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Caminhadas de universitários de origem popular UFPI Universidade Federal do Piauí UFPI

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Caminhadas de universitários de origem popular : UFPI / organizado por Ana Inês Souza,Jorge Luiz Barbosa, Jailson de Souza e Silva. — Rio de Janeiro : Universidade Federaldo Rio de Janeiro, Pró-Reitoria de Extensão, 2009.92 p. ; il. ; 24 cm. — (Coleção caminhadas de universitários de origem popular)

Ao alto do título: Ministério da Educação. Secretaria de Educação Continuada,Alfabetização e Diversidade. Programa Conexões de Saberes : Diálogos entre a Universidade eas Comunidades Populares.

Parceria: Observatório de Favelas do Rio de Janeiro.ISBN: 978-85-89669-42-9

1. Estudantes universitários — Programas de desenvolvimento — Brasil. 2. Integraçãouniversitária — Brasil. 3. Extensão universitária. 4. Comunidade e universidade — Brasil. I.Souza, Ana Inês, org. II. Barbosa, Jorge Luiz, org. III. Silva, Jailson de Souza e, org. VI.Programa Conexões de Saberes : Diálogos entre a Universidade e as Comunidades Populares.V. Universidade Federal do Piauí. VI. Universidade Federal do Rio de Janeiro. VII. Observatóriode Favelas do Rio de Janeiro.

CDD: 378.81

Copyright © 2009 by Universidade Federal do Rio de Janeiro / Pró-Reitoria de Extensão.O conteúdo dos textos desta publicação é de inteira responsabilidade de seus autores.

Coordenação da Coleção: Jailson de Souza e SilvaJorge Luiz BarbosaAna Inês Sousa

Organização da Coleção: Monique Batista CarvalhoFrancisco Marcelo da SilvaDalcio Marinho GonçalvesAline Pacheco Santana

Programação Visual: Núcleo de Produção Editoria da Extensão – PR-5/UFRJ

Coordenação: Claudio BastosAnna Paula Felix anniniThiago Maioli Azevedo

I

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Ministério da Educação

Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade

Programa Conexões de Saberes: diálogos entre a universidade e as comunidades populares

UFPI

Pró-Reitoria de Extensão - UFRJ

Rio de Janeiro - 2009

Organizadores

Jailson de Souza e Silva

Jorge Luiz Barbosa

Ana Inês Sousa

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Aemerson Rodrigues de Carvalho

Alexander Almeida Morais

Ana Cláudia dos Santos Silva

Ana Cristina de Sousa Silva

Ana Karoline de Sousa Carvalho

André Vieira dos Santos

Cícero José Pereira

Cleane Maria Alves

Cleylce Santana da Silva

Elizabeth Pereira Cabral

Eric Willian do Nascimento Carvalho

Francisco das Chagas de Sousa Silva

Francivaldo Pinheiro Fernandes

Hélio Costa Vieira

Herbert Cèsar de Moura

Jeane Maria da Silva

João Santos Andrade

João Silvestre da Silva Neto

Joselene Oliveira

Juliana Rodrigues Cavalcante

Kalinka Kelciane Teixeira de Brito

Maria da Conceição Pereira da Costa

Maria da Penha da Silva Santos

Maria dos Remédios Batista da Silva

Marlúcia Oliveira Lima

Coleção

AutoresPresidente da RepúblicaLuiz Inácio Lula da Silva

Ministério da EducaçãoFernando HaddadMinistro

Secretaria de Educação Continuada,Alfabetização e Diversidade – SECAD

André Luiz de Figueiredo LázaroSecretário

Armênio Bello SchmidtDiretoria de Educação para a Diversidade - DEDI

Leonor Franco de AraújoCoordenação Geral de Diversidade – CGD

Programa Conexões de Saberes:diálogos entre a universidade eas comunidades populares

Jorge Luiz BarbosaJailson de Souza e SilvaCoordenação Geral

Cecília Maria Resende Gonçalves de CarvalhoCoordenação Geral do Programa Conexões de Saberes/UFPI

Edileusa Maria Galvão FiguerêdoCoordenação Técnica

Universidade Federal do Piauí

Luiz de Sousa Santos JúniorReitor

Antonio Silva do NascimentoVice-Reitor

Antonio Aderson dos Reis FilhoPró–Reitor de Extensão

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Prefácio

A sociedade brasileira tem como seu maior desafio a construção de ações que permi-tam, sem abrir mão da democracia, o enfrentamento da secular desigualdade social e econô-mica que caracteriza o país. E, para isso, a educação é um elemento fundamental.

A possibilidade da educação contribuir de forma sistemática para esse processo impli-ca uma educação de qualidade para todos, portanto, uma educação que necessita ser efeti-vamente democratizada, em todos os níveis de ensino, e orientada, de forma continua, pelamelhoria de sua qualidade. No atual governo, o Ministério da Educação persegue de formaintensa e sistemática esses objetivos.

Conexões de Saberes é um dos programas do MEC que expressa de forma nítida a lutacontra a desigualdade, em particular no âmbito educacional. O Programa procura, por umlado, estreitar os vínculos entre as instituições acadêmicas e as comunidades populares e,por outro lado, melhorar as condições objetivas que contribuem para os estudantes univer-sitários de origem popular permanecerem e concluírem com êxito a graduação e pós-gradu-ação nas universidades públicas.

Criado pelo MEC em dezembro de 2004, o Programa é desenvolvido a partir daSecretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (SECAD-MEC) e repre-senta a evolução e expansão, para o cenário nacional, de uma iniciativa elaborada, nacidade do Rio de Janeiro no ano de 2002, pela Organização da Sociedade Civil de InteressePúblico Observatório de Favelas do Rio de Janeiro. Na ocasião constitui-se uma Rede deUniversitários de Espaços Populares com núcleos de formação e produção de conhecimentoem várias comunidades populares da cidade. O Programa Conexões de Saberes criou,inicialmente, uma rede de estudantes de graduação em cinco universidades federais,distribuídas pelo país: UFF, UFMG, UFPA, UFPE e UFRJ. A partir de maio de 2005, ampliamoso Programa para mais nove universidades federais: UFAM, UFBA, UFC, UFES, UFMS,UFPB, UFPR, UFRGS e UnB. Em 2006, o Ministério da Educação assegurou, em todos osestados do país, 33 universidades federais integrantes do Programa, sendo incluídas: UFAC,UFAL, UFG, UFMA, UFMT, UFPI, UFRN, UFRR, UFRPE, UFRRJ, UFS, UFSC, UFSCar,UFT, UNIFAP, UNIR, UNIRIO, UNIVASF e UFRB.

Através do Programa Conexões de Saberes, essas universidades passam a ter, cada uma,ao menos 251 universitários que participam de um processo contínuo de qualificação comopesquisadores; construindo diagnósticos em suas instituições sobre as condições pedagógi-cas dos estudantes de origem popular e desenvolvendo diagnósticos e ações sociais emcomunidades populares. Dessa forma, busca-se a formulação de proposições e realização de

1 A partir da liberação dos recursos 2007/2008 cada universidade federal passou a ter, cada uma, aomenos 35 bolsistas.

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práticas voltadas para a melhoria das condições de permanência dos estudantes de origempopular na universidade pública e, também, aproximar os setores populares da instituição,ampliando as possibilidades de encontro dos saberes destas duas instâncias sociais.

Nesse sentido, o livro que tem nas mãos, caro(a) leitor(a), é um marco dos objetivos doPrograma: a coleção “Caminhadas” chega a 33 livros publicados, com o lançamento das 19publicações em 2009, reunindo as contribuições das universidades integrantes do Cone-xões de Saberes em 2006. Com essas publicações, busca-se conceder voz a esses estudantese ampliar sua visibilidade nas universidades públicas e em outros espaços sociais. Esseslivros trazem os relatos sobre as alegrias e lutas de centenas de jovens, rapazes e moças, quecontrariaram a forte estrutura desigual que ainda impede o pleno acesso dos estudantes dascamadas mais desfavorecidas às universidades de excelência do país ou só o permite para oscursos com menor prestígio social.

Que este livro contribua para sensibilizar, fazer pensar e estimular a luta pela constru-ção de uma universidade pública efetivamente democrática, um sociedade brasileira maisjusta e uma humanidade cada dia mais plena.

Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade

Ministério da Educação

Observatório de Favelas do Rio de Janeiro

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Sumário

Apresentação ........................................................................................................ 9

Introdução ........................................................................................................... 11

O sertanejoAemerson Rodrigues de Carvalho ..................................................................... 13

TrilhandoAlexander Almeida Morais ................................................................................. 17

Mais uma caminhadaAna Cláudia dos Santos Silva ........................................................................... 19

Pequeno diárioAna Cristina de Sousa Silva .............................................................................. 21

Retratos da minha históriaAna Karoline de Sousa Carvalho ...................................................................... 24

Minha história, minha lutaAndré Vieira dos Santos ..................................................................................... 27

Caminhos do aprendizadoCícero José Pereira ............................................................................................. 30

Passos de resistênciaCleane Maria Alves ............................................................................................ 33

Cleylce, botão de rosa que desabrochouCleylce Santana da Silva ................................................................................... 36

Minhas memóriasElizabeth Pereira Cabral ................................................................................... 39

Lionheart: Forte, perseverante, astuto e determinadoEric Willian do Nascimento Carvalho ............................................................... 41

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Minha vida, minha lutaFrancisco das Chagas de Sousa Silva ............................................................... 46

Vencendo desafiosFrancivaldo Pinheiro Fernandes ....................................................................... 48

A caminhada de um vencedorHélio Costa Vieira............................................................................................... 50

Um principiante e sua estrela guiaHerbert César de Moura ..................................................................................... 53

Os passos de um homem bom são confirmados pelo senhor e eledeleita no seu caminho (salmo 37.23)Jeane Maria da Silva .......................................................................................... 55

Fragmentos de uma cartografia sentimentalJoão Santos Andrade .......................................................................................... 58

A saga do filho de um vaqueiro e de uma Quebradeira de cocoJoão Silvestre da Silva Neto .............................................................................. 61

As reminiscências de JoseleneJoselene Oliveira ................................................................................................ 67

Sonhei, sonho e sonharei, com um futuro mais justoJuliana Rodrigues Cavalcante .......................................................................... 71

Sob a luz da famaKalinka Kelciane Teixeira de Brito ................................................................... 74

Vencendo as adversidades da vidaMaria da Conceição Pereira da Costa ............................................................. 77

Sonhos de uma vidaMaria da Penha da Silva Santos ....................................................................... 80

"Esperei confiantemente pelo senhor. Ele se inclinou para mim e meouviu quando clamei por socorro" (Salmo 40.1)Maria dos Remédios Batista da Silva ................................................................ 84

Um novo jeito de olharMarlúcia Oliveira Lima ...................................................................................... 87

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Introdução

Universidade Federal do Piauí 9

A Universidade Federal do Piauí-UFPI, de forma programática, tem a missão depropiciar a elaboração, sistematização e socialização do conhecimento filosófico, científico,artístico e tecnológico permanentemente adequado ao saber contemporâneo e à realidadesocial, formando profissionais que possam contribuir para o desenvolvimento econômico,político, social e cultural do Piauí, do Nordeste e do Brasil.

No cumprimento desta missão, evidenciamos a responsabilidade social comonorteadora de ações afirmativas bem como da integração dos estudantes assistidos à políticade inclusão social praticada na UFPI, no sentido de estabelecer um equilíbrio deoportunidades aos menos favorecidos, explicitando tal inclusão social em sua verdadeiragrandeza.

Da leitura dos textos e do resultado alcançado, pode-se constatar que o Ministério daEducação-MEC, através da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade-SECAD, por intermédio do Programa "Conexões de Saberes: diálogos entre a universidadee as comunidades populares", proporciona, de modo afirmativo e brilhante, a oportunidadea 35 (trinta e cinco) jovens da UFPI de serem atores, em um cenário de vitórias, construídoa partir de uma história real de sucesso individual, embalados pelo sonho próprio de suasidades, uma trajetória pura e verdadeira, oportunizando o registro que irá fortalecer a memóriauniversitária em realce.

Por conseguinte, iniciativas como estas não apenas reforçam o papel da Universidadecomo agente transformador da sociedade, mas também criam e ampliam metodologiasadequadas de interação com as camadas populares e de periferia na geração, visibilidade etroca de saberes populares e científicos, através do diálogo. O desafio, outrossim, é que estaação seja contínua e eficiente, para que possa decifrar e colaborar na solução dos diversosproblemas de permanência destes alunos de camadas populares nas Universidades.

Ressaltamos, por outro lado, a demonstração de sensibilidade e o apoio incondicionaldo Reitor Prof. Dr. Luiz de Sousa Santos Júnior, bem como a abnegação das coordenadorasProfª Drª Cecília Maria Resende Gonçalves de Carvalho e Profª Edileusa Maria GalvãoFigueredo, sobretudo na orientação deste importante Programa, tendo em vista seucomprovado sucesso com a ampliação de bolsistas na UFPI que ainda não fazem parte doProjeto, porém enfatizando as caminhadas de universitários de origem popular,sensibilizando, ainda mais, cada um de nós nesta contribuição à construção democrática naplenitude da vida nacional.

Antônio Aderson dos Reis Filho

Pró-Reitor de Extensão-UFPI

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Apresentação

Universidade Federal do Piauí 11

"Caminhadas de Universitários de Origem Popular" é um livro diferente, que publicaa autobiografia de 25 (vinte e cinco) universitários da UFPI, oriundos de setores populares,bolsistas do Programa "Conexões de Saberes". Nele está contida a experiência daqueles quelutam contra a exclusão social e por uma sociedade mais justa.

A construção deste livro foi, para os autores conexistas, uma retrospectiva de suasvidas até o ingresso na universidade. É também um exercício de reminiscências, que reveloumomentos de incertezas, desencantos, lutas, alegrias e conquistas.

O início das oficinas de Leitura e Produção de Texto foi marcado por dúvidas eindagações, mas com o laboratório das experiências vivenciadas pelos autores, nas entrelinhasde suas narrativas, foram sendo reveladas suas histórias de vida. Foi uma convivênciamaravilhosa. Choramos juntos e sorrimos muito. Palavras de carinho e ânimo soavam nasala de aula, onde cada autor expunha suas ousadias e auto-superação. Foi uma explosão degarra e emoção.

Jamais esquecerei os momentos em que cada um mergulhou nas lembranças de suastrajetórias individuais, nas vivências familiares, escolares e em muitos acontecimentos davida pessoal, mesclados com as dimensões coletivas do bairro, da cidade, rememorandosuas histórias em um contexto reflexivo em busca da construção de projetos de vida para aconcretização de sonhos. Para alguns estudantes, esta regressão foi muito dolorosa. Não éfácil recordar tristezas. Eles jamais esquecerão que a vida é feita de luta. Por outro lado, hásempre exemplos de solidariedade e desprendimento. A família é a célula forte,inquebrantável; apoio e carinho nas horas difíceis. Os amigos são um caso à parte. Elesguardam segredos sutilíssimos e são os grandes conselheiros. Muitos mestres passaramincógnitos, mas aqueles que foram mais que simples professores estão marcadosindelevelmente na mente e no coração dos conexistas. Isto faz brotar no âmago de todos oagradecimento em forma de citação. Aqui e ali vão aparecer muitos cidadãos comuns queestenderam suas mãos em momentos cruciais. São os Joões e Marias que escreveram seusnomes nas histórias do Doutor João e da Doutora Maria.

Estou feliz e realizada com mais esta missão cumprida. Agradeço a Deus, à ProfªCecília Resende e à Profª Edileusa Figuerêdo, pela oportunidade de participar desta"Caminhada" tão rica e bela, e por fazer parte da Família Conexões de Saberes - Piauí.

Verônica Maria Teles de Melo Cavalcanti

Profª de Leitura e Produção de Texto

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Universidade Federal do Piauí 13

O sertanejo

Aemerson Rodrigues de Carvalho*

Sou o primeiro filho do casal de lavradores Antônia Rodrigues de Carvalho e ManuelRibeiro de Carvalho. Nasci em Curimatá, no Sul do Piauí. Ao completar cinco anos, fui commeus pais trabalhar na roça. Quando a seca chegava, eu tinha que ir buscar água a distânciade uma légua (6 km). Ficamos no interior até 1990, ano em que nasceu minha irmã Anelmae meu pai comprou uma carroça. Com sua bela carroça, meu pai arranjou um emprego naPrefeitura como catador de lixo. Eu e meu irmão Emerson estávamos estudando em umaescola que distava 4 km de nossa casa, em uma sala onde ficavam alunos da alfabetizaçãoa quarta série e um só professor. Era difícil para meu pai trabalhar na cidade e voltar para ointerior. Foi então que eles decidiram mudar definitivamente para a cidade e fomos morarem uma casa emprestada durante seis meses. Com muita luta, conseguimos construir nossacasinha; e, mesmo sem portas e janelas, nos mudamos. Isso não tinha muita importâncianaquele momento, pois o mais importante era estar debaixo de nosso teto.

Quando nos mudamos para a cidade, as brincadeiras eram muitas, apesar da proibiçãode nossa mãe, que não permitia que saíssemos sem sua autorização. A nova escola ficavaperto de nossa casa, e ali estudavam duas turmas por sala. Um só professor ministrava aulaspara alunos de primeira e segunda séries. Certamente o rendimento era muito ruim.

Em 1993, eu estava cursando a primeira série, mas ao final do ano tive que interromper osestudos, pois meu pai ficou cego de catarata, só voltando a enxergar seis meses depois, quandose submeteu a uma cirurgia. Se antes a vida estava difícil, com o problema de saúde de meu paias coisas pioraram. Passamos a vender dindim, cheiro verde, puba de mandioca e esterco.

Em 1996, eu cursava a terceira série na Unidade Escolar Mergelina Dourado Guerra;de uma turma de oito alunos, fui o único a passar de ano. A diretora queria que eu repetisseo ano, mas minha mãe não concordou. Mudei-me então para o Colégio Alírio Guerra deMacedo onde cursei a quarta série e iniciei a quinta. Neste mesmo ano, foi feito o primeiroteste seletivo para a Escola Agrotécnica de Curimatá, que ficava pertinho de minha casa.Vinte e cinco vagas foram oferecidas. Fiz o teste e fiquei em 26º lugar. Por um capricho dodestino, o aluno que passou em primeiro lugar desistiu e eu fui convocado. Eu não queria ir.Estudar em escola agrotécnica, para mim, significava voltar para a roça e isso eu não queria,jamais. Mas acabei indo, e isso foi determinante em minha vida. Aprendi a ver o mundo comoutros olhos e a querer saber mais. Se hoje estou na Universidade, devo muito à EscolaAgrotécnica de Curimatá, pois foi lá que conheci o professor Gerônimo Leopoldo Paranaguá

* Graduando em Agrimensura pela UFPI.

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14 Caminhadas de universitários de origem popular

Eivas Barjud, amigo e incentivador. Certa feita ele me levou para visitar a Exposição e Feirade Agronegócio do Sul do Piauí-EXPOSUL. Ali, pude fazer inúmeros contatos com alunose professores do Colégio Agrícola de Bom Jesus-CABJ. Vislumbrei a possibilidade deconhecer novos horizontes, saber mais. O problema é que, apesar de ter que pagar apenas asrefeições, eu tinha que morar em outra cidade, e as nossas condições financeiras não permitiamesse extra. Então pensei: "eu vou de qualquer jeito e eles não vão me deixar passar fome".Deu certo! Eles me deram todo o apoio e carinho. Mudei-me para Bom Jesus. Como sempre,todo começo é muito difícil. A saudade de casa e a minha base escolar deficiente foramobstáculos difíceis de transpor. As notas eram sempre baixas e os alunos veteranos viviamme ridicularizando. Ainda bem que contei com o apoio e a boa vontade dos professores.Juntamente com Gábino Nunes de Araújo e Gledson Lustosa Freitas, formamos um trioinseparável. Passamos juntos muitas noites sem dormir, debruçados nos livros, tentandofazer boas provas, mas também curtimos a vida e nos divertimos muito.

No CABJ, pude entender o que é uma universidade, posto que este é uma extensão daUFPI. Vestibular para mim era uma novidade. Foi aí que pude, mais uma vez, avaliar aprecariedade do ensino público no Brasil, tanto na área pedagógica quanto no setorsociocultural. Naquele momento, prometi a mim mesmo voltar à minha Curimatá, ingressarna política e lutar, com todas as forças, para mudar esse triste quadro, e ajudar as crianças,jovens e adultos a ter um ensino de qualidade.

Final de 2004. Minha formatura se aproximava. Nesse período eu estava divididoentre os vários caminhos a seguir: continuar estudando? Trabalhando? Eu estava recebendovárias propostas de emprego, e era hora de ajudar e retribuir o esforço de meus pais. Porexigência do mercado, resolvi tirar minha carteira de motorista. Foi aí que mais uma vez asamizades funcionaram. Minha estimada professora Maria Majaci Moura da Silva, quemorava em Teresina, ofereceu-me sua residência. Desta forma, abri mão da festa de formaturae guardei o dinheiro para tirar a habilitação.

Eu pensava em trabalhar, mas não queria deixar de estudar. Tanto que me inscrevi parafazer vestibular para o curso de Engenharia de Agrimensura da UFPI. O trio mencionadoanteriormente juntou-se novamente e estudamos com afinco. Foi assim que nós - os pioresalunos da classe - nos tornamos os melhores e fomos vistos como exemplo de esforço e abnegação.

No dia cinco de janeiro de 2005, durante o intervalo do ensaio da colação de grau, fui àsala dos professores e acessei o computador para ver o resultado do vestibular. Fiquei branco,pasmado, gelado, paralisado. Todas as emoções ao mesmo tempo. Eu não queria acreditar, maslá estava meu nome: Aemerson Rodrigues Carvalho. Conferi várias vezes o número da identidade.Podia ser um homônimo. Só depois fui me convencendo de que era eu mesmo. A primeira coisaa fazer foi dividir aquele momento com minha família. Voltei para o ensaio e, ao contar anovidade para minha mãe, percebi em seu rosto uma sombra de tristeza. Mais tarde eu soube arazão: Ela só pensava que eu não teria como estudar, pois não tínhamos nenhum parente nacapital. Liguei também para a professora Majaci. Eu tinha que compartilhar minha alegria comas pessoas queridas. Aproveitei e desmarquei a viagem para tirar a carteira. Majaci era só alegria.Conhecendo minha situação econômica, ela me fez uma série de perguntas: - Como manter-me?Onde iria morar? Eu lhe disse que ia requerer a residência universitária, mas até conseguir eu nãotinha onde ficar. A professora então propôs: - "Venha tirar sua carteira e, até conseguir a residência,pode ficar em minha casa". Assim foi feito. Tirei a habilitação e morei durante quatro meses naresidência da professora Majaci, a quem serei eternamente grato pelo resto de minha vida.

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Universidade Federal do Piauí 15

A universidade amplia nossos horizontes e engrandece nossos sonhos. Resolvi fazereste parágrafo para citar o nome do meu sobrinho, Walerson Rodrigues, que é uma pessoamuito importante para mim, e dizer que acalento o sonho de ver o Piauí dividido com acriação do Estado do Gurguéia. Desta forma, o Sul do Estado, até então esquecido pelospolíticos, passará a ser visto, e, no auge do desenvolvimento, poderá oferecer uma educaçãopública de qualidade para as futuras gerações, entre elas, meu sobrinho Walerson.

Hoje estou muito feliz e com muita força de vontade e obstinação; continuo na residênciauniversitária e cursando o quarto período de Engenharia de Agrimensura na UniversidadeFederal do Piauí, onde participo do Programa Conexões de Saberes, programa este que temcomo objetivo o ingresso e a permanência de alunos de origem popular na Universidade.

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16 Caminhadas de universitários de origem popular

Trilhando

Alexander Almeida Morais*

No dia nove de novembro de 1983, na cidade de Teresina, eu nasci. Meu pai chama-seRaimundo Morais Silva e minha mãe Maria da Conceição Almeida Morais. Até onde lembro,minha infância foi muito boa. O lado ruim ficou por conta das brigas entre meus pais,principalmente quando ele bebia. Isto até hoje acontece, mas com menos freqüência. Meupai é uma boa pessoa. Filho de pais analfabetos, ele veio do interior cearense para trabalharno Piauí. Até os vinte anos ele jamais havia entrado em uma escola. Aqui em Teresina eletrabalhou em uma gráfica e estudou ao mesmo tempo, conseguindo concluir o EnsinoFundamental e Médio. Costumo dizer sempre que, se passei no vestibular e continuoestudando na Universidade Federal do Piauí, devo a meu pai, que me estimulou e meajudou financeiramente; pois, até entrar para o Programa Conexões de Saberes, eu meencontrava desempregado juntamente com meu irmão mais velho, Marcos Paulo AlmeidaMorais. Minha mãe faz apenas bicos, trabalhando como empregada doméstica e sem jamaister tido uma carteira de trabalho assinada. Ela se casou com meu pai aos 16 anos e deixou deestudar logo em seguida, quando meu irmão nasceu. Nos dias atuais, aos 38 anos de idade,ela voltou a estudar e está fazendo o Supletivo. Ela tem muitas dificuldades em acompanharos assuntos escolares, devido ao longo tempo em que ficou fora da escola. Eu e meu irmãoprocuramos ajudá-la sempre para que ela nunca desista.

Atualmente estou residindo com minha avó, Raimunda Ferreira de Morais Silva,noventa e três anos, viúva de meu avô, Manoel Leôncio da Silva, que morreu aosnoventa e cinco anos. Apesar da idade, vovó ainda faz muitas coisas. Seus doces sãodeliciosos, e seu caldo de carne com paçoca é de dar água na boca. Ultimamente seusproblemas de saúde vêm se agravando; são distúrbios no aparelho digestivo eosteoporose em alto grau. Estudar e cuidar de minha avó tem sido uma situação difícilde conciliar. Por duas vezes tive que trancar matérias e desistir de outras, o que faz comque eu me encontre um pouco "atrasado" em relação aos meus colegas. Mas não mearrependo. É claro que vovó tem outros filhos. São sete homens e três mulheres, porémtodos são casados, têm seus filhos e seus trabalhos. Meu pai é um deles. Como ela nãoquer sair de sua casa, eu assumi a responsabilidade. Atualmente ela está morando pertoda casa de uma de suas filhas, tia Maria de Fátima, que também é minha madrinha. Istotem me deixado mais despreocupado, principalmente naqueles dias em que saio pelamanhã e só regresso da Universidade no final da tarde.

* Graduando em Filosofia pela UFPI.

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Só estudei em duas escolas, ambas estaduais. Na Unidade Escolar Júlia Nunes Alves,cursei até a 4ª série. À época, eu só pensava em brincar, fazer amigos, e adorava as aulas deEducação Física; desculpa para ficar horas jogando futebol. Quando ingressei na UnidadeEscolar Professor Odylo de Brito Ramos, passei a levar os estudos com seriedade. Lá estudeida 5ª a 8ª série e depois fiz todo o Ensino Médio. Foram muitas as greves. No princípio euachava legal, "férias forçadas". Certamente esta era a visão de um menino que ainda nãohavia acordado para a dura realidade do mundo. Depois fui tomando consciência, e, a partirdo momento em que percebi que só através dos estudos um jovem como eu poderia alcançaruma melhor condição de vida, comecei a lamentar, e vi que estava sendo prejudicado. Eu etodos aqueles que estudam nas escolas públicas do Brasil. No início do Ensino Médio, foiimplementado o Programa Seriado de Ingresso na Universidade-PSIU. Este programaestabelece que, em vez do tradicional vestibular, o aluno do Ensino Médio faz três provas,ou etapas, como são chamadas, ao final de cada ano letivo, cuja matéria abrangerá apenas oconteúdo curricular daquele ano. Há também a prova específica e de Redação, feita no diaseguinte à realização da terceira e última etapa. Fica claro que este sistema de acesso àUniversidade exige que o aluno tenha cursado um bom Ensino Médio. Foi justamente issoo que não aconteceu comigo. No 2º e 3º ano em que fiz o Ensino Médio, a escola ficoufechada quase metade do ano letivo. Não estou exagerando.

Conseqüentemente, quando a greve acaba, fala-se muito em reposição de aulas perdidas,mas não há tempo hábil. Os professores fazem algumas provas e passam trabalhos, porémnão mais se recupera o que se perdeu. Resultado: os alunos não vão estudar nem a metadedos assuntos referentes à prova do PSIU. O que fazer? Arregaçar as mangas e estudar, dia enoite, em busca do tempo perdido. Felizmente, no ano de 2004, fui aprovado para o Cursode Licenciatura Plena em Filosofia, na UFPI. Hoje estou muito contente por estar nauniversidade, apesar das dificuldades iniciais, tais como a falta de dinheiro para transporte,alimentação e até para tirar xerox. Outro problema grande diz respeito ao meu "analfabetismo"com o computador. Isto tem dificultado a realização dos meus trabalhos escolares; contudo,já estou experimentando algum progresso, a partir do instante que ingressei no ProgramaConexões de Saberes. Este Programa visa estimular um diálogo entre a Universidade e ascomunidades populares, através de ações que criam mecanismos políticos, pedagógicos einstitucionais que contribuem para o ingresso e permanência de estudantes de origempopular na universidade. Ou seja, o objetivo do Programa é fazer com que pessoas dascamadas menos favorecidas possam adentrar o ensino superior para que se tornemprotagonistas de seu próprio desenvolvimento intelectual e profissional.

Confesso que me sinto muito bem por estar participando deste Programa, tendo emvista que, além de estar sendo auxiliado em minha vida acadêmica, eu posso ajudar outraspessoas que também vieram da população menos favorecida. Cada um pode e deve modificarseu destino, basta ter força de vontade e perseverança.

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Mais uma caminhada

Ana Cláudia dos Santos Silva*

Memorial... Parece que estou no fim da vida e sou levada a relembrar tudo o que jápassei. Então, escrevo em uma visão panorâmica e contraditoriamente profunda do quevivenciei e vivo.

No nono dia do mês do homem mais influente da civilização cristã-ocidental, nasci.Minha família agora em cinco: minha mãe, minha amada guerreira, cozinheira de mão-cheia, a melhor do mundo! Minha avozinha, agora tão frágil, e meus dois irmãos. Naquelaépoca contávamos com a presença de meu pai. Houve a separação e tudo mudou.

Sete anos depois, após haver deixado a creche municipal onde passava meus diasenquanto minha mãe trabalhava, entrava em uma nova escola. Vestida em meu conjuntofavorito, rosa e cinza, percebi uma realidade diferente, logo na primeira aula. Era umaescola particular. Lá, estudando com uma bolsa por mérito próprio, fui punida por medefender da discriminação racial. Descobri que crianças podem ser cruéis umas com asoutras, principalmente com uma garotinha pobre e negra. Mas não guardo mágoas, poisnem tudo eram espinhos. Aprendi com o tempo a me sentir uma bela rosa.

Escolão: lugar de seis anos de diversão, crescimento e algumas traquinagens, como,por exemplo, quando fui parar na Diretoria, por brigar com uma colega que se tornou umagrande amiga depois.

Enfim, Ensino Médio, Liceu Piauiense. Não fiz rios de amigos, mas algumas pessoasficaram totalmente marcadas, assim como Ana, amiga que trago comigo até hoje.Simultaneamente, estagiei na Secretaria de Estado da Fazenda, sem padrinhos, valeesclarecer. De mil garotos concorrendo a cinqüenta vagas, aconteceu minha primeira grandevitória. Lá conheci pessoas boas e legais, como também pessoas não legais. Passei porsituações das quais herdei amadurecimento profissional ainda na adolescência.

Vestibular! Passei na primeira vez. Mas não foi sorte, sempre fui uma boa aluna.Estudei em um pré-vestibular muito barato, depois que concluí o terceiro ano. Anoem que não brinquei, não me diverti, apenas senti que era o que eu deveria fazer.Estudava, enquanto minhas amigas do Ensino Fundamental tinham seus primeirosnamorados. Estudei, enquanto tinham seus primeiros filhos; e estudo, enquantosão donas de casa. É o Brasil de uma mulher de família sem escolaridade adequada.Felizmente tenho uma boa orientadora, minha mãe, que me indicou o caminhodo sucesso.

* Graduanda em Letras-Português pela UFPI.

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Sou exceção, sou sonho, sou apenas a essência do que fui e sempre serei; ou seja, AnaCláudia, filha de Antonia e Francisco, neta de Maria, moradora da Piçarreira. Gozandosempre do que os bens públicos podem oferecer, estou no Programa Conexões de Saberes.E, acreditem, vou ser sincera, não era bem o que eu queria. Agora é ao que mais tenho mededicado. Através dele, entendi qual é o meu papel dentro da UFPI: - o de levar esperança aoutras garotas pobres e negras de se tornarem belas rosas, nessa sociedade desigual epoliticamente injusta.

Afinal, o ser humano é mais corpo físico; é como somos tratados diariamente pelosdirigentes desse país. Ele é cérebro, espírito e conhecimento; conhecimento que deveria ser,na realidade, direito de todos, não apenas no papel, onde tudo está bem escrito. Jovens, deorigem popular, deveriam ser a maioria nas universidades públicas, e não o contrário. Noprograma, lutarei para que um dia isso se torne realidade.

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Pequeno diário

Ana Cristina de Sousa Silva*

“O valor das coisas não está no tempo emque elas duram, mas na intensidade comque acontecem. Por isso existem momentosinesquecíveis, coisas inexplicáveis epessoas incomparáveis.”

Fernando Pessoa

Por força do destino, no dia primeiro de maio de 1984, às 02:25h da madrugada, emBrasília, eu nasci. Filha da piauiense Maria das Graças Gaspar de Sousa e de Luís Lobo daSilva, um maranhense. Onze meses após essa feliz data, uma grande tristeza se abateusobre nós. Meu pai voltava do hospital onde trabalhava como auxiliar de Enfermagem e,ao ser assaltado, levou um tiro, à queima-roupa, no peito, vindo a falecer. Decorrido umano de sua morte, minha mãe resolveu voltar para sua terra natal, a cidade de Parnaíba noPiauí; ali comprou uma casa, no Bairro São José, onde até hoje vivo doces momentos.

Minha primeira experiência educacional foi aos quatro anos de idade, em uma crechepróxima a minha casa. Ali fiquei dois anos, indo, em seguida, para a Escola MunicipalGodofredo de Miranda, onde permaneci do Jardim de Infância até a 1ª série do EnsinoFundamental. Lembro-me que sofri muito no Jardim, por ser gordinha. As outras criançasviviam me botando apelidos. Eu também tinha muita dificuldade em dividir as coisas.Provavelmente por ser filha única. Eu ficava dividida. Por um lado, as pessoas diziam queeu tinha que repartir; e, do outro, minha mãe dizia o contrário. Confesso que até hoje issogera conflitos em minha vida.

A partir da 2ª série, passei a estudar no Centro da Cidade, na Escola Monsenhor Lopes,onde se pagava uma pequena mensalidade. Fiz um teste de Português,fui aprovada e me tornei aluna de uma professora muito legal: a Tia Gracinha. Da 3ª série,não me lembro de quase nada, mas toda sexta-feira a diretora fazia um teste de Matemática,com todos os alunos, e eu sempre tirava nota baixa, pois sempre fui péssima com os números.Lembro também das festinhas nas datas comemorativas. Na 4ª série, havia uma professorade Matemática que era um horror; nem lembro mais o nome dela. Em compensação, havia aTia Diná, um anjo que nos tratava como filhos. Neste período, comecei a usar óculos e logoapareceram os apelidos.

* Graduanda em Pedagogia pela UFPI.

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Sempre fui uma criança tímida, mas também sempre gostei de estudar, além de sermuito comportada. Acho que isto justifica o carinho que as professoras tinham por mim.

No ano seguinte, 1996, passei a estudar na Escola Comercial de Parnaíba, ondepermaneci da 5ª a 8ª série. Ela fica na minha rua e, à época, era considerada uma dasmelhores da cidade. Isto explica o porquê de minha mãe ter ficado muitas horas na fila parame matricular. A escola era particular, mas sua mensalidade era pequena. A 5ª série foi umpouco complicada. Mudança de colégio, os novos colegas, professores, disciplinas e atémudanças físicas, já que eu estava entrando na adolescência, mas também foi um anoexcelente, pois fiz minha 1ª comunhão e os novos colegas me acompanharam até a 8ª série.Da 6ª e 7ª séries não tenho fatos marcantes a relatar. Recordo-me apenas dos desfiles de Setede Setembro que eu adorava participar. A 8ª série foi muito difícil. Tirei notas baixas emMatemática e em Inglês, mas acabei passando de ano. Falando nisso, eu já fiquei emrecuperação, mas nunca fui repetente.

Em 2002, tive que escolher entre o Científico e a Escola Normal. O científico eraministrado em um colégio público, o único da cidade, àquela época. Ambos ficavam nomesmo quarteirão. Eu não queria ir para nenhum dos dois, mas minha mãe falou que nãotinha condições de pagar uma escola particular. Optei pela Escola Normal FranciscoCorreia. Ali formamos uma grande família, e passei três ótimos anos. Nos dois primeirosanos, eu ia de bicicleta, e levava cerca de 10 minutos até chegar à escola. No último ano,a Prefeitura disponibilizou um ônibus do transporte escolar que passava no meu bairro. Ocoletivo era muito velho e havia um enorme buraco no assoalho, mas, graças a Deus,nunca aconteceu nenhum acidente. Nesse mesmo ano, minha rotina ficou bem corrida.Pela manhã Escola Normal; à tarde estágio; e, à noite, freqüentava aulas em um cursinhoparticular de uma escola cooperativa.

O fim do ano chegou e com ele o vestibular. Fiz a inscrição nas duas universidades,UFPI (federal) e UESPI (estadual), e no final a bomba estourou. Não passei em nenhuma, eaí veio uma grande frustração. No ano seguinte, decidi não freqüentar nenhum cursinho, epassei a estudar em casa. Novamente tentei as duas universidades e fui aprovada na UFPIonde estou atualmente, cursando o sexto período.

Minha vida acadêmica tem sido muito proveitosa. Em 2005, tentei uma monitoria,mas não consegui; contudo, recebi um convite para uma outra monitoria em uma amostrafotográfica do SESC. Em seguida, uma ONG, em parceria com o Banco do Brasil e SENACestavam procurando universitários para ministrar aulas de reforço aos sábados para jovensdo Programa Adolescente Trabalhador-PAT. Ministrei aulas de Língua Portuguesa e tive aprimeira experiência com adolescentes. Achei ótimo!

Em 2006, tive meu primeiro emprego em uma escola cooperativa, próxima de minhacasa. Lecionei apenas no primeiro semestre para a 3ª série do Ensino Fundamental. Tambémparticipei da II Jornada Pedagógica. Não estive na I Jornada por falta de dinheiro.

Em março de 2006, a UFPI deu início ao projeto Movimento de Articulação NortePiauiense para o Desenvolvimento Sustentável-MANDU, cujo objetivo era criar umobservatório da juventude nas cidades e microrregiões. Não fiz a inscrição, pois a bolsa erade R$ 150,00, o mesmo valor que eu ganhava lecionando no colégio.

Em abril, surgiu uma nova bolsa através do Programa Conexões de Saberes. Fiz ainscrição, fui chamada e hoje atuo junto ao MANDU. Para mim é uma nova experiência,

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pois nunca havia participado de um projeto tão grande. Através do Conexões, conheci osmunicípios vizinhos e sua juventude, pois embora estivessem tão perto, ao mesmo tempoestavam longe pela falta de contato. A maior parte dos alunos do programa reside emTeresina. Daqui de Parnaíba havia apenas eu e um rapaz. Tem sido muito bom conhecer arealidade dos outros colegas.

O Conexões me proporcionou uma incrível experiência, que foi participar do IISeminário Nacional no Rio de Janeiro. Foi um sonho realizado que nunca vou esquecer,pois sempre tive vontade de conhecer a cidade. Adorei tudo e espero viver outras experiênciasenquanto estiver no programa.

Em relação a minha caminhada até chegar à universidade, agradeço a Deus e a minhamãe, que, além de mãe, foi pai, irmã e guia, pois soube me conduzir nesta estrada, sempresegurando minha mão.

“Aqueles que são incapazes de compreender o que há de grandenas pequenas coisas, terminarão sem enxergar o que há de pequenonas grandes coisas e serão confundidos pelo resto da vida.”

Paulo Coelho

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Retratos da minha história

Ana Karoline de Sousa Carvalho*

O casamento de meus pais, por si só, já daria um livro. Suas irmãs não queriam que elese casasse com minha mãe, por julgar que ela era de uma família muito pobre. Apenas tiaEliane (minha madrinha) apoiou sua decisão, e o presenteou com o fogão. Minha avómaterna, mesmo sendo dona de uma loja de tecidos, mandou apenas um metro de pano, eainda perguntou qual seria a cor. Isso magoou muito minha mãe, pois ela sempre pregou acastidade, por ter sido educada pelos meus avós, Adelino e Das Dores, duas pessoasmaravilhosas que eu amo de paixão. Contra tudo e contra todos, eles se casaram. Parecementira, mas, no dia, o padre esqueceu a data do casamento e estava tranqüilamente bebendona sacristia, e o noivo chegou depois da noiva. Os dois acabaram se casando. Mamãe disseque se casou porque foi forçada pelo longo tempo de namoro, mas eu sei que, no fundo, elagosta dele, embora não queira admitir por tudo o que ele lhe fez passar.

Quando eu nasci, minha mãe, Jaqueline, disse que foi a maior alegria da vida dela.Meu pai bebia muito e ela estava sempre sozinha. Ela costumava dizer que eu era suamelhor amiguinha; conversava tudo comigo, e eu, embora não entendesse o que estava sepassando, a ouvia e isso ajudava muito.

Meu pai, Evandro, tem problema com o alcoolismo. Às vezes ele passava três dias semaparecer em nossa casa e ficávamos tristes. Eu, por ver minha mãe sempre chorando, e elapor levar aquela vida sempre sofrida, principalmente nos fins de semana.

Minha mãe era muito nova quando se casou (19 anos), e estava concluindo opedagógico. Quando eu nasci, meu pai tomava conta de mim para que mamãe pudesse irestudar. Deus é muito bom! Ficávamos, os dois, de 14:00 até às 23:00 e, nesse período, elenão bebia sequer uma gota de álcool.

Quando completei três anos, nos mudamos do Bairro Bela Vista para o apartamento detia Marilene, irmã de meu pai, situado no Bairro Buenos Aires, em Teresina. Foi aí que teveinício minha vida escolar, mais precisamente no Educandário Tia Mara, escolinha queficava em frente à nossa casa e onde estudei até a Alfabetização. Como era muito pequena,não tenho muitas recordações desse tempo.

Meu pai trabalha na Assembléia Legislativa do Piauí, e os funcionários resolveramformar uma cooperativa; em seguida, fundaram a Escola Cidadão Cidadã, entidade sem finslucrativos para o ensino dos filhos dos funcionários. Foi nessa época que nasceu minhairmã, Luana, e, um ano depois, a caçula, Jéssica. O nascimento de minhas irmãs promoveu

* Graduanda em Nutrição pela UFPI.

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uma grande mudança no comportamento de meu pai. Ele decidiu que não podia maiscontinuar bebendo nem causando sofrimento à sua família. Imediatamente minha mãe euma irmã dele, tia Margareth, lhe deram todo apoio, e ele começou a freqüentar as reuniõesdo AA - Alcoólicos Anônimos. Para nossa alegria, nunca mais ele bebeu.

No Colégio - Cidadão, Cidadã - fiz muitas amizades e conheci pessoas com as quaisme relaciono até hoje. Participei de passeios, gincanas e, principalmente, estudei com bonsprofessores por um custo reduzido.

A vida em casa seguia calma até começarem as brigas. À época eu não entendia muito,mas hoje sei que as seqüelas causadas pela bebida eram a causa principal. Hoje tudo estásuperado.

Quando completei 11 anos, novas rusgas entre meus pais causaram um grande rebuliçona família. Meus pais quase se separaram. Minha mãe viajou e ficou um mês em Brasília, nacasa de uma tia, junto com minha avó. Eu e minhas irmãs fomos espalhadas nas casas dasirmãs de meu pai. Foi um tempo muito ruim para todas nós. Nenhuma casa é igual a nossa.Mais uma vez tudo acabou bem. Os dois se reconciliaram e a paz voltou a reinar.

A parte financeira começou a apertar quando minhas outras irmãs começaram a estudar.Recordo-me que, após as aulas, voltávamos para casa no ônibus circular, o amarelão, cujoponto final ficava dentro da Universidade Federal-UFPI, bem perto da nossa casa; meu painos comprava dindim e me dizia que um dia eu iria estudar ali.

Estes problemas levaram as irmãs de meu pai a se cotizarem para nos ajudar. Foi assimque, ao completar 13 anos, nos mudamos para o Condomínio Santa Marta. Tia Carminhaarca com a prestação do apartamento e tia Margareth paga o condomínio.

Minha mãe continua costurando para fora e, graças a seu talento, tem uma clientelafiel e pode ajudar nas despesas da casa.

Em 2002, eu cursava o segundo ano do Ensino Médio, e, na festa de aniversário deuma amiga, conheci o Vinicius, que é meu namorado até hoje.

Um momento muito triste em minha vida foi o falecimento de minha tia e madrinhaEliane. Confesso que não tenho palavras para descrever essa perda. Ela era a maior amiga deminha mãe, de meu pai e sua irmã mais querida. Ela sempre esteve ao lado deles.

No terceiro ano do Ensino Médio, passei por grandes dificuldades, como por exemplo,falta de livros, cansaço... eu estava desestimulada. Por outro lado, meus pais diziam que euia ser uma doutora e não passaria pelos problemas que eles viveram. Então eu buscavaforças e continuava a estudar.

Terminado o Ensino Médio, inscrevi-me no vestibular da UFPI para cursar Nutrição.Dias depois, em 28 de dezembro de 2004, Vinicius, meu namorado, sofreu um acidente demoto e quebrou a clavícula. Fiz as provas, mas estava muito insegura quanto ao resultado.Passei a visitá-lo em casa todos os dias. Em uma dessas visitas, ouvimos o rádio transmitindoa lista dos aprovados no vestibular. Quando ouvi meu nome, não acreditei. Fiquei muitoemocionada e Vinicius me disse que nunca duvidou de minha aprovação. Sei que ele foimuito importante nessa minha conquista. Com muita ansiedade, corri para casa, louca paracontar a meus pais. Quando cheguei, meu pai me disse, olhando nos meus olhos, que estavaorgulhoso de mim. Amo demais a minha família e, no fundo, tinha medo de decepcioná-los,pois eles sempre acreditaram em mim e me deram força.

Com relação à UFPI, pude contar com a ajuda de minha tia Margareth, que me dava ospasses de ônibus para as aulas do centro; ajudava-me com o xerox e em muitas outras coisas,

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tais como: impressão de meus trabalhos, acesso à Internet, visto que ainda não tenho estesbenefícios. Ela também me incentiva muito a estudar, a fazer mestrado, doutorado e mepassa muitas dicas! Por tudo isso, sou-lhe muito grata, sei que quando precisar posso contarcom ela.

Atualmente estou na Universidade e, com fé em Deus, no segundo período de 2008,me formo nutricionista. Também participo de um Programa de ideologia admirável,"Conexões de Saberes", que me tem dado meios de ajudar pessoas que precisam assim comoeu precisei e preciso. Estou muito feliz por me sentir útil, como também agradecida pelasoportunidades que tive na vida. Apesar das dificuldades, sou muito feliz.

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Minha história, minha luta

* Graduando em Ciências Econômicas pela UFPI.

André Vieira dos Santos*

A razão da existência dos obstáculos em nossa vida é a certeza de que temos acapacidade de ultrapassá-los e a consciência da satisfação de conseguirmos uma vitóriacom sabor especial; porém é necessário que acreditemos nisso. Deste modo, não tenho avergonha, mas sim o orgulho de admitir que minha trajetória, até ingressar na UFPI, foimarcada por muitas dificuldades que me fizeram aprender e compreender que a vida não éfeita somente para rir, mas também para chorar.

Meus pais

Minhas dificuldades são provenientes da infância de meus pais; eles são naturais deum pequeno povoado chamado Barreira, situado próximo ao município de Araiozes (MA),onde o meio de sobrevivência era a pesca e o trabalho na roça. Meu pai, Raimundo NonatoGomes dos Santos, perdeu o afeto paterno aos seis anos por motivo de separação de meusavós. A partir de então, ele foi morar com sua mãe e começou a ajudá-la na roça e nosafazeres domésticos. Mesmo assim, com muita força de vontade, conseguiu concluir oEnsino Médio, dividindo seu tempo entre a escola e o trabalho. Por outro lado, minha mãe,Rosinete Maria Vieira dos Santos, dividia a casa com nove irmãos, sendo quatro homens ecinco mulheres, com ela seis, totalizando dez filhos. Somando meus avós daria um time defutebol com um jogador na reserva. Mais tarde o time, infelizmente, se desfalcou com ofalecimento de uma das filhas.

Seguindo a lógica, os homens acompanhavam meu avô na roça e nos trabalhos pesados,enquanto as mulheres dividiam as tarefas de casa com minha avó. Detalhe: todos estudavam.

Diferentemente de meu pai, minha mãe não foi longe nos estudos, tendo concluídoapenas o Ensino Fundamental.

Em 1979, meu pai mudou-se do Maranhão para a cidade de Parnaíba-PI, ondemoramos até hoje.

Em 1982, meus pais começaram a namorar e, exatamente, um ano depois,casaram-se no civil.

Em 1984, minha mãe engravidou pela primeira vez e, no dia 31 de março, deu a luz aminha única irmã, Andréia Cristina Vieira dos Santos.

Aos dois dias do mês de dezembro de 1985, eu nasci. A vida seguiu com muitasdificuldades, até que, após oito anos de aluguel, adquirimos nossa casa própria.

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Vida escolar

Excetuando-se o Jardim I, II, e III, devido à ausência de recursos, estudei sempre emcolégios públicos. Como nunca fui de mudar muito de colégio, fiz minha caminhada estudantilem apenas quatro escolas, sendo a UFPI meu quinto estabelecimento de ensino e progresso.

Comecei a estudar na idade adequada. Aos três anos meus pais me matricularam noJardim I. Diferentemente de minha irmã e da maioria das crianças, eu não chorava querendovoltar para casa, pois rapidamente me familiarizei com o ambiente escolar. Eu gostava decobrir as figuras tracejadas, para, em seguida, cobri-las, brincar com os colegas na hora dorecreio e, o que era melhor, cantar para lanchar. Aos cinco anos eu já sabia ler.

Terminada esta fase, mudei-me para outra escola onde permaneci até a 4ª série daAlfabetização. O maior problema era a grande distância entre minha casa e o colégio, o queme obrigava a tomar uma condução. Isto me levou a mudar para uma escola mais próximade casa, então completei o meu Ginásio (Fundamental Maior).

O Ensino Médio chegou e com ele um caminho cheio de desafios e novos obstáculos.Era um novo significado que eu deveria compreender e saber superar. A educação pública noscria barreiras difíceis de serem superadas: fraco conteúdo, pouco incentivo e falta decompromisso de muitos professores. Mesmo assim nunca perdi a esperança de um dia ingressarna tão esperada universidade. Através do Programa Seriado de Ingresso a Universidade-PSIU,fiz uma prova, que é chamada Etapa, ao fim de cada ano, sendo que, ao final do 3º ano, era feitauma avaliação específica do curso escolhido, além da prova de Redação.

Eu dei tudo de mim, mas não tinha certeza de aprovação. Sabia ser uma tarefa difícil,pois ia me encaixar na pequena percentagem de aprovados provenientes do ensino público.A sorte estava lançada e a esperança não me abandonava. No dia do resultado eu preciseisair. Minha irmã ouviu meu nome no noticiário de uma Rádio local. Ao chegar em casa, elame deu a boa nova. Fiquei feliz e atônito. Corri então para a Universidade Federal do Piauí-UFPI, a fim de conferir meu nome na lista de aprovados para o curso de Ciências Econômicas.O sorriso estampado em meu rosto era o resultado da grande alegria pela aprovação etambém pela emoção que meus pais deviam estar sentindo. Ali nascia um futuro economista.

A matrícula na UFPI

Passada a euforia daqueles belos dias, chegou a hora de juntar todos os documentosnecessários à matrícula. Aí começou uma série de complicações. Eu pensei comigo: "Separa chegar aqui eu tive que superar muitos obstáculos, esse então será mais um". Mas nãofoi nada fácil. Minha mãe estava sempre me acompanhando. Quando chegamos ao colégiopara pegar meu histórico escolar, apenas o último estava pronto. Então bateu o desespero,pois a data da matrícula se aproximava. Mais uma vez a ineficiente burocracia aprontavadas suas. Os documentos deveriam ir para a Regional de Educação de Parnaíba, depoisseguiriam para a capital Teresina e, após serem autenticados, retornariam para Parnaíba.Passei dias de angústia e medo.

O dia da matrícula finalmente chegou. Eu tinha em mãos todos os documentos exigidospela Universidade, menos o certificado de conclusão do Ensino Médio. Tive então queassinar um termo de compromisso com prazo limite estipulado. Caso não entregasse odocumento até aquela data eu corria o risco de perder a vaga. Sete outros colegas seencontravam em igual situação. A data limite se aproximava e nada de documento. Nós

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íamos ao colégio todos os dias. Estudar anos a fio, passar no vestibular e não poder estudarpor falta de um simples documento. Eis aí uma provação que não desejo a ninguém, pormais que mereça. A diretora da escola, vendo nossa situação, tomou uma sábia e santaatitude. Viajou para Teresina e resolveu o problema. Para alívio de todos, os papéis foramentregues antes do prazo final.

A vida acadêmica

Meu primeiro dia de aula como acadêmico estava muito próximo, e a ansiedade nãoparava de crescer. Eu tinha consciência que minha vida ia mudar. A convivência, a partir deagora, seria feita em nível superior. Sabia também que ia conviver com pessoas de todas asclasses sociais, desde o aluno vindo das camadas populares, como eu, ao acadêmico declasse média alta. Isso mexia um pouco comigo, mas não a ponto de me desviar do foco demeus objetivos.

O dia 22 de março de 2004 finalmente chegou, e nunca mais saiu de minha memória.Eu estava me sentindo um estranho no meio daquelas pessoas que nunca havia visto.Aliviei-me ao encontrar uma conhecida que, por sinal, fora aprovada no meu curso. Oscalouros foram recepcionados com a exposição da programação e da grade curricular.

O primeiro semestre foi muito conturbado, pois a UFPI estava em processo eleitoralpara a escolha do reitor, e, senti-me importante por estar participando de uma ação democráticadentro da universidade. O tempo foi passando e eu comecei a descobrir que nem tudo eramaravilhoso. A Biblioteca era deficiente, pois a demanda era maior que a oferta de livros.Como não havia dinheiro para adquirir os livros, que eram muito caros, apelei para a xeroxe para a cópia fiel das transparências exibidas em sala de aula. Às vezes eu fraquejava, maslogo me reanimava e continuava minha trajetória.

Contudo, jamais pensei em desistir, pois aprendi com meus pais que a vitória não temgraça se não ultrapassarmos os obstáculos; e que as coisas difíceis são feitas para os corajosos,para aqueles que têm vontade de vencer na vida, sem medo de errar. As coisas fáceis ficam paraos preguiçosos, os acomodados, para aqueles que têm medo de dar o primeiro passo e caminhar.

Atualmente estou cursando o 6º período de Ciências Econômicas e sou bolsista doPrograma "Conexões de Saberes". Além da valiosa contribuição econômica, o programa meoferece uma imensurável aprendizagem que, futuramente, tenho certeza, irá contribuir parame tornar um cidadão mais humano e consciente de minhas responsabilidades para com anossa sociedade, mediante minha colaboração com as políticas públicas que o programapropõem. Sei também que já começo a pensar sobre minhas ações e tenho a convicção deque meus sonhos se tornarão reais se, a cada obstáculo, eu tiver a consciência de que sousuficientemente forte para superá-lo.

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Caminhos do aprendizado

* Graduando em Pedagogia pela UFPI.

Cícero José Pereira*

Os reflexos em família

Antes de discorrer minha vida nestas linhas, tão inéditas para mim quanto as pretensõesdeste Programa no Piauí, espero conseguir traduzir grandes momentos de uma vida demuita luta, simplicidade, compromisso e correlação humana. Os que me conhecem sabemque sou um tanto reservado, por isso, quando soube da anunciada publicação, fiquei receosocom essa idéia de contar minha vida. Neste caso, vamos aos fatos.

Minha vida sempre foi direcionada para o estudo, para a educação. As frases do tipo: "Navida nada se consegue sem educação" ou "Estude para ser alguém na vida" sempre foramminhas diretrizes. Meus pais, logicamente pensando em um futuro melhor para os filhos,sempre estiveram presentes na minha educação, e sua sábia influência foi decisiva para meumomento atual. Eles vieram do campo, são pessoas batalhadoras, mas de pouca instrução.Mesmo assim, ao chegarem à cidade grande, procuraram nos mostrar o caminho certo diantedas dificuldades da vida. Sou-lhes grato por serem meus professores da vida, presentes emtodos os momentos, e cujos esforços quero corresponder sempre com meus sentimentos.

Sou o mais novo de três irmãos. Suas vidas foram bem mais difíceis que a minha. Aindaassim eles me deram todo o apoio que precisei. Atualmente eles estão casados, mas continuoachando que a vida de solteiro é boa.

Vivi boa parte de minha infância estudando. A diversão de sair à rua e brincar como todomoleque deixou muito a desejar. Quando aprendi a ler, minha rotina mudou. Eu catava todosos tipos de publicação, tais como livros, jornais, revistas, e lia sem parar e com muito prazer.

Outras reflexões em linhas

Minha fase na escola teve início em uma sala improvisada de ensino particular, comapenas uma única turma de Alfabetização, cujas regras infringidas por comportamentovaliam como castigo. Com sua mente rudimentar, quase "neanderthal", a professora lançavamão da "palmatória" (régua de madeira), que, à época, ainda era o método utilizado paraacalmar os ânimos. Mas de tão acostumados com aquela bagunça, a molecada não tava nemaí para ela. Nos anos posteriores do Ensino Fundamental, tive bom desempenho, apesar dabaderna. No segundo ano, aconteceu um fato que até hoje nunca esqueci. A professoraestava à lousa escrevendo e explicando ao mesmo tempo, a matéria do dia. Nas carteiras ao

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fundo da sala, alguns alunos faziam um barulho ensurdecedor; certamente ninguémconseguia ouvir nada. Foi então que ela, olhos vermelhos de raiva, tomada por uma fúriainsana, pegou o apagador; seus olhos buscaram sofregamente aquele que era o maisbagunceiro e que ela conhecia muito bem; com precisão e certeza ela mirou o alvo earremessou o apagador. Quando dei por mim, vi, assustado, aquele objeto viajando célereem minha direção. Ele parecia mais um tijolo, à medida que voava sobre minha cabeça. Otiro tinha a direção certa, mas o moleque foi mais rápido e se esquivou. A professora Lourdes,Deus levou, quanto àquele menino, nunca mais o vi.

Após concluir o Ensino Fundamental, consegui uma vaga para cursar o Ensino Médioem uma escola pública na minha cidade, Timon-MA, situada à margem esquerda do rioParnaíba; do lado direito, Teresina, capital do Piauí. Os problemas de infra-estrutura nasescolas públicas são comuns tanto no Ensino Médio quanto no Ensino Fundamental, esobejamente conhecidos. Entretanto, tive bons professores, e, durante o ano em que lápermaneci, pude aproveitar para colocar em prática o meu aprendizado, quando fiz um testeseletivo para Eletrotécnica do CEFET de Teresina. No ato da inscrição, eu não tinha amenor idéia do que me esperava futuramente. Eu havia sido aconselhado por terceiros quediziam tratar-se de um curso rentável financeiramente. Fui aprovado e passei a freqüentar asaulas em meio a protestos de estudantes e professores. Os primeiros clamavam por melhoriasna infra-estrutura física, tais como a substituição de equipamentos sucatados; e os segundos,aumento salarial. Hoje, posso afirmar, com segurança, que as condições de ensino-aprendizagem também eram deficientes. Cito como exemplo a valorização excessiva deteorias em detrimento do ensino prático que a própria atividade requer. O estágio que nosfoi oferecido, em uma companhia de energia elétrica local, foi uma decepção. Nossamão-de-obra foi explorada e subutilizada em tarefas burocráticas não condizentes comnossos objetivos de aprendizado. A decepção foi tamanha que não consegui me firmar naprofissão. Foi então que resolvi tentar meu primeiro vestibular na Universidade Estadual.Escolhi um curso muito concorrido e, como não estava bem preparado, não fui aprovado.No ano seguinte, tentei novamente, desta vez na Universidade Federal do Piauí, e escolhiuma área de conhecimento que admirava tanto pela importância que representa para asociedade quanto pelo rico conteúdo de leituras voltadas para a educação. Desta vez, comgrande êxito, consegui a aprovação. E que festa veio depois!

Os primeiros contatos com a Universidade deram-me informações de grande valia sobreo espaço acadêmico e sobre o Curso de Pedagogia. A partir daí, comecei a me inteirar da vidade estudante universitário. Contratempos, convivências, sonhos e realizações cotidianas.

A forma como desenvolvo este escrito é para expressar a minha insatisfação quantoaos problemas de ensino que enfrentei em minha vida escolar. É notória a absurda injustiçasocial que diferencia os ricos dos pobres, inclusos e excluídos dos mesmos direitos. Istoaliado à falta de compromisso dos dirigentes públicos deste país, que não assumem, de fato,suas obrigações para com os interesses da maioria da população desprovida de políticaspúblicas sérias e eficientes.

Atualmente sou estudante de Pedagogia da UFPI, e vejo perspectivas de vida promissoraneste novo empreendimento. Quando tomei conhecimento do Programa "Conexões deSaberes", de seu diálogo entre a Universidade e as Comunidades Populares, de seus objetivostendo em vista a causa social, não perdi tempo, e abracei esta idéia, pensando naspossibilidades enriquecedoras que o Programa pode proporcionar à carreira de um estudante

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universitário juntamente com a oportunidade de poder contribuir para a melhoria daqualidade de comunidades populares marcadas pela hipocrisia elitista. Em Teresina, estamosatendendo a comunidade da "Vila Parque Ininga", proporcionando atividades educacionais,de lazer, saúde, entre outras tais que podem inserir a participação daquela gente no meioacadêmico. Neste primeiro ano do "Conexões", tivemos a grande chance de poder, juntamentecom as delegações de outros Estados, participar do Encontro Nacional ocorrido naUniversidade Federal do Rio de Janeiro. Ao apresentarmos nossos trabalhos e nossaspropostas, reafirmamos politicamente o "Conexões de Saberes" para todo o País.

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Passos de resistência

* Graduando em História na UFPI.

Cleane Maria Alves*

Neste texto, tentarei fazer uma retrospectiva de minha vida. Falar de si mesmo é semprealgo muito complicado. É impossível fazê-lo sem que nos envolvamos e sem carregar o textode subjetividades. Deste modo, ressalto que é este o meu objetivo, ou seja, envolver-me e fazercom que conheçam um pouco da minha caminhada até o momento atual.

Nasci na pequena cidade de Guadalupe, localizada no interior do Piauí. Sou de umafamília de oito filhos, liderada por meu pai, Luiz Alves, um agricultor, e minha mãe, MariaCleide, assalariada do município. Fui a penúltima a nascer. Minha trajetória de vida inicia-se com um parto prematuro que resultou em uma criança debilitada e de saúde frágil. Euficava durante semanas no hospital, e meus pais, desesperados, não sabiam como agir, jáque os poucos médicos da cidade diziam que a única coisa a fazer era me levar para casa eaguardar o momento de minha morte. Felizmente, "mãe de verdade nunca desiste", e meuspais continuaram procurando assistência para manter vivo aquele pequeno e frágil ser.Como drible na fatalidade, eles conseguiram vencer essa primeira batalha, e tornei-me umacriança alegre e cheia de energia.

Desfrutava de todas as delícias de viver em uma cidade pequena, com total liberdadee segurança para brincar. Lembro-me bem que adorava ficar mexendo nos cadernos velhosde meus irmãos, pois havia em mim uma enorme curiosidade sobre como seria a escola; eimaginava como um universo mágico e misterioso.

Aos cinco anos de idade, fui matriculada em uma escolinha municipal, próxima aminha casa, e onde minha mãe trabalha como zeladora. Eu era uma criança muito tímida naescola; tinha poucos amigos, mas eram amizades sinceras, sendo que minha melhor amigaera minha prima Edite. Estávamos sempre juntas.

Depois dessa primeira fase, fui transferida para uma outra escola a fim de iniciar a 5ªsérie. A escola também era pública, mas era mais exigente, e comecei a perceber a fragilidadedo meu ensino básico. Nós não éramos preparados para a compreensão dos assuntosabordados, mas sim para sua memorização.

Ao terminar o Ensino Fundamental, na 8ª série, eu me perguntava como ia fazer paracontinuar estudando, pois em Guadalupe o Ensino Médio municipal ainda não estavaregulamentado, e faltavam opções de uma educação de melhor qualidade. Foi então que percebio quanto era importante conseguir passar em um teste seletivo para a Escola Agrícola deFloriano-PI, cidade vizinha, que era considerada pólo educacional no Sul do Estado.

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Ao enfrentar o teste, tinha em mente várias dúvidas: - e se eu passar? Como e onde morar? Por outrolado, se não fosse aprovada, seria uma grande decepção. Essas dúvidas não cessaram, mesmoquando eu soube que havia sido selecionada, tendo vencido aquele primeiro desafio. Na verdade,até no momento de alegria, da comemoração, aquela angústia não me saía do pensamento.

Felizmente meu pai tinha uns parentes em Floriano. Eu não os conhecia, não haviamuita aproximação, mas meu pai conseguiu entrar em contato e ficou acertado que eu iriamorar, temporariamente, com a família de uma prima.

Dona Luzia me recebeu muito bem. Ela é uma pessoa que admiro muito e que sempreme tratou com muito carinho. Passado o primeiro ano do Ensino Médio, ela me chamoupara conversar, e disse que eu não mais poderia ficar com ela, pois estava para receber umasobrinha que morava em Teresina, e que havia passado em um concurso público para Floriano.

Eu tinha apenas 15 anos de idade e já estava, novamente, sem possibilidade de darcontinuidade à minha caminhada como estudante. De sorte, encontrei duas pessoas maravilhosas:o Sr. Miguel e sua esposa Dª Carmelita. Eles me deram muita força e permitiram que eu fossemorar com seus filhos que já estudavam em Floriano, dividindo apenas algumas despesas. Estafoi mais uma família que me acolheu, em um momento de resistência à minha realidade.

Eu me preocupava como minha mãe iria fazer para retirar parte do salário mínimo querecebia para custear meus estudos. Sentia um peso na consciência, pois, além de mim, haviamais três irmãos e um sobrinho que viviam com meus pais.

Resistir até onde pudesse foi sempre o meu objetivo, e, apesar dessa dura realidade,considero que consegui vencê-la. Não apenas por mim, mas principalmente pelas e atravésdas pessoas que, de alguma forma, me deram apoio. Não fossem as oportunidades quesurgiram e que pude aproveitá-las, eu jamais teria conseguido chegar até aqui. Reconheçoo mérito, mas penso que somente acreditar e traçar objetivos não leva à vitória, pois, seassim fosse, estaríamos atribuindo a cada excluído socialmente a culpa por seu fracasso. Aocontrário, acredito que só conseguimos vencer se, de alguma forma, tivermos oportunidadepara tanto, caso contrário, assim como acontece com a grande maioria, não conseguiríamos"remar contra a maré".

Diante de tal realidade, ultrapassei cada etapa do Programa Seriado de Ingresso aUniversidade-PSIU, e, na 3ª etapa, optei pelo Curso de Licenciatura em História. Só recebio resultado dias depois de sua divulgação, pois não havia jornal na minha cidade e o acessoà Internet era muito difícil. Eu estava sozinha com um amigo que conferiu o resultado pelaInternet, em sua casa. Conferimos várias vezes a lista, e meu nome não estava ali. Olhamosmais uma vez, então vimos: Cleane Maria Alves, aprovada. Comecei a chorar, em um mistode alegria e tristeza. Mais uma vez a incerteza veio à minha mente. De que adianta passar senão vou poder morar em Teresina, estudar e realizar meu sonho de ter um curso superior?Naquele primeiro momento, fiquei mais triste que alegre. Cheguei em casa e não disse nadaa ninguém. Minha irmã, Celma Alves, me perguntou por que eu estava tão calada, e eu disseque havia passado no vestibular. Ela, muito feliz, perguntou-me: - então, por que você nãoestá feliz? Expliquei os motivos e ela me deu a maior força. Disse que ia conversar com meupai e tudo ia dar certo.

Passei um longo tempo deprimida, até meus pais perceberem o quanto aquilo eraimportante para mim. Como sempre, meu pai esforçou-se ao máximo, e entrou em contatocom um sobrinho, residente em Teresina. Mais uma vez, consegui um lugar temporário paraficar. Eu já tinha ouvido falar na Casa do Estudante do Campus da UFPI, e parti com a

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esperança de conseguir uma vaga, pois era minha única chance. Agarrei-me a esta esperançae recuperei a vontade de lutar. Foram muitas idas e vindas ao Centro de Assistência Socialda UFPI, até que, finalmente, consegui minha vaga. Agradeço muito ao Dr. José Alves, porter me acolhido durante os dias decisivos de espera.

Atualmente estou me realizando em um curso que é minha paixão. Sinto meushorizontes se alargarem a cada dia, e me delicio com as maravilhas do saber em cadamomento de construção de conhecimento.

Faço parte do Programa "Conexões de Saberes", que visa promover oportunidadesàqueles que desejam lutar pelo sucesso estudantil e se deslumbrar nos labirintos do saber.Além disso, promove o debate sobre diversos temas de grande relevância social. Para mimé um grande prazer estar com pessoas que, de alguma forma, têm ou tiveram as mesmasaflições que eu. Afinal, não ficar de braços cruzados diante das desigualdades que se alastrampor nossa sociedade é o primeiro passo para construirmos uma realidade social menossegregadora, preconceituosa, racista, discriminatória e elitista.

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Cleylce, botão de rosa que desabrochou

* Graduanda em Pedagogia pela UFPI.** Os trechos do presente texto, aspeados ou com asteriscos, são de uma mensagem, de autor anônimo,intitulada "A Viagem", apresentada em slides do microsoft Power Point.

Cleylce Santana da Silva*

Mesmo com os empecilhos que dificultam atingir os objetivos, comparo a vida a umalonga viagem de trem. Isso mesmo, "a vida não passa de uma viagem de trem, cheia deembarques e desembarques, alguns acidentes, surpresas agradáveis em alguns embarques edesagradáveis em outros".* Deste modo, menina/mulher, relato alguns momentos marcantesde minha viagem. Nasci de uma família que, até eu completar dez anos, era constituída deseis pessoas. Posteriormente, em 1992, foi reduzida para cinco com o falecimento de meupai e chefe de família, Antônio de Pádua. A partir daí, todos, e em especial minha mãe,Gleuce Santana, tivemos que lutar pela sobrevivência.

"Às vezes, sem você perceber, fico lhe observando e vejo que aquele bebezinho, maisque os outros, foi enviado por Deus. Explico o 'mais que os outros'. Eu esperava um meninoe veio uma menina. Como tudo o que tenho me foi dado por Deus, você é o bem maisprecioso que recebi" (palavras de minha mãe).

Nasci em 30 de janeiro de 1982, sou a caçula da família. Mesmo com todas asdificuldades, minha infância foi muito feliz. Minha educação infantil foi concluída em umapequena, mas aconchegante, escola de bairro chamada Monteiro Lobato. Jamais queroesquecer minha infância, pois desejo ter sempre dentro de mim a inocência de uma criança.

Foi também em uma escola de bairro que comecei a descobrir os segredos da vida, e concluío Ensino Fundamental. Esta parte de minha vida também foi feliz, mas com alguns solavancos.

Quando nascemos e entramos nesse trem nos deparamos comalgumas pessoas que julgamos estarão conosco durante todo otrajeto: nossos pais. Infelizmente não é bem assim. Em algumaestação eles descerão e nos deixarão órfãos de seu carinho,amizade e de sua insubstituível companhia. Por outro lado,pessoas interessantes e que se tornarão muito especiais vãoembarcando. Chegam os irmãos, aparecem os amigos e surgemamores maravilhosos.**

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Sentindo-me uma mulher, mas sempre com a inocência de uma criança, munida demuita força de vontade para vencer na vida, comecei a cursar o Ensino Médio na EscolaCorujão, e, posteriormente, no Instituto de Educação Antonino Freire, onde concluí oMagistério em nível médio. Desde então, senti-me estimulada a conhecer mais profundamenteo processo educacional e tornar-me uma agente transformadora da realidade social. Paratanto, iniciei os estudos para o vestibular. Este foi um dos períodos mais duros. Os problemaseconômicos e emocionais pareciam intransponíveis, mas jamais pensei em desistir.

Muitas pessoas tomam o trem apenas para passear. A viagem deoutras é cheia de tristezas. Algumas circularão pelos vagões,prontas a ajudar a quem precisa. Muitas descem e deixamsaudades eternas. Outras tantas entram e saem despercebidas.**

Estamos em 2003. É hora de enfrentar, pela primeira vez, o vestibular na UniversidadeFederal do Piauí. Agora sou uma rosa e uma grande mulher. Quem luta sempre consegue, eeu consegui. A alegria foi ainda maior porque minha irmã, Cláudia Santana, também foiaprovada. Mais uma etapa de minha vida foi vencida, graças ao esforço e superação.

É curioso constatar que alguns passageiros, que nos são tãocaros, acomodam-se em vagões diferentes do nosso. Isto nosobriga a fazer a viagem longe daqueles que amamos. Muitas vezesdeixamos nosso vagão e vamos até o deles, porém quandochegamos não podemos dividir o mesmo banco, pois já tem genteocupando o lugar.**

O tempo não pára. Em 2006, uma nova conquista veio me trazer mais evolução pessoale crescimento profissional. Integrei-me ao Programa "Conexões de Saberes". O aprendizadoe a troca de saberes são feitos em grupo e este se torna uma grande família.

E o trem segue viagem. Cheia de atropelos, sonhos e fantasias,esperas e partidas. Retorno, jamais! Façamos o trajeto da melhormaneira possível, procurando ter um bom relacionamento com osoutros passageiros, buscando, em cada um deles, o que tiverem demelhor, lembrando sempre que, em algum momento, alguémpoderá fraquejar e, provavelmente, precisaremos entender porquenós também, várias vezes, fraquejamos. Nesta hora sempre haveráalguém que nos entenderá e estenderá sua mão amiga. O grandemistério, afinal, é que jamais saberemos em qual parada vamosdescer. Muito menos os nossos companheiros, nem mesmo aqueleque está sentado ao nosso lado. Eu fico pensando... Será quesentirei saudades quando descer? Acredito que sim. Separar-mede alguns amigos será, no mínimo, doloroso. Deixar meus filhosviajarem sozinhos será, com certeza, muito triste. Contudo meagarro à esperança de reencontrá-los na estação principal e aí

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sentirei a enorme emoção de vê-los chegar trazendo uma bagagemque não tinham quando nos separamos. O que vai me deixar maisfeliz é a certeza de ter colaborado para o crescimento deles.**

Façamos, meus amigos, com que nossa estadia nesse trem seja tranqüila. Que possamosdeixar saudades e boas recordações para aqueles que seguirão viagem.

Mas a viagem ainda não acabou...

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Minhas memórias

* Graduanda em Ciências Econômicas pela UFPI.1 Vitória: sf. Ato ou efeito de vencer o inimigo ou competidor; triunfo (FERREIRA, Aurélio Buarque deHolanda. O novo dicionário Aurélio século XXI. São Paulo: Nova Fronteira, 2001).

Elizabeth Pereira Cabral*

Decidi começar minhas memórias com o significado da palavra vitória,1 pois é assimque minha vida tem sido. Grandes lutas, mas no final grandes vitórias.

Aos quatro anos de idade, minha querida mãe, Dona Graça, me ensinou meu nome. Asvogais, ou seja, o básico, já que ela não tinha condições de me colocar em um Jardim deInfância, pois, além de mim, havia mais três boquinhas: Orlando, Verônica e Júnior, meusirmãos, para ela sustentar.

Aos sete anos, fui fazer a primeira série no Colégio Estadual Gayoso de Almendra, de ondesó saí porque lá não havia a 4ª série. Não tínhamos casa própria e, por isso, vivíamos comonômades; nessas mudanças, acabei morando muito longe do meu colégio. Oh! Tempinho dolorosopara as minhas perninhas. Como não havia dinheiro para o ônibus, o jeito era ir a pé, em plenosol do meio dia. Detalhe: “não era um Sol qualquer, mas o Sol do meu querido Piauí”.

Ao iniciar a 5ª série, meu maior sonho era ter um caderno de 10 matérias e um estojocom tudo dentro, porém, como eu disse, era apenas um sonho, já que minha mãe só conseguiacomprar o suficiente para podermos escrever e estudar. Apesar das poucas condiçõesfinanceiras, não lhe faltavam ânimo e palavras encorajadoras para cada um de nós, seusfilhos. Eu sempre estudei sozinha. Quando não entendia o assunto, estudava mais ainda,pois sabia que não tinha ninguém para me auxiliar.

Da 5ª a 7ª séries, vivi o período mais difícil de minha vida, porque agora entra em cenauma figura há muito esquecida, não por vontade minha, mas sim por sua ausência voluntária:meu pai, Divanildo Pereira Cabral. Mamãe o trouxe de volta para nossas vidas por ele estardoente e sozinho. Foi aí que tivemos que apertar ainda mais o cinto devido aos gastos comremédios e internações. Foi triste ver nosso pai definhando a cada dia.

No dia 2 de abril de 1989, da mesma forma repentina que entrou, meu pai saiu deminha vida. Tempos depois de seu falecimento mamãe ganhou uma casa própria e fomosmorar na zona sul de Teresina. Fui matriculada no Escolão do Parque Piauí, em regime desemi-internato. Foi durante a 8ª série que tive que fazer uma escolha: ou fazia o EnsinoMédio em uma escola do Estado, sujeita a inúmeras greves, ou estudava muito para fazer oteste do Centro Federal de Educação Tecnológica do Piauí-CEFET-PI. Fiquei com a segundaopção, e logo começaram as dificuldades. Mamãe não tinha dinheiro para pagar a inscriçãoe o prazo estava acabando. Fui salva na última hora, pois mamãe conseguiu uma faxina

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(trabalho doméstico temporário) salvadora. Paguei a taxa, fiz o teste e fui aprovada. Entãoiniciei meu curso profissionalizante na área de Saneamento Básico. Começava assim maisum período de batalhas que enfrentei com todo ânimo e coragem. Eu passava muito tempoestudando na biblioteca, e, quando mamãe me dava algum dinheiro para o lanche, era bom;do contrário...

Quando estava próximo o fim do Ensino Médio, deparei-me com outro dilema: fazerou não o vestibular? Resolvi fazer, mesmo sabendo que meu conhecimento, em relação aoutros estudantes, era muito restrito. Como não tínhamos condições de pagar um cursinhopré-vestibular, passei a estudar em casa, tentando me preparar da melhor maneira possível.Não foi difícil escolher o curso. Eu queria ser médica e realizar um sonho de infância. Aescolha também pesou, em razão da doença e morte de meu pai. Minha mãe conseguiu odinheiro da inscrição. Fiz as provas, e, em seguida, a decepção. Não desanimei e insisti. Fizmais dois exames sem sucesso.

Foi então que aconteceu um fato que, de uma forma inesperada e brutal, abriu meusolhos para a realidade. Era a festa de aniversário de meu primo e a família estava reunida namaior alegria. De repente, meu tio, irmão de minha mãe, homem bem sucedido, aproximou-se de mim e conversamos muito até chegar ao assunto vestibular. Ouvi dele um sermão queaté hoje ecoa em minha mente e no mais profundo do meu ser. Calmamente ele me disse: -"Minha filha, eu acho melhor você escolher outro curso, porque a Medicina está destinadaaos filhos de gente rica. Os livros são caríssimos, e muitos não são encontrados na biblioteca,sem falar que, quando têm, estão escritos em inglês. Não vai dar para você terminar o curso.Isto é, não vai dar nem para você passar no vestibular que é muito concorrido. Você não temcapacidade para enfrentar os ricos que estão bem preparados". Quase morri de desânimo,mas aquilo ficou na minha cabeça, martelando, martelando. Pensei bem nas palavras demeu tio e tomei uma atitude: inscrevi-me para Ciências Contábeis; e, mesmo assim, nãopassei. Quase joguei tudo para o alto. Eu estava revoltada, não queria saber mais de estudar.Minha mãe me deu carinho e apoio.

No entanto, a mão de Deus colocou um anjo da guarda no meu caminho: Irmã CíceraFilomena, uma senhora que é da minha igreja. Ela me disse para confiar em Deus e deixá-loagir em minha vida, perguntar a Ele qual curso eu deveria seguir. E assim eu fiz. Na hora dainscrição, para prestar o quinto vestibular em 2004, escolhi Ciências Econômicas. Mantivesegredo e esperei o resultado. Desta vez foi só alegria. Fui aprovada para o segundo período.

Mais uma etapa vencida e mais uma por vencer. Todos sabem das dificuldades quetemos em permanecer na Universidade, principalmente para os estudantes de origem popular;mas estou consciente e preparada para travar minhas batalhas; certamente as vencerei, poisminha trajetória de vida tem como sinônimo a palavra VITÓRIA.

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Lionheart: forte, perseverante,

astuto e determinado

* Graduando em Letras-Inglês pela UFPI.

Eric Willian do Nascimento Carvalho*

“Eu sabia, desde a primeira vez que trilheieste caminho, que haveria momentos dedesespero total, quando se busca arrancaro véu do santuário, e quando se grita porela, sabendo que não responderá porquenão está ali, porque nunca esteve ali, nãohá Deusa, mas apenas nós mesmos, eestamos sós na zombaria dos ecos refletidospor um santuário vazio... Não há ninguémali, nunca houve alguém ali, E toda a Visãonão passa de sonhos e alucinações...”

Marion Zimmer Bradley

Acredito que, assim como muitos vêm de famílias de baixa renda, comigo não poderiaser diferente. Meus pais nunca tiveram grandes oportunidades de emprego para nos sustentar,mas sempre nos ensinaram, a mim e minha irmã, que para tudo se dá um jeito.

Minha mãe veio do interior do Piauí, Alto Longá, e conheceu meu pai na capital,Teresina. Ele completou o Ensino Médio e tentou duas vezes o vestibular para CiênciasEconômicas, mas não conseguiu sucesso. Assim que começou a namorar minha mãe, elepropôs que ela estudasse em alguma escola perto de sua casa, porém ela teve medo de osprofessores maltratarem-na porque assim acontecia no interior, já que, por ser ela franzinae fraca, era motivo de chacota durante as aulas. Os castigos que ela recebia eram variados:ficar ajoelhada no milho e apanhar com ramos de mangueira na brincadeira de gato e rato.

Casaram-se. E eu vim ao mundo com apenas duas coisas: pecado original, segundo aBíblia, e um cérebro enorme, que quase não saía das entranhas de minha mãe.

Tive uma infância sem muitos regalos, só o básico. Um carrinho de plástico, clássicobrinquedo para meninos, e uma latinha de doce de goiaba onde fazia minhas refeições.Apanhava muito de meu pai, quando criança. O cinto era lei e ficava sempre no mesmolugar, onde pudesse ser visto e temido. Nos intervalos entre uma chicotada e outra,descobriram que eu não rabiscava no piso da sala por traquinagem, e sim porque, aos trêsanos, eu já estava me interessando pelos estudos.

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Antes que eu me esqueça, gostaria de agradecer ao meu tio Antônio de Pádua Carvalhoe à Maria José (ela era minha vizinha), a quem chamo até hoje de tia Zezé. A ele porque nomomento em que meus pais não puderam arcar com as despesas de material durante a minhasegunda fase escolar, ele nos ajudou, e à tia Zezé, que hoje está sentada à direita do Pai, porter ajudado minha mãe a me educar. Por muitas vezes era ela quem me socorria, no momentode necessidade aguda, como falta de comida e até mesmo de roupas para vestir.

Até nos momentos de lazer familiar, tia Zezé me levava, para clubes, sítios e festas deaniversário. Ensinava-me quando podia, por causa do seu trabalho. Também cuidou demim, tanto na terrível cirurgia que fiz, quanto na recuperação quando tinha oito anos. Aindahoje tenho a vela caseira feita de papelão na comemoração do meu oitavo aniversário.Amo-te, tia Zezé, muito obrigado.

Quem me descobriu e me deu uma oportunidade foi Elza Freire, que eu chamo TiaElza. Ela me levou para sua escola particular, de bairro, inicialmente com tudo pago, materiale fardamento. O trato seria o seguinte: meus pais pagariam os três anos que eu lá estudasseem parcelas, após o último ano. Funcionava, como é atualmente, o crédito universitário,mas sem burocracia. Do que me lembro, daquela época, posso dizer que foi muito bom,brincar e estudar. Eu pensava que tinha tudo, quando passei a ser motivo de piadas por usaro mesmo uniforme desde que entrei, já que meus pais não podiam comprar um novo. Foi aíque comecei a sentir o desprezo das outras pessoas, a sua mesquinhez florescendo nosprimeiros anos de minha vida.

Em seguida, fui para o Colégio das Irmãs; ou seja, Unidade Escolar Irmã MariaCatarina Levrini. Muita gente confunde quando digo onde estudei, porque em Teresinaexiste uma escola privada, muito famosa e direcionada para a elite, chamada ColégioSagrado Coração de Jesus. Como muitos que estão lendo já pagaram ou ouviram falarsobre legislação do ensino, sabem que escolas confessionais têm que explicar paraonde vai o dinheiro dos impostos que deveriam ser pagos como qualquer outra empresa.Então eles criam instituições filantrópicas, como uma das escolas em que estudei oprimeiro ciclo do Ensino Fundamental.

O ensino era muito rígido. Acho que esse meu jeito certinho de lidar com as coisasdeve-se à educação que recebi lá. Todos os dias, enfrentávamos uma rotina em que nãopodíamos sair da linha. Chegávamos as sete e rezávamos o Pai-Nosso, a Ave Maria e aoração do anjo protetor. Tínhamos a primeira aula de religião e, em seguida, as outrasmatérias. Vinha o intervalo, mas não podíamos ficar suados, senão ficávamos de castigo nafrente dos colegas. Quando retornávamos do recreio, tínhamos que cantar o hino do Piauíinteirinho. Imagine-se oito meses de sua vida, durante quatro anos, seguindo essa ditadura.Só mudávamos o hino, ou melhor, adicionávamos mais um por causa da Independência doBrasil. Que independência nós temos mesmo? Alguém pode me dizer?

Lembro até hoje do meu baile de formatura. Tenho as fotos que não me deixam esquecer.Os três melhores alunos das turmas de 4ª séries de 1996 receberiam medalhas. Eu fiquei coma de ouro. A de prata foi para Luana da Cunha (a primeira mulher por quem me apaixonei ede quem recebi um NÃO por ser gordo e ter a dentição amarela), e Janiele ficou com a debronze (esta era minha grande amiga, até brincávamos de ser namorados, mas tudo nãopassava de fantasia). Depois voltarei a falar nelas.

Para dar continuidade ao Ensino Fundamental, fui para a Escola Santa Angélica, umaescola particular de bairro e a melhor da redondeza, onde cursei da 5ª a 8ª séries.

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Como todos sabem, nessas escolas de bairro, a clientela não é tão religiosa comodeveria ser ou como eu pensava que fosse, já que eu provinha de uma rígida educaçãoreligiosa. Eu evitava coisas como ir à diretoria, ser chamado a atenção pelos professores;mas fui me rebelando aos poucos. No primeiro dia, não fui bem recebido, pois todos osalunos já haviam estudado juntos desde as primeiras séries, mas fui me adaptando. Certodia, fui chamado à Diretoria. Eu nunca tinha entrado antes em um lugar tão temido. Euestava gelado e nervoso, prestes a urinar nas calças e quiçá vomitar. Isto aconteceu porquea pessoa que me dava carona, pois tinha um filho que estudava na mesma escola e só entravamais tarde, sempre relaxava, conseqüentemente eu me atrasava. Felizmente só fui chamadoa atenção, e avisado que o fato não deveria se repetir. Então meu pai resolveu montar umabicicleta para mim. Comecei com uma pequena, toda vermelha e acabei com uma grandetambém vermelha, mas com garupa.

Eu gostei de todas as minhas escolas. A Santa Angélica tinha tudo, inclusive umLaboratório de Ciências com seus microscópios onde fazíamos experiências. Eu achavaaquilo tudo fascinante. Os outros nem ligavam, mas eu adorava. Outra coisa que meencantou foi o estudo do Inglês, o que realmente sempre gostei, mas sem pensar queaí estava o meu futuro. Tudo para mim era interessante, ou como dizem aqui emTeresina, muito massa. Participei de gincanas, festas e de todos os eventos escolares.Percebam que até agora não mencionei nenhum tipo de esporte ou educação física.Não sei o porquê de nunca ter gostado de esportes. Os únicos exercícios que eu faziaera estudar, escrever, e correr com meus colegas nas noturnas brincadeiras de rua.Além do mais, eu era muito gordo. Nas escolas onde estudei, as aulas de educaçãofísica se restringiam aos jogos de Futsal, que eu odiava. Perguntava-me se aquelesprofessores não eram profissionais ou se o dinheiro de nossa mensalidade só davapara comprar bolas de couro.

No último ano, 2000, tínhamos algumas provas simuladas para o teste do CentroFederal de Educação Tecnológica do Piauí-CEFET-PI. A única escola pública bemequipada da região e onde todos queriam estudar. Fiz o teste, passei e virei gente lá. Porquê? Porque lá as máscaras caíram, e posso afirmar que nunca havia aprendido tanto emminha vida. Lá nos ensinaram a enfrentar a realidade, deixando para trás o mundo dafantasia. Entrei em um mundo mesquinho, preconceituoso, hipócrita, porém esperançoso.Sim, acredito, até hoje, que há jeito para tudo, menos para a morte. Daí minha esperançaem dias melhores.

Passei três anos estudando à tarde. Isso foi terrível. Onze anos estudando pelamanhã e, de repente, essa mudança mexeu com meus miolos. Os dois primeiros mesesforam insuportáveis.

O CEFET fica no centro de Teresina, e sempre ouvi coisas horríveis vindas de lá.Então, durante o ano de 2001, eu ia para a escola e voltava direto para casa. As aulas deEducação Física eram cheias de teorias e mais teorias para aprender e estudar. Além domais, fazíamos provas ao final de cada mês. Futsal? Claro que tinha! E eu me davasempre mal. As turmas que primeiro iniciavam as atividades esportivas tinham oprivilégio de escolher o esporte a ser praticado. Também existiam turmas específicas,como seleção para vôlei, basquete, handbol, futsal e judô. Como nunca fui bom esportista,resolvi entrar para o teatro, e fiquei durante os três anos. Assim obtinha nota com otrabalho que desenvolvia como ator na "Companhia Entre Rios de Dança e Teatro",

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onde vivi momentos maravilhosos ao representar as lendas de minha terra e tambémhomenagear o poeta Carlos Drummond de Andrade em seu centenário. Foi durante esseperíodo que, com a ajuda financeira de meu pai, fiz dois cursos: Inglês Técnico e CursoBásico de Informática.

No CEFET conheci pessoas de diferentes cores, credos, níveis sociais e orientaçõessexuais. Tornei-me amigo de muitas delas, já que tenho facilidade em me relacionar. Creioser este um ponto positivo de minha personalidade. A partir daí, comecei a freqüentarmuitos lugares, entre eles o "Boca da Noite", no Clube dos Diários, evento cultural demúsica que promove e divulga os artistas piauienses. Muitos nomes que hoje estão namídia surgiram lá. Teófilo Lima, Acesso, Madame Baterfly, Brigite Bardot são alguns deles.

Durante os três anos do Ensino Médio, deixei de ser aquele menino gordo, ingênuo,bobo e CDF. Em casa, passei a ser acusado de rebelde e outros nomes que prefiro não revelar.Meus pais sempre foram muito rígidos em relação à minha educação, além de superprotetores.Eu estava passando por grandes transformações, em todos os sentidos, e isto acontecia aomesmo tempo em que eu me tornava um homem maduro e responsável com meus estudos,pois eu tinha que me definir em relação ao ano de 2004. Minha mãe, que adora um hospitale seus profissionais, queria que eu fosse médico, mas eu sempre tive uma queda pelasCiências Humanas, excluindo História que eu sempre achei uma matéria muito chata. Poroutro lado, eu amava Português, Inglês e Geografia.

Em 2003, decidi que ia ficar com a área de Humanas. Curso? E agora? O que maisgosto? Inglês, é claro. Pronto! Está decidido, vai ser Inglês.

No CEFET, eu recebia uma bolsa-auxílio de R$ 40,00. Com este dinheiro paguei trêsmeses de aulas de Redação e Inglês. Isto me deu uma incrível sensação de independência.Eu pagava, com meu suor, por aquilo que almejava.

Prestei o vestibular e passei. No dia da matrícula, quase morri de tanta felicidade, poisera meu aniversário e eu estava recebendo um grande presente: um cartão confirmandominha matrícula como universitário da UFPI. Foi lindo! Foi perfeito!

No início de 2004, eu estava cheio de expectativas, mas depois de dois anos de curso,elas começaram a desaparecer. Isto aconteceu quando percebi que alguns professores nãoeram tão educados e éticos como deveriam ser. Além das greves que aconteciam todos osanos, tive dificuldades nas aulas, pois eu sabia ler em Inglês, mas não sabia falar a língua. Osprofessores nos tratavam como se fôssemos membros veteranos de um clube de línguas, masnós estávamos lá para desenvolver o conhecimento da matéria até seu ponto culminante, naconclusão do curso.

Quando comecei a cursar o quarto período, percebi que tinha enrolado os três últimossemestres. Decidi então fazer o teste de nivelamento do English Resource and InformationCenter-ERIC. O ERIC corresponde à Cultura Inglesa da UFPI. O teste era muito simples econsistia em uma conversa, totalmente em Inglês, com um dos professores. O resultado mesurpreendeu e me alegrou. Eu fui direto para o módulo quatro.

Atualmente estou cursando o módulo cinco e, se não houver greve, devo concluir ocurso de Inglês no final de 2007. Paralelamente estou iniciando o módulo um de Espanhol noComplexo Noé Fortes, da UFPI. O Inglês já me serve financeiramente, pois ministro aulasparticulares e sou professor de Inglês Instrumental no Self Access Project, um curso de extensão.

Com relação à Luana e à Janielle, citadas anteriormente, a primeira estuda Pedagogiana UFPI; a segunda trabalha como Agente na Rio Poty Turismo.

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Apesar das dificuldades, eu nunca desisti daquilo que pretendia ser. Para algumaspessoas eu sou um cara determinado. Prefiro ser chamado de "sortudo", pois, mesmoenfrentando as adversidades, sempre consegui tudo na hora certa. Acredito que a perseverança,a força de vontade e o trabalho duro são as melhores ferramentas para se construir umapessoa, uma carreira e uma vida digna. Desta forma, as coisas se tornam agradáveis paravocê mesmo, para as pessoas que você ama e também para aqueles que lhe rodeiam eparticipam do seu desenvolvimento humano.

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Minha vida, minha luta

* Graduando em Geografia pela UFPI.

Francisco das Chagas de Sousa Silva*

Nasci em Campo Maior, no meu querido Piauí, e ali morei até os dois anos de idade. Delá nos mudamos para uma fazenda, nos arredores do município de Aroazes, mas que hoje éparte da cidade de Santa Cruz dos Milagres, a Meca do Piauí. Lá, durante seis meses,moramos com meus avós maternos até que meu finado avô disse a meu pai que melhor seriaviver em São Félix do Piauí. Sugestão aceita. Mudamo-nos novamente. Em São Félix,passei parte de minha infância, me entendi por gente e comecei meus estudos. De lá tenhoboas e más lembranças. Joguei futebol, triângulo e peteca. Brinquei de pega e, às vezes,ficava só, com meus carrinhos, pois sou filho único e nem sempre tinha amigos para brincar.Lembrando que, muitas vezes, mamãe não me deixava sair para a rua. De todas asbrincadeiras, o futebol era a minha preferida. Meu sonho era ser jogador profissional e atuarno Flamengo do Rio de Janeiro, meu time do coração.

Interiormente, sou um homem, simples, humilde e verdadeiro. Com estranhos soutímido, mas à medida que vou me relacionando me torno brincalhão e pacato.

Neste mundo, algumas coisas me causam revolta, como, por exemplo, o investimentomaciço que os EUA fazem em armamentos, que vão alimentar os conflitos e as guerras. Ocerto seria usar o dinheiro para saciar a fome do mundo e também combater a AIDS,principalmente em países da mãe África. Também não aceito o baixo investimento emeducação que é feito no Brasil. É preciso valorizar a figura do professor. Nenhum paíschegou ao primeiro mundo sem investir pesado em educação.

Em São Félix, iniciei minha vida de estudante no Jardim de Infância Menino Jesus,onde hoje funciona o Fórum. Depois, estudei na Unidade Escolar Maria José, onde fiz a 1ªsérie do Ensino Fundamental. No ano de 1988, eu e minha família nos mudamos para acapital, Teresina, e fomos morar no Bairro Monte Castelo. Fui matriculado na UnidadeEscolar Estelina Dantas, onde cursei da 2ª a 4ª série do Ensino Fundamental. Infelizmenteuma greve me impediu de concluir a 4ª série, e tive que repetir na Unidade EscolarDesembargador Henrique Couto. Quando estava cursando a 6ª série, em 1993, os meusestudos foram interrompidos devido à separação de meus pais. Um acontecimento quemarcou e dividiu a minha história. Depois da separação, eu e minha mãe voltamos paraSanta Cruz dos Milagres, onde residia minha avó materna.

O retorno foi chocante. Eu já estava acostumado à vida urbana e nunca haviatrabalhado, apenas estudava. Agora residia na zona rural e trabalhava na roça. Foi um ano

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duro, mas também me trouxe ensinamentos e muito amadurecimento. Minha estada na roçadurou apenas um ano, pois voltei novamente a morar em Teresina, juntamente com minhacompanheira de todas as horas, ou seja, minha mãe. Na capital, fomos trabalhar em uma casade família, a residência de Dona Vânia Guerra, esposa do Dr. José Wilson, ortopedista. Lá euexercia a função de jardineiro e minha mãe era cozinheira. Voltei a estudar, o que me deixoumuito feliz, pois o tempo em que fiquei no interior eu não freqüentava a escola. Comoestava atrasado, fiz o supletivo, 6ª e 7ª séries na Unidade Escolar Lucídio Portela, que ficavapróxima ao meu local de trabalho. Então passei a trabalhar de dia e a estudar à noite.Concluí o Ensino Fundamental na Escola Municipal Simões Filho. No ano seguinte,ingressei na Unidade Escolar Álvaro Ferreira; ali fiz todo o Ensino Médio. Não foram fáceis,tantas mudanças de escola.

Minhas provas de vestibular foram um sucesso. Passei da primeira vez, e escolhi fazerQuímica, pois o curso era noturno e eu podia conciliar com o trabalho. Foram dois anos e meiode grande frustração. Eu não gostava da matéria e, logicamente, não estava indo bem. Resolvientão fazer novo vestibular. Desta vez escolhi a matéria em que sempre me saí bem: Geografia(Queres entender o mundo? Estude Geografia). Estudei bastante, me preparei e, faltandoapenas um dia para a prova, começaram a aparecer em meu corpo umas bolhinhas. No dia daprova eu estava com muita febre e me dei conta que estava com catapora (varicela). Nãodesisti e, com apoio de Deus, suportei os quatro dias de provas e venci. Estou muito feliz coma escolha. A geografia me caiu como uma luva. Posso dizer que já antevejo minha formatura.

Atualmente não mais trabalho em casa de família, só minha mãe continua. Lá entreiadolescente e saí adulto. Foram 10 anos seguidos.

Apesar da separação de meus pais e de morar com minha mãe, que é uma pessoamaravilhosa, dona de um grande coração e caráter, meu apoio e porto seguro, eu não meafastei muito de meu pai. Sempre mantivemos contato, pelo menos duas vezes por semana,quando então conversamos bastante e nos inteiramos da vida um do outro. Meu pai é ummodesto pedreiro, mas também um bom homem, um homem de caráter.

Hoje sou bolsista do Programa "Conexões de Saberes". Um programa de grande valorsocial que tenta propiciar aos jovens de origem popular (assim como eu) uma permanênciacom qualidade na universidade pública, tentando também integrar o saber popularcom o conhecimento científico. Para mim o Programa tem sido muito proveitoso, poistambém estou tendo a oportunidade de crescer como ser humano, além da convivência compessoas maravilhosas.

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Vencendo desafios

* Graduando em Física pela UFPI.

Francivaldo Pinheiro Fernandes*

Nasci em Barão de Grajaú, interior do Maranhão, e tenho uma família muito legal, aqual amo muito. Meu pai, Manoel Francisco Fernandes, é um homem honesto, humilde etrabalhador. Desde cedo, ele teve que trabalhar na roça, ajudando meu avô. Por ser o filhomais velho, teve que assumir responsabilidades e pouco tempo sobrou para estudar. Mesmoassim, com muito esforço, conseguiu estudar até a 4ª série do Ensino Fundamental. MinhaMãe, Luiza do Carmo Pinheiro Fernandes, só atingiu a 1ª série. Seus pais eram trabalhadoresrurais e ela os ajudava na lavoura, e também cuidava dos irmãos menores. Ela é uma mulherguerreira, carinhosa e amável. Eu sou o filho caçula de nove irmãos, sempre vivi em umambiente agradável, onde faltava dinheiro, mas sobravam amor e carinho de nossos pais.Recordo minha infância com alegria. Os jogos de futebol, peteca, soltar pipa e jogar pião.Eu era feliz e gostava de assistir televisão e andar de bicicleta.

Comecei a estudar no Colégio Imparcial, e ali cursei da Alfabetização até a 8ª série doEnsino Fundamental. A escola distava de casa e, muitas vezes, minha irmã mais velha ia melevar. Depois, mais crescido, ia sozinho e voltava para casa com os colegas. Meuprimeiro dia de aula tornou-se inesquecível. A excitação era tamanha que acordei por voltadas 5 horas da madrugada. Chamei minha mãe e ela disse que eu podia dormir mais umpouco, pois ainda era cedo. Voltei a dormir e, na hora certa, estava no colégio, acompanhadode minha mãe.

Fiquei admirando as paredes, cheias de cartazes coloridos, as mesinhas e suas cadeiras.Ali era minha sala de aula. A professora recebeu-me muito bem e, aos poucos, fui fazendomuitas amizades. Ao fim do curso, o colégio promoveu a festa de colação de grau. Aqueledia também ficou em minha memória. Minha família estava bastante emocionada,principalmente meus pais que tinham baixa escolaridade. Aquele pequeno passo significavauma grande vitória. O próximo desafio era passar no teste seletivo da Escola Técnica Federaldo Piauí-CEFET, situada em Floriano ou então na seleção do Colégio Agrícola de Floriano-CAFS. Estas duas instituições sempre foram muito conceituadas e suas provas difíceis.

Apesar do nervosismo, fiz uma boa prova e fui aprovado no CEFET. Quinze diasdepois, agora mais calmo, me saí bem também no CAFS. Optei pelo CEFET. Durante os trêsanos do Ensino Médio, fui superando os obstáculos e as dificuldades que surgiam. Fiz boasamizades e recebi integral apoio dos professores e funcionários. Assim foi dado outro passo.O próximo desafio seria mais difícil: passar no vestibular. Por falta de condições financeiras,

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não freqüentei nenhum cursinho preparatório, ao contrário da maioria dos colegas. Estudeiem casa, sozinho. Passava o dia com os livros até altas horas da noite. Lendo, resolvendoquestões e fazendo textos para treinar redação.

Durante esse período, meus pais foram importantíssimos, pois me davam forças e memostravam, através do seu próprio exemplo, que só o estudo poderia mudar o meu destino,evitando que eu tivesse que passar dificuldades como eles. Meu pai dizia que o estudo seriaa grande herança que ele estava me deixando. Eu me apoiava naquelas palavras e memotivava para vencer o cansaço e partir em busca da realização de meus objetivos.

Ao final de 2003, prestei vestibular para o Curso de Bacharelado em Física na UFPI. Asimagens voltam claras à minha mente. Lembro-me muito bem que os portões fechavam,impreterivelmente, às 8 horas da manhã. Temendo me atrasar, saí de casa bem cedo, pedalandominha bicicleta. Atravessei o rio Parnaíba em um barco, e continuei pedalando, agora no Estadodo Piauí. De repente caiu uma tempestade. Não dava mais para continuar. Tive que parar eprocurar abrigo. A chuva não diminuía de intensidade. Pensei em desistir, mas fui em frente.Cheguei ao local da prova completamente encharcado. A sala estava fria e minhas roupasmolhadas aumentavam meu desconforto. E foi assim que, graças a Deus, fiz minha prova.

Não fiquei de folga. Voltei imediatamente aos livros, pois dentro de quinze dias tinha ovestibular da UESPI, para o Curso de Ciências Contábeis. Prova feita, resultado positivo. Eu,minha família e meus amigos vivenciamos, então, momentos de extrema felicidade. Passadaa euforia da vitória, era hora de planejar minha mudança para Teresina. Surge um novodesafio, pois eu não tinha onde ficar. Meu pai lembrou de uma amiga que morava na capital.Entramos em contato, e ela, juntamente com sua filha Katyuscia, me deram grande apoio.

Meus primeiros dias em Teresina foram de difícil adaptação. Tudo era diferente. Acada momento, uma experiência nova, começando por dividir um aluguel com mais trêsamigos. Mesmo assim, os custos eram altos para meu padrão. Foi aí que resolvi pedir obenefício da Residência Universitária da UFPI. Hoje estou vivendo lá, em um ambienteagradável, cercado de vários amigos que formam minha segunda família.

Tenho percebido que minha entrada na Universidade transformou minha vida. Conhecigente de todo tipo, costume e pensamento. Isso tem mudado e ampliado minha visão do mundo.

Em março de 2006, tomei conhecimento do Programa "Conexões de Saberes" e fizminha inscrição. Após passar por uma seleção muito rigorosa, tive meu nome aceito. Adocumentação exigia, entre os pré-requisitos, que o aluno fosse de origem popular, possuíssebaixa renda, e tivesse estudado em escola pública. Depois fui entrevistado pelas coordenadoras.No Conexões, ministro aulas de Física, no cursinho pré-vestibular que criamos para ajudarestudantes de baixa-renda, como eu, que sonham em ingressar na Universidade.

Ao fazer este relato sobre minha história de vida, espero que sirva de estímulo para osestudantes de origem popular. Eles precisam saber que nada se consegue sem luta; e quantomais pobre mais difícil é o caminho e muito mais saborosa a vitória.

Termino agradecendo a Deus por me ter dado forças para seguir em busca da realizaçãodos meus sonhos. Agradeço a minha família que sempre esteve presente, apoiando-me emtodos os momentos; à professora Verônica e as coordenadoras do Conexões, professorasCecília e Edileusa; e finalmente meus sinceros agradecimentos a todos aqueles que, dealguma forma, me ajudaram durante minha trajetória.

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A caminhada de um vencedor

* Graduando em Geografia pela UFPI.

Hélio Costa Vieira*

Minha família

Oriundo de família humilde, nasci no bairro Buenos Aires, um dos mais pobres deTeresina. Quando eu tinha apenas um ano de idade, meu pai comprou uma casa em umterreno de invasão. Assim tivemos que nos mudar para a Vila Risoleta Neves, local ondevivemos há mais de dezenove anos.

Minha família segue padrões mundiais quanto ao número de pessoas por família. Sãocinco membros: minha mãe, meu pai, eu e meus dois irmãos, Érica e Ellisson.Minha irmã, assim como eu, sempre estudou em escola pública. Formou-se para ministraraulas para crianças de até seis anos de idade, e atualmente estuda para o vestibular. Meuirmão também estudou em escolas públicas, porém decidiu abandonar os estudos e apenastrabalhar com mecânica.

Meus pais são elementos decisivos em minha vida, com influências positivas,no caso de minha mãe, e negativas, por parte de meu pai, que serviram a mim comoestímulo, que será tratado mais à frente. Minha mãe nasceu em um pequeno povoadoda zona rural de Teresina, chamado Taboca. Filha de uma família pobre, sua mãequebrava coco babaçu e seu pai fazia carvão vegetal, para vender no centro da capital,distante 26 km do povoado. Toda semana, de bicicleta, ele fazia esse trajeto, e, assim,sustentar os filhos. Meu pai nasceu em José de Freitas, município do Piauí. Nuncaquis saber dos livros, pois perdeu seus pais quando criança e não teve apoio paraestudar, passando toda a infância trabalhando na roça. Ele, com sua "inconsciência darealidade", devido à falta de instrução, apresenta uma visão simplificada do mundo;por isso age de forma negativa em relação a mim, mas eu encaro como desafio a sersuperado. Sem estudo, mas com muita vontade, meu pai trabalhou para sustentar afamília, sempre ganhando apenas um salário. Ressalte-se, ainda, a importância deminha “segunda mãe”, minha tia Lúcia de Fátima, que sempre nos ajudou.

Minha infância não foi boa, porque meus pais me prendiam muito em casa, emvirtude do alto índice de violência e o fácil acesso às drogas no local em que moramos.Porém tive alguns momentos de alegria com meus colegas, ao brincarmos na rua, jogandofutebol, bola de gude, empinando pipas. Na verdade, passei minha infância estudandobem mais do que brincando.

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Trajetória escolar

Iniciei minha vida escolar aos seis anos, pois não passei pelos níveis elementarescomo o Jardim I e II. Minha primeira escola foi a Creche Tia Anita, na qual não tivemuito êxito no aprendizado. Após um ano, saí da creche para ingressar na primeira sériedo Ensino Fundamental; era necessário fazer um teste, para qualificar aqueles quepoderiam estudar na escola. Fiz o teste na Escola Municipal José Carlos, bem próximade casa. Sofri minha primeira decepção. Fui reprovado. Descobri que não sabia de nada,pois o teste era muito simples, bastando apenas circular as palavras iniciadas comvogais e identificar as consoantes.

Passado o fracasso, eu precisava ingressar na primeira série. Foi aí que apareceu oprimeiro anjo em minha vida. Uma mulher chamada Demetiude, colega de minha tia-mãe.Ela me conseguiu uma vaga na Escola Ambiental 15 de Outubro. Comecei a freqüentar asaulas, mas senti-me ignorado, desprezado, pois a maioria de meus colegas já sabia ler,escrever, contar os números, e eu nada sabia. O segundo anjo foi minha professora Ana. Elaera formada em Educação Física, mas, mesmo assim, com muita paciência, ensinou-me a ler,escrever, contar e muitas outras coisas básicas, que tiveram grande influência em minhavida. Os resultados logo aparecerem.

Na segunda série, fui o melhor aluno da classe e ganhei um certificado, que,infelizmente, se extraviou. Cursei todo o Ensino Fundamental nesta escola. Ao terminar ocurso, preparei-me para o teste que me faria ingressar no Ensino Médio. Desta vez, não tivedificuldades e me matriculei na Escola Estadual Helvídio Nunes. Foi quando percebi, assimcomo a maioria dos jovens de baixo poder aquisitivo, que precisava trabalhar para ajudar afamília. Meu pai defendia apenas o lado do trabalho. Ele dizia que era melhor trabalhar,mesmo ganhando apenas um salário. Eu não pensava assim. Os estudos faziam parte dosmeus planos, pois eu queria viver e não apenas sobreviver.

Diante de tal realidade, minha mãe ficou sabendo de um curso gratuito oferecidopelo SENAI, que formava profissionais eletricistas de alta tensão. Infelizmente nãofui aprovado no teste seletivo. Meses depois, sabendo da necessidade de umaqualificação, fui informado que a Ação Social Arquidiocesana-ASA, ligada à IgrejaCatólica, estava realizando cursos gratuitos. Depois de muito insistir, eu conseguiuma vaga no Curso de Datilografia.

Tempos depois, o professor Gerson me indicou para um teste no cargo de aprendiz naEmpresa Brasileira dos Correios e Telégrafos, que mantinha convênio com a ASA. Meu pai,com seu negativismo, foi logo tentando me derrotar, afirmando que eu não seria aprovado.Cinco meses depois, fui chamado para assumir o posto. A alegria foi muito grande. Meuprimeiro trabalho, meu primeiro salário, tudo conseguido com meus próprios méritos.

Aqueles tempos foram duros e cansativos. Eu acordava geralmente por volta das05:30h e, muitas vezes, não dava tempo de tomar o café da manhã. Eu pegava minhabicicleta e pedalava até o colégio, cujas aulas começavam às 07:00 e terminavam aomeio-dia e meia. Então, eu pegava a bicicleta e, debaixo de um Sol escaldante, voltava paracasa, almoçava às pressas, e às 13:30 partia para o emprego, de onde retornava ás 19:00,para trabalhar e assistir às aulas. Era só o que eu fazia. Não havia tempo para estudar para asprovas nem mesmo para a primeira etapa do Programa Seriado de Ingresso à Universidade-PSIU. O resultado logo apareceu. Tirei uma nota mediana e fiquei preocupado com meufuturo universitário.

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Após completar seis meses de trabalho, eu e meus colegas fomos demitidos dosCorreios. A explicação dada foi apenas "contenção de despesas". A partir de então, comeceia estudar, visando o vestibular; e tirei uma nota melhor na segunda etapa do PSIU.

Estava no terceiro ano do Ensino Médio. Ano de vestibular, ano de decisões. A escolhada profissão foi muito difícil. Eu contava apenas com o apoio de minha mãe. Inicialmentepensei em fazer Economia, mas desisti, pois eu não queria ficar sentado diante de umcomputador fazendo previsões sobre a economia nacional. Eu desejava uma carreira queme possibilitasse um contato humano. Decidi então ser professor (Mas de quê?).Primeiramente pensei em Biologia, influenciado pelas aulas mágicas do professor LauroMiguel. Depois pensei em História, mas acabei optando por Geografia, pois ela envolvetodas as outras: Matemática, Biologia, História, Química, Economia etc. Em meio a estefestival de dúvidas, surge, novamente, a incrédula figura pessimista de meu pai, dizendoque eu não iria passar no vestibular porque não sabia de nada, não tinha estudado em escolaparticular e não era filho de rico.

Embora estivesse desempregado, minha rotina não mudou. Tendo em vista que nãomais estava nos Correios, eu agora fazia um cursinho pré-vestibular, localizado na principalavenida da cidade, e custeado por minha mãe, com o dinheiro ganho na lavagem de roupase venda de produtos anunciados em uma revista. As aulas do Cursinho eram de segunda aquinta-feira, de 14:00 às 18:00. Como o dinheiro não dava, eu ia de ônibus e voltava a pé,a uma distância de 10 km.

Em razão de perceber o grande esforço de minha mãe e o desafio que me lançavam, meupai e alguns familiares, comecei a estudar até às três horas da madrugada. Eu não tinha sossego,pois meu pai se levantava e me xingava, mandando eu apagar a luz para não gastar energia. Naescola, eu era chamado de louco, pois não desgrudava dos livros. Esse período caracterizou-secomo tempo de sacrifícios. Eu abri mão de vários encontros familiares, tais como: festas deaniversários, Natal, Ano Novo. Meu objetivo era um só e eu precisava alcançá-lo.

Fiz as provas do vestibular e fiquei certo que tinha passado na Universidade Estadual-UESPI, mas tinha dúvidas quanto à aprovação na Universidade Federal-UFPI. Em janeiro de2005, recebi, com grande alegria, o primeiro resultado. Fui aprovado na Universidade Federaldo Piauí, no curso de Geografia. Agora eu era o segundo membro da família de meus pais aingressar na Universidade. Para completar minha alegria, fui aprovado também na UESPI.

- E meu pai?... Não me deu parabéns, nem um abraço, sequer um aperto de mão. Fui oúnico, em uma sala de 42 alunos, a ser aprovado.

A vida universitária me trouxe algumas decepções. Encontrei pessoas arrogantes emuita disputa. Novamente senti necessidade de uma qualificação. Consegui uma vaga noCurso de Inglês do CEFET, a um custo abaixo dos outros. As dificuldades financeirascontinuaram. Muitas vezes não havia dinheiro para o ônibus ou para tirar uma cópia xerox.

Atualmente estou no quinto período de Geografia, no quarto bloco do Curso de Inglêse pretendo, após a graduação, fazer mestrado e também doutorado. Também sou bolsistadeste grande Programa denominado "Conexões de Saberes", projeto muito importante noresgate de nossas origens, na conscientização de nossa importância dentro da sociedade,como também na busca de transformar novos jovens que, assim como nós, têm dificuldadesem ingressar na universidade.

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52 Caminhadas de universitários de origem popular

Um principiante e sua estrela guia

* Graduando em Ciências Sociais pela UFPI.

Herbert César de Moura*

Nasci na pequena e acolhedora cidade de Campinas do Piauí, no Centro-Sul do estado,no dia 9 de setembro de 1985, em uma segunda-feira, às seis horas da manhã. Costumo dizerque nasci junto com o Sol. Em Campinas, fiz todo o Ensino Fundamental. Meus pais são:Maria Ana de Moura e Francisco de Assis César. Tenho um irmão, Paulo César. Logo, emminha casa éramos quatro, mas caminhávamos para três, pois a separação de meus pais eraalgo previsível.

Minha vida de estudante começou na Escolinha Chapeuzinho Vermelho. A fase dopré-escolar foi muito legal. Na verdade eu só brincava, pintava e merendava. A escolaparecia um eterno recreio. As aulas só ficaram mais sérias a partir da primeira série. Aí játínhamos que ler e escrever. Dona Toinha, uma professora muito aplicada e gentil, mandavatarefas para casa e eu as trazia devidamente respondidas, pois era um aluno muito dedicado.Minha mãe sempre me ajudava. Fazíamos os deveres sentados no chão da cozinha, perto daporta que ficava aberta para entrar um ventinho. Assim fui passando por todo o primário,como era chamado, naquele tempo, o curso que ia da primeira à quarta série. Durante esseperíodo, eu não tinha grandes preocupações. Era muito criança e vivia minha infância commuita alegria. Minha maior expectativa era o fim-de-semana que eu passava na casa davovó Ana. Foi lá que aprendi muito sobre a vida, com os ensinamentos passados pelos meusavós; estava sempre em contato com a terra e os animais. Ali vivi momentos muito felizes,tenho saudades daquela época.

Mas, voltando à vida escolar, vejo-me agora na quinta série do Colégio Dr. José deMoura Fé. Lá estudei até a oitava série. Nesse tempo, eu era um adolescente com todos osproblemas, medos e incertezas da idade. Tudo era novo para mim. Aquelas matérias eramdifíceis, mas era aquilo que eu havia sonhado. Estar na quinta série era o máximo. Eu mesentia como gente grande, e, apesar das dificuldades, esforçava-me para ser um dos melhoresda classe junto com minhas amigas Gabiana, Ludmila e Roberta. Nosso sonho era fazer oEnsino Médio, mas este não havia em nossa cidade. A Universidade ainda era uma coisamuito distante. Foi nessa época que passei por dois momentos muito difíceis: A separaçãode meus pais e alguns problemas de saúde. Estes problemas atrapalharam-me um pouco noestudo, mas não me desestimularam, pois eu era um garoto muito persistente, sabia o quequeria. Nesse período, contava na escola com o apoio de uma pessoa muito especial, aprofessora Alzira Alves, minha madrinha "Zirinha".

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Finda a oitava série, eu estava pronto para continuar. Mas onde? Teresina, a capital,era um sonho há muito desejado, mas difícil de concretizar. Eu não tinha onde morar. Asaída foi viajar todos os dias para a vizinha cidade de Simplício Mendes que distava 28 km.A estrada de terra era péssima. Enfrentávamos chuva, buracos, mas com o tempo fui meacostumando. Os colegas eram muito divertidos. Ríamos e conversávamos durante todo opercurso feito na camionete amarela do Sr. Neto Félix. Eu saía de casa às cinco da tarde,assistia às aulas e retornava por volta de meia-noite. Assim cursei o primeiro e segundo anodo Ensino Médio. Paralelamente ao estudo, eu trabalhava diariamente das oito ao meio-diaem um programa do Governo Federal Portal da Alvorada. Foi um tempo muito especial. Eutinha apenas quinze anos e uma vida cheia. Era bom ter responsabilidades. Esta rotina foiinterrompida com a implantação em nossa cidade do Ensino Médio Módulo Tele-aulas. Poresse motivo, não tinha mais o transporte para Simplício Mendes. O problema é que eu teriaque esperar seis meses, pois o ano letivo na tele-sala só começava no meio do ano, o queatrasaria minha vida escolar. Foi então que surgiu uma oportunidade fantástica. Minha tiaSônia mudou-se para Teresina com a família e eu vim morar com eles.

Cursei o terceiro ano na Fundação Nossa Senhora da Paz. O vestibular se aproximavae eu tinha que escolher um curso. Eu estava cheio, de dúvidas, mas finalmente fiz minhasopções: Ciências Sociais na UFPI e Geografia na UESPI.

No dia do resultado, liguei para uma amiga e ela me disse que eu não havia passado.Meu nome não estava na lista. Realmente não é fácil passar na UFPI. Eu tinha que estudarmuito e tentar no ano seguinte. Passei duas horas sentindo uma grande frustração até que derepente a vizinha entrou correndo com o telefone na mão. Era minha tia dizendo que meunome estava na lista, sim. Passei! Eu, um simples aluno de escola pública, fui aprovado nomeu primeiro vestibular.

Ali era o começo de uma vida nova. Tornei-me universitário. No início, tivedificuldades de adaptação. Eram muitas disciplinas em horário integral. Na Universidade, oaluno tem que se destacar para conseguir monitorias e bolsas de pesquisas, que são muitoimportantes para a nossa formação. Graças a minha dedicação, consegui ingressar noPrograma "Conexões de Saberes". Este Programa veio para me proporcionar muitas alegrias,pois, nele, posso trabalhar, pesquisar e melhorar meus conhecimentos, e, principalmenteajudar pessoas simples e humildes como eu. Isso me dá mais forças para desenvolver nossotrabalho comum, para que, juntos, possamos ajudar as comunidades envolvidas.

Essa pequena história de um principiante no mundo de lutas e desafios deve-se àajuda recebida de muitas pessoas, mas certamente há alguém muito especial para mim,responsável por todo o meu aprendizado e vitórias, uma estrela que me guia e protege comtoda sua força, coragem e fé em Deus: MINHA AMADA MÃE. É a ela que dedico essaHistória e todas as minhas vitórias, mesmo as que ainda estão por vir.

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Os passos de um homem bom são confirmados pelo

senhor e ele deleita no seu caminho (salmo 37.23)

Jeane Maria da Silva*

Para falar de minha vida é necessário viajar no tempo, até 1982, no Povoado Gameleira,município de Timon-MA. Ali começa minha família, minha história. Meus pais, CarlosAlberto e Maria Francisca, casaram-se e, quando ainda estavam curtindo a vida a dois,surgiu uma gravidez não planejada. Para meu pai, só importava se fosse menino. Passaram-se os dias, e, quando enfim chegou a primavera, no dia 30 de setembro, na Maternidade SãoJosé, nasceu uma flor. Claro que sou eu. Jeane Maria da Silva. Fui recebida com muito amore logo cativei meu pai. Minha mãe diz que eu era um chamego com ele. Meu reinado,porém, durou apenas quatro anos, período de minha amamentação. Mamãe comenta que euexpulsava as pessoas que estavam na nossa sala para que ela pudesse sentar-se e me aleitar.

Minha família começou a crescer. Primeiro veio meu irmão Francisco Carlos, e, emseguida, Carlos Júnior. Francisco nasceu com problemas cardíacos. Minha mãe tinha que sedeslocar sempre para a cidade para tratá-lo. Enquanto isso, meu pai trabalhava na roça.Infelizmente tanto cuidado não possibilitou a continuação de sua vida. Com apenas umano e dez meses, Francisco foi morar com Deus.

Oito meses se passaram. Eu completei cinco anos. Em uma triste madrugada, meu painos deixou. Aquela noite ficou gravada na minha memória. Vi meu pai se debatendo e corripara ajudá-lo. Minha mãe pediu que eu segurasse uma vela na mão dele. Foi aí que percebique ele estava morrendo em meus braços, deixando saudades e um vazio em nossos corações.Por mais que eu soubesse o que estava acontecendo, não conseguia entender. Tentamos noslevantar e nos acostumar com a ausência e a dor da perda de dois membros da família.

Minha mãe matriculou-me em uma escolinha do povoado, e assim teve início aminha vida escolar. Tempos depois, ela me tirou de lá e começou a me ensinar em casa,juntamente com dois primos. Minha mãe passou a ser mãe, pai, professora, e a trabalharna roça para nos manter.

Certo dia meu tio a convidou para morar em São Paulo, arranjar um trabalho e melhorarde vida. Para tanto, ela teria que deixar os filhos. Só faltava essa. A morte nos tirou nosso paie agora queriam nos separar de mamãe. Ela não aceitou e resolveu mudar-se para Timon. Ali,ela lavava roupas nas casas de outras pessoas para ajudar no orçamento, pois não tinhaajuda de ninguém para pagar o aluguel da casa. Como havia sido ensinada por minha mãee já tinha oito anos, não freqüentei o Ensino Infantil, e fui matriculada na 1ª série doColégio Maria do Carmo Viana Neiva. Comecei bem e tirei boas notas.

* Graduanda em Artes Plásticas pela UFPI.

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Minha mãe sempre me deixava e pegava na escola. Certo dia, saí com minha primapara conhecer sua casa e não avisei. Minha mãe chegou ao colégio e eu não estava. Perguntoua todos até descobrir meu paradeiro. Quando ela, furiosa, chegou à casa de minha tia, eu nãomais estava. Minha tia pediu que ela não me batesse. Em casa ela me olhou bem nos olhose disse para eu não fazer mais aquilo.

Os quatro anos em que estudei no Colégio Maria do Carmo foram anos mágicos.Minha mãe acertou mais uma vez. Eu me sentia muito feliz. Lá, fiz amizades que até hojepermanecem. Com os professores tive uma boa relação. Entre eles cito a professora Antina,que muito me incentivou e que ficará para sempre em meu coração.

Meu tio pediu para minha mãe ir morar em sua casa enquanto ele se organizava pararetornar. Ficamos lá um tempo, até quando ele chegou. À época, graças a minha mãe quedormiu na porta da escola, consegui ingressar na Unidade Integrada Higino Cunha e curseio Ensino Fundamental da 5ª a 8ª séries. Comecei a tirar notas baixas. Fiquei surpresa comigomesma, pois estava acostumada a tirar sempre nove ou dez. A Matemática, que antes eudominava, estava ficando complicada. Cheguei a 6ª série muito desmotivada, mas fuidespertando para as disciplinas de História, Geografia e Português.

Naquele tempo, em Timon, só havia uma escola de Ensino Médio. Conseguir vaga foioutro sacrifício. No primeiro ano, enfrentei dificuldades ao me deparar com a Física, Química,Matemática e Biologia. Quando cheguei ao 3º ano, eu não sabia o que era vestibular. Fuiaprender com meus primos que tinham sido aprovados. A cada dia, eu tinha novidadessobre a vida universitária.

Fiz minha inscrição para garantir a inserção na UFPI. Não foi nada fácil. Só conseguidepois de três tentativas. Fui em um dia e, na minha vez, a senha acabou. Fui em outro e asenha acabou novamente, na minha vez. Passei a estudar pela manhã na escola, e à tarde nocursinho popular da Prefeitura de Timon, em seu primeiro ano de funcionamento. E assimfui levando a vida.

Não fui feliz em meu primeiro vestibular para Ciências Sociais, mas não desisti.Continuei freqüentando o Cursinho à noite e estudando em casa, já que tinha terminado aescola. Para ajudar a família, eu trabalhava como camelô no Calçadão da rua SimplícioMendes, em Teresina, e dava aulas de reforço escolar. Foi aí que surgiu uma nova oportunidadede entrar para a Universidade. Eles estavam fazendo inscrições para isenção da taxa dovestibular. Desta vez fui uma das primeiras e optei por Educação Artística.

O resultado do vestibular foi adiado duas vezes. Senti um certo alívio, pois estavamuito insegura. Fui trabalhar normalmente e, por volta do meio-dia, minha prima e umaamiga apareceram no meu trabalho e começaram a gritar bem alto: - PASSOU! PASSOU! Eufiquei assustada, e elas continuaram a gritar. Eu não estava acreditando. Minha prima entãoabriu o jornal e lá estava meu nome. Comecei a chorar sem parar. Apesar dos obstáculos eutinha conseguido entrar na Universidade. Imediatamente liguei para minha mãe. Ela jásabia. Foi uma grande festa.

Estamos em 2006 e eu sigo fazendo meu Curso de Educação Artística na UniversidadeFederal do Piauí-UFPI. Muitos pensam que é um curso fácil de concluir. Estão redondamenteenganados. Falam por preconceito, ignorância ou ingenuidade. A arte está em tudo o quefazemos. Por ser um curso caro, inscrevi-me no Programa "Bolsa Trabalho", que ajudaestudantes de origem popular a manterem-se na Universidade. Trabalhei por dois anos naBiblioteca Central da UFPI onde muito aprendi e me fortaleci.

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Logo que o Programa "Bolsa Trabalho" acabou, fiquei aguardando o resultado daentrevista que havia feito para ser bolsista do Programa "Conexões de Saberes". Fui até lá,mas meu nome não constava da lista. Fiquei esperando. Eu sabia que Deus não ia me faltar.Informaram-me que a Professora Edileusa, uma das coordenadoras, estava a minha procura.Liguei para ela, que me perguntou se eu ainda tinha interesse em participar do Programa.Não pensei duas vezes e disse: SIM.

Hoje sou apaixonada pelo Programa. Aprendi a ter mais amor por todos e estoumuito feliz em poder ajudar outras pessoas. Conscientizá-las de que elas também podementrar em uma Universidade. Minha vontade é permanecer aqui para sempre, pois estemaravilhoso projeto, além do seu lado solidário, tem me ajudado a refletir sobre a minhavida e a dos meus semelhantes.

Em novembro de 2006, fui, juntamente com os conexistas do Piauí, participar do IISeminário de Estudantes de Origem Popular, no Rio de Janeiro. O encontro serviu para discutirsobre as ações que precisam ser implantadas dentro da Universidade, a fim de ajudar jovens,como eu, a manterem-se com qualidade na Universidade. Conhecer o Rio de Janeiro foiinesquecível. Acho que cresci material e espiritualmente, pois é uma cidade mágica.

Finalizo agradecendo a Deus, a meu saudoso pai, a minha querida mãe, a meus irmãos,meus avós que tanto torcem por mim, aos coordenadores do Conexões, aos colegas conexistase a todos que fazem parte da minha vida.

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* Graduando em Matemática pela UFPI.

Fragmentos de uma cartografia sentimental

João Santos Andrade*

Nasci na cidade de Floriano (PI) mais conhecida como "Princesinha do Sul". Quandocompletei dois meses, meus pais, Nivaldo de Sousa Andrade e Francisca dos Santos Oliveira,se separaram. Eu e minha mãe fomos morar na casa de meus avós maternos, em um povoadochamado Recreio, que faz parte da pequena cidade de Angical, próxima de Amarante, terrado famoso poeta piauiense Da Costa e Silva. Ali, juntamente com meu irmão Franklin, vivia minha infância. Tratava meus avós de pai e mãe. Pela manhã, ia para a escola e à tardetrabalhava na roça com meu avô Raimundo. A vida no interior é muito difícil. Temos quedar duro para conseguir o pão de cada dia. A primeira vez em que fui para a roça, porinexperiência, cortei a mão do meu irmão; mas aos cinco anos trabalhava como um adulto.A rotina do trabalho no campo é sempre a mesma, quer chova quer faça Sol. Porém, ao fimdo dia, havia sempre um gostoso joguinho de futebol; embora estivéssemos cansados,funcionava como uma terapia anti-estresse.

Às vezes não tínhamos nada para comer, a não ser arroz branco. O jeito era pescar.Eu, Franklin e alguns amigos, que estavam na mesma situação, íamos para o riacho dasMangueiras. Lá escolhíamos um poço, que é a parte mais funda, mas que tem poucaágua, e fazíamos uma parede em volta dele, isolando a passagem da água. Em seguidacom umas latas tirávamos a água até encontrar os peixes que ficavam no fundo. Depoisdividíamos, igualitariamente.

Foi durante a minha infância que perdi minha querida avó. Ela sofria de câncer noútero. À época, minha mãe conheceu um homem com quem vive até hoje, e com ele teveduas filhas, minhas queridas irmãs: Vânia e Walquíria. Como eu e meu irmão estávamosvivendo com mamãe e meu avô ficou viúvo, ele decidiu construir uma casa perto da nossa.A faina diária continuava a mesma, mas com um agravante: eu tinha que acordar todos osdias às quatro horas da manhã para ir buscar água no chafariz para as necessidades da casa.Em seguida, por volta das seis horas, rumava para a roça e retornava às onze e meia, poistinha que ir à escola à tarde. Morar com minha mãe não mudou minha qualidade de vida.Certa noite, quando estava dormindo, quando acordei e ouvi um choro. Era minha mãe. Elachorava porque naquele dia não havia comida em casa. Comecei a chorar também, mas deraiva. Naquele momento, eu prometi a mim mesmo que aquela seria a última vez queiríamos passar fome. Portanto este é o momento em que a emoção me leva ao passado e memotiva para conseguir meus objetivos.

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58 Caminhadas de universitários de origem popular

Todo mês de julho minha mãe levava a mim e a meu irmão Franklin para Floriano,para visitar nosso pai, irmãs e avós paternos. Eu tinha um padrinho, que era como um pai,e eu o estimava muito. Era o Padre João. Aí está a origem do meu nome. Infelizmente elefaleceu prematuramente. Em uma dessas viagens, em 1995, Franklin e eu decidimos morarcom nosso pai. A mudança acarretou minha reprovação na terceira série do EnsinoFundamental. Eu estava com 11 anos e bastante atrasado. O trabalho na roça tomavamuito do meu tempo. Às vezes eu perdia até uma semana de aula. Fiquei triste e semestímulo, mas logo lembrei de minha mãe e da promessa que eu havia feito. Em 1996, meupai me matriculou na Escola Santa Teresinha, onde cursei a terceira e quarta séries. Nestemesmo ano, ele decidiu candidatar-se a vereador na cidade maranhense de Barão doGrajaú, que fica separada de Floriano pelo rio Parnaíba. Eu logo fui contra. Resultado: eleperdeu a eleição e ainda contraiu uma dívida de mais ou menos vinte mil reais. A saída foivender a casa. Tudo parecia uma loucura, mas era a única opção. A casa foi vendida, maso valor só deu para cobrir uma parte da dívida. Para completar, meu pai vendeu um terrenono interior do Maranhão. Sem casa, tivemos que procurar uma para alugar. Mudamo-nosde Floriano para Barão do Grajaú, no início de 1998. Passei a estudar no Colégio Imparcial,onde conheci grandes amigos e completei o Ensino Fundamental. Eu estudava à tarde e,pela manhã, ajudava meu pai. Ele vendia mandioca, que servia para alimentar o gado. Otransporte era feito em um velho caminhão que ele tinha. Era esse o nosso ganha pão. Em2001, eu estava finalizando o Ensino Fundamental e me preparando para o testeclassificatório do Ensino Médio no CEFET de Floriano. Fui aprovado em sexto lugar etambém na oitava série.

Iniciei o Ensino Médio em 2002, e, apesar das dificuldades, falta de dinheiro para otransporte (muitas vezes fui a pé) entre outras, consegui passar. Matemática e Física foram asmatérias nas quais me sobressaí. Sempre fui bom nos cálculos. Neste mesmo ano, fiz aprimeira etapa do Programa Seriado de Ingresso na Universidade (PSIU - UFPI). Obtive umtotal de 41 pontos e fiquei feliz. Em 2003, iniciei o segundo ano do ensino Médio econsegui uma bolsa para trabalhar na cantina da escola. Foi uma experiência muito positiva,além de conhecer muitas pessoas. Também passei a ministrar aulas de Matemática para 18alunos da turma de reforço no Colégio Imparcial e tive um aluno particular. Assim fui memantendo e custeando meus estudos. Eu tinha que pagar minha passagem de ônibus para ocolégio, pois meu pai havia vendido seu velho caminhão, sua única fonte de renda, e estavapassando dificuldades. Meu pai tinha apenas o Ensino Básico, o que lhe dificultava conseguirum emprego. Concluí o segundo ano e fiz a segunda etapa do PSIU. Desta vez não me saíbem e obtive apenas 24 pontos. Mesmo assim não desanimei. Eu sabia que seria aprovadono vestibular para Engenharia Civil.

Em 2004, continuei com a bolsa na cantina e as aulas de Matemática. Concluí oEnsino Médio e realizei a terceira etapa do PSIU. É o momento de escolher sua área. Comominha pontuação estava baixa para Engenharia Civil, optei por Matemática.Concomitantemente fiz minha inscrição na Universidade Estadual do Piauí-UESPI paraCiências Contábeis. Na UESPI, o vestibular é, teoricamente, mais fácil, pois é específico.Fiz uma boa prova e saí muito contente. Já na Universidade Federal do Piauí-UFPI, quandoterminei a prova, estava triste. Eu havia feito uma boa redação, uma ótima prova específica,mas, mais uma vez, minhas notas no PSIU não foram boas. A saída foi fazer o teste do CEFETpara Técnico em Eletromecânica.

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No início de 2005, terminada minha "Bolsa Trabalho", fui passar minhas férias lá noRecreio. Fazia tempo não via minha querida mãe. Certo dia, voltando do futebol, minhamãe me disse que meu pai havia ligado várias vezes. Lembrei que era tempo do resultado dovestibular da UFPI. Liguei para ele, mas quem atendeu foi dona Laise, sua esposa atual. Elame informou que ele tinha uma notícia para mim, mas só ele poderia dar. Isto me deixoumuito ansioso. Liguei para meu amigo Hudson que me deu a boa notícia. Eu havia sidoaprovado para Matemática em 15º lugar. Aí explodi de emoção. Liguei "para o velho" queestava mais feliz que eu.

Na manhã seguinte, voltei para Floriano e, dias depois, recebi o resultado positivo dovestibular da UESPI. Para completar a alegria, fui aprovado também no CEFET. Logicamentefiquei com a Matemática na UFPI.

Meu destino agora era Teresina. Passei quinze dias na companhia de minha irmãLiana, que estava fazendo pré-vestibular, custeada por uma tia, já que papai não tinhacondições de pagar. Inscrevi-me na Residência Universitária e, enquanto aguardava oresultado, morei no Bairro Renascença, na casa de um amigo do cunhado de meu pai.Fiquei lá cerca de um mês até que no dia 18 de maio de 2005, mudei-me para a ResidênciaUniversitária. Ali conheci gente como eu. Todos de origem popular. Entre eles a minhaprincesa Elcilene, de quem gosto muito. Ela é muito especial para mim e está semprepronta a me ajudar.

Atualmente faço parte do Programa "Conexões de Saberes" e estou ajudando pessoasque têm a mesma origem que eu.

Minha história vai seguindo e pretendo vivenciar a experiência de fazer Pós-Graduaçãoem Álgebra, parte da Matemática que mais me atrai.

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60 Caminhadas de universitários de origem popular

A saga do filho de um vaqueiro e de uma

Quebradeira de coco

* Graduando em Engenharia Agronômica pela UFPI.

João Silvestre da Silva Neto*

Meus pais

Vou começar a minha história contando um pouco sobre meus pais. Meu pai,José Geraldo da Silva, é pernambucano, e foi para o Maranhão com 18 anos, juntamentecom meus avós e tios, no dia 25 de novembro de 1975. Eles foram trabalhar na fazendade um primo, na cidade de Paraibano. Meu pai conta que meu avô vendeu tudo o quetinha em Pernambuco e embarcou com a família em um caminhão pau-de-arara. Aochegar à Fazenda Pé-de-Serra, habitada por umas setenta famílias, eles se tornaram aatração do lugar. Ele conta que à noite, famintos e sedentos, acharam um saco commangas-rosas, e aquela foi a primeira refeição naquele lugar onde meu pai ia vivergrandes histórias e encontrar seu grande amor, minha mãe, Eliene Alencar da Silva,que morava no interior, em um povoado chamado Esfregador, perto da fazenda. Elavivia com meus avós maternos e seus irmãos, e trabalhava quebrando coco babaçucom seu machado. Como fazia todos os dias, ela foi vender coco babaçu e viu meu tioGilson brincando de pular corda. Ela não resistiu e foi brincar também. Na hora emque ela estava rodando a corda, botou tanta força que a corda bateu nos lábios dele,que começaram a sangrar. Ela chorou e saiu correndo, com medo que meu avô, João,brigasse com ela.

Tempos depois, meus pais começaram a namorar e minha mãe foi morar com seuspadrinhos em Paraibano. Ela conta que um dia recebeu uma carta de meu pai cujo conteúdoé um segredo guardado a sete chaves. O fato é que no ano de 1981 eles se casaram. Meu paicom 24 e minha mãe com 17 anos. Foi uma grande festa, cheia de parentes vindos de todosos lugares. Mamãe conta que no outro dia, depois da lua-de-mel, ao acordar ela foi pentearo cabelo e, como tinha esquecido de levar o pente, usou um garfo. Nove meses depois,nasceu o primeiro filho do casal, no dia 8 de novembro de 1981, José Geraldo da SilvaFilho, o Zezim. Ele nasceu com um problema de saúde e, por isso, minha mãe esperouquatro anos para ter outro filho, por temer que o próximo nascesse com o mesmo problema.

No dia 14 de junho de 1985, eu, João Silvestre da Silva Neto, o herói da história, nasci,mas só fui registrado no dia 14 de julho. Meu nome foi uma homenagem ao meu avô, João,que foi me visitar no hospital e disse que eu me parecia demais com ele. Eu, logicamente,fico muito feliz com isso.

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No ano seguinte, no dia 29 de dezembro de 1986, nasceu minha irmã, Eliane Améliada Silva, completando os filhos legítimos do casal. Anos depois, eles adotaram outrosfilhos. Estava formada a minha família.

Infância

Fui criado, até os cinco anos, na Fazenda Pé-de-Serra, onde meu pai era vaqueiro. Fuicriado com todo o carinho que uma criança merece. Meu quarto era cheio de brinquedos,mas minha mãe não me deixava brincar, pois tinha medo que os quebrasse.

Eu era o oposto do meu irmão. Enquanto ele gostava de jogar bola, andar a cavalo,ficar no curral, no meio dos animais, eu preferia ficar em casa assistindo à televisão. Eutambém gostava de ir para a casa de minha avó, Teresinha. Isto não quer dizer que eu nãogostasse da vida na fazenda, eu apenas tinha outras preferências.

No ano de 1990 ou 1991, não lembro bem, meus pais foram morar em Graça Aranha,pois o dono da fazenda onde meu pai trabalhava havia comprado outra propriedade econvidou meu pai para trabalhar lá. Na época da mudança, já vivíamos em Paraibano, e meupai trabalhava como vendedor e comprador de animais, profissão muito comum na cidade.Papai passava vários dias viajando, vendendo e comprando gado, enquanto eu ficava emcasa com minha mãe e minha irmã. Meu irmão morava com nossa avó, na fazenda. Foramanos muito felizes. Lembro-me de ter passado momentos maravilhosos. Meu tio, irmão deminha mãe, morava conosco e vendia salada de frutas na rua. Na hora de preparar a salada,era uma farra. Também havia a Helena, nossa vizinha de frente. Ela sempre nos convidavapara brincar na casa dela. Às vezes passávamos o dia inteiro brincando, lá, juntamente comumas primas. Um dia minha mãe fez um doce de leite e deixou a panela para eu raspar ofundo. Minhas primas não me deixaram comer, e eu, com raiva delas, quebrei a torneira dacasa alheia. Minha mãe me deu uma surra.

Em Graça-Aranha, tudo era novidade. Eu não conhecia ninguém. Fomos morar emuma fazenda que ficava a três quilômetros da cidade. Lembro-me que chegamos ao final detarde, quase escurecendo. Minha primeira impressão foi positiva. Havia uma casa enorme,outras duas menores, um galpão e um curral na frente. No dia seguinte, fui conhecer afazenda onde passaria longos anos da minha vida.

Começamos a estudar na cidade e, como éramos pequenos, íamos para a escolacom o Adão, que trabalhava na fazenda ajudando meu pai. Todos os dias ele nos deixavae buscava em sua bicicleta. Quando fomos crescendo, passamos a viajar no carro do SeuCiço, um transporte de linha que passava pela manhã para pegar as pessoas do interior,e voltava ao meio-dia. À época, tínhamos a companhia de uma tia pequena, que foimorar conosco e estudava na mesma escola. Muitas vezes, quando saíamos da aula, ocarro já tinha ido embora e a gente voltava a pé ou na moto do Seu Fracalino, o homemda SUCAM, morador da vizinhança. Imaginem quatro pessoas em uma motocicleta.Uma vez saímos mais cedo da aula e resolvemos voltar a pé. Eu, minha tia e minha irmã.Como já estávamos cansados, resolvemos pegar um jumento que estava pastando. Foiuma luta pegar o animal, mas acabamos conseguindo. No momento em que montei nojumento, ele saiu em disparada e eu levei uma queda. Enquanto eu chorava de dor,minha tia e minha irmã riam de mim. Por sorte, passou uma camionete D20, cabinedupla, e nos deu carona. Mal andamos alguns quilômetros, o motorista nos avisou paranão ter medo, pois ele estava transportando um defunto na carroceria. Minha tia morria

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de medo de gente morta e começou a chorar junto comigo. Ela de medo e eu de dor naperna. Para completar o quadro, à medida que o carro andava as pessoas perguntavam seo morto era nosso parente.

Lembro-me, como se fosse hoje, do meu primeiro dia na escola. Cheguei todo tímido.Os meus futuros colegas brincavam, conversavam e eu, ali, quieto, sentado no meu canto.

A minha primeira professora foi a tia Maria, na Pré-Escola Saci Pererê. Ela me ensinoua ler e escrever. No princípio, eu era como manteiga derretida. Ninguém podia tocar em mimque eu chorava, mas com o passar do tempo fui-me enturmando e, até hoje, sou amigo deMaria Luiza, Nareline, Willane, Ezilda, Kelliane, Fabio e muitos outros. Duas pessoasmarcaram meus primeiros anos em Graça Aranha. A primeira foi uma menina pela qual meapaixonei. Nós estudamos juntos da pré-escola até a quarta série, mas eu nunca tive coragemde me declarar. Com o término da quarta série, ela foi embora e perdermos contato. Anosdepois eu a vi algumas vezes, mas a coragem não veio. A outra pessoa foi minha professorada primeira série. Ela era muito boa, me ensinou muita coisa e muito compreensiva.

Meu ensino na cidade de Graça Aranha foi muito proveitoso. Vivi momentosmaravilhosos e convivi com uma turma muito unida que adorava fazer peças de teatro, euescrevia o texto e ensaiava o pessoal e sempre tirava dez nas apresentações.

Quando fui fazer a quinta série, tive que estudar à tarde. Eu ia de bicicleta, juntamentecom minha irmã e a Ritinha, irmã de um tratorista da fazenda. Saíamos de casa ao meio-diae voltávamos às cinco ou seis da tarde. Uma vez eu fui sozinho e dois meninos me jogaramuma manga podre. Eu fiquei todo sujo, mas fui para a escola assim mesmo, pois tinha prova.

A sétima série foi feita à noite. O trajeto era feito em uma camionete D20 que levava osalunos do interior para a cidade. Era um monte de gente, uma folia e tanto. Nesse tempo,conheci minhas amigas Vandeca e Mauricéia. Eu pegava o carro às cinco horas da tarde echegava em casa onze ou doze horas da noite, às vezes, até uma da manhã, pois o motoristaia namorar e esquecia a gente na praça. Várias vezes fomos ao cabaré, chamá-lo, e ele estavalá, bebendo com as mulheres. Também não sei dizer quantas vezes ele nos transportoucompletamente embriagado. Às sextas-feiras era comum matarmos aulas para ir à boate. Certanoite, eu esqueci da hora e o carro foi embora com os outros alunos. Tive que ir debaixo dechuva, pedalando uma bicicleta emprestada que furou o pneu no meio do caminho.

Em Graça Aranha, duas pessoas marcaram minha vida: Sueli e Juce, duas irmãsprofessoras com histórias de vida exemplares e que sempre me disseram que eu jamais seriaalguém se não estudasse.

Terminei a oitava série e, com muita alegria, fui morar na casa de minha avó, na cidadede Paraibano, minha paixão.

Minhas férias quando criança

Uma coisa era sagrada para mim. Passar as férias em Paraibano. A casa de vovó ficavacheia de netos. Nós acordávamos cedo e íamos para o curral ver meu avô tirar o leite dasvacas. Depois tomávamos um café caprichado e saíamos a brincar. Eu adorava brincar decavalo-de-pau. Nós passávamos o dia nos divertindo, e muitas vezes nem lembrávamos decomer. No final da tarde, nos juntávamos com os filhos dos moradores da região, e jogávamosbola até a noitinha. Depois íamos tomar banho no olho d'água que ficava perto da casa deminha avó. No sábado, vovô nos levava para ver a feira na cidade. Saíamos pela manhã evoltávamos à tarde.

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Família

A minha família é a melhor do mundo. Não tenho nem palavras para expressar meussentimentos e fico sempre emocionado quando falo sobre ela. Agradeço a Deus por ter medado uma família tão maravilhosa. Amo a todos eles, sem distinção.

Graça-Aranha

Mudei-me para essa cidade quando tinha seis anos e morei lá até 2000, lá vivimomentos felizes e tristes. Na verdade, eu não gostava de morar lá, mas sim de passarférias e passear. Eu gostava mesmo era da fazenda de meus avós. Quando fomos morarem Graça Aranha, toda Semana Santa nós hospedávamos o dono da fazenda, sua mulhere um monte de gente. A mulher era uma cobra em forma de gente. Minha mãe trabalhavacomo uma louca, fazendo comida, lavando louça; e eu e minha irmã não podíamossequer ir a cozinha beber água. Comer? Só quando eles terminavam. No final ela aindasaía falando mal da gente.

Paraibano

Em 2001 fui morar em Paraibano para cursar o Ensino Médio, inexistente em GraçaAranha. Fiz a inscrição e passei a freqüentar as Tele-aulas. Conheci grandes amigos e merecordo que todos os domingos havia banho na barragem. Foi também em Paraibano quecomecei a trabalhar com minha tia, matando e vendendo frango. Eu acordava às cinco horasda manhã e começava a matar frangos. Às seis horas eu ia ao interior buscar leite em umamoto velha. Essa minha labuta durou um ano e meio.

Em 2001, aconteceu uma tragédia que abalou toda a família. A morte do meu tioAntonio, encontrado morto em Floriano. Foi um desespero, pois uma semana antes ele veiovisitar os pais, as irmãs e os sobrinhos. Foi uma despedida. Este fato me marcou muito, poiseu era muito ligado a ele.

Em Paraibano conheci pessoas que guardo até hoje no meu coração: Valéria, Aquinélia,Liliane, Paulo. Quando viajo para lá tenho que encontrá-los.

No ano de 2002, mais precisamente em junho, terminei o Ensino Médio pela Tele-sala. Eu sempre sonhei em me formar, ser médico. Para tanto, eu tinha que estudar fora.Comecei a fazer planos e pedi ajuda às minhas tias a fim de convencer meus pais. Neste anotambém vivi um momento inesquecível. No dia do meu aniversário, minhas tias e meusamigos me fizeram uma festa de surpresa. Este era um sonho acalentado há muito tempo,pois eu nunca tive festa de aniversário. Aí também foi uma despedida, já que dias depoisviajei para Teresina.

Em Paraibano tem um evento que sempre marcou a minha vida, a Vaquejada, umrodeio em que meu avô João foi pioneiro na região. Ele promoveu a primeira vaquejadade Paraibano, que hoje está na vigésima primeira edição e é uma das atrações turísticasda cidade.

Teresina

Cheguei a Teresina no dia 4 de agosto de 2002, e fui morar com uma amiga de minhamãe e seu filho. Passei a estudar à tarde no CPE. Nos primeiros dias eu andava com medo,pois tudo era novo e eu tinha medo de me perder nas ruas. Saía de casa ao meio-dia, ia paraa escola e retornava às oito horas da noite. Depois do banho ia conversar com os vizinhos.

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Tudo estava indo bem, na casa onde eu morava, até que um dia a dona da casa viajoue me deixou, sozinho, com seu filho. Em uma noite em que cheguei mais tarde o menino nãoquis abrir a porta, e eu tive que dormir na casa do vizinho. Nunca contei esta história aninguém, nem mesmo a minha mãe, mas eu agradeço àquela senhora por ter me aceito emsua casa, caso contrário eu nunca teria vindo para a capital.

Minhas tias sempre ligavam e me incentivavam. Uma vez elas mandaram uma caixacom biscoitos, doces e uma quantia em dinheiro.

Prestei o vestibular para Nutrição na UFPI e História na UESPI. Levei bomba emambas. Fiquei muito triste, mas é preciso entender que há uma grande diferençaentre o ensino praticado no Interior e o da Capital, além do mais eu só estudei duranteseis meses.

Em 2003, fui morar em outra casa com minha irmã e um casal de irmãos, Jorge eJosélia, filhos de uns amigos de meus pais que tinham uma casa aqui em Teresina. A casaficava no Parque Piauí, e eu comecei a fazer um cursinho pré-vestibular em uma escola dobairro. Foram tempos difíceis. Muitas vezes só tínhamos arroz branco para comer. Nossamãe não podia nos ajudar e minha irmã se punha a chorar. Nessas horas meu vizinho, seuValmir, nos trazia um ovo para misturar ao arroz. Fomos levando, aos trancos e barrancos.Comecei a estudar duro, sem hora para parar, dia e noite, sábados e domingos. Eu estavadeterminado a passar no vestibular. No fim do ano prestei vestibular para Agronomia naUFPI e Química na UESPI.

No dia do resultado eu estava no centro da cidade, quando as emissoras de rádiocomeçaram a divulgação dos aprovados. Peguei um ônibus para casa cujo motoristaera uma lesma e, impaciente, comecei a brigar com ele, e nada de ele acelerar. Desci docoletivo e comecei a correr para casa, mas entrei na casa do vizinho. Quando chegoua vez do resultado Agronomia eu só ouvia o nome dos outros. O meu nada. Comecei ame desesperar, até que chegou a minha vez. Eu havia sido aprovado para o segundoperíodo de Agronomia na Universidade Federal do Piauí. Dei um pulo e um grito tãogrande que desmaiei. Quando acordei eu estava deitado na cama com a cabeçacompletamente raspada. Corri para o telefone para avisar meus pais e minhas tias. Foiuma alegria muito grande para todos nós. Houve festas em Graça Aranha e Paraibano.Quando lá cheguei todos os meus amigos vieram me dar os parabéns, pois eu era oúnico filho das duas cidades, um rapaz de origem popular que, com raça edeterminação, havia passado em uma universidade federal. Meus primos, tios e avóspassaram a me chamar de doutor.

Um dia antes do início das aulas fui à Universidade conhecer minha sala de aula.Depois comprei um caderno de vinte matérias, quatro canetas de cores diferentes epassei a noite em claro, sem conseguir dormir, cheio de ansiedade. No dia seguinte, afrustração. A Universidade entrou em greve e as aulas só foram iniciadas no dia 22 desetembro de 2004.

No ano passado, uma tragédia atingiu minha família. O dono da fazenda ondemeu pai trabalhava começou a ameaçá-lo dizendo que ia matá-lo. Ele não teve outrasaída senão ir embora. Para nosso desespero, ele ficou desaparecido durante seis meses,sem dar nenhuma notícia. Minha mãe também recebeu ameaças e eu tive que viajarpara lhe dar proteção. Ainda bem que a UFPI estava em greve e eu não fui prejudicadonos meus estudos.

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No fim do ano, novo dissabor. A mãe de um dos meninos com os quais morávamoscolocou minha irmã para fora de casa. Ficamos sem lugar para morar até que um amigo, oJúnior, a quem muito agradeço, convidou-me para morar com ele e lá estou até hoje.

Em abril, fiz minha inscrição no "Conexões de Saberes" e fui selecionado com umabolsa. Atualmente estou feliz por participar de um programa tão importante e espero queminha história de vida sirva para incentivar pessoas a nunca desistir de seus sonhos.

Dedicatória

Dedico minha história primeiramente aos meus familiares, que sempre me deram forçapara estudar e me formar. Eu sei que quando isto acontecer será o dia mais feliz de suasvidas. Dedico também aos meus amigos de Paraibano e Graça Aranha, que, mais que amigos,são meus irmãos. Aos amigos da Universidade Federal do Piauí com quem convivo a maiorparte do ano e com quem tenho vivido situações inesquecíveis.

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As reminiscências de Joselene

* Graduanda em Enfermagem pela UFPI.

Joselene Oliveira*

Falar sobre minha história de vida é um pouco difícil. Sou uma pessoa muito reservadae tímida. Foi uma surpresa quando fiquei sabendo que cada um de nós, integrantes doPrograma "Conexões de Saberes", tínhamos que escrever sobre nossas vidas, mas já meacostumei com a idéia.

Não poderia falar sobre minha vida sem falar em meus pais. Minha mãe, Luiza Olindina,nasceu nas proximidades da cidade de São João do Piauí, mais precisamente no interior.Meu pai, Aderson Oliveira, em outro lugarejo vizinho. Minha mãe dizia que não queriacasar-se com ele, mas queria sair do interior e ir para a cidade, porque não gostava detrabalhar na roça. Queria mudar o estilo de vida, por isso resolveu casar-se. Aqui entre nós,acho que ela gostava dele sim, mas nunca quis dar o braço a torcer. Após o casamento elesmoraram um tempo em São João do Piauí e logo depois decidiram mudar para São Paulo. Lánasceram meus irmãos. Gilmar, o mais velho; Jaime, que infelizmente morreu com menos deum mês de vida; minha irmã, Joselita; e depois meu irmão Nelson. Após alguns anos,retornaram todos ao Piauí. A fim de evitar mais filhos, minha mãe queria fazer laqueadura.Tudo ia muito bem até que um dia minha mãe descobriu que estava grávida mais uma vez.Adivinhem quem era? Isso mesmo, eu, Joselene, nascida de uma gravidez não planejada.Pois é, nasci e aqui estou na luta de sempre.

Minha infância foi em São João do Piauí. Bons tempos aqueles. Em frente à nossa casamorava Dona Dejesus, a lavadeira. Eu ficava o tempo todo na casa dela, e adorava sair comela para entregar as roupas nas casas de seus fregueses. Onde ela ia, lá estava eu. Quem nãogostava disso era meu pai, pois sempre foi muito ciumento. Outra grande amiga chamava-se Bebela. Infelizmente morreu muito cedo, coisa de criança. Imaginem que um dia ela meconvidou para brincar em uma casa abandonada. Minha irmã não deixou. Sorte a minha,pois a casa desabou e Bebela faleceu.

Estudei o Jardim da Infância em São João Piauí, lá residi até completar sete anos. Alitambém cursei a primeira série do Primário. Nessa fase, sofri muito com a separação de meuspais. Eles estavam brigando muito e resolveram se separar. Meu pai casou-se novamentecom outra mulher, e continua morando em São João do Piauí, antes de se casar foi para SãoPaulo para trabalhar para pagar uma dívida que tinha no banco, ele passou a mandar umpouco de dinheiro para nós, mas mal dava para as contas, pois éramos cinco pessoas. Minhamãe também trabalhava para ajudar nas despesas, como empregada doméstica em várias

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casas. Por sorte, meu avô materno morava em uma região próxima e mandava algunsmantimentos. Era a nossa salvação. Não tínhamos televisão. Lembro-me que ia assistir nacasa de uma vizinha. Parece bobagem, mas qual criança não gosta de ver programas edesenhos animados?

Eu e meus irmãos estudávamos todos em escolas públicas. Gilmar, o mais velho, eramuito estudioso. Meus pais conseguiram para ele uma bolsa de estudos em Teresina. Ele semudou e estudou durante um ano. Infelizmente meus pais não puderam mais sustentá-lo eele perdeu a bolsa. Desanimado, resolveu ir tentar a vida em São Paulo, no que foi seguidopor minha irmã, Joselita. Preocupada com os filhos, minha mãe acabou indo embora tambémpara São Paulo. Eu e meu irmão menor ficamos na casa de nossos avós. A vida em São Pauloestava muito difícil. Minha mãe e meus irmãos ganhavam pouco e ainda tinham que pagaraluguel. Mesmo com dificuldades, mamãe mandou nos buscar, pois sentia nossa falta e nósnão estávamos estudando.

Cheguei em São Paulo com nove anos de idade. Minha mãe alugou uma casa com umquarto, uma sala e uma cozinha. Tudo muito pequeno. Dormíamos todos em beliche parapoder nos caber. O quintal da casa era comum para várias outras residências. O proprietáriomorava na casa em frente à nossa. No corredor residia uma senhora e sua filha. Dona Hildatornou-se uma grande amiga. Nesse tempo minha mãe matriculou-me na primeira série.Tive que começar tudo de novo, pois meus estudos no Piauí foram interrompidos com aviagem de minha mãe. No começo eu tinha vergonha por ser a maior e a mais velha daclasse, mas, com o tempo, deixei essas bobagens de lado e esforcei-me com ajuda de minhafamília para recuperar o atraso. Meu irmão mais novo também estudava na mesma escola.Minha mãe e meu irmão juntaram suas economias e conseguiram comprar um terreno em umbairro popular. Ali construímos uma casa de três cômodos e um banheiro. Tudo feito commuito sacrifício e em várias parcelas. Minha irmã, que trabalhava em um supermercado,gastava quase todo seu salário com as compras de alimentos, higiene pessoal e material delimpeza. Enfim saímos do aluguel. Lembro até hoje o dia da mudança. Quando chegamos acasa, havia faltado energia. Fizemos um lanche com pães e refrigerante. Em seguida,colocamos os colchões no chão e dormimos. Nos dias que se seguiram, tratamos de arrumara casa. Ficamos vários meses sem vidros nas janelas e nas portas; e, no lugar do vidro,papelão. Eu e minha irmã detestávamos aquele lugar. As coisas eram lavadas em um tanqueque havia no corredor. Na nossa rua não havia água encanada. Um motor puxava água deum poço na vizinhança e abastecia uma caixa d'água que ficava perto de nossa casa. Doisanos depois, finalmente tivemos água encanada.

Minha mãe me matriculou na segunda série do primário em uma outra escola estadualque ficava perto da nova casa. Como toda escola pública, o ensino era muito fraco. Meuirmão também estudava lá. Nesse bairro e na mesma escola concluí meu curso primário.Mamãe então me matriculou em uma escola de datilografia. No início, detestei. Depois fuivendo que era uma boa. Como me destaquei na digitação, consegui matricular-me em umaONG que estava oferecendo cursos de auxiliar de Administração e técnico em Informática.O curso tinha uma carga horária pequena e duração de seis meses. Com quinze anos deidade, comecei a trabalhar e a ajudar nas despesas da casa. Eu trabalhava na mesma empresaonde minha mãe era faxineira e minha irmã costureira. Minha função era de ajudante decostureira. Trabalhava durante o dia e estudava à noite. Até então não sabia que profissãoseguir. Foi quando arranjei um trabalho de recepcionista em uma clínica médica. O trabalho

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dos médicos despertou em mim o interesse pela área de Saúde. Eu estava dividida entreFisioterapia e Enfermagem. Minha mãe, percebendo minha dúvida, sugeriu que eu fizesse ocurso técnico em Enfermagem, mas o que eu queria mesmo era entrar em uma universidade,fazer um curso superior. Continuei estudando, trabalhando para ajudar em casa e lendomuito para que pudesse ampliar meus conhecimentos.

O segundo grau foi concluído em 2001. Meu objetivo agora era prestar vestibular parauma universidade pública de São Paulo; porém os dois cursos que pensava fazer exigiriamtempo integral. Determinada, resolvi trocar de emprego, no qual ganharia menos, mas teriaa possibilidade de seguir com meus planos. Conversei com minha mãe e expliquei minhaestratégia: fazer o vestibular em uma universidade particular. A mensalidade eu pagariacom o salário e a venda dos tickets de alimentação. As refeições eu levaria de casa. Acondução seria feita mediante os vales-transportes que a empresa dava para os funcionários.Minha mãe não concordou e até foi contra. Ela temia que eu perdesse o emprego e nãopudesse continuar os estudos. Estudei com afinco. Em qualquer folga, estava eu com umlivro na mão. Fiz as provas e passei. No início, não tive apoio da família. Sofri muitascríticas, pois havia muita discriminação. Mergulhei no estudo e fui vencendo com esforçoe determinação. Não era nada fácil. Acordava bem cedo para ir trabalhar das oito da manhãaté às seis da tarde. Depois saía correndo para a Universidade cujas aulas começavam às19:00 e terminavam às 22:45. Eu chegava em casa por volta de meia-noite; e muitas vezesestudava durante a madrugada, fazendo trabalhos ou me preparando para as provas. Continueiajudando em casa com uma cesta básica que recebia da empresa, pois meu salário mal davapara pagar a Faculdade. Para conseguir mais um dinheiro, eu fazia bombons, espetinhos defrutas, e lanches que vendia na Faculdade. Foi uma fase muito difícil, mas eu tinha oobjetivo de me formar em Enfermagem, trabalhar e ajudar minha mãe.

No mesmo ano em que entrei na Faculdade, minha mãe sofreu uma tendinite e fortesdores na coluna. Ela teve que se afastar do trabalho por um tempo e, quando voltou, foidemitida. Minha mãe ficou muita revoltada com a falta de respeito e consideração daempresa na qual deu seu suor por tantos anos. Eu já havia concluído o primeiro ano deEnfermagem e continuei enfrentando grandes dificuldades, pois já não contava com aajuda de minha mãe. Nas minhas férias resolvi viajar para Teresina, conhecer a cidade e veras oportunidades de estudo, já que minha mãe ultimamente só falava em voltar ao Piauí.Hospedei-me na casa da sogra de minha irmã, em Timon-MA, cidade separada de Teresinapelo rio Parnaíba. Tive boa impressão de Teresina e resolvi preparar-me para ingressar naUniversidade Federal do Piauí-UFPI. Tive sucesso e iniciei meus estudos em 2004. Nocomeço foi difícil, pois senti muitas saudades de minha família que ficou em São Paulo,minha mãe, minha sobrinha Mônica filha da minha irmã Joselita, meu irmão e amigos.Também foi difícil dispensar os pré-requisitos, porque a grade curricular era diferente.Inicialmente pedi dispensa das matérias cursadas em São Paulo e fui cursando as sem pré-requisitos. Isso me atrasou um pouco, mas atualmente tudo está normalizado. Minha vindapara cá causou muita tristeza em minha mãe, mas eu não tinha mais condições de permanecerem São Paulo. As mensalidades foram aumentando e tornando-se impagáveis; minha mãecontinuava desempregada e eu tive que buscar uma alternativa. Residi durante um tempona casa da sogra de minha irmã, a Vó Raimunda, como eu a chamava. Todos me tratarammuito bem. Ela tem uma neta, Penha, pessoa que muito estimo. Em uma das idas e vindas deTimon para Teresina, conheci, em um ônibus, o Márcio Ricardo, um homem maravilhoso.

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Nos tornamos amigos e em seguida namorados. Ele tem sido muito importante para mim,pois suas palavras sábias, seu apoio psicológico têm sido uma fortaleza que me abriga e meprotege nas horas difíceis. Estamos fazendo planos para casar, quando houver melhorescondições financeiras. Atualmente moro na residência da UFPI, onde formei um seletogrupo de amigos. Participei da seleção do Programa "Conexões de Saberes", fui aprovada,e aqui estou continuando minha luta em busca de oportunidades e da realização dos meussonhos. Paralelamente vou ajudando a quem quer fazer um curso superior, ampliar seusconhecimentos e melhorar sua condição de vida.

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* Graduanda em Ciências Sociais pela UFPI.

Sonhei, sonho e sonharei,

com um futuro mais justo

Juliana Rodrigues Cavalcante*

[...] Quando permitimos que a liberdadesoe de todos os municípios e de todas asvilas, de todas as cidades, estaremos emcondições de apressar a chegada daqueledia em que todos os filhos de Deus, homensnegros e homens judeus e cristãos,protestantes e católicos, poderão unir suasmãos e cantar as palavras do velhoespiritual negro: 'Enfim livres! GrandeDeus Todo Poderoso, somos finalmentelivres!'.

Luther King

A minha história tem início com meu pai e minha mãe conhecendo-se em Teresina-PI. Começaram a namorar e logo se casaram. Minha mãe engravidou e, tempos depois,descobriu que se tratava de uma menina. Meu pai ficou muito feliz, e, meses depois, nodia 16 de junho de 1985, para alegria de todos, eu nasci. Meu pai estava desempregadoe minha mãe havia deixado o emprego por conta da gravidez. Logicamente a situaçãofinanceira da minha família era muito delicada. Meu pai chegou a concluir o EnsinoMédio, mas não conseguia arranjar emprego. Então resolveu montar seu próprio negócio.Ele alugava geradores de energia para as festas nas periferias da cidade, lugares carentesde energia elétrica. À época, ainda morávamos na casa de meus avós, na cidade deTimon-MA. Minha mãe engravidou outra vez, e nasceu meu irmão. Tio Johnson,irmão de meu pai, deu-lhe o nome de Thomas Jefferson, em homenagem ao presidentenorte-americano.

Quando eu tinha onze meses, nos mudamos para Campo Maior, distante duas horas deTeresina. Ali passei minha infância e parte de minha adolescência. Foram temposinesquecíveis, pois lá também conheci o Senhor Jesus Cristo e convivi com minhas melhoresamigas do mundo: Luciana e Daniele, mas também foi lá que perdi uma das pessoas quemais amei na vida: meu pai.

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Trajetória do ensino de base

Quando completei cinco anos de idade, meus pais resolveram ir morar na casa de meustios Carlinhos, Wilsa e Gracinha, em Curitiba, Paraná. Lá ficamos um ano e oito meses e eutive meu primeiro contato com os estudos, pois tia Wilsa, preocupada com meu futuro,cuidou logo de matricular-me na escola onde ela trabalhava. Curitiba é linda, e ali passeimomentos felizes. Não me recordo de muita coisa, pois era muito pequena.

Tudo ia bem até que meu avô materno adoeceu e nós tivemos que retornar ao Piauí.Em Campo Maior, eu e meu irmão fomos matriculados na mesma escola. Eu na Alfabetizaçãoe ele no Jardim I. Estudei a 1ª e 2ª séries na Unidade Escolar Monsenhor Mateus e a 3ª e 4ªséries na Unidade Escolar Professor Altivo. Foi nesse momento que perdi meu pai. Passeium longo tempo sem ir à escola, pois eu estava fiquei arrasada. Nós éramos muito apegadosum ao outro. Fiquei cheia de traumas e acho que ainda hoje tenho alguns. Quase perdi o anoletivo, mas, graças a Deus, professores maravilhosos acudiram-me, apoiaram-me, e eu passeide ano. Prometi a meu pai que um dia seria doutora, e continuo com esse propósito. Estudeia 5ª e 6ª séries no GOT, que também é um colégio público; e terminei a 8ª série em Teresina,na Escola Estadual Fontes Ibiapina.

Depois da morte de meu pai, passamos a viver da pensão que ele deixou. É escassa,mas minha mãe faz milagres e temos sobrevivido até agora. Contamos também com apreciosa ajuda de tia Gracinha. Eu e meu irmão temos total reconhecimento e gratidão portudo que ela tem feito. A minha família, tanto do lado materno quanto do lado paterno émuito especial, mas tia Gracinha é um caso à parte. Minha existência não seria a mesma seela não existisse. Ela foi e é fator preponderante na minha trajetória escolar e de vida. Ela éum presente de Deus.

Pré-Universidade

Estamos agora na fase do Ensino Médio. Cursei também o 1º ano na Escola FontesIbiapina, que ficava perto de minha casa. Graças à persistência de minha vizinha Elizabeth,entrei para o Colégio Zacarias de Góis, o famoso "Liceu Piauiense", onde estudei o 2º e 3ºanos. Este foi o melhor colégio de toda a minha vida. Lá vivi meus melhores anos e conhecia galera mais bacana do Ensino Médio que pode existir na face da terra (sei que sou exagerada).

Terminei o Ensino Médio com 17 anos e sem saber muito o que queria fazer. Era hora dedecidir meu futuro profissional e dar um sentido à minha vida. Resolvi inscrever-me nosvestibulares das duas universidades públicas: Universidade Federal do Piauí-UFPI, onde preferiLicenciatura em História; e Comunicação Social na Universidade Estadual do Piauí-UESPI.Vivi enorme frustração, pois, embora tendo estudado bastante, não fui aprovada em nenhumadas duas. Decidi que ia passar em 2004. Comecei a estudar em casa, pois minha mãe não tinharecursos para pagar um cursinho. No meio do ano de 2003, arranjei uma vaga em um cursinhopré-vestibular popular que ficava no meu bairro. De segunda a sábado, das 18:00 às 22:00, aliestava eu firme e forte. Fiz novamente minha inscrição nas duas Universidades mencionadas,mas inverti as opções. Ciências Sociais na UFPI e História na UESPI. No dia do resultado, acordeibem cedo e, bastante ansiosa, fui aguardar o resultado ao pé do rádio aqui de casa. Na sala, minhamãe e meu irmão compartilhavam minha ansiedade, de repente toca o telefone. Era uma amigame dizendo que ouvira meu nome na lista de aprovados para o curso de Ciências Sociais daUFPI. Pulei, gritei, abracei, e agradeci a Deus aquele momento. Não passei na UESPI, mas Deussabe o que faz. Hoje estou completamente apaixonada por Ciências Sociais.

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Ressalte-se que a Tia Gracinha, mencionada anteriormente, sempre me surpreende.Desta vez, ela me deu de presente um computador, que tem sido de grande valor para meusestudos: - Tia Gracinha, muito obrigada! Sempre.

A Universidade

No que se refere à Universidade, o primeiro semestre foi bastante complicado. Eutinha aula das 14:00 às 22:00; Era cansativo e eu não entendia nada do que lia. Devido àminha renda familiar, fui considerada carente e ganhei uma bolsa de alimentação para o RU(Restaurante Universitário). No segundo período, as coisas ficaram mais tranqüilas. Eu jáentendia o que lia. Ciências Sociais exige muita leitura e dedicação, e eu vivoconstantemente estudando, lendo, pesquisando e fichando textos. No terceiro período,inseri-me no projeto de um professor através do PIBIC. Minha bolsa era voluntária, masmeu orientador conseguiu uma outra pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado doPiauí-FAPEPI. Mergulhei então no mundo fantástico e real das pesquisas científicas e nãopretendo mais parar. Nos dias atuais, estou no sexto período e agora vinculada ao Programa"Conexões de Saberes", onde pesquiso uma temática e trabalho no Cursinho Pré-Vestibularde uma comunidade popular.

Com base neste relato, é perceptível que sou uma estudante de origem popular. Muitasvezes faltei às aulas por falta de um passe de ônibus. Muitas vezes deixei de tirar uma cópiaxerox por falta de dinheiro. Comprar livros? Nem pensar. Mas aprendi a ser estratégica.Escapar diante das dificuldades. Se eu cheguei à Universidade, vou sair dela com o que demelhor ela tiver para me oferecer. Se não posso comprar livros, vou à Biblioteca. Foi assimque descobri o ambiente que mais me fascina, onde gosto de passar meu tempo livre.Sempre que vou a um lugar e não visito sua biblioteca é como se não houvesse ido. Os livrossão para mim a expressão de voz e vez de uma determinada época. A visão crítica dopassado e futuro de uma realidade social.

Agradeço a oportunidade de poder contar minha história acadêmica. Estou perto deme formar, falta só um ano. Já estou rabiscando minha Pós-Graduação, pois pretendo fazermestrado em Sociologia. Quanto ao doutorado, ainda não decidi, mas certamente será emalguma área de Ciências Sociais.

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* Graduanda em Serviço Social pela UFPI.

Sob a luz da fama

Kalinka Kelciane Teixeira de Brito*

Quem sou eu?

Tenho um nome um tanto incomum - Kalinka Kelciane - escolhido ao acaso, semnenhum significado especial. Minha mãe queria dar-me um nome diferente, com "ar deexclusividade" e que, de certa forma, "chamasse a atenção". Acho que conseguiu!

De índole complicada, costumo dizer que sou uma incógnita até para mim mesma.Também não é para menos. Desde cedo, vi-me confusa, envolvida em mundos distintos, aomesmo tempo em que convivia com uma família na qual não se economizam insultos, masque no final todos acabam sempre se entendendo.

Minha mãe, Neusa Teixeira de Brito, é uma mulher batalhadora. Embora tenha queenfrentar as restrições financeiras, como, por exemplo, a dificuldade de morar em um cômodoemprestado, onde quarto, sala e cozinha se amontoam, o peso de ser pai e mãe. Contudo,nunca mediu esforços quando o assunto é minha educação, meu futuro. Ela acredita que opouco pode render muito quando se trabalha com força de vontade e perseverança. Por issoluta com garra para superar os obstáculos ao invés de acomodar-se no pessimismo em que seencontra a maioria das famílias de baixa renda.

Pedras, flores e espinhos

Há mais de quinze anos, minha mãe é zeladora da Escola Santa Helena, um colégioprivado onde também concluí meus estudos e ao qual serei eternamente grata, por ter meproporcionado uma boa educação como estudante e cidadã. Minha irmã mais nova, Denise,não teve a mesma oportunidade, pois foi registrada e criada por meus tios. Eis aí mais umaconseqüência da ausência da casa própria e das limitações econômicas.

Ter estudado em uma escola particular não significa que minha vida escolar tenha sido um"mar de rosas". Muito pelo contrário. Ali passei os meus piores momentos. Todos os dias sentia-me como um peixinho fora d'água, perdida em um "mundo de doces e flores", vivendo umarealidade totalmente antagônica ao meu bairro, onde eu e minha turma, sujos de areia, suados edescalços corríamos e gritávamos pelos quarteirões, apertando as campainhas e roubando mangasnos quintais alheios. Não conhecíamos os shoppings, tampouco o cinema, sobre os quais opessoal do colégio estava sempre comentando, mas nos divertíamos muito com as brincadeirasde rua: queimada, bandeira, taco etc. e também passeando de patins no aeroporto.

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A turma se revezava para que todos pudessem usar o único par de patins. Lembromuito bem que invadimos uma casa abandonada na rua vizinha e ali fundamos nossoclubinho, onde passávamos horas e horas planejando "loucuras de criança". As missõesforam inúmeras e, dentre elas, uma manhã de sol no rio Parnaíba que me custou uma belasurra. Um dia, resolvemos fundar uma banda de música com instrumentos feitos de latas. Euera uma das bailarinas (desde criança já era fascinada pela dança). Tudo ia bem até que certodia os donos da casa nos descobriram e fomos expulsos. Ficamos sem sede e desintegrados.

Todo começo de ano era um sufoco. Graças ao "salvador dos pobres", o crediário,minha mãe dava um jeito de comprar meu material escolar. O resto do ano ela pagava ascompras em eternas e suaves prestações mensais.

Quando falavam em festas, eventos ou viagens do colégio, eu nem me animava.Eu já sabia que os gastos seriam exorbitantes. Serra da Capivara, Sete Cidades, SãoRaimundo Nonato, Delta do Parnaíba eram lugares que o pessoal do colégio semprefalava. O jeito era ver de longe, admirando as fotos e acreditando que um dia eu teriacondições de conhecer as belezas naturais do Piauí, do Brasil e, quem sabe, de outraspartes do mundo.

Outro grande fardo que tive que suportar foram os múltiplos, cruéis e incontáveisapelidos que meus queridos colegas de sala me taxavam. Eu era motivo de risos para todos,inclusive para as minhas "amigas". Os professores fingiam não ver e eu não tinha a quemreclamar; afinal eu era bolsista e meu dever era agradecer.

Sonhei inúmeras vezes em estudar em uma escola pública. Apesar de conhecer asdificuldades daquele ensino, eu queria conviver com pessoas de minha classe social, ondenão me sentisse feia, inferiorizada e não tivesse vergonha de mostrar quem sou e como vivo.

Concentrar-me para estudar era outro desafio. Além do calor insuportável, as pessoasdo meu conjunto habitacional não sabiam viver em coletividade. Ali é um dos lugares maisbarulhentos da cidade. Suportei, a duras penas e em volume ensurdecedor, o brega, asuingueira, o forró e o reggae. A boa vizinhança não media esforços quando o assunto eraincomodar. A máxima já diz tudo: "Os incomodados que se retirem". As bibliotecas eram umluxo que o custo do transporte impedia. Com o tempo, fui amadurecendo e me dando contade que não adianta ficar lamentando. Naquele momento, o mais importante era tirar omáximo proveito daquela oportunidade. Eu também aprendi que, por mais que eureivindicasse ou derramasse lágrimas, aquelas pessoas jamais se importariam. Passei a encará-las como mais uma árdua etapa a ser superada.

Rumo à UFPI

Último ano do Ensino Médio. Era hora de fazer tudo ter valido a pena e decidir meufuturo. Eu estava determinada a vencer.

Além dos estudos semanais, quatro horas por dia, o Cursinho Popular Pré-Vestibularfoi de suma importância para meu ingresso na Universidade Federal do Piauí. Ali revi eaprendi melhor alguns assuntos que, apesar de terem sido ministrados por bonsprofessores no colégio, estavam mal compreendidos. Provavelmente porque tenhamsido dados no sétimo horário. Considero contraproducente esse tipo de carga horária,na medida em que sobrecarrega o estudante e limita sua aprendizagem diante de tantapressão. Retornando ao cursinho, lembro, com carinho, de alguns professores que semprese mostraram bastante comprometidos conosco, mesmo diante das dificuldades de

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trabalhar com poucos recursos, sem material didático, cadeiras insuficientes, e em umaárea improvisada coberta de palha que foi cedida pela Associação de Moradores. Abatalha foi árdua, mas é sempre muito gratificante a conquista de uma vitória apóslonga e dolorosa luta.

Passei em primeiro lugar para o Curso de Serviço Social, no ano de 2005. Tudo foirecompensado. Meu nome saiu até em notas de jornal. O segredo? Acreditar que não existemmetas inalcançáveis para quem luta com determinação e sabe onde quer chegar. E eu souassim. Uma pessoa que luta com tenacidade pelo que quer e que não desanima diante deuma queda, pois as dificuldades da vida dão às virtudes condições para que se tornem maisfortes e belas.

Meu sonho sempre foi ser artista

Depois que ingressei na Universidade, continuei em busca de outros objetivos. Dessavez investi naquele meu velho sonho de criança: a dança.

Há dois anos faço e amo o balé e a dança do ventre, graças a uma bolsa que ganhei naprestigiada Academia de Ballet Helly Batista. Aprendi que nunca é tarde demais para serealizar um sonho, pois o que realmente influi são o amor, o esforço e a dedicação que vocêvai depositando ao longo do percurso. Aprendi também que a vida levada através da dançaé muito mais bonita de ser vivida. A dança não é só movimento, mas acima de tudo ésentimento, que eleva o espírito e afugenta as tristezas, proporciona auto-estima,autoconfiança, faz-me sentir o valor que tem a vida e o valor que eu tenho diante desta. Sãoesses os sentimentos que tento passar às crianças para as quais dou aulas de balé, assistidaspelo Programa "Conexões de Saberes". Acredito que a arte, além de ser uma fonte de alegriae prazer, pode ser um caminho para transformar a realidade e descobrir novos talentos.

Finalmente, a grande lição que o Conexões vem me oferecendo é a de que o combateàs diferentes formas de exclusão social passa por um significativo processo de mudanças devisões de mundo, de atitudes e de comportamentos dos indivíduos entre si e entre asinstituições, em uma prática contínua de "reconstrução social".

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* Graduanda em Pedagogia pela UFPI.

Vencendo as adversidades da vida

Maria da Conceição Pereira da Costa*

Ternas raízesGuardo na retina / um fulgor da infância /e me revejo / portanto archotes deesperança / que, em sonho, ainda /mantenho flamejantes.

Creuza C. França

Sou a quarta filha de sete irmãos, pai e mãe analfabetos. Nasci em uma cidadezinha nointerior do Maranhão e minha infância foi muito difícil, uma vez que vivia em um meiosocial bastante precário, tanto cultural quanto financeiro. Lembro-me de acordar e tomarbanho retirando água de um reservatório. Depois eu vestia minha roupa e ia para a escola.Esta é, certamente, a melhor de todas as lembranças, pois sempre fui muito dedicada aosestudos. Eu sempre acreditei que somente o saber poderia me tirar daquela realidade difícil.Minha querida mãe, em sua santa inocência, dizia sempre que eu tinha o espírito de genterica. Acho que ambição seria a palavra mais adequada.

Quando eu completei dez anos, meu pai teve uma atitude que lhe serei grata peloresta da vida: mandou-me para Teresina-PI, para morar com uma tia. Não foi fácil separar-me de minha família. Só concordei porque vislumbrei a oportunidade de melhorar devida e, posteriormente, retornar para ajudá-los. Agarrei a chance como se fosse única. Oinício em Teresina foi muito difícil. Longe de casa, da minha realidade interiorana, eutinha dificuldades até no modo de falar. Problemas com a documentação retardaram meusestudos e eu, aos onze anos, tive que ser matriculada na primeira série do EnsinoFundamental. Não reclamei, pois o importante era alcançar meus objetivos. Tudo ia bematé deparar-me com duas greves que resultaram em mais dois anos de atraso. Finalmenteterminei o Ensino Fundamental. Achei que isso seria a solução de meus problemas; massó depois percebi que estava vivendo um dilema. Eu estava feliz por ter realizado umafaçanha. Mas... E então? O que ia fazer? Jovens pobres não podem se dar ao luxo de fazervestibular porque têm que trabalhar.

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Deste modo, decidi fazer Magistério, pois seria uma possibilidade de conseguir umemprego rápido. Aos 22 anos estava terminando o Ensino Médio e trabalhando comoprofessora de Educação Infantil. Passei dois anos só trabalhando; mas quanto mais seconquista mais se quer conquistar; e eu, nesse sentido sou muito ambiciosa. Ambiciono umbom emprego, uma boa casa e, principalmente, ajudar minha família. Voltei a estudar,dedicando-me de corpo e alma para enfrentar o vestibular. Na primeira tentativa, inscrevi-me para analisar o nível e o modelo das questões.

No ano seguinte, eu já estava bem mais preparada, mas não obtive sucesso. Desistir,jamais. No ano de 2002, estabeleci uma estratégia de estudo: trabalhar pela manhã e estudarà tarde. Comecei freqüentando um Cursinho, mas não me adaptei. Achava uma perda detempo. Então resolvi estudar por conta própria. Comprei duas gramáticas e um livro deHistória. O resto foi emprestado. Em seguida, planejei um horário de estudo com todas asmatérias exigidas no vestibular. Sentava à mesa por volta da meia-noite e só parava no diaseguinte às 05:00. Entretanto, se agi certo ou errado, não sei. Mas sei que no início de 2004eu não era mais uma aluna a ingressar no Curso de Pedagogia da UFPI, eu era A ALUNA, quedriblou a falta de material, o cansaço e as noites insones.

Quando me perguntavam se eu havia vencido, eu dizia que sim: - "Esta primeirabatalha, eu venci por mérito pessoal". A emoção de ser aprovada no vestibular não tempreço. É algo indescritível, extraordinário! É a sensação do dever cumprido. Acredito quetodo jovem precisa vivenciar esta experiência. É o tipo de conquista que nos engrandece,enobrece e nos faz sentir capazes, determinados, corajosos e fortalecidos para enfrentar avida. Vale lembrar que me reconheci ambiciosa. Contudo, isto era apenas o começo. A partirde então eu iria enfrentar a Universidade e suas adversidades.

Na UFPI tenho tido muita sorte. Faço o curso que sempre sonhei fazer, e, logo que asaulas começaram, conheci aquelas que são hoje minhas melhores amigas: Ruisenilde Gomesda Cunha e Carla Andréa Santos Mazza Alencar. A elas devo algo que jamais poderei pagar:"favores". Favor não tem preço. Amizades feitas, laços fortes, colegas de turma, professores,pessoas que passaram por minha vida, umas deixaram pegadas outras rastros, outras cicatrizes,mas todas contribuíram para o meu crescimento pessoal. Entre essas pessoas existe uma quejamais esquecerei; ela foi o meu outro pilar de sustentação e apoio. Por dever de gratidão,cito a Professora Doutora Maria Divina Ferreira Lima. A esta Senhora, cujo próprio nome jáfaz referência "Divina", meu eterno agradecimento pelo apoio moral, intelectual e humano.Ela me abriu as portas para o mundo de conhecimentos científicos, abrangentes e memoráveis.

Minha família é um caso à parte. Não tenho como pagar nem a terça parte do queminha tia fez por mim. Ela me transformou em uma mulher capaz de levantar sempre que o"meu mundo desabava". Com apoio e incentivo fui vencendo minhas batalhas, mas umacoisa é certa: eu quis lutar, eu insisti até superar todos os obstáculos, para conquistar meuobjetivo. Não foi fácil, mas eu venci. Penso em outras batalhas que terei que enfrentar naconstrução da minha profissionalidade, pois pretendo voar mais alto.

Atualmente faço parte do Programa "Conexões de Saberes", motivo pelo qual façoeste relato. O Programa deu-me condições de ajudar outras pessoas que necessitam de umaoportunidade. Agora posso dizer-lhes que não são os ricos quem conseguem êxito, masaqueles que lutam por seus objetivos, aqueles que vislumbram metas a curto e longo prazo.Basta acreditar em si próprio, valorizar-se. Não é o poder aquisitivo que dita a dimensão dosnossos sonhos, mas sim nossa vontade de realizá-los.

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Estamos em dezembro de 2006 e meu curso está quase terminando. Estou planejandofazer Mestrado. Para uns, algo inatingível devido à grande concorrência. Para mim é maisum desafio, já que aprendi desde cedo a ignorar a concorrência e acreditar na minhacapacidade de trabalho tendo minhas vitórias como referencial. Costumo dizer para algunsamigos que nascer já foi uma vitória, pois para quem nasceu em uma cidadezinha do interiordo Maranhão, sem nenhuma perspectiva de vida, chegar onde cheguei é mais que umavitória. É uma demonstração de que somos aquilo que queremos ser, não importa o sistema,os obstáculos.

Ao fazer uma retrospectiva, posso assegurar que já não sou nem a sombra daquelamenina tímida e cheia de medos. Não parei de sonhar nem consegui tudo o que queria, masestou começando a colher os bons resultados de minhas suadas vitórias.

“Normalmente não se pode impedir o êxito de uma pessoarealmente determinada, se colocaram objeções em suas trajetóriasde vida, ela transforma em degraus para a subida. Se houverobstáculos a mais em seu caminho ainda assim ela prossegue decabeça erguida.”

MARCELO WILLIAM

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* Graduanda em Letras-Português pela UFPI.

Sonhos de uma vida

Maria da Penha da Silva Santos*

Tudo outra vezAbra os olhos e sonhe, acorde para omomento. Não desista de ser feliz. O mundoé de quem quer conquistá-lo. Se cair,levante-se. E tente tudo outra vez, pois vocêé o que você sonha.

Emmy JulieVou começar minha história a partir dos meus seis anos de idade, quando meu pai me

levava para meu primeiro dia de aula na Escola Municipal Coronel Boa Vista, no PovoadoFazenda Nova, Zona Rural de Teresina. Nesta escola estudei do Pré-escolar a 3ª série, doPrimário (à época). Depois nos mudamos para Teresina-PI, onde fomos morar no BairroSanta Luzia e passei a freqüentar a Escola Municipal Miriam Portella Nunes, no ConjuntoSacy, periferia da capital.

Aos nove anos de idade, fui estudar na Escola Estadual Professor Edgar Nogueira,onde cursei da 5ª a 7ª séries do Ginásio, hoje Ensino Fundamental. Quando estava na 7ªsérie, tive o desprazer de ser aluna de um professor que era considerado o bicho-papão daescola; como tinha muito medo dele, terminei o ano reprovada em Matemática, matériaque ele ministrava. Foi a partir daí que decidi ser professora e jamais amedrontar meusalunos, como ele fazia.

Em 1990, mudamos do Bairro Santa Luzia, onde morávamos, e fomos morar em umacasa que meu irmão ganhou no Conjunto Renascença II, Zona Sudeste de Teresina. Nestemesmo ano, meu irmão resolveu adotar um menino, que está com 16 anos e não quer nadacom os estudos. Foi um ano em que não consegui estudar, pois as escolas estavam em umagreve que se estendeu até 1991. O dinheiro de minha mãe só dava para pagar uma escola,e este foi destinado à minha irmã, que, em vez de estudar, queria apenas curtir a vida.Voltei a estudar somente em 1992, na Unidade Escolar Professor Pires de Castro, ondecursei, com muito sucesso, a 7ª e 8ª séries. Nesta escola, conheci dois maravilhososprofessores, Osvaldo, de Matemática; e Claudete, que ensinava Técnicas Comerciais. Aeles muito devo, pelo apoio e força. No final do ano, resolvemos fazer uma festa; meuvestido foi um presente da minha falecida amiga Maria José. Ela costurou o vestido maislindo que eu já tive.

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Quando ainda cursava a 8ª série, preparei-me para fazer testes para cursar o 2º grau, jáque só estudavam nas boas escolas os alunos aprovados. Inscrevi-me em várias escolaspúblicas, e em todas fui aprovada. Fiquei muito surpresa por ter sido a primeira colocada naEscola Técnica Federal do Piauí, atual CEFET. Lamentavelmente lá não pude continuar aestudar, minha mãe não tinha dinheiro para pagar a taxa da matrícula, comprar o fardamentoe pagar as passagens de ônibus. Meus irmãos também não puderam ajudar, pois estavamocupados demais cuidando de suas vidas. Resolvi então me matricular em uma boa escolaque ficava perto da minha casa. Como estudava à noite, eu ia a pé e voltava de ônibus, poisera perigoso andar sozinha.

Em 1993, comecei a estudar em uma nova escola, chamada Fundação Bradesco,mantida pelo Banco do mesmo nome. Ali fiz o curso Técnico em Administração de Empresase encontrei os melhores profissionais de ensino de minha vida, até entrar na UFPI. Asamizades foram muitas. Nesta escola, conheci pessoas maravilhosas, que me deram todoo apoio, foram amizades que ultrapassaram os muros da escola e deixaram ensinamentosque trago comigo até hoje. Foi com eles que solidifiquei meu desejo de ser professora ecursar uma Universidade.

Em 1994, minha irmã teve uma menina linda, Beatriz, meu bebê, minha princesinha,que, carinhosamente, chamamos de "rolinha". Hoje ela está com 12 anos e gosta muito deestudar. Acho que, depois de mim, ela será a próxima da família a entrar na Universidade.

Terminei meu curso em 1995. Não prestei vestibular, pois, apesar de trabalhar em casade família, meu dinheiro não dava, porque a pensão que minha mãe recebia havia sidocortada e eu precisava ajudar nas despesas de casa, e não havia ninguém para me ajudar outalvez não acreditasse em meu potencial. E então o sonho de me tornar uma universitária foiadiado, mas não esquecido.

De 1996 a 2001, fiquei sem estudar. Fiz alguns cursos, continuei a trabalhar, e fuiperdendo o estímulo para os livros. No Natal de 1998, conheci uma pessoa que mais tardeiriam me fazer voltar a estudar. Começamos a namorar e logo ficamos noivos, por dois anos;terminamos em meados de 2000. Com a separação e a decepção, resolvi voltar a estudar. Eutinha que procurar alguma forma de esquecê-lo; e, para tanto, resolvi me dedicar aos estudos.Hoje agradeço tudo de ruim que ele me fez, pois o considero um dos responsáveis por minhaaprovação no vestibular.

Em 1999, fui morar com minha irmã mais velha, que tinha acabado de se separar. Maslogo comecei a trabalhar em uma loja de material de construção e aprendi o verdadeirosignificado da palavra trabalho. Eu trabalhava cerca de 10 horas por dia, em pé, já que nãotinha o direito de me sentar e vivia sob intensa pressão. Então eu não conseguia fazer outracoisa a não ser trabalhar. Contudo, foi também nesta loja que ouvi do meu patrão uma fraseque me fez acordar: - "Filho de pobre nasceu para trabalhar. Vocês são tão burras que nuncaconseguirão nada na vida e agradeçam-me pelo bem que estou lhes fazendo". Percebientão que, mesmo sendo filha de pobre, eu merecia uma vida melhor. E, depois de umadiscussão, pedi demissão. Pedi minhas contas e saí. Nunca mais andei por lá, apesar dasamizades que deixei.

Em 2001, começou minha batalha para conseguir vaga em uma escola perto de minhacasa. Sempre que eu me apresentava diziam que não havia mais lugar. Em uma dessasescolas, fiquei sabendo que se conseguisse uma carta de recomendação de um vereador, queali havia sido professor, eu teria uma vaga garantida. Resolvi tirar a prova. Fui à Secretaria

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da escola, perguntei se havia vaga e me disseram que as turmas estavam todas lotadas. Volteimeia hora depois trazendo a carta do político, que consegui através de uma amiga, ematricularam-me sem pedir qualquer documento. Assim comprovei que em muitos lugaresas "coisas" só funcionam se houver alguém influente para subsidiar.

A partir daí, teve início uma fase estafante em minha vida. Saía de casa às 06:30 e sóretornava às 23:00, quando terminava a última aula. Era muito cansativo e, muitas vezes,pensei em desistir. Nessas horas, eu era sempre estimulada pelos amigos e, aos poucos, fuisuperando os obstáculos e adaptando-me à nova rotina. No final do ano, fiz minha primeirainscrição para o Programa Seriado de Ingresso na Universidade-PSIU, e não me saí bem. Noano seguinte, graças ao incentivo do professor de Literatura, Josenildo Brussio, a quemmuito agradeço, fiz a segunda etapa e minha nota melhorou muito. Foi então que percebique a realização do meu sonho estava mais próxima.

No ano de 2003, tive que escolher em que área iria me inscrever para prestar ovestibular. Minha carreira já estava determinada. Eu queria ser professora. Faltava agoraescolher uma área que me permitisse trabalhar de dia e estudar à noite. Joguei na sorte. Aochegar ao local de inscrição, fechei os olhos e apontei o dedo. Deu Licenciatura Plena emLetras-Português Noturno. Pronto! A sorte estava lançada. O destino mostrou-me ocaminho. Pedi a Deus que me ajudasse a passar, pois não tinha muito tempo para estudar.Após ter saído do meu emprego, transformei meu tempo de trabalho em tempo de estudo.

Por ser o último ano na escola, resolvemos fazer uma festa de despedida, que foi muitolegal. Nesta festa estavam as pessoas que mais me apoiaram nos últimos três anos: Nayla, queme deu um afilhado lindo. Dona Toinha, Daniel, Mazé, minha afilhada, o Adriano, hoje meunamorado, e todos os outros colegas de sala de aula. São meus amigos até hoje e sempreacreditaram na minha aprovação. Todos diziam, com muita convicção, que eu logo seria umauniversitária. Nesta mesma noite, ouvi a diretora da escola me chamar de louca, apenas porqueeu disse que, dentro de alguns anos, voltaria à escola, desta vez como professora de Português.

Enfim chegou o dia do vestibular. Saí cedo de casa junto com meu amigo Daniel, queestava inscrito para Geografia, e fizemos a prova na própria Universidade. Ao chegar, comenteique, a partir do próximo ano, ali seria minha casa. Terminada a prova, eu e Daniel começamosa conversar sobre as questões e fui percebendo que minhas respostas não coincidiam com asdele e isto me fez sentir muito mal. Achei que não ia passar, até que, no dia seguinte, ao ler nojornal o gabarito, verifiquei que tinha acertado todas as questões que Daniel havia dito que eutinha errado. Ele, infelizmente, não foi aprovado; e eu ganhei confiança e fiz a segunda prova.Decidi não mais comentar, não discutir as questões nem conferir gabarito. Para me distrair,resolvi viajar para casa de uma amiga e me desliguei do mundo.

Chegou o dia 9 de janeiro de 2004, o dia do resultado. Eu dizia que aquele seria o dia maistriste ou mais feliz da minha vida. Pontualmente, às 12:30, a estação de rádio começou adivulgar o resultado do Curso de Letras-Português. Fiquei nervosa e mal conseguia me controlar.Ao ouvir meu nome (confesso que não ouvi todo) senti a maior emoção de minha vida. Eu nãosabia se ria ou se chorava; e, naquele momento, como se fosse um filme, minha vida inteirapassou diante dos meus olhos. Emoldurando minha vitória, estavam todos os meus sonhos e osde uma mãe, que, apesar das dificuldades, sempre rezou e apostou em mim. Também estavampresentes os meus amigos que não conseguiram aprovação, mas que, através de mim, estavamrepresentados na Universidade. Não uma universidade qualquer, mas a Universidade Federal doPiauí. Aquele dia foi glorioso.

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As aulas só começaram em setembro de 2004, porque houve uma greve. Meu primeirodia de aula será sempre inesquecível. No percurso até à UFPI, fui relembrando fatos epessoas. Muitos me apoiaram e acreditaram em minha vitória. Outros diziam que eu jamaisconseguiria. E ali estava eu, a filha da lavadeira e do tocador de viola, universitária da UFPI.Os primeiros períodos na Universidade não foram fáceis, como estava desempregada, tinhadificuldade em conseguir as passagens de ônibus para chegar à UFPI; e, às vezes, precisavaalternar o dia para ir à aula; por isso quase fiquei reprovada por faltas, no primeiro período.

No início de 2006, soube, através de uma amiga, que estavam abertas as inscrições parao Programa "Conexões de Saberes". Fiz a inscrição e fui selecionada. Nos dias atuais, devo aoPrograma parte da realização do meu sonho, pois comecei a lecionar no Cursinho Pré-Vestibularque criamos para ajudar alunos como nós, oriundos de escolas públicas, que desejam entrarem uma universidade. Aqui, no "Conexões", realizei também o sonho de conhecer a CidadeMaravilhosa, ocasião em que realizou-se o II Seminário Nacional. Foi maravilhoso.

Hoje, se alguém me perguntar por que estou escrevendo este memorial, direi que ofaço para mostrá-lo a cinco pessoas especiais: Eletícia, minha sobrinha; Mazé, minhaafilhada; Daniel e Marcos, meus melhores amigos, e ao meu namorado, Adriano (amor daminha vida). Apesar dos empecilhos e das dificuldades que passamos na vida, nunca devemosdesistir dos nossos sonhos. Podemos até adiá-los, mas desistir jamais. Depois que realizamosum sonho, outros maiores vão surgindo. Agora, por exemplo, sonho com o Mestrado e oDoutorado. Se alguém me chamar de louca, servir-me-á de incentivo; prefiro ser chamadade louca e realizada a ser normal e frustrada.

Por fim, sou a filha caçula de sete irmãos. Meu pai, já falecido desde quando eu tinhasete anos, chamava-se José Vieira dos Santos, e minha mãe, Joaquina Nunes da Silva Santos,mulher a quem devo tudo o que tenho e sou. Espero que, no dia da minha formatura, elaesteja lá, junto a mim, partilhando a realização do nosso sonho. Estou cursando Letras-Português na UFPI, tenho treze sobrinhos e quero vê-los na Universidade. Na UFPI, fizamizades que jamais esquecerei; e, qualquer que seja o caminho a seguir, jamais nosesqueceremos uns dos outros. Quanto aos meus sonhos, os sonhos de minha vida, vourealizando-os, ano após ano.

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* Graduanda em Ciências Biológicas pela UFPI.

"Esperei confiantemente pelo senhor. Ele se

inclinou para mim e me ouviu quando clamei

por socorro" (Salmo 40 : 1)

Maria dos Remédios Batista da Silva*

Nasci aos doze dias do mês de dezembro do ano de mil novecentos e setenta e dois nacidade piauiense de Picos, a 300km da capital Teresina-PI. Quando pequena morei em umacasa que foi construída no terreno da Igreja Católica. Aquele local era conhecido comoChão dos Padres.

Da parte de minha mãe pouco sei de sua história, já que ela mesma pouco falava.Apenas dizia que sua mãe havia morrido e apenas nos apresentou a um tio. Ela tambémdizia que eu me parecia muito com um irmão dela, nas atitudes.

Meu pai, quando conheceu minha mãe, vinha de um casamento desfeito e uma prole deoito filhos, desconhecidos para mim e minha irmã, Artenira. Eu também pouco sei sobre meupai, que faleceu quando eu tinha apenas um ano de idade. Dos irmãos dele, tenho o maiorcarinho e admiração, principalmente pela Tia Missia e por Tio Marcelinho. Minha mãe contaque meu pai, antes de morrer, pediu a ambos que cuidassem de mim. Como eles viviam emColônia, povoado próximo à cidade de Oeiras-PI, fui morar lá. Minha mãe e minha irmãficaram em Picos. Esse foi o período mais feliz de minha vida. O ensino das primeiras letras foicheio de aventuras. O colégio funcionava na casa da professora, Tia Francisca. Como a escolaera distante da casa de meu tio, ele comprou para mim uma jumentinha que era meu meio detransporte. Hoje sinto certa tristeza, pois tenho poucas lembranças de minha professora quemuito estimava. As últimas notícias que tenho são de que ela se mudou para São Paulo.

Quando o ano findou, minha mãe me avisou que eu ia voltar para Picos, a fim decontinuar meus estudos. Aquilo me encheu de tristeza. Eu não queria ir. Meus tios tudofizeram para eu continuar com eles, mas minha mãe estava irredutível. Esta cena não sai deminha memória, pois foi aí que começaram meus sofrimentos e torturas. Só de pensar, sintovontade de chorar.

Fui matriculada na primeira série aos nove anos de idade. Minha irmã também estudavana mesma sala. Eu sempre fui muito travessa e gostava de uma briga, principalmente porqueos meninos me chamavam de "fundo de panela" e "cabelo de Bombril". Brigava no colégioe apanhava de minha mãe em casa.

Hoje acho engraçado lembrar dos momentos em que tinha que fazer as tarefas de casa.Às vezes eu tinha dúvidas e ficava impaciente dizendo que não sabia fazer a lição. Comominha mãe não sabia ler, ralhava comigo dizendo que eu sabia sim, pois a professora haviame ensinado. Depois ela me perguntava se eu tinha feito tudo certo. Este foi um bomperíodo em minha vida. Minha mãe trabalhava no mercado e na casa de uma senhora

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que nos dava, diariamente, um litro de leite. O açougueiro nos presenteava com ossossem carne que, aos domingos, minha mãe cozinhava com arroz na panela de pressão.Enquanto ela fazia a comida, eu e minha irmã tomávamos banho. Depois elapenteava nossos cabelos com óleo de mamona e fazia um coque que eu odiava, masnão desmanchava.

Enquanto minha mãe estava viva, minha vida era maravilhosa. Nós éramos pobres,morávamos em casa de taipa, mas nossa vida era considerada boa. Pena que eu só fuidescobrir isto tarde demais. Eu era louca para trabalhar em casa de família e ganhar o meudinheiro, mas minha mãe não deixava. Tempos depois mamãe adoeceu. Ela tinha febretodas as noites, e de manhã saía para trabalhar, mas não ia nunca ao médico. A doença foipiorando até seu falecimento. Nesse triste dia, minha vida mudou totalmente. Ficamosórfãs, Artenira com doze anos; eu com onze; e meu irmão caçula com apenas três anos deidade. Não tínhamos dinheiro para fazer o sepultamento, mas nossa vizinha, Maria doCarmo, conseguiu tudo com a Prefeitura Municipal. Após o enterro, ficamos com a TiaMíssia e seu filho adotivo, chamado Pelé, e por nós considerado como um irmão. Elecompletou 18 anos e foi servir ao Exército. Como era muito inteligente e trabalhador, logocomeçou a nos sustentar.

Eu vivia brigando na escola e ninguém se aproximava de mim. Certo dia minha irmã,que estava na sétima série, resolveu parar de estudar. Eu fiquei revoltada e parti para a briga.Brigamos feio e fomos entregues aos cuidados de uma assistente social. Comigo nãofuncionou. À época, o Pelé conheceu uma prostituta, que eu odiava, e se casou com ela. Euvivia alertando que ela não prestava, mas só diziam que eu era a encrenqueira. Continueifalando e acabei levando um tapa na cara. Esta foi a última vez que vi Pelé. Tempos depoisele descobriu a traição da mulher e deu um tiro nela. Preso, foi transferido para Teresinaonde se matou.

Certo dia, conheci Dona Beta, com quem vivo até hoje. Ela tinha acabado de terum filho, João Ricardo, e me convidou para ajudá-la a tomar conta do bebê. Aceitei nahora, pois assim eu ia me afastar daquela casa onde só eu era problema. Mais tarde,levei meu irmão para morar comigo. Passei a viver um novo tempo e fui estimulada aestudar. Todos queriam que eu me formasse como enfermeira técnica, mas eu queriamesmo era ser doutora.

Quando a filha mais velha de Dona Beta teve que se mudar para uma cidade grande,para continuar seus estudos, ela escolheu a cidade de Recife. E assim, todas as férias nóspassávamos na Ilha de Itamaracá, até que eu me mudei definitivamente para a capitalpernambucana, indo morar com a sogra de Dona Beta, a filha mais velha que estudavaMedicina e Manuela, a filha do meio. A vida estava bem complicada, pois eu cuidava dacasa pela manhã e estudava à tarde. O dinheiro que eu ganhava era empregado no pagamentodas aulas de Português, Matemática, Física e Química. Quando terminei o segundo grau, fizo primeiro vestibular. Como era esperado, não passei. Ocorre que sou evangélica e o donodo Colégio 2001 freqüentava a minha igreja, não tive dúvidas em pedir uma bolsa paracursar o pré-vestibular. Ninguém acreditou, mas o fato é que ganhei a bolsa.

No dia em que fui me inscrever para prestar o vestibular, pedi dispensa do pagamentoda taxa de inscrição. A resposta veio pelos Correios e foi positiva. A URPE me isentavatotalmente do pagamento da taxa de matrícula. Pronto! Agora vou prestar mais um vestibular.Mais uma vez vou ter medo de não ser aprovada.

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A vida ia seguindo até que um dia a bomba estourou: - "Vamos embora do Recife. Aminha sobrinha Maria vai estudar em Teresina e precisa de alguém para tomar conta dela".Ao chegar aqui eu fazia as tarefas domésticas, mas nada de estudo, pois eu estava sendovítima de preconceito racial em todos os lugares onde andava.

Em 2004, conheci uma professora da Universidade Federal do Piauí-UFPI que meconvidou para fazer um estágio voluntário em seu departamento. Aceitei de imediato, poiseu amo estudar Leishmaniose Visceral e gosto da pesquisa. Em seguida, a professoraconseguiu para mim uma bolsa de estudos e eu me reintegrei à UFPI no Curso de Licenciaturaem Ciências Biológicas. Atualmente faço parte do Programa "Conexões de Saberes".

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* Graduanda em Química pela UFPI.

Um novo jeito de olhar

Marlúcia Oliveira Lima*

É com muita alegria e, ao mesmo tempo, com uma leve tensão que hoje escrevo estaslinhas sobre minha história de vida. Alegria por ter sido convidada pelo Programa "Conexões deSaberes" a olhar mais uma vez a minha história e tensão por ser eu uma pessoa muito reservada.Isso torna essa tarefa um pouco difícil, mas essa tensão, no fundo, é emocionante. É como aquelatensão que se sente no início das aulas, quando a professora nos pede para fazer uma redaçãocontando as nossas férias. Eu ficava horas, pensando no que escrever e nada de idéias. Eu nãoconseguia externar nada do que tinha vivido. Era como se eu parasse no tempo. Hoje, com atarefa de escrever minha história, voltei a sentir a mesma sensação e isto está sendo maravilhoso.

Tudo começou na madrugada do dia 26 de julho de 1982, em Teresina-PI quandocheguei a este mundo. Sou filha de Martinho Cardoso Lima (in memoriam) e de MariaLúcia Oliveira Lima; tenho três irmãos: Martogil, Maria Simone e Mariele. Esta é minhafamília e o meu referencial. Certamente temos nossas diferenças, mas nada que desfaça oslaços de nossa união, de nosso respeito e de nosso amor. Sou muito grata a Deus por ter mepresenteado com uma família assim, hoje incompleta, mas muito unida. Meus pais sãopessoas politicamente corretas, meu pai principalmente. Eles nos ensinaram a prezar, demodo absoluto, a família; isso para mim foi e é muito importante. Atualmente não tenho amesma alegria, devido à perda de meu querido e amado pai. Ele era um homem de garra,autêntico, amigo, cuidadoso e muito exigente. Um superpai. Queria sempre que as coisasfossem do seu jeito. Às vezes eu achava tudo muito chato e sempre questionava. Cheguei,algumas vezes, a contrariá-lo. Hoje, porém, vejo tudo de forma diferente, pois tudo o que elesempre quis foi preservar e garantir o bem-estar de todos nós.

Embora meus pais fossem de Alto Longá-PI, sempre vivi em Teresina-PI. Quandonasci, meus pais moravam no bairro Real Compagre, na Avenida Batalha. Era uma casapequena, mas tinha um quintal enorme onde brinquei muito. Tínhamos apenas dois vizinhos,pois em frente à nossa casa ficava a fábrica da Coca-Cola, onde meu pai trabalhava comopintor, e nos fundos havia uma garagem dos ônibus da Viação Teresinense. Ali vivi durantedez anos, no meio de adultos, o que talvez tenha influenciado muito a minha personalidade.

Em relação aos estudos, meus pais sempre diziam: - "O estudo é a única herança quepodemos lhes deixar". Diante disso e com a graça de Deus, meus irmãos e eu sempre tivemosa oportunidade de estudar, embora não fosse nada fácil educar quatro filhos e garantirescola para todos. Certamente houve muita dificuldade, mas no final acabava dando certo.

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Minha trajetória escolar começou na Creche Tia Anita, localizada pertinho de casa,onde fiz todo o Jardim. Ela era pequenina e muito aconchegante. Hoje, quando passo emfrente, viajo na lembrança: as brincadeiras com massinhas de modelar, as aulas de pintura,os passeios de trenzinho e as festinhas nos dias dos pais, das mães e juninas. Lembrotambém de algumas professoras e amiguinhas. No meio do ano em que ia terminar oJardim e colar grau, a diretoria providenciou minha transferência para a Unidade EscolarWall Ferraz onde fui matriculada na 1ª série. Dessa forma, não tive festa de formatura.Meu primeiro ano no novo colégio foi muito conturbado pelas greves. Meu pai entãoconseguiu uma vaga na Escola Municipal Professor José Carlos, onde fiz os outros trêsanos, completando assim o Ensino Primário. Tudo era muito legal, menos a tensão e o friona barriga, na hora de fazer a redação sobre as férias. Nesse período, meu pai perdeu oemprego. Mesmo assim, ele e minha mãe, que ajudava costurando para fora, nunca deixaramque os filhos sofressem qualquer conseqüência. Eles lidavam com o problema de umaforma tão discreta que nós nada percebíamos. Acho que dessa forma eles sofriam muitomais. Foi também nesse tempo que comecei a participar da catequese e fiz a PrimeiraComunhão - Sacramento da Eucaristia.

Meus pais compraram uma casa no bairro Água Mineral, e para lá nos mudamos e atéhoje vivemos. Como conseqüência, tive que mudar de escola e acabei voltando para aUnidade Escolar Raimundo Wall Ferraz.

Meu pai, que estava trabalhando em uma panificadora, montou um pequeno comércioe minha mãe continuou fazendo suas costuras, e as encomendas aumentaram, pois o bairroera muito populoso. Eu e meus irmãos alternávamos nossos horários, pois todos ajudávamosna quitanda, principalmente quando nosso pai se ausentava. No começo, quando tudo erasó novidade, nós achávamos muito bom, mas, com o passar do tempo, foi ficando chato.Além de alguns prejuízos, estava ficando difícil conciliar os estudos e a quitanda, isto semfalar que lidar com gente não é nada fácil.

Ao terminar o Ensino Fundamental, tive que fazer testes seletivos em algumas escolas,pois na que eu estudava não havia Ensino Médio. Foi assim que me transferi para o ColégioEstadual Zacarias de Góis, o Liceu Piauiense. Essa etapa escolar marcou muito a minhavida. Foram três anos de muito esforço e pude aprender muitas coisas, conquistar novasamizades. A partir daí, passei a sonhar com um curso superior e me tornar enfermeira. Paratanto, eu e todos os alunos da rede pública tivemos que superar muitos obstáculos, em razãodo quadro da educação reinante. Baixo rendimento, pela qualidade do ensino ministrado,falta de livros didáticos, e a péssima atuação dos professores que não assumiam sua realprofissão. À época, procurei conversar com alguns deles sobre o vestibular e sondei asminhas chances de aprovação. Alguns diziam que eu não devia sonhar muito alto. Outrosdavam a maior força e me estimulavam a estudar muito e não desistir, pois nada é impossível.

Durante todo o Ensino Médio, continuei ministrando aulas de reforço. Eu agora tinhaum bom número de alunos para dar atenção, o que era muito gratificante. Eu também passeia fazer bombons de chocolate, juntamente com minha amiga Alessandra Menezes. Nossosovos de Páscoa fizeram o maior sucesso. Isto nos estimulou e começamos a organizar festinhasde aniversário, a fazer pequenas lembranças e, em seguida, passamos a receber encomendasde cestas de café da manhã. Embora fosse muito trabalhoso, eu e minha amiga achávamosmuito legal, pois era uma maneira gostosa de viver a vida. Ah! Que tempo bom! Minhafamília sempre me deu muito apoio.

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Quando terminei o Ensino Médio, encarei dois vestibulares: Enfermagem naUniversidade Federal do Piauí-UFPI e Psicologia na Universidade Estadual do Piauí-UESPI.O resultado foi uma grande frustração. Não passei em nenhum. Aí tive vontade de desistir deestudar. Eu não aceitava que depois de tanta luta, tanta expectativa, tantos sonhos ter quepassar por tamanha desilusão. Fiquei totalmente arrasada. O carinho e a presença de minhafamília e dos amigos foram muito importantes e essenciais para que eu pudesse voltar aerguer a cabeça e seguir em frente.

Precisando trabalhar e querendo continuar meus estudos, continuei dando aulas dereforço. Meus pais conseguiram uma bolsa de estudos para eu fazer o Curso Técnico emEnfermagem; desta forma, garantiram a continuação de meus estudos. Fazer este curso foide grande importância. Ele teve a duração de dois anos e foi feito no Centro Integrado deEnsino Regular e Profissionalizante-CIERP. Decidi não fazer o vestibular, mas, ainda assim,continuei estudando em casa. Na última etapa do curso, fiz o estágio, experiência grandiosae delicada, pois eu tinha que lidar com a vida, do nascer ao morrer. Ao terminar o curso eunão sabia o que fazer. Comecei a procurar emprego, pois queria pagar um cursinhopreparatório para o vestibular.

Em janeiro de 2002, um mês depois da conclusão do curso técnico, surgiu umaoportunidade para trabalhar como recepcionista em um consultório médico no Centroda cidade. Preparei meu currículo e fui à luta. Passei por uma entrevista e um teste deredação. Fui aprovada e comecei a trabalhar com um casal de médicos: Dr. JoaquimVilarinho e Dra. Maria da Cruz Vilarinho, duas pessoas a quem tenho muito que agradecer.Meses depois, saio à procura de um cursinho pré-vestibular. Matriculei-me em umCursinho Popular que funcionava nas dependências da Biblioteca ComunitáriaCromwell de Carvalho, no Centro de Teresina. As aulas eram ministradas por alunos degraduação da UFPI e UESPI. Ele caiu do Céu. Graças a Deus, pude conciliar estudo etrabalho, mas não foi nada fácil. Era grande o cansaço físico ao chegar na sala de aula.Eu rezava para não desistir.

O ano passou e o vestibular chegou. Eu decidi fazer somente as provas da UFPI.Biologia e Química como segunda opção. Para todos, eu era candidata a uma vaga deBiologia. Ocorre que na hora da inscrição eu cometi um engano e coloquei o código deQuímica como minha primeira opção. Fiquei muito contrariada. A essa altura docampeonato, decidi não contar o fato para ninguém. Como estava muito difícil guardar osegredo só para mim, decidi falar com um amigo, mas ele estava muito ocupado e resolvinão incomodá-lo. Abracei a mudança e segui sozinha com meu segredo. Passei dias degrande ansiedade até que a hora do resultado chegou. Todos estavam aguardando meunome na relação de Biologia e como não fui citada eles passaram a me consolar. Eu,quieta, não falei nada. A ansiedade aumentava cada vez mais até que anunciaram osaprovados em Química. Como não ouvi meu nome comecei a chorar. Nesse momento, otelefone começou a tocar. Eram amigos me dando os parabéns pela aprovação ao mesmotempo em que brigavam comigo por não lhes ter comunicado minha mudança de curso.Eu não estava acreditando neles, pois não tinha ouvido meu nome. Eu perguntava porque eles estavam fazendo aquilo comigo e chorava ainda mais. Eles insistiam e riam. Nãodemorou muito e eles chegaram à minha casa trazendo uma folha do jornal com o nomedos aprovados. Ali estava meu nome. Quanta alegria! Tive que explicar a mudança docurso e, em seguida, corri para o abraço.

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Fui aprovada para o segundo período de 2003. Ao iniciar o curso, um novo sentimentoapossou-se de mim. Passei a me sentir "um peixe fora d'água". Grande parte da turma interagia,falando de assuntos que eu nem sabia do que se tratavam. Perguntei a Deus: - O que fazer?Se eu continuar assim, não acompanharei o nível da turma. O primeiro mês passou e oresultado das primeiras provas foi um fracasso. À época, minha família passava por umproblema muito delicado. Estudando e trabalhando, eu pouco ficava em casa. Isso medeixava muito mal (lágrimas), pois sabia que algo de ruim podia acontecer a qualquermomento. Todos os dias, ao chegar à Universidade e ao trabalho eu pedia a Deus que ashoras passassem rapidamente, pois eu queria estar com minha família. Essa angústia meacompanhou por, mais ou menos, um mês e meio. Meu desempenho na Universidade nãomelhorava e então decidi trancar algumas disciplinas e assim garantir um aprendizado demelhor qualidade em outras.

Dias depois, perdi meu pai. Sua morte fez desabar o meu mundo. Fiquei totalmenteimpotente para realizar qualquer coisa, para continuar vivendo (lágrimas). Tudo isso foi eainda está sendo muito difícil para mim, mas com a força de minha mãe, meus irmãos, amigose parentes, hoje estou aqui, lutando pela vida. Amo meu curso, apesar de todas as dificuldades.

Por fim, quero agradecer a Deus pela vida; à minha família pelo amor e apoio; aoamigo Francisco Silva, pela dedicação; ao Programa "Conexões de Saberes", por estaoportunidade magnífica de nos fazer olhar a nossa história; às professoras Cecília Carvalho,Edileusa Figuerêdo e Verônica Cavalcanti, por sua atenção e orientação; e também ao meugrupo de trabalho - bolsistas do "Conexões de Saberes" do Piauí, pela amizade. Enfim, atodos os que me ensinaram um novo jeito de olhar. Muito obrigada.

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