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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SETOR DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS GABRIELLE THAMI DEMOZZI Catadores de Materiais Recicláveis: Um estudo sobre o estigma social CURITIBA 2013

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ

SETOR DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS

GABRIELLE THAMI DEMOZZI

Catadores de Materiais Recicláveis: Um estudo sobre o estigma social

CURITIBA 2013

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GABRIELLE THAMI DEMOZZI

Catadores de Materiais Recicláveis: Um estudo sobre o estigma social

Monografia apresentada como requisito

parcial à obtenção do grau de bacharel em

Ciências Sociais, Setor de Ciências

Humanas, Letras e Artes da Universidade

Federal do Paraná.

Orientador: Prof. Dr. José Luiz F. Cerveira Fº.

CURITIBA 2013

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Aos catadores de material reciclável da Coopersol

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Agradecimentos

Agradecer é algo extremamente importante, pois ao concluir uma etapa, muitas pessoas

estavam envolvidas neste processo.

Eu agradeço principalmente a Magda por ter me apresentado aos catadores de material

reciclável, facilitando as visitas, e me acompanhando em várias delas. Além disso, aprendi

com ela muito a respeito do amor ao próximo, humildade, e paixão mesmo que para isso

exista tamanha diversidade.

Ao meu orientador, que muitas vezes agiu como um bom amigo e durante todo o

processo de construção do tema, divagações a respeito do trabalho, sobre a vida, sobre a

sociologia ambiental me fez ter orgulho de ter cursado ciências sociais.

Aos amigos “reitorianos” que sem eles este processo teria sido bem doloroso, mas com os

sorrisos, as canções as tentativas de trabalho e estudo em grupo, os almoços no R.u trouxeram

alegria e demonstraram que uma grande amizade dura por toda a vida, independente do rumo

que tomamos. Posto isto, cito alguns nomes: Alana, Gabs, Bianca, Camila,Celina, Francisco,

Laura, Juca, Fernanda, Ellen, Max, Séfora Obrigada por tudo mesmo.

Aos amigos Emerson e Luciana, por todas as conversas e afagos que contribuíram para

que eu finalmente conseguisse terminar este trabalho, e por todas as vezes que vocês tiveram

que escutar sobre meu tema, mesmo não sendo da área.

Ao amigo Murilo por ter dispensado horas de seu tempo para escutar reclamações e

divagações e estar presente na alegria e na tristeza.

Ao meu companheiro Rudhá, por ter demonstrado tanta paciência, e sempre colocar a

música certa na hora certa.

Aos meus pais, porque sem eles nada disso seria possível.

E finalmente aos meus irmãos, Sabrina por ter destruído a primeira ideia que eu tinha

para este trabalho, obrigada estava realmente horrível, e ao meu irmão Junior que tem uma

capacidade infinita de demonstrar que não importa o tamanho do problema, tudo se resolve

fazendo uma piada ridícula.

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Vocês que fazem parte dessa massa

Que passa nos projetos do futuro

É duro tanto ter que caminhar

E dar muito mais do que receber

E ter que demonstrar sua coragem

À margem do que possa parecer

E ver que toda essa engrenagem

Já sente a ferrugem lhe comer

Êh, oô, vida de gado

Povo marcado

Êh, povo feliz!

Lá fora faz um tempo confortável

A vigilância cuida do normal

Os automóveis ouvem a notícia

Os homens a publicam no jornal

E correm através da madrugada

A única velhice que chegou

Demoram-se na beira da estrada

E passam a contar o que sobrou!

Êh, oô, vida de gado

Povo marcado

Êh, povo feliz!

O povo foge da ignorância

Apesar de viver tão perto dela

E sonham com melhores tempos idos

Contemplam esta vida numa cela

Esperam nova possibilidade

De verem esse mundo se acabar

A arca de Noé, o dirigível,

Não voam, nem se pode flutuar

Êh, oô, vida de gado

Povo marcado

Êh, povo feliz!

Admirável Gado Novo - Zé Ramalho

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Resumo

Com o advento da industrialização e, por conseguinte, o aumento do adensamento

populacional, um dos problemas socioambientais mais relevantes na contemporaneidade é a

questão da produção e deposição do lixo urbano. Nesse âmbito, a reciclagem de materiais

surge como proposta para minimizar a quantidade de resíduos enviados aos depósitos, assim

como também uma tentativa de maximizar a vida útil dos aterros e depósitos de lixo. Neste

trabalho, observamos que existe um grupo de trabalhadores que são essenciais para o

recolhimento de materiais tido como catadores de materiais recicláveis ou carrinheiros. No

entanto, estes profissionais sofrem diversos estigmas sociais, desde o preconceito individual

até mesmo a ausência de políticas públicas que possam estimular ou responder às demandas

dessa categoria. O objetivo geral desta monografia é o de analisar e descrever os processos de

estigma social presente no cotidiano dos profissionais que trabalham diretamente com a coleta

e reciclagem dos resíduos descartados pela sociedade, observando concomitantemente, os

riscos desencadeados a partir da percepção das problemáticas socioambientais existentes na

gestão do lixo em nossa sociedade.

Palavras chaves: lixo, reciclagem, estima social, invisibilidade social, modernização.

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Résume

Avec l'industrialisation et donc l'augmentation de la densité de population , l'un des problèmes

environnementaux les plus importants dans la société contemporaine , c'est la question de la

production et de l'élimination des déchets municipaux . Dans ce contexte , le recyclage des

matériaux apparaît comme proposé à minimiser la quantité de déchets envoyés dans les

déchèteries , ainsi que d'une tentative de maximiser la durée de vie des sites d'enfouissement

et les décharges d'ordures . Dans cette étude , nous avons observé qu'il existe un groupe de

travailleurs qui sont essentiels à la collecte des matières considérées comme catadores ou

carrinheiros . Cependant , ces professionnels souffrent de nombreux stigmates sociaux , des

préjugés individu , même le absence de politiques publiques pour stimuler ou répondre aux

demandes de cette catégorie . L'objectif général de cette thèse est d'analyser et de décrire les

processus de stigmatisation sociale présents dans la vie quotidienne des professionnels qui

travaillent directement avec la collecte et le recyclage des déchets rejetés par la société , en

observant en même temps , les risques provoqués par les perceptions des problèmes sociaux et

environnementaux dans la gestion des déchets dans notre société .

Mot-clé: ordures, recyclage, l’estigma, invisibilité sociale, modernisation

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SUMÁRIO

Introdução 05

Capítulo 1 – A sociedade do Lixo 08

1.1 – A construção da problemática do lixo no Brasil 12

1.2 – O lixo em Curitiba 15

1.3 – A Lei de Resíduos Sólidos e as políticas ambientais no Brasil 18

Capítulo 2 – Contribuições ao Campo Teórico da Pesquisa em Ambiente e Sociedade 22

2.1 – Estigma Social 27

Capitulo 3: Sobre as visitas aos barracões de reciclagem 36

Considerações Finais 41

Referências Bibliográficas 43

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Introdução

Após o advento da industrialização no Brasil após a década de 1920, o crescimento

acelerado das cidades e a mudança do tipo de consumo da população acarretaram em uma

produção crescente de lixo urbano que muitas vezes não encontra soluções definitivas para a

sua eliminação. No Brasil o gerenciamento de lixo urbano fica por conta dos municípios.

A Reciclagem dos resíduos sólidos aparece como proposta ideal tanto por parte do

governo local, através de campanhas e incentivos, como também do marketing que por meio

de propagandas relacionadas a produtos e serviços investem em campanhas a favor dos

retornáveis e maneiras eficazes de contribuir para o meio ambiente por meio de uma tentativa

de desenvolvimento sustentável.

Mas ao mesmo tempo em que a reciclagem aparece como beneficio ambiental no discurso

midiático e governamental, ela também gera custos, gastos e resíduos além de dar uma falsa

sensação de que de certa maneira contribuímos para uma limpeza do planeta, ou visto em

outro ponto que a culpa pela grande produção de lixo é amenizada somente pelo fato de

reciclar.

Desta contradição, uma delas é o crescimento de um grupo de trabalhadores que

encontram no lixo, ou no material reciclável, seu principal meio de sobrevivência.

Reunidos em cooperativas, ou trabalhando como autônomos os Catadores de Materiais

Recicláveis representam um papel fundamental e necessário para a reciclagem no País, e a

história deles começa bem antes da preocupação massiva com as questões ambientais. O fato

é que no Brasil existe há muito tempo pessoas que tiram o sustento do lixo, e que não

representavam um número tão grande de trabalhadores como podemos perceber na atualidade.

Se antes era um meio alternativo de renda, hoje para muitas pessoas é visto como trabalho e

meio principal de sobrevivência.

Acontece que mesmo desempenhando um papel fundamental para a manutenção da

reciclagem no Brasil esses trabalhadores são vistos a margem da sociedade, vivendo em

precárias situações e em condições de trabalho insalubres.

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O objetivo geral desta monografia, portanto, é a análise da invisibilidade social e estigma

dos trabalhadores que trabalham diretamente com os resíduos sólidos além das relações

ambientais e sociais em que o lixo se configura na sociedade de risco atual.

Na primeira parte do trabalho vai ser apresentada ao leitor a discussão a respeito da

história do lixo, como a sua significação simbólica foi mudando no decorrer dos tempos,

iniciando com as concepções de dejetos na idade média, até o ponto em que começam a surgir

políticas em relação à manutenção dos resíduos sólidos no Brasil e em Curitiba.

Para tanto, utilizaremos principalmente o texto de José Carlos Rodrigues, em seu livro

Higiene e Ilusão, que faz um levantamento antropológico, sociológico e histórico a respeito da

concepção do lixo enquanto problema cultural e simbólico. Neste sentido, o autor contribui

para a análise em relação à mudança de percepção a respeito do lixo, e as suas significações

sociais, a principio aceito e no decorrer dos tempos condenado, e novamente posto em pauta

devido à reciclagem e o valor econômico embutido neste processo.

José Carlos Rodriguez procurou mostrar que

a importância do lixo tem o nascimento, a partir de onde cresce até a angustia que

nos envolve atualmente, sempre chamando a atenção para o fato de existirem no

lixo, pelo menos duas histórias entrelaçadas e inseparáveis: a do significado e a do

objeto material1.

Nesta discussão o estudo de Emilio Maciel Eigenheer, também contribui para

entendermos a respeito da limpeza urbana através dos tempos, porém utilizando uma

abordagem histórica mostrando que o tratamento de dejetos não se dá de uma maneira única e

não ocorrem de igual modo em uma mesma época. O autor é responsável pelo entendimento

de como as questões relacionadas ao tratamento de lixo no Brasil, sempre trouxeram

problemas políticos e sociais, e que por muito tempo não existia lugares definidos para a

eliminação dos resíduos.

Estas abordagens contribuíram para entendermos que a geração de resíduos entra em

reboque a massiva preocupação com os problemas ambientais, consequentemente quando os

discursos em favor da terra começam a surgir e a preocupar o mundo, surgem conferencias

mundiais a partir da década de 70 a respeito do tema ambiental, políticas publicas, e incentivo

ao consumo sustentável.

1 RODRIGUES, José Carlos. Higiene e ilusão. Rio de Janeiro: NAU,1995. Pág. 11

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Porém, utilizando autores como Leila Ferreira da Costa e Ulrich Beck, percebemos que a

industrialização e a modernidade trazem contradições, e que embora existam tais políticas

ambientais, a pratica se mostra bem diferente. Não é à toa, que embora vivemos no ápice da

modernidade, não existe meio eficazes para a reciclagem sem a utilização da mão de obra

marginalizada dos catadores de materiais recicláveis.

Neste sentido, no segundo capitulo procuramos entender as configurações de estigma,

invisibilidade social e as relações entre estabelecidos e outsiders presentes na profissão de

catador de material reciclável. Autores como Goffman, Norbert Elias e Fernando Braga da

Costa abordam respectivas questões, e demonstram que as relações de estigma estão presentes

em várias situações sociais.

No terceiro capitulo, a intenção é descrever a respeito dos barracões de reciclagem que

foram visitados durante a pesquisa. Mostrando que a observação contribuiu bastante para

perceber a realidade social dos catadores de materiais recicláveis.

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Capítulo 1 - A sociedade do lixo

Embora o objetivo geral desta monografia seja a análise do estigma social presente no

oficio de catador de material reciclável, é necessário perceber o lixo como objeto socialmente

construído para entender a existência de tal fenômeno histórico/ambiental.

Contudo o objetivo deste capítulo é analisar o lixo como objeto socialmente construído a

partir da perspectiva histórica e social, a onde é possível perceber que os problemas oriundos

da produção de resíduos sólidos não é exclusividade do século XX, e, portanto se faz

necessária uma breve explanação do que era a representação relacionada aos resíduos sólidos

na Idade Média na Europa. Posteriormente, a geração de resíduos começou a ser objeto de

preocupação também por parte do Estado no Brasil.

Desta maneira, segundo José Carlos Rodrigues, em seu livro Higiene e Ilusão (1995), e

Emilio Maciel Eigenheer, no livro a História do Lixo (2009), é possível perceber que somente

a partir da segunda metade do século XIX se faz distinção entre lixo (resíduos sólidos) e

resíduos eliminados pelo corpo humano (fezes, urina).

É importante destacar que a geração de lixo sempre existiu na história da humanidade,

porém os problemas ocasionados pela crescente produção de lixo urbano a partir do século

XX representam um ponto dentro de um quadro histórico mais amplo.

Considerando, que o processo de urbanização e consequentemente a organização do

espaço urbano começa no final do século XVIII, com a revolução industrial a cidade passa a

ser um centro de oportunidades para pessoas que viviam no campo, mas não eram

proprietários de terra. Em quase toda a Europa os proprietários e locatários de terra

dispunham de um arsenal de servos a seus dispor, estes que viviam em um regime quase de

escravidão.

Eric Hobsbawn mostra que o camponês típico era um servo que vivia em função do

trabalho forçado na terra do senhor2.

2 HOBSBAWN, Eric J. A Era das Revoluções: Europa 1789-1848. Tradução de Maria Tereza Lopes Teixeira e

Marcos Penchel. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1977. Pág. 33

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[...] para um trabalhador ou camponês qualquer pessoa que possuísse uma

propriedade era um “cavalheiro” e membro da classe dominante, e vice-versa, o

status de nobre ou gentil homem (que dava privilégios políticos e sociais e era ainda

de fato a única via para os mais altos postos do Estado) era inconcebível sem uma

propriedade.3

A sociedade rural como aponta o autor, funcionava a partir de cobranças de alugueis e o

camponês era um lavrador típico, e mesmo que fosse proprietário ainda devia ao senhor uma

série de obrigações. Desta maneira a propriedade deixava de ser uma unidade de iniciativa

econômica. Porém em alguns lugares como na Inglaterra, o desenvolvimento agrário já criara

um contorno capitalista, ou seja, não existia exatamente uma agricultura camponesa, mas sim

grandes empresários agrícolas que dispunham de uma classe de trabalhadores rurais.4

O século XVIII, em todo caso não vivia um período de estagnação agrícola. E na segunda

metade do século uma grande expansão demográfica culminava com a urbanização crescente,

de fabricação e comercio que encorajava a melhoria da agricultura. O mundo moderno já

apontava para um crescente e ininterrupto aumento da população.

O mundo agrícola era lerdo, a não ser talvez em seu setor capitalista. Já os mundos

do comércio e das manufaturas; e as atividades intelectuais e tecnológicas que os

acompanhavam, eram seguros de si e dinâmicos, e as classes que deles se

beneficiavam eram ativas, determinadas e otimistas5.

Desta maneira, o fenômeno urbano surge no final do século XVIII, a onde a necessidade

de separar era desejo fundamental dos urbanistas vanguardistas da época. Em 1794 surge à

primeira cadeira de Higiene Publica preocupada em transformar a cidade no sentindo de

pavimentar as ruas, separar os cemitérios, e o interesse em cobrir o solo dava-se ao medo que

a matéria em decomposição causava6.

Eigenheer (2009) aponta para o fato que o lixo na história sempre encontrou a dualidade

de ser algo necessário a descartar e, ao mesmo tempo, aceito por sua utilidade de alguma

maneira. Assim, se a geração de resíduos sempre existiu na história da humanidade nem

3 Idem. Pág. 35 4 Idem. Pág. 36 5 Idem. Pág. 38 6 RODRIGUES, José Carlos. Higiene e ilusão. Rio de Janeiro: NAU,1995. Pág. 42.

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sempre foram cultivados sentimentos relacionados ao lixo como algo “asqueroso” ou até

mesmo “perigoso” 7.

A herança ocidental em relação ao tratamento dos resíduos tem influência na maneira

atual como são tratados os resíduos, inclusive no que concerne aos profissionais que eram

responsáveis pela limpeza urbana. No decorrer da história, a tarefa da remoção do lixo era

destinada aos excluídos sociais (prisioneiros, estrangeiros, escravos, carrascos, prostitutas,

mendigos, entre outros), e, de alguma maneira, dada a complexidade social, esta prática

continua atualmente.

A escolha da Idade Média como ponto de partida, segundo Rodrigues se faz importante

pelo fato de que, embora seja um modelo generalizador, é relevante o fato que os dejetos,

assim como os corpos, não se separavam. O cemitério e as sepulturas coletivas entreabertas

eram o centro da vida coletiva; as pessoas conviviam com os cadáveres e não existe registro

de reclames sobre isso.8 A representação social do que era considerado asqueroso, portanto,

era culturalmente diferente da sociedade capitalista e industrial, e a convivência com dejetos

humanos era uma prática social decorrente.

Outro ponto importante de se destacar é que a escolha pela Idade Média também se faz

pelo fato que essa era uma época quando a cultura industrial não existia, e que o sistema

capitalista nasce da ruptura das relações sociais e políticas medievais, e consequentemente

com uma nova maneira de interpretar as relações e os contextos sociais.9

Nessa armadilha caíram os nossos teóricos, sociólogos e historiadores de direita ou

de esquerda, concordando quase unanimemente com a ideia de que a história tem

um caráter progressivo ou evolutivo e atribuindo a Idade Média, por consequência,

esta função político- ideológica de “momento um”. Por este caminho, estes séculos

foram em grande parte definidos por negação e caracterizados pela “falta”: momento

em que faltavam os progressos conquistados pelo sistema capitalista10.

Porém o fato é que a Idade Média representava um momento definido da trajetória

histórica, e as suas mentalidades e vidas cotidianas representam uma maneira cultural de

entender como as relações funcionavam não analisando de uma maneira como é entendida a

7 Idem. Pág. 11 8 Idem. Pág. 29 9 Idem. Pág. 23 10 Idem. Pág. 24

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sociedade atual e, portanto livres de uma negatividade histórica construída. Assim, o ponto de

partida do autor, são os anos que antecederam a sociedade em crise medieval.

Compreender as mentalidades em relação ao lixo ou o que é considerado material

descartado na Idade Média é importante, pois as concepções referentes ao que é necessário

descartar são bem diferentes do modelo capitalista industrial. A relação com o mau cheiro e a

convivência com excrementos e cadáveres era comum nesta época, como aponta Rodrigues11.

A maneira como os cemitérios eram abertos com as covas expostas e as pessoas conviverem

com a morte, e consequentemente não separar o que é considerado vivo ou morto, realizando

festas e comemorações em torno das covas abertas também mostram uma concepção

diferenciada em relação ao lixo e a higiene. O autor mostra que não se tratava de uma

“carência educacional”, mas sim certo prazer em conviver com aquilo que para a cultura

capitalista é considerado resíduos detestável. É por esse motivo que a compreensão do lixo e

de higiene faz parte das crenças que cultivamos no decorrer dos tempos.

Com uma perspectiva estritamente histórica, Eigenheer aponta que na baixa Idade Média

muitas casas tinham áreas livres para o destino de excrementos e resíduos sólidos. A parte

orgânica constituía boa parte dos resíduos domésticos e era utilizada para as esterqueiras. A

situação se complica com a redução dos espaços livres e consequentemente com o aumento

populacional.12 Além disso, era comum a criação de animais, e existia costume de armazenar e

jogar dejetos humanos e de animais defronte às casas, prática que no século XIX era

condenada pelos setores administrativos em uma tentativa de limpeza urbana.

Desta maneira, a preocupação em separar, destinar e principalmente isolar os mortos,

começa com a intenção higienista e urbanista presente nos séculos XVIII e XIX, e a tentativa

de romper com as práticas medievais se faz em quase toda a Europa. Principalmente no que

concerne a construção de cemitérios longe do perímetro urbano.

Com o desenvolvimento das cidades inicia-se a preocupação em organizar a cidade nos

seus diversos aspectos, como pavimentação das ruas, cobertura do solo, impedimento de

águas estagnadas e saneamento. Surge também a necessidade de separação da população que

continua com hábitos de outrora e, desta maneira, os bairros e as populações pobres são

afastados das elites que vão ficar preservadas de qualquer tipo de odor. Foi em 1846 que se

11 Idem. Pág. 32 12 EIGENHEER, Emílio Maciel. Lixo: A limpeza urbana através dos tempos. 2009. Pág. 92

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oficializou a ideia que o lixo precisava de um tratamento adequado e fosse considerado em

políticas publicas13.

1.1 - A construção da problemática do lixo No Brasil

A colonização portuguesa influenciou fortemente a organização social e cultural do Brasil.

Portugal não era a vanguarda do capitalismo europeu, e muito dos hábitos referentes ao lixo e

a limpeza urbana ainda tinha influência das mentalidades da Idade Média.

Esta característica cultural dos colonizadores não será desprovida de consequências

para matizar muitas das nossas atitudes atuais em relação ao lixo, em que imprimiu a

sua marca assim como o fez no vocabulário das classes populares, nas festas

folclóricas, na literatura de cordel nas crenças religiosas, nos hábitos alimentares,

nas praticas cotidanas. Tal influencia, na sociedade brasileira, não cessa de contaminar inclusive setores bastante adestrados no universo moderno e industrial.14

No Rio de Janeiro era comum a utilização de vasos para o despejo dos dejetos humanos e

por dificuldade geográfica era difícil enterrar determinados resíduos, pois eram regiões

úmidas e com os lençóis freáticos muito altos, que impossibilitavam a técnica de enterrar os

dejetos. Desta maneira os dejetos eram depositados nas ruas ou até mesmo no mar.

Em meados do século XIX tais práticas foram condenadas sob pena de punição para quem

continuasse depositando os dejetos em lugares inapropriados. Na formatação do primeiros

códigos urbanos de conduta social, estipulou-se, portanto, horários e locais específicos para o

despejo dos dejetos, assim como a utilização de carroças para o recolhimento do lixo. Apenas

a partir de 1854 que o governo ficou responsável pela limpeza da cidade.

Várias tentativas de eliminação dos resíduos foram implantadas depois deste ano, e a

contratação de empresas privadas para o serviço além da organização publica esbarrava em

vários problemas técnicos e administrativos e até mesmo com o costume da população.

Emílio Maciel Eigenheer argumenta que um fator importante para a limpeza urbana no Rio de

13 Idem. Pág. 48 14RODRIGUES, J.C. Op. Cit. Pág.22

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Janeiro foi a implementação do sistema de esgoto, em parte da cidade, o que possibilitou

finalmente a especialização de limpeza urbana voltada propriamente para o lixo.

No decorrer do século XX foram várias as tentativas técnicas para o tratamento do lixo,

como por exemplo, incineração e compostagem, além da reciclagem. Porém, por muito tempo

no Brasil, não existiam lugares apropriados para o destino final do lixo. Por exemplo, no Rio

de Janeiro, o despejo era feito na Ilha de Sapucaia até por volta de 1949, e somente em 1970

que a cidade começou a depositar o lixo em aterro localizado na cidade de Duque de Caxias

(RJ), que existe e funciona até hoje, mas que é compartilhado com um aterro sanitário auxiliar

no bairro carioca de Bangu.

A partir da segunda metade do século XX, o lixo começa a adquirir aspectos mais

problemáticos, e, no auge da industrialização, as cidades começam a se expandir e

consequentemente a produzir mais resíduos. Esta contradição que é presente na expansão de

maneira insustentável é questionável e surge a necessidade de se buscar soluções para o

reaproveitamento daquilo que foi jogado fora. A preocupação com programas voltados a

coleta seletiva começa a surgir15.

Porém, ainda hoje o gerenciamento do lixo urbano encontra vários entraves, em parte

porque a política de resíduos sólidos encontra alguns problemas no que concerne ao destino

final do lixo, além da maneira como os municípios lidam com a questão do lixo, que encontra

diversos impasses em relação aos trabalhadores que lidam com esse tipo de material. Além

disso, a cultura em relação aos catadores de resíduos sólidos permanece e como mostra

Eigenheer, estes trabalhadores existem há muito tempo na história do mundo.

Na Europa do século XIX os catadores foram alvo da atenção dos teóricos e adeptos de movimentos revolucionários, que viam neles não só uma das mais degradantes

consequências do sistema capitalista como também parte da estratégia

revolucionária. A resistência nas ruas poderia contar com um grupo potencialmente

contestador.16

Os catadores encontravam problemas para poder desenvolver as suas atividades para

sobrevivência. Em Paris, no século XIX, muitas vezes eram condenados por buscarem seus

15 BEZERRA, Rafael Ginane. Da prática da separação do lixo: estudo de caso sobre as representações sociais

do lixo entre os participantes do programa Câmbio Verde em um bairro de Curitiba. Dissertação de

mestrado(2003). Pág. 26 16 Idem. Pág. 115.

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materiais, acabavam revirando o lixo e desta maneira depositando nas ruas o que não era de

seu interesse. No Brasil existiram várias tentativas de auxilio a para os catadores,

principalmente na criação de Cooperativas para a separação e a triagem do lixo. Porém ainda

é visível a falta de incentivos estatais para este tipo de atividade. Este tema será abordado com

mais detalhes no próximo capítulo.

Atualmente as indústrias de reciclagem dependem diretamente destes profissionais

segundo Eigenheer, e estima-se que no Brasil 60% do lixo reciclado tem a participação dos

catadores. Mesmo cooperativados estes trabalhadores continuam com sua atividade de

sobrevivência sem encargos trabalhistas, e submetem-se aos baixos ganhos que são ditados

pelo mercado do material reciclado.

É necessário ressaltar que, a despeito da extensão dos problemas que suscita, no

Brasil a conversão da questão do lixo em objeto de demanda social para a criação de

políticas públicas é bastante tímida. Esse fato é suficientemente significativo para

colocar em questão os efeitos do que vem sendo chamado de consciência ambiental.

Isso pode ser ilustrado pelas iniciativas para criação de cooperativas de catadores de lixo. Responsáveis pela coleta da maior parte do lixo reciclável em área urbana, eles

desempenham importante função econômica e ambiental. Ao mesmo tempo, são

relegados a condições precárias de trabalho e de vida. Ainda assim, não se consegue

articular um movimento suficientemente amplo para remediar essa situação através

de uma política pública17.

A reciclagem industrial, desde o inicio do século XIX representa um grande peso na

economia, dos países industrializados18. Grippi19 demonstra que a reciclagem de papel é

importante, pois foi o primeiro material a ser reciclado, ainda na década de 1920, com o

advento da industrialização.

A preocupação mundial com a preservação do meio ambiente gerou em 1970 uma

perspectiva diferente em relação ao reaproveitamento dos resíduos sólidos, e desta maneira a

principal meta era enviar o mínimo possível de materiais para os aterros.

Porém, considerando que as questões relacionadas ao que é descartado é diretamente

ligadas a industrialização, e logo, grandes empresas faturam alto com o lixo reciclável no

17 BEZERRA, R.G. Op. Cit. Pág. 09 18 EIGENHEER, E.M. Op. Cit. Pág. 119 19 Sobre o assunto, ver: GRIPPI, Sidney. Lixo: reciclagem e sua história. Rio de Janeiro, Interciência, 2006.

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Brasil o problema em relação a mentalidades completamente voltadas por ganhos econômicos

não buscam uma nova mentalidade de consumo, mas uma maneira diferente de consumir a

partir de uma ideologia pautada em desenvolvimento sustentável.

Além disso, o Brasil, durante esta breve explanação nas questões relacionadas ao destino

final dos resíduos, teve demandas tímidas em relação a uma política nacional de resíduos

sólidos que foi implantada somente em 2010, e prevê a articulação envolvendo os três entes

federados – União, Estados e Municípios além do setor produtivo e sociedade civil em busca

de soluções para os graves problemas relacionados aos resíduos.

1.2 - O Lixo em Curitiba

A Coleta Seletiva em Curitiba foi implantada em 1985 no Bairro de São Francisco a partir

da iniciativa da associação de moradores de São Francisco, e pressupõe a separação na fonte

dos materiais que se deseja tratar. Curitiba foi à primeira cidade a utilizar esse recurso como

alternativa para o destino final do lixo em 1988. Hoje mais de 200 cidades brasileiras tem

este tipo de coleta implantada, “contudo, entre nós esta prática tem enfatizado mais a

separação prévia de materiais destinados à reciclagem industrial (na tradição dos

catadores), e menos a compostagem da fração orgânica do lixo20”.

Porém em Curitiba e região metropolitana até a implantação do aterro sanitário do

Caximba em 1989, não existia um lugar definido para o depósito de lixo, e era utilizados

lixões da Lamenha Pequena – Cic e de São José dos Pinhais.

Hoje estes depósitos de lixo estão em condição de aterros controlados. A cidade foi

pioneira nos programas de coleta seletiva, e desta maneira a reciclagem aparece como

alternativa viável para a diminuição de lixos enviados para o aterro sanitário.

Programas como o “Lixo que não é Lixo”, o “Cambio Verde” sempre estiveram

associados à imagem bem difundida de cidade planejada e que de certa maneira encontrou

soluções eficazes para a manutenção e reaproveitamento das matérias que podem voltar ao

circulo econômico a partir da reciclagem. A data da implantação destas iniciativas feita pela

20 EIGENHEER, E.M. Op. Cit. Pág. 104

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Prefeitura de Curitiba é o mesmo ano em que começa a operação para o aterro localizado

próximo ao bairro do Caximba.

Vale destacar, que embora a cidade disponibilize certos programas, a reciclagem nunca

esteve desassociada dos catadores de materiais recicláveis que desempenham um papel

fundamental nesta empreitada.

As primeiras ações voltadas para o meio ambiente em Curitiba tiveram destaque na década

de 70, principalmente com a gestão de Jaime Lerner, a onde aparece em políticas publicas a

necessidade de preservação de áreas verdes construídas e consequentemente o aparecimento

de parques como o da Barreirinha.21

Marcio de Oliveira mostra que até a década de 80, embora ocorressem várias mudanças

em relação à manutenção e criação das áreas verdes e a evolução da legislação ambiental não

existia nenhum programa estritamente ambiental22.

Foi a partir dos anos 90 que a cidade começa a ganhar notoriedade em relação aos seus

programas e planejamento urbano combinado com a manutenção do meio ambiente. Os

programas de Coleta Seletiva como o “Lixo que não é Lixo” e o “Compra do Lixo” são

premiados em 1990 pela ONU por intermédio do Programa das Nações Unidas para o Meio

Ambiente, e começam a receber atenção fora da cidade. Desta maneira, a construção do ideal

de cidade ecológica vai firmando e o titulo de capital ecológica é conquistado23.

Porém Marcio Oliveira demonstra que o sucesso em relação a tais programas e ao mérito

concebido por ser uma cidade planejada e consequentemente preocupada com o meio

ambiente, é ligado muitas vezes além de uma boa administração.

Ao contrário do “montado” discurso oficial, a história recente da cidade parece

revelar como em Curitiba combinaram-se fatores naturais – uma fantástica

hidrografia, por exemplo – com soluções de cunho ambiental – os parques com

grandes lagos em seu interior. Parece revelar ainda como certas obras públicas

conquistaram espaço dentro da arena político-administrativa institucionalizando-

se,como parece ser o caso do Plano Diretor de 1960,que acabaria dando origem ao

IPPUC ou ainda quando da criação da SMMA24.

21 OLIVEIRA, Márcio de. A trajetória do discurso ambiental em Curitiba (1960-2000) in>

www.scielo.br/pdf/rsocpln16/a06n16pdf. Pág. 04 22 Idem. Pág. 09 23 Idem. Pág. 06 24 Idem. Pág. 10

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O autor cita o “Cambio Verde” programa criado em 1991 que tinha como objetivo o

cambio de lixo reciclável por produtos hortigranjeiros para as populações carentes. Além

disso, para a implantação do programa a parte prática em relação a quem coletaria o lixo em

regiões como favelas e comunidades ribeirinhas invadidas e de difícil acesso, ficava a cargo

da população interessada em fazer o cambio por alimentos.

O fato de a população trocar o lixo que produzia, portanto, era uma maneira eficaz e

barata de limpeza e ligada consequentemente a fatores econômicos aquém a preocupação com

o meio ambiente. Cabe reassaltar que as tentativas para eliminação do lixo urbano sempre

encontraram entraves na implementação por diversos motivos tanto de planejamento quanto à

demora em dispor os lixos orgânicos em um lugar apropriado que seriam o aterro sanitário

controlado. E que em Curitiba até pouco tempo atrás a preocupação ambiental surgia a partir

da elaboração de planos a respeito da criação de parques e áreas verdes. O pioneirismo em

relação à coleta seletiva se dá também por uma dualidade a onde em determinadas regiões da

cidade era difícil fazer a coleta, e por esse motivo programas de cambio do lixo contribuíram

para que a população carente fizesse a troca desses materiais.

Vale destacar, que o aterro sanitário do Caximba, já havia esgotado sua capacidade em

2009, e em 2010 começaram as atividades para a desativação do aterro.

Embora no site da prefeitura, o destino final do lixo domiciliar esteja associado ao nome

do Caximba, na realidade, após o fechamento do aterro, estão sendo utilizados aterros

sanitários temporários, sendo que 2,4 mil das 2,5 mil toneladas de lixo são destinadas ao

aterro da Estre em Fazenda Rio Grande, e as 100 toneladas restantes vão para a Essencis na

divisa de Curitiba com Araucária. Isto demonstra dentre outros pontos, que mesmo que cidade

tenha sido pioneira em programas, já citados, para a reciclagem de lixo como o “Lixo que não

é lixo” ou o “Cambio Verde” e que tenha conquistado o titulo de capital ecológica, não quer

dizer que tenha encontrado soluções permanentes para a manutenção da disposição final do

lixo, tendo que utilizar aterros temporários para solucionar este problema. Ou seja, a cidade

encontra soluções imediatas para amenizar os conflitos que este problema ambiental causa.

Outro ponto importante, é que a informação a respeito dos aterros temporários não consta no

site oficial, o que dificulta a pesquisa a respeito do destino final do lixo domiciliar. A

informação foi encontrada a partir de reportagem feita pela gazeta do povo, e quando se faz

uma busca a respeito do Aterro Sanitário de Curitiba, conhecido como Caximba, a maior parte

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das noticias são relacionadas aos problemas que este aterro trouxe a população que morava

aos arredores, e principalmente como à região foi desfavorecida por ter tal empreendimento

por perto.25

1.3- A lei de resíduos sólidos e políticas ambientais no Brasil

No que se refere às políticas ambientais no Brasil, é necessário fazer um levantamento de

quando estas questões começam a incomodar o mundo. Como exemplo é possível destacar a

Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente realizada em Estocolmo em 1972. O

objetivo da conferencia encabeçada pelos países do primeiro mundo, era questionar os

aspectos técnicos da contaminação ambiental, causada pela intensificação da industrialização

e urbanização, e na relação entre o crescimento populacional e o esgotamento dos recursos

naturais.

O posicionamento do Brasil assim como dos outros países subdesenvolvidos ia de

encontro à agenda de Estocolmo. A posição do governo brasileiro era que a principal crise de

um país é a fome, desta maneira o que se fazia necessário/prioridade era combater a miséria

incentivando o desenvolvimento.

O crescimento econômico, portanto, não poderia ser sacrificado em nome de um ambiente

mais puro, considerando que os países desenvolvidos tinham poluído o suficiente para chegar

ao patamar que se encontravam, eles é que deveriam arcar com as consequências da

purificação ambiental. A posição que gerou uma grande controvérsia como destaca Leila

Ferreira da Costa26, foi a que a soberania nacional não poderia ser sujeitada em nome de

interesses ambientais mal definidos.

O posicionamento em relação à maneira que cada nação encontra em explorar os recursos

de acordo com a necessidade foi declarado pelo Brasil diversas vezes. Desta maneira, muito

do que concernem às políticas ambientais brasileiras internas foram influenciadas por esta

conferencia.

25 As fontes dessa parte do texto foram retiradas de uma matéria do jornal Gazeta do Povo. Única fonte

encontrada para essa pesquisa. Link: www.gazetadopovo.com.br/conteudo.phtml?id=1186502 26 FERREIRA, Leila da Costa. A questão ambiental: sustentabilidade e políticas públicas no Brasil. Boitempo

Editorial, 1998. Pág. 81

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Não por acaso, a criação do Sema (Secretaria Especial de Meio Ambiente) teve

influencias diretas da Exposição dos Motivos nº 100/71. Elaborada então pelo secretário do

Conselho de Segurança Nacional, João Baptista Figueiredo, elencava dentre outros pontos a

sugestão para a posição nacional em Estocolmo, acentuando o caráter primário a favor do

desenvolvimento econômico do país. A Sema foi criada em 1973, sob coordenação do

Ministério do Interior, e em resposta a uma situação emergencial.

Desta maneira, Leila Ferreira da Costa mostra que as políticas públicas relacionadas ao

meio ambiente são controvérsias, de alguma maneira, pois entram em contradição com o

desenvolvimento e para que sejam efetivas é necessário que criem conflitos. Desta maneira o

ponto principal das políticas ambientais no Brasil, segundo a autora, é administrar bem os

conflitos.

Isto coloca os policymakers, que lutam para implementar políticas ambientais hoje,

em um dilema: de um lado se encontram em posições adversas ao desenvolvimento;

de outro, são compelidos ao exercício de persuasão, do convencimento, da indução.

Surge então, a noção de que para ter uma política ambiental efetiva é necessário que

se criem conflitos. Nesse contexto, a questão crucial se transforma em como

administrar bem os conflitos.27

A preocupação com o meio ambiente mundial gera preocupação também em

regulamentar alguns aspectos da degradação ambiental. Isto culminado com a preocupação

com o risco, ou a administração dos conflitos oriundos da modernização.

A modernidade e a industrialização carregam consigo uma série de contradições, segundo

Ulrich Beck:

Os riscos e ameaças atuais diferenciam-se, portanto, de seus equivalentes medievais,

com frequências semelhantes por fora, fundamentalmente por conta da globalidade

de seu alcance (ser humano, fauna, flora) e de suas causas modernas. São riscos da

modernização, são um produto em série do maquinário industrial do progresso,

sendo sistematicamente agravados com seu desenvolvimento ulterior.28

A sociedade de risco como propõe Beck, é entendida como um processo de aceitação

das previsões de erros, e principalmente como a sociedade consegue conviver com artefatos

27 Idem. Pág. 83

28BECK, Ulrich. Sociedade de Risco: rumo a uma outra modernidade. Tradução de Sebastião Nascimento. São Paulo, Editora 34, 2010. Pág, 26.

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que não conseguimos controlar, efeitos da própria modernização e industrialização e neste

caso a produção de resíduos entra como exemplo clássico.

Embora a reciclagem seja vendida como solução, ela também gera uma inversão social

do que seria uma limpeza do planeta. Assim, da mesma maneira que a ciência traga diversas

certezas ela também projeta uma visibilidade de riscos e incertezas, pois ainda não existem

maneiras eficazes de recolhimento do material reciclável sem a utilização da mão de obra

marginalizada dos catadores.

Na sociedade pós-moderna embora a tecnologia avançada, ainda não existem soluções

eficazes para a eliminação da grande quantidade de lixo gerada no mundo. Neste sentindo

Ulrich Beck apresenta uma discussão fundamental para o aprofundamento do tema,

principalmente ao discutir a sociedade de risco atual.

Nada resta acrescentar ao panorama assustador, suficientemente difundindo por

todos os setores de mercado de opiniões, de uma civilização que ameaça a si

mesma, menos ainda as manifestações de uma nova perplexidade, que se

extraviaram das dicotomias ordenadas de um mundo do industrialismo ainda “intacto” em suas contradições29.

Embora o industrialismo continue intacto, como apresenta Beck, a geração de resíduos

também cresce em quantidades exorbitantes, pois não existe um novo paradigma para

consumo, e sim, uma proposta de um consumo pautado em uma ideologia verde muitas vezes

contraditória. A proposta de um desenvolvimento sustentável, de certa maneira, colabora para

a criação de um imaginário de que se o produto for ecologicamente correto, este pode ser

utilizado mesmo em grandes quantidades. O consumo não é questionado, e sim substituído

por uma nova proposta para consumir.

Neste sentido, é possível elencar, por exemplo, a demora em a regulamentação da política

nacional de resíduos sólidos, e também questionar a onde são implantados os aterros

sanitários normalmente postos em regiões isoladas da cidade.

A política nacional de resíduos sólidos foi decretada em 2010, após 20 anos de trâmite

legislativo, como complemento e reajuste da lei de 12 de fevereiro de 1998. Com o intuito de

estabelecer diretrizes relativas à gestão integrada para o gerenciamento de resíduos sólidos.

29Idem. Pág. 12

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21

A análise das leis que regem a manutenção e eliminação dos resíduos sólidos no Brasil

determina entre outros pontos, a responsabilidade para o gerenciamento do lixo em junção

entre a união e os municípios. Cada estado disponibiliza a sua própria lei de resíduos sólidos,

além da lei nacional.

É possível encontrar, disponível para consulta publica o Panorama dos Resíduos Sólidos

no Brasil que aponta não só a necessidade de eliminação dos lixões no país como também a

implantação de coletas seletivas eficazes, mecanismos de inclusão dos catadores e programas

de logística reversa para grandes geradores de lixo.

Além disso, contempla a lei 12.305 (agosto de 2010) que prevê a eliminação dos lixões até

2013, e pressupõe que cada município envie a sua proposta para a gestão de lixo. Em todo

caso em matéria publicada na Gazeta do Povo do dia 25/09/2012, 95% das prefeituras do

Brasil não haviam entregado o plano de gestão do lixo.

No que concerne a política estadual de resíduos sólidos no Paraná, é destacado o

estabelecimento entre poder publico, setor produtivo e sociedade civil, buscando iniciativas

que promovam o desenvolvimento sustentável além de implementarem a gestão diferenciada

para os resíduos domiciliares, comerciais, rurais, industriais, construção civil e lixo

hospitalares, com o objetivo de estimular a destinação final adequada dos resíduos sólidos

urbanos para a conservação da saúde publica e a conservação do meio ambiente.

Embora os pontos necessários para a gestão do lixo urbano estejam contemplados em lei,

a prática se mostra bem diferente. Como foi apontado anteriormente, em Curitiba, até 1990

não existia um lugar adequado como aterros sanitários controlados, para o destino final do

lixo. O aterro sanitário do Cachimba até ser efetivamente desativado, gerou uma serie de

revoltas por parte da população que reclamava do mau cheiro, e a sua capacidade já havia sido

esgotada desde 2009.

Com o aumento das cidades, a industrialização e a modernização das cidades do ponto de

vista econômico, demorou muito tempo para se preocupar efetivamente com os problemas

oriundos da industrialização no que concerne aos problemas ambientais e consequentemente

com os vestígios negativos de tal modernização.

O Brasil , assim como em diversos países no mundo, viveu nos anos pós-guerra uma

intensa industrialização e urbanização, como é possível perceber ao considerar que nos anos

50 a população brasileira atingia a cifra de 18 milhões de habitantes, e em 1980 atinge 80

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22

milhões. (IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 1980). Levando em conta que

esse dinamismo urbano é aliado à criação de novos empregos em diversas áreas como de

transporte e na indústria de informação assim como outras ocupações modernas, ao mesmo

tempo em que cria um processo de exclusão de profissionais expostos às incertezas de um

mercado de trabalho dinâmico e instável.

No final dos anos 80, o sistema urbano e as cidades brasileiras do ponto de vista de

sua organização espacial, expressam esse processo contraditório. Dentro das

cidades- e quanto mais complexa for sua estrutura ocupacional e social – acentuou-

se a segregação espacial e generalizou-se a existência de periferias urbanas, antes

triste privilégio dos grandes centros.30

Aliado as questões relacionadas à urbanização, o meio ambiente também entra em pauta e

discursos ambientais diferentes vão surgindo, cada qual apontado uma maneira de analisar os

problemas ecológicos oriundos da intensa modernização.

John Hannigan aponta para os discursos ambientais elencados por outros autores, e

destaca Brulle que discorre a respeito de nove discursos que são complementares entre si: o

manifesto de destino, o manejo da vida selvagem, a conversação, a preservação, a reforma

ambientalista, a ecologia profunda, a justiça ambiental o ecofeminismo, e a ecoteologia. Para

Brulle, segundo Hannigan, não pode haver uma ação ambiental significativa sem uma

mudança estrutural, isto que dizer que os discursos ambientais devem estar atentos às origens

sociais da degradação ambiental e proclamar uma visão coerente do bem comum.

Capitulo 2 - Contribuições ao campo teórico da pesquisa em Ambiente e Sociedade

A presente pesquisa tem como objetivo a análise do estigma social associada à profissão

de Catadores de Materiais Recicláveis, popularmente conhecidos como catadores de papéis ou

carrinheiros, procurando demonstrar como a problemática do lixo sai de um âmbito privado,

particular e silencioso durante o transcorrer da história, para se tornar um dos assuntos

públicos mais relevantes para a sociedade do século XXI.

30 Idem. Pág. 103.

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23

Procura-se salientar dentre a manutenção dos resíduos sólidos a Coleta Seletiva que

pressupõe a separação do lixo para a conservação de matérias recicláveis, que poderiam ser

danificados ou teriam seu valor reduzido pelo contato com materiais não recicláveis. Porém, é

necessário destacar essa atividade como uma dentre várias em relação à manutenção dos

resíduos sólidos em uma cidade.

A coleta seletiva é entendida como um meio eficaz de enviar o menor numero de matérias

recicláveis para os aterros sanitários ou lixões. Esta separação pode ser feita por diversos

agentes, e no caso da presente pesquisa será analisada esta atividade desenvolvida pelos

catadores de materiais recicláveis, conhecidos como catadores de papeis, que encontram na

catação de lixo o meio principal de sobrevivência. Cabe-nos ressaltar também que existem os

catadores de materiais recicláveis que não trabalham cooperativados e recolhem o material

por conta própria, assim eles acabam repassando o que coletam em condições mais adversas,

como por exemplo, por preços mais precários.

Quando a Coleta é feita por um grupo de catadores associados, estes recolhem o material

e transportam para o barracão, no qual são realizadas a separação, a prensa, e a pesagem do

material, para posteriormente serem vendidos. Neste caso, eles conseguem segurar o material

por algum tempo antes de passar para o atravessador, conseguindo assim um valor mais alto

para o material.

Durante a pesquisa foram realizadas visitas a alguns barracões no Bairro Novo, Almirante

Tamandaré e Piraquara. Todos estes grupos fazem parte da Cooperativa de Catadores

Coopersol, uma cooperativa para a comercialização de resíduos sólidos. O objetivo desta

cooperativa é eliminar a figura do atravessador, fortalecer a categoria dos catadores de

materiais recicláveis e consequentemente aumentar o lucro das famílias que são envolvidas

neste processo.

A associação de catadores do Bairro Novo, chamado Projeto Mutirão foi a que recebeu

maior atenção, devido à facilidade de inserção por meio de uma pessoa que desenvolve

oficinas, e programas de conscientização para o grupo. O Projeto Mutirão surge em proposta

apresentada pela Paróquia Profeta Elias em 2002 para o enfrentamento à fome e a miséria no

Bairro Novo. A associação faz parte de um projeto de economia solidária que participam

panificadoras, oficinas de costura e grupos de artesanato - estes grupos pautam-se nos

princípios de autogestão, propriedade coletiva dos meios de produção, partilha justa e fraterna

do resultado do trabalho.

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24

No que concerne à coleta seletiva, os catadores de materiais recicláveis desempenham um

papel fundamental nesta empreitada, pois são responsáveis por boa parte da coleta do lixo

reciclável em Curitiba. No entanto mesmo desempenhando um papel fundamental ainda

vivem em péssimas condições e são submetidos a condições de trabalhos bem precárias e com

remuneração baixa. Além disso, a profissão de lixeiro de acordo com o universo cultural

civilizador sempre foi estigmatizada, e as pessoas que trabalham com isso sofrem diversos

estigmas.

Esta afirmação fica ainda mais clara, quando se faz uma busca de quais pessoas

desempenham a atividade voltada à limpeza urbana. Dentre os grupos de catadores visitados,

e através de pesquisas informais, é possível perceber que os grupos são geralmente outsiders,

mesmo associados ainda recebem um salário baixo relacionado ao trabalho que é complicado

e exige grande esforço físico para que seja realizado. Os carrinhos são pesados, além disso,

são submetidos às nuances do tempo e a colaboração dos moradores dos bairros onde o

material reciclável é coletado. Fora isso, quando o lixo é separado, muitas vezes encontram

materiais perigosos como ácidos, seringas, dentre outros. É comum encontrar pessoas com as

mãos queimadas por algum produto químico incluído no lixo ou até mesmo com várias

marcas no corpo relacionadas ao sol.

Embora existam tais diversidades, através de conversas informais, os catadores relatam

em sua grande maioria que foi por meio da catação que conseguiram benefícios pessoais

como trazer sustento para casa, além de poder matricular seus filhos na escola e que seus

empregos anteriores não traziam determinadas condições de subsistência.

A maioria, não possui ensino médio completo, o que dificulta a inserção no mercado de

trabalho formal.

Foi realizado em 2013 um estudo feito pelo Instituto de Economia Aplicada (IPEA) para

demonstrar os indicativos sócios econômicos dos catadores de materiais recicláveis em todas

as regiões do Brasil, porém nesta monografia serão apresentados e abordados alguns

indicativos referentes à região sul. Pela dificuldade em encontrar dados referentes apenas a

Curitiba, utilizaremos os dados que contemplam o Paraná. O objetivo de demonstrar estes

indicativos é entender que o estigma vai além das situações em que ele é posto, e neste caso

tem ramificações sociais, e políticas quando percebemos como vivem os catadores de

materiais recicláveis no Brasil.

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25

Cabe-nos ressaltar que todos os gráficos que analisaremos a seguir nesse capítulo são de

uma mesma fonte, a pesquisa feita pelo IPEA

Embora a profissão de catador de material reciclável tenha sido reconhecida no catálogo

de ocupações brasileiras em 2002, esta classificação não está clara para as pesquisas

domiciliares e do mercado de trabalho no Brasil, em outros sensos foi utilizado outras

nomenclaturas para designar este profissional como Lixeiro, Catadores de Sucata,

Classificadores de Resíduos e Varredores e Afins. Por esse motivo existe certa dificuldade

dos pesquisadores em fazer um levantamento temporal dos dados sobre esses trabalhadores.

Portanto, a pesquisa do IPEA, utiliza os dados disponíveis no Censo Demográfico de

2010. Considerando que o Censo é uma pesquisa domiciliar e declaratória, muitos dados não

são recolhidos, principalmente pelos catadores de materiais recicláveis que não tem um

domicilio fixo.

Desta maneira, os dados referentes à quantidade de profissionais que desempenham esta

atividade também podem sofrer alterações. Segundo o levantamento do IPEA, o censo de

2010 aponta para 387.910 pessoas que se declaram catadores de materiais recicláveis no

Brasil, porém de acordo com estudos anteriores os pesquisadores apontam para um número

bem maior, no caso 400 mil e 600 mil catadores e catadores de materiais recicláveis no Brasil.

GRAFICO 1 - Percentagem de catadoras e catadores com 25 anos ou mais que possuem

pelo menos ensino fundamental completo.

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26

Ao verificar apenas os números referentes à região Sul, nota-se que, enquanto entre a

população como um todo com 25 anos ou mais, 52,13% completaram o ensino fundamental,

entre os trabalhadores da reciclagem o percentual para essa mesma faixa etária é de apenas

20,6%. Ou seja, apenas um em cada cinco trabalhadores possui ensino fundamental completo

nessa atividade. Nenhum dos estados da região possui um percentual acima da média

nacional. Santa Catarina, com apenas 19,5%, apresenta o pior cenário nesse quesito. O maior

percentual é verificado no Rio Grande do Sul, com 21,6%.

GRAFICO 2 - Percentagem de catadoras e catadores com 25 anos ou mais que possuem

pelo menos ensino médio completo.

A mesma situação pode ser observada na região Sul, onde 35,96% da população geral

possui ensino médio completo, enquanto entre catadoras e catadores esse número é bem

inferior, 7,9%. Ou seja, menos de uma em cada doze pessoas que trabalham na atividade de

reciclagem possui ensino médio completo. Nenhum dos estados da região alcança a média

nacional. O Rio Grande do Sul tem o índice mais baixo da região, 7,2%. O Paraná apresenta o

índice mais alto, 8,8%.

Estes gráficos são importantes, pois é possível perceber que a situação escolar dentre os

grupos de catadores de materiais recicláveis é bem complicada. Nota-se que mesmo o Paraná

que disponibiliza o índice mais alto em relação aos catadores que possuem ensino médio

completo com 25 anos ou mais, a situação é critica. Dentre os grupos que foram visitados em

Curitiba, a maioria não possuía ensino médio completo.

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27

Isso reflete, dentre outras fatores, a dificuldade que estes profissionais tem em entrar no

mercado de trabalho formal.

O gráfico abaixo irá demonstrar uma questão fundamental levantada na pesquisa, que é a

respeito da remuneração dos catadores de materiais recicláveis. De acordo com o Censo

Demográfico realizado pelo IBGE em 2010, a média do salário era de R$ 571,56. Na região

Sul, o maior salário é o de Santa Catarina com uma média de R$ 701,02, e no Paraná a média

do salário é de R$ 580,12.

GRAFICO 3 - Rendimento médio do trabalho de catadora e catadores

Embora, o trabalho do catador de material reciclável seja fundamental para os moldes da

reciclagem posta no Brasil, à remuneração por essa atividade é baixíssima, mesmo que a

profissão tenha sido reconhecida no catalogo de profissões brasileiras.

2.1 - Estigma Social

Para tratar sobre Estigma, Erwin Goffman apresenta uma discussão relacionada

diretamente ao individuo que sofre o estigma, e salienta que esse termo é impregnado mais a

própria desgraça da pessoa, do que um atributo pessoal. Assim, para uma compreensão do

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estigma que está presentes nas relações entre pessoas que trabalham com o lixo e as pessoas

que não trabalham, a análise do estigma se faz necessária para uma compreensão mais

aprofundada do tema.

As rotinas de relação social em ambientes estabelecidos nos permitem um

relacionamento com “outras pessoas” previstas sem atenção ou reflexão particular. Então quando um estranho nos é apresentado, os primeiros aspectos nos permitem

prever a sua categoria e os seus atributos, a sua “identidade social” – para usar um

termo melhor do que “status social”, já que nele se incluem atributos como

honestidade, da mesma forma que atributos estruturais como ocupação31.

Ao lidar com outra pessoa que não é prevista no circulo pessoal, tende-se a fazer uma

série de julgamentos a respeito da sua identidade social, trata-se o outro com um emaranhado

de ideias normativas de como esse outro deve ser. Assim alguém que trabalha com o lixo, do

lixo deve ser, pois mesmo que o lixo esteja presente na vida não existe uma relação tão grande

com ele, pois representa algo que não é aceito e pode ser descartado.

Por definição é claro, acreditamos que alguém com um estigma não seja

completamente humano. Com base nisso, fazemos vários tipos de discriminações,

através das quais efetivamente, e muitas vezes sem pensar, reduzimos suas chances

de vida32.

A sociedade contemporânea tende a pensar o trabalho de catador como uma profissão que

uma pessoa normal não se submeteria. É lógico que dada às proporções isso se apresenta de

uma maneira clara, o fato é que existem milhões de catadores de papeis no Brasil, e eles já

fazem parte do cotidiano, inclusive já são regulamentados como uma classe de

trabalhadores33

. Porém, quando o problema maior disso é que se alguém tem que colocar a

mão no lixo, percebe-se que quem deve fazer isto são os trabalhadores marginalizados.

Desta maneira, a percepção do estigma vai além de um atributo pessoal do catador, mas a

maneira como é encarado a profissão que desempenha e até mesmo a aceitação por parte da

sociedade civil, de uma maneira cínica. Quando é percebida a necessidade deste tipo de

trabalhador ai sim é designado a ele um papel importante de agente ambiental. Contudo, em

31 GOFFMAN, Ervin. Estigma – Notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. Rio de Janeiro: Ltc,

2008. Pág, 12. 32 Idem. Pág. 15. 33 A categoria profissional de Catador de Material Reciclável foi reconhecida em 2002 no Código Brasileiro de

Ocupações (CBO).

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conversas com os catadores, essa aceitação é bem diferente. A maioria reclama que as os

moradores recolhem o lixo quando eles estão passando e recolocam quando o caminhão da

prefeitura está fazendo a coleta. Além disso, são atribuídos a eles estereótipos construídos de

homem do saco, e até mesmo marginais. Durante as conversas, muitas vezes, eles assumem a

necessidade de respeito pelo trabalho que desempenham.

Sendo assim, Goffman demonstra que o estigma também faz parte de uma ideologia

construída para explicar a inferioridade de alguém, ao mesmo tempo em que é posta uma

característica desejável no indesejável para torna-se talvez, melhor a maneira como seja

encarada sua existência34

.

Ivete Lara Camargo Walty, no livro “Corpus Rasurado, Exclusão e resistência na

narrativa urbana”35, a partir de estudo sobre os excluídos sociais, apresenta a discussão sobre

o trabalhador que vive do lixo, e como este sistema vai além do trabalho em si, mas o

contexto que esse trabalhador faz parte, e o papel social em que está inserido. Desta maneira,

o processo de reciclagem, ao incluir novamente algo que foi descartado, também acaba por

acrescentar estes trabalhadores nesta contradição de reciclagem também das pessoas que tiram

o sustento do lixo.

Sendo assim, ao lidar com algo que já foi excluído, estes trabalhadores entram em um

processo de reaproveitamento daquilo que fora descartado, e desta maneira encontram no lixo

uma maneira de inserção social através do trabalho e consequentemente uma tentativa de

praticar a sua cidadania, esta que como aponta a autora, se apresenta necessariamente pelo

trabalho e pela tentativa de conquista de direitos.

Essa identidade construída faz parte do discurso dos catadores que admitem o seu trabalho

como importante para o processo de limpeza urbana, e consequentemente entendem que

desempenham papéis fundamentais no sistema de recolhimento do material reciclável nos

moldes que conhecemos hoje.

Porém, para Goffman, o indivíduo estigmatizado tende a perceber a sua normalidade

dentre o grupo social em que vive, e espera que os outros entendam a sua existência além do

estigma já posto. Da mesma maneira, sabem que não importa o que as outras pessoas

34 GOFFMAN, Ervin, loc. cit. 35 WALTY, Ivete Lara Camargo. Corpus Rasurado, Exclusão e resistência na narrativa urbana. Belo Horizonte,

Editora Autêntica, 2005

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30

admitem, mas que no fim não aceitam e não estão dispostos a aceitarem esta condição

baseado em uma comparação entre iguais36

.

Os padrões que as pessoas estigmatizadas incorporam da sociedade, e principalmente a

relação com o que é considerado defeito é entendido pelo individuo que sofre o estigma e

desta maneira às vezes entende que é uma pessoa inferior por ter determinada característica

negligenciada. Sendo assim, surge a vergonha por possuir determinada característica que é

estigmatizada e a vontade de não possuir certo “defeito” 37

.

Muitas vezes os catadores de materiais recicláveis reclamam que os outros acabam

olhando para eles de maneira reprovatória devido à roupa que usam para o trabalho, e quando

eles tentam entrar em alguma loja para fazer alguma compra, sempre são submetidos a

duvidas em relação ao que estão fazendo lá. Goffman aponta que é através dos contatos

mistos, ou seja, quando existem situações a onde estigmatizados e os normais estão em mutua

presença e não é possível evitar tais situações sociais. Isto não quer dizer que exista interesse

em compartilhar a presença um do outro, e muitas vezes ela será evitada. Porém quando estas

situações são inevitáveis o estigmatizado pode reagir de uma maneira insegura em relação

como os normais o identificarão.

Sugiro, então, que o individuo estigmatizado – pelo menos o “visivelmente”

estigmatizado – terá motivos especiais para sentir que as situações sociais mistas

provam uma interação angustiada. Assim, deve-se suspeitar que nós normais

também acharemos essa situação angustiante38.

Fernando Braga da Costa no livro intitulado Homens Invisíveis relata a experiência que

teve sobre o trabalho dos garis, e como são vistos em um âmbito elitista que é a Universidade.

Desta maneira, para efetuar a pesquisa, Fernando passou 10 anos trabalhando como gari na

instituição de ensino que ele estudava. A invisibilidade social é apresentada de uma maneira

interessante porque ao fazer a observação participante Fernando conseguiu entender na prática

o que é ser um individuo considerado invisível e que possui determinado estigma pela

profissão que desenvolve.

36 GOFFMAN, Ervin. Op. Cit. Pág. 16-17. 37 Ibid.¸pág. 17 38 Ibid., pág. 27

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31

Além disso, o autor aponta para a discussão acerca da humilhação social e como esta se

apresenta de uma maneira histórica fazendo parte e determinando em muitos pontos o

cotidiano das classes mais pobres . Corresponde também à desigualdade política e como esta

exclusão traz características negativas à formação do individuo.

A exclusão política fabrica sintomas, infestando o afeto, o raciocínio, a ação e o

corpo do homem humilhado. Assume poder nefasto: ao mesmo tempo em que

molda a subjetividade do individuo pobre, o caracterizando-o muitas vezes como um ser que não pode criar mas que deve repetir, esvazia-o das condições que lhe

possibilitam transcender uma compreensão imediata e estática da realidade.39

Utilizando a definição de reificação social o autor considera que os alicerces das

sociedades modernas sempre foi determinado pelo poder mercantil. Desta maneira, o interesse

mercantil determina os interesses políticos, culturais, éticos e religiosos e o valor presente

nestas esferas apresenta-se primeiramente voltado ao econômico.

Posto assim, as atividades desenvolvidas por determinados trabalhadores, neste caso o

trabalho dos garis, representa uma subjetividade de relação entre coisas, não pessoas sendo o

individuo apagado pela atividade estigmatizada que desenvolve muitas vezes considerada

degradante.

O autor vincula em sua análise três pontos subjetivos e intersubjetivos que caracterizam o

trabalho de gari, sendo a reificação, a humilhação social e a invisibilidade pública. No

decorrer da sua pesquisa, Fernando Braga da Costa descreve a sensação que teve ao entrar na

universidade com o uniforme de gari e como foi à reação das pessoas que ele conhecia e

convivia todos os dias. O intuito de entrar na faculdade era buscar dinheiro para poder

almoçar com um colega gari, e ao caminhar por colegas e amigos ninguém se quer reparou em

sua presença e muito menos chegaram a cumprimentar ou olhar para ele e o seu companheiro.

Em outro exemplo, Fernando estava fora da faculdade trabalhando como gari e dois

professores dele ficaram a sua frente. O autor descreve que faltou um deles esbarrar nele, pois

39 COSTA, Fernando Braga da. Homens Invisíveis: relatos de uma humilhação social - São Paulo: Globo,2004.

Pág. 63

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32

não tinham notado a sua presença vestido como gari, diferente era a relação quando este

estava como um aluno qualquer da universidade.

A vestimenta ou o uniforme tem uma significação importante, demonstrando que ao

utilizar o uniforme os garis são vistos como gari não como pessoa. Some a pessoa e é a sua

identidade como trabalhador que parece justificar a sua existência.

Quando a universidade é vista pelos normais como limpa, aí sim o trabalho do gari é

considerado, caso contrário dificilmente este vai ser visto como pessoa. Ou em outras

palavras, neste ambiente só aparece o que devem fazer figurando personagens simples.

Ser, experiência que é de fundamento intersubjetivo, experiência cuja consolidação

depende de comunicação interpessoal, não é a experiência que parece garantida

para esses homens no trabalho. A tarefa funcional simples, subserviente, aos

poucos deteriora os poderes da aparição humana... não aparece um varredor,

aparece à varredura; afinal só aparecem lugares varridos, lugares limpos por

“natureza”40

A visibilidade social também é ponto debatido por Goffman quando esta está vinculada ao

estigma. O autor aponta para a questão de percepção relacionada ao “defeito” de outra pessoa,

e principalmente como a identidade do individuo é relacionada às atividades diárias, e

relações sociais envolvidas nestas atividades. O fato é que entre os normais existe uma visão

relacionada à objetividade ou não a respeito da desqualificação de outra pessoa. O estigma

não é somente um atributo, mas uma linguagem de relações a onde ao estigmatizar alguém se

pode confirmar a normalidade de outrem.

Portanto, fazendo uma análise do sentido do termo visibilidade, Goffman mostra três

pontos necessários para a elucidação a respeito de como a visibilidade do estigma se difere em

algumas situações, sendo elas: a possibilidade de conhecimento ou não de determinado

atributo estigmatizado, a reação dos normais perante a um atributo visivelmente

estigmatizado, e finalmente como este atributo é percebido.

O atributo visivelmente estigmatizado em relação aos catadores de materiais recicláveis e

até mesmo aos garis é muitas vezes ligado à maneira como é encarada a profissão de catador

40 Ibid., pág. 124

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de lixo. A ligação entre o que é estabelecido em relação a uma profissão que é aceita no

circulo social e o que é outsider.

No livro “Estabelecidos e Outsiders”, Norbert Elias apresenta a configuração de

estabelecidos e Outsiders a partir da etnografia de um povoado de trabalhadores em Winston

Parva na Inglaterra. Nota-se que os grupos tidos como superiores, entendiam sua

superioridade a partir do tempo em que viviam no local eram grupos de moradores que viviam

lá por três gerações, ou seja, já eram um grupo coeso com as regulamentações sociais postas e

que compartilhavam certo carisma grupal vivenciado entre todos os membros, enquanto o

outro grupo era considerado inferior, pois moravam há pouco tempo na comunidade que eram

estranhos não só entre eles mas também para os antigos residentes. Todos eram da mesma

classe social e não era a questão financeira, étnica ou religiosa que determinava tal

justificação de poder de um grupo pelo outro. O que acontece é que embora a figuração de

poder exista em um contexto pequeno como de Winston Parva a figuração de estabelecidos e

outsiders mostra em muitos contextos diferentes características comuns.

Para Elias, as condições em que um grupo consegue lançar um estigma sobre o outro, vai

além do desprezo que um individuo tem sobre o outro. A situação apresentada em Winston

Parva mostra que a relação de preconceito social não é somente voltada ao individuo e suas

qualidades pessoais, mas sim, ao grupo que faz parte que é considerado coletivamente

diferente e inferior ao grupo estigmatizador.

Afixar o rótulo de “valor humano inferior” a outro grupo é uma das armas usadas

pelos grupos superiores nas disputas de poder, como meio de manter sua

superioridade social. Nesta situação o estigma social imposto pelo grupo mais poderoso ao menos poderoso costuma penetrar na auto-imagem deste último e, com

isso enfraquecê-lo e desarmá-lo41.

Dentre os grupos humanos é visto, como aponta Elias, uma série de maneiras faladas para

estigmatizar outro grupo e que só fazem sentido em contextos de relações especificas entre

estabelecidos e outsiders. Como no caso dos catadores quando eles relatam que outras pessoas

se dirigem a eles como ladrão, homem do saco, mendigo dentre outras retaliações. A maneira

41 ELIAS, Norbert. Os estabelecidos e os outsiders. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor Ltda, 2000. Pág. 24.

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como é entendida certos xingamentos, é relacionada à consciência de quem ofende e quem

recebe tal ofensa, a partir da maneira como é gerada a vergonha por receber determinada

característica negligenciada pelo grupo estabelecido.

Assim é possível perceber que a relação de poder é a relação entre duas ou mais pessoas, é

um atributo que se mantém num equilíbrio instável de forças. Os estabelecidos vêm nos seus

valores sinais de valor humano mais elevado. Os outsiders vivem a sua inferioridade de poder

como um sinal de inferioridade humana.

Nas relações entre estabelecidos e outsiders, quando é justificada a relação de poder mais

acentuada, é visto que os grupos outsiders são comumente tidos como sujos e quase

inumanos. Não que esse discurso seja dito diretamente, mas é entendível a partir do momento

que percebemos quem são as pessoas que trabalham com o lixo.

Em uma situação relatada por uma catadora do projeto mutirão no bairro novo, a

perspectiva de inferioridade humana é posta. Ela conta que ao entrar no colégio que estuda

muitos alunos não falam com ela porque ela lida com lixo. A profissão que desempenha é

subjulgada devido ao manuseamento de algo que foi jogado fora e assume a característica de

algo ruim, sujo, por isso foi descartado. Desta maneira, visto pelos outros ela não é digna de

estar ali.

Para Elias, os grupos outsiders normalmente são vistos como anômicos, ou seja, não

respeitam a partir da noção dos estabelecidos determinadas normas e regras sociais. Isto faz

com que o contato intimo como eles seja sentido como desagradável:

Eles põe em risco as defesas profundamente arraigadas do grupo estabelecido

contra o desrespeito às normas e tabus coletivos, de cuja observância dependem

o status de cada um dos seus semelhantes no grupo estabelecido e seu respeito

próprio seu orgulho e sua identidade como membro do grupo superior42.

O contato íntimo como os grupos outsiders, segundo Elias pode fazer com que o

estabelecido tenha sua situação superior colocada a prova, e isso o rebaixaria de alguma

maneira, perante os iguais. Esta noção de desordem que os catadores podem ameaçar, em

algumas situações do cotidiano é possível notar isso: é comum as pessoas do bairro

42 Idem. Pág. 26.

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reclamarem que os catadores bagunçam o lixo que está em frente à casa para buscar somente

o que lhe interessa, ou até mesmo quando estão com os carrinhos no trafego são considerados

desordeiros e que deviam fazer seu trabalho em outro lugar

Elias demonstra que a estigmatização de grupos outsiders exibe alguns traços semelhantes

quando é entendido que determinado grupo desempenha papéis passíveis de desconfiança por

serem indisciplinados e desordeiros.

A relação de superioridade não é vinculada somente a questões éticas, raciais ou religiosas

mais sim considerando quando um grupo é dotado de recursos superiores de poder. Elias

demonstra que é através do formato de vinculo que os estabelecidos e outsiders tem um com o

outro e não por qualquer característica que os grupos tenham.

Quando os grupos outsiders são necessários de alguma maneira para os grupos

estabelecidos e a relação de poder pende um pouco para os outsiders é percebido um duplo

vinculo. Esta relação não é somente dada, ao poder que é conferido economicamente ao grupo

estabelecido, e sim a maneira como encontram para estigmatizar determinado grupo dentro de

uma gama de relações.

A situação dos catadores de materiais recicláveis muda, quando de alguma maneira a

sociedade em geral assume como necessária a sua função para a manutenção da reciclagem e

limpeza da cidade. Aí sim os adjetivos perjorativos mudam para uma tênue aceitação

empregada a eles como agentes ambientais.

A estigmatização, como um aspecto de relação entre estabelecidos e outsiders,

associa-se muitas vezes, a um tipo especifico de fantasia coletiva criada pelo grupo

estabelecido. Ela reflete e, ao mesmo tempo, justifica a aversão – o preconceito –

que seus membros sentem perante os que compõem o grupo outsider43.

Esta fantasia coletiva, muitas vezes são associações simbólicas que enaltecem e depreciam

o outro, representam um papel muitas vezes óbvio na administração das questões humanas

relacionadas ao poder. Elias salienta que em muitas situações diferentes é possível verificar a

configuração de estabelecidos e outsiders, porém todas elas são vinculadas a uma maneira de

mudar o equilíbrio de poder. Em todo caso, os grupos outsiders tendem a agir com o objetivo

43 Ibid., pág. 35

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de reduzir os diferenciais de poder responsáveis pela sua situação inferior, enquanto os

estabelecidos no sentido contrário agem para que aumente tais diferenciais.

No estudo feito por Elias em Wiston Parva, a característica principal de discriminação de

um grupo ao outro era baseado no tempo de vivencia no lugar. No caso dos catadores de

materiais recicláveis, a discriminação não é somente de um grupo, mas existem no imaginário

social concepções a respeito da profissão de catador de lixo. É comum, por exemplo, escutar

as pessoas falarem: “estude ou você vai ser lixeiro” visto como uma profissão degradante e

consequentemente humilhante.

Interessante perceber que o desprezo não é só sentido por pessoas de diferentes classes

sociais, mas da mesma classe social, ao escutar histórias em que os catadores relatam que são

pessoas do próprio bairro que descriminam eles.

Capitulo 3: Sobre as visitas aos barracões de reciclagem

Gostaria de deixar claro que no decorrer da pesquisa visitei os barracões de reciclagem

desde 2010. As visitas ocorriam por semana às vezes por mês, porque os barracões ficam

distantes do centro da cidade. Por se tratar de uma experiência pessoal de observação esta

parte do trabalho vai estar em primeira pessoa, justamente porque as descrições são

relacionadas ao que foi visto no campo.

O estudo foi baseado em observação, porém não participante, porque não cheguei a

trabalhar como catadora de material reciclável, justamente pela falta de tempo e pela

dificuldade de inserção no grupo.

Como dito anteriormente o barracão do bairro novo chamado Projeto Mutirão, recebeu

maior atenção e tive conversas com praticamente todos que trabalhavam lá. Os outros

barracões como Almirante Tamandaré, Piraquara eu fiz apenas uma visita, mas que trouxe

percepções consideráveis para o enriquecimento da pesquisa.

Tenho consciência que esta é a primeira tentativa acadêmica para um trabalho

sociológico, e que muitas questões não são postas devido à abrangência que uma pesquisa

monográfica alcança, além da falta de experiência da pesquisadora. O trabalho em relação ao

meio ambiente e como a sociologia pode contribuir para este campo de estudo influencia e

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perpassa toda a discussão a respeito do lixo e consequentemente dos catadores de materiais

recicláveis e as relações de estigma que se aplicam a este grupo.

Como um dos objetivos da pesquisa foi à análise dos discursos simbólicos dos Catadores

de Papéis para perceber como eles se reconhecem no mundo capitalista, a metodologia

escolhida é a observação, utilizando um diário como apresenta Wright Mills:

Mantendo um arquivo adequado, e com isso desenvolvendo hábitos de auto-

reflexão, aprendemos a manter nosso mundo interior desperto. Sempre experimentamos forte sensação sobre acontecimentos ou idéias, devemos procurar

não deixa-las fugir, e ao invés disso formulá-la para nossos arquivos, e com isso

estaremos elaborando suas implicações, mostrando a nós mesmos como esses

sentimentos ou idéias são tolos, ou como poderão ser articulados de forma

produtiva44.

Dessa maneira a escolha pela observação surge como uma boa maneira de análise,

pois proporciona ao pesquisador uma maior liberdade para as resoluções das próprias

inquietações que nascem do cotidiano.

A narrativa como forma discursiva, como história de vida, história imaginaria, tem

sido abordada por diversas correntes de pensamento, abrangendo tanto as áreas de

análises culturais e literárias, como também na filosofia, psicologia, ciências sociais

e históricas. É de importante relevância o fato de que a narrativa, a comunicação e o

contar histórias se configuram em uma necessidade elementar da vida humana. A grande ênfase que toda narrativa humana se constitui é a de proporcionar uma

“perspectiva de mundo” em relação à realidade. Através do enredo as narrativas

tomam forma e adquirem coerência e sentido45.

As narrativas são de extrema importância para a análise proposta nesta pesquisa. Foi a

partir delas que tive uma percepção diferenciada a respeito do estigma que os catadores de

materiais recicláveis sofrem, e como lidam com isso.

44BAUER, M. W., MILLS, Wright. A Imaginação Sociológica. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor Ltda, 1975.

Pág. 213.

45 JOVCHELOVITCH, S. ; BAUER, M. W. Entrevista narrativa. In: BAUER, M. W. ; GASKELL, G. (Org.).

Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som: um manual prático. Petrópolis: Vozes, 2002

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Nas primeiras visitas, o estranhamento em relação ao barracão foi evidente, eu nunca

tinha visitado um barracão de reciclagem. A minha concepção ingênua na época, foi que por

se tratar de lixo reciclável, logo, papel, plástico seria muito diferente do que um aterro

sanitário que possui cheiros realmente fortes e desagradáveis.

Ledo engano, o cheiro incomoda, e a primeira vez que visitei o barracão do bairro novo,

mesmo que tomasse banho aquele cheiro não saía. Na segunda visita pude ficar mais tempo, e

de alguma maneira o cheiro não incomodava mais.

Embora os catadores de materiais recicláveis lidem com plástico, papel, papelão e etc, é

muito comum na hora da separação ter caixa de leite, por exemplo, com leite coalhado dentro,

e quando prensa, o leite coalhado exala um cheiro terrível.

O interessante desse processo, de recolhimento, separação, prensa, é que no final o

material reciclável fica compacto, e pronto para ser comercializado. O material reciclável é

vendido ao atravessador, desta maneira, limpo e compacto.

Uma das maneiras de interpretar tal fato é que de alguma maneira os catadores de

material reciclável fazem o mais pesado do trabalho, sendo que financeiramente recebem

menos. Isto está muitas vezes ligado ao estigma que as pessoas que lidam com lixo sofrem, e

como exemplo podemos usar o discurso de uma das catadoras: “A sociedade vê o catador

muito baixo, pensam que os catadores de papel não são gente. Daí na rua e fica todo mundo

olhando46”.

Culminado com o fato que existe uma grande desigualdade social, na residência dos

catadores de material reciclável. Isto fica claro, quando visitei o barracão de Almirante

Tamandaré, o qual pude perceber a desigualdade em metros de distancia.

A partir do momento em que tive a oportunidade de visitar as casas dos catadores,

percebi que neste bairro o barracão ficava a metros de distancia da casa dos catadores. O

impressionante foi perceber que a ao descer a rua, e atravessar uma ponte, o cenário muda

completamente, pois as residências dos catadores de materiais recicláveis de Tamandaré

ficavam em uma região que fora ocupada no passado.

46 Transcrição literal da fala da catadora de lixo entrevistada.

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As maiorias dos catadores de materiais recicláveis do barracão de Tamandaré que eu

visitei moravam neste “bairro paralelo”, pude visitar as casas deles, todas muito humildes,

moravam no mínimo seis pessoas em cada casa. Sendo que normalmente, três trabalhavam

como catador de material reciclável. O sustento principal, portanto, de várias famílias era

encontrado na atividade de catadores de material reciclável.

Durante as conversas com os catadores, não só em Tamandaré, mas no Bairro Novo e

Piraquara, muita gente da mesma família trabalhava como catador de material reciclável.

Essas condições semelhantes de existência fazem com que os grupos de catadores de

materiais recicláveis tenham membros que reconhecem o que fazem, e defendem a sua

profissão. Fato que Goffman, aponta para o nome de Alinhamento Intragrupais:

Um destes grupos é o agregado formado pelos companheiros de sofrimento do individuo.Os arautos desse grupo sustentam que o grupo real do indivíduo, e o grupo

a que ele pertence naturalmente, é esse. Todas as outras categorias e grupos aos

quais o individuo também pertence necessariamente são de modo implícito,

considerados verdadeiros; ele, na realidade não é um deles. O seu grupo real, então é o agregado de pessoas que provavelmente terão que sofrer as mesmas privações que

ele sofreu porque tem o mesmo estigma; seu “grupo” real, na verdade, é a categoria

que pode servir para seu descrédito47.

Não é a toa que quando os catadores são questionados a respeito da profissão que

desenvolvem sempre relatam situações onde é envolvido o grupo de catador de material

reciclável como um todo.

É comum nas conversas eles falarem que as pessoas os confundem com ladrões,

mendigos, lixeiros e que tem medo deles. É interessante notar que utilizar o termo lixeiro é

extremamente ofensivo, inclusive ao que concerne a designação do lixo reciclável. Todos eles

usam o termo “material” para falar sobre o lixo reciclável, eles se reconhecem como “catador

de material reciclável”, mas não lixeiro.

Isso também é voltado a maneira como é interpretada a concepção do lixo para a

sociedade moderna. Nas residências normalmente o lixo é posto fora de casa, o produzimos,

porém sua eliminação fica nas entrelinhas. Ou seja, temos contato com o lixo quando

47 GOFFMAN, Ervin. Op. Cit. Pág.123

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dispomos em lixeiras, frente às casas nas docas dos prédios, e etc. Porém a respeito do destino

final dele poucas pessoas se questionam sobre isso. E manusear algo em decomposição e que

tenham cheiros desagradáveis gera desconforto, e quem trabalha com isso também sofre

retaliações.

Portanto, visto desta maneira, o lixo reciclável recebe maior atenção por não ser

necessariamente um material que entra em decomposição tão facilmente. E que pode ser

reutilizado, ou que podemos prolongar a vida de algo que foi descartado, Jose Carlos

Rodrigues apresenta esta discussão, fazendo um paralelo com a morte, ele discorre a respeito

de como a sociedade tem medo dos vestígios que a matéria em decomposição causa:

A questão da morte também tem muito a ver com a do lixo. Não tanto, ao contrários

do que tenderíamos a acreditar, porque o lixo seja aquilo que já tenha morrido, que já não sirva e a que se tende dar uma sobrevida através dessa preocupação bem

contemporânea que é a reciclagem. Mas a analogia entre morte e lixo se faz muito

forte em nosso tempo porque na cultura industrial morrer é maios menos ir para o

lixo48.

Esta é das definições possíveis a entender o porquê o lixo gera tanta angústia, além

logicamente da quantidade que é produzida que gera muitos problemas. Mas o interesse em

demonstrar tal fato, é que também para os catadores de materiais recicláveis o lixo é visto

como algo ruim.

Sendo assim, a caracterização de preconceito, para eles está justamente no fato de

reconhecerem eles como lixeiro. Fato que pode ser demonstrado com o discurso dos catadores

abaixo, quando surgiu a conversa a respeito do que eles entendem por preconceito:

“- Pessoa rejeitar os catadores só porque trabalha aqui. Por a gente ser sujo”.

“- Xingar de lixeiro! Ter nojo da gente.”

“- Estar em algum lugar e falar que sou lixeiro” 49

48 RODRIGUES, J.C. Op. Cit. Pág 12 49 Todas as frases foram transcritas de forma literal a fala dos catadores de materiais recicláveis entrevistados.

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Este fato é interessante, pois o nojo é voltado justamente pelo fato de trabalhar com lixo.

Isto caracteriza muitas conversas que tive com os catadores. Eles relatavam que as pessoas

pensam que eles são sujos de fato, e por isso evitam contato.

Outro discurso decorrente é que eles dizem que os outros perguntam a eles porque

são catadores de materiais recicláveis, e que deveriam fazer outra coisa da vida. Porém é a

partir desta profissão que muitos deles conseguiram de alguma maneira se estabelecer no

mundo do trabalho, e conseguir condições de subsistência. Muitos, inclusive, apontam para o

fato de que não ter patrões contribuiu efetivamente para a melhora de sua situação social.

Considerações Finais

A construção social da percepção e da relação que possuímos com o lixo é algo pouco

explorado no âmbito acadêmico de ciências sociais. No entanto, considerando que é um

assunto ambiental, percebemos a importância sociológica em tratar determinado tema, e

principalmente que esta é uma pesquisa que permite diversas ramificações do tema, e que não

se esgota por si só, pelo contrário, a possibilidade de ampliar e intensificar este tema foram

um dos objetivos desta pesquisa.

A título de explanação a respeito do que estudamos aqui, podemos perceber algumas

considerações a respeito da reciclagem, dos catadores de materiais recicláveis e

principalmente as questões simbólicas presentes nesta atividade.

A reciclagem é posta na modernidade como solução para a manutenção do gerenciamento

da produção de lixo urbano, mas em muitos casos não é suficiente, e de certa maneira gera

uma inversão social do que seria a limpeza do planeta. Estamos em um patamar a onde a pós-

modernidade alcança seu ápice relacionado ao desenvolvimento tecnológico e cientifico,

porém ao mesmo tempo vivemos em um tempo de incerteza a onde os riscos da modernização

aparecem como vestígio de uma contradição industrial, ao mesmo tempo em que gera bem

estar social, gera também problemas.

Os catadores de materiais recicláveis representam uma solução barata para a coleta

seletiva feita atualmente no Brasil, mas do ponto de vista desses agentes, sua condição

representa um meio de sobrevivência. São aceitos em suas atividades porque desempenham

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um papel fundamental no processo de reciclagem, porém, ao mesmo tempo em que são

aceitos também são excluídos por desempenharem papéis socialmente desvalorizados.

Este fato como mostramos é vinculado ao estigma, e principalmente como o não aceito, é

aceito só quando convém.

Fica agora evidente, a natureza do “bom ajustamento”. Ele exige que o

estigmatizado se aceite, alegre e inconscientemente, como igual aos normais

enquanto, ao mesmo tempo, se retire voluntariamente daquelas situações em que os

normais considerariam difícil manter uma aceitação semelhante.50

Aqui, ficam claras as definições a respeito dos contatos mistos, a onde os catadores de

materiais recicláveis necessariamente precisem entrar em contato com os normais. Ao entrar

em lojas, mercados, farmácias, hospitais e etc. E aí que o estigma que existe é posto, e julgado

e retalhado. Porém no discurso midiático, na definição da profissão eles são vistos como

agentes ambientais.

Notamos também, que o fato de a profissão de “catador de material reciclável” ser

reconhecida no catálogo de profissões brasileiras, não trouxe benefícios efetivos para essa

classe de trabalhadores, e, portanto, continuam vivendo em condições precárias. Ao analisar a

média salarial dos catadores de material reciclável na região sul, e baseado na observação este

fato mostra-se com clareza.

O estigma social presente na profissão de catador de material reciclável vai além de

atribuições pejorativas em relação à profissão, mas o fato de manusear lixo traz características

desagradáveis aos olhos dos normais.

50 GOFFMAN, Ervin. Op. Cit. Pág. 132

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