitiva em foco: morfologia e

semântica. 1a ed. Rio de Janeiro: Publit, 2009.

ALMEIDA, S., FERRARI, L. Subjectivity, intersubjectivity and epistemic

complementation constructions. Selected Papers from UK-CLA Meetings, CA, v. 1, p.

110 -127. 2012.

ARONOFF, M. Word Formation in Generative Grammar. Cambridge (Massachusetts):

MIT Press, 1976.

BECHARA, E. N. Estruturas Funcionais de Predicadores com os verbos

existir/haver/ter do Português. Estudos Linguísticos, São Paulo, v. 35, p. 667-676, 2006.

BERGEN, B. K., CHANG, N. Embodied construction grammar in Simulation-based

language understanding. In: ÖSTMAN, J.O., FRIED, M. (Org.). Construction

Grammars: cognitive grounding and theoretical extensions. Amsterdam: John

Benjamins, 2005.

BERLINCK, R. A. A construção V SN no Português do Brasil: uma visão diacrônica do

fenômeno da ordem. In: TARALLO, F. (Org.). Fotografias sociolingüísticas.

Campinas: Pontes, 1989.

______. Nem tudo que é posposto é novo: estatuto informacional do SN e posição do

sujeito em português. Revista Alfa de estudos linguísticos, São Paulo, v. 41, p. 57-78,

1997.

BOLINGER, D. Meaning and Form. London: Longman, 1977.

CHEN, R. English inversion: a ground-before-figure construction. Berlin, New York:

2003

CHOMSKY, N. A Minimalist Program for Linguistic Theory. In: HALE, K., KEYSER,

S. (Orgs.). The View From Building 20: Essays in Honor Of Sylvain Bromberger.

Cambridge, Mass.: MIT Press, 1993.

CIRÍACO, L., Cançado, M. Inacusatividade e Inergatividade no PB. Cadernos de

Estudos Linguísticos, São Paulo, v. 46, n. 2, 2004.

CLARK, E. The principle of contrast: a constraint on language acquisition. In:

MacWHINNEY, B. (Orgs). Mechanisms of language acquisition. Hillsdale, NJ:

Erlbaum Associates, 1987.

COULSON, S., URBACH, T.P., KUTAS, M. Looking back: joke comprehension and

the space structuring model. Humor, v.19, n. 3, p. 229–250, 2006.

CROFT, W. Radical Construction Grammar. Oxford, Oxford University Press, 2001.

Page 188: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

188

______. Construction Grammar. In: Geeraerts, D., Cuyckens, H. (Orgs.). The Oxford

handbook of cognitive linguistics. Oxford: Oxford University Press, 2007.

______, CRUSE, D. A. Cognitive linguistics. Cambridge: Cambridge University Press,

2004.

COELHO, I. L. A ordem V NP em construções monoargumentais: uma restrição

sintático-semântica. Tese de Doutorado. Universidade Federal de Santa Catarina –

UFSC, Florianópolis, 2000.

______, WERNER, A., ADUIN, J. Uma contribuição para a descrição do português

falado em Santa Catarina: a ordem verbo-sujeito. Working Papers em Linguística,

Florianópolis, n. 5, p. 7-24, 2001.

CUNHA, C.; CINTRA, L. Nova Gramatica do Português Contemporâneo. Rio de

Janeiro: Nova Fronteira, 1994.

CUTRER, M. Time and tense in narratives and everyday language. Ph.D. Dissertation.

University of California, San Diego, 1994.

DANCYGIER, B. Conclusion: multiple viewpoints, multiple spaces. In: DANCYGIER,

B. SWEETSER, E. (Orgs.). Viewpoint in language: a multimodal perspective.

Cambridge: Cambridge University Press, 2012.

EVANS, V., GREEN, M. Cognitive Linguistics: an introduction. Edimburgo:

Edinburgh University Press, 2006.

FAUCONNIER, G. Mental spaces: aspects of meaning construction in natural

language. Cambridge: Cambridge University Press, 1994 [1985].

______. Mappings in thought and language. Cambridge: University Press, 1997.

______, TURNER, M. The way we think: conceptual blending and the mind¥s hidden

complexities. New York: Basic Books, 2002.

______, TURNER, M. Rethinking Metaphor. In: GIBBS, R.W. Jr. (Org.). The

Cambridge Handbook of Metaphor and Thought. Cambridge: Cambridge University

Press, 2008.

FERRARI, L. Distribution and function of word order variation in Brazilian Portuguese.

Journal of Pragmatics, v. 14, p. 649-666, 1990.

______. Introdução à Linguística Cognitiva. São Paulo: Contexto, 2011.

______. Acrobacias cognitivas: ponto de vista e subjetividade em redes condicionais.

In: GABRIEL, R., MOURA, H (Orgs.). Cognição na linguagem: cérebro e uso. Santa

Catarina: Insular, 2012.

Page 189: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

189

______, ALONSO, K. Subjetividade e construções de futuro no português brasileiro.

Revista Alfa de estudos linguísticos, São Paulo, v. 53, n. 1, p. 233-241, 2009.

______, SWEETSER, E. Subjectivity and upwards projection in mental space structure.

In: DANCYGIER, B.; SWEETSER, E. (Orgs.) Viewpoint in language: a multimodal

perspective. Cambridge: Cambridge University Press, 2012.

FILLMORE, C. The case for case. In: BACH, E., HARMS, R. (Orgs.) Universals in

linguistic theory. New York: Holt, Rinelvant and Winston, 1968.

______. Innocence: a second idealization for linguistics. Proceedings of the Fifth

Meeting of the Berkeley Linguistics Society. University of Califórnia, 1979.

______, KAY, P., O’CONNOR, M. C. Regularity and idiomaticity in grammatical

constructions: the case of let alone. Language, v. 64, p. 501-38, 1988.

GEERAERTS, D. Introduction: A rough guide to Cognitive Linguistics. In: ______

(Org.). Cognitive Linguistics: Basic readings. Berlin: Mouton de Gruyter, 2006.

______, CUYCKENS, H. Introducing cognitive linguistics. In: GEERAERTS, H.

CUYCKENS (Orgs.). The Oxford Handbook of Cognitive Linguistics. Oxford: Oxford

University Press, 2007.

GERHARDT, A. F. L. M. A semântica das construções gramaticais e o tempo verbal

em Português. Tese (Doutorado em Lingüística). Universidade Federal do Rio de

Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro, 2002.

______. Teorias e conceitos em linguística cognitiva: (in)compreensões. Cadernos de

estudos linguísticos, Campinas, n. 45, p.21-31, 2003.

GOLDBERG, A. Constructions: a new theoretical approach to language. Trends in

Cognitive Sciences, v. 7, n. 5, p. 219-224, 2003.

______. Constructions: a construction grammar approach to argument structure.

Chicago: University Press, 1995.

______. Constructions at work: the nature of generalization in language. Cambridge:

University Press, 2006.

HEINE, B. Possession: Cognitive Sources, Forces and Grammaticalization. Cambridge,

U.K.: Cambridge University Press, 1997.

JOHNSON, M. The body in the mind: the bodily basis of meaning, imagination and

reason. Chicago: University Press, 1987.

KAY, P.; FILLMORE, C. Grammatical constructions and linguistic generalizations: the

What's X doing Y? construction. Language, v.75, p. 1-33, 1999.

KROCH, A. Morphosyntatic variation.Ms. 1994.

Page 190: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

190

LABOV, W. The transformation of experience in narrative syntax. In: ______.

(Org.). Language in the Inner City. Philadelphia: University of Pennsylvania, 1972.

LAKOFF, G. Women, fire and dangerous things: what categories reveal about the

mind. Chicago: University Press, 1987.

______, JOHNSON, M. Metaphors we live by. Chicago: University of Chicago Press,

1980.

______, SWEETSER, E. Forewords. In: FAUCONNIER, G. Mental spaces: aspects of

meaning construction in natural language. Cambridge: Cambridge University Press,

1994.

LAMBRECHT, K. Information structure and sentence form. Cambridge: Cambridge

University Press, 1994.

______. When subjects behave like objects: an analysis of the merging of S and O in

sentences-focus constructions across languages. Studies in language, v. 24, n. 3, p.611-

682, 2000.

LANGACKER, R. W. Foundations of cognitive grammar: theoretical prerequisites. Vol 1.

Stanford: Stanford University Press, 1987

______. Subjetification. Cognitive linguistics, Nijmegen, v. 1, n.1, p.5-37, 1990.

______. Foundations of cognitive grammar: descriptive application. Vol 2. Stanford:

University Press, 1991.

______. Concept, Image, and Symbol: The Cognitive Basis of Grammar. Berlin and

New York: Mouton de Gruyter, 1991b.

______. Possession, location, and existence. In: SILVA, A. S., TORRES, A.,

GONÇALVES, M. (Orgs.). Linguagem, cultura e cognição: estudos de lingüística

cognitiva, Vol I. Coimbra: Almedina, 2004.

______. Cognitive Grammar. In: GEERAERTS, D, CUYCKENS, H (Orgs.). The

Oxford Handbook of Cognitive Linguistics. Oxford: Oxford University Press, 2007.

______. Cognitive grammar: a basic introduction. Oxford: Oxford University Press,

2008.

______. Investigations in Cognitive Grammar. New York: Mouton de Gruyter, 2009.

LIRA, S. Subject postposition in Portuguese. Revista Delta, São Paulo, v.2, p. 17-36,

1986.

MANDELBLIT, N. Grammatical Blending: Creative and Schematic Aspects in

Sentence Processing and Translation. Ph.D. Dissertation. UC, San Diego, 1997.

Page 191: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

191

MARQUES, P. M. Análise diacrônica da ordenação do sujeito em relação ao verbo no

português. Tese de doutorado. Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de

Janeiro, 2012.

MENUZZI, S. A ordem verbo-sujeito no português do Brasil: para uma comparação das

abordagens formalistas e funcionalistas. Revista da Anpoll, n. 1 e 2, p. 349-384, 2004.

NARO, A.J.; VOTRE, S.J. Discourse motivations for linguistic regularities:

verb/subject order in spoken Brazilian Portuguese. Probus, Dordrecht, v. 11, n. 1, p. 73-

98, 1999.

NEGASE, E. I. A inversão locativa no português brasileiro. Dissertação (Mestrado em

Linguística). USP, São Paulo, 2007.

NEISSER, U. Five kinds of self-knowledge. Philosophical Psychology,v.1. n.1, p. 35-

59, 1988.

NIKIFORIDOU, K. The constructional underpinnings of viewpoint blends: the Past +

now in language. In: DANCYGIER, B., SWEETSER, E. (Orgs.) Viewpoint in

language: a multimodal perspective. Cambridge: Cambridge University Press, 2012.

NUÑEZ, R. Do real numbers really move? Language, thought, and gesture: the

embodied cognitive foundations of mathematics. In: IIDA, F., PFEIFER, R., STEELS,

L., KUNIYOSHI, Y (Orgs.). Embodied Artificial Intelligence. Springer: Berlin, 2004.

PEETERS, B. Does Cognitive Linguistics Live up to its Name? In: DIRVEN, R.,

HAWKINS, S, SANDIKCIOGLU, E (Orgs.). Language and Ideology. Volume 1:

theoretical cognitive approaches, 2001.

PINHEIRO, D. Aspectos sintáticos e semânticos da construção locativa do português

brasileiro. Dissertação de mestrado. Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ),

Rio de Janeiro, 2007.

______. A ordem VS como construção gramatical. In: FERRARI, L (Org.). Espaços

Mentais e construções gramaticais: do uso linguístico à tecnologia. Rio de Janeiro:

Imprinta, 2009.

______, NASCIMENTO, L. C. A retórica entre o discurso e a cognição: a mesclagem

conceptual como estratégia argumentativa. Fórum linguístico, v. 7, n. 2, p. 1-22, 2010.

PONTES, E. Sujeito: da sintaxe ao discurso. São Paulo: Ática, 1986.

SANDERS, J., REDEKER, G. Perspective and representation of speech and thought in

narrative discourse. In: FAUCONNIER, G., SWEETSER, E. Sapces, worlds and

grammar. Chicago: University of Chicago Press, 1996.

SANDERS, T., SANDERS, J., SWEETSER, E. Causality, cognition and communication: a

mental space analysis of subjectivity in causal connectives. In: SANDERS, T.;

SWEETSER, E. (Orgs.). Causal categories in discourse and cognition. Berlin/New York:

Mouton de Gruyter, 2009.

Page 192: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

192

______. Responsible subjects and discourse causality: how mental spaces and

perspective help identifying subjectivity in Dutch backwards causal connectives.

Journal of pragmatics, v. 44, p. 191-213, 2012.

SANDRA, D., RICE, S. Network analyses of prepositional meaning: mirroring whose

mind – the linguist’s or the language user’s? Cognitive Linguistics, v. 6, n.1, p. 89-130,

1995.

SANTOS, D. R., SOARES DA SILVA, H. A ordem V-DP/DP-V com verbos

inacusativos. In: DUARTE, M. E. O sujeito em peças de teatro (1833-1992): estudos

diacrônicos. São Paulo: Parábola, 2012.

SILVA, C. R. T. Sobre a posição do sujeito em contextos de pergunta-resposta: uma

análise contrastiva entre o português brasileiro e o português europeu. Revista

EntreLetras, v. 1, p. 119-135, 2010.

SPANÓ, Maria. A ordem verbo-sujeito no português brasileiro e europeu: um estudo

sincrônico da escrita padrão. Tese de Doutorado. Universidade Federal do Rio de

Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro. 2008.

TALMY, L. Towards a cognitive semantics. Vol.1: concept structuring systems.

Cambridge: The MIT Press, 2000.

TOBIN, V., ISRAEL, M. Irony as a viewpoint phenomenon. In: DANCYGIER, B.,

SWEETSER, E. (Orgs.) Viewpoint in language: a multimodal perspective. Cambridge:

Cambridge University Press, 2012.

VANDELANOTTE, L. Wait till you got started: how to submerge another’s discourse

in your own. In: DANCYGIER, B.; SWEETSER, E. (Orgs.) Viewpoint in language: a

Multimodal perspective. Cambridge: Cambridge University Press, 2012.

VERHAGEN, A. Constructions of intersubjectivity. Oxford: University Press, 2005.

WIERZBICKA, A. Boys will be boys: 'Radical Semantics' vs. ‘radical

pragmatics'. Language, v. 63, n.1, p. 95-114, 1987.

Page 193: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

193

ANEXO

Nesta folha, você encontra cinco situações numeradas de 1 a 5. Em cada uma delas, há

uma frase destacada em negrito. Nós gostaríamos de saber o quanto essas frases soam

aceitáveis ou naturais para você, no contexto em que aparecem.

Para responder ao teste, pedimos que você marque, para cada frase em negrito, apenas

uma dentre as três opções oferecidas. Se você acredita que a frase é perfeitamente

natural, marque primeira opção (Totalmente aceitável); inversamente, se você julga o

uso em negrito em possível naquele contexto, marque a terceira opção (Inaceitável). Por

fim, se você considera que a frase poderia ser usada mas causa estranhamento, marque a

segunda opção (Aceitável, porém estranha).

1.

Dicésar e Fernanda se cruzam na sala e trocam olhares. Ela diz:

– Di, tá seu chapéu no banquinho vermelho.

Totalmente aceitável

Aceitável, porém estranha

Inaceitável

Page 194: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

194

2.

Situação: Dicésar começa a narrar uma história para Fernanda e Serginho.

– Não, bi, olha isso. Esse meu amigo tava lá no camarim esperando, né? Aí daqui a

pouco esse tal de Marcelo entrou.

Totalmente aceitável

Aceitável, porém estranha

Inaceitável

3.

Situação: Em uma conversa com a Entrevistadora, Daniel conta uma história que

aconteceu com seu amigo Alexandre.

DANIEL: O Alexandre pegou o carro dele e foi comprar cerveja... aí estava descendo

pela Conde de Bonfim, né? E ia dobrar numa rua à esquerda que era contramão pra ir na

padaria que estava aberta lá pra comprar cerveja... Aí ele... pô... ligou a seta, reduziu...

quando ele virou pra esquerda pra cruzar a Conde de Bonfim, vinha um táxi correndo

pra caramba... e bateu na porta dele, do lado dele assim. Acabou o carro... pô, ele cortou

a cara, entrou vidro dentro do olho dele, mas não chegou a se ferir gravemente, não...

foi só assim leve, né? E pô... o mais engraçado é que ele saltou do carro, putão, e o

motorista do táxi tranquilíssimo, pegou o rádio lá que tem no táxi e ligou lá pra Central,

pediu reboque e não sei o quê... não deu nem atenção pra ele. Aí parou uma porção de

táxi, aí os caras do táxi começaram a arrumar confusão com ele... pô, ele falou que os

caras do táxi falavam pra ele assim: “pô, ninguém vai pagar teu prejuízo mesmo, sai

fora”. E não pagaram mesmo, não... veio a polícia, registraram a ocorrência, o próprio

policial falou que não adiantava nada, que entrar na justiça demora anos e dificilmente a

empresa de táxi vai pagar... você só leva prejuízo...

Page 195: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

195

ENTREVISTADORA: Mas ele também estava errado, né? Entrar na contramão...

DANIEL: Não... ele estava errado, mas veio o táxi cortando pela contramão

também... o cara do táxi que estava mais errado do que ele ainda... E tanto o policial

falou que ele tinha toda chance de ganhar no tribunal... Só que, pô, ia demorar anos e no

final a companhia ainda ia recorrer... Se bobear, nem pagava...

Totalmente aceitável

Aceitável, porém estranha

Inaceitável

4. Situação: Dicésar conversa com Fernanda sobre outros três participantes do BBB 10:

Cadu, Dourado e Lia.

DICÉSAR: Você viu bem, muito bem quem são os três... O Cadu é uma pessoa

maravilhosa, mas ele tá influenciado com tudo isso, tá ele protegendo a amiga dele.

Totalmente aceitável

Aceitável, porém estranha

Inaceitável

Page 196: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIOGO … · Construções. PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach. ...

196

5. Situação: Em conversa com Dicésar, Lia reclama da falta de oportunidades

profissionais.

LIA: Não, tá uma pobreza... Vou te enganar, não.

DICÉSAR: De trabalho?

Lia: É, de trabalho, tá FODA, meu. Tá tocando meu celular cada vez menos

(Corpus BBB 10)

Totalmente aceitável

Aceitável, porém estranha

Inaceitável