Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de …livros01.livrosgratis.com.br/cp142532.pdf ·...

154
Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de Filosofia e Ciências Humanas Escola de Serviço Social Programa de Pós-Graduação em Serviço Social ANDRÉ VILLAR GOMEZ REVOLUÇÃO TECNOLÓGICA E CAPITALISMO: Tópicos sobre a destruição e a criação de uma outra natureza Rio de Janeiro 2010

Transcript of Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de …livros01.livrosgratis.com.br/cp142532.pdf ·...

Page 1: Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de …livros01.livrosgratis.com.br/cp142532.pdf · Milhares de livros grátis para download. ANDRÉ VILLAR GOMEZ REVOÇÃO TECNOLÓGICA

Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de Filosofia e Ciências Humanas Escola de Serviço Social Programa de Pós-Graduação em Serviço Social

ANDRÉ VILLAR GOMEZ

REVOLUÇÃO TECNOLÓGICA E CAPITALISMO: Tópicos sobre a destruição e a criação de uma outra natureza

Rio de Janeiro

2010

Page 2: Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de …livros01.livrosgratis.com.br/cp142532.pdf · Milhares de livros grátis para download. ANDRÉ VILLAR GOMEZ REVOÇÃO TECNOLÓGICA

Livros Grátis

http://www.livrosgratis.com.br

Milhares de livros grátis para download.

Page 3: Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de …livros01.livrosgratis.com.br/cp142532.pdf · Milhares de livros grátis para download. ANDRÉ VILLAR GOMEZ REVOÇÃO TECNOLÓGICA

ANDRÉ VILLAR GOMEZ

REVOÇÃO TECNOLÓGICA E CAPITALISMO: Tópicos sobre a destruição e a criação de uma outra natureza

Trabalho de conclusão de Doutorado, apresentado ao Programa de Pós-graduação em Serviço Social da Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos para a obtenção do título de Doutor.

Orientador: Professor Doutor Marildo Menegat.

RIO DE JANEIRO 2010

Page 4: Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de …livros01.livrosgratis.com.br/cp142532.pdf · Milhares de livros grátis para download. ANDRÉ VILLAR GOMEZ REVOÇÃO TECNOLÓGICA

ANDRÉ VILLAR GOMEZ

REVOÇÃO TECNOLÓGICA E CAPITALISMO: Tópicos sobre a destruição e a criação de uma outra natureza

Trabalho de conclusão de Doutorado, apresentado ao Programa de Pós-graduação em Serviço Social da Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos para a obtenção do título de Doutor.

Aprovado em

BANCA EXAMINADORA

__________________________________________________. Professor Doutor Marildo Menegat (orientador)

Universidade Federal do Rio de Janeiro

___________________________________________________. Professor Doutor Giuseppe Cocco

Universidade Federal do Rio de Janeiro

___________________________________________________. Professor Doutor Maurílio Lima Botelho Universidade Federal do Rio de Janeiro

___________________________________________________. Professor Doutor José Paulo Neto

Universidade Federal do Rio de Janeiro

___________________________________________________. Professor Jorge Luís da Silva Grespan

Universidade de São Paulo

Page 5: Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de …livros01.livrosgratis.com.br/cp142532.pdf · Milhares de livros grátis para download. ANDRÉ VILLAR GOMEZ REVOÇÃO TECNOLÓGICA

G633 Gomez, André Villar.

Renovação tecnológica e capitalismo: tópicos sobre a destruição e a criação de uma outra natureza / André Villar Gomez. Rio de Janeiro: UFRJ, 2010. 151f.

Tese (doutorado) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Escola de Serviço Social / Programa de Pós-Graduação em Serviço Social, 2010. Orientador: Marildo Menegat.

1. Capitalismo. 2. Tecnologia – Aspectos sociais. 3. Ciência - Aspectos sociais. I. Menegat, Marildo. II. Universidade Fede- ral do Rio de Janeiro. Escola de Serviço Social.

CDD: 361

Page 6: Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de …livros01.livrosgratis.com.br/cp142532.pdf · Milhares de livros grátis para download. ANDRÉ VILLAR GOMEZ REVOÇÃO TECNOLÓGICA

AGRADECIMENTOS

Alessandro Carvalho, Ana Esteves, Felipe Brito, Javier Blank, Marcos Velho, Mariela Becher, Maurílio Botelho e Pedro Rocha. Por nossas reuniões etílicas, nossas conversas, nossas derivas pela cidade etc.

Ao meu amigo e orientador, Marildo Menegat. Seu conhecimento, seu apoio, suas críticas e seu exemplo.

À minha mãe, Dulce, e aos meus irmãos, Tatinha, Fabiano e Leo. Pelo carinho. E ao meu falecido pai, Sergio. Devo-lhe muito.

A minha Lilinha. Por tudo. Por seu amor. Grande beijo.

Page 7: Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de …livros01.livrosgratis.com.br/cp142532.pdf · Milhares de livros grátis para download. ANDRÉ VILLAR GOMEZ REVOÇÃO TECNOLÓGICA

“Conhecemos apenas uma pequena fração da história da humanidade neste planeta. É um registro longo, tedioso, doloroso, de mudanças catastróficas envolvendo o desaparecimento de continentes inteiros, às vezes. Contamos a história como se o homem fosse uma vítima inocente, um participante desamparado nas erráticas e imprevisíveis revoluções da natureza. Talvez no passado tenha sido. Mas não mais. Tudo o que venha a acontecer na terra hoje é obra do ser humano. Ele demonstrou ser o senhor de tudo – exceto de sua própria natureza. Se ontem era filho da natureza, hoje é uma criatura responsável. Chegou a um ponto de consciência que não lhe permite mais mentir para si mesmo. A destruição agora é deliberada, voluntária, auto-induzida. Estamos no nódulo: podemos ir em frente ou regredir. Ainda temos o poder de escolha. Amanhã talvez não tenhamos. Por nos recusarmos a escolher, somos assolados com culpa, todos nós, tanto os que estão fazendo a guerra como os que não estão. Estamos cheios de assassinato. Abominamos uns aos outros. Odiamos nossa aparência quando nos olhamos nos olhos. [...] Os homens do futuro vão olhar as relíquias desta era como nós olhamos os artefatos da Idade da Pedra. Somos dinossauros mentais, sem imaginação em meio a milagres ao quais nos tornamos impermeáveis. Todas as nossas invenções e descobertas levam à aniquilação”. Henry Miller, Pesadelo refrigerado.

Page 8: Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de …livros01.livrosgratis.com.br/cp142532.pdf · Milhares de livros grátis para download. ANDRÉ VILLAR GOMEZ REVOÇÃO TECNOLÓGICA

RESUMO O presente texto é dedicado ao estudo da dupla crise da civilização capitalista: sócio-econômica e ecológica. Ele busca mostrar que o capitalismo, devido ao seu próprio desenvolvimento tecnológico, se chocou com o seu limite lógico interno: o limite da valorização do valor. Desde então, como uma das manifestações da contradição entre a forma abstrata do valor e o conteúdo concreto do mundo, esse sistema principiou também a se chocar, de um modo cada vez mais flagrante, com os seus limites externos: os limites ecológicos e materiais da Terra. A destrutividade do capitalismo em relação à totalidade do mundo concreto-sensível se expressa então de dois modos distintos e complementares: como aceleração do consumo do mundo e como produção de uma outra natureza, isto é, como tentativa de recriar a natureza por meio da tecnociência. O texto também é dedicado à apresentação de alguns elementos para uma crítica da tecnologia e da ciência. A última parte é dedicada à crítica do agrocombustível. PALAVRA-CHAVE: capitalismo, tecnologia, crise, ecologia.

Page 9: Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de …livros01.livrosgratis.com.br/cp142532.pdf · Milhares de livros grátis para download. ANDRÉ VILLAR GOMEZ REVOÇÃO TECNOLÓGICA

ABSTRACT

This text is a study of the double crisis of capitalist civilization: socio-economical and ecological. It aims to show that capitalism, due to its own technological development, came up against its own internal logical limit: the limit of valorization of value. Since then, as one of the manifestations of the contradiction between the abstract form of value and the concrete content of the world, this system started to come up against its external limits, in a way more and more flagrant: the ecological and material limits of Earth. Capitalism's destructivity of concrete-sensitive world's totality expresses itself in two different and complementary ways: as the acceleration of the consumption of the world and as the production of other nature, that is, an attempt of recreating nature through technoscience. This text is also a presentation of some elements for a critique of technology and science. Its last part is a critique of agro-fuel. KEYWORDS: capitalism, technology, crisis, ecology.

Page 10: Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de …livros01.livrosgratis.com.br/cp142532.pdf · Milhares de livros grátis para download. ANDRÉ VILLAR GOMEZ REVOÇÃO TECNOLÓGICA

ÍNDICE

INTRODUÇÃO.................................................................................................11 1. METAFÍSICA REAL CAPITALISTA..........................................................15 1. 1. O mundo invertido.....................................................................................15 1. 2. A abstração real..........................................................................................20 1. 3. O fim em si do capital................................................................................23 2. CRISE DO CAPITALISMO..........................................................................26 2. 1. Contradição em processo...........................................................................26 2. 2. Tecnologia e trabalho.................................................................................27 2. 3. A revolução microeletrônica......................................................................34 2. 4. Limite lógico absoluto................................................................................39 3. FUGAS PARA FRENTE...............................................................................42 3. 1. Capital fictício............................................................................................42 3. 2. Economia de guerra permanente................................................................46 3. 3. Administração de crise e a solução final....................................................58 4. DESTRUIÇÃO E EMANCIPAÇÃO DA NATUREZA...............................63 4. 1. Aceleração do consumo do mundo............................................................63 4. 2. O sonho (louco) do capital.........................................................................68 4. 3. O sistema tecnológico................................................................................72 4. 4. A forma-ciência..........................................................................................78 4. 5. Tecnociência capitalista.............................................................................84 5. MUNDO PÓS-NATURAL............................................................................89 5. 1. Novos materiais..........................................................................................90 5. 2. Tecnologia nuclear.....................................................................................92 5. 3. Engenharia genética...................................................................................94 5. 4. Biologia sintética........................................................................................97 5. 5. Nanotecnologia...........................................................................................99 5. 6. Convergência tecnológica........................................................................104 5. 7. Pós-humano..............................................................................................105 .

Page 11: Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de …livros01.livrosgratis.com.br/cp142532.pdf · Milhares de livros grátis para download. ANDRÉ VILLAR GOMEZ REVOÇÃO TECNOLÓGICA

6. PRODUÇÃO E DESTRUIÇÃO..................................................................110 6. 1. Forças destrutivas.....................................................................................110 6. 2. Dialética negativa.....................................................................................114 6. 3. Um outro metabolismo com a natureza....................................................116 6. 4. Para o lixo com tudo isso.........................................................................119 CONSIDERAÇOES FINAIS ou com todo vapor ao colapso... sócio-ecológico..........................................................................................................123 Excurso: CAPITALISMO VERDE E O AGROCOMBUSTÍVEL.................................126 1. Aquecimento da Terra..................................................................................126 2. Protocolo de Kyoto.......................................................................................128 3. Soluções tecnológicas..................................................................................130 4. Petróleo e automóvel....................................................................................131 5. Tragédia sócio-ecológica dos agrocombustíveis..........................................132 6. Provocando mais poluição...........................................................................136 7. Ainda de veias abertas.................................................................................138 Fim de partida................................................................................................140 REFERÊNCIAS BLIOGRÁFICAS.................................................................142

Page 12: Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de …livros01.livrosgratis.com.br/cp142532.pdf · Milhares de livros grátis para download. ANDRÉ VILLAR GOMEZ REVOÇÃO TECNOLÓGICA

INTRODUÇÃO

Não é de hoje que os seres humanos têm estabelecido relações destrutivas com a

natureza. Algumas sociedades chegaram mesmo a soçobrar em virtude do arruinamento

das condições ecológicas sobre as quais se apoiavam.1 No entanto, quaisquer que

tenham sido as práticas dessas sociedades e quaisquer que tenham sido os resultados de

suas intervenções sobre a natureza, há uma diferença notável entre o que ocorreu com

elas e o que acontece em nossa época. Por maior que tenha sido a depredação e a

destruição da natureza em outros tempos, ela se limitou sempre a alguns restritos

rincões do mundo. Atingiu somente uns poucos aspectos da biosfera. No entanto, sob o

capitalismo, em especial sob o capitalismo tecnocientífico de nossa época, a devastação

da natureza atinge o planeta inteiro. É toda a Terra que se torna vítima da agressão

infringida pelo modo de produção e de vida capitalista. A biosfera está sendo aniquilada

de forma implacável e extremamente acelerada.

A continuidade da pilhagem da natureza tende a promover um colapso ecológico

generalizado. Mas graves conseqüências já podem ser claramente sentidas. O clima da

Terra está se tornando cada vez mais instável. A natureza parece estar se vingando das

intervenções impertinentes e insanas perpetradas sobre ela. Tal processo de destruição

ecológica não pode continuar. E, no entanto, longe de arrefecer, ele não cessa de se

intensificar. Quanto mais se agravam as contradições do capitalismo, mais esse sistema

torna-se voraz e depredador. No momento em que o capitalismo começa a se chocar

com o seu limite lógico interno – o limite de seu processo de valorização, baseado na

sucção de mais-valia –, ele passa a ser acometido por um apocalíptico impulso

destrutivo. Em seu fim de linha, a forma abstrata do valor entra em guerra contra a

totalidade do mundo concreto-sensível.

A aniquilação das condições ecológicas da Terra consiste num resultado que mal

podia ser vislumbrado por Marx. Sua teoria prevê o colapso do capitalismo em virtude

da contradição entre a forma abstrata do valor e o conteúdo concreto da realidade. O

desenvolvimento tecnológico tende a negar a forma social estruturalmente baseada na

1 Ver: POINTING, Clive. Uma história verde do mundo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1985 e DIAMOND, Jared. Colapso: como as sociedades escolhem o fracasso ou o sucesso. Rio de Janeiro: Record, 2006.

Page 13: Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de …livros01.livrosgratis.com.br/cp142532.pdf · Milhares de livros grátis para download. ANDRÉ VILLAR GOMEZ REVOÇÃO TECNOLÓGICA

12

exploração do trabalho humano. No entanto, nos dias atuais, delineia-se no horizonte

um desfecho que lhe pareceria impensável em sua época: de que o capitalismo, em

virtude dos imensos potenciais produtivos e destrutivos que contribuiu para gerar, viria

a destruir as próprias condições ecológicas e materiais da existência humana. O planeta

seria o elo mais fraco dessa colisão entre o abstrato e o concreto. Trata-se de uma

profunda mudança de época. A civilização capitalista pode chegar ao fim levando de

roldão a humanidade inteira consigo. Ela pode se extinguir por meio de guerras

nucleares, por “acidentes” tecnológicos ou como resultado de falência ecológica

generalizada. Tudo isso revela a inanidade do determinismo que liga mecanicamente o

fim do capitalismo à emancipação social. É possível que a pré-história chegue ao fim.

Mas não é certo que principie a verdadeira história humana. Ela pode terminar como

anti-história.2

Não há dúvidas de que é preciso transformar o mundo. Mas, antes disso, talvez

seja necessário realizar algo preliminar e de vital importância: simplesmente conservá-

lo. Faço minhas as palavras de Günther Anders:

“hoje diria que sou um „conservador ontológico‟, pois o que importa hoje em dia é, antes de tudo, conservar o mundo, não importa como seja este mundo; e só depois veremos o que podemos melhorar. Há aquela célebre sentença de Marx: „Os filósofos apenas interpretaram o mundo de diferentes maneiras; o que importa é transformá-lo‟. Isto já não é mais suficiente. Hoje em dia não basta transformar o mundo; o que importa antes de tudo é conservá-lo. Logo o queremos transformar, e muito, inclusive de maneira revolucionária. Mas primeiro temos de ser conservadores, num sentido autêntico, num sentido que não admitiria nenhum dos homens que se chamam a si mesmo de conservadores”.3

Talvez seja esse o desafio de nosso tempo: impedir que o planeta seja

aniquilado. Mas não é apenas o “fim horroroso” do colapso ecológico generalizado e da

possível extinção dos seres humanos que nos espreita. Uma perspectiva não menos

sombria é o “horror sem fim” de subsistirmos em meio aos destroços da natureza. A

civilização capitalista está passando e destruindo as possibilidades materiais e

ecológicas de forjarmos um novo modo de produzir e de viver. É possível imaginar uma 2 FAUSTO, Ruy. Marx: lógica e política, tomo I. São Paulo: Brasiliense, 1987. p. 17. 3 ANDERS, Günther. Llamese cobardia a essa esperanza. Bilbao: Besatari, 1995. pp. 84, 85.

Page 14: Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de …livros01.livrosgratis.com.br/cp142532.pdf · Milhares de livros grátis para download. ANDRÉ VILLAR GOMEZ REVOÇÃO TECNOLÓGICA

13

forma de socialização melhor que a atual sobre um mundo ecologicamente devastado?

Aqui, mais do que nunca, o totalitarismo econômico se faz presente: ou sua prevalência

eterna ou nada! Um louco niilismo. Talvez ainda tenhamos alguma escolha. Talvez

possamos impedir o pior. Mas o tempo escoa rapidamente.

O presente texto é dedicado à escombrologia: ao estudo das ruínas sociais e

ecológicas da civilização capitalista em fim de linha. Parte dele trata de mostrar as

contradições estruturais do sistema a partir do momento em que ele desenvolve um

padrão tecnológico altamente baseado na ciência. Quanto mais o capitalismo se revela

uma forma de socialização obsoleta em função dos potenciais produtivos que ela própria

contribui para criar, mais esse sistema busca encaixar esses potenciais na camisa-de-

força da forma-valor. No entanto, para alargar o seu prazo de validade, esse sistema tem

forjado uma série de fugas para frente. Um desses expedientes consiste na

ficionalização da economia, que garante um pouco de oxigênio para os combalidos

processos de valorização do valor. A administração do horror social e os colossais

dispêndios de dinheiro no complexo militar-industrial consistem em formas crassamente

violentas de conservar a enorme substância social no interior da mesquinha bitola da

socialização capitalista. A outra parte do texto é dedicada ao estudo do desdobramento

da referida contradição no plano das intervenções capitalistas sobre a natureza. Por um

lado, essa contradição se manifesta sob a forma de uma brutal intensificação da

pilhagem ecológica. Quer dizer: como aceleração do consumo do mundo. Por outro

lado, porém, se desdobra de um modo produtivo, mas não menos problemático: como

processo de recriação da natureza. Se até meados do século XX o capitalismo

simplesmente se limitou a se apropriar e transformar a natureza, a partir de então ele

busca franquear todos os limites. Ele passou a querer produzir uma outra natureza. Este

passo não é o contrário de seu impulso destrutivo. Mas o seu complemento. É a

tentativa de fuga para frente desse sistema também no plano material. O presente texto

também é dedicado à apresentação de algumas críticas à tecnologia e à ciência. Termino

esse texto com um excurso sobre o agrocombustível. Longe de ser solução para alguns

dos graves problemas ecológicos de nossa época, o agrocombustível tende a intensificar

ainda mais a já tão pronunciada destrutividade capitalista.

A compreensão dos problemas de nossa época requer estudo e investigação. Isso

é, sem dúvida, importante. Mas não basta. É preciso também uma forte dose de

imaginação. Muito de nossa cegueira resulta da crescente discrepância entre os nossos

feitos e nossa capacidade de representá-los. Conforme observa Günther Anders, o

Page 15: Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de …livros01.livrosgratis.com.br/cp142532.pdf · Milhares de livros grátis para download. ANDRÉ VILLAR GOMEZ REVOÇÃO TECNOLÓGICA

14

postulado que contribuiria imensamente para reduzir esse lapso é: ampliar a nossa

capacidade de imaginação para que possamos saber o que estamos fazendo.4 Isso é tanto

mais necessário quando a percepção não se encontra à altura daquilo que produzimos.

“A imaginação conscientemente entremeada, ainda que seja ela mesma insuficiente,

percebe mais verdade que a percepção. Necessitamos mobilizar a imaginação

precisamente para seguir estando à altura da empiria, por muito paradoxal que soe. A

imaginação é a „percepção‟ de hoje”.5 O pensamento claudicante, sem imaginação, só

pode ficar para trás em tempos de tão tremendas e espantosas transformações. Esforcei-

me para captar algumas das tendências negativas e destrutivas em curso. Espero que

meu texto possa de algum modo contribuir para impedir o advento do pior.

4 ANDERS, Günther. Llámese cobardia a esa esperanza. Bilbao: Besatari, 1995. p. 80. 5 Id. Ibid. p. 80. “O que hoje é evidência foi outrora imaginação”. BLAKE, William. Provérbios do inferno. In: O casamento do céu e do inferno & outros escritos. Porto Alegre: L&PM, 2009. p. 22.

Page 16: Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de …livros01.livrosgratis.com.br/cp142532.pdf · Milhares de livros grátis para download. ANDRÉ VILLAR GOMEZ REVOÇÃO TECNOLÓGICA

15

1. METAFÍSICA REAL CAPITALISTA

O problema da metafísica ainda nos concerne. Mas não como um problema

meramente filosófico, e sim como um problema histórico-social da maior gravidade.

Isso porque o fundamento do mundo concreto-sensível no capitalismo encontra-se num

mundo ideal-abstrato. É exatamente essa característica que faz do capitalismo uma

forma social metafísica: uma metafísica realizada. O capitalismo é a sociedade

metafísica da época moderna.

O capitalismo não é a primeira sociedade a ser dominada por entidades

metafísicas. Houve sociedades dominadas por totens, por deuses da natureza e por

Deus. Tal como as formas sociais precedentes, o capitalismo também é dominado por

entidades fantásticas criadas pelos seres humanos. Mas com uma diferença marcante:

agora a entidade metafísica não está mais situada no além. Pelo contrário. Ela encontra-

se encarnada em coisas sensíveis e concretas: na mercadoria e no dinheiro.

O vil materialismo de nossa época é apenas a forma de existência camuflada de

um rematado idealismo. Por isso, para se compreender essa sociedade, faz-se necessário

investigar essa entidade fantástica que domina a sociedade moderna: a forma do valor

da mercadoria. Não é por mera veleidade que se escolhe esse ponto de partida. Isso se

faz necessário porque o capitalismo está fundado numa abstração social. Tal

procedimento poderia parecer inteiramente deslocado num texto que pretende discorrer

sobre problemas ecológicos. Mas não é o caso. Ele é absolutamente essencial para se

compreender a raiz dos problemas que tanto nos afligem.

1. 1. O mundo invertido O capitalismo é o mundo realmente invertido. Um mundo às avessas. Por quê?

Porque o fundamento do mundo concreto se encontra numa abstração. E é isso que faz

do capitalismo uma sociedade idealista: o “idealismo realmente existente”.6 Pois há de

fato uma precedência da idéia em relação ao mundo concreto-sensível. Este não é um

pequeno detalhe. Mas sim algo cheio de conseqüências negativas e destrutivas. Por isso

6 KRAHL, Hans-Jürgen. Contribuiçión al Curso sobre Crítica de la Economia Política. Disponível em: http://antivalor2.vilabol.uol.com.br

Page 17: Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de …livros01.livrosgratis.com.br/cp142532.pdf · Milhares de livros grátis para download. ANDRÉ VILLAR GOMEZ REVOÇÃO TECNOLÓGICA

16

que tal idealismo deve ser combatido. No entanto, não se trata de um combate

meramente filosófico. Mas sim de empreender a própria transformação da sociedade.

No sistema de Hegel, o mundo concreto é gerado por uma idéia. O Ser constitui

o primeiro momento que, somente após uma tortuosa engrenagem de sucessivas

mediações, gera o mundo material: a natureza e o mundo humano. De fato, tal idéia tem

mesmo algo de muito bizarro. Mas a bizarria diz mesmo respeito à sociedade capitalista.

Pois, no capitalismo, tal como ocorre na filosofia de Hegel, o ponto de partida é mesmo

um conceito, uma abstração: o trabalho abstrato na forma do valor. O problema da

filosofia de Hegel é a sua falta de especificidade histórica e o caráter apologético de sua

filosofia em relação à ordem do capital. E não o ponto de partida de sua filosofia.

Pode-se mesmo dizer que O capital consiste numa espécie de metacomentário da

filosofia de Hegel. Marx, portanto, não nega o idealismo deste. O que ele faz é

contextualizar os conceitos de Hegel nos termos das formas sociais capitalistas. Nesse

sentido, a crítica madura de Marx não supõe uma inversão antropológica “materialista”

da dialética idealista de Hegel, mas é antes, em certo sentido, a justificação dessa

filosofia. Marx buscou mostrar que o núcleo racional dessa filosofia encontrava-se em

seu caráter idealista.7 É verdade, porém, que esse ponto de vista acerca da filosofia de

Hegel foi profundamente alterado no curso das investigações teóricas de Marx.

Em seus escritos juvenis, Marx ainda se conserva, de certo modo, na órbita da

crítica materialista que Feuerbach fez à filosofia idealista de Hegel. Feuerbach havia

criticado o caminho invertido da filosofia de Hegel. Para ele, a filosofia de Hegel era

uma “teologia racionalizada”.8 Principiar com a abstração para apenas então chegar ao

ser sensível lhe parece uma falsificação da verdade. Por que começar pelo abstrato, e

não, imediatamente, pelo sensível? Por que seguir esse estranho e fantasmagórico

itinerário?

“Tão invertido é tudo isso, e mesmo assim o segredo da teologia se baseia nessa inversão. As coisas na teologia não são apenas pensadas e desejadas por que elas existem, mas elas existem porque são pensadas e desejadas. O universo existe porque Deus o pensou e quis, porque Deus até agora o pensa e quer. A idéia,

7 POSTONE, Moishe. Tiempo, trabajo y dominación: una reinterpretación de la teoría crítica de Marx. Madri: Marcial Pons, 2006. p. 135. 8 “A doutrina hegeliana, segundo a qual a natureza, a realidade, é posta pela idéia, não é mais do que a expressão racional da doutrina teológica segundo a qual a natureza é criada por Deus, o ser material por um ser imaterial, ou seja, abstrato”. FEUERBACH, Ludwig. Tesis provisionales para la reforma de la filosofia. Barcelona: Labor, 1976. p. 20.

Page 18: Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de …livros01.livrosgratis.com.br/cp142532.pdf · Milhares de livros grátis para download. ANDRÉ VILLAR GOMEZ REVOÇÃO TECNOLÓGICA

17

o pensamento, não é abstraído de seu objeto, mas o pensamento é o produtor, é a causa, do objeto pensado por ele. Mas exatamente esta doutrina (o cerne da teologia e da filosofia cristã) é uma inversão na qual é invertida a ordem natural”.9

Assim, contra essa filosofia idealista, Feuerbach propõe uma nova filosofia: uma

filosofia feita em “carne e osso”. Uma filosofia que tem como ponto de partida não o ser

abstrato da especulação filosófica, mas sim aquilo que é indubitável e imediatamente

certo: o ser sensível. Pois somente onde começa a sensibilidade cessa toda a dúvida e

todo o litígio. Ele pretende substituir o processo dialético da constituição dos seres pela

exigência bem mais simples: partir diretamente daquilo que é concreto, empírico e

imediatamente evidente. A nova filosofia de Feuerbach surge como uma antropologia

radical, que procura a verdade por meio da intuição sensível, e não através dos jogos

especulativos da dialética e das fantasias do raciocínio teológico.

Os textos de juventude de Marx permitem ver até que ponto essa crítica de

Feuerbach o influenciou. Em Miséria da Filosofia, ele faz a seguinte observação acerca

da filosofia idealista:

“Devemos nos espantar de que todas as coisas, em última abstração, pois há abstração e não análise, se apresentem no estado de categoria lógica? Devemos nos espantar de que, deixando cair pouco a pouco tudo o que constitui o „individualismo‟ de uma casa, fazendo abstração dos materiais de que ela se compõe e da forma que a distingue, chegássemos a não ter mais que um corpo – pois fazendo abstração dos limites deste corpo não teríamos logo senão um espaço – de que, enfim, fazendo abstração das dimensões deste espaço, acabaríamos por não ver mais senão a quantidade em toda a sua pureza, a categoria lógica? À força de abstrair assim de todo sujeito todos os pretensos acidentes, animados ou inanimados, homens ou coisas, temos razão de dizer que em última abstração chegamos a ter como substância as categorias lógicas. Assim, os metafísicos que, fazendo estas abstrações, imaginam fazer análise, e que, à medida que se afastam cada vez mais dos objetos, imaginam se aproximar deles a ponto de penetrá-los, têm, por sua vez, razão de dizer que as coisas aqui da terra são bordados, cuja talagarça é formada pelas categorias lógicas. Eis o que distingue o filósofo do cristão. O cristão não tem senão uma encarnação do Logos, a despeito da lógica; o filósofo não acaba nunca com as encarnações. Que tudo o que existe, que

9 Idem. Preleções sobre a essência da religião. Campinas, SP: Papirus, 1989. p. 102.

Page 19: Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de …livros01.livrosgratis.com.br/cp142532.pdf · Milhares de livros grátis para download. ANDRÉ VILLAR GOMEZ REVOÇÃO TECNOLÓGICA

18

tudo o que vive sobre a terra e sob a água, possa, à força de abstração, ser reduzido a uma categoria lógica; e que, deste modo, todo o mundo real possa submergir no mundo das abstrações, no mundo das categorias lógicas – quem se espantará com isso?10

Tal como Feuerbach, o então jovem Marx critica as hipóstases lógicas de Hegel

como ideologias, como quimeras do pensamento, que falseiam a realidade. Parece-lhe

falsa a filosofia que transforma as coisas da terra numa encarnação de uma abstração.

No entanto, anos depois, durante a redação dos Grundrisse, quando lia “por acaso” a

Lógica de Hegel, Marx adotou um ponto de vista inteiramente diferente acerca dessa

questão. Desde então ele percebeu que aquilo que outrora era considerado por ele como

um problema propriamente teórico da filosofia hegeliana, consistia, pelo contrário,

numa característica real da sociedade capitalista e num problema cuja solução extrapola

ao domínio propriamente teórico. O problema deixa de ser a filosofia idealista de Hegel,

para ser o do idealismo realmente existente da sociedade capitalista. Marx jamais

voltará a criticar as hipóstases lógicas de Hegel como quimeras, ideologias que falseiam

a realidade verdadeira. Pelo contrário. Ele passa a tomar as hipóstases como a descrição

“verdadeira” de uma “realidade falsa”.11

Se, em Miséria da filosofia, Marx escarnece do procedimento metafísico que faz

das “coisas aqui da terra” meros “bordados”, cuja “talagarça” é formada pelas

categorias lógicas, no seu período de maturidade, ele ultrapassa esse ponto de vista e

compreende que, na sociedade baseada na produção de mercadoria, é a própria ordem

das coisas que se encontra de cabeça para baixo. Nessa sociedade, o próprio mundo

concreto-sensível tornou-se uma forma de manifestação fenomenal de uma abstração.

Há uma passagem que ilustra o quanto Marx captou o caráter realmente místico e

invertido da sociedade capitalista:

“No interior da relação de valor e da expressão do valor que está incluída nela o abstrato não vale como propriedade do concreto, do sensível efetivo, mas pelo contrário o sensível-concreto [só vale] como pura forma fenomenal ou forma de realização efetiva determinada do trabalho abstrato universal. Por exemplo, o trabalho do alfaiate que está contido no equivalente casaco não

10 MARX, Karl. Miséria da filosofia. São Paulo: Livraria exposição do livro, s.d. pp. 91, 92. 11 JAPPE, Anselm. As aventuras da mercadoria. Lisboa: Antígona, 2006. p. 180.

Page 20: Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de …livros01.livrosgratis.com.br/cp142532.pdf · Milhares de livros grátis para download. ANDRÉ VILLAR GOMEZ REVOÇÃO TECNOLÓGICA

19

possui, no interior da expressão de valor da tela, a propriedade geral de ser também trabalho humano. Pelo contrário. Ser trabalho humano vale como sua essência, ser trabalho do alfaiate [só vale] como forma fenomenal ou forma de realização efetiva determinada desta sua essência [...]. Esta interversão pela qual o sensível-concreto só vale como forma fenomenal do abstrato universal em vez de o abstrato universal valer, pelo contrário, como propriedade do concreto, [tal interversão] caracteriza a expressão de valor, ela torna ao mesmo tempo difícil a sua compreensão. Se eu disser: direito romano e o direito alemão são ambos direitos, isto é evidente. Mas se eu disser: o direito, este abstrato, se realiza efetivamente no direito romano e no direito alemão, o contexto torna-se então místico”.12

Portanto, o problema não é mais o fato de o filósofo idealista ter colocado uma

abstração na base do mundo concreto-sensível. E sim de que, no capitalismo, a

abstração ser a essência (negativa) que está na base do mundo concreto. O fato de “o

sensível-concreto” se tornar uma “pura forma fenomenal ou forma de realização efetiva

determinada do trabalho abstrato universal”. Não se trata mais de escarnecer o caráter

idealista da filosofia de Hegel. Desde então Marx deixou de negar a existência de uma

consciência sobreposta aos seres humanos. Ela compreendeu que tal consciência existe.

Mas como um predicado e uma propriedade de seres humanos reais e finitos. 13

O Ser da filosofia de Hegel – a abstração que se faz mundo – existe. Ele não é

uma mera invenção do filósofo idealista. No capitalismo, tal como no sistema de Hegel,

o fundamento da realidade é uma abstração: o trabalho abstrato na forma do valor.

Pode-se dizer que o trabalho abstrato constitui o Ser da sociedade capitalista. No

entanto, tal abstração, diferentemente do que pensava Hegel, não gera o mundo

material. Mas nem por isso ele deixa de ser menos real. Essa abstração é real na medida

em que representa uma força negativa e repressiva que submete e subjuga o real.

12 MARX, apud. FAUSTO, Ruy. Marx: lógica e política, tomo I. São Paulo: Brasiliense, 1987. pp. 101, 102. Portanto, se a teoria que busca dar conta dessa realidade, como é o caso da teoria de Marx, possui algo de místico, de metafísico, isso se deve ao próprio misticismo da realidade capitalista, e não a um suposto “defeito” da teoria. 13

“A existência de uma consciência metafísica sobreposta aos humanos – observa Hans-Jürgen Khral – é uma aparência, mas uma aparência real: o capital. O capital é a existente fenomenologia do espírito, é a metafísica real. O capital é uma aparência, porque não tem uma real estrutura de coisa, e no entanto domina aos homens. [...] A consciência metafísica que oprime a nossa individualidade é o capital, o valor de troca que constitui apenas uma abstração. Hegel é o pensador metafísico do capital, é o primeiro cujo ponto de vista coincide com a lógica do capital. Sua filosofia é o disfarce idealista e metafísico da forma da produção”. KRAHL, Hans-Jürgen. Contribuiçión al Curso sobre Crítica de la Economia Política. Disponível em: http://antivalor2.vilabol.uol.com.br

Page 21: Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de …livros01.livrosgratis.com.br/cp142532.pdf · Milhares de livros grátis para download. ANDRÉ VILLAR GOMEZ REVOÇÃO TECNOLÓGICA

20

1. 2. A abstração real A troca de mercadorias encontra-se no centro da socialização capitalista. A troca

de mercadorias é o liame de uma sociedade de produtores privados, autônomos e

independentes. Por isso, o produto de seus diversos trabalhos só pode assumir seu

caráter social por meio da troca. As mercadorias são produtos destinados à troca. Mas as

mercadorias, para além de sua aparente simplicidade, são cheias de “sutilezas

metafísicas” e de “manhas teológicas”. Pois as pessoas envolvidas nas trocas realizam

certas operações que lhes escapam à compreensão: “Não o sabem, mas o fazem”.14 E

longe de ser um procedimento técnico e neutro, inteiramente anódino, tal prática produz

os mais nefastos resultados.

Produtos diversos servem para satisfazer necessidades diferentes e por isso são

incomensuráveis uns em relação aos outros. Do ponto de vista de suas qualidades

concretas, eles não podem ser comparados entre si, pois não possuem nada em comum.

Por isso, para que esses produtos se tornem passíveis de serem trocados, eles precisam

ser reduzidos a algo que haja neles em comum. E o que há de comum entre eles? O fato

de que são produzidos por intermédio do trabalho humano. Entretanto, tal comparação

não pode ser feita em termos de trabalho concreto. Cada trabalho concreto é

qualitativamente distinto um do outro, e, portanto, não dá para compará-los entre si. O

trabalho de produzir uma camisa é completamente distinto daquele dedicado à produção

de batatas. Portanto, o que há em comum em todos os trabalhos é o puro gasto de

“nervos, músculos e cérebro” despendido no processo de produção. Marx chamou o

trabalho assim reduzido de trabalho abstrato. É somente a partir dessa redução que os

mais diversos produtos tornam-se passíveis de serem mensurados quantitativamente:

por meio do tempo. O tempo de trabalho é, portanto, a substância (abstrata) que

determina o valor da mercadoria.

O trabalho abstrato é uma mera abstração social. Portanto, consiste em algo que

só existe na mente humana – embora isso lhe ocorra de forma inconsciente. Não há

assim qualquer trabalho abstrato realmente “contido” ou “cristalizado” no corpo da

mercadoria. E isso por dois motivos. Em primeiro lugar, porque não existe nenhum

trabalho humano que possa ser despendido de forma puramente abstrata: como puro

dispêndio de energia humana – um trabalho livre de toda determinação. O trabalho

humano só pode ser despendido de forma determinada. É somente desse modo que o

14 MARX, Karl. O Capital, vol I, tomo 1. São Paulo: Abril Cultural, 1983. p. 72.

Page 22: Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de …livros01.livrosgratis.com.br/cp142532.pdf · Milhares de livros grátis para download. ANDRÉ VILLAR GOMEZ REVOÇÃO TECNOLÓGICA

21

trabalho pode transformar a matéria-prima e lhe dar uma forma útil. E, em segundo

lugar, porque não existe qualquer trabalho abstrato “contido” nos corpos das

mercadorias. O trabalho “contido” é uma contradição. Ele consiste na coagulação de um

processo que já deixou de existir quando o produto ficou pronto.15 Portanto, trata-se de

nada mais nada menos do que uma “projeção” do pensamento sobre coisas concretas e

sensíveis.16 E é por isso que as mercadorias são “coisas fisicamente metafísicas”: são

coisas sobre as quais se projetam produtos fantásticos do cérebro humano.

Marx chama de fetichista a “representação” do valor da mercadoria. O valor da

mercadoria é um fetiche porque os indivíduos atribuem às coisas algo que só tem

existência em suas mentes. Portanto, na sociedade capitalista, os humanos mediam suas

relações sociais e suas relações com a natureza por meio de algo que não é mais do que

uma ficção. Mas uma “ficção existente”. “Uma ficção que, como falsa consciência, tem

um poder real sobre os homens”.17 E é por isso que não se pode entender a forma de

consciência como um mero fenômeno superestrutural. Ela é antes algo que pertence à

própria estrutura econômica da sociedade.18 As formas de consciência são objetivas.

Mas são objetivas porque “são formas de pensamento socialmente válidas e, portanto,

15 “No processo de trabalho a atividade do homem efetua, portanto, mediante o meio de trabalho, uma transformação do objeto de trabalho, pretendida desde o princípio. O processo extingue-se no produto. Seu produto é um valor de uso; uma matéria natural adaptada às necessidades humanas mediante transformação da forma. O trabalho se uniu com seu objetivo. O trabalho está objetivado e o objeto trabalhado. O que do lado do trabalhador aparecia na forma de mobilidade aparece agora como propriedade imóvel na forma do ser, do lado do produto. Ele fiou e o produto é um fio”. MARX, Karl. O Capital, vol I, tomo 1. São Paulo: Abril Cultural, 1983. p. 151. 16 “Para fixar a tela como pura expressão coisificada do trabalho humano, é preciso fazer abstração de tudo aquilo que faz dela realmente uma coisa. A objetividade do trabalho humano, que é ele próprio abstrato [...] é necessariamente uma objetividade abstrata, uma coisa do pensamento. É assim que o tecido do linho se torna uma fantasmagoria. Mas as mercadorias são coisas. O que elas são, elas devem ser à maneira das coisas, ou mostrá-las nas suas próprias relações de coisas”. Marx. apud. FAUSTO, Ruy. Marx: lógica e política, tomo I, São Paulo: Brasiliense, 1987. p. 159. “A igualdade de trabalhos toto coelo [totalmente] diferentes só pode consistir numa abstração de sua verdadeira desigualdade, na redução ao caráter comum que eles possuem como dispêndio de força de trabalho do homem, como trabalho humano abstrato. O cérebro dos produtores privados apenas reflete esse duplo caráter social de seus trabalhos privados sob aquelas formas que aparecem na circulação prática, na troca dos produtos – o caráter socialmente útil de seus trabalhos privados, portanto, sob aquela forma que o produto de trabalho tem de ser útil, isto é, útil aos outros – o caráter social da igualdade dos trabalhos de diferentes espécies sob a forma do caráter do valor comum a essas coisas materialmente diferentes, os produtos de trabalho”. MARX, Karl. O Capital, vol I, tomo 1. São Paulo: Abril Cultural, 1983. p.72. 17 KRAHL, Hans-Jürgen. Contribuiçión al Curso sobre Crítica de la Economia Política. Disponível em: http://antivalor2.vilabol.uol.com.br 18 Conforme observa Hans-Jürgen Khral: “Se as abstrações devem conquistar uma realidade (e uma realidade a tem) então Marx deveria chegar à conclusão de que as abstrações, os conceitos e a consciência são determinações da base”. KRAHL, Hans-Jürgen. Contribuçión al Curso sobre Crítica de la Economia Política. Disponível em: http://antivalor2.vilabol.uol.com.br

Page 23: Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de …livros01.livrosgratis.com.br/cp142532.pdf · Milhares de livros grátis para download. ANDRÉ VILLAR GOMEZ REVOÇÃO TECNOLÓGICA

22

objetivas para as condições de produção desse modo social de produção, historicamente

determinado, a produção de mercadorias”.19

De que modo então seria possível suprimir tal fantasma do pensamento humano?

De modo algum ela poderia ser extirpada por uma mera transformação no plano das

idéias. Uma mera “transformação da consciência equivale a interpretar de modo

diferente o que existe, isto é, reconhecê-lo por meio de uma outra interpretação”.20 Essa

transformação tem de ser sobretudo prática. Se esta forma abstrata só tem existência na

cabeça dos seres humanos, sua origem encontra-se no modo como os humanos se

relacionam entre si. E é portanto somente pela transformação prática das relações

sociais que o fetichismo da sociedade capitalista poderá deixar de existir. É nisso que

consiste o “materialismo” da teoria crítica de Marx. O idealismo da sociedade

capitalista só pode ser suprimido por meio de uma profunda transformação na forma

como os humanos produzem sua vida.

É essa apreciação do idealismo filosófico que permite a Marx comparar os

fenômenos do capitalismo com aqueles que ocorrem no mundo da religião. Tanto no

capitalismo como no mundo da religião os humanos encontram-se dominados pelas

criações de suas mentes. No mundo da religião, “os produtos do cérebro humano

parecem dotados de vida própria, figuras autônomas, que mantém relações entre si e

com os homens”. No mundo das mercadorias, ocorre a mesma coisa, só que agora com

os “produtos da mão humana”:

“O reflexo religioso do mundo real somente pode desaparecer quando as circunstâncias cotidianas, da vida prática, representarem relações transparentes e racionais entre si e com a natureza. A figura do processo social da vida, isto é, do processo da produção material, apenas se desprenderá do seu místico véu nebuloso quando, como produto de homens livremente socializados, ela ficar sob seu controle consciente e planejado. Para tanto, porém, se requer uma base material da sociedade ou uma série de condições materiais de existência, que, por sua vez, são produto natural de uma evolução histórica longa e penosa”.21

19 MARX, Karl. O Capital, vol I, tomo 1. São Paulo: Abril Cultural, 1983. p. 73. 20 MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã. São Paulo: Martins Fontes, 1998. p. 9. 21 MARX, Karl. O Capital, vol I, tomo 1. São Paulo: Abril Cultural, 1983.. p. 76.

Page 24: Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de …livros01.livrosgratis.com.br/cp142532.pdf · Milhares de livros grátis para download. ANDRÉ VILLAR GOMEZ REVOÇÃO TECNOLÓGICA

23

1. 3. O fim em si do capital O objetivo do modo de produção capitalista não é a satisfação das necessidades

humanas. Mas sim o valor. Produz-se um determinado artigo porque ele constitui o

“veículo material” da forma abstrata do valor. A coisa concreta é criada porque há nela

um determinado quantum de trabalho humano abstrato “cristalizado” em seu corpo.

Portanto, não se produz mercadorias por amor aos valores de uso, e sim apenas por

causa do valor, da abstração. É nesse sentido que a abstração constitui a “talagarça” do

mundo concreto sensível. As coisas concretas tornam-se, assim, meras formas

fenomenais dessa abstração social. Por isso, pode-se dizer que a abstração, na sociedade

capitalista, é real.22

Mas não se trata apenas de produzir valor. O valor só pode se conservar por

meio de sua ampliação. Assim, para que a relação social baseada no valor de troca possa

subsistir, ela precisa se ampliar progressivamente. Portanto, o objetivo da produção

capitalista não é apenas produzir valor, mas sim mais-valia. E de que modo o capital

produz mais-valia? Por meio da expropriação de uma parte do valor produzido pelos

produtores. Parte do valor criado durante a jornada de trabalho é consumido pelos

trabalhadores sob a forma de salário. Parte desse valor, porém, fica com os proprietários

dos meios de produção. A expansão e a acumulação de capital estão fundadas na

exploração do trabalho humano. E é nesse sentido que se pode chamar a sociedade

capitalista de “sociedade do trabalho”.

Não é exagero afirmar que todo o capitalismo se resume na fórmula D – M – D‟

(dinheiro, mercadoria, mais dinheiro). Ele não visa nada além disso. Seu único e

exclusivo objetivo é promover a reprodução ampliada do valor. Todo ponto de chegada

é apenas o ponto de partida de uma jornada que não pode encontrar qualquer momento

de repouso. Esse processo só pode sobreviver através de seu avanço contínuo. Por isso,

todo limite deve ser convertido numa barreira passível de ser franqueada. Marx

considera que esse processo termina por se converter num “sujeito automático”. Embora

produzidos pelos seres humanos, as objetivações cegas dos indivíduos geram um

processo social que lhes escapa ao controle. E assim o valor se torna o sujeito de todo o

movimento social:

22 SOHN-RETHEL, Alfred. Trabalho espiritual e corporal: para a epistemologia da história ocidental. Disponível em: http://antivalor2.vilabol.uol.com.br

Page 25: Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de …livros01.livrosgratis.com.br/cp142532.pdf · Milhares de livros grátis para download. ANDRÉ VILLAR GOMEZ REVOÇÃO TECNOLÓGICA

24

“Ele [o valor] passa continuamente de uma forma para outra, sem perder-se nesse movimento, e assim se transforma num sujeito automático. [...] De fato, porém, o valor se torna aqui o sujeito de um processo em que ele, por meio de uma mudança constante das formas de dinheiro e mercadoria, modifica a sua própria grandeza, enquanto mais-valia se repele de si mesmo enquanto valor original, se autovaloriza. Pois o movimento, pelo qual ele adiciona mais-valia, é seu próprio movimento, sua valorização, portanto autovalorização. Como sujeito usurpador de tal processo, em que ele ora assume, ora se desfaz da forma dinheiro e da forma mercadoria, mas se conserva e se dilata nessa mudança, o valor precisa, antes de tudo, de uma forma autônoma, por meio da qual a sua identidade consigo mesmo é constatada. E essa forma ele só possui no dinheiro. Este constitui, por isso, o ponto de partida e o ponto final de todo processo de valorização”.23

Tanto os capitalistas como os trabalhadores são meras “personificações” de

certas funções econômicas da sociedade. Os capitalistas são as “personificações do

capital” e os trabalhadores, as “personificações do trabalho para o capital”. A liberdade

dessas personificações consiste em buscar os melhores meios de realização dos

imperativos econômicos pressupostos. As decisões dos indivíduos se encontram

submetidas a um padrão que eles próprios não são capazes de controlar. Tornam-se

sujeitos sujeitados.

A ampliação incessante do valor requer que uma quantidade cada vez maior de

seres humanos seja inserida no processo de produção de mercadorias. A ampliação da

massa de valor pressupõe o dispêndio de uma massa sempre crescente de energia vital

humana – que é também uma “força natural”. O dispêndio de energia humana é o

pressuposto da forma abstrata do valor da mercadoria.24 Mas esse mesmo processo

exige igualmente a utilização de quantidades sempre crescente de matérias-primas. A

cristalização de maiores quantidades de trabalho humano abstrato requer uma expansão

crescente do “metabolismo com a natureza”. No limite, toda a natureza tem de ser

convertida em simples pressupostos materiais do ilimitado processo de valorização.

Entretanto, esse processo é profundamente transtornado pelo desenvolvimento das

23 MARX, Karl. O Capital, vol I, tomo 1. São Paulo: Abril Cultural, 1983. p. 130. 24 “Não é a realidade biológica da universalidade do trabalho que constitui o trabalho abstrato, mas a posição dessa realidade, e a posição não é mais biológica. A generalidade em sentido fisiológico [...] não constitui o trabalho abstrato: ela é apenas a realidade natural pressuposta à (posição) deste. A realidade social faz com que valha o que era apenas uma realidade natural”. FAUSTO, Ruy. Marx: lógica e política, tomo I. São Paulo: Brasiliense, 1987. pp. 91, 92.

Page 26: Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de …livros01.livrosgratis.com.br/cp142532.pdf · Milhares de livros grátis para download. ANDRÉ VILLAR GOMEZ REVOÇÃO TECNOLÓGICA

25

forças produtivas. O avanço tecnológico empurra o capitalismo contra o seu próprio

limite lógico interno: o limite de sua valorização. E, juntamente com ele, contra os

próprios limites materiais e ecológicos da Terra.

Page 27: Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de …livros01.livrosgratis.com.br/cp142532.pdf · Milhares de livros grátis para download. ANDRÉ VILLAR GOMEZ REVOÇÃO TECNOLÓGICA

26

2. CRISE DO CAPITALISMO 2. 1. Contradição em processo

O capitalismo só pode sobreviver por meio da transformação de quantidades

crescentes de trabalho vivo em trabalho morto (mercadoria e dinheiro). No entanto, essa

forma social move-se contra os seus próprios fundamentos em função do

desenvolvimento tecnológico. Tal desenvolvimento escapa inteiramente ao controle dos

agentes envolvidos. Trata-se de uma dinâmica direcional cega. Esse movimento cego

resulta da concorrência capitalista. Esse fenômeno se verifica na produção industrial.

Quem está na dianteira do desenvolvimento tecnológico obtém vantagens frente aos

demais concorrentes, pois desse modo ele pode auferir um lucro extra, uma vez que se

torna capaz de produzir a mercadoria por um valor individual inferior ao seu valor

social. É esse estímulo econômico que impulsiona os capitalistas à conquista de um

maior desenvolvimento tecnológico.

Mas o desenvolvimento tecnológico não obedece apenas a esse impulso

diretamente econômico. O Estado é parte importante nesse processo de

desenvolvimento tecnológico. Grande parte das pesquisas é patrocinada ou realizada nas

instituições de pesquisa do Estado, tendo como objetivo não o desenvolvimento de

novos meios de produção, e sim a produção de novos meios de destruição. Pode-se

dizer que a concorrência econômica se prolonga na “economia militar”. A concorrência

pelo poder militar entre os Estados – e, em última análise, a própria guerra – consiste

numa continuidade da concorrência econômica por outros meios. A acumulação de

capital exige uma proporcional acumulação de poder político e militar.25

Essa dimensão do desenvolvimento tecnológico não pode ser negligenciada na

dinâmica do capitalismo, em especial a partir do século XX. Somente os gastos

militares estatais e a mobilização constante para as guerras poderiam impulsionar as

enormes inversões requeridas para promover o desenvolvimento tecnológico no

capitalismo contemporâneo. Essa forma de desenvolvimento tecnológico não se

25 “O processo ilimitado de acúmulo de capital necessita de uma estrutura política de „poder tão ilimitado‟ que possa proteger a propriedade crescente, tornando-a ainda mais poderosa”. ARENT, Hannah. Origens do totalistarismo: anti-semitismo, imperialismo, totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. p. 172.

Page 28: Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de …livros01.livrosgratis.com.br/cp142532.pdf · Milhares de livros grátis para download. ANDRÉ VILLAR GOMEZ REVOÇÃO TECNOLÓGICA

27

encontra em contradição com a lógica da concorrência econômica. É apenas uma forma

particular de expressão da mesma dinâmica.

A contradição entre a forma social e o desenvolvimento das forças produtivas

encontra-se no centro da socialização capitalista. E é por isso que Marx pode designar o

capitalismo como uma “contradição em processo”. Por um lado, o capitalismo “coloca o

tempo de trabalho como a única fonte e a única medida da riqueza”. Mas, por outro,

“tende a reduzir o tempo de trabalho a um mínimo”.26

“De uma parte, ele desperta todas as forças das ciências e da natureza, assim como as da cooperação e da circulação sociais, a fim de tornar a criação da riqueza independente (relativamente) do tempo de trabalho utilizado por ele. De outra parte, pretende medir as gigantescas forças sociais assim criadas pelo padrão do tempo de trabalho e as encerrar nos limites requeridos para que o valor já criado se conserve como valor”.27

A riqueza do capitalismo está baseada no trabalho humano. O trabalho é a

substância do capital. Mas esse sistema não cessa de substituir o trabalho humano por

máquinas cada vez mais sofisticadas. Os aparatos tecnológicos tendem a ocupar

progressivamente o lugar dos seres humanos nos processos produtivos. No entanto, essa

substituição torna-se um problema cada vez mais grave para o capitalismo. Ele nega o

trabalho por meio da tecnologia que ele mesmo contribui para criar. Mas mantém o

trabalho no centro de sua dinâmica.

Mas seria o trabalho algo passível de ser suprimido? Ou consiste o trabalho

numa condição incontornável para existência humana? Torna-se então necessário

definir o significado estrito do termo trabalho.

2. 2. Tecnologia e trabalho

Trabalho não é idêntico à atividade produtiva humana. Ele é apenas uma forma

muito específica de execução dessa atividade. Uma das características mais marcantes

dessa forma de atividade reside no fato de ela ser uma “abstração real”. Isto é: trata-se

26 MARX, Karl. Fondements de la critique de l’economie politique, vol II. Paris: Éditions Anthropos, 1968. p. 222. 27 Id. Ibid. pp. 222, 223.

Page 29: Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de …livros01.livrosgratis.com.br/cp142532.pdf · Milhares de livros grátis para download. ANDRÉ VILLAR GOMEZ REVOÇÃO TECNOLÓGICA

28

de uma atividade separada de todo o contexto da vida humana. Quando o indivíduo

trabalha, ele só trabalha, e não faz mais nada que isso. Pelo menos, é assim que rege o

princípio estrutural dessa atividade. Nesse sentido, o próprio trabalho abstrato – que

mede o valor das mercadorias – não é mais do que uma abstração de segunda ordem,

uma abstração da abstração, e o trabalho concreto, por sua vez, uma forma de

materialização dessa atividade realmente abstrata:

“Se o trabalho abstrato é a abstração de uma abstração – assinala Norbert Trenkle – então o trabalho concreto representa apenas o paradoxo de ser o lado concreto de uma abstração (isto é, da forma-abstração „trabalho‟). „Concreto‟, apenas no sentido bastante estreito e limitado, de que mercadorias necessitam de processos de produção materialmente diferentes”.28

Portanto, embora tenham utilizado as suas capacidades físicas para criar as

condições de sua própria existência ao longo da história, nem sempre os humanos

trabalharam. Foi somente no capitalismo que surgiu essa forma muito peculiar de

atividade produtiva humana. E é por isso que essa forma atividade pode ser suprimida.

Em qualquer forma social os humanos terão de despender alguma energia física e

mental para promover o seu “metabolismo com a natureza”. Mas isso não significa que

o trabalho mesmo seja uma condição eterna da existência humana. Eles continuarão

trabalhando apenas enquanto sua atividade permanecer submetida à referida forma.

Uma transformação radical da sociedade implica a necessidade de abolir essa forma de

atividade.

Mas o próprio capitalismo se encarrega de negar essa forma de atividade por

intermédio de seu desenvolvimento tecnológico. Pois esse sistema gera um aparato

tecnológico que requer cada vez menos a intervenção dos seres humanos nos processos

produtivos imediatos. Assim, cada vez mais, o “metabolismo com a natureza” se torna

um processo de produção sem trabalho. O desenvolvimento das forças produtivas tem

promovido uma significativa modificação do lugar do trabalho no processo de produção

material. Ele ocupou lugares distintos nas três épocas tecnológicas do capitalismo: a

28 TRENKLE, Norbert. O que é o valor? A que se deve a crise? Disponível em: http://antivalor2.vilabol.uol.com.br

Page 30: Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de …livros01.livrosgratis.com.br/cp142532.pdf · Milhares de livros grátis para download. ANDRÉ VILLAR GOMEZ REVOÇÃO TECNOLÓGICA

29

manufatura, a grande indústria e na pós-grande indústria – para utilizar essa designação

de Ruy Fausto.29 Vejamos brevemente em que consistem tais modificações.

Na manufatura, o processo de produção depende da força, da destreza e da

habilidade do trabalhador. Nesse momento, o trabalhador maneja um instrumento que

serve para mediar a sua atividade sobre o objeto. Essa base tecnológica o capitalismo

encontrou pronta, herdando-a da oficina medieval. No entanto, também introduziu

algumas importantes modificações. Uma delas é estritamente formal: o produtor perdeu

sua antiga independência e passou a trabalhar sob o comando do capitalista.30 Ligada a

essa transformação, há uma outra, relativa à organização do processo de trabalho:

muitos trabalhadores passaram a trabalhar conjuntamente, cada um deles ocupando uma

pequena parcela do processo global. Eles forjam, assim, uma máquina humana,

composta de muitos trabalhadores. Essa divisão das tarefas ampliou imensamente a

produtividade. No entanto, esse aumento de produtividade foi feito a custa de uma

enorme repressão a todo um mundo de impulsos e capacidades produtivas.31

Essa base tecnológica constitui um limite para o sistema, uma vez que, a partir

de certo ponto, a produtividade dificilmente pode ser aumentada. Os limites físicos dos

seres humanos bloqueiam o contínuo desenvolvimento das forças produtivas. Não

obstante, essa base tecnológica não se encontra em contradição com a lógica de

funcionamento do capitalismo, pois está inteiramente baseada na exploração do trabalho

humano.

A manufatura produziu uma revolução na forma de organizar a força de

trabalho. Mas não criou uma base tecnológica. Isso ocorreu somente no segundo

período da produção capitalista: com o advento da grande indústria. Foi exatamente

nesse momento que o capitalismo principiou a “corromper” os seus próprios

29 FAUSTO, Ruy. Marx: lógica e política, tomo III. São Paulo: Ed. 34, 2002. 30 “A natureza geral do processo do trabalho não se altera, naturalmente, por executá-lo o trabalhador para o capitalista, em vez de para si mesmo. Mas também o modo específico de fazer botas ou de fiar não pode alterar-se de início pela intromissão do capitalista. Ele tem de tomar a força de trabalho, de início, como a encontra no mercado e, portanto, também seu trabalho da maneira como se originou em um período em que ainda não havia capitalistas. A transformação do próprio modo de produção mediante a subordinação do trabalho ao capital só pode ocorrer mais tarde e deve por isso ser considerado somente mais adiante”. MARX, Karl. O Capital, vol I, tomo 1. São Paulo: Abril Cultural, 1983. p. 154. 31 “[A manufatura] aleija o trabalhador convertendo-o numa anomalia, ao fomentar artificialmente sua habilidade no pormenor mediante a repressão de um mundo de impulsos e capacidades produtivas, assim como nos Estados de La Plata abate-se um animal inteiro apenas para tirar-lhe a pele ou o sebo. Os trabalhadores parciais específicos são não só distribuídos entre os diversos indivíduos, mas o próprio indivíduo é dividido e transformado no motor automático de um trabalho parcial, tornando assim a fábula insossa de Menenius Agrippa, segunda a qual um ser humano é representado como mero fragmento de seu próprio corpo, realidade”. Id. Ibid. p. 238.

Page 31: Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de …livros01.livrosgratis.com.br/cp142532.pdf · Milhares de livros grátis para download. ANDRÉ VILLAR GOMEZ REVOÇÃO TECNOLÓGICA

30

fundamentos.32 A grande indústria é a segunda base tecnológica do capitalismo e a

primeira posição material desse sistema. É a primeira base tecnológica posta pelo

capitalismo. Desde o seu advento, o trabalho humano deixou de ser a unidade

dominante do processo de produção e passou a ser progressivamente negado pelo

desenvolvimento tecnológico.

A grande indústria caracteriza-se pela introdução das máquinas nos processos

produtivos. Tal introdução promoveu uma enorme modificação nos processos de

produção. A máquina não é um simples instrumento de trabalho. O instrumento de

trabalho é o mediador da atividade humana sobre o objeto. São os trabalhadores que

usam os instrumentos. Com o surgimento das máquinas, essa relação se inverte. São os

trabalhadores que se convertem em instrumentos das máquinas. Eles tornam-se os

“apêndices” vivos dos monstros mecânicos. Na grande indústria, os trabalhadores

encontram-se materialmente subsumidos ao comando das máquinas. São as máquinas

que se tornam os agentes principais da produção. Assim, o mundo invertido do capital

adquire materialidade. Se o capital já era o sujeito no plano da forma, nesse momento

ele se tornou também o sujeito no plano material. A forma social se materializa quando

o capital adquire seu “esqueleto objetivo”.33

Ocorre aqui uma profunda alteração no “silogismo” do processo de trabalho –

isto é: na forma de articulação entre os termos envolvidos na produção. A relação não é

mais trabalhador – meio de trabalho – matéria-prima, como ocorria na manufatura. A

ordem e a função deles foram profundamente alteradas. Passou a ser máquina –

32 “A posição da forma na matéria é a via do desenvolvimento do sistema, mas esse caminho do desenvolvimento é também o da corrupção dele. A posição da forma, que assinala a passagem do capitalismo em geral ao capitalismo em sentido específico [...] é porém ao mesmo tempo, e de imediato, o ponto de partida da crise do sistema. É como se ele só pudesse funcionar sem crise, se se mantivesse em descompasso entre forma e matéria, mas enquanto isto ocorre o sistema encontra certos limites. Porém a matéria enquanto ela é congruente com a forma [...], é a longo prazo incompatível com a forma, se se pode dizer, precisamente por ser congruente com ela. Se a revolução técnica permite reduzir o valor da força de trabalho e com isto aumentar a taxa de mais-valia – sempre seguindo a interpretação clássica –, ela provoca o aumento da composição orgânica do capital, o que determina um movimento tendencial de redução da taxa de lucro. A matéria sobre a qual a forma se imprime e que é congruente com esta está assim, e não só a partir de um certo ponto mas imediatamente, embora a contradição não ultrapasse certos limites, em contradição com a forma. O sistema se „corrompe‟ pela contradição entre matéria e forma”. FAUSTO, Ruy. Marx: lógica e política, tomo II. São Paulo: Brasiliense, 1987. pp. 64, 65. 33 “Toda produção capitalista, à medida que ela não é apenas processo de trabalho, mas ao mesmo tempo processo de valorização do capital, tem em comum o fato de que não é apenas o trabalhador quem usa as condições de trabalho, mas, que, pelo contrário, são as condições de trabalho que usam o trabalhador: só, porém, com a maquinaria é que essa inversão ganha realidade tecnicamente palpável. Mediante sua transformação em autômato, o próprio meio de trabalho se confronta, durante o processo de trabalho, com o trabalhador como capital, como trabalho morto que domina e suga a força de trabalho viva”. MARX, Karl. O capital, vol. I, tomo 2. São Paulo: Abril Cultural, 1984. pp. 43, 44.

Page 32: Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de …livros01.livrosgratis.com.br/cp142532.pdf · Milhares de livros grátis para download. ANDRÉ VILLAR GOMEZ REVOÇÃO TECNOLÓGICA

31

trabalhador – matéria-prima.34 Portanto, não é mais o instrumento que deve se acomodar

ao uso do trabalhador. Mas é o trabalhador que tem de se conformar às exigências

colocadas pelas máquinas. E, tal como já havia acontecido no período da manufatura, tal

produtividade acrescida veio acompanhado de mais repressão às faculdades e impulsos

humanos.35

Mas o desenvolvimento tecnológico da produção capitalista não parou por aí.

Em fins do século XX amadureceu e se generalizou uma nova base tecnológica que

alterou profundamente o processo de produção industrial. Essa nova base representa a

terceira base tecnológica do capitalismo e a segunda posição material desse sistema.

Trata-se de uma base tecnológica que está para além do próprio sistema. Embora tenha

sido produzida pelo capitalismo, ela é poderosa demais para ser mobilizada no interior

de um invólucro social tão limitado.

Essa nova base tecnológica se caracteriza pelo fato de o trabalhador se tornar

uma força produtiva praticamente obsoleta no interior dos processos de produção de

mercadorias. A plena efetivação do “princípio da automação” surgido com a introdução

das máquinas no período da grande indústria ganhou um imenso impulso com a nova

geração de máquinas viabilizada pela “aplicação tecnológica da ciência”. Desde então o

processo produtivo assumiu cada vez mais a feição de um “processo natural” e o

trabalhador foi deslocado para a margem do processo de produção, limitando-se a

cumprir a função de supervisor e auxiliar da operação das máquinas.36

Trata-se aqui de um radical processo de negação do trabalho. Desde então

deixou de ter qualquer identidade entre o “metabolismo com a natureza” e o processo de

trabalho. Grande parte desse metabolismo passou a ocorrer sem a intervenção direta dos

seres humanos. Esse terceiro momento do desenvolvimento tecnológico produz um

“silogismo” que é – do ponto de vista material, e não do ponto de vista formal, pois o

34 “Até a grande indústria, o mediador, o termo médio é o trabalhador; os extremos são o trabalhador (mais precisamente – para o caso da manufatura – o trabalhador global) e a matéria-prima. Na grande indústria, o mediador, o termo médio é o trabalhador, os extremos são o sistema mecânico e a matéria-prima”. FAUSTO, Ruy. Marx: lógica e política, tomo III. São Paulo: Ed. 34, 2002. p. 119. 35 “Enquanto o trabalho em máquinas agride o sistema nervoso ao máximo, ele reprime o jogo polivalente dos músculos, confisca toda a livre atividade corpórea e espiritual. Mesmo a facilitação do trabalho torna-se um meio de tortura, já que a máquina não livra o trabalhador do trabalho, mas seu trabalho de conteúdo”. MARX, Karl. O capital, vol. I, tomo 2. São Paulo: Abril Cultural, 1984. p. 43. 36 “O trabalhador não insere mais, como intermediário entre o material e ele, o objeto natural transformado em instrumento; ele insere o processo natural, que ele transforma em processo industrial, como intermediário, entre ele e toda a natureza, da qual se tornou senhor. Mas ele próprio encontra-se colocado ao lado do processo de produção, ao invés de ser seu agente principal”. MARX, Karl. Fondements de la critique de l’économie politique, vol II. Paris; Éditions Anthropos, 1968. p. 212.

Page 33: Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de …livros01.livrosgratis.com.br/cp142532.pdf · Milhares de livros grátis para download. ANDRÉ VILLAR GOMEZ REVOÇÃO TECNOLÓGICA

32

capitalismo ainda subsiste – a negação dos “silogismos”.37 Esta nova base material

levou a contradição que principiou a surgir com o advento da grande indústria ao

paroxismo. Por “excesso de adequação”, o capitalismo criou uma base tecnológica que

empurra o sistema inteiro para uma situação de auto-ruptura interna, pois suprime o

fundamento sobre o qual se apóia: o trabalho.

“Com essa transformação, não é nem o tempo de trabalho utilizado, nem o trabalho imediato efetivado pelo homem que aparece como o fundamento principal da riqueza; é a apropriação de sua força produtiva geral, sua compreensão da natureza e sua faculdade de dominá-la, logo que se ele se constituiu em um corpo social; em suma, o desenvolvimento do indivíduo social representa o fundamento da produção de riqueza”.38

Desde então o fundamento da riqueza deixou de ser o trabalho humano

despendido nos processos de produção e passou a ser a própria “compreensão da

natureza”: o saber e o general intellect (inteligência coletiva). Os produtos da

inteligência humana passaram a ser muito mais importantes para a criação de riqueza do

que o trabalho humano imediato no processo de produção.39 Assim, a mensuração da

riqueza social por intermédio do dispêndio de tempo de trabalho se tornou um

anacronismo.

O que está em questão aqui não é apenas uma mera desproporção quantitativa

entre o peso do trabalho morto e o do trabalho vivo no processo de produção. Essa

37 “Se a grande indústria aparece como a negação do processo de trabalho, a pós-grande indústria seria a segunda negação do processo de trabalho, e na realidade a negação da negação. Mas se a grande indústria representa a posição (material) adequada ao capital no processo produtivo, poder-se-ia dizer também que a pós-grande indústria representa a segunda posição material. [...] Assim, a pós-grande indústria é ao mesmo tempo a segunda negação do trabalho como princípio do processo produtivo, e a segunda posição do capital no processo de produção. [...] O homem não é mais o sujeito do processo de produção, ou antes, a segunda negação faz com que se rompa a estrutura do processo de produção como processo de trabalho. O homem é de certo modo „posto para fora”, liberado do processo, mas é assim mesmo que ele passa a dominar todo o processo. Desse modo, esse terceiro „silogismo‟ é ao mesmo tempo – do ponto de vista material, não formal, porque na situação considerada o capitalismo subsiste – a negação dos „silogismos‟”. FAUSTO, Ruy. Marx: lógica e política, tomo III. São Paulo: Ed. 34, 2002. pp. 129, 131. 38 MARX, Karl. Fondements de la critique de l’économie politique, vol II. Paris; Éditions Anthropos, 1968. pp. 221, 222. 39 “O desenvolvimento do capital fixo indica o grau em que o conhecimento social geral, o saber, se torna uma força produtiva imediata, e, por conseguinte, até que ponto as condições do processo vital da sociedade estão submetidas ao controle do general intellect e estão remodeladas conforme o mesmo; até que ponto as forças produtivas sociais não são somente produtos sob a forma do saber, mas ainda como órgãos imediatos da práxis social, do processo vital real”. Id. Ibid. p. 223.

Page 34: Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de …livros01.livrosgratis.com.br/cp142532.pdf · Milhares de livros grátis para download. ANDRÉ VILLAR GOMEZ REVOÇÃO TECNOLÓGICA

33

desproporção é inerente ao desenvolvimento das forças produtivas e estava presente

desde o advento da grande indústria. Mas desde o advento dessa nova base tecnológica

verifica-se uma transformação bem mais profunda: uma transformação qualitativa. É a

própria lei do valor que se revela obsoleta e perde a sua funcionalidade. Nesse

momento, a contradição estrutural do capitalismo atinge o cume. “Logo que o trabalho,

sob sua forma imediata, deixou de ser a força principal da riqueza, o tempo de trabalho

deixa de ser sua medida e o valor de troca deixou, portanto, de ser a medida do valor de

uso”.40

Isso não significa que o conhecimento não produz valor. O problema está em

que “ele destrói muito mais ‘valor’ do que ele pode criar”.41 Dito de outro modo: ele

permite economizar muito mais trabalho do que pode arregimentar. No momento em

que a substância comum fundamental das mercadorias passa a ser o conhecimento, as

mercadorias deixam de ser traduzíveis e mensuráveis em termos de unidades abstratas

simples. Nesse momento, a forma do valor perde sua funcionalidade42 e o capitalismo

se torna desmedido43. Quando a criação de riqueza passa a depender muito mais do

conhecimento – e portanto o aspecto qualitativo se torna fundamental –, a mensuração

pelo dispêndio do tempo de trabalho direto no processo de produção imediato se torna

uma forma obsoleta de medir a riqueza criada pela sociedade e de distribuir os seus

frutos. É isto que faz com que o chamado “capitalismo cognitivo” seja idêntico à

própria “crise do capitalismo” em seu sentido mais estrito44: o momento em que suas

contradições estruturais internas tornaram-se dilacerantes e radicalmente explosivas. É a

exacerbação dessa contradição que está na raiz do desregramento do mundo e da

irracionalidade crescente dos dias atuais.

A partir desse ponto, determinar o trabalho dispensado por cada produtor

individual se transforma em algo tão impossível quanto inútil. A troca de unidades de

trabalho perde sua razão de ser e “o roubo de tempo de trabalho alheio, sobre o qual

repousou a riqueza atual, aparece como uma base miserável”.45 Com efeito, a troca só é

40 Id. Ibid. p. 222. 41 GORZ, André. O imaterial: conhecimento, valor e capital. São Paulo: Annablume: São Paulo, 2005. p. 37. 42 BENSAÏD, Daniel. Marx, o intempestivo: grandezas e misérias de uma aventura crítica. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999. pp. 494, 495. 43 PRADO, Eleutério. Desmedida do valor: crítica da pós-grande indústria. São Paulo: Xamã: 2005. 44 GORZ, André. O imaterial: conhecimento, valor e capital. São Paulo: Annablume: São Paulo, 2005. p. 37. 45 MARX, Karl. Fondements de la critique de l’économie politique, vol II. Paris; Éditions Anthropos, 1968. p. 222.

Page 35: Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de …livros01.livrosgratis.com.br/cp142532.pdf · Milhares de livros grátis para download. ANDRÉ VILLAR GOMEZ REVOÇÃO TECNOLÓGICA

34

necessária em circunstâncias em que os produtores encontram-se separados uns dos

outros e só as coisas se encontram socializadas. No entanto, quando a produção depende

antes da “compreensão da natureza”, desenvolvida pela sociedade em seu conjunto, tal

separação dos produtores não encontra mais qualquer base material ou técnica para

continuar prevalecendo. Ela deriva exclusivamente da forma do valor. Quer dizer:

decorre do congelamento da humanidade a uma determinada forma de pensar e de

agir.46

2. 3. A revolução microeletrônica

A tecnologia da microeletrônica é um dos principais produtos da chamada

terceira revolução tecnocientífica principiada em meados do século XX. Um dos feitos

mais importantes da microeletrônica foi a enorme transformação que ela provocou no

mundo do trabalho. Ela viabilizou os meios para o surgimento de um processo industrial

no qual os trabalhadores quase não precisam mais intervir diretamente nele. Eles podem

ficar de fora do processo de produção imediato, limitando-se a controlar as novas

máquinas automáticas.47

O surgimento dos robôs – que nada mais são do que máquinas automáticas

programáveis – constituem uma importante transformação tecnológica.48 As máquinas

plenamente desenvolvidas contavam com três componentes fundamentais: o motor, a

transmissão e máquina-ferramenta. A microeletrônica tornou possível a criação de um

quarto e revolucionário componente: o controle. O microprocessador é a parte principal

46 Nesse instante, a valorização já não mais ocorre no tempo de trabalho posto no processo de produção. No entanto, quando a “valorização” se liberta do tempo de trabalho, ela própria deixa de ser valorização. “Temos assim, observa Ruy Fausto, um „poder‟ que escapa do tempo como medida. O „valor‟ passa a ser qualitativo, e nesse sentido a „riqueza efetiva‟ não é mais valor (trabalho abstrato cristalizado, medido pelo tempo), mas „valor negado‟”. FAUSTO, Ruy. Marx: lógica e política, tomo III. São Paulo: Ed. 34, 2002. p. 130. 47 Mas isso não quer dizer que os humanos não mais participem do processo de produção. É apenas a sua intervenção imediata que é reduzida. Mas ela continua sendo imprescindível de um modo mediato e indireto: na produção dos conhecimentos e da tecnologia e, também, em escala cada vez menor, na supervisão das máquinas. 48 O criador da palavra robô foi o escritor tcheco Karel Capek. Nessa língua, a palavra robota significa trabalhador que exerce um serviço de forma compulsória. Quanto traduzida para o inglês, o termo virou robot. Uma definição supostamente “oficial” do termo robô foi estabelecida pela Associação das Indústrias da Robótica (RIA): um robô industrial é um manipulador reprogramável, multifuncional, projetado para mover materiais, peças, ferramentas ou dispositivos especiais em movimentos variáveis programados para a realização de uma variedade de tarefas. Mas essa definição corresponde apenas a uma classe específica de robôs: os robôs manipuladores. Há outros tipos de robôs, capazes de realizar outros tipos de tarefas: exploração, solda, controle de temperatura etc. que não se enquadram na referida definição. Por isso é mais adequado definir o robô com um conceito mais amplo. Simplesmente como uma máquina automática programável. PAZOS, Fernando. Automação de sistemas & robótica. Rio de Janeiro: Axcel Books, 2002.

Page 36: Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de …livros01.livrosgratis.com.br/cp142532.pdf · Milhares de livros grátis para download. ANDRÉ VILLAR GOMEZ REVOÇÃO TECNOLÓGICA

35

do controle de uma máquina automática programável. Esse novo componente permitiu

que as máquinas não apenas objetivassem as funções cerebrais ligadas às atividades da

mão humana como também as funções abstratas do cérebro humano. Parte significativa

da manipulação de objetos – que até então só eram possíveis aos humanos, por mais

banal que lhes pareçam tais atividades – puderam ser desempenhadas pelos novos

autômatos. Desde então, as linhas de montagens – que haviam incorporado enormes

contingentes de trabalhadores em grande parte do século XX – foram imensamente

enxugadas. A microeletrônica viabilizou o surgimento de novas formas de organização

do trabalho baseadas na lean production (produção enxuta). Mas o impacto dessa nova

tecnologia vai para além desse setor da economia capitalista. Ela também afetou o setor

de serviços, transformou a agricultura e a pecuária, atingiu todo o setor de extração de

minérios. Teve um enorme impacto no mundo das finanças, viabilizou o mundo do

dinheiro digital, modificou a comunicação e o entretenimento. E também criou novas

armas e novos meios de fazer a guerra.

Aristóteles já havia se deixado se levar pelo sonho da automação total:

“Se cada instrumento pudesse desempenhar a sua função a nosso mando, ou como que antecipando-se ao que se lhe vai pedir – tal como se afirma das estátuas de Dédalo ou dos tripés de Hefesto acerca dos quais o poeta diz „movendo-se por si mesmas entram na assembléia dos deuses‟ –, e se, do mesmo modo os teares tecessem sozinhos, e se as palhetas tocassem sozinhas a cítara, então os mestres não teriam necessidade de ajudantes nem os senhores de escravos”.49

O sonho de Aristóteles se tornou quase realidade. As novas tecnologias

viabilizaram o surgimento da unmanned factory (fábrica deserta). A famosa fábrica

automatizada japonesa FANUC talvez seja a que mais se aproxima do símbolo da

“fábrica do futuro”. Trata-se de uma fábrica onde robôs fabricam outros robôs durante

24 horas do dia e onde o trabalhador não intervém diretamente na produção. Sua

atuação se restringe à programação, supervisão e reparo das máquinas

computadorizadas em caso de necessidade. Mas este não é um exemplo singular,

49 ARISTÓTELES. Política. Vega: Lisboa, 1988. p. 59. Citado por DE MASI em Desenvolvimento sem trabalho. São Paulo: Editora Esfera, 1999. p. 14.

Page 37: Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de …livros01.livrosgratis.com.br/cp142532.pdf · Milhares de livros grátis para download. ANDRÉ VILLAR GOMEZ REVOÇÃO TECNOLÓGICA

36

incapaz de ser generalizado pelo sistema. Indica antes uma tendência que deve

prevalecer cada vez mais no curso do desenvolvimento do capitalismo.50

A substituição de trabalhadores por robôs é uma tendência que está inscrita na

própria lógica da racionalidade capitalista. Segundo Paul Kennedy, “As vantagens

econômicas do emprego de robôs industriais são hoje esmagadoras, pois o custo de um

robô diminui acentuadamente, e o tempo necessário do investimento diminui de modo

correspondente”.51 Portanto, não se trata de um fenômeno típico do Primeiro Mundo.

Também no Terceiro Mundo às máquinas passam a substituir os trabalhadores.

“Empresas globais estão começando a construir fábricas sofisticadas e instalações de

última tecnologia nos países do hemisfério sul”.52 Algumas fábricas semelhantes às

fábricas japonesas estão sendo instaladas no Brasil e no México. Eric Hobsbawm

assinala que mais cedo ou mais tarde mesmo o mais barato ser humano tende a se tornar

mais caro do que uma máquina capaz de fazer o seu trabalho. “Quanto mais alta a

tecnologia, mais caro o componente humano de produção comparado com o

mecânico”.53 O “desemprego tecnológico” – “o desemprego resultante da descoberta de

instrumentos que economizam mão-de-obra caminha mais rapidamente do que nossa

capacidade de encontrar novos empregos para a mesma mão-de-obra” –, anunciado por

Keynes nos anos de 1930, tornou-se uma realidade cada vez mais visível nas últimas

décadas do século XX.54 Essa nova “doença” do capitalismo não cessou de se agravar.

Desde o seu surgimento o capitalismo mergulhou em suas Décadas de Crise. Estamos

chafurdando nesse lodaçal. E não há meios de sair dele enquanto perdurar o capitalismo

– com exceção talvez de uma imensa destruição das forças produtivas: uma Terceira

Guerra Mundial?!

50 Ricardo Antunes observa que: “Supor a generalização dessa tendência sob o capitalismo contemporâneo – nele incluído o enorme contingente de trabalhadores do Terceiro Mundo – seria um enorme despropósito e acarretaria como conseqüência inevitável a própria destruição da economia de mercado, pela incapacidade de integralização do processo de acumulação de capital. Não sendo nem consumidores, nem assalariados, os robôs não poderiam participar do mercado. A simples sobrevivência da economia capitalista estaria, desse modo, comprometida”. ANTUNES, Ricardo. Adeus ao trabalho? São Paulo: Cortez; Campinas, SP: Editora da Universidade Estadual de Campinas, 2000.p.59. Mas não é isso mesmo o capitalismo: uma “contradição em processo”? Benedito de Moraes Neto critica esse “desvio de olhar” de Ricardo Antunes. Não tem sentido dizer que o capitalismo não pode prescindir do trabalho vivo “porque isso não lhe faria bem”, como se tratasse de “uma coisa atávica”. MORAES NETO, Benedito. Século XX e trabalho industrial. São Paulo: Xamã, 2003. p.122. 51 KENNEDY, Paul. Preparando para o século XXI. Rio de Janeiro: Campus, 1993. p. 85. 52 RIFKIN, Jeremy. O fim dos empregos: O declínio Inevitável dos níveis dos empregos e a redução da força global de trabalho. São Paulo: Makron Books, 1995. p. 226. 53 HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos: o breve século XX (1914-1991). São Paulo: Companhia das Letras, 1994. p. 404. 54 KEYNES, John Maynard. Perspectivas econômicas para os nossos netos. In: DE MASI, Domenico. Desenvolvimento sem trabalho. São Paulo: Editora Esfera, 1999. p. 95.

Page 38: Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de …livros01.livrosgratis.com.br/cp142532.pdf · Milhares de livros grátis para download. ANDRÉ VILLAR GOMEZ REVOÇÃO TECNOLÓGICA

37

As novas tecnologias transformaram milhões de seres humanos numa força

produtiva obsoleta. Suas capacidades subjetivas ficaram sem valor de uso para o capital.

Rompeu-se assim o liame que ligava as pessoas entre si e entre elas e os meios de

satisfação de suas necessidades. Desfez-se para muitos milhões de trabalhadores o nexo

trabalho–dinheiro–consumo, que está na base da socialização capitalista. Os seres

humanos que nada mais tem para vender senão a sua força de trabalho ficam assim sem

meios de vida e se instaura uma crise social sem precedentes. Enorme parte da força de

trabalho disponível tornou-se inteiramente não-rentável. Vastos contingentes humanos

passaram a padecer na mais grotesca miséria. Explode o desemprego e todas as formas

de superexploração, subemprego e precarização. A dinâmica capitalista liberta as

pessoas do trabalho. Mas essa libertação ocorre de forma negativa: sob a forma de crise.

Tanto o recrudescimento da exploração – inclusive trabalho escravo – como o

desemprego em massa decorrem da concorrência estabelecida entre os seres humanos e

as máquinas.55

Uma das manifestações dessa transformação tecnológica consiste no fato de que

a criação de trabalho se tornou cara demais.

“Se com cem mil Euros investidos em máquinas de última geração é possível fazer com que um único trabalhador, mesmo que se lhe paguem dois mil Euros mensais, produza dez mil pares de sapatos, para quem não pode investir tão pesadamente no capital fixo torna-se não rentável empregar trabalho: mesmo dez trabalhadores pagos a duzentos Euros por mês não conseguiriam produzir, usando instrumentos arcaicos, mais do que mil pares de sapatos. Dito de outro modo, para que o consumo de força de trabalho seja rentável, são necessários investimentos enormes, coisa que se exprime no fato muito visível de que um emprego „custa‟ cada vez mais”.56

A elevação da composição orgânica do capital – a elevação da proporção dos

gastos em meios de produção relativamente ao dispêndio em força de trabalho –

55 “Recordemos que a máquina automática, qualquer que seja nosso pensamento acerca dos sentimentos que possa ou não ter, é o exato equivalente econômico do trabalho escravo. Qualquer mão-de-obra que concorra com o trabalho escravo deve aceitar-lhe as condições econômicas. Está claro que isso suscitará uma situação de desemprego, comparada a qual a atual recessão, e mesmo a depressão de trinta, parecerá uma brincadeira”. WIENER, Norbert. Cibernética e sociedade: o uso humano dos seres humanos. São Paulo: Cultrix, 1954. p. 159. 56 JAPPE, Anselm. As aventuras da mercadoria. Lisboa: Antígona, 2006. p. 142.

Page 39: Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de …livros01.livrosgratis.com.br/cp142532.pdf · Milhares de livros grátis para download. ANDRÉ VILLAR GOMEZ REVOÇÃO TECNOLÓGICA

38

também cria enormes dificuldades para se gerar trabalho por meio dos gastos estatais. O

economista Carlos Lessa assinala que, no patamar tecnológico atual, são necessários

investimentos na ordem de 250 mil dólares para gerar um posto de trabalho de operário.

Se multiplicarmos os cerca de 5 milhões de desempregados das seis principais regiões

metropolitanas brasileiras por esse valor atingiremos a cifra astronômica de cerca de 1,5

trilhão de dólares: um valor equivalente ao PIB atual do Brasil57 - que é de cerca de 1,48

trilhão de dólares58. Portanto, o volume necessário para a criação de uma sociedade de

pleno emprego no Brasil é exorbitante. E isso porque se está considerando um posto de

trabalho operário. Qualquer outro tipo de trabalho mais qualificado exige um volume

muito maior de recursos. E o que vale para o Brasil vale para o restante dos países. Uma

sociedade do pleno emprego já não é mais viável em qualquer parte do planeta.

Depois de décadas sendo “contestada” pelo boom econômico das Décadas de

Ouro do capitalismo, voltou à cena a “lei geral da acumulação capitalista” – em

particular a tese da expulsão progressiva dos trabalhadores da produção e o

empobrecimento das massas.

“Quanto maiores a riqueza social, o capital em funcionamento, o volume e a energia de seu crescimento, portanto também a grandeza absoluta do proletariado e a força produtiva de seu trabalho, tanto maior o exército industrial de reserva. A força de trabalho disponível é desenvolvida pelas mesmas causas que a força expansiva do capital. A grandeza proporcional do exército industrial de reserva cresce, portanto, com as potências da riqueza. Mas quanto maior esse exército de reserva em relação ao exército ativo de trabalhadores, tanto mais maciça a superpopulação consolidada, cuja miséria está em razão inversa do suplício de seu trabalho. Quanto maior, finalmente, a camada lazarenta da classe trabalhadora e o exército industrial de reserva, tanto maior o pauperismo oficial. Essa é a lei absoluta geral, da acumulação capitalista”.59

57 LESSA, Carlos. Entrevista. In Jornal dos Engenheiros, abril de 2006. Mesmo o volume total de recursos mobilizados pelo PAC em 4 anos - cerca de 500 bilhões de reais (contando as estimativas de investimento privado também) - é insuficiente. O cálculo burguês do pleno emprego deve ser problematizado. A validade da equiparação keynesiana entre investimento e emprego naufragou. Mesmo os maiores investimentos não geram emprego ou geram muito pouco em relação ao volume despendido. Na maior parte das vezes geram mais “racionalização” do que propriamente “expansão” dos empregos. 58 Dado fornecido pelo Fundo Monetário Internacional. World Economic Outlook Database, October 2009. 59 MARX, Karl. O Capital, vol 1, tomo 2. São Paulo: Abril Cultural, 1984. p. 209.

Page 40: Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de …livros01.livrosgratis.com.br/cp142532.pdf · Milhares de livros grátis para download. ANDRÉ VILLAR GOMEZ REVOÇÃO TECNOLÓGICA

39

Marx não se enganou acerca desse terrível mal da civilização capitalista. O

capitalismo passou a repelir com mais velocidade do que integrar. Não há surgimento de

novos mercados que impeça essa tendência de se impor. A produção de riqueza tem de

conviver com a ampliação da massa de deserdados da socialização baseada no valor.

Agora o “excesso de civilização” tornou-se permanente.60 A mediação social pelo

trabalho tornou-se algo restrito demais em virtude das novas forças produtivas baseadas

na microeletrônica. Do ponto de vista material, o trabalho foi empurrado para as

margens do sistema, enquanto, no plano da forma, encontra-se no seu centro. Ele é a

única medida de riqueza e o meio de a maioria das pessoas ganharem o dinheiro que

lhes garante o acesso aos meios de vida dos quais carece. Mas os alicerces desse edifício

estão se esboroando. Essa contradição entre as exigências da forma social e a realidade

material produção gera uma situação altamente explosiva.

2. 4. Limite lógico do capital O capitalismo é uma “contradição em processo”, visto que depende da

mobilização crescente do trabalho vivo, mas estimula um desenvolvimento econômico

que tende a substituir trabalhadores por máquinas. Este sistema teria entrado em colapso

há muito tempo se ele não conseguisse promover uma série de sucessivas fugas para

frente em relação a sua contradição de base. Sempre que as inovações tecnológicas

contribuíram para criar mercados suficientemente grandes para incorporar massas

crescentes de trabalhadores nos processos de produção de mercadorias, esse sistema

conheceu um período de expansão econômica. Todavia, quando as inovações

60 O “excesso de civilização” decorre das contradições inerentes do capitalismo. Nessa forma social, o desenvolvimento das forças produtivas tende a se tornar incompatível com os limites estreitos da forma social. Assim, a perpetuação da forma social em questão requer a destruição, de tempos em tempos, de parte de suas forças produtivas – o que inclui os próprios seres humanos. Para Marildo Menegat, “Essa face bárbara do capitalismo não é mais do que um elemento necessário para a sua continuidade e, diferentemente dos períodos anteriores, é a primeira vez que a destruição das forças produtivas faz parte do próprio modo de produção – o que demonstra por si só a irracionalidade dessa estrutura social. A valorização do capital, como forma abstrata da sociabilidade, torna-se cada vez mais, pela necessidade da sua realização, uma forma irracional de associação, logo, do ponto de vista do conjunto da humanidade, e não apenas do capital, bárbara”. No entanto, a mera destruição das forças produtivas não é o único modo por meio do qual o capitalismo lida com o seu “excesso de civilização”. Desde a crise de 1929, tem havido um esforço de evitar a intensidade destrutiva concentrada das crises. Essa destruição foi então distribuída em doses menos visíveis e intermitentes, espalhadas pelo cotidiano, em inúmeras formas de violência. Uma destruição que se apresenta tanto sob a forma da danificação dos seres humanos pela Indústria Cultural – e que não é pouca coisa – e pelas várias outras formas de manifestações, como pelo robustecimento do sistema punitivo, “cuja função é „ordenar‟ o caos resultante da continuidade dessa forma de sociedade em decomposição”. MENEGAT, Marildo. O olho da barbárie. São Paulo: Expressão Popular, 2006. pp. 31-34.

Page 41: Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de …livros01.livrosgratis.com.br/cp142532.pdf · Milhares de livros grátis para download. ANDRÉ VILLAR GOMEZ REVOÇÃO TECNOLÓGICA

40

tecnológicas contribuíram mais para a racionalização e, portanto, a repulsão do trabalho

vivo na produção de mercadoria, o sistema mergulhou em crise.

Diferentemente de todas as inovações tecnológicas anteriores, a microeletrônica

é uma tecnologia da racionalização por excelência. Isso porque ela repulsa trabalhadores

numa velocidade muito maior do que os produtos por ela criados podem absorver. A

microeletrônica contribui diretamente para criar uma série de produtos: chips, celulares,

computadores etc. Mas os postos criados por ela são muito menores do que sua

utilização no mundo do trabalho. Mesmo porque esses novos setores já surgiram com a

aplicação massiva da microeletrônica em seus processos produtivos. E é por isso que

não se pode de modo algum esperar que essa tecnologia proporcione qualquer boom

econômico. Não se pode esperar que a microeletrônica fomente um novo arranque para

a acumulação de capital.61 Nem mesmo a mais impiedosa exploração da força de

trabalho pode livrar o capitalismo desse problema. O aumento da mais-valia relativa e

da mais-valia absoluta não pode reverter essa situação.62 Isso porque a repulsão dos

trabalhadores promovida pela força produtiva baseada na microeletrônica faz a própria

massa de valor entrar em declínio.63

Essa mutação tecnológica consiste no elemento mais importante para explicar a

crise do capitalismo que irrompeu em fins do século XX. O capitalismo mergulha numa

nova etapa de sua história. O momento em que ele atingiu seu limite lógico interno: o

limite de sua própria lógica de funcionamento – embora isso não implique a explosão

ou implosão imediata do todo, isto é, não é idêntico ao seu limite histórico. E é por isso

que nem mesmo a mais impiedosa exploração da força de trabalho pode livrar o

capitalismo desse problema. Nem o aumento da mais-valia relativa nem o da mais-valia

absoluta são suficientes. Agora é a massa de valor produzida que diminui. Portanto, não

existe a equação inovação tecnológica=boom econômico. Se as inovações tecnológicas

passadas levaram o capitalismo a se expandir, isso se deve pelo modo muito específico

61 LOHOFF, Ernst. Fughe in avanti: crisi e sviluppo del capitale. http://www.krisis.org/lohoff_fughe-in-avanti.html 62 Mais- valia absoluta é aquela que é produzida pelo prolongamento do dia de trabalho. Mais-valia relativa é aquela que decorre da contração do tempo de trabalho necessário e da correspondente alteração na relação quantitativa entre ambas as partes componentes da jornada de trabalho, ou seja, o tempo de trabalho necessário e o tempo de trabalho excedente. 63 “Aqui chegamos ao limite interior absoluto do modo de produção capitalista. Tal limite não reside na penetração capitalista completa no mercado mundial (isto é, na eliminação das esferas não capitalistas de produção) – como acreditava Rosa Luxemburg – nem na impossibilidade definitiva de valorizar o capital total acumulado, mesmo com um volume crescente de mais-valia, como julgava Henryk Grossmann. Prende-se ao fato de que a própria massa de mais-valia diminui necessariamente em resultado da eliminação do trabalho vivo do processo de produção, no decorrer do estágio final de mecanização-automação”. MANDEL, Ernest. O capitalismo tardio. São Paulo, Abril Cultural, 1982. pp. 145, 146.

Page 42: Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de …livros01.livrosgratis.com.br/cp142532.pdf · Milhares de livros grátis para download. ANDRÉ VILLAR GOMEZ REVOÇÃO TECNOLÓGICA

41

dessa transformação. Não consiste num mecanismo automático do sistema. A produção

fordista permitiu a mobilização de contingentes enormes de trabalhadores. A produção

baseada na microeletrônica não pode fazer o mesmo. Nem mesmo a diminuição dos

custos da tecnologia pode favorecer ao arrefecimento dessa dinâmica de crise – uma vez

que serviria para diminuir o valor dos elementos do capital constante e, assim, diminuir

a queda na taxa de lucros. Pelo contrário. Ela tende a intensificá-la ainda mais, visto que

seu barateamento favorece a sua onipresença. A teoria de Marx de que a utilização da

tecnologia baseada no conhecimento científico levará a própria destruição da sociedade

baseada na exploração do trabalho adquire agora um substrato empírico.

A nova base tecnológica amplia o tempo livre da sociedade. Mas o capitalismo

não é capaz de reconhecer a necessidade de instauração de uma nova medida da riqueza.

Essa nova realidade não é levada em conta. É o contrário que ocorre: busca-se medir os

novos potenciais com base no antigo padrão de ação e de pensamento. Aqui, mais do

que em qualquer outra situação, os vivos são assombrados pelo que está morto. É todo

um mundo de tormentos que emerge da tremenda desproporção que emerge. O

capitalismo perde assim toda a sua razão de ser e fica completamente sem lastro –

exceto a letargia do condicionamento e o fato de as pessoas terem se tornado incapazes

de inventar um outro modo de vida social.

Page 43: Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de …livros01.livrosgratis.com.br/cp142532.pdf · Milhares de livros grátis para download. ANDRÉ VILLAR GOMEZ REVOÇÃO TECNOLÓGICA

42

3. FUGAS PARA FRENTE 3. 1. Capital fictício

O capital atingiu o seu limite lógico interno no momento em que se tornou

estruturalmente incapaz de transformar quantidades crescentes de trabalho vivo em

trabalho morto nos processos de produção de mercadorias. Mas esse não é o seu limite

histórico. Isso porque o capital pode “sobreviver a si mesmo”. Ele pode subsistir para

além de seus próprios limites estruturais internos. Até certo ponto, ele é capaz de

“decolar” de seus próprios fundamentos. A ficcionalização da economia – sobretudo por

meio do crédito – tem consistido num dos principais expedientes para alongar a

sobrevida do capital.

As barreiras erguidas pelo capital ao seu próprio desenvolvimento são superadas

pela sua oferta ilimitada de crédito. Num contexto de crise, o crédito é o expediente que

permite irrigar as suas engrenagens capitalistas, forçando a sua ativação e empurrando-

as até os seus limites extremos. O crédito amplia a capacidade de consumo das pessoas

por meio do endividamento, cria condições de investimento, quando há capacidade

ociosa nas empresas, fornece o dinheiro ao Estado para despender em atividades

improdutivas e destrutivas, em assistência social etc. Portanto, restitui temporariamente

as condições capazes de colocar a máquina econômica em funcionamento.

O crédito está embrionariamente “contido” na estrutura elementar da

mercadoria. A mediação monetária separa a venda da compra porque permite adiar o

pagamento.64 Trabalho e dinheiro são diferentes estágios do mesmo processo de

valorização. Mas podem não coincidir. O dinheiro pode se multiplicar mais rápido que o

trabalho morto. Este fator cria, assim, a ilusão de que o dinheiro tem o poder místico de

64 “Com o desenvolvimento do comércio e do modo de produção capitalista, que somente produz com vista à circulação, essa base naturalmente desenvolvida do crédito é ampliada, generalizada e aperfeiçoada. O dinheiro funciona aqui, em geral, apenas como meio de pagamento, isto é, a mercadoria é vendida não contra dinheiro, mas contra uma promessa escrita de pagamento em determinado prazo. Para maior brevidade, podemos reunir todas essas promessas de pagamento na categoria geral de letras de câmbio. Até o dia do vencimento e pagamento, essas letras de câmbio circulam por sua vez como meio de pagamento; e elas constituem o dinheiro comercial propriamente dito. À medida que, por fim, elas se anulam mutuamente por compensação entre crédito e débito, funcionam absolutamente como dinheiro. Assim como esses adiantamentos recíprocos dos produtores e comerciantes entre si constituem a base propriamente dita do crédito, seu instrumento de circulação, a letra de câmbio, forma a base do dinheiro de crédito propriamente dito, das notas de banco etc. Estes baseiam-se não na circulação monetária, seja de dinheiro metálico, seja de papel-moeda do Estado, mas na circulação de letras de câmbio”. MARX, Karl. O capital, vol. III, tomo 1. São Paulo: Abril Cultural, 1983. p. 301.

Page 44: Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de …livros01.livrosgratis.com.br/cp142532.pdf · Milhares de livros grátis para download. ANDRÉ VILLAR GOMEZ REVOÇÃO TECNOLÓGICA

43

crescer por si só, sem a mediação de um processo produtivo no qual fosse consumido

trabalho. O juro monetário, em que na aparência se passa diretamente do dinheiro a uma

quantidade superior de dinheiro (D-D‟, sem a mediação de M, da mercadoria), aparece à

consciência comum como a verdadeira forma de lucro. É o momento em que “a relação-

capital atinge sua forma mais alienada e mais fetichista”.65 No entanto, dinheiro “bom”

é aquele que resulta de um processo bem sucedido de valorização do valor operada pelo

trabalho. O dinheiro que se baseia exclusivamente na confiança – cuja forma principal é

o crédito – tende a se desvalorizar.

Durante muito tempo o dinheiro guardava lastro com a substância trabalho. No

entanto, a abolição do padrão ouro em 1971 – que ocorreu como conseqüência do fato

de que o volume de créditos em circulação ultrapassarem imensamente a quantidade de

ouro existente – desarticulou o último dispositivo de segurança do sistema. A partir

desse momento tornou-se possível uma multiplicação sem precedentes de dinheiro sem

lastro em trabalho morto.

Marx apresenta o conceito de capital fictício no terceiro livro de O Capital para

designar o capital que se baseia exclusivamente na especulação e na expectativa de

ganhos futuros.66 Entretanto, no tempo em que Marx desenvolveu esse conceito, o

capital fictício era apenas um epifenômeno que acompanhava as crises econômicas

reais. Precisou passar algumas décadas para que o capital fictício ganhasse impulso e se

tornasse num dos principais motores da economia. Atualmente, o capital especulativo,

fictício e global atingiu cifras astronômicas, de muitos trilhões de dólares, superando o

PIB das maiores economias do planeta. E uma vez atingido tal patamar, o processo de

transformação de dinheiro em mais dinheiro só pode alimentar-se de si mesmo. Não há,

portanto, qualquer possibilidade de o excedente extraído do trabalho humano oferecer o

montante de riqueza necessária para que esse gigante possa se reproduzir. Desde então,

observa Lauro Campos, “o trabalho humano se tornou desprezível, a atividade humana

real não é capaz de se ligar ao mundo imaginário, fantástico, irreal, para sustentá-lo. [...]

só a entrada de mais dinheiro fictício é capaz de alimentar e reproduzir a ficção”.67 De

que modo essa riqueza pode ser gerada? Pela criação de dinheiro pelo Estado, através da

impressão de papel moeda, ou pelos outros atores econômicos, sob a forma de ações,

obrigações, empréstimos etc.

65 MARX, Karl. O capital: crítica da economia política, vol. III, tomo 1. São Paulo: Abril Cultural, 1983. p. 293. 66 Cf. MARX, Karl. O capital, vol. III, tomo 1. São Paulo: Abril Cultural, 1983. 67 CAMPOS, Lauro. Crise Completa: a economia política do não. São Paulo: Boitempo, 2001. p. 319.

Page 45: Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de …livros01.livrosgratis.com.br/cp142532.pdf · Milhares de livros grátis para download. ANDRÉ VILLAR GOMEZ REVOÇÃO TECNOLÓGICA

44

Alguns indicadores mostram de forma muito veemente a enorme hipertrofia do

capital fictício nas últimas décadas do século XX. Um dos mais expressivos é o índice

Dow Jones. Desde sua introdução, em 1897, o índice cresceu sincronicamente com a

economia estadunidense, apesar de oscilações passageiras. Foi preciso 66 anos até que

ele atingisse os 1000 pontos. Apenas em 1982 essa barreira foi estavelmente superada.

Nos 13 anos posteriores o índice quadruplicou. Em 1996 atingiu os 6000 pontos e, em

1999, alcançou a marca dos 11000 pontos. Em menos de 20 anos o índice cresceu

1100%, enquanto, no mesmo período de tempo, o PIB dos EUA não cresceu 50%.68

Portanto, se até o início da década de 1970 a especulação financeira seguia mais ou

menos o ritmo e as dimensões da acumulação real, daí em diante os movimentos do

dinheiro se descolaram dos processos de produção de mercadorias e jamais poderão

voltar a acompanhar os seus passos.

O mesmo ocorre com os Estados. Até a Primeira Guerra Mundial os orçamentos

estatais permaneciam mais ou menos equilibrados. Entretanto, desde então, os Estados

passaram a se endividar cada vez mais para poderem assegurar as condições infra-

estruturais necessárias às economias nacionais.69 Mas foi a partir das últimas décadas do

século XX que o endividamento passou a crescer de forma muito veloz. O crescimento

da dívida pública dos Estados Unidos fornece o melhor exemplo dessa dinâmica. Ao

contrário do que ocorria na década de 1930, quando os gastos do governo dos Estados

Unidos baseavam-se num nível muito baixo de endividamento, a partir de 1940, eles

passaram a demandar um crescente endividamento do Estado. Em 1940, a dívida desse

país estava em cerca de 50 bilhões de dólares. Trinta e cinco anos depois ela tinha

decuplicado e atingido a cifra de meio trilhão de dólares. Na virada do século aumentou

68 LOHOFF, Ernest. Fughe in avanti: crisi e sviluppo del capitale. Disponível em http://www.krisis.org/lohoff_fughe-in-avanti.html 69 “Do ponto de vista da economia de mercado, capitalista, real, a dívida pública na verdade é um paradoxo. Pois a única fonte de recursos real que o Estado possui, do ponto de vista sistêmico, são os impostos. Ele precisa, assim, tributar os lucros reais de mercado ou rendimentos do trabalho. Mas as obrigações estatais como infra-estrutura, setores sociais, ou mesmo armamentos, faz tempo que alcançaram uma dimensão que não pode mais ser coberta só com os impostos. [...] Esse processo iniciou-se com o fim da 1ª Guerra, teve continuidade com o keynesianismo e transbordou finalmente na década de 80. Existem, de fato, contra-campanhas monetárias, mas é fácil constatar em países como a Grã-Bretanha ou os EUA, que tentam reduzir a dívida pública, que isso não funciona. Não precisariam apenas paralisar apenas a maior parte da indústria de armamento, os serviços do estado social e a infra-estrutura, mas muito mais, pois de 40 a 50% da população em todos os Estados modernos já dependem direta ou indiretamente da dívida pública”. KURZ, Robert. Com todo vapor ao colapso. In: Com todo valor ao colapso. Juiz de Fora, MG: Editora UFJF-PAZULIN, 2004. pp. 36, 37.

Page 46: Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de …livros01.livrosgratis.com.br/cp142532.pdf · Milhares de livros grátis para download. ANDRÉ VILLAR GOMEZ REVOÇÃO TECNOLÓGICA

45

umas dez vezes, alcançando a marca de cinco trilhões de dólares. E em pouco menos de

uma década é superior a dez trilhões de dólares.70

A dívida pública das principais economias capitalistas é de mais de 25 trilhões

de dólares – 14 vezes mais do que a soma da dívida externa pública dos 165 países ditos

em desenvolvimento. Trata-se de uma espécie de bomba relógio preparada para explodir

mais cedo ou mais tarde. Esse mecanismo explosivo fica bastante visível quando

estabelece a comparação entre o crescimento da dívida pública e o tamanho do produto

interno bruto (PIB) do país. Projeções recente feitas pelo Fundo Monetário

Internacional (FMI) em Perspectivas da Economia Mundial (de abril de 2009) não

deixam dúvida acerca do problema da dívida no centro do capitalismo mundial. Prevê-

se que, entre 2007 e 2010, a dívida pública bruta, como percentagem do PIB, salte de

63% para 97% nos EUA; de 64% para 87%, na Alemanha; de 64% para 80%, na

França; de 44% para 73%, no Reino Unido; de 188% para 277%, no Japão. Projeções

para um período mais longo apontam para um ciclo de endividamento persistente: a

dívida pública em 2014 atingiria 107% nos EUA; 91% na Alemanha; 90% na França;

88% no Reino Unido e 234% no Japão.71 Enquanto o crescimento da dívida era

acompanhado por um forte crescimento econômico, o problema da dívida não se

revelava tão grande. No entanto, a coisa mudou de figura logo que a dívida pública

passou a crescer muito mais rapidamente que a economia.

Todo esse dinheiro sem lastro deveria redundar numa tremenda hiperinflação.

No entanto, tal coisa não ocorre porque esse dinheiro permanece “resguardado” nas

estruturas financeiras. Entretanto, logo que se passe a exigir o pagamento real das

dívidas, a “bolha” arrebentará e provocará falências em cadeia. O estouro da bolha

provocará um impacto muito mais devastador do que a crise de 1929. Ela revelará o fato

de que a acumulação de capital havia praticamente cessado e a economia real tinha se

70 Em 1940, a dívida pública dos Estados Unidos – na casa dos 50 bilhões de dólares – correspondia a 53% de seu PIB. Em 1945 – por conta dos gastos militares na Segunda Guerra Mundial – a dívida pública atingiu a cifra de cerca de 260 bilhões de dólares, passando a quase 120% do PIB. Durante várias décadas o crescente aumento da dívida foi acompanhado por uma redução da proporção entre o montante da dívida pública e o PIB: 96,9 % em 1950, 58% em 1960, 39,5% em 1970, 35,4% em 1980. Statitical Abstract of The United States, 1981. p. 245. In: CAMPOS, Lauro. Crise Completa: a economia política do não. São Paulo: Boitempo, 2001. p. 285. No entanto, nas últimas décadas, devido ao vertiginoso aumento da dívida pública, esse movimento se inverteu, transformando-o num grave problema para economia mundial. 71 WERNECK, Rogério L. Furquim. Testando os limites da dívida pública. O Estado de São Paulo, 01/05/2009. Disponível em: http://www.eagora.org.br/arquivo/testando-os-limites-da-divida-publica/

Page 47: Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de …livros01.livrosgratis.com.br/cp142532.pdf · Milhares de livros grátis para download. ANDRÉ VILLAR GOMEZ REVOÇÃO TECNOLÓGICA

46

tornado um mero apêndice do capital fictício hiperinflacionado.72 Trará à luz do dia o

fato de que há tempos Estados, empresas e particulares estão vivendo a crédito.73

Mostrará, enfim, que era o capital fictício que estava fornecendo o oxigênio para a

“atmosfera rarefeita”74 dos exauridos processos de valorização de capital. E é

exatamente por esse motivo que não se podem considerar os movimentos loucos do

dinheiro como a causa das perturbações econômicas contemporâneas. A economia não

poderia funcionar melhor se tais excessos fossem abolidos. É o contrário que ocorreria

se essa muleta lhe fosse arrancada: deixaria de funcionar imediatamente. Portanto, não

há qualquer sentido promover uma falsa e superficial contraposição entre um capital

produtivo bom e um capital fictício mau. Ambos constituem momentos intimamente

articulados de um mesmo processo. Longe de representar a origem de todo mal, é o

capital fictício que está sustentando os farrapos da falsa normalidade.

3. 2. Economia de guerra permanente

O capitalismo está intimamente ligado às guerras. Sua origem encontra-se numa

retumbante força destrutiva: a revolução militar das armas de fogo.75 Ele ascendeu e se

expandiu pelo globo pela força das armas. Toda essa destrutividade recrudesceu com o

amadurecimento desse sistema. Não foi por acaso que o século XX foi o século mais

violento da história da humanidade. O mais importante, porém, é que o próprio lugar da

guerra foi alterado. Durante muito tempo, produziu-se armas e mobilizou-se forças

72 “A derrocada da estrutura financeira efetivar-se-á apenas após um certo período de incubação. Mas terá conseqüências catastróficas pois ver-se-á então que a acumulação real já terminara há muito. [...] os movimentos loucos do dinheiro não são a causa, mas sim a conseqüência das perturbações na economia real. [...] Na realidade, a economia deixará simplesmente de funcionar logo que lhe tenham sido retiradas as muletas da especulação. Com efeito, depois do arrebentamento da bolha financeira, ver-se-á que era precisamente ela que durante um certo período escondia o fato de que a acumulação de valor tinha já atingido o seu limite histórico”. JAPPE, Anselm. As aventuras da mercadoria. Lisboa: Antígona, 2006. pp. 151, 152. “Não podemos mais imaginar (e ninguém sabe ou seria capaz de calcular isso em valores exatos) qual é a dimensão que este capital especulativo fictício assumiu desde os anos 80, que hoje é uma coisa gigantesca. Comparando-se a situação atual com a crise de 29, a crise financeira daquela época e a desvalorização atual do capital especulativo parecem um pequeno acidente de trânsito. Para fazer uma comparação mais visual: se essa bolha especulativa de hoje em dia explodir, isso seria, em relação à crise mundial de 29, como comparar a queda de alguém do qüinquagésimo andar com alguém caindo no andar térreo”.Com todo vapor ao colapso. In: Com todo valor ao colapso. Juiz de Fora, MG: Editora UFJF-PAZULIN, 2004. p. 34. 73 Basta lembrar que a dívida mundial - somadas as dívidas dos Estados, das empresas e das famílias – ultrapassa atualmente a casa dos 60 trilhões de dólares. Só nos EUA, as dívidas passam os 36 trilhões de dólares. PESCHANSKI, João Alexandre. Dívida, doença crônica das nações. Agência Latinoamericana de Informação. Disponível em: http://alainet.org/active/10359&lang=es 74 Cf. MENEGAT, Marildo. O olho da barbárie. São Paulo: Expressão Popular, 2006. p. 12. 75 Cf. KURZ, Robert. A origem destrutiva do capitalismo. In: Os últimos combates. Petrópolis, RJ: Vozes, 1997.

Page 48: Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de …livros01.livrosgratis.com.br/cp142532.pdf · Milhares de livros grátis para download. ANDRÉ VILLAR GOMEZ REVOÇÃO TECNOLÓGICA

47

militares porque havia guerras. Com o agravamento das contradições estruturais do

capitalismo, passou-se, cada vez mais, a se gerar guerras – frias ou quentes – com meios

de garantir a produção de armas e a mobilização militar. Este consiste num método

singularmente brutal e destrutivo de encaixar os potenciais produtivos acumulados sob a

camisa de força da valorização do valor.

***

Há tempos que o capitalismo se ressente com seu “excesso de civilização”.

Desde as primeiras décadas do século XX que as forças produtivas desse modo de

produção se chocavam com os estreitos limites de suas relações sociais. As duas

Guerras Mundiais – ou a Guerra Mundial de 31 anos – serviram para expurgar uma

imensa quantidade de riqueza material: de mercadorias, de forças produtivas e de seres

humanos. Foram manifestações singularmente brutais dos “métodos bárbaros”

empregados pelo capitalismo com o fito de encaixar o conteúdo concreto na forma

social.76 No entanto, em virtude do enorme desenvolvimento das forças produtivas – em

grande medida impulsionados pela própria economia de guerra – exigiram que esse

procedimento destrutivo fosse internalizado e se tornasse um mecanismo regular e

permanente do modo de produção capitalista. A conversão crescente dos potenciais

produtivos em potenciais destrutivos é uma das mais sobejas expressões das

contradições estruturais do capitalismo.

O complexo militar-industrial consiste numa das principais válvulas de escape

do capitalismo na segunda metade do século XX. Foi ele que permitiu sorver uma

enorme massa de capacidades produtivas e de meios de consumo que, de outro modo,

ficariam sem uso, inviabilizando o funcionamento da máquina de acumulação

capitalista. O vultoso dispêndio de dinheiro no complexo militar-industrial não apenas

livrou o capitalismo da crise econômica principiada na década de 1930 como tornou

possível o boom econômico e o “pleno emprego” dos chamados “trinta anos gloriosos”.

Sem as guerras e a preparação para as guerras não haveria os “áureos” dias do

capitalismo no século XX.77

76 Cf. MENEGAT, Marildo. Depois do fim do mundo: a crise da modernidade e a barbárie. Rio de Janeiro: Relume Dumará: FAPERJ, 2003. p. 213. 77 “Os 30 anos subseqüentes à Segunda Guerra Mundial, com o regresso da expansão capitalista ficaram conhecidos como a Idade de Ouro do capitalismo. Impulsionada primeiramente pela guerra da Coréia em 1950 e depois pelo estabelecimento da Guerra Fria, a retomada da economia de guerra foi um dos fatores

Page 49: Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de …livros01.livrosgratis.com.br/cp142532.pdf · Milhares de livros grátis para download. ANDRÉ VILLAR GOMEZ REVOÇÃO TECNOLÓGICA

48

István Mészáros lembra que todas as tentativas anteriores de ultrapassar a crise

pelas estratégias combinadas da “administração da demanda” e de intervenções do tipo

“New Deal” falharam miseravelmente como medidas para solucionar os problemas do

desemprego em massa e da depressão econômica. É verdade que os primeiros passos

para encontrar a solução do problema da superprodução por meio dos dispêndios

militares já haviam sido ensaiados antes da Primeira Guerra Mundial. No entanto, foi

somente após a Segunda Guerra Mundial que esse expediente passou a ser adotado de

forma generalizada. O exemplo do milagre econômico pós-1933 de Hitler – que

cumpriu as promessas de solução do problema do desemprego por meio da economia de

guerra – foi seguido e adaptado às instituições liberal-democráticas do capitalismo do

ocidente.78 Os pequenos paraísos artificiais em alguns rincões do mundo – e mesmo

assim para uma minoria de pessoas – foram conquistados por meio de um absurdo

desperdício de riquezas materiais e de vidas humanas. Mészáros observa que as várias

estratégias keynesianas foram apenas complementares à expansão do complexo militar-

industrial. Portanto, trata-se de um fato que deve ser levado em conta por todos aqueles

que, saudosistas da “Era de Ouro” do capitalismo, divisam, em linhas neokeynesianas,

estratégias “econômicas alternativas” em contraposição ao neoliberalismo.79

John Maynard Keynes foi bastante explícito acerca das medidas a serem

adotadas para que o capitalismo pudesse superar seus problemas econômicos. Este

“lúcido” economista sabia que o capitalismo precisava realizar um sistemático

responsáveis pela expansão da economia capitalista no pós-guerra”. COGGIOLA, Osvaldo. O capital contra a história: gênese e estrutura da crise contemporânea. São Paulo: Xamã: Edições Pulsar, 2002. p. 381. 78 “A escolha, especialmente para os homens de negócios, foi clara. Haviam sido socorridos temporariamente pelas odiadas reformas de Roosevelt; no entanto, essas reformas foram pouco mais do que respiração artificial. O paciente fora reanimado, mas não curado. O fato ficou nitidamente demonstrado pelas cifras de desemprego. Em 1939, seis anos e meio depois de iniciado o New Deal, apesar de que os gastos de defesa já estavam começando a estimular a economia, os Estados Unidos ainda tinham 9,5 milhões de trabalhadores desempregados, um perturbador 17,2% de toda a força laboral. Só quando já estávamos bem dentro da guerra, com milhões de homens nos serviços armados e outros milhões trabalhando nas fábricas de material de guerra, é que o desemprego desceu para um milhão; só então é que se conseguiu atingir o objetivo da produção total e do emprego virtualmente total. O que estes fatos significam é bem claro: desde 1929, a única época em que conseguimos o emprego e a prosperidade totais foi numa economia de guerra. Mesmo hoje, depois de terminada a guerra, essa afirmação ainda é verdadeira. Houve uma curta quebra do padrão, logo em seguida ao fim da guerra, quando os gastos militares desceram enormemente e quanto a imensa procura de artigos civis provocou um período de alta considerável. Mas além dessa exceção – e, mesmo então, foi uma exceção induzida pela guerra – a prosperidade de nossa economia tem dependido principalmente da produção bélica”. COOK, Fred J. O estado militarista. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1965. pp. 63, 64. 79 MÉSZÁROS, Isvtán. Para além do capital: rumo a uma teoria da transição. São Paulo: Boitempo; Campinas – SP: Editora UNICAMP, 2002. pp. 685-687.

Page 50: Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de …livros01.livrosgratis.com.br/cp142532.pdf · Milhares de livros grátis para download. ANDRÉ VILLAR GOMEZ REVOÇÃO TECNOLÓGICA

49

dispêndio “whole wastefull” (totalmente dissipador) em guerras e em preparação para as

guerras se quisesse manter sua “vitalidade”. Suas recomendações são claras:

“Penso ser politicamente incompatível com uma democracia capitalista elevar o dispêndio na escala necessária para fazer a grande experiência que demonstraria minha tese, exceto em condições de guerra. Se os Estados Unidos levarem a sério sua missão na defesa da civilização e se insensibilizarem com a grande dissipação de recursos decorrentes da preparação das armas, aprenderiam a conhecer sua força, e o aprenderiam de uma forma como nunca poderiam aprender em outra ocasião; aprenderão uma lição que logo poderá servir para reconstruir um mundo que compreenderá os principais princípios que governam a produção de riqueza [...] As preparações de guerra, longe de requerer um sacrifício, será um estímulo [...].80

Portanto, apenas “em condições de guerra” é que se poderia levar adiante a

“grande dissipação de recursos” vitalmente necessária para “reconstruir o mundo” do

capital. As guerras e a preparação para as guerras não mais poderiam ser consideradas

como um “sacrifício” para o sistema, mas sim como um poderoso “estímulo” para a

economia. Desse modo, a mais crassa “insensibilidade” em relação aos aspectos

materiais e sensíveis da realidade passaram a se constituir como um dos “principais

princípios que governam a produção de riqueza”. E é em função desses princípios que

os Estados Unidos precisam “reconhecer sua força” e “levar a sério” a sua “missão na

defesa da civilização” capitalista. Enfim: a “preparação de armas e guerras” – em escala

sempre ampliada – se tornou um expediente central para a conservação da socialização

capitalista.

Por que os dispêndios militares permitem ativar a economia? Porque eles

funcionam como um “investimento em consumo”. Ele constitui numa injeção de

dinheiro que permite sorver meios de produção e meios de consumo, contribuindo para

estimular toda a economia. As mercadorias produzidas pela indústria bélica, por sua

vez, ficam ao abrigo do consumo estatal, não entrando em concorrência com os

produtos criados pelas demais empresas.

Uma característica peculiar do poderio militar é que ele não possui qualquer

ponto de saturação. Não há qualquer limite para a acumulação de meios de destruição, 80 KEYNES, John Maynard. Artigo na New Republic, 1940. Apud. CAMPOS, Lauro. A crise completa: a economia política do não. São Paulo: Boitempo, 2001. p. 188.

Page 51: Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de …livros01.livrosgratis.com.br/cp142532.pdf · Milhares de livros grátis para download. ANDRÉ VILLAR GOMEZ REVOÇÃO TECNOLÓGICA

50

cujo exemplo mais sobejo consiste no fato de haver atualmente um arsenal nuclear

capaz de aniquilar a vida na Terra por mais de uma centena de vezes – um absurdo

centuplicado. István Mészáros observa que o complexo militar-industrial rompeu o nó

górdio entre produção e consumo:

“o complexo militar-industrial remove com sucesso as restrições tradicionais do circuito de consumo definido pelas limitações dos apetites dos consumidores. Nesse aspecto, ele corta o nó górdio altamente intrincado do capitalismo „avançado‟ ao reestruturar o conjunto da produção e do consumo de maneira a remover para todos os efeitos e propósitos, a necessidade de consumo real. Em outras palavras, aloca uma parte maciça e sempre crescente dos recursos materiais e humanos da sociedade a uma forma de produção parasitária e que se auto-consome, tão radicalmente divorciada e, na verdade, oposta à real necessidade humana e seu consumo correspondente que pode divisar como sua própria racionalidade e finalidade última até mesmo a total destruição da humanidade”.81

Mas de que forma se tornou possível realizar tais “investimentos em consumo”?

Esses investimentos são viabilizados sobretudo pela dívida pública – além do dinheiro

que se obtém por meio dos impostos. O capital fictício aqui se liga com a guerra. O

crescimento econômico do pós-Segunda Guerra Mundial se baseou na hipertrofia do

complexo militar-industrial. Mas este, por sua vez, só pôde se expandir de tal modo

através da enorme expansão da dívida pública. O crescimento da dívida pública, desde

meados do século XX, “mostra a colossal hipertrofia da dinâmica capitalista fundada na

produção de não-meios de produção e de não-meios de consumo, ou seja, na produção

destrutiva e improdutiva”.82

Mas por que gastar dinheiro em guerras e em preparação para guerras quando

haveria a alternativa de realizar “investimentos sociais”? Por um simples motivo:

porque do ponto de vista do capital é mais racional promover dispêndios militares que

buscar satisfazer as reais necessidades da sociedade. Por quê? Porque os dispêndios

militares ampliam o consumo da sociedade sem promover distribuição da riqueza

social. Os gastos sociais podem ser socialmente louváveis, mas está em contradição

81 MÉSZÁROS, István. Para além do capital: rumo a uma teoria da transição. São Paulo: Boitempo; Campinas – SP: Editora UNICAMP, 2002. p. 688. 82 CAMPOS, Lauro. A crise completa: a economia política do não. São Paulo: Boitempo, 2001. p. 284.

Page 52: Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de …livros01.livrosgratis.com.br/cp142532.pdf · Milhares de livros grátis para download. ANDRÉ VILLAR GOMEZ REVOÇÃO TECNOLÓGICA

51

com os objetivos do capitalismo, pois eles tendem, mais cedo ou mais tarde, a aumentar

o valor da força de trabalho, terminando por comprimir a taxa de lucro – o que, de modo

algum, é desejado pelo sistema.83

É preciso levar em conta também que a melhoria da vida pode contribuir para o

surgimento de modos de pensar e de agir contrários ao status quo. Paul Sweezy e Paul

Baran observam que o militarismo “nutre todas as forças reacionárias e irracionais da

sociedade e inibe ou mata tudo o que seja progressivo e humano. Gera um respeito cego

pelas autoridades, ensinam e fortalecem as atitudes de docilidade e conformista e a

dissidência é considerada antipatriótica e inclusive uma traição”.84 Os gastos militares

não apenas cumprem certas funções econômicas como são também os mais adequados a

uma forma social estruturalmente hierarquizada e essencialmente militarizada.85

No entanto, ainda que os dispêndios militares tenham contribuído para arrefecer

as explosivas contradições estruturais do capitalismo ao longo de parte do século XX,

nem por isso deve-se vê-lo como uma espécie de deus ex machina capaz de garantir a

perenidade desse sistema.86 Por um lado, tais dispêndios servem para abafar as

contradições estruturais do capitalismo. Mas, por outro, eles contribuem para

potencializar ainda mais as contradições dessa sociedade. E isso fica bem claro em

relação ao próprio desenvolvimento tecnológico. Longe de retardar o desenvolvimento

tecnológico, os dispêndios militares têm contribuído decisivamente para a sua

aceleração.87 O mecanismo mobilizado para livrar o capitalismo de suas contradições

estruturais é o mesmo que impulsiona sobremaneira o desenvolvimento de forças

83 MANDEL, Ernest. O capitalismo tardio. São Paulo: Abril Cultural, 1982. p. 216. 84 SWEEZY, Paul; BARAN, Paul. El capital monopolista. Madri: Siglo Veintiuno, 1988. p. 167. “O impulso para a submissão, que é tão real e comum como o impulso para o mando, tem suas raízes no temor. [...] Sempre que há um perigo sério, o impulso da maioria das pessoas é procurar uma Autoridade e submeter-se a ela; em tais momentos, poucos sonhariam com uma revolução. Quando deflagra uma guerra, as pessoas têm sentimentos análogos com respeito ao governo”. RUSSEL, Bertrand. O poder: uma nova análise social. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1957. p. 10. 85 “No seu âmago, o capitalismo não é outra coisa senão a militarização da reprodução social; e não é só pela referência externa às exigências econômicas da produção de armas de fogo, que caracterizou os seus primórdios, mas também pela formação quase militar de todo o modo de produção, na forma dos „exércitos do trabalho‟, na forma da concorrência universal, como uma guerra econômica permanente de todos contra todos etc. Todos os momentos da reprodução e da vida que não se enquadram nestas formas são conotadas como o „feminino‟, dissociados, tornados „não oficiais‟, definidos como inferiores e excluídos. O sujeito da mercadoria é, portanto, „masculino‟ pela sua essência e um sujeito de violência latente ou manifesta, mesmo que parcialmente abarque mulheres. E nesse sentido a sociedade capitalista contém o momento da predisposição para a violência até os poros do cotidiano”. KURZ, Robert. Os fantasmas reais da crise mundial. Capítulo II do livro A Guerra de ordenamento mundial. Disponível em: http://obeco.planetaclix.pt/ 86 MANDEL, Ernest. O capitalismo tardio. São Paulo: Abril Cultural, 1982. p. 216. 87 Conforma assinala Ernest Mandel: “a produção permanente de armas não se tornou apenas uma das soluções mais importantes do problema do capital excedente, mas também, e principalmente, constiutiu-se num poderoso estímulo para a aceleração da inovação tecnológica”. Id. Ibid. p. 212.

Page 53: Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de …livros01.livrosgratis.com.br/cp142532.pdf · Milhares de livros grátis para download. ANDRÉ VILLAR GOMEZ REVOÇÃO TECNOLÓGICA

52

produtivas que se revelam cada vez mais incompatíveis com a lógica de funcionamento

desse sistema. Portanto, como observa Ernest Mandel,

“a longo prazo, a economia armamentista permanente não pode resolver nenhuma das contradições básicas do modo de produção capitalista, e não pode eliminar nenhuma das forças que levam à crise inerente a esse modo de produção. Mesmo o amortecimento temporário dessas contradições e dessas forças que levam à crise só ocorre às expensas de sua transferência de uma esfera a outra”.88

É importante assinalar que a maior parte dos desenvolvimentos tecnológicos de

nossa época teve origem ou encontrou suas primeiras aplicações na produção

armamentista.89 Sem os altos e concentrados dispêndios efetuados pelo Estado, muitas

tecnologias que marcam a nossa época ou não teriam surgido ou teriam vindo à luz de

forma bem mais lenta e hesitante.90 O grande desenvolvimento tecnológico do

capitalismo desde a segunda metade do século XX se deve mais aos gastos militares do

Estado do que aos supostos empresários inovadores schumpeterianos. Claudio Katz

apresenta um quadro bastante ilustrativo dessa relação entre desenvolvimento

tecnológico e produção bélica:

“Nos campos de maior inovação recente – eletrônica, aeronáutica, aeroespacial – o uso militar foi proeminente. Os circuitos integrados e os semicondutores foram desenvolvidos para satisfazer pedidos do Pentágono; nenhum modelo de avião civil precedeu o militar; os satélites de comunicação derivam de

88 Id. Ibid. p. 216. 89 “Isso se aplica ao princípio genérico de processos de produção contínuos e automáticos, completamente livres do contato direto por mãos humanas (o que se torna uma exigência fisiológica com o uso da energia nuclear). Também se aplica à coerção para construir calculadoras automáticas, produzidas por derivação direta dos princípios cibernéticos, capazes de reunir dados com velocidade vertiginosa e tirar conclusões a partir deles para determinação de decisões – por exemplo, a orientação precisa de mísseis automáticos de defesa aérea para abater aviões bombardeiros”. Id. Ibid. p. 135. 90 “Não fosse pela Segunda Guerra Mundial, e o medo de que a Alemanha nazista explorasse as descobertas da física nuclear, a bomba atômica certamente não teria sido feita, nem os enormes gastos necessários para produzir qualquer tipo de energia nuclear teriam sido empreendidos no século XX. Outros avanços tecnológicos conseguidos, no primeiro caso, para fins de guerra mostraram-se consideravelmente de aplicação mais imediata na paz – pensamos na aeronáutica e nos computadores – mas isso não altera o fato de que a guerra ou a preparação para a guerra foi um grande mecanismo para acelerar o progresso técnico, „carregando‟ os custos de desenvolvimento de inovações tecnológicas que quase com certeza não teriam sido empreendidos por ninguém que fizesse cálculos de custo-benefício em tempos de paz, ou teriam sido feitos de forma mais lenta e hesitante”. HOBSBAWM, Eric. A era dos extremos: o breve século XX: 1914-1991. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. p. 54.

Page 54: Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de …livros01.livrosgratis.com.br/cp142532.pdf · Milhares de livros grátis para download. ANDRÉ VILLAR GOMEZ REVOÇÃO TECNOLÓGICA

53

programas bélicos da Nasa. Das inovações sofisticadas – computadores, transístores – às mudanças tecnológicas triviais, embora de grande impacto econômico – como os containers –, todas derivam do uso militar prévio. A microeletrônica se gestou na resolução de problemas de balística, radares, detecção submarina, trajetória de mísseis e armas atômicas. As máquinas-ferramentas de controle numérico apareceram para ajustar a precisão de peças aeronáuticas. O desenvolvimento da energia nuclear proveio da utilização bélica. As principais mudanças na organização e fornecimento do processo de produção também foram extraídas da esfera militar: o taylorismo, os métodos de pesquisa operacional, a gestão de estoques, a codificação do learning by doing, os programas recentes de incremento da competitividade (Mantech) tiveram o apadrinhamento da economia armamentista”.91

A própria microeletrônica, que tem levado o capitalismo a colidir com seus

limites internos, foi criada no interior do complexo militar-industrial. Desde o seu

surgimento, o mecanismo do dispêndio militar tem se tornado um mecanismo cada vez

menos eficiente para impulsionar o crescimento econômico. Tornou-se necessário

despender enormes somas de dinheiro para viabilizar o surgimento de um número muito

restrito de empregos.

Até a década de 1970, os gastos militares permitiam uma enorme mobilização de

trabalhadores na produção de armas e nas forças armadas. Mas a partir de então isso

deixou de ser possível. É verdade que o mesmo ocorre em toda a produção industrial

capitalista. No entanto, é no próprio complexo militar-industrial que encontramos os

exemplos mais expressivos desse fenômeno. Talvez não haja nenhum setor da produção

capitalista onde os empregos se tornaram mais “caros” do que no setor de produção de

meios de destruição. Por exemplo, o programa de produção do caça F-35 Lightining II

(o programa Joint Strike Fighter), executado pela Lockheeds Martins e pela Northrop

Grumman foi capaz de criar apenas 5.400 empregos diretos com um custo unitário de

37 milhões por emprego. Na Boeing, cada emprego criado por esse programa custou

nada menos do que 66,7 milhões. Os 3.000 empregos diretos criados na fábrica

Lockheed Martins na produção do F 22 Raptor tiveram um custo unitário de 20 milhões

de dólares (programa completado em 2005). De acordo com os números da companhia

para 2008, cada um dos 2000 empregos que permanecem ligados à produção do F22 foi

91 KATZ, Claudio. Tecnologia e economia armamentista. In: COGGIOLA, Osvaldo; KATZ, Cláudio. Neoliberalismo ou crise do capital? São Paulo: Xamã, 1996. p. 204.

Page 55: Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de …livros01.livrosgratis.com.br/cp142532.pdf · Milhares de livros grátis para download. ANDRÉ VILLAR GOMEZ REVOÇÃO TECNOLÓGICA

54

patrocinado com um desembolso unitário de 31 milhões dólares.92 Portanto, tornou-se

bastante difícil sustentar dar sobrevida ao “mundo do trabalho” por meio da injeção de

dinheiro no complexo militar-industrial.

É preciso assinalar também que as novas tecnologias modificaram o tipo de

equipamento militar utilizado, imprimindo transformações qualitativas e quantitativas

nas forças militares. Desde então, tropas profissionais altamente qualificadas passaram a

ocupar o lugar dos exércitos de militares fordistas de outrora. Muitas tarefas passaram

mesmo a ser executadas por robôs. Pode-se dizer que houve um enorme aumento na

composição técnica da guerra: aviões não tripulados, bombas termonucleares, mísseis

“inteligentes”, armas de modificação climática93 etc. tornam-se cada vez mais

proeminentes. O poderio bélico passou a depender sobremaneira da tecnologia. As

novas tecnologias viabilizaram o surgimento de algo que poderíamos designar como

lean destruction (destruição enxuta): uma forma de fazer a guerra que requer cada vez

menos seres humanos diretamente empenhados em tarefas imediatas de matar e destruir.

***

O novo padrão de produtividade alcançado pela microeletrônica principia a

bloquear essa válvula de escape do capitalismo. Assim, por mais dinheiro que se lance

no complexo militar-industrial, tal mecanismo já não é mais capaz de fomentar o pleno

emprego e nem impulsionar o crescimento econômico. E, no entanto, desde o começo

das Décadas de Crise, o dispêndio de dinheiro no complexo militar-industrial não cessa

de ser ampliado, enquanto os problemas do desemprego e do subemprego tornam-se

cada vez mais graves. O máximo que os investimentos militares conseguem é impedir –

e não se sabe até quanto – que a forma social soçobre por inteiro. Portanto, a referida

válvula de escape mantém-se operando apenas pela falta de alternativas melhores. A

economia de guerra permanente tende a recrudescer à medida que o capitalismo atinge

os seus próprios limites internos. Mas já não produz os mesmos efeitos. Uma das

conseqüências de tais dispêndios militares é o crescente processo de militarização da 92 CHOSSUDOVSKY, Michel. Os democratas endossam a “Guerra global ao terrorismo”: Obama “corre atrás” de Osama. Disponível em: http://resistir.info/chossudovsky/obama_29ago08.html 93 Segundo Michel Chossudovsky, os novos instrumentos de guerra climática – já operacionais – desenvolvidos como parte do Programa de Pesquisa de Aurora Ativa de Alta Freqüência (HAARP), “podem desestabilizar economias nacionais por meio da manipulação climática sem que o inimigo perceba, a um custo mínimo e sem envolver pessoas e equipamento militar, como ocorre em uma guerra convencional”. CHOSSUDOVSKY, Michel. Guerra e globalização: antes e depois de 11 de setembro de 2001. São Paulo: Expressão popular, 2004. p. 142.

Page 56: Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de …livros01.livrosgratis.com.br/cp142532.pdf · Milhares de livros grátis para download. ANDRÉ VILLAR GOMEZ REVOÇÃO TECNOLÓGICA

55

sociedade em nossa época. Tal militarização não decorre apenas do processo de

dissolução e da miríade de conflitos que irrompe no processo de desintegração da forma

social94. Essa é apenas parte do problema. Em grande medida, ela também se amplia em

virtude da necessidade crescente de o sistema despejar o máximo de recursos na

preparação e na realização de novas guerras.

A Guerra da Coréia, a Guerra Fria e a Guerra do Vietnã favoreceram as imensas

inversões militares ao longo das três décadas posteriores ao fim da Segunda Guerra

Mundial. De que modo seria possível realizar as enormes inversões requeridas para

manter o funcionamento da máquina de guerra após o fim da Guerra Fria e a derrocada

da URSS? Por meio da criação de novas guerras. Não seria esse um dos fatores mais

importantes que estão por trás da “Guerra contra o Terrorismo”, desencadeada após os

acontecimentos de 11 de setembro de 2001?95 A enorme funcionalidade dos ataques

terroristas para a combalida economia mundial – uma vez que forneceram a justificativa

para a vertiginosa ampliação dos gastos militares, como medida para tentar livrar os

Estados Unidos e o capitalismo mundial de uma crise que não parava de se agravar na

época – torna bastante razoável desconfiar do envolvimento de governo, militares e

setores de inteligência por trás do ataques terroristas de 11 de setembro de 2001.

Quando Robert Brenner terminou o livro O boom e a bolha em julho de 2001, ele

observava que, após o estouro da bolha financeira que havia sustentado o crescimento

econômico na década de 1990 e a grave crise que irrompera, seria difícil “imaginar

quais forças exist[iriam] para empurrar para frente a economia”.96 A resposta foi dada

poucos dias depois. Com o estouro da bolha financeira da década de 1990 e o fim da

chamada New Economy, a saída de emergência foi a criação de uma New War infinita.97

Os ataques terroristas seriam o incêndio do Reichstag de nossa época?98

94 Se a crise afeta negativamente a maior parte das pessoas, para os setores ligados à produção de armas as expectativas são as melhores possíveis. E não apenas daqueles ligados diretamente às demandas do Estado. Desde o surgimento da crise econômica e de seu impacto sobre o emprego – cerca de 10,2% em outubro de 2009 – desembocou num aumento da criminalidade que parece ter contribuído para forte despontar das vendas das armas de fogo nos Estados Unidos, gerando otimismo nas perspectivas de médio prazo nesse setor. Cf. La recesión dispara las ventas de armas de fuego en EEUU. Fonte: Europa Press, 22/10/2009. Disponível em: http://www.europapress.es/economia/macroeconomia-00338/noticia-economia-recesion-dispara-ventas-armas-fuego-eeuu-20091122163200.html. 95 Sem desconsiderar, evidentemente, o interesse dos Estados Unidos pelo petróleo do Golfo Pérsico. 96 BRENNER, Robert. O boom e a bolha: os Estados Unidos na economia mundial. Rio de Janeiro: Record, 2003. p. 351. 97 “Esta democracia tão perfeita fabrica seu inconcebível inimigo, o terrorismo. De fato, ela prefere ser julgada a partir de seus inimigos e não a partir de seus resultados. A história do terrorismo foi escrita pelo Estado; logo é educativa. As populações espectadoras não podem saber tudo a respeito do terrorismo mas podem saber o suficiente para ficar convencidos de que, em relação a esse terrorismo, tudo mais deve

Page 57: Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de …livros01.livrosgratis.com.br/cp142532.pdf · Milhares de livros grátis para download. ANDRÉ VILLAR GOMEZ REVOÇÃO TECNOLÓGICA

56

O fato é que, depois de um breve período de redução entre 1987 e 1998, os

gastos militares mundiais começaram a crescer. Mas foi após os ataques terroristas de

11 de setembro de 2001 que ele simplesmente disparou. Atualmente, eles são superiores

aos do auge da Segunda Guerra Mundial. Em 2008, os gastos militares atingiram a cifra

de 1,46 trilhão de dólares (45% superior ao orçamento militar de 1999). Um montante

que corresponde a 2,5% do Produto Interno Bruto mundial (54 trilhões de dólares) e

equivale ao PIB brasileiro (o oitavo maior PIB do planeta).99 O principal responsável

por esse aumento são os Estados Unidos. Entre 2001 e 2008, os dispêndios militares dos

Estados Unidos aumentaram 60%, atingindo, em 2008, a cifra astronômica de 607

bilhões de dólares (41% do orçamento militar mundial). Mas os Estados Unidos não é o

único país a promover imensos dispêndios militares. Dentre os dez maiores orçamentos

militares do mundo encontram-se a China (US$ 84,9 bilhões), a França (US$ 65,7

bilhões), o Reino Unido (US% 65,3 bilhões), a Rússia (US$ 58,6 bilhões), a Alemanha

(US$ 46,8 bilhões), o Japão (US$ 46,3 bilhões), a Itália (US$ 40,6 bilhões), a Arábia

Saudita (US$ 38,2 bilhões) e a Índia (US$ 30 bilhões). O Brasil é o décimo segundo

lugar em gastos militares: com 15,4 bilhões de dólares – 24% superior ao de 1998.100

Para quem pensava que o século XXI seria mais pacífico que o anterior, os

gigantescos dispêndios militares desse início de século fazem entrever um horizonte

muito sombrio para o futuro. Esses gastos militares não podem parar nesse patamar e

tampouco ser reduzidos, pois isso comprometeria ainda mais a combalida “saúde” da

economia mundial. Pelo contrário. Tendem a continuar crescendo. Em outubro de 2009,

lhes parecer aceitável, ou, no mínimo, mais racional e mais democrático”. Considerações sobre a sociedade do espetáculo. In: A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997. p. 185. 98 Há alguns livros que contestam a “verdade” oficial sobre o 11 de setembro de 2001. MARCELO, Csettkey; GIL, Marcelo. Crime de Estado: a verdade sobre 11 de setembro. Rio de Janeiro: Talagarça, 2006. MARTINS, José Antônio. Império do terror: os Estados Unidos, ciclos econômicos e guerras no início do século XXI. São paulo: Editora Instituto José Luís e Rosa Sundermann, 2005. MEYSSAN, Thierry. 11 de setembro de 2001: uma terrível farsa. São Paulo: Usina do Livro, 2003. VIDAL, Gore. Sonhando a guerra: sangue por petróleo e a Junta Cheney-Bush. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2003. CHOSSUDOVSKY, Michel. Guerra e globalização: antes e depois de 11 de setembro de 2001. São Paulo: Expressão popular, 2004. 99 Conforme dados fornecidos pelo Fundo Monetário Internacional. World Economic Outlook Database, October 2009. 100 Dados divulgados pelo Instituto de Pesquisa da Paz Internacional de Estocolmo (Stockholm International Peace Research Institute – SIPRI). Disponível em: http://www.sipri.org/yearbook. Conforme dados da ONU, com apenas 13 bilhões de dólares seria possível alcancer à satisfação das necessidades nutricionais de todas as pessoas do mundo. Cf. Rapport mondial sur le développement humain 1998, Programme des Nations unies pour le développement (PNUD), New York, septembre 1998. Esse montante equivale a uma soma inferior a 1% dos orçamento militar mundial. Enquanto um bilhão de pessoas passam fome – 1/6 da população mundial –, despendem-se somas colossais em guerras e na preparação de guerras. Este contraste mostra com imensa força toda a irracionalidade e destrutividade de nossa civilização capitalista em fim de linha.

Page 58: Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de …livros01.livrosgratis.com.br/cp142532.pdf · Milhares de livros grátis para download. ANDRÉ VILLAR GOMEZ REVOÇÃO TECNOLÓGICA

57

o senado dos Estados Unidos aprovou um novo aumento no orçamento militar para

2010. 626 bilhões de dólares – e mais um montante extra de 400 bilhões de dólares para

custear as guerras no Iraque e o Afeganistão. Portanto: mais de um trilhão de dólares!

Este valor corresponde a aproximadamente de 7% do PIB atual do país e consome quase

a metade do orçamento do governo. Enfim, longe de alterar a escalada militarista do

governo republicano de George W. Bush, ela se acentua ainda mais no governo do

democrata – e agora Prêmio Nobel da Paz101 – Barack Obama.102

De fato, os Estados Unidos podem ser considerados uma “economia de guerra

permanente”.103 Mas isso não se deve propriamente a uma distorção específica da

economia desse país. Ela decorre muito mais do fato de os Estados Unidos cumprirem o

seu papel como “imperialista global ideal”, isto é, um Estado-nação que desempenha

um papel de Estado mundial.104 Tal como havia proposto John Maynard Keynes, os

Estados Unidos apenas assumem o seu “heróico” papel na defesa da “civilização”

capitalista. Somente os Estados Unidos – com sua gigantesca capacidade para se

endividar – é capaz de realizar os dispêndios de dinheiro necessários. A força do dólar

garante o funcionamento da máquina de guerra e o funcionamento de grande parte da

produção industrial. Por outro lado, o poderio militar dos Estados Unidos fornece o

lastro para o dólar, viabilizando assim a própria sobrevivência do mercado mundial.105 É

101 Em nosso mundo realmente orweliano Guerra é Paz! 102 O professor da Universidade do Panamá Marco A. Gandásegui observa: “Esta tendência „suicida‟ não é nova. Muitos analistas assinalam que é precisamente a economia de guerra norteamericana a que alimenta a demanda de uma economia capitalista insaciável. Dizem que sem guerra não há crescimento. Agora o lema mudou: sem guerra não há recuperação econômica. Os ideólogos de Washington insistem que o armamentismo, as guerras e a destruição massiva são muito saudáveis para um paciente enfermo como o capitalismo norteamericano. (Quando não havia crise diziam que o armamentismo era a medicina necessária para não adoecer)”. GANDÁSEGUI, Marco A. A corrida armamentista terrorista dos EUA. Boletim do Instituto de Estudos Latinoamericano – IELA –UFSC – Florianópolis, 30/10/2009. 103 Cf. MELMAN, Seymour. In the grip of a permanent war economy. Disponível em: http://globalmakeover.com/?q=node/222 104KURZ, Robert. Metamorfoses do imperialismo. Capítulo I do livro A Guerra de ordenamento mundial. Disponível em: http://obeco.planetaclix.pt/ 105 “O poder político-militar pode tornar-se potência econômica. Mas, apesar disso, esse poder não está em posição de afastar duradouramente as leis de funcionamento do capitalismo, mesmo que influencie as formas de desenvolvimento da história do mercado mundial. Capital mundial precisa de dinheiro mundial como padrão de medida das relações monetárias. Disso dependem o comércio mundial e o sistema financeiro global. Como a ligação do dólar ao ouro foi cortada em 1973, passou para o lugar do ouro a máquina militar sem concorrência dos EUA, com a sua „economia de guerra permanente‟. A função de poder de garantia global e a ideologia do „porto seguro‟ tornaram-se poder econômico; o dólar-armamento passou para o lugar do dólar-ouro. É neste constructo que se baseiam a globalização, a economia das bolhas financeiras e a conjuntura de deficit dos últimos vinte anos. O preço foi um endividamento externo dos EUA em dimensões astronômicas”. KURZ, Robert. Poder mundial e crise. Ver também, do mesmo autor, Poder mundial e dinheiro mundial. Disponíveis em: http://obeco.planetaclix.pt/.

Page 59: Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de …livros01.livrosgratis.com.br/cp142532.pdf · Milhares de livros grátis para download. ANDRÉ VILLAR GOMEZ REVOÇÃO TECNOLÓGICA

58

o próprio capitalismo que se converte cada vez mais em algo indissociável da

“economia de guerra permanente”.

O militarismo reinante é inteiramente incompatível com qualquer

“desenvolvimento sustentável” ou “responsabilidade ecológica”. Aqui o economicismo

real capitalista apresenta a sua feição mais horrenda.106 As guerras representam uma das

mais graves ameaças para a humanidade em nossa época. Ela é sempre uma tragédia

ecológica e social de largas proporções. O impulso destrutivo do capitalismo assume

aqui a sua expressão mais límpida.

3. 3. Administração de crise e a solução final No momento em que o capitalismo atingiu o seu limite lógico, os piores

pesadelos de nossa época irrompem com força redobrada. É o destino de milhões (ou

talvez bilhões) de seres humanos que se encontra em jogo. Uma enorme parcela da

população mundial se tornou um rebotalho sem préstimo para o capitalismo. Eles se

tornaram produtores obsoletos e, como conseqüência, “consumidores defeituosos”. A

única mercadoria que tinham para comercializar, sua força de trabalho, ficou sem valor

de uso. E assim ficaram sem o meio que tinham para obter o dinheiro que lhes garantiria

o acesso aos meios de vida

Desse modo, tornaram-se estruturalmente excluídos. Mas excluídos de um modo

bem singular: excluídos no interior do sistema. Trata-se, portanto, de uma exclusão

imantada. Expressão, sem dúvida, paradoxal. Mas, nem por isso, equivocada. Quer

dizer: perderam funcionalidade no interior do sistema. No entanto, este, de forma

totalitária, os impede de ir além ou para fora dele. A falta de encaixe entre os seres

humanos redundantes e a estreita forma de socialização deixa entrever um futuro muito

sombrio para o futuro.

“Uma quantidade importante de seres humanos já não é mais necessária ao pequeno número que molda a economia e que detém o poder. Segundo a lógica reinante, uma multidão de seres humanos encontra-se assim sem razão para viver nesse mundo, onde, entretanto, eles encontraram a vida. [...] „Como

106 O economicismo em questão está longe de designar um modo defeituoso ou insuficiente de reflexão teórica social e, portanto, não se trata de um problema de cunho teórico e subjetivo, mas, pelo contrário, consiste num problema prático e objetivo, e uma das características mais essenciais do modo de produção capitalista. Ver: KURZ, Robert. Os fantasmas reais da crise mundial. Capítulo II do livro A Guerra de ordenamento mundial. Disponível em: http://obeco.planetaclix.pt/

Page 60: Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de …livros01.livrosgratis.com.br/cp142532.pdf · Milhares de livros grátis para download. ANDRÉ VILLAR GOMEZ REVOÇÃO TECNOLÓGICA

59

livrar-se deles‟? Mas trata-se, nesse caso, de uma história da qual eles próprios, certamente, não têm consciência, assim como não têm do perigo que fazem pesar sobre nós, sem encontrar, aliás, nenhuma resistência. Passividade que representa o fato mais inesperado. É esse desinteresse, essa resignação, essa apatia mundializada que poderiam permitir que o pior se instalasse. O pior, que está aí à nossa porta”.107

Quê fazer com esses seres humano? Parte dela passa a ser assistida por políticas

assistenciais. Estas devem atender apenas algumas das necessidades básicas e garantir

uma miserável subsistência (Bolsa Família, por exemplo). Foi-se a época da expansão

de direitos e de políticas para a maioria. Os benefícios, quando existem, devem ser

pontuais e provisórios. São os mecanismos de gerenciamento da pobreza. O outro, bem

mais sinistro, é o da criminalização da pobreza: o encarceramento e o extermínio dos

pobres. A guerra contra a pobreza transforma-se em guerra contra os pobres.108 O

encarceramento é um dos meios de o capitalismo livrar-se dos seres humanos

redundantes. Ele tira de circulação os seres humanos tornados obsoletos e fornece o

exemplo para os que se encontram do lado de fora. É como se dissesse: há sempre algo

pior para vocês! O encarceramento não está mais ligado à formação da força de

trabalho. Ela tenciona apenas conter e aterrorizar aqueles que se tornaram redundantes.

Não é por acaso que desde a década de 1970 o encarceramento de seres humanos tem

crescido de forma vertiginosa em todo o mundo – sendo os Estados Unidos, esse

representante mor da civilização capitalista, aquele que possui a maior população

carcerária do planeta: mais de dois milhões e duzentos mil prisioneiros.109 Outro

107 FORRESTER, Viviane. O horror econômico. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1997. pp. 27, 136. 108 “A conjuntura histórica recente tem apontado, não apenas no Brasil, mas como uma tendência mundial, a efetivação da guerra como um acontecimento cotidiano. Ela tem invadido a vida de milhões de indivíduos em tempos de paz aparente, destruindo não apenas seus bens materiais mas também invalidando os laços sociais, a partir de uma descontinuidade na esfera pública em que as classes estabeleciam pactos de regulação de distribuição da riqueza produzida. As formas de violência, que vão irrompendo o estado civil, apontam para diferentes elos que não podem ser isolados. Desde a ação da polícia nos bairros populares da cidade, que invariavelmente resultam em mortes de jovens negros desempregados – sempre acusados de envolvimento com essa entidade mítica chamada „tráfico‟ –, até os casos de crime financeiro de grandes empresas, passando pelos desmontes do Estado, todos esses elementos estão presentes na efetivação da guerra que inviabiliza a democracia e sua radicalização”. MENEGAT, Marildo. O olho da barbárie. São Paulo: Expressão Popular, 2006. pp. 110, 111. 109 É preciso assinalar que parte dos presídios dos Estados Unidos são privados, com ações vendidas na bolsa de valores, e são um dos maiores empregadores do país. Ver: WACQUANT, Loïc. As prisões da miséria. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. Os seres humanos supérfluos tornam-se matéria-prima de uma atividade improdutiva, alimentada pelos gastos governamentais. Uma “funcionalização” sombria para aqueles que já não podem mais cumprir o papel de produtor-consumidor na sociedade capitalista.

Page 61: Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de …livros01.livrosgratis.com.br/cp142532.pdf · Milhares de livros grátis para download. ANDRÉ VILLAR GOMEZ REVOÇÃO TECNOLÓGICA

60

expediente é simplesmente o extermínio: a “solução final” para os seres humanos

redundantes. Todavia, o extermínio dos pobres não deve se assemelhar com os

procedimentos burocratizados e centralizados dos nazistas. A produção fordista de

cadáveres de Auschwitz tornou-se obsoleta. Ela revela-se atualmente excessivamente

dispendiosa e ineficiente, além de conferir demasiado poder e responsabilidade ao

Estado, atraindo a ruína e opróbrio para os seus autores etc. Um melhor modo de se

livrar dos descartáveis é fazendo com que a seleção das vítimas seja promovida por elas

próprias: elas devem realizar a seleção por meio de critérios de incompetência, de

inaptidão, de pobreza, de ignorância, de preguiça, de criminalidade etc. O campo de

concentração deve ficar a céu aberto e a máquina de matar precisa se tornar flexível,

invisível, de baixo custo e livre de condenações morais. Portando, um Holocausto de

novo tipo: sob a forma de uma acumulação flexível de cadáveres – pós-moderna e pós-

industrial.110

Mas esse é apenas o emblema negativo da seleção. Está se desenhando, com

uma força crescente, o advento de uma nova forma de eugenia viabilizada pelas novas

tecnologias. Trata-se de criar uma hierarquia entre os seres humanos: de um lado, os

seres humanos “atualizados”, por meio de implantes químicos, biológicos e eletrônicos,

e, de outro, os “naturais”, relegados a uma condição inferior, uma vez que se tornariam

incapazes, inclusive fisicamente, de acompanhar o curso do desenvolvimento

tecnológico e econômico do capitalismo.111 Um fascismo de novo tipo pode emergir no

fim de linha da civilização capitalista.

“Não estamos num regime fascista em absoluto. [...] Não será necessário sublinhar certos fatos: que nos Estados Unidos a

110 Em seu Relatório Lugano, Susan George indica essa passagem de fase do tratamento do capitalismo para a pobreza. Os pobres passam a ser exterminados pela combinação dos flagelos configurados pelos cavaleiros do apocalipse: a Conquista, a Guerra, a Fome e a Peste. Vistos dessa perspectiva, os conflitos regionais, as crises – as epidemias e os desmanches que assolam as economias e sociedades do Terceiro Mundo – adquirem uma enorme inteligibilidade. GEORGE, Susan. Relatório Lugano: sobre a manutenção do capitalismo no século XXI. São Paulo: Boitempo, 2002. 111 “Exigida pela aceleração econômica e tecnológica total em curso, a seleção seria um modo de „processar‟ as categorias sociais e as populações em dois registros. No primeiro, trata-se de neutralizar aquelas que se excluíram ou foram excluídas do movimento total, seja porque recusavam-no e a ele resistiam, seja porque se mostraram incapazes de acompanhá-lo, tornando-se então „descartáveis‟, para usar as palavras do Subcomandante Marcos. No segundo, trata-se de favorecer e estimular aquelas categorias e populações que podem conferir a máxima eficácia à ordem econômica e tecnocientífica, segundo os parâmetros da aceleração total. Assim, Auschwitz seria o emblema negativo da seleção, enquanto a nova eugenia que se constitui como a engenharia genética seria o positivo”. SANTOS, Laymert Garcia dos. Politizar as novas tecnologias: o impacto sócio-técnico da informação digital e genética. São Paulo: Ed. 34, 2003. p. 256.

Page 62: Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de …livros01.livrosgratis.com.br/cp142532.pdf · Milhares de livros grátis para download. ANDRÉ VILLAR GOMEZ REVOÇÃO TECNOLÓGICA

61

situação é diferente da Alemanha de Weimar [...]. A história não se repete exatamente e uma fase superior de desenvolvimento capitalista nos Estados Unidos exigirá uma fase igualmente superior do fascismo. Este país possui recursos econômicos e técnicos para uma organização totalitária incomensuravelmente maior que a Alemanha de Hitler jamais possuiu. O Governo pode ser focado, sob o triplo impacto dos reveses em sua expansão imperialista, das dificuldades econômicas internas e do descontentamento generalizado entre a população, a pôr em movimento uma engrenagem muito mais brutal e abrangente. [...] É evidente que o fascismo não salvará o capitalismo: ele é, intrinsecamente, a organização terrorista das contradições capitalistas. Mas, uma vez o fascismo instalado, será muito capaz de destruir, por um prazo indefinido, qualquer potencial revolucionário. Uma análise marxista não pode procurar consolo „a longo prazo‟. Nesse „longo prazo‟, o sistema desmoronará, de fato, mas a teoria marxista não poderá profetizar que forma a sociedade (se alguma) substituirá. No quadro das contradições, objetivas, as alternativas (fascismo ou socialismo) dependem da inteligência e da vontade, da consciência e da sensibilidade, dos seres humanos. Depende de sua liberdade ainda existente. A noção de um período prolongado de barbarismo, em contraste com a alternativa socialista – barbarismo baseado nas realizações técnicas e científicas da civilização – é central na teoria marxista. Atualmente, a iniciativa e o poder estão com a contra-revolução, que poderá muito bem culminar nessa civilização bárbara”.112

As referidas observações de Marcuse são mais atuais do que nunca. Só que é

preciso fazer uma observação: nos dias atuais esse fascismo de novo tipo não pode ficar

mais restrito apenas aos Estados Unidos. Ele tende a se tornar mundial – como

conseqüência da própria crise mundial do sistema capitalista. Quanto mais profundas se

tornarem suas dilacerantes contradições, esse sistema tenderá a se forjar como uma

“organização terrorista”.113 As novas guerras, a militarização da vida social, as novas

formas de vigilância, o controle dos meios de comunicação por algumas grandes

corporações etc. revelam quanto do caminho já foi percorrido para a instauração desse

novo tipo de fascismo. Os piores pesadelos de um admirável mundo novo estão à

espreita num futuro não muito distante. Ao mesmo tempo em que vai se realizando a

utopia negativa de George Orwel. O mundo se transforma cada vez mais numa espécie

112 MARCUSE, Hebert. Contra-revolução e revolta. RJ: Zahar Editores, 1981. pp. 32- 33, 36- 37. 113 Cf. MENEGAT, Marildo. Sem lenço nem aceno de adeus. Revista Praia Vermelha. Nº. 18. Escola de Serviço Social, UFRJ, Rio de Janeiro, 2008.

Page 63: Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de …livros01.livrosgratis.com.br/cp142532.pdf · Milhares de livros grátis para download. ANDRÉ VILLAR GOMEZ REVOÇÃO TECNOLÓGICA

62

de Big Brother total: turbinado com os novos engenhos tecnológicos. Uma sociedade

militarizada, baseada na mentira, na desinformação e altamente vigiada.

Page 64: Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de …livros01.livrosgratis.com.br/cp142532.pdf · Milhares de livros grátis para download. ANDRÉ VILLAR GOMEZ REVOÇÃO TECNOLÓGICA

63

4. DESTRUIÇÃO E EMANCIPAÇÃO DA NATUREZA 4. 1. Aceleração do consumo do mundo

O capital é movido por um impulso cego para a expansão e acumulação. Ele não

pode parar e se dar por satisfeito em momento algum. Qualquer ponto de chegada deve

ser apenas um ponto de partida para um movimento infinito. Sem crescimento, o

capitalismo se desagrega e perece. Portanto, não é possível capitalismo com

crescimento zero. Isto é incompatível com qualquer proposta de “restrição deliberada do

crescimento”.114 Para que tal coisa ocorresse, o capitalismo teria de ser muito diferente

do que ele é. Conforme explica Marx:

“o capital tem a tendência desenfreada e ilimitada de ultrapassar seus próprios limites. Cada limitação é e deve ser para ele uma barreira, se não deixaria de ser capital, ou seja, dinheiro que se cria a si mesmo. Se tal limite determinado lhe aparecesse não como uma barreira exterior, mas como uma limitação tolerável o inerente a ele mesmo, ele se degradaria, passando do valor de troca ao valor de uso, e da forma geral da riqueza a um modo determinado de substância”.115

Todo limite deve se apresentar ao capital como uma barreira a ser transposta. O

limite do capital encontra-se no momento em que já não mais consegue ultrapassar as

barreiras com que se defronta, isto é, o momento em que a expansão já não é mais

possível. Portanto, do ponto de vista da lógica do capital, o único limite para esse

sistema é o próprio capital. Ele se choca com seu limite no momento em que já não é

mais capaz de realizar a sua reprodução ampliada.116 Portanto, o capital tem um limite.

E este é dado pela sua própria lógica de funcionamento. “A verdadeira barreira da

114 MEADOWS, Donella; RANDERS, Jorgen; MEADOWS, Dennis. Limites do crescimento. São Paulo: Perspectiva, 1973. 115 MARX, Karl. Fondements de la critique de l’économie politique, vol II. Paris; Éditions Anthropos, 1964. p. 284. 116 “A verdadeira barreira da produção capitalista é o próprio capital, isto é: que o capital e sua autovalorização apareçam como ponto de partida e ponto de chegada, como motivo e finalidade da produção”. MARX, Karl. O capital, vol III, tomo 1. São Paulo: Abril Cultural, 1983. p. 180.

Page 65: Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de …livros01.livrosgratis.com.br/cp142532.pdf · Milhares de livros grátis para download. ANDRÉ VILLAR GOMEZ REVOÇÃO TECNOLÓGICA

64

produção capitalista é o próprio capital”.117 É ele que dá a sua própria medida, o motivo

e a finalidade do processo de produção. Mas isso significaria que não haja qualquer

limite externo para o capital? Não! Esse limite existe. Os limites materiais e ecológicos

são limites para o capitalismo – assim como o são para qualquer outra forma de vida

social. Entretanto, trata-se de um limite que o capital não reconhece como tal.

De que modo poderia o capitalismo sustentar seu crescimento infinito num

mundo que é material e ecologicamente finito? A contradição entre o capitalismo – um

“sistema aberto”, voltado para a acumulação e expansão permanente – e a natureza –

um “sistema fechado”, materialmente limitado – é potencialmente explosiva. Este

limite se manifesta, por exemplo, no esgotamento do petróleo. Logo que a extração do

petróleo começar a declinar – após ter atingido o pico – faltará ao capitalismo um

pressuposto material que lhe é absolutamente essencial.118 Poderia o capitalismo

continuar sua sanha expansionista sem essa fonte de energia – e também matéria-prima

de muitos produtos e elemento essencial da agricultura moderna?119 Poderia também

esse sistema sobreviver a um processo de falência ecológica generalizada? O colapso

das possibilidades de vida na Terra em decorrência de guerras, acidentes “tecnológicos”

ou guerra nuclear etc., não inviabilizariam o funcionamento do capitalismo? De fato, é

possível que, durante certo tempo, alguns possam lucrar com alguns fenômenos ligados

ao “aquecimento global”.120 Mas até que ponto? Mesmo depois do fim do mundo?

117 “A verdadeira barreira da produção capitalista é o próprio capital, isto é: que o capital e sua autovalorização apareçam como ponto de partida e ponto de chegada, como motivo e finalidade da produção”. MARX, Karl. O capital, vol III, tomo 1. São Paulo: Abril Cultural, 1983. p. 180. 118 Já atingimos o pico da extração do petróleo. Doravante, ele tende a declinar. Mauro Porto assinala que: “Dentre os 182 países soberanos, 112 são produtores de grandes ou pequenas quantidades de petróleo: os 42 principais produtores fornecem mais que 98% do total, sendo os 2% restantes divididos pelos outros 70 países. No conjunto dos produtores, mais de 50 já ultrapassaram o pico e estão com produção declinante a -2%, -3%, -4% ou mais a cada ano” Haverá muito petróleo sendo extraído até meados de 2045, algo em torno de 27 milhões de barris por dia. “O problema é que uma queda de produção de ordem de apenas de 2% ao ano, inciada em algum momento em torno de 2010, prosseguirá indefinidamente, numa perda cumulativa que se agravará cada ano, produzindo um déficit de 9 milhões de barris por dia em apenas 5 anos e menos 18 milhões de barris por dia em 10 anos, que teriam que se substituídos, no mesmo ritmo, por barris equivalentes de energia alternativa apenas para atender a uma demanda catastroficamente estabilizada ano nível de 89 milhões de barris em 2010. Porto, Mauro. O crepúsculo do petróleo: acabou-se a gasolina, salve-se quem puder! Rio de Janeiro: Brasport, 2006. pp. 32, 41. Portanto, o problema não se iniciará quando o petróleo acabar. Mas quando a extração de petróleo não mais conseguir acompanhar as crescentes necessidades materiais-econômicas do capitalismo. 119 “Dificilmente se encontra algum ramo de nossa civilização – da geração de eletricidade à manutenção de bens, à petroquímica, à metalurgia, ao setor de serviços e à produção de comida e de água potável – que não seja direta ou indiretamente dependente do fornecimento regular de petróleo ou de gás”. Id. Ibid. p. 26. 120 Eis alguns exemplos de como se pode ganhar dinheiro com as ruínas do planeta: “Na maioria dos países industrializados acredita-se poder viver bem com o desconforto crescente do aquecimento global. No entanto, o funil ecológico também favorece a sociedade 20 por 80 que desponta. Por se tornarem raros e caros os bens naturais, poucos poderão comprá-los. Quem puder dispor deles lucrará adicionalmente.

Page 66: Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de …livros01.livrosgratis.com.br/cp142532.pdf · Milhares de livros grátis para download. ANDRÉ VILLAR GOMEZ REVOÇÃO TECNOLÓGICA

65

Portanto, as condições “externas” e “ambientais” constituem limites bastante reais para

o capitalismo e para qualquer outro modo de produção e de vida.121 Que essas questões

materiais permaneçam “invisíveis” – pelo menos até que “subitamente” irrompem com

toda a força e se revelam como um “fator decisivo” nas épocas de crise (econômica e

ecológica) – apenas manifesta o caráter alienado e fetichista da “forma de pensamento”

prevalecente.122

Há, digamos assim, uma cegueira estrutural na “forma de pensar” capitalista, em

sua própria forma de racionalidade. O limite ecológico e material do capitalismo está

ali, diante de todos. No entanto, ele nada significa para a razão calculadora (a forma de

racionalidade predominante em nossa época). Pode ser que um capitalista observe esse

problema e se sensibilize por ele. Mas logo que passa a operar como uma

“personificação do capital”, essa sensibilidade tem de ser deixada de lado. A

“responsabilidade ecológica” escapa ao próprio escopo da racionalidade capitalista. A

Em Lech-am-Arlberg, estação de esqui e mundanismo, pode haver uma explosão de contentamento se os pesquisadores do clima declararem o „fim do turismo de inverno‟ na Áustria. A 1.450 metros de altitude, o lugarejo poderá ficar rico se nas regiões mais baixas a neve deixar de aparecer. Esquiar nos Alpes poderá tornar-se esporte tão exclusivo como jogar golfe na Grã-Bretanha. Os hoteleiro de Lech estão cheios de dívidas, pois especularam e fizeram investimentos exagerados. No entanto, os 1.380 habitantes locais foram previdentes: demarcaram seus setores e bloquearam a entrada de estranhos. Seus filhos e netos esperam pela bonança. Se em 2060, nem com artifícios dispendiosos, as pistas de Krigerhorn e Mohnenfluh puderem ficar cobertas de neve, todos eles poderão ficar ricos, viver dos rendimentos de seu capital ou mudar de ramo. Esse exemplo, que soa repulsivo, talvez explique algo: as frentes políticas de combate ao efeito estufa formam-se muito lentamente, pois milhares e milhares de pessoas julgam poder lucrar com tal mudança de clima”. MARTIN, Hans-Peter & SHUMANN, Harald. A armadilha da globalização. São Paulo: Globo, 1998. p. 52,53. 121 François Chesnais e Claude Serfati que não consideram as condições “externas” ou “ambientais” um limite para o capital. Para eles: “No que concerne às condições “externas”, “ambientais” de seu funcionamento, o capital, bem como os Estados que embasam sua dominação e as classes sociais que a ele estão ligadas, têm os meios tanto para suportar as conseqüências dessa destruição de classes, comunidades e Estados mais fracos, quanto para transformar a „gestão de recursos que se tornaram raros‟ e a „reparação das degradações‟ em campos de acumulação (em „mercados‟) subordinados ou subsidiários”. CHESNAIS, François & SERFATI, Claude. “Ecologia” e condições físicas da reprodução social: alguns fios condutores marxistas. Crítica Marxista, São Paulo, nº. 16, p. 39-75, março de 2003, p. 62. 122 Georg Lukács faz uma observação muito importante acerca do “apagamento” do mundo concreto sob as formas abstratas e fetichistas de pensamento. Segundo ele, “a crise é o problema que impõe ao pensamento econômico da burguesia uma barreira intransponível. Se então considerarmos – conscientes de nossa parcialidade – essa questão de um ponto de vista puramente metódico, veremos que quando conseguimos racionalizar integralmente a economia, metamorfoseá-la num sistema de „leis‟ formal, abstrato e matematizado ao extremo, constituímos a barreira metodológica para a compreensão da crise. Nos períodos de crise, o ser qualitativo das „coisas‟, que leva sua vida extra-econômica como coisa em si, incompreendida e eliminada, e como valor de uso que julgamos poder tranqüilamente negligenciar durante o funcionamento normal das leis econômicas, torna-se subitamente (para o pensamento racional e reificado) o fator decisivo. Ou melhor: seus efeitos se manifestam sob a forma de uma paralisação no funcionamento dessas leis, sem que o entendimento reificado esteja em condições de encontrar um sentido nesse „caos‟”. LUKÁCS, Georg. História e consciência de classe: estudos sobre a dialética marxista. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 231. O que vale para a crise econômica é igualmente verdadeiro em relação à “crise” ecológica. Faz apenas algumas poucas décadas que o problema ecológico passou a ser tema de debate na sociedade.

Page 67: Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de …livros01.livrosgratis.com.br/cp142532.pdf · Milhares de livros grátis para download. ANDRÉ VILLAR GOMEZ REVOÇÃO TECNOLÓGICA

66

lógica de concorrência fratricida entre as empresas empurra os agentes econômicos à

referida cegueira e insensibilidade. Ninguém poderá deixar tirar o pé do acelerador

enquanto todos se conservam acelerando, e, como ninguém quer ser o primeiro a fazê-

lo, todos continuam a proceder do mesmo modo. Mas a mesma lógica vale para os

trabalhadores. O que lhes interessa é apenas que vender parte do tempo de vida em troca

de salário. Portanto, também lhes é inteiramente indiferente as conseqüências concretas

de suas atividades. Esta é uma determinação inerente à “personificação do trabalho para

capital”. Este ou aquele trabalhador pode levar em conta tais aspectos e se recusar a

trabalhar nessa ou naquela empresa. No entanto, outros tantos não deixarão de fazê-lo.

E, assim, a máquina capitalista continuará seguindo o seu curso. A lógica do sistema

capitalista escreve no alto de sua flâmula a infame insígnia: Aprés moi, le déluge!123

Destruir o mundo é algo racional num tempo de “racionalidade irracional”.

Desde o princípio, o capitalismo tendia a se chocar com os limites materiais e

ecológicos da Terra. No entanto, foi somente com o pleno desenvolvimento desse

sistema que esse conflito revelou toda a sua dramaticidade. O novo padrão tecnológico

não apenas está em contradição com a forma social baseada na exploração do trabalho

humano. O agravamento dessa contradição interna também gerou uma calamidade

ecológica. Por um lado, o capitalismo ameaça falecer por inanição, devido à sua

incapacidade em explorar quantidades crescentes de trabalhadores em seus processos

produtivos. Entretanto, por outro, no instante mesmo que irrompe com toda força essa

contradição de base do capitalismo, esse sistema passa a manifestar uma voracidade

apocalíptica de “recursos naturais” e a gerar uma poluição igualmente devastadora.

Em O capital, Marx assinala essa contradição entre a forma de riqueza abstrata e

o conteúdo concreto da realidade por meio da “lei da queda tendencial da taxa de lucro”.

Quanto mais se desenvolvem as forças produtivas, maior a composição orgânica do

capital. Os gastos em meios de produção crescem em relação aqueles despendidos no

pagamento do capital variável (força de trabalho), como resultado do tecnológico. Desse

modo, ampliam-se as dificuldades estruturais do sistema capitalista. Mas essa

contradição não se expressa apenas sob a forma de um agravamento de suas

contradições internas. Ela se desenvolve também por meio do aprofundamento do

conflito entre as exigências do modo de produção e de vida capitalista e a totalidade do

mundo concreto-sensível. Portanto, a colisão entre a forma abstrata de riqueza do

123 Depois de mim, o dilúvio!

Page 68: Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de …livros01.livrosgratis.com.br/cp142532.pdf · Milhares de livros grátis para download. ANDRÉ VILLAR GOMEZ REVOÇÃO TECNOLÓGICA

67

capitalismo e o mundo concreto se expressa também através da intensificação da

exploração e destruição da natureza. Marx indica, em breves linhas, a contradição

latente entre a forma social abstrata e os limites da materialidade do mundo:

“Isso só quer dizer o mesmo número de trabalhadores, a mesma quantidade de força de trabalho, tornada possível por um capital variável de dado volume de valor, devido aos métodos de produção peculiares que se desenvolvem dentro da produção capitalista, põe em movimento, processa e consome ao mesmo tempo uma massa sempre crescente de meios de trabalho, de maquinaria e capital fixo de toda espécie, matérias-primas e auxiliares”.124

Essa dilapidação ampliada da destruição ecológica pode ser designada como

taxa de aceleração do consumo do mundo. A redução do quantum de valor

“cristalizado” no corpo de cada mercadoria em virtude do desenvolvimento tecnológico

impulsiona o sistema a promover uma exploração cada vez mais intensa e extensa da

natureza. A ampliação da massa de valor impõe uma exigência que tende, em última

análise, à própria destruição da Terra. Se esta tendência destrutiva estava há tempos

passando a dominar – quer dizer: desde o advento do capitalismo, em sentido estrito, o

capitalismo da grande indústria –, com o desenvolvimento e a generalização da

tecnologia da microeletrônica – que corresponde ao momento em que a contradição

entre a forma social baseada no trabalho e a base tecnológica atingiu o cume –, esse

sistema ingressou num estágio em que a destruição da natureza torna-se extremamente

acelerada. Pode-se dizer que no momento em que a forma do valor já mal consegue se

refletir nas coisas, ela assume a feição de um impulso de aniquilação total, de destruição

de todo o mundo concreto-sensível. Portanto, no momento em que o capitalismo se

choca com o seu limite interno, relativo à sua lógica de funcionamento, ele também

colide com o seu limite externo: os limites materiais e ecológicos da Terra.

124 MARX, Karl. O capital: crítica da economia política, vol III, tomo 1. São Paulo: Abril Cultural, 1983. p. 164.

Page 69: Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de …livros01.livrosgratis.com.br/cp142532.pdf · Milhares de livros grátis para download. ANDRÉ VILLAR GOMEZ REVOÇÃO TECNOLÓGICA

68

4. 2. O sonho (louco) do capital A contradição entre a forma social e os limites materiais do globo se manifesta

na forma de destruição maciça da natureza. Mas este é o seu lado francamente

destrutivo. No entanto, há outro não menos importante. Trata-se do impulso desmedido

do capitalismo para recriar a natureza. No instante em que a Terra mesma se revela um

escopo demasiadamente limitado para a produção capitalista, esse sistema se

movimenta no sentido de se emancipar da natureza existente e criar uma outra natureza.

Se a natureza é um limite para o capital, ela então deve ser transformada numa barreira

passível de ser franqueada. Todavia, essa face produtiva e criativa não mais do que um

aspecto do mesmo impulso aniquilador capitalista. Essa “natureza absoluta modificada

– uma segunda natureza pura – é uma loucura manifestando-se como razoável”.125 Ela é

só um passo mais temerário das investidas desse sistema contra a totalidade do mundo

concreto-sensível.

Em suas Visões do futuro, Michio Kaku observa que estamos saindo da Idade da

Descoberta e entrando na Idade do Domínio. Segundo ele, “Durante a maior parte da

história humana, pudemos apenas observar, como espectadores, a bela dança da

natureza. Hoje, porém, estamos no ápice de uma transição memorável, passando de

observadores da natureza a coreógrafos ativos da natureza”.126 A Idade do Domínio

realiza aquilo que já era almejado desde o princípio da modernidade: “tornar o homem

senhor e possuidor da natureza”.127 Mas somente agora os humanos forjaram os meios

tecnológicos de levar esse ideal tão longe.128 Em última análise, trata-se de promover a

125 MENEGAT, Marildo. Depois do fim do mundo: a crise da modernidade e a barbárie. Rio de Janeiro: Relume Dumará: FAPERJ, 2003. p. 35. 126 KAKU, Michio. Visões do Futuro: como a ciência revolucionará o século XXI. Rio de Janeiro: Rocco, 2001. p. 19. 127 DESCARTES. René. Discurso do método. São Paulo: Nova Cultural, 1991. (Os pensadores) p. 63. 128 “Os especialistas que acompanharam a evolução do desenvolvimento tecnocientífico no século XX e o papel central que este passou a ter na dinâmica do capital, a partir da década de 70, sabem que a sociedade ocidental contemporânea encontra-se em plena mutação. O domínio alcançou tamanha extensão e intensidade que hoje a natureza, antes temida, parece vencida, enquanto a própria natureza humana desponta como último território a ser conquistado. Por sua vez, a sociedade passa por um processo acelerado de tecnologização – à reordenação e reprogramação do processo de trabalho em todos os setores, tornada possível pela digitalização crescente dos circuitos de produção, circulação e consumo, veio associar-se a recombinação da vida, tornada possível pela decifração do código genético e os avanços da biotecnologia. Tudo se passa então, como se uma nova era estivesse se abrindo, ou, mais do que isso, como se tudo fosse passível de questionamento; como se até mesmo a evolução natural das espécies, inclusive a humana, tivesse chegado a seu estado terminal e a história tivesse sido „zerada‟, tratando-se, agora, de reconstruir o mundo sobre novas bases”. SANTOS, Laymert Garcia dos. Politizar as novas tecnologias: o impacto sócio-técnico da informação digital e genética. São Paulo: Ed. 34, 2003. pp. 82, 83.

Page 70: Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de …livros01.livrosgratis.com.br/cp142532.pdf · Milhares de livros grátis para download. ANDRÉ VILLAR GOMEZ REVOÇÃO TECNOLÓGICA

69

própria emancipação da natureza. Esse, aliás, é um sonho inscrito na própria forma

abstrata do valor. Conforme observa Moische Postone:

“O sonho sugerido pela forma capital é de uma total carência de limites, uma fantasia de liberdade como completa liberação da matéria, da natureza. Esse „sonho do capital‟ está se convertendo em pesadelo para aqueles da qual a dita forma luta por se emancipar: o planeta e os seus habitantes”.129

No momento em que a natureza se revelou um domínio quantitativa e

qualitativamente limitado para seu movimento de expansão e acumulação permanente,

esse sistema passou a se movimentar no sentido de produzir a sua natureza: uma

natureza produzida pelo e para o capital. Este consiste num passo a mais no processo de

subsunção real do mundo (formal e material). Não basta ao capital mobilizar a natureza

existente que lhe fora herdada. Mas de criar uma nova natureza que seja totalmente

adequada à forma da mercadoria e aos processos de produção capitalista. A revolução

dos processos de produção industriais não deve se restringir aos meios de produção. Ele

deve atingir também a totalidade da natureza – incluindo os próprios seres humanos.

Talvez hoje possamos interpretar a metafísica da forma do valor num sentido

que até há bem pouco tempo esteve bastante oculto: o de ser ele uma espécie de modelo

do mundo concreto, ao qual deveria buscar se aproximar o máximo possível. Há aqui

alguma analogia com a metafísica de Aristóteles. Nela, Deus ou o Primeiro Motor

constitui o fundamento da realidade sensível. Essa substância suprassensível é a causa

do movimento de todas as coisas. Deus é imóvel, mas faz tudo se mover. Como? Por

amor, pela atração, que esse Ser perfeito exerce sobre os amantes. Perfeição essa que

decorre do fato de ele nada mais ser do que Pensamento Puro.130 Todos os seres se

129 POSTONE, Moishe. Tiempo, trabajo y dominación: una reinterpretación de la teoría crítica de Marx. Madri: Marcial Pons, 2006. p. 489. 130 “Tal é, portanto, o primeiro princípio do qual dependem os céus e o mundo da natureza. E seu curso de vida é o mais excelente que podemos fruir por curto período de tempo, pois está necessariamente sempre nesse estado (o que para nós é impossível), uma vez que seu ato é também prazer. [...] Ora, o pensar em si mesmo ocupa-se com aquilo que é em si mesmo o melhor, e o pensar no mais elevado como aquilo que é no mais elevado sentido o melhor. E o pensamento pensa a si mesmo através da participação no objeto do pensamento. [...] Se, então, Deus está sempre naquele bom estado no qual às vezes estamos, isso suscita nosso maravilhamento, e se num melhor ainda, experimentamos um maravilhamento ainda maior. E Deus está num estado melhor. Ademais, a vida também pertence a Deus, já que o ato do pensamento é vida, e Deus é esse ato. E o ato essencial de Deus é a vida maximamente boa e eterna. Afirmamos, portanto, que a vida e uma contínua existência eterna dizem respeito a Deus, por isso é o que Deus é”. ARISTÓTELES, Metafísica. Bauru, SP: EDIPRO, 2006. Livro XII, capítulo 7, pp. 304, 305.

Page 71: Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de …livros01.livrosgratis.com.br/cp142532.pdf · Milhares de livros grátis para download. ANDRÉ VILLAR GOMEZ REVOÇÃO TECNOLÓGICA

70

movem para tornarem-se idênticos a essa Substância. Bertrand Russel comenta esse

aspecto da metafísica de Aristóteles:

“Deus existe eternamente, como pensamento puro, felicidade, auto-realização completa, sem quaisquer propósitos não realizados. O mundo sensível, ao contrário, é imperfeito, mas tem vida, desejo, pensamento de uma espécie imperfeita, e aspiração. Todas as coisas vivas têm consciência, em maior ou menor grau, de Deus, sendo levadas à ação por admiração e amor a Deus. Assim é a causa final de toda atividade. A mudança consiste em dar forma à matéria, mas, quanto ao que se refere às coisas sensíveis, permanece sempre um substrato de matéria. Somente Deus consiste de forma sem matéria. O mundo está evoluindo continuamente no sentido de um grau maior de forma, tornando-se, assim, progressivamente, mais semelhante a Deus. Mas o processo não pode ser completado, porque a matéria não pode ser de todo eliminada. Esta é uma religião de progresso e evolução, pois a perfeição estática de Deus move o mundo somente através do amor que os seres finitos sentem por Ele”.131

O valor é o Deus do mundo das mercadorias. E ele, tal como o Deus de

Aristóteles, é pensamento puro, pois, como assinalou Marx, não possui “nenhum átomo

de matéria natural”.132 Mas essa não é uma característica da forma do valor da

mercadoria, ela é também uma meta a ser atingida pelas coisas concretas do mundo.

Tornar as coisas concretas algo cada vez mais próximo de uma forma social cuja

característica é ser “puro feito humano”,133 implica em transformar todas as coisas

naturais até o ponto em que elas próprias já não mais tenham “nenhum átomo de

matéria natural”. Ou seja: o próprio mundo material deve ser convertido em algo que

seja “puro feito humano”. Assim, o capital – com auxílio de sua tecnociência – tem

buscado transformar todo o domínio material em algo o mais próximo possível de seu

ideal: numa pura “coisa do pensamento”. De fato, a matéria natural representa um

estorvo para essa finalidade metafísica. Mas trata-se também de um limite que o capital

deve buscar transgredir, progredindo-se continuamente em função da plena consecução

desse ideal. 131 RUSSEL, Bertrand. História da filosofia ocidental, livro primeiro. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1969. p. 196. 132 MARX, Karl. O Capital, vol I, tomo 1. São Paulo: Abril Cultural, 1983. p. 54. 133 SOHN-RETHEL, Alfred. Trabalho espiritual e corporal: para a epistemologia da história ocidental. Disponível em: http://antivalor2.vilabol.uol.com.br

Page 72: Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de …livros01.livrosgratis.com.br/cp142532.pdf · Milhares de livros grátis para download. ANDRÉ VILLAR GOMEZ REVOÇÃO TECNOLÓGICA

71

Esse ideal também encerra um mandamento ético que é amplamente aceito no

mundo moderno: transformem tudo, explore tudo, revolva tudo, sem cessar! Um

imperativo que decorre de uma religião do progresso secularizada. É esse imperativo

que está por trás da sacrossantificação do trabalho, do produtivismo industrial e da

benção praticamente irrestrita a qualquer desenvolvimento tecnológico e científico. Há

algo de muito religioso para além do suposto caráter objetivo e desencantado do mundo

capitalista. É como se o pecado estivesse escondido em tudo que é natural. A natureza

está em pecado e ele só pode ser expulso por meio das intervenções humanas. A

produtividade humana teria assim uma dimensão religiosa.134 Essa ética religiosa –

embora silenciosa e oculta – fundamenta todo o louco ativismo que está destruindo o

mundo.135

***

O capitalismo se revela, assim, como uma espécie de leito de Procusto. Mas

trata-se de um leito de Procusto sui generis e muito mais sinistro. Na mitologia grega, o

bandido Procusto forçava as vítimas caberem no leito, cortando os pés dos indivíduos

grandes e estirando os pequenos pelos extremos. No capitalismo, esse leito não cessa de

se tornar menor em relação à quantidade dos seres humanos, exigindo, por isso, a

amputação da substância social que sobeja de suas limitadas dimensões. Imensas

porções da humanidade tendem a ficar de fora da forma (ou melhor: fôrma) social. Por

outro lado, em relação à natureza, esse leito não pára de crescer, promovendo um

esgarçamento dos próprios limites físicos da Terra – o que sem dúvida é extremamente

perigoso e potencialmente letal. A natureza recriada pelo capital é a prótese artificial

que visa atender as necessidades desmedidas do capitalismo. Nosso planeta encontra-se

deitado no leito de morte e martírio do capital. O progresso dessa dinâmica destrutiva

tendem a tornar nosso mundo algo cada vez mais monstruoso e disforme. A aceleração

do consumo do mundo e a recriação da natureza se combinam para provocar uma queda

tendencial da taxa das possibilidades de sobrevivência da espécie humana.

134 ANDERS, Günther. L’obsolescence de l’homme: sur l’âme à l’époque de la deuxième révolution industrielle. Paris: Éditions de L‟Enciclopédie des Nuisances-Éditions Ivrea, 2002. p. 212. Esse caráter religioso não passou despercebido a Marx. É o que se pode notar em uma série de alusões que ele faz a esse respeito em O capital. 135 Ver: HINKELAMMERT, Franz; ASSMANN, Hugo. A idolatria do mercado: ensaios sobre economia e teologia. São Paulo: Vozes, 1989.

Page 73: Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de …livros01.livrosgratis.com.br/cp142532.pdf · Milhares de livros grátis para download. ANDRÉ VILLAR GOMEZ REVOÇÃO TECNOLÓGICA

72

4. 3. O sistema tecnológico

O processo de aceleração crescente do consumo do mundo e o impulso do

capitalismo para se emancipar da natureza tem os seus fundamentos na forma do valor

da mercadoria. Mas ele não pode ser compreendido apenas pela análise dessa forma

social. Tal compreensão exige uma investigação, ainda que sumária, sobre aquilo que

media a forma social e a realidade concreta e material do mundo: o sistema técnico e a

forma da ciência.

A socialização capitalista é regida por uma abstração fantasmagórica. Mas

abstração não apenas se apodera do mundo existente como também o modela à sua

imagem e semelhança. E isso é sobretudo verdadeiro em relação ao sistema tecnológico

criado por ela. Pode-se dizer que o sistema tecnológico constitui o “esqueleto objetivo”

do capital. Ele encarna as determinações da forma social. Portanto, tal sistema encontra-

se inerentemente ligado a essa forma de organização social. Por isso, ele não pode ser

simplesmente apropriado por uma forma de socialização alternativa.136 Se assim o

fizesse, ela carregaria grande parte das determinações da sociedade que se quer

transformar. A crítica do capitalismo não pode se restringir às suas formas de

distribuição, mas deve ser dirigida à totalidade de seu modo de produção e de vida, o

que implica necessariamente, dentre outras coisas, à crítica de sua tecnologia.

***

A palavra tecnologia deriva do idioma grego: tekné, significa “ofício” ou “arte”,

e logia, “estudo de”. Em sentido amplo, pode-se dizer que todas as sociedades humanas

tiveram tecnologia, pois em qualquer estágio de desenvolvimento social, os humanos

aplicaram seus conhecimentos para moldar recursos visando atender a uma necessidade

prática. No entanto, há uma característica marcante que distingue o lugar que a técnica

assumiu no capitalismo em relação a todas as outras formas de sociedade. Foi somente

no capitalismo que a técnica se autonomizou em relação aos indivíduos e se tornou a

finalidade suprema da sociedade. Não é que, em outras formas de vida social, os

136 “a tecnologia capitalista não é indiferente aos objetivos para que foi criada. É uma tecnologia para a produção de mais-valia, desenvolvida para subordinar o trabalhador, para dele tirar o máximo de sobretrabalho. E quanto mais aumenta a capacidade de extrair sobretrabalho, maior a capacidade de matéria transformada. O capital tem uma essência antiecológica”. GONÇALVES, Carlos Walter Porto. A paixão da terra: ensaios críticos de ecologia e geografia. Rio de Janeiro: Pesquisadores Associados em Ciências Sociais - SOCII, 1984. p. 37, 38.

Page 74: Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de …livros01.livrosgratis.com.br/cp142532.pdf · Milhares de livros grátis para download. ANDRÉ VILLAR GOMEZ REVOÇÃO TECNOLÓGICA

73

humanos não tenham buscado criar meios mais eficazes pare realizar determinadas

tarefas. Mas foi apenas no capitalismo que a busca pelo máximo desempenho, pela

eficiência máxima, se tornou um imperativo.

Em última análise, a técnica não é mais do que um meio para atingir

determinado resultado. Ela não é nada mais do que um meio e um conjunto de meios.

Entretanto, tal é a centralidade da técnica – uma forma social cuja concorrência

econômica, política e militar açula os humanos a buscar um desenvolvimento técnico

constante – que essa relação se inverteu inteiramente. Nossa civilização se tornou uma

civilização de meios. Uma civilização em que os meios se tornaram mais importante do

que os próprios fins. Ela se funda na necessidade imperiosa de encontrar os melhores

meios em todos os domínios. É esse “best one way” que é, a rigor, o meio técnico. E é o

acúmulo desses meios que produz uma civilização técnica.137

Quando se diz tecnologia, pensa-se imediatamente em máquina. Mas a

tecnologia é um sistema que vai além do domínio estrito da máquina. Em realidade, a

máquina é apenas uma pequena parte – ainda que muito importante – do sistema

tecnológico.138 Para que as máquinas – cada vez mais desenvolvidas – possam executar

as suas funções, elas precisam construir todo um entorno que lhes seja adequado. As

máquinas – que é técnica em estado puro – teriam muita dificuldade de operar num

mundo não-técnico. Haveria muitos entraves para o seu funcionamento. Por isso, desde

o surgimento das máquinas, tem se forjado todo um sistema tecnológico: um sistema

visando adequar os seres humanos e a natureza à sociedade industrial. Trata-se de

estender o “princípio de eficiência máxima” das máquinas à totalidade da realidade.

Portanto, todos os seres humanos e a toda a natureza devem ser transformados em partes

integrantes de uma “megamáquina”: uma gigantesca máquina total, em cujo centro

encontra-se a máquina original.139 E o que implica isso? Em última análise: em

“transformar em máquina tudo o que ainda não o é”.140 Os próprios seres humanos

devem se tornar cada vez mais maquinais – e, no limite, tornarem-se, eles próprios,

137 ELLUL, Jacques. A técnica e o desafio do século. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1968. p. 21. 138 “[A] tecnologia é vista como um processo social no qual a técnica propriamente dita (isto é, o aparato técnico da indústria, transporte, comunicação) não passa de um fator parcial. [...] A tecnologia, como modo de produção, como totalidade dos instrumentos, dispositivos e invenções que caracterizam a era das máquinas, é assim, ao mesmo tempo, uma forma de organizar e perpetuar (ou modificar) as relações sociais, uma manifestação do pensamento e dos padrões de comportamentos dominantes, um instrumento de controle e dominação”. MARCUSE, Herbert. Algumas implicações sociais da tecnologia moderna. In: Tecnologia, guerra e fascismo. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1999. p. 73. 139 ANDERS, Günther. Nosostros los hijos de Eichmann: carta abierta a Klaus Eichmann. Barcelona: Paidos, 1988. pp. 29-33. 140 ELLUL, Jacques. A técnica e o desafio do século. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1968. p. 3.

Page 75: Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de …livros01.livrosgratis.com.br/cp142532.pdf · Milhares de livros grátis para download. ANDRÉ VILLAR GOMEZ REVOÇÃO TECNOLÓGICA

74

máquinas. E o que vale para os seres humanos vale também para a natureza. Tudo que é

natural tem de ser transformado numa criação artificial. A natureza – com sua

temporalidade, sua irregularidade, sua imprevisibilidade etc. – é, de certo modo,

inadequada ao princípio de eficiência máxima das máquinas. Conforme assinala Jacques

Ellul:

“o mundo constituído progressivamente pelo acúmulo dos meios técnicos comporta o mesmo caráter: é um mundo artificial, e portanto, radicalmente diferente do mundo natural. Destrói, elimina ou subordina esse mundo natural, mas não lhe permite nem reconstituir-se nem entrar com ele em simbiose. Obedecem a imperativos e ordenamentos diferentes, sem medida comum. [...] Caminhamos rapidamente para o ponto em que brevemente não mais teremos meio natural”.141.

Quanto maior o desenvolvimento tecnológico, maior a pressão para a supressão

da natureza. Mas, por outro lado, a própria destruição da natureza fornece um impulso

para um desenvolvimento técnico ainda mais rápido: “somente invenções cada vez mais

numerosas e automaticamente acrescidas poderão compensar as incríveis despesas, o

desaparecimento irremediável de matérias-primas (madeira, carvão, petróleo... e mesmo

água).142 A natureza deve ceder progressivamente lugar àquilo que é artificial. Não se

trata apenas de criar produtos por meio de atividades industriais. E o próprio mundo

deve se tornar uma criação industrial. O descompasso entre o desenvolvimento das

máquinas e o mundo não-técnico que as circunda deve ser reduzido ao máximo – e

mesmo suprimido. “Assim, a cada vez que a técnica entra em choque com o obstáculo

natural, tende a contorná-lo, seja substituindo o organismo vivo pela máquina, seja

modificando esse organismo de modo a que não mais apresente reação específica”.143

É por isso que não se ponde entender a tecnologia como simples instrumentos.

Ela não pode ser considerada com um instrumento porque se transforma no próprio

mundo:

“Afirmar que o sistema de instrumentos, os macro-instrumento, é apenas um „meio‟, e que estaria, portanto, a nossa disposição

141 Id. Ibid p. 82. 142 Id. Ibid. p. 93. 143 Id. Ibid. p. 137.

Page 76: Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de …livros01.livrosgratis.com.br/cp142532.pdf · Milhares de livros grátis para download. ANDRÉ VILLAR GOMEZ REVOÇÃO TECNOLÓGICA

75

para realizar os fins que nós teríamos livremente definidos, é completamente absurdo. Esse sistema de instrumentos é o nosso „mundo‟. E um „mundo‟ é uma coisa completamente diferente de um meio. Trata-se de uma outra categoria”.144

Aqui, mais do que nunca, vale a formulação de Hegel: “o verdadeiro é o

todo”.145 Portanto, a tecnologia que se transformou no nosso mundo não pode ser

compreendida em termos de meios de produção. Ela não pode ser considerada meio

porque ela própria passou a colocar a finalidade de seu desenvolvimento. Ela já não

serve mais aos seres humanos. Mas apenas a si mesma. São os próprios humanos que se

transformaram em meios para o desenvolvimento da tecnologia.

“Se tecnologia é idêntica a meios de produção, isto significa que ela existe em função das necessidades humanas: ela produziria aquilo que o homem necessitaria. Entretanto, porque o funcionamento do sistema se transformou em fim, são as necessidades humanas que se transformaram em meios. O sistema busca o que é funcional em relação a si mesmo. As atividades humanas de produção e consumo não são então aquelas que vão determinar o sistema. Ao contrário, são as necessidades de funcionamento eficaz que determinaram aquilo que deve ser produzido e aquilo que deve ser consumido. Para o sistema o fator necessidade, definido em termos humanos, é em si absolutamente sem significação funcional alguma”.146

Se o capital é o “sujeito automático” no plano da forma social, essa posição de

sujeito adquire um corpo material no domínio tecnológico. O sistema tecnológico

encarna assim algo que já estava presente no plano da forma. Ele materializa o “sujeito

automático”. Por que a tecnologia se configura como um processo automático? Porque,

tal como ocorria no plano da forma social, os seres humanos encontram-se alijados do

poder de decisão acerca de suas próprias vidas. Suas decisões são tomadas no interior de

um balizamento que lhes subjuga. Os indivíduos não podem decidir se querem ou não

desenvolvimento tecnológico. Uma vez que se encontram acossados pela concorrência,

144 ANDERS, Günther. L’obsolescence de l’homme: sur l’âme à l’époque de la deuxième révolution industrielle. Paris: Éditions de L‟Enciclopédie des Nuisances-Éditions Ivrea, 2002. pp. 16, 17. 145 HEGEL, Friedrich. Fenomenologia do Espírito, parte I. Petrópolis, RJ: Vozes, 1992. p. 31. 146 ALVES, Rubem. Tecnologia e Humanização. Revista Paz e Terra. Rio de janeiro: Paz e Terra, Nº 8, 1968. p. 16.

Page 77: Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de …livros01.livrosgratis.com.br/cp142532.pdf · Milhares de livros grátis para download. ANDRÉ VILLAR GOMEZ REVOÇÃO TECNOLÓGICA

76

torna-se imperativo que todos busquem o máximo desenvolvimento técnico. A escolha

encontra-se tomada por antecipação. O que se trata de decidir é apenas o de encontrar os

melhores meios para alcançar um maior desenvolvimento da técnica. A margem para

uma decisão propriamente humana tende a se tornar simplesmente nula:

“O automatismo – explica Jacques Ellul – consiste em que a orientação e as escolhas técnicas se efetuam por si mesmas. [...] Não há escolhas entre dois métodos técnicos: um se impõe fatalmente porque seus resultados são contados, medidos, patentes e indiscutíveis. [...] é a técnica que agora opera a escolha „ispso facto‟, sem remissão, sem discussão possível, entre os meios a utilizar. O homem não é mais, de modo algum, o agente da escolha. [...] o progresso técnico funciona automaticamente, a escolha entre os métodos não está mais ao alcance do homem, mas ocorre como um processo mecânico”.147

O critério da máxima eficiência técnica torna-se o único parâmetro legítimo da

sociedade. Desse modo, o pensamento humano, se não quiser entrar em conflito com o

sistema prevalecente, tem que ser ele próprio tecnológico. Quer dizer: não pode colocar

outro padrão de avaliação que não seja o da máxima eficiência técnica. Tudo mais passa

a ser reputado como um supérfluo e impertinente subjetivismo. Só há aí um único e

exclusivo critério de justificação e avaliação de todas as coisas. Tudo pode ser posto em

questão, menos o progresso técnico. “Não se deve impedir o automatismo e é

exatamente assim que o progresso se torna automático”.148 Assim, “no interior do

mesmo campo técnico, a escolha entre os métodos, o maquinismo, as organizações, as

receitas, efetua-se automaticamente. O homem é privado de sua escolha e está satisfeito

com isso. Aceita-o, dando razão à técnica”.149 É o próprio pensamento deve se tornar

maquinal. Não é por acaso que as máquinas – o computador ou o cronômetro, por

exemplo – se tornam freqüentemente muito mais eficazes acerca da “escolha” da melhor

técnica. Quem poderia ser mais frio e objetivo do que uma máquina? As máquinas são

as verdadeiras experts da razão calculadora. Por isso, cada vez mais, decisões

importantíssimas são transferidas às próprias máquinas.

147 ELLUL, Jacques. A técnica e o desafio do século. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1968. pp. 83, 85. 148 Id. Ibid. p. 85. 149 Id. Ibid. p. 85.

Page 78: Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de …livros01.livrosgratis.com.br/cp142532.pdf · Milhares de livros grátis para download. ANDRÉ VILLAR GOMEZ REVOÇÃO TECNOLÓGICA

77

No momento em que o capitalismo se tornou um sistema mundial, o sistema

tecnológico passou a açambarcar o mundo inteiro – e esse é um fato marcante de nossa

época.150 Diferentemente de tudo que ocorrera até então na história da humanidade, hoje

não é mais possível encontrar espaço algum livre da tecnologia – nem que seja sob a

forma do olhar vigilante dos satélites ou pelas várias modalidades de poluição.151 O

domínio meramente formal da lógica da mercadoria sobre o planeta foi acompanhado

pelo domínio no plano material. Um domínio que avança cada vez mais e que não se

contenta em imantar a totalidade da Terra, mas que busca penetrar profundamente em

todo o domínio material, vivo e não-vivo.

Todo esse movimento não cessa de se tornar ainda mais veloz com o próprio

progresso tecnológico. Quanto mais a tecnologia é desenvolvida, mais conhecimentos e

mais técnicas são criadas, ampliando ainda mais a velocidade das mutações

tecnológicas. Encontramo-nos no joelho de uma curva ascendente da aceleração

tecnológica. Ingressamos num período de aceleração da aceleração do

desenvolvimento tecnológico. Um tempo de transformações cada vez mais velozes. Os

computadores, por exemplo, alteraram não apenas o mundo da produção industrial e dos

serviços. Eles são também os meios através dos quais a ciência tem alcançado um

desenvolvimento progressivamente mais célere. Desenvolvimentos esses que, por sua

vez, geram novas técnicas que favorecem outros desenvolvimentos técnicos.152

É derrisório acreditar que o problema desse sistema tecnológico advém do uso

que se faz dele e não dele próprio. Portanto, diante da técnica, o homem encontra-se

colocado diante da seguinte escolha: “utilizar a técnica como o deve ser, de acordo com

150 “Sempre diante das técnicas, o homem englobado em uma civilização de determinado tipo é ainda livre de romper com ela e viver seu destino particular. Os constrangimentos, porque não técnicos, não são de tal ordem, que não os possa descerrar. Assim, em uma civilização ativa, bastante desenvolvida do ponto de vista técnico, o homem sempre foi capaz de romper esse laço e levar, por exemplo, uma vida contemplativa e mística. O fato de que as técnicas estejam ao nível do homem permite-lhe repudiá-las ou dispensá-las. Há uma possibilidade de escolha, não apenas quanto à sua vida interior mas quanto à forma de sua vida, e ele pode, no entanto, perfeitamente viver; os elementos essenciais de sua vida são salvaguardados e fornecidos mais ou menos liberalmente por essa própria civilização cujas formas são rejeitadas. Assim, no Império Romano, idade técnica de muitos pontos de vista, é possível retirar-se, viver seja como anacoreta, seja como camponês, à margem de toda evolução e a principal força técnica do Império, o direito romano, permanecerá impotente diante dessa decisão que permite escapar ao serviço militar e, em ampla margem, ao imposto e às jurisdições imperiais”. ELLUL, Jacques. A técnica e o desafio do século. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1968. pp. 79, 80. 151 Em um mundo unificado, não é possível exilar-se”. DEBORD, Guy. Panegírico. São Paulo: Conrad Editora do Brasil, 2002. p. 49. 152 É o princípio de combinação das técnicas que provoca o autocrescimento do desenvolvimento técnico. Segundo Jacques Ellul, esse princípio pode ser formulado em duas leis: 1º Em uma civilização técnica,o progresso técnico é irreversível; 2º O progresso técnico tende a efetuar-se, não de acordo com uma progressão aritmética, mas de acordo com uma progressão geométrica”. ELLUL, Jacques. A técnica e o desafio do século. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1968. p. 92.

Page 79: Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de …livros01.livrosgratis.com.br/cp142532.pdf · Milhares de livros grátis para download. ANDRÉ VILLAR GOMEZ REVOÇÃO TECNOLÓGICA

78

as regras técnicas, ou não utilizá-las, de modo algum; mas é impossível utilizá-las a não

ser de acordo com as regras técnicas”.153 Isso quer dizer que não é possível outro uso

para as técnicas existentes. Se seus efeitos são negativos e destrutivos, isso se deve à

própria natureza dessas técnicas.154

Seria completo absurdo dizer que uma torta de maça ou uma bomba

termonuclear não é algo bom ou ruim em si mesmo, mas que depende do uso que

façamos de ambos. O próprio objeto encarna a finalidade de seu uso. Por isso, não se

pode julgar o sistema tecnológico em termos do uso que o capitalismo tem feito dele. Se

o capitalismo tem promovido tanta destruição ao longo de sua história, isso não teria

sido possível sem sua tecnologia. E esta não teria surgido sem o desenvolvimento desse

sistema. O sistema tecnológico do capitalismo é tão capitalista quanto à forma social no

interior da qual ela opera. Ela é tão negativa e tão destrutiva quanto essa forma e não

pode ser simplesmente apropriada por uma forma social melhor.

Não é possível dizer a priori o que desse sistema tecnológico poderia ser ou não

utilizado por uma forma alternativa de socialização. Mas as forças produtivas legadas

pelo capitalismo são antes de tudo um problema. E não uma solução, em relação ao qual

bastaria simplesmente lhe dar um uso melhor. Tampouco o problema pode ser resolvido

apenas por meio da supressão dos maus elementos e da conservação dos bons. Tal como

as categorias da forma social, eles encontram-se intimamente articulados, e não podem,

por isso, ser separados uns dos outros.

4. 4. A forma-ciência A ciência moderna está na base desse sistema tecnológico. Não se pode dizer

simplesmente que a ciência foi apropriada pelo sistema econômico e tecnológico. É um

erro compreender a funcionalidade da ciência moderna nesse sistema como uma mera

utilização externa. Tal mobilização não seria possível se não houvesse uma

153 ELLUL, Jacques. A técnica e o desafio do século. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1968. p.101. 154 “Quanto à tecnologia, o que quer dizer é que não há neutralidade da técnica enquanto técnica efetivamente aplicada. A televisão, por exemplo, tal como é hoje, é um instrumento de cretinização. E seria falso dizer que uma outra sociedade utilizaria essa televisão de outro modo: ela não seria mais essa televisão. Muitas coisas deveriam ser modificadas na televisão para que ela pudesse ser „utilizada de outro modo‟”. CASTORIADIS, Cornelius. As encruzilhadas do labirinto 2: os domínios do homem. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. p. 86. “Longe de ser um instrumento „neutro‟, a televisão predetermina quem a utilizará e como a utilizará, qual a influência na vida das pessoas e, insistindo-se no seu uso em larga escala, o tipo de formas políticas que poderá inevitavelmente fazer surgir. [...] Referir a televisão como um instrumento „neutro‟, e como tal sujeito a transformações mostra-se tão absurdo como falar da reforma duma tecnologia como a das armas”. MANDER, Jerry. Quatro argumentos para acabar com a televisão. Lisboa: Antígona, 1999. pp. 58, 60.

Page 80: Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de …livros01.livrosgratis.com.br/cp142532.pdf · Milhares de livros grátis para download. ANDRÉ VILLAR GOMEZ REVOÇÃO TECNOLÓGICA

79

correspondência demasiadamente estreita entre os imperativos tecnológicos e

econômicos e essa forma de produção de conhecimentos.

O advento do capitalismo não transformou apenas a forma como os humanos se

relacionam entre si e com a natureza. Essa nova época da história humana operou

também uma “revolução na maneira de pensar”.155 Uma nova forma de vida social exige

uma igualmente nova “forma de pensamento”. E a ciência moderna não pode ser

compreendida sem essa imensa transformação na forma de os humanos pensarem e se

relacionarem entre si e com o restante da natureza.156

Uma das características da nova maneira de pensar consiste no fato de que a

natureza passa a ser vista como algo puramente objetivo, como matéria pura, destituída

de qualquer outra significação. A natureza é tomada como um simples objeto passível

de ser submetido a todo tipo de manipulação econômica, técnica e científica. Somente

por meio de tal redução é que se torna possível formalizar certos fenômenos da natureza

em termos estritamente matemáticos (a matemática é modelo do conhecimento

científico rigoroso). Há fortes analogias entre esse procedimento e aquele que impera na

forma do valor da mercadoria. Do mesmo modo que a forma valor reduz um

determinado produto a uma substância indiferenciada, também a ciência reduz as coisas

da natureza a quantidades determinadas de uma mesma substância. “A sociedade

burguesa está dominada pelo equivalente. Ela torna o heterogêneo comparável,

reduzindo-o a grandezas abstratas”.157

Mas a mesma violência cometida sobre o objeto é promovida contra o próprio

sujeito do conhecimento. Assim como é preciso suprimir as múltiplas qualidades das

coisas para reduzi-las a uma grandeza abstrata passível de ser quantificada, também o

sujeito do conhecimento deve expurgar e reprimir tudo o que há nele de mais próprio,

suas idiossincrasias, sua sensibilidade etc., até o ponto de se converter numa espécie de

ser genérico: um sujeito coletivo, sem identidade. Somente um pensamento que se faz

violência contra si mesmo é capaz de ser suficientemente duro em relação aos objetos.

A violência contra os objetos e contra o sujeito são momentos que estão

155 KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. São Paulo: Abril Cultural, 1974. (Os pensadores) p. 11. 156 DEUS, Jorge Dias de. Uma introdução, alguns comentários e três opiniões sobre a ciência. In: A crítica da ciência. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1974. p. 12. 157 “Para o esclarecimento, aquilo que não se reduz a números e, por fim, ao uno, passa a ser ilusão: o positivismo lógico remete-o à literatura”. HORKHEIMER, Max; ADORNO, Theodor. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985. p. 23. “Não é sem razão que a ciência reconhecida se irrita logo que surge no seu horizonte o que ela relega no domínio da arte para permanecer em paz no interior de seu domínio de atividade”. Idem. Théorie esthétique. Paris: Klincksieck, 1989. p. 294.

Page 81: Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de …livros01.livrosgratis.com.br/cp142532.pdf · Milhares de livros grátis para download. ANDRÉ VILLAR GOMEZ REVOÇÃO TECNOLÓGICA

80

indissociavelmente ligados a essa forma de pensamento.158 Acontece aqui algo análogo

ao que ocorre com o sujeito da economia, que tem de expurgar todos os demais

elementos de sua subjetividade, para prevalecer tão-somente o impassível e frio cálculo

matemático, necessário às trocas mercantis.

Pode-se dizer que o sujeito do conhecimento mantém, de certo modo, uma

“relação privada consigo mesmo”.159 Pois, embora ele observe e realize experiências

sobre a natureza, isso não é empreendido no sentido de compreender a natureza em si

mesma. Mas tão-somente de apreender aqueles aspectos que tornam possível a sua

dominação. Ele não quer simplesmente observar a natureza, mas sim submetê-la,

inclusive sob tortura, a fim de que ela responda as suas perguntas – como um juiz diante

de um réu.160 Como observa Horkheimer, o cientista

“não está interessado em compreender as coisas por si mesmas ou em função do entendimento em si mesmo, mas sim com o fito em função de ajustá-las dentro de um esquema, não importando o quanto este seja alheio à estrutura interior das coisas; isso se aplica tanto aos seres vivos quanto às coisas inanimadas”.161

158 Segundo Vandana Shiva, a ciência moderna é reducionista e intrinsecamente violenta. Ela exerce violência contra o sujeito do conhecimento, contra o objeto do conhecimento, contra o beneficiário do conhecimento e contra o próprio conhecimento. Ela se pauta em algumas suposições ontológicas e epistemolóticas. Suas suposições ontológicas são: que um sistema é redutível às suas partes; que o mundo é feito dos mesmos constituintes básicos, que são mecânicos. E algumas suposições epistemológicas: que o conhecimento das partes fornece o conhecimento do todo; que os „experts‟ e „especialistas‟ são os legítimos portadores do conhecimento. SHIVA, Vandana. Reducionist science as epistemological violence. Disponível em: http://www.unu.edu/ununpress/unupbooks/uu05se/uu05se0i.htm 159 MARX. Karl. O Capital, vol I, tomo 1. São Paulo: Abril Cultural, 1983. p. 131. 160KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. São Paulo: Abril Cultural, 1974. (Os pensadores). p. 11. Conforme Oswald Splenger: SPENGLER, Oswald. L’homme e la technique. Paris: Gallimard, 1958. p. 127. 161 HORKHEIMER, Max. Eclipse da Razão. São Paulo: Centauro, 2002. p. 153. “A técnica é a essência desse saber, que não visa conceitos e imagens, nem o prazer do discernimento, mas o método, a utilização do trabalho de outros, o capital. [...] O que os homens querem aprender da natureza é como empregá-la para dominar completamente ela e os homens. Nada mais importa. [...] Poder e conhecimento são sinônimos. [...] O que importa não é aquela satisfação que, para os homens, se chama „verdade‟, mas a „operação‟, o procedimento eficaz”. HORKHEIMER, Max; ADORNO, Theodor. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985. p. 20. Conforme observa Marildo Menegat: “durante muito tempo, como, por exemplo, na Grécia Antiga, o conhecimento sobre a natureza procurou compreendê-la em seu ser em si, e não apenas a partir das necessidades humanas. Com a mudança na perspectiva desse conhecimento, que se efetiva na própria fundação da ciência moderna, a natureza transforma-se numa simples presa dos apetites humanos não mediados pelos limites dela própria”. MENEGAT, Marido. O olho da barbárie. São Paulo: Expressão Popular, 2006. p. 71.

Page 82: Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de …livros01.livrosgratis.com.br/cp142532.pdf · Milhares de livros grátis para download. ANDRÉ VILLAR GOMEZ REVOÇÃO TECNOLÓGICA

81

Se o sujeito do conhecimento vai à natureza é apenas para reforçar seu próprio

esquema de pensamento e ampliar as suas capacidades de dominação da natureza. Essa

é uma característica fundamental da ciência moderna.

“Toda teoria científica é um mito relativo à interpretação das forças da Natureza, e que cada uma depende da religião com a qual está associada. Mas é na Cultura Faustica, e nela exclusivamente, que cada teoria é também, desde a origem, uma hipótese pragmética. Uma hipótese pragmática não tem necessidade de ser „correta‟: tudo o que se lhe exige é de poder ser colocada em prática”.162

Daí a ligação profunda entre a ciência e a tecnologia. Não se pode dizer

simplesmente que a ciência serve à tecnologia. Ela própria responde a um “a priori

tecnológico”.163 E é exatamente por isso que, por mais puro que seja esse conhecimento,

logo ele se converte em tecnologia. É só uma questão de tempo:

“A ciência pura não permanece indefinidamente pura. Mais cedo ou mais tarde fica apta a tornar-se ciência aplicada e, finalmente, tecnologia. A teoria torna-se prática industrial, o saber torna-se poder, as fórmulas e as experiências de laboratório sofrem uma metamorfose, e surgem como a bomba H”.164

Portanto, pode-se dizer da forma ciência o mesmo que Marx disse acerca do

conjunto de formas de pensamento da socialização capitalista: “São formas de

pensamento socialmente válidas e, portanto, objetivas para as condições de produção

desse modo social de produção, historicamente determinado, a produção de

mercadorias”.165 A ciência é um modo de produção de conhecimento. Uma forma,

dentre outras possíveis. E não o modo de conhecimento. Trata-se de uma forma tão

histórica como a forma de organização social da qual ela faz parte. É por isso que se

pode pensar no surgimento de uma outra ciência.166 Se essa forma de produzir

162 SPENGLER, Oswald. L’homme e la technique. Paris: Gallimard, 1958. p. 127. 163 MARCUSE, Herbert. Ideologia da sociedade industrial. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1967. p. 150. 164 HUXLEY, Aldous. Regresso ao admirável mundo novo. São Paulo: HEMUS, 1959. p. 132. 165 MARX, Karl. O Capital, vol. I, tomo 1. São Paulo: Abril Cultural, 1983. p. 73. 166 “Para frear as tecnologias apocalípticas é necessária não apenas uma outra forma de sociedade, mas também uma outra ciência. [...] Se o conhecimento científico não se emancipar da lógica de uma

Page 83: Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de …livros01.livrosgratis.com.br/cp142532.pdf · Milhares de livros grátis para download. ANDRÉ VILLAR GOMEZ REVOÇÃO TECNOLÓGICA

82

conhecimento prevaleceu na época do capitalismo, isso não se deve à sua racionalidade

inerente, como se costuma acreditar, e sim porque liberou poderosos meios de dominar

a natureza e, em especial, por ter contribuído decisivamente na produção de meios de

morte mais eficientes.167

Tal como a forma do capital e do desenvolvimento tecnológico, a ciência

também se orienta para sua reprodução ampliada. Este é o telos do conhecimento

científico. Como observa Fernando Gil: “A forma da ciência é uma modalidade

particular da forma geral de reprodução alargada”.168 Ao cientista cabe parte do

processo de reprodução social representado pela reprodução da ciência, onde sua função

é prolongar o processo da ciência. É esse objetivo autoreferente que torna a ciência tão

adequada à sociedade capitalista. Portanto, a ciência é tão cega quanto o próprio

capital.169

Conforme assinala Robert Kurz: “um sujeito é um ator consciente que não tem

consciência de sua própria forma”.170 Portanto, o sujeito moderno – como as demais

pessoas ao longo da (pré)história humana – não tem consciência de sua própria forma. E

o que é verdade em relação as suas interações sociais é igualmente verdadeiro na

relação que esses sujeitos estabelecem com o conhecimento científico. A forma do

conhecimento científico permanece opaca e pressuposta aos próprios sujeitos da forma-

objetivação desumana da natureza, o complexo econômico-científico logrará transformar a Terra num deserto da física”. KURZ, Robert. Natureza em ruínas. In: Com todo valor ao colapso. Juiz de Fora, MG: Editora UFJF-PAZULIN, 2004. p. 238. 167 “É verdade que a ciência ocidental agora reina suprema por todo o globo; contudo, a razão disso não foi um discernimento de sua „racionalidade‟ inerente, mas o uso do poder (as nações colonizadoras impuseram seus modos de vida) e a necessidade de armamentos: a ciência ocidental até agora criou os mais eficientes instrumentos de extermínio. [...] A ciência do Primeiro Mundo é uma ciência entre muitas”. FEYERABEND, Paul. Contra o método. São Paulo: Editora UNESP, 2007. p. 22. 168 GIL, Fernando. O plano da ciência. In: A crítica da ciência. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1974. p. 181. 169 O século XX conheceu alguns sinistros expoentes do empreendimento científico: Fritz Haber (inventor do gás mostarda na primeira guerra mundial) Shiro Ishii (cientista e militar japonês, que promoveu pesquisas em seres humanos na Manchúria), Joseph Mengele (médico nazista que realizou horrendas pesquisas em seres humanos), Edward Teller (conhecido como o pai da Bomba H, entre outros horripilantes engenhos). O Dr. Fantástico (de Stanley Kubrick), o Dr. Moreau (de H. G. Wells), o Dr. Frankenstein (de Mary Shelley), entre outros personagens da ficção, empalidecem diante dos modelos reais: a ficção fica sem fôlego quando o mais fantástico devaneio se realiza. No entanto, mesmo tais cientistas não podem ser considerados traidores do espírito da ciência. Pelo contrário: eles apenas seguiram-no de forma resoluta. Poderia dizer algo semelhante ao que Marx disse acerca dos capitalistas. Não se trata de pintar os cientistas com tintas róseas, o problema não está neste ou naquele indivíduo, mas na própria forma de conhecimento. Não é esse o resultado último de uma ciência que exige o expurgo de toda a sensibilidade, de tudo o que é pessoal? Se a ciência produziu resultados monstruosos isso se deve ao fato de que, em plena conformidade com seu espírito, alguns cientistas terminaram por negligenciar todos os valores humanos mais básicos para fazer prevalecer o único critério e princípio que se submetem: dados pela própria ciência. A forma-ciência é intrinsecamente alienada. 170KURZ, Robert: Dominação sem sujeito: sobre a superação de uma crítica social redutora. Disponível em: http://antivalor2.vilabol.uol.com.br

Page 84: Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de …livros01.livrosgratis.com.br/cp142532.pdf · Milhares de livros grátis para download. ANDRÉ VILLAR GOMEZ REVOÇÃO TECNOLÓGICA

83

ciência. Por isso, uma forma historicamente constituída se lhes aparece como sendo uma

condição natural e insuperável.

O próprio treinamento científico promovido pela escola e pela universidade não

tem outro objetivo senão o de moldar a subjetividade dos indivíduos a essa forma de

pensamento. A forma-ciência é uma bitola que os indivíduos devem se adequar para

produzir o conhecimento socialmente reconhecido. As instituições de ensino tencionam

docilizar e produzir um habitus de tal forma arraigado, até o ponto em que essa forma

seja identificada ao próprio conhecimento.

A teoria crítica da socialização capitalista não pode deixar de fora a crítica de

suas formas de pensamento, com destaque para a forma do pensamento científico. Pois,

como bem ressaltou Alfred Sohn-Rethel, forma social e forma de consciência estão

indissociavelmente ligadas.171 Lembrando as palavras de Adorno: “Crítica da sociedade

é crítica do conhecimento, e vice-versa”.172 Essa dimensão da crítica do capitalismo não

pode ser negligenciada. Não se pode separar a ciência de suas “aplicações tecnológicas”

para fins econômicos, políticos e militares.

Alfred North Witehead teve o mérito de isolar o mal metodológico intrínseco ao

método científico, donde derivam todo um conjunto de outros males: o caráter

abstratizante, isolador, em oposição à experiência envolvente, total, emotiva, onde

sujeito e objeto, intelecto e sensações se diluem para emergir na vivência global.

Enquanto a forma da ciência só sabe produzir conhecimento no interior da forma

pressuposta, a crítica social também inclui a crítica da forma de conhecimento. A tarefa

da racionalidade filosófica é mais imprescindível do que nunca: fazer a crítica das

abstrações.

“A desvantagem de dar atenção a um exclusivo grupo de abstrações, por bem fundadas que sejam, reside no fato de que, conforme a natureza do caso, prescindimos das coisas restantes. À medida que as coisas excluídas tornam-se importantes em nossa experiência, nossos modos de pensamento passarão a ser inapropriados para ocupar-nos delas. Não podemos pensar sem abstrações; sendo assim, é da máxima importância manter-se vigilante em rever criticamente os „modos‟ de abstração. Aqui é

171 SOHN-RETHEL, Alfred. Trabalho espiritual e corporal: para a epistemologia da história ocidental. Disponível em: http://antivalor2.vilabol.uol.com.br 172 ADORNO, Theodor. Palavras e sinais: modelos críticos 2. Petrópolis, RJ: Vozes, 1995. p. 189.

Page 85: Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de …livros01.livrosgratis.com.br/cp142532.pdf · Milhares de livros grátis para download. ANDRÉ VILLAR GOMEZ REVOÇÃO TECNOLÓGICA

84

que a filosofia encontra o lugar próprio como essencial ao sadio progresso da sociedade. É a crítica das abstrações...173

E como tal ela tem uma dupla função:

“primeiro a de harmonizá-las, apontando-lhes a sua conveniente situação relativa como abstrações, segundo a de completá-las pela comparação direta com intuições do universo mais concretas, e portanto promover a formação do mais completo esquema de pensamento”.174

Nos dias atuais, de grande crise ecológica e social, tal crítica torna-se

simplesmente imprescindível. Já não se pode ignorar todo um conjunto de relações e

articulações complexas em prol de um procedimento reducionista que retalha o mundo

em pequenas partes – cada vez menores – a fim de dominá-lo e conquistá-lo. Não é

apenas por meio da abstração matemática que o mundo é reduzido a uma substância

sem qualidades. Por meio da “aplicação tecnológica da ciência” o próprio mundo tem

realmente se convertido numa substância sem qualidades. As luzes da ciência estão

contribuindo para levar a humanidade a uma nova Idade das Trevas, em que se cruzam

o colapso social e o ecológico. A crítica de toda essa megamáquina econômica e

tecnológica exige a crítica da forma-ciência. Um outro mundo exige um outro modo de

pensar e de produzir conhecimento.175

4. 5. Tecnociência capitalista O capitalismo atual encontra-se profundamente marcado pela existência da

tecnociência (tecnociência porque ciência e tecnologia encontram-se profundamente

imbricadas). Por isso, pode se dizer que nos encontramos na época do capitalismo

tecnocientífico. O modo de produção e de vida dos dias de hoje seria inteiramente

diverso sem a tecnociência. Mas não é apenas o capitalismo que é tecnocientífico.

173 WHITEHEAD, Alfred North. A ciência e o mundo moderno. São Paulo: Paulus, 2006. p. 79. 174 Id. Ibid. p. 133. 175 “Num processo de emancipação social, a rejeição da ciência como a rejeição do trabalho são inevitáveis”. DEUS, Jorge Dias de. Uma introdução, alguns comentários e três opiniões sobre a ciência. In: A crítica da ciência. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1974. p. 25.

Page 86: Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de …livros01.livrosgratis.com.br/cp142532.pdf · Milhares de livros grátis para download. ANDRÉ VILLAR GOMEZ REVOÇÃO TECNOLÓGICA

85

Também a tecnociência é ela própria capitalista. Por quê? Porque ela não apenas passou

a ser produzida sob a forma de mercadoria e por meio de um processo de produção

tipicamente capitalista: sob a forma de produção industrial.176

“Nos últimos vinte e cinco anos do século XIX, começou o que Landes chamou „a exaustão das possibilidades tecnológicas da Revolução Industrial‟. A nova revolução técnico-científica que reabasteceu o acervo de possibilidades tecnológicas tinha um caráter consciente e proposital amplamente ausente na antiga. Em vez da inovação espontânea, indiretamente suscitada pelos processos sociais de produção, vieram o progresso planejado da tecnologia e projeto de produção. Isto foi realizado por meio da transformação da ciência mesma numa mercadoria comprada e vendida como outros implementos e trabalhos de produção. De uma „economia externa‟ o conhecimento científico transformou-se num artigo de balanço geral. Como todas as mercadorias, seu fornecimento é impulsionado pela demanda, resultando que o desenvolvimento de materiais, fontes de energia e processos tornou-se menos fortuito e mais atento às necessidades imediatas do capital. A revolução técnico-científica, por essa razão, não pode ser compreendida em termos de inovações específicas – como no caso da Revolução Industrial, que deve ser compreendida mais em sua totalidade como um modo de produção no qual a ciência e investigações exaustivas da engenharia foram integradas como parte de um funcionamento normal. A inovação chave não deve ser encontrada na Química, na Eletrônica, na maquinaria automática, na aeronáutica, na Física Nuclear, ou em qualquer dos produtos dessas tecnologias científicas, mas antes na transformação da própria ciência em capital”.177

O que resulta disso? Resulta que se tornou cada vez mais raro o pesquisador

independente. É o fim a “produção artesanal” da pesquisa científica. O pesquisador

passou a ser subsumido formalmente às instâncias econômicas e políticas que lhe

escapam ao controle. Sua própria atividade de pesquisador passou a se constituir como

um pequeno fragmento de um processo de produção muito mais vasto.

176 “A materialização do desenvolvimento das forças produtivas que criam o capital fixo se efetiva através de uma aplicação crescente da ciência e da tecnologia à produção, uma vez que estas, como um sistema mecânico de atividades autômatas, são incorporadas ao capital. O desenvolvimento do capital fixo torna-se uma exigência imperativa para o capital, transformando, nesse sentido, a pesquisa científica e a produção tecnológica em ramos da própria produção”. MARILDO, Menegat. O olho da barbárie. São Paulo: Expressão Popular, 2006. pp. 70, 71. 177 BRAVERMAN, Harry. Trabalho e capital monopolista: a degradação do trabalho no século XX. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1987. p. 146.

Page 87: Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de …livros01.livrosgratis.com.br/cp142532.pdf · Milhares de livros grátis para download. ANDRÉ VILLAR GOMEZ REVOÇÃO TECNOLÓGICA

86

“A maior parte dos pesquisadores de laboratório são técnicos que fazem um trabalho muito diferente do que se imagina ser o trabalho científico. O cientista não é um gênio solitário. „Trabalha em equipe, e consente em renunciar à liberdade das pesquisas e à paternidade de sua invenção em troca do auxílio pessoal e do material que lhe oferecem os grandes laboratórios: são as duas condições indispensáveis; sem elas um pesquisador não pode esperar a realização de seus projetos”.178

Mas essa situação tem raízes no próprio desenvolvimento da pesquisa científica.

Não são apenas as técnicas que passaram a depender cada vez mais do conhecimento

científico. Também o conhecimento científico passou a depender progressivamente dos

desenvolvimentos dos meios técnicos: “quanto mais avançada no uso da técnica, mais

material exige, seja em número de homens, seja em matérias-primas, seja em

complexidade de máquinas”.179 A partir de certo momento tornou-se necessário um

grande aparato para as pesquisas científicas, em especial nas hard sciences. Os custos

de tais pesquisas são altos demais. Em geral, apenas os Estados (apenas alguns) e as

grandes empresas são capazes de custeá-los. Pode-se dizer que ocorreu no âmbito da

pesquisa científica algo que é típico da produção industrial. Houve uma elevação da

composição técnica e, conseqüentemente, da composição orgânica no âmbito da

ciência.180 Isso significa que quem quiser produzir conhecimentos científicos encontra-

se praticamente obrigado a se sujeitar a pesquisar nas instituições de pesquisas

financiadas pelo Estado ou por empresas privadas.

“Pois este é o dilema em que se acha preso o cientista moderno: ou aceitar que suas pesquisas sejam aplicadas nas técnicas, ou interrompê-las. Tal é o drama dos físicos do átomo: verificamos que somente os laboratórios de Los Alamos dispunham dos instrumentos técnicos necessários ao prosseguimento de seus

178 ELLUL, Jacques. A técnica e o desafio do século. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1968. p. 7. 179 Id. Ibid. p. 90. 180 Elevação essa que pode se exemplificada pelo LHC – Large Hadron Collider, ou Grande Colisor de Hádrons – o acelerador de partículas que a Comunidade Européia está construindo em Genebra, na Suíça, – cujo tubo, construído com materiais especiais, percorre um túnel circular de 27 quilômetros de circunferência a 100 metros da superfície – com um custo de 10 bilhões de francos suíços (algo em torno de 15 bilhões de reais), repartido por 20 países europeus e várias outras nações colaboradoras. Tal engenho é tido como o mais ambicioso – e caro – instrumento científico já construído pela humanidade.

Page 88: Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de …livros01.livrosgratis.com.br/cp142532.pdf · Milhares de livros grátis para download. ANDRÉ VILLAR GOMEZ REVOÇÃO TECNOLÓGICA

87

trabalhos. O Estado exerce, então, um monopólio de fato. E o cientista é obrigado a aceitar suas condições.181

Portanto, trata-se de algo que possui aspectos claramente negativos. Uma das

piores conseqüências consiste em que os próprios pesquisadores terminam por ficar

excluídos da representação global daquilo que eles produzem. Esse modo de produção

do conhecimento científico fragmenta o processo global em inúmeras atividades

parciais. Desse modo, cada pesquisador domina apenas uma parte limitada da produção

da pesquisa. Esse é um dos fatores que mais favorecem a “cegueira diante do telos”.182

Torna-se ainda mais abismal a desproporção entre os efeitos dos atos individuais e de

sua capacidade de representá-los. Não é de espantar que os cientistas terminem por

produzir criações tão monstruosas.183 Esse modo de produção de conhecimentos exclui

o problema da finalidade da atividade científica num nível ainda mais elementar: ele

simplesmente desaparece do campo de visão. Essa é uma característica de fragmentação

das atividades na sociedade capitalista.184

Esse modo especificamente capitalista certamente contribui para aumentar a

capacidade de produção de conhecimentos científicos. No entanto, tais conhecimentos

têm cada vez mais perdido qualquer sentido humano. Inserido nessa máquina global de

produção de conhecimentos, o pesquisador será tanto mais “competente” – do ponto de

vistas das referidas instituições de pesquisa – quanto mais seu pensamento for

maquinal: despersonalizado, inconsciente, automático e cego em relação à finalidade de

suas ações. Todo um conjunto de questões deve ficar de fora de suas preocupações. Ou

pelo menos não deve interferir em suas atividades científicas. Não há espaço para a

discussão acerca da finalidade da pesquisa.185

181 Id. Ibid. p. 9. 182 ANDERS, Günther. Llamese cobardia a esa esperanza. Bilbao: Besatari, 1995. p. 93. 183 Essa fragmentação produz uma forma muito peculiar de aleijão: o aleijão espiritual. Modificando um pouco as palavras de Marx, já citadas em capítulo anterior, poderia dizer que esse modo de produzir o conhecimento científico “aleija [o cientista] convertendo-o numa anomalia, ao fomentar artificialmente sua habilidade no pormenor mediante a repressão de um mundo de impulsos e capacidades produtivas, assim como nos Estados de La Plata abate-se um animal inteiro apenas para tirar-lhe a pele ou o sebo. Os [cientistas] parciais específicos são não só distribuídos entre os diversos indivíduos, mas o próprio indivíduo é dividido e transformado no motor automático de um trabalho parcial, tornando assim a fábula insossa de Menenius Agrippa, segunda a qual um ser humano é representado como mero fragmento de seu próprio corpo, realidade”. MARX, Karl. O Capital, vol I, tomo 1. São Paulo: Abril Cultural, 1983. p. 238. 184 ANDERS, Günther. Llamese cobardia a esa esperanza. Bilbao: Besatari, 1995. p. 45. 185 “Quando a todo-poderosa economia enlouqueceu [...] ela suprimiu os últimos vestígios de autonomia científica, tanto no plano metodológico quanto no plano das condições práticas da atividade dos

Page 89: Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de …livros01.livrosgratis.com.br/cp142532.pdf · Milhares de livros grátis para download. ANDRÉ VILLAR GOMEZ REVOÇÃO TECNOLÓGICA

88

A apropriação destrutiva dos conhecimentos e habilidades desenvolvidos pela

tecnociência não seria possível – ou seria bem mais difícil – se não estivesse articulado

como um modo muito peculiar de produzi-los. O conhecimento científico e a tecnologia

não se tornam capitalistas apenas no momento da “circulação”, quer dizer, quando

apropriado pelos poderes econômicos e políticos. Seu próprio modo de produção já é,

desde o princípio, eminentemente capitalista: capitalista na forma de pensamento e no

modo como os próprios conhecimentos científicos são gerados. Por isso, a crítica do

capitalismo deve incluir não apenas à crítica da forma-ciência como do modo

especificamente capitalista de produção de conhecimentos. O problema não reside,

portanto, apenas na apropriação do conhecimento por parte do Estado e do capital. É a

própria forma de produção do conhecimento científico que também precisa ser alterada.

Do contrário, o conhecimento científico – esse produto do general intellect – continuará

se contrapondo aos próprios seres humanos.

„pesquisadores‟. Já não se pede que compreenda o mundo ou o torne melhor. Pede-se que ela justifique tudo o que é feito. [...] A ciência da justificação mentirosa aparece naturalmente desde os primeiros sintomas da decadência da sociedade burguesa, com a proliferação cancerosa das pseudociências chamadas „humanas‟; mas a medicina moderna, por exemplo, conseguiu se fazer considerada útil por algum tempo, e que haviam vencido a varíola ou a lepra eram bem diferentes dos que capitularam vergonhosamente diante das radiações nucleares ou da química agroalimentar. É fácil perceber que hoje a medicina já não tem o direito de defender a saúde da população contra o ambiente patógeno, porque isso significa opor-se ao Estado, ou apenas à indústria farmacêutica”. DEBORD, Guy. Considerações sobre a sociedade do espetáculo. In: A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997. pp. 197, 198.

Page 90: Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de …livros01.livrosgratis.com.br/cp142532.pdf · Milhares de livros grátis para download. ANDRÉ VILLAR GOMEZ REVOÇÃO TECNOLÓGICA

89

5. MUNDO PÓS-NATURAL

O mundo turbinado pela tecnociência entrou em colisão com os limites internos

da socialização capitalista e com os próprios limites ecológicos da Terra. A

microeletrônica criou forças produtivas que escapam aos estreitos limites dessa forma

de organização social e fazem como que esse desenvolvimento dos potenciais

produtivos da humanidade se transforme numa imensa calamidade ecológico-social.

Mas a terceira revolução tecnológica também tem se desdobrado no sentido de recriar a

natureza pela tecnociência capitalista: um mundo pós-natural.

Numa importante passagem dos Grundrisse, já comentada anteriormente, Marx

faz a seguinte observação do desenvolvimento das forças produtivas da sociedade.

Segundo ele, no momento em que as forças produtivas passam a se basear na força

produtiva científica:

“O trabalhador não insere mais, como intermediário entre o material e ele, o objeto natural transformado em instrumento; ele insere o processo natural, que ele transforma em processo industrial, como intermediário, entre ele e toda a natureza, da qual se tornou senhor. Mas ele próprio encontra-se colocado ao lado do processo de produção, ao invés de ser seu agente principal”.186

O desenvolvimento das forças produtivas torna a produção industrial cada vez

menos dependente do trabalho humano imediato. Assim, a produção se apresenta como

um processo natural, onde os seres humanos se limitam apenas a supervisionar e, no

máximo, auxiliar a produtividade natural. O corolário da referida transformação – mas

que se desenvolveu após um longo tempo de maturação – é que o próprio processo

natural passa a se converter num processo industrial.187 Tal fenômeno tem se tornado

186 MARX, Karl. Fondements de la critique de l’economie politique, vol II. Paris: Éditions Anthropos, 1968. p. 221. 187 Um exemplo desse processo é dado pela nanotecnologia. “De acordo com a nova visão nanométrica, a agricultura precisa ser mais uniforme, ainda mais automatizada, industrializada e reduzida a funções simples. Em nosso futuro molecular, a produção agropecuária será uma biofábrica de grande extensão, que possa ser monitorada e manejada a partir de um notebook. Os alimentos serão manufaturados a partir de substâncias projetadas para liberar, de forma eficiente, nutrientes ao corpo. A nanobiotecnologia aumentará o potencial da agricultura para colher insumos alimentícios destinados a processos industriais.

Page 91: Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de …livros01.livrosgratis.com.br/cp142532.pdf · Milhares de livros grátis para download. ANDRÉ VILLAR GOMEZ REVOÇÃO TECNOLÓGICA

90

cada vez mais proeminente no curso do desenvolvimento das forças produtivas

capitalistas. Isso significa que a natureza como um todo, desde sua constituição mais

íntima, seja produto da indústria capitalista. E, no limite, que ela passe a “funcionar”

como ela fosse uma indústria.

Façamos um breve inventário de algumas iniciativas de recriação da natureza

pela tecnociência capitalista.

5. 1. Novos materiais

As sociedades pré-modernas tinham suas bases econômicas fixadas, sobretudo,

em recursos orgânicos e renováveis, como a madeira, a água, o vento e a força de tração

animal. No entanto, a economia capitalista se desenvolveu baseando-se sobre recursos

energéticos não-renováveis e materiais inorgânicos. Mas a revolução tecnológica que

principiou em meados do século XX também introduziu uma modificação nesse âmbito.

Faz bem pouco tempo a maior parte dos produtos derivava de materiais disponíveis na

natureza ou de alguns poucos materiais que se podiam obter combinando com eles

certas matérias-primas. Portanto, essas matérias consistiam numa variável independente

e representavam um vínculo absoluto na relação entre os humanos e o mundo material

que ele havia herdado. No entanto, a tecnociência capitalista tornou possível transgredir

esses limites e criar uma série de materiais que jamais existiram na natureza.

Há hoje em dia uma série de novos materiais produzidos pela indústria. Os

novos materials tailoring permitem obter produtos refratários às vibrações, à ferrugem e

à deformação provocada pelas temperaturas mais elevadas. Desde a década de 1960 que

eles não param de ser criados: as fibras de carbono, o kevlar 99, as fibras de boro, o

carbureto de silício, a cerâmica avançada, os materiais sintéticos, os materiais

produzidos em nanoescala etc. Esses novos materiais têm produzido grandes efeitos na

produção e na vida das pessoas. Nosso mundo atual seria impensável, por exemplo, sem

os vários tipos de materiais plásticos.

Enquanto isso, commodities da agricultura tropical como borracha, cacau, café e algodão – e os agricultores de pequena escala que a produzem – terminarão se sentindo exóticos e irrelevantes em uma nova nanoeconomia de „matéria flexível‟, em que as propriedades de nanopartículas industriais podem ser ajustadas para criar substitutos mais baratos, „mais inteligentes‟”. ETC Group. Nanotecnologia: os riscos da tecnologia do futuro: saiba sobre produtos invisíveis que já estão no nosso dia-a-dia e o seu impacto na alimentação e na agricultura. Porto Alegre: L&PM, 2005. pp. 52, 53.

Page 92: Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de …livros01.livrosgratis.com.br/cp142532.pdf · Milhares de livros grátis para download. ANDRÉ VILLAR GOMEZ REVOÇÃO TECNOLÓGICA

91

Mas tais inovações não são isentas de graves problemas. Até meados do século

XX, a produção industrial se apoiava pouco mais de vinte materiais. Atualmente, a

indústria utiliza todos os elementos da tabela periódica como já criou algumas dezenas

de novos elementos. Portanto, estamos vivendo, faz somente algumas poucas décadas,

com uma série de materiais que nem o corpo nem o ambiente estavam habituados.

Porto-Gonçalves observa, por isso, que nos encontramos “no limiar de um descompasso

entre um tempo histórico e um tempo arqueológico, na medida em que estamos

submetendo a espécie humana à substâncias que nos colocam diante de mudanças no

nosso processo de hominização”.188

Nosso ambiente torna-se cada vez mais saturado e empesteado de um conjunto

de substâncias perigosas para os seres humanos: os éteres difenil polibromados

(PBDEs), retardante de fogo usados em plásticos e tecidos, os ftalatos, presentes em

plásticos e cosméticos, pesticidas como o DDT, o ácido perfluoroctanóico (PFOA),

usado em tecidos e superfície antiaderentes de panelas, as bifenilas policloradas (PCBs),

utilizadas em refrigeração e isolamento de sistemas elétricos, as dioxinas, um perigoso

dejeto industrial, os bisfenóis, um estrogênio sintético presente nos plásticos do tipo

policarbonato, empregados na produção de garrafas plásticas, e toda uma lista de metais

altamente tóxicos para os seres humanos e o ambiente, como o mercúrio, arsênico,

cromo etc.

A própria modificação na escala de tamanho dos elementos químicos já

existentes – por meio da tecnologia atômica, mais conhecida como nanotecnologia –

produzem grandes modificações nas características dos elementos químicos

(condutividade elétrica, reatividade, resistência, cor e, especialmente importante,

toxicidade).189 Os novos e os antigos materiais espalhados e dispersos pelo ambiente

podem ser um dos principais fatores para o recrudescimento de uma série de

enfermidades: câncer, leucemia, problemas no sistema nervoso etc.190

188 PORTO-GONÇALVES, Carlos Walter. A globalização da natureza e a natureza da globalização. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006. p. 115. 189 Uma substância que é vermelha quando tem um metro de largura pode ser verde quando sua largura for de uns poucos nanômetro; o carbono em forma de grafite é macio e maleável, mas em escala nanométrica (escala do biolionésimo de metro), torna-se mais resistente do que o aço; apenas um grama de material catalisador, feito com partículas de 10nm, é cerca de 100 vezes mais reativo do que a mesma quantidade do mesmo material feito com partículas de 1 mícron (um mícron é 1.000 vezes maior do que um 1nanômetro). 190 Tornou-se absolutamente verdadeira a afirmação que Henry Miller fez na década de 1940: de que “no mundo industrial tudo é sujo, degradado, aviltado”. MILLER, Henry. Pesadelo Refrigerado. São Paulo: Francis, 2006. p. 43.

Page 93: Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de …livros01.livrosgratis.com.br/cp142532.pdf · Milhares de livros grátis para download. ANDRÉ VILLAR GOMEZ REVOÇÃO TECNOLÓGICA

92

As inovações tecnológicas e as pressões dos interesses econômicos empurram

uma série de novas substâncias no mercado muito antes de se saber sobre os efeitos que

elas podem causar. Aplica-se uma lógica de curto prazo, inteiramente irresponsável e,

no limite, suicida. Os efeitos que esse conjunto de substâncias isoladas e combinadas

pode provocar nos seres humanos e em outros seres vivos escapa à ciência e às

tecnologias modernas. O próprio fundamento da ciência ocidental moderna, que opera

com o método analítico, com a separação entre natureza e cultura e entre sujeito e

objeto, baseada no princípio de causalidade, quase sempre linear e determinista, não é

capaz de dar conta das complexas interações envolvidas. Cada investigação científica

pode garantir suas conclusões apenas nas condições em que a pesquisa foi efetivada.

Portanto, não correspondem às situações do mundo enquanto tal. No mundo real, onde

tudo interage com tudo, a complexidade é de tal ordem que ninguém poderá afirmar

peremptoriamente que o efeito de uma determinada ação será exatamente aquele

previsto no início da ação. A ciência se vê então obrigada a reconhecer a complexidade

e o próprio “princípio de incerteza” do qual nos advertia Heisemberg.191

5. 2. Tecnologia nuclear

A energia fóssil é responsável por três quartos da energia consumida atualmente.

O esgotamento do petróleo – que deve acabar, pelo menos em sua forma

economicamente aproveitável, até meados do século XXI – revela sobejamente os

limites físicos de um modo de produção e de vida fossilista e petroleocêntrico.192 No

191 A Mecânica Quantica é uma teoria desenvolvida nos anos 20 do século XX a partir do Princípio da Incerteza de Heisemberg – enunciado em 1927 – e que pretende estudar fenômenos que ocorrem em escalas extremamente reduzidas. Segundo esta teoria, desenvolvida por Werner Heisemberg, Erwin Schrodinger e Paul Dirac, as partículas deixam de ter posições e velocidades distintas e definidas que não podiam ser observadas e passam a ter um estado quântico resultante da combinação da posição e da velocidade. Geralmente a mecânica quântica não estabelece um único resultado concreto para cada observação. Mas, ao invés disso, um determinado número de resultados possíveis e a probabilidade de cada um. A mecânica quântica introduz assim um elemento de imprecisão ou acaso na ciência. A impossibilidade de prever os fenômenos não é considerada uma simples deficiência humana ou experimental. Admite-se que ela seja inerente à própria natureza. Esta interpretação do Princípio das Incertezas foi desenvolvida mais tarde por Niels Bohr. 192 Os hidrocarburetos derivados do petróleo e do gás natural são presentemente responsáveis por mais da metade da energia primária ofertada no planeta. Cerca de 35,3% da energia total é fornecida pelo petróleo; 21,1% pelo gás natural; 23,2% pelo carvão; 9,5% pela biomassa tradicional (lenha e outros combustíveis); 6,5% de origem nuclear; 2,2% de origem hidroelétrica; 1,7% provém do tratamento moderno da biomassa (álcool, biodísel, resíduos pulverizados); 0,5% das novas fontes renováveis (energia solar, eólica, vulvânica). Portanto, os combustíveis fósseis (petróleo, gás e carvão) contribuem assim com a avassaladora predominância de 79,9% do total, sendo 56,4% a parcela referente ao petróleo e ao gás

Page 94: Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de …livros01.livrosgratis.com.br/cp142532.pdf · Milhares de livros grátis para download. ANDRÉ VILLAR GOMEZ REVOÇÃO TECNOLÓGICA

93

entanto, o capitalismo tem se movimentado no sentido de alargar a sua base energética.

A energia nuclear é uma das novas fontes de energia criadas em meados do século XX.

Essa energia que existe originalmente nas estrelas foi gerada aqui na Terra por

meio da tecnociência. Ela é obtida por meio da fissão dos átomos de urânio. A

desintegração atômica libera uma grande quantidade de energia. O processo de

produção da energia atômica é o mesmo que ocorre na explosão de uma bomba nuclear.

A diferença reside apenas que a utilização civil requer o controle da desintegração dos

átomos de urânio. A transformação dessa energia em energia elétrica é semelhante ao de

uma termoelétrica convencional. Mas com uma enorme diferença: em lugar de uma

caldeira encontra-se um reator nuclear. No entanto, a sua função é a mesma: ela fornece

o calor que aquece a água, cujo vapor movimenta as turbinas, gerando energia elétrica.

A energia nuclear é um empreendimento altamente problemático. O emprego

militar dessa tecnologia abriu uma sombria página na história da humanidade: uma

capacidade de destruição inaudita, inclusive de destruir-se a si própria. Mas ela também

apresenta grandes riscos em seu emprego civil. Os inúmeros acidentes nucleares que

ocorreram desde meados do século XX – como os de Chernobil e o de Three Mile

Island, por exemplo – comprovam-no sobejamente.

Mas essa tecnologia é perigosa e destrutiva mesmo quando restrita ao uso civil

livre de acidentes. Um dos mais graves problemas reside no lixo produzido pela

indústria nuclear. O plutônio é a substância que resulta da desintegração atômica do

urânio. Ele consiste num elemento químico altamente tóxico, cujos efeitos nocivos

perduram por um intervalo de tempo extremamente longo: aproximadamente 100 mil

anos. Um intervalo equivalente ao do surgimento da espécie humana.

Cada reator nuclear produz cerca de vinte toneladas de lixo atômico por ano, dos

quais duzentos quilos de plutônio. A totalidade do parque nuclear contemporâneo – de

cerca de quinhentos reatores – produzem a cada ano algo em torno de 10 mil toneladas

de resíduos tóxicos, dos quais 100 toneladas de plutônio. A armazenagem do lixo

radioativo requer, em primeiro lugar, condições geológicas adequadas, ou seja, áreas

livres de todo movimento de vulcanismo interno. Em segundo lugar, exige cuidados e

investimentos constantes. E não apenas por algumas poucas décadas. Mas por milhares

de anos. Está claro que ninguém pode garantir tal coisa.

natural. Porto, Mauro. O crepúsculo do petróleo: acabou-se a gasolina, salve-se quem puder! Rio de Janeiro: Brasport, 2006. pp. 25, 26.

Page 95: Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de …livros01.livrosgratis.com.br/cp142532.pdf · Milhares de livros grátis para download. ANDRÉ VILLAR GOMEZ REVOÇÃO TECNOLÓGICA

94

O tratamento do lixo radioativo é uma solução mais adequada. Mas ela também

depende da estocagem do material radioativo durante décadas, ou mesmo séculos, à

espera de uma diminuição substancial da radioatividade. Outro problema reside no

desmantelamento dos reatores nucleares em fim de carreira. Os reatores nucleares

duram cerca de trinta a sessenta anos, talvez um pouco mais, também exigem décadas

de espera para que o nível de radioatividade baixe e seja possível entrar nesse ambiente

com menor perigo.

A racionalidade que preside tal tecnologia obedece à visão irresponsável e de

curto prazo cuja máxima é depois de mim, o dilúvio.193 Emprega-se uma nova

tecnologia visando atender as demandas energéticas do capitalismo e as mais nefastas

conseqüências ficam para as gerações futuras. 194

5. 3. Engenharia genética Para o capital e para o seu sistema tecnológico a natureza mesma se converteu

num problema. É visto como problemático tudo o que há nela de aleatório, de não-

planejado, de não-racionalizado, de caótico e de imprevisível. Ambos consideram que a

natureza “deve ser domesticada, dominada, suprimida, se possível, por uma ordenação

racional do mundo que dele erradique as incertezas, as imprevisibilidades”.195 A

supressão da natureza tem um claro objetivo econômico: criar um monopólio das

riquezas da Terra. Todos os bens – mesmo aqueles que eram outrora fornecidos pela

natureza – devem ser transformados em objeto de comércio. No limite, ele quer se

tornar o senhor absoluto sobre a vida e a morte de todas as pessoas.

193 “A energia nuclear é o „depois de nós, o dilúvio‟ ou, se preferir, „aproveitemos agora e deixemos que os nossos descendentes paguem a conta, se forem capazes‟. REEVES, Hubert. Mal da Terra: Paz da Terra, 2006. p. 86. 194 A energia nuclear atende hoje a cerca de 6% do total da energia produzida no planeta. O aumento da utilização dessa fonte de energia requer a ampliação da quantidade de reatores nucleares, o que, sem dúvida, aumenta os riscos e os problemas que eles necessariamente acarretam. No entanto, em que pese os riscos, em março de 2001, os Estado Unidos decidiu retomar a produção de energia nuclear. O projeto Nuclear Power 2010 tem por objetivo a construção de novas centrais nucleares até o final da primeira década do século XXI. Este movimento será acompanhado por outros países no mundo, inclusive na Europa. O mesmo ocorre no Brasil. Prevê-se que a usina nuclear de Angra 3 seja colocada em funcionamento até o ano de 2012 e que 50 novas usinas sejam construídas nos próximos 50 anos. JUNIOR, Cirilo. Programa nuclear brasileiro prevê 50 novas usinas em 50 anos, diz Lobão. Folha Online, 12/09/2008. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/folha/dinheiro/ult91u444354.shtml 195 GORZ, André. O imaterial: conhecimento, valor e capital. São Paulo: Annablume: São Paulo, 2005. p. 87.

Page 96: Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de …livros01.livrosgratis.com.br/cp142532.pdf · Milhares de livros grátis para download. ANDRÉ VILLAR GOMEZ REVOÇÃO TECNOLÓGICA

95

“A abolição da natureza tem como motor [...] o projeto do capital de substituir as riquezas primordiais, que a natureza oferece gratuitamente e que são acessíveis a todos, por riquezas artificiais e comerciais: transformar o mundo em mercadorias das quais o capital monopoliza a produção, posando assim como mestre da humanidade”.196

A vida tal como existiu até então, resultado de um processo de bilhões de anos,

já não mais basta para satisfazer as necessidades da lógica abstrata da rentabilidade

empresarial. Por esse motivo o sistema busca criar novas formas de vida: gerar as

criaturas do capital. Assim, se até meados do século XX, o capital limitava-se a

explorar e revolver a Terra inteira para alimentar o processo de produção de mercadoria,

já nas últimas décadas desse século tornou-se claro que tal processo precisa dar um

passo além.

“A terra, as florestas, os rios, os oceanos e a atmosfera têm sido colonizados, depauperados e poluídos. O capital agora tem que procurar novas colônias a serem invadidas e exploradas, para dar continuidade a seu processo de acumulação. Essas novas colônias constituem [...] os espaços internos dos corpos das mulheres, plantas e animais”.197

A tecnologia da chamada engenharia genética constitui um passo da maior

relevância nesse processo de recriação da natureza. A engenharia genética consiste num

conjunto de técnicas e métodos utilizados para construir moléculas de DNA

recombinante, introduzindo-as depois nas células receptoras. O processo tem duas fases

principais. A primeira – em tubo de ensaio – é a extração de DNA das células de um

organismo doador e a construção de uma molécula portadora – um vetor – que contém o

gene visado. A segunda fase consiste em implantar o vetor (geralmente plasmídeos ou

vírus) no organismo receptor. Os genes inseridos só funcionam se com eles for inserido

um promotor, uma espécie de “interruptor gênico”, para ativá-los. O promotor mais

usado é um gene viral, extraído do vírus do mosaico da couve-flor (ele se encontra em

90% dos cultivos transgênicos).

196 Id. Ibid. p. 88 197 Id. Ibid. p. 28.

Page 97: Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de …livros01.livrosgratis.com.br/cp142532.pdf · Milhares de livros grátis para download. ANDRÉ VILLAR GOMEZ REVOÇÃO TECNOLÓGICA

96

É verdade que os seres humanos utilizam alguma espécie de biotecnologia nas

atividades agropecuárias há mais de 10 mil anos (desde a revolução neolítica), e,

portanto, produzem conhecimentos e técnicas aplicadas sobre os seres vivos. No

entanto, essa forma de intervenção é qualitativamente diferente do que faz a engenharia

genética. Até então só era possível fazer cruzamentos de variedades ou espécies

aparentadas. Hoje, porém, tais barreiras foram franqueadas, tornando-se possível

intercambiar artificialmente o material genético de dois organismos escolhidos ao acaso.

Portanto, a manipulação genética passa por cima das barreiras biológicas que separam

as espécies. Os mecanismos orgânicos naturais de evolução são colocados de lado e

passa-se a realizar intervenções nas interações gênicas naturais. Passou-se a cruzar

espécies inteiramente diferentes: sapos com tomates, peixes com batatas etc., tudo isso

auxiliado por vírus e bactérias – uma sopa indigesta.

A manipulação genética principiou a se desenvolver a partir de 1953, quando foi

decifrado o código genético. Desde os anos de 1970, têm-se realizado alterações

genéticas em micróbios. A partir dos anos de 1980, essa tecnologia também foi

empregada em animais e plantas. Entretanto, a engenharia genética só começou a ser

empregada em larga escala em 1986. No início da década de 1990, ela já envolvia

milhares de hectares em todo o mundo, particularmente no cultivo de soja, canola (uma

variação transgênica da colza), milho e algodão. Em poucos anos a descoberta científica

tornou-se uma tecnologia aplicada em larga escala.

Sabe-se que a natureza é um sistema muito complexo, e que, portanto, a

aplicação de uma tal tecnologia só poderia ser feita com muita cautela – supondo que

houvesse alguma necessidade para criar e aplicar essa tecnologia, o que não é, de modo

algum, o caso. Portanto, seria necessário obedecer ao “princípio de precaução”.198 Quer

dizer: não se poderia dar um passo tão arriscado enquanto houvesse tanta incerteza

envolvida. Entretanto, tal ponderação é algo que o capitalismo não possui e que se torna

198 O “princípio de precaução” definido pela ONU em 1994 é assim enunciado: “Quando há risco de perturbações graves ou irreversíveis, a ausência de certezas científicas absolutas não deve servir de pretexto para adiar a adoção de medidas”. Diante da complexidade do mundo biológico e das interações ecológicas, do tamanho descomunal da nossa ignorância, da possibilidade de desleixo, dos acasos e das contingências, das distorções do modo de produção capitalista e de outros relevantes aspectos de nossas relações sociais, e diante da magnitude dos riscos presentes, impõe-se uma atitude de extrema prudência em se realizar intervenções na natureza. Um critério elementar de prudência recomenda que se pense várias vezes antes de manipular a constituição molecular dos organismos vivos ou interferir no funcionamento dos ecossistemas. Como observa Jorge Riechmann: “Não porque eles sejam „sagrados‟ ou imperfectíveis, mas porque de saída é bem mais provável que nossa intervenção piore tudo do que melhore alguma coisa. É a isso que nos referimos ao qualificar as tecnologias do ADN recombinante de „intrinsecamente perigosas‟”. RIECHMANN, Jorge. Cultivos de alimentos transgênicos: um guia crítico. Petrópolis, RJ: Vozes, 2002. p. 74.

Page 98: Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de …livros01.livrosgratis.com.br/cp142532.pdf · Milhares de livros grátis para download. ANDRÉ VILLAR GOMEZ REVOÇÃO TECNOLÓGICA

97

cada vez menos provável de prevalecer numa época em que todo o sistema econômico-

tecnológico ingressa num período de aceleração vertiginosa.

A enorme disparidade entre os recursos empregados em pesquisas sobre os

impactos sociais e ecológicos da engenharia genética e aqueles que são aplicados nas

pesquisas da engenharia genética ilustra muito bem este problema. Enquanto os

recursos alocados às aplicações da engenharia genética não param de crescer, são

ínfimos os recursos disponíveis para as pesquisas relativas aos riscos e perigos a ela

associados.199

Que as referidas tecnologias não visam melhorar a vida das pessoas revela-se de

forma muito límpida em algumas das criações da biotecnologia capitalista. Um deles é

fornecido pela empresa Monsanto. Essa empresa criou plantas geneticamente

desenvolvidas resistentes ao seu próprio herbicida (Roundaup) apenas para fazer uma

venda casada ao agricultor. Outro exemplo ainda mais grave são as sementes

Terminator: as sementes estéreis, incapazes de germinar após a colheita. Assim, se o

agricultor quiser plantar, ele terá de comprar eternamente a semente produzida pelas

corporações. Trata-se aqui de uma estratégia perversa de destruir a produtividade

inerente da natureza para conferir o monopólio dessa capacidade ao capital.

A introdução da tecnologia da engenharia genética mostra até aonde tem

chegado o processo de conversão dos potenciais produtivos em forças destrutivas: ele

atinge agora até mesmo a produção de alimentos. Muito do que se consome no planeta

inteiro pode não ser nada mais do que veneno. Talvez uma das maiores armas de

destruição em massa jamais criada pelos seres humanos.

5. 4. Biologia sintética A tecnologia do DNA recombinante é um passo elementar no processo de

criação de novas formas de vida. Ela se limita a “embaralhar” o material genético de

espécies diferentes de seres vivos. A biologia sintética constitui um passo a mais nesse

processo de recriação da natureza. Trata-se do processo de produção da vida à la carte.

199 Na França, o orçamento para pesquisa ecológica no sentido abrangente (incluída a biologia de populações) não chega a 5% do total destinado às “ciências da vida”. Na República Federal Alemã, no período 1985-1989 – crucial no desenvolvimento das aplicações comerciais para essas biotecnologias – o Ministério Federal de Pesquisa reservou quase um bilhão de marcos para as aplicações da manipulação genética, enquanto destinou somente vinte milhões para pesquisa em biossegurança. Nos Estados Unidos, o Departamento da Agricultura destinou à avaliação de riscos apenas 1% das verbas destinadas à pesquisa biotecnológica. Esta é a proporção que vigora no setor público: cerca de cinqüenta ou de cem para um. Não precisa muito esforço para imaginar o que acontece no setor privado. Id. Ibid. p. 70.

Page 99: Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de …livros01.livrosgratis.com.br/cp142532.pdf · Milhares de livros grátis para download. ANDRÉ VILLAR GOMEZ REVOÇÃO TECNOLÓGICA

98

Ou seja: de construir organismos vivos a partir do zero. Mais precisamente: a partir da

fabricação de módulos de DNA artificial, programados para serem montados uns com

os outros, criados ao gosto do “desenhista”.

Os riscos envolvendo essa tecnologia são ainda maiores. Está claro que a vida

não se reduz a tijolos montáveis nem a um programa de computação. A natureza não

pode ser desmontada e remontada como se tratasse de peças de um relógio.

“Experimentar com organismos vivos novos e artificiais que poderiam se liberar ao

ambiente significa uma enorme ameaça a biossegurança das pessoas e do planeta”

adverte a Dra. Doreen Stabinsky, do Greenpeace Internacional.200 Não é difícil imaginar

uma situação em que os cientistas percam o controle sobre suas próprias criações.

O laboratório científico não mais constitui uma “esfera separada” dos demais

contextos da vida social. Ele foi integrado à vida de uma forma bem peculiar:

transformou a totalidade dos seres vivos numa gigantesca cobaia coletiva e o planeta

inteiro em laboratório de umas quantas corporações. Enquanto isso o capital – com os

seus novos engenhos – assume a pose de criador supremo, uma espécie de Deus: o

criador de novas formas de vida. No entanto, suas criações são os monstros de

Frankenstein de nossos dias. Em primeiro lugar, tais criações não são capazes de

compensar a enorme destruição à biodiversidade que o capitalismo tem criado ao longo

dos anos. E, em segundo lugar, elas submetem as pessoas e todos os outros seres a

enormes e desnecessários perigos.

Não bastasse isso, as novas biotecnologias capitalistas podem contribuir com a

produção de armas com inaudito poder de destruição. É possível construir um vírus

maligno que afete um determinado grupo de seres humanos utilizando informações

genéticas que são de domínio público. Diferentes grupos de investigadores já

sintetizaram vírus completos: bacteriófagos, vírus da pólio e outros. Basta lembrar que

em outubro de 2005, biólogos do Center for Disease Control dos Estados Unidos

recriaram o vírus da gripe espanhola de 1918, que matou entre 50 a 100 milhões de

pessoas. Novas e sinistras criações estão em curso nos laboratórios de empresas e do

Estado.

200 Alarma sobre biologia sintética: coalición global demanda debate público y supervisión inmediata. Acesso: www.etcgroup.org/upload/publication/pdf_file/6

Page 100: Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de …livros01.livrosgratis.com.br/cp142532.pdf · Milhares de livros grátis para download. ANDRÉ VILLAR GOMEZ REVOÇÃO TECNOLÓGICA

99

5. 5. Nanotecnologia Em dezembro de 1959, o futuro Prêmio Nobel Richard Feynman deu uma

palestra visionária chamada “Há espaço de sobra lá embaixo”. O evento era um

encontro da American Physical Society no California Instititue of Technology

(Caltech). Suas palavras definiam a nanotecnologia muito antes que qualquer coisa em

nano ter aparecido no horizonte:

“O assunto sobre o qual quero falar – disse Feynman – é o problema da manipulação de controle de coisas em pequena escala [...] O que demonstrei é que há espaço, que se pode diminuir o tamanho das coisas de forma prática. Agora quero mostrar que há espaço de sobra. Não vou discutir como vamos fazer isso, mas apenas o que é possível em princípio [...] Não vamos fazê-lo porque simplesmente ainda não temos as soluções”.201

Tais palavras pareciam troça. Ou soavam como que saídas da boca de um

visionário: “Não tenho receio de considerar como questão final se, por fim, no futuro

distante, nós pudermos arranjar os átomos da maneira que quisermos [...]. O que

aconteceria se pudéssemos arranjar átomos, um por um, do jeito que quiséssemos?”.

Feynman observava que se fosse possível operar no nível dos átomos, então seria

possível desencadear uma importante revolução tecnológica. Sua inspiração veio da

descoberta recente do código genético. Essa descoberta sugeria que enormes

quantidades de informações podem ser concentradas no espaço de algumas poucas

moléculas. Feynman imaginou que, se fossemos capazes de manipular os átomos,

poderíamos fazer algo análogo. Seríamos capazes, por exemplo, de armazenar as

informações contidas nos vinte quatro milhões de volumes da Biblioteca do Congresso

dos Estados Unidos na cabeça de um alfinete. No entanto, na época em que proferiu a

palestra, os computadores eram ainda geringonças enormes. Eles ocupavam metades das

salas em que eram colocados. E, embora Feynman falasse em mexer em átomos,

ninguém jamais tinha visto um deles. Trinta anos depois, o sonho do físico ganhou

forma na ciência do muito pequeno: a nanotecnologia. Assim chamada porque seus

201FEYNMAN, Richard. There’s plenty of room at the bottom. Disponível em http://www.zyvex.com/nanotech/feynman.html

Page 101: Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de …livros01.livrosgratis.com.br/cp142532.pdf · Milhares de livros grátis para download. ANDRÉ VILLAR GOMEZ REVOÇÃO TECNOLÓGICA

100

objetos de estudo costumam ser medidos em nanômetros: na escala do bilionésimos de

metro.

Essa ciência só pode surgir com o desenvolvimento dos meios técnicos. Os

novos microscópios foram fundamentais. Um dos passos mais significativos foi a

invenção, em 1981, do microscópio de varredura por tunelamento eletrônico (sacnning

tunneling microscope – STM) por Gerd Binning e Heinrich Roher, do laboratório da

IBM em Zurique. Esse microscópio permitiu visualizar e investigar pela primeira vez o

relevo atômico da superfície de um corpo. O STM deu origem a uma família de

instrumentos de visualização e manipulação na escala atômica denominados

microssondas de varredura (scanning probe microscopes – SPM). Além da visualização

nanométrica de uma superfície, os SPM permitem manipular átomos e moléculas, como

foi demonstrado em 1990, quando Donald Eigler e Erhard Schweizer, do laboratório da

IBM em Almaden, Califórnia, escreveram o logotipo IBM posicionando 35 átomos de

xenônio sobre uma superfície de níquel. Os humanos tornaram-se então capazes de

tocar o coração da matéria. E foram além. No início da década de 1990, Reymond

Ashoori, físico nos AT&T Bell Labs, havia criado um átomo artificial: um átomo cuja

contagem de elétrons era controlável por seu fabricante humano, de zero a sessenta.

“Podemos fabricar átomos de qualquer tamanho”, disse ele. Horst Storner, colaborador

de Ashoori na AT&T acrescentou: “Pode-se fazer qualquer tipo de átomo artificial –

átomos longos e finos ou átomos grandes e redondos”. A conclusão disso tudo era a

seguinte: se você pudesse unir alguns desses átomos recentemente criados e com isso

criar sua própria molécula artificial, tornar-se-ia possível produzir um sólido

inteiramente artificial. Nas últimas décadas do século XX, houve novos

desenvolvimentos nos instrumentos óticos. Em agosto de 2002, a IBM anunciou que

havia desenvolvido um novo microscópio eletrônico com um poder de resolução capaz

de alcançar o raio de um só átomo de hidrogênio.

Essas invenções marcam uma etapa decisiva na mudança dos paradigmas da

física no século XX. Tinha-se ido do estágio de inexistência de prova dos átomos, aos

átomos reais e inobserváveis, depois para os átomos reais, visíveis, e mesmo

separadamente móveis e, por fim, para as criações atômicas artificiais sob medida. A

humanidade já não esta mais “confinada” aos blocos construtores da matéria da

natureza. Agora ela se torna capaz de fazer os seus próprios blocos. Esse conjunto de

inovações técnicas tornou possível o surgimento da nanotecnologia. Deixou de ser uma

mera visão de um cientista isolado.

Page 102: Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de …livros01.livrosgratis.com.br/cp142532.pdf · Milhares de livros grátis para download. ANDRÉ VILLAR GOMEZ REVOÇÃO TECNOLÓGICA

101

Eric Drexler - pesquisador afiliado ao Laboratório de inteligência artificial do

Massachusetts Institute of Technology (MIT) – fez de Feynman um profeta dos novos

tempos e pôs mãos a obra para que a nova ciência viesse ao mundo. Eric Drexler não é

um pesquisador do tipo que se limita a censurar sua imaginação. Ele pensa longe

quando se trata de mostrar os novos horizontes que se abrem com o surgimento dessa

nova tecnologia. Uma das idéias de Drexler é a criação de nanomáquinas: pequenos

robôs invisíveis – chamados por ele de “montadores” – que produziriam objetos

manipulando átomos e moléculas individualmente. A manufatura molecular promoveria

uma revolução radical no modo de produção. Ela deixaria muito para trás tudo que

ocorrera até então na história dos progressos técnicos e industriais. Seria uma quarta e

muito mais profunda revolução tecnocientífica.

Essa tecnologia, segundo ele, poderia prover a humanidade de uma riqueza

material infinita, sem qualquer esforço humano. Representaria o fim de qualquer limite

para o crescimento. Estaríamos livres dos entraves e constrangimentos da matéria. “O

mundo da matéria bruta permite um crescimento imenso, ainda que limitado. Mas o

mundo das idéias e das invenções está aberto a uma evolução e a mudanças sem fim. O

mundo do possível parece bastante espaçoso”.202 Com a nanotecnologia, todas as coisas

poderiam ser produzidas contando apenas com alguns tantos elementos fartamente

disponíveis no universo. Portanto: um método de produção inteiramente novo. Não se

trata mais de produzir um objeto moldando um grande fragmento de matéria. Mas de

criar os objetos de baixo para cima. Quer dizer: montando-os a partir de suas menores

partes: os átomos e as moléculas.

No entanto, essa tecnologia revolucionária apresenta graves riscos. O que

aconteceria se essas máquinas moleculares saíssem do controle? O que ocorreria se elas

abrissem caminho para fora do laboratório? Poderia surgir um devorador onívoro, muito

pior do que qualquer epidemia ou praga, capaz de consumir toda a matéria orgânica e

destruir a biosfera no prazo de algumas poucas horas. O planeta poderia ser rapidamente

transformado numa “gosma cinzenta”. Esses novos seres, observa Eric Drexler,

“poderiam se espalhar como o pólen, se replicar rapidamente e reduzir a biosfera em

poeira em alguns dias”.203 Eles seriam tão resistentes, tão pequenos e se propagariam de

um modo tão veloz que seria muito difícil pará-los. Mais uma vez ficamos diante de

algo que mais parece ficção. De fato tornou-se matéria para o techno-thriller de Michael

202 DREXLER, Eric. Engins de création: l´avènement des nanotechnolgies. Paris: Vuibert, 2005. p. 209. 203 Id. Ibid. p. 216.

Page 103: Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de …livros01.livrosgratis.com.br/cp142532.pdf · Milhares de livros grátis para download. ANDRÉ VILLAR GOMEZ REVOÇÃO TECNOLÓGICA

102

Crichton, Presa (Prey), que relata uma clássica história em que os robôs terminam por

destruir os humanos que os criaram. Entretanto, o problema existe e pode se tornar

muito real. Ele corre por trás das costas da maior parte das pessoas. Os acontecimentos

mais decisivos de nossa época estão fora do alcance de nossas vistas e mesmo de nossa

imaginação.

Todavia, esse passo da nanotecnologia – a manufatura molecular – ainda está

longe de ser alcançado. Talvez precise de mais algumas décadas. De todo modo, vale

lembrar uma das três leis da tecnologia de Arthur Clarke: “Quando um cientista afirma

que alguma coisa é possível, ele está quase certamente certo. Quando ele afirma que

alguma coisa é impossível, ele está muito provavelmente errado”.204 Muitos bilhões de

dólares que estão investidos nas pesquisas em torno da nanotecnologia. Inúmeros

laboratórios estão se dedicando aos avanços dessa tecnologia. Não devemos considerar

tal tecnologia irrealizável tão-somente porque nos encontramos ainda afastados de sua

plena consecução.

Mas os riscos que os humanos e o ambiente em geral correm por conta da

nanotecnologia já são uma realidade. Um dos desdobramentos iniciais dessa nova

tecnologia é a utilização de nanopartículas. Partículas que, devido a sua redução à

nanoescala, adquirem propriedades muito diferentes daquelas apresentadas em escala

natural. Dezenas de companhias se dedicam atualmente à produção de nanopartículas. E

uma série de produtos já as utilizam: agrotóxicos, cosméticos, protetores solares,

produtos alimentícios etc. Uma série de novos produtos se encontra em estágio de

desenvolvimento.205 Os produtos são comercializados sem que se faça a menor menção

nas embalagens e antes mesmo de qualquer discussão sobre o assunto.

Faz bem pouco tempo, as partículas nanométricas eram recebidas como algo

benéfico ou totalmente inofensivo aos seres humanos e ao ambiente. Entretanto, alguns

cientistas alertam sobre os riscos e perigos das nanopartículas. Ao que tudo indica, as

nanopartículas são mais tóxicas do que os mesmos compostos em escala maior, devido

à sua maior mobilidade e aumento de reatividade.206 Existe um enorme descompasso

entre o emprego açodado dessa tecnologia e os estudos sobre a toxicologia de

204 As outras duas são: 1) “A única maneira de descobrir os limites do possível é se aventurar um pouco além deles e penetrar no impossível”. 2) “Qualquer tecnologia suficientemente avançada é indistinguível da magia”. Citas por KURZWEIL, Ray. A era das máquinas espirituais. São Paulo: Aleph, 2007. p. 34. 205 ETC Group. Nanotecnologia: os riscos da tecnologia do futuro: saiba sobre produtos invisíveis que já estão no nosso dia-a-dia e o seu impacto na alimentação e na agricultura. Porto Alegre: L&PM, 2005. p. 29. 206 ETC Group. La inmensidad de lo mínimo. Disponível em: http://www.etcgroup.org

Page 104: Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de …livros01.livrosgratis.com.br/cp142532.pdf · Milhares de livros grátis para download. ANDRÉ VILLAR GOMEZ REVOÇÃO TECNOLÓGICA

103

nanopartículas engenheiradas. Devido à falta de conhecimento a respeito, alguns

especialistas recomendam que a liberação de nanopartículas no meio ambiente seja

reduzida ou proibida. Esta é a posição da Real Sociedade e a Real Academia de

Engenharia acerca dessa tecnologia:

“Até que se tenha mais conhecimento a respeito dos impactos ambientais, consideramos importante que a liberação de nanopartículas e nanotubos, no meio ambiente, seja evitada o máximo possível. Especificamente recomendamos, como uma medida de precaução, que as fábricas e os laboratório de pesquisa tratem as nanopartículas e os nanotubos manufaturados como se eles fossem fontes de resíduos perigosos e que a utilização de nanopartículas em aplicações ambientais como remediação de águas subterrâneas seja proibida”.207

No entanto, a lógica de curto prazo do capital se choca com qualquer “princípio

de precaução”. Os investimentos na nanotecnologia não cessam de aumentar. Novos

produtos criados por essa nova tecnologia são quase que imediatamente lançados no

mercado. Não há tempo para sopesar os riscos envolvidos. Também a nanotecnologia

transforma o planeta numa gigantesca cobaia.

Há também o da corrida armamentista pela conquista dessa nova tecnologia. O

almirante David E. Jeremiah, vice-diretor do Estado-Maior Conjunto das Forças

Armadas dos Estados Unidos, resume o sentido dessa corrida. Ele está seguro de que

mais cedo ou mais tarde outras potências poderão desenvolver essa tecnologia. E por

isso não quer que os Estados Unidos fiquem para trás: “Queremos coisas, como a

nanotecnologia, em pesquisa e desenvolvimento para continuamos mantendo a frente de

inimigos em potencial”.208 A nanotecnologia pode tornar possível a produção de armas

apavorantes: diminutos invasores invisíveis, que nunca apareceriam em qualquer tela de

radar inventada até agora. Eles poderiam ser programados para ultrapassar a fronteira

em uma rajada de vento, entrar no corpo humano e dissolvê-lo rapidamente. Quem

dispuser de tais armas, obterá um enorme poder de destruição.209

207 The Royal Society & The Royal Academy of Engineering. Nanoscience e nanotechnologies: opportunities and uncertainties. Disponível em: http://www.nanotec.org.uk/finalReport.htm 208 EDWARD, Regis. Nano: a ciência emergente da nanotecnologia: refazendo o mundo molécula por molécula. Rio de Janeiro: Rocco, 1997. p. 24. 209 “Os especialistas prevêem que a nanotecnologia irá mudar a forma de fazer guerras mais do que a invenção da pólvora. [...] irá produzir soldados com corpos e cérebros “melhorados”. Ela também

Page 105: Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de …livros01.livrosgratis.com.br/cp142532.pdf · Milhares de livros grátis para download. ANDRÉ VILLAR GOMEZ REVOÇÃO TECNOLÓGICA

104

5. 6. Convergência tecnológica A nanotecnologia encontra-se no centro de convergência de outras tecnologias.

Está se buscando fundir quatro importantes tecnologias: a biotecnologia, a informática,

as ciências cognitivas (ou neurais) e a nanotecnologia. A sinergia dessa fusão tende a

proporcionar rápidos avanços tecnológicos em todos esses campos. Destacados

formuladores de políticas e líderes industriais dos Estados Unidos estão desenhando um

projeto “Manhattan” ou “Apolo” de novo tipo, para fundir tecnologias estratégicas em

nano escala.210 Mas não estão sozinhos. Outros governos seguem o exemplo. Também

estão comprometidas as principais corporações de todos os setores industriais: Boeing,

Bayer, Motorola, Mitsubishi, IBM, entre outras.

Quando o mundo conhecido se reduz, literalmente, a átomos e moléculas feitas a

partir dos elementos químicos, esfuma-se a diferença entre o vivo e o não-vivo. Os

tijolos fundamentais da constituição biológica, informática e neuronal estão

“materialmente unificados” na nano escala e, portanto, podem se combinar ou

manipular através da tecnologia atômica. Trata-se de uma tecnologia que visa estender o

controle humano sobre a totalidade da matéria, da vida, do conhecimento e inclusive da

mentalidade coletiva. Certamente nem a sociedade nem a natureza serão às mesmas

depois de seu desenvolvimento. A integridade e a saúde humanas – inclusive a

diversidade cultural e genética – ficarão nas mãos da tecnocracia que dispuser de tais

ferramentas. A tecnologia atômica também trará modificações profundas na produção

conduzirá para o desenvolvimento de armas químicas e biológicas que são mais invasivas, mais difíceis de detectar e, virtualmente, impossíveis de combater. As qualidades de invasividade e invisibilidade de sensores e dispositivos em nanoescala poderiam se transformar em ferramentas de repressão extremamente poderosas. [...] A idéia de que milhares de diminutos sensores poderiam ser espalhados como olhos, ouvidos e narizes invisíveis através dos campos de cultivo e campos de batalha soa como ficção científica. Mas, dez anos atrás, Kris Pister, um professor de robótica da Universidade de Berkley na Califórnia, recebeu financiamento da Agência de Projetos de Pesquisa Avançada em Assuntos de Defesa dos EUA (DARPA) para desenvolver sensores autônomos, cada um deles do tamanho de uma cabeça de fósforo. Utilizando a tecnologia de gravação em sílica, esses motes (sensores de „pó inteligente´) teriam uma fonte própria de energia, capacidade de computação e a possibilidade de detectar e então se comunicar com outros motes da vizinhança. Dessa forma, os motes individuais se auto-organizariam em redes de comutação ad hoc, capazes de transmissão de dados através de tecnologia sem fio (isto é, rádio). O interesse imediato da DARPA, no projeto, era estender redes de pó inteligente pelo terreno do inimigo, para obter informação em tempo real sobre movimentação de tropas, armas químicas e outras condições do campo de batalha, sem ter de arriscar vidas de soldados”. ETC Group. Nanotecnologia: os riscos da tecnologia do futuro: saiba sobre produtos invisíveis que já estão no nosso dia-a-dia e o seu impacto na alimentação e na agricultura. Porto Alegre: L&PM, 2005. pp. 33, 34, 75, 76. A nanotecnologia fornece novos meios para a instauração de guerra high-tech sob a forma de lean destruction. 210 Ver: ROCO, Mihail C. & BAINBRIDGE, William Sims. Converging Technologies for improving human performance: nanotechnology, biotechnology, information technology and cognitive science, NSF-DOC Report, June 2002, Arlington VA, USA. Disponível em: http://www.wtec.org/ConvergingTechnologies/1/NBIC_report.pdf

Page 106: Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de …livros01.livrosgratis.com.br/cp142532.pdf · Milhares de livros grátis para download. ANDRÉ VILLAR GOMEZ REVOÇÃO TECNOLÓGICA

105

agrícola e alimentar em todo o mundo. A convergência entre essas tecnologias em nano

escala ampliam imensamente a força dessas tecnologias enquanto estavam separadas.

Essa tecnologia tornará possível um domínio sobre a natureza e sobre os seres humanos

maiores do que jamais se viu até então na história da humanidade.

Não se pode negligenciar o impacto dessa força que está surgindo nos

laboratórios de grandes firmas e do Estado. Embora elas estejam sendo criadas nos

países centrais do capitalismo, ela atingirá a todos. Está surgindo uma tecnologia que

transformará os mais diversos aspectos da vida humana. Enquanto a teoria do Big Bang

explica as origens do universo, a teoria do pequeno BANG211 poderá promover o fim da

natureza e da sociedade tal como a conhecemos.212

5. 7. Pós-humano Conforme as previsões dos pioneiros da Inteligência artificial, os seres humanos

logo terão de realizar um contínuo e radical upgrade se quiserem acompanhar o

desenvolvimento tecnológico. Sua constituição natural revelar-se-á algo inteiramente

obsoleto frente às demandas de uma sociedade inteiramente plasmada pela tecnologia.

Eles terão então que se atualizar por meio de implantes eletrônicos e utlização de

substâncias químicas para acompanhar o curso do desenvolvimento tecnológico. Enfim:

terão de se transformar em cyborges. Está claro que tal “atualização” não seria uma

escolha, mas sim uma necessidade inescapável. Isto é: ou se adaptam ou ficam para trás.

Na Mínima moralia, Adorno observa que essa alteração da composição técnica

alterava em profundidade a própria subjetividade dos sujeitos que vivem sob o

capitalismo. “Se a integração da sociedade, sobretudo nos sistemas totalitários,

determina os sujeitos a serem cada vez mais exclusivamente aspectos parciais no

contexto da produção material, então a „transformação da composição técnica do

capital‟ prolonga-se nos indivíduos, absorvidos, a rigor, em primeiro lugar constituídos

pelas exigências tecnológicas do processo de produção”.213 No entanto, o curso do

desenvolvimento tecnológico anuncia algo ainda mais perturbador: de que os próprios

211 A unidade operativa das ciências da informação é o bit, a nanotecnologia manipula os átomos, as ciências cognitivas se ocupam dos neurônios e a biotecnologia explora os gens. As letras iniciais dessas três palavras forma a sigla BANG. É com essa sigla que o grupo ETC (Erosão, tecnologia e concentração) designa essa convergência tecnológica. A Fundação Nacional da Ciência (NFS) do governo dos Estados Unidos se refere a esta convergência pela sigla NBIC (nano-bio-info-cogno). 212 Ver, do ETC Group, La estratégia de las tecnologias convergentes: a teoria del pequeño BANG e La inmensidad de lo mínimo. Disponíveis em: http://www.etcgroup.org 213 ADORNO, Theodor. Minima Moralia. São Paulo: Ática, 1993. p. 200, 201.

Page 107: Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de …livros01.livrosgratis.com.br/cp142532.pdf · Milhares de livros grátis para download. ANDRÉ VILLAR GOMEZ REVOÇÃO TECNOLÓGICA

106

seres humanos passem a ser reprogramados e reconfigurados a fim de melhorar seu

desempenho. Sob o peso da “vergonha prometéica”, da qual nos fala Günther Anders,

os humanos teriam que empreender um profundo processo de human engineering.214

Prevê-se que, em função do vertiginoso progresso da computação, a espécie

humana deixará de ser a espécie mais inteligente do planeta – inteligência concebida

como capacidade computacional: memória, capacidade de realizar cálculos etc., mas

deixando de lado todos os outros aspectos que estão ligados à inteligência humana:

sensibilidade, sentimentos, intuição, instinto, idéias, utopias, desejos etc. Caberia à

tecnologia a tarefa de manter os seres humanos no mesmo nível que as suas criações. A

engenharia genética, por exemplo, poderia contribuir para o “melhoramento” do ser

humano, fornecendo-lhes cérebros melhores e metabolismos mais aperfeiçoados. No

entanto, essa tecnologia poderá dar uma contribuição apenas limitada para essa

finalidade. Isso porque os cérebros humanos continuariam sendo construído de proteína

e composto de neurônios. E por isso permaneceriam mais lentos do que os

computadores. Mesmo “um superhomem criado pela engenharia genética – observa

Hans Moravac – não passaria de um robô de segunda classe, concebido com a limitação

de a construção se basear apenas na síntese protéica guiada pelo ADN”.215 Segundo ele,

somente seres humanos “chauvinistas” poderia considerar que a proteína tenha alguma

vantagem em relação aos componentes dos robôs.

Hoje muita gente já vive graças a uma panóplia crescente de órgãos e outras

próteses artificiais. Com o tempo, especialmente com o desenvolvimento das técnicas

robóticas, esse processo tende a ser ainda mais pronunciado. No limite, os seres

humanos poderão transplantar tudo, inclusive o cérebro humano, para um corpo

robótico, especialmente concebido para isso. Mas ainda assim a limitação persistiria.

“Infelizmente, embora esta solução permitisse superar a maioria de nossas limitações

físicas, deixaria inalterada a nossa maior limitação: a inteligência fixa e limitada do

cérebro humano” – assinala Hans Moravac.216 Por isso, talvez não houvesse então uma

outra solução senão a de desmaterializar os próprios humanos, realizando um download

de sua mente para o computador. E assim, conforme Marvin Minsky, nos libertaríamos

de nossa “máquina de carne” – a meat machine: o cérebro e essa “sujeira sangüinolenta”

214 ANDERS, Günther. L’obsolescence de l’homme: sur l’âme à l’époque de la deuxième révolution industrielle. Paris: Éditions de L‟Enciclopédie des Nuisances-Éditions Ivrea, 2002. 215 MORAVAC, Hans. Homens e robots: o futuro da inteligência humana e robótica. Lisboa: Gradiva, 1992. p. 166. 216 Idem. Ibidem. p. 166.

Page 108: Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de …livros01.livrosgratis.com.br/cp142532.pdf · Milhares de livros grátis para download. ANDRÉ VILLAR GOMEZ REVOÇÃO TECNOLÓGICA

107

(bloody mess) que é o corpo humano, e nos tornaríamos puro espírito: espírito

transplantado para uma máquina eletrônica. Esse passo significaria também nada mais

nada menos do que a própria vitória sobre a morte. Ray Kurzweil observa: “Até agora,

nossa mortalidade estava amarrada à longevidade do nosso hardware. Quanto o

hardware falhava era o fim”.217 No futuro, já não mais seremos hardware, mas tão-

somente software. Mas está claro que aí já não seriamos propriamente humanos.

Teremos nos tornado em nada mais do que um cogito: uma pura coisa que pensa.218

O mundo pós-humano seria um passo avançado na subsunção real (formal e

material) do mundo do capital. Num determinado estágio da evolução tecnológica, os

próprios humanos trocarão seu corpo natural por um “esqueleto objetivo” moldado pela

tecnociência e, assim, deixarão a antiga humanidade para trás. Mas esse ser pós-humano

não tem nada que ver com uma espécie de Übermensche (superhomem) de Nietzsche.

Seria antes uma versão high-tech do Untermensche (subhomem) tipicamente capitalista:

um Zé Ninguém turbinado. Isso porque essa human engineering não deve servir para

promover um amplo desenvolvimento das capacidades humanas. Mas tão-somente para

potencializar apenas algumas faculdades: aquelas que são estritamente necessárias ao

mundo do capitalismo tecnocientífico. Trata-se de melhorar as capacidades de cálculo,

de reduzir o período de descanso, de reprimir certos desejos, de trabalhar em condições

inóspitas etc.

“Por mais „sobrehumano‟ que possa ser essa performance comparada às possibilidades ordinárias do corpo [e do pensamento humano], o resultado esperado não é, no entanto, apenas alguma coisa de subhumano, uma pura função instrumental, um „saber-fazer‟ pontual ao qual o „homem real‟ (uma vez que ele não pode ser eliminado) só se liga como um apêndice ao qual se acomoda”.219

217 KURZWEIL, Ray. A era das máquinas espirituais. São Paulo: Aleph, 2007. p. 181. 218 “E, portanto, pelo próprio fato de que conheço com certeza que existo, e que, no entanto, noto que não pertence necessariamente nenhuma outra coisa à minha natureza ou à minha essência, a não ser que sou uma coisa que pensa, concluo efetivamente que minha essência consiste somente em que sou uma coisa que pensa ou uma substância do qual toda a essência ou natureza consiste apenas em pensar. [...] é certo que este eu, isto é, minha alma, pela qual eu sou o que sou, é inteira e verdadeiramente distinta de meu corpo e que ela pode ser ou existir sem ele”. DESCARTES, René. Meditações metafísicas. São Paulo: Abril Cultural, 1991. (Os pensadores) p. 216. 219 Idem. L’obsolescence de l’homme: sur l’âme à l’époque de la deuxième révolution industrielle. Paris: Éditions de L‟Enciclopédie des Nuisances-Éditions Ivrea, 2002. p. 60.

Page 109: Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de …livros01.livrosgratis.com.br/cp142532.pdf · Milhares de livros grátis para download. ANDRÉ VILLAR GOMEZ REVOÇÃO TECNOLÓGICA

108

Mas os homens-máquinas são apenas um passo intermediário. O resultado final

seria a própria extinção dos seres humanos e a sua substituição pelas máquinas. Não é

isto que está inscrito no princípio das máquinas220 que rege a nossa sociedade

industrial? Que tudo deve se tornar algo maquinal e, no limite, deve se transformar

numa criação inteiramente artificial? A extinção dos seres humanos e a sua substituição

por robôs seria mesmo a consumação do curso da evolução. Seriam os robôs os

herdeiros da Terra? Marvin Minsky não tem dúvida: “Sim, mas eles serão nossos

filhos”. E completa: “Devemos nossas mentes às mortes e vidas de todas as criaturas

que estiveram algum dia engajados na luta pela chamada Evolução. Nossa tarefa é zelar

para que todo esse trabalho não termine em desperdício sem sentido”.221 Para Hans

Moravac,

“Estamos muito próximos do tempo em que, virtualmente, a nenhuma função humana essencial, quer física, quer mental, faltará o correspondente artificial. A encarnação desta convergência de desenvolvimentos culturais será o robô inteligente, uma máquina capaz de pensar e de agir como um ser humano, por muito desumana que seja nos pormenores físicos ou mentais. Tais máquinas serão capazes de prosseguir a nossa evolução cultural, incluindo a própria construção e desenvolvimento cada vez mais rápidos, sem necessidade de nós ou dos genes que nos deram origem. Quanto tal acontecer, o nosso ADN tornar-se-á inútil, perderá a corrida evolutiva em favor de um novo tipo de competição. [...] A nossa cultura poderá então evoluir independentemente da biologia humana e de suas respectivas limitações, passando, em vez disso, a ser transmitida diretamente de geração a geração de máquinas inteligentes progressivamente mais capazes. [...] Um mundo pós-biológico, dominado por máquinas pensantes em contínuo auto-aperfeiçoamento, seria tão diferente do nosso mundo de seres vivos como o nosso é diferente do mundo da química que o precedeu”.222

Por mais estranho que tudo isso possam parecer, tais perspectivas não podem ser

simplesmente consideradas como loucas especulações de alguns teóricos amalucados de

Paidos, 1988. pp. 29-33. 221 MINSKY, Marvin. Will robots inherit the Earth? Disponível em: http:??web.media.mit.edu/~minsky/] 222 MORAVAC, Hans. Homens e robots: o futuro da inteligência humana e robótica. Lisboa: Gradiva, 1992. pp. 11, 13, 15.

Page 110: Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de …livros01.livrosgratis.com.br/cp142532.pdf · Milhares de livros grátis para download. ANDRÉ VILLAR GOMEZ REVOÇÃO TECNOLÓGICA

109

seriedade duvidosa. Elas consistem antes no desdobramento de algo que está inscrito no

próprio seio da dinâmica direcional cega do sistema tecnológico e econômico

prevalecente. É verdade que os referidos pesquisadores vêem esse processo de um modo

afirmativo. Todavia, em que pese isso, o fato é que eles, ao seu modo, descrevem

corretamente o sentido de nossa sociedade: uma sociedade que os seres humanos não

controlam as suas criações e que terminam sofrendo com a violência das potências por

eles despertadas: ou eles se adaptam ou eles perecem – tendo a própria extinção como

desfecho último. Assim, eles revelam, malgrado suas intenções, o caráter tecnológico-

totalitário inerente à sociedade capitalista. Uma sociedade cujo progresso deixa entrever

um tempo em que o terceiro Reich nazista aparecerá como um pálido precursor: como

um experimento mesquinho e provinciano, em que pese seu esforço de ter buscado

dominar o mundo inteiro.

“A semelhança desse ameaçador império técnico-totalitário com nosso império de ontem é evidente. Naturalmente, isto parece provocador, pois temos adquirido o doce costume de considerar o império que deixamos para trás, o „terceiro‟ Reich, como um fato único, errático, como um fato atípico de nossa época ou no nosso mundo ocidental. Mas este hábito, evidentemente, não serve como argumento, esta atitude não é mais que uma forma de fechar os olhos. Posto que a técnica é nossa filha, seria tão covarde como estúpido falar da maldição que é inerente como se esta tivesse entrado casualmente em nossa casa pela porta dos fundos. Esta maldição é nossa maldição. Posto que o império da máquina procede por acumulação, e posto que o mundo de amanhã se globalizará e os seus efeitos o abarcaram por inteiro, propriamente falando a maldição se acha todavia diante de nós. Ou seja: temos que esperar que o horror do império por vir eclipse amplamente o do império de ontem”.223

Ainda não chegamos lá. Mas estamos avançando rapidamente para um mundo

de “totalitarismo maquinal”. De todo modo, as tendências em curso deixam entrever

horizontes cada vez mais sombrios. “Tendências são fatos”.224 Não podem ser

negligenciadas.

223 ANDERS, Günther. Nosostros los hijos de Eichmann: carta abierta a Klaus Eichmann. Barcelona: Paidos, 1988. p. 33. 224 Id. Ibid. p. 33.

Page 111: Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de …livros01.livrosgratis.com.br/cp142532.pdf · Milhares de livros grátis para download. ANDRÉ VILLAR GOMEZ REVOÇÃO TECNOLÓGICA

110

6. PRODUÇÃO E DESTRUIÇÃO 6. 1. Forças destrutivas

Em meados do século XIX, Marx e Engels haviam observado uma tendência que

viria prevalecer cada vez mais no curso do desenvolvimento do capitalismo: a

transformação das forças produtivas em forças destrutivas:

“Tais forças produtivas alcançaram com a propriedade privada um desenvolvimento exclusivamente unilateral, tornam-se, em sua maior parte, forças destrutivas, e um grande número delas não pode encontrar a menor utilização sob o seu regime [...]. No desenvolvimento das forças produtivas, ocorre um estágio em que nascem forças produtivas e meios de circulação que só podem ser nefastos no quadro das relações existentes e não são mais forças produtivas, mas sim forças destrutivas (a máquina e o dinheiro)”.225

Essa conversão agora atinge a totalidade do sistema capitalista. Ele se tornou

uma imensa máquina de aniquilação e danificação que atinge a Terra inteira e a

totalidade de seus habitantes. Transformou-se mesmo numa ameaça à sobrevivência da

espécie humana. Essa destrutividade diz respeito às exigências imposta pela economia,

à totalidade do sistema tecnológico e ao conjunto de valores de uso e ao modo de vida

predominante.

Grande parte dos produtos criados pelo capitalismo contemporâneo sofre de uma

sensível “baixa tendencial do valor de uso”.226 Em grande medida, serve apenas para

satisfazer necessidades falsas e artificiais: os “apetites desumanos, refinados,

antinaturais e imaginários”.227 Não se produz artigos para que realmente satisfaçam as

necessidades das pessoas. O que realmente interessa é a reprodução da forma social.228

225 MARX, Karl & ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. São Paulo: Martins Fontes, 1998. p. 72, 85. 226 DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997. p. 33. 227MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo: Abril Cultural, 1978. (Os pensadores) p. 17. 228 “Podemos distinguir tanto as necessidades verídicas como as falsas necessidades. „Falsas‟ são aquelas superimpostas ao indivíduo por interesses sociais particulares ao reprimi-lo: as necessidades que perpetuam a labuta, a agressividade, a miséria e a injustiça. [...] A maioria das necessidades comuns de descansar, distrair-se, comportar-se e consumir de acordo com os anúncios, amar e odiar o que os outros amam e odeiam, pertencem a essa categoria de falsas necessidades.

Page 112: Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de …livros01.livrosgratis.com.br/cp142532.pdf · Milhares de livros grátis para download. ANDRÉ VILLAR GOMEZ REVOÇÃO TECNOLÓGICA

111

Pouco importa que tal consumo embote, danifique ou mate o seu consumidor. Basta tão-

somente que o artigo possa ser vendido com lucro. E mais nada. Com o

desenvolvimento das contradições do capitalismo, tornou-se cada vez mais necessário

promover a “fabricação ininterrupta de pseudonecessidades” e estimular o consumidor a

se converter num “consumidor de ilusões”.229 Promoveu-se assim uma “ruptura absoluta

do desenvolvimento orgânico das necessidades sociais”, liberando um “artificial

ilimitado”, diante do qual o desejo vivo fica desarmado. Processo que culmina na

completa “falsificação da vida social”.230 Mas tal resultado encontra-se inscrito na

própria predominância da forma do valor sobre a produção e às necessidades concretas

das pessoas:

“O valor de troca só pôde se formar como agente do valor de uso, mas as armas de sua vitória criaram as condições de sua dominação autônoma. Ao mobilizar todo uso humano e ao assumir o monopólio de sua satisfação, ele conseguiu dirigir o uso. O processo de troca identificou-se com os usos possíveis, os sujeitou. O valor de troca, condottiere do valor de uso, acaba guerreando por conta própria”.231

O jovem Marx, já observava a tendência do capitalismo à manipulação do

consumo: “O produtor – diz ele – submete-se aos mais abjetos caprichos do seu

próximo, desempenha o papel de proxeneta entre ele e suas necessidades, desperta-lhes

apetites mórbidos e espreita todas as suas fraquezas, para exigir dele, depois, a propina

por estes bons serviços”.232 No universo da manipulação das necessidades, “cada

produto é uma isca com a qual se quer atrair o ser dos outros, seu dinheiro” e “toda

necessidade real ou possível é uma fraqueza que arrastará as moscas ao melado”.233 Mas

é verdade que Marx também notou o outro lado dessa questão. Ele também observou o

Tais necessidades têm conteúdo e uma função sociais determinados por forças externas sobre as quais o indivíduo não tem controle algum; o desenvolvimento e a satisfação dessas necessidades são heterônomos. Independentemente do quanto tais necessidades se possam ter tornado do próprio indivíduo, reproduzidas e fortalecidas pelas condições de sua existência, independentemente do quanto ele se identifique com ela e se encontra em sua satisfação, elas continuam a ser o que eram de início – produtos de uma sociedade cujo interesse dominante exige repressão”. MARCUSE, Herbert. Ideologia da sociedade industrial. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1967. p. 26. 229 DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997. pp. 33-35. 230 Id. Ibid. pp. 45, 46. 231 Id. Ibid. p. 33. 232 MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo: Abril Cultural, 1978. (Os pensadores) p. 17. 233 Id. Ibid. p. 16, 17.

Page 113: Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de …livros01.livrosgratis.com.br/cp142532.pdf · Milhares de livros grátis para download. ANDRÉ VILLAR GOMEZ REVOÇÃO TECNOLÓGICA

112

sentido positivo da ampliação das necessidades humanas. Nos Grundrisse, Marx faz a

seguinte observação:

“o capital impulsiona o trabalho para além dos limites de suas necessidades naturais e criou todos os elementos materiais para o desenvolvimento de uma individualidade rica, tão universal na sua produção como no seu consumo, e portanto o trabalho não aparece mais como trabalho, mas como pleno desenvolvimento da atividade: sob a forma imediata, a necessidade natural desapareceu, pois no lugar da necessidade natural surgiu a necessidade produzida historicamente”.234

No entanto, há tempos que essa dialética positiva deixou de funcionar. O

“desaparecimento da necessidade natural” e o “surgimento de uma necessidade

historicamente produzida” hoje é tudo menos uma ponte que liga a forma social

capitalista a uma forma social qualitativamente melhor. Longe de contribuir para

favorecer o surgimento de uma individualidade rica, ela não cessa de forjar um ser

humano cada vez mais depauperado. O desenvolvimento das novas necessidades

capitalistas contribui decisivamente para a criação desta que é uma das principais

criações do capitalismo: o homem sem qualidades. Tudo isso se tornou

incomensuravelmente mais forte no curso do desenvolvimento dessa sociedade, em

especial a partir do momento em que ela criou e mobilizou poderosos aparatos de mass

media. Quanto mais as necessidades naturais desaparecem sob as camadas de inúmeras

necessidades artificialmente produzidas, mais os seres humanos se empobrecem, apesar

do aumento da riqueza material capitalista. Ganha-se dinheiro para consumir o máximo

possível de coisas pobres.

O frenesi consumista açulado pelos meios de comunicação de massa é

complementado pela obsolescência planejada, isto é, a redução da taxa de utilização

física (inclusive pela impossibilidade de fazer reparos ou porque o conserto tornou-se

caro demais, valendo mais a pena comprar um produto novo) e/ou perceptiva dos

produtos (por meio da propaganda, da moda etc.). Abrevia-se a capacidade de uso dos

produtos para que quantidades maiores dos mesmos possam ser vendidas e, desse modo,

manter a máquina econômica em funcionamento. O raciocínio aqui é muito elementar.

234 Idem. Fondements de la critique de l’economie politique, vol I. Paris: Éditions Anthropos, 1968. pp. 273, 274.

Page 114: Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de …livros01.livrosgratis.com.br/cp142532.pdf · Milhares de livros grátis para download. ANDRÉ VILLAR GOMEZ REVOÇÃO TECNOLÓGICA

113

István Mészáros explica: “se a taxa de utilização de um determinado tipo de mercadoria

pudesse ser diminuída de, digamos 100% para 1%, mantida constante a demanda por

seu uso, a multiplicação potencial do valor de troca seria correspondentemente

centuplicada (isto é, assumiria a estonteante figura de 10.000%)”.235 Tudo isso é social e

ecologicamente deplorável. E no entanto é perfeitamente racional do ponto de vista do

sistema.

Mas a consumação dessa lógica destrutiva encontra-se na necessidade do

capitalismo de produzir meios de destruição. Guerras e preparação para as guerras

tornaram-se expedientes fundamentais para a conservação do sistema capitalista. Aqui a

produção de necessidades artificiais e de redução da taxa de utilização dos produtos

atinge o cume. A produção bélica se tornou um artigo absolutamente necessário de um

processo produtivo que perdeu todo o laço com as reais necessidades humanas. As

guerras se transformaram no meio de destruir toda uma “enorme coleção de

mercadorias” – inclusive seres humanos – que há tempos ameaça transbordar dos

mesquinhos e estreitos limites da socialização capitalista. A redução da taxa de

utilização dos produtos faz reduzir a própria taxa de existência do mundo: é preciso

destruir sempre mais e em maior escala para garantir a permanência do funcionamento

(ampliado) da máquina de guerra.

Mas o caráter destrutivo vai para muito além desses evidentes meios de morte.

Está presente também nos mais simples produtos de sua indústria agropecuária – através

dos pesticidas, fertilizantes, sua tecnologia genética, da nanotecnologia etc. – e num

conjunto de produtos químicos que empesteiam e envenenam o ambiente. Esses filhotes

da tecnologia capitalista revelam o capitalismo definitivamente entrou em guerra contra

os seres humanos e a totalidade da vida na Terra. Os próprios alimentos tornaram-se

potências destrutivas. Viramos cobaias vivas de um experimento que faria um Shiro

Ishii ou um Joseph Mengele empalidecer.

235 MÉSZÁROS, István. Para além do capital: rumo a uma teoria da transição. São Paulo: Boitempo; Campinas – SP: Editora UNICAMP, 2002. p. 661.

Page 115: Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de …livros01.livrosgratis.com.br/cp142532.pdf · Milhares de livros grátis para download. ANDRÉ VILLAR GOMEZ REVOÇÃO TECNOLÓGICA

114

6. 2. Dialética negativa As forças produtivas e destrutivas do capitalismo pertencem a essa forma de

organização social e só podem encontrar seu lugar nessa sociedade. Portanto, não

servem como base de uma forma alternativa de socialização. Uma outra forma de

organização tem de promover uma profunda alteração no modo de os seres humanos

viverem e se relacionarem com a natureza. Mas essa transformação passa pela criação

de novas técnicas e de um outro modo de produzir conhecimentos.

Há uma contradição no capitalismo entre as forças produtivas e as relações

sociais baseadas na forma do valor e na forma-trabalho. Mas essa contradição inerente à

ordem capitalista não diz nada acerca de um processo de emancipação social. Ela indica

apenas o fato de que o capitalismo se movimenta no sentido de sua própria auto-

dissolução. Não se pode tomar essa contradição num sentido positivo. E tampouco

pode-se tomar as forças produtivas como um dado positivo – como algo que poderia

servir de fundamento para uma nova forma de vida social. Tal como as categorias da

socialização capitalista, as forças produtivas pertencem a essa sociedade e não podem

ser simplesmente utilizadas por forma social qualitativamente diferente. A tecnologia

criada no capitalismo é uma tecnologia inerentemente capitalista. Por isso, não servem

de base para uma outra forma de social. O caráter antiecológico e antihumano da

tecnologia capitalista representariam um peso que amarraria a nova forma social às

determinações da forma de vida social passada. Para István Mészáros,

“Isto constitui uma condição particularmente grave quando a questão em jogo não é apenas como fazer a transição de uma geração à outra, mas como realizar o salto qualitativo do mundo do capital para o „reino da nova forma histórica‟. Pois, paradoxalmente, tecnologia – que pode ser considerada „em princípio neutra‟ em alguns aspectos, isto é, até que tal visão seja “modificada significativamente” pela força de outras considerações fundamentais – na realidade adquire, por meio da inserção social necessária, o peso da inércia superposta de um fator trans-histórico. É por isso que temos que enfrentar a força paralisante que serve ao complexo industrial militar e acorrenta (ou pelo menos constrange) todos os esforços que visem à sua reestruturação no caso da conquista política do poder. Não é necessário dizer, este é um fato negativo de dimensões vastas que multiplica as dificuldades de se divisar uma conquista e a

Page 116: Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de …livros01.livrosgratis.com.br/cp142532.pdf · Milhares de livros grátis para download. ANDRÉ VILLAR GOMEZ REVOÇÃO TECNOLÓGICA

115

consolidação do poder com sucesso nas circunstâncias presentes”.236

Não há lugar aqui para uma dialética positiva mecanicista e determinista que

certamente facilitaria muito as coisas, para a qual bastaria se apropriar da tecnologia e

da ciência capitalista e lhes dar um outro uso, supostamente melhor. A transição para

uma nova forma social não encontra um apoio positivo nas categorias capitalistas – no

trabalho e na classe trabalhadora – nem no alto nível de desenvolvimento técnico por ela

produzido.

Uma nova forma social é herdeira da antiga base produtiva. Mas isto tem que ser

encarado como um grande problema. E não como uma solução. Mas que técnicas e que

conhecimentos podem ser mobilizados pela nova forma social? Esta questão não pode

ser decidida de antemão. Não se pode dizer como deverá ser uma nova forma de

socialização.

Há uma dialética das forças produtivas que encara o negativo como um positivo.

De fato, o desenvolvimento das forças produtivas tende a derruir os fundamentos do

sistema capitalista. Mas isso não a transforma num pólo positivo. E, portanto, em algo

que bastasse ser liberto do invólucro social negativo. Ela é parte do mundo capitalista e

é tão negativa quanto ele. Ela não pode ser considerada como o lado bom que se

desenvolveu em meio a todo o mal da socialização capitalista.237 Portanto, a crítica deve

incidir sobre a totalidade do modo de produção e de vida do capitalismo. Não deve

aliviar nada. Uma nova forma social não pode ser uma outra versão da sociedade

industrial existente. O futuro não pode ser uma mera continuidade do passado.

236 MÉSZÁROS, István. Para além do capital: rumo a uma teoria da transição. São Paulo: Boitempo; Campinas – SP: Editora UNICAMP, 2002. p. 528. 237 Günther Anders faz a seguinte observação acerca da dialética: “Pode parecer estranho, a respeito do papel imenso que a dialética jogou no século XIX, de ler que aquela desconheceu o negativo. Mas se se compara o negativo tal como a concebe a „dialética‟ com o negativo que implica o conceito de inferno, fica claro que ela se tornou „positiva‟, que se fez dela um fermento. Sua força, ao consistir em suscitar uma nova vida, um novo movimento, foi, de um certo modo, „negada‟ enquanto „puro negativo‟. A definição goetheana de Mephisto como aquele que, querendo fazer o mal, não cessa, no entanto, de fazer o bem, vale também para a negatividade hegeliana. ANDERS, Günther. L’obsolescence de l’homme: sur l’âme à l’époque de la deuxième révolution industrielle. Paris: Éditions de L‟Enciclopédie des Nuisances-Éditions Ivrea, 2002. p. 310.

Page 117: Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de …livros01.livrosgratis.com.br/cp142532.pdf · Milhares de livros grátis para download. ANDRÉ VILLAR GOMEZ REVOÇÃO TECNOLÓGICA

116

6. 3. Um outro metabolismo com a natureza

Uma forma social inteiramente transformada se tornou numa necessidade de

primeira ordem para os seres humanos. Do contrário, terá de se defrontar com

problemas e perigos que nossa imaginação mal consegue figurar. Mas essa

destrutividade não pode ser resolvida apenas com uma modificação nas relações sociais.

Tal modificação implica necessariamente uma profunda alteração no modo como os

humanos realizam o seu metabolismo com a natureza. As relações dos humanos entre si

e entre eles e a natureza deve ser compreendido como um processo unitário. Isso porque

não há separação entre a forma de racionalidade que preside a relação entre os seres

humanos e a forma de relação que eles estabelecem com a natureza. E ambos implicam

uma transformação no domínio tecnológico.

Como Horkeimer e Adorno mostraram em sua Dialética do esclarecimento,

dominação da natureza e dominação sobre os seres humanos estão intimamente

relacionadas.238 Pois toda sociedade pautada na dominação da natureza foi sempre uma

sociedade baseada na dominação humana e vice-versa. Pode-se dizer que sempre que

uma sociedade se lança numa “guerra” de conquista e domínio sobre a natureza, ela tem

de dispor de um estado-maior que comande e de homens que obedeçam. E que, por

outro lado, toda sociedade baseada no domínio sobre os humanos implica

necessariamente o domínio sobre a natureza. 239 A violência entre os humanos e a

violência contra a natureza são expressões distintas de um modo de pensar e agir

primitivo – pré-histórico! Ou há reconciliação dos humanos com a natureza e deles

entre si ou continuaremos nos massacrando e devastando nosso planeta.

Nos Manuscritos de 1844, Marx fornece a seguinte imagem do comunismo:

238 HORKHEIMER, Max; ADORNO, Theodor. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985. 239 Em entrevista a Émile Nöel, François Châtelet faz uma observação muito interessante acerca do mútuo condicionamento entre as formas sociais e a forma como os homens se apropriam da natureza. Segundo ele, a idéia de dominar a natureza possui graves conseqüências político-sociais: “Somos obrigados a constatar que o desenvolvimento dessa vontade de dominar a natureza foi acompanhado por um desenvolvimento concomitante do domínio de alguns sobre outros homens. A questão crucial, hoje, parece ser a questão ecológica. Mas uma sociedade que se lança numa “guerra” contra a natureza não tem, necessariamente, que dispor de um estado-maior que comande e de homens que obedeçam? Não estou aludindo apenas ao capitalismo, mas a todo tipo de regime que tem como objetivo a conquista da natureza. Por exemplo, os regimes nos quais uma burocracia declara que é ela que tem a competência e que os outros devem obedecer às suas ordens. De tal modo, a conquista da natureza se torna, de certa maneira, um princípio que acarreta a sujeição de certos homens por outros”. CHÂTELET, François. Uma história da razão: entrevistas com Émile Nöel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994. p. 68.

Page 118: Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de …livros01.livrosgratis.com.br/cp142532.pdf · Milhares de livros grátis para download. ANDRÉ VILLAR GOMEZ REVOÇÃO TECNOLÓGICA

117

“O comunismo é, enquanto abolição positiva da propriedade privada (ela mesma alienação humana de si), apropriação real da essência humana pelo homem e para o homem. É o retorno completo do homem a ele mesmo enquanto ser para si, ou seja, enquanto ser social humano, retorno consciente e que se consuma conservando toda a riqueza do desenvolvimento anterior. Enquanto naturalismo acabado, esse comunismo é humanismo; enquanto humanismo acabado, ele é naturalismo. Ele é a verdadeira solução do antagonismo entre o homem e a natureza, entre o homem e o homem, a verdadeira solução do conflito entre a existência e a essência, entre a objetivação e a afirmação de si, entre a liberdade e a necessidade, entre o indivíduo e a espécie. É o enigma resolvido da história e é consciente disto”.240

Deixo aqui de lado uma série de questões que esta passagem suscita. Gostaria

apenas de ressaltar o fato de que ela afirma expressamente a idéia de que o comunismo

é a forma histórica na qual se realiza “a verdadeira solução do antagonismo entre o

homem e a natureza, entre o homem e o homem”. Entretanto, isso não implica de modo

algum que os humanos tenham de deixar de efetuar o seu metabolismo com a natureza.

Esta é uma necessidade insuprimível e jamais poderão deixar de realizá-lo, qualquer que

seja a forma social em que vivam. Mas isso não implica que eles não possam forjar um

outro modo de intercâmbio com a natureza qualitativamente distinto do que tem

prevalecido nos últimos séculos. Não há nenhuma necessidade ontológica de os seres

humanos se relacionarem com a natureza de forma destrutiva. Essa é uma característica

de uma época da história humana, e não uma condição imutável da existência dos seres

humanos.

O problema que se coloca para nossa época não é mais como obter o domínio

sobre a natureza. Este foi o problema da era moderna: “tornar o homem senhor e

possuidor da natureza”?241 Mas essa etapa da história está chegando ao fim: seja pelos

limites de sua forma de socialização, seja pelos limites da própria natureza. No fim de

linha da modernidade, o problema que se coloca é bem outro: como “dominar” a

dominação. Ou melhor: como impedir que esse impulso à dominação continue

prevalecendo e gerando tormentos cada vez maiores para as pessoas e para restante do

240 MARX, Karl. Manuscrits de 1844. Paris: Flammarion, 1996. p.144. 241 DESCARTES, René. Meditações metafísicas. São Paulo: Abril Cultural, 1991. (Os pensadores). p. 63.

Page 119: Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de …livros01.livrosgratis.com.br/cp142532.pdf · Milhares de livros grátis para download. ANDRÉ VILLAR GOMEZ REVOÇÃO TECNOLÓGICA

118

planeta.242 Esse problema já havia sido apresentado por Walter Benjamin ainda na

primeira metade do século XX. Em Rua de mão única, ele observa que os imperialistas

ensinam que o sentido da técnica é a dominação da natureza. Mas, sob esse impulso, a

“técnica traiu a humanidade e transformou o leito de núpcias em um mar de sangue”.

“Quem, porém, confiaria em um mestre-escola que declarasse a dominação das crianças pelos adultos como o sentido da educação? Não é a educação, antes de tudo, a indispensável ordenação da relação entre as gerações e, portanto, se se quer falar de dominação, a dominação das relações entre as gerações, e não das crianças? E assim também a técnica não é dominação da Natureza: é a dominação da relação entre Natureza e humanidade”.243

Para que as habilidades e os conhecimentos humanos cessem de trair os próprios

humanos, é preciso que eles sejam libertados do aguilhão da lógica do valor e das

modernas formas da ciência e da tecnologia. Do contrário, as capacidades e poderes

humanos continuarão produzindo barbárie e destruição.

Walter Benjamin critica a concepção de progresso, que só percebe os

“progressos na dominação da natureza”, mas não os “retrocessos na organização da

sociedade”. Mas vale ressaltar que o próprio “progresso na dominação da natureza”

revela-se ele próprio “regressivo” em relação ao próprio intercâmbio entre os humanos e

a natureza. A enorme devastação ambiental revela os próprios limites da racionalidade

capitalista. As advertências de Walter Benjamin podem ter parecido esotéricas algumas

décadas atrás. Hoje, porém, adquiriram enorme inteligibilidade. O “otimismo

inconsciente dos diletantes”244 tornou-se insustentável. Como um aprendiz de feiticeiro,

242 “Uma sociedade cada vez mais doente mas cada vez mais poderosa recriou em todas as partes o mundo concretamente como entorno e decorado de sua doença, como planeta doente. Uma sociedade que não chegou ainda a fazer-se homogênea e que não se determina a si mesma, mas que está determinada cada vez mais por uma parte de si mesma que se situa por cima e à margem dela, se desenvolveu um movimento de dominação da natureza que não se domina a si mesmo. O capitalismo chegou finalmente, por seu próprio movimento, a prova de que já não é capaz de seguir desenvolvendo as forças produtivas, e não em um sentido quantitativo, como muitos acreditavam, mas em sentido qualitativo. O conflito entre as forças produtivas modernas e as relações de produção [...] entrou em sua última fase. A produção da não-vida seguiu com cada vez maior rapidez seu processo linear e cumulativo; agora ultrapassou um último umbral de seu progresso e está produzindo diretamente a morte”. DEBORD, Guy. El planeta enferno. Barcelona: Anagrama, 2006. pp. 79, 82. 243 BENJAMIN, Walter. Rua de mão única. São Paulo: Brasiliense, 1987. p. 69. 244 Idem. O surrealismo. O último instantâneo da inteligência européia. In: Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1994. (Obras escolhidas; v. I) p. 33.

Page 120: Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de …livros01.livrosgratis.com.br/cp142532.pdf · Milhares de livros grátis para download. ANDRÉ VILLAR GOMEZ REVOÇÃO TECNOLÓGICA

119

a humanidade desperta poderes que podem escapar ao seu controle. É preciso impedir

que essa locomotiva chamada de progresso nos leve para o abismo.

6. 4. Para o lixo com tudo isso

Nenhum milagre. A dinâmica cega e contraditória do capitalismo expressa um

problema nas relações humanas. E portanto só podem ter solução nesse domínio. Não é

possível esperar que algum mecanismo automático imanente à ordem do capital possa

impulsionar os seres humanos para uma sociedade melhor. O máximo que essa

sociedade pode fazer é colocar enormes problemas. Se os resolveremos ou não é outra

questão. Não há qualquer garantia de que os seres humanos sejam capazes de resolver

os problemas que eles próprios criaram. O fato, é que se a humanidade não quiser

soçobrar, ela terá de forjar um outro modo de socialização e de intercâmbio com a

natureza radicalmente distinto do que tem prevalecido ao longo dos últimos séculos.

Nas últimas páginas de seu Era dos Extremos, Eric Hobsbawn faz uma

advertência acerca de uma realidade que se torna cada vez mais dramática:

“Sabemos que, por trás da opaca nuvem de nossa ignorância e da incerteza de resultados detalhados, as forças históricas que moldaram o século [XX] continuam a operar. Vivemos num mundo conquistado, desenraizado e transformado pelo titânico processo econômico e tecnocientífico do desenvolvimento do capitalismo, que dominou os dois ou três últimos séculos. Sabemos, ou pelo menos é razoável supor, que ele não pode prosseguir ad infinitum. O futuro não pode ser uma continuação do passado, e há sinais, tanto externamente quanto internamente, de que chegamos a um ponto de crise histórica. As forças geradas pela economia tecnocientífica são agora suficientemente grandes para destruir o meio ambiente, ou seja, as fundações materiais da vida humana. As próprias estruturas das sociedades humanas, incluindo algumas das fundações sociais da economia capitalista, estão na iminência de ser destruídas pela erosão que herdamos do passado humano. Nosso mundo corre risco de explosão ou implosão. Tem de mudar. [...] Se a humanidade quer ter um futuro reconhecível, não pode ser pelo prolongamento do passado ou do presente. Se tentarmos construir o terceiro milênio nessa base, vamos fracassar. E o preço do fracasso, ou seja, a alternativa para uma mudança da sociedade, é a escuridão”.245

245 HOBSBAWN, Eric. A era dos extremos: o breve século XX: 1914-1991. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. p. 562.

Page 121: Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de …livros01.livrosgratis.com.br/cp142532.pdf · Milhares de livros grátis para download. ANDRÉ VILLAR GOMEZ REVOÇÃO TECNOLÓGICA

120

Não se pode esperar o funcionamento de uma dialética positiva do confronto

entre o trabalho e o capital. A classe trabalhadora poderia – em tese – opor-se

radicalmente a todo o universo capitalista. No entanto, isso é uma suposição que se deve

muito mais a certas condições históricas (grande indústria, urbanização, não integração

à cultura capitalista etc.) do que propriamente a sua posição objetiva no interior da

relação de capital. A classe trabalhadora é a classe que sofre diretamente a exploração

da mais-valia. Mas é também a classe que tem sua vida ligada à continuidade da

sobrevivência do capitalismo.

Na época atual, em que o capitalismo se choca com seus limites internos – e,

portanto, quando a classe trabalhadora passa a dissolver e as relações sociais baseadas

no trabalho desmoronam, e quando o trabalho se torna um “bem raro” em meio num

mundo de desemprego e miséria galopantes, e também quando os próprios

trabalhadores encontram-se integrados à cultura e ao modo de viver e pensar capitalista,

com todos os seus condicionamentos fetichistas – os trabalhadores podem até lutar para

obter uma maior parcela do valor produzido, mas essa luta diz respeito cada vez menos

com a busca pela supressão da formação social baseada no valor. As contradições

objetivas do capitalismo entre o trabalho e o capital não levam necessariamente ao

“paraíso”. Apenas geram conflitos no interior da formação capitalista. Quando não à

união de ambas as classes com o fito de conservar a forma social. Não é de hoje grande

parte da classe trabalhadora chegue mesmo a apoiar o militarismo e as guerras apenas

para conservar suas posições na socialização capitalista.

O ponto de vista do proletariado pode até ser o ponto de vista social mais

elevado no interior da sociedade capitalista. Mas trata-se aí da comparação entre o ponto

de vista da “personificação do capital” e o ponto de vista da “personificação do trabalho

para o capital”. Pontos de vistas esses que distanciam igualmente do ponto de vista da

“sociedade humana” ou da “humanidade social”.246 As duas classes em questão podem

muito bem perecer, juntas, abraçando-se, nos escombros.

246 Segundo Michael Löwy, para Marx, “o ponto de vista de classe e a visão social de mundo correspondente determinam um horizonte intelectual, os limites estruturais intransponíveis do campo da visibilidade cognitiva, o máximo de conhecimento possível a partir dessa perspectiva”. LÖWY, Michael. As aventuras de Karl Marx contra o Barão de Münchhausen: marxismo e positivismo na sociologia do conhecimento. São Paulo: Busca Vida, 1987. p. 202. Não é por acaso que o proletariado esteja na vanguarda da modernização capitalista – por exemplo, a luta pela expansão dos direitos, com a correspondente busca pela integração dos trabalhadores na sociedade burguesa. Não há nada nesse ponto

Page 122: Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de …livros01.livrosgratis.com.br/cp142532.pdf · Milhares de livros grátis para download. ANDRÉ VILLAR GOMEZ REVOÇÃO TECNOLÓGICA

121

Não é apenas o capital que tem de ser suprimido. Essa supressão requer

igualmente a supressão do trabalho. O trabalho não é uma atividade ontológica, como

supõe o marxismo produtivista e industrialista. Ele é uma categoria e uma forma de

atividade da sociedade capitalista. Só pode ser compreendida no interior dessa forma de

organização social. Portanto, uma nova forma de socialização está não apenas para

além do capital como também está para além do trabalho. Que os seres humanos terão

que continuar produzindo numa forma socialização melhor, isso não há dúvida. Mas,

para ser realmente alternativa, ela não poderá se apoiar sobre a forma-trabalho.

O trabalho é um valor sacrossanto da sociedade capitalista – afirmado tanto

pelos defensores do sistema como por muito de seus supostos críticos. O trabalho é

assim considerado algo que é sempre bom, independentemente daquilo que se esteja

produzindo. E assim escapa de qualquer julgamento crítico. A finalidade da atividade

produtiva não é colocada em questão. O trabalho torna-se assim um comportamento

compulsivo que bloqueia os seres humanos a forjar um outro tipo de relação com a

natureza (inclusive sua própria natureza) que não seja produtivista e utilitarista. Toda

essa loucura típica do mundo capitalista tem de ser negada numa outra forma de

socialização.

Uma crítica do trabalho não é externa ao próprio campo do marxismo. As

indicações de tal crítica se encontram na própria obra de Marx. Cito aqui uma passagem

importante – e muito negligenciada – de A ideologia alemã:

“Em todas as revoluções anteriores, o modo de atividade permanecia inalterado e se tratava apenas de uma outra distribuição dessa atividade; a revolução comunista, ao contrário, é dirigida contra o modo de atividade anterior, ela suprime o trabalho. [...] A contradição entre a personalidade do proletário particular, e as condições de vida que lhe são impostas, isto é, o trabalho, aparece com evidência, sobretudo porque ele já foi sacrificado desde a sua primeira juventude e não terá jamais a oportunidade de chegar, no âmbito de sua classe, às condições que o fariam a passar para uma outra classe. Portanto, enquanto os servos fugitivos só queriam desenvolver livremente suas condições de existência já estabelecidas e fazê-las valer, mas só chegavam em última instância ao trabalho livre, os proletários, se quiserem afirmar-se enquanto pessoa,

de vista de classe que aponte para fora do mundo do capital. Não há nenhuma necessidade inerente entre a perspectiva revolucionária e o ponto de vista da classe trabalhadora. A classe trabalhadora pode ou não ser revolucionária. Em realidade, não há nenhuma barreira sociológica que impeça as pessoas alçarem a um ponto de vista revolucionário.

Page 123: Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de …livros01.livrosgratis.com.br/cp142532.pdf · Milhares de livros grátis para download. ANDRÉ VILLAR GOMEZ REVOÇÃO TECNOLÓGICA

122

devem abolir sua própria condição de existência anterior, que é, ao mesmo tempo, a de toda a sociedade até hoje, quer dizer, abolir o trabalho”.247

É importante assinalar que o fim do trabalho não implica em que os seres

humanos tenham de ficar submersos nos imensos aparatos tecnológicos produzidos pelo

capitalismo. O trabalho só pode ser suprimido alterando o modo como os humanos se

relacionam entre si e com a natureza. Ele é um modo de atividade humana na época em

que os próprios humanos são ainda inconscientes acerca de sua própria forma. Um

modo de atividade pré-histórica, portanto. Que técnicas serão utilizadas e que

necessidades sociais deverão ser atendidas, isso é algo que os seres humanos terão de

definir.

Não é de mais trabalho que a humanidade precisa. Ela precisa antes é do fim do

trabalho. Para que o planeta não se arrebente num terrível colapso ecológico, torna-se

necessário desativar uma enorme parte de muitos ramos da produção industrial e de

suprimir alguns deles por inteiro. Milhões de postos de trabalho são absolutamente

destrutivos e só tem razão de ser por causa dos imperativos da ordem social

capitalista.248 Basta pensar na indústria automobilística e indústria bélica – e todo o

conjunto de setores produtivos e improdutivos que a eles estão ligados. A máquina de

trabalho só fica de pé hoje por meio de expedientes sumamente destrutivos. Portanto, a

forma-trabalho também está em guerra contra o mundo.249

Tudo junto para a lata do lixo da história. É todo um mundo que precisa ser

inventado no momento em que os velhos padrões de pensamento revelam sua completa

estupidez e anacronismo. 247 MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. São Paulo: Martins Fontes, 1998. pp. 85-86, 96-97. 248 “A função última, declarada e essencial da economia desenvolvida de hoje em dia, em todo o mundo em que impera o trabalho-mercadoria que assegura todo o poder aos seus patrões, é a produção de emprego. Bem longe estamos, pois, de idéias „progressistas‟ do século passado acerca da possível redução do trabalho humano graças à multiplicação científica e técnica da produtividade, que, segundo se acreditava, asseguraria com cada vez maior facilidade a satisfação das necessidades até então reconhecidas como reais por todo o mundo, e isso sem nenhuma alteração fundamental da qualidade dos bens disponíveis. DEBORD, Guy. El planeta enferno. Barcelona: Anagrama, 2006. p. 82. 249 Tal supressão implica, necessariamente, a supressão do próprio Estado. Uma vez que esse é um dos componentes do tripé fundamental da socialização capitalista.Segundo István Mészáros, o sistema de mediação de segunda ordem do capital tem um núcleo constitutivo formado pelo tripé: capital, trabalhador e o Estado. Trata-se de três dimensões que se encontram materialmente inter-relacionadas e que só podem ser suprimida conjuntamente. No entanto, Mészáros pensa em emancipar o trabalho humano do capital, e não em emancipar os seres humanos do trabalho e do capital. MÉSZÁROS, István. Para além do capital: rumo a uma teoria da transição. São Paulo: Boitempo; Campinas – SP: Editora UNICAMP, 2002. p. 600.

Page 124: Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de …livros01.livrosgratis.com.br/cp142532.pdf · Milhares de livros grátis para download. ANDRÉ VILLAR GOMEZ REVOÇÃO TECNOLÓGICA

123

CONSIDERAÇOES FINAIS ou

com todo vapor ao colapso... sócio-ecológico Atualmente se cruzam as mais nefastas e perigosas tendências. As novas forças

produtivas baseadas na microeletrônica criaram uma tecnologia que excede os limites

da formação social baseada no valor. A mensuração da riqueza social por intermédio do

tempo de trabalho posto na produção tornou-se algo sem sentido. A maior parte da

riqueza decorre muito mais como resultado do desenvolvimento do general intellect do

que do trabalho individual posto nos processos de produção de mercadorias. A colisão

entre essa base tecnológica e a forma abstrata pressuposta de mensuração da riqueza

encontra-se no fulcro da crise econômica e social que irrompeu no capitalismo a partir

da década de 1970. Desde então nem mesmo os mais destrutivos expedientes tornaram-

se capazes de refrear a dinâmica de colapso em curso – embora contribua para ampliar a

sobrevida desse sistema por mais algum tempo. Mas tais expedientes provocarão uma

enorme tensão dessa forma social com as condições ecológicas da Terra. O planeta não

suportará indefinidamente tanta pilhagem e depredação.

O capitalismo tem promovido uma rápida e profunda erosão social e ecológica,

revelando-se inteiramente insustentável. Está fora de questão o surgimento de um

capitalismo verde. Talvez ainda haja tempo de pisarmos no freio e mudarmos o curso

dessa máquina louca que está nos levando ao precipício. Mas essa é uma tarefa para

milhões, bilhões, de pessoas. Elas precisarão acordar do sonambulismo que as embala e

utilizar sua imaginação e criatividade para forjar um modo de vida alternativo ao que

prevalece hoje.

O único ponto de apoio que temos é a nossa inteligência coletiva. Mas não se

trata aqui apenas de conhecimentos técnicos e científicos. Deve-se incluir também o

conhecimento e a sabedoria de todas as outras épocas, outros povos e o imenso

potencial criativo humano. Também tem de incluir a sensibilidade. E fundamentalmente

um pensamento crítico e um sentimento de rejeição ao nosso atual modo de produzir e

de viver: uma grande recusa. Nem a tecnologia capitalista nem as categorias sociais e

econômicas dessa forma de organização social podem proporcionar um ponto de apoio

positivo. O que o capitalismo nos lega é uma imensa catástrofe e a necessidade de

interrompê-la.

Page 125: Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de …livros01.livrosgratis.com.br/cp142532.pdf · Milhares de livros grátis para download. ANDRÉ VILLAR GOMEZ REVOÇÃO TECNOLÓGICA

124

O capital está utilizando uma terrível tática militar: ele passa deixando uma

terra arrasada atrás de si. E isso não é algo que tenha pouca importância para quem

sonha com a emancipação. Estamos caminhando para uma situação em que a

socialização alternativa talvez fique irremediavelmente inviabilizada pela destruição das

condições ecológicas e materiais que são tão necessárias. Ou alguém imagina ser

possível soerguer uma sociedade qualitativamente diferente e melhor entre as ruínas da

natureza? Que o capitalismo tende a desaparecer da face da terra, isso não resta dúvida.

O problema é que podemos desaparecer junto com ele. A mecha está queimando

velozmente e logo atingirá a dinamite.250

A pré-história humana pode vir a terminar como anti-história. Estamos na pré-

história da humanidade. Equipamo-nos com toda uma panóplia de meios high-tech.

Despertamos forças e poderes que não podem ser controlados por um modo de

socialização inconsciente e fetichista. O capitalismo só pode nos prometer um futuro

sombrio: o “horror sem fim”, de barbárie e crise ecológica, ou o “fim horroroso”, de

colapso ecológico generalizado e extinção dos seres humanos.

Slavoj Zizek capta essa importante modificação na perspectiva de nosso

horizonte histórico:

“Até hoje, a Substância histórica desempenhou seu papel de meio e fundamento de todas as intervenções subjetivas: o que quer que os sujeitos sociais e políticos fizessem, tal era mediado, e em última instância dominado, sobredeterminado, pela Substância histórica. O que granjeia no horizonte hoje é a inaudita possibilidade de que uma intervenção subjetiva poderá intervir diretamente na Substância histórica, perturbando catastroficamente seu desenrolar ao desencadear uma catástrofe ecológica, uma mutação biogenética fatal, uma catástrofe nuclear ou sócio-militar semelhante etc. Não podemos mais contar com a salvaguarda representada pelo escopo limitado de nossos atos: não é mais sustentável que, o que quer que façamos, a história irá continuar”.251

250 “se a eliminação da burguesia não estiver efetivada até um momento quase calculável do desenvolvimento econômico e técnico (a inflação e a guerra de gases o assinalam), tudo está perdido. Antes que a centelha chegue à dinamite, é preciso que o pavio que queima seja cortado”. BENJAMIN, Walter. Rua de mão única. São Paulo: Editora Brasiliense, 1987. (Obras escolhidas; v. II) p. 46. 251ZIZEK, Slavoj. Censorship Today: Violence, or Ecology as a New Opium for the Masses. Disponível em: http://www.lacan.com/zizeclogy1.htm

Page 126: Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de …livros01.livrosgratis.com.br/cp142532.pdf · Milhares de livros grátis para download. ANDRÉ VILLAR GOMEZ REVOÇÃO TECNOLÓGICA

125

Estamos chegando ao fim de linha da civilização capitalista. Essa civilização se

choca com seus limites internos e externos, desencadeando uma crise total e

multidimensional: uma crise civilizacional. É todo um modo de pensar, viver e produzir

que está se revelando impertinente, absurdo e totalmente nefasto para a Terra inteira e

os seus habitantes. Talvez o surgimento de um outro modo de produção ainda seja

possível. Mas não é certo que ele venha a surgir. O certo, contudo, é que tal

transformação é absolutamente necessária. Uma necessidade de primeira ordem.

Inventar um outro modo de os humanos se relacionarem entre si e de mediarem as suas

relações com a natureza é uma condição para a sobrevivência da espécie humana. Do

contrário, teremos mais guerras, mais barbárie, mais ruínas da natureza, mais

escombros, mais tecnologias destrutivas etc. etc. etc. Até o fim do mundo...

Page 127: Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de …livros01.livrosgratis.com.br/cp142532.pdf · Milhares de livros grátis para download. ANDRÉ VILLAR GOMEZ REVOÇÃO TECNOLÓGICA

126

O CAPITALISMO VERDE E O AGROCOMBUSTÍVEL Diante da grave crise ecológica atual, o capitalismo pode dar a impressão de se

interessar pelos problemas ambientais e, em função disso, realizar um movimento de

retorno ao orgânico. Mas tal fato não representa uma modificação substantiva do modo

pelo qual essa forma de organização social promove o seu metabolismo com a natureza.

Seu retorno ao orgânico representa antes o recrudescimento do processo de depredação

ecológica em curso. O capitalismo não apenas passou a explorar toda a natureza de um

modo muito mais voraz e tem buscado recriar a natureza por intermédio de suas novas

tecnologias, como também, para completar esse processo, passou agora a mobilizar a

retórica ecológica para legitimar o avanço da pilhagem da Terra.

1. Aquecimento da Terra

Há tempos que o capitalismo promoveu um processo de brutal destruição da

natureza. No entanto, as novas forças produtivas baseadas na tecnociência promoveram

uma imensa aceleração da velocidade dessa destruição. Não é mais possível ignorar os

nefastos efeitos das intervenções humanas sobre a natureza. No momento em que o

capitalismo atingiu o seu limite interno de sua capacidade de valorização, suas

contradições estruturais fizeram com que as suas novas forças produtivas se

transformassem numa calamidade. As bases materiais e ecológicas do planeta passaram

a ser aniquiladas de uma forma simplesmente suicida.

O aumento da temperatura média do planeta é um dos indicadores mais

conhecidos do limite ecológico do modo de produção e de vida capitalista. O

aquecimento global resulta das intervenções humanas sobre a natureza nos últimos 250

anos. Durante esse período, esse sistema não apenas acrescentou uma enorme

quantidade de gases-estufa já existentes na atmosfera, como também criou outros novos,

como o clorofuorcarbono (CFCs).

Os gases estufa são assim chamados pelo fato de impedirem que o calor liberado

pela energia solar se disperse para fora da atmosfera, contribuindo para o aquecimento

do planeta. Portanto, o efeito estufa consiste num mecanismo vital para o equilíbrio

climático do planeta. Não fossem os gases do efeito estufa, toda a energia dissipada iria

para fora da atmosfera e as temperaturas do planeta seriam 30 graus centígrados

Page 128: Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de …livros01.livrosgratis.com.br/cp142532.pdf · Milhares de livros grátis para download. ANDRÉ VILLAR GOMEZ REVOÇÃO TECNOLÓGICA

127

menores que os atuais. No entanto, se o efeito-estufa não é, em si mesmo, um problema,

o aumento da quantidade de gases-estufa tende a romper o equilíbrio ecológico do

planeta, provendo enormes transtornos no clima da Terra.

O dióxido de carbono é de longe uma das principais contribuições humanas para

o aumento do efeito estufa. A quantidade de dióxido de carbono na atmosfera cresceu

em um terço nos últimos duzentos anos – de aproximadamente 280 partes por milhão

em 1750, para 379 em 2005. A concentração de dióxido de carbono na atmosfera

excede a faixa natural dos últimos 650.000 anos, que era de 180 a 300 partes por

milhão. A maior parte desse crescimento ocorreu na segunda metade do século XX. No

entanto, se tornou mais pronunciado após a última década desse século e não cessou de

crescer nesse início de século XXI. Pesquisas recentes mostram que a velocidade com

que a humanidade despeja dióxido de carbono na atmosfera mais que dobrou desde os

anos 90. Descobertas publicadas pela Organização de Pesquisa Científica e Industrial do

governo australiano (CSIRO) mostram que as emissões de carbono não pararam de

crescer nesse princípio de século XXI. Segundo o cientista Mike Raupach, entre 2000 e

2005, a taxa de crescimento das emissões de dióxido de carbono superou os 2,5% ao

ano, enquanto que, nos anos 90, era de menos de 1% ao ano. Ele afirma que 7,85

bilhões de toneladas de carbono chegaram á atmosfera em 2005, contra 6,67 bilhões de

toneladas em 2000.252

O aumento da temperatura do planeta parece já estar provocando alguns efeitos

devastadores. Há vários indícios que mostram que o clima da terra tem se tornado mais

instável e alguns fenômenos, mais pronunciados: ondas de calor, aumento do número de

furacões, secas e chuvas mais pronunciadas. Mas este talvez seja apenas o início de uma

época de catástrofes sócio-ecológicas. Basta lembrar que o aumento da temperatura

média do planeta em apenas 2,5 graus centígrados poderá elevar o nível do mar em um

metro, devido ao descongelamento das calotas polares e geleiras. Apenas essa pequena

elevação do nível do mar poderá provocar um enorme recuo do litoral, extinguindo

terras agricultáveis e importantes recursos hídricos. Segundo o cientista ambiental

britânico Norman Myers, a elevação do nível do mar em apenas um metro significará a

perda dos lares para cerca de 10 milhões de egípcios, 30 milhões de bengalis e 22

252 "Ter quatro anos seguidos de crescimento, acima da média, de dióxido de carbono é sem precedentes", diz nota assinada por Paul Fraser, cientista do centro para pesquisa marítima e atmosférica da CSIRO. E acrescenta: “A tendência em anos recentes sugere que a taxa de crescimento está acelerando, o que significa que os combustíveis fósseis estão tendo um impacto sobre as concentrações de gases do efeito estufa que não víamos no passado". Emissão de gás carbônico dobra em 10 anos. Globo.com, 28/11/2006. Disponível em: http://g1.globo.com/Noticias/Ciencia/0,,AA1367166-5603,00.html

Page 129: Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de …livros01.livrosgratis.com.br/cp142532.pdf · Milhares de livros grátis para download. ANDRÉ VILLAR GOMEZ REVOÇÃO TECNOLÓGICA

128

milhões de vietnamitas. Sergio Zelaya, coordenador de Políticas da Convenção sobre

Desertificação observa que apenas o avanço do deserto da África Subsaariana levaria 60

milhões de habitantes daquela região a migrar para o norte do continente e o sul da

Europa até 2020.253 A elevação do nível do mar poderá desencadear migração em larga

escala, ruptura social e fome generalizada.254 “O mundo já se habituou às ondas de

refugiados em conseqüências de guerras civis”, assinala Paul Kennedy. Segundo ele,

mudanças climáticas podem ser causas de conflitos agudos no futuro: “Pode haver,

dentro em pouco, uma onda ainda maior de refugiados ambientais, na medida em que as

sociedades desmoronam ou sofrem guerra civil em conseqüência de catástrofes

naturais”.255 Na Conferência Internacional sobre Meio Ambiente, Migração Forçada e

Vulnerabilidade Social, realizada em outubro de 2008 na Universidade das Nações

Unidas (UNU), em Bonn, Alemanha, estudiosos do assunto declararam que já havia no

mundo cerca de 25 milhões de refugiados ambientais em todo o mundo – número que

tende subir para 200 milhões em 2050.256

Mas a elevação do nível do mar é apenas um dos problemas relacionados ao

aumento da temperatura do planeta. No limite, é a própria vida na Terra – não apenas a

humana – que se encontra ameaçada. É preciso lembrar que apenas uma pequena

mudança nas condições de equilíbrio originais pode provocar grandes alterações.

Portanto, não é certo que, de um modo estritamente mecanicista, a temperatura do

planeta aumente gradualmente, acompanhado o ritmo das emissões dos gases que

provocam o efeito estufa na atmosfera. A partir de certo ponto – e não sabemos qual – o

clima do planeta pode entrar em colapso.257

2. Protocolo de Kyoto

No momento em que o capitalismo principia a engendrar um processo de crise

ecológica – e, possivelmente, de colapso ecológico – irrompe uma enorme onda de

retórica em torno da defesa do meio ambiente. O problema ecológico deixou de ser

abordado por apenas algumas poucas organizações sociais e indivíduos. Políticos,

empresários, cientistas, meios de comunicação etc. parecem ter acordado para esse

253 PAIVA, Eduardo. Refugiados ambientais: as primeiras vítimas do aquecimento global. Planeta, agosto de 2009. pp. 36-41 254 POINTING, Clive. Uma história verde do mundo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1995. p. 621, 255 KENNEDY, Paul. Preparando para o século XXI. Rio de Janeiro: Campus, 1993. p. 109. 256 PAIVA, Eduardo. Refugiados ambientais: as primeiras vítimas do aquecimento global. Planeta, agosto de 2009. pp. 36-41 257 REEVES, Hubert. Mal da Terra: Paz da Terra, 2006.

Page 130: Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de …livros01.livrosgratis.com.br/cp142532.pdf · Milhares de livros grátis para download. ANDRÉ VILLAR GOMEZ REVOÇÃO TECNOLÓGICA

129

grave problema de nossa época. Estaríamos ingressando uma época de capitalismo

ecologicamente responsável? Um capitalismo verde?

Uma das iniciativas de maior envergadura foi o Protocolo de Kyoto. Ratificado

em 15 de março de 1999, em Kyoto, no Japão, e conseqüência de uma série de reuniões

iniciadas na década anterior, o Protocolo de Kyoto consiste num protocolo de um

tratado internacional de compromissos de redução dos gases que provocam o efeito

estufa. O Protocolo propõe um calendário no qual os países-membros têm a obrigação

de reduzir a emissão de gases do efeito estufa em, pelo menos, 5,2% em relação aos

níveis de 1990 no período entre 2008 e 2012 – também chamado de “primeiro período

de compromisso”. As metas de redução não são homogêneas a todos os países,

colocando níveis diferenciados para os 38 países que mais emitem gases.258

A redução das emissões dos gases estufa proposta pelo Protocolo é

extremamente modesta. Tal redução permite – no máximo – “mitigar” alguns dos

graves problemas ecológicos atuais. Mas, de modo algum, representam alguma solução.

No entanto, ao que tudo indica, mesmos esses limitados objetivos do Protocolo estão

longe de ser atingidos. E isso não é tudo. Essas metas – já exíguas – fora ainda mais

abrandadas em 2001 (quando o Protocolo foi referendado, em Bonn, na Alemanha), por

meio da criação dos chamados “sumidouros de carbono”. Em que consiste essa

proposta? Simplesmente o seguinte: os países que possuem grandes áreas florestadas –

que absorvem naturalmente o dióxido de carbono – podem usar essas florestas como

crédito em troca do controle de suas emissões. Desse modo, os países mais ricos – para

manter sua produção industrial – poderiam transferir parte de suas indústrias mais

poluentes para países onde o nível de emissão é baixo, ou investir nesses países, como

parte de negociação. Assim, o problema não seria mais deixar de poluir ou de poluir

menos. Mas tão-somente pagar para continuar poluindo. Os países mais ricos – que

poluem mais – pagam aos mais pobres – que poluem menos – pelos “direitos de poluir”.

Enfim, a própria poluição se torna uma mercadoria. Esse acordo mínimo, vazio e falido

258 Mesmo não sendo obrigados a cumprir metas de redução, os chamados países em desenvolvimento respondem por quase metade das emissões de dióxido de carbono mundiais, e por 73% do aumento das emissões em 2004. Segundo a Agência de Avaliação Ambiental da Holanda, a China, que estava 2 por cento atrás dos Estados Unidos em emissões de dióxido de carbono em 2005, superou os Estados Unidos em 2006 em 7,5 por cento. Entretanto, as emissões per capita da China são menos de um quarto das emissões dos Estados Unidos – a China, com uma população de 1,3 bilhão, emite cerca de 4,7 toneladas de CO2 por habitante, contra 19,2 toneladas nos EUA. China diz que países ricos não deveriam criticar sua poluição. Ambiente em foco, 23 de junho de 2007. Disponível em: http://www.ambienteemfoco.com.br/?p=4681

Page 131: Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de …livros01.livrosgratis.com.br/cp142532.pdf · Milhares de livros grátis para download. ANDRÉ VILLAR GOMEZ REVOÇÃO TECNOLÓGICA

130

foi o máximo que chegou os setores ecologicamente mais avançados do capital

internacional.259

3. Soluções tecnológicas

Mas estas soluções também não poderão ser de ordem tecnológica. Um dos

remédios tecnológicos são fornecidos pelas empresas de “geoengenharia” – empresas

dedicadas à modificação do ambiente voluntariamente e em grande escala. Uma das

propostas da geoengenharia consiste em aumentar a capacidade de os oceanos

“funcionarem” como “esgotos” de carbono por meio da dispersão de certas substâncias

no mar. Tais emissões serviriam para “fertilizar” os oceanos. A empresa Planktos Inc.,

por exemplo, pretende derramar nanopartículas de ferro nos oceanos. A empresa

australiana Ocean Nourishment Corporation, por sua vez, tenciona o mesmo através do

derramamento de úreia no mar.260 A biotecnologia também pretende contribuir para a

solução dos problemas ecológicos. Craig Venter – ex-presidente e diretor-geral da

Celera, a companhia que seqüenciou o genoma humano – propõe a criação de novos

microorganismos capazes de se alimentar de dióxido de carbono na atmosfera,

transformando-o em algo semelhante ao óleo e à gasolina. Prevê-se também que os

nanorobôs também possam ser empregados no futuro com essa finalidade.

Mas seriam tais medidas razoáveis? Vale a pena correr o risco de promover

intervenções em larga escala no ambiente, quando o problema fundamental consiste

exatamente em reduzir a escala e a intensidade das intervenções sobre a natureza?

Poderia a tecnologia e o sistema econômico que têm provocado o arruinamento

ecológico da Terra fornecer os meios de resolver – em realidade já nem se fala mais

nisso, mas tão-somente em minorá-los – os graves problemas ecológicos de nossa

época? É possível que as intervenções desejadas em larga escala na natureza provoque

efeitos secundários, não-desejados, maiores que os problemas que visa resolver. A

natureza é muito complexa para ser submetida a tratamentos tão simplistas. Um suposto

aumento da capacidade de absorção de carbono pode criar transtornos ecológicos que

escapam inteiramente à visão reducionista da ciência contemporânea.

259 Cf. LOWY, Michael. Ecologia e socialismo. Disponível em: http://www.mst.org.br/mst/pagina. 260 O projeto de verter 500 toneladas de uréia no mar de Sulo, próximos às Filipinas, teve de ser alterado em função da oposição do governo filipino e à denuncia de várias organizações sociais, em função dos impactos sociais e ecológicos que ele provocaria. Entretanto, a Ocean Nourishment Corporation segue com o plano de verter mais de mil toneladas de uréia em águas malaias. Considera também fazer o mesmo nas águas do Chile, Emirados Árabes e, possivelmente, Marrocos. RIBEIRO, Silva. Mudanças climáticas: os que lucram e os que resistem. Disponível em: http://www.mst.org.br/mst/pagina.

Page 132: Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de …livros01.livrosgratis.com.br/cp142532.pdf · Milhares de livros grátis para download. ANDRÉ VILLAR GOMEZ REVOÇÃO TECNOLÓGICA

131

4. Petróleo e automóvel

Vivemos numa sociedade automobilística. O carro não é apenas uma das

principais mercadorias do mundo do capital. É também um símbolo de prestígio social,

uma forma de vida e um objeto de culto fetichista. Ele expressa força, poder, riqueza. É

o símbolo da liberdade capitalista. Liberdade para ir e vir. Mesmo que isso seja feito à

custa de provocar morte e destruição em larga escala.

Há tempos que essas máquinas assassinas decretaram guerra contra as pessoas e

contra a natureza. Milhões de seres humanos mortos e mutilados a cada ano.261 Uma

hecatombe cotidiana, em escala mundial. Mas os automóveis também transformam as

cidades num lugar inóspito, feio e poluído. As grandes cidades do capital são cidades

automobilísticas. Bosques e florestas são sistematicamente devastados para dar lugar a

ruas, estradas e vias expressas. Espaços são retirados das pessoas para serem destinados

à circulação ou transformados em estacionamentos. O horror da cidade automobilística

é um dos motivos que levam milhares de pessoas a fugir dela a cada final de semana e

feriado em busca de um lugar mais aprazível. Uma fuga que não cessa de provocar

engarrafamentos e inúmeros acidentes nas estradas e que, além disso, tem de ser

empreendida para lugares cada vez mais distantes, visto que, onde quer que os

automóveis cheguem, logo chega grande parte dos problemas das grandes cidades. E

assim a fuga tem de continuar...

Não bastasse tudo isso, enormes quantidades de “recursos naturais” são extraídas

para produzir e movimentar os automóveis. Um dos mais importantes elementos que

alimenta a civilização automobilística é o petróleo. Por isso, pode-se dizer que o

capitalismo contemporâneo é fossilista e, mais especificamente, petroleocêntrico. Esse

modo de produção e de vida só pode subsistir por meio da incineração sistemática e

diária de uma enorme quantidade de petróleo. Essa energia acumulada e produzida

durante milhões de anos tem sido queimada irresponsavelmente em algumas poucas

décadas – destruindo irreversivelmente um patrimônio que poderia encontrar um uso

melhor e promovendo gigantescos problemas ecológicos. O problema, porém, é que o

petróleo é finito e não poderá sustentar indefinidamente o modo de produção e de vida

capitalista. A colisão entre as necessidades crescentes dessa fonte de energia e os limites

261 Segundo a Organização Mundial de Saúde, 1,2 milhão de pessoas morrem e 50 milhões ficam feridas em acidentes automobilísticos a cada ano. Somente no Brasil morrem mais de 30 mil pessoas por ano. A perspectiva é de que, em 2020, esse número seja 60% maior em todo o mundo. Mais de um milhão de pessoas morrem no trânsito por ano, diz OMS. Atualizado em 07/04/2004. Disponível em: http://www.bbc.co.uk/portuguese/ciencia/story/2004/04/040407_transitorg.shtml

Page 133: Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de …livros01.livrosgratis.com.br/cp142532.pdf · Milhares de livros grátis para download. ANDRÉ VILLAR GOMEZ REVOÇÃO TECNOLÓGICA

132

físicos do planeta será sentido de forma muito violenta no momento em que a produção

de petróleo principiar a declinar. É muito provável que já tenhamos atingido o pico da

extração de petróleo. Doravante, o petróleo tende a escassear numa sociedade centrada

no petróleo.

O tamanho da frota de automóveis indica o caráter essencialmente antiecológico

e predatório do modo de produção e de vida capitalista. Estima-se que a frota de

veículos em 2007 era de cerca de 950 milhões de veículos, dentre os quais quase 700

milhões somente de automóveis. E a cada ano muitos milhões de novos veículos são

postos em circulação. Somente em 2007 foram produzidos mais de 70 milhões de

veículos, dentre os quais 50 milhões de carros.262 Não precisa muito esforço para

verificar o caráter insustentável de tudo isso. O petróleo é essencial não apenas como

combustível para os veículos. Ele é também matéria-prima essencial para sua produção:

peças, pintura, lubrificantes, pneus etc. E não se pode esquecer a imensa quantidade de

energia – em grande medida fóssil – despendida na produção automobilística. Portanto,

o problema do esgotamento do petróleo vai muito além do simples fornecimento de

combustível líquido para os tanques dos veículos.

Além do caráter homicida e ecocida dos automóveis, é preciso destacar que eles

têm servido cada vez menos para deslocar as pessoas com conforto e eficiência. Os

engarrafamentos intermináveis e cada vez mais constantes nas cidades servem para

mostrar que, também nesse aspecto, a civilização automobilística marcha para o

colapso. A “enorme coleção” de veículos faz o mundo chafurdar em poluição,

devastação ecológica, stress, perda de tempo e acidentes, muitos acidentes etc. O mundo

automobilizado é essencialmente antihumano e antiecológico.

5. Tragédia sócio-ecológica dos agrocombustíveis

O agrocombustível é o combustível derivado de plantas. Os dois principais tipos

de agrocombustível são o biodiesel (produzido a partir das plantas oleaginosas) e o

agroetanol (proveniente de cereais, seivas, ervas e madeira fermentada). No entanto, ele

não consiste numa fonte de energia melhor por derivar de vegetais. A biomassa

queimada diretamente também consiste numa forma de agrocombustível. Essa fonte de

energia tem sido anunciada como um dos meios de contribuir para resolver os

262 Dados extraídos de http://automotivebusiness.com.br/estat.htm

Page 134: Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de …livros01.livrosgratis.com.br/cp142532.pdf · Milhares de livros grátis para download. ANDRÉ VILLAR GOMEZ REVOÇÃO TECNOLÓGICA

133

problemas ecológicos atuais.263 Entretanto, ao contrário do discurso hoje dominante, o

combustível derivado das plantas não é capaz de realizar o “milagre” prometido. Pelo

contrário. Tende a agravar ainda mais alguns dos já tão graves problemas ecológicos e

sociais. Não só não resolverá o problema do esgotamento do petróleo – o que, em

realidade está no centro da motivação pela adoção dessa nova “matriz energética”, e não

a diminuição da poluição atmosférica – como promoverá uma tragédia inominável nos

próximos anos.

Atílio Borón comenta que a totalidade da superfície agrícola da União Européia

seria suficiente para cobrir apenas 30 por cento das necessidades atuais – não as futuras,

previsivelmente maiores – de agrombustíveis. Assim, para substituir apenas 5,75% dos

combustíveis pelo agrocombustível seria necessário substituir cerca de 20% de suas

terras dedicadas ao cultivo de grãos pela cultura energética. Para satisfazer a demanda

atual de combustíveis fósseis dos Estados Unidos seria necessário destinar à produção

de agrocombustíveis cerca de 121% de toda a superfície agrícola do país. Embora tenha

destinado a quinta parte de sua colheita de milho para produção de agroetanol em 2006,

todo esse esforço serviu para substituir apenas cerca de 3% do consumo total de

combustível desse país. Portanto, se o centro do capitalismo mundial não é capaz de

produzir a quantidade de agrocombustível por ele requerida, ela terá de proceder, em

grande parte, dos países do Sul. Nem os Estados Unidos, nem a União Européia, e

tampouco a China ou a Índia, têm terras disponíveis para sustentar ao mesmo tempo a

produção de alimentos e a expansão na produção de agrombustíveis.264 Os países do Sul

verão imensas porções de terra transformadas em plantations para a produção do dito

“combustível verde”. Mais um capítulo da história daqueles que se especializaram em

perder na divisão internacional do trabalho.

As poucas florestas que ainda restam nessas regiões ficaram, a partir de então,

sob a alça de mira dos produtores do combustível supostamente ecológico. Milhões de

hectares de florestas tropicais na Malásia, em Sumatra e em Bornéu já foram derrubados

263 O termo biocombustível invoca uma imagem vital de renovação e abundância. Seria uma energia limpa, verde, sustentável. Capaz de melhorar a vida das pessoas e ecologicamente sustentável. No entanto, essa imagem é falsa. Serve apenas para forjar um mito e turvar a discussão. Por isso, ao invés de chamar de biocombustível, seguindo a indicação de Eric Holt-Giménez, doravante utilizarei o termo agrocombustível. HOLT-GIMÉNEZ, Eric. Biocombusteis: os cinco mitos da transição dos agro-combustíveis. Situação e perspectivas da agroenergia no Brasil. Via Campesina Brasil, novembro de 2007. 264 BORÓN, Atílio. Biocombustibles: el porvenir de una ilusión. Disponível em: http://www.iade.org.ar/modules/noticias/articles.php?storyid=1648

Page 135: Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de …livros01.livrosgratis.com.br/cp142532.pdf · Milhares de livros grátis para download. ANDRÉ VILLAR GOMEZ REVOÇÃO TECNOLÓGICA

134

para ceder lugar às plantações de óleo de palma (conhecido no Brasil como dendê).265 A

Floresta Amazônica também encontra gravemente ameaçada. Desde que integrada no

projeto da modernização brasileira nas décadas de 1960-70, ela floresta tem sido

sistematicamente pilhada e degradada. A aceleração da depredação da Floresta

Amazônica ganha um forte impulso com a produção dos agrocombustíveis. A produção

das chamadas culturas energéticas fará com que as fronteiras agrícolas avancem sobre a

Floresta Amazônica. Basta observar o que pensam, por exemplo, alguns pesquisadores

da Embrapa. Para eles, a Amazônia é um dos principais trunfos do Brasil no negócio

dos agrocombustíveis. Ela “possui o maior potencial para o plantio de dendê do mundo,

com área estimada de 70 milhões de hectares”.266 Assim, “biodiesel do

desflorestamento” representa uma grande ameaça para a Floresta Amazônica. A

produção de etanol também faz o plantio de cana-de-açucar avançar sobre a floresta.

Mas esse não é o único ecosistema a ser atingido no Brasil pela produção de

agrocombustível. Ele contribuirá para destruir o Cerrado e o que resta da Mata

Atlântica. É essa sanha destrutiva que faz com que o agrocombustível deva ser

considerado como “a mais importante ameaça à diversidade biológica da Terra”.267

Mas os agrocombustíveis não entram em rota de colisão apenas com as florestas.

Ele também tende a ampliar o problema da fome no mundo. Com a produção dos

agrocombustíveis, os tanques dos automóveis entraram em disputa acirrada com as

pessoas pela posse dos alimentos. Uma das conseqüências do crescimento da demanda

por agrombustíveis consiste no aumento do preço dos alimentos. Este aumento de

preços já é responsável por uma grave crise alimentar. Os agrombustíveis tendem a

transformar esse problema de algo meramente conjuntural num problema estrutural.268

Deve-se notar que, ao contrário do que se tem afirmado, o aumento do preço dos

alimentos não se deve ao crescimento das demandas da Índia e da China. De acordo

com um informe confidencial do Banco Mundial, obtido pelo The Guardian, a demanda

desses países – bem como a seca na Austrália – teve um impacto apenas marginal sobre

o preço dos alimentos. Estima-se que o aumento do preço da energia e dos fertilizantes

contribuiu com um aumento no preço de 15%, enquanto que os agrombustíveis foram 265 HO, Mae-Wan. Biocombustíveis: biodevastação, fome e falsos créditos de carbono. Disponível em: http://www.mst.org.br/mst/pagina 266 PERES, José Roberto Rodrigues; JUNIOR, Elias de Freitas; GAZZONI, Décio Luis. Biocombustíveis: uma oportunidade para o agronegócio brasileiro. p. 39. Disponível em: http://www.agronegocios-e.com.br/agr;down/Pol_Agre_1_2005_Art05pdf- 267 BROW, Lester. Biocombustíveis são a maior ameaça a diversidade da Terra. Situação e perspectivas da agroenergia no Brasil. Via Campesina Brasil, novembro de 2007. p. 48. 268 UMBELINO, Ariovaldo. Razões da crise alimentar. Disponível em http:/www.mst.org.Br/mst/pagina

Page 136: Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de …livros01.livrosgratis.com.br/cp142532.pdf · Milhares de livros grátis para download. ANDRÉ VILLAR GOMEZ REVOÇÃO TECNOLÓGICA

135

responsáveis com 75% do aumento no mesmo período. O Banco Mundial estima que

mais de 100 milhões de pessoas em todo o mundo foram lançados para baixo da linha

de pobreza por causa desses aumentos, tendo provocado revoltas e manifestações em

várias partes do mundo.269

O impacto demolidor do encarecimento dos alimentos ocorrerá inexoravelmente

na medida em que a terra seja cada vez mais utilizada para produzir uma commodity

suscetível de ser transformada em carburante. Essa tese é demonstrada por C. Ford

Runge e Benjamin Senauer no texto intitulado O modo como os biocombustíveis

poderiam fazer os pobres passarem fome. Segundo esses dois acadêmicos, o

crescimento da indústria de agrombustíveis está aumentando não só o preço do milho,

das sementes oleaginosas e outros grãos, mas também de produtos que parecem não

guardar qualquer relação com os agrombustíveis, como, por exemplo, galinha, leite e

ovos. A utilização da terra para o plantio do milho destinado à produção do etanol está

reduzindo a área de outros cultivos, provocando um aumento no custo de produção de

outros gêneros alimentícios – custo esse que, em grande medida, recairá sobre o

consumidor.270 Os autores advertem ainda que os efeitos mais devastadores da subida

do preço dos alimentos serão sentidos especialmente nos países do Terceiro Mundo.

Essas tendências prefiguram um holocausto social de imensa proporção. Eles estimam

que para cada aumento de 1% no preço dos alimentos básicos, o grupo de pessoas que

passam fome aumentará em cerca de 16 milhões de pessoas. Conforme seus cálculos

mais conservadores, a continuidade do aumento de preços deverá aumentar a população

de famélicos no mundo em, pelo menos, mais duzentos milhões de pessoas em 2025.

Para Atílio Borón, o agrocombustível tende a promover um “genocídio silencioso”.271 O

chamado biocombustível deveria ser designado de tanatocombustível.

269 CHAKARABORTTY, Aditya. Un estúdio interno del Banco Mundial da un duro golpe a los cultivos energéticos. Disponível em: http://www.rebelion.org/noticia.php?id+70279&titular=informe-secreto:-bocombustibles-provocan-crisis-alimentaria- 270 RUNGE, C. Ford & SENAUER, Benjamin. El modo en que los biocombustibles pudieran hacer pasar hambre a los pobres. Disponível em: http://www.rebelion.org/noticia.php?id=49418 271 BORÓN, Atílio. Biocombustibles: el porvenir de una ilusión. Disponível em: http://www.iade.org.ar/modules/noticias/articles.php?storyid=1648

Page 137: Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de …livros01.livrosgratis.com.br/cp142532.pdf · Milhares de livros grátis para download. ANDRÉ VILLAR GOMEZ REVOÇÃO TECNOLÓGICA

136

6. Provocando mais poluição Tem-se apresentado freqüentemente o agrocombustível como um combustível

mais “limpo” que o combustível fóssil. Sua principal vantagem consistiria em ser ele

“neutro” em carbono. Portanto, ele não aumentaria a quantidade de carbono liberado na

atmosfera e, por isso, não aumentaria o efeito estufa. No entanto, para a especialista em

genética e bioquímica, a professora Mae-Wan Ho, da Universidade de Hong Kong, tal

assertiva se baseia numa análise muito limitada. Segundo ela, essa questão tem de ser

considerada a partir de uma visão mais ampla, que considere os efeitos negativos dessas

fontes. Faz-se necessário então considerar a questão do balanço energético e da

poupança de carbono. 272

Mae-Wan Ho define o balanço energético como as unidades de energia de

agrocombustível produzida por cada unidade de energia consumida. E como poupança

de carbono a percentagem de emissões de gases-estufa poupadas por se produzir e

utilizar o agrocombustível em vez de produzir e utilizar a mesma quantidade de energia

de combustível fóssil. Para ela, ao contrário do que se afirma comumente, na maior

parte das vezes, o agrocombustivel apresenta um balanço energético pequeno ou

negativo. A maior parte dos estudos energéticos que apresenta um equilíbrio de energia

positivo deixam de fora os custos das emissões de dióxido de carbono e da energia gasta

na produção e na utilização de fertilizantes, pesticidas e utensílios agrícolas, no

processamento, no refino, no transporte e na criação e conservação das infra-estruturas

para transporte e distribuição. Custos extras de energia e de emissões que podem ser

ainda maiores se os agrocombustíveis forem feitos num país e exportados para outro.

Ou, pior ainda, se as matérias-primas, como as oleaginosas, forem produzidas num país

e refinadas noutro – o que é muito provável de acontecer, caso perdurem as tendências

atuais.

Um estudo realizado pelo Flemish Institute for Technological Resarch,

patrocinado pelo Gabinete Belga de Assuntos Científicos, Técnicos e Culturais e da

Comissão Européia, chegou à conclusão de que o “biodiesel provoca mais problemas de

saúde e ambientais porque cria uma poluição mais pulverizada, libera mais poluentes

que promovem a formação de ozônio, geram mais desperdício e provocam maior

272 HO, Mae-Wan. Biocombustíveis: biodevastação, fome e falsos créditos de carbono. Disponível em: http://www.mst.org.br/mst/pagina

Page 138: Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de …livros01.livrosgratis.com.br/cp142532.pdf · Milhares de livros grátis para download. ANDRÉ VILLAR GOMEZ REVOÇÃO TECNOLÓGICA

137

eutroficação”.273 É importante lembrar que o ozônio encontrado na estratosfera (região

situada entre 16 a 30 km de altitude) possui a propriedade de absorver a radiação

ultravioleta do sol. Todavia, curiosamente, o ozônio presente na troposfera (0-7/17 km

da terra até a base da estratosfera) é um perigoso poluente que, além de provocar

problemas respiratórios e o smog (névoa seca ou nevoeiro fotoquímico), também

degrada tecidos e danifica plantas.

Calcula-se que o agroetanol da cana-de-açucar no Brasil tem um equilíbrio de

energia muito melhor do que qualquer outro biodiesel, principalmente daqueles que são

produzidos em regiões temperadas. A poupança de carbono do agroetanol da cana-de-

açucar brasileira é também, de longe, maior do que qualquer outro agrocombustível. No

entanto, esse saldo positivo em energia e carbono ficaria substancialmente reduzido se

fossem incluídos os custos de infraestrutura e exportação, mas, sobretudo, se forem

contabilizados os demais impactos sociais e ecológicos de todo o processo de produção

de agroetanol – incluindo o problema da segurança alimentar.

Há muitas contas que inflacionam as poupanças de carbono do agroetanol. Por

exemplo, tais cálculos não levam em consideração a enorme liberação de carbono do

solo orgânico provocado pela cultura intensiva de cana-de-açucar, nem o fato de que se

as florestas naturais, caso fossem regeneradas, absorveriam uma quantidade de carbono

muito superior ao que o agroetanol poupa num hectare de cana-de-açucar. É preciso

assinalar também que, embora a energia para a refinaria e o processamento de destilação

provenha da própria queima do bagaço da cana-de-açucar e, portanto, ocorra num ciclo

fechado – isto é, sem a utilização de combustíveis fósseis – não se deve desconsiderar a

enorme poluição atmosférica provocada pelas emissões de fumaça e fuligem de tais

processos produtivos. Embora seja considerada uma fonte limpa de energia, a produção

de agroetanol polui o ar, destrói florestas e contamina o solo e a água, por causa da

grande quantidade de herbicidas e fertilizantes, provocando, inclusive, envenenamento

de seres humanos.274 Portanto, o agrocombustível não pode nem resolver os graves

273HO, Mae-Wan. Biocombustíveis: biodevastação, fome e falsos créditos de carbono. Disponível em: http://www.mst.org.br/mst/pagina A eutroficação é um fenômeno causado pelo excesso de nutrientes (compostos químicos ricos em fósforo e nitrogênio, normalmente causado pela descarga de efluentes agrícolas, urbanos e industriais) num corpo de água mais ou menos fechado (rios, lagos, baías, estuários etc.), levando à proliferação excessiva de algas, que, ao entrarem em decomposição, promovem o aumento do número de microorganismos e à conseqüente deterioração da qualidade do corpo d‟água. 274 Em junho e agosto de 2005, por exemplo, foi decretado estado de alerta na região dos canaviais no estado de São Paulo em virtude de as queimadas terem levado a umidade do ar atingir níveis extremamente baixos (entre 13% e 15%). Segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, foram registrados 287 focos de queimadas nesse período. MENDONÇA, Maria Luisa. A OMC e os efeitos destrutivos da cana no Brasil. Cadernos de Formação 2.

Page 139: Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de …livros01.livrosgratis.com.br/cp142532.pdf · Milhares de livros grátis para download. ANDRÉ VILLAR GOMEZ REVOÇÃO TECNOLÓGICA

138

problemas ecológicos de nossa época e nem servir como uma fonte alternativa de

energia ao petróleo, pois gasta mais energia do que consegue poupar.

O agrocombustível pode contribuir promover uma maior aceitação pública e

uma menor restrição ao cultivo dos organismos geneticamente modificados, uma vez

que não são utilizados diretamente como alimento nem como ração. Daí o grande

interesse das empresas de organismos geneticamente modificados por esse tipo de

cultura. Não é pelo fato de não estar diretamente ligado à produção de alimentos que os

organismos geneticamente modificados se tornaram menos nefastos para os seres

humanos e o conjunto do ambiente. Segundo Eric Holt-Giménes, diretor executivo do

Food First/Institute for Food and Developmente Policy: “Dada a promiscuidade

demonstrada das plantas geneticamente modificadas, podemos esperar contaminações

genéticas maciças. Isso vai deixar a Monsanto e a Syngenta muito satisfeitas. Os

agrocombustíveis vão servir como o seu cavalo de Tróia genético, lhes permitindo

colonizar completamente o nosso sistema de combustíveis e alimentos”.275 Também,

por esse motivo, os agrocombustíveis contribuirão para aumentar os problemas

ecológicos.

7. Ainda de veias abertas

Seguindo caminhos diversos, a historiografia de Sérgio Buarque de Holanda e a

de Caio Prado Júnior convergem na apreensão da depredação ecológica do Brasil. Caio

Prado observa que a agricultura comercial extensiva e em larga escala que esteve

presente em todo o período colonial se caracterizou por sua enorme destrutividade. Foi

mais quantitativa do que qualitativa, tendo se baseado amplamente em “processos

bárbaros e destrutivos”.276 Sérgio Buarque, por sua vez, assinala que nossa economia

rural, fundada no trabalho escravo, na monocultura e na grande propriedade sempre se

distinguiram pelo “muito que pediam à terra e o pouco que lhe davam em

retribuição”.277 “A verdade é que a grande lavoura, conforme se prat icou e ainda se

pratica no Brasil, participa, por sua natureza perdulária, quase tanto da mineração

quanto da agricultura. Sem braço escravo e terra farta, terra para gastar e arruinar, não

para proteger ciosamente, ela seria irrealizável”.278 Esta constante da história brasileira:

275 HOLT-GIMÉNEZ, Eric. Biocombusteis: os cinco mitos da transição dos agro-combustíveis. Situação e perspectivas da agroenergia no Brasil. Via Campesina Brasil, novembro de 2007. pp. 41, 42. 276 JUNIOR, Caio Prado. Formação do Brasil contemporâneo. São Paulo: Brasiliense, 1957. p. 129. 277 HOLANDA, Sergio Buarque. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. p. 51. 278 Id. Ibid. p. 49.

Page 140: Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de …livros01.livrosgratis.com.br/cp142532.pdf · Milhares de livros grátis para download. ANDRÉ VILLAR GOMEZ REVOÇÃO TECNOLÓGICA

139

“No afã de gastar gentes e matas, bichos e coisas para lucrar, acabam com as florestas

mais portentosas da Terra. Desmatam morrarias incomensuráveis, na busca de minerais.

Erodem e arrasam terras sem conta. Gastam gente, aos milhões”.279

O agrocombustível é apenas mais um capítulo dessa longa história da divisão

internacional do trabalho em que algumas comarcas do mundo limitaram-se a perder

sempre. No momento em que o Terceiro Mundo amarga o fim do desenvolvimentismo

nacional, em virtude de sua incapacidade de realizar as inversões necessárias para

acompanhar a aceleração econômica e tecnológica global, o caráter predatório sobre

gentes e sobre a natureza inteira recrudesce ainda mais. Assim, a inserção do Brasil no

mercado mundial passa a depender cada vez mais da exploração e depredação da

natureza e da exploração das gentes. O agrocombustível pode até ser uma “janela de

oportunidade”, como apregoam seus defensores, mas uma “janela” que trará lucros para

alguns poucos e desgraça social para a maioria e danos ecológicos irreparáveis para o

planeta – e, portanto, para todos.

As atuais políticas para o setor dos agrocombustíveis sustentam-se nos

elementos que marcaram a colonização brasileira: apropriação de território, bens

naturais e trabalho superexplorado. Portanto, baseia-se nos princípios bárbaros e

destrutivos de sempre: terra e gentes para gastar e arruinar sem qualquer pejo. A

monocultura – esta que constitui uma das principais invenções do mundo moderno – é a

forma técnica e de poder que liga os princípios da colonização à etapa atual do

desenvolvimento do capitalismo.280 Depredação da natureza e exploração e destruição

dos seres humanos estão indissociavelmente ligados a essa forma de produção.

Um dos mitos do agrocombustíveis é o de que ele promoverá desenvolvimento

rural. Mas é o contrário o que ocorre. Não há espaço para o pequeno produtor no

negócio dos agrocombustíveis. As grandes indústrias de petróleo, grãos e a indústria

genética estão rapidamente consolidando o seu controle sobre toda a cadeia de valor do

agrocombustível. Basta lembrar que apenas duas dessas grandes corporações, a Cargill e

a ADM, controlam 64 por cento de todo o comércio global de grãos. Os produtores de

agrocombustível tendem a se tornar cada vez mais dependentes de algumas poucas

corporações. Em conseqüência disso, milhões de pequenos proprietários serão forçados

a sair do mercado e serão expulsos de suas terras. Portanto, não há nesse negócio

279 RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. pp. 68, 69. 280PORTO-GONÇALVES, Carlos Walter. Monocultura, técnica e poder. Disponível em: http://www.mst.org.br/mst/pagina.

Page 141: Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de …livros01.livrosgratis.com.br/cp142532.pdf · Milhares de livros grátis para download. ANDRÉ VILLAR GOMEZ REVOÇÃO TECNOLÓGICA

140

nenhum espaço para um suposto “desenvolvimento socialmente sustentável”. Milhares

de pequenos proprietários já foram deslocados pelas plantações de soja na “República

da Soja”, uma área de mais de 50 milhões de hectares no sul do Brasil, norte da

Argentina, Paraguai e leste da Bolívia. Dados da CPT mostram que o número de

famílias expulsas da terra no Brasil pela ação do poder privado teve um aumento mais

que significativo de 140% sobre o ano anterior: 1.809 famílias expulsas em 2006, 4.340,

em 2007. Também aumentou o número de pessoas ameaçadas de morte, de 207 para

259, mais 25%.281 Intensificam-se os conflitos no campo brasileiro em virtude da posse

pela Terra – agora que cada palmo de chão se torna um recurso potencial da produção

de uma valiosa commodity.

Trabalhadores estão morrendo de tanto trabalhar nas plantações de cana-de-

açucar. Para competir com as máquinas, o trabalhador encontra-se obrigado a cortar

cerca de dez toneladas de cana por dia, realizando um esforço praticamente

insuportável. Doenças, acidentes, drogas para estimular o trabalho e mesmo morte por

excesso de esforço são uma constante nos canaviais de Ribeirão Preto – chamada de

“Califórnia brasileira”, a “capital do agronegócio”. O trabalho escravo se faz presente

em outras regiões do país.282 Longe de promover melhoria nas condições de vida dos

trabalhadores, o que se vê é sempre mais do mesmo: exploração recrudescida dos seres

humanos – e isso até o ponto em que eles ainda forem de rentáveis.

Fim de partida

A depredação ecológica e o martirológio humano que ocorre desde que o Brasil

foi colonizado se aprofundará. A política econômica dos países “pós-catastróficos”283,

restringe-se, cada vez mais, numa busca desesperada manter-se, custe o que custar,

ligado ao mercado mundial. Então, em face à crise do desenvolvimentismo nacional, o

agronegócio em geral, e o agronegócio do biocombustível em particular, passa a se

apresentar como uma “janela de oportunidades” para o país. De fato. Mas o é como

catástrofe. Tanto neoliberais como desenvolvimentista parecem estar de acordo quanto

281Conflitos no Campo Brasil 2007, http://www.cptnac.com.br/?system=news&action=read&id=2430&eid=6 282 Expansão da cana aumenta a exploração. Brasil de Fato, de 5 a 11 de junho de 2008, p. 3. 283 KURZ, Robert. O colapso da modernização: da derrocada do socialismo de caserna à crise da economia mundial. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.

Page 142: Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de …livros01.livrosgratis.com.br/cp142532.pdf · Milhares de livros grátis para download. ANDRÉ VILLAR GOMEZ REVOÇÃO TECNOLÓGICA

141

ao programa prescrito pelo capital: destruir o quanto puder e que as próximas gerações

fiquem com o prejuízo.

O capitalismo não é capaz de resolver os problemas ecológicos e materiais que

ele próprio provoca. Pelo contrário. Não cessa de torná-los ainda mais graves. O

biocombustível é fuga para frente do capitalismo e resultará numa tragédia sem

precedentes no Brasil e no Mundo. Depois de pilhar o petróleo, agora é a superfície da

terra que vai ser literalmente incinerada na combustão capitalista.

O desvario não tem fim...

Page 143: Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de …livros01.livrosgratis.com.br/cp142532.pdf · Milhares de livros grátis para download. ANDRÉ VILLAR GOMEZ REVOÇÃO TECNOLÓGICA

142

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ADORNO, Theodor. Minima Moralia. São Paulo: Ática, 1993. ________. Palavras e sinais: modelos críticos 2. Petrópolis, RJ: Vozes, 1995. ________. Théorie esthétique. Paris: Klincksieck, 1989. ANDERS, Günther. Nosostros los hijos de Eichmann: carta abierta a Klaus Eichmann. Barcelona: Paidos, 1988. ________. Llamese cobardia a esa esperanza. Bilbao: Besatari, 1995. _________. L’obsolescence de l’homme: sur l’âme à l’époque de la deuxième révolution industrielle. Paris: Éditions de L‟Enciclopédie des Nuisances-Éditions Ivrea, 2002.

ANTUNES, Ricardo. Adeus ao trabalho? São Paulo: Cortez; Campinas, SP: Editora da Universidade Estadual de Campinas, 2000. ARENT, Hannah. Origens do totalistarismo: anti-semitismo, imperialismo, totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. ARISTÓTELES. Política. Vega: Lisboa, 1988. ________. Metafísica. Bauru, SP: EDIPRO, 2006. BENJAMIN, Walter. Rua de mão única. São Paulo: Editora Brasiliense, 1987. (Obras escolhidas; v. II) ________. O surrealismo. O último instantâneo da inteligência européia. In: Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1994. (Obras escolhidas; v. I) BENSAÏD, Daniel. Marx, o intempestivo: grandezas e misérias de uma aventura crítica. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999. BLAKE, William. Provérbios do inferno. In: O casamento do céu e do inferno & outros escritos. Porto Alegre: L&PM, 2009. BORÓN, Atílio. Biocombustibles: el porvenir de una ilusión. Disponível em: http://www.iade.org.ar/modules/noticias/articles.php?storyid=1648 BRAVERMAN, Harry. Trabalho e capital monopolista: a degradação do trabalho no século XX. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1987. BRENNER, Robert. O boom e a bolha: os Estados Unidos na economia mundial. Rio de Janeiro: Record, 2003.

Page 144: Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de …livros01.livrosgratis.com.br/cp142532.pdf · Milhares de livros grátis para download. ANDRÉ VILLAR GOMEZ REVOÇÃO TECNOLÓGICA

143

BROW, Lester. Biocombustíveis são a maior ameaça a diversidade da Terra. Situação e perspectivas da agroenergia no Brasil. Via Campesina Brasil, novembro de 2007. CAMPOS, Lauro. A crise completa: a economia política do não. São Paulo: Boitempo, 2001. CASTORIADIS, Cornelius. As encruzilhadas do labirinto 2: os domínios do homem. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. CHAKARABORTTY, Aditya. Un estúdio interno del Banco Mundial da un duro golpe a los cultivos energéticos. Disponível em: http://www.rebelion.org/noticia.php?id+70279&titular=informe-secreto:-bocombustibles-provocan-crisis-alimentaria- CHÂTELET, François. Uma história da razão: entrevistas com Émile Nöel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994. CHESNAIS, François & SERFATI, Claude. “Ecologia” e condições físicas da reprodução social: alguns fios condutores marxistas. Crítica Marxista, São Paulo, nº. 16, p. 39-75, março de 2003. China diz que países ricos não deveriam criticar sua poluição. Ambiente em foco, 23 de junho de 2007. Disponível em: http://www.ambienteemfoco.com.br/?p=4681 CHOSSUDOVSKY, Michel. Guerra e globalização: antes e depois de 11 de setembro de 2001. São Paulo: Expressão popular, 2004. ________. Os democratas endossam a “Guerra global ao terrorismo”: Obama “corre atrás” de Osama. Disponível em: http://resistir.info/chossudovsky/obama_29ago08.html COGGIOLA, Osvaldo. O capital contra a história: gênese e estrutura da crise contemporânea. São Paulo: Xamã: Edições Pulsar, 2002. CONFLITOS no Campo Brasil 2007, http://www.cptnac.com.br/?system=news&action=read&id=2430&eid=6 COOK, Fred J. O estado militarista. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1965. DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997. ________. Considerações sobre a sociedade do espetáculo. In: A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997. ________. Panegírico. São Paulo: Conrad Editora do Brasil, 2002. ________. El planeta enferno. Barcelona: Anagrama, 2006. DESCARTES, René. Discurso do método. São Paulo: Nova Cultural, 1991. (Os pensadores)

Page 145: Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de …livros01.livrosgratis.com.br/cp142532.pdf · Milhares de livros grátis para download. ANDRÉ VILLAR GOMEZ REVOÇÃO TECNOLÓGICA

144

_________. Meditações metafísicas. São Paulo: Abril Cultural, 1991. (Os pensadores) DEUS, Jorge Dias de. Uma introdução, alguns comentários e três opiniões sobre a ciência. In: A crítica da ciência. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1974. DIAMOND, Jared. Colapso: como as sociedades escolhem o fracasso ou o sucesso. Rio de Janeiro: Record, 2006. DREXLER, Eric. Engins de création: l´avènement des nanotechnolgies. Paris: Vuibert, 2005. EDWARD, Regis. Nano: a ciência emergente da nanotecnologia: refazendo o mundo molécula por molécula. Rio de Janeiro: Rocco, 1997. ELLUL, Jacques. A técnica e o desafio do século. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1968. Emissão de gás carbônico dobra em 10 anos. Globo.com, 28/11/2006. Disponível em: http://g1.globo.com/Noticias/Ciencia/0,,AA1367166-5603,00.html ETC Group. Nanotecnologia: os riscos da tecnologia do futuro: saiba sobre produtos invisíveis que já estão no nosso dia-a-dia e o seu impacto na alimentação e na agricultura. Porto Alegre: L&PM, 2005. ________. Alarma sobre biologia sintética: coalición global demanda debate público y supervisión inmediata. Acesso: www.etcgroup.org/upload/publication/pdf_file/6 ________. La estratégia de las tecnologias convergentes: a teoria del pequeño BANG ________. La inmensidad de lo mínimo. Disponíveis em: http://www.etcgroup.org Expansão da cana aumenta a exploração. Brasil de Fato, de 5 a 11 de junho de 2008, p. 3. FAUSTO, Ruy. Marx: lógica e política, tomo I, São Paulo: Brasiliense, 1987. ________. Marx: lógica e política, tomo II. São Paulo: Brasiliense, 1987. ________. Marx: lógica e política, tomo III. São Paulo: Ed. 34, 2002. FEUERBACH, Ludwig. Tesis provisionales para la reforma de la filosofia. Barcelona: Labor, 1976. FEYERABEND, Paul. Contra o método. São Paulo: Editora UNESP, 2007. ________. Preleções sobre a essência da religião. Campinas, SP: Papirus, 1989. FEYNMAN, Richard. There’s plenty of room at the bottom. Disponível em: http://www.zyvex.com/nanotech/feynman.html

Page 146: Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de …livros01.livrosgratis.com.br/cp142532.pdf · Milhares de livros grátis para download. ANDRÉ VILLAR GOMEZ REVOÇÃO TECNOLÓGICA

145

FORRESTER, Viviane. O horror econômico. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1997. GANDÁSEGUI, Marco A. A corrida armamentista terrorista dos EUA. Boletim do Instituto de Estudos Latinoamericano – IELA –UFSC – Florianópolis, 30/10/2009. GEORGE, Susan. Relatório Lugano: sobre a manutenção do capitalismo no século XXI . São Paulo: Boitempo, 2002. GIL, Fernando. O plano da ciência. In: A crítica da ciência. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1974. GORZ, André. O imaterial: conhecimento, valor e capital. São Paulo: Annablume: São Paulo, 2005. MARTIN, Hans-Peter & SHUMANN, Harald. A armadilha da globalização. São Paulo: Globo, 1998. HEGEL, Friedrich. Fenomenologia do Espírito, parte I. Petrópolis, RJ: Vozes, 1992. HINKELAMMERT, Franz; ASSMANN, Hugo. A idolatria do mercado: ensaios sobre economia e teologia. São Paulo: Vozes, 1989. HO, Mãe-Wan. Biocombustíveis: biodevastação, fome e falsos créditos de carbono. Disponível em: http://www.mst.org.br/mst/pagina HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos: o breve século XX (1914-1991). São Paulo: Companhia das Letras, 1994. HOLANDA, Sergio Buarque. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. HOLT-GIMÉNEZ, Eric. Biocombusteis: os cinco mitos da transição dos agro-combustíveis. Situação e perspectivas da agroenergia no Brasil . Via Campesina Brasil, novembro de 2007. HORKHEIMER, Max. Eclipse da Razão. São Paulo: Centauro, 2002. ________. ADORNO, Theodor. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985. HUXLEY, Aldous. Regresso ao admirável mundo novo. São Paulo: HEMUS, 1959. JAPPE, Anselm. As aventuras da mercadoria. Lisboa: Antígona, 2006. JUNIOR, Caio Prado. Formação do Brasil contemporâneo. São Paulo: Brasiliense, 1957.

Page 147: Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de …livros01.livrosgratis.com.br/cp142532.pdf · Milhares de livros grátis para download. ANDRÉ VILLAR GOMEZ REVOÇÃO TECNOLÓGICA

146

JUNIOR, Cirilo. Programa nuclear brasileiro prevê 50 novas usinas em 50 anos, diz Lobão. Folha Online, 12/09/2008. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/folha/dinheiro/ult91u444354.shtml KAKU, Michio. Visões do Futuro: como a ciência revolucionará o século XXI. Rio de Janeiro: Rocco, 2001. KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. São Paulo: Abril Cultural, 1974. (Os pensadores) KATZ, Claudio. Tecnologia e economia armamentista. In: COGGIOLA, Osvaldo; KATZ, Cláudio. Neoliberalismo ou crise do capital? São Paulo: Xamã, 1996. KENNEDY, Paul. Preparando para o século XXI. Rio de Janeiro: Campus, 1993. KEYNES, John Maynard. Perspectivas econômicas para os nossos netos. In: DE MASI, Domenico. Desenvolvimento sem trabalho. São Paulo: Editora Esfera, 1999. KRAHL, Hans-Jürgen. Contribuçión al Curso sobre Crítica de la Economia Política. Disponível em: http://antivalor2.vilabol.uol.com.br KURZ, Robert. O colapso da modernização: da derrocada do socialismo de caserna à crise da economia mundial. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. ________. A origem destrutiva do capitalismo. In: Os últimos combates. Petrópolis, RJ: Vozes, 1997. _________. Desenvolvimento insustentável da natureza. Disponível em: http://antivalor2.vilabol.uol.com.br ________. Com todo vapor ao colapso. In: Com todo valor ao colapso. Juiz de Fora, MG: Editora UFJF-PAZULIN, 2004. ________. Natureza em ruínas. In: Com todo valor ao colapso. Juiz de Fora, MG: Editora UFJF-PAZULIN, 2004. ________. Os fantasmas reais da crise mundial. Capítulo II do livro A Guerra de ordenamento mundial. Disponível em: http://obeco.planetaclix.pt/ ________. Metamorfoses do imperialismo. Capítulo I do livro A Guerra de ordenamento mundial. Disponível em: http://obeco.planetaclix.pt/ ________. Poder mundial e crise. Ver também, do mesmo autor, Poder mundial e dinheiro mundial. Disponíveis em: http://obeco.planetaclix.pt/. ________. Dominação sem sujeito: sobre a superação de uma crítica social redutora. Disponível em: http://antivalor2.vilabol.uol.com.br KURZWEIL, Ray. A era das máquinas espirituais. São Paulo: Aleph, 2007.

Page 148: Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de …livros01.livrosgratis.com.br/cp142532.pdf · Milhares de livros grátis para download. ANDRÉ VILLAR GOMEZ REVOÇÃO TECNOLÓGICA

147

La recesión dispara las ventas de armas de fuego en EEUU. Fonte: Europa Press, 22/10/2009. Disponível em: http://www.europapress.es/economia/macroeconomia-00338/noticia-economia-recesion-dispara-ventas-armas-fuego-eeuu-20091122163200.html LESSA, Carlos. Entrevista. In Jornal dos Engenheiros, abril de 2006. LOHOFF, Ernst. Fughe in avanti: crisi e sviluppo del capitale. http://www.krisis.org/lohoff_fughe-in-avanti.html LÖWY, Michael. As aventuras de Karl Marx contra o Barão de Münchhausen: marxismo e positivismo na sociologia do conhecimento. São Paulo: Busca Vida, 1987. ________. Ecologia e socialismo. Disponível em: http://www.mst.org.br/mst/pagina. LUKÁCS, Georg. História e consciência de classe: estudos sobre a dialética marxista. São Paulo: Martins Fontes, 2003. Mais de um milhão de pessoas morrem no trânsito por ano, diz OMS. Atualizado em 07/04/2004. Disponível em: http://www.bbc.co.uk/portuguese/ciencia/story/2004/04/040407_transitorg.shtml MANDEL, Ernest. O capitalismo tardio. São Paulo, Abril Cultural, 1982. MANDER, Jerry. Quatro argumentos para acabar com a televisão. Lisboa: Antígona, 1999. MARCELO, Csettkey; GIL, Marcelo. Crime de Estado: a verdade sobre 11 de setembro. Rio de Janeiro: Talagarça, 2006. MARCUSE, Herbert. Ideologia da sociedade industrial. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1967. ________. Contra-revolução e revolta. RJ: Zahar Editores, 1981. ________. Algumas implicações sociais da tecnologia moderna. In: Tecnologia, guerra e fascismo. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1999. MARTINS, José Antônio. Império do terror: os Estados Unidos, ciclos econômicos e guerras no início do século XXI. São Paulo: Editora Instituto José Luís e Rosa Sundermann, 2005. MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo: Abril Cultural, 1978. (Os pensadores) ________. Manuscrits de 1844. Paris: Flammarion, 1996. ________. ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. São Paulo: Martins Fontes, 1998. ________. Miséria da filosofia. São Paulo: Livraria exposição do livro, s.d.

Page 149: Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de …livros01.livrosgratis.com.br/cp142532.pdf · Milhares de livros grátis para download. ANDRÉ VILLAR GOMEZ REVOÇÃO TECNOLÓGICA

148

________. Fondements de la critique de l’economie politique, vol I e II. Paris: Éditions Anthropos, 1968. ________. O Capital, vol I, tomo 1. São Paulo: Abril Cultural, 1983. ________. O capital, vol. I, tomo 2. São Paulo: Abril Cultural, 1984. ________. O capital, vol. III, tomo 1. São Paulo: Abril Cultural, 1983. ________. O capital: crítica da economia política, vol III, tomo 1. São Paulo: Abril Cultural, 1983. MEADOWS, Donella; RANDERS, Jorgen; MEADOWS, Dennis. Limites do crescimento. São Paulo: Perspectiva, 1973. MELMAN, Seymour. In the grip of a permanent war economy. Disponível em: http://globalmakeover.com/?q=node/222 MENDONÇA, Maria Luisa. A OMC e os efeitos destrutivos da cana no Brasil. Cadernos de Formação 2. MENEGAT, Marildo. Depois do fim do mundo: a crise da modernidade e a barbárie. Rio de Janeiro: Relume Dumará: FAPERJ, 2003. ________. O olho da barbárie. São Paulo: Expressão Popular, 2006. ________. Curso de Filosofia. Rio Janeiro: Pós-graduação em Serviço Social – UFRJ, 2007/1. ________. Sem lenço nem aceno de adeus. Revista Praia Vermelha. Nº. 18. Escola de Serviço Social, UFRJ, Rio de Janeiro, 2008. MÉSZÁROS, István. Para além do capital: rumo a uma teoria da transição. São Paulo: Boitempo; Campinas – SP: Editora UNICAMP, 2002. MILLER, Henry. Pesadelo Refrigerado. São Paulo: Francis, 2006. MINSKY, Marvin. Will robots inherit the Earth? Disponível em: http:??web.media.mit.edu/~minsky/] MORAES NETO, Benedito. Século XX e trabalho industrial. São Paulo: Xamã, 2003. MORAVAC, Hans. Homens e robots: o futuro da inteligência humana e robótica. Lisboa: Gradiva, 1992. PAIVA, Eduardo. Refugiados ambientais: as primeiras vítimas do aquecimento global. Planeta, agosto de 2009.

Page 150: Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de …livros01.livrosgratis.com.br/cp142532.pdf · Milhares de livros grátis para download. ANDRÉ VILLAR GOMEZ REVOÇÃO TECNOLÓGICA

149

PAZOS, Fernando. Automação de sistemas & robótica. Rio de Janeiro: Axcel Books, 2002. PERES, José Roberto Rodrigues; JUNIOR, Elias de Freitas; GAZZONI, Décio Luis. Biocombustíveis: uma oportunidade para o agronegócio brasileiro. Disponível em: http://www.agronegocios-e.com.br/agr;down/Pol_Agre_1_2005_Art05pdf- PESCHANSKI, João Alexandre. Dívida, doença crônica das nações. Agência Latinoamericana de Informação. Disponível em: http://alainet.org/active/10359&lang=es POINTING, Clive. Uma história verde do mundo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1995. PORTO, Mauro. O crepúsculo do petróleo: acabou-se a gasolina, salve-se quem puder! Rio de Janeiro: Brasport, 2006. PORTO-GONÇALVES, Carlos Walter. Monocultura, técnica e poder. Disponível em: http://www.mst.org.br/mst/pagina. ________. A paixão da terra: ensaios críticos de ecologia e geografia. Rio de Janeiro: Pesquisadores Associados em Ciências Sociais - SOCII, 1984. ________. A globalização da natureza e a natureza da globalização. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006. POSTONE, Moishe. Tiempo, trabajo y dominación: una reinterpretación de la teoría crítica de Marx. Madri: Marcial Pons, 2006. PRADO, Eleutério. Desmedida do valor: crítica da pós-grande indústria. São Paulo: Xamã: 2005. Rapport mondial sur le développement humain 1998, Programme des Nations unies pour le développement (PNUD), New York, septembre 1998. REEVES, Hubert. Mal da Terra: Paz da Terra, 2006. RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras, 1995 RIBEIRO, Silva. Mudanças climáticas: os que lucram e os que resistem. Disponível em: http://www.mst.org.br/mst/pagina. RIECHMANN, Jorge. Cultivos de alimentos transgênicos: um guia crítico. Petrópolis, RJ: Vozes, 2002. RIFKIN, Jeremy. O fim dos empregos: O declínio Inevitável dos níveis dos empregos e a redução da força global de trabalho. São Paulo: Makron Books, 1995. ROCO, Mihail C. & BAINBRIDGE, William Sims. Converging Technologies for improving human performance: nanotechnology, biotechnology, information

Page 151: Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de …livros01.livrosgratis.com.br/cp142532.pdf · Milhares de livros grátis para download. ANDRÉ VILLAR GOMEZ REVOÇÃO TECNOLÓGICA

150

technology and cognitive science, NSF-DOC Report, June 2002, Arlington VA, USA. Disponível em: http://www.wtec.org/ConvergingTechnologies/1/NBIC_report.pdf RUNGE, C. Ford & SENAUER, Benjamin. El modo en que los biocombustibles pudieran hacer pasar hambre a los pobres. Disponível em: http://www.rebelion.org/noticia.php?id=49418 RUSSEL, Bertrand. O poder: uma nova análise social. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1957. ________. História da filosofia ocidental, livro primeiro. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1969. SANTOS, Laymert Garcia dos. Politizar as novas tecnologias: o impacto sócio-técnico da informação digital e genética. São Paulo: Ed. 34, 2003. ________. Texto de apresentação de: ETC Group. A tecnologia atômica: a nova frente das multinacionais. São Paulo: Expressão Popular, 2004. SOHN-RETHEL, Alfred. Trabalho espiritual e corporal: para a epistemologia da história ocidental. Disponível em: http://antivalor2.vilabol.uol.com.br SPENGLER, Oswald. L’homme e la technique. Paris: Gallimard, 1958. SWEEZY, Paul; BARAN, Paul. El capital monopolista. Madri: Siglo Veintiuno, 1988. The Royal Society & The Royal Academy of engineering. Nanoscience e nanotechnologies: opportunities and uncertainties. Disponível em: http://www.nanotec.org.uk/finalReport.htm TRENKLE, Norbert. O que é o valor? A que se deve a crise? Disponível em: http://antivalor2.vilabol.uol.com.br UMBELINO, Ariovaldo. Razões da crise alimentar. Disponível em http:/www.mst.org.Br/mst/pagina VIDAL, Gore. Sonhando a guerra: sangue por petróleo e a Junta Cheney-Bush. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2003. WACQUANT, Loïc. As prisões da miséria. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. WERNECK, Rogério L. Furquim. Testando os limites da dívida pública. O Estado de São Paulo, 01/05/2009. Disponível em: http://www.eagora.org.br/arquivo/testando-os-limites-da-divida-publica/ WIENER, Norbert. Cibernética e sociedade: o uso humano dos seres humanos. São Paulo: Cultrix, 1954. WHITEHEAD, Alfred North. A ciência e o mundo moderno. São Paulo: Paulus, 2006.

Page 152: Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de …livros01.livrosgratis.com.br/cp142532.pdf · Milhares de livros grátis para download. ANDRÉ VILLAR GOMEZ REVOÇÃO TECNOLÓGICA

151

ZIZEK, Slavoj. Censorship Today: Violence, or Ecology as a New Opium for the Masses. Disponível em http://www.lacan.com/zizeclogy1.htm

Page 153: Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de …livros01.livrosgratis.com.br/cp142532.pdf · Milhares de livros grátis para download. ANDRÉ VILLAR GOMEZ REVOÇÃO TECNOLÓGICA

Livros Grátis( http://www.livrosgratis.com.br )

Milhares de Livros para Download: Baixar livros de AdministraçãoBaixar livros de AgronomiaBaixar livros de ArquiteturaBaixar livros de ArtesBaixar livros de AstronomiaBaixar livros de Biologia GeralBaixar livros de Ciência da ComputaçãoBaixar livros de Ciência da InformaçãoBaixar livros de Ciência PolíticaBaixar livros de Ciências da SaúdeBaixar livros de ComunicaçãoBaixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNEBaixar livros de Defesa civilBaixar livros de DireitoBaixar livros de Direitos humanosBaixar livros de EconomiaBaixar livros de Economia DomésticaBaixar livros de EducaçãoBaixar livros de Educação - TrânsitoBaixar livros de Educação FísicaBaixar livros de Engenharia AeroespacialBaixar livros de FarmáciaBaixar livros de FilosofiaBaixar livros de FísicaBaixar livros de GeociênciasBaixar livros de GeografiaBaixar livros de HistóriaBaixar livros de Línguas

Page 154: Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de …livros01.livrosgratis.com.br/cp142532.pdf · Milhares de livros grátis para download. ANDRÉ VILLAR GOMEZ REVOÇÃO TECNOLÓGICA

Baixar livros de LiteraturaBaixar livros de Literatura de CordelBaixar livros de Literatura InfantilBaixar livros de MatemáticaBaixar livros de MedicinaBaixar livros de Medicina VeterináriaBaixar livros de Meio AmbienteBaixar livros de MeteorologiaBaixar Monografias e TCCBaixar livros MultidisciplinarBaixar livros de MúsicaBaixar livros de PsicologiaBaixar livros de QuímicaBaixar livros de Saúde ColetivaBaixar livros de Serviço SocialBaixar livros de SociologiaBaixar livros de TeologiaBaixar livros de TrabalhoBaixar livros de Turismo