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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS
Programa de Pós-Graduação em Educação
Dissertação de Mestrado
A leitura sob a perspectiva filosófica transcendendo a semiformação do leitor
contemporâneo: de Paulo Freire a Theodor Adorno
Priscila Monteiro Chaves
Pelotas, 2013
PRISCILA MONTEIRO CHAVES
A LEITURA SOB A PERSPECTIVA FILOSÓFICA TRANSCENDENDO A SEMIFORMAÇÃO DO LEITOR CONTEMPORÂNEO: DE PAULO FREIRE A
THEODOR ADORNO
Orientador: Prof. Dr. Gomercindo Ghiggi
Pelotas, 2013
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação, da Faculdade de Educação, Universidade Federal de Pelotas, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Educação.
Catalogação na Publicação:
Maria Fernanda Monte Borges Bibliotecária - CRB-10/1011
C512l Chaves, Priscila Monteiro A leitura sob a perspectiva filosófica transcendendo a semiformação
do leitor contemporâneo : de Paulo Freire a Theodor Adorno / Priscila Monteiro Chaves ; orientador Gomercindo Ghiggi. – Pelotas, 2013.
116 f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Faculdade de Educação.
Programa de Pós-Graduação em Educação. Universidade Federal de Pelotas, Pelotas, 2013.
1. Leitor, Formação do 2. Freire, Paulo 3. Adorno, Theodor I. Ghiggi, Gomercindo (orient.) II.Título.
CDD 372.4
2
Banca examinadora: Prof. Dr. Gomercindo Ghiggi (UFPel) – Orientador Prof. Dr. Felipe Gustsack (UNISC) Prof. Dr. João Luis Pereira Ourique (UFPel) Profª. Drª. Denise Bussoletti (UFPel) Prof. Dr. Avelino da Rosa Oliveira (UFPel)
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Aos formadores de leitores da rede pública de ensino que, sob as precárias
condições de uma educação que não ouve os gritos do mundo, insistem e resistem,
acreditando que uma outra leitura é possível.
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Agradecimentos
À minha mãe, pela condução primeira e por nunca ter medido esforço algum pra que eu pudesse superar alguns muros.
Ao meu pai, que com pouca oportunidade de leitura institucional, mas com uma gigantesca leitura de mundo, me ensinou pelo amor, pelo exemplo e pelo olho no olho.
Ao Gomercindo, pela confiança e respeito à proposta, pela compreensão de uma escrita pouco disciplinada, e, sobretudo, por fomentar em mim a vontade de mudar as coisas mundanas.
Ao João Luis, por apontar a lanterna para as leituras iniciais, provocar as primeiras reflexões filosóficas e acompanhar, de maneira tão honesta e enriquecedora, meu trabalho até aqui.
À Sônia, pela disposição, pelos debates e pelas fundamentais sugestões de
leitura.
À Denise, pelo incentivo a uma escrita marginal e a uma leitura mais apaixonada, pelo convite à entrega, ao desejo sensível de me habitar pelas palavras e brincar com as in-certezas das promessas do tempo presente.
Ao Avelino, por ter acolhido a leitura do texto e contribuído com ela.
Ao Felipe, pela atenção e pela partilha, apesar do delicado momento.
Às boas professoras com quem convivi durante o curso de Letras, algumas
delas indicando leituras, outras descortinando armadilhas da Literatura e outras me fazendo perceber a essencial relevância dos Fundamentos da Educação nos cursos de Licenciatura.
Aos colegas do FEPráxiS, em especial ao Núcleo Freire, que dividiram comigo discussões edificantes, contribuindo para que esse trabalho se qualificasse.
Ao Cristiano e à Rogéria, pelo desafio da escrita a quatro mãos, pela companhia e pelos debates teórico-metodológico-galhofeiros.
Aos meus bons amigos, assim, sem razões.
Aos funcionários do PPGE e da FaE, pela gentileza cotidiana e pelo sorriso no rosto.
Ao Ryan Maldonado, que deixa tudo isso mais leve.
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Sim, a leitura devia ser proibida. Ler pode tornar o homem perigosamente humano.
Guiomar de Grammont
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Resumo A presente dissertação de mestrado consiste em uma pesquisa bibliográfica, que
tem como objetivo primeiro discutir as contribuições advindas das reflexões de Paulo
Freire e de Theodor Adorno ao processo de formação do sujeito-leitor. Sabendo que
a leitura cultural ainda é bastante carente e constatando uma preocupante prontidão
ao aceite tanto de uma técnica da lectoescrita com fim em si mesma, quanto dos
produtos da Indústria Cultural, o legado de ambos autores foram pesquisados a fim
de contrapor tais problemáticas. No primeiro capítulo o leitor encontrará as razões
que justificam esta pesquisa, os objetivos e os caminhos pelos quais o tema foi
abordado. No segundo capítulo é traçado um sintético panorama da leitura no
contexto brasileiro, é explicitado o que se entende por sujeito-leitor e mencionadas
as principais pesquisas que lançaram mão da Filosofia da Educação para falar de
leitura. A partir da explicitação de tais dados e concepções, uma fração do legado de
Freire compõe o terceiro capítulo, que apresenta-se dividido em três categorias: a)
Letramento; b) Educação Popular e c) Cânone Literário. Por fim, no quarto capítulo
são trazidas à discussão as categorias mais necessárias, do legado de Adorno, à
compreensão da temática, também estruturado em três seções que buscavam
dialogar com as primeiras, são elas: a) Fetiche pela técnica; b) Indústria Cultural e c)
Semifomação. Para interpretar e problematizar importantes dados trazidos pela
pesquisa Retratos da Leitura no Brasil (2008) e (2012), bem como para contrapor a
concepção de leitura proposta pela ciência atual. A pesquisa traz como conclusão a
inferência de uma semiformação do leitor contemporâneo, que se constitui nos
moldes de uma educação utilitária, “formando” o leitor não-autônomo, preparado
para adquirir os rudimentares conhecimentos das diferentes profissões que o
sistema precisa, deixando de lado o caráter libertário e transformador da leitura.
Palavras-chave: Formação do leitor. Paulo Freire. Theodor Adorno.
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Résumé
Le présent mémoire de master consiste à une recherche bibliographique dont le
principal objectif est de discuter les contributions apportées par les réflexions de
Paulo Freire et Theodor Adorno dans ce que concerne le processus de formation du
sujet-lecteur. Sachant que la lecture culturelle fait toujours défaut et en constatant
une inquiétante acceptation immédiate tant d’une technique de la lectoescrita, qui
justifie ses finalités en soi même, que des produits de l'industrie culturelle, l'héritage
de ces deux auteurs ont été interrogés afin de confronter telles problématiques. Dans
le premier chapitre, le lecteur trouvera les raisons qui justifient cette recherche ainsi
que ses objectifs, et les moyens par lesquels le sujet a été abordé. Le deuxième
chapitre est un concis panorama de la lecture dans le contexte brésilien. Il sera
précisé ce qu'on comprend par sujet-lecteur, et mentionnés les principales
recherches dans le domaine de la Philosophie de l’Éducation utilisées pour traiter du
sujet lecture. Suite à l'explicitation de tels données et conceptions, une fraction de la
pensée de Paulo Freire constitue le troisième chapitre, divisé en trois catégories: a)
l’alphabétisation, b) l'Éducation Populaire et c) Canon Littéraire. Pour conclure, le
quatrième chapitre apporte à la discussion les catégories les plus importantes à la
compréhension de la thématique sur l'héritage d’Adorno, également structurés en
trois sections: a) le fétiche pour la technique, b) l'Industrie Culturelle et c) Demi-
éducation (Hallbildung), qui cherchent le dialogue avec les sections antérieures et
qui servent à interpréter et discuter des données importantes fournies par la
recherche Retratos da Leitura no Brasil (2008) et (2012), ainsi qu’à combattre la
conception de lecture proposée par la science actuelle. Cette recherche a comme
conclusion l’inférence d’une demi-éducation du lecteur contemporain, qui se
constitue dans un modèle d'éducation utilitaire, qui forme des lecteurs non-
autonomes et prêts à acquérir des connaissances rudimentaires sur les différentes
professions dont le système a besoin, déconsidérant le caractère libertaire et
transformateur de la lecture.
Mots-clés: Formation du lecteur. Paulo Freire. Theodor Adorno.
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Sumário
1. A filosofia a favor da leitura: à guisa de introdução ............................................... 11 2. A leitura no contexto brasileiro: uma breve discussão acerca da condição leitora contemporânea ......................................................................................................... 22
2.1. O leitor enquanto sujeito histórico ................................................................... 32
2.2. Leitura e Filosofia: tem jogo nesse campo? .................................................... 36 3. Paulo Freire e o ato de ler ..................................................................................... 37
3.1. O precursor do letramento .............................................................................. 43
3.2. A temática da leitura com foco na Educação Popular..................................... 46 3.3. A dialética acerca do Cânone Literário ........................................................... 53
4. Theodor Adorno e o ato de ler ............................................................................... 62 4.1. A alfabetização proposta por Freire compreendida como resistência ao fetiche pela técnica denunciado por Adorno...................................................................... 67 4.2. Indústria Cultural, Emancipação e Ensino de Literatura ................................. 81
4.3. Semicultura e formação do leitor: a inferência de um leitor semiformado ..... 100 Referências: ......................................................................................................... 111
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1. A filosofia a favor da leitura: à guisa de introdução A pensar a fundo na questão, eu diria que ler devia ser proibido. Afinal de contas, ler faz muito mal às pessoas: acorda os homens para realidades impossíveis, tornando-os incapazes de suportar o mundo insosso e ordinário em que vivem. A leitura induz à loucura, desloca o homem do humilde lugar que lhe fora destinado no corpo social.
Guiomar de Grammont
“Vamos fazer do Brasil um país de leitores.” Eis um dos imperativos
midiáticos muito divulgados nos últimos tempos a respeito de uma das principais
carências sofridas pelo contexto geral brasileiro. Por um longo período, este
constituía o tema da campanha de incentivo à leitura do Ministério da Educação do
Brasil Tempo de Leitura, tendo como objetivo maior estímulo a esta atividade dentro
e fora da sala de aula1.
Além dessas campanhas, muito tem se afirmado sobre os processos de
alfabetização, cultura letrada, desenvolvimento das habilidades da lectoescrita
(FERREIRO, 1999), dos altos índices de analfabetismo entre outras problemáticas
que permeiam a atividade de leitura. A partir de tais discussões, o Brasil vem
reduzindo sua taxa de analfabetismo com velocidade constante nas últimas
décadas, todavia, essa velocidade ainda é insuficiente, e o livro e a leitura não têm
sido considerados como prioridades das pessoas. Essa situação leva à tematização
sobre os motivos de tal insuficiência e às tentativas de soluções possíveis. As
questões relacionadas a tal atividade permanecem sendo uma problemática a ser
resolvida no e pelo contexto escolar, desde o período da educação infantil até a
academia.
Ainda que haja constantes discussões a respeito, o Brasil é caracterizado
como um país de não-leitores, mesmo em uma sociedade letrada e grafocêntrica
como a atual, podendo-se lembrar a incoerência que há: o fato de esses brasileiros
serem constantemente submetidos à cultura escrita, pois produzem muito para ela,
porém bem pouco se beneficiam da mesma.
Mesmo que, nesta sociedade, a leitura seja um fator essencial para o
ingresso no mercado de trabalho, bem como para o exercício da cidadania, no
Brasil, as pesquisas e as avaliações educacionais apontam para a precária
1 Informações disponíveis em http://agenciabrasil.ebc.com.br/node/628879, acessado em 20 de outubro de 2011.
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formação de um público leitor, revelando as imensas dificuldades para o sucesso
das ações envolvidas na solução do problema. Essa realidade aprofunda ainda mais
a desigualdade social e a falta de uma cidadania autêntica, visto que, embora o
sistema educacional brasileiro inclua os estudantes que estavam fora da sala de
aula, essa inclusão não é plena do ponto de vista qualitativo. Observa-se, pois, que
o desempenho desses estudantes tem sido baixo, apontando para os sérios
problemas no domínio das capacidades de ler e escrever, resultando em uma menor
compreensão da realidade e, consequentemente, uma menor capacidade de
resolução de problemas e de perspectiva de vida.
Outra incoerência a ser considerada na emersão dessas inquietações é a
atual informação de que atualmente o país figura entre as seis maiores economias
do mundo, constituindo a segunda maior das Américas, à frente do Canadá e do
México. Mesmo assim, a formação do leitor, problemática já corrente e de ciência de
professores e instituições estatais, entre outras, continua em aberto na sociedade.
Juntamente com a desigualdade, a consequente necessidade de distribuição de
renda, aliada à qualidade da educação, o baixo índice de leitura torna-se importante
preocupação e um dos itens mais demandantes do povo aos governantes
brasileiros, mesmo que isso não apareça claramente.
Esta exposição de informações de extrema relevância, apresentadas até
aqui de maneira um tanto quanto ensaística, não teria valor algum se não
confrontada a uma realidade revelada em documentos que tenham a pretensão de
compreender a condição leitora no momento atual brasileiro, o que seria uma tarefa
incabível a uma pesquisa de base empírica de um só pesquisador.
Dessa forma, para fundamentar algumas hipóteses preliminares, adotar um
recorte da realidade brasileira e delimitar o problema de pesquisa, a presente
investigação baseia-se em dois documentos, que corroboram o que foi comentado e
pretenderam mostrar o perfil (tão fiel quanto possível) dos leitores e não-leitores
brasileiros, contando com a colaboração de especialistas prestigiados. As citadas
investigações possuem abrangência nacional e são realizadas pelo Instituto Pró-
Livro2. São elas: a pesquisa Retratos da Leitura no Brasil – segunda (2008)3 e
2O Instituto Pró-Livro é uma Oscip (organização social civil de interesse público) criada por três das principais entidades do livro no Brasil: Câmara Brasileira do Livro (CBL), Sindicato Nacional de Editores de Livros (Snel) e Associação Brasileira de Editores de Livros (Abrelivros). O IPL é sustentado a partir de recursos provenientes das contribuições mensais de empresas do mercado editorial brasileiro. Objetiva viabilizar ações para ajudar a fomentar a leitura e o livro no Brasil. Para
11
terceira (2012)4 edições -, e a publicação do Caderno do Programa Nacional do Livro
e Leitura (edição atualizada em 2010)5.
Entre números preocupantes e outros recortes geográficos, econômicos e
sociais da leitura, ambas trazem a desfavorável notícia de que no Brasil, apesar dos
recentes esforços e avanços, e das pesquisas fomentadas acerca da temática da
leitura, os indivíduos ainda não leem o suficiente. Percebe-se, então, que os
brasileiros ainda não reconhecem a questão do livro e da leitura como requisito de
extrema importância e de necessidade imediata, pois estratégico para o seu
presente e, sobretudo, para a construção de outra perspectiva de futuro.
Essa displicência é evidente ao se constatar nas pesquisas o quanto os
sujeitos ainda hesitam na hora em que deveriam conferir a ela a dimensão de uma
atividade imprescindível a suas vidas. Ao Estado, caberia torná-la uma política
efetiva, tanto na educação quanto no cotidiano. O que, segundo Galeano Amorim
(2008, p.16), a quem foi confiada a coordenação da publicação da segunda edição
de Retratos, “inclui orçamentos públicos mínimos, estrutura para bem aplicá-los e
uma clara definição de papéis para os diferentes entes da federação”. Para ele, a
questão se esclarece ainda mais, uma vez que bastaria “observar a baixa frequência
da população nas bibliotecas brasileiras, um serviço público que, embora essencial,
continua a merecer só um tratamento de segunda classe” (AMORIM, 2008, p.16),
dados também disponíveis na pesquisa de âmbito nacional publicada em Retratos.
A partir de tal realidade e com o intuito de contribuir para sua compreensão,
a presente pesquisa bibliográfica pretende discutir de maneira sintética6 as
contribuições advindas das reflexões de Paulo Freire e de Theodor Adorno no
processo de formação do sujeito-leitor, visto que ambos, seja direta ou
indiretamente, mostraram, ao longo de seus estudos, diversas inquietações a
tanto, desenvolve projetos próprios e apoia iniciativas de organizações filantrópicas ou órgãos públicos com quem estabelece parcerias, mediante prestação de assessoria, participação direta em ações ou doações. Pode ser considerado uma resposta institucional das entidades do livro no Brasil diante da necessidade de fortalecimento de ações estruturais e de participar ativamente das políticas públicas do livro e leitura (2008). 3Disponível em http://www.prolivro.org.br/ipl/publier4.0/dados/anexos/1815.pdf, acesso em 13 de agosto de 2012. 4Disponível em http://www.prolivro.org.br/ipl/publier4.0/dados/anexos/2834_10.pdf, acesso em 02 de janeiro de 2013. 5 Disponível em http://189.14.105.211/conteudo/pnll_download.pdf, acesso em 13 de novembro de 2012. 6 Refere-se aqui ao conceito de síntese proposto pela dialética marxiana, enquanto totalidade concreta de um processo de estudo de determinado objeto.
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respeito de tal prática. É válido lembrar que, diante do quadro acima exposto, não se
recorrerá à esfera da Filosofia da Educação a fim de fornecer um status de
“verdade” à importância e ao papel social da atividade leitora, se trata, pois, de uma
tentativa de responder às necessidades ainda existentes, apesar dos avanços de
outras áreas e pesquisas que mais se destinam a abordar a questão da leitura,
como a literatura, a aquisição da lectoescrita e o ensino de Língua Portuguesa, por
exemplo.
Dessa forma, buscar-se-á contemplar tais teorias tanto no momento de
iniciação escolar, quanto nos níveis mais avançados de leitura. Para isso, em um
primeiro momento, serão apontadas algumas acepções a respeito do ato de ler do
ponto de vista de autores, como Emilia Ferreiro; Vincent Jouve; Jean Foucambert;
Magda Soares; Leda Tfounie Delia Lerner, apoiados também nos dados fornecidos
pelos dois documentos recentemente evocados. Este conjunto de acepções constitui
um panorama dessa atividade nos últimos tempos, e nele será exposta uma súmula
de reflexões que abordam a Filosofia da Educação nesta temática, a fim de localizar
e situar, mesmo que de forma breve, o leitor dentre os demais documentos que
possam interessar ao tema discutido.
Em seguida, a temática da leitura será mapeada a partir do legado freiriano,
subdividido em três focos transigentes dos escritos do autor. São eles: a) leitura de
mundo/leitura da palavra; b) cânone literário; c) leitura no protagonismo social. De tal
maneira que esta seção auxilie a compreensão da condição de leitor, na qual são
colocados os sujeitos da contemporaneidade e forneça suporte para um maior
avanço nas reflexões filosóficas em torno da temática. Tais reflexões permitirão uma
melhor e mais qualificada compreensão daquilo que delata Theodor Adorno em seu
aparato teórico.
Na sequência, far-se-á também um mapeamento das contribuições de
Theodor W. Adorno à temática da leitura, considerando o que terá sido proposto
pelas leituras e relações impulsionadas por Freire, no item anterior. Os conceitos até
então abordados embasarão a maneira de compreender a leitura como movimento
crítico emancipatório, o que tornará essa seção – também fracionada em três focos:
a) fetiche pela técnica; b) Indústria Cultural e c) Semiformação – mais fecunda e
propositiva.
Compreendendo que a pesquisa acadêmica, quando bibliográfica e com a
utilização de mais de um aparato teórico, encontra-se ainda bastante calcada no
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dualismo convergência/divergência entre autores ou pensamentos. Refuta-se neste
momento que, trazer à discussão dois respeitáveis legados teóricos com mero
objetivo empobrece o papel do leitor destas reflexões, que se encontra na situação
de autor do seu próprio texto. Além disso, este é um fator que reduz, inclusive,
aquilo que compete à experiência sensível por parte do pesquisador. Preocupação
semelhante encontra-se chez Adorno, em um de seus ensaios, no qual problematiza
este formato como uma maneira comprometida e autêntica de conhecer. Segundo
ele,
[...] a relação com a experiência [...] é uma relação com toda a história; a experiência meramente individual, que a consciência toma como ponto de partida por sua proximidade, é ela mesma mediada pela experiência mais abrangente da humanidade histórica (ADORNO, 2003, p.26).
Percebe-se que ainda há uma carência de compreensão da função crítica do
pesquisador, no papel de hermeneuta de sua tessitura, que procura ultrapassar
desde o início a suposição de que os processos interpretativos são abalizados pelo
intuito primordial de atingir uma verdade previamente dada e constituída
(GADAMER, 2010). O que Adorno já justificara, ao lembrar que “quem interpreta, em
vez de simplesmente registrar e classificar é estigmatizado como alguém que
desorienta a inteligência para um devaneio impotente” (2003, p.17). Assim, espera-
se que o leitor compreenda que o texto que se inicia também tenta resistir a toda
maneira prescritiva e calculada de utilizar uma determinada metodologia, de analisar
dados ou de ser cuidadoso no momento da escolha de autores que, segundo
algumas apreciações, não possuem um casamento feliz. Resistir ao fetiche pelos
resultados e pelas conclusões extremamente claras e de fácil aplicação “aqui e ali”.
Ou então àqueles preceitos de fazer ciência tendo como resultado uma resposta
que, incorporada ao campo educacional em contexto de sala de aula, agirá como
facilitadora direta das práticas pedagógicas, de maneira reducionista e distante do
seu objeto. Uma vez que, “o pensamento é profundo por se aprofundar em seu
objeto, e não pela profundidade com que é capaz de reduzi-lo a uma outra coisa”
(ADORNO, 2003, p.27).
Prosseguindo, torna-se cogente argumentar os motivos que levam a
investigar tal temática à luz das reflexões de mais de um teórico. Para tal, valer-se-á
aqui da ideia de que o discurso jamais se constrói sobre o mesmo, mas é elaborado
em vista do outro (alter) que, de acordo com a teoria bakhtiniana, perpassa,
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atravessa, condiciona o discurso do eu (BAKHTIN, 2006). Há, também, o
pressuposto de que todo texto traz consigo seu caráter inacabado, que demanda a
necessidade
[...] de uma invenção, e, assim sendo, percebe-se bem que o crítico mais exato, o mais respeitoso, é aquele cuja invenção consegue prolongar a do autor, e fazer com que este entre de tal forma em si mesmo que ele conseguirá transformar sua imaginação numa parte da sua própria (PERRONE-MOISÉS, 1978, p.72).
Utilizam-se, então, dois teóricos de raízes Iluministas, entretanto,
pertencentes a tempos e espaços diferentes, legitimando a possibilidade de
influenciar as opiniões que a crítica que emerge da obras suscita e que, por vezes,
condiciona as leituras subsequentes. A intertextualidade que há entre ambos não se
relaciona unicamente com um enunciado mais ou menos explícito ou implícito de um
texto dentro de outro, ou de um discurso contido em outro, uma vez que a relação
intertextual informa o texto no seu conjunto e a relação de alteridade não se
estabelece a partir de um singular aspecto.
Assim sendo, a principal riqueza da relação intertextual destes escritos
reside na potência à compreensão de um legado apoiado em outro, com o objetivo
de alcançar uma leitura mais qualificada de ambos os aparatos teóricos quanto à
temática indicada. Não se entende somente essa “aproximação” como obstáculo,
uma vez que a compreensão de uma temática demanda o estabelecimento de um
diálogo entre emissores e receptores acerca de inquietações semelhantes.
Também pela existência de diversas chaves para o entendimento dessas
implicações no processamento cognitivo de um texto, é demandada a recorrência ao
conhecimento prévio de outros, e neste aspecto alguns conceitos impulsionados por
consideráveis nomes que deixaram suas contribuições na história da problemática
questão Como as coisas são conhecidas, serão também abordados em
determinados momentos, visto que, como clássicos, ainda provocam
incessantemente uma nuvem de discursos críticos sobre si, mas continuamente a
repelem para longe (CALVINO, 2007, p.12, grifos nossos).
Não somente com o auxílio das raízes contidas nas reflexões Iluministas,
como também pelo que foi ponderado nas opiniões expressas e publicadas por
comentadores até então, a pesquisa apresentará, ao longo de suas abordagens, as
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mais relevantes categorias de ambas as teorias para esta temática, visto que não há
a intenção de fazer um estudo exaustivo a respeito do legado destes autores.
Além dos já citados, é indispensável evocar as reflexões do crítico literário
francês Gérard Genette (1982), o qual advoga que a humanidade, em virtude do seu
constante movimento de descoberta de significados, não é capaz de inventar
novidades a todo momento e, por isso, sente necessidade de atribuição de um
sentido novo às formas já existentes. Sendo este “novo sentido” o que possibilita
que o pesquisador seja capaz de se desprender da simplicidade contida no
pensamento “liberal”, que expõe, de forma ingênua, a alternativa de avançar ou de
recuar, a qual parece tão desprovida de sentido em virtude dos falsos pressupostos
de existência de uma linha de continuidade, sem interrupções, em qualquer que seja
o problema prático ou teórico a ser respondido.
Para melhor manifestar esta preocupação, elucidativa se torna a afirmação
de Hannah Arendt (2008) que pode ser utilizada no processo de formação de leitor,
quando é possível perceber a existência de uma lacuna “entre um não mais e um
ainda não”. Em outros termos, com o avanço das pesquisas na área da literatura,
bem como na da linguística, esta competência já deixa de ser considerada somente
como tal, tem seus avanços e o leitor que as propostas da contemporaneidade vêm
formando já não é mais um mero decodificador. Porém, ele ainda não se mostra
emancipado. Segundo a pensadora política, o declínio do velho e o nascimento do
novo não são movimentos ininterruptos e, portanto, surge um espaço vazio entre
ambos. E é neste viés que o presente texto busca compreender7 também o elo
perdido entre “um e outro leitor”, entre um passado que tenta mostrar ter sido
superado e um futuro que ainda não emergiu.
Como também aponta a autora (2000, p. 222), “certamente, há aqui mais
que a enigmática questão de saber por que Joãozinho não sabe ler”. E disto pode
passar-se a questionar: por que de fato ele não lê? De que maneira ocorre a sua
formação que não lhe favorece a leitura? Quais são as maiores fronteiras entre a
leitura de Joãozinho e a do seu colega de outra classe social? Por que Joãozinho
7Título da obra de Hannah Arendt na qual ela aborda a importância de conferir significado ao conhecimento que este verbo carrega consigo, advogando, em seu contexto pós-genocídio, que a compreensão “será mais eficiente para impedir a adesão das pessoas a um movimento totalitário do que a mais sólida informação, a mais perspicaz análise política ou a mais profunda erudição” (2008, p. 334).
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não se utiliza de sua leitura para sair da menoridade? Por que a leitura não tem sido
efetivada em sua maior potencialidade que é a da humanização?
Visando a tal compreensão, “passos vão sendo dados e novos horizontes
vão sendo descortinados”, possibilitados principalmente pelo ato de escrever, este
que vai conduzindo, desenvolvendo e disciplinando-se. Contudo, com o constante
cuidado de não perder “o fio de Ariadne do senso comum, único capaz de guiá-lo
com segurança por entre o labirinto de seus próprios resultados” (ARENDT, 2008,
p.334), ou seja, sem desprezar a compreensão popular da qual o investigador partiu.
O fio de Ariadne aqui parte de observações e de questionamentos
propiciados pela prática de uma acadêmica-professora-pesquisadora, que
concomitantemente à conclusão dos dois últimos anos do curso de Licenciatura em
Letras – em que eram abordados o ensino de literatura bem como a função do
ensino da língua materna para falantes do Português Brasileiro – trabalhava com
crianças de séries inicias de uma conhecida escola pública municipal de Pelotas.8
Neste tempo e espaço, foi possível perceber que questionamentos bastante
semelhantes são expostos pelos educadores a respeito da formação de leitores, o
que é inquietante, pois percebe-se que estes profissionais passam pelo
enfrentamento das mesmas demandas, e ao mesmo tempo. Demandas essas que
abrandam o temor do sujeito pesquisador à “inutilidade de coçar, coçar bastante e
até muito bem, mas onde não coça” (GALEANO).9
Sabe-se que no contexto acadêmico a atividade do pesquisador se faz de
forma coextensiva, demandando um trabalho coletivo a fim de um melhor
8 Optou-se por não estender a ênfase no vivido do pesquisador e somente situar o leitor rapidamente no local onde os pés pisam (BETTO, 1997). Porém, tentando ultrapassar alguns impasses simétricos. Tal escolha não deve ser interpretada nem como “fuga” de uma prática introdutiva de pesquisa corrente no contexto acadêmico educacional; nem como uma espécie de supressão da alteridade, inclusive porque ambas podem ser compreendidas como sendo de cunho positivista (AMORIM, 2001). O que pode ser sim entendida é a tentativa de isenção das buscas incessantes por transparência tanto do objeto quanto do sujeito, visto que, como advoga a autora citada acima, o objeto a ser pesquisado é simultaneamente objeto já falado; objeto a ser falado e objeto falante. 9 Metáfora utilizada por Eduardo Galeano em sua obra O livro dos abraços, no extrato que segue: “A função da arte/2 O pastor Miguel Brun me contou que há alguns anos esteve com os índios do Chaco paraguaio. Ele formava parte de uma missão evangelizadora. Os missionários visitaram um cacique que tinha fama de ser muito sábio. O cacique, um gordo quieto e calado, escutou sem pestanejar a propaganda religiosa que leram para ele na língua dos índios. Quando a leitura terminou, os missionários ficaram esperando. O cacique levou um tempo. Depois, opinou: — Você coça. E coça bastante, e coça muito bem. E sentenciou: — Mas onde você coça, não coça” (2002, p.18).
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aprofundamento nos temas que fazem parte da perspectiva social. Partindo deste
pressuposto e recordando que grande parte daqueles que trabalham com a
educação de uma maneira geral têm consciência do quão exigente é a tarefa
docente, o que faz com que os educadores acabem interessando-se mais pelas
questões que abordam a prática do que por aquelas teóricas – ainda que toda
prática seja, de alguma forma, fundada nas questões teóricas –, o trabalho com a
pesquisa bibliográfica, por vezes, sofre com o perigo da contradição entre o vazio e
o erudito na academia. Neste texto, a preocupação não é diferente. Dessa forma, o
que auxilia a presente pesquisa a estabelecer um contato com a realidade são esses
mais correntes anseios já propostos pelos educadores em diferentes contextos. As
diversas experiências docentes estão contidas também, de maneira indireta, nas
inquietações desta pesquisa, legitimando que ela não se constitui em uma temática
arquivística (FREIRE, 2006) do contexto educacional e sim uma interlocução, com
questões recorrentes da precariedade que vem sendo comprovada por pesquisas
acerca do ato de ler.
Por isso, optou-se por esta maneira de operar com a temática em questão –
ainda que se desenvolva de modo arriscado, intimidada pelo fetiche à quantificação,
por determinadas tendências científicas que trabalham mecanicamente em meio a
tabelas e números, mas que por vezes nada, ou muito pouco, explicam a respeito
dos fenômenos atuais – em virtude da busca por diferentes perspectivas em
contraponto, utilizando os pressupostos filosóficos para problematizar uma formação
precária, intencional ou não, tendo em vista que
[…] la tâche de la science [10] n’est pas de sonder les intentions occultes et présentes de la réalité non intentionnelle, en soulevant, par la construction de figures ou d’images partant des éléments isolés de la réalité, les questions dont la saisie prégnante est la tâche de la science (BENJAMIN ;ADORNO 1994, p.14).1112
Propiciando a descoberta de uma nova maneira de ler o que já fora lido, ou de
revisitar o já visitado, como metaforicamente falando de seu quintal e sublinhando
10Expressão que pode ser oportunamente substituída, sem perda semântica por “La tâche de La philosophie“, como utiliza Adorno em seu discurso inaugural. 11Tradução livre: “a tarefa da ciência não é a de apreender as intenções ocultas e presentes na realidade não-intencional [espontânea], descortinando, pela elaboração de figuras ou imagens [modelos] partindo de elementos isolados da realidade, pois as questões têm as soluções nelas impregnadas, e essa é a [verdadeira] tarefa da ciência”. 12Trecho extraído de uma das cartas de Walter Benjamin cujo interlocutor era Theodor Adorno, contido no texto Correspondance 1928 – 1940 (1994).
18
sua inegável importância, Paulo Freire pensa a necessidade de uma leitura
posterior, trazendo a capacidade de estranhamento13 como necessidade humana:
o quintal de minha infância vem como que se desdobrando em tantos outros espaços, não necessariamente outros quintais. Sítios em que este homem de hoje, vendo em si aquele menino de ontem, aprende por ver melhor o antes visto. Rever o antes visto quase sempre implica ver ângulos não percebidos. A leitura posterior do mundo pode constituir-se de forma mais crítica, menos ingênua, mais rigorosa (FREIRE, 2006, p.24, grifos nossos).
Leitura que se mostra relevante, já que cada autor, bem como cada leitor,
não leva consigo espaços comuns de referências. Dessa forma, quando Coutinho14
sustenta que o que se filma é o encontro e não a realidade, entende-se aqui que
nenhuma escrita de pesquisa traz consigo a necessidade de ser direcionada a um tu
prévia e limitadamente estabelecido, visto que o importante não é a delimitação da
teoria, menos ainda do interlocutor, e sim como essa pode agir no espaço
acadêmico (e fora dele), em prol de um projeto educacional libertário. Assim sendo,
aos advogados do pensamento único, o pensamento múltiplo retribui apoiado em
sua pluralidade.
É fundamentando-se nessa tessitura, na estrutura em que é elaborado este
texto, isto é, no lúdico de suas conexões internas, que se tentará reconstruir o
contexto necessário à compreensão do ato de ler, recorrendo à Filosofia da
Educação a fim de responder a necessidades ainda existentes. Em outras palavras,
lança-se mão de uma temática a fim de (re)inventá-la, tentando alcançar a precisão
do pensamento (ECO, 2010) na verticalização da atividade de leitura, que dialoga
com outra área para se tornar mais reflexiva, segura e discursiva, e se fazer avançar
13 Com a utilização do termo estranhamento, neologismo que tem sua origem na teoria hegeliana (Entfremdung), quer-se a compreensão do leitor de uma habilidade de distanciar-se de um determinado contexto, distanciar-se em relação ao modo comum como para o sujeito foi sempre apresentado o mundo, ou da única maneira que por ele este foi compreendido, desafiando e transformando as ideias pré-concebidas trazidas por ele. Habilidade esta que lhe seria permissiva a uma entrada em outra dimensão de apreender o contexto em que vive, visto que “toda atividade de pesquisa seria uma tradução do que é estranho para o que é familiar. [...] A imersão num determinado cotidiano pode nos cegar justamente por causa de sua familiaridade. Para que alguma coisa possa se tornar objeto de pesquisa, é preciso torná-la estranha de início para poder retraduzi-la no final” (AMORIM, 2001, p.26). Evoca-se tal elucidação já neste primeiro capítulo, pois no decorrer do texto este conceito será abordado novamente sob a mesma perspectiva. 14Referencia-se aqui a seguinte citação do cineasta Eduardo Coutinho a propósito de seus documentários, feita por Amorim: “O que se filma é o encontro e não a realidade: o encontro de uma equipe de cinema com o outro” (COUTINHO apud AMORIM, 2001, p.23), na qual a autora faz correspondência ao jogo realidade/construção, em que o outro é posto como enigma. Assim sendo, como entendê-lo? Como entender suas ações? Bem como o ponto de vista de um cineasta, o de um pesquisador é, a todo momento, transformado pelo outro de sua narrativa (AMORIM, 2001).
19
não somente como competência, mas como instrumento de humanização.
Diferentemente de mera coleta de noções, procurou-se elaborar uma crítica sobre o
reconhecimento de um problema, encarando esta interpretação dos fenômenos
como método. Tem-se logo, a temática da leitura conduzida pela escrita enquanto
configuração concreta de tramas conceituais, visto que, “o importante é
compreender [...] escrever é uma questão de procurar essa compreensão, parte do
processo de compreender” (ARENDT, 2008, p.18).
Esta primeira seção teve a pretensão de não somente apresentar as
intenções, influências e justificativas que carrega esta dissertação, mas também
auxiliar o leitor, como uma tentativa de primeira orientação no labirinto no qual esta
foi construída, um singelo protocolo de leitura15, convidando a embrenhar-se nesta
outra maneira de compreender e pensar o ato de ler. Maneira esta que, por vezes,
precisou utilizar-se de recursos metafóricos, por serem capazes de expressar o que
a língua ainda não permite somente pelo seu sentido denotativo. Da mesma forma
no que concerne às epígrafes reportadas no texto, pois, ainda que a ironia constitua
uma figura de linguagem mais correntemente utilizada pela literatura e distante das
objetividades de que circundam as normas de escrita de textos ditos acadêmicos, as
breves e reflexivas palavras de Grammont configuram um interessante preâmbulo
para o texto que aqui principia e provocantes para as seções que o compõem.
15 Conceito entendido como instruções que o autor utiliza em seu texto que agem como dispositivos textuais que impõem ao leitor uma determinada maneira de ler o que ali está, uma específica conexão com o texto, fazendo com que o leitor realize uma leitura que tenha afinidades mais estreitas com as intenções do autor (CHARTIER, 1996).
20
2. A leitura no contexto brasileiro: uma breve discussão acerca da condição leitora contemporânea16
Não, não dêem mais livros às escolas. Pais, não leiam para os seus filhos, podem levá-los a desenvolver esse gosto pela aventura e pela descoberta que fez do homem um animal diferente. Antes estivesse ainda a passear de quatro patas, sem noção de progresso e civilização, mas tampouco sem conhecer guerras, destruição, violência. Professores, não contem histórias, podem estimular um curiosidade indesejável em seres que a vida destinou para a repetição e para o trabalho duro.
Guiomar de Grammont
Entre as diferentes incongruências que permeiam o ato de ler já expostas na
introdução da seção anterior, a que enceta este texto merece ser questionada: que
espécie de incentivo é dado a fim de que os estudantes e a comunidade em geral se
tornem leitores? Tal tarefa compete somente à escola? Como esta vem
considerando e agindo perante a carência de leitores? Principiando um lacunar e
breve panorama da temática da leitura, incluindo suas mais relevantes subdivisões,
bem como faz Emília Ferreiro (2008) em seu legado, conveniente se torna um
abreviado resgate do contexto histórico em que foram sustentadas as habilidades de
leitura e escrita para que tal “democratização do ato de ler”, bem como o de
escrever, possa ser compreendida.
Já se entende a relevância do surgimento da escrita para o mundo civilizado,
pela consideração que se tem de um marco do desenvolvimento tão expressivo,
sendo chamado de pré-história o período anterior ao aparecimento da escrita. Ainda
no princípio de sua disseminação, essa tecnologia permissiva de registros chegou a
sofrer com as desconfianças de Platão, que manifestou inquietação com a
possibilidade trazida pela escrita de ampliação da memória, acreditando que tal
possibilidade de consulta deixaria seus discípulos mais indolentes, e os mitos
poderiam não mais ser apreendidos. Teóricos têm defendido que a leitura, nos
primórdios da história, era, em especial, “uma questão de ouvir a escrita cuneiforme,
16 Seria extravagante tecer um grande capítulo acerca de uma temática tão geral e extensa que é a leitura, que conjunta em si outras sub-áreas também bastante extensas (linguística; aquisição; literatura; ensino de língua materna; fisiologia; história; etc). Ao mesmo tempo, a carência do mesmo não facilitaria a leitura dos capítulos seguintes. Logo, optou-se por brevemente citar algumas das principais contribuições acerca do tema e trazer para a discussão os resultados de respeitáveis pesquisas acerca da competência leitora no momento. Ainda que estas poucas páginas possam carecer de conectores,têm o objetivo de nortear os próximos capítulos com as mais urgentes necessidades que a temática da leitura ainda se debate.
21
ou seja, imaginar o discurso pela observação desses símbolos pictóricos, em vez da
leitura visual das sílabas na forma como a concebemos” (FISCHER, 2006, p.12).
Steven Roger Fischer comenta que o domínio da palavra escrita nunca teve
maior reverência do que entre os imperadores romanos, os quais atribuíram aos
professores eruditos a mais alta autoridade. Isso foi feito de propósito para defender,
diante das incursões bárbaras, a cultura literária que a própria Roma representaria,
embora sem a realizar (2006).
O autor lembra que o hábito de fazer leitura pública de obras seculares foi
interrompido somente depois do século VI, ruptura que decorreu de alguns fatores,
tais como: patrícios que abandonaram os grandes centros, declínio do ensino,
enfraquecimento do comércio de livros, invasões germânicas e outras mudanças
políticas e religiosas da época. No transcursar do texto, Fischer ainda lembra que,
por volta do século VIII, uma grande parte dos reverendos já não entendia a Bíblia
Latina, preces ou hinos que declamavam no oficio divino (FISCHER, 2006).
Roger Chartier assinala que “em meados da década de 1450, só era
possível reproduzir um texto copiando-o à mão, e de repente uma nova técnica,
baseada nos tipos móveis e na prensa, transfigurou a relação com a cultura escrita”
(CHARTIER, 1998, p.07). O historiador francês atrela a relação do homem com a
cultura escrita ao temor da perda e à conquista dos seus direitos e lembra que a população rural procurou por muitos textos relacionados à Revolução, instruindo-se
inclusive sobre a constituição. Ele acrescenta que a Revolução alterou “os hábitos
culturais mais arraigados. O evento desencadeou um desejo de leitura, de informação
pelo impresso, que torna obsoleta a antiga biblioteca rural” (2003, p. 258). Posteriormente, segundo Zilberman, a leitura consolidou-se como prática,
em suas diversas significações. Ela foi se tornando atividade da escola e critério
rigoroso para acesso e participação do indivíduo no contexto social, veio a ser apreciada como ideia, por discernir o sujeito que é alfabetizado e “culto” daquele que
é considerado analfabeto e ignorante. Reforçando o quadro, a leitura passou a
distinguir, afastou o homem comum da cultura oral e nesse sentido, “cooperou para
acentuar a clivagem social, sem, contudo, revelar a natureza de sua ação, pois
colocava o ato de ler como um ideal a perseguir”17.
17 In ZILBERMAN, Regina. A Leitura no Brasil: sua história e suas instituições. Disponível em http://www.unicamp.br/iel/memoria/Ensaios/regina.html, acesso em 09 de dezembro de 2012.
22
Com a lenta evolução de ambas as habilidades, sendo fundidas por Ferreiro
(1999) como lectoescrita, esses atos passaram a ser destinados a importantes
profissões, visto que eram quesitos obrigatórios para determinados cargos, e não
um direito de todos.
De maneira reducionista, a influência da teoria piagetiana para a educação,
sobretudo aos anos iniciais, se dá pelo reconhecimento de que as crianças precisam
desenvolver seu raciocínio lógico pela manipulação do concreto deslocando-se para
relações abstratas. Na prática, este trânsito foi reduzido e contou com uma
transferência quase que intacta dos procedimentos metodológicos realizados pelo
suíço aos bancos escolares. Como consequência, tem-se um conjunto de
indicadores avaliativos de desempenho e de prontidão18 para aprender, não
superando as formas até então adotadas pela maioria dos professores nos
processos de ensino. Reduziu-se a teoria a uma verificação das condições das
crianças para aprender, sem que isso influenciasse no processo de ensino-
aprendizagem.
Nessa mesma vereda, ocorreu fato semelhante com a formação do leitor nas
séries iniciais, nas quais se tem percebido as interpelações feitas a partir das leituras
realizadas das pesquisas da psicóloga Emília Ferreiro pelos professores que, no
Brasil, começa a influenciar as discussões, sobretudo no meio acadêmico, a partir
da década de 80, com a publicação do livro Psicogênese da Língua Escrita19,
traduzido para o português, em 1985.
Os dois autores, de forma representativa, incitaram um movimento de
redefinição de práticas pedagógicas que, salvo equívocos, demonstram
positivamente uma preocupação por parte dos professores com uma aprendizagem
realmente realizável sob o ponto de vista do aluno enquanto sujeito-leitor
cognoscente. Com tais avanços dos estudos trazidos pela área da aquisição da
lectoescrita, a crença implícita de que o processo de alfabetização tem seu início e
fim dentro do contexto escolar, bem como a de que a aplicação correta do método
adequado garantia ao educador o controle do processo de aquisição dos alunos, foi
superada. Ferreiro traz à tona a noção de que o aluno se coloca questões, constrói
sistemas interpretativos, pensa, inventa, cria estratégias, tentando entender este
18 Prontidão é utilizada aqui no sentido de estar pronto para. 19 FERREIRO, Emília & TEBEROSKY, Ana. A psicogênese da língua escrita. Porto Alegre: Artmed, 1999.
23
objeto social relativamente complexo que é o código escrito, tal como ele se
apresenta na sociedade.
Além desta inquestionável contribuição da pesquisadora argentina, a
preocupação com o caráter social da escrita também emerge com a investida de
seus estudos e ela se insere na discussão acerca da insuficiência do conceito
alfabetização e do surgimento (quase que como uma necessidade) de um outro conceito
que anunciasse a existência de um novo paradigma e que expressasse uma prática que
fosse além das habilidades técnicas, assumindo, assim, a leitura como parte da vida do
indivíduo. Ferreiro controverteu a utilização do conceito de letramento, caracterizado por
Soares, como “estado ou condição de quem não apenas sabe ler e escrever, mas
cultiva e exerce as práticas sociais que usam a escrita” (SOARES, 2003, p. 47). Um
termo um tanto quanto caro aos linguistas, pois não inicia após a aprendizagem do
código escrito. Para Ferreiro, crer nessa possibilidade é legitimar que exista o método fônico de ensino, conforme afirma em uma entrevista concedida à Revista Nova Escola:
Letramento passou a ser o estar em contato com distintos tipos de texto, o compreender o que se lê. Isso é um retrocesso. Eu me nego a aceitar um período de decodificação prévio àquele em que se passa a perceber a função social do texto. Acreditar nisso é dar razão à velha consciência fonológica (2003, p. 28).
Esta argumentação torna-se ainda mais clara quando: a) referenda-se a
definição de alfabetismo, com ênfase em sua funcionalidade, proposta e revista pela
UNESCO em 1978, a qual considerava alfabetizado o indivíduo capaz de participar
de atividades em que o alfabetismo é indispensável “para um funcionamento efetivo
de seu grupo e de sua comunidade, e também para dar-lhe condições de uso da
leitura, da escrita e do cálculo para o seu desenvolvimento pessoal e de sua
comunidade”; b) a mesma autora defende a alfabetização como um contínuo de
desafios cada vez maiores, enfrentados pelo aluno mediante cada tipo de texto,
independente de sua idade e nível escolar:
[…] yo enseño en el nivel de maestría y doctorado, pero sigo alfabetizando a mis alumnos, porque es la primera vez que, como lectores, se enfrentan a investigaciones publicadas en revistas especializadas y, como escritores, deben producir por primera vez un tipo peculiar de texto académico que se
24
llama una tesis (2008, p.20).20
Entretanto, para os educadores, falar em alfabetização tornou-se mais difícil
com o uso do termo letramento, visto que aquele passou a significar mero exercício
de treinamento de correspondências entre fonemas e grafemas. Passou-se a
relacionar o processo de alfabetização ao período em que se aprende a codificar e
decodificar, letra após letra, como se os vocábulos apresentassem-se em ordem
alfabética e/ou agrupados pela letra inicial em comum na vida do educando.
Além disso, a partir da leitura do legado de Ferreiro, também é possível
pensar na longa distância que há entre ambos os substantivos: acesso e
democracia. Distância reforçada por ela, ao apontar o quadro no qual se apresenta a
relação entre a leitura e os avanços tecnológicos, como segue:
Internet, correo electrónico, páginas Web, hipertexto… están introduciendo cambios profundos y acelerados en la manera de comunicarnos y de recibir información. Y eso es fascinante para cualquier estudioso de la lengua y de los cambios lingüísticos (FERREIRO, 2008, p.24). 21
Esta condição consiste em uma vantagem que precisa ser reconhecida, com
a cautela de compreender que não é suficiente, que isto ainda faz parte de uma
modernização. Cotejando estapreocupação, Ferreiro continua: “pero esos
instrumentos no son democráticos por si mismos [...]. Luchar por la democratización
en el acceso a las nuevas tecnologías es una cosa; aplicarles el calificativo de
democráticas es otra cosa” (2008, p.24). 22
Pode-se dizer que esta desconfiança de Ferreiro talvez tenha fomentado
outras pesquisas em torno da compreensão das relações entre a escrita e o
exercício do poder. Ou ainda reforçado as reflexões de outros estudiosos da área,
em virtude de não haver uma conexão estreita entre o desenvolvimento das
tecnologias e as metamorfoses nos sistemas de produção de informação com essa
20 Tradução livre: “eu ensino em nível de mestrado e doutorado, porém continuo alfabetizando meus alunos, porque é a primeira vez que, como leitores, enfrentam investigações publicadas em revistas especializadas e, como escritores, devem produzir pela primeira vez um tipo peculiar de texto acadêmico que se chama ‘uma tese’”. 21 Tradução livre: “Internet, e-mail, páginas da Web, hipertexto ... estão introduzindo mudanças profundas e aceleradas na forma de comunicar e receber informações. E isso é fascinante para qualquer estudante de linguagem e mudanças linguísticas”. 22 Tradução livre: “mas esses instrumentos não são democráticos por si sós [...]. Lutar pela democratização do acesso às novas tecnologias é uma coisa, aplicar-lhes o rótulo de democráticas é outra coisa”
25
democratização, que já reprochava Ferreiro. Assim, é possível pensar que isso
ocorre pois
[…] l’importance de l’écrit n’est donc plus seulement à apprécier en fonction de son rôle comme moyen de communication et d’expression mais aussi et d’abord comme outil de pensée et comme outil de formation d’une pensée adaptée aux exigences nouvelles du progrès technique. S’il y a un rapport entre le marché du travail et la lecture, donc avec l’école, il est à chercher dans cette nécessité nouvelle et globale d’élever pour le plus grand nombre une formation intellectuelle développant l’usage des opérations abstraites et, donc, de donner une meilleure maîtrise du langage écrit dont la mise en œuvre rend possible ce mode de pensée (FOUCAMBERT, 1994, p.08). 23
Com a ascensão do termo letramento, que tem sua introdução na língua
portuguesa na década de 80 com a chegada das publicações inglesas, norte-
americanas e ainda traduções para o inglês de obras escritas por Luria e Vygotsky,
alguns estudiosos como Leda Tfouni e Magda Soares têm dirigido suas questões
para tentar definir uma teoria que não esteja voltada apenas para a aquisição da
leitura e escrita, mas carregada de preocupações políticas e sociais de inclusão e
justiça, principalmente através dos mecanismos educacionais (TFOUNI, 2010). No
entanto, estas preocupações são enfocadas inclusive por outros autores aqui
citados, com ponto de vista bem direcionado ao social e às distinções entre a função
da leitura e da escrita na sociedade e à maneira como ela vem sendo abordada na
escola. O que faz deste texto um complemento destas inquietações, visto que uma
das questões que tangenciam o objetivo geral deste trabalho aborda o caráter
emancipatório que a leitura deveria ter, partindo do princípio de que a formação de
leitores precede e sucede a formação de questionadores.
Contudo, antes de principiar essa conversa com a Filosofia da Educação, é
relevante retornar aos dois documentos citados na seção anterior – Retratos da
leitura no Brasil (2008) e (2012) a publicação da edição atualizada em 2010 do
Caderno do Programa Nacional do Livro e Leitura – documentos que provêm de
pesquisas impulsionadas pelas discussões acerca de uma política pública do livro e
trazem números, juízos e comentários capazes de fornecer alguns esclarecimentos
23 Tradução livre: A importância da escrita não é mais apenas de ser encarada em função de seu papel como meio de comunicação e de expressão, mas inclusive e sobretudo como ferramenta do pensamento e como ferramenta de formação de um pensamento adaptado às novas exigências da evolução tecnológica. Se há uma relação entre o mercado de trabalho e a leitura, e então com a escola, é necessário, nessa necessidade nova e global, procurar dar ao maior número possível de cidadãos uma formação intelectual, a qual desenvolva o uso das operações abstratas e, assim, de oportunizar um melhor domínio da língua escrita, cuja atividade torne possível esse modo de pensamento.
26
para a compreensão de pequenas mudanças no comportamento leitor da população.
Refere-se a elas como pequenas em virtude do pouco tempo entre as pesquisas
para explicitar uma suposta metamorfose no que compete ao aumento da leitura
que, em geral, é repelido pelo senso comum. Este é um trabalho complexo,
porquanto para investigar o comportamento leitor do brasileiro, não basta conhecer
essa realidade, o que faz com que os diversos pesquisadores da temática tomem
como sua a tarefa de avançar na construção de um país leitor. Tarefa que acaba
tornando-se fundamental para promover a reflexão e o debate não somente sobre as
referências bibliográficas das áreas da linguística e literatura, que neste momento
são potencializadas por esses resultados envolvendo os diferentes segmentos da
sociedade e o governo. Segundo Amorim (2008), o ponto de partida para os avanços mais recentes da
área, sem dúvida, é a instituição da Lei do Livro, em 2003, pois como ele aponta,
após esta,
[...] o Brasil promoveu a desoneração fiscal do livro – e não são muitos os países do mundo onde ele é completamente livre de impostos e taxas, como é por aqui –, criou programas governamentais de financiamento às editoras e fez ressurgir instâncias políticas de debate e concentração, como é o caso da Câmara Setorial do Livro, Literatura e da Leitura. Ao mesmo tempo, o governo intensificou os esforços para zerar o número de municípios sem biblioteca (eles eram 1,3 mil em 2003 e devem chegar a zero em fins de 2008). Mais importante ainda, criou o Plano Nacional do Livro e Leitura (PNLL), passo fundamental para converter o tema em política de Estado (2008, p. 20).
Com estas iniciativas, já foram percebidos pequenos avanços desde a
prescrição da Lei, mas é necessário desconfiar dos aplausos e olhar reflexivamente
para esses dados. Inclusive para as respostas dos entrevistados que demonstram
os autores mais procurados e a preferência de gênero e tipologia do brasileiro, como
será problematizado no decorrer do texto no que diz respeito ao ensino de literatura.
São muitas as possibilidades de textos que podem ser adotados na leitura e,
nesse sentido, vale situar o leitor acerca de qual seria então o lugar da literatura nas
políticas públicas das quais algumas são trazidas pelo PNLL. Segundo este
documento, “a literatura merece atenção especial no contexto do Plano, dada a
enorme contribuição que pode trazer para uma formação vertical do leitor,
consideradas suas três funções essenciais” (2010, p.33), caracterizadas por
Candido, as quais seriam: a capacidade que a literatura tem de atender à imensa
27
necessidade de ficção e fantasia; sua natureza essencialmente formativa, que toca o
consciente e o inconsciente dos leitores de maneira complexa e dialética, como a
própria vida, em oposição ao caráter pedagógico e doutrinador de demais textos;
seu potencial de oferecer ao leitor um conhecimento profundo do mundo, tal como
faz, por outro caminho, a ciência (2010, p.33).
Novamente, este consiste em um outro aspecto no qual o Brasil se mostra
adverso às expectativas, quando, confrontada aos dados encontrados nas
pesquisas de Retratos, a leitura está atrelada somente ao tempo escolar do sujeito.
Pode-se chegar a tal conclusão em um recorte dos questionamentos em que grande
parte dos entrevistados afirma que não leem ou não vão a bibliotecas pois não estão
estudando. Da mesma forma,
[...] o uso da biblioteca pública parece também feito em função da escola: sua frequência é maior nas faixas etárias de 5 a 17 anos, e tem como objetivos principais pesquisar e estudar. E com relação à frequência da leitura de diferentes tipos de livros, os didáticos e universitários são os únicos lidos mais frequentemente (68%) do que ocasionalmente (32%) (CUNHA, 2008, p.55).
Outra informação de extrema relevância conferida pela pesquisa, que, no
entanto, deve ser analisada cautelosamente, uma vez que ela não tem como refletir
resultados acerca dos analfabetos funcionais, é que grande parte dos brasileiros
possuem um precário entendimento daquilo que leem, como segue nas palavras de
Garcez (2008):
O Brasil ficou em último lugar, numa pesquisa que envolveu 32 países e avaliou, sobretudo, a compreensão de textos em alunos de 15 anos. O Brasil obteve 396 pontos, 150 a menos que a Finlândia, país mais bem colocado. A Finlândia atingiu o nível 4, enquanto a média brasileira não passou do nível 1, atrás de outros países emergentes, como Rússia e México, que alcançaram o nível 2 (p.66).
O quadro se agrava também pela informação de que, a não ser entre os
entrevistados que ainda continuam ou continuaram seus estudos universitários, a
leitura decresce demasiadamente entre os adultos, o que reforça a hipótese de que
a escola não vem formando leitores para o restante da vida. Segundo Cunha “talvez
por práticas pouco sedutoras e obrigatórias, das quais o não-estudante procura se
livrar assim que ultrapassa os limites da escola” (2008, p.56), práticas essas, e
soluções de maneira direta, que não serão sugeridas no texto que aqui se
28
apresenta, todavia, a problemática será pensada com foco na perda da fantasia do
sujeito (ADORNO, 1985).
Para finalizar, antes mesmo de divulgados os resultados da 3ª Edição da
Pesquisa Retratos, em 28 de março de 2012 no Distrito Federal realizou-se o
II Seminário Nacional Retratos da Leitura no Brasil, que teve como objetivo
apresentar, em primeira mão, os dados do maior estudo realizado no País sobre
o comportamento leitor da população. Esse seminário contou com exposições
de especialistas que avaliaram os resultados da pesquisa, em busca de outras
réplicas e alternativas para a condição da leitura no País.
A Associação de Leitura do Brasil disponibilizou para seus sócios a breve
análise de Galeano Amorim e Maria Antonieta Cunha24, os quais, infelizmente,
advogam que o quadro já desenhado em 2008 somente se reforça:
continuamos lendo pouco, continuamos ligando indefectivelmente leitura e escola [...], permanecemos distantes das bibliotecas, não importa de que tipo, e, ao que tudo indica, insistimos em aceitar maus serviços [...], como se fossem bons, porque sequer sabemos o que é um bom serviço educacional ou cultural (CUNHA, 2012).
No decorrer de sua fala, Cunha reafirma o dado de que a leitura só tem a ver
com a vida estudantil. E lamenta que a pretensão de desescolarizar “a leitura, que
esteve em moda e conseguiu adeptos importantes na década de 90, perdeu força e
não pode se confundir com o desejo legítimo de que a leitura extrapole os muros e
os tempos da escola” (CUNHA, 2012).
Logo, para além das belas e repetidas frases, sem que haja uma
representação de uma convicção, a leitura ainda não é tomada como princípio ou
necessidade vital individual ou coletiva. Saídos desse espaço, é possível se
desonerar “de uma atividade entediante obrigatória, que fazemos em algum espaço
da escola, na biblioteca e até em casa para passar de ano, mas que não precisamos
levar para o resto da vida” (CUNHA, 2012).
Se, como alega Humbert Alquéris – diretor-presidente da Imprensa Oficial do
Estado de São Paulo –, Retratos da leitura no Brasil, teve a pretensão de mostrar o
perfil, tão fiel quanto possível, dos leitores e não-leitores brasileiros, apontando da
maneira mais fidedigna possível “os resultados obtidos pela adoção de políticas
públicas e seu grau de eficiência” (2008, p. 12), utiliza-se aqui os pressupostos
24 Disponível em http://www.prolivro.org.br/ipl/publier4.0/dados/anexos/3182.pdf. Acesso em 15 de abril de 2012.
29
filosóficos também para interpretar e problematizar esses dados. Para contrapô-los
aos recortes da área da leitura propostos e para conversar com os alvitres de Freire
e Adorno para a educação.
À vista disso, como bem lembrou Sant’anna (1999), escrever sobre a
temática da leitura pode ser semelhante à famosa prática de no regresso às aulas,
elaborar uma composição sobre Minhas Férias, em virtude do risco do previsível. Ou
ainda semelhante aos filmes de terror com nomenclaturas bem panfletárias, as quais
já antecipam o clímax e o expectador já principia o enredo sabendo com o quê irá
deparar-se. Afinal, seria improvável que alguém fosse capaz de tecer qualquer
argumento contra a prática leitora.
Em virtude disso, o poeta e colunista aponta a temática como mais uma
armadilha do óbvio, pela incoerência que há entre o consenso popular dos
significativos benefícios da prática e o risco de uma conversão em devotadas
assembleias de autoconsolação. Alertando com isso sobre a urgência de uma
interpretação das práticas e dos discursos a respeito da leitura. Pois uma das
facetas dessa armadilha do óbvio é distanciar o sujeito de um engajado diagnóstico
da doença e dos doentes (SANT’ANNA, 1999). Diagnóstico que se mostra de
extrema urgência quando as soluções não podem mais ser apenas formais, através
de uma dominação estrutural imposta; e libertação que depende também de um
retorno indicativo das origens dos pecados intelectuais, procurando compreender o
constante apelo à autoridade da razão e do esclarecimento como a resolução para
as problemáticas que atualmente se apresentam. E “é aí que os filósofos entram. No
apontar de novos caminhos, no revelar de novas realidades, na luta e no combate”
(PUCCI, 1999, p.13), interrompendo, neste caso, a precariedade trazida pela
objetividade com que por vezes é vista a atividade de leitura, quando abordada de
maneira cerrada por si só, trabalhando em prol da interrupção desta objetivação.
O que se propõe com este texto é a reconsideração desta condição de
leitores na atualidade, problematizada até aqui à luz das teorias da leitura, da
literatura e do letramento, sob a prerrogativa do ponto de vista das mais urgentes
demandas sociais e temores não tão recentes. Em outras palavras, o que se intenta com estas preocupações é justamente
pensar para onde a leitura está caminhando e como tem sido concebida uma das
atividades que tradicionalmente, “estão ao alcance de todo ser humano. Por essa e
outras razões, a mais elevada e talvez a mais pura atividade de que os homens são
30
capazes, a atividade de pensar, é deixada de fora das presentes considerações”
(ARENDT, 1997, p. 06-07). O mesmo desconforto que, provocado pelo
esfacelamento da capacidade de pensar, contesta a obsolescência da capacidade
de questionar, e logo, da capacidade de ler.
2.1. O leitor como sujeito histórico
Desde os estudos publicados por Paulo Freire já se sabe que o ato de ler
não se esgota na decodificação pura da palavra grafada, mas se antecipa e se
estende na inteligência do mundo. Tem-se então uma extensão do conceito de
leitura de maneira mais sociológica, em que para a compreensão do significado do
que é lido, a experiência previa, a visão de mundo e o conhecimento empírico
acumulado ecoam de suma relevância.
Em uma de suas obras dialogadas o autor já insistia no indeclinável papel do
leitor na produção da inteligência do texto (1998, p. 65) e na necessidade de uma
posição crítica, que não dicotomizasse o saber do senso comum do outro saber,
mais sistemático, e que acreditava na busca de uma síntese dos contrários. Tanto
que em suas constatações acerca do ato de estudar envolvia-se sempre o de ler,
“[...] mesmo que neste não se esgote. De ler o mundo, de ler a palavra e assim ler a
leitura do mundo anteriormente feita. Mas ler não é puro entretenimento nem
tampouco um exercício de memorização mecânica de certos trechos do texto”
(FREIRE, 1998, p. 29).
De acordo com os enfrentamentos cotidianos que os sujeitos precisam
atravessar e pela realidade que é percebida, é complacente, hoje, que cada um seja
capaz de transitar entre textos diferentes e saiba agir como leitor contemporâneo.
Sapiência que não tem por interesse nem louvar somente o novo, nem silenciar o
presente em nome de uma tradição, e sim de fazê-lo ativamente dialogar com o
passado, reconhecendo aspectos de relação com a maneira como as demandas
proporcionadas pelas obras de outros tempos são notadas hoje. Ao apontar esta
perspectiva, já infere-se que, ao falar de leitura, refere-se aqui ao estabelecimento
de relações com um contexto, com outros textos e à capacidade de tomada de
posição diante deles, de maneira que o principal imperativo da leitura seja a
31
interação, o diálogo entre fatos, os preceitos e direitos históricos, entre aquele que
escreve e aquele que lê.
Por esses motivos, inclusive, as condições em que se realizam as práticas
de leitura, e no que estas se fundamentam, merecem atenção e transformação, o
que aponta para a imprescindibilidade do debate acerca da temática, como foi
justificado na seção que principia este texto.
Da mesma maneira que acontece ao produzir um texto, ler também é um
feito eminentemente dialógico, ambos os produtos resultantes do serviço de
linguagem de sujeitos históricos, da ação que demanda interação entre os seres
humanos que se compõem na e pela linguagem. E interação que propicia uma maior
reflexão acerca das questões que o circunda, fazendo com que ele seja capaz de
reavaliar ou reforçar suas condutas pessoais. Por isso, mediar a leitura é estar em
meio a uma atividade que é essencial à escola, mas sem tomar nas mãos as rédeas
do processo, como se tal atividade tivesse um único caminho e um único dono de
sua veracidade. Nessa vereda que se destaca que o ato de ler é condicionado por
situações e características sociais, econômicas, intelectuais e ate mesmo
psicológicas, em que cada leitura faz parte de um todo maior (GARCIA, 1992). De
acordo com os estudos de Kleiman (1998) o ensino da leitura constitui um
empreendimento de risco se não estiver fundamentado numa concepção teórica firme sobre os aspectos cognitivos envolvidos na compreensão de texto. Tal ensino pode facilmente desembocar na exigência de mera reprodução das vozes de outros leitores, mais experientes ou mais poderosos do que o aluno (p.61).
Para Geraldi, autor que já faz parte de um tempo que compreende a leitura e
a escrita como práticas sociais, ler é um ato que preconiza interação e interlocução,
constituindo um processo de construção de significados constante, de atribuição de
sentidos. Para o autor o ato de ler significa ser capaz de compreender, criticar e
avaliar o modo de compreensão de mundo de outros sujeitos, compreender as
coisas, as gentes e suas relações (1996).
Temeroso também de uma atividade meramente reprodutiva, Silva acoima o
vício das apostilas, fenômeno que, em um país onde o ensino é cada vez mais
livresco – mas sem livros – faz com que muitos alunos terminem a sua trajetória
estudantil sem nunca ter lido um único livro e sem nunca ter visitado o recinto de
uma biblioteca (SILVA, 1998, p. 08). Assim se formaria um hipotético pacto de
mentira, em que “os alunos fingem que leram e compreenderam os textos e os
32
professores fingem que acreditam nesse jogo”, e a instituição escolar acaba por
formar “ledores” em vez de “leitores” (1998, p. 11).
Para Acácia Kuenzer (2002), ler significa em primeiro lugar, ler criticamente,
o que quer dizer perder a ingenuidade perante o texto dos outros, percebendo que
atrás de cada texto há um sujeito, com uma prática histórica, uma visão de mundo,
um universo de valores, uma intencionalidade (p.101). Segundo a autora a leitura
crítica é geradora de significados, atividade que em sua realização o leitor cria
autonomamente seu próprio texto, apoiado no que foi lido.
Considerado isso, percebe-se que a leitura é responsável pela constante
construção de sentidos, por intermédio da palavra que se baseia e se motiva pelo
uso na vida social. Pela palavra o homem está mais suscetível a julgar a si mesmo,
sua cultura e seu mundo. Uma atividade calcada inclusive no ensejo de aprender
através dos sentidos já produzidos pela tradição. Conforme explicitam os autores:
O ato de ler implica diálogo entre sujeitos históricos. As atividades de leitura, desde as primeiras etapas escolares, visam ao desenvolvimento de competências que permitam compreender o texto como manifestação de um ponto de vista autoral, assumido a partir de determinado contexto histórico. Pretendem também colocar o aluno em relação com o ponto de vista e o conjunto de valores expressos no texto, ou seja, em condições de reagir e tomar posição diante dele. Ler implica uma atitude responsiva, isto é, estruturar uma resposta ao texto por meio de novas ações (FILIPOUSKI; MARCHI, 2009, p.10).
Em virtude de tais potencialidades é que a disciplina de literatura acaba
configurando a principal fiadora deste ato dialógico, sine qua non haveria contratos
de leitura institucionais mais compromissados, que se apresenta como orientadora
de percursos individualizados e coletivos de leitura, que tendem a ampliar as
oportunidades de letramento. Assim, os autores prosseguem:
A atividade de construir sentidos conjuntamente estão sempre no centro da leitura que procura ampliar oportunidade de letramento. A reflexão sobre a língua como sistema, ainda que corresponda a uma especificidade da disciplina, está submetida à centralidade do sentido da leitura como ação, prática social. A retomada de elementos históricos e o conhecimento sobre sistema literário reforçam a leitura do texto literário como experiência estética, modo específico de conhecimento de si, tanto do ponto de vista subjetivo como do pertencimento a uma história cultural e nacional (FILIPOUSKI; MARCHI, 2009, p.10).
Segundo os autores citados, há de se enfocar dois princípios que orientam
as práticas de leitura, princípios esses que são aqui proferidos por trazerem
33
necessidades que serão articuladas ao longo do texto. O primeiro deles é o direito à
fruição, que remete à “apreciação estética, o desenvolvimento da curiosidade
intelectual e do gosto pelo conhecimento, por meio dos quais é possível vivenciar
múltiplas faces da vida humana”. Esse pressuposto implica um “leitor que exerça o
direito de escolha do que lerá, lendo como uma experiência individual, subjetiva e
mesmo afetiva”, possibilitando a recriação do mundo e da vida de cada homem. “A
leitura é também capaz de aproximar pessoas, formando comunidades de sentido
que compartilham preferências e interesses comuns” (2009, p.59).
O segundo é o exercício da cidadania, que decorre da convivência social do
indivíduo e “coloca seres em interação. Nessa perspectiva, a linguagem é a forma
de expressar a consciência de si e do outro, ao mesmo tempo limite, espelho e
aliado”. O que vale ser destacado na perspectiva da vivência cidadã no que compete
à leitura solidária é o fato de que de um lado ela sugere a “necessidade de busca de
negociação de conflitos e, de outro, (o) potencial de, em colaboração, superar o que
seria possível a cada um realizar isoladamente”. Fatores que contribuem para a
constituição do senso ético e da necessidade de participação, possibilitando que “os
limites da interação sejam testados em graus de intensidade, favorecendo
convivência em comunidades diferentes daquelas a que pertence e nas quais é
reconhecido”. Dimensões que favorecem a conquista da “autonomia e da liberdade
e, ao mesmo tempo, fomenta o estabelecimento de laços sociais que viabilizam a
aproximação aos demais e a convivência pacífica com eles” (FILIPOUSKI; MARCHI,
2009, p.59).
Considerando tais constatações, já nasce a notória percepção de que o leitor
de qual se fala e pelo qual se busca é aquele que não se caracteriza por uma
posição passiva, que se apropria dos textos e da cultura representada pela literatura,
que percorre um caminho que é, ao mesmo tempo, de conquista de sua autonomia,
porque procura o cabimento de ser autor crítico das leituras que faz e ainda do
protagonismo em sua cultura por via da interpretação, inquietação, mobilização de
outros saberes e práticas, com o potencial inclusive de criar comunidades de sentido
organizadas a partir daquilo que lê. Para este, a atividade de leitura estaria
relacionada a uma certa intimidade com os textos, cada vez mais incomum de
suceder por iniciativa extra escolar, que contribuem para explorar diferentes formas
de pensar a realidade e os pontos de vista manifestados através do discurso literário
e enriquecem o mundo pessoal a partir dos efeitos que ela é capaz de lançar sobre
34
o leitor. Uma vez que ler não se restringe à prática exaustiva da análise, quer de
excertos, quer de obras completas, pois o prazer, a afirmação da identidade e o
alargamento das experiências passam pela subjetividade do leitor e resultam de
projeções múltiplas em diferentes universos contextuais. É um investimento na
existência de um ambiente de diálogo como suporte à construção de conhecimentos
(FILIPOUSKI; MARCHI, 2009).
Assim, o leitor objetivado pelo texto que começa a ser constituído é o leitor
que compreende as diferentes situações que contribuem para sua formação cultural
como indivíduo, como sujeito, ou seja, "[…] é condição para a verdadeira ação
cultural que deve ser implementada nas escolas” (SILVA, 1991, p.79-80), para
quem, a leitura se torna atividade que pode colaborar para a formação do sujeito que
é capaz de motivar e definir a sua condição de cidadão atuante em seu mundo, em
seu meio sociocultural. Para Ezequiel Theodoro da Silva (1998), criador do
Congresso de Leitura do Brasil e que corrobora a perspectiva freiriana, a conquista
da leitura como uma prática social precisa urgentemente ultrapassar os limites da
escola, e que tal atividade signifique “ler para compreender a realidade e situar-se
na vida social” (p.22). Ainda, segundo o mesmo autor (1991, p. 80), é necessário
que se desenvolva um trabalho que garanta ao educando leitor situações de
aprendizagem no sentido de reforçar o caráter libertador do ato de ler, em que o
leitor se conscientiza de que o exercício de sua consciência sobre o material escrito
não visa o simples reter ou memorizar, mas o compreender e o criticar. 2.2. Leitura e Filosofia: tem jogo nesse campo?25
Em primeiro lugar, é necessário esclarecer ao leitor que o desenvolvimento
do assunto e de seus conceitos mais genéricos para a temática específica começou
a ser elaborado nas seções que antecedem esta e perpassa todas as outras, de
forma que não dedicar-se-á um capítulo para o Referencial teórico exclusivamente,
uma vez que os conceitos surgem nas necessidades das discussões que se põem.
25 Subtítulo elaborado em analogia ao nome do evento periodicamente promovido pelo grupo de pesquisa FEPráxiS (Filosofia, Educação e Práxis Social) da Universidade Federal de Pelotas Educação e Filosofia: tem jogo nesse campo?
35
Parte-se então para os resultados reportados acerca da interface entre a temática
elegida e a Filosofia da Educação.
Grande parte das pesquisas, no âmbito da Filosofia da Educação são de
cunho bibliográfico. O que geralmente faz com que sejam mais direcionadas a
consistentes discussões acerca de conceitos difundidos por diversos autores, por
vezes cotejados a outros, e, ainda, em algumas vezes, pensados à luz de um
fenômeno corrente em determinado tempo, o que é um pouco menos fluente.
Dessa forma, a temática da leitura, que ainda não teve sua
institucionalização como disciplina (FOUCAMBERT, 1994) (aspecto mais benévolo
do que empobrecedor), é subdividida nas áreas já citadas anteriormente, concentra-
se quase que totalmente em estudos de aquisição, Literatura e Linguística. No
entanto, com exceção da Literatura, nos outros dois nichos a Filosofia geralmente
aparece não de maneira que ela constitua a base da pesquisa pela sua utilização.
Na maioria das vezes, segue duas vertentes mais comuns: na função de corroborar
algumas ideias, de maneira breve, mas suficiente para tornar argumentos mais
consistentes a fim de não ignorar outras áreas do conhecimento; ou utilizar
conceitos da filosofia já direcionados à leitura – como é o caso da Indústria
Cultural26. – para dialogar com a relação observada entre a sociedade e a leitura nos
mais diversos portadores, o que acontece com menor frequência com os livros.
No ano de 2008, na Universidade Estadual de Londrina foi defendida uma
dissertação cujo título é Fontes de leitura utilizadas no 3º ano do Ensino Médio e
suas implicações na formação de leitores27, em que a autora Melina Santos evoca
Shopenhauer, Manguel, Lajolo, Freire e Foucambert, no entanto, seu objetivo é
compreender as práticas de leitura entendidas por um grupo de alunos em momento
de finalização dos estudos. Concluindo que a escola não estimula a utilização dos
novos recursos de leitura que poderiam ser potentes na formação de um leitor
criativo.
Ainda que contenha uma bibliografia que tangencia a Filosofia, a pesquisa
que mais se aproxima dos objetivos estabelecidos pelo texto que aqui se apresenta
26 A maioria dos textos que trabalham com o conceito de Indústria Cultural direciona seus estudos para a indústria cinematográfica; utilização das tecnologias, leitura de imagens e comunicações em massa de maneira geral. Restringindo ensino de literatura e tal conceito não é foi encontrada nenhuma consistente pesquisa. 27Dissertação disponível em http://www.uel.br/pos/mestredu/images/stories/downloads/dissertacoes/
2008/2008%20-%20SANTOS,%20Melina%20Tatiana%20dos.pdf. Acesso em 29 de maio de 2011.
36
é de autoria de Maria Rodrigues, intitulada A leitura como ponte para a crítica28. A
autora discute conceitos de leitura e de crítica, propondo uma articulação entre os
mesmos, expandindo-os para uma outra significação – leitura crítica. Abordando
também a incompletude do processo de leitura, com a tentativa de indicar uma
(re)significação para essa atividade.
Outro artigo que se move por inquietações semelhantes, com determinadas
referências bibliográficas comuns, foi publicado pelo periódico Presença
Pedagógica, de Sonia Kramer, intitulado Leitura e Escrita como experiência: seu
papel na formação de sujeitos sociais29. No entanto, o foco deste último é na
importância da leitura e da escrita na formação de professores, conjugando
conceitos teóricos e imagens literárias. Concluindo que a leitura e a escrita podem
ser vividas como experiência e que a literatura é capaz de trazer a possibilidade de
pensar a experiência vivida, ampliando o necessário e carente o raio da ação e da
reflexão do professor.
Vale lembrar que a filosofia é bastante utilizada também nos estudos
literários comparatistas, por ser capaz de provocar uma reflexão crítica acerca dos
diferentes aspectos que compõem um texto literário.
No que compete à intertextualidade entre Adorno e Freire, foi encontrado um
número restrito de pesquisas, dentre as quais uma delas objetivou elaborar uma
breve revisão conceitual aproximando dois conceitos de extrema relevância para os
aparatos teóricos30. No entanto, de modo mais específico, não foi encontrado
disponível na rede artigo algum que aproximasse de maneira supracitada ambos
autores que aqui dialogam, com foco na formação do leitor.
28 Publicado pela Associação Brasileira de Leitura. Disponível em http://alb.com.br/arquivo-morto/edicoes_anteriores/anais16/sem05pdf/sm05ss06_09.pdf. Acesso em 15 de junho de 2011. 29Disponível em http://www.presencapedagogica.com.br/capa6/artigos/31.pdf. Acesso em 29 de junho de 2011. 30DUARTE, Zuleyka da Silva, OLIVEIRA, Avelino da Rosa. Disponível em http://www.ufpel.edu.br/cic/2006/arquivos/CH_00261.rtf. Acesso em 20 de abril de 2011.
37
3. Paulo Freire e o ato de ler
Ler pode ser um problema, pode gerar seres humanos conscientes demais dos seus direitos políticos, em um mundo administrado, onde ser livre não passa de uma ficção sem nenhuma verossimilhança. Seria impossível controlar e organizar a sociedade se todos os seres humanos soubessem o que desejam. Se todos se pusessem a articular bem suas demandas, a fincar sua posição no mundo, a fazer dos discursos os instrumentos de conquista de sua liberdade.
Guiomar de Grammont
Apenas a consciência reflexiva é capaz de suprir as falhas de uma tradição
retrógrada e esfacelada “pois este sistema de educação é um produto histórico que
somente a história pode explicar. [...] Aliás, não existem muitos sistemas em
educação em que toda história do país repercuta de modo tão completo”
(DURKHEIM, 1975, p. 91, grifos nossos). Tal evocação das palavras de Émile
Durkheim configuram uma sugestiva provocação à guisa de introdução deste
capítulo, posto que, concebe-se como uma das problemáticas bastante corrente em
meio ao sistema educacional a maneira como este vem fazendo ciência e tentando
pensar os limites e possibilidades que ela traz à tão falada crise atual na educação -
e com esta o analfabetismo -, através do discurso normativo e descritivo que ainda
não foi superado. É notório que os impasses estão sendo compreendidos tais como
se apresentam, sendo ignorados os caminhos que percorreram pra chegar até aqui,
procurando, com isso, teorias que possam rapidamente solucioná-las, que possam,
do mesmo modo, ser facilmente interpretadas tal como se apresentam agora.
Com parte do legado de Paulo Freire o quadro não difere, principalmente em
seus escritos do final da década de 90 que, curiosamente, são os mais requisitados
e adquiridos, porém tem se percebido nas leituras destes feitas um misto de falta de
clareza com a mesma em demasia que faz com que a sua teoria seja apreciada por
quem faz sua leitura pela primeira vez, com uma precária formação como leitor ou
por aqueles que já possuem maior afinidade e experiência com seus escritos ou com
os autores que o influenciaram e deram origem à maioria de suas reflexões, visto
que Freire “comprendió que hablar en difícil o en negativo es otra de las formas de
38
exclusión” (IGLESIAS, 2009, p.15)31, e assim sendo, em grande parte de sua
produção, “escribía de la misma forma en que hablaba” (p.12).32
Este produto histórico faz parte das alegações dos escritos de Paulo Freire,
educador pernambucano (1921-1997) que sentiu na pele a rigidez da vida,
principiando pelo golpe militar de 1964, que deixou visível a todos que aquela
educação não era bem-vinda neste país. Presidente do Brasil em 1961, João Goulart
reconheceu publicamente as consequências da democracia do programa de
alfabetização rural do educador, Freire foi acusado de ser subversivo e foi exilado,
vivendo na Suíça durante quase uma década (1970-1979), onde “tornou-se um
educador do mundo, assessorando práticas educativas realizadas por igrejas e
movimentos sociais em todos os continentes” (STRECK, 2010, p.229-230). Quando
retorna para o Brasil, reassume suas atividades, sem perder a comunicação com os
movimentos sociais e com as diversas experiências pedagógicas, “se sentiu
desafiado a assumir o cargo de secretário de Educação no município de São Paulo
(1989-1991)” (p.330).33
Criador de uma das metáforas mais denunciadoras do contexto educacional,
encontra-se em Freire um exercício de libertação34 da pedagogia, fazendo dessa
uma pedagogia do outro, uma Pedagogia do35 Oprimido. Nesse sentido, as palavras
de Danilo Streck vão ao encontro do que sustenta Durkheim (1975), entendido o
caráter radical36 (ou universal, nas palavras do autor citado) com que são tecidas
31 Tradução livre: “compreendia que falar difícil ou de modo negativo é uma outra forma de exclusão”. 32 Tradução livre: “escrevia da mesma forma que falava”. 33 Entende-se neste momento que a intertextualidade presente nas obras de Paulo Freire, quando compreendidas em seu tempo e espaço, funciona como agente qualificador de uma interpretação mais comprometida, visto que, ainda que as raízes iluministas cheguem até suas obras finais bastante enfraquecidas e que o conceito de autonomia em sua radicalidade não tenha sido nas mesmas abordado, talvez haja a possibilidade de se conceber o mesmo Freire rebelde, o mesmo revolucionário do exílio, o mesmo militante dos anos 70; com outros interesses e posicionamento, talvez com outro olhar sobre o contexto educacional. O que não torna sua leitura trivial, e sim demandante de referências mais aprofundadas. 34 Segundo José Carlos Libaneo, o caráter libertário da pedagogia freiriana visa a levar professores e alunos a atingir um nível de consciência da realidade em que vivem na busca da transformação social, com uma relação calcada na horizontalidade entre os sujeitos, entendendo que o foco da aprendizagem é a resolução da situação problema (2005). 35 Ressalta-se a preposição do a fim de chamar a atenção do leitor à dicotomia para/do, lembrando que Freire não alvitra uma pedagogia para o oprimido, visto que a competência encontra-se nas mãos do mesmo, (e por isso do) somente ele tem a poder de restaurar sua humanidade. E argumenta: “Por isso é que somente os oprimidos, libertando-se, podem libertar os opressores. Estes, enquanto classe que oprime, nem libertam, nem se libertam” (FREIRE, 2005, p.48). 36 Para Freire, a radicalidade é o posicionamento que vai de encontro a qualquer espécie de solução tomada como pronta, acabada, ou pré-fabricada, a qualquer espécie de invasão cultural. Direcionar-se a raiz a fim de analisar os efeitos alienantes da sociedade, as relações da produção com a
39
suas reflexões, pois “tanto mais se vai à raiz, tanto mais se amplia o círculo de
possibilidades” (p.331). O autor segmenta a perspectiva em duas tarefas
concomitantes:
Precisamos, no sentido em que Freire falava de uma “arqueologia da consciência”, de um trabalho de arqueologia pedagógica a fim de reconstruir a memória pedagógica. Outra tarefa consiste em recuperar as pedagogias silenciadas durante séculos de dominação. A “cultura do silêncio” denunciada por Freire nas classes populares também se manifesta nos silenciamentos de práticas educativas transformadoras (STRECK, 2010, p.331).
Denúncias essas que também o tornaram conhecido como andarilho do
óbvio, que, assim como Sócrates, deleitava-se com o diálogo especulativo e crítico
em cenários considerados bucólicos, todavia não perdia o movimento.
Talvez por seu legado mais acessível, no que compete à não-necessidade
de tradução, bem como pela sua vasta contribuição, visto que “son innumerables los
libros, en todos los idiomas, que sobre él se escribieron. Sin duda, no hay muchos
autores contemporáneos capaces de igualar esa producción” (IGLESIAS, 2009,
p.12)37, a evocação à teoria freiriana se faz de maneira mais próxima. Além do fato
de a temática da leitura perpassar várias obras de Paulo Freire, ele já dedica parte
de seus escritos também, sem explicitação sistemática e sem a pretensão de fazer
uma ciência da linguagem ou do conhecimento, à discussão em torno dos conceitos
de leitura; epistemologia38; escrita; linguagem,39 entre outros que sustentam o
debate da temática aqui abordada. Fenomenólogo ou não, Freire se caracteriza por
um escritor-filósofo-educador, que se dedicou mais diretamente a pensar a
existência e não as ideias (FIORI, 2005), e, dessa forma, tem sua importante
aprendizagem e contestar a opressão colonial, tudo isso faz parte do radicalismo do projeto de educação de Freire” (CRAWFORD; MCLAREN, p.342). 37 Tradução livre: “há inúmeros livros, em todas as línguas, que foram escritos sobre ele. Certamente, não há muitos autores contemporâneos capazes de igualar-se a essa produção”. 38Continente no conhecido dicionário Aurélio, epistemologia significa teoria do conhecimento, ou gnosiologia. Em Paulo Freire seu sentido é pedagógico e extremamente humano. Para o filósofo, o conhecimento se constitui nas relações homem-mundo, aperfeiçoando-se nas críticas destas relações, e portanto o sujeito é compreendido como organismo vivo, sendo a capacidade de conhecer inerente a ele, e não ao objeto. Em virtude disso, Freire insiste constantemente na problematização do futuro, recusando sua inexorabilidade, pois para ele a realidade somente poderá ser modificada a partir do momento que o sujeito reconhece-a como modificável, o que faz do ato de conhecer um agente transformador, fazendo do homem um ser ontológico. 39 A concepção freiriana de escrita e linguagem não será notada neste momento pois serão abordadas na primeira ramificação deste capítulo, no momento em que o mesmo principia sua abordagem mais estrita a respeito da temática original.
40
participação no que concerne à temática da leitura, trazendo para discussão a
relevância de uma compreensão do mundo imediato de cada um, do mundo vivido,
provocado pela fenomenologia. Deste modo, quando se fala de Paulo Freire no que
compete ao ato de ler, indiscutivelmente, a primeira categoria de seu legado que
surge é a Leitura de mundo/Leitura da Palavra, o que em Freire é um direito
subjetivo do homem. Há quem nunca tenha se deparado com o imperativo
categórico de que a leitura de mundo precede a leitura da palavra? Talvez esta seja
uma das mais célebres assertivas do autor, o que já aponta uma outra maneira de
analisar a capacidade leitora sob outras preocupações a começar pelos seus
primeiros escritos.
Desde sua clássica e incitativa Pedagogia do Oprimido, é destinado um
cuidado especial ao ato de ler já no processo de alfabetização, enfocado na de
jovens e adultos, trazendo a relevância da autonomia quando atesta que saber ler é
saber dizer a sua palavra.
Dissertar a respeito dos elos estabelecidos pela teoria freiriana e o ato de ler
talvez não traga ineditismo algum à ciência, e sim uma maneira diferente de
seccionar um legado tão rico e extenso como o dele, visto que o próprio educador
brasileiro já direcionava parte de seus escritos e de suas conferências a esta
atividade que ele considerava essencial ao exercício da cidadania e já alertava o
leitor, despertando um olhar mais minucioso, como advoga a autora que prefacia
uma de suas obras:
No campo da teoria da alfabetização, nada é mais importante do que olhar e olhar novamente para o papel de uma percepção do perceber, de pensar sobre o pensamento, de interpretar nossas interpretações. Essas circularidades deixam atordoados os positivistas; faz com que aqueles que Freire chama de “mecanicistas” fiquem muito aflitos com a pedagogia do oprimido (BERTHOFF, 1990, p. XIII)
No entanto, este capítulo se apresenta ramificado em três focos que foram
considerados os mais pertinentes à qualificação da interpretação da teoria adorniana
bem como à formação do sujeito-leitor no que concerne a sua emancipação como
tal.
41
3.1. O precursor do letramento
Partindo do que foi abordado no capítulo anterior e compreendida a sua
inocente e talvez até impotente pretensão de traçar um panorama de como tem sido
observada e compreendida a atividade de leitura no contexto educacional brasileiro,
em virtude de sua extensa fortuna crítica, torna-se necessário estreitar um pouco
mais o legado freiriano e discorrer de maneira mais atenta acerca das suas
contribuições ao quadro que atualmente se apresenta.
Ao mesmo tempo, como extensão do protocolo de leitura traçado no primeiro
capítulo, no qual emergem as intenções de um texto que tenta resistir à voracidade
semântica da qual sofre a ciência nos dias atuais, utilizar os escritos, máximas e
motes de Paulo Freire é tornar possível as ideias a respeito do poder gerador da
linguagem atrelado ao papel da consciência crítica, com um dos mestres do aforismo
e do relato representativo40. Tal adjetivação se justifica pela sua maneira de contar
histórias que possuem o potencial de sugerir algo para além delas mesmas, com
características metafóricas.
Arriscado seria principiar essa reflexão sem uma leitura, ao menos breve, do
conceito de linguagem trazido pelo pedagogo inquieto. Em seu verbete contido no
Dicionário Paulo Freire (2010), Cecília Irene Osowski seleciona algumas de suas
obras, tais como Educação como Prática da Liberdade, Pedagogia da Esperança e
Medo e Ousadia, a fim de melhor recortar e sintetizar um provável conceito.
Segundo a autora, Freire vê a linguagem como algo comprometido com as classes
sociais, o que seria permissivo de aceitação e compreensão das diferenças
sintáticas41 entre a linguagem dos trabalhadores, “direta e simples como suas vidas
e a dos professores em situação de ensino, manifestando-se através de volteios,
circunlóquios” (OSOWSKI, 2010, p.247). Entende-se a contraposição recém exposta
com as seguintes palavras:
40Ambos adjetivos lembrados por Ann E. Berthoff no prefácio de Alfabetização: leitura do mundo leitura da palavra (1990). 41 Sintaxe, na preleção de Paulo Freire, é melhor compreendida em seu sentido lato sensu, uma vez que o mesmo não fala de uma ciência que se limita a examinar a estrutura dos períodos, analisando os processos generativos e combinatórios das frases nas línguas naturais, este configuraria seu sentido stricto sensu. Assim, é notório que a melhor interpretação desse vocábulo engloba as diferentes maneiras de utilização da língua materna e de compreensão do seu sistema.
42
[...] a forma crítica42 de compreender e de realizar a leitura da palavra e a leitura do mundo está, de um lado, na não negação da linguagem simples, "desarmada", ingênua, na sua não desvalorização por constituir-se de conceitos criados na cotidianidade, no mundo da experiência sensorial; de outro, na recusa ao que se chama de "linguagem difícil", impossível, porque desenvolvendo-se em torno de conceitos abstratos (FREIRE, 1998, p. 33-34).
Freire acredita que as pessoas ditas comuns, quando interpretam suas
próprias experiências, manifestam a complexidade que vão compreendendo através
de figuras de linguagem que atrelam seus pensamentos a situações concretas. Por
isso, aponta que “a forma crítica de compreender e de realizar a leitura do texto e a
do contexto não exclui nenhuma das duas formas de linguagem ou de sintaxe”
(FREIRE, 1998). Os dominantes de ambas as sintaxes poderão se sentir desafiados
pelas mesmas inquietações. Logo, torna-se de extrema relevância refletir como “as
pessoas comuns, através de suas formas de expressão peculiares e profundamente
éticas, são capazes de tornar explícitos os problemas do mundo” (FREIRE, 1986,
p.180). Essa ponderação é capacitada também pela maneira como Freire pensa a
relação entre significante e significado - ainda que ele não utilize tal nomenclatura,
em virtude de sua linguagem acessível, no entanto as influências do estruturalista
suíço são notórias – proposta na dicotomia saussuriana: compreendida como
ferramenta para o desenvolvimento da consciência crítica do sujeito. Pensando esta
como ato fundamental da mente, ou oportunidade de recognição nos Círculos de
Cultura, fazendo com que os participantes alcançassem uma distância em relação
ao próprio mundo, estranhando-o, e consequentemente, reconhecendo-o.
Para melhor amparar esta hipótese, necessário se torna uma exposição
abreviada de como se davam nesses chamados Círculos de Cultura:
Contestando o alvo de sua crítica metafórica amplamente difundida,
Educação Bancária, Freire pensa os Círculos de Cultura, levando para a proposta da
educação libertadora práticas em grupo focadas no diálogo coletivo. Dispondo as
pessoas em uma roda onde visivelmente nenhuma delas ocupava um lugar
privilegiado, já substituindo a escola, autoritária por estrutura e tradição, o educador
42 O conceito de crítica, como os demais notados até aqui, não traz uma sistematização por ele elaborada, mas é possível tomar seu significado como interpretação da própria interpretação, o ato de repensar os contextos, reinventando diversas definições. Não somente tolerando, mas reconhecendo e contrapondo as ambiguidades, de maneira que, a partir dessa competência, seja viável a tentativa de resolver as contradições, questionando os discursos pré-estabelecidos. Para Freire, a capacidade crítica do sujeito encontra-se interdependente da capacidade de nomear as coisas. E por isso tal conceito encontra-se notado neste sub-capítulo.
43
se mostra como monitor que coordena um diálogo entre pessoas a quem se propõe
construírem juntas o saber solidário a partir do qual todos ensinam e aprendem.
Esse monitor (ou coordenador) geralmente era uma pessoa alfabetizada e
devidamente treinada para acompanhar um grupo, “quase sempre um jovem, (que)
sabe que não exerce as funções de professor e que o diálogo é condição essencial
de sua tarefa, a de coordenar, jamais influir ou impor” (FREIRE, 2010b, p.13) . O respeito à liberdade dos alfabetizandos era anterior mesmo à organização
dos Círculos. Cada um dos elementos era incitado a conhecer sua própria
comunidade e elaborar o material43 com que seu aprendizado se daria.44
Já no levantamento do vocabulário popular, isto é, nas preliminares do curso, busca-se um máximo de interferência do povo na estrutura do programa. Ao educador cabe apenas registrar fielmente este vocabulário e selecionar algumas palavras básicas em termos de sua freqüência, relevância como significação vivida e tipo de complexidade fonêmica45 que apresentam (2010b, p.13).
Este material então dava origem às palavras geradoras, com as quais eram
coletivamente confeccionadas fichas46 e pequenos cartazes com os recursos locais
(BRANDÃO, 2010, p.263). Segundo Carlos Rodrigues Brandão, esses materiais
eram projetados ou rusticamente desenhados, para que diversas e simples
ilustrações dessem a ideia de representar as pessoas, eles mesmos. As imagens
refletiam as atividades dos participantes, apoiados em suas próprias memórias e
experiências de vida, com projetos que correspondessem à sua visão de mundo. O
que era extremamente fecundo, pois como alega Tsé-Tung, citado por Freire (2005,
p.98), “pour établir une liaison avec les masses, nous devons nous conformer a leurs
43 Esse material era elaborado a partir de uma pesquisa do universo vocabular e do universo temático dos sujeitos, a fim de que as palavras que por eles seriam estudadas, fossem elas prenhe de significado para todos, que dissessem coisas que de fato davam sentido a suas vidas. Sob esses princípios, o léxico utilizado como objeto de estudo girava em torno do campo semântico daquela comunidade, palavras do mundo imediato. 44 Segundo Brandão, esta opção de não acatar método pré-estabelecido, pronto e acabado, convocando os alfabetizandos a uma pesquisa de campo menor em sua própria comunidade constitui-se como uma das experiências pioneiras do que veio a ser posteriormente a pesquisa participante. 45 Os coordenadores selecionavam, primeiramente, somente as palavras constituídas por sílabas na estrutura CV (consoante vogal), que Freire as adjetivava como simples, pois para ele, as sílabas com mais de uma consoante, na estrutura CCV, seriam complexas em um primeiro momento. 46 Nos escritos de Paulo Freire, encontram-se essas nomeadas como fichas de cultura, as quais era utilizadas, como será percebido no texto, também como fomentadoras do dialogo coletivo.
44
désirs. Dans tout le travail pour47 les masses, nous devons partir de leurs besoins, et
non de nos propres désirs, si louables soient-ils”48.
Auxiliado por essas ilustrações, o monitor estimulava a participação de todos
no debate49, fomentando suas palavras e ideias, a fim de que os participantes
começassem a se reconhecer como agentes criadores do mundo de cultura em que
viviam, o que somente era possível, uma vez “que os materiais elaborados [...] se
caracterizavam por serem materiais desafiadores e não domesticadores” (FREIRE,
2011, p. 59).
Segundo Freire essa prática implicaria
que o acercamento às massas populares se faça, não para levar-lhes uma mensagem salvadora, em forma de conteúdo a ser depositado, mas para, em dialogo com elas, conhecer, não só a objetividade em que estão, mas a consciência que tenham desta objetividade; os vários níveis de percepção de si mesmos e do mundo em que e com que estão (2005, p.99).
Nesse momento introdutório, o objetivo não se constituía propriamente na
elucidação de conceitos atrelados à noção de cultura e trabalho, motivação teórica
que não teria significado algum para os alfabetizandos. O que interessava era que
esses educandos particulares e concretos reconhecessem a si mesmos, no
transcurso do debate também como criadores de cultura.
Estabelecidas essas condições para a construção do trabalho com a
alfabetização propriamente dita, depois do estímulo à reflexão dos sujeitos era dada
sequência ao movimento. As palavras geradoras eram desmembradas e analisadas
foneticamente e outras palavras eram formadas, na busca de integração das
palavras no que compete a sua carga semântica, Freire explica: “Estas palavras,
estudadas primeiro de forma isolada, são examinadas depois em seu conjunto, o
que conduz à identificação das vogais. A ficha, que apresenta as famílias em seu
conjunto” (FREIRE, 1980, p.24) chamada também de ficha de descoberta, como
nomeou Aurenice Cardoso, quando ao “sintetizar por meio dela, o homem descobre
47 Ainda que a tradução da preposição francesa pour seja correntemente para na língua portuguesa, optou-se por lê-la como com em virtude da perspectiva freiriana com a qual aqui se trabalha. 48 Tradução livre: para estabelecer uma conexão com as massas, devemos estar de acordo com seus desejos. Em todo o trabalho com as massas, devemos começar de suas necessidades, e não dos nossos próprios desejos, ainda que louváveis sejam eles. 49Vale lembrar aqui que este dialogo provocado e realizado no Círculo de Cultura não deve ser visto como mera metodologia ou método de ação grupal, sendo ele sua própria diretriz de uma experiência Didática, de onde emerge a máxima freiriana de que aprender a ler é aprender a dizer a sua palavra.
45
o mecanismo de formação das palavras de uma língua silábica como o português,
que repousa sobre combinações fonéticas” (FREIRE, 1980, p.24).
Percebe-se que, da visualização das partes, é que seguia o reconhecimento
das famílias fonéticas. Esse processo pode ser melhor compreendido na descrição
contida na mesma obra recém citada, coma conhecida experiência do grupo ao
silabar a palavra tijolo e, a partir do reconhecimento propiciado pela leitura horizontal
e vertical, bem como da síntese oral das três famílias fonéticas,resulta a criação
rudimentar do período tu ja le. Como segue no extrato abaixo:
Um a um, todos criam palavras com as combinações possíveis: luta, lajota, jato, juta, lote, tela etc. Alguns, utilizando a, vogal de uma das sílabas, unindo-a a outra e acrescentando uma consoante, formam uma palavra. Outros, como um analfabeto de Brasília, que comoveu a assistência e nela o antigo Ministro de Educação, Paulo de Tarso, a quem o interesse pela educação levava, ao fim de seu dia de trabalho, a assistir aos debates dos Círculos de Cultura, compôs uma frase “tu já le”, que em bom português seria: “tu já lês”. E isto na primeira tarde de sua alfabetização (FREIRE, 1980, p.25).
É relevante reconhecer que esses pequenos períodos, para eles, eram
abarrotados de significado, o que principiava uma tomada de consciência, pois
incitavam uma crítica da opressão real, facilitados por serem formados com palavras
de uso comum na linguagem do povo e carregados de experiência vivida.Se não
fora o golpe de 1964, seriam mais de 20 mil Círculos de Cultura a trabalhar no Brasil,
o que seria de extrema significância para a solução do analfabetismo (JARDILINO,
2003, p.42). Segundo o autor, essa maneira de alfabetizar foi introduzida com
sucesso em outros lugares de terceiro mundo.
Assim, “do ponto de vista crítico e democrático como ficou mais ou menos
claro [...] o alfabetizando, e não o analfabeto, se insere num processo criador, de
que ele é também sujeito” (FREIRE, 2011, p.41), e a alfabetização não lhes é uma
forma de invasão cultural, uma vez que a aquisição da lectoescrita se dá a partir de
temas significativos à experiência comum dos alfabetizandos.
Se legitimando-o como responsável por fomentar esse caráter social, crítico
e reflexivo do ato de ler, Paulo Freire pode ser considerado o precursor do
letramento no contexto educacional brasileiro, de acordo com a vertente filosófica
que se assume? Soares intercede por meio de suas reflexões acerca do termo com
uma arguição positiva, ao apontar que, a partir do momento em que começa a ser
46
levado em consideração que a formação de leitores perpassa a proposição das
formas próprias como as práticas de leitura se processam na sociedade pela escola,
não é possível desconsiderar a realidade dos sujeitos. A contribuição de Paulo Freire
é inegável, não exatamente porque formulou um método, no sentido restrito de
utilização do campo pedagógico50, mas porque seu método, muito mais do que
analítico-sintético, como modestamente ele mesmo o classifica no capítulo 4 de
Educação como prática da liberdade, é uma reformulação dos meios e dos fins da
alfabetização. Nas palavras da educadora, Freire apresenta:
uma concepção de alfabetização que transforma o material e o objetivo com que se alfabetiza, as relações sociais em que se alfabetiza, é uma concepção que põe o método a serviço de uma certa política e filosofia da educação (2008, p. 119).
Compreende-se que “o grande problema que as campanhas de
alfabetização enfrentam com respeito aos múltiplos discursos é lidar com o processo
de re-escrita da sociedade” (FREIRE, 1990, p.57). Uma vez que essa prática faz
com que o sujeito questione sua razão de ser e de levar sua vida como é, pois, “em
princípio, essa re-escrita rompe a ordem hierárquica rígida das classes sociais e,
com isso, transforma as estruturas materiais da sociedade” (p.57). 3.2. A temática da leitura com foco na Educação Popular
Alguns dos conceitos trabalhados no âmbito da Educação Popular ainda são
bastante caros à educação latino-americana, inclusive por terem perdido sua
radicalidade bem como seus principais objetivos. No que compete a estes últimos,
talvez o principal deles seja a luta contra a alienação51 da população.
50 Segundo Soares, “Método, no campo da educação e do ensino, sempre foi entendido como modo de proceder, como conjunto de meios para orientar a aprendizagem em direção a um certo fim, como sistema que se deve seguir no ensino de um conteúdo” (2008, p. 117). 51 Ainda que empregado pela primeira vez por Hegel em sua Fenomenologia do Espírito (2005) - no momento em que o filósofo debruça-se sobre o conceito de extra si, em que o espírito sai da pura subjetividade, se coisifica e assume uma figuração - o conceito de alienação é compreendido conceitualmente no legado de Freire, com influências calcadas na teoria marxista, como a perda da condição de sujeito na sociedade, perda da condição de ser mais gente. Para o autor é importante que o homem aprenda que está sendo constituído por sua história, que se faz no processo social dentro da mesma, e a alienação seria responsável pela perda da participação nesse processo histórico, reduzindo o homem a condições desumanas de vida, violentas e opressivas. Freire serve-se desse conceito para melhor elucidar as consequências desumanizantes das relações de aprendizagem no contexto escolar sob moldes dominantes da educação por ele nomeada como
47
Entende-se que o sistema escolar constitui a mais importante ferramenta de
resistência e decifração dos enigmas que permeiam o sistema capitalista e,
pertencente a este conjunto de enigmas, a “faculdade” que o ser humano tem de
estranhar o fato de este mesmo sistema ser produzido e alimentado pelos próprios
homens. Contudo, citando István Mészáros, somente o acesso ao contexto escolar
“é condição necessária mas não suficiente para tirar das sombras do esquecimento
social milhões de pessoas cuja existência só é reconhecida nos quadros estatísticos”
(2008, p.11), visto que a democratização do ensino e a expansão dos meios de
comunicação não propiciam a difusão “qualitativa” do saber. A preocupação em
decifrar os enigmas recém citados demanda um questionamento crítico acerca da
estrutura de valores que cooperam para a imortalização da concepção de mundo
baseada no sistema social mercantil.
Partindo da preocupação com o que foi chamado aqui de alienação, o
mesmo autor lança em seu livro Educação para além do Capital a seguinte questão:
“Para que serve o sistema educacional – mais ainda, quando público -, se não for
para lutar contra a alienação?” (2008, p.17), e buscando uma tentativa de resposta
para o pleito é possível lançar mão de uma outra contribuição de bastante valia dos
fundamentos da Educação Popular, abordada pelo pedagogo inquieto: a tamanha
distinção que há entre o fazer para e o fazer com, visto que, em tal dicotomia reside
a diferença de sentido que há entre o pensar para e o pensar com. Quiçá tal
distinção venha configurando uma das maiores carências da educação pública, o
que, utilizando a nomenclatura kantiana, não faz com que o sujeito saia de sua
menoridade52. Esta preocupação configura uma das faces da educação popular, a
necessidade de a educação desvincular-se do papel paternalista e assistencialista
que vem adotando, devido ao perverso quadro social atual, desvincular-se ainda da
ideia de pensar por e para, porquanto assim, ela está pensando contra.
Esta discussão é seriamente elucidada na teoria freiriana, melhor
pormenorizada em dois de seus textos da década de 60 Educação como prática da
liberdade e o clássico Pedagogia do Oprimido. Ambos carregados de reflexões
Bancária. 52 Immanuel Kant, em seu clássico texto Resposta à pergunta “O que é o iluminismo?”, propõe o conceito de menoridade como a “incapacidade de se servir do entendimento sem a orientação de outrem. Tal menoridade é por culpa própria, se a sua causa não residir na carência de entendimento, mas na falta de decisão e de coragem em se servir de si mesmo, sem a guia de outrem”. O conhecido pensador utiliza a expressão Sapere aude para melhor exemplificar tal conceito, e a traduz por: “Tem a coragem de te servires do teu próprio entendimento” (KANT, 1974, p.01).
48
tecidas no exílio, com a tentativa de compreender o povo e o contexto que o autor
havia deixado.
No que compete à preocupação com o protagonismo popular, Paulo Freire é
o nome do contexto brasileiro mais evocado pelo âmbito educacional, principalmente
na medida em que sua proposta de pedagogia libertadora envolve diálogo em vez de
invasão cultural53. Esta que impõe uma outra visão de mundo e que com isto acaba
freiando a expansão das diversas formas de manifestação cultural dos indivíduos,
que reduz o homem do espaço invadido a mero objeto de sua ação, castrando seu
espaço histórico-cultural que lhe possibilita sua visão de mundo (FREIRE, 1977,
p.41). Nas palavras de Freire “a questão se apresenta de modo claro: trata-se de
acomodar as classes populares emergentes, domesticá-las em algum esquema de
poder ao gosto das classes dominantes” (1980, p.17), porém, a invasão cultural se
dá de maneira mais perigosa ainda quando não se tem mais a mesma possibilidade
acessibilizada pela docilidade tradicional, tornando-se indispensável “manipulá-las
de modo a que sirvam aos interesses dominantes e não passem dos limites” (1980,
p.17, grifo nosso).
Mantendo ainda a sua dedicação ao processo de alfabetização da sociedade
como resistência a esta domesticação opressora, como dissertado na seção
anterior, para o pensador pernambucano o ato de ler é uma atividade criadora e não
pode ser vista como um simples processo de memorização mecânica dos vocábulos.
Deste modo, o analfabetismo é facilmente interpretado como um desses limites
(expressão trazida na última citação), principalmente pelo fato de haver um vínculo
estrito entre a escrita (e, consequentemente, a leitura) e os diversos modos de
exercício do poder, fazendo com que esta tão valiosa e almejada técnica seja, nas
diferentes sociedades de classe, distintamente ofertada, possuída e compreendida.
A pedagoga do contexto educacional brasileiro, Magda Soares, já evocada
no segundo capítulo, dedicando seus estudos ao conceito de letramento bem como
aos principais impasses que permeiam a formação do leitor, também traz suas
contribuições facilmente relacionadas à teoria freiriana, apontando a principal
problemática de um quadro social que reforça ainda mais a desigualdade da
sociedade capitalista na qual se vive atualmente, estando esse longe de
53 O conceito de invasão cultural, segundo a teoria freiriana, é a maneira que a sociedade tenta se desenvolver, porém acaba se modernizando, visto que uma cultura impõe sobre outra os seus moldes pré-estabelecidos, deformando a sociedade invadida a ponto de torná-la uma espécie de caricatura de si mesma (FREIRE, 1980).
49
proporcionar de forma equitária a oportunidade de aprendizado a todos, como
sustenta a autora:
o acesso ao mundo da escrita vem significando, apenas, para as camadas populares, ou a aquisição de uma habilidade quase mecânica de decodificação/codificação (ao povo permite-se que aprenda a ler, não se lhe permite que se torne leitor), ou o acesso a universos fechados arbitrariamente impostos (2000, p.25).
Torna-se notório, a partir de tal assertiva, a construção de uma sociedade
alicerçada em interesses bastante antagônicos, fazendo do ato de ler um privilégio
de alguns e não aquilo que deve ter por direito toda uma população. Esta
impossibilidade de acesso ao real mundo da cultura letrada da maioria da
população, como bem contrapôs Soares, é o que vem caracterizando o “novíssimo
analfabetismo”, uma condição de quem sabe codificar, decodificar e até mesmo é
capaz de explicar muitos fenômenos, porém não é capaz de compreendê-los. Nunca
se teve a convivência de uma quantidade tão grande de meios informativos
disponíveis com uma baixa capacidade de interpretação dos fatos e/ou sistema.
Percebe-se que cada vez mais vem sendo confundidos acúmulo de conhecimento e
compreensão do mundo (MÉSZÁROS, 2008).
Quanto a esta perversa indiscriminação a teoria freiriana também resistiu,
inclusive no que concerne ao ato de ler, caracterizando, por exemplo, a população
de Guiné-Bissau como “um povo que, apresentando um alto índice de
analfabetismo, 90% do ponto de vista linguístico, é altamente ‘letrado’ do ponto de
vista político”, criticando assim determinadas comunidades “sofisticadamente
letradas, mas grosseiramente ‘analfabetas’ do ponto de vista político” (FREIRE,
1978, p.17).
Como importante tentativa de inferência a ser extraída das considerações
que permeiam os fundamentos da Educação Popular refletidos no legado de Freire,
talvez a mais antiga e mais atual urgência de seus conceitos para essa área seja a
noção de Conscientização. Que para Freire é uma tarefa de participação de todos,
na medida em que aborda e trabalha com o diálogo e não com a invasão, como aqui
já foi contraposto. Sua atualidade reside no fato de que, ainda, quando se fala em
práticas pedagógicas libertadoras, essas são impostas à comunidade escolar como
um cânone atual a ser seguido, não interessando como, para quê e nem o porquê de
serem realizados, não demandando participação popular alguma, como vem sendo
50
realidade nas escolas com as questões da construção do conhecimento, do
letramento e outros assuntos de grande potencialidade discursiva e impacto no
contexto educacional. Quando sensato seria que fossem compreendidos como
“modernismos” pela população, pois acabam caindo em conceitos vazios e vãos. No
que compete à implantação do letramento na rede pública de ensino, por exemplo,
tem se feito da ciência um fetiche, como se esta fosse uma entidade com vida
própria, esquecendo-se que a ciência apenas tem sentido quando demanda a
participação popular efetiva (BORBA, 1999). Ao impor uma diferente maneira de
formar leitores, a escola acaba deixando de lado o fato de que “a ciência é apenas
um produto cultural do intelecto humano que responde a necessidades coletivas
concretas” (BORBA, 1999, p.43), e, consequentemente, não estabelece uma relação
mais benéfica entre os sujeitos que de tal atividade partilham.
Percebe-se por parte dos educadores uma carência de posicionamento
crítico perante a ciência clássica, carência que fará com que esses profissionais
permaneçam à luz dos princípios que orientam a educação formal e não
proporcionará a realização de práticas educacionais mais abrangentes, que sejam
capazes de romper com a lógica do capital. Situação que se mostra sem egresso,
em um primeiro momento, visto que não pode haver uma solução que se apresente
de maneira efetiva para a auto-alienação sem que haja a promoção,
conscienciosamente, da universalização conjunta do trabalho e da educação
(MÉSZÁROS, 2008).
A fim de não mais viver sob condições desumanizantes e na tentativa de
passar a uma condição subversiva, com sua posição extremamente democrática e
contra uma concepção demasiadamente estreita de como vinha se fazendo
educação e quem eram os chamados intelectuais, Gramsci (1957) já argumentara
que não existe atividade humana da qual qualquer intervenção intelectual possa ser
rejeitada. Ideário tangente ao de Freire, para o qual “outro testemunho que não deve
faltar em nossas relações com os alunos é o da permanente disposição em favor da
justiça, da liberdade, do direito de ser. A nossa entrega à defesa dos mais fracos,
submetidos à exploração dos mais fortes” (FREIRE, 1998, p.77). Tanto do discurso
de Gramsci quanto do de Freire se colige que Homo faber não pode ser separado de
Homo sapiens, como será retomado em 4.1. a partir das contribuições arendtianas.
Assim, no que concerne à formação do leitor, o que o educador em seu
papel de alfabetizador deve constantemente ter ciência é de que, visando tal
51
processo, a diferença entre ele e o alfabetizando é que aquele já lê a palavra, isto é,
domina aquela tão estimada técnica, enquanto este, em um primeiro momento, "só"
lê o mundo, como aponta Freire ao refletir acerca da alfabetização de jovens e
adultos:
A única diferença que os marcava é que os participantes liam apenas o mundo enquanto os jovens a serem formados para a tarefa de educadores liam já a palavra também. Jamais, contudo, haviam discutido uma codificação assim como jamais haviam tido a mais mínima experiência alfabetizando alguém (1998, p. 32).
Inclusive por tal pressuposto torna-se impossível falar em assistencialismo
quando se fala na relação professor/aluno no processo de formação do sujeito-leitor.
Entretanto, tal postura ainda não parece ser adotada no contexto escolar, o fetiche
pela técnica domina a prática pedagógica de grande parte dos educadores,
caracterizando-se como uma sociedade que permanece irracional, apesar de toda
racionalização54, o que será dissertado na primeira seção do próximo capítulo.
Mas já há neste momento a intenção de provocar uma preliminar
desconfiança de como pode ser cômodo para o mundo atual “encurtar distâncias”,
tanto que tais exigências acabam tornando-se prioridade de sobrevivência nesta
civilização complicada de se viver, em virtude de seu perfil tecnologicamente
refinado. Poderia deduzir-se que, até mesmo a concepção que se tem de formação
humana passa a ser repleta de preceitos que reduzem o valor ao significado, o
trabalho ao fim, e, consequentemente, o homem à produtividade? E o que isto tem
a precaver a formação do leitor que se realiza ancorada em falsos preceitos? Que
espécie de leitor é esse que mantém contato com um universo acabado, coeso,
universo que coloca-se como real, conseguindo assim acalmá-lo?
3.3. A dialética acerca do Cânone Literário
Bastante usuais no contexto educacional da atualidade bem como nas mais
diversas produções acadêmicas são os conceitos de inclusão e exclusão. Porém,
54Extrato publicado na Revista Querubim. Ano 08, nº16, vol. 2. Intitulado A formação do sujeito-leitor coadjuvada pelas reflexões acerca de fundamento da Educação Popular. Disponível em http://www.uff.br/feuffrevistaquerubim/images/arquivos/publicacoes/zquerubim_16_v_2.pdf. Acesso em 02 de abril de 2012.
52
justamente por terem se tornado termos de utilização bastante disseminados, sofrem
com o pagamento do alto preço da indefinição, como se estas fossem palavras
místicas que tudo explicassem são encaixadas aqui e ali, por vezes
descomprometidamente, distantes de suas radicalidades (MARTINS apud
OLIVEIRA, 2010).
Segundo reflexões advindas da teoria freiriana, quando se fala em inclusão
de um grupo marginalizado a um sistema, esse está longe de ser um processo de
libertação, visto que, ainda para esta mesma teoria, a solução para aqueles que
estão à margem de estaria em uma integração à sociedade (FREIRE, 1980, 2005).
Todavia, ao analisar de perto a situação, é possível constatar que esses não
estavam de fora no que compete à formação de tal sistema, pois, de acordo com seu
caráter opressor, sempre houve a tentativa de incluí-los, contudo, transformando-os
em seres para outro.
Na formação do leitor contemporâneo, tal problemática se mostra bastante
presente também, posto que sua formação configura-se de maneira desigual às
distintas classes sociais, tanto em seu princípio, isto é, no momento usualmente
chamado de alfabetização, bem como nos próximos ciclos e (talvez principalmente)
no ensino de literatura, quando a leitura - em especial a literária - pode ser entendida
e percebida como um fator importante para a percepção de uma consciência
histórica, a qual sua relevância já foi apontada em 2.1. No entanto, o trabalho com
textos literários nos espaços formais de ensino acaba por relegar a um segundo
plano os aspectos ligados a essa consciência, que é base para a formação cultural.
O ato de ler, para grande parte dos adolescentes, ainda é sinônimo de “ler
no contexto escolar”; ler porque precisa realizar um exame; elaborar um projeto;
discutir um assunto. Situação que parece agravar-se quando a leitura lhes é
imposta, quando esses alunos precisam ler uma série de produções nas quais não
têm oportunidade de opinar. Por vezes, estas leituras não lhes dizem nada e
tampouco lhes são trabalhadas pelo caminho da formação de um sentido, de um
significado. Quem ultimamente vem sendo incumbido de fazer tal seleção? Quais
são os motivos que se tem para que a escola tenha optado por algumas e não
outras obras?
53
Refletindo a respeito de um dos poemas mais conhecidos de Mario de
Andrade,55 pode-se perceber que o autor tinha bastante ciência da nuvem negra que
vigiava os diferentes textos considerados populares de sua época, apontados como
demasiadamente rudimentares para/naquele tempo e, a partir de tal percepção,
produziu Lundu do escritor difícil. Do qual, vale citar o seguinte extrato:
Você sabe o francês “singe” Mas não sabe o que é guariba? - Pois é macaco, seu mano, Que só sabe o que é das estranja.
Ainda que o poema de Andrade possa ser considerado demasiadamente
valorizador de sua nacionalidade, já é notório que o fato de um texto ser considerado
literário ou não, entre outros aspectos, também por sua linguagem não é quesito
muito atual em meio à crítica. Pois bem, quando se fala na habilidade de ler
literatura, a temática parece abordar uma constante discussão.
Por vezes, o educando envergonha-se em ler uma listagem de obras
consideradas cânones literários56 e perceber que não conhece sequer uma delas,
sentindo-se menos culto por não ter tido contato algum com livros considerados por
ele leitura difícil. Se tal constrangimento ocorre é possível que muitos educadores
não estejam esclarecendo que os considerados melhores nem sempre são melhores
para todas as pessoas e que em meio a tais avaliações perpassam pressupostos
teóricos, os quais enumeram as instâncias de legitimação daquele texto.
Com a elaboração dos PCN (Parâmetros Curriculares Nacionais) vem sendo
cobrado aos professores de ensino fundamental e médio que trabalhem com alguns
pré-determinados nomes e gêneros. Devido a tal exigência e aos processos
seletivos, que são os principais meios de ingresso à academia, há uma grande
preocupação em torno do que é ou não considerado bom pela crítica literária. O que
55 Disponível em: http://mario-de-andrade.blogspot.com/2009/05/lundu-do-escritor-dificil.html. Acessado em 08 de fevereiro de 2012. 56É importante destacar que a reverência ao cânone define hierarquias de interesse sustentadas pela autoridade atribuída a críticos e historiadores da literatura, já que o cânon é um evento histórico, visto ser possível rastrear a sua construção e a sua disseminação. Assim sendo, não é suficiente repassá-lo ou revisá-lo, lendo outros e novos textos, não canônicos e não canonizados, sucedendo os “maiores” pelos “menores”. Da mesma maneira que não é suficiente “dilatar o cânon e nele incorporar outras formações discursivas, como a telenovela, o cinema, o cordel, a propaganda, a música popular, os livros didáticos ou infantis, a ficção científica, buscando uma maior representatividade dos discursos culturais. O que é problemático, em síntese, é a própria existência de um cânon, de uma canonização que reduplica as relações injustas que compartimentam a sociedade” (REIS, 1992, p. 76).
54
se não for trabalhado de maneira clara e bem justificada pode reforçar a cultura da
classe dominante, como sendo a única coerente, a correta, a que deve ser seguida,
esquecendo que entre os professores e os alunos existe não apenas temas e
programas (FREIRE, 2005). Por vezes, são encontrados no contexto escolar ótimos
leitores de portadores de texto pertencentes ao seu mundo imediato, com alto
potencial de reflexão, de crítica e de outras capacidades indispensáveis a uma
prática de leitura emancipatória. Entretanto, como foi dito anteriormente, sentem-se
constrangidos ao se depararem com uma listagem em que aparecem somente livros
jamais lidos por eles, fazendo com que pensem que aquilo que por eles é lido, não é
literatura, e talvez realmente não o seja, porém, por vezes, pode funcionar como um
bom meio para chegar-se a esta.
De certa forma, esta imposição pode ser considerada uma negação da
práxis verdadeira, abordada pela teoria freiriana, visto que lhe é negado o
desenvolvimento da criticidade, da reflexão, ou melhor, da ação pensada, de ser
dono de suas escolhas e julgamentos, tendo que se adaptar, isentos de postura
crítica, a uma realidade que não é sua e sim de seu dominador.
A partir destas considerações, vale evocar novamente o que Reis (1992)
salienta, pois se entende a necessidade de articular outras formas de leitura, das
quais possam resultar novas possibilidades interpretativas, o que demanda uma
ativa função do leitor.
É também fundamental lançar mão de outros paradigmas de leitura, estabelecendo o contexto histórico como solo da interpretação. Ou seja, está em jogo uma maneira de ler, uma estratégia de leitura que seja capaz de fazer emergir as diferenças, em particular aquelas que conflitem com os sentidos que foram difundidos pela leitura canônica, responsável em última análise pela consagração e perenidade dos monumentos literários e via de regra reforçadora da ideologia dominante, subvertendo, desse modo, a hierarquia embutida em todo o processo (p. 77).
Este quadro anteriormente apontado e evidentemente antidialógico torna-se
um dos principais impasses da formação do indivíduo como leitor, já que pode gerar
dependência do educando daquele que o instaurou tais valores, gerando a dúvida:
que leituras fará este, a partir do momento que deixar o contexto escolar? De acordo
com a teoria freiriana, essa poderia ser mais uma forma de manifestação da Invasão
Cultural, caracterizada pelo desrespeito às potencialidades do ser, pela imposição
55
de uma visão de mundo que não a sua, os freiando em suas criatividades e inibindo
sua expansão?
Provavelmente a resposta para essas questões seja positiva, haja vista um
estabelecimento de uma aliança que acaba por solidificar um modelo consagrado de
organização dos conhecimentos sobre literatura. O elenco de autores e obras fixado
pelas instituições de ensino determina a pertinência de leitura de textos, servindo
como referência constante de qualidade do que será lido.Ocorre que a fixação desse
elenco de autores e obras, de acordo com esse modelo historiográfico, acaba sendo
um mecanismo repressor, por excluir do universo escolar uma série de textos que
não conseguiram, por uma razão ou outra, a consagração entre a crítica mais
autorizada. A reverência a esse elenco, ao mesmo tempo em que sugere a
necessidade de cultivar, quase de modo religioso, alguns fundamentos da cultura,
ainda que de maneira justa, funciona como um filtro de percepção, que afasta outros
horizontes.
Até mesmo com as crianças, no início de sua formação como leitor, já
devem ser estimuladas a analisar os portadores de texto com olhar de criticidade,
estimulada a pensar certo57 e ter o direito de dizer a sua palavra. O que pode ser
visto como um avanço no campo linguístico educacional, já que se encontram nos
livros didáticos de ensino de língua materna e literatura58 algumas questões que
estimulam tal postura crítica do alunado. Como, por exemplo, com a “inocente” e
informal questão: “Você indicaria este livro a um amigo? Por quê?” Ainda que nesse
material haja uma série de fatores a serem melhorados, ele ainda consiste no
portador de texto de maior disseminação. Ainda é por meio do livro didático que
grande parte da população “conhece” os principais nomes da literatura.
O paradigma educacional emergente demanda alunos portadores dessa
espécie de posicionamento mediante recepção desse material, por isso tal
questionamento é de suma importância para criança, com a necessidade de justificar
sua escolha, de ser dona desta seleção, de julgar se é melhor ou não e o porquê de
tal posicionamento, ela será capaz de desenvolver a autonomia e a criticidade,
posições das quais tanto carecem o contexto escolar atual.
57 Em sua Pedagogia da Autonomia, Paulo Freire aborda a expressão pensar certo como sinônimo de pensar dialético, um ato crítico e não mecânico. Para o autor, pensar certo não é tarefa trivial, porque esta demanda “vigilância constante que temos de exercer sobre nós próprios para evitar os simplismos, as facilidades, as incoerências grosseiras” (1996, p. 49). 58 Não se entrará aqui na discussão da analise dos textos, principalmente dos fragmentos de textos literários em livros didáticos.
56
Por tais motivos é que a missão da escola aos poucos vem mudando,
buscando uma nova visão de mundo, uma nova educação, e por isso, novos critérios
na seleção destes portadores de texto, visto que esse aprendiz não pode mais ser
visto como espectador do processo de formação, nem como pertencente a um
mundo de sistemas fechados, em outras palavras, não pode seguir dizendo a
palavra do outro,
pois a palavra repetida é monologo das consciências que perderam sua identidade, isoladas, imersas na multidão anônima e submissas a um destino que lhes é imposto e que não capazes de superar, com a decisão de um projeto (FREIRE, 2005, p.20).
Outra finalidade desta secção é também de refletir a respeito de algumas
práticas de leitura na sala de aula e ponderar se estas ainda fazem com que o aluno
mantenha a sombra do dominador dentro de si (FREIRE, 1980, 2005). Preocupação
que surge pela necessidade de que esses sejam donos de suas leituras e pela
aversão a um suposto adestramento que nasce da realização de uma leitura imposta
pela crítica que o domina, (nem sempre bem fundamentada) constantemente, em
meio a essa ação antidialógica. No que compete a esta imposição, Paulo Freire a
defende e ao mesmo tempo a confronta:
O professor que desrespeita a curiosidade do educando, o seu gosto estético, a sua inquietude, a sua linguagem, mais precisamente, a sua sintaxe e a sua prosódia [...] tanto quanto o professor que se exime do cumprimento de seu dever de propor limites à liberdade do aluno, que se furta ao dever de [...] estar respeitosamente presente à experiência formadora do educando, transgride os princípios fundamentalmente éticos de nossa existência (1996, p. 59-60).
Contudo, deve ser compreendido também a necessidade de legitimar os
critérios de um referencial coletivo, evitando a abertura em excesso de sentidos
perdidos, desordenados, sem norma alguma a ser ofertada. Esta parece ser uma
incumbência do contexto escolar, que adota uma postura de “ordenador de valores”,
deduzindo que aquilo que é melhor para a totalidade, melhor para o outro, coincidirá
com o que o é para o educando.
Sendo a escola, antes de mais nada, uma instituição social, esta deve
trabalhar a serviço da vida em comunidade, preocupando-se com os níveis de
organização social e principalmente com os interesses que serão defendidos por
todos. Neste sentido, as reflexões de John Dewey (1859 – 1952) muito colaboraram,
57
visto que o pensador pressupõe que educação e democracia configuram dois
sistemas com níveis equivalentes para manter uma organização.
Na vida primitiva, podia-se cuidar da continuidade cultural da vida do grupo, ao que parece deixando-se simplesmente que os jovens convivessem com os pais e outras pessoas do grupo, e aprendessem os costumes da vida tribal, à medida que cresciam, pela simples participação na vida em comum. Mas "à medida que as sociedades se tornaram mais complexas em estrutura e recursos", isso já não basta. Parece necessário o "ensino e a aprendizagem formal ou intencional.59
Além destes argumentos recém citados, em uma de suas obras, Experiência
e Educação (1971), o pedagogo liberal norte-americano praticou uma crítica
categórica à contínua obediência e submissão até então conservadas pela/na
escola, considerando ambas como impasses para o campo educacional, porém, sem
esquecer de que a educação consiste em adquirir hábitos de ação em conformidade
com as regras e padrões de conduta social pré-estabelecidos.
Para melhor exemplificar tal preocupação, Dewey, citado por Gadotti, aponta
como materiais a serem utilizados como ferramentas de organização de informação
da sociedade os livros e especialmente os manuais escolares, e contradita:
A história da teoria da educação está marcada pela oposição entre a ideia de que a educação é desenvolvimento de dentro para fora e a de que é formação de fora para dentro; a de que se baseia nos dotes naturais e a de que é um processo de vencer as inclinações naturais e substituí-las por hábitos adquiridos sob pressão externa (1999, p.149, grifos nossos).
Percebe-se assim que existe um conjunto de saberes, bem como de
padrões de conduta apropriada que acabam sendo de necessidade comum a toda
uma sociedade, que precisam ser valorizadas no contexto escolar, ainda que a
imposição de cima para baixo, oponha-se à expressão e cultivo da individualidade e
que analogamente, a disciplina externa oponha-se à atividade livre, a aprender pela
experiência (DEWEY, 1971).
Se por um lado não se tem a intenção de fazer do educando mais um
componente de uma massa amorfa, que não se pretende trabalhar a serviço do
“enfraquecimento da formação do eu, que de há muito é conhecida da psicologia
como ‘fraqueza do eu’” (ADORNO, 1995a, p.153), não se quer também que o
59Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/me001657.pdf. Acesso em 22 de abril de 2011.
58
educando caia em um individualismo e, consequentemente, no subjetivismo e
mesmo que tal equilíbrio não seja tarefa simples, ainda é incumbência da escola.
A significação do ensino de literatura parece ser muito mais relevante se
essa for capaz de formar as pessoas para a sua individualidade ao mesmo tempo
em que a forma para a sua função na sociedade em que vive. Formação esta já
vislumbrada por Humboldt, que, segundo o paradigma da impossibilidade em que
são tecidas as reflexões da teoria adorniana, não consegue unir ambos objetivos,
visto que “[...] a ideia de uma espécie de harmonia [...] entre o que funciona
socialmente e o homem formado em si mesmo, tornou-se irrealizável” (ADORNO,
1995a, p.154). Talvez o mais coerente não seja o extremo “de se perguntar de onde
alguém se considera no direito de decidir a respeito da orientação da educação dos
outros” (ADORNO, 1995a, p.141), até porque este não é o único nem o impasse
imediato da formação do homem autônomo, emancipado, conforme a teoria de
Immanuel Kant. Um viável princípio pode configurar em, levando em consideração
tudo que até aqui foi abordado, repensar a respeito não só da seleção dos
textos/obras trabalhadas no ensino de literatura como também na formação de todo
currículo escolar, destacando a relevância de trabalhar-se a partir daquilo que faz
parte do conhecimento prévio do aluno. Como vem se mostrando uma das
preocupações primeiras que permeia todo o presente texto. Não somente pela
escolha dos conteúdos como também pela elaboração das estratégias de
abordagem desses.
Embora tal preocupação pareça ser responsável por uma postura
pedagógica diferenciada, que possa permitir a realização de maneiras mais
significativas de ler com um coletivo, tais práticas podem trazer consigo seu lado
perverso: a tentativa de condução e talvez de controle além do desejável naquilo que
compete a sua “metamorfose”. Atingir esta estabilidade parece ser bastante afanoso,
visto que, concomitantemente à vontade de evitar uma invasão, dar ao indivíduo
validade em excesso, relevância demasiada ao seu meio, pode acarretar em um
produto “deficiente”, no que concerne ao comprometimento com o sujeito-leitor em
formação.
Tecendo tais discussões, não se quer dizer que o que faz parte do cânone
não deve ser trabalhado na escola pública de classe baixa, o objetivo não é esse.
Esse aluno chegará a ler Balzac e compreender as bem elaboradas críticas que o
autor francês faz aos ranços da sociedade, mas tal leitura deverá ter, se não este,
59
outros significados para o mesmo, a partir do seu trabalho, do seu esforço, e não
pela leitura de outrem. A partir deste quadro, que então assim possa dizer com a sua
palavra, porque e para que lê-lo. Não se tornando mais uma ferramenta da tamanha
manipulação da elite da atualidade e não deixando que a leitura por ele feita
constitua em um eficaz instrumento de transformação em seres para outro, pois,
retomando o poeta Mario de Andrade, “Todo difícil é fácil, Abasta a gente saber”.
60
4. Theodor Adorno e o ato de ler
O mundo já vai por um bom caminho. Cada vez mais as pessoas lêem por razões utilitárias: para compreender formulários, contratos, bulas de remédio, projetos, manuais, etc. Observem as filas, um dos pequenos cancros da civilização contemporânea. Bastaria um livro para que todos se vissem magicamente transportados para outras dimensões, menos incômodas. E esse o tapete mágico, o pó de pirlimpimpim, a máquina do tempo. Para o homem que lê, não há fronteiras, não há cortes, prisões tampouco. O que é mais subversivo do que a leitura?
Guiomar de Grammont
Falar do tema da leitura presente no aparato teórico de Theodor
Wiesengrund Adorno não constitui tarefa trivial, visto que, diferentemente do
brasileiro Paulo Freire, que o enfoca em diversos de seus escritos, o crítico radical
alemão não deixa claro em suas reflexões o que ele entende pelo ato de ler, não
debruçando-se em nenhuma de suas obras que mais circulam no meio acadêmico
sobre a reflexão em torno de tal habilidade. Contudo, apoiando-se em alguns
pressupostos encontrados em seus textos, talvez seja possível traçar algumas de
suas expectativas a respeito da relação entre a mesma e o sujeito.
Adorno consagrou-se como um dos pensadores mais significativos do século
XX, e ainda que não seja tão abordado no contexto acadêmico, suas reflexões são
atuais e de grande valia para a educação, bem como para as decisões culturais de
valores ainda (e sempre) em curso, visto que não muito do que tem sido escrito
desde então é comparável à ambição e originalidade deste precursor.
Provocado pelo seu contexto, o autor pensava a guerra como fato sobre-
humano e a sociedade alemã como equivocada quanto à virtude humana, ideias que
tangenciam as repreensões de seu interlocutor Walter Benjamin, que, referenciando
E. G. Jünger, aponta que o espírito alemão, profundamente desprovido de vontade,
diz coisas que não pensa, é um rastejar, um acovardar-se, um desejo de não saber, de não viver e de não morrer... Pois é essa a dúbia atitude alemã com relação à vida: poder jogá-la fora, quando custa nada, num momento de embriaguez, num gesto que ao mesmo tempo assegura o sustento dos que ficaram e aureola a vítima com uma glória ilusória (1994, p. 66).
Portador de um suposto negativismo exposto em um paradigma da
impossibilidade originado pós-genocídio e impetuoso em sua luta contra a
61
especialização e qualquer maneira tecnicista de fazer educação - ainda que alguns
espíritos da contemporaneidade não o conceituem como tal, não resistindo à sua
constante insistência em delatar a tamanha negatividade do existente -, Adorno faz
parte do grupo que denuncia o projeto proposto pela modernidade como inacabado,
questionando a maneira como a razão dominou os homens que queriam utilizá-la
para dominar a natureza das coisas. O filósofo pensava que a ciência ainda sofria
com o fetiche a uma interpretação completa do mundo, exaustiva e quimericamente
coerente. Ofertando uma enganadora segurança e uma sólida estabilidade, bastante
atrativas em tempos de falta de referências como os que se vive. Percebe-se isso
chez Adorno, também entendido o fato de que
no cerne de sua obra reside um profundo sentido de ambivalência sobre a possibilidade da liberdade no mundo contemporâneo, e uma interrogação das promessas feitas por nossa liberdade por meio da tradição intelectual do Ocidente a partir de Kant, a saber: que a liberdade depende da afirmação de nossa autonomia como indivíduos; que a liberdade se origina em nossa submissão às normas sociais – ou nossa revolta contra elas” (THOMSON, 2010, p.10).
Dessa forma, optou-se referenciar e evocar as contribuições mais
seguidamente de Theodor Adorno, bem como Paulo Freire, por serem estes
responsáveis por textos que colocam o leitor ante a possibilidade da ruptura com
conceitos oficiais e convencionais. Para o professor da Universidade de Edimburgo
e comentador Alex Thomson, as obras críticas e filosóficas de Adorno são algumas
das mais desafiadoras dos últimos tempos, ramificando a adjetivação em dois
sentidos:
num sentido mais fraco, de que apresentam dificuldades formidáveis de compreensão e interpretação ao leitor, e num sentido mais forte, de que tentam nos forçar a repensar muitas coisas dadas como prontas e acabadas e a questionar a própria possibilidade da filosofia, da arte e da vida moral no mundo contemporâneo (THOMSON, 2010, p.09).
A partir de ambos, pode-se dizer que este tenha incitado mais fortemente a
escolha de tal autor para a temática em questão, entendido o fato que este repensar
traz diferenças das quais espera-se que possam expandi-lo, diferenças que o faz um
autor instaurador da discursividade, de acordo com a perspectiva bakhtiniana, por
permitir em seus escritos que outros pensem algo diferente dele (BAKHTIN, 1992).
62
Defensor de uma espécie de reflexão que não admite quietação, que não
cessa o questionamento do mundo e de si mesma, o autor é lembrado também pela
vasta crítica anacrônica que não sucumbia aos cantos da sereia da indústria cultural,
apontando assim a estética contida na arte como uma das poucas saídas do caos.
Nos anos 1950 e 1960, Adorno tece suas reflexões sociológicas e filosóficas,
(essas que para ele eram disciplinas que não deveriam ser dicotomizadas), sobre a
necessidade de que Auschwitz não caia no esquecimento. Reflexões escritas em um
contexto histórico bastante preciso: o da reconstrução da Alemanha e da
progressiva instauração de um modelo capitalista triunfante na República Alemã
durante os anos de Adenauer, em um ambiente de afirmação de uma nova
identidade dessa nação (GAGNEBIN, 2003).
Em sua obra publicada postumamente intitulada Educação e Emancipação,
constituída por um emaranhado de entrevistas cedidas à Rádio Hessen em 1965
juntamente com outros ensaios dissertados ao longo de dez anos, Adorno utiliza
uma assertiva que resume a preocupação de todo seu legado, lida por seus
comentadores como um novo imperativo categórico por ele proposto: “Que
Auschwitz não se repita!”, a partir de então torna-se possível emblemar seu
pensamento de maneira concentrada. Nega-se que ele tenha feito de Auschwitz seu
tema central, até mesmo porque em sua extensa obra, as referências expressas ao
genocídio não são tão numerosas assim (ZAMORA, 2008), porém, toda ela é
pensada a partir dessa ruptura no processo histórico da humanidade. O que faz com
que outra notória atualidade no seu legado seja o trabalho formativo em torno da
memória do indivíduo, visto que, enodando suas percepções às teorias de Bergson,
entende-a como parte subjetiva do sujeito capaz de auxiliá-lo na atitude autônoma
de efetuar novas escolhas, o que é extremamente relevante ao interpretar essa
preocupação de Adorno com uma nova barbárie.
Esse é um cuidado de grande parte de seus comentadores, que fique claro
que o reproche desse não-esquecimento não é nenhum “apelo a comemorações
solenes; é, muito mais, uma exigência de análise esclarecedora que deveria permitir
– e isso é decisivo – fornecer instrumentos de análise para melhor esclarecer o
presente” (GAGNEBIN, 2003, p. 41).
Não se preocupando em oferecer um relato da história do Holocausto,
Adorno focaliza práticas sociais que se mostram necessárias, em vista dos
processos, concepções e tendências, ocultos na história dos fatos do mesmo,
63
abrindo descobertas para seu uso nas ciências sociais e na filosofia. Interpretando-o
de maneira a emergir sua relevância para os mais demandantes, atuais e alguns
ainda marginais, temas atrelados à evolução do conhecimento e do comportamento
humano.O que fragiliza uma das críticas estabelecidas posteriormente pelo
sociólogo Zygmunt Bauman (1998), que protestava quanto à utilização da temática
no campo das ciências sociais, alegando que,
se eventualmente abordado em textos sociológicos, o Holocausto é no máximo apresentado como triste exemplo do que uma indomada agressividade humana inata pode fazer e, então, usado como pretexto para exaltar os benefícios de domá-la através de um aumento da pressão civilizatória e outra lufada de resolução de problemas por especialistas. Na pior das hipóteses, é lembrado como uma experiência privada dos judeus, como assunto dos judeus e daqueles que os odeiam (p.30).
No que compete ao valor ético da formação do sujeito, provavelmente não
se tenha no contexto educacional ainda encontrado assertiva mais explícita, objetiva
e pertinente que esta, recentemente apontada como seu imperativo norteador, o que
faz com que o leitor perceba toda sua preocupação com o poder de provocação de
um olhar aguçado sobre as catástrofes dos tempos atuais, sobre as mais correntes
barbáries camufladas nas contradições da sociedade de hoje. Não somente a partir
do grafado, mas do não dito também, mostrando-se inexoravelmente crítico perante
seus princípios, suas razões, e extremamente piedoso com as vítimas de tamanha
barbárie, em seu posicionamento. Pensar Auschwitz a partir de seu legado,
indicando algumas articulações teóricas do projeto adorniano, significa pensar as
questões de poder, ética e democracia não como fecundantes, fertilizadoras
“primárias (como ocorre na obra de Foucault, por exemplo) mas derivadas no curso
do desenvolvimento determinado da formação social” (MAAR, 1995, p.22).
Autorizando o leitor a pensá-lo não apenas como representação de um genocídio
num campo de extermínio, mas o simbolismo de uma “tragédia da formação na
sociedade capitalista” (1995, p.22), que se conserva até os dias atuais, designado
por Adorno como semiformação, a qual abordar-se-á no desenvolvimento das
problematizações trazidas por este texto. E com isso, seu legado faz jus ao que
Nechama Tec, citado por Bauman (1998), em suas investigações do espectro social
pós-genocídio constatou: “o Holocausto tem mais a dizer sobre a situação da
sociologia do que a sociologia é capaz de acrescentar, no seu estado atual, ao
conhecimento que temos do Holocausto” (p.21).
64
Quanto mais as situações passam a ser novas e surpreendentes, tanto mais
os insights e as cautelosas análises críticas do pensador alemão vão se
comprovando, não como oráculos diante dos quais se curvam seus adeptos, mas
como provocações para os novos tempos (OLIVEIRA, 2001). Expressando-se mais
fundamentalmente como uma práxis social que mantém viva e cada vez mais
atuante a interpenetrabilidade entre a ótica filosófica e a intenção pedagógica.
Interpenetrabilidade também fortalecida pelo seu modo de utilização tanto dos
argumentos históricos quanto dos conceitos. Adorno tenta implodi-los em vez de
acatá-los, entendida sua ausência de declarações diretas sobre o modo como o
mundo é, explorando os conceitos e argumentos que afirmam dizer algo sobre a
realidade (THOMSON, 2010), visto que, mudar a direção dos conceitos, curvando-os
para a não-identidade é a chave de sua dialética, pensando o insight no seu caráter
constitutivo do não-conceitual. O que faz com que seus desenvolvimentos teóricos
posteriores possam ser lidos, inclusive, como tentativas de retificação e
aprofundamento da versão canônica da Teoria Crítica. “Adorno concebe, por
exemplo, um conceito expandido de ‘experiência’, mais abrangente que o da
‘filosofia social’, descrita por Horkheimer como a junção de teoria e pesquisa
empírica, de filosofia e saber científico especializado” (MUSSE, 2012, p.24).
Refletir sobre o próprio significado das coisas e sobre a maneira como se
apresentam na sociedade torna-se a saída da ilusão de o conceito ser-em-si-mesmo
uma unidade de sentido (ADORNO, 1995a), pois a “crítica da sociedade é crítica do
conhecimento, e vice-versa” (ADORNO, 1995b, p.189).
Encontrando em seu legado todos estes princípios e interesses que
constituem uma maneira questionadora de fazer ciência, pelos motivos até aqui
defendidos, pelo seus princípios de revolução do proletariado, torna-se justificável
analisar a temática da leitura sob a ótica adorniana, entendidas todas aquelas
problemáticas que a permeiam, elucidadas no segundo capítulo. Analogamente ao
capítulo anterior, este também contém suas ramificações constituídas sob as
pontuais e mais relevantes categorias encontradas na teoria adorniana ao tema
original abordado. Porém, de maneira mais discursiva, entendido o fato de que neste
momento valer-se-á das considerações refletidas nas seções anteriores.
65
4.1. A alfabetização proposta por Freire compreendida como resistência ao fetiche pela técnica denunciado por Adorno
Ler em voz alta, ler em silêncio, ter a capacidade de carregar na mente as
bibliotecas mais pessoais de palavras lembradas são aptidões espantosas que
adquirimos por meios incertos. Entretanto, antes que seja possível a aquisição
dessas aptidões o leitor precisa aprender a capacidade básica de reconhecer os
signos comuns pelos quais uma sociedade escolheu comunicar-se. Assim Alberto
Manguel introduz um de seus capítulos em Uma História da Leitura (1997, p.85).
No entanto, linguisticamente falando, duas expressões (já grifadas) desse
parágrafo tecido pelo escritor argentino seriam espontaneamente questionadas do
ponto de vista da aquisição, uma vez que, como já foi abordado no capítulo 2, com o
advento do termo letramento essa capacidade de reconhecimento dos signos não
seria exatamente um processo anterior, que somente precede a capacidade que o
sujeito tem de lembrar as palavras e seus significados em diferentes contextos. Isso
dependeria estreitamente do conceito de leitura que se adota.
Outra expressão passível de questionamento, também anteriormente
grifada, meios incertos, levando em consideração o cunho filosófico e literário de
Manguel, tem seu destaque em virtude de a comunidade científica se dispor a
pesquisar os diferentes métodos utilizados nas escolas e a maneira como a criança
adquire essas aptidões.
A partir de estudos acerca da aquisição da escrita, da capacidade leitora e
do letramento, elucidados na introdução do capítulo 2, e das reflexões acerca do que
pode ser inferido em 3.1. pela teoria freiriana, é possível pensar a escrita como um
conjunto de práticas sociais, que revestem-se de significação política. Se de um
lado, no contexto social, alfabetizar tem constituído uma das tarefas do forte jargão
dar voz ao sujeito, por favorecer meios críticos de participação na sociedade em que
vive; em contrapartida, a aquisição de uma técnica no contexto escolar ainda
configura uma conquista indispensável ao educando e sua dimensão instrumental
continua sendo quesito obrigatório nas avaliações, atribuindo à competência de
codificação a condição de legítimo conhecimento.
66
Nesse mesmo sentido, a pesquisadora e coordenadora do GEAL, Grupo de
Estudos e Pesquisas sobre Alfabetização e Letramento da USP, Silvia Gasparin
Colello manifesta-se de maneira introdutória ao problema: Parece indiscutível que as crianças de nossa sociedade devem aprender a ler e a escrever. No entanto, se perguntarmos aos pais e educadores por que e para que alfabetizar, encontraremos, com certeza, respostas vagas, por vezes incompletas e até paradoxais (COLELLO, 2007, p.27).
Fator que faz com que a lectoescrita se coloque a serviço dos mesmos
preceitos que limitam a compreensão da complexidade social, fazendo do educando
mais um mecanismo de negação da autonomia do sujeito, que nessa sociedade,
prenhe de ambiguidades, passa a ser guiado pela lógica calcada na
produtividade/reprodução, em concordância com os moldes já estipulados pelo
sistema dominante. É bastante provável que alguns dos fatores que revigoram esse
quadro sejam os que seguem na argumentação de Colello, quando prolonga-se:
As expectativas de ensino da língua escrita são tão imprecisas quanto a própria compreensão do alfabetizar. A despeito de boas intenções, as práticas pedagógicas patinam em concepções restritivas, por vezes equivocadas, modismos mal assimilados e métodos inadequados (2007, p. 27).
Esta inquietação da autora vem sendo legitimada pela maneira como são
impostas novas teorias e métodos de alfabetização, potencializados com o advento
do letramento, quando um cânone que é cobrado às escolas, sem preparação
alguma, sem que estes mesmos órgãos governamentais que o impuseram dessem
ferramentas concretas para o professor adotar um conjunto de práticas e
fundamentos, inerentes a tal conceito. Sem que este seja capaz de assumir como
seus os projetos propostos pela escola (ou pelo governo).
Assim sendo, a periculosidade aqui parece ser ainda maior, uma vez que
Moraes (1997) alerta à ilusão de mudança de paradigma educacional apenas pela
utilização de outras roupagens nas velhas teorias, visto que o aluno permanece na
posição de mero espectador do processo de formação, o plano é enganador,
principalmente com o avassalador avanço das tecnologias, em que a maioria pouco
fazem para propiciar ao aluno que seja sujeito da atividade de leitura. “A realidade
produz a ilusão de desenvolver-se para cima e, no fundo, permanece sendo o que
era” (ADORNO, 1995b, p.56).
67
De maneira global, a concepção que se tem a respeito da aquisição da
lectoescrita relaciona-se a um molde “linear e positivo de desenvolvimento, segundo
o qual a criança aprende a usar e docodificar símbolos gráficos que representam os
sons da fala, saindo de um ponto x e chegando a um ponto y” (TFOUNI, p.21). Se a
hipótese da linguista é verossímil, é justificável dizer que o processo de formação do
leitor também sofre com os falsos pressupostos pedagógicos responsáveis pela
inversão de precedência, ou primazia, dos princípios saber como e saber que,
emersos de uma “sabedoria tradicional da prática educativa atual que enfatiza que
onde quer que o saber como seja de importância crucial, o saber que é uma perda
de tempo” (BERTHOFF, 1990, p.XVI). Dessa forma, a maneira tradicional que se
lança mão “para a aquisição de habilidades para ler e escrever, é a atividade
motora” (1990, p.XVI). Tomando o ensino como intervenção e o aparato teórico
como imposição autoritária, trazendo como consequência a perda da experiência60
possível por parte do sujeito.
Adorno escreve em meio a uma sociedade capitalista de industrialização
avançada e sua persistência na ameaça do fascismo contida em sociedades
aparentemente democráticas e desenvolvidas cientificamente tem seu enfoque no
impacto filosófico do devastador do Holocausto. Barbárie planejada e executada no
auge do desenvolvimento cultural humano, em um mundo dito racionalizado e muito
bem organizado. Um fenômeno que não havia como esperar nem prever, uma
tecnologia científica aplicada que, em vez de favorecer a vida, trabalhava contra ela,
como relata Henry Feingold, citado por Bauman (1998):
Nas câmeras de gás as vítimas inalavam gases letais desprendidos por pelotas de ácido prússico, produzidas pela avançada indústria química da Alemanha. Engenheiros projetaram os crematórios; administradores de empresa projetaram o sistema burocrático, que funcionava com um capricho e eficiência que nações mais atrasadas invejariam. Mesmo o próprio plano global era um reflexo do moderno espírito científico desvirtuado. O que testemunhamos não foi nada menos que um esquema de engenharia social em massa (p.27).
60O conceito de experiência que circunda este texto refere-se àquele proposto por Walter Benjamin, isto é, um comportamento sensível e qualitativo do homem em relação às coisas. A experiência benjaminiana procurava preservar um contato imediato com o comportamento mimético, preocupando-se com um saber sensível, que não apenas se alimenta daquilo que se apresenta sensível aos olhos, mas também consegue apoderar-se do simples saber e mesmo de dados inertes como de algo experienciado e vivido. (2009, p. 18). Ainda que este esclarecimento tenha sua relevância nesta seção, no ponto 4.2. o mesmo será um pouco mais pertinente, entendida sua estreita relação com o conceito de Indústria Cultural.
68
Adorno percebeu que essa máquina de extermínio era estruturalmente
semelhante à sociedade alemã organizada de maneira geral, tal máquina era a
comunidade evoluída e bem disposta, com suas ferramentas especializadas em uma
ou outra habilidade segmentada. Por isso, seu constante ceticismo no que concerne
ao provável aprimoramento dos homens por meio do desenvolvimento técnico são
claramente impulsionados pelo genocídio e pela interpretação do empirismo cético
de David Hume, além de persuadidos pela aversão aos céticos da teoria kantiana –
uma linhagem de nômades que recusa qualquer fixação sólida ao chão (KANT,
1994) – pois o filósofo duvida do desprezo a um gênero de pesquisa que não pode
ser tratado com indiferença pela espécie humana, bem como do caminho seguro da
ciência, tornando incertas as posições do racionalismo dogmático. Alguns
comentadores, como Oswaldo Giacoia Junior (2007), apontam em seus estudos a
uma boa leitura de Martin Heidegger, assumida em seus escritos pelo próprio
Adorno, no que concerne ao uso desmesurado da técnica. Uma vez que o influente
filósofo alemão entendia que esta teria sua razão de ser somente no domínio do
desocultamento, isto é, da verdade.
Walter Benjamin, ao partilhar do mesmo contexto e das mesmas
inquietações desvela equívocos acerca da técnica61 (tékhné), como acusa no
seguinte extrato:
Com lança-chamas e trincheiras, a técnica tentou realçar os traços heróicos no rosto do idealismo alemão. Foi um equívoco. Porque os traços que ela julgava serem heróicos eram na verdade traços hipocráticos, os traços da morte. Por isso, profundamente impregnada por sua própria perversidade, a técnica modelou o rosto apocalíptico da natureza e reduziu-a ao silêncio, embora pudesse ter sido a força capaz de dar-lhe uma voz. A guerra como abstração metafísica, professada pelo novo nacionalismo, é unicamente a tentativa de dissolver na técnica, de modo místico e imediato, o segredo de uma natureza concebida em termos idealistas, em vez de utilizar e explicar
61Em virtude da extensa fortuna crítica que se tem acerca do assunto, bem como do aparato teórico adorniano que se adota, o qual não enfoca o processo histórico e positivo da técnica e sim suas principais consequências maléficas na formação ética e estética do sujeito, utiliza-se esta nota como contraponto, resgatando brevemente esses aspectos evolutivos por parte da mesma: A técnica, no decorrer da história, aumentou a rede de elos do homem com a natureza, alterando seu funcionamento de relações produtivas. Em virtude do seu significativo aumento de condições de domínio do ambiente. As diversas maneiras como ela se apresenta são pensadas, elaboradas, criadas e reinterpretadas no momento de seu uso, porém, o uso demasiado delas altera a compreensão de homem, passando ele mesmo a se constituir a partir de técnicas. Ela se torna um depósito de diferentes saberes que perpassam várias gerações, e quando pensadas de maneira sistemática, a fim de que este tenha uma certa utilidade e por vezes uma lógica específica, seu aparato representa muito além daquilo que somente um indivíduo seria capaz de conhecer. Logo, ela deveria ser criada para agir nas potencialidades do fazer humano.
69
esse segredo, por um desvio, através da construção de coisas humanas (1994, p.70).
Incutido por essas revoluções na teoria do conhecimento humano, Theodor
W. Adorno questiona-se quanto ao uso desmedido da técnica, e quanto à “sua débil
capacidade de esclarecer questões morais” (BENJAMIN, 1994, p.61),que toma o
sujeito como mero objeto de dominação, impondo-lhe uma adaptação ao sistema
positivo. Plausivelmente alegando “contra isso que, nas esferas espirituais, como na
arte e, principalmente, no direito, na política e na antropologia, não se avança com o
mesmo vigor que nas forças materiais” (ADORNO, 1995b, p.55), e recorrendo a
Auschwitz a fim de compreender as causas que levaram uma nação civilizada a tal
barbárie e questionar o acalentamento perante o acontecimento. Contudo, vale
lembrar que ele apreende os perigos dessa reificação tecnológica das relações
humanas como persistentes muito para além do fracasso da experiência nazista.
Ainda que, há muito tempo o processo evolutivo do homem seja abalizado
por um crescente poder de disposição técnica sobre as condições que as diversas
situações o impuseram e que a técnica seja figurada como um elemento extrínseco
que assume função decisiva na maneira como o homem integra-se a seus pares - e
pode se dizer que esta é a função benéfica da técnica, pensada como elemento
constitutivo do homem e da sua vida social,uma tentativa de combinação entre o
mundo físico e artefatos úteis - o raciocínio filosófico faz com que Adorno construa
pressupostos que desconfiem da relação que se tem entre a visão científica do
mundo e os homens, provocando com seu potencial discursivo outras perguntas
igualmente inquietantes. Em um primeiro momento: Técnica --- para quê?62
Não se sabe com certeza como se verifica a fetichização da técnica na psicologia individual dos indivíduos, onde está o ponto de transição entre uma relação racional com ela e aquela supervalorização, que leva, em última análise, quem projeta um sistema favorito para conduzir as vítimas a Auschwitz com maior rapidez e fluência, a esquecer o que acontece com essas vítimas em Auschwitz (ADORNO,1995a, 133).
O termo fetichização, expressa a alienação do trabalhador, em que sua força
de trabalho é convertida em mercadoria, em valor de troca. O fetiche, por sua vez,
consiste em um plano enganador, o qual quer transformar o que não é natural em
natural. Assim, a força do trabalho humano não se originou como mercadoria,
62Estrutura da questão elaborada em alusão a um dos capítulos da obra póstuma de Adorno Educação e Emancipação: Educação --- para quê? (1995a).
70
converteu-se em tal através das transformações sócio-históricas. Ainda que a
citação seja de um dos mais recentes textos, esse conceito é melhor focado por
Adorno nos seus estudos sobre a música e a regressão da audição, nos quais ele
analisa a técnica em seu conjunto social. O fetiche pensado por Adorno ocorre
quando, em primazia a uma simples reação, a técnica perfeitamente acabada
substitui a perfeição da sociedade (1999). Uma ideia de aceleração dos
instrumentos técnicos, seus ritmos, suas fontes de energia, etc., que não encontram
na vida pessoal dos sujeitos alguma utilização completa, suficiente em si mesma, e
no entanto lutam por justificar-se (BENJAMIN, 1994, p. 61).
Para o filósofo da melancolia a guerra serve como caminho de justificação,
renunciando a todas interações harmônicas entre os homens, modelando pessoas e
provando, com suas devastações que, a realidade social não é democrática e não
está madura para transformar a técnica em seu órgão e que a técnica não é
suficientemente forte para dominar as forças elementares da sociedade (BENJAMIN,
1994). Razões tangentes e insatisfação semelhante à que move Adorno, ao
expressar parte de sua concepção de educação, que
[...] evidentemente não a assim chamada modelagem de pessoas, porque não temos o direito de modelar pessoas a partir do seu exterior; mas também não a mera transmissão de conhecimentos, cuja característica de coisa morta já foi mais do que destacada, mas a produção de uma consciência verdadeira. Isto seria inclusive da maior importância política; sua idéia, se é permitido dizer assim, é uma exigência política. Isto é: uma democracia com o dever de não apenas funcionar, mas operar conforme seu conceito, demanda pessoas emancipadas. Uma democracia efetiva só pode ser imaginada enquanto uma sociedade de quem é emancipado (ADORNO, 1995, p.141-142).
Para Adorno, é no rompimento desta ideologia antidemocrática que a
educação deve trabalhar, como prossegue no fragmento a seguir:
[...] quando procuramos cultivar indivíduos da mesma maneira que cultivamos plantas que regamos com água, então isto tem algo de quimérico e de ideológico. A única possibilidade que existe é tornar tudo isso consciente na educação. [...] a educação [...] precisa trabalhar na direção dessa ruptura, tornando consciente a própria ruptura em vez de procurar dissimulá-la e assumir algum ideal de totalidade (ADORNO, 1995, p.154).
71
Bem como toda prática educativa, a prática adotada para a formação do
leitor envolve uma postura teórica por parte do formador, postura que implica uma
concepção de homem que se deseja formar e de mundo que se quer construir, uma
vez que a ação humana, tanto ingênua quanto crítica, envolve finalidades, sem o
que não seria práxis, ainda que fosse orientação no mundo. E não sendo práxis,
estaria ignorando seu próprio processo e objetivos. Dessa forma, a relação entre a
consciência do projeto que se propõe e o processo pelo qual se busca sua
conscientização é a base da ação planificada dos seres humanos, que implica
métodos, finalidades, concepções de valor e de homem. O que demanda uma
postura política, explícita ou disfarçada, e crítica do educador perante seu processo
histórico também. E uma função de analista crítico perante métodos utilizados,
comprometida com as opções valorativas que revelam uma filosofia do homem,
consciente de sua não-neutralidade (FREIRE, 2010a).
Quando se discorre acerca do fetiche pela técnica, acendido pelo contexto
adorniano, a razão mais plausível de questionar a capacidade de juízo político
desses estudiosos enquanto estudiosos, que trabalharam em prol de Auschwitz, não
é a formação moral - pela hipotética possibilidade de absterem-se da criação de tais
armamentos - nem mesmo sua inocência - pela ignorância quanto a sua aprovação
ou não de tal utilização - e sim por habitarem em e contribuírem com um mundo
onde as coisas não são discutidas e a capacidade de pensar perdeu sua importância
primeira. Sobretudo quando Hannah Arendt sustenta que tudo o que os homens
fazem, sabem ou experimentam só têm significado, só têm sentido, a partir do
momento em que podem ser discutidos (1997), isto é, na medida em que se tornam
atos políticos63.
63 O conceito de política adotado no texto ancora-se em duas vertentes que se completam, talvez por pertencerem à mesma raiz: a experiência da polis grega. A primeira delas é a concepção freiriana, tratando-se de um conceito básico que perpassa toda sua obra, quando emerge de seu discurso o caráter político libertador. Freire pensa o homem como sujeito histórico, articulando o presente com o já vivido, fazendo com que este seja capaz de pensar acerca das possibilidades de construção e saídas aos modelos estipulados pelo projeto da modernidade. Para ele, um dos aspectos que faz do homem um sujeito político é a ciência de que esta mobilidade nas estruturas sociais modernas é a possibilidade de recriação (COSTA, 2010), uma sociedade política, na concepção freiriana, é aquela que permite a todos que digam a sua palavra, pois assim o homem torna-se partícipe da decisão de transformar o mundo, reinventando a sua sociedade (FREIRE, 1990). Arendt não propõe um conceito distinto, porém, talvez um pouco mais radical, quando na concepção da autora« sur le modèle grec et romain, on voit alors Arendt déchiffrer les catégories fondamentales que sont, par exemple, l’action et la parole, la promesse, etc. Ce qui amène à dire que la raison d’être de la politique (sa raison d’être et non un but, qui serait extérieur et plus haut qu’elle) est la liberté, qu’elle repose sur l’égalité et non sur la justice » (AMIEL, 2007). Tradução livre: “sobre o modelo grego e romano, se percebe Arendt decifrar as categorias fundamentais que são, por exemplo, a ação e a palavra, a promessa, etc. Isto
72
Que pessoas tiveram coragem de efetivamente fazer esse trabalho? Quais
as condições que levam as pessoas ditas boas a permitir que o fizesse? Essas
questões lançadas pelo próprio Adorno, ou inferidas através de seu discurso, são
sugestivas de algumas outras ainda: Como pode o homem, desde sua iniciação
escolar, ser capaz de não pensar, não questionar e não compreender aquilo que, no
entanto, é capaz de executar? Se “durante muito tempo esses seres que estavam se
fazendo escreveram o mundo mais do que falaram o mundo, tocavam diretamente o
mundo e agiam diretamente sobre ele, antes de falarem a seu respeito” (FREIRE,
1990, p.32), é possível deduzir um suposto desacordo entre aquilo que se faz e
aquilo que se pensa?
A reflexão acerca dessas demandas se dá no mesmo sentido proposto por
Ann E. Berthoff, quando, apoiando-se no que traz a teoria freiriana, faz a distinção
entre saber que e saber como, saber este que a atual sociedade tanto estima,
conhecido como know-how. Se de fato há esse desacordo entre esse saber técnico
(saber como, saber fazer, e essa instrução reitera-se neste momento com o know-
how) e o pensamento das criaturas humanas, todas elas serão servas desse saber
como? Dominados por qualquer espécie de técnica que seja capaz de emitir juízos a
todos comunicáveis, por todos verificáveis (ou compartilháveis)?
Categórico como de costume, Adorno argumenta:
na relação atual com a técnica existe algo de exagerado, irracional, patogênico. Isto se vincula ao ‘véu tecnológico’. Os homens inclinam-se a considerar a técnica como sendo algo em si mesma, um fim em si mesmo, uma força própria, esquecendo que ela é a extensão do braço dos homens (1995a, p.132).
Analogamente às questões adornianas e lembrando o que foi introduzido por
Silvia Collelo, no que compete à alienação da comunidade escolar acerca da
finalidade da alfabetização, emerge a demanda de mais algumas: Lectoescrita ---
para quê? Para quê se formam leitores?
Segundo Lerner (2002), na escola brasileira, não raro a aquisição da
lectoescrita aparece sempre de maneira atrelada ao tempo que o estudante está na
leva a dizer que a razão de ser da política (sua razão de ser e não um objetivo, que seria exterior e mais alto que ela) é a liberdade, que é baseada na igualdade e não na justiça”. Assim, para Arendt, ser político significa viver em uma polis, ser participante e fazer uso da palavra e da persuasão, que torna o conceito freiriano mais claro, que traz o homem como sujeito de sua história, sujeito capaz de interromper o fluxo inexorável dos acontecimentos.
73
escola, à vida estudantil. Ler para aprender, ler em voz alta e escrever para
cristalizar o aprendizado do ciclo, com interrogações heteróclitas (e ao mesmo
tempo correntes) advindas da comunidade escolar como: Professora, que dia será o
teste de leitura que aprovará o Joãozinho para o ano seguinte?64 65 tornando essa
capacidade bastante artificial e, na maioria das vezes, desprovida de significado,
fazendo da técnica “a essência desse saber, que não visa conceitos e imagens, nem
o prazer do discernimento, mas o método, a utilização do trabalho de outros, o
capital” (ADORNO, 1985, p.18).
Utilização do trabalho de outrem de maneira extremamente artificial, se
conjugado ao que Délia Lerner aponta quando denuncia a atividade de ler em voz
alta como atividade de valor probante. Atividade que escava um abismo, percebido
quando se retorna à história da leitura e se nota que ela era sinônimo de uma
experiência partilhada, como narra Manguel. O qual tem suas argumentações
reforçados por Moacir Scliar (2008):
Nos mosteiros medievais, por exemplo, um monge lia para os outros, ainda que esses outros soubessem ler. No século 19, o pai ou a mãe lia para a família reunida que, igualmente, podia ler. Mas é que o texto proporciona um vínculo emocional, inclusive com o autor – não por outra razão Baudelaire considera o leitor “mon semblable, mon frère”,meu semelhante, meu irmão (p. 39).
Se considerado for o que até aqui discorreu-se, esta prática de aquisição
estaria levando os sujeitos a barbárie análoga a Auschwits, quando indivíduos que
se encaixam “cegamente em coletivos convertem a si próprios em algo como um
material, dissolvendo-se como seres autodeterminados. Isto combina com a
64 Assertiva referente à vivência da pesquisadora em sala de aula e que faz parte daquela gama de análogas questões que, como mencionado na introdução do texto, impulsionaram a busca das teorias aqui abordadas. 65 Segundo Manguel, em todas as sociedades letradas aprender a ler tem esse caráter fetíchico de iniciação. À bem da verdade, ele não o diz dessa maneira, o que Manguel enfoca é a passagem ritualizada para fora de um estado de dependência e comunicação rudimentar. Para o romancista, a criança, aprendendo a ler, é admitida na memória comunal por meio dos livros. Referencia-se aqui estas palavras, mais precisamente para introduzir uma prática corrente na sociedade judaica medieval, em que o ritual de aprender a ler era celebrado explicitamente. “Quando Moisés recebia a Torá das mãos de Deus, o menino a ser iniciado era envolvido num xale de orações e levado por seu pai ao professor. Este sentava o menino no colo e mostrava-lhe uma lousa onde estava escrito o alfabeto hebraico, um trecho das Escrituras e as palavras ‘Passa a Torá ser tua ocupação’. O professor lia em voz alta cada palavra e o menino as repetia. A lousa então era coberta com mel e a criança a lambia, assimilando assim, corporalmente, as palavras sagradas. Da mesma forma, versos bíblicos eram escritos em ovos cozidos descascados e tortas de mel, que a criança comeria depois de ler os versos em voa alta para o mestre” (1997, p.90).
74
disposição de tratar outros como sendo uma massa amorfa” (ADORNO, 1995a,
p.129). Esses sujeitos são formados de tal maneira que eles mesmos se igualam a
coisas, motivo pelo qual são capazes de fazer o mesmo com o próximo. “Essa forma
de ser, Adorno ilustra com a intraduzível expressão fertigmachen (concluir/liquidar);
essa expressão define os homens como coisa preparada, manipulada, e coisa
danificada” (JUNIOR, 2007, p.131).
A partir do que foi considerado acerca do conceito de política, o leitor
somente poderá se formar perante um ato político, só estará preparado para o
convívio na polis dessa maneira. Entendido que o sentido no contexto de cada
leitura é valorizado tem seu perfazimento perante os outros objetos do mundo,
perante outros leitores, perante tudo quanto o leitor tenha conexão.
Esta construção um tanto quanto imperativa e o abismo que pode ser
percebido na distinção entre duas categorias arendtianas neste momento
contribuem na compreensão da desunião entre a técnica da lectoescrita adquirida
por si só, com fim em si mesma, e a leitura como ato social e político, são elas
trabalho e ação. Segundo a autora, esta última consiste em “la seule activité qui
exige la pluralité”66. Pela ação “l’être humain se révèle, se distingue, et s’exposant
aux autres, à ses compagnons, montre qui il est, son unicité”67 (AMIEL, p.07). Dessa
forma, o leitor da ação é o leitor da pluralidade, partindo de um dos eixos
fundamentais da Condição Humana arendtiana de que homens vivem na Terra e
habitam o mundo, e não Homem (ARENDT, 1997).
Toda leitura irá pressupor uma interação com uma determinada cultura,
agindo constantemente nos moldes do imaginário coletivo que essa possui, isto é,
ainda que o sentido ocorra no plano imaginário individual de cada leitor, fatalmente
pela função formadora que este ato traz consigo, partilha sentidos com membros de
sua sociedade também. Assim sendo, o sentido que se extrai da leitura, irá
“immédiatement prendre place dans le contexte culturel où évolue chaque lecteur”68
(JOUVE, p. 12-13).
Diferentemente do leitor do trabalho que, ainda de acordo com a mesma
teoria em questão, seria aquele que produz um mundo artificial de coisas, vive do
outro lado de uma fronteira individualmente e necessita de uma produção, criativa ou
66Tradução livre: “a única atividade que exige a pluralidade”. 67Tradução livre: “o ser humano se revela, se distingue, e se expõem aos outros, a seus companheiros, mostra quem ele é, sua unicidade”. 68Tradução livre: “imediatamente tomar espaço no contexto cultural, onde evolui cada leitor”.
75
não, para justificar sua existência humana e possui a mundaneidade como sua
condição humana. O que é insuficiente para uma vida humana digna de fato, com a
participação política de cada um, como vislumbra as reflexões arendtianas. Percebe-
se nesta espécie de leitor a carência de posicionamento crítico, em virtude de seu
caráter alienado de participar, ou não participar, da vida activa, uma vez que sua
participação social se da “de façon cyclique, répétitive e anonyme”69 (AMIEL, p.85,
grifos nossos).
Apoiando-se em ambas categorias e mormente na teoria adorniana, é
possível dizer que a leitura, quando pensada como técnica, é apreendida como uma
natureza, como um ser-assim, como um dado estipulado e imutável. Convertendo a
relação humana que há na leitura em coisa e privando o sujeito de uma experiência
heterônoma, autêntica e formativa.
Em seus escritos, o pensador frankfurtiano menciona o conceito de
consciência coisificada, ou coisificação70, “uma consciência que se defende de
qualquer vir-a-ser, frente a qualquer apreensão do próprio condicionamento,
impondo como sendo absoluto o que existe de um determinado modo” (1995a,
p.132). Que é ratificada pela expulsão do pensamento e diligencia a favor de uma
suposta proteção da mente contra a superstição, como segue:
[...] na crença de que a escola deve abarcar apenas e restritamente a constatação de fatos e a aplicação de fórmulas de cálculos, para se proteger a mente da superstição e do charlatanismo, prepara-se o terreno para prevalecer a superstição e o charlatanismo. [...] Na sala de aula, a expulsão do pensamento ratifica a coisificação do homem que já foi operada na fábrica e no escritório (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 47).
Um dado inalterável, e não como algo que veio a ser. Uma relação cega com a
leitura, uma vez que não é questionado o como-ficou-assim:
A consciência coisificada, que entende mal a si mesma como se fosse natureza, é ingênua: toma a si mesma – algo que veio a ser e que é completamente mediado em si – como se fosse, conforme expressão de
69Tradução livre: “de forma cíclica, repetitiva e anônima”. 70Na tradução de Wolfgang Leo Maar há uma nota explicativa a respeito da opção por ele feita, uma vez que o termo original alemão é Verdinglichung, ou Verdinglichtes Bewusstsein (consciência coisificada) e o mesmo advoga ter optado por esta tradução em virtude de uma suposta trivialidade mais fluente e direta daquilo que Adorno queria atrelar à coisa. Há outros comentadores/ tradutores que optam pelo termo reificação, o que na literatura inglesa é bastante utilizado, no entanto, ambos mantêm as mesmas características do fenômeno introduzido por Lukács em História e consciência de classe, o de tratar os sujeitos como coisas.
76
Husserl, a esfera do ser das origens absolutas, e aquilo que ela arma diante dela como sendo a coisa tão ansiada (ADORNO, 1995b, p.192-193)
Seguido dessas palavras, Adorno se utiliza da expressão latina caput
mortuum para alegar que, com esse anseio à objetividade [Salchlichkeit], o sujeito
retém a cabeça sem vida do conhecimento e nada mais. E o mais contraditório é
que ao mesmo tempo que essa espécie de louvor, de culto que se presta a uma
técnica que não tem como objetivo primeiro formar participantes autônomos da
cultura escrita, ela possui uma valorização pública dada àqueles que dessa
comunidade partilham as habilidades demandantes, uma relação estreita entre o
sucesso escolar e aquilo que é material. Uma espécie de veneração do que é auto
fabricado, o qual, em virtude do seu valor de troca, se aliena do homem. Isto é, o
que conta para a prosaica objetividade do pensar orientado pelo lucro: tudo menos a
coisa mesma. “Esta se perde naquilo que ela rende para alguém” (ADORNO, 1995b,
p.193).
Se agora equacionada for a conexão entre o estudo da consciência
coisificada e uma análise da atual relação com a técnica da lectoescrita, extrai-se
como consequência que essa espécie de caráter manipulatório que se mantém
constitui “exatamente o tipo de energia psíquica requisitado pela civilização
predominantemente tecnológica, isto é, o homem tecnológico, ou tecno(buro)crata”
(JUNIOR, 2007, p. 133). Semelhante àquele que depositara confiança cega e
interminável no imenso avanço tecnológico, como pode ser alvitrado através do
irônico discurso benjaminiano:
Desconfiança acerca do destino da literatura, desconfiança acerca do destino da liberdade, desconfiança acerca do destino da humanidade européia, e principalmente desconfiança, desconfiança e desconfiança com relação a qualquer forma de entendimento mútuo: entre classes, entre os povos, entre os indivíduos. E confiança ilimitada apenas na IG Farben71, e no aperfeiçoamento pacífico da Força Aérea. E então? (BENJAMIN, 1994, p. 34).
71 Segundo Sutton (1976, cap. 2, tradução nossa), a IG Farben foi um conglomerado de empresas alemãs formado em 1925. Esse conglomerado deteve o monopólio quase total da produção química na Alemanha Nazista. O gás venenoso Zyklon B, usado nas câmaras de gás para assassinar massivamente todos os indesejáveis, principalmente os judeus, foi inventado, produzido e distribuído pela IG Farben. Gás suficiente para matar 200 milhões de seres humanos foi produzido e vendido pela IG Farben. Entre as várias empresas que constituíam a IG Farben tem-se a Hoechst, a Agfa, a BASF e a Bayer.
77
Adorno se utiliza das ideias marxianas para criticar o caráter fetichista da
mercadoria, defendendo que ela devolve aos homens, como um espelho, os
caracteres sociais do seu próprio trabalho como propriedades naturais e sociais
dessas coisas. Para o autor, a situação agrava-se quando o homem não é capaz de
se reconhecer naquilo que ele mesmo foi e é capaz de coisificar (1999, p.77-78).
Uma forma de relação social com o próprio trabalho, porém externa.
Dentro de uma maneira coisificada de se apoderar de uma técnica, bem
como de reproduzi-la, seria viável um espaço suficiente dentro de uma alfabetização
emancipadora que possibilitasse que os educandos tomassem parte de seus
próprios discursos e, simultaneamente, avançassem para além deles, de modo a
expandir capacidade e desenvoltura para lidar com os demais discursos, inclusive
este que lhe é externo (FREIRE, 1990)?
A réplica é negativa, uma vez que a imediatidade com que o sujeito concebe
e reproduz o que recebe, sem o crivo da reflexão, reverte-se num cotidiano de
universo tão limitado que inviabiliza assim qualquer dimensão utópica em
contraposição às condições sociais de exploração a que está submetido (FABIANO,
2001, p.137).
A imutabilidade [Immergleichheit] do todo, a dependência das pessoas em relação às necessidades vitais, das condições materiais de sua autoconservação, como que se esconde por traz da própria dinâmica, do incremento da presumida riqueza social; isto favorece a ideologia (ADORNO, 1995b, p.56)
Nesse sentido que a aquisição de uma escrita não deveria ser diferente de
uma proposta de alfabetização em que “o conhecimento, no entanto, deveria ser
guiado pelo que não é mutilado pelas trocas ou – pois não há nada mais que não
esteja mutilado – pelo que se oculta por trás das operações de troca” (ADORNO,
1995b, p.193). Uma concepção de alfabetização mediada pela relação de
comprometimento com a utilização de uma técnica, que somente começasse a ser
pensada e compreendida na medida em que possuísse um significado no mundo
imediato de cada um, partindo de suas necessidades. Esse princípio de formação
institucionalizada do leitor seria, então, essencialmente ético, na medida em que
originaria um novo espírito e posicionamento perante a técnica e, nos tempos atuais,
perante a voracidade tecnológica.
78
Uma maneira de aquisição da lectoescrita que não dicotomizasse o produzir
e o conhecer, quando somente uma mentalidade que Marx chamaria de
grosseiramente materialista poderia reduzir a alfabetização a uma ação puramente
técnica. A mentalidade ingênua não é capaz de perceber que a técnica, em si
mesma, como instrumento de que se servem os seres humanos em sua orientação
no mundo não é neutra (FREIRE, 2010a). Não permitindo que a escola se
constituísse como mais um espaço correspondente à ideologia capitalista
(FREIRE,1986, p.19). Contrariando “os programas de alfabetização em geral (que)
oferecem ao povo o acesso a um discurso predeterminado e preestabelecido,
enquanto silenciam sua própria voz, a qual deve ser amplificada” (FREIRE, 1990,
p.37).
Conscientemente ou não, há uma filosofia implícita de homem que se quer
formar, de seres humanos que o mundo precisa. Para Freire, na medida em que os
alfabetizadores vão provocando os alfabetizandos com as palavras geradoras, pode-
se identificar uma primeira e importante dimensão da imagem de ser humano que
começa a emergir. Quando a alfabetização é impelida pela finalidade puramente
técnica, com dificuldades crescentes puramente fonéticas, entende-se que essa
concepção é de um ser humano cuja consciência especializada e vazia deve ser
enchida para que possa avançar. Segundo Freire, essa é a mesma concepção que
levou Sartre, criticando a noção de que conhecer é comer, a exclamar em
Situations1: “Oh!” Uma concepção digestiva (ou nutricionista) de conhecimento,
ainda comum na prática corrente, em que a palavra é transformada em mero
depósito vocabular (FREIRE, 2010a).
A partir de tais caminhos é possível pensar-se em uma formação do leitor à
luz da teoria freiriana. Não tomando o termo teoria em seu sentido acadêmico -
como um conjunto de proposições logicamente encadeadas, querendo ser
abrangentes e amplas, com a pretensão de unificar as mais diversas visões de
mundo bem como maneiras de operar nele -, mas a formação do leitor sugerida por
uma teorização freiriana, como prevenção de uma espécie de conduta que tem sido
corrente no contexto acadêmico educacional. Teorização por falar de um autor que
não pensou métodos, nem ideias, e sim existências.
Contudo, não se quer dizer com estas palavras que o educando não deve
apropriar-se dos códigos e culturas das esferas dominantes, de maneira que não
seja capaz de transcender a seu meio ambiente. Admite-se que há uma
79
mecanicidade necessária à utilização da língua escrita, nesse contexto entendida
como a técnica da capacidade leitora, no entanto, ela não deve se constituir em uma
razão de ser. Ambas teorias em evidência não negam nem social, que neste instante
quer-se que seja compreendido como objeto de conhecimento comum; nem a
acentuação apenas do desenvolvimento da consciência individual. “Daí a
importância da subjetividade. Mas não posso separar minha subjetividade da
objetividade em que se gera” (FREIRE, 2010a, p.29).
Admite-se que até mesmo a ideia de alfabetização emancipadora considera
as duas dimensões da alfabetização, quando por um lado os alunos devem
alfabetizar-se quanto às próprias histórias e necessidades, a experiências e à cultura
de seu mundo imediato; e por outro devem partilhar um código social comum a
todos sem sufocar nenhuma das duas dimensões (MACEDO, 1990, p.29).
Logo, não se tem a pretensão de defender que a técnica não deva ser
adquirida e tão pouco menorizada. Uma formação do leitor após Auschwitz deve
certamente estar receptiva à relevância essencial da técnica no mundo
contemporâneo. No entanto, não é o sujeito que está a serviço dela e sim a relação
contrária. O que somente poderá ser compreendido, como sugere ambos autores
em questão, através da auto-reflexão crítica, que poderá fazer com que o sujeito
leitor apreenda a técnica como mais uma dimensão do agir humano. Como potente
braço prolongado do operari humano, pensada como acontecimento paradigmático
na história do ser (JUNIOR, 2007).
Dessa forma, uma das preocupações é que a escola tome-a como
ferramenta e não como dominante no processo de formação do leitor, e que pense
as possibilidades de ingresso em uma relação humana e saudável com técnica. O
que é possível, uma vez que “as instituições esclerosadas, as relações de produção
não são pura e simplesmente um ser, mas sim, embora como onipotentes, algo feito
por pessoas, revogável” (ADORNO, 1995b, p.55). A fim de que seja compreendido
que ela (a técnica) é somente um meio para o fim, que é uma vida humana digna
(ADORNO, 1995a).
80
4.2. Indústria Cultural, Emancipação72 e Ensino de Literatura
Dando prosseguimento às reflexões trazidas em 3.3. no que concerne ao
ensino de literatura e ao estabelecimento de um cânone literário; considerando as
preocupações governamentais de trazer parte dos clássicos da literatura para os
livros didáticos de língua portuguesa e o fácil acesso aos textos originais em rede
nos tempos atuais, entende-se a necessidade de uma democratização da literatura,
e um melhor acesso das massas a essa, em prol de uma formação estética do leitor.
Preocupação semelhante à de Walter Benjamin, quando na década de 1930 tece
suas reflexões acerca da reprodutibilidade técnica da obra arte73, inquietando-se
otimistamente com a superação das deficiências de ordem social.
Ainda que seus objetos de análise centrais fossem o cinema e a fotografia,
os ápices da técnica em tempos de industrialização, analisando a cena russa e
acreditando no potencial arremetido pela cooperação no trabalho criativo, havia em
seus escritos uma preocupação claramente expressa de politizar a arte, permitindo
que ela tomasse outras funções sociais, tornando mais próximo o distante vínculo da
massa com a aquela: “A reprodutibilidade técnica da obra de arte modifica a relação
72A partir do momento que o presente texto lança mão deste conceito, intuindo, inclusive, determinadas divergências de apreciação no que concerne às traduções do legado de Adorno, é necessário que este seja exposto de maneira notada. O conceito de emancipação proposto pela maior parte dos textos que se propõem a abordar a teoria adorniana, e que a presente pesquisa assume, está estreitamente relacionado ao conceito de autonomia, proposto por Immanuel Kant, pela vereda de ato pelo qual os indivíduos passam a ser responsáveis pelas suas palavras e atos. Em Resposta a pergunta: que é o Esclarecimento (Aufklärung)? (1974) Kant conceituou Esclarecimento como a saída do homem da sua menoridade de que ele próprio é culpado. Para o filósofo, menoridade, “é a incapacidade de se servir do entendimento sem a orientação de outrem” (p. 09). O contexto social permite uma condição de pacto tácito: uma vez que, para a maior parte dos indivíduos é mais favorável não precisar responder por suas crenças, opiniões e persuasões, isto é, e ser menor, para alguns pode ser oportuno revelarem-se como tutores, propagando a imagem de que fazer uso da sua palavra e ser senhor de si mesmo pode ser arriscado. E que a “elevação do ser humano” e fazer uso público da razão é tarefa complexa. A partir da leitura deste clássico é possível perceber que o abdicação e a superação da menoridade constitui condição para a autonomia do sujeito racional. Ainda que Adorno tenha enfocado o desempenho social de tal conceito bem como o projeto de sociedade que prevê um desvelamento crítico da realidade, Kant já afirmara que o homem, restrito em sua individualidade, não conseguiria facilmente superar esta condição pelas suas próprias forças, condição esta que lhe é quase natural. Assim, interpreta-se aqui que o conceito de emancipação proposto por Adorno, e que circunda este texto, supera a concepção idealista e individualista de autonomia do indivíduo, e a estende a toda a sociedade, que prevê a intenção de edificar um conhecimento objetivo, com os demais, a fim de que um desvelamento dos mecanismos de dominação e de alienação social seja verossímil. Em outras palavras uma (re)significação do conceito de Esclarecimento proposto por Kant, uma vez que é imprescindível considerar a necessária constituição de sujeitos racionais, sujeitos livres. 73BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era da reprodutibilidade técnica. In: Obras escolhidas: Magia e Técnica, Arte e Política. São Paulo, brasiliense, 1994.
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da massa com a arte. Retrógrada diante de Picasso, ela se torna progressista diante
de Chaplin” (BENJAMIN, 1994, p.187). Para Benjamin, a obra de arte deixaria de ser
limitada à noção idealista e de estreitar a atividade de produção da cultura a poucos
homens, pois não mais se descreveria a cultura como uma esfera superior, atingível
somente por aqueles dotados de um dom, de uma habilidade excepcional de
produzir cultura. Como aponta no seguinte extrato, em que o autor julga que a
fronteira que distingue público e autor está a ponto de desvanecer:
Ela se transforma em uma diferença funcional e contingente. A cada instante, o leitor está pronto a converter-se num escritor. Num processo de trabalho cada vez mais especializado, cada indivíduo se torna bem ou mal um perito em algum setor, mesmo que seja num pequeno comércio, e como tal pode ter acesso à condição de autor. O mundo do trabalho toma a palavra. Saber escrever sobre o trabalho passa a fazer parte das habilitações necessárias para executá-lo. A competência literária passa a fundar-se na formação politécnica, e não na educação especializada, convertendo-se, assim, em coisa de todos (BENJAMIN, 1994, p.184).
Prenhe de notórias divergências às ideias de Benjamin e estreitamente
relacionado ao fetiche pela técnica no que concerne à carência de autonomia do
sujeito e a perda da subjetividade, em coautoria com Max Horkheimer, Theodor W.
Adorno introduz em seu legado o conceito de Indústria Cultural74, em que ele
denuncia que a solução peculiarmente materialista dos problemas postos na obra de
seu interlocutor não resolvem, de fato, os problemas trazidos pela arte na concepção
burguesa do século XX.
Uma época em que a industrialização se estendeu de tal maneira que se
tornou dominante da produção inclusive da cultura. Segundo David Harvey, a
industrialização condicionou toda a produção cultural (2004), trazendo como
consequência o fato de se tornar seu eixo principal a propagação das artes
reprodutíveis e das novas tecnologias de produção e reprodução da cultura, o que
insere inclusive as tecnologias de comunicação desenvolvidas nesse mesmo tempo,
principalmente a televisão e o rádio, que também funcionaram em torno da
organização empresarial do capital nesse mesmo sistema mercantil.
Assim, com a reprodutibilidade técnica, as obras de arte se alforriam de seu
ritual individual e aumentam as ocasiões para que elas sejam expostas. A difusão
74 Conceito que é proposto na arrojada obra Dialética do Esclarecimento, redação conjunta que corroborou para uma curvatura radical da Teoria Crítica, que até então embasava seus estudos em critérios racionais. O texto resulta de uma parceria entre ambos autores na década de 1940.
82
social se torna imperativo, quando a produção de um filme é tão demasiadamente
custosa que um indivíduo que poderia pagar um quadro não pode mais custear um
filme. Se assim acontece, o filme impulsiona a criação de uma tentativa de
coletividade por meio de uma leitura mais equiparada para a massa de maneira
geral, na medida em que todos terão acesso ao mesmo produto.
Benjamin refuta que, ainda que tais obras de arte, reproduzidas sob as
novas circunstâncias estipuladas pela lógica do sistema mercantil, deixem intactos
os conteúdos das obras de arte, elas acabam por se desvalorizar de qualquer forma
o seu aqui e agora. Pois, conforme a técnica é permissiva do encontro entre
espectador e reprodução, nessas diversas ocasiões ela atualiza o conteúdo
reproduzido. Processos que “resultam num violento abalo da tradição, que constitui
o reverso da crise atual e a renovação da humanidade” (BENJAMIN, 1994, p.169).
Assim surge o conceito de Indústria Cultural, da tentativa de fazer uma
análise do fenômeno reprodutivo das sociedades de massas, em que a cultura
converte-se em mercadoria. Criou-se uma indústria que planeja bens para o
consumo cultural, no entanto, levando a sociedade a um mundo dominado, uma vez
que não passa de mera repetição, sempre fabricando o mesmo modelo e o
multiplicando com o exclusivo objetivo de consumo.
A noção mesma do sujeito pensada pela tendência tecnicista, que possui
conhecimentos aplicáveis, práticos, sem dimensão crítica, sobretudo, ligados à
ciência administrativa, tem sido disseminada em prol da conservação de um sistema
dominante alimentado pela indústria cultural. Tornando-se válido analisar à parte de
que maneira uma ideologia dominante dos negócios, focada na lucratividade é
capaz de se inserir no discurso dos profissionais das mais diversas áreas da
Educação.
Ainda referenciando um tempo próximo daquele que foi introdutoriamente
mencionado, com a globalização já evidenciada pela teoria do imperialismo cultural
americano de Herbert Schiller (1969), pensou-se que, com tamanho avanço técnico
e maior facilidade de acesso aos diferentes indivíduos, chegaria o momento em que
os clássicos portadores de textos literários seriam compartilhados por todos, que a
obra de arte na era da reprodutibilidade técnica seria popularizada e que
politicamente a literatura conseguiria ser mais uma dimensão indutora da
emancipação da sociedade. Ledo engano! Ao mesmo tempo que a rede possibilitou
o acesso às mais diversas obras da literatura mundial, proporcionou uma verdadeira
83
indústria dos resumos, sínteses e resenhas dessas obras, disseminando o plano
enganador de que essa mercadoria estaria encurtando uma distância nem tão
necessária de ser percorrida. O que se engrandece ainda mais em tempos atuais,
com as leituras obrigatórias estipuladas pelas indicações dos programas de
processos seletivos para o ingresso às Universidades.
Segundo Benjamin, ao analisar a imagem espiritual desse mundo de
artífices e a capacidade do homem de abreviar até mesmo as narrativas, Paul Valéry
– escritor, filósofo e poeta francês, fortemente influenciado pela estética da literatura
– conclui que o enfraquecimento nos espíritos da crença na eternidade provoca uma
aversão cada vez maior ao trabalho prolongado. Consequentemente, todas as
produções advindas de uma indústria tenaz, consistente e virtuosa vêm se
esfacelando, pois o tempo em que o tempo não contava não mais existe. E quiçá, a
sua mais rija provocação é a asserção de que o homem de hoje não cultiva o que
não pode ser abreviado.
A ideia de eternidade sempre teve na morte sua fonte mais rica. Se esta ideia está se atrofiando, temos que concluir que o rosto da morte deve ter assumido outro aspecto. Essa transformação é a mesma que reduziu a comunicabilidade da experiência à medida que a arte de narrar se extinguia (BENJAMIN, 1994, p.207).
No entanto, caindo em uma possível contradição em que para não perder tempo, o
que acabam ocasionando é perdê-lo, enganam-se e já não são capazes de
comprometerem-se com essa experiência (FREIRE, 1979).
Se em tempos remotos a exclusão se dava, primordialmente, pela
dificuldade de acesso às obras literárias, em tempos de modernidade tardia, a
tecnologia tem sido apontada como um dos impasses do ensino de literatura,
percebida por Freitas (2003) quando contesta que, ao mesmo tempo que “os
tecnófilos veem a tecnificação do literário como algo inevitável diante do qual todos
devem se curvar sem resistência”, o que deveria ser um grande avanço social; “há
os que desconfiam do novo suporte com medo de que o texto literário apresentado
na tela perca a aura da Literatura” (p. 156), já discutida por Benjamin na mesma
obra citada nesta seção. Há também, aqueles que se preocupam com a função
política e social da literatura, questionando seu caráter transformador, como
pretende-se abordar, inclusive.
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Se assim ocorre, quais seriam as hipóteses se rapidamente demandadas
fossem as respostas para as seguintes questões provocadas tanto pelas teorias em
debate quanto pelos resultados de Retratos: Por que os adolescentes, na maioria
das vezes, não gostam de ler as obras clássicas, geralmente, solicitadas nas aulas
de literatura? Por que alguns romances e trilogias fazem tanto sucesso entre os
leitores enquanto outros nem tanto? O que faz com que determinado texto se
torne75um best-seller? Qual é a função política e social que estes carregam consigo?
Por que “denunciamos a passagem da civilização ao analfabetismo e
desaprendemos nós mesmos a escrever cartas ou a ler um texto de Jean Paul, tal
como deve ser lido em sua época” (ADORNO, 1993, p.20)?
Contrapondo tempos e espaços distintos, se Sartre alegou que não havia
brincado com areia, nem caçado pássaros em sua infância camponesa,
rememorando seu contato com os livros como experiência estética infantil,
explicitando que
les souvenirs touffus et la douce déraison des enfances paysannes, en vain les chercherais-je en moi. Je n’ai jamais gratté la terre ni quêté des nids, je n’ai pas herborisé ni lancé des pierres aux oiseaux. Mais les livres ont été mes oiseaux et mes nids, mes bêtes domestiques, mon étable et ma campagne (SARTRE apud SANTIAGO, 1978, p. 23)76;
os adolescentes dos dias atuais estão mais preocupados em vampiros humanos e
histórias de encontros e desencontros. O que neste momento não deve ser
interpretado como lamúrias, e sim como questões que impelem uma reflexão acerca
do tema proposto e a evolução que se constata no ato de ler.
Retomando Retratos da Leitura é possível perceber que, conforme aumenta
o nível de escolaridade do brasileiro, consequentemente aumenta o índice de
leitores. Nesse sentido é que se apontou no princípio do texto a necessidade de
desconfiar desses aplausos e questionar-se: Que espécie de leitura tem
aumentado?
75 O verbo tornar-se encontra-se grifado neste momento, uma vez que, segundo a teoria em questão, o funcionamento da Indústria Cultura acontece de maneira perversamente predeterminada, como será problematizado sequencialmente. 76Tradução livre: As carregadas lembranças e o doce contra-senso das crianças camponesas, em vão os procuraria em mim. Nunca mexi na terra nem procurei ninhos, não colecionei plantas nem joguei pedras nos pássaros. Mas, os livros foram meus pássaros e meus ninhos, meus animais de estimação, meu estábulo e meu campo.
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Infelizmente, a leitura dita cultural ainda é bastante carente. Hipótese que se
potencializa na análise dos livros mais citados pelos brasileiros77: a) A Bíblia é
disparadamente o livro mais lido, juntamente com outros de cunho religioso; b) no
que concerne à leitura literária, os poucos nomes que aparecem são exatamente
aqueles mais indicados pela escola – O Cortiço (Aluísio Azevedo); Dom Casmurro
(Machado de Assis); Iracema (José de Alencar) -; c) há uma preocupante prontidão
no aceite de textos que Adorno aponta como Indústria Cultural, considerados pela
mídia como maiores sucessos da literatura mundial dos últimos tempos: Paulo
Coelho; Khaled Hosseini; d) Autores estrangeiros, caracterizados por seus textos
mais reflexivos, não são mencionados, como Balzac, Borges, Monet, Kafka. Com a
recente atualização da pesquisa em 2012, deixam de estar entre os 25 autores
brasileiros mais citados: Ruth Rocha, Edir Macedo, Castro Alves, Raquel de Queiroz
e Luis Fernando Veríssimo. Para Jéferson Assunção (2008), autor de um dos
capítulos da publicação das pesquisas da segunda edição, os autores renomados da
literatura brasileira são citados pelos entrevistados por terem escrito obras que
deram origem a adaptações televisivas. Lançando a hipótese de citação em virtude
de sua fama.
É importante ressaltar que, com o objetivo de aprimorar o instrumento de
coleta, a atualização da pesquisa de 2012 também contou com alguns instrumentos
de checagem e questionou os entrevistados quanto ao livro mais marcante que já
tiveram contato. Não se distinguindo da pesquisa anterior, os três primeiros titulo
são: a) Bíblia; b) A Cabana, de William P. Young e c) Ágape, de Marcelo Rossi.
Deixam de estar entre os 25 mais citados: Ninguém é de Ninguém; A Escrava
Isaura; Poliana; Gabriela Cravo e Canela; Pinóquio; O Primo Basílio e Peter Pan.
Partindo do que apontam as pesquisas e conjugando o que observa
Assunção e outros especialistas da área, entende-se que “a escola é a instituição
que há mais tempo e com maior eficiência vem cumprindo o papel de avalista e de
fiadora do que é literatura” (LAJOLO, 2001, p. 19). Uma questão ainda e sempre em
curso para os profissionais da área, que configura “uma das maiores responsáveis
pela sagração ou pela desqualificação de obras e de autores. Ela desfruta de grande
poder de censura estética – exercida em nome do bom gosto – sobre a produção
77Informações extraídas da publicação de 2010, Retratos da Leitura no Brasil, das pesquisas realizadas em 2007 com brasileiros das diferentes classes sociais e de todas as regiões do país.
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literária” (2001, p. 19). Assim, do mesmo modo que ela tem o poder de dizer o que
deve ou não ser lido, a partir de um conjunto de regras pré-estipulado, como
explicitado em 3.3, ela desclassifica uma espécie de leitura que, segundo Adorno é a
que mais agrada à massa.
Como Benjamin, Adorno também preocupou-se em explorar o inevitável
emaranhamento de arte e política que, sempre, já fora incitado. Todavia, é mais
importante perceber que o pensamento de Adorno é estético no sentido de estar
interessado no singular. O que neste momento é de suma importância para que se
compreenda a crítica à Indústria Cultural, em que aspecto esta trabalha a serviço do
iletrismo78 e a preocupação com os resultados das pesquisas mencionadas.
Da mesma maneira que Adorno decifrou o legado de Immanuel Kant no
nível do idealismo alemão e atrelou o conceito de Aufklärung à dominação social da
natureza, como bom estudante de música apreciava Schöenberg, e teve seu
pensamento filosófico influenciado pelo músico, que era conhecido por seu
rompimento com a tonalidade convencional na música e pelo subsequente
desenvolvimento do sistema dodecafônico. Enquanto a maior parte da música
clássica ocidental daquele tempo havia sido organizada em torno de um conjunto de
ralações entre notas em pontos específicos da escala musical, a música atonal de
Schöenberg buscava uma fluidez e liberdade maiores por meio da recusa em
acomodar-se a tais padrões predeterminados.
A influência de Schöenberg faz com que Adorno questione os meios de
circulação em massa do seu tempo e com essa a disseminação da indústria do
divertimento. Para o filósofo alemão, “le rire des spectateurs de cinéma […] n’a rien
de bon ni de révolutionnaire, il est rempli du pire sadisme bourgeois”79 (ADORNO;
BENJAMIN, 1994, p.149). O que é totalmente vão, pois a arte só faz sentido se
estiver enraizada em uma capacidade humana universal : o vínculo da arte com a
liberdade depende de uma compreensão da natureza humana.
Hannah Arendt questiona o papel da arte na sociedade burguesa, e mesmo
que não a conceitue, é possível encontrar nos seus escritos a restrição que refina
78 O conceito de iletrismo que se toma neste texto é o mesmo abordado por Jean Foucambert: Iletrisme. Em que ele utiliza em uma de suas maiores pesquisas que aborda a condição de franceses que são alfabetizados, porém, pela falta do hábito da leitura, pelo tamanho afastamento da literatura e demais portadores de texto deixam de ser leitores. Sendo considerados o que a literatura atual aponta como analfabeto funcional (FOUCAMBERT, 1994). 79 Tradução livre: O riso dos espectadores do cinema não tem nada de bom nem de revolucionário, ele está repleto do pior sadismo burguês.
87
como arte somente aquilo que comove e não tem utilidade. A partir do filisteísmo e
da ascensão da burguesia, a arte passou a ser vista como escada àqueles que
detinham o poder aquisitivo, no entanto não faziam parte da cultura80 prestigiada. O
que partilha das críticas do filósofo da dureza, quando a expressão Indústria Cultural
é interpretada também como uma forma reduzida de falar que essas afirmações por
meio da arte fracassam, como se “os burgueses só tivessem conseguido criar
quadros bonitos para adornar as paredes da cela de prisão que eles mesmos
construíram” (THOMSON, 2010, p.94).
Bem como Arendt, Adorno pondera este aspecto de sua crítica e,
influenciado novamente pelo materialismo marxista, infere que o trabalho diário do
homem não deixa espaço para que ele tenha vontade de realizar outra atividade que
não aquelas ligadas ao ócio, que não demande esforço algum, nem mesmo
intelectual, depois de um árduo dia de penosas atividades, o que segundo ele, no
ideal de projeto comunista de Marx, não aconteceria por uma simples razão: « dans
80 Uma fração dos problemas de interpretação do legado adorniano tem sua origem na ambiguidade do vocábulo cultura. Na língua alemã há duas palavras para destiná-lo: kultur e bildung, o que não é esclarecedor. Mas há dois sentidos em que se pode compreender e conflitar o termo. Um deles é derivado da utilização original a partir da noção de desenvolvimento e cultivo, como morfologicamente compõe agricultura. Se utilizado nesse sentido, significaria educação, desenvolvimento. Diretamente relacionados à arte e à filosofia, fazendo com que surgisse uma ideia de algo melhor que entretenimento. O segundo sentido, extremamente presente nos escritos de Paulo Freire, e acredita-se que adotado pelo filósofo alemão em seus escritos finais, é mais corrente em dias atuais e notoriamente é emerso de um protesto contra o primeiro uso. Esse seria a soma total de crenças, costumes, práticas e comportamentos comuns a uma comunidade específica, sem distinção hierárquica entre as atividades. Se no primeiro caso cultura é oposto a não-cultura, neste uma cultura é oposta a outra cultura (THOMSON, 2010, p.96). Ainda segundo o comentador, o que se entende pela palavra Bildung é o primeiro sentido, o que demanda uma leitura mais minuciosa a fim de compreender se o que Adorno insiste em chamar de declínio da cultura é referente ao declínio de um conjunto de comportamentos e costumes ou se a sua intenção é que o leitor infira que não é mais possível chamar a sociedade de progressista. Sabendo que o foco desta seção é o fenômeno da Indústria Cultural, é bem provável que não seja possível eleger um dentre ambos, uma vez que sua perversidade trabalha em prol do esfacelamento de ambas culturas. No entanto, é necessário que se interprete que, quando o processo de compreensão das condições sociais cristaliza-se em categorias fixas e isoladas de espiritualização ou de acomodação, o conceito de cultura aloca-se em incoerência com seu sentido primeiro, tornando ainda mais forte a ideologia que domina. Pelo conceito de cultura em Adorno é expressa a necessidade de não denegar as condições sociais de onde insurgem as diferentes produções de sentido, da mesma maneira que não é permitido compreender a cultura como mero conformismo e adaptação ao status quo. Em Teoria da Semicultura (1996) o autor defende que este duplo caráter da cultura procede do antagonismo social não harmonizado que a cultura pretende definir mas que exige um domínio que, como cultura, não há. A adaptação é, de modo imediato, o esquema da dominação progressiva. Como todas as expressões são potencialmente melhor entendidas quando contrapostas com suas opoentes, tal compreensão poderá ser mais acessível e parcialmente segura a partir das abordagens da próxima seção, na qual se analisa o fenômeno hallbildung na atividade leitora, traduzido para o português como semiformação. Tradução que, para os mais avisados, já aponta para uma talvez precipitada opção, e que sofre de críticas bastante consistentes. Ou talvez, nem mesmo na próxima seção poderá ser elegido um dos dois conceitos, uma vez que Adorno parece oscilar entre um conceito e outro, bem como a posicionamentos diferentes quando contrapostos seus escritos iniciais aos finais.
88
la société communiste, le travail sera organisé de telle façon que les individus ne
seront plus assez fatigues ni assez abêtis pour avoir besoin de distraction »81
(p.149).
Les extrêmes me touchent aussi bien que vous ; mais seulement si la dialectique de l’extrême inferieur est équivalente à celle de l’extrême supérieur. Tous deux portent les stigmates du capitalisme, tous deux contiennent les éléments de la transformation (certes jamais l’intermédiaire entre Schönberg et le cinéma américain) ; tous deux sont les moitiés disjointes de la liberté pleine et entière, qu’on ne saurait pourtant restituer par addition des deux ; […] ce prolétariat que résulte lui-même du mode de production bourgeois (p.149)82.
Semelhante à maneira como o filisteu não se emancipava através da arte e
essa não era requisitada por ele em virtude de seu caráter estético, comovente e por
isso formador, Adorno acreditava que o mesmo se dava com o proletariado, no
momento de acesso aos portadores de textos fílmicos. O que era extremamente
preocupante para ele, pois, em suas cartas a Benjamin, o filósofo já atestara que
somente a estética poderia salvar o proletariado da sua situação. Diferente dos
portadores de texto que a massa tinha acesso, os planejados pela Indústria.
Essa limitação acontecia pois, segundo o crítico frankfurtiano esta espécie
de arte procuraria trazer uma falsa felicidade ao leitor, a fim de manipulá-lo sem que
percebesse seus artifícios, deixando-o inativo no ato de leitura, como mero objeto de
tal processo.Para ele, o fruto da Indústria procura acalmar e cegar os homens da
sociedade moderna, tomando e preenchendo o tempo vazio destinado para o lazer,
a fim de que a injustiça do sistema capitalista seja menos perceptível, o que faz com
que o leitor esqueça a exploração sofrida nas relações de produção. Por isso, a
diversão lhes é necessária, para forjar no horário de trabalho aquela tensão que o
ordenamento da sociedade, elogiado pelo conservadorismo cultural, exige delas
(ADORNO, 1995b).
81Tradução livre: Na sociedade comunista, o trabalho será organizado de tal maneira que os indivíduos na estarão tão cansados nem tão chateados pra haver necessidade de distração. 82Tradução livre: Os extremos me afetam assim como ao senhor, mas somente se a dialética do extremo inferior é equivalente àquela do superior. Ambos portam os estigmas do capitalismo, ambos contêm os elementos da transformação (admito que não o intermediário entre Schöenberg e do cinema americano), ambos são metades disjuntas da plena e inteira liberdade, que não se saberia no entanto restituir por adição dos dois [...] esse próprio proletariado que resulta do modo de produção burguês.
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O que vai ao encontro do que diz Maria Tereza Rocco (1999), ao denunciar
que “essa facilitação excessiva gerará simulacros, impede o contato efetivo do aluno
com os textos de arte e cria uma obstáculo perene para que, na escola, se atinja o
prazer real de ler” (p.102). Assim, por mais que o espírito pretenda ir mais além,
como princípio autenticamente dinâmico e natural do homem, fácil lhe é, contudo,
prever que sua tentativa será frustrada; e isso não agradará menos a ideologia
(ADORNO, 1995b).
Perverso, pois a engrenagem não propicia uma participação política dessa
massa, formada e alimentada pela Indústria, já não há nexo entre seus interesses e
a participação pública, e por isso recuam mediante qualquer atividade política, que
somente reforça o sentimento de impotência do sujeito, deformando a constituição
social global. Para Adorno, isso se dá pela castração da fantasia do sujeito:
A mais importante, sem dúvida, é a detração da fantasia e seu atrofiamento. [...] Quem quiser adaptar-se, deve renunciar cada vez mais à fantasia. [...] A falta de fantasia, implantada e insistentemente recomendada pela sociedade, deixa as pessoas desamparadas em seu tempo livre. A pergunta descarada sobre o que o povo fará com o tempo livre de que hoje dispõe – como se este fosse uma esmola e não um direito humano – baseia-se nisso. Que efetivamente as pessoas só consigam fazer tão pouco do seu tempo livre83 se deve a que, de antemão, já lhes foi amputado o que poderia tornar prazeroso o tempo livre (1995b, p. 76-77).
Este configura um dos focos84 principais de seus debates teóricos com
Benjamin, uma vez que para Adorno “le but de la révolution est la suppression de
l’angoisse”85 (1994, p.151). Ele deixa claro em suas cartas a relação dos intelectuais
com o proletariado, o que é de extrema valia para as leituras contemporâneas da
teoria adorniana, pois, como bem afirma Alex Thomson (2010), Adorno ainda é
83Quanto à problematização acerca do tempo livre, a proposta adorniana demanda uma ponderação do leitor em tempos atuais, com uma compreensão de seu tempo e espaço. Partilhando de uma posição privilegiada - de quem compunha e escutava músicas ditas de qualidade e lia textos equiparados a essa - e consciente disso, Adorno não concorda com a utilização da expressão hobby para aquilo que se faz fora do tempo de trabalho, fora da profissão oficial. Para ele tudo deveria ser momento de formação, por aceitar o pensamento de Marx, que na sociedade burguesa o trabalho se transforma em coisificação, e o vocábulo hobby conduz ao paradoxo de que este estado, entendido como contrário à coisificação, acaba sendo coisificado da mesma maneira. 84Neste momento abre-se um parêntese bastante relevante aos estudos dedicados à teoria adorniana, optou-se por não tecer tais considerações em formato de nota por estar diretamente relacionado às interpretações inferidas ao discurso adorniana o acerca do conceito de indústria cultural. Como protocolo de leitura, pretende-se que este recorte, não delimitado, seja compreendido como um aposto de extrema relevância à temática. 85 Tradução livre: “o objetivo da subversão é a supressão da angústia.”
90
entendido por algumas leituras descompromissadas como um sujeito pouco
perturbado com o popular.
Leituras essas que não se mostram tão compatíveis às preocupações
primeiras de Adorno, como segue na mesma epístola:
Ce n’est en rien de l’idéalisme bourgeois que de maintenir avec lucidité et sans interdit de pensée la solidarité avec le prolétariat au lieu de faire, comme nous en sommes toujours tentés, de notre propre nécessité une vertu du prolétariat, qui lui-même subit la même nécessité et a autant besoin de nous en termes de connaissance que nous de lui pour que la révolution se fasse. De cette mise au claire sur la relation des intellectuels au prolétariat dépend essentiellement, selon moi, la formulation ultérieure du débat esthétique, pour lequel vous avez fourni un exposé inaugural superbe (ADORNO; BENJAMIN, 1994, p.151)86.
O que demanda um retorno do leitor à nota acerca do conceito de cultura chez
Adorno. Essa postura considerada elitista por alguns pode ser justificada e reforçada
pela sua oscilação entre ambos os conceitos. No entanto, um importante aspecto
que ele deixa claro em seus escritos (mais explícito nos últimos) é que a cultura não
pode ser sagrada, uma vez que a formação nada mais é que a cultura tomada pelo
lado de sua apropriação subjetiva. O que faz com que, na leitura dos textos que
mais circulam no contexto educacional, se opte pelo conceito de caráter mais
revolucionário de cultura.
Outra marca grafada em seus escritos a ser preponderantemente utilizada é
a ponderação entre a desconfiança do tradicional e a crença a um caráter
progressista da educação. O que também deixa transparecer seu posicionamento
perante o proletariado, quando delega que “no entanto, é ainda a formação cultural
tradicional, mesmo que questionável, o único conceito que serve de antítese à
semiformação socializada” (ADORNO, 1996, p. 395, grifos nossos).
A fim de amputar-lhes tal fantasia e preencher esse tempo livre, tomado
pela angústia do ócio, esta espécie de produto traz geralmente a mesma estrutura,
ancorados em uma repetitiva fórmula constituída por: a introdução de uma tese,
86 Tradução livre: “Isto não é, em nada, um idealismo burguês, mas manter, com lucidez e sem a proibição do pensamento solidário com o proletariado ao invés de fazer, como somos sempre tentados a fazer, [isto é,] de nossa própria necessidade uma virtude do proletariado, [e crer] que ele mesmo sente a mesma necessidade [que nós] e que tenha tanta carência como nós, em termos de conhecimento sobre eles, para que a revolução ocorra. Com este esclarecimento sobre a relação dos intelectuais com o proletariado depende essencialmente, na minha opinião, a formulação posterior de debate estético, para o qual você forneceu uma declaração inaugural resplandecente.
91
geralmente algum tema pertencente ao senso comum, que seja passível de
reconhecimento geral; seguida de uma antítese, responsável por prender a atenção
do leitor, na maioria das vezes com exposições abusivas; e, por fim, uma síntese,
conclusiva e de fácil assimilação, que não deixe dúvidas ao indivíduo. Fazendo com
que o leitor se conforte, passe o resto do dia satisfeito e não questione o mundo que
o circunda. Ao final, não deixou espaço algum de reflexão ao leitor e sustentou seu
interesse até o final do texto.
Segundo o que pode ser inferido em Teoria Estética, esse desinteresse pelo
que é estético teve a pretensão de ampliar o interesse para além das
particularidades literárias, já que o interesse pela totalidade estética buscou
objetivar-se e constituir-se em interesse por uma organização adequada da
totalidade da obra.
Tais reflexões tornam perceptiva uma tendência totalitária de que os
indivíduos possuem gostos idênticos, um mecanismo psicológico e característico
das práticas nazistas estria também presente no cotidiano de consumo das
denominadas sociedades democráticas. Afinidades de preferências essas que foram
implantadas pela Indústria, mas não configuram sua razão de ser, pois, quando uma
espécie de texto segue o mesmo receituário utilizado por outro quanto aos recursos
e conteúdos, quando os conflitos dramáticos desses portadores de textos acabam
tornando-se emblemas sociais, tendo serventia como exemplo pedagógico para a
resolução de problemas semelhantes aos da vida do sujeito, “o recurso aos desejos
espontâneos do público torna-se uma desculpa esfarrapada” (ADORNO;
HORKHEIMER, 1985, p.101). Consequências que são decorrentes também desta
popularização da arte, uma vez que, sempre que uma determinada fórmula se
populariza, isto é, conquista o êxito do consumo, a indústria a promove e a repete
por diversas vezes no mesmo padrão. Estas circunstâncias tendem a intensificar a
passividade social e a uniformização técnica leva, por sua vez, a uma administração
centralizada (MATOS, 1993, p.69). Adorno considera esse fenômeno, antes mesmo
de Dialética do Esclarecimento, apenas como mais um instrumento de dominação
social, destacando sua despolitização (MUSSE, 2012).
Diferentemente dos seus desejos, os padrões que essa espécie de leitura
trazem como formato teriam resultado, originariamente, das necessidades dos
consumidores e por isso são aceitos e prestigiados sem resistência alguma do
público. Para Adorno, uma das necessidades do homem é a de pertencimento a um
92
grupo, necessidade de sentir-se em coabitação com seus pares, de não estar
sozinho. E por isso ele aponta essa Indústria como narcísica, uma vez que reflete
exatamente problemáticas já inerentes da vida do sujeito, com fácil transposição e
diretas relações com o seu cotidiano. Fazendo com que ele se “sinta bem”.
Não somente os tipos das canções de sucesso, os astros, as novelas ressurgem ciclicamente como invariantes fixos, mas o conteúdo específico do espetáculo é ele próprio derivado deles e só varia na aparência. […] A breve seqüência de intervalos, fácil de memorizar, como mostrou a canção de sucesso; o fracasso temporário do herói, que ele sabe suportar como good sport que é; a boa palmada que a namorada recebe da mão forte do astro; sua rude reserva em face da herdeira mimada são, como todos os detalhes, clichês prontos para serem empregados arbitrariamente aqui e ali completamente definidos pela finalidade que lhes cabe no esquema. Confirmá-lo, contrapondo-o, eis aí sua razão de ser (1985, p. 117).
Engendrada por essas circunstâncias, a Indústria tem todo empenho em
instigar a participação das massas por meio de concepções quiméricas e
especulações contraditórias. A partir dessa finalidade, ela mobiliza os mais
poderosos meios de comunicação e publicidade, apoderando-se também da carreira
brilhante e da badalada vida das estrelas que ela mesma criou, o que é transposto
para outros setores da indústria do consumo. Depravando e falsificando o interesse
da sociedade pela arte, pela narrativa. Na medida em que o proletariado não se
aproxima dela para fantasiar, na dimensão em que se compreende necessária, pelo
reproche de Adorno, e sim por um interesse no próprio ser, no seu interesse de não
pertencimento de sua classe.
Ideias apoiadas e fortalecedoras do fascismo, já denunciado por Adorno
como um todo, uma exploração camuflada, a partir de um interesse de uma minoria
em manter a parte dominada em tal situação. Classe que possui uma constante e
nem sempre exposta ambição por melhores condições sociais, o que faz com que
alimente essa crescente Indústria. Aquilo que se poderia apontar como o valor de
emancipação e de efetivo ato de valer-se do próprio, na recepção dos bens culturais
é comutado pelo valor de troca, consequentemente, em vez do prazer estético toma-
se a noção de fazer parte de e de estar em dia com, ao antagônico à compreensão,
se é contemplado com o prestígio. E o consumidor torna-se o escape da indústria do
divertimento (ADORNO; HORKHEIMER, 1985).
93
Segundo Pucci (1994), a Indústria Cultural
cumpre perfeitamente duas funções particularmente úteis ao capital: reproduz a ideologia dominante ao ocupar continuamente com sua programação o espaço de descanso e lazer do trabalhador: vende-lhe os produtos culturais da mesma maneira que lhe vende os bens de consumo (p. 37).
Com esse perfil, ela proporciona ao leitor fins instantâneos, pois superestima
a cientificidade no sentido de uma técnica aplicada à construção de um texto, a
busca momentânea da dominação da natureza pelo homem, porém, o mesmo
abdica da liberdade de reflexão e, através de um processo mecânico, torna-se
escravo de um processo de deveria ser fruto de seu próprio trabalho, para somente
assim construir sua própria identidade.
Para Adorno, ela é caracterizada pelo entretenimento, pois o prazer que
oferece não demanda esforço algum de seu consumidor, já que o produto gerado
por ela prescreve o que está por vir, dispensando sua reflexão. Assim, o sujeito
permanece sendo objeto da autonomia de outro: “Quanto maior a perfeição com que
suas técnicas duplicam os objetos empíricos, mais fácil se torna hoje obter a ilusão
de que o mundo exterior é o prolongamento sem ruptura do mundo que se descobre
no filme” (1985, p.118) e, da mesma forma, nos livros.
Entende-se que esta espécie de “arte” funciona como objeto de satisfação
cultural, já que é planejada de acordo com os interesses sociais, tudo isso
previamente controlado pela mesma. O que vai totalmente de encontro com a
verdadeira literatura, que se faz pelo espanto, pela estranheza, à qual sua função é
muito mais que indagar, ainda que na escola talvez essa seja sua principal
contribuição. Por isso, ela não pode ser constituída de uma forma imediata e
tampouco fugir da subjetividade, a arte faz-se dessa.
Diferentemente do posicionamento nos escritos pessoais a Walter Benjamin,
em que Adorno se mostra mais esperançoso, neste extrato o autor deixa
transparecer que situação como a que se apresenta parece não ter egresso, visto
que
o mundo inteiro é forçado a passar pelo filtro da indústria cultural. A velha experiência do expectador de cinema, que percebe a rua como um prolongamento do filme que acabou de ver, porque este pretende ele próprio reproduzir rigorosamente o mundo da percepção quotidiana, tornou-se a norma da produção. Quanto maior a perfeição com que suas técnicas
94
duplicam os objetos empíricos, mais fácil se torna hoje obter a ilusão de que o mundo exterior é o prolongamento sem ruptura do mundo que se descobre no filme (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p.118).
Tanto o espectador quando o leitor dessa indústria nunca permanecem livres
do controle de seus dados exatos, assim como nos livros, “o filme não deixa mais à
fantasia e ao pensamento dos espectadores nenhuma dimensão na qual estes
possam, sem perder o fio, passear e divagar no quadro da obra fílmica” (1985,
p.119). Consistindo na maneira que tal recurso midiático adestra o espectador, o
qual entrega-se a este modelo de leitura a fim de afeiçoar-se imediatamente com a
realidade.
Diante de tamanha maquinaria, a qual adestra o leitor e o proíbe sua
atividade intelectual, torna-se cada vez mais inacessível a possibilidade de formação
do sujeito-autônomo-leitor, sendo a cada dia mais corrente constatações como a que
segue em um dos artigos que compõem o PNLL (Programa Nacional do Livro e
Leitura), em que o Ministro de Estado da Cultura Gilberto Gil afirma que: “no Brasil,
mais de 11% de nossa população olham para um livro e não conseguem ver
nenhuma aventura, nenhum grande personagem se definindo, nem se aproximar de
uma reflexão instigante” (2007, p. 09).
Adorno mesmo aponta uma das soluções oportunas para mais esse
impasse.
Assim como a pintura perdeu muitas de suas funções tradicionais para a fotografia, o romance as perdeu para a reportagem e para os meios da indústria cultural [...]. O romance precisaria se concentrar naquilo de que não é possível dar conta por meio do relato. Só que, em contraste com a pintura, a emancipação do romance em relação ao objeto foi limitada pela linguagem, já que esta ainda o constrange à ficção do relato (ADORNO, 2003, p.56).
Encaminhando-se a um final, qual seria a função política da arte se não
proporcionar uma formação ética e estética e uma emancipação do sujeito que
somente pode ser oportunizada através da auto-reflexão crítica? Se esta espécie de
arte não forma questionadores culturais, não deixa o sujeito insatisfeito com a sua
cultura, qual seria então a sua função? Ao que tudo indica a réplica de tais
demandas seria o acalento da sociedade, amputando sua perigosa leitura múltipla, e
lhe impondo uma leitura única.
95
O esforço do ato de ler é preponderantemente o rompimento do seu esforço
habitual, e por isso se distingue o que é e o que não é literatura. Adorno apontaria
essa prática como violência contra o objeto. Esse ato se aproximaria do
conhecimento “quando o sujeito rasga o véu que tece ao redor do objeto. Ele só é
capaz disso quando [...] se confia à sua própria experiência” (1995b, p. 194).
Como tecido e contraposto no capítulo 3.3., não se quer dizer que a escola
deva trabalhar somente com aquilo que faz parte do cânone, isso só legitimaria uma
dependência de uma outra leitura já estipulada. Como Adorno (1998, p.12) delega,
“a liberdade permanecerá uma promessa ambígua da cultura enquanto sua
existência depender de uma realidade mistificada, ou seja, em última instância, do
poder de disposição do trabalho dos outros”.
Acerca da resistência a essa imposição, a essa dependência se retoma a
perspectiva freiriana, não como vigilância epistemológica, nem como redentora, mas
como questionadora de um conjunto aberto, inacabado, apontando para a
necessidade de o sujeito transformar o mundo por meio da sua leitura, dizer o
mundo, expressá-lo e expressar-se, atividades próprias dos homens.
A leitura, qualquer que seja o nível em que se dê, se fará tão mais
verdadeira quanto mais estimule o desenvolvimento dessa necessidade radical dos
seres humanos, a de sua expressividade (FREIRE, 2010a). “De allí el cuidado que
nosotros como profesores debemos tener en relación con preservar la curiosidad de
los niños” (FREIRE, 2009, p.46)87. É exatamente o que impõe a indústria cultural que
não empreende uma formação do leitor, a qual contribui com a formação pelo molde
da metáfora freiriana bancária, em que o mediador dessa leitura, o professor de
literatura, substitui a espontânea expressividade do sujeito pela doação de técnicas
de leitura, ou de informações formais de análise literária e leituras prontas que ele
deve ir capitalizando. Capitalização que, quanto mais o sujeito a faça, tanto melhor
será considerado seu desempenho na instituição escolar.
Lógico, ponderando-se pelo que diz Todorov (2009), ao considerar essa
análise como relevante à compreensão do texto, no entanto, que não a substitui,
como segue:
87 Tradução livre: "Daí o cuidado que nós, professores, devemos ter em relação à preservação da curiosidade das crianças".
96
É verdade que o sentido da obra não se resume ao juízo puramente subjetivo do aluno, mas diz respeito a um trabalho de conhecimento. Portanto, para trilhar esse caminho, pode ser útil ao aluno aprender os fatos da história literária ou alguns princípios resultantes da análise estrutural. Entretanto, em nenhum caso o estudo desses meios de acesso pode substituir o sentido da obra, que é o seu fim (p.31)
Tornar o pedagógico e o político interpenetráveis, eis uma das máximas
mais relevantes do legado freiriano ao ensino de literatura também, reforçada por
Adorno, ao opor-se parcialmente às interpretações de Kant e Freud e pensar que a
literatura, qua arte, implica em si mesma uma relação entre o interesse e a sua
recusa, e que ambos movimentos são essenciais à formação do sujeito. Somente
uma espécie de literatura que seja passível de interpretação como maneiras de
conduta tem
[...] a sua raison d’être. A arte não é unicamente o substituto de uma práxis melhor do que a até agora dominante, mas também crítica da práxis enquanto dominação da autoconservação brutal no interior do estado de coisas vigente e por amor dele. Censura as mentiras da produção por ela mesma, opta por um estado da práxis situado para além da anátema do trabalho. Promesse de bonheur significa mais do que o facto de que, até agora, a práxis dissimula a felicidade: a felicidade estaria acima da práxis. A força da negatividade na obra de arte mede o abismo entre a práxis e a felicidade. Sem dúvida, Kafka não desperta a faculdade de desejar (1992, p.23).
Mas sua potencialidade política reside na emersão da angústia do real, que
segundo as influências de Kierkegaard e Heidegger em Adorno, é uma espécie de
mal-estar, constituindo-se de um medo sem objeto determinado e de sensação física
de aperto. Physis extremamente necessária para a formação ética do sujeito, pois,
apesar do desconforto e do desassossego, tem a capacidade de falar algo sobre o
próprio eu, mesmo com os momentos de mistério e confusão, está totalmente
relacionada à subjetividade, à interioridade psicológica. Para Adorno essa concisão
é também formativa, pois surge do pecado original, em que o homem ganha a
liberdade e o direito de escolher, por contribuir com a sua responsabilidade ética e
política, na constituição de um sujeito autônomo, consciente de si mesmo.
Denunciando também a errônea ideia de uma práxis imediata no ensino de
literatura.
97
Quando Freire problematiza a leitura dos textos feita pelos camponeses, traz
a necessidade de um esvaziamento de expressões como: “Patrão. Sim, patrão. Que
posso fazer se sou um camponês. Fale, que nós seguimos. Se o patrão disse, é
verdade. Sabe com que está falando?” (FREIRE, 2010a, p. 28). Se a leitura não
sofre com expressões desse tipo, sofre com processo ainda mais funesto. Sofre com
a carência de elipses, com o esfacelamento da participação imagética do leitor, que
resulta em um comportamento tão dócil quanto o pronunciado por expressões dessa
espécie, porém, de modo mais distrativo, em que o leitor não percebe que faz parte
de uma engrenagem tão vultosa e, em virtude de suas pseudo-participações social,
mantém-se satisfeito com a sua cultura. “Daí que [os textos] jamais devam
converter-se em ‘cantigas de ninar’ que, em lugar de despertar a consciência crítica,
a adormecem” (FREIRE, 2010a, p. 29).
Desde a Grécia Antiga, com o princípio da vida em comunidade, quanto
mais a vida dos cidadãos ficava submetida às leis da polis, já se mostrava crescente
a necessidade de uma compreensão e expressão individual, (momento em que
nasce a poesia lírica). O que torna permissivo entender que a popular assertiva de
que estética e ética devem andar juntas já se tem ciência desde a poesia épica de
Homero (século VI a.c), com a Ilíada e a Odisséia, mas ao mesmo tempo é sempre
válido lembrar que a arte, enquanto ensina, o faz de uma maneira bem distinta do
que tem-se percebido em tempos de rápidas e diretas aplicabilidades teóricas, de
uma maneira bem diferenciada, ou especialíssima (CARA, 1989) para usar a
expressão da autora, e não é jamais atividade e expressão meramente utilitária.
A partir de tais ponderações que o professor seja capaz de
escolher bons textos e de várias naturezas e que, para explorá-los, esse professor crie exercícios inventivos que levem seus alunos à liberação do imaginário, ao invés de aprisionar a capacidade de devanear e sonhar dos estudantes na camisa-de-força tecida pelas perguntas banais que já pressupõem perguntas pré-fabricadas (ROCCO, 1999, p. 102).
Quem sabe, uma das periculosidades seja de abordar somente aquelas
repetidas experiências de leitura já assentadas, que podem não ser capazes de
fazer com que o leitor se sinta desafiado e saia de sua zona de conforto, como já foi
concluído em 3.3. O que não é diretamente dependente de ocasião, de um gênero
ou de um autor específico que tal avanço se dará. Nem mesmo uma tipologia
específica pela qual o educando possa ter sua iniciação no ensino de literatura
98
(ainda que os livros didáticos sugiram alguns referentes aos tempos atuais). A
necessidade reside em encontrar portadores de texto com potencialidades e
experiências empáticas àquelas dos alunos e, a partir da abordagem destas, um
avanço na complexidade do texto. Mediado pelo formador do leitor, o aluno será
capaz de compreender o que faz com que um texto se torne literário.
Que sejam repensados conteúdos, formas, extensões e, principalmente, a
complexidade crescente deve ser motivo de análise a ser seriamente considerados
na elaboração das aulas de literatura. Talvez, a partir de tais preceitos, a literatura
na escola possa se aproximar de um projeto prescritamente grafado há quase duas
décadas, porém ainda não consumado, já que uma das diretrizes da educação no
que concerne ao Ensino de Literatura traz como objetivo “o aprimoramento do
educando como pessoa humana, incluindo a formação ética e o desenvolvimento da
autonomia intelectual e do pensamento crítico” (MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO,
1999, ART. 35) 88.
A razão de ser da literatura não pode ser a busca por uma ou outra
informação técnica sobre o texto, o objetivo da escola não é de formar especialistas
em análise literária, sua razão de ser somente terá sentido quando entendida como
a condição humana, como diz Todorov (2009). E a concepção de sujeito que a
escola queira formar seja um conhecedor da humanidade, sabendo por que e por
quem o faz, como preconizava Freire:
Não posso estar seguro do que faço se não sei como fundamentar cientificamente a minha ação se não tenho pelo menos algumas idéias em torno do que faço, de por que faço, para que faço. Se pouco ou nada sei sobre ou a favor de que e de quem, de contra que e contra quem faço o que estou fazendo ou farei. Se não me move em nada, se o que faço fere a dignidade das pessoas com quem trabalho, se as exponho a situações vexatórias que posso e devo evitar, minha insensibilidade ética, meu cinismo me contra-indicam a encarnar a tarefa do educador. Tarefa que exige uma forma criticamente disciplinada de atuar com que a educadora desafia seus educandos (FREIRE, 1998, p. 61).
88 Disponível em http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/formcont_unesc.pdf. Acesso em 07 de janeiro de 2013.
99
4.3. Semicultura e formação do leitor: a inferência de um leitor semiformado
Difícil estipular uma fronteira que delimite uma e outra seção, quando para a
maioria dos comentadores de Adorno e até mesmo em seus escritos, Indústria
Cultural e Semiformação são categorias quase que indissociáveis. Em um primeiro
momento é possível e necessário duvidar do privilégio dessa nomenclatura/tradução
em detrimento à pseudoformação, e nos referenciais disponíveis são encontrados
textos que já discutem tal dúvida.
O termo semiformação é uma sugestão de tradução do termo hallbildung. O
prefixo inglês hall tende a ser compreendido como parte, pedaço, algo inacabado. O
que faz com que um leitor desavisado suponha que esta é uma formação que ainda
não teve seu fim. Contrariamente ao que alega Adorno, uma vez que a formação
cultural “se converte em uma semiformação socializada, na onipresença do espírito
alienado, que, segundo sua gênese e seu sentido, não antecede à formação cultural,
mas a sucede” (p.391). Uma traiçoeira explosão de barbárie, pois nada daquilo que
é apreendido sem pressupostos empíricos por parte do sujeito poderia ser apontado
como formação.
O entendido e experimentado medianamente - semi-entendido e semi-experimentado - não constitui o grau elementar da formação, e sim seu inimigo mortal. Elementos que penetram na consciência sem fundir-se em sua continuidade, se transformam em substâncias tóxicas e, tendencialmente, em superstições, até mesmo quando as criticam (ADORNO, 1996b, p.).
Apreende-se no discurso adorniano influências notórias de Hegel, o que
alerta que seja desconsiderada uma formação que visa fins imediatos, uma vez que
para o filósofo [...] a impaciência exige o impossível, ou seja, a obtenção dos fins sem os meios. De um lado, há que suportar as longas distancias desse caminho, porque cada momento é necessário. De outro, há que demorar-se em cada momento, pois cada um deles é uma figura individual completa, e assim cada momento só é considerado absolutamente enquanto sua determinidade for vista como todo ou concreto, ou o todo [for visto] na peculiaridade dessa determinação (HEGEL, 2005, p. 42).
Descaminho reforçado por Maar (1993), ao intertextualizar os conceitos de
Esclarecimento proclamado pelo legado kantiano e a Emancipação defendida por
100
Adorno, vislumbrando que, no conhecido ensaio Resposta à pergunta: O que é
esclarecimento?, Immanuel Kant acreditava que a sociedade, pelo uso próprio da
razão, sairia da condição heterônoma a que ela própria havia se sujeitado. Esse uso
autônomo é a mesma Muendigkeit89 defendida por Adorno, objetivo primeiro da
educação, segundo ele.
Direcionando conjuntamente esta categoria adorniana e retomando a
realidade que é apontada pelos dados que afirmam um maior nível de escolaridade,
e, ainda que lento, um crescente aumento nos índices de leitura no Brasil, é possível
perceber que tais dados produzem uma primeira ilusão de um desenvolvimento
vertical, mas, a partir de uma análise de como se dá a alienante aquisição da escrita
em 4.1, bem como o comportamento do leitor contemporâneo em 4.2, revelam que
no fundo, a cultura letrada permanece sendo o que era,uma condição heterônoma,
no entanto, modernizada e socializada.
Dessa forma, como aqui tentou ser refletido, tanto no que compete à
aquisição de uma técnica quanto ao contato do sujeito com uma das formas de arte
– a literatura-, se a finalidade primeira era a potencialidade do ser mais, da produção
de uma consciência verdadeira por parte do sujeito, atrelando assim educação à
política, como tutela Freire no decorrer de seu legado; como em outras
competências já pesquisadas, a leitura também fracassa. No momento inicial da
formação do leitor e no ensino de literatura, pela sua oposição da tomada de
consciência autônoma como exposto nas seções anteriores.
Desde Protágoras, já se tem a preocupação de, quando se faz do homem a
medida de todas as coisas de uso, está se priorizando a relação do mundo com o
homem que utiliza e fabrica artefatos, coisas, ferramentas. E não com o homem-
orador, pensador, com o homem político. E como é natural do homem-coisa, do
homem do trabalho, visar em tudo que há ao seu redor um meio para um fim, isto
consequentemente significaria não somente transformar homem o meio de todas as
coisas materialmente necessárias, como também corrobora a constituição de uma
sociedade apolítica, em que o discurso e a ação são tomados equivocadamente
como ociosidade, como vã e carente de função significativa social. “O sonho da
formação — a libertação da imposição dos meios e da estúpida e mesquinha
89 A derivação morfológica de muendigkeitna língua alemã advém do vocábulo mund, que significa boca. Assim, tem-se uma melhor associação do termo à expressão voz ativa, a capacidade de “usar a sua boca”, dizer a própria palavra, logo, de fazer uso público da razão.
101
utilidade — é falsificado em apologia de um mundo organizado justamente por
aquela imposição” (ADORNO, 1996b, p.410).
Da mesma maneira acontece com a formação do sujeito leitor, que tenta
considerar tudo o que existe e foi extraído de sua formação como simples meios à
sua disposição, meios de ser reconhecido socialmente, de adquirir uma técnica e ter
uma utilidade social, a partir dessa ferramenta que é a lectoescrita. Uma vez que a
partir dessa aquisição ele se servirá de um conhecimento tomado como legítimo e
com fim em si mesmo, que será extremamente útil para a obtenção de outras coisas.
Para o frankfurtiano, no âmbito da semiformação, “os conteúdos objetivos,
coisificados e com caráter de mercadoria da formação cultural, perduram à custa de
seu conteúdo de verdade e de suas relações vivas com o sujeito vivo, o qual, de
certo modo, corresponde à sua definição” (1996b, p.395). Assim, as atividades de
caráter eminentemente político acabam sendo avaliadas pela insensatez do critério
da utilidade, com vistas a finalidades supostamente mais elevadas, com a tentativa
de tornar as atividades do sujeito cada vez mais úteis. Porém, como foi visto, o
preço que se paga em virtude tal visão utilitária, bem semelhante à visão de homo
faber, é a carência de envolvimento do sujeito com o objeto a ser conhecido.
Ao questionar a constituição do educando formado por esta experiência –
que não medeia a maneira como o sujeito se envolve com tal objeto, que faz com
que ele se adapte ao meio e tome como verdade aquilo que extrai de uma distante e
artificial relação, conforme uma maneira de se relacionar com o mundo calcado no
sociável, envolvendo uma relação ambígua com o contexto social, que visa
adaptação – demanda-se uma desconfiança dos louvores aos bens culturais,
desconfiança da dissociação desses bens às coisas humanas. Demanda-se um
olhar duvidoso acerca da finalidade de uma formação que esquece dessa relação e
descansa em si mesma e se absolutiza (ADORNO, 1996b).
Inferindo que, se assim acontece, tem-se uma conversão da formação do
leitor também em uma semiformação. Uma vez que esta traz consigo uma fraqueza
do eu, quando um saber como toma lugar de um saber que, saber aquele que castra
a experiência do sujeito ao antepor a obediência aos parâmetros formalmente
impostos pela sociedade, submetendo-se a tal esfacelamento em prol de uma
pseudoparticipação política na sociedade. Ou, nas palavras de Adorno, ao acatar a
utilização dessa espécie de formação tecnicista, em prol de uma pseudo-atividade.
Fenômeno que, segundo ele, é crescentemente ampliado entre os sujeitos que se
102
sentem questionadores da sua sociedade, que se iludem ao participar de iniciativas,
movimentos e ocupações em seu espaço. Para Adorno, esse fenômeno advém de
uma demanda de mudança nas relações fossilizadas, é uma espontaneidade mal-
orientada, bem influenciada pela menoridade kantiana, “porque as pessoas
pressentem surdamente quão difícil seria para elas mudar o que pesa sobre seus
ombros. Preferem deixar-se desviar para atividades aparentes, ilusórias, para
satisfações compensatórias institucionalizadas” (1995b, p.78).
Pseudo-atividades uma vez que elas somente existem na mera realização.
Ser percebido, escutado e confirmado pelos seus pares, essas seriam as
necessidades primeiras do leitor semiformado, que busca constantemente uma
efetivação do ser também pela sua leitura. Persuadido pela desacertada crença de
que as coisas que ele é capaz de fabricar e reproduzir podem se tornar superiores
ao próprio sujeito. Essa então negação da atividade do homem nasceria talvez da
mesma ingênua luta contra a subjetividade dos homens, que como defesa busca
erguer a objetividade do mundo, realizada pelo próprio homem, que no decorrer da
sua evolução se volta contra ele próprio, como propusera a reflexão central kantiana.
Pseudo-atividades que necessitam de uma ordenação institucionalizada para seu
aval e são também corroboradas por Adorno, no irônico Mensagens numa Garrafa,
ao denunciar o louvor dos homens às instituições e a necessidade de pertencimento
a um grupo iconizado, em que o indivíduo não se sente gente quando não
socialmente mediado, quanto menos funcional for. Estreitando o limiar entre
alienação e intimidade, “as instituições criadas pelas pessoas são ainda mais
fetichizadas: desde o momento em que os sujeitos passaram a se conhecer
somente como intérpretes das instituições, estas adquiriram o aspecto de algo
divinamente ordenado” (1996a, p.40). Negando os pressupostos culturais, reais para
a autonomia que o conceito de bildung ideologicamente mantém e trazendo como
consequência uma inversão de valores:
Quando menos sentido funcional tem a divisão social do trabalho, mais obstinadamente os sujeitos se agarram àquilo que a fatalidade social lhes infligiu. A alienação transforma-se em intimidade, a desumanização, em humanidade, e a extinção do sujeito, em sua confirmação. A socialização dos seres humanos, hoje em dia, perpetua sua associalidade, ao mesmo tempo que não permite ao desajustado social nem sequer orgulhar-se de ser humano (ADORNO, 1996a, p.40).
103
Pelo que foi tecido até o presente momento, pode-se inferir que a formação
do leitor também sofre com essa inversão de precedência dos conhecimentos e da
maneira de se envolver com as coisas mundanas, fazendo com que o para que se
torne o conteúdo, tome lugar do em nome de que. À bem da verdade, quando a
utilidade deixa de ser consequência e passa a ser promovida à significância nuclear
das atividades do sujeito, constata-se a carência de significação.
Bem como a filosofia já alertara que acontecia na modernidade, nos tempos
atuais ainda há resquícios e comportamentos sociais que demonstram um empenho,
intencional ou não, bastante marcado em restringir cada vez mais da esfera pública
o homem político, o sujeito que fala e age. O sujeito pensante, uma vez que este
não é útil às necessidades ditas primeiras que a sociedade carece.
O que repercute na atividade leitora, que se faz perante o inacabamento do
texto, que deve ser complementado no momento em que lhe é dado um sentido. Ele
está subordinado à atividade inteligente do sujeito, às suas experiências sensíveis,
individuais e coletivas, posto que “chaque lecteur réagit personnellement à des
parcours de lecture qui, étant imposés par le texte, sont les mêmes pour tous”90
(p.30). Isto é, a maneira como o texto se constitui tenta obedecer determinados
aspectos comum a todos os leitores, todavia, é a relação do sujeito com esses
aspectos, edificando sentidos plurais, que justifica o caráter subjetivo da recepção.
Não se quer dizer aqui que a literatura traga consigo a função de escudeira
do exército de um homem só, entendido que
[...] a filosofia [...] conhece a proposição especulativa que diz que o individual é mediado pelo universal e vice-versa. Ora, isso quer dizer que também a resistência contra a pressão social não é nada de absolutamente individual, que nela se resolvem artisticamente, através do indivíduo e de sua espontaneidade, as forças objetivas que impelem para além de um estado social estreito e estreitador na direção de um estado digno do homem; forças, portanto, de uma constituição de conjunto, não meramente de individualidade hirta, que se opõe cegamente à sociedade (ADORNO, 1983, p.198).
Entretanto, ao mesmo tempo, não é admissível uma delimitação de um só
universo, o que torna vã a tentativa de formação do leitor com textos reproduzidos
sobre os sentimentos mais banais, das temáticas mais correntes e conhecidas do
90 Tradução livre: “cada leitor reage pessoalmente aos caminhos da leitura que, sendo impostos pelo texto, são os mesmos para todos”.
104
cotidiano dos homens, como foi apontado na seção anterior. É inaceitável que um
texto tenha a pretensão de dispensar a contribuição efetiva do leitor, que será
responsável pelo sentido, preponderância e representação nas situações e fatos
descritos. Que, segundo Jouve, acontece especialmente em quatro domínios, pois
“les personnages, le décor et la situation ne pouvant être entièrement décrits, le
lecteur complètera imaginairement le récit en fonction de ce qui lui paraît
vraisemblable”91 (1993, p.44). Por isso, é sua função aplicar interativamente a uma
história a probabilidade da verossimilhança, o que efetivamente considera sua
influência recíproca, totalmente apoiada em conhecimentos empíricos.
Por ser um veículo que se utiliza da escrita, o que lhe torna potencialmente
considerável sua durabilidade, é provável que o leitor encontre no texto um número
muito maior de possibilidades de interpretações que já eram plurais na história oral.
Logo, haverá possibilidades de encontrar no texto leituras para além daquilo que o
autor quer dizer. Na ausência daquele que escreve, o campo das significações
torna-se ainda mais rico e potente porque passa a ter uma extensão quase sem fim.
A função do texto literário seria alargar o horizonte do leitor dando possibilidade de
um novo universo, compatível com as referências que ele traz consigo no momento
dessa leitura. Lendo Cícero, não é a “république romaine antique que le lecteur
contemporain va découvrir, mais ce qui, à plusieurs siècles d’intervalle, lui en reste
accessible: un ensemble de traits qui, ayant traversé le temps, peuvent, aujourd’hui
encore, être investis symboliquement” 92 (1993, p.15).
Compreendido esse caráter plural da atividade leitora e os dados
inicialmente expostos, evoca-se as muito discutidas crises - crise na cultura e crise
na educação (ARENDT, 1997) – fundidos elementos de ambas por Adorno na crise
na formação cultural, como ilustra Maar (2003):
A “crise” seria justamente a perda da “experiência” pela autonomização da razão, realizada objetivamente na ciência e na cultura, mas fora do vínculo à realidade. Uma objetivação apenas formal da razão, que se interpõe entre o sujeito e a realidade, impedindo o processo formativo derivado da “força negativa” da racionalidade, impossibilitada de confrontar realidade e verdade, de relacionar dialeticamente os mundos “subjetivo” e “objetivo” (p. 66).
91 Tradução livre: “os personagens, o espaço e a situação não podem ser totalmente descritos, o leitor completará imaginativamente a história segundo aquilo que lhe parece verossímil. 92 Tradução livre: “república romana antiga que o leitor contemporâneo vai descobrir, mas aquilo que, em alguns séculos mais tarde, lhe permanece acessível: um conjunto de traços que, tendo atravessado o tempo, pode, até estar agora investido simbolicamente”.
105
Autonomização da razão, do mesmo modo, imprescindível para inferir a crise na
leitura, que, ao analisar o que até aqui foi proposto pode se coligir que esta se dê
principalmente pela supressão de um processo que demanda a experiência sensível
por parte do sujeito de tal formação. Quando, em prol de um resultado, visando uma
utópica independência do sujeito - o que Kant já alertara como possibilidade de os
homens serem senhores de si mesmos através do conhecimento - gera um
isolamento político também na faculdade de ler, que deveria ser eminentemente
política. Tornando a leitura uma atividade limitada, que, apesar de toda ilustração e
de toda informação que se difunde na evolução do conhecimento científico, passou
a ser dominante da consciência leitora na atualidade.
Esse isolamento político por parte do leitor pode ser compreendido como
uma das dimensões de sua semiformação, por ser, uma vez semiformado, inclusive
aquele que tem a própria função inerente à compreensão das ideologias
manifestamente cada vez mais abstrata. Confirmando aqui que já suspeitavam os
antigos críticos:
em um mundo onde a educação é um privilégio e o aprisionamento da consciência impede de toda maneira o acesso das massas à experiência autêntica das formações espirituais, já não importam tanto os conteúdos ideológicos específicos, mas o fato de que simplesmente haja algo preenchendo o vácuo da consciência expropriada (ADORNO, 1998, p. 20).
Raciocínio que pode ser rematado quando o autor evoca a frase das
Máximas e Reflexões de Goethe, que alerta: o que não entendes tu também não
possuis.Porquanto, “nada que não esteja nas obras, em sua forma própria,legitima a
decisão, quanto àquilo que seu conteúdo (Gehalt), o poetado (Gedichtete) em si
mesmo, representa socialmente” (ADORNO, 1983, p.194). Ler significa conhecer
tanto a obra por dentro quanto as mazelas que afligem o sistema social que está ao
seu exterior.
E a conclusão que resulta da tentativa de compreender o perfil do leitor
brasileiro só reforça esse vazio, pois, ao que tudo indica, o livro não é procurado por
uma necessidade estética e formativa, no sentido amplo da palavra. É notório que os
indivíduos leem por crença, por divertimento ou por obrigação. Deixando totalmente
de lado o caráter humanizante e emancipatório da leitura.
Ao discernir a maneira como tem sido tomada a atividade de leitura, em seu
contexto em que é mais importante seu efeito social do que mesmo a emancipação
106
do sujeito, parece ser menos importante saber quais as doutrinas ideológicas
específicas que um livro traz consigo e elucida os leitores, do que o fato de que,
esses leitores, ao findar as diferentes histórias, põem-se mais preocupados com o
número de vendas, de adeptos ao clube de determinado livro, nos produtos que o
mercado oferece patrocinado pelo mesmo ícone, nos nomes dos personagens e em
suas desventuras amorosas. Tornando inferente que o leitor semiformado utiliza
conceitos vulgares como entretenimento (ADORNO, 1985) e os considera mais
relevantes ao seu nicho social do que questões de cunho ideológico e social do
escritor daquele texto.
Assim como a cultura surgiu no mercado, no comércio, na comunicação e na negociação como algo distinto da luta imediata pela autopreservação individual; assim como ela se irmana, no capitalismo clássico, ao comércio; e assim como seus portadores se incluem entre as terceiras pessoas e se sustentam como intermediários; assim a cultura, considerada socialmente necessária segundo as regras clássicas, ou seja, algo que se reproduz economicamente, restringe-se novamente ao âmbito que se iniciou, o da mera comunicação (ADORNO, 1998, p.15).
Do que pode ser depreendido dos textos epistolares adornianos, como
eclodido na seção anterior, a solução para a emancipação do sujeito estaria na
formação estética. E a poesia - entendida aqui não como gênero, mas de modo
universalizado, como espírito lírico - seria então uma das formas de resistência a
essa semiformação, por se deixar dizer aquilo que a ideologia esconde, seu triunfo
está na faculdade de ir além da falsa consciência. Seu universo idiossincrático não é
apoiado na vontade de todos, não é de se deixar dizer somente aquilo que as
pessoas não tomam para si o trabalho de expressar, de tornar comunicável, e sim
de formar questionadores, pela sua profundidade que se mede pelo fato de suas leis
formais serem capazes de trazer as contradições (ADORNO, 2001).
A idiossincrasia do espírito lírico contra a prepotência das coisas é uma forma de reação à coisificação do mundo, à dominação de mercadorias sobre homens que se difundiu desde o começo da idade moderna e que desde a revolução industrial se desdobrou em poder dominante da vida (ADORNO, 1983, p.195).
Não obstante, o fato mais algoz é constatado quando, apoiando-se no que
Adorno traz em Teoria da Semicultura, percebe-se que esta dominação aliada à
castração da fantasia não se faz através de uma força externa à sociedade, e sim é
intrínseca à maneira como a sociedade busca reduzir os percursos e chegar a um
107
método, capaz de simplificar e tudo reduzir a ele, já elucidado pelo poder da técnica,
ou pela necessidade de pertencimento a um grupo, de socialização. Essa já é a
maneira que a sociedade se utiliza para tudo ser produzido, conhecido, e
reproduzido.
Prescindível, uma vez que, a leitura somente será de fato uma necessidade
por parte do sujeito quando deixar de ser atrelada somente ao tempo de estudo
institucional, a partir do momento em que ela for compreendida não mais como
trajeto lógico-formal, mas quando constituir-se como parte integrante da faculdade
de realizar experiências sensíveis.
A leitura deveria ser para quem a realiza um momento de experiência,
subordinada às mais diversas e inconstantes verdades do leitor, que a priori não
podem ser substituídas por nenhuma técnica nem teoria. Isso quer dizer que, no
lúdico da interpretação, local em que o leitor deveria perder-se ao experimentá-lo, a
potencialidade do eu, o poder da avidez e os acordos e desacordos das ideologias
teriam funções categóricas, terminantes. Trabalhando em prol do esgotamento do
“defeito mais grave com que nos defrontamos atualmente, (que) consiste em que os
homens não são mais aptos à experiência, mas interpõem entre si mesmos e aquilo
a ser experimentado, aquela camada estereotipada a que é preciso se opor”
(ADORNO, 1995, p.149).
Onde reside o maior pecado da Indústria Cultural, pois essa função do leitor
só se realiza quando os textos permitem tal atividade. Essa precariedade de
referências, de esclarecimento que a Indústria não oferta, é parte essencial a um
texto para que ele possa ser trazido para o campo da formação.
Todavia, infelizmente o leitor contemporâneo vem contentando-se com
aquela pseudo-atividade já mencionada, com a socialização de uma crítica pré-
estabelecida ou com o aval social, louvando alguns aspectos e denunciando outros,
que são emitidos pela relação com a realidade empírica de outrem. “Segundo as
palavras de Schöenberg, pinta-se um quadro, e não o que ele representa”
(ADORNO, 1992, p.15). Assim, para que o texto tenha seu valor para o homem da
ação, ele deve lhe ofertar o que lhe é recusado pelo mundo que o circunda.
Possuindo um valor “que não se reduz simplesmente ao seu destino exterior” (1992,
p.15), como acontece com os produtos culturais criados pela Indústria, fazendo
surgir constantemente outros discursos sobre si e outras maneiras de compreensão
das coisas mundanas. Portanto, sua razão de ser é a emersão da dúvida, o
108
surgimento da negação e não da conformidade. Ao mesmo tempo que extraem seu
conteúdo da empiria, o renegam. Isso é formação estética. É fugir das amarras da
experiência externa não mediada e por isso coisificante. Os textos literários, qua
arte, podem ser considerados vivos “enquanto falam de uma maneira que é
recusada aos objetos naturais e aos sujeitos que (o) produzem” (1992, p.15). Se o
texto é formador, então o ato de ler deverá ser em si relação, ser confusão entre
sujeito e objeto e por isso ser justificado como tal.
Caso contrário ele permanece fazendo parte do mercado de troca, no qual
quem detém suas informações e características não tão relevantes pode exibir esse
conjunto de dados como produtos a seu dispor e receber a estima que merece. Este
seria o leitor semiformado, que só consegue se relacionar com seus pares não por
suas individualidades, mas trocando produtos com os mesmo. Convivendo em um
mundo restritamente utilitário, em que as finalidades das leituras possuem a
tendência da curta duração e a transformar-se em medidas para outros fins que não
a humanização do sujeito.
Por fim, é possível extrair dessas considerações que o leitor semiformado
vem se constituindo nos moldes de uma educação utilitária que, nas décadas
anteriores, se dava em um pequeno público – depois do golpe que o Brasil levou
passou a ser substituída pela formação pragmática e instrumental. O leitor é o leitor
não autônomo, formado para ser sempre mais utilitário, com prontidão para adquirir
os rudimentares conhecimentos das diferentes profissões que o sistema precisa. O
que só reforça também na academia, atualmente também mais direcionada à
ampliação da mão de obra. O que deturpa as poucas alternativas que esses sujeitos
têm de se tornarem leitores culturais.
Nessa sociedade de perfil extremamente capitalista, com avançado sistema
mercantil/industrial, a edificação da leitura plural encontra-se praticamente inviável,
com a primazia do processo fragmentado, da leitura precária e dada como acabada.
O que é reforçado pelo esfacelamento da dimensão crítica e cultural do contexto
escolar. A cultura da leitura só vem evoluindo com uma certa voluntariedade,
casualmente em esporádicos nichos, extremamente dependentes de forças
individuais do sujeito, da família, de um grupo. Muito longe da hipótese de o Brasil
figurar um país de leitores, como prevê a máxima midiática que introduz este texto,
ou um país de leitores críticos, o que é ainda mais distante.
109
O leitor semiformado seria aquele que se satisfaz em configurar um contexto
social que corrobora uma tentativa de formação do leitor calcado na materialidade,
tanto no que compete à aquisição do código escrito, quanto ao seu contato posterior
com os portadores de texto. Suas relações funcionam como meio de manutenção da
vida, que tem sua engrenagem na relação de troca. A impressão que se tem é de
uma falsa consciência de todas as partes, umas a respeito das outras.
A leitura deve fazer parte da ação dos homens sobre a realidade social,
trabalhando no desvendamento de novas condições sociais de vida, no
questionamento da inexorabilidade dos fatos (FREIRE, 1996), na produção de
homens insatisfeitos e inconformados com a sua cultura. Se a razão de ser da leitura
é a humanização, como advogado foi nas seções que antecedem esta, a leitura
precisaria perder seu caráter opressor, tanto de ser reduzida a uma técnica, como
na maneira de, na maioria esmagadora dos fatos, alienar, distrair, reforçar uma
crença e cumprir com demandas estritamente científicas ou institucionais.
Levando em consideração esta preocupação com a condição social do
homem e reconhecendo a conjuntura de vida dos sujeitos que são submetidos a
condições sociais que exigem a regressão de suas próprias capacidades, apreende-
se que não se trata só de uma pedagogia da facilitação, mas também, da negação
do valor educativo do esforço e do empenho que a ascensão de um posicionamento
crítico a respeito da desigualdade pode incitar. Quesito em que surge uma lacuna
que se constitui pela necessidade de fazer avançar a compreensão de um dos
aspectos aos quais temática se dedica.
Importantes manuais de formação moral alegam que um dos piores “estados
de espírito do ser humano era a tibeza, aquele estado que se caracteriza pela
indiferença e que, por inércia, acomoda, dilui a vontade, induz o indivíduo a uma
espécie de relaxamento do espírito em relação aos tempos da história” (OSAKABE,
2008, p.37). Inércia que fazia parte das inquietações centrais da teoria freiriana,
expressa pelo pedagogo também como conformismo das massas populares. Um
dos quesitos indispensáveis à manipulação do sujeito, que “na teoria da ação
antidialógica, tal como a conquista a que serve, tem de anestesiar as massas
populares para que não pensem” (FREIRE, 2005, p.169). Manipulação que é capaz
de dissimular tendências de pensamento quase antagônicas também pela afirmação
do supérfluo como necessidade de subsistência social. É nessa acepção que o
ensino de literatura pode ser considerada um inédito viável (FREIRE, 2000),
110
trabalhando em prol, inclusive, do desvelamento de uma dita neutralização de
posições, rompendo o véu que camufla o abismo entre o essencial e o aparente.
Este é um dos movimentos que convém sugerir como prosseguimento
desses estudos, dadas as condições com que se constata, por meio de pesquisas,
que a leitura dita trivial tem invadido a vida do homem. Vereda que pode ser
potencialmente fértil quando a função da literatura para esse público é cada vez
mais nebulosa, legitimando, inclusive, uma necessidade de abalizar as adjacências
polêmicas que diferenciam as distantes categorias de leitura. E pode qualificar a
discussão acerca do papel político que a sensação de diferença que a literatura
provoca no leitor, podendo ser considerada como o motor de elicitação de um
processo básico de estranhamento, de inquietação, de conhecimento, e, mormente,
por um interesse no próprio ser, no seu interesse de pertencimento de sua classe
(FREIRE, 2005).
A escola que não volta-se contra essa cultura afirmativa e utilitária, que não
ensina os sujeito a duvidar da mesma, que não rompe com essa imagem de mero
momento de transição do sujeito leitor enquanto aluno, alimenta esse falso contrato
entre instituição escolar e formação do leitor. Se não há humanização na opressão,
como já preconizara o imperativo freiriano, a libertação se dá somente atrelada à
práxis humana dentro do processo histórico, que implicando a relação consciência-
mundo, demanda a consciência crítica dessa relação (FREIRE, 2010a).
Fica claro que o texto que aqui se conclui não oferece uma resposta para as
demandas do problema que o originou, estas parecem ser dadas ao longo de muito
tempo. Contudo, tentou romper com uma objetividade pré-estabelecida acerca de
uma das atividades determinantes da humanidade. E, ainda que segundo a
verborreia científica a maneira mais usual de concluir um texto acadêmico não seja
com as palavras de outrem, permito-me assim, em primeira pessoa, a fazer uso do
metafórico discurso de Amorim, ao encerrar seu prefácio em Retratos da Leitura.
Uma vez que aqui, uma tentativa de contribuição filosófica se põe, no entanto, “uma
coisa é certa: ainda há muito o que se fazer! E há muitas cadeiras vazias e lugar
para muito mais gente nessa viagem. E, diga-se de passagem, que adorável
viagem...”(AMORIM, 2008, p.20).
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