Espiritualidade e práticas de Saúde Integração da Espiritualidade na Prática Clínica
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO
CENTRO DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
CURSO DE MESTRADO EM EDUCAÇÃO
ANDRÉA SANTANA DA SILVA OLIVEIRA
A INCLUSÃO DA ESPIRITUALIDADE NOS PROCESSOS DE EDUCAÇÃO
DA INFÂNCIA: Uma Análise do Projeto Pedagógico do Centro Infantil Jardim
de Lótus e da Escola Caminho do Meio
RECIFE
2017
ANDRÉA SANTANA DA SILVA OLIVEIRA
A INCLUSÃO DA ESPIRITUALIDADE NOS PROCESSOS DE EDUCAÇÃO
DA INFÂNCIA: Uma Análise do Projeto Pedagógico do Centro Infantil Jardim
de Lótus e da Escola Caminho do Meio
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
graduação em Educação da Universidade Federal de
Pernambuco como requisito parcial para obtenção
do título de Mestra em Educação.
Linha de pesquisa: Educação e Espiritualidade
Orientador: Prof. Dr. Alexandre Simão de Freitas
RECIFE
2017
ANDREA SANTANA DA SILVA OLIVEIRA
A INCLUSÃO DA ESPIRITUALIDADE NOS PROCESSOS DE EDUCAÇÃO
DA INFÂNCIA: Uma Análise do Projeto Pedagógico do Centro Infantil Jardim
de Lótus e da Escola Caminho do Meio
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
graduação em Educação da Universidade Federal de
Pernambuco como requisito parcial para obtenção
do título de Mestra em Educação.
Aprovada em: 27/03/2017
BANCA EXAMINADORA
____________________________________________________________ Prof. Dr. Alexandre Simão de Freitas (Orientador)
Universidade Federal de Pernambuco
____________________________________________________________ Prof.ª Dr.ª Maria Thereza Didier de Moraes (Examinadora externa)
Universidade Federal de Pernambuco
____________________________________________________________ Prof.ª Dr.ª Lucinalva Andrade Ataíde de Almeida (Examinadora interna)
Universidade Federal de Pernambuco
Dedico este texto as infinitas possibilidades do existir, e aos grandes mestres que tenho na
vida e às singulares experiências de (trans) formação que eles e elas me proporcionam.
AGRADECIMENTOS
Quero agradecer primeiramente a minha mãe amada. Sem ela, sem seu suporte, seu
amor, sua dedicação, eu não teria chegado a lugar algum. Agradeço a ela por sua bondade,
generosidade e principalmente por me ensinar o que é servir e me apoiar em todas as minhas
escolhas – mesmo aquelas com as quais não concorda – e por ser minha casa, meu porto
seguro. Sua torcida e sua confiança em mim me alimentam e me dão forças para continuar,
mesmo quando as coisas ficam mais difíceis.
Agradeço a Alexandre pela paixão de ser educador, pela generosidade, pela acolhida,
pelos ensinamentos tantos, por sempre estar envolvido em todo processo de elaboração deste
trabalho e por confiar em mim. Meu profundo reconhecimento pela atenção, cuidado e apoio
constante.
Aos meus filhos amados, Julia e João Pedro. Duas flores de lótus que foram dadas aos
meus cuidados. Obrigada por todos os dias me ensinarem o sentido de viver.
Aos alunos da Escola Professor José da Costa Porto pela abertura nessa caminhada.
A todas as crianças do NEIMNFA que me acolhem, e me proporcionaram uma relação
mais aberta com a infância, por isso posso ser a educadora que sou hoje.
A João, a ele também agradeço por seu amor, por ser meu amigo, meu companheiro,
meu namorado. Agradeço pelo reencontro, pela vida compartilhada, sem seu apoio tudo teria
sido mais difícil. Agradeço por todo amor e confiança, que inconscientemente me ajudou no
processo da escrita. Obrigada por passar a noite junto comigo acordado.
Às minhas irmãs pelo amor,confiança e força o apoio afetivo no decorrer deste
trabalho, e sempre me incentivando a não desistir.
Ás minhas filhas que Deus me presenteou Monielly e Monick, pelo carinho, amizade e
por estarem sempre próximas.
Aos meus familiares, representados na figura de Marinhia, Lucas, Lucina, Lucélia,
Luciana, Liane, Por torcerem e compartilharem dos meus sonhos.
À Aurino,pois todo sonho de cursa uma universidade foi despertado no curso
Educador de Social.( um divisor de águas na minha formação). Gratidão pelo amor, carinho e
por estar sempre presente na minha vida.
Aos amigos que a vida me presenteou, principalmente a Alice, Fernanda, Adriano,
Sidinho, Silas, Cleiton, Natalia e Katarina pelos encontros. O apoio deles foi fundamental
para essa caminhada. Agradeço por mostrarem a mim que “o essencial é invisível aos olhos”.
E habitar dentro de mim uma presença autentica.
Aos amigos do Grupo de Pesquisa pelos encontros, pelos entendimentos
compartilhados, carinho e acolhimento. À Girlane, Gisa, Auta, Procópio, Gelson, Renata,
Talita, Oscar e Teca.
Aos professores/formadores do NEIMFA, representados na figura de Antonio,Tati e
Everson. Obrigada pelos ensinamentos, pela amizade e experiências compartilhadas. À todos
aqueles que passaram pela minha vida e me ensinaram tanto.
Às mães e mulheres da comunidade do Coque,representadas na figura de Di, Djane,
Valda, Luiza, Nenê, Valdelucia dona Zezé.Obrigada por transbordarem força, pois na
presença de cada uma pude perceber a guerreira que sou.
Às mulheres para quais um dia brincando eu disse “quando eu crescer quero ser igual
à vocês”: Lucia, Ana e Emilia. A vocês eu agradeço pela presença, amizade, carinho e pela
experiência de ser educadora.
E ao lugar que me acolhe, que tanto me ensina, a este lugar chamado NEIMFA. Aos
mestres espirituais que ali habitam, e que mantém vivo dentro de mim o amor, liberdade e
compaixão.
Agradeço a turma de mestrado 33, pela companhia no inicio dessa jornada.Meu muito
obrigada a Claudio Fernando.
Ao Programa de Pós-Graduação em Educação da UFPE, em especial a Morgana, e aos
estagiários e estagiárias que nos atendem tão bem.
Agradeço à Capes pela bolsa de estudo,que me auxiliou durante esse tempo e fez com
que tudo fosse possível.
Muito obrigada!
A experiência, a possibilidade de que algo nos passe ou nos
aconteça ou nos toque, requer um gesto de interrupção, um gesto
que é quase impossível nos tempos que correm; requer parar para
pensar, para olhar, para escutar, pensar mais devagar, olhar mais
devagar, demora-se nos detalhes, surpreender a opinião, suspender
o juízo, suspender a vontade, suspender o automatismo da ação,
cultivar a atenção e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar
sobre o que nos acontece, aprender a lentidão, escutar os outros,
cultivar a arte do encontro, calar muito, ter paciência e dar-se
tempo e espaço.
(LARROSA, Linguagem e Educação depois de Babel, 2004, p.160)
RESUMO
Essa dissertação parte da ideia de que a problematização da infância como alvo concreto da
reflexão filosófica tem deslocado as imagens historicamente instituídas de criança enquanto
ser marcado pela incompletude com base em uma temporalidade estritamente cronológica.
Em consequência os discursos pedagógicos que abordam a experiência infantil têm
mobilizado dimensões comumente ignoradas ou desqualificadas como a espiritualidade.
Nessa direção, a ideia mais ampla desse trabalho consiste em analisar a inclusão da
espiritualidade em propostas formativas voltadas à formação da infância em espaços
educativos formais e não formais. De forma mais específica, buscamos discutir os usos da
noção de espiritualidade nos processos educativos, tendo em vista apreender como esses usos
permitem superar as percepções construídas sobre a infância nas teorias pedagógicas. Para
atingir esse propósito realizamos uma análise da proposta pedagógica da Escola Jardim de
Lótus (NEIMFA/PE) e da Escola Caminho do Meio (CEBB/RS), identificando junto aos
educadores sua percepção do processo formativo da infância. O percurso metodológico
baseou-se em uma pesquisa qualitativa que utilizou como instrumentos de investigação a
análise de documentos e entrevistas semiestruturadas com quatro educadores. O tratamento e
a análise dos dados seguiram as diretrizes da análise de conteúdo temática. Os resultados
apontaram que a espiritualidade pode contribuir, de fato, para pensar outras formas de educar
a infância, destacando-se a noção de mandala como dispositivo pedagógico que favorece a
construção de práticas curriculares alternativas. Com base nas entrevistas foi possível
constatar também que a dimensão espiritual parece ser imprescindível enquanto categoria nos
processos educativos para a infância ao potencializar dinâmicas que permitem lidar com
alteridade da criança, afetando as relações que educador estabelece em sala de aula, mas
principalmente ampliando sua visão de educação e de mundo.
Palavras-chave: Infância. Espiritualidade. Mandala.
ABSTRACT
The problem of the childhood as a specific target of the philosophical reflection has changed
the images historically instituted of the child as an “incomplete being” and also questioning
pedagogical discourses that relate children experience to a strictly chronological temporality.
This, the main idea of this dissertation is to analyze the inclusion of spirituality in proposals
for childhood education in formal and informal spaces. We intend to discuss the use of the
spirituality notion in the educative process, and to know how this can help to overcome the
perceptions about childhood in the pedagogical theories. To achieve this goal we did an
analysis fron two pedagogical proposals “Escola Jardim de Lotus (NEIMFA / PE)” and
“Escola Caminho do Meio (CEBB / RS)”. We tried to identify with teachers their perception
about formative process of childhood. The methodological way is based in qualitative
research, observing documents and with teachers‟ interviews. At last we had a thematic data
analysis. The results showed that spirituality can help to thinking childhood education.
Mandala‟s notion as a pedagogical device help to make activities, based in a process where
the children neecl to deal high visions. The interviews showed too that the spiritual dimension
is indispensable for the education process in the childhood, because it strengthens dynamics
that help in formative experiences in so far the matter is our relation with one another, with us
and with our behavior as masters.
Keywords: Childhood. Spirituality. Mandala.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO 13
2 FILOSOFIA, EDUCAÇÃO E INFÂNCIA: UMA NOÇÃO, MÚLTIPLOS
OLHARES 19
2.1 A Infância aquém e além dos discursos escolarizantes: em busca de outros olhares 26
3 A EDUCAÇÃO DA INFANCIA ENTRE O GOVERNO E A
ESPIRITUALIDADE: novos desafios, uma aposta 37
3.1 Notas históricas acerca do governo da infância no Brasil 38
3.2 Educar a infância no atual contexto político-curricular 42
3.3 Espiritualidade e infância como signos da experiência formativa 48
4 PERCURSOS METODOLÓGICOS 54
4.1 O movimento. 55
4.2 O corpus 59
4.2.1 Dom, o educador com a destreza de um elfo 60
4.2.2 Kali, a educadora empoderada pela magia e pelo afeto 61
4.2.3 Céu, o educador que percebeu a matrix 63
4.2.4 Lua, a educadora que está vivendo a realização e a felicidade 64
4.3 Lócus 65
4.3.1 Núcleo Educacional Irmãos Menores Francisco de Assis: educação cidadania
com espiritualidade 66
4.3.2 Centro de Estudo Budista Bodisatva: cultura de paz e bom coração 69
5 CAMINHANDO EM MEIO AOS NOVOS JARDINS DA INFÂNCIA 71
5.1 Era uma vez, no Centro Infantil jardim de lótus 72
5.2 Vamos passear na Escola caminho do meio 77
5.3 Uma conversão do olhar... Vamos brincar de infância? 81
5.5 Compreensão de espiritualidade pelos educadores 89
6 EDUCAÇÃO E ESPIRITUALIDADE: por um mandala da infância 99
6.1 O mandala como dispositivo pedagógico ou quando dos mundos da infância surgem
inseparáveis das nossas mentes 100
6.2 A infância como experiência de mundos em construção 112
7 CONSIDERAÇÕES FINAIS 125
REFERÊNCIAS 127
ANEXO A: Roteiro de entrevista com o formador 135
ANEXO B: Termo de consentimento livre e esclarecido 137
13
1 INTRODUÇÃO
A criança não é nem antiga nem moderna, não está antes nem depois, mas
agora, atual, presente. Seu tempo não é linear nem evolutivo, nem genético
nem dialético, nem sequer narrativo. A criança é um presente inatual,
intempestivo, uma figura do acontecimento.
Jorge Larrosa
Do ponto de vista acadêmico mais amplo, o interesse pela relação entre a infância e a
espiritualidade tem origem nos debates recentes travados no âmbito da Filosofia da educação.
A problematização da infância como alvo concreto da reflexão filosófica tem deslocado as
imagens historicamente instituídas de criança, enquanto ser marcado pela incompletude
(KOAN, 2007; LARROSA, 2004, PAGNI, 2010). Esse debate tem contribuído para
redimensionar nossa relação com a infância por meio de experiências filosóficas que visam
outras formas de pensar a educação através de um olhar mais atento e sensível.
Nessa direção, esta dissertação entrelaçou duas categorias, a infância e a
espiritualidade, interrogadas desde as contribuições das chamadas abordagens pós-
estruturalistas. Isso porque admitimos, com Alfredo Veiga-Neto (1996b, p.169), que a crítica
pós-estruturalista em educação está preocupada não com “o que é mesmo” a infância ou com
a “maneira correta” de educá-la, mas com os diferentes discursos que permitem formular,
fundamentar e justificar determinadas concepções de infância, bem como projetos
pedagógicos e prescrições metodológicas que terminam por se constituir como regimes de
verdade no campo educacional.
Fazer pesquisa, desde essa perspectiva, significa desfamiliarizar, levar ao
estranhamento os nossos conceitos e discursos sobre uma suposta “natureza infantil” e sobre a
própria educação. Mas, sobretudo, significa entender os fenômenos em sua indeterminação,
em sua complexidade e não linearidade (MARTON & SILVA, 2012). A infância não é um
espaço em branco, muito menos um “objeto” do mundo natural ou social. Por isso, ela não
pode ser separada do nosso esforço para conhecê-la e da linguagem que usamos para
descrevê-la. Dessa ótica, não partimos nem pressupomos características dadas como
universais das crianças e que serviriam de fundamento para os processos de educação da
infância.
Como indicam os autores que foram privilegiados, os significados de criança e de
infância que guiam os nossos atos cotidianos são constituídos em meio a múltiplos e
complexos jogos de linguagem. Foucault, por exemplo, vai dizer que “se a linguagem
14
exprime, não o faz na medida em que imite e reduplique as coisas, mas na medida em que
manifesta e traduz o querer fundamental daqueles que falam” (apud VEIGA-NETO, 1996a, p.
306).
Destacamos intencionalmente essa posição do pensador francês Michel Foucault, uma
vez que, nos seus trabalhos finais, ele afirmou também, para espanto de muitos dos seus
comentadores e estudiosos de seu pensamento, que a espiritualidade pode contribuir para
redefinir o papel da filosofia e da educação, concebendo-as como elementos vitais das
chamadas artes de viver movidas pelo princípio do cuidado de si. Segundo Alexandre Filordi,
ele desdobrou uma compreensão de espiritualidade enquanto “um tipo de crítica constituída
em carne e osso às formas convencionais e habituais de se viver no mundo” (FILORDI, 2015,
p. 3), onde a espiritualidade compreenderia nossa capacidade de ultrapassar o que nos
condiciona, desdobrando outras formas de experiência subjetiva seja individual ou coletiva.
Sendo assim, um de nossos pressupostos é que essa percepção da espiritualidade como
exercício de autotransformação permitiria ultrapassar também as formas dominantes de
governo da infância1. Pensar a infância, nesse contexto, significa perceber sua construção
histórica e não o resultado de um desenvolvimento natural, desde sempre engajada em uma
evolução teleológica em que a cronologia marca uma fase da vida na qual a definição da
educação se dá em torno da transformação das crianças nos homens do amanhã. Uma analítica
do governo da infância possibilita ver o que se está fazendo das crianças e com as crianças
(RESENDE, 2015) e pensa-la desde o âmbito da espiritualidade ou das artes de viver
pressupõe que a infância, ela mesma, pode se tornar o signo de uma experiência formativa
singular.
Seguimos nesse último ponto as indicações do professor Pedro Pagni (2010), para
quem os trabalhos tardios de Foucault possibilitam reformular a compreensão de uma
pedagogia da infância, retomando aquilo que se esqueceu, desde a modernidade, a saber: a
infância como condição e possibilidade do próprio pensamento, signo plural de movimento e
de instabilidade do ato de pensar. A espiritualidade corrigiria, diz ele, o foco do olhar dirigido
às crianças e a práxis educativa ao fazer da infância uma experiência e um modo de contestar
a própria cultura pedagógica. Dessa perspectiva, a infância seria um acontecimento que se
“interpõe entre a experiência e a linguagem constitutiva da história e formadora do espírito”
(PAGNI, 2010, p. 114).
1 Embora Foucault não tenha desenvolvido uma teoria da infância ou uma formulação conceitual sistemática
sobre esse tema, há ferramentas, em seus ditos e escritos, que podem interrogar os modos de construção da
infância, a invenção do sujeito infantil e os dispositivos disciplinares presentes nas instituições (Cf. RESENDE,
2015).
15
Um segundo pressuposto ou horizonte de nossa investigação aponta para o fato do
próprio Ministério da Educação, através da Lei 11.274/2006, ter tornado obrigatório o
ingresso das crianças de seis anos no sistema formal de ensino. Desde então, admite-se a
necessidade de uma mudança não apenas nos currículos, mas na própria cultura escolar, a fim
de considerar a inclusão de outros saberes e outras práticas formativas (BRASIL, 2006, p. 9).
Para autores como Lobo (2012, p. 75), isso significa que, talvez, tenha chegado o
tempo de “aprendermos com as próprias crianças o que a infância tem a nos dizer”. Esse é o
cenário a partir do qual justificamos social e academicamente nossa motivação para
desenvolver o presente trabalho, que buscou discutir a inclusão da espiritualidade nos
processos de educação da infância. Contudo, a escolha efetiva dessa temática deve-se,
primeiro, ao meu sonho de me tornar professora de crianças; desejo esse que vem desde
minha infância quando brincava de “escolinha”. Além disso, e não menos importante, destaco
minha própria experiência de magistério quando realizei meus estágios com crianças em
escolas da comunidade do Coque, na cidade do Recife/PE. Por fim, paralelamente ao
exercício do magistério, participei de atividades promovidas pelo Núcleo Educacional Irmãos
Menores de Francisco de Assis. Essas atividades almejavam formar educadores sociais para
atuar na comunidade do Coque, comunidade onde nasci e moro. Essa experiência foi um
divisor de águas na minha vida pessoal e profissional. Pois nesse espaço experimentei uma
aproximação sensível com a espiritualidade mediada pela formação de vínculos afetivos
intensos, pelo cuidado e pela solidariedade.
Na verdade, foi atravessada por essa experiência que decidi cursar pedagogia na
Faculdade Frassinett do Recife (FAFIRE), retornando ao campo de estágio com um olhar
mais ampliado acerca da infância. Hoje, como estudante da pós-graduação em educação,
dentro da Linha de pesquisa em Educação e espiritualidade, e ainda imersa nas experiências
desenvolvidas pelo Núcleo Educacional Irmãos Menores de Francisco de Assis tento
aproximar essas duas dimensões: a infância e a espiritualidade. Para tanto, propus um
mergulho em duas experiências singulares de educação da infância. A primeira é
desenvolvida pelo próprio Núcleo Educacional Irmãos Menores de Francisco de Assis
(NEIMFA), organização que atua há trinta anos no Coque2. Insisto que a escolha por essa
organização social não foi casual visto que, para além das experiências que aí vivenciei e
2 Essa organização tem como missão promover o atendimento das necessidades de aprendizagem dos moradores
da comunidade do Coque, produzindo saberes e práticas que apoiem o desenvolvimento integral das pessoas,
estruturando-se a partir de cinco núcleos: o Núcleo de Direitos Humanos e Cultura de Paz; o Núcleo de Arte e
Cultura; o Núcleo de Gênero e Saúde; o Núcleo de Educação e Cidadania; e o Núcleo de Articulação e
Desenvolvimento Comunitário.
16
vivencio, o NEIMFA tem sido objeto de várias pesquisas acadêmicas (FERREIRA, 2007;
COUTINHO, 2012; TAVARES, 2014; RIBEIRO, 2014.), ao mesmo tempo em que suas
ações educativas obtiveram o reconhecimento do Prêmio Nacional de Educação em Direitos
Humanos pela articulação das ações de cuidado e espiritualidade atreladas à formação em
valores humanos de crianças e adolescentes3.
A segunda experiência abordada é o Centro de Estudos Budistas Bodisatva (CEBB).
Localizado na cidade de Viamão (RS), o CEBB foi fundado em 1986 pelo primeiro professor
(lama em sânscrito) brasileiro formado na tradição Nyngma do Budismo Tibetano: o Lama
Padma Santem. O CEBB desenvolve atividades de estudo e prática de meditação, além de
realizar retiros espirituais. Mais recentemente, passou a se dedicar ao cultivo sistemático da
cultura de paz como um caminho pedagógico para o estabelecimento de relações positivas nos
diferentes espaços da sociedade. O CEBB tem se destacado nacional e internacionalmente por
realizar um diálogo inter-religioso e intercultural com diferentes atores e áreas de
conhecimento, tendo inclusive criado a Escola Caminho do Meio que, dentre outras
atividades, cultiva uma curiosa experiência de educação infantil baseada na noção de
mandala.
Tanto o NEIMFA como o CEBB abordam as crianças de modo integral, criticando o
olhar objetivado dos adultos sobre a infância que terminam por ocultar os modos como as
próprias crianças vivenciam a realidade do mundo. Nesse sentido, essas duas organizações
constituíram propostas pedagógicas voltadas à educação da infância denominadas,
respectivamente, Centro Infantil Jardim do Lótus e Escola Caminho do Meio.
Nessas duas experiências, uma situada no campo da educação não formal e a outra
constituída como uma instituição formal de ensino, a noção de espiritualidade é
explicitamente acionada para repensar a educação da infância, o que nos levou a querer
apreender suas especificidades formativas. Acreditamos que suas propostas pedagógicas
podem fornecer algumas pistas importantes para redimensionar nossa maneira de olhar e
formar a infância, seja nos espaços formais de ensino, seja nos espaços não formais de
educação.
Assim, buscamos oferecer subsídios para o seguinte problema de pesquisa: Como a
espiritualidade tem sido incluída nos processos formativos da infância? Mais diretamente:
3 Vale ressaltar que foi no intento de promover a cultura de paz e os direitos humanos que o NEIMFA se
articulou com instituições e práticas relacionadas ao Budismo tibetano em nosso País (ver FERREIRA, 2007,
p.78).
17
Quais princípios, valores e estratégias pedagógicas são mobilizadas para construir e nortear
propostas específicas voltadas à educação da infância a partir da noção de espiritualidade?
Na intenção de responder essas questões, definimos como objetivo analisar a inclusão
da espiritualidade em propostas formativas voltadas à formação da infância em espaços
educativos formais e não formais. De forma mais específica, tentamos, por um lado, discutir
os usos da noção de espiritualidade nos processos educativos, tendo em vista apreender como
esses usos permitem superar as percepções historicamente construídas sobre a infância. Por
outro lado, apreender a compreensão da noção de espiritualidade presentes na proposta
pedagógica da Escola Jardim de Lótus (NEIMFA/PE) e da Escola Caminho do Meio
(CEBB/RS), identificando como os educadores percebem o processo formativo da infância.
Para enfrentar esses propósitos, delimitamos um percurso que buscou, primeiramente,
discutir como a noção de infância vem sendo abordada no campo da Filosofia da educação
brasileira. A tentativa consistiu em articular o modo como na modernidade a criança se tornou
um objeto para nossos sistemas de pensamento. Mas a ideia não foi fazer nem uma
reconstrução histórico-filosófica, nem uma arqueogenealogia da noção de infância. A
intenção foi apenas expor os elementos mais gerais desse debate, a fim de que, em um
segundo momento, pudéssemos expor e analisar as bases conceituais-formativas das duas
experiências pedagógicas que foram selecionadas pelo desenho metodológico da nossa
pesquisa.
A fim de orientar a compreensão dos passos efetivados organizamos a dissertação em
cinco momentos. No primeiro capítulo, intitulado “Filosofia, Educação, Infância: uma noção
múltiplos olhares” sistematizamos como a infância vem sendo abordada no campo filosófico-
educacional. No segundo capítulo, denominado “A educação da infância entre o governo e a
espiritualidade: novos desafios, uma aposta”, discutimos mais detidamente a relação entre
espiritualidade e infância. No terceiro capítulo, nomeado “Percursos metodológicos” expomos
o caminho de pesquisa delineado para “recortar” nosso fenômeno sem perder de vista que o
mesmo exige ser pensado em sua integralidade e contingência. No quarto capítulo,
“Caminhando em meio aos novos jardins da infância” apresentamos os achados centrais da
investigação, focalizando as histórias das duas instituições pesquisadas a fim de apreender seu
olhar acerca da infância e o papel da espiritualidade nos processos formativos. No quinto
capitulo, nomeado “Educação e espiritualidade: por uma mandala da infância” apresentamos
a proposta pedagógica do Centro Infantil Jardim de Lótus e da Escola Caminho do Meio.
Por fim, discutimos em “Breves considerações finais” deixamos expostas algumas das
dificuldades e tensões enfrentadas durante o percurso investigativo, apresentando uma espécie
18
de síntese de nossos principais resultados e discussões e sinalizamos os desafios abertos e a
serem futuramente explorados, pois ficou claro que ainda há muito a se fazer e a se pensar
desde a relação educação e espiritualidade nos processos de educação da infância.
19
2 FILOSOFIA, EDUCAÇÃO E INFÂNCIA: uma noção,
múltiplos olhares
Historicamente, no campo educacional, a infância é pensada enquanto estado de
incompletude, sendo relacionada a uma temporalidade cronológica. A infância também é
apreendida por uma série de dispositivos que objetivam o disciplinamento dos seus corpos.
Mesmo no âmbito da Filosofia da educação, até bem pouco tempo, eram raros os trabalhos
que tomavam a infância como uma categoria vital para pensar os processos de formação
humana.
Só muito recentemente a infância passou a ser percebida como uma forma de
experiência, manifestando um tempo em que o mundo pode ser reconstruído. Foi necessária
uma crítica radical para que a experiência da infância pudesse reencontrar um lugar nas
teorias filosóficas e educacionais contemporâneas. Pois conceber a infância como espaço-
tempo de uma experiência originária significa questionar o próprio processo de expropriação
da experiência que articulou o projeto da racionalidade moderna, uma vez que a ciência
moderna, como sabemos, nasceu de uma desconfiança sistemática acerca da experiência
vivida.
Até a ciência moderna, ciência e experiência dependiam de sujeitos diferentes. O
sujeito da experiência era o sentido comum e o sujeito da ciência era o intelecto
agente separado da experiência. O conhecimento não tinha sujeito, ou ego: o
indivíduo singular era o sub-jectum no qual o intelecto agente, único e separado,
atualizava a experiência. [Por isso] O problema central na antiguidade não era a
relação sujeito-objeto mas a relação entre o um e o múltiplo. Donde não haver o
problema da experiência como tal mas o da relação entre o intelecto separado e os
indivíduos singulares (RABINOVICH, 2005, p. 120).
A ciência moderna fez da experiência um mero método do conhecimento, instituindo
um novo sujeito: o ego cogito cartesiano. O sujeito da ciência, como sujeito do conhecimento,
aparece em todo seu esplendor nos atos cognitivos operados pela mente através dos conceitos.
Interessa notar então porque a crítica contemporânea dos postulados cognitivistas da ciência
moderna passa também por uma reapropriação crítica da noção de infância, pois apenas ela
permitiria estabelecer um novo conceito de experiência libertado do condicionamento sujeito
cartesiano. Esse tipo de ideia aparece, por exemplo, nas reflexões do pensador italiano
Giorgio Agamben que, no ensaio Infância e História. Ensaio sobre a destruição da
experiência (1978), elabora uma curiosa e sugestiva relação entre a experiência e a infância.
20
Etimologicamente, diz Agamben (2005, p. 48), in-fans designa um não-saber, uma
não-fala, cujo afixo informa uma negatividade construtiva. Assim, a infância é pensada nas
sociedades ocidentais como um fato da vida humana que indica o não instituído ou o que
resiste às determinações culturais. Mas esse estado é também o que Agamben qualifica como
uma in-fância da experiência. Mais do que uma categoria, o estado de infância é uma
morada, lugar de aprendizado e espanto da linguagem. Essa posição implica uma revisão da
ideia de sujeito, uma vez que todo sujeito já se encontraria, de partida, expropriado de sua
experiência. Segundo o autor italiano, se a linguagem constitui a expressão humana, sua
infância não deve existir antes ou independentemente da linguagem. A infância é justamente a
própria experiência da linguagem, ao mesmo tempo em que a linguagem é o seu limite. É
neste movimento circular que Agamben defende a ideia de experiência enquanto infância do
homem:
Pois a experiência, a infância que aqui está em questão, não pode ser simplesmente
algo que precede cronologicamente a linguagem e que, a uma certa altura, cessa de
existir para versar-se na palavra, não é um paraíso que, em um determinado
momento, abandonamos para sempre a fim de falar, mas coexiste originalmente com
a linguagem, constitui-se aliás ela mesma na expropriação que a linguagem dela
efetua, produzindo a cada vez o homem como sujeito (AGAMBEN, 2005, p. 59).
Infância, experiência e linguagem são conceitos enredados, coexistentes em sua
história: “Como infância do homem, a experiência é a simples diferença entre humano e
linguístico. Que o homem não seja já sempre falante, que ele tenha sido e seja ainda in-fante,
isto é a experiência” (AGAMBEN, 2005, p.62). A infância se constitui em uma espécie de
trânsito com a história. Na verdade, se o homem é um ser histórico, é apenas porque há uma
infância do homem. Mas o que quer dizer infância do homem? A resposta, diz Agamben, é
que o ser humano tem necessidade de se expropriar da infância – o que não fala – para se
constituir como sujeito na e pela linguagem. Uma das consequências é que pensar a infância
como uma experiência significa admitir que as crianças expressam uma linguagem própria.
Nos termos de Sarmento (2002), infância transporta as marcas do tempo, exprime a
sociedade nas suas contradições e na sua complexidade. Do que decorre a noção de culturas
da infância que enfatiza a capacidade das crianças de construir modos próprios de
significação do mundo, assinalando o lugar singular da infância nos processos de produção
cultural4.
4 Além disso, o conceito de culturas da infância permitiu a consolidação acadêmica da Sociologia da Infância, e
a sua pluralização indica que “as formas e os conteúdos das culturas infantis são produzidas numa relação de
interdependência com culturas societais atravessadas por relação de classe, de gênero e de proveniência étnica,
21
Essas culturas transportam consigo as marcas do tempo, exprimindo a sociedade em
todas as suas contradições. Do que decorre a importância de demarcar a diferença entre
formas culturais produzidas para as crianças e formas culturais produzidas pelas próprias
crianças.
Essa compreensão não pode deixar igualmente de pôr em relevo aquilo que são as
formas culturais autônomas geradas pelas crianças nas suas interações e nas
interações com os adultos e com a natureza, que as caracterizam não apenas como
fruidores, mas como criadores culturais (SARMENTO, 2002, p.07).
Essa diferenciação é importante na medida em que, como vimos, a ideia de infância
está atravessada pela percepção de um déficit ou de uma negatividade a ser preenchida ou
superada, seja pelas instituições educacionais, seja pelas interações realizadas no âmbito
familiar. Em outra direção, o reconhecimento da especificidade das culturas infantis, sua
diferença está na relação criativa que as crianças estabelecem com os usos da linguagem. O
que, obviamente, não significa desconhecer ou minimizar o papel e a influência dos processos
institucionalizados de formação das crianças na construção social de percepções relativas à
infância.
Mas é evidente, sobretudo nos dias atuais que os “mundos culturais da infância” não
se limitam nem às “formas culturais criadas e dirigidas pelos adultos”, nem aos dispositivos
da cultura escolar, envolvendo um conjunto multifacetado de artefatos como os jogos, os
brinquedos, a internet, etc. (SARMENTO, 2002, p. 05). E mesmo quando se considera a
existência de uma colonização do imaginário infantil pelo mercado, também não se pode
ignorar que há “resistência a essa colonização, através das interpretações singulares, criativas
e frequentemente críticas que as crianças fazem [...], reinvestindo essas interpretações nos
seus cotidianos, nos seus jogos e brincadeiras e nas interações com os outros” (p. 16).
Nessa mesma direção, o professor e filósofo Walter Kohan (2003) afirma a
importância de problematizar nossa relação com a infância por meio de experiências
filosóficas que visem outras formas de pensar a educação da infância. Para ele, trata-se de
questionar em que medida as teorias educativas e os educadores são capazes de um gesto que
ultrapasse a mera transmissão dos saberes e dos conteúdos, incorporando as experiências
efetivas das crianças5.
que impedem definitivamente a fixação num sistema coerente único dos modos de significação e ação infantil”
(SARMIENTO, 2002, p. 04). 5 Assim, não é casual que os trabalhos do professor Walter Kohan tenham se tornado uma referência, no campo
da Filosofia da educação, acerca do papel formativo da infância. Pensar a infância exige refletir sobre a educação
(KOHAN 2003, p.177), instituindo outros sentidos à nossa forma de ensinar e aprender com as crianças.
22
O que é a infância? A pergunta ressoa sem parar. Será que conseguimos levar a
interrogação até onde ela consiga, de verdade, fazermo-nos interrogar? Será que nos
perguntamos mesmo pela infância? Será que conseguimos interrogarmo-nos sobre
nossa relação com a infância, sobre o que somos em relação à infância? Será que
algo infantil nos atravessa com a pergunta? (KOHAN, 2003, p. 07).
Seguindo esse autor, é possível constatar que a forma dominante de responder essas
perguntas no pensamento filosófico-educacional é preparar os adultos do e para o futuro. Isso
significa que a infância se torna a “matéria-prima das utopias, dos sonhos políticos dos
filósofos e educadores” (KOHAN, 2003, p. 08), sendo Platão o exemplo paradigmático dessa
tradição. Com efeito, diz Kohan, o livro II de A República trata de como a educação deve
começar na mais tenra idade porque é preciso imprimir o tipo que se quer disseminar em cada
pessoa, futuro cidadão da polis. Para educar essas “tenras naturezas” faz-se preciso definir as
formas (os modelos) e também os caminhos que haverão de seguir desde o início de suas
vidas. A compreensão de infância que se desprende dessas ideias é nítida: uma “etapa da vida,
a primeira, o começo”, mas que só adquire sentido em “sua projeção no tempo”.
A intervenção educacional tem um papel vital aqui. Ela se torna desejável e
necessária na medida em que as crianças não têm um ser definido: elas são, sobre
tudo, possibilidade, potencialidade: elas serão o que devem ser. Assim, a educação
terá a marca de uma normativa estética, ética e política instaurada pelos legisladores,
para o bem dos que atualmente habitam a infância, para assegurar seu futuro, para
fazê-los partícipes de um mundo mais belo, melhor. A infância é o material dos
sonhos políticos a realizar (KOHAN, 2003, p. 12).
A filosofia educacional contemporânea, contudo, tem procurado afirmar outros
conceitos e outros lugares para a infância. Além da compreensão de que a infância é uma
condição da experiência, busca-se ampliar os próprios sentidos da sua temporalidade.
Paradoxalmente, como ressalta Kohan (2003, p. 17), nesse aspecto, os gregos também podem
nos ajudar, pois em sua língua havia mais de uma palavra para referir-se ao tempo. A mais
conhecida é chrónos, que designa um tempo sucessivo. O tempo é, nesta concepção, a soma
do passado, presente e futuro. Outra palavra é Kairós, que significa 'medida', 'proporção', e,
em relação com o tempo, 'momento crítico', 'temporada', oportunidade. Havia ainda uma
terceira: Aión que designa, já em seus usos mais antigos, a intensidade do tempo da vida
humana, um destino, uma duração, uma temporalidade não numerável nem sucessiva,
intensiva.
23
[...] um intrigante fragmento de Heráclito conecta esta palavra temporal ao poder e à
infância. Ele diz que "aión é uma criança que brinca (literalmente, "criançando"),
seu reino é o de uma criança". Há uma dupla relação afirmada: tempo- infância
(aión - paîs) e poder-infância (basileíe - paîs) (KOHAN, 2003, p. 35).
O fragmento 52 de Heráclito esclarece que o próprio da criança não é ser apenas uma
etapa, uma fase numerável ou quantificável da vida humana, mas um reinado marcado por
outra relação - intensiva - com o movimento.
No reino infantil não haveria sucessão nem consecutividade, mas intensidade e
duração. Kohan (2003) lembra vários registros desse modo de pensar a infância na arte, na
literatura e na própria filosofia. Um deles é a poesia de Manoel de Barros que, em um de seus
livros, Memórias inventadas. A infância, publicado em 2003, são apresentadas dezesseis
curtas crônicas de uma memória que o próprio poeta inventa. O próprio título é um paradoxo,
pois
[...] a memória seria algo da ordem da descoberta, da recuperação, da rememoração,
em suma, algo da ordem do não inventado, da des-invenção. Ao contrário, a
invenção parece indicar algo novo, que se inicia, que começa, portanto impossível
de ser lembrado. A invenção seria algo da ordem da des-memória e a memória algo
da ordem do não inventado. A memória e a invenção andariam em direções
contrárias, encontradas, desentendidas (KOHAN, 2003, p. 42).
Contudo, essas contradições não são um problema. Na verdade, elas permitem elucidar
o significado de pensar a infância, pois pensar tem a ver com criar e não apenas com
reproduzir o já pensado. É quando nos situamos nesse espaço em que o já pensado parece
impossível que nascem as condições para pensar outra coisa, algo diferente do já pensado. O
pensar é algo que se faz sempre entre o possível e o impossível, entre o lógico e o ilógico.
Assim, na aparente contradição das memórias inventadas pensamos, de novo, a memória, a
invenção. A infância adquire, em uma dimensão aiónica do tempo, o sentido de um outro
pensar. Assim,
[...] o quintal onde a gente brincou é maior do que a cidade. A gente só descobre
isso depois de grande. A gente descobre que o tamanho das coisas há que ser
medido pela intimidade que temos com as coisas. Há de ser como acontece com o
amor. Assim, as pedrinhas do nosso quintal são sempre maiores do que as outras
pedras do mundo. Justo pelo motivo da intimidade. [...] Mas eu estava a pensar em
achadouros de infância. Se a gente cavar um buraco ao pé da goiabeira do quintal,
lá estará um guri ensaiando subir na goiabeira. Se a gente cavar um buraco ao pé
do galinheiro, lá estará um guri tentando agarrar no rabo de uma lagartixa. Sou
hoje um caçador de achadouros de infância. Vou meio dementado e enxada às
costas a cavar no meu quintal vestígios dos meninos que fomos. (BARROS Apud.
KOHAN, 2003, p. 44. Destaques meus).
24
A surpresa provocada por esse tipo de reflexão é que estamos acostumados a pensar a
verdade do lado da ciência, do lado da demonstração, da prova, da regra, da lei, do estatuto,
da conformidade, da proposição, da concordância entre o discurso e a realidade. Na poesia,
como na infância, ao contrário, a invenção é a produtora e condição de possibilidade da
verdade. A invenção torna-se assim condição epistemológica, estética e política do pensar.
Uma força, uma potência que repercute na ideia de que se é um "achadouro de infância",
tendo em vista que ao poeta interessa encontrar lugares onde se vivencie plenamente a
infância.
De fato, na leitura que Kohan faz da poesia de Manuel de Barros, é possível perceber a
convivência de duas infâncias, uma da cronologia; a outra de um tempo intenso. As duas
infâncias, no entanto, convivem, podem conviver. A primeira porque remete à nossa
biografia; a outra porque não tem idade, dizendo respeito à potência infante presente em todas
as idades.
Nesse último caso, tropeçamos em um devir-criança, em uma infância que não cabe
em um eu, posto que é explosão de mundos. Uma infância que não é a minha, que não é uma
recordação, mas fragmento anônimo infinito, devir6. Para Kohan (2003), inspirado pela
filosofia da Gilles Deleuze, a filosofia contemporânea pode guardar algumas surpresas ao
distinguir os modos da temporalidade: de um lado, o devir; e, de outro, a história.
A história pensada como o conjunto de condições de uma experiência e de um
acontecimento que têm lugar fora da história. A história como a sucessão de efeitos
de uma experiência ou acontecimento. De um lado, então, estão as condições e os
efeitos; do outro lado, o acontecimento mesmo, a criação, o que Nietzsche chamava
de intempestivo. De um lado, está o contínuo: a história, chrónos, as contradições e
as maiorias; do outro lado, o descontínuo: o devir, aión, as linhas de fuga e as
minorias. Uma experiência, um acontecimento, interrompem a história, a
revolucionam, criam uma nova história, um novo início. Por isso o devir é sempre
minoritário (KOHAN, 2003, p. 78).
As distinções entre história e devir, chrónos e aión, podem nos ajudar a repensar a
infância. Pois, em certo sentido, também há duas infâncias na história da filosofia da
educação. Uma é a infância majoritária, a da continuidade cronológica, das etapas de
desenvolvimento cognitivo, afetivo, social, etc. É a infância que, pelo menos desde Platão, se
educa conforme um modelo. Essa infância segue o tempo da progressão: seremos primeiro
bebês, depois, crianças, adolescentes, jovens, adultos, velhos. Essa é infância que ocupa
6 A professora Sandra Corazza (2003) é uma espécie de mestra desta criação. Dela são expressões como
meninar, devir-crianceiro, crianceirar, devir-infantil e tantas outras.
25
centralmente as políticas públicas, os estatutos, os parâmetros da educação infantil, os
conselhos tutelares.
Contudo, existe uma outra infância, que habita outra temporalidade, uma infância
minoritária. É a infância como experiência, como acontecimento, como resistência e como
criação. É a infância que interrompe a história, que se encontra num devir que resiste aos
movimentos totalizantes de caráter classificatório e normalizador: "a criança autista", "o aluno
nota dez", "o menino violento". É a infância como intensidade, como um sair sempre do "seu"
lugar e se colocar em outros lugares, desconhecidos, inusitados, inesperados (KOHAN, 2003,
79). Mas não esqueçamos: somos todos habitantes dessas duas temporalidades.
Insistimos: uma e outra infância não são excludentes. As linhas se tocam, se cruzam,
se enredam, se confundem. Não nos anima, portanto, a condenação de uma e a mitificação da
outra. Não, não se trata de combater uma e idealizar a outra7. Essa distinção não é normativa,
[...] mas ontológica e política. O que está em jogo não é o que deve ser (o tempo, a
infância, a educação, a política), mas o que pode ser (poder ser como potência,
possibilidade real) o que é. Uma infância afirma a força do mesmo, do centro, do
tudo; a outra, a diferença, o fora, o singular. Uma leva a consolidar, unificar e
conservar; a outra a irromper, diversificar e revolucionar (KOHAN, 2003, p. 87).
Nesse contexto, devir-criança remete à singularidade do encontro entre um adulto e
uma criança, uma linha de fuga a transitar, aberta, intensa. Devir-criança como uma força que
extrai, da idade que se tem, do corpo que se é, os fluxos e as partículas que dão lugar a uma
força que não se espera, que irrompe, sem ser convidada ou antecipada.
Por essa via, os conceitos da Filosofia e da educação são convidados a se reinventarem
no encontro com a infância, liberando novos modos de vida, novos modos de pensar e praticar
a educação das crianças, ajudando a encontrar um novo modo de pensar a educação. Seria
algo assim como uma infância da educação e não já apenas uma educação da infância.
A aposta é que a infância pode ajudar a pensar a educação de outras formas. Uma
educação que não está preocupada em transformar as crianças em algo distinto do que já são.
Pensar uma prática educativa que permita às crianças, mas também aos adultos, professoras,
professores, gestores, coordenadores, enfim, a quem seja, encontrar esses devires que não
aspiram a imitar nada, a modelar nada, mas a propiciar novos inícios.
7 O conceito de "devir-criança", inventado por Deleuze e Guattari, pressupõe outra temporalidade, que não a da
história. Assim, devir-criança não é tornar-se uma criança, infantilizar-se, nem sequer retroceder à própria
infância cronológica. Devir é um “encontro entre acontecimentos, movimentos, ideias, multiplicidades, que
provoca uma terceira coisa entre ambas, algo sem passado, presente ou futuro” (KOHAN, 2003, p. 87).
26
Quem sabe possamos encontrar um novo início para outra ontologia e outra política
da infância naquela que já não busca normatizar o tipo ideal ao qual uma criança
deva se conformar, ou o tipo de sociedade que uma criança tem que construir, mas
que busca promover, desencadear, estimular nas crianças, e também em nós
mesmos, essas intensidades criadoras, disruptoras, revolucionárias (KOHAN, 2003,
p. 88).
Logo, não se trata de nos infantilizarmos, mas de instaurar um espaço de encontro
criador e transformador da inércia escolar. Assim, o encontro entre uma criança e uma
professora, ou entre uma criança e outra criança, ou ainda entre uma professora e outra
professora pode abrir a escola ao que ela ainda não é, e fazer dela espaço de experiências,
acontecimentos inesperados e imprevisíveis, mundo do devir, tempo de aión.
Algo dessa ordem, diz Kohan (2003, p. 89), pressupõe perguntar: "o que pode uma
criança?" A resposta, contudo, é que não o sabemos, talvez, nunca possamos saber.
Entretanto, nesse espaço que a insistência da pergunta abre, e que nenhuma resposta consegue
fechar, talvez seja possível encontrar forças para desdobrar potências ainda impensadas da
infância e um encontrar um novo início para a educação. A infância aqui não seria a “idade
sem razão”, mas:
[...] a condição de ser afetado, embora não tenham os meios-linguagem e
representação – de nomear, identificar, reproduzir e reconhecer o que nos afeta. Por
infância entendo que nascemos antes de nascer para nós mesmos. E, portanto,
nascemos através de outros, mas também para outros, entregues, sem defesa, aos
outros. Porque, embora sejam mães e pais, eles mesmos são também infantes. Eles
não estão emancipados de sua própria infância, da ferida da infância ou do apelo que
ela lança (KOHAN 2003, p.139).
A infância, portanto, como signo da experiência, menos que uma fase a ser separada e
ultrapassada, mas como uma situação a ser estabelecida, um novo começo para a educação.
2.1 A infância aquém e além dos discursos escolarizantes: em busca de
outros olhares
Um dos obstáculos para pensar de outros modos a infância está arraigado na
linguagem que mobilizamos para lidar com ela. Para o professor Faraco (1997, p. 54), o
normativismo da língua “continua arraigado no senso comum e a ele está presa a escola
moderna”. Daí que uma das tarefas da escola consista e persista justamente na “depreciação
27
da linguagem infantil” e das capacidades daqueles que não dominam as regras instituídas da
fala socializada.
Ao mesmo tempo em que o discurso escolar se apresenta como um espaço de controle
da linguagem, a modernidade filosófica construiu a percepção de que a escola seria o lugar
natural da infância. A escola moderna nasce da ideia de que seria necessário um ambiente que
garantisse a realização e o desenvolvimento da infância. Esse lugar especial “não nasceu
propriamente para ensinar, mas antes de tudo para ser um local no qual a infância pudesse
ocorrer” (GUIRALDELLI, 2000, p. 9). A compreensão dominante era que o desenvolvimento
moral e intelectual exigiria separar as crianças da sociedade dos adultos.
Esse entendimento se sustenta em uma determinada concepção de infância cujas
origens históricas remontam à segunda metade do século XVII, quando a infância era vista
como um ser inacabado a ser lapidado. Nessa ótica, o homem surge da infância, mas negando-
a, e a educação teria de fazer a passagem da criança para o mundo dos adultos.
Mesmo ao longo do século XVIII, quando a infância passou a ser pensada como uma
“fase positiva”, essa posição permaneceu inquestionada8. Mais:
[...] a racionalidade moderna incorporou o conceito de sujeito epistêmico ao
processo educativo. A compreensão de um sujeito universal, dotado de razão e de
suas propriedades universais e idênticas em todo indivíduo, passa a ser o solo em
que se movimentam as teorias pedagógicas. O processo educativo, influenciado pela
racionalidade científica, é cercado pela pedagogia do método e das técnicas de
ensino como forma de assegurar a apropriação, pelo sujeito epistêmico, dos
conteúdos culturais reproduzidos pela escola. Dividida entre as interferências do
racionalismo cartesiano e do empirismo baconiano, a educação assume o
aperfeiçoamento do gênero humano como sua tarefa pedagógica de maior
significado [...]. A perspectiva de autoconstituição do sujeito – como
desenvolvimento da faculdade da razão que possibilita o juízo próprio – referenda a
subjetividade como recurso fundamental em favor da pretensão emancipatória da
educação moderna (LIMA, 2002, p. 60-61).
Assim, a educação escolar se converteu, pouco a pouco, na executora das promessas
da modernidade, quer dizer, formar um sujeito capaz do exercício pleno da liberdade e da
autonomia, balizado unicamente pelas ideias condutoras de razão e progresso. Esses ideais
aparecem vinculados ao discurso filosófico de pensadores como Kant e Rousseau, os quais
tematizam a educação em correspondência com a faculdade da razão, legitimando a pretensão
de que esta, por si só, garanta a autonomia dos sujeitos. Nessa direção, “a conversão do
homem em cidadão acontece como decorrência da entrada do indivíduo na idade da razão, e
8 Esta compreensão do papel da educação permanece incorporada em muitas de nossas teorias pedagógicas até
os dias atuais, influenciando as diferentes formas de educar a infância. Só muito recentemente, com a crítica à
modernidade, é que a compreensão de infância entrou em questão (RESENDE, 2015).
28
requer a existência de instituições que integrem o homem ao corpo político” (LIMA, 2002, p.
p. 66-7).
Contudo, o discurso pedagógico moderno também foi devedor de um pensador menos
tematizado no campo acadêmico brasileiro: Pestalozzi. Como os demais pensadores de sua
época, Pestalozzi atribuiu à educação a tarefa do melhoramento individual, percebido como
um meio vital de reforma social. Mas, do ponto de vista de nossa reflexão, trata-se de um
pensador importante na medida que advogava um processo formativo que incluía diferentes
dimensões para além dos aspectos cognitivos das crianças. Pestalozzi defendia o
desenvolvimento integral da infância, dedicando-se inclusive a materializar essa ideia no
trabalho educativo voltado às crianças pobres e segregadas das camadas populares
(MARKERT, 1994, p. 48).
Apesar disso, o discurso escolar na modernidade priorizou uma ênfase no sujeito
epistêmico que, por um lado, produziu a defesa da universalização do acesso à educação, mas,
por outro lado, reconfigurou a percepção da infância como uma etapa.
Como resultado, temos a “existência de currículos compartidos, racionalmente
estruturados, seriados, burocratizados e a existência de conteúdos [...] legitimados por si
mesmos ou por mecanismos de reprodução social” (LIMA, 2002, p. 72).
Esse caráter antinômico da escola indica que ela participa, a um mesmo tempo, das
esperanças e das utopias modernas, mas contém em si o contrário dessa pretensão
em função do processo de burocratização do sistema escolar. A escola se torna
subjugada a uma razão subjetiva, que abafa os poros de comunicação com o mundo
da vida, priorizando processos que, ao formalizar a compreensão da tarefa
pedagógica, reduzem as possibilidades de sentido [...]. O mundo da vida é
submetido a um universo de coações sistêmicas, fazendo com que as ações
pedagógicas passem a ser dimensionadas prioritariamente pela racionalidade
instrumental [...]. Sendo assim, o sistema escolar disfarça mal a sua pretensa
neutralidade, servindo, antes disso, como mecanismo reprodutor das relações sociais
e de poder vigentes do que propriamente servindo como equalizador das diferenças
de origem (LIMA, 2002, p. 73-75).
A ação pedagógica moderna impôs, portanto, um determinado arbítrio cultural
ancorado na concepção dos grupos e classes dominantes. Essa imposição arbitrária da cultura
de grupos específicos estabeleceu a prevalência de uma lógica mercantil que universalizou um
determinado pressuposto ou visão de mundo por meio do trabalho escolar.
Esse tipo de diagnóstico já carrega uma crítica ao processo educativo moderno como
estando ancorado em uma perda da noção de formação integral, o que acaba limitando as
possibilidades de exercício da liberdade ética que a educação humana implica e supõe.
29
Nesse contexto, as metas, os conteúdos e os métodos educativos deixam de fazer
referência direta às potencialidades imanentes dos sujeitos, restringindo suas singularidades.
Ao mesmo tempo, essa situação traz à tona uma reflexão sobre os sentidos da educação, cujo
resultado mais visível na teorização educacional é a retomada de outros olhares sobre a
infância e sobre a própria educação. É desse modo que, na atualidade, a infância tem sido
abordada por outras perspectivas, por autores como Sonia Kramer (2007) e Jorge Larrosa
(1999).
Kramer argumenta, com base nas reflexões de Walter Benjamin, que a criança guarda
um potencial formativo que lhe é intrínseco e que se expressaria na brincadeira entendida
como experiência cultural. Não por acaso, diz, através das brincadeiras as crianças descobrem
e conhecem o mundo, atuando sobre e libertando objetos e situações de seus significados
comuns.
Para essa autora, o olhar infantil “vira as coisas pelo avesso”, ao desmontar os
brinquedos, elas dão “voltas à costura do mundo” (KRAMER, 2007, p. 17). Nesse sentido é
na ação que a criança se expressa, atribuindo novos significados aos objetos e produzindo
uma experiência cultural própria. Olhar o mundo a partir do ponto de vista da infância é
importante, pois nos ajuda a constituir um olhar mais sensível acerca de nossa própria
experiência.
Sonia Kramer chama ainda nossa atenção para o fato de que não é mais possível nem
desejável desconsiderar que as visões sobre a infância são construídas social e historicamente.
A inserção concreta das crianças na escola e na vida comum variam com as formas de
organização social prevalecentes. Entre outras consequências, essa compreensão ajuda a
perceber que a dependência da criança em relação ao adulto é um fato social e não natural.
Logo, a distribuição desigual de poder entre adultos e crianças tem razões sociais e
históricas, que repercutem no controle e na dominação das populações infantis,
invisibilizando suas práticas. Kramer (2007) também questiona as análises recentes sobre o
chamado fim da infância. Para ela, o que desaparece, de fato, é a ideia de infância que
emergiu no interior das classes médias que se formavam, no interior da burguesia, certo ideal
de vida e cultura.
Desse modo, o debate em torno do suposto desaparecimento da ideia moderna de
infância não deve ofuscar nossa percepção das múltiplas e complexas “populações infantis”,
muitas das quais vivendo em condições indignas. Isso é importante para não disseminar uma
percepção abstrata e generalizante sobre o que é específico da infância, pois se entende que as
crianças são sujeitos plenos, pessoas que produzem cultura e são nela produzidas, que
30
possuem um olhar crítico que pode virar pelo avesso a ordem das coisas, subvertendo essa
ordem.
Esse modo de ver as crianças pode ensinar os educadores não só a entendê-las, mas a
ver o mundo a partir do ponto de vista da infância. Por isso, para Kramer (2007), o campo da
produção filosófica é importante para inquietar o olhar e criar situações de aprendizado
cultural, político, ético e estético, permitindo ressignificar a própria noção de experiência
formativa.
Já no início do século XX, Benjamin criticava a modernidade e o risco de se perder
a capacidade de narrar, porque a experiência se empobrece e se torna vivência: na
vivência, reagimos aos choques do cotidiano e a ação se esgota no momento de sua
realização, por isso é finita; na experiência, o que é vivido é pensado, narrado, a
ação é contada a outro, partilhada, se tornando infinita. Esse caráter histórico, de ir
além do tempo vivido, de ser coletivo, constitui a experiência. É preciso
instrumentalizar também, divertir, passar o tempo ou informar; apenas me parece
que para serem formadores, tais modos de produção cultural precisam se concretizar
como experiência, não se reduzindo a entretenimento, consumo, passatempo ou
lazer. Levar algo de um livro, de uma pintura ou de um filme para além do seu
tempo, para além do momento em que se lê, aprecia ou vê – aqui reside a dimensão
de experiência. Trata-se de uma prática que produz uma reflexão sentida de um
coração informado sobre aspectos essenciais da vida, prática compartilhada – ainda
que seja com o autor – daquilo que a gente pensa, sente ou vive; que provoca a ação
de pensar e sentir as coisas da vida e da morte, os afetos e suas dificuldades, os
medos, sabores e dissabores; que permite conhecer questões relativas ao mundo
social e às tantas e tão diversas lutas por justiça ou o combate à injustiça; que resgata
valores desprezados hoje, como generosidade e solidariedade (KRAMER, 2007, p.
21).
Essa longa citação visa destacar o papel que experiências de produção cultural e
estética podem ter na educação da infância. Essas experiências confluem no gesto de brincar.
[...] se lembrarmos que em muitas culturas e línguas o termo brincar tem o
significado de representação de teatro, música, criação artística ou prática de um
esporte (jouer, to play ou spillen) podemos compreender que o que quero dizer
quando proponho o direito à experiência cultural é, com muita simplicidade, que
defendo para crianças, jovens e adultos o direito de brincar (KRAMER, 2007, p. 23).
Esse tipo de ideia pode soar como ingenuidade. A intenção, repito, não é idealizar a
infância, mas não abrir mão de contestar a visão que tenta anular o próprio conceito de
infância. Como Sonia Kramer, “abro os olhos e vejo hoje como via ontem” (KRAMER, 2007,
p. 24).
Por isso, aprender com as crianças pode ajudar a compreender o valor da
imaginação, da arte, da dimensão lúdica, da poesia, de pensar adiante. Entender que
as crianças têm um olhar crítico que vira pelo avesso a ordem das coisas, que
subverte o sentido de uma história, que muda a direção de certas situações, exige
31
que possamos conhecer nossas crianças, o que fazem, de que brincam, como
inventam, de que falam. E que possam falar mais (KRAMER, 2007, p. 25).
Assim, há que se reaprender com a criança a olhar e virar pelo avesso, a subverter, a
tocar o tambor no ritmo contrário ao da banda militar, de maneira que as pessoas, em vez de
obedecer ou marchar, comecem a dançar e a bailar.
Acreditar que é possível aprender com a experiência – também a contemporânea –
pode nos ajudar a abrir espaços concretos de ação (políticos, culturais, sociais,
educativos) onde, tal como fazem as crianças com paus, gravetos, figurinhas, caixas
vazias, pedrinhas, tampas, papéis, destroços, restos, pedaços de coisas, saibamos
refazer do lixo, ou melhor, saibamos transformar o lixo que o século XX nos legou
em história, em outra história. Acredito que ainda podemos dizer “Era uma vez...”.
Acredito que ainda podemos perguntar às crianças, aos jovens e para nós mesmos:
“Que outro final vocês inventariam para essa história?” (KRAMER, 2007, p. 25).
Essa também é uma das razões porque Jorge Larrosa (1999, p. 195) defende que a
criança guarda uma relação profunda com o pensamento filosófico. O autor fala de uma
“verdade sobre a infância” que não se assenta no que dizemos sobre ela, “mas no que ela nos
diz de si mesma, acontecimento de sua aparição”. As crianças, diz, são esses “seres estranhos”
dos quais nada ou quase nada se sabe, são “seres selvagens que não entendem nossa língua”.
No entanto, podemos abrir um livro de psicologia infantil e saberemos de suas
satisfações, de seus medos, de suas necessidades, de suas peculiares maneiras de
sentir e de pensar. Podemos ler um estudo sociológico e saberemos de seu
desamparo, da violência que se exerce sobre elas, de seu abandono, de sua miséria.
Temos bibliotecas inteiras que contêm tudo o que sabemos das crianças e legiões de
especialistas que nos dizem o que são, o que querem e do que necessitam em lugares
como a televisão, as revistas, os livros, as salas de conferências ou as salas de aulas
universitárias (LARROSA, 1999, p. 196).
Na modernidade, a infância permanece sendo algo que nossos saberes, nossas práticas
e nossas instituições buscam capturar, algo que tentam explicar e nomear, algo para governar.
A infância, a partir deste ponto de vista, não é outra coisa que o objeto de estudo de um
conjunto de saberes mais ou menos científicos, a presa de um conjunto de ações mais ou
menos tecnicamente controladas e eficazes, ou o usuário de um conjunto de instituições mais
ou menos adaptadas às suas necessidades, às suas características ou às suas demandas. Nós
sabemos o que são as crianças, ou pretendemos saber, e procuramos falar uma língua que as
crianças possam entender, quando tratamos com elas nos lugares que organizamos para
albergá-las.
32
Não obstante e ao mesmo tempo, a infância é o outro: o que, sempre muito além do
que qualquer tentativa de captura, inquieta a segurança de nossos saberes, questiona
o poder de nossas práticas e abre um vazio no qual se abisma o edifício bem
construído de nossas instituições de acolhida. Pensar a infância como algo outro é,
justamente, pensar essa inquietude, esse questionamento e esse vazio. É insistir mais
uma vez: as crianças, esses seres estranhos dos quais nada se sabe, esses seres
selvagens que não entendem nossa língua (LARROSA, 1999, p. 197).
A infância, entendida como algo outro, não é o que já sabemos, mas nem tampouco é
o que ainda não sabemos. Pois o que ainda é desconhecido justifica o poder do
conhecimento. O que ainda não sabemos, enfatiza Larrosa (1999), não é outra coisa além do
que se deseja medir e anunciar pelo que sabemos, aquilo que se dá como meta, como tarefa e
como percurso. Eis porque a “arrogância do saber não somente está na exibição do que já
conquistou, mas também no tamanho de seus projetos e de suas ambições” (p. 197).
Os que sabem continuam investigando, os políticos continuam fazendo planos e
projetos, os grandes shoppings continuam inovando seus catálogos, os produtores de
espetáculos continuam fabricando novos produtos, os profissionais continuam
melhorando suas práticas e os lugares em que acolhemos as crianças continuam
aumentando e adaptando-se cada vez mais aos seus usuários. Todos trabalham para
reduzir o que ainda há de desconhecido nas crianças e para submeter o que nelas
ainda há de selvagem (LARROSA, 1999, p. 198).
Mas, a infância não se deixa capturar tão facilmente. Ela não se reduz ao que já fomos
capazes de submeter à lógica cada vez mais afiada de nossas práticas e de nossas instituições.
A infância escapa-nos e à nossa vontade de objetivação a qualquer custo, pois ela está sempre
em vias de se desviar de todo objetivo predelineado. A infância não é apenas um ponto de
ancoragem do poder, mas também seu limite exterior, sua absoluta impotência. Portanto, a
alteridade da infância é algo radical: nada mais e nada menos do que sua heterogeneidade, sua
diferença. A presença enigmática da infância é a presença de algo radical. Aí está a vertigem.
À medida que encama a aparição da alteridade, a infância não é nunca o que
sabemos (é o outro de nossos saberes), mas igualmente é portadora de uma verdade
diante da qual devemos colocar-nos em posição de escuta; não é nunca a presa de
nosso poder (é o outro que não pode ser submetido), mas, ao mesmo tempo, requer
nossa iniciativa; não está nunca no lugar que lhe damos (é o outro que não pode ser
abarcado), mas devemos abrir um lugar que a receba. Isso é a experiência da criança
como outro [...]. A experiência da criança como outro é a atenção à presença
enigmática da infância, a esses seres estranhos dos quais nada se sabe e a esses seres
selvagens que não entendem nossa língua. Trata-se aqui, então, de devolver à
infância sua presença enigmática e de encontrar a medida de nossa responsabilidade
na resposta diante da exigência que esse enigma traz consigo (LARROSA, 1999,
p.185).
33
Nessa direção, para Larrosa (2004, p. 54) precisamos, nós educadores e educadoras da
infância, “ler de novo o mundo com olhos limpos e lhe dar de novo um sentido”. Para isto é
preciso gestos de ruptura: olhar mais devagar, escutar mais devagar, pensar mais devagar.
Precisamos destravar a cronologia, questionar e colocar outra relação com o tempo, o tempo
da vida, o tempo próprio da infância. Criar espaços para que a experiência infantil aconteça.
O problema é que as palavras mais simples são também as mais difíceis de ouvir. Nem
mesmo escutamos e já achamos que as entendemos e, sem prestar ouvidos, as abandonamos e
passamos a outra coisa. Larrosa, nesse aspecto, retoma o que Hannah Arendt escreveu, algo
tão simples, algo que todo mundo sabe. Arendt disse: "a educação tem a ver com a
natalidade”. O nascimento de uma criança é um acontecimento, mesmo que nos aparece como
algo trivial. Achamos que entendemos o dizer de Arendt, mas logo despojamos o dito de todo
mistério.
O nascimento de uma criança faz-se algo banal que se dobra sem dificuldade à lógica
do que se pode prever e antecipar. Mas aos ouvidos de Larrosa, o nascimento indica a extrema
vulnerabilidade do recém-nascido. Essa vulnerabilidade subverte o nosso poder e o nosso
saber.
Deste ponto de vista, o nascimento se situa numa dupla temporalidade: de um lado,
o nascimento constitui o começo de uma cronologia que a criança terá que percorrer
no caminho de seu desenvolvimento, de sua maturação e de sua progressiva
individualização e socialização; de outro lado, o nascimento constitui um episódio
na continuidade da história do mundo. Ao mesmo tempo, porém, em que uma
criança nasce, algo outro aparece em nosso meio. E é outro porque é sempre outra
coisa e não a materialização de um projeto, a satisfação da necessidade, o
cumprimento de um desejo, a satisfação de uma carência ou a reparação de uma
perda. É outro enquanto outro, não a partir do que colocamos nela. É outro, porque
sempre é outra coisa do que aquilo que podemos antecipar, porque sempre está
muito além do que sabemos ou do que queremos ou do que esperamos (LARROSA,
1999, p.187).
Aqui, o que significa para a educação o fato de que nasçam seres humanos no mundo?
O que significa que a educação seja justamente uma relação com a infância entendida
simplesmente como aquele que nasce? A resposta é aparentemente simples: a educação é o
modo como as pessoas, as instituições e as sociedades respondem à chegada dos que nascem.
A educação é a forma em que o mundo recebe os que nascem. Porém, receber é abrir-
se à interpelação de um chamado e aceitar uma responsabilidade. Receber é fazer lugar, abrir
espaço para que alguém possa vir e habitar, colocando-nos à disposição daquele que vem.
Então, não se trata, como educadores e educadoras, isto é, como pessoas e profissionais que
entendem de crianças e de educação, de reduzirmos a infância a algo que de antemão já
34
sabemos o que é, o que quer ou o de que necessita. Um estado cronológico que a psicologia
infantil poderia descrever e a pedagogia dirigir, como se conhecêssemos a priori os resultados
abertos pelos processos de individualização e de socialização.
Considerar o nascimento como se fosse o ponto inicial de um desenvolvimento
previsto ou, em outra perspectiva, como se fosse a aparição de uma matéria-prima
que vamos tomar como ponto de partida para influir na história, com vistas a uma
nova ordem social cujas ordens diretrizes nós já planejamos, não é receber os que
nascem em sua alteridade, mas mera e simplesmente tomá-los como uma expressão
de nós mesmos: do que nós somos ou do que nós queríamos ser. Mas a alteridade
daquele que nasce só pode fazer-se presente como tal quando, no encontro com ela,
encontramos verdadeiramente algo outro e não simplesmente o que nós colocarmos
ali. O nascimento, portanto, implica a aparição de algo no qual nós não podemos
reconhecer-nos a nós mesmos (LARROSA, 1999, p.188).
O nascimento de uma criança é a aparição da novidade radical, um acontecimento
imprevisto que não pode ser tomado como a consequência de nenhuma causa e que não pode
ser deduzido de nenhuma situação anterior. A partir desse ponto de vista, uma criança
dissolve a solidez de nosso mundo e, ao mesmo tempo, suspende as certezas que temos de nós
mesmos
Por isso, na esteira de autores como Arendt e Larrosa, como Benjamin e Kramer, a
infância possa ser pensada como o estado daquele que nasce, a salvaguarda da renovação do
mundo e da descontinuidade do tempo. A infância constitui um verdadeiro acontecimento, e a
ação pedagógica depende de como nossos nos dispomos a lidar com esse acontecimento.
Dito de outra maneira: o acontecer da infância remete a um mistério inabarcável. A
infancia não é nunca subordinação do que aparece a nossos conceitos. Como consequência, a
verdade da infância não estaria no que dizemos dela, mas no que ela nos diz no próprio
espanto que o acontecimento de sua aparição provoca.
Se isto é assim, não serão as verdades positivas as que ocultam a verdade da
infância, tornando-os insensíveis à sua chamada no próprio movimento em que no-la
dão já esclarecida e compreendida? Não serão as verdades de nossos saberes uma
forma confortável de engano que nos deixa absolutamente desvalidos diante do
enigma da infância, ocultando-o inclusive como tal enigma? Não serão nossas
verdades a expressão de uma relação com a infância na qual está já completamente
apropriada sem enigma algum, possa converter-se no objeto e no ponto de partida de
nossa e de dominação? Não serão nossas verdades a expressão de que já esquecemos
a verdade que treme diante do que não se sabe? (LARROSA, 1999, p.193).
A pior tentação, diante da qual pode sucumbir os que se propõem ou se dispõem a
educar a infância é sua recusa a se esporem à própria experiência da infância. Nesse sentido,
caberia à Filosofia da educação não produzir uma nova imagem da infância, mas
35
problematizar suas imagens do que significa pensar, aprender, ensinar, a partir do encontro
com a infância. Essa condição passa necessariamente pela desconstrução da forma como
foram pensados os outros sujeitos e as outras infâncias no campo educacional. Pois,
[...] ao longo da história da pedagogia, múltiplas metáforas tentaram dar conta do
ofício de ensinar e educar: Estamos em um momento em que fica mais evidente que
as metáforas da pedagogia não dão conta da infância, adolescência e juventude reais
que frequentam as salas de aula. Por que estariam perdendo seus significados?
Porque os educandos são outros (ARROYO, 2012, p. 07).
Particularmente o pensamento colonizador tem se legitimado pelas teorias
pedagógicas e pela educação escolar apreendida como um percurso linear do polo
negativizado da incultura para a cultura, da ignorância para o saber, conformando a criança
educada o adulto civilizado. Esse modo de pensamento sobre os outros persiste nas formas de
pensar as crianças e seus coletivos sociais, étnicos, raciais, de gênero, das periferias e dos
campos.
Disso decorre a necessidade de reaprender a ler e a dizer o mundo desde nossas
próprias experiências, construindo outras formas de governo de nós mesmos e dos outros. Isso
se relaciona também com o exercício do que o pensador francês Michel Foucault denominou
de práticas de si. O educador pode redescobrir, nas formas de cuidado consigo e com o outro,
modos de ampliar seu modo de lidar ética e politicamente com a infância.
[...] o cuidado com o outro implícito na ação pedagógica de um desses sujeitos, o
educador pressupõe um cuidado ético de si mesmo, similar àquele que pode ser
suscitado no outro dessa relação, em seus alunos, não é pelo fato de aprender a
cuidar dos outros que esse sujeito estabeleceria as suas ligações com a ética, mas é
justamente porque ele cuida de si que lhe é anteriormente ontológico (PAGNI, 2010,
p. 65).
É na relação de cuidado com a alteridade que o acontecimento da infância pode se
concretizar no pensamento do educador, fazendo com que a experiência formativa inclua a
diferença trazida pelas crianças. Para Pagni (2010), esse tipo de entendimento pode contribuir
para potencializar a ação educativa numa percepção de experiência renovada que fazemos de
nós mesmos. Experiência entendida no âmbito da espiritualidade9, onde
[...] creio que poderíamos chamar de “espiritualidade” o conjunto de buscas, práticas
e experiências tais como as purificações, as asceses, as renúncias, as conversões do
9 A noção de espiritualidade apareceu pela primeira vez no curso Hermenêutica do sujeito no final da primeira
hora da aula 06 de janeiro, no momento em que Foucault estava delimitando o “momento cartesiano” como uma
das razões do quase desaparecimento das práticas relacionadas ao cuidado de si. Esse tema surgiu para esclarecer
que na Antiguidade a questão do acesso à verdade e os problemas relativos aos processos de conhecimento da
realidade não estavam desvinculado de uma forma de ascese ou prática espiritual (FOUCAULT, 2004, p. 21).
36
olhar, as modificações de existência, etc., que constituem, não para o conhecimento,
mas para o sujeito, para o ser mesmo do sujeito, o preço a pagar para ter acesso à
verdade (FOUCAULT, 2004, p. 21).
Pagni (2010) nos lembra então que, na ótica do Foucault, o chamado “momento
cartesiano” requalificou o ato mesmo do que significa educar, desqualificando a prática
educativa como um exercício espiritual. Nas palavras do próprio Foucault:
Parece-me que o „momento cartesiano‟ [...] atuou de duas maneiras seja
requalificando filosoficamente o gnôthi seautón (conhece-te a ti mesmo), seja
desqualificando, em contrapartida, a epiméleia heautoû (cuidado de si). [É, portanto,
ao] conhecimento de si, ao menos como forma de consciência, que se refere o
procedimento cartesiano. Além disto, colocando a evidência da existência própria do
sujeito no princípio do acesso ao ser, era este conhecimento de si mesmo (não mais
sob a forma da prova da evidência, mas sob a forma da indubitabilidade de minha
existência como sujeito) que fazia do „conhece-te a ti mesmo‟ um acesso
fundamental a verdade (FOUCAULT, 2004, p. 18-19).
Alfredo Veiga Neto (2015, p. 56), no artigo intitulado Por que governar a infância?,
também discute a importância da espiritualidade para repensar as formas de educar a infância.
O que se coloca em questão, diz ele, não é um novo método ou procedimento didático,
retomando a espiritualidade para aperfeiçoar a maneira como se governa hoje a infância. Mas,
sim, questionar “para onde essas formas de governamento a estão levando”. A espiritualidade
permitiria abrir novos modos pelos quais as crianças fariam a experiência de si mesmas.
Pagni (2015, p. 305), por sua vez, afirma que o “governo da infância” a partir da
espiritualidade coloca “a necessidade de interposição o cuidado de si do outro por parte do
educador”, o que permite remeter a uma infância do pensar e a uma atitude ética e política.
Pois, é na relação sinérgica da infância, do pensar e da transformação de si, suscitada na arte
do fazer pedagógico, que pode fazer com que, “na procura de governá-la, o educador
vislumbre a possibilidade senão de uma alteridade em relação a outrem, ao menos uma
familiaridade estranha que lhe permita acercar-se diferentemente de seus alunos” (p.320)10
.
No limite, essa forma de tematizar a espiritualidade na relação com a infância coloca o
educador em uma relação de dívida para com sua infância e com a infância de seu próprio
pensar. Uma percepção importante no momento em que o campo político e acadêmico discute
uma compreensão alargada da educação infantil em nosso País. Por isso, defendemos que a
noção de espiritualidade pode contribuir para construir outros olhares acerca da infância.
10
Mais adiante, no segundo capítulo dessa dissertação, discutiremos mais detidamente a relação entre
espiritualidade e infância nos estudos contemporâneos e suas contribuições para pensar a educação das crianças.
37
3 A EDUCAÇÃO DA INFÂNCIA ENTRE O GOVERNO E A
ESPIRITUALIDADE: novos desafios, uma aposta
Diferentes estudos têm explicitado as maneiras pelas quais, desde o século XIX, o
poder público e os especialistas das áreas da educação, saúde, direito e psicologia têm
procurado administrar a infância e suas famílias. Mobilizando algumas ferramentas
conceituais foucaultianas como governamentalidade, biopoder e tecnologias do eu, essas
pesquisas vem se debruçando sobre as formas de governo da infância11
. Na verdade, é a
própria “ideia de sociedade que permite desenvolver uma tecnologia de governo”
(FOUCAULT, 1997, p. 91), como uma das expressões da positividade do poder. Assim, como
governo devemos entender aqui o conjunto de táticas, saberes, técnicas, instrumentos,
estratégias, cálculos estatísticos, que tem como objetivo conduzir a conduta dos sujeitos
individuais e coletivos.
O governo da população infantil, por exemplo, pode ser entendido como uma arte de
conduzir as condutas, cuja materialidade pode ser encontrada tanto nas instituições escolares,
como nas teorias pedagógicas. Por isso, as tecnologias de governo envolvem cálculos e
estratégias através das quais diversas autoridades procuram agir sobre as vidas e condutas de
cada um e de todos de forma a evitar os males e atingir estados desejáveis como saúde,
felicidade, riqueza. No século XX, essas artes de governo passaram se centrar tanto nos
indivíduos como nas populações mediadas pelas chamadas tecnologias do eu (ROSE, 2011).
Dessa ótica, admite-se que as formas de governo da infância no Brasil, inicialmente,
foram realizadas de maneira dispersa (KUHLMANN JUNIOR, 2000; SOUSA, 1992). Foi
somente a partir dos anos 1930 que se verificou um movimento de centralização da
assistência infantil, desdobrando-se instituições, saberes e práticas destinadas a esse fim
específico.
11
Na aula de 09 de janeiro de 1980 do curso O governo dos vivos, Foucault define o governo como um sistema
de “...mecanismos e procedimentos destinados a conduzir os homens, a dirigir a conduta dos homens, a conduzir
a conduta dos homens” (2007, p. 283). Tal condução, entretanto, ocorre, historicamente, em diversos espaços, de
acordo com as formas de organização social. Em A governamentalidade (1982) ele descreve a forma com que o
governo, originalmente centrado nas relações de família, a partir do século XVIII orienta-se à população. Nesse
momento, a família torna-se um segmento da população instrumental ao governo, e o problema político-social
central é a forma de articular economia (família) e Estado. Embora hoje em dia a economia já não seja entendida
de forma restrita à organização familiar, permanece atual a tensão entre família e Estado. Governar a população,
portanto, torna-se uma diretriz do exercício de poder no Estado, produzindo-se uma relação com a família como
campo privado, distante da alçada do Estado, embora fundamental ao bom funcionamento da sociedade.
38
3.1 Notas históricas acerca do governo da infância no Brasil
O governo da infância, em nosso país, emergiu com base em dois polos. Primeiro, o da
assistência-filantrópica, caracterizada pela estratégia de aconselhamento dado às famílias para
que passassem a se preocupar mais com o futuro de seus filhos e filhas. Segundo, o polo
médico-higiênico, o qual tornou admissível a intervenção do estado nas questões de saúde
pública, especialmente mediante a formulação de leis normalizadoras. Esses dois eixos
substituíram as técnicas antigas do poder soberano. Assim, gradativamente, observou-se uma
especialização entre as instituições encarregadas de assistir, conduzir e educar as crianças.
O problema da infância tinha como foco privilegiado de intervenção as chamadas
classes desfavorecidas. A racionalidade mobilizada era a prevenção. No limite, acreditava-se
que o conhecimento científico permitiria substituir o aparato repressivo por uma educação
mais libertadora. Como resultado, os saberes e as intervenções orientadas para a preservação
da saúde e da moral foram incorporando novas informações sobre o desenvolvimento das
crianças.
Além do abandono, da anormalidade e da delinquência, distúrbios “mais sutis de
desenvolvimento” (PATTO, 1999, p. 319) passaram a ser reconhecidos nas crianças. A
prevenção tornou-se uma palavra de ordem, e a infância vista como um “lugar privilegiado de
profilaxia”. Com a criação do Ministério da Educação e Saúde, assumiu-se mais
explicitamente a responsabilidade em relação à infância. Em 1933, realizou-se no Rio de
Janeiro a Conferência Nacional de Proteção à Infância, à qual compareceram representantes
de várias entidades relacionadas com o tema. As discussões ocorridas resultaram na criação
da Diretoria de Proteção à Maternidade e à Infância, que veio substituir a antiga Inspetoria
de Higiene Infantil.
No Brasil, vive-se nesse período o deslocamento da influência europeia para os
EUA, fenômeno que encontra expressão marcante na criação do Dia da Criança, no
3º Congresso Americano da Criança, realizado no Rio de Janeiro em 1922,
juntamente com o 1o Congresso Brasileiro de Proteção à Infância. [...] A concepção
da assistência científica, formulada no início do século XX, em consonância com as
propostas das instituições de educação popular difundidas nos congressos e nas
exposições internacionais, já previa que o atendimento da pobreza não deveria ser
feito com grandes investimentos. [...] O Estado não deveria gerir diretamente as
instituições (KUHLMANN JUNIOR, 2000, p. 08).
39
Verifica-se claramente, nesse contexto, um movimento no sentido de centralizar o
controle das medidas de proteção à infância no âmbito do governo federal. Ao mesmo tempo,
em que se revela toda uma preocupação com a criação de órgãos de pesquisa associados às
instituições responsáveis pela assistência direta à infância. Isso porque
[...] uma disciplinarização e normalização dos saberes e dos sujeitos ajuda na criação
e na manutenção da categoria infância, separando-a, distinguindo-a e tornando-a
dependente das demais categorias geracionais. A pedagogia e a instituição escolar
vão operar na conformação da infância, construindo a categoria aluno, forma quase
naturalizada de compreender as crianças. A categoria aluno, portanto, passa a ser a
forma social, natural e dominante de ser criança e de viver a infância. A vida infantil
começa a ser estruturada em rituais de disposição em classes, em faixas de idades,
em estágios de desenvolvimento, em graus de aprendizado, em horas de atividades,
de entrada, de saída e de intervalo, em castigos e recompensas. Enquanto aluno, a
criança possui modos de ser, estar e agir no mundo: sempre vigiada, ameaçada,
atarefada, ocupada, sempre em desenvolvimento, em crescimento (HORN, 2016, p.
304).
Nas décadas seguintes, a partir de influências aparentemente divergentes oriundas do
higienismo e do movimento Educação Nova, a escola tornou-se uma maquinaria de conduzir
as condutas das crianças, capturando-as de forma precoce. Entretanto, até meados da década
de 1970, as instituições de educação infantil vivenciariam um lento processo de expansão,
parte ligada aos sistemas de educação, atendendo crianças de 4 a 6 anos, e parte vinculada aos
próprios órgãos de saúde e de assistência social em contato indireto com a área educacional.
Ao focarmos as formas concretas de atendimento às crianças menores de seis anos,
nesse período, podemos afirmar que permaneceu a imbricação entre assistência e educação. É
como se, no Brasil, as formas de atendimento às crianças nunca conseguissem romper, de
fato, com o dispositivo filantrópico-higiênico. Esse padrão prevaleceu ao longo de toda a
segunda metade do século XX, o que acabou contribuindo para reeditar políticas
discriminatórias principalmente para a educação infantil projetada para as crianças pobres.
Nesse aspecto, os governos militares (1964-1985) impulsionaram projetos que tinham esse
caráter12
.
Em 1967, o Plano de Assistência ao Pré-Escolar, do Departamento Nacional da
Criança (DNCr) do Ministério da Saúde, órgão que, entre outras atribuições,
ocupava-se das creches, indica as igrejas de diferentes denominações para a
implantação dos Centros de Recreação, propostos como programa de emergência
para atender as crianças de 2 a 6 anos. A elaboração do plano segue as prescrições
12
O Ministério da Educação passou a se ocupar da educação pré-escolar, que se torna ponto de destaque no II e
no III Plano Setoriais de Educação e Cultura (PSEC), que eram desdobramentos dos Planos Nacionais de
Desenvolvimento, elaborados durante o governo militar, para os períodos 1975-79 e 1980-85. Além de solução
para os problemas da pobreza, a educação infantil resolveria as altas taxas de reprovação no ensino de 1º grau.
40
do UNICEF e parece ter sido feita apenas para cumprir exigências relacionadas a
empréstimos internacionais. Embora o plano falasse em medidas de emergência,
pouco se realizou, sem que ocorresse a sua implantação efetiva (KUHLMANN
JUNIOR, 2000, p. 10).
Na mesma direção, o Projeto Casulo desenvolvido pela Legião Brasileira de
Assistência (LBA), criado em 1977, pretendia, como no início do século, que a educação
infantil desenvolvesse atividades paralelas de orientação familiar. A diferença é que agora a
baixa renda das famílias era apontada como a principal causa dos vários desequilíbrios
sociais.
O remédio para a pobreza passou a ser a criação de novas vagas para as crianças de 0 a
6 anos nas creches. Entretanto, a implantação dessas políticas junto aos “bolsões de pobreza”
não se fizeram em um ritmo capaz de conter os conflitos sociais no país. Ao contrário, com o
fortalecimento dos movimentos sindical, popular, feminista e estudantil, várias críticas
começaram a colocar em xeque a legitimidade e a eficácia dessas diretrizes.
As instituições de educação infantil tanto eram propostas como meio agregador da
família para apaziguar os conflitos sociais, quanto eram vistas como meio de
educação para uma sociedade igualitária. As ideias socialistas e feministas, nesse
caso, redirecionavam a questão do atendimento à pobreza para se pensar a educação
da criança em equipamentos coletivos, como uma forma de se garantir às mães o
direito ao trabalho. A luta pela pré-escola pública se confundia com a luta pela
transformação política e social mais ampla (KUHLMANN JUNIOR, 2000, p. 11).
Assim, no início da década de 1980, a defesa do caráter educacional das creches se
tornou uma das principais bandeiras do movimento de luta dos profissionais da educação
infantil, o que também trouxe à tona a tensão entre educação e assistência.
No entanto, seria preciso esperar a década de 1990 para que surgissem as primeiras
formulações sobre a educação infantil que passavam a enfatizar a inseparabilidade dos
aspectos do cuidado e da educação da criança pequena (CAMPOS, 1994; CARVALHO,
1999). Foi tão somente a partir desse momento que a educação infantil brasileira viveria
intensas e profundas transformações. A redemocratização trouxe consigo novos marcos e
definições normativas.
A legislação nacional passou a reconhecer que as creches e as pré-escolas, para
crianças de 0 a 6 anos, são parte do sistema educacional, primeira etapa da educação básica. A
Constituição Federal de 1988 enfatizou o dever do Estado de oferecer creches e pré-escolas
para todas as crianças de zero a seis anos, e o Estatuto da Criança e do Adolescente de 1990
definiu, em seus artigos 53 e 54, o direito da criança à educação, visando ao pleno
41
desenvolvimento de sua pessoa, em todas as suas dimensões, sendo dever do Estado assegurar
atendimento em creche e pré-escola às crianças de zero a seis anos de idade.
Acompanhando essas novas diretrizes, em 1994, nasceu o primeiro documento de
Política Nacional de Educação Infantil com o intuito de expandir a oferta de vagas para a
criança de zero a seis anos e fortalecer a associação dos aspectos de cuidado e educação junto
às crianças nas instituições de educação infantil. Compondo este cenário, a própria Lei de
Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) estabeleceu que a educação é um dever da
família e do Estado, que deve ser efetivado mediante creches e pré-escolas13
.
Ainda nos reportando à LDB/1996, destacamos seus artigos 29 e 30, nos quais a
educação infantil tem como finalidade o desenvolvimento integral da criança em seu aspecto
físico, psicológico, intelectual e social. Constata-se, portanto, a inseparabilidade entre o cuidar
e o educar, e se percebe a criança como um ser, ao mesmo tempo, integral e específico.
Nesse contexto, em 1998, foi realizada pelo Ministério da Educação (MEC) uma
pesquisa para conhecer as propostas pedagógico-curriculares adotadas em todo o país, assim
como os princípios que norteavam a prática cotidiana das instituições. Com base nos dados
dessa investigação, o MEC elaborou o Referencial Curricular Nacional para a Educação
Infantil (RCNEI) com o objetivo de oferecer uma base nacional comum para os currículos.
O Conselho Nacional de Educação, por sua vez, definiu as Diretrizes Curriculares
Nacionais para a Educação Infantil (DCNEI) como um instrumento a ser seguido
compulsoriamente na construção das propostas pedagógicas. Em vigor a partir de 1998, esse
referencial veio confirmar, mais uma vez, a integração entre educar e cuidar (BRASIL, 1998).
Já na primeira década desse século, temos os Parâmetros Nacionais de Qualidade
para a Educação Infantil, construído pelo MEC (BRASIL, 2006). O texto está dividido em
dois volumes e tem como objetivo ser utilizado como referência de qualidade da organização
e funcionamento em sistemas educacionais, por creches, pré-escolas e centros de educação
infantil em todo o território nacional. O texto faz indicações precisas quanto à necessidade de
serem criados instrumentos voltados à implementação das propostas.
Assim, a educação infantil, como política pública, apesar das suas contradições, aqui
brevemente esboçadas, não deixa dúvida de que sedimentou uma preocupação maior quanto
às leis que regulamentam a atenção e a educação nessa fase da vida. Mais recentemente, face
à inclusão das crianças de seis anos no Ensino Fundamental, a preocupação com os sentidos
13
Em seus artigos 11, 12 e 13, a LDB estabelece também que cabe aos municípios oferecer educação infantil em
creches e pré-escolas e aos próprios estabelecimentos de ensino a elaboração e execução da proposta pedagógica,
assim como administração do seu pessoal e dos recursos materiais e financeiros, sendo que os docentes estão
incumbidos de participar da elaboração da proposta pedagógica de cada estabelecimento.
42
formativos da educação infantil vem sendo retomada com maior consistência, tendo em vista
o aporte recente de novas bases epistemológicas que passaram a problematizar não apenas a
ideia de uma pedagogia para infância, mas de uma pedagogia da infância e com a infância.
3.2 Educar a infância no atual contexto político-curricular
As reflexões atuais sobre a educação infantil têm resultado na defesa de perspectivas
educativas multidimensionais e integrativas que apreendam a criança como um sujeito pleno
capaz de interagir e produzir cultura.
Como resultado, a educação da infância passou também a despertar um interesse
crescente dos pesquisadores e dos educadores por princípios e práticas educativas que levem
em consideração a ideia de formação humana. Essa preocupação tem rebatimento direto na
elaboração das propostas curriculares que são operadas na educação infantil.
Ao mesmo tempo, entende-se que as conquistas históricas, sociais e normativas, são
fundamentais, mas isso não significa que as novas diretrizes legais se efetivem
automaticamente na prática escolar. Esse problema adquiriu contornos específicos com a
questão do ensino fundamental de nove anos (BRASIL, 2004)14
. O entendimento comum, dos
atores governamentais e não governamentais que lidam com os desafios da educação infantil,
é que a ampliação do número de anos obrigatórios a serem cursados nas instituições escolares
não pode prescindir de investimentos intensos na criação de novas propostas curriculares para
que se possa atender as características, potencialidades e necessidades específicas das
crianças.
Com a publicação da Lei 11.274/2001, o debate entre os educadores, os pesquisadores
e as redes de ensino se acirraram, uma vez que esta lei dispõe que o ingresso das crianças a
partir do ano letivo de 2006 dar-se-ia a partir dos seis anos de idade. O debate sobre a inclusão
das crianças de seis anos no Ensino Fundamental mobilizou uma reflexão mais rigorosa sobre
a organização do espaço-tempo da escola, a fim de pensar o que significa ser criança.
A possibilidade de construir uma prática diferenciada na escola pública,
especificamente na escola de ensino fundamental torna-se cada vez mais um desafio
a todos os sujeitos envolvidos direta ou indiretamente na construção desta escola.
14
Segundo o Plano Nacional de Educação – Lei nº 10.172/2001 - a inserção do Ensino fundamental de nove
anos pela inclusão das crianças de seis anos de idade, possui duas finalidades: oferecer maiores oportunidades de
aprendizagem no período da escolarização obrigatória e assegurar que, ingressando mais cedo no sistema de
ensino, as crianças prossigam nos estudos, alcançando maior nível de escolaridade (BRASIL, 2004, p.14).
43
Este desafio exige uma postura crítica e reflexiva, no sentido de superar a visão de
descontinuidade e ruptura que temos da Educação Infantil para o Ensino
Fundamental. Parece-nos que essa ruptura existe simplesmente pelo fato de que a
criança ao ingressar na escola de ensino fundamental, deixa de ser “criança” para
tornar-se “aluno”, ou seja, aquelas peculiaridades e características próprias da
infância, muitas vezes lhe são negadas. Ela passa a ser alguém que “já é grande” e
que está na escola para aprender coisas sérias, e destas enfoca-se o ler e o escrever
enquanto atividades de primordial, senão de exclusiva importância
(SANTOS&BOLZAN, 2008, p. 613).
Em outros termos, admite-se que é preciso, antes de tudo, superar as imagens
reducionistas baseadas na incompletude das crianças. Pois, pensar em infância no contexto
atual é pensar em uma experiência vital em permanente transformação e que varia de acordo
com as diferentes organizações sociais e grupos sociais. O que coloca várias questões em
cena:
Que intenções subjazem a ampliação do ensino fundamental para nove anos? Que
implicações essas normatizações têm para a infância? Que tipo de investimento tem
ocorrido para que a entrada dessas crianças seja garantida e contribua para seu
sucesso escolar? O/A professor/a foi/está sendo preparado/a para essa nova
configuração? Houve alteração no mobiliário/espaço/tempo das escolas? Que
estratégias pedagógicas estão sendo trabalhadas para esse processo inicial de
escolarização? Que reflexões teóricas permeiam a formação de professores em
relação à transição do ensino fundamental de oito anos para o de nove anos?
(AGUIAR, 2011, p. 12).
Obviamente que não se trata de responder a todas essas questões. Mas é preciso
levanta-las na medida em que elas expressam inquietações sobre o estado atual da educação
da infância. As próprias alterações legais permitem entrever alguns dos desafios. Dentre os
documentos organizados pelo MEC, destacamos Ensino Fundamental de nove anos:
orientações gerais, publicado em 2004, e que se encontra organizado em três eixos:
organização com qualidade social, a ampliação do ensino fundamental para nove anos e
organização do trabalho pedagógico. No primeiro eixo, além de apresentar os indicadores
nacionais relativos à questão, problematiza-se a estrutura espacial das escolas, o tempo
escolar, os currículos e os programas escolares. Em síntese, afirma-se que a estrutura espacial
da escola “mais dificultam do que favorecem uma ação comunicativa construtiva”,
defendendo-se “outros modos de estruturar o espaço da escola que possibilitassem a interação
das crianças e adolescentes em conformidade com suas fases de socialização”. Com relação
ao tempo escolar, a compreensão é que “a escola acaba reproduzindo a organização do tempo
advinda da organização fabril da sociedade” (BRASIL, 2004, p. 09). Por fim, sobre os
currículos o diagnóstico é que eles têm sido tratados ainda “como uma organização de
conteúdos numa determinada sequência” (p. 10). Assim,
44
[...] as escolas são convidadas a pensar sob uma outra perspectiva, para provocar
mudanças no tradicional modelo curricular predominante em grande parte das
escolas de nosso país. É, assim, imprescindível debater com a sociedade um outro
conceito de currículo e escola, com novos parâmetros de qualidade. Uma escola que
seja um espaço e um tempo de aprendizados de socialização, de vivências culturais,
de investimento na autonomia, de desafios, de prazer e de alegria, enfim, do
desenvolvimento do ser humano em todas as suas dimensões (BRASIL, 2004, p.
11).
Admite-se, também, que, ao lado da escola com sua estrutura curricular anacrônica,
existe, “uma nova escola já em construção em vários lugares do Brasil”. Essa escola emergiria
em “um amplo e recente movimento de renovação pedagógica” ancorado na ideia de que “o
direito à educação não se restringe ao acesso à escola”. Construída a partir de múltiplas
experiências com organizações e movimentos da sociedade civil, essa compreensão ampliada
do direito à educação, reconhece que “o ser humano é ser de múltiplas dimensões” e que
“todos aprendem em tempos e em ritmos diferentes” (BRASIL, 2004, p. 13).
No segundo eixo, a ampliação do ensino fundamental para nove anos, o foco é o
referencial normativo que visa aumentar o número de anos do ensino obrigatório, com
destaque para o disposto no art. 23 da LDB que incentiva “a criatividade e insiste na
flexibilidade da organização da educação básica” (BRASIL, 2004, p. 15). Essa ênfase não é
aleatória já que visa ressaltar que o objetivo de um maior número de anos de ensino
obrigatório é “assegurar a todas as crianças um tempo mais longo de convívio escolar,
maiores oportunidades de aprender e, com isso, uma aprendizagem mais ampla” (p. 17), o que
não depende apenas do aumento do tempo, mas de uma atenção às características etárias,
sociais e psicológicas das crianças.
A primeira questão relevante se refere à própria criança de seis anos, chamada ao
Ensino Fundamental. Quem é ela? Que momento ela está vivendo? Quais são os
seus direitos, interesses e necessidades? Por que ela pode ou deve ingressar no
Ensino Fundamental? Qual é seu ambiente de desenvolvimento e aprendizado?
(BRASIL, 2004, p. 19).
Por fim, o terceiro eixo aborda diretamente a organização do trabalho pedagógico,
delimitando-se como “questão essencial” a necessidade de reorganizar a escola. Essa
reorganização diz respeito à sua estrutura, formas de gestão, ambientes, tempos, envolvendo
os materiais, conteúdos, metodologias e avaliação “de sorte que as crianças se sintam
inseridas e acolhidas num ambiente prazeroso e propício à aprendizagem” (BRASIL, 2004, p.
22).
45
De especial interesse, aqui, é a expectativa de que com essa reorganização um número
maior de crianças, principalmente as que se encontram nas periferias, encontre na escola um
local efetivo de materialização dos princípios da inclusão cidadã, solidária e de qualidade
social. Esse desejo, compartilhado por diferentes atores não elide, entretanto, o fato que de
historicamente o dispositivo escolar, mesmo no âmbito da educação infantil, subestima ou
ignora as características das crianças nas formas de ensinar e aprender.
Diante disso, pretende-se que o ingresso dessas crianças no Ensino Fundamental não
se constitua apenas como uma medida meramente administrativa. É preciso atenção
ao processo de desenvolvimento e aprendizagem delas, o que implica conhecimento
e respeito às suas características etárias, sociais, psicológicas e cognitivas. Este é o
momento para repensar todo o Ensino Fundamental, tanto os cinco anos iniciais
quanto os quatro finais, demandando providências para o atendimento das
necessidades de recursos humanos – professores, gestores e demais profissionais de
educação –, para lhes assegurar, entre outras condições, uma política de formação
continuada em serviço, o direito ao tempo para o planejamento da prática
pedagógica, assim como melhorias em suas carreiras. Além disso, os espaços
educativos, os materiais didáticos, os mobiliários e os equipamentos precisam ser
repensados para atender às crianças com essa nova faixa etária no EF, bem como os
alunos que já estavam nessa etapa de ensino, antes, com oito anos de duração
(DANTAS & MACIEL, 2010, p. 159).
Na mesma direção, Kramer (2000, p. 08) ressalta que é imperioso não esquecer que
“entre nós”, costuma-se falar em direitos quando menos existem os direitos. O
reconhecimento pelas agendas governamentais não deve ofuscar a consciência de que
numerosas populações infantis ainda vivem em condições indignas15
. Por essa razão,
[...] o campo da produção cultural é importante por inquietar o olhar e criar situações
de aprendizado cultural, político, ético e estético. A formação cultural de
profissionais que trabalham com a infância – entendida como experiências de cultura
que compartilhem com crianças, jovens e adultos – e a formação de profissionais
que atuam em agências sociais e culturais é um grande desafio das políticas de
infância. Seu poder formador é exercido na medida em que trazem à tona conflitos,
dilemas, preconceitos, medos, tiranias que crianças e adultos precisam aprender a
enfrentar. [...] Políticas para a infância precisam ter como horizonte humanização e
resgate da experiência, para que crianças e jovens possam ler o mundo, escrever a
história, expressar-se, criar, mudar, para que se reconheçam e consolidem relações
de identidade e pertencimento (KRAMER, 2000, p. 10).
15
Como evidencia Pansini e Marin (2011, p. 89), a “escolarização das crianças menores de 7 anos no Brasil foi
marcada historicamente pela dicotomia entre creche - destinada às populações mais pobres - e pré-escola -
frequentada pelas crianças de famílias de maior poder aquisitivo”. Paralelamente a esta divisão, marcada pela
classe social, se construiu outra, “ainda mais perversa, em que às crianças pobres eram destinados serviços de
cuidado e assistência social e às crianças de classe média e alta a processos preparatórios de inserção ao ensino
fundamental”. Uma escolarização duplamente excludente, pois, enquanto para as primeiras, negava-se o direito
ao conhecimento, para as segundas negavam-se os direitos ao cuidado e ao brincar necessários a qualquer
criança.
46
O fato é que estamos vivendo um momento propício para repensar as propostas de
educação da infância, tomando como eixo analítico central a reorganização pedagógica tanto
dos currículos como dos projetos político-pedagógicos que são endereçados às crianças. Há
um reconhecimento de que o trabalho com as crianças pressupõe incluir as histórias, saberes e
formas diversas de viver a infância que elas trazem consigo. Logo, a “racionalidade escolar”
não pode “engolir” os sentidos formativos dos projetos pedagógicas voltados às crianças.
[Assim] disputar os próprios espaços de produção, sistematização do conhecimento,
confrontar seus conhecimentos, sua racionalidade, seus critérios de validade com os
conhecimentos, a racionalidade, os critérios de validade pensados como únicos,
legítimos é algo muito novo [...]. Na medida em que os Outros desconstroem as
imagens em que foram pensados abrem o caminho para reconformar o próprio
campo do conhecimento e das teorias e pedagogias socioeducativas que se
configuraram nessa forma de pensá-los e de pensar-se (ARROYO, 2015, p. 21).
Para tanto, autores como Miguel Arroyo (2015) e Sonia Kramer (2000) defendem que
é fundamental não reduzir o espaço-tempo das infâncias à mera aprendizagem de habilidade
leitoras ou escritoras. Para ele, reconhecer a infância e sua especificidade no tempo de
formação implica repensar a totalidade das práticas curriculares, abrindo espaços para que as
próprias crianças contem suas histórias, formulem suas questões, produzam seus próprios
saberes.
[...] em outros momentos da história, incorremos no erro do etnocentrismo,
avaliando grupos a partir de referências e valores do colonizador. Incorremos
também no erro do adultocentrismo, olhando de cima as crianças e não na altura dos
seus olhos, ou seja, evitamos olhá-las nos olhos e deixamos de ver o mundo que se
apresentava à sua altura. [...] Aprender com as crianças pode ajudar a compreender o
valor da imaginação, da arte, da dimensão lúdica, da poesia, de pensar adiante.
Entender que as crianças têm um olhar crítico que vira pelo avesso a ordem das
coisas, que subverte o sentido de uma história, que muda a direção de certas
situações, exige que possamos conhecer nossas crianças, o que fazem, de que
brincam, como inventam, de que falam (KRAMER, 2000, p. 12).
A capacidade de partilhar saberes e experiências passa pela construção de outros
pontos de vista acerca da educação. Nos termos de Leite e Fernandes (2010), trata-se também
de conceber a práticas curriculares como responsáveis por instituir uma comunidade
formativa apoiada em dinâmicas que conduzam à melhoria da qualidade da educação das
crianças que acolhe. De modo que “esta procura contínua de propostas educativas e
curriculares adequadas aos alunos e às situações reais” passe por todos os envolvidos, criando
uma “vontade de partilhar e de participar nessa procura conjunta de caminhos de inovação”
(p. 200).
47
Assim, dentre outros fatores, destaca-se a elaboração de currículos alternativos que
permitam o encontro de vários saberes, vozes e experiências. Uma discussão que passa pela
importância de repensar a escola a partir do não escolar, pois as concepções hegemônicas de
currículo têm sobrevalorizado os conhecimentos inscritos em áreas de saber específicas,
fazendo o currículo funcionar como mero instrumento de controle.
Nesse sentido, há que lembrar as lutas de diferentes coletivos sociais para mostrar que
os saberes têm sua origem efetiva na experiência concreta dos sujeitos e não apenas na
artificialidade das questões epistemológicas. Se essa dimensão for negada, produziremos,
além de injustiça social, uma injustiça cognitiva. Manter a cisão entre experiência social e
conhecimento legítimo é sustentar a hierarquização dos saberes, promovendo a colonização
das experiências formativas vitais à educação da infância, principalmente a infância popular.
Possivelmente a Pedagogia tenha sido uma das áreas que mais vinha se empenhando
em recolocar a imagem da infância popular. As campanhas em defesa da escola
pública, desde os anos de 1950, para a inclusão da infância e da adolescência
populares das periferias urbanas, até a defesa mais recente da escola pública para
todos ou a defesa dos recursos públicos para a escola pública, tiveram sempre como
horizonte a inclusão das crianças e dos adolescentes populares, por décadas
marginalizados das políticas públicas e do público. Todos esses movimentos no
campo da educação vinham contribuindo para conformar uma imagem positiva,
respeitável da infância-adolescência popular. Até onde essa imagem mais positiva
vem sendo incorporada na nossa cultura política, elitista e segregadora de tudo o que
é popular e especificamente dos filhos do povo? Inclusive, até onde essa imagem
menos negativa teria se incorporado no pensamento pedagógico, no imaginário e na
cultura escolar e docente? (ARROYO, 2007, p. 797).
Essas questões nos parecem fundamentais para repensar os projetos político-
pedagógicos direcionados à educação da infância16
. Inspirada por essas ideias e pelas
provocações abertas, por um lado, pelos estudos tardios de Michel Foucault acerca das novas
formas de governo da infância (RESENDE, 2015), bem como da infância como experiência
de pensamento (PAGNI, 2010), e, por outro, pelo debate provocado pela inclusão das crianças
de seis anos no Ensino fundamental, resolvemos analisar em que medida noções como as de
espiritualidade vem sendo articuladas para pensar pedagogicamente com a infância.
16
Aliás, é preciso ressaltar que o próprio Ministério de Educação tem buscado soluções curriculares alternativas
para um melhor atendimento às crianças, adotando, em alguns de seus programas, uma nova metodologia
pedagógica denominada de mandala de saberes. Criada em 2007, essa metodologia integra o projeto Mais
Educação desenvolvido em articulação com o Ministério da Cultura para construção de novas políticas públicas
de educação baseadas na noção de integralidade. A noção de mandala de saberes tem justamente como objetivo
ampliar o diálogo entre as escolas e as comunidades, valorizando a diversidade de experiências culturais
existentes. Assim a ideia de mandala passou a ser usada nas políticas e programas de educação integral. E como
sabemos, na cultura oriental, em geral, e no pensamento budista, em particular, as mandalas têm grande
importância e apresentam vários significados, sobretudo por sua vinculação com a ideia de espiritualidade.
48
3.3 Espiritualidade e infância como signos da experiência formativa
O recorte na espiritualidade não é casual. Cada vez mais, a noção de espiritualidade
vem sendo retomada como imagem de pensamento para pensar uma experiência formativa
ancorada nos princípios da integralidade. Apesar de algumas resistências, no campo
acadêmico, a relação educação-espiritualidade tem ocupado um espaço crescente de reflexão.
Para os pesquisadores dessa temática, o vínculo conceitual entre as duas temáticas não se trata
de uma novidade ou um modismo, uma vez que existem inúmeras expressões teóricas que
reconhecem a legitimidade dessa relação seja na ciência seja na filosofia (RÖHR, 2010).
Nesse contexto,
[...] a espiritualidade se revela como uma compreensão apropriada para a vida
humana. [...] O processo educacional, quando concebido em sua natureza de
promover no homem o desenvolvimento daquilo que lhe é intrínseco, é, portanto,
completamente afim à concepção que deriva da própria espiritualidade. Entretanto, a
educação não pode prometer a individuação de ninguém, pois este é o processo que
se desenvolve durante toda a vida e cujo progresso depende intrinsecamente do
modo singular como cada pessoa poderá entrar em contato íntimo com tudo aquilo
que configura o si-mesmo. (POLICARPO JR., 2010, p. 105-106).
A espiritualidade articula-se aqui com as próprias qualidades imanentes ao modo de
ser do humano. A espiritualidade não é percebida como uma dimensão além desta vida, sendo
antes uma expressão da própria vida. Logo, não pode ser separada dos processos de formação.
Dessa ótica, a meta da educação não poderia jamais se resumir ao desenvolvimento de
habilidades cognitivas ou de operações formais abstratas, pois o ser humano não é só
pensamento, nem sua vida pode ser reduzida à busca por conhecimento. O próprio existir já é
espiritualidade na medida em que esta proporciona viver uma existência própria. Não é casual
que, para Röhr (2013), a questão “com que finalidade educamos?” seja uma das mais
polêmicas do campo educacional, um problema difícil de ser resolvido.
As forças sociais em disputa tornam a educação um campo de batalha para
perpetuar, garantir e expandir influências. Junta-se a isso a crescente mercantilização
da educação. [...] a Educação torna-se serva de todos: de modelos econômicos, de
partidarismos políticos, de disputas religiosas, filosóficas, ideológicas, de gênero e
étnicas. Perde-se, nessa disputa, a perspectiva de tentar pensar a Educação a partir
dela mesma (RÖHR, 2013, p. 152).
Nesse contexto, o papel da educação deixa de preparar o indivíduo para a forma como
se vive, para o estabelecimento de relações positivas consigo, com o outro e com o próprio
49
mundo, incluindo a superação dos desafios que toda existência oferece. Dissociada de um
sentido ou meta formativa, a educação reduz-se à promoção de um fim social ou profissional.
A espiritualidade pode, então, ser extremamente transformadora ao permitir aos sujeitos da
educação questionarem as formas de entendimento dominantes acerca do ato educativo17
.
Autores como Michel Foucault (2006) chegaram a afirmar que pagamos um preço
elevado pelo apagamento da ideia de espiritualidade em nossos sistemas de pensamento. A
hipótese do filósofo francês é que o “momento cartesiano” desqualificou a espiritualidade
como elemento fundamental de acesso à verdade. Para ele,
[...] durante todo este período que chamamos de Antiguidade e segundo modalidades
que foram bem diferentes, a questão filosófica do “como ter acesso à verdade” e a
prática de espiritualidade (as transformações necessárias no ser mesmo do sujeito
que permitirão acesso à verdade) são duas questões, dois temas que jamais estiveram
separados. Não estiveram separados para os pitagóricos, é claro. Não estiveram
separados também para Sócrates e Platão: a epiméleia heautoû (cuidado de si)
designa precisamente o conjunto das condições de espiritualidade, o conjunto das
transformações de si que constituem a condição necessária para que se possa ter
acesso à verdade. Portanto, durante toda a Antiguidade (para os pitagóricos, para
Platão, para os estóicos, os cínicos, os epicuristas, os neoplatônicos, etc.), o tema da
filosofia (como ter acesso a verdade?) e a questão da espiritualidade (quais são as
transformações no ser mesmo do sujeito para se ter acesso a verdade?) são duas
questões que jamais estiveram separadas (FOUCAULT, 2006, p. 21-22).
Na modernidade, porém, passamos a admitir que apenas o conhecimento é o que dá
acesso à verdade. Como consequência, o conhecimento se abrirá para a dimensão indefinida
de um progresso cujo fim não se conhece e cujo benefício só será convertido, no curso da
história, em acúmulo de mais e mais conhecimento, independentemente, do sentido desse
conhecimento para a vida ou mesmo das condições subjetivas necessárias para lidar com ele.
Em outros termos, o ato de conhecimento se autonomizou em relação ao próprio
sujeito do conhecimento. Nas palavras de Freitas (2010, p. 65), os modernos são
“arremessados para dentro de si mesmos”, fechando-se na interioridade de sua própria
consciência e expandindo uma das mais persistentes tendências da filosofia moderna: o
cultivo de uma preocupação com o cogito, fazendo com que o mundo seja apreendido pelo
filtro exclusivamente do eu pensante.
Com base nesses argumentos, podemos dizer um dos desafios da educação, na
atualidade, é reintegrar as condições da espiritualidade nos processos formativos. Pois, na
esteira de Foucault (2010), a espiritualidade não é sinônimo de religiosidade, nem refratária à
17
Apesar das várias divergências teóricas acerca do binômio educação-espiritualidade (RÖRH, 2012; FREITAS,
2012), há uma espécie de compreensão básica de que sem essa articulação é difícil experienciar a educação como
processo efetivo de formação humana.
50
reflexão e à razão. A espiritualidade é uma abertura ao mundo e a tudo que o habita, uma
dimensão constitutiva de nossa própria subjetividade. A espiritualidade é entendida como uma
daquelas experiências capazes de transformar a relação do sujeito consigo e com o outro.
Essa é a espiritualidade como forma de saber-viver. Educação e espiritualidade
guardam uma relação profunda. Contudo, como esse entendimento tem permeado a reflexão
em torno da educação da infância? Quais as implicações que a noção de espiritualidade pode
gerar no modo como temos lidado especificamente com a formação das crianças?
Nos termos de Pagni (2010), a resposta a essas questões passa inicialmente pela crítica
à práxis formativa da infância restrita a uma arte-técnica encarregada de ajustá-la ao mundo
existente. Em segundo lugar, a noção de espiritualidade, tal como tematizada aqui, passa pela
retirada do esquecimento da ideia de cuidado com a infância, cuidado pensado para além do
seu governo. Assim, a noção de espiritualidade articulada à educação da infância permitiria
discutir uma forma de práxis formativa que requer, antes de tudo, o cuidado de si, sendo a
infância assumida como uma dívida por parte dos educadores18
. A ideia de espiritualidade
deslocaria a reflexão pedagógica das artes que aspiram a governar a infância, dando a ver as
múltiplas formas de resistência que os infantes lhes oferecem em um governo de si.
As múltiplas formas de resistências da infância ao governamento pressupõe que as
crianças são capazes de produzir, elas mesmas, outras relações com o mundo e com os outros.
Essas resistências provenientes da infância podem ser interpretadas como uma reposição da
inquietude humana diante do que o limite e aprisiona.
Embora não se possa dizer que a infância seja a expressão plena da crítica, em tal
jogo, ao menos parece ser possível pensá-la como próxima a certa indocilidade e
resistência ao governo do outro, aos saberes e práticas instituídos pela arte
pedagógica e por outras artes de governo. Em outras palavras, parece ser possível
conceber a infância, desse ponto de vista, como um aspirante a sujeito que, em
virtude de ainda não ter entrado na cultura, reclama um governo destoante daquele
pretendido pelos filósofos, pelos moralistas e pelos educadores, nos séculos XVI e
XVII (PAGNI, 2010, p. 103-104).
Assim, se o discurso filosófico da modernidade confundiu a infância com a
menoridade, a noção de espiritualidade faz a crítica e supera a infância como idade específica,
assumindo-a como experiência potencial necessária ao nascimento do pensamento e à
enunciação da linguagem. O que se nota aqui é a tentativa de abandonar a subordinação da
18
Ainda de acordo com Pagni (2010, p. 103), poucos filósofos auxiliaram a pensar tão precisamente a questão da
infância desde a espiritualidade, embora esse não tenha sido precisamente o seu propósito, quanto Michel
Foucault. Isso porque a própria noção de infância coincide com o momento histórico analisado por ele para
explicitar a multiplicação das artes de governo e das formas de governamentalidade da população.
51
experiência da infância às regras da razão, como também a emergência de uma práxis
educativa ancorada na ideia de um cultivo ético-político como um requisito para que a
infância deixe de figurar apenas como um objeto de estudo e de intervenção normativa da
educação.
Essa outra perspectiva de se conceber a infância, na contemporaneidade, retoma
aquilo que a arte pedagógica esqueceu, desde a modernidade, a saber: a infância
como sendo sinônimo de agitação e de atividade, condição e possibilidade do
pensamento, signo de movimento e de instabilidade do pensar. Em razão de sua
associação às virtualidades da filosofia ou às pretensões de plena objetividade das
Ciências Sociais, nas quais procurou se justificar e se legitimar, a arte pedagógica se
desenvolveu, na modernidade, como uma espécie de governo do outro para o qual é
imperativo o governo de si. Para problematizar esse governo do outro almejado pela
arte pedagógica parece ser necessário que, ao corrigir o foco do olhar dirigido às
crianças, os educadores olhassem para si mesmos, para esse outro que o habita e
para a infância de seu próprio pensamento (PAGNI, 2010, p. 111).
Partindo dessas indicações seria possível problematizar o que significa pensar a
experiência da infância como sendo constitutiva de cuidados a serem desenvolvidos pelo
educador. O educador teria que perspectivar a sobreposição da função do mestre ao do
professor, revertendo a arte de governo pedagógica em uma práxis delimitada e exercida no
sentido de cuidar do cuidado que o educando tem de si mesmo. Ao invés de naturalizar a
infância, demarcando sua particularidade em relação aos adultos,
[...] teríamos que considerar que o mestre pode ser tão infante quanto o discípulo, já
que é a relação entre mestre e discípulo que auxilia a localizar a infância em cada
um deles e fazer brotar a linguagem e o pensamento em ambos, diante do inusitado e
do estranhamento que suscitam um no outro ou que é suscitado por um terceiro (um
livro, uma obra de arte, um riso, um estrangeiro). Tal perspectiva poderia abrir um
espaço e tempo na interlocução entre o mundo infantil e o mundo adulto na arte
pedagógica, bem como colocar no horizonte do ensino formal uma arte da vida e de
cuidado de um para com o outro por parte do educador. Desse modo, o educador
poderia levar às situações formais de ensino, em que age como professor, um modo
de existência que, para além do desenvolvimento das aptidões e capacidades dos
educandos, do aprendizado da fala, das técnicas argumentativas, do pensamento
reflexivo, dentre outras práticas postas em circulação e saberes transmitidos na
escola, traga consigo seu estilo de vida e certa abertura para pensar os sentidos do
acontecimento que emergem da relação pedagógica, em vistas não apenas da
transformação do outro, como também de si mesmos (PAGNI, 2010, p. 115).
Assim, se, por um lado, a infância é concebida como uma idade específica e valorada
negativamente para justificar o governo exercido pela arte pedagógica, por outro lado, do
ponto de vista da relação educação-espiritualidade a infância acompanha a própria formação
humana, não se restringindo a uma etapa definida e se caracterizando como um modo de
resistência. Isso porque a infância é entendida como condição e possibilidade do pensar e do
52
expressar a experiência ao desestabilizar os modos de existência. A espiritualidade pressupõe
que os sujeitos se perspectivem e se modifiquem em um contínuo processo de cultivo de si.
Esta seria a dívida para com a infância, nos termos assinalados por Lyotard (1997).
[E] embora nos dias de hoje essa dívida tenha sido esquecida, bastaria que não a
esquecêssemos para que resistíssemos ao desenvolvimento do atual sistema político.
Esta seria uma tarefa política imprescindível ao tempo presente, a qual é chamada a
prestar testemunho não apenas a arte e a filosofia, como também a práxis educativa.
Isso porque a obediência a essa dívida, chamada de “dívida da vida, do tempo, ou do
acontecimento, dívida de ser aí pese a tudo, da que só o sentimento persistente, o
respeito, pode salvar o adulto de ser só um sobrevivente, um vivente com sua
aniquilação refreada” (Lyotard, 1997, p. 69). Se esse testemunho se apresenta como
possibilidade de resistência ao sistema, isso se deve ao fato de provir das entranhas
da vida e de a sua rememoração poder implicar em uma valorização de seus atores
em si mesmos, como acontecimentos no mundo, do mesmo modo que a infância
com a qual se defrontam tanto os educandos quanto os educadores. Diante do
começo que significou a infância, de suas misturas físicas e simbólicas, ambos os
sujeitos da práxis educativa podem reconhecer os rastros e os caminhos entreabertos.
Assim, tal obediência para com a dívida da infância não é apenas condição para que
os educadores não a esqueçam, como também uma possibilidade de se aventurarem
por outros caminhos em sua práxis e com a sua arte, para além daqueles já
conhecidos, mediante o ato do pensar despertado pelo acontecimento em que
consiste a infância do outro, do educando, que o remete a sua própria infância
(PAGNI, 2010, p. 116).
Reconhecer a dívida da educação com a infância é assumir nossa relação com o
próprio acontecimento da infância, reconhecer sua alteridade e sua diferença radical, pois nela
se encontra o “nascimento de outro pensar e de outro modo de existir, no adulto/educador”
(PAGNI, 2010, p. 117). Os educadores podem encontrar na infância o germe de uma
experiência formativa capaz de interromper os dispositivos de controle das crianças.
Diferentemente de um corpo de saber, de saber-fazer e de saber sentir que se
encontraria em potência em cada um de nós, o ato educativo pensado como ato
eminentemente espiritual seria uma espécie de potência a ser desdobrada. Mais ainda:
[...] o encontro desse ato com a infância, até então considerada como o monstro dos
filósofos, tornar-se-ia agora seu cúmplice, ensinando-o a perceber que, embora o
espírito não fosse dado, seria possível. Esse ato seria uma atividade que segue um
curso no mundo, em um processo de identificação e desvencilhamento pelo qual se
formam e se reformam os educadores, como autodidatas, que nunca alcançam uma
identidade adequada e estão sempre empenhados no difícil trabalho de recomeçar,
reconhecendo a infância de seu próprio pensamento e a menoridade em que se
encontram enredados. Como crianças que não sabem previamente a resposta, porque
os problemas que se colocam interrompem seus hábitos de pensar e de ser, ensaiam
pensar diferentemente desses hábitos ao aceitar o desafio daqueles, mesmo que isso
implique na mudança do que são em si ou para si mesmos e para os outros (PAGNI,
2010, p. 117-118).
53
Na relação educação-espiritualidade, o educador se emancipa e é cúmplice da infância
apreendida como experiência formativa, onde não só é imprescindível a presença do outro,
mas também o encontro com a experiência desse outro que permite ao educador aprender
sobre si.
Nessa direção, o próximo passo consiste em interrogar em que medida esse tipo de
compreensão da relação educação-espiritualidade tem se materializado concretamente em
propostas pedagógicas direcionadas às crianças. Para tanto, nos debruçamos sobre duas
experiências concretas de educação da infância que tem acionado a noção de espiritualidade.
Antes de abordar essas experiências, apresentaremos sucintamente os passos metodológicos
que foram dados na construção do processo de pesquisa mobilizado por essa dissertação.
54
4 PERCURSOS METODOLOGICOS
A construção do percurso metodológico de nossa pesquisa, no âmbito da Linha de
pesquisa em Educação e Espiritualidade (PPGE/UFPE), está alinhada teoricamente aos
estudos e abordagens qualitativas. Nessa direção, seguimos Estéban (2010) quanto este afirma
que a pesquisa qualitativa em educação se volta para a compreensão dos fenômenos
educativos, bem como à transformação de práticas, sujeitos e cenários aí envolvidos sem
necessariamente possuir uma visão totalizadora de todos os processos e elementos envolvidos
nesses contextos.
Além disso, nessa abordagem o pesquisador, ele mesmo, se constitui como um
“instrumento” vital da investigação, pois sua presença, o modo como interage e observa, afeta
a construção e a interpretação dos dados. Nessa direção, autores como Lincoln e Denzin
(2006, p. 390) defendem que os pesquisadores têm, antes de tudo, um compromisso com a
“compreensão contextualizada da experiência humana”. O que faz com que o problema
metodológico central seja como abordar determinada experiência vivida, “recortando” modos
de olhar sem perder de vista a integralidade e contingência dos fenômenos abordados.
Isso é importante uma vez que, segundo Chizzotti (2001, p. 79), as abordagens
qualitativas partem do princípio de que existe uma “relação dinâmica entre o mundo real e o
sujeito, uma interdependência viva entre o sujeito e o objeto, um vínculo indissociável entre o
mundo objetivo e a subjetividade do sujeito”. Desse modo, o que chamamos “objeto” não é
um dado inerte e neutro, mas é atravessado por significados e relações que os sujeitos
concretos criam ou reproduzem em suas ações cotidianas. Daí que a opção pela abordagem
qualitativa pressupõe o cultivo de uma disposição para lidar com a complexidade dos
processos formativos.
Nos termos de Minayo (1998), uma pesquisa qualitativa implica desdobrar múltiplas
fases interligadas: uma fase exploratória, na qual se amadurece a reflexão sobre o fenômeno
em estudo e se delimita o problema de investigação; uma fase de construção dos dados em
que se recolhem informações que respondam ao problema; e uma fase de análise na qual se
faz o tratamento, por inferências e interpretações, dos dados apreendidos na investigação.
Uma questão chave em todo esse processo-percurso é a atenção sensível ao contexto já
que a experiência se afirma e tem lugar em situações concretas. Os acontecimentos estudados
55
não são compreendidos separados dos contextos. Logo é preciso mobilizar várias estratégias a
fim de se produzir uma aproximação sensível ao problema.
4.1 O movimento
Dessa ótica, em um primeiro movimento, delimitamos a relação entre as noções de
infância e espiritualidade no campo da educação. Para tanto, partimos de uma revisão
bibliográfica visando delimitar os autores que tematizam a infância na interface com a
Filosofia da educação, focalizando mais diretamente os estudos que tratavam dos modos de
governamento da infância. Neste primeiro movimento da trajetória investigativa, realizamos
uma leitura atenta do referido material textual com o objetivo de delimitar os argumentos
mobilizados pelos autores. A leitura foi realizada considerando dois elementos operativos,
explicitados por Lakatos e Marconi (2007), a compilação e o fichamento.
A compilação corresponde à organização do material a ser estudado, agrupando os
textos por conjuntos de tópicos relacionados ao fenômeno. O fichamento serviu para reunir as
ideias principais dos autores e selecionar os pontos de interseção e diálogo entre eles. O uso
desses procedimentos seguiu as orientações globais desdobradas por Minayo (2010) como
leitura analítica do material selecionado a fim de responder os aspectos teóricos da pesquisa19
.
Em um segundo movimento, investigamos a inclusão das noções de infância e
espiritualidade em duas experiências pedagógicas: (1) o Núcleo Educacional Irmãos Menores
de Francisco de Assis (NEIMFA); e (2) o Centro de Estudos Budistas Bodisatva (CEBB).
A primeira experiência ocorre em uma organização social, de caráter educativo,
presente na comunidade do Coque/Recife há trinta anos e que tem como objetivo a promoção
e a defesa dos direitos das crianças, adolescentes e mulheres das periferias urbanas do Recife.
As ações desenvolvidas no NEIMFA articulam-se a partir de cinco Núcleos: Arte e Cultura;
Gênero e Saúde; Educação e Cidadania; Comunicação e Articulação Comunitária; e Direitos
Humanos e Cultura de Paz. Para os propósitos de nossa pesquisa, focamos a análise no Centro
Infantil Jardim do Lótus, um projeto que tem dez anos de existência e encontra-se vinculado
ao Núcleo de Educação e Cidadania, desenvolvendo ações diárias junto a crianças de quatro e
cinco anos.
19
Esse movimento analítico foi materializado nos dois capítulos iniciais dessa dissertação.
56
A segunda experiência está situada no Centro de Estudos Budistas Bodisatva,
localizado na cidade de Viamão, município do Rio Grande do Sul. O CEBB existe desde 2008
a partir da iniciativa do professor budista Lama Padma Samten. Uma de suas ações é a Escola
Caminho do Meio, cuja proposta curricular segue as recomendações, por um lado, dos
parâmetros curriculares nacionais, e, por outro, toma como fio condutor a cultura de paz e a
noção de mandala. A Escola atende crianças de 1 a 6 anos e é reconhecida formalmente.
A escolha por essas duas experiências se deu por uma razão: as atividades com as
crianças e o currículo assumem explicitamente a noção de espiritualidade. Nessa etapa da
pesquisa, realizamos uma análise documental das duas propostas pedagógicas (ver Quadros
01 e 02). Na análise, seguimos as sugestões de Felício e Possani (2013, p. 133), focando:
a) o contexto das duas propostas selecionadas, quer dizer, a cultura de
referência das duas organizações, a fim de apreender o sistema de valores e
crenças mais amplos que servem de sustentação aos seus projetos
pedagógicos;
b) os parâmetros contextuais da ação pedagógica desenvolvida, explicitando
o cenário institucional a partir do qual se desdobra suas concepções de
infância, educação e espiritualidade20
.
QUADRO 01 - DOCUMENTOS INSTITUCIONAIS MAPEADOS NO NEIMFA
NATUREZA ANO DESCRIÇÃO
I PLANEJAMENTO
ESTRATÉGICO
II PLANEJAMENTO
ESTRATÉGICO
III PLANEJAMENTO
ESTRÁTÉGICO
1998-2002
2003-2007
2008-2012
Esses documentos trazem os referenciais
pedagógicos globais da Instituição. Apesar de não
tratarem de forma específica do Centro Infantil
Jardim do Lótus é um material significativo para a
análise da relação educação e espiritualidade, pois
permitem ver quando e como essas categorias
passaram a ser mobilizadas nas atividades formativas
da organização.
PROJETO
FORMATIVO
2012-2017 Esse documento retrata de forma detalhada o trabalho
educativo com as crianças no âmbito do Núcleo de
educação – o núcleo responsável por orientar as
ações pedagógicas do Centro Infantil Jardim do
Lótus, indicando seus principais referenciais
pedagógicos.
REGISTRO DOS
ENCONTROS DE
2010-2015 Esse documento resulta dos encontros formativos dos
educadores do Centro Infantil Jardim de Lótus, que
20
Em função dos limites traçados pelos objetivos e pelo próprio tempo para a realização de uma pesquisa no
âmbito do mestrado não foi possível analisar os três âmbitos das práticas pedagógicas e curriculares estudadas: o
político-administrativo, o da gestão e da sala de aula (Cf. FELICIO & POSSANI, 2013, p. 134).
57
FORMAÇÃO DO
CENTRO INFANTIL
JARDIM DE LÓTUS
ocorrem quinzenalmente. Nesses encontros, além de
estudar os próprios referenciais pedagógicos são
realizados o planejamento e avaliação sistemática das
atividades. Os registros refletem o cotidiano
formativo do Centro Infantil, explicitando o modo de
estruturação das aulas e as reflexões realizadas.
Na investigação, estivemos cientes de que o estudo de uma proposta pedagógica exige
uma considerável atenção para com as relações entre o prescrito e sua concretização.
Contudo, embora mobilizando observações informais, em função do tempo disponível e da
distância geográfica entre as duas experiências, não foi possível lidar diretamente com a
prática dos educadores. O foco analítico se concentrou nas suas percepções sobre a proposta
pedagógica.
QUADRO 02 - DOCUMENTOS INSTITUCIONAIS MAPEADOS NO CEBB
NATUREZA ANO DESCRIÇÃO
PROPOSTA
PEDAGÓGICA
1986 Esse documento orienta as atividades com as
crianças, fornecendo indicações importantes sobre
como a noção da espiritualidade é compreendida
como elemento da prática pedagógica da Escola
Infantil Caminho do Meio.
REFERENCIAL
PEDAGÓGCO E
CURRICULAR PARA
A ESCOLA
INFANTIL
2012 Esse documento apresenta como se estrutura a Escola
Infantil Caminho do Meio, explicitando os
referenciais formativos e o método mobilizado pelos
educadores na atuação direta com as crianças.
Assim, após a análise documental, realizamos entrevistas semiestruturadas com dois
(02) formadores/as de cada instituição, visando apreender como eles/as percebem o papel da
espiritualidade na educação da infância, bem como identificar as principais estratégias
metodológicas vivenciadas em suas práticas pedagógicas para efetivar o sentido de
espiritualidade identificado. De acordo com May (2004, p.149) a entrevista semiestruturada
como uma de suas características “o seu caráter aberto”, ao mesmo tempo em que permite que
o pesquisador mantenha um foco analítico ao conduzir a interação, seja aclarando as questões
no decorrer do próprio processo de investigação, seja ampliando as questões propostas.
Todas as entrevistas foram realizadas com os/as educadores/as que atuam diretamente
com as crianças, tendo sido registrados elementos como: formação e tempo de contato com a
experiência; como chegou à experiência; os primeiros contatos com as crianças; as alterações
que a experiência provocou. No decorrer da entrevista, os/as educadores/as também foram
incitados a explicitar aspectos mais específicos delineados na análise dos documentos, como a
58
noção de mandala, fornecendo exemplos relativos às categorias delimitadas nas suas
propostas pedagógicas21
. As entrevistas foram realizadas no próprio local de realização das
atividades.
No caso do NEIMFA, não encontramos dificuldades, pois como sou moradora da
comunidade e participo da experiência realizamos os contatos com os educadores
selecionados de forma direta e espontânea, após explicar os objetivos da pesquisa. Com
relação ao CEBB foi necessário fazer uma viajar até Viamão/RS no mês de maio de 2016.
Passamos uma semana interagindo com o contexto, onde fui recebida por uma professora do
CEBB, que foi ao meu encontro no aeroporto depois de dez horas de viagem. Essa mesma
professora me hospedou em sua casa. A sensação foi de ter sido acolhida por essa professora e
por toda sua família, o que foi muito importante, pois além do cansaço e da angústia
decorrente de uma viagem solitária a um lugar desconhecido, no dia de nossa chegada estava
muito frio em Viamão.
A recepção além de calorosa e acolhedora me possibilitou, ao mesmo tempo,
compreender como funcionava a dinâmica interna do CEBB através de conversas informais.
No dia seguinte, fui com o seu filho conhecer o espaço e o coordenador da escola. Acertei
com ele quais professores/as iriam ser entrevistados e consultamos também acerca da
possibilidade de observar um dia de aula da Escola Caminho do Meio, pedido que foi
prontamente atendido. Durante essa conversa explicamos, mais detalhadamente, a natureza do
nosso projeto de pesquisa, como seriam as entrevistas, os tópicos abordados, etc.
Em seguida, fui conversar com coordenadora da Escola Caminho do Meio que acabou
sendo nossa primeira entrevistada. Marcamos a conversa para as 14hs, mas só pude ser
recebida às 17hs. Mais uma vez, explicitamos a natureza do estudo e os objetivos. A
coordenadora falou do funcionamento da escola, dos projetos, da organização das atividades.
Ela nos disse ainda que já tinha conversado com o professor que, no outro dia pela manhã,
participaria da entrevista. Naquele mesmo dia, também fui autorizada a observar uma aula da
Escola no horário da tarde. No dia seguinte, conforme combinado, entrevistei o segundo
professor.
Todos os dias em que estive no CEBB participei da prática regular de meditação e dos
ensinamentos que são transmitidos no espaço. Também ajudei na cozinha e participei do
grupo de estudo sobre “como meditar com crianças”. Vale dizer que não encontrei grandes
21
Todas as entrevistas foram gravadas em celular, com duração média de quarenta minutos cada, e,
posteriormente, transcritas e digitadas, todas as entrevistas foram, por fim, arquivadas em pendrive e cópias
foram impressas.
59
dificuldades com essa rotina, mas o contato com a comida vegetariana foi bastante difícil.
Precisei temporariamente mudar meus hábitos. Teve um dia que inclusive não consegui me
alimentar, mas considerei que tudo era parte do aprendizado decorrente da pesquisa.
A análise do material colhido nas entrevistas seguiu a técnica de análise temática,
explicitada por Bardin (1977, p.105), para quem “o tema é a unidade de significação que se
liberta de um texto analisado segundo critérios relativos à teoria que serve de guia à leitura”.
A análise temática consiste, dessa forma, em encontrar os principais “núcleos de sentido” (p.
109) que constituem a comunicação efetivada junto aos sujeitos entrevistados.
A análise foi operacionalizada em três etapas: (1) pré-análise, (2) exploração
sistemática do material, (3) tratamento e interpretação dos resultados. A análise temática nos
permitiu elaborar sínteses que facilitaram dialogar com as questões e pressupostos da pesquisa
(Cf. MINAYO, 2010), mantendo, no entanto, a atenção na dimensão produtiva dos discursos
a fim de apreender os enunciados que sustentam as práticas e o uso das categorias
selecionadas.
4.2 O corpus
Como dissemos acima, realizamos entrevistas com dois formadores/as do Centro
Infantil Jardim de Lótus e com dois formadores/as da Escola do Caminho do Meio. Os
primeiros contatos e entrevistas foram realizados com os educadores do NEIMFA. Na
sequência, contatamos a Escola Caminho do Meio, incialmente por e-mail, onde encontramos
uma primeira dificuldade: o deslocamento para o campo de pesquisa22
.
O principal critério para a escolha dos professores entrevistados foi o de estarem
diretamente envolvidos com a experiência da educação infantil. No NEIMFA, conversamos
com Dom em sua própria casa e a entrevista completa durou quatro encontros; e com Kali em
dois encontros, o primeiro na sede do NEIMFA e o segundo na sua casa. Ambos disseram que
22
Decidi pela viagem para fazer diretamente as entrevistas porque, nos primeiros contatos via e-mail sentimos
uma dificuldade com a coordenação da Escola. A primeira resposta só veio depois de quinze dias e nada ficou
acordado. Foi solicitado que entrássemos em contato com o responsável direto pela Escola, fizemos a
comunicação por e-email e, mais uma vez, quinze dias de espera pela resposta, a qual nos colocava uma série de
questões: o objetivo da pesquisa, o pedido para enviar o projeto de pesquisa, o número de educadores a serem
entrevistados, o envio prévio do roteiro das entrevistas. Como todo esse material já havia sido enviado no
primeiro contato, entendi que, talvez, houvesse algum receio e então resolvemos visitar diretamente a
experiência. Ideia que foi prontamente aceita pela coordenação da Escola. Então remeti, mais uma vez, todo o
material solicitado e o termo de livre esclarecimento para deixá-los mais tranquilos com relação ao processo da
pesquisa.
60
se sentiam mais à vontade em suas casas. No CEBB, a entrevista com Lua foi realizada na
sala dos professores e durou apenas um encontro. A conversa com Céu aconteceu após o café
da manhã em um jardim bem tranquilo. Todos os nomes dos entrevistados são fictícios. Mas a
sua escolha não foi aleatória. Na medida em que fui transcrevendo as entrevistas, ouvindo as
suas vozes, tentei sentir cada um e fazer a escolha a partir do encontro e do contato
estabelecido.
A entrevista com Dom, por exemplo, indicou claramente o seu modo de viver a
educação e a espiritualidade. Ouvi-lo com sua paixão e intensidade me fez sentir que estava
diante de um presente, de uma dádiva, tamanha sua generosidade e dedicação à experiência
com as crianças. No caso de Kali foi ela mesma quem escolheu o nome fictício. Ao questionar
o motivo, ela disse que tem uma “afinidade especial” com Kali e “sua energia”23
.
O nome de Lua, por sua vez, foi escolhido por ela transmitir uma tranquilidade em sua
voz, ao mesmo tempo em que deixava transparecer um brilho especial no seu modo de olhar.
Por fim, os encontros com Céu nos deram a sensação de uma postura firme, segura, sem
deixar de ser acolhedor, afetuoso, alguém pensativo, mas, ao mesmo tempo, aberto e sensível.
4.2.1 Dom, o educador com a destreza de um elfo
No Centro Infantil Jardim do Lótus, no Coque, o primeiro contato foi com Dom. O
que mais me impressiona é que sua presença corporal transpirava uma espécie de ética! Sim,
era só começar a falar com ele e percebia que uma ética sensível, concreta, se expressava
espontaneamente em suas falas e em suas ações. Com 28 anos, ele é morador da comunidade
do Coque, formado em psicologia, mestre em educação e está realizando doutorado em
educação pela Universidade Federal de Pernambuco. Compromissado com as atividades que
assume, afirmou “não gostar de deixar nada inacabado”. Dom é um homem forte,
extremamente coerente e lúcido, uma fonte viva de inspiração e de transmissão de
ensinamentos.
Chegou aos 10 anos de idade no NEIMFA, através dos amigos e da família que já
frequentava a instituição. Diz ter sido profundamente “marcado pelo vinculo estabelecido
com seus primeiros formadores da instituição”. Foi através deles que teve um contato com
atividades artísticas como a dança. Em seguida, surgiu a oportunidade de participar de um
23
Kali é uma divindade indiana, cujo nome significa “negra, a de pele escura”.
61
curso de formação de educadores sociais. Naquele momento, ele tinha “interesse de cursar
medicina” e optou pelo curso porque havia um módulo que ajudava os alunos a se prepararem
para o vestibular. Esse curso foi o que fez com que permanecesse na instituição, motivando-o
a “fazer o voto de bodhisatva”, um compromisso, normalmente feito pelos budistas, de
contribuir para a felicidade de todos os seres. O mesmo “voto” o levou a se inscrever no curso
de educadores holísticos também promovido pelo NEIMFA. Essas duas atividades foram “um
grande marco” na sua vida, seja influenciando seu trabalho na instituição, seja na sua vida
profissional.
Ao longo de toda a entrevista, Dom destacou a “relação de amizade estabelecida com
seus mestres-educadores-formadores”. Para ele, o vínculo estabelecido de amizade e mesmo
de amor foi responsável pela sua compreensão do papel da espiritualidade na formação
humana: “Meu processo de formação foi alargado e a minha percepção em torno da formação
foi se ampliando a partir dessas experiências, aprendizados importantes carregados de
memórias afetivas. [...] mas foram os vínculos estabelecidos com os educadores que, de fato,
aprofundaram o sentimento e desejo de ser um educador” (Dom).
Hoje, Dom é presidente do NEIMFA e diretor do Núcleo de Direitos Humanos e
Cultura de Paz. Ele se divide entre essas duas funções e sua experiência no Centro Infantil
Jardim de Lótus como educador infantil, onde atua desde 2010, atuando no modulo de
cuidado.
Os processos formativos vividos na experiência me dão uma espécie de
injeção de ânimo. Trabalhar com as crianças faz com que meu espírito se
mova intensamente me dando a ver de outra forma, de trabalhar o meu
próprio modo de atuar como educador e me colocando sempre em xeque.
Um processo de devir-humano na relação direta com as crianças (Dom).
Para Dom seu contato com o Centro Infantil Jardim de Lótus o fez se tornar outro, um
“educador com a destreza de um elfo”, onde o que está em jogo no processo educativo é
sempre ele, pois precisa criar novas formas de atuar para estar na companhia das crianças.
4.2.2 Kali, a educadora empoderada pela magia e pelo afeto
A segunda educadora que contatamos, no Centro Infantil Jardim de Lótus, foi Kali.
Com trinta e nove anos, ela é moradora da comunidade do Coque, casada, com dois filhos.
Sua formação inicial é o Ensino médio. Através de um grupo de amigas foi convidada a
62
participar do NEIMFA e sua primeira participação na instituição foi junto à Oficina de pintura
e tela. Aos poucos começou também a se interessar e envolver com as práticas espirituais da
organização.
Após conhecer melhor o trabalho da instituição resolveu se integrar no curso de
educadores sociais, mas depois “migrou para a Oficina de reciclagem”. Esse curso, diz, “foi
muito importante para minha vida profissional e pessoal”, pois proporcionou um
“empoderamento”, tanto que “atuei na Oficina durante cinco anos”, trabalhando com artes. Na
Oficina chegou inclusive a “participar de feiras como a FENEART”.
Kali teve seus caminhos de vida influenciados pelo trabalho no NEIMFA, e “sua
permanência nas atividades foi se fortalecendo através dos laços e vínculos afetivos”. Da
Oficina de reciclagem foi para o Núcleo de arte e cultura, o seu “divisor de águas” em termos
de formação humana e compreensão do que significa educar. Essa experiência produziu “uma
paixão pela arte”, passando a desenvolver com as crianças oficinas com pintura e reciclagem.
Outro ponto importante para Kali é o contato com a espiritualidade, pois “abriu sua
visão de mundo e sua relação com outro”. Para ela, arte e espiritualidade caminham juntas:
“Arte não está separada da espiritualidade, isso é que me move, é minha paixão. Juntas, elas
me ajudam a enfrentar e viver outros mundos, pois a minha fé e o afeto transmitido na
instituição me fortalece através do acolhimento, do tocar, do sentir” (Kali).
Para Kali, a espiritualidade é uma “força que me faz querer viver, acreditar e amar
mesmo diante das limitações, dores e fraquezas” (Kali). Assim, foi através dessa “força” que
se tornou arte-educadora do NEIMFA, tendo assumido a direção do Núcleo, momento
desafiador “pois tinha que organizar planejamento, pensar em proposta pedagógica, organizar
projetos”. Mas, foi nesse processo que teve a oportunidade em participar de congressos e
fazer palestras em ambientes fora da comunidade. Foi nesse contexto, ela nos diz, que
aprendeu
[...] a estar junto com outras pessoas e a conviver com elas. Minha
participação no NEIMFA produziu uma mudança na minha vida diária, por
exemplo, aprendi a lidar com o alcoolismo do meu marido. A arte e a
espiritualidade propiciou na minha formação uma descoberta, uma força,
ampliou meu olhar e me faz viver de outra forma (Kali).
No Núcleo de arte, Kali realizava suas intervenções com os adolescentes, através de
oficinas de reciclagem de papel, pintura e desenho. Foi através dessas oficinas que o vínculo
com a organização foi sendo fortalecido. Assim, quando recebeu o convite para participar
como educadora do Centro Infantil Jardim de Lótus, embora tivesse interesse em trabalhar
63
com adolescentes, aceitou o desafio e permanece até hoje. Na educação infantil, ela tem
vivenciado “um mundo de magia, fantasia e encantamento”, proporcionando inclusive
retomar o mundo da sua infância. Sua atividade com as crianças acontece nas segundas-feiras,
desenvolvendo ações com pintura, desenho e dança e, para ela, estar em contato com as
crianças a transformou.
4.2.3 Céu, o educador que percebeu a matrix
Na Escola Caminho do Meio, nosso primeiro contato foi com Céu, 38 anos. Ele
transmite para quem está ao seu lado uma tranquilidade e uma sensibilidade palpável. Sua voz
suave vai contando como se formou em Ciências Sociais. Seu primeiro contato com o CEEB
foi uma busca espiritual que antes chamava de religiosa. Criado dentro do catolicismo, “aos
17 anos tentava pregar o que vivia na religião”. Foi quando decidiu estudar engenharia
influenciado pelo pai. Percebeu, contudo, que “não tinha muito haver com essa área”. Foi na
engenharia que descobriu outra paixão: a física. Algumas leituras o fizeram “ficar cético, no
sentido cientifico, quer dizer, fiquei chato”. Passou então a não acreditar na religião, foi
“como cortar o cordão umbilical”. Uma experiência com o cinema, curiosamente, o fez sentir
uma reconexão espiritual. Através do filme Matrix percebeu que “há coisas que estão postas
em nossa realidade e mesmo assim não enxergamos”. Casualmente, “descobri muitas coisas
que tinham no filme também eram baseadas na filosofia oriental”.
Foi a partir do filme que desisti de engenharia e fui cursar história. Na hora
da inscrição me escrevi para Ciências Sociais e me apaixonei por
Antropologia. Era isso que estava buscando para minha vida. Foi através da
Antropologia que entrei em contato com as culturas de vários lugares do
mundo, culturas nativas que me fizeram abrir para o mundo da
espiritualidade. Outro ponto foi um livro que me chamou atenção pela arte
da capa, falava de consciência, mas esse livro provocou um vulcão em mim,
o livro fazia várias críticas à universidade e falava de Buda, Cristo, Maomé
entre outros (Céu).
Através de um amigo, Céu teve seu primeiro contato com os ensinamentos budistas e
passou a fazer alguns retiros. Foi através desses encontros que conheceu o CEBB. No ano de
2007, formou-se em Antropologia e no ano seguinte descobriu que o CEBB estava abrindo a
Escola Caminho do Meio. Ele recebeu o convite para participar da equipe de educadores,
assumindo a turma de três anos. No começo, Céu se deparou com algumas dificuldades:
64
“naquele momento eu não sabia o que fazer, mas aos poucos fui me adaptando e pegando
experiência”. Durante esse tempo, a Escola passou por várias modificações no currículo. Por
sugestão da equipe gestora, Céu passou a acompanhar a professora da turma com crianças de
quatro anos, permanecendo na escola até este momento. A sensação ao escutar Céu é que
existe muita gratidão pelo CEBB, um espaço formativo importante em sua vida e profissional.
4.2.4 Lua, a educadora que está vivendo a realização e a felicidade
Por fim, realizamos a entrevista com Lua, tímida, voz suave, sorriso encantador, um
brilho no olhar. Morava no Rio Grande do Sul, em Viamão, com os pais onde viveu grande
parte da infância e adolescência. Depois viajou para São Paulo para morar com a avó. Lua é
formada em Pedagogia pela PUC de São Paulo. Após a conclusão do curso, por razões
pessoais, retornou para Viamão. Um dia passando em frente ao CEBB algumas frases a
impactaram: “nós somos a natureza de um Buda olhando uns aos outros a partir de diferentes
pontos”; “a compaixão é que sustenta o mundo, não o processo econômico”; “podemos dirigir
a nossa vida e trazer benefícios aos seres”. Então, naquele momento, Lua se deu conta de que
“tinha que ressignificar o que estava acontecendo com sua vida”. Ela entendeu que aquelas
frases estavam mostrando algo “que poderia dar outro sentido a minha vida naquele
momento”.
Foi através dessas frases que Lua foi colher informação sobre o CEBB, e descobriu a
Escola Caminho do Meio que se localizava dentro do CEBB. “Uma escola budista?”, ela se
questionou. A proposta pedagógica da Escola a “deixou encantada”. Em janeiro de 2011, foi
convidada a participar do grupo assumindo a turma das crianças de três anos. Para Lua foi
muito difícil, pois naquele momento a proposta pedagógica estava sendo reformulada.
Para ela, era um “desafio colocar em prática o que estava estudando” por ter vindo de
uma experiência com escolas formais: “eu precisei me reafirmar como professora, pois o que
eu vivia ali não estava separado da minha vida”. Lua permanece na escola até hoje. Mas agora
atua com as crianças de cinco anos e conta com o apoio de um professor. Dentre suas
atribuições estão o planejamento das atividades, a organização junto com a coordenação do
plano anual e do bimestral, além de orientar o estudo de temas nos encontros com os outros
educadores, nas sextas-feiras, quando se “realiza o estudo do referencial pedagógico da
escola”.
65
Ouvir Lua foi muito interessante, apesar de sua timidez, percebemos que é uma
sonhadora, alguém que deseja um mundo melhor, trazendo seus sonhos, no entanto, “para o
terreno do cotidiano onde tudo que vivencia junto com as crianças atua como elemento de
transformação de suas relações”. Hoje, diz ela, sou uma pessoa feliz e realizada.
4.3 O locus
As duas organizações focalizadas na pesquisa foram escolhidas, primeiro, por
incluírem em suas propostas de educação da infância a noção de espiritualidade, fazendo um
uso não apenas teórico, mas prático-vivencial dessa noção em seus projetos pedagógicos.
Segundo, porque esse uso da noção de espiritualidade ocorre em duas lógicas institucionais
distintas, ou seja, enquanto uma organização situa seu projeto formativo no âmbito da
educação não formal, a outra se caracteriza como uma instituição de ensino formal
reconhecida.
Essa situação favoreceu um tratamento do fenômeno delimitado, considerando
processos educacionais ancorados em uma lógica formal, que inclui as diretrizes normativas
em vigor, e em uma lógica não formalizável, quer dizer, que incorpora aspectos
majoritariamente derivados das pedagogias dos movimentos sociais.
Contudo, essas duas situações não são incompatíveis, como lembra Maria da Glória
Gohn (2016, p.2), “a educação não formal é um dos núcleos básicos de uma pedagogia social.
Aquela que trabalha com coletivos e se preocupa com os processos de construção de
aprendizagem e saberes coletivos”. Mas a sua meta é abrir “janelas de conhecimento” sobre o
mundo e sobre a própria educação. Dessa ótica, os objetivos da educação não formal não se
contrapõem à educação formal, podendo inclusive ocorrer nas próprias escolas. O
fundamental é a ênfase de que a educação não pode ser apenas uma agência de socialização
de conhecimentos, mas deve também contribuir para a formação de capacidades que
permitam aos sujeitos atuar e pensar de forma criativa e livre. Ou seja, todo processo
educativo implica e reclama uma perspectiva de formação humana capaz de conferir sentido à
própria educação.
66
4.3.1 Núcleo Educacional Irmãos Menores de Francisco de Assis: educação e cidadania
com espiritualidade
O Núcleo Educacional Irmãos Menores de Francisco de Assis (NEIMFA) nasceu de
um encontro entre os moradores da comunidade do Coque e um grupo de jovens em 1986.
Fundado juridicamente em 26 de setembro de 1994, com foro na cidade do Recife, Estado de
Pernambuco, a sede da organização está localizada na Rua Jacaraú, nº31, o NEIMFA é uma
sociedade civil sem fins lucrativos, sem vinculação político-partidária ou religiosa, que
desenvolve atividades educacionais com um direcionamento específico para o estudo, a
prática e a divulgação de valores humanos e a promoção de uma cultura de paz.
Segundo Ferreira (2012, p.134), o NEIMFA objetiva a “superação da violência e a
promoção de uma cultura de paz”, desdobrando ações sociais e educativas baseadas em um
modelo de integralidade que favorece, inclusive, o diálogo com diferentes tradições
espirituais.
Fonte: NEIMFA disponível em: Acervo fotográfico. Acessado em 05/01/2017
Situado no campo de atuação da educação não formal, o NEIMFA tem como meta a
promoção e a defesa dos direitos das crianças, jovens, mulheres e demais moradores das
periferias urbanas da Região Metropolitana do Recife, assumindo como objetivos diretos: o
desenvolvimento de ações educacionais, em todos os seus aspectos, áreas e dimensões; a
promoção dos direitos humanos, do voluntariado e do associacionismo; o estudo, a prática e a
divulgação dos valores humanos e das tradições espirituais que estimulem a cultura de paz; e
67
a realização de estudos e pesquisas voltadas à educação dos grupos populares (NEIMFA,
2002).
Fundamentalmente, o NEIMFA se constitui como uma instância ético-política que
cultiva e defende o desejo de uma cidade justa e solidária, assumindo como fio articulador de
suas ações “o esforço para instituir uma visibilidade outra ao Coque e aos seus moradores”;
uma visibilidade que vá muito além da representação de que aí se trata apenas com “sujeitos
violentos”, “carentes” e/ou em “risco pessoal e social” (NEIMFA, 2007).
Disso decorre sua missão institucional: promover o atendimento das necessidades de
aprendizagem dos moradores da comunidade do Coque, produzindo saberes e práticas que
apoiem o desenvolvimento integral das pessoas (NEIMFA, 2012). Sua estrutura
organizacional é composta por cinco núcleos encarregados de mover suas atividades
formativas (ver imagem abaixo): o Núcleo de Direitos Humanos e Cultura de Paz
(N.D.H.C.P); o Núcleo de Arte e Cultura (NAC); o Núcleo de Gênero e Saúde (NGS); o
Núcleo de Educação e Cidadania (NEC) e o Núcleo de Articulação e Desenvolvimento
Comunitário (NADC).
Fonte: NEIMFA disponível em: Acervo fotográfico. Acessado em 05/01/2017
Simbolicamente, sua estrutura organizacional tem a forma de um mandala: o mandala
da sabedoria dos cinco budas primordiais, indicando as qualidades e os meios hábeis com os
quais operamos no mundo (ver imagem abaixo). A espiritualidade também se constitui como
uma dimensão pedagógica fundamental. Desde sua criação, a espiritualidade se manifesta no
NEIMFA como uma força vital, apontando a própria condição humana na medida em que
68
essa condição nos permite continuar acreditando na possibilidade real de instituir uma
sociedade mais fraterna, justa e solidária. Desse modo, no NEIMFA, o sonho de um mundo
humano, através da espiritualidade, se concretiza através do riso, da festa, da dança, da
fantasia, da alimentação e dos afetos compartilhados, da criatividade e da sinergia entre as
diferenças.
Fonte: CEBB. Disponível em: www.cebb.org.br. Acessado em 16/01/2017
Como consequência, a espiritualidade no NEIMFA emerge como uma espécie de
metáfora do “estar junto”. Por essa razão, a espiritualidade revela-se em todas as ações. O que
sustenta sua visão de espiritualidade é, antes de tudo, a crença (não necessariamente religiosa)
de que é possível criar uma sociedade mais justa, fraterna e solidária. A experiência focada
neste estudo, o Centro Infantil Jardim de Lótus, ocorre no Núcleo de Educação e Cidadania,
que tem como objetivo: “desenvolver projetos educativos que expressem e valorizem a
cultura e os valores dos sujeitos periféricos, impulsionando processos de subjetivação ética e
política junto a crianças, adolescentes e jovens da comunidade” (NEIMFA, 2012.).
69
4.2.2 Centro de Estudos Budistas Bodisatva: cultura de paz e bom coração
O Centro de Estudos Budistas Bodisatva (CEBB) está localizado na cidade de
Viamão, no Rio Grande do Sul, tendo sido fundado em 1986 pelo professor de Física formado
pela Universidade Federal do Rio Grande Sul (UFRGS), Alfredo Aveline. O CEBB foi criado
em 1986, em Porto Alegre, com o nome de Centro de Estudos Budista (CEB). Ao perceber a
preciosidade dos textos budistas, o professor Aveline, praticante Zen desde da década de
1970, sentiu vontade de compartilhar esses ensinamentos, fundando o CEB.
Em 1996, Alfredo Aveline foi ordenado lama, ou seja, professor budista de acordo
coma a tradição budista tibetana. A partir da ordenação, ele recebeu o nome budista Lama
Padma Santem e iniciou a organização de uma comunidade budista em um sítio na estrada
Caminho do Meio em Viamão/RS. Junto com o Lama foram morar no sítio mais vinte e oito
pessoas. O objetivo era viver de acordo com dharma (ensinamentos) sob orientação do Lama.
De acordo com o material exposto pelo Centro de Estudo Budista Bodisatva (CEBB), na
internet,
O CEBB Caminho do Meio é uma comunidade, sem fins lucrativos, criado pelo
Lama Padma Santem com objetivo de difundir os ensinamentos do Buda em solo
brasileiro e propiciar um ambiente acolhedor para os estudos do budismo e para
prática de meditação. Todas as atividades, que incluem retiros, meditação, cursos,
grupo de estudo, palestras, etc. São mantidas pela generosidade de doadores, budista
e não-budista,e pelo trabalho voluntário dos participantes (CEBB, 1986).
Fonte: CEBB disponível em: www.cebb.org.br. Acessado em 16/01/2017
Sobre a forma de gestão do CEBB, o Lama Santen cita seu antigo professor Chagdud
Tulku Rinpocher: “tem que coordenar sem coordenar”, ou seja, “é importante ouvir o grupo
na coordenação das atividades”. Disso decorre a principal característica da organização: a
70
visão ampla, ou seja, a capacidade de enxergar diferentes mundos. Em uma perspectiva mais
pedagógica, o CEBB destaca a habilidade de “ensinar pelas costas”, ou seja, os educadores
que aí atuam buscam, antes de tudo, “servir de exemplos”, considerada uma postura mais
“eficaz do que a prescrição rígida de comportamentos”. Assim, o CEBB ressalta a
importância de todo o grupo envolvido manter “propósitos elevados” ou “sentido nobres” na
sua atuação.
Atualmente, o CEBB Caminho do Meio é um dos principais centros de práticas
budistas no Brasil. Caracterizado. Por está situado na zona rural, formou uma espécie de
comunidade formada por cerca de cinquenta moradores que se dedicam intensivamente à
prática espiritual, sem desconecta-la das atividades administrativas, das ações sociais e
culturais desenvolvidas.
Assim, o CEBB se caracteriza por ser uma espécie de laboratório aplicado de
educação em sentido amplo, pois se, por um lado, as relações existentes entre os moradores
são pautadas nos ensinamentos e práticas budistas (retiros, práticas meditativas), por outro, há
um esforço intencional e sistemático de diálogo com a sociedade em sentido amplo.
A educação sob essa perspectiva visa desenvolver “uma convicção de que o ponto
central é ultrapassar a dificuldade de ver”, quando compreendemos isso a espiritualidade
deixa de ser uma questão de religião e se torna uma visão ampla e lúcida acerca do modo
como vivemos. Em determinados períodos no ano, o CEBB Caminho do Meio se transforma
em um centro potente de eventos, abrigando cerca de dez retiros com temas que variam entre
meditação e compaixão até ação no mundo e diálogo com a ciência. Os retiros possuem uma
duração que pode variar entre um final de semana, e seis meses ou até três anos. Além dos
retiros, o CEBB desenvolve projetos sociais através do Instituto Caminho do Meio e da
Escola Caminho do Meio. Foi assim que, em 2008, o CEBB deu início a um projeto
educacional voltado à primeira infância, chamada Escola Caminho do Meio, que busca
atender não só as crianças da comunidade budista do Caminho do Meio, mas também das
regiões próximas. Mas diretamente, foi o projeto pedagógico da Escola Caminho do Meio que
foi alvo de nossa pesquisa.
71
5 CAMINHANDO EM MEIO AOS NOVOS JARDINS DA
INFÂNCIA
O termo jardim de infância (Kindergarten) foi criado pelo educador alemão Friedrich
Froebel (1782-1852), um dos primeiros educadores a se preocupar efetivamente com a
educação de crianças pequenas. Seu sonho era criar um espaço singular para que um tipo
específico de educação fosse experienciado (ARCE, 2002). Como o nome indica, a ideia
partia do princípio de que as crianças deveriam ser cultivadas e cuidadas. Com o tempo, a
expressão foi incorporada e ressignificada nos debates sobre a educação infantil. Mas além de
remeter aos aspectos lúdicos da educação infantil24
, os jardins permanecem sendo um espaço
fundamental de transposição do imaginário para o real, ou seja, lugares privilegiados dos
reinos da fantasia.
Em nosso imaginário, os jardins são identificados com o mundo do “faz de conta”.
Neste mundo as crianças são incitadas a expressar suas visões de mundo, atribuindo novos
significados à realidade ao brincar com situações, lugares, personagens e eventos que
acontecem em seu cotidiano. Durante muito tempo, acreditou-se que as crianças que têm a
oportunidade de frequentar os jardins de infância teriam seus horizontes cognitivos, sociais e
afetivos ampliados. No Brasil, as primeiras instituições de atendimento às crianças pequenas
surgiram ainda no Império, voltadas às crianças abandonadas na chamada roda dos expostos.
Mas foi na década de 1870, com divulgação no jornal pelo médico Carlos Costa, que o
termo jardim de infância apareceu. Na verdade, se tratava de uma sala aberta ao lado de uma
igreja protestante americana instalada na cidade de São Paulo. Essa iniciativa inspirou duas
outras: uma no colégio Menezes Vieira (Rio de Janeiro, 1875) e outra no Caetano de Campos
(São Paulo, 1896), que adaptaram a pedagogia de Froebel para a realidade brasileira. Em
1924, já existiam quarenta e sete instituições entre creches e jardins de infância espalhadas
pelo Brasil (NASCIMENTO, 1990). Desde então, muitas organizações têm sido criadas para
atender as crianças pequenas, inicialmente, atreladas à lógica assistencial, e mais
recentemente como espaços educativos, o que só ocorreu em função da luta história dos
24
A ludicidade, como sabemos, constitui um traço fundamental irreparável das culturas infantis. A cultura lúdica
constitui algo central à própria ideia da infância, embora, nas últimas décadas, este aspecto seja cada vez mais
capturado pelo mercado de produtos culturais voltadas para a infância. Como resultado, dentre outros, os
brinquedos tradicionais vêm caindo em desuso, o que também acaba por privar as crianças de uma melhor
interação com o outro, movida pela criação e pela imaginação ativa.
72
profissionais da área pedagógica, que, conseguiu incluir a educação infantil como etapa da
Educação Básica.
Como ressalta a professora Alessandra Arce (2004), os jardins de infância, apesar de
todas as ambivalências e das críticas a que foram expostos, perduram em nosso imaginário
como um lugar de memória, ecoando acontecimentos que resistem ao esquecimento. Ao
longo de nossa investigação, percebemos a força desse imaginário ao nos debruçarmos sobre
duas propostas pedagógicas que buscam não reproduzir as referências e os modelos de escola
vigentes no trato cotidiano com as crianças. Nas duas experiências, a infância é retomada
como um tempo mágico capaz, sobretudo de ampliar nossa percepção e compreensão do
mundo.
Considero que essas duas experiências almejam constituir novos jardins da infância.
Digo novos na medida em que não partem de uma visão adultocêntrica, onde o gesto de cuidar
e educar pressupunha uma visão estática e essencializada da natureza infantil. Mas também
porque, além de pensar as crianças a partir da integralidade e da multidiomensionalidade,
reconhecem nas próprias crianças, e nas suas brincadeiras, um gesto potente de transformação
da própria educação. Suas propostas pedagógicas podem, portanto, contribuir para aprofundar
o debate sobre os rumos e os sentidos da educação infantil na atualidade.
5.1 Era uma vez no Centro Infantil Jardim de Lótus
O Centro Infantil de Jardim de Lótus é uma atividade estratégica do Núcleo
Educacional Irmãos Menores de Francisco de Assis (NEIMFA), organização social que atua
desde a sua fundação com ações educativas voltadas para o público infantil. Mas foi no ano de
1995 que os responsáveis pela organização decidiram instituir uma atividade diária especifica
para as crianças pequenas. O foco naquele momento eram as ações compreendidas como
reforço escolar. Diariamente as crianças participavam, no contra turno escolar, de atividades
educativas que buscavam favorecer o aprendizado, sobretudo na área de linguagem.
Com a demanda crescente, no ano de 2003 foi criado o projeto Letra, Palavra e
Mundo, cujo objetivo passou a ser alfabetizar as crianças, incorporando, simultaneamente,
“cuidados essências voltados ao desenvolvimento de suas identidades e a ampliação do seu
conhecimento de mundo” (NEIMFA, 2003). A cada ano, o projeto acolhia cerca de quinze
crianças. Essas ações foram bruscamente interrompidas quando, em 2007, a comunidade
73
vivenciou uma “onda de violência” provocada pelo envolvimento crescente de adolescentes e
jovens com a prática de crimes e com o narcotráfico na localidade. Como resultado, o
NEIMFA passou a priorizar ações que pudessem intervir nessa situação, focalizando seus
projetos educativos junto aos adolescentes. Assim, o trabalho pedagógico com as crianças foi
temporariamente suspenso, sendo retomado nos anos seguintes, mais especificamente em
2010.
Naquele momento, os educadores situados no Núcleo de educação e cidadania
resolveram reconfigurar a proposta para a Educação infantil, tomando como ponto de partida
a noção de mandala. O interesse nessa noção decorria de alguns contatos que a organização
vinha realizando com o pensamento e a prática budista a fim de materializar processos
educativos centrados na cultura de paz. O fato é que uso da noção de mandala pelo NEIMFA
acabou por favorecer um segundo nascimento para as atividades com as crianças. Surgiu
assim o Centro Infantil Jardim de Lótus. Um espaço para “criar mundos”, um espaço em que
o “encanto pelo conto e pela contação de histórias” se tornaria sinônimo de vida sentida
(NEIMFA, 2012).
A primeira turma do Centro Infantil Jardim de Lótus foi criada em 2011, e foi
acompanhada por três anos consecutivos. Nesse período, os educadores foram refinando e
aprofundando a proposta formativa do Centro que, pouco a pouco, foi sistematizada nas
próprias reuniões de estudo do grupo. O núcleo formativo da proposta foi assim expresso:
A formação do gosto de ouvir, ler, contar e escrever histórias, mediante práticas
estéticas (artes plásticas – teatro – música), práticas de cuidado (consigo mesmo –
com o outro – com o mundo), práticas de contação (ouvir – ler – escrever) e práticas
lúdicas (corpo – brinquedos – palavras), todas voltadas ao cultivo da imaginação
criadora. (NEIMFA, 2012).
Situado para além da lógica formal de ensino, o trabalho educativo do Centro Infantil
Jardim de Lótus não tem como intencionalidade a decodificação de palavras, nem os
processos de letramento ou alfabetização. Ao contrário, busca-se por meio de leituras e
histórias cultivar a capacidade de imaginação e criação próprias do mundo infantil.
Um dos motivos para a escolha da identidade, Jardim do Lótus, decorre de uma
referência direta aos “elementos da terra encantada do Buda Amitabha” (NEIMFA, 2015, p.
03). Amitaba, Amitabha ou Amida é um dos cinco Budas da Meditação, sendo o buda
principal da família de Lótus (em tibetano Pema), situado na direção Oeste, de cor vermelha.
O seu animal associado é o pavão e seu elemento, o fogo. O buda Amitabha representa a
sabedoria discriminativa de todos seres que alcançaram o estado de iluminação, por isso está
74
também associado aos processos perceptivos25
. Como dissemos, a flor de lótus é um dos
símbolos centrais de Amitabha e da sua Terra Pura e, como mostraremos mais adiante, tem
uma relação direta com elementos que foram incorporadas pelo projeto pedagógico de Centro
Infantil.
A flor de lótus faz alusão, nesse contexto, às próprias crianças. Elas são pensadas e
acolhidas como flores de lótus. No oriente, a flor de lótus é um símbolo da espiritualidade. O
lótus (padma), também conhecido como lótus-egípcio, lótus-sagrado ou lótus-da-índia, é uma
planta aquática que floresce sobre a água. No simbolismo budista, o significado mais
importante aponta pureza da mente. A água lodosa que acolhe a planta é associada ao apego e
aos desejos carnais, e a flor que desabrocha sobre a água em busca de luz é a promessa de
elevação espiritual. É, portanto, associada à figura de Buda e aos seus ensinamentos e, por
isso, são flores sagradas para os povos do oriente. Diz a lenda que quando o menino Buda deu
os primeiros passos, em todos os lugares que pisou, flores de lótus desabrocharam. Além
disso, na maioria das religiões asiáticas, as divindades costumam surgir sentadas sobre uma
flor de lótus durante o ato de meditação. Essa imagem foi associada à ideia do jardim, pelos
educadores do Centro Infantil, também por remeter aos contos de fadas que, em sua maioria,
tem jardins mágicos.
Imagem do Buda Amitaba. Fonte: https://goo.gl/9qRfV6. Acesso em 10/02/2017.
25
Além disso, Amitabha tem um especial comprometimento com a iluminação de todos os seres, sendo
conhecido como o buda da transferência da consciência na hora da morte. No Tibete, ele é conhecido por Od
Pagme e, no Japão por Amida Niorai. Acredita-se que a repetição do seu mantra leva o praticante ao
renascimento na Terra Pura de Amitabha, uma região de felicidade, gozo e bem-aventurança.
75
O ingresso das crianças no Centro Infantil de Jardim de Lótus acontece a partir de
divulgação regular na comunidade circundante. A cada ano são abertas vinte vagas para
crianças com idade de 3 e 4 anos. Em acordo com os pais, elas também são matriculadas, no
período da tarde, nas escolas formais (normalmente públicas), pois, o Centro Infantil não tem
o intuito de alfabetizar nem complementar a inserção das crianças na educação formal.
A equipe é formada por uma coordenadora, uma pedagoga, um psicólogo e duas arte-
educadoras que, quinzenalmente, se reúnem para planejar, acompanhar e avaliar as atividades,
e, ao mesmo tempo, problematizar e elucidar as referências pedagógicas e espirituais que são
mobilizadas. No período de realização da pesquisa, o grupo era constituído por quinze
crianças na faixa etária de 4 e 5 anos. A turma era composta por duas meninas e o restante de
meninos.
A observação indicou a presença de relações afetuosas entre as crianças e os
formadores. Além do envolvimento com as atividades observamos como elas gostam de ouvir
histórias. Algo que nos chamou a atenção é que, mesmo com a turma formada
majoritariamente por meninos, todos brincam juntos, inclusive com brincadeiras e
brinquedos, tradicionalmente, mais ligadas ao universo das meninas. O que mais
impressionou, contudo, foi que apesar de apresentarem características muito próprias entre si,
as crianças manifestam vínculos afetivos intensos, seja colaborando na execução de certas
tarefas, seja ajudando os colegas de turma a participarem de determinadas atividades
propostas pelos formadores.
Assim que entrei no espaço das aulas do Centro Infantil Jardim de Lótus fui invadida
pela luminosidade que irradia de suas paredes azuis. No teto foram desenhadas estrelas que
confirmam a sensação de estarmos em pleno céu. As cadeiras e as mesas são coloridas e há
um mural feito com pintura das mãos coloridas das crianças. Também notei um imenso painel
com flores, sol, um jardim e muitos animais. No canto à esquerda havia uma televisão. O
cantinho da contação de história é, na verdade, um tablado repleto de almofadas. No momento
da observação, no centro da sala tinha um altar com um Buda, velas e incensos. Havia
também uma caixa dourada onde estavam guardados alguns “desejos das crianças”. Como
será explicado posteriormente, esses desejos seriam apresentados ao mágico da terra de Oz.
É importante ressaltar que a rotina de atividades não é vivida de modo rígido, embora,
quase sempre, seja bem intensa. As atividades começam às 08h00mim e se estendem até às
11h00min (ver Quadro II). Mas um pouco antes das 08horas já ocorre o acolhimento das
mães. As atividades são divididas em quatro momentos, ou seja, um dia de atividade é
organizado em quatro módulos: cuidado, contação de histórias, atividades lúdicas e práticas
76
estéticas. Além disso, há uma espécie de rodízio na ênfase de cada um desses módulos ao
longo da semana.
Por exemplo, na segunda feira a prioridade é dada às atividades do módulo referente
às práticas estéticas. Na terça feira focalizam-se as ações de cuidado de si e do outro. Na
quarta a prioridade é a contação de histórias e assim sucessivamente. Essas ênfases não
significam que em um dia determinado todas as ações girem apenas nesse âmbito.
QUADRO II – ROTINA DIARIA DO CENTRO INFANTIL JARDIM DE LOTUS
Horário Segunda feira- Terça feira – Quarta feira – Quinta feira – Sexta feira –
Ênfase Práticas
estéticas
Práticas de
cuidado
Práticas de
contação
Práticas
Lúdicas
Práticas Livres
07h30min
Momento de
acolhimento
Momento de
acolhimento
Momento de
acolhimento
Momento de
acolhimento
Momento de
acolhimento
08h Meditação Meditação Meditação Meditação Meditação
08h20min
Contação de
História
Contação de
História
Contação de
História
Contação de
História
Contação de
História
09h Prática
Estéticas
Prática Estéticas Prática
Estéticas
Prática
Estéticas
Prática Estéticas
09h30min Lanche Lanche Lanche Lanche Lanche
10h Práticas de
Cuidado
Práticas de
Cuidado
Práticas de
Cuidado
Práticas de
Cuidado
Práticas de
Cuidado
10h30min Práticas
Lúdicas
Práticas Lúdicas Práticas
Lúdicas
Práticas
Lúdicas
Práticas Lúdicas
11:00h Saída Saída Saída Saída Saída
Fonte: NEIMFA, 2015.
Na verdade, cada dia contempla ações nesses quatro âmbitos ou módulos como
também são chamados. Tanto as observações como as entrevistas indicaram que um dia
comum de atividades segue basicamente essa rotina: inicialmente vive-se alguma atividade
lúdica visando o acolhimento das crianças. É um momento de brincadeiras, com ou sem
brinquedos, mas também é comum que as crianças manuseiem livros de contos espalhados
nas mesas. É um momento importante de interação e aproximação com as crianças. No
segundo momento, as crianças e a educadora fazem um círculo em torno de um pequeno altar
onde está a imagem de um Buda. As luzes são apagadas e vela e incenso são acesos para dar
início a um breve momento de meditação. As crianças fazem silêncio, sentando nas cadeiras
da melhor forma possível. A educadora toca um pequeno sino e começa a meditação. Em
seguida, toca o sino novamente e a meditação é encerrada. Todos os dias duas crianças são
responsáveis por acender a leva e o incenso até o altar. Após a meditação forma-se uma roda
de conversa que gira em torno de vários assuntos, como novidades que trazem para o grupo,
77
um acontecimento, quem veio e quem não veio. Nesse momento, também, são retomadas as
principais regras de convivência.
O terceiro momento estruturante da rotina é a contação de história. A educadora
sempre retoma a história do dia anterior. Esse é o momento mais esperado pelas crianças que
participam bastante. No dia de nossa observação, o conto era o “Mágico de Oz.”, e a
formadora introduziu o conto com a pergunta: “quem já viu um mágico?”. Todas as crianças
responderam que viram na televisão. Na sequência, ela narrou a história utilizando fantoches
dos personagens. Ao longo da contação, ela sempre enfatizava que as crianças precisavam
ficar atentas para encontrar o Mágico de Oz. Esse é um dado importante, pois foi acertado que
quando esse momento acontecesse, as crianças poderiam fazer alguns pedidos ao mágico.
Embora a contação seja uma atividade estrita do Centro infantil, ela acaba envolvendo
toda a organização, pois as salas do NEIMFA são adaptadas para essa atividade. Por exemplo,
à medida que a história do Mágico de Oz ia sendo narrada, as crianças se deslocavam por
diferentes espaços da organização. Cada sala em que as crianças entravam tinha uma cor
própria (verde, amarelo, vermelho, branco, etc.), elas tinham que encontrar a cidade de
esmeralda porque era lá que o mágico estava. Assim a história acabava envolvendo diferentes
espaços e consequentemente afetando vários sujeitos. Ao retornar para cidade azul, a sala de
aula da educação infantil, as crianças são incitadas a desenharem produzirem os personagens
da história. Ao final, ocorre um pequeno intervalo. O lanche é servido com a ajuda de duas
crianças, uma para lavar as mãos e outra para enxugar a mão dos colegas que, um a um, são
chamados. As crianças sentam e cantam, fazendo uma pequena oração na mesa do refeitório.
Após o lanche elas retornam para a sala. Há um momento de atividades livres para que
juntas elas criem suas próprias brincadeiras ou escolham brinquedos e jogos específicos, a
partir de suas próprias regras sem grandes intervenções dos formadores. Após esse momento,
elas organizam o material usado e o espaço retornando para as atividades lúdicas planejadas
para aquele dia. Aos poucos, os responsáveis chegam e as crianças voltam para suas casas.
5.2 Vamos passear na Escola Caminho do Meio
A Escola Caminho do Meio, por sua vez, é uma escola sem fins lucrativos e sua
proposta de sustentabilidade é construída em parceria com as famílias, colaboradores e
amigos do Centro de Estudos Budistas Bodisatva (CEBB). O projeto pedagógico da Escola
78
prioriza um conjunto de diretrizes em confluência com os princípios norteadores do CEBB,
todos objetivando resguardar “o respeito ao brincar e ao universo da criança, além da
construção vivencial e participativa de um conhecimento significativo e integrado à dimensão
emocional e a habilidades concretas variadas”. Mas, sem dúvidas, o foco central é o “cultivo
da sabedoria”.
Esse princípio ancora-se na percepção de que o nosso “mundo interno” é um
“elemento estruturador das experiências subjetivas de cada uma das crianças e dos
educadores”. Trata-se, portanto, de um princípio vital para as ações pedagógicas conduzidas,
pois aponta a prevalência da “noção de inseparatividade entre o mundo interno e o mundo
externo”, cuja representação paradigmática é fornecida pela noção e pelo uso do mandala
(CEBB, 2012).
A Escola Caminho do Meio é uma instituição de médio porte que oferece atividades
de Educação Infantil e Ensino Fundamental por meio dos chamados ciclos de formação. A
meta é “crescer junto com os alunos”, tornando-se referência em educação para a cultura de
paz (ver Imagem). Os estudantes da Escola estão na faixa entre 2 e 14 anos. As crianças e
adolescentes provem de famílias que buscam uma educação que possibilite a integração do
conhecimento com formas lúcidas e sustentáveis de vida, favorecendo uma experiência
escolar que faça sentido e conecte os estudantes com uma visão ampla sobre a vida humana.
Assim, na Escola Caminho do Meio, as crianças e os adolescentes encontram acolhimento,
espaço e desafios que visam favorecer o desenvolvimento amplo de cada um, respeitando seus
ritmos e suas histórias.
Fonte: CEBB disponível em: acervo fotográfico, acessado em 31/05/2016
79
A equipe de educadores da Escola é formada pela coordenação pedagógica, pelos
educadores, pelo núcleo administrativo e diretivo, pelas famílias e pela própria comunidade.
Todas essas instâncias são compreendidas como elementos de mediação das experiências
formativas e do conhecimento construído, fazendo intervenções quando necessário e
participando colaborativamente do currículo e do projeto pedagógico da Escola. A
metodologia empregada, por sua vez, procura desenvolver as variadas dimensões do ser
humano e suas múltiplas formas de expressão, em um contexto lúdico e cooperativo, onde o
aprendizado alia-se ao prazer da descoberta e da criação. Para atingir esses propósitos, os
educadores são incentivados a desenvolver projetos que integrem os conhecimentos de
diferentes áreas.
Os projetos são construídos na relação entre as crianças e os educadores,
contemplando de maneira integrados conteúdos das diversas áreas de conhecimento
previstos no currículo escolar, a partir de temas geradores. Além de contemplar os
conteúdos, os projetos devem estar inspirados nos princípios norteadores da escola,
e buscar integrar nos seus processos de aprendizagem três aspectos principais: os
aspectos acadêmico, artístico e prático. (CEBB, 2012)
Esses projetos são baseados em cinco sabedorias (acolhimento, igualdade,
investigativa, causalidade e transcendência), as quais não são objeto de uma aprendizagem
formal ou discursiva. As sabedorias são incorporadas nas atividades como exercício prático
pelos próprios educadores, ou seja, eles educam as crianças a partir de seu próprio exemplo na
medida em que cada educador é motivado a colocar a sabedoria priorizada em sua pratica
cotidiana e não como um mero conteúdo de ensino teórico. Considera-se que as sabedoras são
inseparáveis e transversais, atravessando todo o cotidiano escolar.
O planejamento das atividades é feito bimensalmente. A cada bimestre se destaca uma
sabedoria nos estudos da equipe e nas vivências das crianças. As sabedorias também são
integradas ao entendimento das estações do ano e às festividades culturais locais. A ideia é
que as crianças vivenciam a interdependência com tudo o que vivem. Cada sabedoria é
estudada pelos educadores que a transmite através do exemplo e criando situações para sua
vivência através de brincadeiras, jogos, canções, cantigas de roda e das artes em geral.
Os projetos educativos de cada bimestre têm um eixo comum para os variados grupos
de crianças de toda a Escola, articulando uma estação do ano, um elemento da natureza, um
princípio norteador da sabedoria selecionada, tudo isso perpassado pelos seis princípios
80
orientadores da Escola: Integralidade, Diversidade, Conhecimento, Sustentabilidade,
Criatividade e Sabedoria (ver quadro abaixo).
Fonte: CEBB disponível em: acervo fotográfico, acessado em 31/05/2016
Devido a essa abordagem pedagógica, a equipe de formadores se mantém em estudo e
formação permanente, pesquisando, aprendendo e exercitando um trabalho de autoeducação
que é um dos cernes do método da Escola. No entanto, um dos elementos mais importantes
considerados na Escola Caminho do Meio é o ato de brincar e os educadores atuam como
mediadores ativos na relação das crianças com seu processo de aprendizagem e descobertas.
Os educadores são os responsáveis diretos por oferecer um repertório básico de
atividades cuja finalidade última é “inspirar e enriquecer o brincar das crianças”, pois se
considera que as crianças “aprendem com alegria”. A rotina de atividades inicia-se às 13hs
com o acolhimento as crianças e suas famílias. Após esse momento as crianças realizam uma
prece e seguem para o parque com o professor, realizando brincadeiras de roda, corda, sobem
em árvores. Como uma observadora visitante do espaço, fiquei sentada realizando um
bordado por indicação da professora responsável. A princípio estranhei levando em conta o
modo como no meu curso de magistério e de pedagogia praticamos o exercício da observação
em salas de aula.
Em conversas posteriores compreendi que, na Escola, “quem vem observar tem que
produzir algo para deixar na sala de aula”, pois, segunda a professora, “quando as crianças
81
sentirem falta da presença do estagiário ou do visitante vai lembrar daquilo que ele/ela
produziu enquanto esteve com elas e que foi deixado como um presente para elas”.
Logo em seguida, as crianças retornam para a sala onde têm à disposição brinquedos,
um espaço de desenho e pintura, uma casinha de boneca, um espaço da fantasia e uma
marcenaria. Todos esses espaços podem ser manuseados livremente pelas crianças.
No dia que que observei, esse momento durou cerca de vinte minutos, depois a
professora solicitou às crianças que ajudassem na organização do lanche coletivo que foi
servido. Cada criança trouxe, naquele dia, uma fruta para o lanche comum. Esse momento foi
bem importante, pois não gosto de salada e fui convidada pelas crianças a participar desse
momento. Eu não tive como negar. Lembrei que, na entrevista realizada com a professora, ela
frisou a importância de “sempre ensinar pelo exemplo”. Ao final, cada criança lavou seu prato
e seguimos para realizar uma trilha no espaço onde está situado o CEBB. Organizamos uma
corrida para ver quem chegava mais rápido. Foi uma experiência muito boa, pois nesse
momento pude ficar mais próxima das crianças, conversar com elas, brincar com elas.
No percurso fizemos juntos uma visita na casa de um dos moradores do CEBB que
tem um cachorro. Ao retornar passamos por um pequeno riacho e realizamos uma competição
para ver quem conseguia arremessar pedrinhas o mais longe possível. De volta para a Escola,
encontramos a sala organizada para o momento da contação de histórias.
Havia uma mesa no centro da sala com velas. As luzes estavam todas apagadas. A
história era sobre um menino que era muito levado e gostava muito de dançar, mas ia deixar a
escola para viver novas aventuras. Cada criança foi incentivada a desejar algo de positivo para
o “amigo” da história. As crianças foram falando, umas deram abraços, outras diziam que iam
sentir saudades. Depois houve a brincadeira de passar a bola ao som de uma música, quando
essa era interrompida a criança que estivesse com a bola tinha que imitar um animal. No final
do dia, as crianças realizaram uma prece de despedida, agradecendo o momento que ficaram
juntas. Elas próprias organizaram seu material para esperar os pais e retornarem para suas
casas.
5.3 Uma conversão do olhar... Vamos brincar de infância?
Tanto a leitura dos documentos pedagógicos como a breve observação realizada no
Centro Infantil Jardim de Lótus e na Escola Caminho do Meio, apesar de apontarem
82
experiências singulares com especificidades muito próprias, permite afirmar que, para os
educadores dessas duas experiências educativas, a infância é percebida como inseparável de
um mundo de possibilidades sempre renovadas. Em nenhum momento, constatei um olhar
objetivador das experiências infantis. Muito pelo contrário, mesmo na Escola Caminho do
Meio que se trata de uma organização formal de ensino que segue, inclusive as diretrizes
normativas dos órgãos encarregados de gerir a educação infantil nacional e localmente,
constata-se um esforço para desconstruir a escola como lugar de disciplinarização das
vivências infantis.
Nas entrevistas os educadores sempre ressaltavam a experiência de uma “ampliação
do olhar” provocada pelo contato com as crianças nas organizações apresentadas.
Quando cheguei à experiência o que tinha de repertório era a forma como eu
mesma tinha sido escolarizada. Era tudo bem restrito, minhas vivências de
quando fui aluna e de como meus pais me educaram. Por isso, houve um
primeiro impacto no meu próprio modo de ensinar. A Escola [Caminho do
Meio] apresentava para mim outras possibilidades no ato de educar:
aproveitar a energias das crianças, seu potencial como um maestro regendo
uma música. O desafio de colocar em prática efetivamente o que se estudava
nas formações. A transformação tinha que ser antes em mim como
professora (Lua).
O mais interessante foi perceber os desafios de uma prática educativa que busca
materializar uma espécie de “pedagogia do brincar” estreitamente articulada com uma noção
também específica de espiritualidade. Por isso, segundo os educadores, o impacto da
desconstrução provocada era muito significativo. Como eles mesmos indicaram, enquanto
educadores não se trata apenas de se apropriar de um novo conteúdo ou mesmo de uma nova
metodologia ou didática de ensino. O desafio era se apropriar de uma proposta pedagógica
que não pretendia ficar registrada em documentos oficiais das duas organizações estudadas.
Diferentemente do que ocorre nas escolas convencionais que lidam com a infância, o
que é proposto a esses educadores é uma verdadeira “conversão no modo de olhar” as
crianças, o que claro repercute nas suas formas de ensinar e de fazer aprender.
Foi muito importante perceber a primeira infância como uma gama de
possibilidades. Eu precisei desenvolver, cultivar um novo jeito de olhar o ato
de educar. Nossa, isso foi uma revolução pra mim! Aprender a olhar a
criança a partir dela mesma, possibilitar a elas um mundo como um lugar
favorável e positivo. Eu tinha sido educadora em uma experiência inspirada
pela pedagogia Waldorf. Mas aqui tudo é mais intenso porque não é só
mudar o modo como lidamos concretamente com as crianças, o que já é
bastante difícil. A questão é que você tem que incorporar os princípios da
83
escola em sua prática cotidiana nos mínimos gestos. E pra isso tem mudar o
modo como olha as crianças, entende? Por exemplo, aqui o brincar é um
elemento fundamental no desenvolvimento da criança. Mas para funcionar
você tem que estar sintonizada com a disposição desse gesto, entende?
(Céu).
Como pesquisadora, mas que também atua em uma das experiências analisadas, essa é
uma verdade viva. Pois ao contrário do que ocorre em muitas instituições não havia um
projeto pedagógico a priori a ser aplicado junto às crianças. É exatamente o oposto, as
referências do projeto pedagógico são sistematizadas aos poucos em função das mudanças
vividas com as próprias crianças em sala de aula ao longo de vários anos de estudo e prática.
Daí que a preocupação não era apenas ter ou registrar um projeto pedagógico
considerado alternativo. O grande desafio dos educadores envolvidos era viver, de fato, o que
eles mesmos consideravam importante na educação com as crianças. Assim, outro elemento
que destaco no contato com os projetos formativos dessas organizações diz respeito ao modo
de entrar em relação com as crianças. Como sabemos, mesmo com todo debate teórico-prático
sobre a educação da infância, ainda é comum um esforço para “controlar as crianças”, quer
dizer, para adaptar seus corpos à rotina da escola, o que acaba por gerar muitos conflitos. Nos
documentos analisados e nas observações, ao contrário, notei uma ênfase mais na dimensão
lúdica como base dos processos educativos realizados e do próprio desenvolvimento da
criança.
Enfatizamos as dimensões lúdica, artística, poética do conhecimento, favorecendo a
autonomia das crianças e respeitando seu universo próprio, que tem na ludicidade e
nas experiências cotidianas do mundo, suas mais excelentes expressões.
Reconhecemos a ludicidade, as artes e situações exploratórias como foco do
aprendizado, do desenvolvimento integral e da expansão das forças criativas
próprias do humano. Nesse contexto, reconhecemos o cotidiano como instância
pedagógica em toda sua riqueza e sutileza, buscando traduzir o currículo do Ensino
Fundamental em um cotidiano rico em aprendizados significativos (CEBB, 2012).
Na ótica dos educadores, o aspecto lúdico proporciona aprendizagens mais ricas, mais
criativas, quebrando a rigidez que perpassa o ambiente escolar. Constatei então uma reflexão
sistemática acerca do brincar na sua inteireza. Na verdade, todas as atividades do Jardim de
Lótus e da Escola Caminho do Meio são atravessadas por uma espécie de ethos do brincar que
funciona como um veículo privilegiado das aprendizagens, seja com o objetivo de expandir os
limites da cognição e da imaginação das crianças, seja gerando um espaço de autonomia que
visa aprofundar suas relações com os outros, com o mundo e consigo mesmas.
84
Sim. O brincar é sendo um elemento importante tanto para as crianças como
para minha formação, me sinto um maestro regendo as crianças, respeitando
o momento de cada uma. No brincar eu encontro o terreno possível para
lidar com as experiências de aprendizagem das crianças. Por isso, faço um
esforço significativo para cultivar um espírito lúdico, tornando todas as
ações prazerosas. É como se o brincar e as brincadeiras alimentassem de
várias formas o processo e nos transformasse com o que estamos vivendo
(Lua).
Aqui, talvez, seja importante indicar uma afinidade conceitual com o que sinaliza a
professora Sonia Kramer (2007, p. 17), para quem as brincadeiras permitem que as crianças
descubram e conheçam o mundo, “atuando sobre e libertando objetos e situações de seus
significados comuns”. Para Kramer, é através do brincar que o olhar infantil “vira as coisas
pelo avesso”, pois ao desmontar os brinquedos elas dão “voltas à costura do mundo”.
Mas o que chama a atenção nas experiências investigadas é que o brincar não se reduz
a um momento de distração ou de complementação das aprendizagens formais. O brincar é
percebido, ele mesmo, como fonte de aprendizagens significativas para as crianças,
favorecendo inclusive o desabrochar de qualidades como a generosidade e a sabedoria.
No caso específico da Escola Caminho do Meio, a referência central mobilizada nesse
âmbito procede da chamada Pedagogia Waldorf26
que procura integrar no processo de
educação da infância o desenvolvimento físico, espiritual, intelectual e artístico dos alunos.
Assim, através da brincadeira as crianças vivenciam situações, lugares, personagens que as
transformam a fim de reinventar e expandir seus limites com criatividade e imaginação. De
acordo com os documentos da Escola, o brincar é vital para o desenvolvimento das
habilidades motoras, imaginativas e cognitivas das crianças, além de influir positivamente nos
aspectos relacionais de sua experiência com o mundo circundante e com os outros indivíduos.
Assim é importante proporcionar uma primeira infância com experiência
rica, pois essas experiências vão marcar sua vida. Essas marcas ficam. Então
nós educadores temos que pensar experiências que mostrem para as crianças
que o mundo é um lugar favorável, um lugar positivo, para isso precisamos
nos encantar com o universo infantil e com a relação que a mesma tem como
o mundo. Por isso a brincadeira é tão importante para todos nós (Céu).
26
A Pedagogia Waldorf é uma abordagem pedagógica baseada na filosofia da educação do pensador austríaco
Rudolf Steiner, fundador da Antroposofia. Criada em 1919, em Esurgarda na Alemanha, essa abordagem tem
como base a ideia de que o desenvolvimento de casa ser humano é diferente. Existe mais de 1000 escolas no
mundo e cerca de 2000 jardins de infância inspirados na Pedagogia Waldorf considerada uma referência mundial
em educação. Segundo a UNESCO, a Pedagogia Waldorf é capaz de responder a vários desafios educacionais de
nosso tempo, principalmente em áreas de grandes diferenças culturais.
85
Mais: para os educadores da Escola Caminho do Meio, a criança é protagonista no
processo do brincar. Cada criança vive de modo próprio os desafios implicados nas várias
brincadeiras que são propostas. Mas em todas as brincadeiras, ela é incentivada a se lançar na
exploração dos seus conhecimentos e habilidades, distendendo suas possibilidades.
[Assim] é necessário criar o ambiente propício para que esse brincar possa fluir de
maneira rica e diversificada, dentro do qual cada criança pode procurar e criar a
brincadeira que melhor corresponda a suas necessidades no momento. O ambiente
deve transmitir à criança calma e segurança, para que ela possa explorar e se lançar
às descobertas que precisa vivenciar nesta fase. Quanto mais confiantes nos
tornamos, de mais reservas dispomos para ajudar outras pessoas (CEBB, 2012).
Percebe-se então que o trato pedagógico com as crianças vai de encontro à experiência
da infância e, consequentemente, à sua capacidade de produzir cultura em seus próprios
termos.
Como resultado, o processo de socialização escolar deixa de ser entendido como uma
preparação para a fase adulta, passando a focar as práticas imanentes ao modo de ser da
criança, reconhecendo que suas práticas são expressões de sua autonomia e de sua capacidade
de pensar. A brincadeira aparece como uma linguagem potente da infância e é através dela
que as crianças significam e ressignificam o mundo. Uma posição que também é partilhada
pelos formadores do Centro Infantil Jardim de Lótus, para quem o reconhecimento da
experiência viva da infância passa por uma “ampliação na percepção” do que significa brincar
e, logo, do que significa mover um processo de ensino-aprendizagem com as crianças. Nesse
caso, o brincar emerge associado à produção de um lugar de encantamento feito de magia e
prazer.
A experiência com as crianças no Centro Infantil me possibilitou ser outro
educador. Aqui eu me faço outro ao brincar com as crianças, as fazer da
brincadeira o eixo vivo da experiência infantil. Através do brincar a gente
vê, não é uma abstração, uma ideia, a gente vê, a gente percebe que a
infância ela cria um mundo próprio, um mundo imagético, mundo da
imaginação, um mundo fantástico. É uma experiência muito forte, quando
nas brincadeiras, a gente vê que a criança tá vivendo em um mundo criado
por ela mesma, um mundo que está por se fazer sempre. A infância é isso.
Eu venho aprendendo com elas que é possível, de verdade, ser mais criativo
e não cristalizar nossas vivências. As crianças se movem no mundo
brincando (Dom).
Há um consenso de que “aprender a brincar com as crianças” não significa que os
educadores devem “virar crianças”, mas que é preciso favorecer que o humano continue
sendo sujeito das histórias que ele produz e que o produz. Trata-se, portanto, “de aprender
86
com as crianças e não se deixar infantilizar”. Por isso, aprender com as crianças, através da
brincadeira, significa aprender a “virar as coisas do mundo pelo avesso” (KRAMER, 2007,
p.17).
A tarefa pedagógica aqui consiste em criar condições propícias para a atividade
formadora das próprias crianças. Mais que apresentar um mundo específico para as crianças,
para os formadores do Centro Infantil, é preciso sustentar os mundos inventados pelas
crianças, devendo o educador “abrir um portal” para que ele faça parte desses mundos.
No discurso formal da educação, eles dizem, “brincar é coisa fácil, simples, que todo
mundo sabe fazer”. Para os formadores entrevistados não é bem assim. Para brincar é preciso
uma “habilidade élfica”, uma habilidade para materializar “seres que produzem fantasia,
encantamento e magia” (Dom), tornando-se, ele mesmo, um educador encantado. Assim para
os educadores a experiência infantil se realiza como uma “magia”, isto é, como
reconhecimento e uma imersão poderosa e vital que emana de uma relação mágica com o
mundo.
A experiência com as crianças produziu um resgate da minha própria
infância, me transportando para mundos diferentes, encantados e mágicos.
Com isso, aprendi a perceber as crianças a partir delas mesmas sem rotular.
A infância apreende o mundo exercitando a imaginação, elas têm um portal
para o mundo do encanto e acessam infinitas possibilidades de ver (Kali).
Nos documentos pedagógicos do Centro Infantil Jardim de Lótus, essa visão da
infância e da brincadeira remete direta e explicitamente ao pensamento de Walter Benjamin e
suas reflexões sobre a capacidade mimética, sobre a brincadeira e sobre a imaginação infantil.
Para esse pensador, os jogos infantis são impregnados de comportamentos miméticos que não
se limitam de modo algum à imitação de pessoas. Ao brincar, dize, a criança transforma-se
não apenas em “comerciante ou professor, mas também em moinhos de vento e trem”.
Portanto, a brincadeira e a magia se apresentam são processos de criação e interpretação do
mundo.
Precisamos possibilitar a infância, uma experiência que alimente, cada dia, o
seu mundo, para que elas desfrutem no jogo educativo da sua imaginação, da
sua fantasia, brincando de forma prazerosa. Aqui é no jogo que podemos
criar novas formas de atuar, inventando novos modos de ensinar, de pensar a
experiência da infância na educação (Dom).
Para os educadores, portanto, a brincadeira não reverbera apenas no mundo da
infância, afetando profundamente o modo de viver e compreender a educação pelos próprios
87
educadores, pois no encontro com as crianças, com sua fantasia, com suas brincadeiras, eles
aprendem que é preciso se tornarem outros de si mesmos. Esse aprendizado não é apenas
conceitual ou cognitivo, embora se expresse nessa dimensão no momento em que estão
estudando ou registrando o que vivenciam nos documentos orientadores de suas organizações.
De fato, a mudança mais significativa, eles nos dizem, passa antes pelo âmbito da percepção.
Essa ênfase em uma mudança perceptiva é explicitada no destaque dado, tanto no
Centro Infantil como na Escola Caminho do Meio, na relação que estabelecemos com as
cores. Eles acentuam uma antiga posição reflexiva que afirma que “as cores têm algo de
espiritual” e que esse “algo” transparece na mistura das cores, sendo o “arco-íris”
considerado, nesse caso, a mais “límpida imagem infantil” (SCHESENER, 2009, p.152).
Antes de seus estudos Baudelaire, Walter Benjamin se dedicou a algumas especulações sobre
a essência das cores, um tema já considerado clássico no romantismo alemão. Em um texto
intitulado A visão das cores de uma criança, escrito entre 1914 e 1915, Benjamin afirma que a
cor é algo espiritual, algo cuja claridade é espiritual e, de forma ainda mais surpreendente, que
o arco-íris tem a pureza da infância. Para seus comentadores, isso significa que uma realidade
sensível, material, como a cor, poderia conter algo de inefável e de infinito, um quantum de
luz e transparência.
Esse ideia pouco presente no campo de estudos da educação, mesmo da educação
infantil, visa lembrar que “as crianças são bem diferentes do modo como os adultos as
concebem ou as conceberam ao longo da história”, uma vez que a noção de infância que
“herdamos de épocas anteriores e que é preservada ou aprofundada pela pedagogia não
corresponde à realidade infantil” (SCHESENER, 2009, p.132). As teorias pedagógicas
comumente são incapazes de apreender, como sinaliza Benjamin, que “a terra está cheia de
substâncias puras e infalsificáveis, capazes de despertar a atenção infantil. Substâncias
extremamente específicas”, com as quais a criança constrói o seu mundo.
Dessa ótica, tudo o que para o adulto é resto, detalhe, óbvio, dado, nas mãos e nos
olhas das crianças torna-se meio de reconhecimento de si e do mundo. Isso significa dizer que
a criança conhece o mundo, primordialmente, com sua sensibilidade, o que pode ser
demonstrado cabalmente na percepção infantil das cores, pois as crianças se alegram com a
transformação das cores, seja nas nuances de uma bolha de sabão, seja na mistura borrada da
paleta de cores. Em outros termos, a fantasia infantil se concretiza na contemplação das cores,
[...] que é também entrega ou mergulho no turbilhão de nuances, em inteira relação
com seu desenvolvimento e sua alegria que a mantém em criação. Tal fantasia não
pode se produzir a partir das formas, da ordem das coisas, mas somente do mundo
88
vivo dos homens, em que a contemplação se traduz em sentimento criador. Esta era
também a perspectiva de Baudelaire (1993, p. 224) para quem “nada se parece mais
com o que se chama de inspiração do que a alegria com a qual a criança absorve a
forma e a cor”, isso porque na criança a “sensibilidade ocupa quase todo o seu ser”.
[Por isso] Benjamin acentua que as cores na vida da criança são a pura expressão da
sua pura sensibilidade, meio pelo qual ela própria se orienta no mundo. As cores
contêm o ensinamento de uma vida espiritual que é criadora na medida em que os
condicionamentos e as causas menos as habitem (SCHESENER, 2009, p.133).
No limite, trata-se de mostrar que a criança, como o artista e também o narrador,
vivem de modo a conferir novos significados para a realidade. A criança, nas suas
brincadeiras, evidencia afinidades e supera dualidades metafísicas ao fazer-se igual à matéria
que a circunda para criar seu próprio mundo no qual os objetos ganham vida e sentido.
A variedade do colorido do desenho infantil e o modo peculiar de apreender as cores
em sua transparência é expressão do modo infantil de ver o mundo e romper limites,
assim como os jogos são mecanismos de conhecimento concreto do mundo por meio
da mímesis. [...] uma forma de reconhecer e criar. A diferença entre a criança e o
adulto está, precisamente, no fato de que nos adultos, a capacidade de reconhecer
semelhanças enfraqueceu ou quase se perdeu (SCHESENER, 2009, p.133).
Curiosamente, como veremos mais adiante, essa centralidade das cores para pensar o
processo educativo das crianças desde o campo da percepção é uma dimensão de fundamental
importância nos projetos pedagógicos analisados nesse trabalho. Para os educadores do
Centro Infantil Jardim de Lótus, por exemplo, é inseparável de uma certa magia da
linguagem. Assim, eles afirmam que quando contamos historias transportamos as crianças
para um mundo encantado. A cor carregaria, nesse caso, uma magia que a brincadeira e o
conto atualizam.
O contato com as cores me possibilitou vivenciar e ver o mundo de outra
forma. As cores quando se misturam se transformam naquilo que desejamos
e imaginamos. As crianças se alegram quando percebem essa transformação.
Essa experiência abriu novos horizontes para pensarmos a infância, pois as
cores têm o potencial de nos transformar e nos fazer outro (Kali).
Sim, para nós, a experiência infantil não está separada do jogo, da
imaginação, da fantasia, das cores. Dar conta disso é muito complexo, pois
diferente do que pensamos normalmente o mistério da cor não é algo que a
gente perceba de imediato ou através de palavras ou conceitos, é uma
experiência pautada numa mudança de percepção que ocorre no dia-dia com
as crianças (Dom).
Por um lado, nas duas propostas pedagógicas, o brincar e a brincadeira, a imaginação e
a criatividade, a magia e o encantamento são expressões do modo de viver e de aprender das
crianças. Ao entrar em contato com essas expressões, os próprios educadores vivenciam um
89
processo de transformação que afeta, sobretudo sua percepção do mundo. Por outro lado, essa
vivência alterada dos sentidos de educar, que se expressa em uma percepção curiosa das
cores, está no centro mesmo de suas abordagens pedagógicas da infância desde a
espiritualidade.
Ouvindo os educadores, percebi que a mudança que dizem experimentar surge
inseparável de um novo olhar, um olhar mais sensível, atento, lúdico e mágico com relação às
cores que perfazem os mundos inventados pela infância. Há uma espécie de “matriz de
experiências” que se origina do contato com essas cores e, consequentemente, com os mundos
daí advindos à experiência, o que contribui para desconstruir algumas crenças sobre a
educação. Não há dúvidas, de que essa desconstrução permite desfrutar de outro modo a
própria experiência da infância que não se separa mais do que eles entendem por
espiritualidade.
5.5 Compreensão de espiritualidade pelos educadores/as
Antes de tudo, para os professores da Escola Caminho do Meio, a espiritualidade não
está e não pode ser separada da vida. Por isso, para eles, há um equívoco comum na forma
com pensamos em educar nossas crianças desde uma perspectiva da espiritualidade.
O propósito, dizem, não é transmitir os valores particulares de uma tradição espiritual
ou religiosa. De fato, o foco intencional na espiritualidade almeja uma problematização e, no
limite, uma modificação radical na própria meta da educação. Ao inserir a espiritualidade nos
processos educativos o que se busca é dissociar esses processos de objetivos exógenos à
formação mesma. O alvo da educação não é preparar as crianças “para assumir cargos, para
ganhar dinheiro ou mesmo para se adaptar ao mundo existente” (Céu).
O grande motivo da educação existir é a espiritualidade mesma e que pode
ser vivida em qualquer lugar, e que a mesma não está separada da nossa
vida. A espiritualidade nos dá a possibilidade de olhar a infância a partir de
seu próprio mundo, suas qualidades, as qualidades do outro e irriga-las,
permitindo a elas se mover no mundo de forma mais lúcida. Só assim, vamos
conseguir vivenciar experiências felizes (Céu).
A espiritualidade não é pensada como mais uma dimensão da vida ou como uma
forma de transcendência, mas como parte imanente da forma como vivemos a vida. Falando
com mais rigor, a espiritualidade é um modo de viver. Em nenhum lugar, dizem os
90
educadores abordados, encontramos a espiritualidade separada do viver. Desse modo, em
nenhuma das duas propostas pedagógicas investigadas encontramos um “compartimento”
especial reservado para “trabalhar a espiritualidade” (Lua). Embora o termo perpasse vários
documentos analisados, a espiritualidade não aparece separada ou destacada das várias
atividades oferecidas às crianças.
No caso da Escola Caminho do Meio, a questão da espiritualidade é, de fato, uma
questão de visão ampla e lúcida da realidade. Trata-se de uma experiência associada ao uso da
própria mente para examinar como funcionam nossos mundos internos e como esses mundos
são inseparáveis dos mundos que enxergamos em nosso cotidiano. A ideia, portanto, é
ampliar os limites desses mundos (internos e externos), tornando-os mais abertos e mais
luminosos. A espiritualidade, aqui, configura-se como uma “questão de visão ampla”, ou seja,
trata-se de aprender a não olhar o que “está fora” como sendo “separado do nosso mundo
interno”. Essa é uma das razões porque a espiritualidade é vivenciada no cotidiano das
práticas.
Então a espiritualidade está relacionada com o processo do auto cultivo do
professor e a relação que estabelece com as crianças. É uma dimensão da
minha prática, da minha vida que eu contemplo no meu fazer pedagógico. A
espiritualidade está relacionada ao meu mundo interno que não está separado
do mundo externo, ela está no nosso cotidiano, na nossa vida, realizando
uma transformação no meu modo de viver e está no mundo (Lua).
Mais especificamente, a espiritualidade para os professores da Escola Caminho do
Meio visa uma compreensão do funcionamento dos nossos mundos internos, e sobre como
operamos a partir da energia que move esses mundos. A ideia é ultrapassar os
condicionamentos internos e entender que é possível viver melhor para além deles. A
ausência de uma aprendizagem que favoreça essa lucidez faz com que vivamos simplesmente
repercutindo e repetindo impulsos condicionados que, no fundo, limitam nossa liberdade e
nossa ação.
Espiritualidade? Para mim, espiritualidade é uma educação para a vida, é
viver junto de maneira melhor, mais positiva, mais lúcida, sem deixar de
olhar o mundo interno. Pois a falta de conexão com a dimensão espiritual
coloca em risco o futuro de nossa educação e da própria humanidade. É
preciso perceber que o mundo externo não está separado do nosso mundo
interno. Então, espiritualidade é isso: uma educação para a vida, um modo de
viver junto e se movimentar de maneira melhor e mais positiva no mundo
(Céu).
91
Na prática pedagógica, essa compreensão da espiritualidade é vivenciada como um
“caminho de liberação”, o que não significa, para os educadores, a necessidade de “ensinar
sobre” a espiritualidade. Não se trata de um conteúdo, nem mesmo de uma habilidade,
embora, eles digam, a espiritualidade afeta tanto o modo concebemos a realidade, como
propicia a emergência de habilidades sofisticadas de relação com o mundo, com os outros e
consigo. O desafio, entretanto, é propiciar para as crianças um exercício vívido da
espiritualidade.
Essa é uma posição interessante, mas que entrou em colisão com algumas práticas que
vivenciamos nas duas experiências analisadas. Tanto no Centro Infantil Jardim de Lótus como
na Escola Caminho do Meio, apesar do pouco tempo dedicado à observação, nos deparamos
com práticas que manifestavam claramente um sentido religioso. Nos dois contextos
encontramos um uso de imagens, altares, velas, incensos, preces mobilizadas no próprio
processo de ensino-aprendizagem. Embora não tenhamos constatado, de fato, nenhum esforço
doutrinário ou catequético de qualquer tipo, pelo contrário, tudo nos pareceu muito
espontâneo e as crianças participavam, sem constrangimentos visíveis, desses elementos.
Apesar disso era evidente o uso de referenciais, sobretudo da filosofia e da religiosidade
oriental27
.
O próprio currículo, nas duas experiências analisadas, articula-se a partir da
iconografia de um mandala conhecido como mandala das cinco sabedorias ou dos budas
primordiais. Ao serem questionados sobre isso, os educadores da Escola Caminho do Meio
afirmaram
[que] ainda que tenhamos meditação, altar, preces, dedicação, o aspecto
religioso se encerra aí. Tudo isso é visto como um meio hábil, quer dizer, o
que está em jogo é a contemplação do nosso mundo interno e sua relação
com o mundo externo. É aí onde está a espiritualidade, no olhar para si e
para meus sentimentos a fim de entendê-los de forma mais clara e lúcida. Os
elementos religiosos mobilizados têm essa tarefa que é formativa (Lua).
Para os professores da Escola, apesar da simbologia mobilizada, o foco está no
desenvolvimento mesmo do que compreendem por sabedoria, uma visão lúcida do mundo que
permite estabelecer relações positivas. Essa sabedoria embora se manifeste por meio de uma
27
Também é verdade que, no caso específico do Centro Infantil Jardim de Lótus, os símbolos religiosos de
matriz oriental, budistas e indianos, compartilham o mesmo espaço com manifestações e imagens do
cristianismo e das religiões de matriz africana como o candomblé e a jurema. Assim, quando entramos nesse
espaço nos deparamos com uma imagem enorme de São Francisco de Assis ladeada pelas imagens de dois Budas
(o Buda da Medicina e o Buda da Compaixão) e pelas imagens de um preto e de uma preta velha, além de uma
quantidade imensa de quadros e elementos religiosos variados que manifestam um sincretismo intenso e lúdico.
92
linguagem religiosa particular estaria, na verdade, presente “no coração de todos os seres”
(Céu). A espiritualidade tematizada e praticada se coloca, portanto, em relação direta com
essa sabedoria e não com uma tradição religiosa particular que visaria “convencer as
pessoas”. Os símbolos apontariam então para um processo ou visão espiritual mais profunda,
onde “nós penetramos na realidade de uma forma mais abrangente e com uma visão lúcida”
(Lua).
No caso dos educadores situados no Centro Infantil Jardim de Lótus, a noção de
espiritualidade remete primordialmente para a ideia de encontro. Por um lado, a
espiritualidade diz das relações estabelecidas entre educadores e educandos. Por outro, ela
aponta uma espécie de imperativo ético e político de manter-se aberto para reconhecer as
diferenças e evitar as segregações e exclusões que caracterizam uma sociedade desigual como
a nossa. Nos dois sentidos, a espiritualidade carrega um caráter profundamente relacional,
resultando em um aprendizado transformativo dos modos como entramos e nos relacionamos
com o mundo.
Aqui, entre nós, a espiritualidade é vista como um processo que possibilita
cada um de nós, homem, mulher, criança repensar a sua própria experiência
de ser humano e repensar o lugar de desumanidade que, muitos de nós,
estamos sendo submetidos. Por isso, pra gente, a espiritualidade precisa ser
vivida de forma plena, sem separação, sem exclusão de qualquer tipo,
inclusive religiosa. É preciso deixar cada ser outro, ser um devir-humano
vivo e pulsante. Viver a dimensão espiritual é um trabalho do próprio
educador na presença do outro na presença de deixar as crianças serem
crianças (Dom).
Através da espiritualidade eu olho para mim mesma e descubro que sou uma
pessoa comum, que tenho limitações, dores e fraquezas que se expressam na
relação com os outros. Esse é ponto. Precisamos então produzir nos
encontros um espaço de ética, de amor, o desejo de viver e deixar viver. Foi
exatamente essa forma de viver a espiritualidade, que modificou minhas
relações com os outros, que me fez querer ser educadora aqui (Kali).
Ao serem interrogados sobre os referenciais acerca da espiritualidade, os educadores
do Centro Infantil também ressaltaram que, além de elementos extraídos do pensamento
budista, sua visão guardava consonância com a noção de espiritualidade presente nas
reflexões tardias do pensador francês Michel Foucault. Nesse âmbito, a espiritualidade
consiste em um “conjunto de buscas, práticas e experiências [...] que constituem, não para o
conhecimento, mas para o sujeito, para o ser mesmo do sujeito, o preço a pagar para ter
acesso à verdade” (FOUCAULT, 2004, p. 19). Mais diretamente, os educadores afirmaram
usar essa ideia como um método para “desler o mundo da educação”, impulsionando gestos
93
de ruptura que estão voltados a instituir relações inter-humanas e processos de subjetivação
baseados em uma ética do cuidado.
Para os educadores do Centro Infantil Jardim de Lótus, o trabalho espiritual ao mesmo
tempo em que não se distingue do trabalho formativo passa pelo aprendizado de saber cultivar
valores e dimensões humanas esquecidas, mas que se expressam na capacidade que todos
temos de amar e de se vincular. Assim, os formadores são desafiados a incorporar em suas
vidas esse aprendizado, modificando-se a si mesmo na relação concreta com as crianças.
É através do vínculo, do estar junto com as crianças que encontro força e
coragem. Quando estou em sala aprendo a acreditar na potencialidade e na
bondade sem desconhecer minhas limitações. Cada aula é uma troca de
experiências que vai além do que se entende normalmente por
espiritualidade. É realmente algo mágico, as vivencias, o tocar, o acolher,
tudo isso são práticas espirituais sensíveis que faltam na educação atual
convencional. A espiritualidade nos ensina a olhar mais atenta e sensível,
sem rótulos (Kali).
A finalidade e a intencionalidade do processo educativo estão em outra
dimensão que é entrar no próprio campo das relações, dos vínculos
estabelecidos e do que elas [as crianças] podem produzir na vida de cada um
de nós educadores. É o modo de ser e estar no mundo buscando desencadear,
nutrir, sustentar e expandir uma educação amorosa, fazendo-se, assim um
instrumento de transformação dos próprios sujeitos a partir de seu ser
mesmo e tornando-se, com isso, educadores espirituais (Dom).
No projeto pedagógico da Escola Caminho do Meio, por sua vez, não encontramos
uma referência direta à ética do cuidado nos termos foucaultianos. No entanto, para os
professores da Escola é muito forte a percepção de que a espiritualidade vivenciada pelas e
com as crianças supõem estabelecer, dentro e fora do ambiente do educativo, relações de
cuidado.
Veja, não tem como abordar a espiritualidade, como fazemos aqui, sem uma
abertura sensível à possibilidade de cultivar certos valores que se expressam
na capacidade de amar e se vincular que as crianças têm. Um dia desse, tinha
dois alunos brigando e o irmão, o mais novo, percebeu e foi lá tentar
acalmar. Então ele chegou perto e recitou um mantra. Veja, aqui ninguém
nunca disse para eles recitarem mantra. Nós não dizemos recitem esse
mantra, se acontecer tal coisa façam essa prática. Não, mas eles veem os
educadores fazendo, então de diante de certas situações eles realizam essa
experiência (Lua).
A espiritualidade vem, por exemplo, através das brincadeiras. Quando elas
estão brincando, elas estabelecem relações com os colegas, isso, às vezes,
gera algum conflito, e aí nós temos, elas têm que lidar diretamente com isso.
É aí que entra o encontro com a espiritualidade, ela se faz presente em cada
94
gesto, nas decisões que tomamos, nas relações que construímos. Para nós, as
crianças manifestam isso espontaneamente, esse gesto de olhar o outro e
cuidar. É no brincar que a criança começa a perceber que tudo ao nosso
redor acontece devido uma ação nossa, ela aprende que toda ação tem causa
e consequências. Esse é um processo no qual aqui na escola é vivenciado
pelas crianças (Céu).
Essa posição é compartilhada pelos educadores do Centro Infantil Jardim de Lótus,
pois a espiritualidade se manifestaria no próprio modo de ser criança. Daí porque as
brincadeiras, a contação de histórias, são formas de viver a espiritualidade, a partir das
relações que as crianças e os educadores estabelecem entre si e com as ferramentas
mobilizadas em sala de aula.
É na contação, nas brincadeiras, no abraço, no olhar que a espiritualidade se
manifesta dentro da sala de aula. As crianças nos transportam para um
mundo, e nos faz olhar de forma, mas sensível o que está no nosso redor
(Kali).
Nas atividades diárias em sala de aula, vamos aprendendo a não nos
deixarmos prender pelas formas e coisas que surgem a nossa frente. Por isso,
fantasiar, imaginar e criar histórias, por exemplo, servem pra gente repensar
como a gente vive as relações em sala mesmo. Isso para mim é uma
manifestação espiritual: não se fixar, não se fechar em si mesmo, estar aberto
a acolher os movimentos das crianças em sala. Às vezes, elas estão agitadas,
outras não querem participar, ocorrem brigas, disputas, ciúmes e a gente tem
que trabalhar com esses elementos e não fingir que é um problema delas e
que nossa tarefa é dar aula. Ou seja, os educadores são desafiados
espiritualmente na própria experiência. Eles têm que aprender a se
modificar, a amadurecer e transformar os problemas na relação com as
crianças (Dom).
Percebemos que, para todo os educadores abordados, a espiritualidade não é um
conteúdo e sim um “meio” para aprendermos a lidar com o processo educativo de forma
positiva e lúcida, fim de produzir vínculos formativos entre as crianças e os educadores,
vínculos que possam se irradiar para as outras esferas de suas vidas, transformando o contexto
e contribuindo para favorecer culturas de paz em todos os mundos que habitamos.
[...] se conseguimos alimentar vínculos positivos com as crianças as nossas
relações vão, pouco a pouco, sendo atravessadas pelas experiências afetivas,
sociais, cognitivas que estabelecemos na Escola. Então começamos a ver o
principal efeito da espiritualidade na educação das crianças: o surgimento de
pessoas mais felizes, de relações mais positivas e lúcidas no mundo (Céu).
A espiritualidade, para mim é como um processo em que somos levados por
uma espécie de trabalho sobre si mesmo. De tal modo que nesse processo,
vivido no cotidiano educativo, o que está em jogo é exatamente como nos
colocamos no mundo. Isso não só altera nossa visão sobre a infância, sobre a
95
relação pedagógica, isso mexe com outras relações para além da escola, nas
famílias, no trabalho, na comunidade. Aos poucos, o que chamamos de
dimensão espiritual vai tecendo uma cultura de paz potente e viva (Lua).
Para nossos entrevistados, portanto, a espiritualidade configura-se, portanto,
simultaneamente como prática transformativa de si mesmo e de suas percepções, cultivo de
relações positivas com as crianças e um modo potente de constituir culturas de paz no mundo.
Essa ênfase na construção de culturas de paz aponta um elemento reflexivo interessante. No
contexto abordado, a espiritualidade nunca é pensada como uma forma de transcendência, de
fuga ou alheamento das questões que afetam nosso mundo cotidiano. Nas duas experiências
pedagógicas, a espiritualidade guarda um sentido bem concreto de ação positiva nas estruturas
condicionadas do mundo circundante. Na verdade, a espiritualidade aborda um modo de
sintonizar visão e ação que diz de um processo coemergente, no qual construímos mundos
favoráveis ou não favoráveis em uma ligação estreita com nossa visão e nossa ação.
Eu pude observar meninos que aprendem a tocar violino em instituições para
menores infratores. Aprender música é maravilhoso. Mas, quando os meninos saem
da instituição, o violino torna-se inútil para eles. Muito frequentemente eles
retornam à visão que os levou a praticar as ações que os conduziram à instituição.
Mesmo tocando violino, as visões que eles têm do mundo, da família e do bairro não
mudaram. Dentro da sua realidade, dentro de sua forma de olhar o mundo, dentro de
sua mandala limitada, vender drogas naturalmente faz muito mais sentido do que
tocar violino. Assim, é essencial gerarmos uma visão de mundo para que as ações
surjam de forma natural, sem esforço e sem contradições. As visões de mundo, que
podem ser geradas individual e socialmente, potencializam as ações (SANTEM,
2006, p. 09).
Além disso, no decorrer da pesquisa, percebemos que para nossos educadores a ideia
de infância é, ela mesma, uma expressão do que eles compreendem como espiritualidade que,
como vimos, se manifesta em cada aula, em cada encontro, no modo como se vive a educação.
Há uma relação entre infância e espiritualidade na medida em que, nos dois casos, se está
tratando de uma existência criadora e de uma forma outra de olhar o mundo e a si mesmo. Por
isso, eles dizem, que, antes de ensinar a espiritualidade às crianças, o que ocorre, de fato, é que
ele “aprendem muito com elas sobre o que significa viver uma experiência espiritual na
prática” (Dom). O que não invalida a percepção de que a espiritualidade é algo que pode ser
cultivado. Mesmo que a espiritualidade não seja convertida em um tema ou um conteúdo a ser
desenvolvido, todos defenderam a compreensão de que é preciso haver momentos de cultivo da
espiritualidade.
No caso da Escola Caminho do Meio, esse cultivo ocorre primordialmente a partir do
exemplo, na medida em que o professor amplia sua visão acerca da experiência com a
96
infância, ele passa a “acolher as crianças no mundo delas sem tentar molda-la, ele busca
enriquecer suas qualidades, fortalecer suas relações sempre respeitando seu espaço e o espaço
do outro” (Lua). Para eles, o fundamental no cultivo da espiritualidade é a lucidez, quer dizer,
o ato de não “alimentar visões estereotipadas acerca da infância e das suas experiências”.
O nosso trabalho não é reforçar a visão comum, mas de ampliar para que as
experiências que as crianças tenham aqui na Escola sejam para enriquecer os
saberes que as mesmas já têm consigo. Essa meta não pode ser uma
imposição ou o resultado de estratégias artificialmente criadas para esse fim.
A relação com a espiritualidade tem que ser vivenciada de forma espontânea
e prazerosa. Não é uma doutrinação, mas uma abertura ao seu próprio
mundo e ao do outro de forma mais lúcida. É preciso aprender a ouvir o
outro, percebe-lo em seu mundo, interagindo e acolhendo suas necessidades
(Céu).
Enquanto dimensão da própria vida, a espiritualidade só poder cultivada no dia a dia,
junto com as crianças, com as famílias e os professores. O cultivo da espiritualidade não pode
ser um momento específico, um conteúdo a ser trabalhado. Pois uma educação pautada por
uma visão espiritual deve ser desenvolvida em qualquer ambiente no qual se pretende atuar.
O que acontece é que estamos desconectados desse tipo de visão espiritual,
não entendemos que quando olhamos para uma planta aquilo está inseparado
do nosso mundo interno, é uma forma de como nós nos manifestamos no
mundo. A educação cultivada na Escola é uma educação para vida e não
para passar no vestibular ou conseguir um emprego. A educação espiritual é
para a vida, para podermos viver junto de uma maneira melhor, mais
positiva. Ela não se separa do nosso movimento no mundo e, logo, na
educação (Céu).
A mesma preocupação com essa forma de cultivo da espiritualidade foi partilhada
pelos formadores do Centro Infantil Jardim de Lótus. Como o que está em vista, para eles, é
sempre uma preocupação, uma relação de cuidado ético e político com o outro, nesse caso,
com as crianças, o cultivo da espiritualidade ocorre no âmbito mesmo das relações. Para todos
os educadores com quem conversamos, cultivar a dimensão espiritual no ambiente da sala de
aula implica sempre uma relação sensível e cuidadosa com o outro.
Para nós, essa seria a tarefa de cultivar a espiritualidade no espaço de sala de
aula, pois nos possibilita repensar, o nosso modo de ser, o nosso lugar como
educador e o nosso lugar na educação. E assim podemos olhar
espiritualmente para a educação da infância: resgatando/amando/cuidando
(Dom).
97
Portanto, cultivar a educação a partir de uma visão espiritual implica se deixar afetar
pela experiência da infância, educando as crianças para se adaptarem em um mundo projetado
segundo nossas expectativas adultocêntricas, mas favorecendo suas singularidades.
Consideramos essa compreensão extremamente relevantes para a discussão travada
nesse trabalho. Os fragmentos discursivos aqui brevemente apresentados sobre o sentido da
inclusão da espiritualidade na educação das crianças mostram uma preocupação efetiva com
um uso da noção de espiritualidade sem visar, entretanto, doutrinar ou conformar às crianças a
determinadas crenças e práticas. Ao contrário, a inclusão da espiritualidade, em todas as falas,
revelou um cuidado com as peculiaridades da aprendizagem infantil, acentuando que a criança
apreende o mundo com o exercício permanente da imaginação, da fantasia, da sensibilidade.
A espiritualidade nos discursos pedagógicos abordados vem então ao encontro da
criança e dos modos como ela realiza sua aprendizagem do mundo, mediada pela magia, pela
brincadeira e pela fantasia. Ao mesmo tempo, a inserção de uma visão espiritual nas práticas
curriculares não se descuida das mudanças históricas e das demandas sociais subjacentes à
aprendizagem infantil. Por isso, a ênfase nas duas propostas no brinquedo e na brincadeira são
indicadores positivos de que uma mudança efetiva, no campo educacional, com relação à
experiência da infância passa pela retomada do papel cultural e espiritual do brincar.
Através do ethos do brincar, poderíamos dizer também de uma espiritualidade do
brincar, é possível questionar, como o faz Schesener (2009, p.135) “até que ponto a sociedade
moderna adestra não só as crianças, mas também os adultos?”, desenvolvendo uma prática
educativa, cujas metas instrumentais e adaptativas terminam por diminuir ou até extinguir o
núcleo vivo da espiritualidade infantil que reside em sua capacidade de brincar e fantasiar.
Logo, não é casual que, para os educadores entrevistados, a espiritualidade na
educação da infância passe irremediavelmente pelo mundo do brinquedo e da brincadeira
como formas de aprendizagem voltadas a cuidar e preservar a sensibilidade, a imaginação e a
criatividade da criança. Nesse aspecto, a experiência da espiritualidade da criança seria
semelhante à do artista, que luta contra um tempo objetificado para fazer renascer a beleza
numa sociedade na qual imperam a morte e o sofrimento. As brincadeiras infantis sendo,
simultaneamente, práticas espirituais e práticas de conhecimento do mundo, a fim de
problematizar os pressupostos da modernidade pedagógica, esboçando outros sentidos no
lidar com as coisas e conhecê-las.
Essa discussão evidencia a originalidade e a potencialidade presente nas propostas
pedagógicas do Centro Infantil Jardim de Lótus e na Escola Caminho do Meio, propostas que
98
contém não apenas novos paradigmas de interpretação a serem integrados à educação infantil,
mas, sobretudo carregando outras concepções de educação e infância.
99
6 EDUCAÇÃO E ESPIRITUALIDADE: por um mandala da
infância
Após apreender como se dá a inclusão da espiritualidade em duas propostas formativas
voltadas à educação da infância, uma situada em um espaço educativos formal e outra no
campo da educação não formal, respectivamente, na Escola Caminho do Meio (CEBB/RS) e
na Escola Jardim de Lótus (NEIMFA/PE), identificando em que medida a compreensão que
os educadores que atuam nesses âmbitos têm da espiritualidade e como isso afeta sua
percepção da infância (o objetivo mais específico dessa investigação), cabe agora buscar
responder nossa principal questão de pesquisa, a fim de indicar quais princípios, valores e
estratégias pedagógicas estão sendo mobilizadas para construir e nortear essas propostas.
Ao longo de nossas análises, percebemos que a concepção de Educação infantil vem
mudando radicalmente nas últimas décadas em nosso País. Desde o processo de
redemocratização da sociedade brasileira, os educadores que atuam profissionalmente com as
crianças, os movimentos sociais em defesa do reconhecimento da Educação infantil pública
de qualidade social para todos e mesmo algumas políticas governamentais compreendem que
as crianças são atores históricos, construtores de conhecimento e sujeitos plenos da cidadania.
Nesse contexto, o desafio ainda permanece sendo o de desnaturalizar as concepções
herdadas que fazemos da infância, situadas no projeto pedagógico da modernidade, que
insistem em lidar com as crianças como se elas fossem um quadro branco, uma espécie de
recipiente vazio que devemos preencher com nossas ideias e nossas expectativas de futuro,
desdobrando uma pedagogia da domesticação que sacrifica as infâncias em suas potências.
A aproximação das duas experiências formativas aqui tematizadas, o Centro Infantil
Jardim de Lótus e a Escola Caminho do Meio, mostrou que é possível um outro modo de
entrar em relação com a infância e mover os processos educativos que lhe são concernentes.
Os educadores dessas experiências manifestaram uma confiança profunda de que as crianças
constroem mundos complexos, interagindo de modo autônomo e criativo com a realidade da
vida em seus múltiplos aspectos. Esses educadores parecem não ter dúvidas de que realmente
chegou o tempo de aprendermos com as próprias crianças o que a infância tem a nos dizer.
Nesse sentido, na última parte desse trabalho, vamos tentar sintetizar os pontos de
partida e de confluência das experiências analisadas, enfatizando a descrição analítica de suas
propostas pedagógicas, a partir do que eles denominam de mandala.
100
6.1 O mandala como dispositivo pedagógico ou quando os mundos da
infância surgem inseparáveis das nossas mentes
Tanto no Centro Infantil Jardim de Lótus como na Escola Caminho do Meio o sentido
último da educação infantil que buscam concretizar consiste em criar espaços que permitam
manifestar a existência de outros mundos possíveis, ou seja, não se trata de educar com o
propósito de preparar para a inclusão ou para a adaptação das crianças ao mundo tal como ele
se apresenta na atualidade, pois essa postura apenas contribuiria para reproduzir o mundo
dado. Com essa intencionalidade no horizonte, os educadores recorrem à noção de mandala.
O uso de mandalas como princípios moventes de dispositivos formativos é algo
recente no campo pedagógico brasileiro. O programa Mais Educação, por exemplo, criou uma
metodologia denominada Mandala de Saberes. Nesse programa, apoiado pelo governo
brasileiro, os mandalas são pensados enquanto uma estratégia pedagógica possível para o
diálogo de saberes na perspectiva da educação integral28
. A origem desse programa localiza-
se no Rio de Janeiro, em meio ao estado de sítio que cerca as favelas cariocas, em uma
experiência de educação integral: a Casas das Artes, uma organização que atua há nove anos
em favelas cariocas promovendo educação para crianças e jovens, e que resolveu criar uma
nova abordagem para lidar com os desafios educacionais implicados na sua experiência. Os
resultados despertaram o interesse dos Ministérios da Educação e da Cultura que passaram a
mover ações educacionais ancoradas em mandalas. Mas por que a ênfase no uso de
mandalas?
A mandala, como todos sabem, é um símbolo da totalidade [que aparece em
diversas culturas primitivas e modernas] e representa a integração entre o homem e a
natureza [...]. Presente em civilizações distintas como a egípcia, grega, hindu,
chinesa, islâmica, tibetana, azteca, européia e aborígine de vários continentes, as
mandalas têm um importante papel na formação do imaginário humano [...]. Ela foi
escolhida pelo grupo por representar inúmeras possibilidades de trocas, diálogos e
mediações entre a escola e a comunidade, funcionando como ferramenta de auxílio à
construção de estratégias pedagógicas para educação integral capaz de promover
condições de troca entre saberes diferenciados (BRASIL, 2009, p. 23).
28
O programa Mais Educação é parte constitutiva do PDE, instituído através da Portaria Interministerial n° 17
de 24 de abril de 2007, firmada entre os Ministérios da Educação, do Desenvolvimento Social, dos Esportes, da
Ciência e Tecnologia, da Cultura e do Meio Ambiente, objetiva a implementação de educação integral a partir da
reunião dos projetos sociais desenvolvidos pelos ministérios envolvidos – inicialmente para estudantes do ensino
fundamental nas escolas com baixo Ideb (BRASIL, 2009).
101
O uso de mandalas emerge, portanto, em um contexto de resgate e cultivo da ideia de
educação integral a fim de desenvolver e construir novos currículos com essa visão.
A ênfase é posta na experiência da interculturalidade apreendida enquanto sistema
dinâmico, imprevisível, “um árduo trabalho de liberdade, de devir histórico, um esforço
incessante de nos reconhecer em constante mutação”, onde a noção de mandala funciona
como uma espécie de “laboratório de experiências interculturais em que o conhecimento
adquire novas formas” (BRASIL, 2009, p. 23). O mandala de saberes visa propiciar um
interesse crescente das crianças e dos jovens pela escola, bem como desta pelas crianças e
pelos jovens, reconfigurando de forma significativa as práticas de ensino e de aprendizagem.
As mandalas de saberes propõem-se como estruturas de dupla codificação: nem
isto ou aquilo, mas isto e aquilo. Nessa perspectiva, o educador abre todos os seus
poros, trabalha junto com e não mais sozinho. O seu lugar não é mais somente
dentro da escola, mas dentro do grupo em que a escola atua. A educação não se
realiza somente na escola, mas em todo um território e deve expressar um projeto
comunitário. A cidade é compreendida como educadora, como território pleno de
experiências de vida e instigador de interpretação e transformação (BRASIL, 2009,
p. 33. Destaques meus).
Contudo, no caso das duas propostas pedagógicas analisadas, a ênfase não está nas
chamadas mandalas de saberes, as quais em que pese o interesse de articular e incluir
diferentes atores e dimensões envolvidas no ato de educar, mantem um foco na transmissão de
conhecimentos. Para os interlocutores dessa pesquisa, o uso pedagógico das mandalas passa
pela via da interdependência e da inseparatividade, noções presentes na filosofia budista, onde
[...] a noção de mandala pressupõe que o mundo que experimentamos é
inseparável de nós mesmos e que todos os seres estão interligados. Assim,
cada mandala surge inseparável de um tipo correspondente de inteligência.
Essas inteligências não são pessoais, indicando um padrão relacional que
desdobramos quando em contato com determinadas experiências (NEIMFA,
2012, p. 05)29
.
Assim, o uso do mandala como dispositivo e como método pedagógico visa, antes de
tudo, valorizar o cultivo da sabedoria, através da descoberta do mundo interno como elemento
estruturador das experiências subjetivas que fazemos do mundo exterior. Daí que, apesar das
diferenças nas metas delineadas e nos valores priorizados, tanto o Centro Infantil Jardim de
Lótus como a Escola Caminho do Meio, optaram pelo uso de mandalas mais amplas, isto é,
não centradas em saberes, e que pressupõem “uma outra visão de mundo” (SANTEM, 2006,
p. 37). No caso específico do Centro Infantil, esses mandalas são acessados através das
29
O termo tibetano para mandala, dkyil-khor, significa aquilo que circunda um centro.
102
histórias e dos contos de fadas considerados como “portais para a natureza mágica da mente”
(Dom).
Isso significa que a contação de histórias é pensada como “uma arte prazerosa de
sonhar outras formas de vida e educação” (Kali). Daí o objetivo expresso no projeto
pedagógico do Centro Infantil de “promover processos formativos diários junto às crianças de
três a seis anos de idade, mediante uma ação pedagógica que prioriza o prazer de ler, ouvir,
contar e escrever histórias” (NEIMFA, 2012). Assim, os educadores diferentemente do que
ocorre em grande parte das escolas formais e mesmo não formais que lidam com crianças
pequenas não focaliza o processo educativo no trabalho de decodificação das palavras, o que,
no limite, implica abdicar de um trabalho com as crianças que tem como “pretexto”
desencadear processos de letramento e/ou processos de alfabetização. Pelo contrário, busca-
se, por meio do gesto de contar histórias, cultivar a capacidade de imaginação e criação
próprias do mundo infantil.
O que fundamenta esse tipo de formação, portanto, é o encantamento pelas
palavras, pelo texto e pela língua. Um processo em que as crianças se
apresentam como construtoras de culturas e realidades. Essa apreensão de
um sentido prazeroso da leitura implica que, desde cedo, as crianças podem
assumir uma presença ousada no mundo e entrar em complexas e
sofisticadas relações consigo mesmas, com o outro, com a natureza e a
sociedade. Isso tem se tornado possível na medida em que o processo passa a
ser organizado pelo princípio da espiritualidade (NEIMFA, 2015).
A forma de operar concretamente esse objetivo é o uso do mandala como dispositivo
genuinamente pedagógico. A noção de mandala é evocada como um princípio estruturante,
juntamente com a noção de espiritualidade, na organização curricular e também didática. O
desejo manifesto ou a crença básica é a de que uso dos mandalas permite que o trabalho
educativo deixe de funcionar como uma forma de treinamento em aptidões voltado à
adaptação a um determinando sistema social e cultural, desdobrando uma “pedagogia para
além do conhecimento” (Dom). O uso dos mandalas expressa um processo no qual o
referencial básico é que o outro nasça para visões elevadas, trabalhando de forma integrada
e ativa no mundo.
As linguagens integrais que reconhecem o ser humano em sua
multidimensionalidade (física, afetiva, mental e espiritual) já priorizam
ações em rede que visam diluir as fronteiras entre instituição-comunidade-
cidade, bem como a falsa dualidade eu-outro ou eu-mundo. A noção de
mandala, contudo, vai além. Pois, ao mesmo tempo que é um princípio
permite configurar práticas e vivências concretas para materializar
103
propostas educativas apreendidas pela ótica da espiritualidade. Como
dispositivo pedagógico, o mandala indica uma visão elevada das metas e
objetivos da educação. Nessa visão, as crianças são consideradas e tratadas
efetivamente como sujeitos plenos da educação e são convidadas a
juntamente com os educadores a participar da construção de novos mundos
(NEIMFA, 2015).
Essa concepção específica de mandala guarda uma relação sinérgica com as chamadas
luzes primordiais (azul, amarela, vermelha, verde e branca) que expressam uma espécie de
arco-íris da sabedoria. Uma ideia derivada da filosofia oriental, em geral, e da filosofia
budista tibetana, em particular. Como evidenciam os professores Tenzin Wangyal Rinpoche
(2005) e Lama Padma Santem (2006), renomados mestres que têm se destacado na reflexão
acerca das contribuições das cinco luzes puras para repensar a percepção que temos de nossas
mentes e do mundo, as cinco luzes puras ou primordiais representam, na verdade, cinco
sabedorias ou cinco aspectos de nossa mente criativa e lúcida. De acordo com esses
professores, na cultura tibetana, as cinco luzes primordiais guardam uma relação com os cinco
elementos – terra, água, fogo, ar e espaço – sendo consideradas a raiz de todas as coisas que
se manifestam no mundo.
As cinco luzes são aspectos da luminosidade primordial. Estas são as cinco luzes
puras, o nível mais subtil dos elementos. Falamos sobre a luz e a cor das cinco luzes
puras, mas isto é simbólico. As cinco luzes puras são mais subtis do que a luz
visível, mais subtis do que tudo o que é percepcionado pelos olhos, mais subtil do
que qualquer energia medida ou avaliada por qualquer meio. São as energias de que
todas as outras energias, incluindo a luz visível, surgem. A luz branca é o espaço, a
verde é o ar, a vermelha é o fogo, a azul é a água e a amarela é a terra. Estes são os
cinco aspectos da luminosidade pura, as energias de arco-íris da esfera da existência.
Quando as cinco luzes são vividas dualisticamente, enquanto objetos para um sujeito
que as percepciona, tornam-se mais substanciais. As cinco luzes não se tornam mais
grosseiras, mas através da distorção da visão dualística, o indivíduo vê-as como mais
grosseiras. Como os elementos se tornam mais substanciais, são mais discriminados,
e através das suas interações manifestam-se enquanto fenómenos, incluindo o sujeito
e os objetos que formam toda a experiência dualística (WANGYAL. 2005, p. 33).
Além disso, as cinco luzes primordiais estão associadas a diferentes emoções,
direções, cores, sabores, tipos de corpo, doenças e estilos de pensamentos. Delas, como
dissemos, decorrem os cinco elementos, os cinco sentidos e os cinco campos de experiência
sensorial, bem como as cinco sabedorias que atravessam todo fenômeno físico, sensorial e
mental.
O estudo de suas interações permeia o pensamento tibetano. O conhecimento dos
elementos forma a base da medicina, da astrologia, do calendário e da psicologia,
assim como as tradições espirituais do Xamanismo, do Tantra e do Dzogchen. Os
nomes dos elementos são simbólicos. Eles definem qualidades e modos de ação
104
específicos por analogia com os elementos conhecidos do ambiente natural. Como
acontece na maioria das culturas, a tradição tibetana usa os elementos naturais como
metáforas fundamentais para descrever forças internas e externas. [...] O uso
metafórico dos cinco elementos também é usual nas línguas ocidentais: uma pessoa
pode ser aérea ou ter os pés na terra, pode ser fluida ou fogosa. A raiva é quente, a
tristeza é molhada. Uma atitude pode ser arejada ou terra-a-terra (WANGYAL,
2005, p. 35).
Mas nas tradições tibetanas essas interações não são entendidas apenas em um nível
metafórico, mas como uma representação concreta de distinções sutis dos aspectos da energia
primordial da existência. Nesse âmbito, não existe nada em nenhuma dimensão, que não seja
influenciada pelas relações desses cinco aspectos da energia. Esses processos estão na base da
dinâmica de criação, manutenção e destruição dos mundos que habitamos, inclusive na
educação. Assim, a luz suprema azul é a primeira a se irradiar do espaço aberto da realidade,
vinda do espaço amplo da mente. Ela ganha forma na direção leste do mandala e permite que
façamos a experiência de como o mundo interno funciona. Não por acaso, nas duas propostas
pedagógicas aqui analisadas, a luz azul simboliza e manifesta a qualidade viva do
acolhimento.
O educador que realiza, no cotidiano da sala de aula, a contemplação dessa sabedoria
acolhe as crianças do jeito como elas chegam. Ao invés de tentar moldar, formatar ou alterar o
comportamento das crianças, nesse âmbito, é preciso antes aprender a “olhar o outro dentro da
perspectiva desse outro”, ou seja, a partir da experiência de mundo que este produz e vivencia
em suas relações concretas. Por isso, os educadores também relacionam a luz azul com a
criatividade, em função do seu potencial para “brincar com as formas, para dar diferentes
formas” que visam “melhor acolher o outro” (Dom). A luz azul, como todas as outras, é uma
espécie de “inteligência viva” que não procura “modificar o outro para obriga-lo a assumir um
comportamento ou uma postura que visa satisfazer os interesses do adulto”. Essa inteligência
busca “entender o outro dentro do contexto desse outro” (Kali). Por isso, o espelho é o objeto
escolhido para representar essa qualidade: “receber o outro que vem sem lhe fazer
exigências”.
Logo em seguida, vem a luz suprema amarela que se manifesta do espaço aberto da
realidade. Vinda da direção sul do mandala, a luz amarela indica a qualidade viva da natureza
da realidade que manifesta a sabedoria da equanimidade e da generosidade. Uma vez que o
outro foi acolhido e reconhecido dentro de seu próprio mundo, aqui o desafio é perceber que o
seu propósito no mundo é ser felizes e não experienciar o sofrimento. Na cultura utilitária
vigente, essas condições só são viáveis pela via econômica ou pela via do poder e da fama.
Não é casual tanto esforço, tanta luta e correria para conquistarmos um lugar ao sol.
105
Assim, se a luz azul nos possibilita, pela sabedoria do acolhimento, entender como o
outro se movimento no mundo, com a luz amarela nos damos conta que essa movimentação
pode ser equívoca. No limite, ela visa construir a percepção que buscamos a felicidade e não o
sofrimento. Por isso, precisamos compreender que estamos todos no mesmo barco. Essa é a
percepção clara da igualdade. Para os educadores, a luz amarela mostra que estamos todos
integrados, que existimos no mundo de forma interdependente. Daí o exercício dessa
qualidade ou sabedoria despertar o sentimento de não separatividade e não dualidade.
Do ponto de vista pedagógico, “quando sabemos acolher, entendemos que não há
diferença entre o que as crianças e os educadores querem” (Dom). Isso não significa que
devemos fazer as mesmas experiências, cultivar as mesmas visões de mundo e ter as mesmas
crenças. A sabedoria da equanimidade, pelo contrário, ressalta o sentido elevado das
diferenças que não são tomadas como obstáculos ou problemas em si mesmas, pois elas
indicam que, por diferentes caminhos, estamos todos almejando alcançar a felicidade.
As crianças e eu: nós!!! Com essa lucidez, abrimos nossa mão e nosso coração
e oferecemos ao mundo aquilo que temos de melhor. Isso é a generosidade,
uma porta aberta para a prosperidade e a alegria em sentido elevado. Com a
sabedoria da generosidade, aberta pela luz amarela primordial, praticada na
educação somo levados a nos oferecer às crianças naquilo que somos e temos
de melhor. Afinal, não há generosidade maior do que reconhecer o outro, quer
dizer, as crianças mesmo como uma riqueza viva no mundo (Kali).
Na sequência nos deparamos com a luz suprema vermelha, que surge no lado oeste do
mandala, manifestando a luz de uma sabedoria infinita: a sabedoria da percepção
discriminativa. É através dessa sabedoria que os educadores aprendem a perceber as coisas e
as pessoas em seu sentido verdadeiro, autêntico. Essa sabedoria ou inteligência, dizem os
educadores do Centro Infantil Jardim de Lótus, desvela o “segredo da raposa da estória do
pequeno príncipe: o essencial é invisível aos olhos, pois só se ver bem com o coração” (Dom).
Esse é o ponto crucial da luz suprema vermelha, uma vez que ela opera para modificar
nossas percepções convencionais do mundo, fazendo-nos enxergar (mas também ouvir, tocar,
cheirar, degustar) o essencial nas coisas da vida e na vida das pessoas. Nesse âmbito,
reconhecemos um aspecto sagrado profundo presente em todas as circunstâncias, nos gestos
mais simples da vida. Isso não significa que “as coisas precisam ser aparentemente bonitas ou
que todas as pessoas precisem ser agradáveis”, o desafio é reconhecer a preciosidade de tudo
e de todos que se manifestam no mundo humano, pois “tudo que se manifesta pode ser uma
ocasião de aprendizado, de abertura para novas perspectivas de mundo” (Dom).
106
A inteligência da luz vermelha mobiliza um certo grau de magia ao permitir pensar
uma educação voltada para a transformação de nossas percepções comuns, preenchendo de
sentido até mesmo o que parece sem sentido. Dessa ótica, educa-se para cultivar os sentidos
essenciais de nossa presença no mundo junto com os outros seres. Logo, não é casual que no
Centro Infantil, o centro do mandala esteja associado à luz vermelha, pois o que está em jogo
é sempre uma inteligência pouco explorada em nosso processo educativo: a percepção. O
educador é constantemente desafiado para educar sua percepção a ponto de torná-la fantástica.
Aqui no NEIMFA, na Educação infantil o educador precisa aprender a ser
um elfo – pela sua capacidade mágica de ser no mundo, pela sua sabedoria
de perceber com acuidade as relações secretas entre as pessoas e as coisas do
mundo. Isso significa que, no Centro Infantil Jardim de Lótus, o educador é
sempre desafiado a não ficar preso ao significado comum/aparente daquilo
que surge. Todo objeto, assim como todo ser vivo, pode e deve ganhar, nos
encontros, novos sentidos, novos sabores, novas nuances (Dom).
Por isso, a importância dos contos de fadas como atividade vital no Centro Infantil. Na
contação, tanto as crianças quanto os educadores brincam com a percepção por meio da
fantasia, a fim “despertar e cultivar a atividade sonhadora da mente, essa capacidade
fantástica que é a essência da própria luminosidade criativa da mente, ou seja, essa capacidade
de olhar para as coisas e não ficar preso ao que se vê” (NEIMFA, 2015). Através da contação
de histórias, os educadores conseguem “abrir mundos, brincar com as formas, ver o que não
se ver”. Como resultado, as práticas educativas “ganham plasticidade, dinâmica e fluidez”. Os
livros viram portais para outros mundos, encantando nossa relação com a realidade vivida.
Veja, a ideia mais concreta é que as crianças possam ter gosto pela contação.
Isso é o nosso propósito específico: cultivar a imaginação, fazer com que
elas sejam atravessadas pelo prazer de ouvir histórias. A questão mesmo é
despertar neles essa questão mágica de criar mundos outros, de fazer com
que essas crianças possam viver e acreditar que o mundo é feito de
possibilidades. Assim, a nossa meta é que eles vejam outras perspectivas,
outros mundos (Dom).
Enfim, no lado norte do mandala surge a luz suprema verde, a luz que relaciona as
causas e as consequências associadas, promovendo ações que tragam benefícios e reduzam as
ações que geram prejuízo para si mesmo e para os outros. A sabedoria intrínseca à luz verde
inclui a habilidade de transformar situações desarmônicas e conflitivas em oportunidades de
crescimento e transformação pessoal e coletiva. O principal aspecto dessa inteligência
107
consiste em interromper qualquer tentativa de “eliminar os obstáculos que encontramos em
nossas práticas educativa, culpabilizando, discriminando e excluindo o outro” (Kali).
A culpa personifica: eu estabeleço uma personalidade, reifico uma identidade que,
enfim, é o ser que está culpado, introduzo uma dimensão de ignorância em cima
disso, introduzo um obstáculo. Vamos ajudando a mudança de consenso, de tal
maneira que aquilo migre numa outra direção em que não precisamos julgar,
caracterizar, definir aquilo tudo e então, condenar. Vamos procurando sempre nutrir
as sementes positivas e evitar os aspectos negativos (SANTEM, 2016, p. 01)30
.
Para dar conta desses princípios, o ano letivo do Centro Infantil é organizado por
bimestres. Em cada bimestre mobiliza-se uma luz, uma sabedoria, uma dimensão humana
relacionada, um foco específico, um conto de fadas (ver Quadro abaixo). Semanalmente, as
atividades articulam quatros módulos, mas em cada dia há uma ênfase maior em um dos
módulos. Para tanto, escolhe-se a cada dois meses um “conto raiz”, ou seja, um conto infantil
que será “o eixo articulador das atividades do Centro Infantil durante os dois meses” (Dom).
A gente trabalha por bimestre e a cada bimestre a gente se encontra, escolhe
um conto que vai circular por todo o bimestre. Então a gente se junta pra ver
quais atividades que vão entrar na proposta principal. Uma vez definidos os
contos, as histórias principais a gente pensa as atividades de pintura,
desenho, modelagem, as brincadeiras, as músicas (Kali).
Quadro da Organização Curricular por Bimestres no Centro Infantil Jardim de Lótus
BIMESTRE LUZ SABEDORIA DIMENSÃO
MARÇO/ABRIL AZUL ACOLHER/CRIAR FISICA
MAIO/JUNHO AMARELO DOAR/CUIDAR AFETIVA
JULHO/AGOSTO VERMELHO ESTRUTURAR/EDUCAR MENTAL
SETEMBRO/OUTUBRO VERDE AGIR/COMUNICAR MORAL
NOVEMBRO/DEZEMBRO BRANCO LIBERAR/PACIFICAR ESPIRITUAL
Fonte: NEIMFA, 2012.
30
Transcrição de um trecho do ensinamento oferecido por Lama Padma Samten durante o retiro “Treinamento
para iogues do cotidiano”, de 25 a 29 de maio 2016, no CEBB Caminho do Meio (Viamão, RS). Fonte:
http://www.cebb.org.br/nao-culpa-e-acao-irada/. Acesso em 10/02/2017.
108
Desse modo, no Centro Infantil Jardim do Lótus, a escolha pelo uso do mandala das
cinco sabedorias, ao mesmo tempo, expressa e articula o trabalho educativo diário movido
junto às crianças mediante uma ação pedagógica que focaliza a formação do gosto de ouvir,
ler, contar e escrever histórias. O currículo é organizado em módulos, cada qual aglutinando
práticas específicas como: práticas estéticas (artes plásticas-teatro-música); práticas de
cuidado (consigo mesmo- om o outro-com o mundo); práticas de contação de histórias
(ouvir-ler-escrever); e práticas lúdicas (corpo-brinquedos-palavras). Todas essas práticas
estão todas voltadas ao cultivo da imaginação criadora representadas pela cor branca. Essas
práticas são distribuídas entre os educadores\as, mas interagem entre si se atravessando
mutuamente.
O modulo de estética, relacionado com a luz azul, está atrelado a uma
dimensão corporal. A dimensão do cuidado, a cor amarela, está relacionada
com o afetivo, o emocional. O módulo de contação, relacionado com a luz
vermelha, está relacionado com uma dimensão racional, mas no sentido
imagético, intuitivo, a partir da imaginação, da fantasia. E a lúdica,
relacionada à luz verde, está relacionada mais com a dimensão moral, ética
do humano (Kali).
Os módulos seguem a estrutura do mandala das cinco luzes ou budas primordiais (ver
Figura abaixo), ganhando a cada bimestre uma ênfase. Essa ênfase, por sua vez, define não
apenas o conteúdo das atividades, mas também o engajamento dos educadores.
Assim... eu tenho uma ligação maior com o modulo de cuidado, que era uma
atividade do Neimfa que eu vinha trabalhando com adolescentes e resolvi de
fato mobilizar isso com as crianças também. Então meu vínculo mais direto
é a partir do cuidado. Dentro do módulo cuidado desenvolvo atividades que
perpassam o campo da estética, da contação e da ludicidade. Na verdade,
dentro de uma perspectiva de mandala, essas atividades e esses módulos
interagem entre si. Os módulos são divididos por afecção que a gente tem
pela atividade, a gente foi se direcionando para as áreas que a gente já se
sentia afetado (Dom).
Figura - Os Cinco Budas da Meditação
109
Fonte: https://goo.gl/UKv9RO. Acesso em 10/02/17.
Mas se a proposta pedagógica do Centro Infantil prioriza os aspectos mágicos do
mandala, focalizando a sabedoria própria da luz vermelha, na Escola Caminho do Meio, o uso
do mesmo mandala parte do princípio de que é preciso aprender a “olhar o mundo interno e
ensinar pelas costas” (CEBB, 2012). Partindo da visão do professor e pesquisador budista
Alan Wallace de existem “dimensões escondidas” da realidade, os educadores da Escola
ressaltam que “quando olhamos a realidade, nós vemos algumas coisas, mas precisamos poder
olhar de forma mais abrangente” (Céu). Daí que uma preocupação central aqui é com
avidya31
.
Nos ensinamentos budistas, quando estamos imersos em avidya, não reconhecemos a
“luminosidade que constrói a realidade” (Céu), ou seja, acreditamos que o conteúdo que
vemos existe separado de nossa própria mente. Assim, não nos damos conta de que todo
conteúdo é inseparável do observador. O observador produz ativamente experiência do objeto.
A experiência do que vemos é inseparável das nossas estruturas internas. Sempre
que temos uma experiência de objetos, nosso papel de observador está presente. A
mente vê a mente, ou seja, nossa mente vê os objetos conforme suas noções internas,
e é a partir disso que nos relacionamos com o mundo, atribuindo significados e
funções a tudo, inclusive sensações de gostar e não gostar, ou ser indiferente.
Mudanças na estrutura interna provocam mudanças nos objetos que vemos e nas
sensações agradáveis, desagradáveis ou de indiferença que eles provocam. Ainda
que a mente veja a mente, ficamos com a sensação de que há uma separação
entre objeto e observador. Esse é o cerne do nosso problema ligado à ilusão
do samsara (ciclos de nascimentos e mortes, também pode ser o termo designado
31 Quando estudamos a história do Buda, vemos que o Buda coloca avidya como o primeiro dos doze elos da
originação interdependente. Os doze elos explicitam a origem das situações aflitivas que nós experimentamos no
mundo que vivemos. Nesse contexto, a superação dessas situações aflitivas é uma meta essencial, o eixo mesmo
de qualquer a pedagogia inspirada no budismo. Então, nessa abordagem, ao olharmos e contemplarmos os doze
elos, tentamos fazer o caminho inverso: do décimo segundo em direção ao primeiro, até o ponto em que
superamos o primeiro, que é justamente a incapacidade de ver de forma apropriada – então avidya é o ponto
central.
110
para o engano ou ilusão no budismo) (SANTEM, 2002, p. 17. Destaques no
original).
A chave essencial para este processo de ultrapassar as dificuldades de visão,
representada aqui pelo termo avidya (vidya em sânscrito significa sabedoria, visão, lucidez;
avidya significa perda da visão) está na descoberta do mundo interno. Mais especificamente
no fato de que “os seres produzem luminosidades específicas nas suas diversas conexões com
a realidade” (SANTEM, 2002, p. 17). Na verdade, por causa de avidya não vemos os objetos,
mas o que ele passa a ser diante dos nossos olhos. Essa é a característica da luminosidade. Há,
portanto, uma natureza luminosa que não é afetada pelas suas próprias construções. Daí que
[...] o principal de todos os aspectos pedagógicos é aprender a olhar para o
mundo interno, isso é proporcionado pela prática budista. Mas isso foi
também o que mais me tocou na proposta da Escola. Ao ativar dentro de nós
esse olhar interno tudo que está ao nosso redor e a forma de olhar as crianças
muda, percebemos com mais intensidade como operamos no mundo (Céu).
Assim, para os professores da Escola Caminho do Meio, aquilo que olhamos não está
separado do nosso mundo interno. Logo, sem perceber, operamos no mundo a partir de
determinadas “paisagens mentais”, processos internos que interferem em como vemos. No
limite, essas paisagens geram “uma sensação de realidade externa” que supostamente existiria
de forma independente de como pensamos. Nos termos do Lama Padma Santem,
Paisagem é uma forma complexa de explicarmos as estruturas internas associadas às
inteligências que o observador pode manifestar. O observador constrói e
experimenta seu mundo de acordo com a inteligência que estiver utilizando.
Estrutura interna é a base para descrever o que vemos. O que vemos é a paisagem,
mas paisagem também se refere à estruturas interna, porque elas são inseparáveis.
Aquilo que vemos e a nossa estrutura são a mesma coisa. Quando usamos essa
linguagem, dizemos: “Todos nós estamos dentro de alguma paisagem”. Existe uma
paisagem onde jogamos lixo dentro do rio e achamos que está bem. Existe outra
paisagem que catamos todo o lixo, e achamos que assim é melhor. Cada paisagem
legitima um tipo de ação. O mundo parece concreto, mas é definido pelo olhar, pela
paisagem. O mundo é uma expressão de luminosidade e vacuidade (SANTEM,
2002, p. 18).
No entanto, na realidade, o que aparece com sendo separado e independente é
“coemergente – com a realidade interna. Essas duas dimensões vêm juntas no mesmo
fenômeno” (CEBB, 2012). Daí a importância de olhar o mundo interno, para não nos
fixarmos às coisas como se elas existissem de forma externa e separada de nosso agir.
Quando olhamos as coisas sem fixa-las, as coisas ganham outra amplidão,
ganham outra gama, outras referências, abrindo assim outras possibilidades
111
de atuação no mundo. Sabe-se que todos os seres têm em si mesmos a
natureza primordial das cinco cores puras, quer dizer, guaramos em nossa
própria mente as qualidades humanas positivas como compaixão e amor, que
possibilitam o bem viver com os outros, a coletividade e o ambiente (Céu).
A não compreensão do modo de operar do nosso mundo interno faz com que os
educadores se fixem nas coisas externas, o que, no limite, pode inviabilizar a expressão e o
cultivo de qualidades espirituais profundas na educação das crianças.
Eu acredito que olhar para o mundo interno é uma grande ferramenta para
professores de qualquer escola, de qualquer lugar, até mesmo nas
universidade. É uma ferramenta chave da educação. Para atuarmos de forma
lúcida temos que aprender a lidar com os elementos estruturadores das
experiências subjetivas das crianças envolvidas no processo formativo, bem
como da equipe pedagógica e das suas famílias (Lua).
O currículo da Escola Caminho do Meio também é organizado bimensalmente partir
de uma das sabedorias ou luzes, mas diferentemente do Centro Infantil Jardim de Lótus, o
foco não está em organizar as ações didáticas desde esse âmbito, mas em “ensinar pelas
costas”, isto é, pelo próprio exemplo do educador. Cabe a este contemplar a sabedoria
priorizada e expressar seus princípios na ação com as crianças. Essa forma de educar é
coerente com a própria natureza das crianças que “ao ver outra brincando, logo vai brincar
daquele jeito também”. Logo, se os professores fazem alguma coisa, a criança tem a tendência
de imitar sua ação (CEBB, 2012).
À medida que os professores agem na sala eles geram exemplos que são transmitidos
para as crianças. Como resultado, se eles cuidam de um amigo que foi machucado ou de uma
planta, a criança tende a olhar aquilo de uma forma mais aberta, como algo positivo.
[As crianças] não vão raciocinar se aquilo é positivo ou negativo, elas têm a
tendência de fazer igual. Então a forma como nós cuidamos das crianças introduz
um processo de relação que eles vão copiando. Esse é o princípio geral do mandala.
Mesmo quando não temos capacidade de introduzir cognitivamente, temos o
processo do mandala funcionando efetivamente na prática pedagógica através da
ação dos professores. No caso das crianças bem pequenas, se formos explicar esses
referenciais, elas não vão entender nada. Então, para os pequenos, o método
discursivo não funciona. Como podemos trabalhar? Podemos nos dar conta de que
existe esse método de ensinar pelas costas, que é um método muito direto, muito
eficiente (CEBB, 2012).
Com o método de ensinar pelas costas, o uso do mandala incentiva os professores a
configurar novas paisagens mentais dentro das quais as crianças possam operar. Com isso, ao
invés de treinar ou moldar comportamentos, os comportamentos surgem espontaneamente.
112
[...] esse é um processo que demanda muita presença e um exercício
reflexivo, de tomar consciência, muito sério, pois depois que nos damos
conta disso, não temos como voltar atrás. Então tudo que eu faço é porque
tomei consciência disso, e percebo que tem um impacto na aprendizagem
das crianças, a minha lucidez na ação com elas, de fato, ensina a partir do
exemplo (Céu).
Apesar das diferenças encontradas no uso da noção de mandala nas duas experiências
analisadas, percebemos que, nos dois casos, o mandala só funciona como um dispositivo ou
método pedagógico quando os educadores manifestam, de algum modo, a visão e os valores
subjacentes ao mandala priorizado nas propostas pedagógicas destacadas. Uma das
implicações imediatas é que, nas duas experiências, educar a infância passa, antes de tudo, por
uma transformação profunda no próprio modo de aprender e agir dos educadores.
O mais importante, dizem, é que os educadores vivenciem as metas, os valores e as
crenças sinalizadas nos referenciais pedagógicos no cotidiano das salas de aula. Assim,
“quanto mais o professor consegue manifestar no seu corpo e energia, ou seja, em suas
atitudes, gestos e posturas, melhor ele inclui a criança dentro da perspectiva do mandala. O
professor, seu corpo, sua energia e mente é o que torna visível o mandala” (CEBB, 2012). A
primeira tarefa do educador, nessa perspectiva, consiste em aprender, ele mesmo, a lidar com
o processo de transmissão da percepção de mundo com a qual operamos tanto dentro quanto
fora da escola. O que significa, para o educador, se engajar em uma reflexão profunda sobre
como sua maneira de operar cognitivamente sobre a experiência que faz do mundo afeta o seu
próprio agir.
6.2 A infância como experiência de mundos em construção
Como consequência, nas duas experiências, a noção de mandala é compreendida
como dispositivo ou ferramenta essencial para apreender o funcionamento de nossos mundos
internos e consequentemente como as crianças e os educadores são construtores desses
mundos, mundos que, por sua vez, estão sempre em construção. Para os educadores, essa
ideia é revolucionária para a educação, onde normalmente se compreende o mundo como já
dado, como cristalizado.
Assim, mesmo quando se adota a posição de que o mundo é uma construção histórica,
o papel da educação permanece sendo o de preparar as crianças para as questões de um dado
113
mundo. A noção de mandala, ao contrário, permite repensar a própria ideia de mundo como
um fenômeno aberto, livre, atravessado pela liberdade e pela criatividade, o que contribui para
repensar o papel da educação nesse contexto. Dessa ótica, a compreensão do princípio do
mandala não surge separada da ideia que fazemos do mundo porque mandala é mundo, mas
mundo que não se deixa fixar, isolar, mundo inseparável de nossa ação. Isso permite
articular, desde o campo educativo, “linguagens e ações que nos possibilitam um exercício
de liberdade para o qual talvez nunca tenhamos sido treinados pelo sistema de ensino”
(Dom).
Pensar o mandala como mundo que está em construção, para mim, significa
resgatar uma educação do encantamento, da magia. Por que? Porque o
mundo nunca está pronto, nunca é o que nos dizem que é, o mundo não se
separa dos encontros que fazemos e que temos. Assim, até mesmo essa
relação, a relação entre professor e aluno pode mudar o mundo. Essa é uma
experiência que nos permite opera de forma livre e ousada na prática
educativa, pois nos faz perceber que podemos esperar mais das crianças, ter
uma visão ampla de suas potencialidades e de suas capacidades de ação no
mundo (Kali).
A questão, como vimos, é que o uso da noção de mandala em sala de aula pressupõe,
por parte dos educadores, um outro modo de experienciar os princípios subjacentes a essa
noção. Em outros termos, para criar mundos outros precisamos operar com outras
inteligências em sala de aula, e o mandala é uma ferramenta potente para aprendermos a
“migrar para outros mundos” e podermos assim reconstruir os modos que habitamos os
mundos da educação.
Veja, mundos se constroem em relações. Na educação, incorporar essa ideia
nos permite perguntar que tipo de mundo nós estamos construindo? Que tipo
de experiência de mundo a gente partilha nas nossas ações educativas? Essas
são questões que fazemos quando trabalhamos com a noção de mandala e
são essas questões que têm me mobilizado no Jardim de Lótus: que mundo
quero/desejo construir quando estou com as crianças? (Dom).
No entanto, mesmo quando pensam o mandala a partir do exemplo, os educadores
compreendem que não se trata de algo a ser replicado automaticamente pelas crianças. Ao
contrário, eles entendem que o próprio modo da criança conhecer guarda uma relação
intrínseca com a noção de mandala. De fato, não é a ideia de mandala, mas a percepção
infantil do mundo que tem um aspecto revolucionário. Ou seja, o mandala expressa a lógica
própria da experiência que as crianças fazem do mundo. Essa é uma compreensão
fundamental.
114
Quando estou com as crianças em uma atividade de pintura, desenho ou em
uma brincadeira um mundo é construído e vivenciado naquele espaço e
naquele momento que estamos vivendo juntos. Mundo esse que me permite
ser outrem na relação com as crianças, entende? Não é que eu planejei um
método, hoje vou usar o mandala assim e assado. Não, não é assim que
funciona, o mandala é como a gente reconhece a forma como as crianças,
elas mesmas, vão construindo e reconstruindo o mundo (Kali).
Na mesma direção, na Escola Caminho do Meio, o uso do mandala como método-eixo
não tem um caráter instrumental. O exemplo claro dessa perspectiva é a ênfase na postura
interna, no mundo interno do professor como condição para agir segundo o método do
mandala.
Mas qual é realmente o sentido do mandala enquanto método pedagógico? A pergunta
emergiu no decorrer da investigação, pois nos demos conta de existem vários mandalas e que
cada um deles corresponde princípios e métodos pedagógicos diferenciados entre si.
Veja, temos o mandala da cultura de paz, associada ao Buda da compaixão, também
chamado Chenrezig ou Avalokiteshvara, dentro da qual todo o trabalho da Escola se
insere. Além disso, temos os mandalas dos Cinco Dhiany Budas, o mandala de
Vajrasatva que indica sabedoria e o método de formação do professor. De fato, essas
inteligências são inseparáveis umas das outras. Mas cada uma tem um modo próprio
de se manifestar no mundo e afetar nossa educação (CEBB, 2012).
Em função da complexidade teórico-prática envolvida no uso de vários mandalas, nos
detivemos no mandala da sabedoria dos cinco Budas primordiais que são o eixo do método
pedagógico tanto da Escola Caminho do Meio quanto do Centro Infantil Jardim de Lótus32
.
Nos dois casos, esse mandala expressa sabedorias ou inteligências que indicam
maneiras livres e elevadas de olhar e se mover no mundo, maneiras que os educadores
procuram praticar no dia-dia com as crianças. Apresentamos a seguir um resumo33
de cada uma
delas.
A sabedoria do acolhimento significa acolher a aparência do que surge interna e
externamente como um espelho que acolhe todas as imagens e não se prende a nenhuma. Com
essa sabedoria é possível então acolher seja o que for, sem arestas ou restrições, de forma
aberta e lúcida. Dessa forma, não ficamos paralisados frente às negatividades. Em sala de aula,
essa sabedoria é vivenciada ao “estimularmos a criança a olhar para si, para seus sentimentos e
32
Lembramos, entretanto, que no Centro Infantil Jardim de Lótus o foco curricular está no Buda Amithaba
associado à luz vermelha primordial, enquanto na Escola Caminho do Meio o enfoque reside, sobretudo no
desenvolvimento da capacidade de estabelecer boas relações consigo mesmo, o outro e o mundo. 33
Esse resumo tem como base de referência a apostila As Cinco Sabedorias no Contexto da Escola Caminho do
Meio, de Fabiane Rocha dos Santos.
115
emoções, reconhecendo que o mundo interno não está separado do mundo externo. Eles têm a
possibilidade de expressar nas suas relações, consigo mesmo, o outro e o mundo (Céu).
Agir, portanto, segundo essa sabedoria também significa olhar para o outro e oferecer
aquilo que faz sentido dentro do mundo dele, aquilo que ele é capaz de entender. Abrir-se ao
outro, ouvindo-o, percebendo-o em seu mundo, interagindo e acolhendo suas necessidades. A
partir da sabedoria do acolhimento, compreendemos que nossos conteúdos internos produzem
a experiência externa de mundo, afetando a maneira de ver e interpretar o que se passa em
nosso contexto imediato34
. Cabe ao educador, nesse caso, convidar as crianças a exercitarem
uma escuta e um olhar atentos ao que acontece. Com base nessa sabedoria os professores
procuram olhar o contexto do outro e entende-lo dentro desse mundo.
O trabalho com a sabedoria do espelho nos permite reconhecer o outro no mundo
dele, em seu próprio contexto, sem julgamentos pré-estabelecidos, podendo assim
estabelecer um contato positivo com ele. Esta sabedoria nos permite a compreensão
de que o mundo que vemos ao nosso redor é o mundo que reflete nossa mente, assim
como a experiência de mundo de todos os seres espelha as premissas mentais que
cada um tem ao olhar o mundo (CEBB, 2012.).
Com a sabedoria da igualdade, por sua vez, cultivamos a habilidade tirar o foco de
nós mesmos e promover a generosidade, seja identificando as qualidades positivas do outro,
seja desenvolvendo essas qualidades em nossas próprias vidas. Assim, qualquer ação que seja
endereçada a reconhecer, incluir e ajudar o outro ativa esta sabedoria. Fazendo isto, o
educador amplia a visão das crianças para perceber além de si mesmas. Desse modo,
[...] a prática dessa sabedoria é muito importante como remédio para as estruturas de
auto-centramento que afetam todos os seres. Quando operamos dessa forma,
dificilmente conseguimos ver coisas positivas nos outros, e mesmo quando as
vemos, temos dificuldade de nos mover para promovê-las e nos alegrarmos com
elas. A sabedoria da igualdade ajuda a trocar esse software, essa forma de operar, e
promove outra forma de ver e agir, através da qual podemos nos alegrar com a
alegria do outro. Alegramo-nos ao vê-los bem, como uma mãe se alegra com cada
alegria dos seus filhos, pois não se vê separada deles (CEBB, 2012).
É importante ficar claro que, para as crianças, o ponto principal é perceber que elas
fazem parte de um grupo, e que o que é bom para o grupo é bom para cada um. Esse é um
ponto de partida para começarem a ver a interdependência e não se verem separado dos outros
seres.
34
Essa noção é explicada a partir do termo coemergência (Ver SANTEM, 2006).
116
Isso na sala de aula é vivenciado quando ajudamos o outro e respeitamos seu
espaço. As crianças expressam isso naturalmente e nós, professores, temos
que incentivá-las a oferecer o que cada um tem de melhor. A ideia é que, aos
poucos, a generosidade brote de maneira natural. No contexto da prática
educativa, essa sabedoria significa também que o educador se alegra
naturalmente com os progressos e construções positivas das crianças (Lua).
Como resultado, a sabedoria da igualdade oferece um “remédio” para que as crianças
não se sintam superiores às demais, agindo no mundo para trazer benefícios para todos os
seres sem cair na separatividade eu-outro, o que amplia sua visão dos problemas que afetam o
mundo, pois a ação parte da compreensão da interdependência e dos vínculos.
Esse, aliás, é um dos aspectos mais curiosos dessa abordagem: o foco pedagógico na
prática de “dar nascimento positivo”35
a partir das relações que estabelecemos em sala de
aula. Algumas perguntas são fundamentais para abrir essa visão: “O que o outro tem de bom?
O que eu tenho de bom e posso oferecer, qual é a minha qualidade? Qual é o meu potencial?
O que o ambiente, a comunidade tem de bom? Como podemos potencializar as qualidades e
enriquecer o ambiente em que estamos cuidar dele, melhorar?” (CEBB, 2012).
A sabedoria discriminativo-investigativa estabelece o eixo que nos permite entender
o fio que deve permear as nossas ações no mundo. Todo o ensinamento budista, em toda a sua
abrangência e profundidade, nasce inicialmente de perguntas,
[...] que o príncipe Sidarta fez antes de se tornar o Buda, que quer dizer aquele que
acordou. Perguntas como: por que existe o sofrimento no mundo? Como ele surge?
Existe alguma maneira de superá-lo? Como encontrar essa maneira? Estas são
questões realmente inquietantes, mas que normalmente deixamos para lá no dia-dia,
sem nos perguntar verdadeiramente sobre o seu significado, tais como: por que
envelhecemos? Por que as coisas mudam mesmo quando não queremos que elas
mudem? Se tudo muda sempre, por que não nos acostumamos com esse fato, por
que mesmo assim precisamos sofrer diante das mudanças? (CEBB,2012).
Essa atitude curiosa, investigativa, que busca olhar mais a fundo as coisas
aparentemente simples que estão à volta, é a base fundamental para desenvolver uma visão
mais profunda sobre a vida e sobre a própria educação.
A sabedoria discriminativa indica uma atitude de observação que vê em cada
experiência uma oportunidade de conhecer mais profundamente a si mesmo e ao mundo, a
fim de encontrar um conhecimento significativo que conduza à sabedoria. Para os educadores,
as crianças apresentam normalmente uma grande desenvoltura no exercício dessa sabedoria,
35
Topamos aqui com um ponto interessante para aprofundamento futuro: a ideia de educar como “dar
nascimento positivo” pode ser contrastada com as análises que Jorge Larrosa (1999) faz da educação como
natalidade, tendo como intercessor filosófico fundamental dessa ideia o pensamento de Hanna Arendt.
117
“pois as mesmas já têm consigo essa curiosidade nas coisas que estão ao seu redor e sempre
questionam tudo” (Céu). A realização plena da sabedoria investigativa traz a capacidade de
oferecer um referencial para entendermos que as ações positivas têm resultados positivos e as
ações negativas resultam em dificuldades e sofrimentos. A sabedoria investigativa permite
desenvolver a habilidade de investigar os diferentes aspectos de uma mesma situação,
aprofundando e não aceitando simplesmente o que surge, testando, pesquisando, buscando
respostas próprias. Isto inclui aprofundar as emoções e ações que surgem e que nos
mobilizam.
Do ponto de vista pedagógico, destacamos nesse âmbito duas questões importantes. A
primeira trata da constatação de que mesmo não focalizando a aprendizagem de conteúdos
específicos, as propostas pedagógicas inspiradas nas sabedorias não esquecem ou
desqualificam a importância de lidar com as dimensões cognitivas junto ao trato didático com
as crianças. Pelo contrário, a própria descrição da sabedoria discriminativa demonstra o
contrário. A segunda constatação importante é que, mesmo quando há uma prioridade nos
aspectos cognitivos, essa experiência (ou sabedoria) nunca aparece dissociada dos aspectos
éticos e mesmo morais. Com isso a construção de conhecimentos nas propostas investigadas
nunca se dissocia da formação humana mais ampla das crianças e dos próprios educadores.
Esse vínculo entre cognição e ética é mediado, de modo significativo, pelo cuidado que os
educadores, nas duas propostas, evidenciam com o papel dos afetos e das relações na sala de
aula.
Em seguida, a sabedoria da causalidade trabalha as noções de causa e ação. Assim,
quando entendemos a operação dessa sabedoria, entendemos que o que é positivo produz
estados de felicidade, e que as ações negativas produzem fatores de complicação. Mais
profundamente, se trata de entender que a melhor ação é quando olhamos para o negativo que
surge e fazemos aquilo se tornar algo positivo, gerando proximidade positiva mesmo quando
o outro tem ações inadequadas. (CEBB, 2012). Desse modo, essa sabedoria nos mostra o
efeito causal de nossas ações e relações no mundo, bem como a energia de correção
necessária.
Na educação com as crianças, isso acontece nas próprias brincadeira, quando
as crianças brigam por causa de um brinquedo e aquela ação dele vai trazer
consequências negativas gerando sofrimento para si e para outro,
mobilizamos não a punição ou o castigo, mas o diálogo ativo para que elas
percebam o sofrimento que a sua ação pode gerar no outro (Lua).
118
A energia dessa sabedoria emerge também como uma força, mas sobretudo como uma
atitude de proteção junto às crianças. Ao mesmo tempo em que se restringe uma ação para
que o outro não se perca no caminho, mobiliza-se a capacidade de reverter situações negativas
em situações positivas no próprio cotidiano das atividades desenvolvidas em sala de aula.
Por fim, a sabedoria da transcendência corresponde à nossa habilidade de repousar
na liberdade natural, significando que podemos gerar ações desvinculadas das aparências
externas e criar paisagens e contextos diferentes. Assim, o Buda Branco, Vairocana, que é a
sabedoria transcendente implica em reconhecermos o “aspecto construído”, e, portanto, livre,
da realidade. Essa sabedoria está ligada à compreensão da dimensão do céu, presente em
todos os seres36
. Dessa forma, ela nos torna imunes ao aspecto limitado das aparências, o que
possibilita uma atitude tranquila frente às situações gerando confiança na educação. Na sala
de aula as crianças expressam isso “na sua capacidade de abarcar, experimentar tudo que
surge sem distinção, através das brincadeiras significativas, jogos, canções e artes em geral
(Céu).
Sobre esse aspecto, vale ressaltar o modo como os educadores lidam com a
transcendência no cotidiano da sala de aula. Para eles, nossa cultura materialista reduziu a
possibilidade de compreensão dos múltiplos seres que habitam os mundos infinitos gerados
por nossa experiência. Para o materialismo só existe o que é objetivo, o que se deixa objetivar.
Mas boa parte dos seres que existem não são objetiváveis pela racionalidade científica e
materialista. Assim, o materialismo capta mal o modo de existência desses seres. O idealismo,
por outro lado, pensa que eles existem apenas nas nossas cabeças, que são projeções da
mente.
Pensar nos processos educativos a partir da noção de mandala nos permite
entrar em contato com seres que têm outros modos de vida, outras formas de
ser e se fazer presente no mundo. Esses nos afetam, deixam marcas que nos
ajudam a lidar com nossos medos, nossas dores, eles também nos dão
coragem para enfrentar nossas limitações e expandir nossas relações (Dom).
Diante disso, a visão de mandala não separa o imanente do transcendente, trabalhando
com várias dimensões visíveis e invisíveis de forma integral e não binária a fim de incluir os
vários aspectos da experiência humana sem ficar preso às fixações dogmáticas. Esse é um
aspecto vital de enriquecimento dos processos formativos, mas ainda pouco explorados37
.
36
Ver item referente ao céu no tópico Integralidade, mais adiante. 37
Sobre esse aspecto ver a obra Investigación sobre los modos de existencia do pensador Bruno Latour, 2013.
119
No conjunto, as cinco sabedorias visam ampliar a visão do educador, sendo
inseparáveis e transversais às atividades conduzidas no cotidiano escolar.
Entretanto, a cada bimestre uma delas se destaca nos estudos da equipe e nas vivências
das crianças. Como dissemos, o currículo articula as cinco sabedorias aos ciclos e elementos
da natureza, a dimensões próprias do mundo humano, etc. O seu sentido último consiste em
expressar os princípios norteadores das propostas pedagógicas que vem sendo investigadas:
integralidade, diversidade, conhecimento, sustentabilidade, criatividade e sabedoria.
A integralidade tem como fundamento uma abordagem complexa da educação, na
qual cinco dimensões constitutivas são percebidas como um todo inseparável, a saber:
dimensão corporal, emocional (psíquica), mental (intelectual), sociocultural e espiritual.
Com base nessa perspectiva, olhamos cada criança de forma abrangente, incluindo não
apenas seu desenvolvimento mental-intelectual, mas também sua corporeidade, sua vida
emocional, seu aspecto sociocultural (identidade, relações e interações, pertencimento, regras
e combinações, percepção de contextos sociais etc.) e também o seu aspecto espiritual, ou
seja, sua dimensão inerentemente livre e criativa, comum a todos os seres.
A Escola acolhe cada um no ponto em que ele está, ou seja, possibilita que
cada criança manifeste suas histórias, emoções e leituras de mundo, a partir
de trabalhos em grupo, com musicalidade, ao ensaiar teatro, ao cultivar
plantas, observar pequenos animais, desenhar ou produzir um vídeo etc. É
necessário que a emoção esteja presente na escola, que haja um mergulho
nos ambientes e que os alunos se sintam no mundo (Lua).
A diversidade valoriza a pluralidade cultural, o que significa que cada criança deve
ser acolhida por suas características singulares de modo a sentir-se pertencente ao grupo,
desenvolvendo uma imagem positiva de si. Mas a diversidade não se restringe aos aspectos
relacionais diretamente vivenciados na sala de aula, mas também aos “diversos olhares e
saberes que podem ser valorizados de forma complementar, pondo em diálogo a abordagem
científica com os conhecimentos indígenas e de outros povos e culturas”. O alvo é sempre
“desenvolver um olhar abrangente sobre si mesmo, o outro e o mundo”, apoiando identidades
plurais em uma perspectiva afirmativa, mas não necessariamente substancial (Lua).
O princípio do conhecimento considera, por sua vez, que a educação deve favorecer a
aptidão natural da mente em formular e resolver problemas essenciais e, de forma correlata,
estimular o uso multidimensional da inteligência humana. Este uso pede o livre exercício da
curiosidade, a faculdade mais expandida e mais viva durante a infância e a adolescência, que
120
com frequência a instrução, às vezes, contribuir para limitar e que se trata de estimular, sem
perder de vista os aspectos éticos e sócio-afetivos presentes em todo ato de conhecimento.
Sendo assim, busca-se promover o autoconhecimento, que possibilita
também um olhar mais sensível para o outro; aprofundar um conhecimento
significativo sobre a natureza e sociedade, associando um aspecto vivencial e
ético ao conhecimento, buscando assim torná-lo vivo e útil para a criação de
cidadãos ativos e capazes de uma ação positiva em suas realidades (Lua).
A sustentabilidade é considerada indispensável em uma educação voltada à
compreensão da interdependência entre todos os seres, elementos da natureza e processos
sociais. Procura-se assim proporcionar o desenvolvimento dessa percepção ampla e complexa
sobre os fenômenos, em consonância com o modo de aprendizagem das crianças.
No que se refere ao princípio da criatividade enfatiza-se o reconhecimento de que a
humanidade não é apenas uma comunidade que se adapta a mecanismos sociais alheios à sua
participação, mas como seres que são capazes de criar –e efetivamente criam –coletivamente
os mundos e as experiências sociais e comunitárias que vão habitar.
Assim, aquilo que é necessário para a sustentação e enriquecimento da vida
não é algo externo e pronto a ser adquirido apenas, é algo que participa da
nossa capacidade inerente de criar incessantemente as condições segundo as
quais estamos no mundo. Buscamos, como parte do método do mandala das
cinco sabedorias, tornar visíveis no cotidiano das crianças as redes de
interdependência e os processos criativos que sustentam a vida. Aqui, a
criatividade tem esse aspecto atrelado à vida mesma. A criatividade é a
expressão da liberdade natural da mente (Céu).
Finalmente, o princípio da sabedoria resgata valores que não são aprendidos de forma
discursiva ou moralista, mas como exercício prático pelos próprios educadores. Esse princípio
torna claro para os educadores que o mandala das sabedorias “fala do modo como agimos no
mundo, na educação, com as crianças de forma que se possa estabelecer relações positivas
com as situações que surgem na sala de aula” (Lua). Trata-se, portanto, de mostrar como o ato
de educar é inseparável das relações que estabelecemos na sala de aula.
Operamos cotidianamente com as inteligências do mandala no planejamento
quando pensamos que história contar, que música tem ligação com o foco do
bimestre. Então, em vez de dize: Chegou a hora de entrar! Eu canto uma
música e eles já sabem que é para entrar, conduzidos por uma energia que
irriga uma inteligência que surge do próprio mandala (Céu).
121
No conjunto, esses princípios ou sabedorias realçam a importância de pensar as
práticas pedagógicas como espaços potentes de criação e recriação das nossas paisagens
mentais, mostrando tanto aos professores como às crianças que se o mundo muda nós
podemos mudar, mudando a nós mesmos e ao mundo que vivenciamos, a partir das relações
que estabelecemos.
Isso significa ainda que, no método do mandala, nós mudamos de inteligência e o
mundo muda. Tudo ao nosso redor muda ao mesmo tempo. Ocorre uma espécie de magia que
transmuta as forças em jogo em uma dada realidade. Mas o importante não é a inteligência em
si mesma, mas a capacidade de sustentar a visão de que essas inteligências são inseparáveis de
nossas posturas, crenças e atitudes, mantendo os educadores abertos e disponíveis para olhar
as crianças e reconhecer nelas não o que lhe falta, mas o que elas já guardam como potencial
vivo.
O espaço básico está povoado de inteligências protetoras vivas, como tesouro aos
céus. Nós temos a capacidade de acessar os mandalas e nos manifestar através
dessas sabedorias. Além disso, importa contribuir com o trabalho do professor e seu
desenvolvimento para sustentar a visão, a postura e a atitude favoráveis no trabalho
cotidiano com as crianças, mantendo-se aberto e disponível a olhá-las e reconhecer o
que precisam de fato a cada dia para seu crescimento (CEBB, 2012).
A palavra para os mundos que surgem inseparáveis das nossas mentes é mandala.
Com essa afirmação proferida pelo Lama Padma Santem, sem dúvidas, o principal referencial
e inspiração profunda das duas propostas pedagógicas que foram objeto de análise nesse
trabalho, chegamos ao término de nossas análises e reflexões. De fato, tanto nos documentos
como na fala dos educadores, mandala é um termo central, diria mesmo mágico.
A noção de mandala não se refere apenas a um mundo material, externo e
independente de nossas subjetividades, mas a uma experiência determinada desse mundo,
experiência que carrega os traços do observador, seus limites cognitivos, suas energias de
ação, suas emoções. Por isso, os educadores abordados insistem em dizer que cada mandala, e
aprendi que são muitas, surge inseparável de um tipo correspondente de inteligência viva e
ativa.
Essas inteligências são, ao mesmo tempo, transcendentes, não pessoais, livres do
tempo, e inseparáveis de nossa corporeidade, de nossos afetos, de nossa imaginação. A meta
do pensamento e da prática budista é sair dos mandalas limitadas e chegar aos mandalas de
sabedoria, um dos quais vem se tornando um dispositivo pedagógico efetivo, pelo menos nas
duas propostas-alvo da pesquisa que materializou essa dissertação.
122
Quando nos inserimos em um mandala de sabedoria, adquirimos condições de
realmente fazer o que é melhor para nós, para os outros, para a humanidade e o
ambiente. Somos capazes de viver o amor e a compaixão com alegria e
equanimidade, sem nos deixarmos abater pelas dificuldades que apareçam. O mundo
ao nosso redor continua o mesmo, mas nós mudamos nosso olhar, e isso muda tudo.
[...] Somos inseparáveis das mandalas em que vivemos. Podemos até não saber em
que mandala vivemos, mas todos nós vivemos dentro de uma mandala. Apesar de
estarmos todos no mesmo lugar, de certa forma não estamos. Cada um vê a sua
experiência de um certo jeito (SANTEM, 2006, p. 118. Destaques no original).
Cada um vê a sua experiência de um certo jeito. Em conformidade com as reflexões
travadas no campo acadêmico da Filosofia da educação contemporânea, a percepção do que
significa fazer uma experiência é uma condição vital para repensarmos os rumos da educação
e, mais diretamente, nossa relação com a infância pensada, ela mesma, como uma experiência
de pensamento. A noção de mandala emerge, portanto, como um caminho de ressignificação
de nossas relações com a educação e com a infância. Seu papel não é gerar uma nova teoria
ou mesmo defender determinados métodos ou práticas específicas, mas ampliar a visão.
Parafraseando os ensinamentos budistas é possível afirmar, com os educadores que
compartilharam comigo suas próprias visões de mundo, que quando nossa visão pedagógica e
espiritual é parcial acreditamos que apenas as crianças têm a natureza infante, que apenas por
um curto período de tempo cronológico experimentamos a nossa própria infância38
.
Consideramos, desde a perspectiva do mandala das cinco sabedorias, que isso é uma
falha de nossa visão, uma limitação. Se a visão se ampliar mais um pouco, veremos que
muitos outros seres partilham da experiência da infância. A inclusão da espiritualidade nas
duas experiências analisadas parece confimar, portanto, algumas das apostas presentes na
reflexão filosófico-educacional contemporânea (PAGNI, 2010; KOHAN, 2003), introduzindo
uma alteração radical no nosso modo de ver o lugar da infância na educação.
No momento em que ampliamos nossa visão da infância estamos dentro do mandala.
No momento em que reduzimos a infância a uma condição contingente das crianças, a um
período específico de desenvolvimento, a uma etapa a ser superada, saímos do mandala. Mas
se algo estiver fora, é porque nós também não entramos ainda. Assim, vemos que a
impossibilidade de perceber a infância como uma condição imanente do humano é, na prática,
uma prova cabal de que não compreendemos ainda o que significa educar a infância desde a
espiritualidade. Educação e infância são fenômenos inseparáveis na ótica do mandala.
38
Nos ensinamentos budistas, a impossibilidade de ver a natureza de buda no outro é também a
impossibilidade de manifestar as qualidades de um buda (SANTEM, 2006).
123
Ao contemplarmos essa ideia conseguimos ultrapassar os modelos restritivos
comumente mobilizados nos sistemas de ensino, passando a habitar de outros modos o campo
da educação, em sentido amplo, e da educação infantil mais particularmente. A inclusão da
espiritualidade não nos ensina outros saberes outras técnicas de ensino, mas nos faz olhar a
educação da infância de uma posição mais ampla. Esse é o ponto.
Na perspectiva do mandala, o foco não é mudança de comportamento ou de conceitos.
O desafio é mudar de mandala, porque, quando mudamos o mandala, como decorrência
mudamos o comportamento, mas sem esforço, com alegria e confiança.
Se fizermos o caminho oposto, mudando os conceitos e os comportamentos sem
mudar o mandala, o resultado parecerá desajeitado, artificial. Mas,
Ao avançarmos para mandalas mais amplas, morremos a cada avanço. Morremos
nas limitações e renascemos de forma mais ampla. [...] Contemplamos então o
mandala comum, ou seja, a visão convencional do mundo, na qual a compaixão, o
amor, a alegria e a equanimidade não parecem possíveis. Trocamos de mandala e
passamos a olhar as mesmas coisas sem mudar nada, sem tirar nada do lugar.
Mudamos os olhos e o mandala, é assim [...] E vemos que é possível – tornou-se
possível (SANTEM, 2006, p. 119).
No mundo acadêmico e científico, temos tendência a acreditar que é a mudança de
nossas teorias que possibilitam as transformações no mundo, mas na abordagem da
espiritualidade (FOUCAULT, 2006) isso pode ser um equívoco, uma limitação. Assim, olhar
a educação da infância na perspectiva da espiritualidade e do mandala significa cultivar um
nascimento dentro de visões mais elevadas, a fim de superar a ideia de que a educação das
crianças está sempre ao serviço de uma forma de treinamento em aptidões utilitárias.
William James, assim como Ludwig Wittgenstein, desde o final do século XIX já
apontava de modo minucioso a importância da compreensão do papel do observador
no tratamento da realidade. Essencialmente, nossa visão fica limitada ao espaço
abstrato das possibilidades que sonhamos. A realidade como a sonhamos delimita as
possibilidades do que pode ser visto e do que não será visto. Estamos presos aos
mundos, referenciais, opções e sonhos que construímos. Compreendendo o poder
decisivo desse elemento, entendemos que temos o recurso de sonhar mundos mais
positivos. Quando entendemos isso, novas palavras ganham sentido: inseparatividade,
coemergência, impermanência, sofrimento, sustentabilidade, complexidade,
complementaridade, mandala (SANTEM, 2006, p. 120).
Com isso, somos desafiados a sonhar em outras direções, em outras paisagens, em
outros mundos. Esse é um exercício sutil de liberdade para a qual talvez nunca tenhamos sido
preparados pelo sistema de ensino, não importa por quantos anos o tenhamos percorrido.
Trata-se de algo bastante simples na forma, mas profundamente desafiador na ação.
124
Nesse ponto, como insistem todos os educadores ouvidos nessa pesquisa, há um
componente mágico presente na realidade. Esse componente confunde-se com o modo como
as crianças abordam e constroem seus mundos. Ou seja, o referencial do mandala não é
construção teórica artificial, pois já está presente na experiência que a criança faz do mundo.
Por isso, a infância é desde sempre o mandala em que nos educamos individual e
coletivamente.
125
7 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este estudo teve como objetivo compreender a inclusão da espiritualidade em
propostas formativas voltadas à formação da infância em espaços educativos formais e não
formais, apreendendo o sentido e o uso dessa noção. Para isso, buscamos conhecer os usos da
noção de espiritualidade nos processos educativos, tendo em vista apreender se e como esses
usos permitem superar as percepções construídas sobre a infância nas teorias pedagógicas.
O nosso campo de investigação foi a Escola Jardim de Lótus (NEIMFA/PE) e da
Escola Caminho do Meio (CEBB/RS), identificando como os educadores percebem o
processo formativo da infância. A partir dos estudos de Walter Kohan (2010; 2007), Jorge
Larrosa (2004) e Pedro Pagni (2010), os quais têm procurado, por diferentes vias,
redimensionar nossa relação com a infância por meio de experiências filosóficas que visam
outras formas de pensar a educação da infância. A partir desse estudo foi possível
compreender que a educação da infância precisa ser repensada, e que tem a preocupação com
a experiência de ser criança, ou seja, com a experiência da infância como construtoras de
mundos.
Assim a infância é apreendida como condição imanente de uma liberdade manifesta na
possibilidade da surpresa, um tempo em que o mundo pode ser construído novamente. Isso foi
importante, para nosso estudo, pois a infância, não é separável do nosso esforço de conhecê-
la, de aprendemos com elas e de materializar outra forma de educar. Então seria preciso
formar, as crianças para uma competência própria da sensibilidade que diz respeito às
habilidades de sentir, por meio daquilo que é impactante para o ser humano em termos de
emoção.
A visão de mundo da criança se constrói com base na sensibilidade e na imaginação,
por isso o mundo ainda não está fechado, o que abre a possibilidade do exercício/cultivo de
um modo lúdico de agir. Concluímos também que o diálogo com a filosofia oriental tem nos
fornecidos pista para pensar uma educação da infância apreendida como um exercício
espiritual e transformação de si. Apontando mediações necessárias para que esses modelos
possam contribuir para construção de pedagogias outras.
Com base nas propostas pedagógicas, pudemos compreender que tanto a noção e
espiritualidade como mandala tem centralidade na educação das crianças por permitir
apreender a capacidade de estabelecer boas relações consigo, o outro o mundo. E como
126
elemento estruturador no fazer pedagógico dos professores/educadores. Consideramos que a
noção de mandala podem nos conduzir a mundos outros, construindo e vivenciados pela
própria infância de forma integrada, sem precisarmos nos isolar do mundo.
Com base nas entrevistas foi possível constatar que a dimensão espiritual parece ser
imprescindível enquanto categoria central nos processos educativos para infância.
Potencializando dinâmica que permitem lidar com as experiências formativas na medida em
que está em jogo é a relação com o outro, com nós mesmo e no nosso próprio modo de ser
educador. Ou seja, percebemos as imensas possibilidades de transformação interior e
educativas que são perpassadas pela dimensão da espiritualidade. Ou seja, a educação ativada
pela noção de espiritualidade permite fornecer um olhar mais sensível e atento a infância.
Chegamos assim a um ponto, em uma trajetória, que já não nos encontramos os
mesmos, quando começamos o presente trabalho este é um dos riscos e possíveis ganhos que
enfrentamos quando nos deixamos emergir em uma dada experiência. Obviamente lacunas
existem e incoerências possivelmente foram cometidas. Mas os mais significativos deste
estudo foram ao nos debruçarmos com a temática da infância, espiritualidade e mandala,
tivemos à oportunidade de compreendê-las como forma de vida e experienciar no fazer
pedagógico.
Assim, nos repensamos e tornamos possível mover outros sentidos para nossos
processos formativos. A experiência da educação no horizonte da espiritualidade aponta que a
formação do sujeito não está vinculada a um processo só cognitivo: “de que valeria a
obstinação do saber se ele assegurasse apenas a aquisição dos conhecimentos e não, de certa
maneira, e tanto quanto possível, o descaminho daquele que conhece?” (FOUCAULT, 2009.
p. 15).
Nossa intencionalidade mais ampla, com essa investigação, era apontar a importância
de se retomar a tarefa de refletir sobre os processos de educação da infância, apresentando
outras formas de pensar o sujeito e abrindo a possibilidade de repensarmos as formas de nos
educar, de constituirmos a nós mesmos nas relações com os outros.
127
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ANEXOS
UFPE – PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
Orientador: Alexandre Simão de Freitas
Mestranda: Andréa Santana da Silva Oliveira
Titulo da Pesquisa: A INCLUSÃO DA ESPIRITUALIDADE NOS PROCESSOS DE
EDUCAÇÃO DA INFÂNCIA: uma analise do projeto pedagógico do jardim de lótus e da
escola caminho do meio.
ROTEIRO DE ENTREVISTA COM O FORMADOR
DADOS DO PARTICIPANTE
NOME:_________________________________________________________
IDADE:____________________
FORMAÇÃO_______________________________________________
TEMPO DE ATUAÇÃO COM FORMADOR DA INSTITUIÇÃO
RELAÇÃO DO FORMADOR COM A INSTITUIÇÃO
1- Você poderia contar como foram seus primeiros contatos com a Instituição, o
que te trouxe até aqui e o que te faz permanecer?
2- Quais as memórias mais significativas que você guarda, desde que chegou,
sobre as experiências vividas e como elas influenciaram na sua vida e no seu processo
de formação?
3- Em que momento você se decidiu se tornar um “professor/formador” da
Instituição?
4- Você poderia descrever um dia “típico”, um dia comum de atividades aqui,
como é sua “rotina” de trabalho na organização?
5- Hoje, quais são as principais atividades a que você se dedica?
6- Você participa de encontros de formação? Comumente quais são os temas
abordados? Como são os encontros? Há alguma “metodologia” específica?
136
A RELAÇÃO DO FORMADOR COM A PROPOSTA PEDAGOGICA
1- Você lembra como foi o primeiro dia, o primeiro contato com as crianças (como você
estava se sentindo, como foi a dinâmica)?
2- O que mudou desde aquele momento? Quais mudanças você enxerga em você mesmo/a e
no seu modo de se relacionar com as crianças?
3- Quais os principais fatores vêm influenciando positivamente no seu trabalho com as
crianças?
4- Essa experiência mudou de algum modo, sua percepção da infância? Poderia dar um
exemplo.
5- Comumente, em nossa cultura, a espiritualidade é vista como sinônimo de religiosidade,
como é viver essa dimensão nas atividades diárias de uma sala de aula?
6- Como você percebe as manifestações de espiritualidade entre as próprias crianças?
7- Hoje em dia, qual é a sua compreensão da relação entre educação e espiritualidade? E
você acredita, a partir da experiência vivenciada aqui, que essa relação poderia ser
cultivada nas escolas de forma ampla ou você enxerga alguns limites para essa vivência
nos sistemas formais de ensino?
8- Quais aspectos ou dimensões da proposta pedagógica foram mais rapidamente
incorporados pelos educadores e quais aspectos têm exigido um maior
aprofundamento/formação/estudos/debates?
9- Um dos aspectos mais interessantes da proposta é a noção de mandala, como você
compreende e opera com essa noção nas atividades com as crianças?
10- Enfim, se você pode compartilhar para outros educadores, com base em sua experiência
com a organização e principalmente com as crianças, qual o sentido de pensar e praticar a
educação a partir de uma visão espiritual?
137
ANEXO B – TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E
ESCLARECIDO
UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO
CENTRO DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
MESTRADO EM EDUCAÇÃO
LINHA DE PESQUISA: Educação e Espiritualidade
PREZADO (A) PARTICIPANTE:
1. Você está sendo convidado (a) para participar da pesquisa intitulada A Inclusão da
Espiritualidade nos processos de Educação da Infância: Uma Analise do projeto Pedagógico
do Centro Infantil Jardim de Lótus (Recife/PE) e da Escola caminho do Meio (Viamão/RS). O
projeto se submeteu à qualificação, sob a orientação do Professor Dr. Alexandre Simão de
Freitas no dia 04 de abril de 2016, tendo sido aprovada pela comissão examinadora.
2. A escolha dos entrevistados ocorreu através do método intencional e a sua participação não
é obrigatória.
3. Você poderá, a qualquer momento, desistir de participar e retirar seu consentimento.
4. Sua recusa não trará nenhum prejuízo em sua relação com o pesquisador ou com a
Universidade Federal de Pernambuco.
5. O objetivo Geral e Especifico deste estudo são: analisar a inclusão da espiritualidade em
propostas formativas voltadas à formação da infância em espaços educativos formais e não
formais, apreendendo o sentido e o uso dessa noção. Específico: buscamos, por um lado,
discutir os usos da noção de espiritualidade nos processos educativos, tendo em vista
apreender se e como esses usos permitem superar as percepções construídas sobre a infância
nas teorias pedagógicas. Por outro lado, apreender a compreensão das noções de
espiritualidade e mandala presentes na proposta pedagógica da Escola Jardim de Lótus
(NEIMFA/PE) e da Escola Caminho do Meio (CEBB/RS), identificando como os educadores
percebem o processo formativo da infância.
6. Sua participação consistirá em responder a uma entrevista semi-estruturada.
7. As informações obtidas através dessa pesquisa serão confidenciais e asseguramos o sigilo
sobre sua participação.
8. Salientamos ainda que não pretendemos, através de sua participação, causar nenhuma
espécie de dano ou perda, seja ela pessoal ou profissional, podendo interromper sua
participação na pesquisa a qualquer momento sem nenhum prejuízo de qualquer ordem. Os
138
dados ficarão guardados, em local seguro, com a pesquisadora, por um período de cinco anos,
após o qual serão apagados. Todos os informes que possam identificá-lo serão alterados, de
forma a não possibilitar sua identificação.
9. Você receberá uma cópia deste termo, no qual constam o telefone e o endereço da
pesquisadora principal, podendo tirar suas dúvidas sobre o projeto e sua participação, agora
ou a qualquer momento.
10. No caso de necessitar apresentar recurso ou reclamações em relação à pesquisa, o (a)
senhor (a) poderá contatar com o endereço eletrônico: [email protected].
DADOS DA PESQUISADORA PRINCIPAL
Nome: ANDRÉA SANTANA DA SILVA OLIVEIRA
___________________________________________
Assinatura
Endereço completo: RUA EUNAPOLIS, 48, JOANA BEZERRA.
Contato: (81) 988259958.Endereço Eletrônico: [email protected]
Declaro que entendi os objetivos, riscos e benefícios da minha participação na pesquisa e
concordo em participar da referida pesquisa.
Recife, _____ de _______________ de 2016.
_________________________________________
Participante da pesquisa
Documento de Identidade número: ______________________