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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO MESTRADO EM ESTUDOS FRONTEIRIÇOS
JACOB ALPIRES SILVA
COTIDIANO, SAÚDE E FRONTEIRA: PROFISSIONAIS DE SAÚDE E A ATENÇÃO AO PARTO EM UMA MATERNIDADE DA REDE PÚBLICA LOCALIZADA EM
TERRITÓRIO DE FRONTEIRA
CORUMBÁ – MS 2016
JACOB ALPIRES SILVA
COTIDIANO, SAÚDE E FRONTEIRA: PROFISSIONAIS DE SAÚDE E A ATENÇÃO AO PARTO EM UMA MATERNIDADE DA REDE PÚBLICA LOCALIZADA EM
TERRITÓRIO DE FRONTEIRA Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação Mestrado em Estudos Fronteiriços da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Câmpus do Pantanal, como requisito para obtenção do título de Mestre. Linha de Pesquisa: Ocupação e Identidade Fronteiriças. Orientador: Prof. Dr. Antônio Firmino de Oliveira Neto
CORUMBÁ – MS 2016
FFOLHA DE APROVAÇÃO
AGRADECIMENTOS
A Deus, em primeiro lugar, por me dar a vida e direcionar os meus caminhos,
proporcionando-me saúde, força e coragem; induzindo-me a superar todas os percalços,
anseios e entraves nas trilhas do destino, pois sem Ele nada seria possível.
Ao Programa de Mestrado em Estudos Fronteiriços do Campus do Pantanal/UFMS,
pela oportunidade de realizar este estudo, de extrema importância para a minha vida,
proporcionando-me sabedoria, experiências e interatividades imensuráveis, além de promover
o exemplo de que todos podem conquistar o que achamos impossível.
Aos meus familiares, porto seguro de minha vida, pelo afeto e carinho em todos os
momentos e pela compreensão de minha ausência temporária do convívio diário,
principalmente, a Ereni, Nadyenka e Jacobinho que dedicaram palavras e ações fraternais de
incentivos, sempre acreditando nas minhas conquistas. Agradeço de coração o carinho e o
apoio recebidos.
Ao meu orientador, Prof. Dr. Antônio Firmino de Oliveira Neto, por ter me recebido
como orientando, que com suas interferências pontuais e certeiras me fizeram melhor
conhecê-lo, como o “Grande incentivador da pesquisa do cotidiano humano-social”. Que
Deus lhe conceda saúde, paz, sabedoria e sucessos!
A todos os envolvidos no Programa do Mestrado em Estudos Fronteiriços: docentes,
secretariados, coordenadores e colegas discentes, que com estes trocamos experiências,
convivências fraternais, dentro e fora da sala de aula contribuindo pacientemente com o
desenvolvimento de nossos trabalhos científicos. E aos meus colegas de trabalho, que direta
ou indiretamente fizeram parte desta trajetória, que puderam compreender as ausências
momentâneas durante minha formação. Em especial à Ramona Trindade, pessoa de palavras
estupendas e a Denílson, ser humano sem igual, mas humano; João Hiran e Rafael, pela
convivência harmônica. Muito obrigado a todos!
A Associação Beneficente de Corumbá (Santa Casa), na pessoa do Dr. Cristiano
Ribeiro Xavier, que nos abriu as portas da Maternidade, nos fornecendo suporte técnico-
administrativo na realização da pesquisa. Muito grato pela atenção!
Aos médicos Dr. Ricardo Chauvet e Dr. Wilson Baruki, ginecologistas da
Maternidade, pela sensatez e benevolência dispensada à pesquisa, demonstrando apreço e
dedicação na vida profissional.
Às enfermeiras Gilsane Beretta e Ingrith Rodrigues, excelentes profissionais, por
terem dedicados um momento de seus valiosos tempos, fazendo-me conhecer melhor o
cotidiano dos profissionais em saúde, na lida de seus afazeres do dia a dia.
Ao Prof. Dr. Edgar Aparecido da Costa, diretor do Campus do Pantanal, pelo
incentivo e apoio dispensados no desenvolvimento da minha produção científica. Brilhante
incentivador das pesquisas científicas.
Ao Prof. Dr. Marco Aurélio Machado de Oliveira, pessoa dedicada, competente e
amistosa, obstinado pesquisador da interação, integração e desenvolvimento sociocultural da
região fronteiriça. Muito grato pelas rigorosas e pontuais palavras.
A minha amada mãe, Maria Adelina! Por tudo que representou na minha vida. Mas,
que no decorrer dos estudos desta pesquisa nos deixou, partindo para sua última morada. Que
Deus a tenha em seus divinos braços. Eternas saudades! Jamais me esquecerei de seus
conselhos.
A minha querida doutora Angelita Druzian, companheira de sempre, que me
incentivou em todos os momentos, muito além de suas possibilidades e conhecimentos sobre
o assunto, depositando em mim a esperança desta conquista. Muito obrigado!
Aos colaboradores administrativos da Maternidade do complexo hospitalar da
Associação Beneficente de Corumbá (Santa Casa): Cláudio, Renata, Eva, Luís, Suelen,
Silvana, Alcides, Darci e outros, obrigado pela atenção dispensada.
RESUMO
O trabalho aqui apresentado teve como objetivo principal analisar o cotidiano dos profissionais de saúde na prática dos serviços de atenção ao parto de mulheres bolivianas na Maternidade da Associação Beneficente de Corumbá-MS. Buscou, também: a) caracterizar o cotidiano dos profissionais de saúde nas atividades dos serviços prestados a essas pacientes; b) descrever os entraves que dificultam os serviços sistematizados na atenção ao parto da demanda boliviana; c) levantar categorias que possibilitem a formação de indicadores de saúde em atenção ao parto de mulher estrangeira na região de fronteira, levando em consideração o trabalho cotidiano. A metodologia utilizada para a realização da pesquisa incluiu técnicas de entrevistas semiestruturadas; trabalho de campo e conversas com os atores sociais que vivenciam o cotidiano profissional da Maternidade da Santa Casa de Corumbá. O referencial teórico que possibilitou a análise dos dados obtidos em campo é o resultado das contribuições teóricas de Laurence Bardin, especificamente às referentes à análise de conteúdo. Os resultados da pesquisa em questão apontam para um cotidiano profissional estressante e desestimulador, dadas às muitas dificuldades enfrentadas pelos profissionais de saúde no desempenho diário de suas funções, porém com demonstração de que é possível incrementar o processo da interação. Observou-se que há indicação, também, de uma grande capacidade de resiliência por parte dos colaboradores que atuam na atenção ao parto de mulheres na cidade de Corumbá. Palavras-chave: Cotidiano; Saúde na Fronteira Brasil/Bolívia; Profissionais de Saúde.
RESUMEN
El trabajo aquí presentado tuvo como objetivo principal analizar la vida cotidiana de los profesionales de la salud en la práctica de servicios de la atención a los partos de las mujeres bolivianas en la maternidad de la Associação Beneficente de Corumbá-MS. Buscó, también, con la vida cotidiana de los profesionales de la salud en las actividades de los servicios prestados a estos pacientes; describir las barreras que dificultan los servicios organizados en la atención al nacimiento de la demanda boliviana; y categorías que permiten la formación de indicadores de salud en la atención a los partos de las mujeres extranjeras en la región fronteriza, teniendo en cuenta el trabajo diario. La metodología utilizada para la realización de la investigación incluyó entrevistas técnicas y semi estructurado –; trabajo del campo y conversaciones con los actores sociales que tienen la experiencia cotidiana profesional en la maternidad de la Associação Beneficente de Corumbá. El marco teórico que permitió el análisis de los datos obtenidos en el campo és el resultado de las contribuciones teóricas de Laurence Bardin, específicamente de los relativos al análisis de contenido. Los resultados de la investigación en cuestión señala un diario profesional estresantes de la vida y desestimulador, dadas las numerosas dificultades que enfrentan los profesionales de la salud en el desempeño diario de sus funciones en esa maternidad, pero hay demostración de que es posible ajustar el proceso de interacción. Asi, que hay también indicación de una gran capacidad de superar los obstáculos por parte de empleados que trabajan en la atención al nacimiento de niños de las mujeres en la ciudad de Corumbá.
Palabras-clave: Cotidiano; Salud en la Frontera Brasil/Bolívia; Profesionales de la Salud.
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
a.C. antes de Cristo
ABC Associação Beneficente de Corumbá
AGESA Armazéns Gerais Alfandegados de Mato Grosso do Sul
BO Bolívia
BR Brasil
CAAE Certificado de Apresentação para Apreciação Ética
CNS Cartão Nacional de Saúde
CPB Código Penal Brasileiro
CPF Cadastro de Pessoa Física
DENASUS Departamento Nacional de Auditoria do SUS
ENERGISA Grupo Energisa
ENERSUL Empresa Energética de Mato Grosso do Sul S.A.
IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
INE Instituto Nacional de Estadística da Bolívia
MERCOSUL Mercado Comum do Sul
MS Mato Grosso do Sul
NOB Estrada de Ferro Noroeste do Brasil
PF Polícia Federal
PDFF Programa de Desenvolvimento da Faixa de Fronteira
PNDR Política Nacional de Desenvolvimento Regional
RG Registro Geral
RN Recém-nascido
RNE Registro Nacional de Estrangeiro
SIS-Fronteira Sistema Integrado de Saúde das Fronteiras
SUS Sistema Único de Saúde
TCLE Termo de Consentimento Livre e Esclarecido
UFMS Universidade Federal de Mato Grosso do Sul
LISTA DE FIGURAS
Figura 1 Atendimentos a estrangeiro na Santa Casa de Corumbá 43
Figura 2 Lançamento da pedra fundamental da Santa Casa 46
Figura 3 Placa com inscrições sobre a construção da Maternidade 46
Figura 4 Vista aérea da Maternidade de Corumbá 47
Figura 5 Maternidade da Santa Casa de Corumbá/MS 48
Figura 6 Taxa de ocupação de leitos da Maternidade de Corumbá/jan. 2015 a jun. 2016
52
Figura 7 Equipamentos obsoletos em desusos acondicionados no Centro Obstétrico desativado
56
Figura 8
Espaço em desuso destinado ao Centro Obstétrico. 56
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO 07
2 REVISÃO DE LITERATURA 13
2.1 O cotidiano fronteiriço e a atenção à saúde: Corumbá (BR) e Puerto Quijarro (BO) em perspectiva teórica
13
2.2 Discutindo paradigmas 27
3 Procedimentos metodológicos 28
4 Saúde, cotidiano e fronteira 33
4.1 O cotidiano do atendimento à mulher boliviana 46
4.2 Mulher, parto e cultura: desafios do atendimento à mulher boliviana 58
5 RESULTADOS 62
5.1 Análise de conteúdo 62
5.2 Análise de dados e resultados 64
6 APLICABILIDADE DO ESTUDO 68
7 CONSIDERAÇÕES FINAIS 70
REFERÊNCIAS 72
APÊNDICE E ANEXO 79
7
1 INTRODUÇÃO
A mobilidade cotidiana da população residente nas cidades-gêmeas de Corumbá e
Puerto Quijarro, localizadas na região fronteiriça do Brasil e Bolívia, em especial a boliviana
no território brasileiro, resulta em fatores que estimulam interesses próprios, principalmente
pelos serviços de saúde, instalados na rede pública do município corumbaense pelo Sistema
Único de Saúde (SUS). Essa movimentação se apresenta como territorialidade1 cotidiana, que
os gestores públicos de Corumbá entendem como características próprias da região.
A movimentação se caracteriza em razão das oportunas necessidades da sociedade
territorializada. Oliveira Neto (2005) entende que naturalmente o ser humano se interessa por
aquilo que na sua visão lhe proporciona o melhor; que a vida cotidiana lhe condiciona a
realizar contatos com o mundo realizado, convertido em bens, produzidos em lugares que nem
sequer imagina e que lhe ofertam as ambições estimulantes de seu ego.
Milton Santos (2006) compreende que o conteúdo geográfico atrelado ao cotidiano,
pode talvez contribuir para o necessário entendimento (e, talvez, teorização) da relação entre o
tempo, espaço e movimentos sociais, enxergando na materialidade o componente
imprescindível do espaço geográfico, que é, ao mesmo tempo, uma condição de ação, uma
estrutura para controle, um limite à ação e um convite à ação. Nada se faz hoje que não seja a
partir dos objetos que nos cercam.
Em que pese o entendimento das características regionais, a Secretaria Municipal de
Saúde, gestora do SUS, tem realizados esforços, a fim de melhorar o controle da demanda
estrangeira pelos serviços e ações de saúde, mesmo sem a obtenção de resultados que a
satisfaça. Entretanto, face às dificuldades que enfrenta, por não diluir a intensidade do
processo dessa demanda, consequenciada pela mobilidade migratória, que impera na ação
facilitadora do acesso à rede municipal de saúde, a Secretaria possui desenvolvimentos
tecnológicos para inseri-los nos planos estratégicos que serão aplicados no melhoramento
dessa necessidade.
1 Dentre as diversas definições existentes, aduzimos à de Haesbaert (2007) que sustenta que a territorialidade não se restringe ao campo da abstração de caráter puramente analítico, epistemológico. “Ela é [A territorialidade] também uma dimensão imaterial, no sentido ontológico que, enquanto ‘imagem’ ou símbolo de um território, existe e pode inserir-se eficazmente como uma estratégia político-cultural, mesmo que o território ao qual se refira não esteja concretamente manifestado – como no conhecido exemplo da ‘Terra Prometida’ dos judeus, territorialidade que os acompanhou e impulsionou através dos tempos, ainda que não houvesse, concretamente, uma construção territorial correspondente” (HAESBAERT, 2007, p, 23). Veja sobre o tema: Andrade (1995), Haesbaert (2006; 2007), Raffestin (1993), Saquet (2007), Souza (2001), dentre outros.
8
Ressalta-se de que o financiamento do SUS, de acordo com os planos plurianuais,
destina-se somente aos custeios dos serviços e ações prestados aos brasileiros residentes nos
municípios do Brasil. Os repasses financeiros que sustentam o sistema são alocados na forma
per capita, isto é, contabilizado individualmente o munícipe do local, de acordo com as
informações do Censo Demográfico/Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE
(GADELHA, COSTA, 2007; GIOVANELLA et al., 2007). A inexistência de planejamento
para prover a política de saúde na fronteira, em função do alto índice de utilização dos
serviços pela população flutuante, causa prejuízos aos munícipes locais (GADELHA,
COSTA, 2007).
Embora o interesse social não esteja plenamente atendido, a rede pública de Atenção à
Saúde instalada no município, conforme informação da Secretaria Municipal de Saúde,
atualmente, dispõe aos seus munícipes, visitantes e a outros cidadãos da fronteira, o complexo
físicoestrutural formado nas seguintes condições:
Unidades Básicas de Saúde da Família (23);
Equipes de Estratégia de Saúde da Família (26);
Unidade Básica de Saúde (01);
Unidade de Serviço de Atendimento Domiciliar - Melhor em Casa (01);
Unidade Consultório na Rua - Atendimento de pessoas moradoras de rua (01);
Centro de Saúde de Medicina do Trabalho, Tuberculose, Hanseníase, etc (01);
Centro de Especialidades Médicas (01);
Centro de Saúde da Mulher (01);
Centro de Saúde Especializado em Doenças Transmissíveis (01);
Centro de Referência em Saúde do Trabalhador (01);
Centro de Especialidades de Fisioterapias (01);
Centro de Especialidades Odontológicas (01);
Centro de Atenção Psicossocial – CAPS II (01);
Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas– CAPS/AD (01);
Centro de Atenção Psicossocial Infanto-juvenil – CAPS/IJ (01);
Unidade de Acolhimento para pacientes em tratamento/Álcool e Drogas (01);
Residência Terapêutica (para pacientes regressos de internação psiquiátrica acima de 2
anos) (01);
Centro de Controle de Zoonoses (01);
Centro de Controle de Vetores (01);
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Farmácia de Assistência Pública (01);
Farmácia Popular (01);
Laboratório de Análises Clínicas (01);
Agência Municipal de Vigilância Sanitária (01);
Agência Municipal de Vigilância Ambiental (01);
Hemonúcleo (01);
Ouvidoria do SUS (01);
Centro Especializado de Oncologia (01);
Pronto Socorro Municipal (01);
Unidade de Pronto Atendimento – UPA 24h (01);
Unidades de Serviços de Atendimento Móvel de Urgência – SAMU (03);
Hospital – Santa Casa (01) e Maternidade (01).
As políticas de saúde das regiões de fronteiras, em virtude das complexidades,
necessitam de atenções diferenciadas dos gestores públicos. Ressalta-se que todas as ações
pertinentes à saúde dependem exclusivamente de investimentos planejados, tanto para o
financiamento quanto para cobertura dos recursos humanos e de outras atividades do
cotidiano.
Nesta ênfase, relacionada às regiões de fronteiras do Brasil, Peiter (2005) constatou
que na localidade abrangida neste estudo havia falta de saneamento, com falhas nos
programas de imunizações, pobrezas e carências no sistema de saúde do município boliviano
de Puerto Quijarro. Ainda no mesmo contexto, Baeninger (2012) cita que grande parte da
mobilidade migratória da parte boliviana, que ruma em direção a Corumbá, se dá em função
das precárias estruturas do sistema em seu país. Assim, opta pelas assistências de saúde
disponíveis no Brasil, condicionadas a opção de não haver necessidade de fixar moradia no
local, uma vez que encontra facilidades que viabilizam o acesso à atenção da saúde.
O território2 com características próprias, e em muitos casos de costumes
semelhantes, contribui para a convivência natural das populações fronteiriças, que
progressivamente assimilam às ações rotineiras desenvolvidas nos ambientes dos interesses
mútuos, de tal forma que o residente migrante se integra as conveniências dos direitos e
2 [...] desde sua origem, o território nasce com uma dupla conotação, material e simbólica, pois etimologicamente aparece tão próximo de terra-territorium quanto de terreoterritor (terror, terrorizar), ou seja, tem a ver com dominação (jurídico-política) da terra e com a inspiração do terror, do medo – especialmente para aqueles que, com esta dominação, ficam alijados da terra, ou no “territorium” são impedidos de entrar. Ao mesmo tempo, por outro lado, podemos dizer que, para aqueles que têm o privilégio de plenamente usufrui-lo, o território pode inspirar a identificação (positiva) e a efetiva “apropriação” (HAESBAERT, 2007, p. 20).
10
deveres do Estado-Nação em que se estabelece. Neste tópico a Constituição Federal do Brasil
assegura que: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-
se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à
liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade [...].” (BRASIL, 1988. Art. 5º).
Dentre as demandas da população boliviana, há o interesse pela assistência da atenção
ao parto, instalada na rede pública de saúde do município, cujos serviços são realizados pela
Maternidade da Associação Beneficente de Corumbá – ABC, conhecida regionalmente por
“Santa Casa”. Além de ser referência da atenção à saúde na região, por ter a melhor
infraestrutura, o complexo hospitalar da Santa Casa também tem o atributo de estar
estrategicamente instalada na região fronteiriça.
Os citados autores mencionam as realidades da região, onde os munícipes de Puerto
Quijarro possuem relações de dependências com a cidade de Corumbá, tanto de interesses
sociais, comerciais e as relativas à atenção da saúde, em razão das oportunidades aliadas às
melhores infraestruturas existentes no município.
Os paradigmas aplicados pelo SUS na atenção à saúde se baseiam nas dinâmicas das
políticas públicas de saúde, resultados de relevantes indicadores. A Constituição Federal
(1988) instituiu o sistema de saúde, sancionado pela Lei nº 8.080/90 e regulamentado pelo
Decreto nº 7.508/2011, com o objetivo de assegurar o direito à população ao acesso universal
e igualitário das ações e serviços públicos de saúde e de garantir a atenção gratuita a todos os
cidadãos brasileiros como direito constitucional do Brasil (BRASIL, 1990; CAZOLA et al.,
2011).
A integração entre as nações, nos últimos tempos, se globalizou assimetricamente.
Entretanto, preocupados com as necessidades de estratégias de desenvolvimento, os dirigentes
dos países da América do Sul passaram a manifestar interesses convergentes, de forma a
fomentar parâmetros simétricos para a integração e o desenvolvimento dos países entre as
fronteiras, a fim de fortalecer politicamente o bloco econômico sul-americano, ante o contexto
globalizado, formando-se assim o Mercado Comum do Sul – MERCOSUL (GADELHA,
COSTA, 2007).
A partir da criação do bloco econômico sul-americano foram estabelecidos metas e
interesses mútuos para as populações transfronteiriças, em razão de oportunidades surgidas,
em que o residente migrante pudesse regularizar a sua situação como residente de outro país.
Marques (2007, p. 6), entende que a “migração é um processo que se desenvolve no
tempo e no espaço. É um evento renovável, e às vezes reversível”. De natureza subjetiva
ajustada à perceptividade individual, que se evolui no espaço em que se encontra
11
naturalmente. No mesmo pensamento, Padrós (1994) assevera que: “integrar não deve
significar perda de identidade nacional, e sim, contato com outras identidades nacionais”.
Na proposta de reestruturação do Programa de Desenvolvimento da Faixa de Fronteira
- PDFF, relacionada à faixa de fronteira brasileira, que atualmente está delimitada pela Lei
6.634/79 em 150 km, encontram-se delineadas as metas que visam os desenvolvimentos e
promoções das ações de integração e da organização nos territórios fronteiriços. Em razão da
vasta extensão da faixa de fronteira e as populações heterogêneas (socioeconômicas, culturais
e étnicas), o programa adotou como critério metodológico a divisão macrorregional,
dimensionada em três grandes Arcos (Norte, Central e Sul) formados por 17 sub-regiões
geográficas (BRASIL, 2005a).
O PDFF apresenta desafios estratégicos que visam à mudança de mentalidade no
tocante às fronteiras, que não podem mais ser entendidas como áreas longínquas e isoladas e
sim como uma região com a singularidade de estimular processos de desenvolvimento e
integração regional (BRASIL, 2005a).
O estudo teve como objetivo geral de analisar o cotidiano dos profissionais de saúde
na prática dos serviços da atenção ao parto de mulheres bolivianas, na Maternidade da
Associação Beneficente de Corumbá. A realização da pesquisa deu-se no sentido de
caracterizar o cotidiano dos profissionais de saúde nas atividades dos serviços prestados às
pacientes bolivianas, contextualizando o local e o processo de trabalho, bem como de analisar
os entraves que dificultam os serviços sistematizados à atenção ao parto da demanda boliviana
e, também, processar o levantamento de categorias que possibilitem a formação de
indicadores de saúde em atenção ao parto de mulher estrangeira na região de fronteira.
O desenvolvimento teórico-metodológico da pesquisa constituiu-se em alguns
princípios da abordagem do método qualitativo da Análise de Conteúdo, que segundo Bardin
(2006) consiste em: “técnica de investigação que tem por finalidade a descrição objetiva,
sistemática e quantitativa do conteúdo manifesto da comunicação”, através de entrevistas
semiestruturadas gravadas e transcritas.
Na coleta de dados utilizou-se como instrumento a entrevista semiestruturada, por se
tratar de ferramenta interativa que intermediou a relação entre o pesquisador e o pesquisado.
González Rey (2002, p. 12) entende que o importante não é só aquilo que o pesquisado fala
como o sentido da fala, mas “[...] o envolvimento do sujeito, o que lhe permite uma produção
complexa, condição essencial para construir a complexidade dos problemas abordados a partir
desta perspectiva”. O autor acredita que:
12
[...] a pesquisa apoiada na epistemologia qualitativa, não se orienta para a produção de resultados que devem ser tomados como referências universais e invariáveis sobre a realidade estudada, mas à produção de novos momentos teóricos que estão integrados organicamente ao processo geral de construção de conhecimentos (GONZÁLEZ REY, 2002, p. 13).
Na pesquisa qualitativa a construção da informação surge ao longo do processo de
construção e interpretação que acompanha todos os momentos do trabalho. A fonte das ideias
não está só nos dados, mas também no confronto entre o curso do pensamento, conduzido por
múltiplas vias. É nessa última perspectiva que o trabalho foi construído.
O desenvolvimento da pesquisa se deu nas dependências da Maternidade do complexo
hospitalar da Associação Beneficente de Corumbá. O transcurso das coletas de dados se deu
ao longo do mês de novembro de 2016. Ao todo foram entrevistados dez profissionais de
saúde com exercícios de atividades efetivas no local da pesquisa, inseridas diretamente na
atenção aos partos de pacientes bolivianas.
Os selecionados, por categorias profissionais, foram: dois médicos obstetras (o chefe
do serviço de ginecologia e obstetrícia e o mais antigo atuante do local); um médico pediatra
(chefe do serviço de pediatria); duas enfermeiras (uma responsável técnica e uma enfermeira-
obstetra); dois assistentes sociais (únicos profissionais atuantes); duas recepcionistas (uma
com atividades matutinas e outra com atividades vespertinas) e uma Psicóloga (única atuante).
Os nomes dos entrevistados que aparecem no decorrer do texto são de formas fictícias.
Tal expediente se explica pela necessidade de preservar as suas verdadeiras identidades,
mantendo o sigilo em relação à origem do depoimento e garantindo-lhes a liberdade de
expressão no tocante ao seu conteúdo. As datas das entrevistas são aproximadas, ocorreram
no mencionado mês, porém em datas distintas. Foram adotadas estratégias a fim de evitar a
associabilidade entre os entrevistados, bem assim mantidos os sigilos do teor de seus
depoimentos e, respeitados os horários das escalas de plantões da Instituição.
Os entraves que dificultam a realização dos serviços sistematizados da atenção ao
parto da demanda boliviana na Maternidade de Corumbá constituem-se em um dos objetivos
do estudo; assim foram levantadas as categorias que proporcionam dados para a elaboração de
indicadores de saúde na atenção ao parto da mulher estrangeira na região de fronteira, levando
em consideração o trabalho cotidiano dos profissionais.
13
2 REVISÃO DE LITERATURA 2.1 O cotidiano fronteiriço e a atenção à saúde: Corumbá (BR) e Puerto Quijarro (BO) em perspectiva teórica
As questões teóricas acerca do cotidiano e as relacionadas à atenção da saúde em
regiões de fronteira do Brasil há muito têm despertados os interesses de pesquisadores das
mais variadas áreas do conhecimento. Esforços a respeito de suas origens, dinâmicas e
influências têm sido envidados por sociólogos, antropólogos, cientistas políticos, psicólogos
sociais, dentre tantos outros estudiosos. Mas qual é, afinal, a variável dessa curiosidade
científica? O que há de tão especial em algo aparentemente banal e ordinário como a
passagem dos dias e sua dinâmica interna e externa?
O vocábulo cotidiano ou quotidiano, segundo a definição dos dicionários modernos,
tem por significado aquilo que é habitual ao ser humano, isto é, aquilo que está
constantemente presente na realidade diuturna dos indivíduos, na intrínseca vivência do dia a
dia e em seus pormenores. Outra acepção, também oriunda da lavra dos filólogos, assevera
que o termo pode indicar, ainda, o tempo no qual se dá a existência física, e, portanto,
biológica, de um ser humano. Pode, ainda, indicar a relação espaço-temporal na qual se insere
e se processa essa existência (HOUAISS, 2009).
Para além dessas acepções, estudiosos têm procurado trazer novos elementos que
possibilitem pensar o próprio cotidiano, que faculta vislumbrar horizontes semânticos muito
além dos formulados pelos pensamentos do senso comum. Não obstante, a abordagem dos
aspectos menos sutis do cotidiano – dentro de uma perspectiva teórica – subtende a
descoberta do incomum no sempre-comum, no vulgarizado. Tal descoberta implica em
perceber que a essência teórica do cotidiano pode ser apreendida no não cotidiano ou na
cotidianidade (GUIMARÃES, 2002).
No entanto, Herculano (2010) adverte que a aparente desimportância da cotidianidade,
vista como o informal, o espaço do banal, do espontâneo é também o que favorece a
manutenção do conteúdo das formas, das ideologias, das culturas, das linguagens, das
instituições, das atividades sociais e culturalmente constituídas e estruturadas.
No bojo dessa cotidianidade, despontam aspectos referentes à saúde e as dinâmicas a
ela inerentes. Assim, a vulnerabilidade da atenção à saúde na fronteira Brasil/Bolívia, a torna
problemática no que tange a livre demanda das ofertas dos serviços estruturados na rede
pública de saúde de Corumbá (MS), em razão das oportunidades encontradas nas mobilidades
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bolivianas. As demandas alóctones se realizam em razão do município do país vizinho não
dispor de infraestrutura capaz de promover gratuitamente a atenção à saúde de seus
munícipes. Entre as problemáticas, há a falta de recursos humanos especializados, bem como
a escassez de recursos materiais que proporcionem atenção eficiente e humanizada, dentre
tantos outros problemas de diversos matizes.
A saúde nas regiões de fronteira tem levado pesquisadores de diversas áreas a
discorrerem questões interessantes sobre o assunto, promovida nessas regiões longínquas e até
certo ponto, esquecidas pelos governos centrais. Como observa Peiter (2005), se o que se
deseja é propiciar eficiência aos projetos e às políticas públicas que tendem a controlar
doenças, mediante prevenção e promoção no campo da saúde, é forçoso reconhecer que deve
haver interesses por parte dos dois lados, tanto do Brasil quanto da Bolívia, em procurar
ofertar um tratamento específico e pormenorizado, levando em consideração o caráter
ambivalente e multifacetado da realidade fronteiriça.
Por conta do acirramento da circulação em nível global de indivíduos, mercadorias e
informações, levadas a cabo pela globalização, o trânsito internacional de patologias de toda
sorte tem recrudescido, tornando-se muito mais intenso e muito recorrente neste início de
século XXI. Na análise de Peiter:
La movilidad transfronteriza es una estrategia de las poblaciones, pero también es un problema para la vigilancia en el ámbito de la salud, ya que dificulta los registros de salud [...]; el seguimiento del tratamiento de pacientes; la planificación y la implementación de acciones en salud [...]; además de hacer ineficaces acciones territoriales de salud como la inmunización, el control de vectores, y el control ambiental [...]. Por estos motivos, la frontera debe ser vista como un área particularmente vulnerable para la salud. Sin embargo, no basta reconocer la vulnerabilidad de la frontera, se tiene que considerar también las especificidades de cada región para que se instituyan políticas públicas de salud más adecuadas (PEITER, 2007, p. 238).
Ainda Peiter (2005, p. 292), enfatizando a necessidade de união no trato com a saúde
na faixa de fronteira, assevera: “Por mais eficientes que sejam os programas de controle de
doenças transmissíveis no lado brasileiro da faixa de fronteira sempre haverá a possibilidade
de introdução de patógenos a partir dos vizinhos, caso não haja uma forte cooperação com os
mesmos”.
Desse modo, é necessário entender que as constantes execuções das ações de
vigilância em saúde tornam-se imprescindíveis nos movimentos diários da população,
devendo ser fortalecidas diuturnamente, e inclusas nas atividades laborais de toda a extensão
15
da região fronteiriça. Se estas conservarem-se específicas, a exemplo dos dias atuais, não
existirão intervenções pertinentes – realizadas em tempo hábil e com total eficiência. A
intensificação desse cuidado levando-se em conta apenas um dos lados da fronteira, será
insuficiente para dirimir a fragilidade e as eventuais ameaças à saúde da população residente
na faixa fronteiriça.
No Brasil, as contribuições e análises sobre o tema têm sido tratadas a partir dos
trabalhos realizados por diversos estudiosos, como Agnes Heller, Lukács e Lefebvre. Estes
têm como contributo ao assunto a elaboração de uma espécie de tratado a respeito do
cotidiano, por meio do qual buscaram extrair da vida comum e diária as principais
características descritivas, criando, desta forma, uma ontologia da cotidianidade
(CHIZZOTTI, 1992).
Heller (1985) entende a vida cotidiana como um desdobramento reprodutivo e
constituinte do indivíduo considerado em si mesmo e, por conseguinte, fonte da própria
existência da sociedade, por meio das objetivações. A autora assevera que as objetivações e os
processos por meio dos quais se desenvolvem caracterizam-se e se vinculam intrinsecamente
graças ao meio dessa reprodução. Tal representação não surge de maneira espontânea, não
advém do vazio absoluto, pressupõe para existir a ação humana sob o objeto, com a intenção
de torná-lo útil aos seus propósitos. Desse modo, tem-se que tudo o que existe pode sofrer
objetivação, dado que tudo está, sempre e em todas as dimensões da vida, em constante
transformação. Nesse sentido, a árvore é transformada em móveis, em papel. A lagarta se
transmuta em borboleta. O leite dá origem a uma gama de derivados: queijo, coalhada, bolos e
doces. Os animais são transformados em alimentos, em adornos com os mais inusitados
aspectos simbólicos, enfim, tudo guarda em si o estigma da objetivação. No entanto, tais
objetivações não se dão de idênticas formas e tampouco de iguais momentos.
A vida cotidiana, na concepção de Heller (1985) é tudo aquilo que se correlaciona “a
vida de todo homem”. Isto é, todos nós a vivemos, sem nenhuma exceção, independentemente
da nossa posição na divisão social do trabalho. Na mesma obra, a autora em consonância com
o viver humanizado, entende que o ser humano não tem como “fugir” do cotidiano, nem viver
tão somente “dentro dele”. Também não há sociedade que não tenha vida cotidiana. Suas
categorias fundamentais são: a heterogeneidade, que corresponde à interação do conjunto das
atividades do ser social, na qual se movem simultaneamente os mais diversos fenômenos e
processos (partes orgânicas da vida cotidiana: linguagem, trabalho, vida política, vida privada
e etc.) e a imediaticidade, que consiste nas ações imediatas, em dar respostas cotidianas, na
16
qual predomina uma relação direta entre pensamento e ação, constituindo-se em automatismo
e espontaneidade. Assim:
A vida cotidiana é a vida do homem inteiro; ou seja, o homem participa na vida cotidiana com todos os aspectos de sua individualidade, de sua personalidade. Nela, colocam-se ‘em funcionamento’ todos os seus sentidos, todas as suas capacidades intelectuais, suas habilidades manipulativas, seus sentimentos, paixões, ideais, ideologias. O fato que todas as suas capacidades se coloquem em funcionamento determina também, naturalmente, que nenhuma delas possa realizar-se, nem de longe, em toda sua intensidade. (HELLER, 1985, p. 17).
A autora nos convoca a entender o cotidiano levando em conta sua dupla dimensão
(simples e complexa ou particular e genérica), deixando claro que os indivíduos têm
objetivações particulares e objetivações gerais, comuns a todo gênero humano. Desta forma:
O indivíduo é sempre, simultaneamente, ser particular e ser genérico. Considerado em sentido naturalista, isso não o distingue de nenhum outro ser vivo. Mas, no caso do homem, a particularidade expressa não apenas seu ser “isolado”, mas também seu ser “individual”. Basta uma folha de árvore para lermos nela as propriedades essenciais de todas as folhas pertencentes ao mesmo gênero; mas num homem não pode jamais representar ou expressar a essência da humanidade. (HELLER, 1985, p. 20).
Sob a ótica de Lukács (1966), ciência e arte seriam por excelência as estruturas das
objetivações. Todavia, as vontades humanas criam também objetivações, tais como a
linguagem e o trabalho. A atividade laboral subentende um propósito ou uma teleologia e,
portanto, uma reflexão e ação sobre a realidade. O trabalho transfigura-se, deste modo, em
uma característica elementar da vida diária. Ainda que as representações científicas e estéticas
gravitem em polos distintos, numa marcha pendular aparentemente incessante, elas se
notabilizam individualmente em concordância com os ciclos históricos, com modelos de
sociedades e, notadamente, conforme as demandas inerentes à vida cotidiana.
Esses reflexos, ao incorporarem-se às materializações do cotidiano, transformam-nas
em cenário do diverso e da opulência dos acontecimentos. Destarte, para a compreensão do
pensamento da vida cotidiana, é necessário concebê-lo a partir da interação sincrônica com os
reflexos científicos e estético-artísticos, levando em conta que estas três dimensões
representam uma mesma realidade, única e unitária. Nas palavras de Lukács “os reflexos reais
surgem na interação do homem com o mundo externo” (1966, p. 36).
17
Subentende assim, que o trabalho e a linguagem apresentam-se como características da
gênese do pensamento cotidiano. Isto se dá em razão do fato de tais categorias distanciarem o
homem do seu estágio natural e animal. As demandas bestiais primam pela satisfação
incontinenti, já aquelas relacionadas ao homem são preconcebidas, dado que é por meio da
atividade laboral que consegue prever no futuro a satisfação da necessidade. A vida cotidiana
é – por excelência – o lugar em que se desenvolve a vida humana.
Sob o prisma das análises de Lukács (1966), o gargalo principal a respeito do tema
está no fato de o cotidiano ter sido objeto de estudo filosófico, diante das objetivações que não
têm a mesma dinâmica e intensidade manifestas na ciência e na arte. Lukács não está negando
as objetivações na vida cotidiana, já que estas têm lugar por intermédio do trabalho, da
linguagem, do pensamento, do sentimento, da ação e da reflexão do homem. O ponto crucial,
em que o autor levanta suas questões, é o reflexo da realidade objetivada na cotidianidade.
A importância do trabalho de Lukács repousa, também, mas não somente, em ter dado
a conhecer as características fundantes da vida cotidiana. Somando-se assim ao imediatismo,
à analogia e à espontaneidade; o trabalho apresenta as características da heterogeneidade – a
vida das grandes diferenças, a superficialidade – que impulsionam todos a tratar sempre com
as aparências e necessidades emergentes. A carência de análise mais acurada deve-se, em
parte, por conta das demais características, pois agimos na vida cotidiana como seres ímpares,
sui generis, onde há uma predominância das demandas individuais. Esta última é uma das
características centrais do cotidiano, pois o que nos prende a ela é a singularidade do
particular e não a ação e o pensamento vinculado ao gênero humano. Na singularidade do
cotidiano, o homem está por inteiro em suas ações, porém, quando ultrapassa a dimensão da
cotidianidade na suspensão ao humano-genérico, o homem está inteiramente na ação. Isso
aconteceu por meio do que se mencionou anteriormente: do trabalho criativo, da arte e da
ciência. Em verdade, da vida cotidiana se sai e a ela se regressa de outra maneira.
Outros relevantes estudiosos do cotidiano, Certeau; Giard; Mayol (1996, p. 31),
definem cotidiano como: “[...] aquilo que nos é dado cada dia (ou que nos cabe em partilha),
nos pressiona dia após dia, nos oprime, pois existe uma opressão no presente”. Dessa forma, o
cotidiano, nada mais é aquilo que nos aprisiona no nosso âmago, a partir do interior. E como
bem disseram Certeau; Giard; Mayol (1996, p. 31): “[...] uma história a caminho de nós
mesmos, quase em retirada, às vezes velada [...]. Talvez não seja inútil sublinhar a
importância do domínio desta história ‘irracional’, ou desta ‘não história’, como o diz ainda
A. Dupont: O que interessa ao historiador do cotidiano é o Invisível [...].”
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As análises levadas a cabo por Certeau; Giard; Mayol (1996) no livro A Invenção do
Cotidiano têm inegáveis relevâncias. Os autores argumentam ao longo do texto que os
instrumentos de poder, de normatização e condicionamento da sociedade, que almejam regrar
e governar a vida dos homens podem ser ludibriados por meio de usos das práticas, técnicas e
estratagemas de sobrevivência que os indivíduos elaboram nas frestas da dinâmica cotidiana.
Dessa maneira, a vida social transmuta-se em local de transação e negócio inserido em um
cotidiano improvisado, sempre sob a ameaça da reinvenção.
Os atos realizados pelos indivíduos ou seus modos de fazer, para Certeau; Giard;
Mayol (1996) configuram em “[...] mil práticas pelas quais os usuários se reapropriam do
espaço organizado pelas técnicas de produção sociocultural”. Chegam à conclusão de que, tais
maneiras de proceder ou os expedientes de ação têm sua gênese sempre no social, “[...] cada
individualidade é o lugar onde atua uma pluralidade incoerente [...]. Na qual o sujeito é seu
autor ou seu veículo” (CERTEAU; GIARD; MAYOL, 1996, p. 38/41).
Muitos outros autores tematizam a vida cotidiana, entre eles, Lefebvre (1991), Simmel
(1967), Goffmann (1971), Pais (2003) e Martins (1996). Para Pais, o cotidiano carrega em si
enigmas à espera de decifração, tanto que: “Decifrar enigmas implica, pois, estudar a natureza
das mensagens por eles encobertas e o sentido dessas mensagens” (PAIS, 2003, p. 57). Por
sua vez, tais enigmas agregam em si doses de sarcasmo que podem obscurecer a nossa
capacidade de percepção, fazendo com que não percebemos “[...] as distinções entre as
descrições do descritor e as do descrito” (PAIS, 2003, p. 60). Martins agrega à vida cotidiana,
o sonho: “Mesmo que não queira, na vida cotidiana (o sujeito) é exatamente aquilo de que
foge quando sonha.” (MARTINS 1996, p.38).
Certamente, Pais (2007) entende que o cotidiano seja matizado e expresso por meio
das mais variadas formas de liturgia, de rito. No entanto, simultaneamente, aquiesce e defende
um exame acurado do devir cotidiano que tenha por objeto os intervalos efêmeros, e por vezes
inefáveis dessa cotidianidade, com o mesmo espírito epistêmico-ontológico com que se
examinam as ações rotineiras concebidas a priori pela sua inserção estrutural.
Tal assertiva, teoricamente considerada, tem um viés contrário às principais
abordagens que se referem ao cotidiano, posto que o que se enfatiza é a recorrência como
caráter inerente ao cotidiano, como se sua constituição se restringisse meramente à função de
pano de fundo das ações sociais, crítica esta já realizada por Certeau; Giard; Mayol (1996).
No entender de Blumer (1969), aos estudiosos denominados de interacionistas
simbólicos deve-se a descoberta de que a interação só tem possibilidade de existência pelo
uso de procedimentos interpretativos que propiciem relações sociais e que emerjam
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constructos estruturais. Desse modo, tem-se que para existir a interação não basta a
negociação e a interpretação de seu conjunto de conceitos, mas também métodos para seu uso.
Goffman (1971) demonstrou em A Representação do Eu na Vida Cotidiana o caráter
fluido que assume as relações sociais, atravessadas em sua essência por uma ostentosa e
afetada operação de reprodução e encenação, a fim de que o significado gerado e identificado
no processo de interação não suscite, para o sujeito, o descrédito. Em outras palavras, seria o
mesmo que dizer que a interação entre atores sociais em um dado contexto não ocorre de
maneira imediata e direta, não há por parte deles um roteiro, um não procura o outro somente
para com ele interagir.
A simulação antecede a interação. É por meio da operação que o indivíduo realiza
buscando experimentar-se como outro, numa associação de exterioridade consigo mesmo, e
nos breves lapsos de tempo que configuram o prólogo do seu relacionamento, que a interação
tem sua existência. Assim, Pesavento (2008) concluiu que a conjuntura da relação social é
definida por meio de uma construção imaginária, idealizada no cotidiano do dia a dia.
Tais descontinuidades, por assim dizer, foram também observadas nas elucubrações de
autores de viés dialético. Basta que se averigue, para a constatação da assertiva, a teoria da
alienação. Não é de outra coisa, além das descontinuidades, que Kosik (1976) trata quando
propõe o desmembramento da práxis (e da consciência) em práxis utilitária cotidiana e práxis
revolucionária.
[...] o impulso espontâneo da práxis e do pensamento para isolar os fenômenos, para cindir a realidade no que é essencial e no que é secundário, vem sempre acompanhado igualmente de espontânea percepção do todo, na qual e da qual são isolados alguns aspectos, embora para a consciência ingênua esta percepção seja muito menos evidente e muitas vezes imatura. Os fenômenos e as formas fenomênicas das coisas se reproduzem espontaneamente no pensamento comum como realidade (a realidade mesma), porque o aspecto fenomênico da coisa é produto natural da práxis cotidiana. A práxis utilitária cotidiana cria o “pensamento comum”. O pensamento comum é a forma ideológica do agir humano de todos os dias. Todavia, o mundo que se manifesta ao homem na práxis fetichizada, no tráfico e na manipulação, não é o mundo real, é o mundo da aparência. A representação da coisa não constitui uma qualidade natural da coisa e da realidade. É a projeção na consciência do sujeito, de determinadas condições históricas petrificadas. A distinção entre o mundo da aparência e o mundo da realidade, entre a práxis utilitária cotidiana dos homens e a práxis revolucionária da humanidade (KOSIK, 1976, p. 15).
Percebe-se que, no devir da vida cotidiana, as circunstâncias que favorecem o êxito
dos homens nas ações praticadas diariamente, seja por meio dos hábitos introjetados, das
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tarefas dinâmicas repetitivas, sejam da realização de atividades inerentes à sua posição no
contexto, traduzem somente uma maneira de manuseio do ethos do sistema, como da
reprodução da própria manipulação. Para Kosik (1976), a práxis utilitarista tem sua existência
mediada e consubstanciada por meio de atos e práticas que facultam ao homem uma gama
invariável de possibilidades. Dentre elas, a de movimento no complexo conjuntural de
símbolos codificados, bem como de usos diacronicamente aceitos em determinada época e
local.
Os atos e práticas são orientados na direção de um aglomerado de representações ou
de categorias próprias do senso comum, asseguram uma mobilidade utilitarista dos aspectos
fenomênicos da realidade. Isto é, a práxis utilitária e o senso comum regulariam os atos
amiúde reiterados, automatizados, inconscientes e “naturais” da vida ordinária. Desse modo,
se encontram muito distante da concepção de clara percepção do real e de suplantação do
cotidiano.
As representações do senso comum, que unificam e dão existência a práxis utilitarista,
poderiam ser consideradas como se fosse o revestimento da pseudoconcreticidade da vida
cotidiana. Assim, se cotejarmos as elucubrações de Heller (1985) e Lefebvre (1991), o que
esses autores denominam de cotidiano alienado, enfatizando aquilo que pensa Heller, quando
nominaria de fossilização dos aspectos intrínsecos à vida cotidiana na esfera da singularidade,
em última instância seria de fato um cotidiano alienado.
Kosik (1976) entende a pseudoconcreticidade da vida cotidiana como um cotidiano
enigmático, ininteligível e de definições ambivalentes, cuja substância primordial de caráter
fenomênico irrompe, por vezes, de forma distorcida e de maneira inacabada, conferindo às
suas manifestações uma concepção incorreta de verdadeiro. Portanto, segundo o autor, na
pseudoconcreticidade os fenômenos externos se dão a conhecer de maneira apenas aparente,
rasteira, fetichizada e manipulativa; plena de uma ideologia dissimulada e por meio da qual as
formas de manufaturação dos objetos nem sempre são alvos de reconhecimentos, por parte
dos homens e de sua atividade social. A consciência do sujeito social acolhe este
pseudoconcreto visível como uma expressão congênita da realidade e a exteriorização do
fenômeno em sua essência se confunde com a existência aparente do fenômeno. Desse modo,
a ação da vida cotidiana tem sua realização matizada no mundo fenomênico da
pseudoconcreticidade.
Os autores que se dedicam em suas produções às artes, à literatura, ao cinema, dentre
tantas outras, foram instilados a retratar, relatar e quantificar a exterioridade da vida cotidiana
tomando, para tanto, como ponto de partida, as ações de maior concretude até as mais
21
abstratas e sentimentais. Desse modo, o cotidiano e suas nuances configuram-se como um
manancial inspirador da criação de obras dos mais diversos autores e artistas.
Lefebvre, tecendo argumentações a respeito do cotidiano no mundo moderno, tenciona
evidenciar – fazendo uso de destacados personagens da literatura – as particularidades que
sublinharam os mais diversos palcos da vida cotidiana. Um exemplo é a personagem Ulisses
da obra de Homero. Na Odisseia, a personagem retrata a vida cotidiana da Grécia Antiga entre
os séculos 8 e 7 a.C., contudo, o faz a partir de uma negação da cotidianidade, isso porque
Ulisses figura na narrativa como herói, como mito, como a transfiguração do homem em
sobre-humano, como o “antípoda da narração que articula figuras estereotipadas”
(LEFEBVRE, 1991, p. 7).
Na perspectiva de Lefebvre, a única maneira possível de se analisar o cotidiano, de
deslindar sua essência ou desnudar sua decadência é por meio da filosofia. O autor acredita
que a filosofia, considerada em si mesma, desprendida do cotidiano, enquanto um nível
superior suscetível de exame aliena-se em sua estrutura convertendo-se em uma filosofia
alienada. Ao mesmo tempo, se o cotidiano permanecer enquistado em si mesmo, se
manifestando como não filosófico, caracteriza-se como cotidiano alienado.
Os autores, Kosik (1976) e Lefebvre (1991) guardam entre si coincidências teóricas.
No que tange à filosofia, acreditam ser ela o instrumento capaz de facultar a percepção mais
acurada da cotidianidade e de seus aspectos intrínsecos, ou ainda, extrair o cotidiano da
pseudoconcreticidade. Outra característica partilhada entre eles é a que diz respeito à tirania
da cultura na sociedade capitalista, denominada de manifestação da “anonimidade como
tirania do poder impessoal, que dita a cada indivíduo seu comportamento” (KOSIK, 1976, p.
73). Para o autor, tal anonimato de “alguém-ninguém” concorre para a reificação do cotidiano
no mundo fenomênico.
Kosik (1976) aborda o pensamento do senso comum, que atravessa a composição da
vida cotidiana com o conceito que chama de práxis utilitária, é o mundo da mistificação. Já
em Lefebvre (1991), o pensamento do senso comum é o cotidiano vulgar, despido de senso
crítico, é o mundo da manipulação. Em Lukács (1966), tal pensamento traz em si os atributos
próprios do cotidiano ao nível da particularidade do indivíduo. Assim, à medida que Lefebvre
delineia como possibilidade escapatória a “revolução cultural permanente”, Kosik argumenta
em favor da “crítica revolucionária da práxis da humanidade” por meio da descontinuação da
pseudoconcreticidade. Lukács faz crítica – epistemológica – contundente ao que ele acredita
ser uma falta de cuidado epistêmico dos teóricos com o pensamento vulgar cotidiano,
22
manifestações estas sui generis que também simbolizam os reflexos científicos e estéticos da
realidade.
Na fronteira territorial do extremo oeste de Mato Grosso do Sul, estendida por 386
quilômetros de linha divisória, encontra-se Corumbá com significativas redes públicas e
melhores infraestruturas dentre as conurbações da região fronteiriça, sobressaindo-se aos
municípios do país vizinho. Distante a menos de cinco quilômetros de Corumbá está Arroyo
Concepción, subsección do município de Puerto Quijarro, constituindo-se no primeiro núcleo
urbano do território boliviano, razão que pelas proximidades ao município brasileiro as
tornam cidades contíguas, e, por conseguinte, enfrentam diariamente grande fluxo de pessoas,
que movimentam os diversos segmentos da sociedade local.
Estima-se, atualmente, que o contingente populacional que circula no município
brasileiro passa dos 150 mil habitantes, consideradas as populações flutuantes advindas de
Ladário, da fronteira boliviana e do turismo nacional e internacional. Entretanto, segundo o
último censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE (2010), Corumbá (MS)
possui 103.703 habitantes, já em Ladário estão 19.617 residentes. Acerca dos dados
demográficos do Instituto Nacional de Estadística – INE/BOLÍVIA (2012), a soma dos
cidadãos bolivianos que residem nos municípios de Puerto Quijarro e Puerto Suárez, aponta a
quantia total de 35.728 pessoas. Na estimativa do contingencial dispensa-se a soma do
movimento turístico e de outros transeuntes, considerando que essa população pode
permanecer no local pelo tempo que lhe convier.
A migração, segundo Maia (2002), implica nas mobilidades humanas, nos fluxos de
grupos, no tempo de permanência e nos interesses diversos que resultam em redes de relações
sociais, restringidas às sociedades de contatos no local. O autor entende que a migração define
o processo inovador de redes sociais, no viés construído pelos contatos entre pontos de origem
e de destino. Assim assevera que: “[...] redes de relações sociais remetem-nos para novas
leituras sobre os percursos migratórios: permite superar as análises migratórias feitas em
exclusivo a partir de um dos espaços a que os migrantes se encontram ligados, o de origem e
de acolhimento” (MAIA, 2002, p. 54).
Mesmo assim, os cidadãos bolivianos não se configuram apenas como “problema
político-administrativo” que onera os cofres públicos brasileiros, tendo, por exemplo, o
exercício de atividades profissionais praticado principalmente no comércio e nas feiras livres
de Corumbá e Ladário, de tal forma contribuindo e movimentando a dinâmica econômica do
País (COSTA; SABATEL, 2014).
23
Do outro lado da fronteira, os brasileiros frequentam os centros comerciais
estabelecidos nos municípios bolivianos, promovendo no comércio local a interação
compartilhada. Assim, as interações existentes entre os indivíduos que dividem os espaços
fronteiriços assumem uma dinâmica própria, posto que por meio dessas interatividades
engendram combinações de cunho simbólico que geram uma linguagem basilar, propiciando a
elaboração de estratégias de sobrevivência e de convivência que extrapolam as dimensões
estatais determinadas pela delimitação do território (FERNANDES, 2015).
Fronteiriças à cidade de Corumbá (BR), Puerto Quijarro e Puerto Suárez – e suas
respectivas seções municipais – compõem a chamada Província Germán Busch, criada em
conjunto a sua subprefeitura, em 30 de novembro de 1984, pelo Decreto Superior nº 672. Essa
província é, por sua vez, uma dentre as 15 existentes no Departamento de Santa Cruz que
segundo o INE/BOLÍVIA (2012), concentra o segundo maior contingente populacional do
país, próximo a 2.584 milhões de habitantes. O Departamento tem forte desenvolvimento
econômico, e é um dos mais expressivos da Bolívia, tendo Santa Cruz de La Sierra como
capital (MESA; GISBERT; MESA, 2007).
Quando a Província de Germán Busch foi instituída, no segundo governo de Hernán
Siles Suazo, vários incentivos fiscais lhes foram atribuídos, dentre os quais os projetos
relacionados à implantação de uma zona de livre comércio (Central Aguirre), a ser edificada
nessa região fronteiriça com o intuito de fomentar a integração e fortalecer os diversos
segmentos da sociedade boliviana, notadamente no município de Puerto Quijarro
(MANETTA; CARMO, 2011).
Ainda, os autores em questão comentam que:
Em 1991, a Central Aguirre tornou-se a primeira zona franca de comércio da Bolívia, no município de Puerto Quijarro, equipada com porto graneleiro, de hidrocarburos e de cargas em geral. Essa inovação foi seguida pela modernização de outros portos, pelo fortalecimento da rede multimodal de transportes e pela diversificação do comércio e da prestação de serviços na região (MANETTA; CARMO, 2011, p. 07).
Ante ao cenário, no começo da década de 1990, outras interações espaciais se
expandiram ao redor dessa zona fronteiriça. Nos arredores do marco divisório entre os
municípios de Corumbá e Puerto Quijarro, precisamente na subseção de Arroyo Concepción,
erigiu-se um mercado de artigos nacionais e importados. As relações comerciais em Arroyo
Concepción recrudesceram depois dessa abertura. O mercado que ali emergia tinha por função
24
estrutural dar guarida aos capitais de menores montas, assim como aos comerciantes que
disponibilizavam uma gama de artigos importados, até então desconhecidos na região.
Entendendo a dinâmica, Marco Aurélio Machado de Oliveira explica:
Se antes a população era ínfima, com o fluxo comercial, a intensificação da migração interna que ocorreu naquele país fez com que surgissem novas localidades, mais que quadruplicando sua população em uma década. Por não contar com uma rede de serviços públicos eficientes, o uso por parte de bolivianos de hospitais, escolas, etc. do lado brasileiro é bastante intenso (OLIVEIRA M. A. M., 2005, p.355).
O movimento crescente do outro lado da fronteira motivou vários negociantes
corumbaenses, que se juntaram e estabeleceram estruturas de fomentos comerciais
apropriados ao local. Assim, o contingente populacional da fronteira boliviana recrudesce de
maneira surpreendente. A propósito desse aumento populacional, Flandoli (2007, p. 39)
comenta que “ali, aparentemente estava se formando um efervescente polo comercial,
enquanto o comércio de Corumbá sofria um visível declínio, com o fechamento da maioria
das lojas tradicionais localizadas na Rua Delamare”.
Deste modo, a observação que Cataia faz a respeito de muitas inter-relações
transfronteiriças é pertinente, pois:
[...] onde as pessoas e mercadorias são aprendidas segundo critérios do circuito inferior da economia urbana, onde a cidade é apreendida como mercado e este como “vida de relações”, ou, da solidariedade proveniente da contiguidade, da proximidade, porém é uma proximidade cindida em duas ordens, porque cindida por duas formações socioespaciais (CATAIA, 2007, p. 06).
Oliveira (2009) explica que a região é composta por cinco localidades, onde há lugar
para uma espécie de semiconurbação ainda em seus primórdios, mas com consideráveis
interconexões e ramificações de caráter sócio-econômico-cultural.
É como observa o autor:
[...] um território de grande configuração estratégica, por ser o ponto de contato entre o Brasil e a Bolívia. Passam pela região o gasoduto e um acumulado de mercadorias outras (chegam ou partem) utilizando o rio (com seis portos ali cravados), as rodovias e as ferrovias que se encontram ([...] OLIVEIRA, 2009, p. 33).
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Corumbá e Puerto Quijarro, assim como Puerto Suárez têm realidades cotidianas
marcadas, acima de tudo pelo comércio. Esse fato e as capilaridades próprias dos interstícios
fronteiriços preocupam as autoridades de ambos os países, notadamente no que diz respeito às
questões voltadas à criminalidade e ao tráfego/tráfico de produtos ilegais que o local enseja.
Assim, em Grimson (2000) tem-se que nas fronteiras as tensões geradas pelo binômio
legalidade/ilegalidade fazem parte da vida cotidiana. Enquanto os poderes instituídos e as
legislações que delas emanam, tratam-nas como questões de transações comerciais ilegais ou
contrabando, a população as vê como ações banais.
As atividades de transportes de mercadorias exercidas no município de Corumbá se
caracterizam como papel importante para o desenvolvimento e integração da região. Há por
parte dos municípios bolivianos uma severa dependência da cidade brasileira, principalmente
no que diz respeito à infraestrutura urbana e à rede de serviços inerentes ao contexto regional.
Tal dependência suscita problemas de ordem administrativa à gestão do município
corumbaense, dado o ônus gerado pelos contatos socioeconômicos que se impingem à cidade,
em razão de possuir o maior contingente populacional na região, no que tange ao uso das
redes de serviços, aliado à presença da população fronteiriça (MARQUES, 2012, p. 51). Neste
sentido, consta no sitio eletrônico da Prefeitura Municipal de Corumbá (2016), informações
de que o Sistema Único de Saúde (SUS) instalado no município é prejudicado, em razão de
sua limitação ante as demandas extras geradas nos serviços de saúde, uma vez que a
infraestrutura da rede se ajusta apenas às necessidades de seus munícipes.
Marques (2012) ainda constatou que parte do saneamento básico do município
brasileiro, como fornecimento de água potável, constitui-se como fator importante de
dependência no cotidiano de Puerto Quijarro, visto que o sistema de tratamento de água
brasileiro supre parte das necessidades daquela população adjacente. Alguns bolivianos
coletam água para suas necessidades diárias em moradias de amigos e parentes residentes no
Brasil. Na mesma relevância de dependência, a autora aponta os serviços de energia elétrica,
abastecidos nessas cidades bolivianas pelo Grupo ENERGISA, substituto da Empresa
Energética de Mato Grosso do Sul S.A. – ENERSUL, sediado em Corumbá. Assim, como
bem observou, Corumbá consiste em:
[...] um lugar estratégico de articulação dos fluxos de bens, pessoas e informações, no que se chama hoje corredor bi-ocêanico, que junta as duas margens litorâneas do continente, isto é, o sudeste brasileiro com os portos peruanos e chilenos no Pacífico, passando pelo eixo de concentração do povoamento boliviano, Santa Cruz – Cochabamba – La Paz. [...] O guarani e o castelhano, ou ainda a mescla de ambos com o português, são línguas
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faladas no cotidiano daquela fronteira disseminadas em todo o Baixo-Pantanal e pelo Sul de Mato Grosso do Sul. É fundamental ressaltar que além de trocas comerciais, lícitas ou ilícitas, a fronteira foi e é um contexto de trocas culturais, onde foram incorporados costumes, crenças, culinária, música, vestimentas e, em especial, a língua, fator de identidade de uma determinada comunidade (MARQUES, 2012, p. 302).
No que tange aos aspectos concernentes à saúde, tanto em Puerto Suárez, quanto em
Puerto Quijarro, Peiter (2005) observou que:
[...] a realidade da situação de saúde era crítica, dada a falta de saneamento, a pobreza da população e a carência do sistema de saúde local. O maior problema consistia da falta de água tratada. Era preocupante a elevada incidência de doenças transmitidas por vetores como a malária, a dengue, a leishmaniose e a febre amarela, esta última ainda frequente na região graças às constantes falhas dos programas de imunização. Por este motivo as autoridades sanitárias brasileiras não aceitavam os comprovantes de vacinação bolivianos (PEITER, 2005, p. 290).
Ainda, analisando a região fronteiriça, do lado boliviano, Peiter (2005) afirma que os
serviços de saúde prestados à população eram escassos e de instalações péssimas. Para
atender a região havia um hospital em Puerto Suárez e outro no município de El Carmen,
distante a 250 km da fronteira, contendo nesses locais: um cirurgião, um ginecologista, um
pediatra e três clínicos gerais.
Diante desse cenário, parcerias são pensadas para tentar resolver, de alguma forma, os
problemas que afligem as cidades fronteiriças, notadamente aqueles que têm estritas relações
com as questões de saúde. Em 2008, foi criado o Comitê de Fronteira Brasil/Bolívia tributário
dos acordos realizados entre as administrações municipais de Corumbá, Ladário, Puerto
Suárez e Puerto Quijarro. O Comitê tinha como objetivo a discussão das dinâmicas de atuação
nos domínios da saúde, da segurança pública, da cultura, do transporte e da economia.
Consequentemente foram introduzidas na mobilidade fronteiriça, novas dinâmicas do
processo migratório. Marques (2012) contextualiza, hipoteticamente, neste processo duas
situações: a primeira delas revela que a busca por serviços de saúde é um componente
constitutivo dos processos migratórios nessa fronteira; a segunda é que “a mobilidade nessa
região como resultante da interação e integração onde o local interage no espaço de vida e
determina o tempo de residência, consequente do uso dos serviços da rede pública de saúde
[...]” (MARQUES, 2012, p. 23).
27
No entendimento da autora, a rede pública de saúde de Corumbá constitui-se em
elemento de interesse das demandas dos bolivianos fronteiriços, motivados pela fácil
mobilidade na região, escassez de ofertas desses serviços em seus municípios aliadas às
ofertas encontradas no sistema público de saúde do Brasil, assim como pelo livre acesso.
Analisando a magnitude dos problemas Peiter (2005), baseado nas informações do
Relatório de auditoria do Departamento Nacional de Auditoria do SUS –
DENASUS/MS/2004 constatou que 38% dos atendimentos às gestantes na cidade de
Corumbá têm tido como público as mulheres de nacionalidade boliviana. O autor assevera
ainda que: “Este mesmo órgão aponta que não só a assimetria entre os sistemas de saúde é a
responsável por esse afluxo, mas também (e talvez o principal motivo) a gratuidade do
atendimento médico no Brasil” (PEITER, 2005, p. 291).
2.2 Discutindo paradigmas
No que diz respeito à conjuntura existente na fronteira Corumbá-Puerto Quijarro, faz-
se necessário discutir acerca do conceito de circulação, de residência-base e reversibilidade
(DOMENACH; PICOUET, 1990).
Tal necessidade se explica pelo fato de ser imperiosa a exata compreensão dos
mecanismos que propiciam um melhor entendimento a respeito da migração fronteiriça, em
especial aqueles relacionados aos serviços de saúde e à discussão conceitual de fronteira.
Domenach e Picouet (1990) verificaram que as análises realizadas sobre a questão da
mobilidade espacial se fundamentavam no raciocínio da “mudança de residência” como
principal preceito, já que seria por meio dessa mudança que se associavam as distintas formas
de deslocamentos. Tal conceituação se baseia na possibilidade da existência de uma
mobilidade que leve em conta a residência única e implícita, em que o que é predominante no
acurado exame sobre as migrações “[...] são as questões territoriais, estatísticas, legais,
imobiliárias, socioeconômicas”. Ditos de outra forma reputam-se como relevantes tão
somente estágios ou ciclos da mobilidade humana (DOMENACH E PICOUET, 1990, p. 52).
De acordo com o Dicionário Demográfico Multilíngue da IUSSP (1969), a definição
modelar a respeito da categoria residência, local em que um indivíduo estabelece residência
fixa e habitual, das perspectivas dos autores, não indica categoricamente que este indivíduo
possua somente uma residência fixa. Todavia, espaços e locais determinados aos quais
mantêm liames de toda ordem: familiar, trabalho, férias. Assim, tem-se que o domicílio
assume outras facetas identitárias, dependendo, sempre, das dinâmicas de funcionamento e da
28
mobilidade que o indivíduo realiza cotidianamente, sejam elas de caráter repetitivo, ocasional,
cíclico ou sazonal.
Desse modo, ao terem revisto o paradigma no tocante à mudança de domicílio nas
análises que têm como objeto os fluxos migratórios contemporâneos, os autores introduzem
questões a respeito da reversibilidade eventual das migrações como constituinte de um
diagnóstico mais amplo do que o conceito de espaço de vida definida. Para tanto, produzem
uma gama de tipos diversos de fluxos que não é vislumbrada pela definição conceitual de
alteração de residência.
Tomando como ponto de partida o arcabouço conceitual concernente à
“reversibilidade eventual das migrações”, os autores citados propõem a dissolução,
entendendo que há obsoletismo entre mobilidade temporária e definitiva. Contudo, assumem
que existe, ainda, a necessidade de definir dissolução com mais acurácia diante da crescente
variabilidade transnacional, presente na sociedade moderna. Variabilidade que pode ser
constatada analisando a desenvoltura e o alcance de comunicação e de deslocamento ao redor
do globo terrestre.
Destarte, fixar ou não uma residência tem a ver com as condições ofertadas e o local
onde estes condicionantes e suas disposições se traduzem em melhores oportunidades, ou uma
melhor qualidade de vida. Assim, no que diz respeito à dinâmica dos deslocamentos (duração,
periodicidade, sequência), existem inúmeras variedades de circunstâncias que não se
constituem, compulsoriamente, em mudança de residência.
3. Procedimentos metodológicos
O estudo trata de uma pesquisa qualitativa, exploratória e descritiva, desenvolvido
teórico-metodologicamente nos termos constituídos dos princípios da abordagem do método
qualitativo da Análise de Conteúdo, que segundo Bardin (2006) consiste em: “[...] técnica de
investigação que tem por finalidade a descrição objetiva, sistemática e quantitativa do
conteúdo manifesto da comunicação”.
A opção por algumas técnicas da análise de conteúdo elaborada por Bardin (2006) se
deve ao fato de essa autora ser uma das mais respeitadas autoridades na área em questão,
tendo o seu método obtido aceitação de muitos pesquisadores que acorrem à análise de
conteúdo como instrumento de análise de dados. Bardin (2006) conceitua a análise de
conteúdo como se fosse uma gama de procedimentos técnicos que tem como objetivo analisar
a estrutura dos processos comunicativos. Para tanto, tal conjunto de técnicas escrutina
29
detalhadamente, por meio de análise sistemática e objetiva, o conteúdo das mensagens. Aqui,
o esforço interpretativo e analítico se destina ao conteúdo em si mesmo e às circunstâncias de
sua produção e recepção. Desse modo, tem-se que, grosso modo, a análise de conteúdo é um
complexo de ferramentas instrumentais e técnicas que facultam de análise de comunicações,
visando dirimir as ambiguidades e fortalecer a interpretação dos dados coletados.
Chizzotti (2006, p. 98) complementa o conceito quando afirma que: “[...] o objetivo da
análise de conteúdo é compreender criticamente o sentido das mensagens comunicadas, seu
conteúdo manifesto ou latente, as significações explícitas ou ocultas”. Mas de que tipo de
conteúdo se está tratando? Bauer e Gaskell (2008) acreditam que o conteúdo por excelência
da análise é o proveniente dos materiais escritos, sendo mais fácil seu manuseio. No entanto,
outras formas de texto também são passíveis de escrutínio pela técnica em questão, tais como
imagens; áudios; pinturas; fotografias; filmes; afrescos; afinal, também estes são textos, posto
que transmitam mensagens, contam histórias, desvelam segredos, ou como bem observou
Flick (2009 p. 291, grifo meu) quando assevera que a análise de conteúdo “é um dos
procedimentos clássicos para analisar o material textual, não importando qual a origem desse
material”.
A análise de conteúdo configura, como se depreende das informações supracitadas,
uma técnica que tem por premissa fundamental o exame acurado dos dados coletados, visando
à detecção das estruturas fundantes do que se verbaliza e, é um dado processo discursivo, com
um tema específico e vocabulário concernente.
Minayo (2001) confere à análise de conteúdo uma identidade restrita a um aglomerado
de técnicas. Para ela, trata-se de instrumentos perspicazes no exame do entendimento a
respeito do comportamento humano, facultando usos diversos e exercendo dupla atribuição:
convalidação de hipóteses e/ou questões e evidenciação do que subjazem os conteúdos
manifestos.
Conforme a concepção de Bardin (2006) a respeito da análise de conteúdo, esta se
divide em três etapas: 1) pré-análise, 2) exploração do material e 3) tratamento dos resultados,
inferência e interpretação. A primeira dessas etapas, a pré-análise, caracteriza-se pela parte do
trabalho analítico onde o material coletado é organizado objetivando maior operacionalidade
na execução da tarefa.
A pré-análise é a fase em que os dados são analisados por uma leitura flutuante, na
qual o pesquisador detém a intenção de conhecer as respostas obtidas. A partir de leituras
mais apuradas, torna-se possível associar ao objetivo da pesquisa algumas categorias. É nessa
fase ainda que as transcrições das entrevistas são realizadas, assim como as escolhas de
30
excertos e manuscritos relevantes para se atingir os objetivos da pesquisa. Desse modo, ao
completar a pré-análise o material para a análise já está preparado e selecionado, pois nem
tudo que é recolhido serve para se analisar, como observa Bardin (2006, p. 123): “Nem todo o
material de análise é susceptível de dar lugar a uma amostragem, e, nesse caso, mais vale
abstermo-nos e reduzir o próprio universo (e, portanto, o alcance da análise) se este for
demasiado importante”.
Essa primeira etapa é dividida, por sua vez, em quatro fases: (a) o processo de leitura
flutuante já mencionado, primeiro contato com os documentos da coleta de dados, momento
em que se tem início o entendimento do texto; (b) escolha dos documentos, que consistem na
demarcação do que será analisado; (c) formulação das questões e dos objetivos; (d)
referenciação dos índices e elaboração de indicadores, que envolve a determinação de
indicadores por meio de recortes de texto nos documentos de análises.
A segunda etapa é marcada pela exploração do material, pela definição de categorias
de codificação e pela identificação das unidades de registro (unidade de significação a
codificar refere-se à cisão de conteúdo reputado como elemento base, objetivando a
categorização e à contagem frequencial) e das unidades de contexto nos documentos (unidade
de compreensão para codificar a unidade de registro que corresponde ao segmento da
mensagem, a fim de compreender a significação exata da unidade de registro). A exploração
do material é fator de extrema relevância, dado que é essa exploração que possibilitará ou não
as riquezas das interpretações e inferências. Essa é a etapa em que se explora a descrição
analítica, que diz respeito ao corpus (qualquer material textual coletado) submetido a um
estudo aprofundado, orientado pelas hipóteses e dos referenciais teóricos. Dessa maneira, a
codificação, a classificação e a categorização são básicas nesta fase (BARDIN, 2006).
A terceira fase é destinada ao tratamento dos resultados, inferência e interpretação, em
que ocorrem a solidificação e o realce dos dados para posterior análise, resultando nas
interpretações inferenciais; é o momento da intuição, da análise reflexiva e crítica. Partindo
das diversas fases de que se compõe a análise proposta por Bardin, enfatizam-se, a exemplo
do realizado pela autora, as extensões da codificação e da categorização que viabilizam e
auxiliam no processo que envolve as interpretações e as inferências. Desse modo, no que
respeita à codificação, “[...] corresponde a uma transformação – efetuada segundo regras
precisas – dos dados brutos do texto, transformação esta que, por recorte, agregação e
enumeração, permite atingir uma representação do conteúdo, ou da sua expressão” (BARDIN,
2006, p. 103).
31
Assim, depois desse processo a categorização é a próxima fase. Esta se configura na
classificação de componentes constitutivos de um conjunto, por diferenciação e,
seguidamente, por reagrupamento segundo o gênero (analogia), com os critérios definidos de
antemão. “As categorias são rubricas ou classes, que congregam entorno de si elementos que
atendem a uma designação genérica, concentração essa produzida em razão dos caracteres
comuns destes elementos” (MINAYO, 2008, p. 17). É importante ressaltar que o caráter
simbólico envolvido na categorização, necessita de decodificação, por mais que haja
dificuldades. Para tanto, é necessário os esforços do pesquisador, a fim de desvelar o conteúdo
latente, como observado por Triviños (1987), que no exame mais acurado e contextual a
busca torna-se importante, que além da criatividade deve usufruir da intuição e da crítica.
Outros autores concebem maneiras diferentes de analisar conteúdos, ainda que
levando em consideração as fases propostas por Bardin (2006), mas com peculiaridades que
não alteram a dinâmica do processo. Flick (2009, p. 292-293), fundamentado nos trabalhos de
Mayring, estabelece as seguintes diretrizes para as análises de conteúdos: síntese da análise de
conteúdo, por meio da omissão de enunciados; análise explicativa de conteúdo, com o
esclarecimento de trechos difusos, ambíguos ou contraditório; assim, por fim, a análise
fundante de conteúdo, da composição no nível formal atinente ao conteúdo. Desse modo,
Bardin (2006) certifica que a análise de conteúdo finda por oscilar entre dois polos que
compreendem a investigação de cunho científico: o rigor da objetividade, da cientificidade, e
a riqueza da subjetividade. A técnica, assim concebida, tem por objetivo ir além do senso
comum do subjetivismo e atingir o rigor científico necessário, todavia não a fixidez e
concretude inválidas, incompatíveis com os tempos atuais.
Por conseguinte, a obra de Laurence Bardin sobre a análise de conteúdo encerra em si
uma ancoragem consolidada no rigor metodológico, com uma estruturação adequada à
compreensão perspicaz do método e, ao mesmo tempo, oportuniza aos investigadores uma
direção plurifacetada que caracteriza a Análise de Conteúdo como um método que,
historicamente e cotidianamente, produz sentidos e significados na diversidade de
amostragem presentes no mundo acadêmico (FARAGO; FOFONCA, 2011).
A coleta de dados se realizou por meio de entrevista semiestruturada. Esse instrumento
é uma ferramenta interativa que intermediou a relação entre pesquisador e seus interlocutores.
Para González Rey (2002, p. 4) “[...] a pesquisa qualitativa que assume os princípios da
Epistemologia Qualitativa se caracteriza pelo seu caráter dialógico e pela sua atenção ao
estudo dos casos singulares”. O autor entende que o importante não é só aquilo que o
interlocutor fala como o sentido da fala, mas “[...] o envolvimento do sujeito, o que lhe
32
permite uma produção complexa, condição essencial para construir a complexidade dos
problemas abordados a partir desta perspectiva” (GONZÁLEZ REY, 2002, p. xii-xiii –
Prefácio à edição brasileira).
No que diz respeito aos materiais e as fontes utilizados, também o estudo se valeu dos
seguintes procedimentos técnicos: pesquisa bibliográfica baseada em materiais publicados,
como livros, periódicos, artigos, dissertações, teses, relatórios, manuais, legislações e de
outras informações da internet.
Ressalta-se, aqui, que os interlocutores já haviam sido previamente contatados e suas
anuências em relação às participações na pesquisa foram positivas. Outro fator a mencionar é
a obtenção de dados por meio de conversas informais, constantes deste texto apenas como
indicadores de importância a respeito das nuances que envolvem o tema.
Os critérios relacionados à inclusão e exclusão, referiram-se apenas a selecionar
profissionais com atividades fins e atuantes na maternidade; 10 (dez) profissionais de saúde
que compõe a equipe multidisciplinar participaram da pesquisa. Estes profissionais foram
entrevistados após aceitarem as condições dispostas no Termo de Consentimento Livre e
Esclarecido – TCLE/UFMS, bem como concordando em assiná-lo.
A escolha de dez profissionais do universo que constitui o quadro de colaboradores da
Instituição deu-se em função das representatividades dos segmentos de formações
profissionais, considerando o fluxo institucional e o conjunto de trabalhos convergentes,
priorizando responsabilidades técnicas e práticas cotidianas que interagem os serviços da
atenção ao parto na maternidade.
Foram excluídos do estudo os profissionais de apoio técnico-operacional e
enfermagem de nível médio, bem como os profissionais de nível superior que não atuam na
assistência direta às pacientes bolivianas.
A aplicação da entrevista semiestruturada (formulário anexo) foi gravada em mídia
digital e transposta para o computador para posterior decupagem. Os temas das questões
versaram a respeito de objetivos e princípios em saúde, buscando analisar a questão na
dimensão individual, uma vez que cada pessoa, em sua subjetividade e unicidade, constrói e
desenvolve o coletivo. Esses depoimentos foram imprescindíveis para o conhecimento do
cotidiano dos profissionais de saúde que atuam na atenção ao parto de pacientes estrangeiras
numa maternidade de região de fronteira.
33
4. Saúde, cotidiano e fronteira
Inicialmente, a cidade branca3 foi denominada de Arraial de Nossa Senhora da
Conceição de Albuquerque, com o objetivo de frustrar os planos dos espanhóis de adentrar em
terras brasileiras pela fronteira, que tinham a intenção de explorar o ouro no solo brasileiro.
Tal medida acabou por transformar o agrupamento urbano recém-formado em um entreposto
comercial de grande importância para a região. Em 1838 foi alçada à condição de Distrito, e
em 1850 à de Município (CORREA, 1981).
No decurso da Guerra da Tríplice Aliança, o município destacou-se como cenário de
embates importantes. Após a guerra e até 1930, figurou como um dos maiores portos fluviais
da América Latina. As comunicações baseavam-se em informações trazidas por aqueles que
navegavam pelos Rios Paraguai, Paraná e da Prata. Com o advento da Estrada de Ferro
Noroeste do Brasil (NOB), houve acentuado desenvolvimento no município, nessa ocasião os
meios de propagar as informações e/ou recebê-las aumentaram.
De acordo com as estimativas do IBGE (2015), a população do município está
quantificada em 108.656 habitantes, dispersos entre os 32.259 domicílios, que o coloca entre
os municípios com maior contingência populacional de Mato Grosso do Sul, e densidade
demográfica de 1,662 hab/km². Em relação à extensão, sua área é de 64 960,863 km², maior
que a de países como a Eslovênia, Estônia e Suécia, sendo considerado um dos maiores
município brasileiro, assim como o maior do Estado e da Região Centro-Oeste.
Com essas características, aliadas ao turismo pesqueiro, ecoturismo, turismo
fronteiriço e os movimentos culturais, o município tem ganhado notoriedade no cenário
sócioturístico, tanto em nível nacional quanto internacional, fazendo com o que o mesmo,
sazonalmente, tenha uma explosão populacional além de sua expectativa.
Corumbá faz fronteira com a Bolívia, tendo as cidades bolivianas de Puerto Quijarro e
Puerto Suárez como vizinhas próximas, além de Ladário. Pelas características marcantes que
possui, principalmente da rede de saúde instalada, o município tem atraído ao longo dos anos
a atenção dos bolivianos, que buscam atendimentos para tratamentos de saúde. Dentre essas
demandas destacam-se aquelas oportunizadas pelas mulheres gestantes, que buscam ser
atendidas gratuitamente na rede pública de saúde, dado o fato de que na Bolívia o sistema de
saúde não consegue atender a todos os seus cidadãos. Tal situação, como observada pelos
3 Corumbá é conhecida como cidade branca por conta da cor clara de sua terra, pois está assentada sobre uma formação de calcário.
34
autores citados anteriormente, provoca alguns problemas quanto às adequações dos recursos
destinados ao atendimento desses pacientes “extras” no sistema de saúde do município.
A fronteira não se traduz, como explica Nascimento (2013, p. 85), apenas levando em
conta seus limites físicos, mas também, e principalmente, pelo “caráter polissêmico de sua
natureza”. Nesse sentido, as questões postas pela dinâmica sociocultural, econômica e
geográfica, dentre outras, que circunscrevem o tema do acesso à saúde pelos estrangeiros na
fronteira Brasil/Bolívia são, além de polissêmicas, complexas e multifacetadas. São muitos os
entraves que dificultam o acesso à saúde por parte dos não-nacionais: falta de documentação
legal; ilegalidade na produção de documentos; barreiras culturais, sociais, econômicas,
linguísticas.
Diante de tais problemas, verificam-se sérias dificuldades quanto à possibilidade de
acesso digno aos serviços de saúde preconizados na Carta Magna de 1988, isto é, acesso de
maneira universal e integral. O MERCOSUL vem atuando de maneira bastante positiva no
tocante às questões de saúde, fomentando ações e elaborando diversas intervenções,
principalmente aquelas direcionadas a debelar e a prevenir a ocorrência de doenças
infectocontagiosas. Assim, no que concerne à oferta de serviços em saúde, percebe-se que as
tratativas legais que se produzem entre as instâncias de poder governamental convergem ao
entendimento de que o estrangeiro possa ter acesso livre à assistência pública relacionada à
saúde em quaisquer dos Estados-nações partícipes e concordantes com o preconizado pela
mencionada coalizão.
Para medir o alcance dos esforços levados a cabo pelo SUS nas faixas de fronteiras
dos países aliados foi criado o projeto Sistema Integrado de Saúde das Fronteiras (SIS-
Fronteiras). Sob o respaldo do Ministério da Saúde, o projeto tinha como um dos principais
objetivos a identificação das capacidades e insuficiências fundamentais que plasmam as ações
do Sistema Único de Saúde existentes nos municípios fronteiriços. Elaborou-se, como
primeira etapa da proposta, um diagnóstico que considerava as vertentes assistenciais,
epidemiológicas, pedagógicas, sanitárias e ambientais da saúde pública nos municípios
fronteiriços. A proposição tinha ainda como ambição viabilizar, a partir do SIS-Fronteiras, a
constituição de laços de colaboração que tenham como partícipes os países limítrofes.
Objetivava-se, com esse expediente, promover a melhoria da qualidade dos serviços
oferecidos à população do entorno (BRASIL, 2005b).
O SIS-Fronteiras - iniciou-se em 2005 e teve seu término em 2008, tendo sido
inicialmente criado por meio da Portaria GM/MS nº 1.120, de 6 de julho de 2005 (BRASIL,
2005b), sendo posteriormente modificado em 5 de junho de 2006 pela Portaria GM/MS de
35
1.188 (BRASIL, 2006). O projeto em questão objetivou, grosso modo, trazer melhorias aos
sistemas locais de saúde existentes nos 121 municípios situados nas linhas de fronteiras
brasileiras. Para a efetiva realização do projeto, definiram-se duas etapas, em que foram
consideradas as características geográficas e os aspectos espaço-temporais envolvidos. Na
etapa 1, 69 municípios dos Estados da Região Sul – Paraná, Rio Grande do Sul e Santa
Catarina / Mato Grosso do Sul foram avaliados. Na etapa 2, foi a vez dos 52 municípios dos
Estados da Região Norte – Acre, Amazonas, Amapá, Pará, Rondônia, Roraima / Mato Grosso
(BRASIL, 2005b).
A execução do projeto nos municípios fronteiriços foi dividida em três fases, tendo
sido avaliado cada município particularmente. A primeira fase consistiu na elaboração de um
diagnóstico local de saúde, tanto quali quanto quantitativamente; e elaboração do Plano
Operacional. A segunda fase objetivava a capacitação da gestão, dos serviços e ações; bem
como a implementação da rede de saúde nos municípios fronteiriços. A terceira e última fase
teve por preocupação a inserção, nos municípios fronteiriços, de serviços e ações, levando em
conta o diagnóstico local definido no Plano Operacional (BRASIL, 2005b).
O projeto em questão encontra-se estagnado, não se sabendo se terá ou não
continuidade, se surtiu o efeito desejado ou, ainda, se de alguma maneira auxiliou na solução,
ainda que hipotéticas, das questões atinentes ao acesso à saúde por parte dos estrangeiros4.
A saúde, como já sabido, não é algo fácil de conceituar e têm aspectos muito
diferentes de uma cultura para outra. Nesse sentido, por meio do sistema cultural de saúde,
peculiar a cada povo e sua cultura, é possível dar-se conta da relevância simbólica do
entendimento dos povos acerca da saúde e dos conhecimentos a ela inter-relacionados; assim
como ter uma noção a respeito dos processos cognitivos instrumentalizados para definir,
classificar, perceber e explicar a doença.
Todas as culturas, isoladamente, são detentoras de saberes sobre o que pode ser
reputado como saudável ou doentio; saberes que os ajudam no processo de compreensão das
várias facetas envolvidas na definição do binômio saúde-doença. Desse modo, organizam seu
vocabulário de definições de doenças, classificando-as em categorias de importância
conforme a brevidade de sintomas ou a letalidade das afecções. Os conceitos e definições
assim concebidos não têm caráter universal, são constructos particulares, localizados no
tempo e no espaço, social e culturalmente considerados, tendo seus valores conhecidos e
reconhecidos dentro de uma estrutura sociocultural específica (LANGDON; WILK, 2010, p.
4 Há sobre a atuação do SIS-Fronteiras em Corumbá o trabalho de Clarisse Mendes Pinto Gomes Ferreira, sob o título O sistema integrado de saúde das fronteiras: o caso de Corumbá/MS.
36
179). Os autores observam que: “As suas classificações, tanto quanto os conceitos de saúde e
doença, não são universais e raramente refletem as definições biomédicas”.
Assim, as percepções das pessoas dependem muito do contexto social em que vivem
e/ou foram criadas; da época; do lugar e da classe social; tudo isso matizado por valores de
cunho individual; de crenças religiosas; de concepções científicas e/ou filosóficas. Tem-se
então que há uma variabilidade imensa entre as diversas percepções e representações acerca
do que seja a doença e a saúde (SCLIAR, 2007).
No caso das mulheres, cuja matriz cultural é oriunda dos povos andinos, a saúde não
se restringe ao corpo físico apenas, mas guarda relação intrínseca com conjunto de fatores
sociais, afetivos, ambientais e espirituais que determinam a harmonia interna e externa,
individual e comunitária. Como bem observa Rodríguez:
En las sociedades andinas de tipo comunitario, el cuerpo no existe como elemento de individuación. El cuerpo no está separado del universo ni de los dioses, sino que conforman una unidad. Por ello la salud, no se refiere únicamente al estado físico sino al conjunto de factores sociales, afectivos, ambientales, espirituales que determinan la armonía interna y externa, individual y comunitaria (RODRIGUEZ, 2008, p. 8).
Rodriguez assevera que as mulheres indígenas de matriz cultural andina quando
acorrem aos hospitais para dar à luz a seus filhos nutrem a esperança de poder ser atendidas
por um serviço que tenha como preocupação a atenção de boa qualidade. Mas isso não é tudo,
para elas, segundo a autora, é importante também que o parto seja realizado a partir de alguns
procedimentos que as mesmas recomendam, tais como poder parir na posição vertical, de
cócoras ou ajoelhada. Existem aquelas que solicitam que lhes sejam entregues as placentas,
para que possam enterrá-las, prática cultural corrente em alguns grupos (RODRIGUEZ,
2008). Em Corumbá, não houve menção alguma sobre essas solicitações. Talvez por conta do
longo contato existente entre ambos os povos.
A saúde pode ser concebida de diversas maneiras, dependendo de condicionantes
como cultura, política, economia dentre tantas outras categorias possíveis. Assim, tem-se que
uma definição clara de saúde não se afigura tarefa fácil, ou como observam Czeresnia e
Freitas (2003, p. 42): “[...] o discurso médico científico não contempla a significação mais
ampla da saúde e do adoecer. A saúde não é objeto que se possa delimitar”.
Desse modo, Levine (1995, p. 8) percebe que a saúde só pode ser entendida e assim,
passível de conceituação, se forem observados os condicionantes psicológicos, perceptuais e
comportamentais. O autor se pergunta, afinal, o que é a saúde? Indagação a que ele responde
37
da seguinte maneira: “É, naturalmente, não diretamente observáveis, mas é inferida. A saúde
é, antes de tudo, uma construção conceitual que nós desenvolvemos para abranger uma gama
de diferentes classes de fenômenos [...] em três níveis de realidade: a fisiológica, a percepção
e o comportamento”. Portanto, percebe-se que esta é uma definição que considera em sua
análise outros fatores, no entanto não pode ser generalizada, face à variedade conceitual de
vertentes que influenciam os exames sobre o tema saúde.
Yajahuanca (2015, p. 100) constatou que população boliviana feminina entende a
saúde, como já observado por Rodriguez (2008), a partir de uma concepção holística, em que
“[...] são considerados aspectos como o equilíbrio entre o corpo, a mente e o espírito. Aqui,
existe ainda a dependência de fatores externos como os demais seres humanos, a natureza, as
divindades e o cosmo em geral”.
A partir de uma análise de caráter mais sociocultural, Yajahuanca (2015) explica que
para a mulher boliviana a saúde materna, bem como os cuidados necessários, tem intrínseca
relação com fatores como “autoimagem da mulher e sua imagem social, percepção,
representação social, identidade – individual e social – e atitudes, assim como valores,
comportamentos, práticas e superstições que a envolvem”. No entanto, esses fatores não se
dão de maneira isolada, eles “relacionam-se com os contextos socioeconômicos e culturais em
que esta mulher se insere e, em seu conjunto, esses fatores se manifestam em práticas e
vivências cotidianas” (YAJAHUANCA, 2015, p. 15).
No tocante ao parto em si, os profissionais em saúde da Maternidade da ABC
comentaram que a preferência entre as bolivianas, destoando das brasileiras, é pelo parto
normal. Duas explicações possíveis emergem dessa constatação. A primeira tem a ver com os
aspectos culturais condicionadas às práticas exercitadas na Bolívia, onde a mulher na maioria
das vezes tem seu filho em casa, de preferência em pé, de cócoras ou ajoelhada, como afirmou
Rodriguez (2008). A segunda razão associa-se a motivos de ordem proativos. Num país
extremamente vulnerável no que se relaciona a aspectos econômicos e, consequentemente, às
oportunidades de geração de renda por parte dos membros da comunidade, as mulheres
acabam por ter um papel relevante na organização da vida diária de sua família, tanto na
questão logística (afazeres domésticos e cuidados com crianças) quanto na questão de
contribuir – ainda mais – ativamente com o aporte de recursos financeiros para a manutenção
do lar. Desse modo, não tendo muitas vezes quem possa dela cuidar no pós-parto, o parto
normal é a opção mais vantajosa. Comentou uma entrevistada, que ouviu de algumas
mulheres bolivianas dizerem que “Esse parto é melhor, porque em poucos dias a gente já
38
está de pé”. [Jacira, profissional de saúde da maternidade – entrevista realizada em 6 nov. de
2016].
Os profissionais com os quais se têm estabelecidos contatos são aqueles cujas
atividades estão estreitamente vinculadas ao atendimento cotidiano das parturientes na cidade
de Corumbá: médicos, enfermeiros, auxiliares de enfermagem, assistentes administrativos,
psicólogos, assistentes sociais.
Uma das constatações no tocante à assistência às mulheres bolivianas na Maternidade
da ABC é o despreparo de alguns profissionais, no que diz respeito às questões culturais que
envolvem o parto. No entanto, ressalta-se que tal fato não é culpa desses profissionais, mas do
arcabouço teórico-metodológico adotado pelas ciências médicas e/ou biológicas que são
responsáveis pela construção do conhecimento a ser utilizado no atendimento, feito por meio
de protocolos generalizantes e etnocêntricos. Ou ainda dos cursos a quem a formação desses
profissionais é delegada, em que dificilmente questões culturais a respeito das representações
acerca do parto são discutidas (CAMARGO JÚNIOR, 2003). É nesse sentido que o corpo
médico responsável pelos procedimentos relacionados ao parto preocupa-se, em aplicar aquilo
que foi aprendido no seu sistema de crenças, respeitando cegamente os preceitos e doutrinas.
Tudo aquilo que não demonstra compatibilidade com esse sistema, é reputado como folclore,
superstição ou parte de um sistema primitivo de crenças e, portanto, deve ser desconsiderado
por sua inadequação (FONSECA, 1992).
O desconhecimento ou o descaso das práticas culturais, bem como de sua importância
no bem-estar da parturiente no puerpério, são as principais reclamações das bolivianas. “Às
vezes reclamam do jeito que a gente trata elas, que a gente não faz como elas estão
acostumadas ou sabem. Mas se a gente for atender todo mundo do jeito que elas querem, não
dá tempo de atender nenhuma pessoa.” [Inês, profissional de saúde da maternidade de
Corumbá – entrevista realizada em 7 nov. 2016]. Justifica uma das colaboradoras. Outra
pondera: “A gente até que quer atender a todas com a dignidade que elas merecem, mas a
gente não tem nem tempo nem material suficiente. Prá você ter uma ideia, às vezes as
mulheres têm de trazer lençóis de casa, porque aqui não tem”. [Jacira, profissional de saúde
da maternidade de Corumbá – entrevista realizada em 6 nov. 2016].
A falta de materiais para a execução das rotinas da maternidade é outro problema
grave, fator que desestimula o profissional no desenvolvimento do seu trabalho cotidiano,
haja vista que as atividades ficam prejudicadas por conta da escassez dos insumos básicos,
tais como gazes, seringas, medicamentos triviais, dentre outros.
39
Uma das questões que vem à baila no trabalho de campo é o preconceito. Este, velado
em algumas situações, patente em outras. Sua natureza se esconde no manto da chacota, das
piadas de mau gosto, enfim, em tudo aquilo que pode, ainda que dito de brincadeira, diminuir
a pessoa humana. As piadas giram em torno da higiene do povo boliviano, da condição
econômica da Bolívia, do estigma de estrangeiro, da condição de indígena, das categorias
identitárias estigmatizadas como choco, colla, bugre, índio, dentre outras (DA COSTA,
2015). Dessa maneira, “a construção negativa do ‘outro’ sustenta a própria identidade
brasileira, ou seja, o boliviano se constrói no imaginário brasileiro fora dos parâmetros que
definem os valores ‘civilizados’”. Nessa conjuntura, construídas dicotomicamente entre “nós”
e “eles”, “a imagem do “outro” ganha contornos específicos em Corumbá, na medida em que
a Bolívia é vista por parte da população como símbolo do atraso, da pobreza e da falta de
‘civilidade’, de higiene, das leis.” (DA COSTA, 2015, p. 41-42).
A respeito das questões pertinentes à identidade boliviana no contexto cultural de
Corumbá, tem-se que:
[...] a identidade na fronteira Brasil-Bolívia pode ser problematizada não apenas por critérios de nacionalidade (brasileiros/bolivianos), mas também por critérios étnicos (índios/não índios). Há uma dupla alteridade do boliviano em solo brasileiro: ao mesmo tempo em que é visto como um “outro” nacional (estrangeiro) é representado como um “outro” indígena, duplicando, em grande medida, o estigma social que recai sobre o grupo. Grande parte dos migrantes e residentes bolivianos na fronteira tem, de fato, sua origem nos Aymara ou nos Quéchua (do altiplano), além dos Kambas e dos Chiquitanos, das terras baixas (DA COSTA, 2015, p. 38).
No entender de Da Costa (2015), as questões que envolvem a manipulação identitária
nas áreas fronteiriças são relevantes na medida em que auxiliam a compreender “os processos
de adaptação dos bolivianos em Corumbá e seu acesso a serviços, como atendimento à saúde
[...], sobretudo no caso dos indivíduos que possuem dupla nacionalidade”. Assim, o contexto
sociocultural sui generis oportunizado pelas inter-relações gestadas na fronteira “[...] coloca
questões relevantes acerca da constituição da identidade, ou identidades, nesses espaços de
convívio e encontros – e também de desencontros. Questões estas que vão muito além do
mero bairrismo e/ou do nacionalismo extremado” (NASCIMENTO, 2014, p. 132-133).
Tais assertivas demonstram o caráter fluido das identidades, deixando a descoberto o
fato de que “as identidades nunca são rígidas e monolíticas, ainda mais nas fronteiras,
entendidas como espaços liminares” (DA COSTA, 2015, p. 38). Assim, tem-se que um
espaço de fronteira e as relações e inter-relações socioculturais que tal espaço enseja “só
40
podem ser compreendidos na medida em que as análises acerca dos seus contextos levem em
consideração as sociedades e as condições que os produziram” (NASCIMENTO, 2014, p.
117-118).
Todos esses fatores acabam por refletir nas relações sociais vividas por brasileiros e
bolivianos na fronteira Brasil/Bolívia. A saúde é uma das categorias que sofre as influências
da dinâmica sociocultural da fronteira, posto que a assistência à mulher boliviana seja
negligenciada em alguns pontos, por conta de noções preconceituosas a respeito do outro e do
desconhecimento das questões culturais que plasmaram a formação da mulher boliviana no
contexto das questões referentes ao parto, ao corpo e ao cuidado.
O acesso à saúde no Brasil pelos bolivianos, principalmente as mulheres, é uma
questão que vai muito além dos problemas de ordem mais burocrática ou do binômio
legal/ilegal, tem haver também com questões atinentes à cultura e sua dinâmica. A mulher
boliviana sente-se envergonhada quando chega à maternidade e tem de desfazer-se de suas
vestes para substituí-las pelas que lhes são oferecidas, como aqueles aventais tradicionalmente
confeccionados de tecidos comuns, quase transparentes e demasiadamente abertos na parte
das costas. Desconfortáveis, totalmente!
A mulher boliviana acredita que no período de gravidez deve manter o corpo sempre
agasalhado, para que não haja problemas que possam influenciar negativamente na saúde dela
e do bebê. Mas, logo que chega à Unidade hospitalar para ter seu filho, a primeira coisa que
lhe faz é a retirada de suas vestes, o que para ela só contribui com a manifestação de
problemas de saúde dela e do bebê no período do pós-parto “Isso atrapalha bastante, tem que
manter tudo bem quentinho, mãe e filho; mas elas [as enfermeiras] não entendem isso, acham
que é capricho da gente”, assim comentou uma das colaboradoras.
Maria, de 29 anos, comerciante boliviana que vive em Arroyo Concepción, no
território boliviano, em bom portunhol comentou, espontaneamente, sobre o que passou em
sua peregrinação pelo território brasileiro:
“Na primeira vez, época em que buscava assistência médica, estava embaraçada da filha maior, agora tem cinco anos. Sou boliviana, tinha vontade de ter os serviços de saúde de Corumbá, queria que meu filho nascesse na maternidade de lá. Todas daqui querem ter seus filhos no Brasil, e eu também. Tenho dois filhos nascidos no Brasil, são brasileiros. E aí me ensinaram que devia ir na hora em que o bebê queria nascer. Me levaram, tive sorte! Não sei! Por que sou branca? Mas fui bem-atendida, apesar de algumas renegações que ouvi, só que depois precisei sacar documentos no consulado de Bolívia. Na segunda vez foi mais tranquila, já tinha meus documentos, o pré-natal.” (Maria. 29 anos, boliviana, 2016).
41
Perguntado sobre os documentos que têm, comentou que além dos documentos dos
filhos brasileiros, também tinha o Registro Nacional de Estrangeiro – RNE, CPF e Cartão
Nacional de Saúde – CNS e “outros que não me lembro agora”. Acrescentou ainda:
“Vê que meus filhos falam castelhano, mas também falam bem português. Eles têm documentos de vacinas, tomam vacina da gripe, de todas as vacinas obrigatórias. Aqui na Bolívia tem de pagar tudo. Lá é bem melhor. Agora ele tem dois anos, e estou muito contente com tudo que recebi de ajuda, eles ainda não estudam.” (M. 29 anos, boliviana, 2016).
E o terceiro? Perguntado. “Também vai nascer lá.” Prontamente respondeu a
boliviana.
A higiene é outra questão relatada pelos entrevistados, no que diz respeito às
dificuldades encontradas na relação que permeia a atenção à saúde das parturientes bolivianas.
Segundo as enfermeiras, o processo que antecede o parto é cercado de procedimentos pré-
estabelecidos, que atendem ao protocolo recomendado para esse fim. A tricotomia não é bem
aceita pelas mulheres bolivianas; porém, segundo alguns protocolos ainda são extremamente
necessários – segundo as profissionais – para evitar possíveis contaminações e infecções,
tanto para mãe quanto para a criança recém-nascida. Advertem que há estudos da Comissão
de Humanização do Hospital com vista a excluí-lo do protocolo ainda adotado na
maternidade, mas que brevemente deixará de existir.
Tricotomia é definida como um procedimento em que se raspam os pelos da pele
próximos a região hipogástrica, dado que estes pelos têm de ser retirados porque podem
hospedar microrganismos nocivos, que caso não removidos poderiam penetrar no ferimento,
provocando infecção. Sua realização se deve por conta da necessidade de facilitar a limpeza e
a desinfecção da pele e da região a ser operada. Quando ocorrer em situações de cirurgias
programadas, a tricotomia deve ser realizada o mais próximo possível do ato cirúrgico.
Assim:
Realizar este procedimento somente se extremamente necessário. As tricotomias que aparam os pelos próximos à pele, têm menos infecção relacionada do que aquelas feitas com lâminas. - A tricotomia deve ser realizada até 2 horas antes do ato cirúrgico, de preferência no centro cirúrgico com tricotomizador elétrico. - Proibido a realização de tricotomia no dia anterior à cirurgia. - No setor de internação deve ser realizado
42
somente o corte bem curto do cabelo no local que deverá ser realizada a tricotomia (SANTANA; GANDIN, 2007, p. 51).
Relatos formados, aquém do roteiro da entrevista, por alguns dos entrevistados,
referem que a maioria das pacientes bolivianas não admite a realização de higiene corporal
mediante o banho no pós-parto, tanto de si mesma quanto do recém-nascido. Essa atitude
contraria o fluxo protocolar do cuidado da atenção ao parto, visto que todas as manhãs o
protocolo do cuidado estabelece tal higiene e, como paliativo, a fim de obediência, a mulher
boliviana passa pano úmido no próprio corpo, assim como no seu RN. Subentendendo-se que
esse fato faz parte da cultura boliviana.
Outro problema de suma importância está relacionado à questão de comunicação oral,
a linguística, dado que muitas das queixas se referem ao pouco ou nenhum domínio do idioma
por parte do corpo de colaboradores: “A gente até entende, mas quando elas falam muito
rápido, vira uma confusão danada, não dá prá entender nada”. [Luma, profissional de saúde
– maternidade de Corumbá – entrevista realizada em 08 nov. de 2016]. E, assim a rotina das
atividades se desenvolve, mesmo que não haja de imediato a interação comunicacional entre
assistência e assistidos.
O problema às vezes é resolvido com a intervenção de algum dos presentes que tenha
certo domínio dos dois códigos linguísticos – quase sempre uma mulher boliviana que mora a
mais tempo no Brasil, ou é casada com brasileiro, e que por isso tem mais conhecimento da
língua. Waldman (2011) constatou essa dificuldade, a partir das percepções das bolivianas
quando reclamavam do atendimento recebido na unidade de saúde. Na visão dessas mulheres,
as enfermeiras por não entenderem bem o que as bolivianas falavam se manifestavam com má
vontade durante o atendimento, assim relataram que as funcionárias “não falam fácil, te olham
feio, gritam, empurram” (WALDMAN, 2011, p. 100).
Corumbá, como dito anteriormente, tem a rede de saúde constituída para atender as
demandas de seus munícipes, tendo a Santa Casa, como uma das unidades de saúde, que
torna-se responsável pelos atendimentos dos serviços especializados de médio e alto risco,
maternidade, urgência e emergência, entre outros. Assim, além de suprir as necessidades dos
munícipes locais, também atende a população de imigrantes, migrantes, flutuantes/itinerantes,
considerando que pertence a uma região fronteiriça de alta mobilidade rotativa de pessoas, em
virtude de suas características geográficas, como fronteira aberta, porosa e dotada de atrações
turísticas.
43
No entanto, por conta da proximidade com a Bolívia, o povo daquele país, vivente na
fronteira, constitui-se no grupo de estrangeiros que mais tem usufruído os serviços da rede
pública de saúde do sistema brasileiro. Tanto que nas enquetes oficiais e não oficiais
divulgadas recentemente, demonstram que dos estrangeiros atendidos na Santa Casa de
Corumbá – único hospital público da região –, nos últimos seis anos, cerca de 90% refere-se à
clientela boliviana, como pode ser observado na estatística apresentada no quadro de
atendimento a estrangeiros (figura 1):
Figura 1 - O quadro representa a grande quantidade de estrangeiros que buscaram atendimentos na Santa Casa de Corumbá. Destaque para a população boliviana, dada à proximidade. FONTE: Diário Corumbaense, 27 fev. 2016.
No entanto, pode-se afirmar que o problema relacionado ao acesso à saúde no Brasil
por estrangeiros não é somente do povo boliviano. Outros povos cujas fronteiras se limitam
com o país apresentam também enormes dificuldades relacionadas à questão do acesso. Desse
modo, a exemplo de tantas outras cidades fronteiriças da nação, Corumbá espelha as
intrínsecas complexidades inerentes à região, na qual as divisas demarcatórias entre o Brasil e
o país limítrofe são curtas, dita geograficamente.
Ainda que o fenômeno da globalização provoque – muitas vezes à revelia – a
hibridação das culturas em suas múltiplas e multifacetadas manifestações (CANCLINI, 2011;
BHABHA, 2010; HALL, 2003), ter acesso aos bens e serviços gestados no seio de uma nação
44
é prerrogativa de seus nacionais, isto é, aqueles legalmente considerados cidadãos pelo
Estado. Em que pese às ingerências da globalização em espaços de fronteira, bem como a sua
constante tendência à homogeneização, as fronteiras e suas dinâmicas locais, ainda exercem,
como observou Nascimento (2012), o “papel fundamental na organização das sociedades”. O
que apesar de toda hibridação que se possa existir em nível mundial, os entraves ainda podem
ser sentidos muito fortemente no que concerne às questões de acesso à saúde nas fronteiras.
Todavia, apesar das inúmeras barreiras existentes quanto ao acesso aos serviços
ofertados no campo da saúde aos estrangeiros em solo brasileiro, a legislação admite o
atendimento aos não domiciliados no país quando a condição de sua saúde requer cuidados
emergenciais, envolvendo risco de morte imediata ou situações em que o não atendimento
configure crime de omissão de socorro.
A propósito do parágrafo acima, cabe menção o fato de que o Código Penal Brasileiro
tipifica, em seu artigo 135, a omissão de socorro como crime. Portanto, “Deixar de prestar
assistência, quando possível fazê-lo sem risco pessoal, à criança abandonada ou extraviada, ou
à pessoa inválida ou ferida, ao desamparado ou em grave e iminente perigo; ou não pedir,
nesses casos, o socorro da autoridade pública”. Tal delito pode ser punido com a detenção do
autor por um prazo que varia de um a seis meses, ou a autoridade responsável pode sugerir
multa. Contudo, o Parágrafo único desse artigo assevera que: “A pena é aumentada de
metade, se da omissão resulta lesão corporal de natureza grave, e triplicada, se resulta a
morte”. (BRASIL, 1940, art. 135).
Nesse sentido, informações colhidas junto aos órgãos responsáveis pelo atendimento
na Santa Casa de Corumbá-MS, atestam que, aproximadamente, dos 159 estrangeiros que
receberam assistência no decurso do ano de 2015, 91% eram bolivianos. Em 2014, 2013,
2012 e 2011 os números se repetem, com variações graduais, mas deixando sempre patente
que o público alóctone mais atendido em Corumbá é o de origem boliviana, obviamente pela
proximidade dos países.
No ano corrente, 2016, até o momento – de acordo com as informações repassadas
pelo setor administrativo – foram realizados 52 atendimentos de caráter ambulatorial a
pacientes de origem boliviana, sendo que muitos desses atendidos chegaram a fazer uso do
serviço por mais de uma vez. No mesmo ano, segundo dados recolhidos, 38 bolivianos foram
internados na Santa Casa, inclusas internações na maternidade. Desse quantitativo, sete dessas
pessoas declararam residência fixa na Bolívia.
A Constituição Federal do Brasil, em seu artigo 196 (1988), garante que a saúde é
direito de todos, com acesso universal e igualitário. Portanto, aos estrangeiros em trânsitos no
45
solo brasileiro, cabe-lhes o direito à atenção a saúde. Na região de fronteira, os profissionais
de saúde, interpretam tal direito, somente para os casos de urgências e emergências. Àqueles
que não são brasileiros e não têm residências fixas no Brasil é vedada a assistência de caráter
eletivo pelo SUS; contudo outras possibilidades são acionadas na busca por atendimento por
parte dos estrangeiros indocumentados. Um dos expedientes mais utilizados é a adulteração
de documentos como CPF. De posse desse documento o indivíduo tem a permissão de
solicitar o cartão – SUS, bastando para tanto apresentar um comprovante de residência no
Brasil. O esquema se vale das falhas da malha burocrática e confusa que impera em grande
parte das instituições. É sabido que para solicitar o cartão – SUS é necessário que o
estrangeiro tenha o Registro Nacional de Estrangeiro; mas tal documento tão somente não
basta, é necessário que também tenha residência fixa no país e estar registrado no CPF.
As documentações incompletas denunciam a condição ilegal do estrangeiro perante o
direito de assistência do SUS. No entanto, outra falha se constata na emissão do CPF, visto a
fragilidade deparada na burocracia da instituição emitente do cadastro, bastando para isso a
informação da cédula de identidade do país de origem. Uma vez de posse do CPF, o próximo
passo se processa na solicitação do Cartão Nacional de Saúde – Cartão SUS. Desse modo,
burla-se a fiscalização feita pela Polícia Federal – PF e os atendimentos feitos pelo SUS são
franqueados.
No entanto, um erro cometido pelos estrangeiros que se utilizam dessa artimanha é a
menção a um só endereço de residência fixa, muito já observada por parte dos atendentes da
Santa Casa de Corumbá, o que leva à suspeição do ato enganoso. “Eles se descuidam, eu
acho! Então várias pessoas chegam aqui com a mesma conta de luz, de água, ou mesmo uma
declaração escrita à mão5, tudo com o mesmo endereço. A gente percebe na hora, né? Daí a
gente sabe que é esquema. Isso sempre acontece.” Relata um interlocutor atendente,
familiarizado com fluxograma e com as rotinas administrativas da instituição.
5 Lei nº 4.082 de 06/09/2011. Art. 1º No âmbito do Estado de Mato Grosso do Sul, a declaração de próprio punho do interessado suprirá a exigência de comprovante de residência. Art. 2º Será incluída na declaração manuscrita a ciência do autor de que a falsidade da informação o sujeitará às penas da legislação pertinente. Art. 3º A não aceitação da declaração de próprio punho, como prova de residência, implicará a aplicação das seguintes penalidades: I - advertência; II - multa no valor de 150 UFERMS, sendo que havendo reincidência será aplicado o valor em dobro. In: http://www.jusbrasil.com.br/diarios/DOU/2011/09/08
46
4.1 O cotidiano do atendimento à mulher boliviana
O médico ginecologista Dr. Wilson Baruki, professor aposentado da Universidade
Federal de Mato Grosso do Sul, no auge de seus 81 anos e ainda em plena atividade laboral,
exercida na maternidade da Associação Beneficente de Corumbá, desde a década de 60, relata
que as atividades fins da Maternidade iniciaram em 25 de dezembro de 1950, data em que
ocorreu a inauguração e a entrega definitiva à população corumbaense.
Figura 2 – Lançamento da Pedra Fundamental da Santa Casa. Fonte: Jacob Alpires – arquivo pessoal.
Figura 3 – Placa com inscrições sobre a construção da Maternidade. Fonte Jacob Alpires – arquivo pessoal.
A construção da Maternidade deu-se pela necessidade da população e o anseio de um
grupo de fazendeiros, idealizadores do projeto, liderados por Estevão Gomes da Silva –
47
Agrônomo e Octávio da Costa Marques – Médico, tendo o advogado, Dr. Gabriel Vandoni de
Barros como intermediador da execução do projeto.
O projeto se assemelhava ao modelo de antigas construções edificadas em fazendas da
região pantaneira, como pode ser observado na figura 4 (Google Earth Pro), tendo por
finalidade atender as mulheres da cidade e das regiões próximas, inclusive as mulheres
bolivianas, tanto a particulares quanto a indigentes; indigentes eram as pessoas que não
tinham condições de pagar pelos serviços recebidos.
Figura 4– Vista aérea da Maternidade de Corumbá Fonte: Google Earth Pro
Na época a infraestrutura contava com vinte e cinco leitos; cinco destinados aos
apartamentos particulares e vinte distribuídos no “Salão Geral”, hoje denominado de
“Enfermarias”, destinadas às indigentes. Historicamente, segundo o médico, nunca houve
problemas relativos às necessidades de vagas.
Atualmente, a infraestrutura organizada conta com sala de espera/recepção; dois
ambulatórios; uma sala para recuperação pós-anestésica; nove enfermarias; quatro
apartamentos e com vagas para quarenta e nove leitos, distribuídos da seguinte forma: vinte e
sete abrigados nas enfermarias; oito nos apartamentos particulares; quatro nas enfermarias
destinadas ao programa “Mães-nutriz”; dez nas Unidades Intermediárias. O programa “Mãe-
48
nutriz” é apropriado ao incentivo à amamentação e as unidades intermediárias se destinam às
acomodações/ambientalizações dos recém-nascidos (RN).
Figura 5 - Maternidade da Santa Casa de Corumbá/MS. Fonte: Jacob Alpires – Arquivo Pessoal
O quadro de colaboradores, atuante diuturnamente, está composto de: dez médicos,
cinco enfermeiras, vinte e quatro técnicas de enfermagens (nível médio), cinco recepcionistas,
uma nutricionista, dois assistentes sociais, uma fisioterapeuta e uma psicóloga.
A Maternidade é gerida pelo chefe do serviço, Dr. Ricardo Chauvet, Médico gineco-
obstetra. Por pertencer ao complexo hospitalar da Associação Beneficente de Corumbá, a
mesma também está sob Medida Cautelar administrada por uma junta interventora, assim
composta: Diretor-presidente, Dr. Cristiano Ribeiro Xavier – Médico; Diretor-técnico, Dr.
Domingos Albaneze – Médico; Diretor-administrativo/financeiro, Aristides Nunes da Silva
Filho – Administrador; Diretora de enfermagem – Rosiele Dias da Cruz – Enfermeira; e,
Diretor-clínico, Dr. Lauther Serra – Médico.
O atendimento à parturiente boliviana no cotidiano da Maternidade de Corumbá
apresenta diversos problemas relacionados às questões burocráticas, médicas e culturais. Nos
entraves burocráticos, os mais costumeiros são: falta de documentação; ausência de
acompanhamento prévio da gestação – pré-natal; ausência de histórico de saúde da gestante e
entendimento linguístico. Tais fatores constituem-se em elementos que dificultam a fluidez
49
dos serviços da atenção preconizada no fluxograma da Instituição, assim como nos protocolos
dos procedimentos usuais ao parto; a rotina dessa mecanicidade está incorporada aos atos
utilizados no dia a dia dos profissionais de saúde, visto que os atendimentos – devido à
vulnerabilidade socioeconômica dessa demanda – são realizados pelo SUS.
Em que pese as ausências de documentações, as parturientes bolivianas que buscam os
serviços ofertados na Maternidade são atendidas e têm seus partos realizados. Até porque a
negativa de atendimento se contrapõe à Carta Magna brasileira, visto que em casos de
urgências e emergências, em que há risco de óbito, tipifica omissão de socorro pelo
ordenamento jurídico brasileiro, sujeitando-se às sanções. E, de acordo com colaboradores da
Maternidade, as parturientes bolivianas só procuram o hospital no Brasil quando a situação
chega ao extremo, como pode ser percebido no depoimento de Maurício:
“Se a gente não atendesse essas mulheres quando chegam aqui, fatalmente elas entrariam em trabalho de parto na volta prá suas casas. Elas são espertas, esperam até o último momento, aguentam o máximo que podem. Elas sabem que a gente não pode deixar de receber elas aqui. Eu não sei como ficam sabendo, sinceramente” [Maurício, profissional de saúde da Maternidade de Corumbá – entrevista realizada em 7 nov. 2016].
Essa estratégia para ter acesso aos serviços públicos de saúde ofertados no Brasil é
sobejamente relatada em diversas pesquisas realizadas nas fronteiras do país, não sendo
prerrogativa específica de bolivianos, mas também de paraguaios, de uruguaios, de
venezuelanos, dentre outros, cujas proximidades e gratuidades dos serviços são oportunidades
que atraem as comunidades estrangeiras mais carentes que residem nas faixas de fronteira
(GIOVANELLA et al., 2007; TAMAKI et al., 2008).
O conhecimento das leis brasileiras pelos estrangeiros, especificamente as relativas à
saúde e aos direitos dos estrangeiros é obtido por meio das redes de solidariedade existentes
nos espaços fronteiriços. As relações estabelecidas entre os povos sejam elas econômicas,
sociais ou culturais, ensejam a disseminação de conteúdos informativos de vital relevância
para os grupos em constantes contatos. Aqui, as amizades, os laços de parentesco e os
vínculos afetivos de toda sorte alimentam as redes de solidariedade e, consequentemente,
dificuldades são vencidas através da troca de conhecimentos válidos na resolução dos
problemas interagidos entre as populações transfronteiriças.
Exemplo de funcionamento dessa rede de solidariedade é dado por Getúlio, morador
de Corumbá, casado com uma mulher boliviana:
50
“Isso é comum aqui. A gente tem que ajudar as pessoas, né? Minha cunhada já teve neném aqui no Brasil, morou com nós um tempo, deu o endereço de minha casa. Deu tudo certo, mesmo sem os documentos que eles pediram, depois tirou. Mas a gente sabe que eles [Referindo-se aos colaboradores da Maternidade] não podem negar atendimento, é crime, né?” [Getúlio Moraes – em 28 set. 2016].
Indagado a respeito da fonte da informação de caráter legal, Getúlio respondeu que:
“É complicado falar, mas um amigo da minha filha que comentou isso. Explicou direitinho, pra mim e pra minha mulher. Daí, quando a minha cunhada tava perto de ganhar o bebê, veio pra minha casa e ficou até a última hora, depois foi só chegar lá [Na maternidade] na hora certa. E pronto tudo certo!” [Getúlio Moraes – em 28 set. 2016].
Todavia, esse tipo de expediente gera problemas para os colaboradores da
Maternidade. Visto que as parturientes bolivianas são atendidas mesmo sem as
documentações exigidas no fluxograma da Instituição. Aos colaboradores resta a difícil tarefa
de inserção do serviço prestado – bem como os custos inerentes – nos bancos de dados do
SUS, coisa impossível de se fazer sem a necessária documentação da paciente. Quase sempre
as faturas dos serviços são glosadas.
Conforme os depoimentos colhidos entre os profissionais de saúde, nota-se que não há
diferença no atendimento prestado por conta de nacionalidade, ou seja, independentemente da
parturiente ser boliviana ou brasileira o atendimento é igualitário, sem distinção. Situação
bem distinta da encontrada por Yajahuanca (2015, p. 118) em São Paulo, onde “As mulheres
reclamam sobre o atendimento, dizem que gostariam que não fossem vistas como ‘bichos
raros’ – esta é a forma que descrevem o atendimento que recebem”.
Contudo, as representações dos colaboradores no tocante aos atendimentos que
prestam às mulheres bolivianas não levam em conta os seus aspectos culturais. Então,
interpretam que realizam serviços igualitários, sem fazer acepção de nacionalidades entre as
pacientes, sejam brasileiras, bolivianas ou de qualquer outra nacionalidade. No entanto, o
tratamento realizado, partindo da premissa igualitária não respeita a diferença e, embora os
procedimentos protocolares sejam executados com a melhor das intenções, não respeitam a
diversidade cultural; o que reverbera nas representações das mulheres bolivianas acerca do
atendimento que recebem. Isso pode ser observado no depoimento de Jacira [profissional de
saúde – entrevista realizada em 6 nov. 2016] “A gente faz o melhor que pode! Mas elas não
51
entendem. Muitas delas querem fazer do jeito delas, e não dá, a gente tem de seguir os
procedimentos normais. Não dá pra fazer os gostos delas.”
A atividade profissional no cotidiano do enfermeiro é cercada de responsabilidades e
de diversas atribuições, como bem observa Nascimento (2013, p. 12): “A enfermagem lida
diretamente com o trabalho direcionado ao atendimento das necessidades expressas por
indivíduos ou grupos sociais, demonstradas com a necessidade ou problemas relacionados ao
processo saúde-doença”. Desse modo, é esse o profissional que tem por obrigação
desenvolver estratégias de ações fundamentais no sentido de promoção/recuperação da saúde.
Suas competências concernem tanto à coordenação quanto à avaliação do desenvolvimento do
trabalho em equipe e do atendimento prestado ao cliente (NASCIMENTO, 2013).
A formação do enfermeiro é, no Brasil, alicerçada na Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional nº 9394/96, cujos Projetos Políticos Pedagógicos atinentes à área de
enfermagem são baseados em diretrizes curriculares que proporcionam, ou deveriam
proporcionar, mudanças no processo de formação do enfermeiro (NASCIMENTO, 2013).
Dessa maneira, acredita Nascimento (2013, p. 12-13), que o foco da formação deixa de ter
como centro o modelo biomédico, “caracterizado pelo estudo da doença, aprendizagem e
reprodução de técnicas e tarefas, e passa a estar centrada em um modelo holístico,
humanizado e contextualizado, formando profissionais críticos, criativos e éticos para atuar na
prática profissional”.
Todavia, para além da retórica da perfeição, a atividade do enfermeiro ocorre em
ambientes que por vezes não oferecem as mínimas condições de trabalho digno. Somam-se a
isso as dissidências entre médicos e enfermeiros no que tange às questões referentes à
autoridade e hierarquia. Esse profissional é cobrado por seus superiores no que tange ao
cumprimento ou descumprimento das diretrizes estabelecidas pelos gestores do hospital em
que atuam. Assim, é compreensível seu zelo pelos procedimentos adotados na assistência aos
pacientes, já que responderá por qualquer intercorrência no tocante ao atendimento.
Os médicos, por sua vez, sofrem também as pressões inerentes às suas funções e
responsabilidades como profissional da área de saúde. Seu cotidiano de trabalho é matizado
por diversas tensões, desde aquelas relacionadas ao atendimento propriamente dito até aquelas
de caráter mais burocrático. Suas responsabilidades – como profissional por excelência da
área médica – envolvem rotinas nem sempre muito fáceis de assimilar, dado que lida com as
expectativas dos pacientes e de seus familiares.
52
O cotidiano dos colaboradores da Maternidade é bastante intenso, dado o fato da
Instituição – além de atender a população de Corumbá – acolhe também pacientes de outras
cidades vizinhas, brasileiras e bolivianas, situadas na faixa de fronteira.
Inquiridos a respeito do dimensionamento e da porcentagem de atendimentos
realizados mensalmente, os profissionais de saúde entrevistados responderam que,
aproximadamente, 35% dos procedimentos de partos advêm da cidade de Ladário; e de 5 a
10% equivalem ao atendimento prestado às gestantes de origem estrangeira, residentes na
faixa de fronteira Brasil/Bolívia. Ainda, de acordo com as informações dos colaboradores, a
maternidade processa, diariamente, uma média de 16 atendimentos, sendo que destes alguns
apresentam problemas de saúde e – quando não falecem por conta dos problemas congênitos
– são colocados sob os cuidados da unidade de pediatria até que se recuperem.
Figura 6 - Taxa de ocupação de leitos da Maternidade de Corumbá/jan. 2015 a jun. 2016. Fonte: SETOR DE ESTATÍSTICA – ABC.
Um dos entrevistados relatou que de todos os serviços de saúde prestados pela Santa
Casa de Corumbá, em torno de 15%, no mínimo – é usufruído pela população boliviana, ou
seja, de 100 atendimentos realizados 15 deles têm os bolivianos como beneficiários. Mas esse
número pode variar por conta das datas comemorativas em ambos os países. Nessas ocasiões,
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há um aumento da demanda pelos serviços, notadamente – segundo o entrevistado – devido às
festas. O entrevistado em questão, médico, atribui o aumento no número de partos em
algumas épocas do ano às festividades havidas na Bolívia: “Assim como no Brasil a gente tem
um aumento no número de partos provocados pelo carnaval, lá, depois da festa de Urkupiña6
ou da [Festa] independência da Bolívia, conta nove meses e daí vai ter mais gente grávida
mesmo, por causa das festas, né?” [Ulisses da Conceição – profissional de saúde da Santa
Casa de Corumbá – entrevista realizada em 9 nov. 2016].
Perguntado a respeito do perfil da mulher boliviana que busca atendimento na
maternidade da Santa Casa de Corumbá, Ulisses da Conceição informa que “O perfil da
boliviana aqui é o colha, basicamente é o chola [pronuncia-se colha], o índio que vem pra
cá.” A fala do entrevistado reflete as representações existentes em Corumbá sobre os
bolivianos e sua origem. É voz corrente o tratamento dado ao boliviano no tocante à sua
identidade indígena, facilmente perceptível nas designações de colha e bugre – que longe de
representarem apenas nomes são veículos de preconceito e estigmatizacão, posto haver uma
associação entre o indígena e o incivilizado, o sujo, o inculto (DA COSTA, 2015).
Ainda, na interpretação do autor:
Nesse processo de representação da alteridade na fronteira, a construção negativa do “outro” sustenta a própria identidade brasileira, ou seja, o boliviano se constrói no imaginário brasileiro fora dos parâmetros que definem os valores “civilizados”. Nesse contexto, a imagem do “outro” ganha contornos específicos em Corumbá, na medida em que a Bolívia é vista por parte da população como símbolo do atraso, da pobreza e da falta de "civilidade", de higiene, das leis (DA COSTA, 2015, p. 41-42).
Sobre o perfil das mulheres atendidas de origem boliviana, os entrevistados foram
unânimes em suas respostas: “São necessitadas, demais! Gente sem condições mesmo, sem
dinheiro prá nada. Morro de pena!” Disse Luma [profissional de saúde da Maternidade –
entrevistada em 08 nov. de 2016]. Jacira acostumada a lidar com essas mulheres comentou
que:
“São carentes mesmo, a maioria! A gente vê pelo jeito mais humilde, mais arisco, meio que desconfiada. A gente nota quando é uma pessoa mais simples, né? Pelo jeito de vestir, de calçar, de se comportar. Aqui a gente
6 Fiesta de Urkupiña – Festividades realizadas em homenagem à virgem de Urkupiña, tem lugar na cidade de Quillacollo, em Cochabamba e congrega pessoas de todo o país, bem como turistas de diversas partes do mundo. Para mais informações, veja: MARTINS, Ricardo Ferreira; OLIVEIRA NETO, Antonio Firmino. As celebrações à virgem de Urkupiña na fronteira Brasil – Bolívia, cidade de Corumbá. Dissertação (Estudos Fronteiriços) – Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Campus do Pantanal, 2016.
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atende algumas mulheres bolivianas que também têm dinheiro. Não é sempre, mas de vez em quando aparece. A diferença você vê na hora. A pessoa que tem mais condições financeiras, que tem dinheiro, fica em apartamento. Quando chega aqui, você vê que vem de carro bom, tá bem vestida, se impõe, exige, até porque tá pagando. E elas sabem disso. As mais carentes, por falta da condição econômica, acham que estão recebendo um favor. Acho que por isso ficam mais tímidas, sei lá, com medo talvez. Tem algumas mulheres que mesmo sem condições são bastante bravas, sabe? Mas a gente atende todo mundo do mesmo modo.” [Jacira, profissional de saúde da Maternidade de Corumbá – entrevista realizada em 6 nov. 2016].
Desse modo, por conta da fragilidade econômica dos bolivianos, vinculados a uma
classificação que se particulariza pelas categorias de “pobre”, “necessitado” e “carente”
emergem dos discursos que têm a saúde, como enfoque de certa aura patriarcal em relação à
obrigação assumida, ainda que tácita, do Estado brasileiro em “ajudar” seus irmãos
desafortunados. O conteúdo desses discursos pode ser compreendido, nas entrelinhas, como
significando a preponderância econômica do Brasil sobre a Bolívia. Assim, o Estado
brasileiro figura como benfeitor por excelência do povo boliviano, “seja no atendimento de
saúde, seja na matrícula nas escolas (em uma pressuposição tácita de superioridade e de que
“eles” dependem de “nós”)” (DA COSTA, 2015, p. 43).
Entre os fatores de impacto social, que tem atravancado a dinâmica do trabalho
cotidiano dos colaboradores da maternidade, está a desativação do Centro Obstétrico, que
perdura um tempo superior a dez anos e, ainda sem previsão de reativá-lo. “Faz muita falta
mesmo, você nem imagina. A reativação do Centro Obstétrico melhoraria em muito a nossa
vida, e às das mulheres que aqui chegam, buscando atendimentos.” [Jacira, profissional de
saúde da Maternidade de Corumbá – entrevista realizada em 6 nov. 2016].
Indagada a respeito da estruturação do Centro Obstétrico, Maria de Lourdes
respondeu:
“Bom, em primeiro lugar teria que estar funcionando. Funcionar em tempo integral, 24 horas, principalmente destinado aos atendimentos de urgência e emergência. Outra coisa que tem que ter, e eu acho que isso é básico numa maternidade, são salas para cesarianas e para partos normais, e também uma sala específica só para a triagem. Além de leitos destinados aos pré-partos. Ah, ia me esquecendo: um espaço, que poderia ser uma sala, para poder receber melhor os recém-nascidos.” [Maria de Lourdes, profissional de saúde da Maternidade de Corumbá – entrevista realizada em 5 nov. 2016].
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A existência de tal espaço propiciaria às gestantes em trabalho de parto melhores
condições de atendimento e, consequentemente, diminuir-se-iam os riscos de infecção;
haveria uma melhor possibilidade de recuperação das pacientes.
Com a desativação do Centro Obstétrico, os procedimentos de partos cirúrgicos
(cesarianos) foram remanejados para o Centro Cirúrgico do hospital, permanecendo no
âmbito da Maternidade, numa pequena área – “Sala de parto”, os procedimentos relativos aos
partos normais. Ocorre que o Centro Cirúrgico do hospital possui apenas quatro salas,
utilizadas por várias especialidades da medicina cirúrgica e, sua utilização para a realização
de partos causa certo desconforto e algumas rusgas entre os profissionais.
“É complicado! Sabe, a gente tenta fazer o melhor possível, tenta dividir o espaço de uma maneira ordeira; algumas pessoas aqui pensam que são donos do hospital. Uns porque são mais antigos no serviço; outros se consideram mais competentes, e por isso merecedores de concessões especiais. É difícil trabalhar assim, sem as condições necessárias.” [Maurício – profissional de saúde da Maternidade de Corumbá – entrevista realizada em 7 nov. 2016].
O desabafo desse interlocutor demonstra o quão problemático é a relação interpessoal
entre os colaboradores da Santa Casa por conta de problemas de ordem administrativa. “O que
mais me incomoda é o descaso do Estado de Mato Grosso do Sul com a saúde, com as
pessoas”, acrescenta outro interlocutor [Gustavo – profissional de saúde da Maternidade de
Corumbá – entrevista realizada em 7 nov. 2016]. A fala do entrevistado aponta para a
existência de situações que impedem ao Hospital realizar a missão a que se destina: Prestar
Assistência Hospitalar universal e humanizada com equipe multiprofissional, para melhorar a
qualidade de vida das pessoas.
No entanto, há que se aduzir que estas questões fazem parte da vida cotidiana das
pessoas, constituindo mesmo sua existência enquanto seres sociais. Isso porque, conforme
Heller (1985), esses elementos são partes essenciais e constituintes da vida cotidiana, dado
que esta existe e funciona na heterogeneidade – entendida como as múltiplas inter-relações
passíveis de ocorrência na dinâmica da vida diária das pessoas.
Quando Ferreira (2015) constatou que o Centro Obstétrico da Maternidade
encontrava-se desativado, vários argumentos a impediram de vistoriá-lo. A prática de encobrir
irregularidades nos locais de atendimento pôde ser observada pela pesquisadora durante a
investigação de campo. Quando em sua primeira visita à Santa Casa de Corumbá, havia um
centro cirúrgico desativado na Maternidade, com mais de três ambientes, totalmente
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abandonado, camas largadas e deterioradas, aparelhos e objetos inutilizados, ouvindo-se uma
colaboradora do local dizer que ali estava infestado de ratos e precisava de uma intervenção
urgente.
Ainda não havia sido autorizado o registro fotográfico do local. Já na segunda visita,
realizada no próprio dia da fiscalização da Vigilância Sanitária e após a autorização formal
para o registro fotográfico, o aspecto era visivelmente o oposto: a sala estava vazia e limpa e
com acesso disfarçado por um tapume, antes inexistente (FERREIRA, 2015).
Figura 7 – Equipamentos obsoletos em desuso acondicionados no Centro Obstétrico desativado.
Fonte: Jacob Alpires – arquivo pessoal
Figura 8 – Espaço em desuso destinado ao Centro Obstétrico. Fonte: Jacob Alpires – arquivo pessoal
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Passado mais de um ano dessa constatação, o ambiente continua na mesma condição,
ou seja, desativado. Desta vez com os retornos de depósitos dos objetos que antes o
ocupavam, isto é, tomados por equipamentos hospitalares obsoletos, irrecuperáveis e os
danificados pelos usos constantes.
De acordo com o relato de um dos entrevistados, o Centro Obstétrico teve que ser
desativado em função do enxugamento das despesas administrativas, ocorridas há mais de dez
anos, corroborado com a falta de profissionais de saúde capacitados para mantê-lo em pleno
funcionamento. Não sabendo ainda, se há projetos que viabilizam a sua reativação.
A situação da Maternidade da ABC não se diferencia de outras tantas que estão no
interior deste país, dado o descaso que o poder público trata a saúde no Brasil. Soma-se a
essas questões de caráter interpessoal aquelas de cunho mais burocrático e econômico, a
remuneração precária pelos serviços prestados por profissionais da área de saúde. O problema
é sentido na maternidade de Corumbá por seus colaboradores, o que se percebe no
depoimento do entrevistado Ênio Trindade, que refletiu o desejo de outros colegas:
“Eu gosto de trabalhar na área de saúde, sabe. Gosto de ajudar as pessoas, mas a remuneração não é muito atrativa, a gente tem que fazer muito plantão pra ganhar um pouquinho a mais. É desgastante! Tem dia que a gente tá tão estressado, que às vezes desconta no paciente. Eu sei que é errado, mas a gente faz quase sem sentir, perde a paciência mesmo, né?” [Ênio Trindade, profissional de saúde da Maternidade de Corumbá – entrevista realizada em 8 nov. 2016].
Esse comportamento não passa despercebido pelas pacientes da Maternidade, o que
gera algumas reclamações por parte das mesmas. Como comenta uma interlocutora na sala de
espera da recepção: “Às vezes eles [colaboradores da Maternidade] são muito mal-educados
com a gente, fala bravo, trata mal”. Esse tipo de situação não é corriqueiro, mas acontece. Em
contrapartida há elogios também, outra pessoa, no mesmo local disse assim: “Eu não posso
falar mal, fui muito bem tratada, todos me ajudaram”. No entanto, o atendimento é feito da
melhor maneira possível, levando em consideração o momento traumático e doloroso por que
passam as mulheres bolivianas quando chegam à maternidade. “Da minha parte, eu faço o
meu melhor, sabe? Às vezes a gente não tá bem, mas as pessoas não têm culpa disso, né? Pra
mim não importa se a mulher é brasileira ou boliviana, eu atendo sempre do mesmo modo”.
[Inês, profissional de saúde da Maternidade de Corumbá – entrevista realizada em 7 nov.
2016].
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O estresse é uma constante entre os profissionais de saúde no Brasil, sendo causa de
afastamento das atividades laborais para tratamento. Desse modo, tem-se que o estresse
ocupacional pode acarretar problemas relacionados ao desempenho das funções cotidianas,
refletindo na qualidade do atendimento prestado aos pacientes (SILVA; CARLOTTO, 2008;
GERARDI-DONATO et al., 2015).
Na Maternidade, de acordo com o relato da entrevistada Marinês, o problema também
acontece; mas não é tratado abertamente. O estresse geralmente é percebido por conta da
mudança de comportamento e a presença de sinais como: intolerância; agressividade verbal;
competição; insubordinação; desatenção – e consequente inobservância dos protocolos de
atendimento – e absenteísmo, dentre outros. Nesses casos, o profissional é aconselhado a tirar
alguns dias de descanso. Ou como bem observou a entrevistada “convidado
compulsoriamente a descansar”. [Marinês, profissional de saúde da maternidade de Corumbá
– entrevista realizada em 08 nov. de 2016].
O estresse, quando não tratado, pode levar à depressão e a outras afecções psíquicas,
como o transtorno do pânico; ansiedade e síndrome de burnout7. Esta última apresenta
sintomas semelhantes aos da depressão, o que pode confundir o diagnóstico do paciente. A
síndrome de burnout8 já foi detectada em várias atividades profissionais, especificamente das
áreas da educação e saúde, sendo que nesta última existe ainda grande desconhecimento em
relação à sua existência por parte dos profissionais (LIMA et al., 2007).
4.2 Mulher, parto e cultura: desafios no atendimento à mulher boliviana
Dentro dos entraves percebidos pelos colaboradores no atendimento à mulher
boliviana, surge a questão das distinções culturais. Os entraves ensejados pelas diferenças de
caráter cultural configuram uma problemática em particular, dentre eles a questão do idioma é
o mais recorrente “Às vezes a gente não entende nada do que elas falam, sabe?
Principalmente se elas se comunicam em uma língua que a gente não conhece. Quando é
espanhol, até que dá pra entender uma coisa ou outra, se elas não falarem muito rápido, mas
7 Burnout é um vocábulo de origem inglesa que tem como tradução livre o seguinte significado na língua portuguesa: “queima após desgaste”. Faz referência a algo que submetido à exaustão, perde sua capacidade de funcionamento. O Cambridge Advanced Learner's Dictionary & Thesaurus (2014) define o termo “Demonstrar exaustão ou se tornar exausto depois de submetido à excessiva demanda de energia ou força”. Utilizado como metáfora, passou a fundamentar uma explicação a respeito do sofrimento do homem diante da sua realidade e ambiente de trabalho, atrelado a uma constante desmotivação e elevada insatisfação provenientes dessa exaustão. 8 Para mais informações sobre o tema, veja SCHABRACQ, M. J.; WINNUSBST, J. A. M.; COOPER, C. L. (eds) The handbook of work and health psychology. New York: J Wiley & Sons; c2003. p. 383-425.
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se for outra [língua], aí fica difícil mesmo”. [Gustavo – profissional de saúde da Maternidade
de Corumbá – entrevista realizada em 7 nov. 2016].
O problema aqui repousa no descaso do Estado em oferecer capacitação e reciclagens
técnicas aos agentes que atendem aos estrangeiros. Essa dificuldade poderia ser facilmente
resolvida com a realização de cursos de espanhol, aymara e quéchua, idiomas mais falados na
Bolívia. Poder-se-ia alegar o custo como impossibilidade de efetivação desse tipo de
capacitação, mas o Estado poderia fazer uso das competências que já possui nessa área,
bastando para tanto buscar auxílio com os professores de línguas nas escolas estaduais e
universidades da região.
Assim, os profissionais formados em letras com habilitação em espanhol poderiam
ministrar esses treinamentos; antropólogos especialistas em linguística – poderiam contribuir
sobremaneira nessa tarefa, tanto no aspecto do aprendizado da língua quanto nas questões
culturais relacionadas aos bolivianos e sua concepção de mundo, cuidados com o corpo e
práticas referentes ao parto e sua dinâmica.
Esse treinamento ajudaria a diminuir os entraves relatados pelos colaboradores da
Maternidade, principalmente no que tange à comunicação entre pacientes e os profissionais de
saúde, envolvidos nas interações diárias das atividades fins. Mas para que isso se concretize é
necessária a vontade política dos agentes públicos.
Enquanto isso não acontece, o problema relacionado ao idioma é resolvido com o
auxílio da Pastoral do Imigrante de Corumbá, instituição que presta assistência de caráter
moral, social, legal e religioso aos imigrantes (FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS, 2013).
Essa instituição possui em seu quadro de colaboradores, pessoas falantes dos idiomas usuais
da fronteira Brasil/Bolívia, que são acionados pelos serviços sociais do Hospital da ABC, a
fim de solicitar auxílios no processo de comunicação com os não falantes da língua
portuguesa. “Eles nunca nos deixaram na mão, entende? Todas as vezes que nós precisamos
deles, eles nos atenderam. Nem sei o que seria se não fosse por eles”. [Enedina, profissional
de saúde da maternidade de Corumbá – entrevista realizada em 7 nov. 2016].
Outra questão cultural tem a ver com aspectos atinentes às práticas do parto na
Bolívia, onde as mulheres são condicionadas a terem seus filhos em pé ou de cócoras, o que
contrasta com a técnica adotada por médicos e enfermeiros no Brasil. Para Paim (1998), o
universo cultural condiciona os indivíduos no tocante aos fenômenos biológicos
experienciados. Desse modo, esses indivíduos sofrem as injunções biológicas, dadas pela
constituição fisiológica de seus corpos, e as injunções culturais a que estes corpos estão
submetidos. Se por um lado o parto é parte da condição normal reprodutiva do ser humano, as
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formas como é praticado depende sempre da matriz cultural na qual a parturiente está inserida
e da qual é ontologicamente tributária.
O cotidiano dos colaboradores da Maternidade da ABC é afetado pelas questões
abordadas acima. “Elas não gostam de tomar banho nos instantes que antecede o parto e nem
depois, mas é necessário. Tem que tomar banho, pra evitar infecção, mas elas não entendem,
acham ruim” [Maria de Lourdes, profissional de saúde da maternidade de Corumbá –
entrevista realizada em 5 nov. 2016]. Indagada sobre qual motivo poderia ser tal recusa, a
profissional de saúde disse: “Acho que elas têm medo. Parece que ficam com vergonha da
gente, mas nem precisa, né? A gente é mulher igual a elas. Mas pode ser algo da própria
cultura”. Perguntada se já expôs este argumento às mulheres bolivianas ela disse “Tentei, no
começo. Mas eu não falo nada do que elas falam, sabe? A língua delas, o espanhol a gente
entende um pouco, e outras, a gente não entende. E têm algumas delas que não falam nada de
espanhol, as vezes tentam, mas bem mal. É complicado!”
Em relação ao tema da higiene, os saberes e condicionantes socioculturais das
mulheres bolivianas entram em conflito com as práticas médicas adotadas nas maternidades.
Para as bolivianas, após o parto a mulher não deve passar frio ou tomar banho, como atesta o
depoimento de uma entrevistada de Yajahuanca:
Aqui não entendem, as bolivianas estamos acostumadas a que, quando nasce o nenê, não pode passar frio e não deves banhar-te, pior molhar a cabeça, mas aqui obrigam a banhar-te todos os dias, aí dizem [profissionais] “tem que tomar banho” e realmente não entendem as bolivianas que não querem banhar-se para não passar frio e elas [enfermeiras] dizem “como não quer tomar banho?” e ao final obrigam (Alé, 30 anos, 3 filhos) (YAJAHUANCA, 2015, p. 145, grifos do autor).
Diante dos problemas de comunicação e conhecimento cultural, as mulheres
bolivianas acabam tendo seus costumes culturais ignorados, o que lhes acarretam
desconfortos e angústias. Estes sentimentos são causados por conta das discrepâncias
existentes entre a matriz cultural dessas mulheres gestantes e os protocolos de atendimento
adotados nas maternidades (YAJAHUANCA, 2015).
Os colaboradores da Maternidade da ABC apontam outra questão, sobre as dietas do
pós-parto, que dificultam à atenção regular dispensada as bolivianas. Alguns alimentos do
cardápio hospitalar não são bem aceitos e tampouco consumidos por elas após os partos, pois
acreditam que estes fariam mal à sua saúde e, consequentemente, ao recém-nascido.
Alimentos como arroz, feijão, cebola e bife não entram na dieta alimentar dessas mulheres, o
61
que causa certo desconforto aos responsáveis pela nutrição da maternidade. “Nem sempre a
gente pode atender às reivindicações delas. Não dá pra mudar todo o cardápio por conta de
algumas pessoas. Mas a gente faz o que pode. Pode até improvisar algo parecido”. Afirma
[Inês, profissional de saúde da maternidade de Corumbá – entrevista realizada em 07 nov. de
2016].
Nesta ênfase, é importante a contribuição do estudo de Yajahuanca (2015):
Durante o pós-parto os alimentos estão baseados geralmente em batata,
chuño, charque de ovelha (carne seca), entre outros. Embora as famílias
valorizem essa alimentação especial, que costumam consumir no seu país de
origem, nem todas podem acessar esses alimentos, sobretudo o charqui.
Mesmo sendo a alimentação um aspecto-chave no cuidado pós-parto durante
a hospitalização, as refeições oferecidas são iguais para todas as parturientes
e puérperas (YAJAHUANCA, 2015, p. 143, grifos do autor).
O problema em relação às questões culturais poderia ser sanado durante a formação do
enfermeiro e/ou dos médicos, talvez dos outros profissionais de saúde. Se os currículos dos
cursos comportassem matérias referentes aos diferentes aspectos socioculturais dos diversos
povos que fazem fronteiras com o Brasil, muitos dos entraves no tocante ao acesso à saúde
seriam minimizados. Alguns cursos de enfermagem no Brasil oferecem em suas grades
curriculares a disciplina “Antropologia Filosófica”, mas as ementas tratam de conceitos gerais
e não tem a saúde como foco. Necessário seria a introdução da disciplina “Antropologia da
Saúde”, abordando questões atinentes ao binômio saúde-doença e as distintas concepções que
dele emanam, dependendo da cultura em que é tratado.
62
5. RESULTADOS
5.1 Análise de conteúdo
Conforme os ensinamentos de Bardin (2006), a técnica de análise de conteúdo pode
ser caracterizada tendo como base um conjunto de procedimentos de análise das
comunicações e seus significados. Esse conjunto metodológico visa à obtenção e a
decodificação do conteúdo subjacente às mensagens comunicadas; facultando, assim, a
construção de indicadores que permitam inferir os conhecimentos atinentes às condições de
produção e recepção destas mensagens. Caracteriza-se, assim, como um método de tratamento
da informação contida nas mensagens.
Para operacionalizar o uso do método em questão se faz necessária a elaboração de
categorias correlatas ao objeto de pesquisa. As deduções lógicas ou inferências que serão
obtidas a partir das categorias, as quais serão responsáveis pela identificação das questões
relevantes contidas no conteúdo das mensagens.
Desse modo, no escopo deste trabalho, elencou-se as seguintes categorias,
subcategoria, unidade de registro e unidade de contexto:
CATEGORIA SUBCATEGORIA UNIDADE REGISTRO
UNIDADE DE CONTEXTO
1) Rotina e protocolo de atendimento prestado à parturiente.
Visitas individuais aos leitos das pacientes.
Não existência de protocolo que preconize visitas às pacientes.
a) Visitas realizadas para ministrar medicamentos;
b) Visitas aos leitos feitas de maneira geral.
2) Atendimento às mulheres brasileiras e bolivianas.
Porcentagem e Perfil das mulheres bolivianas atendidas na Maternidade.
De 100 atendimentos, 15 são destinados às mulheres bolivianas.
a) Por conta da subnotificação, devido à falta de documentação, os números reais podem ser mais expressivos.
3) Avaliação da dedicação e do desempenho da equipe multidisciplinar no atendimento às mulheres bolivianas.
Existência de distinção no atendimento por conta da nacionalidade e do idioma.
Atendimento igualitário.
a) Atendimento às mulheres bolivianas prejudicado por conta de questões culturais, especificamente o idioma.
4) Adequação compulsória às normas e protocolos do Hospital por parte das
Como se dá a adequação? Diferenças
Adequação necessária e compulsória. Necessidade de
a) Descaso pelos costumes e concepções socioculturais a
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mulheres bolivianas. culturais. atender às normas protocolares de saúde brasileiras.
respeito do corpo feminino e seus cuidados.
5) Dificuldades e facilidades no atendimento às parturientes bolivianas.
Prestação de serviços de atenção ao parto.
Problemas em relação ao formato da posição do ato do parto; Problemas relacionados ao idioma.
a) Solicitação das mulheres para realizarem o parto de cócoras ou em pé.
b) Reclamações devido à dieta alimentar.
6) Aporte de recursos.
Atenção ao parto de mulheres brasileiras e bolivianas.
Insuficiência de recursos materiais e humanos.
a) Insuficiência de recursos materiais e humanos.
7) Informações sobre
estratégias de acesso aos serviços da atenção ao parto às mulheres bolivianas.
Dinâmica das estratégias de acesso.
Conhecimento das leis brasileiras por parte das parturientes no tocante ao atendimento.
a) Estratégias de acesso: redes de solidariedade, tais como o auxílio de parentes e amigos no que diz respeito à divulgação de informações-chave que possibilitam o atendimento.
8) Sugestões
Minimizar as dificuldades.
Aporte de recursos a) Aporte de recursos.
9) Circunstâncias de atendimento e admissão.
Mulher boliviana. Emergencial, impossibilitando a recusa.
a) Estratégia adotada pelas mulheres bolivianas para viabilizarem o atendimento mesmo sem a documentação necessária.
10) Ausência de documentos.
Atitudes. Primeiro atende depois verifica a questão dos documentos.
a) Aquelas mulheres indocumentadas chegam à maternidade em vias de parto, o que força aos funcionários a atendê-la independentemente da posse de documentos legais.
11) Avaliação da condição profissional relacionada às legislações brasileiras.
Garantia de boas práticas e segurança na atenção ao parto.
Descaso do poder público quanto à questão do acesso à saúde por parte dos estrangeiros.
a) Já que o atendimento é inevitável, por conta de questões legais, deveria haver uma abertura do sistema às parturientes bolivianas para realizarem o parto no Brasil.
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5.2 Análise de dados e resultados
O discurso politicamente correto, por assim dizer, foi aos poucos dando lugar a um
discurso mais pessoal e político, mais crítico, contundente e revelador da realidade dinâmica
do cotidiano vivido pelos profissionais de saúde, bem como nas atividades diárias
desempenhadas na Maternidade da Santa Casa de Corumbá. As reclamações se localizam no
descaso do poder público em relação à saúde no município; na flagrante desconsideração aos
profissionais da saúde e à sua formação continuada, principalmente àqueles que se
responsabilizam pelos atendimentos dos estrangeiros; as remunerações salariais insuficientes
e aos plantões mal remunerados.
A rotina diária dos enfermeiros contempla as visitas individuais aos leitos das
parturientes, principalmente nos momentos de trocas de plantões e/o de turnos, visto que se
realizam no intuito de avaliar o estado geral e possíveis intercorrências. Tais visitas, também
são recomendadas por atos médicos, devidamente registrados nos respectivos prontuários
médico-hospitalares, em horários pré-estabelecidos a fim de ministrações medicamentosas,
especificamente. No entanto, ainda que não seja uma medida protocolar, a equipe de
enfermagem procura saber se as pacientes necessitam de alguma coisa, notadamente aquelas
de origem estrangeira e de maior fragilidade econômica. “Dá pena, sabe? Às vezes elas
chegam aqui só com a roupa do corpo, coitadas. Algumas delas realmente não têm recursos,
são muito pobrezinhas”, confidencia uma entrevistada9. “A assistente social faz o que pode,
eu vejo isso. É uma luta danada.”
Aqui, o que prevalece é o caráter humanitário. Em que pese o estigma negativo
associado à pobreza, é inegável a constatação da realidade das mulheres bolivianas atendidas
na Maternidade da ABC: extrema fragilidade socioeconômica. A Maternidade demanda
assistências da melhor maneira possível, diante das inúmeras limitações impostas por
questões orçamentárias – o que leva alguns empresários locais a fazerem doações à
Instituição.
No tocante ainda a rotina dos profissionais de enfermagem do Hospital da ABC, as
descrições dos entrevistados contemplam ações como organização e/ou abastecimento do
setor; coordenação de pessoal; manutenção de aspectos físicos de estrutura e equipamentos.
Somam-se a essas atividades as atribuições próprias e privativas do profissional de
9 Algumas “falas” dos entrevistados foram obtidas em conversas informais, ou quando a entrevista estava encerrada e o gravador já não mais se encontrava ligado, mantendo-se em sigilo as identidades.
65
enfermagem de nível superior, tais como admissão e recepção das pacientes; prescrição de
cuidados; coordenação das intervenções realizadas e avaliação do serviço prestado.
Quanto às principais dificuldades enfrentadas pela equipe de enfermagem no cotidiano
de trabalho na Maternidade, constata-se, conforme as entrevistas, a reduzida equipe de
enfermagem no atendimento às parturientes; escassez de equipamentos e materiais de
consumos aplicáveis nas rotinas diárias. Em relação aos fatores facilitadores das atividades
rotineiras, as entrevistas apontam o gosto pela profissão e o entrosamento da equipe
multidisciplinar.
No que concerne à indagação sobre a existência de distinções em relação ao
atendimento às mulheres bolivianas, os entrevistados foram taxativos: não existe
discriminação no atendimento às parturientes por conta de suas nacionalidades, o atendimento
é realizado à mulher. No entanto, alguns, nem todos, apresentam certos desconfortos quando o
atendimento a ser realizado tem por objetivo uma parturiente boliviana. “É mais difícil, eu
acho. Principalmente se ela não fala nossa língua. Não que a gente não atende bem, não é
isso. Mas fica mais complicado desempenhar nossas tarefas. E às vezes reclamam de que as
molestamos. E os serviços prestados sempre são glosados. Perdemos a faturas.” [Ulisses,
profissional de saúde – entrevista realizada em 9 nov. 2016].
Apesar de dizerem que não há distinção no atendimento, é perceptível na maneira em
que as mulheres bolivianas são consideradas, isto é, pessoas de pouca higiene, ou – como
disse uma informante – “cheiram mal”. De certa forma, tentam se ajustar às características
que a região de fronteira formou, em razão das culturas distintas que ocupam o mesmo
território. “Não é preconceito algum, mas algumas delas chegam sujas; tomam poucos
banhos, e aqui na maternidade se recusam mesmo. Atendo, mas com algum receio.”
[Depoimento de uma colaboradora].
Dessa maneira, além das flagrantes dificuldades de caráter estrutural no sistema de
saúde brasileiro, da precariedade em relação à obtenção de vagas para assistência, as
“gestantes deparam-se ainda com o despreparo [...] dos profissionais que prestam o
atendimento” (BONADIO, 1996, p. 120).
Como visto, as questões do idioma e higiene são recorrentes nos discursos de alguns
entrevistados, chegando mesmo, na opinião deles, a atrapalhar o bom andamento do
atendimento:
“É chato quando você atende uma pessoa e não entende o que ela quer dizer. Você fica perdido, dá uma sensação de impotência. Daí a gente tem de ficar esperando o intérprete/colaborador chegar, e enquanto isso a gente
66
faz o quê? É complicado, sabe? Atrapalha o serviço.” [Ulisses, profissional de saúde – entrevista realizada em 9 nov. 2016].
Fica patente nos relatos a necessidade de se providenciar cursos de idiomas aos
colaboradores do complexo hospitalar da ABC. O domínio da língua espanhola, do guarani
e/ou do quéchua, trata-se de uma ferramenta de trabalho indispensável à atividade dos
profissionais de saúde na região de fronteira de Corumbá. “A gente até quer aprender o
idioma delas, mas não dá pra pagar com o salário que a gente ganha, né? Eu acho que isso
tinha de ser preocupação dos gestores públicos.” Afirma um dos entrevistados.
As diferenças culturais e a falta de treinamento para reconhecer e compreender as
diferentes culturas por parte dos colaboradores acabam por prejudicar o trabalho dos mesmos
no âmbito da Maternidade. O discurso politicamente correto adotado pelos entrevistados
contrasta com suas opiniões sobre a população boliviana. Mas o discurso mais aberto, aquele
livre de amarras institucionais, dito quando o gravador não mais é uma testemunha, deixa
claras as dificuldades enfrentadas no cotidiano da Maternidade pelos colaboradores
responsáveis pelos atendimentos às parturientes bolivianas.
Além das questões de caráter cultural, outras a elas se somam para atravancar a
realização dos trabalhos de médicos, enfermeiros, psicólogos, recepcionistas e assistentes
sociais da Maternidade da ABC: as dificuldades econômicas enfrentadas pelo Hospital. Aqui,
o que mais se ouve é a precariedade das instalações; das remunerações; da falta de condições
básicas de atendimento, enfim, da escassez dos insumos necessários ao desempenho das
atividades ao qual se destina à Instituição.
A realidade do atendimento à mulher boliviana na Maternidade é bastante precária,
apesar dos esforços dos colaboradores em melhorar, na medida do possível, o serviço a ela
ofertado. No entanto, é flagrante o desleixo do Estado no que tange à resolução das questões
atinentes ao acesso à saúde de estrangeiros na fronteira de Corumbá com a Bolívia. Os
problemas se aglutinam, aproveitando-se do descaso das autoridades públicas responsáveis
pela fronteira em suas diversas facetas.
Assim, as pessoas são forçadas a adotar estratégias para poder ser atendidas, sofrendo
com isso dissabores de todos os tipos, desde os fisiológicos até aqueles que atingem o
indivíduo no mais profundo do seu âmago. Ainda que o atendimento às parturientes
bolivianas não seja negado, é necessário que seja feito com mais dignidade, com mais respeito
e humanidade; pois antes de serem estrangeiras, são seres humanos.
67
O mesmo pode ser dito dos colaboradores da Maternidade da Santa Casa de Corumbá,
que enfrentam diversos entraves no atendimento dessas mulheres – o que dificulta a
realização das suas atividades cotidianas, prejudicando a todos os envolvidos.
68
6 APLICABILIDADE DO ESTUDO
O trabalho visa – modestamente – contribuir com o enfrentamento das dificuldades
cotidianas por que passam os profissionais da área de saúde, especificamente na Maternidade
de Corumbá/MS. A intenção não é somente mostrar como se dão os entraves no que tange à
realização dos atendimentos ofertados às parturientes, tanto brasileiras quanto bolivianas; mas
também apontar possibilidades factíveis de resolução dos problemas atinentes à realidade
prática e diária dos diversos profissionais envolvidos nos atendimentos.
Assim, a partir dos dados aqui aduzidos, acreditamos que o poder público possa gerar
políticas públicas que tenham como foco um atendimento mais humanizado e eficiente às
mulheres parturientes de origem boliviana ou de outra nacionalidade. Um dos problemas
tratados no texto se refere à questão da falta de domínio, ou mesmo de conhecimentos
básicos, do idioma – ou idiomas – utilizado pelos bolivianos no processo de comunicação.
Apontamos soluções viáveis e de custo relativamente baixo, dado que a própria infraestrutura
do Estado já possui mecanismos para tornar nossa proposição uma realidade – e com isso
diminuir diversos problemas de caráter sociocultural ensejados pelo desconhecimento da
língua e da cultura dos povos que nos cercam.
Desse modo, enfatizamos novamente a importância de se investir no treinamento dos
profissionais de saúde da Maternidade da Santa Casa de Corumbá, notadamente no que diz
respeito ao aprendizado dos idiomas falados na Bolívia. O domínio da língua propiciaria uma
melhor qualidade no tocante ao atendimento; como contribuiria sobremaneira com a
dissolução de preconceitos dos quais o povo boliviano é destinatário.
Ressaltamos que a capacitação desses indivíduos no que tange aos domínios de
competências linguísticas, especificamente a língua espanhola, não seria necessária se o
Estado fizesse bem o seu papel: oferecesse uma educação bilíngue de qualidade e de
aprendizado efetivo. O sistema de ensino brasileiro consta de seu currículo as disciplinas de
espanhol e inglês; mas o Brasil é reconhecidamente incompetente nesse campo, dado que são
muito poucos os brasileiros que dominam esses idiomas – e quando o fazem não são
competências adquiridas nas escolas públicas do país.
Outro problema apresentado, ao qual apontamos soluções, guarda relações estreitas
com a realidade cultural do povo boliviano. A questão do parto e de suas maneiras de
realização; bem como o trato com os recém-nascidos e os cuidados do corpo, é emblemático
para pensar o universo simbólico que permeia a cultura boliviana, profundamente tributária da
cosmogonia ameríndia de que é herdeira.
69
Aqui, novamente nos remetemos à educação. Os currículos dos cursos de medicina e
enfermagem não contemplam – exceto raras exceções – uma formação de caráter mais
sociocultural. A preocupação tecnicista sobrepõe-se às questões de cunho cultural. Disciplinas
como a Antropologia e a Sociologia da Cultura são tratadas – quando tratadas –
superficialmente e, muitas das vezes, ministradas por não especialistas. O resultado: um grupo
de profissionais altamente treinados nas técnicas médicas, mas incapaz de reconhecer a
diferença e a alteridade daqueles que porventura por ele sejam tratados.
O parágrafo acima deixa clara a relevância do treinamento dos profissionais de saúde
que trabalham com populações de fronteira. Mas não qualquer treinamento. É preciso que
esses indivíduos sejam informados a respeito das inúmeras diferenças entre os povos, e como
tais diferenças se processaram – e se processam – no âmago das sociedades humanas. A
dissertação que ora trazemos a lume oferece sugestões à resolução dessas questões, bastando
para tanto interesse por parte do poder público e de seus representantes.
A aplicabilidade deste trabalho não reside em si mesma, não é autorrealizável. Precisa,
para se tornar efetiva, da boa vontade dos gestores públicos, estes tomados em todas as suas
acepções: político, econômico, ideológico e sociocultural. Quando estes que detêm os
mecanismos de transformação social adotar uma agenda de caráter mais coletivo e menos
partidário, poderemos pensar em realizações efetivas para além dos discursos vazios e
demagógicos tão em voga nos dias de hoje.
70
7. CONSIDERAÇÕES FINAIS
As fronteiras são compostas por acentuadas inter-relações e fluências de caráter
transnacional, tanto de bens, capitais e culturas, quanto de pessoas. Relações matizadas por
concordâncias e discordâncias infraestruturais que se processam no devir das dinâmicas e da
função que realizam a execução da divisão territorial do trabalho para os seus respectivos
Estados-Nação.
A análise dos aspectos do cotidiano nesses espaços é crucial para se entender os
pormenores socioculturais que têm lugar no bojo das interações que a proximidade geográfica
oportuniza. Desse modo, o exame apurado do cotidiano fronteiriço e de suas interlocuções
constitui uma chave de inestimável valor epistemológico, dada a riqueza de fenômenos e
matizes, nem sempre, nem facilmente perceptíveis, que sua natureza agrega.
Ainda que aparentemente a fronteira Brasil/Bolívia denote certa imutabilidade, dadas
às similitudes de atividades e dinâmicas econômicas que as aproximam, emprestando uma
errônea noção de totalidade, esse espaço se caracteriza pelos concertos que emanam das
incontáveis perspectivas e inúmeras dimensões que o social, enquanto fenômeno pode suscitar
em determinadas conjunturas socioespaciais. A fronteira em questão traz em si características
próprias com diversas especificidades. Peculiaridades que reivindicam intervenções e que
envolvem países cujos interesses são recíprocos, pois as situações conjunturais de existência
na fronteira dizem respeito a todos aqueles que fixam residências, permanentes ou
transitórias, nesse território. Portanto, a fronteira é uma zona ininterrupta de fluidez,
particularidades e de complementaridades.
A relação cotidiana fronteiriça que tem lugar entre Corumbá e Puerto Quijarro
caracteriza-se por um longo espaço de tempo, em que se realizam diversas permutas, de
artigos de toda espécie e fluidez de pessoas e suas identidades. No entanto, essa relação
caracterizada por uma dinâmica de riqueza quase imensurável, experimenta injunções,
advindas do Estado brasileiro, que visam ao controle desse mecanismo, o que provoca
instabilidades nem sempre contornáveis em curto prazo. Os instrumentos utilizados pelo
Brasil são postos em ação por meio das suas entidades governamentais estabelecidas, tais
como a Receita Federal, a AGESA – Armazéns Gerais Alfandegados de Mato Grosso do Sul,
a Polícia Federal, dentre tantas outras. Isso impacta sobremaneira as oportunidades que a
fronteira oportuniza, levando a um aproveitamento unilateral, em que somente um dos polos
se beneficia.
71
Apesar desse cenário um tanto quanto desigual, no que diz respeito ao aproveitamento
dos dividendos que a fronteira pode proporcionar, tais desigualdades podem ser, como de fato
o são, retificadas e/ou rearranjadas com menor prejuízo para a parte economicamente mais
frágil. Os mecanismos para isso podem ser verificados por meio de acordos que contemplem
o respeito mútuo entre as duas soberanias, ou ainda por meio da formação de um cinturão de
livre-comércio. Exemplo clássico desse tipo de acordo é o “Tratado de Roboré”, que tem por
finalidade principal a regulação da existência sociocultural e econômica nessa zona fronteiriça
– iniciativa que acenava em direção a uma melhor maneira de aproveitar as oportunidades e as
condições que ensejariam um desenvolvimento econômico, político e social com maior
eficiência, porém com ideologias desatualizadas.
Dadas essas constatações, verifica-se a necessidade premente de investimento na área
de saúde do Município de Corumbá, voltado àquelas especificidades de caráter mais urgente,
assim como a enfermagem e a obstetrícia. Urgentes porque visam ao atendimento da mulher,
independente da sua nacionalidade, em um momento de extrema fragilidade, tanto física
quanto psicológica – e muitas vezes socioeconômica, o caso das mulheres bolivianas.
A rotina diária dos profissionais da Maternidade reflete o cotidiano conturbado na
atenção ao parto das mulheres bolivianas, bem como das dificuldades enfrentadas pelos
mesmos ao realizarem tais atendimentos. São, como observados, inúmeros os problemas
enfrentados, desde a falta de equipamentos específicos à falta de insumos básicos, como gaze,
algodão, lençóis, medicamentos, dentre outros. A inoperância do Centro Cirúrgico, as baixas
remunerações salariais; a falta de incentivo; o descaso em relação ao treinamento dos
colaboradores no tocante ao atendimento ofertado aos estrangeiros; enfim, o total abandono
do poder público em relação às questões de saúde reflete negativamente no cotidiano desses
colaboradores, principalmente os alocados na Maternidade. Todos esses problemas
corroboram com a polemica questão da “fronteira esquecida”.
Diante das condições em que são realizados os atendimentos às parturientes é
frequente, ainda que velada, as reclamações acerca dos serviços prestados pelos profissionais.
No entanto, apesar dos inúmeros entraves, o atendimento é realizado e as pacientes atendidas
dentro do possível, mesmo com todos os percalços sociais envolvidos no território. A despeito
dos problemas atinentes ao universo cultural próprio da condição de fronteira –
desconhecimento do idioma e da realidade sociocultural dos bolivianos –, os profissionais da
Maternidade de Corumbá cumprem com sua obrigação profissional.
72
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APÊNDICE E ANEXO
APÊNDICE – ROTEIRO DE ENTREVISTA
1) Na sua rotina diária, ao assumir as responsabilidades sobre o turno e/ou plantão, você
tem por costume realizar visitas nos leitos hospitalares individualmente e quais os
procedimentos que adota? Esses procedimentos são protocolares dos serviços da atenção ao
parto?
2) A maternidade do complexo hospitalar da Associação Beneficente de Corumbá,
contratada do Sistema Único de Saúde, tendo referências geográfica e médico-hospitalar na
região fronteiriça, devido a sua infraestrutura que além de prestar serviços de partos às
mulheres brasileiras, também presta os mesmos serviços às mulheres bolivianas. Como você
dimensiona a porcentagem da demanda boliviana atendida mensalmente, relacionada à
demanda integral? Qual o perfil das pacientes bolivianas?
3) Como você avalia a dedicação e o desempenho da equipe multidisciplinar que realiza
atividades destinadas às pacientes bolivianas? Há distinções relacionadas ao comportamento,
costume, comunicação por conta do idioma?
4) A mulher boliviana, sob os cuidados da equipe multidisciplinar da maternidade, torna-
se obrigada a se adequar às normas, rotinas e protocolos da atenção ao parto, nas formas das
legislações vigentes? Como se pratica a adequação, considerando as distinções de idiomas?
Dê exemplos de hábitos e costumes das mulheres bolivianas que diferem daqueles
habitualmente praticados na sua rotina de trabalho.
5) Você pode enumerar os pontos de dificuldades e de facilidades que enfrenta no
cotidiano da prestação do serviço de atenção ao parto de mulheres bolivianas?
6) No ponto de vista profissional, os recursos físicos e financeiros destinados à atenção
aos partos das mulheres dos municípios de Corumbá e Ladário, também são suficientes para
atender as demandas bolivianas? Por quê?
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7) Você se informa ou sabe sobre estratégias que possibilitam os acessos de mulheres
bolivianas aos serviços públicos da atenção ao parto da maternidade? Como são praticados
tais acessos?
8) Você tem alguma sugestão que possa minimizar as dificuldades que a demanda
boliviana encontra ao acessar os serviços da atenção ao parto na maternidade da SBC?
9) Em quais circunstâncias de atendimentos a mulher boliviana é admitida aos serviços
da atenção ao parto na maternidade?
10) Que atitude você toma quando, na demanda pelos serviços da atenção em situações
caracterizadas com urgência e/ou emergência, a mulher boliviana não possuir os exames e as
documentações, tanto parciais e integrais, necessárias para a admissibilidade no sistema da
maternidade?
11) Como você avalia a sua condição de profissional de saúde relacionada às legislações
brasileiras que visa garantir as boas práticas e segurança na atenção ao parto e nascimento à
mãe e a criança, em detrimento a demanda boliviana que não está adequada aos protocolos do
sistema, principalmente, o Pré-Natal?
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ANEXO
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mulheres bolivianas na Maternidade da Associação Beneficente de Corumbá-MS.
Objetivo Secundário:
a) Caracterizar o cotidiano dos profissionais de saúde nas atividades dos serviços prestados às pacientes; b)
Descrever os entraves que dificultamos serviços sistematizados na atenção ao parto da demanda boliviana; c)
Levantar categorias que possibilite a formação de indicador de saúdeem atenção ao parto de mulher estrangeira
na região de fronteira, levando em consideração o trabalho cotidiano.
Avaliação dos Riscos e Benefícios:
Riscos:
Não há riscos para os profissionais participantes.
Benefícios:
A partir da contextualização será construído um indicador apropriado à atenção de saúde dispensada nos
municípios brasileiros de fronteiras. A partir das análises dos resultados da pesquisa, os dados produzidos podem
servir de ferramentas auxiliares, tanto no contexto do planejamento institucional quanto na gestão do sistema de
saúde local.
Comentários e Considerações sobre a Pesquisa:
Trata-se de uma pesquisa qualitativa, exploratória e descritiva. Local, período e total de entrevistados: a pesquisa
será realizada namaternidade do complexo hospitalar da Associação Beneficente do município de Corumbá-MS,
fronteira do Brasil com a Bolívia. A pesquisa será realizada no mês de Setembro de 2016, ocasião em que serão
aplicadas as entrevistas. Serão entrevistados10 (dez) profissionais de saúde queatuam no local da pesquisa, com
atividades envolvidas diretamente na atenção aos partos de pacientes bolivianas, considerando que se trata
depesquisa qualitativa, de cunho exploratório e descritivo. Os selecionados serão: 2 Médicos Obstetras (1chefe
do serviço de ginecologia e obstetríciae 1 mais antigo atuante do local); 1 Médico Pediatra (chefe do serviço de
pediatria); 2 Enfermeiras (1 responsável técnica e 1 enfermeira-obstetra); 2Assistentes Sociais (únicos
profissionais atuantes); 2 Recepcionistas (1 com atividades matutinas e 1 com atividades vespertinas) e 1
Psicóloga
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(única atuante). As entrevistas serão individualizadas e com horários pré-agendados, realizadas em local privado,
sem interferências e escutas de terceiros. Materiais/fontes a ser utilizados: o estudo se valerá dos seguintes
procedimentos técnicos: a) Pesquisa bibliográfica baseada em materiais publicados, como livros, periódicos,
artigos, dissertações, teses, relatórios, manuais, legislações e de outras informações da internet; b) Entrevista
semiestruturada, gravada em mídia, que envolverá a interrogação direta dos profissionais de saúde do local da
pesquisa. Os dez (10) profissionais de saúde inclusos na pesquisa compõem a equipe multidisciplinar da
maternidade, que deverão ser entrevistados desde que aceitarem ascondições dispostas no Termo de
Consentimento Livre e Esclarecido – TCLE (em anexo), bem assim assiná-lo. As escolhas de dez profissionais
do universo que constitui o quadro de colaboradores da Instituição deram-se em função das representatividades
dos segmentos de formações profissionais, considerando o fluxo institucional e o conjunto de trabalhos
convergentes, priorizando responsabilidades técnicas e práticas cotidianas que interagem os serviços da atenção
ao parto na maternidade. Foram excluídos do estudo os profissionais de apoio técnico-operacional e enfermagem
de nível médio, bem como os profissionais de nível superior que não atuam na assistência direta às pacientes
bolivianas.
Critério de Inclusão:
Os dez (10) profissionais de saúde inclusos na pesquisa compõem a equipe multidisciplinar da maternidade, que
deverão ser entrevistados desdeque aceitarem as condições dispostas no Termo de Consentimento Livre e
Esclarecido – TCLE (em anexo), bem assim assiná-lo. A escolha de dez profissionais do universo que constitui o
quadro de colaboradores da Instituição deu-se em função das representatividades dos segmentos deformações
profissionais, considerando o fluxo institucional e o conjunto de trabalhos convergentes, priorizando
responsabilidades técnicas e práticascotidianas que interagem os serviços da atenção ao parto na maternidade.
Foram excluídos do estudo os profissionais apoio técnico-operacional eenfermagem de nível médio, bem como
os profissionais de nível superior que não atuam na assistência direta às pacientes bolivianas.
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Critério de Exclusão:
Foram excluídos do estudo os profissionais do apoio técnico-operacional e enfermagem de nível médio, bem
como os profissionais de nível superiorque não atuam na assistência direta às pacientes bolivianas.Profissionais
que não desejarem participar da pesquisa, e aqueles que não assinarem oTCLE, (Termo de Consentimento Livre
e Esclarecido.
Considerações sobre os Termos de apresentação obrigatória:
Folha de rosto referendada pela Coordenadora do Programa de Pós-Graduação Estudos Fronteiriços/UFMS.
Orçamento declarado de responsabilidade do pesquisador.
Roteiro de entrevista apresentado.
Autorização da Associação Beneficente de Corumbá.
Cronogramas necessita adequação.
Projetos da Plataforma Brasil e projeto detalhado necessitam adequação.
TCLE necessita adequação.
Carta de apresentação à Associação Beneficente de Corumbá.
Recomendações:
Os cronogramas apresentados devem prever o início da pesquisa somente após a aprovação pelo CEP/UFMS.
No TCLE: apesar de ser informado que poderá haver gravação, não se solicita autorização explícita para a
mesma.
As adequações feitas no projeto devem ser feitas no Sistema Plataforma em conformidade com projeto em
relação aos riscos previstos no Projeto anexo, bem como no TCLE.
Conclusões ou Pendências e Lista de Inadequações:
Adequada
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Considerações Finais a critério do CEP:
Este parecer foi elaborado baseado nos documentos abaixo relacionados:
Tipo Documento Arquivo Postagem Autor Situação
TCLE / Termos de Assentimento /
TCLE_2.doc 01/11/2016 12:24:38
PAULO ROBERTO HAIDAMUS DE
Aceito
Justificativa de Ausência
TCLE_2.doc 01/11/2016 12:24:38
OLIVEIRA BASTOS Aceito
Informações Básicas do Projeto
PB_INFORMAÇÕES_BÁSICAS_DO_P ROJETO_737657.pdf
19/08/2016 21:13:23
Aceito
Cronograma CRONOGRAMA.docx 19/08/2016 21:12:48
JACOB ALPIRES SILVA Aceito
Projeto Detalhado / Brochura Investigador
PROJETO.doc 19/08/2016 21:12:24
JACOB ALPIRES SILVA Aceito
TCLE / Termos de Assentimento / Justificativa de Ausência
TCLE.doc 19/08/2016 21:11:39
JACOB ALPIRES SILVA Aceito
Outros Autorizacao_pesquisa ABC_Maternidade .pdf
16/08/2016 14:08:37
PAULO ROBERTO HAIDAMUS DE OLIVEIRA BASTOS
Aceito
Folha de Rosto frosto.pdf 14/06/2016 16:38:14
JACOB ALPIRES SILVA Aceito
Outros Carta.doc 13/06/2016 13:36:47
JACOB ALPIRES SILVA Aceito
Outros Roteiro.doc 13/06/2016 13:33:27
JACOB ALPIRES SILVA Aceito
Situação do Parecer: Aprovado
Necessita Apreciação da CONEP: Não
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CAMPO GRANDE, 01 de Novembro de 2016
Assinado por: PAULO ROBERTO HAIDAMUS DE OLIVEIRA BASTOS (Coordenador)