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UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS
ESCOLA DE MÚSICA E ARTES CÊNICAS
“O DONO DO CORPO”
A composição cênica a partir de elementos do ritual da umbanda
Dezembro
2011
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VINICIUS BOLIVAR DO NASCIMENTO
“O DONO DO CORPO”
A composição cênica a partir de elementos do ritual da umbanda
Trabalho apresentado como requisito parcial para obtenção do título de Bacharel em Artes Cênicas pela Universidade Federal de Goiás, sob orientação Profa. Dra. Renata de Lima Silva.
Dezembro
2011
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS ESCOLA DE MUSICA E ARTES CÊNICAS
“O DONO DO CORPO” A composição cênica a partir de elementos do ritual da umbanda
Trabalho apresentado como requisito parcial para obtenção do título de Bacharel em Artes Cênicas pela Universidade Federal de Goiás, sob orientação Profa. Dra. Renata de Lima Silva.
Profa. Dra. Renata de Lima Silva Aprovado ( ) Não Aprovado ( ) Profa. Dra. Urânia Auxiliadora Santos Maia de Oliveira Aprovado ( ) Não Aprovado ( ) Prof. Dr. Alexandre Silva Nunes Aprovado ( ) Não Aprovado ( )
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Agradecimentos
Exponho aqui meus sinceros e singelos agradecimentos a minha orientadora Renata Lima, por ter aceitado a emboscada de
me guiar nessa pesquisa, por ter sido tão paciente e ter feito com que eu não deixasse a peteca cair. Pelo aprendizado adquirido
durante todo esse processo, nos momentos de orientação e ensaio, e nos momentos de treinamento junto ao grupo de pesquisa.
A todos os integrantes do Núcleo de Dança Coletivo 22 de Goiânia. A Profª Drª Urânia Maia pela confiança e incentivo. Ao Zabelê
Medina, pela extrema paciência. Ao Prof. Dr. Alexandre Nunes por ter aceitado fazer parte da banca.
Aos meus pais, Maria Célia de Sá e Amim do Nascimento. A minha irmã Aline e meu cunhado José Herculano, por todo apoio
prestado.
As amigas de todas as horas Aline Isabel, Alessandra e Gabriela, a quem serei grato eternamente.
Ao amigo Sérgio, por me apresentar ao terreiro onde realizei a pesquisa e em especial a Tenda de Umbanda “Vovô Maria Conga e
Caboclo das Sete Encruzilhadas”, onde fui muito bem recebido e acolhido por todos.
Ao pai Nilson Branquinho, tomo sua benção e deixo aqui meu sentimento de gratidão.
E a José Pelintra da Silva,
Saravá!
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Resumo
Do interesse em dialogar elementos da cultura popular com técnicas de interpretação e o trabalho de dramaturgia corporal surge o
projeto “O Dono do Corpo”, uma proposta de construção cênica a partir de símbolos que aparecem na manifestação cultural e
religiosa da umbanda e mais especificamente que giram em torno da figura de Zé Pelintra, partindo da premissa de que na cultura
afro-brasileira encontram-se elementos técnicos e poéticos que podem ser utilizados como estímulos para criação da cena
contemporânea. Assim, objetiva-se nesse trabalho de conclusão de curso a descrição memorial e análise do processo de criação.
Palavras-chaves: Umbanda, Zé Pelintra, Cultura Popular, Teatro.
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Índice
Introdução,7
1. Umbanda – um breve histórico, 8
1.1 Umbanda e ritual, 12
1.2 Zé Pelintra, 14
2. Encruzilhadas: princípio metodológico, 17
3. O processo de criação, 20
3.1 O grupo de estudo, 21
3.2 A Pesquisa de Campo, 23
3.3. Processo de Criação – Lugares/Momentos, 30
3.4 Lugares/momentos iniciais e o “jogo de dentro”, 32
3.5 “Jogo de fora”, 37
Referências, 41
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Introdução
O trabalho que aqui se apresenta tem como objetivo, descrever o processo de criação da montagem cênica “O Dono do
Corpo” 1, construída a partir de elementos simbólicos que aparecem na manifestação cultural e religiosa da umbanda.
Partindo da premissa encontrada em Silva (2010) de que na cultura afro-brasileira encontram-se elementos técnicos e
poéticos que podem ser utilizados como mola propulsora da criação cênica, buscamos por meio de uma interação com o campo de
pesquisa, os motivos que significam a cena artística, considerando para além dos dados e fatos os aspectos sensíveis e
emocionais que decorre da experiência no campo.
O foco desse estudo concentra-se na figura de Zé Pelintra, que é analisado no contexto da umbanda e na maneira com que
suas características aparecem em outras manifestações da cultura popular brasileira.
A escolha pela entidade de “Seu Zé” surge a partir de questões de identificação pessoal e também por se tratar de uma
personalidade que carrega questões relativas ao negro, ao rito, a tradição e a identidade.
1 O nome desse projeto é baseado no livro de Muniz Sodré “Samba: o dono do corpo”.
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1. Umbanda – um breve histórico
Práticas Religiosas de diferentes matrizes culturais já se faziam presente no Brasil
desde o período colonial pajelanças, curandeirismo e entre outras manifestações a cerca do
culto aos espíritos. Com o tráfico de negros ao país, acrescenta-se um novo rito a cultura
brasileira, o culto aos Orixás.
Os negros começaram a sofrer grande censura no exercício de suas crenças
religiosas, dessa forma passaram então a cultuar os seus Deuses por meio do sincretismo
com santos existentes na religião católica. Assim, quando se louvava a São Jorge, era ao
orixá Ogum a que se estava cultuando, Santa Bárbara correspondia a Iansã e assim
sucessivamente.
Quanto ao sincretismo Arthur Ramos (2007, p. 27) acreditava que:
Recalcados pelas religiões dos povos dominantes, o fetichismo africano sofreu um duplo trabalho de distorça: fundiu-se a estas religiões (sincretismo com o catolicismo, com o espiritismo), ou tornou-se um culto privado, perseguido. E assim vemos o fetichismo, religião natural, tornar-se feitiçaria, isto é, culto esotérico de efeitos maléficos que lhe foram atribuídos pelos “brancos”. Mais uma religião do “mistério”.
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O autor coloca o sincretismo como fator negativo existente dentro da cultura afro-brasileira, pensamento apoiado também
anteriormente pelo medico legista e pesquisador das manifestações negras no Brasil, Nina Rodrigues (1988). Muitos outros
pesquisadores consolidaram a ideologia do sincretismo como sendo uma degradação do imaginário intelectual brasileiro, dentre os
quais podemos destacar Gonçalves Fernandes (1941), Édison Carneiro (1981) e Roger Bastide (1989).
Pierre Verger (1999), que fez suas observações por volta da década de 1950, também aponta para o mascaramento dos
Orixás africanos por meio dos santos católicos. O pesquisador francês inicialmente tratou esse fenômeno como um “sincretismo
aparente”, que ele define como fundamental para a sobrevivência dos cultos afro-brasileiros, mas que mais tarde passou a tornar-
se verdadeira essa assimilação dos santos com aos orixás:
Com o tempo houve uma evolução e o sincretismo afro-católico, que, originariamente, era apenas máscara, tornou-se mais sincero. As novas gerações “crioulas” já consideram que “santo” e “Orisa” são um só, que apenas o nome muda (VERGER, 1999, p. 24 apud NOGUEIRA, 2009, p. 21).
Mas, contrário a estes pesquisadores Nogueira (2009, p. 14) explica:
Não queremos tratar estas misturas presentes na Umbanda como degeneração ou deturpação das religiões que forneceram os elementos para sua constituição, como pensavam alguns estudiosos no início do século XX; mas, pelo contrário, vamos encontrar nestas misturas a força motriz e a energia vital desta religião, força que foi capaz de mantê-la viva até hoje, mesmo diante das repressões e perseguições a que esteve sujeita ao longo do último século.
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A Umbanda tem também sua formação apoiada à doutrina espírita kardecista. Segundo o “mito fundador” assim como
denomina Nogueira (2009), a umbanda teria nascido no inicio do século XX em um centro espírita de Niterói, estado do Rio de
janeiro, tendo sido revelada pelo espírito de um caboclo incorporado em um médium chamado Zélio Fernandino de Moraes.
Quanto às datas sobre tal acontecimento há uma grande discordância entre autores que abordaram tal fato, assim constata
Nogueira (2009). Patrícia Birman (1985) aponta para o ano de 1937; para Magnani (1986) o ano foi 1920; já Robson Pinheiro
aponta o ano de 1908.
A figura de Zélio como sendo o médium que incorporou o Caboclo das Sete Encruzilhadas é unanime. Teria sido por
intermédio do transe mediúnico que tal entidade haveria se manifestado.
Ao ser indagado sobre o objetivo de sua visita, o Caboclo alega ser o portador de uma mensagem, a da revelação de uma nova religião, que viria para falar aos pobres e humildes em sua linguagem, e incorporaria em seu seio os espíritos humildes de Caboclos e Pretos-Velhos, que não obtinham aceitação em centros espíritas por serem considerados espíritos sem evolução (NOGUEIRA, 2009, p.60).
Sendo assim, como explica Nogueira (2009), quanto à formação da umbanda o mais importante é criarmos a percepção de
que algumas características dessa religião não surgiram de repente, pois já existiam nos rituais calundus durante o período
colonial, e que conseqüentemente tiveram influências marcantes das manifestações religiosas dos negros católicos, indígenas e,
posteriormente, espíritas kardecistas.
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1.1 Umbanda e ritual
A umbanda é uma religião monoteísta e fundamenta-se na existência de um único
Deus supremo. Podendo ele carregar vários nomes: Olorum, Zambi, ou simplesmente Deus.
A religião fundamenta-se no culto dos espíritos e é pela manifestação destes, no corpo
do médium, que ela funciona e faz viver suas divindades; através do transe, realiza-se assim
a passagem entre o mundo sagrado dos deuses e o mundo profano dos
homens ( Ortiz,1999).
Diferentemente do candomblé, na umbanda as reproduções ligadas à mitologia
africana, as aventuras e desventuras dos deuses, desaparecem (Ortiz, 1999). Os Orixás
cedem lugar agora às entidades como, caboclos índios, boiadeiros, baianos, cangaceiros,
marinheiros, pretos-velhos, crianças, ciganos, e exus.
As manifestações que fazem parte do ritual umbandista foram agrupadas pelo autor
Ortiz (1999, p.71) da seguinte forma:
a) Espíritos de luz: caboclos, pretos-velhos e crianças.
b) Espíritos das trevas: os exus.
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Percebemos que esta concepção pertence ao conceito cristão, e que estabelece uma diferenciação entre bem e mal. De tal
forma a figura de exu que provém das mitologias africanas sofrerá grande distorção. A característica de trickster levou os primeiros
pesquisadores dos costumes daomeanos a confundir exu com o demônio católico (Ortiz, 1999).
O foco do estudo da investigação que aqui se apresenta está centrado na figura de Zé Pelintra, no qual é esta a única
entidade da Umbanda a ser aceita em dois rituais diferentes e opostos: a “Linha das Almas” (caboclos e preto-velhos) e o ritual do
“Povo de Rua” (Exus e Pombas-Gira). O primeiro marca as relações familiares e o segundo o sem-domínio dando a sensação de
incontrolável, o marginal (Birman 1985). E é dessa maneira que freqüentemente são vistos os Exus principalmente na Umbanda.
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1.2 Zé Pelintra
Seguindo este pensamento de que a figura de exu está assimilada a questões
marginais, Birman (1985) aborda a visão de que “a identificação do exu com o domínio da
rua gerou um tipo que é muito popular na umbanda: o exu Zé Pelintra, figura gêmea do
malandro carioca”. Sendo o malandro uma figura deslocada das regras gerais ninguém
melhor do que Zé Pelintra para representá-lo, pensando em seu livre acesso dentro do ritual
umbandista.
Podemos dizer talvez que o seu poder em transitar entre dois ritos é proveniente de
que Zé Pelintra tem sua origem nos catimbós2, onde lá se manifestava de pés descalços e
calça dobrada até o meio da canela e eventualmente, como aponta Ligiéro (2004), uma
peixeira é retratada em sua outra mão ou junto a seu corpo. Também dos catimbós é de
onde vem sua fama de “erveiro”. Ações estas intrinsecamente ligadas aos ritos realizados
pelas entidades da “linha das almas”.
2 Conforme Ligiéro (2004, p. 28), “o catimbó insere-se num quadro nacional de religiões populares provenientes
do Norte e Nordeste, relacionando-se com a pajelança indígena e os candomblés de caboclo muito difundidos na
Bahia”.
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É em meado do século XX que acaba por se integrar aos ritos da umbanda, certamente na medida em que o Catimbó
atinge as áreas urbanas, território tipicamente da umbanda, ou mesmo quando o movimento umbandista escoa para o interior,
tornando natural o encontro das duas práticas. Porém na umbanda, ainda mantendo algumas de suas características, Zé Pelintra
adquire novas formas, uni-se ao arquétipo do malandro carioca, fazendo o uso a partir de então do seu terno branco e engomado,
gravata e lenço encarnado, chapéu panamá, e sapatos bicolor.
Ainda assim quando encontrado no Catimbó, Zé não dispensa seus indumentos: “Mesmo naquele contexto humilde e
provinciano, Seu Zé destaca-se dos demais pela preocupação com a própria elegância. Uma vez incorporado, ele solicita sua
vestimenta apropriada, mesmo que esta seja bem simples, conforme as possibilidades do médium” (LIGIERO, 2004, p. 31).
Sobre a vestimenta de Seu Zé Pelintra, Silva (2010, p. 197) comenta: “O terno de linho branco e também o chapéu tornou-
se o símbolo do malandro capoeira, que ao jogar sem sujá-lo demonstra habilidade e superioridade no jogo de corpo. Não por um
acaso, Zé Pelintra, também conhecido como Seu Zé, também traja esse fato.”
A malandragem presente na entidade Zé Pelintra, parece ser algo que se materializa em uma corporeidade brasileira, isto é
uma identidade corporal que aparece em alguns aspectos da cultura popular brasileira, “a malandragem não como estereótipo do
brasileiro e sim como um comportamento corporal próprio da capoeira e também do samba [...]” (SILVA, 2010, p. 197), mas que
pode ser visto em outras manifestações culturais e mesmo no nosso cotidiano.
Esse comportamento social, conforme aponta SILVA (2010, p. 196) “é algo que se construiu em um processo de
urbanização, caótico e desenfreado, com camadas e mais camadas de pessoas marginalizadas, onde a rua era um espaço de
constante disputa pela sobrevivência e moral”. Assim, a malandragem é composta de uma ambigüidade, ao mesmo tempo em
que é atraente e sedutora, também pode ser entendida como transgressora e individualista.
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O fingimento, o ardil, a astúcia parecem constituir características de Zé Pelintra. [...] Tudo nele é jogo, e jogo trapaceado. [...] Ele volta como entidade na Umbanda-Quimbanda para mostrar a universalidade da lei da malandragem. Tudo é trapaça, engodo, traição. [...] É assumidamente ladrão, trapaceiro e marginal. Situa-se nos interstícios do poder institucional. Sua lei é driblar a lei (AUGRAS 1997 apud LIGIÉRO, 2004, p.104).
No dicionário de sinônimos encontramos a palavra malandragem relacionadas com ociosidade e preguiça. Mas sabemos
que este comportamento está além destas questões como explícita Da Mata (1985, p. 200 apud SILVA, 2010, p. 196) ao
relacionar a figura do malandro ao universo da rua, em que explica que “o mundo da rua é cruel e exige luta, pois, como já disse o
poeta, num dos versos mais conhecidos no ambiente social brasileiro de todas as camadas sociais, a vida é um combate que o
fraco abate e, mais adiante, viver é lutar”.
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2. Encruzilhadas: princípio metodológico
Recorrendo a Silva (2010), poderíamos entender o ritual da umbanda como uma
manifestação de encruzilhada que pode ser considerado um “entre- lugar”.
[...] Partimos do lugar cultural africano que é um lugar desterritorializado. Pela diáspora negra e pela própria aventura humana o lugar cultural africano tornou-se um entre - lugar. O Brasil é assim. O candomblé é assim. A macumba é assim. A feijoada é assim O “tempo-livre” é assim. Os blocos afros de Salvador são assim. Assim, é a cultura afrodescendente. Ela é um entre - lugar não é um sem- lugar. Ela tem uma identidade forjada na trama das identidades (OLIVEIRA, 2007 apud SILVA, 2010 p. 59).
É nas encruzilhadas onde se encontra com exu, onde ele come e reside. Mas ao
tomar esse termo pensamos a encruzilhada como local que foge ao lugar comum. Para
definirmos melhor esse conceito metafórico recorremos a Martins (1997), citada por Silva
(2010):
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A encruzilhada, lócus tangencial, e aqui assinalada como instancia simbólica e metonímica, da qual se processam via diversas de elaborações discursivas, motivadas pelos próprios discursos que a coabitam. Da esfera do rito e, portanto, da performance, e o lugar radial de centramento e descentramento, interseções, influencias e divergências, fusões e rupturas, multiplicidade e convergências, unidade e pluralidade, origem e disseminação. Operadora de linguagens e de discursos, a encruzilhada, como um lugar terceiro, e geratriz de produção, as noções de sujeito hibrido, mestiço e liminar, articulado pela critica pós-colonial, podem ser pensadas como indicativas de efeitos de processos e cruzamentos discursivos diversos, intertextuais e interculturais (MARTINS, 1997, p. 28 apud SILVA, 2010 p. 60).
Na encruzilhada existe um corpo limiar, isto é, um corpo em estado de liminariedade que Silva (2010), a partir de conceitos
apresentados pelo antropólogo Victor Turner (1974), apresenta da seguinte maneira: “O corpo limiar é o próprio corpo da
encruzilhada, entre o passado e o presente, o sagrado e o profano, o eu e o outro. É o corpo que se move, brinca, dança, canta e
recria a historia [...] Isto é, a partir da assimilação da memória coletiva, dá corpo à herança cultural negro-africana no Brasil” (
Silva, p. 66).
Dessa forma, poderíamos entender a umbanda dadas as suas características históricas e a figura de “Seu Zé”, como
manifestações de encruzilhada na qual se vivência um estado de liminariedade, portador de grande potência expressiva.
Se pensarmos no transe como um distanciamento do papel social desempenhado pelo praticante, distanciamento este
entendido aqui como um Corpo Limiar, perceberemos que são nos trabalhos mediúnicos, onde os adeptos se afastam de suas
realidades sociais e se inserem em uma realidade paralela que é mística e visceral, que se revela por meio da incorporação das
entidades. Sendo este, um modo de expurga ali todas as suas frustrações dos cargos que exercem no seu dia-dia, assim afirmam
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Sonia Regina Lages3 e Maria Inácia D’Ávila4 em seu artigo Vida Cigana, Possessão e Transgressão no Terreiro de Umbanda, ao
retratarem experiências de uma médium que incorporava o espírito de uma cigana:
Assim a médium transforma em realidade a vida cigana imaginada, que tanto deseja. Ela seleciona das representações que internalizou sobre o estilo da vida cigana, o que lhe convém: sua memória traduziu esse jeito de viver como liberdade. É, pois, a possessão, o passaporte seguro para que possa se livrar das obrigações domésticas, da responsabilidade com os filhos, sentida como escravidão (LAGES; D’ÁVILA, 2007, p 7.).
A observação do corpo em transe como já foi mencionado, entendido aqui como um Corpo Limiar, é nessa pesquisa, uma
passagem para o corpo em cena, partindo da hipótese que é possível se vivenciar no trabalho de criação certo estado de
liminariedade, buscando deste modo, transformar a cena em uma nova encruzilhada.
3 Doutora em Psicologia de Comunidades e Ecologia Social pela UFRJ, Instituto de Psicologia, programa EICOS. 4 Professora Titular do Instituto de Psicologia da UFRJ, programa EICOS, UFRJ.
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3. O processo de criação
- O grupo de estudos.
- As pesquisas de campo.
- Lugares/momentos e montagem cênica.
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3.1 O grupo de estudo
O Núcleo de Dança Coletivo 22 tem seu cerne principal estabelecido na cidade de São
Paulo, é formado por artistas de origens e experiências diferenciadas, e desenvolve-se
também como grupo de estudo na cidade de Goiânia como projeto de extensão vinculada a
Faculdade de Educação Física (FEF-UFG). Orientado pela professora Drª. Renata de Lima
Silva, o grupo faz uso dos procedimentos metodológicos de preparação corporal e de
processo de criação elaborados pela professora Renata em sua tese de doutorado, baseada
em princípios da cultura popular brasileira, mais especificamente a capoeira e os samba de
umbigada como processo de treinamento corporal e de criação.
Sobre essas manifestações vale mencionar certo parentesco cultural com o culto
religioso da umbanda, que podem ser percebidos em movimentos, símbolos, musicalidade e
plasticidade. Um bom exemplo disso é a questão da malandragem, que perpassa pela figura
de Zé Pelintra, como também pela do capoeirista, do sambista e do sambador.
Minhas atividades junto o grupo teve inicio no mês de maio, onde no primeiro semestre
de 2011 o grupo fixou-se na aproximação junto a essas manifestações culturais, utilizando-as
como processo de treinamento físico. Para assim no semestre seguinte, darmos inicio ao
nosso processo criativo da cena em questão.
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O grupo tem como base para o treinamento e construção cênica a metodologia proposta por Renata Lima. Seu método
inicialmente é pensado para o âmbito da dança, porém não foi empecilho para que o aplicássemos ao teatro, pois torna-se
extremamente aberto e ligado as linhas teatrais como veremos a seguir.
Já podemos verificar nas abordagens de Grotowski (1933-1999), Eugenio Barba (1936-) e também Etienne Decroux (1898-
1991) falavam que “a ação do ator precisa nascer do âmbito interno do corpo, partindo da coluna vertebral, diferente do gesto, que
pertence à periferia do corpo. É a externalização de ações intencionais provenientes de uma internalidade que muda o tônus
muscular de todo o corpo” (GREINER; AMORIM, 2003, p. 123).
Essa noção que parece como fundamental em alguns métodos teatrais (como as propostas citadas pelos autores a cima e
em abordagens que se derivaram a partir daí) recebe papel de destaque no trabalho técnico proposto por Silva (2010), como se
pode verificar em sua abordagem chamada Instalação Corporal - um trabalho de consciência corporal de transformação do corpo
(simplesmente corpo ou corpo cotidiano) em um corpo diferenciado, em um processo de se aliar a imagem de si e a sensação de
si através de exercícios que acionam um tônus muscular, respiração, equilíbrio e concentração, distintos do cotidiano. Instalando-
se assim um corpo diferenciado (extra-cotidiano) que no caso das artes cênicas e a própria possibilidade para o transbordamento
em um corpo em estado de arte (Silva, 2010).
O grupo de estudo é constituído por professores e alunos da UFG e professores da rede estadual e se configura como um
espaço que fornece subsídios teóricos e práticos para as pesquisas individuais. Além da Instalação Corporal, trabalhamos também
com matrizes da cultura popular brasileira, sobretudo de influência negro-africana, tais como o samba e a capoeira que foram
importantes pontes para o processo de criação de o Dono do Corpo.
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3.2 A Pesquisa de Campo
Data marcada, 06 de agosto de 2011, primeiro encontro como o malandro divino, assim
como o chamaria Zeca Ligiéro. Sujeito tido por muitos como uma espécie de santo, as
avessas claro, no entanto, ainda um “santo”. Mas seus fiéis e seguidores conhecem muito
bem a respeito das escorregadelas morais desse homem, e talvez, seja esse o motivo da
identificação desse povo com o tal nego Zé. A sua palavra de ordem geral, incidi em dizer
que, para se levar uma boa vida é essencial que se tenha uma talagada de malandragem,
uma boa dose de vadiação e uns goles de caridade.
Bem, mas o melhor que se tem a fazer agora é retomar ao foco dessa nossa escrita, já
pedindo minhas humildes desculpas ao senhor, caro leitor, por minha displicência em me
deixar levar pela ânsia incontrolada que sempre me acomete em dizer logo de cara, no
supetão, a respeito das filosofias de vida do nosso malandro de nome José.
Não fosse por isso, começaria eu de um modo diferente. Começaria contando de
minha pequena surpresa ao receber a primeira recomendação, feita ainda antes mesmo de
chegar ao nosso campo de pesquisa. Foi me dito para que eu colocasse no bolso da calça
uma quantidade de folhas e ervas previamente selecionada, para que assim, como me foi
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explicado, eu não levasse “carrego” 5 algum daquele lugar, no meu retorno para casa no final do trabalho. As indicações não
vieram do próprio nego não, o sujeito que me deu tais conselhos, é um bom amigo que me acompanhará por essa aventura em
meio a negros de branco e brancos transformados em negros. Sérgio, o sujeito mirongueiro, era “trabalhador” 6 de outra casa,
lugar esse onde eu também busquei informações a respeito da doutrina
espírita. Disse-me ele então, que logo após o final dos trabalhos
mediúnicos do local para onde estávamos indo, que eu retirasse as
folhas do bolso e jogasse fora. Pois dessa forma, toda energia densa
que pegássemos ali seriam impedidas de ir conosco. As ervas seriam
nossos escudos secretos.
Chegamos ao terreiro e nos encaminhamos em direção ao salão
a onde aconteceria a trabalhos mediúnicos. O Salão era divido em
duas partes, ao lado esquerdo o local onde se acomodava a
assistência, e a direita o local destinado aos médiuns, sendo em
espaços diferentes (ver figura 1). Mas foi a quantidade de cadeados
colocada acima do batente da porta de entrada que me chamaram a
atenção.
Músicas já eram entoadas quando chegamos, instrumentos
percussivos eram tocados com força e vozes dissonantes se faziam ouvir vindas do ambiente reservado aos médiuns.
5 Carrego é um termo utilizado pelos umbandistas para se tratar de energia mais densa, pesadas e ligadas a influências negativas.
6 Termo utilizado também para designar os médiuns da casa. Pois estão exercendo um trabalho de assistencialismo.
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Zé Pelintra assume o papel central de liderança dos trabalhos da casa, e pude ver que sua palavra tinha poder
determinante. Era ele quem escolhia os médiuns da corrente, organizava a assistência e comandava toda a gira. Mas, segundo
Seu Zé, é sempre sob as leis e regência maior da mentora espiritual da casa vovó Maria Conga que os trabalhos são realizados.
Enquanto aguardava para ver o malandro, uma voz grave e com um forte sotaque nortista, comandava os trabalhos
dizendo aos médiuns as tarefas a serem feitas impondo suas ordens com batidas de sua bengala no chão.
Pouco tempo depois surge um homem vestido com um terno branco de botões vermelhos, gravata encarnada, uma bengala,
um cachimbo na boca e seu chapéu de lado.
Em seu corpo ereto e na sua voz imponente já se evidenciava toda a sua força em comandar os trabalhos.
Algumas pessoas foram colocadas para dentro e minutos depois foi me solicitado a entrada para o congá. Entrei e me
sentei bem próximo de onde ele se encontrava, deu-se então inicio ao trabalho, e meus olhos corriam soltos dentro daquele
pequeno quarto quente.
Ele já sabendo de o porquê da minha visita aquele terreiro, disse então aos médiuns da casa: "esse rapaz ai, o
pequenininho, é que vai me levar pra faculdade".
Tive o privilégio de poucos de conhecer o “quarto de exu”7 e foi lá dentro que seu Zé com muita cordialidade, me apresentou
seu assentamento8 e das demais entidades da linha da direita firmadas ali na casa.
7 Normalmente em terreiros de umbanda e candomblé utiliza-se ter um local reservado destinado para as suas imagens. Sendo elas ali tratadas, alimentadas com sangue,
cachaça, e outros elementos.
8 Assentamento é o local onde são colocados alguns elementos com poderes magísticos, com a finalidade de criar um ponto de proteção, defesa, descarga e irradiação. A
entidade assentada (Orixá ou guia espiritual) tem no assentamento elementos com poderes mágicos, os quais utilizam ativando-os segundo as necessidades do Centro,
do trabalho espiritual e dos médiuns.
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Um fator muito interessante naquele momento foi quando Seu Zé, apontando para a imagem da pomba-gira Maria Padilha,
contou-me sobre seu amor por tal mulher. Disse-me que o amor dos dois era um amor impossível, eram como o sol e a lua. Não
sei bem se ele disse isso se referindo ao médium que trabalha também com a entidade de Maria Padilha ou se fosse algo para,
além disso.
Achei interessante essa questão de poder visualizar as fragilidades de uma entidade espiritual, pois segundo as leis do
espiritismo são esses, espíritos assim como nós, plausíveis de falhas e não seres intocáveis e donos dos saberes do mundo. Mas
seu Zé nunca deixa a peteca cair e logo deu seu jeitinho para sair desse clima melancólico. Disse-me então que conforme minha
assiduidade ao seu terreiro receberia mais informações a seu respeito.
Nesse primeiro encontro tive o prazer de ver a incorporação de Maria Padilha, pelo mesmo médium, e ali pude presenciar
assim como relata Zeca Ligiero em sua obra o “O Malandro Divino”, como a sessão se torna festiva no momento em que entram
em cena as pomba giras.
Na verdade o terreiro em seus trabalhos comuns é sempre muito alegre, os adeptos mesmo quando não estão
mediunizados cantam e dançam com grande fervor. O que para muitos templos kardecistas e até mesmo umbandistas seria um
disparate.
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Zé-conta-história
A seguir algumas histórias contadas pela entidade de José Pelintra em ato de incorporação ao longo dos quatro meses de
pesquisa e também fatos marcantes que foram presenciados no terreiro.
José Pelintra da Silva é homem falador, conversador. Conta historia pra o lado do vento. Recita poesia e adora uma rima,
pois, malandro que é malandro, bom galanteador é. Em muitas de suas historias vê-se sempre o nego contando vantagens e
exaltando suas qualidades: lealdade, esperteza, sapiência.
Nesse causo que se segue, Seu Zé conta a respeito de uma conversa que teve com Oxalá, podemos notar como ele é
articulado e trama muito bem suas artimanhas para e acabar como o dono da razão. Assim ele nos conta:
Eu estive com oxalá e ele disse-me que eu tinha que parar de beber.
(à parte para os médiuns) - Eu? Beber?
-Mas eu nem bebo. Nem sei o que é isso.
- É Zé você não tem jeito mesmo. Zezim...
Zezim o que? Olha a intimidade, eu nem lhe conheço, vai que você é um egun9 se passando por Jesus.
-Zé. Você tem que...
-Melhorou!
- tem que parar de beber.
-mas eu não bebo, aqui nem tem cachaça.
9 Espíritos desencarnado.
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- Zé você bebe quando incorpora nos médiuns lá na terra.
-mas quem bebe não sou eu, são eles.
Sabe que eu até venho querendo mudar essa minha imagem de malandro e boêmio. Mas sempre quando estou voltando para
Aruanda10 e olho para trás, vejo um com uma imagem minha, com um cafezinho do lado, uma água, uma vela e a danada da preciosa... ai eu
não agüento!
E foi essa a historia que escolhemos para fazer parte da nossa cena, por acreditarmos ser a narração que contem maior
quantidade de elementos característicos da entidade Zé Pelintra.
08 de outubro de 2011
Tenda de Umbanda Vovó Maria Conga e Caboclo das Sete Encruzilhadas
Nesta historia seu Zé vem mostrar que com ele não se brinca e que sua lei e uma só. Assim ele começa:
- Eu tenho uma afilhada, que não queria de jeito nenhum trabalhar comigo. Em certo dia apareci para ela e lhe disse que na manhã
seguinte eu a receberia com um café da manhã. E ela me retrucou dizendo que nunca ouviu dizer que espírito cozinhava. Então na manhã
seguinte eu a acordei com sete bolinhos de chuva, café preto e com uma rosa branca.
- Ela acordou, mas não se mexia apenas falava e me viu ao lado dela e gritou pela mãe. A mãe então trouxe um pastor. A filha disse à
mãe que não adiantava porque era coisa de Zé pelintra.
O pastor começou a fazer a suas orações quando não, viu seu Zé. E já assustado disse:
- Vixi é coisa de Zé pelintra, aquele preto.
10
Cidade espiritual; morada dos orixás e das entidades da umbanda.
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Depois de Zé pelintra fazer com que esse também não se movesse a mãe chamou por um padre que eu ver seu Zé já se deu por
vencido.
A moça então aceitou trabalhar com ele dizendo que iria a um terreiro no dia seguinte. E seu Zé disse:
- No dia seguinte?
E a moça logo entendeu e retrucou.
- Não eu vou atrás hoje mesmo.
Seu Zé fez com que a menina comesse os sete bolinhos de chuva para só então liberá-la e liberar ao pastor e ao padre do castigo.
08 de outubro de 2011
Tenda de Umbanda Vovó Maria Conga e Caboclo das Sete Encruzilhadas
As experiências vividas em campo aparecem como um dos subsídios para a criação da cena o Dono do Corpo, seja na
utilização de imagens e historias na cena a ou a influencia disto em um âmbito mais subjetivo.
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3.3. Processo de Criação – Lugares/Momentos
O processo de criação da cena se deu por meio de exercícios/estímulos para utilização
das impressões e sensações obtidas no campo e também lembranças já impressas no meu
corpo. Afinal sabemos que o trabalho de ator não está deslocado das nossas vivencias
pessoais.
Desenhos de Kiko Dinucci, que aqui espalhadas por todo o texto, também foram
utilizadas como “portas de entrada” para o jogo de experimentação cênica. Além dessas
imagens utilizamos também alguns símbolos presentes no ritual da umbanda, selecionados a
partir da experiência pessoal com a manifestação religiosa e também da pesquisa de campo.
Os desenhos e alguns símbolos que já haviam nos surgido como elementos de
estimulo para a criação, que citaremos mais adiante, foram se desencadeando para algo
parecido com o quê Ferracini (2006), chama de “blocos” e aqui chamaremos de pontos ou
lugares/momentos.
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Os recursos metodológicos para trabalhar com esses estímulos foram o “jogo de dentro” e o “jogo de fora”, dinâmicas que
foram caminhos essenciais para se realizar o processo de criação. Por “jogo de dentro” e “jogo de fora” entendemos em
Silva (2010, p 168) que
O Jogo de Dentro, seria o momento de descoberta pessoal e coletiva, no qual não existe a noção de
certo ou errado, ou melhor, o único equivoco seria a autocensura ou o não envolvimento. Este seria um
momento de alto nível de desprendimento e espontaneidade, pressupondo que os jogadores de antemão tem
construído um repertório que funcionaria como as peças do jogo, no qual a principal regra e a “escuta”, a
percepção de si, do outro e do todo. O Jogo de Dentro é da ordem da paidia.
O Jogo de Fora seria o momento posterior ao jogo de dentro, no qual os excessos do primeiro são
lapidados, ou mesmo execrados, ao passo que as descobertas de maior relevância simbólica e expressiva
são valorizadas, à medida que aprofundadas ou mesmo “desenroladas”, tendo como ponto de vista o olhar de
fora, que preza por uma mensagem clara e comunicável. Neste momento, são relevantes considerações que
se referem à organização espacial, foco (olhar), tempo (e ritmo), enfim, aspectos que constituem a dança do
ponto vista coreográfico. No Jogo de Fora se destaca a figura do diretor, orientador, ou simplesmente o
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“olheiro” – pessoa de dentro do processo que se retira para o exercício do “olhar formatador”, que se
encarrega do trabalho de organização da mensagem, ou seja, de auxiliar o processo de composição. O Jogo
de fora é da ordem do ludus.
3.4 Lugares/momentos iniciais e o “jogo de dentro”
Ponto da vela.
Ponto do Preto velho.
Ponto Cantado.
Encruzilhada.
Ponto riscado.
A vela é um objeto forte em significados para o universo religioso, representando um elo com o sobrenatural. O ato
de acender uma vela para uma oração pode ser entendida como uma espécie de conexão com o sagrado. Essa
ação no “jogo de dentro” foi utilizada como uma porta de entrada para um tempo/espaço “ritualístico.”
O ponto do Preto velho é um dos que mais me cativa. Ele surge logo após a vela, criando esse elo direto com o
passado, mas também com o futuro. Um túnel do tempo onde se revive a ancestralidade, do mesmo modo que
está ligada a velhice que ainda virá. A idéia/sensação que temos nessa imagem faz referência direta ao Preto
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Velho que se manifesta nos ritos da umbanda e também o jogo de uma das facetas a qual a entidade Zé Pelintra
se manifesta – a linha das almas.
A idéia de definir um lugar/momento como sendo o Ponto cantado, parte da constatação da importância da música
no ritual da umbanda.
“Oi Zé quando vem lá de Alagoas
Toma cuidado com o balanço da canoa
Oi Zé, faça tudo o que quiser
Só não maltrate o coração dessa mulher.”
A escolha do ponto acima citado foi definida antes mesmo de ele ser apresentado para minha orientadora, pois eu tinha
a certeza que ela iria se apaixonar pelo ponto cantado, dito e feito. Assim como diz o ditado esse ponto surgiu como
uma “mão na roda”, pois estava composto exatamente da forma como queríamos: 1) o canto não fala diretamente no
nome de Zé Pelintra, menciona um Zé, que poderia ser qualquer Zé nesse mundo. 2) retrata a característica de
malandragem presente em Seu Zé. 3) fala de sua origem em Alagoas e o balançar da canoa, que pode estar
relacionado à cachaça e a embriagues.
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A encruzilhada é aqui relacionada ao do povo da rua, é exu quem fala agora, dá receitas e aconselha com sua forma
mais bruta e direta. Nesse ponto, vemos clara a relação de incorporação e do não domínio do corpo. É esse o momento
em que o dono do corpo se manifesta, brinca, ri e se diverte. Turbulência.
O ponto riscado como marca “de quem por aqui passou”. Na umbanda essa iconografia é utilizada antes ou depois da
incorporação da entidade no corpo do médium.
O ponto riscado é um ícone, ou diagrama, um desenho geralmente feito com giz [...] É usado para convocar os espíritos – em espanhol recebe o nome de firma, assinatura. Trata-se de uma representação gráfica da energia do espírito por meio de cruzes, estrelas, espirais, setas, ondas e flechas (LIGIERO, 2004 p. 52).
Esses lugares/momentos definidos no “jogo de dentro” como pontos de um mapa que deveriam, na improvisação, serem
ligados por passagens que iam se definindo no próprio exercício. Por passagens entendemos as transições entre um
lugar/momento e outro, que aos poucos foram ganhando seus próprios significados.
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VELA
ENCRUZILHADA PRETO VELHO
PONTO CANTADO
PONTO RISCADO
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Passagens
Entre a vela e o preto velho: Chamamos essa passagem de passarela, onde acontece a transformação do novo em velho;
um ir e vir entre passado e futuro; um dos elementos que aparecem, são os estalos dos dedos dos pretos velhos.
Entre o preto velho e o ponto cantado: metamorfose do velho em novo. Do corpo cansado, cheio de mágoas, dores,
marcas a uma energia jovial, que desemboca no malandro do ponto cantado.
Entre o ponto cantado e a encruzilhada: Diferente das outras passagens, essa transição acontece de forma repentina,
como quando um capoeira se distrai, e toma uma rasteira. Uma queda em meio encruzilhada.
Entre encruzilhada e o ponto riscado: impulso da saída da entidade do corpo seguida do abandono do corpo ao chão.
Cansaço. Entrega. Onde o corpo reverbera a ação da encruzilhada.
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3.5 “Jogo de fora”
No “jogo de fora”, acontece a ação mais diretiva por parte da direção e de outros participantes do grupo, nesse momento o
trabalho é lapidado e finalizado.
Inicio: a entrada do público acontece ao som da musica Labará, um canto em ioruba retirado do álbum
CANDOMBLÉSS de Carlinhos Brown, pois buscamos algo que nos remetesse a figura de Exu como é tratado no
candomblé, onde é um orixá a quem é atribuído muita importância pelo fato de ser ele o mensageiro entre os deuses
e os humanos. Visto que essa figura é deturpada na umbanda, dando origem a noção de “exu”.
Incelênça: desde o inicio do trabalho, intuitivamente, apontou-se o desejo de inserir na cena algo da intérprete
Clementina de Jesus, por vermos nela a imagem simbólica encontrada nas mães-de-santo. Assim incluímos a
musica Incelência.
Uma Incelênça que pra ele Uma Incelênça que pra ele
Mãe de Deus, mães de Deus Oh mãe de Deus, rogai a Deus por ele.11
11 Clementina de Jesus; Marinheiro Só, 1973.
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A incelência é um tipo de canção, de caráter religioso, cantada em velório e enterros, na cena ela aparece
relacionada com a morte de Zé Pelintra e é cantada em forma de prece.
Samba: a relação entre o malandro e o samba e tratada no ponto cantado, que evoluiu coreograficamente em
passos de dança próprias do universo do samba e foi nesse momento que a presença de música ao vivo se tornou
fundamental. Recurso que passa a ser utilizado em toda a cena.
Altar: objeto central dentro do culto da umbanda, o altar é trazido para a cena na forma de cenário, que é incluído
de forma interativa. Para chegar ao altar, incluímos a música que é cantada na despedida da entidade Zé Pelintra.
Seu Zé Pelintra, onde é que o senhor mora?
Seu Zé Pelintra onde é sua morada? Eu não posso lhe dizer.
Porque suncê não vai me compreender. Eu nasci no jurema.
Minha morada é bem pertinho de Oxalá.12
História: uma das historias contadas na pesquisa de campo por Zé Pelintra, foi adaptada e inserida na parte final da
cena, momento em que o ator interage com outros elementos que fazem parte no universo da entidade Zé Pelintra
tais como, a cachaça, o terno branco, o sapato branco, o gravata encarnada, o cachimbo e por fim o chapéu.
12 Coletado na Tenda de Umbanda Vovó Maria Conga e Caboclo das Sete Encruzilhadas.
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4. Considerações Finais
Essas que são as linhas finais do meu trabalho, onde devo eu expressar toda a minha
felicidade e satisfação em realizar esse projeto e discorrer como ele se tornou importante em
minha vida. Assim seria não fosse pela minha dificuldade em se quer começar esse
parágrafo.
Em um dos meus ensaios com a Renata para a elaboração da cena, trabalhamos com
a idéia de construção de dramaturgia por meio das referências até então coletado na tenda
de umbanda pesquisada. Lembro-me quando em uma das improvisações surgiu um texto
onde eu dizia – “Eu não conhecia Seu Zé. Vim conhecer ele aqui”. E foi realmente desse
modo, estudando- o em meu corpo, que hoje me sinto um pouco mais próximo dessa figura
que antes desse projeto eu apenas conhecia de nome e de fama. Porém descubro que dele
pouco sei, e que talvez nunca venha a saber, pois Zé Pelintra é mistério, por onde pairam
muitas ambigüidades sua vida e de morte.
Posso dizer que por meio desse estudo minha relação com a religião se acentuou
ainda mais. Meus psicólogos são agora os pretos velhos, os caboclos são meus guias, as
crianças minha luz e exu, é quem vigia. Seu Zé também está lá, o seu altar eu vou montar.
Não tenho medo, é respeito por alguém que eu um pouco entendo.
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A escolha desse foco de estudo parte inicialmente de uma identificação com a cultura afro-brasileira em suas diversas
formas de expressão e também por influência da minha opção religiosa. Por essa razão o meu envolvimento no campo aconteceu
com muita entrega e paixão, o que em certos momentos geraram confusão sobre os limites da fé e da pesquisa artística, e não é
descartada a possibilidade de que esse conflito venha à tona na cena, podendo até ser essa pulsão entre o umbandista e ator o
cerne do trabalho.
O trabalho não se conclui aqui, resta a dúvida de como “O Dono do Corpo” será absorvido e assimilado pelo público, tanto
para os envolvidos com a umbanda, como para as pessoas com pouco ou nenhuma aproximação com a religião. Haja vista que a
falta de informação sobre esse universo é a principal razão para generalizações e juízos depreciativos.
Por essa razão visualizamos a importância de estudos acadêmicos e artísticos que valorizem a cultura afro-brasileira no
sentido de trazer para a cena artística contemporânea referências estéticas que sensibilizem o publico para o respeito à
diversidade cultural.
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Referências
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FERRACINI, R. Café com Queijo: Corpos em Criação. São Paulo: Ed. Fapesp, 2006.
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GREINER, Christine; AMORIM, Cláudia (org.). Leituras do corpo. São Paulo: Annablume, 2003.
LAGES, S. R. C. & D'ÁVILA Neto, M. I. Vida cigana: mulheres, possessão e transgressão no terreiro de Umbanda. Artigo
publicado na Revista de Pesquisas e Práticas Psicossociais, Volume 2, N. 1; São João del-Rei, 2007. Disponível em:
http://www.ufsj.edu.br/revistalapip/revista_volume_2_numero_1.php
LIGIÉRO, Zeca. Malandro Divino: A vida e a lenda de Zé Pelintra, personagem mítico da Lapa carioca. Rio de Janeiro, Record : Nova Era, 2004.
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Mestrado, Programa de Pós Graduação em História da Universidade Federal de Goiás, Faculdade de História, Goiânia, GO, 2009.
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