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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARABA
CENTRO DE CINCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM LINGUSTICA E ENSINO
LEITURA E RELAES DE GNERO: AS DISCURSIVIDADES DOS(AS)
EDUCADORES(AS) NAS MEDIAES DE PRTICAS LEITORAS
GILVA VASCONCELOS DA SILVA MATOS
Joo Pessoa
2014
GILVA VASCONCELOS DA SILVA MATOS
LEITURA E RELAES DE GNERO: AS DISCURSIVIDADES DOS(AS)
EDUCADORES(AS) NAS MEDIAES DE PRTICAS LEITORAS
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-
Graduao em Lingustica e Ensino da
Universidade Federal da Paraba, como
requisito parcial para a obteno do ttulo de
mestra pelo Mestrado Profissional em
Lingustica e Ensino.
Orientador: Prof. Dr. Onireves Monteiro da
Costa.
Coorientadora: Prof. Dra. Maria da Luz
Olegrio.
Joo Pessoa
2014
GILVA VASCONCELOS DA SILVA MATOS
LEITURA E RELAES DE GNERO: AS DISCURSIVIDADES DOS (AS)
EDUCADORES (AS) NAS MEDIAES DE PRTICAS LEITORAS
Dissertao avaliada em: ____/____/____
BANCA EXAMINADORA
Prof. Dr. Onireves Monteiro da Costa (UFCG)
(orientador)
Prof. Dra. Maria da Luz Olegrio (UFCG)
(coorientadora)
Prof. Dra. Maria de Nazar Tavares Zenaide (UFPB)
(examinadora)
Prof. Dra. Eliane Ferraz Alves (UFPB)
(examinadora)
Prof. Dra. Alvanira Lucia de Barros (UFCG)
(suplente)
Joo Pessoa
2014
Dedico este trabalho a todas as mulheres
militantes, quelas que deixam ao mundo o
legado de, por amarem o suficiente a vida,
desejam reinvent-la.
AGRADECIMENTOS
Sou profundamente grata a todos/as aqueles/as que deram de alguma forma sua
contribuio para que esta pesquisa fosse realizada. Reconheo e aqui me cabe demonstrar
que esta conquista tem um dar de mos que me permitiu aclarar questes e seguir, diante dos
momentos de tenso que emergem no trajeto das obrigaes acadmicas.
Primeiro e, sobretudo, agradeo a Deus, pelo esconderijo no Altssimo, pela
serenidade emanada dos seus braos!
Especialmente agradeo ao meu orientador querido, Prof. Dr. Onireves, porque me
acolheu do alto de sua sabedoria e grandeza humana, permanentemente me incentivando;
tornando tudo mais significativo e leve.
prof. Dra. Maria da Luz Olegrio, coorientadora, que carrega no nome o que me
ofertou quando mais precisei viso luminosa; sendo docilmente criteriosa no compartilhar
de seu conhecimento.
Agradeo prof. Dra. Maria de Nazar Tavares Zenaide, por suas sbias colaboraes
ao participar da banca examinadora de defesa deste trabalho. Seu olhar arguto trouxe a
grandeza de quem labuta por uma escola em que os Direitos Humanos encontrem assentos.
Agradeo prof. Dra. Eliane Ferraz Alves, por compor criteriosamente a banca
examinadora de defesa deste trabalho.
admirvel prof. da UNEB, Nadja Nunes, muito obrigada! Sua grandeza perdura em
minhas memrias de aprendiz. H um vazio de sua presena na composio para a banca de
exame de defesa, mas compreendendo os percalos do impedimento, saiba que no h
ausncia onde se ministrou um ethos. Mire, por ti tenho gratido pela vida inteira!
Agradeo prof. Dra. Juliene Pedrosa, coordenadora deste mestrado, referncia de
zelo profissional.
Agradeo escola TRAVESSIA e seus sujeitos pesquisados, por tanta abertura e
respeito com o meu trabalho.
Aos meus pais, Manuel (in memoriam) e Elisa, agradeo pelo amor, pelas lies de
vida, pelas narrativas dos sonhos.
Aos meus filhos, Pablo, Ravi e Lucas, que me fazem amar, amide, obrigada! Os trs
compem parte da magia de minha vida, pelo segredo de ninar, pela bno de colos
pacificados. Cada um unicamente um cntico novo, tesouros!
A Robert, pela vida partilhada, enlaada em afetos, obrigada!
Aos/s irmos/s, em especial Didi, que me nutre com fraternidade amorosa e
incondicional, devo-lhe muito!
Obrigada, deputada estadual Gilma Germano, pela propositura de leis de suma
importncia para a garantia dos direitos das mulheres.
Agradeo ao amigo de infncia Iranmil, pela lio de enfrentamento homofobia, pela
companhia na literatura, por falar muito e rir tanto.
Snia Maria, por me ofertar, ao longo dos anos, amizade das mais leves e alegres,
regrada a risos, companheirismo e adoo fraterna.
Aos/s colegas do mestrado, em especial Adnilda e Leandro, que so to solidrios e
inteligentes, tambm agradeo.
Aos meus alunos e alunas, com quem aprendi muito.
Ao meu chefe, o diretor do CECAPRO, Prof. Giovanny Lima, pelo estmulo s minhas
buscas pelo conhecimento, pelo compromisso com a educao.
Ins Caminha, ex-chefe, eterna lio de competncia e bondade.
competente secretria do CECAPRO, Adilsa Gadelha, pelo que tambm sabe ser:
amiga.
secretria do MPLE, Vera Lima, por sempre e tanto, atender respeitosa e
competentemente.
Lembrou-se de que em adolescente procurara
um destino e escolhera cantar. Como parte de
sua educao, facilmente lhe arranjaram um
bom professor. Mas cantava mal, ela mesma o
sabia e seu pai, amante de peras, fingira no
notar que ela cantava mal. Mas houve um
momento em que ela comeou a chorar. O
professor perguntara-lhe o que tinha: - que
eu tenho medo de, de, de, de cantar bem [...]
(LISPECTOR, 1979, p. 157)
RESUMO
As importantes conquistas efetivadas pelas lutas feministas e pela pauta
reivindicatria dos Direitos Humanos, que problematizam a construo social de gnero, tm
na escola espao dos mais importantes para o debate promotor da equidade de gnero. Esta
pesquisa se estrutura pela interface entre as prticas leitoras na escola e a promoo desse
debate e se prope a analisar as discursividades dos/as educadores/as, como mediadores/as de
leituras, acerca das relaes de gnero. Para este direcionamento discursivo, o estudo move-se
teoricamente na concepo de leitura em Soares (2001, 2011), Orlandi (2008) e Silva, E. T.
(2009, 2011); nos estudos feministas contemporneos (LOURO, 2012), (COSTA, 2009), nas
reflexes trazidas pela Anlise de Discurso (ORLANDI, 2012; POSSENTI, 2009) e nas
contribuies foucaultianas sobre poder e subjetividade (FOUCAULT, 2004a, 2004b, 2004c,
2011, 2012). A investigao de natureza qualitativa, regida por princpios analticos, tem
como lcus uma escola do Ensino Fundamental da Rede Pblica de Joo Pessoa-PB, na
realizao de seu projeto de leitura. Foram adotados como procedimentos metodolgicos para
gerao dos dados a anlise do documento do projeto de leitura, observaes de aulas, anlise
do material de leitura utilizado nesses eventos, dos relatos de dilogos com os/as
educadores/as e da aplicao de questionrio. E, conforme anlise dos resultados do conjunto
dos instrumentos investigativos, o debate sobre as relaes de gnero no perpassa pela
instncia do projeto de leitura da escola, nem nas vozes docentes perscrutadas.
Palavras-chave: Leitura. Gnero. Discurso. Prticas discursivas. Direitos Humanos.
ABSTRACT
The important achievements of feminist struggles and the Human Rights agenda,
which discuss the social construction of gender, find at school an important space for the
debate that promotes gender equality. This piece of research focuses reading practices at
school and the promotion of this debate, aiming at analyzing the discourses of (male and
female) teachers, as reading mediators, on gender relations. As its theoretical framework, this
study considers the definition of reading proposed by Soares (2001, 2011), Orlandi (2008)
and Silva, E. T. (2009, 2011); contemporary feminist studies (LOURO, 2012; COSTA, 2009;
PISCITELLI, 2002); reflections proposed in the field of Discourse Analysis (POSSENTI,
2009) and the foucauldian discussions on power and subjectivity (FOUCAULT, 2004a,
2004b, 2004c, 2011, 2012). This qualitative investigation has as its locus a public primary
school in the city of Joo Pessoa PB while developing its reading project. Data
wasgenerated from the analysis of the reading project document, lesson observations, reading
material used in the sessions, reports by the teachers and a questionnaire. The results indicate
that the debate concerning gender relations does not emerge in the reading project activities or
the teachers voices studied.
Keywords: Reading Gender. Discourse. Discursive practices. Human rights.
SUMRIO
INTRODUO ...................................................................................................................... 10
1 OS PRESSUPOSTOS TERICO-METODOLGICOS DA PESQUISA ............... 25
1.1 Entrevendo os sujeitos, o lcus, os jogos de verdade ....................................................... 25
1.2 Por onde falam e de onde olham os/as educadores/as: os instrumentos de
investigao ...................................................................................................................... 27
2 OS APORTES TERICOS QUE MOVEM A INVESTIGAO............................ 29
2.1 Gnero, Discurso e Direitos Humanos ............................................................................. 29
2.2 Feminismo, poder e educao .......................................................................................... 39
2.3 A leitura no Brasil em retratos ......................................................................................... 51
2.4 O sujeito da leitura na Anlise do Discurso ..................................................................... 64
2.5 Os processos de significao e subjetivao: a leitura como prtica social ..................... 69
2.6 A leitura como mediadora na ressignificao dos construtos de identidades .................. 72
3 ANLISE DOS RESULTADOS INVESTIGATIVOS ............................................... 82
3.1 O Documento-fundador: o no dito significando ............................................................. 82
3.2 O acervo bibliotecrio dos paradidticos: estantes que enunciam ................................... 87
3.3 Os relatos: as subjetividades, os jogos discursivos .......................................................... 89
3.4 O questionrio e outros relatos: entrelaando discursividades ......................................... 92
3.5 As aulas: o sujeito-leitor, o campo de gnero e as relaes de poder ............................ 113
4 A AO PROPOSITORA: INSERO TEMTICA DE GNERO PELA
VIA DA LEITURA ....................................................................................................... 125
CONSIDERAES FINAIS ............................................................................................... 136
REFERNCIAS ................................................................................................................... 142
APNDICE ........................................................................................................................... 150
10
INTRODUO
A Gnese da pesquisa: como (entre)veio o desejo
Movida pelo interesse entre leitura e relaes de gnero, investigo, com este trabalho,
as discursividades dos/as educadores/as, como mediadores/as de leituras, frente ao debate
sobre a equidade de gnero. Esta ao investigativa se d em uma escola do Ensino
Fundamental da Rede Pblica de Joo Pessoa - PB, que executa um projeto de leitura em sua
biblioteca, em um dia especfico, a sexta-feira, fato provavelmente responsvel pela
nomeao da atividade: a Cesta/Sexta Literria.
Os passos dados para a construo desta pesquisa possuem histria, imagens,
memrias, esquecimentos, desejos, uma gnese. Debruo-me agora sobre essa gnese. E creio
que duas imagens armazenadas por mim nas andanas escolares so possivelmente
fundadoras-mor de meu objeto de pesquisa. Elas, entre tantas imagens que se ofertam como
leituras propcias s reflexes sobre o debate da equidade de gnero na escola, so frugais em
minhas memrias de educadora, de mulher. Chegaram em contingncias especiais e se
tornaram efeitos encarnados, no sentido que o poeta Fernando Pessoa diz, que irrompem
provocaes. Foram por mim guardadas em um momento de inquietao, em que me
debruava sobre qual tema me atiaria profundamente para estudar neste mestrado. E, de
forma providencial e diligente, estas imagens me (s)acudiram a alma, quando as registrei,
pegaram-me pela mo e me levaram a uma itinerncia na qual so debulhados saberes,
poderes, palavras, ordens, aes discursivas de outros sobre mim que me fazem estar quem
estou. Mais do que isto, as imagens levaram-me, mesmo que medrosamente, a um desejo
profundo de discutir a construo das diferenas, as discursividades docentes acerca do
feminismo, as relaes de gnero e o lugar da escola como espao de debate e de construo
de equidade.
E foi assim que vivi a experincia de registr-las. Envolta pelo meu interesse
profissional de pensar a leitura como importante instrumento na formao discente, descobri
um trabalho em escolas da zona rural de um municpio paraibano, realizado por uma ONG,
muito bem conceituado. Pensei que poderia render um bom estudo avaliar como as histrias
contadas naqueles espaos poderiam funcionar como instrumento de mediao na construo
das identidades de gneros, na problematizao de papis socialmente construdos.
Discordando de minha orientao acadmica, que via com dificuldade a distncia
entre minha morada e meu objeto de estudo, no me incomodou o fato de viajar para me
11
enveredar na pesquisa. Muito pelo contrrio, achei que, em verdade, estaria ali, menina leitora
que fui em uma casa de pais analfabetos, onde livros eram objetos rarssimos por quem eu
nutria a paixo visceral. Viajei para ver crianas que liam, movida, quem sabe, por um desejo
de me visitar naquela roda de leitura? Na roda, a vida seria salva com a imaginao atiada?
Na roda, seria quem sou na interao das leituras? Ao certo, fui buscar narrativas que me
narrariam ou, em uma confluncia com o que diz Albuquerque Jnior (2007), iria simular o
germe de novas existncias, novos modos de subjetivao? Embrenhei-me por essa busca,
levando o fascnio pelo campo de gnero aonde for, aspirando ao meu interesse de escrevente
dispersa, atiada pelo fogo que vem da paixo que consome, que lana, paixo pelo devir,
to bem-dita na prescrio vertiginosa de Albuquerque Jnior (2007).
Em minha primeira visita na unidade escolar referida, era vspera do Dia das Mes e
o foco na roda da leitura trazia textos sobre a mulher-me. Imagens essencialistas da mulher
eram sumariamente expostas: por poder gerar vidas, ela paciente, sensvel, dedicada e
zelosa. Essa construo discursiva era traada naquela roda de leitura para e com crianas de
forma, inclusive, a se ignorar a j instalada e reorganizada nova composio das famlias. Isso
me gerou desconforto: o gnero o destino? No haveria outra trajetria? (SAFFIOTI,
2001). Mas naquela roda circulou um fato que marcou ainda mais minha tarde j quente
climaticamente. Surge, depois de alguns minutos de incio de aula, sala adentro, um pai
levando seu filho pequeno pela mo. O homem, visivelmente abatido, veio partilhar o recente
drama pessoal no qual estava mergulhado, que, em funo das propores espaciais da
comunidade, j parecia ser de conhecimento de todos/as: a ex-companheira e me de seu filho
fora embora com o amante. O pai, bem jovem, expressou ali uma unvoca e velha leitura: a de
que ele e seu filho foram trados, de que aquela mulher no prestava. A presena daquele
genitor ali, descontrolado, soou-me de forma vertiginosa. E ele teceu uma imagem da ex-
mulher, frente de todos/as e de seu filho, como a de quem no possua nenhuma dignidade.
Um discurso machista e essencialista era debulhado com os requintes de uma alma cega pela
ferida do abandono. Em pblico, ali se construa um lugar para as mulheres que decidem
partir, as que rejeitam o papel que lhes destinado: ficar em casa, embora o lar desmorone. E
a criana, mesmo enlaada pela condio de filho, em um misto de profunda dor e decepo,
reproduzia com movimentos de cabea toda uma narrativa demonizadora da mulher. Os
acenos de cabea voz do pai refletiam possivelmente um sim formao discursiva de um
lar alicerado aos moldes machistas, patriarcais.
Aquela cena me levou dor do peso de um mundo em que a iniquidade de gnero
ainda estilhaava seu poder nos olhos de um menininho choroso, carregado pela mo de um
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pai, que arrastava consigo machismo e furor. No final, entre os burburinhos dos/as
coleguinhas que diziam, entre outras coisas: A me de Felipe (esse um nome fictcio)...
ruim, ainda bem que a minha no me abandonou, eu ouvi a professora, em uma tentativa
desajeitada de compensar a dor daquela criana, intervir e dizer que se ele tinha uma me
ruim, em compensao contava com um pai bom, um heri. Essa educadora, talvez sem
refletir sobre o efeito de sua interferncia, sobre o jogo de verdade que a impulsiona,
posicionou-se como aquela que tem a responsabilidade de oferecer respostas, e o fez de um
lugar de autoridade do qual reproduziu significativamente os esteretipos de gnero. O seu
posicionamento se traduziu para mim como a delineao discursiva de papis alicerados aos
moldes androcntricos, e, por conseguinte, produtor da iniquidade de gnero. Isto me
impactou, pois, mesmo que sejam ressoadas corriqueiramente as construes discursivas da
hegemonia machista, no h como no buscar da escola o afinamento com a contra-
hegemonia que os avanos feministas asseguram. A ausncia deste afinamento um descuido
com os direitos humanos das mulheres e precisa ser inquirida, pelo menos para os amantes da
educao libertria.
Sa dali convicta de que aquele lcus no poderia ser mais apropriado para a
pesquisa. Aquela considerada tragdia emocional, que circulava nas bocas pelo lugar inteiro,
precisaria ser omitida em meu estudo, por obedecer ao princpio do anonimato, evitando
expor inclusive uma criana. Mas pensar as relaes de gnero e desconsiderar a fora
daquela imagem e da formao discursiva que ali reinava seria ser negligente com o tema,
com o trabalho. Resolvi guardar a imagem, falar sobre ela, mas procurar outro campo
emprico.
Alguns dias depois, voltei a conversar com a professora sobre aquele episdio. Agora
j no sob o efeito do impacto da cena do primeiro encontro, fui incisiva e lhe inquiri sobre a
construo social dos papis, sobre a desigual maneira de se constituir discursivamente
sujeitos e a responsabilidade da escola em formar para a igualdade de direitos de homens e
mulheres. Ela me disse que toda a sua conduo estava de acordo com os princpios cristos
defendidos pela escola, para os quais a mulher deve ser submissa, nascer para se doar
famlia, e o que fizera a me de F... era abominvel, negava a essncia feminina. A despeito
da laicidade do Estado brasileiro, o que implica em tese a negao da formulao de regras e
estratgias que levem a enunciados dessa natureza, a professora ocupa sua posio
institucional e embandeira uma verdade forjada em discursos alicerados em princpios da f
crist, turvada por machismo e hierarquia de gnero.
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Em um gesto decisivo, procurei outra escola para efetivar minha pesquisa. O Dia das
Mes j havia se passado e ali presenciei mais um momento indicativo de que os sentidos
afiados dos quais fala Louro (2012) um imperativo tico para que se pense nas muralhas que
a escola precisa transpor para deslegitimar ordens sexistas, androcntricas. Assisti, em uma
manh, em meio ao barulho comum de um intervalo nas escolas, um pai se dirigir diretora
falando alto por dois motivos: queria que sua voz ultrapassasse o som da zoada do alunado e
estava pronto a mostrar sua firmeza, sua fora em alto som. Ele exigiu explicaes desta
profissional sobre o que fora ensinado ao seu filho na festa das mes, tendo em vista que o
aluno expressou vontade de colaborar com as atividades domsticas em casa. A gestora
pacientemente explicou-lhe que apenas no momento das homenagens expuseram a reflexo de
que meninos tambm podem e devem ajudar as mes nas tarefas domsticas, considerando
que estas ficam sobrecarregadas costumeiramente. O homem retrucou ameaando retirar o
filho da escola se mais uma vez a instituio quisesse ensinar criana a virar uma
mariquinha. Ali, eu e ela tentamos dialogar com este pai enfatizando a importncia dos
direitos iguais para homens e mulheres, do valor da contribuio para a famlia do trabalho de
todos/as, e que a concepo dele infundada, machista e preconceituosa. Em vo. O homem
foi escola s para bradar seu entendimento do que significa ser macho. O que a instituio
pensa a respeito no lhe interessava.
De novo senti o peso de um mundo fortemente assimtrico, forjado em conceitos
essencialistas. Meu interesse pela problematizao das iniquidades de gnero no cho da
escola me seduziu de vez, pensei: com que produo de verdade os/as trabalhadores/as da
educao tm se movido (ou estariam presos?) no enfrentamento destes embates corriqueiros?
Escolhi ali mais uma vez por onde iria meu caminho investigativo.
Estes dois momentos nas escolas, em que experimentei cenas impactantes na
marcao da assimetria de gnero, perpassadas em voz docente e de membros familiares,
conforme j pontuei, foram nodais para a minha deciso de ter em foco essas relaes no
espao escolar como objeto de estudo. Mas, deveras, fui sendo seduzida pela ideia de
problematizar as assimetrias de gnero logo cedo, na minha casa cheia de meninos
treinados para conquistar espaos, enquanto que eu e minhas irms ramos adestradas
para o casamento, como tantas mulheres de minha gerao e anteriores a ela. Rezamos na
cartilha que a nossa formao discursiva ordenava. Filhos, lar, sexualidade reprimida, redoma,
sacrifcios em nome de modelos de felicidade. Modelos cujo formato tem cores,
consistncia e sons androcntricos. Tudo aquilo no era escolha, ou, no dizer de Michel
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Foucault (2004a, 2004b, 2012), a margem de liberdade era estreitssima. Era o poder
alicerando as relaes, imbricado na instituio famlia.
Onde h poder, h resistncia, diz esse pensador francs, todavia. |E os estudos no
campo de gnero, como enunciados de resistncia, chegaram-me. Com eles chegaram os
compassos que desfazem os essencialismos. Em suas vertiginosas paragens, os
(des)compassos que explicitam o surdo combate entre o que se v, seu enredamento, e o que
se diz, como bem pontua Albuquerque Jnior (2007). E, em um processo vital, acostumei-me
com esse campo de estudo a afiar os meus sentidos, muito embora, s vezes fiquem
embaados por uma memria discursiva que se desloca conflitando identidades que me
vestem e com as quais me perco e me acho. Nos estudos ps-estruturalistas, entendi meus
sujeitos dispersos, a heterogeneidade discursiva que me faz ser tantas, com verdades mil que
fazem viver dentro de mim todas as vidas do poema de Cora Coralina (1983): a cabocla
velha, acocorada, a que benze e a que reza; a lavadeira do Rio Vermelho, com seu cheiro
gostoso, a mulher suada, corrida; vive dentro de mim a mulher cozinheira, pimenta e cebola;
panela de barro, mas corro levando a mulher devoradora de fastfood. Vive dentro de mim a
mulher roceira, enxerto da terra, meio casmurra, vive a mulher urbana, imersa no caos do
trnsito, enredada nas redes sociais... E o que fao com tantas vidas? Certamente, com os
estudos de gnero, posso desejar v-las em seus processos de subjetivao em um mundo
plural, mas hegemnico, global, movente, instantneo, lquido, que pode desfazer verdades,
quebrando a gaiola do essencialismo, como propem os Estudos Culturais.
Decerto que sempre se constituiu para mim como ato de seduo o garimpar das
subjetividades, que se fazem em meio a jogos de verdade, como demonstra Foucault (2004a,
2004b, 2004c, 2004d, 2012). Ultimamente, todavia, perscrutar nossos/as mestres/as, sem as
pequenas pretenses de quem desvenda, descobre o oculto, como nos adverte o filsofo
francs, mas pensando nas histricas condies de produes de suas subjetividades,
constitua-se mais fortemente como desejo e apreenso. Minha apreenso de pesquisar modos
de subjetivao de professor/a se dava pela frequncia com que vinha registrando os
enunciados da categoria, que descrevia com muito pesar a atuao profissional: salas lotadas,
baixos salrios, perda de autoridade, violncia, desinteresse dos/as discentes, sentimentos de
desvalorizao, frustraes, enfim, uma homogeneidade de queixas perpassando as vozes
dos/as educadores/as. Obviamente, as precrias condies de trabalho justificam os dolorosos
enunciados dos/as trabalhadores/as da educao. Esses/as profissionais, se no se inserem na
militncia, na defesa de polticas pblicas voltadas para a educao de qualidade, no ativismo
poltico, na busca pelas prticas de liberdade, pelas tcnicas de ajuste da relao de si para
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consigo, um ethos, que repousam em uma tica do inconformismo, do autodomnio,
(FOUCAULT, 2004a), tornam o repertrio enunciativo bem marcado por insatisfao. Como
a militncia pouca, sobram a lamria e a vitimizao, em um pas com vergonhoso histrico
de baixo investimento na educao pblica.
Ainda assim, paradoxalmente, minha apreenso se misturava ao desejo de me
debruar sobre as subjetividades desses/as profissionais. Pegava-me indagando: quais so,
face aos efeitos produzidos pelas tecnologias oficiais, essas concebidas aqui na concepo
foucaultiana, como os instrumentos que proporcionam formaes, assimilaes de ordens, as
aprendizagens que tm assimilado os/as educadores/as? Como os debates sobre sexualidade e
gnero, trazidos pela rede discursiva das diretrizes da educao brasileira, como a Lei de
Diretrizes e Bases da Educao Nacional - LDBEN-96, os Parmetros Curriculares Nacionais
(PCNs, 1997), faziam-se presentes entre eles/as? Essas questes me instigavam. E me
instigaram mais quando pensei a interface discursividade/leitura/gnero.
Retornando seduo pela problematizao da iniquidade de gnero, fui sendo
seduzida ainda em dcadas de atividade como professora em sala de aula. L, lecionando em
nveis diversos (fundamental, mdio e superior), procurei sempre trazer tona a constituio
discursiva da construo social de gnero. Sentia-me cumpridora de minha misso como
educadora quando a minha prtica pedaggica contribua com a reflexo que aponta para a
necessidade de construirmos um mundo para todas as pessoas. Uma utopia, e, como utopia,
no morre, move-se. Est aqui comigo. Est aqui quando olho nossas estatsticas estpidas
que falam de uma violncia diria contra mulheres, contra homossexuais, contra o constitudo
como diferente. Est aqui comigo a utopia de abolir esta violncia simblica, cantada em
diversos ritmos, encarnada em uma musicalidade que embala corpos e mentes com pesadas
imagens degradantes nas quais somos apenas as mulheres frutas, fiu-fiu, cachorras, sirigaitas,
piriguetes, popozudas, coisificadas, lepolapizadas.
No surgimento deste mestrado profissional, ento, em meus percursos sobre o tema,
olhei para a escola, especialmente rememorando aquelas duas cujas imagens retive como
disseminadoras e reprodutoras de hierarquia de gneros. Olhei para suas bibliotecas, ou a
ausncia delas, seus/suas professores/as, seus regimes de verdade e articulei a problemtica:
de que forma as prticas discursivas, que constroem sentidos nos enunciados dos (as)
educadores (as), como mediadores (as) de leitura, contemplam o debate sobre a equidade de
gnero? Com a elaborao desta questo tentei responder ainda s inquietaes que vivi, nos
debates com professores/as, durante as formaes continuadas executadas pelo CECAPRO,
Centro de Capacitao dos Professores [professoras], onde atuo profissionalmente. Da
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memria daqueles debates, levantei indagaes a me sustentar o tema, entre elas: que leituras
fazem as vozes educadoras sobre a construo discursiva dos sujeitos? O que dizem as vozes
leitoras? Voltei, ento, meu interesse para o cho da escola, lugar de livros, de paredes
riscadas, de brincadeiras, de canes, de namoros, de sexualidade, de conflitos, de poder, de
rejeies aos que fragilizam o discurso sexista, excludente, lugar de leitura, de formao e
debate. Voltei meu interesse para a escola, lugar de tanto, mas no para todos os seus lugares:
uma esfera de atuao dessa instituio pareceu-me de extrema pertinncia para entrecruzar
com o debate que objetivei traar, a esfera da leitura. E, considerando a leitura em uma
perspectiva discursiva, busquei, no entrecruzamento dessa com o debate acerca das relaes
de gnero, meu interesse, meu desejo.
Aps tecer a gnese que propiciou a confeco do presente processo investigativo,
farei, a partir de agora, a apresentao das demais partes do trabalho, feito que passo a realizar
fazendo uso ainda da primeira pessoa do discurso no singular. Fao isso em consonncia com
a epistemologia feminista, que entende o quo as interlocues com autores/as so
cooperativas em uma ao investigativa, seja de qual porte for, mas assume a proposta de
inscrio da no neutralidade do sujeito. Sem a iluso, ao certo, de que se o/a dono/a do
dizer, conforme pontua a Anlise do Discurso.
Como o desejo vira pesquisa:
Mas biblioteca num lugar como esse! Para qu? Para o Nogueira ler um romance
de ms em ms. Uma literatura desgraada [...].
(RAMOS, 1978, p.83)
Emblemtica esta construo literria de Graciliano Ramos, em So Bernardo
(1978), construo que situa quem a l o quanto os valores capitalistas opem-se edificao
de um espao que privilegie a democratizao do saber, e, atravs dessa, provavelmente, a
prtica do letramento emancipador. Vale ressaltar, todavia que falo aqui de letramento
emancipador concebido em sintonia com o olhar de Soares (2011), como a ao leitora que
encoraja a reflexo crtica sobre a ordem social, uma ao que ultrapassa o domnio da
tecnologia do saber ler e escrever, faz uso dela, incorporando-a a seu viver. A autora, ao
inscrever diacronicamente os vnculos sobre lngua escrita, sociedade e cultura, apregoa o
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termo alfabetismo1, como oposio ao do costumeiro uso analfabeto. E o faz provocando uma
reflexo sobre as regras codificadas da linguagem:
O fato de que sejam correntes na lngua os substantivos que negam- analfabetismo e
analfabeto so formados pelo prefixo grego a(n), que envolve a ideia de negao e
de que cause estranheza o substantivo que afirma alfabetismo, e, ainda, de que no
se tenha um substantivo que afirme o contrrio de analfabeto, , como bem
hipotetiza Silva, um fenmeno semntico significativo: porque conhecemos bem, e
h muito, o estado ou condio de analfabeto sempre nos foi necessria uma
palavra para designar este estado ou condio - e temos usado sem nenhuma
estranheza o termo analfabetismo. (SOARES, 2011, p. 29).
Uma nova realidade social, com a ampliao do acesso escola, nas ltimas dcadas,
e com o processo de industrializao no Pas, provoca uma demanda por maior insero da
lngua escrita, que gesta a concepo terica do letramento. Um conceito que, em princpio,
trouxe muito equvoco com a dissociabilidade que se instaurou para alguns entre os
fenmenos da alfabetizao e do letramento. Fenmenos de naturezas diferentes, mas
indissociveis e interdependentes, que implicam habilidades, competncias e procedimentos
diferenciados de ensino. Questo, porm, que no ser tratada aqui, em funo do limite a que
se prope este trabalho, qual seja: investigar a constituio de efeitos de sentidos na
discursividade dos/as educadores/as, tendo como foco o debate sobre as relaes de gnero,
perpassado nas prticas leitoras desses/as profissionais.
E, mesmo sem querer engrossar as fileiras dos que lamentam pelos altos ndices do
frgil desempenho dos/as educandos brasileiros/as em provas de leitura, detectados em
Programa Internacional de Avaliao de Estudantes - PISA, e nos relatos corriqueiros de
educadores/as e familiares, no possvel deixar de reconhecer que este um dos ns do Pas,
na faceta So Bernardina que possui. Metaforicamente, essa obra pode conduzir leitores/as
aos ngremes caminhos de um Brasil com abissais desigualdades sociais e que, tal qual Paulo
Honrio, o narrador-personagem, tambm injusto, violento e opressor, por descuidar de seu
povo. Descuida de seu povo, entre tantas evidncias, pela negao da garantia efetiva de
direitos fundamentais, como o de uma educao de qualidade e que seja emancipadora (cf.
FREIRE, 1999, 2002). possvel ver, pelos caminhos de So Bernardo e pelos (des)caminhos
das escolas pblicas brasileiras, as professoras Madalenas, amantes do saber, dos livros e do
ser humano, lutando contra a lgica de um sistema social excludente. Nessa militncia, a
leitura, seguramente, um dos instrumentos que podem viabilizar a luta por mudanas
1 Em nota, a autora explica a atualizao do termo por letramento, tendncia confirmada pela dicionarizao
somente em 2001 do termo.
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sociais, tendo em vista que pode suscitar as reflexes acerca da ordem discursiva (cf.
ABREU, 2007 apud PINA; DA MATTA; VEIGA, 2012).
De qual leitura, todavia, falo quando penso aqui na validao desta como algo
significativo para a vida, capaz de suscitar reflexes instigantes e desconstrutoras de uma
ordem social? Penso em uma leitura que seja prazerosa, como nos lembra Rubem Alves
(2004), citando Melanie Kleim: o professor [e professora] no ato de ler o seio bom, por isso,
leitura maternagem. Penso tambm em uma leitura que seja experincia, no sentido que
Larrosa (2004) d ao ato de ler, como transformador, vinculador das prticas da liberdade, da
plenitude do existente. Com todo cuidado para evitar ainda os messianismos, as
sacralizaes, Soares (2001), falo ainda de leitura que seja lenha para o fogo da cidadania, que
trace as veredas para o campo da garantia dos direitos humanos, tocando um instrumento
csmico, de muitas melodias, que acordem conscincias de homens [e de mulheres] e
adormeam crianas, no sentido drummoniano de se engajar a arte, to meldico quanto
emblemtico, na sua clebre Cano Amiga de 1983.
E, partindo do desejo de problematizar sobre os efeitos catastrficos dos altos ndices
de iletrismo e do analfabetismo no Brasil e sobre qual tem sido o olhar da escola para o
enfrentamento de uma histrica educao sexista e discriminatria (LOURO, 2012; PEDRO;
PINSKY, 2003), que se foi delineando este trabalho. Delineando-se movido na concepo
de leitura como componente constitutivo das formas de sociabilidade e dos jogos sociais
(ORLANDI, 2008; SILVA, 2011), nas discusses foucaultinas sobre a constituio do sujeito
e prticas de subjetivao (FOUCAULT, 1995, 2004a, 2004b, 2012); alm de movido em
contribuies de estudos feministas (LOURO, 2012). Delineando-se para responder
questo-problema que considera os avanos conquistados pelas lutas feministas e a tensa
disputa que se instala entre tais conquistas e as assimetrias de gnero no espao escolar, e
assim proposta: contemplado o debate sobre a equidade de gnero, perpassado nas vozes
educadoras em suas prticas leitoras?
Essa questo parte de premissas fatuais que me inquietam e me levam a
problematizar: os imaginrios2 inferiorizantes da mulher operam no espao escolar de que
forma, quando a este lugar chegam avanos significativos das diretrizes do Conselho Nacional
de Educao CNE- pontuando a desconstruo dessa prtica? Seria este debate ignorado ou
pensado sobre traos negativos? Outra questo que me instiga a problematizar a de que
teriam os(as) docentes a concepo de que uma escola democrtica prima essencialmente pelo
2Imaginrios aqui na acepo dada por Castoriadis (1982) enquanto rede de sentidos, sistema de crenas que
legitima a ordem social em vigor.
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respeito e dignidade de todos/as, e de que as prticas pedaggicas tm constitudo sujeitos
diferentes e desiguais em direitos? Ademais, qual o comprometimento manifesto pelas
prticas pedaggicas desses/as educadores/as para evidenciar suas intenes de superar velhas
estruturas: estariam usando a leitura, como instrumento constituinte e conformante dos
sujeitos, para mediar reflexes atinentes construo de uma escola democrtica, inclusiva e
no-sexista?
Considerando, desse modo, que a pergunta problema possui como eixo centralizador
a ateno que as prticas leitoras da escola dispensam ao debate sobre as relaes de gnero,
refletidas pelas prticas discursivas docentes, objetivo geral deste trabalho: analisar as
discursividades que produzem sentidos nos enunciados de educadores/as, como mediadores
(as) de leituras, frente ao debate sobre as relaes de gnero, no projeto Cesta/Sexta Literria,
em uma escola da Rede de Ensino Municipal de Joo Pessoa.
Para apoiar essa investigao, que perspectiva observar a vinculao da leitura como
forte pilar na construo de um mundo mais justo e na desconstruo de imaginrios que
inferiorizam a mulher, que criam uma ordem androcntrica, heteronormatizadora e
excludente, vinculao essa mediatizada nas vozes dos educadores(as), compete-me traar
como objetivos especficos: (i) examinar se na proposta do projeto de leitura da Cesta/Sexta
Literria, expresso em seu documento, ocorre seleo de temas que abordem questes
voltadas para as polticas educacionais de gnero; (ii) investigar se os textos utilizados pelo
projeto nas aulas de leitura observadas contemplam prticas discursivas que produzam
sentidos atinentes s questes de gnero; (iii) problematizar efeitos de sentidos que perpassam
pelos relatos docentes e pelo questionrio, instrumentos aplicados junto s/aos educadores/as,
expressando as posies de sujeito dos/as entrevistados/as acerca das relaes de gnero, em
momentos de interao na prtica leitora; (iv) contribuir com reflexes que sistematizem
estratgias que propiciem a interveno e transformao da prtica pedaggica na perspectiva
da construo da equidade de gnero.
Por ser a escola a instituio responsvel pela aquisio de saberes e competncias
no plano da formalidade, e que esta tem no ensino da leitura uma de suas funes cruciais,
pesquisar o ato de ler na escola de muita relevncia, a despeito de este tema sumamente j
ter sido explorado. Tal questo j fez com que muitos/as tericos/as e estudiosos/as de
diversas reas se debruassem a estud-lo: a quantidade de livros, artigos, teses e dissertaes
sobre o ato de ler e suas implicaes so magnnimas. Paulo Freire (1988), Ezequiel
Theodoro da Silva (2009, 2011), Magda Soares (2001), Antunes (2009), Orlandi (2008), entre
tantos/as outros/as importantes tericos/as, j teceram suas consideraes sobre a leitura que
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aqui encheriam pginas. Haver o que dizer mais? Parece que no, para quem desconsidera
que o inusitado visita a dinmica do ato de ler em um contexto escolar com frequncia. Mas
para quem deseja olhar para as prticas pedaggicas com olhos novos, olhos de quem capaz
de se indignar e de no perder de vistas a utopia, sempre vista, na faceta Madalena de cada
um, h sempre o que se dizer no cho da escola leitora ou no leitora. E em busca deste
dizer sobre ler, que me enceta o desejo de ver, como educadora que sou, homens e mulheres
em processos de libertao, desconstruindo verdades, aprendendo com e pela leitura a
refletir sobre seus lugares no mundo, que me ponho.
E assim, compreendendo a leitura como espao de produo e de reproduo de
significados sociais, e objetivando analisar de que forma educadores/as esto forjando
construes acerca das identidades de gnero, em suas prticas leitoras, que se desenha a
importncia desta pesquisa. Isso se justifica porque, entre as funes da leitura, deve estar a
de viabilizar as problematizaes que faam leitores/as despertarem para a cidadania ativa, o
protagonismo e a autonomia. Esses aqui entendidos em uma perspectiva que traduza a
autonomia financeira, profissional e pessoal das pessoas e a sua busca pelo ativismo poltico,
que expressa conscincia de lugar no mundo.
E estudar as discursividades que perpassam o debate sobre as relaes de gnero,
mediatizadas pelas leituras no espao escolar, desejar averiguar se este instrumento de
aprendizado est sendo usado para desmantelar as assimetrias de poder entre homens e
mulheres em um espao formador. desejar averiguar enfim se este instrumento est sendo
amparo para questionar esteretipos e verdades cristalizadas, naturalizadas em torno de
construes de identidades de gnero. Obviamente que essa uma das possibilidades de
utilizao da leitura se este instrumento na escola estiver em consonncia com as diretrizes
educacionais que concebem a importncia de se fazer da instituio um espao democrtico.
Um espao em que se faa fluir o respeito alteridade, compreenso de que a identidade e a
diferena so produzidas discursivamente e que tm a ver com a atribuio de sentidos ao
mundo social e com a disputa e luta em torno dessa atribuio (SILVA, 2012). A leitura nessa
perspectiva problematizadora tem a estratgia de ir alm das benevolentes declaraes de
tolerncia com o outro, com o diferente. Ela tem em seu centro a percepo de que as
identidades so sujeitas a uma historicizao radical, processo que deve lanar luz s
reflexes que transformam o diferente em exterior, abjeto (HALL, 2011). Nessa dimenso, a
leitura faz parte de um projeto poltico que intenta viabilizar a crtica da construo da
identidade e da diferena, evidenciando o quanto elas so estrategicamente produzidas,
fundadoras. Conceber adequadamente a fundao do outro pode desenredar a forma fechada,
21
redutora de interpretaes a que esse reduzido. E a leitura pode ter uma funo fulcral nesse
processo de reflexo, quando pensada estrategicamente para isso, ao relevante para a
contribuio com a feitura da escola como palco em que a assimetria de tratamentos
combatida, em seu lugar h a poltica de respeito pelos Direitos Humanos (DH, doravante).
O princpio da dignidade dispensado a todas as pessoas, conforme preconizam os DH
em muitos de seus documentos (cartas, convenes, estatutos, declaraes) e nosso
ordenamento jurdico maior, a Constituio Federal de 1988, reclamante contumaz de um
olhar pedaggico que discuta as diferenas, a construo das identidades de gnero e da
alteridade. E na escola soam e ressoam documentos que abordam polticas da diversidade
cultural, sexual e da equidade de gnero. Mas de que forma o debate chega, em um mundo em
que emerge uma globalizao mpar, de informaes velozes, instantneas, onde se discutem
identidades culturais e desconstruo de paradigmas de comportamentos em meio aos
pensamentos hegemnicos? Chegar esbarrando em construes sociais dos/as fazedores/as
da educao, que se apresentariam cristalizadas, essencializadas, fixas? Como tem, por fim,
assentado na agenda da escola o debate acerca das relaes de gnero? Qual o seu regime de
verdade, no sentido foucaultiano de pensar a formao discursiva como o lcus onde
arbitrariamente so determinados os sentidos de um discurso? Os muros escolares so
atravessados de que modo pelo debate que provoca as reflexes sobre a produo do
diferente? So indagaes como essas que me conduzem execuo deste trabalho. Isso
merece meu olhar, merece porque para que falemos de dignidade, precisamos atentar para a
condio feminina ainda envolta por iniquidade, expressa na esfera profissional, poltica e
pessoal. E para que falemos de dignidade, precisamos respeitar as manifestaes de desejos e
performances de outras interlocues, de outras subjetividades, que devem ser reconhecidas
como legtimas.
O debate sobre as relaes de gnero, impulsionado pelo ativismo poltico do
coletivo de mulheres, chega e deve ser ampliado, porque vale pleitear que o princpio da
igualdade formal e material entre homens e mulheres tenha seu cumprimento auferido.
Igualdade essa que est distante de ser conquistada, muito embora menos longe do que j
esteve, no longo caminho rumo construo da cidadania feminina. Ainda, fato, h menos
mulheres nas instncias de poderes do que deveria: no Brasil, de acordo com dados do
Anurio das Mulheres Brasileiras (DIEESE, 2011), elas so mais da metade da populao (51,
3%) e do eleitorado, esto, entretanto, sub-representadas nas esferas de poder. So 11% no
Congresso Nacional; no chegam a 20% nos nveis mais elevados do Poder Executivo. No
Judicirio, nas universidades e empresas privadas ocupam apenas 20% das chefias. tambm
22
outro bice igualdade de gnero, a preocupante materializao do machismo em forma de
agresso s mulheres. Conforme ainda os dados do referido Anurio, uma em cada cinco
brasileira j sofreu algum tipo de violncia domstica por parte de um homem. Das violncias
perfiladas, nem todas so computadas. H a cultura do medo e da vergonha da sua condio
de vtima que impede que a mulher denuncie seu agressor, e mesmo havendo campanhas e
aparato legal que mobilizam a denncia da violncia contra a mulher, ainda se fala em
subnotificao dos dados. De fora fica ainda a costumeiramente no computada, a intangvel
violncia simblica, termo que tomo de emprstimo de Bordieu (2012), que fala da
sedimentao de um consciente androcntrico, em homens e mulheres, alimentando
iniquidades. Esta violncia no est em estatsticas, mas deixa sequelas profundas em suas
vtimas, fazendo muitas mulheres carregarem em si sentimentos de impotncia, mutilao e
subalternidade.
A escola tem o fio do poder que costura e regulamenta normas e mudanas que
disciplinam comportamentos, hegemonias (PEREIRA, 2005). Mas o poder no estanque,
fixo, h, neste espao, como em todos os outros, lugar para a resistncia e a contra-hegemonia
(FOUCAULT, 2012). E de que forma tm chegado os discursos que problematizam as
mudanas que advogam os movimentos de mulheres e fazem ressoar seu desejo de
desmantelar, de descosturar as assimetrias de gnero? Como a leitura e as vozes escolares
ressoam o que regula a valente marcha feminista que pode contribuir com o combate
violncia domstica, com o empoderamento das mulheres e dar visibilidade iniquidade de
gnero: de forma refratria? Acolhendo seus passos? Como a leitura e as vozes escolares
abordam a temtica das identidades e da diferena: do centralidade e a discutem como
questo de poltica? Estas questes imbricam-se e com elas penso a linguagem no campo da
discursividade, da construo dos jogos de poder, da constituio de sentidos, verdades e
subjetivaes (FOUCAULT, 1995, 2004a, 2004b, 2012), o que sempre um desafio
instigante para o/a educador/a. Essa temtica premente, sendo assim. H uma expectativa de
que seja sedimentado o aprendizado de que as relaes de dominao esto sempre inseridas
em contextos e processos socialmente estruturados, legitimando, naturalizando e retificando
hegemonias, mas tambm sofrendo transformaes.
Para que o direcionamento discursivo, levantado pela questo norteadora, satisfaa
aos objetivos a que me proponho, este estudo move-se teoricamente na concepo
sociointeracionista de leitura e faz uma interface com a Anlise do Discurso, AD doravante,
tendo como referncia o trabalho de Orlandi (2008) sobre leitura, que se pauta na perspectiva
da Escola francesa dessa disciplina. Trabalho com a concepo de leitura na perspectiva de
23
que ler mais do que decodificar (SOARES, 2011). Ler envolver-se com prticas culturais
(MOITA LOPES, 2002) que fortalecem a sedimentao do valor da cidadania, que pressupe
efetivao de direitos e deveres para todos. Ler ento deixa de ser uma atitude passiva,
fechada, tradutora, decodificadora, em que se busca a verdade, produzida pelo/a autor/a ou
pelo texto, se se quiser ser positivista ou estruturalista. A leitura que me interessa aqui se
ancora na perspectiva interacionista, que concebe o aspecto sociocultural e cognitivo da
linguagem, e como tal, o texto processo, e no produto. A leitura uma atividade situada,
que reflete uma relao dialgica, (cf. BAKHTIN, 1995), ou seja, uma relao na qual se
estabelecem refraes entre autor-leitor-texto e contexto. Essa perspectiva expressa um
rompimento com o modelo formalista ou historicista, e tem havido um esforo, por parte dos
rgos responsveis pelas polticas de formulao das diretrizes escolares, para implement-la
no seio escolar. Os Parmetros Curriculares Nacionais (PCNs-1997) refletem essa inteno:
os textos so defendidos em sua diversificao e na defesa da construo de competncias
lingusticas, com desenvolvimento da habilidade leitora e escritora que ultrapasse a mera
decodificao no processo de ensino aprendizagem.
Por este trabalho buscar uma interface entre a linguagem como prtica social e as
relaes de gnero, perscrutadas nas vozes docentes em atividades de leitura propostas pela
escola, tambm lhe pertinente a abordagem das formas de constituio da subjetividade
(FOUCAULT, 2004a, 2004b, 2004d). Estou ainda me movendo pelos estudos da crtica
feminista, dos estudos ps-estruturalistas de gnero na contemporaneidade, que buscam a
negao de quaisquer resqucios de uma base essencialista para a formao das identidades
(LOURO, 2012; SILVA, 2012), ao tempo que questionam as hierarquias entre o masculino e
o feminino, a ordem androcntrica, heteronormativa e etnocntrica. desse olhar que me
sirvo para, diante do que pontuam os Estudos Culturais, consonantes construo das
identidades como cambiantes, heterogneas, transitivas, construdas e reconstrudas social e
discursivamente, refletir sobre as implicaes de se ler no espao escolar. Refletir atentando
para o discurso pedaggico que d sentido s diferenas entre meninos e meninas, s relaes
de gnero. E desse olhar que tambm me sirvo para aprender sobre a conscincia de gnero
e sobre o desafio da aprendizagem de transformar os jogos de verdade que impem relaes
assimtricas. isto o que me enreda neste trabalho.
Articulo esta dissertao em partes que se estruturam assim: a introduo, na qual
consta a contextualizao da temtica focalizada, com a sua gnese, a apresentao do
problema, dos objetivos, da justificativa e dos pressupostos tericos que embasaram a
pesquisa.
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No captulo 1, exponho as estratgias metodolgicas com as quais me vali para que o
direcionamento discursivo apresentado, que a investigao das discursividades docentes em
leitura e gnero, satisfizesse aos objetivos a que me propus construir para este estudo.
No captulo 2, pontuo uma justificativa do campo terico, apresentando estudos de
autores/as utilizados/as, bem como pontuo o cruzamento entre a instncia da leitura e o debate
sobre as relaes de gnero, sustentado por reflexes atinentes aos Direitos Humanos, ao
feminismo, ao poder, educao e aos modos de subjetivao.
No captulo 3, discorro sobre a anlise das prticas discursivas dos/as educadores/as,
perscrutadas pela trajetria analtica que fiz, cujo procedimento para gerao de dados teve os
seguintes instrumentos investigativos: o documento do projeto de leitura, os relatos dos/as
educadores/as, que foram gerados em conversas quando de minhas visitaes escola, um
questionrio aplicado com nove participantes do projeto de leitura da escola, e a observao
de aulas, dos textos utilizados nesses eventos e levantamento dos textos paradidticos
presentes na biblioteca escolar, que se refiram temtica de gnero.
No captulo 4, atinente perspectiva interventiva, propositora, que tem este mestrado
profissional, desenvolvo reflexes que intencionam contribuir para a insero temtica de
gnero, pela via da leitura, na escola em que a pesquisa foi realizada. Fao, ao final deste
captulo, sugestes de atividades de ensino enfocando o olhar sobre as relaes de gnero.
Por ltimo, apresento as consideraes finais com as quais objetivo amarrar os fios
tecidos ao longo do trabalho, considerando os contedos enfocados e reforando a defesa de
se inserir o debate acerca das relaes de gnero, pela via da leitura na escola,
problematizando os modelos de feminilidade e masculinidade, na defesa da dignidade de
todas as pessoas.
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1 OS PRESSUPOSTOS TERICO-METODOLGICOS DA PESQUISA
1.1 Entrevendo os sujeitos, o lcus, os jogos de verdade
Partindo do entendimento de que a pesquisa a que me proponho realizar, que a
anlise de prticas discursivas de docentes sobre as relaes de gnero, como mediadores/as
de leituras, exige um dispositivo analtico, busco, nos procedimentos da AD de filiao
francesa, como nas reflexes foucaultianas sobre prticas de subjetivao e poder, nas
reflexes ps-estruturalistas sobre gnero e na perspectiva sociointeracionista sobre leitura,
um apoio terico-metodolgico. Nesse sentido, estou imbuda do propsito de percorrer essa
investigao, conforme as diretrizes desse caminho investigativo, considerando que no h o
sentido verdadeiro, mas o real do sentido em sua materialidade lingustica e histrica
(ORLANDI, 2012). Estou tambm imbuda do intento de que, com este dispositivo, no
vislumbro trabalhar em uma perspectiva de neutralidade, tendo em vista que concebo a
pesquisa com base nas prticas discursivas, focada nos estudos feministas e nas relaes de
gnero, sob a tica do interesse, do engajamento poltico (ALBUQUERQUE JNIOR, 2007;
LOURO, 2012).
Essas condies refletem o que as problematizaes levantadas pelo feminismo, no
tocante lgica de se fazer cincia tradicional, com seus postulados de estabilidades e
categorizaes, trouxeram. Trouxeram a descrena de que entre as palavras e as coisas existe
uma homologia, que se diz exatamente o que se v (ALBUQUERQUE JNIOR, 2007;
POSSENTI, 2009). Antes, os estudos de gnero de base ps-estruturalista explicitam que h
uma inveno do que sermos mulheres/homens, de que h uma inveno do que sermos
meninos e meninas, de diversas classes, diversos tempos, etnias e orientao sexual,
construda discursivamente. E a reflexo sobre o que nos tornamos como seres gendrados e
em que poderemos vir a ser como seres que se descobrem gendrados, empodera-nos como
investigadores de desaprendizagens, pela possibilidade de conhecimento de jogos de verdades
(FABRCIO, 2006).
Os estudos de gnero, como uma via que se oferece para o entendimento das relaes
assimtricas entre os sexos, explicitam ainda o atravessamento pelo poder institucionalizado,
que confere historicamente o domnio do masculino. Lugares diferentes no mundo chegam a
homens e mulheres por um conjunto de aes formadoras, constitudas discursivamente por
smbolos culturais, institucionalizaes e modos de subjetivao que constituem relaes
assimtricas com o corpo, com a sexualidade e afetividades para os sujeitos sociais. Refletir
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sob esta perspectiva me faz desejar perceber meu entorno, olhando a linguagem, a cultura e as
instituies sob a tica do interesse na construo dos processos sociais. E o olhar do
feminismo, deveras, trouxe novas lentes sobre a pesquisa cientfica. Louro (2012) pontua que
uma das caractersticas relevantes dessa epistemologia diz respeito forma como as
estudiosas empenham-se em responder questes atinentes s suas realidades, aos seus campos
de interesses, mescladas no como vozes annimas de seu objeto de estudo, mas como vozes
que, de modo provocativo, posicionam-se histrica e culturalmente, imiscuindo objetivamente
subjetividades. E com este entendimento que intenciono subsdios para um estudo sobre a
discursividade, em uma interface com a tica das relaes de gnero e da leitura, sob o crivo
de um convite a examinar ordens morais e estruturas de legitimao.
Esta investigao de natureza qualitativa, regida por princpios analticos, foi,
conforme j exposto, concebida para ser realizada em uma escola da Rede de Ensino
Municipal de Joo Pessoa - PB, cuja identificao ser preservada. A preservao deve-se
consonncia com um mecanismo de proteo, o anonimato, como compromisso tico
possvel, conforme Spink e Menegon (1999); embora, salientem as autoras, este ponto de
vista no seja pacfico. Para minha compreenso, uma proteo, exceo se d quando os
sujeitos manifestam o contrrio, o que no foi o caso. Assim o sendo, para a identificao
deste espao pesquisado, resolvi denomin-lo de escola TRAVESSIA. Esse batismo traduz
meu olhar para o ambiente de ensino-aprendizagem alimentado na esperana freireana pelo
inacabamento em ns, educadores, seres humanos. Mesmo emparedados/as, preciso pensar
nas travessias. Da mesma forma que o campo pesquisado tem um nome fictcio, os sujeitos
participantes desta investigao tambm foram denominados ficticiamente.
Essa unidade educacional funciona nos dois perodos, com turmas do 6 ao 9 ano,
em um prdio construdo h menos de dez anos. Possui 385 discentes e 25 docentes,
composta por dez salas de aula, sala de artes, laboratrio de informtica, laboratrio de
cincias, auditrio, biblioteca, quadra poliesportiva, quadra de vlei, secretaria, diretoria, sala
de especialistas, sala de professores, refeitrio e banheiros, com padro de acessibilidade.
A pesquisa qualitativa na educao tem centrado seu foco no/a educador/a: vai
buscar sua colaborao, preocupar-se com suas histrias e formao (GHEDIN; FRANCO,
2008). Nessa dimenso, possvel olhar a realidade na perspectiva do/a professor/a, e no
apenas sobre ele/a. Este processo investigativo, que tem como objeto as discursividades na
escola acerca das relaes de gnero, mediadas no projeto de leitura, tem alinhamento
metodolgico com esta perspectiva de pesquisa e possui como participantes os/as
professores/as que integram o tal projeto. Foi escolhido o corpo docente do turno vespertino,
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em funo de ajuste com minha disponibilidade de horrio. A coordenao do projeto de
responsabilidade de uma professora readaptada, que tem formao de arte-educadora. Esta
profissional, segundo me relatou, articula trabalhos apoiando os/as docentes integrantes do
projeto, alm de efetivar atividades literrias e artsticas em datas comemorativas na escola.
1.2 Por onde falam e de onde olham os/as educadores/as: os instrumentos de investigao
A composio dos instrumentos selecionados para a investigao desta pesquisa
constituda por diversos procedimentos para gerao de dados. Consta de um questionrio,
aplicado, no perodo de 09 de setembro a 28 de outubro de 2013, a nove educadores/as
envolvidos/as com o projeto de leitura da escola TRAVESSIA, o Cesta/Sexta Literria.
Adotei tambm como instrumento de investigao os relatos de dilogos com educadores/as,
gerados quando de minhas visitaes escola, que se deram de 05 de setembro a 28 de
outubro de 2013. Constru notas de campo para registrar minhas vivncias naquele espao,
perscrutando as vozes daqueles sujeitos pesquisados. So tambm composio deste conjunto
de instrumentos investigativos as observaes de quatro aulas de leitura e de texto utilizado
nestes eventos, que ocorreram entre 4 e 11 de julho de 2014. A anlise do documento do
projeto de leitura, no tocante aos seus objetivos e metodologia, bem como o levantamento de
quais livros paradidticos da biblioteca tratam da temtica em tela, so outras formas
geradoras de dados desta pesquisa. Esse levantamento do conjunto de instrumentos foi
elaborado em um processo no qual atentei para que a construo dos mesmos, lembrando
Foucault (2004a, 2004b, 2012), objetivasse no apontar se um enunciado verdadeiro ou
falso enquanto discurso, mas situar historicamente a produo desses.
O questionrio foi elaborado com treze questes objetivas, por uma necessidade de
se ajustar s premncias do tempo, mas promovendo espao para a complementao de
respostas abertas, considerando que outras leituras podero existir. As questes formuladas
neste instrumento investigativo, versando, conforme apndice A, entre outros tpicos, acerca
da importncia da leitura para a escola, sobre se a formao continuada est contribuindo no
preparo para uma prtica pedaggica que contemple a equidade de gnero, acerca de qual
espao deve haver no currculo escolar sobre a histria social da mulher e ainda qual tem sido
o comportamento do/a educador/a, ao lidar com manifestaes de violncia de gnero,
objetivam proporcionar anlises das respostas segundo os pressupostos da AD.
Essa disciplina, mediante a articulao lngua e histria, descreve e analisa os
sentidos que produzimos socialmente, considera assim que o sujeito um efeito da linguagem
28
como prtica social. E com esta perspectiva que objetivo perceber os efeitos de sentidos, as
ideias circulantes e produzidas pelos sujeitos envolvidos nas questes do instrumento
questionrio, como nos demais procedimentos que compem o campo emprico desta
investigao: as aulas, os dilogos, o documento, a ausncia de obras temticas no acervo
bibliotecrio. Lanar mo desse amparo terico me faz buscar formulaes epistemolgicas
como o discurso, o interdiscurso, as formaes discursivas, entre outras construes de
linguagem, como fustigao que possibilita ver pela opacidade da linguagem. Por esses
vieses, interessa-me no em conceber uma verdade, a qual terei o poder de desvend-la,
conforme ressalva Foucault (1995, 2004a, 2004b, 2012), mas procuro, luz do que me
fornece a AD, refletir e inquirir sobre as condies de produes do dito e o no dito.
29
2 OS APORTES TERICOS QUE MOVEM A INVESTIGAO
2.1 Gnero, Discurso e Direitos Humanos
Uma indagao que se desdobrava em outras se fez presente em minhas elaboraes
sobre a temtica em foco: afinal, por que buscar na roda de leitura de uma escola fios que
relacionem letramento e o debate sobre a construo social de gnero? Qual o sentido de se
entrelaar estas duas instncias discursivas? No bastaria ler para contribuir com a construo
de uma formao humana e tica, uma formao cidad, na qual se capacitariam todos e todas
para serem protagonistas do projeto de sociedade em que convivem? O exerccio da leitura
no estimula o ato de pensar? Esta mera sacralizao da prtica leitora, to disseminada por
leigos/as e at leitores/as, ignora que ler um ato poltico (FREIRE, 1988). Ignora que ler
uma prtica discursiva: implica aes, selees, escolhas, linguagens, contextos, variedades
de produes sociais (SPINK; FREZZA, 1999). E que, desse modo, como prtica discursiva,
na acepo foucaultina (FOUCAULT, 2011), que a tomada de emprstimo neste trabalho,
conceituada como os dizeres que ganham corpos tcnicos, em instituies, em esquemas de
comportamentos, em formas pedaggicas, a ao de ler deve primar por reflexes que exijam
engajamento, direcionamento, afinal, como esse filsofo afirma:
[...] em toda sociedade a produo do discurso ao mesmo tempo controlada,
selecionada, organizada e redistribuda por certo nmero de procedimentos que tm
por funo conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatrio,
esquivar sua pesada e temvel materialidade (FOUCAULT, 2011, p. 8-9).
Conforme esse pensador francs, para este controle, h a fabricao de certos
procedimentos de excluso social apoiados sobre uma base institucional. Esta tem como
reforo todo um conjunto de prticas, dentre as quais esto a medicina, a pedagogia, a
sexualidade, a priso, relacionadas vontade de verdade como um mecanismo de delimitao
e de controle do discurso. Ao trazer estas consideraes de Foucault para o debate sobre as
relaes de gnero que se processam na instituio escolar, fruto de avanos consolidados
pelas lutas feministas contra uma viso androcntrica de mundo, percebo a relevncia das
contribuies do filsofo, que inscreve o discurso como prtica e como luta na constituio
dos sujeitos. Segundo o autor, [...] isto a histria no cessa de nos ensinar - o discurso no
simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominao, mas aquilo por que,
pelo que se luta, o poder do qual queremos apoderar (FOUCAULT, 2012, p. 10).
30
Diferente de uma viso que simplifica este conceito, os pressupostos foucaultinos
pontuam que o discurso existe para constituir coisas, realidades, segundo regras histricas
especficas de tempo e espao. E esse entendimento deve ser uma das foras que o/a analista
do discurso poder dispor como baliza, face ao desafio que sua tarefa se apresenta: seu
trabalho no descobrir coisas intocadas, inteiras, verdades. Seu trabalho prima por chegar
complexidade das prticas discursivas e no discursivas que emergem em um enredo de
enunciados que se cruzam no interior de campos discursivos. Seu trabalho, como evidencia
Fisher (2013), ocupa-se de multiplicidades de coisas ditas, de enunciaes, de posies de
sujeito, de relaes de poder, implicadas num certo campo de saber.
Nessa direo, para efetuar uma interface que pense as discursividades das vozes
docentes acerca das relaes de gnero, em prticas leitoras na escola, objeto desse trabalho,
as reflexes foucaultianas, no que diz respeito s posies de sujeito, so nodais. Com essa
perspectiva, pode ser assumida a multiplicao do tema do sujeito, operao cara a Foucault
(1995, 2004a, 2004b, 2004c, 2012), que conduz a caminhos mais fecundos para que o sujeito
seja pensado: a sua disperso. Assim, diante de um conjunto de enunciaes, dentro de um
campo discursivo, no cabe um sujeito unificante, soberano, origem de seu dizer. H um
sujeito que precisa ser visto em seu status, em seu mbito institucional, investido de alguma
autoridade, imbudo de certas regras histricas.
Isto posto, cabe-me adentrar em reflexes usando a concepo de disperso do
sujeito, inicialmente pensando sobre qual tem sido a subjetivao construda na escola pela
perspectiva dos/as docentes acerca das relaes de gnero: esto estes/as obedecendo a que
regime de verdade? Quais tm sido as reflexes acerca das coisas ditas: sabe-se que elas se
entranham das dinmicas de poder e saber? Sabe-se que emanam de prticas discursivas e no
discursivas atravessadas pelo poder? Dar conta dessas relaes um legado foucaultiano
complexo, rduo e instigante que me inspira trazer para a delineao acerca das
discursividades, suscitadas pelo debate das relaes de gnero na escola, que, ao fim e ao
cabo, um chamamento do discurso dos DH, como pauta reivindicatria que .
E, como reivindicaes morais que so, esses direitos, assegura Piovesan (2005),
nascem quando devem e podem nascer. Essa autora pontua que os DH, em sua concepo
contempornea, compem a nossa racionalidade de resistncia na medida em que traduzem
processos que abrem e consolidam espaos de luta pela dignidade humana. Pautados pela
gramtica da incluso, esses direitos, que no so um dado, mas um construdo (PIOVESAN,
2005), devem adentrar o espao escolar, como um imperativo tico-poltico-social que ,
capaz de enfrentar um legado discriminatrio, que tem negado o respeito diversidade sexual,
31
cultural e humana, o que um atentado premissa da garantia da dignidade de todas as
pessoas.
Para o assentamento do debate sobre os postulados dos DH no mbito da escola, no
nos falta amparo legal positivado. com o entendimento da nodal importncia desses direitos
na e para a esfera escolar, e considerando o arcabouo legal que dispe sobre a educao: a
Declarao Universal dos Direitos Humanos, de 1948, a Declarao das Naes Unidas sobre
a Educao e Formao em Direitos Humanos (RESOLUO A/66/137/2011); a
Constituio Federal de 1988, a Lei de Diretrizes e Bases da Educao Nacional (Lei
9.394/1996); o Programa Mundial de Educao em Direitos Humanos (PMEDH 2005/204), O
Programa Nacional de Direitos Humanos (PNEDH/2006); e as diretrizes nacionais emanadas
pelo Conselho Nacional de Educao, CNE, bem como outros documentos, que o Conselho
Nacional de Educao publica a Resoluo n 1/2012, estabelecendo diretrizes nacionais para
a educao em Direitos Humanos. Esse instrumento, em seu artigo 3, trata da finalidade
dessa educao: a mudana e a transformao social, fundamentando-se para isto nos
princpios da dignidade humana, da igualdade de direitos, do reconhecimento e valorizao
das diferenas e das diversidades, da laicidade do Estado, da democracia na educao, da
transversalidade, vivncia, globalidade e sustentabilidade socioambiental.
Conforme a Resoluo n 1/2012, os sistemas de ensino devero ter planejamento e
aes que zelem por tais princpios, incluindo-os nas formaes iniciais e continuada de
profissionais das diferentes reas de conhecimento, como tambm de todo aparato estrutural
da escola. Nesse sentido, a resoluo se traduz como um poderoso instrumento de incluso
social. Ela aliada na problematizao de uma estrutural desigualdade social, poltica e
econmica que viola cotidianamente direitos de grupos vulnerveis pobres, negros/as,
mulheres, homossexuais, ndios/ias aliada no combate s grandes deficincias da
democracia brasileira que repousa em uma deficiente cultura de direitos, a despeito de
avanos ps processo de redemocratizao do pas.
No tocante s questes de gnero, produo de prticas discursivas que ocultam o
protagonismo dos sujeitos que fragilizam a hegemonia masculina, heterossexual, crist e
branca, e a insero desse debate no seio escolar, como forma de assegurar o combate
historicamente construda educao sexista e discriminatria, vlido observar os
mecanismos enunciativos que constituem o olhar sobre o discurso que prope o
enfrentamento da iniquidade. E um desses mecanismos trata-se dos Parmetros Curriculares
Nacionais (PCNs), criados em 1997, que, muito embora a existncia desses documentos no
garanta sua implantao, eles so amplamente difundidos e recomendados pelo Ministrio da
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Educao e Cultura (MEC). vlido, desse modo, atentar para esta forma de comunicao-
poder, porque as discursividades que circulam incorrem de resultado de promessas de uma
escola como instituio democrtica, o que nos remete intricada relao discurso e poder
(FOUCAULT, 2012). E parece bastante oportuno refletir sobre a emisso de documentos
supostamente avanados no debate sobre as relaes de gnero, indagando sobre qual
processo de subjetivao e instauraes de verdade est sendo ali operacionalizado.
possvel detectar que a discusso sobre as relaes de gnero consta, de forma
tmida e superficial, entre as pginas 144-146 dos PCNs, referentes s quatro primeiras sries
da educao Fundamental. Assim eram denominados os anos escolares poca da publicao
destes documentos. Essa insero temtica composta como tpico dentro do tema
transversal Orientao Sexual, que integra o volume 10 da coleo dos PCNs. Mas l, nas
rpidas pginas, est o conceito de gnero e o objetivo que permeia o debate:
A discusso sobre relaes de gnero tem como objetivo combater relaes
autoritrias, questionar a rigidez dos padres de conduta estabelecidos para homens
e mulheres e apontar sua transformao. A flexibilizao dos padres visa permitir a
expresso de potencialidades existentes em cada ser humano, que so dificultadas
pelos esteretipos de gnero. Como exemplo comum pode-se lembrar a represso de
sensibilidade, intuio e meiguice nos meninos e objetividade e agressividade nas
meninas. As diferenas no devem ficar aprisionadas em padres preestabelecidos,
mas apontando para a equidade entre os sexos (BRASIL, 2013, p. 144-146).
As relaes de gnero integram a abordagem feita pelos PCNs tambm para as sries
finais do ensino fundamental, como parte dos contedos dos temas transversais. Na
perspectiva para estes anos finais, os PCNs indicam a leitura e a anlise de notcias e de obra
literria como estratgia para abordar a temtica sobre gnero, perpassada pelo conjunto das
disciplinas. Os recursos indicados nos documentos para a explorao desta temtica se
constituem de formas oportunas para trat-lo, especialmente a anlise de notcias,
considerando que, face a uma viso de mundo em que predominam valores machistas e
patriarcais, uma cultura eminentemente androcntrica, apesar da resistncia feminista, as
notcias devem se constituir como repletas de exemplos de assimetrias de gnero.
A apresentao do conceito de gnero pelos PCNs, todavia, se d sem uma
fundamentao crtica sustentada pela teoria feminista, em um momento em que este conceito
passa por uma efervescncia que redimensiona e amplia sua abordagem. O conceito de gnero
surge com o intento de analisar a subordinao da mulher ao homem de modo relacional e faz
parte de debates de vrios momentos do movimento feminista. O gnero, como categoria de
anlise, passou a ser mais utilizado aps a publicao do texto de Joan W Scott (1995). Nesse
33
trabalho, a autora retoma a diferena entre sexo e gnero, articulando a noo de poder com a
qual prope que gnero um elemento constitutivo das relaes sociais, construdas sobre as
diferenas percebidas entre os sexos, sendo ele um primeiro modo de dar significado s
relaes de poder.
De acordo com Piscitelli (2002), o conceito de gnero, mesmo j tendo sido
utilizado, foi marcado a partir da conceitualizao de Gayle Rubin (1975 apud PISCITELLI,
2002, p. 4), que definiu o sistema sexo/gnero, estabelecendo uma dicotomia em que gnero
seria a construo social e sexo seria o que determinado biologicamente. Essa perspectiva da
feminista trouxe, conforme Piscitelli, entusiasmo:
Entre as (os) acadmicas/os que dialogam com as discusses feministas, o conceito
de gnero foi abraado com entusiasmo, uma vez que foi considerado um avano
significativo em relao s possibilidades analticas oferecidas pela categoria
mulher. Essa categoria passou a ser quase execrada por uma gerao para a qual o
binmio feminismo/mulher parece ter se tornado smbolos de enfoques passados.
(PISCITELLI, 2002, p. 1).
H, todavia, apontado por Piscitelli (2002), um contexto de questionamentos sobre
esse conceito de gnero, que evidencia uma nova nfase na utilizao da categoria mulher. A
autora evidencia vrias discusses em torno dessa questo, pontuadas por feministas que
criticam a dicotomia cultura/natureza, sexo/gnero, traos da conceituao primeira do termo.
O sistema dual que caracteriza e universaliza o conceito criticado pelas feministas radicais,
que assumem o debate desconstruindo o binmio sexo/gnero, trazendo reflexo a
inexistncia de uma identidade global, fixa, que obscurece ou subordina todas as outras. Uma
reelaborao terica e pendular, que emerge nitidamente das polticas da diferena sobre o
conceito de gnero, fortalece a luta das mulheres em seu carter de diversidade.
A rejeio aos pressupostos universalistas que a dicotomia sexo/gnero traduz tem se
avolumado e garantido um avano no debate sobre a luta pelo fim da opresso e subordinao
da mulher ao homem. Sardenberg (2002) enfatiza que as crticas realizadas ao conceito de
gnero debatem as diferenas, em consonncia com a base ps-estruturalista e
desconstrutivista que as sustenta, e atendem a pauta reivindicatria de mulheres lsbicas,
negras e do Terceiro Mundo. A feminista, sem deixar de resguardar a relevncia terica e
poltica da concepo primeira de gnero, ressalta a importncia das questes trazidas pelas
correntes desconstrucionistas. Apropria-se, esta estudiosa do feminismo, do conceito de
corpos gendrados e desfaz a dicotomia sexo/gnero, explicando que as identidades de gnero
e subjetividade so no imateriais e descorporificadas. Ela, ao falar de identidades e
34
subjetividades corporificadas, aponta para uma direo que dialoga com as teorizaes ps-
estruturalistas e a importncia dos marcadores sociais para essas, que veem mais do que
sujeitos homens e mulheres em suas abordagens. Veem seres de diferentes etnias, classes,
geraes, profisses, lugares; seres cindidos, mltiplos, no-fixos em suas identidades,
imersos que so pela torrencial ps-modernidade e seus signos: multiculturalismo,
globalizao e informao acelerada.
Louro (2012), ao discutir o caro conceito para os estudos feministas, historiciza as
aes desse coletivo, situando a chamada Segunda Onda, como a que propiciou o
desenvolvimento do termo:
Ser no desdobramento da assim denominada Segunda Onda aquela que se inicia
no final da dcada de 1960 que o feminismo, alm das preocupaes sociais e
polticas, ir se voltar para as construes propriamente tericas. No mbito do
debate que a partir de ento se trava, entre estudiosas e militantes, de um lado, e seus
crticos ou suas crticas, de outro, ser engendrado e problematizado o conceito de
gnero (LOURO, 2012, p. 19).
Evidenciando a contribuio que a emergncia do conceito de gnero propicia ao
movimento feminista, Louro (2012) traz o discurso da invisibilidade no qual esse coletivo
esteve imerso, em forma de segregao poltica e social. Muito embora, afirme essa autora,
mulheres da classe trabalhadora e camponesas j ocupassem atividades no mundo do trabalho:
em fbricas, oficinas, lavouras. Atividades essas ocupadas em condies de subalternidade
frente aos homens, considerando os cargos que ocupavam, e atividades consideradas
secundrias e ligadas s funes naturalizadas como femininas: a assistncia e a educao.
Essas questes, alm da ausncia das mulheres em espaos de poder como nos das cincias e
das artes, diz Louro (2012), ocupavam as reivindicaes das mulheres de luta contra a
opresso de gnero.
No que tange ao conceito de gnero como diferencial desconstrutor da discursividade
que permeia explicaes deterministas biolgicas para as desigualdades sociais entre homens
e mulheres, Louro (2012) aduz que:
necessrio demonstrar que no so propriamente as caractersticas sexuais, mas a
forma como essas caractersticas so representadas ou valorizadas, aquilo que se diz
ou pensa sobre elas que vai construir, efetivamente, o que feminino ou masculino
em uma dada sociedade e em um dado momento histrico. Para que se compreenda
o lugar e as relaes de homens e mulheres numa sociedade importa observar no
exatamente seus sexos, mas sim, tudo que socialmente se construiu sobre os sexos.
O debate vai se construir, ento, atravs de uma nova linguagem, na qual gnero ser
um conceito fundamental (LOURO, 2012, p. 25).
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na direo dos estudos ps-estruturalistas que Louro (2012) constri suas reflexes
sobre gnero, debatendo a construo discursiva das diferenas, uma das tnicas do
pensamento. Esta autora evidencia o quanto estudiosos/as e militantes ligados/as s questes
tnicas e lsbicas tm contribudo para a reflexo sobre prticas polticas e educativas que
contemplem as diferenas. Essa discursividade tem provocado nos estudos feministas uma
imploso das caractersticas iniciais que so marcadas por uma construo terica conduzida
por mulheres brancas, heterossexuais, urbanas e de classe mdias. Para a autora, os estudos
feministas esto sendo oxigenados, quando problematizados e desestabilizados desse modo.
Entendo ento que as seculares construes sociais que subjugam e inferiorizam
mulheres e as que impem excluso e violncia na construo das diferenas, sob uma lgica
androcntrica, heteronormatizadora e discriminatria, so muralhas que tm sido
problematizadas pelas contribuies afirmativas da pauta dos DH, pelos estudos feministas e
pelas contribuies de estudos sobre as relaes de poder, os quais j foram por mim
referidos. Estas questes podem estar balizadas no acesso leitura como mediao e prtica
discursiva que suscita o combate da iniquidade de gnero, como tambm j foi dito. Ocorre,
amide, mesmo entre os/as que no so leitores/as, uma valorizao generalizada do ato de
ler, que o naturaliza e o sacraliza. As propagandas sobre leitura so veiculadas com esta
dimenso, o que fez Souza (2009, p. 4), entre outros/as autores/as, estud-las e evidenciando o
quanto se camufla o objeto da leitura daquilo que se l, indagar: A leitura de todo e qualquer
texto emancipa o sujeito? No preciso ir muito longe para que percebamos que se as
escolas no leem a pedagogia do letramento da vida e da diversidade de infncias, se no leem
e aplicam o que recomendam as diretrizes/2009 do Conselho Nacional de Educao - CNE,
que apontam para garantir uma formao plena, como ser humano histrico, integral, social,
tico, de diferentes linguagens e identidades coletivas e individuais, a leitura que se faz,
efetivamente, no emancipadora. Ela pode divertir, dar prazer, colaborar com o domnio do
cdigo em suas variedades lingusticas, mas no emancipa. Isso pode ser averiguado pelo
olhar de Arroyo (2011), que aborda o quanto a desenfreada busca para o domnio de
capacidades sequenciadas, para atender as expectativas de avaliaes como a Provinha-Brasil,
tem sido danosa:
Na prtica, o direito ao reconhecimento, cultura e ao conjunto de potencialidades
humanas que carregamos desde criana vai se perdendo em nome do domnio de
capacidades de letramento e numeramento [...] A professora ser julgada e
condenada se sua turma no se sair bem na Provinha-Brasil de Letramento. Fica
pouco estmulo e espao para dedicar tempo e energias para a formao plena das
crianas at nos limites e potencialidades do letramento (ARROYO, 2011, p. 220).
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pertinente pensar, portanto, como esto sendo formados/as, como esto lendo, na
instncia escolar, meninos e meninas: leem para se emancipar? Leem para problematizar uma
ordem social excludente? Leem para debater o que a pauta reivindicatria dos DH, como
movimento que se firma na defesa de um mundo mais justo e igual, tem alicerado? A
Conferncia Nacional de Educao (CONAE), realizada em 2010, direciona em seu
documento final que deve haver a insero das temticas dos DH nos Projetos Polticos
Pedaggicos (PPP) e no novo modelo de gesto e avaliao. (CONAE, 2010, p. 162-163). H,
portanto, um papel construdo para a instituio escolar no enfrentamento de violaes desses
direitos.
Produtora, reprodutora e difusora de conhecimentos, a escola uma instituio social
que pode, conforme o seu aparato normativo, engendrar as relaes mais justas e equnimes.
At ento, todavia, deste lugar, no dizer de Louro (2012), largamente, tm sido gestadas as
diferenas como a representao de um desvio da normalidade. Na viso da referida autora,
Desde seus incios, a instituio escolar exerceu uma ao distintiva. Ela se
incumbiu de separar os sujeitos tornando aqueles que nela entravam distintos dos
outros, os que a ela no tinham acesso. [...]. A escola que nos foi legada pela
sociedade ocidental moderna comeou por separar adultos de crianas, catlicos e
protestantes. Ela tambm se fez diferente para os ricos e para os pobres e ela
imediatamente separou os meninos das meninas (LOURO, 2012, p. 64).
possvel perceber, ento, o quanto as relaes de gnero e a produo negativa das
diferenas so alimentadas nos bancos escolares, moldando, fabricando sujeitos, seres
distintos, de diferentes classes, etnias, idades, distintos tambm em direitos e deveres. Nesses
moldes, essa prtica pedaggica tem inquietado os/as ativistas e defensores/as dos DH. E,
efeito de mobilizaes, a educao inclusiva, voltada para uma cultura de paz e de respeito a
esses direitos, emerge. Dos tantos pactos internacionais e acordos, como ao de resistncia
diante da violao do direito dignidade humana, podem ser extrados instrumentos jurdicos
importantes para municiar os/as educadores/as em suas atividades acadmicas, caso se
comprometam com a bandeira da educao como lcus para a promoo da defesa de uma
sociedade para todas as pessoas.
Inteirar-se da fora articulatria dos movimentos sociais embandeirados com a
defesa dos DH relevante para a instncia educacional, afinal, a escola ressoa as vozes e
uma voz que, segundo regras histricas, implementa hegemonia e contra-hegemonia,
conforme Zenaide (2008). Das articulaes polticas dos movimentos emergem marcos legais
que do sustentao s lutas por cidadania. Um desses documentos importantes do leque de
instrumentos universais e regionais que evidenciam aes pautadas na defesa do DH foi uma
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conquista do movimento feminista, com a aprovao na Assembleia da Organizao das
Naes Unidas (ONU), em 1979, da Conveno sobre a Eliminao de Todas as Formas de
Discriminao contra a Mulher. Este instrumento traduz o reconhecimento das necessidades
especficas das mulheres, garantindo a igualdade entre homens e mulheres nas esferas
poltica, econmica, social e familiar. Outro importante documento no sentido da defesa dos
direitos das mulheres a Conveno Interamericana para Prevenir e Erradicar a Violncia
contra a Mulher, de 1994. Essa construo desafia um dos males enfrentados cotidianamente
pelas mulheres das mais diversas esferas sociais e culturais: o da violncia domstica. A
ONU adotou em 1999 o Protocolo Facultativo conveno regional, que autoriza ao
CEDAW, Comit para a Eliminao de Todas as Formas de Discriminao contra a Mulher