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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO A CRIANÇA E O POETA: JOSÉ PAULO PAES E OS SERES EM ROTAÇÃO MARCIA CRISTINA SILVA UFRJ/ Faculdade de Letras Setembro de 2007

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

A CRIANÇA E O POETA: JOSÉ PAULO PAES E OS SERES EM ROTAÇÃO

MARCIA CRISTINA SILVA

UFRJ/ Faculdade de Letras

Setembro de 2007

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MARCIA CRISTINA SILVA

A CRIANÇA E O POETA: JOSÉ PAULO PAES E OS SERES EM ROTAÇÃO

Dissertação de Mestrado apresentada

ao Programa de Ciência da Literatura,

área de Concentração em Teoria Literária,

Faculdade de Letras Universidade Federal

do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos

necessários à obtenção do título de

Mestre em Ciência da Literatura.

Orientador:

Profa. Dra. Lúcia Ricotta

UFRJ/ Faculdade de Letras

2007

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AGRADECIMENTOS

Aos professores do Curso de Mestrado em Ciência da Literatura da UFRJ que me

guiaram de forma brilhante nessa trajetória: Antonio Carlos Secchin, Vera Lins, Eucanaã

Ferraz, Luis Alberto Alves e Antônio Jardim.

À amiga e professora da UFF Sônia Monnerat que despertou em mim a vontade de

realizar essa pesquisa durante o curso de Especialização em Literatura Infanto-Juvenil

realizado na UFF.

À querida amiga Suzana Vargas, que me revelou os encantos da poesia e das palavras,

mudando toda minha trajetória de vida.

À mestra e irmã de criação literária Anna Claudia Ramos, que me fez entender, valorizar

e me apaixonar pela literatura Infanto-Juvenil brasileira.

Ao amigo Luís Camargo, que teve a generosidade de me auxiliar nos estudos sobre

poesia infantil brasileira.

À Áurea Laguna, pelo auxílio precioso nos estudos sobre Monteiro Lobato.

E EM ESPECIAL

Às minhas duas queridas mães, que me deram asas para chegar até aqui.

À Professora Lúcia Ricotta, mestra admirada, que me ensinou o prazer de pesquisar e a

importância de aprimorar o conhecimento com seus olhos de detetive e coração de poeta.

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Este talvez seja o momento para abrir parênteses e lembrar que os sonhos podem ser uma fonte de inspiração. Às vezes trazem-nos sugestões que são como embriões de futuros poemas. Mas é a lucidez da técnica e da experiência do poeta- técnica e experiência cuja aquisição exige anos de leitura e de aplicação quase diária ao ofício da escrita- que irá desenvolver as sugestões oníricas em poemas acabados e compreensíveis. Enquanto o sonho é pessoal e só comove ou impressiona quem sonhou, o poema tem de comover e impressionar, se não todas as pessoas que lêem, pelo menos aquelas cuja sensibilidade foi aprimorada pela leitura regular de poesia. (PAES, 1996, p. 5).

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RESUMO SILVA, Marcia Cristina. A criança e o poeta: José Paulo Paes e os seres em rotação. Rio de Janeiro, 2007 (Dissertação Mestrado em Ciência da Literatura/ Área Teoria Literária) Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2007. O presente trabalho de dissertação propõe estudar o processo de criação da poesia infantil brasileira, através da relação entre o trabalho do poeta e o brincar infantil. Para tal, utilizou-se como suporte poemas dos oito livros para crianças do escritor paulista José Paulo Paes analisados à luz de poetas, críticos literários, filósofos, teóricos e ensaístas, incluindo depoimentos do próprio José Paulo Paes. A fim de contextualizar a poesia infantil de José Paulo Paes, foi necessário previamente estabelecer um histórico da literatura infantil brasileira, enfocando aquela produzida antes mesmo do surgimento da obra do pioneiro Monteiro Lobato. A partir das inovações trazidas pelo escritor e pelos poetas do modernismo brasileiro, destacam-se as principais características que influenciaram a obra infantil de José Paulo Paes. Para o estudo do processo de criação da poesia para crianças de José Paulo Paes, optou-se por analisar os quatro elementos fundamentais para a construção de um poema: a sonoridade, a forma, a linguagem e a imagem. Ao analisar como José Paulo Paes trabalha com esses quatro elementos em sua obra infantil, pode-se perceber semelhanças do trabalho do poeta com o brincar infantil. Acresceu-se a essa abordagem um breve cotejo entre a poesia infantil de José Paulo Paes e a poesia infantil com enfoque meramente pedagógico e conclui que o referencial teórico proposto pode ser útil para a compreensão da relação entre o processo criativo do poeta e o impulso lúdico característico da infância.

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ABSTRACT

SILVA, Marcia Cristina. A criança e o poeta: José Paulo Paes e os seres em rotação. Rio de Janeiro, 2007 (Dissertação Mestrado em Ciência da Literatura/ Área Teoria Literária) Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2007.

The present Master´s thesis intends to study the creation process of the Brazilian poetry for children, through the relationship between the poet´s work and the children´s playing process. For this purpose, poems from the eight books for children by José Paulo Paes, born in São Paulo, were analyzed based on poets, literary critics, philosophers, theorists and essayists, incluiding José Paulo Paes’ own statements . In order to set the backgroung of José Paulo Paes´children poetry it was necessary to establish previously the history of the Brazilian literature for children. We focused on the material produced even before the appearance of the work of the pioneer author Monteiro Lobato. From the innovations brought by the author and by the poets from the so called Brazilian modernism, we pointed out the main characteristics that influenced José Paulo Paes’ work for children. In order to study the creation process of José Paulo Paes’ children’s poetry, we opted to analyze the four main elements required for the making of a poem: sound, form, language and image. Through the analysis of José Paulo Paes’ work for children in view of these four elements, we can perceive similarities between the poet’s work and the children’s act of playing. In addition to this review, a brief comparison between José Paulo Paes’ children poetry and the children’s poetry with pedagogical focus exclusively was established and we conclude that the theoretical references may be of use for the comprehension of the relationship between the poet´s creation process and the child´s natural playful impulse.

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SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO....................................................................................8

2. OS CAMINHOS DA POESIA INFANTIL NA LITERATURA

BRASILEIRA......................................................................................16

3. A CRIANÇA E O POETA: SERES EM ROTAÇÃO........................47

4. O JOGO POÉTICO DE JOSÉ PAULO PAES...................................63

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS: O SABOR DO SABER....................121

6. BIBLIOGRAFIA................................................................................126

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1. INTRODUÇÃO

Convite

Poesia

é brincar com palavras como se brinca com bola, papagaio, pião. Só que bola, papagaio, pião de tanto brincar se gastam As palavras não: quanto mais se brinca com elas mais novas ficam. Como a água do rio que é água sempre nova. Como cada dia que é sempre um novo dia. Vamos brincar de poesia?

(PAES, 1990, n.p.)

Esse poema de José Paulo Paes foi a semente de todo o nosso trabalho. Aceitando o

convite do poeta, resolvemos investigar como seria brincar de poesia. Quais as regras desse

jogo? Que técnicas o poeta utiliza para renovar a linguagem? Por isso, a hipótese geral de

nosso trabalho é descobrir o processo de criação da poesia infantil brasileira, retirando-a do

âmbito menor infantilizado, demonstrando que a poesia destinada ao público infantil pode e

deve ser estudada utilizando-se os mesmos recursos teóricos que se destinam à poesia

adulta. Para tal nos valemos das idéias de escritores como Edgar Allan Poe, Paul Valéry,

Roland Barthes, Ferdinand Saussure, Roman Jakobson, e dos estudos sobre poética feitos

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por Octavio Paz, Emil Staiger e Hugo Friedrich, entre outros, para analisar a obra poética

infantil de José Paulo Paes e descobrir como se faz sua brincadeira com as palavras. Porém,

ao contrário da obra de Ana Elvira Luciano Gebara intitulada A POESIA NA ESCOLA1

(2002), que analisa a poesia infantil de José Paulo Paes sob um enfoque pedagógico, nosso

trabalho tem desde sempre a intenção de aprofundar o lado estético, isto é, o lado da criação

poética para crianças, por isso não nos preocupamos em seguir a ordem cronológica da obra

infantil de José Paulo Paes. Os poemas aparecem de forma aleatória para podermos focar

no trabalho do poeta com as palavras, já que algumas técnicas se repetem em livros

diferentes, e somente estudando de forma entrelaçada o que os poemas dos oito livros

infantis de José Paulo Paes têm em comum, é que podemos entender a importância de sua

obra para crianças dentro da literatura brasileira.

Nossa hipótese geral tem um desdobramento, que é examinar a relação entre a criança e

o poeta. A partir da leitura de Homo Ludens2 (1938) de Johan Huizinga procuramos

demonstrar como o trabalho do poeta com as palavras muito se assemelha ao jogo infantil.

Essa é uma questão que percorre toda nossa dissertação, desde o primeiro capítulo

denominado: Os caminhos da poesia infantil na literatura brasileira, onde traçamos a

trajetória da literatura infantil no Brasil, observando como só a partir de Monteiro Lobato

há a troca de um discurso literário moralista por um discurso estético. Nesse primeiro

capítulo, com o suporte teórico da pesquisadora da história da literatura infantil brasileira

Nelly Novaes Coelho e de Marisa Lajolo com seus escritos sobre as inovações na literatura

infantil a partir de Monteiro Lobato, pretendemos reconstruir, no contexto da historiografia

e da história literária, o aparecimento da poesia infantil no Brasil, e analisar suas

1 GEBARA, Ana Elvira Luciano. A poesia na escola. São Paulo: Cortez, 2002. 2 HUIZINGA, Johan. Homo Ludens. São Paulo: Perspectiva, 2004.

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características em comparação com a poesia infantil contemporânea. Para tanto, foi

necessário nos aprofundarmos no estudo dos movimentos literários brasileiros, tendo em

vista que procuramos evitar quaisquer padronizações, respeitando-se as características

próprias de poetas como: Casimiro de Abreu, Olavo Bilac, Manuel Bandeira, Mário de

Andrade, Oswald de Andrade, entre outros, bem como a diversidade dos críticos literários:

Antonio Candido, Roberto Schwarz, João Luís Lafetá e Alfredo Bosi.

No segundo capítulo denominado: A criança e o poeta: seres em rotação procuramos

destacar o momento em que o imaginário da criança ganha relevância na chamada literatura

modernista. Ressaltemos, que só a partir de Jean-Jacques Rousseau em sua obra Emílio ou

Da Educação (1762), abre-se a visão da sociedade para um novo conceito da criança, como

um ser que tem necessidades específicas:

Não se conhece a infância; no caminho das falsas idéias que se têm, quanto mais se anda, mais se fica perdido. Os mais sábios prendem-se ao que aos homens importa saber, sem considerar o que as crianças estão em condições de aprender. Procuram sempre o homem na criança, sem pensar no que ela é antes de ser homem. (ROUSSEAU, 2004, p.4)

Isso não significa que a criança deva ser vista como um ser menor, de compreensão

reduzida, mas sim, que a criança não é um adulto imperfeito. Portanto, se a infância tem

suas particularidades psíquicas, a literatura que a ela se destina há de compor-se de forma

atenta para essas particularidades, sem tornar-se, contudo, uma literatura “infantilizada”.

Nesse segundo capítulo, verificaremos como as contribuições estéticas do passado,

principalmente a partir do modernismo brasileiro, irão dar origem muito tempo depois, na

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década de 60, a uma poesia destinada as crianças, com uma linguagem mais acessível, sem

a preocupação em transmitir ensinamentos morais, apenas de fazer a criança descobrir o

prazer de brincar com as palavras. Através dos poetas Cecília Meireles e Vinícius de

Moraes, expoentes da poesia infantil na década de 60, perceberemos as inovações estéticas

na poesia infantil brasileira e chegaremos finalmente a 1984, com José Paulo Paes, poeta,

ensaísta e tradutor, que incorporou em sua poesia para crianças algumas das mudanças

apresentadas em nossa literatura infantil por Monteiro Lobato. José Paulo Paes com seus

poemas em forma de cantigas de roda, acalantos, parlendas, adivinhas, trava-línguas,

demonstra assim como Monteiro Lobato procurou fazer desde o início de seu trabalho O

Saci-Pererê: resultado de um inquérito (1918), a importância da herança da cultura popular

brasileira. Ainda nesse capítulo, guiados pelos estudos de Sérgio Buarque de Holanda sobre

a obra de Manuel Bandeira, verificaremos como os poetas são marcados, de forma

consciente ou não, pelas impressões poéticas que têm na infância.

Se no primeiro capítulo traçamos um panorama histórico-literário da poesia infantil até

o modernismo brasileiro e no segundo capítulo estudamos as influências das heranças

estéticas modernistas que dão início na década de 60 a uma poesia voltada para o

imaginário infantil, foi para mostrar toda a trajetória da poesia infantil brasileira até

chegarmos a estudar no terceiro capítulo a poesia para crianças de José Paulo Paes. Cabe

antes de tudo definir que, a partir da década de 60 até o presente momento, consideramos a

poesia infantil classificada em dois grupos: um marcado pelo humor, como é o caso de José

Paulo Paes, Elias José, Sérgio Capparelli,... E outro, marcado pelo lirismo, onde

encontramos: Cecília Meireles, Roseana Murray e Bartolomeu Campos de Queirós, entre

outros que escolheram o caminho da sensibilidade que encanta crianças e adultos: o

caminho da emoção. (É claro que muitas vezes os dois grupos se misturam e esses mesmos

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poetas podem apresentar poemas recheados de humor e lirismo.) Se a criança por um lado

adora tudo que se refere ao lúdico, por outro, tem a emoção a flor da pele, e se comove com

coisas que nós adultos já nos tornamos mais insensíveis.

Os poemas de José Paulo Paes têm como principal característica o humor, porque

segundo o filósofo Henri Bergson em sua obra O riso 3 (1924) a linguagem do humor é

mais precisa, tal qual classificamos a linguagem de Paes. No terceiro capítulo de nosso

trabalho, observaremos que toda a atmosfera da poesia infantil de José Paulo Paes é

caracterizada pela concretude de palavras relacionadas ao universo infantil, como: escola,

elefante, zoológico, circo, palhaço, bife, batata-frita, etc., ao contrário de poetas do grupo

lírico, que trabalham com um vocabulário mais abstrato ligado a emoções, palavras como:

tempo, vento, desejo... Ainda, seguindo-se os ensinamentos de Henri Bergson o humor tem

três características básicas, que procuramos demonstrar em nossa análise da obra infantil de

José Paulo Paes: a semelhança com tudo que há de humano (no caso de Paes, essa

semelhança se dá através da criação de um universo infantil criado por palavras próximas

da criança), o distanciamento emocional necessário para que o riso aconteça (verificaremos

no estudo da obra de José Paulo Paes, como inúmeras vezes o poeta se utiliza de técnicas

para criar o riso, como, por exemplo, o freqüente uso de onomatopéias, paralelismos,

prosopopéias, paranomásias...), e a terceira característica citada por Bergson: a

cumplicidade. De acordo com o autor, o riso precisa de eco em outros ridentes, reais ou

imaginários, pois Bergson considera o riso um gesto social, uma espécie de castigo que a

sociedade inflige a alguma coisa que a ameaça. Segundo ele, nós rimos quando aguardamos

alguma coisa viva, móvel, flexível e graciosa como a vida, e, de repente , ao contrário,

aparece algo de endurecido, desgracioso e mecanizado. Ele define o riso como sendo: “o

3 BERGSON, Henri. O riso. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

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mecânico sobreposto ao vivo” (BERGSON, 2004, p.28). Isso nos remete à criança, que

inconscientemente reconhece quem é diferente, e através do humor o repreende

severamente, excluindo do grupo com apelidos e gozações, por exemplo, o amigo mais

baixo, mais gordo, mais desajeitado. Naquele momento há uma união coletiva contra o

diferente, que deve ser punido com risos. Nos poemas de José Paulo Paes estudaremos

como o poeta faz uso de elementos aparentemente desconexos para criar o humor. É

também o inesperado, que leva crianças, jovens e adultos a se encantarem com seus

poemas. O resultado disso é a cumplicidade a que Henri Bergson se referiu. O leitor se

encanta com os jogos de palavras, ao ver a possibilidade destas serem descoladas de seus

sentidos e usos habituais para serem inseridas em um novo contexto.

Com a intenção de analisar o processo criativo da poesia infantil de José Paulo Paes,

procuramos estruturar esse terceiro capítulo do seguinte modo: Destacamos os quatro

elementos que consideramos fundamentais em qualquer criação poética: a sonoridade, a

forma, a linguagem e a imagem. Primeiro, analisamos cada elemento separadamente na

construção poética de José Paulo Paes. Depois, demonstramos como eles atuam

simultaneamente em seus poemas. Ao mesmo tempo em que cada elemento pode ser

estudado separadamente, só temos uma melhor percepção do poema quando passamos a

enxergá-lo como um todo. Tal como em um jogo, cada peça tem seu papel fundamental,

mas o jogo só se torna possível a partir do momento em que uma peça interage com a outra.

Através da análise da sonoridade, com o suporte teórico de Edgar Allan Poe, Paul

Valéry e Octavio Paz, observaremos como a criação poética muitas vezes começa motivada

apenas por um tom, já que o som aponta para os sentidos e estimula pensamento. Na poesia

para crianças isto é fundamental, pois para elas mais importante do que o sentido das

palavras, é o encantamento pelo som.

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No estudo sobre a forma, apoiados em Walter Benjamin e Hugo Friedrich,

examinaremos como toda idéia precisa de construção. Através do estudo do jogo que José

Paulo Paes faz com as palavras, o sons e as imagens, chegaremos à importância do plano de

composição de sua obra, já que a poesia infantil de Paes constitui-se numa dupla face:

semiológica, relacionada aos significantes e epistemológica, relacionada ao significado das

palavras. Com o suporte teórico e respeitadas as devidas diferenças entre os escritores

Roland Barthes e Ferdinand Saussure, verificaremos como se dá esse jogo de interação

entre significados e significantes nos poemas de José Paulo Paes.

Essa relação entre significado e significante será ainda mais aprofundada quando

analisarmos o terceiro elemento: a linguagem. Como os formalistas russos ensinam, a

poesia enfatiza o trabalho com a linguagem. Por isso, a partir de Roman Jakobson

estudaremos as seis funções básicas da linguagem, em especial a função considerada pelo

escritor como dominante- a função poética. José Paulo Paes foi também tradutor de obras

referenciais como: Curso de Lingüística Geral (1916) de Ferdinand Saussure e do ensaio

Lingüística e Poética (1960) de Roman Jakobson e incorporou em sua obra o jogo de

construção, unindo em seu trabalho maleabilidade com as palavras à precisão, para tornar

sua poesia fonte de prazer gratuito e não de obrigações escolares. Seguindo-se a linha de

reflexão de T.S. Elliot sobre o prazer como única função social da poesia, faremos uma

breve comparação entre a poesia contemporânea com finalidade pedagógica e a poesia

considerada artística.

Na última parte desse capítulo analisaremos o quarto elemento indispensável à criação

poética: a imagem. Através das palavras do próprio José Paulo Paes, compreenderemos

porque o pensamento da criança e do poeta segue uma paralógica: isto é, ambos têm um

pensamento mais intuitivo. Por isso, as imagens não precisam ter um sentido racional, pois

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surgem antes mesmo da razão. Seria o que poderíamos considerar um pensamento

primitivo. Isso nos remete ao livro de Claude Lévi-Strauss: O Pensamento Selvagem

(1962), onde o autor afirma que:

... a arte se insere a meio caminho entre o conhecimento científico e o pensamento mítico ou mágico, pois todo mundo sabe que o artista tem, ao mesmo tempo, algo de cientista e do bricoleur: com meios artesanais, ele elabora um objeto material que é também um objeto de conhecimento.

(LÉVI-STRAUSS, 2006, p.38) Todo artista precisa também da intuição sensível das crianças. Portanto, o trabalho do

poeta é ao mesmo tempo conseqüência de uma intuição prévia acompanhada de um árduo

trabalho de composição. Até mesmo as imagens dos poemas infantis de José Paulo Paes,

que parecem surgir de elementos aparentemente desconexos, são resultado de um trabalho

de integração com os outros três elementos: a sonoridade, a forma e a linguagem.

Assim também pretendemos realizar esse trabalho, combinando a busca por mais

esclarecimentos a cerca das questões propostas, ao prazer de descobrirmos com o apoio de

poetas, críticos literários, pesquisadores e filósofos: os mistérios que envolvem o processo

da criação poética para crianças. E tal qual como num jogo, pretendemos chegar a nossas

considerações finais, esperando termos atingido o objetivo a que nos propomos nesse

trabalho.

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2. OS CAMINHOS DA POESIA INFANTIL NA LITERATURA BRASILEIRA

Octavio Paz, em seu livro Signos em rotação (1964), afirma que “toda criação poética

é histórica, cabendo ao poeta ser o mundo sem cessar de ser ele mesmo.” (PAZ, 2003,

p.121) Esse, sem dúvida, é o maior desafio que um poeta enfrenta. Vivemos inseridos em

um contexto histórico e, ao mesmo tempo, passamos pela História sem, às vezes, nem

perceber. Somos parte de um passado, e não há como desconsiderar a importância e o efeito

disto sobre a literatura. A poesia guarda uma ligação com a História: ao mesmo tempo em

que o poeta lida com questões íntimas, trata também de temas que, apesar de ligados à

subjetividade, são resultado de todo um conjunto de circunstâncias que acompanham um

acontecimento. Michel Foucault, no prefácio de seu livro As Palavras e as Coisas4 (1966),

estabelece a importância dos códigos nos quais se baseia uma cultura: referenciais de

linguagem, técnica, valores com os quais o autor lida. Não se pode ignorar tudo o que já foi

pensado e escrito antes. Michel Foucault considera a seguinte questão: a importância de se

encontrar um equilíbrio entre o tênue limite que separa e ao mesmo tempo integra a época

clássica ao chamado moderno, o indivíduo à sua cultura. É a partir dessa relação que pode

surgir o novo. Segundo Michel Foucault, o homem carrega um passado cultural, mas acolhe

uma historicidade própria, inserida na vida humana. Por isso, o passado não deve ser

tratado como algo estático, plano e uniforme, mas sim como algo em constante movimento,

ilimitado e universal. É sob tal prisma que pretendemos demonstrar, neste capítulo, o

processo de criação de poemas para crianças no Brasil. Não podemos esquecer que a poesia

para crianças, em especial a de José Paulo Paes, que será nosso objeto de estudo, está

4 FOUCAULT, Michel. As Palavras e as Coisas. São Paulo: Martins Fontes 2002, p.16.

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também inserida na história da literatura brasileira, uma vez que Paes, nascido em 1926, em

pleno período considerado modernismo brasileiro5, demonstra em sua poesia desde o

primeiro livro destinado as crianças É isso ali (1984), escrito muito tempo após o

movimento modernista, as marcas de uma linguagem coloquial e espontânea, fruto de

conquistas passadas, como analisaremos a partir de agora.

Segundo Antonio Candido, em Iniciação à literatura brasileira (2004) 6, as primeiras

manifestações literárias no Brasil, até então apenas um extenso território de terras

desconhecidas, ocorreram, no séc. XVI, com base na literatura européia: erudita, culta e

elevada. Nossa literatura, no séc. XVI e no início do séc. XVII, era caracterizada apenas por

autores ocasionais que produziram obras não impressas, uma vez que o Brasil só teve

licença para produzir tipografias depois de 1808, com a vinda da família real portuguesa

para o Brasil, acelerando o ritmo do progresso intelectual devido a impressão de livros e o

aparecimento dos periódicos.

Os primeiros poemas para crianças, escritos nessa época, visavam apenas à circulação

familiar, pois conforme a autora Nelly Novaes Coelho afirma em seu livro Literatura

Infantil (2000) 7, até o final do século XIX, não podemos considerar a existência de uma

poesia infantil enquanto gênero literário. Destacamos nesse período, os poetas: Alvarenga

Peixoto, Bárbara Eliodora, Sousa Caldas, Domingos de Barros e Gonçalves de Magalhães,

que apresentam em comum um traço que será dominante na poesia infantil brasileira até a

primeira metade do séc. XX: a presença de uma voz poética adulta, que se dirige a um

5 Não pretendemos estabelecer como verdade absoluta as periodicidades literárias classificadas arbitrariamente conforme características genéricas, pois consideramos também que cada autor apresenta uma visão particular, não se podendo, portanto, homogeneizar os diversos fenômenos literários brasileiros. 6 CANDIDO Antonio. Iniciação à Literatura Brasileira. Rio de Janeiro: ouro sobre Azul, 2004 p. 17. 7 COELHO, Nelly Novaes. Literatura Infantil. São Paulo: Moderna, 2003, p. 239.

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leitor infantil, utilizando o poema como veículo de educação moral, como, por exemplo,

nessa estrofe do poema Amada filha, é já chegado o dia de Alvarenga Peixoto:

... A mão que te gerou teus passos guia Despreza ofertas de uma vã beleza, E sacrifica as honras e a riqueza Às santas leis do filho de Maria. (COSTA; GONZAGA; PEIXOTO, 1996, p.980.).

Podemos perceber claramente a intenção do verso: o respeito aos pais e aos preceitos

religiosos. Os poemas têm um perfil apenas moral. Eram escritos pelo adulto “um ser

superior, de conhecimento” para exigirem obediência das crianças, consideradas inferiores,

ingênuas, desprotegidas e ignorantes”. Não havia a intenção de compartilhar brincadeiras,

apenas a finalidade de ensinar as crianças a importância da obediência.

Somente após a Independência do Brasil, em 1822, período que correspondeu ao

romantismo brasileiro, nossa literatura passa a ser vista como uma forma de afirmação

nacional e de construção da pátria. Para Antonio Candido, porém, seria impossível que os

escritores do tempo da colônia renegassem o momento literário dominante no mundo

ocidental para difundir um nacionalismo romântico antes do tempo. O nacionalismo

implicava num esforço de afirmar a singularidade do país através da libertação dos padrões

clássicos da era colonial, num duplo processo: de integração da mentalidade e das normas

européias e de diferenciação, para se obter a expressão do particular, com características

próprias da terra e da sociedade.

Se, no Arcadismo, em 1756, a tendência era imitar a moda literária da Europa para

pertencer ao mesmo passado cultural, no romantismo, ao contrário, buscava-se a

singularidade do país e a livre expressão da sensibilidade, da individualidade. Porém,

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devemos lembrar: todos esses estilos literários tiveram início na Europa. O romantismo

mesmo, teve suas primeiras manifestações literárias, por volta do final do séc. XVIII, na

Inglaterra e na Alemanha e, em seguida, já em pleno séc. XIX, na França, Itália, Espanha,

Portugal e nos países ocidentais. Apesar de ter como princípios estéticos gerais, o conflito

entre a razão e a imaginação e o surgimento de um espírito crítico, em cada lugar, ou

melhor, em cada autor a expressão romântica teve características próprias. No Brasil, houve

nesse período denominado romantismo, a invasão da poesia pela música, com ênfase numa

poesia sentimental, satírica e social, destacando-se os poetas: Gonçalves Dias, Álvares de

Azevedo, Casimiro de Abreu, Fagundes Varela, Castro Alves, entre outros. Ressaltemos,

entretanto, a observação de Candido, sobre essa busca pela independência: segundo ele,

esse desejo resultaria em parte apenas na substituição das influências portuguesas pelas

francesas, pois a poesia religiosa e sentimental, por exemplo, seguia os passos de

Lamartine.

Gonçalves Dias e Casimiro de Abreu escreveram alguns poemas que tinham como tema

a criança, como o poema A infância (1857) de Gonçalves Dias e os poemas O Que É –

Simpatia (1857) e Meus oito anos (1859) de Casimiro de Abreu. Porém, os poemas eram

incluídos em seus livros dirigidos ao leitor adulto e ainda não chegam a configurar um

gênero de poesia infantil, porque por vezes demonstravam apenas um saudosismo ou uma

alusão à infância, como nessa estrofe do poema de Casimiro de Abreu, em que há uma

idealização da infância como sinônimo de felicidade:

Meus oito anos

Oh! que saudades que tenho Da aurora da minha vida, Da minha infância querida

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Que os anos não trazem mais! Que amor, que sonhos, que flores, Naquelas tardes fagueiras À sombra das bananeiras, Debaixo dos laranjais! (ABREU, 2003, n.p.)

O poeta já se aproxima mais de um ritmo familiar e de uma linguagem expressiva com

enfoque emocional e próximo ao leitor. Porém, há um excesso de sentimentalismo, o que

torna o poema “ingênuo”, não por se referir à infância, mas, sim, por considerá-la como um

paraíso perdido, enquanto sabemos, na verdade, que a infância é um momento de

descobertas, medos e ansiedades. O espírito crítico do romantismo aparece na oposição

entre os “tempos ditosos” da meninice e as “mágoas de agora” da idade adulta, levando o

leitor a crer que só ao adulto cabe o sofrimento.

O saudosismo à infância foi também retratado por José Paulo Paes, muito tempo

depois, no ano de 2001, porém, de um modo não melodramático, e mais próximo da

realidade infantil, como no poema a seguir, que também tem como referencial uma criança

de oito anos:

Infância

Eu tenho oito anos e já sei ler e escrever. Por isso ganhei de presente a história de Peter Pan. As aventuras dele com o Capitão Gancho e o jacaré que engoliu um relógio até que são engraçadas. Mas achei uma bobagem aquela mania do Peter Pan de querer ficar sempre menino.

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Já imaginaram se todos quisessem ficar sempre pequenos e nunca mais crescer? Aí quem ia cuidar da gente? Fazer comida, passar pito, mandar tomar banho, dizer que é hora de ir pra cama? Sarar a gente da dor de barriga e da dor de dente? Ensinar a gente a ler para ganhar de presente a história de um menino que não quis crescer e nunca pôde ter, coitado!,( como eu um dia vou ter) saudades da infância? (PAES, 2001, p.31)

José Paulo Paes embarca no trem de volta à infância e vira um menino de oito anos.

Percebemos pela linguagem e pelo modo de expressão que o poema parece ter sido escrito

por um menino. Porém, é um menino que um dia já tomou o trem da prosa. José Paulo Paes

faz jus ao título do livro "Vejam como eu sei escrever (2001)" e demonstra que realmente

sabe escrever, pois o poema está no limite entre o menino que conversa com o leitor e o

adulto que já conhece o sentimento de saudade da infância. Se, por um lado, o poema

parece escrito por um menino que sonha em crescer, por outro, traz de volta um adulto que

nunca deixou de ser menino. Podemos notar essa ambigüidade claramente na forma do

poema também que, muitas vezes, lembra uma conversa mais prosaica. Mesmo na forma de

poema, poderia perfeitamente ser lido como um texto corrido em prosa, como se fosse o

começo de uma história, por exemplo. Desde o início o leitor pode ter essa impressão,

quando Paes passa para o segundo verso com uma expressão tipicamente prosaica,

explicativa: “por isso”. Há todo um processo de ordenação para que o poema pareça ter

sido escrito por uma criança. A identificação do poeta com a criança é uma das

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características que mais se destacam na poesia infantil de José Paulo Paes. Observemos

esse outro poema:

O menino de Olho d’ água

Era uma vez um menino nem muito gordo nem muito magro nem muito fraco nem muito forte nem muito baixo nem alto. Era um menino comum igual a tantos outros meninos que andam aí pelo mundo. Meninos como você ou como eu de uma outra data

no tempo em que era pirata.

(PAES, 1991, n.p.)

José Paulo Paes se dirige à criança: “meninos como você”, não para passar lições de

moral, e sim como uma forma de se aproximar de um determinado leitor: um menino

comum, igual a tantos meninos que é, na verdade, identificado com o próprio passado do

narrador do poema, o poeta “de uma outra data”, poeta-menino. O importante nesse poema

de Paes é o destaque de um discurso próprio a um poeta-menino, endereçado ao leitor de

poesia também menino.

O poema de José Paulo Paes faz uso de uma linguagem muito simples, dinâmica e

direta (que busca uma cumplicidade com o leitor). O que nos interessa aqui é demonstrar

como começou o processo de busca por uma linguagem mais informal, diferenciada de um

rigor gramatical, para chegarmos até essa linguagem lúdica. Mencionamos a questão sobre

a busca da expressão de uma singularidade para o país e, principalmente, para o

desenvolvimento da sensibilidade própria de cada escritor, porque, de acordo com Antonio

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Candido, nos séculos XVI e XVII ocorre um fenômeno de “adolescência do nacionalismo”,

que irá ter seu apogeu no considerado modernismo brasileiro, em 1922, num movimento de

defesa da liberdade de criação e experimentação, atacando a estética acadêmica.

É importante ressaltar ainda que, a partir de 1870, há um período de modernização

da economia brasileira. O café, base de nossa economia, ao mesmo tempo em que

preservava aspectos do passado colonial (latifúndio, monocultura e escravismo), tornava

nossa realidade mais dinâmica, estimulando o desenvolvimento da viação férrea, além de

criar condições favoráveis para o crescimento de outros empreendimentos como bancos,

atividades ligadas ao comércio interno e uma série de iniciativas empresariais, inclusive o

surgimento de várias casas editoriais. Com relação a este momento, Antonio Cândido

destaca, ainda em Iniciação à literatura brasileira (2004) 8, o amadurecimento da

consciência crítica, principalmente nas cidades do Rio de Janeiro e Recife, onde os

intelectuais questionaram os fundamentos tradicionais da sociedade brasileira como a

monarquia, a religião e as hierarquias do privilégio, criticando o idealismo romântico e as

explicações religiosas. Dessa reação anti-romântica surgiram várias tendências, entre elas: o

naturalismo, o simbolismo e, principalmente, o parnasianismo que, entre 1880 e 1890, traz

de volta a idéia de um purismo gramatical e um rebuscamento da linguagem, contrapondo-

se ao sentimentalismo característico do período romântico. Destacamos nessa fase na

poesia infantil, o poeta Olavo Bilac, que se interessou pelos problemas educacionais,

elaborando livros didáticos que se tornaram modelo da poesia eloqüente, nas escolas do

início do século. Conforme ressalta Nelly Novaes Coelho, em Literatura Infantil (2000) 9,

o livro de Olavo Bilac, Poesias Infantis (1904), foi grande sucesso na época e teve várias

8 CANDIDO Antonio. Iniciação à Literatura Brasileira. Rio de Janeiro: ouro sobre Azul, 2004 p. 64-65. 9 COELHO, Nelly Novaes. Literatura Infantil. São Paulo: Moderna, 2003, p.227.

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reedições até 1950. Porém, na poesia infantil o poeta por vezes escrevia numa linguagem

menos elaborada do que em sua poesia para adultos, os versos tratavam de assuntos

simples, já mais relacionados ao universo infantil, como ilustra o poema a seguir:

A Boneca

Deixando a bola e a peteca, Com que inda há pouco brincavam, Por causa de uma boneca, Duas meninas brigavam.

Dizia a primeira: “É minha!” - “É minha!” a outra gritava; E nenhuma se continha, Nem a boneca largava. Quem mais sofria ( coitada!) Era a boneca. Já tinha Toda roupa estraçalhada, E amarrotada a carinha. Tanto puxaram por ela, Que a pobre rasgou-se ao meio, Perdendo a estopa amarela Que lhe formava o recheio. E, ao fim de tanta fadiga, Voltando à bola e à peteca, Ambas, por causa da briga, Ficaram sem a boneca...

(BILAC, 1952, p.31-32)

Podemos observar no poema as primeiras manifestações de uma poesia mais lúdica.

Esse poema datado de 1904, já se diferencia dos poemas caracterizados pelo pedantismo, e

pelo artificialismo de linguagem, típicos do período parnasiano em que foi criado. Isso

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certamente se deve ao fato também da publicação do livro Contos Infantis (1886) 10, de

Júlia Lopes de Almeida e Adelina Lopes Vieira, ter ocorrido poucos anos antes. Esse livro

reuniu 27 contos em prosa de Júlia e 31 contos em verso de Adelina, sendo considerado um

marco na formação do sistema da poesia infantil brasileira, pois com ele surgem autores

escrevendo especificamente para crianças, e crianças que passam a ser consideradas como

leitoras, já que o livro se destinava a circulação escolar, e não mais à circulação familiar.

O modernismo brasileiro posterior a esse período literário, veio marcado por uma

reação transformadora. Sua primeira fase ocorre em 1920, com uma acentuada preocupação

estética, de valorizar na poesia os temas cotidianos, expressões coloquiais e de romper com

a solenidade característica da poesia parnasiana. Porém, cabe lembrar que essa estética não

foi unificada através de postulados rigorosos em comum. Não havia uma escola a seguir,

apenas alguns autores como Mário de Andrade, Oswald de Andrade e Manuel Bandeira,

entre muitos outros, tinham o mesmo desejo: a busca por uma expressão livre. Cada um a

seu modo defendeu a liberdade de expressão, fosse no vocabulário, na sintaxe, na escolha

de temas ou na própria maneira de ver o mundo. E não podemos desconsiderar que a

criação poética de José Paulo Paes, assim como a de outros poetas contemporâneos, derive

desse contexto histórico, pois como ressalta Roberto Schwarz em seu livro Que horas

são?(2002):

... a modernidade no caso não consiste em romper com o passado ou dissolvê-lo, mas em depurar os seus elementos e arranjá-los dentro de uma visão atualizada e, naturalmente, inventiva, como que dizendo, do alto onde se encontra: tudo isso é meu país.

(SCHWARZ, 2002, p.22.)

10 ALMEIDA, Julia Lopes de; VIEIRA, Adelina Lopes. Contos infantis: em verso e prosa. Rio de Janeiro: F. Alves, 1923.

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Observe-se a historicidade e o devir histórico presente na literatura infantil brasileira.

De acordo com o artigo De Lobato à década de 1970 ( 1998) 11, de Laura Sandroni, até fins

do século XIX, a literatura infantil era acessível apenas a uma elite por ser toda importada,

com traduções vindas de Portugal. No primeiro decênio do século XX, autores brasileiros

começam a ser incluídos nas seletas preparadas e impressas em Portugal. Porém, antes de

1920, a produção literária para crianças caracterizava-se apenas por uma descrição de um

cotidiano infantil modelar, com personagens dotados de virtudes a serem incorporadas e

defeitos a serem evitados e corrigidos. Em 1917, Monteiro Lobato, influência confessa no

processo de criação para crianças de José Paulo Paes em Quem eu? Um poeta como outro

qualquer (2006)12compra a Revista do Brasil e começa a editar seus próprios livros.

Depois disso, funda a primeira editora nacional: Monteiro Lobato & Cia. que se transforma

na Companhia Editora Nacional. Em 1921, com a publicação de A menina do narizinho

arrebitado, é inaugurada a fase literária de produção brasileira destinada a crianças e

jovens. O livro altera a feição da literatura infantil brasileira, pois reivindica a participação

da criança na narrativa. Antes de se preocupar em ensinar esse leitor-criança, o livro

procurava interessar e divertir o leitor através de soluções comunicativas inéditas no plano

lingüístico com a predominância de uma linguagem afetiva, espontânea, coloquial e

descontraída.

Mas Lobato não planejava realizar apenas uma mudança na estética tradicional

conservadora, ele tratava o livro como um objeto sem aura: como linguagem, como texto,

como mercadoria, que poderia ser vendida em qualquer lugar. Em uma das cartas da Barca

11 SANDRONI, Laura in 30 Anos de literatura para crianças e jovens, org: Elizabeth D’Angelo Serra. São Paulo: Mercado das Letras, 1998, p.13. 12 PAES, José Paulo. Quem eu? Um poeta como outro qualquer. São Paulo: Atual, 1996, p. 15.

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de Gleyre (1959) 13, datada de 1921, Lobato chega a comparar A menina do narizinho

arrebitado a dois remédios que mais vendiam na época: óleo de rícino e Gelol. Ele tinha

um olhar dessacralizador do livro enquanto produto que deveria render lucros a seu

produtor.

Começamos a traçar aqui o perfil de Monteiro Lobato, como um homem que sempre se

preocupou em unir a fantasia à realidade, tanto no trabalho de criação literária, como na

função de editor, pois ao se preocupar com a divulgação e com a ampla recepção de seus

livros, Lobato cuidava do meio pelo qual o sonho de todo escritor pode ser exposto e

compartilhado com os leitores. A obra de Monteiro Lobato, com a ampla divulgação que

teve, tornou-se referencial da literatura infantil brasileira a partir de 1920 até os dias de

hoje. De acordo com Marisa Lajolo, no artigo A modernidade em Monteiro Lobato (1983)

14, é ele quem inicia o processo de revitalização da literatura nacional com o

abrasileiramento do imaginário europeu e a criação de uma literatura voltada para nossas

raízes folclóricas, visto que os contos de Perrault e dos irmãos Grimm, retratavam a história

da literatura infantil européia, bem diferente da nossa. Outro nome a ser lembrado nesse

processo de resgate das raízes nacionais, de nossa tradição oral, foi Câmara Cascudo,

estudioso de nosso folclore, preocupado com a literatura oral do Brasil, escreveu inúmeras

adaptações de contos para crianças, jovens, e adultos, tendo criado inclusive o Dicionário

do folclore brasileiro, publicado anos mais tarde em 1952.

Monteiro Lobato deu início à troca do discurso moralista com intenções educacionais

pelo discurso estético. Ele rompeu com os cânones da escrita tradicional ao misturar o

maravilhoso com o real, em uma época em que os livros infantis preocupavam-se em

13 LOBATO, Monteiro. A barca de Gleyre.São Paulo: Brasiliense,1964 v.2,p.230. 14 LAJOLO, Marisa. A modernidade em Monteiro Lobato. In: ZILBERMAN, Regina (org.) Atualidade de Monteiro Lobato: uma revisão crítica. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1983.

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ensinar comportamentos modelares a serem copiados e formas corretas da escrita. Lobato

teve um papel inovador na literatura infantil brasileira, diferenciado de outros autores da

época, que consideravam a criança "um adulto pequeno". Ao tratar a criança como um ser

ainda "limpo de impressões", com um olhar inaugural em relação ao mundo, ele destacou a

importância das primeiras leituras na construção do imaginário infantil, já que a fantasia é

um elemento inerente ao ser poético da criança. Observemos isso nas próprias palavras de

Lobato, em carta ao amigo Godofredo Rangel, datada de 1926, em que revela também uma

de suas influências literárias:

Ando com idéias de entrar por esse caminho: livros para crianças. De escrever para marmanjos já me enjoei. Bichos sem graça. Mas para crianças, um livro é todo um mundo. Lembro-me de como vivi dentro do Robinson Crusoé do Laemmert. Ainda acabo fazendo livro onde as nossas crianças possam morar. Não ler e jogar fora; sim morar, como morei no

Robinson e n'Os filhos do capitão Grant. (LOBATO, 1964, v.2, p. 292-3)

Nesse relato temos a imagem de um Lobato desiludido com o mundo criado pelos

adultos. O livro, então, passa a ser o lugar do exílio, o lugar que irá completar tudo o que

falta na realidade “um livro é todo um mundo”. Nesse depoimento nos parece clara a

intenção de Monteiro Lobato: formar leitores, pessoas interessadas em encontrar outro

mundo por trás das palavras.

Monteiro Lobato já demonstrava em sua literatura, mesmo antes do modernismo

brasileiro, algumas características como: o nacionalismo, temas relacionados ao cotidiano,

linguagem com humor e a liberdade no uso de palavras e textos diretos. Desse modo,

valorizou o nacional, numa proposta, de autêntica brasilidade. Por essa razão, cabe-nos aqui

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sublinhar que, não pretendemos marcar o modernismo como o início de uma literatura

nacional, e excluir momentos e projetos literários anteriores, que já tinham esse propósito.

Antonio Candido, em seu livro Formação da literatura brasileira (1956) revela que o

importante é perceber o processo de construção do sistema literário15 nacional, como uma

perspectiva emancipatória. Candido tenta historiar o surgimento dessa perspectiva, por

exemplo, em imagens poéticas com sentimento de apego à terra e destaca a importância

inclusive do Arcadismo para contribuição da nossa literatura:

Parece-me que o Arcadismo foi importante, plantou de vez a literatura do Ocidente no Brasil, graças aos padrões universais por que se regia, e que permitiram articular a nossa atividade literária com o sistema expressivo da civilização a que pertencemos, e dentro da qual fomos definindo lentamente a nossa originalidade. Note-se que os árcades contribuíram ativamente para essa definição, ao contrário do que se costuma dizer. Fizeram com seriedade dos artistas conscientes, uma poesia civilizada, inteligível aos homens de cultura, que eram então os destinatários das obras. Com isto, permitiram que a literatura funcionasse no Brasil. E quando quiseram exprimir as particularidades do nosso universo, conseguiram elevá-las à categoria depurada dos melhores modelos...

(CANDIDO, 1993, p.17)

Segundo Antonio Candido, apesar das diferenças entre o arcadismo e o romantismo, já

havia uma solidariedade estreita entre ambos, no que tange a um propósito semelhante:

construir uma cultura nacional através da literatura. Esse foi também o compromisso

literário de grande parte de nossa literatura. A relação entre literatura e nacionalidade

15 Antonio Candido define o que entende por sistema literário em seu livro Iniciação À Literatura Brasileira. Segundo o autor, o sistema literário compreende a articulação dos elementos que constituem a atividade literária regular, sendo estes: autores, público e tradição (reconhecimento de obras e autores precedentes). Grande parte da obra de Antonio Candido dedica-se a historiar a constituição dessa relação: autores-obra-público.

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aparece configurada na obra de Flora Sussekind Tal Brasil qual romance 1982) 16 . A

professora, ensaísta e pesquisadora, preocupada em identificar os movimentos de ruptura e

de continuidade, tanto nos autores que se consagraram no século XX, quanto nos

contemporâneos, nos revela em seu livro que a literatura no Brasil sempre esteve associada

à idéia de construção de uma identidade nacional, ficando muitas vezes a própria literatura

em segundo plano, esquecida, diante da necessidade e tarefa dos escritores de afirmar sua

cultura nacional como algo sempre em evolução. Isso porque o Brasil ansiava por fugir de

suas raízes estrangeiras, não queria ser visto como uma eterna cópia dos modelos europeus,

sempre inferior intelectualmente. Os escritores tentavam traçar o perfil de um país sem

fraturas, sem rupturas, sem a ameaça de qualquer ambigüidade que pudesse desestabilizar e

não tornar visível a relação entre nacionalidade e cultura. Assim, a linguagem tornava-se

personagem secundário, apenas um acessório para a representação do retrato nacional de

uma pátria coesa, una e autônoma, ocultando-se quaisquer sombras que pudessem

desfigurar tal retrato. Por isso, Flora Sussekind considera o trabalho historiográfico como

um exercício de constante interpretação, já que o historiador trabalha com imprecisões,

indeterminações, num terreno por vezes movediço devido aos fatos não revelados ou

revelados de modo superficial.

O movimento modernista quando aparece se propõe a revisar toda a história literária

brasileira, sugerindo a formação de uma elite intelectual capacitada a fazer essa revisão. Os

autores, classificados pela crítica literária como modernistas, combinaram a informação

estrangeira com uma atenção redobrada do que havia sido feito no Brasil, propondo um

equilíbrio entre ambos. Entretanto, a modernidade literária aparece configurada

historicamente entre 1930 e 1950, com os poetas: Carlos Drummond de Andrade, Manuel

16 SUSSEKIND, Flora. Tal Brasil qual romance. Rio de Janeiro: Achiamé 1984, p.86.

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Bandeira, Vinícius de Moraes, Mário de Andrade, entre outros tantos que realizaram uma

literatura consistente com um modernismo amadurecido. De acordo com João Luís Lafetá

em, 1930: A Crítica e o Modernismo (2000) 17, na década de 20, houve uma preocupação

maior em torno da nova linguagem, enquanto que, a década de 30, volta-se para uma

preocupação ideológica; a intenção não é mais a de criar um Brasil novo, ajustando-o a uma

realidade mais moderna, mas, sim, reformar essa realidade então criada, pois já havia no

país uma consciência pessimista do subdesenvolvimento e uma maior preocupação com os

problemas sociais.

Mas onde entra Lobato nessa história? Seria ele um modernista, um pré-modernista,

um anti-modernista ou um modernista às avessas? Ao destacar sua importância nesse

trabalho, preferimos considerá-lo um poeta, como o considerou o editor e colega de

trabalho Pedro Paulo Moreira. No artigo Conversando sobre Lobato18, ele o descreve como

um sujeito poeta, que não entendia nada de negócio, motivo que levou, segundo o editor, à

falência de sua editora Cia. Gráfico-Editora Monteiro Lobato e da Revista do Brasil.

Devido ao seu jeito irreverente, as relações entre Lobato e os modernistas sempre foram

conflituosas, como passaremos a demonstrar a partir de agora.

Conforme o livro Monteiro Lobato-Furacão na Botocúndia (1997) 19, de Carmen

Lucia de Azevedo, Marcia Camargos e Vladimir Sacchetta, Monteiro Lobato foi o principal

representante do modernismo na literatura infantil. Embora tenha sido considerado um

modernista "às avessas", pois contrariou o grupo de 1922 (formado basicamente por Anita

Malfatti, Di Cavalcanti, Graça Aranha, Manuel Bandeira, Mário de Andrade, Menotti Del

17 LAFETÁ, João Luís. 1930: A Crítica e o Modernismo. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2000, p. 28. 18 MOREIRA, Pedro Paulo. IN: Lendo e escrevendo Lobato. Belo Horizonte: Autêntica ed. 1999, p.125. 19 AZEVEDO, Carmen Lúcia de; CAMARGOS Marcia; SACCHETA Vladimir. Monteiro Lobato-Furacão na Botocúndia. São Paulo: Ed. Senac, 1997 p. 169.

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Picchia, Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral e Villa-Lobos) com a publicação do artigo

"Paranóia ou mistificação", em 1917, cujo ponto de divergência foi a pintura de Anita

Malfatti. Lobato era um apreciador da arte naturalista, interessado por pintura desde mesmo

antes de aprender a escrever. Avesso às correntes estéticas do século XX, fez severas

críticas aos elementos plásticos pós-impressionistas, utilizados pela pintora Anita Malfatti,

que havia estudado com os mestres da Europa e demonstrava, em seu trabalho, muita

ousadia para a época. Porém, observe-se, aqui, a contradição do autor: ao mesmo tempo

em que era um revolucionário, destruidor de falsos ídolos e idéias, conservava ainda ideais

estilísticos de um mundo ultrapassado. Monteiro Lobato não compreendia a proposta

moderna da pintura de Anita, mas clamava, ao mesmo tempo, por um país mais moderno,

nova tecnologia e poucos anos mais tarde, em 1920, considerava de valor Victor Brecheret,

um jovem artista que, na escultura, era tão inovador quanto Anita Malfatti na pintura.

Sua opinião sobre a pintura de Anita Malfatti, serviu de pretexto para severas críticas

dos modernistas Menotti del Picchia e Mário de Andrade, o que levou Lobato a ser

excluído da Semana de Arte Moderna, realizada em fevereiro de 1922, no Teatro Municipal

de São Paulo. Esse evento representa um marco no surgimento de idéias novas que

aboliram por completo a estética do século XIX. Alfredo Bosi considerou Lobato, em seu

livro História Concisa da Literatura Brasileira (1999) 20, um pré-modernista do ponto de

vista temático, pois ele, mesmo antes de todo o movimento, já revelava em seus livros,

assim como nos jornais e revistas de que participava, a tensão da vida nacional. Lobato

criticava o Brasil arcaico, negava o academismo e propunha uma ruptura com a República

Velha. Um exemplo disso são os artigos publicados no jornal de oposição O Estado de S.

Paulo, a partir de 1913, e o seu primeiro livro O Saci-Pererê: resultado de um inquérito

20 BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. São Paulo: Cultrix, 1999 p. 375.

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(1918) 21. Embora não levasse sua assinatura, por ter sido escrito a partir de uma pesquisa

de Lobato no jornal, o livro reunia em brochura as respostas da sondagem veiculada pelo

jornal a respeito da figura do saci, retirada do imaginário popular, com a intenção de

conscientizar o povo brasileiro sobre a importância de sua origem.

Porém, do ponto de vista estético, Alfredo Bosi ressalta que as inovações radicais nos

códigos literários se dão a partir de Mário de Andrade, com a Paulicéia Desvairada

(1922) 22 e Macunaíma (1928) 23, e, igualmente, a partir de Oswald de Andrade, com

Pau Brasil (1925) 24. Esses livros trouxeram inovações na pontuação, no traçado gráfico

do texto até as estruturas fônicas, léxicas e sintáticas do discurso. Haroldo de Campos ao

comparar os dois Andrades, no prefácio de Pau Brasil (1925), considera o livro de Oswald

mais revolucionário do que os livros de Mário de Andrade, nos quais subsiste a marca de

um sentimentalismo com uma linguagem ainda tradicional, exclamativa, sem o

despojamento, a redução, a síntese do livro de Oswald que, segundo Haroldo de Campos,

promove uma "dessacralização" da poesia, forçando o leitor a participar do processo

criativo, pois a sintaxe não nasce do ordenamento do discurso, mas, sim, da montagem de

peças que parecem soltas. O trabalho do poeta nos faz lembrar a brincadeira de uma criança

que, muitas vezes, desconstrói um objeto de utilidade doméstica para criar um brinquedo.

Só ela, naquele momento, por exemplo, acreditará que uma vassoura é uma boneca, pois

ainda não está dominada pelo pragmatismo, sendo capaz de perceber a inocência das coisas

e das figuras.

21LOBATO, Monteiro. O Saci-Pererê: resultado de um inquérito. São Paulo, Seção de Obras de O Estado de S. Paulo, 1918. 22 ANDRADE, Mário de. Paulicéia Desvairada. São Paulo SP: UNICAMP, 1922. 23 ________. Macunaíma. Belo Horizonte-Rio de Janeiro: Villa Rica editoras Reunidas, 2004. 24 ANDRADE, Oswald de. Pau-Brasil. São Paulo: ed.Globo, 1991.

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Esse é o olhar que o poeta busca, principalmente, os modernistas Oswald de Andrade e

Mário de Andrade, que procuravam retirar as palavras do contexto prático imediato,

fazendo uso de recursos como: onomatopéias, assonâncias, aliterações, reiterações rítmicas

variadas. Assim, tornavam a poesia mais lúdica, irreverente e fragmentada, como nesse

poema de Oswald de Andrade:

Relógio As coisas são As coisas vêm As coisas vão As coisas Vão e vêm Não em vão As horas Vão e vêm Não em vão.

(ANDRADE, 1991, p.39-40)

O poema tem uma estrutura rítmica ligada à marcação do tempo, representando no

campo semântico, o movimento pendular do relógio. Por muito explorarem a sonoridade e

o ritmo das palavras, poemas como esses, escritos para o público adulto, e até hoje

encontrados em coletâneas, acabavam agradando aos ouvidos infantis, já que para a

criança, o dinamismo lúdico do poema importa mais do que o significado dos vocábulos.

Todo adulto hoje provavelmente memorizou na infância essa estrofe do poema No meio do

caminho de Carlos Drummond de Andrade, publicado em seu primeiro livro, em 1930.

No meio do caminho tinha uma pedra tinha uma pedra no meio do caminho

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tinha uma pedra no meio do caminho tinha uma pedra. (ANDRADE, 1987, v.1, p.15)

De significado complexo e enigmático, o poema vem sendo repetido por crianças desde

que surgiu. A criança apenas se apega ao ritmo, à brincadeira com a repetição das palavras

e à “aparente” simplicidade da linguagem, porque cabe lembrar que o modernismo

introduziu uma linguagem coloquial, mas nem por isso mais pobre. Na poesia modernista

havia um profundo trabalho com a linguagem, pois a busca pela simplicidade requer um

enorme esforço, um trabalho constante de aperfeiçoamento, como nesse poema de Manuel

Bandeira, datado de 1936, que também sempre agradou as crianças:

Trem de ferro Café com pão Café com pão Café com pão Virge Maria que foi isto maquinista? Agora sim Café com pão Agora sim Voa, fumaça [...]

(BANDEIRA, 1981, p.96-97)

Manuel Bandeira é tido como um precursor do modernismo brasileiro, pois desde 1924

já fazia experiências renovadoras com o uso sistemático do verso livre. Seus primeiros

livros: A Cinza das Horas (1917) 25 e Carnaval (1919) 26, assim como os livros já

25 BANDEIRA, Manuel. Antologia poética. Rio de Janeiro: José Olympio, 1981, p. 7. 26 _________. Antologia poética. Rio de Janeiro: José Olympio, 1981, p. 23.

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mencionados de Mário de Andrade e Oswald de Andrade, são referências de inovações

estilísticas e de liberdade formal. Apesar de Bandeira ter se formado na tradição dos

parnasianos e simbolistas, toda sua obra constrói-se em torno de uma progressiva liberdade

de expressão, pois transfigura o prosaísmo e, ao contrário de muitos modernistas, dá

simplicidade aos temas consagrados. No poema que acabamos de ler, o poeta cria um

vocábulo imitativo do barulho do trem, isto é, explora a onomatopéia como recurso básico,

cativando a atenção do leitor, que pode ter a sensação de ser um viajante através das

palavras. Assim, não é difícil entendermos porque esse poema escrito para adultos é capaz

de cativar a criança. Contudo, na poesia infantil essas inovações estéticas serão refletidas

somente décadas mais tarde, já que os poucos poemas infantis que aparecem entre 1920 e

1960, insistiam em transmitir “lições” de moral e bom comportamento, seguindo as formas

clássicas, analisadas anteriormente. Mesmo os poemas de Manuel Bandeira e Carlos

Drummond de Andrade, escritores que também influenciaram na criação de José Paulo

Paes, e encantaram muitas crianças pela simplicidade da linguagem, não podem configurar

na literatura infantil brasileira uma poesia que pudesse ser chamada de modernista.

Reafirmamos o argumento de Nelly Novaes Coelho27 de que o único escritor que poderia

ser considerado modernista na literatura infantil brasileira nos anos 20 foi mesmo Monteiro

Lobato, na prosa narrativa.

Porém, Monteiro Lobato era um modernista atípico. Eliana Yunes, no texto Lobato e os

Modernistas (1983), acentua uma diferença fundamental entre Monteiro Lobato e os

Modernistas brasileiros:

Aí procura radicar-se o distanciamento entre o pré-modernista e os modernistas: sua racionalidade pragmática exigia um realismo, crítico sim, mas objetivo, recusando as aventuras analógico-formais que

27 COELHO. Nelly Novaes. Literatura Infantil. São Paulo: Moderna, 2000, p. 236.

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marcariam, por exemplo, a prosa e a poesia andradinas. Sua incursão pelo maravilhoso insólito na obra infantil, nada tem de 'irracional': ao contrário, aproxima com habilidade insuperável o mágico e o real, fantasia e realidade. Esta contradição é apenas índice da ambigüidade que se revela em outros aspectos do texto lobatiano.

(YUNES, 1983, p.51-51)

O nacionalismo de Lobato estava ligado diretamente à realidade social do país. Lobato

interessava-se pelos problemas nacionais como, por exemplo, o de encontrar petróleo e

outros recursos naturais que pudessem fazer o Brasil crescer. Ele demonstrava tais

preocupações em suas histórias, como nessa abertura do capítulo XVI do livro O poço do

Visconde, publicado em 1937.

A descoberta do petróleo no sítio de Dona Benta abalou o país inteiro. Até ali ninguém cuidara de petróleo porque ninguém acreditava na existência do petróleo nesta enorme área de oito e meio milhões de quilômetros quadrados, toda ela circundada pelos poços de petróleo das repúblicas vizinhas. Mas assim que irrompeu o Caraminguá número 1 os navegadores ficaram com cara d’asno, a murmurar uns para os outros: ‘ Ora veja! E não é que tínhamos petróleo mesmo?

(LOBATO, 1947)

Mas os caminhos de Monteiro Lobato eram outros, que não o dos modernistas,

principalmente os destacados anteriormente: Mário de Andrade, considerado figura central

do movimento modernista, e Oswald de Andrade, grande agitador do movimento. Já

ressaltamos anteriormente que os modernistas brasileiros entre si também apresentavam

divergências consideráveis. Em seu livro, Que horas são? (2002) 28, Roberto Schwarz

descreve a poesia de Oswald com uma ausência de saudosismo, e a preferência por um tom

de vanguarda, anti-sentimental, fazendo um uso inventivo de formas para quebrar

28 SCHWARZ, Roberto. Que horas são?São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p 24.

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convenções. De acordo com Roberto Schwarz, o programa modernista de Oswald incluía

um primitivismo local que dava à cultura européia um sentido moderno, uma postura

cultural irreverente, tirando dos brasileiros o velho sentimento de inferioridade. Porém,

ressalta ainda o autor, essa postura de "cópia sim, mas regeneradora” (SCHWARZ, 2002,

p.46) era de fato carregada de grande ingenuidade e ufanismo, pois a destruição filosófica

da noção de cópia não fazia desaparecer os problemas brasileiros. Podemos notar que, a

proposta de Oswald muito se assemelha ao olhar infantil da criança que, com olhos livres,

vai descobrindo o mundo. É só observarmos o poema 3 de maio de seu livro Pau Brasil

(1925):

Aprendi com meu filho de dez anos Que a poesia é a descoberta Das coisas que eu nunca vi.

(ANDRADE, 1991, p.99)

A poesia de Oswald de Andrade, portanto, não leva o leitor às soluções previstas com

estereótipos ou a uma sensibilidade de reações já codificadas, ele se propõe a descobrir algo

de novo. Conforme Haroldo de Campos nos esclarece no prefácio de Pau Brasil29 (1925)

essa também era a proposta de Mário de Andrade, porém este, sempre se preocupou com a

estética parnasiana e julgava a poesia de Oswald segundo esses critérios, criticando-a por

ela não se subordinar aos cânones métricos e aos parâmetros semânticos. Mário, ao

contrário de Oswald, não questionava a retórica de base, procurava apenas alterá-la através

de conglomerados semânticos inusitados em longas narrativas como no livro Macunaíma30,

publicado em 1928, fruto de anos de pesquisa das lendas e dos mitos indígenas e folclóricos

que o autor reúne utilizando a linguagem popular de várias regiões do Brasil. O livro 29 ANDRADE, Oswald de. Pau-Brasil. São Paulo: ed.Globo,1991, p. 15. 30 ANDRADE, Mário de. Macunaíma. Belo Horizonte-Rio de Janeiro: Villa Rica editoras Reunidas, 2004.

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apresenta o personagem principal como um anti-herói que se contrapõe à sociedade

moderna, organizada num sistema racional, frio e tecnológico, retrato da sociedade de

1920, momento em que o comércio e a indústria prosperavam rapidamente, devido ao

crescimento do mercado consumidor formado por moradores das cidades e por colonos de

origem estrangeira.

Partindo de uma perspectiva que reúne literatura e ideologia, João Luiz Lafetá no

livro, 1930: A crítica e o Modernismo (1974) 31, afirma que o modernismo brasileiro

possuía dois projetos: um estético e outro ideológico. O primeiro, visava a uma mudança na

concepção da obra de arte, que passava a ser vista não mais como mimese, mas sim com

autonomia em relação à linguagem tradicional, incorporando o popular e o primitivo. O

segundo inseria o país num processo de busca de consciência e interpretação da realidade

social. Segundo Lafetá, os artistas brasileiros buscavam uma identidade própria, livre da

tradição estética repleta de alienações e preconceitos. Era um momento em que precisavam

abandonar os valores estéticos antigos, ainda muito apreciados em nosso país, para lutar por

um estilo novo, de características incertas. Macunaíma, de 1928, é o retrato desse

momento, em que a poesia rompe com os limites da prosa e se revela numa história-poema

cheia de humor, o que nos faz perceber no modernismo uma alegria criadora próxima ao

espírito infantil, um desejo de desmascaramento e de pesquisa do essencial, como nessa

passagem de Macunaíma:

A inteligência do herói estava muito perturbada. As cunhãs rindo tinham ensinado pra ele que o sagui-açu não era saguim não, chamava elevador e era uma máquina. De-manhãzinha ensinaram que todos aqueles piados berros cuquiadas sopros roncos esturros não eram nada disso não, eram cláxons campainhas apitos buzinas e tudo era máquina. As onças pardas não eram onças pardas, se chamavam fordes hupmobiles chevrolés dodges mármons e eram máquinas. Os tamanduás os boitatás

31 LAFETÁ, João Luís. 1930: A Crítica e o Modernismo. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2000, p.22.

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as inajás de curuatás de fumo, em vez eram caminhões bondes autobondes anúncios-luminosos relógios faróis rádios motocicletas telefones gorjetas postes chaminés... Eram máquinas e tudo na cidade era só máquina! O herói aprendendo calado. De vez em quando estremecia. Voltava a ficar imóvel escutando assuntando maquinando numa cisma assombrada. Tomou-o um respeito cheio de inveja por essa deusa de deveras forçuda, Tupã famanado que os filhos da mandioca chamavam de Máquina, mais cantadeira que a Mãe-d'água, em bulhas de separantar. (ANDRADE, 2004, p.42.)

Ao criar um personagem oriundo de um lugar primitivo para a cidade de São Paulo,

Mário de Andrade inova através da história de um índio que descreve a terra desconhecida

para seus pares distantes. Ao dar voz ao índio, com uma linguagem que, muitas vezes, nos

parece estranha, devido ao uso de palavras e expressões características de diversos recantos

do Brasil empregadas em contextos diferentes, com o uso raro de vírgulas, o poeta

desconcerta o leitor, forçando-o a deixar-se levar pela leitura, já que muitas vezes os termos

usados não se encontram no dicionário. Mas, em Mário de Andrade, subsistiam ainda traços

de um sentimentalismo, nesse texto mesmo há diversas passagens poéticas impregnadas de

certo mistério. Isso é reflexo de contrastes de um poeta que, conforme relata Roberto

Schwarz, no texto O Psicologismo na Poética de Mário de Andrade32, vivia dividido entre

o lirismo e a técnica, entre um ensino gramatical lusíada e uma práxis lingüística afetada

por elementos indígenas e africanos. Oswald de Andrade nesse aspecto parece mais

determinado a romper com os padrões estéticos da época, dando precedência à imagem

sobre a mensagem, ao plástico sobre o discursivo, por isso, sua poesia se destaca pela

visualidade, pelo equilíbrio geométrico e pela síntese, aspectos inclusive representativos do

desenvolvimento industrial da época.

32 SCHWARZ, Roberto IN: A Sereia e o Desconfiado. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981, p. 20.

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Monteiro Lobato parecia antever essa modernização, porém de um modo muito próprio.

Ao mesmo tempo em que apresentava na ficção, com a publicação de Urupês33, em 1914,

as carências do homem comum, através do personagem Jeca Tatu, não mostrava interesse

pela reforma estética, pois mesmo tendo conhecimento das várias mudanças ortográficas

na língua portuguesa, não autorizava o emprego de inovações em sua editora e, quando

revisava os livros a serem publicados, fazia cortes na escrita que se apresentava mais

atualizada com as regras da época. Todavia, seu pensamento parecia estar sempre voltado

às origens. Assim, observamos também no livro Um jeca nos Vernissages: Monteiro

Lobato e o desejo de uma arte nacional no Brasil (1995) de Tadeu Chiarelli:

Essa preferência pela 'simplicidade animal' do homem do campo, em contraponto à ojeriza ao homem falsamente sofisticado das cidades brasileiras, será uma das bases do nacionalismo de Lobato, em sua primeira fase. Até o início dos anos 20, o nacionalismo de Lobato estará baseado, primeiro, num profundo sentimento de inadequação à sociedade brasileira culta da época; segundo, na percepção de que o brasileiro das cidades é descaracterizado, inautêntico, arrivista, etc..., e, terceiro, na consciência de que, pelo menos na área rural, o brasileiro é mais característico, pois, vivendo quase como um animal, estaria mais próximo da natureza. (CHIARELLI, 1995, p.124)

Na verdade, a elite brasileira não queria olhar para o país que Lobato mostrava e

preferia copiar modelos literários europeus, acreditando que o Brasil representasse somente

aquele tipo de vida das cidades grandes ou das capitais, São Paulo e Rio de Janeiro, da

metade do século XX. O escritor mostrava as nossas mazelas para corrigi-las, não exaltava

simplesmente o que tínhamos, mas mostrava o que poderíamos ter, se aceitássemos

enxergar o Brasil que ele via: pobre, doente, dependente etc.

33 LOBATO, Monteiro. Urupês. São Paulo: Brasiliense, 1948.

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No texto Lobato: um homem da República Velha (1983) 34, de Carlos Jorge Appel,

compreendemos o "fracasso" do personagem Jeca Tatu, criado por Lobato em 1914 para

representar a miséria em que se encontrava o homem do povo, esquecido pelas instituições

políticas. O autor ressalta que a principal idéia da história de Jeca Tatu baseava-se no self

made man americano: se tiver saúde, qualquer pessoa pode progredir e enriquecer. Esse foi

o equívoco ideológico que levou Lobato a freqüentes falências, por não considerar nossa

dependência econômica. Para ele, bastaria vontade e lucidez para que a dependência

política fosse superada. Mário de Andrade, ao contrário, entenderia anos mais tarde que não

existe independência cultural efetiva sem independência econômica. Portanto, a crítica a

Lobato, por parte dos modernistas hegemônicos, reside no fato de que, segundo eles, a

situação do país não era perspectivizada por Monteiro Lobato em uma dimensão mais

ampla.

Monteiro Lobato-Furacão na Botocúndia35 nos revela que o projeto de Monteiro

Lobato era influir na formação de um Brasil mais desenvolvido a partir de nossas

potencialidades culturais e econômicas, valorizando temas nacionais e promovendo assim

sua reforma estética modernista na literatura. Interessou-se pela cultura popular, pelo

resgate dos elementos nativos brasileiros: o currupira, o papagaio, o macaco e, sobretudo, o

saci-pererê, usado como emblema para conclamar os artistas da terra a realizar, o que

chamou de "nosso 7 de setembro estético". Observemos aqui mais um contraste de

Lobato: no ano da aparição de Paulicéia Desvairada (1922) de Mário de Andrade,

Monteiro Lobato ainda se mostrava preso ao modelo purista de escrita, mas, já em seu livro

A menina do Narizinho Arrebitado (1921), apresentava um tom inovador, por fazer uso de

34 APPEL, Carlos Jorge. IN: Atualidade de Monteiro Lobato. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1983, p.26. 35 AZEVEDO, Carmen Lúcia de; CAMARGOS Marcia; SACCHETA Vladimir. Monteiro Lobato-Furacão na Botocúndia. São Paulo: Ed. Senac, 1997 p.64.

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uma linguagem original e criativa, que buscava no coloquial brasileiro, a simplicidade da

fala com um tom de oralidade.

Monteiro Lobato foi, também, o primeiro escritor brasileiro a fazer do folclore tema

sempre presente em suas histórias. O saci-pererê, por exemplo, é um elemento lendário de

nosso inconsciente coletivo e representa, no âmbito da literatura lobatiana, o moleque

desprezado pelas elites que insistiam em imitar a civilização francesa. Torna-se personagem

de destaque em Lobato, pela necessidade de resgatar "um duende genuinamente nacional"

em contraposição à imagem dos duendes trajados à moda alemã, tremendo de frio sob

roupas grossas e pesadas que Lobato vira numa visita ao Jardim da Luz, em São Paulo.

Lobato acreditava que era preciso lembrar do passado para se construir o futuro, e não

negá-lo, como muitos artistas brasileiros de sua época faziam quando pintavam quadros no

estilo francês. Para ele, o artista crescia na medida em que se nacionalizava. Podemos

confirmar essa preocupação pela busca de um estilo brasileiro, em uma das páginas da

correspondência de Monteiro Lobato com o amigo Godofredo Rangel, datada de 8 de

setembro de 1916.

Guardo as tuas notas sobre malazarte. Um dia talvez aborde esse tema. Ando com várias idéias. Uma: vestir à nacional as velhas fábulas de Esopo e La Fontaine, tudo em prosa e mexendo nas moralidades. Coisa para crianças. Veio-me diante da atenção curiosa que meus pequenos ouvem as fábulas que Purezinha lhes conta. Guardam-nas de memória e vão recontá-las aos amigos – sem, entretanto, prestarem nenhuma atenção à moralidade, como é natural. A moralidade nos fica no subconsciente para ir se revelando mais tarde, à medida que progredimos em compreensão. Ora, um fabulário nosso, com bichos daqui em vez de exóticos, se for feito com arte e talento dará coisa preciosa. As fábulas em português que conheço, em geral traduções de La Fontaine, são pequenas moitas de amora do mato – espinhentas e impenetráveis. Que é que nossas crianças podem ler? Não vejo nada. Fábulas assim seriam um começo da literatura que nos falta... (...) É de tal pobreza e tão besta a nossa literatura infantil, que nada acho para iniciação de meus filhos..

(LOBATO, 1964, p.323)

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O fabulário lobatiano é dinâmico e revelador de uma nova ordem. Nas muitas

adaptações que fez de livros clássicos da literatura infantil, Lobato eliminou a

sentimentalidade piegas. Da mesma forma, criticou as moralidades das fábulas, e através de

vários volumes ridicularizou tais moralidades, provocando uma verdadeira revolução nas

“verdades absolutas” que são repetidas através dos séculos. O escritor brasileiro usou

fábulas para criticar e denunciar as injustiças, tiranias, mostrando às crianças a vida como

ela é. Trocou o sentimentalismo barato pela irreverência, pelo humor e pela ironia.

Monteiro Lobato usou personagens agindo como seres humanos, transitando no tênue

limite entre o real e o imaginário, assumindo seus papéis de mensageiros de um novo

tempo.

O Sítio do Picapau Amarelo (1969) 36retrata um microcosmo em que cada um é livre

para tomar suas decisões. É um mundo mágico em que o ser poético da criança é acionado.

Personagens do mundo real (habitantes do sítio) e personagens do mundo imaginário

convivem em inúmeras aventuras que despertam prazer e alegria não só nas crianças, mas

também em muitos adultos que não perderam a capacidade de acreditar nos sonhos. Logo

no capítulo I do livro, podemos constatar que Lobato já então se questionava sobre as

ilusões dos adultos e das crianças:

"A CARTINHA DO POLEGAR

O sítio de Dona Benta foi se tornando famoso tanto no mundo de verdade como no chamado mundo de mentira. O mundo de Mentira, ou Mundo da Fábula, é como a gente grande costuma chamar a terra e as

36 LOBATO, Monteiro. O sítio de Picapau Amarelo. São Paulo: Brasiliense, 1969.

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coisas do País das Maravilhas, lá onde moram os anões e gigantes, as fadas e os sacis, os piratas como o Capitão Gancho e os anjinhos, como Flor-das- Alturas. Mas o Mundo da fábula não é realmente nenhum mundo de mentira, pois o que existe na imaginação de milhões e milhões de crianças é tão real como as páginas deste livro. O que se dá é que as crianças logo que se transformam em gente grande fingem não acreditar no que acreditavam. - Só acredito no que vejo com os meus olhos, cheiro com o meu nariz, pego com as minhas mãos ou provo com a ponta da minha língua, dizem os adultos- mas não é verdade. Eles acreditam em mil coisas que seus olhos não vêem, nem o nariz cheira, nem os ouvidos ouvem, nem as mãos pegam. - Deus, por exemplo- disse Narizinho. Todos crêem em Deus e ninguém anda a pegá-lo, cheirá-lo, apalpá-lo. - Exatamente. e ainda acreditam na Justiça, na Civilização, na Bondade- em mil coisas invisíveis, incheráveis, impegáveis, sem som e sem gosto. De modo que se as coisas do Mundo da Fábula não existem, então também não existem nem Deus, nem a Justiça, nem a Bondade, nem a Civilização- nem todas as coisas abstratas. - Eu sei o que quer dizer "abstrato"- disse Emília. É tudo quanto a gente não vê, nem cheira, nem ouve, nem prova, nem pega - mas sente que há. - Muito bem. Logo o Mundo da Fábula existe, com todos os seus maravilhosos personagens. - E tanto existe- declarou Dona Benta- que tenho aqui uma carta muito interessante, recebida hoje. - É de mamãe, já sei! exclamou Pedrinho, aborrecido, com medo que fosse carta de Dona Antonica chamando-o para a cidade. - Errou, meu filho. A cartinha que recebi é do Pequeno polegar... "

(LOBATO, 1969, p.7-8)

Lobato parecia reconhecer que todo ser humano é mágico-poético por natureza, mas

se não articula isso acaba mimético como a maioria. Destacam-se as palavras de Emília:

“Eu sei o que quer dizer 'abstrato'... É tudo quanto a gente não vê, nem cheira, nem ouve,

nem prova, nem pega - mas sente que há" O poeta, assim como a criança, está mais

próximo de sua sensibilidade. Quando nos tornamos adultos, passamos a ter obrigação de

enxergar o mundo com maior precisão, objetividade e, muitas vezes, passamos a

desempenhar um comportamento mimético, apenas para podermos ser aceitos pela

sociedade. Por isso é que Lobato mencionou no texto: "O que se dá é que as crianças logo

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que se transformam em gente grande fingem não acreditar no que acreditavam". Essa é a

atitude que o adulto que deseja estar bem inserido no mundo de "verdade" tem de aprender

a desenvolver, tem de romper com sua espontaneidade para sentir-se aceito pelo meio em

que vive. E quem não consegue fazer isso? Resta a essa pessoa, então, a opção pela

fantasia, no qual ela poderá criar um outro, como fez Lobato, e mais tarde José Paulo Paes

ao acreditar, sobretudo na valorização do ser poético da infância, isento das contaminações

do universo adulto.

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3. A CRIANÇA E O POETA: SERES EM ROTAÇÂO

Se o modernismo Lobatiano teve grande influência na poesia para crianças, é porque a

poesia direcionada para crianças rompe com a tradição pedagógica (em que versos

reproduzidos em livros didáticos se destinavam simplesmente a comemorar datas cívicas,

festas de calendário escolar ou lições de bom comportamento), e amadurece. A fantasia

deixa de ser vista como alienante e passa a iluminar a realidade de pequenos e grandes

leitores. Por essa razão, podemos afirmar que Monteiro Lobato exerceu duas contribuições

importantes no contexto de nossa história literária: criou um mundo de aventuras, e ao

mesmo tempo, deu legitimidade à literatura infantil dentro da historiografia literária

brasileira.

Porém, já mencionamos antes, que no âmbito da poesia para crianças, essas

contribuições estéticas só poderão ser reconhecidas muito tempo depois, a partir da década

de 60. Destacamos como exceção a poeta Henriqueta Lisboa, com seu livro O menino poeta

(1943) 37. Esse livro privilegia o lirismo, utilizando largamente a metáfora e uma

linguagem mais informal. Mesmo assim, o livro apesar de romper, em alguns poemas, com

o discurso de adulto para crianças, ainda permanece obediente àquele paradigma, como

ilustra o poema Tico-Tico:

Tico-tico no farelo Sinhá tem pena. Tico-tico troca as letras Sinhá tem pena. Tico-Tico não aprende Sinhá tem pena. Tico-tico analfabeto

37 LISBOA, Henriqueta. O menino poeta. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1991.

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Sinhá tem pena.

(LISBOA, 1991, p.35.)

Podemos notar que, apesar da poeta criar um jogo lúdico com as palavras, ainda está

implícito no poema a preocupação do adulto com a educação: sinhá tem pena porque Tico-

tico é analfabeto. Consequentemente, o poema visa transmitir a importância do estudo.

Apesar de toda a estrutura do poema, do ritmo e da síntese atraírem o público infantil, ainda

é a visão do adulto, relacionada a valores morais que predomina.

Nelly Novaes Coelho demonstra a importância de poetas como Cecília Meireles e

Vinícius de Moraes na trajetória histórico-literária da poesia infantil brasileira. Conforme a

autora em seu livro Literatura Infantil (2000) 38, a poesia para crianças na década de 60 se

volta para uma linguagem mais acessível, sem a preocupação de transmitir ensinamentos

para as crianças, mas sim de levá-las a descobrir o prazer da poesia: seus jogos sonoros, a

brincadeira com as imagens e com múltiplas possibilidades de combinações semânticas

feitas através de uma linguagem lúdica. Lembremos que Cecília Meireles foi uma poeta que

conseguiu manter a inocência do olhar-criança e a capacidade sempre renovada de se

encantar com as coisas simples do mundo. Em sua obra infantil mais conhecida, Ou isto ou

aquilo (1964), Cecília Meireles apresenta poemas que interessam de imediato à criança

pelas brincadeiras sonoras, dinâmicas e criativas. Leiamos o poema que dá título ao livro:

Ou Isto Ou Aquilo

Ou se tem chuva e não se tem sol, ou se tem sol e não se tem chuva! Ou se calça a luva e não se põe o anel,

38 COELHO, Nelly Novaes. A literatura Infantil. São Paulo: Moderna, 2000,p.243.

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ou se põe o anel e não se calça a luva! Quem sobe nos ares não fica no chão, quem fica no chão não sobe nos ares. É uma grande pena que não se possa estar ao mesmo tempo nos dois lugares! Ou guardo o dinheiro e não compro o doce, ou compro o doce e não guardo o dinheiro. Ou isto ou aquilo: ou isto ou aquilo... e vivo escolhendo o dia inteiro! Não sei se brinco, não sei se estudo, se saio correndo ou fico tranqüilo. Mas não consegui entender ainda qual é melhor: se é isto ou aquilo.

(MEIRELES, 1990, p.72)

A primeira coisa que nos chama atenção é que, ao contrário dos poemas mostrados

anteriormente, esse parece ter sido escrito do ponto de vista de uma criança. Não há mais a

finalidade de transmitir lições de moral e bom comportamento. O poema todo gira em torno

de dúvidas e incertezas. A criança tem opções claras e por isso vem a dúvida, que só pode

surgir a partir de uma livre escolha de caminhos que, todavia, não lhe são mais impostos. É

clara a diferença de pontos de vista entre esse poema e o de Henriqueta Lisboa. Enquanto

aqui a criança pode escolher entre brincar ou estudar, no poema de Henriqueta ainda está

implícita a mensagem: quem não estuda é um coitado digno de pena.

Outro poeta que se destaca na poesia infantil nesse período é Vinícius de Moraes, poeta

dos mais conhecidos do grande público adulto e infantil. Ele demonstra no livro A Arca de

Noé (1971), a capacidade de reencontrar o ingênuo, no dinamismo poético provocado pelo

humor, pela brincadeira com as palavras, pelos sons e ritmos, conforme nesse também

conhecido poema, que nunca cansamos de apreciar:

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A Casa Era uma casa Muito engraçada Não tinha teto Não tinha nada Ninguém podia Entrar nela não Porque na casa Não tinha chão Ninguém podia Dormir na rede Porque na casa Não tinha parede Ninguém podia Fazer pipi Porque penico Não tinha ali Mas era feita Com muito esmero Na rua dos Bobos Número Zero.

(MORAES, 1993, p.28.)

Com tanto ritmo presente no poema, não é de estranhar que tenha sido transformado

depois em música. Uma contribuição do modernismo brasileiro encontra-se na falta de

pontuação que acentua, na forma do poema, o que está presente em seu conteúdo, isto é, na

casa não tinha nada mesmo, nem vírgulas ou pontos. Porém, essa casa sem chão ou parede,

até hoje, é a morada perfeita para a grande maioria das crianças e adultos.

José Paulo Paes também criou, muitos anos mais tarde, um poema sobre o tema casa,

incorporando o conteúdo à forma do poema:

Casa Eu não moro em apartamento. Moro numa casa.

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Apartamento é uma casa que tem outra casa em cima que tem outra casa em cima que tem outra casa em cima. A casa onde eu moro só tem o céu por cima dela. Eu só fico dentro de casa quando está chovendo. Quando o tempo está bom vou brincar no quintal. Lá ninguém me diz “não mexa nisso!”, “cuidado com aquilo!”, “não faça bagunça aqui!”etc.

(Gosto muito do “etc.”: diz todas as coisas que estou com preguiça de dizer.) Por mim, eu morava sempre no quintal. Mas aí, eu teria de pôr nele um quarto para dormir, uma cozinha para fazer comida, um banheiro para quando me desse vontade etc. Então o quintal perdia toda a graça porque ficava igual à minha casa.

(PAES, 2003) José Paulo Paes ao longo do poema repetiu a palavra casa oito vezes e numa mesma

estrofe fez uma repetição seqüencial: uma casa que tem outra casa em cima que tem outra

casa em cima que tem outra casa em cima. Uma casa está em cima da outra não só no

conteúdo do poema, mas também na sua forma, pois Paes, propositadamente, assim como

Vinícius de Moraes, também não colocou vírgulas nos versos para que tivéssemos a idéia

de sobreposição na forma do poema também. Paes usou técnicas como essa, típica da

poesia considerada modernista, e também incorporou a prosa ao poema, num tom de

conversa com o leitor, logo no primeiro verso: eu não moro em apartamento. Moro numa

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casa. Entre as afirmações típicas da prosa, Paes escapa para a poesia com comentários do

tipo: a casa onde eu moro só tem o céu por cima dela, ou então: (gosto muito do “etc”: diz

todas as coisas que estou com preguiça de dizer). Essa união entre prosa e poesia só foi

possível porque o modernismo brasileiro reduziu a distância entre os dois gêneros: por

vezes era usado o verso ritmado, por vezes era usado o verso livre prosaico.

Outros poetas que incorporaram contribuições modernistas na poesia infantil foram

Sidônio Muralha com o livro, A televisão da bicharada (1962) 39, mostrando situações

breves, fragmentos-de-vida, estorietas narradas através do olhar poético da síntese, e Mário

Quintana, com Pé de pilão (1975) 40, um livro que, dentre outras inovações, rompe com os

esquemas rígidos de rima e ritmo da poesia tradicional. Essas obras poéticas para crianças

que surgiram a partir de 1960, com enfoque predominantemente lúdico, estimularam

escritores como José Paulo Paes a dedicar parte de sua poesia ao público infanto-juvenil.

Paes confessa no livro de depoimentos, Poesia para crianças (1996) 41, que seu processo

de criação para o público infantil, surgiu a partir das brincadeiras que fazia com seus

sobrinhos pequenos, quando passeavam de carro. Por exemplo, ao ver um cemitério, ele

brincava com o significado das palavras e dizia: “Uma plantação de defuntos”. Aliás, criar

versos a partir dos diversos significados das palavras é uma constante da poesia infantil de

José Paulo Paes, por isso, essa questão será aprofundada no próximo capítulo.

José Paulo Paes, nascido em Taquaritinga em 1926, surge no cenário da poesia

infantil em 1984. Nessa época, já era poeta, ensaísta e tradutor renomado. Conseguiu após

buscar duas editoras, publicar seu primeiro livro de poemas para crianças É isso ali.. O

39 MURALHA. Sidônio. A televisão da bicharada. São Paulo: Global, 1997. 40 QUINTANA, Mário. Pé de pilão. São Paulo: Ática, 1997. 41 PAES, José Paulo. Poesia para crianças. São Paulo, Giordano, 1996, p.16.

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próprio autor reconheceu anos mais tarde a dificuldade de se escrever poesia para crianças

em Quem, eu? Um poeta como outro qualquer (1996):

No Brasil, praticamente só Cecília Meireles e Vinícius de Moraes conseguiram produzir poesia para crianças cuja qualidade não desmerece a da poesia para adultos que lhes deu justa fama. Embora cada um dos meus livros de poesia para crianças contenha poucos textos, custa-me muito trabalho escreve-los e aperfeiçoa-los até o ponto de satisfazerem meu senso crítico.

(PAES, 1996, p.70.)

De senso crítico apurado, José Paulo Paes contribuiu significativamente para a

qualidade de nossa poesia infantil. Escreveu poesias relacionadas às cantigas de rodas, bem

como aos acalantos, parlendas, adivinhas, trava-línguas, a exemplo da força da literatura

oral que penetra no universo infantil no Brasil a partir de Monteiro Lobato. Destacamos

dois poemas de José Paulo Paes, a fim de comprovar a permanência da cultura oral na

produção literária contemporânea destinada à infância, expressando a riqueza de nossa

literatura em torno do material folclórico:

POEMA1: Cadê? Nossa! que escuro! Cadê a luz? Dedo apagou. Cadê o dedo? Entrou no nariz. Cadê o nariz? Dando um espirro. Cadê o espirro? Ficou no lenço. Cadê o lenço? Dentro do bolso. Cadê o bolso? Foi com a calça. Cadê a calça?

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No guarda-roupa. Cadê o guarda-roupa? Fechado à chave. Cadê a chave? Homem levou. Cadê o homem? Está dormindo de luz apagada. Nossa! que escuro! (PAES, 1993)

POEMA 2 : Acidente

Atirei o pau no gato mas o gato não morreu, porque o pau pegou no rato que eu tentei salvar do gato e o rato (que chato) foi quem morreu.. (idem, 1984)

Podemos perceber como nos dois poemas o poeta está próximo da criança. No

primeiro, que tem como referencial a parlenda “cadê o toucinho que estava aqui?”, o leitor

começa e termina no escuro, com perguntas sem respostas conclusivas, levando sempre em

direção a expressões associadas ao mundo infantil como, por exemplo, o dedo no nariz. Ao

final, o homem que leva a chave (só do armário ou da fantasia e dos sonhos, também

trancados dentro do adulto?) dorme no escuro. Note-se que mesmo sabendo onde está a

chave, esta não pode ser alcançada, porque o adulto está dormindo no escuro.

Considerando-se a chave também como possibilidade de abertura para explicações e para

um lado mais racional, entendemos que o adulto tem repostas trancadas pela chave, mas as

explicações e respostas de nada servem diante da luz apagada. Enquanto isso, a criança,

incorporada na voz do poeta, permanece acordada com medo do escuro. Podem os adultos

dormir tranqüilos por fingirem ignorar o desconhecido? Teriam o poeta e a criança mais

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proximidade com esse outro lado e, portanto mais medos e inquietudes? Seriam o poeta e a

criança seres em rotação, enquanto a maioria das pessoas depois que cresce teria a

tendência a permanecer estagnada "dormindo de luz apagada, no escuro?"

Do mesmo modo que o primeiro poema, o segundo também reverte uma herança da

cultura popular, a cantiga: atirei o pau no gato que toda criança aprende desde cedo, e lhe

dá um novo e surpreendente final: a morte do rato. Observe-se que na canção original nem

o gato morre. No poema, porém, o rato morre por acidente. O poeta aqui não tem mais a

intenção de educar ou dar finais felizes para as situações, mas, sim, divertir e fazer a

criança chegar ao riso através de um elemento surpresa. José Paulo Paes transcreve o

repertório oral, já incorporado no dia-a-dia da criança, para a linguagem escrita. O poema

torna-se uma brincadeira e a leitura ganha uma dimensão prazerosa. Observemos também

o tom informal da linguagem do narrador no comentário: “que chato”, onde ele exterioriza

seus sentimentos, tornando-se cúmplice da criança.

É claro que, se há obras que até hoje são apreciadas por crianças e adultos, isso se

deve ao fato de que os poetas, provavelmente através de um árduo trabalho, conseguiram

transcender o tempo e, por isso, um poema escrito para crianças é capaz de tocar também os

adultos que têm lá no fundo uma criança escondida. Assim como não existe uma poesia

feita para um determinado tempo, também não existe uma poesia feita para crianças que

exclua o adulto. Um poema para crianças muitas vezes nos leva de volta à infância em

segundos. Já um poema escrito para adultos pode não agradar as crianças, pois o adulto

domina certo vocabulário, expressões e assuntos que a criança ainda não teve acesso ou

pode não ter maturidade para entender. Existem também obras que ficam muito associadas

a um momento específico, enquanto outras conseguem resistir com um brilho que as faz

parecer sempre novas e, assim, também, renovam o leitor, seja ele criança ou adulto.

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Não há dúvidas de que o modernismo de Monteiro Lobato consolidou em nossa

literatura infantil consideráveis mudanças, ao aproximar cada vez mais a criança da poesia,

enfatizando a busca pelo saber inaugural que tanto a criança quanto o poeta têm. A partir de

então, se começa a valorizar o ser poético da infância, isento das contaminações do

universo adulto. Porém, como foi demonstrado, a poesia infantil só muito tempo depois, em

1960, passa a ser o lugar da espontaneidade, da invenção, da curiosidade, da rebeldia frente

ao estabelecido e, principalmente, da imaginação transgressora de normas e interpretações

vigentes. No artigo denominado, Cem anos de poesia nas escolas brasileiras, Graça

Paulino expõe a evolução da poesia infantil contrastando duas antologias poéticas. Uma, de

1897, intitulada Álbum das crianças, organizada por Figueiredo Pimentel, sucesso de

vendas entre pais e professores da época, e a outra, analisada a seguir, denominada Poesia

fora da estante, de 1995, organizada por Vera Aguiar:

Certas diferenças marcam bem claramente esses 100 anos entre as duas antologias. Uma delas é a presença de muitos poemas que exigem uma experiência visual e não oral de seus leitores. Na parte denominada "A gente constrói com palavras", aparecem poemas concretos que não são legíveis em voz alta. Trata-se de um componente da poesia de vanguarda da primeira metade de nosso século, quase impensável para Figueiredo Pimentel e os leitores de seu tempo. Somam-se a isso outros recursos que foram conquistados pelos modernistas, tais como o emprego de versos livres, a alogicidade, a ampliação do universo temático para esferas anteriormente consideradas antipoéticas, a quebra de padrões da chamada "língua culta" em nome do coloquialismo, a recriação de versos populares. (PAULINO, 1998)

Já mencionamos antes que o modernismo introduziu a linguagem coloquial na poesia,

mas não uma linguagem mais pobre. Mário de Andrade destacou em seu livro, Aspectos da

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literatura brasileira (1972), a importância de se pesquisar a língua brasileira e de se

realizar um trabalho contínuo de reverificação dela:

Não basta criar o despudor da 'naturalidade', da 'sinceridade' e ressonar a sombra do deus novo. Saber escrever está muito bem; não é mérito, é dever primário. Mas o problema verdadeiro do artista não é esse: é escrever melhor. (ANDRADE, 1972, p.87)

O poeta tem de trabalhar para que seu trabalho não apareça. Quanto maior o seu

esforço com a linguagem, mais espontâneo e natural o poema parecerá. Dentre as críticas

que se fazem ao modernismo brasileiro, está a de que ao suprimir as normas fixas do verso,

abriu-se um espaço para a falsa poesia, para o pseudoverso, para o lugar do "vale-tudo".

Porém, os poetas verdadeiramente compromissados com a palavra, souberam revolucionar

a poética tradicional, sempre com uma consciência profunda do trabalho que envolve essa

busca pela simplicidade.

Assim como linguagem simples não é sinônimo de algo ruim, menor ou pior, muito

pelo contrário, a simplicidade da criança também não quer dizer que ela seja inferior. O

poeta que escreve para crianças tem um ofício por vezes mais árduo, assim como os

modernistas brasileiros tiveram ao aproximar a linguagem do coloquial. Octavio Paz afirma

em Signos em rotação:

Uma sociedade sem poesia careceria de linguagem: todos diriam a mesma coisa ou ninguém falaria, sociedade transumana em que todos seriam um ou cada um seria um todo auto suficiente. Uma poesia sem sociedade seria um poema sem autor, sem leitor e, a rigor, sem palavras. Condenados a uma perpétua discórdia, os dois termos buscam uma conversão mútua. Transformação da sociedade em comunidade criadora, em poema vivo; e do poema em vida social, em imagem encarnada. (PAZ, 2003, p.96)

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Da mesma forma que Octavio Paz declara que sociedade e poesia não se separam,

também acontece com o poeta que escreve para crianças, pois não há como separá-lo do

imaginário infantil, da brincadeira. Se o poema deve ser a imagem encarnada de uma vida

social, o poema para crianças deve ser também a imagem encarnada da infância. Se as

palavras são signos em rotação, os poetas e as crianças são os seres em rotação, seres que se

perdem no tempo e no espaço quando estão brincando no mais real que pode existir, no

fantástico da criação. Tanto a criança quanto o poeta são rebeldes, se negam a viver dentro

de padrões pré-estabelecidos, têm certeza de que o mais importante não está ao alcance dos

olhos. Algo escapa e eles querem lidar com essa falta, é dela que eles se alimentam. Ao

invés de fugir da falta pela busca do controle, como fazem os adultos ditos mais sensatos, a

criança e o poeta atiram-se no abismo da fantasia. O trabalho do poeta associa-se ao olhar

de descoberta da criança porque a experiência estética, num primeiro momento, pode ser

destituída de entendimento e sentido. O poeta encontra novos significados para palavras já

conhecidas, que podem ser inseridas em contextos nunca antes imaginados e isso gera uma

sensação de descoberta, tal qual a criança quando começa a perceber o mundo que a cerca.

Manuel Bandeira também registrou em seu livro de memórias Itinerário de Pasárgada a

relação entre o poeta e a infância:

... Devia ter eu então uns três anos. O que há de especial nessas reminiscências (e em outras dos anos seguintes, reminiscências do Rio e de São Paulo, até 1892, quando voltei de Pernambuco, onde fiquei até os dez anos) é que não obstante serem tão vagas, encerram para mim um conteúdo inesgotável de emoção. A certa altura da vida vim a identificar essa emoção particular com outra- a da natureza artística. Desde esse momento, posso dizer que havia descoberto o segredo da poesia, o segredo do meu itinerário em poesia. Verifiquei ainda que o conteúdo emocional daquelas reminiscências da primeira meninice era o mesmo de certos raros momentos em minha vida de adulto: num ou noutro caso alguma coisa que resiste à análise da inteligência e da memória

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consciente, e que me enche de sobressalto ou me força a uma atitude de apaixonada escuta. O meu primeiro contato com a poesia sob a forma de versos terá sido provavelmente em contos de fadas, em histórias da carochinha. No Recife, depois dos seis anos.

(BANDEIRA, 1983, p. 33)

Nesse livro Manuel Bandeira resgata as influências da infância como as cantigas de

roda “Roseira, dá-me uma rosa” “ O anel que tu me deste” “ Bão, balalão, senhor capitão”,

depois reutilizadas em alguns poemas, e das trovas populares, coplas de zarzuelas, couplets

de operetas francesas, versos ensinados pelo pai, considerado por Bandeira um grande

improvisador de nonsense líricos. O pai foi também o primeiro a despertar em Bandeira o

gosto pelas brincadeiras verbais. O poeta lembra igualmente de alguns livros que o

despertaram para uma realidade mais bela, diferente da realidade cotidiana, bem como

outros, que já indicavam as tristezas e maldades da vida. Bandeira foi sem dúvida marcado

pelas impressões poéticas da sua primeira infância, impressões estas, que não se

restringiram aos livros, mas também a casa do avô, descrita como capital de um país

fabuloso e algumas pessoas comparadas a personagens de poemas homéricos. Essas

impressões, de forma consciente ou não, contribuíram para a criação de seus poemas.

A opção pelo corriqueiro e cotidiano como matéria poética, o descompromisso com o

verso tradicional, a busca pela simplicidade num esforço de redução às essências, quer no

plano temático, quer no da linguagem mais coloquial, têm origem, como Bandeira mesmo

afirmou, na sua ligação íntima com a infância. Por isso, em sua poesia aparecem

frequentemente lembranças de criança e a idéia de esperança no futuro. Bandeira cria um

lugar onde podem co-existir as coisas da vida real e as que só existem em sonho, como

aquela cidade mágica, Pasárgada, onde um homem simples podia ser amigo do rei. Sérgio

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Buarque de Holanda assim retrata Manuel Bandeira em seu livro O Espírito e a Letra

(1996): "nunca, neste país, ninguém exprimiu melhor essa 'inocência' superior que é

singularidade essencial dos verdadeiros poetas.” (HOLANDA, 1996, p. 209). Por essa

razão, não é raro encontrar nos livros de Bandeira alusões ao mundo infantil, como no

poema Na Rua do Sabão (1925), que já inicia com uma canção infantil:

Cai cai balão Cai cai balão Na rua do sabão! O que custou arranjar aquele balãozinho de papel! Quem fez foi o filho da lavadeira. Um que trabalha na composição do jornal e tosse muito. [...] (BANDEIRA, 1981, p. 54-55)

O poema segue numa mistura com a prosa, narrando o caso da subida do balão, do

desejo dos meninos da Rua do Sabão de ver o balão cair, até finalmente a queda que se dá,

ao contrário do desejado pelas crianças, nas águas do mar alto. Ao mesmo tempo em que o

poema demonstra certa dureza e maldade em relação às crianças que apedrejavam o balão,

demonstra também a força do sonho, que apesar de tudo, resiste no céu, vindo a cair

somente nas águas puras do mar alto. Interessante notar que o adjetivo “puras” tão

associado às crianças, vem no poema se contrapor a elas, que ansiavam por ver o balão cair.

É a natureza em seu estado mais primitivo que ainda preserva a pureza e acolhe o sonho,

enquanto as crianças já se encontram corrompidas por tudo que as cerca. Também no

poema Balõezinhos (1925), Manuel Bandeira remete o leitor à infância:

Na feira livre do arrabaldezinho Um homem loquaz apregoa balõezinhos de cor:

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____ ‘O melhor divertimento para as crianças!’ Em redor dele há um ajuntamento de menininhos Pobres. Fitando com olhos muito redondos os grandes ba- lõezinhos muito redondos. [...] Sente-se bem que para eles ali na feira os balõezinhos De cor são a única mercadoria útil e verdadeiramente indispensável O vendedor infatigável apregoa: ____ ‘O melhor divertimento para as crianças!’ E em torno do homem loquaz os menininhos pobres fazem um círculo inamovível de desejo e espanto.

(BANDEIRA, 1981, p. 56-57)

Tanto a criança quanto o poeta desenvolvem seu potencial criador a partir de uma

percepção diferente do mundo, como bem constatou Bandeira ao fim do poema: com desejo

e espanto. Ao invés de sentirem falta de comida, a única coisa que lhes alimenta é o sonho,

representado pelos balõezinhos “única mercadoria útil e verdeiramente indispensável”.

Mas é na linguagem que a semelhança entre o poeta e a criança se materializa, se torna

mais visível, pois ambos brincam com as palavras colocando-as em diferentes lugares,

mudando estruturas. Segundo Octavio Paz42, a poesia junta elementos do passado,

elementos mitológicos, elementos de culturas antigas e de um universo cultural muito

amplo. O poema acaba como um universo vibratório com muitas informações, muitos

registros, mesmo que implícitos. Para ele, a poesia é um semear de signos, em que o texto

verbal se corresponde com o texto do universo. A linguagem tem uma relação direta com o

cosmo. Paz destacou em seu livro:

42 PAZ, Octavio. Signos em rotação. São Paulo: Perspectiva, 2003, p.78.

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O poema é um conjunto de signos que buscam um significado, um ideograma que gira sobre si mesmo e em redor de um sol que ainda não está nascendo. A significação deixou de iluminar o mundo; por isso hoje temos uma realidade e não imagem. Giramos em torno de uma ausência e todos os nossos significados se anulam ante essa ausência. Em sua rotação o poema emite luzes que brilham e se apagam sucessivamente. O sentido desse pestanejo não é a significação última mas é a conjunção instantânea do eu e do tu. Poema: busca do tu.

(PAZ, 2003, p. 121)

Há na poesia, segundo Octavio Paz, uma alteridade - uma preocupação com o outro,

com o outro lado das coisas, com outras culturas. Essa é uma preocupação constante do

poeta que escreve para crianças também: ao mesmo tempo em que busca a sua infância, não

pode esquecer-se de que a criança, assim como o jovem e o adulto, está em constante

movimento, e por isso a poesia precisa de algo além de rimas e ritmos. Deve haver um

equilíbrio que se dá de acordo com o texto de Paz, quando o poema torna-se um espaço

pulsante, onde todos os fragmentos atuam como vagalumes, enviando sinais. Os signos na

página se dispersam como se ficassem numa constelação. A poesia existe entre o mundo e a

linguagem e, para isso, tem de se tirar o significado comum que têm as palavras. Só assim,

poetas e crianças poderão girar e pulsar juntos, dentro da mesma via-láctea do sonho.

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4. O JOGO POÉTICO DE JOSÉ PAULO PAES

José Paulo Paes, poeta que tratou do cotidiano da criança em versos livres e simples,

incentivando nos pequenos leitores o hábito de ler poesia como forma de divertimento e

prazer, foi herdeiro das conquistas do modernismo brasileiro, apesar de no início, ele

mesmo nos revelar no livro Quem eu? Um poeta como outro qualquer43 (1996), que custara

a descobrir aonde queriam chegar os nossos poetas modernistas. Mesmo assim, ele não

desistiu de tentar entender os ensinamentos de poetas como Drummond, Bandeira e Murilo

Mendes: que a poesia poderia se dar em versos livres, sem rima nem métrica, numa

linguagem simples e cotidiana. Fruto dessas descobertas, anos mais tarde surgiria sua

poesia infantil, por vezes misturada à prosa, apesar do poeta marcar bem a diferença entre

os dois gêneros nos seguintes versos:

A prosa é como trem, vai sempre em frente. A poesia é como o pêndulo dos relógios de parede de antigamente, que ficava balançando de um lado para outro...

(PAES, 2001, p.18)

Conforme a criança cresce, deixa de lado a espontaneidade para ter de se adaptar a

uma sociedade totalmente prosaica, regulada pelo racionalismo, pela objetividade e por um

tempo que corre, assim como afirmou José Paulo Paes, como um trem que vai sempre em

frente. Quando a criança pega esse trem, a estação da fantasia fica para trás, o tempo

mágico de poder ser o que ela quiser, de poder brincar de ir e vir a qualquer momento,

deixa de existir. A parada final passa a ser a mesma para todos. Mas é importante também

entrar no trem. Se a criança tem uma ligação com o fantástico, tem também a necessidade

43 PAES, José Paulo. Quem, eu? Um poeta como outro qualquer. São Paulo: Atual, 1996 p. 34.

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de se incorporar ao universo adulto, de aprender as regras de um jogo que lhe causa muita

fascinação. Qual a criança que não sonha em ser adulto? Jacqueline Held afirma em seu

livro O Imaginário no Poder (1977):

De um lado, a criança tem constantemente necessidade de textos adultos, de banho de linguagem adulta. É por esse contato constante que se enriquece seu vocabulário, sua faculdade de estruturação da linguagem, que se desenvolvem suas possibilidades pessoais de criação. De outro lado, a linguagem adulta, se recebida como única, unívoca, produto de regras escritas e definitivamente imutáveis, será sentida como entrave e se tornará, realmente, entrave a qualquer pesquisa e expressão pessoais.

(HELD, 1980, p. 205.)

Jacqueline Held considera impossível privar a criança da exposição à linguagem

adulta, pois tudo faz parte do seu brincar, até mesmo palavras desconhecidas. Sendo assim,

não se deve omitir determinado vocabulário, considerando-a como um ser inferior, incapaz

de entender certas expressões. É importante desde o início falar com a criança usando um

vocabulário adulto e não infantilizar as palavras, por exemplo: aguinha ao invés de água, au

au ao invés de cachorro. Quanto mais cedo ela for inserida dentro de um vocabulário

amplo, mais domínio terá da linguagem. Por outro lado, ressalta Jacqueline Held a

importância de não aprisioná-la dentro de um conjunto de regras gramaticais. A linguagem

deve ser transmitida como ferramenta para explorar todo um mundo que está por conhecer.

José Paulo Paes foi um poeta que nunca esqueceu que a brincadeira com as palavras

faz parte da criação de qualquer poema, bem como do processo de interação entre o poema

e o leitor, que tem de deixar levar-se pelos versos, construindo seu próprio e único mundo

imaginário. Além de poemas para crianças e adultos, José Paulo Paes também foi um

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poeta crítico, escreveu 10 livros de ensaios literários, dando palestras em universidades e

instituições culturais do Brasil e do exterior. Como ele mesmo disse: "me tornei ensaísta

porque não acreditava em poeta que não pensasse acerca do seu ofício.” (PAES, 1996,

p.24) Por isso, iremos analisar ao longo desse capítulo algumas de suas idéias a respeito da

criação poética desenvolvidas em seus poemas, confrontando-as com a visão de outros

poetas críticos. Assim, observaremos também semelhanças e diferenças entre o processo de

criação poética para crianças e adultos. O processo ficcional (seja do autor ou do leitor) está

sempre associado a essa idéia do brincar, pois o jogo está na gênese do pensamento, da

descoberta de nós mesmos, da possibilidade de experimentar, de criar e de transformar o

mundo. O caráter de ficção é um dos elementos constitutivos do jogo e é, ao mesmo tempo,

um modo de expressão de grande importância, pois também pode ser entendido como um

modo de comunicação em que a criança expressa os aspectos mais íntimos de sua

personalidade na tentativa de interagir com o mundo adulto. Pelo jogo as crianças exploram

os objetos que as cercam, melhoram a agilidade física, experimentam seus sentidos, e

desenvolvem o pensamento.

O historiador holandês Johan Huizinga, argumenta em seu livro Homo Ludens44

(1938), que o jogo é uma categoria absolutamente primária da vida, tão essencial quanto o

raciocínio (HOMO SAPIENS) e a fabricação de objetos (HOMO FABER), então a

denominação HOMO LUDENS, quer dizer que o elemento lúdico está na base do

surgimento e desenvolvimento da civilização e, consequentemente, todas as atividades

humanas incluindo filosofia, guerra, arte, leis e linguagem, podem ser vistas como resultado

de um jogo, conforme ressalta essa parte de seu texto:

44 HUIZINGA, Johan. Homo Ludens. São Paulo: Perspectiva, 2004.

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As grandes atividades arquetípicas da sociedade humana são, desde início, inteiramente marcadas pelo jogo. Como por exemplo, no caso da linguagem, esse primeiro e supremo instrumento que o homem forjou a fim de poder comunicar, ensinar e comandar. É a linguagem que lhe permite distinguir as coisas, defini-las e constatá-las, em resumo, designá-las e com essa designação elevá-las ao domínio do espírito. Na criação da fala e da linguagem, brincando com essa maravilhosa faculdade de designar, é como se o espírito estivesse constantemente saltando entre a matéria e as coisas pensadas. Por trás de toda expressão abstrata se oculta uma metáfora, e toda metáfora é jogo de palavras. Assim, ao dar expressão à vida, o homem cria um outro mundo, um mundo poético, ao lado do da natureza.

(HUIZINGA, 2004, p.7)

Mas o jogo da criança não é totalmente igual ao jogo do escritor, pois o adulto que

joga, afasta-se da realidade, enquanto que a criança ao brincar/jogar avança para novas

etapas de domínio do mundo que a cerca. Quando brinca com a linguagem, ela o faz de

maneira natural e simples. O poeta aí se encontra em desvantagem. Trabalha arduamente

para chegar até a espontaneidade primitiva das palavras, espontaneidade essa a que a

criança chega com naturalidade por já estar inserida no mundo fantástico, ainda não

dominado pela intervenção normativa adulta. Por isso, é na infância, quando menos

domínio temos da linguagem, que mais abertos estamos para beber da sua fonte original,

para deixar-nos levar pelo jogo das palavras, sem medo de censuras ou repressões. Basta

observar como meninos pequenos brincam com os ritmos, com a musicalidade, mesmo sem

entender o real sentido das palavras. Quanto menor a criança, mais próxima da poesia ela

está, pois com o tempo ficamos mais condicionados e distantes de nosso potencial criador.

Com base em Huizinga, que nos mostrou o papel fundamental do elemento lúdico, tão

presente na poesia de José Paulo Paes, podemos considerar o processo de criação como um

jogo, afetado pelas incertezas das condutas, mas igualmente submetido à certa ordem de

regras e convenções, que garantem a riqueza e solidez da criação, como veremos no

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desenvolver desse trabalho. Huizinga considerou que características próprias do jogo,

como: ordem, entusiasmo, seriedade, e fingimento podem ser também encontradas na

criação poética. Portanto, ao longo desse capítulo, iremos analisar como cada uma dessas

características interage diretamente com os quatro elementos fundamentais para a criação

de poemas: a sonoridade, a forma, a linguagem (como sinônimo de sentido) e a imagem.

Na poesia ao mesmo tempo em que há uma ordem, um conjunto de regras, que não

aparecem no poema, mas que o poeta segue em seu trabalho, há também um processo de

integração entre o poeta, o poema e o leitor (em nosso caso, a criança). Há uma construção,

uma ordem necessária que o poeta segue para chegar mais perto do olhar infantil. O que a

princípio parece apenas resultado de um brincar casual, é também construído, arquitetado,

planejado rigorosamente. Quanto melhor for esse planejamento, mais natural e espontâneo

parecerá o poema. Por exemplo, um aspecto importante na poesia para crianças é a

sonoridade, que pode ser percebida nas rimas, aliterações, assonâncias, repetições de

palavras, onomatopéias, enfim, em todas as figuras de efeito sonoro que dão musicalidade

ao poema. O ritmo, portanto, é resultado de uma seqüência de palavras combinadas, de uma

ordem que o poeta busca pela combinação experimentando diversas palavras até encontrar

aquela que parecia já estar pronta para entrar naquele lugar, do mesmo modo como só

determinada peça se encaixa em um quebra-cabeça.

Na poesia para adultos o ritmo é apenas mais um elemento, que pode ser usado ou

não. Poetas como Sebastião Uchôa Leite e João Cabral de Melo Neto deram uma enorme

contribuição para a poesia brasileira, exatamente por buscarem o anti-melódico, criando a

poesia do estranhamento, negando o ritmo, dando preferência aos versos secos numa poesia

que recusa a melodia da música, apesar de ter um potencial lírico implícito. O adulto aceita

e reconhece o valor de uma poesia atonal com ruídos dissonantes. Já as crianças não, elas

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têm uma forte ligação com o ritmo, porque a sonoridade está próxima à linguagem da fala,

ao afeto e à brincadeira. Para a criança, um poema sem musicalidade, nada mais é do que

um violino quebrado. Nelly Novaes Coelho afirma em seu livro A Literatura Infantil:

Na poesia infantil (tal como na popular) o som deve entrar como

significação inerente à matéria poética. É através dele que se dará a iniciação poética. Tal como o faz a música, essa poesia precisa apelar para o ouvido da criança, e o som-das-palavras-em-si deve lhe dar prazer, independente do que estas signifiquem como pensamento.

(COELHO, 1982, p.153)

O som antecede ao próprio pensamento. A criança se encanta com a repetição

simplesmente lúdica de sons verbais parecidos (rimas, aliterações, assonâncias...) Crianças

pequenas, ficam fascinadas pela sonoridade de certas palavras e expressões. É possível se

observar nos poemas de José Paulo Paes a importância que ele dá para a experiência do

ritmo, do som, da melodia no brincar da poesia:

Patacoada A pata empata a pata porque cada pata tem um par de patas e um par de patas um par de pares de patas. Agora, se se engata pata a pata cada pata de um par de pares de patas, a coisa nunca mais desata e fica mais chata do que pata de pata

(PAES, 1990)

O poema explora vários sentidos de uma mesma palavra: pata. O poeta trabalha

com homógrafos (palavras que têm grafia idêntica e sentido diferente) porque a repetição

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dá ritmo e tom de jogo ao poema. A repetição é um elemento de fundamental importância

para a criança. Qual a mãe que nunca ouviu seu filho pedir repetidas vezes para que lhe

contasse a mesma história? Assim também na poesia, cada palavra deve funcionar como

uma nota musical, podendo-se repetir muitas notas para se alcançar a melodia. No poema

de Paes a repetição tanto acontece nas rimas externas (pata), como nas internas (empATA/

pATA). A assonância na repetição da vogal /a/ faz com que o poema pareça uma

brincadeira de trava-língua, tendo como objetivo dificultar o desempenho da leitura, e

assim, causar o riso. Muito mais do que se preocupar em criar um sentido para o poema,

que já tem como título “Patacoada” (coisa que não se leva a sério, disparate, tolice,

brincadeira), a intenção de José Paulo Paes é explorar a sonoridade. A música das palavras

ultrapassa as mais diferentes barreiras, tornando-se um mecanismo universal de

comunicação. Pode-se dizer que seria o que Edgar Allan Poe45 chamou de forças musicais

superiores ao conteúdo. Segundo Poe, um poema não começa pela forma e sim pelo tom. A

poesia nasce de um impulso de linguagem, como no poema “patacoada”: as palavras

impulsionam umas às outras, levando o leitor a um encanto intuitivo com o som. Nas linhas

sonoras, a linguagem se cria, livre de qualquer compromisso com um conteúdo prévio. José

Paulo Paes não tem o objetivo de representar nada, sua busca é pelo movimento da

linguagem, por uma poesia simples tal qual são as crianças que apenas se contentam em

ser, e nesse ser se divertem, se recriam, se expressam como seres únicos que são, como

poemas.

Outro aspecto importante relacionado à sonoridade diz respeito ao que Paul

Valéry considerou no ensaio Primeira Aula do Curso de Poética46 (1938) como estado de

45 POE, Edgar Allan. Poemas e ensaios. Rio de Janeiro: Globo, 1999. 46 VALERY, Paul. In: Variedades. São Paulo: Iluminuras 1999, p. 184-185.

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poesia. Para Valéry esse estado é alcançado somente por acaso, já que muitas vezes o

poema nasce a partir de um ritmo. Depois dessa concepção é que vem o trabalho. O próprio

José Paulo Paes47 afirmou que assim nasceu seu primeiro livro infantil: por acaso, das

brincadeiras verbais com os sobrinhos. Conforme Valéry, a dificuldade do poeta é

conseguir colocar na matéria verbal o que o ritmo está dizendo a ele. A preocupação não é

de ordem estética, mas sim de ordem musical. Isso na criança está muito visível, já que

ninguém melhor do que ela para desfrutar o som pelo som, sem se preocupar com o sentido.

Quantas vezes as crianças adoram certas músicas feitas para adultos, sabem cantá-las, mas

não têm idéia do que estão cantando. Apenas apreciam o ritmo e nele conseguem voar. Esse

estado de poesia descrito por Valéry, como algo que o poeta consegue involuntariamente, é

também analisado nas palavras de José Paulo Paes em uma de suas entrevistas:

A rigor o poeta não escreve o poema: o poema é que se escreve através dele. Não que o poeta escreva às cegas, como um medium em transe. Mas a minha experiência me indica que o embrião do poeta nasce por si, fruto de uma intuição ou inspiração. À artesania do poeta compete levar o embrião até o fruto final. As mais das vezes, tal embrião é feito de uma ou mais proteínas da infância. Todavia, só as descobrimos a posteriori, quando o poema se completa.

(PAES, 2003)

Paul Valéry considera a poesia equivalente a uma dança, pois explora o

movimento em si. Não busca um objeto preciso, como faz a prosa. Seu objetivo é criar e

manter certo estado. Mas para que o mesmo aconteça, é preciso trabalhar muito. Há de se

ter uma interação fundamental entre o estado de poesia e o fazer poético. Dois momentos

que aparentemente se excluem, mas que na realidade se comunicam. Valéry afirmou em

47 PAES, José Paulo. Quem eu? Um poeta como outro qualquer. São Paulo: Atual 1996, p.74.

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Variedades que “a poesia é a arte da linguagem e a linguagem, contudo, é uma criação da

prática”. (VALÉRY, 1999, p.200) Isso se aplica perfeitamente à criação de poemas para

crianças, pois não basta apenas se deixar levar pelo espírito do jogo com as palavras, pelo

ritmo, pela brincadeira. É preciso nunca esquecer da técnica. Esse trabalho com a

linguagem está também inteiramente ligado à capacidade crítica do poeta. Só é possível o

desenvolvimento da técnica através de constantes leituras de outros poetas e de várias

releituras dos próprios poemas.

Assim como é importante chegar até o estado de poesia, é igualmente importante

fazer e refazer os poemas, não se deixar iludir com a idéia de que o poema já vem todo

pronto. Raramente isso pode acontecer, contudo o poeta deve estar sempre aberto, disposto

a fazer um trabalho lúcido, tentando se colocar o mais distante daquele estado de poesia

inicial que deu origem ao poema. É de fundamental importância conseguir se afastar da

inspiração e trabalhar com um olhar de fora, mais neutro. Muitas vezes o poema que, a

princípio parece já estar pronto, está apenas começando a ser gerado, mas o poeta, devido

ao seu entusiasmo, não consegue perceber isso, no momento inicial. Se o trabalho a

posteriori não fosse de fundamental importância, diríamos que toda criança poderia fazer

poemas para crianças, pois ninguém mais do que ela está ligada ao ritmo, ao jogo da

linguagem.

José Paulo Paes considera no artigo Infância e Poesia48 (1998) a importância de se

distinguir o gosto natural da criança pela poesia da capacidade de criação. A criação de um

poema requer habilidades específicas, como, por exemplo, saber ouvir as palavras. O poeta

é aquele que respeita a vontade das palavras de pertencerem ou não a um determinado

verso. Se às vezes é imprescindível saber as regras do jogo, é igualmente importante

48 PAES, José Paulo. Infância e Poesia. In: Folha de São Paulo: Caderno Mais, 08/08/1998.

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esquece-las, deixar-se levar pelo ritmo, pela intuição, pelo entusiasmo. Essa é outra

característica citada por Huizinga como fundamental para o brincar, pois o ambiente do

jogo é de motivação e tensão, seguidos por um estado de alegria. O poeta quando trabalha

também passa por momentos de tensão, em busca da palavra certa, da imagem que irá

revelar o que nem ele mesmo ainda sabe. Quando enfim encontra a sonoridade, a

linguagem, a imagem ou a forma que procurava, tem a sensação infantil de ser o vencedor

do jogo. No momento da criação, o poeta então reencontra o entusiasmo das brincadeiras de

criança. Antes de simplesmente acomodar as palavras para sempre num verso, o poeta

brinca colocando-as e retirando-as do mesmo lugar, como nesses passos de dança criados

por José Paulo Paes:

Valsinha É tão fácil dançar uma valsa, rapaz... Pezinho pra frente Pezinho pra trás. Pra dançar uma valsa é preciso só dois. O sol com a lua Feijão com arroz

(PAES, 1984)

Em ritmo de valsa, que se constitui de três tempos, José Paulo Paes através da

alternância dos versos de três e duas sílabas, consegue despertar no leitor a vontade de

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dançar com as palavras. O poeta também faz uso da aliteração do /s/, para simular o ritmo e

a melodia da dança. Trata-se de um poema com imagens simples e de casamento perfeito

como o sol e a lua (representando o masculino e o feminino) e feijão com arroz (alimentos

que combinam e se completam). Com poucos versos o poeta consegue compor a cena de

uma valsa. Podemos perceber que os ensinamentos da dança já estão incorporados dentro

da sonoridade do poema. Otávio Paz destacou a importância do ritmo na poesia, em seu

livro O arco e a lira (1956).

O ritmo é sentido e diz ‘ algo’. Assim, seu conteúdo verbal ou ideológico não é separável. Aquilo que as palavras do poeta dizem já está sendo dito pelo ritmo em que as palavras se apóiam. E mais: essas palavras surgem naturalmente do ritmo, com a flor do caule. A relação entre ritmo e palavra poética não é diferente da relação que reina entre a dança e o ritmo musical: não se pode dizer que o ritmo é a representação sonora da dança; nem tampouco que o bailado seja a tradução corporal do ritmo. Todos os bailados são ritmos; todos os ritmos, bailados. No ritmo já está a dança e vice-versa.

(PAZ, 1982, p.70.)

Do mesmo modo, a sonoridade no poema de Paes está muito ligada ao sentido das

palavras. Não há como mostrar onde começa uma e termina o outro. Com bem definiu

Otavio Paz, ambos são partes do mesmo dizer. O sentido reafirma o ritmo de valsa no

poema de Paes, e o ritmo reafirma o sentido das palavras. Por isso, esse primeiro elemento

é tão importante na composição de poemas, principalmente para crianças.

Outra peça fundamental nesse jogo de quebra-cabeça, assim como a sonoridade,

também nasce antes do próprio sentido do poema ou junto com ele, é a forma. Inclusive

Émile Benveniste destaca em seu livro Problemas de Lingüística Geral49 (1976) que

49 BENVENISTE, Émile. Problemas de Lingüística Geral. São Paulo: Companhia Editora Nacional 1976 p. 363.

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semanticamente a palavra ritmo, que vem do grego, confundia-se com a noção que temos

de forma, pois conforme os ensinamentos de Benveniste: os criadores do atomismo,

Leucipo e Demócrito, juntamente com Aristóteles usavam primeiramente a palavra forma

como um termo técnico usado para diferenciar coisas, a água do ar, por exemplo. Somente

a partir de Platão a mesma palavra passa a ter uma nova acepção, significando ritmo. É

Platão quem primeiro acrescenta à palavra a noção de movimento, de variação entre o lento

e o rápido. A forma então determinada por uma medida e sujeita a uma ordem, passou a ser

definida como ritmo. Considerando-se no processo de criação forma como: “estrutura,

plano de composição e estilo da obra de arte literária, artística, musical ou plástica”

(KOOGAN; HOUAISS, 1995) podemos perceber porque os termos ritmo e forma podem

ainda se confundir. Essa estrutura na poesia, esse plano de composição passa tanto pela via

da imagem como pela via do acústico, isto é, estão presentes simultaneamente na criação de

um poema, elementos visuais e sonoros, que podem surgir antes mesmo do conteúdo, do

significado das palavras. A forma pode estar ligada tanto à imagem, quanto ao som, nesse

segundo caso, confundindo-se com o ritmo.

No livro O Som e o Sentido50 (1989) José Miguel Wisnik, certamente com base

na definição anterior de Platão, considera o ritmo como a forma do movimento, ou a forma

em movimento. Logo, podemos concluir que todo ritmo teria implícito uma forma e toda

forma em movimento, como a música ou um poema, por exemplo, configuraria um ritmo.

Na poesia as palavras ganham ritmo quando interagem com as outras, dependem, portanto,

da acentuação das outras palavras, da variação entre as sílabas tônicas e átonas, e de

variações diversas que definem o seu perfil e o seu fluxo. Dessa ordenação resultará a

50 WISNIK, José Miguel. O Som e o Sentido. São Paulo: Companhia das Letras 2006, p.66.

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sonoridade e também a forma. Não há dúvidas então de que ritmo e forma estão desde sua

origem relacionados.

O poema se faz através da forma, pois a idéia reivindica sua voz, ela precisa de

uma construção. A poesia é inseparável da forma sensível, ela só vai poder dizer algo

através dessa forma. Sendo assim, podemos observar, em Poemas para brincar (1990), que

José Paulo Paes não ensina ao leitor como transformar os poemas em brincadeiras, ao

contrário, ele brinca com as palavras, mostrando ao leitor como fazer, fazendo, e não

teorizando. Observemos esse poema:

Letra mágica Que pode fazer você para o elefante tão deselegante ficar elegante? Ora, troque o f por g! Mas se trocar, no rato, o r por g transforma-o você (veja que perigo!) no seu pior inimigo o gato. (PAES, 1990)

Nele, como na maioria de seus poemas, José Paulo Paes brinca com os

significantes e significados das palavras. Roland Barthes em seu livro Elementos de

Semiologia51 (1964) ao tratar da relação entre significantes e significados, tendo como

referência os estudos realizados na obra Curso de Lingüística Geral52 (1916) de Ferdinand

de Saussure, considera que os significantes estão no plano de expressão, enquanto os

51 BARTHES, Roland. Elementos de semiologia. São Paulo: Cultrix 2003, p. 43. 52 SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de Lingüística Geral. São Paulo: Cultrix, 2006.

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significados estão no plano do conteúdo. Segundo Roland Barthes, no plano de expressão,

podemos ter formas fônicas ou formas gráficas, ao que Saussure primeiramente

denominou: imagem acústica. Segundo ele, a língua se daria na união do conceito à

imagem acústica, como se fosse uma folha de papel: “o pensamento é o anverso e o som o

verso; não se pode cortar um sem cortar, ao mesmo tempo, o outro” (SAUSSURE, 2006, p.

131). Os significantes, como imagem acústica, estariam ligados então basicamente aos

sentidos da visão e da audição, enquanto que os significados seriam a representação

psíquica de uma coisa, o conceito. No poema de Paes observamos que ambos aparecem,

pois além da coincidência sonora, na primeira estrofe o poeta faz a mágica diante dos olhos

infantis, que podem ler e desvendar todo o mistério na troca das letras. A imagem do

elefante que se torna elegante atua juntamente ao som das palavras e aos conceitos que

temos delas.

Porém, segundo Saussure, há também uma relação que se dá entre um signo e outro

“visto ser a língua um sistema em que todos os termos são solidários e o valor de um

resulta tão somente da presença simultânea de outros” (SAUSSURE, 2006, p. 133). O

poema de Paes torna-se bem sucedido não apenas porque o poeta brinca com o uso de

significantes e significados, mas porque segue uma ordem, todos os signos estão

devidamente ligados entre si: o elefante só torna-se elegante devido à solução que se

apresenta com a troca de letras. Ao trocar o f pelo g da palavra elefante, o significante

começa a imitar a transformação do significado, e, como num passe de mágica, torna o

elefante em elegante, aproximando os significantes pela coincidência sonora. A mesma

brincadeira entre significantes, significados, e a relação entre signos continua na segunda

estrofe, onde a comutação da letra inicial de Rato e Gato aproxima as palavras pela

coincidência sonora, ao mesmo tempo em que as distancia pelo significado biológico, já

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que um é o predador do outro. O rato e o gato, apesar das semelhanças sonoras, estão

distanciados (o rato aparece no primeiro verso da segunda estrofe em contraposição ao

gato, que aparece somente no último verso). A significação não é a mesma, ocorre um

processo de diferenciação, onde cada signo é um emaranhado potencialmente de diferenças.

Isso para Saussure é de fundamental importância, pois as palavras só adquirem valor em

relação àquilo que as rodeia. Assim, sinônimos só têm valor porque existem os antônimos,

os termos se enriquecem através do contato com diferentes termos, como nesse outro

poema de José Paulo Paes:

L l O L É UMA LETRA LOUCA TRANSFORMA A NOTA MI EM 1000 E FAZ A UVA ANDAR DE LUVA CABRA DESCOBRIR O BRASIL.

(PAES, 1992)

Em Uma letra puxa a outra (1992), José Paulo Paes também faz uso do mesmo

recurso de trabalhar transformações entre significantes e significados a partir da brincadeira

com grafemas. O poeta utiliza a forma de cartilha, para o leitor pensar sobre a função das

letras inseridas nas palavras. O poema, apenas pelo acréscimo da letra “L”, transforma

palavras: a nota musical mi ganha um valor econômico ao virar nota 1000. A uva (fruta)

pode virar uma luva (acessório de vestuário), ou uma cabra (animal) pode se humanizar e

virar Cabral pelo acréscimo de uma só letra. Palavras que têm uma relação sonora ganham

novo sentido quando aparecem dentro do mesmo poema. Um signo depende do outro para

que o poema possa existir. Saussure afirma: “O que haja de idéia ou de matéria fônica num

signo importa menos que o que existe ao redor dele nos outros signos” (SAUSSURE,

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2006, p.139). Por isso, segundo ele o signo é sempre arbitrário, porque o significante não

tem nenhum laço natural com o significado, os laços se constroem a partir de uma

convenção histórica e cultural.

Roland Barthes em seu livro Elementos de Semiologia53 (1964), ao contrário,

considera que a significação não é absolutamente arbitrária, pois ninguém tem a liberdade

de modificar as regras de uma língua. Para Barthes a relação entre o significante e o

significado é analógica, depende de uma motivação, que no plano lingüístico está ligada à

derivação ou à composição, enquanto que no plano semiológico se tornará muito mais

ampla, com inúmeras possibilidades. A poesia infantil de José Paulo Paes se constitui então

nessa dupla face: semiológica (relativa ao significante) e epistemológica (referente ao

significado das palavras). Não é de estranhar que Paes tenha sido tradutor de obras

referenciais como o próprio Curso de Lingüística Geral (1916) 54 de Ferdinand de Saussure

e Lingüística e Comunicação 55 de Roman Jakobson. Nesse último há o conhecido ensaio

Lingüística e Poética (1960), que será abordado ao longo desse capítulo, quando tratarmos

especificamente da linguagem.

A surpresa do trabalho de José Paulo Paes com a poesia infantil resulta dos

recursos utilizados pelo poeta, que assim como um mágico deixa seus truques sempre

atuando de forma escondida. Por exemplo: o poema Letra mágica já começa num tom de

conversa infantil, como se fosse uma criança propondo um desafio para outra, ou até

mesmo para um adulto: “Que pode fazer você para...” Além do próprio conteúdo implícito

nas palavras, é para a forma como o desafio é lançado que chamamos a atenção

nesse momento. Numa brincadeira ligeira, como nas adivinhações que as crianças tanto

53 BARTHES, Roland. Elementos de semiologia. São Paulo: Cultrix 2003, p53. 54 SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de Lingüística Geral. São Paulo: Cultrix, 2006. 55 JAKOBSON, Roman. Lingüística e Comunicação. São Paulo: Cultrix, 2003.

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gostam de fazer umas para as outras, José Paulo Paes cativa o leitor, prendendo a

atenção sem muita demora em desvendar o enigma proposto. Em Uma letra puxa a outra

(1992), Paes também faz mágica através de associações com um trava-língua conhecido:

R r O R É O RATO QUE RÓI A ROUPA DO REI DA RÚSSIA E RI DA RAIVA DA RAINHA SEM RECEAR RATOEIRA.

(PAES, 1992)

Adivinhações, trava-línguas, trocadilhos, parlendas e piadas, recheados de

aliterações, onomatopéias e rimas internas, como apresentados na quadra sobre a letra R,

são características da obra poética para crianças de José Paulo Paes. Isso porque a busca

pelo tom adequado se dá junto com a criação do ritmo e da forma do poema, ainda no

estado de poesia. É algo que acontece de modo inconsciente, mas que está implícito e

latente no poema, já que faz parte do seu próprio fazer. Fayga Ostrower afirma em seu livro

Criatividade e processos de criação:

Intuindo, procura-se estabelecer relacionamentos significativos - significativos para uma matéria e para nós. Seja qual for a área de atuação, a criatividade se elabora em nossa capacidade de selecionar, relacionar e integrar os dados no mundo externo e interno, de transformá-los com o propósito de encaminhá-los para um sentido mais completo. Dentro de nossas possibilidades procuramos alcançar a forma mais ampla e mais precisa, a mais expressiva. Ao transformarmos as matérias, agimos, fazemos. São experiências existenciais - processos de criação que nos envolvem na globalidade, em nosso ser sensível, no ser pensante, no ser atuante. Formar é mesmo fazer. É experimentar. É lidar com alguma materialidade e, ao experimentá-la, é configurá-la. Sejam os meios sensoriais, abstratos ou teóricos, sempre é preciso fazer.

(OSTROWER, 1999, p. 55-56)

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O processo de formação está marcado por essas distintas operações mencionadas

por Fayga: selecionar, relacionar, integrar e transformar. Talvez seja nas artes plásticas

mais fácil de visualizar esse formar, já que quando um escultor dá forma a um jarro,

podemos ver naquele momento algo que não existia passando a existir. Mas o mesmo

também ocorre na literatura: quando um poema está se fazendo, o poeta está em busca da

forma e do ritmo, já que o conteúdo muitas vezes está dentro da própria forma. Walter

Benjamin postulava em seu livro Conceito de crítica de arte no romantismo alemão56 que

a arte é reflexão que se dá através da forma. A reflexão não é uma atitude intencional do

autor, ela está implícita no ato de criação, tal qual ocorre nesse poema de José Paulo Paes:

Paraíso Se esta rua fosse minha, eu mandava ladrilhar, não para automóvel matar gente, mas para criança brincar.

Se esta mata fosse minha, eu não deixava derrubar. Se cortarem todas as árvores, onde é que os pássaros vão morar?

Se este rio fosse meu, eu não deixava poluir. Joguem esgotos noutra parte, que os peixes moram aqui. Se este mundo fosse meu, eu fazia tantas mudanças que ele seria um paraíso de bichos, plantas e crianças.

(PAES, 1990)

56 BENJAMIN, Walter. Conceito de crítica de arte no romantismo alemão. São Paulo: Iluminuras p.71.

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Em forma da canção de roda, o poeta trata de uma questão importante como o meio

ambiente, demonstrando uma preocupação com o mundo exterior, com o cotidiano. Pode-se

observar o uso da intertextualidade, isto é, o poeta cria fazendo relação com o verso da

canção se essa rua fosse minha..., repetindo o mesmo verso com algumas modificações: se

esta mata, se este rio, se este mundo. Ao uso do paralelismo, que é essa figura de

construção dominante, usada para criar uma correspondência entre as estruturas frasais do

poema e da canção de roda, acrescenta-se para evidenciar a intertextualidade, a construção

verbal utilizada: o subjuntivo associado ao pretérito imperfeito do indicativo, com valor de

futuro de pretérito, de uso comum na língua falada. Ele constrói o poema com uma

linguagem de alto grau de acessibilidade para atrair o leitor. Se o assunto tivesse sido

tratado de outra maneira, o poema poderia parecer uma lição de moral. Ao contrário,

José Paulo Paes fez um poema crítico, mas não com uma crítica explícita, a crítica está

dentro da própria brincadeira, dentro da forma que ele utilizou para criar.

Ao analisar a forma de um poema, notamos a adequação que se dá junto ao ritmo e

ao conteúdo, como nesse outro poema de José Paulo Paes:

Vida de sapo O sapo cai num buraco e sai. Mas noutro buraco cai. O sapo cai num buraco e sai. Mas noutro buraco cai.

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É um buraco a vida de sapo. A vida de sapo é um buraco. Buraco pra lá Buraco pra cá Tanto buraco enche o sapo.

(PAES, 1984)

De tão musical que é a linguagem, devido ao uso de aliterações e assonâncias, das

rimas externas /sai/ e /cai/ e da repetição da palavra “buraco”, o poema poderia ser

transformado em letra de música. A forma utilizada reforça a idéia da queda do sapo em

cada mudança de verso. Como se o sapo a cada verso realmente caísse em outro buraco e

conseguisse sair noutro verso. Isso nos faz lembrar o próprio trabalho do poeta com a

sonoridade, a forma, a linguagem e as imagens de um poema. Ao trabalhar com todos os

elementos simultaneamente, o poeta muitas vezes “cai num buraco”, isto é, encontra

dificuldades para seguir em frente, sente-se bloqueado. Mas isso não o impede de encontrar

novas saídas e conseqüentemente novas quedas, comparando-se a trajetória do sapo ao

trabalho do poeta.

O poema Vida de sapo tem um movimento cíclico, causado pelo procedimento

estrutural utilizado, o paralelismo, que através da repetição da estrutura dominante: “o sapo

cai/ num buraco/e sai”, dá um efeito de circularidade. Outro recurso utilizado é o quiasmo,

estrutura sintática em que dois segmentos de frase têm palavras repetidas em ordem

inversa: “É um buraco/ a vida de sapo/ A vida de sapo/é um buraco.” O poema finaliza com

uma paronomásia, figura de retórica que consiste em aproximar palavras cujo som é

semelhante, mas cujo sentido é diferente: “enche o sapo”, eufemismo da expressão “enche

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o saco”, registro popular que aparece a partir do modernismo. Se continuarmos a enxergar o

poema como um metapoema, esse final poderia metaforicamente significar que os buracos

(isto é, as faltas, o vazio, a incompletude, com que tanto o poeta trabalha), enchem o sapo

(dão sentido ao poema e consequentemente a existência do poeta.)

Todos os recursos utilizados por Paes a partir desse livro, que foi o seu primeiro, não

são recursos simples. Outro recurso ligado à forma que aparece nesse mesmo livro, e que

caracteriza o trabalho de José Paulo Paes na poesia para crianças é o de criar enigmas:

Adivinha dos peixes Quem tem cama no mar? O camarão. Quem é sardenta?Adivinha. A sardinha. Quem não pega o robalo? Quem roubá-lo. Quem é o barão do mar? Só tubarão. Gosta a lagosta do lago? Ela gosta. Quantos pés cada pescada tem? Hem? Quem pesca alegria? O pescador? Quem pôs o polvo em polvorosa? A Rosa.

(PAES, 1984)

Em forma de adivinha aliada ao chiste, Paes brinca com as palavras como se

propusesse um enigma lúdico, como se voltasse a ser criança e falasse de igual para igual

com elas. Dentro de cada palavra o poeta mostra ao leitor como é possível encontrar novas

palavras. Para isso, ele faz associações entre palavras semelhantes no som, mas diferentes

no sentido, através da figura de retórica, que já nos referimos em momento anterior,

chamada paranomásia. Ao iniciar cada verso com uma pergunta, um desafio, um mistério a

ser revelado, o poema seduz o leitor pelo ritmo aliado à forma, mesmo antes do leitor se

interessar pelo conteúdo, que irá seduzi-lo por completo em momento posterior.

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O título do livro É isso ali (1984), já deixa clara a vontade de tirar as palavras de seus

lugares esperados, para colocá-las ali, em outro lugar. O poeta reencontra a

espontaneidade das palavras, a possibilidade de múltiplos caminhos que cada palavra

apresenta, e segue solitário por caminhos nunca antes percorridos. Em cada caminho o

poeta encontra um buraco diferente a ser ultrapassado com um salto no escuro. Pode ser

que atrás da sonoridade, da forma, da linguagem ou da imagem esteja um mundo

totalmente novo a ser descortinado.

Hugo Friedrich, em seu livro Estrutura da lírica moderna57 (1956), esclareceu que

a poesia romântica sempre esteve associada à sonoridade, com ênfase nos paralelismos

rítmicos e nas figuras sonoras formadas por vogais e consoantes combinadas, sem,

entretanto abandonar o conteúdo, realçado através da dominância sonora. O autor nos relata

que a partir do romantismo europeu, o conteúdo assume lugar secundário, dando-se

preferência às forças sonoras e não mais as significações essenciais das palavras. Ao

analisar o trabalho de Edgar Allan Poe A filosofia da composição58 (1846), Hugo Friedrich

destaca a importância da forma e dos materiais sonoros, antes mesmo do significado das

palavras:

A inovação de Poe consiste em inverter a ordem dos atos poéticos, que vinha sendo aceita pelas poéticas anteriores. O que parece ser o resultado, ou seja, a ‘forma’, é a origem do poema; o que parece ser a origem, ou seja, o ‘significado’, é o resultado. No início do ato poético, há uma ´nota´ insistente e prévia à linguagem dotada de significado: algo como uma entonação sem forma. Para dar-lhe uma forma, o autor procura aqueles materiais sonoros da língua que mais se aproximam dessa nota.. Os sons se unem formando palavras e estas se agrupam finalmente formando motivos com os quais, em último termo, se elabora um contexto com sentido completo.

(FRIEDRICH, 1991, p.51)

57 FRIEDRICH, Hugo. Estrutura da lírica moderna. São Paulo: Duas Cidades 1991, p. 50. 58 POE, Edgar Allan. A filosofia da composição. In: Poemas e ensaios. São Paulo: Globo 1985.

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O texto de Edgar Allan Poe A filosofia da composição (1846) ao qual Hugo

Friedrich se refere, é de extrema importância para a poesia contemporânea, devido às

inovações apresentadas por Poe, como: a busca da originalidade não pela inspiração, mas

sim pelo trabalho, já que em seu texto Poe nos esclarece passo a passo o processo de

construção de seu poema O Corvo. Dentre as técnicas utilizadas pelo poeta para tornar a

obra “apreciável por todos”, está a de começar o poema pelo fim. Poderíamos então

concluir que a partir da forma é que se faz o poema, diferente do que a poética da época de

Poe seguia: uma confissão para se chegar até a forma. Porém, Poe utiliza a palavra tom

como ponto de partida da criação poética. O impulso que leva à criação, de acordo com

Poe, não é de ordem emocional, mas sim um impulso de linguagem que poderia ser uma

palavra, um refrão ou apenas um tom, uma nota pré-linguística. Por isso, em seu poema O

Corvo dá-se o encanto intuitivo do leitor com o som através de rimas e aliterações. Mas

para chegar a um tom melancólico, o poeta teve que usar também uma precisão matemática

até escolher a palavra nevermore que simbolizasse uma melancolia predeterminada no

poema. O poema então causa no leitor um impacto, sem precisar ser uma lamentação.

Outro artifício usado pelo poeta para dar sonoridade ao seu poema foi a repetição contínua

da palavra nevermore e a repetição de estrofes. O autor deixa claro na Filosofia da

composição (1846), que “o prazer somente se extrai pelo sentido de identidade, de

repetição” (POE, 1985, p.914). A repetição de uma melancolia estranha, por vezes irritante,

torna o corvo um símbolo da melancolia bicando a alma. O poeta, através de um ritmo

caracterizado por um movimento de assombração, apresenta uma situação sufocante, uma

tristeza que envolve o leitor.

José Paulo Paes reconheceu Edgar Allan Poe e principalmente o poema O Corvo,

como uma de suas influências literárias:

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Numa de suas férias, seu Antídio comprou a coleção completa de Machado de Assis e me emprestou vários volumes. No das Poesias encontrei a bela versão que Machado fizera de ‘ o corvo’, de Edgar Allan Poe. Como eu já conhecia os contos de detetive e de terror de Poe, através de uma tradução incluída na série de clássicos para a juventude, apressei-me a ler o poema. E me encantei com a figura fatídica do corvo a repetir seu ‘ nunca mais! ‘, cada vez com um novo significado, para marcar o desconsolo pela perda da mulher amada, a desolação da viuvez e a irreparabilidade da morte. Sentimentos que o ritmo ora mais rápido ora mais lento dos verso; que a sonoridade lutuosa de certas palavras; que o poder encantatório do fatídico refrão iam progressivamente infundindo na alma do leitor.

(PAES, 1996, p.27)

Não há como negar que Paes assimilou os ensinamentos de Poe em relação à

importância da linguagem, ela sendo mais do que mero conteúdo. O poeta tem de ter a

capacidade de abstrair para poder captar o que está além da linguagem: metáforas, figuras,

sons... A força da linguagem não é só a de comunicação através das palavras, por isso ela

não desempenha um papel secundário em relação aos outros elementos: sonoridade, forma

e imagem. Ela trabalha lado a lado com eles. Na criação o poeta lida com o que é difícil,

com o que não tem respostas. Os poetas desenvolvem através da linguagem escrita, novas

maneiras de ver aquilo que não cabe somente em conceitos. O poema se afirma na

inconstância, no desprendimento da verdade, de uma certeza última. A poesia vai contra o

pensamento objetivante da ciência. Daí talvez todo o encanto da criança com a poesia, em

razão de seu impulso anti-sistemático. A criança tem a palavra móvel, ela brinca com a

linguagem tal como a poesia faz. Já o adulto, ao contrário, tem um pensamento mais

codificado com palavras fixas. Ao mesmo tempo em que brinca com a maleabilidade das

palavras, a poesia de José Paulo Paes apresenta uma precisão característica do estilo

conciso. Essa mágica de juntar maleabilidade à precisão só pode ser conseguida através de

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um elaborado trabalho com a linguagem escrita. Essa é mais uma peça desse quebra-cabeça

poético que iremos nos deter agora, já que a linguagem caminha de mãos dadas com a

forma e com a sonoridade, elementos previamente analisados.

Conforme Terry Eagleton nos relata em Teoria da Literatura Uma Introdução59

(1983), é a partir do movimento literário do modernismo que o interesse da crítica volta-se

mais para o texto em si, com o nascimento da crítica estruturalista e pós-estruturalista. A

crítica literária do século XIX abordava a obra literária como um todo, submetendo-a a

critérios muito mais moralistas que estéticos, quando buscava nela a expressão da vida e a

matriz criativa do autor através da corrente sociológica, psicológica e da crítica biográfica.

A crítica moderna que aparece por volta da 1a Grande Guerra, volta-se mais para o estudo

do texto. Entre 1914 e 1915 estudantes da Universidade de Moscou fundaram o Círculo

Lingüístico de Moscou com a finalidade de realizar e estimular estudos sobre lingüística e

poética. A obra passa a ser tratada como um jogo de construção e não apenas como a

expressão direta dos sentimentos pessoais do autor. A forma passa a ser identificada com a

unidade da obra, com o seu todo representativo. É o nascimento do Formalismo russo, que

teve como principais nomes: Roman Jakobson, Boris Eikhenbaun, Wladimir Propp, entre

outros... O Formalismo russo buscava estudar a camada sonora da linguagem, o metro, a

rima, o ritmo, a melodia frasal. A forma é considerada a integração de diversos elementos.

O Círculo Lingüístico de Praga, no qual Roman Jakobson, Nicolai Trombetzkoy e

Iuri Tynianoy vieram a ter papéis de destaque, juntamente com os tchecos Iara Mukarosky,

Felix Vodicka e René Wellek, dá prosseguimento aos estudos formalistas, mas o enfoque

deixa de ser a forma e passa a ser a estrutura do texto literário, dando origem ao chamado

Estruturalismo tcheco. O Estruturalismo tcheco exigia como pré-requisito que o objeto de

59 EAGLETON, Terry. Teoria da Literatura Uma Introdução. São Paulo: Martins Fontes, 2003 p.192.

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estudo pudesse ser concebido como um sistema, e a tarefa fundamental era descobrir suas

leis intrínsecas, através da montagem e desmontagem de um objeto. Essa idéia de

considerar a língua como um sistema tem origem nos ensinamentos de Ferdinand Saussure:

... assim como o jogo de xadrez está todo inteiro na combinação de diferentes peças, assim também a língua tem o caráter de um sistema baseado completamente na oposição de suas unidades concretas. Não podemos dispensar-nos de conhecê-las, nem dar um passo sem recorrer a elas; e, no entanto, sua delimitação é um problema tão delicado que nos perguntamos se elas, as unidades, existem de fato.

(SAUSSURE, 2006, p.124)

Para Saussure era difícil determinar as unidades, visto que a palavra é para ele uma

“unidade que se impõe ao espírito, algo central do mecanismo da língua.” Porém, como já

mencionamos anteriormente, um signo se afirma, ganha valor, através dos outros. Ao

mesmo tempo em que tentamos conhecer uma unidade, não podemos separá-la de tudo o

que a cerca, pois só assim chegaremos ao seu exato valor. No caso da poesia, temos que

observar a linguagem dentro de cada verso, como as palavras interagem entre si,

considerando-se a harmonia sonora juntamente com a forma, e com as imagens. A mesma

palavra pode ter significado diferente, dependendo do verso em que se encontre, isto é,

dependendo, das outras palavras e até mesmo dos silêncios, que podem também alterar toda

a idéia, dando um sentido mais enigmático ou talvez enfático, para a palavra. A

contribuição do Estruturalismo tcheco seria, portanto, a de se estudar os elementos

simultaneamente com os outros, como nesse poema de José Paulo Paes:

Cemitério 1. Aqui jaz um leão

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chamado Augusto. Deu um urro tão forte, mas um urro tão forte, que morreu de susto. 2. Aqui jaz uma pulga chamada Cida. Desgostosa da vida, tomou inseticida: era uma pulga suiCida. 3. Aqui jaz um morcego que morreu de amor por outro morcego. Desse amor arrenego: amor cego, o de morcego! 4. Neste túmulo vazio jaz um bicho sem nome. Bicho mais impróprio! Tinha tanta fome que comeu-se a si próprio.

(PAES, 1990)

Os versos curtos de José Paulo Paes apresentam uma grande brincadeira de modo

lúdico e inovador. O poeta demonstra palavras que podem ser tiradas de outras, como por

exemplo: Cida de inseticida; cego de morcego ou ainda pequenas alterações que dão

origem a novas palavras como em: Augusto-susto. Além disso, a brincadeira se deve muito

ao conteúdo repleto de non-sense dos versos: “o leão que morreu de susto, a pulga suicida,

o amor cego de morcego, bicho que de tão impróprio comeu-se a si próprio.” O poeta

rompe com o esperado e constrói através da linguagem imagens irreverentes. Mas como

pode o poeta, romper com o tradicional sentido das palavras e encontrar novas moradas

para elas? Observa-se nesse poema como a linguagem atua simultaneamente com a forma.

A estrutura paralelística das quatro estrofes marcadas pelos números (1 a 4) representa a

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divisão do espaço que existe entre os túmulos. A expressão “Aqui jaz” no início de cada

estrofe, aparece para nos dar essa confirmação. A forma escolhida para apresentar o poema,

organizando-o e dividindo-o em túmulos, é tão importante quanto o próprio conteúdo, que

não tem por fim tratar do tema da morte, mas sim, brincar com os sentidos das palavras,

pois se a morte é algo previsível e esperado, como nos indicam os túmulos (as estrofes

separadas por números), sempre nos pega de surpresa e parece uma piada (como as

palavras dentro de cada estrofe). Em última análise, o poema insere a brincadeira dentro da

seriedade, e o que seria a vida sem a brincadeira, sem o lado lúdico das crianças e das artes?

A forma do poema em si é, então, também um modo irônico de atuar junto ao jogo lúdico

das palavras. Emil Staiger estabelece essa relação entre a forma e o conteúdo ao comparar a

poesia lírica com a poesia épica, em Conceitos fundamentais da poética (1997):

... Justamente essa oposição entre a forma e o que se vai formar inexiste na criação lírica. No estilo épico, evidencia-se o fato, toda vez que se derrama dentro de uma mesma ‘ forma’, o hexâmetro, inalterável apesar de todas as mudanças temáticas, os mais diversos conceitos- dor e prazer, tilintar de armas e regresso do herói ao lar. Na criação lírica, ao contrário, metro,rima e ritmo surgem em uníssono com as frases. Não se distinguem entre si, e assim não existe forma aqui e conteúdo ali.

(STAIGER, 1997, p.26)

Ao comparar em seu livro os três gêneros poéticos: lírico, épico e dramático, Emil

Staiger destaca que a poesia lírica não precisa de conexões lógicas, como também

consideramos que não precisa a poesia para crianças, por ser também ela extremamente

lírica. No poema Cemitério só há sentidos para o non-sense. O poema não discute a morte,

apenas utiliza o tema para tratar de forma lúdica e irônica, o fim de quatro bichos,

mostrando como se pode reverter o sentido lógico das palavras, e assim chegar à

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originalidade poética. É preciso ser leve e profundo como só as crianças sabem ser, pois

nada pior do que um poema bobinho, não convincente, feito para um ser que o adulto

muitas vezes julga como inferior, de compreensão reduzida. Se a criança não tem domínio

do vocabulário adulto, tem em contrapartida sensibilidade para reconhecer o que é falso.

Por isso, deve-se buscar a leveza, entrar no mundo fantástico da criança, brincar com as

palavras com toda a responsabilidade que uma fantasia exige. Isso nos remete à terceira

característica do jogo relatada por Huizinga- a seriedade:

Em nossa maneira de pensar, o jogo é diametralmente oposto à seriedade. A primeira vista, esta oposição parece tão irredutível a outras categorias como o próprio conceito de jogo. Todavia, caso o examinemos mais de perto, verificaremos que o contraste entre jogo e seriedade não é decisivo nem imutável. É lícito dizer que o jogo é a não-seriedade, mas esta afirmação, além do fato de nada nos dizer quanto às características positivas do jogo, é extremamente fácil de refutar. Caso pretendamos passar de 'o jogo' é a não seriedade para 'o jogo não é sério', imediatamente o contraste torna-se impossível, pois certas formas de jogo podem ser extraordinariamente sérias...

(HUIZINGA, 2004, p.8)

Entrar no mundo fantástico é estabelecer uma nova relação com o real, é novamente

voltar a ser criança e não apenas fingir ser. Tudo que é falso é facilmente detectável pelo

olhar infantil. A criança identifica um verdadeiro poeta, quando esse interage com ela,

quando a criança se esquece que está lendo um poeta e tem certeza de que está lendo a si

mesma. A seriedade então está associada à outra característica chamada por Huizinga de

fingimento. O escritor deve saber viver a brincadeira da escrita com toda a verdade,

transportar-se como uma criança que brinca, para um tempo e um espaço próprio. Como

bem disse Fernando Pessoa: “o poeta é um fingidor”( PESSOA, 2001, p.40) e esse fingir

tem de ser tão verdadeiro que até mesmo ele chegue a acreditar naquilo que está dizendo.

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Muitas vezes o escritor traz suas próprias lembranças para o papel, mas idéias também são

despertadas pela observação e pela leitura. Não é preciso ter perdido um passarinho para

saber escrever sobre o assunto, basta mergulhar no real da fantasia e buscar toda a

sensibilidade para escrever sobre algo não vivido. O mais importante não é viver o

acontecimento na realidade, mas ser capaz de vivê-lo na fantasia. O que distingue o

bom escritor do mal é a capacidade que o bom escritor tem de ser outros e de ser ele

mesmo, de fazer com que suas emoções deixem de ser só suas e passem a ser do leitor

também. Nesse momento o poeta tem de deixar de lado a inspiração e preocupar-se mais

com a obra em si, pois um discurso não pode ser "naturalmente" poesia, já que esta é uma

manipulação consciente da linguagem. A visão da "desorganização" como origem e força

lírica, nos levaria a pensar que a fala dos "loucos" também seria "naturalmente" poesia.

Ora, isso é uma mistificação da infância e da loucura. A poesia é um fingimento. Ali, a

organização finge a desorganização. A criança não sabe que está além (aquém) dos

códigos. No caso do poeta, é importante não ficar limitado dentro de seu mundo

emocional, mas sim fazer com que suas emoções encontrem emoções alheias, que fluam

como as águas de um rio ao encontro das águas do mar. E isso só pode ser feito através da

linguagem.

Segundo Terry Eagleton, a partir do modernismo a linguagem se torna uma

preocupação obsessiva dos intelectuais como uma alternativa para os problemas sociais,

porque a sociedade industrial havia reduzido a linguagem à esfera da ciência, do comércio,

da publicidade e da burocracia. Era preciso: “renunciar, sombria ou triunfalmente, à idéia

tradicional de que escrevíamos sobre alguma coisa, para alguém, e fazer da própria

linguagem o objeto desejado” (EAGLETON, 2003, p.193). Assim, o Estruturalismo

tcheco concentrou-se no signo, mantendo a história e o referente à distância. Eagleton

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destaca que o importante era escrever sem uma finalidade específica, sobre um tópico

específico, mas sim, “escrever como um fim e uma paixão em si mesmo.” (idem, ibidem).

Roman Jakobson estabeleceu a ligação principal entre o formalismo Russo e o

estruturalismo tcheco, contribuindo particularmente para a poética. No ensaio Lingüística e

Poética (1960) 60, traduzido por Izidoro Blikstein e José Paulo Paes, Roman Jakobson (com

base em prévias classificações feitas pelo Círculo Lingüístico de Praga, Karl Buhler e

Mukarosky) considera que a linguagem tem seis funções primordiais: emotiva ou

expressiva (orientação para o remetente), poética (orientação para a mensagem), função

referencial (orientação para o contexto), conatativa (orientação para o destinatário), fática

(orientação para o meio de comunicação utilizado, o “canal”) e a metalingüística

(orientação para o código utilizado). Destacamos a importância da função poética que, para

Jakobson, é a função dominante da linguagem, pois focaliza na própria mensagem e não no

que é dito, no remetente ou na finalidade. As palavras são colocadas em primeiro plano,

reunidas não pelos pensamentos, mas sim, pelos padrões de semelhança, oposição,

paralelismo..., criados pelo som, significado, ritmo e conotações.

O envolvimento entre sonoridade, forma, linguagem e imagem é tão intenso, que o

poeta lírico, tal qual o poeta que escreve para crianças, deve deixar as palavras soltas,

sozinhas nos versos, à procura de seus pares na escuridão. Segundo Staiger, deve o poeta

procurar “a completa harmonia entre o tom e a mensagem.” (STAIGER, 1997, p.27). Nesse

baile não há um maestro, há apenas a música conduzindo os passos, o ritmo interno de cada

palavra procurando se ajustar ao ritmo do poema. Às vezes uma palavra encontra em

outra mascarada um grande amor, outras, palavras aparentemente afins se afastam. Assim

como no amor, nada explica a lei de atração que uma palavra pode ter num determinado

60 JAKOBSON, Roman. In: Lingüística e Comunicação. São Paulo: Cultrix, 2003 p. 129.

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momento por outra, mas só uma coisa explica o fato de o poeta se anular, se tornando um

sujeito oculto nesse baile que ele mesmo inventou: seu amor por todas as palavras.

Essa é uma questão fundamental nos dias de hoje, quando se produzem poemas

pensando apenas na função didática, herança ainda dos tempos em que se achava que a

poesia deveria ter o papel de educar, o intuito de transmitir valores morais a serem seguidos

pelas crianças. Porém, a principal função social que a poesia deve ter sempre é a de

proporcionar prazer. Assim acreditava também T.S. Eliot quando escreveu o ensaio A

Função Social da Poesia:

Agora, se devemos encontrar a essencial função social da poesia, temos de olhar antes para suas óbvias funções. Penso que a primeira de que podemos ter certeza é a de que a poesia deve proporcionar prazer. Se você perguntar que tipo de prazer, só posso então responder que é o tipo de prazer que a poesia proporciona: simplesmente porque qualquer outra resposta nos levaria a divagações sobre estética e a questão geral da natureza da arte. Além de qualquer intenção específica que possa ter a poesia, tais como as que já exemplifiquei em seus vários tipos, há sempre a comunicação de alguma nova experiência, ou uma inédita compreensão do familiar, ou a expressão de algo que vivenciamos mas para o qual não temos palavras, o que engrandece nossa consciência ou refina nossa sensibilidade.

(ELIOT, 1971)

É claro que a poesia que leva ao prazer é a poesia artística, pois é a que trabalha

com a linguagem não apenas em sua função primária, a de comunicar, mas principalmente

no sentido da função poética que transforma, tira as palavras de seus contextos e conexões

habituais para que se tornem únicas. O prazer ao qual T.S.Eliot se refere não é um prazer

imediato e descartável, mas o prazer de descobrir na linguagem, outras linguagens com as

quais ela interage que podem ser: linguagens sonoras (ligadas ao ritmo) ou visuais (ligadas

à forma e a imagem). Isso faz com que a linguagem não seja um sistema tão estável quanto

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os Estruturalistas tchecos a consideravam. Conforme nos relata Terry Eagleton, com o

tempo a linguagem deixou de ser avaliada por uma estrutura claramente demarcada e

passou a ser considerada como uma “teia que se estende sem limite” (EAGLETON, 2003,

p.178), porque quando se escreve as significações fogem do controle. Essa é a origem do

pensamento da corrente pós-estruturalista, que tem como expoentes, Jacques Derrida e Paul

de Man. Eagleton ainda nos esclarece que, enquanto o Estruturalismo se preocupou em

separar o signo do referente, mantendo a história e o referente à distância, o Pós-

Estruturalismo foi além e separou o significante do significado, subvertendo as estruturas

da linguagem. A desconstrução possibilitou aos pós-estruturalistas identificar o que existe

de autêntico e preciso na expressão do pensamento feita através de uma linguagem da qual

se possam pressentir indeterminações, ambigüidades e metáforas. É nesse jogo que se

constitui toda poesia. O desconstrucionismo parte do pressuposto de que os textos nem

sempre conseguem expressar sua verdadeira significação. Assim, os aborda, orientando as

pesquisas para um paralelo entre sentido literal e figurado (denotativo/ conotativo), para os

vários significados possíveis de um mesmo termo, e principalmente, para as construções

metafóricas. É impossível desconsiderar que isso faça parte da poesia, pois é a área em que

essa ambigüidade mais se evidencia, apresentando um significado literal e outro figurativo.

Contudo, há na literatura infantil brasileira contemporânea, poemas que ainda se

preocupam apenas com o sentido literal, poemas moralizantes, cheios de regras a serem

seguidas. A seguir veremos um exemplo desse tipo de poema que, infelizmente, até hoje é

publicado, aceito e muitas vezes até procurado pelo mercado editorial.

Minha escola Gosto muito da escola,

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de todos os professores, do jardim com suas flores, do campo de jogar bola. Minha sala é bonitinha, cada qual tem seu lugar, está sempre arrumadinha para a missão de educar. É nela que aprendo a ler, prestando muita atenção; e sei também escrever e fazer qualquer lição. Tenho história e geografia, português e matemática , gosto muito de informática , química, eu vou ter um dia. Amizade traz vantagem , pois mostra que o respeito e a boa camaradagem tornam o mundo perfeito. Do País sou o futuro, sou o seu fruto mais puro, por isso devo estudar para minha Terra honrar.

(TOGEIRO, 2002, p.27)

O poema da autoria de Angela Togeiro, retirado do livro Trem Mineiro, por incrível

que pareça, foi publicado em 2002. O livro todo apresenta poemas desse tipo: versos

rimados, sem surpresa nenhuma, que se propõem a educar a criança, mas com certeza

acabam por lhe afastar completamente da poesia. Podemos perceber que a autora pretende

transmitir a idéia de um mundo perfeito, um mundo onde tudo funciona, desde a sala

arrumadinha, o aluno prestando atenção até o fruto mais puro que deve estudar. É

impossível se ter uma qualidade artística em poemas como esse, em que não se trabalha

com os diversos sentidos da linguagem, apenas com seu sentido primário, de transmitir

informação com o intuito de contribuir para a educação moral das crianças. A preocupação

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com o ritmo e a forma do poema é muito simplória, apenas de ordem estrutural: quartetos

em ritmo de redondilha maior (versos de sete sílabas) com rimas previsíveis. Se

compararmos esse poema com o poema Cemitério, analisado anteriormente, poderíamos

supor que os quartetos aqui são os túmulos das palavras, pois essas, ao contrário do poema

de Paes, permanecem mortas, sem nenhuma expectativa de surpresa, algo que desperte o

leitor para o prazer da leitura. O paraíso que a autora pretende apresentar acaba se

transformando no cemitério, em oposição ao poema de Paes, em que o poeta consegue

transformar o cemitério numa festa de palavras.

A escola da poeta Ângela Togeiro é bem diferente da escola de José Paulo Paes:

Escola Escola é o lugar aonde a gente vai quando não está de férias. A chefe da escola é a diretora. A diretora manda na professora. A professora manda na gente . A gente não manda em ninguém. Só quando manda alguém plantar batata. Além de fazer lição na escola, a gente tem de fazer lição de casa. A professora leva nossa lição de casa para a casa dela e corrige. Se agente não errasse, a professora não precisava levar lição para casa. Por isso é que a gente erra. Embora não seja piano nem banco, a professora

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também dá notas. Quem não tem notas boas, não passa de ano.

(Será que fica sempre com a mesma idade?)

(PAES, 2001, p.10-11)

Enquanto Ângela Togeiro reflete os ideais adultos, Paes procura o ponto de vista

infantil, se inclui na infância fazendo uso da expressão “a gente” e outras expressões

tipicamente relacionadas ao universo infantil: plantar batata, fazer lição de casa, passar de

ano... Os dois poemas têm como título “escola”, porém, enquanto no primeiro a escola tem

um papel fundamental de formar adultos bem comportados, no poema de Paes ela é apenas

o lugar que se vai quando não se está de férias, o lugar onde o erro é permitido e

reconhecido como parte do aprendizado. A criança desde o primeiro verso se sentirá atraída

pelo poema, pois compartilha a fascinação pelas férias e terminará a leitura também

identificada com a pergunta: “será que fica sempre com a mesma idade?” Qual a criança

que nunca sonhou em ser Peter Pan, nunca crescer, apenas brincar e ser feliz para sempre?

Se o crescimento é difícil porque implica transformação e perda, mais árduo é quando a

criança percebe que, para crescer, terá de abrir mão de sua liberdade, para se inserir dentro

de uma sociedade repleta de conceitos pré-determinados. José Paulo Paes escreveu sobre

essa poesia, que tem a finalidade apenas educacional em seu livro de ensaios Gregos e

Baianos:

O pior no meu entender está na poesia brasileira, tanto quanto a nossa literatura não imediatamente comercial, ter sido convertida, no empenho de fazê-la alcançar um público mais amplo do que o cada vez mais arredio público freqüentador de livrarias, em remédio chato de tomar. Indicados pelos professores como leitura obrigatória a alunos sem maior curiosidade intelectual, ciosos mais de obter um diploma

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universitário, qualquer que seja, do que aprimorar a sua sensibilidade ou o seu repertório de conhecimentos, esses livros, essas antologias ministradas sob receita pedagógica e engolidos a contragosto traem a finalidade precípua da literatura, que é a de deleitar. Dou a este verbo uma etimologia poética, pouco me importando saber se é falsa, possível ou verdadeira. Vejo-o nucleado na palavra “leite”, o alimento primeiro e essencial que reconcilia o nascituro com o mundo no qual se vê repentinamente atirado, sem consulta prévia, e que o faz imaginá-lo, como nos poemas de William Blake, antes o paraíso dos prazeres da idade da inocência que o prosaico reino de deveres da idade da experiência.

(PAES, 1985, p.294)

A palavra é o leite que nutre o poeta e o leitor do poema. É através dela que ambos

irão encontrar a principal finalidade de todo e qualquer poema: o prazer, tanto para quem

escreve, como para aquele que lê. Essa busca está em sentido contrário aos poemas criados

com a finalidade apenas de educar a criança. As palavras aliadas ao som, à forma e à

imagem conduzem o poeta e não podem ser manipuladas por ele para atender a uma

finalidade prévia e exterior à própria poesia. Essa é uma preocupação constante nos

depoimentos de José Paulo Paes a cerca da poesia infantil: “O importante é fazer do contato

com a poesia antes fonte de prazer gratuito que de obrigações escolares.” (idem, 1998, p.5).

O poeta destaca a importância de chamar a atenção da criança para a fruição lúdica da

forma e do sentido do poema, e não deixar a escola usar a poesia como simples auxiliar no

ensino de noções de gramática, sem considerar os valores estéticos da escrita.

Cabe lembrar ainda que, apesar das palavras terem uma grande importância para a

construção de um poema, a poesia manifesta algo do indizível. Um poema parece nunca

acabar no seu fim, o fim é apenas o início, uma porta de entrada para o desconhecido, que

caminha dentro de nós. Por isso, a importância do poeta trabalhar o espaço, o vazio, os

silêncios do branco do papel, os espaços em que a linguagem se desarticula. Daí a

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construção do poema se dar na linguagem e também na sua ausência. Ambos são elementos

que aparecem visivelmente na forma como nesse poema de José Paulo Paes:

Dicionário Aulas: período de interrupção das férias. Berro: o som produzido pelo martelo quando bate no dedo da gente. Caveira: a cara da gente quando a gente não for mais gente. Dedo: parte do corpo que não deve ter muita intimidade com o nariz. Excelente: lente muito boa. Forro: o lado de fora do lado de dentro Girafa: bicho que, quando tem dor de garganta é um deus-nos-acuda. Hoje: o ontem de amanhã ou o amanhã de ontem. (...)

(PAES, 1990)

No “Dicionário”, assim como em todos os outros poemas do livro Poemas para

brincar (1990), Paes abandona as rimas, a preocupação com a sonoridade, para trabalhar

com o verso livre, explorando determinados recursos como aquele utilizado no poema

Escola: a inversão irônica de dois tempos distintos - o período de aulas e o de férias. O

poema todo se baseia nesse jogo de inversão, de paradoxos. O poeta apresenta definições

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curtas e engraçadas no branco da página de maneira totalmente desalinhada, como se

quisesse demonstrar que a criança, assim como o poeta, vê o mundo e suas definições não

do modo sistemático que o adulto normalmente vê, mas sim de modo sensível, sabendo

ouvir o canto que vem dos silêncios, o canto que leva ao prazer e que pode virar tudo ao

avesso. Paes não está interessado em educar as crianças, em dar conselhos. Segundo ele, a

poesia está além de um aspecto meramente educacional:

Não tenho nenhuma definição de bolso. Aliás, sou cético quanto as definições de bolso. Mas poderia dizer que, ao longo de minha experiência pessoal deparei-me com três concepções de poesia.Os professores do curso primário me incutiram a idéia de que ela era um tipo especial de linguagem rimada, metrificada e enfeitada, para se declamada, mão no peito, durante as festas escolares.Mas os versos metafísicos de Augusto dos Anjos, com que travei contacto aos 15 ou 16 anos, abalaram essa idéia primeira ao convencer-me, pela força do exemplo, de que a poesia é a linguagem de descoberta do mundo e das perplexidades que ele podia suscitar em nós. Um pouco mais tarde, com os poemas desafetados que estilizavam a linguagem coloquial, Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade me ensinaram que a poesia é a redescoberta da novidade perene da vida nas pequenas/grandes coisas do dia a dia.Desde então , em maior ou menor grau, venho tentando ser fiel, em quanto escrevo, a essas duas últimas concepções.Meu ideal poético é a desafetação, a concisão e a intensidade postas todas a serviço da minha própria visão de mundo. (PAES, 2003)

Chamamos atenção para a primeira aproximação que Paes teve com a poesia: a

escola, que conforme sua declaração lhe incutiu uma idéia errada sobre a poesia como uma

linguagem ritmada, metrificada e enfeitada. Infelizmente muitas escolas ainda tratam a

poesia da mesma maneira, sem estimular a sensibilidade da criança. Hoje observamos que

muito se discute nas salas de aula sobre conceitos já prontos, com a pretensão até de saber

as intenções do poeta ao fazer determinado poema. O fato é que não deveríamos considerar

a linguagem como um conhecimento a ser dominado, mas sim, como um ponto de partida

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para o que Paes considerou “a redescoberta da novidade perene da vida nas pequenas/

grandes coisas do dia a dia”. A criança deveria ser estimulada a pensar suas próprias idéias,

a sentir um poema à sua maneira, e não através de quem o escreveu ou através do professor.

Um poema é a porta de entrada para abrir um mundo do qual cada criança tem sua própria

chave.

O poema Dicionário segue até o fim apresentando definições como se fosse um

dicionário, um dicionário lúdico para crianças. Aliás, não é em Poemas para brincar (1990)

a primeira vez que José Paulo Paes utiliza esse recurso de criar um dicionário especial para

a brincadeira com as palavras. Já em seu primeiro livro É isso ali (1984), o poeta também

utilizou a mesma forma no poema chamado Alfabeto. Essa é uma das características mais

marcantes do trabalho de José Paulo Paes na poesia infantil, ele está o tempo todo

resolvendo o processo de significação das palavras. Tal como nas brincadeiras das crianças,

a atribuição de um significado para um significante decorre das associações que o leitor é

capaz de fazer. No poema Alfabeto, Paes define a letra M como:

No M, o caMelo tem suas duas corcovas já no próprio nome. (PAES, 1984)

Note-se que a palavra utilizada para designar o significado de camelo passa a

incorporar a própria forma física e material do animal. Essa é uma maneira de cativar a

atenção da criança para a possibilidade de brincar com as palavras. Só assim, ela será capaz

de se identificar com a poesia e ser cativada por ela. As palavras falam num acúmulo de

sentidos, na mão do poeta ganham vida, movimento. Isso ocorre porque José Paulo Paes

ressalta as características coincidentes do significante e de todo o signo, misturando a forma

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ao conteúdo do poema, recriando a língua. A palavra quando fala não comunica nada. A

linguagem poética fala porque precisa falar, não é um meio que utilizamos quando nos

convém; ela instaura um outro tipo de comunicação.

A poesia pedagógica é uma obra de utilidade, facilmente descartável, que começa

numa finalidade a ela imputada. Se um poema é feito, por exemplo, com a intenção de

mostrar que a criança deve obedecer ao adulto, ele se esgotará aí, nessa mensagem. Já a

poesia artística, ao contrário, é obra de arte em que, esgotadas todas as possibilidades de

utilidade, ainda há sentido de produção. Assim podemos observar nesse poema de José

Paulo Paes:

Ana e o pernilongo 1 Toda semana eu me lembro da Ana Para mim não há semAna sem Ana 2 Havia um pernilongo chamado Lino que tocava violino Mas era tão pequenino o Lino e tocava tão fino o seu violino que nunca ouvi o Lino nem vi o Lino. (PAES, 1990)

O poema retira as palavras de seus usos e sentidos habituais e as remete para outro

âmbito de significação, recolocando-as em versos sonoros e lúdicos para mostrar que é

possível brincar com a linguagem como o mais especial e raro de todos os brinquedos, um

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brinquedo que nunca quebra e a cada dia se torna mais novo, permitindo diferentes tipos de

fantasia. Por isso, Huizinga considera que “a poiesis é uma função lúdica” (HUIZINGA,

2004, p.133). Se quisermos atribuir uma função para a poesia infantil de José Paulo Paes,

talvez essa seja a mais apropriada.

Na primeira estrofe do poema, a estratégia utilizada pelo poeta para demonstrar uma

“suposta” afeição por Ana, foi a de destacar o nome próprio e a preposição sem inseridos

dentro do substantivo semana. Na segunda estrofe, o poeta também retira o nome próprio

Lino de dentro do substantivo violino. Paes fez uso da mesma técnica de explorar

coincidências sonoras entre as palavras, como no poema Cemitério, analisado nesse

capítulo. A identidade entre Lino e o pernilongo se perfaz através do som do violino

comparado ao zumbido do pernilongo. É nesse jogo de palavras que a poesia de José Paulo

Paes permanece nos corações das crianças. Ao lembrar dos poemas de nossa infância,

perceberemos que os que nos marcaram, não foram os poemas educativos, e sim os poemas

lúdicos, cheios de magia e encantamento nas palavras.

Surge nesse momento uma questão relevante de difícil resposta. Se a poesia artística

é esteticamente superior à poesia pedagógica, por que ainda o mercado valoriza tanto esse

tipo de poesia utilitária, descartável, que muitas vezes afasta a criança da poesia,

despertando nela um preconceito, a falsa crença de que toda poesia de fato será sempre

chata, com intuito de passar lições de moral? Não deveria a escola ser a primeira a trabalhar

a poesia de modo mais lúdico, demonstrando para a criança todo o encanto da palavra e do

silêncio? Carlos Drummond de Andrade comenta em sua crônica A Educação Do Ser

Poético :

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A escola enche o menino de matemática, de geografia, de linguagem. A escola não repara em seu ser poético, não o atende em sua capacidade de viver poeticamente o conhecimento do mundo.

O que eu pediria à escola, se não me faltassem luzes

pedagógicas, era considerar a poesia como primeira visão das coisas, e depois como veículo de informação prática e teórica, preservando em cada aluno o fundo mágico, lúdico, intuitivo e criativo, que se identifica basicamente com a sensibilidade poética..

(ANDRADE, 1974)

Não há dúvidas de que esse problema educacional está ligado a questões políticas,

reflexo de uma sociedade incentivada a não pensar, a não questionar, apenas a seguir

valores pré-estabelecidos. Esses valores, claro, vão de encontro à poesia artística, em que a

criança irá lidar com a falta de respostas, com enigmas, com a própria vida.

Portanto, a função social da poesia infantil é fazer a criança entrar em contato com

seus sentimentos, com o prazer do jogo das palavras, incentivando - as a sentir as emoções

através da linguagem. Enquanto a poesia pedagógica lida apenas com o pensamento, com

valores, a poesia artística lida com emoções e sentimentos, não apenas com ideais adultos

sobre o comportamento infantil. Por fim, a função social da poesia para crianças seria

despertar nelas o prazer de sentir na sua língua, valorizando com isso o próprio idioma. A

importância do poeta que escreve para crianças então é fundamental, pois cabe a ele

despertar o interesse infantil para a língua de seu povo, fazendo com que mais e mais

pessoas dediquem-se a ela e com isso, a língua nunca venha a morrer. Se a linguagem não

fala através do poeta, ela é também o desconhecido; a língua, por outro lado, precisa do

poeta para renovar-se e nunca morrer. Como afirmou T.S. Eliot:

Podemos dizer que o dever do poeta, como poeta, é apenas indiretamente para com seu povo; seu dever direto é para com sua língua: primeiro: preservar e, segundo, ampliar e aperfeiçoar. Ao

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exprimir o que outras pessoas sentem, ele também está mudando o sentimento, por torná-lo mais consciente; está fazendo-as mais sabedoras do que já sentem, e portanto ensinando-as algo sobre si mesmas. Ele, no entanto, não é apenas uma pessoa mais consciente que as demais; é, além disso, individualmente distinto das outras pessoas, e também de outros poetas, e pode fazer seus leitores conscientemente compartilhar novos sentimentos que até então não haviam vivenciado. Essa é a diferença entre o escritor que é meramente excêntrico ou louco e o autêntico poeta. Aquele pode ter sentimentos que são únicos mas não podem ser compartilhados, e que são, portanto, inúteis; este descobre novas variações de sensibilidade que podem ser apropriadas por outrem. E, ao exprimi-las, ele está desenvolvendo e enriquecendo a língua que fala.

(ELIOT, 1971)

Na poesia infantil tem o poeta ainda mais responsabilidade na realização de seu

trabalho, pois se ainda quisermos considerar a existência de alguma finalidade para a poesia

infantil deve ser esta unicamente a de incentivar a criança a buscar sempre o prazer na

literatura, como forma de ler os medos, os desejos mais profundos, como momento de ler a

si mesma. Cabe ao poeta mostrar caminhos para que a criança desenvolva a sensibilidade e

nunca perca o talento natural de ler as entrelinhas, de escutar no silêncio o canto das

palavras, de encontrar a linguagem no meio do nada. A linguagem fala, mas é preciso ter

quem a escute.

O último elemento a ser analisado desse quebra-cabeça poético diz respeito à

imagem. Como acabamos de ver, a poesia transcende a linguagem e muitas vezes as

imagens não são traduzíveis em palavras. É muito comum, tanto a criança quanto o adulto,

dizer que gostam de determinado poema, mas não saber explicar bem o porquê. Isso se

deve ao fato da poesia trabalhar com imagens que não precisam fazer sentido na lógica,

inclusive muitas vezes como menciona Otávio Paz61, as imagens aproximam ou conjugam

realidades opostas, indiferentes ou distanciadas entre si, porque apesar das oposições serem

61PAZ, Otávio. O arco e a lira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira 1982, p.120.

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necessárias, há um momento de conjugação entre os termos que nos pareciam excludentes,

como nos exemplifica o poema a seguir de José Paulo Paes:

Emprego Vamos arranjar um emprego para o bicho-preguiça? - Que tal carteiro? -Aí ninguém recebe cartas. - Que tal bombeiro? - Aí o fogo queima tudo. -Que tal maquinista? - Aí o trem nunca mais chega. - Que tal dentista? - Aí ficamos todos banguelas. - Então só se for emprego de bicho-preguiça no zoológico. - Isso mesmo! - Lógico!

(PAES, 1989)

O poema assim como todos os outros do livro Olha o bicho (1989), foi feito sob

encomenda a partir das ilustrações propostas pelo desenhista e pintor Rubens Matuck. José

Paulo Paes partiu então de uma imagem para chegar até as palavras. A imagem da preguiça

(animal utilizado que já carrega no próprio nome um substantivo ligado à idéia de

indolência) atua em oposição às outras imagens, quebrando a suposta eficiência que deveria

haver nas profissões de carteiro, bombeiro, maquinista e dentista (as rimas aliadas à

estrutura de paralelismo dos versos começados pela mesma forma “que tal?” contribuem

para a sonoridade do poema.) A graça surge da oposição construída entre a idéia que temos

do profissional e a imaginação de como seria um profissional bicho-preguiça. As palavras

“ninguém”, “tudo”, “ nunca”, “todos”, servem para intensificar a rejeição da proposta

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inicial. Realidades então confirmadamente opostas (trabalho x preguiça), estão conjugadas

na mesma imagem e levam o leitor ao riso. Por fim, o poeta encontra um emprego para o

bicho-preguiça no zoológico, criando uma quebra no paralelismo dos versos anteriores

começados com a pergunta informal: “que tal + substantivo”. A solução para esse jogo de

propostas acaba acontecendo através da lógica e não do nonsense presente nas imagens dos

versos anteriores. O zoológico acaba sendo o lugar de encontro entre a lógica e o nonsense,

como se toda palavra tivesse implícito um lado zôo ( isto é, um lado mais selvagem, mais

primitivo62, ligado ao poeta e a criança) e um lado lógico ( um lado mais prosaico,

relacionado ao diálogo coerente, à linguagem de comunicação do dia a dia dos adultos).

No momento em que a preguiça é aprisionada e retorna ao seu habitat natural, o zoológico,

o poema ganha lógica e termina, como se a palavra tivesse sido enjaulada e não houvesse

mais sentido para o jogo do poema. Assim como o zoológico prende o bicho preguiça, a

lógica prende a palavra. Nesse mesmo livro, todos os outros bichos: formiga, arara,

tatu, jacaré, beija-flor, tamanduá e cutia, são vistos sob uma nova ótica, sempre bem-

humorada, livre do significado imediato.

O uso da figura de linguagem chamada prosopopéia, que se traduz como sendo a

atribuição de características humanas a animais, vegetais, seres inanimados ou idéias, é

uma constante na poética infantil de José Paulo Paes. Frequentemente o poeta humaniza

animais através de imagens novas e engraçadas, como nesse poema retirado do livro

UM PASSARINHO ME CONTOU (1996).

O QUE DISSE O PASSARINHO

62 Cabe aqui esclarecer que não pretendemos igualar a criança à condição do primitivo, apenas considerar semelhanças entre certas operações do pensamento infantil e do pensamento selvagem, em relação ao processo de criação da poesia.

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UM PASSARINHO ME CONTOU QUE O ELEFANTE BRIGOU COM A FORMIGA SÓ PORQUE ENQUANTO DANÇAVAM (SEGUNDO ELE) ELA PISOU NO PÉ DELE! UM PASSARINHO ME CONTOU QUE O JACARÉ SE ENGASGOU E TEVE DE CUSPI-LO INTEIRINHO QUANDO TENTOU ENGLOLIR IMAGINEM SÓ, UM PORCO-ESPINHO! UM PASSARINHO ME CONTOU QUE O NAMORO DO TATU E A TARTARUGA DEU UM CASAMENTO DE FAZER DÓ: CADA QUAL FICOU MORANDO EM SUA CASCA EM VEZ DE MORAREM NUMA CASCA SÓ. UM PASSARINHO ME CONTOU QUE A OSTRA É MUITO FECHADA, QUE A COBRA É MUITO ENROLADA, QUE A ARARA É UMA CABEÇA OCA, E QUE O LEÃO-MARINHO E A FOCA... XÔ XÔ, PASSARINHO, CHEGA DE FOFOCA!

(PAES, 1996)

O poeta cria nesse poema, uma reviravolta no mundo animal. Paes quebra com as

expectativas ao trabalhar com idéias contraditórias como, por exemplo, a de que o elefante

brigou com a formiga porque ela pisou no pé dele, ou que o jacaré se engasgou ao tentar

engolir um porco-espinho. A construção de todo o poema de Paes se dá a partir do título,

uma expressão usada que induz o ouvinte a pressupor uma fofoca: um passarinho me

contou. O tom lúdico está sempre presente como no caso do namoro do tatu com a tartaruga

que não deu certo por não poderem morar numa casca só. José Paulo Paes cria uma imagem

totalmente concreta, palpável, de fácil visualização a partir de uma referência com a

realidade humana: morar numa casa só. Segundo depoimento do próprio José Paulo Paes ao

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jornal Folha de São Paulo63, o pensamento da criança, assim como o do poeta, têm um tipo

sui generis de lógica a que se poderia chamar de paralógica. Paes nos esclarece que a

paralógica foi desenvolvida no século XIX nos versos “non sense” e poemas-disparates de

Edward Lear e Lewis Carroll, e consiste num pensamento caracterizado pela intuição. É um

pensamento de base analógica, mas que não é oposto ao pensamento lógico. Apesar de

diferente, há uma lógica no pensamento infantil, “com uma racionalidade ao pé da letra”. A

paralógica é definida por Paes como uma lógica circunstancial, dependendo do contexto ou

da situação. Por exemplo: o casamento do tatu com a tartaruga, dentro do contexto criado

no poema, torna-se plenamente possível. E se o casamento foi mal sucedido, não foi devido

aos animais pertencerem a espécies diferentes, mas sim, ao fato de não ter morado numa

casca só, o que pela paralógica seria fácil de realizar, já que os animais no poema têm

características humanas.

As imagens provêm sempre do inconsciente e o desafio maior do poeta é traduzir

o intraduzível, de modo que aquela imagem que lhe chama a atenção venha a chamar

também a atenção do leitor, mesmo que por motivos não explicáveis pela razão. A imagem

deve chegar ao leitor e conseguir despertar sua sensibilidade através das palavras. Na

poesia para crianças não é diferente, o poeta tem todo o espaço para soltar a imaginação e

deixar-se levar por imagens lúdicas, que adquirem todo sentido no real da fantasia, como

nesse outro poema do mesmo livro anterior.

ANATOMIA A CARECA DO PALHAÇO É A LONA DO CIRCO. OS OLHOS DO PALHAÇO

63 PAES, José Paulo. Infância e Poesia. In: Folha de São Paulo, Caderno Mais, 09/08/1998, p. 5-8.

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SÃO DUAS MARGARIDAS. O NARIZ DO PALHAÇO É UMA CAIXA DE SURPRESAS. O CORAÇÃO DO PALHAÇO É O JARDIM DA INFÂNCIA.

(PAES, 1996)

Nesse poema, criado de forma assindética, isto é, sem conectivos, e com imagens

delicadas, Paes nos mostra como chegar até o coração das crianças fazendo uma anatomia

da infância com poucas palavras. Trata-se de um poema conciso, que desde o início

desperta a sensibilidade do leitor pelas imagens simples e de fácil visibilidade. Entendemos

por visibilidade, o poder que uma palavra, um enunciado ou um texto têm de evocar

imagens-representações mentais referentes aos vários sentidos possíveis. Ítalo Calvino

considerou a importância da visibilidade como uma de suas Seis propostas para o próximo

milênio:

Se incluí a Visibilidade em minha lista de valores a preservar foi para advertir que estamos correndo o perigo de perder uma faculdade humana fundamental: a capacidade de pôr em foco visões de olhos fechados, de fazer brotar cores e formas de um alinhamento de caracteres alfabéticos negros sobre uma página branca, de pensar por imagens.

(CALVINO, 2003, p.108)

Cabe ao poeta que se dedica às crianças, criar poemas do mesmo modo que José

Paulo Paes montou seu palhaço: fazendo brotar cores e formas do branco e preto do papel,

como descreveu Italo Calvino. Através das imagens concretas e cheias de cor, o poema

ANATOMIA encontra uma identidade não só na criança, mas também no adulto, que é

capaz de se sensibilizar e reencontrar sua criança. O poeta cria uma imagem de fácil

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identificação porque trabalha com um vocabulário típico do universo infantil: palhaço,

circo, margaridas, caixa de surpresas, jardim da infância... Mas esse também é um mundo

que todo adulto guarda escondido dentro de si e por isso o poema ganha um caráter de

universalidade. A verossimilhança com o mundo infantil se configura não só pela escolha

do vocabulário, mas também pela forma do poema. Cinco dísticos, todos iniciados pela

mesma estrutura com poucas variações: a/o... careca/nariz... O elemento surpresa vem

sempre na definição que segue: a lona do circo, um sol vermelho, o jardim da infância. Essa

estrutura de paralelismo é como já analisamos em poemas anteriores, de fácil absorção pelo

leitor, principalmente pelas crianças que adoram versos repetidos com poucas variações. A

seguir temos um exemplo em que José Paulo Paes utiliza o mesmo recurso da repetição em

conjunto com a visibilidade:

Atenção, detetive Se você for detetive, descubra por mim que ladrão roubou o cofre do banco do jardim e que padre disse amém para o amendoim. Se você for detetive, faça um bom trabalho: me encontre o dentista que arrancou o dente do alho e a vassoura sabida que deixou a louca varrida. Se você for detetive, um último lembrete: onde foi que esconderam as mangas do colete e quem matou os piolhos da cabeça do alfinete? (PAES, 1990)

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O poeta ao trabalhar com homógrafos, brincou com as palavras recolocando-as em

contextos diferentes e criando novas imagens, fazendo associações curiosas como, por

exemplo, de ladrão com banco de jardim, dentista com dente de alho, piolhos da cabeça do

alfinete. Imagens a princípio sem nenhum sentido prático, mas totalmente inseridas e

aceitas na lógica do fantástico. O poeta tem de lutar contra a linguagem empobrecida que é

a linguagem usada no dia a dia e criar novas imagens para as palavras, como se tivesse que

transcender a linguagem do senso comum. Para isso, o poeta trabalha com a linguagem

conotativa, isto é, com o sentido das palavras que não se refere diretamente ao significado

literal, mas sim, às sugestões provocadas pelas palavras. O poeta então focaliza sua atenção

mais no sentido figurado, metafórico das palavras. É preciso imaginação, mas também

habilidade técnica para lidar com as palavras e tirar delas infinitas possibilidades de uso. De

nada adianta a capacidade de imaginar, se o poeta não tiver a habilidade de transformar a

imagem em linguagem, tendo em vista que a linguagem não irá descrever a imagem, mas

sim apresentá-la, criando naquele momento um estado poético que será capaz de capturar o

leitor.

A partir desse jogo que José Paulo Paes faz entre os significados e significantes

das palavras, é possível observar uma relação entre seus poemas. O poema que acabamos

de analisar nos lembra esse outro poema de sua autoria:

Se você for inventor invente Um creme que tire ruga de pescoço de tartaruga Um pente que penteie sozinho lombo

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de porco-espinho E um lenço forte bastante para assoar tromba de elefante.

(PAES, 1993)

O poema é retirado do livro Lé com cré (1993), que retoma os recursos poéticos de

seu primeiro livro É isso ali (1984) e de Poemas para brincar (1990). Dentre esses

recursos, nos chama a atenção a possibilidade de se fazer ligações entre elementos

aparentemente desconexos como: um creme para tartaruga, um pente para porco espinho e

um lenço para a tromba do elefante. Novamente, é dessa desconexão que vem o humor- das

imagens inesperadas.

O desafio que chama o leitor para brincar com as palavras é proposto nos dois

poemas, pelas expressões: se você for detetive/ se você for inventor invente. Ambas as

expressões convidam o leitor detetivesco e o leitor inventor para tomar parte desse jogo

lúdico de imagens sugeridas por palavras. Por isso, o leitor é também um inventor e um

detetive, porque a partir de determinado poema, ele desvenda e recria sentidos conforme

sua recepção. Nunca há um único sentido a ser descoberto, toda obra permite diversas

interpretações e por fim sempre restará um espaço aberto para novos olhares. O leitor tem

então, um aspecto produtor, ativo, não é meramente um receptor de informações. Podemos

observar que esse jogo, torna-se também um jogo entre poetas, entre poemas, e entre livros,

porque todo poema estabelece um diálogo com a literatura, com tudo que já foi escrito

antes. As temáticas e os recursos utilizados pelo poeta se repetem ao mesmo tempo em que

se renovam. Como detetives ou como inventores seguimos alguns rastros de outro poema

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do livro Lé com cré (1993) e encontramos semelhanças com o poema já analisado

anteriormente Emprego do livro Olha o bicho (1989).

Tão Tão bom barbeiro que cortava até juba de leão. Tão bom bombeiro que apagava até fogo de vulcão. Tão bom veterinário que fazia condor ficar sem dor. Tão bom professor primário que transformava um burro num doutor. Tão bom atleta que só ouvia dizer: “ Venceste!” Mas tão mau poeta que escrevesse um poema como este.

(PAES, 1993)

Além de trabalhar frequentemente com a imagem de animais, José Paulo Paes também

muito recorre à imagem de profissionais. No poema emprego aparecem: carteiro, bombeiro,

maquinista e dentista. No poema Tão: barbeiro, bombeiro (novamente), veterinário,

professor primário, atleta e poeta. Os dois poemas também se assemelham pela forma de

dísticos e pelas estruturas paralelísticas: que tal (poema emprego) e Tão bom... que (poema

Tão). Mas, se no poema emprego a imagem do animal preguiça se contrapõe à competência

esperada dos profissionais mencionados, no poema Tão bom é a imagem do poeta que

aparece como elemento gerador da surpresa.

É claro que a construção da imagem na poesia infantil deve estar totalmente ligada

ao imaginário infantil. O poeta não pode deixar-se levar pelas abstrações de seu

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inconsciente adulto. A criança precisa de concretude, porque, como vimos, é no concreto

que ela cria e fantasia. Torna-se cada vez mais comum consagrados poetas, que escrevem

para adultos resolver escrever para crianças e não é raro ver que excelentes poetas não

conseguem trabalhar dentro desta concretude que a criança precisa e acabam deixando-se

levar por imagens belíssimas, mas com uma abstração impossível de ser apreciada pelas

crianças . Nesse poema de Manoel de Barros retirado de seu livro Cantigas por um

passarinho à toa (2003), podemos observar claramente isso:

O menino contou que morava nas margens de uma garça. Achei que o menino era descomparado. Porque as garças não têm margens. Mas ele queria ainda que os lírios o sonhassem.

(BARROS, 2003)

Não pretendemos desconsiderar o valor estético do poema. Mas a questão que se

coloca aqui é: será esse livro realmente possível de ser lido pela criança? Poderá ela

apreciar o poema ou ficará perdida no meio das abstrações? Certamente o adolescente,

depois de já ter adquirido um pensamento hipotético dedutivo, conseguirá fazer as

abstrações necessárias para entender a bela imagem do poema. Mas e a criança? Ao

contrário, em José Paulo Paes podemos verificar como a concretude pode tornar-se

fantástica e lúdica:

O bife Onde é

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que está meu bife? Fugiu do açougue sumiu da cozinha no prato não acho quem sabe me diga será que meu bife está noutra barriga?

Meu bife Era a cavalo: um ovo estalado com batata frita. Porém me lembrei: sendo bife a cavalo fugiu no galope não vou mais achá-lo.

(PAES, 1993)

Nesse poema José Paulo Paes parte de uma linguagem denotativa, com todo o

sentido lógico no mundo real: “Onde está meu bife?” para uma linguagem conotativa, ao

brincar com os dois sentidos da palavra cavalo: “sendo bife a cavalo/ fugiu no galope”. O

poeta então passa de um plano real para um plano imaginário, porém sempre lidando com

elementos concretos, relacionados à infância: bife/ batata frita/ cavalo. Assim, o poeta atua

com imagens concretas dentro do imaginário infantil. É diferente de ficar se perguntando

sobre coisas impalpáveis. A imagem, mesmo fantástica e absurda, deve ter concretude

dentro do imaginário infantil. Por exemplo, se um adulto disser para uma criança pequena:

“- vai ver se eu estou lá na esquina”, não é raro que a criança de fato pense em ir até a

esquina. A criança, devido à mentalidade paralógica, leva ao pé da letra tudo que lhe é dito,

por isso a imagem mais absurda deve ser concretizada no seu imaginário. A criança só voa

se na imagem encontrar asas para pousar sua imaginação.

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Os poemas para crianças de José Paulo Paes trabalham sempre com um material

concreto, a partir de referenciais do mundo infantil. Em seu livro Um número depois do

outro (1993), o poeta parte da representação gráfica dos números para a criação das

imagens:

O número “1” OLHEM BEM O 1. NÃO PARECE UM SOLDADINHO DE FUZIL AO OMBRO? VEJAM AGORA UMA FILEIRA: 1111111111 NÃO PARECE UM BATALHÃO MARCHANDO? SÓ QUE, COMO É HORA DO ALMOÇO, ELES VÃO CANTANDO: “1, 2, FEIJÃO COM ARROZ, 1, 2, FEIJÃO COM ARROZ. ”

(PAES, 1993)

Como em outros poemas destacamos a atenção para o vocabulário concreto

associado à infância: soldadinho, batalhão marchando, e a conhecida parlenda “1, 2, feijão

com arroz.” A representação gráfica do número 1 associada à idéia de um soldadinho de

fuzil ao ombro, resulta num jogo expressivo e bem-humorado, que só é possível porque o

poeta cria imagens extraordinárias a partir do ordinário. Em outro poema do mesmo livro,

José Paulo Paes ensina as crianças a contar, porém de modo totalmente lúdico:

- Você sabe quanto é 6? - É o mesmo que meia dúzia. - e meia dúzia, quanto é? - é o mesmo que 6, ué. - mas como é que eu conto então? - com os 5 dedos da mão

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segure 1 dedo do pé. (PAES, 1993a)

O poeta faz com que aquilo que parece ser mais abstrato e distante de nossa percepção

sensível, como fazer contas matemáticas, se transforme em algo concreto, como uma

experiência física: “com os 5 dedos da mão/ segure 1 dedo do pé.” A idéia de quantidade

então é transmitida à criança de uma maneira palpável e operacional para o pensamento

infantil, bem como nesse outro poema:

Quer saber quanto é 8? Então coma 1 biscoito e mais 1 biscoito e mais 1 biscoito e mais 1 biscoito e mais 1 biscoito e mais 1 biscoito e mais 1 biscoito e mais 1 biscoito Está de barriga cheia? Então comeu 8. (PAES, 1993b)

O elemento concreto “biscoito” repetido oito vezes torna-se um meio de fácil

entendimento infantil. A brincadeira vai além de um mero ensinamento, ao destacar que o

número oito está dentro da palavra biscoito. Esta idéia dá completude ao poema, uma

circularidade que se fecha com a imagem da “barriga cheia”.

Podemos perceber em todos esses poemas como a linguagem (a escolha por palavras

concretas, relacionadas ao mundo infantil) está associada também à criação das imagens, à

sonoridade e à forma, como se o poeta estivesse sempre em constante interação com um

leitor implícito e o poema fosse uma brincadeira e não um ensinamento. Os quatro

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componentes analisados nesse capítulo: sonoridade, forma, linguagem e imagem, atuam

simultaneamente, por vezes sendo difícil especificar onde começa um e termina o outro. Há

então, uma interação entre todas as peças desse quebra- cabeça, que devem ser analisadas

muito mais pelo conjunto, do que individualmente. E é nesse conjunto de brincadeiras com

sons, palavras, formas e imagens, que José Paulo Paes criou sua poesia que tem como base

a surpresa, levar o leitor ao espanto da descoberta do humor, da ironia, da sátira que se

esconde por trás da exploração dos signos e das outras características constitutivas da

língua. Assim, sua poesia encanta não só as crianças, mas também, jovens e adultos que

reencontram em seus poemas, o prazer de brincar.

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5. CONSIDERAÇÕES FINAIS: O SABOR DO SABER Gostaríamos de iniciar essas considerações com uma reflexão de Roland Barthes,

contida no livro Aula (1978), no qual o autor nos sugere um modo diferente de buscar o

conhecimento:

Empreendo, pois, o deixar-me levar pela força de toda vida viva: o esquecimento. Há uma idade em que se ensina o que se sabe; mas vem em seguida outra, em que se ensina o que não se sabe: isso se chama pesquisar. Vem talvez agora a idade de uma outra experiência, a de desaprender, de deixar trabalhar o remanejamento imprevisível que o esquecimento impõe à sedimentação dos saberes, das culturas, das crenças que atravessamos. Essa experiência tem, creio eu, um nome ilustre e fora de moda, que ousarei tomar aqui sem complexo, na própria encruzilhada de sua etimologia: Sapientia : nenhum poder, um pouco de saber, um pouco de sabedoria, e o máximo de sabor possível. (BARTHES, 2001, p.47)

Tal proposição nos parece adequada quando tratamos principalmente do estudo da

criação poética. A poesia deixa de lado tudo que já foi dito, e descobre sua própria verdade

no silêncio das entrelinhas. Roland Barthes afirma nesse mesmo livro que para sair do

código lingüístico, ou silencia-se, ou se faz um discurso louco. Na realidade, segundo

Barthes, não há como sair, mas há como driblar, desarticular o código já estabelecido pela

sociedade. O poema é a desarticulação orientada desse código. O que não tocamos é o

poema: a respiração, o ritmo, as imagens, as palavras. Tudo isso num encontro único e

irrepetível. A língua se reinventa a cada momento, nada nunca estará ali do mesmo jeito.

Pode-se ter a prosa sem quebrar as leis, sem desmontar, mas o poema não, pois ele não é

um discurso sobre alguma coisa, mas sim sobre si mesmo. Ele não ensina, não diz, ele

apenas é, e assim redescobre-se e nos descobre, isto é, desvenda nossos mistérios mais

íntimos. Por essa razão, não podemos recontar um poema como recontamos uma história.

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Podemos fazer um discurso sobre alguma coisa, mas a imagem é o que ela é, o indizível se

apresenta diante do leitor. Um poema não é criado para uma pessoa específica, o leitor se

coloca na frente do alvo e encontra a verdade, que sempre é individual. Por isso, mesmo os

poemas de José Paulo Paes considerados para crianças, são capazes de sensibilizar também

os adultos. Cada poema exige um conhecimento próprio. Assim, é preciso estar aberto com

todas nossas experiências, leituras, com nosso modo peculiar de enxergar o mundo. É

preciso adequar ao nosso conhecimento àquilo que o poema nos apresenta. Um adulto não

lê um poema da mesma maneira que uma criança. Também um adulto ao ler um poema,

pode ter impressões diversas de outro adulto, bem como uma criança lê os mesmos versos,

diferentemente de outra. Portanto, nossa visão sobre o processo criativo da obra poética

infantil de José Paulo Paes, pode por vezes, não ter sido a mesma do próprio poeta.

Procuramos seguir as trilhas deixadas pelo autor no livro Poesia para crianças (1996), nos

ensaios escritos, em seu artigo para o jornal Folha de São Paulo Infância e Poesia (1998) e

em sua biografia: Quem, eu? Um poeta como outro qualquer (1996), mas de forma alguma

pretendemos estabelecer verdades absolutas quanto ao processo de criação literária de José

Paulo Paes.

Após a leitura do primeiro e do segundo capítulo, acreditamos que tenha sido

verificada, através da reconstrução do surgimento da chamada literatura infantil no contexto

da historiografia e da história literária brasileira, a importância de se estudar a poesia

infantil, tendo em vista o que já foi escrito anteriormente, já que, por mais nova que seja a

voz de um poeta, não há como desconsiderar o diálogo com seus antecessores. Em nossa

análise de poemas infantis dos livros de José Paulo Paes: Vejam como eu sei escrever

(2001), O menino de olho d’água (1991), Lé com cré (1993) e É isso ali (1984), tivemos a

oportunidade de verificar como o poeta incorporou as contribuições estéticas do passado,

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principalmente a partir dos considerados poetas modernistas e de Monteiro Lobato, como

nos revelam as palavras do próprio José Paulo Paes:

Com Monteiro Lobato aprendi que é pelo trampolim do riso, não pela lição de moral, que se chega ao coração das crianças. Até lá procuraria eu chegar, muitos anos depois, com as brincadeiras de palavras de meus poemas infantis.

(PAES, 1996, p.15)

Através de depoimentos como esse, juntamente com a obra infantil deixada pelo poeta,

procuramos demonstrar que José Paulo Paes se preocupou em despertar o prazer da leitura

nas crianças, uma alegria proveniente do encanto de aprender novos usos para as palavras,

redimensionando a arte e o saber meramente gramatical oferecido por muitas escolas.

Fundamentados em nossos estudos sobre a importância de Monteiro Lobato para a

literatura infantil brasileira, revelamos a inovação do autor ao realizar a troca do discurso

moralista pelo discurso estético. Essa, dentre outras contribuições recebidas de poetas

como: Oswald de Andrade, Mário de Andrade, Manuel Bandeira, Cecília Meireles e

Vinícius de Moraes, tornaram possível que os poemas de José Paulo Paes valorizassem

temas cotidianos, mais próximos da realidade infantil, com o uso de expressões coloquiais,

onomatopéias, assonâncias, aliterações, paralelismos, adivinhas, piadas, o que levou sua

poesia a ser caracterizada como lúdica, já que o freqüente uso dos jogos de palavras tornou

seus poemas semelhantes às brincadeiras de criança, como nos revelou o próprio poeta ao

usar como título de seu livro mais conhecido, a expressão: Poemas para brincar (1990).

Gostaríamos também de enfatizar que a obra poética infantil de José Paulo Paes

espelha cumplicidade com a criança leitora. Em alguns poemas dos livros Olha o bicho

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(1989) e Um passarinho me contou (1996) podemos observar a ligação que existe entre a

criança e o poeta. Muitas vezes o poeta se torna menino, e apresenta uma visão da realidade

do ponto de vista infantil. Defendemos a idéia de que o poeta e a criança são seres em

rotação, pois estão sempre prontos para lidar com o novo. As crianças, por estarem na fase

de descobertas do mundo que as cerca, e os poetas, por redescobrirem esse mundo já

conhecido através das palavras. Contudo, ao mesmo tempo em que o poeta busca a

espontaneidade infantil para descobrir novas estruturas retirando o significado comum que

têm as palavras e lhes dando um novo sentido, planeja o seu trabalho minuciosamente.

Assim, por meio da leitura de Johan Huizinga, observamos como as mesmas características

referentes ao jogo: ordem, entusiasmo, seriedade e fingimento, também se aplicam à

criação poética para crianças.

Com o intuito de aprofundar nossos estudos sobre a obra poética infantil de José Paulo

Paes, nos valemos da análise dos quatro elementos fundamentais em um poema: a

sonoridade, a forma, a linguagem e a imagem, para descobrirmos como o poeta, através

desses elementos, agencia estratégias visando estimular a empatia das crianças com os

poemas. Parece, assim, que os conceitos aqui estudados, como: a relação entre significado e

significante, a denotação e a conotação e a função poética da linguagem, podem ser úteis

para a compreensão do processo de criação de poemas para crianças.

Esperamos que, com esse trabalho, possamos estabelecer, conforme nosso objetivo

inicial, um diálogo com os leitores, sobretudo com os interessados em desvendar alguns dos

mistérios que envolvem o processo de criação de poemas para crianças. Acreditamos

também que nosso trabalho possa interessar aos professores de Ensino Fundamental e de

Ensino Médio, que tenham por finalidade buscar caminhos para entender e transmitir aos

seus alunos alguns processos lingüísticos e estéticos que constituem os poemas, para com

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isso, não reduzir a poesia aos estudos gramaticais e realizar um trabalho diferenciado,

demonstrando aos alunos as múltiplas funções e desdobramentos da leitura de um poema.

Consideramos a máxima de José Paulo Paes de associar poesia à brincadeira, imperiosa no

processo de construção do conhecimento. Por meio da leitura de seus poemas infantis,

como, por exemplo, do poema Paraíso, verificamos que o poeta e ensaísta também

questionava o mundo dos adultos. Através de reflexões feitas de forma lúdica, José Paulo

Paes inseria a crítica ao mundo real dentro do próprio brincar. Por isso, sua poesia de

forma alguma pode ser considerada alienante ou menor. A ampla aceitação de seus livros

infantis pelo mercado escolar, muito se deve ao fato do poeta, a partir do referencial

infantil, conseguir transmitir algo novo para as crianças. Os livros Uma letra puxa a outra

(1992) e Um Número depois do outro (1993) são verdadeiras aulas em forma de poesia.

Apesar de não ter o objetivo de transmitir ensinamentos, os poemas de José Paulo Paes

acrescentam sempre um saber novo para as crianças. Mas é um saber compartilhado, e não

imposto. Um saber com o mesmo sabor que Roland Barthes definiu no início de nossas

considerações: o sabor do prazer.

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