UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE PRÓ-REITORIA DE … · enquanto uma festa de purificação, sendo...

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1 UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA NÚCLEO DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA EM ANTROPOLOGIA CLÁUDIO GOMES DA SILVA JÚNIOR DA FÉ À FESTA: UMA ANÁLISE RITUAL, SIMBÓLICA E PERFORMÁTICA DOS FESTEJOS DA LAVAGEM DO ROSÁRIO LARGO EM PENEDO, ALAGOAS. São Cristóvão - SE 2013

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE

PR-REITORIA DE PS-GRADUAO E PESQUISA

NCLEO DE PS-GRADUAO E PESQUISA EM ANTROPOLOGIA

CLUDIO GOMES DA SILVA JNIOR

DA F FESTA: UMA ANLISE RITUAL, SIMBLICA E

PERFORMTICA DOS FESTEJOS DA LAVAGEM DO ROSRIO LARGO EM

PENEDO, ALAGOAS.

So Cristvo - SE

2013

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE

PR-REITORIA DE PS-GRADUAO E PESQUISA

NCLEO DE PS-GRADUAO E PESQUISA EM ANTROPOLOGIA

CLUDIO GOMES DA SILVA JNIOR

DA F FESTA: UMA ANLISE RITUAL, SIMBLICA E

PERFORMTICA DOS FESTEJOS DA LAVAGEM DO ROSRIO LARGO EM

PENEDO, ALAGOAS.

Dissertao apresentada ao Ncleo de

Ps-Graduao e Pesquisa em

Antropologia da Universidade Federal

de Sergipe NPPA/UFS, como requisito

parcial para a obteno do ttulo de

Mestre em Antropologia.

Avaliada por:

Prof. Dr. Hippolyte Brice Sogbossi Orientador

Prof. Dr. Luiz Carvalho de Assuno 1 Examinador

Prof. Dr. Ulisses Neves Rafael 2 Examinador

So Cristvo - SE

2013

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DA F FESTA: UMA ANLISE RITUAL, SIMBLICA E

PERFORMTICA DOS FESTEJOS DA LAVAGEM DO ROSRIO LARGO EM

PENEDO, ALAGOAS.

Cludio Gomes da Silva Jnior

Dissertao apresentada e submetida

comisso examinadora como requisito

parcial para a obteno do ttulo de

Mestre em Antropologia.

Dissertao defendida e aprovada em 31 de agosto de 2013

Banca Examinadora:

____________________________________________________

Prof. Dr. Hippolyte Brice Sogbossi Orientador

____________________________________________________

Prof. Dr. Luiz Carvalho de Assuno Examinador Externo

____________________________________________________

Prof. Dr. Ulisses Neves Rafael Examinador Interno

So Cristvo SE

2013

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Dedico a Izabel Cristina, Lanuza e Maria Gomes.

6

Agradecimentos

Agradeo a Deus, que em mltiplas formas se fez presente me conduzindo sob

sua proteo e amparo. Minha famlia, Izabel, Cludio e Sabino por toda fora e

motivao, Ananda Gomes, Thacyana Batistao e demais primos e tios pelo incentivo, e

aos meus avs, referncia maior de amor e simplicidade, e aos tios Sirleide e Halair (in

memoriam) que sempre sero um espelho em nossa famlia.

Aos amigos de longa data, assim como aos adquiridos ao longo da pesquisa, em

especial a Crsthenes Fabiane, Mara Carolina, Djna Torres, Aparecida Santana e toda a

famlia da Igreja Flor da Rainha que me trouxe fora e luz. Sou imensamente grato

acolhida dos sergipanos, Dinei Silva, Dayane Mota, Rasa Garcez, especialmente s tias

Kedy Mota e Rose Carvalho, pessoas incrveis e inesquecveis.

Aos professores do Ncleo de Antropologia, ao Professor Luiz Assuno pela

contribuio em minha defesa, em especial aos Professores Ulisses Neves, grande

referncia acadmica, e meu orientador, Hippolyte Brice Sogbossi.

Universidade Federal de Sergipe pela grande oportunidade de aprendizado, e a

Fundao de Apoio Pesquisa e Inovao Tecnolgica do Estado de Sergipe

FAPITEC/SE, financiadora desta pesquisa, proporcionando-me condies para

necessrias realizao deste trabalho.

Obrigado!

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Todas as sociedades alternam suas vidas entre rotinas e ritos, trabalho

e festa, corpo e alma, coisas dos homens e assunto dos deuses, perodos ordinrios e as

festas, os rituais, as comemoraes, os milagres e as ocasies extraordinrias, onde

tudo pode ser iluminado e visto por novo prisma, posio, perspectiva, ngulo...

(DaMatta, 1986: p.67)

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SUMRIO

Resumo...........................................................................................................................09

Abstract..........................................................................................................................10

Introduo......................................................................................................................11

Captulo 1 Conhecendo a festa, a tradio e as crenas..............................................23

1.1 Traos da mitologia africana que inspiram as festas de lavagem.................27

1.2 A limpeza do Beco da Preguia e a lavagem do

Rosrio...................................................................................................................35

Captulo 2 Smbolos, unidades de ao e performance nos espaos

rituais...............................................................................................................................42

2.1 Smbolos e unidades rituais nos espaos festivos.........................................44

2.2 Aes e motivaes entre o sagrado e o profano..........................................54

Captulo 3 A festa em ao..........................................................................................65

Consideraes Finais.....................................................................................................74

Referncias......................................................................................................................77

Anexos.............................................................................................................................80

9

RESUMO

A referida pesquisa tem como objeto de estudo a Festa da Lavagem dedicada ao

orix Oxal realizada no Largo do Rosrio, em Penedo, Alagoas. O ritual acontece h

cerca de treze anos, e foi inspirado na tradicional lavagem do Senhor do Bonfim de

Salvador, atravs da ressignificao de elementos simblicos. Durante sua realizao

so lavados o Beco da Preguia e o adro da Igreja de Nossa Senhora do Rosrio dos

Pretos, espaos que representam a oposio entre o sagrado e o profano e que so

tomados pelos festejos do carnaval de rua aps a lavagem. O ritual se apresenta

enquanto uma festa de purificao, sendo uma das maiores expresses do sincretismo

religioso na cidade, e se desenvolve atravs de uma ao que relaciona o catolicismo e o

candombl em homenagem a Oxal, o orix da criao, possuindo tambm uma

referncia mitologia africana. O objetivo desenvolver uma discusso acerca do

significado ritual da lavagem do Rosrio a partir do trabalho etnogrfico, analisar o

envolvimento dos participantes e suas performances, os smbolos rituais, sua forma de

organizao e contexto histrico, enquanto um ritual que agrega f e festa e que se

desenvolve durante o tempo e espao festivos do carnaval.

Palavras-Chave: ritual, festa, smbolo, performance, Oxal.

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ABSTRACT

Such research aims to study the Feast Laundering dedicated to orisha Oxal held

at wide of Rosrio, Penedo, Alagoas. The ritual takes place for about thirteen years, and

was inspired by the traditional washing of Lord of Bonfim in Salvador, through the

redefinition symbolic elements. During its realization are washed the churchyard of the

Church of Our Lady of the Rosary of Black and Alley of Laziness, spaces that represent

the opposition between the sacred and the profane, which are taken by the festivities of

the street carnival after washing. The ritual presents itself as a festival of purification,

being the greatest expressions of religious syncretism in the city, and develops through

an action that relates Catholicism and Candombl honoring Oxal, the orisha of

creation, but also have a reference to African mythology. The goal is to develop a

discussion about the meaning of the ritual washing of the Rosary from the ethnographic

work, analyze the involvement of the participants and their performances, ritual

symbols, its organizational and historical context, as a ritual that combines faith and

celebration and that develops over time and space festive carnival.

Keywords: ritual, party, symbol, performance, Oxal.

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INTRODUO

Uma cidade rica por sua histria, com fundao datada de 1560 enquanto uma

sesmaria pertencente Capitania de Pernambuco, Penedo conhecida por suas

construes coloniais, casares, sobrados e igrejas de arquitetura barroca. Margeada

pelo rio So Francisco, a cidade que limita as fronteiras entre os Estados de Alagoas e

Sergipe historicamente marcada por sua importncia no desenvolvimento do comrcio

local, e pela formao de pequenos quilombos durante o perodo escravista no Brasil.

Preserva os fortes traos da colonizao portuguesa, holandesa e dos trabalhos

desenvolvidos por missionrios da Igreja Catlica em sua arquitetura, assim como

algumas manifestaes populares e festividades, que trazem elementos da cultura negra

do estado. Uma de suas maiores manifestaes populares o tradicional carnaval

popular de rua, marcado pelos blocos de frevo e marchinha e pelo cortejo dos filhos de

santo que realizam a festa da Lavagem do Beco da Preguia e do adro da Igreja de

Nossa Senhora do Rosrio dos Pretos.

O ritual o demarcador da abertura oficial dos festejos de carnaval de Penedo,

que ocorre anualmente na sexta-feira que d incio festa de rua, momento em que a

Prefeitura Municipal oficializa o perodo de festa, em que a liberdade toma conta dos

espaos pblicos, a liberdade de se realizar vontades e fantasias, unir o permitido e o

proibido, assim como manifestar a crena popular nos santos catlicos e nos orixs

africanos (DaMatta, 1986: p.17), somando traos que compe no s a cultura

penedense, como tambm (d)a identidade social brasileira.

Ainda que muitas festas e manifestaes populares ocorridas em outras cidades

demonstrem claramente a prtica do ecumenismo e faam uso de smbolos rituais que

referenciem o sincretismo religioso, o que chamou ateno foi enxergar a juno de

elementos distintos em uma festa popular de origem profana.

O carnaval na cidade se mostra enquanto uma comemorao comum a outras

cidades por sua permissividade e pluralidade, e apresenta sua diferena atravs de seu

rito de abertura composto por uma sequncia de ritos(repetio) que demarcam espaos,

rememoram perodos histricos e promovem a unidade ritual. Tanto a lavagem do beco

quanto do adro da igreja so comemorados e acompanhados de forma expressiva pela

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populao, cada um com sua importncia e significado, compondo uma festa de largo1

onde se misturam traos do candombl e das festividades do carnaval, tornando-a

peculiar pelo fato de Penedo sediar um dos trs seminrios escola para formao de

Padres que compe a Diocese da Igreja Catlica no Estado de Alagoas2, e pela maior

parte da populao se definir praticante do catolicismo.

Segundo dados do IBGE publicados nos resultados do recenseamento do ano de

2010, a populao de Penedo composta por cerca de 63.595 habitantes, uma

estimativa apontada para o ano de 2013, sendo destes, cerca de 47.507 declarados

cristos catlicos praticantes3, um aspecto que se atribui colonizao portuguesa e s

tradies catlicas deixadas pelos missionrios que ainda hoje mantm instituies na

cidade, como o caso do Convento de Nossa Senhora dos Anjos, e as outras nove

igrejas catlicas em arquitetura colonial que preservam suas atividades regulares.

Apesar da expressiva prtica do catolicismo, as religies de matriz africana se

desenvolveram tambm na cidade, e os negros por imposio social, foram construindo

uma identidade enquanto brasileiros a partir da insero das prticas catlicas, bem

como do batismo e a escolha de um novo nome, como aponta Dantas (1988) ao seu

cotidiano, pois estes (os negros) deveriam ser catlicos, e sua insero na sociedade

brasileira exigia uma nova prtica religiosa.

Ao tratar das prticas sociais, h momentos rituais em que polos opositores

podem se agregar ou confrontar em situaes formais e/ou informais, moldando e

possivelmente induzindo os comportamentos sociais, como aponta DaMatta (1997:

p.48) ao tratar das rotinas e dos ritos, a exemplo do carnaval, festejo popular

extraordinrio capaz de promover um espao em que o comportamento social

dominado pela liberdade e pela suspenso das regras cotidianas.

A populao se mobiliza para o carnaval na cidade, principalmente para sua

abertura oficial marcada pelo ritual da lavagem e desfile dos blocos. Os participantes,

indivduos observados durante os rituais, so percebidos atravs de seus

comportamentos de formas distintas, nos quais as pessoas vestem branco,

1 Como geralmente so conhecidas, as Festas de Largo so festas tradicionais e religiosas que se

realizam em espaos pblicos e com grande visibilidade, ver Santos (2006). 2 Dentro das circunscries eclesisticas catlicas do Brasil, Alagoas composto pela

Arquidiocese de Macei, e Dioceses de Penedo e Palmeira dos ndios. 3 Dados do Censo 2010 do IBGE, disponveis na pgina:

http://cidades.ibge.gov.br/xtras/perfil.php?lang=&codmun=270670&search=alagoas|penedo

http://cidades.ibge.gov.br/xtras/perfil.php?lang=&codmun=270670&search=alagoas|penedo

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acompanhando especificamente o cortejo at o Largo do Rosrio e a lavagem, outras

acompanham fantasiadas motivadas pelo clima festivo, outras aparentemente normais

podem ser enquadradas enquanto turistas ou acompanhantes comuns. O comportamento

dos indivduos se confunde no que diz respeito a suas aes ou motivaes, onde uma

mesma pessoa pode representar atos de turismo ou de religiosidade em um mesmo

espao temporal (STEIL, 2003: p.251).

A mistura e o contato entre as categorias (religioso, folio, acompanhante, etc.)

de participantes dos festejos promovem relaes sociais dinmicas, produzindo

comportamentos distintos, que no deixam de ser percebidos enquanto smbolos.

Elementos que podem induzir comportamentos, provocar proximidades ou

distanciamentos entre seus participantes, e at mesmo fazer referncia ao

estabelecimento de uma linha tnue entre o sagrado e o profano. Visando discutir a

posio dos participantes, so apontados alm de seu comportamento alguns smbolos e

objetos que estes carregam junto consigo, elementos que podem promover uma variao

em suas maneiras de agir, assim como permitir uma possvel identificao atravs das

caractersticas e da maneira como se portam e a interferncia destes smbolos em suas

aes, sendo importante para a pesquisa analisar os smbolos no contexto do ritual e das

emoes observadas.

Acerca das possveis interpretaes lanadas sobre as emoes representadas

pelos participantes, como aponta Turner, fundamental compreender os smbolos em

seu contexto de ao e emoo, pois estes so responsveis pela transformao do

comportamento social quando vinculados aos smbolos nos contextos de campo, sendo

muitas vezes aes que os prprios envolvidos no conseguem explicar (2005:70).

As primeiras percepes acerca do ritual realizado na cidade de Penedo

mostraram que seus traos possuem uma ligao com a tradicional Lavagem do Bonfim

realizada na cidade de Salvador, na Bahia. Surgiu da necessidade de melhor discutir a

festa da lavagem do Rosrio em Penedo conhecer o ritual em Salvador, uma vez que j

havia acompanhado o ritual da Lavagem do Bonfim realizado na cidade de Macei, no

especificamente no sentido de fazer uma anlise comparativa, mas de vivenciar

diferentes rituais de lavagem e festas de largo.

Acerca da lavagem de Salvador h inmeros registros da formao dessa

tradio, bem como do dilogo que se firmou entre o candombl e outros grupos

religiosos. Segundo Silva (2005) a lavagem do Bonfim enquanto festejo popular um

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fenmeno social resultante do sincretismo religioso, da juno do colonizador europeu e

do negro africano, uma anlise que tambm fortalecida atravs dos relatos de Tavares

(1964) que historicamente remonta a chegada da primeira imagem do santo catlico no

Brasil, ato que deu incio s aes devocionais ao Senhor do Bonfim na Bahia.

De acordo com Tavares (1964) o ritual secular composto pelo cortejo que parte

da Igreja de Nossa Senhora da Conceio da Praia e segue at a Colina Sagrada

preserva em suas etapas rituais traos do sincretismo religioso, unindo a prtica das

tradicionais procisses do catolicismo ao culto inspirado na mitologia africana da lenda

de Oxal4, que rememora um episdio da vida de Oxaluf

5. Ainda que haja diferenas

entre o ritual realizado em Salvador e em Penedo, o que natural, por se tratar de

realidades e dimenses distintas, a lavagem em si rememora a tradio afro-religiosa, e

os smbolos nela presentes instituem a semelhana ritual. Dentro desse espao de

semelhanas e diferenas entre as duas formas praticadas imprescindvel analisar os

smbolos dentro do processo social, considerando as circunstncias que levaram a

prtica desse modelo ritual festivo em Penedo. Como aponta Turner ao acompanhar e

analisar os rituais Ndembu, as circunstncias so determinantes para a prtica do ritual

que se celebra em dado contexto (2005:79), um aspecto que deve ser medido visando

compreender o sistema de significados que envolvem o ritual.

Inicialmente, foi desenvolvido um trabalho de campo atravs de visitas e da

realizao de entrevistas e acompanhamento dos cultos realizados na casa de cultos

afro-religiosos de candombl responsvel pela festa da lavagem do Rosrio Largo em

Penedo. A casa de culto liderada por dois babalorixs, Fernando de Oy Balegun,

popularmente conhecido por Pai Fernando, e Francisco Taussid de Oxssi, tambm

popularmente conhecido por Pai Bob6, ambos respectivamente regidos pelos orixs

Iemanj e Oxssi.

4 Orix maior no panteo das divindades africanas que corresponde a Jesus Cristo na relao

entre os Deuses africanos e os santos catlicos no processo de sincretismo religioso. Assim como esse termo, outros termos descritos iorub ou na linguagem dos adeptos do candombl esto dispostos em glossrio, nos anexos desta obra.

5 De acordo com relatos de Babalorixs, entrevistas durante a pesquisa e dados bibliogrficos, o

Orix Oxal cultuado em duas fases de vida, Oxagui o jovem guerreiro do Reino de Oi, e Oxaluf nome dado em sua fase de vida adulta, trata-se do velho Orix pai da criao. Ver Beniste (2011), Lody (2010) e Prandi (2001).

6 Segundo o prprio babalorix o termo Bob a abreviao da palavra iorub Mutalamb, que

o Nkisi, ou orix da caa e da fartura na nao Ketu, que no sincretismo religioso no Brasil cultuado atravs do orix Oxssi.

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A casa chamada por seus membros de roa de santo7, de nao traada Jje-

Ketu, regida pelo orix feminino Ians, e popularmente conhecida em Penedo por

Casa de Santa Brbara, e no por seu nome iorub Yl Ax Sessu Omim Od Akuer8.

Devido proximidade com alguns adeptos do candombl e a pesquisa

desenvolvida no trabalho de concluso da graduao, alguns laos puderam ser

estreitados com os babalorixs da roa de santo, e as visitas puderam ser feitas com

maior frequncia, tornando possvel a coleta de informaes e o maior conhecimento

necessrio para a realizao deste trabalho9. Fez-se necessrio acompanhar as festas de

lavagem em Macei e Salvador para discutir a prtica desenvolvida em Penedo, distante

das outras festas acompanhadas, no somente por se realizar durante o carnaval, como

tambm pelas diferenas estruturais e dimensionais a partir das etapas rituais e de seu

espao dinmico e festivo.

O problema de pesquisa consiste em compreender atravs dos smbolos rituais e

da prtica performativa de seus participantes a teia de ritos partilhados pela

comunidade, baseados numa importncia que sobressai valores religiosos e a estrutura

social estabelecida atravs do cumprimento de papeis. Compreender as circunstncias

que levaram a dinamizao da vida ritual da roa de santo para as ruas de Penedo, em

um espao especificamente festivo e profano distancia a festa da Lavagem do Rosrio

de outros modelos rituais de festa de lavagem que presenciei. Alguns apontamentos

foram levantados ao buscar um possvel entendimento para a variao ritual da festa

pesquisada, e possveis respostas que ligam questes histricas, polticas e culturais

foram discutidos enquanto motivadores de tal prtica ritual.

Quanto metodologia, por estar baseada em uma discusso, bem como numa

compreenso acerca dos smbolos rituais e das aes dos participantes da festa da

lavagem do Rosrio Largo, foram adotados os mtodos de observao, coleta e anlise

de dados trabalhados por Victor Turner (2005).

7 Segundo o babalorix Francisco Taussid de Oxssi o termo roa de santo uma referncia

ao perodo colonial, na poca em que os escravos viviam nas roas e engenhos e cultuavam seus orixs escondidos do homem branco.

8 Segundo os babalorixs o significado do nome iorub da casa remonta ao histrico de suas

atividades dentro da vida religiosa, regidos por Iemanj, Ians e Oxssi. 9 Foi atravs de Pai Clio de Iemanj, lder da Casa de Iemanj Iy Ogun-T, terreiro que

organiza a Lavagem do Bonfim em Macei que tomei conhecimento das lendas iorub, e iniciei a pesquisa sobre os festejos dedicados ao Senhor do Bonfim durante o curso de graduao em Cincias Sociais, posteriormente passando a acompanhar os rituais em Macei e Penedo.

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O autor ao pesquisar os rituais Ndembu discute a interpretao dos smbolos

baseada na anlise dos processos sociais existentes (2005: p.49), fundamentando sua

observao na anlise dos grupos sociais e suas relaes em ambientes internos e

externos. Atribuindo aos smbolos, que aponta estes podendo ser objetos, gestos e

relaes, enquanto transformadores da ao social, espcies de foras de aes em um

campo de atividade. No podem os smbolos ser discutidos sem que haja uma melhor

compreenso e entendimento da ligao destes com os interesses e propsitos

relacionados ao ritual de maneira mais geral, ou aos seus ritos, enquanto demarcadores

de fases. Turner aprimorou suas pesquisas fazendo uso de alguns trabalhos de Arnold

Van Gennep (2011), que em sua obra Os Ritos de Passagem, afirma que necessrio

que o pesquisador analise todas as fases de um ritual, ou seja, desde os ritos

preliminares ou de separao (o antes), os ritos liminares, o ritual em si (o durante) at

os ritos ps-liminares, que seriam a fase de agregao (o depois).

A festa em sua totalidade pode ser demarcada por etapas, desde o momento em

que se realizam os toques e so feitas as oferendas a Oxal na roa de santo, momento

em que so praticados os rituais privados, vistos enquanto indispensveis aos cultos de

candombl, como aponta Santos (2012), ao momento em que segue o cortejo pelas ruas

de Penedo at o espao em que a festa se condensa pela ao da lavagem do Beco da

Preguia e posteriormente a lavagem do adro da igreja. As etapas so dotadas de

elementos e significaes com valores religiosos, contudo, ao se praticarem nas ruas da

cidade durante o carnaval, do margem aos festejos e prticas profanas. Enquanto

metodologia de compreenso por sobre a estrutura e a propriedade dos smbolos rituais,

Turner (2005) segue trs etapas de anlise de dados: primeiro a partir das formas

externas e caractersticas observveis, seguido da busca pela interpretao por parte dos

participantes rituais, tanto leigos quanto especialistas, e por fim a discusso dos

contextos significativos pela viso antropolgica.

O autor aponta tambm que os smbolos possuem um envolvimento direto com

todo o processo social, se fazem presentes em todas as etapas de anlise da pesquisa, e

atravs da dinamicidade do contexto social so capazes de provocar comportamentos, e

aes, bem como unificar ou distanciar pessoas e grupos sociais. Nas etapas de anlise

seguem tcnicas j utilizadas por Malinowski (1978) que apontou em sua obra Os

Argonautas do Pacfico Ocidental, que o trabalho etnogrfico requer do pesquisador

17

uma descrio ntida da constituio social, compreendendo a viso, as regras e a

realidade do objeto de estudo.

No somente pela riqueza histrica, como tambm pelas festividades, a cidade

de Penedo costuma receber muitos turistas durante o carnaval, que tambm

acompanham a festa da lavagem junto aos adeptos do candombl e moradores locais

que acompanham de perto a representao pblica da vida ritual da roa de santo no

Largo do Rosrio. Os acompanhantes seguem desde a sada do cortejo na Praa

Clementino do Monte, que segue pelas ruas at o centro histrico, percorrendo cerca de

2 km registrando atravs de vdeos e fotografias, aplaudindo e danando por todo o

caminho, alguns pagando penitncias, outros festejando o carnaval, expresses de

comportamentos dspares, que se alteram na medida em que ocupam determinados

espaos. Seja pela fora da ao que os smbolos exercem, ou pelo espao sagrado e

momento ritual que transformam o comportamento performtico dos acompanhantes, o

comportamento social se mostra atravs de variaes circunstanciais.

No s pela carga simblica que o prprio espao sagrado agrega, como tambm

pela ao de pertencimento, assim como pelo sentimento coletivo que percebido, o

local especfico da lavagem no adro da Igreja de Nossa Senhora do Rosrio dos Pretos

proporciona o estabelecimento de uma espcie de unidade ritual, um todo motivado

pelos cnticos, gestos, pela emoo do momento no entorno do santurio. comum

perceber nesses espaos distintas formas de interao e comportamento, como aponta

Steil (2003), ainda que o ritual aqui discutido no seja especificamente um santurio de

peregrinao, mas se trata de um espao sagrado em que se pratica um ritual de

reavivamento da crena de determinado grupo social, e que ainda sim muitos dos

presentes agem perpassando as linhas imaginrias que traam os limites entre o sagrado

e o profano, no partilhando de alguns modelos ideais de comportamento.

Visando uma melhor discusso acerca dos espaos e comportamentos

performticos dos participantes rituais, tomo alguns apontamentos levantados por

Douglas (2012) acerca da anlise de algumas relaes que podem ser definidas

enquanto duais. A reflexo objetiva no conduzir a pesquisa a uma abordagem

generalizante dos padres comportamentais estabelecidos culturalmente, pois, algumas

proibies e tabus em determinados grupos ou sociedades podem ser enxergados

enquanto variveis, sendo permissivos ou no no que tange suas circunstncias.

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Determinadas formas de comportamento podem se tornar perceptveis enquanto

aes de profanao, e ser apontadas enquanto comportamentos anmalos frente aos

demais acompanhantes e suas performances. Os acompanhantes podem pertencer a

categorias distintas, como tambm transmitir uma ideia de no separao pela maneira

como geralmente se portam, pelos smbolos que conduzem, como tambm pela

vestimenta. O uso do branco enquanto smbolo dominante denota geralmente uma

uniformidade existente entre todos os participantes declarados praticantes dos cultos

afro-brasileiros, assim como pode ser visto com predominncia na vestimenta de

turistas e folies, visto o grande nmero de populares que ocupam as ruas da cidade.

Iniciado pelo trabalho descritivo a partir de entrevistas e dados histricos e da

utilizao de dados secundrios, a pesquisa traz os relatos do surgimento da festa

enquanto tradio e manifestao religiosa, denotando a Lavagem do Rosrio Largo

enquanto ao simblica de resgate da cultura afrodescendente e uma prova

espetacularizada dos cultos de candombl em sintonia com a comunidade.

Ao longo dos captulos relatado o surgimento da festa e a relao da roa de

santo e seus cultos dedicados a Oxal com o carnaval de rua da cidade, bem como o

percurso tomado atravs do trabalho de campo, objetivando descrever as etapas rituais

da festa da lavagem. Esta a mais importante festa pblica realizada pela Roa de Santo

na cidade, e devido a sua importncia frente festa da lavagem visando no somente

desmistificar algumas impresses negativas acerca das prticas rituais afro-religiosas,

como tambm ao de resgate e valorizao cultural das razes negras no Estado, o

terreiro conquistou uma maior visibilidade e respeito perante a sociedade civil enquanto

referncia da tradio negra em Alagoas.

No primeiro captulo aborda uma apresentao da festa da lavagem, apontando

a discusso de alguns autores como Perez (2012), Santos (2012, 2006) que discutem

sobre festas de lavagem e de largo, a dimenso pblica de alguns rituais

espetacularizados, bem como algumas anlises de DaMatta (1997, 1986) acerca do

carnaval brasileiro e das grandes festas que mobilizam a sociedade rompendo algumas

estruturas do cotidiano. Ainda que a pesquisa no objetive discutir alguns conceitos

como festa, turismo e espetculo, os conceitos trabalhados por estes bem como outros

pesquisadores acerca de tais temticas dialogam diretamente com esta pesquisa, se

fazendo importantes para a compreenso e discusso do objeto pesquisado.

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Algumas categorias de anlise so apontadas e discutidas neste trecho, tomando

como modelo a estrutura analtica de Gonalves e Cotins (2008) acerca das Festas do

Divino Esprito Santo no Rio de Janeiro, onde os autores separam em tpicos as etapas

da festa, a relao desta com a comunidade, seus espaos e dimenses. Em Penedo, a

dimenso do ritual, bem como o envolvimento da religio com as prticas culturais

festivas tornam o modelo pesquisado bastante particular, promovendo um possvel

dilogo ecumnico que envolve as relaes entre o sagrado e o profano, alm de

apresentar smbolos que relacionam a realidade ritual praticada e a mitologia africana

conforme apontada por Beniste (2011), Prandi (2001) e Lody (2010, 2006). A lavagem

que acontece anualmente se mostra enquanto uma tradio ressignificada, dotada de

valores que visam resgatar a cultura afro-brasileira e dar uma maior visibilidade aos

rituais religiosos do candombl por meio de um ritual de agradecimento e pedido de

bnos ao orix da paz, uma ferramenta de luta por pedidos de paz e pelo fim da

intolerncia religiosa na cidade e no Estado.

No segundo captulo construda uma discusso embasada nas produes de

Victor Turner Processo Ritual (2008), Floresta de Smbolos (2005) e Dramas, Campos

e Metforas (1974), obras e mtodos de anlise que aqui servem enquanto amparos

centrais na discusso e desenvolvimento desta pesquisa acerca dos smbolos e da

estrutura ritual. Assim como Gennep (2011) que discute as etapas rituais, os momentos

de preparao e o desenrolar do ritual onde o espetculo religioso se torna pblico e d

margem aos diversos comportamentos sociais exercidos por seus participantes, as

discusses de Gonalves e Cotins (2008) observadas no processo de preparao para a

festa do Divino contribuem para a anlise da festa da lavagem do Rosrio em suas

etapas, focando o conjunto de atividades que envolvem o tempo festivo.

Em DaMatta (1986/1997) so analisados alguns apontamentos acerca da

memria social e das festas enquanto partes fundamentais para a formao da cultura e a

construo da histria do povo brasileiro, sendo nesses espaos festivos e atemporais os

instantes de rompimentos de determinados padres estruturais.

Segundo Muller (2005), o contato de um participante com outros promove no

sentido coletivo de partilha ritual a transformao deste atravs de uma ruptura com seu

determinado comportamento social, o que possibilita a construo de um personagem

estando diretamente relacionado com o inconsciente coletivo, despertado nos espaos

pblicos onde se d a realizao do ritual da lavagem.

20

Alguns apontamentos tambm discutidos em Mauss (2003) interconectam com

sua abordagem acerca das tcnicas do corpo, observaes que dialogam com anlises

sobre o comportamento social em Douglas (2012) que versa sobre rituais de poluio e

as relaes de contgio, uma vez que o comportamento social transmitido a partir das

performances desenvolvidas pelos indivduos presentes no ritual pesquisado permite

uma abordagem analtica acerca da relao entre o sagrado e o profano.

Ainda neste captulo levantada uma discusso embasada na pesquisa de campo

e na interpretao dos rituais de acordo com Peirano (2003/1991), que correlaciona

clssicos da antropologia em suas anlises acerca de rituais contemporneos,

transcorrendo tambm sobre o trabalho e a maneira como o antroplogo conduz sua

pesquisa, ao dar nfase ao amparo do pesquisador em sua bibliografia, que o auxilia nas

imprevisveis situaes que se configuram no dia-a-dia e na relao estabelecida entre

pesquisador e pesquisados. Assim como as discusses desenvolvidas por Geertz (2012)

ao interpretar as culturas que auxiliam em tal discusso atravs de seu trabalho de

campo, onde trata sobre a maneira como o pesquisador se insere no universo nativo e os

reflexos de sua aceitao por parte do grupo pesquisado.

No terceiro captulo feito o relato descritivo da lavagem, a festa de largo

dedicada a Oxal que fora acompanhada, uma anlise realizada atravs da observao

direta, objetivando apontar os smbolos rituais, pontuando uma discusso acerca de tais

elementos e a maneira como se configuram em meio a prticas e performances de seus

acompanhantes num espao de sincretismo religioso, com pilares estabelecidos no

catolicismo e no candombl. A festa, que envolve o cortejo pelas ruas da cidade at o

centro histrico composto em sua maioria por adeptos e filhos de santo, o conhecido

povo do ax10

, iniciada antes do dia do cortejo, onde a roa de se prepara para a festa e

entrega de oferendas para Oxal, o orix da criao que homenageado em suas duas

fases de vida atravs da materializao e incorporao dos filhos de santo, tanto na

figura de Oxagui, o jovem guerreiro do Reino de Oi, quanto de Oxaluf, o velho

sbio responsvel pelo sopro da vida.

Em Penedo, a lavagem demonstra visualmente uma organizao e devoo a

Oxal, sem menes diretas ao Senhor do Bonfim, apesar de possuir semelhanas em

10

O termo Povo do Ax a forma como se reconhecem os envolvidos no ritual, refere-se aos filhos de santo e adeptos, uma vez que o ritual agrega religiosos e participantes no religiosos como turistas e etc.

21

sua estrutura ritual com Salvador, ao passo que nitidamente se debrua em um espao

especificamente festivo, a abertura da festa de carnaval pelas ruas da cidade, disputando

espao e sonoridade com blocos, folies mascarados, personificados pela folia que

rompe com as estruturas regulares que regem a sociedade em perodos de normalidade,

e ainda sim, do nfase e espao principal atrao da noite de abertura do carnaval, a

lavagem do beco e do adro do templo religioso.

O trabalho etnogrfico transpe a realidade vista para o trabalho escrito,

descrevendo a festa em seu desenvolvimento, como tambm mostrando possveis

(in)coerncias ao analisar e confrontar a prtica e o discurso de alguns participantes e de

seus realizadores e envolvidos, assim como em suas prticas rituais. Prticas que podem

ser comentadas a partir da tica da intertransponibilidade apontada por Geertz (2012:

p.70) aps conviver em campo e observar o comportamento dos balineses e suas

prticas perenes enquanto variantes permeadas pelos motivos e pelas disposies

individuais ou coletivas. Atravs da observao direta, este trecho da pesquisa traz uma

descrio do campo, na tentativa de seguir os moldes etnogrficos como sugeridos por

Malinowski (1978:101), foram levantadas algumas hipteses que, somente atravs da

participao do antroplogo, em dilogo com o meio consegue apreender, buscando

compreender as regras e a realidade do jogo em que est envolvido.

Os participantes que se declaram no religiosos disputam espao e pedaos do

ritual como forma de recordao, mas h um entendimento da realidade ritual vivida?

Atravs da prtica ritual a roa de santo promove uma mensagem acerca do significado

ritual que se entrelaa entre festa e devoo?

A busca por possveis respostas sobre alguns questionamentos foi trabalhada

atravs da coleta de informaes e da anlise observacional em campo, e ainda que o

ritual proporcione atravs da anlise exegtica uma possvel compreenso acerca de sua

lgica estrutural, e por mais que o formato visual ainda se assemelhe a outras festas de

lavagem, os significados para seus participantes e organizadores, bem como o sentido, a

disposio e a forma em que foi idealizado aparentam ser distintas.

Os comportamentos e as performances so individuais, e formam uma unidade

observacional, uma espcie de organismo formado por pequenas partculas, contudo, se

observado externamente o ritual pode ser interpretado enquanto uma simples festa

profana, e somente fazendo uma anlise aprofundada que a pesquisa pode chegar a

apontamentos coerentes, que permitam a produo de resultados mais consistentes.

22

Ao exemplificar as relaes polticas em sua pesquisa de campo Turner (2005:

p.52) apontou que, por mais que possuam estruturas slidas, os grupos (envolvidos

diretamente nas prticas rituais) tornam-se mveis e podem romper certos padres ao

longo de suas transaes e das mudanas de postura de suas relaes. As aes polticas

no deixaram, tampouco iro deixar de existir no ritual que regido por uma casa de

culto afro-brasileiro e marca a abertura das festividades de carnaval da cidade, o que

no deixa de ser um espao que proporciona visibilidade ao grupo religioso envolvido e

seus organizadores, e favorvel politicamente promoo do ecumenismo e da

valorizao cultural por parte da gesto poltica, uma ferramenta de promoo dos

representantes poltico-partidrios, e as demais categorias que se fazem presentes nos

festejos do Rosrio Largo.

23

CAPTULO 1

- Conhecendo a festa, a tradio e as crenas.

Com o incio do processo de colonizao a vinda dos negros na condio de

escravos contribuiu consideravelmente para o desenvolvimento das prticas religiosas

festivas, como aponta Santos (2006) ao analisar as performances culturais das festas de

candombl. A autora destaca que os negros no deixaram de praticar seus rituais

preservando a dimenso espetacular dos cultos, e que a insero das prticas e smbolos

do candombl nos espaos pblicos so fatores preponderantes para a diminuio da

invisibilidade registrada no passado.

A autora destaca que ao longo dos anos o candombl no somente preservou

como tambm potencializou as cerimnias (2006: p.01), e o maior modelo de festa de

largo e lavagem no foge a seus apontamentos. Segundo registros histricos a lavagem

do Senhor do Bonfim na Bahia realizada desde o ano de 1754, data em que foi trazida

para Salvador a imagem do Senhor Bom Jesus do Bonfim da cidade de Setbal, em

Portugal, como aponta Tavares (1964). Inicialmente a imagem ficou guardada na igreja

de Nossa Senhora da Conceio da Praia, situada na Cidade Baixa, e somente nove anos

aps sua chegada, foi levada para a Baslica construda no alto de uma colina,

especificamente para receber a imagem do Bonfim.

Tavares descreve que o surgimento da prtica da lavagem foi naturalizado a

partir da limpeza do templo religioso, que desde os tempos primitivos se costumava, na

quinta-feira anterior ao domingo de sua festa proceder lavagem da capela, por pessoas

que moravam prximas e depois pelos romeiros que fluam de toda parte (1964: p.43),

e que como a maior parte dos servios de limpeza eram exercido pelas negras, ao longo

dos anos a limpeza da igreja foi se tornando uma afronta aos valores religiosos e morais:

[...] no raro viam-se no interior da Capela mulheres lamentavelmente

descompostas pelo arregaado das saias e decote das camisas. Homens e

mulheres derramavam gua e, com as vassouras esfregavam o lajedo, em

uma vozeira pelos cnticos de benditos e outras rezas desencontradas e

diversas, ao mesmo tempo em que eram erguidos estrepitosos vivas ao

Senhor do Bonfim (TAVARES, 1964: p.43).

Alguns anos mais tarde o ritual da lavagem passou para o lado de fora do templo

sagrado, no somente pela determinao eclesistica com finalidades de manter a ordem

no espao religioso, afastando assim o sagrado das aes de profanao, mas tambm

pela notvel dimenso que os festejos do Bonfim foram adquirindo ao longo dos anos.

24

Da forte tradio baiana outros rituais de lavagem se atriburam de pequenos

fragmentos, e a partir de suas realidades foram sendo adequados e inseridos nos

respectivos calendrios locais. No Estado de Alagoas h conhecimento de duas festas de

lavagem praticadas na atualidade, a primeira surgida em Macei no ano de 2002

organizada pelo terreiro de candombl de nao Jje-Nag, a Casa de Iemanj Iy

Ogun-T liderado pelo babalorix Clio Rodrigues.

Um terreiro que desenvolve aes sociais no bairro de Ponta da Terra onde est

localizado, e agrega outras casas de culto da cidade para a realizao da Lavagem do

Bonfim que ocorre anualmente no segundo domingo do ms de janeiro, posterior s

celebraes da festa de Santos Reis, seguindo o calendrio litrgico da igreja catlica e

da casa de santo. Durante o ritual realizado um cortejo at o adro da Igreja do Senhor

do Bonfim, situada no bairro do Poo, onde feita a lavagem do espao frontal, e de l

segue para o terreiro, totalizando um percurso de cerca de 3km.

O ritual em Macei se configura enquanto um culto de comemorao e devoo

a Oxal, bem como uma ao poltica que busca manter seus valores afro-religiosos

atravs de um ritual pblico, uma busca pela garantia de direitos sociais para a

preservao de seus cultos religiosos em um estado laico. Muitos dos cultos praticados

no estado foram ressignificados ao longo do tempo, principalmente aps o episdio

conhecido como o Quebra de Xang de 1912, onde ocorreram fatos que marcaram a

histria das religies de origem negra em Alagoas. Como descrito por Ulisses Neves

Rafael em sua tese de doutoramento Xang rezado baixo: um estudo sobre a

perseguio aos terreiros de Alagoas em 1912 (2004), onde analisa os atos de

perseguio e destruio das casas de culto alagoanas atravs de uma ao que teve

como estopim brigas polticas pelo poder do Estado. Um episdio que culminou com o

extermnio das vrias prticas afro-religiosas em Macei e nas circunvizinhanas, mais

tarde originando uma nova categoria de culto, denominada Xang rezado baixo.

Por consequncia de tais perseguies, as religies afro-alagoanas e suas

manifestaes passaram por mudanas e transformaes em sua formao estrutural,

como aponta Rogrio (2006), em uma entrevista realizada com Pai Maciel, e publicada

na obra Kul Kul:

25

Os cultos afro-alagoanos, por causa das constantes perseguies, comearam

a ser executados de forma silenciosa apenas com palmas e rezas aos

santos pois os toques ficaram por muito tempo proibidos. Conforme Pai

Maciel, houve a primeira onda que quebrou tudo, n? Depois, foi que...

cessou um pouquinho, a ficou trabalhando escondido e ta, ta, batendo uma

palmazinha (ROGRIO, 2006: p.43).

Mesmo no caso dos babalorixs e ialorixs que no sofreram nenhum tipo de

perseguio ou agresso durante a ao de extermnio das casas de culto alagoanas,

muitos fecharam suas casas de santo e se transferiram para outras regies mais isoladas,

distantes da capital ou se instalaram em outros Estados como Pernambuco e Sergipe.

No perodo histrico ps-abolicionista, especificamente nas primeiras dcadas

do Sculo XX muitos pesquisadores passaram a se aproximar das casas de culto afro-

brasileiras com o objetivo de desenvolver pesquisas histricas. Prticas essas que

favoreceram os dois lados do jogo, para os terreiros que eram perseguidos, a presena

de intelectuais influenciava a maneira como eram vistos pela sociedade, e estes atravs

do contato direto encontravam espao para suas produes. Na obra Vov Nag e Papai

Branco a antroploga e historiadora Beatriz Gis Dantas (1988: p.175) dispe de alguns

relatos acerca das pesquisas desenvolvidas pelo mdico Ulysses Pernambucano em

meados da dcada de 30, vinculado ao Servio de Higiene Mental11

, descrevendo o

quanto os negros foram perseguidos. As religies que pertenciam s esferas mais baixas

da sociedade eram apontadas enquanto demonacas, fazendo uso de feitiaria, e como

nessa poca os terreiros eram vtima de forte estigma e violenta represso policial, o

registro do SHM (Servio de Higiene Mental) tornou-se uma via possvel para os

xangs conseguirem licena junto polcia a fim de poderem funcionar (DANTAS:

1988: p.175).

Como consequncia de tais perseguies e formas de controle, a disperso das

casas de culto e de suas prticas afro-religiosas em Alagoas foi notria, e durante as

muitas dcadas de resistncia por parte dos terreiros, muitas atitudes de violncia e

perseguio fizeram-se presentes na histria afro-alagoana. Somente a partir da dcada

de 30 comearam a ressurgir alguns terreiros sob licena da polcia, e devido

proibio dos toques se desenvolveu no estado uma nova categoria de culto,

denominada Xang Rezado Baixo.

11

Nas primeiras dcadas do Sculo XX o SHM (Servio de Higiene Mental) registrava os terreiros e casas de cultos atravs do servio de anlise e vigilncia dos exames mentais de seus adeptos, buscando estabelecer um controle sobre os cultos de origem africana, uma prtica rigorosa desenvolvida em vrios estados da Regio Nordeste.

26

Segundo Farias [et al] (2007: p.80), os cultos comearam a ser realizados de

forma silenciosa, utilizando-se apenas das palmas na cantoria dos pontos e nas rezas

dos santos, j que os toques ficaram proibidos por muitos anos aps o quebra em 1912.

Hoje, os rituais, em suas prticas cotidianas, tentam dar continuidade aos cultos de seus

orixs com maior liberdade, e ainda assim, so banidos com o discurso de

inferioridade das religies afro-brasileiras que ainda perdura desde o sculo passado,

como nos relata Braga (1988), quando observa que:

No alvorecer do sculo XX, ocorreram fortes e agressivas reaes da

sociedade contra as tentativas do negro se afirmar como pessoa portadora de

uma cultura e identidade diferenciada dos padres ocidentais que se

pretendiam nicos na fixao do carter nacional (BRAGA, 1988: p.38).

Devido a tais perseguies e opresses sofridas pelos terreiros alagoanos o ritual

da Lavagem do Senhor do Bonfim em Macei se mostra enquanto um ato pblico

afirmativo da cultura negra na sociedade local, o que suscita algumas discusses acerca

da idealizao da lavagem do Rosrio Largo em Penedo. Na cidade ribeirinha a festa foi

criada posterior ao surgimento em Macei, apesar de anterior prtica da limpeza ritual

do adro da Igreja de Nossa Senhora do Rosrio dos Pretos os moradores da regio do

centro histrico j exerciam a prtica da lavagem dos becos enquanto exerccio de

higienizao local. Os dois rituais so semelhantes ao modelo de Salvador, o que no

denota serem apenas cpias rituais, tampouco desimportantes para o contexto social,

poltico e cultural locais. Um ritual ainda que semelhante, pode ser um modelo

inspirado, ressignificado, uma tradio inventada, como aponta Hobsbawm (2012) ao

tratar do uso de tal termo para referir-se a prticas que podem ser antigas, sem registro

de seu surgimento, tanto quanto recentes, e/ou que se estabeleceram com rapidez:

Por tradio inventada entende-se um conjunto de prticas, normalmente

reguladas por regras tcita ou abertamente aceitas; tais prticas de natureza

ritual ou simblica, visam inculcar certos valores e normas de

comportamento atravs da repetio, o que implica, automaticamente, uma

continuidade em relao ao passado. Alis, sempre que possvel, tenta-se

estabelecer uma continuidade com um passado histrico apropriado

(HOBSBAWM, 2012: p.12).

Determinadas mudanas foram fundamentais para adaptar as festas de lavagem

suas realidades circunstanciais, e no que concerne o ritual em Penedo, rumores apontam

para seu surgimento a partir de uma estratgia poltica local, que posteriormente

adquiriu um tom de valorizao cultural das esquecidas, desvalorizadas e

inferiorizadas prticas culturais afro-religiosas.

27

Na cidade o ritual segue um calendrio diferente dos modelos acima citados, e

apoiado pela Prefeitura Municipal e rgos locais de valorizao da cultura, adquirindo

tamanha importncia cultural e festiva como a celebrao oficial de abertura dos

festejos de carnaval de rua da cidade. Como confere Hobsbawm (2012) a anlise por

sobre as prticas e inventividades vinculadas tradio so adequadas pela necessidade

de adaptao visando conservar velhos costumes em novas condies rituais, conferindo

o exerccio de uma tradio que se reinventa visando novos fins. A necessidade de

adaptao frente aos desafios provocados pela dinmica temporal, bem como a

utilizao de elementos antigos na elaborao de novas tradies so institucionalizados

para servir a novos propsitos (2012: p.14), e h nesse processo de continuidade

histrica uma necessidade de recuperao de valores e preenchimento de vazios que se

fortalecem atravs do uso de smbolos do passado.

H ainda uma relao de observaes gerais que o autor lana por sobre as

tradies inventadas, primeiro define-as baseadas no estabelecimento de uma coeso

social, podendo tal estado de unidade ser fortalecido pelo uso de smbolos que denotam

um determinado valor ritual para um grupo ou comunidade. O estabelecimento e a

legitimao de um grupo ou instituio, e de seus status, assim como as tradies que

visam a socializao atravs de um sistema de valores e padres comportamentais.

Mesmo que o carnaval de rua da cidade agregue uma multiplicidade de valores e

inmeros elementos simblicos promovendo uma coeso social, h em sua abertura a

releitura das prticas rituais negras dos antepassados movidos pela devoo ao sagrado,

e que atravs do ritual fundamenta a importncia da cultura negra na formao da

sociedade e fortalece os laos de identificao da comunidade com o respeito e a f dos

negros no s aos seus santos africanos, como s divindades catlicas, ambos unificados

pelas aes de sacralizao de um templo exaltado pela/na festa.

Ao analisar as festas, La Freitas Perez (2012) aponta que em seu propsito

maior, a festa muito mais do que aparenta ser, uma prtica intencionada de valores

que marcam o tempo, e esto as festas geralmente ligadas a prtica de vida. Sejam

individualizadas ou coletivizadas, as festas nem sempre remontam a uma tradio e os

efeitos do tempo e da modernidade (fatores que podem ser benficos ou no quanto

resistncia de certas prticas festivas), e podem sobreviver justamente por possurem

tambm um carter dinmico e circunstancial:

28

A heterogeneidade, a fragmentao e a acelerao do tempo da modernidade,

sobretudo seu af de mudana, de busca incessante do novo a falsa

moeda dos seus sonhos no matam a festa, nem fazem surgir em seu lugar

simulacros vazios. Ao paraso no se sucede o inferno. tradio no dado

unicamente o caminho da adaptao, da resistncia, ou da morte. Mudanas

no so ameaas continuidade da tradio, ao contrrio, so condies

mesmo de sua perpetuao. A tradio permanece justamente porque muda

(PEREZ, 2012: p.31/32).

Como aponta a autora, no significativamente as mudanas so inviveis ou

descaracterizam uma prtica tida enquanto tradicional, uma vez que o que vem do

passado enquanto atividade institucionalizada lapidada com o tempo, e se mostra

enquanto um mecanismo de produo de vida, e no de mera reproduo. Seus

apontamentos no se opem s discusses de Hobsbawm (2012), ainda que o

historiador preze pelo modo de estabelecimento das tradies inventadas, e resulte na

anlise de suas finalidades, quando aponta que as novas prticas fazem uso de

elementos que remetem ao passado visando resgatar valores ou promover uma

determinada unidade, e Perez (2012) ainda que questione tradio enquanto certa

nostalgia das origens, as festas de certo modo so estreitamentos entre a tradio e a

modernidade, o que denomina enquanto dinmica que unifica diversos elementos.

Se como aponta Tavares (1964: p.47) a Festa do Bonfim em Salvador um

verdadeiro preldio ao carnaval que se aproxima, a festa em Penedo, praticada nos

espaos sagrados da roa de santo ou espetacularizada na rua no deixa de ser uma festa

somente por estar inserida no contexto do carnaval, como tambm por ser uma festa

voltada ao sagrado, ao passo que no trata com epifania as etapas rituais de devoo a

Oxal. importante destacar o fato de que h um envolvimento mltiplo no que

concerne a realizao da festa da lavagem desde a etapa em que a roa de santo se

prepara para as festividades dedicando seus rituais aos orixs, em especial a Oxal, at a

etapa em que a roa, o povo de santo vai s ruas e se une aos demais participantes

identificados em categorias distintas (folies, turistas, catlicos e afins), um momento

de ecumenismo e comunho. Comunho do espao profano das ruas enfeitadas para o

carnaval, bem como do instante ritual da lavagem do Beco da Preguia como a lavagem

do espao sagrado do adro da Igreja de Nossa Senhora do Rosrio dos Pretos.

29

1.1 Traos da mitologia africana que inspiram as festas de lavagem

Muitas relaes de mestiagem e descries que tratam da tradio dos povos

africanos foram registradas por pesquisadores que se debruaram sobre a formao dos

cultos africanos no Brasil. Segundo relata Carneiro (1972) fazendo uma abordagem

acerca das religies que aportaram junto com os negros africanos no pas, os Jjes foram

os povos que iniciaram as prticas religiosas africanas em terras amerndias, dando

incio a diferentes e singulares formas de culto, originadas de acordo com a distribuio

dos negros escravizados ao longo da costa brasileira. Sofrendo influncia em sua

formao a partir do fluxo escravista, devido a grande quantidade de negros de nao

Nag que aqui desembarcou, a formao religiosa afro-brasileira um resultado da

predominncia numrica e cultural dessas matrizes em nosso territrio.

Dados de grande importncia que fundamentam esta pesquisa, e que versam

sobre as tradies baianas foram expostos por Tavares (1964) em sua obra Bahia:

imagens da terra e do povo, uma obra que trata das tradies festivas religiosas na

Bahia, assim como o trabalho de Santos (2006) que dispe de uma rica discusso acerca

da lavagem do Bonfim e das tradicionais festas de largo da Bahia, que por conseguinte

inspiraram outras festas de largo e lavagem, como o caso de Macei e Penedo, em

Alagoas.

A partir das primeiras visitas a terreiros buscando por dados e informaes que

pudessem dar consistncia ao trabalho foi sendo criada uma relao de maior

proximidade com alguns lideres religiosos, e atravs do contato com o babalorix Clio

de Iemanj, lder do terreiro Casa de Iemanj Iy Ogun-T em Macei, e os babalorixs

Fernando de Oy Balegun e Francisco Taussid de Oxssi, lderes do Terreiro Yl Ax

Sessu Omim Od Akuer, mais conhecido por Casa de Santa Brbara, em Penedo,

obtive os primeiros relatos acerca da mitologia iorub que conta a lenda de Oxal e a

relao entre as prticas rituais, a tradio afro-brasileira e a mitologia africana12

.

Algumas obras encontradas complementaram os primeiros dados obtidos em

campo, principalmente os trabalhos de pesquisadores e antroplogos como Prandi

(2001) e Lody (2010) que descreveram as mitologias africanas trazidas ao Brasil atravs

dos negros na condio de escravos. H uma tradio baseada em uma lenda iorub, a

12

As primeiras entrevistas foram realizadas em dezembro de 2010, apesar de j haver acompanhando os rituais de lavagem em janeiro do mesmo ano nas cidades de Penedo e Macei AL.

30

lenda da viagem de Oxal ao reino de Oi em visita a seu filho Xang, um conto

africano que possui uma provvel ligao com as aes rituais dos antigos escravos

residentes em Salvador, que deram incio Lavagem do Bonfim na Bahia, sendo esta a

festa de lavagem mais antiga do pas, como apontado em Tavares (1964).

Tanto as aes devocionais quanto os paramentos presentes nos rituais da

lavagem so smbolos referenciais que podem ser interpretados enquanto elementos

claramente descritos nas obras Jias de Ax de Lody (2010) e Mitologia dos Orixs, de

Prandi (2001), e alm destes, na obra run iy: o encontro de dois mundos, o

historiador Jos Beniste (2011) analisa os sistemas de relacionamento e crenas dos

cultos africanos e afro-brasileiros, especificamente as relaes Nag-Yorub atravs dos

candombls brasileiros, fundamentando apontamentos acerca das crenas desenvolvidas

por algumas casas de culto que praticam os rituais de lavagem.

Crenas e religies que se unem em um mesmo ritual, tendo a cor branca

enquanto elemento de ligao entre dois mundos, run e iy, respectivamente o cu e a

terra, ligados pelas foras das divindades, pelas foras de Oxal, o orix da criao, da

pureza de Cristo representada atravs das flores brancas, da vestimenta de seus

participantes e dos paramentos e elementos utilizados, assim como das etapas rituais

descritas, desde o toque no terreiro a lavagem do Beco da Preguia que encerra a

participao da Roa de Santo nos festejos de carnaval em Penedo.

Atravs da explanao do surgimento e desenvolvimento da tradicional festa do

Senhor Bom Jesus do Bonfim, perpassando por entre as tradicionais festas dedicadas

aos santos cultuados pelo catolicismo e por entre os traos deixados pelos africanos,

afirmados e mantidos ao longo dos anos, a festa da lavagem do Rosrio Largo e do

Beco da Preguia mostra o exerccio de uma prtica e um entendimento lgico que se

fundem em uma nica ao ritual, o ato de lavar o que aparentemente estava sujo. So

como dois lados de uma moeda, que com faces distintas fazem parte de um mesmo

objeto, configuram um mesmo elemento; um ritual aberto, pblico, de cunho religioso,

que traz elementos afro-brasileiros e catlicos, encabeado por uma casa de culto afro-

religiosa com o apoio de alguns rgos pblicos, marcado por antagonismos (se

discutido por preceitos religiosos que se fundamentam no arqutipo do santo

homenageado na festa), e ainda sim, preserva suas razes religiosas, e se mostra

importante e vivo.

31

Um ritual que renem participantes que congregam de diferentes credos, unindo

vrias tradies, desde a prtica da limpeza dos templos sagrados pelos negros no

perodo colonial, ao culto espetacularizado publicamente dedicado aos orixs, e o

carnaval de rua, uma festa de lavagem peculiar e diferente de tantas outras prticas

existentes em diversas cidades do pas13

.

Traos da cultura africana so nitidamente percebidos, e muitos rituais so

preservados nas atividades desenvolvidas pelas casas de culto afro-brasileiras, e no que

concernem os rituais de lavagem, este tambm apontado enquanto uma ao

desenvolvida no Brasil simbolicamente remetida lenda iorub do orix Oxal Oxaluf,

que descreve alguns momentos de sua viagem ao reino de Oi, em visita a seu filho

Xang. O ritual da lavagem uma tradio existente no pas desde 1745, conforme

aponta Tavares (1964), e que aos poucos foi reunindo devotos do santo milagreiro

Senhor do Bonfim, e acabou por tornar a Colina Sagrada, local onde foi edificada a

Igreja Baslica de Nosso Senhor Bom Jesus do Bonfim, em Salvador, um ponto de

peregrinao de fiis e adeptos de muitas crenas religiosas14

atravs da prtica ritual de

limpeza exercida pelos negros.

A prtica secular traz referncias enquanto sendo uma homenagem aos santos

catlicos, e como a escravido delimitava os restritos espaos possivelmente

frequentados pelos negros e a condio escrava os atribua o exerccio dos servios

domsticos, ficava por conta destes a limpeza dos espaos religiosos destinados aos

brancos. Assim como em Salvador, na cidade de Penedo era exercido pelos negros o ato

de lavar e decorar as Igrejas para as celebraes catlicas, que segundo registros

apontados por Dantas (1988) ainda eram submetidos ao batismo, com o propsito maior

de convert-los ao catolicismo e a tentativa de faz-los esquecer de suas prticas rituais

africanas. Como aponta a autora (1988: p.181), diante da herana sociocultural confusa

e ecltica, era necessrio selecionar o que convinha a elevao moral do negro e

descartar o que concorria para desmoraliz-lo socialmente, uma necessidade de

adequao visando a resistncia e a proteo de suas prticas religiosas, e como

13

Acerca da realizao de rituais de lavagem, existem registros de prticas existentes em Aracaju, Curitiba, Macei, Olinda, Penedo e Salvador. Ver Tavares (1964), Santos (2006), Alves e Pelegrini (2010).

14 Durante a pesquisa tambm foram realizadas visitas nas cidades de Macei e Salvador, foi

registrada a presena de catlicos, espritas, candomblecistas, umbandistas e acompanhantes sem crena e/ou prtica religiosa definida, o que compe as vrias categorias que denomino participantes.

32

consequncia aos anos de intolerncia, promoveu uma relao associativa entre santos

catlicos e orixs africanos.

As lavagens foram assim se tornando uma tradio, e aos poucos sendo

reproduzidas em outras cidades, organizadas principalmente por terreiros e casas de

culto afro-brasileiro, como relata Carneiro (1972: p.54), repetindo to proximamente o

modelo que se pode dizer ser a primeira gua de diluio das crenas e prticas

religiosas no pas. De tal maneira, seguindo as referncias dos orixs aos santos da

igreja catlica, a devoo a Oxal-Bonfim tornou-se um marco no calendrio das casas

de culto de Salvador e se proliferou no Brasil. Em Penedo, a festa da lavagem

realizada desde o ano de 2000, e sua prtica ritual segue a tradio iorub e busca

atravs de seus elementos simblicos aludir ao caminho trilhado pelo orix da criao,

demonstrando respeito e devoo a divindade, e homenageando a cultura negra pelos

anos de resistncia.

A relao de transio entre os dois santos fica mais clara a partir dos

apontamentos de Lody (2006), coincidindo com as prticas rituais aqui mencionadas:

Oxal tambm conhecido como Pai, Grande Pai, Pai Maior, Pai dos Orixs,

Pai de Todos, Orix do Pano Branco, Orix Funfun, e ainda tem analogia

fortssima com o Bonfim Senhor da Colina Sagrada. Oxal-Bonfim uma

relao e um reconhecimento nacional vinda com os afro-baianos -, unindo

santo da Igreja com santo do Candombl (LODY, 2006: p.292).

Oxal um ser fundamental na cultura afro-brasileira, figura ancestral, o

responsvel pela criao do homem, que com um assopro nas narinas do boneco de

barro deu vida e condio de procriao aos homens. Representado na figura de

Oxaluf, o velho rei, pai de Xang, sbio e paciente, tem como smbolo maior o

opaxor; um cajado geralmente feito em metal prateado, que serve de apoio ao

caminhar, e reflete significados. Unindo a relao simblica do manuseio de elementos

tradio praticada nos cultos de candombl, ao incorporar um orix, os filhos de santo,

ou mdiuns, como geralmente so denominados, so paramentados com objetos,

smbolos de seus respectivos orixs. Nos cultos realizados na roa de santo alguns

smbolos denotam a presena da divindade nos espaos rituais atravs da performance

bem como da presena de elementos simblicos, como descreve Santos (2012):

33

A festa de candombl um ritual cuja liturgia integra cantos, danas, msica

e possesso, associados a exibio de roupas rituais, ornamentos, insgnias,

cores e formas sagradas. Durante a sua realizao, verifica-se uma profuso

de aes, imagens, comportamentos e smbolos cujos significados no se

pode buscar exclusivamente na esfera religiosa, mas tambm na relao que

esta mantem com a arte, a esttica, e o contexto social onde ela ocorre

(SANTOS, 2012: p.133).

Como aponta a autora, os cultos de candombl buscam trazer os seus Deuses a

terra, e atravs da juno dos vrios fatores que a representao dos santos se faz

presente nos cultos. Os smbolos, como aponta Turner (2005: p.68) possuem a

capacidade de transmitir valores e emoes, e nos cultos afro-religiosos estes so

fundamentais para o desenvolvimento do ritual. Outro exemplo o uso do cajado, um

elemento que conduzido e utilizado em muitos cultos afro-religiosos nas aes de

incorporao Oxaluf, um elo que liga e materializa a lenda realidade cultural

religiosa, utilizado principalmente durante os toques para o orix, onde o cavalo, ao

incorporar a divindade geralmente se paramenta com seus objetos, que so de posse do

santo e no se podem ser expostos ou manuseados por outros filhos de santo que no

sejam os filhos de Oxal, no caso, do respectivo orix:

O opaxor caracteriza, nos terreiros de candombl, Oxaluf, marcando ainda

todo um processo gerador de ancestralidade, de poder tradicional, encarnando

histrias que justificam origens do mundo e dos homens. O Opaxor o

objeto sagrado e distingue-se o conceito de paternidades e tambm de

bissexualidade no prprio ser hermafrodita de Oxal (LODY, 2006: p.294).

Alm de Oxaluf, na qualidade de velho ancestral, a divindade tambm

representada na qualidade de jovem guerreiro, denominado Oxagui. Conhecido como o

orix na fase jovem da vida, o chefe tribal, comedor de inhame pilado, tem como

principais smbolos o escudo de prata, o pilo e o ator, uma vara em forma de cajado,

um dos seus principais smbolos rituais que tambm manuseado em alguns rituais

dedicados ao orix nas celebraes do ciclo do inhame, ou ciclo da colheita15

:

Uma vara de madeira usada como smbolo do poder por parte da direo do

terreiro, especialmente no candombl [...] de uso nos assentamentos de

Oxal e tambm cerimonialmente portado numa obrigao pblica

conhecida como pilo de Oxal e que homenageia Oxagui Oxal jovem,

guerreiro (LODY, 2006: p.156).

Ao longo da obra Mitologia dos Orixs Prandi (2001) relata os acontecimentos

vividos por Oxaluf, que decide viajar ao reino de Oi para visitar seu filho Xang, e

15

Alguns terreiros celebram os ciclos de colheita, fases da lua e da vida das divindades africanas, como o caso da Casa de Iemanj Iy Ogun-T em Macei, de nao Jje-Nag que segue um calendrio iorub baseado em ciclos onde so feitas as oferendas e os toques para os orixs do panteo cultuado pela casa.

34

como sendo tradio para os africanos, antes da viagem o orix busca consultar o

orculo. Na consulta, o orculo lhe recomenda no seguir viagem, e mesmo assim, por

insistncia Oxaluf segue sua rota renunciando as orientaes do babala.

Ainda sim, o adivinho aconselha o velho sbio a levar consigo trs panos

brancos, sabo e lima-da-costa, e como recomendao ser sbio e imperativo ao longo

do trajeto caso houvesse algum imprevisto durante a viagem. Ao longo do trajeto,

Oxaluf encontrou por trs vezes Exu, que nas trs vezes solicitou ajuda ao velho rei.

No primeiro encontro Exu pediu ajuda a Oxaluf para carregar seu fardo pesado

de dend, no segundo encontro pediu para ajudar a carregar um pote de mel e no

terceiro encontro pediu ajuda para carregar seu fardo de carvo. Nas trs vezes em que

foi ajudado, Exu acabou derrubando em Oxaluf os elementos que transportava, sujando

propositalmente suas vestes. Lembrando-se dos conselhos do Babala, suportou em

silncio as armadilhas de Exu, e a cada ajuda concedida acabou se sujando, e para se

limpar sempre se banhava em algum rio que encontrava pelo caminho. Trocava suas

roupas sujas por veste limpas, sempre repetindo estas aes at chegar cidade de Oi,

o destino de sua viagem.

Na entrada da cidade, Oxaluf avistou um cavalo, um animal que parecia

perdido, e reconheceu que aquele cavalo era o que havia presenteado seu filho Xang.

No mesmo instante o velho sbio tentou amansar o animal para lev-lo de volta ao rei,

durante estas tentativas de domar o animal foi avistado por alguns soldados que

pensaram ser um ladro que estava roubando o cavalo do rei Xang. O orix foi

aprisionado, e na priso foi maltratado. Permaneceu todo o tempo que esteve preso em

silncio, agiu de acordo com os conselhos do orculo, e desgostoso com o que lhe

aconteceu, lanou sobre o povo e o reino de Oi uma lio. Durante longos sete anos a

terra no mais prosperaria, se tornaria infrtil, onde os animais no procriariam, as

mulheres no engravidariam, os campos se tornariam estreis e muitas doenas

assolariam o reino, e assim se fez.

Preocupado com tal situao, as mazelas que assolavam todo o reino, o rei

Xang decidiu consultar o babala da corte, e descobriu que seu pai estava sendo

mantido como prisioneiro em seu prprio reino por longos sete anos, julgado por um

crime que no havia cometido, e que mesmo assim nunca havia reclamado por tal

injustia, sendo paciente e silencioso. Xang imediatamente foi priso e mandou

35

soltar seu pai, pedindo desculpas pelo ocorrido, ordenou que lhe trouxessem gua do rio

para banhar Oxal, gua limpa e fresca para o rei.

O orix teve o corpo lavado e untado com lima-da-costa, e aps a limpeza foi

envolto com os panos mais nobres, alvos e perfumados. Tambm vestido com roupas

claras Xang levou seu pai at a entrada do reino, que estava sendo aguardado por todo

o povo, que havia lavado as ruas com o omim perfumado, e enfeitado todo o caminho

com flores brancas para aguardar a passagem de Oxal. O orix foi saudado por todo o

povo, e seguiu caminhando apoiado no opaxor, coberto com seu al branco, um tipo de

sobrinha para se proteger da luz do sol.

Segundo a lenda acima descrita e relatada em Prandi (2001) que conta toda a

trajetria do rei Oxal, e que tambm relatada por alguns lderes religiosos16

que

comemoram em seus respectivos terreiros a colheita do inhame e as festividades

dedicadas ao orix, coincidentemente e/ou como forma de aluso, o ritual da lavagem

busca reproduzir os passos da mitologia. Rememorando a tradicional lavagem de Oi, o

cortejo segue da Praa Clementino do Monte at a Igreja de Nossa Senhora do Rosrio

dos Pretos, onde so lavados o adro e os degraus do templo religioso, e se reverencia o

orix da criao, da paz, e dos caminhos pedindo paz e proteo aos participantes do

ritual durante os festejos de carnaval. Como visto em Prandi (2001), os smbolos

mostrados na lenda de Oxaluf e nos escritos sobre a vida de Oxagui so utilizados no

ritual, e em sua significao transmitem informaes do que representado em cada

etapa do ritual.

Tomando assim o exemplo das aes dos seguidores do cortejo do Bonfim

observadas durante o trabalho de campo, como confere Geertz (2012: p.73), o homem

tem uma dependncia to grande em relao aos smbolos e sistemas simblicos a ponto

de serem eles decisivos para sua viabilidade como criatura e, adota a definio de

smbolos enquanto a concepo que se tem de seus significados. como se buscasse

resposta atravs das aes e das referncias aos elementos manuseados em

determinados rituais, que empreende enquanto um dos desafios das religies.

O que Geertz (2012: p.71) tenta mostrar coincidentemente o que se apresenta

durante a festa de lavagem aqui analisada. Muitas das prticas que envolvem

16

Em entrevistas realizadas com os Babalorixs Fernando de Oy Balegun e Clio de Iemanj a lenda descrita na obra de Prandi (2011) faz total referncia s prticas desenvolvidas nos rituais pesquisados em Alagoas.

36

acompanhantes rituais (sejam religiosos ou no) podem ser interpretadas enquanto uma

relao de dependncia e troca de benefcios.

As festas podem desempenhar funes e significados especficos aos seus

envolvidos, e como apontam Gonalves e Cotins (2008) ao descreverem as relaes de

dependncia entre os homens e as divindades, relatam como se institui a relao entre o

ser superior e seus devotos atravs do ritual, um espao de estreitamento de laos para

muitos dos presentes, que por motivos especficos exercem a devoo ao sagrado:

Na ideologia dos devotos, a festa realizada para agradar o Divino Esprito

Santo, a partir do momento em que se faz alguma promessa ou quando se

pretende retribuir alguma graa recebida. Essas so noes nativas por

meio das quais se expressa de modo sensvel a relao de troca entre os

devotos e o Divino Esprito Santo. Essa relao interpretada por meio das

categorias da ddiva e da contraddiva, estabelecendo-se simbolicamente

uma relao permanente com o Esprito Santo. O trabalho individual e

coletivo envolvido no conjunto das atividades de preparao e realizao das

festas deve ser interpretado como parte desse intenso e permanente circuito

de trocas (GONALVES E COTINS, 2008: p.79).

Os sistemas religiosos e seus sistemas simblicos ligados s prticas recorrentes

dos fieis so espcies de axiomas, que podem ser discutidos na forma de smbolos de

motivao, que provocam uma inclinao e transformam as aes dos indivduos

principalmente quando se apresentam nos espaos reconhecidos como modelos de

santurios, espaos sagrados.

Segundo informaes do babalorix Pai Bob, atravs dos smbolos apreendidos

durante a realizao das etapas do ritual algumas caractersticas do orix so refletidas

ao longo da festa da lavagem, principalmente atravs da indumentria, dos paramentos e

das cores dispostas. Coincidentemente ou propositalmente, o branco, cor que simboliza

a paz a cor de Oxal, assim como a indumentria de seus filhos de santo e de grande

parte dos acompanhantes do ritual.

Assim como Lody (2010: p.107) faz referncias ao branco, Turner enfatiza a

relao das cores e a ligao destas com os elementos rituais (1974: p.86), e assim como

as cores e muitos outros smbolos do candombl, o processo de assimilao de cada

instrumento utilizado por determinada sociedade ou grupo pode transmitir uma

mensagem clara para quem no est diretamente ligado a tais manifestaes. Segundo

descreve Turner (2005) enfatizando as prticas cerimoniais dos Ndembu, tais povos

fazem uso de rituais para instituir momentos, etapas, passagens e fases da vida social de

seu povo, onde cada ritual tem seu significado, objetivo e eficcia especficos:

37

Assim, um aspecto do processo de simbolizao ritual entre os Ndembu

fazer visvel, audvel e tangvel crenas, ideias, valores, sentimentos e

disposies psicolgicas que no podem ser percebidas diretamente. O

processo de tornar pblico o que privado, ou tornar social o que pessoal,

est associado com o processo de revelar o desconhecido, o invisvel ou o

oculto. Tudo o que no pode ser provado estar em conformidade com as

normas ou em termos dos valores da sociedade potencialmente perigoso

para sua coeso e continuidade (TURNER, 2005: 84).

Desta maneira, o ritual da lavagem do Rosrio Largo busca transmitir sua

mensagem sociedade, desmistificando crenas, resgatando valores e mantendo a

tradio de cultuar cada orix atravs de seus respectivos smbolos rituais e dividindo

seu espao com outras crenas. Crenas estas que foram incorporadas aos festejos

pblicos do candombl e configuram uma prtica coletiva, no excludente, tampouco

institucionalizada enquanto pertencente a esta ou quela denominao de f.

38

1.2 A limpeza do Beco da Preguia e a lavagem do Rosrio Largo

Uma cidade ribeirinha cercada de igrejas coloniais, inclusive uma de suas Igrejas

dedicada ao Senhor do Bonfim, assim como a So Gonalo, Nossa Senhora dos Anjos

e muitos outros santos, Penedo composta por nove igrejas seculares que durante o

perodo colonial foram frequentadas apenas pelos brancos, como sabido atravs da

histria. Exceto a igreja do Rosrio, um templo que foi construdo pelos negros

pertencentes Irmandade de Nossa Senhora do Rosrio dos Homens Pretos nos

primrdios do sculo XVII, no ano de 1634, que pela falta de recursos sua construo se

estendeu por dois sculos, sendo celebrada a primeira missa somente em 1860.

Os negros, sendo a grande maioria condicionados ao regime escravocrata eram

submetidos ao batismo forosamente a mando de seus Senhores, com o propsito de

distanci-los da tradio negra africana, dando-lhes a oportunidade de salvao, como

aponta Dantas (1988) ao discutir o sistema religioso nag e suas tradies puras. Ao

longo dos anos a tradio se modificou junto com a posio e ascenso social de muitos

negros, a maioria deles negros alforriados que exerciam alguma profisso, os chamados

negros de ofcio. Mudanas estruturais na estratificao da sociedade provocadas por

estar diretamente ligadas ao desenvolvimento do comrcio na regio do baixo So

Francisco. H registros de que a regio tambm era rota de fuga de escravos, e a cidade

chegou a alocar alguns quilombos em sua circunvizinhana, assim como em um bairro

prximo ao centro histrico da cidade, o quilombo de negros Mals denominado

Oiteiro17

. J no fim do sculo XX, por volta da dcada de 90 os babalorixs Pai

Fernando e Pai Bob chegaram cidade e se instalaram numa regio ainda em

crescimento, na poca chamado Loteamento Vitria, uma rea de tabuleiro que

proporciona uma viso da parte baixa da cidade e do rio So Francisco. Os lderes

religiosos abriram uma casa de culto de origem Jje-Ketu denominada Yl Ax Sessu

Omim Od Akuer, chamada por seus adeptos e frequentadores de roa de santo.

Segundo entrevista com o Babalorix Pai Fernando de Oi Balegun a tradio da

lavagem tem uma origem inspirada no ritual em Salvador18

e foi idealizada pelo

17

Ler Farias [et al] (2007). 18

Entrevista realizada em 12/03/2012 no terreiro Yl Ax Sessu Omin Od Akuer.

39

secretrio de cultura da poca, que tentou reunir casas de culto pra resgatar a tradio da

lavagem do Beco da Preguia e valorizar a presena do negro na histria de Penedo19

:

Em 1999 alguns terreiros da regio foram procurados, sabe? Como eu era

conhecido por aqui, o secretrio de cultura na poca me chamou pra

conversar sobre a festa. Aqui o terreiro sempre fez toque pra Oxal, e como

ele queria uma festa que abrisse o carnaval, pensou na lavagem, uma festa

como a de Salvador, mas numa data diferente. Tivemos o apoio da Prefeitura

Municipal no comeo, que organizava o espao, como ainda faz, mas hoje

tudo quem corre atrs a gente (BALEGUN, 2012).

A festa aos poucos foi adquirindo uma conotao religiosa, porm sem se

desprender dos festejos profanos do carnaval. Mesmo que seguindo um modelo inicial,

suas circunstncias a tornaram particular principalmente por agregar a tradio festiva

dos rituais de lavagem junto ao carnaval de rua mediante a popularizao dos cultos de

candombl. Em DaMatta abordada uma anlise que enfatiza o envolvimento dos

brasileiros com as noes de ambiguidade, e que interpreta enquanto suplementares as

relaes de complementaridade entre as prticas religiosas no pas, afirmando que o que

uma determinada prtica probe, outra permite, e assim se intensifica a singularidade

dos cultos. Ainda que a Igreja Catlica apregoe aos seus rituais um sentido mais

impessoal, politizado e socialmente aceito, as formas pblicas de ritualizar provocam

emoes, como o exemplo dos milagres que so to exaltados popularmente.

Para o autor todas as aes que so representadas pelas regras, bem como pelo

descumprimento de muitas delas, s enaltecem o quanto os brasileiros so

profundamente religiosos, e que so mltiplas as formas e possibilidades de proteo

buscadas pelos homens:

Ns, brasileiros, temos intimidades com certos santos que so nossos

protetores e padroeiros, nossos santos patres; do mesmo modo que temos

como guias certos orixs ou espritos do alm, que so nossos protetores. [...]

Somos fieis devotos de santas e tambm cavalos de santo de orixs, e com

cada um deles nos entendemos muito bem pela linguagem direta da

patronagem ou do patrocnio mstico por meio de preces, promessas,

oferendas, despachos, splicas e obrigaes que, a despeito de diferenas

aparentes, constituem uma linguagem ou cdigo de comunicao com o alm

que obviamente comum e brasileira (DAMATTA, 1986: p.117).

De acordo com alguns relatos de moradores a tradicional Lavagem do Beco da

Preguia comeou como uma brincadeira dos moradores, residentes no municpio,

especificamente nos arredores do beco, que durante as festividades era ornamentado e

lavado devido o mau cheiro no local provocado pelos excrementos depositados pelos

19

O ento secretrio de cultura Srgio Paulo Rodrigues no ano de 2000 organizou a festa da Lavagem com a participao dos terreiros, resgatando a lavagem do Beco que j era feita durante a dcada de 80 pelos moradores locais.

40

folies que usavam o beco como banheiro. Diante de tais circunstncias a prtica dos

moradores do beco foi se tornando um atrativo para a populao em tempos de festa, e

por volta do fim da dcada de 80 a prtica foi adquirindo uma maior conotao festiva,

fato que acabou virando tradio e h dcadas faz parte do carnaval da cidade.

H cerca de 30 anos o carnaval da cidade um dos mais frequentados na regio

do Baixo So Francisco, sendo aberto pelo tradicional ritual da "Lavagem do Beco da

Preguia", rua que d acesso ao Largo do Rosrio, ou Rosrio Estreito20

como

conhecido, espao em que est situada a Igreja de Nossa Senhora do Rosrio dos Pretos.

Segundo o historiador e pesquisador Jos Carlos Sebe, o carnaval brasileiro se

tornou aberto enquanto uma celebrao nacional a partir da organizao do povo, de

manifestaes de resistncia e que remete a coletividade brasileira inverso absoluta

de valores, sendo analisado luz de duas linhas de inspirao Greco-romanas opostas:

Segundo os pressupostos dionisacos o carnaval seria uma festa que

conduziria ao desarranjo da ordem estabelecida. O grande projeto do carnaval

seria ento a inverso do estabelecido, a troca de papeis por meio do

disfarce liberado. A linha apolnea prope o oposto: mostra a tendncia ao

espetculo atravs da (re)organizao dos elementos dispostos no espao

social (SEBE, 1986: p.77).

Um pensamento que define o carnaval enquanto um instante de combinao de

valores sociais, culturais e da juno de grupos variados, que num instante opositor

realidade social se mostra harmnico e plural.

Uma abordagem analtica bastante semelhante DaMatta ao apontar o carnaval

como sendo um espao de inverso de valores e papeis onde predomina a ideia de

igualar e juntar, celebrar as relaes sociais e a suspenso de fronteiras (1986: p.84).

Em se tratando do cumprimento dos papeis que seguem uma possvel ordem

estabelecida no cotidiano da vida social dos moradores da cidade, a limpeza urbana,

assim como a preservao dos espaos pblicos e privados aparenta ser uma tarefa

constante, comum para a maioria de seus habitantes, e os becos da cidade, alguns com

pouca luminosidade ou movimentao so facilmente utilizados como banheiros

pblicos. Foi justamente buscando evitar o acmulo de sujeira e a preparao da cidade

para as comemoraes de carnaval que os moradores iniciaram as prticas da lavagem

do beco. No s em Penedo como em outras cidades o mela-mela uma brincadeira

20

O Largo do Rosrio o espao, a praa onde se situa a Igreja de Nossa senhora do Rosrio dos Pretos, ligada pelo Beco da Preguia, regio que recebe tambm o nome popular de Rosrio Estreito.

41

praticada durante o carnaval, iniciado no Brasil atravs do uso de serpentinas e confetes

trazidos dos tradicionais bailes da Europa, aqui bastante utilizados em meados do sculo

XX, e substitudos ao longo do tempo por farinha, gua, lana-perfume e outros

elementos que se tornaram smbolos das brincadeiras que marcam o tempo festivo,

como descrito em Sebe (1986).

Foi justamente durante tal perodo na cidade de Penedo que conheci os rituais de

lavagem, jamais havia presenciado algo parecido, onde as mulheres vestidas de baianas

com flores brancas e gua perfumada, juntas aos adeptos do Candombl desfilavam

pelas ruas da cidade at um determinado espao onde era lavado o cho da igreja e parte

da rua. A festa impressiona pela beleza e exuberncia das mulheres enfileiradas, e o

aglomerado de acompanhantes, turistas e curiosos vai tomando as ruas ao mesmo tempo

em que a folia que antecipava a abertura oficial do carnaval fica paralisada ao som dos

atabaques. Aqui a festa da lavagem se realiza desde o ano de 2000, pontualmente as

sextas-feiras que abrem oficialmente o carn