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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS ESCOLA DE BELAS ARTES LICENCIATURA EM TEATRO IRATI CHAPUIS AFETOS DE UM PÁSSARO: A poética de uma professora dramaturga Orientador: Prof. Dr. Vinícius da Silva Lírio Belo Horizonte 2019

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS

ESCOLA DE BELAS ARTES

LICENCIATURA EM TEATRO

IRATI CHAPUIS

AFETOS DE UM PÁSSARO:

A poética de uma professora dramaturga

Orientador: Prof. Dr. Vinícius da Silva Lírio

Belo Horizonte

2019

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AFETOS DE UM PÁSSARO:

A POÉTICA DE UMA PROFESSORA DRAMATURGA

RESUMO

Esse estudo parte de um relato que busca descrever e refletir sobre o processo criativo de

construção dramatúrgica do espetáculo “PAIRO: Afetos de um pássaro”, criado no segundo

semestre de 2018. A autora, dramaturga e diretora da obra, nessa escrita, que compõe sua

pesquisa de finalização da Licenciatura em Teatro, foca em sua prática pedagógica de criação

dramatúrgica. Nesse sentido, tece relações entre seu percurso acadêmico e o desenvolvimento

do seu modo pessoal de escrita. Para tanto, sistematiza características de sua poética, como os

princípios do processo colaborativo, o trabalho com material autobiográfico e a utilização de

improvisações, até chegar a esse processo específico de criação. A autora compartilha com o

leitor uma análise descritiva e interpretações de sua poética e as pedagogias implicadas no

processo, utilizando procedimentos da (auto)etnografia e princípios do método cartográfico.

Além de entrelaçar sua experiência a fundamentações teóricas são expostos registros de seu

diário de bordo, rascunhos e imagens, sendo estes rastros do processo, ao mesmo tempo,

disparadores e suporte para interpretação deles mesmos e para a articulação com conceitos,

ideias e reflexões para pensar pedagogias para a escrita dramatúrgica. Com isso, a autora pode

sistematizar e aprofundar uma leitura sobre o seu percurso acadêmico e seus processos

criativos, ao escrever e registrar suas reflexões, abordar suas expectativas para o futuro e

também, suas incertezas do presente.

Palavras-chave: Dramaturgia; Processo criativo; Pedagogias do Teatro.

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AFETOS DE UM PÁSSARO:

A POÉTICA DE UMA PROFESSORA DRAMATURGA

Irati Chapuis Gontijo1

Orientador: Prof. Dr. Vinícius da Silva Lírio

Introdução: meus porquês – antes e durante meu percurso acadêmico

Fazer teatro, antes mesmo de ingressar em uma Universidade, vem ampliando meu

olhar e minha compreensão sobre mim e sobre os outros, vem me tornando mais consciente

em relação às minhas interações com as individualidades e coletividades que me cercam e me

atravessam.

Após ingressar na graduação em Teatro, da Universidade Federal de Minas Gerais, no

segundo semestre de 2014, tomei consciência de que precisaria fazer uma escolha importante

já bem no início do meu percurso acadêmico: Bacharelado ou Licenciatura? Pois bem, a vida

universitária e seus caminhos eram novos e bastante confusos para mim, assim como os meus

objetivos profissionais na época. Sendo assim, decidi que cursaria os dois módulos, mas optei,

inicialmente, pelo bacharelado, pois enxergava a licenciatura como uma segunda opção, uma

garantia de retorno financeiro ou o lado mais estável da carreira de quem escolheu o teatro.

Quando entrei para a Universidade, possuía uma visão inocente e dualista acerca das

atribuições de um profissional do teatro. Eu não sabia, por exemplo, se professor de Teatro

também poderia ser artista. Também não possuía uma perspectiva ampla das possibilidades,

nem das ramificações de atividades dentro da área teatral.

O que me fez repensar e refazer minha escolha, decidindo pela licenciatura, em

primeiro plano, no âmbito acadêmico, foram minhas práticas extracurriculares. Ao longo do

curso, tive a oportunidade de vivenciar uma multiplicidade de experiências, que conciliavam

produções artísticas com a atuação em salas de aula.

1 Graduanda em Teatro – Licenciatura pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Participou do

Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência PIBID/TEATRO/UFMG de agosto de 2017 a fevereiro

de 2018. Trabalhou como produtora executiva durante as 1º, 2º, 3º e 4º Mostra de Arte de Confins, realizada pelo

Fórum de Política Cultural da cidade. Foi estagiária da Superintendência de Limpeza Urbana (SLU) - Belo

Horizonte, na qual desenvolveu um processo de criação artística com o Grupo Gerlúdico de Teatro, com foco em direção e construção dramatúrgica. Atualmente, trabalha como professora de Teatro no espaço “Casarão -

Cultura, Arte e Cidadania”, em Confins, e no “Espaço Cênico – Rick Alves”, em Belo Horizonte,

desempenhando as funções docente, dramaturga e produtora de espetáculos produzidos pela escola.

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Foi por meio dessas experiências que também, como professora, tive a oportunidade

de trabalhar com aqueles que, apesar de submetidos a aulas de teatro, não tinham,

necessariamente, a pretensão de se formarem atores. Devo dizer, que esse contato me

sensibilizou, ampliou minha concepção sobre o teatro e me motivou a querer dar aulas. Então,

finalmente, escolhi a licenciatura movida pela intenção de possibilitar a outros, de forma

direta, transformações e aprendizados que considero pertinentes e necessários a qualquer

indivíduo.

Contudo, outra descoberta se fez importante em minha formação: a dramaturgia

textual. A escrita, de modo geral, sempre me afetou positivamente. Fato relevante e

persistente desde que eu aprendi a escrever, ainda na infância, antes mesmo de pensar em ser

artista e muito antes de saber o que era o teatro e me interessar por suas possibilidades. O que

aconteceu posteriormente ao meu ingresso na Universidade, foi ter conseguido desenvolver

minha habilidade dramatúrgica, ao direcionar minha paixão por criar e contar histórias, para a

criação de textos dramatúrgicos. Hoje, meu principal interesse profissional.

Exponho, aqui, de forma mais detalhada, algumas das minhas experiências dentro e

fora da graduação em Teatro, para justificar a minha escolha de abordar um processo de

criação dramatúrgica, como objeto de pesquisa desse artigo. Afinal, é meu percurso que vem

moldando meus interesses, reflexões e questionamentos acerca dos processos criativos de

escrita que venho presenciando, participando e promovendo.

Ao ingressar no mercado profissional de teatro, ainda como estagiária, passei por três

instituições públicas2 regulares de ensino para cumprir a carga horária de estágio obrigatório,

exigida pelo currículo do meu curso, e em uma dessas instituições3 também tive a

oportunidade de ser bolsista do PIBID de Teatro (Programa Institucional de Bolsas de

Iniciação à docência). Atuo como professora assistente de Teatro, há quase quatro anos, no

Espaço Cênico – Rick Alves4. Além disso, concluí um estágio na área não formal de ensino,

na Superintendência de Limpeza Urbana (SLU), onde durante dois anos, minhas funções

foram escrever dramaturgias, planejar e ministrar aulas de Teatro e dirigir cenicamente o

2 Escola Estadual São José (Confins – MG), Escola Municipal Anne Frank (Belo Horizonte – MG) e Escola

Municipal Aurélio Pires (Belo Horizonte – MG). 3 Escola Municipal Aurélio Pires (Belo Horizonte – MG). 4 Escola privada de teatro, situada no centro de Belo Horizonte, que contempla todas as idades, com opções de

cursos livres e de formação em Teatro. Situado em Belo horizonte (MG), na Rua Paraíba, no bairro

Funcionários. Fundado em 1998 pelo ator, diretor, arte-educador e psicólogo Rick Alves, com foco no público de artistas e não-artistas, iniciantes, interessados na arte em geral. Disponível em:

<http://www.espacocenicobh.com/index.php/o-espaco/o-inicio/>. Acesso em 05 Jun. 2019

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grupo teatral Gerlúdico5.

Todas essas experiências me levaram a refletir, criar e executar inúmeras poéticas

para salas de aula do ensino básico regular e outros contextos de trocas artísticas, como, por

exemplo, o âmbito acadêmico, grupos teatrais, cursos livres e oficinas de Teatro. Poéticas

essas, entendidas por mim, a partir do seguinte ponto de vista:

Processos criativos e de aprendizagem entrecruzados; abordagens pedagógicas na

sala de aula que gerem interação, ação, reflexão e construção de conhecimentos,

saberes e fazeres; a percepção dos sujeitos desse ambiente de aprendizagem em suas

múltiplas dimensões (cognitiva, emocional, sensorial, sócio-histórico-política e

cultural); e, ainda, o entendimento desse lugar como espaço-tempo dialógico do

fazer e do refletir. (LÍRIO, 2015, p. 41-42)

Dentro dessa perspectiva, deparei-me utilizando princípios e conceitos teatrais vários,

de forma intuitiva. Hoje, consigo perceber que, tenho a tendência de enveredar por poéticas

que se assemelham, em seus valores, aos processos colaborativos6 de criação dramatúrgica.

Nesse ponto, instiga-me perceber que, mesmo de forma incipiente, eu consegui

conduzir processos de criação que, aos poucos, foram ganhando características que se

tornaram essenciais para a minha forma de trabalho como professora de Teatro e dramaturga,

tais como: os princípios do processo colaborativo, o trabalho com material autobiográfico, a

construção do texto teatral junto aos atores\alunos, a utilização de exercícios específicos7de

improvisação para a elaboração da escrita.

Analisando esses percursos adotados por mim, agora de forma mais distanciada,

percebo que há um grande potencial criativo nessas práticas e, portanto, tenho o interesse em

compreender melhor tais processos, de forma que eu possa vir a registra-los e, assim,

construir caminhos mais contundentes, melhor elaborados e fundamentados para dar

continuidade a essas atividades.

Neste ponto, interessa-me contar sobre “o convite” que motivou a escrita deste artigo.

No segundo semestre de 2018, fui convidada pela aluna do curso de bacharelado em Teatro,

Juliana Tostes, para escrever a dramaturgia do seu espetáculo de conclusão de curso. Juliana e

eu iniciamos o curso na mesma turma e, durante o percurso, nos tornamos amigas. Ela me

explicou que se tratava de um Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) conjunto, pois a atriz

5 Grupo teatral existente dentro do setor de Mobilização Ambiental da Superintendência de Limpeza Urbana

(SLU), da prefeitura de Belo Horizonte. O grupo é composto por garis e técnicos do meio ambiente e aborda, em

seus trabalhos, o tema dos resíduos sólidos, atuando em escolas, empresas e vilas. 6 O termo “processo colaborativo” será explorado de forma fundamentada e mais abrangente, no intertítulo:

“Particularidades que descobri em meu processo de escrita”. 7 Descrevo tais exercícios de forma sintética, porém, mais detalhada, no intertítulo “O processo: Descrições e

Análises”.

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em formação, Lílian Santiago, também usaria o espetáculo como exercício final de sua

graduação.

Ambas as formandas possuíam suas pesquisas8 entrelaçadas a aspectos vocais e

musicais da cena. A peça, que mais tarde, viria a receber o nome de PAIRO: Afetos de um

Pássaro, foi encenada não somente pelas formandas, mas por todo o grupo cênico musical do

qual elas fazem parte, o Turquesa9.

Por “cênico musical”, o grupo entende como sendo uma abordagem que mescla

música e teatro. De modo que, ora estão criando shows musicais repletos de teatralidade, ora

criando espetáculos teatrais compostos por canções e inspirados por estudos acerca da

musicalidade na cena teatral, como é o caso, por exemplo, do exercício cênico a ser

contemplado nesse artigo.

Aceitei o convite para escrever a dramaturgia e, posteriormente, para dirigir o mesmo

espetáculo. Quando percebi, já estava imersa no processo criativo, até então, mais prazeroso

de todo meu percurso de formação acadêmica. O grupo Turquesa me recebeu muito bem.

Apesar de já ter tido, através da faculdade, contato com todas as integrantes do grupo, era a

primeira vez que trabalhávamos todas juntas e, embora possuíssemos linhas de pesquisas

diferentes, felizmente, descobrimos muitas afinidades que nos possibilitaram encontrar um

caminho possível para o trabalho.

Contudo, é importante esclarecer que apesar da minha experiência prática com as

atrizes em formação ser parte integrante do universo dessa pesquisa, meu foco está nos

aspectos pedagógicos do meu modo de criar dramaturgia, e que, não por acaso, envolve a

prática desse processo específico.

Escolhi relatar essa experiência por considera-la uma boa representante dos meus

interesses profissionais e da minha jornada universitária, na qual pude reunir e utilizar

habilidades e conhecimentos pedagógicos e teatrais desenvolvidos e aperfeiçoados ao longo

das minhas experiências dentro e fora da faculdade.

Meu objetivo, ao abordar esse processo criativo, é descrever e refletir sobre os

recursos pedagógicos que venho utilizando na criação de dramaturgia. Para tanto, farei essa

8 Juliana Tostes escreveu seu artigo de TCC sobre “Afetos musicais como desencadeadores do processo de

criação do espetáculo PAIRO: Afetos de um Pássaro”, enquanto Lílian Santiago desenvolveu sua pesquisa

acerca do “Estudo do canto na cena teatral a partir da construção do espetáculo PAIRO: Afetos de um pássaro”. 9 Grupo Turquesa é um conjunto cênico-musical formado pelas mulheres artistas, a saber: Clara Ernest, Juliana

Tostes, Lilian Santiago e Raniele Barbosa (todas alunas do curso de Teatro da UFMG). Nascido durante a Ocupação da Escola de Belas Artes da UFMG – movimento político dos alunos, contra determinadas ações do

governo federal, ocorrida no segundo semestre de 2016 – o grupo segue a linha cênico-musical, focando em

harmonizações e na improvisação de vozes.

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abordagem por meio de alguns procedimentos da (auto)etnografia, expondo registros em

diário de bordo, rascunhos e fotos.

Em relação a essa abordagem, eu me localizo no que Vinícius da Silva Lírio (2017, p.

165) caracteriza como sendo um lugar fronteiriço, que “surge no próprio ato investigativo e à

medida que o pesquisador, ao investir no registro e na sistematização, realiza suas

autonarrativas, analisa e interpreta os fenômenos reconhecidos no universo em estudo”.

Utilizo, também, os princípios do método cartográfico, descrito por Lírio (Id., p. 164)

como um processo tateante, “tanto por seu caráter indefinido como pelo fato de se configurar,

gradualmente, a partir das condições potenciais do próprio pensamento”. O mesmo autor, ao

identificar essa abordagem como coerente em pesquisas acerca de poéticas, buscava por “uma

forma de registro dinâmica e que pudesse abrigar tempos, espaços, interações, teorias, vozes e

transformações” (op. cit.). Foi nesse cenário, que surgiu, no desenvolvimento desse estudo, a

cartografia em suas escolhas procedimentais.

E é por me identificar com essa busca e com a flexibilidade de ambas as formas de

registro, sistematização, análise e interpretação, que as considero oportunas em minha escrita.

Afinal, de outra forma, eu não saberia como organizar os estudos e articular uma pesquisa que

abrigasse tantas camadas e reflexões como essa. Somente sob essas perspectivas, foi-me

possível estabelecer relações entre teorias do teatro, minha prática de escrita dramatúrgica e

meu percurso acadêmico.

Com essas abordagens em mente, antes de avançar, gostaria de ressaltar a importância,

durante o meu processo, de um diário de bordo, recurso que tem sido fundamental para

recuperar os rastros do processo criativo que abordo aqui. Segundo Marina Marcondes

Machado (2002, p. 260), o mesmo “é a compilação de todas as anotações que um encenador-

criador faz durante a escritura, montagem e encenação do espetáculo sobre o qual,

futuramente, sua dissertação ou tese vai tematizar e discutir”.

É possível usar o diário de bordo em outras circunstâncias, como fiz em meus últimos

estágios obrigatórios do curso de Teatro. Como professora, tenho percebido a importância

dessa ferramenta/procedimento, para abrigar os registros dos meus processos criativos, o que

inclui aqueles em sala de aula.

Ainda de acordo com Machado (Id., p. 262), “um diário de bordo bem realizado é,

portanto, algo que documenta processos de criação, e que acaba por ganhar, como texto, ‘vida

própria’, funcionando como ferramenta de concomitantes aproximação e distanciamento do

trabalho processual”.

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Compartilhar o meu processo traz à tona estudos e reflexões que possibilitam pensar a

criação de dramaturgia e que podem vir a contribuir para o debate sobre as propostas

pedagógicas e metodológicas que integrem estudos teóricos com a prática da escrita

dramatúrgica. Podendo interessar aos profissionais, artistas, pesquisadores e docentes, que

vislumbrem o desenvolvimento de discursos teatrais que possuam a criação da dramaturgia

textual como ponto de partida.

Nesse sentido, o presente texto está dividido em três partes: na primeira, focalizo a

compreensão do meu processo pessoal de escrita; depois, sigo dando sustentação ao processo

de criação da dramaturgia de PAIRO: Afetos de um Pássaro, de forma a entrelaçar minha

experiência prática a fundamentações teóricas pertinentes à mesma; e, por fim, compartilharei

com o leitor uma análise do processo de criação, por meio da descrição de suas etapas,

expondo as pedagogias implicadas no processo e tecerei minhas considerações, ainda

provisórias, sobre o conteúdo desse artigo.

Um incômodo pertinente: quando descobri que não sabia explicar meu processo criativo

Em minha primeira reunião com as integrantes do Grupo Turquesa, ocorrida no

princípio de agosto de 2018, em uma das salas do prédio do Teatro da UFMG, elas se

mostraram bastante receptivas e abertas a quaisquer ideias e sugestões da minha parte.

Inclusive, demonstraram interesse em saber mais sobre como se dava o meu trabalho com a

escrita dramatúrgica. Naturalmente, queriam entender meu processo de criação e como eu

pretendia proceder daquele momento em diante. Entretanto, naquele dia, eu possuía as

mesmas questões. Não sabia, ao certo, qual seria o caminho, nem como explicar, de forma

clara e organizada, as características do meu trabalho.

Até então, eu nunca havia precisado esquematizar, para o outro, meus procedimentos

dramatúrgicos. Eu mesma, muito pouco havia pensado a respeito disso. E, embora a

esquematização ou a organização de um sistema não seja a intenção desse artigo, entender

melhor os meus processos e estar consciente das minhas escolhas procedimentais e artísticas,

no contexto das minhas poéticas, é uma questão importante para mim.

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Durante o curso de Teatro, eu tive a oportunidade de passar por três disciplinas10

voltadas para algum aspecto do estudo da dramaturgia, sendo, cada uma delas, responsáveis

por me fazer perceber a importância de disciplinas como essas, durante o percurso de

formação acadêmica, artística e docente. Assim, quis me aprofundar mais nesse estudo.

Contudo, foi durante o segundo semestre de 2018 – coincidentemente, no mesmo

período em que iniciei o processo de PAIRO: Afetos de um Pássaro – que tive a oportunidade

de me matricular em uma disciplina optativa do curso de Teatro, denominada Oficina de

Dramaturgia, ministrada pelo Professor Antônio Barreto Hildebrando, a qual foi responsável

por despertar, ainda mais, meu interesse em estudar ainda mais sobre o assunto. Senti que o

aprofundamento em conceitos teóricos acerca do tema se deu de forma mais rasa, embora,

suficiente para suscitar, em mim, questões fundamentais para que eu pudesse começar a

entender melhor o que eu vinha desenvolvendo, de forma mais intuitiva, no quesito

dramaturgia.

As práticas de escrita promovidas durante essa disciplina instigaram-me a pensar as

estruturas dramatúrgicas, suas características e entender de forma mais ampla, o quê e como

eu vinha escrevendo para o teatro. Longe de limitar minha criação, considero que esse

processo me ajudou a escrever melhor. Afinal, mesmo não havendo a necessidade de me ater

a tais especificações, fora do âmbito acadêmico, o conhecimento mais detalhado do universo

dramatúrgico me apresentou a novas possibilidades.

A Oficina de Dramaturgia teve um caráter muito prático, na qual o foco era a escrita,

a leitura e, posteriormente, a discussão de dramaturgias, em sala de aula. Na medida em que, a

cada exercício prático, eu era provocada a me ater a estruturas dramatúrgicas específicas, ia

apreendendo a usar melhor os elementos e procedimentos para a criação de cada uma delas e

isso me instigava.

Quando, por exemplo, ao tentar escrever um drama em seu sentido mais convencional

(diálogos, conflito bem delimitado, história linear, etc.), comecei a perceber minha tendência

em burlar as regras, sempre utilizando elementos “não-dramáticos”, indo na direção do que

escreve Stephan Baumguärtel (2011, p. 3):

10Prática de Ensino C: Laboratório Prático de Teatro – Dramaturgias, disciplina obrigatória do núcleo da

Licenciatura, ministrada pela professora Marina Marcondes Machado, cursada durante o 2º semestre de 2016;

Tópicos em Dramaturgia: Escrita dramatúrgica, disciplina optativa do curso de Teatro, ministrada pela professora Elen de Medeiros, cursada durante o 1º semestre de 2017; e Oficina de Dramaturgia, disciplina

optativa do curso de Teatro, ministrada pelo professor Antônio Barreto Hildebrando, cursada durante o 2º

semestre de 2018.

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Introduzindo no formato do drama elementos alheios à estética representacional

realista do drama, como, por exemplo, o fantástico e o surreal com suas

transformações dos eixos temporais e locais da ação, e mais importante ainda,

utilizando uma linguagem poetizada ou até jogos de linguagem.

Dessa forma, conhecer melhor os recursos dramatúrgicos existentes, fez com que eu

começasse a conhecer melhor meus hábitos de escrita e suas características.

Dito isso, antes de passar por esse processo de aprendizagem e começar a tornar mais

consciente as minhas poéticas de escrita, incomodou-me não ter uma resposta melhor

elaborada para fornecer ao grupo Turquesa em nosso primeiro encontro e, portanto, desde

então, venho buscando um maior entendimento sobre as poéticas de minhas criações e

valorizando cada vez mais, a importância do estudo da dramaturgia como parte integrante em

um currículo de graduação em Teatro, tanto no Bacharelado, quando na Licenciatura.

Quanto a isso, Carlos Afonso Monteiro Rabelo (2015, p. 246), em seu texto Um estudo

metodológico do ensino em Dramaturgia: ensaiando para escrever, chama atenção para o

fato de que,

enquanto o treinamento do ator é exaustivamente pesquisado, a formação de novos

dramaturgos é relegada a um segundo plano, ou mesmo a um plano inexistente.

Considera-se o poder da criação literária como um dom divino, impossível de ser fomentado. [...] Quando se trata de escrever, uma áurea impenetrável impede as

discussões metodológicas.

Eu, como professora, pretendo utilizar a dramaturgia como recurso metodológico para

o ensino do Teatro. Porém, já me perguntei várias vezes: seria capaz de ensinar alguém a

escrever dramaturgia? Logo, penso em minha trajetória e me questiono sobre de onde veio e

como desenvolvi minha aptidão para tal atividade. Algumas pessoas acreditam em dons,

outras em prática. Eu, nesse caso, encontro sentido na seguinte afirmação de Rabelo (2015, p.

246):

A própria discussão se é ou não possível ensinar a escrever poesia, drama ou prosa é

sem sentido. Por esse caminho, pode-se argumentar que nada se ensina – que cada

pessoa segue solitariamente em direção ao que mais lhe interessa. O que importa é

ter um espaço de tentativa e erro, um espaço de discussão sobre a arte, e o

compromisso de entregar um exercício para o professor ao final da semana. Só se

aprende a escrever escrevendo.

Quando Rabelo (op. cit.) menciona, que para ele, o que importa é o fato de ter “o

compromisso de entregar um exercício para o professor”, interpreto tal afirmação como sendo

a proposição da prática constante do exercício, do ato criativo da escrita. Acredito que esse

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espaço de “tentativa e erro”, mencionado pelo autor, seja fundamental para a construção do

saber em qualquer área. E, somado a esse fator, a condução de um professor-orientador, torna

esse ambiente de troca ainda mais potente, por impulsionar o diálogo e a crítica sobre, nesse

caso, a escrita dramatúrgica.

Fico feliz por ter percorrido caminhos que me permitiram tentar e errar bastante,

porém, senti falta desses espaços sendo promovidos de forma mais constante e contundente

pelo curso de Teatro. Isso poderia ocorrer a partir, talvez, de um currículo onde coubessem

mais disciplinas como a Oficina de dramaturgia, compondo de forma obrigatória, o núcleo

das atividades. Felizmente, tenho a oportunidade, nesse artigo, de abordar essas questões e,

assim, ir aguçando o meu olhar sobre essas experiências, minhas demandas e minhas

escolhas, como artista e como professora de Teatro.

Particularidades que descobri em meu processo de escrita dramatúrgica

Antes, então, de adentrar, especificamente, à poética da dramaturgia textual de

PAIRO: Afetos de um pássaro, opto por expor aqui, características que vêm acompanhando a

forma como venho desenvolvendo e estruturando meu trabalho com a escrita de textos

dramatúrgicos. Forma essa, que se encontra presente, também, na dramaturgia encenada pelo

grupo Turquesa, que terá seu processo de criação descrito, mais adiante, nesse artigo.

Para início de reflexão, acredito ter sido o ambiente da sala de aula o maior

responsável pela consolidação da minha poética de criação dramatúrgica, mesmo quando essa

era exercida fora desse espaço. A prática constante da criação de textos para e com turmas

numerosas de alunos e a pluralidade de vozes emergentes nesses territórios, me ensinou muito

e conduziu-me por caminhos pedagógicos e criativos, que explicarei melhor adiante.

Porém, não posso deixar de fora do campo de influências o meu percurso acadêmico.

E, para tanto, mais uma vez, citarei uma disciplina optativa do curso de Teatro, cursada por

mim, durante o segundo semestre de 2016: Tópicos em Teatro B: Experimentos teatrais na

educação infantil, ministrada pelo professor Ricardo Carvalho.

Essa disciplina possuía, em sua ementa, o estudo do processo colaborativo de criação,

como norte para o desenvolvimento de ações pedagógicas teatrais para crianças. Esse foi meu

primeiro contato com as teorias acerca do Processo Colaborativo e, possivelmente, o gatilho

para minhas escolhas criativas durante o exercício da docência (mesmo como estagiária).

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Lembro-me que, no início da disciplina em questão, a turma se dividiu em três grupos:

dramaturgia, direção e atuação. Eu escolhi o núcleo da dramaturgia e, junto aos outros

integrantes, fiquei responsável por pensar, elaborar e conduzir, durante o semestre, práticas

teatrais para crianças, voltadas para o âmbito dramatúrgico.

Essa experiência é relevante em minha trajetória, não só por me envolver, ainda mais,

com a dramaturgia, enquanto processo metodológico para a criação, mas, também, por me

colocar em contato com os estudos do diretor Antônio Araújo 11e do dramaturgo Luís Alberto

de Abreu12, estudiosos do Teatro que, em várias de suas pesquisas, contextualizam o processo

colaborativo, que, não por acaso, é citado como referência, algumas vezes, nesse artigo.

Portanto, levando em consideração essas vivências, voltemos à pratica docente.

Quando, no papel de professora, me é atribuída a função de escrever o texto dramatúrgico, no

momento em que esse se faz necessário (sempre me ofereço para o trabalho), os alunos

ganham um papel fundamental na criação do mesmo.

Como exemplo, contarei de forma sucinta, uma experiência ocorrida no ano de 2017.

Naquele ano, realizei com a turma de adolescentes (jovens de 12 a 16 anos), do Espaço

Cênico – Rick Alves13, um processo de criação inspirado no livro: “O Diário de Anne

Frank14”. A ideia era contextualizar o período histórico da narrativa, apresentar os conflitos

vividos pela adolescente, autora do diário, e utilizar a obra como pano de fundo para o

espetáculo de final de ano da turma.

Na medida em que o processo avançava, senti a necessidade de aproximar as questões

abordadas no livro dos dilemas conhecidos e vividos, no tempo presente, pelos alunos. Para

isso, propus aos adolescentes que confeccionassem, em sala de aula, seus próprios diários e

neles escrevessem seus medos, angústias, suas dificuldades e o que mais considerassem

importante e quisessem compartilhar (deixei claro que os relatos seriam expostos em uma

etapa posterior).

11 Antônio Carlos de Araújo Silva (Uberaba MG, 1966) é diretor e encenador ligado ao Teatro da Vertigem,

marcado pela busca de alternativas cênicas espaciais e temas ligados à ética. Disponível em:

<http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa101596/antonio-araujo>. Acesso em: 05 Jun. 2019. 12 Luis Alberto de Abreu (São Bernardo do Campo, 1952) é um dos mais importantes dramaturgos da América

Latina. Começou a carreira no teatro e, depois, passou a escrever roteiros para cinema e TV. A partir dos anos

80, destacou-se como autor ligado ao grupo Mambembe. Disponível em:

<http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa109228/luis-alberto-de-abreu>. Acesso em: 05 Jun. 2019. 13 Ver nota 4. 14 O Diário de Anne Frank foi composto pela, então, adolescente Anne Frank, no período que se estende de 1942

a 1944, em um dos contextos mais difíceis da história da Humanidade, a Segunda Guerra Mundial. Disponível

em: <https://www.infoescola.com/livros/o-diario-de-anne-frank/>. Acesso em: 05 Jun. 2019.

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Dispositivos para criação, como “do que eu me escondo?”, “do que tenho medo?”,

“tudo que eu gostaria de te dizer é...”, ajudaram a criar uma oportunidade propícia para o

desenvolvimento da atividade. Os alunos aderiram bem à ideia e expressaram pensamentos,

narrativas cotidianas, trechos de músicas, poesias, escritos que dialogavam com o universo em

que estavam inseridos e isso, nos permitia criar uma ponte com a história do livro/tema que

vinha sendo utilizado.

Eu, enquanto responsável pelo texto dramatúrgico, escolhi utilizar um pouco de cada

diário para a construção da dramaturgia. O texto teve várias versões até o seu resultado final

e, a cada etapa, eu o levava para a sala de aula e propunha leituras dramáticas e improvisações

cênicas. Tais procedimentos funcionavam, para mim, como estímulos criativos e me

ajudavam a mesclar as histórias dos alunos às passagens marcantes da história da jovem

Anne.

Como resultado, substituímos o holocausto por “prisões” mais recentes. O preconceito

racial e problemas de ordem mental foram temas muito contemplados pelos diários e,

consequentemente, pela dramaturgia. O processo, em si, foi muito potente, cênica e

pedagogicamente. Foi, também, bastante gratificante para mim e, acredito que também para

os alunos, que tiveram suas narrativas entrelaçadas e encenadas perante um público de amigos

e familiares.

Como descrito no processo criativo anterior, os alunos com os quais trabalho, são

sempre instigados, por mim, a contribuírem com suas vivências, por meio da manifestação de

seus desejos e vontades por meio de jogos teatrais, improvisações, discussões propostas e/ou,

mesmo, através de textos próprios, escritos individualmente ou de forma coletiva.

Foi dando aulas que, intuitivamente, aproximei-me de características inerentes ao

processo colaborativo de escrita no qual, reproduzindo as palavras de Lucienne Guedes (2009,

p. 312), em seu texto Questões Sobre Dramaturgia: uma experiência pedagógica, reconheci

que “a dramaturgia acaba refletindo o pensamento de um coletivo criador”.

Longe de dizer que faço uso, nas escolas, do processo colaborativo em seu sentido

amplo, que, de maneira mais conceitual e aprofundada, consiste, segundo Antônio Araújo

(2009, p. 48),

numa metodologia de criação em que todos os integrantes, a partir de suas funções

artísticas específicas, tem igual espaço propositivo, produzindo uma obra cuja

autoria é compartilhada por todos. Sua dinâmica des-hierarquizada, mais do que

representar uma ausência de hierarquias, aponta para um sistema de hierarquias

momentâneas ou flutuantes, localizadas por algum momento em um determinado

polo de criação (dramaturgia, encenação, atuação etc.) para então, no momento

seguinte, mover-se rumo a outro vértice artístico.

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Digo, apenas, que sempre foi importante, para mim, criar uma unidade dramatúrgica

que representasse o interesse do agrupamento de sujeitos com os quais trabalho, de forma

mais democrática. E, embora, nas salas de aula pelas quais passei, minha condução não tenha

se dado de maneira des-hierarquizada (provavelmente, os momentos mais “flutuantes” se

deram mesmo, durante o processo de criação dramatúrgica), foi estudando as teorias acerca do

processo colaborativo que encontrei princípios norteadores, capazes de começar a

fundamentar meu modo de produzir textos teatrais.

Dito isso, penso que, no exercício das minhas atividades profissionais, tenho me

distanciado do “dramaturgo de gabinete” (ARY, 2010). Esse termo é usado no texto “O

processo colaborativo na formação de dramaturgos”, de Rafael Luiz Marques Ary (2010),

para definir aquele que seria o oposto do dramaturgo do processo colaborativo.

Enquanto, para esse autor, o dramaturgo de gabinete é caracterizado por um

“encastelamento criativo”, que o leva a se isolar e contar, essencialmente, com a inspiração

para a escrita de um texto dramatúrgico mais rígido e sem interferências vindas da sala de

ensaio, ao dramaturgo do processo colaborativo

[...] se pede a capacidade de lidar com a proficuidade de material que é

arregimentado pelas outras funções. O ato de escrever e reescrever uma cena impele

o dramaturgo ao exercício que o leva para além do conceito de inspiração. É preciso

ordenar os muitos estímulos, de forma a não se perder no subjetivismo que tenta

conciliar as diversas visões de um mesmo assunto. Ou seja, é preciso trabalhar em

coletivo, quando na exploração do tema, e trabalhar para o coletivo, quando se

precisa determinar aspectos importantes de um espetáculo. (ARY, 2010, p. 3)

Ao expor tal referência, não pretendo, com isso, fazer juízo de valor sobre os modos

de produção de dramaturgia. Acredito que ambos são legítimos, de acordo com suas

especificidades. Apenas, percebo que venho escolhendo, para o meu modo de trabalho,

processos dramatúrgicos de viés mais colaborativos.

E quanto a isso, questiono-me: eu poderia, então, afirmar-me como sendo uma

dramaturga do processo colaborativo? Por enquanto, não ouso fazer essa afirmação, por não

querer definir, apressadamente, um processo que ainda é tateante. No entanto, é verdade que

comungo com as ideias que pairam sobre esse modo de escrita e que me amparo em tais

estudos para ir, aos poucos, tentando entender e fundamentar os princípios que venho

seguindo na construção das minhas poéticas de escrita. O fato é que eu aprendi a escrever

dramaturgia, primeiro, na sala de aula, como professora, em diálogo constante com os

envolvidos no processo e, posteriormente, tenho levado esse modo de criar para outros

espaços.

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Ao adentrarmos, ainda mais, as particularidades que envolvem meu processo

dramatúrgico de criação, nos depararemos com a utilização de material autobiográfico, tanto

por parte dos indivíduos (atores ou não) envolvidos no processo, quanto da minha parte.

Acerca disso, Guedes (2009, p. 314) afirma que “é sintomático que soframos com a idéia de

que a obra teatral seja autobiográfica, na medida em que tanto nos provocamos com a nossa

visão de mundo, com a nossa maneira de olhar, com a nossa memória, com o nosso processo

de criação.”.

Eu estou de acordo com essa autora, pois já sofri me questionando sobre a quantidade

de “mim” existente naquilo que escrevo e no que isso implica depois que a dramaturgia já está

escrita e sai das minhas mãos para os corpos de vários outros. Diante dessas inquietações,

provoco-me: estaria eu envolta em um processo criativo tendenciosamente individualista ou

narcisista?

Por ora, é a própria Lucienne Guedes (2009, p.314) que me conforta:

É claro que a escritura sempre trará muito de quem a fez e de suas escolhas. Mas não

trará a sua biografia, necessariamente. O dramaturgo é aquele que oferece

possibilidades e age como detonador delas. Porque, não esqueçamos, o teatro

somente se fará completo no encontro do dramaturgo com os outros criadores –

atores, diretor, iluminador, cenógrafo – e com o público.

Contudo, julgo importante você leitor, saber que me encantei pelo teatro, devido à

possibilidade que ele me proporciona de explorar a mim mesma. Diferente da afirmação de

muitos atores, que dizem fazer teatro para poderem ser outros ou viver várias vidas em uma

só, eu sempre tive a certeza de que faço teatro para ser mais eu mesma e viver a minha vida de

forma mais consciente e plena possível.

Essa minha visão pessoal do fazer teatral, com certeza, contaminou o meu fazer

profissional. Em meus processos criativos de escrita, sempre sou confrontada por múltiplas

concepções de mundo e mesmo quando é possível, encontrar um lugar comum para elas, a

singularidade de cada indivíduo me chama a atenção e me instiga a contempla-la. Por isso,

sempre proponho, em meus processos, atividades de cunho autobiográfico e me comprometo

a levar facetas das personalidades, dos desejos, das histórias, memórias, discursos, entre

outras dimensões trazidas nessas oportunidades, para o exercício cênico a ser realizado.

Por fim, mais não menos importante, outra característica bastante recorrente que

percebi ao analisar a estrutura dramatúrgica predominante na maioria dos meus trabalhos,

utilizando as palavras de Carlos Afonso Monteiro Rabelo (2015, p. 245), “tendo em vista que

o gênero dramático está longe de ser hegemônico no teatro contemporâneo”, costumo

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conduzir processos de criação, nos quais os textos enveredam por caminhos não dramáticos,

“no sentido de dramaturgias não lineares, sem relação de causa e efeito, como vem se

realizando ao longo do século XX desde a crise do Drama [...]” (op. Cit.). Característica essa

que abrange também, a criação de personagens menos propensas à caracterização psicológica

e mais voltada para uma representação ficcional do próprio ator.

Pois bem, essas não são todas, mas, com certeza, são as características mais

recorrentes em minhas dramaturgias e que se tornaram objetos de estudo para mim: processos

de criação dramatúrgica com traços colaborativos; escritas disparadas por exercícios

autobiográficos; e, ainda, o investimento em dramaturgias recheadas de elementos não-

dramáticos. Todas elas estiveram presentes na construção do texto de PAIRO: Afetos de um

pássaro e, no decorrer desse artigo, pretendo ir desdobrando os procedimentos que resultaram

na composição dessa obra.

O processo de PAIRO: Afetos de um Pássaro

É importante ressaltar que as integrantes do grupo Turquesa se encontraram, durante o

segundo semestre de 2018, de forma regular duas vezes por semana (quartas pela manhã e as

sextas à tarde). Porém, ficou decidido a princípio, que eu somente participaria de um desses

encontros (as sextas). Quando eu não estava presente, as discussões e experimentações

continuavam por parte das atrizes. Elas possuíam autonomia para escolher seus caminhos de

criação em minha ausência. O meu trabalho era somar minhas propostas às delas, tentando

encontrar um lugar comum, no qual pudéssemos estabelecer diálogos que nos fizesse avançar

no processo de criação dramatúrgica.

Por vezes, as atrizes me trouxeram seus próprios escritos, resultado de práticas

provocadas por elas próprias, umas nas outras, ou até mesmo, escritos de experiências

passadas que, de alguma forma, comungavam com os nossos objetivos para o espetáculo. Eu

sempre estava aberta a receber tais estímulos, nunca ousava descartar nada de forma

precipitada. Coube a mim, a estruturação desse material desmembrando, fazendo cortes e

demais alterações quando considerava necessário.

A seguir, listarei os procedimentos que estão inteiramente conectados à minha busca

por material que me inspirasse e ajudasse a compor a dramaturgia textual de PAIRO: Afetos

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de um Pássaro. Contudo, é relevante ainda dizer que desde o início do processo, motivada por

um dos aspectos importantes do tema de pesquisa de Tostes, a memória como elemento

potente para a criação cênica, eu escolhi entrelaçar minhas propostas criativas à memorias

individuais e coletivas das artistas.

Tempestade de ideias

O início do meu trabalho com o grupo se deu durante o final de agosto de 2018 e

prosseguiu semanalmente, até a realização do espetáculo (01 e 02 de dezembro do mesmo

ano). Apesar das várias incertezas que rondavam o início desse trabalho, o grupo Turquesa e

eu tratamos de estabelecer um campo de troca, no qual fosse possível dialogarmos e construir

juntas, o caminho para a escrita da dramaturgia. A princípio, não havia um tema norteador

para o espetáculo, porém, havia muitas ideias soltas a espera de uma conexão.

Então, na tentativa de conhecer melhor as atrizes e suas propostas, conduzi uma roda

de conversa por meio de estímulos que me foram dados, através de um grupo do whatsapp, o

qual, a princípio, era usado como uma espécie de baú virtual de vontades. Nele eram,

frequentemente, postados recortes de textos, músicas, vídeos e imagens que ilustravam os

desejos do grupo em relação ao trabalho a ser desenvolvido.

A condução dessa conversa se deu por meio de perguntas elaboradas por mim, a partir

desses estímulos. A seguir, exponho as questões levantadas durante a conversa, da forma que

foram anotadas em meu diário de bordo do processo:

1) “Clara, Juliana, Raniele e Lilian têm palavras dentro do peito, que não podem mais

guardar. Quais são essas palavras?”

2) Pensem em algo que vocês quiseram muito, mas que não deu certo. Agora:

a) E se tivesse dado certo?

b) E se eu fizesse outra coisa?

c) E se tudo fosse diferente?

3) Complete a frase: Em meu rio não mergulhará aquele que...?

Após concluirmos a rodada de perguntas, percebi que os porquês, as escolhas e os

conflitos, resultados da própria existência, foram os protagonistas dessa etapa. Muitas

informações de cunho pessoal foram sendo expostas na roda e a semelhança entre as

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angústias, os anseios e as dificuldades daquelas quatro artistas em formação, foram criando

um lugar comum de fala. Quando me dei conta, também já estava imersa nesse lugar, afinal,

eu podia me identificar e compartilhar de muito do que estava sendo dito.

Logo, éramos cinco15. Cinco mulheres jovens, universitárias, que optaram pelo Teatro

como profissão. Esse contexto acabou sendo bastante contemplado através de nossas falas e

daquele momento em diante, eu soube que o espetáculo também seria contemplado por esse

contexto.

Partimos então para um exercício, também proposto por mim, que daria início a nossa

primeira atividade cênica. Dispus duas cartolinas pelo chão da sala de ensaio, em

extremidades diferentes e acompanhadas de giz de cera colorido. As atrizes andavam pelos

espaços vazios da sala, ao som do poema “Fevereiro”, de Matilde Campilho16.

Em momentos específicos, eu dava comandos17 numéricos (de 1 a 5), que poderiam

ser registrados de forma escrita ou por desenhos. Os comandos possuíam os seguintes

significados:

1) Um desejo para o futuro.

2) Um acontecimento que te marcou no passado.

3) Um trecho de música.

4) Uma nota musical.

5) O que está acontecendo dentro de você nesse momento?

Abaixo, podemos ver algumas dos registros das respostas feitos pelas atrizes.

15 Mais adiante no processo, contamos com a presença da musicista Henriane Souza, que participou do

espetáculo tocando harpa e ajudando a conduzir as cenas. Porém, ela não chegou a participar dessa etapa de

produção de material para a construção do texto dramatúrgico. 16 Disponibilizado através de um vídeo do Youtube, compartilhado pelas integrantes do Turquesa, no grupo do

whatsapp. A autora do poema, Matilde Campilho, é uma poetisa portuguesa, que divulga seu trabalho através de

vídeo-poemas. “Fevereiro” é um devaneio poético sobre a vida e o amor. O vídeo encontra-se disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=VasLnEWnAxY&t=32s. Acesso em: 01 de julho de 02019. 17 Registro de comandos retirados do meu diário de bordo do processo.

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Figura 1 – Tempestade de Ideias 1

Foto: Juliana Tostes, 2018.

Figura 2 – Tempestade de Ideias 2

Foto: Juliana Tostes, 2018.

Ambas as fotos abarcam uma parte do resultado desse primeiro exercício. Como é

possível observar, como resultado, as cartolinas ficaram bem coloridas e com muitos dizeres

diferentes e aleatórios: trechos de músicas, representações de notas musicais, desenhos,

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vontades, palavras soltas, pensamentos variados, que foram emergindo durante minhas

provocações.

Transcrevo a seguir, alguns dos escritos que se encontram ilegíveis nas fotografias:

“Rezando terço com meus avós. Meu avô havia inventado um contador mecânico das

ave-marias”.

“Eu e meu pai no parque das Mangabeiras: bolo de banana – quiti18 – carinho”.

“Vai taca, taca, taca, taca, taca, tááá...”.

“Na bruma leve das canções que vem de dentro, tu vai chegando pra brincar no meu

quintal...”.

“Tô com cólica porque dancei”.

“Atravessar o gramado de Deus de (desenho de uma bicicleta)19”

“Lá20”

“E se(i)?”

Após essa etapa, avançamos para uma proposta de construção de cenas, na qual os

elementos que compunham as imagens acima foram utilizados como mote criativo para a

elaboração de pequenas células cênicas, que foram apresentadas naquele mesmo encontro.

As integrantes do grupo Turquesa se separaram em duas duplas e escolheram, de

forma aleatória, uma das cartolinas já preenchidas. Em seguida, foram orientadas, por mim, a

selecionar cinco elementos que mais lhes chamavam a atenção, dentre todos os que

compunham a folha escolhida. Por fim, as duplas tiveram um tempo para estruturar esses

elementos e preparar uma pequena apresentação cênica.

A maneira como esses fragmentos criativos deveriam ser articulados e apresentados,

era de escolha da dupla: Clara e Raniele montaram um diálogo e o dramatizaram; enquanto

Juliana e Lílian montaram um verso com os dizeres da cartolina e o transformaram em uma

canção. A seguir, registros fotográficos das criações:

18 Acredito que a palavra correta seria “Kit”. 19 Na cartolina foi, literalmente, desenhada uma bicicleta no lugar da palavra. 20 Registro de uma nota musical.

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Figura 3 – Diálogo absurdo

Foto: Juliana Tostes, 2018.

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Figura 4 – Primeira canção não utilizada

Foto: Juliana Tostes, 2018.

Na figura “Diálogo absurdo”, está registrado uma parte do diálogo montado por Clara

e Raniele. Enquanto na segunda imagem, exponho o parágrafo que resultou em uma breve

canção, criada por Lílian e Juliana. Esse primeiro material, assim como muitos outros

produzidos durante as improvisações iniciais, apesar de terem sido de grande utilidade para

começarmos a nos aprofundar nos desejos que rondavam a construção da dramaturgia do

espetáculo, não vieram a compor, diretamente, as cenas prontas de “PAIRO: Afetos de um

pássaro”. Porém, ajudou-nos a materializar as vontades e nos deu uma direção.

Improvisando a partir de sons

Na semana seguinte ao exercício das cartolinas, retornei com uma proposta de

atividade, diferente. Sabendo que eu estava lidando com um grupo que pretendia realizar

abordagens sonoras e musicais em seu trabalho, senti que precisava desenvolver propostas

que contemplassem esses lugares. Porém, não tendo eu passado por outras experiências de

criação com esses requisitos, arrisquei elaborar, intuitivamente, uma proposta que envolvesse

a escuta de sonoridades.

No gramado em frente ao prédio do Teatro, no campus Pampulha, da UFMG,

estabeleci que as atrizes, Clara e Raniele (as únicas que puderam comparecer àquele

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encontro), deveriam estar de olhos vendados, com um papel e caneta em mãos. A partir disso,

a instrução era escutar e registrar, da forma que preferissem, todos os sons predominantes do

momento. Nas figuras a seguir, ilustro os registros alcançados através desse exercício:

Figura 5 – Confusão sonora

Foto: Juliana Tostes, 2018.

Eu sempre iniciava uma proposta sem saber exatamente onde ela nos levaria. Porém,

nesse dia, os registros acima, visivelmente confusos, deram origem à primeira parte de uma

das canções autorais que compuseram o espetáculo. No emaranhado desses rabiscos foram

encontrados elementos que deram origem ao seguinte trecho musical:

“Haha - haha

Haha - haha

Haha - haha

Haha - haha

Qual o barulho da chave de casa?

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Tô escutando alguém feliz”.

Mais adiante, após ser finalizada, a canção acima recebeu o nome de “Chave de casa”

e foi escolhida para encerrar o espetáculo.

Vale lembrar, porém, que, embora minhas proposições pudessem desencadear

composições musicais, compor músicas não era a minha função, nem é uma das minhas

especialidades. Nesse quesito, cabia a mim, apenas entrelaçar as composições autorais do

grupo ao restante do texto e ir tornando-as parte da dramaturgia. Coube a mim, ainda,

selecionar as canções que fariam parte do espetáculo, bem como, a escolha dos momentos

musicais.

Escrevendo cartas

Mais adiante, para iniciarmos outro procedimento de criação, propus trabalharmos

com lembranças atreladas a laços familiares, principalmente, durante a infância, quando

surgiu um elemento comum entre as atrizes: a relação conflituosa que tinham com a figura

paterna. Essas questões, quando surgiam durante os encontros, demonstravam possuir grande

potência enquanto elemento de criação para o trabalho.

Pensando nisso, pedi que as atrizes escrevessem, cada uma, uma carta para seu pai.

Três das integrantes cumpriram com a atividade a tempo de introduzi-la na dramaturgia,

contribuindo diretamente com o processo final de escrita dramatúrgica. A seguir, um trecho

da carta escrita por Juliana a seu pai:

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Figura 6 – Carta ao meu pai

Foto: Juliana Tostes, 2018

O texto redigido por ela foi utilizado, na íntegra, na dramaturgia do espetáculo. As

outras duas cartas foram contempladas de formas diferentes, ressignificando-as e encaixando

um pedaço aqui e outro ali, ao longo da dramaturgia.

Abaixo, exponho uma parte do texto dramatúrgico, retirado da cena final, intitulada

“Chaves de casa”.

Chaves de casa21

Raniele - Espera, tem uma coisa que eu não posso deixar de carregar comigo.

Clara – O que é?

Raniele – Aquela memória com som de furadeira.

Juliana – Que negócio é esse?

Raniele – É que meu pai, sempre me acordava com o barulho da furadeira dele, era

mais uma das centenas de caixas de som sendo produzidas no quintal. Gosto de

levar isso comigo!

Lílian – E eu que, às vezes, me lembro das coisas por meio dos sons! Todas as

palavras, os momentos de alegria e até mesmo os de dor, se transformam em notas

encaixadas em apenas um ou dois acordes.

21 Trecho retirado do texto dramatúrgico: “PAIRO: Afetos de um pássaro”, escrito por Irati

Chapuis, no segundo semestre de 2018, durante o processo criativo descrito nesse artigo.

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Clara – Eu posso levar uma imagem?

Lilian, Raniele, Juliana – Pode.

Clara – É uma foto dos meus pais. Na foto é como se eles olhassem pra mim, que

estou aqui do lado de fora da fotografia, sabe? Mas na foto, eu ainda estou dentro

da barriga da minha mãe. É como se eu estivesse em dois lugares ao mesmo tempo.

Só sei que, quando eu ainda não era quem sou hoje, eu era feliz e não sabia. A

grama da barriga é sempre mais verde. Vocês já sentiram saudade de um tempo em

que vocês ainda não eram?

Nela, são contemplados pequenos trechos das cartas (com ênfase nas partes

sublinhadas), escritas por duas das atrizes, porém, mesclados a outros textos e distribuídos

entre as falas, de modo que fica difícil, hoje, distinguir onde começa ou termina a narrativa

pessoal das atrizes.

Nem todo texto nasce da palavra: criando a partir de imagens e elementos externos

Após alguns encontros focando na criação de registros escritos, optamos por iniciar

uma nova etapa. Não chegou a ser uma proposta minha, mas, sim, uma demanda das próprias

atrizes. Elas começaram a sentir falta de elementos, que proporcionassem maior materialidade

ao processo de criação.

Dessa forma, separamos um dos encontros para fazer uma visita ao espaço

cenotécnico do Curso de Teatro, onde, tanto eu, quanto as outras quatro integrantes do

processo, escolhemos, intuitivamente, alguns objetos que nos chamaram a atenção. Foram

eles: uma gaiola grande, alguns espelhos, uma gaveta, um mapa, uma mala e uma chave. Tais

objetos, realmente, foram importantes para a construção da dramaturgia, pois vieram

carregados de significados, o que possibilitou a concepção de cenas e, consequentemente, de

texto, embora, nem tudo tenha sido utilizado na montagem final do trabalho.

De volta à sala de ensaio, começamos a improvisar cenas, tendo como base os objetos

escolhidos pelas atrizes. As improvisações se deram sob minhas orientações. A princípio, eu

pedi que elas tentassem introduzir, nas cenas a serem improvisadas, recortes dos textos que

havíamos criado, durante as atividades passadas.

Em outros momentos, sugeri que abandonássemos a necessidade de usar os textos pré-

elaborados e tivéssemos, como protagonistas da criação, os objetos escolhidos. Outras vezes,

abandonávamos completamente as palavras e focávamos em criar imagens corporais, como

uma sequência de fotos que contemplavam o universo que vínhamos investigando.

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A figura a seguir, mostra uma das imagens que prevaleceu na concepção final do

espetáculo. Lembro-me de irmos testando movimentações e marcações cênicas possíveis para

ocupar o espaço cênico, na tentativa descobrirmos ações e imagens possíveis para as

narrativas. Mesmo sem a estrutura de um texto escrito definitivo, era importante, para as

integrantes do processo, a visualização do corpo no espaço e a percepção de como o mesmo

poderia vir a partilhar das ideias já concebidas e estabelecidas até aquele momento.

Figura 7 – Partitura Corporal 1

Foto: Irati Chapuis, 2018.

Eu, particularmente, gosto bastante dessa parte. E é aqui que percebo que nem todo texto

nasce de palavras. Quanto a isso, Ana Carolina Mazon (2015, p. 31) escreveu sobre

dramaturgias em processo e argumentou que “todo processo inicia-se com uma vontade de

dizer alguma coisa. Esse dizer não permeia apenas o campo das palavras, mas, acima de tudo,

do corpo que quer fazê-lo por meio de imagens, sons, ruídos, respiração, gestos, movimentos,

ações, olhar ou do estar em relação”. Sinto-me contemplada por esse pensamento, pois, antes

de conseguir escrever o texto final para o grupo Turquesa, precisei ouvir, de outras formas,

diferentes do texto verbal, aquilo que as atrizes tinham a dizer e como elas gostariam de fazê-

lo.

Apesar de termos feito muitas improvisações com o uso da fala, termos tido várias

conversas temáticas, elaborado textos avulsos e recebido estímulos de composições artísticas

já existentes disponibilizadas em vídeos, outros textos e peças teatrais, que me renderam

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várias anotações e ideias, foram as partituras corporais, que alavancaram a escritura final do

texto.

De acordo com Milton de Andrade e Mônica Siedler (2013, p.1) “pode-se encontrar

referências sobre o conceito de “partitura” em diversas teorias novecentistas que se

dispuseram a estudar o corpo e a unidade psicofísica do ator”, mas ela é caracterizada, por

ambos os autores, de forma resumida, como sendo “instrumentos básicos de composição da

dramaturgia do movimento”.

Tendo eu, focado todo este artigo na construção de uma dramaturgia textual, utilizo o

termo “partitura corporal” para me referir, sim, a um procedimento de construção

dramatúrgica proveniente do movimento, porém, de modo que,

os materiais de criação tornam-se todos os elementos utilizados para criar ações,

incluindo o corpo. Nesse sentido, o corpo não é visto apenas como instrumento de

trabalho, mas como um território de passagem, de abertura, de potência, de construção de relações. É um corpo que sente, que reage, que se abre, que aceita,

que diz, que materializa imagens, signos, ritmo, espaço, texto. (MAZON, 2015, p.

33).

Já estando inserida no universo criado por mim e pelas atrizes, as imagens criadas por

elas, foram responsáveis por desenhar as cenas em minha mente e resultar em material

textual. Essa parte se deu para mim, solitariamente. Depois de ter adquirido o maior número

possível de informações, registros variados e estímulos criativos, foi sozinha, afastada da sala

de ensaio que fui, cena por cena (ao recapitular as partituras corporais criadas), escrevendo o

que viria a se tornar a dramaturgia textual de PAIRO: Afetos de um pássaro.

O exercício cênico final culminou em uma abordagem poética e musical sobre as

inquietações de uma jovem mulher que se depara com várias faces de si mesma ao procurar e

percorrer o difícil caminho para a própria libertação. Como as contrações de um parto, PAIRO

é um processo ansioso de descoberta, sob um ponto de vista feminino, de pessoas que se

identificam com um passarinho, ao mesmo tempo, em que se sentem confortáveis, mas

repudiam a gaiola que as cercam.

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Considerações ainda provisórias: para além das gaiolas

Usarei a seguir mais um trecho da dramaturgia de PAIRO: Afetos de um pássaro, que,

metaforicamente, contempla meu percurso acadêmico e, também, o processo criativo que

descrevo, aqui, neste artigo:

Cena 1 - Eu não sei onde vou parar

Lílian – Vocês, por acaso, estão me seguindo?

Todas – Não!

Raniele – De jeito nenhum.

Lílian – Não é possível, será que estamos indo todas para o mesmo lugar?

Clara – Para onde VOCÊ está indo?

Lílian – Eu? Estou indo para...

Raniele – Você está perdida?

Lílian – Não!

Juliana – Não? Lílian – Vocês podem me dar uma informação?

Juliana, Clara e Raniele – Claro!

Lílian – Quanto tempo demora a chegar em... Não estou me lembrando agora.

Todas – Você está perdida?

Lílian – Eu não sei...

*Trecho da Musica: Eu não sei onde vou parar (Até: “O que estou fazendo aqui?”).

Cena 2 - O caminho

Lílian – Lembrei!

Clara – Lembrou o que? Lílian – A informação que eu queria.

Juliana, Clara e Raniele – Fala!

Lílian – Eu queria saber, quanto tempo leva para chegar onde eu quero ir.

Raniele – Depende.

Lílian – Depende do que?

Raniele – Do que vem primeiro, a vontade de ir ou o caminho?

Lílian – A vontade de ir, lógico!

Juliana – Não sei não. O que te faz ter tanta certeza disso?

Lílian – É que, às vezes, só queremos ir, mesmo sem saber para onde.

Clara – O caminho só existe quando você passa. Tem uma música que diz isso.

Juliana – Mas de que adianta ir, se você não souber aonde quer chegar?

Lílian – Será que alguém sabe mesmo para onde vai? Assim, sabe, de verdade?

Ao avaliar minha trajetória, percebo que estive, por várias vezes, transitando no lugar

anunciado pelas falas de Lílian. A Faculdade, para mim, é um dos caminhos possíveis a se

percorrer rumo à consolidação profissional. Em se tratando da área teatral, eu diria, até, que é

um caminho novo e ainda muito incerto, pelo menos assim o sinto.

“Será que alguém sabe mesmo para onde vai? Assim, sabe, de verdade”. Essa é a

pergunta que tenho me feito a cada processo criativo e a cada etapa da minha graduação em

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Teatro. Finalizo este exercício de escrita ainda com muitas lacunas: espaços não percorridos

ou não compreendidos, espaços dedicados ao “não sei ainda”.

É certo que descobri, na dramaturgia, um caminho pelo qual tenho vontade de seguir,

seja por entre as salas de aula, seja em outros territórios de trocas. Porém, venho aprendendo

que, em poética, mais importante que o resultado final, um produto, é o processo (ou nesse

caso, o caminho). Portanto, o “não saber” também faz parte do trajeto.

Eis o que justifica, aqui, a construção de considerações e reflexões ainda provisórias.

Não trago, nesse estudo, verdades absolutas ou certezas inabaláveis. Com este artigo, pretendi

ampliar o meu olhar e o meu entendimento sobre minhas poéticas e possibilitar discussões

sobre o processo criativo e pedagógico em/com dramaturgia. O que está por vir é incerto,

porém, minhas perspectivas, enquanto professora-dramaturga, baseiam-se em construir

caminhos mais “colaborativos”, para que outros possam percorrê-los junto comigo e irem

iluminando meu percurso, para além das “gaiolas”.

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