O discurso de Odisseu: um diálogo entre Homero e Sófocles, em ...
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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAIacuteBA
CENTRO DE CIEcircNCIAS HUMANAS LETRAS E ARTES
PROGRAMA DE POacuteS-GRADUACcedilAtildeO EM LETRAS
Felipe dos Santos Almeida
TRANSTEXTUALIDADE ENTRE SOacuteFOCLES E OVIacuteDIO
virtude e ira na caracterizaccedilatildeo de Aacutejax
Joatildeo Pessoa 2017
1
Felipe dos Santos Almeida
TRANSTEXTUALIDADE ENTRE SOacuteFOCLES E OVIacuteDIO
virtude e ira na caracterizaccedilatildeo de Aacutejax
Tese apresentada ao Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Letras da Universidade Federal da Paraiacuteba como requisito para obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Doutor em Letras Aacuterea de concentraccedilatildeo Linguagens e Cultura Orientador Prof Dr Milton Marques Juacutenior
Joatildeo Pessoa 2017
A447t Almeida Felipe dos Santos Transtextualidade entre Soacutefocles e Oviacutedio virtude e ira na caracterizaccedilatildeo de Aacutejax Felipe dos Santos Almeida - Joatildeo Pessoa 2017 210 f il
Orientaccedilatildeo Milton Marques Juacutenior Tese (Doutorado) - UFPBCCHLA
1 Literatura comparada 2 Literatura claacutessica 3 Oviacutedio-Soacutefocles I Marques Juacutenior Milton II Tiacutetulo
UFPBBC
Catalogaccedilatildeo na publicaccedilatildeoSeccedilatildeo de Catalogaccedilatildeo e Classificaccedilatildeo
3
Dedico este trabalho aos meus pais responsaacuteveis maiores pela minha educaccedilatildeo
4
AGRADECIMENTOS
Aos meus amados pais por toda dedicaccedilatildeo afeto esforccedilo e paciecircncia
Agrave minha Preta Raiacutera pela companhia amizade apoio carinho e amor e especialmente por Rebeca
Aos professores Milton e Juvino pela confianccedila pela orientaccedilatildeo em minha vida profissional e pessoal e pela amizade
Agraves minhas queridas irmatildes pela boa Eacuteris
A Andreacute Cassiano Diego Faacutebios (Cabeccedila e Xuxa) Falcatildeo Guigo Gregoacuterio Jorge Juacutelio Vitor Joffison Bela Magno Dudu e Paulinho pela longa amizade construiacuteda nesses anos e pelos domingos compartilhados
A Moacir Dioacutegenes Hermes Marco Alcione e Anderson pela amizade
Aos demais familiares amigos e professores por terem me ajudado e orientado na construccedilatildeo de meus conhecimentos profissionais e pessoais
A Gary Gygax e Dave Arneson pela imaginaccedilatildeo e pela inspiraccedilatildeo
Aos deuses pela vida
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RESUMO
O objetivo deste trabalho eacute estudar a intertextualidade entre a obra Metamorfoses de Oviacutedio
autor latino e a peccedila Aias de Soacutefocles tragedioacutegrafo grego Esse estudo de Literatura
Comparada tem como foco a caracterizaccedilatildeo do personagem Aacutejax Entretanto a nossa anaacutelise
restringe tal caracterizaccedilatildeo a dois elementos recorrentes em heroacuteis da Literatura Claacutessica a
virtude sobretudo guerreira e o sentimento de ira Para alcanccedilar tais objetivos
primeiramente apontamos como tais elementos estatildeo presentes na tradiccedilatildeo da literatura grega
arcaica do heroacutei em questatildeo em especial nos poemas homeacutericos os quais jaacute apresentam de
forma pioneira uma caracterizaccedilatildeo singular Nessas obras homeacutericas esse personagem jaacute eacute
notaacutevel pela sua virtude guerreira e pela sua grave coacutelera Em seguida analisamos
isoladamente as obras de Oviacutedio e Soacutefocles com o objetivo de reconhecer a importacircncia
desses dois elementos na composiccedilatildeo do caraacuteter desse personagem e no propoacutesito semacircntico
dos episoacutedios de cada uma delas Por fim apresentamos a teoria de Genette sobre
intertextualidade a qual nomeia de transtextualidade e na qual delimita uma tipologia a fim
de precisar suas variadas praacuteticas Baseados nessa teoria apontamos as operaccedilotildees realizadas
pelo autor latino que comprovam o aspecto transtextual de sua obra particularmente em
relaccedilatildeo ao tragedioacutegrafo grego contudo restritas agrave forma pela qual tais transformaccedilotildees satildeo
utilizadas para delinear o caraacuteter guerreiro e iracundo do heroacutei Aacutejax Para melhor
compreensatildeo das obras estudadas e da consequente anaacutelise dispomos uma traduccedilatildeo
instrumental do corpus citado no trabalho
Palavras-chave Literatura Comparada Literatura Claacutessica Oviacutedio Soacutefocles caracterizaccedilatildeo
literaacuteria Aacutejax
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ABSTRACT
This work aims at studying the intertextuality between Ovidrsquos Metamorphosis and
Sophoclesrsquos play Aias This work of Comparative Literature focus on the characterization of
the hero Ajax However our analysis limits this characterization to two issues present on
Classical Literature heroes the virtue especially belligerent and the wrath To achieving
such purpose firstly we point how those issues are present on the archaic Greek literature
tradition of the studied hero particularly in Homeric poems which introduce in a pioneer
way a singular characterization In these Homeric works this character is already remarkable
by his warrior virtue and by his intense wrath Secondly we analyze Ovid and Sophoclesrsquo
literary works separately aiming at understanding the consequence of those two issues in the
characterization of such hero and in the semantic purpose of episodes in each work At last
we introduce Genettersquos theory about intertextuality which he names transtextuality and in
which he bounds a tipology to restrict its many types of operations Based on that theory we
present the operations fulfilled by the latin author that verify such transtextual issue in his
epic poem specially related to Sophoclesrsquo play Nevertheless they are restricted to the way
such operations act to compose the characterization of the belligerent and fiery hero Ajax To
understanding the literary works and the following analysis better we present a general
translation from the corpus mentioned on the present work
Keywords Comparative Literature Classical Literature Ovid Sophocles literary
characterization Ajax
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SUMAacuteRIO
INTRODUCcedilAtildeO 8
1 A TRADICcedilAtildeO LITERAacuteRIA DO MITO DE AacuteJAX 12
1 1 A TRADICcedilAtildeO ARCAICA E OS POEMAS HOMEacuteRICOS 12
1 2 A TRADICcedilAtildeO CLAacuteSSICA 34
1 2 1 Aias de Soacutefocles 35
1 2 2 Metamorfoses de Oviacutedio 45
2 ESTUDO ISOLADO DA CARACTERIZACcedilAtildeO DO HEROacuteI 59
2 1 A VERSAtildeO DE SOacuteFOCLES 60
2 1 1 Ἀρετή a virtude do heroacutei na perspectiva grega 62
2 1 2 Χόλος a ira do heroacutei na perspectiva grega 78
2 2 A VERSAtildeO DE OVIacuteDIO 104
2 2 1 Virtus a virtude do heroacutei na perspectiva latina 107
2 2 2 Ira a ira do heroacutei na perspectiva latina 125
3 ESTUDO TRANSTEXTUAL DA CARACTERIZACcedilAtildeO DO HEROacuteI 143
3 1 TRANSTEXTUALIDADE A CONCEPCcedilAtildeO DE GENETTE 143
3 1 1 Praacuteticas hipertextuais transformaccedilotildees quantitativas pragmaacuteticas e modais 148
3 2 O EPISOacuteDIO TRANSTEXTUAL DE OVIacuteDIO 164
3 2 1 A virtude transtextual do heroacutei 169
3 2 2 A ira transtextual do heroacutei 182
CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS 199
REFEREcircNCIAS 204
8
INTRODUCcedilAtildeO
Haacute muito se procura por um conceito que defina Mito mas todas as tentativas
convergem eventualmente para uma mesma particularidade a narrativa no sentido de histoacuteria
elaborada pelo ato de narrar Maacuterio Vegetti nos mostra ao menos um paracircmetro para discernir
as narrativas miacuteticas dos gecircneros literaacuterios como eacutepica liacuterica e trageacutedia entre os povos
antigos ainda que atualmente tal perspectiva seja considerada dentro de certos limites Para
este autor as narrativas miacuteticas em torno das divindades e das forccedilas invisiacuteveis e
sobrenaturais que estatildeo presentes no universo e que tambeacutem o governam satildeo relatos
anocircnimos repetidos passados de geraccedilatildeo em geraccedilatildeo que funcionam como uma espeacutecie de
cataacutelogo do imaginaacuterio religioso (1994 p 37) ganhando forccedila exatamente devido ao seu
aspecto coletivo e impessoal que de caraacuteter sagrado remonta agraves origens de seu povo
atravessando o tempo e o espaccedilo Com efeito devemos ainda evidenciar que o mito eacute uma
ldquonarrativa aplicada como verbalizaccedilatildeo de dados complexos supra-individuais coletivamente
importantesrdquo (BURKERT 1991 p 18) e isso significa dizer que ele eacute o saber atraveacutes de
histoacuterias Esse conhecimento guardado nas narrativas era fundamental sobretudo para os
gregos e romanos da Antiguidade no entanto o imaginaacuterio que o detinha era de certa
maneira desordenado e caoacutetico Eacute a intervenccedilatildeo da literatura sobretudo da eacutepica que produz
uma seleccedilatildeo e um ordenamento capaz de reforccedilar a conservaccedilatildeo do caraacuteter fundamental
desses relatos o modo narrativo com o qual um determinado povo comunica e transmite o
conhecimento presente em sua cultura (VEGETTI 1994 p 37)
Naturalmente dessas narrativas miacuteticas se desdobra em seu acircmbito literaacuterio uma
transcendecircncia textual nomeada costumeiramente de intertextualidade no sentido de que os
poetas se referem aos anteriores articulando um texto uma trama ora respondendo-lhes ora
acrescentando-lhes mas permanecendo sempre a ideia de um diaacutelogo com as geraccedilotildees
anteriores Isso tem como consequecircncia a percepccedilatildeo de que Homero eacute o texto matriz absoluto
(GRAF 2006 p 110) especialmente acerca da mitologia greco-latina pois eacute evidente a sua
forte presenccedila nas literaturas grega e latina Com efeito por mais que sejam variadas as
versotildees de autores acerca de determinados mitos haacute para os poetas uma liberdade limitada
Recorre-se agrave tradiccedilatildeo miacutetica ao menos para se evitar causar um grande estranhamento ao
puacuteblico cujo imaginaacuterio mitoloacutegico lhe serve como base para a compreensatildeo da literatura e
da arte em geral (VERNANT 2006 p 25)
Inseridas nessa realidade de transcendecircncia textual as narrativas acerca do mito do
heroacutei grego Aacutejax se convergem nas literaturas grega e latina claacutessicas na trageacutedia Aias de
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Soacutefocles e no Livro XIII da obra de Oviacutedio Metamorfoses Se estabelecemos como as
primeiras obras que tecircm registro dos relatos sobre esse heroacutei de Salamina a Iliacuteada e a
Odisseia de Homero podemos indicar essa intertextualidade de Soacutefocles e Oviacutedio
respondendo a Homero Contudo seria possiacutevel um diaacutelogo mais soacutelido entre a obras de
Soacutefocles e de Oviacutedio no que diz respeito ao mito desse personagem Certamente o
argumento de suas obras remonta a um episoacutedio importante da lenda desse heroacutei a contenda
pelas armas de Aquiles presente em Metamorfoses cujo desdobramento natural apoacutes a
vitoacuteria de Odisseu eacute a ira e o suiciacutedio do heroacutei derrotado presente na trageacutedia daquele A
partir dessa relaccedilatildeo evidente ateacute que ponto a obra de Oviacutedio se articula com a de Soacutefocles
que lhe eacute anterior Quais elementos literaacuterios de Soacutefocles satildeo reforccedilados e reiterados por
Oviacutedio em sua obra Ateacute onde a obra de Oviacutedio possibilita uma nova leitura da trageacutedia de
Soacutefocles ou uma leitura conjunta
Diante de todos esses questionamentos tentamos chegar a uma conclusatildeo a partir de
uma categoria analiacutetica que se afigura inerente agrave literatura greco-latina a intertextualidade
Contudo nosso objetivo eacute guiado sob a perspectiva da caracterizaccedilatildeo desse heroacutei grego que
parece ganhar ecircnfase no corpus por noacutes definido os 1420 versos da obra de Soacutefocles e os
versos 1 a 398 do Livro XIII da obra de Oviacutedio Em nosso recorte podemos observar a
relevacircncia das concepccedilotildees de virtude e de ira pois parecem alicerccedilar de algum modo o caraacuteter
desse personagem dentro das obras escolhidas Assim de forma mais especiacutefica conveacutem-nos
analisar como atraveacutes desses dois traccedilos do heroacutei as obras em questatildeo se relacionam entre si
Dessa forma tentaremos reconhecer ateacute que ponto a caracterizaccedilatildeo de Aacutejax desenvolvida
pelo autor grego eacute retomada pelo latino Para isso haacute de se considerar duas coisas A
primeira eacute considerar como base dos traccedilos do personagem marcas que remetam agraves noccedilotildees de
virtude e de ira presentes na sua imagem lendaacuteria sobretudo em Homero que figura a
iniciaccedilatildeo disso na tradiccedilatildeo literaacuteria A segunda eacute comparar tambeacutem ponderando o papel
estrutural dessas duas noccedilotildees ao argumento e agrave unidade tanto de Aias quanto do Livro XIII de
Metamorfoses
Devido a tal finalidade a intertextualidade tomada como categoria analiacutetica do nosso
estudo eacute considerada fundamental em nossa metodologia e por isso a ela estaacute reservada uma
seccedilatildeo proacutepria no uacuteltimo capiacutetulo O marco teoacuterico que guia esse trabalho eacute sobretudo a teoria
de Geacuterard Genette sobre tal concepccedilatildeo nas quais esse estudioso dispotildee ordenadamente toda
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uma tipologia de variados niacuteveis de referecircncia intertextual unidos entre si sob uma
perspectiva mais geral e abrangente nomeada transtextualidade1 pelo autor
Para alcanccedilarmos esse fim de forma vaacutelida analisamos as obras individualmente e
comparadas considerando diretamente a liacutengua original de cada uma o grego e o latim
claacutessicos Em decorrecircncia disso satildeo imprescindiacuteveis para a nossa metodologia algumas
disposiccedilotildees especialmente teoacutericas as quais natildeo constituindo diretamente a categoria
proposta no trabalho natildeo exercem o mesmo papel no nosso estudo como a intertextualidade
e por isso satildeo apresentadas de forma sinteacutetica ou em notas explicativas e de rodapeacute
Tentamos dessa maneira evitar a sobrecarga textual sobretudo a teoacuterica que tanto interrompa
a sequecircncia loacutegica da leitura quanto tangencie nosso objetivo de forma digressiva com
conteuacutedo de relevacircncia indireta aos nossos propoacutesitos As principais informaccedilotildees dispostas
dessa maneira satildeo trecircs mas outras minoritaacuterias seguem os mesmos criteacuterios
A primeira eacute a caracterizaccedilatildeo para a qual vaacuterios estudos especiacuteficos sobre o caraacuteter do
personagem satildeo dispostos suprindo tal escolha mencionada acima Com efeito segundo esse
procedimento utilizamos o lato entendimento da concepccedilatildeo de Carlos Reis e de Ana Cristina
Lopes acerca de caracterizaccedilatildeo ou seja ela representa dentro do um plano narrativo os
atributos fundamentais de um personagem que estruturados em um conjunto de unidade
identificaacutevel e entrelaccedilados a outros componentes diegeacuteticos executam um papel saliente no
desenvolver da trama e reforccedilam o eixo semacircntico do argumento do texto (1988 p 193-195)
Considera-se tambeacutem que a proficuidade desse elemento no estudo de uma obra depende
frequentemente da posiccedilatildeo relativa que um determinado personagem ocupe na composiccedilatildeo do
enredo Mencionamos tambeacutem alguns elementos literaacuterios oriundos da Poeacutetica de Aristoacuteteles
os quais auxiliam grandemente as anaacutelises de caracteres
A segunda disposiccedilatildeo a ser considerada eacute o esclarecimento de determinados valores
religiosos eacuteticos morais sociais etc constantes no leacutexico e no vocabulaacuterio dessas obras
uma vez que trataremos de textos que remontam uma cultura antiga e que por isso
pressupotildeem uma miacutenima contextualizaccedilatildeo histoacuterica Autores que abordem tais assuntos como
Jean-Pierre Vernant Eacutemile Benveniste Marcel Detienne etc satildeo fundamentais
A terceira uma traduccedilatildeo instrumental que vise auxiliar a leitura do texto original
fornecendo para isso um reflexo morfossintaacutetico e por vezes etimoloacutegico uma vez que o
conteuacutedo dos fragmentos estudados e suas nuances significativas para o estudo seratildeo expostos
1 Ressaltamos que por todo o trabalho tambeacutem usaremos a grafia em itaacutelico para identificar quaisquer
terminologias teoacutericas com o propoacutesito por exemplo de distinguir o sentido mais abrangente de uma palavra como em intertextualidade do sentido especiacutefico fomentado ou natildeo por um determinado autor como em intextextualidade a qual se refere a um tipo determinado da transtextualidade formulada por Genette
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atraveacutes da proacutepria anaacutelise que segue agraves citaccedilotildees Por isso seu tratamento eacute menos semacircntico e
mais sintaacutetico Atentamos para esse propoacutesito as reflexotildees de Paulo Roacutenai John Milton e
Susan Bassnett Umberto Eco entre outros os quais ponderam os objetivos de uma traduccedilatildeo
Aleacutem disso destacamos que os textos originais das obras Metamorfoses de Oviacutedio e Aias de
Soacutefocles utilizados em nosso trabalho foram estabelecidos de forma filoloacutegica
respectivamente por Georges Lafaye e por Paul Mazon em ediccedilotildees da Les Belles Lettres e
estatildeo presentes nas referecircncias
De acordo com todos esses criteacuterios estruturamos esse trabalho em trecircs capiacutetulos O
primeiro sob a perspectiva da caracterizaccedilatildeo do mito de Aacutejax contextualiza e apresenta a
tradiccedilatildeo arcaica centrada em Homero bem como as obras que compotildeem o nosso corpus
Com essa contextualizaccedilatildeo das obras fornecemos subsiacutedios para delimitar os seus limites e
para discernir na obra de Oviacutedio o que eacute diaacutelogo com Homero e o que eacute referecircncia a Soacutefocles
se a ela houver Autores como Maria Helena da Rocha Pereira Jacqueline de Romilly Robert
Aubreton etc e alguns estudos especiacuteficos acompanhados de nossas observaccedilotildees compotildeem
essa primeira parte O segundo capiacutetulo dispotildee uma anaacutelise per se das obras do corpus
considerando-se o papel exercido pela caracterizaccedilatildeo do heroacutei na unidade e no argumento das
mesmas percebendo-a sob o ponto de vista das noccedilotildees de virtude e de ira Estudos especiacuteficos
e tradutores das obras em questatildeo tambeacutem satildeo considerados em nossa anaacutelise O terceiro
expotildee os princiacutepios intertextuais de Geacuterard Genette os quais nomeia transtextualidade e
pelos quais comparamos ainda neste momento os resultados obtidos a partir do capiacutetulo
anterior para chegarmos a alguma conclusatildeo acerca dos niacuteveis de influecircncia de Soacutefocles em
Oviacutedio Eacute importante ressaltar que a teoria desse criacutetico francecircs aborda em especial aspectos
temaacuteticos e estiliacutesticos e noacutes tentaremos adequar tais premissas ao estudo da caracterizaccedilatildeo
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1 A TRADICcedilAtildeO LITERAacuteRIA DO MITO DE AacuteJAX
Propomo-nos aqui a contextualizar as obras Aias de Soacutefocles e Metamorfoses de
Oviacutedio sobretudo seu Livro XIII convergindo os estudos deste capiacutetulo para a caracterizaccedilatildeo
do personagem Aacutejax sob o vieacutes das noccedilotildees de ira e de virtude e considerando a influecircncia da
tradiccedilatildeo arcaica da literatura grega sobretudo nas obras dos autores aqui estudados Com
efeito para estudarmos mais validamente a intertextualidade entre a caracterizaccedilatildeo desse
heroacutei nas obras de Oviacutedio e de Soacutefocles que figuram uma tradiccedilatildeo claacutessica devemos
reconhecer quando no processo de retomada do mito haacute uma influecircncia de autores que lhe
satildeo anteriores e que consolidaram a imagem que temos dessas figuras mitoloacutegicas
Entendemos como base de representaccedilatildeo dessa tradiccedilatildeo arcaica as epopeias homeacutericas Iliacuteada
e Odisseia uma vez que seus modelos influenciam diretamente toda a cultura literaacuteria greco-
latina posterior
Neste capiacutetulo observando-se a composiccedilatildeo estrutural das obras estudadas
ressaltaremos os procedimentos literaacuterios e os traccedilos estiliacutesticos que contribuam para a nossa
anaacutelise e possibilitem uma melhor contemplaccedilatildeo do nosso objetivo Para isso servimo-nos de
vaacuterios estudos que tanto estabelecem linhas gerais de interpretaccedilatildeo das obras
contextualizando-as quanto dentro do possiacutevel apresentam material relacionado ao tema
proposto por noacutes como base para intertextualidade situando-o sob a perspectiva do nosso
objetivo Contudo vejamos antes a caracterizaccedilatildeo do personagem escolhido para estudo
dentro das obras arcaicas
1 1 A TRADICcedilAtildeO ARCAICA E OS POEMAS HOMEacuteRICOS
Homero eacute o herdeiro da memoacuteria de um povo de cultura oral e teria elaborado suas
narrativas a partir de antigos mitos de base religiosa (AUBRETON 1968 p 154-155) Essa
mitologia grega contribui acima de tudo para uma longa tradiccedilatildeo artiacutestica da Greacutecia arcaica
da qual com exceccedilatildeo de Homero utilizaremos nesta seccedilatildeo de maneira pontual apenas
Piacutendaro poeta liacuterico grego do periacuteodo arcaico por contribuir para o nosso propoacutesito
Com efeito a partir de informaccedilotildees centradas nas obras de Homero dispostas aqui
tentaremos ressaltar como vaacuterios elementos constituintes do estilo e da linguagem homeacutericos
contribuem para a profiacutecua caracterizaccedilatildeo de seus personagens tornando pertinente um
estudo mais profundo dos mesmos sobretudo em poetas posteriores os quais retomam essa
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tradiccedilatildeo arcaica Assim seraacute possiacutevel compreender como se apresenta o contorno das vaacuterias
figuras dos heroacuteis miacuteticos presentes nessas epopeias e entre estes a de Aacutejax foco deste
estudo Para isso tambeacutem recorreremos a anaacutelises e estudos de alguns criacuteticos que subsidiaratildeo
a complexidade das caracterizaccedilotildees homeacutericas delineando o perfil desses heroacuteis atestada pela
consciecircncia de linguagem do autor e pela sua maturidade artiacutestica proacuteprias de toda grande
literatura
Antes contudo eacute importante justificar mesmo que brevemente essa preferecircncia por
Homero determinante do objetivo desta seccedilatildeo Para alcanccedilarmos tal finalidade deve-se
reconhecer a enorme influecircncia da tradiccedilatildeo literaacuteria da Greacutecia arcaica na literatura claacutessica
seja grega ou latina sobretudo da homeacuterica A influecircncia das epopeias homeacutericas sobre os
gregos estaacute presente desde o seacuteculo VII a C tornando-se literariamente preponderante no
seacuteculo V a C (AUBRETON 1968 p 328) a exemplo maior dos tragedioacutegrafos e da
concepccedilatildeo aristoteacutelica de literatura contida na Poeacutetica que representa primeira teorizaccedilatildeo
literaacuteria manifestada no Ocidente
Homero que se torna o grande educador grego devido ao alcance de sua obra nos
seacuteculos que lhe satildeo posteriores eacute marcadamente imitado seu vocabulaacuterio fixado como liacutengua
e sua obra se torna base para o aprendizado de vaacuterios conteuacutedos sejam morais sociais
histoacutericos etc Sua concepccedilatildeo divina ainda exerce autoridade inclusive sobre a religiatildeo
helecircnica o que faz por exemplo Platatildeo fomentando uma nova reflexatildeo sobre as divindades
censurar na Repuacuteblica alguns de seus episoacutedios Esse prestiacutegio o faz ateacute mesmo inaugurar a
literatura latina atraveacutes da traduccedilatildeo da Odisseia por Liacutevio Androcircnico transformando-se em
obra base para o aprendizado da leitura das crianccedilas romanas (Ibidem p 329) Esse fato eacute de
tal forma contundente que favorece a compreensatildeo da forccedila que essas epopeias exercem
diretamente na literatura latina cuja maior expressatildeo eacutepica eacute a Eneida de Virgiacutelio reflexo
direto dos moldes homeacutericos Disso tambeacutem podemos conjecturar a forccedila exercida dentro da
proacutepria literatura grega
Tal influecircncia manifestada pelo diaacutelogo constante de uma geraccedilatildeo com as que lhe satildeo
anteriores ora concordante de ideias ora divergente natildeo se revela apenas na evoluccedilatildeo
literaacuteria e por isso entendemos todas renovaccedilotildees de conteuacutedo de forma etc que se
desenvolvem ao longo do tempo Apesar de sua natureza predominantemente eacutepica podemos
citar por exemplo elementos literaacuterios mesmo que de forma embrionaacuteria presentes nessas
obras os quais posteriormente seratildeo desenvolvidos e atribuiacutedos por vaacuterios estudiosos aos
gecircneros liacuterico e traacutegico como suas marcas distintivas No entanto afastando-nos dessas
disposiccedilotildees mais gerais noacutes frisamos aqui um elemento mais especiacutefico e adequado ao
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nosso estudo de caso a evoluccedilatildeo dos mitos que apresentam a figura dos heroacuteis lendaacuterios da
Greacutecia
Para entender melhor a evoluccedilatildeo desses mitos e sobretudo o papel de Homero sobre
ela eacute necessaacuterio entender que a construccedilatildeo individual de um poeta acerca de uma figura
miacutetica natildeo eacute uma elaboraccedilatildeo completamente livre da tradiccedilatildeo Segundo Jean-Pierre Vernant
as mais variadas versotildees dos mitos apresentam uma determinada limitaccedilatildeo pois por mais
inovadoras que sejam elas estatildeo inscritas em uma tradiccedilatildeo na qual se apoiam e agrave qual se
referem sobretudo se considerarmos o pleno entendimento pelo puacuteblico (2006 p 25) Louis
Gernet sobre isso jaacute havia afirmado que os poetas respeitavam uma espeacutecie de imaginaccedilatildeo
lendaacuteria e isso implicava uma coerecircncia estrutural e funcional agrave qual os autores de alguma
maneira se submetiam (apud VERNANT 2006 p 25)
Para o nosso trabalho as obras homeacutericas satildeo essenciais especialmente por dois
motivos O primeiro devido a seu caraacuteter literaacuterio iniciaacutetico dos caracteres desses heroacuteis
miacuteticos contidos no ciclo da guerra de Troia ou seja essas epopeias representam o ponto de
partida literaacuterio dos traccedilos distintivos dos personagens incluiacutedos nessas narrativas O segundo
motivo devido ao seu papel fundamental no entendimento dos vaacuterios contornos que esses
personagens da mitologia grega recebem na literatura claacutessica a partir do diaacutelogo com os
textos homeacutericos comprovadamente atestado por vaacuterios estudos Em ambos os motivos isso
inclui Aacutejax foco de nosso estudo e sua concepccedilatildeo pelos autores posteriores a Homero A
Iliacuteada e a Odisseia nos revelam assim os pontos significativos das qualidades individuais do
heroacutei em questatildeo tanto no mito de uma forma geral quanto no episoacutedio que envolve a
disputa pelas armas de Aquiles evento indispensaacutevel na fabulaccedilatildeo da obra Aias de Soacutefocles
e da Metamorfoses de Oviacutedio
Colocando de lado questotildees de justificativa passemos a observar as obras homeacutericas a
partir de informaccedilotildees pertinentes ao estudo da caracterizaccedilatildeo que eacute o cerne da nossa
comparaccedilatildeo intertextual proposta
Os heroacuteis das obras homeacutericas satildeo frequentemente reis de linhagem divina E apesar
da presenccedila de outras figuras mais simples especialmente na Odisseia estas orbitam o
universo de personagens pertencentes a uma espeacutecie de nobreza a priori composta de
homens superiores Explicando melhor esse contexto Jacqueline de Romilly afirma que a
epopeia homeacuterica ldquoreflete entatildeo um mundo aristocraacutetico cujas virtudes satildeo igualmente
aristocraacuteticasrdquo (1984 p 37) E a moral heroica presente nas obras assegura Claude Mosseacute
tem como base valores que correspondem aos de uma aristocracia guerreira os quais se
manifestam em combates representativos de um mundo de guerras da Greacutecia arcaica o que
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justifica a constante busca pela gloacuteria guerreira que tornaraacute ο heroacutei imortal (1989 p 46)
Inserido em uma civilizaccedilatildeo de natureza guerreira esse representante aristocraacutetico eacute impelido
por dois aspectos da gloacuteria o kyacutedos (κῦδος) e a kleacuteos (κλέος) O primeiro de origem divina
representa um favorecimento momentacircneo dos deuses com o qual os heroacuteis executam seus
grandes feitos o segundo de origem humana eacute a fama que desenvolve de boca em boca
atraveacutes de vaacuterias geraccedilotildees o que destaca sobretudo no papel do poeta para a cultura arcaica a
sustentaccedilatildeo dessa gloacuteria alcanccedilada (DETIENNE 2013 p 21)
Contudo eacute salutar destacar esses ainda satildeo marcadamente homens ou seja embora
tais personagens possuam uma estirpe particular e por meio de atributos decorrentes dessa
origem executem muitas vezes proezas fora do comum eles ainda cultivam virtudes
essencialmente humanas (ROMILLY 1984 p 37) Por isso manifestam emoccedilotildees
impulsionadas pelas tensotildees internas do enredo decorrentes das situaccedilotildees de conflito nas
quais estatildeo inseridos desse modo revelando-nos e lhes conferindo uma identidade
inerentemente humana
Os personagens homeacutericos natildeo satildeo analisados pelo autor mas satildeo mostrados em plena
accedilatildeo na guerra nos rituais no mar no acircmago do ambiente familiar Tambeacutem a esses Homero
concede a palavra por meio do discurso direto um recurso extremamente recorrente em sua
obra (Ibidem p 40) Essa mescla de estilos compotildee tanto a Iliacuteada quanto a Odisseia ora de
base oratoacuteria ora narrativa ora descritiva servindo para se ressaltarem marcadamente tais
accedilotildees dos personagens E isso parece ter como consequecircncia um reforccedilo no delineamento do
caraacuteter dessas figuras fato evidente nas obras em questatildeo
Segundo Walter Donlan a construccedilatildeo de personagens mais reais eacute um iacutendice de
maturidade artiacutestica e uma literatura madura se faz quando a mesma eacute capaz de produzir
caracterizaccedilotildees complexas dessa maneira (1970 p 259) A Iliacuteada por exemplo mesmo
representando o marco inicial da literatura ocidental natildeo pode ser vista de maneira alguma
como um trabalho primitivo Sua genialidade no tratamento da caracterizaccedilatildeo distinta dos
personagens eacute um dos motivos que lhe concede o grau de grande obra literaacuteria inserindo a
produccedilatildeo literaacuteria da Greacutecia arcaica dentro dessa concepccedilatildeo de literatura madura Isso parece
ocorrer conforme Donlan contrariamente ao modelo que se estrutura em uma determinada
quantidade de arqueacutetipos como o grande guerreiro o veneraacutevel rei ou o velho saacutebio
dispostos em uma tipologia variada de situaccedilotildees como o combate singular a jornada para
casa etc muito evidentes tambeacutem nos mitos e contos folcloacutericos de quaisquer culturas
sobretudo as orais Com efeito os marcadamente personagens principais por esse autor a
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saber Aquiles Agamecircmnon e Heitor estatildeo bastante longe de ser um estoque de arqueacutetipos
em um estoque de situaccedilotildees (Ibidem p 261)
Evidentemente haacute personagens que acabam se tornando mais proacuteximos a esses
arqueacutetipos de maneira que natildeo crescem e em contrapartida soacute cumprem uma funccedilatildeo
determinada embora afirma Donlan seja possiacutevel observar ainda uma sofisticada variaccedilatildeo
desses modelos nos heroacuteis homeacutericos quando da representaccedilatildeo dessas figuras menores
Contudo mais ou menos elaborados os personagens de Homero satildeo bem delineados e
consistentes afastando de si a tipologia primaacuteria e se mostrando indiviacuteduos distintos entre si
(Ibidem p 263)
Com efeito a caracterizaccedilatildeo homeacuterica faz com que determinados traccedilos de
personalidade emerjam quando os personagens satildeo dispostos em situaccedilotildees de conflito que
demandem uma accedilatildeo consonante com suas caracteriacutesticas individuais Isso permite que eles
desenvolvam entidades psicoloacutegicas e alguns com elaboraccedilatildeo extremamente singular Na
Iliacuteada como exemplo destes uacuteltimos Aquiles sofre aprende toma decisotildees dolorosas e
assim mostra-se possuidor de uma verdadeira personalidade Outros menos elaborados
devido a uma participaccedilatildeo mais funcional na obra tecircm ainda a caracterizaccedilatildeo plenamente
formada e potencialmente desenvolvida mas natildeo manifestada e evoluiacuteda dentre de
circunstacircncias propiacutecias para os vermos crescer tal qual exemplifica Donlan Odisseu e Aacutejax
os quais soacute concretizaratildeo tal potencial como eacute comum a muitos personagens homeacutericos em
outras obras respectivamente a Odisseia do mesmo autor e Aias de Soacutefocles (Ibidem p
265-266)
Por isso a psicologia elaborada entre vaacuterios heroacuteis eacute entatildeo completamente distinta e
corroborando o que foi exposto acima ldquoagraves vezes em plena evoluccedilatildeordquo (AUBRETON 1968 p
289) Ainda segundo Robert Aubreton por meio de todos esses recursos Homero teria
vivificado os personagens de forma particular tornando-os profundamente humanos e dotados
de uma personalidade proacutepria (Ibidem p 289)
Para este autor um estudo pertinente dos caracteres homeacutericos deve recorrer ao jogo
de correspondecircncias promovidos dentro das obras Dois pontos satildeo notadamente pontuados
dentro dessa perspectiva O primeiro corresponde agrave oposiccedilatildeo de caraacuteter pelo qual eacute possiacutevel
de forma antiteacutetica delinear o que pode ser atribuiacutedo preponderantemente a um e a outro
personagem O segundo agrave recorrecircncia de traccedilos reiterados por toda a obra os quais formam
uma coerente unidade de caracterizaccedilatildeo dos vaacuterios heroacuteis (Ibidem p 258)
Dentro do estilo homeacuterico como jaacute dissemos ora narrativo ora descritivo eacute vasto o
nuacutemero de recursos oratoacuterios e outros linguiacutesticos que reforccedilam esse jogo de
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correspondecircncias Segundo Maria Helena da Rocha Pereira (2012 p 72-73) entres eles a
analepse a apoacutestrofe a anaacutefora a metaacutefora o siacutemile o epiacuteteto e outras Conveacutem
evidenciarmos os uacuteltimos dois pois parecem-nos as mais aparentemente profiacutecuas
ferramentas pelas quais Homero salienta e reforccedila as marcas que delineiam o caraacuteter dos
personagens sobretudo segundo o pensamento supracitado de Robert Aubreton
O primeiro o siacutemile segundo Geoffrey Kirk eacute uma das gloacuterias da Iliacuteada deixando o
conteuacutedo mais perto do entendimento do ouvinte (apud Ibidem p 73) ou segundo Hermann
Fraumlnkel refreia de maneira significativa ldquoa accedilatildeo em curso para intercalar uma imagem de
conjunto da situaccedilatildeordquo (apud Ibidem p 74) Com efeito esse recurso marca mais
propriamente o contorno dos personagens uma vez que tendo geralmente como origem
fenocircmenos e elementos da natureza vaacuterias atividades humanas e dos animais sobretudo a do
pastor e dos animais de rapina acaba por atribuir traccedilos recorrentes e singulares aos heroacuteis
permitindo-nos perceber determinadas unidades na sua caracterizaccedilatildeo Esse recurso eacute tatildeo
eficiente na Iliacuteada que natildeo houve epopeia posterior que natildeo a imitasse afirma Rocha Pereira
(Ibidem p 76)
O segundo o epiacuteteto converge para o mesmo propoacutesito intensificando-se quando a
partir da divisatildeo de Milman Parry (apud Idem 1984 p 4) reconhecemos os nomeados
geneacutericos aplicaacuteveis a qualquer heroacutei e os distintivos aplicaacuteveis a poucos ou a somente um
Por mais que o epiacuteteto seja uma foacutermula de mecanismo mnemocircnico das culturas orais e por
isso revelando uma relaccedilatildeo intriacutenseca com o esquema meacutetrico da epopeia ora ocupando um
hemistiacutequio ora mais complexo compreendendo vaacuterios versos para Rocha Pereira estes
uacuteltimos os distintivos vatildeo aleacutem disso pois contribuem sob um vieacutes literaacuterio para a melhor
caracterizaccedilatildeo do personagem adequando-se assim ao contexto uma qualidade especiacutefica e
permitindo-se uma melhor compreensatildeo do momento no qual estatildeo inseridos (Ibidem p 5)
Vejamos agora como estes elementos contribuem para o estudo de caso desta seccedilatildeo a
caracterizaccedilatildeo do personagem Aacutejax dentro das obras homeacutericas
Natildeo fugindo agrave regra o heroacutei em questatildeo pertence agrave aristocracia eacute filho de Teacutelamon o
rei de Salamina e descendente de Zeus segundo a mitologia grega que constitui as narrativas
do ciclo da guerra de Troia (GRIMAL 2005 p 16) Com efeito seguindo os paracircmetros de
Robert Aubreton mencionados acima esse personagem tende a ser visto sob duas
perspectivas mais gerais que se estabelecem a partir da dinacircmica de correspondecircncias a
primeira definida a partir de uma relaccedilatildeo comparativa com Aquiles e com Odisseu conduzida
especialmente tanto pela Iliacuteada e quando pela Odisseia e a segunda igualmente importante
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para o nosso estudo a partir de suas reiteradas caracteriacutesticas proacuteprias marcadamente
reconhecidas nessas obras
Comecemos pela primeira visatildeo mais geral acerca da caracterizaccedilatildeo desse
personagem Essa apreciaccedilatildeo tende sempre a destacar traccedilos desse heroacutei a partir da
comparaccedilatildeo com outro heroacutei grego Aquiles especialmente porque esse procedimento ocorre
inclusive dentro da obra homeacuterica Se por um lado o Pelida eacute considerado o melhor dos
Aqueus por outro o Telamocircnio eacute tratado como o melhor depois de Aquiles Isso se realccedila no
Canto II da Iliacuteada sobretudo devido agrave retirada da batalha por este ainda no Canto I Quatro
menccedilotildees a essa denominaccedilatildeo satildeo vistas nas obras homeacutericas duas na Iliacuteada uma no Canto II
e outra no XVII e duas na Odisseia ambas no Canto XI aleacutem de pelo menos uma outra
aparecer ainda na considerada tradiccedilatildeo arcaica nas Odes Nemeias VII de Piacutendaro
Especialmente na primeira obra essas menccedilotildees parecem ser bem significativas enquanto
foacutermulas homeacutericas para o nosso estudo Por serem precisamente os epiacutetetos distintivos jaacute
elucidado anteriormente contextualizando o momento e contribuindo para o argumento do
Canto tornam-se essenciais para nossa exposiccedilatildeo
No Canto II trata-se do cataacutelogo das naus Esse momento tem como argumento a
enumeraccedilatildeo dos heroacuteis gregos que foram agrave guerra de Troia Eacute neste ponto em que se faz a
primeira referecircncia a primazia do heroacutei
Οὗτοι ἄρ ἡγεμόνες Δαναῶν καὶ κοίρανοι ἦσανmiddot 760 τίς τὰρ τῶν ὄχ ἄριστος ἔην σύ μοι ἔννεπε Μοῦσα αὐτῶν ἠδ ἵππων οἳ ἅμ ᾿Ατρεΐδῃσιν ἕποντο
[] ἀνδρῶν αὖ μέγ ἄριστος ἔην Τελαμώνιος Αἴας ὄφρ ᾿Αχιλεὺς μήνιενmiddot ὃ γὰρ πολὺ φέρτατος ἦεν ἵπποι θ οἳ φορέεσκον ἀμύμονα Πηλεΐωνα2 770
(Iliacuteada II v 760-763768-770)
Eacute importante ressaltar que todos inclusive os mortos e o momentaneamente ausente
Aquiles satildeo descritos contudo o narrador invoca a musa para lhe revelar quem seria o melhor
guerreiro dos Aqueus naquele momento eacute nomeadamente Aacutejax Essa eacute uma foacutermula
bastante repetida a qual apresenta a superioridade desse heroacutei relacionada agrave ausecircncia de
Aquiles quando do episoacutedio de sua desonra e consequente retirada Ocupando um verso e
meio em uma clara disposiccedilatildeo formular o epiacuteteto se concentra no sintagma formado por 2 Estes eram dos Dacircnaos os condutores e chefes (v 760) Tu musa dize-me qual era o melhor deles os quais
seguiram os Atridas como tambeacutem o de seus cavalos [] O melhor dos heroacuteis era o ingente Aacutejax Telamocircnio enquanto Aquiles se enfurecia pois este era o mais bravo e tambeacutem [eram] os cavalos que carregavam o excelente Pelida (v 770)
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superlativo melhor dos heroacuteis ἄριστος ἀνδρῶν que distingue sua superioridade dos demais
Tambeacutem eacute oacutebvio apontar que isso se assemelha ao epiacuteteto atribuiacutedo ao Pelida pois tem como
base o mesmo superlativo
O Canto XVII se refere ao episoacutedio da morte de Paacutetrocles A cena disposta abaixo
extremamente relevante para compreendermos a figura de Aacutejax encontra-se logo apoacutes a
morte daquele heroacutei Eacute o episoacutedio dos combates pelo seu cadaacutever
[] μάλα γάρ σφεας ὦκ ἐλέλιξεν Αἴας ὃς περὶ μὲν εἶδος περὶ δ ἔργα τέτυκτο τῶν ἄλλων Δαναῶν μετ ἀμύμονα Πηλεΐωνα3
(Iliacuteada XVII v 277-279)
Nesse ponto mais uma vez se atribui ao heroacutei a primazia guerreira devido agrave ausecircncia
de Aquiles Uma vez que este natildeo pode proteger o corpo do amigo dileto eacute o Telamocircnio que
o cumpre inclusive liderando os gregos para o retornar aos combates em defesa do cadaacutever
do grego morto A foacutermula dessa passagem de estrutura menos oacutebvia abrange dois versos
inteiros Concentra seu significado no verbo teyacutecho τεύχω que sobretudo na obra homeacuterica
tem o sentido de elevar-se Esse epiacuteteto apareceraacute outra vez na Odisseia como veremos mais
agrave frente tal qual disposto nesses versos
A Odisseia tambeacutem faz duas referecircncias a essa qualidade distinta do heroacutei As duas
estatildeo inseridas no Canto XI quando da descida de Odisseu ao Hades Os fragmentos abaixo
referem-se ao encontro de Odisseu com as sobras de Agamecircmnon de Aquiles e do proacuteprio
personagem estudado Como esse Canto compotildee a analepse do narrador autodiegeacutetico eacute
necessaacuterio entender que diferentemente da Iliacuteada aqui os epiacutetetos natildeo satildeo mencionados pelo
narrador externo mas pelo proacuteprio Odisseu fato que corrobora marcadamente o
reconhecimento pelos demais gregos do valor do heroacutei
ἦλθε δ ἐπὶ ψυχὴ Πηληϊάδεω ᾿Αχιλῆος καὶ Πατροκλῆος καὶ ἀμύμονος ᾿Αντιλόχοιο Αἴαντός θ ὃς ἄριστος ἔην εἶδός τε δέμας τε τῶν ἄλλων Δαναῶν μετ ἀμύμονα Πηλεΐωνα4 470
(Odisseia XI v 467-470)
3 Pois muito rapidamente os [gregos] fez voltar Aacutejax que em relaccedilatildeo tanto ao aspecto quanto aos trabalhos
eleva-se dos outros Dacircnaos depois do excelente Pelida 4 Chegou a seguir a alma do Pelida Aquiles e de Paacutetrocles e do excelente Antiacuteloco e tambeacutem a de Aacutejax que
era o melhor em relaccedilatildeo tanto ao aspecto quanto ao porte dos outros Dacircnaos depois do excelente Aquiles (v 470)
20
Nesse fragmento a foacutermula ocupa dois versos inteiros em uma variaccedilatildeo jaacute apontada
no recorte anterior Novamente o epiacuteteto se fortalece com o superlativo melhor ἄριστος
reiterado significativamente para salientar a qualidade distintiva do heroacutei A foacutermula
atributiva deste de alguma maneira se contrapotildee expressivamente ao resultado da disputa
pelas armas de Aquiles Pois uma vez que Aacutejax natildeo recebe como precircmio as armas do Pelida
mesmo ressaltando-se ser ele o melhor entre os dacircnaos depois de Aquiles isso parece gerar
uma aparente contradiccedilatildeo e ateacute provocar ou exigir nos ouvintes ou leitores da obra a simpatia
do Telamocircnio intensificando-se o teor liacuterico e traacutegico da passagem uma vez que seu
profundo rancor eacute natildeo soacute justificaacutevel mas tambeacutem coerente sobretudo se considerando o
reconhecimento elevado do proacuteprio valor do heroacutei como veremos mais agrave frente
Vejamos mais uma passagem significativa ainda presente no Canto XI da Odisseia
τοίην γὰρ κεφαλὴν ἕνεκ αὐτῶν γαῖα κατέσχεν Αἴανθ ὃς περὶ μὲν εἶδος περὶ δ ἔργα τέτυκτο 550 τῶν ἄλλων Δαναῶν μετ ἀμύμονα Πηλεΐωνα5
(Odisseia XI v 549-551)
Nesses versos vemos o mesmo epiacuteteto presente no Canto XVII da Iliacuteada Mais uma
vez a primazia do heroacutei eacute referida pelo verbo τεύχω Esse eacute o momento em que Odisseu
encontra a alma de Aacutejax e este lhe recusa a reconciliaccedilatildeo Mais uma oposiccedilatildeo se faz o
epiacuteteto se contrapotildee agrave imagem do heroacutei Esta uacuteltima descrevendo o personagem coberto pela
terra referecircncia ao seu suiciacutedio morte indigna na perspectiva guerreira do heroacutei grego A
oposiccedilatildeo se constroacutei sobretudo pela distinccedilatildeo superior de sua aparecircncia e de seu aspecto
εἶδος referidos no epiacuteteto agrave imagem suja e maculada pela qual se apresenta Com efeito uma
sugestatildeo oacutebvia ao menos na perspectiva do heroacutei de sua honra manchada e conspurcada
Logo mais uma vez se adensa sua supremacia guerreira de sua figura miacutetica contrastando-se
a isso o potencial liacuterico e traacutegico da passagem
Na sua Ode Nemeia VII Piacutendaro poeta liacuterico inserido no fim o periacuteodo arcaico grego
retrata o heroacutei de acordo com essa mesma concepccedilatildeo configurada por epiacutetetos claramente
homeacutericos A narrativa miacutetica eacute inserida nesse epiniacutecio segundo um dos traccedilos do proacuteprio
poeta ou seja natildeo constituindo o proacuteprio cerne das odes mas visando dar sustentaccedilatildeo aos
elogios aos vencedores nelas celebrados frequentemente apoiando as maacuteximas exigentes de
um modelo moral e religioso adequado nas quais o poeta alicerccedila admoestaccedilotildees dirigidas aos
5 Pois por causa destas terra cobria sua cabeccedila Aacutejax que em relaccedilatildeo tanto ao aspecto quanto aos trabalhos
eleva-se (v 550) dos outros Dacircnaos depois do excelente Pelida
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interlocutores do eu-liacuterico (RAGUSA 2013 p 243) Com efeito a supremacia guerreira do
personagem para aleacutem da adequaccedilatildeo na ode de Piacutendaro serve-nos para reforccedilar essa
recorrente caracteriacutestica do heroacutei
[] τυφλὸν δ ἔχει ἦτορ ὅμιλος ἀνδρῶν ὁ πλεῖστος εἰ γὰρ ἦν 25 ἓ τὰν ἀλάθειαν ἰδέμεν οὔ κεν ὅπλων χολωθείς ὁ καρτερὸς Αἴας ἔπαξε διὰ φρενῶν λευρὸν ξίφοςmiddot ὃν κράτιστον ᾿Αχιλέος ἄτερ μάχᾳ ξανθῷ Μενέλᾳ δάμαρτα κομίσαι θοαῖς ἂν ναυσὶ πόρευσαν εὐθυπνόου Ζεφύροιο πομπαί 6 30
(Nemeias VII v 24-30)
Notadamente a concepccedilatildeo dessa primazia eacute retomada pelo sintagma o melhor no
combate com exceccedilatildeo de Aquiles κράτιστον ᾿Αχιλέος ἄτερ μάχᾳ Primeiramente podemos
ver que se reitera a sua supremacia relativa ao Pelida segundo os moldes homeacutericos Em
segundo lugar sobretudo a retomada da forma do superlativo κράτιστον que remonta a
Homero apesar de manifestar um termo distinto funciona tambeacutem como superlativo de
ἀγαθός da mesma forma que ἄριστος (RAGON 2012 p 59)
A partir de todos esses qualificativos expressos pelos superlativos ἄριστος κράτιστος
ou pelo verbo τεύχω eacute vaacutelido instituir agrave figura de Aacutejax a concepccedilatildeo de segundo heroacutei
supremo entre os Aqueus ou como eacute visto nas obras gregas o melhor ou o mais forte depois
de Aquiles uma vez que repetidamente a tradiccedilatildeo arcaica reforccedila esse perfil miacutetico do
personagem
Contudo haacute quem aponte uma proeminecircncia guerreira de Diomedes filho de Tideu
sobre aquele heroacutei apesar de todos os epiacutetetos supracitados como eacute o caso da anaacutelise de Van
der Valk Este conveacutem ser aqui disposto pois ajudaraacute grandemente a esclarecer a
compreensatildeo corrente de uma virtude defensiva do Telamocircnio como seraacute vista no decorrer da
seccedilatildeo
Segundo Van der Valk um estudo cuidadoso da Iliacuteada apresentaria como resultado a
supremacia guerreira de Diomedes filho de Tideu e natildeo do heroacutei de Salamina quando da
retirada de Aquiles O primeiro se torna o heroacutei mais relevante nos Cantos V VI e VII e o
segundo nos VII que trata do combate singular com Heitor e nos XIII XIV e XV quando da
retirada dos Aqueus diante do avanccedilo Troiano O autor esclarece seu pensamento 6 Tem cego o coraccedilatildeo a numerosa tropa dos homens Pois se lhe fosse (v 25) possiacutevel ver a verdade natildeo
teria encolerizado por causa das armas o firme Aacutejax cravado no coraccedilatildeo a afiada espada que sendo o mais forte no combate com exceccedilatildeo a Aquiles levariam com o loiro Menelau para trazer a esposa em ligeiras naus os impulsos do bom condutor Zeacutefiro (v 30)
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evidenciando que o Tidida combate os deuses potildee em perigo a posiccedilatildeo de Troia rejeita o
conselho de Agamecircmnon em deixar Iacutelion e reagrupa os chefes gregos feridos (VAN DER
VALK 1952 p 269)
Acrescenta a isso sobretudo os jogos fuacutenebres do Canto XXIII dos quais participam
ambos os heroacuteis a contender entre si O combate armado entre os dois natildeo gera resultado
decisivo contudo Diomedes parece receber um precircmio distintivo o que para o autor revela o
favorecimento de Homero a este heroacutei em detrimento do Telamocircnio Isso lhe parece ilustrar a
proeminecircncia do primeiro Tal fato seria um eco da ideia de parcialidade dada aos heroacuteis de
origem jocircnica ou que a essa regiatildeo se relacione pois essa eacute a origem de Homero e assim os
personagens oriundos das tribos da Greacutecia Central majoritariamente seriam colocados em
posiccedilotildees menos importantes Contudo haacute ressalvas nessa tendecircncia observada entre estas
obviamente o caso do heroacutei estudado por noacutes apesar de ainda inferior a Diomedes (Ibidem p
270)
Essa tendecircncia por exemplo justificaria a lideranccedila de Aacutejax na retirada dos Aqueus
Vista como uma atitude ingloacuteria natildeo foi atribuiacuteda a um dos heroacuteis favorecidos na obra uma
vez que estavam feridos ou como no caso de Diomedes foi impelida por auguacuterios de Zeus
Comparando-se o Tidida e o Telamocircnio ao primeiro se relacionam accedilotildees em momentos nos
quais os gregos satildeo vitoriosos jaacute ao segundo accedilotildees de heroica defesa (Ibidem p 271-277)
para noacutes inseridas em momentos criacuteticos de avanccedilo dos troianos devido precisamente agrave
ausecircncia de Aquiles Evidentemente esse contexto das accedilotildees dos heroacuteis deve ser pesado na
comparaccedilatildeo de ambos contudo a visatildeo de Van der Valk nos serve para configurar uma
imagem muito comum associada a Aacutejax a sua predisposiccedilatildeo defensiva que seraacute salientada
ainda nessa seccedilatildeo
Prossigamos entatildeo ainda tratando dessa mesma perspectiva de caracterizaccedilatildeo do
heroacutei em questatildeo ou seja a compreensatildeo de seus atributos a partir da comparaccedilatildeo com outro
heroacutei mas agora em relaccedilatildeo a Odisseu nomeado Ulisses na tradiccedilatildeo latina
Nessa concepccedilatildeo contrapotildeem-se o Telamocircnio e Odisseu De tal oposiccedilatildeo temos o
primeiro associado agrave ideia de homem do qual se sobrelevam as accedilotildees e o segundo marcado
pela proeminecircncia dos discursos Um estudo sob tal perspectiva jaacute foi desenvolvido por
Werner Jaeger em sua obra Paideia a propor a seguinte atribuiccedilatildeo a tais heroacuteis Odisseu e
Aacutejax seriam respectivamente ldquomestre da palavra e [] o homem da accedilatildeordquo (2003 p 29-30)
corroborando o que dissemos
Para chegar a essa conclusatildeo que destaca uma niacutetida oposiccedilatildeo entre as caracteriacutesticas
desses personagens miacuteticos esse estudioso se utiliza especialmente do discurso de Fecircnix
23
quando da embaixada a Aquiles no canto IX da Iliacuteada A passagem serve especialmente para
alicerccedilar a base dupla do conceito de areteacute ἀρετή a virtude grega Vejamos os versos
correspondentes ao discurso direto de Fecircnix
[]σοὶ δέ μ ἔπεμπε γέρων ἱππηλάτα Πηλεὺς ἤματι τῷ ὅτε σ ἐκ Φθίης ᾿Αγαμέμνονι πέμπε νήπιον οὔ πω εἰδόθ ὁμοιΐου πολέμοιο 540 οὐδ ἀγορέων ἵνα τ ἄνδρες ἀριπρεπέες τελέθουσι τοὔνεκά με προέηκε διδασκέμεναι τάδε πάντα μύθων τε ῥητῆρ ἔμεναι πρηκτῆρά τε ἔργων7
(Iliacuteada IX v 538-543)
A partir desses versos Jaeger pocircde afirmar que tais noccedilotildees accedilatildeo e palavra conjugadas
representavam o verdadeiro objetivo da educaccedilatildeo da nobreza grega primitiva e logo ambas
estariam entatildeo em um patamar de igualdade Assim ele pocircde concluir que ao lado da accedilatildeo
o domiacutenio da palavra legitimava a nobreza do espiacuterito (Ibidem p 29-30) Ainda em sua obra
esse autor tenta reforccedilar que essa seria a visatildeo dos gregos
Com efeito junto a Fecircnix na embaixada que objetivava demover Aquiles estavam
Odisseu e Aacutejax Para Jaeger isso eacute fundamental para a estrutura do Canto IX pois a proacutepria
presenccedila destes ilustrava um a accedilatildeo e o outro a palavra de modo que a delegaccedilatildeo enviada
reflete precisamente essa dupla virtude grega apresentada pelo tutor de Aquiles As palavras
de Fecircnix segundo esse estudioso contrapotildeem os dois conselheiros com o propoacutesito
especiacutefico de delinear a figura de Aquiles pois se um ldquopersonifica a accedilatildeordquo e o outro ldquoa
palavrardquo a ambos entatildeo opotildee-se o Pelida uma vez que ldquosoacute se unem ambas em Aquiles que
realiza em si a autecircntica harmonia do mais alto vigor de espiacuterito e accedilatildeordquo (Ibidem p 50)
Isso nos serve para observar os traccedilos peculiares do heroacutei em questatildeo partindo-se de
uma perspectiva comparativa na qual Odisseu eacute elemento imprescindiacutevel Contudo esse
episoacutedio ainda nos daacute outros indiacutecios dessa caracterizaccedilatildeo
Homero expotildee os discursos de Odisseu de Fecircnix e de Aacutejax nessa respectiva ordem
sem sucesso para comover Aquiles a retornar agrave guerra No entanto pode-se observar de
forma clara um elemento significativamente diferente entre os discursos de Aacutejax e de
Odisseu a extensatildeo Para o primeiro Homero dedicou oitenta dois (82) versos (v 225-306)
para o segundo dezenove (19) versos (v 642-642) Isso nos mostra que na versatildeo homeacuterica
7 O velho Peleu condutor de cavalos enviou-me a ti no dia em que enviava para Agamecircmnon jovem ainda
natildeo conhecedor igualmente da guerra (v 540) e das assembleias uma vez que nisto os homens satildeo notaacuteveis Por essa razatildeo enviou-me antecipadamente para instruir tudo isso a ser tanto orador de discursos quanto executor de accedilotildees
24
o discurso de Odisseu eacute ao menos quatro vezes maior do que o de Aacutejax caracterizando aquele
como no miacutenimo mais prolixo e este mais direto
Com efeito essa diferenccedila evidenciada por Jaeger parece salutar na tradiccedilatildeo arcaica
seja oriunda do mito ou das obras homeacutericas Piacutendaro por exemplo na Ode Nemeia VIII
apresenta textualmente esse heroacutei caracterizado como fraco orador por um lado mas bravo
por outro Compondo as narrativas miacuteticas que formam a base do argumento do poeta Aacutejax eacute
chamado de sem-liacutengua aglosso (ἄγλωσσον v 24) cujo desdobramento figurado de sentido
expressa precisamente a falta de eloquecircncia Mas ao mesmo tempo seu coraccedilatildeo eacute bravo
(ἦτορ δ ἄλκιμον v 24) Esse adjetivo aacutelkimos expressa segundo Eacutemile Benveniste a
coragem de ldquoenfrentar o perigo sem nunca recuar natildeo ceder aos assaltos manter-se com
firmeza nos combatesrdquo (1995 v 2 p 73) Esse atributo eacute referido na Iliacuteada a vaacuterios
personagens inclusive a este heroacutei contudo nessa passagem da ode faz-se evidente a
contraposiccedilatildeo de virtude e fraqueza ou seja a enaltecida bravura do heroacutei proacutepria da
associaccedilatildeo agrave accedilatildeo e sobretudo a eloquecircncia diminuiacuteda conforme o modelo comparativo dele
e de Odisseu apregoado por Jaeger anteriormente
A partir desse entendimento do Canto IX da Iliacuteada reforccedilado pela ode pindaacuterica eacute
coerente instituir agrave caracterizaccedilatildeo do Telamocircnio a imagem de um heroacutei que se sobressai pelas
accedilotildees nitidamente guerreiras mas a quem escasseia a eloquecircncia excedente em Odisseu
A segunda perspectiva de certa tradiccedilatildeo criacutetica e aparentemente reiterada nos estudos
da obra homeacuterica compreende o personagem como caracterizado pela robusta compleiccedilatildeo
fiacutesica e pelo fraco intelecto segundo dispotildeem e rebatem os estudos de Richard Trapp (1961
p 271) Corroborando essa premissa Rocha Pereira o descreve da seguinte maneira
guerreiro forte e persistente mas que soacute vale pela forccedila fiacutesica o proacuteprio escudo que traz lsquoalto como uma torrersquo o singulariza como um homem de armas primitivo eacute o lsquobaluarte do Aqueusrsquo que caminha para a luta com um sorriso no seu rosto aterrorizadorrdquo (2012 p 76)
Essa interpretaccedilatildeo corrente se faz porque na tradiccedilatildeo homeacuterica esse heroacutei eacute
caracterizado sobretudo pela sua virtude guerreira que abrange desde seu porte fiacutesico pois eacute
representado como enorme e gigantesco ateacute a sua habilidade beacutelica Natildeo por menos ele eacute
referido na obra como o melhor dos aqueus depois de Aquiles No entanto dois aspectos
dessa virtude guerreira do heroacutei parecem patentes a rudeza intelectual e a qualidade
defensiva depreendidas dos episoacutedios homeacutericos que evidenciam sua preponderacircncia fiacutesica
O primeiro aspecto jaacute exposto acima parece evidente segundo Rocha Pereira e
muitos estudiosos (apud TRAPP 1961 p 271) O segundo jaacute foi pontuado por Agatha
25
Bacelar (2004) e tambeacutem por Trapp ainda que com algumas reservas (1961 p 273) Na
Iliacuteada o personagem se torna mais proeminente no primeiro aspecto devido tanto agrave
constituiccedilatildeo especiacutefica de seu escudo que sugere um valor mais primitivo de origem
marcadamente arcaica e micecircnica (PEREIRA 2012 p 76 VAN DER VALK 1951 p 273)
quanto agraves interpretaccedilotildees de alguns siacutemiles que caracterizam o personagem (TRAPP 1961 p
272) e mais marcante quanto ao segundo a princiacutepio porque a retirada de Aquiles da guerra
acarreta o seu grande mas natildeo uacutenico papel de defensor dos gregos contendo os troianos e
sobretudo Heitor quando do combate singular no Canto VII da Iliacuteada e quando da batalha
junto agraves naus nos Cantos XIII XIV e XV
Novamente as foacutermulas eacutepicas homeacutericas parecem convergir especialmente para esse
atributo defensivo e protetor por meio de epiacutetetos e traccedilos caracteriacutesticos que Aacutejax possui
para conter os ataques dos inimigos Nos Cantos e mais propriamente nas passagens em que
estatildeo inseridos conforme os ditames de Rocha Pereira (1984 p 5) os seus epiacutetetos
apresentam uma adequaccedilatildeo ao contexto e uma melhor caracterizaccedilatildeo do heroacutei indo aleacutem da
relaccedilatildeo com o esquema meacutetrico e com decorrente hemistiacutequio
O primeiro epiacuteteto significativo que coaduna essa qualidade eacute muralha dos aqueus
ἕρκος Ἀχαιῶν referido por exemplo quando Helena ao longe dispotildee os heroacuteis gregos para
Priacuteamo (Iliacuteada III v 229) ou sobretudo quando do combate singular com Heitor (Iliacuteada
VII v 211) A palavra ἕρκος pode apresentar sentidos concretos como barreira muralha e
abstratos como defesa mas que se inserem dentro de um mesmo campo semacircntico Na
relaccedilatildeo com esse heroacutei tal epiacuteteto parece salientar a sua virtude defensiva uma vez que
momentaneamente para os gregos ele eacute a proteccedilatildeo contra o Heitor que causa inuacutemeras mortes
ao aqueus
Essa caracteriacutestica se faz perceber no texto homeacuterico tambeacutem pelas suas armas das
quais se sobressai o seu escudo que se relaciona mais uma vez ao proacuteprio epiacuteteto supracitado
Seu escudo assemelha-se a uma torre σάκος ἠύτε πύργον (Iliacuteada VII v 219 XI v 485
XVII v 128) A comparaccedilatildeo natildeo se daacute apenas para apresentar a arma de Aacutejax com um
formato diferente ela reforccedila a sua potecircncia defensiva e pela sua singularidade o seu
possiacutevel valor primitivo A tradiccedilatildeo homeacuterica potildee uma caracteriacutestica essencial ao escudo do
heroacutei pois haacute nele bronze e sete camadas χάλχεον ἑπταβόειον (Iliacuteada VII v 220) e essas
camadas satildeo de couro taurino ἑπταβόειον ταύρων (Iliacuteada VII v 222-223) Essa
singularidade do escudo parece acentuar os dois aspectos comuns atribuiacutedos agrave virtude
guerreira de Aacutejax tanto o seu valor primitivo configurando o personagem como brusco e daiacute
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inculto quanto sua excelecircncia defensiva e protetora ambos salientados pela constituiccedilatildeo
robusta e uacutenica de seu escudo
Essa compreensatildeo eacute validade ao considerarmos o que diz Jean-Pierre Vernant quando
aponta o papel executado pelas armas na figura do heroacutei em combate o personagem se faz
distinto pelas armas uma vez que ldquoo esplendor que dimana do corpo do heroacutei natildeo resulta
tanto do cativante fasciacutenio da sua juventude vem antes do fulgor do bronze de que se reveste
do seu capaceterdquo (apud MOSSEacute 1989 p 48) Assim torna-se oacutebvio que toda a descriccedilatildeo
singular do escudo de Aacutejax reaccedila seu valor guerreiro ademais sua opulecircncia fiacutesica e sua
qualidade defensiva na contenccedilatildeo dos troianos
O epiacuteteto de muralha dos aqueus tambeacutem frequentemente vem acompanhado de um
outro qualificador que lhe acentua o valor primitivo e defensivo Πελώριος ou seja ingente
monstruoso em tamanho (Iliacuteada III v 229 VII v 211) corroborando assim um segundo
epiacuteteto significativo para isso Essa qualidade do heroacutei que geralmente acompanha o epiacuteteto
de muralha transfere-lhe tambeacutem essa propriedade construindo a imagem de uma magna
muralha E tanto quanto o heroacutei eacute imenso robusto eacute seu escudo coaduna-se assim a partir do
exposto o caraacuteter defensivo daiacute protetor e o primitivo daiacute brusco
Um episoacutedio significativo que opotildee forccedila bruta e inteligecircncia estaacute inserido no Canto
XXIII da Iliacuteada a disputa entre o personagem em questatildeo e Odisseu Inserida nos jogos
fuacutenebres em honra a Paacutetrocles a contenda eacute realizada em uma luta sem armas e eacute sobretudo
relevante natildeo apenas por contrastar duas noccedilotildees opostas mas por evidenciaacute-las a partir de
seus maiores representantes Exatamente por isso o Telamocircnio eacute caracterizado por enorme
meacutegas (μέγας v 708 722) e o Laertida seu adversaacuterio por muito inteligente polyacutemetis
(πολύμητις v709) e por muito artificioso polymeacutechanos (πολυμήχανος v 723) A contenda
termina em empate pela preocupaccedilatildeo de Aquiles de que ambos possam acabar machucados
prejudicando a expediccedilatildeo grega Contudo Odisseu parece ter se sobreposto
momentaneamente ao seu adversaacuterio como aponta Hopkinson (2000 p 12) pois mesmo em
se tratando de uma disputa fiacutesica somente Odisseu foi capaz de derrubar o seu oponente E
isso foi alcanccedilado atraveacutes de uma astuacutecia doacutelos (δόλου v 725) de um golpe atraacutes do joelho
que fez o adversaacuterio ingente se dobrar e cair Esse fato parece por um lado realccedilar a
soberania da inteligecircncia sobre a forccedila e por outro antecipar ateacute a vitoacuteria de Odisseu sobre seu
adversaacuterio na disputa pelas armas de Aquiles Entatildeo ao relacionarem o Telamocircnio agrave pura
forccedila fiacutesica e considerando-se outros elementos jaacute mencionados muitos criacuteticos acabam
atribuindo a este a imagem de brusco ou de primitivo
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Em relaccedilatildeo a essa ideia Trapp discorda veementemente pelo menos quanto agrave
interpretaccedilatildeo dos siacutemiles evidenciados por alguns estudiosos como determinantes da rudeza
intelectual do heroacutei Esse autor em seu estudo elenca quatro criacuteticos literaacuterios que seguem esse
pensamento C M Bowra que afirmou Aacutejax ser nada mais que um homem de accedilatildeo com
inteligecircncia abaixo do padratildeo heroico Gilbert Highet que declarou Homero ter atribuiacutedo a
este personagem a comicidade Sidney Hook que acredita existir um espaccedilo reservado no
circo para esse heroacutei e M W Mansur que o caracterizou como fraco acima dos ombros
(1961 p 271)
Os dois siacutemiles mais ressaltados por esses estudiosos para tal conjuntura se encontra
no Canto XI versos 540-574 da Iliacuteada quando do recuo do heroacutei frente aos troianos
promovido por accedilatildeo de Zeus Esse chefe grego de Salamina quando atacado pelos troianos
nesse episoacutedio eacute comparado a um leatildeo afugentado por fazendeiros e catildees e a um asno
teimoso acossado por crianccedilas que dano algum conseguem infligir Desses siacutemiles natildeo
atentando ao contexto ao menos dois dos quatro autores depreendem a mesma interpretaccedilatildeo
acerca da caracterizaccedilatildeo do personagem em questatildeo bravo como um leatildeo e estuacutepido como
um asno Preferimos concordar com a anaacutelise de Trapp sobretudo quanto ao segundo siacutemile
A imagem do asno destaca um traccedilo peculiar do heroacutei a resistecircncia na batalha inclusive
porque os troianos natildeo conseguem feri-lo de forma efetiva mesmo quando ele estaacute soacute agrave frente
dos gregos (Ibidem p 272) Permitimo-nos desdobrar esse sentido Parece-nos que essa
caracterizaccedilatildeo tambeacutem serve para contribuir para a qualidade defensiva exposta por noacutes
anteriormente pois para uma efetiva contenccedilatildeo dos troianos Homero conferiu ao heroacutei a
resistecircncia e a coragem singulares de manter-se firme em combate O proacuteprio papel do escudo
dentro desse episoacutedio reitera esse entendimento o qual mencionado duas vezes no fragmento
(v 565 572) impede as lanccedilas troianas de encontrarem seu objetivo e resguardam seu corpo
ileso Diferentemente de vaacuterios importantes heroacuteis Aacutejax natildeo chega a ser ferido por nenhum
troiano
Ademais esse traccedilo defensivo se adensa a partir de uma perspectiva coletiva
observado em seu discurso proferido a Aquiles no Canto IX da Iliacuteada No episoacutedio em
questatildeo o Telamocircnio tenta convencer o Pelida comovendo-o por argumentos baseados na
philoacutetes φιλότης na amizade grega tanto aos outros gregos φιλότητος ἑταίρων (v 630)
quanto em relaccedilatildeo aos membros da embaixada marcadamente mais estimados φίλτατοι (v
642) Isso fica claro segundo Benveniste que define esse sentimento como as relaccedilotildees
interpessoais de parentes aliados amigos e todos os que estatildeo imbuiacutedos de maneira
indissociaacutevel de disposiccedilotildees reciacuteprocas vinculados ao respeito ou ao pudor ou agrave reverecircncia
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aiacutedos αἰδώς e ou ateacute ao afeto que se tornam singulares dentro de um grupo especiacutefico como
na famiacutelia ou no exeacutercito ou em uma comunidade maior quer na relaccedilatildeo entre pares ou entre
superiores e inferiores inspirando sentimentos de misericoacuterdia piedade lealdade decoro
coletivo etc (1995 v 1 p 46) Esse sentimento do heroacutei expresso nesse episoacutedio parece-nos
genuiacuteno sobretudo ao considerarmos seus esforccedilos em defesa das naus gregas quando do
cadaacutever de Patroacutecles assim sob o ponto de vista dos que lhe satildeo iguais e tambeacutem inferiores
Marcadamente podemos coadunar a isso sob as devidas circunstacircncias uma qualidade
defensiva
Com efeito eacute possiacutevel conferir agrave caracterizaccedilatildeo de Aacutejax a imagem de um heroacutei
defensivo considerando outras circunstacircncias presentes na Iliacuteada Os relevantes episoacutedios
como o combate singular com Heitor (Canto VII) a defesa das naus gregas (Cantos XII-XV)
a proteccedilatildeo ao corpo de Paacutetrocles (Canto XVII) parecem evidenciar accedilotildees defensivas
sobretudo se considerarmos seu estatuto de melhor depois de Aquiles o que acarreta um
papel proeminente na contenccedilatildeo dos avanccedilos troianos quando da ausecircncia do Pelida No
entanto entenda-se que essa percepccedilatildeo natildeo deve reduzir o personagem a um papel
exclusivamente protetor mas que a partir do desenlace dos episoacutedios isso corrobore para
uma visiacutevel predisposiccedilatildeo de virtude defensiva proeminente para um heroacutei que mais se faz
valer quando do avanccedilo ininterrupto dos troianos
Contudo quando tratamos o personagem dentro da perspectiva do episoacutedio da disputa
pelas armas de Aquiles aleacutem do que foi mencionado podemos evidenciar um traccedilo essencial
na sua caracterizaccedilatildeo a ira Esse elemento eacute recorrente na tradiccedilatildeo de mito do Telamocircnio
pois apesar de referido brevemente na Odisseia eacute retomado por Piacutendaro e sobretudo por
Soacutefocles e Oviacutedio cerne do estudo de caso a que nos propomos Tal marcada caracteriacutestica
inserida no contexto do episoacutedio em questatildeo exerce nele um papel crucial pois impulsiona
todas as accedilotildees do heroacutei como veremos nas seccedilotildees seguintes
A ira de Aacutejax se estrutura coerentemente dentro do contexto agoniacutestico das obras
homeacutericas uma vez que emula de forma niacutetida e sob circunstacircncias semelhantes a proacutepria
fuacuteria de Aquiles argumento maior da Iliacuteada No caso do Pelida a honra lhe eacute conspurcada a
partir da tomada de Briseida por Agamecircmnon o que representava a sua desvalorizaccedilatildeo como
heroacutei devido agrave privaccedilatildeo de sua honraria No caso do heroacutei de Salamina o texto homeacuterico
parece sugerir uma situaccedilatildeo semelhante mesmo natildeo apresentando o leacutexico preciso com a
exceccedilatildeo de que a honraria eacute representada pelas armas de Aquiles e que natildeo lhe foi tomada
mas lhe foi negada o que na perspectiva do heroacutei deprecia seu valor guerreiro
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Contudo essa interpretaccedilatildeo parece vaacutelida uma vez que essa seraacute a perspectiva de
alguns autores poacutes-homeacutericos Ao associar-se a situaccedilatildeo do heroacutei agrave de Aquiles temos que
entender como a ira se manifesta a partir de uma honra tida como conspurcada Esta uacuteltima se
alicerccedila em conjunto de outros fatores8 mas no caso em questatildeo sobretudo na reconhecida e
patente virtude guerreira do heroacutei constituiacuteda de todos os atributos estudados e mencionados
anteriormente
Observemos entatildeo o seguinte a concepccedilatildeo de honra para os gregos do periacuteodo
arcaico ainda eacute estruturada sobre duas noccedilotildees a honraria geacuteras (γέρας) e a honra timeacute
(τιμή) Acerca disso nos esclarece Benveniste a primeira mais restrita agrave epopeia representa
uma vantagem material atribuiacuteda pelos homens tanto como privileacutegio de uma condiccedilatildeo
social quanto como recompensa de um grande feito a segunda utilizada abundantemente em
vaacuterias eacutepocas distintas representa a dignidade de uma determinada condiccedilatildeo social de origem
divina e conferida ao acaso constitutiva de seu quinhatildeo pessoal concedido pelo destino (1995
v 2 p 43-52) Tudo isso nos permite depreender o seguinte entendimento inserido no
contexto da Iliacuteada o ato de reconhecer o valor de um heroacutei seja por meio de honrarias e
recompensas ou dos proacuteprios respeito e reverecircncia eacute legitimar a sua honra e as virtudes
constitutivas dela Assim ferir a honra de um heroacutei significa desprezar o seu valor e
sobretudo na obra homeacuterica isso significa negar-lhe a sua condiccedilatildeo inata conferida pelos
deuses Aristoacuteteles nos abona tal ideia ldquoa desonra eacute algo de desmedido e o desonrante
desestima pois o que tem nenhum valor possui nenhuma honrardquo (ὕβρεως δὲ ἀτιμία ὁ δ
ἀτιμάζων ὀλιγωρεῖmiddot τὸ γὰρ μηδενὸς ἄξιον οὐδεμίαν ἔχει τιμήν Retoacuterica 1378b 29-30)
Como seraacute melhor explicado adiante ao nosso ver o episoacutedio da disputa pelas armas
de Aquiles parece se estruturar em dois elementos-base virtude e ira em que aquela sustenta
a honra Estes se articulam de forma a natildeo deixar possiacutevel a apreciaccedilatildeo de um sem a
compreensatildeo do outro e por decorrecircncia a apreensatildeo de sua unidade textual Contudo a
disposiccedilatildeo dos componentes virtude e ira parece ainda se desdobrar a partir dos mesmos em
outras duas noccedilotildees complementares de dor e de sofrimento que constroem com aquelas a
organicidade semacircntica do texto
Trataremos agora da ira uma vez que juntamente com o elemento virtude estaacute
presente na caracterizaccedilatildeo do personagem estudado na tradiccedilatildeo do mito que trata do episoacutedio 8 Segundo Vernant a honra a timeacute grega τιμή ldquodesigna o valor que eacute reconhecido a um indiviacuteduo ou seja ao
mesmo tempo as marcas sociais de sua identidade seu nome sua filiaccedilatildeo sua origem seu estatuto no grupo com as honras que lhe satildeo ligadas os privileacutegios e a consideraccedilatildeo que tem direito de exigir a sua excelecircncia pessoal o conjunto das qualidades e dos meacuteritos ndash beleza vigor coragem nobreza do comportamento domiacutenio sobre si ndash que em seu rosto em suas vestimentas em seu comportamento manifestam aos olhos de todos seu pertenciamento agrave elite dos kaloigrave kagathoiacute os belos-e-bons dos aacuteristoi os excelentesrdquo (2009 p 184)
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da disputa pelas armas de Aquiles Sobre a virtude tudo o que foi mencionado anteriormente
jaacute se mostra suficiente para a nossa elucidaccedilatildeo
Prossigamos com a ira Esse sentimento eacute evidente tanto no leacutexico expresso nos textos
e em seus correlatos semacircnticos quanto no comportamento do personagem disposto nos
proacuteprios temas desenvolvidos quando da caracterizaccedilatildeo de Aacutejax nas obras apontadas por noacutes
como referecircncia da tradiccedilatildeo Piacutendaro e sobretudo Homero
Com efeito Homero jaacute o representava tomado de ira Ainda no Canto XI da Odisseia
quando da narrativa de Odisseu que descreve o seu encontro com Aacutejax no Hades podemos
observar esse sentimento representado explicitamente pelo verbo χολόω Esse verbo que
significa excitar a bile encolerizar por duas vezes eacute usado para se referir a Aacutejax por meio de
seu particiacutepio perfeito na voz meacutedia ao nosso ver e natildeo passiva Faz-se necessaacuterio ressaltar
que a voz meacutedia traz uma nova carga semacircntica ao verbo e por consequecircncia em sua forma
nominal revelando que aquele que pratica a accedilatildeo pratica-a para si mesmo em seu interesse
ou a accedilatildeo se exerce na esfera do sujeito que estaacute envolvido subjetivamente nela (RAGON
2011 p 206) A relaccedilatildeo desse verbo com χολή bile e por extensatildeo coacutelera ira ressalta o
aspecto fiacutesico do ato de irar-se e a voz meacutedia enfatiza que o heroacutei se encoleriza para si
mesmo ou a partir de si desenvolvendo-se em seu interesse uma vez que o faz a partir de um
julgamento sobre seu valor um pensamento que lhe eacute proacuteprio Vejamos a primeira passagem
οἴη δ Αἴαντος ψυχὴ Τελαμωνιάδαο νόσφιν ἀφεστήκει κεχολωμένη εἵνεκα νίκης τήν μιν ἐγὼ νίκησα δικαζόμενος παρὰ νηυσὶ 545 τεύχεσιν ἀμφ ᾿Αχιλῆοςmiddot ἔθηκε δὲ πότνια μήτηρ παῖδες δὲ Τρώων δίκασαν καὶ Παλλὰς ᾿Αθήνη9
(Odisseia XI v 543-547)
O primeiro particiacutepio aparece no verso 544 referindo-se a alma de Aacutejax κεχολωμένη
εἵνεκα νίκης encolerizada por causa da vitoacuteria Isso nos revela tambeacutem o motivo pelo qual a
coacutelera se desenvolve a vitoacuteria de Odisseu sobre o Telamocircnio injusta na perspectiva do
uacuteltimo justificando a voz meacutedia devido agrave participaccedilatildeo do derrotado na accedilatildeo de se enfurecer
Assim tal entendimento nos impede de retirar da accedilatildeo o seu envolvimento pessoal e o seu
possiacutevel julgamento acerca de tal resultado em oposiccedilatildeo ao dos juiacutezes referidos por Odisseu
entre os quais figura a deusa Atena Isso significa dizer que Aacutejax se encoleriza uma vez que
9 Somente a alma de Aacutejax Telamocircnio ficara ao longe afastada encolerizada por causa da vitoacuteria que eu
conquistei sendo julgado junto aos navios (v 545) por causa das armas de Aquiles a matildee veneranda dispocircs julgaram os filhos dos Troas e Palas Atena
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reconhece atribuir a si a supremacia guerreira expressa textualmente no seu recorrente epiacuteteto
de melhor do Aqueus depois de Aquiles Seu julgamento seria considerar a honraria as armas
do Pelida como constituinte de sua honra Isso fica mais evidente quando agregamos isso aos
versos de Piacutendaro que descrevem as armas de Aquiles como a maior honraria (μέγιστον
γέρας Nemeias VIII v 25) uma vez que provecircm do melhor guerreiro Certamente haacute uma
coerecircncia no pensamento de Aacutejax em se ver desonrado pois o superlativo que define a
grandeza das armas se adequa aos superlativos ἄριστος e κράτιστος que retratam a excelecircncia
do heroacutei Evidentemente que o ultraje lhe eacute percebido ao natildeo se reconhecer seu valor
condizente agrave honraria e dessa forma depreciando-o o que justifica seu estado coleacuterico
Vejamos a segunda menccedilatildeo a esse estado
lsquoΑἶαν παῖ Τελαμῶνος ἀμύμονος οὐκ ἄρ ἔμελλες οὐδὲ θανὼν λήσεσθαι ἐμοὶ χόλου εἵνεκα τευχέων οὐλομένων τὰ δὲ πῆμα θεοὶ θέσαν ᾿Αργείοισιmiddot 555 τοῖος γάρ σφιν πύργος ἀπώλεοmiddot σεῖο δ ᾿Αχαιοὶ ἶσον ᾿Αχιλλῆος κεφαλῇ Πηληϊάδαο ἀχνύμεθα φθιμένοιο διαμπερέςmiddot οὐδέ τις ἄλλος αἴτιος ἀλλὰ Ζεὺς Δαναῶν στρατὸν αἰχμητάων ἐκπάγλως ἤχθηρε τεῒν δ ἐπὶ μοῖραν ἔθηκεν 560 ἀλλ ἄγε δεῦρο ἄναξ ἵν ἔπος καὶ μῦθον ἀκούσῃς ἡμέτερονmiddot δάμασον δὲ μένος καὶ ἀγήνορα θυμόνrsquo ὣς ἐφάμην ὁ δέ μ οὐδὲν ἀμείβετο βῆ δὲ μετ ἄλλας ψυχὰς εἰς ῎Ερεβος νεκύων κατατεθνηώτων ἔνθα χ ὅμως προσέφη κεχολωμένος ἤ κεν ἐγὼ τόνmiddot 565 ἀλλά μοι ἤθελε θυμὸς ἐνὶ στήθεσσι φίλοισι τῶν ἄλλων ψυχὰς ἰδέειν κατατεθνηώτων10
(Odisseia XI v 553-567)
O segundo particiacutepio aparece no verso 565 referindo-se a Aacutejax κεχολωμένος
evidenciando seu estado quando se dirige ao Eacuterebo depois da investida de Odisseu negando
a este a reconciliaccedilatildeo Essa ira que se apresenta como um rancor profundo eacute um traccedilo tatildeo
marcante na caracterizaccedilatildeo de Aacutejax que ateacute Odisseu nos versos 554 e 555 ressalta-o como
capaz de permanecer no heroacutei mesmo apoacutes a sua proacutepria morte Para isso evidencia-se o
estado do heroacutei reiterando junto ao particiacutepio encolerizado o termo ira (χόλου v 554) Mais
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ldquoAacutejax filho do excelente Teacutelamon natildeo estavas disposto nem tendo morrido a haver de esquecer-te do rancor por mim por causa das armas funestas os deuses impuseram as desgraccedilas aos Argivos (v 555) pois tu torre para estes pereceste Os Acaios por ti tal qual por Aquiles Pelida tendo morrido afligiram-se completamente Nenhum outro eacute responsaacutevel senatildeo Zeus que detestou o exeacutercito dos Dacircnaos lanceiros terrivelmente e impocircs sobre ti [tal] destino (v 560) Mas avanccedila ateacute aqui chefe a fim de que palavra e nossa histoacuteria escutes doma o espiacuterito e a o iacutempeto muito virilrdquo Assim falava e a mim nada respondeu caminhou entre as outras almas em direccedilatildeo ao Eacuterebo de corpos mortos E ali mesmo que encolerizado dirigiria a palavra ou eu a ele (v 565) Mas para mim o coraccedilatildeo no peito querido desejou ver as almas de outros mortos
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uma vez podemos reforccedilar tal caracteriacutestica ao compararmos esses fragmentos ao verso 25 da
Ode Nemeia de Piacutendaro que tambeacutem delineia o estado coleacuterico com um particiacutepio do mesmo
verbo χολόω contudo no aspecto aoristo encolerizado por causa das armas (ὅπλων
χολωθείς) (Cf p 20) Agrega-se a isso o apelo de Odisseu ao heroacutei de Salamina no verso
562 que reitera essa noccedilatildeo e amplifica as caracteriacutesticas da iacutendole de Aacutejax delineando-o
possivelmente ateacute como orgulhoso de sua supremacia guerreira uma vez que na expressatildeo
traduzida de forma mais etimoloacutegica iacutempeto muito viril ageacutenora thymoacuten (ἀγήνορα θυμόν) o
adjetivo pode se relacionar tambeacutem por extensatildeo de sentido agraves noccedilotildees de orgulho altivez e
arrogacircncia Essa presunccedilatildeo de uma virtude reconhecidamente superior na perspectiva do
personagem acarreta exatamente o sentimento de ira que decorre da percepccedilatildeo da aparente
injusticcedila no julgamento das armas de Aquiles
Natildeo eacute descabido observar esse orgulho sugerido pois alguns episoacutedios parecem
reiterar tal possibilidade de iacutendole ao Telamocircnio Trapp (1961 p 4) aponta como uma das
suas proeminentes caracteriacutesticas a confianccedila em si mesmo observada tanto em sua
declaraccedilatildeo de coragem e de esperada vitoacuteria sobre Heitor (Iliacuteada VII v 191-199) quanto em
seu sorriso diante do adversaacuterio expresso durante o combate singular com Heitor (Ibidem
VII v 211-213) A isso acrescenta-se o fato que de sua virtude guerreira o permitiu muitas
vezes combater sozinho sobretudo na defesa dos gregos o que corrobora a ideia
disseminada por muitos escoliastas de que Aacutejax fosse inclusive pouco ajudado pelos deuses
se o compararmos a Diomedes por exemplo um dos grandes heroacuteis cuja excelecircncia eacute
tambeacutem desenvolvida na Iliacuteada (VAN DER VALK 1952 p 271)
O aspecto traacutegico do episoacutedio homeacuterico se faz valer especialmente a partir da funccedilatildeo
complementar ocupada pelos sentimentos de dor e de sofrimento que depreendemos sentir o
heroacutei A ligaccedilatildeo entre ira e dor natildeo eacute incomum ao menos se tomamos como referecircncia o caso
de Aquiles em sua querela com Agamecircmnon no Canto I da Iliacuteada e a compreensatildeo de
Aristoacuteteles quanto agraves emoccedilotildees na Retoacuterica Vejamos nos versos abaixo a descriccedilatildeo dos
sentimentos de Aquiles fundamental para nosso estudo uma vez que a situaccedilatildeo desse heroacutei
perante a decisatildeo de Agamecircmnon eacute modelo como jaacute percebemos para o caso de Telamocircnio
Ὥς φάτο Πηλεΐωνι δ᾽ ἄχος γένετ᾽ ἐν δέ οἱ ἦτορ στήθεσσιν λασίοισι διάνδιχα μερμήριξεν ἢ ὅ γε φάσγανον ὀξὺ ἐρυσσάμενος παρὰ μηροῦ 190 τοὺς μὲν ἀναστήσειεν ὃ δ᾽ Ἀτρεΐδην ἐναρίζοι ἦε χόλον παύσειεν ἐρητύσειέ τε θυμόν ἧος ὃ ταῦθ᾽ ὥρμαινε κατὰ φρένα καὶ κατὰ θυμόν
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ἕλκετο δ᾽ ἐκ κολεοῖο μέγα ξίφος ἦλθε δ᾽ Ἀθήνη [] 11 (Iliacuteada I v 188-194)
A primeira coisa a se observar eacute a participaccedilatildeo do sentimento de dor ἄχος (v 188)
como emoccedilatildeo inicial e desencadeadora das accedilotildees que a sucedem Eacute por meio da dor que
Aquiles internamente se agita Esse conflito interno o faz cogitar executar duas accedilotildees
distintas a primeira eacute a de levantar as armas e matar Agamecircmnon a segunda eacute a de cessar a
ira e dominar o seu iacutempeto A princiacutepio essas accedilotildees estatildeo no acircmbito da possibilidade
primeiro por estarem sintaacutetica e semanticamente ligadas ao verbo μερμηρίζω ponderar
segundo pelo proacuteprio modo expresso o optativo Vecirc-se a relaccedilatildeo direta na passagem entre
ἄχος e χόλος pois a dor nasceu e por consequecircncia agora o heroacutei pensa em suster a ira
Assim a dor se natildeo for tomada junta agrave ira como componente de um mesmo conjunto implica
esse proacuteprio sentimento de coacutelera O texto parece estruturar esse sentido coadunando esses
dois elementos
Um outro ponto conveacutem ser aprofundado Se antes tiacutenhamos o ato de erguer as armas
e matar Atrida como um fato possiacutevel ponderado por Aquiles nos versos seguintes vemos
sua realizaccedilatildeo parcial a partir do modo indicativo do verbo ἕλκω Pois eacute durante o ato de sacar
ainda inacabado que Atena chega ateacute Aquiles para impedi-lo de executar aquilo sobre o qual
ele havia refletido A deusa mesma revela essa informaccedilatildeo ldquoeu cheguei havendo de cessar
teu iacutempetordquo (ἦλθον ἐγὼ παύσουσα τὸ σὸν μένος v 207) Um mesmo verbo eacute usado na
ponderaccedilatildeo de Aquiles e nas palavras de Atena o verbo παύω que tem o sentido de reter
fazer cessar usado na primeira menccedilatildeo no optativo e na segunda em sua forma nominal do
particiacutepio futuro
Assim no caso de Aquiles ele mesmo natildeo conteve a ira gerada pela dor e que
resultaria em uma accedilatildeo violenta e significativa proacutepria do heroacutei erguer as armas e utilizaacute-las
para seu propoacutesito primeiro Em especial ao caso de Aquiles eacute a deusa que o conteacutem
evitando-se que o heroacutei cometesse um erro Como sabemos pelo conteuacutedo do Canto XIX da
Iliacuteada o erro em verdade seraacute atribuiacutedo a Agamecircmnon e em parte admitido por ele
referindo-se agrave privaccedilatildeo dos precircmios do Pelida (v 89-89 XIX) No entanto o chefe dos gregos
confere esse ato agrave interferecircncia de uma divindade grega que personifica o proacuteprio erro Aacutete
(Ἄτη) Como divindade responsaacutevel pela accedilatildeo contra o Pelida ela eacute referida ao menos uma
11
Assim falou A dor nasceu no Pelida e dentro dele o coraccedilatildeo no peito hirsuto pesou duas coisas ou precisamente tendo retirado sua aguda espada de junto da coxa ergueria as armas e mataria o Atrida ou cessaria a ira e conteria o acircnimo Enquanto pensava em tudo no espiacuterito e no acircnimo E sacava da bainha a grande espada Atena chegou []
34
vez no discurso de Agamecircmon (Ἄτη v 91 XIX) Como um ato de erro ela eacute referida outra
vez (ἄτην v 88) Com efeito para a literatura grega do periacuteodo arcaico a aacutete eacute definida
segundo Richard Doyle como uma espeacutecie de cegueira paixatildeo ou desatino que prejudica o
bom senso e a racionalidade (1970 p 295) Certamente Atena impede o Pelida de cometer
um potencial erro do heroacutei impulsionado por uma paixatildeo que sustenta a relaccedilatildeo significativa
e clara que existe entre dor e ira as quais agem como desencadeadores das accedilotildees dos
personagens
Aristoacuteteles novamente nos abona esse entendimento especialmente se considerarmos
a retomada desse episoacutedio das armas de Aquiles pela posterior literatura claacutessica Mesmo que
Aristoacuteteles se utilize de outro leacutexico que contudo estaacute ainda inserido no campo semacircntico
dos vocaacutebulos homeacutericos podemos ver um paralelismo traccedilado entre dor e ira ldquoira eacute um
desejo de vinganccedila expliacutecita com a participaccedilatildeo do sentimento de dor por causa de expliacutecita
desestimarsquo (ὀργὴ ὄρεξις μετὰ λύπης τιμωρίας [φαινομένης] διὰ φαινομένην ὀλιγωρίαν
Retoacuterica 1378a 30-31)
Validamente pudemos observar a relevacircncia dessa ira manifestada na figura de Aacutejax
dentro do contexto da Odisseia que em seu Canto XI trata brevemente do episoacutedio da disputa
pelas armas de Aquiles Essa caracterizaccedilatildeo do heroacutei exige o entendimento de honra
vinculada agrave virtude grega arcaica Desta uacuteltima Aacutejax se sobressai pelas qualidades de um
heroacutei defensivo sob certas circunstacircncias servindo-lhe para isso sua singular resistecircncia e
firmeza em combate e tambeacutem de uma primazia guerreira entre os gregos superada apenas
por Aquiles
1 2 A TRADICcedilAtildeO CLAacuteSSICA
Nesta seccedilatildeo contextualizaremos as obras Aias de Soacutefocles e Metamorfoses de
Oviacutedio sobretudo seu Livro XIII com o objetivo de reconhecer na caracterizaccedilatildeo do
personagem Aacutejax sob a perspectiva das noccedilotildees de ira e de virtude elementos tanto novos
quanto retomados da tradiccedilatildeo arcaica Com essa finalidade apresentaremos estudos que
exponham as linhas gerais de interpretaccedilatildeo das obras especialmente aqueles que de alguma
maneira contribuam para a nossa pesquisa com assunto relacionado agrave caracterizaccedilatildeo do
personagem estudado ou agrave intertextualidade entre as obras analisadas e a tradiccedilatildeo arcaica
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1 2 1 Aias de Soacutefocles
A peccedila Aias foi escrita por Soacutefocles no periacuteodo Claacutessico da literatura grega que
ocorre entre os seacuteculos V e IV a C ou mais precisamente no primeiro destes o chamado
seacuteculo de Peacutericles Isso implica dizer que nessa eacutepoca se insere o maior niacutevel da produccedilatildeo
artiacutestica e intelectual da cultura grega dentro da nomeada Antiguidade Claacutessica Eacute nesse
momento em que a escrita encontra seu apogeu exercendo forccedila sobre oralidade arcaica a
tirania daacute lugar agrave democracia a filosofia desenvolveu-se iniciando uma nova era a literatura
de entatildeo encontra seu auge no teatro traacutegico e a cidade grega a πόλις se torna o palco dessas
transformaccedilotildees e a mais proeminente delas foi sobretudo Atenas (MARQUES JUacuteNIOR
2008 p 12)
Com efeito a literatura dessa eacutepoca parece direcionada para a cidade especialmente
devido ao estabelecimento de uma vida poliacutetica organizada e assentada apoacutes a vitoacuteria sobre os
persas (ROMILLY 1984 p 73) A participaccedilatildeo na vida poliacutetica crescente desde meados do
periacuteodo arcaico cristaliza-se apoacutes o confronto entre gregos e persas e acaba fomentando nos
poetas uma maior consciecircncia do seu lugar na cidade A influecircncia desse fato pode ser
ilustrada pelos grandes gecircneros produzidos na eacutepoca na liacuterica os muitos poemas de
Simocircnides considerado cantor nacional na trageacutedia Os Persas de Eacutesquilo na histoacuteria
Histoacuterias de Heroacutedoto
Essa consciecircncia poliacutetica no sentido estritamente grego ou seja ligada agrave cidade
tambeacutem eacute preponderante na trageacutedia acima de tudo porque as peccedilas que compunham esse
gecircnero eram encenadas em concursos que ocorriam durante os festivais dionisiacuteacos logo
inserindo-se em um rol de cerimocircnias de caraacuteter religioso e tambeacutem ciacutevico Em decorrecircncia
de todos esses fatos R Janko afirma que o teatro tambeacutem seria um lugar onde os cidadatildeos
podiam refletir sobre questotildees poliacuteticas e no qual muitos poetas problematizavam modelos de
cunho moral social e religioso atualizando-os ao seu tempo (apud PEREIRA 2012 p 394-
395) Ao trazer agrave cena um heroacutei miacutetico que encarna as tradiccedilotildees de um passado no qual se
insere diante de novas formas de pensamento a trageacutedia questiona e potildee em discussatildeo os
valores heroicos e suas representaccedilotildees religiosas antigas a partir do evidente contraste que se
eleva desse confronto entre o passado e o presente (VERNANT VIDAL-NAQUET 2011 p
4-10)
Contudo acima de seu caraacuteter religioso e ciacutevico sobressai-se seu valor literaacuterio cuja
base se sustenta principalmente na carga esteacutetica que a obra executa A trageacutedia grega
segundo Aristoacuteteles (Poeacutetica) teria como finalidade primeira causar catarse κάθαρσις uma
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ideia de purgaccedilatildeo ou purificaccedilatildeo esteacutetica por meio de duas emoccedilotildees necessaacuterias para isso a
piedade ou compaixatildeo eacuteleos (ἔλεος) e o temor phoacutebos (φόβος) Ainda prossegue em sua
obra expondo que isso seria efetivamente alcanccedilado a partir de alguns recursos desenvolvidos
pelo proacuteprio autor entre os mais relevantes quando a accedilatildeo representada fosse completa de
unidade estruturada e desenvolvida por personagens que passariam sobretudo da felicidade agrave
infelicidade atraveacutes de um erro hamartiacutea (ἁμαρτία) que decorre natildeo de um viacutecio de caraacuteter
mas segundo a interpretaccedilatildeo de alguns estudiosos (PEREIRA 2012 p 402) de um
desconhecimento agnoacuteia (ἀγνοία)
Coerente com muito desses conceitos aristoteacutelicos que lhes satildeo posteriores os autores
traacutegicos que mais obtiveram ecircxito nas apresentaccedilotildees desses festivais e por isso mais
renomados satildeo Eacutesquilo Soacutefocles e Euriacutepides de quem detemos obras ainda completas Aleacutem
desse fato seu talento permite discernir seus estilos proacuteprios que nos ajuda a contrastar a
forma como compunham suas obras Dentre esses interessa-nos Soacutefocles objeto de estudo
desta seccedilatildeo
Apesar de esse autor ter produzido vaacuterias peccedilas das quais temos apenas fragmentos ou
tiacutetulos mencionados em obras de outrem sobreviveram apenas sete peccedilas traacutegicas inteiras e
nas quais inclusive eacute possiacutevel reconhecer um padratildeo estiliacutestico recorrente Aacutejax (Ἄιας)
aparentemente a mais antiga Antiacutegona (Ἀντιγόνη) As Traquiacutenias (Τραχίνιαἰ) Eacutedipo Tirano
(Οἰδίπους Τύραννος) eleita a trageacutedia mais bela por Aristoacuteteles segundo os seus criteacuterios
adotados Electra (Ἠλέκτρα) Filoctetes (Φιλοκτήτης) e Eacutedipo em Colono (Οἱδίπους ἐπι
Κολώνῳ)
Apesar de muitos serem os tratamentos literaacuterios proacuteprios de Soacutefocles a predisposiccedilatildeo
a uma construccedilatildeo mais marcante do caraacuteter dos personagens eacute geralmente ressaltada por
vaacuterios estudiosos Junito de Souza Brandatildeo por exemplo afirma que ldquoenquanto Eacutesquilo
elabora suas personagens em funccedilatildeo da faacutebula Soacutefocles elabora a faacutebula em funccedilatildeo das
personagens de modo especial da personagem central o protagonisteacutesrdquo (2007 p 43) Na
perspectiva desse estudioso isso demonstra o papel significativo da caracterizaccedilatildeo das figuras
na compreensatildeo das obras desse autor A isso Rocha Pereira acrescenta que contrariamente ao
que faz Eacutesquilo por exemplo que prefere apresentar situaccedilotildees traacutegicas Soacutefocles eacute o autor que
concentra suas obras nos caracteres delineando nitidamente a figura dos personagens
(PEREIRA 2012 p 425) Dessa forma Soacutefocles parece realmente dar um tratamento
diferente aos seus personagens pois esse traccedilo singular do autor se revela sobretudo a partir
do confronto entre esse e outros tragedioacutegrafos
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Aleacutem de Brandatildeo e de Rocha Pereira jaacute citados por noacutes Jacqueline de Romilly
apresenta um espaccedilo em seus estudos para falar dessa caracterizaccedilatildeo dos personagens e dos
meios usados pelo tragedioacutegrafo para evidenciar tais disposiccedilotildees Tal estudo eacute extremamente
importante para noacutes uma vez que aleacutem de corroborar os propoacutesitos do nosso trabalho daacute luz
ao funcionamento dessa categoria dentro das peccedilas
Veremos agora primeiramente o estudo dessa autora que dispotildee consideraccedilotildees gerais
sobre o assunto as quais podem ser aplicadas agrave peccedila que seraacute estudada Em seguida
recorreremos a outros estudiosos que tratam mais precisamente da obra Aias ora reforccedilando
caracteriacutesticas constitutivas do estilo do autor ora analisando elementos especiacuteficos proacuteprios
ou pertinentes agrave obra em questatildeo Contudo todas as exposiccedilotildees aqui dispostas fornecem
subsiacutedios para uma melhor compreensatildeo da peccedila de seus limites e de suas referecircncias
especialmente em seu aspecto literaacuterio a partir da qual podemos realizar uma anaacutelise coerente
e pertinente
Para Romilly os caracteres das figuras de Soacutefocles satildeo bem delineados e muitas vezes
satildeo destacados a partir de um procedimento muito comum agrave literatura o contraste entres os
personagens Nesse autor a oposiccedilatildeo de caracteres eacute geralmente feita em dupla o que acentua
as singularidades e peculiaridades do personagem e em decorrecircncia disso a vividez de sua
configuraccedilatildeo humana Assim isso pode ser visto tanto no contraste entre irmatildeos Antiacutegona e
Ismene Electra e Crisocirctemis quanto entre marido e mulher ou cativa como eacute o caso de
Heacuteracles e Dejanira e de Aacutejax e Tecmessa e quanto tambeacutem entre membros de um grupo
como eacute o caso dos heroacuteis gregos da expediccedilatildeo a Troia Odisseu e o Telamocircnio ou entre
aquele e Neoptocirclemo (1984 p 102-104) No caso da obra a ser estudada a patente oposiccedilatildeo
de caracteres entre o heroacutei e a concubina revela a firme obstinaccedilatildeo daquele e a flexiacutevel
compreensatildeo daquela bem como entre o Laertida e o Telamocircnio a iacutendole moderada do
primeiro e a desmesurada do segundo
A estrutura de suas obras parece ser elaborada a partir de cenas sucessivas que
contribuam para esse contraste promovendo entatildeo o confronto entre as figuras e o conflito
entre os seus caracteres sobretudo considerando-se que
seus personagens se distinguem por sua psicologia somente porque cada um deles encarna um ideal moral diferente com o qual eles se identificam Um personagem de Soacutefocles sabe em nome de que ele age defende seus princiacutepios como se tratasse de uma causa contra outra e se contrapotildee aos que o cercam como uma regra de vida se contrapotildee a outra (ROMILLY p 103)
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Contudo essa relaccedilatildeo de quase personificaccedilatildeo de um ideal instaurado na
caracterizaccedilatildeo do personagem serve para delinear suas peculiaridades mas natildeo exclui a
complexidade de seu caraacuteter o que implica sobretudo segundo Romilly as zonas de sombra
as quais contribuem para uma composiccedilatildeo mais viacutevida da figura Com efeito o heroacutei e o seu
modo de vida se identificam sobretudo porque haacute a tendecircncia desses personagens a
defenderem intensamente aquilo no que acreditam a ponto de observar-se um traccedilo comum a
predisposiccedilatildeo para sacrificar tudo pelo seu ideal Tanto na caracterizaccedilatildeo de Aacutejax quanto na
de Antiacutegona ou Electra a morte ou a recusa a submeter-se eacute acolhida da mesma forma
(Ibidem p 103-105)
Contudo na composiccedilatildeo da trageacutedia Aias esse estilo marcante de Soacutefocles natildeo
encontrou validaccedilatildeo criacutetica durante seacuteculos Essa peccedila haacute muito tempo eacute discutida pela sua
aparentemente obscura estrutura Muito criticada no passado e no presente encontra no
uacuteltimo seacuteculo muitos defensores que reabilitam a obra por variadas estrateacutegias fornecendo
uma melhor compreensatildeo para seus pontos mais condenados a estrutura dupla de sua
unidade em que o protagonista figura vivo na primeira parte e morto na segunda o que foge
aos criteacuterios aristoteacutelicos o longo debate que apoacutes a morte do Telamocircnio ainda se estende
por mais 500 versos inserido aparentemente para servir apenas para agradar a inclinaccedilatildeo dos
atenienses agrave dialeacutetica e ao debate e sobretudo os caracteres repulsivos de um heroacutei
brutalizado e da personagem Atena que demostra uma iacutendole inferior agrave sua natureza divina
(KNOX 1961 p 1 HUBBARD 2003 p 158-159)
Aleacutem de compor a eacutepica de Lesches e outras obras de gecircneros literaacuterios variados o
mito de Aacutejax que trata sobretudo de sua ruiacutena tambeacutem eacute tema de uma trilogia traacutegica de
Eacutesquilo Contudo o conteuacutedo sobrevivente de todas essas obras se restringiria a tiacutetulos
resumos das obras e alguns fragmentos Com efeito temos algum detalhamento acerca da
trilogia de Eacutesquilo a primeira peccedila Julgamento das Armas traria como cerne a disputa entre
o heroacutei de Salamina e Odisseu pelas armas de Aquiles apoacutes a morte deste a segunda
Mulheres da Traacutecia possivelmente teria como centro a morte do personagem derrotado e a
terceira Mulheres de Salamina corresponderia ao retorno de Teucro irmatildeo do Telamocircnio e
sua recepccedilatildeo em Salamina Segundo a criacutetica a obra de Soacutefocles se conectaria
prioritariamente agrave peccedila central da trilogia de Eacutesquilo mas o debate sobre os ritos fuacutenebres do
personagem seria uma das inovaccedilotildees do autor (HUBBARD 2003 p 159)
A trama da peccedila Aias de Soacutefocles apresenta a ruiacutena do personagem que daacute nome agrave
obra acompanhado de seus valores arcaicos que remontam as obras homeacutericas bem como o
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sofrimento de todos os seus proacuteximos Inicia-se no momento em que Aacutejax iludido pela deusa
Atena acha-se vingador da desonra infligida sobretudo por Agamecircmnon e Odisseu
Desenvolve-se com o seu reconhecimento acerca da proacutepria situaccedilatildeo que toca o ultraje pois a
carnificina equivocadamente feita por ele recai sobre o rebanho e natildeo sobre os chefes gregos
Apesar das palavras persuasivas de sua cativa e companheira Tecmessa e do apoio dos
homens de sua tropa representados pelo coro para demovecirc-lo de sua vontade o enredo
avanccedila com o suiciacutedio do heroacutei impulsionado pela profunda desonra em que se encontra Em
vinganccedila ao atentado os Atridas negam-lhe os ritos fuacutenebres o que gera um debate contra
estes em defesa do cadaacutever promovido por Teucro e por Odisseu o qual conquista a
permissatildeo para o sepultamento cujos preparativos figuram o final da peccedila
Segundo a tendecircncia criacutetica mais recente Bernad M W Knox e Thomas K Hubbard
validam a obra defendendo a coerecircncia de sua unidade dupla embasados em perspectivas
diferentes e consistentes
Para o primeiro eacute fato reconhecer que Aacutejax eacute o centro da peccedila pois mesmo quando
natildeo estaacute falando eacute sobre ele que todos os personagens discursam O heroacutei eacute o assunto uacutenico
da trageacutedia presente em cena seja vivo na primeira parte ou seja morto na segunda Ateacute a
sua morte eacute encenada diante dos olhos da plateia o que comumente natildeo acontece nas
trageacutedias gregas (KNOX 1961 p 2)
Para o segundo essa unidade dupla eacute espelhada repetida e antiteacutetica em que se figura
como cena central o suiciacutedio do personagem (HUBBARD 2003 p 170) Por isso se explica
por exemplo o lugar da peccedila representado em dois lugares agrave frente da tenda do Telamocircnio
junto agraves naus quando vivo na primeira parte e em um lugar ermo afastado das naus no lugar
da morte do heroacutei na segunda parte (Ibidem p 164) Ainda para este autor a participaccedilatildeo dos
personagens eacute significativa pois por exemplo configura um paralelismo entre os monoacutelogos
de Tecmessa na primeira parte e de Teucro na segunda cujos discursos apelativos dos quais
natildeo se pode remover a condiccedilatildeo de concubina ndash precircmio de guerra ndash (δουριάλωτον v 211) e
de meio irmatildeo ilegiacutetimo (νόθον v 1013) parecem inuacuteteis em seu objetivo de demover os
caracteres mais intenso da peccedila (Ibidem p 164-165) A participaccedilatildeo de Odisseu no proacutelogo e
no ecircxodo fazendo a partir de seu caraacuteter moderado o contraponto com os caracteres intensos e
emoldurando as accedilotildees que compotildeem o centro do drama (Ibidem 160)
Certamente a partir disso podemos retomar o realce desses contrapontos e oposiccedilotildees
na caracterizaccedilatildeo dos personagens convergindo essas observaccedilotildees com aquelas supracitadas
de Romilly Isso sugere um papel fundamental na peccedila pois temos a impressatildeo de que o ideal
vivido pelos personagens de caraacuteter intenso segundo as premissas da autora quando
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aplicados na obra em questatildeo parece se revestir da concepccedilatildeo grega de desmesura de
desmedida de excesso hyacutebris ὕβρις Para o propoacutesito semacircntico da peccedila essa desmedida eacute
fundamental para incutir no heroacutei o erro aacutete (ἄτη) permitindo-lhe excutar uma accedilatildeo cujos
resultados funestos natildeo satildeo previsiacuteveis Essa cegueira momentacircnea como definiu Richard
Doyle (1970 1976) eacute elemento fundamental para que o protagonista da peccedila realize a sua
proacutepria ruiacutena ou seja encontre-a de maneira mais traacutegica Por isso haacute vaacuterias referecircncias a
esse erro em especial podemos apontar a menccedilatildeo de Odisseu no verso 123 quando se
compadece de Aacutejax que se vangloria dos animais mortos desconhecendo a realidade em que
estaacute inserido
Os estudos de Agatha Bacelar sobre a peccedila Aias se mostram extremamente relevantes
para o estudo do excesso hyacutebris associado agrave caracterizaccedilatildeo dos personagens pois para a
anaacutelise mais profunda de tal conceito segundo essa autora as trageacutedias desse autor parecem
contribuir de forma privilegiada (2006 p 242) Esse entendimento se sustenta ainda mais se
considerarmos que a oposiccedilatildeo de caracteres presente na obra Aias se estabelece sobretudo
confrontando-se essa noccedilatildeo de desmedida agrave de moderaccedilatildeo de prudecircncia de sensatez agrave
sophrosyacutene σωφροσύνη Segundo a mesma autora esse procedimento parece ilustrar o
confronto de valores do passado e do presente segundo as premissas de Jean-Pierre Vernant
retratando-os no contraste entre o mundo homeacuterico da Iliacuteada e o da Atenas Claacutessica na qual o
regulador social seria a sophrosyacutene vinculada agrave noccedilatildeo de comedimento e ao aspecto
isonocircmico das honras de seus cidadatildeos logo uma ideia de civilizaccedilatildeo Dessa forma durante
o periacuteodo claacutessico pode-se perceber a relaccedilatildeo dicotocircmica entre sophrosyacutene e hyacutebris
demarcando o limite entre o civilizado e o baacuterbaro em que este natildeo prezaria a moderaccedilatildeo
porque possuiria uma latente desmesura
Ainda acrescenta a autora os heroacuteis homeacutericos quer da Iliada quer da Odisseia que
natildeo apresentem traccedilos que remetam a essa noccedilatildeo de comedimento entre os atributos que
compotildee sua virtude satildeo vistos pelos atenienses de entatildeo como baacuterbaros (Ibidem p 236-237)
sobretudo em sua representaccedilatildeo literaacuteria na trageacutedia Em Aias esse parece ser o caso de Aacutejax
Conveacutem evidenciar que entre os ideais cultivados excessivamente que sustentam o
modo de vida desse heroacutei estaacute a honra estimada por ele acima de todos os outros Para ele
segundo Romilly ela eacute ldquofeita de proezas reconhecidas e traduzindo-se no apego agrave estima
puacuteblicardquo (1984 p 104) Isso eacute extremamente relevante para a compreensatildeo da obra uma vez
que ainda de acordo com Bacelar a desmedida sobretudo na obra estudada consiste de
forma mais elucidativa ldquoem superestimar sua proacutepria τιμή e consequentemente subestimar a
τιμή alheia jaacute que o conceito de τιμή eacute necessariamente comparativordquo (2006 p 235) ou seja
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essa desmesura representa uma transgressatildeo aos limites da honra de outrem considerando-se
a concepccedilatildeo desta uacuteltima segundo o que expomos tambeacutem na seccedilatildeo anterior (cf p 23) Para
o heroacutei sobretudo essa honra representa diretamente a legitimaccedilatildeo de suas virtudes
Consequentemente de tal forma eacute intensa a devoccedilatildeo do personagem a ela e agraves virtudes que a
sustentam provocada aparentemente por sua predisposiccedilatildeo a sobrevalorizar a sua honra que a
decisatildeo dos chefes gregos de favorecer Odisseu eacute uma depreciaccedilatildeo expliacutecita e puacuteblica da
mesma e que na concepccedilatildeo do proacuteprio Telamocircnio deixa-o desonrado aacutetimos (ἅτιμος v
424) impondo a este a disposiccedilatildeo natildeo soacute de se vingar mas tambeacutem de impedir que essa
desonra se repita (ἀτιμάσουσ` v 98)
Fundada sobretudo nessa concepccedilatildeo de honra comparativa a hyacutebris (ὕβρις) entatildeo
percorre toda a obra do iniacutecio ao fim ou como diz Suzanne Saiumld essa eacute uma trageacutedia ldquocheia
de hyacutebrisrdquo (apud BACELAR 2006 p 235) Vaacuterias vezes na trageacutedia em questatildeo esse
vocaacutebulo e seus derivados satildeo aplicados ao protagonista e a outros personagens entre os que
tambeacutem recebem essa denominaccedilatildeo de excessivo e desmesurado estatildeo Teucro irmatildeo desse
heroacutei os Atridas Agamecircmnon e Menelau e ateacute Odisseu Contudo devemos reconhecer que
essas atribuiccedilotildees satildeo feitas na perspectiva dos personagens assim relativizando-se a
concepccedilatildeo de desmedida bem como a de moderaccedilatildeo ambas bem presentes na trama Com
efeito na figura de Aacutejax se concentra a atribuiccedilatildeo mais abundante
Uma breve disposiccedilatildeo da trama sob o vieacutes da desmedida pode ilustrar sua recorrecircncia
Utilizaremos algumas passagens estudadas por Bacelar (2006) acrescidas de outras
recolhidas por noacutes e que satildeo representativas da reiteraccedilatildeo desse elemento na peccedila
A desmedida jaacute se mostra desde o iniacutecio quando da tentativa de assassinato aos
aliados e da vangloacuteria sobretudo da carnificina que foi causada ao rebanho por intervenccedilatildeo da
deusa atraveacutes do ludiacutebrio ao heroacutei Esse atentado eacute percebido como um ato de desmedida
tanto por Tecmessa (ὕβριν v 304) quanto por Menelau (ὕβριν v 1061) e a vangloacuteria um ato
tal que se opotildee diretamente agrave moderaccedilatildeo (ὑπέρκοπον v 127-133) de acordo com perspectiva
da deusa Atena uma das personagens da peccedila Contudo a matanccedila sobre os animais
aprofunda sua desonra e sua vergonha fazendo-o se sentir ultrajado (ὑβρίσθην v 367) Cabe-
lhe assim relutante em se dobrar aos Atridas suicidar-se Apoacutes a sua morte ainda
observamos desmedidas agora por parte dos Atridas nomeadamente chefes aacuterchontes
(ἄρχοντες v 667) que imbuiacutedos das prerrogativas dessa posiccedilatildeo impedem enquanto natildeo
demovidos por Odisseu o heroacutei morto de receber os devidos funerais Isso eacute atribuiacutedo tanto
pelo coro (ὑβριστὴς v 1092) quanto por Teucro (ὕβριζε v 1151) uma vez que isso
representa segundo este uma desonra aos deuses (ἀτίμα θεούς v 1129) O sofrimento na
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peccedila se intensifica pois aleacutem de seus proacuteximos perderam o chefe da casa e da tropa de
Salamina agora se defrontam com a possibilidade de Aacutejax ficar insepulto Teucro de mesmo
acircnimo do irmatildeo opotildee-se aos Atridas ora desafiando-os ora insultando-os e explicitamente
natildeo reconhecendo neles a chefia (v 1102-1104) o que para Agamecircmnon representa um
descomedimento (ὑβρίζεις v 1258) sobretudo no entendimento de transgressatildeo da honra
deste considerando-se para isso a relaccedilatildeo comparativa entra as honras dos dois pois ao chefe
todos devem prudentemente se dobrar e se moderar (σωφροσήσεις v 1259)
Eacute certo que a predisposiccedilatildeo excessiva de alguns caracteres especialmente do
protagonista fornece subsiacutedios para observarmos a funccedilatildeo relevante do sentimento de ira
dentro da composiccedilatildeo das obras visto que ela mesma jaacute pressupotildee um desequiliacutebrio de
acircnimo Mas isso seraacute mais bem compreendido depois de pontuarmos ao menos um elemento
dos estudos de Knox sobre essa obra o qual evidencia nessa peccedila de Soacutefocles um outro ideal
que move as accedilotildees e reflexotildees do heroacutei
Aacutejax explicitamente cultua os valores desdobrados da seguinte sentenccedila e maacutexima
fazer bem aos amigos e mal aos inimigos τούς φίλους εὖ ποιεῖν τοὺς δ` ἐχθροὺς κακῶς
(KNOX 1961 p 3) Sendo combatido por alguns pensadores a exemplo maior de Platatildeo
este pensamento ainda era aceito de modo geral na Atenas democraacutetica sendo visto inclusive
como conselho praacutetico definiccedilatildeo de justiccedila e por corresponder sobretudo a resquiacutecios de um
coacutedigo heroico antigo representava tambeacutem princiacutepios morais proacuteprios da formulaccedilatildeo de
virtude grega (Ibidem p 3-4) Isso tambeacutem evidencia relevantemente o papel importante
dessa sentenccedila no confronto de valores passados e presentes no qual o poeta questiona a
validade desse tipo de pensamento e de conduta no periacuteodo claacutessico
Com efeito o ponto fulcral da obra em que inclusive os valores depreendidos dessa
sentenccedila estatildeo sintetizados eacute segundo Bernard Knox (1961 p 1) o discurso de Aacutejax que
figura o segundo episoacutedio (v 646-692) Neste monoacutelogo o personagem reconhece a falecircncia
de seus princiacutepios e questiona o proacuteprio sentido de sua vida antecipando seu suiciacutedio
Diante de seu renitente posicionamento moral que parece ser reflexo de sua firmeza
guerreira e disposiccedilatildeo a nunca recuar (cf p 18) mostra-se a natureza de um mundo que se
revela inerentemente instaacutevel para o heroacutei em questatildeo isso significa dizer que a proacutepria
posiccedilatildeo ocupada pelos amigos e pelos inimigos pode permutar (Ibidem p 17) A realidade
diante dele eacute mutaacutevel e ciacuteclica de maneira que isso eacute visto segundo as palavras do
personagem ao se perceber a noite sobrepor-se ao dia o inverno ao veratildeo e o sono ao estar
acordado Essa realidade se faz tatildeo presente na composiccedilatildeo da trama que esse conteuacutedo se
torna processo de sua proacutepria estrutura como bem pontua Hubbard (2003 p 168) pois a
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ruiacutena que lhe retira o status heroico move seu suiciacutedio mas a condiccedilatildeo de morto a receber os
ritos fuacutenebres o devolve agrave sua condiccedilatildeo inicial de heroacutei
Contrariamente a essa mutabilidade seu caraacuteter reflete a sua visatildeo de mundo tal como
satildeo firmes seus princiacutepios o mundo deveria ter uma natureza estaacutevel e assim reconhecer-se-
ia o amigo e o inimigo pois suas posiccedilotildees deveriam ser naturalmente permanentes e
imutaacuteveis Essa eacute a loacutegica que rege o personagem Seu suiciacutedio eacute concebido exatamente
porque o Telamocircnio reconhece ser incapaz de se adaptar e isso exige moderar-se (σωφρονεῖν
v 677)
Esse modo de pensar quando visto sob o prisma da maacutexima supracitada aceita e
justifica o oacutedio aos inimigos sobretudo se levarmos em conta a composiccedilatildeo de caracteres
excessivos Coerentemente a essa conjuntura tanto os Atridas quanto Aacutejax parecem tomar
para si esse coacutedigo heroico antigo (Ibidem p 167) Para aqueles isso estaacute claramente
manifestado no interesse de ambos em impedir os funerais de protagonista pois na sua
compreensatildeo esse ato violento contra a honra de outro se justifica pela sua nova posiccedilatildeo
ocupada a de inimigo expliacutecito Para o heroacutei de Salamina em que tal conduta eacute mais
evidente entatildeo nada mais natural do que alimentar esse oacutedio aos inimigos de forma extrema
inclusive a vangloriar-se e a deleitar-se sobre os atos de excessiva violecircncia aplicadas aos
mesmos (KNOX 1961 p 4) Dessa forma quando Odisseu apoacutes a vitoacuteria sobre seu
adversaacuterio na disputa pelas armas de Aquiles passa de uma posiccedilatildeo de amizade para a de
inimizade ao agir contra o heroacutei derrotado o episoacutedio retratado na peccedila se alinha com a
tradiccedilatildeo homeacuterica como vimos na seccedilatildeo anterior na qual observa-se o rancor ou a ira
inerente a Aacutejax que permanece mesmo apoacutes a sua morte
Essa ira do heroacutei que ecoa do oacutedio aos inimigos e que continua mesmo quando
morto parece bem relevante dentro da obra embora em quantidade reduzida perante agraves
inuacutemeras menccedilotildees agrave loucura do heroacutei a maniacutea (μανία) defendida reiteradamente por vaacuterios
estudiosos como de origem divina e cuja funccedilatildeo dentro da obra figura frequentemente os
estudos sobre essa peccedila em questatildeo de Soacutefocles Contudo acreditamos que essa ira representa
um reforccedilo ao caraacuteter desmedido do heroacutei como um traccedilo inerentemente humano que em
Aacutejax transfigura o seu latente excesso e sobre o qual Atena insufla a loucura Haacute na obra duas
menccedilotildees diretas a ela que expressa nomeadamente χόλος o mesmo vocaacutebulo contemplado
na seccedilatildeo anterior Estas seratildeo aqui apresentadas mas soacute no capiacutetulo seguinte seratildeo estudadas
mais profundamente
A primeira citaccedilatildeo no proacutelogo estaacute vinculada ao discurso de Atena que esclarece a
Odisseu a causa do Telamocircnio ter tentado assassinar os chefes gregos A resposta eacute evidente
44
o ato foi movido pela ira por causa das armas de Aquiles (v 41) A segunda no terceiro
episoacutedio eacute proferida pelo coro que representa na peccedila em unidade coletiva os guerreiros do
exeacutercito do Telamocircnio Nessa passagem equivocadamente o coro acredita que o heroacutei
contrariando a sua iacutendole dobrar-se-aacute abandonando a ira contra os deuses (v 743-744) Essas
menccedilotildees enfocam uma coisa em comum a ira que surge do reconhecimento do protagonista
acerca dos amigos que inesperadamente agem contra ele A primeira menccedilatildeo em relaccedilatildeo aos
chefes gregos que julgaram Odisseu merecedor do precircmio deixando Aacutejax desonrado e a
segunda em relaccedilatildeo sobretudo a Atena deusa considerada por ele aliada nos combates
σύμμαχον (v 117) que lhe infligindo doenccedila nos olhos conduziu sua carnificina aos
rebanhos fato que ultrajou o heroacutei agravando o seu infortuacutenio Assim por um lado eacute
possiacutevel ver que a ira que surge tanto contra os homens quanto contra os deuses serve para
reconhecer o caraacuteter excessivo do heroacutei Por outro serve para compreender que sentimentos
movem a accedilatildeo do heroacutei e consequentemente executando um papel estrutural na noccedilatildeo de
causalidade presente na obra
Contudo eacute necessaacuterio distinguir a ira choacutelos da loucura maniacutea ou da doenccedila noacutesos
(νόσος) uma vez que estas uacuteltimas satildeo extremamente recorrentes em Aias sobretudo com o
reforccedilo de vaacuterios vocaacutebulos derivados
Acerca destas uacuteltimas concordamos com Bruno Huumlbscher que observa que a loucura
e a doenccedila de Aacutejax engendrada pela deusa Atena natildeo consiste apenas em fazer o Telamocircnio
ver nos animais do rebanho grego a figura dos chefes Assim vemos naquelas a ambiguidade
entre a intervenccedilatildeo divina e a vontade humana tal qual como na composiccedilatildeo homeacuterica as
motivaccedilotildees divinas e humanas satildeo indissoluacuteveis (2011 p 39-40) Tal compreensatildeo se mostra
sustentaacutevel quando reconhecemos que essa loucura figura essas duas interpretaccedilotildees Por um
lado representa uma puniccedilatildeo divina (v 131-133) oriunda da fuacuteria da deusa (μῆνις Ἀθάνας v
757 ὀργή θεᾶς v 776-777) contra o heroacutei que a ultrajou de cujos atos desmedidos natildeo
podemos retirar ao menos a accedilatildeo da deusa em excitaacute-lo a exceder-se (v 114-115) ou seja um
fator externo que implica um estiacutemulo a um comportamento pessoal e tambeacutem em ajudaacute-lo
de alguma forma (v 91-93) uma vez que ela natildeo soacute eacute considerada por ele como aliada mas
tambeacutem se apresenta como tal (συμμάχου v 90) Por outro representa a negaccedilatildeo da
civilizaccedilatildeo uma vez que vemos a violecircncia patente no heroacutei sobrepor-se a sua natureza
humana e social (Ibidem p 27-28) e isso significa dizer claramente que essa loucura eacute a
negaccedilatildeo da sophrosyacutene e a execuccedilatildeo extrema da sua latente hyacutebris Eacute necessaacuterio observar que
essa desmedida do protagonista eacute de extremidade singular pois sua loucura natildeo soacute rompe com
a civilizaccedilatildeo fazendo-o renunciar os laccedilos pessoais e a conduta heroica cultivados por ele
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como aleacutem disso o coloca em um status de selvageria e bestialidade Para esse uacuteltimo
entendimento natildeo faltam referecircncias na obra seja porque o heroacutei eacute caccedilado como um animal
por Odisseu ainda no proacutelogo ou seja porque sua tenda habitaccedilatildeo humana e cenaacuterio da peccedila
transforma-se no covil de sua carnificina como bem observa Huumlbscher (Ibidem p 37)
Em oposiccedilatildeo a essa loucura de caraacuteter divino e humano como tentaremos mostrar no
proacuteximo capiacutetulo o sentimento de ira que tem como alicerce sua honra e seus princiacutepios eacute
proacuteprio do personagem e estaacute presente sobretudo quando em sua sanidade ao considerarmos
como finda a fuacuteria da deusa pois mesmo morto a ira de Aacutejax persiste seja no ecircxodo da peccedila
ou no Canto XI da Odisseia com o qual aquela uacuteltima cena se alinha Os atos excessivos do
heroacutei alguns como vimos satildeo impulsionados por esse sentimento que parece inerente a sua
natureza Isso fica claro no momento em que ele se recupera desse frenesi pois natildeo lamenta
ter cometido tal accedilatildeo mas lastima-se apenas porque sua tentativa de assassinato natildeo
encontrou sucesso ou quando renuncia voltar aos combates e morrer belamente pois isso
agradaria os Atridas uma vez que os ajudaria nas batalhas contra os troianos
Dessa forma a partir das informaccedilotildees dispostas podemos reconhecer na unidade da
obra uma estrutura menos enigmaacutetica de seus componentes do que o proposto
recorrentemente por alguns estudiosos Com efeito sustentando uma composiccedilatildeo digna da
autoria do tragedioacutegrafo o estudo da caracterizaccedilatildeo de Aacutejax na peccedila em questatildeo sob o vieacutes
das noccedilotildees de virtude e ira parece-nos profiacutecuo visto tambeacutem que se entrelaccedilam com a
concepccedilatildeo grega de honra heroica contribuindo para a estruturaccedilatildeo semacircntica dos impulsos
que movem as accedilotildees desmedidas dos personagens
1 2 2 Metamorfoses de Oviacutedio
A obra Metamorfoses foi composta por Puacuteblio Oviacutedio Nasatildeo durante o periacuteodo
claacutessico ou o Seacuteculo de Augusto ocorrido entre o seacuteculo I a C e o seacuteculo I a D em que a
literatura encontrou seu apogeu no mundo latino Esse aacutepice de verdadeira literatura latina
que fornece modelos para a literatura posterior foi alcanccedilado atraveacutes do status de obras
escritas e das caracteriacutesticas artiacutesticas proacuteprias dos textos literaacuterios No entanto o contexto
que tornou tudo isso possiacutevel tem como base o contato com a poesia produzida na Greacutecia
(CARDOSO 2011 p 4) Acerca disso eacute reconhecido o fato de a iniciaccedilatildeo literaacuteria latina ter
como marco a traduccedilatildeo da Odisseia pelo grego Liacutevio Andronico e de este ter influenciado
profundamente o papel da literatura grega na dos romanos quer na epopeia no teatro ou na
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liacuterica atraveacutes de suas produccedilotildees mesmo que de insipiente caraacuteter literaacuterio A literatura grega
entatildeo foi imitada e retomada e inclusive a sua mitologia
Por isso o periacuteodo claacutessico latino iniciado a partir de uma liacutengua claacutessica encetada
por Ciacutecero que teve como base a oratoacuteria consolidou-se efetivamente com a poesia
influenciada por vaacuterios modelos gregos como por exemplo Homero para a eacutepica Safo
Piacutendaro e Teoacutecrito para a liacuterica Eacutesquilo Soacutefocles e Euriacutepides para a trageacutedia etc Produziu-
se assim a excelecircncia da Literatura Latina por meio de diversos gecircneros literaacuterios e da
qualidade de suas produccedilotildees Alguns expoentes desse momento histoacuterico foram Virgiacutelio na
eacutepica Secircneca na trageacutedia Petrocircnio na prosa Catulo Horaacutecio e Oviacutedio na poesia liacuterica
Dentre os poetas liacutericos dessa eacutepoca Oviacutedio eacute o considerado o mais versaacutetil devido agrave
grande variedade de temas que compotildeem sua vasta obra (CARDODO 2011 p 80) Os temas
abarcam o caraacuteter eroacutetico em Heroides (Epistolae Heroidum) e Amores (Amores) o
sofrimento proacuteprio das elegias em Cantos tristes (Tristia) e Cartas pocircnticas (Epistolae ex
Ponto) ou das trageacutedias em Medeia (Medea) o caraacuteter didaacutetico em Haliecircutica (Halieutica) a
seduccedilatildeo em A arte de amar (Ars amatoacuteria) etc Aleacutem dessas constituiacuteda de quinze livros
acrescenta-se a obra Metamorfoses (Metamorphoseon libri) que dispotildee em um longo poema
composto de versos hexacircmetros uma coletacircnea de episoacutedios miacuteticos que se entrelaccedilam a
partir de um uacutenico tema a metamorfose
Apesar de sua estrutura fixada no verso eacutepico e da narraccedilatildeo qualidades proacuteprias do
gecircnero eacutepico segundo Aristoacuteteles e Horaacutecio essa obra apresenta muitas dificuldades de
classificaccedilatildeo quanto a um gecircnero literaacuterio Muitos elementos constitutivos desse poema satildeo
tomados como base por vaacuterios estudiosos para confrontar interpretaccedilotildees em busca de uma
classificaccedilatildeo para seu aspecto heterogecircneo e consequentemente original Disporemos
essencialmente aqueles que nos sirvam para o presente estudo Dessa forma tentaremos
compreender a natureza da obra de Oviacutedio a partir daqueles procedimentos literaacuterios do autor
relevantes para a sua composiccedilatildeo mas que sobretudo convirjam com o objetivo do nosso
trabalho
Em seu livro A Literatura Latina em breve apresentaccedilatildeo da obra Zeacutelia de Almeida
Cardoso jaacute nos aponta a dificuldade de enquadrar Metamorfoses em algum gecircnero Pois
apesar do ldquotom eacutepico dos versos hexacircmetros e do emprego sistemaacutetico da narraccedilatildeordquo (2011 p
83) natildeo se pode caracterizar a obra como epopeia Natildeo haacute tambeacutem como denominaacute-la de
poema didaacutetico pois ldquomesmo que quiseacutessemos consideraacute-lo como uma tentativa de explicar o
universo pela teoria pitagoacuterica que admite a reencarnaccedilatildeo da alma iriacuteamos esbarrar sem
duacutevida na falta de qualquer fundamentaccedilatildeo cientiacuteficardquo (2011 p 83) diferente de como nos
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parece proceder Lucreacutecio em sua obra De Rerum Natura de cunho filosoacutefico Com efeito
devido agrave expressatildeo da sentimentalidade e da caracterizaccedilatildeo pessoal evidente em toda obra a
autora prefere consideraacute-lo de caracteriacutesticas literaacuterias mais proacuteximas aos poemas liacutericos
Em um vieacutes contraacuterio Manuel Rolph Cabeceiras em artigo intitulado As
Metamorphoses de Oviacutedio a arte poeacutetica na Roma antiga e os padrotildees eacutepicos propotildee
aceitarmos a obra como eacutepico a princiacutepio para que se possa discutir essa definiccedilatildeo Para isso
o autor evidencia a diversidade histoacuterica do gecircnero confrontando o que o proacuteprio mundo
greco-romano considerou como epopeia
Um dos elementos primeiramente destacados eacute a proacutepria meacutetrica eacutepica da obra Sabe-
se que o hexacircmetro natildeo eacute exclusivo da eacutepica poreacutem essa medida foi postulada como cacircnone
para o gecircnero sendo usada inclusive como um criteacuterio tipoloacutegico Aristoacuteteles Horaacutecio e o
proacuteprio Oviacutedio consideram esse metro como algo fundamental e natural agrave epopeia Segundo
Cabeceiras quaisquer dessas liccedilotildees enquadraria Metamorfoses no patamar de eacutepico pois natildeo
haacute eacutepicos em outra meacutetrica Para o autor a obra de Oviacutedio ainda abarca vaacuterias outras
caracteriacutesticas tipoloacutegicas do gecircnero como uma ldquovasta extensatildeo [] a multidiversidade de
episoacutedios todos imitando uma uacutenica accedilatildeo ndash a metamorfose anunciada no breviacutessimo
argumento proclamado nos versos iniciaisrdquo (2008 p 76)
O grande problema prossegue o autor encontra-se naqueles que definem quem estaacute
ou natildeo estaacute dentro dos criteacuterios Neste ponto os modernos conflitam com os antigos pelo
caraacuteter designativo de eacutepico Aqueles natildeo se cansam de ressaltar os problemas de
Metamorfoses evidenciando o seu caraacuteter fragmentaacuterio a sua unidade mal estruturada Para
eles a epopeia ldquodeve estar centrada na figura de um heroacutei a se bater por todo um povo ou um
fato heroico vivido por personagens humanas manipuladas de algum modo pelo arbiacutetrio dos
deusesrdquo (2008 p 73) apesar de nenhuma definiccedilatildeo desse tipo existir entre os antigos Para
os romanos por exemplo essa obra era considerada eacutepica apesar de suas concretas
inconsistecircncias tipoloacutegicas Quintiliano no livro X da Institutio oratoria elenca autores
eacutepicos enaltecendo primeiramente Virgiacutelio por ser o mais proacuteximo a Homero mas outros satildeo
listados como Corneacutelio Severo Serrano Valeacuterio Flaco Saleio Basso Lucano e o proacuteprio
Oviacutedio Para Secircneca Retor em Controuersia II Metamorfoses eacute interpretada como uma
epopeia nos padrotildees antigos motivo pelo qual ele mesmo lhe atribui o caraacuteter defeituoso em
sua elaboraccedilatildeo Eacute no mesmo tom que Secircneca Filoacutesofo condena o eacutepico de Oviacutedio Assim
mesmo conferindo-lhe o caraacuteter eacutepico Secircneca pai e filho junto com Quintiliano recusam as
possiacuteveis inovaccedilotildees trazidas por Oviacutedio criticando toda tentativa de ldquoruptura consciente da
ortodoxia firmada em torno do gecircnero eacutepico em prol de sua renovaccedilatildeordquo (2008 p 87)
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Eacute nesse ponto em que se concentra o artigo de Manual Cabeceiras em defesa de
Oviacutedio como poeta de eacutepica a sua renovaccedilatildeo Eacute possiacutevel ver a evoluccedilatildeo e adaptaccedilatildeo de tal
gecircnero em cada tempo promovendo-se assim a sua diversidade histoacuterica No periacuteodo
heleniacutestico especialmente vecirc-se um refluxo de seu paradigma pois para o influente
Caliacutemaco seguindo os ditames de sua arte poeacutetica esboccedilada no proacutelogo da obra conhecida
como Contra os Telquinos eacute demasiado extenso o eacutepico Argonautas de quatro cantos de
Apolocircnio de Rhodes apesar de alcanccedilar pouco mais de um quarto dos versos da Odisseia
Passara tambeacutem para Caliacutemaco a eacutepoca ldquode uma obra de uma soacute peccedila [] cujo intuito era
cantar os feitos gloriosos de reis e heroacuteisrdquo (2008 p 81) Segundo Manuel Cabeceiras em
Alexandria nesse periacuteodo as obras de Homero natildeo eram tatildeo apreciadas pelo gosto comum
como antes Os exemplares poeacuteticos aclamados de entatildeo seriam os epigramas inclusive
alcanccedilando a Roma de Ecircnio Apesar das inovaccedilotildees trazidas ao gecircnero por Apolocircnio de
Rhodes seguindo o gosto de entatildeo como um maior aprofundamento subjetivo dos
sentimentos uma trivialidade impregnada na representaccedilatildeo dos deuses e uma maior
humanizaccedilatildeo de deuses e heroacuteis sua extensatildeo natildeo era a ideal Tal entendimento parece
justificar o desenvolvimento do epiacutelio pequeno poema eacutepico que dentro da proposta esteacutetica
de Caliacutemaco dispotildee uma narrativa breve
Contudo esta parece ser a perspectiva de Manuel Cabeceiras quanto a Oviacutedio e sua
Metamorfoses uma tentativa de renovar o gecircnero eacutepico sob certa influecircncia do periacuteodo
heleniacutestico Apesar de negar agrave sua obra a brevidade Oviacutedio retomaria essa maior trivialidade
dos deuses em detrimento de seu caraacuteter solene e a intensa subjetividade e presenccedila da
afeiccedilatildeo pessoal como elemento desencadeador das accedilotildees enredadas na obra Seguindo
portanto o gosto alexandrino segundo Manuel Cabeceiras o cotidiano se tornaria eacutepico
Assim descrevem-se cenas familiares mesmo quando representando deuses e heroacuteis
introduzem-se muitas comparaccedilotildees e digressotildees expondo o iacutentimo dos personagens nunca
arbitrariamente mas ora anunciando e ora retardando o desfecho da accedilatildeo Por fim para
Manuel Cabeceiras que defende Metamorfoses como uma nova configuraccedilatildeo do eacutepico
Oviacutedio abraccedilando os postulados de Caliacutemaco elabora a unidade de sua obra tatildeo ferozmente
criticada natildeo a partir de um povo ou heroacutei No lugar se impotildee um outro componente a
metamorfose tema central de sua obra e protagonista de suas histoacuterias A nobreza e o sublime
estariam entatildeo na representaccedilatildeo do universo e das transformaccedilotildees coacutesmicas especialmente
nos mitos que os compotildeem
Com efeito os cerca de duzentos e cinquenta episoacutedios ou mitos presentes na obra
qualificados por Cardoso exatamente como lendas etioloacutegicas uma vez que apresentam a
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causa e a origem de muacuteltiplos seres (2011 p 83) parecem natildeo engendrar uma unidade eacutepica
conforme muitos autores Essa disposiccedilatildeo aparentemente natildeo unitaacuteria reconstitui uma das
caracteriacutesticas do mito para outros Eacute o caso de Elaine Prado dos Santos que evidencia no
poema Metamorfoses esse aspecto especialmente ao considerar que segundo Burkert (apud
SANTOS 2010) Oviacutedio recupera algo da vida do antigo mito No entanto essa aproximaccedilatildeo
com o mito natildeo se daacute pela qualidade etioloacutegica dos mitos presentes na obra visto que essa
autora revela que o caraacuteter miacutetico disposto na obra importa mais por suas qualidades
imaginativas e estiliacutesticas que fundamentam a originalidade do texto ovidiano Quanto ao seu
conteuacutedo ainda descreve que as metamorfoses se dispotildeem em uma temporalidade proacutepria
alheia a uma progressatildeo cronoloacutegica linear na qual os episoacutedios natildeo apresentariam uma
correspondecircncia narrativa imediata ou de causalidade tornando-as independentes umas das
outras A autora prossegue elucidando que natildeo haacute uma sistematizaccedilatildeo dos mitos apresentados
a fim de criar uma unidade e que assim evita-se a lucidus ordo horaciana ou seja uma
ordem luacutecida e clara de sua disposiccedilatildeo (2010 p 189) Haacute portanto uma impressatildeo de
unidade na qual se realiza uma trama temaacutetica de relaccedilotildees e associaccedilotildees de caraacuteter
circunstancial Devido a isso tal viacutenculo que une os episoacutedios muitas vezes eacute julgado pelos
criacuteticos como artificial e inferior quanto agrave qualidade literaacuteria
Apesar de ser uma caracteriacutestica constante e de ser um instrumento condutor da obra a
metamorfose natildeo estrutura a continuidade narrativa compondo a unidade eacutepica teorizada por
Aristoacuteteles ou Horaacutecio pois o tema da transformaccedilatildeo natildeo desencadeia uma progressatildeo dos
episoacutedios conduzindo as accedilotildees em uma noccedilatildeo de causalidade A metamorfose sequer estaacute
concentrada nos personagens protagonistas se eacute que haacute realmente esse tipo na obra pois
muitos desses personagens natildeo sofrem transformaccedilatildeo A metamorfose em vaacuterios momentos
como afirma Elaine Prado dos Santos (Ibidem p 192) eacute tangencial tal eacute o caso de Faetonte
cujas irmatildes satildeo quem se transformam em aacutervores por exemplo Isso tambeacutem se faz possiacutevel
porque a continuidade narrativa natildeo se apresenta no texto centralizada nas accedilotildees
evidenciando assim uma cadeia sequencial e uma noccedilatildeo de causalidade O elo narrativo que
entrelaccedila os episoacutedios eacute repetimos circunstancial e se faz tambeacutem por meio de um
personagem natildeo necessariamente principal ou de um lugar onde vaacuterias histoacuterias acontecem
etc
Parece-nos que essa continuidade narrativa na Metamorfoses se constroacutei sob uma
aparente incoerecircncia unitaacuteria uma vez que apesar de terem a transformaccedilatildeo como elemento
comum os episoacutedios natildeo tecircm relaccedilatildeo imediata entre si O tema comum e a disposiccedilatildeo dos
episoacutedios tornam a obra una sob um ponto de vista aquele que contempla o conjunto como
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um canto ininterrupto perpertuum carmen (Metamorfoses I v 4) uma narrativa que se
prolonga do nascimento do cosmo ao momento presente do autor ab origine mundi ad mea
[] tempora (Ibidem I v 3-4)
Jaacute que natildeo haacute uma relaccedilatildeo direta entre os mitos apresentados de forma a dispocirc-los
com uma unidade estrutural Oviacutedio os ordena por meio de uma teacutecnica narrativa que encaixa
os episoacutedios uns nos outros a partir de afinidades e semelhanccedilas circunstanciais soacute possiacuteveis
pela disposiccedilatildeo escolhida pelo autor Como ainda indica Santos (Ibidem p 201) satildeo
muacuteltiplas as conexotildees usadas como elo entre os episoacutedios
A autora explica por exemplo que o mito do diluacutevio e o de Apolo e Dafne presente
no Livro I e sem relaccedilatildeo imediata entre si satildeo dispostas em sequecircncia O elemento unificador
dos dois episoacutedios estaacute no aparecimento do monstro Piacuteton nascido da lama da terra
proveniente da inundaccedilatildeo e que seraacute morto por Apolo personagem sobre o qual o novo foco
narrativo daacute continuidade agrave trama da obra (Ibidem p 194) Muitos dos elos tambeacutem satildeo
temaacuteticos como esclarece Elaine Prado dos Santos ldquoA lenda do escultor Pigmaliatildeo que cria
da pedra uma mulher eacute justaposta agraves Propeacutetidas ndash mulheres que se tornaram pedras (Ov Met
X 238 ndash 297) ndash portanto uma lenda se torna inversatildeo da outrardquo (SANTOS 2014 p 204)
assim o elemento pedra como a origem ou o fim da transformaccedilatildeo torna-se o viacutenculo entre
dois mitos que se distanciam completamente na perspectiva de uma loacutegica causal de accedilotildees em
cadeia
Dentro dessa teacutecnica narrativa de encaixe dos episoacutedios uns nos outros empregada por
Oviacutedio Alessandro Barchiesi (2006 p 181) elege para aprofundamento do estudo da obra
Metamorfoses a utilizaccedilatildeo de um tradicional componente eacutepico o narrador interno Isso se daacute
quando o narrador descreve personagens que tambeacutem narram histoacuterias e que para isso lhes
passa a palavra conferindo dois niacuteveis narrativos ao texto O primeiro no qual o personagem
tem suas accedilotildees narradas e o segundo em que o personagem se torna o narrador interno de
uma segunda histoacuteria Assim articula-se uma narrativa dentro de outra
Com efeito para a Literatura Grega um grande modelo dessa teacutecnica eacute a Odisseia de
Homero na qual o proacuteprio Odisseu personagem do primeiro niacutevel narrativo torna-se
narrador interno de suas proacuteprias histoacuterias nos Cantos IX - XII Poreacutem Odisseu participa
como personagem dos dois niacuteveis narrativos Para a Literatura Latina um grande expoente
eacutepico dessa teacutecnica eacute Virgiacutelio com a Eneida Semelhante a Odisseu no texto homeacuterico
Eneias personagem central da obra torna-se tambeacutem narrador interno de suas proacuteprias
histoacuterias nos Livros II e III Obviamente que alguns personagens do segundo niacutevel narrativo
tambeacutem podem se transformar em narradores internos criando entatildeo um terceiro niacutevel Eacute o
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caso de Siacutenon no Livro II da Eneida Siacutenon eacute um personagem pertencente ao segundo niacutevel
da narrativa compondo a histoacuteria narrada por Eneias Sendo grego coube a Siacutenon a funccedilatildeo de
convencer os troianos a levarem o cavalo de madeira para dentro das muralhas de Troia Esse
convencimento se faz por meio de uma narrativa do proacuteprio grego Assim temos no primeiro
niacutevel Eneias como personagem no segundo niacutevel Eneias como narrador interno e Siacutenon
como personagem e em um terceiro niacutevel Siacutenon como narrador interno
Esse tipo de articulaccedilatildeo de niacuteveis narrativos por meio de narradores internos eacute comum
ao gecircnero eacutepico sob uma forma especiacutefica um procedimento antigo na arte de narrar
nomeado pelos antigos de ὕστερον πρότερον ou como chamamos analepse ou flashback que
consiste em inversatildeo do tempo retomando-se um passado por meio de um heroacutei que o
rememora De acordo com Pierre Grimal esse recurso oferece algumas vantagens
A primeira delas reacender a atenccedilatildeo dos ouvintes (pois os poemas eacutepicos se formaram como todos sabem dentro de uma literatura oral sendo recitados e natildeo lidos e essa origem permaneceraacute perceptiacutevel ao longo das obras e dos seacuteculos a enumeraccedilatildeo dos eventos como num diaacuterio de bordo dia apoacutes dia eacute um tanto cansativa Mas haacute outra razatildeo essa inversatildeo do tempo essa volta atraacutes [] lanccedila luz sobre uma seacuterie de causas que resultam no presente e eacute exatamente um dos objetivos do poema eacutepico na medida em que se esforccedila por discernir a loacutegica interna ou pelo menos a continuidade racional do devir (1992 p 219)
O ponto nodal do uso desse recurso no gecircnero eacutepico se alicerccedila como diz Grimal em
distinguir uma loacutegica interna ou seja em estruturar a cadeia progressiva das accedilotildees desde
aquelas que figuram a obra ateacute aquelas apenas mencionadas como origem dessa cadeia e que
necessariamente natildeo precisam ser narradas Alessandro Barchiesi explica que a maioria dos
narradores internos da Odisseia e da Eneida estatildeo bem situados na trama distribuindo de
forma equilibrada as informaccedilotildees de todos os niacuteveis narrativos (Ibidem p 182-183)
Claramente isso eacute articulado para tornar visiacutevel uma determinada estrutura narrativa
Na estrutura de Metamorfoses continua o autor esse recurso eacute tanto unitaacuterio quanto
fragmentaacuterio pois as muacuteltiplas narrativas inseridas por narradores internos algumas vezes satildeo
bem estruturadas mas muitas vezes satildeo imprevisiacuteveis Assim a tradiccedilatildeo eacutepica de utilizaccedilatildeo
desse mecanismo natildeo oferece um guia seguro na compreensatildeo da estrutura da obra de Oviacutedio
Como jaacute vimos anteriormente esse caraacuteter fragmentaacuterio se estabelece pela natureza
circunstancial dos elos narrativos poreacutem eacute proposital e traz como consequecircncia inovaccedilotildees
especialmente no acircmbito dos niacuteveis narrativos
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Em toda a sua extensatildeo a obra Metamorfoses desenvolve suas narrativas por meio de
narradores internos natildeo centralizados em um uacutenico personagem que rememora seu passado
para explicar sua situaccedilatildeo presente tal qual na tradiccedilatildeo eacutepica Oviacutedio renova esse recurso de
maneira bem complexa Podemos observar no livro X um pouco da originalidade dada por
Oviacutedio ao recurso
Nesse livro o narrador passa a voz para o personagem Orfeu que canta aos animais e
plantas o encontro de Vecircnus e Adocircnis a qual tambeacutem narra a este a histoacuteria de Atalanta
Temos assim trecircs narradores satildeo eles o narrador poeta (no primeiro niacutevel narrativo) o
narrador interno Orfeu (no segundo) e o narrador interno Vecircnus (no terceiro) Observa-se
que em nenhum desses casos haacute narrativas de suas proacuteprias histoacuterias pelos personagens com
o objetivo de fornecer o discernimento de uma loacutegica interna que contextualize o momento
presente em que se passa a accedilatildeo central Esses niacuteveis narrativos certamente vinculam um
propoacutesito inovador de Oviacutedio Eacute por meio desse recurso que o autor une variados mitos uns
aos outros encadeando-os por afinidades e semelhanccedilas Contudo por mais que natildeo haja uma
noccedilatildeo de causalidade entres os episoacutedios ainda haacute uma consequecircncia semacircntica na sua
disposiccedilatildeo
O personagem Orfeu jaacute como narrador invoca sua matildee a musa Caliacuteope e Juacutepiter
para que ele possa cantar a histoacuteria dos jovens que foram amados pelos deuses Sob esse tema
o mito do amor de Juacutepiter por Ganimedes o de Apolo por Jacinto e o de Vecircnus por Adocircnis
satildeo por exemplo encadeados Natildeo haacute entre eles relaccedilatildeo causal na qual possamos ver em um
a origem do outro por um desdobramento progressivo das accedilotildees No entanto observa-se
apenas afinidade temaacutetica que os conecta Poreacutem dentro da narrativa de Orfeu sobre Vecircnus e
Adocircnis insere-se uma outra narrativa em terceiro niacutevel a histoacuteria de Atalanta e Hipomenes
narrada pela deusa ao amado Haacute um propoacutesito semacircntico dessa inserccedilatildeo que antecipa e
prepara o desfecho do amor de Vecircnus e Adocircnis Na histoacuteria de Atalanta e Hipomenes os dois
satildeo transformados em leotildees animais que compotildeem o argumento de Vecircnus na advertecircncia ao
seu amado jovem caccedilador natildeo caccedilar os animais que mostram o peito para a luta pois ruinosas
satildeo as suas consequecircncias
O propoacutesito didaacutetico da narrativa de Vecircnus sobre a metamorfose de Atalanta e
Hipomenes tem uma consequecircncia semacircntica direta sobre o desfecho de Adocircnis uma vez que
esse caccedilador morre ao confrontar um javali animal que enfrenta seus caccediladores e natildeo foge A
relaccedilatildeo semacircntica se constroacutei no caraacuteter traacutegico disposto entre os episoacutedios pois o heroacutei
Adocircnis morre segundo a maneira anunciada pela deusa O heroacutei natildeo soacute executa aquilo que
deveria evitar mas o faz conhecedor das consequecircncias eventuais e inerentes ao ato Assim
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sem a narrativa de Vecircnus o elemento traacutegico da morte de Adocircnis estaria diminuiacutedo ou mesmo
ausente Podemos ainda dizer que a histoacuteria de Atalanta e Hipomenes tem objetivos
diferentes a depender da instacircncia narrativa No primeiro niacutevel o propoacutesito eacute vincular o tema
da metamorfose no segundo niacutevel com Orfeu como narrador interno eacute compor o tema dos
jovens amados por deuses por meio da descriccedilatildeo dos cuidados do amor de Vecircnus por Adocircnis
no terceiro niacutevel eacute estruturar o caraacuteter proleacuteptico e traacutegico da futura morte por meio da
advertecircncia da deusa inserida no aspecto didaacutetico de sua narrativa
Observa-se assim a inovaccedilatildeo do tratamento que Oviacutedio daacute ao narrador interno
renovando sua funccedilatildeo com o encadeamento dos episoacutedios sem nenhuma relaccedilatildeo de
progressatildeo loacutegica das accedilotildees tal qual componente costumeiro da tradiccedilatildeo eacutepica mas por meios
de afinidades e semelhanccedilas circunstanciais
Devido a essa inovadora construccedilatildeo narrativa Alessandro Barchiesi (2006) comenta
que mais do que a urdidura de feitos humanos e divinos acepccedilatildeo claacutessica do eacutepico na
Metamorfoses observa-se o entrelaccedilamento de narrativas humanas e divinas Com efeito o ato
comunicativo encontra lugar patente nos propoacutesitos da obra e o ato de narrar se torna um
recurso central nos mitos vinculando para isso vaacuterios narradores internos Por consequecircncia
disso comenta o autor haacute tambeacutem uma espeacutecie de hierarquizaccedilatildeo das vozes dos personagens
na obra Assim
natildeo coincidentemente o primeiro narrador interno do poema eacute o personagem de maior autoridade Juacutepiter (I 182 ndash 243) e tambeacutem ele eacute a uacuteltima voz a falar no poema (a narrativa no tempo futuro XV 807 ndash 42 coroando o discurso de abertura de Juacutepiter na Eneida I 257 ndash 96) Por meio disso o autor mostra grande respeito pela teacutecnica de ldquonarrativa dentro de narrativardquo os assuntos das duas histoacuterias destinadas ao pai dos deuses e dos homens satildeo respectivamente a metamorfose de um tirano em lobo e a metamorfose de um liacuteder universal em uma estrela (2006 p 181 ndash 182 traduccedilatildeo nossa)
Esse ato comunicativo se impotildee na obra de forma que os personagens tendem a se
tornar narradores Contudo esse recurso estiliacutestico parece ser desdobramento de um outro
extremamente abundante tanto em Homero quanto em Metamorfoses e que constitui base da
natureza eacutepica o discurso direto Esse elemento eacute tatildeo importante para os poemas homeacutericos
que ocupa cerca de dois terccedilos de sua totalidade (PEREIRA 1984 p 3) e conjuntamente com
a modalidade narrativa compotildee a natureza da eacutepica
No Livro XIII da obra em que o autor nos mostra reunidas as metamorfoses de
personagens entre os quais alguns pertencem aos mitos do ciclo da Guerra de Troia como o
de Aacutejax de Heacutecuba de Mecircmnon por exemplo o papel do discurso direto tem como foco a
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persuasatildeo A relevacircncia dos narradores internos desse momento como do sacerdote Acircnio de
Galateia e de Glauco parece ser sobrepujada pela do discurso persuasivo de personagens
como Aacutejax Ulisses Polifemo e Glauco que proferem suas palavras com o objetivo de
demover seus interlocutores Reiterando essa perspectiva Elaine Fantham afirma que natildeo
devemos nos esquecer dos modelos declamatoacuterios tomados como exerciacutecios de retoacuterica nos
quais Oviacutedio foi educado sobretudo porque a oratoacuteria de sua eacutepoca se dobrava sobre a nova
praacutetica de discursos improvisados acerca de questotildees privadas ou histoacutericas conjuntamente
com o interesse na declamaccedilatildeo na dicccedilatildeo e na prosa riacutetmica (2009 p 27) Isso implica ao
texto o eventual uso de teacutecnicas retoacutericas de argumentaccedilatildeo Com esse entendimento
reconhecemos em Oviacutedio um autor que se utiliza abundantemente do discurso direto ao estilo
eacutepico transformando seus personagens natildeo soacute em narradores internos mas agora tambeacutem em
oradores Essa conjectura parece ser imprescindiacutevel para o estudo do nosso corpus o episoacutedio
da disputa entre o Telamocircnio e o Laertida pelas armas de Aquiles presente nos primeiros 398
versos do Livro XIII
Esse episoacutedio jaacute havia sido tema nas obras de Homero Piacutendaro Eacutesquilo e Soacutefocles
como jaacute vimos aleacutem de vaacuterias outras entre as quais as trageacutedias latinas Ajax de Ennius ou
Julgamento das Armas de Pacuvius e Accius Segundo Hopkinson estas uacuteltimas inseridas no
periacuteodo republicano romano provavelmente pouco teriam influenciado Oviacutedio (2000 p 16)
Contudo entre as vaacuterias possibilidades de influecircncia um par de discursos declamatoacuterios
oriundos de exerciacutecios retoacutericos da Greacutecia da segunda metade do Seacuteculo V a C estaacute presente
de forma evidente na base dos argumentos conferidos a Aacutejax e a Odisseu sobretudo do
primeiro Atribuiacutedo a Antiacutesthenes esse texto jaacute conferia aos argumentos do Telamocircnio o
contraste entre accedilatildeo e palavra as accedilotildees noturnas de Ulisses sob uma perspectiva negativa a
sua loucura fingida para fugir agrave convocaccedilatildeo o escaacuternio em observar que este natildeo teria
compleiccedilatildeo fiacutesica para sustentar as armas requeridas entre outras (Ibidem p 15)
Isso corrobora a carga retoacuterica dos discursos empregados em especial porque o
episoacutedio corresponde a uma disputa de oratoacuteria ou seja os personagens tentam convencer os
juiacutezes da contenda de que satildeo merecedores das armas de Aquiles e se alongam bastante nessa
empreitada Dada a voz aos personagens pelo narrador externo o discurso do heroacutei de
Salamina abrange do verso 5 ao 122 e o do proveniente de Iacutetaca do 128 ao 381 A extensatildeo
do discurso do segundo que corresponde ao dobro de seu adversaacuterio agregada agrave oposiccedilatildeo de
accedilatildeo e palavra conforme vimos anteriormente ser caracteriacutesticas marcantes desses
personagens faz-nos supor antes mesmo de termos contato com o episoacutedio que ele tem a
vantagem e a eventual vitoacuteria nessa disputa de oratoacuteria E assim acontece
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No entanto por mais que fossem utilizadas variadas teacutecnicas de retoacuterica e seus
lugares-comuns o arranjo eficaz da linguagem na Metamorfoses natildeo eacute usado apenas para o
sucesso persuasivo de certos personagens mas sobretudo para uma efetiva caracterizaccedilatildeo dos
mesmos Essa seria a grande conquista de Oviacutedio no desenvolvimento da linguagem em
contextos retoacutericos acredita Fantham (2009 p 31) Nosso estudo segue exatamente esse vieacutes
Natildeo procuramos identificar os elementos eficazes ou natildeo no discurso dos heroacuteis ou contrapocirc-
los ao texto de Antiacutesthenes mas reconhecer quando estes elementos delineiam a
caracterizaccedilatildeo do heroacutei sobretudo quando satildeo influenciados sob a perspectiva das noccedilotildees de
virtude e ira Assim por exemplo apesar de faltar sofisticaccedilatildeo ao discurso de Aacutejax Oviacutedio
ainda lhe impotildee a utilizaccedilatildeo de jogo de palavras e paradoxos sob um teor sarcaacutestico e
contundente a qual parece delinear o estado emocional do personagem a ira que acomete o
personagem um elemento tradicional de sua caracterizaccedilatildeo
Neil Hopkinson que dedicou todo um estudo ao Livro XIII de Metamorfoses
comentando-o verso a verso observa a mesma importacircncia da oratoacuteria em seus episoacutedios e
apresenta uma seccedilatildeo que recai sobre suas questotildees retoacutericas Apoiado nos escritos retoacutericos de
Quintiliano e Ciacutecero aponta que gregos e romanos mesmo acreditando que a fonte e a origem
da eloquecircncia jaacute estejam em Homero por meio de trecircs estilos distinguidos o grande (grauis)
o meacutedio (mediocris) e simples (attenuata) reconhece-se que os melhores oradores se
adequam agraves circunstacircncias mesclando todos os tipos destes assim promovendo um estilo
mais emocional de exortaccedilatildeo direcionado agrave excitaccedilatildeo de uma multidatildeo ou mais intelectual
designado a receber a aprovaccedilatildeo de senadores e juiacutezes (2000 p 16-17)
Devido a isso um elemento se torna determinante para os oradores a quem se
direcionam os discursos Em sua anaacutelise esse estudioso destacou que apesar de bom o
discurso de Aacutejax jaacute estaria fadado agrave derrota pois se direciona agrave massa de soldados sem nome
que natildeo possuem poder de voto algum diferentemente de Ulisses que visa aos reis No
entanto mesmo estando presentes muitos elementos dos manuais de retoacuterica como bons
argumentos figuras de linguagens bem empregadas perguntas retoacutericas ou sentenccedilas
contundentes e exclamaccedilotildees em momentos de cliacutemax faltam sobretudo ao discurso de Aacutejax
segundo o autor organizaccedilatildeo e proporccedilatildeo (Ibidem p 20)
Diante dessa disposiccedilatildeo pensamos existir no discurso do Telamocircnio corroborando
sua unidade textual uma organizaccedilatildeo dos argumentos uma reiteraccedilatildeo de determinados
conteuacutedos uma recorrecircncia de certos recursos retoacutericos bem significativos do ponto de vista
da caracterizaccedilatildeo do heroacutei e de alguma forma que retomam a tradiccedilatildeo No episoacutedio em
questatildeo tal composiccedilatildeo alicerccedila um discurso que provavelmente eacute elaborado para trazer a
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aparecircncia de retoacuterica direta veemente e contundente Por consequecircncia por um lado o
discurso parece se apoiar na forccedila de argumentos e no vigor de uma elocuccedilatildeo que se fazem
presentes sobretudo pelos atos rememorados do personagem os quais definem uma
determinada conduta heroica propriamente homeacuterica e pelas contundentes perguntas
retoacutericas que ao nosso ver caracterizam o heroacutei segundo suas recorrentes qualidades
guerreiras Por outro lado especialmente a violecircncia dos escaacuternios e das ironias e a
disposiccedilatildeo conturbada do conteuacutedo esta que tem uma coerecircncia interna e um encadeamento
loacutegico que segue um princiacutepio de afinidades e semelhanccedilas circunstanciais para noacutes parecem
enfatizar seu estado emocional iracundo Certamente isso foi considerado por Oviacutedio uma
vez que a ira evidenciada no episoacutedio estaacute presente desde a tradiccedilatildeo arcaica Vejamos um
pouco dessa disposiccedilatildeo em uma breve paraacutefrase
Aacutejax inicia seu discurso de modo conturbado que para Hopkinson representa a
ausecircncia de um exoacuterdio (Ibidem p 20) fazendo a oposiccedilatildeo entre ele e Ulisses precisamente
sob o contraste de accedilatildeo e palavra conferindo agrave uacuteltima uma natureza ligada agrave mentira
Prossegue a sua linhagem oriunda de Juacutepiter Sob esse tema e por essa afinidade o heroacutei
encadeia o proacuteximo argumento a acusaccedilatildeo ao adversaacuterio por meio de sua linhagem nefanda
Opotildee agrave sua origem a de Ulisses que vem de Siacutesifo e por isso tanto quanto este possui por
natureza a predisposiccedilatildeo e a vocaccedilatildeo ao crime Para evidenciar entatildeo a natureza de Ulisses
Aacutejax dando prosseguimento agraves acusaccedilotildees comprova-a com trecircs acontecimentos os casos de
Palamedes de Filoctetes e de Nestor Todos os episoacutedios satildeo apresentados descrevendo o
dolo e a covardia de Ulisses que causa mal aos heroacuteis supracitados de forma individual e
tambeacutem a todos os gregos em aspecto coletivo Contudo no uacuteltimo fato narrado o crime
levantado eacute o abandono de Ulisses a Nestor em plena batalha deixando-o sozinho agrave mercecirc
dos exeacutercitos troianos Sob esse uacuteltimo tema encadeando os dois assuntos o heroacutei de
Salamina entatildeo retoma sua defesa aproveitando o ensejo para se contrapor mais uma vez ao
adversaacuterio O argumento apresentado eacute o salvamento que ele mesmo faz ao proacuteprio Ulisses
durante uma batalha Fica evidente que a retomada agrave defesa se faz por meio de uma
semelhanccedila circunstancial da proteccedilatildeo de um igual um heroacutei durante as batalhas nunca o
abandonando De mesmo modo prossegue com a apresentaccedilatildeo de sua defesa contra Heitor e
de sua proteccedilatildeo agraves naus gregas Durante todo esse processo reforccedila-se a oposiccedilatildeo entre o
homem de accedilatildeo ele proacuteprio e o homem da palavra o Laertida que retomada ao fim do
discurso ilustra a coerecircncia do possuidor das armas ser consequentemente ele mesmo o
Telamocircnio A resposta de Ulisses mais difiacutecil segundo as premissas retoacutericas uma vez que
exige a refutaccedilatildeo dos argumentos do acusador faz-se eficaz ao nosso ver especialmente
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porque evidencia o meacuterito das accedilotildees que influenciam diretamente na conquista de Troia
sejam accedilotildees passadas como a retirada do Palladium de Atenas que estava em Troia ou
futuras como a retomada do arco de Heacutercules em posse de Filoctetes que soacute seraacute possiacutevel
atraveacutes da persuasatildeo de Odisseu sobre este Estes fatos satildeo importantes porque figuram na
literatura do ciclo da guerra de Troia as condiccedilotildees profeacuteticas sobretudo de cunho religioso
para que os gregos se tornem vitoriosos na expediccedilatildeo Ulisses assim opotildee a eficaacutecia de suas
accedilotildees aos valores heroicos de Aacutejax cujos atos natildeo parecem exercer forccedila sobre a conquista de
Troia aleacutem de adequar relevantemente seu discurso agrave audiecircncia atraveacutes de variadas teacutecnicas
de argumentaccedilatildeo retoacuterica Dessa forma a inteligecircncia se sobrepocircs agrave forccedila tal qual parece ter
acontecido na disputa entre esses dois heroacuteis nos jogos fuacutenebres em homenagem a Paacutetrocles
no Canto XXIII da Iliacuteada (cf p 20) Para Hopkinson natildeo haacute nada de extraordinaacuterio na
disposiccedilatildeo e no arranjo dos argumentos desse heroacutei contudo seu ponto forte realmente estaacute
na sua retoacuterica de desarme com a qual refuta as acusaccedilotildees do opositor e na sua postura
controlada e cuidadosa que segue as orientaccedilotildees dos manuais retoacutericos (Ibidem p 20-21)
Diante disso eacute notaacutevel que a maioria dos argumentos de ambos heroacuteis correspondam
aos mais recorrentes lugares-comuns e que como jaacute foi mencionado antes mais importante
do que isso eacute observar como essa composiccedilatildeo estrutura a caracterizaccedilatildeo tanto de Aacutejax quanto
de Ulisses (HOPKINSON 2000 p 16)
A unidade textual conferida ao episoacutedio de Oviacutedio considerando-se as informaccedilotildees
desenvolvidas acima parece reforccedilar a virtude e a ira guerreira do personagem sobretudo
defensiva Isso se torna mais evidente pelo reforccedilo semacircntico a essa proeminecircncia defensiva
por meio de atos e vocaacutebulos significativos para isso com os quais a participaccedilatildeo do escudo
se mostra fundamental Tambeacutem extremamente relevantes satildeo as duas menccedilotildees diretas a sua
ira (irae v3 iram v 385) que antecipa o seu discurso e fecha o episoacutedio delineando a
natureza do estado emocional do heroacutei Ambas emolduram a ira do personagem em torno da
disputa configurando inclusive como anterior e posterior ao evento
Conveacutem sempre pontuar uma vez que o estudo mais profundo seraacute disposto no
capiacutetulo seguinte que essa ira parece diretamente tratar do sentimento natural para o qual
Aacutejax se mostra propenso em especial por um lado por retomar-se a tradiccedilatildeo homeacuterica
alinhado o episoacutedio de Oviacutedio ao da Odisseia e por outro lado pela oposiccedilatildeo que o autor de
Metamorfoses faz entre ira e loucura furor quando se trata do mito desse heroacutei Visto que o
episoacutedio do Livro XIII natildeo trata do ataque do Telamocircnio aos rebanhos gregos seu autor nesta
obra soacute lhe configura iracundo diferentemente de como o faz em Amores no qual o eu-liacuterico
eacute tomado por uma loucura (furor I 7 v 2 e 3) que o faz atacar sua senhora tal qual o chefe
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de Salamina senhor do escudo de sete dobras abateu pelos vastos campos as greis
encontradas (clipei dominus septemplicis Aiax stravit deprensos lata per arva greges -
Ibidem v 7-8) Assim tentamos evidenciar como o estudo da caracterizaccedilatildeo desse
personagem sob todas as condiccedilotildees dispostas acima eacute profiacutecuo mesmo dentro dessa obra na
qual natildeo haacute personagens centrais
Diante de tudo o que foi exposto conveacutem relembrarmos que a aparente incoerecircncia
unitaacuteria proacutepria da narrativa miacutetica desenvolvida na Metamorfoses por meio do
encadeamento de episoacutedios com afinidades circunstancias e ora pela teacutecnica de
desdobramentos dos niacuteveis narrativos somada a uma carga liacuterica e traacutegica e a um tom eacutepico
coloca a obra em uma posiccedilatildeo singular um entrelugar Isso significa dizer que a complexa
situaccedilatildeo em que os estudiosos e criacuteticos colocam a obra nos permite analisaacute-la respeitando a
devida pertinecircncia a partir de elementos ou categorias da poesia liacuterica traacutegica ou eacutepica bem
como de caracteriacutesticas do mito em si ou de teacutecnicas da retoacuterica Essa polivalecircncia nos
oferece assim uma variada e rica possibilidade de interpretaccedilatildeo do poema e do episoacutedio
sendo possiacutevel conjugarem-se a grande expressatildeo de sentimentalidade liacuterica e o uso de
epiacutetetos eacutepicos tal qual os propoacutesitos homeacutericos por exemplo
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2 ESTUDO ISOLADO DA CARACTERIZACcedilAtildeO DO HEROacuteI
Disporemos neste capiacutetulo um estudo sobre a caracterizaccedilatildeo do personagem Aacutejax
especialmente relacionando o papel executado por ela na composiccedilatildeo estrutural das obras
considerando-se os niacuteveis relevantes e possiacuteveis do acircmbito literaacuterio Primeiramente faremos
uma anaacutelise sobre a obra grega de Soacutefocles Aias e em seguida sobra a latina de Oviacutedio
Metamorfoses Com efeito a organizaccedilatildeo das nossas anaacutelises segue um criteacuterio mais
adequado ao nosso propoacutesito e que consiste em dispocirc-la associando-se fragmentos que
manifestem marcas fundamentais de caracterizaccedilatildeo vinculadas ora agrave noccedilatildeo de virtude ora agrave
de ira
Como jaacute dissemos anteriormente empregamos em nossa pesquisa o lato entendimento
da teoria de Carlos Reis e de Ana Cristina Lopes acerca de caracterizaccedilatildeo a qual incorre
senatildeo nos traccedilos essenciais de um personagem estruturados em uma unidade identificada por
determinados indiacutecios textuais por meio da qual esse conjunto de atributos desempenha uma
funccedilatildeo essencial na composiccedilatildeo do enredo intensificando-se e se reiterando o eixo semacircntico
do argumento da obra (1988 p 193-195)
Consideramos ainda em nosso estudo as concepccedilotildees de caracterizaccedilatildeo do tipo direta e
indireta postuladas por esses mesmos autores contudo essas estatildeo submetidas a nossa
primeira divisatildeo De acordo com tais estudiosos o primeiro tipo corresponde a um de
procedimento estaacutetico constituiacutedo sobretudo a partir de descriccedilotildees cuja finalidade de
caracterizaccedilatildeo se mostra evidentemente expressa em uma determinada passagem do texto
Essa praacutetica pode ser executada pelo narrador externo e tanto pelo proacuteprio personagem
quanto por outro Em oposiccedilatildeo a esse o segundo tipo12 consiste em um processo dinacircmico e
mais disperso observado por meio dos discursos dos personagens da suas accedilotildees e reaccedilotildees em
certas situaccedilotildees significativas para isso (1988 p 194-195) Com efeito dentro das nossas
anaacutelises utilizaremos de forma despretensiosa essa tipologia para marcar sobretudo
determinadas observaccedilotildees assentando nesta uma interpretaccedilatildeo que busque esclarecer os
vaacuterios niacuteveis de referenciaccedilatildeo interna da obra revelando a complexidade do todo a partir do
estudo de algumas de suas partes
12 Esse tipo de caracterizaccedilatildeo eacute importante especialmente porque parece refletir as premissas aristoteacutelicas Segundo a interpretaccedilatildeo de Jones acerca da Poeacutetica a trageacutedia natildeo imita homens mas accedilotildees assim o caraacuteter eacutethos desenvolve-se para as accedilotildees e soacute nelas se revela quando executadas pelos personagens dessa forma o caraacuteter eacute incluiacutedo em funccedilatildeo da accedilatildeo sobretudo por ser o enredo myacutethos ou seja o arranjo das accedilotildees a alma da trageacutedia e o primeiro antes dos demais elementos (apud LUNA 2012 p 297-299) Assim ao nos referirmos a esse tipo recorremos de alguma forma ao procedimento proacuteprio para a literatura claacutessica greco-latina
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2 1 A VERSAtildeO DE SOacuteFOCLES
O estudo que disporemos a seguir tem como base a trageacutedia Aias de Soacutefocles
contudo restringir-nos-emos a alguns fragmentos selecionados recolhidos de vaacuterias seccedilotildees da
obra e coerentes com os objetivos do estudo A anaacutelise que propomos bem como os criteacuterios
adotados para apreciaccedilatildeo estatildeo submissos a duas categorias analiacuteticas jaacute definidas por noacutes
virtude e ira na caracterizaccedilatildeo de Aacutejax Ambas parecem ter igual papel fundamental no
episoacutedio impondo-se como chaves de leitura sem as quais a estrutura do texto se desfaz
parcial ou completamente Assim essa caracterizaccedilatildeo em que consiste esta seccedilatildeo trata da
forma pela qual Soacutefocles constroacutei o personagem dando-lhe profundidade e significado diante
do contexto da peccedila Em nossa anaacutelise observaremos trechos do texto que evidenciem esses
traccedilos caracteriacutesticos do heroacutei por meio de indiacutecios textuais capazes de demonstrar a funccedilatildeo
estrutural das categorias escolhidas para o episoacutedio
Devido agrave perspectiva adotada e visto que nossa anaacutelise recairaacute apenas sobre alguns
versos da trageacutedia faz-se necessaacuteria a estruturaccedilatildeo da peccedila em questatildeo de modo a
contextualizar em que passagens estatildeo inseridos os fragmentos escolhidos facilitando a
compreensatildeo do que seraacute apresentado A disposiccedilatildeo adotada abaixo foi desenvolvida por
Pascal Thiercy pois parece-nos mais didaacutetica uma vez que consiste em uma estruturaccedilatildeo
habitual da trageacutedia No entanto essa peccedila apresenta particularidades que tornam os limites de
alguns episoacutedios e estaacutesimos mais difiacuteceis de se estabelecer como por exemplo algumas
intervenccedilotildees liacutericas da peccedila ou a mudanccedila de lugar que decorre no meio do episoacutedio que eacute
comum agraves trageacutedias claacutessicas segundo aponta esse mesmo autor (2009 p 14-15) Assim
dispomos sua estrutura segundo o esquema tradicional facilitando a sua compreensatildeo Cabe-
nos ainda ressaltar que em nossa apreciaccedilatildeo do texto recorreremos a esta configuraccedilatildeo Satildeo
personagens Atena a deusa grega Aacutejax o heroacutei protagonista Tecmessa Teucro e Euriacutesaces
respectivamente a cativa o irmatildeo e o filho do Telamocircnio Odisseu Agamecircmnon Menelau
um mensageiro e o coro
1 Proacutelogo (v 1 ndash 133) este momento corresponde ao iniacutecio in medias res A cena eacute
desenvolvida agrave frente da tenda de Aacutejax na noite apoacutes a disputa pelas armas de Aquiles e ainda
durante a guerra de Troia Eacute o momento em que o heroacutei enganado encontra-se a torturar os
animais Junto com este figuram neste ato Odisseu que seguia os rastros do responsaacutevel
pela matanccedila e Atena que lhe revela toda a situaccedilatildeo e lhe exibe aquele como um exemplo de
excesso um modelo que deve ser punido
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2 Paacuterodo (v 134 ndash 200) a entrada do coro o qual representa o exeacutercito de Salamina
sob o comando do protagonista Em cena jaacute com o dia nascido dispotildee indagaccedilotildees ao chefe e
lamentos pelos boatos que surgem
3 Primeiro episoacutedio (v 200 ndash 595) os personagens Aacutejax e Tecmessa sua cativa
junto ao coro lamentam e esclarecem a situaccedilatildeo do heroacutei a intervenccedilatildeo de uma divindade no
infortuacutenio do personagem A peripeacutecia aristoteacutelica adensa o lamento da cena reconhece-se
que a vinganccedila que traria alegria e que lhe devolveria alguma honra desencadeia o seu
oposto pois a desonra torna-se ultraje e o lamento insurge-se contra a expectativa As
tentativas de demover o personagem de uma disposiccedilatildeo ao suiciacutedio natildeo alcanccedilam sucesso
4 Primeiro estaacutesimo (596 ndash 645) o coro ressalta o contraste da notoacuteria excelecircncia da
terra natal e da linhagem do heroacutei com a sua situaccedilatildeo calamitosa
5 Segundo episoacutedio (v 646 ndash 692) monoacutelogo do personagem principal no qual
vemos a sua disposiccedilatildeo ao suiciacutedio Reflexatildeo irocircnica e consequentemente velada para alguns
personagens conduz o coro e sua companheira agrave crenccedila de uma mudanccedila de pensamento A
partida do heroacutei eacute interpretada entatildeo como uma tentativa de reconciliaccedilatildeo com os gregos e
com os deuses
6 Segundo estaacutesimo (v 693 ndash 718) manifestaccedilatildeo de profunda alegria do coro oriundo
da maacute compreensatildeo das intenccedilotildees do Telamocircnio Prepara-se assim outra peripeacutecia
7 Terceiro episoacutedio (v 719 ndash 865) o lamento insurge-se novamente contra a
expectativa Com a participaccedilatildeo de Teucro irmatildeo do heroacutei e de um mensageiro todos tomam
conhecimento dos ditos do adivinho Calcas a ira da deusa Atena ainda persegue o heroacutei pelo
dia que resta e a sua salvaccedilatildeo dependeria da permanecircncia do mesmo com os proacuteximos na
tenda agora impossiacutevel durante esse tempo A cena muda de lugar e o monoacutelogo de
despedida eacute seguido do suiciacutedio de Aacutejax
8 Terceiro estaacutesimo kommoacutes (v 866 ndash 973) instaura-se uma gradaccedilatildeo do sofrimento
que teve iniacutecio no episoacutedio anterior A possibilidade de morte do heroacutei se concretiza quando
Tecmessa revela ao coro que o Telamocircnio foi encontrado morto ferido por espada Adensa-se
o sofrimento pela descoberta do suiciacutedio e pela eventual satisfaccedilatildeo de Odisseu e dos Atridas
diante do ato
9 Quarto episoacutedio (v 974 ndash 1184) Teucro e Menelau protagonizam esse momento
Adensa-se o sofrimento com a imposiccedilatildeo do Atrida em proibir os ritos fuacutenebres do heroacutei
10 Quarto estaacutesimo (v 1185 ndash 1222) o lamento do coro enfatiza o infortuacutenio do
personagem como uma das desgraccedilas que se impotildee a todos os gregos devido agrave nefasta guerra
de Troia
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11 Ecircxodo (v 1223 ndash 1420) a discussatildeo sobre o sepultamento do heroacutei ganha forccedila
com a presenccedila de Agamecircmnon o qual Teucro natildeo consegue demover sobretudo por
influecircncia de sua posiccedilatildeo de filho ilegiacutetimo Odisseu como um igual conquista tal permissatildeo
do Atrida Ameniza-se o sofrimento Os ritos tecircm iniacutecio presididos pelo irmatildeo do heroacutei
Conveacutem agora apresentarmos a metodologia de anaacutelise Primeiramente estudaremos
a categoria virtude na caracterizaccedilatildeo de Aacutejax Em seguida analisaremos a categoria ira Para
ambas tentaremos observar indiacutecios textuais que apontem uma unidade utilizando-se tanto de
fragmentos que apresentem de forma expliacutecita leacutexico relevante para o estudo quanto de accedilotildees
ou declaraccedilotildees de personagens das quais se podem extrair marcas significativas para o
reconhecimento de um caraacuteter As anaacutelises sempre se iniciaratildeo pelas caracterizaccedilotildees
expliacutecitas e mais claras Por fim demonstraremos como essas duas categorias se entrelaccedilam
para alcanccedilar uma unidade textual proacutepria para a peccedila assim para esta representando
fundamentais chaves de leitura e extinguindo qualquer noccedilatildeo circunstancial que se possa
inferir
2 1 1 Ἀρετή a virtude do heroacutei na perspectiva grega
Para o estudo desta seccedilatildeo utilizaremos o conceito de virtude do heroacutei areteacute (ἀρετή)
desenvolvido por Werner Jaeger em seus trabalhos sobre a cultura grega dos tempos remotos
Para este estudioso o conceito de areteacute eacute um tema fundamental para entender a cultura grega
da Antiguidade Claacutessica e especialmente do seu periacuteodo arcaico Apesar de todos os
problemas decorrentes da traduccedilatildeo de uma palavra como tal Jaeger a faz por meio do termo
ldquovirtuderdquo Contudo na tentativa de equivalecirc-la ao termo grego essa palavra deve ser
concebida ldquona sua acepccedilatildeo natildeo atenuada pelo uso puramente moral e como expressatildeo do
mais alto ideial cavalheiresco unido a uma conduta cortecircs e distinta e ao heroiacutesmo guerreirordquo
(2003 p 25) Tanto em Homero quanto em autores dos seacuteculos posteriores o sentido
especiacutefico da palavra revela um atributo proacuteprio do homem varatildeo da nobreza pois o homem
comum natildeo possuiacutea tal qualidade (Ibidem p 26) Segundo ainda este mesmo autor aacuteristos
(ἄριστος) seria raiz desse termo grego que em geral sobretudo em tempos primitivos
denomina ldquoa forccedila e a destreza dos guerreiros ou lutadores e acima de tudo heroiacutesmo
considerado natildeo no nosso sentido de accedilatildeo moral e separada da forccedila mas sim intimamente
ligado a elardquo (Ibidem p 27)
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Apesar de existir o vocaacutebulo andreiacutea (ἀνδρεία) cuja origem estaacute na palavra homem
varatildeo aneacuter (ἀνήρ) sua formaccedilatildeo eacute posterior embora ela mesma seja ainda descrita por
Aristoacuteteles como um dos componentes de uma virtude areteacute mais abrangente tanto na obra
Retoacuterica a Alexandre (XXXV 1440b 15-20) atribuiacuteda ao estagirita quanto em Eacutetica a
Eudemo (apud MILLS 1980 p 199) Andreiacutea teria entatildeo (apud Ibdem p 199) o sentido
mais especiacutefico de coragem guerreira definida como uma melhor disposiccedilatildeo ou
comportamento (βελτίστη ἕξις) provavelmente mais moderado em relaccedilatildeo aos sentimentos
opostos de medo (φόβος) e audaacutecia (θάρρη) Contudo nossa escolha pelo uso do termo areteacute
para definir uma virtude guerreira eacute significativa porque nem Homero em suas duas epopeias
nem Soacutefocles na peccedila em questatildeo utilizou este uacuteltimo vocaacutebulo O que alicerccedila tanto o estudo
de Jaeger sobretudo a partir dos textos homeacutericos quanto fundamenta o autor Homero como
matriz absoluta dos conceitos arcaicos aos quais Soacutefocles remete sua obra Isso eacute claramente
observado no uso abundante do vocaacutebulo areteacute nos poemas homeacutericos e em Aias nas duas
ocorrecircncias desse termo (ἀρετᾶς v 617 ἀρετή v 1357) descrevendo Aacutejax e delineando-se
exatamente sua excelecircncia e superioridade guerreira como noacutes veremos ainda nesse capiacutetulo
Diante dessas razotildees parece-nos mais adequado utilizar o conceito de areteacute estabelecido por
Werner Jaeger (2003)
Por nosso corpus se tratar de uma trageacutedia em que natildeo haacute o objetivo de encenar a
guerra ou um combate singular a anaacutelise sobre a virtude do heroacutei areteacute (ἀρετή) sobretudo
sob o ponto de vista de uma excelecircncia guerreira de modelo arcaico e homeacuterico como eacute o
caso do caraacuteter do heroacutei em questatildeo tem como base o estudo da caracterizaccedilatildeo do tipo direta
ou seja menccedilotildees mais expliacutecitas dos personagens da peccedila inclusive do proacuteprio protagonista
e do coro que reconhecem esse valor evidentemente atribuiacutedo ao mesmo Esse tipo de
caracterizaccedilatildeo quando natildeo em uma perspectiva descritiva apresenta-se de forma narrativa
remetendo-se a atos do heroacutei externos aos limites da peccedila por meio de analepse A trageacutedia
assim natildeo daacute espaccedilo para accedilotildees propriamente eacutepicas das quais possamos retirar
caracterizaccedilotildees indiretas a natildeo ser quando revestidas de subjetividade proporcionem uma
peripeacutecia aristoteacutelica uma accedilatildeo vista como heroica apoacutes ser executada mostra-se na verdade
funesta e desastrosa
Uma vez que a ira estudada mais agrave frente manifesta-se segundo uma relaccedilatildeo com a
honra do personagem eacute importante entender como o seu valor guerreiro que a compotildee nesse
caso de forma preponderante estaacute disposto na composiccedilatildeo da peccedila Eacute a primazia guerreira
que faz o protagonista sobrevalorizar sua honra a ponto de se reconhecer superior aos chefes
gregos independente de suas prerrogativas e ao mesmo tempo depreciar a natureza dos
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deuses negando-lhes o poder que detecircm Em relaccedilatildeo agrave trageacutedia em questatildeo essa virtude
parece fundamentar duas coisas uma em cada metade da obra Na primeira enquanto o heroacutei
estaacute vivo quanto mais reconhecermos o valor do heroacutei especialmente na sua perspectiva
compreenderemos por que para ele mais graves satildeo os atos dos chefes gregos e a perseguiccedilatildeo
da deusa de forma que se justifique uma ira mais intensa Na segunda metade morto o
protagonista reconhece-se o seu valor sobretudo por parte de seu maior inimigo Odisseu de
forma que se justifique sua reabilitaccedilatildeo entre os gregos permitindo-se os ritos fuacutenebres e
reconsiderando-se sua nova condiccedilatildeo Em ambas eacute fundamental essa excelecircncia beacutelica como
um elemento estrutural da peccedila por um lado alicerccedilando a ira do heroacutei e por outro baseando
o oacutedio ponderado pelos inimigos
Iniciaremos o estudo pelos dois fragmentos que apresentam essa supremacia como
caracteriacutestica do protagonista um no primeiro estaacutesimo e outro no ecircxodo os quais refletem as
duas metades da obra as quais falamos acima Em ambos se potildee em destaque o epiacuteteto
homeacuterico e arcaico que ressalta seu poder marcial o melhor dos gregos depois de Aquiles E
estando morto o Pelida no contexto da obra fica claro que o Telamocircnio entatildeo ocupa a
posiccedilatildeo daquele tornando-se o maior dos guerreiros aqueus A essas passagens outras seratildeo
acrescidas ou de conteuacutedo ou de vocabulaacuterio significativo para contribuir com tal perspectiva
do estudo Analisemos a virtude do heroacutei inserida na primeira metade
[Χο] Κρείσσων γὰρ ῞Αιδᾳ κεύθων ὁ νοσῶν μάταν 635 ὃς ἐκ πατρῴας ἥκων γενεᾶς ἄριστος πολυπόνων ᾿Αχαιῶν οὐκέτι συντρόφοις ὀργαῖς ἔμπεδος ἀλλ ἐκτὸς ὁμιλεῖ 640 ῏Ω τλᾶμον πάτερ οἵαν σε μένει πυθέσθαι παιδὸς δύσφορον ἄταν ἃν οὔπω τις ἔθρεψεν δίων Αἰακιδᾶν ἄτερθε τοῦδε13 645
(Aias v 635-645)
O trecho potildee em evidecircncia a supremacia guerreira do heroacutei Sua virtude eacute senatildeo sua
inclinaccedilatildeo beacutelica pela qual se faz reconhecido pelo epiacuteteto homeacuterico ἄριστος Ἀχαιῶν cujas
variaccedilotildees estatildeo presentes tanto na Iliacuteada quanto na Odisseia e em outros autores arcaicos
conforme jaacute vimos no capiacutetulo anterior O reconhecimento desse atributo eacute feito pelo coro
que representa os soldados de Salamina cidade do heroacutei ou seja os seus proacuteximos Eacute notaacutevel
13
[Co] Pois se ocultando no Hades eacute preferiacutevel o loucamente doente (v 630) que da geraccedilatildeo paterna eacute o melhor dos Aqueus que sofrem muito jaacute natildeo firme na natural iacutendole encontra-se desta afastado (v 640) Oacute pai sofredor que desastre insuportaacutevel do filho te espera ser conhecido o qual ainda natildeo nutriu ningueacutem dos divos Eacidas com exceccedilatildeo deste (v 645)
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que a perspectiva se daacute pelo vieacutes da dor e do sofrimento imposto pela guerra algo menos
eacutepico e mais traacutegico Dessa forma natildeo soacute Teacutelamon sofreraacute com a decisatildeo aparente do seu
filho como tambeacutem os gregos satildeo ditos muito sofredores πολυπόνων diante das
adversidades proacuteprias da guerra Na eacutepica este eacute o campo propiacutecio para as accedilotildees heroicas e
para o valor especialmente quando tratamos de circunstacircncias em que a morte se torna bela
Mas na trageacutedia impotildee-se uma realidade mais dura coerente com os propoacutesitos aristoteacutelicos
fundamentais de uma trageacutedia o sofrimento e o infortuacutenio (Poeacutetica 1453a 10-25) e assim a
guerra se torna um lugar natural dessa premissa no qual males coletivos sobrepotildeem os atos
individuais valorosos Em harmonia com essa propensatildeo traacutegica a disposiccedilatildeo de Aacutejax eacute para
o lamento e o queixume sobretudo porque seu ultraje eacute visto por ele como incontornaacutevel
Tanto Tecmessa quanto o coro percebe as intenccedilotildees funestas de suas lamuacuterias O contraste
entre as caracterizaccedilotildees do heroacutei eacute tatildeo evidente que os seus proacuteximos distinguem sua conduta
antes da disputa pelas armas da seguinte apoacutes a derrota para Odisseu e especialmente
daquela apoacutes as accedilotildees da deusa Atena Por isso apontam um heroacutei que se afasta das suas
disposiccedilotildees habituais συντρόφοις ὀργαῖς para noacutes as disposiccedilotildees homeacutericas e mais eacutepicas
Ao fim deste capiacutetulo retomaremos a essa conduta natildeo natural ao personagem a fim de
justificar sua loucura natildeo meramente presa agraves ilusotildees de Atena
Uma organizaccedilatildeo curiosa da passagem parece relacionar a estrutura do epiacuteteto de heroacutei
ao seu pai O atributo do heroacutei eacute sempre descrito acompanhado de uma restriccedilatildeo ou de uma
exclusatildeo que se trata de Aquiles Natildeo eacute o caso em questatildeo uma vez que o Pelida se encontra
morto Mas fato eacute que no contexto da epopeia essa primazia guerreira de natureza eacutepica
inserida no acircmbito do valor natildeo eacute alcanccedilada pelo fato de existir uma restriccedilatildeo ou exclusatildeo
que demarca exatamente aquele que eacute o mais valoroso No trecho escolhido parece haver uma
inversatildeo de estrutura e de valores conferidos O pai do protagonista eacute comparado ao pai de
Aquiles pois satildeo referidos como Eacidas ou filhos de Eacuteaco Contudo essa comparaccedilatildeo estaacute
inserida no acircmbito da dor e do sofrer Assim como diz o texto ldquonenhum dos Eacidas nutriu
infortuacutenio insuportaacutevel do filho com exceccedilatildeo desterdquo ou seja Teacutelamon A partiacutecula usada por
Soacutefocles para marcar o adjunto adverbial de exclusatildeo eacute praticamente o mesmo que Piacutendaro
usa na ode Nemeia VII cuja passagem noacutes citamos anteriormente (cf p 15) ldquo[Aacutejax] o mais
poderoso na guerra com exceccedilatildeo de Aquilesrdquo (κράτιστον ᾿Αχιλέος ἄτερ μάχᾳ v 28 grifo
nosso) Assim essa singularidade quanto ao tipo de sofrimento na qual a natureza traacutegica se
impotildee restringe-se ao pai de Aacutejax excluindo-o do destino afortunado dos outros membros da
famiacutelia Podemos visualizar melhor a estrutura refletida a partir do esquema abaixo
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bull Aacutejax rarr melhor dos gregos rarr com exceccedilatildeo de Aquiles (ἄτερ Ἀχιλέος)
bull Ningueacutem rarr sofredor entre Eacidas rarr com exceccedilatildeo de Teacutelamon (ἄτερθε τοῦδε)
Dessa forma eacute possiacutevel compreender como o conteuacutedo retoma a estrutura do epiacuteteto
comum ao Telamocircnio em uma relaccedilatildeo de proximidade quanto agrave forma e de inversatildeo quanto
ao conteuacutedo uma vez que na peccedila se enfatiza a desgraccedila que cai sobre o heroacutei mas que afeta
todos os seus proacuteximos atribuindo ao seu pai a unicidade de um sofrimento por que nenhum
outro Eacida passaria
O aspecto traacutegico dessa composiccedilatildeo ecoa por toda a obra pois os atos gloriosos do pai
acarretam um legado que deve ser cumprido no mesmo caminho e isso significa dizer que haacute
uma expectativa para os feitos do filho repetindo-se os do patriarca Por isso tanto Aacutejax
quanto Teucro referenciam sua ancestralidade conferindo-lhes valor O primeiro por duas
vezes atribui as mais altas honras ao pai os precircmios de excelecircncia guerreira (τῶν ἀριστείων
v 464) das quais manifestam a grande coroa de gloacuteria (στέφανον εὐκλείας μέγαν v 465) e
toda a gloacuteria carregada (πᾶσαν εὔκλειαν v 436) porque tendo sido o melhor (ἀριστεύσας v
435) obteve as mais belas primazias da tropa (τὰ πρῶτα καλλιστεῖ` [] στρατοῦ v 435) O
segundo filho ilegiacutetimo refere-se ao pai da mesma maneira e com os mesmos vocaacutebulos
mencionado sua supremacia guerreira e a decorrente primazia da tropa quase como um
epiacuteteto (στρατοῦ τὰ τρῶτ` ἀριστεύσας v 1300) Eacute possiacutevel ver nessas passagens a abundacircncia
de vocaacutebulos derivados do superlativo aacuteristos o melhor e de kleacuteos a gloacuteria no sentido de
fama que percorre as geraccedilotildees (cf p 8-9) tendo como objetivo compor a virtude de Teacutelamon
sob a perspectiva da supremacia e da distinccedilatildeo quanto ao seu poderio guerreiro
Aleacutem do epiacuteteto que preserva em si esse superlativo aacuteristos o protagonista eacute
mencionado pelo coro outra vez sob essa perspectiva de valor guerreiro Os atos de guerra do
heroacutei satildeo chamados de feitos da maior virtude (ἔργα [] μεγίστας ἀρετᾶς v 616-617) Aqui
noacutes temos a virtude guerreira do protagonista a areteacute sendo retratada como a maior O uso do
superlativo no adjetivo que define sua excelecircncia eacute coerente dentro da estrutura da peccedila
sobretudo por esse personagem tambeacutem ser retratado por um superlativo o melhor A
correlaccedilatildeo dos vocaacutebulos aacuteristos e meacutegistas eacute extremamente significativa pois natildeo podemos
nos esquecer que o proacuteprio Piacutendaro descreveu as armas de Aquiles como sendo a maior
honraria o maior preacutemio de distinccedilatildeo μέγιστον γέρας (Nemeias VIII v 25) O adjetivo
ligado ao vocaacutebulo da ode pindaacuterica tambeacutem estaacute no mesmo grau dos expressos na peccedila Tal
disposiccedilatildeo a partir do entendimento de que essa tradiccedilatildeo arcaica pode ser retomada por
Soacutefocles e agregada ao seu texto faz o protagonista a quem tambeacutem devemos atribuir uma
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desmedida no sentido de uma supervalorizaccedilatildeo de sua honra reconhecer-se como
merecidamente o eventual premiado com as armas de Aquiles
Contudo natildeo acontecendo dessa maneira haacute um contraste entre pai e filho ao menos
na perspectiva do Telamocircnio que tinha confianccedila em relaccedilatildeo agrave premiaccedilatildeo das armas uma vez
que se rompe a ineacutercia esperada e a expectativa do heroacutei em seguir os caminhos do pai por
meio do duplo infortuacutenio deste a derrota na disputa pelas armas que representa um ato
externo agrave peccedila e o ataque aos chefes um ato interno Dessa forma essa reviravolta na
expectativa que afasta significativamente o personagem de repetir os atos do genitor torna
mais intensa a sua desonra e consequentemente mais grave a sua ira que o impele a se vingar
Observemos isso a partir dos versos abaixo
[Αι] ἐγὼ δ ὁ κείνου παῖς τὸν αὐτὸν ἐς τόπον Τροίας ἐπελθὼν οὐκ ἐλάσσονι σθένει οὐδ ἔργα μείω χειρὸς ἀρκέσας ἐμῆς ἄτιμος ᾿Αργείοισιν ὧδ ἀπόλλυμαι 440 Καίτοι τοσοῦτόν γ ἐξεπίστασθαι δοκῶmiddot εἰ ζῶν ᾿Αχιλλεὺς τῶν ὅπλων τῶν ὧν πέρι κρίνειν ἔμελλε κράτος ἀριστείας τινί οὐκ ἄν τις αὔτ ἔμαρψεν ἄλλος ἀντ ἐμοῦ Νῦν δ αὔτ ᾿Ατρεῖδαι φωτὶ παντουργῷ φρένας 445 ἔπραξαν ἀνδρὸς τοῦδ ἀπώσαντες κράτη κεἰ μὴ τόδ ὄμμα καὶ φρένες διάστροφοι γνώμης ἀπῇξαν τῆς ἐμῆς οὐκ ἄν ποτε δίκην κατ ἄλλου φωτὸς ὧδ ἐψήφισαν 14
(Aias v 437-449)
Esse fragmento que pertence a uma das falas do protagonista tem como conteuacutedo a
comparaccedilatildeo dos seus feitos aos de seu pai inclusive contra a mesma regiatildeo Troia Em seu
julgamento suas faccedilanhas natildeo satildeo inferiores agraves de seu genitor o que justifica uma honraria
semelhante Por isso ele reforccedila essa comparaccedilatildeo sobretudo a partir de adjetivos no grau
comparativo ἐλάσσονι (de ἐλαχύς) e μείω (de μιχρός) logo sua forccedila σθένει e seus feitos
ἔργα natildeo satildeo menores do que o de Teacutelamon sobretudo porque deste ele proveacutem e por isso
com este mesmo se assemelha Como jaacute vimos na descriccedilatildeo do coro as faccedilanhas do seu
senhor satildeo da maior excelecircncia guerreira pois sua qualidade nas batalhas eacute excepcional
Corroborando o discurso dos soldados de Salamina ele atribui a si sob o julgamento do 14
[Aacutej] Eu o filho daquele contra o mesmo territoacuterio de Troia tendo sobrevindo natildeo com forccedila menor e tendo resistido com feitos de minha matildeo natildeo menores assim desonrado pelos Argivos pereccedilo (v 440) Certamente tatildeo grande coisa ao menos penso saber se vivo Aquiles em relaccedilatildeo agraves armas sobre as quais estivesse destinado a julgar o poder da excelecircncia de algueacutem nenhum outro contrariamente [as] tomaria diante de mim Agora contrariamente os Atridas para um homem astucioso reclamaram (v 445) a prudecircncia tendo repelido o poder deste heroacutei Se esta vista e meus pensamentos desviados natildeo tivessem se afastado violentamente de minha resoluccedilatildeo nenhuma vez assim sentenccedila sobre outro homem decidiriam por votos
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proacuteprio Aquiles se estivesse vivo o domiacutenio da supremacia beacutelica ἀριστείας tal qual o seu
progenitor referido como ἀριστεύσας A soberania belicosa ou seja a excelecircncia maior
pertence a esses dois inseridos em geraccedilotildees diferentes Assim como bem se evidencia no
texto os dois se assemelham
Contudo apesar da igualdade entres esses e da expectativa de um legado que deve ser
continuado Aacutejax eacute preterido por parte dos Argivos sobretudo dos Atridas os quais conferem
a Odisseu as armas do Pelida imputando agravequele o oproacutebrio Essa referecircncia agrave desonra eacute
evidente pois o termo expresso para designar sua condiccedilatildeo eacute aacutetimos (ἄτιμος) cuja definiccedilatildeo eacute
propriamente ldquodesonradordquo e que tem origem no vocaacutebulo timeacute A concepccedilatildeo desse leacutexico
como jaacute vimos anteriormente torna mais significativa a situaccedilatildeo em que se encontra o
personagem por dois motivos
O primeiro eacute que situa o heroacutei na mesma posiccedilatildeo de Aquiles quando da querela entre
este e Agamecircmnon no Canto I da Iliacuteada O Pelida eacute entatildeo o modelo do heroacutei de Salamina
pois quando a deliberaccedilatildeo do grande chefe dos gregos impotildee a subtraccedilatildeo de Briseida e sendo
esta um precircmio de distinccedilatildeo um geacuteras (γέρας) isso representa o natildeo reconhecimento dos
feitos que lhe creditaram tal honraria Assim o filho de Peleu se reconhece como desonrado
aacutetimos (ἄτιμος v 171) uma vez que lhe eacute negado o privileacutegio material que representa sua
excelecircncia beacutelica Natildeo por acaso Soacutefocles toma o modelo de Homero pois laacute estatildeo os
paradigmas da honra e da ira que acomete o heroacutei e que para Aacutejax justificam seu
comportamento Por isso a menccedilatildeo parece direta visto que o vocaacutebulo eacute sobretudo o mesmo
e se trata a priori da mesma problemaacutetica acerca da honra Aquiles se nomeia assim uma vez
O Telamocircnio o faz duas uma na passagem acima e outra em fala anterior no verso 426 Essa
retomada do episoacutedio da Iliacuteada por parte do Telamocircnio faacute-lo se identificar ao Pelida natildeo soacute
por sentir-se subtraiacutedo em seus privileacutegios mas tambeacutem porque no episoacutedio homeacuterico que
representa o passado para o contexto da obra Agamecircmnon eacute visto como tendo cometido um
excesso uma hyacutebris de modo que por ele foram feitas uma reparaccedilatildeo e uma declaraccedilatildeo de
erro mesmo que de forma mitigada e relativizada pela accedilatildeo sempre presente dos deuses O
modelo que parece evidente entatildeo eacute tomado como base para a confianccedila que o heroacutei deposita
em seu proacuteprio julgamento pois segundo tais consideraccedilotildees somo levados a crer em sua
perspectiva particular que essa seria uma segunda vez que tal excesso aconteceria por parte
do chefe o que justifica o ataque noturno que buscava natildeo soacute a vinganccedila prevenindo outra
desonra (ἀτιμάσουσ` v 98) como tambeacutem procurava impedir que novamente a outro homem
isso se sucedesse (v 448-449)
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O segundo motivo pelo qual o vocaacutebulo aacutetimos eacute significativo estaacute inserido no acircmbito
da superestima da honra do heroacutei Na verdade parece mais evidenciar o contraste entre um
ideal arcaico de honra individual cujo modelo eacute o protagonista e um claacutessico ateniense do
seacuteculo V a C em que o coletivo e a igualdade tecircm soberania cujo modelo eacute Odisseu Dessa
forma a oposiccedilatildeo de caraacuteter serve como alegoria para o contraste entre esses dois ideais Tal
imagem eacute posta pelo proacuteprio heroacutei que coerente com sua linhagem de legado heroico opotildee
vaacuterios elementos de forma dicotocircmica atribuindo o valor a um deles e depreciando o outro
Parece-nos que ele confronta os seguintes elementos poder de excelecircncia guerreira κράτος
ἀριστείας (v 443) e prudecircncia φρένας (v 445) faccedilanhas fiacutesicas (do braccedilo) ἔργα χειρὸς (v
439) a qual se liga aos feitos fiacutesicos da maior virtude ἔργα χεροῖν μεγίστας ἀρετᾶς (v 616-
617) e habilidade ou astuacutecia παντουργῷ (v 445) heroacutei ἀνδρὸς (v 446) e homem φωτί (v
445) julgar κρίνειν (v 443) e decidir por votos ἐψήφισαν (v 449) Aquiles Ἀχιλλεὺς (v
442) e Atridas Ἀτρεῖδαι (v 445) Em que os primeiros elementos se ligam ao ideal arcaico
ou seja individual e beacutelico e os segundo ao claacutessico coletivo e de valores ligados agrave
temperanccedila e agrave mente
Destacamos no fragmento estudado que o heroacutei apresenta um discurso de lamento e de
oacutedio pelo qual atribui um sentido de injusticcedila ao resultado sobretudo pelo fato de seus
princiacutepios estarem orientados pelo ideal homeacuterico Como sabemos que a peccedila contrapotildee
moderaccedilatildeo sophrosyacutene e desmesura hyacutebris como reflexo da relaccedilatildeo dicotocircmica que demarca
o limite entre o civilizado e o baacuterbaro (BACELAR 2006 p 216-217) Aacutejax que em tudo se
excede das emoccedilotildees aos atos e preso aos seus valores eacute incapaz de reconhecer a derrota
como um resultado justo Assim seus feitos e sua supremacia fiacutesica natildeo podem ser superados
pela muacuteltipla habilidade e pela astuacutecia de Odisseu Por isso ao nosso ver o Telamocircnio parece
conferir superioridade ao vocaacutebulo heroacutei ἀνήρ em detrimento de homem φώς como se o
primeiro refletisse a distinccedilatildeo e singularidade dos chefes do mundo arcaico e o segundo uma
inferioridade daqueles para os quais se impotildee a submissatildeo e como veremos mais agrave frente um
dos sentidos do vocaacutebulo sophrosyacutene e seus derivados na peccedila significado evidente nas
palavras do protagonista e de Agamecircmnon Isso explica porque em uma visatildeo arcaica um soacute
julgaria κρίνω melhor do que vaacuterios que decidissem por votos ψηφίζω uma vez que o juiz
uacutenico teria mais meacuterito e honra sendo o melhor dos Aqueus o proacuteprio Aquiles Os Atridas
representariam essa coletividade inadequada para a figura do heroacutei tanto por terem
convocado essa deliberaccedilatildeo coletiva quanto pela expressatildeo do nuacutemero plural do patroniacutemico
utilizado
70
Para o personagem o julgamento em si parece carecer de justiccedila pois fere sua
excelecircncia guerreira e a distinccedilatildeo dos maiores e por isso justifica o ato violento contra essa
coletividade Seu excesso fica evidente em suas palavras pois seu arrependimento reside no
fracasso da empreitada que foi desviada de seu propoacutesito por accedilatildeo divina e natildeo em si pelo
ato que teria executado contra seus recentes inimigos os gregos A gravidade de seu ato eacute
senatildeo uma reaccedilatildeo equivalente agrave compreensatildeo da grandeza de sua desonra retirando-se daiacute
logicamente a selvageria que segue agrave vinganccedila pois essa como tentaremos apontar tem
origem na accedilatildeo divina
Essa supremacia guerreira do protagonista tambeacutem estaacute evidente na segunda parte da
peccedila apoacutes a sua morte Neste momento natildeo mais alimenta sua ira seu oacutedio e seus atos mas
justifica a defesa de Teucro em relaccedilatildeo ao seu funeral e tudo o que isso representa Seu irmatildeo
o faz contra Menelau e Agamecircmnon mas eacute Odisseu quem demove este uacuteltimo do seu
propoacutesito Como bem aponta na peccedila Jacqueline de Romilly ldquoas exigecircncias morais vecircm
contrariar as da disciplinardquo (2013 p 88) por isso o irmatildeo do suicida se impotildee a realizar os
ritos independente das consequecircncias reconhecendo no morto um heroacutei contrariando as
exigecircncias requeridas pelo comando dos Atridas Esses diaacutelogos contrapotildeem pensamentos
distintos e renitentes nos quais a admiraccedilatildeo eacute veementemente respondida com vinganccedila e a
gratidatildeo com direitos da autoridade (Ibidem p 88) Isso ressalta o delineamento dos
caracteres dos personagens fazendo-os obstinados em seus ideais a ponto de se desafiarem
com palavras agressivas Contudo ao caraacuteter excessivo dos Atridas e de Teucro que fixa na
segunda parte trageacutedia a forte recorrecircncia da hyacutebris opotildee-se a conduta moderada de Odisseu
de coerente unidade no proacutelogo e no ecircxodo Em sua uacuteltima cena este apresenta de forma
expliacutecita o valor do protagonista denominando-o o melhor dos aqueus depois de Aquiles
Esse reconhecimento do Laertida demarca juntamente com o do coro o qual expomos acima
os dois momentos da peccedila em que a caracterizaccedilatildeo direta retoma o estilo proacuteprio dos moldes
eacutepicos a descriccedilatildeo sinteacutetica de um conjunto de caracteriacutesticas por meio da utilizaccedilatildeo do
epiacuteteto Essa foacutermula coroa o discurso que concentra os grandes argumentos em defesa dos
rituais fuacutenebres do personagem e de onde seguiraacute o debate que desencadearaacute a permissatildeo de
Agamecircmnon para realizaacute-los por mais que este vencido faccedila-o alegando ter sido um ato em
favor da amizade ao heroacutei de Iacutetaca Vejamos os versos
[Οδ] Ἄκουέ νυν Τὸν ἄνδρα τόνδε πρὸς θεῶν μὴ τλῇς ἄθαπτον ὧδ ἀναλγήτως βαλεῖνmiddot μηδ ἡ βία σε μηδαμῶς νικησάτω τοσόνδε μισεῖν ὥστε τὴν δίκην πατεῖν 1335
71
Κἀμοὶ γὰρ ἦν ποθ οὗτος ἔχθιστος στρατοῦ ἐξ οὗ κράτησα τῶν ᾿Αχιλλείων ὅπλωνmiddot ἀλλ αὐτὸν ἔμπας ὄντ ἐγὼ τοιόνδ ἐμοὶ οὐκ ἀντατιμάσαιμ ἄν ὥστε μὴ λέγειν ἕν ἄνδρ ἰδεῖν ἄριστον ᾿Αργείων ὅσοι 1340 Τροίαν ἀφικόμεσθα πλὴν ᾿Αχιλλέως ῞Ωστ οὐκ ἂν ἐνδίκως γ ἀτιμάζοιτό σοιmiddot οὐ γάρ τι τοῦτον ἀλλὰ τοὺς θεῶν νόμους φθείροις ἄν Ανδρα δ οὐ δίκαιον εἰ θάνοι βλάπτειν τὸν ἐσθλόν οὐδ ἐὰν μισῶν κυρῇς15 1345
(Aias v 1332-1345)
O discurso do heroacutei de Iacutetaca retoma explicitamente a foacutermula das epopeias homeacutericas
ἄριστον Ἀχαίων para a caracterizaccedilatildeo do protagonista cuja primazia eacute excetuada de forma
conhecida apenas por Aquiles πλὴν Ἀχιλλέως O proacuteprio arguidor reconhece que isso natildeo
pode deixar de ser mencionado sobretudo em relaccedilatildeo aos fatos passados que se referem a
episoacutedios externos agrave peccedila e presentes na Iliacuteada Assim tais feitos de outrora natildeo podem ser
apagados pelos mais recentes Com efeito quanto aos feitos satildeo possiacuteveis de distinguir duas
condutas de Aacutejax uma antes da disputa pelas armas de Aquiles e outra desde que aquele
heroacutei foi derrotado Os versos 1336-1337 marcam bem essa distinccedilatildeo especialmente pela
separaccedilatildeo delimitada aos dois comportamentos a partir da partiacutecula ἐξ cujo sentido como
preposiccedilatildeo ou adveacuterbio eacute precisamente esse de separaccedilatildeo e de afastamento Essa passagem eacute
extremamente significativa pois nos mostra o iacutempeto do Telamocircnio diante de seus
adversaacuterios Quando se direcionava aos Troianos os gregos o distinguiam como o melhor
depois do Pelida mas quando se direcionou aos proacuteprios gregos se tornou natildeo meramente um
inimigo pois pessoalmente para Odisseu o heroacutei era o maior inimigo ou o mais odiado da
tropa ἔχθιστος στρατοῦ Tal inversatildeo eacute expressiva do iacutempeto do personagem pois esse
reconhecimento lhe atribui sempre uma posiccedilatildeo distintiva de superioridade de modo que na
unidade literaacuteria do texto tal caraacuteter eacute exposto por meio de superlativos ἄριστον ao heroacutei de
outrora ἕν ἄνδρ e ἔχθιστος apoacutes a disputa pelas armas A gravidade da desonra que alimenta
a intensidade da ira se explica como jaacute vimos pelo natildeo reconhecimento de sua virtude
guerreira O protagonista confere o resultado a um julgamento decidido por votos que visava
distinguir o possuidor de valores natildeo guerreiros mas relacionados agrave prudecircncia e agrave astuacutecia
15
[Od] Escuta agora Pelos deuses natildeo este heroacutei te atrevas a atirar insepulto assim impassivelmente A violecircncia natildeo te venccedila de alguma maneira a odiar tanto de modo a pisar a justiccedila (v 1335) Pois tambeacutem para mim era este o maior inimigo da tropa desde que a ele sobressaiacute por causa das armas de Aquiles Mas mesmo sendo tal para mim eu natildeo reagiria o desonrando de modo a natildeo dizer ver no antigo heroacutei o melhor dos Argivos (v 1340) quantos a Troia chegamos com exceccedilatildeo de Aquiles De maneira que natildeo justamente seria desonrado por ti pois natildeo seria este o que destruirias mas as leis dos deuses Heroacutei natildeo eacute justo se morrer prejudicar [sendo ele] valoroso nem ainda se odiando te encontrares (v 1345)
72
Contudo a visatildeo do Laertida eacute diferente pois alega ter sobrepujado o adversaacuterio κράτησα
Esse verbo empregado pelo personagem tem origem no vocaacutebulo forccedila poderio kraacutetos
(κράτος) usado por Aacutejax duas vezes nos fragmentos estudados nos versos 443 e 446 quando
o heroacutei atribuiacutea a si a supremacia guerreira Assim ao declarar ter superado o protagonista
sobretudo pelo uso do verbo em especial Odisseu evidencia o pensamento contraacuterio dos
chefes gregos sobre o confronto e sobre o grau de injusticcedila que o derrotado afere ao
resultado pois o Laertida teria se mostrado mais poderoso do que o Telamocircnio tal qual vimos
ocorrer nos jogos em homenagem a Paacutetrocles no Canto XXIII da Iliacuteada Essa declaraccedilatildeo no
contexto da peccedila reflete a crenccedila dos gregos sobre o evento e tal disposiccedilatildeo representa para
Aacutejax senatildeo uma injuacuteria direta aos seus valores implicando por consequecircncia a grandeza do
oacutedio e da ira que consome o personagem a ponto de inverter sua posiccedilatildeo diante dos gregos de
maior protetor a maior agressor Certamente essas palavras sobre a disputa natildeo agradariam o
protagonista e por isso tambeacutem Teucro posteriormente impede aquele de participar dos
ritos fuacutenebres do irmatildeo acreditando estar o ofendendo
Com efeito o oacutedio eacute reciproco entre os Atridas e o Telamocircnio uma vez que isso estaacute
expliacutecito natildeo soacute nos atos daqueles conjecturaacutevel pelo proacuteprio impedimento dos funerais mas
tambeacutem nos argumentos daquele que defende o morto Para o arguidor de Iacutetaca embora
Agamecircmnon esteja tomado de oacutedio (μισεῖν μισῶν v 1335 e 1345) e que odiar em alguns
momentos seja adequado (μισεῖν καλόν v 1347) impedir ritos fuacutenebres natildeo eacute justificaacutevel por
dois motivos O primeiro por questotildees religiosas pois o ato eacute visto como um desrespeito agraves
leis dos deuses O segundo por questotildees de honra de timeacute Tendo executado grandes
faccedilanhas que explicam sua supremacia o heroacutei morto eacute visto como valoroso ἐσθλόν natildeo
sendo justo οὐ δίκαιον οὐκ ἐνδίκως algueacutem lesaacute-lo de maneira alguma especialmente
desonrando ἀντατιμάσαιμ Por isso mesmo que tenha sido um homem hostil (ἐχθρὸς ἀνήρ
v 1355) ou ainda um morto inimigo (ἐχθρὸν [] νέκυν v 1356) sua virtude guerreira
triunfa sobre sua inimizade sua hostilidade (νικᾷ γὰρ ἁρετή με τῆς ἔχθρας πολύ v 1357)
Odisseu sendo visto como o maior inimigo de Aacutejax reconhece a excelecircncia e a primazia
deste como tambeacutem agora o seu valor guerreiro que triunfa sobre todas as accedilotildees depreciadas
pelos gregos nomeadamente ἀρετή
Eacute fato que Agamecircmnon reluta em permitir os funerais sobretudo pela sua autoridade
pois mesmo conferindo ao seu agressor o status de homem valoroso (ἐσθλόν ἄνδρα v 1352)
conforme os argumentos de Odisseu a todo heroacutei que possui essa posiccedilatildeo eacute necessaacuterio
obedecer aos que estatildeo no poder (κλύειν [] χρὴ τῶν ἐμ τέλει v 1352) uma referecircncia ao
excesso de Aacutejax que o impede de dobrar-se Como algo bem proacuteprio agrave unidade da peccedila a
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concessatildeo do chefe eacute feita entatildeo tambeacutem segundo o reconhecimento de uma primazia Neste
caso em relaccedilatildeo ao modelo de moderaccedilatildeo ao Laertida e eacute em especial conveniente entender
aqui tambeacutem o ato de se submeter A permissatildeo eacute conferida a este que eacute visto na perspectiva
do Atrida como o maior amigo entre os Argivos (φίλον [] μέγιστον Ἀργείων v 1331)
Novamente mais um superlativo μέγιστον na descriccedilatildeo dos personagens da peccedila dos quais
abundam os excessivos por isso parece-nos que tal heroacutei eacute o mais amigo por ser o mais
moderado e consequentemente o que mais reconhece a hierarquia e a ela se submete apesar
de a cena em questatildeo natildeo retratar isso Validamente o excesso compotildee a unidade da obra em
oposiccedilatildeo agrave moderaccedilatildeo o que explica a perspectiva radical dos caracteres que soacute reconhecem
posiccedilotildees extremas seja ou a do melhor amigo ou a do pior inimigo como eacute o caso de Aacutejax e
Agamecircmnon o qual mesmo concedendo agravequele os ritos fuacutenebres em contraste a Odisseu o
percebe mesmo morto como o mais hostil e maior inimigo (ἔχθιστος v 1373)
Contrariamente a essa perspectiva o heroacutei modelo de comedimento sabe reconhecer aleacutem das
duas condutas do Telamocircnio a anterior e a posterior agrave disputa pelas armas de Aquiles uma
retratando o maior guerreiro e outra o maior inimigo tambeacutem reconhece uma nova posiccedilatildeo
pois morto o personagem retoma o caraacuteter de outrora por isso o corpo eacute referido pelo seu
defensor como um cadaacutever virtuoso (ἀλκίμῳ νεκρῷ v 1319) Esse reconhecimento de meacuterito
eacute sobretudo de caraacuteter fiacutesico pois remete aos feitos beacutelicos executados em prol dos argivos
Conveacutem lembrarmos o que jaacute dissemos sobre esse adjetivo aacutelkimos (cf p 18) o iacutempeto de
enfrentar sem retroceder diante dos inimigos natildeo cedendo aos seus ataques mas firmemente
mantendo-se nos combates Parece-nos que o adjetivo retoma tais atos do protagonista em
especial pelo fato de alguns desses eventos serem referidos em analepse pelo irmatildeo do
protagonista em defesa do cadaacutever Contudo apesar de os argumentos de Teucro focarem no
caraacuteter natildeo submisso de seu irmatildeo diante dos chefes os eventos parecem realccedilar uma virtude
defensiva do heroacutei que lhe impotildee um status de protetor sobretudo em oposiccedilatildeo ao de
agressor quando tomada de ira apoacutes a disputa Essa virtude expressa pela αλκή nos parece na
peccedila senatildeo defensiva e coerente com o episoacutedio anterior marcando o duplo comportamento
do personagem um anterior e externo agrave trageacutedia e outro presente e interno Vejamos a
analepse
[Τεῦ] ῏Ω πολλὰ λέξας ἄρτι κἀνόητ ἔπη οὐ μνημονεύεις οὐκέτ οὐδέν ἡνίκα ἑρκέων ποθ ὑμᾶς οὗτος ἐγκεκλῃμένους ἤδη τὸ μηδὲν ὄντας ἐν τροπῇ δορὸς 1275 ἐρρύσατ ἐλθὼν μοῦνος ἀμφὶ μὲν νεῶν ἄκροισιν ἤδη ναυτικοῖς ἑδωλίοις
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πυρὸς φλέγοντος εἰς δὲ ναυτικὰ σκάφη πηδῶντος ἄρδην ῞Εκτορος τάφρων ὕπερ Τίς ταῦτ ἀπεῖρξεν οὐχ ὅδ ἦν ὁ δρῶν τάδε 1280 ὃν οὐδαμοῦ φῂς οὗ σὺ μή βῆναι ποδί ῏Αρ ὑμὶν οὗτος ταῦτ ἔδρασεν ἔνδικα χὤτ αὖθις αὐτὸς ῞Εκτορος μόνος μόνου λαχών τε κἀκέλευστος ἦλθ ἐναντίος οὐ δραπέτην τὸν κλῆρον ἐς μέσον καθεὶς 1285 ὑγρᾶς ἀρούρας βῶλον ἀλλ ὃς εὐλόφου κυνῆς ἔμελλε πρῶτος ἅλμα κουφιεῖν16
(Aias v 1273-1287)
Esse fragmento retoma os episoacutedios da Iliacuteada presentes no Canto VII quando do
combate singular entre Heitor e Aacutejax e no Canto XII quando dos combates junto ao fosso e
ao muro dos argivos os quais se desenvolvem naqueles que retratam as lutas em torno das
naus os Cantos XIII XIV e XV Aqui podemos ver o destaque para o papel do heroacutei em prol
do Aqueus na guerra de Troia seus dois grandes momentos na epopeia homeacuterica Ambos
terminam com a vitoacuteria do Telamocircnio sobre o Priamida impedindo os avanccedilos dos inimigos
Nesses dois momentos Heitor eacute ferido mas natildeo morto O caraacuteter guerreiro deste heroacutei impotildee
valor aos atos daquele de Salamina mas sobretudo acerca de uma perspectiva defensiva pois
os episoacutedios ressaltam seu papel de refreador dos assaltos de protetor O verbo ἀπεῖρξεν tem
exatamente o sentido de conter suster repelir impedir Teucro de forma significativa atribui
ao irmatildeo um poder de contenccedilatildeo expressivo pois se relaciona necessariamente agrave repulsatildeo ao
maior guerreiro entre os Troianos o filho de Priacuteamo o qual derrotado duas vezes soacute poderia
ser morto por Aquiles uacutenico cuja excelecircncia guerreira supera a de Aacutejax Mesmo que natildeo seja
o objetivo dos argumentos reforccedila-se aqui novamente a oposiccedilatildeo entre as condutas agressoras
e protetoras uma vez que se reitera na segunda parte da peccedila mais uma vez a virtude
defensiva do heroacutei Lembremos que o proacuteprio protagonista jaacute havia assim se referido no verso
439 ldquotendo resistido com feitos natildeo menores de minha matildeordquo (οὐδ ἔργα μείω χειρὸς ἀρκέσας
ἐμῆς) O particiacutepio aoristo que tem origem no verbo ἀρκέω cujo significado eacute repelir resistir
estaacute sobretudo dentro da obra validamente no campo semacircntico de ἀπεῖρξεν contribuindo
16
[Teu] Haacute pouco tendo tido muitas e irracionais palavras natildeo relembras nada de maneira alguma quando certa vez a voacutes encerrados nas paliccediladas (v 1275) jaacute natildeo sendo nada em fuga da lanccedila este tendo chegado sozinho resgatou entre as altas tendas naacuteuticas dos navios jaacute inflamando-se o fogo e em direccedilatildeo agraves quilhas naacuteuticas se lanccedilando Heitor ao alto sobre o fosso Quem essas coisas conteve Natildeo era este aquele que executava essas (v 1280) Este de quem tu dizes de maneira alguma natildeo marchou com peacute Acaso este executou essas coisas sentenciadas por voacutes E quando ele de novo sozinho contra Heitor sozinho tendo obtido por sorte e natildeo ordenado foi agrave frente natildeo tendo lanccedilado no meio [do sorteio] uma pedra fugitiva (v 1285) torratildeo de terra molhada mas aquele de elmo de belo penacho estava destinado a primeiro erguer-se com salto
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tanto para o reforccedilo de seu atributo guerreiro defensivo quanto para o contraste da dupla
conduta do protagonista ora agressor ora protetor
Contudo esses versos a partir dos propoacutesitos de Teucro tambeacutem nos revelam indiacutecios
textuais que validam a sobrevalorizaccedilatildeo da honra do heroacutei Eacute notoacuterio na obra que o
protagonista repudia a submissatildeo em favor de um soberano acima dele mesmo Esses versos
corroboram tal fato pois apresentam seu irmatildeo defendendo o cadaacutever vendo neste tambeacutem
nenhuma subordinaccedilatildeo Haacute algumas passagens que apontam isso Reforccedila-se por exemplo
que as accedilotildees em defesa dos navios natildeo foram por Agamecircmnon sancionadas (ἔνδικα v 1282)
e que o heroacutei no combate singular contra Heitor natildeo foi ordenado (κἀκέλευστος v 1284)
mas sorteado (λαχών v 1284) Isso confirma o que ele mesmo havia alegado a Menelau no
episoacutedio anterior Naquele momento defendia que o irmatildeo viera como sendo dono de si
(αὑτοῦ κρατῶν v 1099) mas obrigado a ir agrave guerra apenas por causa dos juramentos (οὔνεχ`
ὅρκων [] ἐπώμοτος v 1113) O particiacutepio que marca o domiacutenio sobre si e a autonomia
frente aos outros chefes eacute formado a partir verbo denominativo κρατέω cuja origem eacute κράτος
vocaacutebulo usado por duas vezes por Aacutejax para evidenciar seu poderio guerreiro em seu
discurso anteriormente analisado Essa forma nominal do verbo referida por seu irmatildeo
reforccedila o fato de que o Telamocircnio realmente se via autocircnomo indiferente agrave autoridade de
outrem Por isso mais do que retomar a guerra de Troia sob o vieacutes da tradicional
hospitalidade Soacutefocles impotildee ao heroacutei e agrave trama a justificativa da coalizatildeo grega a partir do
juramento feito a Tiacutendaro pai de Helena17 Seria esse fato que o protagonista da trageacutedia
nomeia de terriacutevel juramento (δεινὸς ὅρκος v 649) sobretudo porque inserido no discurso
em que decide se suicidar ele reconhece nada valer tal compromisso diante da instabilidade
do mundo que haacute pouco se faz conhecer ao personagem Para o suicida o ato de jurar
representa um ato permanente firme e estaacutevel tal como a sua visatildeo e suas crenccedilas e a
instabilidade do mundo invalida qualquer juramento
Esse pensamento autocircnomo do heroacutei eacute pertinente e recorrente na peccedila fazendo-nos
perceber que tal caracteriacutestica fundamenta a superestima do seu valor e consequentemente de
sua honra diante da de outrem Por reforccedilo a isso os atos do heroacutei relatados por Teucro aleacutem
de evidenciar a autoridade sobre si destacam na execuccedilatildeo dos feitos guerreiros a ideia de que
o heroacutei os realizou de forma solitaacuteria ou seja sozinho Acerca disso destacamos nesse
17 Essa tradiccedilatildeo adota como motivo que levou vaacuterios chefes gregos para a guerra de Troia o fato de Tiacutendaro ter feito todos os pretendentes agrave matildeo de Helena sua filha jurarem socorrer o eleito por ela como marido caso fosse necessaacuterio uma vez que sendo muitos os candidatos o pai temia o descontentamento de alguns gerar possiacutevel conflito (GRIMAL 2005 p 197) Seria esse o juramento visto como um ato religioso e moral que fora invocado por Menelau que constrange vaacuterios heroacuteis a partir em busca de Helena
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fragmento os adjetivos vinculados ao personagem os quais expressam essa ideia μοῦνος (v
1276) e μόνος (v 1283) Essa caracteriacutestica eacute tatildeo relevante na peccedila que muitas das accedilotildees
internas agrave trama procedem destacadas da mesma forma A exemplo do proacutelogo no qual o
ataque aos chefes eacute referido como solitaacuterio executado pelo heroacutei sozinho μόνον (v 29)
μόνος (v 47) No primeiro episoacutedio Tecmessa confirma tal procedimento solitaacuterio nos atos
μόνος (v 294) e proacuteprio heroacutei reflete na possibilidade de natildeo se matar e se lanccedilar soacute para
morrer belamente μόνος (v 467) Esse fato dentro da obra fundamenta duas razotildees
A primeira serve para evidenciar o isolamento moral do personagem fazendo-o o
uacutenico entendedor de sua perspectiva e de seus ideais e por isso afastando de si inclusive os
seus proacuteximos como bem aponta Jacqueline de Romilly (2013 p 94) Soacutefocles torna essa
solidatildeo ainda mais evidente pois recorre ldquoa um processo completamente extraordinaacuterio o
proacuteprio coro se retirou Aacutejax morre assim numa solidatildeo total e feita sensiacutevelrdquo (Ibidem p
94) Os soldados de Salamina assim agem pois reconhecem essa natureza do heroacutei sobretudo
na peccedila em que o descrevem como aquele que sozinho apascenta o pensamento o iacutempeto
(φρένος οἰοβώτας v 614) Por isso a nova entrada do coro eacute nomeada de epipaacuterodo a partir
do verso 866 por alguns tradutores como por exemplo por Flaacutevio Ribeiro de Oliveira
A segunda razatildeo mais importante para esse estudo fundamenta a caracterizaccedilatildeo do
protagonista sob a perspectiva de que tal isolamento nos atos beacutelicos reflete a confianccedila que
deposita em si e em sua excelecircncia guerreira a ponto de essa conduta se tornar um excesso
uma hyacutebris mais propriamente uma soberba κόμπος uma empaacutefia ὄγκρος Vaacuterios derivados
desses vocaacutebulos e outros inseridos no mesmo campo semacircntico satildeo referidos recorrentes na
peccedila sobretudo na voz de Atena e do mensageiro que traz a palavra do adivinho grego
Calcas a fim de evidenciar o aspecto negativo e funesto desse comportamento Ao fim do
proacutelogo a proacutepria deusa condena esse ato concluindo seu pensamento em uma maacutexima na
qual censura tanto uma jactacircncia aos deuses (ὑπέρκοπον [] ἐς θεοὺς ἔπος v 127-128)
quanto a vangloacuteria (ὄγκρον v 129) sobre outro inclusive como eacute o caso do protagonista se
algueacutem prevalece pelo braccedilo (χειρὶ βρίθεις v 130) A confianccedila em seu valor eacute tamanha que
o personagem acredita alcanccedilar a gloacuteria (κλέος v 769) privado de qualquer ajuda (κείνων v
769) ou seja sozinho sobretudo diferentemente daqueles que triunfam (κρατεῖν v 756) com
um deus ao lado (σὺν θεῷ v 765) Em analepse o mensageiro se refere a esse ato do heroacutei
como excessivo pela soberba (ὑψικόμπως ἐκόμπει v 766 770) Por isso de forma
significativa tambeacutem no proacutelogo o heroacutei se vangloria de seus atos (κόμπος v 96) sobre os
chefes mesmo que tais sejam considerados maus (κακόν v 109) pela deusa
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Com efeito essa superestima de seu valor o faz entender que sua honra e tudo aquilo
que ela representa foram conspurcados e negados tanto quanto a posiccedilatildeo do heroacutei arcaico e
seu caraacuteter individual foram insultados Seguindo as premissas eacutepicas das epopeias homeacutericas
sua honra eacute individual bem como suas accedilotildees satildeo solitaacuterias dessa forma sua virtude tambeacutem o
eacute pois eacute ele que deteacutem a supremacia guerreira apoacutes a morte de Aquiles apenas ele domina o
topo dessa excelecircncia Por isso satildeo vaacuterias as referecircncias ao seu valor guerreiro ao longo da
trageacutedia as quais potildeem ecircnfase em sua accedilatildeo solitaacuteria e individualista a fim de fundamentar a
sua empaacutefia Esta conduta que tem reforccedilo tanto internamente ao enredo da peccedila como eacute o
caso do episoacutedio do proacutelogo referido acima quanto externamente como eacute o caso em
analepse tambeacutem supracitado Algo significativo para isso eacute o fato de o suiciacutedio ser encarado
como seu uacuteltimo ato de coragem e de excelecircncia pois como jaacute vimos foi executado pelo
heroacutei sozinho afastado inclusive do coro de forma expressiva tanto retomando como modelo
os eacutepicos combates singulares quanto revelando seu caraacuteter e sua iacutendole individual e arcaica
considerada nefasta para a Atenas claacutessica em que a coletividade e a igualdade preponderam
na poacutelis
De forma vaacutelida a ira do heroacutei soacute existe segundo a profunda desonra em que se
encontra A desonra existe segundo os seus valores natildeo reconhecidos pelos seus iguais
Assim quanto mais excelente eacute o valor do heroacutei mais grave eacute sua desonra e por
consequecircncia mais pesada a ira que move o heroacutei a cometer atos igualmente excessivos
Aleacutem disso podemos observar que na segunda parte da peccedila retoma-se sobretudo sua
excelecircncia guerreira sob um vieacutes significativamente protetor uma vez que isso serve como
contraponto em relaccedilatildeo agrave primeira parte da obra em que Aacutejax eacute caracterizado como iracundo
Este estado entatildeo sustenta sua posiccedilatildeo natildeo defensiva do ponto de vista dos seus aliados mas
claramente agressiva pois ele se torna o maior inimigo dos gregos Com efeito sua
excelecircncia guerreira serve duplamente para a trageacutedia por um lado fundamenta a intensidade
da ira de acordo com o que dissemos acima e por outro de qualidade defensiva reabilita o
seu valor como heroacutei Essa virtude logo serve para opor as duas condutas do heroacutei diante dos
gregos opostas entre si hostil quando da depreciaccedilatildeo da mesma e protetora quando do
reconhecimento e por isso justifica a percepccedilatildeo da loucura oriunda da deusa como um
impulso para fazer o personagem agir por intervenccedilatildeo de Atena de forma excessivamente
agressiva e selvagem contrariamente agrave sua natural iacutendole a qual parece ser inerentemente
protetora
A virtude do heroacutei entatildeo eacute apresentada preponderantemente em analepse seja a
partir de narraccedilotildees de seus feitos passados em relaccedilatildeo ao momento da peccedila e por isso vistos
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como uma caracterizaccedilatildeo indireta seja a partir da menccedilatildeo ao seu epiacuteteto homeacuterico melhor
dos Aqueus depois de Aquiles que expressa claramente uma descriccedilatildeo com fins de
caracterizaccedilatildeo direta sobretudo pelo seu procedimento estaacutetico que se opotildee ao dinacircmico das
narrativas de suas proezas fiacutesicas A forccedila maior desse traccedilo do heroacutei parece estar sobretudo
na soberba com qual enxerga esse valor pois essa disposiccedilatildeo reforccedila a causalidade interna da
obra uma vez que a virtude depreciada eacute quem impulsiona a ira do personagem como vimos
acima Com efeito de tudo isso se depreende o papel estrutural da virtude do heroacutei dentro da
peccedila figurando tambeacutem um de seus elementos fundamentais para o eixo semacircntico da obra
2 1 2 Χόλος a ira do heroacutei na perspectiva grega
Observaremos agora como a ira do heroacutei compotildee o enredo da obra estruturalmente
seja a partir de uma caracterizaccedilatildeo direta ou indireta fundamentando tanto suas accedilotildees internas
quanto as externas aos limites da peccedila Para esse entendimento deve-se reconhecer o iniacutecio da
peccedila in medias res e agrave referecircncia da trageacutedia ao episoacutedio homeacuterico da Odisseia cujo
personagem Aacutejax ainda persiste em sua ira
Iniciemos a anaacutelise pelos fragmentos em que estatildeo expressas as duas menccedilotildees diretas
agrave ira do personagem choacutelos18 (χόλος) uma presente no proacutelogo e outra no terceiro
episoacutedio correspondentes respectivamente agraves falas de Atena e do Coro Essas menccedilotildees
representam a caracterizaccedilatildeo do tipo direta Como veremos mais adiante a primeira
representa seu rancor aos chefes gregos e a segunda aos deuses sobretudo agrave uacutenica deusa
presente na peccedila como personagem Cada uma das anaacutelises dessas duas menccedilotildees seraacute seguida
de um estudo de fragmentos que correspondem a discursos do Telamocircnio e que apresentam
ainda a coacutelera do heroacutei sendo identificada atraveacutes de suas declaraccedilotildees Essas passagens
representam a caracterizaccedilatildeo do tipo indireta O primeiro inserido no primeiro episoacutedio
compreende os versos 457 a 472 478 a 480 e o segundo no segundo episoacutedio os versos 654
a 660 Essas passagens sintetizam a unidade textual desenvolvida sobre a ira na caracterizaccedilatildeo
do heroacutei uma vez que espaccediladas na peccedila apresentam tal sentimento do personagem na 18
Segundo o que dissemos anteriormente (cf p 27-28) assemelhamos sob o sentido de ira os termos choacutelos (χόλος) presente em Homero e em Soacutefocles e orgeacute (ὀργή) presente em Aristoacuteteles que acerca desse sentimento diz ldquoira eacute um desejo de vinganccedila expliacutecita com a participaccedilatildeo do sentimento de dor por causa de expliacutecita desestima (ὀργὴ ὄρεξις μετὰ λύπης τιμωρίας [φαινομένης] διὰ φαινομένην ὀλιγωρίαν Retoacuterica 1378a 30-31) Segundo ainda esse mesmo autor eacute essa desestima por parte de Agamecircmnon que implica o estado de desonra de Aquiles no Canto I da Iliacuteada e justifica o estado iracundo (ὀργιζόμενος) desse heroacutei (Ibidem 1378b 29-34) Como jaacute pontuamos esse tambeacutem eacute o caso de Aacutejax uma vez que sobre a problemaacutetica da honra o episoacutedio do Pelida lhe serve como modelo
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perspectiva de vaacuterios outros personagens muitas vezes atraveacutes de leacutexico variado como
veremos adiante Ainda assim durante esse momento seraacute possiacutevel apresentar outros
fragmentos isolados como contraponto ou reforccedilo para confirmar determinadas anaacutelises
Comecemos o estudo da ira analisando os versos abaixo presente no proacutelogo da peccedila
[ΟΔ] Καὶ νῦν ἐπέγνως εὖ μ ἐπ ἀνδρὶ δυσμενεῖ βάσιν κυκλοῦντ Αἴαντι τῷ σακεσφόρῳmiddot κεῖνον γάρ οὐδέν ἄλλον ἰχνεύω πάλαι 20 Νυκτὸς γὰρ ἡμᾶς τῆσδε πρᾶγος ἄσκοπον ἔχει περάνας mdash εἴπερ εἴργασται τάδεmiddot ἴσμεν γὰρ οὐδὲν τρανές ἀλλ ἀλώμεθαmiddot κἀγὼ θελοντὴς τῷδ ὑπεζύγην πόνῳ ᾿Εφθαρμένας γὰρ ἀρτίως εὑρίσκομεν 25 λείας ἁπάσας καὶ κατηναρισμένας ἐκ χειρὸς αὐτοῖς ποιμνίων ἐπιστάταις Τήνδ οὖν ἐκείνῳ πᾶς τις αἰτίαν νέμει Καί μοί τις ὀπτὴρ αὐτὸν εἰσιδὼν μόνον πηδῶντα πεδία σὺν νεορράντῳ ξίφει 30 φράζει τε κἀδήλωσενmiddot εὐθέως δ ἐγὼ κατ ἴχνος ᾄσσω καὶ τὰ μὲν σημαίνομαι τὰ δ ἐκπέπληγμαι κοὐκ ἔχω μαθεῖν ὅτου Καιρὸν δ ἐφήκειςmiddot πάντα γὰρ τά τ οὖν πάρος τά τ εἰσέπειτα σῇ κυβερνῶμαι χερί 35 [ΑΘ] ἔγνων Ὀδυσσεῦ καὶ πάλαι φύλαξ ἔβην τῇ σῇ πρόθυμος εἰς ὁδὸν κυναγίᾳ [ΟΔ] ἦ καί φίλη δέσποινα πρὸς καιρὸν πονῶ [ΑΘ] ὡς ἔστιν ἀνδρὸς τοῦδε τἄργα ταῦτά σοι [ΟΔ] καὶ πρὸς τί δυσλόγιστον ὧδ᾽ ᾖξεν χέρα 40 [ΑΘ] χόλῳ βαρυνθεὶς τῶν Ἀχιλλείων ὅπλων [ΟΔ] τί δῆτα ποίμναις τήνδ᾽ ἐπεμπίπτει βάσιν [ΑΘ] δοκῶν ἐν ὑμῖν χεῖρα χραίνεσθαι φόνῳ [ΟΔ] ἦ καὶ τὸ βούλευμ᾽ ὡς ἐπ᾽ Ἀργείοις τόδ᾽ ἦν [ΑΘ] κἂν ἐξεπράξατ᾽ εἰ κατημέλησ᾽ ἐγώ19 45
(Aias v 18-35)
19[Od] Agora bem me descobriste rondando do homem hostil o passo de Aacutejax portador do escudo Pois este e natildeo outro rastreio recentemente (v 20) Certamente desta noite o ato sem escopo para noacutes tendo terminado ele possui - se realizou isto Pois nada claro sabemos mas erramos e eu me submeti voluntariamente a este trabalho Com efeito encontramos haacute pouco devastados (v 25) e mortos todos os despojos por matildeo junto com os proacuteprios condutores dos rebanhos Entatildeo agravequele todo algueacutem atribui esta causa E para mim testemunha quem tendo contemplado aquele sozinho se lanccedilando nos campos com espada receacutem-molhada (v 30) anuncia e tambeacutem elucidou Imediatamente eu precipito-me sobre o vestiacutegio assinalo umas e outras navego agrave deriva natildeo reconhecendo de quem Chegas em tempo pois tantas vezes antes e tantas vezes agrave frente eu piloto com tua matildeo (v 35) [At] Eu sei Odisseu e recentemente vim a caminho como guardiatilde favoraacutevel de tua caccedilada [Od] Por ventura cara soberana esforccedilo-me a tempo [At] Sim Satildeo para ti os atos deste homem [Od] E a fim de que precipitou a matildeo desta maneira iloacutegica (v 40) [At] Pesado de coacutelera por causa das armas de Aquiles [Od] Para que certamente sobre este rebanho empreende marcha [At] Em voacutes pensando a matildeo manchar de morte [Od] Por acaso essa resoluccedilatildeo seria como isto sobre os argivos [At] E teria executado se eu tivesse descuidado (v 45)
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O vocaacutebulo que evidencia a importacircncia dessa passagem eacute choacutelos (χόλος v 41)
Significa coacutelera oacutedio raiva ou simplesmente ira como jaacute frequentemente utilizamos na
exposiccedilatildeo das anaacutelises Esse eacute o primeiro momento na peccedila em que o estado do personagem
Aacutejax eacute apresentado A caracteriacutestica marcada neste momento eacute exatamente esse sentimento
Poreacutem o vocaacutebulo natildeo vem sozinho pois complementa o particiacutepio aoristo passivo pesado
baryntheacuteis (βαρυνθείς) que se refere ao heroacutei Este particiacutepio estruturado como estaacute parece-
nos apresenta trecircs aspectos importantes da coacutelera do heroacutei
O primeiro distingue essa caracteriacutestica como um estado Este eacute o verbo denominativo
baryacuteno (βαρύνω) proveniente do nome baryacutes (βαρύς) pesado Assim o sentido mais
concreto deste verbo eacute fazer ou tornar pesado grave e por extensatildeo afligir molestar suportar
A forma passiva do aoristo pode expressar um valor no sentido de estado que para noacutes nesta
passagem parece se revelar mais propriamente na estrutura como um predicativo Mesmo
em se tratando de uma expressatildeo nominal de um verbo natildeo haacute como ignorar a passividade do
termo com relaccedilatildeo ao seu complemento no genitivo as armas ou no dativo a coacutelera a qual
sugeriria a um destes complementos o papel de agente ao considerarmos sua noccedilatildeo verbal
Quando a passividade se constroacutei com um complemento que natildeo eacute uma pessoa mas uma
coisa geralmente estrutura-se o mesmo no dativo expressando-se uma ideia de meio e de
causa Eacute interessante observar que a estrutura nominal apresenta os casos dos complementos
nos mesmos da estrutura verbal contudo cabendo a nomenclatura a designaccedilatildeo de
complemento nominal A base loacutegica eacute a mesma Contudo no caso em questatildeo a coacutelera do
personagem parece impelir e comandaacute-lo agindo sobre o personagem e as armas representam
claramente a origem e a causa deste estado em que se encontra o heroacutei pois eacute a partir da posse
das mesmas por Odisseu que tal sentimento decorre Sem isto natildeo haveria a ira Assim ainda
haacute para noacutes uma passividade uma vez que o personagem eacute tomado e dominado por um
sentimento que conduz suas accedilotildees
O segundo aspecto apresenta um caraacuteter de intensidade pois parece natildeo soacute evidenciar
uma ideia de que a coacutelera o domina mas principalmente um estado iracundo profundo
Assim a expressatildeo grega para pesado de ira exprimiria uma maior intensidade agrave proacutepria
condiccedilatildeo coleacuterica enfatizada Para chegarmos a essa comprovaccedilatildeo conveacutem acrescentar o
proacuteprio estado da deusa Atena que persegue Aacutejax devido agrave atitude de desrespeito deste aos
deuses especialmente a ela O vocaacutebulo βαρύς origem do proacuteprio verbo usado na expressatildeo
eacute atribuiacutedo para tambeacutem intensificar a ira da deusa ldquograve ira da deusardquo (μῆνιν βαρεῖαν θεᾶς
v 655 Isso parece se comprovar se observarmos o modo como age o heroacutei no proacutelogo fora
de si descomedido Parece nos ajudar o estudo de Flaacutevio Ribeiro de Oliveira no qual o autor
81
apresenta um personagem agindo como uma fera algo que jaacute comentamos anteriormente nos
trabalhos de Huumlbscher Neste estudo o autor dispotildee como proacuteprio da arte venatoacuteria o
vocabulaacuterio usado por Soacutefocles nesta cena da peccedila O leacutexico apresenta vaacuterias palavras que
retratam o episoacutedio de Odisseu perseguindo os rastros de Aacutejax como o de um caccedilador
acossando uma fera Acrescentando mais alguns aos do autor temos estes ligados ao ato de
Odisseu θηρώμενον que caccedila (v 2) κυνηγετοῦντα que caccedila (v 5) κυναγίᾳ caccedilada (v 37)
ἴχνη ἴχνος rastros (v 6 e 32) ἴχνεύω rastreio (v 20) κυνὸς Λακαίνης [] εὔρινος βάσις
bem-fuccedilante marcha de cadela lacocircnia (v 8) Esse vocabulaacuterio impotildee uma imagem bem
sugestiva e coerente ao episoacutedio pois o Telamocircnio natildeo age normalmente O personagem
pesado de ira ataca com ferocidade os rebanhos Essa atitude natildeo parece ser em parte
reconhecida a princiacutepio por Odisseu nem a atribuindo ao heroacutei Primeiro devido agraves viacutetimas
escolhidas e segundo agrave ferocidade empregada Em virtude das circunstacircncias Odisseu natildeo
compreende toda a situaccedilatildeo e atribui ao encolerizado uma accedilatildeo incoerente pois ignora as
causas dela O autor atribui o termo δυσλόγιστον iloacutegico irracional agrave matildeo do heroacutei em uma
conotaccedilatildeo para seus atos selvagens Sabemos que o ataque aos animais se daacute devido agrave ilusatildeo
causada pela deusa contudo a violecircncia a ferocidade do ato parece ser proacutepria do
personagem ou seja de sua predisposiccedilatildeo agrave desmesura e de sua condiccedilatildeo coleacuterica da qual de
alguma forma participa a deusa amplificando-a Isso nos permite compreender seu estado com
uma extensatildeo de sua proacutepria condiccedilatildeo iracunda que ora retira-lhe a humanidade no sentido
de tornaacute-lo selvagem Natildeo por menos Odisseu ora reconhece os rastros os atribuindo a Aacutejax
e ora natildeo reconhece κατ᾽ ἴχνος ᾁσσω καὶ τὰ μὲν σημαίνομαι τὰ δ᾽ ἐκπέπληγμαι κοὐκ ἔχω
μαθεῖν ὅτου (v32-33) pois aquele parece distinguir o humano e o animalesco quando do
estudo dos rastros encontrados
Para o melhor entendimento dessa intensidade da ira do personagem conveacutem
relembrarmos que o estado de selvageria ou de barbaacuterie representa exatamente como falamos
antes o excesso a desmedida hyacutebris E esta se opotildee dentro da peccedila necessariamente agrave
concepccedilatildeo de moderaccedilatildeo de comedimento de equiliacutebrio de sophrosyacutene
Eacute um fato relevante do ponto de vista da apresentaccedilatildeo do personagem que este seja
apresentado como pesado de coacutelera por um lado no iniacutecio da peccedila e por outro atraveacutes das
proacuteprias palavras da deusa Atena Para o primeiro caso essa atribuiccedilatildeo enfatiza a desmedida
uma vez que o termo pesado se contrapotildee ao sentido de equiliacutebrio Assim serve como um
intensificador que evidencia o excesso em contraste agrave desmedida Logo pesado eacute oposto a
sophrosyacutene Eacute necessaacuterio ainda dizer que isso nos antecipa a proacutepria desgraccedila do heroacutei pois
se a divindade ao fim do proacutelogo jaacute apresenta em suas palavras a maacutexima que diz que os
82
deuses amam os moderados soacutephronas (σώφρονας v 132) e um soacute dia eacute necessaacuterio para
dobrar o destino humano o Telamocircnio em desequiliacutebrio pela coacutelera receberaacute natildeo outro
senatildeo esse fim Quanto ao segundo considera-se o fato de que a deusa representa uma
completa consciecircncia dos fatos segundo a gradaccedilatildeo de conhecimento sugerido no proacutelogo de
acordo com Flaacutevio Ribeiro
Cegueira e visatildeo satildeo dispostos antiteticamente na relaccedilatildeo entre trecircs personagens Atena vecirc Odisseu que natildeo a vecirc de modo inverso Odisseu vecirc Aias que natildeo o vecirc Opotildeem-se trecircs planos distintos de conhecimento visual hierarquicamente articulados o da deusa o do mortal e o do demente o louco natildeo vecirc nem o satildeo nem o deus o satildeo vecirc o louco mas natildeo vecirc o deus o deus tudo vecirc e natildeo eacute visto Haacute a gradaccedilatildeo entre ignoracircncia completa e onisciecircncia divina (2008 p 9)
Essa gradaccedilatildeo de conhecimento visual desencadeia uma noccedilatildeo de conhecimentos dos
fatos que coloca a deusa em uma posiccedilatildeo privilegiada a de que tudo ela sabe Opotildee-se
sobretudo a posiccedilatildeo ocupada por Aacutejax que em completa ignoracircncia vecirc imagens extraviadoras
ou seja a realidade enxergada pelo mesmo eacute enganosa ou seja falsa Contrariamente a isso a
situaccedilatildeo de Atena em contraste com a deste caracteriza-se pela contemplaccedilatildeo onisciente da
realidade assim ela eacute conhecedora de tudo logo o que ela relata e a forma como apresenta o
heroacutei eacute o oposto de falso ou seja a realidade por ela revelada a Odisseu relaciona-se agrave
verdade Diante do contexto da peccedila e do papel relevante exercido pela deusa sobretudo
acerca do que acabamos de expor a apresentaccedilatildeo do heroacutei em estado coleacuterico vinculado agrave
visatildeo da realidade da deusa minimiza a subjetividade inerente agrave caracterizaccedilatildeo de um
personagem por outro apesar de sabermos da ira que acomete Atena Dessa forma podemos
legitimar esse estado como realmente presente nas caracteriacutesticas do heroacutei dentro da peccedila
como confirmaremos a partir de outros exemplos
Podemos acrescentar a isso o fato desse estado do heroacutei ser reconhecido por outros
personagens Isso se faz tambeacutem por natildeo se identificar nele o autocontrole a moderaccedilatildeo
Odisseu e Tecmessa cativa e companheira do Telamocircnio satildeo grandes exemplos disso pois se
utilizam de vocaacutebulos que marcam seu caraacuteter a partir da oposiccedilatildeo entre comedimento e
excesso Odisseu por exemplo ainda no proacutelogo teme encontrar o seu mais novo inimigo e
esse fato se daacute porque este natildeo se encontra em um momento de racionalidade de
comedimento de prudecircncia ou seja pensando de forma equilibrada phronoyacutenta (φρονοῦντα
v 82) Tecmessa tambeacutem o reconhece em estado excessivo no primeiro episoacutedio da peccedila e
diante das lamentaccedilotildees deste exorta-o por meio do verbo no imperativo a recompor-se a
moderar-se a voltar a ser prudente phroacuteneson (φρόνησον v 371)
83
Conveacutem reiterar que esse eacute um recurso abundante na peccedila pois pressupondo que
Soacutefocles segundo seu estilo desenvolva caracteres opostos apresenta para isso uma gama
variada de leacutexico que se relaciona agrave medida e que tem como base o substantivo que em seu
mais primitivo sentido denomina o diafragma phreacuten (φρήν) oacutergatildeo relacionado ao
temperamento dos homens Esse significado de teor concreto alcanccedila em noccedilatildeo abstrata desde
o sentido de pensamento ateacute de vontade e expressa entre os gregos da antiguidade uma das
bases da liacutengua para compor o leacutexico que se relaciona agrave ideia de racionalidade e de medida
cujo exemplo maior na peccedila corresponde a sophrosyacutene que tem esse mesmo radical em sua
composiccedilatildeo
Dessa forma todos esses termos expressos por esses dois personagens na
caracterizaccedilatildeo do heroacutei em anaacutelise parecem defini-lo a partir da oposiccedilatildeo entre excesso e
comedimento Isso nos serve para conduzir o particiacutepio aoristo pesado ao primeiro eixo o da
desmedida e por consequecircncia observaacute-lo como um intensificador do estado coleacuterico que
mencionamos acima Logo sua coacutelera eacute reconhecidamente intensa excessiva tal qual a sua
desonra
A proacutepria qualificaccedilatildeo de Odisseu eacute clara ainda no proacutelogo diante do personagem
σακεσφόρῳ (V 19) cujo sentido eacute portador de escudo mas que retoma de forma significativa
as caracteriacutesticas primitivas do heroacutei expostas no capiacutetulo anterior Esse vocaacutebulo tem em sua
formaccedilatildeo o substantivo saacutekos (σάκος) escudo cujo uso parece definir a arma de tipo
alongado e que se restringe em parte a nomear o escudo de Aacutejax20 segundo Patriacutecia Pontin
(2006 p 45) Com esse sentido isso nos permite inferir ao vocaacutebulo presente no proacutelogo
mais um reforccedilo ao aspecto e ao caraacuteter primitivo de que se reveste na peccedila o excesso a
hyacutebris uma vez que se considere a concepccedilatildeo de primitivismo agrave origem marcadamente
arcaica e micecircnica dessas caracteriacutesticas da arma do heroacutei (PEREIRA 2012 p 76 VAN DER
VALK 1951 p 273) conforme noacutes jaacute tratamos anteriormente Esse reforccedilo nos eacute mais
significativo pois parace coincidir com o hemistiacutequio do verso como um epiacuteteto ou seja
uma foacutermula que serve sobretudo para a caracterizaccedilatildeo mesmo que aplicado a um triacutemetro
jacircmbico Vejamos os versos 18 e 19 que retratam a fala de Odisseu diante da presenccedila da
deusa Atena ldquoE agora me descobriste bem rondando do homem hostil o passo de Aacutejax
condutor do escudordquo (Καὶ νῦν ἐπέγνως εὖ μ ἐπ ἀνδρὶ δυσμενεῖ βάσιν κυκλοῦντ Αἴαντι τῷ 20
Segundo Patriacutecia Pontin fundamentada nos estudos de L Lacroix Homero para definir o escudo ldquose utiliza de dois termos principais ἀσπίς e σάκος cujo significado exato eacute singularmente difiacutecil de determinar Ἀσπίς pode-se dizer tanto de um escudo redondo como de um escudo alongado Σάκος se aplica ao escudo de Aacutejax que o poeta compara a uma torre mas a mesma palavra eacute empregada em um caso pelo menos a propoacutesito de uma arma circular Entretanto ἀσπίς e σάκος satildeo diferentes em suas origens e parece provaacutevel que foram designadas primitivamente a armas de tipo diferenterdquo (2006 p 45)
84
σακεσφόρῳ) A escansatildeo do verso 19 seria essa βασιν κυκλουντ Αιαντι τῳ
σᾰκεσφορῳ A cesura desse esquema meacutetrico eacute geralmente pentemiacutemere ou heftemiacutemere ou
seja apoacutes cinco ou sete metades de peacute semelhante ao dactiacutelico (LOURENCcedilO 2011 p 23-
25) Natildeo sendo possiacutevel a do tipo pentemiacutemere pois repartiria o nome do heroacutei mais
provaacutevel eacute a heftemiacutemere que evidencia a palavra σακεσφόρος incluindo no hemistiacutequio o
artigo que o precede Essa qualificaccedilatildeo do personagem que coincide metricamente com o
hemistiacutequio ao nosso ver tal qual um epiacuteteto que acompanha o nome do heroacutei serve para
identicar e restringir uma caracterizaccedilatildeo de Aacutejax a qual como veremos adiante tem como
objetivo delinear uma iacutendole excessiva e mais brusca
A essa menccedilatildeo podemos acrescentar outra do primeiro episoacutedio Neste em despedida
o heroacutei lega ao seu filho o seu escudo (σάκος v 576) Simbolicamente isso representa a
heranccedila de sua iacutendole e seus ideais os quais devem se perpetuar Esse entendimento fica claro
a partir de duas informaccedilotildees do texto uma impliacutecita e outra expliacutecita A primeira estaacute
impliacutecita no nome do filho Euriacutesaces (Εὐρύσακες v 575) cuja formaccedilatildeo se daacute a partir de
dois elementos um substantivo escudo σάκος vocaacutebulo restrito agrave descriccedilatildeo do Telamocircnio e
o adjetivo largo εὐρύς logo a traduccedilatildeo do nome seria escudo largo ou grande Obviamente
que isso remete aos atributos proacuteprios do pai A segunda informaccedilatildeo estaacute nas incumbecircncias
dadas pelo pai a Teucro para a educaccedilatildeo do filho O desejo do genitor eacute que o herdeiro seja
conduzido de acordo com os rudes costumes do pai (ὠμοῖς [] εν νόμοις πατρὸς v 548)
logo isso significa que esse legado pressupotildee os ideais heroicos e arcaicos da eacutepica homeacuterica
os quais natildeo condizem com o modelo dos atenienses do seacuteculo V representando assim
valores associados agrave hyacutebris evidente na peccedila
O terceiro aspecto relevante do fragmento citado eacute em quem se concentra a ira os
chefes gregos mas sobretudo Odisseu Agamecircmnon e Menelau Natildeo por acaso satildeo estes os
uacutenicos chefes que figuram a peccedila como personagens Para o episoacutedio retratado por Soacutefocles
estes satildeo os maiores envolvidos na accedilatildeo da trageacutedia que culminam com o suiciacutedio do heroacutei
mas tambeacutem naquelas natildeo dramatizadas que acarretam a sua situaccedilatildeo desonrosa e que por
isso justificam-se a sua ira e o seu oacutedio Esses trecircs agem diretamente contra o protagonista da
peccedila segundo a perspectiva deste no resultado da disputa pelas armas de Aquiles Logo eacute
fundamental o entendimento a partir das vaacuterias analepses referidas na obra do resultado
desse evento entre o heroacutei e Odisseu para que se esclareccedilam a origem e as causas desses
sentimentos Com efeito a oposiccedilatildeo dos chefes gregos em prol do favorecimento de Odisseu
os retira da posiccedilatildeo de aliados e amigos e os coloca na de inimigos Isso eacute bem claro quando
retomamos a observaccedilatildeo de Bernard Knox que indica o ideal cultuado do personagem que
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embasa seus princiacutepios na maacutexima fazer bem aos amigos e mal aos inimigos (τούς φίλους εὖ
ποιεῖν τοὺς δ` ἐχθροὺς κακῶς) (1961 p 3) Isso fica ainda mais evidente em relaccedilatildeo a
Odisseu que ao ver do heroacutei age hostilmente contra ele em busca de imerecidos precircmios de
acordo com o que noacutes veremos a seguir
Quanto a Odisseu a ira se justifica porque este eacute o vencedor da disputa e ganhador dos
precircmios maacuteximos mesmo sendo menos merecedor de acordo com seu adversaacuterio da
contenda Por isso eacute por este uacuteltimo denominado de escoacuteria mais imunda da tropa
(κακοπινέσατον τ` ἄλημα στρατοῦ v 381) e escoacuteria inimiga (ἐχθρὸν ἄλημα v 389) Teucro
inclusive reconhece que para o irmatildeo o Laertida seria o maior inimigo dentre os Argivos
(ἔχθιστος Ἀργείων v 1383) ou seja deteacutem a primazia da coacutelera do Telamocircnio Seus tambeacutem
meacuteritos natildeo seriam guerreiros assim justificam-se outros nomes atribuiacutedos instrumento de
todos os males (ἁπάντων κακῶν ὄργανον v 379-380) e sobretudo o mais adulador
(αἱμυλώτατον v 388) Esta uacuteltima caracteriacutestica reforccedila o poder de persuasatildeo que este heroacutei
possui mas visto sob uma perspectiva negativa Assim tambeacutem para os guerreiros de
Salamina representados pelo coro este persuade (πείθει v 150) forjando palavras (λόγους
[] πλάσσων v 148) e por isso tem uma sugerida origem Sisifida (Σισυφιδᾶν γενεᾶς v
190) Essa linhagem eacute relevante uma vez que a Siacutesifo se atribui a maior astuacutecia humana e
tambeacutem o menor escruacutepulo com os quais muitas faltas aos deuses foram cometidas
justificando sua puniccedilatildeo categoacuterica no Hades (GRIMAL 2005 p 422-423) Mesmo sendo ele
de origem divina e na eacutepica grega sua astuacutecia seja concebida sob o vieacutes da virtude na peccedila
em questatildeo tal atributo servindo de instrumento para o mal na perspectiva de Aacutejax e de seus
proacuteximos marca a iacutendole de um homem sem valor da pior linhagem que se justifica tambeacutem
pela ancestralidade Podemos ver a partir de tudo isso a imagem de Odisseu do ponto de vista
de seu adversaacuterio da disputa Dessa forma os evidentes superlativos utilizados nos mostram a
posiccedilatildeo distintiva ocupada por ele pois acima de todos eacute o mais odiado pelo Telamocircnio pois
para este usurpa-lhe o precircmio exercendo ativamente sua iacutendole Eacute interessante observar que o
adjetivo ἐχθρός pode designar tanto aquele que eacute odiado quanto muito comum quando
substantivado o inimigo Isso nos permite colocar dentro de um mesmo campo semacircntico a
posiccedilatildeo de algueacutem em relaccedilatildeo a outro como tambeacutem permite se vincular a um sentimento
Isso aproxima ira e oacutedio estabelecendo relaccedilotildees significativas para a interpretaccedilatildeo da peccedila
A proacutepria repreensatildeo de Teucro a Odisseu no ecircxodo quando aquele impede este de
participar ativamente nos ritos fuacutenebres ressalta esse sentimento que o acompanha mesmo
depois de morto Vejamos esse momento
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[Τευ] Σὲ δ ὦ γεραιοῦ σπέρμα Λαέρτου πατρός τάφου μὲν ὀκνῶ τοῦδ ἐπιψαύειν ἐᾶν μὴ τῷ θανόντι τοῦτο δυσχερὲς ποῶmiddot 1395 τὰ δ ἄλλα καὶ ξύμπρασσε κεἴ τινα στρατοῦ θέλεις κομίζειν οὐδὲν ἄλγος ἕξομεν ᾿Εγὼ δὲ τἀμὰ πάντα πορσυνῶmiddot σὺ δὲ ἀνὴρ καθ ἡμᾶς ἐσθλὸς ὢν ἐπίστασο21
(Aias v 1393-1399)
Teucro ao final reconhece a ajuda de Odisseu na permissatildeo dos funerais do heroacutei
destacando o Laertida como homem valoroso (ἐσθλὸς v 1399) Ainda assim estaacute ciente do
iacutentimo e da vontade do irmatildeo e por isso hesita em permitir que este toque a sepultura Eacute
evidente que permanece a ira que o acometia em vida de tal forma que seu irmatildeo acredita que
faria com isso algo que desagradaria o morto algo que lhe seria impertinente ou mesmo
nefasto (δυσχερὲς v 1395) sobretudo pela expressividade do prefixo dys δυσ que eacute um
prefixo que associa ao vocaacutebulo a ideia de contrariedade e de desgraccedila construindo-se um
novo ou intensificando o primeiro sentido Um detalhe significativo para o destaque desse
sentimento do heroacutei estaacute no sentido mais preciso do verbo tocar ἐπιψαύειν presente na fala
de Teucro Esse verbo possui como significado as noccedilotildees de roccedilar ou de tocar de leve ou
seja um movimento sutil suave ou ateacute mesmo delicado Eacute imprescindiacutevel compreender seu
uso em uma oposiccedilatildeo agrave coacutelera ostentada pelo personagem agora morto Pois o mero ato de
encostar no sepulcro natildeo eacute permitido exatamente por que a ira do heroacutei eacute pesada e assim
opotildeem-se o ato de tocar levemente ἐπιψαύειν por parte de Odisseu constante do verso 1392
e o ato de estar pesado βαρύνειν por parte de Aacutejax constante do verso 41 Demarca-se
assim a profundidade da ira do heroacutei em relaccedilatildeo ao seu adversaacuterio da disputa impondo a este
o primeiro lugar entre os inimigos
Os Atridas tambeacutem satildeo foco desse oacutedio em tal perspectiva de inimizade pois apesar
de muitos serem os juiacutezes da contenda (v 1136 1243) esses sendo chefes representam o
corpo dos juiacutezes Um fato importante para isso eacute a proacutepria sugestatildeo desses serem os
responsaacuteveis pela decisatildeo por votos que desonrou o personagem (ἐψήφισαν v 449) conduta
natildeo bem quista pelo Telamocircnio sobretudo porque esse tipo de julgamento evoca os
procedimentos dos tribunais atenienses do seacuteculo V como observaram Knox (1961 p 22) e
Bacelar (2006 p 237-238) aos quais certamente o personagem se opotildee devido a sua
21
[Teu] Filho do velho pai Laertes temo te permitir tocar de leve a sepultura deste que ao morto eu faccedila algo impertinente (v 1395) mas faze outras coisas se algueacutem do exeacutercito desejas introduzir teremos nenhuma afliccedilatildeo Eu executarei todas as minhas [incumbecircncias] para noacutes tu permaneces sendo homem nobre
87
caracterizaccedilatildeo arcaica e baacuterbara na perspectiva dos valores gregos apregoados na Atenas do
periacuteodo claacutessico
No verso 716 por exemplo reforccedila-se significativamente essa disposiccedilatildeo do
personagem contra os Atridas Nessa passagem se evidencia o oacutedio do heroacutei a estes um
iacutempeto que dentro da perspectiva da ira parece impeli-lo a permanecer e a resistir agrave
reconciliaccedilatildeo (θυμῶν Ἀτρείδαις) Esse iacutempeto eacute o mesmo com o qual Homero reveste o
personagem no Canto XI da Odisseia impedindo-o de se reconciliar com Odisseu
Interessante tambeacutem eacute que se faz pelo mesmo vocaacutebulo θυμός (cf pg 21-22)
Dessa forma esses trecircs personagens configuram os maiores envolvidos na desonra e
em decorrecircncia disso os maiores inimigos e assim mereceriam uma maior puniccedilatildeo e
vinganccedila (v 301-304) Com efeito essa menccedilatildeo direta agrave ira do heroacutei enfatiza o sentimento do
personagem em relaccedilatildeo aos chefes gregos alicerccedilando acima de tudo as accedilotildees que estatildeo fora
da trageacutedia22 mas que compotildeem seu enredo Natildeo figuram no proacutelogo a disputa pelas armas
nem mesmo o ataque aos chefes gregos pois satildeo preteacuteritos em relaccedilatildeo agrave cena inicial
Contudo eles satildeo essenciais para a progressatildeo das accedilotildees que conduzem o heroacutei a sua ruiacutena
Dessa forma aquilo que move o heroacutei a tecirc-las realizado eacute tambeacutem presente para o efeito
traacutegico da peccedila Na obra em questatildeo essa relevacircncia recai sobre a ira Ela eacute o grande
impulsionador da causalidade interna da obra especialmente do ponto de vista da concepccedilatildeo
de excesso presente em toda sua extensatildeo Logo a ira aos chefes gregos compotildee parte
estrutural Por isso Soacutefocles reitera esse sentimento retomado da tradiccedilatildeo arcaica para a qual
tambeacutem eacute fundamental
Vejamos como esse sentimento se mostra tambeacutem condutor das accedilotildees que se
desenvolvem internamente a partir dos versos abaixo inseridos no primeiro episoacutedio
[Αι] Καὶ νῦν τί χρὴ δρᾶν ὅστις ἐμφανῶς θεοῖς ἐχθαίρομαι μισεῖ δέ μ ῾Ελλήνων στρατός ἔχθει δὲ Τροία πᾶσα καὶ πεδία τάδε Πότερα πρὸς οἴκους ναυλόχους λιπὼν ἕδρας 460 μόνους τ ᾿Ατρείδας πέλαγος Αἰγαῖον περῶ Καὶ ποῖον ὄμμα πατρὶ δηλώσω φανεὶς Τελαμῶνι πῶς με τλήσεταί ποτ εἰσιδεῖν γυμνὸν φανέντα τῶν ἀριστείων ἄτερ ὧν αὐτὸς ἔσχε στέφανον εὐκλείας μέγαν 465 Οὐκ ἔστι τοὔργον τλητόν Αλλὰ δῆτ ἰὼν πρὸς ἔρυμα Τρώων ξυμπεσὼν μόνος μόνοις
22 Sabemos que o proacutelogo in medias res tambeacutem eacute usado para contextualizar o ponto em que se inicia o drama escolhido pelo poeta natildeo soacute para determinar uma extensatildeo ideal aristoteacutelica mas tambeacutem para engendrar as causas do infortuacutenio imutaacutevel natildeo soacute pela causalidade das accedilotildees que o encadeiam mas sobretudo por corresponder a um passado que natildeo pode ser alterado (LUNA 2012 p 241-242)
88
καὶ δρῶν τι χρηστόν εἶτα λοίσθιον θάνω ᾿Αλλ ὧδέ γ ᾿Ατρείδας ἂν εὐφράναιμί που Οὐκ ἔστι ταῦταmiddot πεῖρά τις ζητητέα 470 τοιάδ ἀφ ἧς γέροντι δηλώσω πατρὶ μή τοι φύσιν γ ἄσπλαγχνος ἐκ κείνου γεγώς
[] ἀλλ ἢ καλῶς ζῆν ἢ καλῶς τεθνηκέναι τὸν εὐγενῆ χρή Πάντ ἀκήκοας λόγον23 480
(Aias v 457-470 479-480)
Nessa passagem Aacutejax inicia uma reflexatildeo apoacutes um longo lamento sobre a sua proacutepria
situaccedilatildeo Diante da desonra aferida pela pretericcedilatildeo das armas e do ultraje pelo ataque ao
rebanho ambos conhecidos pelos gregos o heroacutei conclui sua posiccedilatildeo perante aliados e
amigos Ao seu ver ele eacute odiado por todos pela tropa dos gregos (μισεῖ [] στρατός v 458)
pelos deuses (θεοῖς ἐχθαίρομαι v 457-458) e logicamente por Troia (ἔχθει [] Τροία v
459) Tendo chegado a essa conclusatildeo pondera qual accedilatildeo deve ser tomada por ele Dois
caminhos satildeo levados em conta voltar para casa ou morrer belamente segundo os preceitos
homeacutericos Em ambas haacute a participaccedilatildeo dos Atridas como um elemento influenciador Quanto
agrave primeira reflexatildeo o personagem cogita deixaacute-los soacutes (μόνους τ` Ἀτρείδας v 461) voltando
para casa Contudo isso natildeo se apresenta como uma boa resoluccedilatildeo pois a imagem de um filho
despojado dos precircmios de excelecircncia guerreira (τῶν ἀριστείων ἄτερ v 464) diante do pai
cujos feitos alcanccedilaram a grande honra da gloacuteria (στέφανον εὐκείας μέγαν v 465) eacute
insuportaacutevel (τλήεται v 463 τλητόν v 466) para o seu genitor Assim acima do desejo de
abandonar Agamecircmnon e Menelau sozinhos contra os troianos ato que repercute do oacutedio a
esses heroacuteis o heroacutei se vecirc movido pelo pudor em relaccedilatildeo a Teacutelamon para o qual a possiacutevel
vergonha impede aquele de agir Na segunda reflexatildeo podemos observar ainda mais
significativamente o papel da ira Nesta o personagem intenta se lanccedilar contra os troianos
sozinho contra os soacutes (μόνος μόνοις v 467) ensejando sua morte um ato que remete agrave bela
morte arcaica cujo cerne se trata de um combate singular com um igual Com essa resoluccedilatildeo
o heroacutei acredita na possibilidade de alegrar os Atridas (Ἀτρείδας ἄν εὐφράναιμί που v 469)
Eacute interessante observar na sua perspectiva isso realmente eacute uma possibilidade As marcas 23 [Aj] E agora o que eacute necessaacuterio fazer Que visivelmente por deuses sou odiado e detesta-me o exeacutercito dos Helenos Toda Troia odeia e estas planiacutecies Para casa de qual maneira tendo deixado o ancoradouro das naus (v 460) e os Atridas soacutes atravesso o mar Egeu E para o pai Teacutelamon revelarei que olhar tendo me apresentado Como suportaraacute quando olhar para mim tendo me apresentado despido aparte dos precircmios de excelecircncia das quais ele proacuteprio teve a grande coroa de gloacuteria (v 465) Isto natildeo eacute suportaacutevel Mas certamente indo agrave fortaleza dos troianos sozinho dentre os soacutes tendo me chocado e realizando o que eacute necessaacuterio por fim depois morresse Mas dessa maneira ao menos agradaria os Atridas provavelmente Essas natildeo satildeo uma atitude comprovaacutevel (v 470) tal pela qual revelarei para o velho pai minha natureza certamente natildeo tendo nascido dele covarde [] Mas ou viver belamente ou belamente morrer eacute necessaacuterio para o bem-nascido Ouvistes todo o discurso
89
desse entendimento satildeo o proacuteprio adveacuterbio που que expressa o sentido de provavelmente ou
talvez ou seja possibilidade e o modo optativo do verbo acompanhado sobretudo da
partiacutecula ἄν que evidencia o caraacuteter potencial do evento Mesmo assim diante de uma
possibilidade Aacutejax prefere natildeo executar tal accedilatildeo e isso se deve ao fato de o resultado agradar
(εὐφραίνω) os gregos sobre os quais se concentra sua ira os filhos de Atreu
Para corroborar a disposiccedilatildeo iracunda sobre esses dois conveacutem mencionar a
invocaccedilatildeo do heroacutei no terceiro episoacutedio nos preacircmbulos do suiciacutedio Nesse momento vaacuterias
divindades satildeo evocadas para cumprir determinadas accedilotildees em relaccedilatildeo ao suicida como por
exemplo Zeus para que forneccedila o privileacutegio de Teucro ser o primeiro a encontrar o morto
Hermes para que conduza rapidamente a alma desprendida do corpo como um brando sono
o Sol para que fazendo tudo ser visiacutevel anuncie seu destino ao pai e alguns outros em
despedida Entre essas divindades uma eacute elencada com a finalidade de vingar o heroacutei em
relaccedilatildeo aos dois chefes as Eriacutenias Quando dessa menccedilatildeo aqueles satildeo referidos como maus
(κακοὺς v 839) o que justifica na suacuteplica do heroacutei a perseguiccedilatildeo destas divindades agravequeles
Na concepccedilatildeo grega essas deusas causam ruiacutena ao que agem contra membros do mesmo
grupo sobretudo da famiacutelia Para o Telamocircnio eacute nisso que se insere a sua prece e por isso
justifica o seu pedido de que tal como ele morto por si proacuteprio (αὐτοσφαγῆ v 841) aqueles
devem perecer mortos pelos seus proacuteprios e cariacutessimos descendentes (αὐτοσφαγεῖς τῶν
φιλίστων ἐκγόνων v 841-842) Soacutefocles parece de alguma forma alinhar os desejos do
Telamocircnio ao menos ao mito que trata do retorno de Agamecircmnon pois este morre pelas matildeos
da mulher e esta pelas do filho segundo a tradiccedilatildeo do episoacutedio de retorno desse rei Com
efeito o ato de reservar um lugar em suas invocaccedilotildees para a vinganccedila e o manifesto desejo
por um infortuacutenio tatildeo traacutegico para os Atridas destacam a ira do heroacutei como fundamental
impulso de suas accedilotildees
Dessa forma quanto aos versos mencionados acima o heroacutei considerando o pudor ao
pai e a ira aos dois chefes gregos adequa os preceitos da bela morte agrave sua situaccedilatildeo
antecipando o que viraacute a ser o seu suiciacutedio a uacutenica saiacuteda que natildeo favoreccedila de alguma forma
os seus recentes inimigos e que evidencie nele ainda um valor guerreiro e que assim
configure a sua morte sendo corajosa e nobre tal qual a maacutexima homeacuterica Assim quanto agrave
ira contra os chefes gregos especialmente contra Odisseu Agamecircmnon e Menelau podemos
reconhecer a sua participaccedilatildeo importante na composiccedilatildeo da trama da peccedila
Passemos ao estudo desse sentimento em relaccedilatildeo aos deuses Vejamos entatildeo a sua
segunda menccedilatildeo nos versos 735 a 744 inseridos no terceiro episoacutedio cujo vocaacutebulo ira estaacute
ainda expliacutecito
90
[Χο] Οὐκ ἔνδον ἀλλὰ φροῦδος ἀρτίως νέας 735 βουλὰς νέοισιν ἐγκαταζεύξας τρόποις [Αγ] ᾿Ιοὺ ἰούmiddot βραδεῖαν ἡμᾶς ἆρ ὁ τήνδε τὴν ὁδὸν πέμπων ἔπεμψεν ἢ φάνην ἐγὼ βραδύς [Χο] Τί δ ἐστὶ χρείας τῆσδ ὑπεσπανισμένον 740 [Αγ] Τὸν ἄνδρ ἀπηύδα Τεῦκρος ἔνδοθεν στέγης μὴ ξω παρήκειν πρὶν παρὼν αὐτὸς τύχῃ [Χο] ᾿Αλλ οἴχεταί τοι πρὸς τὸ κέρδιστον τραπεὶς γνώμης θεοῖσιν ὡς καταλλαχθῇ χόλου24
(Aias v 735-744)
Novamente evidenciamos o vocaacutebulo ira choacutelos expliacutecito tambeacutem nessa passagem
(χόλου v 744) Nesse caso segundo o pensamento do coro essa reconciliaccedilatildeo se daria junto
aos deuses uma vez que sobre estes a ira do heroacutei tambeacutem recai Essa interpretaccedilatildeo
equivocada dos guerreiros de Salamina em relaccedilatildeo aos pensamentos do seu senhor enfatiza
sobretudo os ideais do heroacutei pois marcam um novo comportamento (νέοισιν [] τρόποις) e
uma nova vontade (νέας βουλὰς) do Telamocircnio O fato singular eacute que de acordo com essa
perspectiva Aacutejax abandonaria seu mais corrente ideal presente na peccedila fazer bem aos amigos
e mal aos inimigos Assim contrariamente agrave sua costumeira iacutendole especialmente ao seu
conjunto de atributos o heroacutei estaria disposto natildeo soacute a procurar a accedilatildeo mais inteligente e a
mais astuta (κέρδιστον) mas tambeacutem um ideal Isso fica oacutebvio pelo uso do vocaacutebulo γνώμη
no verso 744 cujo sentido primeiro eacute juiacutezo mas pelo qual o costume grego denomina aleacutem
disso as sentenccedilas e maacuteximas Contudo a compreensatildeo do coro eacute errada e possui ainda uma
certa ironia pois esse equiacutevoco se faz evidente sobretudo pelo contraste de atributo que natildeo
corresponde ao heroacutei mas a seu maior opositor Odisseu O atributo em questatildeo eacute a astuacutecia
referida no verso 753 mormente em um grau superlativo do adjetivo ou seja intensificando
essa qualidade Certamente tal procedimento eacute incoerente com a natureza do Telamocircnio que
prefere ainda seguir o caminho do oacutedio contra aqueles que lhe satildeo hostis e entres tais os
deuses
O proacutelogo e o primeiro episoacutedio por exemplo fornecem vaacuterios indiacutecios para
confirmarmos essa ira aos deuses sobretudo a Atena Em fragmento estudado anteriormente
vimos que o heroacutei se vecirc odiado pelos deuses (θεοῖς ἐχθαίρομαι v 457-458) e por Troia (ἔχθει
24
[Co] Natildeo estaacute dentro mas haacute pouco se foi novas (v 735) vontades tendo ligado a novos costumes [Mens] Ai ai Pois aquele [Teucro] que nos enviou neste caminho enviou em um tardio ou eu tardio apareci [Co] O que estaacute ausente deste serviccedilo (v 740) [Mens] Teucro proibia o homem dentro da tenda que dela saiacutesse antes que ele mesmo estivesse presente fortunamente [Co] Mas vai certamente tendo se dirigido para o mais astuto juiacutezo para que seja reconciliado da coacutelera aos deuses
91
[] Τροία v 459) de forma que se equaliza a posiccedilatildeo ocupada por estes e por aqueles
Ambos satildeo vistos assim como inimigos O verbo utilizado nesse reconhecimento eacute ἔχθω da
mesma raiz do adjetivo ἐχθρός cujo significado jaacute mencionado abrange tanto o sentimento
de oacutedio quanto a relaccedilatildeo de inimizade por extensatildeo de sentido E estaacute oacutebvio que para essa
conjectura haacute de ser entender que os deuses procuram fazer mal tanto quanto seus inimigos
declarados os Troianos Para perceber como isso se daacute temos que nos remeter sobretudo agrave
relaccedilatildeo de Aacutejax e Atena
A deusa eacute reconhecida pelo heroacutei como uma aliada de guerra (σύμμαχον v 117) e ela
mesma assim se coloca para ele (συμμάχου v 90) inclusive o ajudando no ataque aos chefes
gregos (v 92) Logo na visatildeo do heroacutei a divindade eacute uma amiga Contudo essa percepccedilatildeo eacute
distorcida pois o termo σύμμαχος sugere inferioridade segundo Knox uma vez que
descrevia a designaccedilatildeo oficial das cidades e ilhas sujeitas ao poder de Atenas (1961 p 8) O
proacuteprio texto apresenta indiacutecios que comprovam essa interpretaccedilatildeo pois Teucro diante de
Menelau afirma que seu irmatildeo veio como dono de si (αὑτοῦ κρατῶν v 1099) e natildeo
conduzido como aliado (σύμμαχον v 1098) Essa declaraccedilatildeo parece realmente realccedilar na
palavra σύμμαχος a ideia de subordinaccedilatildeo Acrescenta-se a isso a forma como o heroacutei se
refere agrave participaccedilatildeo da deusa a qual pareceria desempenhar um bom suporte bom apoio (εὖ
παρέστης v 92) negando a ela a primazia do sucesso na expediccedilatildeo noturna considerando-se
em especial o teor do verbo utilizado cujo sentido etimoloacutegico seria pocircr-se ao lado
exatamente devido ao adveacuterbio πάρα usado como prefixo verbal ressaltando a natildeo
superioridade da deusa na responsabilidade das decorrentes consequecircncias Tal entendimento
corrobora a supervalorizaccedilatildeo de sua honra como jaacute vimos a ponto de ele mesmo acreditar ser
possiacutevel alcanccedilar gloacuteria sem a participaccedilatildeo dos deuses nas accedilotildees humanas No seu caso
sobretudo em fazecirc-lo sozinho Essa conduta difere completamente da relaccedilatildeo de Odisseu
perante Atena acima de tudo pelo claro contraste suscitado O Laertida trata-a da seguinte
maneira a mais amiga para mim dos deuses (φιλτάτης ἐμοὶ θεῶν v 14) amiga soberana
(φίλη δέσποινα v 38) como tambeacutem reconhecendo a superior posiccedilatildeo da deusa enfatiza
que por ela eacute dirigido (σῇ κυβερνῶμαι χερί v 35)
Esse contraste eacute evidente e significativo especialmente para marcar a reviravolta nas
accedilotildees de Aacutejax que reconhece ao mesmo tempo que suas accedilotildees ao inveacutes de lhe dar prazer pela
vinganccedila empregada desencadearam o seu sofrimento e a sua ruiacutena e que a proacutepria deusa que
apoiou os seus atos como aliada na verdade eacute sua inimiga e responsaacutevel por conduzi-lo ao
infortuacutenio atraveacutes do encorajamento para atos desmedidos e das imagens extraviadoras Dessa
forma o heroacutei reconhece explicitamente a posiccedilatildeo de Atena quanto a ele a qual o maltrata
92
ruinosamente (ὀλέθριον αἰκίζει v 402) e isso significa colocaacute-lo aleacutem de uma situaccedilatildeo de
desonra mas de lhe impor um ultraje completo como ele mesmo reconhece ser excessivo
(ὐβρίσθην v 367) Esse excesso eacute visto tambeacutem no teor do verbo maltratar que exige na
peccedila o sentido apropriado de humilhar pois retrata um ato desmedido que na perspectiva do
heroacutei soacute se sustenta nas accedilotildees de seus inimigos
Por isso Atena passa a ser vista como uma inimiga e a partir de uma carga fortemente
negativa Seu epiacuteteto como na eacutepica eacute deusa de olhos brilhantes θεὰ γλαυκώπις como por
exemplo ela eacute nomeada no Canto I da Iliacuteada no verso 206 quando desce para fazer cessar a
ira de Aquiles que se levanta contra Agamecircmnon (cf p 26-27) Mas diante da inimizade a
que se presta ela eacute nomeada pelo Telamocircnio como deusa de olhos terriacuteveis (γοργῶπις []
θεὰ v 450) pois quando o heroacutei se encontrava em situaccedilatildeo semelhante agrave do Pelida iracundo
a se erguer contra os chefes gregos a divindade lanccedilou sobre ele uma doenccedila raivosa
(λυσσώδη νόσον v 452) que acaba por conduzi-lo ao infortuacutenio Significativo eacute o vocaacutebulo
noacutesos νόσος pois expressa o sentido de doenccedila de loucura e de paixatildeo dos quais a peccedila em
questatildeo reforccedila fortemente o segundo significado mas que ainda podemos ver um eco do
uacuteltimo uma vez que sua ira retrata uma paixatildeo desmedida
Entretanto parece-nos mais salutar a relaccedilatildeo estabelecida da deusa com a visatildeo
recurso inclusive retomado de Homero Nesse episoacutedio do Canto I da Iliacuteada referido acima a
deusa como no proacutelogo da trageacutedia apresenta-se tambeacutem invisiacutevel mas aparente para o
Pelida somente (οἴῳ φαινομένη v 198) Jaacute quando do duelo singular desse heroacutei com Heitor
quando a deusa eacute referida novamente pelo epiacuteteto θεὰ γλαυκῶπις (XXII v 214) para o
Priamida se apresenta sob as feiccedilotildees de Deiacutefobo seu irmatildeo pelas quais constrange o heroacutei a
lutar decisatildeo jaacute tomada pelo mesmo em monoacutelogo Ateacute que enfim o Priamida descobre que
Atena o enganou (ἐμὲ ἐξαπάτησεν Ἀθήνη XXII v 299) Esses episoacutedios satildeo fundamentais
pois tanto Aquiles quanto Heitor parecem ser modelos retomados por Soacutefocles para compor a
situaccedilatildeo de Aacutejax Este sendo grego e estando na mesma situaccedilatildeo do primeiro natildeo tem sua
ira retida pela deusa mas pelo contraacuterio eacute enganado (ἔσφηλεν v 452) tal como o segundo
que ocupa a posiccedilatildeo de inimigo perante a divindade Bastante significativo satildeo esses verbos
ἐξαπατάω na Iliacuteada e σφάλλω em Aias cujo sentido tocam o mesmo campo semacircntico de
enganar e que no aspecto aoristo demarcam nas palavras de ambos heroacuteis o reconhecimento
da influecircncia divina de Atena em accedilotildees sobretudo ilusoacuterias que lhe causam mal permitindo
tambeacutem ao heroacutei identificar a posiccedilatildeo de inimigo diante da divindade
Essa relaccedilatildeo de proximidade desses heroacuteis o filho de Teacutelamon e o de Priacuteamo estreita-
se a partir dos estudos de Edward Brown e corrobora dessa forma a nossa comparaccedilatildeo Esse
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autor identifica vaacuterias semelhanccedilas entre esses dois no trato com suas companheiras e filho
Da mesma forma que Tecmessa no primeiro episoacutedio exorta e suplica ao seu senhor para
mostrar os males da morte do pai da famiacutelia como por exemplo a captura da mulher como
escrava e a situaccedilatildeo do indefeso filho oacuterfatildeo assim procedeu Androcircmaca na Iliacuteada (VI 407-
65) (1965 p 118) Tambeacutem quando o Telamocircnio se dirige ao filho em despedida
desejando-lhe o melhor isso assemelha-se agraves palavras do Priamida que para o bem do filho
suplica a Zeus segundo os mesmos desejos (Ibidem p 120) A morte de ambos os heroacuteis
retratada na peccedila com a participaccedilatildeo dos presentes trocados pelos dois legitima a relaccedilatildeo
entre eles especialmente sob o vieacutes traacutegico
Com efeito o reconhecimento de sua condiccedilatildeo de inimigo da deusa faz o protagonista
da peccedila refletir sobre quais accedilotildees devem ser executadas considerando-se sobretudo seu rancor
diante daquela que ele julgava aliada mas que agora faz parte do grupo ocupado pelos
Troianos e chefes gregos Essa inversatildeo de papel tal como se fez quanto aos chefes gregos
reforccedila marcadamente o sentimento de ira do personagem expresso no fragmento disposto e
estudado acima A coacutelera eacute senatildeo oriunda da traiccedilatildeo ao heroacutei que de seu ponto de vista reflete
a surpresa das accedilotildees de seus aliados contraacuterias agrave expectativa e que do ponto de vista da
composiccedilatildeo representa uma peripeacutecia aristoteacutelica para aquela executada pela deusa no
proacutelogo Vejamos agora seu monoacutelogo que o leva agrave conclusatildeo do suiciacutedio como uacutenica saiacuteda
para sua situaccedilatildeo
[Αι] Ἀλλ εἶμι πρός τε λουτρὰ καὶ παρακτίους λειμῶνας ὡς ἂν λύμαθ ἁγνίσας ἐμὰ 655 μῆνιν βαρεῖαν ἐξαλύξωμαι θεᾶςmiddot μολών τε χῶρον ἔνθ ἂν ἀστιβῆ κίχω κρύψω τόδ ἔγχος τοὐμόν ἔχθιστον βελῶν γαίας ὀρύξας ἔνθα μή τις ὄψεταιmiddot ἀλλ αὐτὸ νὺξ ῞Αιδης τε σῳζόντων κάτω 660 ᾿Εγὼ γάρ ἐξ οὗ χειρὶ τοῦτ ἐδεξάμην παρ ῞Εκτορος δώρημα δυσμενεστάτου οὔπω τι κεδνὸν ἔσχον ᾿Αργείων πάραmiddot ἀλλ ἔστ ἀληθὴς ἡ βροτῶν παροιμίαmiddot ἐχθρῶν ἄδωρα δῶρα κοὐκ ὀνήσιμα 665 Τοιγὰρ τὸ λοιπὸν εἰσόμεσθα μὲν θεοῖς εἴκειν μαθησόμεσθα δ ᾿Ατρείδας σέβειν ῎Αρχοντές εἰσιν ὥσθ ὑπεικτέονmiddot τί μή
[] ᾿Εγὼ γὰρ εἶμ ἐκεῖσ ὅποι πορευτέονmiddot 690 ὑμεῖς δ ἃ φράζω δρᾶτε καὶ τάχ ἄν μ ἴσως πύθοισθε κεἰ νῦν δυστυχῶ σεσωσμένον25
25
[Aj] Mas vou em direccedilatildeo aos banhos e aos costeiros prados para que tendo expiado as minhas impurezas (v 655) eu escape da pesada ira da deusa E tendo ido ali onde eu encontre regiatildeo sagrada ocultarei esta
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(Aias v 654-668690-692)
Um fato extremamente importante desses versos que compotildeem o segundo episoacutedio eacute
reconhecer neles um caraacuteter reflexivo e de monoacutelogo Logo apesar de sua linguagem velada
esses representam uma exteriorizaccedilatildeo do pensamento que se dirige ao proacuteprio personagem
apesar da presenccedila de outros personagens e do coro (KNOX 1961 p 12) Retomando-se o
paralelo entre esse personagem e Heitor essa passagem se assemelharia ao monoacutelogo do
Priamida no Canto XXII da Iliacuteada quando da reflexatildeo acerca da atitude que se deve tomar
diante do iminente combate com Aquiles Associa-se validamente a esse discurso do
protagonista o valor de caracterizaccedilatildeo indireta especialmente se considerarmos as premissas
aristoteacutelicas pois certamente evidencia-se aiacute uma escolha que legitima o caraacuteter do heroacutei a
ira ou rancor que conduz suas accedilotildees de modo a evitar uma atitude que o aproxime tanto aos
deuses como aos Atridas visto que eles satildeo concebidos como inimigos
Concordamos tambeacutem com Bernard Knox quando este autor faz entender que o
caraacuteter de Aacutejax eacute semelhante ao do Pelida ou seja predisposto agrave violecircncia mas natildeo agrave
falsidade (Ibidem p 11) Assim se os guerreiros de Salamina compreendem
equivocadamente as palavras do seu senhor no sentido de entendecirc-las como uma
reconciliaccedilatildeo com os deuses e isso se faz da parte do coro natildeo por intenccedilatildeo do heroacutei e
tambeacutem por arte do autor em promover mais uma peripeacutecia na obra agora em sua parte
central
Com efeito nesse monoacutelogo podemos observar marcadamente o sentimento do
protagonista em relaccedilatildeo aos Atridas mas tambeacutem sobretudo aos deuses O rancor contra as
divindades descrito pelo coro na passagem estudada anteriormente ganha forma nas palavras
do Telamocircnio principalmente quanto agrave deusa Atena agrave sua conhecida perseguidora Pelo
proacuteprio texto compreendemos que o personagem natildeo procura se reconciliar mas fugir
escapar (ἐξαλύξωμαι) agrave fuacuteria da deusa Do ponto de vista do heroacutei esse ato promove uma
saiacuteda agrave sua condiccedilatildeo natildeo soacute redentora mas tambeacutem eventual Essa eventualidade se percebe
pelo uso da conjunccedilatildeo ὡς vinculada juntamente ao subjuntivo (MURACHCO 2007 p 690
vol 1) no caso em questatildeo do verbo ἐξαλύσκω Isso expressa uma expectativa proacutexima agrave
realidade ou seja uma consequecircncia tomada como quase certa A morte sugerida em suas
minha espada a mais inimiga das armas tento cavado a terra onde ningueacutem veraacute Mas que a noite e Hades guardem-na abaixo (v 660) Pois eu tendo recebido com a proacutepria matildeo este presente de Heitor hostiliacutessimo ainda natildeo tive algo valoroso dos Argivos Mas eacute verdadeiro o proveacuterbio dos amigos os presentes de inimigos natildeo satildeo presentes e nem uacuteteis (v 665) Por isso em relaccedilatildeo ao futuro saberemos tanto ser inferiores aos deuses quanto aprenderemos a cultuar os Atridas Satildeo governantes segundo isso se deve ceder Por que natildeo [] Pois eu vou ali aonde se deve ir (v 690) E voacutes cumpri as coisas que ordeno e talvez igualmente me reconheceis salvo se agora sucumbo
95
palavras tambeacutem representa salvaccedilatildeo (σεσωσμένον) mesmo que tenha a aparecircncia de
infortuacutenio (δυστυχῶ) pois ao mesmo tempo que o afasta da ira da deusa de alguma forma o
aproxima da honra perdida e como jaacute foi dito anteriormente o ato do se suicidar eacute visto pelo
heroacutei como um ato de coragem e nobreza Por isso as palavras que expressam o suiciacutedio satildeo
polivalentes e se revestem de ambiguidade que toca o sentido religioso pelo qual preferimos
traduzir para manter um certo grau de velamento que induz o coro agrave sua maacute compreensatildeo do
monoacutelogo
O particiacutepio aoristo ἁγνίσας tem origem no verbo ἀγνίζω cujo sentido parte da noccedilatildeo
concreta de lavar e alcanccedila o significado religioso de purificar expiar consagrar e oferecer
um sacrifiacutecio Seu complemento eacute λύμαθ pode expressar tanto a sujeira fiacutesica quanto a
impureza religiosa quanto a desonra do ponto de vista social e moral Natildeo haacute como retirar
das accedilotildees do protagonista que o mesmo se dirige agraves costas e aos banhos segundo as suas
palavras procurando uma regiatildeo adequada ao ato O lugar escolhido eacute ἀστιβῆ Esse adjetivo
significa deserto isolado sobretudo natildeo pisado em sua noccedilatildeo concreta mas na religiosa por
extensatildeo de sentido significa sagrado santo exatamente por ser uma localidade natildeo tocada
pelo humano O caraacuteter religioso do ato eacute patente na ambiguidade conferida pela escolha das
palavras pois a accedilatildeo pode ser entendida tanto como de purificar a maacutecula quanto tambeacutem
como de expiar a desonra a regiatildeo adequada para o rito nesse mesmo acircmbito da
ambiguidade pode ser entendida tanto como sagrada no sentido religioso quanto isolada no
sentido de reforccedilar o suiciacutedio como parte do isolamento moral em que o heroacutei se encontra e
que ecoa de sua conduta individual e arcaica Assim parece haver uma ambiguidade no
sentido religioso soacutecio e moral pela qual ora compreendemos o ato do heroacutei como uma
reconciliaccedilatildeo com os deuses ora como uma reabilitaccedilatildeo de sua timeacute para qual natildeo podemos
vincular quaisquer noccedilotildees de subordinaccedilatildeo A morte entatildeo representa o fim dos correntes
infortuacutenios pois o heroacutei a partir disso escapa da inimizade da deusa E como natildeo haacute
submissatildeo a Atena ele tambeacutem regenera seu valor e sua honra visto que a accedilatildeo tambeacutem
sugere a expiaccedilatildeo de uma maacutecula nesse caso de uma desonra a qual se associa agrave timeacute do
Telamocircnio restabelecendo-a ao menos no seu iacutentimo A regiatildeo escolhida representa ora o
espaccedilo sagrado para um ritual religioso em desagravo agrave divindade a princiacutepio um rito
exigente de um sacrifiacutecio segundo o modelo homeacuterico ora o isolamento adequado para a
accedilatildeo heroica a bela morte sobretudo coerente na peccedila que delineia um heroacutei a agir sozinho
sempre imbuiacutedo de uma postura de gloacuteria individual eacutepica Aleacutem disso o sacrifiacutecio
demandado na esfera religiosa se revela ser na verdade o suiciacutedio do heroacutei mas natildeo para a
96
submissatildeo e reconciliaccedilatildeo aos deuses pois esse ato eacute realmente o mais grave executado pelo
Telamocircnio na peccedila para legitimar o contraacuterio a sua autonomia
Certamente que a passagem gera ambiguidade se natildeo considerarmos todo o discurso
por isso o ato de expiar eacute visto pelo coro como a reconciliaccedilatildeo do heroacutei diante da deusa por
meio de um rito submetendo-se a ela Contudo essa interpretaccedilatildeo serve para a peripeacutecia mas
natildeo revela o verdadeiro teor de suas palavras pois sabemos que tal submissatildeo natildeo ocorre
como veremos com mais detalhes adiante
Nessa passagem tambeacutem noacutes observamos em que ponto se firma a hyacutebris do heroacutei
condenaacutevel pela deusa que o persegue O seu excesso como jaacute vimos tem como base a
supervalorizaccedilatildeo de sua honra sobretudo pelo fato de que apoacutes a morte de Aquiles contexto
retratado pela peccedila Aacutejax se torna o melhor dos argivos como jaacute foi pontuado Em
consequecircncia desse reconhecimento de primazia o heroacutei se recusa a se submeter
especialmente por entender que os chefes Agamecircmnon e Menelau satildeo-lhe inimigos e como
se deduz do proveacuterbio por ele citado no qual ao fim se igualam estes a Heitor os dons
provenientes dos inimigos natildeo satildeo presentes e assim nada oriundo deles pode representar
benesses Na visatildeo do personagem segundo o pensamento de Knox o fragmento retrata o
reconhecimento de uma autoridade mais dura do que realmente se mostra (Ibidem p 16) por
isso a hipeacuterbole em dizer que se deve venerar os Atridas e natildeo como seria mais adequado
ceder aos Atridas
Contudo esse excesso quanto agrave supervalorizaccedilatildeo de sua honra tambeacutem interfere na
sua relaccedilatildeo com os deuses uma vez que por duas vezes nos versos 761 e 777 o mensageiro
traz as palavras de Calcas o adivinho dos gregos justificando a ira da deusa quanto ao
protagonista pois este ao natildeo reconhecer o poder dos deuses nas accedilotildees dos homens negando-
lhes participaccedilatildeo em seu triunfo natildeo pensa e natildeo se modera como um homem (οὐ κατ`
ἄντρωπον φρονῶν v 777) Para noacutes entatildeo aleacutem do que diz Knox a hipeacuterbole potildee em
evidecircncia a sua perspectiva diante da instabilidade do mundo que levada ao extremo segundo
sua iacutendole predisposta ao excesso faz trocar de lugar Atridas e deuses de forma proposital
Ao aplicar tal situaccedilatildeo a um futuro τὸ λοιπὸν no qual a realidade tem regras semelhantes agraves
do presente o heroacutei tem como objetivo reconhececirc-la como intoleraacutevel e insustentaacutevel para os
seus princiacutepios Logo essa instabilidade exagerada marca ao menos a impossibilidade do
Telamocircnio viver segundo essas premissas e reforccedila certamente sua disposiccedilatildeo em refutar se
dobrar a uma realidade como tal Com efeito a inversatildeo de papeacuteis entre deuses e Atridas tal
como estaacute parece legitimar uma ironia Quando o heroacutei reconhece que tanto deuses quanto
Atridas satildeo chefes devendo a eles ceder parece-nos que quer dizer exatamente o contraacuterio
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que estaacute resoluto em natildeo se submeter pois a posiccedilatildeo deles eacute instaacutevel tal qual a da amizade e
da inimizade Isso para noacutes fica mais claro pelo uso do futuro de voz meacutedia dos verbos
utilizados26 εἰσόμεσθα e μαθησόμεσθα que representam atraveacutes da voz meacutedia um futuro
promissivo ou seja correspondem ao envolvimento do sujeito com a accedilatildeo que eacute antecipada
exatamente pelo compromisso do agente em realizaacute-la (Ibidem p 457) Logo a disposiccedilatildeo a
um compromisso a uma promessa que logicamente natildeo seraacute executada evidencia senatildeo uma
ironia o reforccedilo em afirmar algo pelo seu oposto A hipeacuterbole assim parece acentuar essa
ironia tornando-a inclusive ao nosso ver uma zombaria um escaacuternio acerca da condiccedilatildeo
instaacutevel do mundo e por extensatildeo da proacutepria natureza divina e humana
O verso 677 que apresenta uma pergunta retoacuterica ldquoe noacutes como natildeo aprenderemos a
moderar-nosrdquo (ἡμεῖς δὲ πῶς οὐ γνωσόμεσθα σωφρονεῖν) corrobora tal pensamento pois jaacute
nos conduz agrave resposta negativa devido a duas consideraccedilotildees A primeira porque como antes se
faz atraveacutes de um futuro promissivo tambeacutem de voz meacutedia ou seja revela o compromisso
que natildeo seraacute cumprido A segunda como aponta Knox (Ibidem p 17) eacute o fato de que o
verbo σωφρονεῖν e muitas das palavras oriundas dessa raiz descrevem na peccedila em questatildeo a
atitude proacutepria dos subordinados ou inferiores Assim Aacutejax evidenciando esse sentido impele
Tecmessa a esse comportamento (σωφρονεῖν v 586) Menelau ao Telamocircnio (σωφρόνως v
1075) Agamecircmnon a Teucro (σωφρονήσεις v 1259) e Atena aos homens (σώφρονας v
132) Assim essa moderaccedilatildeo referida pelo heroacutei ecoa senatildeo como uma espeacutecie de submissatildeo
para o qual se mostra extremamente odiosa sobretudo quando em relaccedilatildeo a quem lhe satildeo
inimigos Podemos deduzir disso que o heroacutei de iacutendole guerreira e arcaica parece igualar essa
submissatildeo religiosa poliacutetica ou social agrave esfera beacutelica ou seja agrave rendiccedilatildeo Dessa forma se
para ele mesmo ela natildeo eacute possiacutevel quanto agrave guerra uma vez que o valor estaacute na bela morte e
natildeo em uma condiccedilatildeo de escravidatildeo a submissatildeo seja de qualquer acircmbito representa o
mesmo uma rendiccedilatildeo sobretudo ao consideraacute-la em relaccedilatildeo aos deuses e Atridas que lhe
satildeo inimigos
Com efeito o suiciacutedio representa a fuga a essa submissatildeo agrave qual o mundo o aprisiona
A ironia entatildeo parece intensificar essa refutaccedilatildeo das regras vigentes pois do mesmo modo
26
Segundo Murachco o tempo futuro da liacutengua grega natildeo eacute verdadeiramente um tempo mas uma eventualidade uma antecipaccedilatildeo sobretudo porque corresponde a um desejo em certo grau de intensidade que justifica a projeccedilatildeo do ato verbal O autor prossegue evidenciando sobretudo a forma meacutedia de muitos futuros de verbos ativos a qual reflete o envolvimento do sujeito no ato verbal Essa noccedilatildeo semacircntica implica uma promessa um compromisso por parte do agente expressando-se de alguma maneira uma certeza na antecipaccedilatildeo o que justifica o uso do indicativo (MURACHCO 2007 p 456-457) Esse eacute o caso dos verbos εἰσόμεσθα (do verbo εἴδω cujo futuro eacute εἴσομαι) μαθησόμεσθα (do verbo μανθάνω cujo futuro eacute μαθήσομαι) e como veremos a seguir o verbo γνωσόμεσθα (do verbo γιγνώσκω cujo futuro eacute γνώσομαι)
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que suas accedilotildees escapam e por isso zombam dessa condiccedilatildeo suas palavras parecem tomar o
mesmo caminho Logo tanto o falso compromisso assumido quanto a sacralidade dos
vocaacutebulos que revelam seu suiciacutedio promovem senatildeo sua uacuteltima desmedida em vida
sobretudo dramatizada tal qual a do proacutelogo em oposiccedilatildeo agravequelas referidas em analepse pelo
mensageiro no terceiro episoacutedio as quais juntas expotildeem o caraacuteter do personagem e sua
coerente unidade Todos esses atos excessivos se mostram assim agressivos e violentos agrave
posiccedilatildeo exercida pela divindade e pelos Atridas na peccedila
Em decorrecircncia dessa interpretaccedilatildeo a gravidade das accedilotildees do protagonista sobretudo
quanto agrave sua retoacuterica igualmente hostil mais do que justificar a sua escolha serve-nos de
apoio e contribuem para a caracterizaccedilatildeo iracunda do heroacutei que natildeo se esquece das
hostilidades dos amigos que se tornaram inimigos Toda ira e todo oacutedio se justificam tantos
nas palavras quanto nas accedilotildees e nelas podem ser observadas Com efeito a ira do
personagem contra aqueles que lhe causam mal tambeacutem o move a tomar a decisatildeo definitiva
de suicidar-se pois o heroacutei ocupando a posiccedilatildeo de inimigo para os gregos e os deuses uma
vez que reagiu contra eles excessivamente de forma que se justifica tal situaccedilatildeo e estando
incapaz de retornar agrave sua paacutetria pela honra inferior agrave do pai tambeacutem age considerando evitar
qualquer forma de agradar os Atridas e de se dobrar aos deuses que lhe satildeo hostis Dentro do
acircmbito da causalidade interna do enredo esse sentimento se mostra como um dos elementos
fundamentais na composiccedilatildeo da obra e de sua caracterizaccedilatildeo Por um lado ela impele o
personagem a evitar o ponto mais alto de sua gloacuteria a bela morte em um combate singular
com um igual e por outro permite em contrapartida uma accedilatildeo mais traacutegica na estrutura da
peccedila o suiciacutedio uma vez que esta uacuteltima accedilatildeo natildeo fornece a fuga agrave submissatildeo pois os
Atridas mesmo que por um tempo como chefes ainda impedem seus ritos fuacutenebres
Com efeito assim como se pontuou no capiacutetulo passado eacute necessaacuterio entender a
relaccedilatildeo entre ira e loucura segundo o que reconhecemos ser pertinente agrave trageacutedia
Anteriormente distinguimos a ira choacutelos da loucura maniacutea (μανία) ou da doenccedila noacutesos
(νόσος) uma vez que estas uacuteltimas satildeo extremamente recorrentes em Aias sobretudo usado
de forma conjunta com o reforccedilo de vaacuterios vocaacutebulos deles derivados Para Bernard Knox a
loucura consiste somente no extravio criado sobre os olhos fazendo o heroacutei ver homens no
lugar de animais e o encorajamento da deusa aos atos sobre os chefes como o assassinato e a
tortura segundo o autor representa um impulso a uma vontade jaacute em andamento quando em
sua sanidade (1961 p 5) Flaacutevio Ribeiro de Oliveira endossa essa perspectiva acrescentando
que o Telamocircnio ldquonatildeo tem sua natureza modificada quando arquiteta e executa a carnificina
noturna para o autor a violecircncia com que Aacutejax age eacute proacutepria do caraacuteter do heroacutei magniacutefico e
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brutal o distuacuterbio visual que sofre e sua doenccedila satildeo uma uacutenica coisa (apud HUumlBSCHER
2011 p 27) Em reforccedilo a isso a perspectiva de Agatha Bacelar se mostra importante pois
para ela a vontade do protagonista retrata senatildeo a predisposiccedilatildeo dele mesmo ao excesso
configurando um estado proacuteprio e caracteriacutestico do desmedido ὑβριστής que ao seu ver
constitui a dicotomia presente na obra representando a natildeo civilizaccedilatildeo o selvagem o baacuterbaro
em oposiccedilatildeo ao civilizado e por isso moderado composto da σωφροσύνη (2006 p 236-238)
Eacute visiacutevel e clara a disposiccedilatildeo do heroacutei agrave desmesura sobretudo como bem pontua
Bacelar a partir do que diz Aristoacuteteles no primeiro livro da Retoacuterica (1274a 13) ldquoὑβρις
conota προαίρεσις uma decisatildeo que instaura um comprometimento eacutetico entre o agente e a
accedilatildeo uma vez que προαίρεσις depende de uma ἠθικὴ ἕξις de uma disposiccedilatildeo permanente de
caraacuteterrdquo (2006 p 235) Contudo isso contradiz a natureza do heroacutei se percebemos as
condiccedilotildees em que essa violecircncia se manifesta em uma accedilatildeo noturna e sorrateira
(HUumlBSCHER 2011 p 27) tanto se retomarmos a tradiccedilatildeo homeacuterica agrave qual Soacutefocles se
refere quanto se utilizarmos os indiacutecios textuais da proacutepria obra que isso reiteram
Em relaccedilatildeo agraves epopeias homeacutericas podemos citar dois exemplos O primeiro referido
tanto por Huumlbster (Ibidem p 27-28) quanto por Stanford (1978 p 189) nos estudos desta
peccedila corresponde aos versos 645 a 647 do Canto XVII da Iliacuteada que apresentam o heroacutei em
conjunto com os Aqueus cobertos por uma nuvem escura lanccedilada por Zeus para permitir o
avanccedilo troiano na batalha Neste momento o Telamocircnio roga por luz e eacute atendido O fato
importante eacute perceber que neste fragmento o proacuteprio heroacutei reconhece o caraacuteter auspicioso da
luz (Ibidem p 189-190) para o reconhecimento da virtude guerreira pois a Zeus ele a pede
(φάει v 647) suspeitando que talvez sua morte se aproximε O outro momento eacute o Canto
VII versos 273-293 no qual ele se encontra em vantagem contra Heitor em combate singular
cujo fim sem resoluccedilatildeo se faz pelo reconhecimento da chegada da noite (νύξ v 282 293)
Esta em oposiccedilatildeo ao dia de forma coerente com a passagem anterior eacute vista sobretudo como
inadequada ou mesmo nefasta para os combates Com efeito mesmo que excessivo e
violento um Aacutejax noturno contradiz a iacutendole agrave qual a audiecircncia estaria acostumada como eacute o
caso recorrente da peccedila da qual podemos ver vaacuterias referecircncias agrave essa disposiccedilatildeo ldquoagrave noiterdquo
(νύκτωρ v 57) nas palavras de Atena ldquoagrave noiterdquo (νυκτός v 141) nas do coro ldquoAacutejax
noturnordquo (νύκτερος Αἴας v 217) e ldquoagrave noiterdquo (νυκτός v 285) nas de Tecmessa ou na
significativa invocaccedilatildeo do Telamocircnio que chama para si a escuridatildeo diante da situaccedilatildeo em
que se encontra ldquotrevas minha luz Eacuterebo para mim o mais luminosordquo (σκότος ἐμὸν φάος
ἕρεβος ὦ φαεννότατον v 394-395)
100
Essa contradiccedilatildeo eacute sobretudo afirmada na peccedila natildeo especificamente ao ato noturno
mas ao comportamento em geral do personagem Ao menos dois exemplos podemos tirar da
trageacutedia em questatildeo que retratam o reconhecimento dos proacuteximos ao heroacutei que comprovam
esse fato Um deles eacute expresso pelo coro em fragmento jaacute visto neste capiacutetulo Os soldados de
Salamina afirmam que seu senhor ldquojaacute natildeo firme na natural iacutendole encontra-se desta afastadordquo
(οὐκέτι συντρόφοις ὀργαῖς ἔμπεδος ἀλλ ἐκτὸς ὁμιλεῖ v 639-640) Ou seja o heroacutei jaacute natildeo
executa accedilotildees conforme o costumeiro caraacuteter Sua cativa reforccedilando tal premissa diz que
῾Ο δ εὐθὺς ἐξῴμωξεν οἰμωγὰς λυγράς ἃς οὔποτ αὐτοῦ πρόσθεν εἰσήκουσ ἐγώmiddot πρὸς γὰρ κακοῦ τε καὶ βαρυψύχου γόους τοιούσδ ἀεί ποτ ἀνδρὸς ἐξηγεῖτ ἔχεινmiddot27 320
(Aias v 317-320)
Nessa passagem a cativa natildeo reconhece os atos do senhor que chora copiosamente
Segundo a iacutendole do heroacutei este julgava tal ato como proacuteprio de homem mau e abatido
ldquoκακοῦ τε καὶ βαρυψύχου [] ἀνδρὸςrdquo algo estranho ao seu comportamento por isso
Tecmessa revela ao coro a incoerecircncia daquela atitude vista como ineacutedita e assim grave
Natildeo sabendo como agir ela convoca os amigos a ajudaacute-la sobretudo porque estaacute surpresa com
a reaccedilatildeo de Aacutejax que foge completamente ao costume Uma informaccedilatildeo relevante para esse
estudo estaacute em um dos adjetivos vinculados ao substantivo homem βαρύψυχος em cujo
radical estaacute presente o termo βάρυς que significa pesado componente do particiacutepio que
descreve o heroacutei nas palavras de Atena pesado de ira (χόλῳ βαρυνθεὶς v 41)
Esse estado do heroacutei grave diante das circunstacircncias dos eventos da peccedila indica que
mesmo lhe sendo natural o excesso e a disposiccedilatildeo agrave hyacutebris seu comportamento natildeo eacute o
costumeiro seja o agente noturno que contradiz o da tradiccedilatildeo que invoca a luz seja aquele
que geme chora e arranca os cabelos contrariando o que era esperado pelos seus proacuteximos A
partir disso preferimos concordar com Bruno Huumlbscher que observa a loucura do heroacutei
lanccedilada por Atena natildeo consistir apenas em fazer o Telamocircnio ver nos animais do rebanho
grego a figura dos heroacuteis Ou ao menos reconhecer uma participaccedilatildeo maior da deusa aleacutem do
engano visual Assim pode-se dizer que a puniccedilatildeo divina ao personagem natildeo eacute direta pois
isso simplificaria a trama deixando-a menos traacutegica e inclusive enfraquecendo a questatildeo eacutetica
essencial agrave peccedila Dessa forma a puniccedilatildeo mais provavelmente se configura no acircmbito do
conjunto da intervenccedilatildeo divina e da vontade humana da mesma maneira como na composiccedilatildeo 27
E ele imediatamente gemeu lamentos tristes os quais eu nunca outrora ouvi dele pois ao lado de homem mau e abatido sempre explicava tais lamentos se deter (v 320)
101
homeacuterica as motivaccedilotildees divinas e humanas satildeo indissoluacuteveis uma vez que se daacute como
resposta ao heroacutei que inserido nesse paradigma beacutelico homeacuterico de sujeiccedilatildeo agrave divindade
rejeita a ajuda divina algo pensaacutevel apenas no seacuteculo V evidenciando-se um excesso de
caraacuteter que eacute proacuteprio do personagem de Soacutefocles (2011 p 39-40)
A ira do heroacutei entatildeo reitera o aspecto humano desse composto duplo representando
sobretudo a desmedida inerente ao personagem natural a ele pois revela ser a reaccedilatildeo
imediata ao julgamento das armas que potildee em evidecircncia a sobrevalorizaccedilatildeo de sua honra em
comparaccedilatildeo com a alheia No outro extremo o extravio visual eacute proacuteprio da accedilatildeo divina
Contudo a coacutelera do personagem nos parece ser a base sobre a qual Atena age confundindo-
se humano e divino nos atos do heroacutei fazendo-se gerar o excesso maacuteximo do personagem a
loucura que segundo Segal para os gregos consistia na negaccedilatildeo da civilizaccedilatildeo (apud
Huumlbscher p 27-28) De base humana e divina essa loucura reiterando o caraacuteter selvagem e
baacuterbaro do personagem faacute-lo ultrapassar os limites da comunidade e da cidade por um lado
rompendo com seus valores heroicos uma vez que age fora de sua iacutendole por outro
rompendo com a sociedade a que pertence uma vez que se entrega agrave carnificina dos
conterracircneos sobretudo se deleitando com tais atos
De forma significativa o vocaacutebulo loucura μανία e seus derivados satildeo tatildeo frequentes
quanto o vocaacutebulo doenccedila νόσος Este cujo sentido mais concreto eacute enfermidade abrange
tambeacutem o significado de loucura ou paixatildeo esta uacuteltima quando vinculada agrave ideia descontrole
emocional Por isso eacute relevante para noacutes quando Aacutejax se refere a uma atuaccedilatildeo dupla da deusa
que deixa tanto a sua visatildeo (ὄμμα v 447) quanto os seus pensamentos (φρένες v 447)
desencaminhados (διάστροφοι v 447) por ter sido ele proacuteprio a receber da deusa essa doenccedila
raivosa (λυσσώδη νόσον v 452) Ora visatildeo e pensamento parecem estar em campos
diferentes e distintos especialmente se reconhecermos no vocaacutebulo φρήν a ideia de juiacutezo
vinculado agrave moderaccedilatildeo pois sabemos o papel essencial de sentido em particular agrave trageacutedia em
questatildeo E essa doenccedila raivosa parece senatildeo retomar a ideia de afastamento da temperanccedila
aleacutem de sugerir atuar no mesmo campo semacircntico da ira χόλος mas de uma forma mais
intensa
Acrescente-se a isso o fato de a proacutepria divindade se expressar dessa forma ldquoeu o
heroacutei que se extravia em louca doenccedila excitava lanccedilava-o em direccedilatildeo a maacutes astuacutecias (᾿Εγὼ
δὲ φοιτῶντ ἄνδρα μανιάσιν νόσοις ὤτρυνον εἰσέβαλλον εἰς ἕρκη κακά v 59-60) Nesses
versos podemos ver claramente que a participaccedilatildeo da deusa vai aleacutem do engano visual pois
ela mesma diante de Odisseu afirma excitar ὤτρυνον e impelir εἰσέβαλλον o heroacutei
sobretudo parece-nos a insuflar seu acircnimo Um vocaacutebulo desse fragmento eacute significativo em
102
especial para vermos a accedilatildeo sobre a iacutendole do heroacutei ἕρκη Esse eacute o mesmo termo que compotildee
o epiacuteteto homeacuterico do heroacutei muralha dos Aqueus ἕρκος Ἀχαιῶν Esse vocaacutebulo abrange o
significado como jaacute dissemos de cercado muro defesa mas tambeacutem por definir um ardil em
prol da proteccedilatildeo acaba por tambeacutem se estender ao sentido de astuacutecia Irocircnico por parte da
deusa que se deleita com o infortuacutenio do heroacutei e provavelmente tambeacutem pelo uso da palavra
inserida em um contexto diferente Significativamente esse impulso em direccedilatildeo a uma astuacutecia
justifica de forma clara as accedilotildees de um Aacutejax noturno pois retrata senatildeo o episoacutedio da
Doloneia no Canto X da Iliacuteada no qual Odisseu e Diomedes caccedilam e aprisionam Doacutelon
espiatildeo troiano adquirindo muitas informaccedilotildees sobre as tropas inimigas O sucesso dessa
expediccedilatildeo noturna se daacute pela assistecircncia de Atena a quem os heroacuteis requerem ajuda e
prometem sacrifiacutecios Assim na peccedila a deusa diante do Laertida apresenta as condiccedilotildees da
expediccedilatildeo do Telamocircnio que astuto δόλιος (v 47) age agrave noite νύκτωρ (v 47) Se eacute a
proacutepria deusa que o impele a maacutes astuacutecias validamente podemos deduzir sua participaccedilatildeo no
planejamento da expediccedilatildeo do heroacutei sobretudo porque representa por um lado uma
repeticcedilatildeo da accedilatildeo bem-sucedida de Odisseu o qual ela mesma auxiliou em episoacutedio anterior
cronologicamente ao proacutelogo e por outro tambeacutem representa os domiacutenios e atributos que
satildeo conferidos a ela como por exemplo a inteligecircncia que no acircmbito militar reflete a
estrateacutegia astuta e perspicaz fundamental agrave primeira cena da peccedila
Em relaccedilatildeo agrave bestialidade corrobora-se a tortura dos animais em especial a dois
carneiros dos quais de um corta a cabeccedila e a liacutengua e de outro o corpo prende agrave coluna da
tenda o castigando com accediloites claramente representando Odisseu e Agamecircmnon Com
efeito Tecmessa reconhece nessas accedilotildees sobretudo nos insultos vis do heroacutei a origem divina
pois alega ldquotais coisas uma deidade e natildeo algueacutem dos homens ensinourdquo (ἃ δαίμων κοὐδεὶς
ἀνδρῶν ἐδίδαξεν v 243-244) Ela mesma reconhece uma presenccedila na tenda durante os atos
crueacuteis do heroacutei mas natildeo vecirc a deusa assim como nenhum outro percebendo-a como uma
sombra (σκιᾷ v 301) com quem Aacutejax por vezes dialoga
Todas essas explanaccedilotildees parecem nos conduzir ao entendimento dessa loucura μανία
ou doenccedila νόσος recorrentes na obra segundo o entendimento de Bruno Huumlbscher ou seja
como uma puniccedilatildeo divina indireta uma vez que confunde atos divinos e humanos levando o
personagem a executar accedilotildees desejadas passionalmente por ele (2011 p 39-40) Dessa forma
a ira parece reforccedilar o aspecto humano na accedilatildeo que causa o infortuacutenio do heroacutei segundo as
premissas aristoteacutelicas algo essencial para tornar a obra mais traacutegica e consequentemente
mais bela E quando agregada agrave participaccedilatildeo divina de Atena o que de forma alguma retira a
responsabilidade do heroacutei sobre seus atos e as decorrentes consequecircncias todo esse conjunto
103
parece retomar de maneira inversa as premissas do pensamento homeacuterico fortemente presente
na peccedila de Soacutefocles ressignificando-as ao contexto da trageacutedia Se na Iliacuteada o ato heroico
necessita da coparticipaccedilatildeo divina em um contexto em que esse entendimento eacute vaacutelido como
em Aias a ruiacutena heroica deve pressupor paralelamente tambeacutem essa mesma coparticipaccedilatildeo
Logo na loacutegica interna da obra para o infortuacutenio ou para a gloacuteria do personagem de modelo
arcaico e guerreiro haacute a intervenccedilatildeo divina O kyacutedos de origem divina necessaacuterio para heroacutei
eacutepico se transfigura na maniacutea tambeacutem de origem divina para Aacutejax induzindo-o a executar
atos que acarretam sua ruiacutena atraveacutes de um erro terriacutevel (ἄτῃ [] κακῆ v 123) segundo a
forma como tal conceito de erro eacute concebida (cf p 30-31) e cuja participaccedilatildeo divina consiste
tambeacutem mas natildeo apenas em extravio visual Essa nos parece ser sobretudo a relaccedilatildeo da ira
com a loucura a reiteraccedilatildeo do aspecto humano nos atos que acarretam o infortuacutenio do
protagonista de tal forma que a obra ressalta o papel fundamental desse sentimento na
composiccedilatildeo da trama da trageacutedia da maneira como tentamos mostrar acima
Com efeito podemos resumir o papel da ira do heroacutei e a sua estruturaccedilatildeo na
composiccedilatildeo da trama da peccedila em questatildeo Faccedilamos isso a partir de quatro perspectivas Duas
quanto agrave noccedilatildeo de causalidade do enredo interna e externa E outras duas do ponto de vista da
caracterizaccedilatildeo direta e indireta
Em relaccedilatildeo agraves duas primeiras esse sentimento que caracteriza o personagem no iniacutecio
da peccedila eacute retomado ao fim da mesma como jaacute vimos ambas de forma evidente
respectivamente nas palavras da deusa Atena e nas de seu irmatildeo Teucro ensejando um ciclo
perfeito que demarca a permanecircncia da ira em toda a extensatildeo da obra Mas se esse mesmo
estado do personagem estava configurado in medias res remetendo-se a accedilotildees anteriores ao
episoacutedio retratado na trageacutedia atraveacutes de analepses nas quais esse sentimento impulsiona as
accedilotildees do seu detentor o mesmo acontece pois assim se sugere agraves accedilotildees que lhe satildeo
posteriores uma vez que o ecircxodo permite compreender tal possibilidade Isso significa dizer
que Soacutefocles por um lado demarca os limites da atuaccedilatildeo desse estado do heroacutei dentro da
peccedila e por outro estende seu papel aleacutem das fronteiras da trageacutedia sobretudo e ao mesmo
tempo realinhando seu episoacutedio com a versatildeo da tradiccedilatildeo homeacuterica presente na Odisseia
como vimos no capiacutetulo anterior Infere-se dessa forma uma ira capaz de persistir no heroacutei
impelindo sua alma no mundo dos mortos a natildeo se reconciliar com Odisseu e assim sempre
a relembrar a sua origem a desonra pela pretericcedilatildeo de seu valor crido como indubitaacutevel
Logo o autor impotildee agrave ira do heroacutei a prerrogativa de uma causalidade tanto interna quanto
externa aos episoacutedios presentes ou referidos pela obra
104
Em relaccedilatildeo agraves duas uacuteltimas perspectivas agraves caracterizaccedilotildees direta e indireta ambas
podem ser contempladas no estilo de Soacutefocles Quanto agrave direta que representa um
procedimento estaacutetico constituiacutedo essencialmente de descriccedilotildees cuja finalidade de
caracterizaccedilatildeo eacute evidente recorremos agraves duas menccedilotildees expliacutecitas agrave ira choacutelos χόλος das
quais partiram nossas anaacutelises uma em relaccedilatildeo aos chefes gregos marcadamente Odisseu e os
Atridas outra em relaccedilatildeo aos deuses em especial a divindade Atena Jaacute quanto agrave indireta
que corresponde a um processo dinacircmico reconhecido nos discursos e nas suas accedilotildees
significativos do heroacutei elencamos os dois discursos dos heroacuteis estudados por noacutes pelos quais
demonstra-se a ira do personagem e pelos quais essa ira se confirma no suiciacutedio cometido
Entendemos por significativos segundo os criteacuterios aristoteacutelicos as accedilotildees e os discursos que
manifestem uma escolha e assim evidenciando um caraacuteter (Poeacutetica 1454a 17-19) Como a
decisatildeo de se suicidar corresponde agrave reflexatildeo de Aacutejax sobre sua situaccedilatildeo disso se levando em
conta a impossibilidade de se reconciliar com deuses e chefes gregos e de tomar alguma accedilatildeo
que agrade estes e que evite a perseguiccedilatildeo daqueles especialmente influenciado pela ira
contra esses vistos como responsaacuteveis pela situaccedilatildeo de desonra completa em que se encontra
os discursos estudados correspondem a um efetivo caraacuteter do heroacutei acerca desse sentimento
que o acomete E o ato em si confirma tal caracterizaccedilatildeo
Tentamos nessa seccedilatildeo a partir de tudo o que foi explanado revelar como as noccedilotildees
de virtude e de ira se apresentam como chaves de leitura essenciais para o entendimento mais
profundo da peccedila sobretudo detalhando como a composiccedilatildeo da trama necessita dessa
caracterizaccedilatildeo do heroacutei para alcanccedilar seus vaacuterios objetivos
2 2 A VERSAtildeO DE OVIacuteDIO
Nos propomos aqui a analisar o Livro XIII da obra que descrevem o episoacutedio da
metamorfose do heroacutei grego Aacutejax A anaacutelise estaraacute alicerccedilada em alguns traccedilos fundamentais
da caracterizaccedilatildeo desse personagem tanto aquelas marcas mais correntes provenientes da
tradiccedilatildeo arcaica do mito desse heroacutei quanto especialmente do episoacutedio especiacutefico da disputa
pelas armas de Aquiles
Dessa forma o estudo que pretendemos dispor se restringe a um fragmento
delimitado os primeiros 398 versos do livro XIII que descrevem o episoacutedio da disputa entre o
Telamocircnio e Ulisses pelas armas do Pelida o consequente suiciacutedio do primeiro e sua
metamorfose Poreacutem a anaacutelise que propomos bem como os criteacuterios adotados para apreciaccedilatildeo
105
estatildeo submissos a duas caracteriacutesticas essenciais ao heroacutei a virtude e a ira na caracterizaccedilatildeo
de Aacutejax Ambas tecircm igual papel estrutural no episoacutedio configurando-se como chaves de
leitura para a compreensatildeo da organicidade do texto Assim essa caracterizaccedilatildeo em que
consiste esta seccedilatildeo trata da forma pela qual Oviacutedio constroacutei esse personagem dando-lhe
profundidade e significado diante do contexto do episoacutedio Dessa forma em nossa anaacutelise
observaremos os fragmentos do texto que evidenciem esses traccedilos caracteriacutesticos do
Telamocircnio por meio de indiacutecios textuais capazes de demonstrar a funccedilatildeo estrutural dessas
subcategorias escolhidas para o episoacutedio utilizando-se tambeacutem da tipologia que distingue
caracterizaccedilatildeo direta e indireta de acordo com o que jaacute apresentamos na seccedilatildeo anterior
Tentaremos mostrar como o texto articula esses elementos de forma a fundamentar
sua estrutura tornando-se assim imprescindiacuteveis ao entendimento mais profundo do caraacuteter
literaacuterio desse episoacutedio da obra A partir dos resultados obtidos ao fim desta seccedilatildeo poderemos
fazer uma leitura intertextual no proacuteximo capiacutetulo a fim de observar semelhanccedilas e diferenccedilas
entre as obras de Oviacutedio e Soacutefocles componentes do corpus desse estudo evidenciando ateacute
que ponto aquele se utiliza das informaccedilotildees deste e ateacute que ponto se fornece uma nova leitura
agrave obra de seu predecessor sempre tendo como ponto de confronto os elementos desdobrados
da caracterizaccedilatildeo a qual mencionamos
Devido agrave perspectiva adotada e visto que nossa anaacutelise recairaacute apenas sobre alguns
versos dispostos no livro XIII faz-se necessaacuteria a estruturaccedilatildeo do episoacutedio em questatildeo de
modo a contextualizar em que passagens estatildeo inseridos os fragmentos escolhidos facilitando
a compreensatildeo do que seraacute apresentado Cabe-nos ressaltar que em nossa apreciaccedilatildeo do
texto recorreremos a configuraccedilatildeo apresentada abaixo Assim dispomos a composiccedilatildeo do
episoacutedio para uma clara apreensatildeo de sua estrutura
1 Descriccedilatildeo de Aacutejax (v 1 ndash 5) o narrador descreve o heroacutei no momento que antecede
seu discurso A partir de uma perspectiva externa essa passagem nos fornece informaccedilatildeo
sobre a construccedilatildeo do personagem dispondo-o iracundo antes mesmo de comeccedilar o seu
discurso
2 Discurso de Aacutejax (v 5 ndash 122) dada pelo narrador a voz ao personagem o
personagem faz um discurso de si e de seu adversaacuterio A composiccedilatildeo do discurso nos
permitiraacute fundamentar a caracterizaccedilatildeo do personagem pois nos revela seu comportamento e
seus princiacutepios A partir de um jogo de contrastes com Ulisses o heroacutei dispotildee sua linhagem e
suas accedilotildees de modo que a audiecircncia veja nele sua virtude guerreira tal qual ele proacuteprio a
enxerga extremamente preponderante agrave de seu adversaacuterio Dessa forma ele revela uma
tendecircncia a sobrevalorizar o meacuterito de sua virtude
106
3 Descriccedilatildeo de Ulisses (v 123 ndash 127) o narrador descreve Ulisses antes de proferir
seu discurso Tambeacutem a partir de uma perspectiva externa esse trecho nos fornece
informaccedilatildeo sobre o caraacuteter do personagem especialmente retomando caracterizaccedilotildees
homeacutericas do personagem
4 Discurso de Ulisses (128 ndash 381) dada pelo narrador a voz ao personagem esse
heroacutei apresenta contra-argumentos descontruindo o discurso de seu adversaacuterio Haacute ainda
pouca interferecircncia do narrador Com efeito o Laertida dispotildee seus feitos natildeo embasados
meramente na noccedilatildeo de virtude guerreira mas sobretudo fundamentados em uma causalidade
em que os seus resultados obtidos satildeo imprescindiacuteveis para a derrota de Troia ou seja
reforccedilando-se e reiterando que as suas accedilotildees satildeo essenciais e determinantes para vitoacuteria dos
gregos
5 Desfecho sumarizado (v 381 ndash 398) narraccedilatildeo final do episoacutedio que descreve em
formato de epiacutelogo a fuacuteria insuflada do Telamocircnio as suas uacuteltimas palavras o seu suiciacutedio e
a sua metamorfose Mais um trecho importante para fundamentar o caraacuteter do personagem
dentro da obra pois para esse ponto convergem em desfecho todos os elementos antecipados
e desenvolvidos acerca das categorias estudadas
Como se pode ver a proacutepria estruturaccedilatildeo do episoacutedio da disputa entre esses dois
gregos presente no livro XIII de Metamorfoses aponta a predominacircncia do discurso direto
dos personagens Contudo nossa anaacutelise equalizaraacute versos que representam a voz do narrador
e o discurso direto do personagem uma vez que esses dois guardam relevantes indiacutecios
textuais para o estudo a que nos propomos Desses dois modos narrativos desdobramos
sobretudo a caracterizaccedilatildeo direta e indireta respectivamente em que nesta uacuteltima seraacute
fundamental a autocaracterizaratildeo do Telamocircnio por apresentar seu ponto de vista
psicoloacutegico ideoloacutegico cultural etc
Quanto aos fragmentos correspondentes ao discurso direto o segmento que seraacute
predominantemente contemplado seraacute o discurso de Aacutejax pois ao nosso ver essa passagem
guarda mais indiacutecios textuais significativos para o estudo das noccedilotildees de virtude e ira desse
personagem e mostram sua perspectiva de mundo e de valor guerreiro Obviamente que
usaremos em nossa anaacutelise versos natildeo inseridos nesse corpus natildeo excluindo assim o longo
discurso de Ulisses imprescindiacutevel para uma melhor compreensatildeo do que seraacute contemplado
mas ainda de uso mais secundaacuterio e instrumental
Quanto aos fragmentos correspondentes agrave voz do narrador externo nos debruccedilaremos
especialmente na descriccedilatildeo de Aacutejax e no desfecho sumarizado pois como poderemos ver ao
107
longo da anaacutelise essas passagens sintetizam a unidade textual desenvolvida sobre as duas
caracteriacutesticas a ser apreciadas no estudo do personagem
Conveacutem agora iniciarmos a anaacutelise Primeiramente estudaremos a categoria virtude e
depois passaremos agrave ira tal qual fizemos na seccedilatildeo anterior comeccedilando pelos fragmentos
correspondentes ao narrador externo devido ao seu aspecto sintetizador de todo o episoacutedio
Ainda durante esse momento seraacute possiacutevel apresentar outros fragmentos isolados mesmo do
discurso direto como contraponto e para confirmar determinadas anaacutelises Depois
prosseguiremos com o estudo das categorias nos fragmentos correspondentes ao discurso
direto dos personagens especialmente o do heroacutei de Salamina como jaacute foi referido
anteriormente por retratar mais propriamente a caracterizaccedilatildeo indireta Por fim
demonstraremos como essas duas categorias se entrelaccedilam para alcanccedilar uma unidade textual
proacutepria para o episoacutedio assim para este representando fundamentais elemento e extinguindo
qualquer noccedilatildeo circunstancial que se possa inferir
2 2 1 Virtus a virtude do heroacutei na perspectiva latina
Nessa seccedilatildeo noacutes analisaremos os dois primeiros versos do livro em questatildeo os quais
retomam um importante epiacuteteto eacutepico do heroacutei e que estatildeo presentes na descriccedilatildeo de Aacutejax e
presentes no discurso de Aacutejax os versos 73-97 os quais demonstram a proeminente
excelecircncia guerreira do personagem especialmente sob o vieacutes de uma virtude defensiva E
seguida os seguintes presentes ainda no discurso direto do heroacutei os versos 9 ndash 20 nos quais
o Telamocircnio expotildee os atributos opostos entre ele e Ulisses que retomam a caracterizaccedilatildeo sob
a perspectiva da accedilatildeo e da palavra como jaacute vimos no capiacutetulo anterior ser proacutepria do
contraste entre esses dois chefes gregos os versos 34-47 e 103-122 que ressaltam a natureza
do Laertida como sendo contraacuteria agrave dos precircmios e que consequentemente retratam a desonra
do heroacutei de Salamina diante de uma disputa ao seu ver desnecessaacuteria pois sua virtude eacute
evidentemente superior agrave do seu adversaacuterio
A sua virtude (uirtus) mesmo inserida em um contexto claacutessico latino recupera na
obra em questatildeo noccedilotildees dos valores arcaicos gregos sobretudo homeacutericos Apesar de a antiga
uirtus aristocraacutetica romana poder ser situada proacutexima a areteacute grega (PEREIRA 2013 407)
isso natildeo parece acontecer plenamente quanto agrave caracterizaccedilatildeo do personagem em questatildeo
pois na nossa compreensatildeo esses valores satildeo postos ainda sob o prisma da eacutepoca de Oviacutedio
como seraacute pontuado na anaacutelise Sob o ponto de vista de valores tradicionais romanos
108
podemos dizer que a virtude (uirtus) teve no princiacutepio um sentido masculino cuja origem estaacute
na palavra que denomina o homem varatildeo (uir) por isso pertencia em um momento arcaico
apenas a este Contudo tendo se desenvolvido segundo Thomas Martin e podendo definir
inclusive um conjunto de atributos proacuteprios que uma mulher deveria ter de um modo geral
para a Roma antiga em relaccedilatildeo ao homem essa qualidade designava aquele que
protetor dos bons colocava o bem-estar do paiacutes em primeiro lugar seguido dos interesses da famiacutelia e por fim dos proacuteprios interesses [] Heroiacutesmo na batalha era a realizaccedilatildeo suprema para o homem ldquojustordquo mas soacute se o valor servisse agrave comunidade em vez de apenas agrave proacutepria gloacuteria individual (2014 p 29)
Esse heroiacutesmo em especial vinculado agrave accedilatildeo militar parece ser o ponto fulcral que
fundamenta o discurso de Aacutejax pois eacute a partir desse ponto em especial que o heroacutei expotildee os
valores apreciados por ele proacuteprio e segundo tais almeja a maacutexima honraria28 guerreira as
armas de Aquiles precircmios eventuais de sua patente virtude Contudo sua distinccedilatildeo beacutelica
parece seguir a disposiccedilatildeo da caracterizaccedilatildeo homeacuterica pois sugere se vincular a um aspecto
defensivo ou mesmo protetor em prol de um coletivo significativamente semelhante ao ideal
da uirtus romana da forma como a pontuamos acima Tentaremos observar tal hipoacutetese a
partir do estudo dos fragmentos supracitados sobretudo porque tal aspecto defensivo jaacute se
mostra possiacutevel nas epopeias homeacutericas Na necessidade de um fechamento teoacuterico mais
adequado utilizaremos o conceito de virtude (uirtus) estabelecido acima com a exceccedilatildeo de
que ela definiraacute apenas uma qualidade masculina sobretudo beacutelica devido ao conteuacutedo do
episoacutedio de Oviacutedio que retrata uma idade miacutetica na qual tal concepccedilatildeo parece ser verossiacutemil
e inclusive sugerida
Vejamos agora os dois primeiros versos do Livro XII que tratam da caracterizaccedilatildeo
direta do personagem sobretudo atraveacutes de uma foacutermula eacutepica conjuntamente com alguns do
final do Livro XII pois estes uacuteltimos servem para contextualizar melhor a cena que se segue
non ea Tydides non audet Oileos Aiax non minor Atrides non bello maior et aevo poscere non alii solis Telamone creatis
28
Segundo Rocha Pereira a honra (honor) pode ser concebida como exterior enquanto a virtude (uirtus) interior a quem a possui (2013 p 405) Certamente a primeira depende de um julgamento da comunidade ou seja depende de ldquoum reconhecimento puacuteblico do meacuteritordquo (Ibidem p 349) e a segunda conforme nos diz Ciacutecero ldquoexige honor nem outra eacute a recompensa da uirtus (Ibidem p 248) Dessa forma natildeo soacute o julgamento dos chefes gregos mas sobretudo a representaccedilatildeo material desse meacuterito visto como reconhecimento de seus feitos fazem Aacutejax ver a si mesmo como eventual vencedor pois a virtude para ele eacute senatildeo a excelecircncia guerreira que designa o heroiacutesmo do personagem
109
Laertaque fuit tantae fiducia laudis 625 a se Tantalides onus invidiamque removit Argolicosque duces mediis considere castris iussit et arbitrium litis traiecit in omnes [] Consedere duces et uulgi stante corona 1 Surgit ad hos clipei dominus septemplicis Aiax 29
(Metamorfoses XII v 622-628 XIII v 1 ndash 2)
Podemos ver pelo contexto dos versos que Oviacutedio retoma o episoacutedio da Odisseia
atribuindo agrave contenda um julgamento decidido atraveacutes da participaccedilatildeo de todos os chefes
gregos O diaacutelogo com a Iliacuteada tambeacutem parece evidente pois se apresenta um Agamecircmnon
que se absteacutem do encargo da decisatildeo (onus [] remouit v 626) e com isso o narrador parece
sugerir um chefe que evita o peso de um resultado que pode ser semelhante ao ocorrido no
caso do Pelida ou seja um desfecho funesto Acrescentamos a isso que muitos heroacuteis natildeo se
julgaram merecedores de tais precircmios a isso nos serve como indiacutecio textual o verbo ousar
(audet v 622) A contenda entatildeo deve ser travada por aqueles de maior iacutempeto pois esses
se atrevem a tal empreitada A conduta do Atrida eacute dessa forma prudente em especial se
considerarmos a referecircncia agrave eacutepica homeacuterica Certamente apenas o filho de Teacutelamon e o de
Laerte se consideram dignos das armas e haacute nas palavras utilizadas uma insinuaccedilatildeo a um
orgulho a uma excessiva confianccedila nos proacuteprios meacuteritos uma vez que o termo fiducia pode
ter esse sentido significando ateacute arrogacircncia Segundo a perspectiva do narrador isso se torna
mais perceptiacutevel devido agrave relaccedilatildeo que se faz com o verbo ousar Pois ao se atribuir a noccedilatildeo de
audaacutecia ao ato de reclamar as armas para si o heroacutei que as demanda age senatildeo de alguma
maneira altiva Na nossa compressatildeo o orgulho de Aacutejax sugerido por Homero na expressatildeo
iacutempeto viril ou orgulhoso ageacutenora thymoacuten (ἀγήνορα θυμόν Odisseia XI v 562) estudada
anteriormente parece na linguagem da obra Metamorfoses ser retomada como uma
confianccedila em tamanho meacuterito (tantae fiducia laudis v 625) O adjetivo tantae auxiliam como
um intensificador dessa qualidade
Esse meacuterito do heroacutei de Salamina eacute destacado especialmente pelo atributo conferido ao
personagem no segundo verso do Livro XIII no qual jaacute se apresenta a foacutermula clipei dominus
septemplicis Aiax que retoma o epiacuteteto homeacuterico e as grandes caracteriacutesticas de Aacutejax a
29 Estas [as armas] nem o Tidida nem Aacutejax Oileu ousa clamar nem o mais novo Atrida nem o maior na guerra e na idade nem outros somente para o nascido de Teacutelamon e o de Laerte houve confianccedila em tamanho valor (v 625) De si o Tantaacutelida removeu o ocircnus e a inveja e aos chefes Argoacutelicos no meio dos acampamentos ordenou se sentarem e atribuiu a todos o arbiacutetrio da questatildeo [] Sentaram-se juntos os chefes e os soldados formando-se um ciacuterculo junto a estes surge o senhor do escudo de sete dobras Aacutejax
110
dimensatildeo e a singularidade de seu escudo as quais simbolizam sua enorme estatura e sua
robusta compleiccedilatildeo fiacutesica Contudo o proacuteprio narrador externo configura outro heroacutei como o
maior na guerra (bello maior v 623) provavelmente Nestor e natildeo o Telamocircnio Assim em
parte Oviacutedio dialoga com as epopeias homeacutericas afastando de sua obra a ideia de uma
supremacia guerreira do heroacutei de Salamina mas recuperando a singularidade de seu escudo e
por certo a noccedilatildeo de muralha dos Aqueus conferida ele A retomada desse traccedilo do
personagem parece corroborar a noccedilatildeo de uma virtude defensiva jaacute costumeiramente lhe
atribuiacuteda nos estudos de Homero apresentados no capiacutetulo anterior
Com efeito a qualificaccedilatildeo do personagem como o senhor de escudo de sete dobras ou
sete camadas ldquoSurgit ad hos clipei dominus septemplicis Aiaxrdquo (Metamorfoses XII v 2) estaacute
disposta segundo o modelo eacutepico dos epiacutetetos homeacutericos E sobretudo segundo a perspectiva
de Rocha Pereira pois visto como do tipo distintivo e precedente de discurso direto contribui
para a melhor caracterizaccedilatildeo do personagem adequando-se tambeacutem ao contexto uma
qualidade especiacutefica e permitindo-se uma melhor compreensatildeo do episoacutedio em questatildeo e das
palavras do heroacutei (1985 p 5) A polivalecircncia liacuterica eacutepica e traacutegica da obra que a coloca em
um entrelugar permite-nos reconhecer essa disposiccedilatildeo como uma foacutermula homeacuterica
Vejamos como o proacuteprio esquema meacutetrico esse epiacuteteto atraveacutes da cesura do
hexacircmetro geralmente pentemiacutemera ou heftemiacutemera auxilia-nos na compreensatildeo da
passagem A cesura pentemiacutemera ou seja apoacutes cinco metades de peacute seria possiacutevel ao
esquema poreacutem pouco acrescentaria em termos significativos ao verso Vejamos ldquoSurgıt ad
hos clıpeı domınus se ptemplıcıs Aiaxrdquo A divisatildeo em dois hemistiacutequios faz com que a
cesura conflite com a estrutura e a pausa gramaticais sugeridas pela sintaxe latina pois essa
divisatildeo aparentemente sugere uma divisatildeo de sujeito e predicado Assim o nuacutecleo do adjunto
clipei estaria inserido na seccedilatildeo do predicado e natildeo ao termo essencial da oraccedilatildeo ao qual estaacute
ligado o sujeito
Preferimos entatildeo a cesura heftemiacutemera de sete metades de peacute por algumas razotildees
Primeiro porque acompanhada de sua comumente cesura secundaacuteria trimiacutemera de trecircs
metades de peacute (PLESSIS 1889) divide o verso em trecircs hemistiacutequios nos quais o primeiro
corresponde ao predicado e os dois seguintes ao sujeito favorecendo a elocuccedilatildeo latina e
consequentemente gerando uma fluidez na progressatildeo semacircntica do seu conteuacutedo por meio
da sincronia entre a meacutetrica e a disposiccedilatildeo sintaacutetica Vejamos ldquoSurgıt ad hos clıpeı
domınus se ptemplıcıs Aiaxrdquo Segundo porque para a disposiccedilatildeo mais natural da foacutermula
epiacuteteto acompanhado do nome do heroacutei que estaria disposta em uma relaccedilatildeo de extensatildeo com
o hemistiacutequio essa cesura reforccedilaria tambeacutem o caraacuteter oral do gecircnero eacutepico A foacutermula
111
assim estaria inserida dentro das cesuras do verso como um hemistiacutequio Em terceiro lugar
essa disposiccedilatildeo encadearia uma progressatildeo tripartida de significado esteticamente reforccedilando
uma expectativa uma vez que sequenciaria informaccedilotildees mais abrangentes e depois as
precisas descrevendo inicialmente uma accedilatildeo depois de forma epiteacutetica a qualidade do
sujeito que a praticou e por fim o seu nome Esse aspecto esteacutetico tambeacutem se observa nas
duas seccedilotildees do epiacuteteto que apresentam cada uma com a mesma estrutura espelhada formada
de genitivo mais nominativo de significado mais abrangente clipei dominus senhor do
escudo para um mais preciso septemplicis Aiax [senhor do escudo] de sete dobras ou
camadas Aacutejax As trecircs seccedilotildees dispostas progrediriam acumulando um sentido uma a uma
ateacute ao fim do verso em seu uacuteltimo peacute apresentar o nome proacuteprio do heroacutei ao qual todos os
elementos e a expectativa conduziam
A recorrecircncia das foacutermulas eacutepicas precedentes de discurso direto nas epopeias
homeacutericas corroboram a pertinecircncia do uso de tal recurso pelo proacuteprio Oviacutedio sobretudo
porque o torna mais significativo uma vez que o episoacutedio da disputa entre Aacutejax e Ulisses eacute
predominantemente marcado pelo discurso direto O autor faz essa escolha centralizando o
episoacutedio na oratoacuteria dos personagens destacando a relaccedilatildeo extremamente significativa entre a
forma escolhida e o seu conteuacutedo Assim a relaccedilatildeo praacutetica e simboacutelica do personagem com o
seu escudo referida no iniacutecio do Livro XIII parece-nos ter expressamente a finalidade de
descrever seu atributo mais relevante para esse episoacutedio de alguma maneira antecipando e
contextualizando os argumentos do heroacutei pois como tentaremos provar reforccedila na unidade
desse evento uma virtude defensiva
Para reforccedilar essa compreensatildeo mencionada acima passemos agora a analisar alguns
versos que destacam essa excelecircncia guerreira de Aacutejax a partir dessa perspectiva de defesa e
de proteccedilatildeo antecipada e em concordacircncia com o epiacuteteto estudado Com efeito isso nos
parece expressar os indiacutecios textuais presentes no fragmento abaixo sobretudo pelo sentido e
pela recorrecircncia do verbo suster (sustineo) empregado para descrever tudo aquilo que Aacutejax
foi capaz de conter como as chamas dos troianos Heitor e o proacuteprio Juacutepiter Vejamos alguns
versos de seu discurso
At non Hectoreis dubitauit cedere flammis 7 Quas ego sustinui quas hac a classe fugaui 8 [] Conclamat socios adsum uideoque trementem 73 Pallentemque metu et trepidantem morte futura Opposui molem clipei texique iacentem 75 Seruauique animam (minimum est hoc laudis) inertem
112
Si perstas certare locum redeamus in illum Redde hostem uulnusque tuum solitumque timorem Post clipeumque late et mecum contende sub illo At postquam eripui cui standi uulnera uires 80 Non dederant nullo tardatus uulnere fugit Hector adest secumque deos in proelia ducit Quaque ruit non tu tantum terreris Vlixe Sed fortes etiam tantum trahit ille timoris Hunc ego sanguineae successu caedis ouantem 85 Eminus ingenti resupinum pondere fudi Hunc ego poscentem cum quo concurreret unus Sustinui sortemque meam uouistis Achiui Et uestrae ualuere preces Si quaeritis huius Fortunam pugnae non sum superatus ab illo 90 Ecce ferunt Troes ferrumque ignesque Iouemque in Danaas classes ubi nunc facundus Vlixes Nempe ego mille meo protexi pectore puppes Spem uestri reditus date pro tot nauibus arma30
O heroacutei apresenta os seus feitos em prol dos conterracircneos accedilotildees sobretudo
testemunhadas e ao seu ver dignas da virtude guerreira especialmente porque remontam
eventos da guerra nos quais tendo Aquiles se retirado os troianos sobrepujaram os gregos
inclusive encurralando-os no litoral O proacuteprio texto sugere que a natureza das accedilotildees de Aacutejax
recai sobre os atributos da guerra Contudo parece-nos que o enfoque eacute realmente sobre uma
qualidade defensiva
Primeiramente o texto reforccedila duas vezes o verbo sustineo No verso 8 o verbo
expresso no aspecto perfeito sustinui eacute tambeacutem acompanhado pelo pronome ego que reforccedila
o agente da accedilatildeo No verso 88 novamente eacute expresso o verbo declinado sustinui que aleacutem ser
tambeacutem acompanhado pelo pronome ego (v 87) tambeacutem reforccedila o agente da accedilatildeo por meio
do adjetivo unus (v 87) No primeiro caso o heroacutei rememora sua accedilatildeo de suster as chamas que
procuravam queimar as naus dos gregos No segundo expressa-se a accedilatildeo de conter Heitor
que impulsionado por Juacutepiter causa a morte de muitos gregos Em ambos os eventos
retomados da Iliacuteada o heroacutei confere a si as accedilotildees maacuteximas que salvaram os gregos da derrota
30 Entretanto [Ulisses] natildeo hesitou em ir-se das chamas de Heitor (v 7) as quais eu sustive as quais desta frota afugentei (v 8) [] Invoca os companheiros estou presente e vejo o tremente e (v 73) paacutelido de medo e tambeacutem trepidante com a morte futura pus o volume do escudo agrave frente protegi o jazente (v75) E mantive o acircnimo inerte (isto de gloacuteria eacute o miacutenimo) Se persistes a certar voltemos agravequele lugar restitui a hoste o teu ferimento teu soacutelito temor esconde-te atraacutes do escudo e contende comigo sob ele Mas depois que retirei para quem ferimento de combater (v 80) as tropas natildeo deram o moroso fugiu sem ferimentos Heitor estaacute presente e consigo conduz os deuses no preacutelio precipita-se por toda parte natildeo apenas tu eacutes aterrorizado Ulisses mas os fortes tambeacutem aquele arrasta tanto de temor Este eu mesmo com sucesso de golpe sanguiacuteneo de longe (v 85) derrubei ressupino com peso ingente este clamante quando com algueacutem se apresentava eu mesmo sozinho sustive prometestes a minha sorte Aquivos e vossas preces valeram Se procurais o destino desta pugna natildeo fui superado por ele (v 90) Eis que os troianos trazem ferro fogo e Juacutepiter agraves frotas dacircnaas onde estaacute agora o Ulisses eloquente Certamente eu mesmo protegi mil popas com meu peito Recuperei a vossa esperanccedila dai as armas em lugar de tantas naus
113
e da morte destacando-se em especial como o maior responsaacutevel pela proteccedilatildeo dos
conterracircneos justificando assim o epiacuteteto homeacuterico muralhas dos Aqueus como jaacute visto
que reforccedila o aspecto defensivo conjuntamente como o epiacuteteto que destaca seu escudo
presente tambeacutem em Oviacutedio
Em segundo lugar agregam-se a isso os verbos tego e protego que carregam o sentido
de defender e proteger usados em suas accedilotildees No verso 75 o heroacutei revela ter protegido ateacute
mesmo Ulisses enquanto esse jazia no chatildeo (texi iacentem) No verso 93 o proacuteprio
Telamocircnio protegeu as naus dos gregos (ego protexi puppes) Apesar de ter vencido Heitor
sua vitoacuteria sobre este apenas repeliu o adversaacuterio natildeo o matando Dessa forma o texto
concentra tanto na voz do narrador externo quanto no discurso direto do personagem ou seja
na caracterizaccedilatildeo direta e indireta as qualidades de Aacutejax relacionadas a uma ideia de homem
da accedilatildeo poreacutem de forma especiacutefica e proacutepria de uma noccedilatildeo ou capacidade defensiva e
protetora
Assim para isso como jaacute dissemos a simbologia do escudo pelo menos no
tratamento de Oviacutedio parece fundamental Expresso na forma de uma foacutermula precedente do
discurso direto jaacute nos primeiros versos ele natildeo soacute antecipa mas direciona a compreensatildeo que
devemos ter do texto Por isso outras vezes ele eacute retomado no discurso direto
Ainda no verso 75 quando da proteccedilatildeo de Aacutejax a Ulisses noacutes temos a expressatildeo
literal desse manuseio do heroacutei ao escudo e de sua qualidade Primeiro o Telamocircnio potildee agrave
frente de Ulisses o corpo do escudo (opposui molem clipei) em seguida reforccedilando-se a
qualidade defensiva do heroacutei este ainda manteacutem o acircnimo inerte (serarui animam inertem v
76) como se essa proacutepria expressatildeo revelasse a proacutepria natureza da accedilatildeo e do heroacutei a
capacidade de resistir aos ataques imoacutevel como uma parede ou muralha Tal capacidade do
heroacutei eacute tatildeo proeminente que ele faz questatildeo de indicar isso em seu discurso Ele mesmo revela
que seu escudo sofre de mil golpes (nostro qui tela ferendo mille patet plagis v 118 ndash 119)
em oposiccedilatildeo ao de Ulisses que eacute iacutentegro ou seja sem marcas (integer est clipeus v 118)
Acreditamos que tal fato seja possiacutevel de ser comprovado se julgarmos o quatildeo fundamental
aos argumentos do personagem eacute contemplar com os olhos tais provas como veremos mais
adiante Outro fato importante e que merece comentaacuterios eacute o fato de os verbos tego e protego
serem usados para expressar a ideia de proteger Tal sentido abstrato eacute adquirido por extensatildeo
uma vez que a sua primeira noccedilatildeo eacute cobrir em seu aspecto mais concreto Assim a escolha
dos verbos e seu significado derivado precisam a unidade lexical do texto coadunando-se
com a utilizaccedilatildeo e a funccedilatildeo proacutepria do escudo realccedilando-se sua simbologia defensiva e de
proteccedilatildeo O contendor de Salamina entatildeo concentra sua qualidade em um uacutenico tipo de
114
atividade a excelecircncia para proteger e guardar proacutepria de uma virtude guerreira defensiva
segundo o modelo dos vaacuterios estudos dispostos sobre a caracterizaccedilatildeo desse mesmo heroacutei na
Iliacuteada Ao se considerar essa capacidade protetora efetivamente de contenccedilatildeo ao caraacuteter
homeacuterico do personagem devemos admitir a clara referecircncia de Oviacutedio agrave tradiccedilatildeo arcaica
Sabemos disso especialmente pelo seu contraponto Ulisses que faz questatildeo de
elencar a polivalecircncia de suas qualidades natildeo soacute do ceacuterebro mas tambeacutem dos atos O
Laertida mesmo destaca que seu adversaacuterio se sobressai apenas pelo corpo (tu tantum corpore
prodes v 365) e exerce a forccedila sem a mente (tu uires sine mente geris v 363) Mas
reconhecendo que o Telamocircnio realmente exerce sua potecircncia defensivamente o arguidor
eloquente aleacutem de retomar vaacuterios momentos que ressaltam qualidades distintas as quais
confere sobretudo a Minerva (Mineruae v 381) agrave deusa grega Atena tambeacutem realccedila
diferente de Aacutejax sua capacidade de matar seus oponentes e para isso enumera vaacuterios heroacuteis
como Ceacuterano filho de Iacutefito Alastor Crocircmio Alcandro Haacutelio Neacutemon Priacutetanis Toas
Caacuterope e Ecircnomo os quais foram mortos por sua espada (ferro [] meo v 255-256) Essa
polivalecircncia do Laertida contrasta com o atributo recorrentemente evidenciado pelo seu
opositor a qualidade defensiva de conter os assaltos inimigos
Com efeito Aacutejax atribui a si essa noccedilatildeo de forma tatildeo intensa que podemos reconhecer
essa qualidade como sendo proeminente nele Por isso no fragmento acima por quatro vezes o
pronome pessoal ldquoeurdquo aparece como reforccedilo agrave accedilatildeo individual do Telamocircnio na defesa dos
gregos ego (v 8 85 87 93) seja na proteccedilatildeo dos navios contra o fogo seja no combate
singular contra Heitor pois a todas essas coisas o proacuteprio heroacutei enfatiza ter sozinho (unus v
87) enfrentado e contido (sustinui v 8) Certamente esse caraacuteter defensivo do heroacutei ou seja
de se apresentar a serviccedilo da paacutetria protegendo os conterracircneos mesmo quando agindo
solitariamente realmente se mostra proeminente no heroacutei de acordo com sua perspectiva dos
fatos Aleacutem disso esse valor destacado parece-nos se revestir no texto de Oviacutedio de noccedilotildees
da uirtus propriamente romana Mesmo a partir de uma accedilatildeo individual e de uma decorrente
superestima do proacuteprio valor a comunidade e a proteccedilatildeo dela parecem estar acima de sua
gloacuteria pessoal e tambeacutem por isso em sua visatildeo tal concepccedilatildeo parece conferir aos seus atos o
maacuteximo meacuterito Essa caracterizaccedilatildeo sugere inclusive retomar o heroacutei romano Horaacutecio Cocles
que em seu mito defendeu sozinho dos etruscos a ponte que levava a Roma episoacutedio narrado
pelo historiador Tito Liacutevio que assim se refere ao militar ldquoheroacutei sozinho [] que se
estabeleceu na ponte em forte posiccedilatildeordquo (unus uir [] qui positus forte in statione pontis
Histoacuteria de Roma I 10 2-3) O caraacuteter defensivo e de contenccedilatildeo proacuteprio de Telamocircnio eacute
exatamente esse de Cocles natildeo recuar e fixo em um lugar conter os ataques inimigos Fato
115
significativo para essa interpretaccedilatildeo eacute a provaacutevel parcialidade pela qual o narrador externo
descreve a vitoacuteria do Laertida ldquoo eloquente conduziu as armas do heroacutei forterdquo (fortisque uiri
tulit arma disertus v 383) Certamente esse verso parece conferir ao derrotado um valor
maior e por isso provavelmente o genitivo ao qual se liga as armas precircmio da disputa
expressa os termos que marcam o heroacutei de maior excelecircncia guerreira Aacutejax
Prossigamos com a anaacutelise da introduccedilatildeo de seu discurso na qual o heroacutei jaacute apresenta
suas qualidades bem como as de seu adversaacuterio contrastando os conceitos de accedilatildeo e de
palavra que opotildee a natureza dos dois contendores
Tutius est igitur fictis contendere uerbis Quam pugnare manu Sed nec mihi dicere promptum 10 nec facere est isti quantumque ego Marte feroci Quantum acie valeo tantum valet iste loquendo Nec memoranda tamen uobis mea facta Pelasgi Esse reor uidistis enim sua narret Vlixes Quae sine teste gerit quorum nox conscia sola est 15 Praemia magna peti fator sed demit honorem Aemulus Aiaci non est tenuisse superbum Sit licet hoc ingens quicquid sperauit Vlixes Iste tulit pretium iam nunc temptaminis huius Quod cum uictus erit mecum certasse feretur31 20
(Metamorfoses Livro XIII v 9 ndash 20)
Pode-se ver a partir do fragmento como jaacute anunciamos anteriormente que em sua
introduccedilatildeo Aacutejax expotildee a ideia central de seu discurso posteriormente desenvolvido atraveacutes de
narrativas argumentaccedilotildees e provas O seu cerne entatildeo baseia-se em duas noccedilotildees a de agir e
a de discursar ou seja a qualidade da accedilatildeo e a da palavra Eacute imprescindiacutevel primeiramente
compreendermos como essas duas noccedilotildees se estruturam no discurso do heroacutei pois a oposiccedilatildeo
que se apresenta a partir delas fundamenta todo o discurso em questatildeo Soacute entatildeo poderemos
analisar propriamente o fragmento
Com efeito essa distinccedilatildeo almejada pelo Telamocircnio em seu discurso faz-se eficaz
especialmente por desenvolver a caracterizaccedilatildeo de cada um deles atraveacutes de um contraste
evidente e jaacute estabelecido Primeiramente um contraste coerente com a imagem fixada pela
tradiccedilatildeo ou seja um pressuposto conhecido aos leitores da eacutepoca de Oviacutedio Em segundo
31 Mais seguro portanto eacute contender com palavras forjadas do que lutar com a matildeo Mas para mim natildeo eacute faacutecil dizer (v 10) nem para esse fazer tanto eu por meio do feroz Marte e da lacircmina valho quanto esse vale discursando Contudo natildeo julgo meus feitos haverem de ser lembrados para voacutes Pelasgos pois vistes Ulisses narraraacute os seus Os quais sem testemunha produz deles soacute a noite eacute conhecedora (v 15) Confesso reclamar os magnos precircmios mas retira a honra o rival Para Aacutejax natildeo eacute orgulhoso segurar embora este seja grande algo que Ulisses esperou esse jaacute estaacute carregando meacuterito deste embate pois quando for vencido seraacute referido por ter lutado comigo (v 20)
116
lugar um contraste existente dentro do proacuteprio niacutevel intradiegeacutetico da narrativa pois tal
informaccedilatildeo pode ser inferida a partir das palavras de Fecircnix na Iliacuteada que refletem um
conhecimento comum assim tambeacutem se apresenta como um pressuposto conhecido na
perspectiva dos narrataacuterios ou seja dos personagens que escutam o discurso Esse realce agrave
singularidade de cada heroacutei delimitando-se suas qualidades mais evidentes eficazmente
alicerccedila uma boa base argumentativa pois constitui um princiacutepio retoacuterico persuasivo uma vez
que se apoia em um pressuposto abonado
No fragmento em questatildeo Oviacutedio dispotildee com clareza essa dicotomia retoacuterica exposta
pelo personagem Os termos utilizados na construccedilatildeo antiteacutetica dessa unidade textual estatildeo
listados a seguir Quanto agraves noccedilotildees de agir e de discursar temos matildeo manu (v 10) e
palavras uerbis (v 9) fazer facere (v 11) e dizer dicere (v 10) Marte feroz Marte feroce
(v 11) lacircmina acie (v 12) e o discursar loquendo (v 12)
Eacute oacutebvio que o heroacutei de Salamina vincula a si todos os primeiros elementos
constituintes dos pares apresentados pois expressam a qualidade da accedilatildeo Quando assim natildeo
o faz associa-se ao segundo elemento dos pares negando-lhe como eacute o caso de dicere
Assim para o Telamocircnio natildeo eacute faacutecil dizer (nec dicere promptum est v 10) Natildeo podemos
deixar de mencionar a proacutepria situaccedilatildeo do discurso ou seja o momento em que ele eacute
proferido ainda durante a guerra de Troia Isso eacute basilar para a retoacuterica do personagem pois a
noccedilatildeo de accedilatildeo que ele converge em seu discurso toca exatamente as proezas beacutelicas Assim
natildeo sem propoacutesito ele submete agrave accedilatildeo o juiacutezo de guerra pois junto dos termos manu e facere
listam-se Marte feroce e acie metoniacutemias do proacuteprio conceito de guerrear De mesmo modo
vinculam-se a Ulisses todos os segundos elementos que expressam a qualidade da palavra
com exceccedilatildeo do facere que lhe eacute associado tambeacutem por meio de sua negaccedilatildeo pois para ele
fazer natildeo eacute faacutecil (nec facere est v 11) E dentro desse contexto fazer tambeacutem significa as
accedilotildees proacuteprias da guerra Ao mesmo tempo que essas distinccedilotildees entre os heroacuteis satildeo
delineadas especialmente associando a qualidade da accedilatildeo ao contexto da guerra o heroacutei
sustenta uma segunda conjectura dependente da primeira
Nesta segunda conjectura o propoacutesito de Aacutejax eacute distinguir diferente do que estaacute na
tradiccedilatildeo grega uma noccedilatildeo superior entre as duas citadas acima pelo menos quando aplicadas
a ele proacuteprio e a Ulisses Ele elege a qualidade da accedilatildeo como superior natildeo por menos pois eacute
o seu atributo Para justificar uma superioridade dessa qualidade ao menos na situaccedilatildeo
particular desses dois heroacuteis o personagem agrega a essas duas noccedilotildees de accedilatildeo e de palavra
respectivamente mais duas outras opostas aquilo que eacute visto e testemunhado e aquilo que eacute
apenas narrado uma vez que natildeo teria sido necessariamente presenciado Por decorrecircncia
117
disso impotildee-se agrave segunda a noccedilatildeo de mentira por meio de seu o caraacuteter fictiacutecio uma vez que
muitos feitos satildeo construiacutedos pela forccedila da palavra que impressiona mas ausentes de verdade
Em oposiccedilatildeo a accedilatildeo presenciada vale por si soacute e isenta de palavra se vincula agrave ideia de
verdade
Para sustentar essa uacuteltima conjectura proposta pelo personagem Oviacutedio dispotildee de
alguns termos significativos para elucidar as ideias de verdade e mentira agregadas
respectivamente agraves noccedilotildees de agir e de discursar Temos entatildeo lembrar memoranda (v 13)
e narrar narret (v14) vertestemunhar uidistis (v 14) e sem testemunha sine teste (v 15)
noite nox (v 15) A primeira oposiccedilatildeo expressiva estaacute entre os verbos lembrar e narrar os
quais se vinculam respetivamente ao Telamocircnio homem de accedilatildeo e ao Laertida mestre da
palavra A carga significativa fica expressa no sentido dos verbos Para o primeiro seus feitos
natildeo satildeo narrados mas relembrados pois foram presenciados assim verdadeiros valendo por
si Jaacute as proezas do segundo devem ser narradas ou seja natildeo necessariamente presenciadas e
por isso natildeo comprovadas assim falsas e mentirosas valendo-se prioritariamente da
coerecircncia das tramas com as provas encontradas e da forccedila das palavras empregadas Por isso
o primeiro reforccedila seu discurso afirmando que os ouvintes viram e presenciaram os seus
feitos uidistis No entanto as proezas do segundo natildeo tecircm testemunhas sine teste ou melhor
haacute uma soacute testemunha a noite nox pois apenas ela eacute conhecedora desses fatos conscia sola
est Desdobra-se com isso a oposiccedilatildeo de luz e de escuridatildeo pois se submetem a isso o sentido
da visatildeo e a ideia de ver e natildeo ver assim de se lutar agrave noite ou seja natildeo sendo visto e de se
combater em pleno dia ou seja aos olhos e diante de todos A oposiccedilatildeo entre accedilatildeo e palavra
eacute entatildeo vinculada agrave oposiccedilatildeo entre verdade e mentira e entre luz e escuridatildeo Apenas a accedilatildeo
liga-se agrave verdade e agrave luz pois a palavra obrigatoriamente vincula-se apenas agrave mentira e agrave
escuridatildeo
Essa composiccedilatildeo retoacuterica do orador de Salamina eacute muito eficaz pois dentro do
discurso os heroacuteis satildeo vistos como opostos um ao outro com caracteriacutesticas inter-
relacionadas de forma inversamente proporcionais Do mesmo modo sabendo que uma
carrega valor positivo e outra um negativo ao se glorificar as qualidades de um inferioriza-
se as do outro criando um panorama de virtudes e desvirtudes o qual tem como intuito uma
terceira conjectura por deduccedilatildeo loacutegica a identificaccedilatildeo de um heroacutei melhor e por
consequecircncia de um pior Dentro desse contexto entatildeo Aacutejax seria superior a Ulisses uma
vez que o primeiro tem a primazia de accedilatildeo cuja superioridade quanto agrave palavra foi
demostrada e defendida
118
Essa eacute a compreensatildeo de mundo e de valores que o Telamocircnio possui Por isso ela
mesma nos sugere que ele percebe o embate oratoacuterio como inoacutecuo e contraditoacuterio uma vez
que ele se vecirc superior ao adversaacuterio Por consequecircncia disso o uacutenico meacuterito real para Ulisses
eacute o proacuteprio ato de confrontar aquele que porta o escudo de sete dobras Isso se explica pelo
uso do aspecto verbal de fero do perfeito tulit e pelo uso do tempo presente Por um lado
revela um ato recente do ponto de vista da posse desse meacuterito pois a contenda jaacute se iniciou
natildeo necessitando ao Laertida esperar o desfecho da disputa e assim por outro revela que
esse meacuterito jaacute estaacute presente no momento em questatildeo
Tal asserccedilatildeo se faz loacutegica pelo fato do heroacutei de Salamina acreditar que o uacutenico e
eventual precircmio da disputa para o Laertida eacute ser conhecido por ter lutado com ele (mecum
certasse feretur v 20) pois para este uacuteltimo tambeacutem eacute eventual a derrota (cum vinctus erit v
20) Essa eventualidade nos parece ser sugerida pelo modo indicativo e pelo tempo futuro
usado nos verbos feretur e erit das oraccedilotildees subordinadas em oposiccedilatildeo a uma ideia de
possibilidade por exemplo que soacute seria alcanccedilada como o uso de um modo subjuntivo Esses
satildeo os desdobramentos naturais da disputa na perspectiva de heroacutei da accedilatildeo logo eventuais
pois natildeo haveria outra possibilidade de resoluccedilatildeo
Como para Aacutejax sua superioridade estaria evidente e assim natildeo haveria
verdadeiramente uma contenda a inocuidade dessa disputa acarreta uma consequecircncia a
desonra do heroacutei superior Isso evidencia senatildeo uma superestima de sua virtude como jaacute
indicamos a ponto de o ato de enfrentar o adversaacuterio conferir ao personagem um demeacuterito O
proacuteprio Telamocircnio declara natildeo ser orgulhoso (superbum v 17) mesmo que seja grande
(ingens v 18) portar um precircmio que Ulisses reclama E nesse ato se insere o aspecto proacuteprio
da soberba e da altivez que o faz subestimar e depreciar de forma extrema a virtude de seu
reconhecido contendor Eacute importante destacar que tal procedimento implica a natildeo
consideraccedilatildeo do Laertida como um igual ou seja contraacuteria agrave premissa eacutepica que serve para
distinguir uma vitoacuteria valorosa uma vez que o vencedor triunfa sobre algueacutem digno Como
ocorre exatamente o contraacuterio ou seja a contenda eacute indigna para o Telamocircnio podemos
reconhecer como componente de sua caracterizaccedilatildeo dentro desse episoacutedio sobretudo
manifestada jaacute no iniacutecio de sua defesa a empaacutefia a soberba que parte como jaacute dissemos da
sobrevalorizaccedilatildeo da sua excelecircncia guerreira
Os indiacutecios textuais corroboram tal interpretaccedilatildeo pois mesmo sendo magnos os
precircmios (praemia magna v 16) que retomam claramente o γέρας μέγιστον da ode Nemeia
de Piacutendaro o adversaacuterio fere o valor das armas e retira a honra (demit honorem v 16) Aacutejax
revela ainda que as armas natildeo satildeo exigidas por ele mas o contraacuterio o heroacutei eacute por elas (Aiax
119
armis non Aiaci arma petuntur v 96) e por isso o personagem chegar inclusive a concluir
que maior honra eacute buscada por ela mais do que por ele mesmo (quaeritur istis quam mihi
maior honos v 95-96) Dessa forma conseguimos constatar de forma vaacutelida a superestima
do personagem em relaccedilatildeo ao seu proacuteprio valor revelando seu caraacuteter soberbo em especial
diante de Ulisses este que reconhece a vangloacuteria e o excesso nas palavras (magna loquendi
v 222 ingentia [] uerba v 340-341) do seu opositor
Logo a possibilidade de vitoacuteria do Laertida parece ao Telamocircnio contraditoacuteria e
paradoxal especialmente em se tratando da natureza do precircmio instrumento para guerra ou
seja para a accedilatildeo Tal percepccedilatildeo corrobora o estado de ira do personagem como veremos mais
adiante natildeo apenas depois mas desde antes e durante a disputa pois isso em si jaacute causa
indignaccedilatildeo e desonra ao personagem Esse entendimento jaacute justifica uma sobrevalorizaccedilatildeo da
virtude do heroacutei como parte de sua caracterizaccedilatildeo sugerida em Homero e aqui aprofundada
e desenvolvida
Acreditamos que essa conjectura de princiacutepios revelados em seu discurso natildeo seja
apenas de uso retoacuterico com a finalidade de vencer a disputa pois o heroacutei age realmente
segundo tal visatildeo de mundo sobretudo porque tambeacutem sabemos que o episoacutedio culmina com
o suiciacutedio de Aacutejax quando este conhece o resultado a inconcebiacutevel vitoacuteria do Laertida Logo
isso realmente se trata dos valores cridos por ele Por isso enfatiza em suas palavras esse
caraacuteter paradoxal e contraditoacuterio ao seu ver de Ulisses poder ser o portador das armas de
Aquiles Vejamos os fragmentos abaixo
An quod in arma prior nulloque sub indice ueni Arma neganda mihi potiorque uidebitur ille 35 Vltima qui cepit detrectauitque furore Militiam ficto donec sollertior isto Et sibi inutilior timidi commenta retexit Naupliades animi uitataque traxit ad arma Optima num sumat quia sumere noluit ulla 40 Nos inhonorati et donis patruelibus orbi Obtulimus quia nos ad prima pericula simus32
(Metamorfoses XIII v 34 ndash 42)
32
Ou porque eu vim primeiro agraves armas sob nenhuma denuacutencia as armas hatildeo de ser negadas para mim E pareceraacute mais preferiacutevel (v 35) aquele que tomou as uacuteltimas e recusou a expediccedilatildeo com loucura forjada ateacute que mais industrioso do que esse e mais prejudicial a si o Naupliacuteade revelou os fingimentos de espiacuterito covarde e trouxe-o para as armas evitadas Acaso tomaria as oacutetimas [armas] uma vez que natildeo quis tomar nenhuma (v 40) noacutes desonrados e privados dos presentes do primo seriacuteamos uma vez que nos oferecemos aos primeiros perigos
120
Nesse recorte do discurso do heroacutei o paradoxo e o contraditoacuterio satildeo ilustrados de
maneira bem simples relacionando-se a proacutepria natureza do precircmio com as caracteriacutesticas do
par dicotocircmico accedilatildeo e palavra Satildeo ainda enfatizados especialmente por meio de um recurso
linguiacutestico significativo as perguntas retoacutericas Estas certamente atraveacutes da deduccedilatildeo
conduzem os ouvintes a apenas um caminho a percepccedilatildeo do heroacutei de Iacutetaca como inadequado
agrave recepccedilatildeo das armas e logo o Telamocircnio como o vencedor da disputa
Referindo-se ao episoacutedio em que Palamedes revela a loucura fingida de Ulisses jaacute
explicado anteriormente Aacutejax dispotildee a natureza dos seus proacuteprios atos ir por primeiro agraves
armas ou seja agrave expediccedilatildeo (in arma prior [] ueni v 35) aos primeiros perigos (prima
pericula v 42) e sob nenhuma denuacutencia (nullo sub indice v 34) ou seja sem coerccedilatildeo por
vontade proacutepria Prossegue expondo a de seu adversaacuterio ir agraves armas por uacuteltimo (ultima v
36) e estas ainda evitadas (uitata v 39) pois ele natildeo queria empunhar nenhuma (sumere
noluit ulla v 40) ou seja o Laertida almejava evitar ir agrave guerra poreacutem mesmo assim
dirigiu-se a ela coagido pois sua loucura fingida (furore [] ficto) foi revelada pelo
Naupliacuteade Faz-se necessaacuterio agora uma pequena paraacutefrase do mito para a devida
contextualizaccedilatildeo dessa loucura do personagem A convocaccedilatildeo referida nesse fragmento se daacute
a todos os heroacuteis gregos pretendentes de Helena filha de Tiacutendaro porque seu pai por
conselhos do proacuteprio Ulisses exigiu uma garantia atraveacutes de um juramento de que todos
esses pretendentes se comprometeriam a ajudar o vencedor e futuro marido Passados os anos
e Helena raptada todos aqueles que juraram foram convocados Diante do nascimento de seu
filho Telecircmaco Ulisses tentou ser dispensado da expediccedilatildeo simulando loucura Palamedes
entatildeo descobriu a estrateacutegia ganhando por fim seu oacutedio (GRIMAL 2005) Eacute esse o fato
retomado em analepse para conferir uma natureza inferior ao Laertida
Assim observa-se pelo presente discurso que a natureza de Aacutejax espelha agrave natureza do
precircmio das armas de Aquiles e contrariamente a natureza de Ulisses agrave delas se opotildee Diante
dessa relaccedilatildeo uma conclusatildeo se infere a de uma ideia incoerente de ligar o precircmio a Ulisses e
a derrota a Aacutejax
Essa imagem paradoxal e contraditoacuteria ganha forccedila a partir do contraste estabelecido
entre o Laertida e o precircmio destacando-se dentro do discurso devido agraves perguntas retoacutericas
de Aacutejax que chamando a atenccedilatildeo para a sua situaccedilatildeo por um lado sintetizam sua oratoacuteria
mais emotiva e exortativa pois para ser efetiva sua retoacuterica deve impelir os juiacutezes a se
condoerem com a aparente injusticcedila e desonra apontada e por outro devem conduzir os
ouvintes por meio de uma participaccedilatildeo ativa para qual eacute necessaacuteria a reflexatildeo sobretudo do
ponto de vista moral
121
A passividade daqueles que escutam o discurso provavelmente se rompe quando da
necessidade de se alcanccedilar a conclusatildeo a partir de uma ponderaccedilatildeo imposta pelo proacuteprio
questionamento Contudo essa reflexatildeo eacute condicionada e orientada pela deduccedilatildeo proposta a
partir do contraste disposto entre os heroacuteis e entre estes e o precircmio Natildeo acreditamos que tal
imagem tenha uma finalidade de causar o riso por meio da ridicularizaccedilatildeo de Ulisses uma vez
que sua imagem de heroacutei eacute diminuiacuteda mas o objetivo de marcar o iacutempeto da retoacuterica
agressiva do Telamocircnio devido agrave desonra na qual jaacute se encontra pois a contenda afronta a
sua virtude e seus meacuteritos ou ao menos a confianccedila que nestes ele deteacutem A inferecircncia loacutegica
desse raciociacutenio do heroacutei eacute tatildeo forte que reforccedila significativamente a contradiccedilatildeo questionada
em suas perguntas retoacutericas as quais retratam o heroacutei mais preferiacutevel (portior v 35) ser
aquele que se nega ao auxiacutelio da proacutepria paacutetria em prol de uma vontade individual utilizando-
se inclusive de dolo para alcanccedilar tal fim e o heroacutei desonrado (inhonorati v 41) e privado
dos presentes (donis [] orbi v 41) ser aquele que se dispotildee a servir agrave naccedilatildeo
voluntariamente e que pela sua excelecircncia guerreira (uirtus) testemunhada deveria receber o
reconhecimento puacuteblico que no acircmbito latino se expressa no termo honra (honor) como jaacute
vimos O termo inhonorati eacute expressivo do sentimento do heroacutei de Salamina pois manisfesta
sua condiccedilatildeo nas proacuteprias circunstacircncias dessa disputa ou seja o caraacuteter puacuteblico que envolve
a contenda eacute senatildeo de acircmbito militar disposta nos acampamentos dos gregos e assim os
espectadores satildeo senatildeo soldados e os juiacutezes satildeo senatildeo generais e todos satildeo testemunhas
exatamente dos feitos beacutelicos do Telamocircmio Nesse cenaacuterio o personagem sentindo-se
encaixado expressa sua indignaccedilatildeo perante o contraste apresentado entre os contendores uma
vez que acredita ser entendido plenamente devido agrave audiecircncia militar
Contudo tambeacutem parece pertinente afirmar que as perguntas retoacutericas ressaltadoras
da imagem paradoxal e contraditoacuteria destacam o ponto mais empaacutetico de Aacutejax diante dos
ouvintes Pois aleacutem de convencecirc-los por meio de uma deduccedilatildeo loacutegica a partir de uma imagem
simples o personagem parece querer tocaacute-los a partir da imagem contraditoacuteria entre Ulisses e
o precircmio com a noccedilatildeo de uma injusticcedila que repercute natildeo na razatildeo mas em especial nas
paixotildees Essa injusticcedila que se apresenta para o Telamocircnio e que o agita tambeacutem precisa
alcanccedilar os espectadores pois a contenda que deveria reconhecer publicamente seu meacuterito na
verdade jaacute lhe causa vergonha puacuteblica Por consequecircncia disso parece-nos que os pontos mais
empaacuteticos do seu discurso devem concentrar o ponto mais alto de suas emoccedilotildees ou seja o
ponto mais alto da indignaccedilatildeo do heroacutei logo representativas dessa dor moral no iacutentimo do
personagem Isso se explica tambeacutem pelo caraacuteter exortativo e emotivo de sua retoacuterica que
pode ser constatado pelo murmuacuterio dos soldados (uulgi [] murmur v 123-124) que segue
122
em resposta ao discurso do personagem como uma forma de comoccedilatildeo em relaccedilatildeo ao que foi
exposto
Com efeito para noacutes satildeo as perguntas retoacutericas que carregam e desencadeiam esses
momentos pois apresentam a injusticcedila construiacuteda em uma imagem a da contradiccedilatildeo sempre
retomada e reforccedilada Como jaacute dissemos primeiramente porque sintetizam a oratoacuteria emotiva
e exortativa inclusive de uma forma mais didaacutetica atraveacutes de uma ilustraccedilatildeo a imagem da
injusticcedila Em segundo lugar porque retira dos ouvintes a passividade uma vez que os
convidam ou mais precisamente impelem a participar do discurso por meio da reflexatildeo
Dessa forma em um mesmo ponto vaacuterios mecanismos satildeo articulados simultaneamente para
que a compreensatildeo e a simpatia dos ouvintes sejam alcanccediladas plenamente Isso natildeo parece
ser apenas pertinente e como veremos tambeacutem recorrente
Vejamos outro fragmento que apresenta perguntas retoacutericas no discurso de Aacutejax ainda
tratando dessa mesma antiacutetese entre os heroacuteis
Conferat his Ithacus Rhesum inbellemque Dolona Priamidenque Helenum rapta cum Pallade captum Luce nihil gestum nihil est Diomede remoto 100 Si semel ista datis meritis tam vilibus arma Diuidite et pars sit maior Diomedis in illis Quo tamen haec Ithaco qui clam qui semper inermis Rem gerit et furtis incautum decipit hostem Ipse nitor galeae claro rediantis ab auro 105 Insidias prodet manifestabitque latentem Sed neque Dulichius sub Achillis casside uertex Pondera tanta feret nec non onerosa grauisque Pelias hasta potest inbeliibus esse lacertis Nec clipeus uasti caelatus imagine mundi 110 Conueniet timidae nataeque ad furta sinistrae Debilitaturum quid te petis improbe munus Quod tibi si populi donauerit error Achiui Cur spolieris erit non cur metuaris ab hoste Et fuga qua sola cunctos timidissime uincis 115 Tarda futura tibi est gestamina tanta trahenti Adde quod iste tuus tam raro proelia passus Integer est clipeus nostro qui tela ferendo Mille patet plagis nouus est sucessor habendus Denique quid uerbis opus est Spectemur agendo 120 Arma uiri fortis meacutedios mittantur in hostis Inde iubete peti et referentem ornate relatis33
33 Para estas o iacutethaco levaria Rheso Dolo imbele e o Priamida Heleno capturado com a Palas roubada faccedilanha alguma com luz nada haacute com Diomedes afastado (v 100) Se dais uma vez essas armas por meacuteritos tatildeo pequenos divide e a maior parte nelas seja de Diomedes Entretanto por que estas [armas] seratildeo para o iacutethaco que furtivamente e sempre desarmado executa algo e com ardis engana com o inimigo incauto O proacuteprio brilho da gaacutelea radiante pelo claro ouro (v 105) mostraraacute os artifiacutecios e revelaraacute aquele que se esconde Entretanto nem a cabeccedila duliacutequia sob o elmo de Aquiles carregaraacute tanto peso nem ainda a onerosa e grave haste Peliacuteade pode existir para braccedilos imbeles e nem o escudo esculpido com a imagem do vasto mundo (v
123
(Metamorfoses Livro XIII v 103 ndash 122)
Estudemos primeiro os versos 103-104 112 e 120 que intercalam argumentos e
equilibram com perguntas retoacutericas o segmento final do discurso de Aacutejax e que tambeacutem se
distanciam umas das outras de maneira bem equitativa Em todos os usos desse recurso
linguiacutestico mais uma vez se concentra a ilustraccedilatildeo da injusticcedila atraveacutes da imagem paradoxal e
contraditoacuteria entre Ulisses e a natureza do precircmio Por consequecircncia disso distribuem-se os
pontos de maior empatia do personagem nos quais ele fomenta compartilhar seu sentimento
de ira e de dor contaminando a todos com suas paixotildees
Nos versos 103 e 104 destaca-se a figura de um Ulisses jaacute visto por noacutes em anaacutelises
anteriores como a de um soldado sorrateiro e furtivo que age agraves escondidas (clam) ou seja
de atos noturnos natildeo vistos ou testemunhados lembremos do verso 15 os quais sem
testemunha produz deles soacute a noite eacute conhecedora (quae sine teste gerit quorum nox conscia
sola est) A isso reforccedila o verso 100 nenhuma faccedilanha com luz (luce nihil gestum) Aacutejax
ainda representa o seu opositor como soldado desarmando (inermis) que executa accedilotildees com
ardis (furtis) contra os adversaacuterios despreparados (incautum) Vaacuterios feitos de Ulisses satildeo
elencados para culminar nessa conclusatildeo Rheso Doacutelon Heleno e a Palas roubada feitos
executados sorrateiramente e sem testemunhas
Tal qual foi explicado o atributo do agir se expressa pela guerra e pelo combate e
como o proacuteprio Aacutejax jaacute mencionou relaciona-se tambeacutem ao sentido da visatildeo pois deve ser
visto e contemplado agrave luz do dia como estudamos anteriormente As proposiccedilotildees acerca do
Laertida bem como as arguiccedilotildees e provas conduzem-nos a percebecirc-lo como o mestre da
palavra e executor de feitos furtivos Assim se as armas precircmio da disputa em questatildeo satildeo
usadas para a guerra em batalhas vistas ao dia e a guerra eacute expressatildeo dos atributos da accedilatildeo a
pergunta levantada nos versos 103 e 104 impacta natildeo apenas por indicar o heroacutei mais
adequado a recebecirc-las a partir da identificaccedilatildeo do menos adequado mas principalmente por
incitar os espectadores a sentirem as emoccedilotildees suscitadas pela imagem de injusticcedila exposta o
mestre da palavra e natildeo o homem da accedilatildeo premiado com as armas
No verso 112 a pergunta retoacuterica reforccedila essa incoerente e injusta imagem de Ulisses
recebendo as armas pois para a loacutegica de Aacutejax o adversaacuterio enfraqueceraacute o precircmio em seu
110) Conviraacute agrave sinistra covarde e nascida para ardis Por que iacutemprobo reclamas para ti que haacute de enfraquecer a funccedilatildeo Porque se o erro do povo aquivo tiver presenteado a ti seraacute motivo por que sejas espoliado motivo por que natildeo sejas temido pelo inimigo E a fuga pela qual somente inteiro covardiacutessimo triunfas (v 115) haacute de ser morosa para ti que carrega tantos aparatos Acrescenta que esse teu tendo sofrido preacutelios tatildeo raramente eacute um escudo iacutentegro para o nosso que suportando lanccedilas sofre de mil golpes novo sucessor haacute de existir Afinal qual eacute o trabalho das palavras Sejamos contemplados conduzindo a disputa (v 120) as armas do forte varatildeo enviemos ao meio dos inimigos daiacute ordenai serem retomadas e honrai o portador das armas trazidas
124
propoacutesito beacutelico (debiliturum [] munus) As armas satildeo naturalmente improacuteprias para quem
contenda com palavras como eacute o caso do heroacutei de Iacutetaca Contudo a natureza delas se
harmoniza com a do Telamocircnio como esse mesmo diz ldquonossa gloacuteria estaacute unidardquo (coniuncta
gloria mostra est v 96)
Nos versos 105 ndash 118 o Telamocircnio condensa todas as ofensas ao caraacuteter de
adversaacuterio denegrindo sua imagem de heroacutei ateacute em sua virtude mais evidente A base do
ultraje eacute dupla tocando os conceitos de virtude guerreira e de inteligecircncia Quanto agrave primeira
insulta-se a compleiccedilatildeo fiacutesica de Ulisses sob dois aspectos a ausecircncia de forccedila no heroacutei
suficiente para erguer as armas (neque feret tanta pondera) e a ausecircncia mesma de robustez
beacutelica (inbellibus lacertis) Insulta-se tambeacutem o seu acircnimo pois o Laertida eacute referido como
covarde (timidae natae v 111 timidissime v 115) pois o recurso que ele utiliza para sair
triunfante eacute a fuga (fuga v 115) Quanto agrave segunda agrave inteligecircncia eacute vista pelo seu lado
negativo uma vez que seria utilizada para cometer ardis agraves ocultas Assim o elmo natildeo lhe eacute
adequado pois sendo radiante revela os artifiacutecios (insidias v 106) e tambeacutem o seu realizador
escondido (latentem v 106) Sua matildeo esquerda tambeacutem natildeo conveacutem ao escudo de Aquiles
pois eacute nascida para os ardis (ad furta sinistrae v 111) e Aacutejax comprova alegando que o
escudo do adversaacuterio natildeo possui marcas de batalhas eacute iacutentegro ou seja natildeo eacute utilizado
(integer est clipeus v 118) inferindo disso a imagem de um Ulisses natildeo combatente natildeo
beacutelico e sem excelecircncia guerreira
Apoacutes o ataque agrave virtude de Ulisses a imagem paradoxal e contraditoacuteria parece mais
latente e vaacutelida Assim em suas uacuteltimas palavras proclamadas nos versos 120 ndash 122 o
contendor de Salamina dispotildee sua uacuteltima pergunta retoacuterica questionando os espectadores
acerca da proacutepria maneira que se conduz a disputa ou seja por meio de uma querela da
palavra Natildeo haveria na sua perspectiva sentido em promover um debate para se decidir
quem eacute melhor combatente visto que as armas satildeo o precircmio e deveriam estar nas matildeos de
quem possui a virtude adequada Assim ele indaga o proacuteprio papel da palavra (denique quid
uerbis opus est) Essa indagaccedilatildeo potildee mais uma vez em evidecircncia a oposiccedilatildeo entre as duas
noccedilotildees de agir e discursar
Por isso apresenta-se uma proposta obviamente retoacuterica uma soluccedilatildeo para conduzir a
disputa de maneira mais adequada spectemur agendo Natildeo podemos ver o verbo conduzir
agendo sem o seu complemento jaacute manifesto nos versos 5 e 6 agimus [] causam Sua
proposta eacute resolver a disputa atraveacutes de uma querela baseada na qualidade da accedilatildeo ou seja a
guerra enviando as armas para os inimigos e presenteando aquele que recuperaacute-las Toda a
construccedilatildeo eacute retoacuterica Aacutejax natildeo pretende conduzir uma outra disputa mas indicar por meio de
125
sua sugestatildeo mais coerente devido agrave natureza do precircmio que ele mesmo deve ser o vencedor
pois provou ser um heroacutei exiacutemio na guerra o homem de accedilatildeo Contudo o reforccedilo a essa
deduccedilatildeo se faz tambeacutem na forma que os espectadores julgaratildeo a contenda presenciando ou
contemplando sentidos contidos no verbo spectemur Esse verbo abrange desde o sentido de
olhar e contemplar ao de observar atentamente Natildeo de forma arbitraacuteria o heroacutei utiliza esse
termo pois a oposiccedilatildeo entre accedilatildeo mais propriamente na guerra e palavra tambeacutem se
estabelece nas noccedilotildees de luz e de escuridatildeo e de fato presenciado e de natildeo testemunhado de
verdade e de mentira O precircmio tem que ser dado a partir de um evento verdadeiro ou seja de
um ato contemplado pelos olhos agrave luz do dia Logo Ulisses mestre da palavra e executor de
accedilotildees agrave ocultas porta atributos absolutamente contraacuterios aos necessaacuterios para vencer e assim
natildeo deveria recebecirc-los
Essa excelecircncia guerreira de Aacutejax de perspectiva defensiva e reforccediladamente
direcionada agrave proteccedilatildeo dos membros de sua paacutetria e ressoando por isso como a uirtus
romana manifesta-se majoritariamente atraveacutes das fragmentadas analepses trazidas pelo heroacutei
em seu discurso Ela se configura exatamente a partir das narraccedilotildees de proezas passadas em
relaccedilatildeo ao momento da disputa e por isso tais episoacutedios figuram uma caracterizaccedilatildeo indireta
uma vez que a virtude se delineia por meio das inferecircncias que o personagem retira de tais
eventos A exceccedilatildeo eacute a menccedilatildeo ao seu epiacuteteto homeacuterico senhor do escudo de sete dobras
destacadamente uma caracterizaccedilatildeo do tipo direta que reforccedila significativamente o discurso
que segue a descriccedilatildeo Com efeito essa proeminente excelecircncia guerreira fundamenta a
empaacutefia pela qual o heroacutei superestima seu valor diante de seu opositor Ulisses Essa
disposiccedilatildeo eacute fundamental para mover a ira profunda de Aacutejax imprescindiacutevel para o seu
suiciacutedio exatamente porque o heroacutei se encoleriza devido agrave convicccedilatildeo da depreciaccedilatildeo de seus
meacuteritos por parte de seus pares uma vez que ao seu ver a sua desonra foi causada pela
instauraccedilatildeo de uma disputa na qual a vitoacuteria lhe eacute tomada como certa Assim essa virtude do
personagem eacute indispensaacutevel para a estruturaccedilatildeo das motivaccedilotildees que movem o heroacutei
sobretudo do ponto de vista da sua causalidade interna Sua presenccedila alicerccedila a ira que se
prolonga do iniacutecio ao fim do episoacutedio
2 2 2 Ira a ira do heroacutei na perspectiva latina
Como poderemos ver a tradiccedilatildeo latina dos versos de Oviacutedio impotildee na caracterizaccedilatildeo
de Aacutejax a ira e a virtude Esses elementos satildeo representados em dois momentos distintos e
126
opostos estruturalmente no iniacutecio do episoacutedio e ao seu final ambos representativos das
intervenccedilotildees do narrador externo
O primeiro elemento surge com um leacutexico proacuteprio e preciso tanto na descriccedilatildeo de Aacutejax
quanto no desfecho sumarizado o vocaacutebulo latino ira A primeira menccedilatildeo da palavra ira que
delineia o caraacuteter de Aacutejax estaacute inserida no iniacutecio do livro XIII mais precisamente no verso 3
que enfatiza o estado do heroacutei jaacute antes de conhecer o resultado da disputa e ateacute mesmo antes
de ele proferir as primeiras palavras em defesa de si A segunda e uacuteltima menccedilatildeo desse
vocaacutebulo se referindo a Aacutejax como veremos mais adiante eacute tambeacutem empregada por meio de
um narrador externo e situa-se ao fim do episoacutedio no verso 385 quando da decisatildeo do heroacutei
em retirar sua vida apoacutes ter conhecido a escolha dos juiacutezes Isto serve para explicitar como as
duas passagens primeiramente escolhidas para anaacutelise realccedilam como uma moldura os
discursos do personagem Em segundo lugar serve tambeacutem para destacar que a ira do
personagem apesar de se restringir ao episoacutedio da disputa das armas natildeo se daacute apenas depois
do resultado da contenda diferentemente da tradiccedilatildeo homeacuterica Esse sentimento de coacutelera
compotildee a caracteriacutestica do personagem acompanhando-o por todo o episoacutedio obviamente
agravando-se em seu final
Esse sentimento eacute bem conhecido entre os romanos figurando inclusive uma das
paixotildees estudadas nos textos filosoacuteficos de Secircneca nos quais define que ldquonatildeo haacute duacutevida que a
imagem carregada de injusticcedila mova a irardquo (Iram quin species oblata iniuriae moueat non est
dubium Sobre a ira II 1 3 1) ou quando diz que ldquoa causa da iracuacutendia eacute a convicccedilatildeo de
uma injusticcedilardquo (causa [] iracundiae opinio iniuriae est Ibidem II 22 2 2-3) Certamente
podemos reconhecer tais premissas na caracterizaccedilatildeo da ira do personagem em questatildeo uma
vez que este se sente ultrajado na honra ndash isso configura a injusticcedila no seu ponto de vista ndash no
momento em que um adversaacuterio tambeacutem reclama as armas do Pelida para si Como vimos na
seccedilatildeo passada esse ato eacute considerado pelo Telamocircnio como uma accedilatildeo depreciativa de seus
meacuteritos sobretudo porque para ele sua excelecircncia guerreira eacute reconhecidamente superior agrave
dos outros heroacuteis o que tornaria qualquer disputa acerca disso uma contenda inoacutecua
O segundo elemento a noccedilatildeo de virtude a priori beacutelica e defensiva como vimos
expressa-se por meio de um epiacuteteto mas tambeacutem pelo verbo sustineo Contudo esses dois
momentos do episoacutedio o iniacutecio e o fim fazem-se significativos pois de forma sinteacutetica
antecipatoacuteria e conclusiva delineiam as noccedilotildees de ira e de virtude emoldurando o longo
discurso direto de Aacutejax e Ulisses Passemos agora a ver como tais elementos se tornam
basilares agrave unidade textual disposta em todo o episoacutedio comeccedilando por essas interferecircncias
127
do narrador externo que configuram um estudo de caracterizaccedilatildeo propriamente direta Os
trechos a ser estudados satildeo os versos 1 ao 5 e os versos 385 ao 390
Vejamos entatildeo o primeiro fragmento alongado aqui por questotildees de compreensatildeo do
texto contendo a primeira menccedilatildeo ao termo ira Observa-se especialmente um dos dois
uacutenicos casos em que o vocaacutebulo latino ira eacute expresso se referindo a Aacutejax
Consedere duces et uulgi stante corona Surgit ad hos clipei dominus septemplicis Aiax Vtque erat inpatiens irae Sigeia toruo Litora respexit classemque in litore uultu Intendensque manus ldquoAgimus pro Iuppiterrdquo inquit 5 ldquoAnte rates causam et mecum confertur Ulixesrdquo34
(Metamorfoses XIII v 1 ndash 6)
Dentro dos versos acima citados de um todo significativo para o que tentamos
mostrar evidenciamos primeiramente o sintagma inpatiens irae O seu primeiro componente
eacute um adjetivo formado da partiacutecula negativa in unida ao particiacutepio presente do verbo depoente
patior Esse verbo abarca o significado de sofrer suportar durar permitir e alguns outros por
extensatildeo de sentido Cabe aqui precisarmos o significado mais saliente no trecho suportar
tolerar Por ser derivado de um radical verbal esse componente ainda admite complemento
que nesse sintagma daacute-se com o genitivo irae revelando-nos seu significado especiacutefico que
natildeo suporta ou conteacutem a ira Aleacutem disso esse verbo eacute depoente e transfere agraves suas formas
derivadas uma outra noccedilatildeo semacircntica que lhe eacute proacutepria Esse tipo de verbo expressa sentido
semelhante ao da voz meacutedia na liacutengua grega claacutessica jaacute explicada anteriormente
Devido agrave noccedilatildeo do verbo depoente o sintagma expressa que a accedilatildeo se realiza na esfera
do sujeito ou seja revelando algo que eacute proacuteprio do indiviacuteduo sobre o qual a accedilatildeo se
manifesta sendo-lhe subjetivo a incapacidade de domiacutenio de si a impossibilidade de conter a
emoccedilatildeo por alguma razatildeo particular a qual noacutes jaacute conhecemos a aparente depreciaccedilatildeo de sua
honra e de seus meacuteritos guerreiros A relaccedilatildeo de interesse do heroacutei com o ato verbal lhe
confere uma impossibilidade que lhe eacute proacutepria subjetiva a Aacutejax pois a singularidade maior
do sintagma estaacute na relaccedilatildeo pessoal do heroacutei com esse sentimento ndash no seu eventual embate
com ela e na sua eventual submissatildeo ndash traccedilo peculiar do personagem no episoacutedio em 34 Sentaram-se juntos os chefes e os soldados formando-se um ciacuterculo junto a estes surge o senhor do escudo de sete dobras Aacutejax e como natildeo estava suportando a ira para os litorais Sigeios e para a frota no litoral voltou o olhar com torva expressatildeo e estendendo as matildeos diz ldquoperante Juacutepiter diante das naus (v 5) conduzimos a disputa e comigo Ulisses eacute reunido
128
questatildeo tambeacutem presente na tradiccedilatildeo Observamos assim que Oviacutedio natildeo se utiliza apenas
do elemento isolado ira para compor a caracterizaccedilatildeo do personagem pois a nuance
linguiacutestica da composiccedilatildeo manifesta muito mais do que apenas o sentimento de coacutelera
Podemos ainda observar o verso trecircs sob uma simulaccedilatildeo de foacutermula homeacuterica tal
como fizemos no verso dois anteriormente pois apesar de natildeo existir propriamente um
epiacuteteto ou uma foacutermula eacutepica a ira caracterizada do personagem parece simular uma foacutermula
epiteacutetica destacada pela cesura meacutetrica no sentido de reforccedilar um determinado aspecto do
personagem
O verso em questatildeo apresenta o estado do heroacutei por meio de uma oraccedilatildeo causal que
aparentemente apenas justifica seu comportamento na oraccedilatildeo que se segue ndash a torva
expressatildeo ndash e que se completa no verso seguinte ldquoVtque erat inpatiens irae Sigeia toruo []
uulturdquo De forma semelhante ao verso anterior uma cesura pentemiacutemera pouco acrescentaria
pois o segundo hemistiacutequio separaria o complemento irae do adjetivo inpatiens causando
novamente um estranhamento agrave elocuccedilatildeo latina e natildeo evidenciando o sintagma Vejamos
ldquo Vtque e rat ınpatıens ı rae Sı geıa toruordquo Mais uma vez preferimos a cesura
heftemiacutemera pois sua cesura principal separa as duas oraccedilotildees a que finda no verso trecircs e a
que se completa apenas no verso quatro e por consequecircncia evidencia a harmonia entre as
disposiccedilotildees meacutetrica e sintaacutetica fundamental para um destaque semacircntico Vejamos ldquoVtque
erat ınpatıens ı rae Sı geıa toruordquo Assim a estrutura natildeo soacute acentua a elocuccedilatildeo latina
pois ao ocupar todo um hemistiacutequio simula estruturalmente por meio da forma meacutetrica uma
foacutermula eacutepica que segue as mesmas diretrizes meacutetricas dos epiacutetetos homeacutericos Com efeito
aleacutem de delinear a ira como um estado do heroacutei isso tambeacutem nos permite vecirc-la como uma
caracteriacutestica natildeo meramente circunstancial mas destacadamente estrutural dentro do
episoacutedio
O verso trecircs ainda traz mais possibilidades de interpretaccedilatildeo Uma cesura secundaacuteria
trimiacutemera jaacute vista quase sempre acompanha a cesura heftemiacutemera principal ainda que por
tmese em partiacuteculas prefixais e eacute de uso frequente dos latinos (PLESSIS 1889) Vejamos
ldquo Vtque e rat ınpatıens ı rae Sı geıa toruordquo Essa possibilidade frequente nos latinos
nos conduz a uma interpretaccedilatildeo ainda mais significativa Ao separar no primeiro hemistiacutequio
o predicativo do verbo centraliza-se o sintagma estudado por noacutes em sua raiz primeira sem
prefixaccedilatildeo patiens irae Essa cesura secundaacuteria aleacutem de evidenciar o estado de Telamocircnio
essencial para a interpretaccedilatildeo do episoacutedio sugere pela pausa meacutetrica um duplo significado do
sintagma Junto ao primeiro ligado agrave ideia de suportar teriacuteamos o segundo sem a prefixaccedilatildeo
129
ligado ao sentido de sofrer Como veremos mais adiante esse uacuteltimo sentido tambeacutem pareceraacute
fundamental na estrutura do mito
Poderiacuteamos supor ateacute entatildeo que o estado coleacuterico do heroacutei inicialmente parece
circunstancial ao episoacutedio pois seria apenas a causa ou o motivo da accedilatildeo do heroacutei descrita na
oraccedilatildeo seguinte que voltou o olhar com torva expressatildeo respexit toruo uultu Entretanto a
partir da importacircncia que a tradiccedilatildeo daacute a esse aspecto do personagem a ira no episoacutedio da
disputa pelas armas de Aquiles parece-nos natural observar com mais atenccedilatildeo o trecho Nesse
ponto entatildeo destaca-se a nossa anaacutelise que corrobora o papel estrutural e natildeo circunstancial
desse sentimento nesse episoacutedio uma vez que se junto agrave estrutura meacutetrica reforccedilativa
proacutepria dos epiacutetetos considerarmos a organicidade entre o uso das foacutermulas eacutepicas e os seus
discursos diretos procedentes no sentido de contextualizaccedilatildeo e de integraccedilatildeo daquelas com
relaccedilatildeo a estes Entretanto para validar nossa interpretaccedilatildeo ainda eacute preciso observar a carga
significativa desse traccedilo de Aacutejax no episoacutedio todo
Assim conveacutem contemplarmos o segundo fragmento escolhido para estudo ainda
correspondente ao narrador externo os versos 385 ndash 390 inseridos na seccedilatildeo desfecho
sumarizado Lembremos que nesta passagem vemos a segunda menccedilatildeo de todo o episoacutedio
do vocaacutebulo latino ira aplicado ao personagem bem como a referecircncia agrave qualidade defensiva
de sua virtude guerreira novamente por meio da utilizaccedilatildeo do verbo latino sustineo
recorrente nesse episoacutedio Vejamos como esses elementos se unem para compor o desfecho
do episoacutedio e para a melhor compreensatildeo da relaccedilatildeo das partes do texto na estruturaccedilatildeo de sua
unidade Abaixo segue o fragmento
Hectora qui solus qui ferrum ignesque Iouemque Sustinuit totiens unam non sustinet iram 385 Inuictumque uirum uincit dolor arripit ensem Et ldquoMeus hic certe est an et hunc sibi poscit Vlixes Hocrdquo ait ldquoitendum est in me mihi quique cruore Saepe Phrygum maduit domini nunc caede madebit Ne quisquam Aiacem possit superare nisi Aiaxrdquo 390 Dixit et in pectus tum demum uulnera passum Qua patuit ferro letatem condidit ensem35
(Metamorfoses XIII v 384 ndash 392)
35 (Aacutejax) que sozinho susteve Heitor e que o ferro as chamas e Juacutepiter tantas vezes susteve natildeo susteacutem somente a ira (v 385) a dor vence o heroacutei invicto toma a espada e diz ldquocertamente esta eacute minha acaso Ulisses exige para si Isto haveraacute de ser usado por mim contra mim e que vaacuterias vezes por cruor dos friacutegios esteve coberto agora estaraacute por sangue do dono ningueacutem possa superar Aacutejax senatildeo Aacutejaxrdquo (v 390) Disse e entatildeo finalmente afundou a espada letal no peito sofrido de dores no lugar que expocircs para o ferro
130
Dentro dessa passagem destacamos primeiramente a oraccedilatildeo unam non sustinet iram
Observamos nessa composiccedilatildeo o termo iram acompanhado do adjetivo unam que o restringe
fornecendo o significado uma soacute ira a ira somente O verbo sustineo possui o sentido de
suster sustentar suportar Natildeo haacute como natildeo o relacionar com o verbo patior referido no
trecho anterior pois os dois verbos se inserem dentro do mesmo campo semacircntico Nesse
fragmento mais uma vez o vocaacutebulo ira eacute complemento e Aacutejax aquele que pratica a accedilatildeo
Vemos assim uma estrutura linguiacutestica e semanticamente espelhada em que a ira eacute
complemento ora nominal ora verbal tanto em inpatiens irae quanto em non sustinet iram
Essa estrutura evidencia um aspecto chave no episoacutedio a impossibilidade do Telamocircnio em
conter a ira que o domina e impulsiona as suas accedilotildees durante todo o episoacutedio
A cesura meacutetrica do verso tambeacutem parece acentuar a importacircncia da passagem para o
entendimento do episoacutedio Vejamos ldquoSustınuıt totıens unam non sustınet ıramrdquo A
cesura pentemiacutemera primeiramente isola dois conteuacutedos dos quais o segundo retoma e
enfatiza a ira do heroacutei Essa ecircnfase se faz natildeo soacute pela divisatildeo dos conteuacutedos em dois
hemistiacutequios mas especialmente porque esses dois componentes se opotildeem e se completam
por meio de um mesmo verbo repetido no verso sustineo O entendimento do segundo
hemistiacutequio se faz a partir do primeiro pois se apenas a ira natildeo eacute sustentada por Aacutejax isso se
acentua diante de tudo aquilo que o heroacutei susteve ndash Heitor as armas pela metoniacutemia do ferro
as chamas e Juacutepiter ndash e que corrobora mais uma vez sua virtude guerreira em sua qualidade
defensiva Esses episoacutedios em analepse agora satildeo retomados a partir da voz do narrador
reforccedilando esses mesmos eventos que foram mencionados pelo proacuteprio contendor quando em
seu discurso
O entendimento pleno da passagem e da estrutura do episoacutedio se daacute ao contrapormos
esse verso aos iniciais jaacute estudados Isso nos conduz a uma relaccedilatildeo fundamental das partes do
texto que realccedila a funccedilatildeo da ira na versatildeo de Oviacutedio do mito vinculando a ela um outro
elemento o sentido de contenccedilatildeo ou seja a capacidade de suportar ou suster que junto agrave ira
daacute estruturaccedilatildeo ao episoacutedio A capacidade de contenccedilatildeo que marca o maior atributo do
personagem natildeo eacute suficiente para que ele domine seu temperamento Mesmo sendo de
acircmbitos diferentes a capacidade guerreira e a emocional o autor significativamente evidencia
a uniatildeo dessas qualidades uma vez que o verbo sustineo eacute usado para ambas Contudo mais
adiante veremos os propoacutesitos dessa conjunccedilatildeo
Podemos tambeacutem retirar outras relaccedilotildees significativas e esclarecedoras a partir da
estruturaccedilatildeo dos componentes dessas duas oraccedilotildees Na oraccedilatildeo non sustinet iram Aacutejax figura
o sujeito pois eacute aquele que pratica a accedilatildeo em oposiccedilatildeo a isso na oraccedilatildeo inuictumque uirum
131
uincit dolor o heroacutei representa o complemento verbal aquele que sofre a accedilatildeo Assim haacute
uma relaccedilatildeo significativa na accedilatildeo praticada que ao heroacutei retorna pois ora ele a executa e
consequentemente ora ele a sofre Dessa estrutura invertida e natildeo gratuita podemos
completar e reforccedilar o duplo sentido no sintagma inpatiens irae uma vez que ao fim do
episoacutedio dois sentidos satildeo conjugados o de dor sofrida e o de ira natildeo suportada fazendo com
que percebamos a relaccedilatildeo de desdobramento de patior em sofrer e suportar sintetizando
antecipadamente os sentidos de dolor e sustineo Pois se patior eacute um verbo depoente e traz
consigo toda uma relaccedilatildeo que suplanta atividade e passividade em um novo sentido as duas
oraccedilotildees dos versos 385 e 386 reforccedilam essa ideia ao expressar um heroacutei praticante de uma
accedilatildeo que resulta em outra que o acomete ou seja evidenciando uma relaccedilatildeo mais
significativa do personagem com essas accedilotildees
Diante desse entendimento o caraacuteter epiteacutetico reforccedilativo do sintagma inpatiens irae
entatildeo faz-se patente parece-nos pois sintetiza a dupla relaccedilatildeo do sentimento de ira e de
virtude expressa por meio da capacidade de conter que sustenta e alicerccedila a trama do
episoacutedio e sua rede de relaccedilotildees fundamentando a caracterizaccedilatildeo do personagem Essa
elaboraccedilatildeo literaacuteria faz com que as partes do texto dialoguem e se complementem
constituindo uma unidade textual uma estrutura fixada com um objetivo que ao ser revelada
permiti-nos compreender por exemplo a relaccedilatildeo da virtude preponderante de Aacutejax com
sintagma inpatiens irae Vimos em nossa anaacutelise que haacute um espelhamento entre inpatiens irae
e non sustinet iram poreacutem o sentido do verbo sustineo abarca apenas um dos dois
significados sugeridos no verso 3 o de suportar ou suster Mas a cesura meacutetrica desse mesmo
verso parece tambeacutem destacar o primeiro sentido de patior o de sofrer Conveacutem acentuarmos
esse significado a partir do verso 387 O trecho explicitamente agora acrescenta esse
elemento apenas sugerido no verso 3 descrevendo que a dor vence o heroacutei invicto
inuictumque uirum uincit dolor Natildeo haacute como natildeo relacionarmos dor a sofrer e por
consequecircncia dolor a patior e patior a sustineo A rede de relaccedilotildees torna-se cada vez mais
complexa contudo apenas intensifica a unidade textual estruturada nos conceitos de virtude e
de ira
No episoacutedio de Metamorfoses acerca da disputa das armas pode-se observar que o
Telamocircnio natildeo suporta a sua ira non sustinet iram e a dor o vence dolor vincit uirum e no
lugar onde ele crava a espada noacutes vemos mais um reforccedilo da participaccedilatildeo da dor no episoacutedio
O lugar exposto para o ferro patuit ferro eacute o peito pectus que se encontra ferido
machucado passum particiacutepio passado de patior mas natildeo de lesotildees fiacutesicas O proacuteprio texto
nos aponta isso pois no discurso de Ulisses ele revela que o Telamocircnio dedicou nada de
132
sangue aos amigos por todos os anos e tem o corpo sem ferimento at nihil impendit per tot
Telamonius annos sanguinis in socios et habet sine uulnere corpus (v 266-267)
Aacutejax natildeo foi ferido pelos inimigos e por isso possui o corpo sem ferimento sine
uulnere assim essa utilizaccedilatildeo da palavra se refere a um ferimento fiacutesico diferente do que
acontece com essa mesma palavra ao ser usada como o complemento de passum uulnera
pois reflete entatildeo somente o sentido de ferimento e dor causados pela desonra pela
depreciaccedilatildeo por que o personagem passou Se antes a ideia simultacircnea de suportar e de sofrer
parecia apenas possiacutevel sugerida pelo destaque meacutetrico do sintagma inpatiens irae que
simulava a forma e o caraacuteter reforccedilativo de um epiacuteteto agora parece-nos que essa imagem se
torna mais pertinente especialmente se considerarmos a Retoacuterica de Aristoacuteteles que alicerccedila
na ira a noccedilatildeo de dor bem como a obra Sobre a Ira de Secircneca que natildeo se afastando da
concepccedilatildeo do filoacutesofo grego diz ldquoa ira ser a vontade de devolver a dorrdquo (iram esse
cupiditatem doloris reponendi I 3 3 2) Logo do estado iracundo do heroacutei natildeo podemos
retirar os sentimentos de dor e de injusticcedila presentes Assim nada mais significativo do que
apresentar um personagem cujo sentimento de ira participaraacute de toda a cena ao menos
simulando as foacutermulas eacutepicas de maneira a sintetizar em um mesmo sintagma as concepccedilotildees
de dor injusticcedila essenciais sobretudo no episoacutedio em questatildeo conjuntamente com a de
coacutelera profunda
Para que possamos observar como nesse episoacutedio entrelaccedilam-se as noccedilotildees de ira e de
dor conveacutem contemplarmos a unidade textual proposta por Oviacutedio Esse autor parece precisar
esse pensamento por meio de sua unidade lexical que sugere diferenciar as vaacuterias nuances
desencadeadas por vocaacutebulos que exprimam significados proacuteximos ao do vocaacutebulo ira A
clareza do plano linguiacutestico do episoacutedio acarreta a exatidatildeo de pensamento e de sentido no
texto Aleacutem do vocaacutebulo latino ira outros se agregam com sentido semelhante entre eles
podemos citar o verbo de mesma raiz irascor e o substantivo furor Apesar de estarem
dentro do mesmo campo semacircntico as escolhas linguiacutesticas do autor pelo menos para o
episoacutedio em questatildeo parecem opor e precisar os seus significados tornando mais indubitaacutevel
a relaccedilatildeo de ira com dor Vejamos primeiramente o vocaacutebulo furor
Dentro do episoacutedio estudado esse vocaacutebulo aparece trecircs vezes Todas as menccedilotildees
estatildeo presentes no discurso de Aacutejax e tambeacutem estatildeo inseridas no mesmo contexto na
analepse do episoacutedio da artimanha de Ulisses para evitar a convocaccedilatildeo ao exeacutercito grego Eacute se
referindo a esse contexto que os versos satildeo mencionados e ao personagem Ulisses que o
vocaacutebulo furor se liga Abaixo seguem os versos das trecircs passagens seguidos das traduccedilotildees
133
Arma neganda mihi potiorque uidebitur ille 35 Vltima qui cepit detrectauitque furore Militiam ficto donec sollertior isto Et sibi inutilior timidi commenta retexit Naupliades animi uitataque traxit ad arma36
(Metamorfoses XIII v 35 ndash 39 grifo nosso) Atque utinam aut uerus furor ille aut creditus esset Nec comes hic Phrygias umquam venisset ad arces Hortator scelerum Non te Poentia proles 45 Expositum Lemnons nostro cum crimine haberet37
(Metamorfoses XIII v 43 ndash 46 grifo nosso) ille tamen uiuit quia non comitavit Vlixen 55 Mallet et infelix Palamedes esse relictus uiueret aut certe letum sine crimine haberet Quem male conuicti nimium memor iste furoris Prodere rem Danaam finxit fictumque probauit crimen et ostendit quod iam praefoderat aurum 38 60
(Metamorfoses XIII v 55 ndash 60 grifo nosso)
Podemos observar que o vocaacutebulo latino furor estaacute inserido em um campo semacircntico
ao qual se fixa ira visto que alguns dicionaacuterios abonam seu sentido de furor fuacuteria ira raiva
ou coacutelera Contudo haacute nessa palavra uma nuance primeira que lhe eacute proacutepria e que precisa o
seu significado no sentido de loucura devaneio frenesi Os trechos corroboram esse sentido
especiacutefico proacuteprio do vocaacutebulo pois rementem ao estado de loucura de Ulisses descrito no
episoacutedio do mito da convocaccedilatildeo dos heroacuteis gregos
Aqui trecircs coisas se fazem importantes A primeira se manifesta na qualidade dessa
loucura pois ela natildeo eacute verdadeira mas dissimulada forjada furore ficto A segunda reside no
desejo impossiacutevel e irreal de Aacutejax expresso com o subjuntivo passado esset de que aquela
loucura fosse verdadeira ille furor verus A terceira se expressa na consequecircncia loacutegica
revelada no argumento do discurso do Telamocircnio o desejo impossiacutevel e irreal encontra uma
finalidade pois seria a fim de que Ulisses natildeo viesse agrave guerra de Troia nec venisset ad arces
Phrygias Essa consequecircncia parece eventual e direta se a loucura fosse verdadeira
36 As armas hatildeo de ser negadas para mim E pareceraacute mais preferiacutevel (v 35) aquele que tomou as uacuteltimas e recusou a expediccedilatildeo com loucura forjada ateacute que mais industrioso que esse e mais prejudicial a si o Naupliacuteade revelou os fingimentos De espiacuterito covarde e trouxe-o para as armas evitadas 37 E que aquela loucura fosse verdadeiro ou fosse acreditada para que este companheiro natildeo viesse algum dia agraves cidadelas Friacutegias estimulador de crimes Prole de Peante que Lemnos (v 45) natildeo te tivesse abandonado com nosso crime 38 Aquele [Filoctetes] contudo vive pois natildeo seguiu Ulisses (v 55) o infeliz Palamedes preferisse ser deixado viveria ou certamente teria morte sem crime a quem este [Ulisses] bem lembrado da loucura mal provada forjou revelar tesouro dacircnao comprovou o crime forjado e mostrou o ouro pois jaacute o tinha enterrado antes (v 60)
134
Isso nos sugere uma oposiccedilatildeo imprescindiacutevel aos vocaacutebulos ira e furor e significativa
para o episoacutedio em questatildeo A princiacutepio a loucura ou o devaneio significados contidos em
furor natildeo nos parece ser passiacutevel de resistecircncia Parece-nos talvez natildeo relacionado a um
aspecto fiacutesico-emocional no acircmbito do autocontrole daquele que a loucura acomete Pois
aquele que estaacute submetido a esse frenesi eacute passivo nesse processo natildeo sendo possiacutevel se
desvencilhar da situaccedilatildeo a partir de uma accedilatildeo interna do proacuteprio sujeito pelo menos eacute o que
sugerem os versos A loucura de Ulisses se fosse verdadeira incapacitaacute-lo-ia de participar da
guerra pois a vitoacuteria do heroacutei sobre a mesma natildeo seria possiacutevel
Essa precisatildeo na escolha dos vocaacutebulos estrutura a unidade lexical do episoacutedio A
nuance semacircntica do vocaacutebulo furor que no texto se evidencia define melhor o proacuteprio
sentido de ira pois os dois a princiacutepio semelhantes se opotildeem completamente ao serem
usados em contextos diferentes Por um lado furor eacute utilizado para um sentido de loucura e
devaneio ira eacute usado mais para um sentido de rancor e coacutelera O primeiro arrebata o heroacutei
sem luta e sem resistecircncia o segundo o submete por meio de um confronto de forccedilas a partir
de um aspecto fiacutesico-emocional sobre o qual o sujeito tem poder de intervenccedilatildeo Assim Aacutejax
na versatildeo de Oviacutedio natildeo eacute tomado por uma loucura mas sim por uma ira profunda que nasce
da proacutepria situaccedilatildeo do episoacutedio e que o vence pois ele natildeo consegue sustentaacute-la ou contecirc-la
e que o impulsiona a cometer o suiciacutedio
A menccedilatildeo do verbo irascor ratifica a interpretaccedilatildeo de um sentido ligado a um aspecto
fiacutesico-emocional e o faz ainda retomando o elemento dor Vejamos o trecho abaixo que
descreve um fragmento do discurso de Ulisses
Vt dolor unius Danaos peruenit ad omnes Aulidaque Euboicam conplerunt mille carinae Exspectata diu nulla aut contraria classi Flamina erant duraeque iubent Agamemnona sortes Immeritam saevae natam mactare Dianae 185 Denegat hoc genitor diuisque irascitur ipsis39
(Metamorfoses XIII v 181- 186 grifo nosso)
Esses versos fazem referecircncia ao episoacutedio da guerra de Troia que situa o nuacutecleo da
convocaccedilatildeo dos heroacuteis gregos Em Aacuteulide os exeacutercitos se reuacutenem formando um uacutenico corpo
agora comandado por um soacute rei Agamecircmnon Esse episoacutedio trata de uma situaccedilatildeo que potildee
toda expediccedilatildeo diante de um possiacutevel fracasso pois os ventos favoraacuteveis agrave frota que a
39
A dor de um chega ateacute todos os Dacircnaos e mil popas encheram a Aacuteulide eubeia Muito tempo esperado nenhum vento era favoraacutevel agrave frota duras sortes decretam Agamecircmnon sacrificar a filha inocente para a feroz Diana (v 185) Este genitor recusa e ira-se com os proacuteprios deuses
135
levariam a Troia soacute satildeo possiacuteveis por meio do sacrifiacutecio da filha de Agamecircmnon O sucesso
da empreitada depende do seu liacuteder ao qual todo o exeacutercito se submete
Podemos ver que o fragmento descreve a dor de um homem chegar a todos os Dacircnaos
dolor unius Agamecircmnon tambeacutem sofre pelo decreto da deusa que o impele a matar a filha e
o exeacutercito sofre devido agrave possibilidade de a reuniatildeo ter sido em vatildeo Sabemos que
Agamecircmnon realiza aquilo desejado pela deusa mas Diana substitui Ifigecircnia por uma corccedila
Contudo os versos evidenciam todo o sofrimento e o dilema passado pelos gregos revelando
que antes de Agamecircmnon realizar o ato propriamente dito recusa executaacute-lo denegat
chegando a se indignar-se ou mais propriamente irar-se irascitur com os deuses
O verbo depoente irascor figura o envolvimento de Agamecircmnon com a accedilatildeo de irar-
se A noccedilatildeo depoente implica uma relaccedilatildeo subjetiva e pessoal do heroacutei nesse ato que
semelhantemente ao do Telamocircnio parece-nos mais uma vez relacionar-se com sofrimento e
com dor Na relaccedilatildeo semacircntica disposta no episoacutedio do sacrifiacutecio na versatildeo de Oviacutedio e na
loacutegica de causalidade expressa a dor de Agamecircmnon eacute imprescindiacutevel agrave sua ira contra os
deuses pois este sentimento se desenvolve a partir daquele
Podemos ainda relacionar uma cadeia maior por meio da noccedilatildeo de causalidade
corrente nessa analepse A sequecircncia se inicia com o decreto da deusa que implica a dor
individual de Agamecircmnon nele desenvolvendo-se a ira responsaacutevel pela recusa ao sacrifiacutecio
ato que acarreta a dor coletiva dos gregos pois representa o possiacutevel fracasso na campanha
militar contra os troianos A relaccedilatildeo entre sofrimento individual e o coletivo se faz no
envolvimento de Agamecircmnon com a accedilatildeo de irar-se em que estaacute necessariamente vinculada agrave
sua dor particular de pai diante da accedilatildeo a ser tomada contra sua proacutepria filha
Esse viacutenculo estrutural e semacircntico entre dor e ira disposto na caracterizaccedilatildeo tanto de
Aacutejax personagem central do episoacutedio quanto de Agamecircmnon de reforccedilo argumentativo
configura a ira ao menos nos dois casos desse episoacutedio desenvolvida sob o aspecto fiacutesico-
emocional e que se expressa senatildeo no interesse do agente verbal Dessa forma a dor parece
indissociaacutevel da noccedilatildeo da ira independente se surge do acircmbito afetivo cultural social etc
A partir dessas consideraccedilotildees o segundo verso do Livro XII nos parece mais
promissor O epiacuteteto senhor do escudo de sete camadas clipei dominus septemplicis natildeo eacute
referido arbitrariamente por Oviacutedio em seu texto pois atraveacutes dele toda uma imagem
significativa de heroacutei vem agrave tona a de proteccedilatildeo Eacute por meio da noccedilatildeo de proteccedilatildeo que se cria
imagem de um Aacutejax que conteacutem o inimigo e seus ataques O escudo para isso eacute fundamental
Esse sentido do epiacuteteto que se faz por si soacute ganha reforccedilo e destaque no episoacutedio quando nos
136
versos 385-386 descreve-se tudo aquilo que Aacutejax pocircde conter em oposiccedilatildeo agrave uacutenica coisa que
ele natildeo pocircde
Isso eacute importante porque por um lado os dois conteuacutedos trazidos nos versos 385 e
386 estruturam-se como complementos do verbo sustineo fornecendo uma carga semacircntica
que evidencia a oposiccedilatildeo de seus dois componentes aquilo que eacute contido pelo heroacutei como
Heitor as armas as chamas e Juacutepiter e aquilo que natildeo eacute contido restrito unicamente ao
sentimento de ira unam iram Por outro os mesmos dois conteuacutedos relacionam-se
estruturalmente e dialogam a partir do mesmo verbo sustineo convergindo o sentido dos dois
componentes em um mesmo ponto em um mesmo atributo caracteriacutestico de Aacutejax sua
virtude e mais propriamente sua capacidade de suster e conter que une e opotildee significados
beacutelicos e emocionais
Contudo eacute o conteuacutedo do discurso de Aacutejax que nos revela a natureza de sua
compreensatildeo de mundo e de valores importante pois por meio dela percebemos como o
personagem vecirc a proacutepria situaccedilatildeo em que se encontra responsaacutevel pela origem da ira e da dor
que o acometem Sua perspectiva de valores recai sobre dois conceitos importantes accedilatildeo e
palavra ou seja agir e discursar A oposiccedilatildeo entre estes dois eacute a base do encadeamento loacutegico
das proposiccedilotildees do personagem e por reflexo eacute tambeacutem a natureza de seu estilo retoacuterico que
recebe um reforccedilo significativo do seu estado iracundo
Para ampliar e reforccedilar o que jaacute foi estudado conveacutem lembrarmos do que a tradiccedilatildeo
homeacuterica guardou acerca da oratoacuteria de Aacutejax especialmente contraposta agrave de Ulisses
O exemplo claacutessico que jaacute citamos estaacute contido no Canto IX da Iliacuteada Podemos
observar de forma clara jaacute um elemento de diferenccedila entre os discursos de Odisseu e Aacutejax
Para o primeiro Homero dedicou oitenta e dois (82) versos (v 225-306) para o segundo
dezenove (19) versos (v 642-642) Isso nos mostra que na versatildeo homeacuterica o discurso do
Laertida eacute ao menos quatro vezes maior do que o do Telamocircnio caracterizando aquele como
mais prolixo e este mais direto
A versatildeo de Oviacutedio segue padrotildees semelhantes no entanto com uma diferenccedila menor
na extensatildeo do discurso O discurso de Ulisses se desenvolve em duzentos e cinquenta e
quatro (254) versos (v 128-381) enquanto o de Aacutejax se estende por cento e dezoito (118)
versos (v 5-122) Isso corresponde ao menos a um discurso duas vezes maior Apesar de
alongar o discurso do heroacutei de Salamina o de Iacutetaca ainda se mostra bem maior preservando
ainda a tradicional caracterizaccedilatildeo dos dois personagens Isso permite ao primeiro a
possibilidade de uma capacidade retoacuterica que segundo Elaine Fantham (KNOX 2009) e Neil
Hopkinson (2000) soacute natildeo foi efetiva porque natildeo estava direcionada aos seus iguais aos reis
137
mas agrave massa anocircnima de soldados Dessa forma natildeo lhe faltam no discurso e isso eacute
claramente visiacutevel sentenccedilas de cunho exortativo frases de efeito perguntas retoacutericas e uma
aguda ironia que para noacutes parece reforccedilar a ira do heroacutei presente antes e ao longo de seu
discurso
A complexidade levantada acerca da unidade textual do episoacutedio sustenta
significativamente como chave de leitura a ira do personagem como oriunda da dor que
acomete o heroacutei Esta se estabelece a partir da convicccedilatildeo de que o personagem tem da sua
proacutepria situaccedilatildeo baseado em seus valores guerreiros sobretudo defensivos vinculados agrave
oposiccedilatildeo entre as qualidades de accedilatildeo proacuteprias dele mesmo e da palavra proacuteprias de Ulisses
Assim parece-nos que o discurso de Aacutejax seria mais propriamente de estilo oratoacuterio emotivo
e exortativo como jaacute dissemos movido pela ira e pela dor e empregado para comover e
incitar os ouvintes fomentando-lhes a agitaccedilatildeo das emoccedilotildees e dos sentimentos ainda que se
utilize de princiacutepios loacutegicos e dedutivos Para chegarmos a uma conclusatildeo mais soacutelida sobre
esse pensamento devemos considerar ao menos as duas seguintes informaccedilotildees
A primeira nos eacute trazida por Neil Hopkinson ao analisar Aacutejax no livro XIII utilizando-
se de alguns escritos de Quintiliano dispostos abaixo (2000)
Nec hoc quidem negauerim sequi plerum hanc opinionem ut fortius dicere uideantur indocti primum uitio male iudicantium qui maiorem habere uim credunt ea quae non habent artem ut effringere quam aperire rumpere quam soluere trahere quam ducere putant robustius Nam et gladiator qui armorum inscius in rixam ruit et luctator qui totius corporis nisu in id quod semel invasit incumbit fortior ab his vocatur cum interim et hic frequenter suis uiribus ipse prosternitur et illum uehemens impetus excipit aduersii mollis articulus40
(Institutio Oratoria 2 12 1 ndash 2)
Neil Hopinkson para mostrar que o chefe de Salamina eacute representado por Oviacutedio
como de discurso objetivo e direto tal qual se condiz a um guerreiro mas tambeacutem de um
estilo oratoacuterio vigoroso e emotivo mal controlando-se suas emoccedilotildees compara os indocti do
fragmento acima a uulgi dos primeiros versos do livro XIII Pois se o discurso repercutiu
realmente sobre agrave massa dos soldados como vemos nos versos ldquotinha terminado o gerado de
Teacutelamon e da tropa o murmuacuterio que seguiu era as uacuteltimas coisasrdquo (finierat Telamone satus 40
Certamente ao seguir-se esta opiniatildeo geral isto natildeo neguemos que os ineptos sejam vistos dizendo mais vigorosamente primeiramente por mau erro dos que julgam que creem ter a forccedila maior as coisas que natildeo tecircm arte assim como acham mais vigoroso arrombar do que abrir romper do que solver e trazer do que conduzir E assim o gladiador que descuidado das armas precipita-se na contenda e o lutador que por esforccedilo de todo o corpo apoia-se no golpe que empreendeu satildeo chamados de mais fortes quando contudo tanto este mesmo frequentemente eacute derrubado pelas suas forccedilas quanto a mole articulaccedilatildeo do adversaacuterio susteacutem aquele de ataque rigoroso
138
uulgique secutum ultima mumur erat v 123 ndash 124) fez-se porque esse grupo representa a
opiniatildeo geral que associa a pujanccedila ao discurso sem retoacuterica porque prefere os que a ele se
assemelham nos dizeres eneacutergicos uma vez que se opotildee aos heroacuteis por natildeo possuir sua
moderaccedilatildeo Assim o estilo oratoacuterio de Aacutejax seria mais bem acolhido pelo corpo de soldados
como o fragmento ressaltou exatamente por representar a objetividade e o vigor emotivo
A segunda informaccedilatildeo a ser considerada eacute a caracterizaccedilatildeo do narrador externo que
anuncia contextualiza e direciona o proacuteprio discurso que se segue Natildeo devemos nos esquecer
dos termos inpatiens irae ndash natildeo suportando a ira ndash e toruo uultu ndash torva expressatildeo ndash jaacute
explicados anteriormente pois corroboram essa oratoacuteria vigorosa e emotiva precisando a
interpretaccedilatildeo que devemos considerar acerca do discurso do heroacutei e de sua caracterizaccedilatildeo
Diante disso impotildee-nos achar mais coerente ao episoacutedio e ao personagem o estilo
oratoacuterio emotivo e exortativo ou seja de dicccedilatildeo vigorosa Contudo como acima nos disse
Quintiliano um discurso forte natildeo necessariamente eacute aquele isento de uma formulaccedilatildeo
retoacuterica consciente ou como ele mesmo diz non habent artem ndash sem arte Com efeito
podemos ver que a estrutura do discurso do Telamocircnio desdobrando-se da oposiccedilatildeo dos dois
heroacuteis com base no valor positivo da accedilatildeo e do negativo da palavra a fim de glorificar um e
inferiorizar outro exprime uma consciecircncia retoacuterica nada inepta ou natildeo treinada
Apesar de natildeo possuir essa base retoacuterica mais intelectual do ponto de vista da
estruturaccedilatildeo dos conteuacutedos e da base dos argumentos devemos observar atentamente em que
se expressam os pontos culminantes de sua ira como nos pareceram ser as perguntas retoacutericas
que retratam o contraste entre os heroacuteis uma vez que nessas passagens o personagem
apresenta uma imagem inferior e exagerada do seu opositor Assim eacute exatamente nessa forma
de dizer ou seja de expressar sua perspectiva acerca dos valores sobretudo guerreiros que
podemos analisar a ira na caracterizaccedilatildeo do heroacutei Todas as descriccedilotildees hiperboacutelicas do porte
fiacutesico e da iacutendole moral inseridas em uma perspectiva depreciativa as quais estudamos
anteriormente reforccedilam significativamente o estado emocional do Telamocircnio quando
arguindo Isso destaca senatildeo a caracterizaccedilatildeo indireta desse sentimento no personagem uma
vez que se faz a partir de um processo mais dinacircmico e menos oacutebvio
Como jaacute vimos o Telamocircnio ofende o caraacuteter de Ulisses depreciando seu valor
guerreiro e sua imagem de heroacutei ateacute em sua preponderante inteligecircncia Por um lado o ultraje
se faz agrave virtude guerreira do heroacutei inferior o porte fiacutesico carece de atributos combativos pois
estes satildeo imbeles (inbellibus [] lacertis v 109) e insuficientes para carregar sobretudo o
peso das armas de Aquiles (pondera tanta feret v 108) e seu acircnimo inadequado agrave guerra
pois o chefe de Iacutetaca eacute referido como covarde (timidae natae v 111) e o mais covarde
139
(timidissime v 115) Esse superlativo reforccedila a inferioridade destacada do personagem
insultado sobretudo porque seria por meio dessa caracteriacutestica que ele triunfa (uincis v15)
com a fuga (fuga v 115) Por outro lado quanto agrave inteligecircncia esse ainda eacute visto pelo seu
lado negativo uma vez que sua mente seria utilizada para cometer ardis sobretudo
criminosos pois sua origem seria proveniente do heroacutei Siacutesifo (sanquine creatus Sisyphio v
31-32) o maior ludibriador e inescrupuloso dos mortais da mitologia grega como jaacute citamos
anteriormente A esse Ulisses se assemelharia tanto no furto quanto na fraude (furtisque et
fraude simillimus illi v 32) O proacuteprio Laertida reconhece as palavras do seu opositor serem
insultos (conuicia v 306) proferidos de uma boca insensata (stolidae [] linguae v 306) de
um heroacutei insensato (Aiacis stolidi v 327)
Certamente as perguntas retoacutericas tambeacutem desencadeiam pontos criacuteticos dessa
retoacuterica iracunda como podemos ver os momentos de escaacuternio e de ironia Com efeito
Ulisses eacute heroacutei e manifesta as devidas carateriacutesticas obviamente Contudo Aacutejax utiliza-se de
hipeacuterboles juntos agraves perguntas retoacutericas para descrever um caraacuteter de seu opositor bem
inferior a fim de escarnececirc-lo Essa ostensiva atitude de zombaria natildeo tem o intuito de
provocar o riso como jaacute dissemos pois um Aacutejax indignado e iracundo entretendo os ouvintes
natildeo se adequaria ao episoacutedio Seu objetivo nos parece ser outro insultar o adversaacuterio no
sentido de humilhaacute-lo e de rebaixaacute-lo da sua condiccedilatildeo de heroacutei diante de todos pois se
rememorarmos a premissa de Secircneca acerca da ira (iram esse cupiditatem doloris reponendi
Sobre a Ira I 3 3 2) podemos entender que o Telamocircnio realmente tem a vontade de
devolver ao contendor de Iacutetaca o insulto recebido em sua honra quando este ousou reclamar
as armas do Pelida Havendo como destacamos na honra (honor) a ideia de um
reconhecimento puacuteblico do meacuterito o ultraje cometido pelo Laertida foi puacuteblico logo a
resposta tambeacutem deve ser puacuteblica Dessa forma depreciar diante de todos os meacuteritos do
adversaacuterio a ponto de diminuir a sua virtude sobretudo de heroacutei eacute certamente desonraacute-lo E
Aacutejax assim o faz impulsionado pela convicccedilatildeo em sua proacutepria desonra para a qual o
demeacuterito reside na participaccedilatildeo do heroacutei em uma contenda cujo resultado lhe eacute evidente e
assim configurando-a como desnecessaacuteria senatildeo para ferir sua superior excelecircncia guerreira
Retomemos todas as informaccedilotildees para que possamos chegar a uma conclusatildeo Na
versatildeo de Oviacutedio a estruturaccedilatildeo do episoacutedio se daacute a partir da complementaridade e da relaccedilatildeo
trazidas pelos elementos virtude e ira pois eles satildeo necessaacuterios para dar agrave trama um elemento
que nos parece frequente ao mito e suas decorrentes versotildees uma espeacutecie de ironia natildeo no
sentido de figura de linguagem ou palavra mas de destino proacutepria dos textos traacutegicos que
conduz Aacutejax ao seu infortuacutenio contrariamente agrave expectativa ou seja de maneira peripeacutetica
140
em especial porque decorre de accedilotildees que envolvem especialmente o atributo que mais o
caracteriza no episoacutedio uma capacidade de suster de conter a priori no acircmbito beacutelico Esse
caraacuteter traacutegico soacute eacute possiacutevel porque o autor da obra une atraveacutes da unidade textual do
episoacutedio dois valores romanos uirtus e grauitas no qual o segundo se refere agrave capacidade de
limitar as manifestaccedilotildees de emoccedilatildeo e de ter autocontrole Tal tessitura tem propoacutesitos
literaacuterios e esteacuteticos adensando a estrutura formada pelo composto ira e virtude esta como
qualidade sobretudo de contenccedilatildeo a fim de trazer agrave tona o traacutegico no episoacutedio
Dessa forma eacute evidente a conjugaccedilatildeo dos valores romanos supracitados na capacidade
de contenccedilatildeo do heroacutei expressa especialmente mas natildeo apenas pelo verbo latino sustineo
Pois o autor usa o verbo tanto para a contenccedilatildeo dos sentimentos ou seja do controle das
emoccedilotildees quanto dos inimigos ou seja de sua resistecircncia diante dos assaltos dos troianos
revestindo Aacutejax de uma uirtus sobretudo romana Isso se adensa se considerarmos o momento
que o episoacutedio retrata o mundo arcaico Assim a distinccedilatildeo entre esses dois valores estaria
menos delimitada Com efeito tanto a uirtus romana quanto a ἀρετή grega estavam ligadas agrave
virilidade guerreira do sexo masculino por isso soacute o homem a possuiacutea nesse tempo miacutetico
Oviacutedio entatildeo liga a essa qualidade viril por excelecircncia a temperanccedila ou seja o
comedimento o domiacutenio de si mesmo a grauitas romana por meio de uma unidade lexical
Nada que cause estranhamento pois segundo Grimal (1992) essa qualidade tambeacutem era
masculina em oposiccedilatildeo ao que os romanos e gregos acreditavam ser a caracteriacutestica da
mulher a incapacidade de controlar a proacutepria natureza
Contraposta ao sentido de furor expresso no episoacutedio reforccedila-se a ira como algo
controlaacutevel ou suportaacutevel o que corrobora a estrutura dicotocircmica com base em ira e
capacidade de contenccedilatildeo na caracterizaccedilatildeo do Telamocircnio A rede de relaccedilotildees desenvolvida
por esses elementos chaves de leitura conduz o texto para uma ideia de ironia do destino
construiacuteda agrave guisa dos textos traacutegicos fazendo-a culminar ao final do episoacutedio A eficaacutecia
esteacutetica dessa ironia como nos diz Massaud Moiseacutes (2013) decorre da surpresa relacionada a
um pormenor do enredo e que eacute de conhecimento dos leitores mas natildeo do personagem
envolvido No caso do episoacutedio o pormenor natildeo se daacute necessariamente pela trama das accedilotildees
mas pela unidade textual ou seja pela tessitura a partir dos conceitos de virtude e de ira A
relaccedilatildeo leacutexico-semacircntica deste uacuteltimo com os valores romanos uirtus e grauitas potildee essa
ironia em seu cliacutemax nos versos 385 e 386 Hectora qui solus qui ferrum ignesque Iouemque
Sustinuit totiens unam non sustinet iram pois o verbo latino sustineo eacute usado tanto para
expressar a capacidade beacutelica de conter ataques do inimigo quanto para manifestar o
autocontrole das emoccedilotildees Tendo compreendido essa articulaccedilatildeo o elemento traacutegico e irocircnico
141
eacute entatildeo decorrente da surpresa construiacuteda a partir de uma accedilatildeo inesperada a morte alcanccedila o
heroacutei exatamente atraveacutes daquilo pelo qual o heroacutei mais se vale o aspecto mais desenvolvido
de sua caracterizaccedilatildeo dentro do episoacutedio Assim Aacutejax com toda sua virtude desenvolvida
como uma capacidade de suster e suportar a qual ele desempenha sobretudo sozinho unus (v
87) a tudo detendo eacute incapaz de conter somente uma coisa a ira pois ela sozinha unam iram
(v 385) eacute incontinente para o heroacutei o qual entatildeo encontra a morte vencido na qualidade que
mais o caracteriza Esta eacute validamente uma composiccedilatildeo de elementos traacutegicos corroborando
sobretudo a polivalecircncia literaacuteria e o entrelugar da obra se a entendermos sob o ponto de vista
da quebra de uma expectativa da peripeacutecia aristoteacutelica tanto se consideramos sua derrota
diante de Ulisses uma vez que para Aacutejax sua vitoacuteria seria eventual quanto se levarmos em
conta a morte do Telamocircnio cujo suiciacutedio ocorre porque como acabamos de dizer sua
superior capacidade de contenccedilatildeo que figura a sua virtude heroica eacute incapaz de suportar
unicamente a ira
Com efeito tambeacutem podemos sintetizar o papel da ira do heroacutei na composiccedilatildeo
estrutural do enredo desse episoacutedio tanto do ponto de vista da causalidade quanto da
caracterizaccedilatildeo direta e indireta
Para o primeiro visiacutevel sobretudo na perspectiva interna a ira move as accedilotildees do
personagem a mais desenvolvida o discurso e a mais sinteacutetica o suiciacutedio Na primeira eacute
possiacutevel constatar mesmo que de forma dispersa esse sentimento manifestado em especial no
tratamento que o heroacutei daacute agrave descriccedilatildeo excessivamente desvirtuosa de seu adversaacuterio
apresentando-o por meio de uma imagem completamente viciosa e oposta agrave virtude heroica
mais propriamente insultos reconhecidos pelo proacuteprio Ulisses Na segunda accedilatildeo eacute tambeacutem o
estado coleacuterico de Aacutejax que o faz atentar contra a proacutepria vida natildeo concebendo sua derrota
senatildeo a si mesmo Textualmente essa ira eacute insustentaacutevel para ele e por isso desencadeia tais
reaccedilotildees desmedidas Quanto agrave causalidade externa ainda podemos ao menos reconhecer que
o fim do episoacutedio se alinha com a tradiccedilatildeo homeacuterica que figura a ira persistir apoacutes a morte do
Telamocircnio
Para o segundo ponto de vista da caracterizaccedilatildeo reconhecemos o aspecto direto em
especial na expressatildeo inpatiens irae como corroborante de um atributo descrito
expressamente para tal finalidade sobretudo como parece ser o caso de tal sintagma emular
um epiacuteteto eacutepico que antecede de maneira significativa um discurso ao qual se integra
contextualizando toda a cena Jaacute quanto ao estudo do tipo indireto tal caracterizaccedilatildeo eacute mais
significativa na obra de Oviacutedio pois como vimos sendo a retoacuterica utilizada com a finalidade
maior de delinear traccedilos marcantes do heroacutei seu discurso contundente e excessivo de ultrajes
142
ao adversaacuterio eacute senatildeo uma evidecircncia textual de seu estado iracundo nascido da desonra aos
valores apregoados por ele mesmo tambeacutem presentes em suas proacuteprias palavras no episoacutedio
A ira eacute entatildeo fundamental agrave composiccedilatildeo do enredo desse episoacutedio sem a qual o sentido do
texto se desfaz parcial ou completamente
Nesta seccedilatildeo final do capiacutetulo intentamos destacar como as concepccedilotildees de virtude e de
ira provenientes tanto da cultura grega quanto da latina manifestam-se como chaves de
leitura imprescindiacuteveis para a compreensatildeo mais plena do episoacutedio em questatildeo acima de
tudo ressaltando como as minuacutecias textuais implicam essa caracterizaccedilatildeo de Aacutejax na
composiccedilatildeo semacircntica da disputa pelas armas de Aquiles
143
3 ESTUDO TRANSTEXTUAL DA CARACTERIZACcedilAtildeO DO HEROacuteI
Neste capiacutetulo realizaremos o estudo comparado entre a obra de Soacutefocles e a de
Oviacutedio O foco dessa comparaccedilatildeo eacute a caracterizaccedilatildeo do heroacutei Aacutejax sobretudo em relaccedilatildeo agraves
noccedilotildees de virtude e de ira uma vez que esses elementos exercem um papel fundamental na
composiccedilatildeo estrutural da trama dessas obras Tomaremos como base para tal anaacutelise as
consideraccedilotildees levantadas nos capiacutetulos anteriores porque atraveacutes delas eacute possiacutevel situar o que
pertence a tradiccedilatildeo arcaica e o que eacute considerado tratamento novo da tradiccedilatildeo claacutessica grega
ou em especial latina Com efeito utilizaremos nesse momento a teoria de transtextualidade
de Geacuterard Genette na tentativa de reconhecer uma influecircncia de Soacutefocles em Oviacutedio e na qual
seja possiacutevel mensurar em que grau essa transcendecircncia textual ocorre
Visando a tais finalidades essa etapa do trabalho estaacute dividida em duas seccedilotildees A
primeira apresenta a teoria do autor francecircs sobre a conhecida intertextualidade renomeada de
transtextualidade a qual compotildee um dos grandes procedimentos para o estudo da literatura
comparada Ainda neste momento enfocaremos a exposiccedilatildeo nas praacuteticas transtextuais que
utilizaremos em nosso estudo acomodando-se assim a teoria ao nosso propoacutesito e se
evitando digressotildees desnecessaacuterias A segunda e uacuteltima parte dispotildee a anaacutelise transtextual
propriamente dita das obras em questatildeo observando-se a influecircncia da trageacutedia grega a partir
da terminologia teoacuterica de Genette que precisa vaacuterios tipos e niacuteveis de relaccedilotildees
determinantes para um estudo mais acurado e exato como eacute caso ao qual nos predispomos
3 1 TRANSTEXTUALIDADE A CONCEPCcedilAtildeO DE GENETTE
Como bem nos diz Leyla Perrone-Moiseacutes pertencem ao acircmbito da literatura
comparada quaisquer estudos que visem estabelecer relaccedilotildees entre mais de uma obra sejam
quais forem as perspectivas entre obras autores movimentos fortuna criacutetica ou de enfoque
em determinados temas ou personagens (1990 p 91) Com base nas consideraccedilotildees da autora
hoje a literatura comparada eacute uma disciplina que estaria perto dos seus 180 anos de existecircncia
a partir dos quais se permitiram definir teorias e meacutetodos bem como seu campo de atuaccedilatildeo de
forma mais ou menos precisa Responsaacutevel por conceber e nomear a teoria da
intertextualidade Julia Kristeva retoma algumas propostas de Bakhtin cujo cerne seria o
diaacutelogo interno na obra e o diaacutelogo da mesma com outras Ainda afirma que a influecircncia
exercida por uma obra em outra natildeo reduz a obra influenciada ao acircmbito da recepccedilatildeo passiva
144
mas ao contraacuterio haacute uma transformaccedilatildeo entre elas que permite um vasto sistema de trocas
em que natildeo eacute possiacutevel estabelecer uma valoraccedilatildeo hieraacuterquica sobretudo em termos de
originalidade e imitaccedilatildeo (apud Ibidem p 94)
Tal teoria eacute continuada e desenvolvida por Geacuterard Genette sob o nome de
transtextualidade Esse eacute entatildeo nosso marco teoacuterico sobretudo pelo fato de o autor ter
esmiuccedilado tal concepccedilatildeo de maneira a desdobraacute-la em inuacutemeras praacuteticas transtextuais que nos
permite contemplar a influecircncia de uma obra literaacuteria em outra a partir de vaacuterios niacuteveis de
relaccedilatildeo Segundo o proacuteprio autor essa transcendecircncia textual se define como tudo o que
dispotildee um texto em relaccedilatildeo a outros de forma velada ou aberta no acircmbito da micro e da
macroestrutura (2010 p 13-14) Em busca de uma perspectiva mais exata das relaccedilotildees
transtextuais esse estudioso concebeu uma tipologia na qual cinco espeacutecies compotildeem seu
paradigma terminoloacutegico por um lado facilitando a precisatildeo de determinados viacutenculos
textuais e por outro gerando grandes discussotildees uma vez que eacute frequentemente inviaacutevel o
enquadramento da singularidade de uma obra literaacuteria em um modelo teoacuterico quanto mais
este for acima de tudo estanque Quando tal procedimento ocorre desse modo reconhecemos
muitas vezes a artificialidade do processo envolvido em especial para fins didaacuteticos
classificatoacuterios etc Vejamos brevemente as cinco espeacutecies elaboradas por Genette para depois
nos aprofundarmos nas praacuteticas que seratildeo utilizadas em nosso estudo
A primeira tem o nome de intertextualidade Esse tipo marca a relaccedilatildeo de co-presenccedila
entre dois ou mais textos de maneira efetiva Sua forma mais expliacutecita eacute nomeada de citaccedilatildeo
cujo texto eacute demarcado com aspas com ou sem referecircncia exata mas que destaca a disposiccedilatildeo
literal da presenccedila de outra obra A sua forma intermediaacuteria eacute chamada de plaacutegio sem
conotaccedilotildees negativas das quais se reveste esse termo do ponto de vista acadecircmico pois ele
apenas compotildee a nomenclatura que objetiva uma maior precisatildeo Eacute semelhante agrave citaccedilatildeo
porque eacute uma transcriccedilatildeo ainda literal mas sem aspas e assim natildeo declarada A menos
expliacutecita eacute a alusatildeo que corresponde a uma referecircncia menos literal de uma obra em outra e
cuja compreensatildeo plena da passagem pressupotildee o reconhecimento da relaccedilatildeo transtextual
existente da qual decorre necessariamente inferecircncias determinantes oriundas do eixo
semacircntico das obras envolvidas (Ibidem p 14) No caso do nosso estudo satildeo exemplos
maiores os epiacutetetos homeacutericos dos heroacuteis tomados literalmente ou traduzidos para o latim em
especial os de Aacutejax pois sem o entendimento dessas foacutermulas no contexto eacutepico e homeacuterico
natildeo haacute como compreender a proacutepria ideia de uma autovalorizaccedilatildeo excessiva do heroacutei cuja
iacutendole guerreira segue fortemente paradigmas arcaicos
145
A segunda chamada paratextualidade eacute a relaccedilatildeo que se estabelece entre um texto e
seu proacuteprio paratexto e por isto o autor entende o tiacutetulo subtiacutetulos prefaacutecios posfaacutecios
ilustraccedilotildees notas etc ou seja os vaacuterios elementos acessoacuterios que participam do conjunto
final de uma obra literaacuteria Assim seguindo os questionamentos de Genette ateacute onde o tiacutetulo
da Odisseia da Eneida de Os Lusiacuteadas ou mesma da trageacutedia Aias fazem parte do texto e de
seu estudo ajudando de alguma maneira a desvelar seu conteuacutedo Essa relaccedilatildeo seria como o
autor mesmo diz de ordem paratextual favorecendo inclusive aqueles que defendem o
fechamento do texto de forma mais hermenecircutica considerando ou natildeo tais elementos
(Ibidem p 15-16)
A terceira nomeada de metatextualidade eacute a relaccedilatildeo da criacutetica com a obra literaacuteria ou
seja o comentaacuterio que vincula um texto a outro natildeo havendo a necessidade de citar ou
mesmo nomear a obra a qual se comenta analisa ou estuda (Ibidem p 16-17) A tiacutetulo de
exemplo podemos citar a Poeacutetica de Aristoacuteteles na qual o autor jaacute apresenta diretrizes
interpretativas acerca das obras gregas sobretudo em relaccedilatildeo agraves trageacutedias para as quais
existe um tipo a pateacutetica (παθητική) em que se insere todas aquelas que remetem ao
infortuacutenio de Aacutejax (1455b 34 - 1456a 1) Essa denominaccedilatildeo reforccedila um aspecto
predominante nas peccedilas em torno do mito do heroacutei o sofrimento Tal recurso segundo
Aristoacuteteles parece ser o elemento corrente sobressaindo-se a outros como peripeacutecia e
reconhecimento
A quinta ndash essa eacute a ordem que Genette dispotildee deliberadamente retardando a quarta
mais importante como veremos abaixo ndash espeacutecie corresponde agrave relaccedilatildeo de natureza
estritamente taxonocircmica a arquitextualidade Reconhecidamente mais abstrata serve-nos
sobretudo para o reconhecimento de um status geneacuterico do texto uma vez que orienta a
leitura da obra articulando no maacuteximo indicaccedilotildees expliacutecitas e paratextuais em alguma de
suas partes com designaccedilatildeo deste tipo romance poema ensaios etc as quais inferidas a
partir de traccedilos especiacuteficos vinculados a determinados gecircneros indicam o caraacuteter da obra
(2010 p 17) Essa relaccedilatildeo eacute silenciosa como se pode ver mas necessariamente estaacute
submetida a um paradigma estabelecido pela tradiccedilatildeo literaacuteria sobretudo da criacutetica que
impotildee e discute determinadas terminologias Certamente o proacuteprio texto natildeo estaacute obrigado a
se inserir em um gecircnero preciso nem a seguir determinados padrotildees isso explica as
discussotildees e flutuaccedilotildees histoacutericas acerca da natureza dos gecircneros textuais e literaacuterios bem
como de seus subgecircneros Contudo eacute tambeacutem a partir da arquitextualidade que podemos
conceber um horizonte de expectativa do leitor e por isso compreender a importacircncia dessa
espeacutecie de transtextualidade para a literatura uma vez que a distinccedilatildeo entre as obras ou seja
146
uma classificaccedilatildeo mais rigorosa carece dessa relaccedilatildeo que manisfestando-se de maneira mais
ou menos evidente dispotildee-no uma natureza mais ou menos classificaacutevel (Ibidem 23-24)
A quarta espeacutecie eacute chamada hipertextualidade e figura a mais importante para o seu
livro Palimpsestos a literatura em segundo grau pois dela se ocupa predominantemente
uma vez que reconhece seu papel fundamental na literatura sobretudo na tradiccedilatildeo ocidental
Esse tipo trata do viacutenculo de um determinado texto nomeado hipertexto em relaccedilatildeo a um
outro chamado hipotexto do qual deriva e que lhe eacute anterior e imprescindiacutevel para sua
composiccedilatildeo sobretudo pela forma como a obra derivada se apresenta Tal derivaccedilatildeo natildeo eacute de
ordem metatextual ou seja de relaccedilatildeo criacutetica pois o hipertexto recebe mais frequentemente o
status de obra literaacuteria do que o metatexto em especial pelo fato de se manifestar ainda como
obra de ficccedilatildeo derivada de outra Com efeito haacute exceccedilotildees mas primordialmente essa eacute a
premissa do autor (Ibidem 18)
Os exemplos citados pelo proacuteprio autor satildeo a Eneida e Ulisses que dividem uma
mesma origem hipertextual a Odisseia Essa derivaccedilatildeo entatildeo evoca a obra anterior sem
necessariamente a nomear ou a citar mas cujo resultado se realiza atraveacutes de uma operaccedilatildeo
chamada transformaccedilatildeo uma vez que os elementos tomados do hipotexto satildeo ressignificados
dentro do hipertexto Essas transformaccedilotildees podem ser do tipo simples e direta ou complexa e
indireta esta que o autor prefere nomear imitaccedilatildeo O primeiro tipo por exemplo trata da
transportaccedilatildeo da accedilatildeo da Odisseia para Dublin do seacuteculo XX eacute o caso de Ulisses O segundo
como eacute o caso da Eneida exige adquirir um certo domiacutenio do hipotexto sobretudo dos traccedilos
imitados Assim Virgiacutelio natildeo teria apenas transferido a accedilatildeo de Odisseu agrave accedilatildeo de Eneias
pois ele narra uma histoacuteria completamente distinta mas o faz de modo semelhante ao de
Homero uma vez que se inspira em um mesmo modelo formal e temaacutetico (Ibidem 19-20)
A simetria e a assimetria de gecircneros satildeo usadas pelo autor de forma significativa para
ilustrar a entatildeo distinccedilatildeo entre transformaccedilatildeo e imitaccedilatildeo O autor transformador se apodera
de um texto e dele deriva outro transferindo-o em um outro estilo que lhe eacute estranho ou
modificando-o em relaccedilatildeo agrave limitaccedilatildeo formal e agrave intenccedilatildeo semacircntica de um ou do outro O
autor imitador se apodera de um estilo pelo qual reescreve um determinado assunto
independentemente se eacute inventado ou natildeo Isso eacute o fator determinante de sua obra
Geralmente assim dispotildeem-se o primeiro lida primordialmente com o texto ou seja com o
conteuacutedo abordado e acessoriamente com o estilo o segundo faz o contraacuterio ocupa-se
incidentalmente com o texto e essencialmente com o estilo e os motivos temaacuteticos que ele
envolve Dessa forma para a imitaccedilatildeo deve-se tomar a ideia de estilo em uma concepccedilatildeo mais
abrangente estendendo-se tambeacutem aos niacuteveis e motivos formais e temaacuteticos como os eacutepicos
147
por exemplo que recorrem a invocaccedilotildees a musas epiacutetetos descriccedilotildees de armas combate
singulares intervenccedilotildees divinas etc mesmo que tais elementos sejam usados dentro de outro
regime ou funccedilatildeo como a luacutedica ou a satiacuterica (1992 p 106-107) Para compreendermos a
transformaccedilatildeo a tiacutetulo de exemplo da literatura claacutessica podemos reconhececirc-la nas trageacutedias
oriundas dos episoacutedios da eacutepica sobretudo do ciclo eacutepico arcaico Com efeito a unidade natildeo
unitaacuteria destes uacuteltimos segundo o modelo de Aristoacuteteles possibilitou ainda o surgimento
abundante de peccedilas como eacute o caso citado pelo proacutepriacuteo estagirita das obras Cantos Ciacuteprios e
Pequena Iliacuteada (Poeacutetica 1459b 1-7) das quais hoje detemos apenas fragmentos e sinopses
que nos permitem observar relaccedilotildees puramente formais e quantitativas Como veremos agrave
frente essa eacute a natureza da relaccedilatildeo de Aias de Soacutefocles e do episoacutedio da disputa no Livro
XIII de Metamorfoses de Oviacutedio com essas obras do ciclo eacutepico arcaico e com outras
Certamente o fato de esses dois tipos hipertextuais procederem a partir de
singularidades proacuteprias natildeo exclui a possibilidade de praacuteticas mistas ou seja um hipertexto
poder transformar um texto e imitar um outro ou mesmo transformar e imitar o mesmo
hipotexto (GENETTE 2010 p 43-44) sobretudo porque e aleacutem disso ldquotodo objeto pode ser
transformado toda forma pode ser imitada nenhuma arte por natureza escapa a esses dois
modos de derivaccedilatildeo que definem a hipertextualidade na literaturardquo (Ibidem p 127)
Diante dessas consideraccedilotildees entendemos melhor a importacircncia desses dois processos
hipertextuais elaborados por Genette transformaccedilatildeo e imitaccedilatildeo no estudo literaacuterio em
especial para a literatura comparada e para o nosso estudo cuja natureza eacute comparativa Por
isso esse autor se deteacutem e se alonga acima de tudo na elaboraccedilatildeo detalhada de vaacuterios
procedimentos utilizados na relaccedilatildeo hipertextual Essa teoria da hipertextualidade eacute entatildeo
extremamente vasta uma vez que busca abarcar de alguma maneira a totalidade dos casos
presentes na literatura universal e por isso apresenta um aparato de categorias que na praacutetica
operam simultaneamente em um mesmo hipertexto e por vezes se contaminando impedindo
muito frequentemente o estudo de uma determinada caracteriacutestica sem outra com a qual
forma uma unidade de sentido (Ibidem p 63-64)
Por isso natildeo devemos tomar tais relaccedilotildees transtextuais como classes estanques
adverte-nos o autor (2010 p 22) sem observar nas mesmas uma comunicaccedilatildeo ou limites
porosos pelos quais as cincos acabem se contaminando Dessa forma conveacutem ressaltarmos e
repetirmos que toda teoria eacute artificial e convencional no sentido de que eacute completamente
inviaacutevel tentar enquadrar a singularidade de uma obra literaacuteria por meio de procedimentos que
natildeo foram de alguma maneira ajustados e acomodados para esse objetivo Uma mesma teoria
literaacuteria pode ser aplicada diferentemente a obras distintas sem que a mesma perca sua
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validade em especial quanto ao propoacutesito de auxiliar e precisar uma determinada anaacutelise ou
estudo
Devido a isso natildeo trataremos de todos esses subtipos mas de alguns ndash tanto na
disposiccedilatildeo explicativa quanto na aplicaccedilatildeo analiacutetica ndash que se mostram mais pertinentes ao
nosso trabalho e agrave natureza das obras estudadas Aleacutem disso tais subcategorias seratildeo para noacutes
um guia um norteador das praacuteticas utilizadas pelos autores estudados uma vez que
consideraremos as relaccedilotildees transtextuais sobretudo as hipertextuais segundo as
conveniecircncias da nossa anaacutelise e organizaccedilatildeo ou seja inclusive diminuindo o rigor de certas
disposiccedilotildees com a finalidade de ajustaacute-las tanto agraves obras quanto ao nosso estudo da
caracterizaccedilatildeo do heroacutei Aacutejax O essencial deve ser a compreensatildeo da relaccedilatildeo transtextual
acima de tudo no processo de caracterizaccedilatildeo do personagem a partir da proacutepria obra ou seja
reconhecedo-se nela na medida do possiacutevel um modelo cuja base teoacuterica deve nos servir
mais para o propoacutesito de precisatildeo analiacutetica bem como para o didaacutetico-explicativo do que
para uma finalidade rigorosa e meramente classificatoacuteria Vejamos agora em uma seccedilatildeo
separada as praacuteticas hipertextuais escolhidas para o estudo
3 1 1 Praacuteticas hipertextuais transformaccedilotildees quantitativas pragmaacuteticas e modais
Como a nomenclatura jaacute evidencia essas transformaccedilotildees satildeo operaccedilotildees que se
inserem a priori no primeiro tipo da hipertextualidade naquela que se prende menos ao
estilo e mais ao texto seja por um vieacutes mais formal e quantitativo ou por um mais temaacutetico e
pragmaacutetico o qual retrata uma mudanccedila na intenccedilatildeo semacircntica mesmo que as fronteiras entre
esses tipos sejam como mesmo aponta Genette fraacutegeis e por exemplo ocorra que um
procedimento caracterizado como formal influencie fortemente o sentido da obra (Ibidem p
64) Com efeito disporemos tais operaccedilotildees de maneira um pouco diferente agrave do autor Este
aborda majoritariamente a hipertextualidade de um ponto de vista da relaccedilatildeo declarada e
maciccedila ou seja por um lado ela constitui uma derivaccedilatildeo reconhecida e a certo ponto oficial
e por outro constitui uma derivaccedilatildeo massiva e plena na qual a relaccedilatildeo entre o hipertexto e o
hipotexto eacute aquela em que toda uma obra deriva de toda uma outra (Ibidem p 24) Apesar de
abordarmos essa relaccedilatildeo transtextual segundo uma derivaccedilatildeo do tipo declarada como eacute bem
proacuteprio da literatura claacutessica greco-latina natildeo a trataremos a partir de uma vinculaccedilatildeo
prioritariamente maciccedila mas a faremos sobretudo a partir de uma fragmentada uma vez que
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essas parecem tambeacutem ser recorrentes na transformaccedilatildeo significativa do hipertexto do mundo
greco-latino claacutessico
Nossa estruturaccedilatildeo seguiraacute a seguinte disposiccedilatildeo primeiramente trataremos das
transformaccedilotildees quantitativas abordando subcategorias nomeadas aumento e reduccedilatildeo as
quais comportam os tipos extensatildeo ampliaccedilatildeo excisatildeo e condensaccedilatildeo em seguida
trataremos das pragmaacuteticas enfocando os tipos transmotivaccedilatildeo e transvalorizaccedilatildeo que
abrangem noccedilotildees positivas e negativas como os subtipos motivaccedilatildeo e desmotivaccedilatildeo e os
valorizaccedilatildeo e desvalorizaccedilatildeo por fim abordaremos as modais denominadas
transmodalizaccedilotildees A explanaccedilatildeo acerca desses uacuteltimos precedimentos do tipo modal seraacute
realizada de modo mais breve em particular por acharmos essencial para o contexto greco-
latino mas natildeo aprofundaremos essas questotildees em nosso estudo A essa disposiccedilatildeo
acompanharatildeo exemplos da literatura claacutessica greco-latina pois elucidaratildeo questotildees que
tratam da mesma realidade literaacuteria transtextual e sobretudo alguns retirados das obras que
formam o corpus desse estudo e que apresentam mito do heroacutei Aacutejax uma vez que estatildeo mais
proacuteximos do horizonte de expectativa do leitor de nosso trabalho pois em capiacutetulos anteriores
jaacute fornecemos informaccedilotildees que ajudaratildeo a situar a aplicaccedilatildeo dessas praacuteticas hipertextuais
Esse procedimento nos auxiliaraacute no esclarecimento da metodologia analiacutetica que seraacute
contemplada na uacuteltima parte deste capiacutetulo Essas tambeacutem seratildeo as praacuteticas utilizadas em
nossa anaacutelise posterior e principalmente por isso reduzimos a nossa disposiccedilatildeo explicativa
da teoria a apenas estas no intuito de evitar digressotildees que possam se mostrar pouco
produtivas para a nossa pesquisa Iniciemos entatildeo pelas operaccedilotildees quantitativas
As transformaccedilotildees ditas quantitativas podem ser de dois tipos antiteacuteticos um que
consiste em aumentar e estender um texto e outro que trata de abreviar ou reduzi-lo Essas
duas operaccedilotildees foram chamadas pelo teoacuterico de aumento (augmentatiton) e reduccedilatildeo
(reacuteduction) (1982 p 321-323) Haacute para estes modos e subtipos O modo mais simples eacute um
procedimento puramente formal que corresponde a uma mudanccedila de dimensatildeo e de tamanho
O modo mais complexo nomeado ainda de quantitativo a partir de uma concepccedilatildeo mais
abrangente faz da mudanccedila de extensatildeo uma alteraccedilatildeo natildeo apenas da dimensatildeo mas
sobretudo do seu teor e de sua estrutura e consequentemente de seu sentido do hipertexto Os
tipos satildeo trecircs tanto para a reduccedilatildeo quanto para o aumento Para este Genette concebeu a
extensatildeo (extension) a expansatildeo (expansion) e a ampliaccedilatildeo (amplification) dos quais
trataremos de dois Para aquele concebeu a excisatildeo (excision) a concisatildeo (concision) e a
condensaccedilatildeo (condensation) e desses noacutes tambeacutem abordaremos dois
150
Comecemos pelos aumentos Enquanto a expansatildeo se daacute por meio de uma espeacutecie de
dilataccedilatildeo de estiliacutestica como por exemplo o acreacutescimo de figuras de linguagem a um
hipotexto muito literal ou de descriccedilotildees mais detalhadas de algo presente ou impliacutecito no
mesmo a extensatildeo ocorre atraveacutes de um acreacutescimo sobretudo temaacutetico uma adiccedilatildeo maciccedila
ou mais propriamente o acreacutescimo de um episoacutedio natildeo presente no texto de origem O
exemplo fornecido pelo autor eacute o caso de Apuleio o qual estende as Metamorfoses de Luacutecio
quando acrescenta o mito de Eros e Psiqueacute um episoacutedio ausente no hipotexto Aplicando tal
premissa a casos mais relevantes para o nosso trabalho podemos fornecer dois exemplos
desse procedimento Para entendermos o primeiro devemos tomar como base as epopeias
homeacutericas em especial o Canto XI da Odisseia que apresenta sinteticamente elementos
ligados agrave morte de Aacutejax segundo o que observamos (cf p 25-27) Desconsiderando-se
interpolaccedilotildees provaacuteveis ou especulativas reconhecemos que natildeo haacute aiacute a menccedilatildeo ao episoacutedio
do ataque aos rebanhos gregos quando o heroacutei estava tomado por loucura Natildeo haacute tambeacutem
em si menccedilatildeo agrave forma como o personagem morre mas a esta inferimos pelo conteuacutedo uma
carga funesta e de lamento Contudo esse episoacutedio da loucura do heroacutei estaria inserido em
uma obra do ciclo eacutepico composto por volta do seacuteculo VII a C a Pequena Iliacuteada de
Lesches de Mitilene Com conteuacutedos que preencheriam lacunas da Iacuteliada dispondo eventos
posteriores a morte de Aquiles seu iniacutecio apresentava a disputa pelas armas deste heroacutei
seguida do assalto de Aacutejax aos rebanhos e de seu suiciacutedio (WEST 2003 p 121) No acircmbito
literaacuterio esse segundo momento ou seja o ataque aos animais representaria uma extensatildeo
uma vez que retrata uma adiccedilatildeo maciccedila de um evento natildeo aludido nas epopeias homeacutericas
com as quais tal episoacutedio estabelece uma hipertextualidade se tomarmos como premissa a
percepccedilatildeo de que Homero eacute o texto matriz absoluto da literatura claacutessica greco-latina (GRAF
2006 p 110)
Certamente a Pequena Iliacuteada transforma e imita as obras de Homero mas como dela
nos resta fragmentos e sinopse preservados em escoacutelios a transtextualidade mais vaacutelida e
pertinente eacute ainda na perspectiva quantitativa Um segundo exemplo desse mesmo tipo de
aumento pode ainda ser visto na obra Aias de Soacutefocles A segunda parte da peccedila que
representa eventos posteriores agrave morte do heroacutei encena a defesa do funeral desse personagem
pelo seu irmatildeo Teucro e por Odisseu Todo esse debate parece natildeo figurar essas obras do ciclo
eacutepico apesar de constar na obra de Lesches a menccedilatildeo agrave fuacuteria de Agamecircmnon em relaccedilatildeo aos
atos do Telamocircnio de modo a natildeo permitir que o mesmo fosse cremado diferentemente do
ocorrido com outros heroacuteis (WEST 2003 p 121 127) Essa defesa configurando-se como
uma contenda de palavras sobretudo do ponto de vista retoacuterico do diaacutelogo eacute uma adiccedilatildeo
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ineacutedita em especial pelo fato de suscitar na trageacutedia a reabilitaccedilatildeo do status de heroacutei ao
personagem Esse acreacutescimo de episoacutedio em relaccedilatildeo agrave Pequena Iliacuteada ou mesmo em relaccedilatildeo
agraves obras homeacutericas tem o valor de extensatildeo segundo o que entendemos dos pressupostos
teoacutericos de Genette
Ainda abordando o aumento hipertextual haacute um outro tipo nomeado ampliaccedilatildeo
Segundo o teoacuterico francecircs esse eacute um dos recursos essenciais do teatro claacutessico em especial
da trageacutedia desde Eacutesquilo ateacute no miacutenimo o final do seacuteculo XVIII (1982 p 375) A proacutepria
trageacutedia grega da forma como eacute conhecida nasce senatildeo do aumento cecircnico de episoacutedios
miacuteticos ou eacutepicos presentes na cultura grega A dilataccedilatildeo de um episoacutedio promovida por esse
recurso inclusive atraveacutes de um processo no qual participem outros tipos de aumento fornece
uma maior extensatildeo por meio de novos detalhes novas descriccedilotildees etc mas que reside ainda
em um evento presente no hipotexto Por isso frequentemente Soacutefocles e Euriacutepides parecem
retomar e aumentar com variaccedilotildees os mesmos episoacutedios de seu antecessor (Ibidem p 375-
376) pois os temas originais satildeo mais raros ou aleacutem disso esses dois autores parecem
ampliar os conteuacutedos das obras do ciclo eacutepico como vimos anteriormente ser um processo
confirmado por Aristoacuteteles (cf p 140) Esse procedimento que consite em inchar um objeto
temaacutetico ateacute atingir uma nova extensatildeo adequada agrave composiccedilatildeo do hipertexto seja para uma
nova trageacutedia ou eacutepica corresponde ao processo de ampliaccedilatildeo
Com efeito noacutes podemos tambeacutem vincular a trageacutedia Aias e o episoacutedio do Livro XIII
de Metamorfoses a esse modelo Apesar de existir uma trilogia de Eacutesquilo que discorra sobre
o assunto (cf p 33) dela natildeo conhecemos o texto e o teor Contudo podemos especular que o
procedimento de ampliaccedilatildeo dessas obras tem origem na Pequena Iliacuteada na qual se retratam
os temas do julgamento pelas armas da loucura que impele o heroacutei a matar animais e do seu
suiciacutedio dos quais ao menos um episoacutedio desta eacutepica eacute ateacute certo ponto oriunda da Odisseia
Esse julgamento jaacute estaacute inserido de forma sinteacutetica e embrionaacuteria no Canto XI dessa epopeia
homeacuterica a qual figura a participaccedilatildeo de Atena e dos Teucros na decisatildeo final A Pequena
Iliacuteada teria entatildeo ampliado essa sinteacutetica alusatildeo ao julgamento a ponto de tornaacute-lo
componente de um episoacutedio e que ainda retrata a participaccedilatildeo desses mesmos personagens
que contribuem para a escolha do merecedor dos precircmios pois essa eacutepica pelo que
conhecemos descreve o plano de Nestor chefe e conselheiro dos gregos de enviar um espiatildeo
agrave Troia para que este ouccedila dos proacuteprios inimigos quem seria o maior guerreiro entre os
contendores
Eacutesquilo e Soacutefocles em um gecircnero de natureza distinta entatildeo ampliariam ainda mais
alongando o episoacutedio ou parte dele em uma ou mais obras O primeiro teria feito do
152
julgamento das armas uma obra e do suiciacutedio outra Em relaccedilatildeo ao segundo autor sua obra
seria uma ampliaccedilatildeo sobretudo dos episoacutedios do heroacutei tomado por loucura (Αἴας δ` ἐμμανὴς
WEST p 121) e do seu suiciacutecio (ἑαυτὸν ἀναιρεῖ Ibidem p 121) com extensatildeo de novo
evento como explicamos acima o debate acerca do seu funeral Dessa forma uma vez que a
loucura e o suiciacutedio retratados em Soacutefocles natildeo satildeo temas novos o processo pelo qual este
tragedioacutegrafo os reelabora para atingir uma nova extensatildeo com a adiccedilatildeo de um tema ineacutedito
corresponde do ponto de vista puramente dimensional ou seja quantitativo a um novo tipo
de aumento complexo e nomeado na terminologia de Genette ampliaccedilatildeo
Para o caso de Oviacutedio que apresenta um episoacutedio que retrata eventos ligados tambeacutem
ao Telamocircnio poderiacuteamos dizer que haacute um aumento visiacutevel de um dos conteuacutedos do episoacutedio
da obra de Lesches do julgamento das armas Esse poeta latino certamente alonga seus
versos prioritariamente na defesa e acusaccedilatildeo dos heroacuteis em prol de demonstrarem sua virtude
e seu meacuterito Dois discursos satildeo alogandos um para cada personagem e compotildeem o cerne de
sua versatildeo do mito transformado quanto ao objeto temaacutetico da Pequena Iliacuteada e imitado
quanto ao estilo retoacuterico do texto que temos de Antiacutesthenes (cf p 49) A transformaccedilatildeo
quantitativa de Soacutefocles quanto agrave obra do ciclo eacutepico poderia ser designada como ampliaccedilatildeo
apesar de tanto acerca da Pequena Iliacuteada quanto da obra Julgamento das Armas de Eacutesquilo
natildeo termos muitas informaccedilotildees para precisarmos de onde proviria a maior influecircncia
Tendo disposto o essencial acerca do recurso aumento passemos agora a contemplar o
tipo reduccedilatildeo que como podemos inferir pode ser descrito como um processo inverso agravequele
exposto acima Seu primeiro tipo a excisatildeo corresponde a uma supressatildeo de um conteuacutedo
presente no hipotexto o qual natildeo figura no hipertexto semelhante inversamente ao processo
de extensatildeo Com efeito o corte deve proceder sobre um episoacutedio tematicamente
significativo No entanto como jaacute explicamos Genette se deteacutem sobre exemplos nos quais a
relaccedilatildeo transtextual quantitativa eacute maciccedila ou seja naquela em que toda uma obra deriva de
toda uma outra O autor dispotildee obras que receberam uma omissatildeo de partes inclusive para
fins paradidaacuteticos como por exemplo ediccedilotildees de Robinson Crusoeacute recortadas e elaboradas
para crianccedilas (2010 p 78) Lembremos que esse natildeo eacute o nosso intuito especialmente porque
natildeo nos serve para a anaacutelise e por isso elencaremos exemplos cuja transformaccedilatildeo eacute
fragmentada
No Livro XIII da obra de Oviacutedio podemos contemplar esse tipo de reduccedilatildeo Ao
compararmos o episoacutedio em questatildeo com o da Pequena Iliacuteada percebemos que entre a
disputa pelas armas e o suiciacutedio do heroacutei estaacute completamente ausente o episoacutedio da loucura
que move o heroacutei agrave matanccedila segundo o que estudamos no capiacutetulo anterior No Livro em
153
questatildeo de Metamorfoses figuram os discursos dos dois contedores que ocupam a maior
parte do episoacutedio e o suiciacutedio do Telamocircnio que compreende uma pequena parte Logo essa
versatildeo dispensa completamente o ataque do personagem aos animais como um evento
imprescindiacutevel para a disposiccedilatildeo causal que leva o heroacutei agrave morte
Outro caso que parece relevante ser mencionado ainda no episoacutedio de Oviacutedio eacute em
especial a defesa de Aacutejax junto agraves naus presente no discurso do heroacutei sobre seus meacuteritos e
que retoma eventos narrados por Homero na Iliacuteada Na versatildeo latina nenhuma das mortes
causadas pelo Telamocircnio satildeo relatadas acerca desse evento mesmo as que seguem a sua
vitoacuteria sobre Heitor no Canto XIV como a de Iacutertio (v 511) ou a de Arqueacuteloco filho de
Antenor (v 461-464) com a qual inclusive o Telamocircnio provoca as tropas troianas Tambeacutem
quando da defesa do corpo de Paacutetrocles no Canto XVII o chefe de Salamina eacute responsaacutevel
pela morte de Hipoacutetoo (v 291-299) e pela de Forco (v 309-315) Tais accedilotildees satildeo pontos
culminantes de seus atos em prol dos gregos inseridos sobretudo naqueles episoacutedios aos
quais muitos estudiosos recorrem para delinear uma iacutendole e uma caracterizaccedilatildeo do heroacutei em
questatildeo Essa omissatildeo nos parece relevante para o episoacutedio de Oviacutedio pois diferentemente
Ulisses em seu discurso enumera vaacuterios heroacuteis mortos pelas suas armas (cf p 107)
Do ponto de vista dimensional e quantitativo essa amputaccedilatildeo temaacutetica ou de conteuacutedo
eacute nomeada de excisatildeo Nos dois casos que elencamos esse procedimento aparenta ser
evidente uma vez que tais eventos satildeo significativos para o eixo semacircntico da Pequena Iliacuteada
e da Iliacuteada obras consideradas como hipotextos matrizes desses dois episoacutedios referidos na
obra Metamorfoses Com efeito como veremos melhor na seccedilatildeo seguinte essa reduccedilatildeo que
suprime uma parte tematicamente significativa eacute essencial para construccedilatildeo do sentido dessa
versatildeo latina do mito pois natildeo sendo meramente formal esse recurso confere a essa
transformaccedilatildeo quantitativa o status de alteraccedilatildeo complexa
O uacuteltimo caso de transformaccedilatildeo quantitativa a ser apresentado eacute um tipo de reduccedilatildeo
nomeado de condensaccedilatildeo Enquanto a concisatildeo reduz seu hipotexto em um niacutevel da
microestrutura estiliacutestica a condensaccedilatildeo o faz em um niacutevel de estrutura de conjunto Tal
procedimento parece ocorrer no sentido de reduzir o hipotexto ou no nosso caso uma de suas
partes significativas para o hipertexto retirando os detalhes que lhe datildeo corpo a ponto de
limitaacute-lo agrave sua significaccedilatildeo mais geral e superficial (2010 p 89) para noacutes algumas vezes
simboacutelica Genette em sua explicaccedilatildeo estende-se particularmente devido aos seus objetivos
ndash a observaccedilatildeo de uma hipertextualidade maciccedila ndash sobre o uso metaliteraacuterio desse recurso
recaindo em definiccedilotildees de resumo suacutemula sinopse digest etc de obras literaacuterias
154
Contrariamente noacutes que estamos tentando configurar tal procedimento tanto como
um procedimento mais fragmentado quanto como um procedimento hipertextual presente em
obras literaacuterias estendemos seu sentido a um recurso inversamente mais ou menos semelhante
ao da ampliaccedilatildeo em seu teor e fins literaacuterios Dessa forma teriacuteamos no hipertexto seccedilotildees que
de alguma maneira correspondem a uma siacutentese de passagens de um ou mais hipotextos uma
vez que esse tipo de processo serve para situar muitas vezes a carga de influecircncia do texto
matriz no texto derivado que com isso retoma cenaacuterios ambientes valores etc a partir dos
motivos temaacuteticos tomados emprestados por meio dessas transformaccedilotildees quantitativas Com
efeito para a literatura claacutessica isso eacute extremamente pertinente poreacutem dificultoso no
estabelecimento de um hipotexto uma vez que os mitos retratados fazem parte de uma longa
tradiccedilatildeo na qual tais lendas compotildeem o imaginaacuterio da cultura greco-latina e cujos
personagens jaacute possuem um certo modelo de caracterizaccedilatildeo No entanto podemos ainda fazer
algumas inferecircncias a partir das obras que chegaram ao nosso tempo em especial por
sabermos da reconhecida influecircncia de determinados autores os quais figuram o aacutepice da
literatura da Antiguidade como eacute o caso de Homero e dos tragedioacutegrafos por exemplo
Dentro desse caso podemos citar dois exemplos semelhantes o discurso de Teucro no
ecircxodo da peccedila de Soacutefocles em defesa do irmatildeo (Aias v 1266-1287) e a exposiccedilatildeo de Aacutejax
acerca de suas faccedilanhas (Metamorfoses XII v 82-94) Apesar de algumas diferenccedilas
sobretudo de fins semacircnticos ambos os textos fazem uma siacutentese da Iliacuteada sob o enfoque
dos eventos nos quais Aacutejax se sobressai como guerreiro Tal focalizaccedilatildeo evidentemente se
deteacutem sobre os Cantos VII XIII XIV e XV que retratam seu combate singular com Heitor e
as lutas em torno das naus gregas Essa reduccedilatildeo como vimos anteriormente prescinde dos
detalhes e logo das descriccedilotildees homeacutericas sobre os embates do heroacutei centrando-se assim
sobre sua significaccedilatildeo maior mais geneacuterica o valor guerreiro do personagem Ao nosso
entender esse resumo seletivo de uma parte da eacutepica homeacuterica inserida nesses hipertextos
figura uma relaccedilatildeo de hipertextualidade uma vez que diferentemente da intertextualidade a
relaccedilatildeo estabelecida entre Soacutefocles e Oviacutedio quanto a Homero natildeo serve meramente para a
compreensatildeo plena da passagem dos autores claacutessicos mas especialmente porque essa
referecircncia transforma o significado de suas obras servindo para a caracterizaccedilatildeo do
Telamocircnio da qual se revelam os princiacutepios que movem as accedilotildees do personagem no
desenvolvimento da trama fundamentais para o entendimento da composiccedilatildeo da trama Tal
reduccedilatildeo em questatildeo provecirc a obra de elementos significativos para isso em especial porque
podemos reconhecer nela recursos da caracterizaccedilatildeo indireta
155
Outro caso expressivo desse tipo de teacutecnica consta no fim do episoacutedio da dispusta
pelas armas da versatildeo de Oviacutedio O resultado do julgamento dos chefes e o suiciacutedio do heroacutei
satildeo apresentados sinteticamente nos versos 382-393 Com efeito essa passagem eacute utilizada
como desfecho da cena mas nela reconhecemos a retomada de um tema jaacute trabalhado por
Lesches de Mitilene por Eacutesquilo e por Soacutefocles Se em relaccedilatildeo a Homero estes trecircs
ampliaram esses episoacutedios ateacute alcanccedilarem extensotildees variadas Oviacutedio em relaccedilatildeo a eles teria
reduzido a pouco mais de dez versos Devido agraves poucas informaccedilotildees que temos da obra de
Lesches e de Eacutesquilo sobre este assunto natildeo haacute como mensurar apropriadamente a relaccedilatildeo de
hipertextualidade entre estes e o autor latino Contudo ao menos podemos deduzir disso uma
reduccedilatildeo quantitativa do episoacutedio no sentido de resumi-lo agrave sua significaccedilatildeo mais geral a uma
morte funesta Certamente o estudo de uma transformaccedilatildeo mais complexa do texto derivado
acarreta uma comparaccedilatildeo entre o episoacutedio do Livro XIII de Metamorfoses com a obra de
Soacutefocles uma vez que detemos esse hipotexto em condiccedilotildees apropriadas para tal anaacutelise
Esse tipo reduccedilatildeo nomeado de condensaccedilatildeo pelos motivos apresentados acima potildee
fim a nossa disposiccedilatildeo acerca das transformaccedilotildees quantitativas Passemos para as
pragmaacuteticas Tal transformaccedilatildeo eacute responsaacutevel por modificar o curso das accedilotildees do hipertexto e
seu suporte instrumental Essas modificaccedilotildees podem ser mais brandas ou mais graves poreacutem
devemos entendecirc-las dentro do eixo semacircntico do texto derivado pois o autor natildeo recorre a
tais recursos sem uma razatildeo ou objetivos apropriados (1982 p 442) Dessa forma
correspondem a um elemento de modificaccedilatildeo acima de tudo semacircntica Destas abordaremos
as nomeadas transmotivaccedilatildeo (transmotivation) e tranvalorizaccedilatildeo (transvalorisation)
A primeira trata da modificaccedilatildeo das causas que movem determinados eventos no texto
derivado em relaccedilatildeo agraves suas versotildees anteriores Esta pode ocorrer segundo trecircs subtipos ou
aspectos O primeiro eacute de tipo positivo a motivaccedilatildeo (motivation) ou seja trata da introduccedilatildeo
de uma causa um motivo que o hipotexo natildeo aparentava ter ou indicar seja do ponto de vista
pragmaacutetico ou psiacutequico pois a origem de uma determinada accedilatildeo ou seja o impulso para
realizaacute-la pode ser tanto um fato um evento ou uma determinada disposiccedilatildeo emocional
(1982 p 457) Esse eacute o seu modelo mais simples mas outros podem ser daiacute desdobrados
como o caso de uma motivaccedilatildeo aumentada e amplificada Tal fato pode ocorrer devido agrave
complexidade de uma determinada obra quanto agrave rede des causas que movem um determinado
evento ou personagem sobretudo se considerarmos o modelo aristoteacutelico de accedilatildeo para qual a
causalidade eacute essencial (Poeacutetica VIII 1451a 31-35) Isso pode ser facilmente observado em
Aias em que o seu protagonista tem como um dos motivos para a sua morte a vitoacuteria do
adversaacuterio Odisseu sobre ele mesmo na disputa pelas armas de Aquiles Certamente esse
156
motivo estaacute presente na Odisseia (XI v 543-551) e tambeacutem ampliado estaacute na Pequena
Iliacuteada (WEST 2003 p 121) contudo um novo elemento adensa a motivaccedilatildeo desta uacuteltima
obra a loucura apesar de natildeo sabermos precisamente o teor dessa transformaccedilatildeo semacircntica
Essa motivaccedilatildeo eacute novamente ampliada na versatildeo de Soacutefocles uma vez que aleacutem da vitoacuteria do
adversaacuterio e da loucura apresenta-se a ideia de que ele mesmo sofreu uma grave desonra em
seu valor guerreiro duas vezes uma quando lhe foi negada a honraria devida as armas de
Aquiles e outra quando ataca animais imbeles pensando estar se vingando Essa concepccedilatildeo
de desonra e ultraje instrumentalizada a partir desses dois episoacutedios citados acima age como
a motivaccedilatildeo no acircmbito psicoloacutegico que acarreta seu estado iracundo a partir do qual executa
vaacuterias accedilotildees desmedidas responsaacuteveis pela sua ruiacutena e pelo seu suiciacutedio No entanto
reconhecemos que essa desonra tem como base uma caracteriacutestica crucial o orgulho do heroacutei
por sua virtude beacutelica Essa caracterizaccedilatildeo parece de alguma forma inserida tanto na Iliacuteada
quando o heroacutei provoca seus oponentes comparando seus feitos ao dos inimigos (XIV v 470-
475) embora o verbo gloriar-se (εὔχομαι) esteja propriamente aplicado agraves provocaccedilotildees dos
troianos (εὐξαμένοιο v 458 v 486) quanto sobretudo na Odisseia por meio de vocaacutebulo
sugestivo que caracteriza o heroacutei ldquoiacutempetordquo ou ldquoorgulho virilrdquo (ἀγήνορα θυμόν XI v 562)
Dessa forma tal transformaccedilatildeo eacute coerente com o novo eixo semacircntico do hipertexto e acima
de tudo mesmo ao se afastar da tradiccedilatildeo arcaica em termos de objetivos semacircnticos essa
mudanccedila ainda retoma alguns dos seus elementos impliacutecitos e potenciais
O segundo tipo a desmotivaccedilatildeo (deacutemotivation) de ordem negativa consiste em
suprimir ou elidir uma motivaccedilatildeo ou causa original (Ibidem p 458) ou por vezes minimizaacute-
la Uma das motivaccedilotildees importantes para a causalidade da obra de Soacutefocles figura fora do
episoacutedio da peccedila ou seja natildeo eacute encenada mas estaacute nela presente em analepse ou seja em
uma narrativa de um personagem Trata-se do motivo pelo qual os gregos atacam Troia o
rapto de Helena Com efeito isso configura um evento anterior cronologicamente aos limites
da trageacutedia mas sabendo-se que o tempo presente ainda se refere agrave guerra e que o proacuteprio
texto reforccedila tais premissas com analepses a sua supressatildeo ou elisatildeo causa profundas
modificaccedilotildees semacircnticas A Iliacuteada por exemplo fala claramente do rapto contudo a esse
evento alguns elementos satildeo acrescentados a ideia da honra de Menelau (τιμὴν Μενελάῳ I
v 159) a de uma lei de hospitalidade (ξεινοδόκον III v 354) e mais importante para essa
explanaccedilatildeo a de soberania exercida por Agamecircmnon uma vez que ele eacute o chefe dos heroacuteis
(ἄναξ ἀνδρῶν I v 7) o mais poderoso (φέρτερος I v 182 v 281) pois foi Zeus que lhe
deu essa gloacuteria (Ζευς χῦδος ἔδωκεν I v 279) fazendo os outros chefes se submeterem a ele e
o sigam contra Troia (I v 149-160) Decerto essa rede de motivos age em conjunto com o
157
rapto pois o chefe dos heroacuteis eacute movido pela a desonra familiar e os reis pela submissatildeo
agravequele ou todos pelo pudor religioso que os impele a punir os troianos que receberam o autor
de uma falta grave contra os deuses Soacutefocles transforma essas motivaccedilotildees eacutepicas suprimindo
por exemplo a origem divina da soberania do Atrida a impiedade de Paacuteris e dos troianos
elidindo do ataque a Troia sobretudo o motivo primeiro o rapto de Helena pois a questatildeo
recai prioritariamente sobre juramentos os quais os tragedioacutegrafos da Atenas Claacutessica
frequentemente ligam a Tiacutendaro pai de Helena quando da escolha do marido de sua filha (v
1111-1114) Entendemos que essa desmotivaccedilatildeo ocorra mesmo que apenas na perspectiva de
Aacutejax e de seu irmatildeo ou seja a partir de uma transformaccedilatildeo de teor ao menos psicoloacutegico Tal
supressatildeo eacute significativa pois tambeacutem serve para embasar a iacutendole do protagonista o qual
natildeo se submete a Agamecircmnon exatamente por natildeo reconhecer neste uma chefia Assim por
acreditar ser autocircnomo ou seja chefe de si acrescidas outras motivaccedilotildees o Telamida eacute
movido a suicidar-se
Certamente esse procedimento de retirar um elemento da causalidade interna do
hipotexto pode fazer um outro eclodir em seu lugar uma vez que natildeo haacute a ideia de
causalidade sem que necessariamente exista a noccedilatildeo de accedilatildeo e reaccedilatildeo de causa e efeito Tal
resultado configura o terceiro tipo a transmotivaccedilatildeo (transmotivation) homocircnima do
procedimento geral Essa transformaccedilatildeo eacute vista como um processo de substituiccedilatildeo na qual
operam uma desmotivaccedilatildeo somada a uma (re)motivaccedilatildeo Esse caso em questatildeo segundos as
premissas de Genette natildeo pode suceder por um procedimento duplo de desmotivaccedilatildeo e
motivaccedilatildeo dos tipos de minimizaccedilatildeo e de amplificaccedilatildeo de causa mas realmente pela
supressatildeo e adiccedilatildeo massivas das motivaccedilotildees original e nova (Ibidem p 465) O exemplo
citado acima pode servir ateacute certo ponto pois haacute mesmo depois da remoccedilatildeo de alguns
motivos a presenccedila acessoacuteria do rapto de Helena e adiccedilatildeo de um novo elemento o
juramento que jaacute estaacute presente em obras do ciclo eacutepico como nos Cantos Ciacuteprios (WEST
2003 p 71) Contudo o motivo parece passar de uma questatildeo religiosa ndash a hospitalidade ndash e
social ndash a honra de Menelau ndash para um moral e eacutetica ndash a confianccedila na palavra dada ndash
relevante sobretudo porque os ideais do protagonista da peccedila o fazem reconhecer no mundo
valores estaacuteveis tal como a amizade e o juramento os quais desabam diante dos eventos
presentes na trageacutedia Como o personagem mesmo diz ldquoo terriacutevel juramento eacute condenadordquo
(ἁλίσκεται χὠ δεινὸς ὅρκος v 649-650) Com efeito por ser complexa a estruturaccedilatildeo da
transmotivaccedilatildeo e tambeacutem por natildeo ter sido observada no propoacutesito primeiro de nosso estudo
ou seja na relaccedilatildeo de hipertextualidade entre o Livro XIII de Metamorfoses e a obra da qual
158
algumas de suas passagens derivam Aias natildeo nos deteremos em maiores explicaccedilotildees
Passemos para outro tipo de alteraccedilotildees pragmaacuteticas a transvalorizaccedilatildeo
Esse segundo processo de transformaccedilatildeo pragmaacutetica tem como base qualquer
operaccedilatildeo de natureza axioloacutegica ou seja de valor a qual de alguma maneira seja atribuiacuteda a
uma accedilatildeo ou conjunto de accedilotildees que caracterizam os personagens Tal procedimento pode ser
concebido a partir dos trecircs aspectos semelhantes aos mencionados na transmotivaccedilatildeo um
positivo a valorizaccedilatildeo (valorisation) um negativo a desvalorizaccedilatildeo (deacutevalorisation) e o
duplo movimento da substituiccedilatildeo a transvalorizaccedilatildeo (transvalorisation) contudo haacute nesta
uacuteltima uma noccedilatildeo mais complexa pois eacute tomada em um sentido mais forte da operaccedilatildeo de um
duplo movimento de valorizaccedilatildeo e de desvalorizaccedilatildeo (GENETTE 1982 p 483)
O primeiro subtipo corresponde ao processo de incrementar um personagem atraveacutes
de uma modificaccedilatildeo seja tambeacutem pragmaacutetica ou psicoloacutegica com um papel mais
significativo ou mais atrativo para o eixo semacircntico do hipertexto em relaccedilatildeo ao seu sistema
de valores (Ibidem p 483) Segundo o estudioso francecircs esse recurso eacute tanto o ato de
intensificar traccedilos no personagem presentes nos valores que atuam no hipotexto quanto o ato
de promover personagens secundaacuterios ignorados ou depreciados pela trama
Contudo haacute de se entender que a valorizaccedilatildeo consiste natildeo em perceber o grau de
participaccedilatildeo de um personagem na accedilatildeo da obra mas o investimento em sua caracterizaccedilatildeo a
qual depende do esquema axioloacutegico estabelecido uma vez que essa estruturaccedilatildeo eacute diferente
se consideramos a eacutepica a trageacutedia ou o mesmo o romance O texto eacutepico por exemplo
possui frequentemente um padratildeo homogecircneo de valores e que eacute sobretudo aristocraacutetico e
guerreiro Isso faz seus personagens de certa grandeza heroica confrontarem-se em batalhas
ou combates singulares nos quais natildeo haacute um real conflito de valores particularmente porque
eles se defrontam segundo os mesmos princiacutepios o mesmo credo E a partir desses
norteadores axioloacutegicos uns satildeo melhores e outros piores A trageacutedia jaacute opera diferentemente
pois como jaacute vimos natildeo soacute confronta valores sobretudo passados e presentes como tambeacutem
reveste seus personagens mais significativamente segundo as premissas de Aristoacuteteles de
uma posiccedilatildeo intermediaacuteria (Poeacutetica 1453a 7-12) ou seja de alguma forma retirando-lhes
sua grandeza heroica e lhes incutindo um certo grau de humanizaccedilatildeo O romance continua e
desenvolve tal procedimento sobretudo porque jaacute provecirc suas figuras de uma tessitura mais
profundamente humana em que se observam recorrentemente caracteriacutesticas como egoiacutesmo
ingenuidade covardice etc ou seja este gecircnero apresenta um outro sistema axioloacutegico o qual
alicerccedila um espaccedilo potencial para desenvolvimento de diferenciados de valores e de conflitos
Contudo isso deve ser visto como marcas dominantes as quais podem avanccedilar sobre os
159
limites porosos que definem os gecircneros Portanto nada impede de reconhecermos ainda em
certo grau uma psicologia elaborada e uma vivacidade profundamente humana atribuiacutedas
normalmente aos textos do poacutes-romantismo nos textos eacutepicos por exemplo que estabelecem
alguma quebra nessa homogeneidade de valores especialmente porque discorremos sobre
esse assunto no primeiro capiacutetulo no qual vimos a profundidade de caracterizaccedilatildeo presente
nas obras homeacutericas
Esclarecida a natureza desses possiacuteveis sistemas de valor devemos entender que a
valorizaccedilatildeo eacute sobretudo desenvolver um personagem no eixo positivo do sistema apresentado
pelo hipertexto Segundo Genette isso pode ocorrer normalmente atraveacutes de duas noccedilotildees
uma primaacuteria (primaire) e outra secundaacuteria (secondaire) A primeira eacute definida natildeo pelo
mero investimento em uma proeminecircncia que o personagem em questatildeo jaacute detenha no texto
matriz mas pela elevaccedilatildeo de seu meacuterito e de seu valor simboacutelico (1982 p 491) A segunda
noccedilatildeo equivale a uma espeacutecie de reabilitaccedilatildeo das figuras que no hipotexto estatildeo inseridas no
eixo negativo dos valores dipostos ou devido a um papel menor a uma promoccedilatildeo daquelas
que estatildeo aqueacutem de uma caracterizaccedilatildeo que aponte quaisquer tendecircncias
A Eneida apresenta um exemplo claro do primeiro tipo de valorizaccedilatildeo Certamente
em se tratando de um eacutepica que retoma sobretudo Homero podemos reconhecer na obra um
sistema de valores semelhantes ao da Iliacuteada e da Odisseia de base guerreira e aristocraacutetica
Com efeito o personagem principal da obra de Viacutergilio Eneias eacute representado virtuoso tanto
na obra homeacuterica quanto na latina ou seja estaacute inserido no eixo positivo desse esquema
axioloacutegico Assim ele deteacutem os atributos proacuteprios de sua condiccedilatildeo e de sua grandeza heroica
Contudo acima do valor que lhe eacute conferido por Homero o poeta latino incrementa seus
inerentes meacuteritos e qualidades elevando-o acima dos heroacuteis gregos e o tornando siacutembolo
maacuteximo da gloacuteria de Roma Esse processo enaltece o personagem aleacutem dos limites do
hipotexto como se as obras matrizes natildeo tivessem exaltado o heroacutei de forma suficiente
Aplicada agrave obra de Soacutefocles a valorizaccedilatildeo secundaacuteria reside de modo especial na
personagem Tecmessa cativa de Aacutejax Na Iliacuteada nem ao menos um nome eacute mencionado agrave
sua cativa apesar de sabermos da existecircncia de uma no Canto I quando da ameaccedila de
Agamecircmnon em tomar as honrarias de Aquiles de Odisseu ou de Aacutejax No entanto em Aias
aleacutem de receber um nome e uma identidade essa personagem eacute valorizada em relaccedilatildeo a um
dos sistemas axioloacutegicos da peccedila a qual dispotildee a ideia de moderaccedilatildeo no eixo positivo e a de
excesso no eixo negativo Essa como vimos parece ser a diposiccedilatildeo mais evidente da obra agrave
qual se agregam outros sistemas a priori mais secundaacuterios Tecmessa em oposiccedilatildeo ao
protagonista e com o qual apresenta o conflito de valores estaacute imbuiacuteda de uma iacutendole cujas
160
decorrentes accedilotildees demostram uma natureza comedida fazendo-a deter as virtudes essenciais
do eixo positivo dos valores da peccedila fundamentais para o seu objetivo semacircntico A liccedilatildeo
moral presente no proacutelogo proferida pela deusa Atena jaacute nos aponta a distinccedilatildeo qualitativa
do que eacute considerado bom e do que eacute mau Essa promoccedilatildeo a faz sair de uma posiccedilatildeo com
pouco significado e de nenhuma tendecircncia axioloacutegica e chegar a uma condiccedilatildeo mais
significante dentro do novo plano de valoraccedilatildeo estabelecido pelo hipertexto nesse caso na
trageacutedia Aias
A desvalorizaccedilatildeo eacute um movimento inverso de transformaccedilatildeo pragmaacutetica (Ibidem p
497) Apesar de natildeo nomear noccedilotildees primaacuteria e secundaacuteria o autor apresenta a possibilidade
tanto de se agravar no texto derivado o status axioloacutegico de um personagem jaacute presente no
eixo negativo da estrutura de valoraccedilatildeo do hipotexto (Ibidem p 498) quanto desenvolver
esse status ainda nesse mesmo eixo promovendo-o a essa condiccedilatildeo negativa ou retirando os
valores positivos do personagem presentes no hipotexto ou os desmistificando por meio de
transformaccedilotildees as quais confiram ao personagem um papel mais significativo no propoacutesito
semacircntico do hipertexto
Um exemplo do modelo de desvalorizaccedilatildeo eacute o de Ulisses na Eneida Tal personagem
eacute concebido nas epopeias homeacutericas pelo vieacutes da virtude especialmente a partir de um
atributo em particular sua inteligecircncia Essa caracteriacutestica eacute tatildeo reforccedilada que o heroacutei eacute
nomeado por meio de epiacutetetos a saber o muito inteligente polyacutemetis (πολύμητις) e o muito
artificioso polymeacutechanos (πολυμήχανος) que ressaltam tal valor tanto na Iliacuteada quanto na
Odisseia Contudo esse personagem sofre transformaccedilotildees que alteram completamente essa
sua inteligecircncia de algo positivo para algo negativo Uma vez que seu intelecto eacute engendrado
em accedilotildees cujos objetivos satildeo impiedosos e inescrupulosos tanto a iacutendole eacute modificada quanto
o sistema de valores sofre por algumas mutaccedilotildees mesmo em se tratando de uma eacutepica
hipertextual em que se esperaria uma homogeneidade axioloacutegica A nova configuraccedilatildeo de
Virgiacutelio permite que Ulisses tenha seu status rebaixado fazendo inclusive da vitoacuteria dos
gregos sobre os troianos menos ou totalmente ingloacuteria O heroacutei de Iacutetaca se torna na obra latina
um expoente natildeo dos aspectos positivos do eixo axioloacutegico da obra mas dos negativos pois
na perspectiva da Eneida ele eacute nomeado no Livro VI pela sua inteligecircncia perversa de
Eoacutelida estimulador de crimes (hortator scelerum Aeolides v 529) que ocupa todo um
hemistiacutequio heftemiacutemere tal qual um novo epiacuteteto Essa desmistificaccedilatildeo ou rebaixamento no
caraacuteter do personagem eacute claramente um processo de desvalorizaccedilatildeo
Para finalizarmos a explanaccedilatildeo acerca das transformaccedilotildees pragmaacuteticas apresentamos
a transvalorizaccedilatildeo em seu sentido mais estrito Essa operaccedilatildeo consiste em um duplo
161
movimento aplicado a um ou mais personagens poreacutem corresponde ao ato de retiraacute-los de
um sistema e colocaacute-los em outro como remover Aacutejax de sua grandeza heroica e imbui-lo de
uma humanidade na qual outras caracteriacutesticas satildeo mais significativas (GENETTE 1982 p
514) como vimos acima Esse parece ser o processo frequente quando se deslocam
hipertextualmente figuras eacutepicas para trageacutedias ou romances modernos
Aleacutem disso esse procedimento pode ocorrer tanto na substituiccedilatildeo de valores de um
hipotexto que apresente um sistema homogecircneo como eacute geralmente o caso da eacutepica ou
heterogecircneo como eacute o caso da trageacutedia a qual frequentemente apresenta conflito de valores
O hipertexto pode assim apresentar um esquema axioloacutegico novo ou mesmo inverter um
apresentado pelo texto matriz valorizando o que era depreciado ou depreciando o que era
valorizado ou seja revertendo completamente os eixos positivo e negativo
Este uacuteltimo caso parece ser o da Eneida que apresenta as iacutendoles gregas e troianas
distorcidas da visatildeo homeacuterica Na Iliacuteada por exemplo o eixo positivo estava de alguma
forma aplicado mais preponderantemente aos gregos e o negativo aos troianos uma vez que
vemos por exemplo estes natildeo cumprirem um juramento ou Paris esconder-se atraacutes dos
exeacutercitos cenas presentes no Canto III Com exceccedilatildeo de Heitor sobretudo pois sua condiccedilatildeo
valorosa serve para atribuir mais valor guerreiro a Aquiles A visatildeo grega entatildeo tende a
glorificar os seus heroacuteis Na obra de Virgiacutelio aleacutem de existir o rebaixamento de muitos
personagens aqueus como por exemplo Ulisses Menelau e Helena no Livro VI haacute a
tendecircncia de glorificar os troianos em especial do ramo de Eneias o qual no mito romano
compotildee a origem lendaacuteria de Roma este que tambeacutem figura como o ancestral de Rocircmulo e
Remo A exceccedilatildeo eacute o Pelida pois seraacute paracircmetro para o valor de Turno nomeadamente
ldquooutro Aquilesrdquo (alius [] Achilles Eneida VI 89) inimigo que seraacute derrotado por Eneias
conferindo a este a excelecircncia guerreira Essa inversatildeo promovida por Virgiacutelio pode ser
observada como um tipo da transvalorizaccedilatildeo
Certamente tambeacutem podemos ver na obra de Soacutefocles uma transvalorizaccedilatildeo uma vez
que se desloca o sistema de grandeza heroica eacutepica para um em que os personagens sejam
mais semenlhates aos espectadores e em que seja possiacutevel se realizar a catarse aristoteacutelica
(Poeacutetica 1453a 1-5) Assim Aacutejax Menelau e Agamecircmnon efetivamente dividem um coacutedigo
moral antigo visto como negativo no sistema axioloacutegico da peccedila que retrata no caraacuteter desses
heroacuteis uma individualidade que nos chega com tons de egoiacutesmo (HUBBARD 2003 p 167)
ou quando por parte dos Atridas retrata um certo juacutebilo com relaccedilatildeo agrave morte do Telamocircnio
Apesar de vermos um protagonista que se vecirc maior que deuses e chefes um ato que configura
sua hyacutebris observamos ainda seu valor ser reabilitado uma vez que outrora realizou faccedilanhas
162
em prol dos gregos ou ainda reconhecemos o caraacuteter comedido de Odisseu o qual o permite
compreender ateacute os atos mais violentos do protagonista natildeo como maldade mas como uma
fatalidade pois o Laertida reconhece a natureza fraacutegil dos mortais Dessa forma essa
transformaccedilatildeo que humaniza em certo grau os personagens removendo-os de sua natureza
superior e heroica modifica o sistema de valores de modo mais significativo para o propoacutesito
semacircntico do hipertexto sendo assim mais um dos casos da transvalorizaccedilatildeo Certamente
poderiacuteamos dizer que dentro desse processo de transvalorizaccedilatildeo por um lado Aacutejax recebe
uma valorizaccedilatildeo uma vez que seu caraacuteter intermediaacuterio eacute reforccedilado cumprindo-se o
propoacutesito semacircntico dessa transformaccedilatildeo e por outro Agamecircmnon e Menelau passam por
um processo de desvalorizaccedilatildeo uma vez que satildeo apresentados mais plenamente por meio de
viacutecios do que de virtudes Contudo em relaccedilatildeo ao sistema de valor que opotildee excesso e
desmedida poderiacuteamos dizer que o Telamocircnio eacute desvalorizado e o Laertida eacute valorizado
Dessa forma tentamos explicar como mais de um esquema axioloacutegico ao nosso
entendimento pode atuar em uma mesma obra e como operam os processos de valorizaccedilatildeo
desvalorizaccedilatildeo e transvalorizaccedilatildeo dentro desses contextos
Vejamos agora a uacuteltima praacutetica hipertextual desta seccedilatildeo a transmodalizaccedilatildeo
(transmodalisation) Sua praacutetica eacute mais comum e mais oacutebvia no acircmbito literaacuterio e isso
significa dizer que sua apreensatildeo eacute mais faacutecil porque sobretudo remete a outras praacuteticas
recorrentes das teorias literaacuterias Essa praacutetica a priori envolve transformaccedilotildees puramente
formais a partir de uma operaccedilatildeo de modificaccedilatildeo do modo ou no modo de representaccedilatildeo do
hipotexto ou seja o narrativo ou o dramaacutetico (GENETTE 2003 p 119) que satildeo aqueles nos
quais o estudioso francecircs se deteacutem Assim isso natildeo representa em si uma mudanccedila de gecircnero
literaacuterio pois tanto a eacutepica quanto o romance se desenvolvem sob o mesmo modo por
exemplo Com efeito esse procedimento ocorre segundo dois tipos o intermodal
(intermodale) que corresponde agrave passagem de um modo a outro seja do narrativo ao
dramaacutetico a dramatizaccedilatildeo (dramatisation) ou o contraacuterio a narrativizaccedilatildeo (narrativisation)
e o intramodal (intramodale) que corresponde agraves variaccedilotildees ocorridas dentro do mesmo
modo
Essas transformaccedilotildees afetam as modalidades do discurso e consenquentemente natildeo
alteram apenas sua forma mas tambeacutem seu sentido Satildeo mensuraacuteveis atraveacutes de instacircncias
propostas por Genette das quais nos restringiremos agraves de tempo e de modo (em sentido mais
estrito) De acordo com tais acircmbitos podemos entender as possibilidades de alteraccedilotildees
intramodal e sobretudo intermodal
163
Na instacircncia temporal por exemplo o modo narrativo acomoda melhor a alteraccedilatildeo da
ordem temporal dos eventos da histoacuteria como a analepse ou a prolepse O mesmo acontece
com o ritmo da narraccedilatildeo mais lento ou mais raacutepido no qual sumaacuterios se tornam cenas ou
cenas sumaacuterios Descriccedilotildees podem se alongar ou se reduzir elipses e paralipses podem ser
introduzidas a qualquer tempo O modo dramaacutetico em se tratando especialmente da trageacutedia
antiga jaacute sente a necessidade de comprimir a duraccedilatildeo da accedilatildeo o mais proacuteximo da
representaccedilatildeo o que acarreta um funcionamento em tempo real ou seja a cena propriamente
isocrocircnica As elipses por exemplo satildeo introduzidas frequentemente entre os atos ou as
cenas Assim fundamental eacute a relaccedilatildeo daquilo que eacute encenado com o aquilo que eacute elidido ou
pressuposto pois estando fora da dramatizaccedilatildeo algum fato que eacute importante para o sentido
da peccedila geralmente exige se tornar presente por meio de uma alusatildeo ou narraccedilatildeo Descriccedilotildees
que evoluiacuteram para ser atribuiacutedas aos gestos e agrave indumentaacuteria ndash componentes da teatralidade
ou seja o teatro menos o texto ndash nos antigos ganham ainda espaccedilo nas falas dos personagens
mas de forma mais objetiva e sinteacutetica
A instacircncia de modo no sentido mais estrito conforme dissemos eacute responsaacutevel por
regular a informaccedilatildeo sobretudo no sentido de seleccedilatildeo de quantidade e qualidade ou seja o
quanto se conta de algo e segundo qual ponto de vista No modo narrativo sobressaem-se daiacute
as noccedilotildees de distacircncia e de perspectiva narrativa A primeira pode ser reduzida em certo grau
agraves concepccedilotildees de diegesis e mimesis Esta eacute um procedimento que reduz a distacircncia entre a
histoacuteria e o narrador privilegiando diaacutelogos por exemplo na tentativa de retirar os sinais da
presenccedila de um mediador inclusive dramatizando os eventos da histoacuteria Aquela eacute um
processo inverso afastando o mediador de seu relato Esses recursos permitem ao modo
narrativo uma variaccedilatildeo potencialmente mais abundante do que o dramaacutetico Contudo este
uacuteltimo modo quanto ao teatro antigo apesar de agir segundo a mimesis ainda lhe eacute possiacutevel
reconhecer traccedilos de um mediador ora narrador ora comentador Esse papel eacute atribuiacutedo com
mais ou menos intensidade ao coro Quanto agrave noccedilatildeo de perspectiva ela recai sobre a
concepccedilatildeo de focalizaccedilatildeo ou seja o ponto de vista O modo narrativo pode adotar diferentes
focos desde um onisciente ao ponto de vista de um ou muacuteltiplos personagens e esse
procedimento certamente afeta as accedilotildees da histoacuteria uma vez que condiciona a quantidade de
eventos figuras espaccedilos etc envolvidos nela Em oposiccedilatildeo a isso o modo dramaacutetico tem
como uacutenico ponto de vista o do espectador No entanto a distribuiccedilatildeo dos discursos eacute
responsaacutevel pela transformaccedilatildeo da accedilatildeo seja privilegiando ou natildeo um determinado
personagem com mais falas uma vez que para o teatro antigo accedilatildeo eacute sobretudo falar discursar
e dialogar
164
Diante dessa exposiccedilatildeo podemos entender como em Aias houve um processo de
dramatizaccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave Pequena Iliacuteada a qual apresentava o episoacutedio do suiciacutedio do
Telamocircnio segundo outro modo de representaccedilatildeo Percebemos tambeacutem como o processo de
compressatildeo da accedilatildeo transforma a peccedila elidindo entre o proacutelogo e o paacuterodo o episoacutedio de
reconhecimento do heroacutei quando este percebe que matou animais e natildeo homens pois tal fato
natildeo eacute encenado mas relatado por Tecmessa ao coro em um processo de mediaccedilatildeo de
informaccedilatildeo que serve tanto para os guerreiros de Salamina quanto para os espectadores
Vejamos na seccedilatildeo seguinte como essas transformaccedilotildees transtextuais sobretudo
hipertextuais satildeo utilizadas por Oviacutedio para uma nova ressignificaccedilatildeo do episoacutedio que trata do
mito de Aacutejax
3 2 O EPISOacuteDIO TRANSTEXTUAL DE OVIacuteDIO
Nesta seccedilatildeo avaliaremos a obra de Soacutefocles em relaccedilatildeo ao seu caacuterater transtextual em
especial considerando possiacuteveis influecircncias oriundas de Soacutefocles e tambeacutem como jaacute
pontuamos procurando observar como a obra latina em questatildeo pode de alguma maneira
modificar a leitura da peccedila do autor grego Para isso utilizaremos sobretudo as conclusotildees
que retiramos das anaacutelises do capiacutetulo anterior Segundo a metodologia adotada
apresentaremos inicialmente disposiccedilotildees gerais seguidas de duas seccedilotildees uma para pontuar
transtextualidades significativas para a caracterizaccedilatildeo da virtude do heroacutei e outra para a da
ira que o acomete Comecemos pela transtextualidade e pelas suas transformaccedilotildees de caraacuteter
mais geral da obra de Oviacutedio e do episoacutedio em questatildeo
Com efeito jaacute reconhecemos que o caraacuteter polivalente dessa eacutepica de Oviacutedio eacute
evidente e que como o proacuteprio tiacutetulo sugere ela apresenta transformaccedilotildees expressivas em
relaccedilatildeo aos elementos mais tradicionais da tradiccedilatildeo da epopeia os quais tocam desde o
conteuacutedo ateacute a forma
Quanto ao conteuacutedo digamos assim eacute possiacutevel observar por exemplo que a obra
Metamorfoses desconstroacutei a grandeza heroica em favor de uma maior humanizaccedilatildeo dos
personagens com o propoacutesito de inserir um teor mais liacuterico e traacutegico agrave caracterizaccedilatildeo dos
heroacuteis de modo semelhante ao que fazem os tragedioacutegrafos gregos Isso em si promove uma
transvalorizaccedilatildeo no sentido estrito da palavra Por um lado em relaccedilatildeo ao proacuteprio gecircnero
eacutepico pois lhe retira a natural homogeneidade axioloacutegica desse modelo Por outro em relaccedilatildeo
agraves obras que descrevem o episoacutedio da morte de Aacutejax em especial Aias ou Odisseia uma vez
165
que se ressignificam seus conteuacutedos em um outro sistema de valor mais importante para o seu
eixo semacircntico Eacute importante ressaltar que em relaccedilatildeo agraves obras de Eacutesquilo de Lesches e
tantos outros as quais tambeacutem retratam o mito do heroacutei de Salamina natildeo haacute como avaliar a
obra latina transtextualmente uma vez que nos falta o texto para inferir qualquer sentido mais
profundo Por isso sempre pontuamos e pontuaremos as obras de Homero e Soacutefocles Com
efeito esse tratamento de Oviacutedio aos personagens em prol de um caraacuteter mais humano eacute
visiacutevel particularmente quando observamos os personagens mais expressivos representantes
maacuteximos dos valores aristocraacuteticos das obras homeacutericas
Um primeiro exemplo desse procedimento eacute o proacuteprio Agamecircmnon que na versatildeo de
Oviacutedio recebe um tratamento de caracterizaccedilatildeo mais humano e menos heroico a partir de uma
motivaccedilatildeo proacutepria da obra Metamorfoses aparentemente natildeo presente na tradiccedilatildeo arcaica e
claacutessica grega O julgamento das armas tanto na Odisseia quanto na Pequena Iliacuteada eacute um
episoacutedio que retrata os teucros ou seja os troianos como os juiacutezes da questatildeo juntamente
com Atena Contudo natildeo haacute nelas o que os tragedioacutegrafos pareceram preferir uma disputa
entre os dois heroacuteis a partir de um debate julgado pelos chefes gregos natildeo mais com a
participaccedilatildeo dos troianos Em Aias de Soacutefocles se menciona o episoacutedio da disputa como
decidida por meio de votos algo com o qual o seu protagonista natildeo concorda Certamente a
natureza do julgamento nesta uacuteltima obra insere-se dentro do campo que pertence ao eixo
dos valores positivos propostos pela peccedila pois representam um modelo proacuteprio da Atenas
Claacutessica em oposiccedilatildeo aos valores do eixo negativo que retratam princiacutepios arcaicos Nessa
obra natildeo haacute um motivo expliacutecito para a escolha de uma deliberaccedilatildeo por votos a natildeo ser pelo
objetivo semacircntico do texto que trata como naturais os elementos do periacuteodo claacutessico e como
baacuterbaros aqueles do arcaico No entanto Oviacutedio apresenta uma justificativa expliacutecita que
realccedila a iacutendole de Agamecircmnon de maneira a deslocaacute-lo de sua grandeza heroica O motivo da
predileccedilatildeo por um julgamento pelos chefes eacute para que o Atrida retire de si o ocircnus (ocircnus XII
v 626) e a inveja (inuidam XII v 626) Tal procedimento representa uma motivaccedilatildeo para o
eposoacutedio seja como um elemento novo ou reforccedilado pois impulsiona as accedilotildees do
personagem E para que sua compreensatildeo seja plena devemos reconhecer aiacute uma
intertextualidade com Iliacuteada uma vez que se alude agraves consequecircncias da proacutepria decisatildeo do
chefe grego em tomar o precircmio de Aquiles as grandes adversidades por que a tropa passou
com a ausecircncia do melhor dos aqueus Assim quando o proacuteprio texto sugere inveja disso
entendemos que o Atrida natildeo quer repetir o ato de outrora contra o Pelida tomando para si o
precircmio de outro e quando sugere ocircnus disso inferimos que o personagem sendo chefe natildeo
quer se tornar responsaacutevel novamente por consequecircncias desastrosas ao seu exeacutercito Dessa
166
forma o texto insinua que o chefe foge aos seus encargos parecendo-nos que tal incumbecircncia
eacute menos gloriosa e potencialmente mais onerosa aleacutem de nos incutir uma ideia de
aprendizado e evoluccedilatildeo do proacuteprio chefe uma vez que na Iliacuteada ele se fazia valer pela sua
posiccedilatildeo a qualquer custo Essa motivaccedilatildeo serve em especial para a transvalorizaccedilatildeo da obra
do autor latino
Um segundo caso significativo eacute o de Aquiles uma vez que na Iliacuteada vaacuterios
estudiosos reconhecem o modelo de excelecircncia grega aristocraacutetica e arcaica atribuiacuteda a este
heroacutei a exemplo de Werner Jaeger (2003) A partir desse heroacutei traccedila-se um ideal de bela
morte cujas premissas satildeo geralmente a de um guerreiro que tendo realizado grandes feitos
que homologam sua honra morre jovem nas matildeos de um igual e com isso alcanccedila a gloacuteria
maacutexima Essas questotildees satildeo inclusive a base que sustenta o entendimento mais profundo da
fuacuteria do heroacutei a qual forma o argumento da epopeia homeacuterica Honra e pudor satildeo elementos
fundamentais no sistema de valores das epopeias homeacutericas Contudo essas condiccedilotildees
grandiosas satildeo descontruiacutedas por Oviacutedio especialmente em relaccedilatildeo agrave bela morte de tal heroacutei
No Livro XII da obra Metamorfoses o Pelida eacute retratado por um vieacutes mais traacutegico do que
eacutepico e por isso entendemos que o heroacutei alcanccedila um fim ingloacuterio sobretudo de forma
inesperada e isso significa dizer que haacute uma ruptura com a expectativa Eacute possiacutevel observar
que essa eacutepica latina desenvolve um Aquiles vencedor de muitos heroacuteis (tantorum uictor v
608) mas que ao fim encontra a morte por meio de um combate feminino (femineo []
Marte v 610) pois eacute vencido pelo covarde raptor da esposa grega (victus [] a timido
Graiae raptore maritae v 609) ou seja por Paacuteris Esse processo de desvalorizaccedilatildeo do
Priamida em questatildeo ou seja de caracterizaacute-lo como um personagem sem virtude sobretudo
masculina e logo beacutelica diminui de alguma forma o valor de Aquiles para o sentido do texto
latino Assim apesar de sua gloacuteria ser retratada como que percorresse todo o mundo (gloria
compleat orbem v 617) o jogo entre as palavras uictor e uictus ressaltam a antiacutetese disposta
no texto do tatildeo grande Aquiles (tam magno Aquille v 615) apoacutes cremado resta algo de
ignoto (nescioquid v 616) Isso nos parece insinuar que embora tal heroacutei seja realizador de
grandes feitos sua morte eacute pequena assim inferior e de certo modo ingloacuteria
Jaacute quanto agrave forma apesar de Metamorfoses apresentar uma estrutura proacutepria da
epopeia como versos em hexacircmetro dactiacutelico podemos observar na mesma pelo menos em
relaccedilatildeo ao episoacutedio de Aacutejax um procedimento mais mimeacutetico do que diegeacutetico Este uacuteltimo eacute
um fundamental elemento da eacutepica uma vez que esse gecircnero eacute concebido pelo modo
manifestadamente narrativo No entanto a obra de Oviacutedio compotildee o episoacutedio em questatildeo de
quase 400 versos atribuindo a aproximadamente 25 deles a narraccedilatildeo distanciada
167
propriamente dita Isso significa que o narrador reduz a distacircncia entre ele e a histoacuteria na
preponderante maioria desses versos representando-a significativamente de maneira mais
dramatizada
Se a cena de debate presente na disputa pelas armas de Aquiles eacute certamente oriunda
ou ao menos preferida dos tragedioacutegrafos Oviacutedio teria transformado tal evento pelo processo
nomeado por Genette de transmodalizaccedilatildeo do tipo intramodal ou seja mais precisamente o
processo de narrativizaccedilatildeo Ele transfere o conteuacutedo que eacute encenado para um narrado
fazendo as adaptaccedilotildees necessaacuterias dentro de seu texto Das peccedilas sobre esse julgamento
acredita-se que ao menos as de Eacutesquilo e de Astidama ambos gregos e as de Pacuvius e
Accius latinos do periacuteodo republicano teriam encenado o debate apesar de natildeo determos
informaccedilotildees suficientes sobre tais obras
Contudo apesar da narrativizaccedilatildeo o procedimento mimeacutetico de Oviacutedio ressalta no
episoacutesio elementos do drama a partir de aspectos de duas instacircncias intermodais Na de modo
em seu sentido mais estrito o narrador dramatiza a accedilatildeo apesar de natildeo haver em si uma
encenaccedilatildeo A preponderacircncia que o autor latino concede aos diaacutelogos e ao discurso direto dos
personagens emula expressivamente o modelo dramaacutetico em particular porque vemos um
narrador que retira os sinais de sua presenccedila e de sua mediaccedilatildeo da histoacuteria Assim os proacuteprios
personagens proferem seus discursos de defesa com uma miacutenima interferecircncia externa Na
instacircncia temporal emula-se tambeacutem a cena isocrocircnica proacutepria do teatro ou seja o
desenvolvimento da cena em tempo real A mudanccedila do ritmo narrativo eacute reduzida ao
maacuteximo permitindo-se ao leitor contemplar o debate tal qual poderia ter ocorrido e tal qual
verdadeiros debates ocorriam na eacutepoca sem siacutenteses sem elipses ou omissotildees por exemplo
que satildeo caracteriacutesticas da presenccedila de um narrador
Natildeo temos como mensurar a influecircncia das iacutenumeras obras anteriores agrave de Oviacutedio ou
mesmo aquela cuja presenccedila eacute mais significativa contudo mesmo natildeo havendo em Aias de
Soacutefocles a encenaccedilatildeo do debate poderemos ver ainda certa relaccedilatildeo transtextual expressiva em
alguns pontos os quais trataremos na seccedilatildeo seguinte
Ainda em relaccedilatildeo ao episoacutedio da disputa pelas armas de Aquiles podemos apresentar
algumas disposiccedilotildees relevantes Tal episoacutedio presente no Livro XIII de Metarmorfoses
apresenta-se como um debate no qual os contendores defendem sua virtude e seus meacuteritos
Nele se estabelece um conflito de valores no qual a virtude eacute vista de duas formas diferentes
a depender de quem discursa Aacutejax a delineia a partir de uma ideia de accedilatildeo em oposiccedilatildeo agrave
palavra O virtuoso seria entatildeo o homem bravo que guerreia Contrariamente a essa
definiccedilatildeo Ulisses a delineia a partir de uma ideia de disposiccedilatildeo corporal em oposiccedilatildeo agrave
168
mental ou seja a inteligecircncia prevalece sobre a forccedila e a bravura O heroacutei valoroso seria
entatildeo o prudente Os dois personagens apresentam suas causas segundo esses eixos
axioloacutegicos ou seja por meio paracircmetros diferentes os quais fundamentam o conflito de
valores
Com efeito parece-nos conforme afirmamos anteriormente que o narrador valoriza
mesmo que discretamente o eixo descrito pelo Telamocircnio inclusive talvez porque tal
parcialidade adense o caraacuteter traacutegico da morte Dessa forma o narrador distanciado da
histoacuteria faz questatildeo de nomear o chefe de Salamina de heroacutei muito forte ou valente
(fortissimus heros X v 207) ou bravo varatildeo (fortis uiri XIII v 383) e o Laertida de
eloquente (disertus XIII 383) inclusive ainda descrevendo este a priori a fingir lamento
quando discorre sobre a morte de Aquiles com o objetivo de comover os espectadores (XIII
v 132-133) Essa parcialidade natildeo eacute algo descabido sobretudo se considerarmos as eacutepicas
latinas produzidas durante o Seacuteculo de Augusto as quais figuram a guerra de Troia
Geralmente nestas a linhagem de Eneias eacute glorificada e a linhagem de muitos ilustres heroacuteis
gregos eacute desvalorizada a exemplo claro da Eneida cujas accedilotildees de Ulisses como
mencionamos rapidamente satildeo caracterizadas por um vieacutes negativo
Essa caracterizaccedilatildeo negativa do heroacutei de Iacutetaca natildeo eacute estranha nem ao mundo grego
pois Piacutendaro por exemplo em sua ode Nemeia VIII jaacute assim o descrevia O episoacutedio da
disputa aludido no epiniacutecio desse autor eacute disposto segundo essa perspectiva de Aacutejax
presente na obra latina estudada por noacutes De acordo com a versatildeo desse poeta liacuterico
ldquolevantaram a maior honraria para a aacutegil mentira pois os Dacircnaos favoreceram Odisseu em
votaccedilatildeo secretardquo (μέγιστον δ` αἰόλῳ ψεύδει γέρας ἀντέταται κρυφίαισι γὰρ ἐν ψάφοις
Ὀδυσσῆ Δαναοὶ θεράπευσαν v 25-26)) Assim baseado nessas tradiccedilotildees e em uma
vinculaccedilatildeo mais significativa para a obra de Oviacutedio eacute possiacutevel e tambeacutem pertinente observar
uma certa tendecircncia do narrador ainda que sutil em validar as palavras de Aacutejax ligando a
eloquecircncia e a inteligecircncia do heroacutei a um eixo negativo Dessa forma seus discursos nos
revelam um pouco de como eles se veem e como eles satildeo na praacutetica caracterizados apesar de
que o narrador ainda de alguma maneira atesta o eixo de valores do heroacutei menos eloquente
No entanto natildeo eacute coerente validar apenas um eixo positivo e um negativo do modo
comumente visto na eacutepica pois apesar de ambos os contendores estarem inseridos em um
tempo miacutetico de grandeza heroica e que se valham de uma linhagem divina em seus
discursos eles satildeo retratados na eacutepica de Oviacutedio natildeo como tal mas a partir de uma
transvalorizaccedilatildeo que lhes impotildee um caraacuteter mais estritamente humano e intermediaacuterio
Consequentemente dentro desse uacuteltimo sistema axioloacutegico haacute ainda a uma espeacutecie de
169
valorizaccedilatildeo do Telamocircnio pois ao se atribuiacuterem virtudes e viacutecios ao heroacutei tal disposiccedilatildeo
contribui para a configuraccedilatildeo intermediaacuteria do personagem Por um lado reconhece-se sua
excelecircncia guerreira mas por outro esta implica a superestima de sua virtude que se faz
visiacutevel na ira na soberba no despudor excessivos que se estabelecem nessa caracterizaccedilatildeo de
Aacutejax A partir desse ponto de vista um novo eixo positivo desse sitema de valor se
estabelece aquele no qual o caraacuteter intermediaacuterio se situa essencial para os propoacutesitos liacutericos
e traacutegicos de Oviacutedio
Consequentemente o sistema de valor que se impotildee ao menos ao episoacutedio da disputa
das armas deve levar em consideraccedilatildeo para o objetivo semacircntico da obra um esquema duplo
um sistema mais evidente e presente em toda a obra em que se valoriza a profundidade
humana dos personagens em detrimento de uma grandeza heroica e outro mais discreto e
mais restrito ao episoacutedio estudado em que se valoriza mais a valentia guerreira de Aacutejax em
detrimento de uma aparente eloquecircncia dolosa A compreensatildeo do episoacutedio parece residir
nesse duplo sistema complexo atraveacutes do qual noacutes apontaremos e mensuraremos as praacuteticas
transtextuais utilizadas por Oviacutedio
Como dissemos tais questotildees seratildeo consideradas do ponto de vista da caracterizaccedilatildeo
do heroacutei e por isso recorreremos agravequela divisatildeo dupla das noccedilotildees de virtude e de ira
desenvolvidas no episoacutedio Comecemos pelas transtextualidades que figuram a concepccedilatildeo de
virtude do heroacutei
3 2 1 A virtude transtextual do heroacutei
Nesta seccedilatildeo retomaremos o conjunto de ideias que tratam do heroacutei em relaccedilatildeo agrave
virtude defensiva agrave empaacutefia que se desdobra de um excesso de confianccedila de Aacutejax nessa
excelecircncia guerreira e por fim agrave oposiccedilatildeo entre accedilatildeo e palavra ndash sobretudo quanto agrave questatildeo
de confronto entre ato visto e ato sorrateiro Tentaremos pontuar os tipos de
transtextualidades presentes na composiccedilatildeo dos elementos da virtude do personagem
ressaltando as noccedilotildees significativas de suas transformaccedilotildees diante do texto de Oviacutedio
Iniciemos pelo valor defensivo de sua excelecircncia guerreira
A primeira questatildeo relevante para isso eacute o epiacuteteto do heroacutei Oviacutedio nomeia o heroacutei
ldquosenhor do escudo de sete dobrasrdquo (clipei dominus septemplicis v 2) Com efeito esse autor
latino transpotildee para a sua obra um dos elementos caracteriacutesticos do Telamocircnio dentro da
Iliacuteada o seu escudo Nessa obra de Homero aleacutem de o escudo ter a forma de uma torre
170
(σάκος ἠύτε πύργον VII v 219 XI v 485 XVII v 128) ele eacute feito de sete camadas de
couro (σάκος ἑπταβόειον VII v 222 XI v 545) Essa constituiccedilatildeo singular compotildee a
imagem de um heroacutei que a priori se sobressai em sua funccedilatildeo protetora e defensiva segundo o
que pudemos observar ainda no primeiro capiacutetulo (cf p 20) Na passagem em questatildeo haacute ao
menos dois tipos significativos de transtextualidade do poeta latino em relaccedilatildeo a Homero
O primeiro tipo corresponde a uma intertextualidade no sentido estrito mencionado
por Genette Esse tipo marca a presenccedila efetiva de um texto em outro e no caso em questatildeo
trata-se da composiccedilatildeo do escudo do heroacutei Acreditamos haver certa referecircncia literal nessa
intertextualidade em um sentido mais abragente a qual possamos nomear de plaacutegio ou seja
um empreacutestimo natildeo declarado mas aparente Certamente para os dias de hoje a referecircncia
literal seria impossiacutevel quando tratamos de obras de liacutenguas diferentes contudo ainda sim eacute
possiacutevel aproximar leacutexicos No entanto natildeo podemos mensurar como e o quanto essa
aproximaccedilatildeo lexical seria concebida na praacutetica de traduccedilatildeo dentro do contexto histoacuterico do
Seacuteculo de Augusto Efetivamente a referecircncia estritamente literal natildeo eacute o que Oviacutedio faz
pois apesar de retomar vocaacutebulos expressivos dessa caracterizaccedilatildeo do personagem haacute ainda
algumas modificaccedilotildees O sintagma por exemplo clipei dominus teria sido proveniente do
sintagma ldquoportador de escudordquo (φέρων σάκος Iliacuteada VII v 219 XI v 485 XVII v 128)
Tambeacutem eacute essa a origem do termo usado por Soacutefocles em sua obra σακεσφόρῳ (Aias v 19)
Contudo o nuacutecleo do termo latino eacute um substantivo e o do texto de Homero eacute um particiacutepio
presente Natildeo sabemos ateacute onde seria possiacutevel para Oviacutedio por exemplo o uso do verbo
latino fero ndash de mesma origem que o grego ndash segundo o modelo do seu hipotexto ou seja a
utilizaccedilatildeo tambeacutem de um particiacutepio presente Aleacutem disso reconhecemos que as noccedilotildees
semacircnticas do termo dominus em especial no contexto romano parecem ir aleacutem do
correspondente hipotextual grego no sentido de que se agregam outros e novos significados
para o hipertexto No mesmo caminho parece se apresentar o termo septemplicis em relaccedilatildeo
ao ldquode sete peles de boirdquo (ἑπταβόειον VII v 222 XI v 545) O primeiro termo latino
forma-se a partir do numeral e do verbo plico cujo significado eacute ldquodobrarrdquo O segundo o
grego eacute composto a partir do numeral e do substantivo βοῦς que significa ldquoboirdquo Por sentidos
estritos diferentes ambos convergem para o mesmo sentido geral a constituiccedilatildeo do escudo
Por estarmos inseridos em um contexto histoacuterico diferente do de Oviacutedio para o qual poderia
haver uma intertextualidade literal e pelos motivos citados acima noacutes preferimos nomear
essa intertextualidade de plaacutegio tomando as premissas de Genette de forma mais abrangente
e dentro dos propoacutesitos em particular das noccedilotildees de traduccedilatildeo contemporacircnea Dessa forma
essa relaccedilatildeo transtextual recupera de certa forma uma estrutura linguiacutestica grega ndash pois haacute
171
uma semelhanccedila entre os sintagmas latino e grego ndash e sobretudo a partir dela permite-se a
compreensatildeo plena da passagem do Livro XIII uma vez que esta necessita das inferecircncias
oriundas de uma leitura da epopeia homeacuterica sobretudo acerca do papel essencial do
Telamocircnio na defesa dos gregos
O segundo tipo corresponde a uma hipertextualidade no sentido de transformaccedilatildeo
complexa e indireta ou seja de imitaccedilatildeo que trata da retomada de um estilo e dos motivos
temaacuteticos que ele envolve Assim Oviacutedio retoma um uso homeacuterico particular dos epiacutetetos
aleacutem da forma comum vista em todo o gecircnero eacutepico pois a referecircncia ao texto grego eacute
elaborada no texto latino na forma de um epiacuteteto que precede um discurso direto enquanto na
Iliacuteada tal composiccedilatildeo material das armas do heroacutei Aacutejax natildeo eacute disposta sequer como epiacuteteto
Na epopeia homeacuterica por exemplo as formas epiteacuteticas atribuiacutedas a Aacutejax recaem
particularmente sobre o sintagma muralha dos Aqueus ou portador do escudo em forma de
torre Com efeito aleacutem de caracterizar o personagem pelo seu escudo o epiacuteteto latino tal qual
o modelo homeacuterico antecipa o discurso direto do personagem segundo as observaccedilotildees de
Rocha Pereira (1984 p 3-5) como jaacute contemplamos em capiacutetulos anteriores adequando-se
ao contexto da cena e contribuindo para a melhor caracterizaccedilatildeo do momento bem como do
Telamocircnio
Dessa forma o caraacuteter intertextual do epiacuteteto usado por Oviacutedio gera inferecircncias ao
texto homeacuterico que ressaltam no heroacutei uma valorizaccedilatildeo Essa referecircncia retoma os episoacutedios
nos quais Aacutejax se sobressaiu na Iliacuteada em especial figurando-se o escudo como um
componente essencial de sua imagem e aparecircncia guerreira Essa valorizaccedilatildeo eacute ainda dupla
pois por um lado confere virtudes ao personagem que se contrabalanccedilam com viacutecios como
veremos ser o caso da soberba inserindo-o positivamente no esquema de valor presente no
sistema axioloacutegico mais abrangente da obra e por outro infere atributos guerreiros positivos
para o esquema mais restrito do sistema
A transformaccedilatildeo hipertextual promovida pelo epiacuteteto conduz o discurso do
personagem a argumentos fundamentados na excelecircncia beacutelica em especial a um atributo
mais defensivo dessa virtude guerreira Eacute dessa forma que noacutes contemplamos a imitaccedilatildeo de
Oviacutedio em relaccedilatildeo a Homero Isso diz respeito ao uso especiacutefico do epiacuteteto com os propoacutesitos
antecipatoacuterios do conteuacutedo que lhe eacute posterior Esse emprego peculiar enfatiza um dos
argumentos mais importantes na proacutepria defesa e louvor do heroacutei pois o personagem em
questatildeo restringiraacute sobretudo suas faccedilanhas beacutelicas ao caraacuteter protetor no qual o escudo teraacute
uma grande participaccedilatildeo sendo inclusive apontado como prova maacutexima de suas palavras
uma vez que tal arma revela o seu desgaste pela proacutepria condiccedilatildeo em que se encontra
172
Certamente a referecircncia intertextual e a hipertextual estabelecidas pelo epiacuteteto
promovem uma ressignificaccedilatildeo da virtude do Telamocircnio dentro do eixo semacircntico do
episoacutedio Pois eacute especialmente atraveacutes da imagem simboacutelica do escudo e das accedilotildees nas quais
tal arma tem participaccedilatildeo que se salienta a capacidade de resistecircncia e de contenccedilatildeo ndash militar
ou emocional ndash essencial para a composiccedilatildeo traacutegica do desfecho da cena Claramente essas
relaccedilotildees transtextuais tecircm como hipotexto a Iliacuteada e natildeo ainda ao nosso ver a trageacutedia de
Soacutefocles
Contudo parece-nos que esse procedimento especiacutefico de Oviacutedio se assemelha ao
realizado por Soacutefocles mas para fins diferentes Como vimos no capiacutetulo anterior (cf p 76-
77) o tragedioacutegrafo grego utiliza duas vezes essa mesma caracterizaccedilatildeo que tem como base a
referecircncia ao escudo singular do personagem A primeira no proacutelogo na forma de um epiacuteteto
ldquoo portador de escudordquo (τῷ σακεσφόρῳ v 19) A segunda no primeiro episoacutedio descrevendo
a constituiccedilatildeo particular dessa arma ldquoescudo de sete peles de boirdquo (ἑπτάβοιον [] σάκος v
576) Essa composiccedilatildeo do escudo do heroacutei de vieacutes beacutelico na obra homeacuterica serve para o
procedimento de valorizaccedilatildeo na peccedila de Soacutefocles pois nesta trageacutedia essa arma simboliza
sobretudo a iacutendole arcaica e excessiva de Aacutejax Essa operaccedilatildeo eacute fundamental para o sistema
axioloacutegico de Aias pois transforma seu sentido Para a Iliacuteada essa caracterizaccedilatildeo valorizava
sua grandeza heroica mas para a peccedila em questatildeo a transformaccedilatildeo promovida pelo autor
impotildee que tal caracteriacutestica valorize seu caraacuteter intermediaacuterio Dessa forma natildeo eacute
impertinente ou invaacutelido reconhecer que Oviacutedio tenha utilizado uma transformaccedilatildeo
semelhante agrave de Soacutefocles ressignificando um traccedilo marcante do personagem para um novo
eixo semacircntico em especial porque faz tal operaccedilatildeo sobre o mesmo personagem e sobre a
mesma caracteriacutestica o escudo iacutempar do heroacutei Esse processo hipertextual em relaccedilatildeo a esses
dois autores aparenta ser entatildeo uma imitaccedilatildeo pois o poeta posterior usa o mesmo recurso de
forma tatildeo significativa para o seu episoacutedio quanto o do tragedioacutegrafo eacute para sua peccedila
sobretudo do ponto de vista simboacutelico Esse recurso do poeta grego se afigura validamente
como um traccedilo estiliacutestico o qual eacute retomado por Oviacutedio Este autor entatildeo amplifica tal estilo
no momento em que faz o epiacuteteto tambeacutem usado no hipotexto ser usado ainda ao modelo
homeacuterico ou seja como uma foacutermula que precede o discurso direto antecipando seu
conteuacutedo e dessa forma indo aleacutem de uma marca caracterizante da iacutendole do heroacutei
A segunda questatildeo ainda relevante para essa qualidade defensiva segue o mesmo
procedimento imitativo Ela corresponde a uma condensaccedilatildeo estabelecida por Oviacutedio ou seja
uma transformaccedilatildeo redutora de um texto matriz em um tipo de siacutentese autocircnoma mantendo-
se ainda uma significaccedilatildeo mais geral do hipotexto Essa referecircncia transtextual nos parece
173
estabelecer uma relaccedilatildeo tanto com a Iliacuteada quanto com a obra Aias mesmo que com esta seja
bem tecircnue como a observada acima mas de todo modo presente
A reduccedilatildeo que me refiro foi estudada por noacutes no capiacutetulo anterior (cf p 104-107) e
correspondem aos versos 7-8 e 73-94 do Livro XIII de Metamorfoses os quais retratam
eventos inseridos no Canto VII XI e XIII-XV da Iliacuteada quando respectivamente do
combate singular entre Aacutejax e Heitor do resgate de Odisseu e do combate junto agraves naus
Certamente em relaccedilatildeo agrave epopeia homeacuterica noacutes podemos tratar de uma condensaccedilatildeo
contudo ainda uma reduccedilatildeo restrita pois ela natildeo reduz toda a obra de Homero mas apenas os
episoacutedios significativos para a valorizaccedilatildeo do heroacutei em termos de sua virtude guerreira
sobretudo defensiva Logo o recorte redutor do autor latino eacute feito a partir de um propoacutesito
semacircntico por um lado ele ressalta os atos que mostram grande faccedilanhas do personagem e o
insere no eixo positivo dos valores do heroacutei ou seja no eixo da accedilatildeo e natildeo da palavra por
outro restringe e enfoca seu atributo como defensivo em particular de contenccedilatildeo aos ataques
dos troianos protegendo aliados e os navios gregos
Essa valorizaccedilatildeo restrita eacute evidente como bem jaacute pontuamos e por isso
significativamente o narrador reitera o verbo conter ou suster (sustineo) nos versos 8 e 88 e a
esse acrescenta outros dois tambeacutem expressivos para esse propoacutesito os verbos defender
(tego) e proteger (protego) respectivamente nos versos 75 e 93 Aleacutem disso o proacuteprio escudo
(clipeus) eacute referido duas vezes nessa condensaccedilatildeo nos versos 75 e 79 sobretudo sendo
utilizado na proteccedilatildeo do Laertida Esse elemento componente do epiacuteteto do heroacutei ainda eacute
mencionado em seu discurso duas vezes no verso 110 e mais significativamente no 118
quando eacute utilizado como uma espeacutecie de prova uma vez que o escudo usado pelo Telamocircnio
apresenta mil marcas de golpes enquanto o de seu contendor eacute iacutentegro assim evidencia-se
que o primeiro heroacutei combateu inuacutemeras vezes ndash sobretudo em accedilotildees defensivas ndash e eacute o
homem da accedilatildeo enquanto o segundo aparentemente natildeo utiliza o escudo e dessa forma eacute o
homem da palavra Todos esses indiacutecios textuais convergem para uma valorizaccedilatildeo especiacutefica
a virtude defensiva a qual foi possiacutevel atraveacutes de uma condensaccedilatildeo que se dispotildee como uma
transformaccedilatildeo quantitativa do tipo complexa ou seja como anteriormente explicamos ela
representa uma operaccedilatildeo que afeta natildeo apenas a extensatildeo mas o teor e o sentido do hipotexto
os quais satildeo alterados e ressignificados no hipertexto
Observamos no primeiro capiacutetulo que essa qualidade defensiva do Telamocircnio no
acircmbito da Iliacuteada era algo latente e preponderante devido agraves circunstacircncias proacuteprias da trama
da obra e entre essas acima de tudo a garantia de Zeus no avanccedilo dos troianos enquanto
Aquiles estaacute ausente na guerra o que impotildee muitas adversidades aos gregos para os quais a
174
sobrevivecircncia e a resistecircncia aos assaltos inimigos representam em si a uacutenica vitoacuteria possiacutevel
Mas esse atributo especiacutefico natildeo compunha unicamente ou majoritariamente as capacidades
beacutelicas do chefe de Salamina dentro da obra homeacuterica Em oposiccedilatildeo a isso o episoacutedio de
Oviacutedio modifica claramente esse conteuacutedo reduzindo-o e adequando a um objetivo semacircntico
diferente para o qual outras capacidades e habilidades guerreiras do heroacutei satildeo dispensaacuteveis e
suprimidas por isso natildeo figuram entre as palavras de nenhum dos contendores da disputa
Essa transformaccedilatildeo quantitativa complexa eacute a mesma realizada por Soacutefocles em sua
trageacutedia Aias Certamente esse tragedioacutegrafo a faz segundo outros objetivos semacircnticos
contudo isso parece sugerir alguma influecircncia na transformaccedilatildeo desenvolvida pelo autor
latino em sua obra Vejamos
Na peccedila haacute uma condensaccedilatildeo extremamente proacutexima agrave realizada no Livro XIII de
Metamorfoses As palavras de Teucro em defesa do irmatildeo (v 1272-1287) conforme vimos
anteriormente (cf p 67-69) no ecircxodo sintetiza os mesmos episoacutedios com exceccedilatildeo do resgate
especiacutefico de Odisseu no lugar do qual o texto grego apresenta um coletivo Soacutefocles utiliza
os verbos conter (ἀπεῖρξεν v 1280) e resgatar (ἐρρύσατο v 1276) para se referir agrave defesa das
naus do combate com Heitor e do salvamento aos gregos de tal situaccedilatildeo adversa O verbo
ἀπείργω certamente ecoa em sustineo e ῥύομαι em tego e protego A coincidecircncia eacute maior
pois a peccedila evidencia o caraacuteter individual das proezas de Aacutejax (μοῦνος v 1276 μόνος v
1283) e assim tambeacutem faz Oviacutedio (unus v 87) que reforccedila essa individualidade por meio da
reiteraccedilatildeo do pronome da primeira pessoa do singular (ego v 8 85 87) usado no texto para
realccedilar que Aacutejax sozinho realizou tais accedilotildees
Com efeito tal condensaccedilatildeo do tragedioacutegrafo tem dois propoacutesitos adequados ao seu
propoacutesito semacircntico Primeiramente como vimos essa siacutentese serve para caracterizar Aacutejax
segundo uma autonomia do protagonista dentro da peccedila acentuando sua renitecircncia em se
submeter a outros e assim valorizando seu caraacuteter intermediaacuterio a partir de comportamento
arcaico e negativo na concepccedilatildeo da Atenas Claacutessica ou seja a partir de uma conduta
individual e excessiva em pretericcedilatildeo a uma coletiva e comedida Em segundo lugar tal siacutentese
atua nessa valorizaccedilatildeo do personagem pois contrabalanccedila aspectos negativos com accedilotildees
corajosas em prol de seus aliados o que eacute significativo para a reabilitaccedilatildeo do Telamocircnio na
segunda parte da peccedila
Jaacute para Oviacutedio essa transformaccedilatildeo repercute em dois objetivos distintos do autor
grego adequados a outras intenccedilotildees semacircnticas O primeiro para enfatizar uma qualidade de
resistecircncia e de contenccedilatildeo ndash militar ou emocional ndash do personagem O segundo para focar na
sua capacidade individual de exercer tal virtude em prol do coletivo bem proacuteximo ao que
175
vimos definir a uirtus romana Ambas servem para a valorizaccedilatildeo da virtude do heroacutei
sobretudo em relaccedilatildeo ao esquema axioloacutegico que opotildee accedilatildeo e palavra Contudo tambeacutem se
prepara a expectativa que seraacute rompida a partir de outro elemento a ira que sozinha e
incontida causa a ruiacutena do heroacutei o que consequentemente eacute uma valorizaccedilatildeo dentro do
caraacuteter intermediaacuterio do personagem
Em relaccedilatildeo agrave Iliacuteada como observamos ainda neste capiacutetulo (cf p 147-148) tanto a
obra de Soacutefocles quanto a de Oviacutedio apresentam uma condensaccedilatildeo ou seja uma siacutentese
desprovida dos detalhes presentes na epopeia homeacuterica Contudo essa transformaccedilatildeo eacute
complexa pois os autores fazem nessa operaccedilatildeo mais do que reduzir um conteuacutedo ou seja
mais do que promover uma alteraccedilatildeo quantitativa Esse procedimento serve acima de tudo
para uma modificaccedilatildeo de seu sentido adequando uma nova caracterizaccedilatildeo por restriccedilatildeo ou
acreacutescimo de atributos mais significativa para o novo eixo semacircntico de cada uma delas Por
isso e aleacutem disso tal recurso incide em um processo de transvalorizaccedilatildeo do personagem
fundamental para as obras em questatildeo
Validamente mais uma vez haacute uma semelhanccedila muito proacutexima entre os
procedimentos realizados pelos autores Os conteuacutedos homeacutericos referidos e condensados satildeo
praticamente os mesmos inclusive o teor linguiacutestico que os expressa em especial a saber os
verbos que enfocam os atos do personagem em defesa dos gregos bem como os adjetivos e
pronomes que ressaltam o caraacuteter individual de suas faccedilanhas beacutelicas Analisar essa reduccedilatildeo
em particular e a mensurar em relaccedilatildeo a Eacutesquilo e a Lesches eacute um trabalho como jaacute dissemos
bastante inoacutecuo sobretudo ao se considerar a complexidade hipertextual que atinge os
objetivos semacircnticos da obra Contudo podemos especular que um discurso de defesa como
tal aplicado ora a Teucro em Aias e ora a Aacutejax em Metamorfoses possa ter base nos
autores dessas obras ou talvez em outros Dessa forma parece-nos pertinente observar uma
relaccedilatildeo de transtextualidade entre condensaccedilatildeo de Oviacutedio quanto agrave de Soacutefocles pois a
semelhanccedila muito proacutexima nos induz a reconhecer algum tipo de influecircncia Podemos assim
situaacute-la em trecircs instacircncias
Uma primeira de procedimento intertextual na qual reconhecemos um certo
empreacutestimo natildeo declarado de uma passagem que tem como cerne uma mesma condensaccedilatildeo
de episoacutedios homeacutericos Uma segunda de natureza pragmaacutetica cuja relaccedilatildeo hipertextual eacute de
transmodalizaccedilatildeo mais precisamente de narrativizaccedilatildeo ou seja uma modificaccedilatildeo
intramodal pois o texto dramaacutetico condensado se torna narrativo Essa segunda instacircncia
repercute em uma terceira uma transformaccedilatildeo intermodal atraveacutes da qual Oviacutedio concentra
sua obra em um processo mimeacutetico extremamente majoritaacuterio dentro do episoacutedio da disputa
176
das armas O autor latino procede segundo transformaccedilotildees intermodais proacuteprias do modo
dramaacutetico em particular do teatro antigo no qual devido ao processo inerentemente
mimeacutetico natildeo haacute uma noccedilatildeo de perspectiva ou seja esse modo tem como ponto de vista
unicamente o do espectador Assim a maneira de alterar a accedilatildeo eacute atraveacutes da distribuiccedilatildeo dos
discursos uma vez que para o teatro antigo accedilatildeo eacute sobretudo discursar como jaacute pontuamos
Dessa forma devido agrave mimesis extrema do episoacutedio de Oviacutedio a alteraccedilatildeo intermodal parece
ser privilegiar Aacutejax com o discurso de Teucro presente na obra de Soacutefocles e assim
transformar a accedilatildeo por meio da redistribuiccedilatildeo da fala dos personagens Essa modificaccedilatildeo eacute
consequecircncia da transformaccedilatildeo intramodal acompanhada de outras transformaccedilotildees
quantitativas que concentram o episoacutedio na disputa por um lado elidindo e retirando
personagens e eventos relacionados ao mito de Aacutejax mas por outro aumentando o debate em
uma operaccedilatildeo de ampliaccedilatildeo Acreditamos que essas trecircs possibilidades transtextuais sejam
pertinentes e vaacutelidas uma vez que as iacutenumeras semelhanccedilas entre as condensaccedilotildees dispostas
pelos dois autores estatildeo sem duacutevida aleacutem da mera coincidecircncia Dessa forma mais uma vez
nos parece que Oviacutedio tambeacutem opera por imitaccedilatildeo retomando o estilo do tragedioacutegrafo mas
com outra intenccedilatildeo semacircntica pois sua condensaccedilatildeo tem propoacutesitos diferentes
Vejamos agora a empaacutefia uma caracteriacutestica essencial de Aacutejax no episoacutedio de
Oviacutedio a qual se relaciona diretamente com a virtude guerreira porque desta se desdobra a
soberba a partir de um excesso de confianccedila do personagem Essa caracterizaccedilatildeo nos parece
receber a mais visiacutevel e relevente transformaccedilatildeo do autor latino em relaccedilatildeo ao tragedioacutegrafo
grego pois evidencia diretamente a influecircncia de Soacutefocles por meio de uma caracterizaccedilatildeo de
destaque no episoacutesio da metamorfose do heroacutei em questatildeo
De acordo com o que jaacute vimos ainda neste capiacutetulo (cf p 148-149) Soacutefocles teria
ampliado motivaccedilotildees das obras de Homero e Lesches Assim o impulso em realizar o
suiciacutedio teria como base a desonra quanto ao natildeo recebimento das armas de Aquiles ndash cuja
origem eacute a Odisseia ndash e o ultraje da carnificina aos animais quando do episoacutedio da loucura ndash
cuja origem eacute a Pequena Iliada provavelmente ndash ambos filtrados por uma caracteriacutestica
latente de Aacutejax nas epopeias homeacutericas um orgulho guerreiro mais extremo Na trageacutedia
Aias essas motivaccedilotildees satildeo aumentadas ganhando grande significaccedilatildeo dentro da peccedila e
fazendo decorrer disso uma caracterizaccedilatildeo reiterada do heroacutei a superestimaccedilatildeo de seu valor
que o torna extremamente arrogante a ponto de se achar superior aos deuses
Com efeito essa empaacutefia sofocliana do protagonista da peccedila eacute retomada na versatildeo de
Oviacutedio aos moldes do tragedioacutegrafo Acreditamos que esse orgulho eacute inclusive aumentado no
autor latino Obviamente tal comparaccedilatildeo natildeo deve ser vista de forma absoluta pois o Aacutejax
177
ovidiano natildeo revela excesso contra os deuses Contudo devemos reconhecer um confronto
desse traccedilo em termos proporcionais Isso significa observar o papel dessa soberba na
estrutura de cada uma das obras para que se possa compreender o grau desse aumento Trecircs
transformaccedilotildees satildeo essenciais para esse entendimento
A primeira eacute uma operaccedilatildeo quantitativa a excisatildeo ou seja a remoccedilatildeo massiva de um
episoacutedio presente no hipotexto Como eacute bem visiacutevel ao texto latino em questatildeo todo o
episoacutedio que envolve a loucura do Telamocircnio eacute removido Natildeo figura a intervenccedilatildeo da deusa
nas accedilotildees do chefe de Salamina em relaccedilatildeo a qualquer tipo de furor insano do personagem
ou ao ataque desse heroacutei ao rebanho grego Nada disso eacute mencionado ou sugerido no texto
que de alguma maneira influencie na composiccedilatildeo de sua trama Contudo haacute ao menos uma
alusatildeo significativa agrave deusa Atena uma vez que ao fim de seu discurso Ulisses aponta para
estaacutetua da deusa (Mineruae v 381) insinuando-se assim pelo menos uma intervenccedilatildeo mas
no julgamento das armas o que alinha esse episoacutedio com a tradiccedilatildeo arcaica Com efeito no
Livro XIII o suiciacutedio segue diretamente ao resultado da disputa pelas armas do Pelida
A segunda operaccedilatildeo decorre em funccedilatildeo dessa excisatildeo Essa segunda eacute uma
transformaccedilatildeo pragmaacutetica a desmotivaccedilatildeo Certamente a remoccedilatildeo de um episoacutedio pode
repercutir no eixo semacircntico como eacute comum no caso do tipo complexo jaacute explicado por noacutes
Poreacutem essa supressatildeo atinge um dos motivos pelos quais Aacutejax eacute levado ao suiciacutedio Essa
consequecircncia em si logo trata-se de um outro procedimento o qual corresponde agrave supressatildeo
ou minimizaccedilatildeo de uma motivaccedilatildeo Na obra de Soacutefocles a desonra causada pelo resultado da
disputa das armas e o ultraje causado pela carnificina dos animais tecircm igual peso nas
motivaccedilotildees do protagonista apesar de reconhecermos o foco maior na loucura em relaccedilatildeo a
esse autor Certamente ambos satildeo fundamentais na estrutura da peccedila Dessa forma ao
escolher suprimir de sua versatildeo o segundo episoacutedio Oviacutedio transforma significativamente
seus elementos por um lado revalidando a vertente homeacuterica e por outro promovendo algo
aparentemente novo ao mito em questatildeo
Como eacute bem natural o procedimento de desmotivaccedilatildeo fomenta a necessidade de outro
de motivaccedilatildeo a terceira transformaccedilatildeo que indicamos seja ou pela inclusatildeo de um motivo
novo ou pela ampliaccedilatildeo de um ainda presente no hipotexto Isso parece ocorrer em
Metamorfoses em relaccedilatildeo ao episoacutedio em questatildeo A retirada da loucura e da sua decorrente
carnificina promove na estrutura do Livro XIII o aumento expressivo do valor da desonra
quanto agrave questatildeo das armas de Aquiles ou seja uma amplificaccedilatildeo dessa motivaccedilatildeo pois se
torna no eixo semacircntico do hipertexto o uacutenico impulso que move o heroacutei a se matar
178
Todos os motivos parecem se reduzir a esse que eacute o mais significativo para a obra
latina Assim reforccedila-se a vertente homeacuterica da origem da funesta morte do heroacutei Contudo
haacute algo de novo nessa operaccedilatildeo natildeo sugerida em Homero e natildeo presente em Soacutefocles Essa
motivaccedilatildeo da desonra pelas armas eacute aumentada uma vez que em Oviacutedio ela figura antes
mesmo de se deliberar um resultado pois ela pode ser observada jaacute durante o proacuteprio discurso
do heroacutei Em Homero a desonra estaacute sugerida no Canto XI da Odisseia ao identificarmos a
causa da morte do heroacutei na disputa contudo poucas satildeo as informaccedilotildees sobre como decorre
pois haacute apenas uma alusatildeo ao evento
Em Soacutefocles que desenvolve tal episoacutedio podemos inferir que o sentimento de
desonra que inclusive impulsiona a ira do personagem como veremos na seccedilatildeo seguinte
parece se desenvolver significativamente apoacutes o resultado deliberado pelos chefes gregos
Isso eacute depreendido da fala de Odisseu (cf pg 64) na qual assim diz ldquopois tambeacutem para mim
era este [Aacutejax] o maior inimigo da tropa desde que a ele sobressaiacute por causa das armas de
Aquilesrdquo (Κἀμοὶ γὰρ ἦν ποθ οὗτος ἔχθιστος στρατοῦ ἐξ οὗ κράτησα τῶν ᾿Αχιλλείων
ὅπλων v 1336-1337) Essa hostilidade cuja origem eacute a desonra evidencia uma motivaccedilatildeo
que se instaura acima de tudo a partir resultado da disputa apesar de Aacutejax posteriormente
ainda evidenciar tambeacutem a decisatildeo por votos e o contexto em que essa deliberaccedilatildeo se
estabelece como sendo fatores odiados por ele Certamente essa desonra como motivo ou
impulso significativo em particular da hostilidade do protagonista desenvolve-se
posteriormente ao debate e ao seu resultado Assim parece-nos estrutura-se tal motivaccedilatildeo
dentro do eixo semacircntico de Aias
No caso do episoacutedio de Oviacutedio noacutes podemos observar claramente essa desonra do
heroacutei sendo inferida em suas palavras ainda proferidas durante o discurso Na versatildeo latina
para Aacutejax o proacuteprio ato de Ulisses reclamar e disputar as armas jaacute confere uma desonra agraves
armas (demit honorem v 16) e ao Telamocircnio uma vez que este mesmo revela jaacute natildeo ser
orgulhoso portar algo que o seu opositor reclamou (Aiaci non est tenuisse superbum []
quicquid sperauit Vlisses v 16-17) Apesar de natildeo seguir estritamente o que Genette pontuou
como transmotivaccedilatildeo ou seja a supressatildeo completa de um motivo e a inclusatildeo de um novo
podemos perceber claramente as transformaccedilotildees promovidas por Oviacutedio em relaccedilatildeo a
Soacutefocles por meio de uma operaccedilatildeo de desmotivaccedilatildeo como remoccedilatildeo massiva do ultraje
proveniente da excisatildeo do episoacutedio da loucura e de suas consequecircncias e tambeacutem de uma
motivaccedilatildeo do tipo aumentada uma vez que a desonra oriunda da questatildeo que envolve as
armas de Aquiles eacute expandida para antes do resultado do debate ou seja para a contenda em
si aparentemente se configurando uma inovaccedilatildeo para o mito em questatildeo Isso explica por que
179
o episoacutedio se concentra no lado discursivo e retoacuterico do episoacutedio pois a contenda eacute suficiente
para justificar as causas que movem o personagem ao suiciacutedio
Certamente essa cadeia de transformaccedilotildees transtextuais tem efeito direto na
caracterizaccedilatildeo do Telamocircnio pois atraveacutes dela podemos reconhecer o papel significativo de
sua empaacutefia e de sua soberba na composiccedilatildeo da trama do episoacutedio Esse traccedilo eacute
marcadamente referido como uma extrema confianccedila em determinado valor que se deteacutem
(fiducia laudis XII v 625) sugerida pelo proacuteprio narrador externo correspondendo no
hipertexto ao nosso ver agrave superestima de uma excelecircncia guerreira a qual se sobressai a
quaisquer outros valores e que toca a dignidade e a honra de um heroacutei Ilustrada na soberba
do heroacutei essa sobrevalorizaccedilatildeo da honra como elemento fundamental na estrutura da obra
instrumentalizada por meio da caracterizaccedilatildeo de Aacutejax foi como dissemos e acreditamos
desenvolvida de forma significativa e a priori inovadora por Soacutefocles em sua peccedila E por
ser uma caracteriacutestica extremamente relevante e essencial tambeacutem no acircmbito do episoacutedio de
Oviacutedio ou seja na estruturaccedilatildeo das motivaccedilotildees da trama parece-nos que essa empaacutefia sela
uma relaccedilatildeo de transtextualidade mais proacutepria entre esses dois autores
Com efeito esse traccedilo na iacutendole do personagem sofocliano e ovidiano representa a
transformaccedilatildeo psicoloacutegica que permite para o primeiro autor dispor a perspectiva de desonra
e ultraje aos episoacutedios da disputa e da loucura e para o segundo a de desonra em relaccedilatildeo agrave
contenda pelas armas de Aquiles Dessa forma quando comparamos a empaacutefia nas duas obras
e acreditamos esta ser aumentada na versatildeo latina entendemos que essa caracterizaccedilatildeo foi
instrumentalizada por meio de um episoacutedio diferente do tragedioacutegrafo que apesar de centrar-
se na loucura ela foi desenvolvida por meio de duas motivaccedilotildees que correspondem a dois
episoacutedios Logo a soberba que fundamenta os impulsos do heroacutei na versatildeo latina segundo
uma noccedilatildeo de causalidade movendo-o ao suiciacutedio em termos proporcionais parece maior
pois sendo estendida ao debate o resultado inesperado da derrota para Aacutejax eacute suficiente
para a sua morte Assim a empaacutefia da peccedila do tragedioacutegrafo necessita de dois motivos
significativos e a do autor latino precisa de apenas um para mover seu heroacutei ao suiciacutedio
Aleacutem disso tal operaccedilatildeo psicoloacutegica em ambos os poetas tambeacutem serve para a valorizaccedilatildeo
do caraacuteter intermediaacuterio do personagem contrabalanccedilando virtudes e viacutecios
Prossigamos por fim com a anaacutelise de possiacuteveis referecircncias do texto latino ao grego
em relaccedilatildeo agrave oposiccedilatildeo entre accedilatildeo e palavra na qual em especial o Telamocircnio valoriza
sobretudo accedilotildees beacutelicas que podem ser vistas e testemunhadas Essa oposiccedilatildeo eacute sobretudo
relevante pois fundamenta os valores de Aacutejax manifestando-se o que ele estima e o que
despreza essenciais para compreendermos a sua perspectiva que dispotildee a si como melhor e o
180
adversaacuterio como pior Ademais essa oposiccedilatildeo distingue uma importante relaccedilatildeo transtextual
que na nossa compreensatildeo permite uma nova leitura do hipotexto de alguma forma o
influenciando
Na disputa representada pela versatildeo latina o Telamocircnio tenta desqualificar seu
opositor por meio de algumas oposiccedilotildees A primeira mais importante eacute se mostrar o homem
da accedilatildeo cuja valentia prepondera a astuacutecia do homem da palavra Dessa forma apresenta-se
um Ulisses cuja inteligecircncia serve para a mentira e natildeo para a verdade A segunda mais
acessoacuteria sabendo-se das accedilotildees importantes do Laertida na guerra eacute desvalorizar tais accedilotildees
Para isso o chefe de Salamina apresenta a oposiccedilatildeo em accedilatildeo testemunhada e accedilatildeo sorrateira
na qual esse heroacutei liga suas proezas agravequela e as de seu opositor agrave esta Como pudemos ver na
anaacutelise do capiacutetulo anterior (cf p 115-118) vaacuterios satildeo os indiacutecios textuais do discurso do
heroacutei os quais apontam accedilotildees furtivas (clam v 103) noturnas (luce nihil v 100) tramadas
(furtis [] decipit v 104) e natildeo testemunhadas (sine teste v 15) como executadas por
homem covarde (timidissime v 115) que altera a natureza desses atos atraveacutes da palavra
(narret v 14) ou seja tais accedilotildees tornam-se grandiosas atraveacutes de mentiras das palavras que
persuadem Certamente essa perspectiva adensa o sistema axioloacutegico do episoacutedio
fomentando um conflito de valores que intensifica a transvalorizaccedilatildeo realizada por Oviacutedio
Esse conflito delineia mais claramente a caracterizaccedilatildeo tanto de Aacutejax quanto de Ulisses e
partem de uma oposiccedilatildeo jaacute desenvolvida em Homero como vimos no estudo de Jaeger (cf p
17-19) contudo a difereccedila entre a accedilatildeo valente e a covarde sobretudo relacionadas agrave luz e agrave
escuridatildeo eacute particularmente essencial para a relaccedilatildeo transtextual que queremos estabelecer
Homero se refere pontualmente a esse comportamente do Telamocircnio (Iliacuteada XVII v
645-647) Nesse momento o personagem invoca a luz a Zeus para que se for morto tal fato
decorra visiacutevel a todos ou seja suceda de forma gloriosa segundo o seu ponto de vista Com
efeito isso eacute reforccedilado na trageacutedia Aias para que reconheccedilamos o excesso do heroacutei e a
loucura que o acomete fazendo-o agir segundo os valores por ele negados Por isso o coro e
Tecmessa identificam no personagem uma conduta incoerente com os seus princiacutepios
particularmente em relaccedilatildeo aos seus lamentosos e tambeacutem como noacutes entedemos aos seus
atos notunos e tramados pois assim ressaltamos anteriormente (cf p 92-93) Natildeo sabemos
precisar o quanto esse valor guerreiro disposto na relaccedilatildeo com a luz e com a accedilatildeo
testemunhada era evidente para agrave Antiguidade sobretudo nos periacuteodos arcaico e claacutessico
gregos e por isso talvez natildeo necessitasse de um realce mais intenso dessa disposiccedilatildeo em
uma obra literaacuteria Contudo mais de dois milecircnios apoacutes a encenaccedilatildeo da peccedila de Soacutefocles
precisamos natildeo apenas inferir mas comprovar como tentamos fazer no capiacutetulo anterior que
181
o fato de Aacutejax agir segundo uma iacutendole a qual natildeo parece ser a sua reforccedila a participaccedilatildeo da
deusa Atena na loucura do heroacutei a qual estaacute aleacutem do mero distuacuterbio visual Fato eacute que ao se
considerar tal entendimento reconhecemos uma relaccedilatildeo de transtextualidade de Soacutefocles em
relaccedilatildeo a Homero que se estabelece a partir de uma transvalorizaccedilatildeo na qual se identifica
um caraacuteter intermediaacuterio do personagem atraveacutes de sua virtude guerreira contrabalanccedilada em
especial com o seu excesso tanto o natural ndash a soberba ndash quanto o mediado pela divindade ndash
a carnificina noturna
A partir do que foi exposto podemos entender como Oviacutedio influencia a obra de seu
antecessor grego Com efeito a ecircnfase do autor latino torna essa disposiccedilatildeo da virtude
guerreira ligada agrave luz e agrave accedilatildeo testemunhada muito mais evidente e viva na memoacuteria de
maneira que o seu procedimento de transvalorizaccedilatildeo em especial quanto a esse elemento
reforccedila a transvalorizaccedilatildeo da obra de Soacutefocles ressignificando e tornando mais evidente a
loucura que reverte os princiacutepios do protagonista a qual o impulsiona a agir de forma
contraacuteria agrave sua iacutendole Tal observaccedilatildeo eacute vaacutelida e pertinente ao menos para os leitores de hoje
cuja compreensatildeo transtextual desses mitos se daacute apenas pela leitura das obras literaacuterias uma
vez que os mitos greco-latinos em seu aspecto cultural e antropoloacutegico natildeo satildeo presentes
como eram para os povos latinos e gregos da Antiguidade Claacutessica
Com efeito devemos saber distinguir o que eacute um hipotexto e ateacute onde age sua
influecircncia em um determinado hipertexto Logo reconhecemos que o episoacutedio de Oviacutedio
retrata a valoraccedilatildeo especiacutefica a um determinado tipo de accedilatildeo beacutelica em um contexto
semacircntico no qual Aacutejax desvaloriza a do tipo sorrateira e noturna com o intuito de desprezar
a astuacutecia de Ulisses bem como Virgiacutelio jaacute fizera no Livro VI da Eneida Enquanto em
Metamorfoses essa valoraccedilatildeo especiacutefica serve para fundamentar o conflito de valores do
episoacutedio o qual tende aparentemente a valorizar a perspectiva do Telamocircnio em detrimento
daquela do Laertida em Aias ela serve como reforccedilo agrave loucura do protagonista a qual
fundamenta o excesso em um dos eixos negativos do sistema axioloacutegico da peccedila valorizando
Odisseu por meio de sua temperanccedila e moderaccedilatildeo em pretericcedilatildeo a Aacutejax pela sua natureza
desmedida Assim a transvalorizaccedilatildeo de Oviacutedio tambeacutem se faz em relaccedilatildeo ao tragedioacutegrafo
pela reversatildeo de um dos sistemas de valores no qual os contendores dos debates trocam de
lugar nos eixos positivos e negativos nos esquemas axioloacutegicos de cada uma dessas duas
obras segundo o que dispomos anteriormente (cf p 154) Eacute uma reversatildeo no sistema de valor
do hipotexto pelo qual Oviacutedio em seu hipertexto valoriza quem era desvalorizado e
desvaloriza aquele que era valorizado
182
Contrariamente agrave essa relaccedilatildeo de transtextualidade na qual um texto anterior sempre
influencia um texto posterior devemos reconhecer quando o inverso eacute possiacutevel obviamente
que natildeo do ponto de vista da elaboraccedilatildeo da obra mas do de sua recepccedilatildeo ou seja da
participaccedilatildeo do leitor na construccedilatildeo do sentido de um texto Assim quanto agrave esta uacuteltima
parece-nos que o tratamento do episoacutedio do Oviacutedio acerca do mito de Aacutejax influencia
efetivamente na leitura da peccedila de Soacutefocles intensificando o entendimento da loucura que
acomete o heroacutei Isso fica mais claro se lermos as obras que envolvem a histoacuteria desse heroacutei
segundo uma ordem cronoloacutegica dos episoacutedios miacuteticos e natildeo segundo uma de produccedilatildeo das
obras Ao dispormos essa sequecircncia de leitura teriacuteamos essa ordem por exemplo Iliacuteada
Odisseia Livro XII de Metamorfoses e Aias Certamente esta peccedila seraacute ressignificada pela
leitura do texto de Oviacutedio no sentido de que a accedilatildeo noturna e sorrateira de Aacutejax pareceraacute mais
visivelmente incoerente com sua natural iacutendole mas ainda necessaacuteria e verossiacutemil dentro da
trageacutedia devido agraves circunstacircncias nas quais as accedilotildees do heroacutei estatildeo inseridas
Diante de todas essas consideraccedilotildees podemos contemplar o papel dessas operaccedilotildees na
caracterizaccedilatildeo do heroacutei na obra de Oviacutedio quanto agrave sua virtude e os elementos que disso
decorrem Certamente por um lado essas relaccedilotildees de transtextualidade apontam para o
diaacutelogo natural e reconhecido entre os poetas latinos e gregos e a longa tradiccedilatildeo que os
precede e por outro esses processos transformadores sejam pragmaacuteticos quantitativos ou
modais em questatildeo ressaltam a complexidade e a profundidade do diaacutelogo promovido entre
tais autores o que representa um componente fundamental da qualidade literaacuteria dos textos da
Antiguidade Foi-nos possiacutevel entender tanto a forccedila exercida pela obra de Soacutefocles no texto
latino quanto tambeacutem a presenccedila de Homero como texto matriz absoluto sobretudo acerca
da caracterizaccedilatildeo dos personagens
Prossigamos entatildeo com a anaacutelise das operaccedilotildees transtextuais presentes na
caracterizaccedilatildeo da ira do heroacutei na versatildeo latina do episoacutedio
3 2 2 A ira transtextual do heroacutei
Nesta seccedilatildeo discorreremos segundo o modelo da seccedilatildeo anterior as relaccedilotildees
transtextuais significativas realizadas por Oviacutedio na caracterizaccedilatildeo de Aacutejax em relaccedilatildeo agrave
noccedilatildeo de ira em especial ressaltando-se como tais operaccedilotildees contribuem para a intenccedilatildeo
semacircntica da obra em questatildeo Veremos as relaccedilotildees de transtextualidade que configuram
ampliam e ressaltam a ira do heroacutei de modo que esse sentimento parece por um lado maior
183
do que nas obras dos autores gregos Homero e Soacutefocles e por outro mais significativo
dentro da composiccedilatildeo estrutural e do propoacutesito semacircntico do episoacutedio do Livro XIII de
Metamorfoses
Primeiramente veremos como algumas mesmas transformaccedilotildees hipertextuais que
operam na caracterizaccedilatildeo da virtude e da desdobrada empaacutefia do personagem tambeacutem atuam
na configuraccedilatildeo de sua ira Com efeito em termos de relaccedilotildees hipertextuais essas nos
parecem as transformaccedilotildees mais significativas para a ressignificaccedilatildeo dos episoacutedios que
compotildeem o mito de Aacutejax configurando-se uma nova relaccedilatildeo do heroacutei com tal sentimento Em
seguida disporemos as operaccedilotildees que envolvem a ira ressaltando-a em seu papel estrutural
no episoacutedio sobretudo na retoacuterica do heroacutei de Salamina em seu propoacutesito de ferir o caraacuteter do
adversaacuterio Para este objetivo traremos as passagens cujos conteuacutedos apresentam uma
linhagem demeacuterita do Laertida e a descriccedilatildeo das armas de Aquiles que retrata em Ulisses a
ausecircncia do vigor especial para portaacute-las Esses trecircs exemplos de hipertextualidade satildeo
fundamentais na reiteraccedilatildeo de uma retoacuterica iracunda que potildee em destaque a recorrecircncia do
elemento a que nos dispomos estudar nesta seccedilatildeo Por fim tentaremos observar alguma
relaccedilatildeo transtextual no sintagma inpatiens irae pois sendo extremamente significativo dentro
do texto latino tal termo revela uma relaccedilatildeo mais discreta de base linguiacutestica no seu diaacutelogo
com o texto de Soacutefocles
Iniciemos entatildeo pelas transformaccedilotildees quantitativas e pragmaacuteticas estudadas na seccedilatildeo
anterior vinculadas agrave anaacutelise acerca da virtude mas que tambeacutem ressaltam a presenccedila e a
intensidade da ira do personagem em uma nova configuraccedilatildeo na versatildeo latina Vejamos
sobretudo aquelas que tratam da empaacutefia em especial a motivaccedilatildeo e a desmotivaccedilatildeo Estas
como vimos transformam a soberba de Aacutejax em um elemento diretamente ligado agrave noccedilatildeo de
virtude que caracteriza o personagem mas que tambeacutem estaacute vinculada agrave noccedilatildeo de ira que
delineia toda sua disposiccedilatildeo emocional e por isso satildeo operaccedilotildees fundamentais para o nosso
estudo
Validamente a ira que move o personagem se estabelece em proporccedilatildeo com a
superestima de seu proacuteprio valor diante da dos outros Logo quanto maior eacute a estima em sua
virtude maior seraacute a perspectiva de desonra quando da negaccedilatildeo dos seus meacuteritos os quais
satildeo cridos como superiores pelo Telamocircnio E quanto mais profunda a desonra mais intensa a
ira Jaacute evidenciada anteriormente essa relaccedilatildeo eacute basilar tanto para a compreensatildeo do texto de
Soacutefocles quanto para a de Oviacutedio A empaacutefia caracterizada na versatildeo de Oviacutedio como vimos
na seccedilatildeo anterior eacute maior proporcionalmente do que a de Soacutefocles Isso se observou
exatamente porque para o personagem da versatildeo deste autor satildeo necessaacuterios dois motivos para
184
o desenvolvimento de uma desonra profunda que desencadeia o suiciacutedio os quais se
desdobram de dois episoacutedios a disputa pelas armas e o ataque aos animais Na obra grega a
sua desonra apenas se inicia aparentemente apoacutes o resultado da disputa pelas armas de
Aquiles No entanto para o personagem do autor latino eacute necessaacuterio somente um dos eventos
a contenda o que apoacutes transformaccedilatildeo e ressignificaccedilatildeo torna a empaacutefia e a perspectiva de
uma desonra perceptiacuteveis jaacute durante a proacutepria disputa e natildeo apenas apoacutes o seu resultado Com
efeito ainda na versatildeo de Oviacutedio a decisatildeo final dos juiacutezes eacute responsaacutevel pelo agravamento
de uma ira que jaacute se mostra presente
Utilizando-se a terminologia teoacuterica de Genette isso significa que a excisatildeo do
episoacutedio do ataque aos animais e a decorrente desmotivaccedilatildeo do ultraje promovido por tal
episoacutedio ambas transformaccedilotildees realizadas por Oviacutedio desencadeiam uma motivaccedilatildeo do tipo
aumentada que repercute na caracterizaccedilatildeo do heroacutei em relaccedilatildeo agrave proacutepria disposiccedilatildeo da
contenda Dessa forma a desonra pela derrota na disputa presente tanto em Homero quanto
em Soacutefocles eacute a uacutenica motivaccedilatildeo restante na versatildeo latina dentre as duas usadas pelo
tragedioacutegrafo Sendo entatildeo aparentemente a uacutenica responsaacutevel por desencadear o suiciacutedio do
personagem ela necessitaraacute de transformaccedilatildeo e ressignificaccedilatildeo as quais consistem no seu
aumento e na sua ampliaccedilatildeo Devido a isso no episoacutedio do autor latino a desonra jaacute eacute
impulsionada pelo simples ato de o heroacutei se submeter a uma disputa contra Ulisses concebido
como iacutemprobo e inferior pelo seu adversaacuterio Na perpectiva orgulhosa do Telamocircnio disputar
algo com algueacutem visto como inferior significa efetivamente se sujeitar agrave desonra e ao
demeacuterito Essa transformaccedilatildeo sobretudo de base psicoloacutegica aleacutem de acentuar sua empaacutefia e
soberba como expomos observada tanto na fala do Telamocircnio (cf p 171) quanto na do
Laertida (cf p 112) impacta conjuntamente a ira do chefe de Salamina Se por um lado eacute
possiacutevel reconhecer a empaacutefia e a perspectiva de desonra em Aacutejax ambas jaacute presentes no
momento do discurso por outro a presenccedila e o aumento da ira dentro de uma nova
estruturaccedilatildeo na versatildeo do autor latino em relaccedilatildeo aos hipotextos em virtude dessa motivaccedilatildeo
eacute inquestionaacutevel
Essa disposiccedilatildeo emocional do personagem eacute por isso expressa nos primeiros versos
do Livro XIII atraveacutes do sintagma inpatiens irae qualificando um estado intenso do
personagem acima de tudo e singularmente jaacute anterior agrave disputa acompanhando
efetivamente a intensidade da sobrevalorizaccedilatildeo de sua excelecircncia guerreira Essa disposiccedilatildeo
nos parece singular para a obra de Oviacutedio Ou seja essas operaccedilotildees desenvolvidas por Oviacutedio
servem para proporcionalmente intensificar tanto a soberba do heroacutei quanto a sua ira
ressignificando-as de tal modo que Aacutejax natildeo consegue conter esta uacuteltima nem antes nem
185
durante a sua defesa e muito menos apoacutes o resultado concebido como improvaacutevel dentro de
sua perspectiva dos fatos Diante dessa nova configuraccedilatildeo composicional Oviacutedio adequa a ira
do personagem recorrente no mito grego ao episoacutedio de maneira que a presenccedila desse
sentimento tal como estaacute parece singular agrave obra latina em se considerando as informaccedilotildees
que dispomos atualmente Assim devido a essa motivaccedilatildeo ampliada a ira entatildeo torna-se
elemento fundamental nessa versatildeo da disputa pelas armas de Aquiles aleacutem de expressamente
nomeada pelo narrador externo no iniacutecio e no fim do episoacutedio
Essas transformaccedilotildees pragmaacuteticas de motivaccedilatildeo e de desmotivaccedilatildeo e quantitativas
de excisatildeo jaacute operam na ressignificaccedilatildeo da virtude do heroacutei restringindo-a e agora
pudemos observar como elas atuam no destaque desse sentimento de ira dentro do novo eixo
semacircntico do hipertexto para o qual tal elemento se torna imprescindiacutevel Certamente como
dissemos elas nos parecem as mais significativas para essa nova estruturaccedilatildeo do episoacutedio e
para a essencial ressignificaccedilatildeo da ira do heroacutei
As outras transformaccedilotildees as quais nos propomos a analisar satildeo mais importantes
sobretudo na reiteraccedilatildeo e no reforccedilo dessa nova configuraccedilatildeo semacircntica Mas para entendecirc-las
mais eficazmente eacute notaacutevel observar que o autor latino desenvolve de forma mais
abrangente o episoacutedio em questatildeo por meio de uma operaccedilatildeo de hipertextualidade quando
promove uma ampliaccedilatildeo de um episoacutedio ndash a disputa pelas armas ndash da Odisseia e de Cantos
Ciacuteprios ou de intertextualidade quando dialoga com o texto de Eacutesquilo e de Soacutefocles por
exemplo No entanto aleacutem de fazer de forma aparentemente inovadora quando estrutura o
seu episoacutedio no qual a ira entatildeo torna-se elemento fundamental e caracterizante do heroacutei o
autor estende tal sentimento por todo o discurso de Aacutejax em especial desenvolvendo-o
atraveacutes da recorrente hostilidade com que tal personagem delineia uma iacutendole inferior no
adversaacuterio em relaccedilatildeo aos seus proacuteprios meacuteritos Dessa forma inserida em um episoacutedio que
potildee a retoacuterica em foco tal ira conduz as palavras do personagem segundo o que muitos
estudiosos jaacute pontuaram sobre Oviacutedio de maneira que os elementos retoacutericos encontram fins
literaacuterios e nesse caso em especial aprofundando a caracterizaccedilatildeo do orador de Salamina
Certamente dentro dos recursos retoacutericos em especial nas espeacutecies (εἴδη) de
discursos do tipo laudatoacuterio (ἐγκωμιαστικόν Retoacuterica a Alexandre I 1421b 10-12) e
vituperioso (ψεκτικόν Ibidem I 1421b 10-12) que se coadunam em prol do mesmo fim eacute
possiacutevel especificamente na segunda espeacutecie ironizar e ridicularizar o outro (εἰρωνεύεσθαι καὶ
καταγελᾶν Ibidem XXXV 1441b 24-25) embora mesmo assim o texto afirme que ldquoeacute
necessaacuterio natildeo escarnecer daquele que vituperemosrdquo (δεῖ δὲ μὴ σκώπτειν ὃν ἂν κακολογῶμεν
186
Ibidem XXXV 1441b 15-16) ou que isso deve ser evitado ldquoa fim de natildeo caluniar o caraacuteterrdquo
do adversaacuterio (ἵνα μὴ διαβάλῃς τὸ ἦθος Ibidem 1441 21-22)
Contudo a unidade do episoacutedio de Oviacutedio parece apresentar tais elementos retoacutericos
singularmente Agrave figura mais excessiva Aacutejax o discurso vituperioso com propoacutesito realmente
de caluniar e ridicularizar eacute imposto pelo autor com mais presenccedila e visibilidade mas para agrave
figura mais moderada quando tal propoacutesito parece perceptiacutevel seu discurso utiliza tais
recursos de maneira mais velada Essa disposiccedilatildeo eacute sobretudo calculada e reconhecida por
Ulisses o qual expressamente ressalta sua moderaccedilatildeo e o excesso do oponente Isso pode ser
identificado sinteticamente em duas passagens ambas dispostas no discurso do chefe de Iacutetaca
A primeira eacute notaacutevel no qualitativo que descreve Aacutejax filho de Oileu nomeado em
comparaccedilatildeo ao Telamocircnio de ldquoAacutejax mais moderadordquo (moderatior Aiax XIII v 356) A
segunda ressalta a iacutendole do Laertida diante da de seu adversaacuterio uma vez que Ulisses natildeo soacute
reconhece as proezas executadas pelo Telamocircnio (confiteor v 270 XIII) como tambeacutem diz
natildeo ser proacuteprio dele depreciar de forma vil as faccedilanhas dos outros (neque enim benefacta
maligne detractare meum est v 270-271 XIII)
Essa unidade textual estrutura os recursos retoacutericos presentes nos discursos dos
personagens de modo a adequaacute-los natildeo segundo as premissas da Retoacuterica mas de acordo com
o propoacutesito semacircntico do texto o qual tem como base a ira do heroacutei de Salamina como o
elemento fundamental na oposiccedilatildeo entre excesso e moderaccedilatildeo Dessa forma aleacutem daquelas
transformaccedilotildees significativas mencionadas anteriormente as duas que agora noacutes analisaremos
delineiam e reforccedilam o caraacuteter iracundo do personagem em especial por estarem
aparentemente vinculadas a essa retoacuterica mais agressiva e hostil de Aacutejax cujo objetivo eacute
claramente depreciar o adversaacuterio
A primeira que disporemos trata da linhagem dita nefanda de Ulisses cuja origem
seria Siacutesifo apresentada por Aacutejax como prova fundamental da iacutendole de seu opositor Parece-
nos que a linhagem especifica retratada por Oviacutedio representa uma transtextualidade em
relaccedilatildeo a obra de Soacutefocles
Homero por exemplo embora tenha composto uma ascendecircncia de Ulisses a qual
remonta os artifiacutecios de sua inteligecircncia vinculou tal habilidade agrave descendecircncia de Autoacutelico
avocirc materno do heroacutei Tal ancestral eacute visto como ldquoaquele que sobrepujara os homens tanto no
roubo quanto no juramentordquo (ὅς ἀνθρώπους ἐκέκαστο κλεπτοσύνῃ θrsquo ὅρκῳ τε v 395-396
XIX Odisseia) E isso significa dizer que ele foi o melhor na praacutetica de roubar e de perjurar
com o intuito de enganar os outros Com efeito para o mundo arcaico de Homero tais accedilotildees
ainda satildeo observadas com relativa gloacuteria ou seja como um talento em especial se forem
187
dirigidas a inimigos e adversaacuterios Exatamente por esse motivo o verbo utilizado no verso eacute o
καίνυμαι o qual significa sobrepujar exceder etc Esse verbo ressalta a ideia de uma
habilidade superior as dos outros ou seja a ideia de que tal personagem tem a supremacia em
algumas facetas do uso da inteligecircncia por mais que posteriormente essa praacutetica seja vista de
forma negativa Como jaacute vimos sobretudo em relaccedilatildeo aos tragedioacutegrafos a partir do
desenvolver da cultura disposiccedilotildees de valor mais antigas se alteram adequando-se a novos
contextos e os conceitos de outrora acabam por se tornar inadequados
Virgiacutelio um caso importante sobretudo na desvalorizaccedilatildeo do heroiacute de Iacutetaca em
especial acerca da depreciaccedilatildeo de sua insigne inteligecircncia traz a ancestraliadade criminosa e
imeacuterita do personagem vinculada jaacute a Siacutesifo Isso se ressalta no Livro VI da Eneida quando
Ulisses eacute nomeado Eoacutelida estimulador de crimes (hortator scelerum Aeolides v 529) pela
sua inteligecircncia perversa e iacutempia sobretudo a partir da versatildeo que Deiacutefobo irmatildeo de Heitor
descreve acerca dos atos dos gregos contra os troianos A designaccedilatildeo de Eoacutelida se faz
exatamente porque Siacutesifo era filho de Eacuteolo o que torna Ulisses um descendente de Eacuteolo logo
Eoacutelida Na Eneida isso reforccedila a linhagem criminosa de Ulisses pela reiteraccedilatildeo de um
antepassado tambeacutem criminoso e iacutempio
Com efeito Aias de Soacutefocles eacute um texto relevante no estabelecimento dessa
genealogia impiedosa que tem Siacutesifo como personagem fulcral para essa inteligecircncia
digamos criminosa e tambeacutem hereditaacuteria Esta obra reforccedila repetidamente atraveacutes da
perspectiva de Aacutejax a vocaccedilatildeo e a desenvoltura do heroacutei de Iacutetaca acima de tudo na
persuarsatildeo e na mentira talentos jaacute descritos em Piacutendaro (cf p 161) De acordo com o coro
da peccedila Ulisses persuade (πείθει v 150) e tambeacutem conjuntamente com os Atridas ainda
segundo os nautas e guerreiros sob o comando do Telamocircnio engana com narrativas
(κλέπτουσι μύθους v 189) Essa caracterizaccedilatildeo certamente influencia a iacutendole fraudulenta
de Ulisses na versatildeo latina que retoma tal ideia sobretudo a partir do vocaacutebulo narret (v
14 XIII) que delineia a natureza mentirosa e persuasiva de suas palavras Aleacutem disso a raiz eacute
a mesma tanto da palavra κλεπτοσύνῃ que define o ato de Autoacutelico na Odisseia quanto da
κλέπτουσι que delineia Odisseu em Aias Tal raiz se refere a noccedilatildeo de furto e engano
Contudo Soacutefocles imbui esse talento hereditaacuterio natildeo a Autoacutelico mas agrave linhagem dos Sisifidas
(Σισυφιδᾶν γενεᾶς v 190) claramente definindo ao nosso ver o caraacuteter de Odisseu Todos
os seus artifiacutecios os quais seriam utilizados com objetivos vis teriam ancestralidade em
Siacutesifo personagem notaacutevel pelos crimes e pela puniccedilatildeo exemplar no Hades como jaacute
dissemos Assim credita-se a Odisseu pela voz do coro natildeo apenas uma vocaccedilatildeo para os
crimes hereditaacuteria mas tambeacutem uma grande vocaccedilatildeo para tal praacutetica
188
Com efeito enquanto esse tragedioacutegrafo insere de maneira mais viva os assuntos
proacuteprios dos discursos de tipo laudatoacuterio (ἐγκωμιαστικόν) e do tipo vituperioso (ψεκτικόν)
Oviacutedio o desenvolve seguindo a estrutura formal do modelo retoacuterico Assim como jaacute vimos
na peccedila grega as referecircncias ao aspecto criminoso de Odisseu estatildeo distribuiacutedas nas falas de
vaacuterios personagens contudo aquela em relaccedilatildeo a Siacutesifo se insere na do coro Em
contrapartida ainda eacute possiacutevel por exemplo ver em Aias o elogio agrave linhagem do
protagonista seja em suas proacuteprias palavras quando louva os feitos do pai (v 434-436) ou
seja na fala de Teucro quando este glorifica tambeacutem as mesmas faccedilanhas (v 1300) No
entanto esses assuntos estatildeo bem dispersos na obra
O Telamocircnio da versatildeo latina descreve a sua genealogia e a de seu opositor um
assunto recorrente e dito pela Retoacuterica como componente dos ldquoelementos externos agrave virtuderdquo
(τὰ ἔξω τῆς ἀρετῆς Retoacuterica a Alexandre XXXV 1440b 15-20) de forma concentrada entre
os versos 21 e 33 E claramente tal elemento eacute disposto pelo heroacutei em defesa do seu valor e
em depreciaccedilatildeo da de seu adversaacuterio Segundo os postulados retoacutericos o proacuteprio heroacutei
reconhece sua linhagem excelente (nobilitate potens v 22 XIII) como natildeo sendo inerente agrave
virtude Ele mesmo diz que teria ao menos nobreza ldquose a virtude fosse dubitaacutevelrdquo (si uirtus
[] dubitabilis esset v 21 XIII)
Na versatildeo latina de Oviacutedio satildeo duas as referecircncias a Siacutesifo inseridas no discurso de
Aacutejax A primeira mais indireta no propoacutesito de depreciar o adversaacuterio pois em verdade
compotildee o elogio agrave famiacutelia do heroacutei desmoderado atraveacutes da descriccedilatildeo das atividades de seu
ancestral Eacuteaco filho de Juacutepiter O discurso laudatoacuterio glorifica a sua ancestralidade divina de
reis Aleacutem disso Eacuteaco eacute mencionado como juiz nos Infernos (v 25-26 XIII) ou seja detentor
de uma posiccedilatildeo privilegiada E para compor a imagem deste como um juiz refere-se ao seu
lugar de trabalho como aquele no qual a pesada rocha comprime o Eoacutelida Siacutesifo (ubi Aeoliden
saxum graue Sisyphon urget v 26 XIII) Neste momento natildeo se menciona qualquer relaccedilatildeo
com a linhagem de Ulisses contudo Eacuteaco e Siacutesifo satildeo postos como grandes figuras
sobretudo antagocircnicas pois o primeiro recebe os benefiacutecios tornando-se juiz como
consequecircncia provaacutevel de uma vida de praacutetica de justiccedila o segundo recebe uma puniccedilatildeo
exemplar como resultado de uma vida de praacutetica de crimes Assim embora ainda natildeo se
tranccedilando a linhagem do adversaacuterio do Telamocircnio comparam-se os acenstrais com naturezas
opostas uma positiva e outra negativa segundo a proacutepria oposiccedilatildeo que Aacutejax faz entre ele e
Ulisses A segunda referecircncia que prossegue textualmente agrave primeira apresenta Ulisses como
descendente direto de Siacutesifo (sanguine creatus Sisyphio v 31-32 XIII) e como semelhante
tanto no furto quanto na fraude (furtisque et fraude simillimus v 31 XIII) A linhagem e a
189
iacutendole do chefe de Iacutetaca satildeo assim efetivamente ofendidas uma vez que essas duas referecircncias
a uma ancestralidade nefanda e criminosa satildeo dispostas em puacuteblico diante de todos os chefes
e de toda a tropa Devemos lembrar que a unidade textual do episoacutedio e o seu propoacutesito
semacircntico se baseiam tambeacutem na oposiccedilatildeo entre excesso e moderaccedilatildeo Devido a tais
premissas vemos o orador mais moderado da disputa apenas refutar tal disposiccedilatildeo do seu
oponente Por um lado de forma mais especiacutefica apresentando Laertes como pai (mihi
Laertes pater est v 144 XIII) o qual eacute oriundo de Arceacutesio (Arcesius illi v 144 XIII) este
que eacute filho tambeacutem de Juacutepiter (Iuppiter huic v 145 XIII) semelhantemente a Teacutelamon ou
seja Ulisses natildeo soacute apresenta a mesma ancestralidade divina de reis como tambeacutem dispotildee
uma linhagem na qual natildeo haacute algueacutem condenado (neque in his quisquam damnatus v 145
XIII) o que contesta a versatildeo da genealogia iacutempia Por outro de forma mais abrangente o
autonomeado Laertida reconhece nas palavras do seu opositor insultos contra si (conuicia v
306)
A priori o ato de Ulisses em refutar Aacutejax aparentemente natildeo o insultando mas
apresentando uma outra genealogia e sobretudo repreendendo-se o vitupeacuterio e o atribuindo
ao proacuteprio caraacuteter desmoderado de seu adversaacuterio eacute certamente significativo para a unidade
textual do episoacutedio Com efeito o discurso vituperioso sai do acircmbito comum da retoacuterica e se
torna efetivamente um elemento proacuteprio e singular do estilo do Telamocircnio Dessa forma a
depreciaccedilatildeo puacuteblica da linhagem do opositor entatildeo manifesta-se validamente como um
insulto que revela a natureza iracunda do heroacutei que se sente desonrado quando relativizamos
o comportamento dos dois personagens na estruturaccedilatildeo do episoacutedio Esse parece ser o
propoacutesito literaacuterio dos elementos retoacutericos inseridos no Livro XIII de Metamorfoses
Tal diposiccedilatildeo genealoacutegica com propoacutesitos depreciativos de caraacuteter a qual apresenta
como ancestral mais importante de Ulisses o personagem Siacutesifo legando agravequele a inteligecircncia
astuta e criminosa parece-nos ter como influecircncia extremamente importante para a tradiccedilatildeo
da literatura claacutessica a obra Aias de Soacutefocles Esta peccedila certamente parece influenciar a obra
de Oviacutedio uma vez que os argumentos de Aacutejax estatildeo presentes naquela mas reelaborados Os
argumentos satildeo desenvolvidos pelo autor latino transformado-os seus conteuacutedos Duas
transformaccedilotildees satildeo perceptiacuteveis nesse processo hipertexual
A primeira eacute a relaccedilatildeo hipertextual de transmodalizaccedilatildeo mais especificamente uma
transformaccedilatildeo intermodal Sabendo-se que Oviacutedio desenvolve em seu texto transformaccedilotildees
intermodais proacuteprias do modo dramaacutetico extamente porque apresenta a disputa pelas armas
em um processo inerentemente mimeacutetico dessa forma a transformaccedilatildeo intermodal consiste
em privilegiar Aacutejax com os argumentos pertencentes ao coro da obra Aias A alteraccedilatildeo se
190
trata entatildeo da redistribuiccedilatildeo da fala dos personagens Aleacutem disso essa modificaccedilatildeo
hipertextual torna tal referecircncia a Siacutesifo mais significativa dentro do episoacutedio da vertente
latina Ela serve tanto para desvalorizar o caraacuteter do personagem ofendido quanto para
fundamentar a ideia de crimes cometidos por ele
A ancestralidade iacutempia confere ao descendente uma vocaccedilatildeo criminosa poreacutem esta
uacuteltima deixa de ser potencial e se torna extremamente verossiacutemil quando haacute a narraccedilatildeo de
fatos nos quais tal praacutetica pode ser identificada pois as narrativas satildeo mais convincentes por
refletirem o modo de algueacutem agir (Retoacuterica a Alexandre XXXV 1441b 15-21) No episoacutedio
em questatildeo de Metamorfoses a importacircncia da linhagem referida jaacute no iniacutecio do discurso do
Telamocircnio se faz sobretudo devido agrave sustentaccedilatildeo que tal elemento promove a trecircs fatos
narrados e descritas acerca de Ulisses a primeira sobre Palamedes a segundo acerca de
Filoctetes e a terceira em relaccedilatildeo a Nestor Todos esses trecircs eventos satildeo conhecidos do
puacuteblico mas eacute a perspectiva do orador que imputa nas accedilotildees um caraacuteter de revelaccedilatildeo acerca
da iacutendole de quem as praticou A accedilatildeo contra Palamedes causa a sua morte por meio de uma
dita fraude do Laertida uma vez que este forjou (finxit v 59 XIII) a traiccedilatildeo de um
compatriota A accedilatildeo contra Filoctetes o afasta da tropa e sendo detentor das armas de
Heacutercules conforme o oraacuteculo de Calcas ele seria necessaacuterio para a vitoacuteria sobre Troia A
accedilatildeo contra Nestor abandonando-o em combate eacute vista tambeacutem como um crime (crimen v
64 XIII) Dessa forma Ulisses natildeo soacute segundo Aacutejax teria enfraquecido as forccedilas dos gregos
como a forma com a qual age justifica a alcunha de estimulador de crimes (hortator scelerum
v 45 XIII) o mesmo vocaacutebulo usado por Virgiacutelio no Livro VI da Eneida Com efeito a
referecircncia agrave linhagem Sisifida eacute proporcionalmente mais significativa para o eixo semacircntico
do episoacutedio de Oviacutedio pois eacute fundamental para a sustentaccedilatildeo das narrativas e dos argumentos
que tem como propoacutesito a depreciaccedilatildeo e o insulto do adversaacuterio elementos essenciais para a
estruturaccedilatildeo de uma retoacuterica que revele o caraacuteter iracundo do personagem
A segunda eacute a relaccedilatildeo hipertextual de valorizaccedilatildeo A genealogia de Ulisses tal como eacute
estruturada segundo o que tambeacutem dispomos acima faz parte do estilo retoacuterico de Aacutejax que
revela e destaca sua ira Em se considerando no episoacutedio em questatildeo os propoacutesitos literaacuterios
do discurso vituperioso a ira do personagem a qual se torna mais intensa na obra em relaccedilatildeo
a outros hipotextos permite a valorizaccedilatildeo do heroacutei em seu caraacuteter intermediaacuterio proacuteprio do
sistema axioloacutegico da obra Metamorfoses promovendo como na trageacutedia uma accedilatildeo mais
traacutegica segundo as premissas aristoacutetelicas Assim a profunda ira do heroacutei se equilibra com a
sua excelecircncia guerreira compondo os elementos necessaacuterios mais propriamente uma ira
191
insustentaacutevel e a capacidade de resistecircncia e conteccedilatildeo do personagem os quais desencadeiam
o fim traacutegico de Aacutejax
A segunda transformaccedilatildeo que salienta o papel estrutural da ira eacute a referecircncia agraves armas
de Aquiles com o objetivo de diminuir a compleiccedilatildeo fiacutesica e guerreira de Ulisses contudo a
relaccedilatildeo de hipertextualidade retrata um diaacutelogo natildeo com Soacutefocles mas com Homero Com
efeito essa passagem inserida entre os versos 103 e 116 parece-nos a mais agressiva e
vituperiosa do Telamocircnio tanto porque denigre publicamente o adversaacuterio de forma
excessiva quanto porque as perguntas retoacutericas reforccedilam o aparente escaacuternio ao heroacutei de
Iacutetaca que natildeo eacute certamente tatildeo despreziacutevel quanto o fazem as palavras do seu opositor
Trecircs satildeo os componentes das armas de Aquiles utilizados no discurso de Aacutejax para
inferiorizar seu oponente de forma brutal o elmo a lanccedila e mais significativamente o escudo
do Pelida Tais armas satildeo referidas sob dois apectos o brilho oriundo do material de sua
composiccedilatildeo e o peso proacuteprio para pujantes guerreiros Esses dois aspectos satildeo fundamentais
para os argumentos do heroacutei que tenta provar a inadequaccedilatildeo da natureza do Laertida com as
das armas Vejamos uma anaacutelise de cada uma dessas armas
O elmo por exemplo eacute mencionado em especial pelo seu brilho que torna a peccedila
radiante (nitor galeae radiantis v 105 XIII) Tal fulgor proveacutem do ouro (claro ab auro v
105 XIII) que o compotildee Essa caracteriacutestica da peccedila beacutelica impede segundo o orador
iracundo o seu opositor de executar suas costumeiras accedilatildeos como os usuais artifiacutecios (insidias
v 106 XIII) aos inimigos desprevenidos (incautum hostem v 104 XIII) uma vez que
prejudica o ato de se esconder (laetentem v 106 XIII) necessaacuterio para tal proeza A
incoerecircncia desse personagem sorrateiro com a natureza do capacete eacute realccedilada com pergunta
retoacuterica ldquopor que estas [armas] seratildeo para o iacutetaco que [age] furtivamente [] e engana com
ardisrdquo (Quo tamen haec qui clam [] et furtis decipit v 103-104) Certamente essa pergunta
age com uma ironia que marca as naturezas opostas e confrontadas da arma e do Laertida
sobretudo pelo diaacutelogo com a Iliacuteada Podemos citar ao menos dois tipos O primeiro diaacutelogo
mais oacutebvio com a obra de Homero eacute a proacutepria natureza da gaacutelea composta de ouro e forjada
por Hefesto deus grego assemelhado ao Vulcano latino cujos domiacutenios e capacidades satildeo em
especial o fogo e seu trabalho industrioso
Eacute o Canto XVIII da Iacuteliada que apresenta por primeiro a descriccedilatildeo das armas fabricadas
pelo deus a qual se torna o foco do episoacutedio cujo argumento maior eacute a fabricaccedilatildeo divina delas
mesmas Esse episoacutedio descreve tal elmo (κόρυθα v 611) com cimo de ouro (χρύσεον
λόφον v 612) O Canto XIX apresenta mais uma descriccedilatildeo quando tais equipamentos satildeo
tomados por Aquiles Neste momento podemos observar que a ldquogaacutelea crinada brilhava como
192
estrelardquo (ἀστὴρ ὥς ἀπέλαμπεν ἵππουρις τρυφάλεια v 381-382) cujas ldquocrinas de ourordquo
(ἔθειραι χρύσεαι v 382-383) estavam no cimo (λόφον v 383) Estatildeo claras as recorrecircncias
do brilho e do material ouro tanto na composiccedilatildeo da imagem do elmo quanto inclusive na
das outras armas de Aquiles Vale salientar que tais caracteriacutesticas dessa arma revelam em
verdade aleacutem da exiacutemia habilidade industrial de Hefesto em prol de um ornamento artiacutestico a
ligaccedilatildeo divina entre os deuses sobretudo oliacutempicos e o objeto cujo reflexo ontoloacutegico se
observa no proacuteprio aspecto concreto do ouro como material belo e excelso que reluz
intensamente Consequentemente tais armas satildeo instrumentos de origem divina e por isso
superiores Devido a essa disposiccedilatildeo quando revestem Aquiles seu fulgor toca o ceacuteu (αἴγλη
δrsquo οὐρανόν ἷκε v 362)
Contudo para noacutes o diaacutelogo mais significativo em especial como hipotexto para o
episoacutedio de Oviacutedio eacute outro um segundo o qual pode ser observado por exemplo no Canto
XX quando Aquiles se apresenta aos troianos revestidos com suas armas Neste momento a
natureza divina delas revela sua funccedilatildeo essencial a guerra Logo seu fulgor eacute funesto Por
isso elas incitam nos troianos o medo terriacutevel (τρόμος αἰινὸς v 44) quando com tais armas
ο Pelida reluz (Πηλείωνα τευχεσι λαμπόμενον v 45-46) diante dos inimigos Dessa forma
tal como acredita o Telamocircnio o brilho das armas e consequentente do elmo manifesta sua
natureza divina e funesta para os inimigos natildeo devendo ser ocultada mas ao contraacuterio
exigindo se fazer visiacutevel e perceptiacutevel para cumprir seu objetivo Com efeito tais diaacutelogos
com a Iliacuteada alicerccedilam de forma mais expressiva os argumentos do orador iracundo da obra
de Oviacutedio
Essa transtextualidade presente no texto de Oviacutedio pode ser propriamente identificada
como uma alusatildeo uma vez que os episoacutedios homeacutericos mencionados acima satildeo fundamentais
para o entendimento da perspectiva do Telamocircnio acerca das armas Esses episoacutedios natildeo satildeo
transformados ou ressignificados mas satildeo referidos em um outro contexto e em uma outra
obra ainda de acordo com os mesmos valores e sentidos presentes no hipotexto Assim o
brilho do elmo (nitor galeae) sobretudo proveniente do ouro (auro) material visto como de
natureza divina natildeo pode ser associado a accedilotildees sorrateiras e noturnas Isso eventualmente
seria uma incoerecircncia por isso a pergunta retoacuterica eacute tatildeo relevante na ecircnfase dessa
contradiccedilatildeo uma vez que faz da imagem de um gatuno a portar tal reluzente instrumento uma
contundente ironia no intuito de diminuir Ulisses em relaccedilatildeo agraves armas e ao proacuteprio Aacutejax
Com efeito essa referecircncia intertextual a saber a alusatildeo contribui efetivamente na loacutegica
retoacuterica do Telamocircnio o qual inferioriza o Laertida por completo sobretudo em sua
193
excelecircncia guerreira foco da descriccedilatildeo das armas de Aquiles inserida jaacute ao fim de seu
discurso vituperioso
Vejamos agora a relaccedilatildeo de transtextualidade estabelecida com a referecircncia a outro
componente da descriccedilatildeo das armas a lanccedila singular do Pelida Se por um lado como
dissemos devido ao seu fulgor o elmo apresenta inadequaccedilatildeo com o heroacutei sorrateiro por
outro a lanccedila singular apresenta inadequaccedilatildeo com Ulisses porque eacute necessaacuterio grande vigor
para empunhaacute-la o qual segundo o orador iracundo o seu opositor natildeo deteacutem
Na Iliacuteada diferentemente do capacete de guerra de Aquiles a sua lanccedila natildeo foi
fabricada conjuntamente com as armas forjadas por Hefesto em substituiccedilatildeo agravequelas dadas a
Paacutetrocles pelo Pelida Contudo tal haste eacute ainda iacutempar e sua singularidade eacute mencionada ao
menos duas vezes no texto homeacuterico
A primeira menccedilatildeo estaacute inserida no Canto XVI quando essa arma eacute apresentada como
a uacutenica natildeo oferecida por Aquiles ao seu amigo dileto especialmente por sua composiccedilatildeo
oferecer difiacutecil manejo A lanccedila eacute pesada grande e robusta (ἔγχος [] βριθὺ μέγα στιβαρόν v
140-141) composta de freixo retirado do topo do monte Peacutelion (Πηλίου ἐκ κορυφῆς v 144)
e nenhum dos Aqueus era capaz de brandi-la (οὐ δύνατrsquo ἄλλος Ἀχαιῶν πάλλειν v 141-142)
soacute Aquiles o fazia (οῖος ἐπίστατο πῆλαι Ἀχιλλεὺς v 142) A segunda menccedilatildeo estaacute presente
no Canto XIX quando o heroacutei se prepara para voltar agrave guerra Nessa passagem como eacute
comum agrave estrutura eacutepica os mesmos versos do Canto VI satildeo repetidos entre os versos 387 ao
391 do Canto XIX tanto a composiccedilatildeo da lanccedila pesada grande robusta e de origem no
freixo do monte Peacutelion quanto a singularidade de apenas Aquiles ser capaz de manejaacute-la
Com exceccedilatildeo da restriccedilatildeo do manejo Oviacutedio retoma no Livro XIII de Metamorfoses
todas essas caracteriacutesticas descrevendo a lanccedila (hasta v 109) onerosa (onerosa v 108) ou
seja de difiacutecil manejo grave (grauis v 108) ou seja pesada para empunhar e Peliacuteade
(Pelias v 109) ou seja do monte Peacutelion Dessa forma tal arma eacute improacutepria para braccedilos
imbeles (inbeliibus lacertis v 109) como eacute descrita por Aacutejax toda a compleiccedilatildeo fiacutesica de
Ulisses desprovida de vigor guerreiro
Com efeito mais uma vez vemos a utilizaccedilatildeo de uma nova alusatildeo uma relaccedilatildeo de
intertextualidade com a Iliacuteada uma vez que o conhecimento desta obra eacute necessaacuterio para o
entendimento pleno da passagem da obra latina Contudo o propoacutesito ainda eacute o mesmo
reforccedilar os argumentos do Telamocircnio que opotildee em sua estrutura retoacuterica a natureza beacutelica
das armas agrave iacutendole imbele de seu opositor
A uacuteltima referecircncia transtextual do autor latino acerca da descriccedilatildeo das armas segundo
os mesmos objetivos das anteriores eacute sobre o escudo o qual recebe destaque na versatildeo
194
homeacuterica e na de Oviacutedio tambeacutem porque esse instrumento recebe um papel fundamental na
refutaccedilatildeo do Laertida contra a ideia de sua debilidade beacutelica e a favor de sua sagacidade
como veremos mais agrave frente
No Livro XIII de Metamorfoses a opulecircncia do escudo de Aquiles eacute referida por meio
de qualificativos que caracterizam na verdade a gravura nele representada Como expressa o
texto o escudo tem esculpido em si a imagem do vasto mundo (uasti imagine mundi v 110)
Logo de tal descriccedilatildeo podemos por meio de uma relaccedilatildeo figurada quase de hipaacutelage
transferir semanticamente a ideia da dimensatildeo da figura agrave arma em questatildeo Com efeito essa
vastidatildeo da imagem representada se compreende exatamente pela referecircncia ao texto
homeacuterico em que podemos ver a descriccedilatildeo de todas as figuras presentes
Eacute precisamente o Canto XVIII da Iliacuteada que apresenta o detalhamento do escudo (v
478-608) Nessa passagem diferentemente de Oviacutedio o texto revela expressamente a
opulecircncia do equipamento utilizando-se o leacutexico que descreve a lanccedila Peliacuteada Assim ele eacute
grande e robusto (μέγα τε στιβαρόν τε v 478) Aleacutem disso eacute denominado pelo vocaacutebulo que
descreve um tipo de escudo maior σάκος (v 478) o mesmo que comumente eacute utilizado para
descrever o escudo de Aacutejax na Iliacuteada (cf p 76) O vasto mundo referido por Oviacutedio nos
parece sintetizar sobretudo o que Homero descreve estar circunscrito pelo Oceano rio que
envolve a terra na representaccedilatildeo homeacuterica a terra o ceacuteu e o mar (ἐν μὲν γαῖαν ἔτευξ᾽ ἐν δ᾽
οὐρανόν ἐν δὲ θάλασσαν 483 XIII) e tudo aquilo que se insere nessas trecircs regiotildees ou seja
o mundo e a sua perspectiva do cosmos uma vez que vaacuterias constelaccedilotildees e astros estatildeo
representados na figura
Com efeito essa vastidatildeo do mundo mencionado pelo autor latino tanto conota a
robustez do escudo quanto dialoga com a Iliacuteada Tal disposiccedilatildeo sinteacutetica de Oviacutedio sugere que
o escudo eacute vasto para conter o mundo e consequentemente tambeacutem eacute pesado para
representar sua totalidade Assim reforccedila-se mais uma vez o caraacuteter beacutelico necessaacuterio para
empunhar tal arma sobretudo porque como tambeacutem o texto homeacuterico insinua as armas de
Aquiles e tambeacutem o escudo satildeo onerosos exigindo-se um vigor e forccedila fiacutesica superiores ateacute
aos heroacuteis gregos aleacutem de outras capacidades guerreiras Devido a isso tal instrumento eacute
inadequado (nec conueniet v 110-111 XIII) a Ulisses pois este personagem teria a matildeo
esquerda a que empunha o escudo tanto covarde (timidae v 111 XIII) quanto nascida para
os ardis (natae ad furta v 111 XIII) E por toda essa configuraccedilatildeo Aacutejax em seu discurso
iracundo de depreciaccedilatildeo coroa sua fala com insultos no vocativo diretos ao seu opositor
como ldquoo mais covarderdquo (timidissime v 115 XIII) e ldquoiacutemprobordquo (improbe v 112 XIII)
centrando e fechando seu argumento de que seu opositor eacute fraco imbele desonesto e finoacuterio
195
Aleacutem disso jaacute ao final de sua defesa o Telamocircnio explicitamente apresenta como
reforccedilo aos seus argumentos a ideia que apresentamos acima presente no Canto XX da Iliacuteada
a noccedilatildeo de que a natureza das armas se adequa agrave guerra tendo tornado assim Aquiles mais
aterrorizante e mais imponente quando em posse daquelas mesmas Como o estilo retoacuterico do
personagem em especial tem como base a oposiccedilatildeo e a contradiccedilatildeo a ecircnfase no contraacuterio ou
seja na inadequaccedilatildeo com as armas enfraquece a sua funccedilatildeo beacutelica Por isso com a perguta
retoacuterica do verso 112 recurso comum do orador iracundo o heroacutei destaca tal incoerecircncia
mencionando expressamente que o opositor efetivamente debilitaraacute o propoacutesito do escudo
(debilitaturum munus v 112 XIII) O participiacuteo futuro do verbo debilitar (debilito) ligado ao
pronome que se refere a Ulisses (te v 112 XIII) eacute contundente nesse objetivo em especial
pelo seu complemento que significa exatamente ldquofunccedilatildeordquo (munus v 112 XIII) Segundo a
loacutegica retoacuterica de Aacutejax a incoerecircncia eacute tamanha que o enfraquecimento de tal funccedilatildeo vai
gerar inclusive motivo para que o Laertida se usar as armas natildeo seja temido pelo inimigo
(non metuaris ab hoste v 114 XIII) ou seja o propoacutesito primeiro da posse de tais
instrumentos e desencadeie um motivo ainda pior encorajando-se os inimigos no intuito de
que o portador de tais seja espoliado (spolieris v 114 XIII)
Toda essa disposiccedilatildeo acerca da figura de Ulisses diante das armas de Aquiles
certamente nos parece incutir a caracterizaccedilatildeo da ira do personagem de Salamina A
conjuntura desses elementos como as perguntas retoacutericas os vocativos vituperiosos e a
depreciaccedilatildeo completa de todos os atributos do adversaacuterio fiacutesico moral e genealoacutegico permite
o reconhecimento de uma retoacuterica excessiva na agressatildeo e no vitupeacuterio quando comparada
efetivamente agrave de seu opositor moderada Tal sentimento de ira de Aacutejax parece extrapolar
quando dessa descriccedilatildeo comparada das armas pois mesmo moderado o Laertida nos parece
se exceder significativamente na refutaccedilatildeo desse uacuteltimo argumento em especiacutefico
Em resposta a tais alegaccedilotildees em especiacutefico quanto agrave questatildeo das armas o orador
moderado primeiramente potildee em cheque a ideia de que eacute imbele Ele o faz segundo sua loacutegica
retoacuterica mais recorrente apresentando fatos sem ofender o adversaacuterio como fez com a
questatildeo de sua ancestralidade No caso em questatildeo Oviacutedio potildee em suas proezas um fato que a
tradiccedilatildeo conferia a Aacutejax o resgate do cadaacutever de Aquiles Com efeito Lesches em sua
Pequena Iliacuteada (WEST 2003 p 125) e Exekias em suas pinturas em vasos (MOORE 1980
p 417) por exemplo seguem a tradiccedilatildeo mais corrente figurando-se o Telamocircnio como o
heroacutei que recupera o cadaacutever de Aquiles quando da morte do filho de Peleu Para o eixo
semacircntico da obra de Oviacutedio tal transformaccedilatildeo e ressignificaccedilatildeo desse evento permite Ulisses
comprovar seu vigor uma vez que em seus ombros carregou ele mesmo tanto o Pelida quanto
196
suas armas (umeris ego corpus Achillis et simul arma tulit v 284-285 XIII) Esse fato refuta
qualquer ideia de debilidade fiacutesica ao personagem sobretudo porque reforccedila
significativamente o feito com o pronome ego de maneira que disso depreendemos o fato de
ele ter executado tal accedilatildeo sozinho Contudo ele natildeo se restringe a isso pois avanccedila
parecendo-nos assemelhar-se levemente ao oponente em seu excesso Tendo primeiramente se
mostrado apto a usar as armas em seguida o heroacutei diminui o seu adversaacuterio diante do escudo
A perspectiva se torna natildeo mais a forccedila mas a inteligecircncia a qual como jaacute vimos eacute o eixo
positivo do sistema de valores apresentado por Ulisses
A compreensatildeo da arte infundida por Vulcano na arma se torna paracircmentro para
distinguir quem deve portar o escudo uma vez que a forccedila foi comprovada ser atributo de
ambos O heroacutei de Iacutetaca entatildeo denomina Aacutejax brusco (rudis v 290 XIII) soldado sem peito
(sine pectore miles v 290 XIII) o que configura tal heroacutei como desprovido tanto no intelecto
quanto na sensibilidade necessaacuteria para compreender plenamente o conhecimento e a arte
representados nas gravuras do escudo Alega assim que seu adversaacuterio pretende tomar as
armas as quais natildeo compreende (quae no intellegit arma v 295) Com efeito o Oceano
(Oceanum) as terras (terras) os astros no alto ceacuteu (alto sidera caelo) as Plecirciadas (Pleiadas)
as Hiacuteades (Hyadas) a Ursa (Arcton) e Orion (Orionis) presentes entres os versos 292 e 294
do Livro XIII apresentam-se como uma siacutentese uma condensaccedilatildeo aos termos de Genette de
todo o mundo grego representado no escudo descrito na Iliacuteada (XVIII 478-608) E toda essa
referecircncia serve como recurso para que Ulisses possa devolver a depreciaccedilatildeo sofrida Isso
realmente parace nos ser o excesso semelhante ao do Telamocircnio sobretudo certamente
porque sendo heroacutei tal conhecimento e arte estatildeo ao alcance deste heroacutei A rudeza ao menos
segundo o eixo semacircntico proposto por Oviacutedio estaria no acircmbito da ira como elemento
revelador de sua desmoderaccedilatildeo
Todas essas possibilidades transtextuais do acircmbito da genealogia e da grandeza das
armas diante de Ulisses satildeo pertinentes e vaacutelidas na caracterizaccedilatildeo de Aacutejax uma vez que
mesmo sendo uma referecircncia a Soacutefocles ou a Homero ambas promovem um aprofundamento
da ira do personagem em relaccedilatildeo aos seus hipotextos sentimento o qual jaacute na trageacutedia Aias
recebe destaque Logo a composiccedilatildeo e o papel significativo da ira tanto do heroacutei de Oviacutedio
quanto do de Soacutefocles conjuntamente com essas transtextualidade dispostas sugerem uma
influecircncia que nos parece ir certamente aleacutem da mera coincidecircncia
No entanto uma transtextualidade sobretudo de caraacuteter linguiacutestico reforccedila tal
suposiccedilatildeo fugindo inclusive um pouco aos limites da teoria postulada por Genette Essa
transformaccedilatildeo tem efeito especialmente no eixo semacircntico afetando-o a partir do leacutexico
197
escolhido Dessa forma a reiteraccedilatildeo do leacutexico significativo permite o reforccedilo ao eixo
semacircntico proposto por Oviacutedio em Metamorfoses O mais expressivo termo eacute o sintagma
inpatiens irae (v 3 XIII)
Com efeito a anaacutelise desse sintagma (cf p 120 et seq) jaacute nos mostrou sua relaccedilatildeo
com os elementos virtude e ira os quais compotildee a estrutura do episoacutedio em questatildeo (cf p
132) Inpatiens como vimos sobretudo quando falamos de seu verbo base patior insere-se
no eixo da virtude do heroacutei Aacutejax a qual estaacute na perspectiva de uma qualidade defensiva e
protetora mais propriamente de resistecircncia e de contenccedilatildeo tanto dos sentimos ou seja do
controle das emoccedilotildees quanto dos inimigos ou seja de sua resistecircncia diante dos assaltos dos
troianos O sentido expresso por essse termo se reitera por meio da grande recorrecircncia de
outro vocaacutebulo importante o verbo sustineo que aparece quatro vezes uma no verso 8 outra
no 88 e mais duas no 385 tanto no sentido militar quanto no emocional Tal verbo eacute usado
propositalmente nesse duplo sentido conjungando-se uma ideia de temperanccedila e resistecircncia
beacutelica a primeira ligada a grauitas e a segunda a uirtus (cf 133) A expectitativa construiacuteda
por tal estrutura eacute a de uma capacidade do Telamocircnio em resistir agrave ira profunda que o acomete
em razatildeo de sua desonra No entanto tal desfecho natildeo se realiza porque a ira eacute extrema em
sua desmedida ao ponto de ser o uacutenico fator (unam iram v 385 XIII) capaz de vencer a
resistecircncia do heroacutei O sintagma entatildeo resume essa incapacidade do personagem em relaccedilatildeo
ao sentimento que o acossa em virtude de uma honra superestimada supostamente
conspurcada A grande importacircncia desse termo na composiccedilatildeo estrutural justifica para noacutes
inclusive a sua adequaccedilatildeo meacutetrica e funcional semelhante agrave de um epiacuteteto (cf p 121) E tal
estrutura como um todo em prol de uma relaccedilatildeo conceitual e lexical com a ira como um
sentimento vinculado ao excesso parece-nos ecoar da proacutepria composiccedilatildeo de Soacutefocles
Soacutefocles como vimos natildeo restringe o excesso ao elemento ira mas desenvolve seu
eixo semacircntico sobretudo nesse sentimento e na locura infundida por Atena no protagonista
(cf 94 et seq) No entanto enquanto Oviacutedio evidencia em seu sintagma inpatiens irae o
excesso ou seja ira em conjunccedilatildeo com resistecircncia ou seja virtude de contenccedilatildeo Soacutefocles jaacute
fazia algo semelhante no sintagma Χόλῳ βαρυνθεὶς ndash pesado de coacutelera Em Aias o caraacuteter
semacircntico ligado a ideia de ldquopesordquo ldquosobrecargardquo etc eacute recorrente em um leacutexico
especialmente proveniente do nome baryacutes (βαρύς) que guarda em sua raiz esse sentido
Assim aleacutem do particiacutepio aoristo usado para desiginar a condiccedilatildeo do heroacutei ao menos outras
cinco vezes palavras com essa raiz compotildeem o texto abatido (βαρυψύχου v 319) usada para
descrever indiretamente o estado em que se encontra o heroacutei grave destino (βαρείας τύχης v
980) e grave na velhice (ἐν γήρᾳ βάρυς v 1017) respectivamente para qualificar Teucro e
198
Teacutelamon e por fim pesada coacutelera (μῆνιν βαρεῖαν v 656) e reveses pesados (βαρείαις
δυσπραξίαις v 759) usadas para qualificar as accedilotildees dos deuses A recorrecircncia dessa raiz
serve para enfatizar como o sentido de ldquopesadordquo contribui para criar a unidade textual que
opotildee excesso e moderaccedilatildeo
Dessa forma o sintagma inpatiens irae parece dialogar com o sintagma χόλῳ
βαρυνθεὶς na expressatildeo da profundidade e da importacircncia da ira em cada obra logicamente
que tal referecircncia deve ser considerada com o leacutexico mais significativo do eixo semacircntico
proacuteprio de cada uma delas Certamente o tragedioacutegrafo insere tal termo de forma
antecipatoacuteria e sobretudo sintetizadora dos valores essecircncias da obra tal qual tambeacutem faz
Oviacutedio em seu episoacutedio A influecircncia digamos lexical e sintaacutetica oferece um reflexo
aparente Βαρυνθεὶς assemelha-se a inpatiens O primeiro eacute particiacutepio e o segundo um
adjetivo formado a partir de um particiacutepio E ambos tecircm complementos que comportam o
sentimento de ira O primeiro com o genitivo irae e o segundo com o dativo χολῳ os quais
restrigem tal coacutelera como o sentimento base de todo o estado emocional descontrolado de
Aacutejax Tais sintagmas sugerem certamente uma referecircncia do autor latino em relaccedilatildeo ao grego
sobretudo em prol de uma estrutura poeacutetica que procure exprimir o maacuteximo de significado em
um miacutenimo de texto
Diante desses apontamentos sobre as praacuteticas de transtextualidade que operam na
caracterizaccedilatildeo da ira do heroacutei na obra de Oviacutedio pudemos obsevar a influecircncia do texto
sofocliano bem como do homeacuterico Todas essas transformaccedilotildees singularizam a ira do
personagem Aacutejax da versatildeo latina pois estabelecendo-se como um elemento fundamental
para a estrutura do texto esse sentimento eacute significativamente intensificado como nos foi
possiacutevel demostrar em relaccedilatildeo agraves obras de autores anteriores da literatura greco-latina
Com efeito a partir de tais consideraccedilotildees eacute possiacutevel reforccedilar como essas relaccedilotildees de
transtextualidade parecem naturais entre os autores claacutessicos da Antiguidade de modo que
todas essas operaccedilotildees transformadoras realmente revelam a complexidade e a profundidade
do diaacutelogo promovido entre eles o que representa um componente fundamental da qualidade
literaacuteria dos textos do mundo antigo
199
CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
Nosso estudo teve como objetivo apontar praacuteticas intertextuais ou segundo a teoria de
Genette transtextuais entre a obra Metamorfoses de Oviacutedio mais precisamente o seu Livro
XIII e a obra Aias de Soacutefocles O diaacutelogo que pretendemos apontar teve enfoque na
caracterizaccedilatildeo de um personagem presente nessas obras a saber Aacutejax heroacutei de Salamina A
ecircnfase desse trabalho foi dada a dois elementos virtude e ira a priori importantes para o mito
do personagem em especial no episoacutedio retratado em Metamorfoses cujo cerne eacute a disputa
entre Aacutejax e Ulisses pelas armas de Aquiles a qual desencadeia o suiciacutedo do primeiro A
virtude do heroacutei envolve suas capacidades beacutelicas e a ira trata do sentimento desmedido que o
consome e o impulsiona a agir de forma funesta Diante dessas motivaccedilotildees tentamos
comprovar como algumas das transformaccedilotildees promovidas pelo autor latino tiveram como
base a peccedila deste tragedioacutegrafo grego Para isso organizamos o trabalho de modo a permitir a
anaacutelise isolada e preacutevia dos textos envolvidos para em seguida observamos o estudo
comparado a partir dos resultados alcanccedilados Preferimos entatildeo seccionar esta tese em trecircs
capiacutetulos que pudessem apresentar claramente e didaticamente a proacutepria metodologia de sua
realizaccedilatildeo
O primeiro capiacutetulo nomeado a traduccedilatildeo literaacuteria do mito de Aacutejax cumpriu uma
dupla tarefa Buscou-se primeiramente neste momento apresentar a tradiccedilatildeo claacutessica do
heroacutei sobretudo nos poemas homeacutericos com o objetivo de reconhecer particularidades de
sua caracterizaccedilatildeo Tal proacuteposito foi alcanccedilado principalmente porque foi possiacutevel identificar
jaacute em Homero um exiacutemio trabalho literaacuterio de caracterizaccedilatildeo Os poemas homeacutericos assim
conferiram ao personagem excelecircncia guerreira Contudo na Iliacuteada em especial tal
capacidade beacutelica compunha uma virtude mais defensiva e protetora devido agraves proacuteprias
condiccedilotildees das faccedilanhas do Telamocircnio dentro da trama as quais datildeo ecircnfase agrave resistecircncia grega
diante dos troianos uma vez que a obra promove a ideia de avanccedilo grego apenas com a
participaccedilatildeo de seu melhor guerreiro Aquiles A partir da Odisseia reconhecemos o papel da
ira como caracteriacutestica do heroacutei Esse sentimento se faz presente em especial devido agrave
referecircncia ao episoacutedio em que Aacutejax e Ulisses se confrontam pelas armas de Aquiles e a
derrota do primeiro o torna iracundo uma vez que crecirc ser superior ao seu adversaacuterio Por isso
eacute recorrente na tradiccedilatildeo grega a ideia desse heroacutei ser identificado como o ldquomelhor dos
gregos depois do Pelidardquo cujo epiacuteteto se compotildee frequentemente na decorrrente literatura
pelo superlativo aacuteristos (ἄριστος) Esse contexto literaacuterio tambeacutem define a ira do heroacutei de
Salamina bem como a de outros da tradiccedilatildeo grega por meio de um leacutexico muitas vezes
200
especiacutefico cuja raiz estaacute na palavra coacutelera choacutelos (χόλος) Esses dois elementos se
comprovaram assim como fundamentais na composiccedilatildeo do caraacuteter do personagem da versatildeo
de Oviacutedio
O segundo objetivo cumprido ainda nesse primeiro capiacutetulo foi contextualizar
literariamente as obras estudadas com o propoacutesito de se reconhecer nelas tais elementos
ressignificados a um novo eixo semacircntico Quanto a Aias seu contexto ressaltou
significativamente nela a oposiccedilatildeo entre a ideia de excesso hyacutebris (ὕβρις) e a de moderaccedilatildeo
sophrosyacutene (σωφροσύνη) A peccedila entatildeo coloca Aacutejax no eixo da desmedida revestindo sua
ira com tal significado Esse sentimento se torna uma das manifestaccedilotildees funestas do excesso
recriminado na obra Contudo a peccedila reabilita o heroacutei diante de todas as suas proezas
passadas as quais comprovam uma virtude areteacute (ἀρετή) sobretudo beacutelica que natildeo deve ser
ignorada Quanto a Metamorfoses apesar de sua natureza aparentemente eacutepica foi-nos
possiacutevel reconhecer o tratamento liacuterico e traacutegico de seus personagens a partir de estudos sobre
a obra A estruturaccedilatildeo do caraacuteter do personagem em uma virtude defensiva e protetora que
reflete uma virtude romana (uirtus) e sua ira (ira) desmedida e incontinente figuram os
elementos essenciais no desfecho funesto do personagem Tal caracterizaccedilatildeo eacute observada a
partir do discurso dos personagens quando da disputa pelas armas O estilo retoacuterico do
Telamocircnio elaborado para fins literaacuterios permite a compreensatildeo mais plena de seus valores e
dos sentimentos que movem seu comportamento e suas accedilotildees
O segundo capiacutetulo intitulado Estudo isolado da caracterizaccedilatildeo do heroacutei tratou da
anaacutelise mais detalhada das obras em relaccedilatildeo agraves noccedilotildees de virtude sobretudo beacutelica e de ira
Esses dois componentes delineiam o caraacuteter intermediaacuterio do heroacutei necessaacuterio para o traacutegico
tanto na peccedila de Soacutefocles quanto na eacutepica de Oviacutedio
A virtude do heroacutei configura o eixo positivo da caracterizaccedilatildeo do personagem em
ambas as obras e por isso eacute essecircncial agrave sua composiccedilatildeo Em Aias tal primazia guerreira o
permite ser chamado de melhor dos Aqueus (ἄριστος Ἀχαιῶν) por duas vezes uma pelo coro
e outra por Odisseu A segunda parte da peccedila inclusive centra-se na defesa do protagonista
reabilitando-o como heroacutei cujos feitos passados natildeo podem ser suprimidos pelo ato
excessivo ainda que esta accedilatildeo possa pesar negativamente contra ele Em Metamorfoses a
virtude de Aacutejax manifesta restriccedilotildees maiores em relaccedilatildeo agrave tradiccedilatildeo pois se configura como
uma qualidade especialmente defensiva e protetora cuja funccedilatildeo eacute realccedilar a resistecircncia tanto
em relaccedilatildeo ao controle emocional quanto ao acircmbito militar Contudo tal qualidade do
personagem se apresenta efetivamente apenas no acircmbito guerreiro sendo assim incapaz de
conter a sua ira
201
A ira do heroacutei sobretudo como uma predisposiccedilatildeo psicoloacutegica contrabalanccedila o caraacuteter
intermediaacuterio do personagem em seu eixo negativo Para a obra de Soacutefocles a ira (χόλος)
fomenta o caraacuteter excessivo de Aacutejax como um de seus componentes pois a peccedila traz ainda a
ideia de primitividade do personagem e especialmente a loucura divina que o acossa ponto
maior de expressatildeo de tal desmedida Para Oviacutedio tal sentimento de ira (ira) eacute ele mesmo o
elemento mais significativo para o excesso que moveraacute a accedilatildeo funesta do heroacutei Contudo para
ambas as versotildees de Aacutejax grega ou latina a empaacutefia tratada como uma superestima de valor
atribuiacutedo a si compotildee o alicerce desse sentimento descontrolado uma vez que eacute o
reconhecimento de um aparente ultraje agrave desonra que incita em proporccedilotildees iguais a
intensidade da ira que move o personagem Em ambas as obras a ira as percorre Em Aias ela
eacute nomeada duas vezes com o vocaacutebulo choacutelos e presente desde o proacutelogo no significativo
sintagma ldquopesado de coacutelerardquo (χόλῳ βαρυνθεὶς v 41) que qualifica o protagonista permenace
nele apoacutes a sua morte mesmo que natildeo expressa uma vez que no ecircxodo Teucro natildeo permite
que Odisseu participe efetivamente dos ritos fuacutenebres em especial o impedindo de tocar o
cadaacutever Isso conforme diz o irmatildeo do cadaacutever reflete os sentimentos de Aacutejax e como
podemos constatar alinha o episoacutedio em questatildeo com a tradiccedilatildeo homeacuterica na qual o
personagem iracundo nega qualquer reconciliaccedilatildeo com o Laertida quando do encontro dos
dois no Hades no Canto XI da Odisseia No Livro XIII de Metamorfoses tal sentimento eacute
nomeado com o vocaacutebulo ira por duas vezes O sintagma ldquonatildeo sustendo a irardquo inpatiens irae
revela que esse sentimento acossa o personagem mesmo antes de ele comeccedilar a discursar e
defender o seu valor Essa primeira menccedilatildeo jaacute nos adianta e sintetiza o contexto do episoacutedio
que retrata a ira incontinente como o elemento fundamental para sua ruiacutena E tal componente
se revela ser a uacutenica coisa (unam iram) que vence a resistecircncia do heroacutei dotado de toda uma
capacidade de resistecircncia que singulariza a sua virtude O seu suiciacutedio por fim fornece a
violecircncia necessaacuteria para compor a sua transformaccedilatildeo em uma flor puacuterpura oriunda do
sangue derramado do heroacutei motivo pelo qual tal mito se torna presente na obra
Com efeito esse segundo capiacutetudo dispotildee como esses dois elementos virtude e ira
recebem uma funccedilatildeo estrutural no entendimento do propoacutesito semacircntico de cada uma dessas
obras Tanto em Aias quanto em Metamorfoses o conjunto desses dois elementos eacute
imprescindiacutevel na construccedilatildeo do caraacuteter intermediaacuterio do heroacutei necessaacuterio para o valor
traacutegico alcanccedilado dentro desse episoacutedio funesto do mito de Aacutejax representado em ambas as
obras
202
O terceiro capiacutetulo deste trabalho apresenta as categorias transtextuais de Genette e as
aplica ao texto de Oviacutedio na busca de um diaacutelogo mais presente entre este autor latino e o
tragedioacutegrafo Soacutefocles especialmente na ressignificaccedilatildeo dos elementos virtude e ira
Nessa etapa apresentamos de forma abrangente os cinco tipos de transtextualidade a
saber a intertextualidade a paratextualidade a metatextualidade a arquitextualidade e a
hipertextualidade Contudo eacute especialmente acerca desta uacuteltima que nos detemos uma vez
que esta descreve a relaccedilatildeo na qual um texto parece ser derivado ou influenciado por uma
outra ou mais obras atraveacutes de transformaccedilotildees que repercutem sobretudo nos propoacutesitos
semacircnticos dos novos textos Assim entre as praacuteticas quantitativas pragmaacuteticas e modais da
hipertextualidade as quais tentamos observar na obra latina estatildeo o aumento e a reduccedilatildeo
que satildeo operaccedilotildees que no geral tratam de ampliar ou abreviar um texto cujo resultado eacute outra
obra as praacuteticas pragmaacuteticas de transmotivaccedilatildeo e transvalorizaccedilatildeo que representam aquelas
operaccedilotildees que modificam o curso das accedilotildees dentro do novo texto sobretudo para ressignificaacute-
las em um novo propoacutesito semacircntico seja ou alterando o grupo de motivos que movem o
personagem ou se investindo na caracterizaccedilatildeo deste de modo a lhe conferir um papel mais
significativo dentro do novo texto e as transmodalizaccedilotildees que tratam da modificaccedilatildeo do
modo ou no modo de representaccedilatildeo do hipotexto em especial de natureza narrativa ou
dramaacutetica
A parte final deste capiacutetulo para qual convergem todos os dados levantados em seccedilotildees
e capiacutetulos anteriores trata da observaccedilatildeo das praacuteticas transtextuais as quais teriam sido
utilizadas por Oviacutedio na estruturaccedilatildeo de seu episoacutedio do mito de Aacutejax sobretudo em relaccedilatildeo
a Soacutefocles Foi-nos possiacutevel ao longo da uacuteltima seccedilatildeo observar vaacuterias operaccedilotildees
transtextuais especialmente em diaacutelogo com as obras homeacutericas Contudo as mais
significativas no estabelecimento de uma transtextualidade com o tragedioacutegrafo grego satildeo
aquelas que atuam sobretudo no episoacutedio da loucura do Telamocircnio e aquelas que parecem
imitar as condensaccedilotildees de Soacutefocles em relaccedilatildeo aos textos homeacutericos
A excisatildeo ou seja a supressatildeo do episoacutedio da insanidade incutida por Atena na
versatildeo latina repercute semanticamente em sua composiccedilatildeo gerando-se expressivamente
tanto a transmotivaccedilatildeo da ira de modo a intensificaacute-la em relaccedilatildeo agrave peccedila grega quanto a
transvalorizaccedilatildeo do caraacuteter intermediaacuterio do personagem retomando-se as premissas
aristoteacutelicas traacutegicas aplicadas a uma eacutepica que se torna mais liacuterica e traacutegica do que o usual
As condensaccedilotildees de episoacutedios dos poemas homeacutericos operadas por Soacutefocles em sua
obra satildeo sobretudo utilizadas por Oviacutedio na configuraccedilatildeo da virtude defensiva e protetora do
heroacutei de Salamina Elas atuam no discurso do Telamocircnio vinculando-se aparentemente a
203
uma virtude romana cujo propoacutesito eacute a defesa da paacutetria da famiacutelia e dos aliados Por isso na
perspectiva de Aacutejax suas accedilotildees e seus meacuteritos satildeo maiores significativamente aos do
oponente cujos atos visam apenas a si Dessa forma tais condensaccedilotildees reforccedilam e refletem o
discurso de soberba do heroacutei em relaccedilatildeo ao seu valor uma caracteriacutestica que parece ser
intensificada ou transmotivada na versatildeo de Oviacutedio quanto agrave peccedila de Soacutefocles Uma vez
que a empaacutefia do personagem da versatildeo latina repercute em uma ira que diferentemente da
versatildeo grega inicia-se antes mesmo da disputa pelas armas de Aquiles a ira profunda e
incontida desencadeada por tal soberba fomenta o suiciacutedio do heroacutei sem a necessidade do
episoacutedio da loucura Este uacuteltimo episoacutedio como bem sabemos promove a desonra e o ultraje
maacuteximos para a morte do protagonista de Aias
Certamente com a conclusatildeo deste trabalho por um lado acreditamos ter apontado
uma relaccedilatildeo expressiva entre autores latinos e tragedioacutegrafos gregos no que diz respeito ao
acircmbito da Literatura Comparada em especial a um de seus campos a transtextualidade
teorizada por Genette mas conhecida abragentemente pelo nome de intertextualidade Aleacutem
disso foi possiacutevel reconhecer em certo grau o status de texto matriz absoluto dos poemas
homeacutericos uma vez que o trabalho de caracterizaccedilatildeo dos heroacuteis gregos presente em sua obra
repercute significativamente na obra latina estudada por noacutes Por outro lado tambeacutem
esperamos ter contribuiacutedo com os estudos comparados da Literatura Claacutessica fomentando
metodologia e dados significativos para outros trabalhos que visem a estabelecer diaacutelogos
entre autores latinos e gregos e entre estes uacuteltimos em especial os tragedioacutegrafos
204
REFEREcircNCIAS
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1
Felipe dos Santos Almeida
TRANSTEXTUALIDADE ENTRE SOacuteFOCLES E OVIacuteDIO
virtude e ira na caracterizaccedilatildeo de Aacutejax
Tese apresentada ao Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Letras da Universidade Federal da Paraiacuteba como requisito para obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Doutor em Letras Aacuterea de concentraccedilatildeo Linguagens e Cultura Orientador Prof Dr Milton Marques Juacutenior
Joatildeo Pessoa 2017
A447t Almeida Felipe dos Santos Transtextualidade entre Soacutefocles e Oviacutedio virtude e ira na caracterizaccedilatildeo de Aacutejax Felipe dos Santos Almeida - Joatildeo Pessoa 2017 210 f il
Orientaccedilatildeo Milton Marques Juacutenior Tese (Doutorado) - UFPBCCHLA
1 Literatura comparada 2 Literatura claacutessica 3 Oviacutedio-Soacutefocles I Marques Juacutenior Milton II Tiacutetulo
UFPBBC
Catalogaccedilatildeo na publicaccedilatildeoSeccedilatildeo de Catalogaccedilatildeo e Classificaccedilatildeo
3
Dedico este trabalho aos meus pais responsaacuteveis maiores pela minha educaccedilatildeo
4
AGRADECIMENTOS
Aos meus amados pais por toda dedicaccedilatildeo afeto esforccedilo e paciecircncia
Agrave minha Preta Raiacutera pela companhia amizade apoio carinho e amor e especialmente por Rebeca
Aos professores Milton e Juvino pela confianccedila pela orientaccedilatildeo em minha vida profissional e pessoal e pela amizade
Agraves minhas queridas irmatildes pela boa Eacuteris
A Andreacute Cassiano Diego Faacutebios (Cabeccedila e Xuxa) Falcatildeo Guigo Gregoacuterio Jorge Juacutelio Vitor Joffison Bela Magno Dudu e Paulinho pela longa amizade construiacuteda nesses anos e pelos domingos compartilhados
A Moacir Dioacutegenes Hermes Marco Alcione e Anderson pela amizade
Aos demais familiares amigos e professores por terem me ajudado e orientado na construccedilatildeo de meus conhecimentos profissionais e pessoais
A Gary Gygax e Dave Arneson pela imaginaccedilatildeo e pela inspiraccedilatildeo
Aos deuses pela vida
5
RESUMO
O objetivo deste trabalho eacute estudar a intertextualidade entre a obra Metamorfoses de Oviacutedio
autor latino e a peccedila Aias de Soacutefocles tragedioacutegrafo grego Esse estudo de Literatura
Comparada tem como foco a caracterizaccedilatildeo do personagem Aacutejax Entretanto a nossa anaacutelise
restringe tal caracterizaccedilatildeo a dois elementos recorrentes em heroacuteis da Literatura Claacutessica a
virtude sobretudo guerreira e o sentimento de ira Para alcanccedilar tais objetivos
primeiramente apontamos como tais elementos estatildeo presentes na tradiccedilatildeo da literatura grega
arcaica do heroacutei em questatildeo em especial nos poemas homeacutericos os quais jaacute apresentam de
forma pioneira uma caracterizaccedilatildeo singular Nessas obras homeacutericas esse personagem jaacute eacute
notaacutevel pela sua virtude guerreira e pela sua grave coacutelera Em seguida analisamos
isoladamente as obras de Oviacutedio e Soacutefocles com o objetivo de reconhecer a importacircncia
desses dois elementos na composiccedilatildeo do caraacuteter desse personagem e no propoacutesito semacircntico
dos episoacutedios de cada uma delas Por fim apresentamos a teoria de Genette sobre
intertextualidade a qual nomeia de transtextualidade e na qual delimita uma tipologia a fim
de precisar suas variadas praacuteticas Baseados nessa teoria apontamos as operaccedilotildees realizadas
pelo autor latino que comprovam o aspecto transtextual de sua obra particularmente em
relaccedilatildeo ao tragedioacutegrafo grego contudo restritas agrave forma pela qual tais transformaccedilotildees satildeo
utilizadas para delinear o caraacuteter guerreiro e iracundo do heroacutei Aacutejax Para melhor
compreensatildeo das obras estudadas e da consequente anaacutelise dispomos uma traduccedilatildeo
instrumental do corpus citado no trabalho
Palavras-chave Literatura Comparada Literatura Claacutessica Oviacutedio Soacutefocles caracterizaccedilatildeo
literaacuteria Aacutejax
6
ABSTRACT
This work aims at studying the intertextuality between Ovidrsquos Metamorphosis and
Sophoclesrsquos play Aias This work of Comparative Literature focus on the characterization of
the hero Ajax However our analysis limits this characterization to two issues present on
Classical Literature heroes the virtue especially belligerent and the wrath To achieving
such purpose firstly we point how those issues are present on the archaic Greek literature
tradition of the studied hero particularly in Homeric poems which introduce in a pioneer
way a singular characterization In these Homeric works this character is already remarkable
by his warrior virtue and by his intense wrath Secondly we analyze Ovid and Sophoclesrsquo
literary works separately aiming at understanding the consequence of those two issues in the
characterization of such hero and in the semantic purpose of episodes in each work At last
we introduce Genettersquos theory about intertextuality which he names transtextuality and in
which he bounds a tipology to restrict its many types of operations Based on that theory we
present the operations fulfilled by the latin author that verify such transtextual issue in his
epic poem specially related to Sophoclesrsquo play Nevertheless they are restricted to the way
such operations act to compose the characterization of the belligerent and fiery hero Ajax To
understanding the literary works and the following analysis better we present a general
translation from the corpus mentioned on the present work
Keywords Comparative Literature Classical Literature Ovid Sophocles literary
characterization Ajax
7
SUMAacuteRIO
INTRODUCcedilAtildeO 8
1 A TRADICcedilAtildeO LITERAacuteRIA DO MITO DE AacuteJAX 12
1 1 A TRADICcedilAtildeO ARCAICA E OS POEMAS HOMEacuteRICOS 12
1 2 A TRADICcedilAtildeO CLAacuteSSICA 34
1 2 1 Aias de Soacutefocles 35
1 2 2 Metamorfoses de Oviacutedio 45
2 ESTUDO ISOLADO DA CARACTERIZACcedilAtildeO DO HEROacuteI 59
2 1 A VERSAtildeO DE SOacuteFOCLES 60
2 1 1 Ἀρετή a virtude do heroacutei na perspectiva grega 62
2 1 2 Χόλος a ira do heroacutei na perspectiva grega 78
2 2 A VERSAtildeO DE OVIacuteDIO 104
2 2 1 Virtus a virtude do heroacutei na perspectiva latina 107
2 2 2 Ira a ira do heroacutei na perspectiva latina 125
3 ESTUDO TRANSTEXTUAL DA CARACTERIZACcedilAtildeO DO HEROacuteI 143
3 1 TRANSTEXTUALIDADE A CONCEPCcedilAtildeO DE GENETTE 143
3 1 1 Praacuteticas hipertextuais transformaccedilotildees quantitativas pragmaacuteticas e modais 148
3 2 O EPISOacuteDIO TRANSTEXTUAL DE OVIacuteDIO 164
3 2 1 A virtude transtextual do heroacutei 169
3 2 2 A ira transtextual do heroacutei 182
CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS 199
REFEREcircNCIAS 204
8
INTRODUCcedilAtildeO
Haacute muito se procura por um conceito que defina Mito mas todas as tentativas
convergem eventualmente para uma mesma particularidade a narrativa no sentido de histoacuteria
elaborada pelo ato de narrar Maacuterio Vegetti nos mostra ao menos um paracircmetro para discernir
as narrativas miacuteticas dos gecircneros literaacuterios como eacutepica liacuterica e trageacutedia entre os povos
antigos ainda que atualmente tal perspectiva seja considerada dentro de certos limites Para
este autor as narrativas miacuteticas em torno das divindades e das forccedilas invisiacuteveis e
sobrenaturais que estatildeo presentes no universo e que tambeacutem o governam satildeo relatos
anocircnimos repetidos passados de geraccedilatildeo em geraccedilatildeo que funcionam como uma espeacutecie de
cataacutelogo do imaginaacuterio religioso (1994 p 37) ganhando forccedila exatamente devido ao seu
aspecto coletivo e impessoal que de caraacuteter sagrado remonta agraves origens de seu povo
atravessando o tempo e o espaccedilo Com efeito devemos ainda evidenciar que o mito eacute uma
ldquonarrativa aplicada como verbalizaccedilatildeo de dados complexos supra-individuais coletivamente
importantesrdquo (BURKERT 1991 p 18) e isso significa dizer que ele eacute o saber atraveacutes de
histoacuterias Esse conhecimento guardado nas narrativas era fundamental sobretudo para os
gregos e romanos da Antiguidade no entanto o imaginaacuterio que o detinha era de certa
maneira desordenado e caoacutetico Eacute a intervenccedilatildeo da literatura sobretudo da eacutepica que produz
uma seleccedilatildeo e um ordenamento capaz de reforccedilar a conservaccedilatildeo do caraacuteter fundamental
desses relatos o modo narrativo com o qual um determinado povo comunica e transmite o
conhecimento presente em sua cultura (VEGETTI 1994 p 37)
Naturalmente dessas narrativas miacuteticas se desdobra em seu acircmbito literaacuterio uma
transcendecircncia textual nomeada costumeiramente de intertextualidade no sentido de que os
poetas se referem aos anteriores articulando um texto uma trama ora respondendo-lhes ora
acrescentando-lhes mas permanecendo sempre a ideia de um diaacutelogo com as geraccedilotildees
anteriores Isso tem como consequecircncia a percepccedilatildeo de que Homero eacute o texto matriz absoluto
(GRAF 2006 p 110) especialmente acerca da mitologia greco-latina pois eacute evidente a sua
forte presenccedila nas literaturas grega e latina Com efeito por mais que sejam variadas as
versotildees de autores acerca de determinados mitos haacute para os poetas uma liberdade limitada
Recorre-se agrave tradiccedilatildeo miacutetica ao menos para se evitar causar um grande estranhamento ao
puacuteblico cujo imaginaacuterio mitoloacutegico lhe serve como base para a compreensatildeo da literatura e
da arte em geral (VERNANT 2006 p 25)
Inseridas nessa realidade de transcendecircncia textual as narrativas acerca do mito do
heroacutei grego Aacutejax se convergem nas literaturas grega e latina claacutessicas na trageacutedia Aias de
9
Soacutefocles e no Livro XIII da obra de Oviacutedio Metamorfoses Se estabelecemos como as
primeiras obras que tecircm registro dos relatos sobre esse heroacutei de Salamina a Iliacuteada e a
Odisseia de Homero podemos indicar essa intertextualidade de Soacutefocles e Oviacutedio
respondendo a Homero Contudo seria possiacutevel um diaacutelogo mais soacutelido entre a obras de
Soacutefocles e de Oviacutedio no que diz respeito ao mito desse personagem Certamente o
argumento de suas obras remonta a um episoacutedio importante da lenda desse heroacutei a contenda
pelas armas de Aquiles presente em Metamorfoses cujo desdobramento natural apoacutes a
vitoacuteria de Odisseu eacute a ira e o suiciacutedio do heroacutei derrotado presente na trageacutedia daquele A
partir dessa relaccedilatildeo evidente ateacute que ponto a obra de Oviacutedio se articula com a de Soacutefocles
que lhe eacute anterior Quais elementos literaacuterios de Soacutefocles satildeo reforccedilados e reiterados por
Oviacutedio em sua obra Ateacute onde a obra de Oviacutedio possibilita uma nova leitura da trageacutedia de
Soacutefocles ou uma leitura conjunta
Diante de todos esses questionamentos tentamos chegar a uma conclusatildeo a partir de
uma categoria analiacutetica que se afigura inerente agrave literatura greco-latina a intertextualidade
Contudo nosso objetivo eacute guiado sob a perspectiva da caracterizaccedilatildeo desse heroacutei grego que
parece ganhar ecircnfase no corpus por noacutes definido os 1420 versos da obra de Soacutefocles e os
versos 1 a 398 do Livro XIII da obra de Oviacutedio Em nosso recorte podemos observar a
relevacircncia das concepccedilotildees de virtude e de ira pois parecem alicerccedilar de algum modo o caraacuteter
desse personagem dentro das obras escolhidas Assim de forma mais especiacutefica conveacutem-nos
analisar como atraveacutes desses dois traccedilos do heroacutei as obras em questatildeo se relacionam entre si
Dessa forma tentaremos reconhecer ateacute que ponto a caracterizaccedilatildeo de Aacutejax desenvolvida
pelo autor grego eacute retomada pelo latino Para isso haacute de se considerar duas coisas A
primeira eacute considerar como base dos traccedilos do personagem marcas que remetam agraves noccedilotildees de
virtude e de ira presentes na sua imagem lendaacuteria sobretudo em Homero que figura a
iniciaccedilatildeo disso na tradiccedilatildeo literaacuteria A segunda eacute comparar tambeacutem ponderando o papel
estrutural dessas duas noccedilotildees ao argumento e agrave unidade tanto de Aias quanto do Livro XIII de
Metamorfoses
Devido a tal finalidade a intertextualidade tomada como categoria analiacutetica do nosso
estudo eacute considerada fundamental em nossa metodologia e por isso a ela estaacute reservada uma
seccedilatildeo proacutepria no uacuteltimo capiacutetulo O marco teoacuterico que guia esse trabalho eacute sobretudo a teoria
de Geacuterard Genette sobre tal concepccedilatildeo nas quais esse estudioso dispotildee ordenadamente toda
10
uma tipologia de variados niacuteveis de referecircncia intertextual unidos entre si sob uma
perspectiva mais geral e abrangente nomeada transtextualidade1 pelo autor
Para alcanccedilarmos esse fim de forma vaacutelida analisamos as obras individualmente e
comparadas considerando diretamente a liacutengua original de cada uma o grego e o latim
claacutessicos Em decorrecircncia disso satildeo imprescindiacuteveis para a nossa metodologia algumas
disposiccedilotildees especialmente teoacutericas as quais natildeo constituindo diretamente a categoria
proposta no trabalho natildeo exercem o mesmo papel no nosso estudo como a intertextualidade
e por isso satildeo apresentadas de forma sinteacutetica ou em notas explicativas e de rodapeacute
Tentamos dessa maneira evitar a sobrecarga textual sobretudo a teoacuterica que tanto interrompa
a sequecircncia loacutegica da leitura quanto tangencie nosso objetivo de forma digressiva com
conteuacutedo de relevacircncia indireta aos nossos propoacutesitos As principais informaccedilotildees dispostas
dessa maneira satildeo trecircs mas outras minoritaacuterias seguem os mesmos criteacuterios
A primeira eacute a caracterizaccedilatildeo para a qual vaacuterios estudos especiacuteficos sobre o caraacuteter do
personagem satildeo dispostos suprindo tal escolha mencionada acima Com efeito segundo esse
procedimento utilizamos o lato entendimento da concepccedilatildeo de Carlos Reis e de Ana Cristina
Lopes acerca de caracterizaccedilatildeo ou seja ela representa dentro do um plano narrativo os
atributos fundamentais de um personagem que estruturados em um conjunto de unidade
identificaacutevel e entrelaccedilados a outros componentes diegeacuteticos executam um papel saliente no
desenvolver da trama e reforccedilam o eixo semacircntico do argumento do texto (1988 p 193-195)
Considera-se tambeacutem que a proficuidade desse elemento no estudo de uma obra depende
frequentemente da posiccedilatildeo relativa que um determinado personagem ocupe na composiccedilatildeo do
enredo Mencionamos tambeacutem alguns elementos literaacuterios oriundos da Poeacutetica de Aristoacuteteles
os quais auxiliam grandemente as anaacutelises de caracteres
A segunda disposiccedilatildeo a ser considerada eacute o esclarecimento de determinados valores
religiosos eacuteticos morais sociais etc constantes no leacutexico e no vocabulaacuterio dessas obras
uma vez que trataremos de textos que remontam uma cultura antiga e que por isso
pressupotildeem uma miacutenima contextualizaccedilatildeo histoacuterica Autores que abordem tais assuntos como
Jean-Pierre Vernant Eacutemile Benveniste Marcel Detienne etc satildeo fundamentais
A terceira uma traduccedilatildeo instrumental que vise auxiliar a leitura do texto original
fornecendo para isso um reflexo morfossintaacutetico e por vezes etimoloacutegico uma vez que o
conteuacutedo dos fragmentos estudados e suas nuances significativas para o estudo seratildeo expostos
1 Ressaltamos que por todo o trabalho tambeacutem usaremos a grafia em itaacutelico para identificar quaisquer
terminologias teoacutericas com o propoacutesito por exemplo de distinguir o sentido mais abrangente de uma palavra como em intertextualidade do sentido especiacutefico fomentado ou natildeo por um determinado autor como em intextextualidade a qual se refere a um tipo determinado da transtextualidade formulada por Genette
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atraveacutes da proacutepria anaacutelise que segue agraves citaccedilotildees Por isso seu tratamento eacute menos semacircntico e
mais sintaacutetico Atentamos para esse propoacutesito as reflexotildees de Paulo Roacutenai John Milton e
Susan Bassnett Umberto Eco entre outros os quais ponderam os objetivos de uma traduccedilatildeo
Aleacutem disso destacamos que os textos originais das obras Metamorfoses de Oviacutedio e Aias de
Soacutefocles utilizados em nosso trabalho foram estabelecidos de forma filoloacutegica
respectivamente por Georges Lafaye e por Paul Mazon em ediccedilotildees da Les Belles Lettres e
estatildeo presentes nas referecircncias
De acordo com todos esses criteacuterios estruturamos esse trabalho em trecircs capiacutetulos O
primeiro sob a perspectiva da caracterizaccedilatildeo do mito de Aacutejax contextualiza e apresenta a
tradiccedilatildeo arcaica centrada em Homero bem como as obras que compotildeem o nosso corpus
Com essa contextualizaccedilatildeo das obras fornecemos subsiacutedios para delimitar os seus limites e
para discernir na obra de Oviacutedio o que eacute diaacutelogo com Homero e o que eacute referecircncia a Soacutefocles
se a ela houver Autores como Maria Helena da Rocha Pereira Jacqueline de Romilly Robert
Aubreton etc e alguns estudos especiacuteficos acompanhados de nossas observaccedilotildees compotildeem
essa primeira parte O segundo capiacutetulo dispotildee uma anaacutelise per se das obras do corpus
considerando-se o papel exercido pela caracterizaccedilatildeo do heroacutei na unidade e no argumento das
mesmas percebendo-a sob o ponto de vista das noccedilotildees de virtude e de ira Estudos especiacuteficos
e tradutores das obras em questatildeo tambeacutem satildeo considerados em nossa anaacutelise O terceiro
expotildee os princiacutepios intertextuais de Geacuterard Genette os quais nomeia transtextualidade e
pelos quais comparamos ainda neste momento os resultados obtidos a partir do capiacutetulo
anterior para chegarmos a alguma conclusatildeo acerca dos niacuteveis de influecircncia de Soacutefocles em
Oviacutedio Eacute importante ressaltar que a teoria desse criacutetico francecircs aborda em especial aspectos
temaacuteticos e estiliacutesticos e noacutes tentaremos adequar tais premissas ao estudo da caracterizaccedilatildeo
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1 A TRADICcedilAtildeO LITERAacuteRIA DO MITO DE AacuteJAX
Propomo-nos aqui a contextualizar as obras Aias de Soacutefocles e Metamorfoses de
Oviacutedio sobretudo seu Livro XIII convergindo os estudos deste capiacutetulo para a caracterizaccedilatildeo
do personagem Aacutejax sob o vieacutes das noccedilotildees de ira e de virtude e considerando a influecircncia da
tradiccedilatildeo arcaica da literatura grega sobretudo nas obras dos autores aqui estudados Com
efeito para estudarmos mais validamente a intertextualidade entre a caracterizaccedilatildeo desse
heroacutei nas obras de Oviacutedio e de Soacutefocles que figuram uma tradiccedilatildeo claacutessica devemos
reconhecer quando no processo de retomada do mito haacute uma influecircncia de autores que lhe
satildeo anteriores e que consolidaram a imagem que temos dessas figuras mitoloacutegicas
Entendemos como base de representaccedilatildeo dessa tradiccedilatildeo arcaica as epopeias homeacutericas Iliacuteada
e Odisseia uma vez que seus modelos influenciam diretamente toda a cultura literaacuteria greco-
latina posterior
Neste capiacutetulo observando-se a composiccedilatildeo estrutural das obras estudadas
ressaltaremos os procedimentos literaacuterios e os traccedilos estiliacutesticos que contribuam para a nossa
anaacutelise e possibilitem uma melhor contemplaccedilatildeo do nosso objetivo Para isso servimo-nos de
vaacuterios estudos que tanto estabelecem linhas gerais de interpretaccedilatildeo das obras
contextualizando-as quanto dentro do possiacutevel apresentam material relacionado ao tema
proposto por noacutes como base para intertextualidade situando-o sob a perspectiva do nosso
objetivo Contudo vejamos antes a caracterizaccedilatildeo do personagem escolhido para estudo
dentro das obras arcaicas
1 1 A TRADICcedilAtildeO ARCAICA E OS POEMAS HOMEacuteRICOS
Homero eacute o herdeiro da memoacuteria de um povo de cultura oral e teria elaborado suas
narrativas a partir de antigos mitos de base religiosa (AUBRETON 1968 p 154-155) Essa
mitologia grega contribui acima de tudo para uma longa tradiccedilatildeo artiacutestica da Greacutecia arcaica
da qual com exceccedilatildeo de Homero utilizaremos nesta seccedilatildeo de maneira pontual apenas
Piacutendaro poeta liacuterico grego do periacuteodo arcaico por contribuir para o nosso propoacutesito
Com efeito a partir de informaccedilotildees centradas nas obras de Homero dispostas aqui
tentaremos ressaltar como vaacuterios elementos constituintes do estilo e da linguagem homeacutericos
contribuem para a profiacutecua caracterizaccedilatildeo de seus personagens tornando pertinente um
estudo mais profundo dos mesmos sobretudo em poetas posteriores os quais retomam essa
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tradiccedilatildeo arcaica Assim seraacute possiacutevel compreender como se apresenta o contorno das vaacuterias
figuras dos heroacuteis miacuteticos presentes nessas epopeias e entre estes a de Aacutejax foco deste
estudo Para isso tambeacutem recorreremos a anaacutelises e estudos de alguns criacuteticos que subsidiaratildeo
a complexidade das caracterizaccedilotildees homeacutericas delineando o perfil desses heroacuteis atestada pela
consciecircncia de linguagem do autor e pela sua maturidade artiacutestica proacuteprias de toda grande
literatura
Antes contudo eacute importante justificar mesmo que brevemente essa preferecircncia por
Homero determinante do objetivo desta seccedilatildeo Para alcanccedilarmos tal finalidade deve-se
reconhecer a enorme influecircncia da tradiccedilatildeo literaacuteria da Greacutecia arcaica na literatura claacutessica
seja grega ou latina sobretudo da homeacuterica A influecircncia das epopeias homeacutericas sobre os
gregos estaacute presente desde o seacuteculo VII a C tornando-se literariamente preponderante no
seacuteculo V a C (AUBRETON 1968 p 328) a exemplo maior dos tragedioacutegrafos e da
concepccedilatildeo aristoteacutelica de literatura contida na Poeacutetica que representa primeira teorizaccedilatildeo
literaacuteria manifestada no Ocidente
Homero que se torna o grande educador grego devido ao alcance de sua obra nos
seacuteculos que lhe satildeo posteriores eacute marcadamente imitado seu vocabulaacuterio fixado como liacutengua
e sua obra se torna base para o aprendizado de vaacuterios conteuacutedos sejam morais sociais
histoacutericos etc Sua concepccedilatildeo divina ainda exerce autoridade inclusive sobre a religiatildeo
helecircnica o que faz por exemplo Platatildeo fomentando uma nova reflexatildeo sobre as divindades
censurar na Repuacuteblica alguns de seus episoacutedios Esse prestiacutegio o faz ateacute mesmo inaugurar a
literatura latina atraveacutes da traduccedilatildeo da Odisseia por Liacutevio Androcircnico transformando-se em
obra base para o aprendizado da leitura das crianccedilas romanas (Ibidem p 329) Esse fato eacute de
tal forma contundente que favorece a compreensatildeo da forccedila que essas epopeias exercem
diretamente na literatura latina cuja maior expressatildeo eacutepica eacute a Eneida de Virgiacutelio reflexo
direto dos moldes homeacutericos Disso tambeacutem podemos conjecturar a forccedila exercida dentro da
proacutepria literatura grega
Tal influecircncia manifestada pelo diaacutelogo constante de uma geraccedilatildeo com as que lhe satildeo
anteriores ora concordante de ideias ora divergente natildeo se revela apenas na evoluccedilatildeo
literaacuteria e por isso entendemos todas renovaccedilotildees de conteuacutedo de forma etc que se
desenvolvem ao longo do tempo Apesar de sua natureza predominantemente eacutepica podemos
citar por exemplo elementos literaacuterios mesmo que de forma embrionaacuteria presentes nessas
obras os quais posteriormente seratildeo desenvolvidos e atribuiacutedos por vaacuterios estudiosos aos
gecircneros liacuterico e traacutegico como suas marcas distintivas No entanto afastando-nos dessas
disposiccedilotildees mais gerais noacutes frisamos aqui um elemento mais especiacutefico e adequado ao
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nosso estudo de caso a evoluccedilatildeo dos mitos que apresentam a figura dos heroacuteis lendaacuterios da
Greacutecia
Para entender melhor a evoluccedilatildeo desses mitos e sobretudo o papel de Homero sobre
ela eacute necessaacuterio entender que a construccedilatildeo individual de um poeta acerca de uma figura
miacutetica natildeo eacute uma elaboraccedilatildeo completamente livre da tradiccedilatildeo Segundo Jean-Pierre Vernant
as mais variadas versotildees dos mitos apresentam uma determinada limitaccedilatildeo pois por mais
inovadoras que sejam elas estatildeo inscritas em uma tradiccedilatildeo na qual se apoiam e agrave qual se
referem sobretudo se considerarmos o pleno entendimento pelo puacuteblico (2006 p 25) Louis
Gernet sobre isso jaacute havia afirmado que os poetas respeitavam uma espeacutecie de imaginaccedilatildeo
lendaacuteria e isso implicava uma coerecircncia estrutural e funcional agrave qual os autores de alguma
maneira se submetiam (apud VERNANT 2006 p 25)
Para o nosso trabalho as obras homeacutericas satildeo essenciais especialmente por dois
motivos O primeiro devido a seu caraacuteter literaacuterio iniciaacutetico dos caracteres desses heroacuteis
miacuteticos contidos no ciclo da guerra de Troia ou seja essas epopeias representam o ponto de
partida literaacuterio dos traccedilos distintivos dos personagens incluiacutedos nessas narrativas O segundo
motivo devido ao seu papel fundamental no entendimento dos vaacuterios contornos que esses
personagens da mitologia grega recebem na literatura claacutessica a partir do diaacutelogo com os
textos homeacutericos comprovadamente atestado por vaacuterios estudos Em ambos os motivos isso
inclui Aacutejax foco de nosso estudo e sua concepccedilatildeo pelos autores posteriores a Homero A
Iliacuteada e a Odisseia nos revelam assim os pontos significativos das qualidades individuais do
heroacutei em questatildeo tanto no mito de uma forma geral quanto no episoacutedio que envolve a
disputa pelas armas de Aquiles evento indispensaacutevel na fabulaccedilatildeo da obra Aias de Soacutefocles
e da Metamorfoses de Oviacutedio
Colocando de lado questotildees de justificativa passemos a observar as obras homeacutericas a
partir de informaccedilotildees pertinentes ao estudo da caracterizaccedilatildeo que eacute o cerne da nossa
comparaccedilatildeo intertextual proposta
Os heroacuteis das obras homeacutericas satildeo frequentemente reis de linhagem divina E apesar
da presenccedila de outras figuras mais simples especialmente na Odisseia estas orbitam o
universo de personagens pertencentes a uma espeacutecie de nobreza a priori composta de
homens superiores Explicando melhor esse contexto Jacqueline de Romilly afirma que a
epopeia homeacuterica ldquoreflete entatildeo um mundo aristocraacutetico cujas virtudes satildeo igualmente
aristocraacuteticasrdquo (1984 p 37) E a moral heroica presente nas obras assegura Claude Mosseacute
tem como base valores que correspondem aos de uma aristocracia guerreira os quais se
manifestam em combates representativos de um mundo de guerras da Greacutecia arcaica o que
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justifica a constante busca pela gloacuteria guerreira que tornaraacute ο heroacutei imortal (1989 p 46)
Inserido em uma civilizaccedilatildeo de natureza guerreira esse representante aristocraacutetico eacute impelido
por dois aspectos da gloacuteria o kyacutedos (κῦδος) e a kleacuteos (κλέος) O primeiro de origem divina
representa um favorecimento momentacircneo dos deuses com o qual os heroacuteis executam seus
grandes feitos o segundo de origem humana eacute a fama que desenvolve de boca em boca
atraveacutes de vaacuterias geraccedilotildees o que destaca sobretudo no papel do poeta para a cultura arcaica a
sustentaccedilatildeo dessa gloacuteria alcanccedilada (DETIENNE 2013 p 21)
Contudo eacute salutar destacar esses ainda satildeo marcadamente homens ou seja embora
tais personagens possuam uma estirpe particular e por meio de atributos decorrentes dessa
origem executem muitas vezes proezas fora do comum eles ainda cultivam virtudes
essencialmente humanas (ROMILLY 1984 p 37) Por isso manifestam emoccedilotildees
impulsionadas pelas tensotildees internas do enredo decorrentes das situaccedilotildees de conflito nas
quais estatildeo inseridos desse modo revelando-nos e lhes conferindo uma identidade
inerentemente humana
Os personagens homeacutericos natildeo satildeo analisados pelo autor mas satildeo mostrados em plena
accedilatildeo na guerra nos rituais no mar no acircmago do ambiente familiar Tambeacutem a esses Homero
concede a palavra por meio do discurso direto um recurso extremamente recorrente em sua
obra (Ibidem p 40) Essa mescla de estilos compotildee tanto a Iliacuteada quanto a Odisseia ora de
base oratoacuteria ora narrativa ora descritiva servindo para se ressaltarem marcadamente tais
accedilotildees dos personagens E isso parece ter como consequecircncia um reforccedilo no delineamento do
caraacuteter dessas figuras fato evidente nas obras em questatildeo
Segundo Walter Donlan a construccedilatildeo de personagens mais reais eacute um iacutendice de
maturidade artiacutestica e uma literatura madura se faz quando a mesma eacute capaz de produzir
caracterizaccedilotildees complexas dessa maneira (1970 p 259) A Iliacuteada por exemplo mesmo
representando o marco inicial da literatura ocidental natildeo pode ser vista de maneira alguma
como um trabalho primitivo Sua genialidade no tratamento da caracterizaccedilatildeo distinta dos
personagens eacute um dos motivos que lhe concede o grau de grande obra literaacuteria inserindo a
produccedilatildeo literaacuteria da Greacutecia arcaica dentro dessa concepccedilatildeo de literatura madura Isso parece
ocorrer conforme Donlan contrariamente ao modelo que se estrutura em uma determinada
quantidade de arqueacutetipos como o grande guerreiro o veneraacutevel rei ou o velho saacutebio
dispostos em uma tipologia variada de situaccedilotildees como o combate singular a jornada para
casa etc muito evidentes tambeacutem nos mitos e contos folcloacutericos de quaisquer culturas
sobretudo as orais Com efeito os marcadamente personagens principais por esse autor a
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saber Aquiles Agamecircmnon e Heitor estatildeo bastante longe de ser um estoque de arqueacutetipos
em um estoque de situaccedilotildees (Ibidem p 261)
Evidentemente haacute personagens que acabam se tornando mais proacuteximos a esses
arqueacutetipos de maneira que natildeo crescem e em contrapartida soacute cumprem uma funccedilatildeo
determinada embora afirma Donlan seja possiacutevel observar ainda uma sofisticada variaccedilatildeo
desses modelos nos heroacuteis homeacutericos quando da representaccedilatildeo dessas figuras menores
Contudo mais ou menos elaborados os personagens de Homero satildeo bem delineados e
consistentes afastando de si a tipologia primaacuteria e se mostrando indiviacuteduos distintos entre si
(Ibidem p 263)
Com efeito a caracterizaccedilatildeo homeacuterica faz com que determinados traccedilos de
personalidade emerjam quando os personagens satildeo dispostos em situaccedilotildees de conflito que
demandem uma accedilatildeo consonante com suas caracteriacutesticas individuais Isso permite que eles
desenvolvam entidades psicoloacutegicas e alguns com elaboraccedilatildeo extremamente singular Na
Iliacuteada como exemplo destes uacuteltimos Aquiles sofre aprende toma decisotildees dolorosas e
assim mostra-se possuidor de uma verdadeira personalidade Outros menos elaborados
devido a uma participaccedilatildeo mais funcional na obra tecircm ainda a caracterizaccedilatildeo plenamente
formada e potencialmente desenvolvida mas natildeo manifestada e evoluiacuteda dentre de
circunstacircncias propiacutecias para os vermos crescer tal qual exemplifica Donlan Odisseu e Aacutejax
os quais soacute concretizaratildeo tal potencial como eacute comum a muitos personagens homeacutericos em
outras obras respectivamente a Odisseia do mesmo autor e Aias de Soacutefocles (Ibidem p
265-266)
Por isso a psicologia elaborada entre vaacuterios heroacuteis eacute entatildeo completamente distinta e
corroborando o que foi exposto acima ldquoagraves vezes em plena evoluccedilatildeordquo (AUBRETON 1968 p
289) Ainda segundo Robert Aubreton por meio de todos esses recursos Homero teria
vivificado os personagens de forma particular tornando-os profundamente humanos e dotados
de uma personalidade proacutepria (Ibidem p 289)
Para este autor um estudo pertinente dos caracteres homeacutericos deve recorrer ao jogo
de correspondecircncias promovidos dentro das obras Dois pontos satildeo notadamente pontuados
dentro dessa perspectiva O primeiro corresponde agrave oposiccedilatildeo de caraacuteter pelo qual eacute possiacutevel
de forma antiteacutetica delinear o que pode ser atribuiacutedo preponderantemente a um e a outro
personagem O segundo agrave recorrecircncia de traccedilos reiterados por toda a obra os quais formam
uma coerente unidade de caracterizaccedilatildeo dos vaacuterios heroacuteis (Ibidem p 258)
Dentro do estilo homeacuterico como jaacute dissemos ora narrativo ora descritivo eacute vasto o
nuacutemero de recursos oratoacuterios e outros linguiacutesticos que reforccedilam esse jogo de
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correspondecircncias Segundo Maria Helena da Rocha Pereira (2012 p 72-73) entres eles a
analepse a apoacutestrofe a anaacutefora a metaacutefora o siacutemile o epiacuteteto e outras Conveacutem
evidenciarmos os uacuteltimos dois pois parecem-nos as mais aparentemente profiacutecuas
ferramentas pelas quais Homero salienta e reforccedila as marcas que delineiam o caraacuteter dos
personagens sobretudo segundo o pensamento supracitado de Robert Aubreton
O primeiro o siacutemile segundo Geoffrey Kirk eacute uma das gloacuterias da Iliacuteada deixando o
conteuacutedo mais perto do entendimento do ouvinte (apud Ibidem p 73) ou segundo Hermann
Fraumlnkel refreia de maneira significativa ldquoa accedilatildeo em curso para intercalar uma imagem de
conjunto da situaccedilatildeordquo (apud Ibidem p 74) Com efeito esse recurso marca mais
propriamente o contorno dos personagens uma vez que tendo geralmente como origem
fenocircmenos e elementos da natureza vaacuterias atividades humanas e dos animais sobretudo a do
pastor e dos animais de rapina acaba por atribuir traccedilos recorrentes e singulares aos heroacuteis
permitindo-nos perceber determinadas unidades na sua caracterizaccedilatildeo Esse recurso eacute tatildeo
eficiente na Iliacuteada que natildeo houve epopeia posterior que natildeo a imitasse afirma Rocha Pereira
(Ibidem p 76)
O segundo o epiacuteteto converge para o mesmo propoacutesito intensificando-se quando a
partir da divisatildeo de Milman Parry (apud Idem 1984 p 4) reconhecemos os nomeados
geneacutericos aplicaacuteveis a qualquer heroacutei e os distintivos aplicaacuteveis a poucos ou a somente um
Por mais que o epiacuteteto seja uma foacutermula de mecanismo mnemocircnico das culturas orais e por
isso revelando uma relaccedilatildeo intriacutenseca com o esquema meacutetrico da epopeia ora ocupando um
hemistiacutequio ora mais complexo compreendendo vaacuterios versos para Rocha Pereira estes
uacuteltimos os distintivos vatildeo aleacutem disso pois contribuem sob um vieacutes literaacuterio para a melhor
caracterizaccedilatildeo do personagem adequando-se assim ao contexto uma qualidade especiacutefica e
permitindo-se uma melhor compreensatildeo do momento no qual estatildeo inseridos (Ibidem p 5)
Vejamos agora como estes elementos contribuem para o estudo de caso desta seccedilatildeo a
caracterizaccedilatildeo do personagem Aacutejax dentro das obras homeacutericas
Natildeo fugindo agrave regra o heroacutei em questatildeo pertence agrave aristocracia eacute filho de Teacutelamon o
rei de Salamina e descendente de Zeus segundo a mitologia grega que constitui as narrativas
do ciclo da guerra de Troia (GRIMAL 2005 p 16) Com efeito seguindo os paracircmetros de
Robert Aubreton mencionados acima esse personagem tende a ser visto sob duas
perspectivas mais gerais que se estabelecem a partir da dinacircmica de correspondecircncias a
primeira definida a partir de uma relaccedilatildeo comparativa com Aquiles e com Odisseu conduzida
especialmente tanto pela Iliacuteada e quando pela Odisseia e a segunda igualmente importante
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para o nosso estudo a partir de suas reiteradas caracteriacutesticas proacuteprias marcadamente
reconhecidas nessas obras
Comecemos pela primeira visatildeo mais geral acerca da caracterizaccedilatildeo desse
personagem Essa apreciaccedilatildeo tende sempre a destacar traccedilos desse heroacutei a partir da
comparaccedilatildeo com outro heroacutei grego Aquiles especialmente porque esse procedimento ocorre
inclusive dentro da obra homeacuterica Se por um lado o Pelida eacute considerado o melhor dos
Aqueus por outro o Telamocircnio eacute tratado como o melhor depois de Aquiles Isso se realccedila no
Canto II da Iliacuteada sobretudo devido agrave retirada da batalha por este ainda no Canto I Quatro
menccedilotildees a essa denominaccedilatildeo satildeo vistas nas obras homeacutericas duas na Iliacuteada uma no Canto II
e outra no XVII e duas na Odisseia ambas no Canto XI aleacutem de pelo menos uma outra
aparecer ainda na considerada tradiccedilatildeo arcaica nas Odes Nemeias VII de Piacutendaro
Especialmente na primeira obra essas menccedilotildees parecem ser bem significativas enquanto
foacutermulas homeacutericas para o nosso estudo Por serem precisamente os epiacutetetos distintivos jaacute
elucidado anteriormente contextualizando o momento e contribuindo para o argumento do
Canto tornam-se essenciais para nossa exposiccedilatildeo
No Canto II trata-se do cataacutelogo das naus Esse momento tem como argumento a
enumeraccedilatildeo dos heroacuteis gregos que foram agrave guerra de Troia Eacute neste ponto em que se faz a
primeira referecircncia a primazia do heroacutei
Οὗτοι ἄρ ἡγεμόνες Δαναῶν καὶ κοίρανοι ἦσανmiddot 760 τίς τὰρ τῶν ὄχ ἄριστος ἔην σύ μοι ἔννεπε Μοῦσα αὐτῶν ἠδ ἵππων οἳ ἅμ ᾿Ατρεΐδῃσιν ἕποντο
[] ἀνδρῶν αὖ μέγ ἄριστος ἔην Τελαμώνιος Αἴας ὄφρ ᾿Αχιλεὺς μήνιενmiddot ὃ γὰρ πολὺ φέρτατος ἦεν ἵπποι θ οἳ φορέεσκον ἀμύμονα Πηλεΐωνα2 770
(Iliacuteada II v 760-763768-770)
Eacute importante ressaltar que todos inclusive os mortos e o momentaneamente ausente
Aquiles satildeo descritos contudo o narrador invoca a musa para lhe revelar quem seria o melhor
guerreiro dos Aqueus naquele momento eacute nomeadamente Aacutejax Essa eacute uma foacutermula
bastante repetida a qual apresenta a superioridade desse heroacutei relacionada agrave ausecircncia de
Aquiles quando do episoacutedio de sua desonra e consequente retirada Ocupando um verso e
meio em uma clara disposiccedilatildeo formular o epiacuteteto se concentra no sintagma formado por 2 Estes eram dos Dacircnaos os condutores e chefes (v 760) Tu musa dize-me qual era o melhor deles os quais
seguiram os Atridas como tambeacutem o de seus cavalos [] O melhor dos heroacuteis era o ingente Aacutejax Telamocircnio enquanto Aquiles se enfurecia pois este era o mais bravo e tambeacutem [eram] os cavalos que carregavam o excelente Pelida (v 770)
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superlativo melhor dos heroacuteis ἄριστος ἀνδρῶν que distingue sua superioridade dos demais
Tambeacutem eacute oacutebvio apontar que isso se assemelha ao epiacuteteto atribuiacutedo ao Pelida pois tem como
base o mesmo superlativo
O Canto XVII se refere ao episoacutedio da morte de Paacutetrocles A cena disposta abaixo
extremamente relevante para compreendermos a figura de Aacutejax encontra-se logo apoacutes a
morte daquele heroacutei Eacute o episoacutedio dos combates pelo seu cadaacutever
[] μάλα γάρ σφεας ὦκ ἐλέλιξεν Αἴας ὃς περὶ μὲν εἶδος περὶ δ ἔργα τέτυκτο τῶν ἄλλων Δαναῶν μετ ἀμύμονα Πηλεΐωνα3
(Iliacuteada XVII v 277-279)
Nesse ponto mais uma vez se atribui ao heroacutei a primazia guerreira devido agrave ausecircncia
de Aquiles Uma vez que este natildeo pode proteger o corpo do amigo dileto eacute o Telamocircnio que
o cumpre inclusive liderando os gregos para o retornar aos combates em defesa do cadaacutever
do grego morto A foacutermula dessa passagem de estrutura menos oacutebvia abrange dois versos
inteiros Concentra seu significado no verbo teyacutecho τεύχω que sobretudo na obra homeacuterica
tem o sentido de elevar-se Esse epiacuteteto apareceraacute outra vez na Odisseia como veremos mais
agrave frente tal qual disposto nesses versos
A Odisseia tambeacutem faz duas referecircncias a essa qualidade distinta do heroacutei As duas
estatildeo inseridas no Canto XI quando da descida de Odisseu ao Hades Os fragmentos abaixo
referem-se ao encontro de Odisseu com as sobras de Agamecircmnon de Aquiles e do proacuteprio
personagem estudado Como esse Canto compotildee a analepse do narrador autodiegeacutetico eacute
necessaacuterio entender que diferentemente da Iliacuteada aqui os epiacutetetos natildeo satildeo mencionados pelo
narrador externo mas pelo proacuteprio Odisseu fato que corrobora marcadamente o
reconhecimento pelos demais gregos do valor do heroacutei
ἦλθε δ ἐπὶ ψυχὴ Πηληϊάδεω ᾿Αχιλῆος καὶ Πατροκλῆος καὶ ἀμύμονος ᾿Αντιλόχοιο Αἴαντός θ ὃς ἄριστος ἔην εἶδός τε δέμας τε τῶν ἄλλων Δαναῶν μετ ἀμύμονα Πηλεΐωνα4 470
(Odisseia XI v 467-470)
3 Pois muito rapidamente os [gregos] fez voltar Aacutejax que em relaccedilatildeo tanto ao aspecto quanto aos trabalhos
eleva-se dos outros Dacircnaos depois do excelente Pelida 4 Chegou a seguir a alma do Pelida Aquiles e de Paacutetrocles e do excelente Antiacuteloco e tambeacutem a de Aacutejax que
era o melhor em relaccedilatildeo tanto ao aspecto quanto ao porte dos outros Dacircnaos depois do excelente Aquiles (v 470)
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Nesse fragmento a foacutermula ocupa dois versos inteiros em uma variaccedilatildeo jaacute apontada
no recorte anterior Novamente o epiacuteteto se fortalece com o superlativo melhor ἄριστος
reiterado significativamente para salientar a qualidade distintiva do heroacutei A foacutermula
atributiva deste de alguma maneira se contrapotildee expressivamente ao resultado da disputa
pelas armas de Aquiles Pois uma vez que Aacutejax natildeo recebe como precircmio as armas do Pelida
mesmo ressaltando-se ser ele o melhor entre os dacircnaos depois de Aquiles isso parece gerar
uma aparente contradiccedilatildeo e ateacute provocar ou exigir nos ouvintes ou leitores da obra a simpatia
do Telamocircnio intensificando-se o teor liacuterico e traacutegico da passagem uma vez que seu
profundo rancor eacute natildeo soacute justificaacutevel mas tambeacutem coerente sobretudo se considerando o
reconhecimento elevado do proacuteprio valor do heroacutei como veremos mais agrave frente
Vejamos mais uma passagem significativa ainda presente no Canto XI da Odisseia
τοίην γὰρ κεφαλὴν ἕνεκ αὐτῶν γαῖα κατέσχεν Αἴανθ ὃς περὶ μὲν εἶδος περὶ δ ἔργα τέτυκτο 550 τῶν ἄλλων Δαναῶν μετ ἀμύμονα Πηλεΐωνα5
(Odisseia XI v 549-551)
Nesses versos vemos o mesmo epiacuteteto presente no Canto XVII da Iliacuteada Mais uma
vez a primazia do heroacutei eacute referida pelo verbo τεύχω Esse eacute o momento em que Odisseu
encontra a alma de Aacutejax e este lhe recusa a reconciliaccedilatildeo Mais uma oposiccedilatildeo se faz o
epiacuteteto se contrapotildee agrave imagem do heroacutei Esta uacuteltima descrevendo o personagem coberto pela
terra referecircncia ao seu suiciacutedio morte indigna na perspectiva guerreira do heroacutei grego A
oposiccedilatildeo se constroacutei sobretudo pela distinccedilatildeo superior de sua aparecircncia e de seu aspecto
εἶδος referidos no epiacuteteto agrave imagem suja e maculada pela qual se apresenta Com efeito uma
sugestatildeo oacutebvia ao menos na perspectiva do heroacutei de sua honra manchada e conspurcada
Logo mais uma vez se adensa sua supremacia guerreira de sua figura miacutetica contrastando-se
a isso o potencial liacuterico e traacutegico da passagem
Na sua Ode Nemeia VII Piacutendaro poeta liacuterico inserido no fim o periacuteodo arcaico grego
retrata o heroacutei de acordo com essa mesma concepccedilatildeo configurada por epiacutetetos claramente
homeacutericos A narrativa miacutetica eacute inserida nesse epiniacutecio segundo um dos traccedilos do proacuteprio
poeta ou seja natildeo constituindo o proacuteprio cerne das odes mas visando dar sustentaccedilatildeo aos
elogios aos vencedores nelas celebrados frequentemente apoiando as maacuteximas exigentes de
um modelo moral e religioso adequado nas quais o poeta alicerccedila admoestaccedilotildees dirigidas aos
5 Pois por causa destas terra cobria sua cabeccedila Aacutejax que em relaccedilatildeo tanto ao aspecto quanto aos trabalhos
eleva-se (v 550) dos outros Dacircnaos depois do excelente Pelida
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interlocutores do eu-liacuterico (RAGUSA 2013 p 243) Com efeito a supremacia guerreira do
personagem para aleacutem da adequaccedilatildeo na ode de Piacutendaro serve-nos para reforccedilar essa
recorrente caracteriacutestica do heroacutei
[] τυφλὸν δ ἔχει ἦτορ ὅμιλος ἀνδρῶν ὁ πλεῖστος εἰ γὰρ ἦν 25 ἓ τὰν ἀλάθειαν ἰδέμεν οὔ κεν ὅπλων χολωθείς ὁ καρτερὸς Αἴας ἔπαξε διὰ φρενῶν λευρὸν ξίφοςmiddot ὃν κράτιστον ᾿Αχιλέος ἄτερ μάχᾳ ξανθῷ Μενέλᾳ δάμαρτα κομίσαι θοαῖς ἂν ναυσὶ πόρευσαν εὐθυπνόου Ζεφύροιο πομπαί 6 30
(Nemeias VII v 24-30)
Notadamente a concepccedilatildeo dessa primazia eacute retomada pelo sintagma o melhor no
combate com exceccedilatildeo de Aquiles κράτιστον ᾿Αχιλέος ἄτερ μάχᾳ Primeiramente podemos
ver que se reitera a sua supremacia relativa ao Pelida segundo os moldes homeacutericos Em
segundo lugar sobretudo a retomada da forma do superlativo κράτιστον que remonta a
Homero apesar de manifestar um termo distinto funciona tambeacutem como superlativo de
ἀγαθός da mesma forma que ἄριστος (RAGON 2012 p 59)
A partir de todos esses qualificativos expressos pelos superlativos ἄριστος κράτιστος
ou pelo verbo τεύχω eacute vaacutelido instituir agrave figura de Aacutejax a concepccedilatildeo de segundo heroacutei
supremo entre os Aqueus ou como eacute visto nas obras gregas o melhor ou o mais forte depois
de Aquiles uma vez que repetidamente a tradiccedilatildeo arcaica reforccedila esse perfil miacutetico do
personagem
Contudo haacute quem aponte uma proeminecircncia guerreira de Diomedes filho de Tideu
sobre aquele heroacutei apesar de todos os epiacutetetos supracitados como eacute o caso da anaacutelise de Van
der Valk Este conveacutem ser aqui disposto pois ajudaraacute grandemente a esclarecer a
compreensatildeo corrente de uma virtude defensiva do Telamocircnio como seraacute vista no decorrer da
seccedilatildeo
Segundo Van der Valk um estudo cuidadoso da Iliacuteada apresentaria como resultado a
supremacia guerreira de Diomedes filho de Tideu e natildeo do heroacutei de Salamina quando da
retirada de Aquiles O primeiro se torna o heroacutei mais relevante nos Cantos V VI e VII e o
segundo nos VII que trata do combate singular com Heitor e nos XIII XIV e XV quando da
retirada dos Aqueus diante do avanccedilo Troiano O autor esclarece seu pensamento 6 Tem cego o coraccedilatildeo a numerosa tropa dos homens Pois se lhe fosse (v 25) possiacutevel ver a verdade natildeo
teria encolerizado por causa das armas o firme Aacutejax cravado no coraccedilatildeo a afiada espada que sendo o mais forte no combate com exceccedilatildeo a Aquiles levariam com o loiro Menelau para trazer a esposa em ligeiras naus os impulsos do bom condutor Zeacutefiro (v 30)
22
evidenciando que o Tidida combate os deuses potildee em perigo a posiccedilatildeo de Troia rejeita o
conselho de Agamecircmnon em deixar Iacutelion e reagrupa os chefes gregos feridos (VAN DER
VALK 1952 p 269)
Acrescenta a isso sobretudo os jogos fuacutenebres do Canto XXIII dos quais participam
ambos os heroacuteis a contender entre si O combate armado entre os dois natildeo gera resultado
decisivo contudo Diomedes parece receber um precircmio distintivo o que para o autor revela o
favorecimento de Homero a este heroacutei em detrimento do Telamocircnio Isso lhe parece ilustrar a
proeminecircncia do primeiro Tal fato seria um eco da ideia de parcialidade dada aos heroacuteis de
origem jocircnica ou que a essa regiatildeo se relacione pois essa eacute a origem de Homero e assim os
personagens oriundos das tribos da Greacutecia Central majoritariamente seriam colocados em
posiccedilotildees menos importantes Contudo haacute ressalvas nessa tendecircncia observada entre estas
obviamente o caso do heroacutei estudado por noacutes apesar de ainda inferior a Diomedes (Ibidem p
270)
Essa tendecircncia por exemplo justificaria a lideranccedila de Aacutejax na retirada dos Aqueus
Vista como uma atitude ingloacuteria natildeo foi atribuiacuteda a um dos heroacuteis favorecidos na obra uma
vez que estavam feridos ou como no caso de Diomedes foi impelida por auguacuterios de Zeus
Comparando-se o Tidida e o Telamocircnio ao primeiro se relacionam accedilotildees em momentos nos
quais os gregos satildeo vitoriosos jaacute ao segundo accedilotildees de heroica defesa (Ibidem p 271-277)
para noacutes inseridas em momentos criacuteticos de avanccedilo dos troianos devido precisamente agrave
ausecircncia de Aquiles Evidentemente esse contexto das accedilotildees dos heroacuteis deve ser pesado na
comparaccedilatildeo de ambos contudo a visatildeo de Van der Valk nos serve para configurar uma
imagem muito comum associada a Aacutejax a sua predisposiccedilatildeo defensiva que seraacute salientada
ainda nessa seccedilatildeo
Prossigamos entatildeo ainda tratando dessa mesma perspectiva de caracterizaccedilatildeo do
heroacutei em questatildeo ou seja a compreensatildeo de seus atributos a partir da comparaccedilatildeo com outro
heroacutei mas agora em relaccedilatildeo a Odisseu nomeado Ulisses na tradiccedilatildeo latina
Nessa concepccedilatildeo contrapotildeem-se o Telamocircnio e Odisseu De tal oposiccedilatildeo temos o
primeiro associado agrave ideia de homem do qual se sobrelevam as accedilotildees e o segundo marcado
pela proeminecircncia dos discursos Um estudo sob tal perspectiva jaacute foi desenvolvido por
Werner Jaeger em sua obra Paideia a propor a seguinte atribuiccedilatildeo a tais heroacuteis Odisseu e
Aacutejax seriam respectivamente ldquomestre da palavra e [] o homem da accedilatildeordquo (2003 p 29-30)
corroborando o que dissemos
Para chegar a essa conclusatildeo que destaca uma niacutetida oposiccedilatildeo entre as caracteriacutesticas
desses personagens miacuteticos esse estudioso se utiliza especialmente do discurso de Fecircnix
23
quando da embaixada a Aquiles no canto IX da Iliacuteada A passagem serve especialmente para
alicerccedilar a base dupla do conceito de areteacute ἀρετή a virtude grega Vejamos os versos
correspondentes ao discurso direto de Fecircnix
[]σοὶ δέ μ ἔπεμπε γέρων ἱππηλάτα Πηλεὺς ἤματι τῷ ὅτε σ ἐκ Φθίης ᾿Αγαμέμνονι πέμπε νήπιον οὔ πω εἰδόθ ὁμοιΐου πολέμοιο 540 οὐδ ἀγορέων ἵνα τ ἄνδρες ἀριπρεπέες τελέθουσι τοὔνεκά με προέηκε διδασκέμεναι τάδε πάντα μύθων τε ῥητῆρ ἔμεναι πρηκτῆρά τε ἔργων7
(Iliacuteada IX v 538-543)
A partir desses versos Jaeger pocircde afirmar que tais noccedilotildees accedilatildeo e palavra conjugadas
representavam o verdadeiro objetivo da educaccedilatildeo da nobreza grega primitiva e logo ambas
estariam entatildeo em um patamar de igualdade Assim ele pocircde concluir que ao lado da accedilatildeo
o domiacutenio da palavra legitimava a nobreza do espiacuterito (Ibidem p 29-30) Ainda em sua obra
esse autor tenta reforccedilar que essa seria a visatildeo dos gregos
Com efeito junto a Fecircnix na embaixada que objetivava demover Aquiles estavam
Odisseu e Aacutejax Para Jaeger isso eacute fundamental para a estrutura do Canto IX pois a proacutepria
presenccedila destes ilustrava um a accedilatildeo e o outro a palavra de modo que a delegaccedilatildeo enviada
reflete precisamente essa dupla virtude grega apresentada pelo tutor de Aquiles As palavras
de Fecircnix segundo esse estudioso contrapotildeem os dois conselheiros com o propoacutesito
especiacutefico de delinear a figura de Aquiles pois se um ldquopersonifica a accedilatildeordquo e o outro ldquoa
palavrardquo a ambos entatildeo opotildee-se o Pelida uma vez que ldquosoacute se unem ambas em Aquiles que
realiza em si a autecircntica harmonia do mais alto vigor de espiacuterito e accedilatildeordquo (Ibidem p 50)
Isso nos serve para observar os traccedilos peculiares do heroacutei em questatildeo partindo-se de
uma perspectiva comparativa na qual Odisseu eacute elemento imprescindiacutevel Contudo esse
episoacutedio ainda nos daacute outros indiacutecios dessa caracterizaccedilatildeo
Homero expotildee os discursos de Odisseu de Fecircnix e de Aacutejax nessa respectiva ordem
sem sucesso para comover Aquiles a retornar agrave guerra No entanto pode-se observar de
forma clara um elemento significativamente diferente entre os discursos de Aacutejax e de
Odisseu a extensatildeo Para o primeiro Homero dedicou oitenta dois (82) versos (v 225-306)
para o segundo dezenove (19) versos (v 642-642) Isso nos mostra que na versatildeo homeacuterica
7 O velho Peleu condutor de cavalos enviou-me a ti no dia em que enviava para Agamecircmnon jovem ainda
natildeo conhecedor igualmente da guerra (v 540) e das assembleias uma vez que nisto os homens satildeo notaacuteveis Por essa razatildeo enviou-me antecipadamente para instruir tudo isso a ser tanto orador de discursos quanto executor de accedilotildees
24
o discurso de Odisseu eacute ao menos quatro vezes maior do que o de Aacutejax caracterizando aquele
como no miacutenimo mais prolixo e este mais direto
Com efeito essa diferenccedila evidenciada por Jaeger parece salutar na tradiccedilatildeo arcaica
seja oriunda do mito ou das obras homeacutericas Piacutendaro por exemplo na Ode Nemeia VIII
apresenta textualmente esse heroacutei caracterizado como fraco orador por um lado mas bravo
por outro Compondo as narrativas miacuteticas que formam a base do argumento do poeta Aacutejax eacute
chamado de sem-liacutengua aglosso (ἄγλωσσον v 24) cujo desdobramento figurado de sentido
expressa precisamente a falta de eloquecircncia Mas ao mesmo tempo seu coraccedilatildeo eacute bravo
(ἦτορ δ ἄλκιμον v 24) Esse adjetivo aacutelkimos expressa segundo Eacutemile Benveniste a
coragem de ldquoenfrentar o perigo sem nunca recuar natildeo ceder aos assaltos manter-se com
firmeza nos combatesrdquo (1995 v 2 p 73) Esse atributo eacute referido na Iliacuteada a vaacuterios
personagens inclusive a este heroacutei contudo nessa passagem da ode faz-se evidente a
contraposiccedilatildeo de virtude e fraqueza ou seja a enaltecida bravura do heroacutei proacutepria da
associaccedilatildeo agrave accedilatildeo e sobretudo a eloquecircncia diminuiacuteda conforme o modelo comparativo dele
e de Odisseu apregoado por Jaeger anteriormente
A partir desse entendimento do Canto IX da Iliacuteada reforccedilado pela ode pindaacuterica eacute
coerente instituir agrave caracterizaccedilatildeo do Telamocircnio a imagem de um heroacutei que se sobressai pelas
accedilotildees nitidamente guerreiras mas a quem escasseia a eloquecircncia excedente em Odisseu
A segunda perspectiva de certa tradiccedilatildeo criacutetica e aparentemente reiterada nos estudos
da obra homeacuterica compreende o personagem como caracterizado pela robusta compleiccedilatildeo
fiacutesica e pelo fraco intelecto segundo dispotildeem e rebatem os estudos de Richard Trapp (1961
p 271) Corroborando essa premissa Rocha Pereira o descreve da seguinte maneira
guerreiro forte e persistente mas que soacute vale pela forccedila fiacutesica o proacuteprio escudo que traz lsquoalto como uma torrersquo o singulariza como um homem de armas primitivo eacute o lsquobaluarte do Aqueusrsquo que caminha para a luta com um sorriso no seu rosto aterrorizadorrdquo (2012 p 76)
Essa interpretaccedilatildeo corrente se faz porque na tradiccedilatildeo homeacuterica esse heroacutei eacute
caracterizado sobretudo pela sua virtude guerreira que abrange desde seu porte fiacutesico pois eacute
representado como enorme e gigantesco ateacute a sua habilidade beacutelica Natildeo por menos ele eacute
referido na obra como o melhor dos aqueus depois de Aquiles No entanto dois aspectos
dessa virtude guerreira do heroacutei parecem patentes a rudeza intelectual e a qualidade
defensiva depreendidas dos episoacutedios homeacutericos que evidenciam sua preponderacircncia fiacutesica
O primeiro aspecto jaacute exposto acima parece evidente segundo Rocha Pereira e
muitos estudiosos (apud TRAPP 1961 p 271) O segundo jaacute foi pontuado por Agatha
25
Bacelar (2004) e tambeacutem por Trapp ainda que com algumas reservas (1961 p 273) Na
Iliacuteada o personagem se torna mais proeminente no primeiro aspecto devido tanto agrave
constituiccedilatildeo especiacutefica de seu escudo que sugere um valor mais primitivo de origem
marcadamente arcaica e micecircnica (PEREIRA 2012 p 76 VAN DER VALK 1951 p 273)
quanto agraves interpretaccedilotildees de alguns siacutemiles que caracterizam o personagem (TRAPP 1961 p
272) e mais marcante quanto ao segundo a princiacutepio porque a retirada de Aquiles da guerra
acarreta o seu grande mas natildeo uacutenico papel de defensor dos gregos contendo os troianos e
sobretudo Heitor quando do combate singular no Canto VII da Iliacuteada e quando da batalha
junto agraves naus nos Cantos XIII XIV e XV
Novamente as foacutermulas eacutepicas homeacutericas parecem convergir especialmente para esse
atributo defensivo e protetor por meio de epiacutetetos e traccedilos caracteriacutesticos que Aacutejax possui
para conter os ataques dos inimigos Nos Cantos e mais propriamente nas passagens em que
estatildeo inseridos conforme os ditames de Rocha Pereira (1984 p 5) os seus epiacutetetos
apresentam uma adequaccedilatildeo ao contexto e uma melhor caracterizaccedilatildeo do heroacutei indo aleacutem da
relaccedilatildeo com o esquema meacutetrico e com decorrente hemistiacutequio
O primeiro epiacuteteto significativo que coaduna essa qualidade eacute muralha dos aqueus
ἕρκος Ἀχαιῶν referido por exemplo quando Helena ao longe dispotildee os heroacuteis gregos para
Priacuteamo (Iliacuteada III v 229) ou sobretudo quando do combate singular com Heitor (Iliacuteada
VII v 211) A palavra ἕρκος pode apresentar sentidos concretos como barreira muralha e
abstratos como defesa mas que se inserem dentro de um mesmo campo semacircntico Na
relaccedilatildeo com esse heroacutei tal epiacuteteto parece salientar a sua virtude defensiva uma vez que
momentaneamente para os gregos ele eacute a proteccedilatildeo contra o Heitor que causa inuacutemeras mortes
ao aqueus
Essa caracteriacutestica se faz perceber no texto homeacuterico tambeacutem pelas suas armas das
quais se sobressai o seu escudo que se relaciona mais uma vez ao proacuteprio epiacuteteto supracitado
Seu escudo assemelha-se a uma torre σάκος ἠύτε πύργον (Iliacuteada VII v 219 XI v 485
XVII v 128) A comparaccedilatildeo natildeo se daacute apenas para apresentar a arma de Aacutejax com um
formato diferente ela reforccedila a sua potecircncia defensiva e pela sua singularidade o seu
possiacutevel valor primitivo A tradiccedilatildeo homeacuterica potildee uma caracteriacutestica essencial ao escudo do
heroacutei pois haacute nele bronze e sete camadas χάλχεον ἑπταβόειον (Iliacuteada VII v 220) e essas
camadas satildeo de couro taurino ἑπταβόειον ταύρων (Iliacuteada VII v 222-223) Essa
singularidade do escudo parece acentuar os dois aspectos comuns atribuiacutedos agrave virtude
guerreira de Aacutejax tanto o seu valor primitivo configurando o personagem como brusco e daiacute
26
inculto quanto sua excelecircncia defensiva e protetora ambos salientados pela constituiccedilatildeo
robusta e uacutenica de seu escudo
Essa compreensatildeo eacute validade ao considerarmos o que diz Jean-Pierre Vernant quando
aponta o papel executado pelas armas na figura do heroacutei em combate o personagem se faz
distinto pelas armas uma vez que ldquoo esplendor que dimana do corpo do heroacutei natildeo resulta
tanto do cativante fasciacutenio da sua juventude vem antes do fulgor do bronze de que se reveste
do seu capaceterdquo (apud MOSSEacute 1989 p 48) Assim torna-se oacutebvio que toda a descriccedilatildeo
singular do escudo de Aacutejax reaccedila seu valor guerreiro ademais sua opulecircncia fiacutesica e sua
qualidade defensiva na contenccedilatildeo dos troianos
O epiacuteteto de muralha dos aqueus tambeacutem frequentemente vem acompanhado de um
outro qualificador que lhe acentua o valor primitivo e defensivo Πελώριος ou seja ingente
monstruoso em tamanho (Iliacuteada III v 229 VII v 211) corroborando assim um segundo
epiacuteteto significativo para isso Essa qualidade do heroacutei que geralmente acompanha o epiacuteteto
de muralha transfere-lhe tambeacutem essa propriedade construindo a imagem de uma magna
muralha E tanto quanto o heroacutei eacute imenso robusto eacute seu escudo coaduna-se assim a partir do
exposto o caraacuteter defensivo daiacute protetor e o primitivo daiacute brusco
Um episoacutedio significativo que opotildee forccedila bruta e inteligecircncia estaacute inserido no Canto
XXIII da Iliacuteada a disputa entre o personagem em questatildeo e Odisseu Inserida nos jogos
fuacutenebres em honra a Paacutetrocles a contenda eacute realizada em uma luta sem armas e eacute sobretudo
relevante natildeo apenas por contrastar duas noccedilotildees opostas mas por evidenciaacute-las a partir de
seus maiores representantes Exatamente por isso o Telamocircnio eacute caracterizado por enorme
meacutegas (μέγας v 708 722) e o Laertida seu adversaacuterio por muito inteligente polyacutemetis
(πολύμητις v709) e por muito artificioso polymeacutechanos (πολυμήχανος v 723) A contenda
termina em empate pela preocupaccedilatildeo de Aquiles de que ambos possam acabar machucados
prejudicando a expediccedilatildeo grega Contudo Odisseu parece ter se sobreposto
momentaneamente ao seu adversaacuterio como aponta Hopkinson (2000 p 12) pois mesmo em
se tratando de uma disputa fiacutesica somente Odisseu foi capaz de derrubar o seu oponente E
isso foi alcanccedilado atraveacutes de uma astuacutecia doacutelos (δόλου v 725) de um golpe atraacutes do joelho
que fez o adversaacuterio ingente se dobrar e cair Esse fato parece por um lado realccedilar a
soberania da inteligecircncia sobre a forccedila e por outro antecipar ateacute a vitoacuteria de Odisseu sobre seu
adversaacuterio na disputa pelas armas de Aquiles Entatildeo ao relacionarem o Telamocircnio agrave pura
forccedila fiacutesica e considerando-se outros elementos jaacute mencionados muitos criacuteticos acabam
atribuindo a este a imagem de brusco ou de primitivo
27
Em relaccedilatildeo a essa ideia Trapp discorda veementemente pelo menos quanto agrave
interpretaccedilatildeo dos siacutemiles evidenciados por alguns estudiosos como determinantes da rudeza
intelectual do heroacutei Esse autor em seu estudo elenca quatro criacuteticos literaacuterios que seguem esse
pensamento C M Bowra que afirmou Aacutejax ser nada mais que um homem de accedilatildeo com
inteligecircncia abaixo do padratildeo heroico Gilbert Highet que declarou Homero ter atribuiacutedo a
este personagem a comicidade Sidney Hook que acredita existir um espaccedilo reservado no
circo para esse heroacutei e M W Mansur que o caracterizou como fraco acima dos ombros
(1961 p 271)
Os dois siacutemiles mais ressaltados por esses estudiosos para tal conjuntura se encontra
no Canto XI versos 540-574 da Iliacuteada quando do recuo do heroacutei frente aos troianos
promovido por accedilatildeo de Zeus Esse chefe grego de Salamina quando atacado pelos troianos
nesse episoacutedio eacute comparado a um leatildeo afugentado por fazendeiros e catildees e a um asno
teimoso acossado por crianccedilas que dano algum conseguem infligir Desses siacutemiles natildeo
atentando ao contexto ao menos dois dos quatro autores depreendem a mesma interpretaccedilatildeo
acerca da caracterizaccedilatildeo do personagem em questatildeo bravo como um leatildeo e estuacutepido como
um asno Preferimos concordar com a anaacutelise de Trapp sobretudo quanto ao segundo siacutemile
A imagem do asno destaca um traccedilo peculiar do heroacutei a resistecircncia na batalha inclusive
porque os troianos natildeo conseguem feri-lo de forma efetiva mesmo quando ele estaacute soacute agrave frente
dos gregos (Ibidem p 272) Permitimo-nos desdobrar esse sentido Parece-nos que essa
caracterizaccedilatildeo tambeacutem serve para contribuir para a qualidade defensiva exposta por noacutes
anteriormente pois para uma efetiva contenccedilatildeo dos troianos Homero conferiu ao heroacutei a
resistecircncia e a coragem singulares de manter-se firme em combate O proacuteprio papel do escudo
dentro desse episoacutedio reitera esse entendimento o qual mencionado duas vezes no fragmento
(v 565 572) impede as lanccedilas troianas de encontrarem seu objetivo e resguardam seu corpo
ileso Diferentemente de vaacuterios importantes heroacuteis Aacutejax natildeo chega a ser ferido por nenhum
troiano
Ademais esse traccedilo defensivo se adensa a partir de uma perspectiva coletiva
observado em seu discurso proferido a Aquiles no Canto IX da Iliacuteada No episoacutedio em
questatildeo o Telamocircnio tenta convencer o Pelida comovendo-o por argumentos baseados na
philoacutetes φιλότης na amizade grega tanto aos outros gregos φιλότητος ἑταίρων (v 630)
quanto em relaccedilatildeo aos membros da embaixada marcadamente mais estimados φίλτατοι (v
642) Isso fica claro segundo Benveniste que define esse sentimento como as relaccedilotildees
interpessoais de parentes aliados amigos e todos os que estatildeo imbuiacutedos de maneira
indissociaacutevel de disposiccedilotildees reciacuteprocas vinculados ao respeito ou ao pudor ou agrave reverecircncia
28
aiacutedos αἰδώς e ou ateacute ao afeto que se tornam singulares dentro de um grupo especiacutefico como
na famiacutelia ou no exeacutercito ou em uma comunidade maior quer na relaccedilatildeo entre pares ou entre
superiores e inferiores inspirando sentimentos de misericoacuterdia piedade lealdade decoro
coletivo etc (1995 v 1 p 46) Esse sentimento do heroacutei expresso nesse episoacutedio parece-nos
genuiacuteno sobretudo ao considerarmos seus esforccedilos em defesa das naus gregas quando do
cadaacutever de Patroacutecles assim sob o ponto de vista dos que lhe satildeo iguais e tambeacutem inferiores
Marcadamente podemos coadunar a isso sob as devidas circunstacircncias uma qualidade
defensiva
Com efeito eacute possiacutevel conferir agrave caracterizaccedilatildeo de Aacutejax a imagem de um heroacutei
defensivo considerando outras circunstacircncias presentes na Iliacuteada Os relevantes episoacutedios
como o combate singular com Heitor (Canto VII) a defesa das naus gregas (Cantos XII-XV)
a proteccedilatildeo ao corpo de Paacutetrocles (Canto XVII) parecem evidenciar accedilotildees defensivas
sobretudo se considerarmos seu estatuto de melhor depois de Aquiles o que acarreta um
papel proeminente na contenccedilatildeo dos avanccedilos troianos quando da ausecircncia do Pelida No
entanto entenda-se que essa percepccedilatildeo natildeo deve reduzir o personagem a um papel
exclusivamente protetor mas que a partir do desenlace dos episoacutedios isso corrobore para
uma visiacutevel predisposiccedilatildeo de virtude defensiva proeminente para um heroacutei que mais se faz
valer quando do avanccedilo ininterrupto dos troianos
Contudo quando tratamos o personagem dentro da perspectiva do episoacutedio da disputa
pelas armas de Aquiles aleacutem do que foi mencionado podemos evidenciar um traccedilo essencial
na sua caracterizaccedilatildeo a ira Esse elemento eacute recorrente na tradiccedilatildeo de mito do Telamocircnio
pois apesar de referido brevemente na Odisseia eacute retomado por Piacutendaro e sobretudo por
Soacutefocles e Oviacutedio cerne do estudo de caso a que nos propomos Tal marcada caracteriacutestica
inserida no contexto do episoacutedio em questatildeo exerce nele um papel crucial pois impulsiona
todas as accedilotildees do heroacutei como veremos nas seccedilotildees seguintes
A ira de Aacutejax se estrutura coerentemente dentro do contexto agoniacutestico das obras
homeacutericas uma vez que emula de forma niacutetida e sob circunstacircncias semelhantes a proacutepria
fuacuteria de Aquiles argumento maior da Iliacuteada No caso do Pelida a honra lhe eacute conspurcada a
partir da tomada de Briseida por Agamecircmnon o que representava a sua desvalorizaccedilatildeo como
heroacutei devido agrave privaccedilatildeo de sua honraria No caso do heroacutei de Salamina o texto homeacuterico
parece sugerir uma situaccedilatildeo semelhante mesmo natildeo apresentando o leacutexico preciso com a
exceccedilatildeo de que a honraria eacute representada pelas armas de Aquiles e que natildeo lhe foi tomada
mas lhe foi negada o que na perspectiva do heroacutei deprecia seu valor guerreiro
29
Contudo essa interpretaccedilatildeo parece vaacutelida uma vez que essa seraacute a perspectiva de
alguns autores poacutes-homeacutericos Ao associar-se a situaccedilatildeo do heroacutei agrave de Aquiles temos que
entender como a ira se manifesta a partir de uma honra tida como conspurcada Esta uacuteltima se
alicerccedila em conjunto de outros fatores8 mas no caso em questatildeo sobretudo na reconhecida e
patente virtude guerreira do heroacutei constituiacuteda de todos os atributos estudados e mencionados
anteriormente
Observemos entatildeo o seguinte a concepccedilatildeo de honra para os gregos do periacuteodo
arcaico ainda eacute estruturada sobre duas noccedilotildees a honraria geacuteras (γέρας) e a honra timeacute
(τιμή) Acerca disso nos esclarece Benveniste a primeira mais restrita agrave epopeia representa
uma vantagem material atribuiacuteda pelos homens tanto como privileacutegio de uma condiccedilatildeo
social quanto como recompensa de um grande feito a segunda utilizada abundantemente em
vaacuterias eacutepocas distintas representa a dignidade de uma determinada condiccedilatildeo social de origem
divina e conferida ao acaso constitutiva de seu quinhatildeo pessoal concedido pelo destino (1995
v 2 p 43-52) Tudo isso nos permite depreender o seguinte entendimento inserido no
contexto da Iliacuteada o ato de reconhecer o valor de um heroacutei seja por meio de honrarias e
recompensas ou dos proacuteprios respeito e reverecircncia eacute legitimar a sua honra e as virtudes
constitutivas dela Assim ferir a honra de um heroacutei significa desprezar o seu valor e
sobretudo na obra homeacuterica isso significa negar-lhe a sua condiccedilatildeo inata conferida pelos
deuses Aristoacuteteles nos abona tal ideia ldquoa desonra eacute algo de desmedido e o desonrante
desestima pois o que tem nenhum valor possui nenhuma honrardquo (ὕβρεως δὲ ἀτιμία ὁ δ
ἀτιμάζων ὀλιγωρεῖmiddot τὸ γὰρ μηδενὸς ἄξιον οὐδεμίαν ἔχει τιμήν Retoacuterica 1378b 29-30)
Como seraacute melhor explicado adiante ao nosso ver o episoacutedio da disputa pelas armas
de Aquiles parece se estruturar em dois elementos-base virtude e ira em que aquela sustenta
a honra Estes se articulam de forma a natildeo deixar possiacutevel a apreciaccedilatildeo de um sem a
compreensatildeo do outro e por decorrecircncia a apreensatildeo de sua unidade textual Contudo a
disposiccedilatildeo dos componentes virtude e ira parece ainda se desdobrar a partir dos mesmos em
outras duas noccedilotildees complementares de dor e de sofrimento que constroem com aquelas a
organicidade semacircntica do texto
Trataremos agora da ira uma vez que juntamente com o elemento virtude estaacute
presente na caracterizaccedilatildeo do personagem estudado na tradiccedilatildeo do mito que trata do episoacutedio 8 Segundo Vernant a honra a timeacute grega τιμή ldquodesigna o valor que eacute reconhecido a um indiviacuteduo ou seja ao
mesmo tempo as marcas sociais de sua identidade seu nome sua filiaccedilatildeo sua origem seu estatuto no grupo com as honras que lhe satildeo ligadas os privileacutegios e a consideraccedilatildeo que tem direito de exigir a sua excelecircncia pessoal o conjunto das qualidades e dos meacuteritos ndash beleza vigor coragem nobreza do comportamento domiacutenio sobre si ndash que em seu rosto em suas vestimentas em seu comportamento manifestam aos olhos de todos seu pertenciamento agrave elite dos kaloigrave kagathoiacute os belos-e-bons dos aacuteristoi os excelentesrdquo (2009 p 184)
30
da disputa pelas armas de Aquiles Sobre a virtude tudo o que foi mencionado anteriormente
jaacute se mostra suficiente para a nossa elucidaccedilatildeo
Prossigamos com a ira Esse sentimento eacute evidente tanto no leacutexico expresso nos textos
e em seus correlatos semacircnticos quanto no comportamento do personagem disposto nos
proacuteprios temas desenvolvidos quando da caracterizaccedilatildeo de Aacutejax nas obras apontadas por noacutes
como referecircncia da tradiccedilatildeo Piacutendaro e sobretudo Homero
Com efeito Homero jaacute o representava tomado de ira Ainda no Canto XI da Odisseia
quando da narrativa de Odisseu que descreve o seu encontro com Aacutejax no Hades podemos
observar esse sentimento representado explicitamente pelo verbo χολόω Esse verbo que
significa excitar a bile encolerizar por duas vezes eacute usado para se referir a Aacutejax por meio de
seu particiacutepio perfeito na voz meacutedia ao nosso ver e natildeo passiva Faz-se necessaacuterio ressaltar
que a voz meacutedia traz uma nova carga semacircntica ao verbo e por consequecircncia em sua forma
nominal revelando que aquele que pratica a accedilatildeo pratica-a para si mesmo em seu interesse
ou a accedilatildeo se exerce na esfera do sujeito que estaacute envolvido subjetivamente nela (RAGON
2011 p 206) A relaccedilatildeo desse verbo com χολή bile e por extensatildeo coacutelera ira ressalta o
aspecto fiacutesico do ato de irar-se e a voz meacutedia enfatiza que o heroacutei se encoleriza para si
mesmo ou a partir de si desenvolvendo-se em seu interesse uma vez que o faz a partir de um
julgamento sobre seu valor um pensamento que lhe eacute proacuteprio Vejamos a primeira passagem
οἴη δ Αἴαντος ψυχὴ Τελαμωνιάδαο νόσφιν ἀφεστήκει κεχολωμένη εἵνεκα νίκης τήν μιν ἐγὼ νίκησα δικαζόμενος παρὰ νηυσὶ 545 τεύχεσιν ἀμφ ᾿Αχιλῆοςmiddot ἔθηκε δὲ πότνια μήτηρ παῖδες δὲ Τρώων δίκασαν καὶ Παλλὰς ᾿Αθήνη9
(Odisseia XI v 543-547)
O primeiro particiacutepio aparece no verso 544 referindo-se a alma de Aacutejax κεχολωμένη
εἵνεκα νίκης encolerizada por causa da vitoacuteria Isso nos revela tambeacutem o motivo pelo qual a
coacutelera se desenvolve a vitoacuteria de Odisseu sobre o Telamocircnio injusta na perspectiva do
uacuteltimo justificando a voz meacutedia devido agrave participaccedilatildeo do derrotado na accedilatildeo de se enfurecer
Assim tal entendimento nos impede de retirar da accedilatildeo o seu envolvimento pessoal e o seu
possiacutevel julgamento acerca de tal resultado em oposiccedilatildeo ao dos juiacutezes referidos por Odisseu
entre os quais figura a deusa Atena Isso significa dizer que Aacutejax se encoleriza uma vez que
9 Somente a alma de Aacutejax Telamocircnio ficara ao longe afastada encolerizada por causa da vitoacuteria que eu
conquistei sendo julgado junto aos navios (v 545) por causa das armas de Aquiles a matildee veneranda dispocircs julgaram os filhos dos Troas e Palas Atena
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reconhece atribuir a si a supremacia guerreira expressa textualmente no seu recorrente epiacuteteto
de melhor do Aqueus depois de Aquiles Seu julgamento seria considerar a honraria as armas
do Pelida como constituinte de sua honra Isso fica mais evidente quando agregamos isso aos
versos de Piacutendaro que descrevem as armas de Aquiles como a maior honraria (μέγιστον
γέρας Nemeias VIII v 25) uma vez que provecircm do melhor guerreiro Certamente haacute uma
coerecircncia no pensamento de Aacutejax em se ver desonrado pois o superlativo que define a
grandeza das armas se adequa aos superlativos ἄριστος e κράτιστος que retratam a excelecircncia
do heroacutei Evidentemente que o ultraje lhe eacute percebido ao natildeo se reconhecer seu valor
condizente agrave honraria e dessa forma depreciando-o o que justifica seu estado coleacuterico
Vejamos a segunda menccedilatildeo a esse estado
lsquoΑἶαν παῖ Τελαμῶνος ἀμύμονος οὐκ ἄρ ἔμελλες οὐδὲ θανὼν λήσεσθαι ἐμοὶ χόλου εἵνεκα τευχέων οὐλομένων τὰ δὲ πῆμα θεοὶ θέσαν ᾿Αργείοισιmiddot 555 τοῖος γάρ σφιν πύργος ἀπώλεοmiddot σεῖο δ ᾿Αχαιοὶ ἶσον ᾿Αχιλλῆος κεφαλῇ Πηληϊάδαο ἀχνύμεθα φθιμένοιο διαμπερέςmiddot οὐδέ τις ἄλλος αἴτιος ἀλλὰ Ζεὺς Δαναῶν στρατὸν αἰχμητάων ἐκπάγλως ἤχθηρε τεῒν δ ἐπὶ μοῖραν ἔθηκεν 560 ἀλλ ἄγε δεῦρο ἄναξ ἵν ἔπος καὶ μῦθον ἀκούσῃς ἡμέτερονmiddot δάμασον δὲ μένος καὶ ἀγήνορα θυμόνrsquo ὣς ἐφάμην ὁ δέ μ οὐδὲν ἀμείβετο βῆ δὲ μετ ἄλλας ψυχὰς εἰς ῎Ερεβος νεκύων κατατεθνηώτων ἔνθα χ ὅμως προσέφη κεχολωμένος ἤ κεν ἐγὼ τόνmiddot 565 ἀλλά μοι ἤθελε θυμὸς ἐνὶ στήθεσσι φίλοισι τῶν ἄλλων ψυχὰς ἰδέειν κατατεθνηώτων10
(Odisseia XI v 553-567)
O segundo particiacutepio aparece no verso 565 referindo-se a Aacutejax κεχολωμένος
evidenciando seu estado quando se dirige ao Eacuterebo depois da investida de Odisseu negando
a este a reconciliaccedilatildeo Essa ira que se apresenta como um rancor profundo eacute um traccedilo tatildeo
marcante na caracterizaccedilatildeo de Aacutejax que ateacute Odisseu nos versos 554 e 555 ressalta-o como
capaz de permanecer no heroacutei mesmo apoacutes a sua proacutepria morte Para isso evidencia-se o
estado do heroacutei reiterando junto ao particiacutepio encolerizado o termo ira (χόλου v 554) Mais
10
ldquoAacutejax filho do excelente Teacutelamon natildeo estavas disposto nem tendo morrido a haver de esquecer-te do rancor por mim por causa das armas funestas os deuses impuseram as desgraccedilas aos Argivos (v 555) pois tu torre para estes pereceste Os Acaios por ti tal qual por Aquiles Pelida tendo morrido afligiram-se completamente Nenhum outro eacute responsaacutevel senatildeo Zeus que detestou o exeacutercito dos Dacircnaos lanceiros terrivelmente e impocircs sobre ti [tal] destino (v 560) Mas avanccedila ateacute aqui chefe a fim de que palavra e nossa histoacuteria escutes doma o espiacuterito e a o iacutempeto muito virilrdquo Assim falava e a mim nada respondeu caminhou entre as outras almas em direccedilatildeo ao Eacuterebo de corpos mortos E ali mesmo que encolerizado dirigiria a palavra ou eu a ele (v 565) Mas para mim o coraccedilatildeo no peito querido desejou ver as almas de outros mortos
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uma vez podemos reforccedilar tal caracteriacutestica ao compararmos esses fragmentos ao verso 25 da
Ode Nemeia de Piacutendaro que tambeacutem delineia o estado coleacuterico com um particiacutepio do mesmo
verbo χολόω contudo no aspecto aoristo encolerizado por causa das armas (ὅπλων
χολωθείς) (Cf p 20) Agrega-se a isso o apelo de Odisseu ao heroacutei de Salamina no verso
562 que reitera essa noccedilatildeo e amplifica as caracteriacutesticas da iacutendole de Aacutejax delineando-o
possivelmente ateacute como orgulhoso de sua supremacia guerreira uma vez que na expressatildeo
traduzida de forma mais etimoloacutegica iacutempeto muito viril ageacutenora thymoacuten (ἀγήνορα θυμόν) o
adjetivo pode se relacionar tambeacutem por extensatildeo de sentido agraves noccedilotildees de orgulho altivez e
arrogacircncia Essa presunccedilatildeo de uma virtude reconhecidamente superior na perspectiva do
personagem acarreta exatamente o sentimento de ira que decorre da percepccedilatildeo da aparente
injusticcedila no julgamento das armas de Aquiles
Natildeo eacute descabido observar esse orgulho sugerido pois alguns episoacutedios parecem
reiterar tal possibilidade de iacutendole ao Telamocircnio Trapp (1961 p 4) aponta como uma das
suas proeminentes caracteriacutesticas a confianccedila em si mesmo observada tanto em sua
declaraccedilatildeo de coragem e de esperada vitoacuteria sobre Heitor (Iliacuteada VII v 191-199) quanto em
seu sorriso diante do adversaacuterio expresso durante o combate singular com Heitor (Ibidem
VII v 211-213) A isso acrescenta-se o fato que de sua virtude guerreira o permitiu muitas
vezes combater sozinho sobretudo na defesa dos gregos o que corrobora a ideia
disseminada por muitos escoliastas de que Aacutejax fosse inclusive pouco ajudado pelos deuses
se o compararmos a Diomedes por exemplo um dos grandes heroacuteis cuja excelecircncia eacute
tambeacutem desenvolvida na Iliacuteada (VAN DER VALK 1952 p 271)
O aspecto traacutegico do episoacutedio homeacuterico se faz valer especialmente a partir da funccedilatildeo
complementar ocupada pelos sentimentos de dor e de sofrimento que depreendemos sentir o
heroacutei A ligaccedilatildeo entre ira e dor natildeo eacute incomum ao menos se tomamos como referecircncia o caso
de Aquiles em sua querela com Agamecircmnon no Canto I da Iliacuteada e a compreensatildeo de
Aristoacuteteles quanto agraves emoccedilotildees na Retoacuterica Vejamos nos versos abaixo a descriccedilatildeo dos
sentimentos de Aquiles fundamental para nosso estudo uma vez que a situaccedilatildeo desse heroacutei
perante a decisatildeo de Agamecircmnon eacute modelo como jaacute percebemos para o caso de Telamocircnio
Ὥς φάτο Πηλεΐωνι δ᾽ ἄχος γένετ᾽ ἐν δέ οἱ ἦτορ στήθεσσιν λασίοισι διάνδιχα μερμήριξεν ἢ ὅ γε φάσγανον ὀξὺ ἐρυσσάμενος παρὰ μηροῦ 190 τοὺς μὲν ἀναστήσειεν ὃ δ᾽ Ἀτρεΐδην ἐναρίζοι ἦε χόλον παύσειεν ἐρητύσειέ τε θυμόν ἧος ὃ ταῦθ᾽ ὥρμαινε κατὰ φρένα καὶ κατὰ θυμόν
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ἕλκετο δ᾽ ἐκ κολεοῖο μέγα ξίφος ἦλθε δ᾽ Ἀθήνη [] 11 (Iliacuteada I v 188-194)
A primeira coisa a se observar eacute a participaccedilatildeo do sentimento de dor ἄχος (v 188)
como emoccedilatildeo inicial e desencadeadora das accedilotildees que a sucedem Eacute por meio da dor que
Aquiles internamente se agita Esse conflito interno o faz cogitar executar duas accedilotildees
distintas a primeira eacute a de levantar as armas e matar Agamecircmnon a segunda eacute a de cessar a
ira e dominar o seu iacutempeto A princiacutepio essas accedilotildees estatildeo no acircmbito da possibilidade
primeiro por estarem sintaacutetica e semanticamente ligadas ao verbo μερμηρίζω ponderar
segundo pelo proacuteprio modo expresso o optativo Vecirc-se a relaccedilatildeo direta na passagem entre
ἄχος e χόλος pois a dor nasceu e por consequecircncia agora o heroacutei pensa em suster a ira
Assim a dor se natildeo for tomada junta agrave ira como componente de um mesmo conjunto implica
esse proacuteprio sentimento de coacutelera O texto parece estruturar esse sentido coadunando esses
dois elementos
Um outro ponto conveacutem ser aprofundado Se antes tiacutenhamos o ato de erguer as armas
e matar Atrida como um fato possiacutevel ponderado por Aquiles nos versos seguintes vemos
sua realizaccedilatildeo parcial a partir do modo indicativo do verbo ἕλκω Pois eacute durante o ato de sacar
ainda inacabado que Atena chega ateacute Aquiles para impedi-lo de executar aquilo sobre o qual
ele havia refletido A deusa mesma revela essa informaccedilatildeo ldquoeu cheguei havendo de cessar
teu iacutempetordquo (ἦλθον ἐγὼ παύσουσα τὸ σὸν μένος v 207) Um mesmo verbo eacute usado na
ponderaccedilatildeo de Aquiles e nas palavras de Atena o verbo παύω que tem o sentido de reter
fazer cessar usado na primeira menccedilatildeo no optativo e na segunda em sua forma nominal do
particiacutepio futuro
Assim no caso de Aquiles ele mesmo natildeo conteve a ira gerada pela dor e que
resultaria em uma accedilatildeo violenta e significativa proacutepria do heroacutei erguer as armas e utilizaacute-las
para seu propoacutesito primeiro Em especial ao caso de Aquiles eacute a deusa que o conteacutem
evitando-se que o heroacutei cometesse um erro Como sabemos pelo conteuacutedo do Canto XIX da
Iliacuteada o erro em verdade seraacute atribuiacutedo a Agamecircmnon e em parte admitido por ele
referindo-se agrave privaccedilatildeo dos precircmios do Pelida (v 89-89 XIX) No entanto o chefe dos gregos
confere esse ato agrave interferecircncia de uma divindade grega que personifica o proacuteprio erro Aacutete
(Ἄτη) Como divindade responsaacutevel pela accedilatildeo contra o Pelida ela eacute referida ao menos uma
11
Assim falou A dor nasceu no Pelida e dentro dele o coraccedilatildeo no peito hirsuto pesou duas coisas ou precisamente tendo retirado sua aguda espada de junto da coxa ergueria as armas e mataria o Atrida ou cessaria a ira e conteria o acircnimo Enquanto pensava em tudo no espiacuterito e no acircnimo E sacava da bainha a grande espada Atena chegou []
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vez no discurso de Agamecircmon (Ἄτη v 91 XIX) Como um ato de erro ela eacute referida outra
vez (ἄτην v 88) Com efeito para a literatura grega do periacuteodo arcaico a aacutete eacute definida
segundo Richard Doyle como uma espeacutecie de cegueira paixatildeo ou desatino que prejudica o
bom senso e a racionalidade (1970 p 295) Certamente Atena impede o Pelida de cometer
um potencial erro do heroacutei impulsionado por uma paixatildeo que sustenta a relaccedilatildeo significativa
e clara que existe entre dor e ira as quais agem como desencadeadores das accedilotildees dos
personagens
Aristoacuteteles novamente nos abona esse entendimento especialmente se considerarmos
a retomada desse episoacutedio das armas de Aquiles pela posterior literatura claacutessica Mesmo que
Aristoacuteteles se utilize de outro leacutexico que contudo estaacute ainda inserido no campo semacircntico
dos vocaacutebulos homeacutericos podemos ver um paralelismo traccedilado entre dor e ira ldquoira eacute um
desejo de vinganccedila expliacutecita com a participaccedilatildeo do sentimento de dor por causa de expliacutecita
desestimarsquo (ὀργὴ ὄρεξις μετὰ λύπης τιμωρίας [φαινομένης] διὰ φαινομένην ὀλιγωρίαν
Retoacuterica 1378a 30-31)
Validamente pudemos observar a relevacircncia dessa ira manifestada na figura de Aacutejax
dentro do contexto da Odisseia que em seu Canto XI trata brevemente do episoacutedio da disputa
pelas armas de Aquiles Essa caracterizaccedilatildeo do heroacutei exige o entendimento de honra
vinculada agrave virtude grega arcaica Desta uacuteltima Aacutejax se sobressai pelas qualidades de um
heroacutei defensivo sob certas circunstacircncias servindo-lhe para isso sua singular resistecircncia e
firmeza em combate e tambeacutem de uma primazia guerreira entre os gregos superada apenas
por Aquiles
1 2 A TRADICcedilAtildeO CLAacuteSSICA
Nesta seccedilatildeo contextualizaremos as obras Aias de Soacutefocles e Metamorfoses de
Oviacutedio sobretudo seu Livro XIII com o objetivo de reconhecer na caracterizaccedilatildeo do
personagem Aacutejax sob a perspectiva das noccedilotildees de ira e de virtude elementos tanto novos
quanto retomados da tradiccedilatildeo arcaica Com essa finalidade apresentaremos estudos que
exponham as linhas gerais de interpretaccedilatildeo das obras especialmente aqueles que de alguma
maneira contribuam para a nossa pesquisa com assunto relacionado agrave caracterizaccedilatildeo do
personagem estudado ou agrave intertextualidade entre as obras analisadas e a tradiccedilatildeo arcaica
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1 2 1 Aias de Soacutefocles
A peccedila Aias foi escrita por Soacutefocles no periacuteodo Claacutessico da literatura grega que
ocorre entre os seacuteculos V e IV a C ou mais precisamente no primeiro destes o chamado
seacuteculo de Peacutericles Isso implica dizer que nessa eacutepoca se insere o maior niacutevel da produccedilatildeo
artiacutestica e intelectual da cultura grega dentro da nomeada Antiguidade Claacutessica Eacute nesse
momento em que a escrita encontra seu apogeu exercendo forccedila sobre oralidade arcaica a
tirania daacute lugar agrave democracia a filosofia desenvolveu-se iniciando uma nova era a literatura
de entatildeo encontra seu auge no teatro traacutegico e a cidade grega a πόλις se torna o palco dessas
transformaccedilotildees e a mais proeminente delas foi sobretudo Atenas (MARQUES JUacuteNIOR
2008 p 12)
Com efeito a literatura dessa eacutepoca parece direcionada para a cidade especialmente
devido ao estabelecimento de uma vida poliacutetica organizada e assentada apoacutes a vitoacuteria sobre os
persas (ROMILLY 1984 p 73) A participaccedilatildeo na vida poliacutetica crescente desde meados do
periacuteodo arcaico cristaliza-se apoacutes o confronto entre gregos e persas e acaba fomentando nos
poetas uma maior consciecircncia do seu lugar na cidade A influecircncia desse fato pode ser
ilustrada pelos grandes gecircneros produzidos na eacutepoca na liacuterica os muitos poemas de
Simocircnides considerado cantor nacional na trageacutedia Os Persas de Eacutesquilo na histoacuteria
Histoacuterias de Heroacutedoto
Essa consciecircncia poliacutetica no sentido estritamente grego ou seja ligada agrave cidade
tambeacutem eacute preponderante na trageacutedia acima de tudo porque as peccedilas que compunham esse
gecircnero eram encenadas em concursos que ocorriam durante os festivais dionisiacuteacos logo
inserindo-se em um rol de cerimocircnias de caraacuteter religioso e tambeacutem ciacutevico Em decorrecircncia
de todos esses fatos R Janko afirma que o teatro tambeacutem seria um lugar onde os cidadatildeos
podiam refletir sobre questotildees poliacuteticas e no qual muitos poetas problematizavam modelos de
cunho moral social e religioso atualizando-os ao seu tempo (apud PEREIRA 2012 p 394-
395) Ao trazer agrave cena um heroacutei miacutetico que encarna as tradiccedilotildees de um passado no qual se
insere diante de novas formas de pensamento a trageacutedia questiona e potildee em discussatildeo os
valores heroicos e suas representaccedilotildees religiosas antigas a partir do evidente contraste que se
eleva desse confronto entre o passado e o presente (VERNANT VIDAL-NAQUET 2011 p
4-10)
Contudo acima de seu caraacuteter religioso e ciacutevico sobressai-se seu valor literaacuterio cuja
base se sustenta principalmente na carga esteacutetica que a obra executa A trageacutedia grega
segundo Aristoacuteteles (Poeacutetica) teria como finalidade primeira causar catarse κάθαρσις uma
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ideia de purgaccedilatildeo ou purificaccedilatildeo esteacutetica por meio de duas emoccedilotildees necessaacuterias para isso a
piedade ou compaixatildeo eacuteleos (ἔλεος) e o temor phoacutebos (φόβος) Ainda prossegue em sua
obra expondo que isso seria efetivamente alcanccedilado a partir de alguns recursos desenvolvidos
pelo proacuteprio autor entre os mais relevantes quando a accedilatildeo representada fosse completa de
unidade estruturada e desenvolvida por personagens que passariam sobretudo da felicidade agrave
infelicidade atraveacutes de um erro hamartiacutea (ἁμαρτία) que decorre natildeo de um viacutecio de caraacuteter
mas segundo a interpretaccedilatildeo de alguns estudiosos (PEREIRA 2012 p 402) de um
desconhecimento agnoacuteia (ἀγνοία)
Coerente com muito desses conceitos aristoteacutelicos que lhes satildeo posteriores os autores
traacutegicos que mais obtiveram ecircxito nas apresentaccedilotildees desses festivais e por isso mais
renomados satildeo Eacutesquilo Soacutefocles e Euriacutepides de quem detemos obras ainda completas Aleacutem
desse fato seu talento permite discernir seus estilos proacuteprios que nos ajuda a contrastar a
forma como compunham suas obras Dentre esses interessa-nos Soacutefocles objeto de estudo
desta seccedilatildeo
Apesar de esse autor ter produzido vaacuterias peccedilas das quais temos apenas fragmentos ou
tiacutetulos mencionados em obras de outrem sobreviveram apenas sete peccedilas traacutegicas inteiras e
nas quais inclusive eacute possiacutevel reconhecer um padratildeo estiliacutestico recorrente Aacutejax (Ἄιας)
aparentemente a mais antiga Antiacutegona (Ἀντιγόνη) As Traquiacutenias (Τραχίνιαἰ) Eacutedipo Tirano
(Οἰδίπους Τύραννος) eleita a trageacutedia mais bela por Aristoacuteteles segundo os seus criteacuterios
adotados Electra (Ἠλέκτρα) Filoctetes (Φιλοκτήτης) e Eacutedipo em Colono (Οἱδίπους ἐπι
Κολώνῳ)
Apesar de muitos serem os tratamentos literaacuterios proacuteprios de Soacutefocles a predisposiccedilatildeo
a uma construccedilatildeo mais marcante do caraacuteter dos personagens eacute geralmente ressaltada por
vaacuterios estudiosos Junito de Souza Brandatildeo por exemplo afirma que ldquoenquanto Eacutesquilo
elabora suas personagens em funccedilatildeo da faacutebula Soacutefocles elabora a faacutebula em funccedilatildeo das
personagens de modo especial da personagem central o protagonisteacutesrdquo (2007 p 43) Na
perspectiva desse estudioso isso demonstra o papel significativo da caracterizaccedilatildeo das figuras
na compreensatildeo das obras desse autor A isso Rocha Pereira acrescenta que contrariamente ao
que faz Eacutesquilo por exemplo que prefere apresentar situaccedilotildees traacutegicas Soacutefocles eacute o autor que
concentra suas obras nos caracteres delineando nitidamente a figura dos personagens
(PEREIRA 2012 p 425) Dessa forma Soacutefocles parece realmente dar um tratamento
diferente aos seus personagens pois esse traccedilo singular do autor se revela sobretudo a partir
do confronto entre esse e outros tragedioacutegrafos
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Aleacutem de Brandatildeo e de Rocha Pereira jaacute citados por noacutes Jacqueline de Romilly
apresenta um espaccedilo em seus estudos para falar dessa caracterizaccedilatildeo dos personagens e dos
meios usados pelo tragedioacutegrafo para evidenciar tais disposiccedilotildees Tal estudo eacute extremamente
importante para noacutes uma vez que aleacutem de corroborar os propoacutesitos do nosso trabalho daacute luz
ao funcionamento dessa categoria dentro das peccedilas
Veremos agora primeiramente o estudo dessa autora que dispotildee consideraccedilotildees gerais
sobre o assunto as quais podem ser aplicadas agrave peccedila que seraacute estudada Em seguida
recorreremos a outros estudiosos que tratam mais precisamente da obra Aias ora reforccedilando
caracteriacutesticas constitutivas do estilo do autor ora analisando elementos especiacuteficos proacuteprios
ou pertinentes agrave obra em questatildeo Contudo todas as exposiccedilotildees aqui dispostas fornecem
subsiacutedios para uma melhor compreensatildeo da peccedila de seus limites e de suas referecircncias
especialmente em seu aspecto literaacuterio a partir da qual podemos realizar uma anaacutelise coerente
e pertinente
Para Romilly os caracteres das figuras de Soacutefocles satildeo bem delineados e muitas vezes
satildeo destacados a partir de um procedimento muito comum agrave literatura o contraste entres os
personagens Nesse autor a oposiccedilatildeo de caracteres eacute geralmente feita em dupla o que acentua
as singularidades e peculiaridades do personagem e em decorrecircncia disso a vividez de sua
configuraccedilatildeo humana Assim isso pode ser visto tanto no contraste entre irmatildeos Antiacutegona e
Ismene Electra e Crisocirctemis quanto entre marido e mulher ou cativa como eacute o caso de
Heacuteracles e Dejanira e de Aacutejax e Tecmessa e quanto tambeacutem entre membros de um grupo
como eacute o caso dos heroacuteis gregos da expediccedilatildeo a Troia Odisseu e o Telamocircnio ou entre
aquele e Neoptocirclemo (1984 p 102-104) No caso da obra a ser estudada a patente oposiccedilatildeo
de caracteres entre o heroacutei e a concubina revela a firme obstinaccedilatildeo daquele e a flexiacutevel
compreensatildeo daquela bem como entre o Laertida e o Telamocircnio a iacutendole moderada do
primeiro e a desmesurada do segundo
A estrutura de suas obras parece ser elaborada a partir de cenas sucessivas que
contribuam para esse contraste promovendo entatildeo o confronto entre as figuras e o conflito
entre os seus caracteres sobretudo considerando-se que
seus personagens se distinguem por sua psicologia somente porque cada um deles encarna um ideal moral diferente com o qual eles se identificam Um personagem de Soacutefocles sabe em nome de que ele age defende seus princiacutepios como se tratasse de uma causa contra outra e se contrapotildee aos que o cercam como uma regra de vida se contrapotildee a outra (ROMILLY p 103)
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Contudo essa relaccedilatildeo de quase personificaccedilatildeo de um ideal instaurado na
caracterizaccedilatildeo do personagem serve para delinear suas peculiaridades mas natildeo exclui a
complexidade de seu caraacuteter o que implica sobretudo segundo Romilly as zonas de sombra
as quais contribuem para uma composiccedilatildeo mais viacutevida da figura Com efeito o heroacutei e o seu
modo de vida se identificam sobretudo porque haacute a tendecircncia desses personagens a
defenderem intensamente aquilo no que acreditam a ponto de observar-se um traccedilo comum a
predisposiccedilatildeo para sacrificar tudo pelo seu ideal Tanto na caracterizaccedilatildeo de Aacutejax quanto na
de Antiacutegona ou Electra a morte ou a recusa a submeter-se eacute acolhida da mesma forma
(Ibidem p 103-105)
Contudo na composiccedilatildeo da trageacutedia Aias esse estilo marcante de Soacutefocles natildeo
encontrou validaccedilatildeo criacutetica durante seacuteculos Essa peccedila haacute muito tempo eacute discutida pela sua
aparentemente obscura estrutura Muito criticada no passado e no presente encontra no
uacuteltimo seacuteculo muitos defensores que reabilitam a obra por variadas estrateacutegias fornecendo
uma melhor compreensatildeo para seus pontos mais condenados a estrutura dupla de sua
unidade em que o protagonista figura vivo na primeira parte e morto na segunda o que foge
aos criteacuterios aristoteacutelicos o longo debate que apoacutes a morte do Telamocircnio ainda se estende
por mais 500 versos inserido aparentemente para servir apenas para agradar a inclinaccedilatildeo dos
atenienses agrave dialeacutetica e ao debate e sobretudo os caracteres repulsivos de um heroacutei
brutalizado e da personagem Atena que demostra uma iacutendole inferior agrave sua natureza divina
(KNOX 1961 p 1 HUBBARD 2003 p 158-159)
Aleacutem de compor a eacutepica de Lesches e outras obras de gecircneros literaacuterios variados o
mito de Aacutejax que trata sobretudo de sua ruiacutena tambeacutem eacute tema de uma trilogia traacutegica de
Eacutesquilo Contudo o conteuacutedo sobrevivente de todas essas obras se restringiria a tiacutetulos
resumos das obras e alguns fragmentos Com efeito temos algum detalhamento acerca da
trilogia de Eacutesquilo a primeira peccedila Julgamento das Armas traria como cerne a disputa entre
o heroacutei de Salamina e Odisseu pelas armas de Aquiles apoacutes a morte deste a segunda
Mulheres da Traacutecia possivelmente teria como centro a morte do personagem derrotado e a
terceira Mulheres de Salamina corresponderia ao retorno de Teucro irmatildeo do Telamocircnio e
sua recepccedilatildeo em Salamina Segundo a criacutetica a obra de Soacutefocles se conectaria
prioritariamente agrave peccedila central da trilogia de Eacutesquilo mas o debate sobre os ritos fuacutenebres do
personagem seria uma das inovaccedilotildees do autor (HUBBARD 2003 p 159)
A trama da peccedila Aias de Soacutefocles apresenta a ruiacutena do personagem que daacute nome agrave
obra acompanhado de seus valores arcaicos que remontam as obras homeacutericas bem como o
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sofrimento de todos os seus proacuteximos Inicia-se no momento em que Aacutejax iludido pela deusa
Atena acha-se vingador da desonra infligida sobretudo por Agamecircmnon e Odisseu
Desenvolve-se com o seu reconhecimento acerca da proacutepria situaccedilatildeo que toca o ultraje pois a
carnificina equivocadamente feita por ele recai sobre o rebanho e natildeo sobre os chefes gregos
Apesar das palavras persuasivas de sua cativa e companheira Tecmessa e do apoio dos
homens de sua tropa representados pelo coro para demovecirc-lo de sua vontade o enredo
avanccedila com o suiciacutedio do heroacutei impulsionado pela profunda desonra em que se encontra Em
vinganccedila ao atentado os Atridas negam-lhe os ritos fuacutenebres o que gera um debate contra
estes em defesa do cadaacutever promovido por Teucro e por Odisseu o qual conquista a
permissatildeo para o sepultamento cujos preparativos figuram o final da peccedila
Segundo a tendecircncia criacutetica mais recente Bernad M W Knox e Thomas K Hubbard
validam a obra defendendo a coerecircncia de sua unidade dupla embasados em perspectivas
diferentes e consistentes
Para o primeiro eacute fato reconhecer que Aacutejax eacute o centro da peccedila pois mesmo quando
natildeo estaacute falando eacute sobre ele que todos os personagens discursam O heroacutei eacute o assunto uacutenico
da trageacutedia presente em cena seja vivo na primeira parte ou seja morto na segunda Ateacute a
sua morte eacute encenada diante dos olhos da plateia o que comumente natildeo acontece nas
trageacutedias gregas (KNOX 1961 p 2)
Para o segundo essa unidade dupla eacute espelhada repetida e antiteacutetica em que se figura
como cena central o suiciacutedio do personagem (HUBBARD 2003 p 170) Por isso se explica
por exemplo o lugar da peccedila representado em dois lugares agrave frente da tenda do Telamocircnio
junto agraves naus quando vivo na primeira parte e em um lugar ermo afastado das naus no lugar
da morte do heroacutei na segunda parte (Ibidem p 164) Ainda para este autor a participaccedilatildeo dos
personagens eacute significativa pois por exemplo configura um paralelismo entre os monoacutelogos
de Tecmessa na primeira parte e de Teucro na segunda cujos discursos apelativos dos quais
natildeo se pode remover a condiccedilatildeo de concubina ndash precircmio de guerra ndash (δουριάλωτον v 211) e
de meio irmatildeo ilegiacutetimo (νόθον v 1013) parecem inuacuteteis em seu objetivo de demover os
caracteres mais intenso da peccedila (Ibidem p 164-165) A participaccedilatildeo de Odisseu no proacutelogo e
no ecircxodo fazendo a partir de seu caraacuteter moderado o contraponto com os caracteres intensos e
emoldurando as accedilotildees que compotildeem o centro do drama (Ibidem 160)
Certamente a partir disso podemos retomar o realce desses contrapontos e oposiccedilotildees
na caracterizaccedilatildeo dos personagens convergindo essas observaccedilotildees com aquelas supracitadas
de Romilly Isso sugere um papel fundamental na peccedila pois temos a impressatildeo de que o ideal
vivido pelos personagens de caraacuteter intenso segundo as premissas da autora quando
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aplicados na obra em questatildeo parece se revestir da concepccedilatildeo grega de desmesura de
desmedida de excesso hyacutebris ὕβρις Para o propoacutesito semacircntico da peccedila essa desmedida eacute
fundamental para incutir no heroacutei o erro aacutete (ἄτη) permitindo-lhe excutar uma accedilatildeo cujos
resultados funestos natildeo satildeo previsiacuteveis Essa cegueira momentacircnea como definiu Richard
Doyle (1970 1976) eacute elemento fundamental para que o protagonista da peccedila realize a sua
proacutepria ruiacutena ou seja encontre-a de maneira mais traacutegica Por isso haacute vaacuterias referecircncias a
esse erro em especial podemos apontar a menccedilatildeo de Odisseu no verso 123 quando se
compadece de Aacutejax que se vangloria dos animais mortos desconhecendo a realidade em que
estaacute inserido
Os estudos de Agatha Bacelar sobre a peccedila Aias se mostram extremamente relevantes
para o estudo do excesso hyacutebris associado agrave caracterizaccedilatildeo dos personagens pois para a
anaacutelise mais profunda de tal conceito segundo essa autora as trageacutedias desse autor parecem
contribuir de forma privilegiada (2006 p 242) Esse entendimento se sustenta ainda mais se
considerarmos que a oposiccedilatildeo de caracteres presente na obra Aias se estabelece sobretudo
confrontando-se essa noccedilatildeo de desmedida agrave de moderaccedilatildeo de prudecircncia de sensatez agrave
sophrosyacutene σωφροσύνη Segundo a mesma autora esse procedimento parece ilustrar o
confronto de valores do passado e do presente segundo as premissas de Jean-Pierre Vernant
retratando-os no contraste entre o mundo homeacuterico da Iliacuteada e o da Atenas Claacutessica na qual o
regulador social seria a sophrosyacutene vinculada agrave noccedilatildeo de comedimento e ao aspecto
isonocircmico das honras de seus cidadatildeos logo uma ideia de civilizaccedilatildeo Dessa forma durante
o periacuteodo claacutessico pode-se perceber a relaccedilatildeo dicotocircmica entre sophrosyacutene e hyacutebris
demarcando o limite entre o civilizado e o baacuterbaro em que este natildeo prezaria a moderaccedilatildeo
porque possuiria uma latente desmesura
Ainda acrescenta a autora os heroacuteis homeacutericos quer da Iliada quer da Odisseia que
natildeo apresentem traccedilos que remetam a essa noccedilatildeo de comedimento entre os atributos que
compotildee sua virtude satildeo vistos pelos atenienses de entatildeo como baacuterbaros (Ibidem p 236-237)
sobretudo em sua representaccedilatildeo literaacuteria na trageacutedia Em Aias esse parece ser o caso de Aacutejax
Conveacutem evidenciar que entre os ideais cultivados excessivamente que sustentam o
modo de vida desse heroacutei estaacute a honra estimada por ele acima de todos os outros Para ele
segundo Romilly ela eacute ldquofeita de proezas reconhecidas e traduzindo-se no apego agrave estima
puacuteblicardquo (1984 p 104) Isso eacute extremamente relevante para a compreensatildeo da obra uma vez
que ainda de acordo com Bacelar a desmedida sobretudo na obra estudada consiste de
forma mais elucidativa ldquoem superestimar sua proacutepria τιμή e consequentemente subestimar a
τιμή alheia jaacute que o conceito de τιμή eacute necessariamente comparativordquo (2006 p 235) ou seja
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essa desmesura representa uma transgressatildeo aos limites da honra de outrem considerando-se
a concepccedilatildeo desta uacuteltima segundo o que expomos tambeacutem na seccedilatildeo anterior (cf p 23) Para
o heroacutei sobretudo essa honra representa diretamente a legitimaccedilatildeo de suas virtudes
Consequentemente de tal forma eacute intensa a devoccedilatildeo do personagem a ela e agraves virtudes que a
sustentam provocada aparentemente por sua predisposiccedilatildeo a sobrevalorizar a sua honra que a
decisatildeo dos chefes gregos de favorecer Odisseu eacute uma depreciaccedilatildeo expliacutecita e puacuteblica da
mesma e que na concepccedilatildeo do proacuteprio Telamocircnio deixa-o desonrado aacutetimos (ἅτιμος v
424) impondo a este a disposiccedilatildeo natildeo soacute de se vingar mas tambeacutem de impedir que essa
desonra se repita (ἀτιμάσουσ` v 98)
Fundada sobretudo nessa concepccedilatildeo de honra comparativa a hyacutebris (ὕβρις) entatildeo
percorre toda a obra do iniacutecio ao fim ou como diz Suzanne Saiumld essa eacute uma trageacutedia ldquocheia
de hyacutebrisrdquo (apud BACELAR 2006 p 235) Vaacuterias vezes na trageacutedia em questatildeo esse
vocaacutebulo e seus derivados satildeo aplicados ao protagonista e a outros personagens entre os que
tambeacutem recebem essa denominaccedilatildeo de excessivo e desmesurado estatildeo Teucro irmatildeo desse
heroacutei os Atridas Agamecircmnon e Menelau e ateacute Odisseu Contudo devemos reconhecer que
essas atribuiccedilotildees satildeo feitas na perspectiva dos personagens assim relativizando-se a
concepccedilatildeo de desmedida bem como a de moderaccedilatildeo ambas bem presentes na trama Com
efeito na figura de Aacutejax se concentra a atribuiccedilatildeo mais abundante
Uma breve disposiccedilatildeo da trama sob o vieacutes da desmedida pode ilustrar sua recorrecircncia
Utilizaremos algumas passagens estudadas por Bacelar (2006) acrescidas de outras
recolhidas por noacutes e que satildeo representativas da reiteraccedilatildeo desse elemento na peccedila
A desmedida jaacute se mostra desde o iniacutecio quando da tentativa de assassinato aos
aliados e da vangloacuteria sobretudo da carnificina que foi causada ao rebanho por intervenccedilatildeo da
deusa atraveacutes do ludiacutebrio ao heroacutei Esse atentado eacute percebido como um ato de desmedida
tanto por Tecmessa (ὕβριν v 304) quanto por Menelau (ὕβριν v 1061) e a vangloacuteria um ato
tal que se opotildee diretamente agrave moderaccedilatildeo (ὑπέρκοπον v 127-133) de acordo com perspectiva
da deusa Atena uma das personagens da peccedila Contudo a matanccedila sobre os animais
aprofunda sua desonra e sua vergonha fazendo-o se sentir ultrajado (ὑβρίσθην v 367) Cabe-
lhe assim relutante em se dobrar aos Atridas suicidar-se Apoacutes a sua morte ainda
observamos desmedidas agora por parte dos Atridas nomeadamente chefes aacuterchontes
(ἄρχοντες v 667) que imbuiacutedos das prerrogativas dessa posiccedilatildeo impedem enquanto natildeo
demovidos por Odisseu o heroacutei morto de receber os devidos funerais Isso eacute atribuiacutedo tanto
pelo coro (ὑβριστὴς v 1092) quanto por Teucro (ὕβριζε v 1151) uma vez que isso
representa segundo este uma desonra aos deuses (ἀτίμα θεούς v 1129) O sofrimento na
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peccedila se intensifica pois aleacutem de seus proacuteximos perderam o chefe da casa e da tropa de
Salamina agora se defrontam com a possibilidade de Aacutejax ficar insepulto Teucro de mesmo
acircnimo do irmatildeo opotildee-se aos Atridas ora desafiando-os ora insultando-os e explicitamente
natildeo reconhecendo neles a chefia (v 1102-1104) o que para Agamecircmnon representa um
descomedimento (ὑβρίζεις v 1258) sobretudo no entendimento de transgressatildeo da honra
deste considerando-se para isso a relaccedilatildeo comparativa entra as honras dos dois pois ao chefe
todos devem prudentemente se dobrar e se moderar (σωφροσήσεις v 1259)
Eacute certo que a predisposiccedilatildeo excessiva de alguns caracteres especialmente do
protagonista fornece subsiacutedios para observarmos a funccedilatildeo relevante do sentimento de ira
dentro da composiccedilatildeo das obras visto que ela mesma jaacute pressupotildee um desequiliacutebrio de
acircnimo Mas isso seraacute mais bem compreendido depois de pontuarmos ao menos um elemento
dos estudos de Knox sobre essa obra o qual evidencia nessa peccedila de Soacutefocles um outro ideal
que move as accedilotildees e reflexotildees do heroacutei
Aacutejax explicitamente cultua os valores desdobrados da seguinte sentenccedila e maacutexima
fazer bem aos amigos e mal aos inimigos τούς φίλους εὖ ποιεῖν τοὺς δ` ἐχθροὺς κακῶς
(KNOX 1961 p 3) Sendo combatido por alguns pensadores a exemplo maior de Platatildeo
este pensamento ainda era aceito de modo geral na Atenas democraacutetica sendo visto inclusive
como conselho praacutetico definiccedilatildeo de justiccedila e por corresponder sobretudo a resquiacutecios de um
coacutedigo heroico antigo representava tambeacutem princiacutepios morais proacuteprios da formulaccedilatildeo de
virtude grega (Ibidem p 3-4) Isso tambeacutem evidencia relevantemente o papel importante
dessa sentenccedila no confronto de valores passados e presentes no qual o poeta questiona a
validade desse tipo de pensamento e de conduta no periacuteodo claacutessico
Com efeito o ponto fulcral da obra em que inclusive os valores depreendidos dessa
sentenccedila estatildeo sintetizados eacute segundo Bernard Knox (1961 p 1) o discurso de Aacutejax que
figura o segundo episoacutedio (v 646-692) Neste monoacutelogo o personagem reconhece a falecircncia
de seus princiacutepios e questiona o proacuteprio sentido de sua vida antecipando seu suiciacutedio
Diante de seu renitente posicionamento moral que parece ser reflexo de sua firmeza
guerreira e disposiccedilatildeo a nunca recuar (cf p 18) mostra-se a natureza de um mundo que se
revela inerentemente instaacutevel para o heroacutei em questatildeo isso significa dizer que a proacutepria
posiccedilatildeo ocupada pelos amigos e pelos inimigos pode permutar (Ibidem p 17) A realidade
diante dele eacute mutaacutevel e ciacuteclica de maneira que isso eacute visto segundo as palavras do
personagem ao se perceber a noite sobrepor-se ao dia o inverno ao veratildeo e o sono ao estar
acordado Essa realidade se faz tatildeo presente na composiccedilatildeo da trama que esse conteuacutedo se
torna processo de sua proacutepria estrutura como bem pontua Hubbard (2003 p 168) pois a
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ruiacutena que lhe retira o status heroico move seu suiciacutedio mas a condiccedilatildeo de morto a receber os
ritos fuacutenebres o devolve agrave sua condiccedilatildeo inicial de heroacutei
Contrariamente a essa mutabilidade seu caraacuteter reflete a sua visatildeo de mundo tal como
satildeo firmes seus princiacutepios o mundo deveria ter uma natureza estaacutevel e assim reconhecer-se-
ia o amigo e o inimigo pois suas posiccedilotildees deveriam ser naturalmente permanentes e
imutaacuteveis Essa eacute a loacutegica que rege o personagem Seu suiciacutedio eacute concebido exatamente
porque o Telamocircnio reconhece ser incapaz de se adaptar e isso exige moderar-se (σωφρονεῖν
v 677)
Esse modo de pensar quando visto sob o prisma da maacutexima supracitada aceita e
justifica o oacutedio aos inimigos sobretudo se levarmos em conta a composiccedilatildeo de caracteres
excessivos Coerentemente a essa conjuntura tanto os Atridas quanto Aacutejax parecem tomar
para si esse coacutedigo heroico antigo (Ibidem p 167) Para aqueles isso estaacute claramente
manifestado no interesse de ambos em impedir os funerais de protagonista pois na sua
compreensatildeo esse ato violento contra a honra de outro se justifica pela sua nova posiccedilatildeo
ocupada a de inimigo expliacutecito Para o heroacutei de Salamina em que tal conduta eacute mais
evidente entatildeo nada mais natural do que alimentar esse oacutedio aos inimigos de forma extrema
inclusive a vangloriar-se e a deleitar-se sobre os atos de excessiva violecircncia aplicadas aos
mesmos (KNOX 1961 p 4) Dessa forma quando Odisseu apoacutes a vitoacuteria sobre seu
adversaacuterio na disputa pelas armas de Aquiles passa de uma posiccedilatildeo de amizade para a de
inimizade ao agir contra o heroacutei derrotado o episoacutedio retratado na peccedila se alinha com a
tradiccedilatildeo homeacuterica como vimos na seccedilatildeo anterior na qual observa-se o rancor ou a ira
inerente a Aacutejax que permanece mesmo apoacutes a sua morte
Essa ira do heroacutei que ecoa do oacutedio aos inimigos e que continua mesmo quando
morto parece bem relevante dentro da obra embora em quantidade reduzida perante agraves
inuacutemeras menccedilotildees agrave loucura do heroacutei a maniacutea (μανία) defendida reiteradamente por vaacuterios
estudiosos como de origem divina e cuja funccedilatildeo dentro da obra figura frequentemente os
estudos sobre essa peccedila em questatildeo de Soacutefocles Contudo acreditamos que essa ira representa
um reforccedilo ao caraacuteter desmedido do heroacutei como um traccedilo inerentemente humano que em
Aacutejax transfigura o seu latente excesso e sobre o qual Atena insufla a loucura Haacute na obra duas
menccedilotildees diretas a ela que expressa nomeadamente χόλος o mesmo vocaacutebulo contemplado
na seccedilatildeo anterior Estas seratildeo aqui apresentadas mas soacute no capiacutetulo seguinte seratildeo estudadas
mais profundamente
A primeira citaccedilatildeo no proacutelogo estaacute vinculada ao discurso de Atena que esclarece a
Odisseu a causa do Telamocircnio ter tentado assassinar os chefes gregos A resposta eacute evidente
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o ato foi movido pela ira por causa das armas de Aquiles (v 41) A segunda no terceiro
episoacutedio eacute proferida pelo coro que representa na peccedila em unidade coletiva os guerreiros do
exeacutercito do Telamocircnio Nessa passagem equivocadamente o coro acredita que o heroacutei
contrariando a sua iacutendole dobrar-se-aacute abandonando a ira contra os deuses (v 743-744) Essas
menccedilotildees enfocam uma coisa em comum a ira que surge do reconhecimento do protagonista
acerca dos amigos que inesperadamente agem contra ele A primeira menccedilatildeo em relaccedilatildeo aos
chefes gregos que julgaram Odisseu merecedor do precircmio deixando Aacutejax desonrado e a
segunda em relaccedilatildeo sobretudo a Atena deusa considerada por ele aliada nos combates
σύμμαχον (v 117) que lhe infligindo doenccedila nos olhos conduziu sua carnificina aos
rebanhos fato que ultrajou o heroacutei agravando o seu infortuacutenio Assim por um lado eacute
possiacutevel ver que a ira que surge tanto contra os homens quanto contra os deuses serve para
reconhecer o caraacuteter excessivo do heroacutei Por outro serve para compreender que sentimentos
movem a accedilatildeo do heroacutei e consequentemente executando um papel estrutural na noccedilatildeo de
causalidade presente na obra
Contudo eacute necessaacuterio distinguir a ira choacutelos da loucura maniacutea ou da doenccedila noacutesos
(νόσος) uma vez que estas uacuteltimas satildeo extremamente recorrentes em Aias sobretudo com o
reforccedilo de vaacuterios vocaacutebulos derivados
Acerca destas uacuteltimas concordamos com Bruno Huumlbscher que observa que a loucura
e a doenccedila de Aacutejax engendrada pela deusa Atena natildeo consiste apenas em fazer o Telamocircnio
ver nos animais do rebanho grego a figura dos chefes Assim vemos naquelas a ambiguidade
entre a intervenccedilatildeo divina e a vontade humana tal qual como na composiccedilatildeo homeacuterica as
motivaccedilotildees divinas e humanas satildeo indissoluacuteveis (2011 p 39-40) Tal compreensatildeo se mostra
sustentaacutevel quando reconhecemos que essa loucura figura essas duas interpretaccedilotildees Por um
lado representa uma puniccedilatildeo divina (v 131-133) oriunda da fuacuteria da deusa (μῆνις Ἀθάνας v
757 ὀργή θεᾶς v 776-777) contra o heroacutei que a ultrajou de cujos atos desmedidos natildeo
podemos retirar ao menos a accedilatildeo da deusa em excitaacute-lo a exceder-se (v 114-115) ou seja um
fator externo que implica um estiacutemulo a um comportamento pessoal e tambeacutem em ajudaacute-lo
de alguma forma (v 91-93) uma vez que ela natildeo soacute eacute considerada por ele como aliada mas
tambeacutem se apresenta como tal (συμμάχου v 90) Por outro representa a negaccedilatildeo da
civilizaccedilatildeo uma vez que vemos a violecircncia patente no heroacutei sobrepor-se a sua natureza
humana e social (Ibidem p 27-28) e isso significa dizer claramente que essa loucura eacute a
negaccedilatildeo da sophrosyacutene e a execuccedilatildeo extrema da sua latente hyacutebris Eacute necessaacuterio observar que
essa desmedida do protagonista eacute de extremidade singular pois sua loucura natildeo soacute rompe com
a civilizaccedilatildeo fazendo-o renunciar os laccedilos pessoais e a conduta heroica cultivados por ele
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como aleacutem disso o coloca em um status de selvageria e bestialidade Para esse uacuteltimo
entendimento natildeo faltam referecircncias na obra seja porque o heroacutei eacute caccedilado como um animal
por Odisseu ainda no proacutelogo ou seja porque sua tenda habitaccedilatildeo humana e cenaacuterio da peccedila
transforma-se no covil de sua carnificina como bem observa Huumlbscher (Ibidem p 37)
Em oposiccedilatildeo a essa loucura de caraacuteter divino e humano como tentaremos mostrar no
proacuteximo capiacutetulo o sentimento de ira que tem como alicerce sua honra e seus princiacutepios eacute
proacuteprio do personagem e estaacute presente sobretudo quando em sua sanidade ao considerarmos
como finda a fuacuteria da deusa pois mesmo morto a ira de Aacutejax persiste seja no ecircxodo da peccedila
ou no Canto XI da Odisseia com o qual aquela uacuteltima cena se alinha Os atos excessivos do
heroacutei alguns como vimos satildeo impulsionados por esse sentimento que parece inerente a sua
natureza Isso fica claro no momento em que ele se recupera desse frenesi pois natildeo lamenta
ter cometido tal accedilatildeo mas lastima-se apenas porque sua tentativa de assassinato natildeo
encontrou sucesso ou quando renuncia voltar aos combates e morrer belamente pois isso
agradaria os Atridas uma vez que os ajudaria nas batalhas contra os troianos
Dessa forma a partir das informaccedilotildees dispostas podemos reconhecer na unidade da
obra uma estrutura menos enigmaacutetica de seus componentes do que o proposto
recorrentemente por alguns estudiosos Com efeito sustentando uma composiccedilatildeo digna da
autoria do tragedioacutegrafo o estudo da caracterizaccedilatildeo de Aacutejax na peccedila em questatildeo sob o vieacutes
das noccedilotildees de virtude e ira parece-nos profiacutecuo visto tambeacutem que se entrelaccedilam com a
concepccedilatildeo grega de honra heroica contribuindo para a estruturaccedilatildeo semacircntica dos impulsos
que movem as accedilotildees desmedidas dos personagens
1 2 2 Metamorfoses de Oviacutedio
A obra Metamorfoses foi composta por Puacuteblio Oviacutedio Nasatildeo durante o periacuteodo
claacutessico ou o Seacuteculo de Augusto ocorrido entre o seacuteculo I a C e o seacuteculo I a D em que a
literatura encontrou seu apogeu no mundo latino Esse aacutepice de verdadeira literatura latina
que fornece modelos para a literatura posterior foi alcanccedilado atraveacutes do status de obras
escritas e das caracteriacutesticas artiacutesticas proacuteprias dos textos literaacuterios No entanto o contexto
que tornou tudo isso possiacutevel tem como base o contato com a poesia produzida na Greacutecia
(CARDOSO 2011 p 4) Acerca disso eacute reconhecido o fato de a iniciaccedilatildeo literaacuteria latina ter
como marco a traduccedilatildeo da Odisseia pelo grego Liacutevio Andronico e de este ter influenciado
profundamente o papel da literatura grega na dos romanos quer na epopeia no teatro ou na
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liacuterica atraveacutes de suas produccedilotildees mesmo que de insipiente caraacuteter literaacuterio A literatura grega
entatildeo foi imitada e retomada e inclusive a sua mitologia
Por isso o periacuteodo claacutessico latino iniciado a partir de uma liacutengua claacutessica encetada
por Ciacutecero que teve como base a oratoacuteria consolidou-se efetivamente com a poesia
influenciada por vaacuterios modelos gregos como por exemplo Homero para a eacutepica Safo
Piacutendaro e Teoacutecrito para a liacuterica Eacutesquilo Soacutefocles e Euriacutepides para a trageacutedia etc Produziu-
se assim a excelecircncia da Literatura Latina por meio de diversos gecircneros literaacuterios e da
qualidade de suas produccedilotildees Alguns expoentes desse momento histoacuterico foram Virgiacutelio na
eacutepica Secircneca na trageacutedia Petrocircnio na prosa Catulo Horaacutecio e Oviacutedio na poesia liacuterica
Dentre os poetas liacutericos dessa eacutepoca Oviacutedio eacute o considerado o mais versaacutetil devido agrave
grande variedade de temas que compotildeem sua vasta obra (CARDODO 2011 p 80) Os temas
abarcam o caraacuteter eroacutetico em Heroides (Epistolae Heroidum) e Amores (Amores) o
sofrimento proacuteprio das elegias em Cantos tristes (Tristia) e Cartas pocircnticas (Epistolae ex
Ponto) ou das trageacutedias em Medeia (Medea) o caraacuteter didaacutetico em Haliecircutica (Halieutica) a
seduccedilatildeo em A arte de amar (Ars amatoacuteria) etc Aleacutem dessas constituiacuteda de quinze livros
acrescenta-se a obra Metamorfoses (Metamorphoseon libri) que dispotildee em um longo poema
composto de versos hexacircmetros uma coletacircnea de episoacutedios miacuteticos que se entrelaccedilam a
partir de um uacutenico tema a metamorfose
Apesar de sua estrutura fixada no verso eacutepico e da narraccedilatildeo qualidades proacuteprias do
gecircnero eacutepico segundo Aristoacuteteles e Horaacutecio essa obra apresenta muitas dificuldades de
classificaccedilatildeo quanto a um gecircnero literaacuterio Muitos elementos constitutivos desse poema satildeo
tomados como base por vaacuterios estudiosos para confrontar interpretaccedilotildees em busca de uma
classificaccedilatildeo para seu aspecto heterogecircneo e consequentemente original Disporemos
essencialmente aqueles que nos sirvam para o presente estudo Dessa forma tentaremos
compreender a natureza da obra de Oviacutedio a partir daqueles procedimentos literaacuterios do autor
relevantes para a sua composiccedilatildeo mas que sobretudo convirjam com o objetivo do nosso
trabalho
Em seu livro A Literatura Latina em breve apresentaccedilatildeo da obra Zeacutelia de Almeida
Cardoso jaacute nos aponta a dificuldade de enquadrar Metamorfoses em algum gecircnero Pois
apesar do ldquotom eacutepico dos versos hexacircmetros e do emprego sistemaacutetico da narraccedilatildeordquo (2011 p
83) natildeo se pode caracterizar a obra como epopeia Natildeo haacute tambeacutem como denominaacute-la de
poema didaacutetico pois ldquomesmo que quiseacutessemos consideraacute-lo como uma tentativa de explicar o
universo pela teoria pitagoacuterica que admite a reencarnaccedilatildeo da alma iriacuteamos esbarrar sem
duacutevida na falta de qualquer fundamentaccedilatildeo cientiacuteficardquo (2011 p 83) diferente de como nos
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parece proceder Lucreacutecio em sua obra De Rerum Natura de cunho filosoacutefico Com efeito
devido agrave expressatildeo da sentimentalidade e da caracterizaccedilatildeo pessoal evidente em toda obra a
autora prefere consideraacute-lo de caracteriacutesticas literaacuterias mais proacuteximas aos poemas liacutericos
Em um vieacutes contraacuterio Manuel Rolph Cabeceiras em artigo intitulado As
Metamorphoses de Oviacutedio a arte poeacutetica na Roma antiga e os padrotildees eacutepicos propotildee
aceitarmos a obra como eacutepico a princiacutepio para que se possa discutir essa definiccedilatildeo Para isso
o autor evidencia a diversidade histoacuterica do gecircnero confrontando o que o proacuteprio mundo
greco-romano considerou como epopeia
Um dos elementos primeiramente destacados eacute a proacutepria meacutetrica eacutepica da obra Sabe-
se que o hexacircmetro natildeo eacute exclusivo da eacutepica poreacutem essa medida foi postulada como cacircnone
para o gecircnero sendo usada inclusive como um criteacuterio tipoloacutegico Aristoacuteteles Horaacutecio e o
proacuteprio Oviacutedio consideram esse metro como algo fundamental e natural agrave epopeia Segundo
Cabeceiras quaisquer dessas liccedilotildees enquadraria Metamorfoses no patamar de eacutepico pois natildeo
haacute eacutepicos em outra meacutetrica Para o autor a obra de Oviacutedio ainda abarca vaacuterias outras
caracteriacutesticas tipoloacutegicas do gecircnero como uma ldquovasta extensatildeo [] a multidiversidade de
episoacutedios todos imitando uma uacutenica accedilatildeo ndash a metamorfose anunciada no breviacutessimo
argumento proclamado nos versos iniciaisrdquo (2008 p 76)
O grande problema prossegue o autor encontra-se naqueles que definem quem estaacute
ou natildeo estaacute dentro dos criteacuterios Neste ponto os modernos conflitam com os antigos pelo
caraacuteter designativo de eacutepico Aqueles natildeo se cansam de ressaltar os problemas de
Metamorfoses evidenciando o seu caraacuteter fragmentaacuterio a sua unidade mal estruturada Para
eles a epopeia ldquodeve estar centrada na figura de um heroacutei a se bater por todo um povo ou um
fato heroico vivido por personagens humanas manipuladas de algum modo pelo arbiacutetrio dos
deusesrdquo (2008 p 73) apesar de nenhuma definiccedilatildeo desse tipo existir entre os antigos Para
os romanos por exemplo essa obra era considerada eacutepica apesar de suas concretas
inconsistecircncias tipoloacutegicas Quintiliano no livro X da Institutio oratoria elenca autores
eacutepicos enaltecendo primeiramente Virgiacutelio por ser o mais proacuteximo a Homero mas outros satildeo
listados como Corneacutelio Severo Serrano Valeacuterio Flaco Saleio Basso Lucano e o proacuteprio
Oviacutedio Para Secircneca Retor em Controuersia II Metamorfoses eacute interpretada como uma
epopeia nos padrotildees antigos motivo pelo qual ele mesmo lhe atribui o caraacuteter defeituoso em
sua elaboraccedilatildeo Eacute no mesmo tom que Secircneca Filoacutesofo condena o eacutepico de Oviacutedio Assim
mesmo conferindo-lhe o caraacuteter eacutepico Secircneca pai e filho junto com Quintiliano recusam as
possiacuteveis inovaccedilotildees trazidas por Oviacutedio criticando toda tentativa de ldquoruptura consciente da
ortodoxia firmada em torno do gecircnero eacutepico em prol de sua renovaccedilatildeordquo (2008 p 87)
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Eacute nesse ponto em que se concentra o artigo de Manual Cabeceiras em defesa de
Oviacutedio como poeta de eacutepica a sua renovaccedilatildeo Eacute possiacutevel ver a evoluccedilatildeo e adaptaccedilatildeo de tal
gecircnero em cada tempo promovendo-se assim a sua diversidade histoacuterica No periacuteodo
heleniacutestico especialmente vecirc-se um refluxo de seu paradigma pois para o influente
Caliacutemaco seguindo os ditames de sua arte poeacutetica esboccedilada no proacutelogo da obra conhecida
como Contra os Telquinos eacute demasiado extenso o eacutepico Argonautas de quatro cantos de
Apolocircnio de Rhodes apesar de alcanccedilar pouco mais de um quarto dos versos da Odisseia
Passara tambeacutem para Caliacutemaco a eacutepoca ldquode uma obra de uma soacute peccedila [] cujo intuito era
cantar os feitos gloriosos de reis e heroacuteisrdquo (2008 p 81) Segundo Manuel Cabeceiras em
Alexandria nesse periacuteodo as obras de Homero natildeo eram tatildeo apreciadas pelo gosto comum
como antes Os exemplares poeacuteticos aclamados de entatildeo seriam os epigramas inclusive
alcanccedilando a Roma de Ecircnio Apesar das inovaccedilotildees trazidas ao gecircnero por Apolocircnio de
Rhodes seguindo o gosto de entatildeo como um maior aprofundamento subjetivo dos
sentimentos uma trivialidade impregnada na representaccedilatildeo dos deuses e uma maior
humanizaccedilatildeo de deuses e heroacuteis sua extensatildeo natildeo era a ideal Tal entendimento parece
justificar o desenvolvimento do epiacutelio pequeno poema eacutepico que dentro da proposta esteacutetica
de Caliacutemaco dispotildee uma narrativa breve
Contudo esta parece ser a perspectiva de Manuel Cabeceiras quanto a Oviacutedio e sua
Metamorfoses uma tentativa de renovar o gecircnero eacutepico sob certa influecircncia do periacuteodo
heleniacutestico Apesar de negar agrave sua obra a brevidade Oviacutedio retomaria essa maior trivialidade
dos deuses em detrimento de seu caraacuteter solene e a intensa subjetividade e presenccedila da
afeiccedilatildeo pessoal como elemento desencadeador das accedilotildees enredadas na obra Seguindo
portanto o gosto alexandrino segundo Manuel Cabeceiras o cotidiano se tornaria eacutepico
Assim descrevem-se cenas familiares mesmo quando representando deuses e heroacuteis
introduzem-se muitas comparaccedilotildees e digressotildees expondo o iacutentimo dos personagens nunca
arbitrariamente mas ora anunciando e ora retardando o desfecho da accedilatildeo Por fim para
Manuel Cabeceiras que defende Metamorfoses como uma nova configuraccedilatildeo do eacutepico
Oviacutedio abraccedilando os postulados de Caliacutemaco elabora a unidade de sua obra tatildeo ferozmente
criticada natildeo a partir de um povo ou heroacutei No lugar se impotildee um outro componente a
metamorfose tema central de sua obra e protagonista de suas histoacuterias A nobreza e o sublime
estariam entatildeo na representaccedilatildeo do universo e das transformaccedilotildees coacutesmicas especialmente
nos mitos que os compotildeem
Com efeito os cerca de duzentos e cinquenta episoacutedios ou mitos presentes na obra
qualificados por Cardoso exatamente como lendas etioloacutegicas uma vez que apresentam a
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causa e a origem de muacuteltiplos seres (2011 p 83) parecem natildeo engendrar uma unidade eacutepica
conforme muitos autores Essa disposiccedilatildeo aparentemente natildeo unitaacuteria reconstitui uma das
caracteriacutesticas do mito para outros Eacute o caso de Elaine Prado dos Santos que evidencia no
poema Metamorfoses esse aspecto especialmente ao considerar que segundo Burkert (apud
SANTOS 2010) Oviacutedio recupera algo da vida do antigo mito No entanto essa aproximaccedilatildeo
com o mito natildeo se daacute pela qualidade etioloacutegica dos mitos presentes na obra visto que essa
autora revela que o caraacuteter miacutetico disposto na obra importa mais por suas qualidades
imaginativas e estiliacutesticas que fundamentam a originalidade do texto ovidiano Quanto ao seu
conteuacutedo ainda descreve que as metamorfoses se dispotildeem em uma temporalidade proacutepria
alheia a uma progressatildeo cronoloacutegica linear na qual os episoacutedios natildeo apresentariam uma
correspondecircncia narrativa imediata ou de causalidade tornando-as independentes umas das
outras A autora prossegue elucidando que natildeo haacute uma sistematizaccedilatildeo dos mitos apresentados
a fim de criar uma unidade e que assim evita-se a lucidus ordo horaciana ou seja uma
ordem luacutecida e clara de sua disposiccedilatildeo (2010 p 189) Haacute portanto uma impressatildeo de
unidade na qual se realiza uma trama temaacutetica de relaccedilotildees e associaccedilotildees de caraacuteter
circunstancial Devido a isso tal viacutenculo que une os episoacutedios muitas vezes eacute julgado pelos
criacuteticos como artificial e inferior quanto agrave qualidade literaacuteria
Apesar de ser uma caracteriacutestica constante e de ser um instrumento condutor da obra a
metamorfose natildeo estrutura a continuidade narrativa compondo a unidade eacutepica teorizada por
Aristoacuteteles ou Horaacutecio pois o tema da transformaccedilatildeo natildeo desencadeia uma progressatildeo dos
episoacutedios conduzindo as accedilotildees em uma noccedilatildeo de causalidade A metamorfose sequer estaacute
concentrada nos personagens protagonistas se eacute que haacute realmente esse tipo na obra pois
muitos desses personagens natildeo sofrem transformaccedilatildeo A metamorfose em vaacuterios momentos
como afirma Elaine Prado dos Santos (Ibidem p 192) eacute tangencial tal eacute o caso de Faetonte
cujas irmatildes satildeo quem se transformam em aacutervores por exemplo Isso tambeacutem se faz possiacutevel
porque a continuidade narrativa natildeo se apresenta no texto centralizada nas accedilotildees
evidenciando assim uma cadeia sequencial e uma noccedilatildeo de causalidade O elo narrativo que
entrelaccedila os episoacutedios eacute repetimos circunstancial e se faz tambeacutem por meio de um
personagem natildeo necessariamente principal ou de um lugar onde vaacuterias histoacuterias acontecem
etc
Parece-nos que essa continuidade narrativa na Metamorfoses se constroacutei sob uma
aparente incoerecircncia unitaacuteria uma vez que apesar de terem a transformaccedilatildeo como elemento
comum os episoacutedios natildeo tecircm relaccedilatildeo imediata entre si O tema comum e a disposiccedilatildeo dos
episoacutedios tornam a obra una sob um ponto de vista aquele que contempla o conjunto como
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um canto ininterrupto perpertuum carmen (Metamorfoses I v 4) uma narrativa que se
prolonga do nascimento do cosmo ao momento presente do autor ab origine mundi ad mea
[] tempora (Ibidem I v 3-4)
Jaacute que natildeo haacute uma relaccedilatildeo direta entre os mitos apresentados de forma a dispocirc-los
com uma unidade estrutural Oviacutedio os ordena por meio de uma teacutecnica narrativa que encaixa
os episoacutedios uns nos outros a partir de afinidades e semelhanccedilas circunstanciais soacute possiacuteveis
pela disposiccedilatildeo escolhida pelo autor Como ainda indica Santos (Ibidem p 201) satildeo
muacuteltiplas as conexotildees usadas como elo entre os episoacutedios
A autora explica por exemplo que o mito do diluacutevio e o de Apolo e Dafne presente
no Livro I e sem relaccedilatildeo imediata entre si satildeo dispostas em sequecircncia O elemento unificador
dos dois episoacutedios estaacute no aparecimento do monstro Piacuteton nascido da lama da terra
proveniente da inundaccedilatildeo e que seraacute morto por Apolo personagem sobre o qual o novo foco
narrativo daacute continuidade agrave trama da obra (Ibidem p 194) Muitos dos elos tambeacutem satildeo
temaacuteticos como esclarece Elaine Prado dos Santos ldquoA lenda do escultor Pigmaliatildeo que cria
da pedra uma mulher eacute justaposta agraves Propeacutetidas ndash mulheres que se tornaram pedras (Ov Met
X 238 ndash 297) ndash portanto uma lenda se torna inversatildeo da outrardquo (SANTOS 2014 p 204)
assim o elemento pedra como a origem ou o fim da transformaccedilatildeo torna-se o viacutenculo entre
dois mitos que se distanciam completamente na perspectiva de uma loacutegica causal de accedilotildees em
cadeia
Dentro dessa teacutecnica narrativa de encaixe dos episoacutedios uns nos outros empregada por
Oviacutedio Alessandro Barchiesi (2006 p 181) elege para aprofundamento do estudo da obra
Metamorfoses a utilizaccedilatildeo de um tradicional componente eacutepico o narrador interno Isso se daacute
quando o narrador descreve personagens que tambeacutem narram histoacuterias e que para isso lhes
passa a palavra conferindo dois niacuteveis narrativos ao texto O primeiro no qual o personagem
tem suas accedilotildees narradas e o segundo em que o personagem se torna o narrador interno de
uma segunda histoacuteria Assim articula-se uma narrativa dentro de outra
Com efeito para a Literatura Grega um grande modelo dessa teacutecnica eacute a Odisseia de
Homero na qual o proacuteprio Odisseu personagem do primeiro niacutevel narrativo torna-se
narrador interno de suas proacuteprias histoacuterias nos Cantos IX - XII Poreacutem Odisseu participa
como personagem dos dois niacuteveis narrativos Para a Literatura Latina um grande expoente
eacutepico dessa teacutecnica eacute Virgiacutelio com a Eneida Semelhante a Odisseu no texto homeacuterico
Eneias personagem central da obra torna-se tambeacutem narrador interno de suas proacuteprias
histoacuterias nos Livros II e III Obviamente que alguns personagens do segundo niacutevel narrativo
tambeacutem podem se transformar em narradores internos criando entatildeo um terceiro niacutevel Eacute o
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caso de Siacutenon no Livro II da Eneida Siacutenon eacute um personagem pertencente ao segundo niacutevel
da narrativa compondo a histoacuteria narrada por Eneias Sendo grego coube a Siacutenon a funccedilatildeo de
convencer os troianos a levarem o cavalo de madeira para dentro das muralhas de Troia Esse
convencimento se faz por meio de uma narrativa do proacuteprio grego Assim temos no primeiro
niacutevel Eneias como personagem no segundo niacutevel Eneias como narrador interno e Siacutenon
como personagem e em um terceiro niacutevel Siacutenon como narrador interno
Esse tipo de articulaccedilatildeo de niacuteveis narrativos por meio de narradores internos eacute comum
ao gecircnero eacutepico sob uma forma especiacutefica um procedimento antigo na arte de narrar
nomeado pelos antigos de ὕστερον πρότερον ou como chamamos analepse ou flashback que
consiste em inversatildeo do tempo retomando-se um passado por meio de um heroacutei que o
rememora De acordo com Pierre Grimal esse recurso oferece algumas vantagens
A primeira delas reacender a atenccedilatildeo dos ouvintes (pois os poemas eacutepicos se formaram como todos sabem dentro de uma literatura oral sendo recitados e natildeo lidos e essa origem permaneceraacute perceptiacutevel ao longo das obras e dos seacuteculos a enumeraccedilatildeo dos eventos como num diaacuterio de bordo dia apoacutes dia eacute um tanto cansativa Mas haacute outra razatildeo essa inversatildeo do tempo essa volta atraacutes [] lanccedila luz sobre uma seacuterie de causas que resultam no presente e eacute exatamente um dos objetivos do poema eacutepico na medida em que se esforccedila por discernir a loacutegica interna ou pelo menos a continuidade racional do devir (1992 p 219)
O ponto nodal do uso desse recurso no gecircnero eacutepico se alicerccedila como diz Grimal em
distinguir uma loacutegica interna ou seja em estruturar a cadeia progressiva das accedilotildees desde
aquelas que figuram a obra ateacute aquelas apenas mencionadas como origem dessa cadeia e que
necessariamente natildeo precisam ser narradas Alessandro Barchiesi explica que a maioria dos
narradores internos da Odisseia e da Eneida estatildeo bem situados na trama distribuindo de
forma equilibrada as informaccedilotildees de todos os niacuteveis narrativos (Ibidem p 182-183)
Claramente isso eacute articulado para tornar visiacutevel uma determinada estrutura narrativa
Na estrutura de Metamorfoses continua o autor esse recurso eacute tanto unitaacuterio quanto
fragmentaacuterio pois as muacuteltiplas narrativas inseridas por narradores internos algumas vezes satildeo
bem estruturadas mas muitas vezes satildeo imprevisiacuteveis Assim a tradiccedilatildeo eacutepica de utilizaccedilatildeo
desse mecanismo natildeo oferece um guia seguro na compreensatildeo da estrutura da obra de Oviacutedio
Como jaacute vimos anteriormente esse caraacuteter fragmentaacuterio se estabelece pela natureza
circunstancial dos elos narrativos poreacutem eacute proposital e traz como consequecircncia inovaccedilotildees
especialmente no acircmbito dos niacuteveis narrativos
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Em toda a sua extensatildeo a obra Metamorfoses desenvolve suas narrativas por meio de
narradores internos natildeo centralizados em um uacutenico personagem que rememora seu passado
para explicar sua situaccedilatildeo presente tal qual na tradiccedilatildeo eacutepica Oviacutedio renova esse recurso de
maneira bem complexa Podemos observar no livro X um pouco da originalidade dada por
Oviacutedio ao recurso
Nesse livro o narrador passa a voz para o personagem Orfeu que canta aos animais e
plantas o encontro de Vecircnus e Adocircnis a qual tambeacutem narra a este a histoacuteria de Atalanta
Temos assim trecircs narradores satildeo eles o narrador poeta (no primeiro niacutevel narrativo) o
narrador interno Orfeu (no segundo) e o narrador interno Vecircnus (no terceiro) Observa-se
que em nenhum desses casos haacute narrativas de suas proacuteprias histoacuterias pelos personagens com
o objetivo de fornecer o discernimento de uma loacutegica interna que contextualize o momento
presente em que se passa a accedilatildeo central Esses niacuteveis narrativos certamente vinculam um
propoacutesito inovador de Oviacutedio Eacute por meio desse recurso que o autor une variados mitos uns
aos outros encadeando-os por afinidades e semelhanccedilas Contudo por mais que natildeo haja uma
noccedilatildeo de causalidade entres os episoacutedios ainda haacute uma consequecircncia semacircntica na sua
disposiccedilatildeo
O personagem Orfeu jaacute como narrador invoca sua matildee a musa Caliacuteope e Juacutepiter
para que ele possa cantar a histoacuteria dos jovens que foram amados pelos deuses Sob esse tema
o mito do amor de Juacutepiter por Ganimedes o de Apolo por Jacinto e o de Vecircnus por Adocircnis
satildeo por exemplo encadeados Natildeo haacute entre eles relaccedilatildeo causal na qual possamos ver em um
a origem do outro por um desdobramento progressivo das accedilotildees No entanto observa-se
apenas afinidade temaacutetica que os conecta Poreacutem dentro da narrativa de Orfeu sobre Vecircnus e
Adocircnis insere-se uma outra narrativa em terceiro niacutevel a histoacuteria de Atalanta e Hipomenes
narrada pela deusa ao amado Haacute um propoacutesito semacircntico dessa inserccedilatildeo que antecipa e
prepara o desfecho do amor de Vecircnus e Adocircnis Na histoacuteria de Atalanta e Hipomenes os dois
satildeo transformados em leotildees animais que compotildeem o argumento de Vecircnus na advertecircncia ao
seu amado jovem caccedilador natildeo caccedilar os animais que mostram o peito para a luta pois ruinosas
satildeo as suas consequecircncias
O propoacutesito didaacutetico da narrativa de Vecircnus sobre a metamorfose de Atalanta e
Hipomenes tem uma consequecircncia semacircntica direta sobre o desfecho de Adocircnis uma vez que
esse caccedilador morre ao confrontar um javali animal que enfrenta seus caccediladores e natildeo foge A
relaccedilatildeo semacircntica se constroacutei no caraacuteter traacutegico disposto entre os episoacutedios pois o heroacutei
Adocircnis morre segundo a maneira anunciada pela deusa O heroacutei natildeo soacute executa aquilo que
deveria evitar mas o faz conhecedor das consequecircncias eventuais e inerentes ao ato Assim
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sem a narrativa de Vecircnus o elemento traacutegico da morte de Adocircnis estaria diminuiacutedo ou mesmo
ausente Podemos ainda dizer que a histoacuteria de Atalanta e Hipomenes tem objetivos
diferentes a depender da instacircncia narrativa No primeiro niacutevel o propoacutesito eacute vincular o tema
da metamorfose no segundo niacutevel com Orfeu como narrador interno eacute compor o tema dos
jovens amados por deuses por meio da descriccedilatildeo dos cuidados do amor de Vecircnus por Adocircnis
no terceiro niacutevel eacute estruturar o caraacuteter proleacuteptico e traacutegico da futura morte por meio da
advertecircncia da deusa inserida no aspecto didaacutetico de sua narrativa
Observa-se assim a inovaccedilatildeo do tratamento que Oviacutedio daacute ao narrador interno
renovando sua funccedilatildeo com o encadeamento dos episoacutedios sem nenhuma relaccedilatildeo de
progressatildeo loacutegica das accedilotildees tal qual componente costumeiro da tradiccedilatildeo eacutepica mas por meios
de afinidades e semelhanccedilas circunstanciais
Devido a essa inovadora construccedilatildeo narrativa Alessandro Barchiesi (2006) comenta
que mais do que a urdidura de feitos humanos e divinos acepccedilatildeo claacutessica do eacutepico na
Metamorfoses observa-se o entrelaccedilamento de narrativas humanas e divinas Com efeito o ato
comunicativo encontra lugar patente nos propoacutesitos da obra e o ato de narrar se torna um
recurso central nos mitos vinculando para isso vaacuterios narradores internos Por consequecircncia
disso comenta o autor haacute tambeacutem uma espeacutecie de hierarquizaccedilatildeo das vozes dos personagens
na obra Assim
natildeo coincidentemente o primeiro narrador interno do poema eacute o personagem de maior autoridade Juacutepiter (I 182 ndash 243) e tambeacutem ele eacute a uacuteltima voz a falar no poema (a narrativa no tempo futuro XV 807 ndash 42 coroando o discurso de abertura de Juacutepiter na Eneida I 257 ndash 96) Por meio disso o autor mostra grande respeito pela teacutecnica de ldquonarrativa dentro de narrativardquo os assuntos das duas histoacuterias destinadas ao pai dos deuses e dos homens satildeo respectivamente a metamorfose de um tirano em lobo e a metamorfose de um liacuteder universal em uma estrela (2006 p 181 ndash 182 traduccedilatildeo nossa)
Esse ato comunicativo se impotildee na obra de forma que os personagens tendem a se
tornar narradores Contudo esse recurso estiliacutestico parece ser desdobramento de um outro
extremamente abundante tanto em Homero quanto em Metamorfoses e que constitui base da
natureza eacutepica o discurso direto Esse elemento eacute tatildeo importante para os poemas homeacutericos
que ocupa cerca de dois terccedilos de sua totalidade (PEREIRA 1984 p 3) e conjuntamente com
a modalidade narrativa compotildee a natureza da eacutepica
No Livro XIII da obra em que o autor nos mostra reunidas as metamorfoses de
personagens entre os quais alguns pertencem aos mitos do ciclo da Guerra de Troia como o
de Aacutejax de Heacutecuba de Mecircmnon por exemplo o papel do discurso direto tem como foco a
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persuasatildeo A relevacircncia dos narradores internos desse momento como do sacerdote Acircnio de
Galateia e de Glauco parece ser sobrepujada pela do discurso persuasivo de personagens
como Aacutejax Ulisses Polifemo e Glauco que proferem suas palavras com o objetivo de
demover seus interlocutores Reiterando essa perspectiva Elaine Fantham afirma que natildeo
devemos nos esquecer dos modelos declamatoacuterios tomados como exerciacutecios de retoacuterica nos
quais Oviacutedio foi educado sobretudo porque a oratoacuteria de sua eacutepoca se dobrava sobre a nova
praacutetica de discursos improvisados acerca de questotildees privadas ou histoacutericas conjuntamente
com o interesse na declamaccedilatildeo na dicccedilatildeo e na prosa riacutetmica (2009 p 27) Isso implica ao
texto o eventual uso de teacutecnicas retoacutericas de argumentaccedilatildeo Com esse entendimento
reconhecemos em Oviacutedio um autor que se utiliza abundantemente do discurso direto ao estilo
eacutepico transformando seus personagens natildeo soacute em narradores internos mas agora tambeacutem em
oradores Essa conjectura parece ser imprescindiacutevel para o estudo do nosso corpus o episoacutedio
da disputa entre o Telamocircnio e o Laertida pelas armas de Aquiles presente nos primeiros 398
versos do Livro XIII
Esse episoacutedio jaacute havia sido tema nas obras de Homero Piacutendaro Eacutesquilo e Soacutefocles
como jaacute vimos aleacutem de vaacuterias outras entre as quais as trageacutedias latinas Ajax de Ennius ou
Julgamento das Armas de Pacuvius e Accius Segundo Hopkinson estas uacuteltimas inseridas no
periacuteodo republicano romano provavelmente pouco teriam influenciado Oviacutedio (2000 p 16)
Contudo entre as vaacuterias possibilidades de influecircncia um par de discursos declamatoacuterios
oriundos de exerciacutecios retoacutericos da Greacutecia da segunda metade do Seacuteculo V a C estaacute presente
de forma evidente na base dos argumentos conferidos a Aacutejax e a Odisseu sobretudo do
primeiro Atribuiacutedo a Antiacutesthenes esse texto jaacute conferia aos argumentos do Telamocircnio o
contraste entre accedilatildeo e palavra as accedilotildees noturnas de Ulisses sob uma perspectiva negativa a
sua loucura fingida para fugir agrave convocaccedilatildeo o escaacuternio em observar que este natildeo teria
compleiccedilatildeo fiacutesica para sustentar as armas requeridas entre outras (Ibidem p 15)
Isso corrobora a carga retoacuterica dos discursos empregados em especial porque o
episoacutedio corresponde a uma disputa de oratoacuteria ou seja os personagens tentam convencer os
juiacutezes da contenda de que satildeo merecedores das armas de Aquiles e se alongam bastante nessa
empreitada Dada a voz aos personagens pelo narrador externo o discurso do heroacutei de
Salamina abrange do verso 5 ao 122 e o do proveniente de Iacutetaca do 128 ao 381 A extensatildeo
do discurso do segundo que corresponde ao dobro de seu adversaacuterio agregada agrave oposiccedilatildeo de
accedilatildeo e palavra conforme vimos anteriormente ser caracteriacutesticas marcantes desses
personagens faz-nos supor antes mesmo de termos contato com o episoacutedio que ele tem a
vantagem e a eventual vitoacuteria nessa disputa de oratoacuteria E assim acontece
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No entanto por mais que fossem utilizadas variadas teacutecnicas de retoacuterica e seus
lugares-comuns o arranjo eficaz da linguagem na Metamorfoses natildeo eacute usado apenas para o
sucesso persuasivo de certos personagens mas sobretudo para uma efetiva caracterizaccedilatildeo dos
mesmos Essa seria a grande conquista de Oviacutedio no desenvolvimento da linguagem em
contextos retoacutericos acredita Fantham (2009 p 31) Nosso estudo segue exatamente esse vieacutes
Natildeo procuramos identificar os elementos eficazes ou natildeo no discurso dos heroacuteis ou contrapocirc-
los ao texto de Antiacutesthenes mas reconhecer quando estes elementos delineiam a
caracterizaccedilatildeo do heroacutei sobretudo quando satildeo influenciados sob a perspectiva das noccedilotildees de
virtude e ira Assim por exemplo apesar de faltar sofisticaccedilatildeo ao discurso de Aacutejax Oviacutedio
ainda lhe impotildee a utilizaccedilatildeo de jogo de palavras e paradoxos sob um teor sarcaacutestico e
contundente a qual parece delinear o estado emocional do personagem a ira que acomete o
personagem um elemento tradicional de sua caracterizaccedilatildeo
Neil Hopkinson que dedicou todo um estudo ao Livro XIII de Metamorfoses
comentando-o verso a verso observa a mesma importacircncia da oratoacuteria em seus episoacutedios e
apresenta uma seccedilatildeo que recai sobre suas questotildees retoacutericas Apoiado nos escritos retoacutericos de
Quintiliano e Ciacutecero aponta que gregos e romanos mesmo acreditando que a fonte e a origem
da eloquecircncia jaacute estejam em Homero por meio de trecircs estilos distinguidos o grande (grauis)
o meacutedio (mediocris) e simples (attenuata) reconhece-se que os melhores oradores se
adequam agraves circunstacircncias mesclando todos os tipos destes assim promovendo um estilo
mais emocional de exortaccedilatildeo direcionado agrave excitaccedilatildeo de uma multidatildeo ou mais intelectual
designado a receber a aprovaccedilatildeo de senadores e juiacutezes (2000 p 16-17)
Devido a isso um elemento se torna determinante para os oradores a quem se
direcionam os discursos Em sua anaacutelise esse estudioso destacou que apesar de bom o
discurso de Aacutejax jaacute estaria fadado agrave derrota pois se direciona agrave massa de soldados sem nome
que natildeo possuem poder de voto algum diferentemente de Ulisses que visa aos reis No
entanto mesmo estando presentes muitos elementos dos manuais de retoacuterica como bons
argumentos figuras de linguagens bem empregadas perguntas retoacutericas ou sentenccedilas
contundentes e exclamaccedilotildees em momentos de cliacutemax faltam sobretudo ao discurso de Aacutejax
segundo o autor organizaccedilatildeo e proporccedilatildeo (Ibidem p 20)
Diante dessa disposiccedilatildeo pensamos existir no discurso do Telamocircnio corroborando
sua unidade textual uma organizaccedilatildeo dos argumentos uma reiteraccedilatildeo de determinados
conteuacutedos uma recorrecircncia de certos recursos retoacutericos bem significativos do ponto de vista
da caracterizaccedilatildeo do heroacutei e de alguma forma que retomam a tradiccedilatildeo No episoacutedio em
questatildeo tal composiccedilatildeo alicerccedila um discurso que provavelmente eacute elaborado para trazer a
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aparecircncia de retoacuterica direta veemente e contundente Por consequecircncia por um lado o
discurso parece se apoiar na forccedila de argumentos e no vigor de uma elocuccedilatildeo que se fazem
presentes sobretudo pelos atos rememorados do personagem os quais definem uma
determinada conduta heroica propriamente homeacuterica e pelas contundentes perguntas
retoacutericas que ao nosso ver caracterizam o heroacutei segundo suas recorrentes qualidades
guerreiras Por outro lado especialmente a violecircncia dos escaacuternios e das ironias e a
disposiccedilatildeo conturbada do conteuacutedo esta que tem uma coerecircncia interna e um encadeamento
loacutegico que segue um princiacutepio de afinidades e semelhanccedilas circunstanciais para noacutes parecem
enfatizar seu estado emocional iracundo Certamente isso foi considerado por Oviacutedio uma
vez que a ira evidenciada no episoacutedio estaacute presente desde a tradiccedilatildeo arcaica Vejamos um
pouco dessa disposiccedilatildeo em uma breve paraacutefrase
Aacutejax inicia seu discurso de modo conturbado que para Hopkinson representa a
ausecircncia de um exoacuterdio (Ibidem p 20) fazendo a oposiccedilatildeo entre ele e Ulisses precisamente
sob o contraste de accedilatildeo e palavra conferindo agrave uacuteltima uma natureza ligada agrave mentira
Prossegue a sua linhagem oriunda de Juacutepiter Sob esse tema e por essa afinidade o heroacutei
encadeia o proacuteximo argumento a acusaccedilatildeo ao adversaacuterio por meio de sua linhagem nefanda
Opotildee agrave sua origem a de Ulisses que vem de Siacutesifo e por isso tanto quanto este possui por
natureza a predisposiccedilatildeo e a vocaccedilatildeo ao crime Para evidenciar entatildeo a natureza de Ulisses
Aacutejax dando prosseguimento agraves acusaccedilotildees comprova-a com trecircs acontecimentos os casos de
Palamedes de Filoctetes e de Nestor Todos os episoacutedios satildeo apresentados descrevendo o
dolo e a covardia de Ulisses que causa mal aos heroacuteis supracitados de forma individual e
tambeacutem a todos os gregos em aspecto coletivo Contudo no uacuteltimo fato narrado o crime
levantado eacute o abandono de Ulisses a Nestor em plena batalha deixando-o sozinho agrave mercecirc
dos exeacutercitos troianos Sob esse uacuteltimo tema encadeando os dois assuntos o heroacutei de
Salamina entatildeo retoma sua defesa aproveitando o ensejo para se contrapor mais uma vez ao
adversaacuterio O argumento apresentado eacute o salvamento que ele mesmo faz ao proacuteprio Ulisses
durante uma batalha Fica evidente que a retomada agrave defesa se faz por meio de uma
semelhanccedila circunstancial da proteccedilatildeo de um igual um heroacutei durante as batalhas nunca o
abandonando De mesmo modo prossegue com a apresentaccedilatildeo de sua defesa contra Heitor e
de sua proteccedilatildeo agraves naus gregas Durante todo esse processo reforccedila-se a oposiccedilatildeo entre o
homem de accedilatildeo ele proacuteprio e o homem da palavra o Laertida que retomada ao fim do
discurso ilustra a coerecircncia do possuidor das armas ser consequentemente ele mesmo o
Telamocircnio A resposta de Ulisses mais difiacutecil segundo as premissas retoacutericas uma vez que
exige a refutaccedilatildeo dos argumentos do acusador faz-se eficaz ao nosso ver especialmente
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porque evidencia o meacuterito das accedilotildees que influenciam diretamente na conquista de Troia
sejam accedilotildees passadas como a retirada do Palladium de Atenas que estava em Troia ou
futuras como a retomada do arco de Heacutercules em posse de Filoctetes que soacute seraacute possiacutevel
atraveacutes da persuasatildeo de Odisseu sobre este Estes fatos satildeo importantes porque figuram na
literatura do ciclo da guerra de Troia as condiccedilotildees profeacuteticas sobretudo de cunho religioso
para que os gregos se tornem vitoriosos na expediccedilatildeo Ulisses assim opotildee a eficaacutecia de suas
accedilotildees aos valores heroicos de Aacutejax cujos atos natildeo parecem exercer forccedila sobre a conquista de
Troia aleacutem de adequar relevantemente seu discurso agrave audiecircncia atraveacutes de variadas teacutecnicas
de argumentaccedilatildeo retoacuterica Dessa forma a inteligecircncia se sobrepocircs agrave forccedila tal qual parece ter
acontecido na disputa entre esses dois heroacuteis nos jogos fuacutenebres em homenagem a Paacutetrocles
no Canto XXIII da Iliacuteada (cf p 20) Para Hopkinson natildeo haacute nada de extraordinaacuterio na
disposiccedilatildeo e no arranjo dos argumentos desse heroacutei contudo seu ponto forte realmente estaacute
na sua retoacuterica de desarme com a qual refuta as acusaccedilotildees do opositor e na sua postura
controlada e cuidadosa que segue as orientaccedilotildees dos manuais retoacutericos (Ibidem p 20-21)
Diante disso eacute notaacutevel que a maioria dos argumentos de ambos heroacuteis correspondam
aos mais recorrentes lugares-comuns e que como jaacute foi mencionado antes mais importante
do que isso eacute observar como essa composiccedilatildeo estrutura a caracterizaccedilatildeo tanto de Aacutejax quanto
de Ulisses (HOPKINSON 2000 p 16)
A unidade textual conferida ao episoacutedio de Oviacutedio considerando-se as informaccedilotildees
desenvolvidas acima parece reforccedilar a virtude e a ira guerreira do personagem sobretudo
defensiva Isso se torna mais evidente pelo reforccedilo semacircntico a essa proeminecircncia defensiva
por meio de atos e vocaacutebulos significativos para isso com os quais a participaccedilatildeo do escudo
se mostra fundamental Tambeacutem extremamente relevantes satildeo as duas menccedilotildees diretas a sua
ira (irae v3 iram v 385) que antecipa o seu discurso e fecha o episoacutedio delineando a
natureza do estado emocional do heroacutei Ambas emolduram a ira do personagem em torno da
disputa configurando inclusive como anterior e posterior ao evento
Conveacutem sempre pontuar uma vez que o estudo mais profundo seraacute disposto no
capiacutetulo seguinte que essa ira parece diretamente tratar do sentimento natural para o qual
Aacutejax se mostra propenso em especial por um lado por retomar-se a tradiccedilatildeo homeacuterica
alinhado o episoacutedio de Oviacutedio ao da Odisseia e por outro lado pela oposiccedilatildeo que o autor de
Metamorfoses faz entre ira e loucura furor quando se trata do mito desse heroacutei Visto que o
episoacutedio do Livro XIII natildeo trata do ataque do Telamocircnio aos rebanhos gregos seu autor nesta
obra soacute lhe configura iracundo diferentemente de como o faz em Amores no qual o eu-liacuterico
eacute tomado por uma loucura (furor I 7 v 2 e 3) que o faz atacar sua senhora tal qual o chefe
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de Salamina senhor do escudo de sete dobras abateu pelos vastos campos as greis
encontradas (clipei dominus septemplicis Aiax stravit deprensos lata per arva greges -
Ibidem v 7-8) Assim tentamos evidenciar como o estudo da caracterizaccedilatildeo desse
personagem sob todas as condiccedilotildees dispostas acima eacute profiacutecuo mesmo dentro dessa obra na
qual natildeo haacute personagens centrais
Diante de tudo o que foi exposto conveacutem relembrarmos que a aparente incoerecircncia
unitaacuteria proacutepria da narrativa miacutetica desenvolvida na Metamorfoses por meio do
encadeamento de episoacutedios com afinidades circunstancias e ora pela teacutecnica de
desdobramentos dos niacuteveis narrativos somada a uma carga liacuterica e traacutegica e a um tom eacutepico
coloca a obra em uma posiccedilatildeo singular um entrelugar Isso significa dizer que a complexa
situaccedilatildeo em que os estudiosos e criacuteticos colocam a obra nos permite analisaacute-la respeitando a
devida pertinecircncia a partir de elementos ou categorias da poesia liacuterica traacutegica ou eacutepica bem
como de caracteriacutesticas do mito em si ou de teacutecnicas da retoacuterica Essa polivalecircncia nos
oferece assim uma variada e rica possibilidade de interpretaccedilatildeo do poema e do episoacutedio
sendo possiacutevel conjugarem-se a grande expressatildeo de sentimentalidade liacuterica e o uso de
epiacutetetos eacutepicos tal qual os propoacutesitos homeacutericos por exemplo
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2 ESTUDO ISOLADO DA CARACTERIZACcedilAtildeO DO HEROacuteI
Disporemos neste capiacutetulo um estudo sobre a caracterizaccedilatildeo do personagem Aacutejax
especialmente relacionando o papel executado por ela na composiccedilatildeo estrutural das obras
considerando-se os niacuteveis relevantes e possiacuteveis do acircmbito literaacuterio Primeiramente faremos
uma anaacutelise sobre a obra grega de Soacutefocles Aias e em seguida sobra a latina de Oviacutedio
Metamorfoses Com efeito a organizaccedilatildeo das nossas anaacutelises segue um criteacuterio mais
adequado ao nosso propoacutesito e que consiste em dispocirc-la associando-se fragmentos que
manifestem marcas fundamentais de caracterizaccedilatildeo vinculadas ora agrave noccedilatildeo de virtude ora agrave
de ira
Como jaacute dissemos anteriormente empregamos em nossa pesquisa o lato entendimento
da teoria de Carlos Reis e de Ana Cristina Lopes acerca de caracterizaccedilatildeo a qual incorre
senatildeo nos traccedilos essenciais de um personagem estruturados em uma unidade identificada por
determinados indiacutecios textuais por meio da qual esse conjunto de atributos desempenha uma
funccedilatildeo essencial na composiccedilatildeo do enredo intensificando-se e se reiterando o eixo semacircntico
do argumento da obra (1988 p 193-195)
Consideramos ainda em nosso estudo as concepccedilotildees de caracterizaccedilatildeo do tipo direta e
indireta postuladas por esses mesmos autores contudo essas estatildeo submetidas a nossa
primeira divisatildeo De acordo com tais estudiosos o primeiro tipo corresponde a um de
procedimento estaacutetico constituiacutedo sobretudo a partir de descriccedilotildees cuja finalidade de
caracterizaccedilatildeo se mostra evidentemente expressa em uma determinada passagem do texto
Essa praacutetica pode ser executada pelo narrador externo e tanto pelo proacuteprio personagem
quanto por outro Em oposiccedilatildeo a esse o segundo tipo12 consiste em um processo dinacircmico e
mais disperso observado por meio dos discursos dos personagens da suas accedilotildees e reaccedilotildees em
certas situaccedilotildees significativas para isso (1988 p 194-195) Com efeito dentro das nossas
anaacutelises utilizaremos de forma despretensiosa essa tipologia para marcar sobretudo
determinadas observaccedilotildees assentando nesta uma interpretaccedilatildeo que busque esclarecer os
vaacuterios niacuteveis de referenciaccedilatildeo interna da obra revelando a complexidade do todo a partir do
estudo de algumas de suas partes
12 Esse tipo de caracterizaccedilatildeo eacute importante especialmente porque parece refletir as premissas aristoteacutelicas Segundo a interpretaccedilatildeo de Jones acerca da Poeacutetica a trageacutedia natildeo imita homens mas accedilotildees assim o caraacuteter eacutethos desenvolve-se para as accedilotildees e soacute nelas se revela quando executadas pelos personagens dessa forma o caraacuteter eacute incluiacutedo em funccedilatildeo da accedilatildeo sobretudo por ser o enredo myacutethos ou seja o arranjo das accedilotildees a alma da trageacutedia e o primeiro antes dos demais elementos (apud LUNA 2012 p 297-299) Assim ao nos referirmos a esse tipo recorremos de alguma forma ao procedimento proacuteprio para a literatura claacutessica greco-latina
60
2 1 A VERSAtildeO DE SOacuteFOCLES
O estudo que disporemos a seguir tem como base a trageacutedia Aias de Soacutefocles
contudo restringir-nos-emos a alguns fragmentos selecionados recolhidos de vaacuterias seccedilotildees da
obra e coerentes com os objetivos do estudo A anaacutelise que propomos bem como os criteacuterios
adotados para apreciaccedilatildeo estatildeo submissos a duas categorias analiacuteticas jaacute definidas por noacutes
virtude e ira na caracterizaccedilatildeo de Aacutejax Ambas parecem ter igual papel fundamental no
episoacutedio impondo-se como chaves de leitura sem as quais a estrutura do texto se desfaz
parcial ou completamente Assim essa caracterizaccedilatildeo em que consiste esta seccedilatildeo trata da
forma pela qual Soacutefocles constroacutei o personagem dando-lhe profundidade e significado diante
do contexto da peccedila Em nossa anaacutelise observaremos trechos do texto que evidenciem esses
traccedilos caracteriacutesticos do heroacutei por meio de indiacutecios textuais capazes de demonstrar a funccedilatildeo
estrutural das categorias escolhidas para o episoacutedio
Devido agrave perspectiva adotada e visto que nossa anaacutelise recairaacute apenas sobre alguns
versos da trageacutedia faz-se necessaacuteria a estruturaccedilatildeo da peccedila em questatildeo de modo a
contextualizar em que passagens estatildeo inseridos os fragmentos escolhidos facilitando a
compreensatildeo do que seraacute apresentado A disposiccedilatildeo adotada abaixo foi desenvolvida por
Pascal Thiercy pois parece-nos mais didaacutetica uma vez que consiste em uma estruturaccedilatildeo
habitual da trageacutedia No entanto essa peccedila apresenta particularidades que tornam os limites de
alguns episoacutedios e estaacutesimos mais difiacuteceis de se estabelecer como por exemplo algumas
intervenccedilotildees liacutericas da peccedila ou a mudanccedila de lugar que decorre no meio do episoacutedio que eacute
comum agraves trageacutedias claacutessicas segundo aponta esse mesmo autor (2009 p 14-15) Assim
dispomos sua estrutura segundo o esquema tradicional facilitando a sua compreensatildeo Cabe-
nos ainda ressaltar que em nossa apreciaccedilatildeo do texto recorreremos a esta configuraccedilatildeo Satildeo
personagens Atena a deusa grega Aacutejax o heroacutei protagonista Tecmessa Teucro e Euriacutesaces
respectivamente a cativa o irmatildeo e o filho do Telamocircnio Odisseu Agamecircmnon Menelau
um mensageiro e o coro
1 Proacutelogo (v 1 ndash 133) este momento corresponde ao iniacutecio in medias res A cena eacute
desenvolvida agrave frente da tenda de Aacutejax na noite apoacutes a disputa pelas armas de Aquiles e ainda
durante a guerra de Troia Eacute o momento em que o heroacutei enganado encontra-se a torturar os
animais Junto com este figuram neste ato Odisseu que seguia os rastros do responsaacutevel
pela matanccedila e Atena que lhe revela toda a situaccedilatildeo e lhe exibe aquele como um exemplo de
excesso um modelo que deve ser punido
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2 Paacuterodo (v 134 ndash 200) a entrada do coro o qual representa o exeacutercito de Salamina
sob o comando do protagonista Em cena jaacute com o dia nascido dispotildee indagaccedilotildees ao chefe e
lamentos pelos boatos que surgem
3 Primeiro episoacutedio (v 200 ndash 595) os personagens Aacutejax e Tecmessa sua cativa
junto ao coro lamentam e esclarecem a situaccedilatildeo do heroacutei a intervenccedilatildeo de uma divindade no
infortuacutenio do personagem A peripeacutecia aristoteacutelica adensa o lamento da cena reconhece-se
que a vinganccedila que traria alegria e que lhe devolveria alguma honra desencadeia o seu
oposto pois a desonra torna-se ultraje e o lamento insurge-se contra a expectativa As
tentativas de demover o personagem de uma disposiccedilatildeo ao suiciacutedio natildeo alcanccedilam sucesso
4 Primeiro estaacutesimo (596 ndash 645) o coro ressalta o contraste da notoacuteria excelecircncia da
terra natal e da linhagem do heroacutei com a sua situaccedilatildeo calamitosa
5 Segundo episoacutedio (v 646 ndash 692) monoacutelogo do personagem principal no qual
vemos a sua disposiccedilatildeo ao suiciacutedio Reflexatildeo irocircnica e consequentemente velada para alguns
personagens conduz o coro e sua companheira agrave crenccedila de uma mudanccedila de pensamento A
partida do heroacutei eacute interpretada entatildeo como uma tentativa de reconciliaccedilatildeo com os gregos e
com os deuses
6 Segundo estaacutesimo (v 693 ndash 718) manifestaccedilatildeo de profunda alegria do coro oriundo
da maacute compreensatildeo das intenccedilotildees do Telamocircnio Prepara-se assim outra peripeacutecia
7 Terceiro episoacutedio (v 719 ndash 865) o lamento insurge-se novamente contra a
expectativa Com a participaccedilatildeo de Teucro irmatildeo do heroacutei e de um mensageiro todos tomam
conhecimento dos ditos do adivinho Calcas a ira da deusa Atena ainda persegue o heroacutei pelo
dia que resta e a sua salvaccedilatildeo dependeria da permanecircncia do mesmo com os proacuteximos na
tenda agora impossiacutevel durante esse tempo A cena muda de lugar e o monoacutelogo de
despedida eacute seguido do suiciacutedio de Aacutejax
8 Terceiro estaacutesimo kommoacutes (v 866 ndash 973) instaura-se uma gradaccedilatildeo do sofrimento
que teve iniacutecio no episoacutedio anterior A possibilidade de morte do heroacutei se concretiza quando
Tecmessa revela ao coro que o Telamocircnio foi encontrado morto ferido por espada Adensa-se
o sofrimento pela descoberta do suiciacutedio e pela eventual satisfaccedilatildeo de Odisseu e dos Atridas
diante do ato
9 Quarto episoacutedio (v 974 ndash 1184) Teucro e Menelau protagonizam esse momento
Adensa-se o sofrimento com a imposiccedilatildeo do Atrida em proibir os ritos fuacutenebres do heroacutei
10 Quarto estaacutesimo (v 1185 ndash 1222) o lamento do coro enfatiza o infortuacutenio do
personagem como uma das desgraccedilas que se impotildee a todos os gregos devido agrave nefasta guerra
de Troia
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11 Ecircxodo (v 1223 ndash 1420) a discussatildeo sobre o sepultamento do heroacutei ganha forccedila
com a presenccedila de Agamecircmnon o qual Teucro natildeo consegue demover sobretudo por
influecircncia de sua posiccedilatildeo de filho ilegiacutetimo Odisseu como um igual conquista tal permissatildeo
do Atrida Ameniza-se o sofrimento Os ritos tecircm iniacutecio presididos pelo irmatildeo do heroacutei
Conveacutem agora apresentarmos a metodologia de anaacutelise Primeiramente estudaremos
a categoria virtude na caracterizaccedilatildeo de Aacutejax Em seguida analisaremos a categoria ira Para
ambas tentaremos observar indiacutecios textuais que apontem uma unidade utilizando-se tanto de
fragmentos que apresentem de forma expliacutecita leacutexico relevante para o estudo quanto de accedilotildees
ou declaraccedilotildees de personagens das quais se podem extrair marcas significativas para o
reconhecimento de um caraacuteter As anaacutelises sempre se iniciaratildeo pelas caracterizaccedilotildees
expliacutecitas e mais claras Por fim demonstraremos como essas duas categorias se entrelaccedilam
para alcanccedilar uma unidade textual proacutepria para a peccedila assim para esta representando
fundamentais chaves de leitura e extinguindo qualquer noccedilatildeo circunstancial que se possa
inferir
2 1 1 Ἀρετή a virtude do heroacutei na perspectiva grega
Para o estudo desta seccedilatildeo utilizaremos o conceito de virtude do heroacutei areteacute (ἀρετή)
desenvolvido por Werner Jaeger em seus trabalhos sobre a cultura grega dos tempos remotos
Para este estudioso o conceito de areteacute eacute um tema fundamental para entender a cultura grega
da Antiguidade Claacutessica e especialmente do seu periacuteodo arcaico Apesar de todos os
problemas decorrentes da traduccedilatildeo de uma palavra como tal Jaeger a faz por meio do termo
ldquovirtuderdquo Contudo na tentativa de equivalecirc-la ao termo grego essa palavra deve ser
concebida ldquona sua acepccedilatildeo natildeo atenuada pelo uso puramente moral e como expressatildeo do
mais alto ideial cavalheiresco unido a uma conduta cortecircs e distinta e ao heroiacutesmo guerreirordquo
(2003 p 25) Tanto em Homero quanto em autores dos seacuteculos posteriores o sentido
especiacutefico da palavra revela um atributo proacuteprio do homem varatildeo da nobreza pois o homem
comum natildeo possuiacutea tal qualidade (Ibidem p 26) Segundo ainda este mesmo autor aacuteristos
(ἄριστος) seria raiz desse termo grego que em geral sobretudo em tempos primitivos
denomina ldquoa forccedila e a destreza dos guerreiros ou lutadores e acima de tudo heroiacutesmo
considerado natildeo no nosso sentido de accedilatildeo moral e separada da forccedila mas sim intimamente
ligado a elardquo (Ibidem p 27)
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Apesar de existir o vocaacutebulo andreiacutea (ἀνδρεία) cuja origem estaacute na palavra homem
varatildeo aneacuter (ἀνήρ) sua formaccedilatildeo eacute posterior embora ela mesma seja ainda descrita por
Aristoacuteteles como um dos componentes de uma virtude areteacute mais abrangente tanto na obra
Retoacuterica a Alexandre (XXXV 1440b 15-20) atribuiacuteda ao estagirita quanto em Eacutetica a
Eudemo (apud MILLS 1980 p 199) Andreiacutea teria entatildeo (apud Ibdem p 199) o sentido
mais especiacutefico de coragem guerreira definida como uma melhor disposiccedilatildeo ou
comportamento (βελτίστη ἕξις) provavelmente mais moderado em relaccedilatildeo aos sentimentos
opostos de medo (φόβος) e audaacutecia (θάρρη) Contudo nossa escolha pelo uso do termo areteacute
para definir uma virtude guerreira eacute significativa porque nem Homero em suas duas epopeias
nem Soacutefocles na peccedila em questatildeo utilizou este uacuteltimo vocaacutebulo O que alicerccedila tanto o estudo
de Jaeger sobretudo a partir dos textos homeacutericos quanto fundamenta o autor Homero como
matriz absoluta dos conceitos arcaicos aos quais Soacutefocles remete sua obra Isso eacute claramente
observado no uso abundante do vocaacutebulo areteacute nos poemas homeacutericos e em Aias nas duas
ocorrecircncias desse termo (ἀρετᾶς v 617 ἀρετή v 1357) descrevendo Aacutejax e delineando-se
exatamente sua excelecircncia e superioridade guerreira como noacutes veremos ainda nesse capiacutetulo
Diante dessas razotildees parece-nos mais adequado utilizar o conceito de areteacute estabelecido por
Werner Jaeger (2003)
Por nosso corpus se tratar de uma trageacutedia em que natildeo haacute o objetivo de encenar a
guerra ou um combate singular a anaacutelise sobre a virtude do heroacutei areteacute (ἀρετή) sobretudo
sob o ponto de vista de uma excelecircncia guerreira de modelo arcaico e homeacuterico como eacute o
caso do caraacuteter do heroacutei em questatildeo tem como base o estudo da caracterizaccedilatildeo do tipo direta
ou seja menccedilotildees mais expliacutecitas dos personagens da peccedila inclusive do proacuteprio protagonista
e do coro que reconhecem esse valor evidentemente atribuiacutedo ao mesmo Esse tipo de
caracterizaccedilatildeo quando natildeo em uma perspectiva descritiva apresenta-se de forma narrativa
remetendo-se a atos do heroacutei externos aos limites da peccedila por meio de analepse A trageacutedia
assim natildeo daacute espaccedilo para accedilotildees propriamente eacutepicas das quais possamos retirar
caracterizaccedilotildees indiretas a natildeo ser quando revestidas de subjetividade proporcionem uma
peripeacutecia aristoteacutelica uma accedilatildeo vista como heroica apoacutes ser executada mostra-se na verdade
funesta e desastrosa
Uma vez que a ira estudada mais agrave frente manifesta-se segundo uma relaccedilatildeo com a
honra do personagem eacute importante entender como o seu valor guerreiro que a compotildee nesse
caso de forma preponderante estaacute disposto na composiccedilatildeo da peccedila Eacute a primazia guerreira
que faz o protagonista sobrevalorizar sua honra a ponto de se reconhecer superior aos chefes
gregos independente de suas prerrogativas e ao mesmo tempo depreciar a natureza dos
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deuses negando-lhes o poder que detecircm Em relaccedilatildeo agrave trageacutedia em questatildeo essa virtude
parece fundamentar duas coisas uma em cada metade da obra Na primeira enquanto o heroacutei
estaacute vivo quanto mais reconhecermos o valor do heroacutei especialmente na sua perspectiva
compreenderemos por que para ele mais graves satildeo os atos dos chefes gregos e a perseguiccedilatildeo
da deusa de forma que se justifique uma ira mais intensa Na segunda metade morto o
protagonista reconhece-se o seu valor sobretudo por parte de seu maior inimigo Odisseu de
forma que se justifique sua reabilitaccedilatildeo entre os gregos permitindo-se os ritos fuacutenebres e
reconsiderando-se sua nova condiccedilatildeo Em ambas eacute fundamental essa excelecircncia beacutelica como
um elemento estrutural da peccedila por um lado alicerccedilando a ira do heroacutei e por outro baseando
o oacutedio ponderado pelos inimigos
Iniciaremos o estudo pelos dois fragmentos que apresentam essa supremacia como
caracteriacutestica do protagonista um no primeiro estaacutesimo e outro no ecircxodo os quais refletem as
duas metades da obra as quais falamos acima Em ambos se potildee em destaque o epiacuteteto
homeacuterico e arcaico que ressalta seu poder marcial o melhor dos gregos depois de Aquiles E
estando morto o Pelida no contexto da obra fica claro que o Telamocircnio entatildeo ocupa a
posiccedilatildeo daquele tornando-se o maior dos guerreiros aqueus A essas passagens outras seratildeo
acrescidas ou de conteuacutedo ou de vocabulaacuterio significativo para contribuir com tal perspectiva
do estudo Analisemos a virtude do heroacutei inserida na primeira metade
[Χο] Κρείσσων γὰρ ῞Αιδᾳ κεύθων ὁ νοσῶν μάταν 635 ὃς ἐκ πατρῴας ἥκων γενεᾶς ἄριστος πολυπόνων ᾿Αχαιῶν οὐκέτι συντρόφοις ὀργαῖς ἔμπεδος ἀλλ ἐκτὸς ὁμιλεῖ 640 ῏Ω τλᾶμον πάτερ οἵαν σε μένει πυθέσθαι παιδὸς δύσφορον ἄταν ἃν οὔπω τις ἔθρεψεν δίων Αἰακιδᾶν ἄτερθε τοῦδε13 645
(Aias v 635-645)
O trecho potildee em evidecircncia a supremacia guerreira do heroacutei Sua virtude eacute senatildeo sua
inclinaccedilatildeo beacutelica pela qual se faz reconhecido pelo epiacuteteto homeacuterico ἄριστος Ἀχαιῶν cujas
variaccedilotildees estatildeo presentes tanto na Iliacuteada quanto na Odisseia e em outros autores arcaicos
conforme jaacute vimos no capiacutetulo anterior O reconhecimento desse atributo eacute feito pelo coro
que representa os soldados de Salamina cidade do heroacutei ou seja os seus proacuteximos Eacute notaacutevel
13
[Co] Pois se ocultando no Hades eacute preferiacutevel o loucamente doente (v 630) que da geraccedilatildeo paterna eacute o melhor dos Aqueus que sofrem muito jaacute natildeo firme na natural iacutendole encontra-se desta afastado (v 640) Oacute pai sofredor que desastre insuportaacutevel do filho te espera ser conhecido o qual ainda natildeo nutriu ningueacutem dos divos Eacidas com exceccedilatildeo deste (v 645)
65
que a perspectiva se daacute pelo vieacutes da dor e do sofrimento imposto pela guerra algo menos
eacutepico e mais traacutegico Dessa forma natildeo soacute Teacutelamon sofreraacute com a decisatildeo aparente do seu
filho como tambeacutem os gregos satildeo ditos muito sofredores πολυπόνων diante das
adversidades proacuteprias da guerra Na eacutepica este eacute o campo propiacutecio para as accedilotildees heroicas e
para o valor especialmente quando tratamos de circunstacircncias em que a morte se torna bela
Mas na trageacutedia impotildee-se uma realidade mais dura coerente com os propoacutesitos aristoteacutelicos
fundamentais de uma trageacutedia o sofrimento e o infortuacutenio (Poeacutetica 1453a 10-25) e assim a
guerra se torna um lugar natural dessa premissa no qual males coletivos sobrepotildeem os atos
individuais valorosos Em harmonia com essa propensatildeo traacutegica a disposiccedilatildeo de Aacutejax eacute para
o lamento e o queixume sobretudo porque seu ultraje eacute visto por ele como incontornaacutevel
Tanto Tecmessa quanto o coro percebe as intenccedilotildees funestas de suas lamuacuterias O contraste
entre as caracterizaccedilotildees do heroacutei eacute tatildeo evidente que os seus proacuteximos distinguem sua conduta
antes da disputa pelas armas da seguinte apoacutes a derrota para Odisseu e especialmente
daquela apoacutes as accedilotildees da deusa Atena Por isso apontam um heroacutei que se afasta das suas
disposiccedilotildees habituais συντρόφοις ὀργαῖς para noacutes as disposiccedilotildees homeacutericas e mais eacutepicas
Ao fim deste capiacutetulo retomaremos a essa conduta natildeo natural ao personagem a fim de
justificar sua loucura natildeo meramente presa agraves ilusotildees de Atena
Uma organizaccedilatildeo curiosa da passagem parece relacionar a estrutura do epiacuteteto de heroacutei
ao seu pai O atributo do heroacutei eacute sempre descrito acompanhado de uma restriccedilatildeo ou de uma
exclusatildeo que se trata de Aquiles Natildeo eacute o caso em questatildeo uma vez que o Pelida se encontra
morto Mas fato eacute que no contexto da epopeia essa primazia guerreira de natureza eacutepica
inserida no acircmbito do valor natildeo eacute alcanccedilada pelo fato de existir uma restriccedilatildeo ou exclusatildeo
que demarca exatamente aquele que eacute o mais valoroso No trecho escolhido parece haver uma
inversatildeo de estrutura e de valores conferidos O pai do protagonista eacute comparado ao pai de
Aquiles pois satildeo referidos como Eacidas ou filhos de Eacuteaco Contudo essa comparaccedilatildeo estaacute
inserida no acircmbito da dor e do sofrer Assim como diz o texto ldquonenhum dos Eacidas nutriu
infortuacutenio insuportaacutevel do filho com exceccedilatildeo desterdquo ou seja Teacutelamon A partiacutecula usada por
Soacutefocles para marcar o adjunto adverbial de exclusatildeo eacute praticamente o mesmo que Piacutendaro
usa na ode Nemeia VII cuja passagem noacutes citamos anteriormente (cf p 15) ldquo[Aacutejax] o mais
poderoso na guerra com exceccedilatildeo de Aquilesrdquo (κράτιστον ᾿Αχιλέος ἄτερ μάχᾳ v 28 grifo
nosso) Assim essa singularidade quanto ao tipo de sofrimento na qual a natureza traacutegica se
impotildee restringe-se ao pai de Aacutejax excluindo-o do destino afortunado dos outros membros da
famiacutelia Podemos visualizar melhor a estrutura refletida a partir do esquema abaixo
66
bull Aacutejax rarr melhor dos gregos rarr com exceccedilatildeo de Aquiles (ἄτερ Ἀχιλέος)
bull Ningueacutem rarr sofredor entre Eacidas rarr com exceccedilatildeo de Teacutelamon (ἄτερθε τοῦδε)
Dessa forma eacute possiacutevel compreender como o conteuacutedo retoma a estrutura do epiacuteteto
comum ao Telamocircnio em uma relaccedilatildeo de proximidade quanto agrave forma e de inversatildeo quanto
ao conteuacutedo uma vez que na peccedila se enfatiza a desgraccedila que cai sobre o heroacutei mas que afeta
todos os seus proacuteximos atribuindo ao seu pai a unicidade de um sofrimento por que nenhum
outro Eacida passaria
O aspecto traacutegico dessa composiccedilatildeo ecoa por toda a obra pois os atos gloriosos do pai
acarretam um legado que deve ser cumprido no mesmo caminho e isso significa dizer que haacute
uma expectativa para os feitos do filho repetindo-se os do patriarca Por isso tanto Aacutejax
quanto Teucro referenciam sua ancestralidade conferindo-lhes valor O primeiro por duas
vezes atribui as mais altas honras ao pai os precircmios de excelecircncia guerreira (τῶν ἀριστείων
v 464) das quais manifestam a grande coroa de gloacuteria (στέφανον εὐκλείας μέγαν v 465) e
toda a gloacuteria carregada (πᾶσαν εὔκλειαν v 436) porque tendo sido o melhor (ἀριστεύσας v
435) obteve as mais belas primazias da tropa (τὰ πρῶτα καλλιστεῖ` [] στρατοῦ v 435) O
segundo filho ilegiacutetimo refere-se ao pai da mesma maneira e com os mesmos vocaacutebulos
mencionado sua supremacia guerreira e a decorrente primazia da tropa quase como um
epiacuteteto (στρατοῦ τὰ τρῶτ` ἀριστεύσας v 1300) Eacute possiacutevel ver nessas passagens a abundacircncia
de vocaacutebulos derivados do superlativo aacuteristos o melhor e de kleacuteos a gloacuteria no sentido de
fama que percorre as geraccedilotildees (cf p 8-9) tendo como objetivo compor a virtude de Teacutelamon
sob a perspectiva da supremacia e da distinccedilatildeo quanto ao seu poderio guerreiro
Aleacutem do epiacuteteto que preserva em si esse superlativo aacuteristos o protagonista eacute
mencionado pelo coro outra vez sob essa perspectiva de valor guerreiro Os atos de guerra do
heroacutei satildeo chamados de feitos da maior virtude (ἔργα [] μεγίστας ἀρετᾶς v 616-617) Aqui
noacutes temos a virtude guerreira do protagonista a areteacute sendo retratada como a maior O uso do
superlativo no adjetivo que define sua excelecircncia eacute coerente dentro da estrutura da peccedila
sobretudo por esse personagem tambeacutem ser retratado por um superlativo o melhor A
correlaccedilatildeo dos vocaacutebulos aacuteristos e meacutegistas eacute extremamente significativa pois natildeo podemos
nos esquecer que o proacuteprio Piacutendaro descreveu as armas de Aquiles como sendo a maior
honraria o maior preacutemio de distinccedilatildeo μέγιστον γέρας (Nemeias VIII v 25) O adjetivo
ligado ao vocaacutebulo da ode pindaacuterica tambeacutem estaacute no mesmo grau dos expressos na peccedila Tal
disposiccedilatildeo a partir do entendimento de que essa tradiccedilatildeo arcaica pode ser retomada por
Soacutefocles e agregada ao seu texto faz o protagonista a quem tambeacutem devemos atribuir uma
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desmedida no sentido de uma supervalorizaccedilatildeo de sua honra reconhecer-se como
merecidamente o eventual premiado com as armas de Aquiles
Contudo natildeo acontecendo dessa maneira haacute um contraste entre pai e filho ao menos
na perspectiva do Telamocircnio que tinha confianccedila em relaccedilatildeo agrave premiaccedilatildeo das armas uma vez
que se rompe a ineacutercia esperada e a expectativa do heroacutei em seguir os caminhos do pai por
meio do duplo infortuacutenio deste a derrota na disputa pelas armas que representa um ato
externo agrave peccedila e o ataque aos chefes um ato interno Dessa forma essa reviravolta na
expectativa que afasta significativamente o personagem de repetir os atos do genitor torna
mais intensa a sua desonra e consequentemente mais grave a sua ira que o impele a se vingar
Observemos isso a partir dos versos abaixo
[Αι] ἐγὼ δ ὁ κείνου παῖς τὸν αὐτὸν ἐς τόπον Τροίας ἐπελθὼν οὐκ ἐλάσσονι σθένει οὐδ ἔργα μείω χειρὸς ἀρκέσας ἐμῆς ἄτιμος ᾿Αργείοισιν ὧδ ἀπόλλυμαι 440 Καίτοι τοσοῦτόν γ ἐξεπίστασθαι δοκῶmiddot εἰ ζῶν ᾿Αχιλλεὺς τῶν ὅπλων τῶν ὧν πέρι κρίνειν ἔμελλε κράτος ἀριστείας τινί οὐκ ἄν τις αὔτ ἔμαρψεν ἄλλος ἀντ ἐμοῦ Νῦν δ αὔτ ᾿Ατρεῖδαι φωτὶ παντουργῷ φρένας 445 ἔπραξαν ἀνδρὸς τοῦδ ἀπώσαντες κράτη κεἰ μὴ τόδ ὄμμα καὶ φρένες διάστροφοι γνώμης ἀπῇξαν τῆς ἐμῆς οὐκ ἄν ποτε δίκην κατ ἄλλου φωτὸς ὧδ ἐψήφισαν 14
(Aias v 437-449)
Esse fragmento que pertence a uma das falas do protagonista tem como conteuacutedo a
comparaccedilatildeo dos seus feitos aos de seu pai inclusive contra a mesma regiatildeo Troia Em seu
julgamento suas faccedilanhas natildeo satildeo inferiores agraves de seu genitor o que justifica uma honraria
semelhante Por isso ele reforccedila essa comparaccedilatildeo sobretudo a partir de adjetivos no grau
comparativo ἐλάσσονι (de ἐλαχύς) e μείω (de μιχρός) logo sua forccedila σθένει e seus feitos
ἔργα natildeo satildeo menores do que o de Teacutelamon sobretudo porque deste ele proveacutem e por isso
com este mesmo se assemelha Como jaacute vimos na descriccedilatildeo do coro as faccedilanhas do seu
senhor satildeo da maior excelecircncia guerreira pois sua qualidade nas batalhas eacute excepcional
Corroborando o discurso dos soldados de Salamina ele atribui a si sob o julgamento do 14
[Aacutej] Eu o filho daquele contra o mesmo territoacuterio de Troia tendo sobrevindo natildeo com forccedila menor e tendo resistido com feitos de minha matildeo natildeo menores assim desonrado pelos Argivos pereccedilo (v 440) Certamente tatildeo grande coisa ao menos penso saber se vivo Aquiles em relaccedilatildeo agraves armas sobre as quais estivesse destinado a julgar o poder da excelecircncia de algueacutem nenhum outro contrariamente [as] tomaria diante de mim Agora contrariamente os Atridas para um homem astucioso reclamaram (v 445) a prudecircncia tendo repelido o poder deste heroacutei Se esta vista e meus pensamentos desviados natildeo tivessem se afastado violentamente de minha resoluccedilatildeo nenhuma vez assim sentenccedila sobre outro homem decidiriam por votos
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proacuteprio Aquiles se estivesse vivo o domiacutenio da supremacia beacutelica ἀριστείας tal qual o seu
progenitor referido como ἀριστεύσας A soberania belicosa ou seja a excelecircncia maior
pertence a esses dois inseridos em geraccedilotildees diferentes Assim como bem se evidencia no
texto os dois se assemelham
Contudo apesar da igualdade entres esses e da expectativa de um legado que deve ser
continuado Aacutejax eacute preterido por parte dos Argivos sobretudo dos Atridas os quais conferem
a Odisseu as armas do Pelida imputando agravequele o oproacutebrio Essa referecircncia agrave desonra eacute
evidente pois o termo expresso para designar sua condiccedilatildeo eacute aacutetimos (ἄτιμος) cuja definiccedilatildeo eacute
propriamente ldquodesonradordquo e que tem origem no vocaacutebulo timeacute A concepccedilatildeo desse leacutexico
como jaacute vimos anteriormente torna mais significativa a situaccedilatildeo em que se encontra o
personagem por dois motivos
O primeiro eacute que situa o heroacutei na mesma posiccedilatildeo de Aquiles quando da querela entre
este e Agamecircmnon no Canto I da Iliacuteada O Pelida eacute entatildeo o modelo do heroacutei de Salamina
pois quando a deliberaccedilatildeo do grande chefe dos gregos impotildee a subtraccedilatildeo de Briseida e sendo
esta um precircmio de distinccedilatildeo um geacuteras (γέρας) isso representa o natildeo reconhecimento dos
feitos que lhe creditaram tal honraria Assim o filho de Peleu se reconhece como desonrado
aacutetimos (ἄτιμος v 171) uma vez que lhe eacute negado o privileacutegio material que representa sua
excelecircncia beacutelica Natildeo por acaso Soacutefocles toma o modelo de Homero pois laacute estatildeo os
paradigmas da honra e da ira que acomete o heroacutei e que para Aacutejax justificam seu
comportamento Por isso a menccedilatildeo parece direta visto que o vocaacutebulo eacute sobretudo o mesmo
e se trata a priori da mesma problemaacutetica acerca da honra Aquiles se nomeia assim uma vez
O Telamocircnio o faz duas uma na passagem acima e outra em fala anterior no verso 426 Essa
retomada do episoacutedio da Iliacuteada por parte do Telamocircnio faacute-lo se identificar ao Pelida natildeo soacute
por sentir-se subtraiacutedo em seus privileacutegios mas tambeacutem porque no episoacutedio homeacuterico que
representa o passado para o contexto da obra Agamecircmnon eacute visto como tendo cometido um
excesso uma hyacutebris de modo que por ele foram feitas uma reparaccedilatildeo e uma declaraccedilatildeo de
erro mesmo que de forma mitigada e relativizada pela accedilatildeo sempre presente dos deuses O
modelo que parece evidente entatildeo eacute tomado como base para a confianccedila que o heroacutei deposita
em seu proacuteprio julgamento pois segundo tais consideraccedilotildees somo levados a crer em sua
perspectiva particular que essa seria uma segunda vez que tal excesso aconteceria por parte
do chefe o que justifica o ataque noturno que buscava natildeo soacute a vinganccedila prevenindo outra
desonra (ἀτιμάσουσ` v 98) como tambeacutem procurava impedir que novamente a outro homem
isso se sucedesse (v 448-449)
69
O segundo motivo pelo qual o vocaacutebulo aacutetimos eacute significativo estaacute inserido no acircmbito
da superestima da honra do heroacutei Na verdade parece mais evidenciar o contraste entre um
ideal arcaico de honra individual cujo modelo eacute o protagonista e um claacutessico ateniense do
seacuteculo V a C em que o coletivo e a igualdade tecircm soberania cujo modelo eacute Odisseu Dessa
forma a oposiccedilatildeo de caraacuteter serve como alegoria para o contraste entre esses dois ideais Tal
imagem eacute posta pelo proacuteprio heroacutei que coerente com sua linhagem de legado heroico opotildee
vaacuterios elementos de forma dicotocircmica atribuindo o valor a um deles e depreciando o outro
Parece-nos que ele confronta os seguintes elementos poder de excelecircncia guerreira κράτος
ἀριστείας (v 443) e prudecircncia φρένας (v 445) faccedilanhas fiacutesicas (do braccedilo) ἔργα χειρὸς (v
439) a qual se liga aos feitos fiacutesicos da maior virtude ἔργα χεροῖν μεγίστας ἀρετᾶς (v 616-
617) e habilidade ou astuacutecia παντουργῷ (v 445) heroacutei ἀνδρὸς (v 446) e homem φωτί (v
445) julgar κρίνειν (v 443) e decidir por votos ἐψήφισαν (v 449) Aquiles Ἀχιλλεὺς (v
442) e Atridas Ἀτρεῖδαι (v 445) Em que os primeiros elementos se ligam ao ideal arcaico
ou seja individual e beacutelico e os segundo ao claacutessico coletivo e de valores ligados agrave
temperanccedila e agrave mente
Destacamos no fragmento estudado que o heroacutei apresenta um discurso de lamento e de
oacutedio pelo qual atribui um sentido de injusticcedila ao resultado sobretudo pelo fato de seus
princiacutepios estarem orientados pelo ideal homeacuterico Como sabemos que a peccedila contrapotildee
moderaccedilatildeo sophrosyacutene e desmesura hyacutebris como reflexo da relaccedilatildeo dicotocircmica que demarca
o limite entre o civilizado e o baacuterbaro (BACELAR 2006 p 216-217) Aacutejax que em tudo se
excede das emoccedilotildees aos atos e preso aos seus valores eacute incapaz de reconhecer a derrota
como um resultado justo Assim seus feitos e sua supremacia fiacutesica natildeo podem ser superados
pela muacuteltipla habilidade e pela astuacutecia de Odisseu Por isso ao nosso ver o Telamocircnio parece
conferir superioridade ao vocaacutebulo heroacutei ἀνήρ em detrimento de homem φώς como se o
primeiro refletisse a distinccedilatildeo e singularidade dos chefes do mundo arcaico e o segundo uma
inferioridade daqueles para os quais se impotildee a submissatildeo e como veremos mais agrave frente um
dos sentidos do vocaacutebulo sophrosyacutene e seus derivados na peccedila significado evidente nas
palavras do protagonista e de Agamecircmnon Isso explica porque em uma visatildeo arcaica um soacute
julgaria κρίνω melhor do que vaacuterios que decidissem por votos ψηφίζω uma vez que o juiz
uacutenico teria mais meacuterito e honra sendo o melhor dos Aqueus o proacuteprio Aquiles Os Atridas
representariam essa coletividade inadequada para a figura do heroacutei tanto por terem
convocado essa deliberaccedilatildeo coletiva quanto pela expressatildeo do nuacutemero plural do patroniacutemico
utilizado
70
Para o personagem o julgamento em si parece carecer de justiccedila pois fere sua
excelecircncia guerreira e a distinccedilatildeo dos maiores e por isso justifica o ato violento contra essa
coletividade Seu excesso fica evidente em suas palavras pois seu arrependimento reside no
fracasso da empreitada que foi desviada de seu propoacutesito por accedilatildeo divina e natildeo em si pelo
ato que teria executado contra seus recentes inimigos os gregos A gravidade de seu ato eacute
senatildeo uma reaccedilatildeo equivalente agrave compreensatildeo da grandeza de sua desonra retirando-se daiacute
logicamente a selvageria que segue agrave vinganccedila pois essa como tentaremos apontar tem
origem na accedilatildeo divina
Essa supremacia guerreira do protagonista tambeacutem estaacute evidente na segunda parte da
peccedila apoacutes a sua morte Neste momento natildeo mais alimenta sua ira seu oacutedio e seus atos mas
justifica a defesa de Teucro em relaccedilatildeo ao seu funeral e tudo o que isso representa Seu irmatildeo
o faz contra Menelau e Agamecircmnon mas eacute Odisseu quem demove este uacuteltimo do seu
propoacutesito Como bem aponta na peccedila Jacqueline de Romilly ldquoas exigecircncias morais vecircm
contrariar as da disciplinardquo (2013 p 88) por isso o irmatildeo do suicida se impotildee a realizar os
ritos independente das consequecircncias reconhecendo no morto um heroacutei contrariando as
exigecircncias requeridas pelo comando dos Atridas Esses diaacutelogos contrapotildeem pensamentos
distintos e renitentes nos quais a admiraccedilatildeo eacute veementemente respondida com vinganccedila e a
gratidatildeo com direitos da autoridade (Ibidem p 88) Isso ressalta o delineamento dos
caracteres dos personagens fazendo-os obstinados em seus ideais a ponto de se desafiarem
com palavras agressivas Contudo ao caraacuteter excessivo dos Atridas e de Teucro que fixa na
segunda parte trageacutedia a forte recorrecircncia da hyacutebris opotildee-se a conduta moderada de Odisseu
de coerente unidade no proacutelogo e no ecircxodo Em sua uacuteltima cena este apresenta de forma
expliacutecita o valor do protagonista denominando-o o melhor dos aqueus depois de Aquiles
Esse reconhecimento do Laertida demarca juntamente com o do coro o qual expomos acima
os dois momentos da peccedila em que a caracterizaccedilatildeo direta retoma o estilo proacuteprio dos moldes
eacutepicos a descriccedilatildeo sinteacutetica de um conjunto de caracteriacutesticas por meio da utilizaccedilatildeo do
epiacuteteto Essa foacutermula coroa o discurso que concentra os grandes argumentos em defesa dos
rituais fuacutenebres do personagem e de onde seguiraacute o debate que desencadearaacute a permissatildeo de
Agamecircmnon para realizaacute-los por mais que este vencido faccedila-o alegando ter sido um ato em
favor da amizade ao heroacutei de Iacutetaca Vejamos os versos
[Οδ] Ἄκουέ νυν Τὸν ἄνδρα τόνδε πρὸς θεῶν μὴ τλῇς ἄθαπτον ὧδ ἀναλγήτως βαλεῖνmiddot μηδ ἡ βία σε μηδαμῶς νικησάτω τοσόνδε μισεῖν ὥστε τὴν δίκην πατεῖν 1335
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Κἀμοὶ γὰρ ἦν ποθ οὗτος ἔχθιστος στρατοῦ ἐξ οὗ κράτησα τῶν ᾿Αχιλλείων ὅπλωνmiddot ἀλλ αὐτὸν ἔμπας ὄντ ἐγὼ τοιόνδ ἐμοὶ οὐκ ἀντατιμάσαιμ ἄν ὥστε μὴ λέγειν ἕν ἄνδρ ἰδεῖν ἄριστον ᾿Αργείων ὅσοι 1340 Τροίαν ἀφικόμεσθα πλὴν ᾿Αχιλλέως ῞Ωστ οὐκ ἂν ἐνδίκως γ ἀτιμάζοιτό σοιmiddot οὐ γάρ τι τοῦτον ἀλλὰ τοὺς θεῶν νόμους φθείροις ἄν Ανδρα δ οὐ δίκαιον εἰ θάνοι βλάπτειν τὸν ἐσθλόν οὐδ ἐὰν μισῶν κυρῇς15 1345
(Aias v 1332-1345)
O discurso do heroacutei de Iacutetaca retoma explicitamente a foacutermula das epopeias homeacutericas
ἄριστον Ἀχαίων para a caracterizaccedilatildeo do protagonista cuja primazia eacute excetuada de forma
conhecida apenas por Aquiles πλὴν Ἀχιλλέως O proacuteprio arguidor reconhece que isso natildeo
pode deixar de ser mencionado sobretudo em relaccedilatildeo aos fatos passados que se referem a
episoacutedios externos agrave peccedila e presentes na Iliacuteada Assim tais feitos de outrora natildeo podem ser
apagados pelos mais recentes Com efeito quanto aos feitos satildeo possiacuteveis de distinguir duas
condutas de Aacutejax uma antes da disputa pelas armas de Aquiles e outra desde que aquele
heroacutei foi derrotado Os versos 1336-1337 marcam bem essa distinccedilatildeo especialmente pela
separaccedilatildeo delimitada aos dois comportamentos a partir da partiacutecula ἐξ cujo sentido como
preposiccedilatildeo ou adveacuterbio eacute precisamente esse de separaccedilatildeo e de afastamento Essa passagem eacute
extremamente significativa pois nos mostra o iacutempeto do Telamocircnio diante de seus
adversaacuterios Quando se direcionava aos Troianos os gregos o distinguiam como o melhor
depois do Pelida mas quando se direcionou aos proacuteprios gregos se tornou natildeo meramente um
inimigo pois pessoalmente para Odisseu o heroacutei era o maior inimigo ou o mais odiado da
tropa ἔχθιστος στρατοῦ Tal inversatildeo eacute expressiva do iacutempeto do personagem pois esse
reconhecimento lhe atribui sempre uma posiccedilatildeo distintiva de superioridade de modo que na
unidade literaacuteria do texto tal caraacuteter eacute exposto por meio de superlativos ἄριστον ao heroacutei de
outrora ἕν ἄνδρ e ἔχθιστος apoacutes a disputa pelas armas A gravidade da desonra que alimenta
a intensidade da ira se explica como jaacute vimos pelo natildeo reconhecimento de sua virtude
guerreira O protagonista confere o resultado a um julgamento decidido por votos que visava
distinguir o possuidor de valores natildeo guerreiros mas relacionados agrave prudecircncia e agrave astuacutecia
15
[Od] Escuta agora Pelos deuses natildeo este heroacutei te atrevas a atirar insepulto assim impassivelmente A violecircncia natildeo te venccedila de alguma maneira a odiar tanto de modo a pisar a justiccedila (v 1335) Pois tambeacutem para mim era este o maior inimigo da tropa desde que a ele sobressaiacute por causa das armas de Aquiles Mas mesmo sendo tal para mim eu natildeo reagiria o desonrando de modo a natildeo dizer ver no antigo heroacutei o melhor dos Argivos (v 1340) quantos a Troia chegamos com exceccedilatildeo de Aquiles De maneira que natildeo justamente seria desonrado por ti pois natildeo seria este o que destruirias mas as leis dos deuses Heroacutei natildeo eacute justo se morrer prejudicar [sendo ele] valoroso nem ainda se odiando te encontrares (v 1345)
72
Contudo a visatildeo do Laertida eacute diferente pois alega ter sobrepujado o adversaacuterio κράτησα
Esse verbo empregado pelo personagem tem origem no vocaacutebulo forccedila poderio kraacutetos
(κράτος) usado por Aacutejax duas vezes nos fragmentos estudados nos versos 443 e 446 quando
o heroacutei atribuiacutea a si a supremacia guerreira Assim ao declarar ter superado o protagonista
sobretudo pelo uso do verbo em especial Odisseu evidencia o pensamento contraacuterio dos
chefes gregos sobre o confronto e sobre o grau de injusticcedila que o derrotado afere ao
resultado pois o Laertida teria se mostrado mais poderoso do que o Telamocircnio tal qual vimos
ocorrer nos jogos em homenagem a Paacutetrocles no Canto XXIII da Iliacuteada Essa declaraccedilatildeo no
contexto da peccedila reflete a crenccedila dos gregos sobre o evento e tal disposiccedilatildeo representa para
Aacutejax senatildeo uma injuacuteria direta aos seus valores implicando por consequecircncia a grandeza do
oacutedio e da ira que consome o personagem a ponto de inverter sua posiccedilatildeo diante dos gregos de
maior protetor a maior agressor Certamente essas palavras sobre a disputa natildeo agradariam o
protagonista e por isso tambeacutem Teucro posteriormente impede aquele de participar dos
ritos fuacutenebres do irmatildeo acreditando estar o ofendendo
Com efeito o oacutedio eacute reciproco entre os Atridas e o Telamocircnio uma vez que isso estaacute
expliacutecito natildeo soacute nos atos daqueles conjecturaacutevel pelo proacuteprio impedimento dos funerais mas
tambeacutem nos argumentos daquele que defende o morto Para o arguidor de Iacutetaca embora
Agamecircmnon esteja tomado de oacutedio (μισεῖν μισῶν v 1335 e 1345) e que odiar em alguns
momentos seja adequado (μισεῖν καλόν v 1347) impedir ritos fuacutenebres natildeo eacute justificaacutevel por
dois motivos O primeiro por questotildees religiosas pois o ato eacute visto como um desrespeito agraves
leis dos deuses O segundo por questotildees de honra de timeacute Tendo executado grandes
faccedilanhas que explicam sua supremacia o heroacutei morto eacute visto como valoroso ἐσθλόν natildeo
sendo justo οὐ δίκαιον οὐκ ἐνδίκως algueacutem lesaacute-lo de maneira alguma especialmente
desonrando ἀντατιμάσαιμ Por isso mesmo que tenha sido um homem hostil (ἐχθρὸς ἀνήρ
v 1355) ou ainda um morto inimigo (ἐχθρὸν [] νέκυν v 1356) sua virtude guerreira
triunfa sobre sua inimizade sua hostilidade (νικᾷ γὰρ ἁρετή με τῆς ἔχθρας πολύ v 1357)
Odisseu sendo visto como o maior inimigo de Aacutejax reconhece a excelecircncia e a primazia
deste como tambeacutem agora o seu valor guerreiro que triunfa sobre todas as accedilotildees depreciadas
pelos gregos nomeadamente ἀρετή
Eacute fato que Agamecircmnon reluta em permitir os funerais sobretudo pela sua autoridade
pois mesmo conferindo ao seu agressor o status de homem valoroso (ἐσθλόν ἄνδρα v 1352)
conforme os argumentos de Odisseu a todo heroacutei que possui essa posiccedilatildeo eacute necessaacuterio
obedecer aos que estatildeo no poder (κλύειν [] χρὴ τῶν ἐμ τέλει v 1352) uma referecircncia ao
excesso de Aacutejax que o impede de dobrar-se Como algo bem proacuteprio agrave unidade da peccedila a
73
concessatildeo do chefe eacute feita entatildeo tambeacutem segundo o reconhecimento de uma primazia Neste
caso em relaccedilatildeo ao modelo de moderaccedilatildeo ao Laertida e eacute em especial conveniente entender
aqui tambeacutem o ato de se submeter A permissatildeo eacute conferida a este que eacute visto na perspectiva
do Atrida como o maior amigo entre os Argivos (φίλον [] μέγιστον Ἀργείων v 1331)
Novamente mais um superlativo μέγιστον na descriccedilatildeo dos personagens da peccedila dos quais
abundam os excessivos por isso parece-nos que tal heroacutei eacute o mais amigo por ser o mais
moderado e consequentemente o que mais reconhece a hierarquia e a ela se submete apesar
de a cena em questatildeo natildeo retratar isso Validamente o excesso compotildee a unidade da obra em
oposiccedilatildeo agrave moderaccedilatildeo o que explica a perspectiva radical dos caracteres que soacute reconhecem
posiccedilotildees extremas seja ou a do melhor amigo ou a do pior inimigo como eacute o caso de Aacutejax e
Agamecircmnon o qual mesmo concedendo agravequele os ritos fuacutenebres em contraste a Odisseu o
percebe mesmo morto como o mais hostil e maior inimigo (ἔχθιστος v 1373)
Contrariamente a essa perspectiva o heroacutei modelo de comedimento sabe reconhecer aleacutem das
duas condutas do Telamocircnio a anterior e a posterior agrave disputa pelas armas de Aquiles uma
retratando o maior guerreiro e outra o maior inimigo tambeacutem reconhece uma nova posiccedilatildeo
pois morto o personagem retoma o caraacuteter de outrora por isso o corpo eacute referido pelo seu
defensor como um cadaacutever virtuoso (ἀλκίμῳ νεκρῷ v 1319) Esse reconhecimento de meacuterito
eacute sobretudo de caraacuteter fiacutesico pois remete aos feitos beacutelicos executados em prol dos argivos
Conveacutem lembrarmos o que jaacute dissemos sobre esse adjetivo aacutelkimos (cf p 18) o iacutempeto de
enfrentar sem retroceder diante dos inimigos natildeo cedendo aos seus ataques mas firmemente
mantendo-se nos combates Parece-nos que o adjetivo retoma tais atos do protagonista em
especial pelo fato de alguns desses eventos serem referidos em analepse pelo irmatildeo do
protagonista em defesa do cadaacutever Contudo apesar de os argumentos de Teucro focarem no
caraacuteter natildeo submisso de seu irmatildeo diante dos chefes os eventos parecem realccedilar uma virtude
defensiva do heroacutei que lhe impotildee um status de protetor sobretudo em oposiccedilatildeo ao de
agressor quando tomada de ira apoacutes a disputa Essa virtude expressa pela αλκή nos parece na
peccedila senatildeo defensiva e coerente com o episoacutedio anterior marcando o duplo comportamento
do personagem um anterior e externo agrave trageacutedia e outro presente e interno Vejamos a
analepse
[Τεῦ] ῏Ω πολλὰ λέξας ἄρτι κἀνόητ ἔπη οὐ μνημονεύεις οὐκέτ οὐδέν ἡνίκα ἑρκέων ποθ ὑμᾶς οὗτος ἐγκεκλῃμένους ἤδη τὸ μηδὲν ὄντας ἐν τροπῇ δορὸς 1275 ἐρρύσατ ἐλθὼν μοῦνος ἀμφὶ μὲν νεῶν ἄκροισιν ἤδη ναυτικοῖς ἑδωλίοις
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πυρὸς φλέγοντος εἰς δὲ ναυτικὰ σκάφη πηδῶντος ἄρδην ῞Εκτορος τάφρων ὕπερ Τίς ταῦτ ἀπεῖρξεν οὐχ ὅδ ἦν ὁ δρῶν τάδε 1280 ὃν οὐδαμοῦ φῂς οὗ σὺ μή βῆναι ποδί ῏Αρ ὑμὶν οὗτος ταῦτ ἔδρασεν ἔνδικα χὤτ αὖθις αὐτὸς ῞Εκτορος μόνος μόνου λαχών τε κἀκέλευστος ἦλθ ἐναντίος οὐ δραπέτην τὸν κλῆρον ἐς μέσον καθεὶς 1285 ὑγρᾶς ἀρούρας βῶλον ἀλλ ὃς εὐλόφου κυνῆς ἔμελλε πρῶτος ἅλμα κουφιεῖν16
(Aias v 1273-1287)
Esse fragmento retoma os episoacutedios da Iliacuteada presentes no Canto VII quando do
combate singular entre Heitor e Aacutejax e no Canto XII quando dos combates junto ao fosso e
ao muro dos argivos os quais se desenvolvem naqueles que retratam as lutas em torno das
naus os Cantos XIII XIV e XV Aqui podemos ver o destaque para o papel do heroacutei em prol
do Aqueus na guerra de Troia seus dois grandes momentos na epopeia homeacuterica Ambos
terminam com a vitoacuteria do Telamocircnio sobre o Priamida impedindo os avanccedilos dos inimigos
Nesses dois momentos Heitor eacute ferido mas natildeo morto O caraacuteter guerreiro deste heroacutei impotildee
valor aos atos daquele de Salamina mas sobretudo acerca de uma perspectiva defensiva pois
os episoacutedios ressaltam seu papel de refreador dos assaltos de protetor O verbo ἀπεῖρξεν tem
exatamente o sentido de conter suster repelir impedir Teucro de forma significativa atribui
ao irmatildeo um poder de contenccedilatildeo expressivo pois se relaciona necessariamente agrave repulsatildeo ao
maior guerreiro entre os Troianos o filho de Priacuteamo o qual derrotado duas vezes soacute poderia
ser morto por Aquiles uacutenico cuja excelecircncia guerreira supera a de Aacutejax Mesmo que natildeo seja
o objetivo dos argumentos reforccedila-se aqui novamente a oposiccedilatildeo entre as condutas agressoras
e protetoras uma vez que se reitera na segunda parte da peccedila mais uma vez a virtude
defensiva do heroacutei Lembremos que o proacuteprio protagonista jaacute havia assim se referido no verso
439 ldquotendo resistido com feitos natildeo menores de minha matildeordquo (οὐδ ἔργα μείω χειρὸς ἀρκέσας
ἐμῆς) O particiacutepio aoristo que tem origem no verbo ἀρκέω cujo significado eacute repelir resistir
estaacute sobretudo dentro da obra validamente no campo semacircntico de ἀπεῖρξεν contribuindo
16
[Teu] Haacute pouco tendo tido muitas e irracionais palavras natildeo relembras nada de maneira alguma quando certa vez a voacutes encerrados nas paliccediladas (v 1275) jaacute natildeo sendo nada em fuga da lanccedila este tendo chegado sozinho resgatou entre as altas tendas naacuteuticas dos navios jaacute inflamando-se o fogo e em direccedilatildeo agraves quilhas naacuteuticas se lanccedilando Heitor ao alto sobre o fosso Quem essas coisas conteve Natildeo era este aquele que executava essas (v 1280) Este de quem tu dizes de maneira alguma natildeo marchou com peacute Acaso este executou essas coisas sentenciadas por voacutes E quando ele de novo sozinho contra Heitor sozinho tendo obtido por sorte e natildeo ordenado foi agrave frente natildeo tendo lanccedilado no meio [do sorteio] uma pedra fugitiva (v 1285) torratildeo de terra molhada mas aquele de elmo de belo penacho estava destinado a primeiro erguer-se com salto
75
tanto para o reforccedilo de seu atributo guerreiro defensivo quanto para o contraste da dupla
conduta do protagonista ora agressor ora protetor
Contudo esses versos a partir dos propoacutesitos de Teucro tambeacutem nos revelam indiacutecios
textuais que validam a sobrevalorizaccedilatildeo da honra do heroacutei Eacute notoacuterio na obra que o
protagonista repudia a submissatildeo em favor de um soberano acima dele mesmo Esses versos
corroboram tal fato pois apresentam seu irmatildeo defendendo o cadaacutever vendo neste tambeacutem
nenhuma subordinaccedilatildeo Haacute algumas passagens que apontam isso Reforccedila-se por exemplo
que as accedilotildees em defesa dos navios natildeo foram por Agamecircmnon sancionadas (ἔνδικα v 1282)
e que o heroacutei no combate singular contra Heitor natildeo foi ordenado (κἀκέλευστος v 1284)
mas sorteado (λαχών v 1284) Isso confirma o que ele mesmo havia alegado a Menelau no
episoacutedio anterior Naquele momento defendia que o irmatildeo viera como sendo dono de si
(αὑτοῦ κρατῶν v 1099) mas obrigado a ir agrave guerra apenas por causa dos juramentos (οὔνεχ`
ὅρκων [] ἐπώμοτος v 1113) O particiacutepio que marca o domiacutenio sobre si e a autonomia
frente aos outros chefes eacute formado a partir verbo denominativo κρατέω cuja origem eacute κράτος
vocaacutebulo usado por duas vezes por Aacutejax para evidenciar seu poderio guerreiro em seu
discurso anteriormente analisado Essa forma nominal do verbo referida por seu irmatildeo
reforccedila o fato de que o Telamocircnio realmente se via autocircnomo indiferente agrave autoridade de
outrem Por isso mais do que retomar a guerra de Troia sob o vieacutes da tradicional
hospitalidade Soacutefocles impotildee ao heroacutei e agrave trama a justificativa da coalizatildeo grega a partir do
juramento feito a Tiacutendaro pai de Helena17 Seria esse fato que o protagonista da trageacutedia
nomeia de terriacutevel juramento (δεινὸς ὅρκος v 649) sobretudo porque inserido no discurso
em que decide se suicidar ele reconhece nada valer tal compromisso diante da instabilidade
do mundo que haacute pouco se faz conhecer ao personagem Para o suicida o ato de jurar
representa um ato permanente firme e estaacutevel tal como a sua visatildeo e suas crenccedilas e a
instabilidade do mundo invalida qualquer juramento
Esse pensamento autocircnomo do heroacutei eacute pertinente e recorrente na peccedila fazendo-nos
perceber que tal caracteriacutestica fundamenta a superestima do seu valor e consequentemente de
sua honra diante da de outrem Por reforccedilo a isso os atos do heroacutei relatados por Teucro aleacutem
de evidenciar a autoridade sobre si destacam na execuccedilatildeo dos feitos guerreiros a ideia de que
o heroacutei os realizou de forma solitaacuteria ou seja sozinho Acerca disso destacamos nesse
17 Essa tradiccedilatildeo adota como motivo que levou vaacuterios chefes gregos para a guerra de Troia o fato de Tiacutendaro ter feito todos os pretendentes agrave matildeo de Helena sua filha jurarem socorrer o eleito por ela como marido caso fosse necessaacuterio uma vez que sendo muitos os candidatos o pai temia o descontentamento de alguns gerar possiacutevel conflito (GRIMAL 2005 p 197) Seria esse o juramento visto como um ato religioso e moral que fora invocado por Menelau que constrange vaacuterios heroacuteis a partir em busca de Helena
76
fragmento os adjetivos vinculados ao personagem os quais expressam essa ideia μοῦνος (v
1276) e μόνος (v 1283) Essa caracteriacutestica eacute tatildeo relevante na peccedila que muitas das accedilotildees
internas agrave trama procedem destacadas da mesma forma A exemplo do proacutelogo no qual o
ataque aos chefes eacute referido como solitaacuterio executado pelo heroacutei sozinho μόνον (v 29)
μόνος (v 47) No primeiro episoacutedio Tecmessa confirma tal procedimento solitaacuterio nos atos
μόνος (v 294) e proacuteprio heroacutei reflete na possibilidade de natildeo se matar e se lanccedilar soacute para
morrer belamente μόνος (v 467) Esse fato dentro da obra fundamenta duas razotildees
A primeira serve para evidenciar o isolamento moral do personagem fazendo-o o
uacutenico entendedor de sua perspectiva e de seus ideais e por isso afastando de si inclusive os
seus proacuteximos como bem aponta Jacqueline de Romilly (2013 p 94) Soacutefocles torna essa
solidatildeo ainda mais evidente pois recorre ldquoa um processo completamente extraordinaacuterio o
proacuteprio coro se retirou Aacutejax morre assim numa solidatildeo total e feita sensiacutevelrdquo (Ibidem p
94) Os soldados de Salamina assim agem pois reconhecem essa natureza do heroacutei sobretudo
na peccedila em que o descrevem como aquele que sozinho apascenta o pensamento o iacutempeto
(φρένος οἰοβώτας v 614) Por isso a nova entrada do coro eacute nomeada de epipaacuterodo a partir
do verso 866 por alguns tradutores como por exemplo por Flaacutevio Ribeiro de Oliveira
A segunda razatildeo mais importante para esse estudo fundamenta a caracterizaccedilatildeo do
protagonista sob a perspectiva de que tal isolamento nos atos beacutelicos reflete a confianccedila que
deposita em si e em sua excelecircncia guerreira a ponto de essa conduta se tornar um excesso
uma hyacutebris mais propriamente uma soberba κόμπος uma empaacutefia ὄγκρος Vaacuterios derivados
desses vocaacutebulos e outros inseridos no mesmo campo semacircntico satildeo referidos recorrentes na
peccedila sobretudo na voz de Atena e do mensageiro que traz a palavra do adivinho grego
Calcas a fim de evidenciar o aspecto negativo e funesto desse comportamento Ao fim do
proacutelogo a proacutepria deusa condena esse ato concluindo seu pensamento em uma maacutexima na
qual censura tanto uma jactacircncia aos deuses (ὑπέρκοπον [] ἐς θεοὺς ἔπος v 127-128)
quanto a vangloacuteria (ὄγκρον v 129) sobre outro inclusive como eacute o caso do protagonista se
algueacutem prevalece pelo braccedilo (χειρὶ βρίθεις v 130) A confianccedila em seu valor eacute tamanha que
o personagem acredita alcanccedilar a gloacuteria (κλέος v 769) privado de qualquer ajuda (κείνων v
769) ou seja sozinho sobretudo diferentemente daqueles que triunfam (κρατεῖν v 756) com
um deus ao lado (σὺν θεῷ v 765) Em analepse o mensageiro se refere a esse ato do heroacutei
como excessivo pela soberba (ὑψικόμπως ἐκόμπει v 766 770) Por isso de forma
significativa tambeacutem no proacutelogo o heroacutei se vangloria de seus atos (κόμπος v 96) sobre os
chefes mesmo que tais sejam considerados maus (κακόν v 109) pela deusa
77
Com efeito essa superestima de seu valor o faz entender que sua honra e tudo aquilo
que ela representa foram conspurcados e negados tanto quanto a posiccedilatildeo do heroacutei arcaico e
seu caraacuteter individual foram insultados Seguindo as premissas eacutepicas das epopeias homeacutericas
sua honra eacute individual bem como suas accedilotildees satildeo solitaacuterias dessa forma sua virtude tambeacutem o
eacute pois eacute ele que deteacutem a supremacia guerreira apoacutes a morte de Aquiles apenas ele domina o
topo dessa excelecircncia Por isso satildeo vaacuterias as referecircncias ao seu valor guerreiro ao longo da
trageacutedia as quais potildeem ecircnfase em sua accedilatildeo solitaacuteria e individualista a fim de fundamentar a
sua empaacutefia Esta conduta que tem reforccedilo tanto internamente ao enredo da peccedila como eacute o
caso do episoacutedio do proacutelogo referido acima quanto externamente como eacute o caso em
analepse tambeacutem supracitado Algo significativo para isso eacute o fato de o suiciacutedio ser encarado
como seu uacuteltimo ato de coragem e de excelecircncia pois como jaacute vimos foi executado pelo
heroacutei sozinho afastado inclusive do coro de forma expressiva tanto retomando como modelo
os eacutepicos combates singulares quanto revelando seu caraacuteter e sua iacutendole individual e arcaica
considerada nefasta para a Atenas claacutessica em que a coletividade e a igualdade preponderam
na poacutelis
De forma vaacutelida a ira do heroacutei soacute existe segundo a profunda desonra em que se
encontra A desonra existe segundo os seus valores natildeo reconhecidos pelos seus iguais
Assim quanto mais excelente eacute o valor do heroacutei mais grave eacute sua desonra e por
consequecircncia mais pesada a ira que move o heroacutei a cometer atos igualmente excessivos
Aleacutem disso podemos observar que na segunda parte da peccedila retoma-se sobretudo sua
excelecircncia guerreira sob um vieacutes significativamente protetor uma vez que isso serve como
contraponto em relaccedilatildeo agrave primeira parte da obra em que Aacutejax eacute caracterizado como iracundo
Este estado entatildeo sustenta sua posiccedilatildeo natildeo defensiva do ponto de vista dos seus aliados mas
claramente agressiva pois ele se torna o maior inimigo dos gregos Com efeito sua
excelecircncia guerreira serve duplamente para a trageacutedia por um lado fundamenta a intensidade
da ira de acordo com o que dissemos acima e por outro de qualidade defensiva reabilita o
seu valor como heroacutei Essa virtude logo serve para opor as duas condutas do heroacutei diante dos
gregos opostas entre si hostil quando da depreciaccedilatildeo da mesma e protetora quando do
reconhecimento e por isso justifica a percepccedilatildeo da loucura oriunda da deusa como um
impulso para fazer o personagem agir por intervenccedilatildeo de Atena de forma excessivamente
agressiva e selvagem contrariamente agrave sua natural iacutendole a qual parece ser inerentemente
protetora
A virtude do heroacutei entatildeo eacute apresentada preponderantemente em analepse seja a
partir de narraccedilotildees de seus feitos passados em relaccedilatildeo ao momento da peccedila e por isso vistos
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como uma caracterizaccedilatildeo indireta seja a partir da menccedilatildeo ao seu epiacuteteto homeacuterico melhor
dos Aqueus depois de Aquiles que expressa claramente uma descriccedilatildeo com fins de
caracterizaccedilatildeo direta sobretudo pelo seu procedimento estaacutetico que se opotildee ao dinacircmico das
narrativas de suas proezas fiacutesicas A forccedila maior desse traccedilo do heroacutei parece estar sobretudo
na soberba com qual enxerga esse valor pois essa disposiccedilatildeo reforccedila a causalidade interna da
obra uma vez que a virtude depreciada eacute quem impulsiona a ira do personagem como vimos
acima Com efeito de tudo isso se depreende o papel estrutural da virtude do heroacutei dentro da
peccedila figurando tambeacutem um de seus elementos fundamentais para o eixo semacircntico da obra
2 1 2 Χόλος a ira do heroacutei na perspectiva grega
Observaremos agora como a ira do heroacutei compotildee o enredo da obra estruturalmente
seja a partir de uma caracterizaccedilatildeo direta ou indireta fundamentando tanto suas accedilotildees internas
quanto as externas aos limites da peccedila Para esse entendimento deve-se reconhecer o iniacutecio da
peccedila in medias res e agrave referecircncia da trageacutedia ao episoacutedio homeacuterico da Odisseia cujo
personagem Aacutejax ainda persiste em sua ira
Iniciemos a anaacutelise pelos fragmentos em que estatildeo expressas as duas menccedilotildees diretas
agrave ira do personagem choacutelos18 (χόλος) uma presente no proacutelogo e outra no terceiro
episoacutedio correspondentes respectivamente agraves falas de Atena e do Coro Essas menccedilotildees
representam a caracterizaccedilatildeo do tipo direta Como veremos mais adiante a primeira
representa seu rancor aos chefes gregos e a segunda aos deuses sobretudo agrave uacutenica deusa
presente na peccedila como personagem Cada uma das anaacutelises dessas duas menccedilotildees seraacute seguida
de um estudo de fragmentos que correspondem a discursos do Telamocircnio e que apresentam
ainda a coacutelera do heroacutei sendo identificada atraveacutes de suas declaraccedilotildees Essas passagens
representam a caracterizaccedilatildeo do tipo indireta O primeiro inserido no primeiro episoacutedio
compreende os versos 457 a 472 478 a 480 e o segundo no segundo episoacutedio os versos 654
a 660 Essas passagens sintetizam a unidade textual desenvolvida sobre a ira na caracterizaccedilatildeo
do heroacutei uma vez que espaccediladas na peccedila apresentam tal sentimento do personagem na 18
Segundo o que dissemos anteriormente (cf p 27-28) assemelhamos sob o sentido de ira os termos choacutelos (χόλος) presente em Homero e em Soacutefocles e orgeacute (ὀργή) presente em Aristoacuteteles que acerca desse sentimento diz ldquoira eacute um desejo de vinganccedila expliacutecita com a participaccedilatildeo do sentimento de dor por causa de expliacutecita desestima (ὀργὴ ὄρεξις μετὰ λύπης τιμωρίας [φαινομένης] διὰ φαινομένην ὀλιγωρίαν Retoacuterica 1378a 30-31) Segundo ainda esse mesmo autor eacute essa desestima por parte de Agamecircmnon que implica o estado de desonra de Aquiles no Canto I da Iliacuteada e justifica o estado iracundo (ὀργιζόμενος) desse heroacutei (Ibidem 1378b 29-34) Como jaacute pontuamos esse tambeacutem eacute o caso de Aacutejax uma vez que sobre a problemaacutetica da honra o episoacutedio do Pelida lhe serve como modelo
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perspectiva de vaacuterios outros personagens muitas vezes atraveacutes de leacutexico variado como
veremos adiante Ainda assim durante esse momento seraacute possiacutevel apresentar outros
fragmentos isolados como contraponto ou reforccedilo para confirmar determinadas anaacutelises
Comecemos o estudo da ira analisando os versos abaixo presente no proacutelogo da peccedila
[ΟΔ] Καὶ νῦν ἐπέγνως εὖ μ ἐπ ἀνδρὶ δυσμενεῖ βάσιν κυκλοῦντ Αἴαντι τῷ σακεσφόρῳmiddot κεῖνον γάρ οὐδέν ἄλλον ἰχνεύω πάλαι 20 Νυκτὸς γὰρ ἡμᾶς τῆσδε πρᾶγος ἄσκοπον ἔχει περάνας mdash εἴπερ εἴργασται τάδεmiddot ἴσμεν γὰρ οὐδὲν τρανές ἀλλ ἀλώμεθαmiddot κἀγὼ θελοντὴς τῷδ ὑπεζύγην πόνῳ ᾿Εφθαρμένας γὰρ ἀρτίως εὑρίσκομεν 25 λείας ἁπάσας καὶ κατηναρισμένας ἐκ χειρὸς αὐτοῖς ποιμνίων ἐπιστάταις Τήνδ οὖν ἐκείνῳ πᾶς τις αἰτίαν νέμει Καί μοί τις ὀπτὴρ αὐτὸν εἰσιδὼν μόνον πηδῶντα πεδία σὺν νεορράντῳ ξίφει 30 φράζει τε κἀδήλωσενmiddot εὐθέως δ ἐγὼ κατ ἴχνος ᾄσσω καὶ τὰ μὲν σημαίνομαι τὰ δ ἐκπέπληγμαι κοὐκ ἔχω μαθεῖν ὅτου Καιρὸν δ ἐφήκειςmiddot πάντα γὰρ τά τ οὖν πάρος τά τ εἰσέπειτα σῇ κυβερνῶμαι χερί 35 [ΑΘ] ἔγνων Ὀδυσσεῦ καὶ πάλαι φύλαξ ἔβην τῇ σῇ πρόθυμος εἰς ὁδὸν κυναγίᾳ [ΟΔ] ἦ καί φίλη δέσποινα πρὸς καιρὸν πονῶ [ΑΘ] ὡς ἔστιν ἀνδρὸς τοῦδε τἄργα ταῦτά σοι [ΟΔ] καὶ πρὸς τί δυσλόγιστον ὧδ᾽ ᾖξεν χέρα 40 [ΑΘ] χόλῳ βαρυνθεὶς τῶν Ἀχιλλείων ὅπλων [ΟΔ] τί δῆτα ποίμναις τήνδ᾽ ἐπεμπίπτει βάσιν [ΑΘ] δοκῶν ἐν ὑμῖν χεῖρα χραίνεσθαι φόνῳ [ΟΔ] ἦ καὶ τὸ βούλευμ᾽ ὡς ἐπ᾽ Ἀργείοις τόδ᾽ ἦν [ΑΘ] κἂν ἐξεπράξατ᾽ εἰ κατημέλησ᾽ ἐγώ19 45
(Aias v 18-35)
19[Od] Agora bem me descobriste rondando do homem hostil o passo de Aacutejax portador do escudo Pois este e natildeo outro rastreio recentemente (v 20) Certamente desta noite o ato sem escopo para noacutes tendo terminado ele possui - se realizou isto Pois nada claro sabemos mas erramos e eu me submeti voluntariamente a este trabalho Com efeito encontramos haacute pouco devastados (v 25) e mortos todos os despojos por matildeo junto com os proacuteprios condutores dos rebanhos Entatildeo agravequele todo algueacutem atribui esta causa E para mim testemunha quem tendo contemplado aquele sozinho se lanccedilando nos campos com espada receacutem-molhada (v 30) anuncia e tambeacutem elucidou Imediatamente eu precipito-me sobre o vestiacutegio assinalo umas e outras navego agrave deriva natildeo reconhecendo de quem Chegas em tempo pois tantas vezes antes e tantas vezes agrave frente eu piloto com tua matildeo (v 35) [At] Eu sei Odisseu e recentemente vim a caminho como guardiatilde favoraacutevel de tua caccedilada [Od] Por ventura cara soberana esforccedilo-me a tempo [At] Sim Satildeo para ti os atos deste homem [Od] E a fim de que precipitou a matildeo desta maneira iloacutegica (v 40) [At] Pesado de coacutelera por causa das armas de Aquiles [Od] Para que certamente sobre este rebanho empreende marcha [At] Em voacutes pensando a matildeo manchar de morte [Od] Por acaso essa resoluccedilatildeo seria como isto sobre os argivos [At] E teria executado se eu tivesse descuidado (v 45)
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O vocaacutebulo que evidencia a importacircncia dessa passagem eacute choacutelos (χόλος v 41)
Significa coacutelera oacutedio raiva ou simplesmente ira como jaacute frequentemente utilizamos na
exposiccedilatildeo das anaacutelises Esse eacute o primeiro momento na peccedila em que o estado do personagem
Aacutejax eacute apresentado A caracteriacutestica marcada neste momento eacute exatamente esse sentimento
Poreacutem o vocaacutebulo natildeo vem sozinho pois complementa o particiacutepio aoristo passivo pesado
baryntheacuteis (βαρυνθείς) que se refere ao heroacutei Este particiacutepio estruturado como estaacute parece-
nos apresenta trecircs aspectos importantes da coacutelera do heroacutei
O primeiro distingue essa caracteriacutestica como um estado Este eacute o verbo denominativo
baryacuteno (βαρύνω) proveniente do nome baryacutes (βαρύς) pesado Assim o sentido mais
concreto deste verbo eacute fazer ou tornar pesado grave e por extensatildeo afligir molestar suportar
A forma passiva do aoristo pode expressar um valor no sentido de estado que para noacutes nesta
passagem parece se revelar mais propriamente na estrutura como um predicativo Mesmo
em se tratando de uma expressatildeo nominal de um verbo natildeo haacute como ignorar a passividade do
termo com relaccedilatildeo ao seu complemento no genitivo as armas ou no dativo a coacutelera a qual
sugeriria a um destes complementos o papel de agente ao considerarmos sua noccedilatildeo verbal
Quando a passividade se constroacutei com um complemento que natildeo eacute uma pessoa mas uma
coisa geralmente estrutura-se o mesmo no dativo expressando-se uma ideia de meio e de
causa Eacute interessante observar que a estrutura nominal apresenta os casos dos complementos
nos mesmos da estrutura verbal contudo cabendo a nomenclatura a designaccedilatildeo de
complemento nominal A base loacutegica eacute a mesma Contudo no caso em questatildeo a coacutelera do
personagem parece impelir e comandaacute-lo agindo sobre o personagem e as armas representam
claramente a origem e a causa deste estado em que se encontra o heroacutei pois eacute a partir da posse
das mesmas por Odisseu que tal sentimento decorre Sem isto natildeo haveria a ira Assim ainda
haacute para noacutes uma passividade uma vez que o personagem eacute tomado e dominado por um
sentimento que conduz suas accedilotildees
O segundo aspecto apresenta um caraacuteter de intensidade pois parece natildeo soacute evidenciar
uma ideia de que a coacutelera o domina mas principalmente um estado iracundo profundo
Assim a expressatildeo grega para pesado de ira exprimiria uma maior intensidade agrave proacutepria
condiccedilatildeo coleacuterica enfatizada Para chegarmos a essa comprovaccedilatildeo conveacutem acrescentar o
proacuteprio estado da deusa Atena que persegue Aacutejax devido agrave atitude de desrespeito deste aos
deuses especialmente a ela O vocaacutebulo βαρύς origem do proacuteprio verbo usado na expressatildeo
eacute atribuiacutedo para tambeacutem intensificar a ira da deusa ldquograve ira da deusardquo (μῆνιν βαρεῖαν θεᾶς
v 655 Isso parece se comprovar se observarmos o modo como age o heroacutei no proacutelogo fora
de si descomedido Parece nos ajudar o estudo de Flaacutevio Ribeiro de Oliveira no qual o autor
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apresenta um personagem agindo como uma fera algo que jaacute comentamos anteriormente nos
trabalhos de Huumlbscher Neste estudo o autor dispotildee como proacuteprio da arte venatoacuteria o
vocabulaacuterio usado por Soacutefocles nesta cena da peccedila O leacutexico apresenta vaacuterias palavras que
retratam o episoacutedio de Odisseu perseguindo os rastros de Aacutejax como o de um caccedilador
acossando uma fera Acrescentando mais alguns aos do autor temos estes ligados ao ato de
Odisseu θηρώμενον que caccedila (v 2) κυνηγετοῦντα que caccedila (v 5) κυναγίᾳ caccedilada (v 37)
ἴχνη ἴχνος rastros (v 6 e 32) ἴχνεύω rastreio (v 20) κυνὸς Λακαίνης [] εὔρινος βάσις
bem-fuccedilante marcha de cadela lacocircnia (v 8) Esse vocabulaacuterio impotildee uma imagem bem
sugestiva e coerente ao episoacutedio pois o Telamocircnio natildeo age normalmente O personagem
pesado de ira ataca com ferocidade os rebanhos Essa atitude natildeo parece ser em parte
reconhecida a princiacutepio por Odisseu nem a atribuindo ao heroacutei Primeiro devido agraves viacutetimas
escolhidas e segundo agrave ferocidade empregada Em virtude das circunstacircncias Odisseu natildeo
compreende toda a situaccedilatildeo e atribui ao encolerizado uma accedilatildeo incoerente pois ignora as
causas dela O autor atribui o termo δυσλόγιστον iloacutegico irracional agrave matildeo do heroacutei em uma
conotaccedilatildeo para seus atos selvagens Sabemos que o ataque aos animais se daacute devido agrave ilusatildeo
causada pela deusa contudo a violecircncia a ferocidade do ato parece ser proacutepria do
personagem ou seja de sua predisposiccedilatildeo agrave desmesura e de sua condiccedilatildeo coleacuterica da qual de
alguma forma participa a deusa amplificando-a Isso nos permite compreender seu estado com
uma extensatildeo de sua proacutepria condiccedilatildeo iracunda que ora retira-lhe a humanidade no sentido
de tornaacute-lo selvagem Natildeo por menos Odisseu ora reconhece os rastros os atribuindo a Aacutejax
e ora natildeo reconhece κατ᾽ ἴχνος ᾁσσω καὶ τὰ μὲν σημαίνομαι τὰ δ᾽ ἐκπέπληγμαι κοὐκ ἔχω
μαθεῖν ὅτου (v32-33) pois aquele parece distinguir o humano e o animalesco quando do
estudo dos rastros encontrados
Para o melhor entendimento dessa intensidade da ira do personagem conveacutem
relembrarmos que o estado de selvageria ou de barbaacuterie representa exatamente como falamos
antes o excesso a desmedida hyacutebris E esta se opotildee dentro da peccedila necessariamente agrave
concepccedilatildeo de moderaccedilatildeo de comedimento de equiliacutebrio de sophrosyacutene
Eacute um fato relevante do ponto de vista da apresentaccedilatildeo do personagem que este seja
apresentado como pesado de coacutelera por um lado no iniacutecio da peccedila e por outro atraveacutes das
proacuteprias palavras da deusa Atena Para o primeiro caso essa atribuiccedilatildeo enfatiza a desmedida
uma vez que o termo pesado se contrapotildee ao sentido de equiliacutebrio Assim serve como um
intensificador que evidencia o excesso em contraste agrave desmedida Logo pesado eacute oposto a
sophrosyacutene Eacute necessaacuterio ainda dizer que isso nos antecipa a proacutepria desgraccedila do heroacutei pois
se a divindade ao fim do proacutelogo jaacute apresenta em suas palavras a maacutexima que diz que os
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deuses amam os moderados soacutephronas (σώφρονας v 132) e um soacute dia eacute necessaacuterio para
dobrar o destino humano o Telamocircnio em desequiliacutebrio pela coacutelera receberaacute natildeo outro
senatildeo esse fim Quanto ao segundo considera-se o fato de que a deusa representa uma
completa consciecircncia dos fatos segundo a gradaccedilatildeo de conhecimento sugerido no proacutelogo de
acordo com Flaacutevio Ribeiro
Cegueira e visatildeo satildeo dispostos antiteticamente na relaccedilatildeo entre trecircs personagens Atena vecirc Odisseu que natildeo a vecirc de modo inverso Odisseu vecirc Aias que natildeo o vecirc Opotildeem-se trecircs planos distintos de conhecimento visual hierarquicamente articulados o da deusa o do mortal e o do demente o louco natildeo vecirc nem o satildeo nem o deus o satildeo vecirc o louco mas natildeo vecirc o deus o deus tudo vecirc e natildeo eacute visto Haacute a gradaccedilatildeo entre ignoracircncia completa e onisciecircncia divina (2008 p 9)
Essa gradaccedilatildeo de conhecimento visual desencadeia uma noccedilatildeo de conhecimentos dos
fatos que coloca a deusa em uma posiccedilatildeo privilegiada a de que tudo ela sabe Opotildee-se
sobretudo a posiccedilatildeo ocupada por Aacutejax que em completa ignoracircncia vecirc imagens extraviadoras
ou seja a realidade enxergada pelo mesmo eacute enganosa ou seja falsa Contrariamente a isso a
situaccedilatildeo de Atena em contraste com a deste caracteriza-se pela contemplaccedilatildeo onisciente da
realidade assim ela eacute conhecedora de tudo logo o que ela relata e a forma como apresenta o
heroacutei eacute o oposto de falso ou seja a realidade por ela revelada a Odisseu relaciona-se agrave
verdade Diante do contexto da peccedila e do papel relevante exercido pela deusa sobretudo
acerca do que acabamos de expor a apresentaccedilatildeo do heroacutei em estado coleacuterico vinculado agrave
visatildeo da realidade da deusa minimiza a subjetividade inerente agrave caracterizaccedilatildeo de um
personagem por outro apesar de sabermos da ira que acomete Atena Dessa forma podemos
legitimar esse estado como realmente presente nas caracteriacutesticas do heroacutei dentro da peccedila
como confirmaremos a partir de outros exemplos
Podemos acrescentar a isso o fato desse estado do heroacutei ser reconhecido por outros
personagens Isso se faz tambeacutem por natildeo se identificar nele o autocontrole a moderaccedilatildeo
Odisseu e Tecmessa cativa e companheira do Telamocircnio satildeo grandes exemplos disso pois se
utilizam de vocaacutebulos que marcam seu caraacuteter a partir da oposiccedilatildeo entre comedimento e
excesso Odisseu por exemplo ainda no proacutelogo teme encontrar o seu mais novo inimigo e
esse fato se daacute porque este natildeo se encontra em um momento de racionalidade de
comedimento de prudecircncia ou seja pensando de forma equilibrada phronoyacutenta (φρονοῦντα
v 82) Tecmessa tambeacutem o reconhece em estado excessivo no primeiro episoacutedio da peccedila e
diante das lamentaccedilotildees deste exorta-o por meio do verbo no imperativo a recompor-se a
moderar-se a voltar a ser prudente phroacuteneson (φρόνησον v 371)
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Conveacutem reiterar que esse eacute um recurso abundante na peccedila pois pressupondo que
Soacutefocles segundo seu estilo desenvolva caracteres opostos apresenta para isso uma gama
variada de leacutexico que se relaciona agrave medida e que tem como base o substantivo que em seu
mais primitivo sentido denomina o diafragma phreacuten (φρήν) oacutergatildeo relacionado ao
temperamento dos homens Esse significado de teor concreto alcanccedila em noccedilatildeo abstrata desde
o sentido de pensamento ateacute de vontade e expressa entre os gregos da antiguidade uma das
bases da liacutengua para compor o leacutexico que se relaciona agrave ideia de racionalidade e de medida
cujo exemplo maior na peccedila corresponde a sophrosyacutene que tem esse mesmo radical em sua
composiccedilatildeo
Dessa forma todos esses termos expressos por esses dois personagens na
caracterizaccedilatildeo do heroacutei em anaacutelise parecem defini-lo a partir da oposiccedilatildeo entre excesso e
comedimento Isso nos serve para conduzir o particiacutepio aoristo pesado ao primeiro eixo o da
desmedida e por consequecircncia observaacute-lo como um intensificador do estado coleacuterico que
mencionamos acima Logo sua coacutelera eacute reconhecidamente intensa excessiva tal qual a sua
desonra
A proacutepria qualificaccedilatildeo de Odisseu eacute clara ainda no proacutelogo diante do personagem
σακεσφόρῳ (V 19) cujo sentido eacute portador de escudo mas que retoma de forma significativa
as caracteriacutesticas primitivas do heroacutei expostas no capiacutetulo anterior Esse vocaacutebulo tem em sua
formaccedilatildeo o substantivo saacutekos (σάκος) escudo cujo uso parece definir a arma de tipo
alongado e que se restringe em parte a nomear o escudo de Aacutejax20 segundo Patriacutecia Pontin
(2006 p 45) Com esse sentido isso nos permite inferir ao vocaacutebulo presente no proacutelogo
mais um reforccedilo ao aspecto e ao caraacuteter primitivo de que se reveste na peccedila o excesso a
hyacutebris uma vez que se considere a concepccedilatildeo de primitivismo agrave origem marcadamente
arcaica e micecircnica dessas caracteriacutesticas da arma do heroacutei (PEREIRA 2012 p 76 VAN DER
VALK 1951 p 273) conforme noacutes jaacute tratamos anteriormente Esse reforccedilo nos eacute mais
significativo pois parace coincidir com o hemistiacutequio do verso como um epiacuteteto ou seja
uma foacutermula que serve sobretudo para a caracterizaccedilatildeo mesmo que aplicado a um triacutemetro
jacircmbico Vejamos os versos 18 e 19 que retratam a fala de Odisseu diante da presenccedila da
deusa Atena ldquoE agora me descobriste bem rondando do homem hostil o passo de Aacutejax
condutor do escudordquo (Καὶ νῦν ἐπέγνως εὖ μ ἐπ ἀνδρὶ δυσμενεῖ βάσιν κυκλοῦντ Αἴαντι τῷ 20
Segundo Patriacutecia Pontin fundamentada nos estudos de L Lacroix Homero para definir o escudo ldquose utiliza de dois termos principais ἀσπίς e σάκος cujo significado exato eacute singularmente difiacutecil de determinar Ἀσπίς pode-se dizer tanto de um escudo redondo como de um escudo alongado Σάκος se aplica ao escudo de Aacutejax que o poeta compara a uma torre mas a mesma palavra eacute empregada em um caso pelo menos a propoacutesito de uma arma circular Entretanto ἀσπίς e σάκος satildeo diferentes em suas origens e parece provaacutevel que foram designadas primitivamente a armas de tipo diferenterdquo (2006 p 45)
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σακεσφόρῳ) A escansatildeo do verso 19 seria essa βασιν κυκλουντ Αιαντι τῳ
σᾰκεσφορῳ A cesura desse esquema meacutetrico eacute geralmente pentemiacutemere ou heftemiacutemere ou
seja apoacutes cinco ou sete metades de peacute semelhante ao dactiacutelico (LOURENCcedilO 2011 p 23-
25) Natildeo sendo possiacutevel a do tipo pentemiacutemere pois repartiria o nome do heroacutei mais
provaacutevel eacute a heftemiacutemere que evidencia a palavra σακεσφόρος incluindo no hemistiacutequio o
artigo que o precede Essa qualificaccedilatildeo do personagem que coincide metricamente com o
hemistiacutequio ao nosso ver tal qual um epiacuteteto que acompanha o nome do heroacutei serve para
identicar e restringir uma caracterizaccedilatildeo de Aacutejax a qual como veremos adiante tem como
objetivo delinear uma iacutendole excessiva e mais brusca
A essa menccedilatildeo podemos acrescentar outra do primeiro episoacutedio Neste em despedida
o heroacutei lega ao seu filho o seu escudo (σάκος v 576) Simbolicamente isso representa a
heranccedila de sua iacutendole e seus ideais os quais devem se perpetuar Esse entendimento fica claro
a partir de duas informaccedilotildees do texto uma impliacutecita e outra expliacutecita A primeira estaacute
impliacutecita no nome do filho Euriacutesaces (Εὐρύσακες v 575) cuja formaccedilatildeo se daacute a partir de
dois elementos um substantivo escudo σάκος vocaacutebulo restrito agrave descriccedilatildeo do Telamocircnio e
o adjetivo largo εὐρύς logo a traduccedilatildeo do nome seria escudo largo ou grande Obviamente
que isso remete aos atributos proacuteprios do pai A segunda informaccedilatildeo estaacute nas incumbecircncias
dadas pelo pai a Teucro para a educaccedilatildeo do filho O desejo do genitor eacute que o herdeiro seja
conduzido de acordo com os rudes costumes do pai (ὠμοῖς [] εν νόμοις πατρὸς v 548)
logo isso significa que esse legado pressupotildee os ideais heroicos e arcaicos da eacutepica homeacuterica
os quais natildeo condizem com o modelo dos atenienses do seacuteculo V representando assim
valores associados agrave hyacutebris evidente na peccedila
O terceiro aspecto relevante do fragmento citado eacute em quem se concentra a ira os
chefes gregos mas sobretudo Odisseu Agamecircmnon e Menelau Natildeo por acaso satildeo estes os
uacutenicos chefes que figuram a peccedila como personagens Para o episoacutedio retratado por Soacutefocles
estes satildeo os maiores envolvidos na accedilatildeo da trageacutedia que culminam com o suiciacutedio do heroacutei
mas tambeacutem naquelas natildeo dramatizadas que acarretam a sua situaccedilatildeo desonrosa e que por
isso justificam-se a sua ira e o seu oacutedio Esses trecircs agem diretamente contra o protagonista da
peccedila segundo a perspectiva deste no resultado da disputa pelas armas de Aquiles Logo eacute
fundamental o entendimento a partir das vaacuterias analepses referidas na obra do resultado
desse evento entre o heroacutei e Odisseu para que se esclareccedilam a origem e as causas desses
sentimentos Com efeito a oposiccedilatildeo dos chefes gregos em prol do favorecimento de Odisseu
os retira da posiccedilatildeo de aliados e amigos e os coloca na de inimigos Isso eacute bem claro quando
retomamos a observaccedilatildeo de Bernard Knox que indica o ideal cultuado do personagem que
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embasa seus princiacutepios na maacutexima fazer bem aos amigos e mal aos inimigos (τούς φίλους εὖ
ποιεῖν τοὺς δ` ἐχθροὺς κακῶς) (1961 p 3) Isso fica ainda mais evidente em relaccedilatildeo a
Odisseu que ao ver do heroacutei age hostilmente contra ele em busca de imerecidos precircmios de
acordo com o que noacutes veremos a seguir
Quanto a Odisseu a ira se justifica porque este eacute o vencedor da disputa e ganhador dos
precircmios maacuteximos mesmo sendo menos merecedor de acordo com seu adversaacuterio da
contenda Por isso eacute por este uacuteltimo denominado de escoacuteria mais imunda da tropa
(κακοπινέσατον τ` ἄλημα στρατοῦ v 381) e escoacuteria inimiga (ἐχθρὸν ἄλημα v 389) Teucro
inclusive reconhece que para o irmatildeo o Laertida seria o maior inimigo dentre os Argivos
(ἔχθιστος Ἀργείων v 1383) ou seja deteacutem a primazia da coacutelera do Telamocircnio Seus tambeacutem
meacuteritos natildeo seriam guerreiros assim justificam-se outros nomes atribuiacutedos instrumento de
todos os males (ἁπάντων κακῶν ὄργανον v 379-380) e sobretudo o mais adulador
(αἱμυλώτατον v 388) Esta uacuteltima caracteriacutestica reforccedila o poder de persuasatildeo que este heroacutei
possui mas visto sob uma perspectiva negativa Assim tambeacutem para os guerreiros de
Salamina representados pelo coro este persuade (πείθει v 150) forjando palavras (λόγους
[] πλάσσων v 148) e por isso tem uma sugerida origem Sisifida (Σισυφιδᾶν γενεᾶς v
190) Essa linhagem eacute relevante uma vez que a Siacutesifo se atribui a maior astuacutecia humana e
tambeacutem o menor escruacutepulo com os quais muitas faltas aos deuses foram cometidas
justificando sua puniccedilatildeo categoacuterica no Hades (GRIMAL 2005 p 422-423) Mesmo sendo ele
de origem divina e na eacutepica grega sua astuacutecia seja concebida sob o vieacutes da virtude na peccedila
em questatildeo tal atributo servindo de instrumento para o mal na perspectiva de Aacutejax e de seus
proacuteximos marca a iacutendole de um homem sem valor da pior linhagem que se justifica tambeacutem
pela ancestralidade Podemos ver a partir de tudo isso a imagem de Odisseu do ponto de vista
de seu adversaacuterio da disputa Dessa forma os evidentes superlativos utilizados nos mostram a
posiccedilatildeo distintiva ocupada por ele pois acima de todos eacute o mais odiado pelo Telamocircnio pois
para este usurpa-lhe o precircmio exercendo ativamente sua iacutendole Eacute interessante observar que o
adjetivo ἐχθρός pode designar tanto aquele que eacute odiado quanto muito comum quando
substantivado o inimigo Isso nos permite colocar dentro de um mesmo campo semacircntico a
posiccedilatildeo de algueacutem em relaccedilatildeo a outro como tambeacutem permite se vincular a um sentimento
Isso aproxima ira e oacutedio estabelecendo relaccedilotildees significativas para a interpretaccedilatildeo da peccedila
A proacutepria repreensatildeo de Teucro a Odisseu no ecircxodo quando aquele impede este de
participar ativamente nos ritos fuacutenebres ressalta esse sentimento que o acompanha mesmo
depois de morto Vejamos esse momento
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[Τευ] Σὲ δ ὦ γεραιοῦ σπέρμα Λαέρτου πατρός τάφου μὲν ὀκνῶ τοῦδ ἐπιψαύειν ἐᾶν μὴ τῷ θανόντι τοῦτο δυσχερὲς ποῶmiddot 1395 τὰ δ ἄλλα καὶ ξύμπρασσε κεἴ τινα στρατοῦ θέλεις κομίζειν οὐδὲν ἄλγος ἕξομεν ᾿Εγὼ δὲ τἀμὰ πάντα πορσυνῶmiddot σὺ δὲ ἀνὴρ καθ ἡμᾶς ἐσθλὸς ὢν ἐπίστασο21
(Aias v 1393-1399)
Teucro ao final reconhece a ajuda de Odisseu na permissatildeo dos funerais do heroacutei
destacando o Laertida como homem valoroso (ἐσθλὸς v 1399) Ainda assim estaacute ciente do
iacutentimo e da vontade do irmatildeo e por isso hesita em permitir que este toque a sepultura Eacute
evidente que permanece a ira que o acometia em vida de tal forma que seu irmatildeo acredita que
faria com isso algo que desagradaria o morto algo que lhe seria impertinente ou mesmo
nefasto (δυσχερὲς v 1395) sobretudo pela expressividade do prefixo dys δυσ que eacute um
prefixo que associa ao vocaacutebulo a ideia de contrariedade e de desgraccedila construindo-se um
novo ou intensificando o primeiro sentido Um detalhe significativo para o destaque desse
sentimento do heroacutei estaacute no sentido mais preciso do verbo tocar ἐπιψαύειν presente na fala
de Teucro Esse verbo possui como significado as noccedilotildees de roccedilar ou de tocar de leve ou
seja um movimento sutil suave ou ateacute mesmo delicado Eacute imprescindiacutevel compreender seu
uso em uma oposiccedilatildeo agrave coacutelera ostentada pelo personagem agora morto Pois o mero ato de
encostar no sepulcro natildeo eacute permitido exatamente por que a ira do heroacutei eacute pesada e assim
opotildeem-se o ato de tocar levemente ἐπιψαύειν por parte de Odisseu constante do verso 1392
e o ato de estar pesado βαρύνειν por parte de Aacutejax constante do verso 41 Demarca-se
assim a profundidade da ira do heroacutei em relaccedilatildeo ao seu adversaacuterio da disputa impondo a este
o primeiro lugar entre os inimigos
Os Atridas tambeacutem satildeo foco desse oacutedio em tal perspectiva de inimizade pois apesar
de muitos serem os juiacutezes da contenda (v 1136 1243) esses sendo chefes representam o
corpo dos juiacutezes Um fato importante para isso eacute a proacutepria sugestatildeo desses serem os
responsaacuteveis pela decisatildeo por votos que desonrou o personagem (ἐψήφισαν v 449) conduta
natildeo bem quista pelo Telamocircnio sobretudo porque esse tipo de julgamento evoca os
procedimentos dos tribunais atenienses do seacuteculo V como observaram Knox (1961 p 22) e
Bacelar (2006 p 237-238) aos quais certamente o personagem se opotildee devido a sua
21
[Teu] Filho do velho pai Laertes temo te permitir tocar de leve a sepultura deste que ao morto eu faccedila algo impertinente (v 1395) mas faze outras coisas se algueacutem do exeacutercito desejas introduzir teremos nenhuma afliccedilatildeo Eu executarei todas as minhas [incumbecircncias] para noacutes tu permaneces sendo homem nobre
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caracterizaccedilatildeo arcaica e baacuterbara na perspectiva dos valores gregos apregoados na Atenas do
periacuteodo claacutessico
No verso 716 por exemplo reforccedila-se significativamente essa disposiccedilatildeo do
personagem contra os Atridas Nessa passagem se evidencia o oacutedio do heroacutei a estes um
iacutempeto que dentro da perspectiva da ira parece impeli-lo a permanecer e a resistir agrave
reconciliaccedilatildeo (θυμῶν Ἀτρείδαις) Esse iacutempeto eacute o mesmo com o qual Homero reveste o
personagem no Canto XI da Odisseia impedindo-o de se reconciliar com Odisseu
Interessante tambeacutem eacute que se faz pelo mesmo vocaacutebulo θυμός (cf pg 21-22)
Dessa forma esses trecircs personagens configuram os maiores envolvidos na desonra e
em decorrecircncia disso os maiores inimigos e assim mereceriam uma maior puniccedilatildeo e
vinganccedila (v 301-304) Com efeito essa menccedilatildeo direta agrave ira do heroacutei enfatiza o sentimento do
personagem em relaccedilatildeo aos chefes gregos alicerccedilando acima de tudo as accedilotildees que estatildeo fora
da trageacutedia22 mas que compotildeem seu enredo Natildeo figuram no proacutelogo a disputa pelas armas
nem mesmo o ataque aos chefes gregos pois satildeo preteacuteritos em relaccedilatildeo agrave cena inicial
Contudo eles satildeo essenciais para a progressatildeo das accedilotildees que conduzem o heroacutei a sua ruiacutena
Dessa forma aquilo que move o heroacutei a tecirc-las realizado eacute tambeacutem presente para o efeito
traacutegico da peccedila Na obra em questatildeo essa relevacircncia recai sobre a ira Ela eacute o grande
impulsionador da causalidade interna da obra especialmente do ponto de vista da concepccedilatildeo
de excesso presente em toda sua extensatildeo Logo a ira aos chefes gregos compotildee parte
estrutural Por isso Soacutefocles reitera esse sentimento retomado da tradiccedilatildeo arcaica para a qual
tambeacutem eacute fundamental
Vejamos como esse sentimento se mostra tambeacutem condutor das accedilotildees que se
desenvolvem internamente a partir dos versos abaixo inseridos no primeiro episoacutedio
[Αι] Καὶ νῦν τί χρὴ δρᾶν ὅστις ἐμφανῶς θεοῖς ἐχθαίρομαι μισεῖ δέ μ ῾Ελλήνων στρατός ἔχθει δὲ Τροία πᾶσα καὶ πεδία τάδε Πότερα πρὸς οἴκους ναυλόχους λιπὼν ἕδρας 460 μόνους τ ᾿Ατρείδας πέλαγος Αἰγαῖον περῶ Καὶ ποῖον ὄμμα πατρὶ δηλώσω φανεὶς Τελαμῶνι πῶς με τλήσεταί ποτ εἰσιδεῖν γυμνὸν φανέντα τῶν ἀριστείων ἄτερ ὧν αὐτὸς ἔσχε στέφανον εὐκλείας μέγαν 465 Οὐκ ἔστι τοὔργον τλητόν Αλλὰ δῆτ ἰὼν πρὸς ἔρυμα Τρώων ξυμπεσὼν μόνος μόνοις
22 Sabemos que o proacutelogo in medias res tambeacutem eacute usado para contextualizar o ponto em que se inicia o drama escolhido pelo poeta natildeo soacute para determinar uma extensatildeo ideal aristoteacutelica mas tambeacutem para engendrar as causas do infortuacutenio imutaacutevel natildeo soacute pela causalidade das accedilotildees que o encadeiam mas sobretudo por corresponder a um passado que natildeo pode ser alterado (LUNA 2012 p 241-242)
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καὶ δρῶν τι χρηστόν εἶτα λοίσθιον θάνω ᾿Αλλ ὧδέ γ ᾿Ατρείδας ἂν εὐφράναιμί που Οὐκ ἔστι ταῦταmiddot πεῖρά τις ζητητέα 470 τοιάδ ἀφ ἧς γέροντι δηλώσω πατρὶ μή τοι φύσιν γ ἄσπλαγχνος ἐκ κείνου γεγώς
[] ἀλλ ἢ καλῶς ζῆν ἢ καλῶς τεθνηκέναι τὸν εὐγενῆ χρή Πάντ ἀκήκοας λόγον23 480
(Aias v 457-470 479-480)
Nessa passagem Aacutejax inicia uma reflexatildeo apoacutes um longo lamento sobre a sua proacutepria
situaccedilatildeo Diante da desonra aferida pela pretericcedilatildeo das armas e do ultraje pelo ataque ao
rebanho ambos conhecidos pelos gregos o heroacutei conclui sua posiccedilatildeo perante aliados e
amigos Ao seu ver ele eacute odiado por todos pela tropa dos gregos (μισεῖ [] στρατός v 458)
pelos deuses (θεοῖς ἐχθαίρομαι v 457-458) e logicamente por Troia (ἔχθει [] Τροία v
459) Tendo chegado a essa conclusatildeo pondera qual accedilatildeo deve ser tomada por ele Dois
caminhos satildeo levados em conta voltar para casa ou morrer belamente segundo os preceitos
homeacutericos Em ambas haacute a participaccedilatildeo dos Atridas como um elemento influenciador Quanto
agrave primeira reflexatildeo o personagem cogita deixaacute-los soacutes (μόνους τ` Ἀτρείδας v 461) voltando
para casa Contudo isso natildeo se apresenta como uma boa resoluccedilatildeo pois a imagem de um filho
despojado dos precircmios de excelecircncia guerreira (τῶν ἀριστείων ἄτερ v 464) diante do pai
cujos feitos alcanccedilaram a grande honra da gloacuteria (στέφανον εὐκείας μέγαν v 465) eacute
insuportaacutevel (τλήεται v 463 τλητόν v 466) para o seu genitor Assim acima do desejo de
abandonar Agamecircmnon e Menelau sozinhos contra os troianos ato que repercute do oacutedio a
esses heroacuteis o heroacutei se vecirc movido pelo pudor em relaccedilatildeo a Teacutelamon para o qual a possiacutevel
vergonha impede aquele de agir Na segunda reflexatildeo podemos observar ainda mais
significativamente o papel da ira Nesta o personagem intenta se lanccedilar contra os troianos
sozinho contra os soacutes (μόνος μόνοις v 467) ensejando sua morte um ato que remete agrave bela
morte arcaica cujo cerne se trata de um combate singular com um igual Com essa resoluccedilatildeo
o heroacutei acredita na possibilidade de alegrar os Atridas (Ἀτρείδας ἄν εὐφράναιμί που v 469)
Eacute interessante observar na sua perspectiva isso realmente eacute uma possibilidade As marcas 23 [Aj] E agora o que eacute necessaacuterio fazer Que visivelmente por deuses sou odiado e detesta-me o exeacutercito dos Helenos Toda Troia odeia e estas planiacutecies Para casa de qual maneira tendo deixado o ancoradouro das naus (v 460) e os Atridas soacutes atravesso o mar Egeu E para o pai Teacutelamon revelarei que olhar tendo me apresentado Como suportaraacute quando olhar para mim tendo me apresentado despido aparte dos precircmios de excelecircncia das quais ele proacuteprio teve a grande coroa de gloacuteria (v 465) Isto natildeo eacute suportaacutevel Mas certamente indo agrave fortaleza dos troianos sozinho dentre os soacutes tendo me chocado e realizando o que eacute necessaacuterio por fim depois morresse Mas dessa maneira ao menos agradaria os Atridas provavelmente Essas natildeo satildeo uma atitude comprovaacutevel (v 470) tal pela qual revelarei para o velho pai minha natureza certamente natildeo tendo nascido dele covarde [] Mas ou viver belamente ou belamente morrer eacute necessaacuterio para o bem-nascido Ouvistes todo o discurso
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desse entendimento satildeo o proacuteprio adveacuterbio που que expressa o sentido de provavelmente ou
talvez ou seja possibilidade e o modo optativo do verbo acompanhado sobretudo da
partiacutecula ἄν que evidencia o caraacuteter potencial do evento Mesmo assim diante de uma
possibilidade Aacutejax prefere natildeo executar tal accedilatildeo e isso se deve ao fato de o resultado agradar
(εὐφραίνω) os gregos sobre os quais se concentra sua ira os filhos de Atreu
Para corroborar a disposiccedilatildeo iracunda sobre esses dois conveacutem mencionar a
invocaccedilatildeo do heroacutei no terceiro episoacutedio nos preacircmbulos do suiciacutedio Nesse momento vaacuterias
divindades satildeo evocadas para cumprir determinadas accedilotildees em relaccedilatildeo ao suicida como por
exemplo Zeus para que forneccedila o privileacutegio de Teucro ser o primeiro a encontrar o morto
Hermes para que conduza rapidamente a alma desprendida do corpo como um brando sono
o Sol para que fazendo tudo ser visiacutevel anuncie seu destino ao pai e alguns outros em
despedida Entre essas divindades uma eacute elencada com a finalidade de vingar o heroacutei em
relaccedilatildeo aos dois chefes as Eriacutenias Quando dessa menccedilatildeo aqueles satildeo referidos como maus
(κακοὺς v 839) o que justifica na suacuteplica do heroacutei a perseguiccedilatildeo destas divindades agravequeles
Na concepccedilatildeo grega essas deusas causam ruiacutena ao que agem contra membros do mesmo
grupo sobretudo da famiacutelia Para o Telamocircnio eacute nisso que se insere a sua prece e por isso
justifica o seu pedido de que tal como ele morto por si proacuteprio (αὐτοσφαγῆ v 841) aqueles
devem perecer mortos pelos seus proacuteprios e cariacutessimos descendentes (αὐτοσφαγεῖς τῶν
φιλίστων ἐκγόνων v 841-842) Soacutefocles parece de alguma forma alinhar os desejos do
Telamocircnio ao menos ao mito que trata do retorno de Agamecircmnon pois este morre pelas matildeos
da mulher e esta pelas do filho segundo a tradiccedilatildeo do episoacutedio de retorno desse rei Com
efeito o ato de reservar um lugar em suas invocaccedilotildees para a vinganccedila e o manifesto desejo
por um infortuacutenio tatildeo traacutegico para os Atridas destacam a ira do heroacutei como fundamental
impulso de suas accedilotildees
Dessa forma quanto aos versos mencionados acima o heroacutei considerando o pudor ao
pai e a ira aos dois chefes gregos adequa os preceitos da bela morte agrave sua situaccedilatildeo
antecipando o que viraacute a ser o seu suiciacutedio a uacutenica saiacuteda que natildeo favoreccedila de alguma forma
os seus recentes inimigos e que evidencie nele ainda um valor guerreiro e que assim
configure a sua morte sendo corajosa e nobre tal qual a maacutexima homeacuterica Assim quanto agrave
ira contra os chefes gregos especialmente contra Odisseu Agamecircmnon e Menelau podemos
reconhecer a sua participaccedilatildeo importante na composiccedilatildeo da trama da peccedila
Passemos ao estudo desse sentimento em relaccedilatildeo aos deuses Vejamos entatildeo a sua
segunda menccedilatildeo nos versos 735 a 744 inseridos no terceiro episoacutedio cujo vocaacutebulo ira estaacute
ainda expliacutecito
90
[Χο] Οὐκ ἔνδον ἀλλὰ φροῦδος ἀρτίως νέας 735 βουλὰς νέοισιν ἐγκαταζεύξας τρόποις [Αγ] ᾿Ιοὺ ἰούmiddot βραδεῖαν ἡμᾶς ἆρ ὁ τήνδε τὴν ὁδὸν πέμπων ἔπεμψεν ἢ φάνην ἐγὼ βραδύς [Χο] Τί δ ἐστὶ χρείας τῆσδ ὑπεσπανισμένον 740 [Αγ] Τὸν ἄνδρ ἀπηύδα Τεῦκρος ἔνδοθεν στέγης μὴ ξω παρήκειν πρὶν παρὼν αὐτὸς τύχῃ [Χο] ᾿Αλλ οἴχεταί τοι πρὸς τὸ κέρδιστον τραπεὶς γνώμης θεοῖσιν ὡς καταλλαχθῇ χόλου24
(Aias v 735-744)
Novamente evidenciamos o vocaacutebulo ira choacutelos expliacutecito tambeacutem nessa passagem
(χόλου v 744) Nesse caso segundo o pensamento do coro essa reconciliaccedilatildeo se daria junto
aos deuses uma vez que sobre estes a ira do heroacutei tambeacutem recai Essa interpretaccedilatildeo
equivocada dos guerreiros de Salamina em relaccedilatildeo aos pensamentos do seu senhor enfatiza
sobretudo os ideais do heroacutei pois marcam um novo comportamento (νέοισιν [] τρόποις) e
uma nova vontade (νέας βουλὰς) do Telamocircnio O fato singular eacute que de acordo com essa
perspectiva Aacutejax abandonaria seu mais corrente ideal presente na peccedila fazer bem aos amigos
e mal aos inimigos Assim contrariamente agrave sua costumeira iacutendole especialmente ao seu
conjunto de atributos o heroacutei estaria disposto natildeo soacute a procurar a accedilatildeo mais inteligente e a
mais astuta (κέρδιστον) mas tambeacutem um ideal Isso fica oacutebvio pelo uso do vocaacutebulo γνώμη
no verso 744 cujo sentido primeiro eacute juiacutezo mas pelo qual o costume grego denomina aleacutem
disso as sentenccedilas e maacuteximas Contudo a compreensatildeo do coro eacute errada e possui ainda uma
certa ironia pois esse equiacutevoco se faz evidente sobretudo pelo contraste de atributo que natildeo
corresponde ao heroacutei mas a seu maior opositor Odisseu O atributo em questatildeo eacute a astuacutecia
referida no verso 753 mormente em um grau superlativo do adjetivo ou seja intensificando
essa qualidade Certamente tal procedimento eacute incoerente com a natureza do Telamocircnio que
prefere ainda seguir o caminho do oacutedio contra aqueles que lhe satildeo hostis e entres tais os
deuses
O proacutelogo e o primeiro episoacutedio por exemplo fornecem vaacuterios indiacutecios para
confirmarmos essa ira aos deuses sobretudo a Atena Em fragmento estudado anteriormente
vimos que o heroacutei se vecirc odiado pelos deuses (θεοῖς ἐχθαίρομαι v 457-458) e por Troia (ἔχθει
24
[Co] Natildeo estaacute dentro mas haacute pouco se foi novas (v 735) vontades tendo ligado a novos costumes [Mens] Ai ai Pois aquele [Teucro] que nos enviou neste caminho enviou em um tardio ou eu tardio apareci [Co] O que estaacute ausente deste serviccedilo (v 740) [Mens] Teucro proibia o homem dentro da tenda que dela saiacutesse antes que ele mesmo estivesse presente fortunamente [Co] Mas vai certamente tendo se dirigido para o mais astuto juiacutezo para que seja reconciliado da coacutelera aos deuses
91
[] Τροία v 459) de forma que se equaliza a posiccedilatildeo ocupada por estes e por aqueles
Ambos satildeo vistos assim como inimigos O verbo utilizado nesse reconhecimento eacute ἔχθω da
mesma raiz do adjetivo ἐχθρός cujo significado jaacute mencionado abrange tanto o sentimento
de oacutedio quanto a relaccedilatildeo de inimizade por extensatildeo de sentido E estaacute oacutebvio que para essa
conjectura haacute de ser entender que os deuses procuram fazer mal tanto quanto seus inimigos
declarados os Troianos Para perceber como isso se daacute temos que nos remeter sobretudo agrave
relaccedilatildeo de Aacutejax e Atena
A deusa eacute reconhecida pelo heroacutei como uma aliada de guerra (σύμμαχον v 117) e ela
mesma assim se coloca para ele (συμμάχου v 90) inclusive o ajudando no ataque aos chefes
gregos (v 92) Logo na visatildeo do heroacutei a divindade eacute uma amiga Contudo essa percepccedilatildeo eacute
distorcida pois o termo σύμμαχος sugere inferioridade segundo Knox uma vez que
descrevia a designaccedilatildeo oficial das cidades e ilhas sujeitas ao poder de Atenas (1961 p 8) O
proacuteprio texto apresenta indiacutecios que comprovam essa interpretaccedilatildeo pois Teucro diante de
Menelau afirma que seu irmatildeo veio como dono de si (αὑτοῦ κρατῶν v 1099) e natildeo
conduzido como aliado (σύμμαχον v 1098) Essa declaraccedilatildeo parece realmente realccedilar na
palavra σύμμαχος a ideia de subordinaccedilatildeo Acrescenta-se a isso a forma como o heroacutei se
refere agrave participaccedilatildeo da deusa a qual pareceria desempenhar um bom suporte bom apoio (εὖ
παρέστης v 92) negando a ela a primazia do sucesso na expediccedilatildeo noturna considerando-se
em especial o teor do verbo utilizado cujo sentido etimoloacutegico seria pocircr-se ao lado
exatamente devido ao adveacuterbio πάρα usado como prefixo verbal ressaltando a natildeo
superioridade da deusa na responsabilidade das decorrentes consequecircncias Tal entendimento
corrobora a supervalorizaccedilatildeo de sua honra como jaacute vimos a ponto de ele mesmo acreditar ser
possiacutevel alcanccedilar gloacuteria sem a participaccedilatildeo dos deuses nas accedilotildees humanas No seu caso
sobretudo em fazecirc-lo sozinho Essa conduta difere completamente da relaccedilatildeo de Odisseu
perante Atena acima de tudo pelo claro contraste suscitado O Laertida trata-a da seguinte
maneira a mais amiga para mim dos deuses (φιλτάτης ἐμοὶ θεῶν v 14) amiga soberana
(φίλη δέσποινα v 38) como tambeacutem reconhecendo a superior posiccedilatildeo da deusa enfatiza
que por ela eacute dirigido (σῇ κυβερνῶμαι χερί v 35)
Esse contraste eacute evidente e significativo especialmente para marcar a reviravolta nas
accedilotildees de Aacutejax que reconhece ao mesmo tempo que suas accedilotildees ao inveacutes de lhe dar prazer pela
vinganccedila empregada desencadearam o seu sofrimento e a sua ruiacutena e que a proacutepria deusa que
apoiou os seus atos como aliada na verdade eacute sua inimiga e responsaacutevel por conduzi-lo ao
infortuacutenio atraveacutes do encorajamento para atos desmedidos e das imagens extraviadoras Dessa
forma o heroacutei reconhece explicitamente a posiccedilatildeo de Atena quanto a ele a qual o maltrata
92
ruinosamente (ὀλέθριον αἰκίζει v 402) e isso significa colocaacute-lo aleacutem de uma situaccedilatildeo de
desonra mas de lhe impor um ultraje completo como ele mesmo reconhece ser excessivo
(ὐβρίσθην v 367) Esse excesso eacute visto tambeacutem no teor do verbo maltratar que exige na
peccedila o sentido apropriado de humilhar pois retrata um ato desmedido que na perspectiva do
heroacutei soacute se sustenta nas accedilotildees de seus inimigos
Por isso Atena passa a ser vista como uma inimiga e a partir de uma carga fortemente
negativa Seu epiacuteteto como na eacutepica eacute deusa de olhos brilhantes θεὰ γλαυκώπις como por
exemplo ela eacute nomeada no Canto I da Iliacuteada no verso 206 quando desce para fazer cessar a
ira de Aquiles que se levanta contra Agamecircmnon (cf p 26-27) Mas diante da inimizade a
que se presta ela eacute nomeada pelo Telamocircnio como deusa de olhos terriacuteveis (γοργῶπις []
θεὰ v 450) pois quando o heroacutei se encontrava em situaccedilatildeo semelhante agrave do Pelida iracundo
a se erguer contra os chefes gregos a divindade lanccedilou sobre ele uma doenccedila raivosa
(λυσσώδη νόσον v 452) que acaba por conduzi-lo ao infortuacutenio Significativo eacute o vocaacutebulo
noacutesos νόσος pois expressa o sentido de doenccedila de loucura e de paixatildeo dos quais a peccedila em
questatildeo reforccedila fortemente o segundo significado mas que ainda podemos ver um eco do
uacuteltimo uma vez que sua ira retrata uma paixatildeo desmedida
Entretanto parece-nos mais salutar a relaccedilatildeo estabelecida da deusa com a visatildeo
recurso inclusive retomado de Homero Nesse episoacutedio do Canto I da Iliacuteada referido acima a
deusa como no proacutelogo da trageacutedia apresenta-se tambeacutem invisiacutevel mas aparente para o
Pelida somente (οἴῳ φαινομένη v 198) Jaacute quando do duelo singular desse heroacutei com Heitor
quando a deusa eacute referida novamente pelo epiacuteteto θεὰ γλαυκῶπις (XXII v 214) para o
Priamida se apresenta sob as feiccedilotildees de Deiacutefobo seu irmatildeo pelas quais constrange o heroacutei a
lutar decisatildeo jaacute tomada pelo mesmo em monoacutelogo Ateacute que enfim o Priamida descobre que
Atena o enganou (ἐμὲ ἐξαπάτησεν Ἀθήνη XXII v 299) Esses episoacutedios satildeo fundamentais
pois tanto Aquiles quanto Heitor parecem ser modelos retomados por Soacutefocles para compor a
situaccedilatildeo de Aacutejax Este sendo grego e estando na mesma situaccedilatildeo do primeiro natildeo tem sua
ira retida pela deusa mas pelo contraacuterio eacute enganado (ἔσφηλεν v 452) tal como o segundo
que ocupa a posiccedilatildeo de inimigo perante a divindade Bastante significativo satildeo esses verbos
ἐξαπατάω na Iliacuteada e σφάλλω em Aias cujo sentido tocam o mesmo campo semacircntico de
enganar e que no aspecto aoristo demarcam nas palavras de ambos heroacuteis o reconhecimento
da influecircncia divina de Atena em accedilotildees sobretudo ilusoacuterias que lhe causam mal permitindo
tambeacutem ao heroacutei identificar a posiccedilatildeo de inimigo diante da divindade
Essa relaccedilatildeo de proximidade desses heroacuteis o filho de Teacutelamon e o de Priacuteamo estreita-
se a partir dos estudos de Edward Brown e corrobora dessa forma a nossa comparaccedilatildeo Esse
93
autor identifica vaacuterias semelhanccedilas entre esses dois no trato com suas companheiras e filho
Da mesma forma que Tecmessa no primeiro episoacutedio exorta e suplica ao seu senhor para
mostrar os males da morte do pai da famiacutelia como por exemplo a captura da mulher como
escrava e a situaccedilatildeo do indefeso filho oacuterfatildeo assim procedeu Androcircmaca na Iliacuteada (VI 407-
65) (1965 p 118) Tambeacutem quando o Telamocircnio se dirige ao filho em despedida
desejando-lhe o melhor isso assemelha-se agraves palavras do Priamida que para o bem do filho
suplica a Zeus segundo os mesmos desejos (Ibidem p 120) A morte de ambos os heroacuteis
retratada na peccedila com a participaccedilatildeo dos presentes trocados pelos dois legitima a relaccedilatildeo
entre eles especialmente sob o vieacutes traacutegico
Com efeito o reconhecimento de sua condiccedilatildeo de inimigo da deusa faz o protagonista
da peccedila refletir sobre quais accedilotildees devem ser executadas considerando-se sobretudo seu rancor
diante daquela que ele julgava aliada mas que agora faz parte do grupo ocupado pelos
Troianos e chefes gregos Essa inversatildeo de papel tal como se fez quanto aos chefes gregos
reforccedila marcadamente o sentimento de ira do personagem expresso no fragmento disposto e
estudado acima A coacutelera eacute senatildeo oriunda da traiccedilatildeo ao heroacutei que de seu ponto de vista reflete
a surpresa das accedilotildees de seus aliados contraacuterias agrave expectativa e que do ponto de vista da
composiccedilatildeo representa uma peripeacutecia aristoteacutelica para aquela executada pela deusa no
proacutelogo Vejamos agora seu monoacutelogo que o leva agrave conclusatildeo do suiciacutedio como uacutenica saiacuteda
para sua situaccedilatildeo
[Αι] Ἀλλ εἶμι πρός τε λουτρὰ καὶ παρακτίους λειμῶνας ὡς ἂν λύμαθ ἁγνίσας ἐμὰ 655 μῆνιν βαρεῖαν ἐξαλύξωμαι θεᾶςmiddot μολών τε χῶρον ἔνθ ἂν ἀστιβῆ κίχω κρύψω τόδ ἔγχος τοὐμόν ἔχθιστον βελῶν γαίας ὀρύξας ἔνθα μή τις ὄψεταιmiddot ἀλλ αὐτὸ νὺξ ῞Αιδης τε σῳζόντων κάτω 660 ᾿Εγὼ γάρ ἐξ οὗ χειρὶ τοῦτ ἐδεξάμην παρ ῞Εκτορος δώρημα δυσμενεστάτου οὔπω τι κεδνὸν ἔσχον ᾿Αργείων πάραmiddot ἀλλ ἔστ ἀληθὴς ἡ βροτῶν παροιμίαmiddot ἐχθρῶν ἄδωρα δῶρα κοὐκ ὀνήσιμα 665 Τοιγὰρ τὸ λοιπὸν εἰσόμεσθα μὲν θεοῖς εἴκειν μαθησόμεσθα δ ᾿Ατρείδας σέβειν ῎Αρχοντές εἰσιν ὥσθ ὑπεικτέονmiddot τί μή
[] ᾿Εγὼ γὰρ εἶμ ἐκεῖσ ὅποι πορευτέονmiddot 690 ὑμεῖς δ ἃ φράζω δρᾶτε καὶ τάχ ἄν μ ἴσως πύθοισθε κεἰ νῦν δυστυχῶ σεσωσμένον25
25
[Aj] Mas vou em direccedilatildeo aos banhos e aos costeiros prados para que tendo expiado as minhas impurezas (v 655) eu escape da pesada ira da deusa E tendo ido ali onde eu encontre regiatildeo sagrada ocultarei esta
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(Aias v 654-668690-692)
Um fato extremamente importante desses versos que compotildeem o segundo episoacutedio eacute
reconhecer neles um caraacuteter reflexivo e de monoacutelogo Logo apesar de sua linguagem velada
esses representam uma exteriorizaccedilatildeo do pensamento que se dirige ao proacuteprio personagem
apesar da presenccedila de outros personagens e do coro (KNOX 1961 p 12) Retomando-se o
paralelo entre esse personagem e Heitor essa passagem se assemelharia ao monoacutelogo do
Priamida no Canto XXII da Iliacuteada quando da reflexatildeo acerca da atitude que se deve tomar
diante do iminente combate com Aquiles Associa-se validamente a esse discurso do
protagonista o valor de caracterizaccedilatildeo indireta especialmente se considerarmos as premissas
aristoteacutelicas pois certamente evidencia-se aiacute uma escolha que legitima o caraacuteter do heroacutei a
ira ou rancor que conduz suas accedilotildees de modo a evitar uma atitude que o aproxime tanto aos
deuses como aos Atridas visto que eles satildeo concebidos como inimigos
Concordamos tambeacutem com Bernard Knox quando este autor faz entender que o
caraacuteter de Aacutejax eacute semelhante ao do Pelida ou seja predisposto agrave violecircncia mas natildeo agrave
falsidade (Ibidem p 11) Assim se os guerreiros de Salamina compreendem
equivocadamente as palavras do seu senhor no sentido de entendecirc-las como uma
reconciliaccedilatildeo com os deuses e isso se faz da parte do coro natildeo por intenccedilatildeo do heroacutei e
tambeacutem por arte do autor em promover mais uma peripeacutecia na obra agora em sua parte
central
Com efeito nesse monoacutelogo podemos observar marcadamente o sentimento do
protagonista em relaccedilatildeo aos Atridas mas tambeacutem sobretudo aos deuses O rancor contra as
divindades descrito pelo coro na passagem estudada anteriormente ganha forma nas palavras
do Telamocircnio principalmente quanto agrave deusa Atena agrave sua conhecida perseguidora Pelo
proacuteprio texto compreendemos que o personagem natildeo procura se reconciliar mas fugir
escapar (ἐξαλύξωμαι) agrave fuacuteria da deusa Do ponto de vista do heroacutei esse ato promove uma
saiacuteda agrave sua condiccedilatildeo natildeo soacute redentora mas tambeacutem eventual Essa eventualidade se percebe
pelo uso da conjunccedilatildeo ὡς vinculada juntamente ao subjuntivo (MURACHCO 2007 p 690
vol 1) no caso em questatildeo do verbo ἐξαλύσκω Isso expressa uma expectativa proacutexima agrave
realidade ou seja uma consequecircncia tomada como quase certa A morte sugerida em suas
minha espada a mais inimiga das armas tento cavado a terra onde ningueacutem veraacute Mas que a noite e Hades guardem-na abaixo (v 660) Pois eu tendo recebido com a proacutepria matildeo este presente de Heitor hostiliacutessimo ainda natildeo tive algo valoroso dos Argivos Mas eacute verdadeiro o proveacuterbio dos amigos os presentes de inimigos natildeo satildeo presentes e nem uacuteteis (v 665) Por isso em relaccedilatildeo ao futuro saberemos tanto ser inferiores aos deuses quanto aprenderemos a cultuar os Atridas Satildeo governantes segundo isso se deve ceder Por que natildeo [] Pois eu vou ali aonde se deve ir (v 690) E voacutes cumpri as coisas que ordeno e talvez igualmente me reconheceis salvo se agora sucumbo
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palavras tambeacutem representa salvaccedilatildeo (σεσωσμένον) mesmo que tenha a aparecircncia de
infortuacutenio (δυστυχῶ) pois ao mesmo tempo que o afasta da ira da deusa de alguma forma o
aproxima da honra perdida e como jaacute foi dito anteriormente o ato do se suicidar eacute visto pelo
heroacutei como um ato de coragem e nobreza Por isso as palavras que expressam o suiciacutedio satildeo
polivalentes e se revestem de ambiguidade que toca o sentido religioso pelo qual preferimos
traduzir para manter um certo grau de velamento que induz o coro agrave sua maacute compreensatildeo do
monoacutelogo
O particiacutepio aoristo ἁγνίσας tem origem no verbo ἀγνίζω cujo sentido parte da noccedilatildeo
concreta de lavar e alcanccedila o significado religioso de purificar expiar consagrar e oferecer
um sacrifiacutecio Seu complemento eacute λύμαθ pode expressar tanto a sujeira fiacutesica quanto a
impureza religiosa quanto a desonra do ponto de vista social e moral Natildeo haacute como retirar
das accedilotildees do protagonista que o mesmo se dirige agraves costas e aos banhos segundo as suas
palavras procurando uma regiatildeo adequada ao ato O lugar escolhido eacute ἀστιβῆ Esse adjetivo
significa deserto isolado sobretudo natildeo pisado em sua noccedilatildeo concreta mas na religiosa por
extensatildeo de sentido significa sagrado santo exatamente por ser uma localidade natildeo tocada
pelo humano O caraacuteter religioso do ato eacute patente na ambiguidade conferida pela escolha das
palavras pois a accedilatildeo pode ser entendida tanto como de purificar a maacutecula quanto tambeacutem
como de expiar a desonra a regiatildeo adequada para o rito nesse mesmo acircmbito da
ambiguidade pode ser entendida tanto como sagrada no sentido religioso quanto isolada no
sentido de reforccedilar o suiciacutedio como parte do isolamento moral em que o heroacutei se encontra e
que ecoa de sua conduta individual e arcaica Assim parece haver uma ambiguidade no
sentido religioso soacutecio e moral pela qual ora compreendemos o ato do heroacutei como uma
reconciliaccedilatildeo com os deuses ora como uma reabilitaccedilatildeo de sua timeacute para qual natildeo podemos
vincular quaisquer noccedilotildees de subordinaccedilatildeo A morte entatildeo representa o fim dos correntes
infortuacutenios pois o heroacutei a partir disso escapa da inimizade da deusa E como natildeo haacute
submissatildeo a Atena ele tambeacutem regenera seu valor e sua honra visto que a accedilatildeo tambeacutem
sugere a expiaccedilatildeo de uma maacutecula nesse caso de uma desonra a qual se associa agrave timeacute do
Telamocircnio restabelecendo-a ao menos no seu iacutentimo A regiatildeo escolhida representa ora o
espaccedilo sagrado para um ritual religioso em desagravo agrave divindade a princiacutepio um rito
exigente de um sacrifiacutecio segundo o modelo homeacuterico ora o isolamento adequado para a
accedilatildeo heroica a bela morte sobretudo coerente na peccedila que delineia um heroacutei a agir sozinho
sempre imbuiacutedo de uma postura de gloacuteria individual eacutepica Aleacutem disso o sacrifiacutecio
demandado na esfera religiosa se revela ser na verdade o suiciacutedio do heroacutei mas natildeo para a
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submissatildeo e reconciliaccedilatildeo aos deuses pois esse ato eacute realmente o mais grave executado pelo
Telamocircnio na peccedila para legitimar o contraacuterio a sua autonomia
Certamente que a passagem gera ambiguidade se natildeo considerarmos todo o discurso
por isso o ato de expiar eacute visto pelo coro como a reconciliaccedilatildeo do heroacutei diante da deusa por
meio de um rito submetendo-se a ela Contudo essa interpretaccedilatildeo serve para a peripeacutecia mas
natildeo revela o verdadeiro teor de suas palavras pois sabemos que tal submissatildeo natildeo ocorre
como veremos com mais detalhes adiante
Nessa passagem tambeacutem noacutes observamos em que ponto se firma a hyacutebris do heroacutei
condenaacutevel pela deusa que o persegue O seu excesso como jaacute vimos tem como base a
supervalorizaccedilatildeo de sua honra sobretudo pelo fato de que apoacutes a morte de Aquiles contexto
retratado pela peccedila Aacutejax se torna o melhor dos argivos como jaacute foi pontuado Em
consequecircncia desse reconhecimento de primazia o heroacutei se recusa a se submeter
especialmente por entender que os chefes Agamecircmnon e Menelau satildeo-lhe inimigos e como
se deduz do proveacuterbio por ele citado no qual ao fim se igualam estes a Heitor os dons
provenientes dos inimigos natildeo satildeo presentes e assim nada oriundo deles pode representar
benesses Na visatildeo do personagem segundo o pensamento de Knox o fragmento retrata o
reconhecimento de uma autoridade mais dura do que realmente se mostra (Ibidem p 16) por
isso a hipeacuterbole em dizer que se deve venerar os Atridas e natildeo como seria mais adequado
ceder aos Atridas
Contudo esse excesso quanto agrave supervalorizaccedilatildeo de sua honra tambeacutem interfere na
sua relaccedilatildeo com os deuses uma vez que por duas vezes nos versos 761 e 777 o mensageiro
traz as palavras de Calcas o adivinho dos gregos justificando a ira da deusa quanto ao
protagonista pois este ao natildeo reconhecer o poder dos deuses nas accedilotildees dos homens negando-
lhes participaccedilatildeo em seu triunfo natildeo pensa e natildeo se modera como um homem (οὐ κατ`
ἄντρωπον φρονῶν v 777) Para noacutes entatildeo aleacutem do que diz Knox a hipeacuterbole potildee em
evidecircncia a sua perspectiva diante da instabilidade do mundo que levada ao extremo segundo
sua iacutendole predisposta ao excesso faz trocar de lugar Atridas e deuses de forma proposital
Ao aplicar tal situaccedilatildeo a um futuro τὸ λοιπὸν no qual a realidade tem regras semelhantes agraves
do presente o heroacutei tem como objetivo reconhececirc-la como intoleraacutevel e insustentaacutevel para os
seus princiacutepios Logo essa instabilidade exagerada marca ao menos a impossibilidade do
Telamocircnio viver segundo essas premissas e reforccedila certamente sua disposiccedilatildeo em refutar se
dobrar a uma realidade como tal Com efeito a inversatildeo de papeacuteis entre deuses e Atridas tal
como estaacute parece legitimar uma ironia Quando o heroacutei reconhece que tanto deuses quanto
Atridas satildeo chefes devendo a eles ceder parece-nos que quer dizer exatamente o contraacuterio
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que estaacute resoluto em natildeo se submeter pois a posiccedilatildeo deles eacute instaacutevel tal qual a da amizade e
da inimizade Isso para noacutes fica mais claro pelo uso do futuro de voz meacutedia dos verbos
utilizados26 εἰσόμεσθα e μαθησόμεσθα que representam atraveacutes da voz meacutedia um futuro
promissivo ou seja correspondem ao envolvimento do sujeito com a accedilatildeo que eacute antecipada
exatamente pelo compromisso do agente em realizaacute-la (Ibidem p 457) Logo a disposiccedilatildeo a
um compromisso a uma promessa que logicamente natildeo seraacute executada evidencia senatildeo uma
ironia o reforccedilo em afirmar algo pelo seu oposto A hipeacuterbole assim parece acentuar essa
ironia tornando-a inclusive ao nosso ver uma zombaria um escaacuternio acerca da condiccedilatildeo
instaacutevel do mundo e por extensatildeo da proacutepria natureza divina e humana
O verso 677 que apresenta uma pergunta retoacuterica ldquoe noacutes como natildeo aprenderemos a
moderar-nosrdquo (ἡμεῖς δὲ πῶς οὐ γνωσόμεσθα σωφρονεῖν) corrobora tal pensamento pois jaacute
nos conduz agrave resposta negativa devido a duas consideraccedilotildees A primeira porque como antes se
faz atraveacutes de um futuro promissivo tambeacutem de voz meacutedia ou seja revela o compromisso
que natildeo seraacute cumprido A segunda como aponta Knox (Ibidem p 17) eacute o fato de que o
verbo σωφρονεῖν e muitas das palavras oriundas dessa raiz descrevem na peccedila em questatildeo a
atitude proacutepria dos subordinados ou inferiores Assim Aacutejax evidenciando esse sentido impele
Tecmessa a esse comportamento (σωφρονεῖν v 586) Menelau ao Telamocircnio (σωφρόνως v
1075) Agamecircmnon a Teucro (σωφρονήσεις v 1259) e Atena aos homens (σώφρονας v
132) Assim essa moderaccedilatildeo referida pelo heroacutei ecoa senatildeo como uma espeacutecie de submissatildeo
para o qual se mostra extremamente odiosa sobretudo quando em relaccedilatildeo a quem lhe satildeo
inimigos Podemos deduzir disso que o heroacutei de iacutendole guerreira e arcaica parece igualar essa
submissatildeo religiosa poliacutetica ou social agrave esfera beacutelica ou seja agrave rendiccedilatildeo Dessa forma se
para ele mesmo ela natildeo eacute possiacutevel quanto agrave guerra uma vez que o valor estaacute na bela morte e
natildeo em uma condiccedilatildeo de escravidatildeo a submissatildeo seja de qualquer acircmbito representa o
mesmo uma rendiccedilatildeo sobretudo ao consideraacute-la em relaccedilatildeo aos deuses e Atridas que lhe
satildeo inimigos
Com efeito o suiciacutedio representa a fuga a essa submissatildeo agrave qual o mundo o aprisiona
A ironia entatildeo parece intensificar essa refutaccedilatildeo das regras vigentes pois do mesmo modo
26
Segundo Murachco o tempo futuro da liacutengua grega natildeo eacute verdadeiramente um tempo mas uma eventualidade uma antecipaccedilatildeo sobretudo porque corresponde a um desejo em certo grau de intensidade que justifica a projeccedilatildeo do ato verbal O autor prossegue evidenciando sobretudo a forma meacutedia de muitos futuros de verbos ativos a qual reflete o envolvimento do sujeito no ato verbal Essa noccedilatildeo semacircntica implica uma promessa um compromisso por parte do agente expressando-se de alguma maneira uma certeza na antecipaccedilatildeo o que justifica o uso do indicativo (MURACHCO 2007 p 456-457) Esse eacute o caso dos verbos εἰσόμεσθα (do verbo εἴδω cujo futuro eacute εἴσομαι) μαθησόμεσθα (do verbo μανθάνω cujo futuro eacute μαθήσομαι) e como veremos a seguir o verbo γνωσόμεσθα (do verbo γιγνώσκω cujo futuro eacute γνώσομαι)
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que suas accedilotildees escapam e por isso zombam dessa condiccedilatildeo suas palavras parecem tomar o
mesmo caminho Logo tanto o falso compromisso assumido quanto a sacralidade dos
vocaacutebulos que revelam seu suiciacutedio promovem senatildeo sua uacuteltima desmedida em vida
sobretudo dramatizada tal qual a do proacutelogo em oposiccedilatildeo agravequelas referidas em analepse pelo
mensageiro no terceiro episoacutedio as quais juntas expotildeem o caraacuteter do personagem e sua
coerente unidade Todos esses atos excessivos se mostram assim agressivos e violentos agrave
posiccedilatildeo exercida pela divindade e pelos Atridas na peccedila
Em decorrecircncia dessa interpretaccedilatildeo a gravidade das accedilotildees do protagonista sobretudo
quanto agrave sua retoacuterica igualmente hostil mais do que justificar a sua escolha serve-nos de
apoio e contribuem para a caracterizaccedilatildeo iracunda do heroacutei que natildeo se esquece das
hostilidades dos amigos que se tornaram inimigos Toda ira e todo oacutedio se justificam tantos
nas palavras quanto nas accedilotildees e nelas podem ser observadas Com efeito a ira do
personagem contra aqueles que lhe causam mal tambeacutem o move a tomar a decisatildeo definitiva
de suicidar-se pois o heroacutei ocupando a posiccedilatildeo de inimigo para os gregos e os deuses uma
vez que reagiu contra eles excessivamente de forma que se justifica tal situaccedilatildeo e estando
incapaz de retornar agrave sua paacutetria pela honra inferior agrave do pai tambeacutem age considerando evitar
qualquer forma de agradar os Atridas e de se dobrar aos deuses que lhe satildeo hostis Dentro do
acircmbito da causalidade interna do enredo esse sentimento se mostra como um dos elementos
fundamentais na composiccedilatildeo da obra e de sua caracterizaccedilatildeo Por um lado ela impele o
personagem a evitar o ponto mais alto de sua gloacuteria a bela morte em um combate singular
com um igual e por outro permite em contrapartida uma accedilatildeo mais traacutegica na estrutura da
peccedila o suiciacutedio uma vez que esta uacuteltima accedilatildeo natildeo fornece a fuga agrave submissatildeo pois os
Atridas mesmo que por um tempo como chefes ainda impedem seus ritos fuacutenebres
Com efeito assim como se pontuou no capiacutetulo passado eacute necessaacuterio entender a
relaccedilatildeo entre ira e loucura segundo o que reconhecemos ser pertinente agrave trageacutedia
Anteriormente distinguimos a ira choacutelos da loucura maniacutea (μανία) ou da doenccedila noacutesos
(νόσος) uma vez que estas uacuteltimas satildeo extremamente recorrentes em Aias sobretudo usado
de forma conjunta com o reforccedilo de vaacuterios vocaacutebulos deles derivados Para Bernard Knox a
loucura consiste somente no extravio criado sobre os olhos fazendo o heroacutei ver homens no
lugar de animais e o encorajamento da deusa aos atos sobre os chefes como o assassinato e a
tortura segundo o autor representa um impulso a uma vontade jaacute em andamento quando em
sua sanidade (1961 p 5) Flaacutevio Ribeiro de Oliveira endossa essa perspectiva acrescentando
que o Telamocircnio ldquonatildeo tem sua natureza modificada quando arquiteta e executa a carnificina
noturna para o autor a violecircncia com que Aacutejax age eacute proacutepria do caraacuteter do heroacutei magniacutefico e
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brutal o distuacuterbio visual que sofre e sua doenccedila satildeo uma uacutenica coisa (apud HUumlBSCHER
2011 p 27) Em reforccedilo a isso a perspectiva de Agatha Bacelar se mostra importante pois
para ela a vontade do protagonista retrata senatildeo a predisposiccedilatildeo dele mesmo ao excesso
configurando um estado proacuteprio e caracteriacutestico do desmedido ὑβριστής que ao seu ver
constitui a dicotomia presente na obra representando a natildeo civilizaccedilatildeo o selvagem o baacuterbaro
em oposiccedilatildeo ao civilizado e por isso moderado composto da σωφροσύνη (2006 p 236-238)
Eacute visiacutevel e clara a disposiccedilatildeo do heroacutei agrave desmesura sobretudo como bem pontua
Bacelar a partir do que diz Aristoacuteteles no primeiro livro da Retoacuterica (1274a 13) ldquoὑβρις
conota προαίρεσις uma decisatildeo que instaura um comprometimento eacutetico entre o agente e a
accedilatildeo uma vez que προαίρεσις depende de uma ἠθικὴ ἕξις de uma disposiccedilatildeo permanente de
caraacuteterrdquo (2006 p 235) Contudo isso contradiz a natureza do heroacutei se percebemos as
condiccedilotildees em que essa violecircncia se manifesta em uma accedilatildeo noturna e sorrateira
(HUumlBSCHER 2011 p 27) tanto se retomarmos a tradiccedilatildeo homeacuterica agrave qual Soacutefocles se
refere quanto se utilizarmos os indiacutecios textuais da proacutepria obra que isso reiteram
Em relaccedilatildeo agraves epopeias homeacutericas podemos citar dois exemplos O primeiro referido
tanto por Huumlbster (Ibidem p 27-28) quanto por Stanford (1978 p 189) nos estudos desta
peccedila corresponde aos versos 645 a 647 do Canto XVII da Iliacuteada que apresentam o heroacutei em
conjunto com os Aqueus cobertos por uma nuvem escura lanccedilada por Zeus para permitir o
avanccedilo troiano na batalha Neste momento o Telamocircnio roga por luz e eacute atendido O fato
importante eacute perceber que neste fragmento o proacuteprio heroacutei reconhece o caraacuteter auspicioso da
luz (Ibidem p 189-190) para o reconhecimento da virtude guerreira pois a Zeus ele a pede
(φάει v 647) suspeitando que talvez sua morte se aproximε O outro momento eacute o Canto
VII versos 273-293 no qual ele se encontra em vantagem contra Heitor em combate singular
cujo fim sem resoluccedilatildeo se faz pelo reconhecimento da chegada da noite (νύξ v 282 293)
Esta em oposiccedilatildeo ao dia de forma coerente com a passagem anterior eacute vista sobretudo como
inadequada ou mesmo nefasta para os combates Com efeito mesmo que excessivo e
violento um Aacutejax noturno contradiz a iacutendole agrave qual a audiecircncia estaria acostumada como eacute o
caso recorrente da peccedila da qual podemos ver vaacuterias referecircncias agrave essa disposiccedilatildeo ldquoagrave noiterdquo
(νύκτωρ v 57) nas palavras de Atena ldquoagrave noiterdquo (νυκτός v 141) nas do coro ldquoAacutejax
noturnordquo (νύκτερος Αἴας v 217) e ldquoagrave noiterdquo (νυκτός v 285) nas de Tecmessa ou na
significativa invocaccedilatildeo do Telamocircnio que chama para si a escuridatildeo diante da situaccedilatildeo em
que se encontra ldquotrevas minha luz Eacuterebo para mim o mais luminosordquo (σκότος ἐμὸν φάος
ἕρεβος ὦ φαεννότατον v 394-395)
100
Essa contradiccedilatildeo eacute sobretudo afirmada na peccedila natildeo especificamente ao ato noturno
mas ao comportamento em geral do personagem Ao menos dois exemplos podemos tirar da
trageacutedia em questatildeo que retratam o reconhecimento dos proacuteximos ao heroacutei que comprovam
esse fato Um deles eacute expresso pelo coro em fragmento jaacute visto neste capiacutetulo Os soldados de
Salamina afirmam que seu senhor ldquojaacute natildeo firme na natural iacutendole encontra-se desta afastadordquo
(οὐκέτι συντρόφοις ὀργαῖς ἔμπεδος ἀλλ ἐκτὸς ὁμιλεῖ v 639-640) Ou seja o heroacutei jaacute natildeo
executa accedilotildees conforme o costumeiro caraacuteter Sua cativa reforccedilando tal premissa diz que
῾Ο δ εὐθὺς ἐξῴμωξεν οἰμωγὰς λυγράς ἃς οὔποτ αὐτοῦ πρόσθεν εἰσήκουσ ἐγώmiddot πρὸς γὰρ κακοῦ τε καὶ βαρυψύχου γόους τοιούσδ ἀεί ποτ ἀνδρὸς ἐξηγεῖτ ἔχεινmiddot27 320
(Aias v 317-320)
Nessa passagem a cativa natildeo reconhece os atos do senhor que chora copiosamente
Segundo a iacutendole do heroacutei este julgava tal ato como proacuteprio de homem mau e abatido
ldquoκακοῦ τε καὶ βαρυψύχου [] ἀνδρὸςrdquo algo estranho ao seu comportamento por isso
Tecmessa revela ao coro a incoerecircncia daquela atitude vista como ineacutedita e assim grave
Natildeo sabendo como agir ela convoca os amigos a ajudaacute-la sobretudo porque estaacute surpresa com
a reaccedilatildeo de Aacutejax que foge completamente ao costume Uma informaccedilatildeo relevante para esse
estudo estaacute em um dos adjetivos vinculados ao substantivo homem βαρύψυχος em cujo
radical estaacute presente o termo βάρυς que significa pesado componente do particiacutepio que
descreve o heroacutei nas palavras de Atena pesado de ira (χόλῳ βαρυνθεὶς v 41)
Esse estado do heroacutei grave diante das circunstacircncias dos eventos da peccedila indica que
mesmo lhe sendo natural o excesso e a disposiccedilatildeo agrave hyacutebris seu comportamento natildeo eacute o
costumeiro seja o agente noturno que contradiz o da tradiccedilatildeo que invoca a luz seja aquele
que geme chora e arranca os cabelos contrariando o que era esperado pelos seus proacuteximos A
partir disso preferimos concordar com Bruno Huumlbscher que observa a loucura do heroacutei
lanccedilada por Atena natildeo consistir apenas em fazer o Telamocircnio ver nos animais do rebanho
grego a figura dos heroacuteis Ou ao menos reconhecer uma participaccedilatildeo maior da deusa aleacutem do
engano visual Assim pode-se dizer que a puniccedilatildeo divina ao personagem natildeo eacute direta pois
isso simplificaria a trama deixando-a menos traacutegica e inclusive enfraquecendo a questatildeo eacutetica
essencial agrave peccedila Dessa forma a puniccedilatildeo mais provavelmente se configura no acircmbito do
conjunto da intervenccedilatildeo divina e da vontade humana da mesma maneira como na composiccedilatildeo 27
E ele imediatamente gemeu lamentos tristes os quais eu nunca outrora ouvi dele pois ao lado de homem mau e abatido sempre explicava tais lamentos se deter (v 320)
101
homeacuterica as motivaccedilotildees divinas e humanas satildeo indissoluacuteveis uma vez que se daacute como
resposta ao heroacutei que inserido nesse paradigma beacutelico homeacuterico de sujeiccedilatildeo agrave divindade
rejeita a ajuda divina algo pensaacutevel apenas no seacuteculo V evidenciando-se um excesso de
caraacuteter que eacute proacuteprio do personagem de Soacutefocles (2011 p 39-40)
A ira do heroacutei entatildeo reitera o aspecto humano desse composto duplo representando
sobretudo a desmedida inerente ao personagem natural a ele pois revela ser a reaccedilatildeo
imediata ao julgamento das armas que potildee em evidecircncia a sobrevalorizaccedilatildeo de sua honra em
comparaccedilatildeo com a alheia No outro extremo o extravio visual eacute proacuteprio da accedilatildeo divina
Contudo a coacutelera do personagem nos parece ser a base sobre a qual Atena age confundindo-
se humano e divino nos atos do heroacutei fazendo-se gerar o excesso maacuteximo do personagem a
loucura que segundo Segal para os gregos consistia na negaccedilatildeo da civilizaccedilatildeo (apud
Huumlbscher p 27-28) De base humana e divina essa loucura reiterando o caraacuteter selvagem e
baacuterbaro do personagem faacute-lo ultrapassar os limites da comunidade e da cidade por um lado
rompendo com seus valores heroicos uma vez que age fora de sua iacutendole por outro
rompendo com a sociedade a que pertence uma vez que se entrega agrave carnificina dos
conterracircneos sobretudo se deleitando com tais atos
De forma significativa o vocaacutebulo loucura μανία e seus derivados satildeo tatildeo frequentes
quanto o vocaacutebulo doenccedila νόσος Este cujo sentido mais concreto eacute enfermidade abrange
tambeacutem o significado de loucura ou paixatildeo esta uacuteltima quando vinculada agrave ideia descontrole
emocional Por isso eacute relevante para noacutes quando Aacutejax se refere a uma atuaccedilatildeo dupla da deusa
que deixa tanto a sua visatildeo (ὄμμα v 447) quanto os seus pensamentos (φρένες v 447)
desencaminhados (διάστροφοι v 447) por ter sido ele proacuteprio a receber da deusa essa doenccedila
raivosa (λυσσώδη νόσον v 452) Ora visatildeo e pensamento parecem estar em campos
diferentes e distintos especialmente se reconhecermos no vocaacutebulo φρήν a ideia de juiacutezo
vinculado agrave moderaccedilatildeo pois sabemos o papel essencial de sentido em particular agrave trageacutedia em
questatildeo E essa doenccedila raivosa parece senatildeo retomar a ideia de afastamento da temperanccedila
aleacutem de sugerir atuar no mesmo campo semacircntico da ira χόλος mas de uma forma mais
intensa
Acrescente-se a isso o fato de a proacutepria divindade se expressar dessa forma ldquoeu o
heroacutei que se extravia em louca doenccedila excitava lanccedilava-o em direccedilatildeo a maacutes astuacutecias (᾿Εγὼ
δὲ φοιτῶντ ἄνδρα μανιάσιν νόσοις ὤτρυνον εἰσέβαλλον εἰς ἕρκη κακά v 59-60) Nesses
versos podemos ver claramente que a participaccedilatildeo da deusa vai aleacutem do engano visual pois
ela mesma diante de Odisseu afirma excitar ὤτρυνον e impelir εἰσέβαλλον o heroacutei
sobretudo parece-nos a insuflar seu acircnimo Um vocaacutebulo desse fragmento eacute significativo em
102
especial para vermos a accedilatildeo sobre a iacutendole do heroacutei ἕρκη Esse eacute o mesmo termo que compotildee
o epiacuteteto homeacuterico do heroacutei muralha dos Aqueus ἕρκος Ἀχαιῶν Esse vocaacutebulo abrange o
significado como jaacute dissemos de cercado muro defesa mas tambeacutem por definir um ardil em
prol da proteccedilatildeo acaba por tambeacutem se estender ao sentido de astuacutecia Irocircnico por parte da
deusa que se deleita com o infortuacutenio do heroacutei e provavelmente tambeacutem pelo uso da palavra
inserida em um contexto diferente Significativamente esse impulso em direccedilatildeo a uma astuacutecia
justifica de forma clara as accedilotildees de um Aacutejax noturno pois retrata senatildeo o episoacutedio da
Doloneia no Canto X da Iliacuteada no qual Odisseu e Diomedes caccedilam e aprisionam Doacutelon
espiatildeo troiano adquirindo muitas informaccedilotildees sobre as tropas inimigas O sucesso dessa
expediccedilatildeo noturna se daacute pela assistecircncia de Atena a quem os heroacuteis requerem ajuda e
prometem sacrifiacutecios Assim na peccedila a deusa diante do Laertida apresenta as condiccedilotildees da
expediccedilatildeo do Telamocircnio que astuto δόλιος (v 47) age agrave noite νύκτωρ (v 47) Se eacute a
proacutepria deusa que o impele a maacutes astuacutecias validamente podemos deduzir sua participaccedilatildeo no
planejamento da expediccedilatildeo do heroacutei sobretudo porque representa por um lado uma
repeticcedilatildeo da accedilatildeo bem-sucedida de Odisseu o qual ela mesma auxiliou em episoacutedio anterior
cronologicamente ao proacutelogo e por outro tambeacutem representa os domiacutenios e atributos que
satildeo conferidos a ela como por exemplo a inteligecircncia que no acircmbito militar reflete a
estrateacutegia astuta e perspicaz fundamental agrave primeira cena da peccedila
Em relaccedilatildeo agrave bestialidade corrobora-se a tortura dos animais em especial a dois
carneiros dos quais de um corta a cabeccedila e a liacutengua e de outro o corpo prende agrave coluna da
tenda o castigando com accediloites claramente representando Odisseu e Agamecircmnon Com
efeito Tecmessa reconhece nessas accedilotildees sobretudo nos insultos vis do heroacutei a origem divina
pois alega ldquotais coisas uma deidade e natildeo algueacutem dos homens ensinourdquo (ἃ δαίμων κοὐδεὶς
ἀνδρῶν ἐδίδαξεν v 243-244) Ela mesma reconhece uma presenccedila na tenda durante os atos
crueacuteis do heroacutei mas natildeo vecirc a deusa assim como nenhum outro percebendo-a como uma
sombra (σκιᾷ v 301) com quem Aacutejax por vezes dialoga
Todas essas explanaccedilotildees parecem nos conduzir ao entendimento dessa loucura μανία
ou doenccedila νόσος recorrentes na obra segundo o entendimento de Bruno Huumlbscher ou seja
como uma puniccedilatildeo divina indireta uma vez que confunde atos divinos e humanos levando o
personagem a executar accedilotildees desejadas passionalmente por ele (2011 p 39-40) Dessa forma
a ira parece reforccedilar o aspecto humano na accedilatildeo que causa o infortuacutenio do heroacutei segundo as
premissas aristoteacutelicas algo essencial para tornar a obra mais traacutegica e consequentemente
mais bela E quando agregada agrave participaccedilatildeo divina de Atena o que de forma alguma retira a
responsabilidade do heroacutei sobre seus atos e as decorrentes consequecircncias todo esse conjunto
103
parece retomar de maneira inversa as premissas do pensamento homeacuterico fortemente presente
na peccedila de Soacutefocles ressignificando-as ao contexto da trageacutedia Se na Iliacuteada o ato heroico
necessita da coparticipaccedilatildeo divina em um contexto em que esse entendimento eacute vaacutelido como
em Aias a ruiacutena heroica deve pressupor paralelamente tambeacutem essa mesma coparticipaccedilatildeo
Logo na loacutegica interna da obra para o infortuacutenio ou para a gloacuteria do personagem de modelo
arcaico e guerreiro haacute a intervenccedilatildeo divina O kyacutedos de origem divina necessaacuterio para heroacutei
eacutepico se transfigura na maniacutea tambeacutem de origem divina para Aacutejax induzindo-o a executar
atos que acarretam sua ruiacutena atraveacutes de um erro terriacutevel (ἄτῃ [] κακῆ v 123) segundo a
forma como tal conceito de erro eacute concebida (cf p 30-31) e cuja participaccedilatildeo divina consiste
tambeacutem mas natildeo apenas em extravio visual Essa nos parece ser sobretudo a relaccedilatildeo da ira
com a loucura a reiteraccedilatildeo do aspecto humano nos atos que acarretam o infortuacutenio do
protagonista de tal forma que a obra ressalta o papel fundamental desse sentimento na
composiccedilatildeo da trama da trageacutedia da maneira como tentamos mostrar acima
Com efeito podemos resumir o papel da ira do heroacutei e a sua estruturaccedilatildeo na
composiccedilatildeo da trama da peccedila em questatildeo Faccedilamos isso a partir de quatro perspectivas Duas
quanto agrave noccedilatildeo de causalidade do enredo interna e externa E outras duas do ponto de vista da
caracterizaccedilatildeo direta e indireta
Em relaccedilatildeo agraves duas primeiras esse sentimento que caracteriza o personagem no iniacutecio
da peccedila eacute retomado ao fim da mesma como jaacute vimos ambas de forma evidente
respectivamente nas palavras da deusa Atena e nas de seu irmatildeo Teucro ensejando um ciclo
perfeito que demarca a permanecircncia da ira em toda a extensatildeo da obra Mas se esse mesmo
estado do personagem estava configurado in medias res remetendo-se a accedilotildees anteriores ao
episoacutedio retratado na trageacutedia atraveacutes de analepses nas quais esse sentimento impulsiona as
accedilotildees do seu detentor o mesmo acontece pois assim se sugere agraves accedilotildees que lhe satildeo
posteriores uma vez que o ecircxodo permite compreender tal possibilidade Isso significa dizer
que Soacutefocles por um lado demarca os limites da atuaccedilatildeo desse estado do heroacutei dentro da
peccedila e por outro estende seu papel aleacutem das fronteiras da trageacutedia sobretudo e ao mesmo
tempo realinhando seu episoacutedio com a versatildeo da tradiccedilatildeo homeacuterica presente na Odisseia
como vimos no capiacutetulo anterior Infere-se dessa forma uma ira capaz de persistir no heroacutei
impelindo sua alma no mundo dos mortos a natildeo se reconciliar com Odisseu e assim sempre
a relembrar a sua origem a desonra pela pretericcedilatildeo de seu valor crido como indubitaacutevel
Logo o autor impotildee agrave ira do heroacutei a prerrogativa de uma causalidade tanto interna quanto
externa aos episoacutedios presentes ou referidos pela obra
104
Em relaccedilatildeo agraves duas uacuteltimas perspectivas agraves caracterizaccedilotildees direta e indireta ambas
podem ser contempladas no estilo de Soacutefocles Quanto agrave direta que representa um
procedimento estaacutetico constituiacutedo essencialmente de descriccedilotildees cuja finalidade de
caracterizaccedilatildeo eacute evidente recorremos agraves duas menccedilotildees expliacutecitas agrave ira choacutelos χόλος das
quais partiram nossas anaacutelises uma em relaccedilatildeo aos chefes gregos marcadamente Odisseu e os
Atridas outra em relaccedilatildeo aos deuses em especial a divindade Atena Jaacute quanto agrave indireta
que corresponde a um processo dinacircmico reconhecido nos discursos e nas suas accedilotildees
significativos do heroacutei elencamos os dois discursos dos heroacuteis estudados por noacutes pelos quais
demonstra-se a ira do personagem e pelos quais essa ira se confirma no suiciacutedio cometido
Entendemos por significativos segundo os criteacuterios aristoteacutelicos as accedilotildees e os discursos que
manifestem uma escolha e assim evidenciando um caraacuteter (Poeacutetica 1454a 17-19) Como a
decisatildeo de se suicidar corresponde agrave reflexatildeo de Aacutejax sobre sua situaccedilatildeo disso se levando em
conta a impossibilidade de se reconciliar com deuses e chefes gregos e de tomar alguma accedilatildeo
que agrade estes e que evite a perseguiccedilatildeo daqueles especialmente influenciado pela ira
contra esses vistos como responsaacuteveis pela situaccedilatildeo de desonra completa em que se encontra
os discursos estudados correspondem a um efetivo caraacuteter do heroacutei acerca desse sentimento
que o acomete E o ato em si confirma tal caracterizaccedilatildeo
Tentamos nessa seccedilatildeo a partir de tudo o que foi explanado revelar como as noccedilotildees
de virtude e de ira se apresentam como chaves de leitura essenciais para o entendimento mais
profundo da peccedila sobretudo detalhando como a composiccedilatildeo da trama necessita dessa
caracterizaccedilatildeo do heroacutei para alcanccedilar seus vaacuterios objetivos
2 2 A VERSAtildeO DE OVIacuteDIO
Nos propomos aqui a analisar o Livro XIII da obra que descrevem o episoacutedio da
metamorfose do heroacutei grego Aacutejax A anaacutelise estaraacute alicerccedilada em alguns traccedilos fundamentais
da caracterizaccedilatildeo desse personagem tanto aquelas marcas mais correntes provenientes da
tradiccedilatildeo arcaica do mito desse heroacutei quanto especialmente do episoacutedio especiacutefico da disputa
pelas armas de Aquiles
Dessa forma o estudo que pretendemos dispor se restringe a um fragmento
delimitado os primeiros 398 versos do livro XIII que descrevem o episoacutedio da disputa entre o
Telamocircnio e Ulisses pelas armas do Pelida o consequente suiciacutedio do primeiro e sua
metamorfose Poreacutem a anaacutelise que propomos bem como os criteacuterios adotados para apreciaccedilatildeo
105
estatildeo submissos a duas caracteriacutesticas essenciais ao heroacutei a virtude e a ira na caracterizaccedilatildeo
de Aacutejax Ambas tecircm igual papel estrutural no episoacutedio configurando-se como chaves de
leitura para a compreensatildeo da organicidade do texto Assim essa caracterizaccedilatildeo em que
consiste esta seccedilatildeo trata da forma pela qual Oviacutedio constroacutei esse personagem dando-lhe
profundidade e significado diante do contexto do episoacutedio Dessa forma em nossa anaacutelise
observaremos os fragmentos do texto que evidenciem esses traccedilos caracteriacutesticos do
Telamocircnio por meio de indiacutecios textuais capazes de demonstrar a funccedilatildeo estrutural dessas
subcategorias escolhidas para o episoacutedio utilizando-se tambeacutem da tipologia que distingue
caracterizaccedilatildeo direta e indireta de acordo com o que jaacute apresentamos na seccedilatildeo anterior
Tentaremos mostrar como o texto articula esses elementos de forma a fundamentar
sua estrutura tornando-se assim imprescindiacuteveis ao entendimento mais profundo do caraacuteter
literaacuterio desse episoacutedio da obra A partir dos resultados obtidos ao fim desta seccedilatildeo poderemos
fazer uma leitura intertextual no proacuteximo capiacutetulo a fim de observar semelhanccedilas e diferenccedilas
entre as obras de Oviacutedio e Soacutefocles componentes do corpus desse estudo evidenciando ateacute
que ponto aquele se utiliza das informaccedilotildees deste e ateacute que ponto se fornece uma nova leitura
agrave obra de seu predecessor sempre tendo como ponto de confronto os elementos desdobrados
da caracterizaccedilatildeo a qual mencionamos
Devido agrave perspectiva adotada e visto que nossa anaacutelise recairaacute apenas sobre alguns
versos dispostos no livro XIII faz-se necessaacuteria a estruturaccedilatildeo do episoacutedio em questatildeo de
modo a contextualizar em que passagens estatildeo inseridos os fragmentos escolhidos facilitando
a compreensatildeo do que seraacute apresentado Cabe-nos ressaltar que em nossa apreciaccedilatildeo do
texto recorreremos a configuraccedilatildeo apresentada abaixo Assim dispomos a composiccedilatildeo do
episoacutedio para uma clara apreensatildeo de sua estrutura
1 Descriccedilatildeo de Aacutejax (v 1 ndash 5) o narrador descreve o heroacutei no momento que antecede
seu discurso A partir de uma perspectiva externa essa passagem nos fornece informaccedilatildeo
sobre a construccedilatildeo do personagem dispondo-o iracundo antes mesmo de comeccedilar o seu
discurso
2 Discurso de Aacutejax (v 5 ndash 122) dada pelo narrador a voz ao personagem o
personagem faz um discurso de si e de seu adversaacuterio A composiccedilatildeo do discurso nos
permitiraacute fundamentar a caracterizaccedilatildeo do personagem pois nos revela seu comportamento e
seus princiacutepios A partir de um jogo de contrastes com Ulisses o heroacutei dispotildee sua linhagem e
suas accedilotildees de modo que a audiecircncia veja nele sua virtude guerreira tal qual ele proacuteprio a
enxerga extremamente preponderante agrave de seu adversaacuterio Dessa forma ele revela uma
tendecircncia a sobrevalorizar o meacuterito de sua virtude
106
3 Descriccedilatildeo de Ulisses (v 123 ndash 127) o narrador descreve Ulisses antes de proferir
seu discurso Tambeacutem a partir de uma perspectiva externa esse trecho nos fornece
informaccedilatildeo sobre o caraacuteter do personagem especialmente retomando caracterizaccedilotildees
homeacutericas do personagem
4 Discurso de Ulisses (128 ndash 381) dada pelo narrador a voz ao personagem esse
heroacutei apresenta contra-argumentos descontruindo o discurso de seu adversaacuterio Haacute ainda
pouca interferecircncia do narrador Com efeito o Laertida dispotildee seus feitos natildeo embasados
meramente na noccedilatildeo de virtude guerreira mas sobretudo fundamentados em uma causalidade
em que os seus resultados obtidos satildeo imprescindiacuteveis para a derrota de Troia ou seja
reforccedilando-se e reiterando que as suas accedilotildees satildeo essenciais e determinantes para vitoacuteria dos
gregos
5 Desfecho sumarizado (v 381 ndash 398) narraccedilatildeo final do episoacutedio que descreve em
formato de epiacutelogo a fuacuteria insuflada do Telamocircnio as suas uacuteltimas palavras o seu suiciacutedio e
a sua metamorfose Mais um trecho importante para fundamentar o caraacuteter do personagem
dentro da obra pois para esse ponto convergem em desfecho todos os elementos antecipados
e desenvolvidos acerca das categorias estudadas
Como se pode ver a proacutepria estruturaccedilatildeo do episoacutedio da disputa entre esses dois
gregos presente no livro XIII de Metamorfoses aponta a predominacircncia do discurso direto
dos personagens Contudo nossa anaacutelise equalizaraacute versos que representam a voz do narrador
e o discurso direto do personagem uma vez que esses dois guardam relevantes indiacutecios
textuais para o estudo a que nos propomos Desses dois modos narrativos desdobramos
sobretudo a caracterizaccedilatildeo direta e indireta respectivamente em que nesta uacuteltima seraacute
fundamental a autocaracterizaratildeo do Telamocircnio por apresentar seu ponto de vista
psicoloacutegico ideoloacutegico cultural etc
Quanto aos fragmentos correspondentes ao discurso direto o segmento que seraacute
predominantemente contemplado seraacute o discurso de Aacutejax pois ao nosso ver essa passagem
guarda mais indiacutecios textuais significativos para o estudo das noccedilotildees de virtude e ira desse
personagem e mostram sua perspectiva de mundo e de valor guerreiro Obviamente que
usaremos em nossa anaacutelise versos natildeo inseridos nesse corpus natildeo excluindo assim o longo
discurso de Ulisses imprescindiacutevel para uma melhor compreensatildeo do que seraacute contemplado
mas ainda de uso mais secundaacuterio e instrumental
Quanto aos fragmentos correspondentes agrave voz do narrador externo nos debruccedilaremos
especialmente na descriccedilatildeo de Aacutejax e no desfecho sumarizado pois como poderemos ver ao
107
longo da anaacutelise essas passagens sintetizam a unidade textual desenvolvida sobre as duas
caracteriacutesticas a ser apreciadas no estudo do personagem
Conveacutem agora iniciarmos a anaacutelise Primeiramente estudaremos a categoria virtude e
depois passaremos agrave ira tal qual fizemos na seccedilatildeo anterior comeccedilando pelos fragmentos
correspondentes ao narrador externo devido ao seu aspecto sintetizador de todo o episoacutedio
Ainda durante esse momento seraacute possiacutevel apresentar outros fragmentos isolados mesmo do
discurso direto como contraponto e para confirmar determinadas anaacutelises Depois
prosseguiremos com o estudo das categorias nos fragmentos correspondentes ao discurso
direto dos personagens especialmente o do heroacutei de Salamina como jaacute foi referido
anteriormente por retratar mais propriamente a caracterizaccedilatildeo indireta Por fim
demonstraremos como essas duas categorias se entrelaccedilam para alcanccedilar uma unidade textual
proacutepria para o episoacutedio assim para este representando fundamentais elemento e extinguindo
qualquer noccedilatildeo circunstancial que se possa inferir
2 2 1 Virtus a virtude do heroacutei na perspectiva latina
Nessa seccedilatildeo noacutes analisaremos os dois primeiros versos do livro em questatildeo os quais
retomam um importante epiacuteteto eacutepico do heroacutei e que estatildeo presentes na descriccedilatildeo de Aacutejax e
presentes no discurso de Aacutejax os versos 73-97 os quais demonstram a proeminente
excelecircncia guerreira do personagem especialmente sob o vieacutes de uma virtude defensiva E
seguida os seguintes presentes ainda no discurso direto do heroacutei os versos 9 ndash 20 nos quais
o Telamocircnio expotildee os atributos opostos entre ele e Ulisses que retomam a caracterizaccedilatildeo sob
a perspectiva da accedilatildeo e da palavra como jaacute vimos no capiacutetulo anterior ser proacutepria do
contraste entre esses dois chefes gregos os versos 34-47 e 103-122 que ressaltam a natureza
do Laertida como sendo contraacuteria agrave dos precircmios e que consequentemente retratam a desonra
do heroacutei de Salamina diante de uma disputa ao seu ver desnecessaacuteria pois sua virtude eacute
evidentemente superior agrave do seu adversaacuterio
A sua virtude (uirtus) mesmo inserida em um contexto claacutessico latino recupera na
obra em questatildeo noccedilotildees dos valores arcaicos gregos sobretudo homeacutericos Apesar de a antiga
uirtus aristocraacutetica romana poder ser situada proacutexima a areteacute grega (PEREIRA 2013 407)
isso natildeo parece acontecer plenamente quanto agrave caracterizaccedilatildeo do personagem em questatildeo
pois na nossa compreensatildeo esses valores satildeo postos ainda sob o prisma da eacutepoca de Oviacutedio
como seraacute pontuado na anaacutelise Sob o ponto de vista de valores tradicionais romanos
108
podemos dizer que a virtude (uirtus) teve no princiacutepio um sentido masculino cuja origem estaacute
na palavra que denomina o homem varatildeo (uir) por isso pertencia em um momento arcaico
apenas a este Contudo tendo se desenvolvido segundo Thomas Martin e podendo definir
inclusive um conjunto de atributos proacuteprios que uma mulher deveria ter de um modo geral
para a Roma antiga em relaccedilatildeo ao homem essa qualidade designava aquele que
protetor dos bons colocava o bem-estar do paiacutes em primeiro lugar seguido dos interesses da famiacutelia e por fim dos proacuteprios interesses [] Heroiacutesmo na batalha era a realizaccedilatildeo suprema para o homem ldquojustordquo mas soacute se o valor servisse agrave comunidade em vez de apenas agrave proacutepria gloacuteria individual (2014 p 29)
Esse heroiacutesmo em especial vinculado agrave accedilatildeo militar parece ser o ponto fulcral que
fundamenta o discurso de Aacutejax pois eacute a partir desse ponto em especial que o heroacutei expotildee os
valores apreciados por ele proacuteprio e segundo tais almeja a maacutexima honraria28 guerreira as
armas de Aquiles precircmios eventuais de sua patente virtude Contudo sua distinccedilatildeo beacutelica
parece seguir a disposiccedilatildeo da caracterizaccedilatildeo homeacuterica pois sugere se vincular a um aspecto
defensivo ou mesmo protetor em prol de um coletivo significativamente semelhante ao ideal
da uirtus romana da forma como a pontuamos acima Tentaremos observar tal hipoacutetese a
partir do estudo dos fragmentos supracitados sobretudo porque tal aspecto defensivo jaacute se
mostra possiacutevel nas epopeias homeacutericas Na necessidade de um fechamento teoacuterico mais
adequado utilizaremos o conceito de virtude (uirtus) estabelecido acima com a exceccedilatildeo de
que ela definiraacute apenas uma qualidade masculina sobretudo beacutelica devido ao conteuacutedo do
episoacutedio de Oviacutedio que retrata uma idade miacutetica na qual tal concepccedilatildeo parece ser verossiacutemil
e inclusive sugerida
Vejamos agora os dois primeiros versos do Livro XII que tratam da caracterizaccedilatildeo
direta do personagem sobretudo atraveacutes de uma foacutermula eacutepica conjuntamente com alguns do
final do Livro XII pois estes uacuteltimos servem para contextualizar melhor a cena que se segue
non ea Tydides non audet Oileos Aiax non minor Atrides non bello maior et aevo poscere non alii solis Telamone creatis
28
Segundo Rocha Pereira a honra (honor) pode ser concebida como exterior enquanto a virtude (uirtus) interior a quem a possui (2013 p 405) Certamente a primeira depende de um julgamento da comunidade ou seja depende de ldquoum reconhecimento puacuteblico do meacuteritordquo (Ibidem p 349) e a segunda conforme nos diz Ciacutecero ldquoexige honor nem outra eacute a recompensa da uirtus (Ibidem p 248) Dessa forma natildeo soacute o julgamento dos chefes gregos mas sobretudo a representaccedilatildeo material desse meacuterito visto como reconhecimento de seus feitos fazem Aacutejax ver a si mesmo como eventual vencedor pois a virtude para ele eacute senatildeo a excelecircncia guerreira que designa o heroiacutesmo do personagem
109
Laertaque fuit tantae fiducia laudis 625 a se Tantalides onus invidiamque removit Argolicosque duces mediis considere castris iussit et arbitrium litis traiecit in omnes [] Consedere duces et uulgi stante corona 1 Surgit ad hos clipei dominus septemplicis Aiax 29
(Metamorfoses XII v 622-628 XIII v 1 ndash 2)
Podemos ver pelo contexto dos versos que Oviacutedio retoma o episoacutedio da Odisseia
atribuindo agrave contenda um julgamento decidido atraveacutes da participaccedilatildeo de todos os chefes
gregos O diaacutelogo com a Iliacuteada tambeacutem parece evidente pois se apresenta um Agamecircmnon
que se absteacutem do encargo da decisatildeo (onus [] remouit v 626) e com isso o narrador parece
sugerir um chefe que evita o peso de um resultado que pode ser semelhante ao ocorrido no
caso do Pelida ou seja um desfecho funesto Acrescentamos a isso que muitos heroacuteis natildeo se
julgaram merecedores de tais precircmios a isso nos serve como indiacutecio textual o verbo ousar
(audet v 622) A contenda entatildeo deve ser travada por aqueles de maior iacutempeto pois esses
se atrevem a tal empreitada A conduta do Atrida eacute dessa forma prudente em especial se
considerarmos a referecircncia agrave eacutepica homeacuterica Certamente apenas o filho de Teacutelamon e o de
Laerte se consideram dignos das armas e haacute nas palavras utilizadas uma insinuaccedilatildeo a um
orgulho a uma excessiva confianccedila nos proacuteprios meacuteritos uma vez que o termo fiducia pode
ter esse sentido significando ateacute arrogacircncia Segundo a perspectiva do narrador isso se torna
mais perceptiacutevel devido agrave relaccedilatildeo que se faz com o verbo ousar Pois ao se atribuir a noccedilatildeo de
audaacutecia ao ato de reclamar as armas para si o heroacutei que as demanda age senatildeo de alguma
maneira altiva Na nossa compressatildeo o orgulho de Aacutejax sugerido por Homero na expressatildeo
iacutempeto viril ou orgulhoso ageacutenora thymoacuten (ἀγήνορα θυμόν Odisseia XI v 562) estudada
anteriormente parece na linguagem da obra Metamorfoses ser retomada como uma
confianccedila em tamanho meacuterito (tantae fiducia laudis v 625) O adjetivo tantae auxiliam como
um intensificador dessa qualidade
Esse meacuterito do heroacutei de Salamina eacute destacado especialmente pelo atributo conferido ao
personagem no segundo verso do Livro XIII no qual jaacute se apresenta a foacutermula clipei dominus
septemplicis Aiax que retoma o epiacuteteto homeacuterico e as grandes caracteriacutesticas de Aacutejax a
29 Estas [as armas] nem o Tidida nem Aacutejax Oileu ousa clamar nem o mais novo Atrida nem o maior na guerra e na idade nem outros somente para o nascido de Teacutelamon e o de Laerte houve confianccedila em tamanho valor (v 625) De si o Tantaacutelida removeu o ocircnus e a inveja e aos chefes Argoacutelicos no meio dos acampamentos ordenou se sentarem e atribuiu a todos o arbiacutetrio da questatildeo [] Sentaram-se juntos os chefes e os soldados formando-se um ciacuterculo junto a estes surge o senhor do escudo de sete dobras Aacutejax
110
dimensatildeo e a singularidade de seu escudo as quais simbolizam sua enorme estatura e sua
robusta compleiccedilatildeo fiacutesica Contudo o proacuteprio narrador externo configura outro heroacutei como o
maior na guerra (bello maior v 623) provavelmente Nestor e natildeo o Telamocircnio Assim em
parte Oviacutedio dialoga com as epopeias homeacutericas afastando de sua obra a ideia de uma
supremacia guerreira do heroacutei de Salamina mas recuperando a singularidade de seu escudo e
por certo a noccedilatildeo de muralha dos Aqueus conferida ele A retomada desse traccedilo do
personagem parece corroborar a noccedilatildeo de uma virtude defensiva jaacute costumeiramente lhe
atribuiacuteda nos estudos de Homero apresentados no capiacutetulo anterior
Com efeito a qualificaccedilatildeo do personagem como o senhor de escudo de sete dobras ou
sete camadas ldquoSurgit ad hos clipei dominus septemplicis Aiaxrdquo (Metamorfoses XII v 2) estaacute
disposta segundo o modelo eacutepico dos epiacutetetos homeacutericos E sobretudo segundo a perspectiva
de Rocha Pereira pois visto como do tipo distintivo e precedente de discurso direto contribui
para a melhor caracterizaccedilatildeo do personagem adequando-se tambeacutem ao contexto uma
qualidade especiacutefica e permitindo-se uma melhor compreensatildeo do episoacutedio em questatildeo e das
palavras do heroacutei (1985 p 5) A polivalecircncia liacuterica eacutepica e traacutegica da obra que a coloca em
um entrelugar permite-nos reconhecer essa disposiccedilatildeo como uma foacutermula homeacuterica
Vejamos como o proacuteprio esquema meacutetrico esse epiacuteteto atraveacutes da cesura do
hexacircmetro geralmente pentemiacutemera ou heftemiacutemera auxilia-nos na compreensatildeo da
passagem A cesura pentemiacutemera ou seja apoacutes cinco metades de peacute seria possiacutevel ao
esquema poreacutem pouco acrescentaria em termos significativos ao verso Vejamos ldquoSurgıt ad
hos clıpeı domınus se ptemplıcıs Aiaxrdquo A divisatildeo em dois hemistiacutequios faz com que a
cesura conflite com a estrutura e a pausa gramaticais sugeridas pela sintaxe latina pois essa
divisatildeo aparentemente sugere uma divisatildeo de sujeito e predicado Assim o nuacutecleo do adjunto
clipei estaria inserido na seccedilatildeo do predicado e natildeo ao termo essencial da oraccedilatildeo ao qual estaacute
ligado o sujeito
Preferimos entatildeo a cesura heftemiacutemera de sete metades de peacute por algumas razotildees
Primeiro porque acompanhada de sua comumente cesura secundaacuteria trimiacutemera de trecircs
metades de peacute (PLESSIS 1889) divide o verso em trecircs hemistiacutequios nos quais o primeiro
corresponde ao predicado e os dois seguintes ao sujeito favorecendo a elocuccedilatildeo latina e
consequentemente gerando uma fluidez na progressatildeo semacircntica do seu conteuacutedo por meio
da sincronia entre a meacutetrica e a disposiccedilatildeo sintaacutetica Vejamos ldquoSurgıt ad hos clıpeı
domınus se ptemplıcıs Aiaxrdquo Segundo porque para a disposiccedilatildeo mais natural da foacutermula
epiacuteteto acompanhado do nome do heroacutei que estaria disposta em uma relaccedilatildeo de extensatildeo com
o hemistiacutequio essa cesura reforccedilaria tambeacutem o caraacuteter oral do gecircnero eacutepico A foacutermula
111
assim estaria inserida dentro das cesuras do verso como um hemistiacutequio Em terceiro lugar
essa disposiccedilatildeo encadearia uma progressatildeo tripartida de significado esteticamente reforccedilando
uma expectativa uma vez que sequenciaria informaccedilotildees mais abrangentes e depois as
precisas descrevendo inicialmente uma accedilatildeo depois de forma epiteacutetica a qualidade do
sujeito que a praticou e por fim o seu nome Esse aspecto esteacutetico tambeacutem se observa nas
duas seccedilotildees do epiacuteteto que apresentam cada uma com a mesma estrutura espelhada formada
de genitivo mais nominativo de significado mais abrangente clipei dominus senhor do
escudo para um mais preciso septemplicis Aiax [senhor do escudo] de sete dobras ou
camadas Aacutejax As trecircs seccedilotildees dispostas progrediriam acumulando um sentido uma a uma
ateacute ao fim do verso em seu uacuteltimo peacute apresentar o nome proacuteprio do heroacutei ao qual todos os
elementos e a expectativa conduziam
A recorrecircncia das foacutermulas eacutepicas precedentes de discurso direto nas epopeias
homeacutericas corroboram a pertinecircncia do uso de tal recurso pelo proacuteprio Oviacutedio sobretudo
porque o torna mais significativo uma vez que o episoacutedio da disputa entre Aacutejax e Ulisses eacute
predominantemente marcado pelo discurso direto O autor faz essa escolha centralizando o
episoacutedio na oratoacuteria dos personagens destacando a relaccedilatildeo extremamente significativa entre a
forma escolhida e o seu conteuacutedo Assim a relaccedilatildeo praacutetica e simboacutelica do personagem com o
seu escudo referida no iniacutecio do Livro XIII parece-nos ter expressamente a finalidade de
descrever seu atributo mais relevante para esse episoacutedio de alguma maneira antecipando e
contextualizando os argumentos do heroacutei pois como tentaremos provar reforccedila na unidade
desse evento uma virtude defensiva
Para reforccedilar essa compreensatildeo mencionada acima passemos agora a analisar alguns
versos que destacam essa excelecircncia guerreira de Aacutejax a partir dessa perspectiva de defesa e
de proteccedilatildeo antecipada e em concordacircncia com o epiacuteteto estudado Com efeito isso nos
parece expressar os indiacutecios textuais presentes no fragmento abaixo sobretudo pelo sentido e
pela recorrecircncia do verbo suster (sustineo) empregado para descrever tudo aquilo que Aacutejax
foi capaz de conter como as chamas dos troianos Heitor e o proacuteprio Juacutepiter Vejamos alguns
versos de seu discurso
At non Hectoreis dubitauit cedere flammis 7 Quas ego sustinui quas hac a classe fugaui 8 [] Conclamat socios adsum uideoque trementem 73 Pallentemque metu et trepidantem morte futura Opposui molem clipei texique iacentem 75 Seruauique animam (minimum est hoc laudis) inertem
112
Si perstas certare locum redeamus in illum Redde hostem uulnusque tuum solitumque timorem Post clipeumque late et mecum contende sub illo At postquam eripui cui standi uulnera uires 80 Non dederant nullo tardatus uulnere fugit Hector adest secumque deos in proelia ducit Quaque ruit non tu tantum terreris Vlixe Sed fortes etiam tantum trahit ille timoris Hunc ego sanguineae successu caedis ouantem 85 Eminus ingenti resupinum pondere fudi Hunc ego poscentem cum quo concurreret unus Sustinui sortemque meam uouistis Achiui Et uestrae ualuere preces Si quaeritis huius Fortunam pugnae non sum superatus ab illo 90 Ecce ferunt Troes ferrumque ignesque Iouemque in Danaas classes ubi nunc facundus Vlixes Nempe ego mille meo protexi pectore puppes Spem uestri reditus date pro tot nauibus arma30
O heroacutei apresenta os seus feitos em prol dos conterracircneos accedilotildees sobretudo
testemunhadas e ao seu ver dignas da virtude guerreira especialmente porque remontam
eventos da guerra nos quais tendo Aquiles se retirado os troianos sobrepujaram os gregos
inclusive encurralando-os no litoral O proacuteprio texto sugere que a natureza das accedilotildees de Aacutejax
recai sobre os atributos da guerra Contudo parece-nos que o enfoque eacute realmente sobre uma
qualidade defensiva
Primeiramente o texto reforccedila duas vezes o verbo sustineo No verso 8 o verbo
expresso no aspecto perfeito sustinui eacute tambeacutem acompanhado pelo pronome ego que reforccedila
o agente da accedilatildeo No verso 88 novamente eacute expresso o verbo declinado sustinui que aleacutem ser
tambeacutem acompanhado pelo pronome ego (v 87) tambeacutem reforccedila o agente da accedilatildeo por meio
do adjetivo unus (v 87) No primeiro caso o heroacutei rememora sua accedilatildeo de suster as chamas que
procuravam queimar as naus dos gregos No segundo expressa-se a accedilatildeo de conter Heitor
que impulsionado por Juacutepiter causa a morte de muitos gregos Em ambos os eventos
retomados da Iliacuteada o heroacutei confere a si as accedilotildees maacuteximas que salvaram os gregos da derrota
30 Entretanto [Ulisses] natildeo hesitou em ir-se das chamas de Heitor (v 7) as quais eu sustive as quais desta frota afugentei (v 8) [] Invoca os companheiros estou presente e vejo o tremente e (v 73) paacutelido de medo e tambeacutem trepidante com a morte futura pus o volume do escudo agrave frente protegi o jazente (v75) E mantive o acircnimo inerte (isto de gloacuteria eacute o miacutenimo) Se persistes a certar voltemos agravequele lugar restitui a hoste o teu ferimento teu soacutelito temor esconde-te atraacutes do escudo e contende comigo sob ele Mas depois que retirei para quem ferimento de combater (v 80) as tropas natildeo deram o moroso fugiu sem ferimentos Heitor estaacute presente e consigo conduz os deuses no preacutelio precipita-se por toda parte natildeo apenas tu eacutes aterrorizado Ulisses mas os fortes tambeacutem aquele arrasta tanto de temor Este eu mesmo com sucesso de golpe sanguiacuteneo de longe (v 85) derrubei ressupino com peso ingente este clamante quando com algueacutem se apresentava eu mesmo sozinho sustive prometestes a minha sorte Aquivos e vossas preces valeram Se procurais o destino desta pugna natildeo fui superado por ele (v 90) Eis que os troianos trazem ferro fogo e Juacutepiter agraves frotas dacircnaas onde estaacute agora o Ulisses eloquente Certamente eu mesmo protegi mil popas com meu peito Recuperei a vossa esperanccedila dai as armas em lugar de tantas naus
113
e da morte destacando-se em especial como o maior responsaacutevel pela proteccedilatildeo dos
conterracircneos justificando assim o epiacuteteto homeacuterico muralhas dos Aqueus como jaacute visto
que reforccedila o aspecto defensivo conjuntamente como o epiacuteteto que destaca seu escudo
presente tambeacutem em Oviacutedio
Em segundo lugar agregam-se a isso os verbos tego e protego que carregam o sentido
de defender e proteger usados em suas accedilotildees No verso 75 o heroacutei revela ter protegido ateacute
mesmo Ulisses enquanto esse jazia no chatildeo (texi iacentem) No verso 93 o proacuteprio
Telamocircnio protegeu as naus dos gregos (ego protexi puppes) Apesar de ter vencido Heitor
sua vitoacuteria sobre este apenas repeliu o adversaacuterio natildeo o matando Dessa forma o texto
concentra tanto na voz do narrador externo quanto no discurso direto do personagem ou seja
na caracterizaccedilatildeo direta e indireta as qualidades de Aacutejax relacionadas a uma ideia de homem
da accedilatildeo poreacutem de forma especiacutefica e proacutepria de uma noccedilatildeo ou capacidade defensiva e
protetora
Assim para isso como jaacute dissemos a simbologia do escudo pelo menos no
tratamento de Oviacutedio parece fundamental Expresso na forma de uma foacutermula precedente do
discurso direto jaacute nos primeiros versos ele natildeo soacute antecipa mas direciona a compreensatildeo que
devemos ter do texto Por isso outras vezes ele eacute retomado no discurso direto
Ainda no verso 75 quando da proteccedilatildeo de Aacutejax a Ulisses noacutes temos a expressatildeo
literal desse manuseio do heroacutei ao escudo e de sua qualidade Primeiro o Telamocircnio potildee agrave
frente de Ulisses o corpo do escudo (opposui molem clipei) em seguida reforccedilando-se a
qualidade defensiva do heroacutei este ainda manteacutem o acircnimo inerte (serarui animam inertem v
76) como se essa proacutepria expressatildeo revelasse a proacutepria natureza da accedilatildeo e do heroacutei a
capacidade de resistir aos ataques imoacutevel como uma parede ou muralha Tal capacidade do
heroacutei eacute tatildeo proeminente que ele faz questatildeo de indicar isso em seu discurso Ele mesmo revela
que seu escudo sofre de mil golpes (nostro qui tela ferendo mille patet plagis v 118 ndash 119)
em oposiccedilatildeo ao de Ulisses que eacute iacutentegro ou seja sem marcas (integer est clipeus v 118)
Acreditamos que tal fato seja possiacutevel de ser comprovado se julgarmos o quatildeo fundamental
aos argumentos do personagem eacute contemplar com os olhos tais provas como veremos mais
adiante Outro fato importante e que merece comentaacuterios eacute o fato de os verbos tego e protego
serem usados para expressar a ideia de proteger Tal sentido abstrato eacute adquirido por extensatildeo
uma vez que a sua primeira noccedilatildeo eacute cobrir em seu aspecto mais concreto Assim a escolha
dos verbos e seu significado derivado precisam a unidade lexical do texto coadunando-se
com a utilizaccedilatildeo e a funccedilatildeo proacutepria do escudo realccedilando-se sua simbologia defensiva e de
proteccedilatildeo O contendor de Salamina entatildeo concentra sua qualidade em um uacutenico tipo de
114
atividade a excelecircncia para proteger e guardar proacutepria de uma virtude guerreira defensiva
segundo o modelo dos vaacuterios estudos dispostos sobre a caracterizaccedilatildeo desse mesmo heroacutei na
Iliacuteada Ao se considerar essa capacidade protetora efetivamente de contenccedilatildeo ao caraacuteter
homeacuterico do personagem devemos admitir a clara referecircncia de Oviacutedio agrave tradiccedilatildeo arcaica
Sabemos disso especialmente pelo seu contraponto Ulisses que faz questatildeo de
elencar a polivalecircncia de suas qualidades natildeo soacute do ceacuterebro mas tambeacutem dos atos O
Laertida mesmo destaca que seu adversaacuterio se sobressai apenas pelo corpo (tu tantum corpore
prodes v 365) e exerce a forccedila sem a mente (tu uires sine mente geris v 363) Mas
reconhecendo que o Telamocircnio realmente exerce sua potecircncia defensivamente o arguidor
eloquente aleacutem de retomar vaacuterios momentos que ressaltam qualidades distintas as quais
confere sobretudo a Minerva (Mineruae v 381) agrave deusa grega Atena tambeacutem realccedila
diferente de Aacutejax sua capacidade de matar seus oponentes e para isso enumera vaacuterios heroacuteis
como Ceacuterano filho de Iacutefito Alastor Crocircmio Alcandro Haacutelio Neacutemon Priacutetanis Toas
Caacuterope e Ecircnomo os quais foram mortos por sua espada (ferro [] meo v 255-256) Essa
polivalecircncia do Laertida contrasta com o atributo recorrentemente evidenciado pelo seu
opositor a qualidade defensiva de conter os assaltos inimigos
Com efeito Aacutejax atribui a si essa noccedilatildeo de forma tatildeo intensa que podemos reconhecer
essa qualidade como sendo proeminente nele Por isso no fragmento acima por quatro vezes o
pronome pessoal ldquoeurdquo aparece como reforccedilo agrave accedilatildeo individual do Telamocircnio na defesa dos
gregos ego (v 8 85 87 93) seja na proteccedilatildeo dos navios contra o fogo seja no combate
singular contra Heitor pois a todas essas coisas o proacuteprio heroacutei enfatiza ter sozinho (unus v
87) enfrentado e contido (sustinui v 8) Certamente esse caraacuteter defensivo do heroacutei ou seja
de se apresentar a serviccedilo da paacutetria protegendo os conterracircneos mesmo quando agindo
solitariamente realmente se mostra proeminente no heroacutei de acordo com sua perspectiva dos
fatos Aleacutem disso esse valor destacado parece-nos se revestir no texto de Oviacutedio de noccedilotildees
da uirtus propriamente romana Mesmo a partir de uma accedilatildeo individual e de uma decorrente
superestima do proacuteprio valor a comunidade e a proteccedilatildeo dela parecem estar acima de sua
gloacuteria pessoal e tambeacutem por isso em sua visatildeo tal concepccedilatildeo parece conferir aos seus atos o
maacuteximo meacuterito Essa caracterizaccedilatildeo sugere inclusive retomar o heroacutei romano Horaacutecio Cocles
que em seu mito defendeu sozinho dos etruscos a ponte que levava a Roma episoacutedio narrado
pelo historiador Tito Liacutevio que assim se refere ao militar ldquoheroacutei sozinho [] que se
estabeleceu na ponte em forte posiccedilatildeordquo (unus uir [] qui positus forte in statione pontis
Histoacuteria de Roma I 10 2-3) O caraacuteter defensivo e de contenccedilatildeo proacuteprio de Telamocircnio eacute
exatamente esse de Cocles natildeo recuar e fixo em um lugar conter os ataques inimigos Fato
115
significativo para essa interpretaccedilatildeo eacute a provaacutevel parcialidade pela qual o narrador externo
descreve a vitoacuteria do Laertida ldquoo eloquente conduziu as armas do heroacutei forterdquo (fortisque uiri
tulit arma disertus v 383) Certamente esse verso parece conferir ao derrotado um valor
maior e por isso provavelmente o genitivo ao qual se liga as armas precircmio da disputa
expressa os termos que marcam o heroacutei de maior excelecircncia guerreira Aacutejax
Prossigamos com a anaacutelise da introduccedilatildeo de seu discurso na qual o heroacutei jaacute apresenta
suas qualidades bem como as de seu adversaacuterio contrastando os conceitos de accedilatildeo e de
palavra que opotildee a natureza dos dois contendores
Tutius est igitur fictis contendere uerbis Quam pugnare manu Sed nec mihi dicere promptum 10 nec facere est isti quantumque ego Marte feroci Quantum acie valeo tantum valet iste loquendo Nec memoranda tamen uobis mea facta Pelasgi Esse reor uidistis enim sua narret Vlixes Quae sine teste gerit quorum nox conscia sola est 15 Praemia magna peti fator sed demit honorem Aemulus Aiaci non est tenuisse superbum Sit licet hoc ingens quicquid sperauit Vlixes Iste tulit pretium iam nunc temptaminis huius Quod cum uictus erit mecum certasse feretur31 20
(Metamorfoses Livro XIII v 9 ndash 20)
Pode-se ver a partir do fragmento como jaacute anunciamos anteriormente que em sua
introduccedilatildeo Aacutejax expotildee a ideia central de seu discurso posteriormente desenvolvido atraveacutes de
narrativas argumentaccedilotildees e provas O seu cerne entatildeo baseia-se em duas noccedilotildees a de agir e
a de discursar ou seja a qualidade da accedilatildeo e a da palavra Eacute imprescindiacutevel primeiramente
compreendermos como essas duas noccedilotildees se estruturam no discurso do heroacutei pois a oposiccedilatildeo
que se apresenta a partir delas fundamenta todo o discurso em questatildeo Soacute entatildeo poderemos
analisar propriamente o fragmento
Com efeito essa distinccedilatildeo almejada pelo Telamocircnio em seu discurso faz-se eficaz
especialmente por desenvolver a caracterizaccedilatildeo de cada um deles atraveacutes de um contraste
evidente e jaacute estabelecido Primeiramente um contraste coerente com a imagem fixada pela
tradiccedilatildeo ou seja um pressuposto conhecido aos leitores da eacutepoca de Oviacutedio Em segundo
31 Mais seguro portanto eacute contender com palavras forjadas do que lutar com a matildeo Mas para mim natildeo eacute faacutecil dizer (v 10) nem para esse fazer tanto eu por meio do feroz Marte e da lacircmina valho quanto esse vale discursando Contudo natildeo julgo meus feitos haverem de ser lembrados para voacutes Pelasgos pois vistes Ulisses narraraacute os seus Os quais sem testemunha produz deles soacute a noite eacute conhecedora (v 15) Confesso reclamar os magnos precircmios mas retira a honra o rival Para Aacutejax natildeo eacute orgulhoso segurar embora este seja grande algo que Ulisses esperou esse jaacute estaacute carregando meacuterito deste embate pois quando for vencido seraacute referido por ter lutado comigo (v 20)
116
lugar um contraste existente dentro do proacuteprio niacutevel intradiegeacutetico da narrativa pois tal
informaccedilatildeo pode ser inferida a partir das palavras de Fecircnix na Iliacuteada que refletem um
conhecimento comum assim tambeacutem se apresenta como um pressuposto conhecido na
perspectiva dos narrataacuterios ou seja dos personagens que escutam o discurso Esse realce agrave
singularidade de cada heroacutei delimitando-se suas qualidades mais evidentes eficazmente
alicerccedila uma boa base argumentativa pois constitui um princiacutepio retoacuterico persuasivo uma vez
que se apoia em um pressuposto abonado
No fragmento em questatildeo Oviacutedio dispotildee com clareza essa dicotomia retoacuterica exposta
pelo personagem Os termos utilizados na construccedilatildeo antiteacutetica dessa unidade textual estatildeo
listados a seguir Quanto agraves noccedilotildees de agir e de discursar temos matildeo manu (v 10) e
palavras uerbis (v 9) fazer facere (v 11) e dizer dicere (v 10) Marte feroz Marte feroce
(v 11) lacircmina acie (v 12) e o discursar loquendo (v 12)
Eacute oacutebvio que o heroacutei de Salamina vincula a si todos os primeiros elementos
constituintes dos pares apresentados pois expressam a qualidade da accedilatildeo Quando assim natildeo
o faz associa-se ao segundo elemento dos pares negando-lhe como eacute o caso de dicere
Assim para o Telamocircnio natildeo eacute faacutecil dizer (nec dicere promptum est v 10) Natildeo podemos
deixar de mencionar a proacutepria situaccedilatildeo do discurso ou seja o momento em que ele eacute
proferido ainda durante a guerra de Troia Isso eacute basilar para a retoacuterica do personagem pois a
noccedilatildeo de accedilatildeo que ele converge em seu discurso toca exatamente as proezas beacutelicas Assim
natildeo sem propoacutesito ele submete agrave accedilatildeo o juiacutezo de guerra pois junto dos termos manu e facere
listam-se Marte feroce e acie metoniacutemias do proacuteprio conceito de guerrear De mesmo modo
vinculam-se a Ulisses todos os segundos elementos que expressam a qualidade da palavra
com exceccedilatildeo do facere que lhe eacute associado tambeacutem por meio de sua negaccedilatildeo pois para ele
fazer natildeo eacute faacutecil (nec facere est v 11) E dentro desse contexto fazer tambeacutem significa as
accedilotildees proacuteprias da guerra Ao mesmo tempo que essas distinccedilotildees entre os heroacuteis satildeo
delineadas especialmente associando a qualidade da accedilatildeo ao contexto da guerra o heroacutei
sustenta uma segunda conjectura dependente da primeira
Nesta segunda conjectura o propoacutesito de Aacutejax eacute distinguir diferente do que estaacute na
tradiccedilatildeo grega uma noccedilatildeo superior entre as duas citadas acima pelo menos quando aplicadas
a ele proacuteprio e a Ulisses Ele elege a qualidade da accedilatildeo como superior natildeo por menos pois eacute
o seu atributo Para justificar uma superioridade dessa qualidade ao menos na situaccedilatildeo
particular desses dois heroacuteis o personagem agrega a essas duas noccedilotildees de accedilatildeo e de palavra
respectivamente mais duas outras opostas aquilo que eacute visto e testemunhado e aquilo que eacute
apenas narrado uma vez que natildeo teria sido necessariamente presenciado Por decorrecircncia
117
disso impotildee-se agrave segunda a noccedilatildeo de mentira por meio de seu o caraacuteter fictiacutecio uma vez que
muitos feitos satildeo construiacutedos pela forccedila da palavra que impressiona mas ausentes de verdade
Em oposiccedilatildeo a accedilatildeo presenciada vale por si soacute e isenta de palavra se vincula agrave ideia de
verdade
Para sustentar essa uacuteltima conjectura proposta pelo personagem Oviacutedio dispotildee de
alguns termos significativos para elucidar as ideias de verdade e mentira agregadas
respectivamente agraves noccedilotildees de agir e de discursar Temos entatildeo lembrar memoranda (v 13)
e narrar narret (v14) vertestemunhar uidistis (v 14) e sem testemunha sine teste (v 15)
noite nox (v 15) A primeira oposiccedilatildeo expressiva estaacute entre os verbos lembrar e narrar os
quais se vinculam respetivamente ao Telamocircnio homem de accedilatildeo e ao Laertida mestre da
palavra A carga significativa fica expressa no sentido dos verbos Para o primeiro seus feitos
natildeo satildeo narrados mas relembrados pois foram presenciados assim verdadeiros valendo por
si Jaacute as proezas do segundo devem ser narradas ou seja natildeo necessariamente presenciadas e
por isso natildeo comprovadas assim falsas e mentirosas valendo-se prioritariamente da
coerecircncia das tramas com as provas encontradas e da forccedila das palavras empregadas Por isso
o primeiro reforccedila seu discurso afirmando que os ouvintes viram e presenciaram os seus
feitos uidistis No entanto as proezas do segundo natildeo tecircm testemunhas sine teste ou melhor
haacute uma soacute testemunha a noite nox pois apenas ela eacute conhecedora desses fatos conscia sola
est Desdobra-se com isso a oposiccedilatildeo de luz e de escuridatildeo pois se submetem a isso o sentido
da visatildeo e a ideia de ver e natildeo ver assim de se lutar agrave noite ou seja natildeo sendo visto e de se
combater em pleno dia ou seja aos olhos e diante de todos A oposiccedilatildeo entre accedilatildeo e palavra
eacute entatildeo vinculada agrave oposiccedilatildeo entre verdade e mentira e entre luz e escuridatildeo Apenas a accedilatildeo
liga-se agrave verdade e agrave luz pois a palavra obrigatoriamente vincula-se apenas agrave mentira e agrave
escuridatildeo
Essa composiccedilatildeo retoacuterica do orador de Salamina eacute muito eficaz pois dentro do
discurso os heroacuteis satildeo vistos como opostos um ao outro com caracteriacutesticas inter-
relacionadas de forma inversamente proporcionais Do mesmo modo sabendo que uma
carrega valor positivo e outra um negativo ao se glorificar as qualidades de um inferioriza-
se as do outro criando um panorama de virtudes e desvirtudes o qual tem como intuito uma
terceira conjectura por deduccedilatildeo loacutegica a identificaccedilatildeo de um heroacutei melhor e por
consequecircncia de um pior Dentro desse contexto entatildeo Aacutejax seria superior a Ulisses uma
vez que o primeiro tem a primazia de accedilatildeo cuja superioridade quanto agrave palavra foi
demostrada e defendida
118
Essa eacute a compreensatildeo de mundo e de valores que o Telamocircnio possui Por isso ela
mesma nos sugere que ele percebe o embate oratoacuterio como inoacutecuo e contraditoacuterio uma vez
que ele se vecirc superior ao adversaacuterio Por consequecircncia disso o uacutenico meacuterito real para Ulisses
eacute o proacuteprio ato de confrontar aquele que porta o escudo de sete dobras Isso se explica pelo
uso do aspecto verbal de fero do perfeito tulit e pelo uso do tempo presente Por um lado
revela um ato recente do ponto de vista da posse desse meacuterito pois a contenda jaacute se iniciou
natildeo necessitando ao Laertida esperar o desfecho da disputa e assim por outro revela que
esse meacuterito jaacute estaacute presente no momento em questatildeo
Tal asserccedilatildeo se faz loacutegica pelo fato do heroacutei de Salamina acreditar que o uacutenico e
eventual precircmio da disputa para o Laertida eacute ser conhecido por ter lutado com ele (mecum
certasse feretur v 20) pois para este uacuteltimo tambeacutem eacute eventual a derrota (cum vinctus erit v
20) Essa eventualidade nos parece ser sugerida pelo modo indicativo e pelo tempo futuro
usado nos verbos feretur e erit das oraccedilotildees subordinadas em oposiccedilatildeo a uma ideia de
possibilidade por exemplo que soacute seria alcanccedilada como o uso de um modo subjuntivo Esses
satildeo os desdobramentos naturais da disputa na perspectiva de heroacutei da accedilatildeo logo eventuais
pois natildeo haveria outra possibilidade de resoluccedilatildeo
Como para Aacutejax sua superioridade estaria evidente e assim natildeo haveria
verdadeiramente uma contenda a inocuidade dessa disputa acarreta uma consequecircncia a
desonra do heroacutei superior Isso evidencia senatildeo uma superestima de sua virtude como jaacute
indicamos a ponto de o ato de enfrentar o adversaacuterio conferir ao personagem um demeacuterito O
proacuteprio Telamocircnio declara natildeo ser orgulhoso (superbum v 17) mesmo que seja grande
(ingens v 18) portar um precircmio que Ulisses reclama E nesse ato se insere o aspecto proacuteprio
da soberba e da altivez que o faz subestimar e depreciar de forma extrema a virtude de seu
reconhecido contendor Eacute importante destacar que tal procedimento implica a natildeo
consideraccedilatildeo do Laertida como um igual ou seja contraacuteria agrave premissa eacutepica que serve para
distinguir uma vitoacuteria valorosa uma vez que o vencedor triunfa sobre algueacutem digno Como
ocorre exatamente o contraacuterio ou seja a contenda eacute indigna para o Telamocircnio podemos
reconhecer como componente de sua caracterizaccedilatildeo dentro desse episoacutedio sobretudo
manifestada jaacute no iniacutecio de sua defesa a empaacutefia a soberba que parte como jaacute dissemos da
sobrevalorizaccedilatildeo da sua excelecircncia guerreira
Os indiacutecios textuais corroboram tal interpretaccedilatildeo pois mesmo sendo magnos os
precircmios (praemia magna v 16) que retomam claramente o γέρας μέγιστον da ode Nemeia
de Piacutendaro o adversaacuterio fere o valor das armas e retira a honra (demit honorem v 16) Aacutejax
revela ainda que as armas natildeo satildeo exigidas por ele mas o contraacuterio o heroacutei eacute por elas (Aiax
119
armis non Aiaci arma petuntur v 96) e por isso o personagem chegar inclusive a concluir
que maior honra eacute buscada por ela mais do que por ele mesmo (quaeritur istis quam mihi
maior honos v 95-96) Dessa forma conseguimos constatar de forma vaacutelida a superestima
do personagem em relaccedilatildeo ao seu proacuteprio valor revelando seu caraacuteter soberbo em especial
diante de Ulisses este que reconhece a vangloacuteria e o excesso nas palavras (magna loquendi
v 222 ingentia [] uerba v 340-341) do seu opositor
Logo a possibilidade de vitoacuteria do Laertida parece ao Telamocircnio contraditoacuteria e
paradoxal especialmente em se tratando da natureza do precircmio instrumento para guerra ou
seja para a accedilatildeo Tal percepccedilatildeo corrobora o estado de ira do personagem como veremos mais
adiante natildeo apenas depois mas desde antes e durante a disputa pois isso em si jaacute causa
indignaccedilatildeo e desonra ao personagem Esse entendimento jaacute justifica uma sobrevalorizaccedilatildeo da
virtude do heroacutei como parte de sua caracterizaccedilatildeo sugerida em Homero e aqui aprofundada
e desenvolvida
Acreditamos que essa conjectura de princiacutepios revelados em seu discurso natildeo seja
apenas de uso retoacuterico com a finalidade de vencer a disputa pois o heroacutei age realmente
segundo tal visatildeo de mundo sobretudo porque tambeacutem sabemos que o episoacutedio culmina com
o suiciacutedio de Aacutejax quando este conhece o resultado a inconcebiacutevel vitoacuteria do Laertida Logo
isso realmente se trata dos valores cridos por ele Por isso enfatiza em suas palavras esse
caraacuteter paradoxal e contraditoacuterio ao seu ver de Ulisses poder ser o portador das armas de
Aquiles Vejamos os fragmentos abaixo
An quod in arma prior nulloque sub indice ueni Arma neganda mihi potiorque uidebitur ille 35 Vltima qui cepit detrectauitque furore Militiam ficto donec sollertior isto Et sibi inutilior timidi commenta retexit Naupliades animi uitataque traxit ad arma Optima num sumat quia sumere noluit ulla 40 Nos inhonorati et donis patruelibus orbi Obtulimus quia nos ad prima pericula simus32
(Metamorfoses XIII v 34 ndash 42)
32
Ou porque eu vim primeiro agraves armas sob nenhuma denuacutencia as armas hatildeo de ser negadas para mim E pareceraacute mais preferiacutevel (v 35) aquele que tomou as uacuteltimas e recusou a expediccedilatildeo com loucura forjada ateacute que mais industrioso do que esse e mais prejudicial a si o Naupliacuteade revelou os fingimentos de espiacuterito covarde e trouxe-o para as armas evitadas Acaso tomaria as oacutetimas [armas] uma vez que natildeo quis tomar nenhuma (v 40) noacutes desonrados e privados dos presentes do primo seriacuteamos uma vez que nos oferecemos aos primeiros perigos
120
Nesse recorte do discurso do heroacutei o paradoxo e o contraditoacuterio satildeo ilustrados de
maneira bem simples relacionando-se a proacutepria natureza do precircmio com as caracteriacutesticas do
par dicotocircmico accedilatildeo e palavra Satildeo ainda enfatizados especialmente por meio de um recurso
linguiacutestico significativo as perguntas retoacutericas Estas certamente atraveacutes da deduccedilatildeo
conduzem os ouvintes a apenas um caminho a percepccedilatildeo do heroacutei de Iacutetaca como inadequado
agrave recepccedilatildeo das armas e logo o Telamocircnio como o vencedor da disputa
Referindo-se ao episoacutedio em que Palamedes revela a loucura fingida de Ulisses jaacute
explicado anteriormente Aacutejax dispotildee a natureza dos seus proacuteprios atos ir por primeiro agraves
armas ou seja agrave expediccedilatildeo (in arma prior [] ueni v 35) aos primeiros perigos (prima
pericula v 42) e sob nenhuma denuacutencia (nullo sub indice v 34) ou seja sem coerccedilatildeo por
vontade proacutepria Prossegue expondo a de seu adversaacuterio ir agraves armas por uacuteltimo (ultima v
36) e estas ainda evitadas (uitata v 39) pois ele natildeo queria empunhar nenhuma (sumere
noluit ulla v 40) ou seja o Laertida almejava evitar ir agrave guerra poreacutem mesmo assim
dirigiu-se a ela coagido pois sua loucura fingida (furore [] ficto) foi revelada pelo
Naupliacuteade Faz-se necessaacuterio agora uma pequena paraacutefrase do mito para a devida
contextualizaccedilatildeo dessa loucura do personagem A convocaccedilatildeo referida nesse fragmento se daacute
a todos os heroacuteis gregos pretendentes de Helena filha de Tiacutendaro porque seu pai por
conselhos do proacuteprio Ulisses exigiu uma garantia atraveacutes de um juramento de que todos
esses pretendentes se comprometeriam a ajudar o vencedor e futuro marido Passados os anos
e Helena raptada todos aqueles que juraram foram convocados Diante do nascimento de seu
filho Telecircmaco Ulisses tentou ser dispensado da expediccedilatildeo simulando loucura Palamedes
entatildeo descobriu a estrateacutegia ganhando por fim seu oacutedio (GRIMAL 2005) Eacute esse o fato
retomado em analepse para conferir uma natureza inferior ao Laertida
Assim observa-se pelo presente discurso que a natureza de Aacutejax espelha agrave natureza do
precircmio das armas de Aquiles e contrariamente a natureza de Ulisses agrave delas se opotildee Diante
dessa relaccedilatildeo uma conclusatildeo se infere a de uma ideia incoerente de ligar o precircmio a Ulisses e
a derrota a Aacutejax
Essa imagem paradoxal e contraditoacuteria ganha forccedila a partir do contraste estabelecido
entre o Laertida e o precircmio destacando-se dentro do discurso devido agraves perguntas retoacutericas
de Aacutejax que chamando a atenccedilatildeo para a sua situaccedilatildeo por um lado sintetizam sua oratoacuteria
mais emotiva e exortativa pois para ser efetiva sua retoacuterica deve impelir os juiacutezes a se
condoerem com a aparente injusticcedila e desonra apontada e por outro devem conduzir os
ouvintes por meio de uma participaccedilatildeo ativa para qual eacute necessaacuteria a reflexatildeo sobretudo do
ponto de vista moral
121
A passividade daqueles que escutam o discurso provavelmente se rompe quando da
necessidade de se alcanccedilar a conclusatildeo a partir de uma ponderaccedilatildeo imposta pelo proacuteprio
questionamento Contudo essa reflexatildeo eacute condicionada e orientada pela deduccedilatildeo proposta a
partir do contraste disposto entre os heroacuteis e entre estes e o precircmio Natildeo acreditamos que tal
imagem tenha uma finalidade de causar o riso por meio da ridicularizaccedilatildeo de Ulisses uma vez
que sua imagem de heroacutei eacute diminuiacuteda mas o objetivo de marcar o iacutempeto da retoacuterica
agressiva do Telamocircnio devido agrave desonra na qual jaacute se encontra pois a contenda afronta a
sua virtude e seus meacuteritos ou ao menos a confianccedila que nestes ele deteacutem A inferecircncia loacutegica
desse raciociacutenio do heroacutei eacute tatildeo forte que reforccedila significativamente a contradiccedilatildeo questionada
em suas perguntas retoacutericas as quais retratam o heroacutei mais preferiacutevel (portior v 35) ser
aquele que se nega ao auxiacutelio da proacutepria paacutetria em prol de uma vontade individual utilizando-
se inclusive de dolo para alcanccedilar tal fim e o heroacutei desonrado (inhonorati v 41) e privado
dos presentes (donis [] orbi v 41) ser aquele que se dispotildee a servir agrave naccedilatildeo
voluntariamente e que pela sua excelecircncia guerreira (uirtus) testemunhada deveria receber o
reconhecimento puacuteblico que no acircmbito latino se expressa no termo honra (honor) como jaacute
vimos O termo inhonorati eacute expressivo do sentimento do heroacutei de Salamina pois manisfesta
sua condiccedilatildeo nas proacuteprias circunstacircncias dessa disputa ou seja o caraacuteter puacuteblico que envolve
a contenda eacute senatildeo de acircmbito militar disposta nos acampamentos dos gregos e assim os
espectadores satildeo senatildeo soldados e os juiacutezes satildeo senatildeo generais e todos satildeo testemunhas
exatamente dos feitos beacutelicos do Telamocircmio Nesse cenaacuterio o personagem sentindo-se
encaixado expressa sua indignaccedilatildeo perante o contraste apresentado entre os contendores uma
vez que acredita ser entendido plenamente devido agrave audiecircncia militar
Contudo tambeacutem parece pertinente afirmar que as perguntas retoacutericas ressaltadoras
da imagem paradoxal e contraditoacuteria destacam o ponto mais empaacutetico de Aacutejax diante dos
ouvintes Pois aleacutem de convencecirc-los por meio de uma deduccedilatildeo loacutegica a partir de uma imagem
simples o personagem parece querer tocaacute-los a partir da imagem contraditoacuteria entre Ulisses e
o precircmio com a noccedilatildeo de uma injusticcedila que repercute natildeo na razatildeo mas em especial nas
paixotildees Essa injusticcedila que se apresenta para o Telamocircnio e que o agita tambeacutem precisa
alcanccedilar os espectadores pois a contenda que deveria reconhecer publicamente seu meacuterito na
verdade jaacute lhe causa vergonha puacuteblica Por consequecircncia disso parece-nos que os pontos mais
empaacuteticos do seu discurso devem concentrar o ponto mais alto de suas emoccedilotildees ou seja o
ponto mais alto da indignaccedilatildeo do heroacutei logo representativas dessa dor moral no iacutentimo do
personagem Isso se explica tambeacutem pelo caraacuteter exortativo e emotivo de sua retoacuterica que
pode ser constatado pelo murmuacuterio dos soldados (uulgi [] murmur v 123-124) que segue
122
em resposta ao discurso do personagem como uma forma de comoccedilatildeo em relaccedilatildeo ao que foi
exposto
Com efeito para noacutes satildeo as perguntas retoacutericas que carregam e desencadeiam esses
momentos pois apresentam a injusticcedila construiacuteda em uma imagem a da contradiccedilatildeo sempre
retomada e reforccedilada Como jaacute dissemos primeiramente porque sintetizam a oratoacuteria emotiva
e exortativa inclusive de uma forma mais didaacutetica atraveacutes de uma ilustraccedilatildeo a imagem da
injusticcedila Em segundo lugar porque retira dos ouvintes a passividade uma vez que os
convidam ou mais precisamente impelem a participar do discurso por meio da reflexatildeo
Dessa forma em um mesmo ponto vaacuterios mecanismos satildeo articulados simultaneamente para
que a compreensatildeo e a simpatia dos ouvintes sejam alcanccediladas plenamente Isso natildeo parece
ser apenas pertinente e como veremos tambeacutem recorrente
Vejamos outro fragmento que apresenta perguntas retoacutericas no discurso de Aacutejax ainda
tratando dessa mesma antiacutetese entre os heroacuteis
Conferat his Ithacus Rhesum inbellemque Dolona Priamidenque Helenum rapta cum Pallade captum Luce nihil gestum nihil est Diomede remoto 100 Si semel ista datis meritis tam vilibus arma Diuidite et pars sit maior Diomedis in illis Quo tamen haec Ithaco qui clam qui semper inermis Rem gerit et furtis incautum decipit hostem Ipse nitor galeae claro rediantis ab auro 105 Insidias prodet manifestabitque latentem Sed neque Dulichius sub Achillis casside uertex Pondera tanta feret nec non onerosa grauisque Pelias hasta potest inbeliibus esse lacertis Nec clipeus uasti caelatus imagine mundi 110 Conueniet timidae nataeque ad furta sinistrae Debilitaturum quid te petis improbe munus Quod tibi si populi donauerit error Achiui Cur spolieris erit non cur metuaris ab hoste Et fuga qua sola cunctos timidissime uincis 115 Tarda futura tibi est gestamina tanta trahenti Adde quod iste tuus tam raro proelia passus Integer est clipeus nostro qui tela ferendo Mille patet plagis nouus est sucessor habendus Denique quid uerbis opus est Spectemur agendo 120 Arma uiri fortis meacutedios mittantur in hostis Inde iubete peti et referentem ornate relatis33
33 Para estas o iacutethaco levaria Rheso Dolo imbele e o Priamida Heleno capturado com a Palas roubada faccedilanha alguma com luz nada haacute com Diomedes afastado (v 100) Se dais uma vez essas armas por meacuteritos tatildeo pequenos divide e a maior parte nelas seja de Diomedes Entretanto por que estas [armas] seratildeo para o iacutethaco que furtivamente e sempre desarmado executa algo e com ardis engana com o inimigo incauto O proacuteprio brilho da gaacutelea radiante pelo claro ouro (v 105) mostraraacute os artifiacutecios e revelaraacute aquele que se esconde Entretanto nem a cabeccedila duliacutequia sob o elmo de Aquiles carregaraacute tanto peso nem ainda a onerosa e grave haste Peliacuteade pode existir para braccedilos imbeles e nem o escudo esculpido com a imagem do vasto mundo (v
123
(Metamorfoses Livro XIII v 103 ndash 122)
Estudemos primeiro os versos 103-104 112 e 120 que intercalam argumentos e
equilibram com perguntas retoacutericas o segmento final do discurso de Aacutejax e que tambeacutem se
distanciam umas das outras de maneira bem equitativa Em todos os usos desse recurso
linguiacutestico mais uma vez se concentra a ilustraccedilatildeo da injusticcedila atraveacutes da imagem paradoxal e
contraditoacuteria entre Ulisses e a natureza do precircmio Por consequecircncia disso distribuem-se os
pontos de maior empatia do personagem nos quais ele fomenta compartilhar seu sentimento
de ira e de dor contaminando a todos com suas paixotildees
Nos versos 103 e 104 destaca-se a figura de um Ulisses jaacute visto por noacutes em anaacutelises
anteriores como a de um soldado sorrateiro e furtivo que age agraves escondidas (clam) ou seja
de atos noturnos natildeo vistos ou testemunhados lembremos do verso 15 os quais sem
testemunha produz deles soacute a noite eacute conhecedora (quae sine teste gerit quorum nox conscia
sola est) A isso reforccedila o verso 100 nenhuma faccedilanha com luz (luce nihil gestum) Aacutejax
ainda representa o seu opositor como soldado desarmando (inermis) que executa accedilotildees com
ardis (furtis) contra os adversaacuterios despreparados (incautum) Vaacuterios feitos de Ulisses satildeo
elencados para culminar nessa conclusatildeo Rheso Doacutelon Heleno e a Palas roubada feitos
executados sorrateiramente e sem testemunhas
Tal qual foi explicado o atributo do agir se expressa pela guerra e pelo combate e
como o proacuteprio Aacutejax jaacute mencionou relaciona-se tambeacutem ao sentido da visatildeo pois deve ser
visto e contemplado agrave luz do dia como estudamos anteriormente As proposiccedilotildees acerca do
Laertida bem como as arguiccedilotildees e provas conduzem-nos a percebecirc-lo como o mestre da
palavra e executor de feitos furtivos Assim se as armas precircmio da disputa em questatildeo satildeo
usadas para a guerra em batalhas vistas ao dia e a guerra eacute expressatildeo dos atributos da accedilatildeo a
pergunta levantada nos versos 103 e 104 impacta natildeo apenas por indicar o heroacutei mais
adequado a recebecirc-las a partir da identificaccedilatildeo do menos adequado mas principalmente por
incitar os espectadores a sentirem as emoccedilotildees suscitadas pela imagem de injusticcedila exposta o
mestre da palavra e natildeo o homem da accedilatildeo premiado com as armas
No verso 112 a pergunta retoacuterica reforccedila essa incoerente e injusta imagem de Ulisses
recebendo as armas pois para a loacutegica de Aacutejax o adversaacuterio enfraqueceraacute o precircmio em seu
110) Conviraacute agrave sinistra covarde e nascida para ardis Por que iacutemprobo reclamas para ti que haacute de enfraquecer a funccedilatildeo Porque se o erro do povo aquivo tiver presenteado a ti seraacute motivo por que sejas espoliado motivo por que natildeo sejas temido pelo inimigo E a fuga pela qual somente inteiro covardiacutessimo triunfas (v 115) haacute de ser morosa para ti que carrega tantos aparatos Acrescenta que esse teu tendo sofrido preacutelios tatildeo raramente eacute um escudo iacutentegro para o nosso que suportando lanccedilas sofre de mil golpes novo sucessor haacute de existir Afinal qual eacute o trabalho das palavras Sejamos contemplados conduzindo a disputa (v 120) as armas do forte varatildeo enviemos ao meio dos inimigos daiacute ordenai serem retomadas e honrai o portador das armas trazidas
124
propoacutesito beacutelico (debiliturum [] munus) As armas satildeo naturalmente improacuteprias para quem
contenda com palavras como eacute o caso do heroacutei de Iacutetaca Contudo a natureza delas se
harmoniza com a do Telamocircnio como esse mesmo diz ldquonossa gloacuteria estaacute unidardquo (coniuncta
gloria mostra est v 96)
Nos versos 105 ndash 118 o Telamocircnio condensa todas as ofensas ao caraacuteter de
adversaacuterio denegrindo sua imagem de heroacutei ateacute em sua virtude mais evidente A base do
ultraje eacute dupla tocando os conceitos de virtude guerreira e de inteligecircncia Quanto agrave primeira
insulta-se a compleiccedilatildeo fiacutesica de Ulisses sob dois aspectos a ausecircncia de forccedila no heroacutei
suficiente para erguer as armas (neque feret tanta pondera) e a ausecircncia mesma de robustez
beacutelica (inbellibus lacertis) Insulta-se tambeacutem o seu acircnimo pois o Laertida eacute referido como
covarde (timidae natae v 111 timidissime v 115) pois o recurso que ele utiliza para sair
triunfante eacute a fuga (fuga v 115) Quanto agrave segunda agrave inteligecircncia eacute vista pelo seu lado
negativo uma vez que seria utilizada para cometer ardis agraves ocultas Assim o elmo natildeo lhe eacute
adequado pois sendo radiante revela os artifiacutecios (insidias v 106) e tambeacutem o seu realizador
escondido (latentem v 106) Sua matildeo esquerda tambeacutem natildeo conveacutem ao escudo de Aquiles
pois eacute nascida para os ardis (ad furta sinistrae v 111) e Aacutejax comprova alegando que o
escudo do adversaacuterio natildeo possui marcas de batalhas eacute iacutentegro ou seja natildeo eacute utilizado
(integer est clipeus v 118) inferindo disso a imagem de um Ulisses natildeo combatente natildeo
beacutelico e sem excelecircncia guerreira
Apoacutes o ataque agrave virtude de Ulisses a imagem paradoxal e contraditoacuteria parece mais
latente e vaacutelida Assim em suas uacuteltimas palavras proclamadas nos versos 120 ndash 122 o
contendor de Salamina dispotildee sua uacuteltima pergunta retoacuterica questionando os espectadores
acerca da proacutepria maneira que se conduz a disputa ou seja por meio de uma querela da
palavra Natildeo haveria na sua perspectiva sentido em promover um debate para se decidir
quem eacute melhor combatente visto que as armas satildeo o precircmio e deveriam estar nas matildeos de
quem possui a virtude adequada Assim ele indaga o proacuteprio papel da palavra (denique quid
uerbis opus est) Essa indagaccedilatildeo potildee mais uma vez em evidecircncia a oposiccedilatildeo entre as duas
noccedilotildees de agir e discursar
Por isso apresenta-se uma proposta obviamente retoacuterica uma soluccedilatildeo para conduzir a
disputa de maneira mais adequada spectemur agendo Natildeo podemos ver o verbo conduzir
agendo sem o seu complemento jaacute manifesto nos versos 5 e 6 agimus [] causam Sua
proposta eacute resolver a disputa atraveacutes de uma querela baseada na qualidade da accedilatildeo ou seja a
guerra enviando as armas para os inimigos e presenteando aquele que recuperaacute-las Toda a
construccedilatildeo eacute retoacuterica Aacutejax natildeo pretende conduzir uma outra disputa mas indicar por meio de
125
sua sugestatildeo mais coerente devido agrave natureza do precircmio que ele mesmo deve ser o vencedor
pois provou ser um heroacutei exiacutemio na guerra o homem de accedilatildeo Contudo o reforccedilo a essa
deduccedilatildeo se faz tambeacutem na forma que os espectadores julgaratildeo a contenda presenciando ou
contemplando sentidos contidos no verbo spectemur Esse verbo abrange desde o sentido de
olhar e contemplar ao de observar atentamente Natildeo de forma arbitraacuteria o heroacutei utiliza esse
termo pois a oposiccedilatildeo entre accedilatildeo mais propriamente na guerra e palavra tambeacutem se
estabelece nas noccedilotildees de luz e de escuridatildeo e de fato presenciado e de natildeo testemunhado de
verdade e de mentira O precircmio tem que ser dado a partir de um evento verdadeiro ou seja de
um ato contemplado pelos olhos agrave luz do dia Logo Ulisses mestre da palavra e executor de
accedilotildees agrave ocultas porta atributos absolutamente contraacuterios aos necessaacuterios para vencer e assim
natildeo deveria recebecirc-los
Essa excelecircncia guerreira de Aacutejax de perspectiva defensiva e reforccediladamente
direcionada agrave proteccedilatildeo dos membros de sua paacutetria e ressoando por isso como a uirtus
romana manifesta-se majoritariamente atraveacutes das fragmentadas analepses trazidas pelo heroacutei
em seu discurso Ela se configura exatamente a partir das narraccedilotildees de proezas passadas em
relaccedilatildeo ao momento da disputa e por isso tais episoacutedios figuram uma caracterizaccedilatildeo indireta
uma vez que a virtude se delineia por meio das inferecircncias que o personagem retira de tais
eventos A exceccedilatildeo eacute a menccedilatildeo ao seu epiacuteteto homeacuterico senhor do escudo de sete dobras
destacadamente uma caracterizaccedilatildeo do tipo direta que reforccedila significativamente o discurso
que segue a descriccedilatildeo Com efeito essa proeminente excelecircncia guerreira fundamenta a
empaacutefia pela qual o heroacutei superestima seu valor diante de seu opositor Ulisses Essa
disposiccedilatildeo eacute fundamental para mover a ira profunda de Aacutejax imprescindiacutevel para o seu
suiciacutedio exatamente porque o heroacutei se encoleriza devido agrave convicccedilatildeo da depreciaccedilatildeo de seus
meacuteritos por parte de seus pares uma vez que ao seu ver a sua desonra foi causada pela
instauraccedilatildeo de uma disputa na qual a vitoacuteria lhe eacute tomada como certa Assim essa virtude do
personagem eacute indispensaacutevel para a estruturaccedilatildeo das motivaccedilotildees que movem o heroacutei
sobretudo do ponto de vista da sua causalidade interna Sua presenccedila alicerccedila a ira que se
prolonga do iniacutecio ao fim do episoacutedio
2 2 2 Ira a ira do heroacutei na perspectiva latina
Como poderemos ver a tradiccedilatildeo latina dos versos de Oviacutedio impotildee na caracterizaccedilatildeo
de Aacutejax a ira e a virtude Esses elementos satildeo representados em dois momentos distintos e
126
opostos estruturalmente no iniacutecio do episoacutedio e ao seu final ambos representativos das
intervenccedilotildees do narrador externo
O primeiro elemento surge com um leacutexico proacuteprio e preciso tanto na descriccedilatildeo de Aacutejax
quanto no desfecho sumarizado o vocaacutebulo latino ira A primeira menccedilatildeo da palavra ira que
delineia o caraacuteter de Aacutejax estaacute inserida no iniacutecio do livro XIII mais precisamente no verso 3
que enfatiza o estado do heroacutei jaacute antes de conhecer o resultado da disputa e ateacute mesmo antes
de ele proferir as primeiras palavras em defesa de si A segunda e uacuteltima menccedilatildeo desse
vocaacutebulo se referindo a Aacutejax como veremos mais adiante eacute tambeacutem empregada por meio de
um narrador externo e situa-se ao fim do episoacutedio no verso 385 quando da decisatildeo do heroacutei
em retirar sua vida apoacutes ter conhecido a escolha dos juiacutezes Isto serve para explicitar como as
duas passagens primeiramente escolhidas para anaacutelise realccedilam como uma moldura os
discursos do personagem Em segundo lugar serve tambeacutem para destacar que a ira do
personagem apesar de se restringir ao episoacutedio da disputa das armas natildeo se daacute apenas depois
do resultado da contenda diferentemente da tradiccedilatildeo homeacuterica Esse sentimento de coacutelera
compotildee a caracteriacutestica do personagem acompanhando-o por todo o episoacutedio obviamente
agravando-se em seu final
Esse sentimento eacute bem conhecido entre os romanos figurando inclusive uma das
paixotildees estudadas nos textos filosoacuteficos de Secircneca nos quais define que ldquonatildeo haacute duacutevida que a
imagem carregada de injusticcedila mova a irardquo (Iram quin species oblata iniuriae moueat non est
dubium Sobre a ira II 1 3 1) ou quando diz que ldquoa causa da iracuacutendia eacute a convicccedilatildeo de
uma injusticcedilardquo (causa [] iracundiae opinio iniuriae est Ibidem II 22 2 2-3) Certamente
podemos reconhecer tais premissas na caracterizaccedilatildeo da ira do personagem em questatildeo uma
vez que este se sente ultrajado na honra ndash isso configura a injusticcedila no seu ponto de vista ndash no
momento em que um adversaacuterio tambeacutem reclama as armas do Pelida para si Como vimos na
seccedilatildeo passada esse ato eacute considerado pelo Telamocircnio como uma accedilatildeo depreciativa de seus
meacuteritos sobretudo porque para ele sua excelecircncia guerreira eacute reconhecidamente superior agrave
dos outros heroacuteis o que tornaria qualquer disputa acerca disso uma contenda inoacutecua
O segundo elemento a noccedilatildeo de virtude a priori beacutelica e defensiva como vimos
expressa-se por meio de um epiacuteteto mas tambeacutem pelo verbo sustineo Contudo esses dois
momentos do episoacutedio o iniacutecio e o fim fazem-se significativos pois de forma sinteacutetica
antecipatoacuteria e conclusiva delineiam as noccedilotildees de ira e de virtude emoldurando o longo
discurso direto de Aacutejax e Ulisses Passemos agora a ver como tais elementos se tornam
basilares agrave unidade textual disposta em todo o episoacutedio comeccedilando por essas interferecircncias
127
do narrador externo que configuram um estudo de caracterizaccedilatildeo propriamente direta Os
trechos a ser estudados satildeo os versos 1 ao 5 e os versos 385 ao 390
Vejamos entatildeo o primeiro fragmento alongado aqui por questotildees de compreensatildeo do
texto contendo a primeira menccedilatildeo ao termo ira Observa-se especialmente um dos dois
uacutenicos casos em que o vocaacutebulo latino ira eacute expresso se referindo a Aacutejax
Consedere duces et uulgi stante corona Surgit ad hos clipei dominus septemplicis Aiax Vtque erat inpatiens irae Sigeia toruo Litora respexit classemque in litore uultu Intendensque manus ldquoAgimus pro Iuppiterrdquo inquit 5 ldquoAnte rates causam et mecum confertur Ulixesrdquo34
(Metamorfoses XIII v 1 ndash 6)
Dentro dos versos acima citados de um todo significativo para o que tentamos
mostrar evidenciamos primeiramente o sintagma inpatiens irae O seu primeiro componente
eacute um adjetivo formado da partiacutecula negativa in unida ao particiacutepio presente do verbo depoente
patior Esse verbo abarca o significado de sofrer suportar durar permitir e alguns outros por
extensatildeo de sentido Cabe aqui precisarmos o significado mais saliente no trecho suportar
tolerar Por ser derivado de um radical verbal esse componente ainda admite complemento
que nesse sintagma daacute-se com o genitivo irae revelando-nos seu significado especiacutefico que
natildeo suporta ou conteacutem a ira Aleacutem disso esse verbo eacute depoente e transfere agraves suas formas
derivadas uma outra noccedilatildeo semacircntica que lhe eacute proacutepria Esse tipo de verbo expressa sentido
semelhante ao da voz meacutedia na liacutengua grega claacutessica jaacute explicada anteriormente
Devido agrave noccedilatildeo do verbo depoente o sintagma expressa que a accedilatildeo se realiza na esfera
do sujeito ou seja revelando algo que eacute proacuteprio do indiviacuteduo sobre o qual a accedilatildeo se
manifesta sendo-lhe subjetivo a incapacidade de domiacutenio de si a impossibilidade de conter a
emoccedilatildeo por alguma razatildeo particular a qual noacutes jaacute conhecemos a aparente depreciaccedilatildeo de sua
honra e de seus meacuteritos guerreiros A relaccedilatildeo de interesse do heroacutei com o ato verbal lhe
confere uma impossibilidade que lhe eacute proacutepria subjetiva a Aacutejax pois a singularidade maior
do sintagma estaacute na relaccedilatildeo pessoal do heroacutei com esse sentimento ndash no seu eventual embate
com ela e na sua eventual submissatildeo ndash traccedilo peculiar do personagem no episoacutedio em 34 Sentaram-se juntos os chefes e os soldados formando-se um ciacuterculo junto a estes surge o senhor do escudo de sete dobras Aacutejax e como natildeo estava suportando a ira para os litorais Sigeios e para a frota no litoral voltou o olhar com torva expressatildeo e estendendo as matildeos diz ldquoperante Juacutepiter diante das naus (v 5) conduzimos a disputa e comigo Ulisses eacute reunido
128
questatildeo tambeacutem presente na tradiccedilatildeo Observamos assim que Oviacutedio natildeo se utiliza apenas
do elemento isolado ira para compor a caracterizaccedilatildeo do personagem pois a nuance
linguiacutestica da composiccedilatildeo manifesta muito mais do que apenas o sentimento de coacutelera
Podemos ainda observar o verso trecircs sob uma simulaccedilatildeo de foacutermula homeacuterica tal
como fizemos no verso dois anteriormente pois apesar de natildeo existir propriamente um
epiacuteteto ou uma foacutermula eacutepica a ira caracterizada do personagem parece simular uma foacutermula
epiteacutetica destacada pela cesura meacutetrica no sentido de reforccedilar um determinado aspecto do
personagem
O verso em questatildeo apresenta o estado do heroacutei por meio de uma oraccedilatildeo causal que
aparentemente apenas justifica seu comportamento na oraccedilatildeo que se segue ndash a torva
expressatildeo ndash e que se completa no verso seguinte ldquoVtque erat inpatiens irae Sigeia toruo []
uulturdquo De forma semelhante ao verso anterior uma cesura pentemiacutemera pouco acrescentaria
pois o segundo hemistiacutequio separaria o complemento irae do adjetivo inpatiens causando
novamente um estranhamento agrave elocuccedilatildeo latina e natildeo evidenciando o sintagma Vejamos
ldquo Vtque e rat ınpatıens ı rae Sı geıa toruordquo Mais uma vez preferimos a cesura
heftemiacutemera pois sua cesura principal separa as duas oraccedilotildees a que finda no verso trecircs e a
que se completa apenas no verso quatro e por consequecircncia evidencia a harmonia entre as
disposiccedilotildees meacutetrica e sintaacutetica fundamental para um destaque semacircntico Vejamos ldquoVtque
erat ınpatıens ı rae Sı geıa toruordquo Assim a estrutura natildeo soacute acentua a elocuccedilatildeo latina
pois ao ocupar todo um hemistiacutequio simula estruturalmente por meio da forma meacutetrica uma
foacutermula eacutepica que segue as mesmas diretrizes meacutetricas dos epiacutetetos homeacutericos Com efeito
aleacutem de delinear a ira como um estado do heroacutei isso tambeacutem nos permite vecirc-la como uma
caracteriacutestica natildeo meramente circunstancial mas destacadamente estrutural dentro do
episoacutedio
O verso trecircs ainda traz mais possibilidades de interpretaccedilatildeo Uma cesura secundaacuteria
trimiacutemera jaacute vista quase sempre acompanha a cesura heftemiacutemera principal ainda que por
tmese em partiacuteculas prefixais e eacute de uso frequente dos latinos (PLESSIS 1889) Vejamos
ldquo Vtque e rat ınpatıens ı rae Sı geıa toruordquo Essa possibilidade frequente nos latinos
nos conduz a uma interpretaccedilatildeo ainda mais significativa Ao separar no primeiro hemistiacutequio
o predicativo do verbo centraliza-se o sintagma estudado por noacutes em sua raiz primeira sem
prefixaccedilatildeo patiens irae Essa cesura secundaacuteria aleacutem de evidenciar o estado de Telamocircnio
essencial para a interpretaccedilatildeo do episoacutedio sugere pela pausa meacutetrica um duplo significado do
sintagma Junto ao primeiro ligado agrave ideia de suportar teriacuteamos o segundo sem a prefixaccedilatildeo
129
ligado ao sentido de sofrer Como veremos mais adiante esse uacuteltimo sentido tambeacutem pareceraacute
fundamental na estrutura do mito
Poderiacuteamos supor ateacute entatildeo que o estado coleacuterico do heroacutei inicialmente parece
circunstancial ao episoacutedio pois seria apenas a causa ou o motivo da accedilatildeo do heroacutei descrita na
oraccedilatildeo seguinte que voltou o olhar com torva expressatildeo respexit toruo uultu Entretanto a
partir da importacircncia que a tradiccedilatildeo daacute a esse aspecto do personagem a ira no episoacutedio da
disputa pelas armas de Aquiles parece-nos natural observar com mais atenccedilatildeo o trecho Nesse
ponto entatildeo destaca-se a nossa anaacutelise que corrobora o papel estrutural e natildeo circunstancial
desse sentimento nesse episoacutedio uma vez que se junto agrave estrutura meacutetrica reforccedilativa
proacutepria dos epiacutetetos considerarmos a organicidade entre o uso das foacutermulas eacutepicas e os seus
discursos diretos procedentes no sentido de contextualizaccedilatildeo e de integraccedilatildeo daquelas com
relaccedilatildeo a estes Entretanto para validar nossa interpretaccedilatildeo ainda eacute preciso observar a carga
significativa desse traccedilo de Aacutejax no episoacutedio todo
Assim conveacutem contemplarmos o segundo fragmento escolhido para estudo ainda
correspondente ao narrador externo os versos 385 ndash 390 inseridos na seccedilatildeo desfecho
sumarizado Lembremos que nesta passagem vemos a segunda menccedilatildeo de todo o episoacutedio
do vocaacutebulo latino ira aplicado ao personagem bem como a referecircncia agrave qualidade defensiva
de sua virtude guerreira novamente por meio da utilizaccedilatildeo do verbo latino sustineo
recorrente nesse episoacutedio Vejamos como esses elementos se unem para compor o desfecho
do episoacutedio e para a melhor compreensatildeo da relaccedilatildeo das partes do texto na estruturaccedilatildeo de sua
unidade Abaixo segue o fragmento
Hectora qui solus qui ferrum ignesque Iouemque Sustinuit totiens unam non sustinet iram 385 Inuictumque uirum uincit dolor arripit ensem Et ldquoMeus hic certe est an et hunc sibi poscit Vlixes Hocrdquo ait ldquoitendum est in me mihi quique cruore Saepe Phrygum maduit domini nunc caede madebit Ne quisquam Aiacem possit superare nisi Aiaxrdquo 390 Dixit et in pectus tum demum uulnera passum Qua patuit ferro letatem condidit ensem35
(Metamorfoses XIII v 384 ndash 392)
35 (Aacutejax) que sozinho susteve Heitor e que o ferro as chamas e Juacutepiter tantas vezes susteve natildeo susteacutem somente a ira (v 385) a dor vence o heroacutei invicto toma a espada e diz ldquocertamente esta eacute minha acaso Ulisses exige para si Isto haveraacute de ser usado por mim contra mim e que vaacuterias vezes por cruor dos friacutegios esteve coberto agora estaraacute por sangue do dono ningueacutem possa superar Aacutejax senatildeo Aacutejaxrdquo (v 390) Disse e entatildeo finalmente afundou a espada letal no peito sofrido de dores no lugar que expocircs para o ferro
130
Dentro dessa passagem destacamos primeiramente a oraccedilatildeo unam non sustinet iram
Observamos nessa composiccedilatildeo o termo iram acompanhado do adjetivo unam que o restringe
fornecendo o significado uma soacute ira a ira somente O verbo sustineo possui o sentido de
suster sustentar suportar Natildeo haacute como natildeo o relacionar com o verbo patior referido no
trecho anterior pois os dois verbos se inserem dentro do mesmo campo semacircntico Nesse
fragmento mais uma vez o vocaacutebulo ira eacute complemento e Aacutejax aquele que pratica a accedilatildeo
Vemos assim uma estrutura linguiacutestica e semanticamente espelhada em que a ira eacute
complemento ora nominal ora verbal tanto em inpatiens irae quanto em non sustinet iram
Essa estrutura evidencia um aspecto chave no episoacutedio a impossibilidade do Telamocircnio em
conter a ira que o domina e impulsiona as suas accedilotildees durante todo o episoacutedio
A cesura meacutetrica do verso tambeacutem parece acentuar a importacircncia da passagem para o
entendimento do episoacutedio Vejamos ldquoSustınuıt totıens unam non sustınet ıramrdquo A
cesura pentemiacutemera primeiramente isola dois conteuacutedos dos quais o segundo retoma e
enfatiza a ira do heroacutei Essa ecircnfase se faz natildeo soacute pela divisatildeo dos conteuacutedos em dois
hemistiacutequios mas especialmente porque esses dois componentes se opotildeem e se completam
por meio de um mesmo verbo repetido no verso sustineo O entendimento do segundo
hemistiacutequio se faz a partir do primeiro pois se apenas a ira natildeo eacute sustentada por Aacutejax isso se
acentua diante de tudo aquilo que o heroacutei susteve ndash Heitor as armas pela metoniacutemia do ferro
as chamas e Juacutepiter ndash e que corrobora mais uma vez sua virtude guerreira em sua qualidade
defensiva Esses episoacutedios em analepse agora satildeo retomados a partir da voz do narrador
reforccedilando esses mesmos eventos que foram mencionados pelo proacuteprio contendor quando em
seu discurso
O entendimento pleno da passagem e da estrutura do episoacutedio se daacute ao contrapormos
esse verso aos iniciais jaacute estudados Isso nos conduz a uma relaccedilatildeo fundamental das partes do
texto que realccedila a funccedilatildeo da ira na versatildeo de Oviacutedio do mito vinculando a ela um outro
elemento o sentido de contenccedilatildeo ou seja a capacidade de suportar ou suster que junto agrave ira
daacute estruturaccedilatildeo ao episoacutedio A capacidade de contenccedilatildeo que marca o maior atributo do
personagem natildeo eacute suficiente para que ele domine seu temperamento Mesmo sendo de
acircmbitos diferentes a capacidade guerreira e a emocional o autor significativamente evidencia
a uniatildeo dessas qualidades uma vez que o verbo sustineo eacute usado para ambas Contudo mais
adiante veremos os propoacutesitos dessa conjunccedilatildeo
Podemos tambeacutem retirar outras relaccedilotildees significativas e esclarecedoras a partir da
estruturaccedilatildeo dos componentes dessas duas oraccedilotildees Na oraccedilatildeo non sustinet iram Aacutejax figura
o sujeito pois eacute aquele que pratica a accedilatildeo em oposiccedilatildeo a isso na oraccedilatildeo inuictumque uirum
131
uincit dolor o heroacutei representa o complemento verbal aquele que sofre a accedilatildeo Assim haacute
uma relaccedilatildeo significativa na accedilatildeo praticada que ao heroacutei retorna pois ora ele a executa e
consequentemente ora ele a sofre Dessa estrutura invertida e natildeo gratuita podemos
completar e reforccedilar o duplo sentido no sintagma inpatiens irae uma vez que ao fim do
episoacutedio dois sentidos satildeo conjugados o de dor sofrida e o de ira natildeo suportada fazendo com
que percebamos a relaccedilatildeo de desdobramento de patior em sofrer e suportar sintetizando
antecipadamente os sentidos de dolor e sustineo Pois se patior eacute um verbo depoente e traz
consigo toda uma relaccedilatildeo que suplanta atividade e passividade em um novo sentido as duas
oraccedilotildees dos versos 385 e 386 reforccedilam essa ideia ao expressar um heroacutei praticante de uma
accedilatildeo que resulta em outra que o acomete ou seja evidenciando uma relaccedilatildeo mais
significativa do personagem com essas accedilotildees
Diante desse entendimento o caraacuteter epiteacutetico reforccedilativo do sintagma inpatiens irae
entatildeo faz-se patente parece-nos pois sintetiza a dupla relaccedilatildeo do sentimento de ira e de
virtude expressa por meio da capacidade de conter que sustenta e alicerccedila a trama do
episoacutedio e sua rede de relaccedilotildees fundamentando a caracterizaccedilatildeo do personagem Essa
elaboraccedilatildeo literaacuteria faz com que as partes do texto dialoguem e se complementem
constituindo uma unidade textual uma estrutura fixada com um objetivo que ao ser revelada
permiti-nos compreender por exemplo a relaccedilatildeo da virtude preponderante de Aacutejax com
sintagma inpatiens irae Vimos em nossa anaacutelise que haacute um espelhamento entre inpatiens irae
e non sustinet iram poreacutem o sentido do verbo sustineo abarca apenas um dos dois
significados sugeridos no verso 3 o de suportar ou suster Mas a cesura meacutetrica desse mesmo
verso parece tambeacutem destacar o primeiro sentido de patior o de sofrer Conveacutem acentuarmos
esse significado a partir do verso 387 O trecho explicitamente agora acrescenta esse
elemento apenas sugerido no verso 3 descrevendo que a dor vence o heroacutei invicto
inuictumque uirum uincit dolor Natildeo haacute como natildeo relacionarmos dor a sofrer e por
consequecircncia dolor a patior e patior a sustineo A rede de relaccedilotildees torna-se cada vez mais
complexa contudo apenas intensifica a unidade textual estruturada nos conceitos de virtude e
de ira
No episoacutedio de Metamorfoses acerca da disputa das armas pode-se observar que o
Telamocircnio natildeo suporta a sua ira non sustinet iram e a dor o vence dolor vincit uirum e no
lugar onde ele crava a espada noacutes vemos mais um reforccedilo da participaccedilatildeo da dor no episoacutedio
O lugar exposto para o ferro patuit ferro eacute o peito pectus que se encontra ferido
machucado passum particiacutepio passado de patior mas natildeo de lesotildees fiacutesicas O proacuteprio texto
nos aponta isso pois no discurso de Ulisses ele revela que o Telamocircnio dedicou nada de
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sangue aos amigos por todos os anos e tem o corpo sem ferimento at nihil impendit per tot
Telamonius annos sanguinis in socios et habet sine uulnere corpus (v 266-267)
Aacutejax natildeo foi ferido pelos inimigos e por isso possui o corpo sem ferimento sine
uulnere assim essa utilizaccedilatildeo da palavra se refere a um ferimento fiacutesico diferente do que
acontece com essa mesma palavra ao ser usada como o complemento de passum uulnera
pois reflete entatildeo somente o sentido de ferimento e dor causados pela desonra pela
depreciaccedilatildeo por que o personagem passou Se antes a ideia simultacircnea de suportar e de sofrer
parecia apenas possiacutevel sugerida pelo destaque meacutetrico do sintagma inpatiens irae que
simulava a forma e o caraacuteter reforccedilativo de um epiacuteteto agora parece-nos que essa imagem se
torna mais pertinente especialmente se considerarmos a Retoacuterica de Aristoacuteteles que alicerccedila
na ira a noccedilatildeo de dor bem como a obra Sobre a Ira de Secircneca que natildeo se afastando da
concepccedilatildeo do filoacutesofo grego diz ldquoa ira ser a vontade de devolver a dorrdquo (iram esse
cupiditatem doloris reponendi I 3 3 2) Logo do estado iracundo do heroacutei natildeo podemos
retirar os sentimentos de dor e de injusticcedila presentes Assim nada mais significativo do que
apresentar um personagem cujo sentimento de ira participaraacute de toda a cena ao menos
simulando as foacutermulas eacutepicas de maneira a sintetizar em um mesmo sintagma as concepccedilotildees
de dor injusticcedila essenciais sobretudo no episoacutedio em questatildeo conjuntamente com a de
coacutelera profunda
Para que possamos observar como nesse episoacutedio entrelaccedilam-se as noccedilotildees de ira e de
dor conveacutem contemplarmos a unidade textual proposta por Oviacutedio Esse autor parece precisar
esse pensamento por meio de sua unidade lexical que sugere diferenciar as vaacuterias nuances
desencadeadas por vocaacutebulos que exprimam significados proacuteximos ao do vocaacutebulo ira A
clareza do plano linguiacutestico do episoacutedio acarreta a exatidatildeo de pensamento e de sentido no
texto Aleacutem do vocaacutebulo latino ira outros se agregam com sentido semelhante entre eles
podemos citar o verbo de mesma raiz irascor e o substantivo furor Apesar de estarem
dentro do mesmo campo semacircntico as escolhas linguiacutesticas do autor pelo menos para o
episoacutedio em questatildeo parecem opor e precisar os seus significados tornando mais indubitaacutevel
a relaccedilatildeo de ira com dor Vejamos primeiramente o vocaacutebulo furor
Dentro do episoacutedio estudado esse vocaacutebulo aparece trecircs vezes Todas as menccedilotildees
estatildeo presentes no discurso de Aacutejax e tambeacutem estatildeo inseridas no mesmo contexto na
analepse do episoacutedio da artimanha de Ulisses para evitar a convocaccedilatildeo ao exeacutercito grego Eacute se
referindo a esse contexto que os versos satildeo mencionados e ao personagem Ulisses que o
vocaacutebulo furor se liga Abaixo seguem os versos das trecircs passagens seguidos das traduccedilotildees
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Arma neganda mihi potiorque uidebitur ille 35 Vltima qui cepit detrectauitque furore Militiam ficto donec sollertior isto Et sibi inutilior timidi commenta retexit Naupliades animi uitataque traxit ad arma36
(Metamorfoses XIII v 35 ndash 39 grifo nosso) Atque utinam aut uerus furor ille aut creditus esset Nec comes hic Phrygias umquam venisset ad arces Hortator scelerum Non te Poentia proles 45 Expositum Lemnons nostro cum crimine haberet37
(Metamorfoses XIII v 43 ndash 46 grifo nosso) ille tamen uiuit quia non comitavit Vlixen 55 Mallet et infelix Palamedes esse relictus uiueret aut certe letum sine crimine haberet Quem male conuicti nimium memor iste furoris Prodere rem Danaam finxit fictumque probauit crimen et ostendit quod iam praefoderat aurum 38 60
(Metamorfoses XIII v 55 ndash 60 grifo nosso)
Podemos observar que o vocaacutebulo latino furor estaacute inserido em um campo semacircntico
ao qual se fixa ira visto que alguns dicionaacuterios abonam seu sentido de furor fuacuteria ira raiva
ou coacutelera Contudo haacute nessa palavra uma nuance primeira que lhe eacute proacutepria e que precisa o
seu significado no sentido de loucura devaneio frenesi Os trechos corroboram esse sentido
especiacutefico proacuteprio do vocaacutebulo pois rementem ao estado de loucura de Ulisses descrito no
episoacutedio do mito da convocaccedilatildeo dos heroacuteis gregos
Aqui trecircs coisas se fazem importantes A primeira se manifesta na qualidade dessa
loucura pois ela natildeo eacute verdadeira mas dissimulada forjada furore ficto A segunda reside no
desejo impossiacutevel e irreal de Aacutejax expresso com o subjuntivo passado esset de que aquela
loucura fosse verdadeira ille furor verus A terceira se expressa na consequecircncia loacutegica
revelada no argumento do discurso do Telamocircnio o desejo impossiacutevel e irreal encontra uma
finalidade pois seria a fim de que Ulisses natildeo viesse agrave guerra de Troia nec venisset ad arces
Phrygias Essa consequecircncia parece eventual e direta se a loucura fosse verdadeira
36 As armas hatildeo de ser negadas para mim E pareceraacute mais preferiacutevel (v 35) aquele que tomou as uacuteltimas e recusou a expediccedilatildeo com loucura forjada ateacute que mais industrioso que esse e mais prejudicial a si o Naupliacuteade revelou os fingimentos De espiacuterito covarde e trouxe-o para as armas evitadas 37 E que aquela loucura fosse verdadeiro ou fosse acreditada para que este companheiro natildeo viesse algum dia agraves cidadelas Friacutegias estimulador de crimes Prole de Peante que Lemnos (v 45) natildeo te tivesse abandonado com nosso crime 38 Aquele [Filoctetes] contudo vive pois natildeo seguiu Ulisses (v 55) o infeliz Palamedes preferisse ser deixado viveria ou certamente teria morte sem crime a quem este [Ulisses] bem lembrado da loucura mal provada forjou revelar tesouro dacircnao comprovou o crime forjado e mostrou o ouro pois jaacute o tinha enterrado antes (v 60)
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Isso nos sugere uma oposiccedilatildeo imprescindiacutevel aos vocaacutebulos ira e furor e significativa
para o episoacutedio em questatildeo A princiacutepio a loucura ou o devaneio significados contidos em
furor natildeo nos parece ser passiacutevel de resistecircncia Parece-nos talvez natildeo relacionado a um
aspecto fiacutesico-emocional no acircmbito do autocontrole daquele que a loucura acomete Pois
aquele que estaacute submetido a esse frenesi eacute passivo nesse processo natildeo sendo possiacutevel se
desvencilhar da situaccedilatildeo a partir de uma accedilatildeo interna do proacuteprio sujeito pelo menos eacute o que
sugerem os versos A loucura de Ulisses se fosse verdadeira incapacitaacute-lo-ia de participar da
guerra pois a vitoacuteria do heroacutei sobre a mesma natildeo seria possiacutevel
Essa precisatildeo na escolha dos vocaacutebulos estrutura a unidade lexical do episoacutedio A
nuance semacircntica do vocaacutebulo furor que no texto se evidencia define melhor o proacuteprio
sentido de ira pois os dois a princiacutepio semelhantes se opotildeem completamente ao serem
usados em contextos diferentes Por um lado furor eacute utilizado para um sentido de loucura e
devaneio ira eacute usado mais para um sentido de rancor e coacutelera O primeiro arrebata o heroacutei
sem luta e sem resistecircncia o segundo o submete por meio de um confronto de forccedilas a partir
de um aspecto fiacutesico-emocional sobre o qual o sujeito tem poder de intervenccedilatildeo Assim Aacutejax
na versatildeo de Oviacutedio natildeo eacute tomado por uma loucura mas sim por uma ira profunda que nasce
da proacutepria situaccedilatildeo do episoacutedio e que o vence pois ele natildeo consegue sustentaacute-la ou contecirc-la
e que o impulsiona a cometer o suiciacutedio
A menccedilatildeo do verbo irascor ratifica a interpretaccedilatildeo de um sentido ligado a um aspecto
fiacutesico-emocional e o faz ainda retomando o elemento dor Vejamos o trecho abaixo que
descreve um fragmento do discurso de Ulisses
Vt dolor unius Danaos peruenit ad omnes Aulidaque Euboicam conplerunt mille carinae Exspectata diu nulla aut contraria classi Flamina erant duraeque iubent Agamemnona sortes Immeritam saevae natam mactare Dianae 185 Denegat hoc genitor diuisque irascitur ipsis39
(Metamorfoses XIII v 181- 186 grifo nosso)
Esses versos fazem referecircncia ao episoacutedio da guerra de Troia que situa o nuacutecleo da
convocaccedilatildeo dos heroacuteis gregos Em Aacuteulide os exeacutercitos se reuacutenem formando um uacutenico corpo
agora comandado por um soacute rei Agamecircmnon Esse episoacutedio trata de uma situaccedilatildeo que potildee
toda expediccedilatildeo diante de um possiacutevel fracasso pois os ventos favoraacuteveis agrave frota que a
39
A dor de um chega ateacute todos os Dacircnaos e mil popas encheram a Aacuteulide eubeia Muito tempo esperado nenhum vento era favoraacutevel agrave frota duras sortes decretam Agamecircmnon sacrificar a filha inocente para a feroz Diana (v 185) Este genitor recusa e ira-se com os proacuteprios deuses
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levariam a Troia soacute satildeo possiacuteveis por meio do sacrifiacutecio da filha de Agamecircmnon O sucesso
da empreitada depende do seu liacuteder ao qual todo o exeacutercito se submete
Podemos ver que o fragmento descreve a dor de um homem chegar a todos os Dacircnaos
dolor unius Agamecircmnon tambeacutem sofre pelo decreto da deusa que o impele a matar a filha e
o exeacutercito sofre devido agrave possibilidade de a reuniatildeo ter sido em vatildeo Sabemos que
Agamecircmnon realiza aquilo desejado pela deusa mas Diana substitui Ifigecircnia por uma corccedila
Contudo os versos evidenciam todo o sofrimento e o dilema passado pelos gregos revelando
que antes de Agamecircmnon realizar o ato propriamente dito recusa executaacute-lo denegat
chegando a se indignar-se ou mais propriamente irar-se irascitur com os deuses
O verbo depoente irascor figura o envolvimento de Agamecircmnon com a accedilatildeo de irar-
se A noccedilatildeo depoente implica uma relaccedilatildeo subjetiva e pessoal do heroacutei nesse ato que
semelhantemente ao do Telamocircnio parece-nos mais uma vez relacionar-se com sofrimento e
com dor Na relaccedilatildeo semacircntica disposta no episoacutedio do sacrifiacutecio na versatildeo de Oviacutedio e na
loacutegica de causalidade expressa a dor de Agamecircmnon eacute imprescindiacutevel agrave sua ira contra os
deuses pois este sentimento se desenvolve a partir daquele
Podemos ainda relacionar uma cadeia maior por meio da noccedilatildeo de causalidade
corrente nessa analepse A sequecircncia se inicia com o decreto da deusa que implica a dor
individual de Agamecircmnon nele desenvolvendo-se a ira responsaacutevel pela recusa ao sacrifiacutecio
ato que acarreta a dor coletiva dos gregos pois representa o possiacutevel fracasso na campanha
militar contra os troianos A relaccedilatildeo entre sofrimento individual e o coletivo se faz no
envolvimento de Agamecircmnon com a accedilatildeo de irar-se em que estaacute necessariamente vinculada agrave
sua dor particular de pai diante da accedilatildeo a ser tomada contra sua proacutepria filha
Esse viacutenculo estrutural e semacircntico entre dor e ira disposto na caracterizaccedilatildeo tanto de
Aacutejax personagem central do episoacutedio quanto de Agamecircmnon de reforccedilo argumentativo
configura a ira ao menos nos dois casos desse episoacutedio desenvolvida sob o aspecto fiacutesico-
emocional e que se expressa senatildeo no interesse do agente verbal Dessa forma a dor parece
indissociaacutevel da noccedilatildeo da ira independente se surge do acircmbito afetivo cultural social etc
A partir dessas consideraccedilotildees o segundo verso do Livro XII nos parece mais
promissor O epiacuteteto senhor do escudo de sete camadas clipei dominus septemplicis natildeo eacute
referido arbitrariamente por Oviacutedio em seu texto pois atraveacutes dele toda uma imagem
significativa de heroacutei vem agrave tona a de proteccedilatildeo Eacute por meio da noccedilatildeo de proteccedilatildeo que se cria
imagem de um Aacutejax que conteacutem o inimigo e seus ataques O escudo para isso eacute fundamental
Esse sentido do epiacuteteto que se faz por si soacute ganha reforccedilo e destaque no episoacutedio quando nos
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versos 385-386 descreve-se tudo aquilo que Aacutejax pocircde conter em oposiccedilatildeo agrave uacutenica coisa que
ele natildeo pocircde
Isso eacute importante porque por um lado os dois conteuacutedos trazidos nos versos 385 e
386 estruturam-se como complementos do verbo sustineo fornecendo uma carga semacircntica
que evidencia a oposiccedilatildeo de seus dois componentes aquilo que eacute contido pelo heroacutei como
Heitor as armas as chamas e Juacutepiter e aquilo que natildeo eacute contido restrito unicamente ao
sentimento de ira unam iram Por outro os mesmos dois conteuacutedos relacionam-se
estruturalmente e dialogam a partir do mesmo verbo sustineo convergindo o sentido dos dois
componentes em um mesmo ponto em um mesmo atributo caracteriacutestico de Aacutejax sua
virtude e mais propriamente sua capacidade de suster e conter que une e opotildee significados
beacutelicos e emocionais
Contudo eacute o conteuacutedo do discurso de Aacutejax que nos revela a natureza de sua
compreensatildeo de mundo e de valores importante pois por meio dela percebemos como o
personagem vecirc a proacutepria situaccedilatildeo em que se encontra responsaacutevel pela origem da ira e da dor
que o acometem Sua perspectiva de valores recai sobre dois conceitos importantes accedilatildeo e
palavra ou seja agir e discursar A oposiccedilatildeo entre estes dois eacute a base do encadeamento loacutegico
das proposiccedilotildees do personagem e por reflexo eacute tambeacutem a natureza de seu estilo retoacuterico que
recebe um reforccedilo significativo do seu estado iracundo
Para ampliar e reforccedilar o que jaacute foi estudado conveacutem lembrarmos do que a tradiccedilatildeo
homeacuterica guardou acerca da oratoacuteria de Aacutejax especialmente contraposta agrave de Ulisses
O exemplo claacutessico que jaacute citamos estaacute contido no Canto IX da Iliacuteada Podemos
observar de forma clara jaacute um elemento de diferenccedila entre os discursos de Odisseu e Aacutejax
Para o primeiro Homero dedicou oitenta e dois (82) versos (v 225-306) para o segundo
dezenove (19) versos (v 642-642) Isso nos mostra que na versatildeo homeacuterica o discurso do
Laertida eacute ao menos quatro vezes maior do que o do Telamocircnio caracterizando aquele como
mais prolixo e este mais direto
A versatildeo de Oviacutedio segue padrotildees semelhantes no entanto com uma diferenccedila menor
na extensatildeo do discurso O discurso de Ulisses se desenvolve em duzentos e cinquenta e
quatro (254) versos (v 128-381) enquanto o de Aacutejax se estende por cento e dezoito (118)
versos (v 5-122) Isso corresponde ao menos a um discurso duas vezes maior Apesar de
alongar o discurso do heroacutei de Salamina o de Iacutetaca ainda se mostra bem maior preservando
ainda a tradicional caracterizaccedilatildeo dos dois personagens Isso permite ao primeiro a
possibilidade de uma capacidade retoacuterica que segundo Elaine Fantham (KNOX 2009) e Neil
Hopkinson (2000) soacute natildeo foi efetiva porque natildeo estava direcionada aos seus iguais aos reis
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mas agrave massa anocircnima de soldados Dessa forma natildeo lhe faltam no discurso e isso eacute
claramente visiacutevel sentenccedilas de cunho exortativo frases de efeito perguntas retoacutericas e uma
aguda ironia que para noacutes parece reforccedilar a ira do heroacutei presente antes e ao longo de seu
discurso
A complexidade levantada acerca da unidade textual do episoacutedio sustenta
significativamente como chave de leitura a ira do personagem como oriunda da dor que
acomete o heroacutei Esta se estabelece a partir da convicccedilatildeo de que o personagem tem da sua
proacutepria situaccedilatildeo baseado em seus valores guerreiros sobretudo defensivos vinculados agrave
oposiccedilatildeo entre as qualidades de accedilatildeo proacuteprias dele mesmo e da palavra proacuteprias de Ulisses
Assim parece-nos que o discurso de Aacutejax seria mais propriamente de estilo oratoacuterio emotivo
e exortativo como jaacute dissemos movido pela ira e pela dor e empregado para comover e
incitar os ouvintes fomentando-lhes a agitaccedilatildeo das emoccedilotildees e dos sentimentos ainda que se
utilize de princiacutepios loacutegicos e dedutivos Para chegarmos a uma conclusatildeo mais soacutelida sobre
esse pensamento devemos considerar ao menos as duas seguintes informaccedilotildees
A primeira nos eacute trazida por Neil Hopkinson ao analisar Aacutejax no livro XIII utilizando-
se de alguns escritos de Quintiliano dispostos abaixo (2000)
Nec hoc quidem negauerim sequi plerum hanc opinionem ut fortius dicere uideantur indocti primum uitio male iudicantium qui maiorem habere uim credunt ea quae non habent artem ut effringere quam aperire rumpere quam soluere trahere quam ducere putant robustius Nam et gladiator qui armorum inscius in rixam ruit et luctator qui totius corporis nisu in id quod semel invasit incumbit fortior ab his vocatur cum interim et hic frequenter suis uiribus ipse prosternitur et illum uehemens impetus excipit aduersii mollis articulus40
(Institutio Oratoria 2 12 1 ndash 2)
Neil Hopinkson para mostrar que o chefe de Salamina eacute representado por Oviacutedio
como de discurso objetivo e direto tal qual se condiz a um guerreiro mas tambeacutem de um
estilo oratoacuterio vigoroso e emotivo mal controlando-se suas emoccedilotildees compara os indocti do
fragmento acima a uulgi dos primeiros versos do livro XIII Pois se o discurso repercutiu
realmente sobre agrave massa dos soldados como vemos nos versos ldquotinha terminado o gerado de
Teacutelamon e da tropa o murmuacuterio que seguiu era as uacuteltimas coisasrdquo (finierat Telamone satus 40
Certamente ao seguir-se esta opiniatildeo geral isto natildeo neguemos que os ineptos sejam vistos dizendo mais vigorosamente primeiramente por mau erro dos que julgam que creem ter a forccedila maior as coisas que natildeo tecircm arte assim como acham mais vigoroso arrombar do que abrir romper do que solver e trazer do que conduzir E assim o gladiador que descuidado das armas precipita-se na contenda e o lutador que por esforccedilo de todo o corpo apoia-se no golpe que empreendeu satildeo chamados de mais fortes quando contudo tanto este mesmo frequentemente eacute derrubado pelas suas forccedilas quanto a mole articulaccedilatildeo do adversaacuterio susteacutem aquele de ataque rigoroso
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uulgique secutum ultima mumur erat v 123 ndash 124) fez-se porque esse grupo representa a
opiniatildeo geral que associa a pujanccedila ao discurso sem retoacuterica porque prefere os que a ele se
assemelham nos dizeres eneacutergicos uma vez que se opotildee aos heroacuteis por natildeo possuir sua
moderaccedilatildeo Assim o estilo oratoacuterio de Aacutejax seria mais bem acolhido pelo corpo de soldados
como o fragmento ressaltou exatamente por representar a objetividade e o vigor emotivo
A segunda informaccedilatildeo a ser considerada eacute a caracterizaccedilatildeo do narrador externo que
anuncia contextualiza e direciona o proacuteprio discurso que se segue Natildeo devemos nos esquecer
dos termos inpatiens irae ndash natildeo suportando a ira ndash e toruo uultu ndash torva expressatildeo ndash jaacute
explicados anteriormente pois corroboram essa oratoacuteria vigorosa e emotiva precisando a
interpretaccedilatildeo que devemos considerar acerca do discurso do heroacutei e de sua caracterizaccedilatildeo
Diante disso impotildee-nos achar mais coerente ao episoacutedio e ao personagem o estilo
oratoacuterio emotivo e exortativo ou seja de dicccedilatildeo vigorosa Contudo como acima nos disse
Quintiliano um discurso forte natildeo necessariamente eacute aquele isento de uma formulaccedilatildeo
retoacuterica consciente ou como ele mesmo diz non habent artem ndash sem arte Com efeito
podemos ver que a estrutura do discurso do Telamocircnio desdobrando-se da oposiccedilatildeo dos dois
heroacuteis com base no valor positivo da accedilatildeo e do negativo da palavra a fim de glorificar um e
inferiorizar outro exprime uma consciecircncia retoacuterica nada inepta ou natildeo treinada
Apesar de natildeo possuir essa base retoacuterica mais intelectual do ponto de vista da
estruturaccedilatildeo dos conteuacutedos e da base dos argumentos devemos observar atentamente em que
se expressam os pontos culminantes de sua ira como nos pareceram ser as perguntas retoacutericas
que retratam o contraste entre os heroacuteis uma vez que nessas passagens o personagem
apresenta uma imagem inferior e exagerada do seu opositor Assim eacute exatamente nessa forma
de dizer ou seja de expressar sua perspectiva acerca dos valores sobretudo guerreiros que
podemos analisar a ira na caracterizaccedilatildeo do heroacutei Todas as descriccedilotildees hiperboacutelicas do porte
fiacutesico e da iacutendole moral inseridas em uma perspectiva depreciativa as quais estudamos
anteriormente reforccedilam significativamente o estado emocional do Telamocircnio quando
arguindo Isso destaca senatildeo a caracterizaccedilatildeo indireta desse sentimento no personagem uma
vez que se faz a partir de um processo mais dinacircmico e menos oacutebvio
Como jaacute vimos o Telamocircnio ofende o caraacuteter de Ulisses depreciando seu valor
guerreiro e sua imagem de heroacutei ateacute em sua preponderante inteligecircncia Por um lado o ultraje
se faz agrave virtude guerreira do heroacutei inferior o porte fiacutesico carece de atributos combativos pois
estes satildeo imbeles (inbellibus [] lacertis v 109) e insuficientes para carregar sobretudo o
peso das armas de Aquiles (pondera tanta feret v 108) e seu acircnimo inadequado agrave guerra
pois o chefe de Iacutetaca eacute referido como covarde (timidae natae v 111) e o mais covarde
139
(timidissime v 115) Esse superlativo reforccedila a inferioridade destacada do personagem
insultado sobretudo porque seria por meio dessa caracteriacutestica que ele triunfa (uincis v15)
com a fuga (fuga v 115) Por outro lado quanto agrave inteligecircncia esse ainda eacute visto pelo seu
lado negativo uma vez que sua mente seria utilizada para cometer ardis sobretudo
criminosos pois sua origem seria proveniente do heroacutei Siacutesifo (sanquine creatus Sisyphio v
31-32) o maior ludibriador e inescrupuloso dos mortais da mitologia grega como jaacute citamos
anteriormente A esse Ulisses se assemelharia tanto no furto quanto na fraude (furtisque et
fraude simillimus illi v 32) O proacuteprio Laertida reconhece as palavras do seu opositor serem
insultos (conuicia v 306) proferidos de uma boca insensata (stolidae [] linguae v 306) de
um heroacutei insensato (Aiacis stolidi v 327)
Certamente as perguntas retoacutericas tambeacutem desencadeiam pontos criacuteticos dessa
retoacuterica iracunda como podemos ver os momentos de escaacuternio e de ironia Com efeito
Ulisses eacute heroacutei e manifesta as devidas carateriacutesticas obviamente Contudo Aacutejax utiliza-se de
hipeacuterboles juntos agraves perguntas retoacutericas para descrever um caraacuteter de seu opositor bem
inferior a fim de escarnececirc-lo Essa ostensiva atitude de zombaria natildeo tem o intuito de
provocar o riso como jaacute dissemos pois um Aacutejax indignado e iracundo entretendo os ouvintes
natildeo se adequaria ao episoacutedio Seu objetivo nos parece ser outro insultar o adversaacuterio no
sentido de humilhaacute-lo e de rebaixaacute-lo da sua condiccedilatildeo de heroacutei diante de todos pois se
rememorarmos a premissa de Secircneca acerca da ira (iram esse cupiditatem doloris reponendi
Sobre a Ira I 3 3 2) podemos entender que o Telamocircnio realmente tem a vontade de
devolver ao contendor de Iacutetaca o insulto recebido em sua honra quando este ousou reclamar
as armas do Pelida Havendo como destacamos na honra (honor) a ideia de um
reconhecimento puacuteblico do meacuterito o ultraje cometido pelo Laertida foi puacuteblico logo a
resposta tambeacutem deve ser puacuteblica Dessa forma depreciar diante de todos os meacuteritos do
adversaacuterio a ponto de diminuir a sua virtude sobretudo de heroacutei eacute certamente desonraacute-lo E
Aacutejax assim o faz impulsionado pela convicccedilatildeo em sua proacutepria desonra para a qual o
demeacuterito reside na participaccedilatildeo do heroacutei em uma contenda cujo resultado lhe eacute evidente e
assim configurando-a como desnecessaacuteria senatildeo para ferir sua superior excelecircncia guerreira
Retomemos todas as informaccedilotildees para que possamos chegar a uma conclusatildeo Na
versatildeo de Oviacutedio a estruturaccedilatildeo do episoacutedio se daacute a partir da complementaridade e da relaccedilatildeo
trazidas pelos elementos virtude e ira pois eles satildeo necessaacuterios para dar agrave trama um elemento
que nos parece frequente ao mito e suas decorrentes versotildees uma espeacutecie de ironia natildeo no
sentido de figura de linguagem ou palavra mas de destino proacutepria dos textos traacutegicos que
conduz Aacutejax ao seu infortuacutenio contrariamente agrave expectativa ou seja de maneira peripeacutetica
140
em especial porque decorre de accedilotildees que envolvem especialmente o atributo que mais o
caracteriza no episoacutedio uma capacidade de suster de conter a priori no acircmbito beacutelico Esse
caraacuteter traacutegico soacute eacute possiacutevel porque o autor da obra une atraveacutes da unidade textual do
episoacutedio dois valores romanos uirtus e grauitas no qual o segundo se refere agrave capacidade de
limitar as manifestaccedilotildees de emoccedilatildeo e de ter autocontrole Tal tessitura tem propoacutesitos
literaacuterios e esteacuteticos adensando a estrutura formada pelo composto ira e virtude esta como
qualidade sobretudo de contenccedilatildeo a fim de trazer agrave tona o traacutegico no episoacutedio
Dessa forma eacute evidente a conjugaccedilatildeo dos valores romanos supracitados na capacidade
de contenccedilatildeo do heroacutei expressa especialmente mas natildeo apenas pelo verbo latino sustineo
Pois o autor usa o verbo tanto para a contenccedilatildeo dos sentimentos ou seja do controle das
emoccedilotildees quanto dos inimigos ou seja de sua resistecircncia diante dos assaltos dos troianos
revestindo Aacutejax de uma uirtus sobretudo romana Isso se adensa se considerarmos o momento
que o episoacutedio retrata o mundo arcaico Assim a distinccedilatildeo entre esses dois valores estaria
menos delimitada Com efeito tanto a uirtus romana quanto a ἀρετή grega estavam ligadas agrave
virilidade guerreira do sexo masculino por isso soacute o homem a possuiacutea nesse tempo miacutetico
Oviacutedio entatildeo liga a essa qualidade viril por excelecircncia a temperanccedila ou seja o
comedimento o domiacutenio de si mesmo a grauitas romana por meio de uma unidade lexical
Nada que cause estranhamento pois segundo Grimal (1992) essa qualidade tambeacutem era
masculina em oposiccedilatildeo ao que os romanos e gregos acreditavam ser a caracteriacutestica da
mulher a incapacidade de controlar a proacutepria natureza
Contraposta ao sentido de furor expresso no episoacutedio reforccedila-se a ira como algo
controlaacutevel ou suportaacutevel o que corrobora a estrutura dicotocircmica com base em ira e
capacidade de contenccedilatildeo na caracterizaccedilatildeo do Telamocircnio A rede de relaccedilotildees desenvolvida
por esses elementos chaves de leitura conduz o texto para uma ideia de ironia do destino
construiacuteda agrave guisa dos textos traacutegicos fazendo-a culminar ao final do episoacutedio A eficaacutecia
esteacutetica dessa ironia como nos diz Massaud Moiseacutes (2013) decorre da surpresa relacionada a
um pormenor do enredo e que eacute de conhecimento dos leitores mas natildeo do personagem
envolvido No caso do episoacutedio o pormenor natildeo se daacute necessariamente pela trama das accedilotildees
mas pela unidade textual ou seja pela tessitura a partir dos conceitos de virtude e de ira A
relaccedilatildeo leacutexico-semacircntica deste uacuteltimo com os valores romanos uirtus e grauitas potildee essa
ironia em seu cliacutemax nos versos 385 e 386 Hectora qui solus qui ferrum ignesque Iouemque
Sustinuit totiens unam non sustinet iram pois o verbo latino sustineo eacute usado tanto para
expressar a capacidade beacutelica de conter ataques do inimigo quanto para manifestar o
autocontrole das emoccedilotildees Tendo compreendido essa articulaccedilatildeo o elemento traacutegico e irocircnico
141
eacute entatildeo decorrente da surpresa construiacuteda a partir de uma accedilatildeo inesperada a morte alcanccedila o
heroacutei exatamente atraveacutes daquilo pelo qual o heroacutei mais se vale o aspecto mais desenvolvido
de sua caracterizaccedilatildeo dentro do episoacutedio Assim Aacutejax com toda sua virtude desenvolvida
como uma capacidade de suster e suportar a qual ele desempenha sobretudo sozinho unus (v
87) a tudo detendo eacute incapaz de conter somente uma coisa a ira pois ela sozinha unam iram
(v 385) eacute incontinente para o heroacutei o qual entatildeo encontra a morte vencido na qualidade que
mais o caracteriza Esta eacute validamente uma composiccedilatildeo de elementos traacutegicos corroborando
sobretudo a polivalecircncia literaacuteria e o entrelugar da obra se a entendermos sob o ponto de vista
da quebra de uma expectativa da peripeacutecia aristoteacutelica tanto se consideramos sua derrota
diante de Ulisses uma vez que para Aacutejax sua vitoacuteria seria eventual quanto se levarmos em
conta a morte do Telamocircnio cujo suiciacutedio ocorre porque como acabamos de dizer sua
superior capacidade de contenccedilatildeo que figura a sua virtude heroica eacute incapaz de suportar
unicamente a ira
Com efeito tambeacutem podemos sintetizar o papel da ira do heroacutei na composiccedilatildeo
estrutural do enredo desse episoacutedio tanto do ponto de vista da causalidade quanto da
caracterizaccedilatildeo direta e indireta
Para o primeiro visiacutevel sobretudo na perspectiva interna a ira move as accedilotildees do
personagem a mais desenvolvida o discurso e a mais sinteacutetica o suiciacutedio Na primeira eacute
possiacutevel constatar mesmo que de forma dispersa esse sentimento manifestado em especial no
tratamento que o heroacutei daacute agrave descriccedilatildeo excessivamente desvirtuosa de seu adversaacuterio
apresentando-o por meio de uma imagem completamente viciosa e oposta agrave virtude heroica
mais propriamente insultos reconhecidos pelo proacuteprio Ulisses Na segunda accedilatildeo eacute tambeacutem o
estado coleacuterico de Aacutejax que o faz atentar contra a proacutepria vida natildeo concebendo sua derrota
senatildeo a si mesmo Textualmente essa ira eacute insustentaacutevel para ele e por isso desencadeia tais
reaccedilotildees desmedidas Quanto agrave causalidade externa ainda podemos ao menos reconhecer que
o fim do episoacutedio se alinha com a tradiccedilatildeo homeacuterica que figura a ira persistir apoacutes a morte do
Telamocircnio
Para o segundo ponto de vista da caracterizaccedilatildeo reconhecemos o aspecto direto em
especial na expressatildeo inpatiens irae como corroborante de um atributo descrito
expressamente para tal finalidade sobretudo como parece ser o caso de tal sintagma emular
um epiacuteteto eacutepico que antecede de maneira significativa um discurso ao qual se integra
contextualizando toda a cena Jaacute quanto ao estudo do tipo indireto tal caracterizaccedilatildeo eacute mais
significativa na obra de Oviacutedio pois como vimos sendo a retoacuterica utilizada com a finalidade
maior de delinear traccedilos marcantes do heroacutei seu discurso contundente e excessivo de ultrajes
142
ao adversaacuterio eacute senatildeo uma evidecircncia textual de seu estado iracundo nascido da desonra aos
valores apregoados por ele mesmo tambeacutem presentes em suas proacuteprias palavras no episoacutedio
A ira eacute entatildeo fundamental agrave composiccedilatildeo do enredo desse episoacutedio sem a qual o sentido do
texto se desfaz parcial ou completamente
Nesta seccedilatildeo final do capiacutetulo intentamos destacar como as concepccedilotildees de virtude e de
ira provenientes tanto da cultura grega quanto da latina manifestam-se como chaves de
leitura imprescindiacuteveis para a compreensatildeo mais plena do episoacutedio em questatildeo acima de
tudo ressaltando como as minuacutecias textuais implicam essa caracterizaccedilatildeo de Aacutejax na
composiccedilatildeo semacircntica da disputa pelas armas de Aquiles
143
3 ESTUDO TRANSTEXTUAL DA CARACTERIZACcedilAtildeO DO HEROacuteI
Neste capiacutetulo realizaremos o estudo comparado entre a obra de Soacutefocles e a de
Oviacutedio O foco dessa comparaccedilatildeo eacute a caracterizaccedilatildeo do heroacutei Aacutejax sobretudo em relaccedilatildeo agraves
noccedilotildees de virtude e de ira uma vez que esses elementos exercem um papel fundamental na
composiccedilatildeo estrutural da trama dessas obras Tomaremos como base para tal anaacutelise as
consideraccedilotildees levantadas nos capiacutetulos anteriores porque atraveacutes delas eacute possiacutevel situar o que
pertence a tradiccedilatildeo arcaica e o que eacute considerado tratamento novo da tradiccedilatildeo claacutessica grega
ou em especial latina Com efeito utilizaremos nesse momento a teoria de transtextualidade
de Geacuterard Genette na tentativa de reconhecer uma influecircncia de Soacutefocles em Oviacutedio e na qual
seja possiacutevel mensurar em que grau essa transcendecircncia textual ocorre
Visando a tais finalidades essa etapa do trabalho estaacute dividida em duas seccedilotildees A
primeira apresenta a teoria do autor francecircs sobre a conhecida intertextualidade renomeada de
transtextualidade a qual compotildee um dos grandes procedimentos para o estudo da literatura
comparada Ainda neste momento enfocaremos a exposiccedilatildeo nas praacuteticas transtextuais que
utilizaremos em nosso estudo acomodando-se assim a teoria ao nosso propoacutesito e se
evitando digressotildees desnecessaacuterias A segunda e uacuteltima parte dispotildee a anaacutelise transtextual
propriamente dita das obras em questatildeo observando-se a influecircncia da trageacutedia grega a partir
da terminologia teoacuterica de Genette que precisa vaacuterios tipos e niacuteveis de relaccedilotildees
determinantes para um estudo mais acurado e exato como eacute caso ao qual nos predispomos
3 1 TRANSTEXTUALIDADE A CONCEPCcedilAtildeO DE GENETTE
Como bem nos diz Leyla Perrone-Moiseacutes pertencem ao acircmbito da literatura
comparada quaisquer estudos que visem estabelecer relaccedilotildees entre mais de uma obra sejam
quais forem as perspectivas entre obras autores movimentos fortuna criacutetica ou de enfoque
em determinados temas ou personagens (1990 p 91) Com base nas consideraccedilotildees da autora
hoje a literatura comparada eacute uma disciplina que estaria perto dos seus 180 anos de existecircncia
a partir dos quais se permitiram definir teorias e meacutetodos bem como seu campo de atuaccedilatildeo de
forma mais ou menos precisa Responsaacutevel por conceber e nomear a teoria da
intertextualidade Julia Kristeva retoma algumas propostas de Bakhtin cujo cerne seria o
diaacutelogo interno na obra e o diaacutelogo da mesma com outras Ainda afirma que a influecircncia
exercida por uma obra em outra natildeo reduz a obra influenciada ao acircmbito da recepccedilatildeo passiva
144
mas ao contraacuterio haacute uma transformaccedilatildeo entre elas que permite um vasto sistema de trocas
em que natildeo eacute possiacutevel estabelecer uma valoraccedilatildeo hieraacuterquica sobretudo em termos de
originalidade e imitaccedilatildeo (apud Ibidem p 94)
Tal teoria eacute continuada e desenvolvida por Geacuterard Genette sob o nome de
transtextualidade Esse eacute entatildeo nosso marco teoacuterico sobretudo pelo fato de o autor ter
esmiuccedilado tal concepccedilatildeo de maneira a desdobraacute-la em inuacutemeras praacuteticas transtextuais que nos
permite contemplar a influecircncia de uma obra literaacuteria em outra a partir de vaacuterios niacuteveis de
relaccedilatildeo Segundo o proacuteprio autor essa transcendecircncia textual se define como tudo o que
dispotildee um texto em relaccedilatildeo a outros de forma velada ou aberta no acircmbito da micro e da
macroestrutura (2010 p 13-14) Em busca de uma perspectiva mais exata das relaccedilotildees
transtextuais esse estudioso concebeu uma tipologia na qual cinco espeacutecies compotildeem seu
paradigma terminoloacutegico por um lado facilitando a precisatildeo de determinados viacutenculos
textuais e por outro gerando grandes discussotildees uma vez que eacute frequentemente inviaacutevel o
enquadramento da singularidade de uma obra literaacuteria em um modelo teoacuterico quanto mais
este for acima de tudo estanque Quando tal procedimento ocorre desse modo reconhecemos
muitas vezes a artificialidade do processo envolvido em especial para fins didaacuteticos
classificatoacuterios etc Vejamos brevemente as cinco espeacutecies elaboradas por Genette para depois
nos aprofundarmos nas praacuteticas que seratildeo utilizadas em nosso estudo
A primeira tem o nome de intertextualidade Esse tipo marca a relaccedilatildeo de co-presenccedila
entre dois ou mais textos de maneira efetiva Sua forma mais expliacutecita eacute nomeada de citaccedilatildeo
cujo texto eacute demarcado com aspas com ou sem referecircncia exata mas que destaca a disposiccedilatildeo
literal da presenccedila de outra obra A sua forma intermediaacuteria eacute chamada de plaacutegio sem
conotaccedilotildees negativas das quais se reveste esse termo do ponto de vista acadecircmico pois ele
apenas compotildee a nomenclatura que objetiva uma maior precisatildeo Eacute semelhante agrave citaccedilatildeo
porque eacute uma transcriccedilatildeo ainda literal mas sem aspas e assim natildeo declarada A menos
expliacutecita eacute a alusatildeo que corresponde a uma referecircncia menos literal de uma obra em outra e
cuja compreensatildeo plena da passagem pressupotildee o reconhecimento da relaccedilatildeo transtextual
existente da qual decorre necessariamente inferecircncias determinantes oriundas do eixo
semacircntico das obras envolvidas (Ibidem p 14) No caso do nosso estudo satildeo exemplos
maiores os epiacutetetos homeacutericos dos heroacuteis tomados literalmente ou traduzidos para o latim em
especial os de Aacutejax pois sem o entendimento dessas foacutermulas no contexto eacutepico e homeacuterico
natildeo haacute como compreender a proacutepria ideia de uma autovalorizaccedilatildeo excessiva do heroacutei cuja
iacutendole guerreira segue fortemente paradigmas arcaicos
145
A segunda chamada paratextualidade eacute a relaccedilatildeo que se estabelece entre um texto e
seu proacuteprio paratexto e por isto o autor entende o tiacutetulo subtiacutetulos prefaacutecios posfaacutecios
ilustraccedilotildees notas etc ou seja os vaacuterios elementos acessoacuterios que participam do conjunto
final de uma obra literaacuteria Assim seguindo os questionamentos de Genette ateacute onde o tiacutetulo
da Odisseia da Eneida de Os Lusiacuteadas ou mesma da trageacutedia Aias fazem parte do texto e de
seu estudo ajudando de alguma maneira a desvelar seu conteuacutedo Essa relaccedilatildeo seria como o
autor mesmo diz de ordem paratextual favorecendo inclusive aqueles que defendem o
fechamento do texto de forma mais hermenecircutica considerando ou natildeo tais elementos
(Ibidem p 15-16)
A terceira nomeada de metatextualidade eacute a relaccedilatildeo da criacutetica com a obra literaacuteria ou
seja o comentaacuterio que vincula um texto a outro natildeo havendo a necessidade de citar ou
mesmo nomear a obra a qual se comenta analisa ou estuda (Ibidem p 16-17) A tiacutetulo de
exemplo podemos citar a Poeacutetica de Aristoacuteteles na qual o autor jaacute apresenta diretrizes
interpretativas acerca das obras gregas sobretudo em relaccedilatildeo agraves trageacutedias para as quais
existe um tipo a pateacutetica (παθητική) em que se insere todas aquelas que remetem ao
infortuacutenio de Aacutejax (1455b 34 - 1456a 1) Essa denominaccedilatildeo reforccedila um aspecto
predominante nas peccedilas em torno do mito do heroacutei o sofrimento Tal recurso segundo
Aristoacuteteles parece ser o elemento corrente sobressaindo-se a outros como peripeacutecia e
reconhecimento
A quinta ndash essa eacute a ordem que Genette dispotildee deliberadamente retardando a quarta
mais importante como veremos abaixo ndash espeacutecie corresponde agrave relaccedilatildeo de natureza
estritamente taxonocircmica a arquitextualidade Reconhecidamente mais abstrata serve-nos
sobretudo para o reconhecimento de um status geneacuterico do texto uma vez que orienta a
leitura da obra articulando no maacuteximo indicaccedilotildees expliacutecitas e paratextuais em alguma de
suas partes com designaccedilatildeo deste tipo romance poema ensaios etc as quais inferidas a
partir de traccedilos especiacuteficos vinculados a determinados gecircneros indicam o caraacuteter da obra
(2010 p 17) Essa relaccedilatildeo eacute silenciosa como se pode ver mas necessariamente estaacute
submetida a um paradigma estabelecido pela tradiccedilatildeo literaacuteria sobretudo da criacutetica que
impotildee e discute determinadas terminologias Certamente o proacuteprio texto natildeo estaacute obrigado a
se inserir em um gecircnero preciso nem a seguir determinados padrotildees isso explica as
discussotildees e flutuaccedilotildees histoacutericas acerca da natureza dos gecircneros textuais e literaacuterios bem
como de seus subgecircneros Contudo eacute tambeacutem a partir da arquitextualidade que podemos
conceber um horizonte de expectativa do leitor e por isso compreender a importacircncia dessa
espeacutecie de transtextualidade para a literatura uma vez que a distinccedilatildeo entre as obras ou seja
146
uma classificaccedilatildeo mais rigorosa carece dessa relaccedilatildeo que manisfestando-se de maneira mais
ou menos evidente dispotildee-no uma natureza mais ou menos classificaacutevel (Ibidem 23-24)
A quarta espeacutecie eacute chamada hipertextualidade e figura a mais importante para o seu
livro Palimpsestos a literatura em segundo grau pois dela se ocupa predominantemente
uma vez que reconhece seu papel fundamental na literatura sobretudo na tradiccedilatildeo ocidental
Esse tipo trata do viacutenculo de um determinado texto nomeado hipertexto em relaccedilatildeo a um
outro chamado hipotexto do qual deriva e que lhe eacute anterior e imprescindiacutevel para sua
composiccedilatildeo sobretudo pela forma como a obra derivada se apresenta Tal derivaccedilatildeo natildeo eacute de
ordem metatextual ou seja de relaccedilatildeo criacutetica pois o hipertexto recebe mais frequentemente o
status de obra literaacuteria do que o metatexto em especial pelo fato de se manifestar ainda como
obra de ficccedilatildeo derivada de outra Com efeito haacute exceccedilotildees mas primordialmente essa eacute a
premissa do autor (Ibidem 18)
Os exemplos citados pelo proacuteprio autor satildeo a Eneida e Ulisses que dividem uma
mesma origem hipertextual a Odisseia Essa derivaccedilatildeo entatildeo evoca a obra anterior sem
necessariamente a nomear ou a citar mas cujo resultado se realiza atraveacutes de uma operaccedilatildeo
chamada transformaccedilatildeo uma vez que os elementos tomados do hipotexto satildeo ressignificados
dentro do hipertexto Essas transformaccedilotildees podem ser do tipo simples e direta ou complexa e
indireta esta que o autor prefere nomear imitaccedilatildeo O primeiro tipo por exemplo trata da
transportaccedilatildeo da accedilatildeo da Odisseia para Dublin do seacuteculo XX eacute o caso de Ulisses O segundo
como eacute o caso da Eneida exige adquirir um certo domiacutenio do hipotexto sobretudo dos traccedilos
imitados Assim Virgiacutelio natildeo teria apenas transferido a accedilatildeo de Odisseu agrave accedilatildeo de Eneias
pois ele narra uma histoacuteria completamente distinta mas o faz de modo semelhante ao de
Homero uma vez que se inspira em um mesmo modelo formal e temaacutetico (Ibidem 19-20)
A simetria e a assimetria de gecircneros satildeo usadas pelo autor de forma significativa para
ilustrar a entatildeo distinccedilatildeo entre transformaccedilatildeo e imitaccedilatildeo O autor transformador se apodera
de um texto e dele deriva outro transferindo-o em um outro estilo que lhe eacute estranho ou
modificando-o em relaccedilatildeo agrave limitaccedilatildeo formal e agrave intenccedilatildeo semacircntica de um ou do outro O
autor imitador se apodera de um estilo pelo qual reescreve um determinado assunto
independentemente se eacute inventado ou natildeo Isso eacute o fator determinante de sua obra
Geralmente assim dispotildeem-se o primeiro lida primordialmente com o texto ou seja com o
conteuacutedo abordado e acessoriamente com o estilo o segundo faz o contraacuterio ocupa-se
incidentalmente com o texto e essencialmente com o estilo e os motivos temaacuteticos que ele
envolve Dessa forma para a imitaccedilatildeo deve-se tomar a ideia de estilo em uma concepccedilatildeo mais
abrangente estendendo-se tambeacutem aos niacuteveis e motivos formais e temaacuteticos como os eacutepicos
147
por exemplo que recorrem a invocaccedilotildees a musas epiacutetetos descriccedilotildees de armas combate
singulares intervenccedilotildees divinas etc mesmo que tais elementos sejam usados dentro de outro
regime ou funccedilatildeo como a luacutedica ou a satiacuterica (1992 p 106-107) Para compreendermos a
transformaccedilatildeo a tiacutetulo de exemplo da literatura claacutessica podemos reconhececirc-la nas trageacutedias
oriundas dos episoacutedios da eacutepica sobretudo do ciclo eacutepico arcaico Com efeito a unidade natildeo
unitaacuteria destes uacuteltimos segundo o modelo de Aristoacuteteles possibilitou ainda o surgimento
abundante de peccedilas como eacute o caso citado pelo proacutepriacuteo estagirita das obras Cantos Ciacuteprios e
Pequena Iliacuteada (Poeacutetica 1459b 1-7) das quais hoje detemos apenas fragmentos e sinopses
que nos permitem observar relaccedilotildees puramente formais e quantitativas Como veremos agrave
frente essa eacute a natureza da relaccedilatildeo de Aias de Soacutefocles e do episoacutedio da disputa no Livro
XIII de Metamorfoses de Oviacutedio com essas obras do ciclo eacutepico arcaico e com outras
Certamente o fato de esses dois tipos hipertextuais procederem a partir de
singularidades proacuteprias natildeo exclui a possibilidade de praacuteticas mistas ou seja um hipertexto
poder transformar um texto e imitar um outro ou mesmo transformar e imitar o mesmo
hipotexto (GENETTE 2010 p 43-44) sobretudo porque e aleacutem disso ldquotodo objeto pode ser
transformado toda forma pode ser imitada nenhuma arte por natureza escapa a esses dois
modos de derivaccedilatildeo que definem a hipertextualidade na literaturardquo (Ibidem p 127)
Diante dessas consideraccedilotildees entendemos melhor a importacircncia desses dois processos
hipertextuais elaborados por Genette transformaccedilatildeo e imitaccedilatildeo no estudo literaacuterio em
especial para a literatura comparada e para o nosso estudo cuja natureza eacute comparativa Por
isso esse autor se deteacutem e se alonga acima de tudo na elaboraccedilatildeo detalhada de vaacuterios
procedimentos utilizados na relaccedilatildeo hipertextual Essa teoria da hipertextualidade eacute entatildeo
extremamente vasta uma vez que busca abarcar de alguma maneira a totalidade dos casos
presentes na literatura universal e por isso apresenta um aparato de categorias que na praacutetica
operam simultaneamente em um mesmo hipertexto e por vezes se contaminando impedindo
muito frequentemente o estudo de uma determinada caracteriacutestica sem outra com a qual
forma uma unidade de sentido (Ibidem p 63-64)
Por isso natildeo devemos tomar tais relaccedilotildees transtextuais como classes estanques
adverte-nos o autor (2010 p 22) sem observar nas mesmas uma comunicaccedilatildeo ou limites
porosos pelos quais as cincos acabem se contaminando Dessa forma conveacutem ressaltarmos e
repetirmos que toda teoria eacute artificial e convencional no sentido de que eacute completamente
inviaacutevel tentar enquadrar a singularidade de uma obra literaacuteria por meio de procedimentos que
natildeo foram de alguma maneira ajustados e acomodados para esse objetivo Uma mesma teoria
literaacuteria pode ser aplicada diferentemente a obras distintas sem que a mesma perca sua
148
validade em especial quanto ao propoacutesito de auxiliar e precisar uma determinada anaacutelise ou
estudo
Devido a isso natildeo trataremos de todos esses subtipos mas de alguns ndash tanto na
disposiccedilatildeo explicativa quanto na aplicaccedilatildeo analiacutetica ndash que se mostram mais pertinentes ao
nosso trabalho e agrave natureza das obras estudadas Aleacutem disso tais subcategorias seratildeo para noacutes
um guia um norteador das praacuteticas utilizadas pelos autores estudados uma vez que
consideraremos as relaccedilotildees transtextuais sobretudo as hipertextuais segundo as
conveniecircncias da nossa anaacutelise e organizaccedilatildeo ou seja inclusive diminuindo o rigor de certas
disposiccedilotildees com a finalidade de ajustaacute-las tanto agraves obras quanto ao nosso estudo da
caracterizaccedilatildeo do heroacutei Aacutejax O essencial deve ser a compreensatildeo da relaccedilatildeo transtextual
acima de tudo no processo de caracterizaccedilatildeo do personagem a partir da proacutepria obra ou seja
reconhecedo-se nela na medida do possiacutevel um modelo cuja base teoacuterica deve nos servir
mais para o propoacutesito de precisatildeo analiacutetica bem como para o didaacutetico-explicativo do que
para uma finalidade rigorosa e meramente classificatoacuteria Vejamos agora em uma seccedilatildeo
separada as praacuteticas hipertextuais escolhidas para o estudo
3 1 1 Praacuteticas hipertextuais transformaccedilotildees quantitativas pragmaacuteticas e modais
Como a nomenclatura jaacute evidencia essas transformaccedilotildees satildeo operaccedilotildees que se
inserem a priori no primeiro tipo da hipertextualidade naquela que se prende menos ao
estilo e mais ao texto seja por um vieacutes mais formal e quantitativo ou por um mais temaacutetico e
pragmaacutetico o qual retrata uma mudanccedila na intenccedilatildeo semacircntica mesmo que as fronteiras entre
esses tipos sejam como mesmo aponta Genette fraacutegeis e por exemplo ocorra que um
procedimento caracterizado como formal influencie fortemente o sentido da obra (Ibidem p
64) Com efeito disporemos tais operaccedilotildees de maneira um pouco diferente agrave do autor Este
aborda majoritariamente a hipertextualidade de um ponto de vista da relaccedilatildeo declarada e
maciccedila ou seja por um lado ela constitui uma derivaccedilatildeo reconhecida e a certo ponto oficial
e por outro constitui uma derivaccedilatildeo massiva e plena na qual a relaccedilatildeo entre o hipertexto e o
hipotexto eacute aquela em que toda uma obra deriva de toda uma outra (Ibidem p 24) Apesar de
abordarmos essa relaccedilatildeo transtextual segundo uma derivaccedilatildeo do tipo declarada como eacute bem
proacuteprio da literatura claacutessica greco-latina natildeo a trataremos a partir de uma vinculaccedilatildeo
prioritariamente maciccedila mas a faremos sobretudo a partir de uma fragmentada uma vez que
149
essas parecem tambeacutem ser recorrentes na transformaccedilatildeo significativa do hipertexto do mundo
greco-latino claacutessico
Nossa estruturaccedilatildeo seguiraacute a seguinte disposiccedilatildeo primeiramente trataremos das
transformaccedilotildees quantitativas abordando subcategorias nomeadas aumento e reduccedilatildeo as
quais comportam os tipos extensatildeo ampliaccedilatildeo excisatildeo e condensaccedilatildeo em seguida
trataremos das pragmaacuteticas enfocando os tipos transmotivaccedilatildeo e transvalorizaccedilatildeo que
abrangem noccedilotildees positivas e negativas como os subtipos motivaccedilatildeo e desmotivaccedilatildeo e os
valorizaccedilatildeo e desvalorizaccedilatildeo por fim abordaremos as modais denominadas
transmodalizaccedilotildees A explanaccedilatildeo acerca desses uacuteltimos precedimentos do tipo modal seraacute
realizada de modo mais breve em particular por acharmos essencial para o contexto greco-
latino mas natildeo aprofundaremos essas questotildees em nosso estudo A essa disposiccedilatildeo
acompanharatildeo exemplos da literatura claacutessica greco-latina pois elucidaratildeo questotildees que
tratam da mesma realidade literaacuteria transtextual e sobretudo alguns retirados das obras que
formam o corpus desse estudo e que apresentam mito do heroacutei Aacutejax uma vez que estatildeo mais
proacuteximos do horizonte de expectativa do leitor de nosso trabalho pois em capiacutetulos anteriores
jaacute fornecemos informaccedilotildees que ajudaratildeo a situar a aplicaccedilatildeo dessas praacuteticas hipertextuais
Esse procedimento nos auxiliaraacute no esclarecimento da metodologia analiacutetica que seraacute
contemplada na uacuteltima parte deste capiacutetulo Essas tambeacutem seratildeo as praacuteticas utilizadas em
nossa anaacutelise posterior e principalmente por isso reduzimos a nossa disposiccedilatildeo explicativa
da teoria a apenas estas no intuito de evitar digressotildees que possam se mostrar pouco
produtivas para a nossa pesquisa Iniciemos entatildeo pelas operaccedilotildees quantitativas
As transformaccedilotildees ditas quantitativas podem ser de dois tipos antiteacuteticos um que
consiste em aumentar e estender um texto e outro que trata de abreviar ou reduzi-lo Essas
duas operaccedilotildees foram chamadas pelo teoacuterico de aumento (augmentatiton) e reduccedilatildeo
(reacuteduction) (1982 p 321-323) Haacute para estes modos e subtipos O modo mais simples eacute um
procedimento puramente formal que corresponde a uma mudanccedila de dimensatildeo e de tamanho
O modo mais complexo nomeado ainda de quantitativo a partir de uma concepccedilatildeo mais
abrangente faz da mudanccedila de extensatildeo uma alteraccedilatildeo natildeo apenas da dimensatildeo mas
sobretudo do seu teor e de sua estrutura e consequentemente de seu sentido do hipertexto Os
tipos satildeo trecircs tanto para a reduccedilatildeo quanto para o aumento Para este Genette concebeu a
extensatildeo (extension) a expansatildeo (expansion) e a ampliaccedilatildeo (amplification) dos quais
trataremos de dois Para aquele concebeu a excisatildeo (excision) a concisatildeo (concision) e a
condensaccedilatildeo (condensation) e desses noacutes tambeacutem abordaremos dois
150
Comecemos pelos aumentos Enquanto a expansatildeo se daacute por meio de uma espeacutecie de
dilataccedilatildeo de estiliacutestica como por exemplo o acreacutescimo de figuras de linguagem a um
hipotexto muito literal ou de descriccedilotildees mais detalhadas de algo presente ou impliacutecito no
mesmo a extensatildeo ocorre atraveacutes de um acreacutescimo sobretudo temaacutetico uma adiccedilatildeo maciccedila
ou mais propriamente o acreacutescimo de um episoacutedio natildeo presente no texto de origem O
exemplo fornecido pelo autor eacute o caso de Apuleio o qual estende as Metamorfoses de Luacutecio
quando acrescenta o mito de Eros e Psiqueacute um episoacutedio ausente no hipotexto Aplicando tal
premissa a casos mais relevantes para o nosso trabalho podemos fornecer dois exemplos
desse procedimento Para entendermos o primeiro devemos tomar como base as epopeias
homeacutericas em especial o Canto XI da Odisseia que apresenta sinteticamente elementos
ligados agrave morte de Aacutejax segundo o que observamos (cf p 25-27) Desconsiderando-se
interpolaccedilotildees provaacuteveis ou especulativas reconhecemos que natildeo haacute aiacute a menccedilatildeo ao episoacutedio
do ataque aos rebanhos gregos quando o heroacutei estava tomado por loucura Natildeo haacute tambeacutem
em si menccedilatildeo agrave forma como o personagem morre mas a esta inferimos pelo conteuacutedo uma
carga funesta e de lamento Contudo esse episoacutedio da loucura do heroacutei estaria inserido em
uma obra do ciclo eacutepico composto por volta do seacuteculo VII a C a Pequena Iliacuteada de
Lesches de Mitilene Com conteuacutedos que preencheriam lacunas da Iacuteliada dispondo eventos
posteriores a morte de Aquiles seu iniacutecio apresentava a disputa pelas armas deste heroacutei
seguida do assalto de Aacutejax aos rebanhos e de seu suiciacutedio (WEST 2003 p 121) No acircmbito
literaacuterio esse segundo momento ou seja o ataque aos animais representaria uma extensatildeo
uma vez que retrata uma adiccedilatildeo maciccedila de um evento natildeo aludido nas epopeias homeacutericas
com as quais tal episoacutedio estabelece uma hipertextualidade se tomarmos como premissa a
percepccedilatildeo de que Homero eacute o texto matriz absoluto da literatura claacutessica greco-latina (GRAF
2006 p 110)
Certamente a Pequena Iliacuteada transforma e imita as obras de Homero mas como dela
nos resta fragmentos e sinopse preservados em escoacutelios a transtextualidade mais vaacutelida e
pertinente eacute ainda na perspectiva quantitativa Um segundo exemplo desse mesmo tipo de
aumento pode ainda ser visto na obra Aias de Soacutefocles A segunda parte da peccedila que
representa eventos posteriores agrave morte do heroacutei encena a defesa do funeral desse personagem
pelo seu irmatildeo Teucro e por Odisseu Todo esse debate parece natildeo figurar essas obras do ciclo
eacutepico apesar de constar na obra de Lesches a menccedilatildeo agrave fuacuteria de Agamecircmnon em relaccedilatildeo aos
atos do Telamocircnio de modo a natildeo permitir que o mesmo fosse cremado diferentemente do
ocorrido com outros heroacuteis (WEST 2003 p 121 127) Essa defesa configurando-se como
uma contenda de palavras sobretudo do ponto de vista retoacuterico do diaacutelogo eacute uma adiccedilatildeo
151
ineacutedita em especial pelo fato de suscitar na trageacutedia a reabilitaccedilatildeo do status de heroacutei ao
personagem Esse acreacutescimo de episoacutedio em relaccedilatildeo agrave Pequena Iliacuteada ou mesmo em relaccedilatildeo
agraves obras homeacutericas tem o valor de extensatildeo segundo o que entendemos dos pressupostos
teoacutericos de Genette
Ainda abordando o aumento hipertextual haacute um outro tipo nomeado ampliaccedilatildeo
Segundo o teoacuterico francecircs esse eacute um dos recursos essenciais do teatro claacutessico em especial
da trageacutedia desde Eacutesquilo ateacute no miacutenimo o final do seacuteculo XVIII (1982 p 375) A proacutepria
trageacutedia grega da forma como eacute conhecida nasce senatildeo do aumento cecircnico de episoacutedios
miacuteticos ou eacutepicos presentes na cultura grega A dilataccedilatildeo de um episoacutedio promovida por esse
recurso inclusive atraveacutes de um processo no qual participem outros tipos de aumento fornece
uma maior extensatildeo por meio de novos detalhes novas descriccedilotildees etc mas que reside ainda
em um evento presente no hipotexto Por isso frequentemente Soacutefocles e Euriacutepides parecem
retomar e aumentar com variaccedilotildees os mesmos episoacutedios de seu antecessor (Ibidem p 375-
376) pois os temas originais satildeo mais raros ou aleacutem disso esses dois autores parecem
ampliar os conteuacutedos das obras do ciclo eacutepico como vimos anteriormente ser um processo
confirmado por Aristoacuteteles (cf p 140) Esse procedimento que consite em inchar um objeto
temaacutetico ateacute atingir uma nova extensatildeo adequada agrave composiccedilatildeo do hipertexto seja para uma
nova trageacutedia ou eacutepica corresponde ao processo de ampliaccedilatildeo
Com efeito noacutes podemos tambeacutem vincular a trageacutedia Aias e o episoacutedio do Livro XIII
de Metamorfoses a esse modelo Apesar de existir uma trilogia de Eacutesquilo que discorra sobre
o assunto (cf p 33) dela natildeo conhecemos o texto e o teor Contudo podemos especular que o
procedimento de ampliaccedilatildeo dessas obras tem origem na Pequena Iliacuteada na qual se retratam
os temas do julgamento pelas armas da loucura que impele o heroacutei a matar animais e do seu
suiciacutedio dos quais ao menos um episoacutedio desta eacutepica eacute ateacute certo ponto oriunda da Odisseia
Esse julgamento jaacute estaacute inserido de forma sinteacutetica e embrionaacuteria no Canto XI dessa epopeia
homeacuterica a qual figura a participaccedilatildeo de Atena e dos Teucros na decisatildeo final A Pequena
Iliacuteada teria entatildeo ampliado essa sinteacutetica alusatildeo ao julgamento a ponto de tornaacute-lo
componente de um episoacutedio e que ainda retrata a participaccedilatildeo desses mesmos personagens
que contribuem para a escolha do merecedor dos precircmios pois essa eacutepica pelo que
conhecemos descreve o plano de Nestor chefe e conselheiro dos gregos de enviar um espiatildeo
agrave Troia para que este ouccedila dos proacuteprios inimigos quem seria o maior guerreiro entre os
contendores
Eacutesquilo e Soacutefocles em um gecircnero de natureza distinta entatildeo ampliariam ainda mais
alongando o episoacutedio ou parte dele em uma ou mais obras O primeiro teria feito do
152
julgamento das armas uma obra e do suiciacutedio outra Em relaccedilatildeo ao segundo autor sua obra
seria uma ampliaccedilatildeo sobretudo dos episoacutedios do heroacutei tomado por loucura (Αἴας δ` ἐμμανὴς
WEST p 121) e do seu suiciacutecio (ἑαυτὸν ἀναιρεῖ Ibidem p 121) com extensatildeo de novo
evento como explicamos acima o debate acerca do seu funeral Dessa forma uma vez que a
loucura e o suiciacutedio retratados em Soacutefocles natildeo satildeo temas novos o processo pelo qual este
tragedioacutegrafo os reelabora para atingir uma nova extensatildeo com a adiccedilatildeo de um tema ineacutedito
corresponde do ponto de vista puramente dimensional ou seja quantitativo a um novo tipo
de aumento complexo e nomeado na terminologia de Genette ampliaccedilatildeo
Para o caso de Oviacutedio que apresenta um episoacutedio que retrata eventos ligados tambeacutem
ao Telamocircnio poderiacuteamos dizer que haacute um aumento visiacutevel de um dos conteuacutedos do episoacutedio
da obra de Lesches do julgamento das armas Esse poeta latino certamente alonga seus
versos prioritariamente na defesa e acusaccedilatildeo dos heroacuteis em prol de demonstrarem sua virtude
e seu meacuterito Dois discursos satildeo alogandos um para cada personagem e compotildeem o cerne de
sua versatildeo do mito transformado quanto ao objeto temaacutetico da Pequena Iliacuteada e imitado
quanto ao estilo retoacuterico do texto que temos de Antiacutesthenes (cf p 49) A transformaccedilatildeo
quantitativa de Soacutefocles quanto agrave obra do ciclo eacutepico poderia ser designada como ampliaccedilatildeo
apesar de tanto acerca da Pequena Iliacuteada quanto da obra Julgamento das Armas de Eacutesquilo
natildeo termos muitas informaccedilotildees para precisarmos de onde proviria a maior influecircncia
Tendo disposto o essencial acerca do recurso aumento passemos agora a contemplar o
tipo reduccedilatildeo que como podemos inferir pode ser descrito como um processo inverso agravequele
exposto acima Seu primeiro tipo a excisatildeo corresponde a uma supressatildeo de um conteuacutedo
presente no hipotexto o qual natildeo figura no hipertexto semelhante inversamente ao processo
de extensatildeo Com efeito o corte deve proceder sobre um episoacutedio tematicamente
significativo No entanto como jaacute explicamos Genette se deteacutem sobre exemplos nos quais a
relaccedilatildeo transtextual quantitativa eacute maciccedila ou seja naquela em que toda uma obra deriva de
toda uma outra O autor dispotildee obras que receberam uma omissatildeo de partes inclusive para
fins paradidaacuteticos como por exemplo ediccedilotildees de Robinson Crusoeacute recortadas e elaboradas
para crianccedilas (2010 p 78) Lembremos que esse natildeo eacute o nosso intuito especialmente porque
natildeo nos serve para a anaacutelise e por isso elencaremos exemplos cuja transformaccedilatildeo eacute
fragmentada
No Livro XIII da obra de Oviacutedio podemos contemplar esse tipo de reduccedilatildeo Ao
compararmos o episoacutedio em questatildeo com o da Pequena Iliacuteada percebemos que entre a
disputa pelas armas e o suiciacutedio do heroacutei estaacute completamente ausente o episoacutedio da loucura
que move o heroacutei agrave matanccedila segundo o que estudamos no capiacutetulo anterior No Livro em
153
questatildeo de Metamorfoses figuram os discursos dos dois contedores que ocupam a maior
parte do episoacutedio e o suiciacutedio do Telamocircnio que compreende uma pequena parte Logo essa
versatildeo dispensa completamente o ataque do personagem aos animais como um evento
imprescindiacutevel para a disposiccedilatildeo causal que leva o heroacutei agrave morte
Outro caso que parece relevante ser mencionado ainda no episoacutedio de Oviacutedio eacute em
especial a defesa de Aacutejax junto agraves naus presente no discurso do heroacutei sobre seus meacuteritos e
que retoma eventos narrados por Homero na Iliacuteada Na versatildeo latina nenhuma das mortes
causadas pelo Telamocircnio satildeo relatadas acerca desse evento mesmo as que seguem a sua
vitoacuteria sobre Heitor no Canto XIV como a de Iacutertio (v 511) ou a de Arqueacuteloco filho de
Antenor (v 461-464) com a qual inclusive o Telamocircnio provoca as tropas troianas Tambeacutem
quando da defesa do corpo de Paacutetrocles no Canto XVII o chefe de Salamina eacute responsaacutevel
pela morte de Hipoacutetoo (v 291-299) e pela de Forco (v 309-315) Tais accedilotildees satildeo pontos
culminantes de seus atos em prol dos gregos inseridos sobretudo naqueles episoacutedios aos
quais muitos estudiosos recorrem para delinear uma iacutendole e uma caracterizaccedilatildeo do heroacutei em
questatildeo Essa omissatildeo nos parece relevante para o episoacutedio de Oviacutedio pois diferentemente
Ulisses em seu discurso enumera vaacuterios heroacuteis mortos pelas suas armas (cf p 107)
Do ponto de vista dimensional e quantitativo essa amputaccedilatildeo temaacutetica ou de conteuacutedo
eacute nomeada de excisatildeo Nos dois casos que elencamos esse procedimento aparenta ser
evidente uma vez que tais eventos satildeo significativos para o eixo semacircntico da Pequena Iliacuteada
e da Iliacuteada obras consideradas como hipotextos matrizes desses dois episoacutedios referidos na
obra Metamorfoses Com efeito como veremos melhor na seccedilatildeo seguinte essa reduccedilatildeo que
suprime uma parte tematicamente significativa eacute essencial para construccedilatildeo do sentido dessa
versatildeo latina do mito pois natildeo sendo meramente formal esse recurso confere a essa
transformaccedilatildeo quantitativa o status de alteraccedilatildeo complexa
O uacuteltimo caso de transformaccedilatildeo quantitativa a ser apresentado eacute um tipo de reduccedilatildeo
nomeado de condensaccedilatildeo Enquanto a concisatildeo reduz seu hipotexto em um niacutevel da
microestrutura estiliacutestica a condensaccedilatildeo o faz em um niacutevel de estrutura de conjunto Tal
procedimento parece ocorrer no sentido de reduzir o hipotexto ou no nosso caso uma de suas
partes significativas para o hipertexto retirando os detalhes que lhe datildeo corpo a ponto de
limitaacute-lo agrave sua significaccedilatildeo mais geral e superficial (2010 p 89) para noacutes algumas vezes
simboacutelica Genette em sua explicaccedilatildeo estende-se particularmente devido aos seus objetivos
ndash a observaccedilatildeo de uma hipertextualidade maciccedila ndash sobre o uso metaliteraacuterio desse recurso
recaindo em definiccedilotildees de resumo suacutemula sinopse digest etc de obras literaacuterias
154
Contrariamente noacutes que estamos tentando configurar tal procedimento tanto como
um procedimento mais fragmentado quanto como um procedimento hipertextual presente em
obras literaacuterias estendemos seu sentido a um recurso inversamente mais ou menos semelhante
ao da ampliaccedilatildeo em seu teor e fins literaacuterios Dessa forma teriacuteamos no hipertexto seccedilotildees que
de alguma maneira correspondem a uma siacutentese de passagens de um ou mais hipotextos uma
vez que esse tipo de processo serve para situar muitas vezes a carga de influecircncia do texto
matriz no texto derivado que com isso retoma cenaacuterios ambientes valores etc a partir dos
motivos temaacuteticos tomados emprestados por meio dessas transformaccedilotildees quantitativas Com
efeito para a literatura claacutessica isso eacute extremamente pertinente poreacutem dificultoso no
estabelecimento de um hipotexto uma vez que os mitos retratados fazem parte de uma longa
tradiccedilatildeo na qual tais lendas compotildeem o imaginaacuterio da cultura greco-latina e cujos
personagens jaacute possuem um certo modelo de caracterizaccedilatildeo No entanto podemos ainda fazer
algumas inferecircncias a partir das obras que chegaram ao nosso tempo em especial por
sabermos da reconhecida influecircncia de determinados autores os quais figuram o aacutepice da
literatura da Antiguidade como eacute o caso de Homero e dos tragedioacutegrafos por exemplo
Dentro desse caso podemos citar dois exemplos semelhantes o discurso de Teucro no
ecircxodo da peccedila de Soacutefocles em defesa do irmatildeo (Aias v 1266-1287) e a exposiccedilatildeo de Aacutejax
acerca de suas faccedilanhas (Metamorfoses XII v 82-94) Apesar de algumas diferenccedilas
sobretudo de fins semacircnticos ambos os textos fazem uma siacutentese da Iliacuteada sob o enfoque
dos eventos nos quais Aacutejax se sobressai como guerreiro Tal focalizaccedilatildeo evidentemente se
deteacutem sobre os Cantos VII XIII XIV e XV que retratam seu combate singular com Heitor e
as lutas em torno das naus gregas Essa reduccedilatildeo como vimos anteriormente prescinde dos
detalhes e logo das descriccedilotildees homeacutericas sobre os embates do heroacutei centrando-se assim
sobre sua significaccedilatildeo maior mais geneacuterica o valor guerreiro do personagem Ao nosso
entender esse resumo seletivo de uma parte da eacutepica homeacuterica inserida nesses hipertextos
figura uma relaccedilatildeo de hipertextualidade uma vez que diferentemente da intertextualidade a
relaccedilatildeo estabelecida entre Soacutefocles e Oviacutedio quanto a Homero natildeo serve meramente para a
compreensatildeo plena da passagem dos autores claacutessicos mas especialmente porque essa
referecircncia transforma o significado de suas obras servindo para a caracterizaccedilatildeo do
Telamocircnio da qual se revelam os princiacutepios que movem as accedilotildees do personagem no
desenvolvimento da trama fundamentais para o entendimento da composiccedilatildeo da trama Tal
reduccedilatildeo em questatildeo provecirc a obra de elementos significativos para isso em especial porque
podemos reconhecer nela recursos da caracterizaccedilatildeo indireta
155
Outro caso expressivo desse tipo de teacutecnica consta no fim do episoacutedio da dispusta
pelas armas da versatildeo de Oviacutedio O resultado do julgamento dos chefes e o suiciacutedio do heroacutei
satildeo apresentados sinteticamente nos versos 382-393 Com efeito essa passagem eacute utilizada
como desfecho da cena mas nela reconhecemos a retomada de um tema jaacute trabalhado por
Lesches de Mitilene por Eacutesquilo e por Soacutefocles Se em relaccedilatildeo a Homero estes trecircs
ampliaram esses episoacutedios ateacute alcanccedilarem extensotildees variadas Oviacutedio em relaccedilatildeo a eles teria
reduzido a pouco mais de dez versos Devido agraves poucas informaccedilotildees que temos da obra de
Lesches e de Eacutesquilo sobre este assunto natildeo haacute como mensurar apropriadamente a relaccedilatildeo de
hipertextualidade entre estes e o autor latino Contudo ao menos podemos deduzir disso uma
reduccedilatildeo quantitativa do episoacutedio no sentido de resumi-lo agrave sua significaccedilatildeo mais geral a uma
morte funesta Certamente o estudo de uma transformaccedilatildeo mais complexa do texto derivado
acarreta uma comparaccedilatildeo entre o episoacutedio do Livro XIII de Metamorfoses com a obra de
Soacutefocles uma vez que detemos esse hipotexto em condiccedilotildees apropriadas para tal anaacutelise
Esse tipo reduccedilatildeo nomeado de condensaccedilatildeo pelos motivos apresentados acima potildee
fim a nossa disposiccedilatildeo acerca das transformaccedilotildees quantitativas Passemos para as
pragmaacuteticas Tal transformaccedilatildeo eacute responsaacutevel por modificar o curso das accedilotildees do hipertexto e
seu suporte instrumental Essas modificaccedilotildees podem ser mais brandas ou mais graves poreacutem
devemos entendecirc-las dentro do eixo semacircntico do texto derivado pois o autor natildeo recorre a
tais recursos sem uma razatildeo ou objetivos apropriados (1982 p 442) Dessa forma
correspondem a um elemento de modificaccedilatildeo acima de tudo semacircntica Destas abordaremos
as nomeadas transmotivaccedilatildeo (transmotivation) e tranvalorizaccedilatildeo (transvalorisation)
A primeira trata da modificaccedilatildeo das causas que movem determinados eventos no texto
derivado em relaccedilatildeo agraves suas versotildees anteriores Esta pode ocorrer segundo trecircs subtipos ou
aspectos O primeiro eacute de tipo positivo a motivaccedilatildeo (motivation) ou seja trata da introduccedilatildeo
de uma causa um motivo que o hipotexo natildeo aparentava ter ou indicar seja do ponto de vista
pragmaacutetico ou psiacutequico pois a origem de uma determinada accedilatildeo ou seja o impulso para
realizaacute-la pode ser tanto um fato um evento ou uma determinada disposiccedilatildeo emocional
(1982 p 457) Esse eacute o seu modelo mais simples mas outros podem ser daiacute desdobrados
como o caso de uma motivaccedilatildeo aumentada e amplificada Tal fato pode ocorrer devido agrave
complexidade de uma determinada obra quanto agrave rede des causas que movem um determinado
evento ou personagem sobretudo se considerarmos o modelo aristoteacutelico de accedilatildeo para qual a
causalidade eacute essencial (Poeacutetica VIII 1451a 31-35) Isso pode ser facilmente observado em
Aias em que o seu protagonista tem como um dos motivos para a sua morte a vitoacuteria do
adversaacuterio Odisseu sobre ele mesmo na disputa pelas armas de Aquiles Certamente esse
156
motivo estaacute presente na Odisseia (XI v 543-551) e tambeacutem ampliado estaacute na Pequena
Iliacuteada (WEST 2003 p 121) contudo um novo elemento adensa a motivaccedilatildeo desta uacuteltima
obra a loucura apesar de natildeo sabermos precisamente o teor dessa transformaccedilatildeo semacircntica
Essa motivaccedilatildeo eacute novamente ampliada na versatildeo de Soacutefocles uma vez que aleacutem da vitoacuteria do
adversaacuterio e da loucura apresenta-se a ideia de que ele mesmo sofreu uma grave desonra em
seu valor guerreiro duas vezes uma quando lhe foi negada a honraria devida as armas de
Aquiles e outra quando ataca animais imbeles pensando estar se vingando Essa concepccedilatildeo
de desonra e ultraje instrumentalizada a partir desses dois episoacutedios citados acima age como
a motivaccedilatildeo no acircmbito psicoloacutegico que acarreta seu estado iracundo a partir do qual executa
vaacuterias accedilotildees desmedidas responsaacuteveis pela sua ruiacutena e pelo seu suiciacutedio No entanto
reconhecemos que essa desonra tem como base uma caracteriacutestica crucial o orgulho do heroacutei
por sua virtude beacutelica Essa caracterizaccedilatildeo parece de alguma forma inserida tanto na Iliacuteada
quando o heroacutei provoca seus oponentes comparando seus feitos ao dos inimigos (XIV v 470-
475) embora o verbo gloriar-se (εὔχομαι) esteja propriamente aplicado agraves provocaccedilotildees dos
troianos (εὐξαμένοιο v 458 v 486) quanto sobretudo na Odisseia por meio de vocaacutebulo
sugestivo que caracteriza o heroacutei ldquoiacutempetordquo ou ldquoorgulho virilrdquo (ἀγήνορα θυμόν XI v 562)
Dessa forma tal transformaccedilatildeo eacute coerente com o novo eixo semacircntico do hipertexto e acima
de tudo mesmo ao se afastar da tradiccedilatildeo arcaica em termos de objetivos semacircnticos essa
mudanccedila ainda retoma alguns dos seus elementos impliacutecitos e potenciais
O segundo tipo a desmotivaccedilatildeo (deacutemotivation) de ordem negativa consiste em
suprimir ou elidir uma motivaccedilatildeo ou causa original (Ibidem p 458) ou por vezes minimizaacute-
la Uma das motivaccedilotildees importantes para a causalidade da obra de Soacutefocles figura fora do
episoacutedio da peccedila ou seja natildeo eacute encenada mas estaacute nela presente em analepse ou seja em
uma narrativa de um personagem Trata-se do motivo pelo qual os gregos atacam Troia o
rapto de Helena Com efeito isso configura um evento anterior cronologicamente aos limites
da trageacutedia mas sabendo-se que o tempo presente ainda se refere agrave guerra e que o proacuteprio
texto reforccedila tais premissas com analepses a sua supressatildeo ou elisatildeo causa profundas
modificaccedilotildees semacircnticas A Iliacuteada por exemplo fala claramente do rapto contudo a esse
evento alguns elementos satildeo acrescentados a ideia da honra de Menelau (τιμὴν Μενελάῳ I
v 159) a de uma lei de hospitalidade (ξεινοδόκον III v 354) e mais importante para essa
explanaccedilatildeo a de soberania exercida por Agamecircmnon uma vez que ele eacute o chefe dos heroacuteis
(ἄναξ ἀνδρῶν I v 7) o mais poderoso (φέρτερος I v 182 v 281) pois foi Zeus que lhe
deu essa gloacuteria (Ζευς χῦδος ἔδωκεν I v 279) fazendo os outros chefes se submeterem a ele e
o sigam contra Troia (I v 149-160) Decerto essa rede de motivos age em conjunto com o
157
rapto pois o chefe dos heroacuteis eacute movido pela a desonra familiar e os reis pela submissatildeo
agravequele ou todos pelo pudor religioso que os impele a punir os troianos que receberam o autor
de uma falta grave contra os deuses Soacutefocles transforma essas motivaccedilotildees eacutepicas suprimindo
por exemplo a origem divina da soberania do Atrida a impiedade de Paacuteris e dos troianos
elidindo do ataque a Troia sobretudo o motivo primeiro o rapto de Helena pois a questatildeo
recai prioritariamente sobre juramentos os quais os tragedioacutegrafos da Atenas Claacutessica
frequentemente ligam a Tiacutendaro pai de Helena quando da escolha do marido de sua filha (v
1111-1114) Entendemos que essa desmotivaccedilatildeo ocorra mesmo que apenas na perspectiva de
Aacutejax e de seu irmatildeo ou seja a partir de uma transformaccedilatildeo de teor ao menos psicoloacutegico Tal
supressatildeo eacute significativa pois tambeacutem serve para embasar a iacutendole do protagonista o qual
natildeo se submete a Agamecircmnon exatamente por natildeo reconhecer neste uma chefia Assim por
acreditar ser autocircnomo ou seja chefe de si acrescidas outras motivaccedilotildees o Telamida eacute
movido a suicidar-se
Certamente esse procedimento de retirar um elemento da causalidade interna do
hipotexto pode fazer um outro eclodir em seu lugar uma vez que natildeo haacute a ideia de
causalidade sem que necessariamente exista a noccedilatildeo de accedilatildeo e reaccedilatildeo de causa e efeito Tal
resultado configura o terceiro tipo a transmotivaccedilatildeo (transmotivation) homocircnima do
procedimento geral Essa transformaccedilatildeo eacute vista como um processo de substituiccedilatildeo na qual
operam uma desmotivaccedilatildeo somada a uma (re)motivaccedilatildeo Esse caso em questatildeo segundos as
premissas de Genette natildeo pode suceder por um procedimento duplo de desmotivaccedilatildeo e
motivaccedilatildeo dos tipos de minimizaccedilatildeo e de amplificaccedilatildeo de causa mas realmente pela
supressatildeo e adiccedilatildeo massivas das motivaccedilotildees original e nova (Ibidem p 465) O exemplo
citado acima pode servir ateacute certo ponto pois haacute mesmo depois da remoccedilatildeo de alguns
motivos a presenccedila acessoacuteria do rapto de Helena e adiccedilatildeo de um novo elemento o
juramento que jaacute estaacute presente em obras do ciclo eacutepico como nos Cantos Ciacuteprios (WEST
2003 p 71) Contudo o motivo parece passar de uma questatildeo religiosa ndash a hospitalidade ndash e
social ndash a honra de Menelau ndash para um moral e eacutetica ndash a confianccedila na palavra dada ndash
relevante sobretudo porque os ideais do protagonista da peccedila o fazem reconhecer no mundo
valores estaacuteveis tal como a amizade e o juramento os quais desabam diante dos eventos
presentes na trageacutedia Como o personagem mesmo diz ldquoo terriacutevel juramento eacute condenadordquo
(ἁλίσκεται χὠ δεινὸς ὅρκος v 649-650) Com efeito por ser complexa a estruturaccedilatildeo da
transmotivaccedilatildeo e tambeacutem por natildeo ter sido observada no propoacutesito primeiro de nosso estudo
ou seja na relaccedilatildeo de hipertextualidade entre o Livro XIII de Metamorfoses e a obra da qual
158
algumas de suas passagens derivam Aias natildeo nos deteremos em maiores explicaccedilotildees
Passemos para outro tipo de alteraccedilotildees pragmaacuteticas a transvalorizaccedilatildeo
Esse segundo processo de transformaccedilatildeo pragmaacutetica tem como base qualquer
operaccedilatildeo de natureza axioloacutegica ou seja de valor a qual de alguma maneira seja atribuiacuteda a
uma accedilatildeo ou conjunto de accedilotildees que caracterizam os personagens Tal procedimento pode ser
concebido a partir dos trecircs aspectos semelhantes aos mencionados na transmotivaccedilatildeo um
positivo a valorizaccedilatildeo (valorisation) um negativo a desvalorizaccedilatildeo (deacutevalorisation) e o
duplo movimento da substituiccedilatildeo a transvalorizaccedilatildeo (transvalorisation) contudo haacute nesta
uacuteltima uma noccedilatildeo mais complexa pois eacute tomada em um sentido mais forte da operaccedilatildeo de um
duplo movimento de valorizaccedilatildeo e de desvalorizaccedilatildeo (GENETTE 1982 p 483)
O primeiro subtipo corresponde ao processo de incrementar um personagem atraveacutes
de uma modificaccedilatildeo seja tambeacutem pragmaacutetica ou psicoloacutegica com um papel mais
significativo ou mais atrativo para o eixo semacircntico do hipertexto em relaccedilatildeo ao seu sistema
de valores (Ibidem p 483) Segundo o estudioso francecircs esse recurso eacute tanto o ato de
intensificar traccedilos no personagem presentes nos valores que atuam no hipotexto quanto o ato
de promover personagens secundaacuterios ignorados ou depreciados pela trama
Contudo haacute de se entender que a valorizaccedilatildeo consiste natildeo em perceber o grau de
participaccedilatildeo de um personagem na accedilatildeo da obra mas o investimento em sua caracterizaccedilatildeo a
qual depende do esquema axioloacutegico estabelecido uma vez que essa estruturaccedilatildeo eacute diferente
se consideramos a eacutepica a trageacutedia ou o mesmo o romance O texto eacutepico por exemplo
possui frequentemente um padratildeo homogecircneo de valores e que eacute sobretudo aristocraacutetico e
guerreiro Isso faz seus personagens de certa grandeza heroica confrontarem-se em batalhas
ou combates singulares nos quais natildeo haacute um real conflito de valores particularmente porque
eles se defrontam segundo os mesmos princiacutepios o mesmo credo E a partir desses
norteadores axioloacutegicos uns satildeo melhores e outros piores A trageacutedia jaacute opera diferentemente
pois como jaacute vimos natildeo soacute confronta valores sobretudo passados e presentes como tambeacutem
reveste seus personagens mais significativamente segundo as premissas de Aristoacuteteles de
uma posiccedilatildeo intermediaacuteria (Poeacutetica 1453a 7-12) ou seja de alguma forma retirando-lhes
sua grandeza heroica e lhes incutindo um certo grau de humanizaccedilatildeo O romance continua e
desenvolve tal procedimento sobretudo porque jaacute provecirc suas figuras de uma tessitura mais
profundamente humana em que se observam recorrentemente caracteriacutesticas como egoiacutesmo
ingenuidade covardice etc ou seja este gecircnero apresenta um outro sistema axioloacutegico o qual
alicerccedila um espaccedilo potencial para desenvolvimento de diferenciados de valores e de conflitos
Contudo isso deve ser visto como marcas dominantes as quais podem avanccedilar sobre os
159
limites porosos que definem os gecircneros Portanto nada impede de reconhecermos ainda em
certo grau uma psicologia elaborada e uma vivacidade profundamente humana atribuiacutedas
normalmente aos textos do poacutes-romantismo nos textos eacutepicos por exemplo que estabelecem
alguma quebra nessa homogeneidade de valores especialmente porque discorremos sobre
esse assunto no primeiro capiacutetulo no qual vimos a profundidade de caracterizaccedilatildeo presente
nas obras homeacutericas
Esclarecida a natureza desses possiacuteveis sistemas de valor devemos entender que a
valorizaccedilatildeo eacute sobretudo desenvolver um personagem no eixo positivo do sistema apresentado
pelo hipertexto Segundo Genette isso pode ocorrer normalmente atraveacutes de duas noccedilotildees
uma primaacuteria (primaire) e outra secundaacuteria (secondaire) A primeira eacute definida natildeo pelo
mero investimento em uma proeminecircncia que o personagem em questatildeo jaacute detenha no texto
matriz mas pela elevaccedilatildeo de seu meacuterito e de seu valor simboacutelico (1982 p 491) A segunda
noccedilatildeo equivale a uma espeacutecie de reabilitaccedilatildeo das figuras que no hipotexto estatildeo inseridas no
eixo negativo dos valores dipostos ou devido a um papel menor a uma promoccedilatildeo daquelas
que estatildeo aqueacutem de uma caracterizaccedilatildeo que aponte quaisquer tendecircncias
A Eneida apresenta um exemplo claro do primeiro tipo de valorizaccedilatildeo Certamente
em se tratando de um eacutepica que retoma sobretudo Homero podemos reconhecer na obra um
sistema de valores semelhantes ao da Iliacuteada e da Odisseia de base guerreira e aristocraacutetica
Com efeito o personagem principal da obra de Viacutergilio Eneias eacute representado virtuoso tanto
na obra homeacuterica quanto na latina ou seja estaacute inserido no eixo positivo desse esquema
axioloacutegico Assim ele deteacutem os atributos proacuteprios de sua condiccedilatildeo e de sua grandeza heroica
Contudo acima do valor que lhe eacute conferido por Homero o poeta latino incrementa seus
inerentes meacuteritos e qualidades elevando-o acima dos heroacuteis gregos e o tornando siacutembolo
maacuteximo da gloacuteria de Roma Esse processo enaltece o personagem aleacutem dos limites do
hipotexto como se as obras matrizes natildeo tivessem exaltado o heroacutei de forma suficiente
Aplicada agrave obra de Soacutefocles a valorizaccedilatildeo secundaacuteria reside de modo especial na
personagem Tecmessa cativa de Aacutejax Na Iliacuteada nem ao menos um nome eacute mencionado agrave
sua cativa apesar de sabermos da existecircncia de uma no Canto I quando da ameaccedila de
Agamecircmnon em tomar as honrarias de Aquiles de Odisseu ou de Aacutejax No entanto em Aias
aleacutem de receber um nome e uma identidade essa personagem eacute valorizada em relaccedilatildeo a um
dos sistemas axioloacutegicos da peccedila a qual dispotildee a ideia de moderaccedilatildeo no eixo positivo e a de
excesso no eixo negativo Essa como vimos parece ser a diposiccedilatildeo mais evidente da obra agrave
qual se agregam outros sistemas a priori mais secundaacuterios Tecmessa em oposiccedilatildeo ao
protagonista e com o qual apresenta o conflito de valores estaacute imbuiacuteda de uma iacutendole cujas
160
decorrentes accedilotildees demostram uma natureza comedida fazendo-a deter as virtudes essenciais
do eixo positivo dos valores da peccedila fundamentais para o seu objetivo semacircntico A liccedilatildeo
moral presente no proacutelogo proferida pela deusa Atena jaacute nos aponta a distinccedilatildeo qualitativa
do que eacute considerado bom e do que eacute mau Essa promoccedilatildeo a faz sair de uma posiccedilatildeo com
pouco significado e de nenhuma tendecircncia axioloacutegica e chegar a uma condiccedilatildeo mais
significante dentro do novo plano de valoraccedilatildeo estabelecido pelo hipertexto nesse caso na
trageacutedia Aias
A desvalorizaccedilatildeo eacute um movimento inverso de transformaccedilatildeo pragmaacutetica (Ibidem p
497) Apesar de natildeo nomear noccedilotildees primaacuteria e secundaacuteria o autor apresenta a possibilidade
tanto de se agravar no texto derivado o status axioloacutegico de um personagem jaacute presente no
eixo negativo da estrutura de valoraccedilatildeo do hipotexto (Ibidem p 498) quanto desenvolver
esse status ainda nesse mesmo eixo promovendo-o a essa condiccedilatildeo negativa ou retirando os
valores positivos do personagem presentes no hipotexto ou os desmistificando por meio de
transformaccedilotildees as quais confiram ao personagem um papel mais significativo no propoacutesito
semacircntico do hipertexto
Um exemplo do modelo de desvalorizaccedilatildeo eacute o de Ulisses na Eneida Tal personagem
eacute concebido nas epopeias homeacutericas pelo vieacutes da virtude especialmente a partir de um
atributo em particular sua inteligecircncia Essa caracteriacutestica eacute tatildeo reforccedilada que o heroacutei eacute
nomeado por meio de epiacutetetos a saber o muito inteligente polyacutemetis (πολύμητις) e o muito
artificioso polymeacutechanos (πολυμήχανος) que ressaltam tal valor tanto na Iliacuteada quanto na
Odisseia Contudo esse personagem sofre transformaccedilotildees que alteram completamente essa
sua inteligecircncia de algo positivo para algo negativo Uma vez que seu intelecto eacute engendrado
em accedilotildees cujos objetivos satildeo impiedosos e inescrupulosos tanto a iacutendole eacute modificada quanto
o sistema de valores sofre por algumas mutaccedilotildees mesmo em se tratando de uma eacutepica
hipertextual em que se esperaria uma homogeneidade axioloacutegica A nova configuraccedilatildeo de
Virgiacutelio permite que Ulisses tenha seu status rebaixado fazendo inclusive da vitoacuteria dos
gregos sobre os troianos menos ou totalmente ingloacuteria O heroacutei de Iacutetaca se torna na obra latina
um expoente natildeo dos aspectos positivos do eixo axioloacutegico da obra mas dos negativos pois
na perspectiva da Eneida ele eacute nomeado no Livro VI pela sua inteligecircncia perversa de
Eoacutelida estimulador de crimes (hortator scelerum Aeolides v 529) que ocupa todo um
hemistiacutequio heftemiacutemere tal qual um novo epiacuteteto Essa desmistificaccedilatildeo ou rebaixamento no
caraacuteter do personagem eacute claramente um processo de desvalorizaccedilatildeo
Para finalizarmos a explanaccedilatildeo acerca das transformaccedilotildees pragmaacuteticas apresentamos
a transvalorizaccedilatildeo em seu sentido mais estrito Essa operaccedilatildeo consiste em um duplo
161
movimento aplicado a um ou mais personagens poreacutem corresponde ao ato de retiraacute-los de
um sistema e colocaacute-los em outro como remover Aacutejax de sua grandeza heroica e imbui-lo de
uma humanidade na qual outras caracteriacutesticas satildeo mais significativas (GENETTE 1982 p
514) como vimos acima Esse parece ser o processo frequente quando se deslocam
hipertextualmente figuras eacutepicas para trageacutedias ou romances modernos
Aleacutem disso esse procedimento pode ocorrer tanto na substituiccedilatildeo de valores de um
hipotexto que apresente um sistema homogecircneo como eacute geralmente o caso da eacutepica ou
heterogecircneo como eacute o caso da trageacutedia a qual frequentemente apresenta conflito de valores
O hipertexto pode assim apresentar um esquema axioloacutegico novo ou mesmo inverter um
apresentado pelo texto matriz valorizando o que era depreciado ou depreciando o que era
valorizado ou seja revertendo completamente os eixos positivo e negativo
Este uacuteltimo caso parece ser o da Eneida que apresenta as iacutendoles gregas e troianas
distorcidas da visatildeo homeacuterica Na Iliacuteada por exemplo o eixo positivo estava de alguma
forma aplicado mais preponderantemente aos gregos e o negativo aos troianos uma vez que
vemos por exemplo estes natildeo cumprirem um juramento ou Paris esconder-se atraacutes dos
exeacutercitos cenas presentes no Canto III Com exceccedilatildeo de Heitor sobretudo pois sua condiccedilatildeo
valorosa serve para atribuir mais valor guerreiro a Aquiles A visatildeo grega entatildeo tende a
glorificar os seus heroacuteis Na obra de Virgiacutelio aleacutem de existir o rebaixamento de muitos
personagens aqueus como por exemplo Ulisses Menelau e Helena no Livro VI haacute a
tendecircncia de glorificar os troianos em especial do ramo de Eneias o qual no mito romano
compotildee a origem lendaacuteria de Roma este que tambeacutem figura como o ancestral de Rocircmulo e
Remo A exceccedilatildeo eacute o Pelida pois seraacute paracircmetro para o valor de Turno nomeadamente
ldquooutro Aquilesrdquo (alius [] Achilles Eneida VI 89) inimigo que seraacute derrotado por Eneias
conferindo a este a excelecircncia guerreira Essa inversatildeo promovida por Virgiacutelio pode ser
observada como um tipo da transvalorizaccedilatildeo
Certamente tambeacutem podemos ver na obra de Soacutefocles uma transvalorizaccedilatildeo uma vez
que se desloca o sistema de grandeza heroica eacutepica para um em que os personagens sejam
mais semenlhates aos espectadores e em que seja possiacutevel se realizar a catarse aristoteacutelica
(Poeacutetica 1453a 1-5) Assim Aacutejax Menelau e Agamecircmnon efetivamente dividem um coacutedigo
moral antigo visto como negativo no sistema axioloacutegico da peccedila que retrata no caraacuteter desses
heroacuteis uma individualidade que nos chega com tons de egoiacutesmo (HUBBARD 2003 p 167)
ou quando por parte dos Atridas retrata um certo juacutebilo com relaccedilatildeo agrave morte do Telamocircnio
Apesar de vermos um protagonista que se vecirc maior que deuses e chefes um ato que configura
sua hyacutebris observamos ainda seu valor ser reabilitado uma vez que outrora realizou faccedilanhas
162
em prol dos gregos ou ainda reconhecemos o caraacuteter comedido de Odisseu o qual o permite
compreender ateacute os atos mais violentos do protagonista natildeo como maldade mas como uma
fatalidade pois o Laertida reconhece a natureza fraacutegil dos mortais Dessa forma essa
transformaccedilatildeo que humaniza em certo grau os personagens removendo-os de sua natureza
superior e heroica modifica o sistema de valores de modo mais significativo para o propoacutesito
semacircntico do hipertexto sendo assim mais um dos casos da transvalorizaccedilatildeo Certamente
poderiacuteamos dizer que dentro desse processo de transvalorizaccedilatildeo por um lado Aacutejax recebe
uma valorizaccedilatildeo uma vez que seu caraacuteter intermediaacuterio eacute reforccedilado cumprindo-se o
propoacutesito semacircntico dessa transformaccedilatildeo e por outro Agamecircmnon e Menelau passam por
um processo de desvalorizaccedilatildeo uma vez que satildeo apresentados mais plenamente por meio de
viacutecios do que de virtudes Contudo em relaccedilatildeo ao sistema de valor que opotildee excesso e
desmedida poderiacuteamos dizer que o Telamocircnio eacute desvalorizado e o Laertida eacute valorizado
Dessa forma tentamos explicar como mais de um esquema axioloacutegico ao nosso
entendimento pode atuar em uma mesma obra e como operam os processos de valorizaccedilatildeo
desvalorizaccedilatildeo e transvalorizaccedilatildeo dentro desses contextos
Vejamos agora a uacuteltima praacutetica hipertextual desta seccedilatildeo a transmodalizaccedilatildeo
(transmodalisation) Sua praacutetica eacute mais comum e mais oacutebvia no acircmbito literaacuterio e isso
significa dizer que sua apreensatildeo eacute mais faacutecil porque sobretudo remete a outras praacuteticas
recorrentes das teorias literaacuterias Essa praacutetica a priori envolve transformaccedilotildees puramente
formais a partir de uma operaccedilatildeo de modificaccedilatildeo do modo ou no modo de representaccedilatildeo do
hipotexto ou seja o narrativo ou o dramaacutetico (GENETTE 2003 p 119) que satildeo aqueles nos
quais o estudioso francecircs se deteacutem Assim isso natildeo representa em si uma mudanccedila de gecircnero
literaacuterio pois tanto a eacutepica quanto o romance se desenvolvem sob o mesmo modo por
exemplo Com efeito esse procedimento ocorre segundo dois tipos o intermodal
(intermodale) que corresponde agrave passagem de um modo a outro seja do narrativo ao
dramaacutetico a dramatizaccedilatildeo (dramatisation) ou o contraacuterio a narrativizaccedilatildeo (narrativisation)
e o intramodal (intramodale) que corresponde agraves variaccedilotildees ocorridas dentro do mesmo
modo
Essas transformaccedilotildees afetam as modalidades do discurso e consenquentemente natildeo
alteram apenas sua forma mas tambeacutem seu sentido Satildeo mensuraacuteveis atraveacutes de instacircncias
propostas por Genette das quais nos restringiremos agraves de tempo e de modo (em sentido mais
estrito) De acordo com tais acircmbitos podemos entender as possibilidades de alteraccedilotildees
intramodal e sobretudo intermodal
163
Na instacircncia temporal por exemplo o modo narrativo acomoda melhor a alteraccedilatildeo da
ordem temporal dos eventos da histoacuteria como a analepse ou a prolepse O mesmo acontece
com o ritmo da narraccedilatildeo mais lento ou mais raacutepido no qual sumaacuterios se tornam cenas ou
cenas sumaacuterios Descriccedilotildees podem se alongar ou se reduzir elipses e paralipses podem ser
introduzidas a qualquer tempo O modo dramaacutetico em se tratando especialmente da trageacutedia
antiga jaacute sente a necessidade de comprimir a duraccedilatildeo da accedilatildeo o mais proacuteximo da
representaccedilatildeo o que acarreta um funcionamento em tempo real ou seja a cena propriamente
isocrocircnica As elipses por exemplo satildeo introduzidas frequentemente entre os atos ou as
cenas Assim fundamental eacute a relaccedilatildeo daquilo que eacute encenado com o aquilo que eacute elidido ou
pressuposto pois estando fora da dramatizaccedilatildeo algum fato que eacute importante para o sentido
da peccedila geralmente exige se tornar presente por meio de uma alusatildeo ou narraccedilatildeo Descriccedilotildees
que evoluiacuteram para ser atribuiacutedas aos gestos e agrave indumentaacuteria ndash componentes da teatralidade
ou seja o teatro menos o texto ndash nos antigos ganham ainda espaccedilo nas falas dos personagens
mas de forma mais objetiva e sinteacutetica
A instacircncia de modo no sentido mais estrito conforme dissemos eacute responsaacutevel por
regular a informaccedilatildeo sobretudo no sentido de seleccedilatildeo de quantidade e qualidade ou seja o
quanto se conta de algo e segundo qual ponto de vista No modo narrativo sobressaem-se daiacute
as noccedilotildees de distacircncia e de perspectiva narrativa A primeira pode ser reduzida em certo grau
agraves concepccedilotildees de diegesis e mimesis Esta eacute um procedimento que reduz a distacircncia entre a
histoacuteria e o narrador privilegiando diaacutelogos por exemplo na tentativa de retirar os sinais da
presenccedila de um mediador inclusive dramatizando os eventos da histoacuteria Aquela eacute um
processo inverso afastando o mediador de seu relato Esses recursos permitem ao modo
narrativo uma variaccedilatildeo potencialmente mais abundante do que o dramaacutetico Contudo este
uacuteltimo modo quanto ao teatro antigo apesar de agir segundo a mimesis ainda lhe eacute possiacutevel
reconhecer traccedilos de um mediador ora narrador ora comentador Esse papel eacute atribuiacutedo com
mais ou menos intensidade ao coro Quanto agrave noccedilatildeo de perspectiva ela recai sobre a
concepccedilatildeo de focalizaccedilatildeo ou seja o ponto de vista O modo narrativo pode adotar diferentes
focos desde um onisciente ao ponto de vista de um ou muacuteltiplos personagens e esse
procedimento certamente afeta as accedilotildees da histoacuteria uma vez que condiciona a quantidade de
eventos figuras espaccedilos etc envolvidos nela Em oposiccedilatildeo a isso o modo dramaacutetico tem
como uacutenico ponto de vista o do espectador No entanto a distribuiccedilatildeo dos discursos eacute
responsaacutevel pela transformaccedilatildeo da accedilatildeo seja privilegiando ou natildeo um determinado
personagem com mais falas uma vez que para o teatro antigo accedilatildeo eacute sobretudo falar discursar
e dialogar
164
Diante dessa exposiccedilatildeo podemos entender como em Aias houve um processo de
dramatizaccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave Pequena Iliacuteada a qual apresentava o episoacutedio do suiciacutedio do
Telamocircnio segundo outro modo de representaccedilatildeo Percebemos tambeacutem como o processo de
compressatildeo da accedilatildeo transforma a peccedila elidindo entre o proacutelogo e o paacuterodo o episoacutedio de
reconhecimento do heroacutei quando este percebe que matou animais e natildeo homens pois tal fato
natildeo eacute encenado mas relatado por Tecmessa ao coro em um processo de mediaccedilatildeo de
informaccedilatildeo que serve tanto para os guerreiros de Salamina quanto para os espectadores
Vejamos na seccedilatildeo seguinte como essas transformaccedilotildees transtextuais sobretudo
hipertextuais satildeo utilizadas por Oviacutedio para uma nova ressignificaccedilatildeo do episoacutedio que trata do
mito de Aacutejax
3 2 O EPISOacuteDIO TRANSTEXTUAL DE OVIacuteDIO
Nesta seccedilatildeo avaliaremos a obra de Soacutefocles em relaccedilatildeo ao seu caacuterater transtextual em
especial considerando possiacuteveis influecircncias oriundas de Soacutefocles e tambeacutem como jaacute
pontuamos procurando observar como a obra latina em questatildeo pode de alguma maneira
modificar a leitura da peccedila do autor grego Para isso utilizaremos sobretudo as conclusotildees
que retiramos das anaacutelises do capiacutetulo anterior Segundo a metodologia adotada
apresentaremos inicialmente disposiccedilotildees gerais seguidas de duas seccedilotildees uma para pontuar
transtextualidades significativas para a caracterizaccedilatildeo da virtude do heroacutei e outra para a da
ira que o acomete Comecemos pela transtextualidade e pelas suas transformaccedilotildees de caraacuteter
mais geral da obra de Oviacutedio e do episoacutedio em questatildeo
Com efeito jaacute reconhecemos que o caraacuteter polivalente dessa eacutepica de Oviacutedio eacute
evidente e que como o proacuteprio tiacutetulo sugere ela apresenta transformaccedilotildees expressivas em
relaccedilatildeo aos elementos mais tradicionais da tradiccedilatildeo da epopeia os quais tocam desde o
conteuacutedo ateacute a forma
Quanto ao conteuacutedo digamos assim eacute possiacutevel observar por exemplo que a obra
Metamorfoses desconstroacutei a grandeza heroica em favor de uma maior humanizaccedilatildeo dos
personagens com o propoacutesito de inserir um teor mais liacuterico e traacutegico agrave caracterizaccedilatildeo dos
heroacuteis de modo semelhante ao que fazem os tragedioacutegrafos gregos Isso em si promove uma
transvalorizaccedilatildeo no sentido estrito da palavra Por um lado em relaccedilatildeo ao proacuteprio gecircnero
eacutepico pois lhe retira a natural homogeneidade axioloacutegica desse modelo Por outro em relaccedilatildeo
agraves obras que descrevem o episoacutedio da morte de Aacutejax em especial Aias ou Odisseia uma vez
165
que se ressignificam seus conteuacutedos em um outro sistema de valor mais importante para o seu
eixo semacircntico Eacute importante ressaltar que em relaccedilatildeo agraves obras de Eacutesquilo de Lesches e
tantos outros as quais tambeacutem retratam o mito do heroacutei de Salamina natildeo haacute como avaliar a
obra latina transtextualmente uma vez que nos falta o texto para inferir qualquer sentido mais
profundo Por isso sempre pontuamos e pontuaremos as obras de Homero e Soacutefocles Com
efeito esse tratamento de Oviacutedio aos personagens em prol de um caraacuteter mais humano eacute
visiacutevel particularmente quando observamos os personagens mais expressivos representantes
maacuteximos dos valores aristocraacuteticos das obras homeacutericas
Um primeiro exemplo desse procedimento eacute o proacuteprio Agamecircmnon que na versatildeo de
Oviacutedio recebe um tratamento de caracterizaccedilatildeo mais humano e menos heroico a partir de uma
motivaccedilatildeo proacutepria da obra Metamorfoses aparentemente natildeo presente na tradiccedilatildeo arcaica e
claacutessica grega O julgamento das armas tanto na Odisseia quanto na Pequena Iliacuteada eacute um
episoacutedio que retrata os teucros ou seja os troianos como os juiacutezes da questatildeo juntamente
com Atena Contudo natildeo haacute nelas o que os tragedioacutegrafos pareceram preferir uma disputa
entre os dois heroacuteis a partir de um debate julgado pelos chefes gregos natildeo mais com a
participaccedilatildeo dos troianos Em Aias de Soacutefocles se menciona o episoacutedio da disputa como
decidida por meio de votos algo com o qual o seu protagonista natildeo concorda Certamente a
natureza do julgamento nesta uacuteltima obra insere-se dentro do campo que pertence ao eixo
dos valores positivos propostos pela peccedila pois representam um modelo proacuteprio da Atenas
Claacutessica em oposiccedilatildeo aos valores do eixo negativo que retratam princiacutepios arcaicos Nessa
obra natildeo haacute um motivo expliacutecito para a escolha de uma deliberaccedilatildeo por votos a natildeo ser pelo
objetivo semacircntico do texto que trata como naturais os elementos do periacuteodo claacutessico e como
baacuterbaros aqueles do arcaico No entanto Oviacutedio apresenta uma justificativa expliacutecita que
realccedila a iacutendole de Agamecircmnon de maneira a deslocaacute-lo de sua grandeza heroica O motivo da
predileccedilatildeo por um julgamento pelos chefes eacute para que o Atrida retire de si o ocircnus (ocircnus XII
v 626) e a inveja (inuidam XII v 626) Tal procedimento representa uma motivaccedilatildeo para o
eposoacutedio seja como um elemento novo ou reforccedilado pois impulsiona as accedilotildees do
personagem E para que sua compreensatildeo seja plena devemos reconhecer aiacute uma
intertextualidade com Iliacuteada uma vez que se alude agraves consequecircncias da proacutepria decisatildeo do
chefe grego em tomar o precircmio de Aquiles as grandes adversidades por que a tropa passou
com a ausecircncia do melhor dos aqueus Assim quando o proacuteprio texto sugere inveja disso
entendemos que o Atrida natildeo quer repetir o ato de outrora contra o Pelida tomando para si o
precircmio de outro e quando sugere ocircnus disso inferimos que o personagem sendo chefe natildeo
quer se tornar responsaacutevel novamente por consequecircncias desastrosas ao seu exeacutercito Dessa
166
forma o texto insinua que o chefe foge aos seus encargos parecendo-nos que tal incumbecircncia
eacute menos gloriosa e potencialmente mais onerosa aleacutem de nos incutir uma ideia de
aprendizado e evoluccedilatildeo do proacuteprio chefe uma vez que na Iliacuteada ele se fazia valer pela sua
posiccedilatildeo a qualquer custo Essa motivaccedilatildeo serve em especial para a transvalorizaccedilatildeo da obra
do autor latino
Um segundo caso significativo eacute o de Aquiles uma vez que na Iliacuteada vaacuterios
estudiosos reconhecem o modelo de excelecircncia grega aristocraacutetica e arcaica atribuiacuteda a este
heroacutei a exemplo de Werner Jaeger (2003) A partir desse heroacutei traccedila-se um ideal de bela
morte cujas premissas satildeo geralmente a de um guerreiro que tendo realizado grandes feitos
que homologam sua honra morre jovem nas matildeos de um igual e com isso alcanccedila a gloacuteria
maacutexima Essas questotildees satildeo inclusive a base que sustenta o entendimento mais profundo da
fuacuteria do heroacutei a qual forma o argumento da epopeia homeacuterica Honra e pudor satildeo elementos
fundamentais no sistema de valores das epopeias homeacutericas Contudo essas condiccedilotildees
grandiosas satildeo descontruiacutedas por Oviacutedio especialmente em relaccedilatildeo agrave bela morte de tal heroacutei
No Livro XII da obra Metamorfoses o Pelida eacute retratado por um vieacutes mais traacutegico do que
eacutepico e por isso entendemos que o heroacutei alcanccedila um fim ingloacuterio sobretudo de forma
inesperada e isso significa dizer que haacute uma ruptura com a expectativa Eacute possiacutevel observar
que essa eacutepica latina desenvolve um Aquiles vencedor de muitos heroacuteis (tantorum uictor v
608) mas que ao fim encontra a morte por meio de um combate feminino (femineo []
Marte v 610) pois eacute vencido pelo covarde raptor da esposa grega (victus [] a timido
Graiae raptore maritae v 609) ou seja por Paacuteris Esse processo de desvalorizaccedilatildeo do
Priamida em questatildeo ou seja de caracterizaacute-lo como um personagem sem virtude sobretudo
masculina e logo beacutelica diminui de alguma forma o valor de Aquiles para o sentido do texto
latino Assim apesar de sua gloacuteria ser retratada como que percorresse todo o mundo (gloria
compleat orbem v 617) o jogo entre as palavras uictor e uictus ressaltam a antiacutetese disposta
no texto do tatildeo grande Aquiles (tam magno Aquille v 615) apoacutes cremado resta algo de
ignoto (nescioquid v 616) Isso nos parece insinuar que embora tal heroacutei seja realizador de
grandes feitos sua morte eacute pequena assim inferior e de certo modo ingloacuteria
Jaacute quanto agrave forma apesar de Metamorfoses apresentar uma estrutura proacutepria da
epopeia como versos em hexacircmetro dactiacutelico podemos observar na mesma pelo menos em
relaccedilatildeo ao episoacutedio de Aacutejax um procedimento mais mimeacutetico do que diegeacutetico Este uacuteltimo eacute
um fundamental elemento da eacutepica uma vez que esse gecircnero eacute concebido pelo modo
manifestadamente narrativo No entanto a obra de Oviacutedio compotildee o episoacutedio em questatildeo de
quase 400 versos atribuindo a aproximadamente 25 deles a narraccedilatildeo distanciada
167
propriamente dita Isso significa que o narrador reduz a distacircncia entre ele e a histoacuteria na
preponderante maioria desses versos representando-a significativamente de maneira mais
dramatizada
Se a cena de debate presente na disputa pelas armas de Aquiles eacute certamente oriunda
ou ao menos preferida dos tragedioacutegrafos Oviacutedio teria transformado tal evento pelo processo
nomeado por Genette de transmodalizaccedilatildeo do tipo intramodal ou seja mais precisamente o
processo de narrativizaccedilatildeo Ele transfere o conteuacutedo que eacute encenado para um narrado
fazendo as adaptaccedilotildees necessaacuterias dentro de seu texto Das peccedilas sobre esse julgamento
acredita-se que ao menos as de Eacutesquilo e de Astidama ambos gregos e as de Pacuvius e
Accius latinos do periacuteodo republicano teriam encenado o debate apesar de natildeo determos
informaccedilotildees suficientes sobre tais obras
Contudo apesar da narrativizaccedilatildeo o procedimento mimeacutetico de Oviacutedio ressalta no
episoacutesio elementos do drama a partir de aspectos de duas instacircncias intermodais Na de modo
em seu sentido mais estrito o narrador dramatiza a accedilatildeo apesar de natildeo haver em si uma
encenaccedilatildeo A preponderacircncia que o autor latino concede aos diaacutelogos e ao discurso direto dos
personagens emula expressivamente o modelo dramaacutetico em particular porque vemos um
narrador que retira os sinais de sua presenccedila e de sua mediaccedilatildeo da histoacuteria Assim os proacuteprios
personagens proferem seus discursos de defesa com uma miacutenima interferecircncia externa Na
instacircncia temporal emula-se tambeacutem a cena isocrocircnica proacutepria do teatro ou seja o
desenvolvimento da cena em tempo real A mudanccedila do ritmo narrativo eacute reduzida ao
maacuteximo permitindo-se ao leitor contemplar o debate tal qual poderia ter ocorrido e tal qual
verdadeiros debates ocorriam na eacutepoca sem siacutenteses sem elipses ou omissotildees por exemplo
que satildeo caracteriacutesticas da presenccedila de um narrador
Natildeo temos como mensurar a influecircncia das iacutenumeras obras anteriores agrave de Oviacutedio ou
mesmo aquela cuja presenccedila eacute mais significativa contudo mesmo natildeo havendo em Aias de
Soacutefocles a encenaccedilatildeo do debate poderemos ver ainda certa relaccedilatildeo transtextual expressiva em
alguns pontos os quais trataremos na seccedilatildeo seguinte
Ainda em relaccedilatildeo ao episoacutedio da disputa pelas armas de Aquiles podemos apresentar
algumas disposiccedilotildees relevantes Tal episoacutedio presente no Livro XIII de Metarmorfoses
apresenta-se como um debate no qual os contendores defendem sua virtude e seus meacuteritos
Nele se estabelece um conflito de valores no qual a virtude eacute vista de duas formas diferentes
a depender de quem discursa Aacutejax a delineia a partir de uma ideia de accedilatildeo em oposiccedilatildeo agrave
palavra O virtuoso seria entatildeo o homem bravo que guerreia Contrariamente a essa
definiccedilatildeo Ulisses a delineia a partir de uma ideia de disposiccedilatildeo corporal em oposiccedilatildeo agrave
168
mental ou seja a inteligecircncia prevalece sobre a forccedila e a bravura O heroacutei valoroso seria
entatildeo o prudente Os dois personagens apresentam suas causas segundo esses eixos
axioloacutegicos ou seja por meio paracircmetros diferentes os quais fundamentam o conflito de
valores
Com efeito parece-nos conforme afirmamos anteriormente que o narrador valoriza
mesmo que discretamente o eixo descrito pelo Telamocircnio inclusive talvez porque tal
parcialidade adense o caraacuteter traacutegico da morte Dessa forma o narrador distanciado da
histoacuteria faz questatildeo de nomear o chefe de Salamina de heroacutei muito forte ou valente
(fortissimus heros X v 207) ou bravo varatildeo (fortis uiri XIII v 383) e o Laertida de
eloquente (disertus XIII 383) inclusive ainda descrevendo este a priori a fingir lamento
quando discorre sobre a morte de Aquiles com o objetivo de comover os espectadores (XIII
v 132-133) Essa parcialidade natildeo eacute algo descabido sobretudo se considerarmos as eacutepicas
latinas produzidas durante o Seacuteculo de Augusto as quais figuram a guerra de Troia
Geralmente nestas a linhagem de Eneias eacute glorificada e a linhagem de muitos ilustres heroacuteis
gregos eacute desvalorizada a exemplo claro da Eneida cujas accedilotildees de Ulisses como
mencionamos rapidamente satildeo caracterizadas por um vieacutes negativo
Essa caracterizaccedilatildeo negativa do heroacutei de Iacutetaca natildeo eacute estranha nem ao mundo grego
pois Piacutendaro por exemplo em sua ode Nemeia VIII jaacute assim o descrevia O episoacutedio da
disputa aludido no epiniacutecio desse autor eacute disposto segundo essa perspectiva de Aacutejax
presente na obra latina estudada por noacutes De acordo com a versatildeo desse poeta liacuterico
ldquolevantaram a maior honraria para a aacutegil mentira pois os Dacircnaos favoreceram Odisseu em
votaccedilatildeo secretardquo (μέγιστον δ` αἰόλῳ ψεύδει γέρας ἀντέταται κρυφίαισι γὰρ ἐν ψάφοις
Ὀδυσσῆ Δαναοὶ θεράπευσαν v 25-26)) Assim baseado nessas tradiccedilotildees e em uma
vinculaccedilatildeo mais significativa para a obra de Oviacutedio eacute possiacutevel e tambeacutem pertinente observar
uma certa tendecircncia do narrador ainda que sutil em validar as palavras de Aacutejax ligando a
eloquecircncia e a inteligecircncia do heroacutei a um eixo negativo Dessa forma seus discursos nos
revelam um pouco de como eles se veem e como eles satildeo na praacutetica caracterizados apesar de
que o narrador ainda de alguma maneira atesta o eixo de valores do heroacutei menos eloquente
No entanto natildeo eacute coerente validar apenas um eixo positivo e um negativo do modo
comumente visto na eacutepica pois apesar de ambos os contendores estarem inseridos em um
tempo miacutetico de grandeza heroica e que se valham de uma linhagem divina em seus
discursos eles satildeo retratados na eacutepica de Oviacutedio natildeo como tal mas a partir de uma
transvalorizaccedilatildeo que lhes impotildee um caraacuteter mais estritamente humano e intermediaacuterio
Consequentemente dentro desse uacuteltimo sistema axioloacutegico haacute ainda a uma espeacutecie de
169
valorizaccedilatildeo do Telamocircnio pois ao se atribuiacuterem virtudes e viacutecios ao heroacutei tal disposiccedilatildeo
contribui para a configuraccedilatildeo intermediaacuteria do personagem Por um lado reconhece-se sua
excelecircncia guerreira mas por outro esta implica a superestima de sua virtude que se faz
visiacutevel na ira na soberba no despudor excessivos que se estabelecem nessa caracterizaccedilatildeo de
Aacutejax A partir desse ponto de vista um novo eixo positivo desse sitema de valor se
estabelece aquele no qual o caraacuteter intermediaacuterio se situa essencial para os propoacutesitos liacutericos
e traacutegicos de Oviacutedio
Consequentemente o sistema de valor que se impotildee ao menos ao episoacutedio da disputa
das armas deve levar em consideraccedilatildeo para o objetivo semacircntico da obra um esquema duplo
um sistema mais evidente e presente em toda a obra em que se valoriza a profundidade
humana dos personagens em detrimento de uma grandeza heroica e outro mais discreto e
mais restrito ao episoacutedio estudado em que se valoriza mais a valentia guerreira de Aacutejax em
detrimento de uma aparente eloquecircncia dolosa A compreensatildeo do episoacutedio parece residir
nesse duplo sistema complexo atraveacutes do qual noacutes apontaremos e mensuraremos as praacuteticas
transtextuais utilizadas por Oviacutedio
Como dissemos tais questotildees seratildeo consideradas do ponto de vista da caracterizaccedilatildeo
do heroacutei e por isso recorreremos agravequela divisatildeo dupla das noccedilotildees de virtude e de ira
desenvolvidas no episoacutedio Comecemos pelas transtextualidades que figuram a concepccedilatildeo de
virtude do heroacutei
3 2 1 A virtude transtextual do heroacutei
Nesta seccedilatildeo retomaremos o conjunto de ideias que tratam do heroacutei em relaccedilatildeo agrave
virtude defensiva agrave empaacutefia que se desdobra de um excesso de confianccedila de Aacutejax nessa
excelecircncia guerreira e por fim agrave oposiccedilatildeo entre accedilatildeo e palavra ndash sobretudo quanto agrave questatildeo
de confronto entre ato visto e ato sorrateiro Tentaremos pontuar os tipos de
transtextualidades presentes na composiccedilatildeo dos elementos da virtude do personagem
ressaltando as noccedilotildees significativas de suas transformaccedilotildees diante do texto de Oviacutedio
Iniciemos pelo valor defensivo de sua excelecircncia guerreira
A primeira questatildeo relevante para isso eacute o epiacuteteto do heroacutei Oviacutedio nomeia o heroacutei
ldquosenhor do escudo de sete dobrasrdquo (clipei dominus septemplicis v 2) Com efeito esse autor
latino transpotildee para a sua obra um dos elementos caracteriacutesticos do Telamocircnio dentro da
Iliacuteada o seu escudo Nessa obra de Homero aleacutem de o escudo ter a forma de uma torre
170
(σάκος ἠύτε πύργον VII v 219 XI v 485 XVII v 128) ele eacute feito de sete camadas de
couro (σάκος ἑπταβόειον VII v 222 XI v 545) Essa constituiccedilatildeo singular compotildee a
imagem de um heroacutei que a priori se sobressai em sua funccedilatildeo protetora e defensiva segundo o
que pudemos observar ainda no primeiro capiacutetulo (cf p 20) Na passagem em questatildeo haacute ao
menos dois tipos significativos de transtextualidade do poeta latino em relaccedilatildeo a Homero
O primeiro tipo corresponde a uma intertextualidade no sentido estrito mencionado
por Genette Esse tipo marca a presenccedila efetiva de um texto em outro e no caso em questatildeo
trata-se da composiccedilatildeo do escudo do heroacutei Acreditamos haver certa referecircncia literal nessa
intertextualidade em um sentido mais abragente a qual possamos nomear de plaacutegio ou seja
um empreacutestimo natildeo declarado mas aparente Certamente para os dias de hoje a referecircncia
literal seria impossiacutevel quando tratamos de obras de liacutenguas diferentes contudo ainda sim eacute
possiacutevel aproximar leacutexicos No entanto natildeo podemos mensurar como e o quanto essa
aproximaccedilatildeo lexical seria concebida na praacutetica de traduccedilatildeo dentro do contexto histoacuterico do
Seacuteculo de Augusto Efetivamente a referecircncia estritamente literal natildeo eacute o que Oviacutedio faz
pois apesar de retomar vocaacutebulos expressivos dessa caracterizaccedilatildeo do personagem haacute ainda
algumas modificaccedilotildees O sintagma por exemplo clipei dominus teria sido proveniente do
sintagma ldquoportador de escudordquo (φέρων σάκος Iliacuteada VII v 219 XI v 485 XVII v 128)
Tambeacutem eacute essa a origem do termo usado por Soacutefocles em sua obra σακεσφόρῳ (Aias v 19)
Contudo o nuacutecleo do termo latino eacute um substantivo e o do texto de Homero eacute um particiacutepio
presente Natildeo sabemos ateacute onde seria possiacutevel para Oviacutedio por exemplo o uso do verbo
latino fero ndash de mesma origem que o grego ndash segundo o modelo do seu hipotexto ou seja a
utilizaccedilatildeo tambeacutem de um particiacutepio presente Aleacutem disso reconhecemos que as noccedilotildees
semacircnticas do termo dominus em especial no contexto romano parecem ir aleacutem do
correspondente hipotextual grego no sentido de que se agregam outros e novos significados
para o hipertexto No mesmo caminho parece se apresentar o termo septemplicis em relaccedilatildeo
ao ldquode sete peles de boirdquo (ἑπταβόειον VII v 222 XI v 545) O primeiro termo latino
forma-se a partir do numeral e do verbo plico cujo significado eacute ldquodobrarrdquo O segundo o
grego eacute composto a partir do numeral e do substantivo βοῦς que significa ldquoboirdquo Por sentidos
estritos diferentes ambos convergem para o mesmo sentido geral a constituiccedilatildeo do escudo
Por estarmos inseridos em um contexto histoacuterico diferente do de Oviacutedio para o qual poderia
haver uma intertextualidade literal e pelos motivos citados acima noacutes preferimos nomear
essa intertextualidade de plaacutegio tomando as premissas de Genette de forma mais abrangente
e dentro dos propoacutesitos em particular das noccedilotildees de traduccedilatildeo contemporacircnea Dessa forma
essa relaccedilatildeo transtextual recupera de certa forma uma estrutura linguiacutestica grega ndash pois haacute
171
uma semelhanccedila entre os sintagmas latino e grego ndash e sobretudo a partir dela permite-se a
compreensatildeo plena da passagem do Livro XIII uma vez que esta necessita das inferecircncias
oriundas de uma leitura da epopeia homeacuterica sobretudo acerca do papel essencial do
Telamocircnio na defesa dos gregos
O segundo tipo corresponde a uma hipertextualidade no sentido de transformaccedilatildeo
complexa e indireta ou seja de imitaccedilatildeo que trata da retomada de um estilo e dos motivos
temaacuteticos que ele envolve Assim Oviacutedio retoma um uso homeacuterico particular dos epiacutetetos
aleacutem da forma comum vista em todo o gecircnero eacutepico pois a referecircncia ao texto grego eacute
elaborada no texto latino na forma de um epiacuteteto que precede um discurso direto enquanto na
Iliacuteada tal composiccedilatildeo material das armas do heroacutei Aacutejax natildeo eacute disposta sequer como epiacuteteto
Na epopeia homeacuterica por exemplo as formas epiteacuteticas atribuiacutedas a Aacutejax recaem
particularmente sobre o sintagma muralha dos Aqueus ou portador do escudo em forma de
torre Com efeito aleacutem de caracterizar o personagem pelo seu escudo o epiacuteteto latino tal qual
o modelo homeacuterico antecipa o discurso direto do personagem segundo as observaccedilotildees de
Rocha Pereira (1984 p 3-5) como jaacute contemplamos em capiacutetulos anteriores adequando-se
ao contexto da cena e contribuindo para a melhor caracterizaccedilatildeo do momento bem como do
Telamocircnio
Dessa forma o caraacuteter intertextual do epiacuteteto usado por Oviacutedio gera inferecircncias ao
texto homeacuterico que ressaltam no heroacutei uma valorizaccedilatildeo Essa referecircncia retoma os episoacutedios
nos quais Aacutejax se sobressaiu na Iliacuteada em especial figurando-se o escudo como um
componente essencial de sua imagem e aparecircncia guerreira Essa valorizaccedilatildeo eacute ainda dupla
pois por um lado confere virtudes ao personagem que se contrabalanccedilam com viacutecios como
veremos ser o caso da soberba inserindo-o positivamente no esquema de valor presente no
sistema axioloacutegico mais abrangente da obra e por outro infere atributos guerreiros positivos
para o esquema mais restrito do sistema
A transformaccedilatildeo hipertextual promovida pelo epiacuteteto conduz o discurso do
personagem a argumentos fundamentados na excelecircncia beacutelica em especial a um atributo
mais defensivo dessa virtude guerreira Eacute dessa forma que noacutes contemplamos a imitaccedilatildeo de
Oviacutedio em relaccedilatildeo a Homero Isso diz respeito ao uso especiacutefico do epiacuteteto com os propoacutesitos
antecipatoacuterios do conteuacutedo que lhe eacute posterior Esse emprego peculiar enfatiza um dos
argumentos mais importantes na proacutepria defesa e louvor do heroacutei pois o personagem em
questatildeo restringiraacute sobretudo suas faccedilanhas beacutelicas ao caraacuteter protetor no qual o escudo teraacute
uma grande participaccedilatildeo sendo inclusive apontado como prova maacutexima de suas palavras
uma vez que tal arma revela o seu desgaste pela proacutepria condiccedilatildeo em que se encontra
172
Certamente a referecircncia intertextual e a hipertextual estabelecidas pelo epiacuteteto
promovem uma ressignificaccedilatildeo da virtude do Telamocircnio dentro do eixo semacircntico do
episoacutedio Pois eacute especialmente atraveacutes da imagem simboacutelica do escudo e das accedilotildees nas quais
tal arma tem participaccedilatildeo que se salienta a capacidade de resistecircncia e de contenccedilatildeo ndash militar
ou emocional ndash essencial para a composiccedilatildeo traacutegica do desfecho da cena Claramente essas
relaccedilotildees transtextuais tecircm como hipotexto a Iliacuteada e natildeo ainda ao nosso ver a trageacutedia de
Soacutefocles
Contudo parece-nos que esse procedimento especiacutefico de Oviacutedio se assemelha ao
realizado por Soacutefocles mas para fins diferentes Como vimos no capiacutetulo anterior (cf p 76-
77) o tragedioacutegrafo grego utiliza duas vezes essa mesma caracterizaccedilatildeo que tem como base a
referecircncia ao escudo singular do personagem A primeira no proacutelogo na forma de um epiacuteteto
ldquoo portador de escudordquo (τῷ σακεσφόρῳ v 19) A segunda no primeiro episoacutedio descrevendo
a constituiccedilatildeo particular dessa arma ldquoescudo de sete peles de boirdquo (ἑπτάβοιον [] σάκος v
576) Essa composiccedilatildeo do escudo do heroacutei de vieacutes beacutelico na obra homeacuterica serve para o
procedimento de valorizaccedilatildeo na peccedila de Soacutefocles pois nesta trageacutedia essa arma simboliza
sobretudo a iacutendole arcaica e excessiva de Aacutejax Essa operaccedilatildeo eacute fundamental para o sistema
axioloacutegico de Aias pois transforma seu sentido Para a Iliacuteada essa caracterizaccedilatildeo valorizava
sua grandeza heroica mas para a peccedila em questatildeo a transformaccedilatildeo promovida pelo autor
impotildee que tal caracteriacutestica valorize seu caraacuteter intermediaacuterio Dessa forma natildeo eacute
impertinente ou invaacutelido reconhecer que Oviacutedio tenha utilizado uma transformaccedilatildeo
semelhante agrave de Soacutefocles ressignificando um traccedilo marcante do personagem para um novo
eixo semacircntico em especial porque faz tal operaccedilatildeo sobre o mesmo personagem e sobre a
mesma caracteriacutestica o escudo iacutempar do heroacutei Esse processo hipertextual em relaccedilatildeo a esses
dois autores aparenta ser entatildeo uma imitaccedilatildeo pois o poeta posterior usa o mesmo recurso de
forma tatildeo significativa para o seu episoacutedio quanto o do tragedioacutegrafo eacute para sua peccedila
sobretudo do ponto de vista simboacutelico Esse recurso do poeta grego se afigura validamente
como um traccedilo estiliacutestico o qual eacute retomado por Oviacutedio Este autor entatildeo amplifica tal estilo
no momento em que faz o epiacuteteto tambeacutem usado no hipotexto ser usado ainda ao modelo
homeacuterico ou seja como uma foacutermula que precede o discurso direto antecipando seu
conteuacutedo e dessa forma indo aleacutem de uma marca caracterizante da iacutendole do heroacutei
A segunda questatildeo ainda relevante para essa qualidade defensiva segue o mesmo
procedimento imitativo Ela corresponde a uma condensaccedilatildeo estabelecida por Oviacutedio ou seja
uma transformaccedilatildeo redutora de um texto matriz em um tipo de siacutentese autocircnoma mantendo-
se ainda uma significaccedilatildeo mais geral do hipotexto Essa referecircncia transtextual nos parece
173
estabelecer uma relaccedilatildeo tanto com a Iliacuteada quanto com a obra Aias mesmo que com esta seja
bem tecircnue como a observada acima mas de todo modo presente
A reduccedilatildeo que me refiro foi estudada por noacutes no capiacutetulo anterior (cf p 104-107) e
correspondem aos versos 7-8 e 73-94 do Livro XIII de Metamorfoses os quais retratam
eventos inseridos no Canto VII XI e XIII-XV da Iliacuteada quando respectivamente do
combate singular entre Aacutejax e Heitor do resgate de Odisseu e do combate junto agraves naus
Certamente em relaccedilatildeo agrave epopeia homeacuterica noacutes podemos tratar de uma condensaccedilatildeo
contudo ainda uma reduccedilatildeo restrita pois ela natildeo reduz toda a obra de Homero mas apenas os
episoacutedios significativos para a valorizaccedilatildeo do heroacutei em termos de sua virtude guerreira
sobretudo defensiva Logo o recorte redutor do autor latino eacute feito a partir de um propoacutesito
semacircntico por um lado ele ressalta os atos que mostram grande faccedilanhas do personagem e o
insere no eixo positivo dos valores do heroacutei ou seja no eixo da accedilatildeo e natildeo da palavra por
outro restringe e enfoca seu atributo como defensivo em particular de contenccedilatildeo aos ataques
dos troianos protegendo aliados e os navios gregos
Essa valorizaccedilatildeo restrita eacute evidente como bem jaacute pontuamos e por isso
significativamente o narrador reitera o verbo conter ou suster (sustineo) nos versos 8 e 88 e a
esse acrescenta outros dois tambeacutem expressivos para esse propoacutesito os verbos defender
(tego) e proteger (protego) respectivamente nos versos 75 e 93 Aleacutem disso o proacuteprio escudo
(clipeus) eacute referido duas vezes nessa condensaccedilatildeo nos versos 75 e 79 sobretudo sendo
utilizado na proteccedilatildeo do Laertida Esse elemento componente do epiacuteteto do heroacutei ainda eacute
mencionado em seu discurso duas vezes no verso 110 e mais significativamente no 118
quando eacute utilizado como uma espeacutecie de prova uma vez que o escudo usado pelo Telamocircnio
apresenta mil marcas de golpes enquanto o de seu contendor eacute iacutentegro assim evidencia-se
que o primeiro heroacutei combateu inuacutemeras vezes ndash sobretudo em accedilotildees defensivas ndash e eacute o
homem da accedilatildeo enquanto o segundo aparentemente natildeo utiliza o escudo e dessa forma eacute o
homem da palavra Todos esses indiacutecios textuais convergem para uma valorizaccedilatildeo especiacutefica
a virtude defensiva a qual foi possiacutevel atraveacutes de uma condensaccedilatildeo que se dispotildee como uma
transformaccedilatildeo quantitativa do tipo complexa ou seja como anteriormente explicamos ela
representa uma operaccedilatildeo que afeta natildeo apenas a extensatildeo mas o teor e o sentido do hipotexto
os quais satildeo alterados e ressignificados no hipertexto
Observamos no primeiro capiacutetulo que essa qualidade defensiva do Telamocircnio no
acircmbito da Iliacuteada era algo latente e preponderante devido agraves circunstacircncias proacuteprias da trama
da obra e entre essas acima de tudo a garantia de Zeus no avanccedilo dos troianos enquanto
Aquiles estaacute ausente na guerra o que impotildee muitas adversidades aos gregos para os quais a
174
sobrevivecircncia e a resistecircncia aos assaltos inimigos representam em si a uacutenica vitoacuteria possiacutevel
Mas esse atributo especiacutefico natildeo compunha unicamente ou majoritariamente as capacidades
beacutelicas do chefe de Salamina dentro da obra homeacuterica Em oposiccedilatildeo a isso o episoacutedio de
Oviacutedio modifica claramente esse conteuacutedo reduzindo-o e adequando a um objetivo semacircntico
diferente para o qual outras capacidades e habilidades guerreiras do heroacutei satildeo dispensaacuteveis e
suprimidas por isso natildeo figuram entre as palavras de nenhum dos contendores da disputa
Essa transformaccedilatildeo quantitativa complexa eacute a mesma realizada por Soacutefocles em sua
trageacutedia Aias Certamente esse tragedioacutegrafo a faz segundo outros objetivos semacircnticos
contudo isso parece sugerir alguma influecircncia na transformaccedilatildeo desenvolvida pelo autor
latino em sua obra Vejamos
Na peccedila haacute uma condensaccedilatildeo extremamente proacutexima agrave realizada no Livro XIII de
Metamorfoses As palavras de Teucro em defesa do irmatildeo (v 1272-1287) conforme vimos
anteriormente (cf p 67-69) no ecircxodo sintetiza os mesmos episoacutedios com exceccedilatildeo do resgate
especiacutefico de Odisseu no lugar do qual o texto grego apresenta um coletivo Soacutefocles utiliza
os verbos conter (ἀπεῖρξεν v 1280) e resgatar (ἐρρύσατο v 1276) para se referir agrave defesa das
naus do combate com Heitor e do salvamento aos gregos de tal situaccedilatildeo adversa O verbo
ἀπείργω certamente ecoa em sustineo e ῥύομαι em tego e protego A coincidecircncia eacute maior
pois a peccedila evidencia o caraacuteter individual das proezas de Aacutejax (μοῦνος v 1276 μόνος v
1283) e assim tambeacutem faz Oviacutedio (unus v 87) que reforccedila essa individualidade por meio da
reiteraccedilatildeo do pronome da primeira pessoa do singular (ego v 8 85 87) usado no texto para
realccedilar que Aacutejax sozinho realizou tais accedilotildees
Com efeito tal condensaccedilatildeo do tragedioacutegrafo tem dois propoacutesitos adequados ao seu
propoacutesito semacircntico Primeiramente como vimos essa siacutentese serve para caracterizar Aacutejax
segundo uma autonomia do protagonista dentro da peccedila acentuando sua renitecircncia em se
submeter a outros e assim valorizando seu caraacuteter intermediaacuterio a partir de comportamento
arcaico e negativo na concepccedilatildeo da Atenas Claacutessica ou seja a partir de uma conduta
individual e excessiva em pretericcedilatildeo a uma coletiva e comedida Em segundo lugar tal siacutentese
atua nessa valorizaccedilatildeo do personagem pois contrabalanccedila aspectos negativos com accedilotildees
corajosas em prol de seus aliados o que eacute significativo para a reabilitaccedilatildeo do Telamocircnio na
segunda parte da peccedila
Jaacute para Oviacutedio essa transformaccedilatildeo repercute em dois objetivos distintos do autor
grego adequados a outras intenccedilotildees semacircnticas O primeiro para enfatizar uma qualidade de
resistecircncia e de contenccedilatildeo ndash militar ou emocional ndash do personagem O segundo para focar na
sua capacidade individual de exercer tal virtude em prol do coletivo bem proacuteximo ao que
175
vimos definir a uirtus romana Ambas servem para a valorizaccedilatildeo da virtude do heroacutei
sobretudo em relaccedilatildeo ao esquema axioloacutegico que opotildee accedilatildeo e palavra Contudo tambeacutem se
prepara a expectativa que seraacute rompida a partir de outro elemento a ira que sozinha e
incontida causa a ruiacutena do heroacutei o que consequentemente eacute uma valorizaccedilatildeo dentro do
caraacuteter intermediaacuterio do personagem
Em relaccedilatildeo agrave Iliacuteada como observamos ainda neste capiacutetulo (cf p 147-148) tanto a
obra de Soacutefocles quanto a de Oviacutedio apresentam uma condensaccedilatildeo ou seja uma siacutentese
desprovida dos detalhes presentes na epopeia homeacuterica Contudo essa transformaccedilatildeo eacute
complexa pois os autores fazem nessa operaccedilatildeo mais do que reduzir um conteuacutedo ou seja
mais do que promover uma alteraccedilatildeo quantitativa Esse procedimento serve acima de tudo
para uma modificaccedilatildeo de seu sentido adequando uma nova caracterizaccedilatildeo por restriccedilatildeo ou
acreacutescimo de atributos mais significativa para o novo eixo semacircntico de cada uma delas Por
isso e aleacutem disso tal recurso incide em um processo de transvalorizaccedilatildeo do personagem
fundamental para as obras em questatildeo
Validamente mais uma vez haacute uma semelhanccedila muito proacutexima entre os
procedimentos realizados pelos autores Os conteuacutedos homeacutericos referidos e condensados satildeo
praticamente os mesmos inclusive o teor linguiacutestico que os expressa em especial a saber os
verbos que enfocam os atos do personagem em defesa dos gregos bem como os adjetivos e
pronomes que ressaltam o caraacuteter individual de suas faccedilanhas beacutelicas Analisar essa reduccedilatildeo
em particular e a mensurar em relaccedilatildeo a Eacutesquilo e a Lesches eacute um trabalho como jaacute dissemos
bastante inoacutecuo sobretudo ao se considerar a complexidade hipertextual que atinge os
objetivos semacircnticos da obra Contudo podemos especular que um discurso de defesa como
tal aplicado ora a Teucro em Aias e ora a Aacutejax em Metamorfoses possa ter base nos
autores dessas obras ou talvez em outros Dessa forma parece-nos pertinente observar uma
relaccedilatildeo de transtextualidade entre condensaccedilatildeo de Oviacutedio quanto agrave de Soacutefocles pois a
semelhanccedila muito proacutexima nos induz a reconhecer algum tipo de influecircncia Podemos assim
situaacute-la em trecircs instacircncias
Uma primeira de procedimento intertextual na qual reconhecemos um certo
empreacutestimo natildeo declarado de uma passagem que tem como cerne uma mesma condensaccedilatildeo
de episoacutedios homeacutericos Uma segunda de natureza pragmaacutetica cuja relaccedilatildeo hipertextual eacute de
transmodalizaccedilatildeo mais precisamente de narrativizaccedilatildeo ou seja uma modificaccedilatildeo
intramodal pois o texto dramaacutetico condensado se torna narrativo Essa segunda instacircncia
repercute em uma terceira uma transformaccedilatildeo intermodal atraveacutes da qual Oviacutedio concentra
sua obra em um processo mimeacutetico extremamente majoritaacuterio dentro do episoacutedio da disputa
176
das armas O autor latino procede segundo transformaccedilotildees intermodais proacuteprias do modo
dramaacutetico em particular do teatro antigo no qual devido ao processo inerentemente
mimeacutetico natildeo haacute uma noccedilatildeo de perspectiva ou seja esse modo tem como ponto de vista
unicamente o do espectador Assim a maneira de alterar a accedilatildeo eacute atraveacutes da distribuiccedilatildeo dos
discursos uma vez que para o teatro antigo accedilatildeo eacute sobretudo discursar como jaacute pontuamos
Dessa forma devido agrave mimesis extrema do episoacutedio de Oviacutedio a alteraccedilatildeo intermodal parece
ser privilegiar Aacutejax com o discurso de Teucro presente na obra de Soacutefocles e assim
transformar a accedilatildeo por meio da redistribuiccedilatildeo da fala dos personagens Essa modificaccedilatildeo eacute
consequecircncia da transformaccedilatildeo intramodal acompanhada de outras transformaccedilotildees
quantitativas que concentram o episoacutedio na disputa por um lado elidindo e retirando
personagens e eventos relacionados ao mito de Aacutejax mas por outro aumentando o debate em
uma operaccedilatildeo de ampliaccedilatildeo Acreditamos que essas trecircs possibilidades transtextuais sejam
pertinentes e vaacutelidas uma vez que as iacutenumeras semelhanccedilas entre as condensaccedilotildees dispostas
pelos dois autores estatildeo sem duacutevida aleacutem da mera coincidecircncia Dessa forma mais uma vez
nos parece que Oviacutedio tambeacutem opera por imitaccedilatildeo retomando o estilo do tragedioacutegrafo mas
com outra intenccedilatildeo semacircntica pois sua condensaccedilatildeo tem propoacutesitos diferentes
Vejamos agora a empaacutefia uma caracteriacutestica essencial de Aacutejax no episoacutedio de
Oviacutedio a qual se relaciona diretamente com a virtude guerreira porque desta se desdobra a
soberba a partir de um excesso de confianccedila do personagem Essa caracterizaccedilatildeo nos parece
receber a mais visiacutevel e relevente transformaccedilatildeo do autor latino em relaccedilatildeo ao tragedioacutegrafo
grego pois evidencia diretamente a influecircncia de Soacutefocles por meio de uma caracterizaccedilatildeo de
destaque no episoacutesio da metamorfose do heroacutei em questatildeo
De acordo com o que jaacute vimos ainda neste capiacutetulo (cf p 148-149) Soacutefocles teria
ampliado motivaccedilotildees das obras de Homero e Lesches Assim o impulso em realizar o
suiciacutedio teria como base a desonra quanto ao natildeo recebimento das armas de Aquiles ndash cuja
origem eacute a Odisseia ndash e o ultraje da carnificina aos animais quando do episoacutedio da loucura ndash
cuja origem eacute a Pequena Iliada provavelmente ndash ambos filtrados por uma caracteriacutestica
latente de Aacutejax nas epopeias homeacutericas um orgulho guerreiro mais extremo Na trageacutedia
Aias essas motivaccedilotildees satildeo aumentadas ganhando grande significaccedilatildeo dentro da peccedila e
fazendo decorrer disso uma caracterizaccedilatildeo reiterada do heroacutei a superestimaccedilatildeo de seu valor
que o torna extremamente arrogante a ponto de se achar superior aos deuses
Com efeito essa empaacutefia sofocliana do protagonista da peccedila eacute retomada na versatildeo de
Oviacutedio aos moldes do tragedioacutegrafo Acreditamos que esse orgulho eacute inclusive aumentado no
autor latino Obviamente tal comparaccedilatildeo natildeo deve ser vista de forma absoluta pois o Aacutejax
177
ovidiano natildeo revela excesso contra os deuses Contudo devemos reconhecer um confronto
desse traccedilo em termos proporcionais Isso significa observar o papel dessa soberba na
estrutura de cada uma das obras para que se possa compreender o grau desse aumento Trecircs
transformaccedilotildees satildeo essenciais para esse entendimento
A primeira eacute uma operaccedilatildeo quantitativa a excisatildeo ou seja a remoccedilatildeo massiva de um
episoacutedio presente no hipotexto Como eacute bem visiacutevel ao texto latino em questatildeo todo o
episoacutedio que envolve a loucura do Telamocircnio eacute removido Natildeo figura a intervenccedilatildeo da deusa
nas accedilotildees do chefe de Salamina em relaccedilatildeo a qualquer tipo de furor insano do personagem
ou ao ataque desse heroacutei ao rebanho grego Nada disso eacute mencionado ou sugerido no texto
que de alguma maneira influencie na composiccedilatildeo de sua trama Contudo haacute ao menos uma
alusatildeo significativa agrave deusa Atena uma vez que ao fim de seu discurso Ulisses aponta para
estaacutetua da deusa (Mineruae v 381) insinuando-se assim pelo menos uma intervenccedilatildeo mas
no julgamento das armas o que alinha esse episoacutedio com a tradiccedilatildeo arcaica Com efeito no
Livro XIII o suiciacutedio segue diretamente ao resultado da disputa pelas armas do Pelida
A segunda operaccedilatildeo decorre em funccedilatildeo dessa excisatildeo Essa segunda eacute uma
transformaccedilatildeo pragmaacutetica a desmotivaccedilatildeo Certamente a remoccedilatildeo de um episoacutedio pode
repercutir no eixo semacircntico como eacute comum no caso do tipo complexo jaacute explicado por noacutes
Poreacutem essa supressatildeo atinge um dos motivos pelos quais Aacutejax eacute levado ao suiciacutedio Essa
consequecircncia em si logo trata-se de um outro procedimento o qual corresponde agrave supressatildeo
ou minimizaccedilatildeo de uma motivaccedilatildeo Na obra de Soacutefocles a desonra causada pelo resultado da
disputa das armas e o ultraje causado pela carnificina dos animais tecircm igual peso nas
motivaccedilotildees do protagonista apesar de reconhecermos o foco maior na loucura em relaccedilatildeo a
esse autor Certamente ambos satildeo fundamentais na estrutura da peccedila Dessa forma ao
escolher suprimir de sua versatildeo o segundo episoacutedio Oviacutedio transforma significativamente
seus elementos por um lado revalidando a vertente homeacuterica e por outro promovendo algo
aparentemente novo ao mito em questatildeo
Como eacute bem natural o procedimento de desmotivaccedilatildeo fomenta a necessidade de outro
de motivaccedilatildeo a terceira transformaccedilatildeo que indicamos seja ou pela inclusatildeo de um motivo
novo ou pela ampliaccedilatildeo de um ainda presente no hipotexto Isso parece ocorrer em
Metamorfoses em relaccedilatildeo ao episoacutedio em questatildeo A retirada da loucura e da sua decorrente
carnificina promove na estrutura do Livro XIII o aumento expressivo do valor da desonra
quanto agrave questatildeo das armas de Aquiles ou seja uma amplificaccedilatildeo dessa motivaccedilatildeo pois se
torna no eixo semacircntico do hipertexto o uacutenico impulso que move o heroacutei a se matar
178
Todos os motivos parecem se reduzir a esse que eacute o mais significativo para a obra
latina Assim reforccedila-se a vertente homeacuterica da origem da funesta morte do heroacutei Contudo
haacute algo de novo nessa operaccedilatildeo natildeo sugerida em Homero e natildeo presente em Soacutefocles Essa
motivaccedilatildeo da desonra pelas armas eacute aumentada uma vez que em Oviacutedio ela figura antes
mesmo de se deliberar um resultado pois ela pode ser observada jaacute durante o proacuteprio discurso
do heroacutei Em Homero a desonra estaacute sugerida no Canto XI da Odisseia ao identificarmos a
causa da morte do heroacutei na disputa contudo poucas satildeo as informaccedilotildees sobre como decorre
pois haacute apenas uma alusatildeo ao evento
Em Soacutefocles que desenvolve tal episoacutedio podemos inferir que o sentimento de
desonra que inclusive impulsiona a ira do personagem como veremos na seccedilatildeo seguinte
parece se desenvolver significativamente apoacutes o resultado deliberado pelos chefes gregos
Isso eacute depreendido da fala de Odisseu (cf pg 64) na qual assim diz ldquopois tambeacutem para mim
era este [Aacutejax] o maior inimigo da tropa desde que a ele sobressaiacute por causa das armas de
Aquilesrdquo (Κἀμοὶ γὰρ ἦν ποθ οὗτος ἔχθιστος στρατοῦ ἐξ οὗ κράτησα τῶν ᾿Αχιλλείων
ὅπλων v 1336-1337) Essa hostilidade cuja origem eacute a desonra evidencia uma motivaccedilatildeo
que se instaura acima de tudo a partir resultado da disputa apesar de Aacutejax posteriormente
ainda evidenciar tambeacutem a decisatildeo por votos e o contexto em que essa deliberaccedilatildeo se
estabelece como sendo fatores odiados por ele Certamente essa desonra como motivo ou
impulso significativo em particular da hostilidade do protagonista desenvolve-se
posteriormente ao debate e ao seu resultado Assim parece-nos estrutura-se tal motivaccedilatildeo
dentro do eixo semacircntico de Aias
No caso do episoacutedio de Oviacutedio noacutes podemos observar claramente essa desonra do
heroacutei sendo inferida em suas palavras ainda proferidas durante o discurso Na versatildeo latina
para Aacutejax o proacuteprio ato de Ulisses reclamar e disputar as armas jaacute confere uma desonra agraves
armas (demit honorem v 16) e ao Telamocircnio uma vez que este mesmo revela jaacute natildeo ser
orgulhoso portar algo que o seu opositor reclamou (Aiaci non est tenuisse superbum []
quicquid sperauit Vlisses v 16-17) Apesar de natildeo seguir estritamente o que Genette pontuou
como transmotivaccedilatildeo ou seja a supressatildeo completa de um motivo e a inclusatildeo de um novo
podemos perceber claramente as transformaccedilotildees promovidas por Oviacutedio em relaccedilatildeo a
Soacutefocles por meio de uma operaccedilatildeo de desmotivaccedilatildeo como remoccedilatildeo massiva do ultraje
proveniente da excisatildeo do episoacutedio da loucura e de suas consequecircncias e tambeacutem de uma
motivaccedilatildeo do tipo aumentada uma vez que a desonra oriunda da questatildeo que envolve as
armas de Aquiles eacute expandida para antes do resultado do debate ou seja para a contenda em
si aparentemente se configurando uma inovaccedilatildeo para o mito em questatildeo Isso explica por que
179
o episoacutedio se concentra no lado discursivo e retoacuterico do episoacutedio pois a contenda eacute suficiente
para justificar as causas que movem o personagem ao suiciacutedio
Certamente essa cadeia de transformaccedilotildees transtextuais tem efeito direto na
caracterizaccedilatildeo do Telamocircnio pois atraveacutes dela podemos reconhecer o papel significativo de
sua empaacutefia e de sua soberba na composiccedilatildeo da trama do episoacutedio Esse traccedilo eacute
marcadamente referido como uma extrema confianccedila em determinado valor que se deteacutem
(fiducia laudis XII v 625) sugerida pelo proacuteprio narrador externo correspondendo no
hipertexto ao nosso ver agrave superestima de uma excelecircncia guerreira a qual se sobressai a
quaisquer outros valores e que toca a dignidade e a honra de um heroacutei Ilustrada na soberba
do heroacutei essa sobrevalorizaccedilatildeo da honra como elemento fundamental na estrutura da obra
instrumentalizada por meio da caracterizaccedilatildeo de Aacutejax foi como dissemos e acreditamos
desenvolvida de forma significativa e a priori inovadora por Soacutefocles em sua peccedila E por
ser uma caracteriacutestica extremamente relevante e essencial tambeacutem no acircmbito do episoacutedio de
Oviacutedio ou seja na estruturaccedilatildeo das motivaccedilotildees da trama parece-nos que essa empaacutefia sela
uma relaccedilatildeo de transtextualidade mais proacutepria entre esses dois autores
Com efeito esse traccedilo na iacutendole do personagem sofocliano e ovidiano representa a
transformaccedilatildeo psicoloacutegica que permite para o primeiro autor dispor a perspectiva de desonra
e ultraje aos episoacutedios da disputa e da loucura e para o segundo a de desonra em relaccedilatildeo agrave
contenda pelas armas de Aquiles Dessa forma quando comparamos a empaacutefia nas duas obras
e acreditamos esta ser aumentada na versatildeo latina entendemos que essa caracterizaccedilatildeo foi
instrumentalizada por meio de um episoacutedio diferente do tragedioacutegrafo que apesar de centrar-
se na loucura ela foi desenvolvida por meio de duas motivaccedilotildees que correspondem a dois
episoacutedios Logo a soberba que fundamenta os impulsos do heroacutei na versatildeo latina segundo
uma noccedilatildeo de causalidade movendo-o ao suiciacutedio em termos proporcionais parece maior
pois sendo estendida ao debate o resultado inesperado da derrota para Aacutejax eacute suficiente
para a sua morte Assim a empaacutefia da peccedila do tragedioacutegrafo necessita de dois motivos
significativos e a do autor latino precisa de apenas um para mover seu heroacutei ao suiciacutedio
Aleacutem disso tal operaccedilatildeo psicoloacutegica em ambos os poetas tambeacutem serve para a valorizaccedilatildeo
do caraacuteter intermediaacuterio do personagem contrabalanccedilando virtudes e viacutecios
Prossigamos por fim com a anaacutelise de possiacuteveis referecircncias do texto latino ao grego
em relaccedilatildeo agrave oposiccedilatildeo entre accedilatildeo e palavra na qual em especial o Telamocircnio valoriza
sobretudo accedilotildees beacutelicas que podem ser vistas e testemunhadas Essa oposiccedilatildeo eacute sobretudo
relevante pois fundamenta os valores de Aacutejax manifestando-se o que ele estima e o que
despreza essenciais para compreendermos a sua perspectiva que dispotildee a si como melhor e o
180
adversaacuterio como pior Ademais essa oposiccedilatildeo distingue uma importante relaccedilatildeo transtextual
que na nossa compreensatildeo permite uma nova leitura do hipotexto de alguma forma o
influenciando
Na disputa representada pela versatildeo latina o Telamocircnio tenta desqualificar seu
opositor por meio de algumas oposiccedilotildees A primeira mais importante eacute se mostrar o homem
da accedilatildeo cuja valentia prepondera a astuacutecia do homem da palavra Dessa forma apresenta-se
um Ulisses cuja inteligecircncia serve para a mentira e natildeo para a verdade A segunda mais
acessoacuteria sabendo-se das accedilotildees importantes do Laertida na guerra eacute desvalorizar tais accedilotildees
Para isso o chefe de Salamina apresenta a oposiccedilatildeo em accedilatildeo testemunhada e accedilatildeo sorrateira
na qual esse heroacutei liga suas proezas agravequela e as de seu opositor agrave esta Como pudemos ver na
anaacutelise do capiacutetulo anterior (cf p 115-118) vaacuterios satildeo os indiacutecios textuais do discurso do
heroacutei os quais apontam accedilotildees furtivas (clam v 103) noturnas (luce nihil v 100) tramadas
(furtis [] decipit v 104) e natildeo testemunhadas (sine teste v 15) como executadas por
homem covarde (timidissime v 115) que altera a natureza desses atos atraveacutes da palavra
(narret v 14) ou seja tais accedilotildees tornam-se grandiosas atraveacutes de mentiras das palavras que
persuadem Certamente essa perspectiva adensa o sistema axioloacutegico do episoacutedio
fomentando um conflito de valores que intensifica a transvalorizaccedilatildeo realizada por Oviacutedio
Esse conflito delineia mais claramente a caracterizaccedilatildeo tanto de Aacutejax quanto de Ulisses e
partem de uma oposiccedilatildeo jaacute desenvolvida em Homero como vimos no estudo de Jaeger (cf p
17-19) contudo a difereccedila entre a accedilatildeo valente e a covarde sobretudo relacionadas agrave luz e agrave
escuridatildeo eacute particularmente essencial para a relaccedilatildeo transtextual que queremos estabelecer
Homero se refere pontualmente a esse comportamente do Telamocircnio (Iliacuteada XVII v
645-647) Nesse momento o personagem invoca a luz a Zeus para que se for morto tal fato
decorra visiacutevel a todos ou seja suceda de forma gloriosa segundo o seu ponto de vista Com
efeito isso eacute reforccedilado na trageacutedia Aias para que reconheccedilamos o excesso do heroacutei e a
loucura que o acomete fazendo-o agir segundo os valores por ele negados Por isso o coro e
Tecmessa identificam no personagem uma conduta incoerente com os seus princiacutepios
particularmente em relaccedilatildeo aos seus lamentosos e tambeacutem como noacutes entedemos aos seus
atos notunos e tramados pois assim ressaltamos anteriormente (cf p 92-93) Natildeo sabemos
precisar o quanto esse valor guerreiro disposto na relaccedilatildeo com a luz e com a accedilatildeo
testemunhada era evidente para agrave Antiguidade sobretudo nos periacuteodos arcaico e claacutessico
gregos e por isso talvez natildeo necessitasse de um realce mais intenso dessa disposiccedilatildeo em
uma obra literaacuteria Contudo mais de dois milecircnios apoacutes a encenaccedilatildeo da peccedila de Soacutefocles
precisamos natildeo apenas inferir mas comprovar como tentamos fazer no capiacutetulo anterior que
181
o fato de Aacutejax agir segundo uma iacutendole a qual natildeo parece ser a sua reforccedila a participaccedilatildeo da
deusa Atena na loucura do heroacutei a qual estaacute aleacutem do mero distuacuterbio visual Fato eacute que ao se
considerar tal entendimento reconhecemos uma relaccedilatildeo de transtextualidade de Soacutefocles em
relaccedilatildeo a Homero que se estabelece a partir de uma transvalorizaccedilatildeo na qual se identifica
um caraacuteter intermediaacuterio do personagem atraveacutes de sua virtude guerreira contrabalanccedilada em
especial com o seu excesso tanto o natural ndash a soberba ndash quanto o mediado pela divindade ndash
a carnificina noturna
A partir do que foi exposto podemos entender como Oviacutedio influencia a obra de seu
antecessor grego Com efeito a ecircnfase do autor latino torna essa disposiccedilatildeo da virtude
guerreira ligada agrave luz e agrave accedilatildeo testemunhada muito mais evidente e viva na memoacuteria de
maneira que o seu procedimento de transvalorizaccedilatildeo em especial quanto a esse elemento
reforccedila a transvalorizaccedilatildeo da obra de Soacutefocles ressignificando e tornando mais evidente a
loucura que reverte os princiacutepios do protagonista a qual o impulsiona a agir de forma
contraacuteria agrave sua iacutendole Tal observaccedilatildeo eacute vaacutelida e pertinente ao menos para os leitores de hoje
cuja compreensatildeo transtextual desses mitos se daacute apenas pela leitura das obras literaacuterias uma
vez que os mitos greco-latinos em seu aspecto cultural e antropoloacutegico natildeo satildeo presentes
como eram para os povos latinos e gregos da Antiguidade Claacutessica
Com efeito devemos saber distinguir o que eacute um hipotexto e ateacute onde age sua
influecircncia em um determinado hipertexto Logo reconhecemos que o episoacutedio de Oviacutedio
retrata a valoraccedilatildeo especiacutefica a um determinado tipo de accedilatildeo beacutelica em um contexto
semacircntico no qual Aacutejax desvaloriza a do tipo sorrateira e noturna com o intuito de desprezar
a astuacutecia de Ulisses bem como Virgiacutelio jaacute fizera no Livro VI da Eneida Enquanto em
Metamorfoses essa valoraccedilatildeo especiacutefica serve para fundamentar o conflito de valores do
episoacutedio o qual tende aparentemente a valorizar a perspectiva do Telamocircnio em detrimento
daquela do Laertida em Aias ela serve como reforccedilo agrave loucura do protagonista a qual
fundamenta o excesso em um dos eixos negativos do sistema axioloacutegico da peccedila valorizando
Odisseu por meio de sua temperanccedila e moderaccedilatildeo em pretericcedilatildeo a Aacutejax pela sua natureza
desmedida Assim a transvalorizaccedilatildeo de Oviacutedio tambeacutem se faz em relaccedilatildeo ao tragedioacutegrafo
pela reversatildeo de um dos sistemas de valores no qual os contendores dos debates trocam de
lugar nos eixos positivos e negativos nos esquemas axioloacutegicos de cada uma dessas duas
obras segundo o que dispomos anteriormente (cf p 154) Eacute uma reversatildeo no sistema de valor
do hipotexto pelo qual Oviacutedio em seu hipertexto valoriza quem era desvalorizado e
desvaloriza aquele que era valorizado
182
Contrariamente agrave essa relaccedilatildeo de transtextualidade na qual um texto anterior sempre
influencia um texto posterior devemos reconhecer quando o inverso eacute possiacutevel obviamente
que natildeo do ponto de vista da elaboraccedilatildeo da obra mas do de sua recepccedilatildeo ou seja da
participaccedilatildeo do leitor na construccedilatildeo do sentido de um texto Assim quanto agrave esta uacuteltima
parece-nos que o tratamento do episoacutedio do Oviacutedio acerca do mito de Aacutejax influencia
efetivamente na leitura da peccedila de Soacutefocles intensificando o entendimento da loucura que
acomete o heroacutei Isso fica mais claro se lermos as obras que envolvem a histoacuteria desse heroacutei
segundo uma ordem cronoloacutegica dos episoacutedios miacuteticos e natildeo segundo uma de produccedilatildeo das
obras Ao dispormos essa sequecircncia de leitura teriacuteamos essa ordem por exemplo Iliacuteada
Odisseia Livro XII de Metamorfoses e Aias Certamente esta peccedila seraacute ressignificada pela
leitura do texto de Oviacutedio no sentido de que a accedilatildeo noturna e sorrateira de Aacutejax pareceraacute mais
visivelmente incoerente com sua natural iacutendole mas ainda necessaacuteria e verossiacutemil dentro da
trageacutedia devido agraves circunstacircncias nas quais as accedilotildees do heroacutei estatildeo inseridas
Diante de todas essas consideraccedilotildees podemos contemplar o papel dessas operaccedilotildees na
caracterizaccedilatildeo do heroacutei na obra de Oviacutedio quanto agrave sua virtude e os elementos que disso
decorrem Certamente por um lado essas relaccedilotildees de transtextualidade apontam para o
diaacutelogo natural e reconhecido entre os poetas latinos e gregos e a longa tradiccedilatildeo que os
precede e por outro esses processos transformadores sejam pragmaacuteticos quantitativos ou
modais em questatildeo ressaltam a complexidade e a profundidade do diaacutelogo promovido entre
tais autores o que representa um componente fundamental da qualidade literaacuteria dos textos da
Antiguidade Foi-nos possiacutevel entender tanto a forccedila exercida pela obra de Soacutefocles no texto
latino quanto tambeacutem a presenccedila de Homero como texto matriz absoluto sobretudo acerca
da caracterizaccedilatildeo dos personagens
Prossigamos entatildeo com a anaacutelise das operaccedilotildees transtextuais presentes na
caracterizaccedilatildeo da ira do heroacutei na versatildeo latina do episoacutedio
3 2 2 A ira transtextual do heroacutei
Nesta seccedilatildeo discorreremos segundo o modelo da seccedilatildeo anterior as relaccedilotildees
transtextuais significativas realizadas por Oviacutedio na caracterizaccedilatildeo de Aacutejax em relaccedilatildeo agrave
noccedilatildeo de ira em especial ressaltando-se como tais operaccedilotildees contribuem para a intenccedilatildeo
semacircntica da obra em questatildeo Veremos as relaccedilotildees de transtextualidade que configuram
ampliam e ressaltam a ira do heroacutei de modo que esse sentimento parece por um lado maior
183
do que nas obras dos autores gregos Homero e Soacutefocles e por outro mais significativo
dentro da composiccedilatildeo estrutural e do propoacutesito semacircntico do episoacutedio do Livro XIII de
Metamorfoses
Primeiramente veremos como algumas mesmas transformaccedilotildees hipertextuais que
operam na caracterizaccedilatildeo da virtude e da desdobrada empaacutefia do personagem tambeacutem atuam
na configuraccedilatildeo de sua ira Com efeito em termos de relaccedilotildees hipertextuais essas nos
parecem as transformaccedilotildees mais significativas para a ressignificaccedilatildeo dos episoacutedios que
compotildeem o mito de Aacutejax configurando-se uma nova relaccedilatildeo do heroacutei com tal sentimento Em
seguida disporemos as operaccedilotildees que envolvem a ira ressaltando-a em seu papel estrutural
no episoacutedio sobretudo na retoacuterica do heroacutei de Salamina em seu propoacutesito de ferir o caraacuteter do
adversaacuterio Para este objetivo traremos as passagens cujos conteuacutedos apresentam uma
linhagem demeacuterita do Laertida e a descriccedilatildeo das armas de Aquiles que retrata em Ulisses a
ausecircncia do vigor especial para portaacute-las Esses trecircs exemplos de hipertextualidade satildeo
fundamentais na reiteraccedilatildeo de uma retoacuterica iracunda que potildee em destaque a recorrecircncia do
elemento a que nos dispomos estudar nesta seccedilatildeo Por fim tentaremos observar alguma
relaccedilatildeo transtextual no sintagma inpatiens irae pois sendo extremamente significativo dentro
do texto latino tal termo revela uma relaccedilatildeo mais discreta de base linguiacutestica no seu diaacutelogo
com o texto de Soacutefocles
Iniciemos entatildeo pelas transformaccedilotildees quantitativas e pragmaacuteticas estudadas na seccedilatildeo
anterior vinculadas agrave anaacutelise acerca da virtude mas que tambeacutem ressaltam a presenccedila e a
intensidade da ira do personagem em uma nova configuraccedilatildeo na versatildeo latina Vejamos
sobretudo aquelas que tratam da empaacutefia em especial a motivaccedilatildeo e a desmotivaccedilatildeo Estas
como vimos transformam a soberba de Aacutejax em um elemento diretamente ligado agrave noccedilatildeo de
virtude que caracteriza o personagem mas que tambeacutem estaacute vinculada agrave noccedilatildeo de ira que
delineia toda sua disposiccedilatildeo emocional e por isso satildeo operaccedilotildees fundamentais para o nosso
estudo
Validamente a ira que move o personagem se estabelece em proporccedilatildeo com a
superestima de seu proacuteprio valor diante da dos outros Logo quanto maior eacute a estima em sua
virtude maior seraacute a perspectiva de desonra quando da negaccedilatildeo dos seus meacuteritos os quais
satildeo cridos como superiores pelo Telamocircnio E quanto mais profunda a desonra mais intensa a
ira Jaacute evidenciada anteriormente essa relaccedilatildeo eacute basilar tanto para a compreensatildeo do texto de
Soacutefocles quanto para a de Oviacutedio A empaacutefia caracterizada na versatildeo de Oviacutedio como vimos
na seccedilatildeo anterior eacute maior proporcionalmente do que a de Soacutefocles Isso se observou
exatamente porque para o personagem da versatildeo deste autor satildeo necessaacuterios dois motivos para
184
o desenvolvimento de uma desonra profunda que desencadeia o suiciacutedio os quais se
desdobram de dois episoacutedios a disputa pelas armas e o ataque aos animais Na obra grega a
sua desonra apenas se inicia aparentemente apoacutes o resultado da disputa pelas armas de
Aquiles No entanto para o personagem do autor latino eacute necessaacuterio somente um dos eventos
a contenda o que apoacutes transformaccedilatildeo e ressignificaccedilatildeo torna a empaacutefia e a perspectiva de
uma desonra perceptiacuteveis jaacute durante a proacutepria disputa e natildeo apenas apoacutes o seu resultado Com
efeito ainda na versatildeo de Oviacutedio a decisatildeo final dos juiacutezes eacute responsaacutevel pelo agravamento
de uma ira que jaacute se mostra presente
Utilizando-se a terminologia teoacuterica de Genette isso significa que a excisatildeo do
episoacutedio do ataque aos animais e a decorrente desmotivaccedilatildeo do ultraje promovido por tal
episoacutedio ambas transformaccedilotildees realizadas por Oviacutedio desencadeiam uma motivaccedilatildeo do tipo
aumentada que repercute na caracterizaccedilatildeo do heroacutei em relaccedilatildeo agrave proacutepria disposiccedilatildeo da
contenda Dessa forma a desonra pela derrota na disputa presente tanto em Homero quanto
em Soacutefocles eacute a uacutenica motivaccedilatildeo restante na versatildeo latina dentre as duas usadas pelo
tragedioacutegrafo Sendo entatildeo aparentemente a uacutenica responsaacutevel por desencadear o suiciacutedio do
personagem ela necessitaraacute de transformaccedilatildeo e ressignificaccedilatildeo as quais consistem no seu
aumento e na sua ampliaccedilatildeo Devido a isso no episoacutedio do autor latino a desonra jaacute eacute
impulsionada pelo simples ato de o heroacutei se submeter a uma disputa contra Ulisses concebido
como iacutemprobo e inferior pelo seu adversaacuterio Na perpectiva orgulhosa do Telamocircnio disputar
algo com algueacutem visto como inferior significa efetivamente se sujeitar agrave desonra e ao
demeacuterito Essa transformaccedilatildeo sobretudo de base psicoloacutegica aleacutem de acentuar sua empaacutefia e
soberba como expomos observada tanto na fala do Telamocircnio (cf p 171) quanto na do
Laertida (cf p 112) impacta conjuntamente a ira do chefe de Salamina Se por um lado eacute
possiacutevel reconhecer a empaacutefia e a perspectiva de desonra em Aacutejax ambas jaacute presentes no
momento do discurso por outro a presenccedila e o aumento da ira dentro de uma nova
estruturaccedilatildeo na versatildeo do autor latino em relaccedilatildeo aos hipotextos em virtude dessa motivaccedilatildeo
eacute inquestionaacutevel
Essa disposiccedilatildeo emocional do personagem eacute por isso expressa nos primeiros versos
do Livro XIII atraveacutes do sintagma inpatiens irae qualificando um estado intenso do
personagem acima de tudo e singularmente jaacute anterior agrave disputa acompanhando
efetivamente a intensidade da sobrevalorizaccedilatildeo de sua excelecircncia guerreira Essa disposiccedilatildeo
nos parece singular para a obra de Oviacutedio Ou seja essas operaccedilotildees desenvolvidas por Oviacutedio
servem para proporcionalmente intensificar tanto a soberba do heroacutei quanto a sua ira
ressignificando-as de tal modo que Aacutejax natildeo consegue conter esta uacuteltima nem antes nem
185
durante a sua defesa e muito menos apoacutes o resultado concebido como improvaacutevel dentro de
sua perspectiva dos fatos Diante dessa nova configuraccedilatildeo composicional Oviacutedio adequa a ira
do personagem recorrente no mito grego ao episoacutedio de maneira que a presenccedila desse
sentimento tal como estaacute parece singular agrave obra latina em se considerando as informaccedilotildees
que dispomos atualmente Assim devido a essa motivaccedilatildeo ampliada a ira entatildeo torna-se
elemento fundamental nessa versatildeo da disputa pelas armas de Aquiles aleacutem de expressamente
nomeada pelo narrador externo no iniacutecio e no fim do episoacutedio
Essas transformaccedilotildees pragmaacuteticas de motivaccedilatildeo e de desmotivaccedilatildeo e quantitativas
de excisatildeo jaacute operam na ressignificaccedilatildeo da virtude do heroacutei restringindo-a e agora
pudemos observar como elas atuam no destaque desse sentimento de ira dentro do novo eixo
semacircntico do hipertexto para o qual tal elemento se torna imprescindiacutevel Certamente como
dissemos elas nos parecem as mais significativas para essa nova estruturaccedilatildeo do episoacutedio e
para a essencial ressignificaccedilatildeo da ira do heroacutei
As outras transformaccedilotildees as quais nos propomos a analisar satildeo mais importantes
sobretudo na reiteraccedilatildeo e no reforccedilo dessa nova configuraccedilatildeo semacircntica Mas para entendecirc-las
mais eficazmente eacute notaacutevel observar que o autor latino desenvolve de forma mais
abrangente o episoacutedio em questatildeo por meio de uma operaccedilatildeo de hipertextualidade quando
promove uma ampliaccedilatildeo de um episoacutedio ndash a disputa pelas armas ndash da Odisseia e de Cantos
Ciacuteprios ou de intertextualidade quando dialoga com o texto de Eacutesquilo e de Soacutefocles por
exemplo No entanto aleacutem de fazer de forma aparentemente inovadora quando estrutura o
seu episoacutedio no qual a ira entatildeo torna-se elemento fundamental e caracterizante do heroacutei o
autor estende tal sentimento por todo o discurso de Aacutejax em especial desenvolvendo-o
atraveacutes da recorrente hostilidade com que tal personagem delineia uma iacutendole inferior no
adversaacuterio em relaccedilatildeo aos seus proacuteprios meacuteritos Dessa forma inserida em um episoacutedio que
potildee a retoacuterica em foco tal ira conduz as palavras do personagem segundo o que muitos
estudiosos jaacute pontuaram sobre Oviacutedio de maneira que os elementos retoacutericos encontram fins
literaacuterios e nesse caso em especial aprofundando a caracterizaccedilatildeo do orador de Salamina
Certamente dentro dos recursos retoacutericos em especial nas espeacutecies (εἴδη) de
discursos do tipo laudatoacuterio (ἐγκωμιαστικόν Retoacuterica a Alexandre I 1421b 10-12) e
vituperioso (ψεκτικόν Ibidem I 1421b 10-12) que se coadunam em prol do mesmo fim eacute
possiacutevel especificamente na segunda espeacutecie ironizar e ridicularizar o outro (εἰρωνεύεσθαι καὶ
καταγελᾶν Ibidem XXXV 1441b 24-25) embora mesmo assim o texto afirme que ldquoeacute
necessaacuterio natildeo escarnecer daquele que vituperemosrdquo (δεῖ δὲ μὴ σκώπτειν ὃν ἂν κακολογῶμεν
186
Ibidem XXXV 1441b 15-16) ou que isso deve ser evitado ldquoa fim de natildeo caluniar o caraacuteterrdquo
do adversaacuterio (ἵνα μὴ διαβάλῃς τὸ ἦθος Ibidem 1441 21-22)
Contudo a unidade do episoacutedio de Oviacutedio parece apresentar tais elementos retoacutericos
singularmente Agrave figura mais excessiva Aacutejax o discurso vituperioso com propoacutesito realmente
de caluniar e ridicularizar eacute imposto pelo autor com mais presenccedila e visibilidade mas para agrave
figura mais moderada quando tal propoacutesito parece perceptiacutevel seu discurso utiliza tais
recursos de maneira mais velada Essa disposiccedilatildeo eacute sobretudo calculada e reconhecida por
Ulisses o qual expressamente ressalta sua moderaccedilatildeo e o excesso do oponente Isso pode ser
identificado sinteticamente em duas passagens ambas dispostas no discurso do chefe de Iacutetaca
A primeira eacute notaacutevel no qualitativo que descreve Aacutejax filho de Oileu nomeado em
comparaccedilatildeo ao Telamocircnio de ldquoAacutejax mais moderadordquo (moderatior Aiax XIII v 356) A
segunda ressalta a iacutendole do Laertida diante da de seu adversaacuterio uma vez que Ulisses natildeo soacute
reconhece as proezas executadas pelo Telamocircnio (confiteor v 270 XIII) como tambeacutem diz
natildeo ser proacuteprio dele depreciar de forma vil as faccedilanhas dos outros (neque enim benefacta
maligne detractare meum est v 270-271 XIII)
Essa unidade textual estrutura os recursos retoacutericos presentes nos discursos dos
personagens de modo a adequaacute-los natildeo segundo as premissas da Retoacuterica mas de acordo com
o propoacutesito semacircntico do texto o qual tem como base a ira do heroacutei de Salamina como o
elemento fundamental na oposiccedilatildeo entre excesso e moderaccedilatildeo Dessa forma aleacutem daquelas
transformaccedilotildees significativas mencionadas anteriormente as duas que agora noacutes analisaremos
delineiam e reforccedilam o caraacuteter iracundo do personagem em especial por estarem
aparentemente vinculadas a essa retoacuterica mais agressiva e hostil de Aacutejax cujo objetivo eacute
claramente depreciar o adversaacuterio
A primeira que disporemos trata da linhagem dita nefanda de Ulisses cuja origem
seria Siacutesifo apresentada por Aacutejax como prova fundamental da iacutendole de seu opositor Parece-
nos que a linhagem especifica retratada por Oviacutedio representa uma transtextualidade em
relaccedilatildeo a obra de Soacutefocles
Homero por exemplo embora tenha composto uma ascendecircncia de Ulisses a qual
remonta os artifiacutecios de sua inteligecircncia vinculou tal habilidade agrave descendecircncia de Autoacutelico
avocirc materno do heroacutei Tal ancestral eacute visto como ldquoaquele que sobrepujara os homens tanto no
roubo quanto no juramentordquo (ὅς ἀνθρώπους ἐκέκαστο κλεπτοσύνῃ θrsquo ὅρκῳ τε v 395-396
XIX Odisseia) E isso significa dizer que ele foi o melhor na praacutetica de roubar e de perjurar
com o intuito de enganar os outros Com efeito para o mundo arcaico de Homero tais accedilotildees
ainda satildeo observadas com relativa gloacuteria ou seja como um talento em especial se forem
187
dirigidas a inimigos e adversaacuterios Exatamente por esse motivo o verbo utilizado no verso eacute o
καίνυμαι o qual significa sobrepujar exceder etc Esse verbo ressalta a ideia de uma
habilidade superior as dos outros ou seja a ideia de que tal personagem tem a supremacia em
algumas facetas do uso da inteligecircncia por mais que posteriormente essa praacutetica seja vista de
forma negativa Como jaacute vimos sobretudo em relaccedilatildeo aos tragedioacutegrafos a partir do
desenvolver da cultura disposiccedilotildees de valor mais antigas se alteram adequando-se a novos
contextos e os conceitos de outrora acabam por se tornar inadequados
Virgiacutelio um caso importante sobretudo na desvalorizaccedilatildeo do heroiacute de Iacutetaca em
especial acerca da depreciaccedilatildeo de sua insigne inteligecircncia traz a ancestraliadade criminosa e
imeacuterita do personagem vinculada jaacute a Siacutesifo Isso se ressalta no Livro VI da Eneida quando
Ulisses eacute nomeado Eoacutelida estimulador de crimes (hortator scelerum Aeolides v 529) pela
sua inteligecircncia perversa e iacutempia sobretudo a partir da versatildeo que Deiacutefobo irmatildeo de Heitor
descreve acerca dos atos dos gregos contra os troianos A designaccedilatildeo de Eoacutelida se faz
exatamente porque Siacutesifo era filho de Eacuteolo o que torna Ulisses um descendente de Eacuteolo logo
Eoacutelida Na Eneida isso reforccedila a linhagem criminosa de Ulisses pela reiteraccedilatildeo de um
antepassado tambeacutem criminoso e iacutempio
Com efeito Aias de Soacutefocles eacute um texto relevante no estabelecimento dessa
genealogia impiedosa que tem Siacutesifo como personagem fulcral para essa inteligecircncia
digamos criminosa e tambeacutem hereditaacuteria Esta obra reforccedila repetidamente atraveacutes da
perspectiva de Aacutejax a vocaccedilatildeo e a desenvoltura do heroacutei de Iacutetaca acima de tudo na
persuarsatildeo e na mentira talentos jaacute descritos em Piacutendaro (cf p 161) De acordo com o coro
da peccedila Ulisses persuade (πείθει v 150) e tambeacutem conjuntamente com os Atridas ainda
segundo os nautas e guerreiros sob o comando do Telamocircnio engana com narrativas
(κλέπτουσι μύθους v 189) Essa caracterizaccedilatildeo certamente influencia a iacutendole fraudulenta
de Ulisses na versatildeo latina que retoma tal ideia sobretudo a partir do vocaacutebulo narret (v
14 XIII) que delineia a natureza mentirosa e persuasiva de suas palavras Aleacutem disso a raiz eacute
a mesma tanto da palavra κλεπτοσύνῃ que define o ato de Autoacutelico na Odisseia quanto da
κλέπτουσι que delineia Odisseu em Aias Tal raiz se refere a noccedilatildeo de furto e engano
Contudo Soacutefocles imbui esse talento hereditaacuterio natildeo a Autoacutelico mas agrave linhagem dos Sisifidas
(Σισυφιδᾶν γενεᾶς v 190) claramente definindo ao nosso ver o caraacuteter de Odisseu Todos
os seus artifiacutecios os quais seriam utilizados com objetivos vis teriam ancestralidade em
Siacutesifo personagem notaacutevel pelos crimes e pela puniccedilatildeo exemplar no Hades como jaacute
dissemos Assim credita-se a Odisseu pela voz do coro natildeo apenas uma vocaccedilatildeo para os
crimes hereditaacuteria mas tambeacutem uma grande vocaccedilatildeo para tal praacutetica
188
Com efeito enquanto esse tragedioacutegrafo insere de maneira mais viva os assuntos
proacuteprios dos discursos de tipo laudatoacuterio (ἐγκωμιαστικόν) e do tipo vituperioso (ψεκτικόν)
Oviacutedio o desenvolve seguindo a estrutura formal do modelo retoacuterico Assim como jaacute vimos
na peccedila grega as referecircncias ao aspecto criminoso de Odisseu estatildeo distribuiacutedas nas falas de
vaacuterios personagens contudo aquela em relaccedilatildeo a Siacutesifo se insere na do coro Em
contrapartida ainda eacute possiacutevel por exemplo ver em Aias o elogio agrave linhagem do
protagonista seja em suas proacuteprias palavras quando louva os feitos do pai (v 434-436) ou
seja na fala de Teucro quando este glorifica tambeacutem as mesmas faccedilanhas (v 1300) No
entanto esses assuntos estatildeo bem dispersos na obra
O Telamocircnio da versatildeo latina descreve a sua genealogia e a de seu opositor um
assunto recorrente e dito pela Retoacuterica como componente dos ldquoelementos externos agrave virtuderdquo
(τὰ ἔξω τῆς ἀρετῆς Retoacuterica a Alexandre XXXV 1440b 15-20) de forma concentrada entre
os versos 21 e 33 E claramente tal elemento eacute disposto pelo heroacutei em defesa do seu valor e
em depreciaccedilatildeo da de seu adversaacuterio Segundo os postulados retoacutericos o proacuteprio heroacutei
reconhece sua linhagem excelente (nobilitate potens v 22 XIII) como natildeo sendo inerente agrave
virtude Ele mesmo diz que teria ao menos nobreza ldquose a virtude fosse dubitaacutevelrdquo (si uirtus
[] dubitabilis esset v 21 XIII)
Na versatildeo latina de Oviacutedio satildeo duas as referecircncias a Siacutesifo inseridas no discurso de
Aacutejax A primeira mais indireta no propoacutesito de depreciar o adversaacuterio pois em verdade
compotildee o elogio agrave famiacutelia do heroacutei desmoderado atraveacutes da descriccedilatildeo das atividades de seu
ancestral Eacuteaco filho de Juacutepiter O discurso laudatoacuterio glorifica a sua ancestralidade divina de
reis Aleacutem disso Eacuteaco eacute mencionado como juiz nos Infernos (v 25-26 XIII) ou seja detentor
de uma posiccedilatildeo privilegiada E para compor a imagem deste como um juiz refere-se ao seu
lugar de trabalho como aquele no qual a pesada rocha comprime o Eoacutelida Siacutesifo (ubi Aeoliden
saxum graue Sisyphon urget v 26 XIII) Neste momento natildeo se menciona qualquer relaccedilatildeo
com a linhagem de Ulisses contudo Eacuteaco e Siacutesifo satildeo postos como grandes figuras
sobretudo antagocircnicas pois o primeiro recebe os benefiacutecios tornando-se juiz como
consequecircncia provaacutevel de uma vida de praacutetica de justiccedila o segundo recebe uma puniccedilatildeo
exemplar como resultado de uma vida de praacutetica de crimes Assim embora ainda natildeo se
tranccedilando a linhagem do adversaacuterio do Telamocircnio comparam-se os acenstrais com naturezas
opostas uma positiva e outra negativa segundo a proacutepria oposiccedilatildeo que Aacutejax faz entre ele e
Ulisses A segunda referecircncia que prossegue textualmente agrave primeira apresenta Ulisses como
descendente direto de Siacutesifo (sanguine creatus Sisyphio v 31-32 XIII) e como semelhante
tanto no furto quanto na fraude (furtisque et fraude simillimus v 31 XIII) A linhagem e a
189
iacutendole do chefe de Iacutetaca satildeo assim efetivamente ofendidas uma vez que essas duas referecircncias
a uma ancestralidade nefanda e criminosa satildeo dispostas em puacuteblico diante de todos os chefes
e de toda a tropa Devemos lembrar que a unidade textual do episoacutedio e o seu propoacutesito
semacircntico se baseiam tambeacutem na oposiccedilatildeo entre excesso e moderaccedilatildeo Devido a tais
premissas vemos o orador mais moderado da disputa apenas refutar tal disposiccedilatildeo do seu
oponente Por um lado de forma mais especiacutefica apresentando Laertes como pai (mihi
Laertes pater est v 144 XIII) o qual eacute oriundo de Arceacutesio (Arcesius illi v 144 XIII) este
que eacute filho tambeacutem de Juacutepiter (Iuppiter huic v 145 XIII) semelhantemente a Teacutelamon ou
seja Ulisses natildeo soacute apresenta a mesma ancestralidade divina de reis como tambeacutem dispotildee
uma linhagem na qual natildeo haacute algueacutem condenado (neque in his quisquam damnatus v 145
XIII) o que contesta a versatildeo da genealogia iacutempia Por outro de forma mais abrangente o
autonomeado Laertida reconhece nas palavras do seu opositor insultos contra si (conuicia v
306)
A priori o ato de Ulisses em refutar Aacutejax aparentemente natildeo o insultando mas
apresentando uma outra genealogia e sobretudo repreendendo-se o vitupeacuterio e o atribuindo
ao proacuteprio caraacuteter desmoderado de seu adversaacuterio eacute certamente significativo para a unidade
textual do episoacutedio Com efeito o discurso vituperioso sai do acircmbito comum da retoacuterica e se
torna efetivamente um elemento proacuteprio e singular do estilo do Telamocircnio Dessa forma a
depreciaccedilatildeo puacuteblica da linhagem do opositor entatildeo manifesta-se validamente como um
insulto que revela a natureza iracunda do heroacutei que se sente desonrado quando relativizamos
o comportamento dos dois personagens na estruturaccedilatildeo do episoacutedio Esse parece ser o
propoacutesito literaacuterio dos elementos retoacutericos inseridos no Livro XIII de Metamorfoses
Tal diposiccedilatildeo genealoacutegica com propoacutesitos depreciativos de caraacuteter a qual apresenta
como ancestral mais importante de Ulisses o personagem Siacutesifo legando agravequele a inteligecircncia
astuta e criminosa parece-nos ter como influecircncia extremamente importante para a tradiccedilatildeo
da literatura claacutessica a obra Aias de Soacutefocles Esta peccedila certamente parece influenciar a obra
de Oviacutedio uma vez que os argumentos de Aacutejax estatildeo presentes naquela mas reelaborados Os
argumentos satildeo desenvolvidos pelo autor latino transformado-os seus conteuacutedos Duas
transformaccedilotildees satildeo perceptiacuteveis nesse processo hipertexual
A primeira eacute a relaccedilatildeo hipertextual de transmodalizaccedilatildeo mais especificamente uma
transformaccedilatildeo intermodal Sabendo-se que Oviacutedio desenvolve em seu texto transformaccedilotildees
intermodais proacuteprias do modo dramaacutetico extamente porque apresenta a disputa pelas armas
em um processo inerentemente mimeacutetico dessa forma a transformaccedilatildeo intermodal consiste
em privilegiar Aacutejax com os argumentos pertencentes ao coro da obra Aias A alteraccedilatildeo se
190
trata entatildeo da redistribuiccedilatildeo da fala dos personagens Aleacutem disso essa modificaccedilatildeo
hipertextual torna tal referecircncia a Siacutesifo mais significativa dentro do episoacutedio da vertente
latina Ela serve tanto para desvalorizar o caraacuteter do personagem ofendido quanto para
fundamentar a ideia de crimes cometidos por ele
A ancestralidade iacutempia confere ao descendente uma vocaccedilatildeo criminosa poreacutem esta
uacuteltima deixa de ser potencial e se torna extremamente verossiacutemil quando haacute a narraccedilatildeo de
fatos nos quais tal praacutetica pode ser identificada pois as narrativas satildeo mais convincentes por
refletirem o modo de algueacutem agir (Retoacuterica a Alexandre XXXV 1441b 15-21) No episoacutedio
em questatildeo de Metamorfoses a importacircncia da linhagem referida jaacute no iniacutecio do discurso do
Telamocircnio se faz sobretudo devido agrave sustentaccedilatildeo que tal elemento promove a trecircs fatos
narrados e descritas acerca de Ulisses a primeira sobre Palamedes a segundo acerca de
Filoctetes e a terceira em relaccedilatildeo a Nestor Todos esses trecircs eventos satildeo conhecidos do
puacuteblico mas eacute a perspectiva do orador que imputa nas accedilotildees um caraacuteter de revelaccedilatildeo acerca
da iacutendole de quem as praticou A accedilatildeo contra Palamedes causa a sua morte por meio de uma
dita fraude do Laertida uma vez que este forjou (finxit v 59 XIII) a traiccedilatildeo de um
compatriota A accedilatildeo contra Filoctetes o afasta da tropa e sendo detentor das armas de
Heacutercules conforme o oraacuteculo de Calcas ele seria necessaacuterio para a vitoacuteria sobre Troia A
accedilatildeo contra Nestor abandonando-o em combate eacute vista tambeacutem como um crime (crimen v
64 XIII) Dessa forma Ulisses natildeo soacute segundo Aacutejax teria enfraquecido as forccedilas dos gregos
como a forma com a qual age justifica a alcunha de estimulador de crimes (hortator scelerum
v 45 XIII) o mesmo vocaacutebulo usado por Virgiacutelio no Livro VI da Eneida Com efeito a
referecircncia agrave linhagem Sisifida eacute proporcionalmente mais significativa para o eixo semacircntico
do episoacutedio de Oviacutedio pois eacute fundamental para a sustentaccedilatildeo das narrativas e dos argumentos
que tem como propoacutesito a depreciaccedilatildeo e o insulto do adversaacuterio elementos essenciais para a
estruturaccedilatildeo de uma retoacuterica que revele o caraacuteter iracundo do personagem
A segunda eacute a relaccedilatildeo hipertextual de valorizaccedilatildeo A genealogia de Ulisses tal como eacute
estruturada segundo o que tambeacutem dispomos acima faz parte do estilo retoacuterico de Aacutejax que
revela e destaca sua ira Em se considerando no episoacutedio em questatildeo os propoacutesitos literaacuterios
do discurso vituperioso a ira do personagem a qual se torna mais intensa na obra em relaccedilatildeo
a outros hipotextos permite a valorizaccedilatildeo do heroacutei em seu caraacuteter intermediaacuterio proacuteprio do
sistema axioloacutegico da obra Metamorfoses promovendo como na trageacutedia uma accedilatildeo mais
traacutegica segundo as premissas aristoacutetelicas Assim a profunda ira do heroacutei se equilibra com a
sua excelecircncia guerreira compondo os elementos necessaacuterios mais propriamente uma ira
191
insustentaacutevel e a capacidade de resistecircncia e conteccedilatildeo do personagem os quais desencadeiam
o fim traacutegico de Aacutejax
A segunda transformaccedilatildeo que salienta o papel estrutural da ira eacute a referecircncia agraves armas
de Aquiles com o objetivo de diminuir a compleiccedilatildeo fiacutesica e guerreira de Ulisses contudo a
relaccedilatildeo de hipertextualidade retrata um diaacutelogo natildeo com Soacutefocles mas com Homero Com
efeito essa passagem inserida entre os versos 103 e 116 parece-nos a mais agressiva e
vituperiosa do Telamocircnio tanto porque denigre publicamente o adversaacuterio de forma
excessiva quanto porque as perguntas retoacutericas reforccedilam o aparente escaacuternio ao heroacutei de
Iacutetaca que natildeo eacute certamente tatildeo despreziacutevel quanto o fazem as palavras do seu opositor
Trecircs satildeo os componentes das armas de Aquiles utilizados no discurso de Aacutejax para
inferiorizar seu oponente de forma brutal o elmo a lanccedila e mais significativamente o escudo
do Pelida Tais armas satildeo referidas sob dois apectos o brilho oriundo do material de sua
composiccedilatildeo e o peso proacuteprio para pujantes guerreiros Esses dois aspectos satildeo fundamentais
para os argumentos do heroacutei que tenta provar a inadequaccedilatildeo da natureza do Laertida com as
das armas Vejamos uma anaacutelise de cada uma dessas armas
O elmo por exemplo eacute mencionado em especial pelo seu brilho que torna a peccedila
radiante (nitor galeae radiantis v 105 XIII) Tal fulgor proveacutem do ouro (claro ab auro v
105 XIII) que o compotildee Essa caracteriacutestica da peccedila beacutelica impede segundo o orador
iracundo o seu opositor de executar suas costumeiras accedilatildeos como os usuais artifiacutecios (insidias
v 106 XIII) aos inimigos desprevenidos (incautum hostem v 104 XIII) uma vez que
prejudica o ato de se esconder (laetentem v 106 XIII) necessaacuterio para tal proeza A
incoerecircncia desse personagem sorrateiro com a natureza do capacete eacute realccedilada com pergunta
retoacuterica ldquopor que estas [armas] seratildeo para o iacutetaco que [age] furtivamente [] e engana com
ardisrdquo (Quo tamen haec qui clam [] et furtis decipit v 103-104) Certamente essa pergunta
age com uma ironia que marca as naturezas opostas e confrontadas da arma e do Laertida
sobretudo pelo diaacutelogo com a Iliacuteada Podemos citar ao menos dois tipos O primeiro diaacutelogo
mais oacutebvio com a obra de Homero eacute a proacutepria natureza da gaacutelea composta de ouro e forjada
por Hefesto deus grego assemelhado ao Vulcano latino cujos domiacutenios e capacidades satildeo em
especial o fogo e seu trabalho industrioso
Eacute o Canto XVIII da Iacuteliada que apresenta por primeiro a descriccedilatildeo das armas fabricadas
pelo deus a qual se torna o foco do episoacutedio cujo argumento maior eacute a fabricaccedilatildeo divina delas
mesmas Esse episoacutedio descreve tal elmo (κόρυθα v 611) com cimo de ouro (χρύσεον
λόφον v 612) O Canto XIX apresenta mais uma descriccedilatildeo quando tais equipamentos satildeo
tomados por Aquiles Neste momento podemos observar que a ldquogaacutelea crinada brilhava como
192
estrelardquo (ἀστὴρ ὥς ἀπέλαμπεν ἵππουρις τρυφάλεια v 381-382) cujas ldquocrinas de ourordquo
(ἔθειραι χρύσεαι v 382-383) estavam no cimo (λόφον v 383) Estatildeo claras as recorrecircncias
do brilho e do material ouro tanto na composiccedilatildeo da imagem do elmo quanto inclusive na
das outras armas de Aquiles Vale salientar que tais caracteriacutesticas dessa arma revelam em
verdade aleacutem da exiacutemia habilidade industrial de Hefesto em prol de um ornamento artiacutestico a
ligaccedilatildeo divina entre os deuses sobretudo oliacutempicos e o objeto cujo reflexo ontoloacutegico se
observa no proacuteprio aspecto concreto do ouro como material belo e excelso que reluz
intensamente Consequentemente tais armas satildeo instrumentos de origem divina e por isso
superiores Devido a essa disposiccedilatildeo quando revestem Aquiles seu fulgor toca o ceacuteu (αἴγλη
δrsquo οὐρανόν ἷκε v 362)
Contudo para noacutes o diaacutelogo mais significativo em especial como hipotexto para o
episoacutedio de Oviacutedio eacute outro um segundo o qual pode ser observado por exemplo no Canto
XX quando Aquiles se apresenta aos troianos revestidos com suas armas Neste momento a
natureza divina delas revela sua funccedilatildeo essencial a guerra Logo seu fulgor eacute funesto Por
isso elas incitam nos troianos o medo terriacutevel (τρόμος αἰινὸς v 44) quando com tais armas
ο Pelida reluz (Πηλείωνα τευχεσι λαμπόμενον v 45-46) diante dos inimigos Dessa forma
tal como acredita o Telamocircnio o brilho das armas e consequentente do elmo manifesta sua
natureza divina e funesta para os inimigos natildeo devendo ser ocultada mas ao contraacuterio
exigindo se fazer visiacutevel e perceptiacutevel para cumprir seu objetivo Com efeito tais diaacutelogos
com a Iliacuteada alicerccedilam de forma mais expressiva os argumentos do orador iracundo da obra
de Oviacutedio
Essa transtextualidade presente no texto de Oviacutedio pode ser propriamente identificada
como uma alusatildeo uma vez que os episoacutedios homeacutericos mencionados acima satildeo fundamentais
para o entendimento da perspectiva do Telamocircnio acerca das armas Esses episoacutedios natildeo satildeo
transformados ou ressignificados mas satildeo referidos em um outro contexto e em uma outra
obra ainda de acordo com os mesmos valores e sentidos presentes no hipotexto Assim o
brilho do elmo (nitor galeae) sobretudo proveniente do ouro (auro) material visto como de
natureza divina natildeo pode ser associado a accedilotildees sorrateiras e noturnas Isso eventualmente
seria uma incoerecircncia por isso a pergunta retoacuterica eacute tatildeo relevante na ecircnfase dessa
contradiccedilatildeo uma vez que faz da imagem de um gatuno a portar tal reluzente instrumento uma
contundente ironia no intuito de diminuir Ulisses em relaccedilatildeo agraves armas e ao proacuteprio Aacutejax
Com efeito essa referecircncia intertextual a saber a alusatildeo contribui efetivamente na loacutegica
retoacuterica do Telamocircnio o qual inferioriza o Laertida por completo sobretudo em sua
193
excelecircncia guerreira foco da descriccedilatildeo das armas de Aquiles inserida jaacute ao fim de seu
discurso vituperioso
Vejamos agora a relaccedilatildeo de transtextualidade estabelecida com a referecircncia a outro
componente da descriccedilatildeo das armas a lanccedila singular do Pelida Se por um lado como
dissemos devido ao seu fulgor o elmo apresenta inadequaccedilatildeo com o heroacutei sorrateiro por
outro a lanccedila singular apresenta inadequaccedilatildeo com Ulisses porque eacute necessaacuterio grande vigor
para empunhaacute-la o qual segundo o orador iracundo o seu opositor natildeo deteacutem
Na Iliacuteada diferentemente do capacete de guerra de Aquiles a sua lanccedila natildeo foi
fabricada conjuntamente com as armas forjadas por Hefesto em substituiccedilatildeo agravequelas dadas a
Paacutetrocles pelo Pelida Contudo tal haste eacute ainda iacutempar e sua singularidade eacute mencionada ao
menos duas vezes no texto homeacuterico
A primeira menccedilatildeo estaacute inserida no Canto XVI quando essa arma eacute apresentada como
a uacutenica natildeo oferecida por Aquiles ao seu amigo dileto especialmente por sua composiccedilatildeo
oferecer difiacutecil manejo A lanccedila eacute pesada grande e robusta (ἔγχος [] βριθὺ μέγα στιβαρόν v
140-141) composta de freixo retirado do topo do monte Peacutelion (Πηλίου ἐκ κορυφῆς v 144)
e nenhum dos Aqueus era capaz de brandi-la (οὐ δύνατrsquo ἄλλος Ἀχαιῶν πάλλειν v 141-142)
soacute Aquiles o fazia (οῖος ἐπίστατο πῆλαι Ἀχιλλεὺς v 142) A segunda menccedilatildeo estaacute presente
no Canto XIX quando o heroacutei se prepara para voltar agrave guerra Nessa passagem como eacute
comum agrave estrutura eacutepica os mesmos versos do Canto VI satildeo repetidos entre os versos 387 ao
391 do Canto XIX tanto a composiccedilatildeo da lanccedila pesada grande robusta e de origem no
freixo do monte Peacutelion quanto a singularidade de apenas Aquiles ser capaz de manejaacute-la
Com exceccedilatildeo da restriccedilatildeo do manejo Oviacutedio retoma no Livro XIII de Metamorfoses
todas essas caracteriacutesticas descrevendo a lanccedila (hasta v 109) onerosa (onerosa v 108) ou
seja de difiacutecil manejo grave (grauis v 108) ou seja pesada para empunhar e Peliacuteade
(Pelias v 109) ou seja do monte Peacutelion Dessa forma tal arma eacute improacutepria para braccedilos
imbeles (inbeliibus lacertis v 109) como eacute descrita por Aacutejax toda a compleiccedilatildeo fiacutesica de
Ulisses desprovida de vigor guerreiro
Com efeito mais uma vez vemos a utilizaccedilatildeo de uma nova alusatildeo uma relaccedilatildeo de
intertextualidade com a Iliacuteada uma vez que o conhecimento desta obra eacute necessaacuterio para o
entendimento pleno da passagem da obra latina Contudo o propoacutesito ainda eacute o mesmo
reforccedilar os argumentos do Telamocircnio que opotildee em sua estrutura retoacuterica a natureza beacutelica
das armas agrave iacutendole imbele de seu opositor
A uacuteltima referecircncia transtextual do autor latino acerca da descriccedilatildeo das armas segundo
os mesmos objetivos das anteriores eacute sobre o escudo o qual recebe destaque na versatildeo
194
homeacuterica e na de Oviacutedio tambeacutem porque esse instrumento recebe um papel fundamental na
refutaccedilatildeo do Laertida contra a ideia de sua debilidade beacutelica e a favor de sua sagacidade
como veremos mais agrave frente
No Livro XIII de Metamorfoses a opulecircncia do escudo de Aquiles eacute referida por meio
de qualificativos que caracterizam na verdade a gravura nele representada Como expressa o
texto o escudo tem esculpido em si a imagem do vasto mundo (uasti imagine mundi v 110)
Logo de tal descriccedilatildeo podemos por meio de uma relaccedilatildeo figurada quase de hipaacutelage
transferir semanticamente a ideia da dimensatildeo da figura agrave arma em questatildeo Com efeito essa
vastidatildeo da imagem representada se compreende exatamente pela referecircncia ao texto
homeacuterico em que podemos ver a descriccedilatildeo de todas as figuras presentes
Eacute precisamente o Canto XVIII da Iliacuteada que apresenta o detalhamento do escudo (v
478-608) Nessa passagem diferentemente de Oviacutedio o texto revela expressamente a
opulecircncia do equipamento utilizando-se o leacutexico que descreve a lanccedila Peliacuteada Assim ele eacute
grande e robusto (μέγα τε στιβαρόν τε v 478) Aleacutem disso eacute denominado pelo vocaacutebulo que
descreve um tipo de escudo maior σάκος (v 478) o mesmo que comumente eacute utilizado para
descrever o escudo de Aacutejax na Iliacuteada (cf p 76) O vasto mundo referido por Oviacutedio nos
parece sintetizar sobretudo o que Homero descreve estar circunscrito pelo Oceano rio que
envolve a terra na representaccedilatildeo homeacuterica a terra o ceacuteu e o mar (ἐν μὲν γαῖαν ἔτευξ᾽ ἐν δ᾽
οὐρανόν ἐν δὲ θάλασσαν 483 XIII) e tudo aquilo que se insere nessas trecircs regiotildees ou seja
o mundo e a sua perspectiva do cosmos uma vez que vaacuterias constelaccedilotildees e astros estatildeo
representados na figura
Com efeito essa vastidatildeo do mundo mencionado pelo autor latino tanto conota a
robustez do escudo quanto dialoga com a Iliacuteada Tal disposiccedilatildeo sinteacutetica de Oviacutedio sugere que
o escudo eacute vasto para conter o mundo e consequentemente tambeacutem eacute pesado para
representar sua totalidade Assim reforccedila-se mais uma vez o caraacuteter beacutelico necessaacuterio para
empunhar tal arma sobretudo porque como tambeacutem o texto homeacuterico insinua as armas de
Aquiles e tambeacutem o escudo satildeo onerosos exigindo-se um vigor e forccedila fiacutesica superiores ateacute
aos heroacuteis gregos aleacutem de outras capacidades guerreiras Devido a isso tal instrumento eacute
inadequado (nec conueniet v 110-111 XIII) a Ulisses pois este personagem teria a matildeo
esquerda a que empunha o escudo tanto covarde (timidae v 111 XIII) quanto nascida para
os ardis (natae ad furta v 111 XIII) E por toda essa configuraccedilatildeo Aacutejax em seu discurso
iracundo de depreciaccedilatildeo coroa sua fala com insultos no vocativo diretos ao seu opositor
como ldquoo mais covarderdquo (timidissime v 115 XIII) e ldquoiacutemprobordquo (improbe v 112 XIII)
centrando e fechando seu argumento de que seu opositor eacute fraco imbele desonesto e finoacuterio
195
Aleacutem disso jaacute ao final de sua defesa o Telamocircnio explicitamente apresenta como
reforccedilo aos seus argumentos a ideia que apresentamos acima presente no Canto XX da Iliacuteada
a noccedilatildeo de que a natureza das armas se adequa agrave guerra tendo tornado assim Aquiles mais
aterrorizante e mais imponente quando em posse daquelas mesmas Como o estilo retoacuterico do
personagem em especial tem como base a oposiccedilatildeo e a contradiccedilatildeo a ecircnfase no contraacuterio ou
seja na inadequaccedilatildeo com as armas enfraquece a sua funccedilatildeo beacutelica Por isso com a perguta
retoacuterica do verso 112 recurso comum do orador iracundo o heroacutei destaca tal incoerecircncia
mencionando expressamente que o opositor efetivamente debilitaraacute o propoacutesito do escudo
(debilitaturum munus v 112 XIII) O participiacuteo futuro do verbo debilitar (debilito) ligado ao
pronome que se refere a Ulisses (te v 112 XIII) eacute contundente nesse objetivo em especial
pelo seu complemento que significa exatamente ldquofunccedilatildeordquo (munus v 112 XIII) Segundo a
loacutegica retoacuterica de Aacutejax a incoerecircncia eacute tamanha que o enfraquecimento de tal funccedilatildeo vai
gerar inclusive motivo para que o Laertida se usar as armas natildeo seja temido pelo inimigo
(non metuaris ab hoste v 114 XIII) ou seja o propoacutesito primeiro da posse de tais
instrumentos e desencadeie um motivo ainda pior encorajando-se os inimigos no intuito de
que o portador de tais seja espoliado (spolieris v 114 XIII)
Toda essa disposiccedilatildeo acerca da figura de Ulisses diante das armas de Aquiles
certamente nos parece incutir a caracterizaccedilatildeo da ira do personagem de Salamina A
conjuntura desses elementos como as perguntas retoacutericas os vocativos vituperiosos e a
depreciaccedilatildeo completa de todos os atributos do adversaacuterio fiacutesico moral e genealoacutegico permite
o reconhecimento de uma retoacuterica excessiva na agressatildeo e no vitupeacuterio quando comparada
efetivamente agrave de seu opositor moderada Tal sentimento de ira de Aacutejax parece extrapolar
quando dessa descriccedilatildeo comparada das armas pois mesmo moderado o Laertida nos parece
se exceder significativamente na refutaccedilatildeo desse uacuteltimo argumento em especiacutefico
Em resposta a tais alegaccedilotildees em especiacutefico quanto agrave questatildeo das armas o orador
moderado primeiramente potildee em cheque a ideia de que eacute imbele Ele o faz segundo sua loacutegica
retoacuterica mais recorrente apresentando fatos sem ofender o adversaacuterio como fez com a
questatildeo de sua ancestralidade No caso em questatildeo Oviacutedio potildee em suas proezas um fato que a
tradiccedilatildeo conferia a Aacutejax o resgate do cadaacutever de Aquiles Com efeito Lesches em sua
Pequena Iliacuteada (WEST 2003 p 125) e Exekias em suas pinturas em vasos (MOORE 1980
p 417) por exemplo seguem a tradiccedilatildeo mais corrente figurando-se o Telamocircnio como o
heroacutei que recupera o cadaacutever de Aquiles quando da morte do filho de Peleu Para o eixo
semacircntico da obra de Oviacutedio tal transformaccedilatildeo e ressignificaccedilatildeo desse evento permite Ulisses
comprovar seu vigor uma vez que em seus ombros carregou ele mesmo tanto o Pelida quanto
196
suas armas (umeris ego corpus Achillis et simul arma tulit v 284-285 XIII) Esse fato refuta
qualquer ideia de debilidade fiacutesica ao personagem sobretudo porque reforccedila
significativamente o feito com o pronome ego de maneira que disso depreendemos o fato de
ele ter executado tal accedilatildeo sozinho Contudo ele natildeo se restringe a isso pois avanccedila
parecendo-nos assemelhar-se levemente ao oponente em seu excesso Tendo primeiramente se
mostrado apto a usar as armas em seguida o heroacutei diminui o seu adversaacuterio diante do escudo
A perspectiva se torna natildeo mais a forccedila mas a inteligecircncia a qual como jaacute vimos eacute o eixo
positivo do sistema de valores apresentado por Ulisses
A compreensatildeo da arte infundida por Vulcano na arma se torna paracircmentro para
distinguir quem deve portar o escudo uma vez que a forccedila foi comprovada ser atributo de
ambos O heroacutei de Iacutetaca entatildeo denomina Aacutejax brusco (rudis v 290 XIII) soldado sem peito
(sine pectore miles v 290 XIII) o que configura tal heroacutei como desprovido tanto no intelecto
quanto na sensibilidade necessaacuteria para compreender plenamente o conhecimento e a arte
representados nas gravuras do escudo Alega assim que seu adversaacuterio pretende tomar as
armas as quais natildeo compreende (quae no intellegit arma v 295) Com efeito o Oceano
(Oceanum) as terras (terras) os astros no alto ceacuteu (alto sidera caelo) as Plecirciadas (Pleiadas)
as Hiacuteades (Hyadas) a Ursa (Arcton) e Orion (Orionis) presentes entres os versos 292 e 294
do Livro XIII apresentam-se como uma siacutentese uma condensaccedilatildeo aos termos de Genette de
todo o mundo grego representado no escudo descrito na Iliacuteada (XVIII 478-608) E toda essa
referecircncia serve como recurso para que Ulisses possa devolver a depreciaccedilatildeo sofrida Isso
realmente parace nos ser o excesso semelhante ao do Telamocircnio sobretudo certamente
porque sendo heroacutei tal conhecimento e arte estatildeo ao alcance deste heroacutei A rudeza ao menos
segundo o eixo semacircntico proposto por Oviacutedio estaria no acircmbito da ira como elemento
revelador de sua desmoderaccedilatildeo
Todas essas possibilidades transtextuais do acircmbito da genealogia e da grandeza das
armas diante de Ulisses satildeo pertinentes e vaacutelidas na caracterizaccedilatildeo de Aacutejax uma vez que
mesmo sendo uma referecircncia a Soacutefocles ou a Homero ambas promovem um aprofundamento
da ira do personagem em relaccedilatildeo aos seus hipotextos sentimento o qual jaacute na trageacutedia Aias
recebe destaque Logo a composiccedilatildeo e o papel significativo da ira tanto do heroacutei de Oviacutedio
quanto do de Soacutefocles conjuntamente com essas transtextualidade dispostas sugerem uma
influecircncia que nos parece ir certamente aleacutem da mera coincidecircncia
No entanto uma transtextualidade sobretudo de caraacuteter linguiacutestico reforccedila tal
suposiccedilatildeo fugindo inclusive um pouco aos limites da teoria postulada por Genette Essa
transformaccedilatildeo tem efeito especialmente no eixo semacircntico afetando-o a partir do leacutexico
197
escolhido Dessa forma a reiteraccedilatildeo do leacutexico significativo permite o reforccedilo ao eixo
semacircntico proposto por Oviacutedio em Metamorfoses O mais expressivo termo eacute o sintagma
inpatiens irae (v 3 XIII)
Com efeito a anaacutelise desse sintagma (cf p 120 et seq) jaacute nos mostrou sua relaccedilatildeo
com os elementos virtude e ira os quais compotildee a estrutura do episoacutedio em questatildeo (cf p
132) Inpatiens como vimos sobretudo quando falamos de seu verbo base patior insere-se
no eixo da virtude do heroacutei Aacutejax a qual estaacute na perspectiva de uma qualidade defensiva e
protetora mais propriamente de resistecircncia e de contenccedilatildeo tanto dos sentimos ou seja do
controle das emoccedilotildees quanto dos inimigos ou seja de sua resistecircncia diante dos assaltos dos
troianos O sentido expresso por essse termo se reitera por meio da grande recorrecircncia de
outro vocaacutebulo importante o verbo sustineo que aparece quatro vezes uma no verso 8 outra
no 88 e mais duas no 385 tanto no sentido militar quanto no emocional Tal verbo eacute usado
propositalmente nesse duplo sentido conjungando-se uma ideia de temperanccedila e resistecircncia
beacutelica a primeira ligada a grauitas e a segunda a uirtus (cf 133) A expectitativa construiacuteda
por tal estrutura eacute a de uma capacidade do Telamocircnio em resistir agrave ira profunda que o acomete
em razatildeo de sua desonra No entanto tal desfecho natildeo se realiza porque a ira eacute extrema em
sua desmedida ao ponto de ser o uacutenico fator (unam iram v 385 XIII) capaz de vencer a
resistecircncia do heroacutei O sintagma entatildeo resume essa incapacidade do personagem em relaccedilatildeo
ao sentimento que o acossa em virtude de uma honra superestimada supostamente
conspurcada A grande importacircncia desse termo na composiccedilatildeo estrutural justifica para noacutes
inclusive a sua adequaccedilatildeo meacutetrica e funcional semelhante agrave de um epiacuteteto (cf p 121) E tal
estrutura como um todo em prol de uma relaccedilatildeo conceitual e lexical com a ira como um
sentimento vinculado ao excesso parece-nos ecoar da proacutepria composiccedilatildeo de Soacutefocles
Soacutefocles como vimos natildeo restringe o excesso ao elemento ira mas desenvolve seu
eixo semacircntico sobretudo nesse sentimento e na locura infundida por Atena no protagonista
(cf 94 et seq) No entanto enquanto Oviacutedio evidencia em seu sintagma inpatiens irae o
excesso ou seja ira em conjunccedilatildeo com resistecircncia ou seja virtude de contenccedilatildeo Soacutefocles jaacute
fazia algo semelhante no sintagma Χόλῳ βαρυνθεὶς ndash pesado de coacutelera Em Aias o caraacuteter
semacircntico ligado a ideia de ldquopesordquo ldquosobrecargardquo etc eacute recorrente em um leacutexico
especialmente proveniente do nome baryacutes (βαρύς) que guarda em sua raiz esse sentido
Assim aleacutem do particiacutepio aoristo usado para desiginar a condiccedilatildeo do heroacutei ao menos outras
cinco vezes palavras com essa raiz compotildeem o texto abatido (βαρυψύχου v 319) usada para
descrever indiretamente o estado em que se encontra o heroacutei grave destino (βαρείας τύχης v
980) e grave na velhice (ἐν γήρᾳ βάρυς v 1017) respectivamente para qualificar Teucro e
198
Teacutelamon e por fim pesada coacutelera (μῆνιν βαρεῖαν v 656) e reveses pesados (βαρείαις
δυσπραξίαις v 759) usadas para qualificar as accedilotildees dos deuses A recorrecircncia dessa raiz
serve para enfatizar como o sentido de ldquopesadordquo contribui para criar a unidade textual que
opotildee excesso e moderaccedilatildeo
Dessa forma o sintagma inpatiens irae parece dialogar com o sintagma χόλῳ
βαρυνθεὶς na expressatildeo da profundidade e da importacircncia da ira em cada obra logicamente
que tal referecircncia deve ser considerada com o leacutexico mais significativo do eixo semacircntico
proacuteprio de cada uma delas Certamente o tragedioacutegrafo insere tal termo de forma
antecipatoacuteria e sobretudo sintetizadora dos valores essecircncias da obra tal qual tambeacutem faz
Oviacutedio em seu episoacutedio A influecircncia digamos lexical e sintaacutetica oferece um reflexo
aparente Βαρυνθεὶς assemelha-se a inpatiens O primeiro eacute particiacutepio e o segundo um
adjetivo formado a partir de um particiacutepio E ambos tecircm complementos que comportam o
sentimento de ira O primeiro com o genitivo irae e o segundo com o dativo χολῳ os quais
restrigem tal coacutelera como o sentimento base de todo o estado emocional descontrolado de
Aacutejax Tais sintagmas sugerem certamente uma referecircncia do autor latino em relaccedilatildeo ao grego
sobretudo em prol de uma estrutura poeacutetica que procure exprimir o maacuteximo de significado em
um miacutenimo de texto
Diante desses apontamentos sobre as praacuteticas de transtextualidade que operam na
caracterizaccedilatildeo da ira do heroacutei na obra de Oviacutedio pudemos obsevar a influecircncia do texto
sofocliano bem como do homeacuterico Todas essas transformaccedilotildees singularizam a ira do
personagem Aacutejax da versatildeo latina pois estabelecendo-se como um elemento fundamental
para a estrutura do texto esse sentimento eacute significativamente intensificado como nos foi
possiacutevel demostrar em relaccedilatildeo agraves obras de autores anteriores da literatura greco-latina
Com efeito a partir de tais consideraccedilotildees eacute possiacutevel reforccedilar como essas relaccedilotildees de
transtextualidade parecem naturais entre os autores claacutessicos da Antiguidade de modo que
todas essas operaccedilotildees transformadoras realmente revelam a complexidade e a profundidade
do diaacutelogo promovido entre eles o que representa um componente fundamental da qualidade
literaacuteria dos textos do mundo antigo
199
CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
Nosso estudo teve como objetivo apontar praacuteticas intertextuais ou segundo a teoria de
Genette transtextuais entre a obra Metamorfoses de Oviacutedio mais precisamente o seu Livro
XIII e a obra Aias de Soacutefocles O diaacutelogo que pretendemos apontar teve enfoque na
caracterizaccedilatildeo de um personagem presente nessas obras a saber Aacutejax heroacutei de Salamina A
ecircnfase desse trabalho foi dada a dois elementos virtude e ira a priori importantes para o mito
do personagem em especial no episoacutedio retratado em Metamorfoses cujo cerne eacute a disputa
entre Aacutejax e Ulisses pelas armas de Aquiles a qual desencadeia o suiciacutedo do primeiro A
virtude do heroacutei envolve suas capacidades beacutelicas e a ira trata do sentimento desmedido que o
consome e o impulsiona a agir de forma funesta Diante dessas motivaccedilotildees tentamos
comprovar como algumas das transformaccedilotildees promovidas pelo autor latino tiveram como
base a peccedila deste tragedioacutegrafo grego Para isso organizamos o trabalho de modo a permitir a
anaacutelise isolada e preacutevia dos textos envolvidos para em seguida observamos o estudo
comparado a partir dos resultados alcanccedilados Preferimos entatildeo seccionar esta tese em trecircs
capiacutetulos que pudessem apresentar claramente e didaticamente a proacutepria metodologia de sua
realizaccedilatildeo
O primeiro capiacutetulo nomeado a traduccedilatildeo literaacuteria do mito de Aacutejax cumpriu uma
dupla tarefa Buscou-se primeiramente neste momento apresentar a tradiccedilatildeo claacutessica do
heroacutei sobretudo nos poemas homeacutericos com o objetivo de reconhecer particularidades de
sua caracterizaccedilatildeo Tal proacuteposito foi alcanccedilado principalmente porque foi possiacutevel identificar
jaacute em Homero um exiacutemio trabalho literaacuterio de caracterizaccedilatildeo Os poemas homeacutericos assim
conferiram ao personagem excelecircncia guerreira Contudo na Iliacuteada em especial tal
capacidade beacutelica compunha uma virtude mais defensiva e protetora devido agraves proacuteprias
condiccedilotildees das faccedilanhas do Telamocircnio dentro da trama as quais datildeo ecircnfase agrave resistecircncia grega
diante dos troianos uma vez que a obra promove a ideia de avanccedilo grego apenas com a
participaccedilatildeo de seu melhor guerreiro Aquiles A partir da Odisseia reconhecemos o papel da
ira como caracteriacutestica do heroacutei Esse sentimento se faz presente em especial devido agrave
referecircncia ao episoacutedio em que Aacutejax e Ulisses se confrontam pelas armas de Aquiles e a
derrota do primeiro o torna iracundo uma vez que crecirc ser superior ao seu adversaacuterio Por isso
eacute recorrente na tradiccedilatildeo grega a ideia desse heroacutei ser identificado como o ldquomelhor dos
gregos depois do Pelidardquo cujo epiacuteteto se compotildee frequentemente na decorrrente literatura
pelo superlativo aacuteristos (ἄριστος) Esse contexto literaacuterio tambeacutem define a ira do heroacutei de
Salamina bem como a de outros da tradiccedilatildeo grega por meio de um leacutexico muitas vezes
200
especiacutefico cuja raiz estaacute na palavra coacutelera choacutelos (χόλος) Esses dois elementos se
comprovaram assim como fundamentais na composiccedilatildeo do caraacuteter do personagem da versatildeo
de Oviacutedio
O segundo objetivo cumprido ainda nesse primeiro capiacutetulo foi contextualizar
literariamente as obras estudadas com o propoacutesito de se reconhecer nelas tais elementos
ressignificados a um novo eixo semacircntico Quanto a Aias seu contexto ressaltou
significativamente nela a oposiccedilatildeo entre a ideia de excesso hyacutebris (ὕβρις) e a de moderaccedilatildeo
sophrosyacutene (σωφροσύνη) A peccedila entatildeo coloca Aacutejax no eixo da desmedida revestindo sua
ira com tal significado Esse sentimento se torna uma das manifestaccedilotildees funestas do excesso
recriminado na obra Contudo a peccedila reabilita o heroacutei diante de todas as suas proezas
passadas as quais comprovam uma virtude areteacute (ἀρετή) sobretudo beacutelica que natildeo deve ser
ignorada Quanto a Metamorfoses apesar de sua natureza aparentemente eacutepica foi-nos
possiacutevel reconhecer o tratamento liacuterico e traacutegico de seus personagens a partir de estudos sobre
a obra A estruturaccedilatildeo do caraacuteter do personagem em uma virtude defensiva e protetora que
reflete uma virtude romana (uirtus) e sua ira (ira) desmedida e incontinente figuram os
elementos essenciais no desfecho funesto do personagem Tal caracterizaccedilatildeo eacute observada a
partir do discurso dos personagens quando da disputa pelas armas O estilo retoacuterico do
Telamocircnio elaborado para fins literaacuterios permite a compreensatildeo mais plena de seus valores e
dos sentimentos que movem seu comportamento e suas accedilotildees
O segundo capiacutetulo intitulado Estudo isolado da caracterizaccedilatildeo do heroacutei tratou da
anaacutelise mais detalhada das obras em relaccedilatildeo agraves noccedilotildees de virtude sobretudo beacutelica e de ira
Esses dois componentes delineiam o caraacuteter intermediaacuterio do heroacutei necessaacuterio para o traacutegico
tanto na peccedila de Soacutefocles quanto na eacutepica de Oviacutedio
A virtude do heroacutei configura o eixo positivo da caracterizaccedilatildeo do personagem em
ambas as obras e por isso eacute essecircncial agrave sua composiccedilatildeo Em Aias tal primazia guerreira o
permite ser chamado de melhor dos Aqueus (ἄριστος Ἀχαιῶν) por duas vezes uma pelo coro
e outra por Odisseu A segunda parte da peccedila inclusive centra-se na defesa do protagonista
reabilitando-o como heroacutei cujos feitos passados natildeo podem ser suprimidos pelo ato
excessivo ainda que esta accedilatildeo possa pesar negativamente contra ele Em Metamorfoses a
virtude de Aacutejax manifesta restriccedilotildees maiores em relaccedilatildeo agrave tradiccedilatildeo pois se configura como
uma qualidade especialmente defensiva e protetora cuja funccedilatildeo eacute realccedilar a resistecircncia tanto
em relaccedilatildeo ao controle emocional quanto ao acircmbito militar Contudo tal qualidade do
personagem se apresenta efetivamente apenas no acircmbito guerreiro sendo assim incapaz de
conter a sua ira
201
A ira do heroacutei sobretudo como uma predisposiccedilatildeo psicoloacutegica contrabalanccedila o caraacuteter
intermediaacuterio do personagem em seu eixo negativo Para a obra de Soacutefocles a ira (χόλος)
fomenta o caraacuteter excessivo de Aacutejax como um de seus componentes pois a peccedila traz ainda a
ideia de primitividade do personagem e especialmente a loucura divina que o acossa ponto
maior de expressatildeo de tal desmedida Para Oviacutedio tal sentimento de ira (ira) eacute ele mesmo o
elemento mais significativo para o excesso que moveraacute a accedilatildeo funesta do heroacutei Contudo para
ambas as versotildees de Aacutejax grega ou latina a empaacutefia tratada como uma superestima de valor
atribuiacutedo a si compotildee o alicerce desse sentimento descontrolado uma vez que eacute o
reconhecimento de um aparente ultraje agrave desonra que incita em proporccedilotildees iguais a
intensidade da ira que move o personagem Em ambas as obras a ira as percorre Em Aias ela
eacute nomeada duas vezes com o vocaacutebulo choacutelos e presente desde o proacutelogo no significativo
sintagma ldquopesado de coacutelerardquo (χόλῳ βαρυνθεὶς v 41) que qualifica o protagonista permenace
nele apoacutes a sua morte mesmo que natildeo expressa uma vez que no ecircxodo Teucro natildeo permite
que Odisseu participe efetivamente dos ritos fuacutenebres em especial o impedindo de tocar o
cadaacutever Isso conforme diz o irmatildeo do cadaacutever reflete os sentimentos de Aacutejax e como
podemos constatar alinha o episoacutedio em questatildeo com a tradiccedilatildeo homeacuterica na qual o
personagem iracundo nega qualquer reconciliaccedilatildeo com o Laertida quando do encontro dos
dois no Hades no Canto XI da Odisseia No Livro XIII de Metamorfoses tal sentimento eacute
nomeado com o vocaacutebulo ira por duas vezes O sintagma ldquonatildeo sustendo a irardquo inpatiens irae
revela que esse sentimento acossa o personagem mesmo antes de ele comeccedilar a discursar e
defender o seu valor Essa primeira menccedilatildeo jaacute nos adianta e sintetiza o contexto do episoacutedio
que retrata a ira incontinente como o elemento fundamental para sua ruiacutena E tal componente
se revela ser a uacutenica coisa (unam iram) que vence a resistecircncia do heroacutei dotado de toda uma
capacidade de resistecircncia que singulariza a sua virtude O seu suiciacutedio por fim fornece a
violecircncia necessaacuteria para compor a sua transformaccedilatildeo em uma flor puacuterpura oriunda do
sangue derramado do heroacutei motivo pelo qual tal mito se torna presente na obra
Com efeito esse segundo capiacutetudo dispotildee como esses dois elementos virtude e ira
recebem uma funccedilatildeo estrutural no entendimento do propoacutesito semacircntico de cada uma dessas
obras Tanto em Aias quanto em Metamorfoses o conjunto desses dois elementos eacute
imprescindiacutevel na construccedilatildeo do caraacuteter intermediaacuterio do heroacutei necessaacuterio para o valor
traacutegico alcanccedilado dentro desse episoacutedio funesto do mito de Aacutejax representado em ambas as
obras
202
O terceiro capiacutetulo deste trabalho apresenta as categorias transtextuais de Genette e as
aplica ao texto de Oviacutedio na busca de um diaacutelogo mais presente entre este autor latino e o
tragedioacutegrafo Soacutefocles especialmente na ressignificaccedilatildeo dos elementos virtude e ira
Nessa etapa apresentamos de forma abrangente os cinco tipos de transtextualidade a
saber a intertextualidade a paratextualidade a metatextualidade a arquitextualidade e a
hipertextualidade Contudo eacute especialmente acerca desta uacuteltima que nos detemos uma vez
que esta descreve a relaccedilatildeo na qual um texto parece ser derivado ou influenciado por uma
outra ou mais obras atraveacutes de transformaccedilotildees que repercutem sobretudo nos propoacutesitos
semacircnticos dos novos textos Assim entre as praacuteticas quantitativas pragmaacuteticas e modais da
hipertextualidade as quais tentamos observar na obra latina estatildeo o aumento e a reduccedilatildeo
que satildeo operaccedilotildees que no geral tratam de ampliar ou abreviar um texto cujo resultado eacute outra
obra as praacuteticas pragmaacuteticas de transmotivaccedilatildeo e transvalorizaccedilatildeo que representam aquelas
operaccedilotildees que modificam o curso das accedilotildees dentro do novo texto sobretudo para ressignificaacute-
las em um novo propoacutesito semacircntico seja ou alterando o grupo de motivos que movem o
personagem ou se investindo na caracterizaccedilatildeo deste de modo a lhe conferir um papel mais
significativo dentro do novo texto e as transmodalizaccedilotildees que tratam da modificaccedilatildeo do
modo ou no modo de representaccedilatildeo do hipotexto em especial de natureza narrativa ou
dramaacutetica
A parte final deste capiacutetulo para qual convergem todos os dados levantados em seccedilotildees
e capiacutetulos anteriores trata da observaccedilatildeo das praacuteticas transtextuais as quais teriam sido
utilizadas por Oviacutedio na estruturaccedilatildeo de seu episoacutedio do mito de Aacutejax sobretudo em relaccedilatildeo
a Soacutefocles Foi-nos possiacutevel ao longo da uacuteltima seccedilatildeo observar vaacuterias operaccedilotildees
transtextuais especialmente em diaacutelogo com as obras homeacutericas Contudo as mais
significativas no estabelecimento de uma transtextualidade com o tragedioacutegrafo grego satildeo
aquelas que atuam sobretudo no episoacutedio da loucura do Telamocircnio e aquelas que parecem
imitar as condensaccedilotildees de Soacutefocles em relaccedilatildeo aos textos homeacutericos
A excisatildeo ou seja a supressatildeo do episoacutedio da insanidade incutida por Atena na
versatildeo latina repercute semanticamente em sua composiccedilatildeo gerando-se expressivamente
tanto a transmotivaccedilatildeo da ira de modo a intensificaacute-la em relaccedilatildeo agrave peccedila grega quanto a
transvalorizaccedilatildeo do caraacuteter intermediaacuterio do personagem retomando-se as premissas
aristoteacutelicas traacutegicas aplicadas a uma eacutepica que se torna mais liacuterica e traacutegica do que o usual
As condensaccedilotildees de episoacutedios dos poemas homeacutericos operadas por Soacutefocles em sua
obra satildeo sobretudo utilizadas por Oviacutedio na configuraccedilatildeo da virtude defensiva e protetora do
heroacutei de Salamina Elas atuam no discurso do Telamocircnio vinculando-se aparentemente a
203
uma virtude romana cujo propoacutesito eacute a defesa da paacutetria da famiacutelia e dos aliados Por isso na
perspectiva de Aacutejax suas accedilotildees e seus meacuteritos satildeo maiores significativamente aos do
oponente cujos atos visam apenas a si Dessa forma tais condensaccedilotildees reforccedilam e refletem o
discurso de soberba do heroacutei em relaccedilatildeo ao seu valor uma caracteriacutestica que parece ser
intensificada ou transmotivada na versatildeo de Oviacutedio quanto agrave peccedila de Soacutefocles Uma vez
que a empaacutefia do personagem da versatildeo latina repercute em uma ira que diferentemente da
versatildeo grega inicia-se antes mesmo da disputa pelas armas de Aquiles a ira profunda e
incontida desencadeada por tal soberba fomenta o suiciacutedio do heroacutei sem a necessidade do
episoacutedio da loucura Este uacuteltimo episoacutedio como bem sabemos promove a desonra e o ultraje
maacuteximos para a morte do protagonista de Aias
Certamente com a conclusatildeo deste trabalho por um lado acreditamos ter apontado
uma relaccedilatildeo expressiva entre autores latinos e tragedioacutegrafos gregos no que diz respeito ao
acircmbito da Literatura Comparada em especial a um de seus campos a transtextualidade
teorizada por Genette mas conhecida abragentemente pelo nome de intertextualidade Aleacutem
disso foi possiacutevel reconhecer em certo grau o status de texto matriz absoluto dos poemas
homeacutericos uma vez que o trabalho de caracterizaccedilatildeo dos heroacuteis gregos presente em sua obra
repercute significativamente na obra latina estudada por noacutes Por outro lado tambeacutem
esperamos ter contribuiacutedo com os estudos comparados da Literatura Claacutessica fomentando
metodologia e dados significativos para outros trabalhos que visem a estabelecer diaacutelogos
entre autores latinos e gregos e entre estes uacuteltimos em especial os tragedioacutegrafos
204
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ROacuteNAI Paulo A traduccedilatildeo vivida 4 ed Rio de Janeiro Joseacute Olympio 2012 STOCK Leo Conjugaccedilatildeo de verbos latinos Traduccedilatildeo de Antoacutenio Moniz e Maria Celeste Moniz Lisboa Editorial Presenccedila 2000 ______ Gramaacutetica Latina Traduccedilatildeo de Antoacutenio Moniz e Maria Celeste Moniz Lisboa Editorial Presenccedila 2012 SZONDI Peter Ensaio sobre o traacutegico Traduccedilatildeo de Pedro Suumlssekind Rio de Janeiro Jorge Zahar Ed 2004
A447t Almeida Felipe dos Santos Transtextualidade entre Soacutefocles e Oviacutedio virtude e ira na caracterizaccedilatildeo de Aacutejax Felipe dos Santos Almeida - Joatildeo Pessoa 2017 210 f il
Orientaccedilatildeo Milton Marques Juacutenior Tese (Doutorado) - UFPBCCHLA
1 Literatura comparada 2 Literatura claacutessica 3 Oviacutedio-Soacutefocles I Marques Juacutenior Milton II Tiacutetulo
UFPBBC
Catalogaccedilatildeo na publicaccedilatildeoSeccedilatildeo de Catalogaccedilatildeo e Classificaccedilatildeo
3
Dedico este trabalho aos meus pais responsaacuteveis maiores pela minha educaccedilatildeo
4
AGRADECIMENTOS
Aos meus amados pais por toda dedicaccedilatildeo afeto esforccedilo e paciecircncia
Agrave minha Preta Raiacutera pela companhia amizade apoio carinho e amor e especialmente por Rebeca
Aos professores Milton e Juvino pela confianccedila pela orientaccedilatildeo em minha vida profissional e pessoal e pela amizade
Agraves minhas queridas irmatildes pela boa Eacuteris
A Andreacute Cassiano Diego Faacutebios (Cabeccedila e Xuxa) Falcatildeo Guigo Gregoacuterio Jorge Juacutelio Vitor Joffison Bela Magno Dudu e Paulinho pela longa amizade construiacuteda nesses anos e pelos domingos compartilhados
A Moacir Dioacutegenes Hermes Marco Alcione e Anderson pela amizade
Aos demais familiares amigos e professores por terem me ajudado e orientado na construccedilatildeo de meus conhecimentos profissionais e pessoais
A Gary Gygax e Dave Arneson pela imaginaccedilatildeo e pela inspiraccedilatildeo
Aos deuses pela vida
5
RESUMO
O objetivo deste trabalho eacute estudar a intertextualidade entre a obra Metamorfoses de Oviacutedio
autor latino e a peccedila Aias de Soacutefocles tragedioacutegrafo grego Esse estudo de Literatura
Comparada tem como foco a caracterizaccedilatildeo do personagem Aacutejax Entretanto a nossa anaacutelise
restringe tal caracterizaccedilatildeo a dois elementos recorrentes em heroacuteis da Literatura Claacutessica a
virtude sobretudo guerreira e o sentimento de ira Para alcanccedilar tais objetivos
primeiramente apontamos como tais elementos estatildeo presentes na tradiccedilatildeo da literatura grega
arcaica do heroacutei em questatildeo em especial nos poemas homeacutericos os quais jaacute apresentam de
forma pioneira uma caracterizaccedilatildeo singular Nessas obras homeacutericas esse personagem jaacute eacute
notaacutevel pela sua virtude guerreira e pela sua grave coacutelera Em seguida analisamos
isoladamente as obras de Oviacutedio e Soacutefocles com o objetivo de reconhecer a importacircncia
desses dois elementos na composiccedilatildeo do caraacuteter desse personagem e no propoacutesito semacircntico
dos episoacutedios de cada uma delas Por fim apresentamos a teoria de Genette sobre
intertextualidade a qual nomeia de transtextualidade e na qual delimita uma tipologia a fim
de precisar suas variadas praacuteticas Baseados nessa teoria apontamos as operaccedilotildees realizadas
pelo autor latino que comprovam o aspecto transtextual de sua obra particularmente em
relaccedilatildeo ao tragedioacutegrafo grego contudo restritas agrave forma pela qual tais transformaccedilotildees satildeo
utilizadas para delinear o caraacuteter guerreiro e iracundo do heroacutei Aacutejax Para melhor
compreensatildeo das obras estudadas e da consequente anaacutelise dispomos uma traduccedilatildeo
instrumental do corpus citado no trabalho
Palavras-chave Literatura Comparada Literatura Claacutessica Oviacutedio Soacutefocles caracterizaccedilatildeo
literaacuteria Aacutejax
6
ABSTRACT
This work aims at studying the intertextuality between Ovidrsquos Metamorphosis and
Sophoclesrsquos play Aias This work of Comparative Literature focus on the characterization of
the hero Ajax However our analysis limits this characterization to two issues present on
Classical Literature heroes the virtue especially belligerent and the wrath To achieving
such purpose firstly we point how those issues are present on the archaic Greek literature
tradition of the studied hero particularly in Homeric poems which introduce in a pioneer
way a singular characterization In these Homeric works this character is already remarkable
by his warrior virtue and by his intense wrath Secondly we analyze Ovid and Sophoclesrsquo
literary works separately aiming at understanding the consequence of those two issues in the
characterization of such hero and in the semantic purpose of episodes in each work At last
we introduce Genettersquos theory about intertextuality which he names transtextuality and in
which he bounds a tipology to restrict its many types of operations Based on that theory we
present the operations fulfilled by the latin author that verify such transtextual issue in his
epic poem specially related to Sophoclesrsquo play Nevertheless they are restricted to the way
such operations act to compose the characterization of the belligerent and fiery hero Ajax To
understanding the literary works and the following analysis better we present a general
translation from the corpus mentioned on the present work
Keywords Comparative Literature Classical Literature Ovid Sophocles literary
characterization Ajax
7
SUMAacuteRIO
INTRODUCcedilAtildeO 8
1 A TRADICcedilAtildeO LITERAacuteRIA DO MITO DE AacuteJAX 12
1 1 A TRADICcedilAtildeO ARCAICA E OS POEMAS HOMEacuteRICOS 12
1 2 A TRADICcedilAtildeO CLAacuteSSICA 34
1 2 1 Aias de Soacutefocles 35
1 2 2 Metamorfoses de Oviacutedio 45
2 ESTUDO ISOLADO DA CARACTERIZACcedilAtildeO DO HEROacuteI 59
2 1 A VERSAtildeO DE SOacuteFOCLES 60
2 1 1 Ἀρετή a virtude do heroacutei na perspectiva grega 62
2 1 2 Χόλος a ira do heroacutei na perspectiva grega 78
2 2 A VERSAtildeO DE OVIacuteDIO 104
2 2 1 Virtus a virtude do heroacutei na perspectiva latina 107
2 2 2 Ira a ira do heroacutei na perspectiva latina 125
3 ESTUDO TRANSTEXTUAL DA CARACTERIZACcedilAtildeO DO HEROacuteI 143
3 1 TRANSTEXTUALIDADE A CONCEPCcedilAtildeO DE GENETTE 143
3 1 1 Praacuteticas hipertextuais transformaccedilotildees quantitativas pragmaacuteticas e modais 148
3 2 O EPISOacuteDIO TRANSTEXTUAL DE OVIacuteDIO 164
3 2 1 A virtude transtextual do heroacutei 169
3 2 2 A ira transtextual do heroacutei 182
CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS 199
REFEREcircNCIAS 204
8
INTRODUCcedilAtildeO
Haacute muito se procura por um conceito que defina Mito mas todas as tentativas
convergem eventualmente para uma mesma particularidade a narrativa no sentido de histoacuteria
elaborada pelo ato de narrar Maacuterio Vegetti nos mostra ao menos um paracircmetro para discernir
as narrativas miacuteticas dos gecircneros literaacuterios como eacutepica liacuterica e trageacutedia entre os povos
antigos ainda que atualmente tal perspectiva seja considerada dentro de certos limites Para
este autor as narrativas miacuteticas em torno das divindades e das forccedilas invisiacuteveis e
sobrenaturais que estatildeo presentes no universo e que tambeacutem o governam satildeo relatos
anocircnimos repetidos passados de geraccedilatildeo em geraccedilatildeo que funcionam como uma espeacutecie de
cataacutelogo do imaginaacuterio religioso (1994 p 37) ganhando forccedila exatamente devido ao seu
aspecto coletivo e impessoal que de caraacuteter sagrado remonta agraves origens de seu povo
atravessando o tempo e o espaccedilo Com efeito devemos ainda evidenciar que o mito eacute uma
ldquonarrativa aplicada como verbalizaccedilatildeo de dados complexos supra-individuais coletivamente
importantesrdquo (BURKERT 1991 p 18) e isso significa dizer que ele eacute o saber atraveacutes de
histoacuterias Esse conhecimento guardado nas narrativas era fundamental sobretudo para os
gregos e romanos da Antiguidade no entanto o imaginaacuterio que o detinha era de certa
maneira desordenado e caoacutetico Eacute a intervenccedilatildeo da literatura sobretudo da eacutepica que produz
uma seleccedilatildeo e um ordenamento capaz de reforccedilar a conservaccedilatildeo do caraacuteter fundamental
desses relatos o modo narrativo com o qual um determinado povo comunica e transmite o
conhecimento presente em sua cultura (VEGETTI 1994 p 37)
Naturalmente dessas narrativas miacuteticas se desdobra em seu acircmbito literaacuterio uma
transcendecircncia textual nomeada costumeiramente de intertextualidade no sentido de que os
poetas se referem aos anteriores articulando um texto uma trama ora respondendo-lhes ora
acrescentando-lhes mas permanecendo sempre a ideia de um diaacutelogo com as geraccedilotildees
anteriores Isso tem como consequecircncia a percepccedilatildeo de que Homero eacute o texto matriz absoluto
(GRAF 2006 p 110) especialmente acerca da mitologia greco-latina pois eacute evidente a sua
forte presenccedila nas literaturas grega e latina Com efeito por mais que sejam variadas as
versotildees de autores acerca de determinados mitos haacute para os poetas uma liberdade limitada
Recorre-se agrave tradiccedilatildeo miacutetica ao menos para se evitar causar um grande estranhamento ao
puacuteblico cujo imaginaacuterio mitoloacutegico lhe serve como base para a compreensatildeo da literatura e
da arte em geral (VERNANT 2006 p 25)
Inseridas nessa realidade de transcendecircncia textual as narrativas acerca do mito do
heroacutei grego Aacutejax se convergem nas literaturas grega e latina claacutessicas na trageacutedia Aias de
9
Soacutefocles e no Livro XIII da obra de Oviacutedio Metamorfoses Se estabelecemos como as
primeiras obras que tecircm registro dos relatos sobre esse heroacutei de Salamina a Iliacuteada e a
Odisseia de Homero podemos indicar essa intertextualidade de Soacutefocles e Oviacutedio
respondendo a Homero Contudo seria possiacutevel um diaacutelogo mais soacutelido entre a obras de
Soacutefocles e de Oviacutedio no que diz respeito ao mito desse personagem Certamente o
argumento de suas obras remonta a um episoacutedio importante da lenda desse heroacutei a contenda
pelas armas de Aquiles presente em Metamorfoses cujo desdobramento natural apoacutes a
vitoacuteria de Odisseu eacute a ira e o suiciacutedio do heroacutei derrotado presente na trageacutedia daquele A
partir dessa relaccedilatildeo evidente ateacute que ponto a obra de Oviacutedio se articula com a de Soacutefocles
que lhe eacute anterior Quais elementos literaacuterios de Soacutefocles satildeo reforccedilados e reiterados por
Oviacutedio em sua obra Ateacute onde a obra de Oviacutedio possibilita uma nova leitura da trageacutedia de
Soacutefocles ou uma leitura conjunta
Diante de todos esses questionamentos tentamos chegar a uma conclusatildeo a partir de
uma categoria analiacutetica que se afigura inerente agrave literatura greco-latina a intertextualidade
Contudo nosso objetivo eacute guiado sob a perspectiva da caracterizaccedilatildeo desse heroacutei grego que
parece ganhar ecircnfase no corpus por noacutes definido os 1420 versos da obra de Soacutefocles e os
versos 1 a 398 do Livro XIII da obra de Oviacutedio Em nosso recorte podemos observar a
relevacircncia das concepccedilotildees de virtude e de ira pois parecem alicerccedilar de algum modo o caraacuteter
desse personagem dentro das obras escolhidas Assim de forma mais especiacutefica conveacutem-nos
analisar como atraveacutes desses dois traccedilos do heroacutei as obras em questatildeo se relacionam entre si
Dessa forma tentaremos reconhecer ateacute que ponto a caracterizaccedilatildeo de Aacutejax desenvolvida
pelo autor grego eacute retomada pelo latino Para isso haacute de se considerar duas coisas A
primeira eacute considerar como base dos traccedilos do personagem marcas que remetam agraves noccedilotildees de
virtude e de ira presentes na sua imagem lendaacuteria sobretudo em Homero que figura a
iniciaccedilatildeo disso na tradiccedilatildeo literaacuteria A segunda eacute comparar tambeacutem ponderando o papel
estrutural dessas duas noccedilotildees ao argumento e agrave unidade tanto de Aias quanto do Livro XIII de
Metamorfoses
Devido a tal finalidade a intertextualidade tomada como categoria analiacutetica do nosso
estudo eacute considerada fundamental em nossa metodologia e por isso a ela estaacute reservada uma
seccedilatildeo proacutepria no uacuteltimo capiacutetulo O marco teoacuterico que guia esse trabalho eacute sobretudo a teoria
de Geacuterard Genette sobre tal concepccedilatildeo nas quais esse estudioso dispotildee ordenadamente toda
10
uma tipologia de variados niacuteveis de referecircncia intertextual unidos entre si sob uma
perspectiva mais geral e abrangente nomeada transtextualidade1 pelo autor
Para alcanccedilarmos esse fim de forma vaacutelida analisamos as obras individualmente e
comparadas considerando diretamente a liacutengua original de cada uma o grego e o latim
claacutessicos Em decorrecircncia disso satildeo imprescindiacuteveis para a nossa metodologia algumas
disposiccedilotildees especialmente teoacutericas as quais natildeo constituindo diretamente a categoria
proposta no trabalho natildeo exercem o mesmo papel no nosso estudo como a intertextualidade
e por isso satildeo apresentadas de forma sinteacutetica ou em notas explicativas e de rodapeacute
Tentamos dessa maneira evitar a sobrecarga textual sobretudo a teoacuterica que tanto interrompa
a sequecircncia loacutegica da leitura quanto tangencie nosso objetivo de forma digressiva com
conteuacutedo de relevacircncia indireta aos nossos propoacutesitos As principais informaccedilotildees dispostas
dessa maneira satildeo trecircs mas outras minoritaacuterias seguem os mesmos criteacuterios
A primeira eacute a caracterizaccedilatildeo para a qual vaacuterios estudos especiacuteficos sobre o caraacuteter do
personagem satildeo dispostos suprindo tal escolha mencionada acima Com efeito segundo esse
procedimento utilizamos o lato entendimento da concepccedilatildeo de Carlos Reis e de Ana Cristina
Lopes acerca de caracterizaccedilatildeo ou seja ela representa dentro do um plano narrativo os
atributos fundamentais de um personagem que estruturados em um conjunto de unidade
identificaacutevel e entrelaccedilados a outros componentes diegeacuteticos executam um papel saliente no
desenvolver da trama e reforccedilam o eixo semacircntico do argumento do texto (1988 p 193-195)
Considera-se tambeacutem que a proficuidade desse elemento no estudo de uma obra depende
frequentemente da posiccedilatildeo relativa que um determinado personagem ocupe na composiccedilatildeo do
enredo Mencionamos tambeacutem alguns elementos literaacuterios oriundos da Poeacutetica de Aristoacuteteles
os quais auxiliam grandemente as anaacutelises de caracteres
A segunda disposiccedilatildeo a ser considerada eacute o esclarecimento de determinados valores
religiosos eacuteticos morais sociais etc constantes no leacutexico e no vocabulaacuterio dessas obras
uma vez que trataremos de textos que remontam uma cultura antiga e que por isso
pressupotildeem uma miacutenima contextualizaccedilatildeo histoacuterica Autores que abordem tais assuntos como
Jean-Pierre Vernant Eacutemile Benveniste Marcel Detienne etc satildeo fundamentais
A terceira uma traduccedilatildeo instrumental que vise auxiliar a leitura do texto original
fornecendo para isso um reflexo morfossintaacutetico e por vezes etimoloacutegico uma vez que o
conteuacutedo dos fragmentos estudados e suas nuances significativas para o estudo seratildeo expostos
1 Ressaltamos que por todo o trabalho tambeacutem usaremos a grafia em itaacutelico para identificar quaisquer
terminologias teoacutericas com o propoacutesito por exemplo de distinguir o sentido mais abrangente de uma palavra como em intertextualidade do sentido especiacutefico fomentado ou natildeo por um determinado autor como em intextextualidade a qual se refere a um tipo determinado da transtextualidade formulada por Genette
11
atraveacutes da proacutepria anaacutelise que segue agraves citaccedilotildees Por isso seu tratamento eacute menos semacircntico e
mais sintaacutetico Atentamos para esse propoacutesito as reflexotildees de Paulo Roacutenai John Milton e
Susan Bassnett Umberto Eco entre outros os quais ponderam os objetivos de uma traduccedilatildeo
Aleacutem disso destacamos que os textos originais das obras Metamorfoses de Oviacutedio e Aias de
Soacutefocles utilizados em nosso trabalho foram estabelecidos de forma filoloacutegica
respectivamente por Georges Lafaye e por Paul Mazon em ediccedilotildees da Les Belles Lettres e
estatildeo presentes nas referecircncias
De acordo com todos esses criteacuterios estruturamos esse trabalho em trecircs capiacutetulos O
primeiro sob a perspectiva da caracterizaccedilatildeo do mito de Aacutejax contextualiza e apresenta a
tradiccedilatildeo arcaica centrada em Homero bem como as obras que compotildeem o nosso corpus
Com essa contextualizaccedilatildeo das obras fornecemos subsiacutedios para delimitar os seus limites e
para discernir na obra de Oviacutedio o que eacute diaacutelogo com Homero e o que eacute referecircncia a Soacutefocles
se a ela houver Autores como Maria Helena da Rocha Pereira Jacqueline de Romilly Robert
Aubreton etc e alguns estudos especiacuteficos acompanhados de nossas observaccedilotildees compotildeem
essa primeira parte O segundo capiacutetulo dispotildee uma anaacutelise per se das obras do corpus
considerando-se o papel exercido pela caracterizaccedilatildeo do heroacutei na unidade e no argumento das
mesmas percebendo-a sob o ponto de vista das noccedilotildees de virtude e de ira Estudos especiacuteficos
e tradutores das obras em questatildeo tambeacutem satildeo considerados em nossa anaacutelise O terceiro
expotildee os princiacutepios intertextuais de Geacuterard Genette os quais nomeia transtextualidade e
pelos quais comparamos ainda neste momento os resultados obtidos a partir do capiacutetulo
anterior para chegarmos a alguma conclusatildeo acerca dos niacuteveis de influecircncia de Soacutefocles em
Oviacutedio Eacute importante ressaltar que a teoria desse criacutetico francecircs aborda em especial aspectos
temaacuteticos e estiliacutesticos e noacutes tentaremos adequar tais premissas ao estudo da caracterizaccedilatildeo
12
1 A TRADICcedilAtildeO LITERAacuteRIA DO MITO DE AacuteJAX
Propomo-nos aqui a contextualizar as obras Aias de Soacutefocles e Metamorfoses de
Oviacutedio sobretudo seu Livro XIII convergindo os estudos deste capiacutetulo para a caracterizaccedilatildeo
do personagem Aacutejax sob o vieacutes das noccedilotildees de ira e de virtude e considerando a influecircncia da
tradiccedilatildeo arcaica da literatura grega sobretudo nas obras dos autores aqui estudados Com
efeito para estudarmos mais validamente a intertextualidade entre a caracterizaccedilatildeo desse
heroacutei nas obras de Oviacutedio e de Soacutefocles que figuram uma tradiccedilatildeo claacutessica devemos
reconhecer quando no processo de retomada do mito haacute uma influecircncia de autores que lhe
satildeo anteriores e que consolidaram a imagem que temos dessas figuras mitoloacutegicas
Entendemos como base de representaccedilatildeo dessa tradiccedilatildeo arcaica as epopeias homeacutericas Iliacuteada
e Odisseia uma vez que seus modelos influenciam diretamente toda a cultura literaacuteria greco-
latina posterior
Neste capiacutetulo observando-se a composiccedilatildeo estrutural das obras estudadas
ressaltaremos os procedimentos literaacuterios e os traccedilos estiliacutesticos que contribuam para a nossa
anaacutelise e possibilitem uma melhor contemplaccedilatildeo do nosso objetivo Para isso servimo-nos de
vaacuterios estudos que tanto estabelecem linhas gerais de interpretaccedilatildeo das obras
contextualizando-as quanto dentro do possiacutevel apresentam material relacionado ao tema
proposto por noacutes como base para intertextualidade situando-o sob a perspectiva do nosso
objetivo Contudo vejamos antes a caracterizaccedilatildeo do personagem escolhido para estudo
dentro das obras arcaicas
1 1 A TRADICcedilAtildeO ARCAICA E OS POEMAS HOMEacuteRICOS
Homero eacute o herdeiro da memoacuteria de um povo de cultura oral e teria elaborado suas
narrativas a partir de antigos mitos de base religiosa (AUBRETON 1968 p 154-155) Essa
mitologia grega contribui acima de tudo para uma longa tradiccedilatildeo artiacutestica da Greacutecia arcaica
da qual com exceccedilatildeo de Homero utilizaremos nesta seccedilatildeo de maneira pontual apenas
Piacutendaro poeta liacuterico grego do periacuteodo arcaico por contribuir para o nosso propoacutesito
Com efeito a partir de informaccedilotildees centradas nas obras de Homero dispostas aqui
tentaremos ressaltar como vaacuterios elementos constituintes do estilo e da linguagem homeacutericos
contribuem para a profiacutecua caracterizaccedilatildeo de seus personagens tornando pertinente um
estudo mais profundo dos mesmos sobretudo em poetas posteriores os quais retomam essa
13
tradiccedilatildeo arcaica Assim seraacute possiacutevel compreender como se apresenta o contorno das vaacuterias
figuras dos heroacuteis miacuteticos presentes nessas epopeias e entre estes a de Aacutejax foco deste
estudo Para isso tambeacutem recorreremos a anaacutelises e estudos de alguns criacuteticos que subsidiaratildeo
a complexidade das caracterizaccedilotildees homeacutericas delineando o perfil desses heroacuteis atestada pela
consciecircncia de linguagem do autor e pela sua maturidade artiacutestica proacuteprias de toda grande
literatura
Antes contudo eacute importante justificar mesmo que brevemente essa preferecircncia por
Homero determinante do objetivo desta seccedilatildeo Para alcanccedilarmos tal finalidade deve-se
reconhecer a enorme influecircncia da tradiccedilatildeo literaacuteria da Greacutecia arcaica na literatura claacutessica
seja grega ou latina sobretudo da homeacuterica A influecircncia das epopeias homeacutericas sobre os
gregos estaacute presente desde o seacuteculo VII a C tornando-se literariamente preponderante no
seacuteculo V a C (AUBRETON 1968 p 328) a exemplo maior dos tragedioacutegrafos e da
concepccedilatildeo aristoteacutelica de literatura contida na Poeacutetica que representa primeira teorizaccedilatildeo
literaacuteria manifestada no Ocidente
Homero que se torna o grande educador grego devido ao alcance de sua obra nos
seacuteculos que lhe satildeo posteriores eacute marcadamente imitado seu vocabulaacuterio fixado como liacutengua
e sua obra se torna base para o aprendizado de vaacuterios conteuacutedos sejam morais sociais
histoacutericos etc Sua concepccedilatildeo divina ainda exerce autoridade inclusive sobre a religiatildeo
helecircnica o que faz por exemplo Platatildeo fomentando uma nova reflexatildeo sobre as divindades
censurar na Repuacuteblica alguns de seus episoacutedios Esse prestiacutegio o faz ateacute mesmo inaugurar a
literatura latina atraveacutes da traduccedilatildeo da Odisseia por Liacutevio Androcircnico transformando-se em
obra base para o aprendizado da leitura das crianccedilas romanas (Ibidem p 329) Esse fato eacute de
tal forma contundente que favorece a compreensatildeo da forccedila que essas epopeias exercem
diretamente na literatura latina cuja maior expressatildeo eacutepica eacute a Eneida de Virgiacutelio reflexo
direto dos moldes homeacutericos Disso tambeacutem podemos conjecturar a forccedila exercida dentro da
proacutepria literatura grega
Tal influecircncia manifestada pelo diaacutelogo constante de uma geraccedilatildeo com as que lhe satildeo
anteriores ora concordante de ideias ora divergente natildeo se revela apenas na evoluccedilatildeo
literaacuteria e por isso entendemos todas renovaccedilotildees de conteuacutedo de forma etc que se
desenvolvem ao longo do tempo Apesar de sua natureza predominantemente eacutepica podemos
citar por exemplo elementos literaacuterios mesmo que de forma embrionaacuteria presentes nessas
obras os quais posteriormente seratildeo desenvolvidos e atribuiacutedos por vaacuterios estudiosos aos
gecircneros liacuterico e traacutegico como suas marcas distintivas No entanto afastando-nos dessas
disposiccedilotildees mais gerais noacutes frisamos aqui um elemento mais especiacutefico e adequado ao
14
nosso estudo de caso a evoluccedilatildeo dos mitos que apresentam a figura dos heroacuteis lendaacuterios da
Greacutecia
Para entender melhor a evoluccedilatildeo desses mitos e sobretudo o papel de Homero sobre
ela eacute necessaacuterio entender que a construccedilatildeo individual de um poeta acerca de uma figura
miacutetica natildeo eacute uma elaboraccedilatildeo completamente livre da tradiccedilatildeo Segundo Jean-Pierre Vernant
as mais variadas versotildees dos mitos apresentam uma determinada limitaccedilatildeo pois por mais
inovadoras que sejam elas estatildeo inscritas em uma tradiccedilatildeo na qual se apoiam e agrave qual se
referem sobretudo se considerarmos o pleno entendimento pelo puacuteblico (2006 p 25) Louis
Gernet sobre isso jaacute havia afirmado que os poetas respeitavam uma espeacutecie de imaginaccedilatildeo
lendaacuteria e isso implicava uma coerecircncia estrutural e funcional agrave qual os autores de alguma
maneira se submetiam (apud VERNANT 2006 p 25)
Para o nosso trabalho as obras homeacutericas satildeo essenciais especialmente por dois
motivos O primeiro devido a seu caraacuteter literaacuterio iniciaacutetico dos caracteres desses heroacuteis
miacuteticos contidos no ciclo da guerra de Troia ou seja essas epopeias representam o ponto de
partida literaacuterio dos traccedilos distintivos dos personagens incluiacutedos nessas narrativas O segundo
motivo devido ao seu papel fundamental no entendimento dos vaacuterios contornos que esses
personagens da mitologia grega recebem na literatura claacutessica a partir do diaacutelogo com os
textos homeacutericos comprovadamente atestado por vaacuterios estudos Em ambos os motivos isso
inclui Aacutejax foco de nosso estudo e sua concepccedilatildeo pelos autores posteriores a Homero A
Iliacuteada e a Odisseia nos revelam assim os pontos significativos das qualidades individuais do
heroacutei em questatildeo tanto no mito de uma forma geral quanto no episoacutedio que envolve a
disputa pelas armas de Aquiles evento indispensaacutevel na fabulaccedilatildeo da obra Aias de Soacutefocles
e da Metamorfoses de Oviacutedio
Colocando de lado questotildees de justificativa passemos a observar as obras homeacutericas a
partir de informaccedilotildees pertinentes ao estudo da caracterizaccedilatildeo que eacute o cerne da nossa
comparaccedilatildeo intertextual proposta
Os heroacuteis das obras homeacutericas satildeo frequentemente reis de linhagem divina E apesar
da presenccedila de outras figuras mais simples especialmente na Odisseia estas orbitam o
universo de personagens pertencentes a uma espeacutecie de nobreza a priori composta de
homens superiores Explicando melhor esse contexto Jacqueline de Romilly afirma que a
epopeia homeacuterica ldquoreflete entatildeo um mundo aristocraacutetico cujas virtudes satildeo igualmente
aristocraacuteticasrdquo (1984 p 37) E a moral heroica presente nas obras assegura Claude Mosseacute
tem como base valores que correspondem aos de uma aristocracia guerreira os quais se
manifestam em combates representativos de um mundo de guerras da Greacutecia arcaica o que
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justifica a constante busca pela gloacuteria guerreira que tornaraacute ο heroacutei imortal (1989 p 46)
Inserido em uma civilizaccedilatildeo de natureza guerreira esse representante aristocraacutetico eacute impelido
por dois aspectos da gloacuteria o kyacutedos (κῦδος) e a kleacuteos (κλέος) O primeiro de origem divina
representa um favorecimento momentacircneo dos deuses com o qual os heroacuteis executam seus
grandes feitos o segundo de origem humana eacute a fama que desenvolve de boca em boca
atraveacutes de vaacuterias geraccedilotildees o que destaca sobretudo no papel do poeta para a cultura arcaica a
sustentaccedilatildeo dessa gloacuteria alcanccedilada (DETIENNE 2013 p 21)
Contudo eacute salutar destacar esses ainda satildeo marcadamente homens ou seja embora
tais personagens possuam uma estirpe particular e por meio de atributos decorrentes dessa
origem executem muitas vezes proezas fora do comum eles ainda cultivam virtudes
essencialmente humanas (ROMILLY 1984 p 37) Por isso manifestam emoccedilotildees
impulsionadas pelas tensotildees internas do enredo decorrentes das situaccedilotildees de conflito nas
quais estatildeo inseridos desse modo revelando-nos e lhes conferindo uma identidade
inerentemente humana
Os personagens homeacutericos natildeo satildeo analisados pelo autor mas satildeo mostrados em plena
accedilatildeo na guerra nos rituais no mar no acircmago do ambiente familiar Tambeacutem a esses Homero
concede a palavra por meio do discurso direto um recurso extremamente recorrente em sua
obra (Ibidem p 40) Essa mescla de estilos compotildee tanto a Iliacuteada quanto a Odisseia ora de
base oratoacuteria ora narrativa ora descritiva servindo para se ressaltarem marcadamente tais
accedilotildees dos personagens E isso parece ter como consequecircncia um reforccedilo no delineamento do
caraacuteter dessas figuras fato evidente nas obras em questatildeo
Segundo Walter Donlan a construccedilatildeo de personagens mais reais eacute um iacutendice de
maturidade artiacutestica e uma literatura madura se faz quando a mesma eacute capaz de produzir
caracterizaccedilotildees complexas dessa maneira (1970 p 259) A Iliacuteada por exemplo mesmo
representando o marco inicial da literatura ocidental natildeo pode ser vista de maneira alguma
como um trabalho primitivo Sua genialidade no tratamento da caracterizaccedilatildeo distinta dos
personagens eacute um dos motivos que lhe concede o grau de grande obra literaacuteria inserindo a
produccedilatildeo literaacuteria da Greacutecia arcaica dentro dessa concepccedilatildeo de literatura madura Isso parece
ocorrer conforme Donlan contrariamente ao modelo que se estrutura em uma determinada
quantidade de arqueacutetipos como o grande guerreiro o veneraacutevel rei ou o velho saacutebio
dispostos em uma tipologia variada de situaccedilotildees como o combate singular a jornada para
casa etc muito evidentes tambeacutem nos mitos e contos folcloacutericos de quaisquer culturas
sobretudo as orais Com efeito os marcadamente personagens principais por esse autor a
16
saber Aquiles Agamecircmnon e Heitor estatildeo bastante longe de ser um estoque de arqueacutetipos
em um estoque de situaccedilotildees (Ibidem p 261)
Evidentemente haacute personagens que acabam se tornando mais proacuteximos a esses
arqueacutetipos de maneira que natildeo crescem e em contrapartida soacute cumprem uma funccedilatildeo
determinada embora afirma Donlan seja possiacutevel observar ainda uma sofisticada variaccedilatildeo
desses modelos nos heroacuteis homeacutericos quando da representaccedilatildeo dessas figuras menores
Contudo mais ou menos elaborados os personagens de Homero satildeo bem delineados e
consistentes afastando de si a tipologia primaacuteria e se mostrando indiviacuteduos distintos entre si
(Ibidem p 263)
Com efeito a caracterizaccedilatildeo homeacuterica faz com que determinados traccedilos de
personalidade emerjam quando os personagens satildeo dispostos em situaccedilotildees de conflito que
demandem uma accedilatildeo consonante com suas caracteriacutesticas individuais Isso permite que eles
desenvolvam entidades psicoloacutegicas e alguns com elaboraccedilatildeo extremamente singular Na
Iliacuteada como exemplo destes uacuteltimos Aquiles sofre aprende toma decisotildees dolorosas e
assim mostra-se possuidor de uma verdadeira personalidade Outros menos elaborados
devido a uma participaccedilatildeo mais funcional na obra tecircm ainda a caracterizaccedilatildeo plenamente
formada e potencialmente desenvolvida mas natildeo manifestada e evoluiacuteda dentre de
circunstacircncias propiacutecias para os vermos crescer tal qual exemplifica Donlan Odisseu e Aacutejax
os quais soacute concretizaratildeo tal potencial como eacute comum a muitos personagens homeacutericos em
outras obras respectivamente a Odisseia do mesmo autor e Aias de Soacutefocles (Ibidem p
265-266)
Por isso a psicologia elaborada entre vaacuterios heroacuteis eacute entatildeo completamente distinta e
corroborando o que foi exposto acima ldquoagraves vezes em plena evoluccedilatildeordquo (AUBRETON 1968 p
289) Ainda segundo Robert Aubreton por meio de todos esses recursos Homero teria
vivificado os personagens de forma particular tornando-os profundamente humanos e dotados
de uma personalidade proacutepria (Ibidem p 289)
Para este autor um estudo pertinente dos caracteres homeacutericos deve recorrer ao jogo
de correspondecircncias promovidos dentro das obras Dois pontos satildeo notadamente pontuados
dentro dessa perspectiva O primeiro corresponde agrave oposiccedilatildeo de caraacuteter pelo qual eacute possiacutevel
de forma antiteacutetica delinear o que pode ser atribuiacutedo preponderantemente a um e a outro
personagem O segundo agrave recorrecircncia de traccedilos reiterados por toda a obra os quais formam
uma coerente unidade de caracterizaccedilatildeo dos vaacuterios heroacuteis (Ibidem p 258)
Dentro do estilo homeacuterico como jaacute dissemos ora narrativo ora descritivo eacute vasto o
nuacutemero de recursos oratoacuterios e outros linguiacutesticos que reforccedilam esse jogo de
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correspondecircncias Segundo Maria Helena da Rocha Pereira (2012 p 72-73) entres eles a
analepse a apoacutestrofe a anaacutefora a metaacutefora o siacutemile o epiacuteteto e outras Conveacutem
evidenciarmos os uacuteltimos dois pois parecem-nos as mais aparentemente profiacutecuas
ferramentas pelas quais Homero salienta e reforccedila as marcas que delineiam o caraacuteter dos
personagens sobretudo segundo o pensamento supracitado de Robert Aubreton
O primeiro o siacutemile segundo Geoffrey Kirk eacute uma das gloacuterias da Iliacuteada deixando o
conteuacutedo mais perto do entendimento do ouvinte (apud Ibidem p 73) ou segundo Hermann
Fraumlnkel refreia de maneira significativa ldquoa accedilatildeo em curso para intercalar uma imagem de
conjunto da situaccedilatildeordquo (apud Ibidem p 74) Com efeito esse recurso marca mais
propriamente o contorno dos personagens uma vez que tendo geralmente como origem
fenocircmenos e elementos da natureza vaacuterias atividades humanas e dos animais sobretudo a do
pastor e dos animais de rapina acaba por atribuir traccedilos recorrentes e singulares aos heroacuteis
permitindo-nos perceber determinadas unidades na sua caracterizaccedilatildeo Esse recurso eacute tatildeo
eficiente na Iliacuteada que natildeo houve epopeia posterior que natildeo a imitasse afirma Rocha Pereira
(Ibidem p 76)
O segundo o epiacuteteto converge para o mesmo propoacutesito intensificando-se quando a
partir da divisatildeo de Milman Parry (apud Idem 1984 p 4) reconhecemos os nomeados
geneacutericos aplicaacuteveis a qualquer heroacutei e os distintivos aplicaacuteveis a poucos ou a somente um
Por mais que o epiacuteteto seja uma foacutermula de mecanismo mnemocircnico das culturas orais e por
isso revelando uma relaccedilatildeo intriacutenseca com o esquema meacutetrico da epopeia ora ocupando um
hemistiacutequio ora mais complexo compreendendo vaacuterios versos para Rocha Pereira estes
uacuteltimos os distintivos vatildeo aleacutem disso pois contribuem sob um vieacutes literaacuterio para a melhor
caracterizaccedilatildeo do personagem adequando-se assim ao contexto uma qualidade especiacutefica e
permitindo-se uma melhor compreensatildeo do momento no qual estatildeo inseridos (Ibidem p 5)
Vejamos agora como estes elementos contribuem para o estudo de caso desta seccedilatildeo a
caracterizaccedilatildeo do personagem Aacutejax dentro das obras homeacutericas
Natildeo fugindo agrave regra o heroacutei em questatildeo pertence agrave aristocracia eacute filho de Teacutelamon o
rei de Salamina e descendente de Zeus segundo a mitologia grega que constitui as narrativas
do ciclo da guerra de Troia (GRIMAL 2005 p 16) Com efeito seguindo os paracircmetros de
Robert Aubreton mencionados acima esse personagem tende a ser visto sob duas
perspectivas mais gerais que se estabelecem a partir da dinacircmica de correspondecircncias a
primeira definida a partir de uma relaccedilatildeo comparativa com Aquiles e com Odisseu conduzida
especialmente tanto pela Iliacuteada e quando pela Odisseia e a segunda igualmente importante
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para o nosso estudo a partir de suas reiteradas caracteriacutesticas proacuteprias marcadamente
reconhecidas nessas obras
Comecemos pela primeira visatildeo mais geral acerca da caracterizaccedilatildeo desse
personagem Essa apreciaccedilatildeo tende sempre a destacar traccedilos desse heroacutei a partir da
comparaccedilatildeo com outro heroacutei grego Aquiles especialmente porque esse procedimento ocorre
inclusive dentro da obra homeacuterica Se por um lado o Pelida eacute considerado o melhor dos
Aqueus por outro o Telamocircnio eacute tratado como o melhor depois de Aquiles Isso se realccedila no
Canto II da Iliacuteada sobretudo devido agrave retirada da batalha por este ainda no Canto I Quatro
menccedilotildees a essa denominaccedilatildeo satildeo vistas nas obras homeacutericas duas na Iliacuteada uma no Canto II
e outra no XVII e duas na Odisseia ambas no Canto XI aleacutem de pelo menos uma outra
aparecer ainda na considerada tradiccedilatildeo arcaica nas Odes Nemeias VII de Piacutendaro
Especialmente na primeira obra essas menccedilotildees parecem ser bem significativas enquanto
foacutermulas homeacutericas para o nosso estudo Por serem precisamente os epiacutetetos distintivos jaacute
elucidado anteriormente contextualizando o momento e contribuindo para o argumento do
Canto tornam-se essenciais para nossa exposiccedilatildeo
No Canto II trata-se do cataacutelogo das naus Esse momento tem como argumento a
enumeraccedilatildeo dos heroacuteis gregos que foram agrave guerra de Troia Eacute neste ponto em que se faz a
primeira referecircncia a primazia do heroacutei
Οὗτοι ἄρ ἡγεμόνες Δαναῶν καὶ κοίρανοι ἦσανmiddot 760 τίς τὰρ τῶν ὄχ ἄριστος ἔην σύ μοι ἔννεπε Μοῦσα αὐτῶν ἠδ ἵππων οἳ ἅμ ᾿Ατρεΐδῃσιν ἕποντο
[] ἀνδρῶν αὖ μέγ ἄριστος ἔην Τελαμώνιος Αἴας ὄφρ ᾿Αχιλεὺς μήνιενmiddot ὃ γὰρ πολὺ φέρτατος ἦεν ἵπποι θ οἳ φορέεσκον ἀμύμονα Πηλεΐωνα2 770
(Iliacuteada II v 760-763768-770)
Eacute importante ressaltar que todos inclusive os mortos e o momentaneamente ausente
Aquiles satildeo descritos contudo o narrador invoca a musa para lhe revelar quem seria o melhor
guerreiro dos Aqueus naquele momento eacute nomeadamente Aacutejax Essa eacute uma foacutermula
bastante repetida a qual apresenta a superioridade desse heroacutei relacionada agrave ausecircncia de
Aquiles quando do episoacutedio de sua desonra e consequente retirada Ocupando um verso e
meio em uma clara disposiccedilatildeo formular o epiacuteteto se concentra no sintagma formado por 2 Estes eram dos Dacircnaos os condutores e chefes (v 760) Tu musa dize-me qual era o melhor deles os quais
seguiram os Atridas como tambeacutem o de seus cavalos [] O melhor dos heroacuteis era o ingente Aacutejax Telamocircnio enquanto Aquiles se enfurecia pois este era o mais bravo e tambeacutem [eram] os cavalos que carregavam o excelente Pelida (v 770)
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superlativo melhor dos heroacuteis ἄριστος ἀνδρῶν que distingue sua superioridade dos demais
Tambeacutem eacute oacutebvio apontar que isso se assemelha ao epiacuteteto atribuiacutedo ao Pelida pois tem como
base o mesmo superlativo
O Canto XVII se refere ao episoacutedio da morte de Paacutetrocles A cena disposta abaixo
extremamente relevante para compreendermos a figura de Aacutejax encontra-se logo apoacutes a
morte daquele heroacutei Eacute o episoacutedio dos combates pelo seu cadaacutever
[] μάλα γάρ σφεας ὦκ ἐλέλιξεν Αἴας ὃς περὶ μὲν εἶδος περὶ δ ἔργα τέτυκτο τῶν ἄλλων Δαναῶν μετ ἀμύμονα Πηλεΐωνα3
(Iliacuteada XVII v 277-279)
Nesse ponto mais uma vez se atribui ao heroacutei a primazia guerreira devido agrave ausecircncia
de Aquiles Uma vez que este natildeo pode proteger o corpo do amigo dileto eacute o Telamocircnio que
o cumpre inclusive liderando os gregos para o retornar aos combates em defesa do cadaacutever
do grego morto A foacutermula dessa passagem de estrutura menos oacutebvia abrange dois versos
inteiros Concentra seu significado no verbo teyacutecho τεύχω que sobretudo na obra homeacuterica
tem o sentido de elevar-se Esse epiacuteteto apareceraacute outra vez na Odisseia como veremos mais
agrave frente tal qual disposto nesses versos
A Odisseia tambeacutem faz duas referecircncias a essa qualidade distinta do heroacutei As duas
estatildeo inseridas no Canto XI quando da descida de Odisseu ao Hades Os fragmentos abaixo
referem-se ao encontro de Odisseu com as sobras de Agamecircmnon de Aquiles e do proacuteprio
personagem estudado Como esse Canto compotildee a analepse do narrador autodiegeacutetico eacute
necessaacuterio entender que diferentemente da Iliacuteada aqui os epiacutetetos natildeo satildeo mencionados pelo
narrador externo mas pelo proacuteprio Odisseu fato que corrobora marcadamente o
reconhecimento pelos demais gregos do valor do heroacutei
ἦλθε δ ἐπὶ ψυχὴ Πηληϊάδεω ᾿Αχιλῆος καὶ Πατροκλῆος καὶ ἀμύμονος ᾿Αντιλόχοιο Αἴαντός θ ὃς ἄριστος ἔην εἶδός τε δέμας τε τῶν ἄλλων Δαναῶν μετ ἀμύμονα Πηλεΐωνα4 470
(Odisseia XI v 467-470)
3 Pois muito rapidamente os [gregos] fez voltar Aacutejax que em relaccedilatildeo tanto ao aspecto quanto aos trabalhos
eleva-se dos outros Dacircnaos depois do excelente Pelida 4 Chegou a seguir a alma do Pelida Aquiles e de Paacutetrocles e do excelente Antiacuteloco e tambeacutem a de Aacutejax que
era o melhor em relaccedilatildeo tanto ao aspecto quanto ao porte dos outros Dacircnaos depois do excelente Aquiles (v 470)
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Nesse fragmento a foacutermula ocupa dois versos inteiros em uma variaccedilatildeo jaacute apontada
no recorte anterior Novamente o epiacuteteto se fortalece com o superlativo melhor ἄριστος
reiterado significativamente para salientar a qualidade distintiva do heroacutei A foacutermula
atributiva deste de alguma maneira se contrapotildee expressivamente ao resultado da disputa
pelas armas de Aquiles Pois uma vez que Aacutejax natildeo recebe como precircmio as armas do Pelida
mesmo ressaltando-se ser ele o melhor entre os dacircnaos depois de Aquiles isso parece gerar
uma aparente contradiccedilatildeo e ateacute provocar ou exigir nos ouvintes ou leitores da obra a simpatia
do Telamocircnio intensificando-se o teor liacuterico e traacutegico da passagem uma vez que seu
profundo rancor eacute natildeo soacute justificaacutevel mas tambeacutem coerente sobretudo se considerando o
reconhecimento elevado do proacuteprio valor do heroacutei como veremos mais agrave frente
Vejamos mais uma passagem significativa ainda presente no Canto XI da Odisseia
τοίην γὰρ κεφαλὴν ἕνεκ αὐτῶν γαῖα κατέσχεν Αἴανθ ὃς περὶ μὲν εἶδος περὶ δ ἔργα τέτυκτο 550 τῶν ἄλλων Δαναῶν μετ ἀμύμονα Πηλεΐωνα5
(Odisseia XI v 549-551)
Nesses versos vemos o mesmo epiacuteteto presente no Canto XVII da Iliacuteada Mais uma
vez a primazia do heroacutei eacute referida pelo verbo τεύχω Esse eacute o momento em que Odisseu
encontra a alma de Aacutejax e este lhe recusa a reconciliaccedilatildeo Mais uma oposiccedilatildeo se faz o
epiacuteteto se contrapotildee agrave imagem do heroacutei Esta uacuteltima descrevendo o personagem coberto pela
terra referecircncia ao seu suiciacutedio morte indigna na perspectiva guerreira do heroacutei grego A
oposiccedilatildeo se constroacutei sobretudo pela distinccedilatildeo superior de sua aparecircncia e de seu aspecto
εἶδος referidos no epiacuteteto agrave imagem suja e maculada pela qual se apresenta Com efeito uma
sugestatildeo oacutebvia ao menos na perspectiva do heroacutei de sua honra manchada e conspurcada
Logo mais uma vez se adensa sua supremacia guerreira de sua figura miacutetica contrastando-se
a isso o potencial liacuterico e traacutegico da passagem
Na sua Ode Nemeia VII Piacutendaro poeta liacuterico inserido no fim o periacuteodo arcaico grego
retrata o heroacutei de acordo com essa mesma concepccedilatildeo configurada por epiacutetetos claramente
homeacutericos A narrativa miacutetica eacute inserida nesse epiniacutecio segundo um dos traccedilos do proacuteprio
poeta ou seja natildeo constituindo o proacuteprio cerne das odes mas visando dar sustentaccedilatildeo aos
elogios aos vencedores nelas celebrados frequentemente apoiando as maacuteximas exigentes de
um modelo moral e religioso adequado nas quais o poeta alicerccedila admoestaccedilotildees dirigidas aos
5 Pois por causa destas terra cobria sua cabeccedila Aacutejax que em relaccedilatildeo tanto ao aspecto quanto aos trabalhos
eleva-se (v 550) dos outros Dacircnaos depois do excelente Pelida
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interlocutores do eu-liacuterico (RAGUSA 2013 p 243) Com efeito a supremacia guerreira do
personagem para aleacutem da adequaccedilatildeo na ode de Piacutendaro serve-nos para reforccedilar essa
recorrente caracteriacutestica do heroacutei
[] τυφλὸν δ ἔχει ἦτορ ὅμιλος ἀνδρῶν ὁ πλεῖστος εἰ γὰρ ἦν 25 ἓ τὰν ἀλάθειαν ἰδέμεν οὔ κεν ὅπλων χολωθείς ὁ καρτερὸς Αἴας ἔπαξε διὰ φρενῶν λευρὸν ξίφοςmiddot ὃν κράτιστον ᾿Αχιλέος ἄτερ μάχᾳ ξανθῷ Μενέλᾳ δάμαρτα κομίσαι θοαῖς ἂν ναυσὶ πόρευσαν εὐθυπνόου Ζεφύροιο πομπαί 6 30
(Nemeias VII v 24-30)
Notadamente a concepccedilatildeo dessa primazia eacute retomada pelo sintagma o melhor no
combate com exceccedilatildeo de Aquiles κράτιστον ᾿Αχιλέος ἄτερ μάχᾳ Primeiramente podemos
ver que se reitera a sua supremacia relativa ao Pelida segundo os moldes homeacutericos Em
segundo lugar sobretudo a retomada da forma do superlativo κράτιστον que remonta a
Homero apesar de manifestar um termo distinto funciona tambeacutem como superlativo de
ἀγαθός da mesma forma que ἄριστος (RAGON 2012 p 59)
A partir de todos esses qualificativos expressos pelos superlativos ἄριστος κράτιστος
ou pelo verbo τεύχω eacute vaacutelido instituir agrave figura de Aacutejax a concepccedilatildeo de segundo heroacutei
supremo entre os Aqueus ou como eacute visto nas obras gregas o melhor ou o mais forte depois
de Aquiles uma vez que repetidamente a tradiccedilatildeo arcaica reforccedila esse perfil miacutetico do
personagem
Contudo haacute quem aponte uma proeminecircncia guerreira de Diomedes filho de Tideu
sobre aquele heroacutei apesar de todos os epiacutetetos supracitados como eacute o caso da anaacutelise de Van
der Valk Este conveacutem ser aqui disposto pois ajudaraacute grandemente a esclarecer a
compreensatildeo corrente de uma virtude defensiva do Telamocircnio como seraacute vista no decorrer da
seccedilatildeo
Segundo Van der Valk um estudo cuidadoso da Iliacuteada apresentaria como resultado a
supremacia guerreira de Diomedes filho de Tideu e natildeo do heroacutei de Salamina quando da
retirada de Aquiles O primeiro se torna o heroacutei mais relevante nos Cantos V VI e VII e o
segundo nos VII que trata do combate singular com Heitor e nos XIII XIV e XV quando da
retirada dos Aqueus diante do avanccedilo Troiano O autor esclarece seu pensamento 6 Tem cego o coraccedilatildeo a numerosa tropa dos homens Pois se lhe fosse (v 25) possiacutevel ver a verdade natildeo
teria encolerizado por causa das armas o firme Aacutejax cravado no coraccedilatildeo a afiada espada que sendo o mais forte no combate com exceccedilatildeo a Aquiles levariam com o loiro Menelau para trazer a esposa em ligeiras naus os impulsos do bom condutor Zeacutefiro (v 30)
22
evidenciando que o Tidida combate os deuses potildee em perigo a posiccedilatildeo de Troia rejeita o
conselho de Agamecircmnon em deixar Iacutelion e reagrupa os chefes gregos feridos (VAN DER
VALK 1952 p 269)
Acrescenta a isso sobretudo os jogos fuacutenebres do Canto XXIII dos quais participam
ambos os heroacuteis a contender entre si O combate armado entre os dois natildeo gera resultado
decisivo contudo Diomedes parece receber um precircmio distintivo o que para o autor revela o
favorecimento de Homero a este heroacutei em detrimento do Telamocircnio Isso lhe parece ilustrar a
proeminecircncia do primeiro Tal fato seria um eco da ideia de parcialidade dada aos heroacuteis de
origem jocircnica ou que a essa regiatildeo se relacione pois essa eacute a origem de Homero e assim os
personagens oriundos das tribos da Greacutecia Central majoritariamente seriam colocados em
posiccedilotildees menos importantes Contudo haacute ressalvas nessa tendecircncia observada entre estas
obviamente o caso do heroacutei estudado por noacutes apesar de ainda inferior a Diomedes (Ibidem p
270)
Essa tendecircncia por exemplo justificaria a lideranccedila de Aacutejax na retirada dos Aqueus
Vista como uma atitude ingloacuteria natildeo foi atribuiacuteda a um dos heroacuteis favorecidos na obra uma
vez que estavam feridos ou como no caso de Diomedes foi impelida por auguacuterios de Zeus
Comparando-se o Tidida e o Telamocircnio ao primeiro se relacionam accedilotildees em momentos nos
quais os gregos satildeo vitoriosos jaacute ao segundo accedilotildees de heroica defesa (Ibidem p 271-277)
para noacutes inseridas em momentos criacuteticos de avanccedilo dos troianos devido precisamente agrave
ausecircncia de Aquiles Evidentemente esse contexto das accedilotildees dos heroacuteis deve ser pesado na
comparaccedilatildeo de ambos contudo a visatildeo de Van der Valk nos serve para configurar uma
imagem muito comum associada a Aacutejax a sua predisposiccedilatildeo defensiva que seraacute salientada
ainda nessa seccedilatildeo
Prossigamos entatildeo ainda tratando dessa mesma perspectiva de caracterizaccedilatildeo do
heroacutei em questatildeo ou seja a compreensatildeo de seus atributos a partir da comparaccedilatildeo com outro
heroacutei mas agora em relaccedilatildeo a Odisseu nomeado Ulisses na tradiccedilatildeo latina
Nessa concepccedilatildeo contrapotildeem-se o Telamocircnio e Odisseu De tal oposiccedilatildeo temos o
primeiro associado agrave ideia de homem do qual se sobrelevam as accedilotildees e o segundo marcado
pela proeminecircncia dos discursos Um estudo sob tal perspectiva jaacute foi desenvolvido por
Werner Jaeger em sua obra Paideia a propor a seguinte atribuiccedilatildeo a tais heroacuteis Odisseu e
Aacutejax seriam respectivamente ldquomestre da palavra e [] o homem da accedilatildeordquo (2003 p 29-30)
corroborando o que dissemos
Para chegar a essa conclusatildeo que destaca uma niacutetida oposiccedilatildeo entre as caracteriacutesticas
desses personagens miacuteticos esse estudioso se utiliza especialmente do discurso de Fecircnix
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quando da embaixada a Aquiles no canto IX da Iliacuteada A passagem serve especialmente para
alicerccedilar a base dupla do conceito de areteacute ἀρετή a virtude grega Vejamos os versos
correspondentes ao discurso direto de Fecircnix
[]σοὶ δέ μ ἔπεμπε γέρων ἱππηλάτα Πηλεὺς ἤματι τῷ ὅτε σ ἐκ Φθίης ᾿Αγαμέμνονι πέμπε νήπιον οὔ πω εἰδόθ ὁμοιΐου πολέμοιο 540 οὐδ ἀγορέων ἵνα τ ἄνδρες ἀριπρεπέες τελέθουσι τοὔνεκά με προέηκε διδασκέμεναι τάδε πάντα μύθων τε ῥητῆρ ἔμεναι πρηκτῆρά τε ἔργων7
(Iliacuteada IX v 538-543)
A partir desses versos Jaeger pocircde afirmar que tais noccedilotildees accedilatildeo e palavra conjugadas
representavam o verdadeiro objetivo da educaccedilatildeo da nobreza grega primitiva e logo ambas
estariam entatildeo em um patamar de igualdade Assim ele pocircde concluir que ao lado da accedilatildeo
o domiacutenio da palavra legitimava a nobreza do espiacuterito (Ibidem p 29-30) Ainda em sua obra
esse autor tenta reforccedilar que essa seria a visatildeo dos gregos
Com efeito junto a Fecircnix na embaixada que objetivava demover Aquiles estavam
Odisseu e Aacutejax Para Jaeger isso eacute fundamental para a estrutura do Canto IX pois a proacutepria
presenccedila destes ilustrava um a accedilatildeo e o outro a palavra de modo que a delegaccedilatildeo enviada
reflete precisamente essa dupla virtude grega apresentada pelo tutor de Aquiles As palavras
de Fecircnix segundo esse estudioso contrapotildeem os dois conselheiros com o propoacutesito
especiacutefico de delinear a figura de Aquiles pois se um ldquopersonifica a accedilatildeordquo e o outro ldquoa
palavrardquo a ambos entatildeo opotildee-se o Pelida uma vez que ldquosoacute se unem ambas em Aquiles que
realiza em si a autecircntica harmonia do mais alto vigor de espiacuterito e accedilatildeordquo (Ibidem p 50)
Isso nos serve para observar os traccedilos peculiares do heroacutei em questatildeo partindo-se de
uma perspectiva comparativa na qual Odisseu eacute elemento imprescindiacutevel Contudo esse
episoacutedio ainda nos daacute outros indiacutecios dessa caracterizaccedilatildeo
Homero expotildee os discursos de Odisseu de Fecircnix e de Aacutejax nessa respectiva ordem
sem sucesso para comover Aquiles a retornar agrave guerra No entanto pode-se observar de
forma clara um elemento significativamente diferente entre os discursos de Aacutejax e de
Odisseu a extensatildeo Para o primeiro Homero dedicou oitenta dois (82) versos (v 225-306)
para o segundo dezenove (19) versos (v 642-642) Isso nos mostra que na versatildeo homeacuterica
7 O velho Peleu condutor de cavalos enviou-me a ti no dia em que enviava para Agamecircmnon jovem ainda
natildeo conhecedor igualmente da guerra (v 540) e das assembleias uma vez que nisto os homens satildeo notaacuteveis Por essa razatildeo enviou-me antecipadamente para instruir tudo isso a ser tanto orador de discursos quanto executor de accedilotildees
24
o discurso de Odisseu eacute ao menos quatro vezes maior do que o de Aacutejax caracterizando aquele
como no miacutenimo mais prolixo e este mais direto
Com efeito essa diferenccedila evidenciada por Jaeger parece salutar na tradiccedilatildeo arcaica
seja oriunda do mito ou das obras homeacutericas Piacutendaro por exemplo na Ode Nemeia VIII
apresenta textualmente esse heroacutei caracterizado como fraco orador por um lado mas bravo
por outro Compondo as narrativas miacuteticas que formam a base do argumento do poeta Aacutejax eacute
chamado de sem-liacutengua aglosso (ἄγλωσσον v 24) cujo desdobramento figurado de sentido
expressa precisamente a falta de eloquecircncia Mas ao mesmo tempo seu coraccedilatildeo eacute bravo
(ἦτορ δ ἄλκιμον v 24) Esse adjetivo aacutelkimos expressa segundo Eacutemile Benveniste a
coragem de ldquoenfrentar o perigo sem nunca recuar natildeo ceder aos assaltos manter-se com
firmeza nos combatesrdquo (1995 v 2 p 73) Esse atributo eacute referido na Iliacuteada a vaacuterios
personagens inclusive a este heroacutei contudo nessa passagem da ode faz-se evidente a
contraposiccedilatildeo de virtude e fraqueza ou seja a enaltecida bravura do heroacutei proacutepria da
associaccedilatildeo agrave accedilatildeo e sobretudo a eloquecircncia diminuiacuteda conforme o modelo comparativo dele
e de Odisseu apregoado por Jaeger anteriormente
A partir desse entendimento do Canto IX da Iliacuteada reforccedilado pela ode pindaacuterica eacute
coerente instituir agrave caracterizaccedilatildeo do Telamocircnio a imagem de um heroacutei que se sobressai pelas
accedilotildees nitidamente guerreiras mas a quem escasseia a eloquecircncia excedente em Odisseu
A segunda perspectiva de certa tradiccedilatildeo criacutetica e aparentemente reiterada nos estudos
da obra homeacuterica compreende o personagem como caracterizado pela robusta compleiccedilatildeo
fiacutesica e pelo fraco intelecto segundo dispotildeem e rebatem os estudos de Richard Trapp (1961
p 271) Corroborando essa premissa Rocha Pereira o descreve da seguinte maneira
guerreiro forte e persistente mas que soacute vale pela forccedila fiacutesica o proacuteprio escudo que traz lsquoalto como uma torrersquo o singulariza como um homem de armas primitivo eacute o lsquobaluarte do Aqueusrsquo que caminha para a luta com um sorriso no seu rosto aterrorizadorrdquo (2012 p 76)
Essa interpretaccedilatildeo corrente se faz porque na tradiccedilatildeo homeacuterica esse heroacutei eacute
caracterizado sobretudo pela sua virtude guerreira que abrange desde seu porte fiacutesico pois eacute
representado como enorme e gigantesco ateacute a sua habilidade beacutelica Natildeo por menos ele eacute
referido na obra como o melhor dos aqueus depois de Aquiles No entanto dois aspectos
dessa virtude guerreira do heroacutei parecem patentes a rudeza intelectual e a qualidade
defensiva depreendidas dos episoacutedios homeacutericos que evidenciam sua preponderacircncia fiacutesica
O primeiro aspecto jaacute exposto acima parece evidente segundo Rocha Pereira e
muitos estudiosos (apud TRAPP 1961 p 271) O segundo jaacute foi pontuado por Agatha
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Bacelar (2004) e tambeacutem por Trapp ainda que com algumas reservas (1961 p 273) Na
Iliacuteada o personagem se torna mais proeminente no primeiro aspecto devido tanto agrave
constituiccedilatildeo especiacutefica de seu escudo que sugere um valor mais primitivo de origem
marcadamente arcaica e micecircnica (PEREIRA 2012 p 76 VAN DER VALK 1951 p 273)
quanto agraves interpretaccedilotildees de alguns siacutemiles que caracterizam o personagem (TRAPP 1961 p
272) e mais marcante quanto ao segundo a princiacutepio porque a retirada de Aquiles da guerra
acarreta o seu grande mas natildeo uacutenico papel de defensor dos gregos contendo os troianos e
sobretudo Heitor quando do combate singular no Canto VII da Iliacuteada e quando da batalha
junto agraves naus nos Cantos XIII XIV e XV
Novamente as foacutermulas eacutepicas homeacutericas parecem convergir especialmente para esse
atributo defensivo e protetor por meio de epiacutetetos e traccedilos caracteriacutesticos que Aacutejax possui
para conter os ataques dos inimigos Nos Cantos e mais propriamente nas passagens em que
estatildeo inseridos conforme os ditames de Rocha Pereira (1984 p 5) os seus epiacutetetos
apresentam uma adequaccedilatildeo ao contexto e uma melhor caracterizaccedilatildeo do heroacutei indo aleacutem da
relaccedilatildeo com o esquema meacutetrico e com decorrente hemistiacutequio
O primeiro epiacuteteto significativo que coaduna essa qualidade eacute muralha dos aqueus
ἕρκος Ἀχαιῶν referido por exemplo quando Helena ao longe dispotildee os heroacuteis gregos para
Priacuteamo (Iliacuteada III v 229) ou sobretudo quando do combate singular com Heitor (Iliacuteada
VII v 211) A palavra ἕρκος pode apresentar sentidos concretos como barreira muralha e
abstratos como defesa mas que se inserem dentro de um mesmo campo semacircntico Na
relaccedilatildeo com esse heroacutei tal epiacuteteto parece salientar a sua virtude defensiva uma vez que
momentaneamente para os gregos ele eacute a proteccedilatildeo contra o Heitor que causa inuacutemeras mortes
ao aqueus
Essa caracteriacutestica se faz perceber no texto homeacuterico tambeacutem pelas suas armas das
quais se sobressai o seu escudo que se relaciona mais uma vez ao proacuteprio epiacuteteto supracitado
Seu escudo assemelha-se a uma torre σάκος ἠύτε πύργον (Iliacuteada VII v 219 XI v 485
XVII v 128) A comparaccedilatildeo natildeo se daacute apenas para apresentar a arma de Aacutejax com um
formato diferente ela reforccedila a sua potecircncia defensiva e pela sua singularidade o seu
possiacutevel valor primitivo A tradiccedilatildeo homeacuterica potildee uma caracteriacutestica essencial ao escudo do
heroacutei pois haacute nele bronze e sete camadas χάλχεον ἑπταβόειον (Iliacuteada VII v 220) e essas
camadas satildeo de couro taurino ἑπταβόειον ταύρων (Iliacuteada VII v 222-223) Essa
singularidade do escudo parece acentuar os dois aspectos comuns atribuiacutedos agrave virtude
guerreira de Aacutejax tanto o seu valor primitivo configurando o personagem como brusco e daiacute
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inculto quanto sua excelecircncia defensiva e protetora ambos salientados pela constituiccedilatildeo
robusta e uacutenica de seu escudo
Essa compreensatildeo eacute validade ao considerarmos o que diz Jean-Pierre Vernant quando
aponta o papel executado pelas armas na figura do heroacutei em combate o personagem se faz
distinto pelas armas uma vez que ldquoo esplendor que dimana do corpo do heroacutei natildeo resulta
tanto do cativante fasciacutenio da sua juventude vem antes do fulgor do bronze de que se reveste
do seu capaceterdquo (apud MOSSEacute 1989 p 48) Assim torna-se oacutebvio que toda a descriccedilatildeo
singular do escudo de Aacutejax reaccedila seu valor guerreiro ademais sua opulecircncia fiacutesica e sua
qualidade defensiva na contenccedilatildeo dos troianos
O epiacuteteto de muralha dos aqueus tambeacutem frequentemente vem acompanhado de um
outro qualificador que lhe acentua o valor primitivo e defensivo Πελώριος ou seja ingente
monstruoso em tamanho (Iliacuteada III v 229 VII v 211) corroborando assim um segundo
epiacuteteto significativo para isso Essa qualidade do heroacutei que geralmente acompanha o epiacuteteto
de muralha transfere-lhe tambeacutem essa propriedade construindo a imagem de uma magna
muralha E tanto quanto o heroacutei eacute imenso robusto eacute seu escudo coaduna-se assim a partir do
exposto o caraacuteter defensivo daiacute protetor e o primitivo daiacute brusco
Um episoacutedio significativo que opotildee forccedila bruta e inteligecircncia estaacute inserido no Canto
XXIII da Iliacuteada a disputa entre o personagem em questatildeo e Odisseu Inserida nos jogos
fuacutenebres em honra a Paacutetrocles a contenda eacute realizada em uma luta sem armas e eacute sobretudo
relevante natildeo apenas por contrastar duas noccedilotildees opostas mas por evidenciaacute-las a partir de
seus maiores representantes Exatamente por isso o Telamocircnio eacute caracterizado por enorme
meacutegas (μέγας v 708 722) e o Laertida seu adversaacuterio por muito inteligente polyacutemetis
(πολύμητις v709) e por muito artificioso polymeacutechanos (πολυμήχανος v 723) A contenda
termina em empate pela preocupaccedilatildeo de Aquiles de que ambos possam acabar machucados
prejudicando a expediccedilatildeo grega Contudo Odisseu parece ter se sobreposto
momentaneamente ao seu adversaacuterio como aponta Hopkinson (2000 p 12) pois mesmo em
se tratando de uma disputa fiacutesica somente Odisseu foi capaz de derrubar o seu oponente E
isso foi alcanccedilado atraveacutes de uma astuacutecia doacutelos (δόλου v 725) de um golpe atraacutes do joelho
que fez o adversaacuterio ingente se dobrar e cair Esse fato parece por um lado realccedilar a
soberania da inteligecircncia sobre a forccedila e por outro antecipar ateacute a vitoacuteria de Odisseu sobre seu
adversaacuterio na disputa pelas armas de Aquiles Entatildeo ao relacionarem o Telamocircnio agrave pura
forccedila fiacutesica e considerando-se outros elementos jaacute mencionados muitos criacuteticos acabam
atribuindo a este a imagem de brusco ou de primitivo
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Em relaccedilatildeo a essa ideia Trapp discorda veementemente pelo menos quanto agrave
interpretaccedilatildeo dos siacutemiles evidenciados por alguns estudiosos como determinantes da rudeza
intelectual do heroacutei Esse autor em seu estudo elenca quatro criacuteticos literaacuterios que seguem esse
pensamento C M Bowra que afirmou Aacutejax ser nada mais que um homem de accedilatildeo com
inteligecircncia abaixo do padratildeo heroico Gilbert Highet que declarou Homero ter atribuiacutedo a
este personagem a comicidade Sidney Hook que acredita existir um espaccedilo reservado no
circo para esse heroacutei e M W Mansur que o caracterizou como fraco acima dos ombros
(1961 p 271)
Os dois siacutemiles mais ressaltados por esses estudiosos para tal conjuntura se encontra
no Canto XI versos 540-574 da Iliacuteada quando do recuo do heroacutei frente aos troianos
promovido por accedilatildeo de Zeus Esse chefe grego de Salamina quando atacado pelos troianos
nesse episoacutedio eacute comparado a um leatildeo afugentado por fazendeiros e catildees e a um asno
teimoso acossado por crianccedilas que dano algum conseguem infligir Desses siacutemiles natildeo
atentando ao contexto ao menos dois dos quatro autores depreendem a mesma interpretaccedilatildeo
acerca da caracterizaccedilatildeo do personagem em questatildeo bravo como um leatildeo e estuacutepido como
um asno Preferimos concordar com a anaacutelise de Trapp sobretudo quanto ao segundo siacutemile
A imagem do asno destaca um traccedilo peculiar do heroacutei a resistecircncia na batalha inclusive
porque os troianos natildeo conseguem feri-lo de forma efetiva mesmo quando ele estaacute soacute agrave frente
dos gregos (Ibidem p 272) Permitimo-nos desdobrar esse sentido Parece-nos que essa
caracterizaccedilatildeo tambeacutem serve para contribuir para a qualidade defensiva exposta por noacutes
anteriormente pois para uma efetiva contenccedilatildeo dos troianos Homero conferiu ao heroacutei a
resistecircncia e a coragem singulares de manter-se firme em combate O proacuteprio papel do escudo
dentro desse episoacutedio reitera esse entendimento o qual mencionado duas vezes no fragmento
(v 565 572) impede as lanccedilas troianas de encontrarem seu objetivo e resguardam seu corpo
ileso Diferentemente de vaacuterios importantes heroacuteis Aacutejax natildeo chega a ser ferido por nenhum
troiano
Ademais esse traccedilo defensivo se adensa a partir de uma perspectiva coletiva
observado em seu discurso proferido a Aquiles no Canto IX da Iliacuteada No episoacutedio em
questatildeo o Telamocircnio tenta convencer o Pelida comovendo-o por argumentos baseados na
philoacutetes φιλότης na amizade grega tanto aos outros gregos φιλότητος ἑταίρων (v 630)
quanto em relaccedilatildeo aos membros da embaixada marcadamente mais estimados φίλτατοι (v
642) Isso fica claro segundo Benveniste que define esse sentimento como as relaccedilotildees
interpessoais de parentes aliados amigos e todos os que estatildeo imbuiacutedos de maneira
indissociaacutevel de disposiccedilotildees reciacuteprocas vinculados ao respeito ou ao pudor ou agrave reverecircncia
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aiacutedos αἰδώς e ou ateacute ao afeto que se tornam singulares dentro de um grupo especiacutefico como
na famiacutelia ou no exeacutercito ou em uma comunidade maior quer na relaccedilatildeo entre pares ou entre
superiores e inferiores inspirando sentimentos de misericoacuterdia piedade lealdade decoro
coletivo etc (1995 v 1 p 46) Esse sentimento do heroacutei expresso nesse episoacutedio parece-nos
genuiacuteno sobretudo ao considerarmos seus esforccedilos em defesa das naus gregas quando do
cadaacutever de Patroacutecles assim sob o ponto de vista dos que lhe satildeo iguais e tambeacutem inferiores
Marcadamente podemos coadunar a isso sob as devidas circunstacircncias uma qualidade
defensiva
Com efeito eacute possiacutevel conferir agrave caracterizaccedilatildeo de Aacutejax a imagem de um heroacutei
defensivo considerando outras circunstacircncias presentes na Iliacuteada Os relevantes episoacutedios
como o combate singular com Heitor (Canto VII) a defesa das naus gregas (Cantos XII-XV)
a proteccedilatildeo ao corpo de Paacutetrocles (Canto XVII) parecem evidenciar accedilotildees defensivas
sobretudo se considerarmos seu estatuto de melhor depois de Aquiles o que acarreta um
papel proeminente na contenccedilatildeo dos avanccedilos troianos quando da ausecircncia do Pelida No
entanto entenda-se que essa percepccedilatildeo natildeo deve reduzir o personagem a um papel
exclusivamente protetor mas que a partir do desenlace dos episoacutedios isso corrobore para
uma visiacutevel predisposiccedilatildeo de virtude defensiva proeminente para um heroacutei que mais se faz
valer quando do avanccedilo ininterrupto dos troianos
Contudo quando tratamos o personagem dentro da perspectiva do episoacutedio da disputa
pelas armas de Aquiles aleacutem do que foi mencionado podemos evidenciar um traccedilo essencial
na sua caracterizaccedilatildeo a ira Esse elemento eacute recorrente na tradiccedilatildeo de mito do Telamocircnio
pois apesar de referido brevemente na Odisseia eacute retomado por Piacutendaro e sobretudo por
Soacutefocles e Oviacutedio cerne do estudo de caso a que nos propomos Tal marcada caracteriacutestica
inserida no contexto do episoacutedio em questatildeo exerce nele um papel crucial pois impulsiona
todas as accedilotildees do heroacutei como veremos nas seccedilotildees seguintes
A ira de Aacutejax se estrutura coerentemente dentro do contexto agoniacutestico das obras
homeacutericas uma vez que emula de forma niacutetida e sob circunstacircncias semelhantes a proacutepria
fuacuteria de Aquiles argumento maior da Iliacuteada No caso do Pelida a honra lhe eacute conspurcada a
partir da tomada de Briseida por Agamecircmnon o que representava a sua desvalorizaccedilatildeo como
heroacutei devido agrave privaccedilatildeo de sua honraria No caso do heroacutei de Salamina o texto homeacuterico
parece sugerir uma situaccedilatildeo semelhante mesmo natildeo apresentando o leacutexico preciso com a
exceccedilatildeo de que a honraria eacute representada pelas armas de Aquiles e que natildeo lhe foi tomada
mas lhe foi negada o que na perspectiva do heroacutei deprecia seu valor guerreiro
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Contudo essa interpretaccedilatildeo parece vaacutelida uma vez que essa seraacute a perspectiva de
alguns autores poacutes-homeacutericos Ao associar-se a situaccedilatildeo do heroacutei agrave de Aquiles temos que
entender como a ira se manifesta a partir de uma honra tida como conspurcada Esta uacuteltima se
alicerccedila em conjunto de outros fatores8 mas no caso em questatildeo sobretudo na reconhecida e
patente virtude guerreira do heroacutei constituiacuteda de todos os atributos estudados e mencionados
anteriormente
Observemos entatildeo o seguinte a concepccedilatildeo de honra para os gregos do periacuteodo
arcaico ainda eacute estruturada sobre duas noccedilotildees a honraria geacuteras (γέρας) e a honra timeacute
(τιμή) Acerca disso nos esclarece Benveniste a primeira mais restrita agrave epopeia representa
uma vantagem material atribuiacuteda pelos homens tanto como privileacutegio de uma condiccedilatildeo
social quanto como recompensa de um grande feito a segunda utilizada abundantemente em
vaacuterias eacutepocas distintas representa a dignidade de uma determinada condiccedilatildeo social de origem
divina e conferida ao acaso constitutiva de seu quinhatildeo pessoal concedido pelo destino (1995
v 2 p 43-52) Tudo isso nos permite depreender o seguinte entendimento inserido no
contexto da Iliacuteada o ato de reconhecer o valor de um heroacutei seja por meio de honrarias e
recompensas ou dos proacuteprios respeito e reverecircncia eacute legitimar a sua honra e as virtudes
constitutivas dela Assim ferir a honra de um heroacutei significa desprezar o seu valor e
sobretudo na obra homeacuterica isso significa negar-lhe a sua condiccedilatildeo inata conferida pelos
deuses Aristoacuteteles nos abona tal ideia ldquoa desonra eacute algo de desmedido e o desonrante
desestima pois o que tem nenhum valor possui nenhuma honrardquo (ὕβρεως δὲ ἀτιμία ὁ δ
ἀτιμάζων ὀλιγωρεῖmiddot τὸ γὰρ μηδενὸς ἄξιον οὐδεμίαν ἔχει τιμήν Retoacuterica 1378b 29-30)
Como seraacute melhor explicado adiante ao nosso ver o episoacutedio da disputa pelas armas
de Aquiles parece se estruturar em dois elementos-base virtude e ira em que aquela sustenta
a honra Estes se articulam de forma a natildeo deixar possiacutevel a apreciaccedilatildeo de um sem a
compreensatildeo do outro e por decorrecircncia a apreensatildeo de sua unidade textual Contudo a
disposiccedilatildeo dos componentes virtude e ira parece ainda se desdobrar a partir dos mesmos em
outras duas noccedilotildees complementares de dor e de sofrimento que constroem com aquelas a
organicidade semacircntica do texto
Trataremos agora da ira uma vez que juntamente com o elemento virtude estaacute
presente na caracterizaccedilatildeo do personagem estudado na tradiccedilatildeo do mito que trata do episoacutedio 8 Segundo Vernant a honra a timeacute grega τιμή ldquodesigna o valor que eacute reconhecido a um indiviacuteduo ou seja ao
mesmo tempo as marcas sociais de sua identidade seu nome sua filiaccedilatildeo sua origem seu estatuto no grupo com as honras que lhe satildeo ligadas os privileacutegios e a consideraccedilatildeo que tem direito de exigir a sua excelecircncia pessoal o conjunto das qualidades e dos meacuteritos ndash beleza vigor coragem nobreza do comportamento domiacutenio sobre si ndash que em seu rosto em suas vestimentas em seu comportamento manifestam aos olhos de todos seu pertenciamento agrave elite dos kaloigrave kagathoiacute os belos-e-bons dos aacuteristoi os excelentesrdquo (2009 p 184)
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da disputa pelas armas de Aquiles Sobre a virtude tudo o que foi mencionado anteriormente
jaacute se mostra suficiente para a nossa elucidaccedilatildeo
Prossigamos com a ira Esse sentimento eacute evidente tanto no leacutexico expresso nos textos
e em seus correlatos semacircnticos quanto no comportamento do personagem disposto nos
proacuteprios temas desenvolvidos quando da caracterizaccedilatildeo de Aacutejax nas obras apontadas por noacutes
como referecircncia da tradiccedilatildeo Piacutendaro e sobretudo Homero
Com efeito Homero jaacute o representava tomado de ira Ainda no Canto XI da Odisseia
quando da narrativa de Odisseu que descreve o seu encontro com Aacutejax no Hades podemos
observar esse sentimento representado explicitamente pelo verbo χολόω Esse verbo que
significa excitar a bile encolerizar por duas vezes eacute usado para se referir a Aacutejax por meio de
seu particiacutepio perfeito na voz meacutedia ao nosso ver e natildeo passiva Faz-se necessaacuterio ressaltar
que a voz meacutedia traz uma nova carga semacircntica ao verbo e por consequecircncia em sua forma
nominal revelando que aquele que pratica a accedilatildeo pratica-a para si mesmo em seu interesse
ou a accedilatildeo se exerce na esfera do sujeito que estaacute envolvido subjetivamente nela (RAGON
2011 p 206) A relaccedilatildeo desse verbo com χολή bile e por extensatildeo coacutelera ira ressalta o
aspecto fiacutesico do ato de irar-se e a voz meacutedia enfatiza que o heroacutei se encoleriza para si
mesmo ou a partir de si desenvolvendo-se em seu interesse uma vez que o faz a partir de um
julgamento sobre seu valor um pensamento que lhe eacute proacuteprio Vejamos a primeira passagem
οἴη δ Αἴαντος ψυχὴ Τελαμωνιάδαο νόσφιν ἀφεστήκει κεχολωμένη εἵνεκα νίκης τήν μιν ἐγὼ νίκησα δικαζόμενος παρὰ νηυσὶ 545 τεύχεσιν ἀμφ ᾿Αχιλῆοςmiddot ἔθηκε δὲ πότνια μήτηρ παῖδες δὲ Τρώων δίκασαν καὶ Παλλὰς ᾿Αθήνη9
(Odisseia XI v 543-547)
O primeiro particiacutepio aparece no verso 544 referindo-se a alma de Aacutejax κεχολωμένη
εἵνεκα νίκης encolerizada por causa da vitoacuteria Isso nos revela tambeacutem o motivo pelo qual a
coacutelera se desenvolve a vitoacuteria de Odisseu sobre o Telamocircnio injusta na perspectiva do
uacuteltimo justificando a voz meacutedia devido agrave participaccedilatildeo do derrotado na accedilatildeo de se enfurecer
Assim tal entendimento nos impede de retirar da accedilatildeo o seu envolvimento pessoal e o seu
possiacutevel julgamento acerca de tal resultado em oposiccedilatildeo ao dos juiacutezes referidos por Odisseu
entre os quais figura a deusa Atena Isso significa dizer que Aacutejax se encoleriza uma vez que
9 Somente a alma de Aacutejax Telamocircnio ficara ao longe afastada encolerizada por causa da vitoacuteria que eu
conquistei sendo julgado junto aos navios (v 545) por causa das armas de Aquiles a matildee veneranda dispocircs julgaram os filhos dos Troas e Palas Atena
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reconhece atribuir a si a supremacia guerreira expressa textualmente no seu recorrente epiacuteteto
de melhor do Aqueus depois de Aquiles Seu julgamento seria considerar a honraria as armas
do Pelida como constituinte de sua honra Isso fica mais evidente quando agregamos isso aos
versos de Piacutendaro que descrevem as armas de Aquiles como a maior honraria (μέγιστον
γέρας Nemeias VIII v 25) uma vez que provecircm do melhor guerreiro Certamente haacute uma
coerecircncia no pensamento de Aacutejax em se ver desonrado pois o superlativo que define a
grandeza das armas se adequa aos superlativos ἄριστος e κράτιστος que retratam a excelecircncia
do heroacutei Evidentemente que o ultraje lhe eacute percebido ao natildeo se reconhecer seu valor
condizente agrave honraria e dessa forma depreciando-o o que justifica seu estado coleacuterico
Vejamos a segunda menccedilatildeo a esse estado
lsquoΑἶαν παῖ Τελαμῶνος ἀμύμονος οὐκ ἄρ ἔμελλες οὐδὲ θανὼν λήσεσθαι ἐμοὶ χόλου εἵνεκα τευχέων οὐλομένων τὰ δὲ πῆμα θεοὶ θέσαν ᾿Αργείοισιmiddot 555 τοῖος γάρ σφιν πύργος ἀπώλεοmiddot σεῖο δ ᾿Αχαιοὶ ἶσον ᾿Αχιλλῆος κεφαλῇ Πηληϊάδαο ἀχνύμεθα φθιμένοιο διαμπερέςmiddot οὐδέ τις ἄλλος αἴτιος ἀλλὰ Ζεὺς Δαναῶν στρατὸν αἰχμητάων ἐκπάγλως ἤχθηρε τεῒν δ ἐπὶ μοῖραν ἔθηκεν 560 ἀλλ ἄγε δεῦρο ἄναξ ἵν ἔπος καὶ μῦθον ἀκούσῃς ἡμέτερονmiddot δάμασον δὲ μένος καὶ ἀγήνορα θυμόνrsquo ὣς ἐφάμην ὁ δέ μ οὐδὲν ἀμείβετο βῆ δὲ μετ ἄλλας ψυχὰς εἰς ῎Ερεβος νεκύων κατατεθνηώτων ἔνθα χ ὅμως προσέφη κεχολωμένος ἤ κεν ἐγὼ τόνmiddot 565 ἀλλά μοι ἤθελε θυμὸς ἐνὶ στήθεσσι φίλοισι τῶν ἄλλων ψυχὰς ἰδέειν κατατεθνηώτων10
(Odisseia XI v 553-567)
O segundo particiacutepio aparece no verso 565 referindo-se a Aacutejax κεχολωμένος
evidenciando seu estado quando se dirige ao Eacuterebo depois da investida de Odisseu negando
a este a reconciliaccedilatildeo Essa ira que se apresenta como um rancor profundo eacute um traccedilo tatildeo
marcante na caracterizaccedilatildeo de Aacutejax que ateacute Odisseu nos versos 554 e 555 ressalta-o como
capaz de permanecer no heroacutei mesmo apoacutes a sua proacutepria morte Para isso evidencia-se o
estado do heroacutei reiterando junto ao particiacutepio encolerizado o termo ira (χόλου v 554) Mais
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ldquoAacutejax filho do excelente Teacutelamon natildeo estavas disposto nem tendo morrido a haver de esquecer-te do rancor por mim por causa das armas funestas os deuses impuseram as desgraccedilas aos Argivos (v 555) pois tu torre para estes pereceste Os Acaios por ti tal qual por Aquiles Pelida tendo morrido afligiram-se completamente Nenhum outro eacute responsaacutevel senatildeo Zeus que detestou o exeacutercito dos Dacircnaos lanceiros terrivelmente e impocircs sobre ti [tal] destino (v 560) Mas avanccedila ateacute aqui chefe a fim de que palavra e nossa histoacuteria escutes doma o espiacuterito e a o iacutempeto muito virilrdquo Assim falava e a mim nada respondeu caminhou entre as outras almas em direccedilatildeo ao Eacuterebo de corpos mortos E ali mesmo que encolerizado dirigiria a palavra ou eu a ele (v 565) Mas para mim o coraccedilatildeo no peito querido desejou ver as almas de outros mortos
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uma vez podemos reforccedilar tal caracteriacutestica ao compararmos esses fragmentos ao verso 25 da
Ode Nemeia de Piacutendaro que tambeacutem delineia o estado coleacuterico com um particiacutepio do mesmo
verbo χολόω contudo no aspecto aoristo encolerizado por causa das armas (ὅπλων
χολωθείς) (Cf p 20) Agrega-se a isso o apelo de Odisseu ao heroacutei de Salamina no verso
562 que reitera essa noccedilatildeo e amplifica as caracteriacutesticas da iacutendole de Aacutejax delineando-o
possivelmente ateacute como orgulhoso de sua supremacia guerreira uma vez que na expressatildeo
traduzida de forma mais etimoloacutegica iacutempeto muito viril ageacutenora thymoacuten (ἀγήνορα θυμόν) o
adjetivo pode se relacionar tambeacutem por extensatildeo de sentido agraves noccedilotildees de orgulho altivez e
arrogacircncia Essa presunccedilatildeo de uma virtude reconhecidamente superior na perspectiva do
personagem acarreta exatamente o sentimento de ira que decorre da percepccedilatildeo da aparente
injusticcedila no julgamento das armas de Aquiles
Natildeo eacute descabido observar esse orgulho sugerido pois alguns episoacutedios parecem
reiterar tal possibilidade de iacutendole ao Telamocircnio Trapp (1961 p 4) aponta como uma das
suas proeminentes caracteriacutesticas a confianccedila em si mesmo observada tanto em sua
declaraccedilatildeo de coragem e de esperada vitoacuteria sobre Heitor (Iliacuteada VII v 191-199) quanto em
seu sorriso diante do adversaacuterio expresso durante o combate singular com Heitor (Ibidem
VII v 211-213) A isso acrescenta-se o fato que de sua virtude guerreira o permitiu muitas
vezes combater sozinho sobretudo na defesa dos gregos o que corrobora a ideia
disseminada por muitos escoliastas de que Aacutejax fosse inclusive pouco ajudado pelos deuses
se o compararmos a Diomedes por exemplo um dos grandes heroacuteis cuja excelecircncia eacute
tambeacutem desenvolvida na Iliacuteada (VAN DER VALK 1952 p 271)
O aspecto traacutegico do episoacutedio homeacuterico se faz valer especialmente a partir da funccedilatildeo
complementar ocupada pelos sentimentos de dor e de sofrimento que depreendemos sentir o
heroacutei A ligaccedilatildeo entre ira e dor natildeo eacute incomum ao menos se tomamos como referecircncia o caso
de Aquiles em sua querela com Agamecircmnon no Canto I da Iliacuteada e a compreensatildeo de
Aristoacuteteles quanto agraves emoccedilotildees na Retoacuterica Vejamos nos versos abaixo a descriccedilatildeo dos
sentimentos de Aquiles fundamental para nosso estudo uma vez que a situaccedilatildeo desse heroacutei
perante a decisatildeo de Agamecircmnon eacute modelo como jaacute percebemos para o caso de Telamocircnio
Ὥς φάτο Πηλεΐωνι δ᾽ ἄχος γένετ᾽ ἐν δέ οἱ ἦτορ στήθεσσιν λασίοισι διάνδιχα μερμήριξεν ἢ ὅ γε φάσγανον ὀξὺ ἐρυσσάμενος παρὰ μηροῦ 190 τοὺς μὲν ἀναστήσειεν ὃ δ᾽ Ἀτρεΐδην ἐναρίζοι ἦε χόλον παύσειεν ἐρητύσειέ τε θυμόν ἧος ὃ ταῦθ᾽ ὥρμαινε κατὰ φρένα καὶ κατὰ θυμόν
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ἕλκετο δ᾽ ἐκ κολεοῖο μέγα ξίφος ἦλθε δ᾽ Ἀθήνη [] 11 (Iliacuteada I v 188-194)
A primeira coisa a se observar eacute a participaccedilatildeo do sentimento de dor ἄχος (v 188)
como emoccedilatildeo inicial e desencadeadora das accedilotildees que a sucedem Eacute por meio da dor que
Aquiles internamente se agita Esse conflito interno o faz cogitar executar duas accedilotildees
distintas a primeira eacute a de levantar as armas e matar Agamecircmnon a segunda eacute a de cessar a
ira e dominar o seu iacutempeto A princiacutepio essas accedilotildees estatildeo no acircmbito da possibilidade
primeiro por estarem sintaacutetica e semanticamente ligadas ao verbo μερμηρίζω ponderar
segundo pelo proacuteprio modo expresso o optativo Vecirc-se a relaccedilatildeo direta na passagem entre
ἄχος e χόλος pois a dor nasceu e por consequecircncia agora o heroacutei pensa em suster a ira
Assim a dor se natildeo for tomada junta agrave ira como componente de um mesmo conjunto implica
esse proacuteprio sentimento de coacutelera O texto parece estruturar esse sentido coadunando esses
dois elementos
Um outro ponto conveacutem ser aprofundado Se antes tiacutenhamos o ato de erguer as armas
e matar Atrida como um fato possiacutevel ponderado por Aquiles nos versos seguintes vemos
sua realizaccedilatildeo parcial a partir do modo indicativo do verbo ἕλκω Pois eacute durante o ato de sacar
ainda inacabado que Atena chega ateacute Aquiles para impedi-lo de executar aquilo sobre o qual
ele havia refletido A deusa mesma revela essa informaccedilatildeo ldquoeu cheguei havendo de cessar
teu iacutempetordquo (ἦλθον ἐγὼ παύσουσα τὸ σὸν μένος v 207) Um mesmo verbo eacute usado na
ponderaccedilatildeo de Aquiles e nas palavras de Atena o verbo παύω que tem o sentido de reter
fazer cessar usado na primeira menccedilatildeo no optativo e na segunda em sua forma nominal do
particiacutepio futuro
Assim no caso de Aquiles ele mesmo natildeo conteve a ira gerada pela dor e que
resultaria em uma accedilatildeo violenta e significativa proacutepria do heroacutei erguer as armas e utilizaacute-las
para seu propoacutesito primeiro Em especial ao caso de Aquiles eacute a deusa que o conteacutem
evitando-se que o heroacutei cometesse um erro Como sabemos pelo conteuacutedo do Canto XIX da
Iliacuteada o erro em verdade seraacute atribuiacutedo a Agamecircmnon e em parte admitido por ele
referindo-se agrave privaccedilatildeo dos precircmios do Pelida (v 89-89 XIX) No entanto o chefe dos gregos
confere esse ato agrave interferecircncia de uma divindade grega que personifica o proacuteprio erro Aacutete
(Ἄτη) Como divindade responsaacutevel pela accedilatildeo contra o Pelida ela eacute referida ao menos uma
11
Assim falou A dor nasceu no Pelida e dentro dele o coraccedilatildeo no peito hirsuto pesou duas coisas ou precisamente tendo retirado sua aguda espada de junto da coxa ergueria as armas e mataria o Atrida ou cessaria a ira e conteria o acircnimo Enquanto pensava em tudo no espiacuterito e no acircnimo E sacava da bainha a grande espada Atena chegou []
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vez no discurso de Agamecircmon (Ἄτη v 91 XIX) Como um ato de erro ela eacute referida outra
vez (ἄτην v 88) Com efeito para a literatura grega do periacuteodo arcaico a aacutete eacute definida
segundo Richard Doyle como uma espeacutecie de cegueira paixatildeo ou desatino que prejudica o
bom senso e a racionalidade (1970 p 295) Certamente Atena impede o Pelida de cometer
um potencial erro do heroacutei impulsionado por uma paixatildeo que sustenta a relaccedilatildeo significativa
e clara que existe entre dor e ira as quais agem como desencadeadores das accedilotildees dos
personagens
Aristoacuteteles novamente nos abona esse entendimento especialmente se considerarmos
a retomada desse episoacutedio das armas de Aquiles pela posterior literatura claacutessica Mesmo que
Aristoacuteteles se utilize de outro leacutexico que contudo estaacute ainda inserido no campo semacircntico
dos vocaacutebulos homeacutericos podemos ver um paralelismo traccedilado entre dor e ira ldquoira eacute um
desejo de vinganccedila expliacutecita com a participaccedilatildeo do sentimento de dor por causa de expliacutecita
desestimarsquo (ὀργὴ ὄρεξις μετὰ λύπης τιμωρίας [φαινομένης] διὰ φαινομένην ὀλιγωρίαν
Retoacuterica 1378a 30-31)
Validamente pudemos observar a relevacircncia dessa ira manifestada na figura de Aacutejax
dentro do contexto da Odisseia que em seu Canto XI trata brevemente do episoacutedio da disputa
pelas armas de Aquiles Essa caracterizaccedilatildeo do heroacutei exige o entendimento de honra
vinculada agrave virtude grega arcaica Desta uacuteltima Aacutejax se sobressai pelas qualidades de um
heroacutei defensivo sob certas circunstacircncias servindo-lhe para isso sua singular resistecircncia e
firmeza em combate e tambeacutem de uma primazia guerreira entre os gregos superada apenas
por Aquiles
1 2 A TRADICcedilAtildeO CLAacuteSSICA
Nesta seccedilatildeo contextualizaremos as obras Aias de Soacutefocles e Metamorfoses de
Oviacutedio sobretudo seu Livro XIII com o objetivo de reconhecer na caracterizaccedilatildeo do
personagem Aacutejax sob a perspectiva das noccedilotildees de ira e de virtude elementos tanto novos
quanto retomados da tradiccedilatildeo arcaica Com essa finalidade apresentaremos estudos que
exponham as linhas gerais de interpretaccedilatildeo das obras especialmente aqueles que de alguma
maneira contribuam para a nossa pesquisa com assunto relacionado agrave caracterizaccedilatildeo do
personagem estudado ou agrave intertextualidade entre as obras analisadas e a tradiccedilatildeo arcaica
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1 2 1 Aias de Soacutefocles
A peccedila Aias foi escrita por Soacutefocles no periacuteodo Claacutessico da literatura grega que
ocorre entre os seacuteculos V e IV a C ou mais precisamente no primeiro destes o chamado
seacuteculo de Peacutericles Isso implica dizer que nessa eacutepoca se insere o maior niacutevel da produccedilatildeo
artiacutestica e intelectual da cultura grega dentro da nomeada Antiguidade Claacutessica Eacute nesse
momento em que a escrita encontra seu apogeu exercendo forccedila sobre oralidade arcaica a
tirania daacute lugar agrave democracia a filosofia desenvolveu-se iniciando uma nova era a literatura
de entatildeo encontra seu auge no teatro traacutegico e a cidade grega a πόλις se torna o palco dessas
transformaccedilotildees e a mais proeminente delas foi sobretudo Atenas (MARQUES JUacuteNIOR
2008 p 12)
Com efeito a literatura dessa eacutepoca parece direcionada para a cidade especialmente
devido ao estabelecimento de uma vida poliacutetica organizada e assentada apoacutes a vitoacuteria sobre os
persas (ROMILLY 1984 p 73) A participaccedilatildeo na vida poliacutetica crescente desde meados do
periacuteodo arcaico cristaliza-se apoacutes o confronto entre gregos e persas e acaba fomentando nos
poetas uma maior consciecircncia do seu lugar na cidade A influecircncia desse fato pode ser
ilustrada pelos grandes gecircneros produzidos na eacutepoca na liacuterica os muitos poemas de
Simocircnides considerado cantor nacional na trageacutedia Os Persas de Eacutesquilo na histoacuteria
Histoacuterias de Heroacutedoto
Essa consciecircncia poliacutetica no sentido estritamente grego ou seja ligada agrave cidade
tambeacutem eacute preponderante na trageacutedia acima de tudo porque as peccedilas que compunham esse
gecircnero eram encenadas em concursos que ocorriam durante os festivais dionisiacuteacos logo
inserindo-se em um rol de cerimocircnias de caraacuteter religioso e tambeacutem ciacutevico Em decorrecircncia
de todos esses fatos R Janko afirma que o teatro tambeacutem seria um lugar onde os cidadatildeos
podiam refletir sobre questotildees poliacuteticas e no qual muitos poetas problematizavam modelos de
cunho moral social e religioso atualizando-os ao seu tempo (apud PEREIRA 2012 p 394-
395) Ao trazer agrave cena um heroacutei miacutetico que encarna as tradiccedilotildees de um passado no qual se
insere diante de novas formas de pensamento a trageacutedia questiona e potildee em discussatildeo os
valores heroicos e suas representaccedilotildees religiosas antigas a partir do evidente contraste que se
eleva desse confronto entre o passado e o presente (VERNANT VIDAL-NAQUET 2011 p
4-10)
Contudo acima de seu caraacuteter religioso e ciacutevico sobressai-se seu valor literaacuterio cuja
base se sustenta principalmente na carga esteacutetica que a obra executa A trageacutedia grega
segundo Aristoacuteteles (Poeacutetica) teria como finalidade primeira causar catarse κάθαρσις uma
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ideia de purgaccedilatildeo ou purificaccedilatildeo esteacutetica por meio de duas emoccedilotildees necessaacuterias para isso a
piedade ou compaixatildeo eacuteleos (ἔλεος) e o temor phoacutebos (φόβος) Ainda prossegue em sua
obra expondo que isso seria efetivamente alcanccedilado a partir de alguns recursos desenvolvidos
pelo proacuteprio autor entre os mais relevantes quando a accedilatildeo representada fosse completa de
unidade estruturada e desenvolvida por personagens que passariam sobretudo da felicidade agrave
infelicidade atraveacutes de um erro hamartiacutea (ἁμαρτία) que decorre natildeo de um viacutecio de caraacuteter
mas segundo a interpretaccedilatildeo de alguns estudiosos (PEREIRA 2012 p 402) de um
desconhecimento agnoacuteia (ἀγνοία)
Coerente com muito desses conceitos aristoteacutelicos que lhes satildeo posteriores os autores
traacutegicos que mais obtiveram ecircxito nas apresentaccedilotildees desses festivais e por isso mais
renomados satildeo Eacutesquilo Soacutefocles e Euriacutepides de quem detemos obras ainda completas Aleacutem
desse fato seu talento permite discernir seus estilos proacuteprios que nos ajuda a contrastar a
forma como compunham suas obras Dentre esses interessa-nos Soacutefocles objeto de estudo
desta seccedilatildeo
Apesar de esse autor ter produzido vaacuterias peccedilas das quais temos apenas fragmentos ou
tiacutetulos mencionados em obras de outrem sobreviveram apenas sete peccedilas traacutegicas inteiras e
nas quais inclusive eacute possiacutevel reconhecer um padratildeo estiliacutestico recorrente Aacutejax (Ἄιας)
aparentemente a mais antiga Antiacutegona (Ἀντιγόνη) As Traquiacutenias (Τραχίνιαἰ) Eacutedipo Tirano
(Οἰδίπους Τύραννος) eleita a trageacutedia mais bela por Aristoacuteteles segundo os seus criteacuterios
adotados Electra (Ἠλέκτρα) Filoctetes (Φιλοκτήτης) e Eacutedipo em Colono (Οἱδίπους ἐπι
Κολώνῳ)
Apesar de muitos serem os tratamentos literaacuterios proacuteprios de Soacutefocles a predisposiccedilatildeo
a uma construccedilatildeo mais marcante do caraacuteter dos personagens eacute geralmente ressaltada por
vaacuterios estudiosos Junito de Souza Brandatildeo por exemplo afirma que ldquoenquanto Eacutesquilo
elabora suas personagens em funccedilatildeo da faacutebula Soacutefocles elabora a faacutebula em funccedilatildeo das
personagens de modo especial da personagem central o protagonisteacutesrdquo (2007 p 43) Na
perspectiva desse estudioso isso demonstra o papel significativo da caracterizaccedilatildeo das figuras
na compreensatildeo das obras desse autor A isso Rocha Pereira acrescenta que contrariamente ao
que faz Eacutesquilo por exemplo que prefere apresentar situaccedilotildees traacutegicas Soacutefocles eacute o autor que
concentra suas obras nos caracteres delineando nitidamente a figura dos personagens
(PEREIRA 2012 p 425) Dessa forma Soacutefocles parece realmente dar um tratamento
diferente aos seus personagens pois esse traccedilo singular do autor se revela sobretudo a partir
do confronto entre esse e outros tragedioacutegrafos
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Aleacutem de Brandatildeo e de Rocha Pereira jaacute citados por noacutes Jacqueline de Romilly
apresenta um espaccedilo em seus estudos para falar dessa caracterizaccedilatildeo dos personagens e dos
meios usados pelo tragedioacutegrafo para evidenciar tais disposiccedilotildees Tal estudo eacute extremamente
importante para noacutes uma vez que aleacutem de corroborar os propoacutesitos do nosso trabalho daacute luz
ao funcionamento dessa categoria dentro das peccedilas
Veremos agora primeiramente o estudo dessa autora que dispotildee consideraccedilotildees gerais
sobre o assunto as quais podem ser aplicadas agrave peccedila que seraacute estudada Em seguida
recorreremos a outros estudiosos que tratam mais precisamente da obra Aias ora reforccedilando
caracteriacutesticas constitutivas do estilo do autor ora analisando elementos especiacuteficos proacuteprios
ou pertinentes agrave obra em questatildeo Contudo todas as exposiccedilotildees aqui dispostas fornecem
subsiacutedios para uma melhor compreensatildeo da peccedila de seus limites e de suas referecircncias
especialmente em seu aspecto literaacuterio a partir da qual podemos realizar uma anaacutelise coerente
e pertinente
Para Romilly os caracteres das figuras de Soacutefocles satildeo bem delineados e muitas vezes
satildeo destacados a partir de um procedimento muito comum agrave literatura o contraste entres os
personagens Nesse autor a oposiccedilatildeo de caracteres eacute geralmente feita em dupla o que acentua
as singularidades e peculiaridades do personagem e em decorrecircncia disso a vividez de sua
configuraccedilatildeo humana Assim isso pode ser visto tanto no contraste entre irmatildeos Antiacutegona e
Ismene Electra e Crisocirctemis quanto entre marido e mulher ou cativa como eacute o caso de
Heacuteracles e Dejanira e de Aacutejax e Tecmessa e quanto tambeacutem entre membros de um grupo
como eacute o caso dos heroacuteis gregos da expediccedilatildeo a Troia Odisseu e o Telamocircnio ou entre
aquele e Neoptocirclemo (1984 p 102-104) No caso da obra a ser estudada a patente oposiccedilatildeo
de caracteres entre o heroacutei e a concubina revela a firme obstinaccedilatildeo daquele e a flexiacutevel
compreensatildeo daquela bem como entre o Laertida e o Telamocircnio a iacutendole moderada do
primeiro e a desmesurada do segundo
A estrutura de suas obras parece ser elaborada a partir de cenas sucessivas que
contribuam para esse contraste promovendo entatildeo o confronto entre as figuras e o conflito
entre os seus caracteres sobretudo considerando-se que
seus personagens se distinguem por sua psicologia somente porque cada um deles encarna um ideal moral diferente com o qual eles se identificam Um personagem de Soacutefocles sabe em nome de que ele age defende seus princiacutepios como se tratasse de uma causa contra outra e se contrapotildee aos que o cercam como uma regra de vida se contrapotildee a outra (ROMILLY p 103)
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Contudo essa relaccedilatildeo de quase personificaccedilatildeo de um ideal instaurado na
caracterizaccedilatildeo do personagem serve para delinear suas peculiaridades mas natildeo exclui a
complexidade de seu caraacuteter o que implica sobretudo segundo Romilly as zonas de sombra
as quais contribuem para uma composiccedilatildeo mais viacutevida da figura Com efeito o heroacutei e o seu
modo de vida se identificam sobretudo porque haacute a tendecircncia desses personagens a
defenderem intensamente aquilo no que acreditam a ponto de observar-se um traccedilo comum a
predisposiccedilatildeo para sacrificar tudo pelo seu ideal Tanto na caracterizaccedilatildeo de Aacutejax quanto na
de Antiacutegona ou Electra a morte ou a recusa a submeter-se eacute acolhida da mesma forma
(Ibidem p 103-105)
Contudo na composiccedilatildeo da trageacutedia Aias esse estilo marcante de Soacutefocles natildeo
encontrou validaccedilatildeo criacutetica durante seacuteculos Essa peccedila haacute muito tempo eacute discutida pela sua
aparentemente obscura estrutura Muito criticada no passado e no presente encontra no
uacuteltimo seacuteculo muitos defensores que reabilitam a obra por variadas estrateacutegias fornecendo
uma melhor compreensatildeo para seus pontos mais condenados a estrutura dupla de sua
unidade em que o protagonista figura vivo na primeira parte e morto na segunda o que foge
aos criteacuterios aristoteacutelicos o longo debate que apoacutes a morte do Telamocircnio ainda se estende
por mais 500 versos inserido aparentemente para servir apenas para agradar a inclinaccedilatildeo dos
atenienses agrave dialeacutetica e ao debate e sobretudo os caracteres repulsivos de um heroacutei
brutalizado e da personagem Atena que demostra uma iacutendole inferior agrave sua natureza divina
(KNOX 1961 p 1 HUBBARD 2003 p 158-159)
Aleacutem de compor a eacutepica de Lesches e outras obras de gecircneros literaacuterios variados o
mito de Aacutejax que trata sobretudo de sua ruiacutena tambeacutem eacute tema de uma trilogia traacutegica de
Eacutesquilo Contudo o conteuacutedo sobrevivente de todas essas obras se restringiria a tiacutetulos
resumos das obras e alguns fragmentos Com efeito temos algum detalhamento acerca da
trilogia de Eacutesquilo a primeira peccedila Julgamento das Armas traria como cerne a disputa entre
o heroacutei de Salamina e Odisseu pelas armas de Aquiles apoacutes a morte deste a segunda
Mulheres da Traacutecia possivelmente teria como centro a morte do personagem derrotado e a
terceira Mulheres de Salamina corresponderia ao retorno de Teucro irmatildeo do Telamocircnio e
sua recepccedilatildeo em Salamina Segundo a criacutetica a obra de Soacutefocles se conectaria
prioritariamente agrave peccedila central da trilogia de Eacutesquilo mas o debate sobre os ritos fuacutenebres do
personagem seria uma das inovaccedilotildees do autor (HUBBARD 2003 p 159)
A trama da peccedila Aias de Soacutefocles apresenta a ruiacutena do personagem que daacute nome agrave
obra acompanhado de seus valores arcaicos que remontam as obras homeacutericas bem como o
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sofrimento de todos os seus proacuteximos Inicia-se no momento em que Aacutejax iludido pela deusa
Atena acha-se vingador da desonra infligida sobretudo por Agamecircmnon e Odisseu
Desenvolve-se com o seu reconhecimento acerca da proacutepria situaccedilatildeo que toca o ultraje pois a
carnificina equivocadamente feita por ele recai sobre o rebanho e natildeo sobre os chefes gregos
Apesar das palavras persuasivas de sua cativa e companheira Tecmessa e do apoio dos
homens de sua tropa representados pelo coro para demovecirc-lo de sua vontade o enredo
avanccedila com o suiciacutedio do heroacutei impulsionado pela profunda desonra em que se encontra Em
vinganccedila ao atentado os Atridas negam-lhe os ritos fuacutenebres o que gera um debate contra
estes em defesa do cadaacutever promovido por Teucro e por Odisseu o qual conquista a
permissatildeo para o sepultamento cujos preparativos figuram o final da peccedila
Segundo a tendecircncia criacutetica mais recente Bernad M W Knox e Thomas K Hubbard
validam a obra defendendo a coerecircncia de sua unidade dupla embasados em perspectivas
diferentes e consistentes
Para o primeiro eacute fato reconhecer que Aacutejax eacute o centro da peccedila pois mesmo quando
natildeo estaacute falando eacute sobre ele que todos os personagens discursam O heroacutei eacute o assunto uacutenico
da trageacutedia presente em cena seja vivo na primeira parte ou seja morto na segunda Ateacute a
sua morte eacute encenada diante dos olhos da plateia o que comumente natildeo acontece nas
trageacutedias gregas (KNOX 1961 p 2)
Para o segundo essa unidade dupla eacute espelhada repetida e antiteacutetica em que se figura
como cena central o suiciacutedio do personagem (HUBBARD 2003 p 170) Por isso se explica
por exemplo o lugar da peccedila representado em dois lugares agrave frente da tenda do Telamocircnio
junto agraves naus quando vivo na primeira parte e em um lugar ermo afastado das naus no lugar
da morte do heroacutei na segunda parte (Ibidem p 164) Ainda para este autor a participaccedilatildeo dos
personagens eacute significativa pois por exemplo configura um paralelismo entre os monoacutelogos
de Tecmessa na primeira parte e de Teucro na segunda cujos discursos apelativos dos quais
natildeo se pode remover a condiccedilatildeo de concubina ndash precircmio de guerra ndash (δουριάλωτον v 211) e
de meio irmatildeo ilegiacutetimo (νόθον v 1013) parecem inuacuteteis em seu objetivo de demover os
caracteres mais intenso da peccedila (Ibidem p 164-165) A participaccedilatildeo de Odisseu no proacutelogo e
no ecircxodo fazendo a partir de seu caraacuteter moderado o contraponto com os caracteres intensos e
emoldurando as accedilotildees que compotildeem o centro do drama (Ibidem 160)
Certamente a partir disso podemos retomar o realce desses contrapontos e oposiccedilotildees
na caracterizaccedilatildeo dos personagens convergindo essas observaccedilotildees com aquelas supracitadas
de Romilly Isso sugere um papel fundamental na peccedila pois temos a impressatildeo de que o ideal
vivido pelos personagens de caraacuteter intenso segundo as premissas da autora quando
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aplicados na obra em questatildeo parece se revestir da concepccedilatildeo grega de desmesura de
desmedida de excesso hyacutebris ὕβρις Para o propoacutesito semacircntico da peccedila essa desmedida eacute
fundamental para incutir no heroacutei o erro aacutete (ἄτη) permitindo-lhe excutar uma accedilatildeo cujos
resultados funestos natildeo satildeo previsiacuteveis Essa cegueira momentacircnea como definiu Richard
Doyle (1970 1976) eacute elemento fundamental para que o protagonista da peccedila realize a sua
proacutepria ruiacutena ou seja encontre-a de maneira mais traacutegica Por isso haacute vaacuterias referecircncias a
esse erro em especial podemos apontar a menccedilatildeo de Odisseu no verso 123 quando se
compadece de Aacutejax que se vangloria dos animais mortos desconhecendo a realidade em que
estaacute inserido
Os estudos de Agatha Bacelar sobre a peccedila Aias se mostram extremamente relevantes
para o estudo do excesso hyacutebris associado agrave caracterizaccedilatildeo dos personagens pois para a
anaacutelise mais profunda de tal conceito segundo essa autora as trageacutedias desse autor parecem
contribuir de forma privilegiada (2006 p 242) Esse entendimento se sustenta ainda mais se
considerarmos que a oposiccedilatildeo de caracteres presente na obra Aias se estabelece sobretudo
confrontando-se essa noccedilatildeo de desmedida agrave de moderaccedilatildeo de prudecircncia de sensatez agrave
sophrosyacutene σωφροσύνη Segundo a mesma autora esse procedimento parece ilustrar o
confronto de valores do passado e do presente segundo as premissas de Jean-Pierre Vernant
retratando-os no contraste entre o mundo homeacuterico da Iliacuteada e o da Atenas Claacutessica na qual o
regulador social seria a sophrosyacutene vinculada agrave noccedilatildeo de comedimento e ao aspecto
isonocircmico das honras de seus cidadatildeos logo uma ideia de civilizaccedilatildeo Dessa forma durante
o periacuteodo claacutessico pode-se perceber a relaccedilatildeo dicotocircmica entre sophrosyacutene e hyacutebris
demarcando o limite entre o civilizado e o baacuterbaro em que este natildeo prezaria a moderaccedilatildeo
porque possuiria uma latente desmesura
Ainda acrescenta a autora os heroacuteis homeacutericos quer da Iliada quer da Odisseia que
natildeo apresentem traccedilos que remetam a essa noccedilatildeo de comedimento entre os atributos que
compotildee sua virtude satildeo vistos pelos atenienses de entatildeo como baacuterbaros (Ibidem p 236-237)
sobretudo em sua representaccedilatildeo literaacuteria na trageacutedia Em Aias esse parece ser o caso de Aacutejax
Conveacutem evidenciar que entre os ideais cultivados excessivamente que sustentam o
modo de vida desse heroacutei estaacute a honra estimada por ele acima de todos os outros Para ele
segundo Romilly ela eacute ldquofeita de proezas reconhecidas e traduzindo-se no apego agrave estima
puacuteblicardquo (1984 p 104) Isso eacute extremamente relevante para a compreensatildeo da obra uma vez
que ainda de acordo com Bacelar a desmedida sobretudo na obra estudada consiste de
forma mais elucidativa ldquoem superestimar sua proacutepria τιμή e consequentemente subestimar a
τιμή alheia jaacute que o conceito de τιμή eacute necessariamente comparativordquo (2006 p 235) ou seja
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essa desmesura representa uma transgressatildeo aos limites da honra de outrem considerando-se
a concepccedilatildeo desta uacuteltima segundo o que expomos tambeacutem na seccedilatildeo anterior (cf p 23) Para
o heroacutei sobretudo essa honra representa diretamente a legitimaccedilatildeo de suas virtudes
Consequentemente de tal forma eacute intensa a devoccedilatildeo do personagem a ela e agraves virtudes que a
sustentam provocada aparentemente por sua predisposiccedilatildeo a sobrevalorizar a sua honra que a
decisatildeo dos chefes gregos de favorecer Odisseu eacute uma depreciaccedilatildeo expliacutecita e puacuteblica da
mesma e que na concepccedilatildeo do proacuteprio Telamocircnio deixa-o desonrado aacutetimos (ἅτιμος v
424) impondo a este a disposiccedilatildeo natildeo soacute de se vingar mas tambeacutem de impedir que essa
desonra se repita (ἀτιμάσουσ` v 98)
Fundada sobretudo nessa concepccedilatildeo de honra comparativa a hyacutebris (ὕβρις) entatildeo
percorre toda a obra do iniacutecio ao fim ou como diz Suzanne Saiumld essa eacute uma trageacutedia ldquocheia
de hyacutebrisrdquo (apud BACELAR 2006 p 235) Vaacuterias vezes na trageacutedia em questatildeo esse
vocaacutebulo e seus derivados satildeo aplicados ao protagonista e a outros personagens entre os que
tambeacutem recebem essa denominaccedilatildeo de excessivo e desmesurado estatildeo Teucro irmatildeo desse
heroacutei os Atridas Agamecircmnon e Menelau e ateacute Odisseu Contudo devemos reconhecer que
essas atribuiccedilotildees satildeo feitas na perspectiva dos personagens assim relativizando-se a
concepccedilatildeo de desmedida bem como a de moderaccedilatildeo ambas bem presentes na trama Com
efeito na figura de Aacutejax se concentra a atribuiccedilatildeo mais abundante
Uma breve disposiccedilatildeo da trama sob o vieacutes da desmedida pode ilustrar sua recorrecircncia
Utilizaremos algumas passagens estudadas por Bacelar (2006) acrescidas de outras
recolhidas por noacutes e que satildeo representativas da reiteraccedilatildeo desse elemento na peccedila
A desmedida jaacute se mostra desde o iniacutecio quando da tentativa de assassinato aos
aliados e da vangloacuteria sobretudo da carnificina que foi causada ao rebanho por intervenccedilatildeo da
deusa atraveacutes do ludiacutebrio ao heroacutei Esse atentado eacute percebido como um ato de desmedida
tanto por Tecmessa (ὕβριν v 304) quanto por Menelau (ὕβριν v 1061) e a vangloacuteria um ato
tal que se opotildee diretamente agrave moderaccedilatildeo (ὑπέρκοπον v 127-133) de acordo com perspectiva
da deusa Atena uma das personagens da peccedila Contudo a matanccedila sobre os animais
aprofunda sua desonra e sua vergonha fazendo-o se sentir ultrajado (ὑβρίσθην v 367) Cabe-
lhe assim relutante em se dobrar aos Atridas suicidar-se Apoacutes a sua morte ainda
observamos desmedidas agora por parte dos Atridas nomeadamente chefes aacuterchontes
(ἄρχοντες v 667) que imbuiacutedos das prerrogativas dessa posiccedilatildeo impedem enquanto natildeo
demovidos por Odisseu o heroacutei morto de receber os devidos funerais Isso eacute atribuiacutedo tanto
pelo coro (ὑβριστὴς v 1092) quanto por Teucro (ὕβριζε v 1151) uma vez que isso
representa segundo este uma desonra aos deuses (ἀτίμα θεούς v 1129) O sofrimento na
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peccedila se intensifica pois aleacutem de seus proacuteximos perderam o chefe da casa e da tropa de
Salamina agora se defrontam com a possibilidade de Aacutejax ficar insepulto Teucro de mesmo
acircnimo do irmatildeo opotildee-se aos Atridas ora desafiando-os ora insultando-os e explicitamente
natildeo reconhecendo neles a chefia (v 1102-1104) o que para Agamecircmnon representa um
descomedimento (ὑβρίζεις v 1258) sobretudo no entendimento de transgressatildeo da honra
deste considerando-se para isso a relaccedilatildeo comparativa entra as honras dos dois pois ao chefe
todos devem prudentemente se dobrar e se moderar (σωφροσήσεις v 1259)
Eacute certo que a predisposiccedilatildeo excessiva de alguns caracteres especialmente do
protagonista fornece subsiacutedios para observarmos a funccedilatildeo relevante do sentimento de ira
dentro da composiccedilatildeo das obras visto que ela mesma jaacute pressupotildee um desequiliacutebrio de
acircnimo Mas isso seraacute mais bem compreendido depois de pontuarmos ao menos um elemento
dos estudos de Knox sobre essa obra o qual evidencia nessa peccedila de Soacutefocles um outro ideal
que move as accedilotildees e reflexotildees do heroacutei
Aacutejax explicitamente cultua os valores desdobrados da seguinte sentenccedila e maacutexima
fazer bem aos amigos e mal aos inimigos τούς φίλους εὖ ποιεῖν τοὺς δ` ἐχθροὺς κακῶς
(KNOX 1961 p 3) Sendo combatido por alguns pensadores a exemplo maior de Platatildeo
este pensamento ainda era aceito de modo geral na Atenas democraacutetica sendo visto inclusive
como conselho praacutetico definiccedilatildeo de justiccedila e por corresponder sobretudo a resquiacutecios de um
coacutedigo heroico antigo representava tambeacutem princiacutepios morais proacuteprios da formulaccedilatildeo de
virtude grega (Ibidem p 3-4) Isso tambeacutem evidencia relevantemente o papel importante
dessa sentenccedila no confronto de valores passados e presentes no qual o poeta questiona a
validade desse tipo de pensamento e de conduta no periacuteodo claacutessico
Com efeito o ponto fulcral da obra em que inclusive os valores depreendidos dessa
sentenccedila estatildeo sintetizados eacute segundo Bernard Knox (1961 p 1) o discurso de Aacutejax que
figura o segundo episoacutedio (v 646-692) Neste monoacutelogo o personagem reconhece a falecircncia
de seus princiacutepios e questiona o proacuteprio sentido de sua vida antecipando seu suiciacutedio
Diante de seu renitente posicionamento moral que parece ser reflexo de sua firmeza
guerreira e disposiccedilatildeo a nunca recuar (cf p 18) mostra-se a natureza de um mundo que se
revela inerentemente instaacutevel para o heroacutei em questatildeo isso significa dizer que a proacutepria
posiccedilatildeo ocupada pelos amigos e pelos inimigos pode permutar (Ibidem p 17) A realidade
diante dele eacute mutaacutevel e ciacuteclica de maneira que isso eacute visto segundo as palavras do
personagem ao se perceber a noite sobrepor-se ao dia o inverno ao veratildeo e o sono ao estar
acordado Essa realidade se faz tatildeo presente na composiccedilatildeo da trama que esse conteuacutedo se
torna processo de sua proacutepria estrutura como bem pontua Hubbard (2003 p 168) pois a
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ruiacutena que lhe retira o status heroico move seu suiciacutedio mas a condiccedilatildeo de morto a receber os
ritos fuacutenebres o devolve agrave sua condiccedilatildeo inicial de heroacutei
Contrariamente a essa mutabilidade seu caraacuteter reflete a sua visatildeo de mundo tal como
satildeo firmes seus princiacutepios o mundo deveria ter uma natureza estaacutevel e assim reconhecer-se-
ia o amigo e o inimigo pois suas posiccedilotildees deveriam ser naturalmente permanentes e
imutaacuteveis Essa eacute a loacutegica que rege o personagem Seu suiciacutedio eacute concebido exatamente
porque o Telamocircnio reconhece ser incapaz de se adaptar e isso exige moderar-se (σωφρονεῖν
v 677)
Esse modo de pensar quando visto sob o prisma da maacutexima supracitada aceita e
justifica o oacutedio aos inimigos sobretudo se levarmos em conta a composiccedilatildeo de caracteres
excessivos Coerentemente a essa conjuntura tanto os Atridas quanto Aacutejax parecem tomar
para si esse coacutedigo heroico antigo (Ibidem p 167) Para aqueles isso estaacute claramente
manifestado no interesse de ambos em impedir os funerais de protagonista pois na sua
compreensatildeo esse ato violento contra a honra de outro se justifica pela sua nova posiccedilatildeo
ocupada a de inimigo expliacutecito Para o heroacutei de Salamina em que tal conduta eacute mais
evidente entatildeo nada mais natural do que alimentar esse oacutedio aos inimigos de forma extrema
inclusive a vangloriar-se e a deleitar-se sobre os atos de excessiva violecircncia aplicadas aos
mesmos (KNOX 1961 p 4) Dessa forma quando Odisseu apoacutes a vitoacuteria sobre seu
adversaacuterio na disputa pelas armas de Aquiles passa de uma posiccedilatildeo de amizade para a de
inimizade ao agir contra o heroacutei derrotado o episoacutedio retratado na peccedila se alinha com a
tradiccedilatildeo homeacuterica como vimos na seccedilatildeo anterior na qual observa-se o rancor ou a ira
inerente a Aacutejax que permanece mesmo apoacutes a sua morte
Essa ira do heroacutei que ecoa do oacutedio aos inimigos e que continua mesmo quando
morto parece bem relevante dentro da obra embora em quantidade reduzida perante agraves
inuacutemeras menccedilotildees agrave loucura do heroacutei a maniacutea (μανία) defendida reiteradamente por vaacuterios
estudiosos como de origem divina e cuja funccedilatildeo dentro da obra figura frequentemente os
estudos sobre essa peccedila em questatildeo de Soacutefocles Contudo acreditamos que essa ira representa
um reforccedilo ao caraacuteter desmedido do heroacutei como um traccedilo inerentemente humano que em
Aacutejax transfigura o seu latente excesso e sobre o qual Atena insufla a loucura Haacute na obra duas
menccedilotildees diretas a ela que expressa nomeadamente χόλος o mesmo vocaacutebulo contemplado
na seccedilatildeo anterior Estas seratildeo aqui apresentadas mas soacute no capiacutetulo seguinte seratildeo estudadas
mais profundamente
A primeira citaccedilatildeo no proacutelogo estaacute vinculada ao discurso de Atena que esclarece a
Odisseu a causa do Telamocircnio ter tentado assassinar os chefes gregos A resposta eacute evidente
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o ato foi movido pela ira por causa das armas de Aquiles (v 41) A segunda no terceiro
episoacutedio eacute proferida pelo coro que representa na peccedila em unidade coletiva os guerreiros do
exeacutercito do Telamocircnio Nessa passagem equivocadamente o coro acredita que o heroacutei
contrariando a sua iacutendole dobrar-se-aacute abandonando a ira contra os deuses (v 743-744) Essas
menccedilotildees enfocam uma coisa em comum a ira que surge do reconhecimento do protagonista
acerca dos amigos que inesperadamente agem contra ele A primeira menccedilatildeo em relaccedilatildeo aos
chefes gregos que julgaram Odisseu merecedor do precircmio deixando Aacutejax desonrado e a
segunda em relaccedilatildeo sobretudo a Atena deusa considerada por ele aliada nos combates
σύμμαχον (v 117) que lhe infligindo doenccedila nos olhos conduziu sua carnificina aos
rebanhos fato que ultrajou o heroacutei agravando o seu infortuacutenio Assim por um lado eacute
possiacutevel ver que a ira que surge tanto contra os homens quanto contra os deuses serve para
reconhecer o caraacuteter excessivo do heroacutei Por outro serve para compreender que sentimentos
movem a accedilatildeo do heroacutei e consequentemente executando um papel estrutural na noccedilatildeo de
causalidade presente na obra
Contudo eacute necessaacuterio distinguir a ira choacutelos da loucura maniacutea ou da doenccedila noacutesos
(νόσος) uma vez que estas uacuteltimas satildeo extremamente recorrentes em Aias sobretudo com o
reforccedilo de vaacuterios vocaacutebulos derivados
Acerca destas uacuteltimas concordamos com Bruno Huumlbscher que observa que a loucura
e a doenccedila de Aacutejax engendrada pela deusa Atena natildeo consiste apenas em fazer o Telamocircnio
ver nos animais do rebanho grego a figura dos chefes Assim vemos naquelas a ambiguidade
entre a intervenccedilatildeo divina e a vontade humana tal qual como na composiccedilatildeo homeacuterica as
motivaccedilotildees divinas e humanas satildeo indissoluacuteveis (2011 p 39-40) Tal compreensatildeo se mostra
sustentaacutevel quando reconhecemos que essa loucura figura essas duas interpretaccedilotildees Por um
lado representa uma puniccedilatildeo divina (v 131-133) oriunda da fuacuteria da deusa (μῆνις Ἀθάνας v
757 ὀργή θεᾶς v 776-777) contra o heroacutei que a ultrajou de cujos atos desmedidos natildeo
podemos retirar ao menos a accedilatildeo da deusa em excitaacute-lo a exceder-se (v 114-115) ou seja um
fator externo que implica um estiacutemulo a um comportamento pessoal e tambeacutem em ajudaacute-lo
de alguma forma (v 91-93) uma vez que ela natildeo soacute eacute considerada por ele como aliada mas
tambeacutem se apresenta como tal (συμμάχου v 90) Por outro representa a negaccedilatildeo da
civilizaccedilatildeo uma vez que vemos a violecircncia patente no heroacutei sobrepor-se a sua natureza
humana e social (Ibidem p 27-28) e isso significa dizer claramente que essa loucura eacute a
negaccedilatildeo da sophrosyacutene e a execuccedilatildeo extrema da sua latente hyacutebris Eacute necessaacuterio observar que
essa desmedida do protagonista eacute de extremidade singular pois sua loucura natildeo soacute rompe com
a civilizaccedilatildeo fazendo-o renunciar os laccedilos pessoais e a conduta heroica cultivados por ele
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como aleacutem disso o coloca em um status de selvageria e bestialidade Para esse uacuteltimo
entendimento natildeo faltam referecircncias na obra seja porque o heroacutei eacute caccedilado como um animal
por Odisseu ainda no proacutelogo ou seja porque sua tenda habitaccedilatildeo humana e cenaacuterio da peccedila
transforma-se no covil de sua carnificina como bem observa Huumlbscher (Ibidem p 37)
Em oposiccedilatildeo a essa loucura de caraacuteter divino e humano como tentaremos mostrar no
proacuteximo capiacutetulo o sentimento de ira que tem como alicerce sua honra e seus princiacutepios eacute
proacuteprio do personagem e estaacute presente sobretudo quando em sua sanidade ao considerarmos
como finda a fuacuteria da deusa pois mesmo morto a ira de Aacutejax persiste seja no ecircxodo da peccedila
ou no Canto XI da Odisseia com o qual aquela uacuteltima cena se alinha Os atos excessivos do
heroacutei alguns como vimos satildeo impulsionados por esse sentimento que parece inerente a sua
natureza Isso fica claro no momento em que ele se recupera desse frenesi pois natildeo lamenta
ter cometido tal accedilatildeo mas lastima-se apenas porque sua tentativa de assassinato natildeo
encontrou sucesso ou quando renuncia voltar aos combates e morrer belamente pois isso
agradaria os Atridas uma vez que os ajudaria nas batalhas contra os troianos
Dessa forma a partir das informaccedilotildees dispostas podemos reconhecer na unidade da
obra uma estrutura menos enigmaacutetica de seus componentes do que o proposto
recorrentemente por alguns estudiosos Com efeito sustentando uma composiccedilatildeo digna da
autoria do tragedioacutegrafo o estudo da caracterizaccedilatildeo de Aacutejax na peccedila em questatildeo sob o vieacutes
das noccedilotildees de virtude e ira parece-nos profiacutecuo visto tambeacutem que se entrelaccedilam com a
concepccedilatildeo grega de honra heroica contribuindo para a estruturaccedilatildeo semacircntica dos impulsos
que movem as accedilotildees desmedidas dos personagens
1 2 2 Metamorfoses de Oviacutedio
A obra Metamorfoses foi composta por Puacuteblio Oviacutedio Nasatildeo durante o periacuteodo
claacutessico ou o Seacuteculo de Augusto ocorrido entre o seacuteculo I a C e o seacuteculo I a D em que a
literatura encontrou seu apogeu no mundo latino Esse aacutepice de verdadeira literatura latina
que fornece modelos para a literatura posterior foi alcanccedilado atraveacutes do status de obras
escritas e das caracteriacutesticas artiacutesticas proacuteprias dos textos literaacuterios No entanto o contexto
que tornou tudo isso possiacutevel tem como base o contato com a poesia produzida na Greacutecia
(CARDOSO 2011 p 4) Acerca disso eacute reconhecido o fato de a iniciaccedilatildeo literaacuteria latina ter
como marco a traduccedilatildeo da Odisseia pelo grego Liacutevio Andronico e de este ter influenciado
profundamente o papel da literatura grega na dos romanos quer na epopeia no teatro ou na
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liacuterica atraveacutes de suas produccedilotildees mesmo que de insipiente caraacuteter literaacuterio A literatura grega
entatildeo foi imitada e retomada e inclusive a sua mitologia
Por isso o periacuteodo claacutessico latino iniciado a partir de uma liacutengua claacutessica encetada
por Ciacutecero que teve como base a oratoacuteria consolidou-se efetivamente com a poesia
influenciada por vaacuterios modelos gregos como por exemplo Homero para a eacutepica Safo
Piacutendaro e Teoacutecrito para a liacuterica Eacutesquilo Soacutefocles e Euriacutepides para a trageacutedia etc Produziu-
se assim a excelecircncia da Literatura Latina por meio de diversos gecircneros literaacuterios e da
qualidade de suas produccedilotildees Alguns expoentes desse momento histoacuterico foram Virgiacutelio na
eacutepica Secircneca na trageacutedia Petrocircnio na prosa Catulo Horaacutecio e Oviacutedio na poesia liacuterica
Dentre os poetas liacutericos dessa eacutepoca Oviacutedio eacute o considerado o mais versaacutetil devido agrave
grande variedade de temas que compotildeem sua vasta obra (CARDODO 2011 p 80) Os temas
abarcam o caraacuteter eroacutetico em Heroides (Epistolae Heroidum) e Amores (Amores) o
sofrimento proacuteprio das elegias em Cantos tristes (Tristia) e Cartas pocircnticas (Epistolae ex
Ponto) ou das trageacutedias em Medeia (Medea) o caraacuteter didaacutetico em Haliecircutica (Halieutica) a
seduccedilatildeo em A arte de amar (Ars amatoacuteria) etc Aleacutem dessas constituiacuteda de quinze livros
acrescenta-se a obra Metamorfoses (Metamorphoseon libri) que dispotildee em um longo poema
composto de versos hexacircmetros uma coletacircnea de episoacutedios miacuteticos que se entrelaccedilam a
partir de um uacutenico tema a metamorfose
Apesar de sua estrutura fixada no verso eacutepico e da narraccedilatildeo qualidades proacuteprias do
gecircnero eacutepico segundo Aristoacuteteles e Horaacutecio essa obra apresenta muitas dificuldades de
classificaccedilatildeo quanto a um gecircnero literaacuterio Muitos elementos constitutivos desse poema satildeo
tomados como base por vaacuterios estudiosos para confrontar interpretaccedilotildees em busca de uma
classificaccedilatildeo para seu aspecto heterogecircneo e consequentemente original Disporemos
essencialmente aqueles que nos sirvam para o presente estudo Dessa forma tentaremos
compreender a natureza da obra de Oviacutedio a partir daqueles procedimentos literaacuterios do autor
relevantes para a sua composiccedilatildeo mas que sobretudo convirjam com o objetivo do nosso
trabalho
Em seu livro A Literatura Latina em breve apresentaccedilatildeo da obra Zeacutelia de Almeida
Cardoso jaacute nos aponta a dificuldade de enquadrar Metamorfoses em algum gecircnero Pois
apesar do ldquotom eacutepico dos versos hexacircmetros e do emprego sistemaacutetico da narraccedilatildeordquo (2011 p
83) natildeo se pode caracterizar a obra como epopeia Natildeo haacute tambeacutem como denominaacute-la de
poema didaacutetico pois ldquomesmo que quiseacutessemos consideraacute-lo como uma tentativa de explicar o
universo pela teoria pitagoacuterica que admite a reencarnaccedilatildeo da alma iriacuteamos esbarrar sem
duacutevida na falta de qualquer fundamentaccedilatildeo cientiacuteficardquo (2011 p 83) diferente de como nos
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parece proceder Lucreacutecio em sua obra De Rerum Natura de cunho filosoacutefico Com efeito
devido agrave expressatildeo da sentimentalidade e da caracterizaccedilatildeo pessoal evidente em toda obra a
autora prefere consideraacute-lo de caracteriacutesticas literaacuterias mais proacuteximas aos poemas liacutericos
Em um vieacutes contraacuterio Manuel Rolph Cabeceiras em artigo intitulado As
Metamorphoses de Oviacutedio a arte poeacutetica na Roma antiga e os padrotildees eacutepicos propotildee
aceitarmos a obra como eacutepico a princiacutepio para que se possa discutir essa definiccedilatildeo Para isso
o autor evidencia a diversidade histoacuterica do gecircnero confrontando o que o proacuteprio mundo
greco-romano considerou como epopeia
Um dos elementos primeiramente destacados eacute a proacutepria meacutetrica eacutepica da obra Sabe-
se que o hexacircmetro natildeo eacute exclusivo da eacutepica poreacutem essa medida foi postulada como cacircnone
para o gecircnero sendo usada inclusive como um criteacuterio tipoloacutegico Aristoacuteteles Horaacutecio e o
proacuteprio Oviacutedio consideram esse metro como algo fundamental e natural agrave epopeia Segundo
Cabeceiras quaisquer dessas liccedilotildees enquadraria Metamorfoses no patamar de eacutepico pois natildeo
haacute eacutepicos em outra meacutetrica Para o autor a obra de Oviacutedio ainda abarca vaacuterias outras
caracteriacutesticas tipoloacutegicas do gecircnero como uma ldquovasta extensatildeo [] a multidiversidade de
episoacutedios todos imitando uma uacutenica accedilatildeo ndash a metamorfose anunciada no breviacutessimo
argumento proclamado nos versos iniciaisrdquo (2008 p 76)
O grande problema prossegue o autor encontra-se naqueles que definem quem estaacute
ou natildeo estaacute dentro dos criteacuterios Neste ponto os modernos conflitam com os antigos pelo
caraacuteter designativo de eacutepico Aqueles natildeo se cansam de ressaltar os problemas de
Metamorfoses evidenciando o seu caraacuteter fragmentaacuterio a sua unidade mal estruturada Para
eles a epopeia ldquodeve estar centrada na figura de um heroacutei a se bater por todo um povo ou um
fato heroico vivido por personagens humanas manipuladas de algum modo pelo arbiacutetrio dos
deusesrdquo (2008 p 73) apesar de nenhuma definiccedilatildeo desse tipo existir entre os antigos Para
os romanos por exemplo essa obra era considerada eacutepica apesar de suas concretas
inconsistecircncias tipoloacutegicas Quintiliano no livro X da Institutio oratoria elenca autores
eacutepicos enaltecendo primeiramente Virgiacutelio por ser o mais proacuteximo a Homero mas outros satildeo
listados como Corneacutelio Severo Serrano Valeacuterio Flaco Saleio Basso Lucano e o proacuteprio
Oviacutedio Para Secircneca Retor em Controuersia II Metamorfoses eacute interpretada como uma
epopeia nos padrotildees antigos motivo pelo qual ele mesmo lhe atribui o caraacuteter defeituoso em
sua elaboraccedilatildeo Eacute no mesmo tom que Secircneca Filoacutesofo condena o eacutepico de Oviacutedio Assim
mesmo conferindo-lhe o caraacuteter eacutepico Secircneca pai e filho junto com Quintiliano recusam as
possiacuteveis inovaccedilotildees trazidas por Oviacutedio criticando toda tentativa de ldquoruptura consciente da
ortodoxia firmada em torno do gecircnero eacutepico em prol de sua renovaccedilatildeordquo (2008 p 87)
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Eacute nesse ponto em que se concentra o artigo de Manual Cabeceiras em defesa de
Oviacutedio como poeta de eacutepica a sua renovaccedilatildeo Eacute possiacutevel ver a evoluccedilatildeo e adaptaccedilatildeo de tal
gecircnero em cada tempo promovendo-se assim a sua diversidade histoacuterica No periacuteodo
heleniacutestico especialmente vecirc-se um refluxo de seu paradigma pois para o influente
Caliacutemaco seguindo os ditames de sua arte poeacutetica esboccedilada no proacutelogo da obra conhecida
como Contra os Telquinos eacute demasiado extenso o eacutepico Argonautas de quatro cantos de
Apolocircnio de Rhodes apesar de alcanccedilar pouco mais de um quarto dos versos da Odisseia
Passara tambeacutem para Caliacutemaco a eacutepoca ldquode uma obra de uma soacute peccedila [] cujo intuito era
cantar os feitos gloriosos de reis e heroacuteisrdquo (2008 p 81) Segundo Manuel Cabeceiras em
Alexandria nesse periacuteodo as obras de Homero natildeo eram tatildeo apreciadas pelo gosto comum
como antes Os exemplares poeacuteticos aclamados de entatildeo seriam os epigramas inclusive
alcanccedilando a Roma de Ecircnio Apesar das inovaccedilotildees trazidas ao gecircnero por Apolocircnio de
Rhodes seguindo o gosto de entatildeo como um maior aprofundamento subjetivo dos
sentimentos uma trivialidade impregnada na representaccedilatildeo dos deuses e uma maior
humanizaccedilatildeo de deuses e heroacuteis sua extensatildeo natildeo era a ideal Tal entendimento parece
justificar o desenvolvimento do epiacutelio pequeno poema eacutepico que dentro da proposta esteacutetica
de Caliacutemaco dispotildee uma narrativa breve
Contudo esta parece ser a perspectiva de Manuel Cabeceiras quanto a Oviacutedio e sua
Metamorfoses uma tentativa de renovar o gecircnero eacutepico sob certa influecircncia do periacuteodo
heleniacutestico Apesar de negar agrave sua obra a brevidade Oviacutedio retomaria essa maior trivialidade
dos deuses em detrimento de seu caraacuteter solene e a intensa subjetividade e presenccedila da
afeiccedilatildeo pessoal como elemento desencadeador das accedilotildees enredadas na obra Seguindo
portanto o gosto alexandrino segundo Manuel Cabeceiras o cotidiano se tornaria eacutepico
Assim descrevem-se cenas familiares mesmo quando representando deuses e heroacuteis
introduzem-se muitas comparaccedilotildees e digressotildees expondo o iacutentimo dos personagens nunca
arbitrariamente mas ora anunciando e ora retardando o desfecho da accedilatildeo Por fim para
Manuel Cabeceiras que defende Metamorfoses como uma nova configuraccedilatildeo do eacutepico
Oviacutedio abraccedilando os postulados de Caliacutemaco elabora a unidade de sua obra tatildeo ferozmente
criticada natildeo a partir de um povo ou heroacutei No lugar se impotildee um outro componente a
metamorfose tema central de sua obra e protagonista de suas histoacuterias A nobreza e o sublime
estariam entatildeo na representaccedilatildeo do universo e das transformaccedilotildees coacutesmicas especialmente
nos mitos que os compotildeem
Com efeito os cerca de duzentos e cinquenta episoacutedios ou mitos presentes na obra
qualificados por Cardoso exatamente como lendas etioloacutegicas uma vez que apresentam a
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causa e a origem de muacuteltiplos seres (2011 p 83) parecem natildeo engendrar uma unidade eacutepica
conforme muitos autores Essa disposiccedilatildeo aparentemente natildeo unitaacuteria reconstitui uma das
caracteriacutesticas do mito para outros Eacute o caso de Elaine Prado dos Santos que evidencia no
poema Metamorfoses esse aspecto especialmente ao considerar que segundo Burkert (apud
SANTOS 2010) Oviacutedio recupera algo da vida do antigo mito No entanto essa aproximaccedilatildeo
com o mito natildeo se daacute pela qualidade etioloacutegica dos mitos presentes na obra visto que essa
autora revela que o caraacuteter miacutetico disposto na obra importa mais por suas qualidades
imaginativas e estiliacutesticas que fundamentam a originalidade do texto ovidiano Quanto ao seu
conteuacutedo ainda descreve que as metamorfoses se dispotildeem em uma temporalidade proacutepria
alheia a uma progressatildeo cronoloacutegica linear na qual os episoacutedios natildeo apresentariam uma
correspondecircncia narrativa imediata ou de causalidade tornando-as independentes umas das
outras A autora prossegue elucidando que natildeo haacute uma sistematizaccedilatildeo dos mitos apresentados
a fim de criar uma unidade e que assim evita-se a lucidus ordo horaciana ou seja uma
ordem luacutecida e clara de sua disposiccedilatildeo (2010 p 189) Haacute portanto uma impressatildeo de
unidade na qual se realiza uma trama temaacutetica de relaccedilotildees e associaccedilotildees de caraacuteter
circunstancial Devido a isso tal viacutenculo que une os episoacutedios muitas vezes eacute julgado pelos
criacuteticos como artificial e inferior quanto agrave qualidade literaacuteria
Apesar de ser uma caracteriacutestica constante e de ser um instrumento condutor da obra a
metamorfose natildeo estrutura a continuidade narrativa compondo a unidade eacutepica teorizada por
Aristoacuteteles ou Horaacutecio pois o tema da transformaccedilatildeo natildeo desencadeia uma progressatildeo dos
episoacutedios conduzindo as accedilotildees em uma noccedilatildeo de causalidade A metamorfose sequer estaacute
concentrada nos personagens protagonistas se eacute que haacute realmente esse tipo na obra pois
muitos desses personagens natildeo sofrem transformaccedilatildeo A metamorfose em vaacuterios momentos
como afirma Elaine Prado dos Santos (Ibidem p 192) eacute tangencial tal eacute o caso de Faetonte
cujas irmatildes satildeo quem se transformam em aacutervores por exemplo Isso tambeacutem se faz possiacutevel
porque a continuidade narrativa natildeo se apresenta no texto centralizada nas accedilotildees
evidenciando assim uma cadeia sequencial e uma noccedilatildeo de causalidade O elo narrativo que
entrelaccedila os episoacutedios eacute repetimos circunstancial e se faz tambeacutem por meio de um
personagem natildeo necessariamente principal ou de um lugar onde vaacuterias histoacuterias acontecem
etc
Parece-nos que essa continuidade narrativa na Metamorfoses se constroacutei sob uma
aparente incoerecircncia unitaacuteria uma vez que apesar de terem a transformaccedilatildeo como elemento
comum os episoacutedios natildeo tecircm relaccedilatildeo imediata entre si O tema comum e a disposiccedilatildeo dos
episoacutedios tornam a obra una sob um ponto de vista aquele que contempla o conjunto como
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um canto ininterrupto perpertuum carmen (Metamorfoses I v 4) uma narrativa que se
prolonga do nascimento do cosmo ao momento presente do autor ab origine mundi ad mea
[] tempora (Ibidem I v 3-4)
Jaacute que natildeo haacute uma relaccedilatildeo direta entre os mitos apresentados de forma a dispocirc-los
com uma unidade estrutural Oviacutedio os ordena por meio de uma teacutecnica narrativa que encaixa
os episoacutedios uns nos outros a partir de afinidades e semelhanccedilas circunstanciais soacute possiacuteveis
pela disposiccedilatildeo escolhida pelo autor Como ainda indica Santos (Ibidem p 201) satildeo
muacuteltiplas as conexotildees usadas como elo entre os episoacutedios
A autora explica por exemplo que o mito do diluacutevio e o de Apolo e Dafne presente
no Livro I e sem relaccedilatildeo imediata entre si satildeo dispostas em sequecircncia O elemento unificador
dos dois episoacutedios estaacute no aparecimento do monstro Piacuteton nascido da lama da terra
proveniente da inundaccedilatildeo e que seraacute morto por Apolo personagem sobre o qual o novo foco
narrativo daacute continuidade agrave trama da obra (Ibidem p 194) Muitos dos elos tambeacutem satildeo
temaacuteticos como esclarece Elaine Prado dos Santos ldquoA lenda do escultor Pigmaliatildeo que cria
da pedra uma mulher eacute justaposta agraves Propeacutetidas ndash mulheres que se tornaram pedras (Ov Met
X 238 ndash 297) ndash portanto uma lenda se torna inversatildeo da outrardquo (SANTOS 2014 p 204)
assim o elemento pedra como a origem ou o fim da transformaccedilatildeo torna-se o viacutenculo entre
dois mitos que se distanciam completamente na perspectiva de uma loacutegica causal de accedilotildees em
cadeia
Dentro dessa teacutecnica narrativa de encaixe dos episoacutedios uns nos outros empregada por
Oviacutedio Alessandro Barchiesi (2006 p 181) elege para aprofundamento do estudo da obra
Metamorfoses a utilizaccedilatildeo de um tradicional componente eacutepico o narrador interno Isso se daacute
quando o narrador descreve personagens que tambeacutem narram histoacuterias e que para isso lhes
passa a palavra conferindo dois niacuteveis narrativos ao texto O primeiro no qual o personagem
tem suas accedilotildees narradas e o segundo em que o personagem se torna o narrador interno de
uma segunda histoacuteria Assim articula-se uma narrativa dentro de outra
Com efeito para a Literatura Grega um grande modelo dessa teacutecnica eacute a Odisseia de
Homero na qual o proacuteprio Odisseu personagem do primeiro niacutevel narrativo torna-se
narrador interno de suas proacuteprias histoacuterias nos Cantos IX - XII Poreacutem Odisseu participa
como personagem dos dois niacuteveis narrativos Para a Literatura Latina um grande expoente
eacutepico dessa teacutecnica eacute Virgiacutelio com a Eneida Semelhante a Odisseu no texto homeacuterico
Eneias personagem central da obra torna-se tambeacutem narrador interno de suas proacuteprias
histoacuterias nos Livros II e III Obviamente que alguns personagens do segundo niacutevel narrativo
tambeacutem podem se transformar em narradores internos criando entatildeo um terceiro niacutevel Eacute o
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caso de Siacutenon no Livro II da Eneida Siacutenon eacute um personagem pertencente ao segundo niacutevel
da narrativa compondo a histoacuteria narrada por Eneias Sendo grego coube a Siacutenon a funccedilatildeo de
convencer os troianos a levarem o cavalo de madeira para dentro das muralhas de Troia Esse
convencimento se faz por meio de uma narrativa do proacuteprio grego Assim temos no primeiro
niacutevel Eneias como personagem no segundo niacutevel Eneias como narrador interno e Siacutenon
como personagem e em um terceiro niacutevel Siacutenon como narrador interno
Esse tipo de articulaccedilatildeo de niacuteveis narrativos por meio de narradores internos eacute comum
ao gecircnero eacutepico sob uma forma especiacutefica um procedimento antigo na arte de narrar
nomeado pelos antigos de ὕστερον πρότερον ou como chamamos analepse ou flashback que
consiste em inversatildeo do tempo retomando-se um passado por meio de um heroacutei que o
rememora De acordo com Pierre Grimal esse recurso oferece algumas vantagens
A primeira delas reacender a atenccedilatildeo dos ouvintes (pois os poemas eacutepicos se formaram como todos sabem dentro de uma literatura oral sendo recitados e natildeo lidos e essa origem permaneceraacute perceptiacutevel ao longo das obras e dos seacuteculos a enumeraccedilatildeo dos eventos como num diaacuterio de bordo dia apoacutes dia eacute um tanto cansativa Mas haacute outra razatildeo essa inversatildeo do tempo essa volta atraacutes [] lanccedila luz sobre uma seacuterie de causas que resultam no presente e eacute exatamente um dos objetivos do poema eacutepico na medida em que se esforccedila por discernir a loacutegica interna ou pelo menos a continuidade racional do devir (1992 p 219)
O ponto nodal do uso desse recurso no gecircnero eacutepico se alicerccedila como diz Grimal em
distinguir uma loacutegica interna ou seja em estruturar a cadeia progressiva das accedilotildees desde
aquelas que figuram a obra ateacute aquelas apenas mencionadas como origem dessa cadeia e que
necessariamente natildeo precisam ser narradas Alessandro Barchiesi explica que a maioria dos
narradores internos da Odisseia e da Eneida estatildeo bem situados na trama distribuindo de
forma equilibrada as informaccedilotildees de todos os niacuteveis narrativos (Ibidem p 182-183)
Claramente isso eacute articulado para tornar visiacutevel uma determinada estrutura narrativa
Na estrutura de Metamorfoses continua o autor esse recurso eacute tanto unitaacuterio quanto
fragmentaacuterio pois as muacuteltiplas narrativas inseridas por narradores internos algumas vezes satildeo
bem estruturadas mas muitas vezes satildeo imprevisiacuteveis Assim a tradiccedilatildeo eacutepica de utilizaccedilatildeo
desse mecanismo natildeo oferece um guia seguro na compreensatildeo da estrutura da obra de Oviacutedio
Como jaacute vimos anteriormente esse caraacuteter fragmentaacuterio se estabelece pela natureza
circunstancial dos elos narrativos poreacutem eacute proposital e traz como consequecircncia inovaccedilotildees
especialmente no acircmbito dos niacuteveis narrativos
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Em toda a sua extensatildeo a obra Metamorfoses desenvolve suas narrativas por meio de
narradores internos natildeo centralizados em um uacutenico personagem que rememora seu passado
para explicar sua situaccedilatildeo presente tal qual na tradiccedilatildeo eacutepica Oviacutedio renova esse recurso de
maneira bem complexa Podemos observar no livro X um pouco da originalidade dada por
Oviacutedio ao recurso
Nesse livro o narrador passa a voz para o personagem Orfeu que canta aos animais e
plantas o encontro de Vecircnus e Adocircnis a qual tambeacutem narra a este a histoacuteria de Atalanta
Temos assim trecircs narradores satildeo eles o narrador poeta (no primeiro niacutevel narrativo) o
narrador interno Orfeu (no segundo) e o narrador interno Vecircnus (no terceiro) Observa-se
que em nenhum desses casos haacute narrativas de suas proacuteprias histoacuterias pelos personagens com
o objetivo de fornecer o discernimento de uma loacutegica interna que contextualize o momento
presente em que se passa a accedilatildeo central Esses niacuteveis narrativos certamente vinculam um
propoacutesito inovador de Oviacutedio Eacute por meio desse recurso que o autor une variados mitos uns
aos outros encadeando-os por afinidades e semelhanccedilas Contudo por mais que natildeo haja uma
noccedilatildeo de causalidade entres os episoacutedios ainda haacute uma consequecircncia semacircntica na sua
disposiccedilatildeo
O personagem Orfeu jaacute como narrador invoca sua matildee a musa Caliacuteope e Juacutepiter
para que ele possa cantar a histoacuteria dos jovens que foram amados pelos deuses Sob esse tema
o mito do amor de Juacutepiter por Ganimedes o de Apolo por Jacinto e o de Vecircnus por Adocircnis
satildeo por exemplo encadeados Natildeo haacute entre eles relaccedilatildeo causal na qual possamos ver em um
a origem do outro por um desdobramento progressivo das accedilotildees No entanto observa-se
apenas afinidade temaacutetica que os conecta Poreacutem dentro da narrativa de Orfeu sobre Vecircnus e
Adocircnis insere-se uma outra narrativa em terceiro niacutevel a histoacuteria de Atalanta e Hipomenes
narrada pela deusa ao amado Haacute um propoacutesito semacircntico dessa inserccedilatildeo que antecipa e
prepara o desfecho do amor de Vecircnus e Adocircnis Na histoacuteria de Atalanta e Hipomenes os dois
satildeo transformados em leotildees animais que compotildeem o argumento de Vecircnus na advertecircncia ao
seu amado jovem caccedilador natildeo caccedilar os animais que mostram o peito para a luta pois ruinosas
satildeo as suas consequecircncias
O propoacutesito didaacutetico da narrativa de Vecircnus sobre a metamorfose de Atalanta e
Hipomenes tem uma consequecircncia semacircntica direta sobre o desfecho de Adocircnis uma vez que
esse caccedilador morre ao confrontar um javali animal que enfrenta seus caccediladores e natildeo foge A
relaccedilatildeo semacircntica se constroacutei no caraacuteter traacutegico disposto entre os episoacutedios pois o heroacutei
Adocircnis morre segundo a maneira anunciada pela deusa O heroacutei natildeo soacute executa aquilo que
deveria evitar mas o faz conhecedor das consequecircncias eventuais e inerentes ao ato Assim
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sem a narrativa de Vecircnus o elemento traacutegico da morte de Adocircnis estaria diminuiacutedo ou mesmo
ausente Podemos ainda dizer que a histoacuteria de Atalanta e Hipomenes tem objetivos
diferentes a depender da instacircncia narrativa No primeiro niacutevel o propoacutesito eacute vincular o tema
da metamorfose no segundo niacutevel com Orfeu como narrador interno eacute compor o tema dos
jovens amados por deuses por meio da descriccedilatildeo dos cuidados do amor de Vecircnus por Adocircnis
no terceiro niacutevel eacute estruturar o caraacuteter proleacuteptico e traacutegico da futura morte por meio da
advertecircncia da deusa inserida no aspecto didaacutetico de sua narrativa
Observa-se assim a inovaccedilatildeo do tratamento que Oviacutedio daacute ao narrador interno
renovando sua funccedilatildeo com o encadeamento dos episoacutedios sem nenhuma relaccedilatildeo de
progressatildeo loacutegica das accedilotildees tal qual componente costumeiro da tradiccedilatildeo eacutepica mas por meios
de afinidades e semelhanccedilas circunstanciais
Devido a essa inovadora construccedilatildeo narrativa Alessandro Barchiesi (2006) comenta
que mais do que a urdidura de feitos humanos e divinos acepccedilatildeo claacutessica do eacutepico na
Metamorfoses observa-se o entrelaccedilamento de narrativas humanas e divinas Com efeito o ato
comunicativo encontra lugar patente nos propoacutesitos da obra e o ato de narrar se torna um
recurso central nos mitos vinculando para isso vaacuterios narradores internos Por consequecircncia
disso comenta o autor haacute tambeacutem uma espeacutecie de hierarquizaccedilatildeo das vozes dos personagens
na obra Assim
natildeo coincidentemente o primeiro narrador interno do poema eacute o personagem de maior autoridade Juacutepiter (I 182 ndash 243) e tambeacutem ele eacute a uacuteltima voz a falar no poema (a narrativa no tempo futuro XV 807 ndash 42 coroando o discurso de abertura de Juacutepiter na Eneida I 257 ndash 96) Por meio disso o autor mostra grande respeito pela teacutecnica de ldquonarrativa dentro de narrativardquo os assuntos das duas histoacuterias destinadas ao pai dos deuses e dos homens satildeo respectivamente a metamorfose de um tirano em lobo e a metamorfose de um liacuteder universal em uma estrela (2006 p 181 ndash 182 traduccedilatildeo nossa)
Esse ato comunicativo se impotildee na obra de forma que os personagens tendem a se
tornar narradores Contudo esse recurso estiliacutestico parece ser desdobramento de um outro
extremamente abundante tanto em Homero quanto em Metamorfoses e que constitui base da
natureza eacutepica o discurso direto Esse elemento eacute tatildeo importante para os poemas homeacutericos
que ocupa cerca de dois terccedilos de sua totalidade (PEREIRA 1984 p 3) e conjuntamente com
a modalidade narrativa compotildee a natureza da eacutepica
No Livro XIII da obra em que o autor nos mostra reunidas as metamorfoses de
personagens entre os quais alguns pertencem aos mitos do ciclo da Guerra de Troia como o
de Aacutejax de Heacutecuba de Mecircmnon por exemplo o papel do discurso direto tem como foco a
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persuasatildeo A relevacircncia dos narradores internos desse momento como do sacerdote Acircnio de
Galateia e de Glauco parece ser sobrepujada pela do discurso persuasivo de personagens
como Aacutejax Ulisses Polifemo e Glauco que proferem suas palavras com o objetivo de
demover seus interlocutores Reiterando essa perspectiva Elaine Fantham afirma que natildeo
devemos nos esquecer dos modelos declamatoacuterios tomados como exerciacutecios de retoacuterica nos
quais Oviacutedio foi educado sobretudo porque a oratoacuteria de sua eacutepoca se dobrava sobre a nova
praacutetica de discursos improvisados acerca de questotildees privadas ou histoacutericas conjuntamente
com o interesse na declamaccedilatildeo na dicccedilatildeo e na prosa riacutetmica (2009 p 27) Isso implica ao
texto o eventual uso de teacutecnicas retoacutericas de argumentaccedilatildeo Com esse entendimento
reconhecemos em Oviacutedio um autor que se utiliza abundantemente do discurso direto ao estilo
eacutepico transformando seus personagens natildeo soacute em narradores internos mas agora tambeacutem em
oradores Essa conjectura parece ser imprescindiacutevel para o estudo do nosso corpus o episoacutedio
da disputa entre o Telamocircnio e o Laertida pelas armas de Aquiles presente nos primeiros 398
versos do Livro XIII
Esse episoacutedio jaacute havia sido tema nas obras de Homero Piacutendaro Eacutesquilo e Soacutefocles
como jaacute vimos aleacutem de vaacuterias outras entre as quais as trageacutedias latinas Ajax de Ennius ou
Julgamento das Armas de Pacuvius e Accius Segundo Hopkinson estas uacuteltimas inseridas no
periacuteodo republicano romano provavelmente pouco teriam influenciado Oviacutedio (2000 p 16)
Contudo entre as vaacuterias possibilidades de influecircncia um par de discursos declamatoacuterios
oriundos de exerciacutecios retoacutericos da Greacutecia da segunda metade do Seacuteculo V a C estaacute presente
de forma evidente na base dos argumentos conferidos a Aacutejax e a Odisseu sobretudo do
primeiro Atribuiacutedo a Antiacutesthenes esse texto jaacute conferia aos argumentos do Telamocircnio o
contraste entre accedilatildeo e palavra as accedilotildees noturnas de Ulisses sob uma perspectiva negativa a
sua loucura fingida para fugir agrave convocaccedilatildeo o escaacuternio em observar que este natildeo teria
compleiccedilatildeo fiacutesica para sustentar as armas requeridas entre outras (Ibidem p 15)
Isso corrobora a carga retoacuterica dos discursos empregados em especial porque o
episoacutedio corresponde a uma disputa de oratoacuteria ou seja os personagens tentam convencer os
juiacutezes da contenda de que satildeo merecedores das armas de Aquiles e se alongam bastante nessa
empreitada Dada a voz aos personagens pelo narrador externo o discurso do heroacutei de
Salamina abrange do verso 5 ao 122 e o do proveniente de Iacutetaca do 128 ao 381 A extensatildeo
do discurso do segundo que corresponde ao dobro de seu adversaacuterio agregada agrave oposiccedilatildeo de
accedilatildeo e palavra conforme vimos anteriormente ser caracteriacutesticas marcantes desses
personagens faz-nos supor antes mesmo de termos contato com o episoacutedio que ele tem a
vantagem e a eventual vitoacuteria nessa disputa de oratoacuteria E assim acontece
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No entanto por mais que fossem utilizadas variadas teacutecnicas de retoacuterica e seus
lugares-comuns o arranjo eficaz da linguagem na Metamorfoses natildeo eacute usado apenas para o
sucesso persuasivo de certos personagens mas sobretudo para uma efetiva caracterizaccedilatildeo dos
mesmos Essa seria a grande conquista de Oviacutedio no desenvolvimento da linguagem em
contextos retoacutericos acredita Fantham (2009 p 31) Nosso estudo segue exatamente esse vieacutes
Natildeo procuramos identificar os elementos eficazes ou natildeo no discurso dos heroacuteis ou contrapocirc-
los ao texto de Antiacutesthenes mas reconhecer quando estes elementos delineiam a
caracterizaccedilatildeo do heroacutei sobretudo quando satildeo influenciados sob a perspectiva das noccedilotildees de
virtude e ira Assim por exemplo apesar de faltar sofisticaccedilatildeo ao discurso de Aacutejax Oviacutedio
ainda lhe impotildee a utilizaccedilatildeo de jogo de palavras e paradoxos sob um teor sarcaacutestico e
contundente a qual parece delinear o estado emocional do personagem a ira que acomete o
personagem um elemento tradicional de sua caracterizaccedilatildeo
Neil Hopkinson que dedicou todo um estudo ao Livro XIII de Metamorfoses
comentando-o verso a verso observa a mesma importacircncia da oratoacuteria em seus episoacutedios e
apresenta uma seccedilatildeo que recai sobre suas questotildees retoacutericas Apoiado nos escritos retoacutericos de
Quintiliano e Ciacutecero aponta que gregos e romanos mesmo acreditando que a fonte e a origem
da eloquecircncia jaacute estejam em Homero por meio de trecircs estilos distinguidos o grande (grauis)
o meacutedio (mediocris) e simples (attenuata) reconhece-se que os melhores oradores se
adequam agraves circunstacircncias mesclando todos os tipos destes assim promovendo um estilo
mais emocional de exortaccedilatildeo direcionado agrave excitaccedilatildeo de uma multidatildeo ou mais intelectual
designado a receber a aprovaccedilatildeo de senadores e juiacutezes (2000 p 16-17)
Devido a isso um elemento se torna determinante para os oradores a quem se
direcionam os discursos Em sua anaacutelise esse estudioso destacou que apesar de bom o
discurso de Aacutejax jaacute estaria fadado agrave derrota pois se direciona agrave massa de soldados sem nome
que natildeo possuem poder de voto algum diferentemente de Ulisses que visa aos reis No
entanto mesmo estando presentes muitos elementos dos manuais de retoacuterica como bons
argumentos figuras de linguagens bem empregadas perguntas retoacutericas ou sentenccedilas
contundentes e exclamaccedilotildees em momentos de cliacutemax faltam sobretudo ao discurso de Aacutejax
segundo o autor organizaccedilatildeo e proporccedilatildeo (Ibidem p 20)
Diante dessa disposiccedilatildeo pensamos existir no discurso do Telamocircnio corroborando
sua unidade textual uma organizaccedilatildeo dos argumentos uma reiteraccedilatildeo de determinados
conteuacutedos uma recorrecircncia de certos recursos retoacutericos bem significativos do ponto de vista
da caracterizaccedilatildeo do heroacutei e de alguma forma que retomam a tradiccedilatildeo No episoacutedio em
questatildeo tal composiccedilatildeo alicerccedila um discurso que provavelmente eacute elaborado para trazer a
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aparecircncia de retoacuterica direta veemente e contundente Por consequecircncia por um lado o
discurso parece se apoiar na forccedila de argumentos e no vigor de uma elocuccedilatildeo que se fazem
presentes sobretudo pelos atos rememorados do personagem os quais definem uma
determinada conduta heroica propriamente homeacuterica e pelas contundentes perguntas
retoacutericas que ao nosso ver caracterizam o heroacutei segundo suas recorrentes qualidades
guerreiras Por outro lado especialmente a violecircncia dos escaacuternios e das ironias e a
disposiccedilatildeo conturbada do conteuacutedo esta que tem uma coerecircncia interna e um encadeamento
loacutegico que segue um princiacutepio de afinidades e semelhanccedilas circunstanciais para noacutes parecem
enfatizar seu estado emocional iracundo Certamente isso foi considerado por Oviacutedio uma
vez que a ira evidenciada no episoacutedio estaacute presente desde a tradiccedilatildeo arcaica Vejamos um
pouco dessa disposiccedilatildeo em uma breve paraacutefrase
Aacutejax inicia seu discurso de modo conturbado que para Hopkinson representa a
ausecircncia de um exoacuterdio (Ibidem p 20) fazendo a oposiccedilatildeo entre ele e Ulisses precisamente
sob o contraste de accedilatildeo e palavra conferindo agrave uacuteltima uma natureza ligada agrave mentira
Prossegue a sua linhagem oriunda de Juacutepiter Sob esse tema e por essa afinidade o heroacutei
encadeia o proacuteximo argumento a acusaccedilatildeo ao adversaacuterio por meio de sua linhagem nefanda
Opotildee agrave sua origem a de Ulisses que vem de Siacutesifo e por isso tanto quanto este possui por
natureza a predisposiccedilatildeo e a vocaccedilatildeo ao crime Para evidenciar entatildeo a natureza de Ulisses
Aacutejax dando prosseguimento agraves acusaccedilotildees comprova-a com trecircs acontecimentos os casos de
Palamedes de Filoctetes e de Nestor Todos os episoacutedios satildeo apresentados descrevendo o
dolo e a covardia de Ulisses que causa mal aos heroacuteis supracitados de forma individual e
tambeacutem a todos os gregos em aspecto coletivo Contudo no uacuteltimo fato narrado o crime
levantado eacute o abandono de Ulisses a Nestor em plena batalha deixando-o sozinho agrave mercecirc
dos exeacutercitos troianos Sob esse uacuteltimo tema encadeando os dois assuntos o heroacutei de
Salamina entatildeo retoma sua defesa aproveitando o ensejo para se contrapor mais uma vez ao
adversaacuterio O argumento apresentado eacute o salvamento que ele mesmo faz ao proacuteprio Ulisses
durante uma batalha Fica evidente que a retomada agrave defesa se faz por meio de uma
semelhanccedila circunstancial da proteccedilatildeo de um igual um heroacutei durante as batalhas nunca o
abandonando De mesmo modo prossegue com a apresentaccedilatildeo de sua defesa contra Heitor e
de sua proteccedilatildeo agraves naus gregas Durante todo esse processo reforccedila-se a oposiccedilatildeo entre o
homem de accedilatildeo ele proacuteprio e o homem da palavra o Laertida que retomada ao fim do
discurso ilustra a coerecircncia do possuidor das armas ser consequentemente ele mesmo o
Telamocircnio A resposta de Ulisses mais difiacutecil segundo as premissas retoacutericas uma vez que
exige a refutaccedilatildeo dos argumentos do acusador faz-se eficaz ao nosso ver especialmente
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porque evidencia o meacuterito das accedilotildees que influenciam diretamente na conquista de Troia
sejam accedilotildees passadas como a retirada do Palladium de Atenas que estava em Troia ou
futuras como a retomada do arco de Heacutercules em posse de Filoctetes que soacute seraacute possiacutevel
atraveacutes da persuasatildeo de Odisseu sobre este Estes fatos satildeo importantes porque figuram na
literatura do ciclo da guerra de Troia as condiccedilotildees profeacuteticas sobretudo de cunho religioso
para que os gregos se tornem vitoriosos na expediccedilatildeo Ulisses assim opotildee a eficaacutecia de suas
accedilotildees aos valores heroicos de Aacutejax cujos atos natildeo parecem exercer forccedila sobre a conquista de
Troia aleacutem de adequar relevantemente seu discurso agrave audiecircncia atraveacutes de variadas teacutecnicas
de argumentaccedilatildeo retoacuterica Dessa forma a inteligecircncia se sobrepocircs agrave forccedila tal qual parece ter
acontecido na disputa entre esses dois heroacuteis nos jogos fuacutenebres em homenagem a Paacutetrocles
no Canto XXIII da Iliacuteada (cf p 20) Para Hopkinson natildeo haacute nada de extraordinaacuterio na
disposiccedilatildeo e no arranjo dos argumentos desse heroacutei contudo seu ponto forte realmente estaacute
na sua retoacuterica de desarme com a qual refuta as acusaccedilotildees do opositor e na sua postura
controlada e cuidadosa que segue as orientaccedilotildees dos manuais retoacutericos (Ibidem p 20-21)
Diante disso eacute notaacutevel que a maioria dos argumentos de ambos heroacuteis correspondam
aos mais recorrentes lugares-comuns e que como jaacute foi mencionado antes mais importante
do que isso eacute observar como essa composiccedilatildeo estrutura a caracterizaccedilatildeo tanto de Aacutejax quanto
de Ulisses (HOPKINSON 2000 p 16)
A unidade textual conferida ao episoacutedio de Oviacutedio considerando-se as informaccedilotildees
desenvolvidas acima parece reforccedilar a virtude e a ira guerreira do personagem sobretudo
defensiva Isso se torna mais evidente pelo reforccedilo semacircntico a essa proeminecircncia defensiva
por meio de atos e vocaacutebulos significativos para isso com os quais a participaccedilatildeo do escudo
se mostra fundamental Tambeacutem extremamente relevantes satildeo as duas menccedilotildees diretas a sua
ira (irae v3 iram v 385) que antecipa o seu discurso e fecha o episoacutedio delineando a
natureza do estado emocional do heroacutei Ambas emolduram a ira do personagem em torno da
disputa configurando inclusive como anterior e posterior ao evento
Conveacutem sempre pontuar uma vez que o estudo mais profundo seraacute disposto no
capiacutetulo seguinte que essa ira parece diretamente tratar do sentimento natural para o qual
Aacutejax se mostra propenso em especial por um lado por retomar-se a tradiccedilatildeo homeacuterica
alinhado o episoacutedio de Oviacutedio ao da Odisseia e por outro lado pela oposiccedilatildeo que o autor de
Metamorfoses faz entre ira e loucura furor quando se trata do mito desse heroacutei Visto que o
episoacutedio do Livro XIII natildeo trata do ataque do Telamocircnio aos rebanhos gregos seu autor nesta
obra soacute lhe configura iracundo diferentemente de como o faz em Amores no qual o eu-liacuterico
eacute tomado por uma loucura (furor I 7 v 2 e 3) que o faz atacar sua senhora tal qual o chefe
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de Salamina senhor do escudo de sete dobras abateu pelos vastos campos as greis
encontradas (clipei dominus septemplicis Aiax stravit deprensos lata per arva greges -
Ibidem v 7-8) Assim tentamos evidenciar como o estudo da caracterizaccedilatildeo desse
personagem sob todas as condiccedilotildees dispostas acima eacute profiacutecuo mesmo dentro dessa obra na
qual natildeo haacute personagens centrais
Diante de tudo o que foi exposto conveacutem relembrarmos que a aparente incoerecircncia
unitaacuteria proacutepria da narrativa miacutetica desenvolvida na Metamorfoses por meio do
encadeamento de episoacutedios com afinidades circunstancias e ora pela teacutecnica de
desdobramentos dos niacuteveis narrativos somada a uma carga liacuterica e traacutegica e a um tom eacutepico
coloca a obra em uma posiccedilatildeo singular um entrelugar Isso significa dizer que a complexa
situaccedilatildeo em que os estudiosos e criacuteticos colocam a obra nos permite analisaacute-la respeitando a
devida pertinecircncia a partir de elementos ou categorias da poesia liacuterica traacutegica ou eacutepica bem
como de caracteriacutesticas do mito em si ou de teacutecnicas da retoacuterica Essa polivalecircncia nos
oferece assim uma variada e rica possibilidade de interpretaccedilatildeo do poema e do episoacutedio
sendo possiacutevel conjugarem-se a grande expressatildeo de sentimentalidade liacuterica e o uso de
epiacutetetos eacutepicos tal qual os propoacutesitos homeacutericos por exemplo
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2 ESTUDO ISOLADO DA CARACTERIZACcedilAtildeO DO HEROacuteI
Disporemos neste capiacutetulo um estudo sobre a caracterizaccedilatildeo do personagem Aacutejax
especialmente relacionando o papel executado por ela na composiccedilatildeo estrutural das obras
considerando-se os niacuteveis relevantes e possiacuteveis do acircmbito literaacuterio Primeiramente faremos
uma anaacutelise sobre a obra grega de Soacutefocles Aias e em seguida sobra a latina de Oviacutedio
Metamorfoses Com efeito a organizaccedilatildeo das nossas anaacutelises segue um criteacuterio mais
adequado ao nosso propoacutesito e que consiste em dispocirc-la associando-se fragmentos que
manifestem marcas fundamentais de caracterizaccedilatildeo vinculadas ora agrave noccedilatildeo de virtude ora agrave
de ira
Como jaacute dissemos anteriormente empregamos em nossa pesquisa o lato entendimento
da teoria de Carlos Reis e de Ana Cristina Lopes acerca de caracterizaccedilatildeo a qual incorre
senatildeo nos traccedilos essenciais de um personagem estruturados em uma unidade identificada por
determinados indiacutecios textuais por meio da qual esse conjunto de atributos desempenha uma
funccedilatildeo essencial na composiccedilatildeo do enredo intensificando-se e se reiterando o eixo semacircntico
do argumento da obra (1988 p 193-195)
Consideramos ainda em nosso estudo as concepccedilotildees de caracterizaccedilatildeo do tipo direta e
indireta postuladas por esses mesmos autores contudo essas estatildeo submetidas a nossa
primeira divisatildeo De acordo com tais estudiosos o primeiro tipo corresponde a um de
procedimento estaacutetico constituiacutedo sobretudo a partir de descriccedilotildees cuja finalidade de
caracterizaccedilatildeo se mostra evidentemente expressa em uma determinada passagem do texto
Essa praacutetica pode ser executada pelo narrador externo e tanto pelo proacuteprio personagem
quanto por outro Em oposiccedilatildeo a esse o segundo tipo12 consiste em um processo dinacircmico e
mais disperso observado por meio dos discursos dos personagens da suas accedilotildees e reaccedilotildees em
certas situaccedilotildees significativas para isso (1988 p 194-195) Com efeito dentro das nossas
anaacutelises utilizaremos de forma despretensiosa essa tipologia para marcar sobretudo
determinadas observaccedilotildees assentando nesta uma interpretaccedilatildeo que busque esclarecer os
vaacuterios niacuteveis de referenciaccedilatildeo interna da obra revelando a complexidade do todo a partir do
estudo de algumas de suas partes
12 Esse tipo de caracterizaccedilatildeo eacute importante especialmente porque parece refletir as premissas aristoteacutelicas Segundo a interpretaccedilatildeo de Jones acerca da Poeacutetica a trageacutedia natildeo imita homens mas accedilotildees assim o caraacuteter eacutethos desenvolve-se para as accedilotildees e soacute nelas se revela quando executadas pelos personagens dessa forma o caraacuteter eacute incluiacutedo em funccedilatildeo da accedilatildeo sobretudo por ser o enredo myacutethos ou seja o arranjo das accedilotildees a alma da trageacutedia e o primeiro antes dos demais elementos (apud LUNA 2012 p 297-299) Assim ao nos referirmos a esse tipo recorremos de alguma forma ao procedimento proacuteprio para a literatura claacutessica greco-latina
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2 1 A VERSAtildeO DE SOacuteFOCLES
O estudo que disporemos a seguir tem como base a trageacutedia Aias de Soacutefocles
contudo restringir-nos-emos a alguns fragmentos selecionados recolhidos de vaacuterias seccedilotildees da
obra e coerentes com os objetivos do estudo A anaacutelise que propomos bem como os criteacuterios
adotados para apreciaccedilatildeo estatildeo submissos a duas categorias analiacuteticas jaacute definidas por noacutes
virtude e ira na caracterizaccedilatildeo de Aacutejax Ambas parecem ter igual papel fundamental no
episoacutedio impondo-se como chaves de leitura sem as quais a estrutura do texto se desfaz
parcial ou completamente Assim essa caracterizaccedilatildeo em que consiste esta seccedilatildeo trata da
forma pela qual Soacutefocles constroacutei o personagem dando-lhe profundidade e significado diante
do contexto da peccedila Em nossa anaacutelise observaremos trechos do texto que evidenciem esses
traccedilos caracteriacutesticos do heroacutei por meio de indiacutecios textuais capazes de demonstrar a funccedilatildeo
estrutural das categorias escolhidas para o episoacutedio
Devido agrave perspectiva adotada e visto que nossa anaacutelise recairaacute apenas sobre alguns
versos da trageacutedia faz-se necessaacuteria a estruturaccedilatildeo da peccedila em questatildeo de modo a
contextualizar em que passagens estatildeo inseridos os fragmentos escolhidos facilitando a
compreensatildeo do que seraacute apresentado A disposiccedilatildeo adotada abaixo foi desenvolvida por
Pascal Thiercy pois parece-nos mais didaacutetica uma vez que consiste em uma estruturaccedilatildeo
habitual da trageacutedia No entanto essa peccedila apresenta particularidades que tornam os limites de
alguns episoacutedios e estaacutesimos mais difiacuteceis de se estabelecer como por exemplo algumas
intervenccedilotildees liacutericas da peccedila ou a mudanccedila de lugar que decorre no meio do episoacutedio que eacute
comum agraves trageacutedias claacutessicas segundo aponta esse mesmo autor (2009 p 14-15) Assim
dispomos sua estrutura segundo o esquema tradicional facilitando a sua compreensatildeo Cabe-
nos ainda ressaltar que em nossa apreciaccedilatildeo do texto recorreremos a esta configuraccedilatildeo Satildeo
personagens Atena a deusa grega Aacutejax o heroacutei protagonista Tecmessa Teucro e Euriacutesaces
respectivamente a cativa o irmatildeo e o filho do Telamocircnio Odisseu Agamecircmnon Menelau
um mensageiro e o coro
1 Proacutelogo (v 1 ndash 133) este momento corresponde ao iniacutecio in medias res A cena eacute
desenvolvida agrave frente da tenda de Aacutejax na noite apoacutes a disputa pelas armas de Aquiles e ainda
durante a guerra de Troia Eacute o momento em que o heroacutei enganado encontra-se a torturar os
animais Junto com este figuram neste ato Odisseu que seguia os rastros do responsaacutevel
pela matanccedila e Atena que lhe revela toda a situaccedilatildeo e lhe exibe aquele como um exemplo de
excesso um modelo que deve ser punido
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2 Paacuterodo (v 134 ndash 200) a entrada do coro o qual representa o exeacutercito de Salamina
sob o comando do protagonista Em cena jaacute com o dia nascido dispotildee indagaccedilotildees ao chefe e
lamentos pelos boatos que surgem
3 Primeiro episoacutedio (v 200 ndash 595) os personagens Aacutejax e Tecmessa sua cativa
junto ao coro lamentam e esclarecem a situaccedilatildeo do heroacutei a intervenccedilatildeo de uma divindade no
infortuacutenio do personagem A peripeacutecia aristoteacutelica adensa o lamento da cena reconhece-se
que a vinganccedila que traria alegria e que lhe devolveria alguma honra desencadeia o seu
oposto pois a desonra torna-se ultraje e o lamento insurge-se contra a expectativa As
tentativas de demover o personagem de uma disposiccedilatildeo ao suiciacutedio natildeo alcanccedilam sucesso
4 Primeiro estaacutesimo (596 ndash 645) o coro ressalta o contraste da notoacuteria excelecircncia da
terra natal e da linhagem do heroacutei com a sua situaccedilatildeo calamitosa
5 Segundo episoacutedio (v 646 ndash 692) monoacutelogo do personagem principal no qual
vemos a sua disposiccedilatildeo ao suiciacutedio Reflexatildeo irocircnica e consequentemente velada para alguns
personagens conduz o coro e sua companheira agrave crenccedila de uma mudanccedila de pensamento A
partida do heroacutei eacute interpretada entatildeo como uma tentativa de reconciliaccedilatildeo com os gregos e
com os deuses
6 Segundo estaacutesimo (v 693 ndash 718) manifestaccedilatildeo de profunda alegria do coro oriundo
da maacute compreensatildeo das intenccedilotildees do Telamocircnio Prepara-se assim outra peripeacutecia
7 Terceiro episoacutedio (v 719 ndash 865) o lamento insurge-se novamente contra a
expectativa Com a participaccedilatildeo de Teucro irmatildeo do heroacutei e de um mensageiro todos tomam
conhecimento dos ditos do adivinho Calcas a ira da deusa Atena ainda persegue o heroacutei pelo
dia que resta e a sua salvaccedilatildeo dependeria da permanecircncia do mesmo com os proacuteximos na
tenda agora impossiacutevel durante esse tempo A cena muda de lugar e o monoacutelogo de
despedida eacute seguido do suiciacutedio de Aacutejax
8 Terceiro estaacutesimo kommoacutes (v 866 ndash 973) instaura-se uma gradaccedilatildeo do sofrimento
que teve iniacutecio no episoacutedio anterior A possibilidade de morte do heroacutei se concretiza quando
Tecmessa revela ao coro que o Telamocircnio foi encontrado morto ferido por espada Adensa-se
o sofrimento pela descoberta do suiciacutedio e pela eventual satisfaccedilatildeo de Odisseu e dos Atridas
diante do ato
9 Quarto episoacutedio (v 974 ndash 1184) Teucro e Menelau protagonizam esse momento
Adensa-se o sofrimento com a imposiccedilatildeo do Atrida em proibir os ritos fuacutenebres do heroacutei
10 Quarto estaacutesimo (v 1185 ndash 1222) o lamento do coro enfatiza o infortuacutenio do
personagem como uma das desgraccedilas que se impotildee a todos os gregos devido agrave nefasta guerra
de Troia
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11 Ecircxodo (v 1223 ndash 1420) a discussatildeo sobre o sepultamento do heroacutei ganha forccedila
com a presenccedila de Agamecircmnon o qual Teucro natildeo consegue demover sobretudo por
influecircncia de sua posiccedilatildeo de filho ilegiacutetimo Odisseu como um igual conquista tal permissatildeo
do Atrida Ameniza-se o sofrimento Os ritos tecircm iniacutecio presididos pelo irmatildeo do heroacutei
Conveacutem agora apresentarmos a metodologia de anaacutelise Primeiramente estudaremos
a categoria virtude na caracterizaccedilatildeo de Aacutejax Em seguida analisaremos a categoria ira Para
ambas tentaremos observar indiacutecios textuais que apontem uma unidade utilizando-se tanto de
fragmentos que apresentem de forma expliacutecita leacutexico relevante para o estudo quanto de accedilotildees
ou declaraccedilotildees de personagens das quais se podem extrair marcas significativas para o
reconhecimento de um caraacuteter As anaacutelises sempre se iniciaratildeo pelas caracterizaccedilotildees
expliacutecitas e mais claras Por fim demonstraremos como essas duas categorias se entrelaccedilam
para alcanccedilar uma unidade textual proacutepria para a peccedila assim para esta representando
fundamentais chaves de leitura e extinguindo qualquer noccedilatildeo circunstancial que se possa
inferir
2 1 1 Ἀρετή a virtude do heroacutei na perspectiva grega
Para o estudo desta seccedilatildeo utilizaremos o conceito de virtude do heroacutei areteacute (ἀρετή)
desenvolvido por Werner Jaeger em seus trabalhos sobre a cultura grega dos tempos remotos
Para este estudioso o conceito de areteacute eacute um tema fundamental para entender a cultura grega
da Antiguidade Claacutessica e especialmente do seu periacuteodo arcaico Apesar de todos os
problemas decorrentes da traduccedilatildeo de uma palavra como tal Jaeger a faz por meio do termo
ldquovirtuderdquo Contudo na tentativa de equivalecirc-la ao termo grego essa palavra deve ser
concebida ldquona sua acepccedilatildeo natildeo atenuada pelo uso puramente moral e como expressatildeo do
mais alto ideial cavalheiresco unido a uma conduta cortecircs e distinta e ao heroiacutesmo guerreirordquo
(2003 p 25) Tanto em Homero quanto em autores dos seacuteculos posteriores o sentido
especiacutefico da palavra revela um atributo proacuteprio do homem varatildeo da nobreza pois o homem
comum natildeo possuiacutea tal qualidade (Ibidem p 26) Segundo ainda este mesmo autor aacuteristos
(ἄριστος) seria raiz desse termo grego que em geral sobretudo em tempos primitivos
denomina ldquoa forccedila e a destreza dos guerreiros ou lutadores e acima de tudo heroiacutesmo
considerado natildeo no nosso sentido de accedilatildeo moral e separada da forccedila mas sim intimamente
ligado a elardquo (Ibidem p 27)
63
Apesar de existir o vocaacutebulo andreiacutea (ἀνδρεία) cuja origem estaacute na palavra homem
varatildeo aneacuter (ἀνήρ) sua formaccedilatildeo eacute posterior embora ela mesma seja ainda descrita por
Aristoacuteteles como um dos componentes de uma virtude areteacute mais abrangente tanto na obra
Retoacuterica a Alexandre (XXXV 1440b 15-20) atribuiacuteda ao estagirita quanto em Eacutetica a
Eudemo (apud MILLS 1980 p 199) Andreiacutea teria entatildeo (apud Ibdem p 199) o sentido
mais especiacutefico de coragem guerreira definida como uma melhor disposiccedilatildeo ou
comportamento (βελτίστη ἕξις) provavelmente mais moderado em relaccedilatildeo aos sentimentos
opostos de medo (φόβος) e audaacutecia (θάρρη) Contudo nossa escolha pelo uso do termo areteacute
para definir uma virtude guerreira eacute significativa porque nem Homero em suas duas epopeias
nem Soacutefocles na peccedila em questatildeo utilizou este uacuteltimo vocaacutebulo O que alicerccedila tanto o estudo
de Jaeger sobretudo a partir dos textos homeacutericos quanto fundamenta o autor Homero como
matriz absoluta dos conceitos arcaicos aos quais Soacutefocles remete sua obra Isso eacute claramente
observado no uso abundante do vocaacutebulo areteacute nos poemas homeacutericos e em Aias nas duas
ocorrecircncias desse termo (ἀρετᾶς v 617 ἀρετή v 1357) descrevendo Aacutejax e delineando-se
exatamente sua excelecircncia e superioridade guerreira como noacutes veremos ainda nesse capiacutetulo
Diante dessas razotildees parece-nos mais adequado utilizar o conceito de areteacute estabelecido por
Werner Jaeger (2003)
Por nosso corpus se tratar de uma trageacutedia em que natildeo haacute o objetivo de encenar a
guerra ou um combate singular a anaacutelise sobre a virtude do heroacutei areteacute (ἀρετή) sobretudo
sob o ponto de vista de uma excelecircncia guerreira de modelo arcaico e homeacuterico como eacute o
caso do caraacuteter do heroacutei em questatildeo tem como base o estudo da caracterizaccedilatildeo do tipo direta
ou seja menccedilotildees mais expliacutecitas dos personagens da peccedila inclusive do proacuteprio protagonista
e do coro que reconhecem esse valor evidentemente atribuiacutedo ao mesmo Esse tipo de
caracterizaccedilatildeo quando natildeo em uma perspectiva descritiva apresenta-se de forma narrativa
remetendo-se a atos do heroacutei externos aos limites da peccedila por meio de analepse A trageacutedia
assim natildeo daacute espaccedilo para accedilotildees propriamente eacutepicas das quais possamos retirar
caracterizaccedilotildees indiretas a natildeo ser quando revestidas de subjetividade proporcionem uma
peripeacutecia aristoteacutelica uma accedilatildeo vista como heroica apoacutes ser executada mostra-se na verdade
funesta e desastrosa
Uma vez que a ira estudada mais agrave frente manifesta-se segundo uma relaccedilatildeo com a
honra do personagem eacute importante entender como o seu valor guerreiro que a compotildee nesse
caso de forma preponderante estaacute disposto na composiccedilatildeo da peccedila Eacute a primazia guerreira
que faz o protagonista sobrevalorizar sua honra a ponto de se reconhecer superior aos chefes
gregos independente de suas prerrogativas e ao mesmo tempo depreciar a natureza dos
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deuses negando-lhes o poder que detecircm Em relaccedilatildeo agrave trageacutedia em questatildeo essa virtude
parece fundamentar duas coisas uma em cada metade da obra Na primeira enquanto o heroacutei
estaacute vivo quanto mais reconhecermos o valor do heroacutei especialmente na sua perspectiva
compreenderemos por que para ele mais graves satildeo os atos dos chefes gregos e a perseguiccedilatildeo
da deusa de forma que se justifique uma ira mais intensa Na segunda metade morto o
protagonista reconhece-se o seu valor sobretudo por parte de seu maior inimigo Odisseu de
forma que se justifique sua reabilitaccedilatildeo entre os gregos permitindo-se os ritos fuacutenebres e
reconsiderando-se sua nova condiccedilatildeo Em ambas eacute fundamental essa excelecircncia beacutelica como
um elemento estrutural da peccedila por um lado alicerccedilando a ira do heroacutei e por outro baseando
o oacutedio ponderado pelos inimigos
Iniciaremos o estudo pelos dois fragmentos que apresentam essa supremacia como
caracteriacutestica do protagonista um no primeiro estaacutesimo e outro no ecircxodo os quais refletem as
duas metades da obra as quais falamos acima Em ambos se potildee em destaque o epiacuteteto
homeacuterico e arcaico que ressalta seu poder marcial o melhor dos gregos depois de Aquiles E
estando morto o Pelida no contexto da obra fica claro que o Telamocircnio entatildeo ocupa a
posiccedilatildeo daquele tornando-se o maior dos guerreiros aqueus A essas passagens outras seratildeo
acrescidas ou de conteuacutedo ou de vocabulaacuterio significativo para contribuir com tal perspectiva
do estudo Analisemos a virtude do heroacutei inserida na primeira metade
[Χο] Κρείσσων γὰρ ῞Αιδᾳ κεύθων ὁ νοσῶν μάταν 635 ὃς ἐκ πατρῴας ἥκων γενεᾶς ἄριστος πολυπόνων ᾿Αχαιῶν οὐκέτι συντρόφοις ὀργαῖς ἔμπεδος ἀλλ ἐκτὸς ὁμιλεῖ 640 ῏Ω τλᾶμον πάτερ οἵαν σε μένει πυθέσθαι παιδὸς δύσφορον ἄταν ἃν οὔπω τις ἔθρεψεν δίων Αἰακιδᾶν ἄτερθε τοῦδε13 645
(Aias v 635-645)
O trecho potildee em evidecircncia a supremacia guerreira do heroacutei Sua virtude eacute senatildeo sua
inclinaccedilatildeo beacutelica pela qual se faz reconhecido pelo epiacuteteto homeacuterico ἄριστος Ἀχαιῶν cujas
variaccedilotildees estatildeo presentes tanto na Iliacuteada quanto na Odisseia e em outros autores arcaicos
conforme jaacute vimos no capiacutetulo anterior O reconhecimento desse atributo eacute feito pelo coro
que representa os soldados de Salamina cidade do heroacutei ou seja os seus proacuteximos Eacute notaacutevel
13
[Co] Pois se ocultando no Hades eacute preferiacutevel o loucamente doente (v 630) que da geraccedilatildeo paterna eacute o melhor dos Aqueus que sofrem muito jaacute natildeo firme na natural iacutendole encontra-se desta afastado (v 640) Oacute pai sofredor que desastre insuportaacutevel do filho te espera ser conhecido o qual ainda natildeo nutriu ningueacutem dos divos Eacidas com exceccedilatildeo deste (v 645)
65
que a perspectiva se daacute pelo vieacutes da dor e do sofrimento imposto pela guerra algo menos
eacutepico e mais traacutegico Dessa forma natildeo soacute Teacutelamon sofreraacute com a decisatildeo aparente do seu
filho como tambeacutem os gregos satildeo ditos muito sofredores πολυπόνων diante das
adversidades proacuteprias da guerra Na eacutepica este eacute o campo propiacutecio para as accedilotildees heroicas e
para o valor especialmente quando tratamos de circunstacircncias em que a morte se torna bela
Mas na trageacutedia impotildee-se uma realidade mais dura coerente com os propoacutesitos aristoteacutelicos
fundamentais de uma trageacutedia o sofrimento e o infortuacutenio (Poeacutetica 1453a 10-25) e assim a
guerra se torna um lugar natural dessa premissa no qual males coletivos sobrepotildeem os atos
individuais valorosos Em harmonia com essa propensatildeo traacutegica a disposiccedilatildeo de Aacutejax eacute para
o lamento e o queixume sobretudo porque seu ultraje eacute visto por ele como incontornaacutevel
Tanto Tecmessa quanto o coro percebe as intenccedilotildees funestas de suas lamuacuterias O contraste
entre as caracterizaccedilotildees do heroacutei eacute tatildeo evidente que os seus proacuteximos distinguem sua conduta
antes da disputa pelas armas da seguinte apoacutes a derrota para Odisseu e especialmente
daquela apoacutes as accedilotildees da deusa Atena Por isso apontam um heroacutei que se afasta das suas
disposiccedilotildees habituais συντρόφοις ὀργαῖς para noacutes as disposiccedilotildees homeacutericas e mais eacutepicas
Ao fim deste capiacutetulo retomaremos a essa conduta natildeo natural ao personagem a fim de
justificar sua loucura natildeo meramente presa agraves ilusotildees de Atena
Uma organizaccedilatildeo curiosa da passagem parece relacionar a estrutura do epiacuteteto de heroacutei
ao seu pai O atributo do heroacutei eacute sempre descrito acompanhado de uma restriccedilatildeo ou de uma
exclusatildeo que se trata de Aquiles Natildeo eacute o caso em questatildeo uma vez que o Pelida se encontra
morto Mas fato eacute que no contexto da epopeia essa primazia guerreira de natureza eacutepica
inserida no acircmbito do valor natildeo eacute alcanccedilada pelo fato de existir uma restriccedilatildeo ou exclusatildeo
que demarca exatamente aquele que eacute o mais valoroso No trecho escolhido parece haver uma
inversatildeo de estrutura e de valores conferidos O pai do protagonista eacute comparado ao pai de
Aquiles pois satildeo referidos como Eacidas ou filhos de Eacuteaco Contudo essa comparaccedilatildeo estaacute
inserida no acircmbito da dor e do sofrer Assim como diz o texto ldquonenhum dos Eacidas nutriu
infortuacutenio insuportaacutevel do filho com exceccedilatildeo desterdquo ou seja Teacutelamon A partiacutecula usada por
Soacutefocles para marcar o adjunto adverbial de exclusatildeo eacute praticamente o mesmo que Piacutendaro
usa na ode Nemeia VII cuja passagem noacutes citamos anteriormente (cf p 15) ldquo[Aacutejax] o mais
poderoso na guerra com exceccedilatildeo de Aquilesrdquo (κράτιστον ᾿Αχιλέος ἄτερ μάχᾳ v 28 grifo
nosso) Assim essa singularidade quanto ao tipo de sofrimento na qual a natureza traacutegica se
impotildee restringe-se ao pai de Aacutejax excluindo-o do destino afortunado dos outros membros da
famiacutelia Podemos visualizar melhor a estrutura refletida a partir do esquema abaixo
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bull Aacutejax rarr melhor dos gregos rarr com exceccedilatildeo de Aquiles (ἄτερ Ἀχιλέος)
bull Ningueacutem rarr sofredor entre Eacidas rarr com exceccedilatildeo de Teacutelamon (ἄτερθε τοῦδε)
Dessa forma eacute possiacutevel compreender como o conteuacutedo retoma a estrutura do epiacuteteto
comum ao Telamocircnio em uma relaccedilatildeo de proximidade quanto agrave forma e de inversatildeo quanto
ao conteuacutedo uma vez que na peccedila se enfatiza a desgraccedila que cai sobre o heroacutei mas que afeta
todos os seus proacuteximos atribuindo ao seu pai a unicidade de um sofrimento por que nenhum
outro Eacida passaria
O aspecto traacutegico dessa composiccedilatildeo ecoa por toda a obra pois os atos gloriosos do pai
acarretam um legado que deve ser cumprido no mesmo caminho e isso significa dizer que haacute
uma expectativa para os feitos do filho repetindo-se os do patriarca Por isso tanto Aacutejax
quanto Teucro referenciam sua ancestralidade conferindo-lhes valor O primeiro por duas
vezes atribui as mais altas honras ao pai os precircmios de excelecircncia guerreira (τῶν ἀριστείων
v 464) das quais manifestam a grande coroa de gloacuteria (στέφανον εὐκλείας μέγαν v 465) e
toda a gloacuteria carregada (πᾶσαν εὔκλειαν v 436) porque tendo sido o melhor (ἀριστεύσας v
435) obteve as mais belas primazias da tropa (τὰ πρῶτα καλλιστεῖ` [] στρατοῦ v 435) O
segundo filho ilegiacutetimo refere-se ao pai da mesma maneira e com os mesmos vocaacutebulos
mencionado sua supremacia guerreira e a decorrente primazia da tropa quase como um
epiacuteteto (στρατοῦ τὰ τρῶτ` ἀριστεύσας v 1300) Eacute possiacutevel ver nessas passagens a abundacircncia
de vocaacutebulos derivados do superlativo aacuteristos o melhor e de kleacuteos a gloacuteria no sentido de
fama que percorre as geraccedilotildees (cf p 8-9) tendo como objetivo compor a virtude de Teacutelamon
sob a perspectiva da supremacia e da distinccedilatildeo quanto ao seu poderio guerreiro
Aleacutem do epiacuteteto que preserva em si esse superlativo aacuteristos o protagonista eacute
mencionado pelo coro outra vez sob essa perspectiva de valor guerreiro Os atos de guerra do
heroacutei satildeo chamados de feitos da maior virtude (ἔργα [] μεγίστας ἀρετᾶς v 616-617) Aqui
noacutes temos a virtude guerreira do protagonista a areteacute sendo retratada como a maior O uso do
superlativo no adjetivo que define sua excelecircncia eacute coerente dentro da estrutura da peccedila
sobretudo por esse personagem tambeacutem ser retratado por um superlativo o melhor A
correlaccedilatildeo dos vocaacutebulos aacuteristos e meacutegistas eacute extremamente significativa pois natildeo podemos
nos esquecer que o proacuteprio Piacutendaro descreveu as armas de Aquiles como sendo a maior
honraria o maior preacutemio de distinccedilatildeo μέγιστον γέρας (Nemeias VIII v 25) O adjetivo
ligado ao vocaacutebulo da ode pindaacuterica tambeacutem estaacute no mesmo grau dos expressos na peccedila Tal
disposiccedilatildeo a partir do entendimento de que essa tradiccedilatildeo arcaica pode ser retomada por
Soacutefocles e agregada ao seu texto faz o protagonista a quem tambeacutem devemos atribuir uma
67
desmedida no sentido de uma supervalorizaccedilatildeo de sua honra reconhecer-se como
merecidamente o eventual premiado com as armas de Aquiles
Contudo natildeo acontecendo dessa maneira haacute um contraste entre pai e filho ao menos
na perspectiva do Telamocircnio que tinha confianccedila em relaccedilatildeo agrave premiaccedilatildeo das armas uma vez
que se rompe a ineacutercia esperada e a expectativa do heroacutei em seguir os caminhos do pai por
meio do duplo infortuacutenio deste a derrota na disputa pelas armas que representa um ato
externo agrave peccedila e o ataque aos chefes um ato interno Dessa forma essa reviravolta na
expectativa que afasta significativamente o personagem de repetir os atos do genitor torna
mais intensa a sua desonra e consequentemente mais grave a sua ira que o impele a se vingar
Observemos isso a partir dos versos abaixo
[Αι] ἐγὼ δ ὁ κείνου παῖς τὸν αὐτὸν ἐς τόπον Τροίας ἐπελθὼν οὐκ ἐλάσσονι σθένει οὐδ ἔργα μείω χειρὸς ἀρκέσας ἐμῆς ἄτιμος ᾿Αργείοισιν ὧδ ἀπόλλυμαι 440 Καίτοι τοσοῦτόν γ ἐξεπίστασθαι δοκῶmiddot εἰ ζῶν ᾿Αχιλλεὺς τῶν ὅπλων τῶν ὧν πέρι κρίνειν ἔμελλε κράτος ἀριστείας τινί οὐκ ἄν τις αὔτ ἔμαρψεν ἄλλος ἀντ ἐμοῦ Νῦν δ αὔτ ᾿Ατρεῖδαι φωτὶ παντουργῷ φρένας 445 ἔπραξαν ἀνδρὸς τοῦδ ἀπώσαντες κράτη κεἰ μὴ τόδ ὄμμα καὶ φρένες διάστροφοι γνώμης ἀπῇξαν τῆς ἐμῆς οὐκ ἄν ποτε δίκην κατ ἄλλου φωτὸς ὧδ ἐψήφισαν 14
(Aias v 437-449)
Esse fragmento que pertence a uma das falas do protagonista tem como conteuacutedo a
comparaccedilatildeo dos seus feitos aos de seu pai inclusive contra a mesma regiatildeo Troia Em seu
julgamento suas faccedilanhas natildeo satildeo inferiores agraves de seu genitor o que justifica uma honraria
semelhante Por isso ele reforccedila essa comparaccedilatildeo sobretudo a partir de adjetivos no grau
comparativo ἐλάσσονι (de ἐλαχύς) e μείω (de μιχρός) logo sua forccedila σθένει e seus feitos
ἔργα natildeo satildeo menores do que o de Teacutelamon sobretudo porque deste ele proveacutem e por isso
com este mesmo se assemelha Como jaacute vimos na descriccedilatildeo do coro as faccedilanhas do seu
senhor satildeo da maior excelecircncia guerreira pois sua qualidade nas batalhas eacute excepcional
Corroborando o discurso dos soldados de Salamina ele atribui a si sob o julgamento do 14
[Aacutej] Eu o filho daquele contra o mesmo territoacuterio de Troia tendo sobrevindo natildeo com forccedila menor e tendo resistido com feitos de minha matildeo natildeo menores assim desonrado pelos Argivos pereccedilo (v 440) Certamente tatildeo grande coisa ao menos penso saber se vivo Aquiles em relaccedilatildeo agraves armas sobre as quais estivesse destinado a julgar o poder da excelecircncia de algueacutem nenhum outro contrariamente [as] tomaria diante de mim Agora contrariamente os Atridas para um homem astucioso reclamaram (v 445) a prudecircncia tendo repelido o poder deste heroacutei Se esta vista e meus pensamentos desviados natildeo tivessem se afastado violentamente de minha resoluccedilatildeo nenhuma vez assim sentenccedila sobre outro homem decidiriam por votos
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proacuteprio Aquiles se estivesse vivo o domiacutenio da supremacia beacutelica ἀριστείας tal qual o seu
progenitor referido como ἀριστεύσας A soberania belicosa ou seja a excelecircncia maior
pertence a esses dois inseridos em geraccedilotildees diferentes Assim como bem se evidencia no
texto os dois se assemelham
Contudo apesar da igualdade entres esses e da expectativa de um legado que deve ser
continuado Aacutejax eacute preterido por parte dos Argivos sobretudo dos Atridas os quais conferem
a Odisseu as armas do Pelida imputando agravequele o oproacutebrio Essa referecircncia agrave desonra eacute
evidente pois o termo expresso para designar sua condiccedilatildeo eacute aacutetimos (ἄτιμος) cuja definiccedilatildeo eacute
propriamente ldquodesonradordquo e que tem origem no vocaacutebulo timeacute A concepccedilatildeo desse leacutexico
como jaacute vimos anteriormente torna mais significativa a situaccedilatildeo em que se encontra o
personagem por dois motivos
O primeiro eacute que situa o heroacutei na mesma posiccedilatildeo de Aquiles quando da querela entre
este e Agamecircmnon no Canto I da Iliacuteada O Pelida eacute entatildeo o modelo do heroacutei de Salamina
pois quando a deliberaccedilatildeo do grande chefe dos gregos impotildee a subtraccedilatildeo de Briseida e sendo
esta um precircmio de distinccedilatildeo um geacuteras (γέρας) isso representa o natildeo reconhecimento dos
feitos que lhe creditaram tal honraria Assim o filho de Peleu se reconhece como desonrado
aacutetimos (ἄτιμος v 171) uma vez que lhe eacute negado o privileacutegio material que representa sua
excelecircncia beacutelica Natildeo por acaso Soacutefocles toma o modelo de Homero pois laacute estatildeo os
paradigmas da honra e da ira que acomete o heroacutei e que para Aacutejax justificam seu
comportamento Por isso a menccedilatildeo parece direta visto que o vocaacutebulo eacute sobretudo o mesmo
e se trata a priori da mesma problemaacutetica acerca da honra Aquiles se nomeia assim uma vez
O Telamocircnio o faz duas uma na passagem acima e outra em fala anterior no verso 426 Essa
retomada do episoacutedio da Iliacuteada por parte do Telamocircnio faacute-lo se identificar ao Pelida natildeo soacute
por sentir-se subtraiacutedo em seus privileacutegios mas tambeacutem porque no episoacutedio homeacuterico que
representa o passado para o contexto da obra Agamecircmnon eacute visto como tendo cometido um
excesso uma hyacutebris de modo que por ele foram feitas uma reparaccedilatildeo e uma declaraccedilatildeo de
erro mesmo que de forma mitigada e relativizada pela accedilatildeo sempre presente dos deuses O
modelo que parece evidente entatildeo eacute tomado como base para a confianccedila que o heroacutei deposita
em seu proacuteprio julgamento pois segundo tais consideraccedilotildees somo levados a crer em sua
perspectiva particular que essa seria uma segunda vez que tal excesso aconteceria por parte
do chefe o que justifica o ataque noturno que buscava natildeo soacute a vinganccedila prevenindo outra
desonra (ἀτιμάσουσ` v 98) como tambeacutem procurava impedir que novamente a outro homem
isso se sucedesse (v 448-449)
69
O segundo motivo pelo qual o vocaacutebulo aacutetimos eacute significativo estaacute inserido no acircmbito
da superestima da honra do heroacutei Na verdade parece mais evidenciar o contraste entre um
ideal arcaico de honra individual cujo modelo eacute o protagonista e um claacutessico ateniense do
seacuteculo V a C em que o coletivo e a igualdade tecircm soberania cujo modelo eacute Odisseu Dessa
forma a oposiccedilatildeo de caraacuteter serve como alegoria para o contraste entre esses dois ideais Tal
imagem eacute posta pelo proacuteprio heroacutei que coerente com sua linhagem de legado heroico opotildee
vaacuterios elementos de forma dicotocircmica atribuindo o valor a um deles e depreciando o outro
Parece-nos que ele confronta os seguintes elementos poder de excelecircncia guerreira κράτος
ἀριστείας (v 443) e prudecircncia φρένας (v 445) faccedilanhas fiacutesicas (do braccedilo) ἔργα χειρὸς (v
439) a qual se liga aos feitos fiacutesicos da maior virtude ἔργα χεροῖν μεγίστας ἀρετᾶς (v 616-
617) e habilidade ou astuacutecia παντουργῷ (v 445) heroacutei ἀνδρὸς (v 446) e homem φωτί (v
445) julgar κρίνειν (v 443) e decidir por votos ἐψήφισαν (v 449) Aquiles Ἀχιλλεὺς (v
442) e Atridas Ἀτρεῖδαι (v 445) Em que os primeiros elementos se ligam ao ideal arcaico
ou seja individual e beacutelico e os segundo ao claacutessico coletivo e de valores ligados agrave
temperanccedila e agrave mente
Destacamos no fragmento estudado que o heroacutei apresenta um discurso de lamento e de
oacutedio pelo qual atribui um sentido de injusticcedila ao resultado sobretudo pelo fato de seus
princiacutepios estarem orientados pelo ideal homeacuterico Como sabemos que a peccedila contrapotildee
moderaccedilatildeo sophrosyacutene e desmesura hyacutebris como reflexo da relaccedilatildeo dicotocircmica que demarca
o limite entre o civilizado e o baacuterbaro (BACELAR 2006 p 216-217) Aacutejax que em tudo se
excede das emoccedilotildees aos atos e preso aos seus valores eacute incapaz de reconhecer a derrota
como um resultado justo Assim seus feitos e sua supremacia fiacutesica natildeo podem ser superados
pela muacuteltipla habilidade e pela astuacutecia de Odisseu Por isso ao nosso ver o Telamocircnio parece
conferir superioridade ao vocaacutebulo heroacutei ἀνήρ em detrimento de homem φώς como se o
primeiro refletisse a distinccedilatildeo e singularidade dos chefes do mundo arcaico e o segundo uma
inferioridade daqueles para os quais se impotildee a submissatildeo e como veremos mais agrave frente um
dos sentidos do vocaacutebulo sophrosyacutene e seus derivados na peccedila significado evidente nas
palavras do protagonista e de Agamecircmnon Isso explica porque em uma visatildeo arcaica um soacute
julgaria κρίνω melhor do que vaacuterios que decidissem por votos ψηφίζω uma vez que o juiz
uacutenico teria mais meacuterito e honra sendo o melhor dos Aqueus o proacuteprio Aquiles Os Atridas
representariam essa coletividade inadequada para a figura do heroacutei tanto por terem
convocado essa deliberaccedilatildeo coletiva quanto pela expressatildeo do nuacutemero plural do patroniacutemico
utilizado
70
Para o personagem o julgamento em si parece carecer de justiccedila pois fere sua
excelecircncia guerreira e a distinccedilatildeo dos maiores e por isso justifica o ato violento contra essa
coletividade Seu excesso fica evidente em suas palavras pois seu arrependimento reside no
fracasso da empreitada que foi desviada de seu propoacutesito por accedilatildeo divina e natildeo em si pelo
ato que teria executado contra seus recentes inimigos os gregos A gravidade de seu ato eacute
senatildeo uma reaccedilatildeo equivalente agrave compreensatildeo da grandeza de sua desonra retirando-se daiacute
logicamente a selvageria que segue agrave vinganccedila pois essa como tentaremos apontar tem
origem na accedilatildeo divina
Essa supremacia guerreira do protagonista tambeacutem estaacute evidente na segunda parte da
peccedila apoacutes a sua morte Neste momento natildeo mais alimenta sua ira seu oacutedio e seus atos mas
justifica a defesa de Teucro em relaccedilatildeo ao seu funeral e tudo o que isso representa Seu irmatildeo
o faz contra Menelau e Agamecircmnon mas eacute Odisseu quem demove este uacuteltimo do seu
propoacutesito Como bem aponta na peccedila Jacqueline de Romilly ldquoas exigecircncias morais vecircm
contrariar as da disciplinardquo (2013 p 88) por isso o irmatildeo do suicida se impotildee a realizar os
ritos independente das consequecircncias reconhecendo no morto um heroacutei contrariando as
exigecircncias requeridas pelo comando dos Atridas Esses diaacutelogos contrapotildeem pensamentos
distintos e renitentes nos quais a admiraccedilatildeo eacute veementemente respondida com vinganccedila e a
gratidatildeo com direitos da autoridade (Ibidem p 88) Isso ressalta o delineamento dos
caracteres dos personagens fazendo-os obstinados em seus ideais a ponto de se desafiarem
com palavras agressivas Contudo ao caraacuteter excessivo dos Atridas e de Teucro que fixa na
segunda parte trageacutedia a forte recorrecircncia da hyacutebris opotildee-se a conduta moderada de Odisseu
de coerente unidade no proacutelogo e no ecircxodo Em sua uacuteltima cena este apresenta de forma
expliacutecita o valor do protagonista denominando-o o melhor dos aqueus depois de Aquiles
Esse reconhecimento do Laertida demarca juntamente com o do coro o qual expomos acima
os dois momentos da peccedila em que a caracterizaccedilatildeo direta retoma o estilo proacuteprio dos moldes
eacutepicos a descriccedilatildeo sinteacutetica de um conjunto de caracteriacutesticas por meio da utilizaccedilatildeo do
epiacuteteto Essa foacutermula coroa o discurso que concentra os grandes argumentos em defesa dos
rituais fuacutenebres do personagem e de onde seguiraacute o debate que desencadearaacute a permissatildeo de
Agamecircmnon para realizaacute-los por mais que este vencido faccedila-o alegando ter sido um ato em
favor da amizade ao heroacutei de Iacutetaca Vejamos os versos
[Οδ] Ἄκουέ νυν Τὸν ἄνδρα τόνδε πρὸς θεῶν μὴ τλῇς ἄθαπτον ὧδ ἀναλγήτως βαλεῖνmiddot μηδ ἡ βία σε μηδαμῶς νικησάτω τοσόνδε μισεῖν ὥστε τὴν δίκην πατεῖν 1335
71
Κἀμοὶ γὰρ ἦν ποθ οὗτος ἔχθιστος στρατοῦ ἐξ οὗ κράτησα τῶν ᾿Αχιλλείων ὅπλωνmiddot ἀλλ αὐτὸν ἔμπας ὄντ ἐγὼ τοιόνδ ἐμοὶ οὐκ ἀντατιμάσαιμ ἄν ὥστε μὴ λέγειν ἕν ἄνδρ ἰδεῖν ἄριστον ᾿Αργείων ὅσοι 1340 Τροίαν ἀφικόμεσθα πλὴν ᾿Αχιλλέως ῞Ωστ οὐκ ἂν ἐνδίκως γ ἀτιμάζοιτό σοιmiddot οὐ γάρ τι τοῦτον ἀλλὰ τοὺς θεῶν νόμους φθείροις ἄν Ανδρα δ οὐ δίκαιον εἰ θάνοι βλάπτειν τὸν ἐσθλόν οὐδ ἐὰν μισῶν κυρῇς15 1345
(Aias v 1332-1345)
O discurso do heroacutei de Iacutetaca retoma explicitamente a foacutermula das epopeias homeacutericas
ἄριστον Ἀχαίων para a caracterizaccedilatildeo do protagonista cuja primazia eacute excetuada de forma
conhecida apenas por Aquiles πλὴν Ἀχιλλέως O proacuteprio arguidor reconhece que isso natildeo
pode deixar de ser mencionado sobretudo em relaccedilatildeo aos fatos passados que se referem a
episoacutedios externos agrave peccedila e presentes na Iliacuteada Assim tais feitos de outrora natildeo podem ser
apagados pelos mais recentes Com efeito quanto aos feitos satildeo possiacuteveis de distinguir duas
condutas de Aacutejax uma antes da disputa pelas armas de Aquiles e outra desde que aquele
heroacutei foi derrotado Os versos 1336-1337 marcam bem essa distinccedilatildeo especialmente pela
separaccedilatildeo delimitada aos dois comportamentos a partir da partiacutecula ἐξ cujo sentido como
preposiccedilatildeo ou adveacuterbio eacute precisamente esse de separaccedilatildeo e de afastamento Essa passagem eacute
extremamente significativa pois nos mostra o iacutempeto do Telamocircnio diante de seus
adversaacuterios Quando se direcionava aos Troianos os gregos o distinguiam como o melhor
depois do Pelida mas quando se direcionou aos proacuteprios gregos se tornou natildeo meramente um
inimigo pois pessoalmente para Odisseu o heroacutei era o maior inimigo ou o mais odiado da
tropa ἔχθιστος στρατοῦ Tal inversatildeo eacute expressiva do iacutempeto do personagem pois esse
reconhecimento lhe atribui sempre uma posiccedilatildeo distintiva de superioridade de modo que na
unidade literaacuteria do texto tal caraacuteter eacute exposto por meio de superlativos ἄριστον ao heroacutei de
outrora ἕν ἄνδρ e ἔχθιστος apoacutes a disputa pelas armas A gravidade da desonra que alimenta
a intensidade da ira se explica como jaacute vimos pelo natildeo reconhecimento de sua virtude
guerreira O protagonista confere o resultado a um julgamento decidido por votos que visava
distinguir o possuidor de valores natildeo guerreiros mas relacionados agrave prudecircncia e agrave astuacutecia
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[Od] Escuta agora Pelos deuses natildeo este heroacutei te atrevas a atirar insepulto assim impassivelmente A violecircncia natildeo te venccedila de alguma maneira a odiar tanto de modo a pisar a justiccedila (v 1335) Pois tambeacutem para mim era este o maior inimigo da tropa desde que a ele sobressaiacute por causa das armas de Aquiles Mas mesmo sendo tal para mim eu natildeo reagiria o desonrando de modo a natildeo dizer ver no antigo heroacutei o melhor dos Argivos (v 1340) quantos a Troia chegamos com exceccedilatildeo de Aquiles De maneira que natildeo justamente seria desonrado por ti pois natildeo seria este o que destruirias mas as leis dos deuses Heroacutei natildeo eacute justo se morrer prejudicar [sendo ele] valoroso nem ainda se odiando te encontrares (v 1345)
72
Contudo a visatildeo do Laertida eacute diferente pois alega ter sobrepujado o adversaacuterio κράτησα
Esse verbo empregado pelo personagem tem origem no vocaacutebulo forccedila poderio kraacutetos
(κράτος) usado por Aacutejax duas vezes nos fragmentos estudados nos versos 443 e 446 quando
o heroacutei atribuiacutea a si a supremacia guerreira Assim ao declarar ter superado o protagonista
sobretudo pelo uso do verbo em especial Odisseu evidencia o pensamento contraacuterio dos
chefes gregos sobre o confronto e sobre o grau de injusticcedila que o derrotado afere ao
resultado pois o Laertida teria se mostrado mais poderoso do que o Telamocircnio tal qual vimos
ocorrer nos jogos em homenagem a Paacutetrocles no Canto XXIII da Iliacuteada Essa declaraccedilatildeo no
contexto da peccedila reflete a crenccedila dos gregos sobre o evento e tal disposiccedilatildeo representa para
Aacutejax senatildeo uma injuacuteria direta aos seus valores implicando por consequecircncia a grandeza do
oacutedio e da ira que consome o personagem a ponto de inverter sua posiccedilatildeo diante dos gregos de
maior protetor a maior agressor Certamente essas palavras sobre a disputa natildeo agradariam o
protagonista e por isso tambeacutem Teucro posteriormente impede aquele de participar dos
ritos fuacutenebres do irmatildeo acreditando estar o ofendendo
Com efeito o oacutedio eacute reciproco entre os Atridas e o Telamocircnio uma vez que isso estaacute
expliacutecito natildeo soacute nos atos daqueles conjecturaacutevel pelo proacuteprio impedimento dos funerais mas
tambeacutem nos argumentos daquele que defende o morto Para o arguidor de Iacutetaca embora
Agamecircmnon esteja tomado de oacutedio (μισεῖν μισῶν v 1335 e 1345) e que odiar em alguns
momentos seja adequado (μισεῖν καλόν v 1347) impedir ritos fuacutenebres natildeo eacute justificaacutevel por
dois motivos O primeiro por questotildees religiosas pois o ato eacute visto como um desrespeito agraves
leis dos deuses O segundo por questotildees de honra de timeacute Tendo executado grandes
faccedilanhas que explicam sua supremacia o heroacutei morto eacute visto como valoroso ἐσθλόν natildeo
sendo justo οὐ δίκαιον οὐκ ἐνδίκως algueacutem lesaacute-lo de maneira alguma especialmente
desonrando ἀντατιμάσαιμ Por isso mesmo que tenha sido um homem hostil (ἐχθρὸς ἀνήρ
v 1355) ou ainda um morto inimigo (ἐχθρὸν [] νέκυν v 1356) sua virtude guerreira
triunfa sobre sua inimizade sua hostilidade (νικᾷ γὰρ ἁρετή με τῆς ἔχθρας πολύ v 1357)
Odisseu sendo visto como o maior inimigo de Aacutejax reconhece a excelecircncia e a primazia
deste como tambeacutem agora o seu valor guerreiro que triunfa sobre todas as accedilotildees depreciadas
pelos gregos nomeadamente ἀρετή
Eacute fato que Agamecircmnon reluta em permitir os funerais sobretudo pela sua autoridade
pois mesmo conferindo ao seu agressor o status de homem valoroso (ἐσθλόν ἄνδρα v 1352)
conforme os argumentos de Odisseu a todo heroacutei que possui essa posiccedilatildeo eacute necessaacuterio
obedecer aos que estatildeo no poder (κλύειν [] χρὴ τῶν ἐμ τέλει v 1352) uma referecircncia ao
excesso de Aacutejax que o impede de dobrar-se Como algo bem proacuteprio agrave unidade da peccedila a
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concessatildeo do chefe eacute feita entatildeo tambeacutem segundo o reconhecimento de uma primazia Neste
caso em relaccedilatildeo ao modelo de moderaccedilatildeo ao Laertida e eacute em especial conveniente entender
aqui tambeacutem o ato de se submeter A permissatildeo eacute conferida a este que eacute visto na perspectiva
do Atrida como o maior amigo entre os Argivos (φίλον [] μέγιστον Ἀργείων v 1331)
Novamente mais um superlativo μέγιστον na descriccedilatildeo dos personagens da peccedila dos quais
abundam os excessivos por isso parece-nos que tal heroacutei eacute o mais amigo por ser o mais
moderado e consequentemente o que mais reconhece a hierarquia e a ela se submete apesar
de a cena em questatildeo natildeo retratar isso Validamente o excesso compotildee a unidade da obra em
oposiccedilatildeo agrave moderaccedilatildeo o que explica a perspectiva radical dos caracteres que soacute reconhecem
posiccedilotildees extremas seja ou a do melhor amigo ou a do pior inimigo como eacute o caso de Aacutejax e
Agamecircmnon o qual mesmo concedendo agravequele os ritos fuacutenebres em contraste a Odisseu o
percebe mesmo morto como o mais hostil e maior inimigo (ἔχθιστος v 1373)
Contrariamente a essa perspectiva o heroacutei modelo de comedimento sabe reconhecer aleacutem das
duas condutas do Telamocircnio a anterior e a posterior agrave disputa pelas armas de Aquiles uma
retratando o maior guerreiro e outra o maior inimigo tambeacutem reconhece uma nova posiccedilatildeo
pois morto o personagem retoma o caraacuteter de outrora por isso o corpo eacute referido pelo seu
defensor como um cadaacutever virtuoso (ἀλκίμῳ νεκρῷ v 1319) Esse reconhecimento de meacuterito
eacute sobretudo de caraacuteter fiacutesico pois remete aos feitos beacutelicos executados em prol dos argivos
Conveacutem lembrarmos o que jaacute dissemos sobre esse adjetivo aacutelkimos (cf p 18) o iacutempeto de
enfrentar sem retroceder diante dos inimigos natildeo cedendo aos seus ataques mas firmemente
mantendo-se nos combates Parece-nos que o adjetivo retoma tais atos do protagonista em
especial pelo fato de alguns desses eventos serem referidos em analepse pelo irmatildeo do
protagonista em defesa do cadaacutever Contudo apesar de os argumentos de Teucro focarem no
caraacuteter natildeo submisso de seu irmatildeo diante dos chefes os eventos parecem realccedilar uma virtude
defensiva do heroacutei que lhe impotildee um status de protetor sobretudo em oposiccedilatildeo ao de
agressor quando tomada de ira apoacutes a disputa Essa virtude expressa pela αλκή nos parece na
peccedila senatildeo defensiva e coerente com o episoacutedio anterior marcando o duplo comportamento
do personagem um anterior e externo agrave trageacutedia e outro presente e interno Vejamos a
analepse
[Τεῦ] ῏Ω πολλὰ λέξας ἄρτι κἀνόητ ἔπη οὐ μνημονεύεις οὐκέτ οὐδέν ἡνίκα ἑρκέων ποθ ὑμᾶς οὗτος ἐγκεκλῃμένους ἤδη τὸ μηδὲν ὄντας ἐν τροπῇ δορὸς 1275 ἐρρύσατ ἐλθὼν μοῦνος ἀμφὶ μὲν νεῶν ἄκροισιν ἤδη ναυτικοῖς ἑδωλίοις
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πυρὸς φλέγοντος εἰς δὲ ναυτικὰ σκάφη πηδῶντος ἄρδην ῞Εκτορος τάφρων ὕπερ Τίς ταῦτ ἀπεῖρξεν οὐχ ὅδ ἦν ὁ δρῶν τάδε 1280 ὃν οὐδαμοῦ φῂς οὗ σὺ μή βῆναι ποδί ῏Αρ ὑμὶν οὗτος ταῦτ ἔδρασεν ἔνδικα χὤτ αὖθις αὐτὸς ῞Εκτορος μόνος μόνου λαχών τε κἀκέλευστος ἦλθ ἐναντίος οὐ δραπέτην τὸν κλῆρον ἐς μέσον καθεὶς 1285 ὑγρᾶς ἀρούρας βῶλον ἀλλ ὃς εὐλόφου κυνῆς ἔμελλε πρῶτος ἅλμα κουφιεῖν16
(Aias v 1273-1287)
Esse fragmento retoma os episoacutedios da Iliacuteada presentes no Canto VII quando do
combate singular entre Heitor e Aacutejax e no Canto XII quando dos combates junto ao fosso e
ao muro dos argivos os quais se desenvolvem naqueles que retratam as lutas em torno das
naus os Cantos XIII XIV e XV Aqui podemos ver o destaque para o papel do heroacutei em prol
do Aqueus na guerra de Troia seus dois grandes momentos na epopeia homeacuterica Ambos
terminam com a vitoacuteria do Telamocircnio sobre o Priamida impedindo os avanccedilos dos inimigos
Nesses dois momentos Heitor eacute ferido mas natildeo morto O caraacuteter guerreiro deste heroacutei impotildee
valor aos atos daquele de Salamina mas sobretudo acerca de uma perspectiva defensiva pois
os episoacutedios ressaltam seu papel de refreador dos assaltos de protetor O verbo ἀπεῖρξεν tem
exatamente o sentido de conter suster repelir impedir Teucro de forma significativa atribui
ao irmatildeo um poder de contenccedilatildeo expressivo pois se relaciona necessariamente agrave repulsatildeo ao
maior guerreiro entre os Troianos o filho de Priacuteamo o qual derrotado duas vezes soacute poderia
ser morto por Aquiles uacutenico cuja excelecircncia guerreira supera a de Aacutejax Mesmo que natildeo seja
o objetivo dos argumentos reforccedila-se aqui novamente a oposiccedilatildeo entre as condutas agressoras
e protetoras uma vez que se reitera na segunda parte da peccedila mais uma vez a virtude
defensiva do heroacutei Lembremos que o proacuteprio protagonista jaacute havia assim se referido no verso
439 ldquotendo resistido com feitos natildeo menores de minha matildeordquo (οὐδ ἔργα μείω χειρὸς ἀρκέσας
ἐμῆς) O particiacutepio aoristo que tem origem no verbo ἀρκέω cujo significado eacute repelir resistir
estaacute sobretudo dentro da obra validamente no campo semacircntico de ἀπεῖρξεν contribuindo
16
[Teu] Haacute pouco tendo tido muitas e irracionais palavras natildeo relembras nada de maneira alguma quando certa vez a voacutes encerrados nas paliccediladas (v 1275) jaacute natildeo sendo nada em fuga da lanccedila este tendo chegado sozinho resgatou entre as altas tendas naacuteuticas dos navios jaacute inflamando-se o fogo e em direccedilatildeo agraves quilhas naacuteuticas se lanccedilando Heitor ao alto sobre o fosso Quem essas coisas conteve Natildeo era este aquele que executava essas (v 1280) Este de quem tu dizes de maneira alguma natildeo marchou com peacute Acaso este executou essas coisas sentenciadas por voacutes E quando ele de novo sozinho contra Heitor sozinho tendo obtido por sorte e natildeo ordenado foi agrave frente natildeo tendo lanccedilado no meio [do sorteio] uma pedra fugitiva (v 1285) torratildeo de terra molhada mas aquele de elmo de belo penacho estava destinado a primeiro erguer-se com salto
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tanto para o reforccedilo de seu atributo guerreiro defensivo quanto para o contraste da dupla
conduta do protagonista ora agressor ora protetor
Contudo esses versos a partir dos propoacutesitos de Teucro tambeacutem nos revelam indiacutecios
textuais que validam a sobrevalorizaccedilatildeo da honra do heroacutei Eacute notoacuterio na obra que o
protagonista repudia a submissatildeo em favor de um soberano acima dele mesmo Esses versos
corroboram tal fato pois apresentam seu irmatildeo defendendo o cadaacutever vendo neste tambeacutem
nenhuma subordinaccedilatildeo Haacute algumas passagens que apontam isso Reforccedila-se por exemplo
que as accedilotildees em defesa dos navios natildeo foram por Agamecircmnon sancionadas (ἔνδικα v 1282)
e que o heroacutei no combate singular contra Heitor natildeo foi ordenado (κἀκέλευστος v 1284)
mas sorteado (λαχών v 1284) Isso confirma o que ele mesmo havia alegado a Menelau no
episoacutedio anterior Naquele momento defendia que o irmatildeo viera como sendo dono de si
(αὑτοῦ κρατῶν v 1099) mas obrigado a ir agrave guerra apenas por causa dos juramentos (οὔνεχ`
ὅρκων [] ἐπώμοτος v 1113) O particiacutepio que marca o domiacutenio sobre si e a autonomia
frente aos outros chefes eacute formado a partir verbo denominativo κρατέω cuja origem eacute κράτος
vocaacutebulo usado por duas vezes por Aacutejax para evidenciar seu poderio guerreiro em seu
discurso anteriormente analisado Essa forma nominal do verbo referida por seu irmatildeo
reforccedila o fato de que o Telamocircnio realmente se via autocircnomo indiferente agrave autoridade de
outrem Por isso mais do que retomar a guerra de Troia sob o vieacutes da tradicional
hospitalidade Soacutefocles impotildee ao heroacutei e agrave trama a justificativa da coalizatildeo grega a partir do
juramento feito a Tiacutendaro pai de Helena17 Seria esse fato que o protagonista da trageacutedia
nomeia de terriacutevel juramento (δεινὸς ὅρκος v 649) sobretudo porque inserido no discurso
em que decide se suicidar ele reconhece nada valer tal compromisso diante da instabilidade
do mundo que haacute pouco se faz conhecer ao personagem Para o suicida o ato de jurar
representa um ato permanente firme e estaacutevel tal como a sua visatildeo e suas crenccedilas e a
instabilidade do mundo invalida qualquer juramento
Esse pensamento autocircnomo do heroacutei eacute pertinente e recorrente na peccedila fazendo-nos
perceber que tal caracteriacutestica fundamenta a superestima do seu valor e consequentemente de
sua honra diante da de outrem Por reforccedilo a isso os atos do heroacutei relatados por Teucro aleacutem
de evidenciar a autoridade sobre si destacam na execuccedilatildeo dos feitos guerreiros a ideia de que
o heroacutei os realizou de forma solitaacuteria ou seja sozinho Acerca disso destacamos nesse
17 Essa tradiccedilatildeo adota como motivo que levou vaacuterios chefes gregos para a guerra de Troia o fato de Tiacutendaro ter feito todos os pretendentes agrave matildeo de Helena sua filha jurarem socorrer o eleito por ela como marido caso fosse necessaacuterio uma vez que sendo muitos os candidatos o pai temia o descontentamento de alguns gerar possiacutevel conflito (GRIMAL 2005 p 197) Seria esse o juramento visto como um ato religioso e moral que fora invocado por Menelau que constrange vaacuterios heroacuteis a partir em busca de Helena
76
fragmento os adjetivos vinculados ao personagem os quais expressam essa ideia μοῦνος (v
1276) e μόνος (v 1283) Essa caracteriacutestica eacute tatildeo relevante na peccedila que muitas das accedilotildees
internas agrave trama procedem destacadas da mesma forma A exemplo do proacutelogo no qual o
ataque aos chefes eacute referido como solitaacuterio executado pelo heroacutei sozinho μόνον (v 29)
μόνος (v 47) No primeiro episoacutedio Tecmessa confirma tal procedimento solitaacuterio nos atos
μόνος (v 294) e proacuteprio heroacutei reflete na possibilidade de natildeo se matar e se lanccedilar soacute para
morrer belamente μόνος (v 467) Esse fato dentro da obra fundamenta duas razotildees
A primeira serve para evidenciar o isolamento moral do personagem fazendo-o o
uacutenico entendedor de sua perspectiva e de seus ideais e por isso afastando de si inclusive os
seus proacuteximos como bem aponta Jacqueline de Romilly (2013 p 94) Soacutefocles torna essa
solidatildeo ainda mais evidente pois recorre ldquoa um processo completamente extraordinaacuterio o
proacuteprio coro se retirou Aacutejax morre assim numa solidatildeo total e feita sensiacutevelrdquo (Ibidem p
94) Os soldados de Salamina assim agem pois reconhecem essa natureza do heroacutei sobretudo
na peccedila em que o descrevem como aquele que sozinho apascenta o pensamento o iacutempeto
(φρένος οἰοβώτας v 614) Por isso a nova entrada do coro eacute nomeada de epipaacuterodo a partir
do verso 866 por alguns tradutores como por exemplo por Flaacutevio Ribeiro de Oliveira
A segunda razatildeo mais importante para esse estudo fundamenta a caracterizaccedilatildeo do
protagonista sob a perspectiva de que tal isolamento nos atos beacutelicos reflete a confianccedila que
deposita em si e em sua excelecircncia guerreira a ponto de essa conduta se tornar um excesso
uma hyacutebris mais propriamente uma soberba κόμπος uma empaacutefia ὄγκρος Vaacuterios derivados
desses vocaacutebulos e outros inseridos no mesmo campo semacircntico satildeo referidos recorrentes na
peccedila sobretudo na voz de Atena e do mensageiro que traz a palavra do adivinho grego
Calcas a fim de evidenciar o aspecto negativo e funesto desse comportamento Ao fim do
proacutelogo a proacutepria deusa condena esse ato concluindo seu pensamento em uma maacutexima na
qual censura tanto uma jactacircncia aos deuses (ὑπέρκοπον [] ἐς θεοὺς ἔπος v 127-128)
quanto a vangloacuteria (ὄγκρον v 129) sobre outro inclusive como eacute o caso do protagonista se
algueacutem prevalece pelo braccedilo (χειρὶ βρίθεις v 130) A confianccedila em seu valor eacute tamanha que
o personagem acredita alcanccedilar a gloacuteria (κλέος v 769) privado de qualquer ajuda (κείνων v
769) ou seja sozinho sobretudo diferentemente daqueles que triunfam (κρατεῖν v 756) com
um deus ao lado (σὺν θεῷ v 765) Em analepse o mensageiro se refere a esse ato do heroacutei
como excessivo pela soberba (ὑψικόμπως ἐκόμπει v 766 770) Por isso de forma
significativa tambeacutem no proacutelogo o heroacutei se vangloria de seus atos (κόμπος v 96) sobre os
chefes mesmo que tais sejam considerados maus (κακόν v 109) pela deusa
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Com efeito essa superestima de seu valor o faz entender que sua honra e tudo aquilo
que ela representa foram conspurcados e negados tanto quanto a posiccedilatildeo do heroacutei arcaico e
seu caraacuteter individual foram insultados Seguindo as premissas eacutepicas das epopeias homeacutericas
sua honra eacute individual bem como suas accedilotildees satildeo solitaacuterias dessa forma sua virtude tambeacutem o
eacute pois eacute ele que deteacutem a supremacia guerreira apoacutes a morte de Aquiles apenas ele domina o
topo dessa excelecircncia Por isso satildeo vaacuterias as referecircncias ao seu valor guerreiro ao longo da
trageacutedia as quais potildeem ecircnfase em sua accedilatildeo solitaacuteria e individualista a fim de fundamentar a
sua empaacutefia Esta conduta que tem reforccedilo tanto internamente ao enredo da peccedila como eacute o
caso do episoacutedio do proacutelogo referido acima quanto externamente como eacute o caso em
analepse tambeacutem supracitado Algo significativo para isso eacute o fato de o suiciacutedio ser encarado
como seu uacuteltimo ato de coragem e de excelecircncia pois como jaacute vimos foi executado pelo
heroacutei sozinho afastado inclusive do coro de forma expressiva tanto retomando como modelo
os eacutepicos combates singulares quanto revelando seu caraacuteter e sua iacutendole individual e arcaica
considerada nefasta para a Atenas claacutessica em que a coletividade e a igualdade preponderam
na poacutelis
De forma vaacutelida a ira do heroacutei soacute existe segundo a profunda desonra em que se
encontra A desonra existe segundo os seus valores natildeo reconhecidos pelos seus iguais
Assim quanto mais excelente eacute o valor do heroacutei mais grave eacute sua desonra e por
consequecircncia mais pesada a ira que move o heroacutei a cometer atos igualmente excessivos
Aleacutem disso podemos observar que na segunda parte da peccedila retoma-se sobretudo sua
excelecircncia guerreira sob um vieacutes significativamente protetor uma vez que isso serve como
contraponto em relaccedilatildeo agrave primeira parte da obra em que Aacutejax eacute caracterizado como iracundo
Este estado entatildeo sustenta sua posiccedilatildeo natildeo defensiva do ponto de vista dos seus aliados mas
claramente agressiva pois ele se torna o maior inimigo dos gregos Com efeito sua
excelecircncia guerreira serve duplamente para a trageacutedia por um lado fundamenta a intensidade
da ira de acordo com o que dissemos acima e por outro de qualidade defensiva reabilita o
seu valor como heroacutei Essa virtude logo serve para opor as duas condutas do heroacutei diante dos
gregos opostas entre si hostil quando da depreciaccedilatildeo da mesma e protetora quando do
reconhecimento e por isso justifica a percepccedilatildeo da loucura oriunda da deusa como um
impulso para fazer o personagem agir por intervenccedilatildeo de Atena de forma excessivamente
agressiva e selvagem contrariamente agrave sua natural iacutendole a qual parece ser inerentemente
protetora
A virtude do heroacutei entatildeo eacute apresentada preponderantemente em analepse seja a
partir de narraccedilotildees de seus feitos passados em relaccedilatildeo ao momento da peccedila e por isso vistos
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como uma caracterizaccedilatildeo indireta seja a partir da menccedilatildeo ao seu epiacuteteto homeacuterico melhor
dos Aqueus depois de Aquiles que expressa claramente uma descriccedilatildeo com fins de
caracterizaccedilatildeo direta sobretudo pelo seu procedimento estaacutetico que se opotildee ao dinacircmico das
narrativas de suas proezas fiacutesicas A forccedila maior desse traccedilo do heroacutei parece estar sobretudo
na soberba com qual enxerga esse valor pois essa disposiccedilatildeo reforccedila a causalidade interna da
obra uma vez que a virtude depreciada eacute quem impulsiona a ira do personagem como vimos
acima Com efeito de tudo isso se depreende o papel estrutural da virtude do heroacutei dentro da
peccedila figurando tambeacutem um de seus elementos fundamentais para o eixo semacircntico da obra
2 1 2 Χόλος a ira do heroacutei na perspectiva grega
Observaremos agora como a ira do heroacutei compotildee o enredo da obra estruturalmente
seja a partir de uma caracterizaccedilatildeo direta ou indireta fundamentando tanto suas accedilotildees internas
quanto as externas aos limites da peccedila Para esse entendimento deve-se reconhecer o iniacutecio da
peccedila in medias res e agrave referecircncia da trageacutedia ao episoacutedio homeacuterico da Odisseia cujo
personagem Aacutejax ainda persiste em sua ira
Iniciemos a anaacutelise pelos fragmentos em que estatildeo expressas as duas menccedilotildees diretas
agrave ira do personagem choacutelos18 (χόλος) uma presente no proacutelogo e outra no terceiro
episoacutedio correspondentes respectivamente agraves falas de Atena e do Coro Essas menccedilotildees
representam a caracterizaccedilatildeo do tipo direta Como veremos mais adiante a primeira
representa seu rancor aos chefes gregos e a segunda aos deuses sobretudo agrave uacutenica deusa
presente na peccedila como personagem Cada uma das anaacutelises dessas duas menccedilotildees seraacute seguida
de um estudo de fragmentos que correspondem a discursos do Telamocircnio e que apresentam
ainda a coacutelera do heroacutei sendo identificada atraveacutes de suas declaraccedilotildees Essas passagens
representam a caracterizaccedilatildeo do tipo indireta O primeiro inserido no primeiro episoacutedio
compreende os versos 457 a 472 478 a 480 e o segundo no segundo episoacutedio os versos 654
a 660 Essas passagens sintetizam a unidade textual desenvolvida sobre a ira na caracterizaccedilatildeo
do heroacutei uma vez que espaccediladas na peccedila apresentam tal sentimento do personagem na 18
Segundo o que dissemos anteriormente (cf p 27-28) assemelhamos sob o sentido de ira os termos choacutelos (χόλος) presente em Homero e em Soacutefocles e orgeacute (ὀργή) presente em Aristoacuteteles que acerca desse sentimento diz ldquoira eacute um desejo de vinganccedila expliacutecita com a participaccedilatildeo do sentimento de dor por causa de expliacutecita desestima (ὀργὴ ὄρεξις μετὰ λύπης τιμωρίας [φαινομένης] διὰ φαινομένην ὀλιγωρίαν Retoacuterica 1378a 30-31) Segundo ainda esse mesmo autor eacute essa desestima por parte de Agamecircmnon que implica o estado de desonra de Aquiles no Canto I da Iliacuteada e justifica o estado iracundo (ὀργιζόμενος) desse heroacutei (Ibidem 1378b 29-34) Como jaacute pontuamos esse tambeacutem eacute o caso de Aacutejax uma vez que sobre a problemaacutetica da honra o episoacutedio do Pelida lhe serve como modelo
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perspectiva de vaacuterios outros personagens muitas vezes atraveacutes de leacutexico variado como
veremos adiante Ainda assim durante esse momento seraacute possiacutevel apresentar outros
fragmentos isolados como contraponto ou reforccedilo para confirmar determinadas anaacutelises
Comecemos o estudo da ira analisando os versos abaixo presente no proacutelogo da peccedila
[ΟΔ] Καὶ νῦν ἐπέγνως εὖ μ ἐπ ἀνδρὶ δυσμενεῖ βάσιν κυκλοῦντ Αἴαντι τῷ σακεσφόρῳmiddot κεῖνον γάρ οὐδέν ἄλλον ἰχνεύω πάλαι 20 Νυκτὸς γὰρ ἡμᾶς τῆσδε πρᾶγος ἄσκοπον ἔχει περάνας mdash εἴπερ εἴργασται τάδεmiddot ἴσμεν γὰρ οὐδὲν τρανές ἀλλ ἀλώμεθαmiddot κἀγὼ θελοντὴς τῷδ ὑπεζύγην πόνῳ ᾿Εφθαρμένας γὰρ ἀρτίως εὑρίσκομεν 25 λείας ἁπάσας καὶ κατηναρισμένας ἐκ χειρὸς αὐτοῖς ποιμνίων ἐπιστάταις Τήνδ οὖν ἐκείνῳ πᾶς τις αἰτίαν νέμει Καί μοί τις ὀπτὴρ αὐτὸν εἰσιδὼν μόνον πηδῶντα πεδία σὺν νεορράντῳ ξίφει 30 φράζει τε κἀδήλωσενmiddot εὐθέως δ ἐγὼ κατ ἴχνος ᾄσσω καὶ τὰ μὲν σημαίνομαι τὰ δ ἐκπέπληγμαι κοὐκ ἔχω μαθεῖν ὅτου Καιρὸν δ ἐφήκειςmiddot πάντα γὰρ τά τ οὖν πάρος τά τ εἰσέπειτα σῇ κυβερνῶμαι χερί 35 [ΑΘ] ἔγνων Ὀδυσσεῦ καὶ πάλαι φύλαξ ἔβην τῇ σῇ πρόθυμος εἰς ὁδὸν κυναγίᾳ [ΟΔ] ἦ καί φίλη δέσποινα πρὸς καιρὸν πονῶ [ΑΘ] ὡς ἔστιν ἀνδρὸς τοῦδε τἄργα ταῦτά σοι [ΟΔ] καὶ πρὸς τί δυσλόγιστον ὧδ᾽ ᾖξεν χέρα 40 [ΑΘ] χόλῳ βαρυνθεὶς τῶν Ἀχιλλείων ὅπλων [ΟΔ] τί δῆτα ποίμναις τήνδ᾽ ἐπεμπίπτει βάσιν [ΑΘ] δοκῶν ἐν ὑμῖν χεῖρα χραίνεσθαι φόνῳ [ΟΔ] ἦ καὶ τὸ βούλευμ᾽ ὡς ἐπ᾽ Ἀργείοις τόδ᾽ ἦν [ΑΘ] κἂν ἐξεπράξατ᾽ εἰ κατημέλησ᾽ ἐγώ19 45
(Aias v 18-35)
19[Od] Agora bem me descobriste rondando do homem hostil o passo de Aacutejax portador do escudo Pois este e natildeo outro rastreio recentemente (v 20) Certamente desta noite o ato sem escopo para noacutes tendo terminado ele possui - se realizou isto Pois nada claro sabemos mas erramos e eu me submeti voluntariamente a este trabalho Com efeito encontramos haacute pouco devastados (v 25) e mortos todos os despojos por matildeo junto com os proacuteprios condutores dos rebanhos Entatildeo agravequele todo algueacutem atribui esta causa E para mim testemunha quem tendo contemplado aquele sozinho se lanccedilando nos campos com espada receacutem-molhada (v 30) anuncia e tambeacutem elucidou Imediatamente eu precipito-me sobre o vestiacutegio assinalo umas e outras navego agrave deriva natildeo reconhecendo de quem Chegas em tempo pois tantas vezes antes e tantas vezes agrave frente eu piloto com tua matildeo (v 35) [At] Eu sei Odisseu e recentemente vim a caminho como guardiatilde favoraacutevel de tua caccedilada [Od] Por ventura cara soberana esforccedilo-me a tempo [At] Sim Satildeo para ti os atos deste homem [Od] E a fim de que precipitou a matildeo desta maneira iloacutegica (v 40) [At] Pesado de coacutelera por causa das armas de Aquiles [Od] Para que certamente sobre este rebanho empreende marcha [At] Em voacutes pensando a matildeo manchar de morte [Od] Por acaso essa resoluccedilatildeo seria como isto sobre os argivos [At] E teria executado se eu tivesse descuidado (v 45)
80
O vocaacutebulo que evidencia a importacircncia dessa passagem eacute choacutelos (χόλος v 41)
Significa coacutelera oacutedio raiva ou simplesmente ira como jaacute frequentemente utilizamos na
exposiccedilatildeo das anaacutelises Esse eacute o primeiro momento na peccedila em que o estado do personagem
Aacutejax eacute apresentado A caracteriacutestica marcada neste momento eacute exatamente esse sentimento
Poreacutem o vocaacutebulo natildeo vem sozinho pois complementa o particiacutepio aoristo passivo pesado
baryntheacuteis (βαρυνθείς) que se refere ao heroacutei Este particiacutepio estruturado como estaacute parece-
nos apresenta trecircs aspectos importantes da coacutelera do heroacutei
O primeiro distingue essa caracteriacutestica como um estado Este eacute o verbo denominativo
baryacuteno (βαρύνω) proveniente do nome baryacutes (βαρύς) pesado Assim o sentido mais
concreto deste verbo eacute fazer ou tornar pesado grave e por extensatildeo afligir molestar suportar
A forma passiva do aoristo pode expressar um valor no sentido de estado que para noacutes nesta
passagem parece se revelar mais propriamente na estrutura como um predicativo Mesmo
em se tratando de uma expressatildeo nominal de um verbo natildeo haacute como ignorar a passividade do
termo com relaccedilatildeo ao seu complemento no genitivo as armas ou no dativo a coacutelera a qual
sugeriria a um destes complementos o papel de agente ao considerarmos sua noccedilatildeo verbal
Quando a passividade se constroacutei com um complemento que natildeo eacute uma pessoa mas uma
coisa geralmente estrutura-se o mesmo no dativo expressando-se uma ideia de meio e de
causa Eacute interessante observar que a estrutura nominal apresenta os casos dos complementos
nos mesmos da estrutura verbal contudo cabendo a nomenclatura a designaccedilatildeo de
complemento nominal A base loacutegica eacute a mesma Contudo no caso em questatildeo a coacutelera do
personagem parece impelir e comandaacute-lo agindo sobre o personagem e as armas representam
claramente a origem e a causa deste estado em que se encontra o heroacutei pois eacute a partir da posse
das mesmas por Odisseu que tal sentimento decorre Sem isto natildeo haveria a ira Assim ainda
haacute para noacutes uma passividade uma vez que o personagem eacute tomado e dominado por um
sentimento que conduz suas accedilotildees
O segundo aspecto apresenta um caraacuteter de intensidade pois parece natildeo soacute evidenciar
uma ideia de que a coacutelera o domina mas principalmente um estado iracundo profundo
Assim a expressatildeo grega para pesado de ira exprimiria uma maior intensidade agrave proacutepria
condiccedilatildeo coleacuterica enfatizada Para chegarmos a essa comprovaccedilatildeo conveacutem acrescentar o
proacuteprio estado da deusa Atena que persegue Aacutejax devido agrave atitude de desrespeito deste aos
deuses especialmente a ela O vocaacutebulo βαρύς origem do proacuteprio verbo usado na expressatildeo
eacute atribuiacutedo para tambeacutem intensificar a ira da deusa ldquograve ira da deusardquo (μῆνιν βαρεῖαν θεᾶς
v 655 Isso parece se comprovar se observarmos o modo como age o heroacutei no proacutelogo fora
de si descomedido Parece nos ajudar o estudo de Flaacutevio Ribeiro de Oliveira no qual o autor
81
apresenta um personagem agindo como uma fera algo que jaacute comentamos anteriormente nos
trabalhos de Huumlbscher Neste estudo o autor dispotildee como proacuteprio da arte venatoacuteria o
vocabulaacuterio usado por Soacutefocles nesta cena da peccedila O leacutexico apresenta vaacuterias palavras que
retratam o episoacutedio de Odisseu perseguindo os rastros de Aacutejax como o de um caccedilador
acossando uma fera Acrescentando mais alguns aos do autor temos estes ligados ao ato de
Odisseu θηρώμενον que caccedila (v 2) κυνηγετοῦντα que caccedila (v 5) κυναγίᾳ caccedilada (v 37)
ἴχνη ἴχνος rastros (v 6 e 32) ἴχνεύω rastreio (v 20) κυνὸς Λακαίνης [] εὔρινος βάσις
bem-fuccedilante marcha de cadela lacocircnia (v 8) Esse vocabulaacuterio impotildee uma imagem bem
sugestiva e coerente ao episoacutedio pois o Telamocircnio natildeo age normalmente O personagem
pesado de ira ataca com ferocidade os rebanhos Essa atitude natildeo parece ser em parte
reconhecida a princiacutepio por Odisseu nem a atribuindo ao heroacutei Primeiro devido agraves viacutetimas
escolhidas e segundo agrave ferocidade empregada Em virtude das circunstacircncias Odisseu natildeo
compreende toda a situaccedilatildeo e atribui ao encolerizado uma accedilatildeo incoerente pois ignora as
causas dela O autor atribui o termo δυσλόγιστον iloacutegico irracional agrave matildeo do heroacutei em uma
conotaccedilatildeo para seus atos selvagens Sabemos que o ataque aos animais se daacute devido agrave ilusatildeo
causada pela deusa contudo a violecircncia a ferocidade do ato parece ser proacutepria do
personagem ou seja de sua predisposiccedilatildeo agrave desmesura e de sua condiccedilatildeo coleacuterica da qual de
alguma forma participa a deusa amplificando-a Isso nos permite compreender seu estado com
uma extensatildeo de sua proacutepria condiccedilatildeo iracunda que ora retira-lhe a humanidade no sentido
de tornaacute-lo selvagem Natildeo por menos Odisseu ora reconhece os rastros os atribuindo a Aacutejax
e ora natildeo reconhece κατ᾽ ἴχνος ᾁσσω καὶ τὰ μὲν σημαίνομαι τὰ δ᾽ ἐκπέπληγμαι κοὐκ ἔχω
μαθεῖν ὅτου (v32-33) pois aquele parece distinguir o humano e o animalesco quando do
estudo dos rastros encontrados
Para o melhor entendimento dessa intensidade da ira do personagem conveacutem
relembrarmos que o estado de selvageria ou de barbaacuterie representa exatamente como falamos
antes o excesso a desmedida hyacutebris E esta se opotildee dentro da peccedila necessariamente agrave
concepccedilatildeo de moderaccedilatildeo de comedimento de equiliacutebrio de sophrosyacutene
Eacute um fato relevante do ponto de vista da apresentaccedilatildeo do personagem que este seja
apresentado como pesado de coacutelera por um lado no iniacutecio da peccedila e por outro atraveacutes das
proacuteprias palavras da deusa Atena Para o primeiro caso essa atribuiccedilatildeo enfatiza a desmedida
uma vez que o termo pesado se contrapotildee ao sentido de equiliacutebrio Assim serve como um
intensificador que evidencia o excesso em contraste agrave desmedida Logo pesado eacute oposto a
sophrosyacutene Eacute necessaacuterio ainda dizer que isso nos antecipa a proacutepria desgraccedila do heroacutei pois
se a divindade ao fim do proacutelogo jaacute apresenta em suas palavras a maacutexima que diz que os
82
deuses amam os moderados soacutephronas (σώφρονας v 132) e um soacute dia eacute necessaacuterio para
dobrar o destino humano o Telamocircnio em desequiliacutebrio pela coacutelera receberaacute natildeo outro
senatildeo esse fim Quanto ao segundo considera-se o fato de que a deusa representa uma
completa consciecircncia dos fatos segundo a gradaccedilatildeo de conhecimento sugerido no proacutelogo de
acordo com Flaacutevio Ribeiro
Cegueira e visatildeo satildeo dispostos antiteticamente na relaccedilatildeo entre trecircs personagens Atena vecirc Odisseu que natildeo a vecirc de modo inverso Odisseu vecirc Aias que natildeo o vecirc Opotildeem-se trecircs planos distintos de conhecimento visual hierarquicamente articulados o da deusa o do mortal e o do demente o louco natildeo vecirc nem o satildeo nem o deus o satildeo vecirc o louco mas natildeo vecirc o deus o deus tudo vecirc e natildeo eacute visto Haacute a gradaccedilatildeo entre ignoracircncia completa e onisciecircncia divina (2008 p 9)
Essa gradaccedilatildeo de conhecimento visual desencadeia uma noccedilatildeo de conhecimentos dos
fatos que coloca a deusa em uma posiccedilatildeo privilegiada a de que tudo ela sabe Opotildee-se
sobretudo a posiccedilatildeo ocupada por Aacutejax que em completa ignoracircncia vecirc imagens extraviadoras
ou seja a realidade enxergada pelo mesmo eacute enganosa ou seja falsa Contrariamente a isso a
situaccedilatildeo de Atena em contraste com a deste caracteriza-se pela contemplaccedilatildeo onisciente da
realidade assim ela eacute conhecedora de tudo logo o que ela relata e a forma como apresenta o
heroacutei eacute o oposto de falso ou seja a realidade por ela revelada a Odisseu relaciona-se agrave
verdade Diante do contexto da peccedila e do papel relevante exercido pela deusa sobretudo
acerca do que acabamos de expor a apresentaccedilatildeo do heroacutei em estado coleacuterico vinculado agrave
visatildeo da realidade da deusa minimiza a subjetividade inerente agrave caracterizaccedilatildeo de um
personagem por outro apesar de sabermos da ira que acomete Atena Dessa forma podemos
legitimar esse estado como realmente presente nas caracteriacutesticas do heroacutei dentro da peccedila
como confirmaremos a partir de outros exemplos
Podemos acrescentar a isso o fato desse estado do heroacutei ser reconhecido por outros
personagens Isso se faz tambeacutem por natildeo se identificar nele o autocontrole a moderaccedilatildeo
Odisseu e Tecmessa cativa e companheira do Telamocircnio satildeo grandes exemplos disso pois se
utilizam de vocaacutebulos que marcam seu caraacuteter a partir da oposiccedilatildeo entre comedimento e
excesso Odisseu por exemplo ainda no proacutelogo teme encontrar o seu mais novo inimigo e
esse fato se daacute porque este natildeo se encontra em um momento de racionalidade de
comedimento de prudecircncia ou seja pensando de forma equilibrada phronoyacutenta (φρονοῦντα
v 82) Tecmessa tambeacutem o reconhece em estado excessivo no primeiro episoacutedio da peccedila e
diante das lamentaccedilotildees deste exorta-o por meio do verbo no imperativo a recompor-se a
moderar-se a voltar a ser prudente phroacuteneson (φρόνησον v 371)
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Conveacutem reiterar que esse eacute um recurso abundante na peccedila pois pressupondo que
Soacutefocles segundo seu estilo desenvolva caracteres opostos apresenta para isso uma gama
variada de leacutexico que se relaciona agrave medida e que tem como base o substantivo que em seu
mais primitivo sentido denomina o diafragma phreacuten (φρήν) oacutergatildeo relacionado ao
temperamento dos homens Esse significado de teor concreto alcanccedila em noccedilatildeo abstrata desde
o sentido de pensamento ateacute de vontade e expressa entre os gregos da antiguidade uma das
bases da liacutengua para compor o leacutexico que se relaciona agrave ideia de racionalidade e de medida
cujo exemplo maior na peccedila corresponde a sophrosyacutene que tem esse mesmo radical em sua
composiccedilatildeo
Dessa forma todos esses termos expressos por esses dois personagens na
caracterizaccedilatildeo do heroacutei em anaacutelise parecem defini-lo a partir da oposiccedilatildeo entre excesso e
comedimento Isso nos serve para conduzir o particiacutepio aoristo pesado ao primeiro eixo o da
desmedida e por consequecircncia observaacute-lo como um intensificador do estado coleacuterico que
mencionamos acima Logo sua coacutelera eacute reconhecidamente intensa excessiva tal qual a sua
desonra
A proacutepria qualificaccedilatildeo de Odisseu eacute clara ainda no proacutelogo diante do personagem
σακεσφόρῳ (V 19) cujo sentido eacute portador de escudo mas que retoma de forma significativa
as caracteriacutesticas primitivas do heroacutei expostas no capiacutetulo anterior Esse vocaacutebulo tem em sua
formaccedilatildeo o substantivo saacutekos (σάκος) escudo cujo uso parece definir a arma de tipo
alongado e que se restringe em parte a nomear o escudo de Aacutejax20 segundo Patriacutecia Pontin
(2006 p 45) Com esse sentido isso nos permite inferir ao vocaacutebulo presente no proacutelogo
mais um reforccedilo ao aspecto e ao caraacuteter primitivo de que se reveste na peccedila o excesso a
hyacutebris uma vez que se considere a concepccedilatildeo de primitivismo agrave origem marcadamente
arcaica e micecircnica dessas caracteriacutesticas da arma do heroacutei (PEREIRA 2012 p 76 VAN DER
VALK 1951 p 273) conforme noacutes jaacute tratamos anteriormente Esse reforccedilo nos eacute mais
significativo pois parace coincidir com o hemistiacutequio do verso como um epiacuteteto ou seja
uma foacutermula que serve sobretudo para a caracterizaccedilatildeo mesmo que aplicado a um triacutemetro
jacircmbico Vejamos os versos 18 e 19 que retratam a fala de Odisseu diante da presenccedila da
deusa Atena ldquoE agora me descobriste bem rondando do homem hostil o passo de Aacutejax
condutor do escudordquo (Καὶ νῦν ἐπέγνως εὖ μ ἐπ ἀνδρὶ δυσμενεῖ βάσιν κυκλοῦντ Αἴαντι τῷ 20
Segundo Patriacutecia Pontin fundamentada nos estudos de L Lacroix Homero para definir o escudo ldquose utiliza de dois termos principais ἀσπίς e σάκος cujo significado exato eacute singularmente difiacutecil de determinar Ἀσπίς pode-se dizer tanto de um escudo redondo como de um escudo alongado Σάκος se aplica ao escudo de Aacutejax que o poeta compara a uma torre mas a mesma palavra eacute empregada em um caso pelo menos a propoacutesito de uma arma circular Entretanto ἀσπίς e σάκος satildeo diferentes em suas origens e parece provaacutevel que foram designadas primitivamente a armas de tipo diferenterdquo (2006 p 45)
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σακεσφόρῳ) A escansatildeo do verso 19 seria essa βασιν κυκλουντ Αιαντι τῳ
σᾰκεσφορῳ A cesura desse esquema meacutetrico eacute geralmente pentemiacutemere ou heftemiacutemere ou
seja apoacutes cinco ou sete metades de peacute semelhante ao dactiacutelico (LOURENCcedilO 2011 p 23-
25) Natildeo sendo possiacutevel a do tipo pentemiacutemere pois repartiria o nome do heroacutei mais
provaacutevel eacute a heftemiacutemere que evidencia a palavra σακεσφόρος incluindo no hemistiacutequio o
artigo que o precede Essa qualificaccedilatildeo do personagem que coincide metricamente com o
hemistiacutequio ao nosso ver tal qual um epiacuteteto que acompanha o nome do heroacutei serve para
identicar e restringir uma caracterizaccedilatildeo de Aacutejax a qual como veremos adiante tem como
objetivo delinear uma iacutendole excessiva e mais brusca
A essa menccedilatildeo podemos acrescentar outra do primeiro episoacutedio Neste em despedida
o heroacutei lega ao seu filho o seu escudo (σάκος v 576) Simbolicamente isso representa a
heranccedila de sua iacutendole e seus ideais os quais devem se perpetuar Esse entendimento fica claro
a partir de duas informaccedilotildees do texto uma impliacutecita e outra expliacutecita A primeira estaacute
impliacutecita no nome do filho Euriacutesaces (Εὐρύσακες v 575) cuja formaccedilatildeo se daacute a partir de
dois elementos um substantivo escudo σάκος vocaacutebulo restrito agrave descriccedilatildeo do Telamocircnio e
o adjetivo largo εὐρύς logo a traduccedilatildeo do nome seria escudo largo ou grande Obviamente
que isso remete aos atributos proacuteprios do pai A segunda informaccedilatildeo estaacute nas incumbecircncias
dadas pelo pai a Teucro para a educaccedilatildeo do filho O desejo do genitor eacute que o herdeiro seja
conduzido de acordo com os rudes costumes do pai (ὠμοῖς [] εν νόμοις πατρὸς v 548)
logo isso significa que esse legado pressupotildee os ideais heroicos e arcaicos da eacutepica homeacuterica
os quais natildeo condizem com o modelo dos atenienses do seacuteculo V representando assim
valores associados agrave hyacutebris evidente na peccedila
O terceiro aspecto relevante do fragmento citado eacute em quem se concentra a ira os
chefes gregos mas sobretudo Odisseu Agamecircmnon e Menelau Natildeo por acaso satildeo estes os
uacutenicos chefes que figuram a peccedila como personagens Para o episoacutedio retratado por Soacutefocles
estes satildeo os maiores envolvidos na accedilatildeo da trageacutedia que culminam com o suiciacutedio do heroacutei
mas tambeacutem naquelas natildeo dramatizadas que acarretam a sua situaccedilatildeo desonrosa e que por
isso justificam-se a sua ira e o seu oacutedio Esses trecircs agem diretamente contra o protagonista da
peccedila segundo a perspectiva deste no resultado da disputa pelas armas de Aquiles Logo eacute
fundamental o entendimento a partir das vaacuterias analepses referidas na obra do resultado
desse evento entre o heroacutei e Odisseu para que se esclareccedilam a origem e as causas desses
sentimentos Com efeito a oposiccedilatildeo dos chefes gregos em prol do favorecimento de Odisseu
os retira da posiccedilatildeo de aliados e amigos e os coloca na de inimigos Isso eacute bem claro quando
retomamos a observaccedilatildeo de Bernard Knox que indica o ideal cultuado do personagem que
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embasa seus princiacutepios na maacutexima fazer bem aos amigos e mal aos inimigos (τούς φίλους εὖ
ποιεῖν τοὺς δ` ἐχθροὺς κακῶς) (1961 p 3) Isso fica ainda mais evidente em relaccedilatildeo a
Odisseu que ao ver do heroacutei age hostilmente contra ele em busca de imerecidos precircmios de
acordo com o que noacutes veremos a seguir
Quanto a Odisseu a ira se justifica porque este eacute o vencedor da disputa e ganhador dos
precircmios maacuteximos mesmo sendo menos merecedor de acordo com seu adversaacuterio da
contenda Por isso eacute por este uacuteltimo denominado de escoacuteria mais imunda da tropa
(κακοπινέσατον τ` ἄλημα στρατοῦ v 381) e escoacuteria inimiga (ἐχθρὸν ἄλημα v 389) Teucro
inclusive reconhece que para o irmatildeo o Laertida seria o maior inimigo dentre os Argivos
(ἔχθιστος Ἀργείων v 1383) ou seja deteacutem a primazia da coacutelera do Telamocircnio Seus tambeacutem
meacuteritos natildeo seriam guerreiros assim justificam-se outros nomes atribuiacutedos instrumento de
todos os males (ἁπάντων κακῶν ὄργανον v 379-380) e sobretudo o mais adulador
(αἱμυλώτατον v 388) Esta uacuteltima caracteriacutestica reforccedila o poder de persuasatildeo que este heroacutei
possui mas visto sob uma perspectiva negativa Assim tambeacutem para os guerreiros de
Salamina representados pelo coro este persuade (πείθει v 150) forjando palavras (λόγους
[] πλάσσων v 148) e por isso tem uma sugerida origem Sisifida (Σισυφιδᾶν γενεᾶς v
190) Essa linhagem eacute relevante uma vez que a Siacutesifo se atribui a maior astuacutecia humana e
tambeacutem o menor escruacutepulo com os quais muitas faltas aos deuses foram cometidas
justificando sua puniccedilatildeo categoacuterica no Hades (GRIMAL 2005 p 422-423) Mesmo sendo ele
de origem divina e na eacutepica grega sua astuacutecia seja concebida sob o vieacutes da virtude na peccedila
em questatildeo tal atributo servindo de instrumento para o mal na perspectiva de Aacutejax e de seus
proacuteximos marca a iacutendole de um homem sem valor da pior linhagem que se justifica tambeacutem
pela ancestralidade Podemos ver a partir de tudo isso a imagem de Odisseu do ponto de vista
de seu adversaacuterio da disputa Dessa forma os evidentes superlativos utilizados nos mostram a
posiccedilatildeo distintiva ocupada por ele pois acima de todos eacute o mais odiado pelo Telamocircnio pois
para este usurpa-lhe o precircmio exercendo ativamente sua iacutendole Eacute interessante observar que o
adjetivo ἐχθρός pode designar tanto aquele que eacute odiado quanto muito comum quando
substantivado o inimigo Isso nos permite colocar dentro de um mesmo campo semacircntico a
posiccedilatildeo de algueacutem em relaccedilatildeo a outro como tambeacutem permite se vincular a um sentimento
Isso aproxima ira e oacutedio estabelecendo relaccedilotildees significativas para a interpretaccedilatildeo da peccedila
A proacutepria repreensatildeo de Teucro a Odisseu no ecircxodo quando aquele impede este de
participar ativamente nos ritos fuacutenebres ressalta esse sentimento que o acompanha mesmo
depois de morto Vejamos esse momento
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[Τευ] Σὲ δ ὦ γεραιοῦ σπέρμα Λαέρτου πατρός τάφου μὲν ὀκνῶ τοῦδ ἐπιψαύειν ἐᾶν μὴ τῷ θανόντι τοῦτο δυσχερὲς ποῶmiddot 1395 τὰ δ ἄλλα καὶ ξύμπρασσε κεἴ τινα στρατοῦ θέλεις κομίζειν οὐδὲν ἄλγος ἕξομεν ᾿Εγὼ δὲ τἀμὰ πάντα πορσυνῶmiddot σὺ δὲ ἀνὴρ καθ ἡμᾶς ἐσθλὸς ὢν ἐπίστασο21
(Aias v 1393-1399)
Teucro ao final reconhece a ajuda de Odisseu na permissatildeo dos funerais do heroacutei
destacando o Laertida como homem valoroso (ἐσθλὸς v 1399) Ainda assim estaacute ciente do
iacutentimo e da vontade do irmatildeo e por isso hesita em permitir que este toque a sepultura Eacute
evidente que permanece a ira que o acometia em vida de tal forma que seu irmatildeo acredita que
faria com isso algo que desagradaria o morto algo que lhe seria impertinente ou mesmo
nefasto (δυσχερὲς v 1395) sobretudo pela expressividade do prefixo dys δυσ que eacute um
prefixo que associa ao vocaacutebulo a ideia de contrariedade e de desgraccedila construindo-se um
novo ou intensificando o primeiro sentido Um detalhe significativo para o destaque desse
sentimento do heroacutei estaacute no sentido mais preciso do verbo tocar ἐπιψαύειν presente na fala
de Teucro Esse verbo possui como significado as noccedilotildees de roccedilar ou de tocar de leve ou
seja um movimento sutil suave ou ateacute mesmo delicado Eacute imprescindiacutevel compreender seu
uso em uma oposiccedilatildeo agrave coacutelera ostentada pelo personagem agora morto Pois o mero ato de
encostar no sepulcro natildeo eacute permitido exatamente por que a ira do heroacutei eacute pesada e assim
opotildeem-se o ato de tocar levemente ἐπιψαύειν por parte de Odisseu constante do verso 1392
e o ato de estar pesado βαρύνειν por parte de Aacutejax constante do verso 41 Demarca-se
assim a profundidade da ira do heroacutei em relaccedilatildeo ao seu adversaacuterio da disputa impondo a este
o primeiro lugar entre os inimigos
Os Atridas tambeacutem satildeo foco desse oacutedio em tal perspectiva de inimizade pois apesar
de muitos serem os juiacutezes da contenda (v 1136 1243) esses sendo chefes representam o
corpo dos juiacutezes Um fato importante para isso eacute a proacutepria sugestatildeo desses serem os
responsaacuteveis pela decisatildeo por votos que desonrou o personagem (ἐψήφισαν v 449) conduta
natildeo bem quista pelo Telamocircnio sobretudo porque esse tipo de julgamento evoca os
procedimentos dos tribunais atenienses do seacuteculo V como observaram Knox (1961 p 22) e
Bacelar (2006 p 237-238) aos quais certamente o personagem se opotildee devido a sua
21
[Teu] Filho do velho pai Laertes temo te permitir tocar de leve a sepultura deste que ao morto eu faccedila algo impertinente (v 1395) mas faze outras coisas se algueacutem do exeacutercito desejas introduzir teremos nenhuma afliccedilatildeo Eu executarei todas as minhas [incumbecircncias] para noacutes tu permaneces sendo homem nobre
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caracterizaccedilatildeo arcaica e baacuterbara na perspectiva dos valores gregos apregoados na Atenas do
periacuteodo claacutessico
No verso 716 por exemplo reforccedila-se significativamente essa disposiccedilatildeo do
personagem contra os Atridas Nessa passagem se evidencia o oacutedio do heroacutei a estes um
iacutempeto que dentro da perspectiva da ira parece impeli-lo a permanecer e a resistir agrave
reconciliaccedilatildeo (θυμῶν Ἀτρείδαις) Esse iacutempeto eacute o mesmo com o qual Homero reveste o
personagem no Canto XI da Odisseia impedindo-o de se reconciliar com Odisseu
Interessante tambeacutem eacute que se faz pelo mesmo vocaacutebulo θυμός (cf pg 21-22)
Dessa forma esses trecircs personagens configuram os maiores envolvidos na desonra e
em decorrecircncia disso os maiores inimigos e assim mereceriam uma maior puniccedilatildeo e
vinganccedila (v 301-304) Com efeito essa menccedilatildeo direta agrave ira do heroacutei enfatiza o sentimento do
personagem em relaccedilatildeo aos chefes gregos alicerccedilando acima de tudo as accedilotildees que estatildeo fora
da trageacutedia22 mas que compotildeem seu enredo Natildeo figuram no proacutelogo a disputa pelas armas
nem mesmo o ataque aos chefes gregos pois satildeo preteacuteritos em relaccedilatildeo agrave cena inicial
Contudo eles satildeo essenciais para a progressatildeo das accedilotildees que conduzem o heroacutei a sua ruiacutena
Dessa forma aquilo que move o heroacutei a tecirc-las realizado eacute tambeacutem presente para o efeito
traacutegico da peccedila Na obra em questatildeo essa relevacircncia recai sobre a ira Ela eacute o grande
impulsionador da causalidade interna da obra especialmente do ponto de vista da concepccedilatildeo
de excesso presente em toda sua extensatildeo Logo a ira aos chefes gregos compotildee parte
estrutural Por isso Soacutefocles reitera esse sentimento retomado da tradiccedilatildeo arcaica para a qual
tambeacutem eacute fundamental
Vejamos como esse sentimento se mostra tambeacutem condutor das accedilotildees que se
desenvolvem internamente a partir dos versos abaixo inseridos no primeiro episoacutedio
[Αι] Καὶ νῦν τί χρὴ δρᾶν ὅστις ἐμφανῶς θεοῖς ἐχθαίρομαι μισεῖ δέ μ ῾Ελλήνων στρατός ἔχθει δὲ Τροία πᾶσα καὶ πεδία τάδε Πότερα πρὸς οἴκους ναυλόχους λιπὼν ἕδρας 460 μόνους τ ᾿Ατρείδας πέλαγος Αἰγαῖον περῶ Καὶ ποῖον ὄμμα πατρὶ δηλώσω φανεὶς Τελαμῶνι πῶς με τλήσεταί ποτ εἰσιδεῖν γυμνὸν φανέντα τῶν ἀριστείων ἄτερ ὧν αὐτὸς ἔσχε στέφανον εὐκλείας μέγαν 465 Οὐκ ἔστι τοὔργον τλητόν Αλλὰ δῆτ ἰὼν πρὸς ἔρυμα Τρώων ξυμπεσὼν μόνος μόνοις
22 Sabemos que o proacutelogo in medias res tambeacutem eacute usado para contextualizar o ponto em que se inicia o drama escolhido pelo poeta natildeo soacute para determinar uma extensatildeo ideal aristoteacutelica mas tambeacutem para engendrar as causas do infortuacutenio imutaacutevel natildeo soacute pela causalidade das accedilotildees que o encadeiam mas sobretudo por corresponder a um passado que natildeo pode ser alterado (LUNA 2012 p 241-242)
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καὶ δρῶν τι χρηστόν εἶτα λοίσθιον θάνω ᾿Αλλ ὧδέ γ ᾿Ατρείδας ἂν εὐφράναιμί που Οὐκ ἔστι ταῦταmiddot πεῖρά τις ζητητέα 470 τοιάδ ἀφ ἧς γέροντι δηλώσω πατρὶ μή τοι φύσιν γ ἄσπλαγχνος ἐκ κείνου γεγώς
[] ἀλλ ἢ καλῶς ζῆν ἢ καλῶς τεθνηκέναι τὸν εὐγενῆ χρή Πάντ ἀκήκοας λόγον23 480
(Aias v 457-470 479-480)
Nessa passagem Aacutejax inicia uma reflexatildeo apoacutes um longo lamento sobre a sua proacutepria
situaccedilatildeo Diante da desonra aferida pela pretericcedilatildeo das armas e do ultraje pelo ataque ao
rebanho ambos conhecidos pelos gregos o heroacutei conclui sua posiccedilatildeo perante aliados e
amigos Ao seu ver ele eacute odiado por todos pela tropa dos gregos (μισεῖ [] στρατός v 458)
pelos deuses (θεοῖς ἐχθαίρομαι v 457-458) e logicamente por Troia (ἔχθει [] Τροία v
459) Tendo chegado a essa conclusatildeo pondera qual accedilatildeo deve ser tomada por ele Dois
caminhos satildeo levados em conta voltar para casa ou morrer belamente segundo os preceitos
homeacutericos Em ambas haacute a participaccedilatildeo dos Atridas como um elemento influenciador Quanto
agrave primeira reflexatildeo o personagem cogita deixaacute-los soacutes (μόνους τ` Ἀτρείδας v 461) voltando
para casa Contudo isso natildeo se apresenta como uma boa resoluccedilatildeo pois a imagem de um filho
despojado dos precircmios de excelecircncia guerreira (τῶν ἀριστείων ἄτερ v 464) diante do pai
cujos feitos alcanccedilaram a grande honra da gloacuteria (στέφανον εὐκείας μέγαν v 465) eacute
insuportaacutevel (τλήεται v 463 τλητόν v 466) para o seu genitor Assim acima do desejo de
abandonar Agamecircmnon e Menelau sozinhos contra os troianos ato que repercute do oacutedio a
esses heroacuteis o heroacutei se vecirc movido pelo pudor em relaccedilatildeo a Teacutelamon para o qual a possiacutevel
vergonha impede aquele de agir Na segunda reflexatildeo podemos observar ainda mais
significativamente o papel da ira Nesta o personagem intenta se lanccedilar contra os troianos
sozinho contra os soacutes (μόνος μόνοις v 467) ensejando sua morte um ato que remete agrave bela
morte arcaica cujo cerne se trata de um combate singular com um igual Com essa resoluccedilatildeo
o heroacutei acredita na possibilidade de alegrar os Atridas (Ἀτρείδας ἄν εὐφράναιμί που v 469)
Eacute interessante observar na sua perspectiva isso realmente eacute uma possibilidade As marcas 23 [Aj] E agora o que eacute necessaacuterio fazer Que visivelmente por deuses sou odiado e detesta-me o exeacutercito dos Helenos Toda Troia odeia e estas planiacutecies Para casa de qual maneira tendo deixado o ancoradouro das naus (v 460) e os Atridas soacutes atravesso o mar Egeu E para o pai Teacutelamon revelarei que olhar tendo me apresentado Como suportaraacute quando olhar para mim tendo me apresentado despido aparte dos precircmios de excelecircncia das quais ele proacuteprio teve a grande coroa de gloacuteria (v 465) Isto natildeo eacute suportaacutevel Mas certamente indo agrave fortaleza dos troianos sozinho dentre os soacutes tendo me chocado e realizando o que eacute necessaacuterio por fim depois morresse Mas dessa maneira ao menos agradaria os Atridas provavelmente Essas natildeo satildeo uma atitude comprovaacutevel (v 470) tal pela qual revelarei para o velho pai minha natureza certamente natildeo tendo nascido dele covarde [] Mas ou viver belamente ou belamente morrer eacute necessaacuterio para o bem-nascido Ouvistes todo o discurso
89
desse entendimento satildeo o proacuteprio adveacuterbio που que expressa o sentido de provavelmente ou
talvez ou seja possibilidade e o modo optativo do verbo acompanhado sobretudo da
partiacutecula ἄν que evidencia o caraacuteter potencial do evento Mesmo assim diante de uma
possibilidade Aacutejax prefere natildeo executar tal accedilatildeo e isso se deve ao fato de o resultado agradar
(εὐφραίνω) os gregos sobre os quais se concentra sua ira os filhos de Atreu
Para corroborar a disposiccedilatildeo iracunda sobre esses dois conveacutem mencionar a
invocaccedilatildeo do heroacutei no terceiro episoacutedio nos preacircmbulos do suiciacutedio Nesse momento vaacuterias
divindades satildeo evocadas para cumprir determinadas accedilotildees em relaccedilatildeo ao suicida como por
exemplo Zeus para que forneccedila o privileacutegio de Teucro ser o primeiro a encontrar o morto
Hermes para que conduza rapidamente a alma desprendida do corpo como um brando sono
o Sol para que fazendo tudo ser visiacutevel anuncie seu destino ao pai e alguns outros em
despedida Entre essas divindades uma eacute elencada com a finalidade de vingar o heroacutei em
relaccedilatildeo aos dois chefes as Eriacutenias Quando dessa menccedilatildeo aqueles satildeo referidos como maus
(κακοὺς v 839) o que justifica na suacuteplica do heroacutei a perseguiccedilatildeo destas divindades agravequeles
Na concepccedilatildeo grega essas deusas causam ruiacutena ao que agem contra membros do mesmo
grupo sobretudo da famiacutelia Para o Telamocircnio eacute nisso que se insere a sua prece e por isso
justifica o seu pedido de que tal como ele morto por si proacuteprio (αὐτοσφαγῆ v 841) aqueles
devem perecer mortos pelos seus proacuteprios e cariacutessimos descendentes (αὐτοσφαγεῖς τῶν
φιλίστων ἐκγόνων v 841-842) Soacutefocles parece de alguma forma alinhar os desejos do
Telamocircnio ao menos ao mito que trata do retorno de Agamecircmnon pois este morre pelas matildeos
da mulher e esta pelas do filho segundo a tradiccedilatildeo do episoacutedio de retorno desse rei Com
efeito o ato de reservar um lugar em suas invocaccedilotildees para a vinganccedila e o manifesto desejo
por um infortuacutenio tatildeo traacutegico para os Atridas destacam a ira do heroacutei como fundamental
impulso de suas accedilotildees
Dessa forma quanto aos versos mencionados acima o heroacutei considerando o pudor ao
pai e a ira aos dois chefes gregos adequa os preceitos da bela morte agrave sua situaccedilatildeo
antecipando o que viraacute a ser o seu suiciacutedio a uacutenica saiacuteda que natildeo favoreccedila de alguma forma
os seus recentes inimigos e que evidencie nele ainda um valor guerreiro e que assim
configure a sua morte sendo corajosa e nobre tal qual a maacutexima homeacuterica Assim quanto agrave
ira contra os chefes gregos especialmente contra Odisseu Agamecircmnon e Menelau podemos
reconhecer a sua participaccedilatildeo importante na composiccedilatildeo da trama da peccedila
Passemos ao estudo desse sentimento em relaccedilatildeo aos deuses Vejamos entatildeo a sua
segunda menccedilatildeo nos versos 735 a 744 inseridos no terceiro episoacutedio cujo vocaacutebulo ira estaacute
ainda expliacutecito
90
[Χο] Οὐκ ἔνδον ἀλλὰ φροῦδος ἀρτίως νέας 735 βουλὰς νέοισιν ἐγκαταζεύξας τρόποις [Αγ] ᾿Ιοὺ ἰούmiddot βραδεῖαν ἡμᾶς ἆρ ὁ τήνδε τὴν ὁδὸν πέμπων ἔπεμψεν ἢ φάνην ἐγὼ βραδύς [Χο] Τί δ ἐστὶ χρείας τῆσδ ὑπεσπανισμένον 740 [Αγ] Τὸν ἄνδρ ἀπηύδα Τεῦκρος ἔνδοθεν στέγης μὴ ξω παρήκειν πρὶν παρὼν αὐτὸς τύχῃ [Χο] ᾿Αλλ οἴχεταί τοι πρὸς τὸ κέρδιστον τραπεὶς γνώμης θεοῖσιν ὡς καταλλαχθῇ χόλου24
(Aias v 735-744)
Novamente evidenciamos o vocaacutebulo ira choacutelos expliacutecito tambeacutem nessa passagem
(χόλου v 744) Nesse caso segundo o pensamento do coro essa reconciliaccedilatildeo se daria junto
aos deuses uma vez que sobre estes a ira do heroacutei tambeacutem recai Essa interpretaccedilatildeo
equivocada dos guerreiros de Salamina em relaccedilatildeo aos pensamentos do seu senhor enfatiza
sobretudo os ideais do heroacutei pois marcam um novo comportamento (νέοισιν [] τρόποις) e
uma nova vontade (νέας βουλὰς) do Telamocircnio O fato singular eacute que de acordo com essa
perspectiva Aacutejax abandonaria seu mais corrente ideal presente na peccedila fazer bem aos amigos
e mal aos inimigos Assim contrariamente agrave sua costumeira iacutendole especialmente ao seu
conjunto de atributos o heroacutei estaria disposto natildeo soacute a procurar a accedilatildeo mais inteligente e a
mais astuta (κέρδιστον) mas tambeacutem um ideal Isso fica oacutebvio pelo uso do vocaacutebulo γνώμη
no verso 744 cujo sentido primeiro eacute juiacutezo mas pelo qual o costume grego denomina aleacutem
disso as sentenccedilas e maacuteximas Contudo a compreensatildeo do coro eacute errada e possui ainda uma
certa ironia pois esse equiacutevoco se faz evidente sobretudo pelo contraste de atributo que natildeo
corresponde ao heroacutei mas a seu maior opositor Odisseu O atributo em questatildeo eacute a astuacutecia
referida no verso 753 mormente em um grau superlativo do adjetivo ou seja intensificando
essa qualidade Certamente tal procedimento eacute incoerente com a natureza do Telamocircnio que
prefere ainda seguir o caminho do oacutedio contra aqueles que lhe satildeo hostis e entres tais os
deuses
O proacutelogo e o primeiro episoacutedio por exemplo fornecem vaacuterios indiacutecios para
confirmarmos essa ira aos deuses sobretudo a Atena Em fragmento estudado anteriormente
vimos que o heroacutei se vecirc odiado pelos deuses (θεοῖς ἐχθαίρομαι v 457-458) e por Troia (ἔχθει
24
[Co] Natildeo estaacute dentro mas haacute pouco se foi novas (v 735) vontades tendo ligado a novos costumes [Mens] Ai ai Pois aquele [Teucro] que nos enviou neste caminho enviou em um tardio ou eu tardio apareci [Co] O que estaacute ausente deste serviccedilo (v 740) [Mens] Teucro proibia o homem dentro da tenda que dela saiacutesse antes que ele mesmo estivesse presente fortunamente [Co] Mas vai certamente tendo se dirigido para o mais astuto juiacutezo para que seja reconciliado da coacutelera aos deuses
91
[] Τροία v 459) de forma que se equaliza a posiccedilatildeo ocupada por estes e por aqueles
Ambos satildeo vistos assim como inimigos O verbo utilizado nesse reconhecimento eacute ἔχθω da
mesma raiz do adjetivo ἐχθρός cujo significado jaacute mencionado abrange tanto o sentimento
de oacutedio quanto a relaccedilatildeo de inimizade por extensatildeo de sentido E estaacute oacutebvio que para essa
conjectura haacute de ser entender que os deuses procuram fazer mal tanto quanto seus inimigos
declarados os Troianos Para perceber como isso se daacute temos que nos remeter sobretudo agrave
relaccedilatildeo de Aacutejax e Atena
A deusa eacute reconhecida pelo heroacutei como uma aliada de guerra (σύμμαχον v 117) e ela
mesma assim se coloca para ele (συμμάχου v 90) inclusive o ajudando no ataque aos chefes
gregos (v 92) Logo na visatildeo do heroacutei a divindade eacute uma amiga Contudo essa percepccedilatildeo eacute
distorcida pois o termo σύμμαχος sugere inferioridade segundo Knox uma vez que
descrevia a designaccedilatildeo oficial das cidades e ilhas sujeitas ao poder de Atenas (1961 p 8) O
proacuteprio texto apresenta indiacutecios que comprovam essa interpretaccedilatildeo pois Teucro diante de
Menelau afirma que seu irmatildeo veio como dono de si (αὑτοῦ κρατῶν v 1099) e natildeo
conduzido como aliado (σύμμαχον v 1098) Essa declaraccedilatildeo parece realmente realccedilar na
palavra σύμμαχος a ideia de subordinaccedilatildeo Acrescenta-se a isso a forma como o heroacutei se
refere agrave participaccedilatildeo da deusa a qual pareceria desempenhar um bom suporte bom apoio (εὖ
παρέστης v 92) negando a ela a primazia do sucesso na expediccedilatildeo noturna considerando-se
em especial o teor do verbo utilizado cujo sentido etimoloacutegico seria pocircr-se ao lado
exatamente devido ao adveacuterbio πάρα usado como prefixo verbal ressaltando a natildeo
superioridade da deusa na responsabilidade das decorrentes consequecircncias Tal entendimento
corrobora a supervalorizaccedilatildeo de sua honra como jaacute vimos a ponto de ele mesmo acreditar ser
possiacutevel alcanccedilar gloacuteria sem a participaccedilatildeo dos deuses nas accedilotildees humanas No seu caso
sobretudo em fazecirc-lo sozinho Essa conduta difere completamente da relaccedilatildeo de Odisseu
perante Atena acima de tudo pelo claro contraste suscitado O Laertida trata-a da seguinte
maneira a mais amiga para mim dos deuses (φιλτάτης ἐμοὶ θεῶν v 14) amiga soberana
(φίλη δέσποινα v 38) como tambeacutem reconhecendo a superior posiccedilatildeo da deusa enfatiza
que por ela eacute dirigido (σῇ κυβερνῶμαι χερί v 35)
Esse contraste eacute evidente e significativo especialmente para marcar a reviravolta nas
accedilotildees de Aacutejax que reconhece ao mesmo tempo que suas accedilotildees ao inveacutes de lhe dar prazer pela
vinganccedila empregada desencadearam o seu sofrimento e a sua ruiacutena e que a proacutepria deusa que
apoiou os seus atos como aliada na verdade eacute sua inimiga e responsaacutevel por conduzi-lo ao
infortuacutenio atraveacutes do encorajamento para atos desmedidos e das imagens extraviadoras Dessa
forma o heroacutei reconhece explicitamente a posiccedilatildeo de Atena quanto a ele a qual o maltrata
92
ruinosamente (ὀλέθριον αἰκίζει v 402) e isso significa colocaacute-lo aleacutem de uma situaccedilatildeo de
desonra mas de lhe impor um ultraje completo como ele mesmo reconhece ser excessivo
(ὐβρίσθην v 367) Esse excesso eacute visto tambeacutem no teor do verbo maltratar que exige na
peccedila o sentido apropriado de humilhar pois retrata um ato desmedido que na perspectiva do
heroacutei soacute se sustenta nas accedilotildees de seus inimigos
Por isso Atena passa a ser vista como uma inimiga e a partir de uma carga fortemente
negativa Seu epiacuteteto como na eacutepica eacute deusa de olhos brilhantes θεὰ γλαυκώπις como por
exemplo ela eacute nomeada no Canto I da Iliacuteada no verso 206 quando desce para fazer cessar a
ira de Aquiles que se levanta contra Agamecircmnon (cf p 26-27) Mas diante da inimizade a
que se presta ela eacute nomeada pelo Telamocircnio como deusa de olhos terriacuteveis (γοργῶπις []
θεὰ v 450) pois quando o heroacutei se encontrava em situaccedilatildeo semelhante agrave do Pelida iracundo
a se erguer contra os chefes gregos a divindade lanccedilou sobre ele uma doenccedila raivosa
(λυσσώδη νόσον v 452) que acaba por conduzi-lo ao infortuacutenio Significativo eacute o vocaacutebulo
noacutesos νόσος pois expressa o sentido de doenccedila de loucura e de paixatildeo dos quais a peccedila em
questatildeo reforccedila fortemente o segundo significado mas que ainda podemos ver um eco do
uacuteltimo uma vez que sua ira retrata uma paixatildeo desmedida
Entretanto parece-nos mais salutar a relaccedilatildeo estabelecida da deusa com a visatildeo
recurso inclusive retomado de Homero Nesse episoacutedio do Canto I da Iliacuteada referido acima a
deusa como no proacutelogo da trageacutedia apresenta-se tambeacutem invisiacutevel mas aparente para o
Pelida somente (οἴῳ φαινομένη v 198) Jaacute quando do duelo singular desse heroacutei com Heitor
quando a deusa eacute referida novamente pelo epiacuteteto θεὰ γλαυκῶπις (XXII v 214) para o
Priamida se apresenta sob as feiccedilotildees de Deiacutefobo seu irmatildeo pelas quais constrange o heroacutei a
lutar decisatildeo jaacute tomada pelo mesmo em monoacutelogo Ateacute que enfim o Priamida descobre que
Atena o enganou (ἐμὲ ἐξαπάτησεν Ἀθήνη XXII v 299) Esses episoacutedios satildeo fundamentais
pois tanto Aquiles quanto Heitor parecem ser modelos retomados por Soacutefocles para compor a
situaccedilatildeo de Aacutejax Este sendo grego e estando na mesma situaccedilatildeo do primeiro natildeo tem sua
ira retida pela deusa mas pelo contraacuterio eacute enganado (ἔσφηλεν v 452) tal como o segundo
que ocupa a posiccedilatildeo de inimigo perante a divindade Bastante significativo satildeo esses verbos
ἐξαπατάω na Iliacuteada e σφάλλω em Aias cujo sentido tocam o mesmo campo semacircntico de
enganar e que no aspecto aoristo demarcam nas palavras de ambos heroacuteis o reconhecimento
da influecircncia divina de Atena em accedilotildees sobretudo ilusoacuterias que lhe causam mal permitindo
tambeacutem ao heroacutei identificar a posiccedilatildeo de inimigo diante da divindade
Essa relaccedilatildeo de proximidade desses heroacuteis o filho de Teacutelamon e o de Priacuteamo estreita-
se a partir dos estudos de Edward Brown e corrobora dessa forma a nossa comparaccedilatildeo Esse
93
autor identifica vaacuterias semelhanccedilas entre esses dois no trato com suas companheiras e filho
Da mesma forma que Tecmessa no primeiro episoacutedio exorta e suplica ao seu senhor para
mostrar os males da morte do pai da famiacutelia como por exemplo a captura da mulher como
escrava e a situaccedilatildeo do indefeso filho oacuterfatildeo assim procedeu Androcircmaca na Iliacuteada (VI 407-
65) (1965 p 118) Tambeacutem quando o Telamocircnio se dirige ao filho em despedida
desejando-lhe o melhor isso assemelha-se agraves palavras do Priamida que para o bem do filho
suplica a Zeus segundo os mesmos desejos (Ibidem p 120) A morte de ambos os heroacuteis
retratada na peccedila com a participaccedilatildeo dos presentes trocados pelos dois legitima a relaccedilatildeo
entre eles especialmente sob o vieacutes traacutegico
Com efeito o reconhecimento de sua condiccedilatildeo de inimigo da deusa faz o protagonista
da peccedila refletir sobre quais accedilotildees devem ser executadas considerando-se sobretudo seu rancor
diante daquela que ele julgava aliada mas que agora faz parte do grupo ocupado pelos
Troianos e chefes gregos Essa inversatildeo de papel tal como se fez quanto aos chefes gregos
reforccedila marcadamente o sentimento de ira do personagem expresso no fragmento disposto e
estudado acima A coacutelera eacute senatildeo oriunda da traiccedilatildeo ao heroacutei que de seu ponto de vista reflete
a surpresa das accedilotildees de seus aliados contraacuterias agrave expectativa e que do ponto de vista da
composiccedilatildeo representa uma peripeacutecia aristoteacutelica para aquela executada pela deusa no
proacutelogo Vejamos agora seu monoacutelogo que o leva agrave conclusatildeo do suiciacutedio como uacutenica saiacuteda
para sua situaccedilatildeo
[Αι] Ἀλλ εἶμι πρός τε λουτρὰ καὶ παρακτίους λειμῶνας ὡς ἂν λύμαθ ἁγνίσας ἐμὰ 655 μῆνιν βαρεῖαν ἐξαλύξωμαι θεᾶςmiddot μολών τε χῶρον ἔνθ ἂν ἀστιβῆ κίχω κρύψω τόδ ἔγχος τοὐμόν ἔχθιστον βελῶν γαίας ὀρύξας ἔνθα μή τις ὄψεταιmiddot ἀλλ αὐτὸ νὺξ ῞Αιδης τε σῳζόντων κάτω 660 ᾿Εγὼ γάρ ἐξ οὗ χειρὶ τοῦτ ἐδεξάμην παρ ῞Εκτορος δώρημα δυσμενεστάτου οὔπω τι κεδνὸν ἔσχον ᾿Αργείων πάραmiddot ἀλλ ἔστ ἀληθὴς ἡ βροτῶν παροιμίαmiddot ἐχθρῶν ἄδωρα δῶρα κοὐκ ὀνήσιμα 665 Τοιγὰρ τὸ λοιπὸν εἰσόμεσθα μὲν θεοῖς εἴκειν μαθησόμεσθα δ ᾿Ατρείδας σέβειν ῎Αρχοντές εἰσιν ὥσθ ὑπεικτέονmiddot τί μή
[] ᾿Εγὼ γὰρ εἶμ ἐκεῖσ ὅποι πορευτέονmiddot 690 ὑμεῖς δ ἃ φράζω δρᾶτε καὶ τάχ ἄν μ ἴσως πύθοισθε κεἰ νῦν δυστυχῶ σεσωσμένον25
25
[Aj] Mas vou em direccedilatildeo aos banhos e aos costeiros prados para que tendo expiado as minhas impurezas (v 655) eu escape da pesada ira da deusa E tendo ido ali onde eu encontre regiatildeo sagrada ocultarei esta
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(Aias v 654-668690-692)
Um fato extremamente importante desses versos que compotildeem o segundo episoacutedio eacute
reconhecer neles um caraacuteter reflexivo e de monoacutelogo Logo apesar de sua linguagem velada
esses representam uma exteriorizaccedilatildeo do pensamento que se dirige ao proacuteprio personagem
apesar da presenccedila de outros personagens e do coro (KNOX 1961 p 12) Retomando-se o
paralelo entre esse personagem e Heitor essa passagem se assemelharia ao monoacutelogo do
Priamida no Canto XXII da Iliacuteada quando da reflexatildeo acerca da atitude que se deve tomar
diante do iminente combate com Aquiles Associa-se validamente a esse discurso do
protagonista o valor de caracterizaccedilatildeo indireta especialmente se considerarmos as premissas
aristoteacutelicas pois certamente evidencia-se aiacute uma escolha que legitima o caraacuteter do heroacutei a
ira ou rancor que conduz suas accedilotildees de modo a evitar uma atitude que o aproxime tanto aos
deuses como aos Atridas visto que eles satildeo concebidos como inimigos
Concordamos tambeacutem com Bernard Knox quando este autor faz entender que o
caraacuteter de Aacutejax eacute semelhante ao do Pelida ou seja predisposto agrave violecircncia mas natildeo agrave
falsidade (Ibidem p 11) Assim se os guerreiros de Salamina compreendem
equivocadamente as palavras do seu senhor no sentido de entendecirc-las como uma
reconciliaccedilatildeo com os deuses e isso se faz da parte do coro natildeo por intenccedilatildeo do heroacutei e
tambeacutem por arte do autor em promover mais uma peripeacutecia na obra agora em sua parte
central
Com efeito nesse monoacutelogo podemos observar marcadamente o sentimento do
protagonista em relaccedilatildeo aos Atridas mas tambeacutem sobretudo aos deuses O rancor contra as
divindades descrito pelo coro na passagem estudada anteriormente ganha forma nas palavras
do Telamocircnio principalmente quanto agrave deusa Atena agrave sua conhecida perseguidora Pelo
proacuteprio texto compreendemos que o personagem natildeo procura se reconciliar mas fugir
escapar (ἐξαλύξωμαι) agrave fuacuteria da deusa Do ponto de vista do heroacutei esse ato promove uma
saiacuteda agrave sua condiccedilatildeo natildeo soacute redentora mas tambeacutem eventual Essa eventualidade se percebe
pelo uso da conjunccedilatildeo ὡς vinculada juntamente ao subjuntivo (MURACHCO 2007 p 690
vol 1) no caso em questatildeo do verbo ἐξαλύσκω Isso expressa uma expectativa proacutexima agrave
realidade ou seja uma consequecircncia tomada como quase certa A morte sugerida em suas
minha espada a mais inimiga das armas tento cavado a terra onde ningueacutem veraacute Mas que a noite e Hades guardem-na abaixo (v 660) Pois eu tendo recebido com a proacutepria matildeo este presente de Heitor hostiliacutessimo ainda natildeo tive algo valoroso dos Argivos Mas eacute verdadeiro o proveacuterbio dos amigos os presentes de inimigos natildeo satildeo presentes e nem uacuteteis (v 665) Por isso em relaccedilatildeo ao futuro saberemos tanto ser inferiores aos deuses quanto aprenderemos a cultuar os Atridas Satildeo governantes segundo isso se deve ceder Por que natildeo [] Pois eu vou ali aonde se deve ir (v 690) E voacutes cumpri as coisas que ordeno e talvez igualmente me reconheceis salvo se agora sucumbo
95
palavras tambeacutem representa salvaccedilatildeo (σεσωσμένον) mesmo que tenha a aparecircncia de
infortuacutenio (δυστυχῶ) pois ao mesmo tempo que o afasta da ira da deusa de alguma forma o
aproxima da honra perdida e como jaacute foi dito anteriormente o ato do se suicidar eacute visto pelo
heroacutei como um ato de coragem e nobreza Por isso as palavras que expressam o suiciacutedio satildeo
polivalentes e se revestem de ambiguidade que toca o sentido religioso pelo qual preferimos
traduzir para manter um certo grau de velamento que induz o coro agrave sua maacute compreensatildeo do
monoacutelogo
O particiacutepio aoristo ἁγνίσας tem origem no verbo ἀγνίζω cujo sentido parte da noccedilatildeo
concreta de lavar e alcanccedila o significado religioso de purificar expiar consagrar e oferecer
um sacrifiacutecio Seu complemento eacute λύμαθ pode expressar tanto a sujeira fiacutesica quanto a
impureza religiosa quanto a desonra do ponto de vista social e moral Natildeo haacute como retirar
das accedilotildees do protagonista que o mesmo se dirige agraves costas e aos banhos segundo as suas
palavras procurando uma regiatildeo adequada ao ato O lugar escolhido eacute ἀστιβῆ Esse adjetivo
significa deserto isolado sobretudo natildeo pisado em sua noccedilatildeo concreta mas na religiosa por
extensatildeo de sentido significa sagrado santo exatamente por ser uma localidade natildeo tocada
pelo humano O caraacuteter religioso do ato eacute patente na ambiguidade conferida pela escolha das
palavras pois a accedilatildeo pode ser entendida tanto como de purificar a maacutecula quanto tambeacutem
como de expiar a desonra a regiatildeo adequada para o rito nesse mesmo acircmbito da
ambiguidade pode ser entendida tanto como sagrada no sentido religioso quanto isolada no
sentido de reforccedilar o suiciacutedio como parte do isolamento moral em que o heroacutei se encontra e
que ecoa de sua conduta individual e arcaica Assim parece haver uma ambiguidade no
sentido religioso soacutecio e moral pela qual ora compreendemos o ato do heroacutei como uma
reconciliaccedilatildeo com os deuses ora como uma reabilitaccedilatildeo de sua timeacute para qual natildeo podemos
vincular quaisquer noccedilotildees de subordinaccedilatildeo A morte entatildeo representa o fim dos correntes
infortuacutenios pois o heroacutei a partir disso escapa da inimizade da deusa E como natildeo haacute
submissatildeo a Atena ele tambeacutem regenera seu valor e sua honra visto que a accedilatildeo tambeacutem
sugere a expiaccedilatildeo de uma maacutecula nesse caso de uma desonra a qual se associa agrave timeacute do
Telamocircnio restabelecendo-a ao menos no seu iacutentimo A regiatildeo escolhida representa ora o
espaccedilo sagrado para um ritual religioso em desagravo agrave divindade a princiacutepio um rito
exigente de um sacrifiacutecio segundo o modelo homeacuterico ora o isolamento adequado para a
accedilatildeo heroica a bela morte sobretudo coerente na peccedila que delineia um heroacutei a agir sozinho
sempre imbuiacutedo de uma postura de gloacuteria individual eacutepica Aleacutem disso o sacrifiacutecio
demandado na esfera religiosa se revela ser na verdade o suiciacutedio do heroacutei mas natildeo para a
96
submissatildeo e reconciliaccedilatildeo aos deuses pois esse ato eacute realmente o mais grave executado pelo
Telamocircnio na peccedila para legitimar o contraacuterio a sua autonomia
Certamente que a passagem gera ambiguidade se natildeo considerarmos todo o discurso
por isso o ato de expiar eacute visto pelo coro como a reconciliaccedilatildeo do heroacutei diante da deusa por
meio de um rito submetendo-se a ela Contudo essa interpretaccedilatildeo serve para a peripeacutecia mas
natildeo revela o verdadeiro teor de suas palavras pois sabemos que tal submissatildeo natildeo ocorre
como veremos com mais detalhes adiante
Nessa passagem tambeacutem noacutes observamos em que ponto se firma a hyacutebris do heroacutei
condenaacutevel pela deusa que o persegue O seu excesso como jaacute vimos tem como base a
supervalorizaccedilatildeo de sua honra sobretudo pelo fato de que apoacutes a morte de Aquiles contexto
retratado pela peccedila Aacutejax se torna o melhor dos argivos como jaacute foi pontuado Em
consequecircncia desse reconhecimento de primazia o heroacutei se recusa a se submeter
especialmente por entender que os chefes Agamecircmnon e Menelau satildeo-lhe inimigos e como
se deduz do proveacuterbio por ele citado no qual ao fim se igualam estes a Heitor os dons
provenientes dos inimigos natildeo satildeo presentes e assim nada oriundo deles pode representar
benesses Na visatildeo do personagem segundo o pensamento de Knox o fragmento retrata o
reconhecimento de uma autoridade mais dura do que realmente se mostra (Ibidem p 16) por
isso a hipeacuterbole em dizer que se deve venerar os Atridas e natildeo como seria mais adequado
ceder aos Atridas
Contudo esse excesso quanto agrave supervalorizaccedilatildeo de sua honra tambeacutem interfere na
sua relaccedilatildeo com os deuses uma vez que por duas vezes nos versos 761 e 777 o mensageiro
traz as palavras de Calcas o adivinho dos gregos justificando a ira da deusa quanto ao
protagonista pois este ao natildeo reconhecer o poder dos deuses nas accedilotildees dos homens negando-
lhes participaccedilatildeo em seu triunfo natildeo pensa e natildeo se modera como um homem (οὐ κατ`
ἄντρωπον φρονῶν v 777) Para noacutes entatildeo aleacutem do que diz Knox a hipeacuterbole potildee em
evidecircncia a sua perspectiva diante da instabilidade do mundo que levada ao extremo segundo
sua iacutendole predisposta ao excesso faz trocar de lugar Atridas e deuses de forma proposital
Ao aplicar tal situaccedilatildeo a um futuro τὸ λοιπὸν no qual a realidade tem regras semelhantes agraves
do presente o heroacutei tem como objetivo reconhececirc-la como intoleraacutevel e insustentaacutevel para os
seus princiacutepios Logo essa instabilidade exagerada marca ao menos a impossibilidade do
Telamocircnio viver segundo essas premissas e reforccedila certamente sua disposiccedilatildeo em refutar se
dobrar a uma realidade como tal Com efeito a inversatildeo de papeacuteis entre deuses e Atridas tal
como estaacute parece legitimar uma ironia Quando o heroacutei reconhece que tanto deuses quanto
Atridas satildeo chefes devendo a eles ceder parece-nos que quer dizer exatamente o contraacuterio
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que estaacute resoluto em natildeo se submeter pois a posiccedilatildeo deles eacute instaacutevel tal qual a da amizade e
da inimizade Isso para noacutes fica mais claro pelo uso do futuro de voz meacutedia dos verbos
utilizados26 εἰσόμεσθα e μαθησόμεσθα que representam atraveacutes da voz meacutedia um futuro
promissivo ou seja correspondem ao envolvimento do sujeito com a accedilatildeo que eacute antecipada
exatamente pelo compromisso do agente em realizaacute-la (Ibidem p 457) Logo a disposiccedilatildeo a
um compromisso a uma promessa que logicamente natildeo seraacute executada evidencia senatildeo uma
ironia o reforccedilo em afirmar algo pelo seu oposto A hipeacuterbole assim parece acentuar essa
ironia tornando-a inclusive ao nosso ver uma zombaria um escaacuternio acerca da condiccedilatildeo
instaacutevel do mundo e por extensatildeo da proacutepria natureza divina e humana
O verso 677 que apresenta uma pergunta retoacuterica ldquoe noacutes como natildeo aprenderemos a
moderar-nosrdquo (ἡμεῖς δὲ πῶς οὐ γνωσόμεσθα σωφρονεῖν) corrobora tal pensamento pois jaacute
nos conduz agrave resposta negativa devido a duas consideraccedilotildees A primeira porque como antes se
faz atraveacutes de um futuro promissivo tambeacutem de voz meacutedia ou seja revela o compromisso
que natildeo seraacute cumprido A segunda como aponta Knox (Ibidem p 17) eacute o fato de que o
verbo σωφρονεῖν e muitas das palavras oriundas dessa raiz descrevem na peccedila em questatildeo a
atitude proacutepria dos subordinados ou inferiores Assim Aacutejax evidenciando esse sentido impele
Tecmessa a esse comportamento (σωφρονεῖν v 586) Menelau ao Telamocircnio (σωφρόνως v
1075) Agamecircmnon a Teucro (σωφρονήσεις v 1259) e Atena aos homens (σώφρονας v
132) Assim essa moderaccedilatildeo referida pelo heroacutei ecoa senatildeo como uma espeacutecie de submissatildeo
para o qual se mostra extremamente odiosa sobretudo quando em relaccedilatildeo a quem lhe satildeo
inimigos Podemos deduzir disso que o heroacutei de iacutendole guerreira e arcaica parece igualar essa
submissatildeo religiosa poliacutetica ou social agrave esfera beacutelica ou seja agrave rendiccedilatildeo Dessa forma se
para ele mesmo ela natildeo eacute possiacutevel quanto agrave guerra uma vez que o valor estaacute na bela morte e
natildeo em uma condiccedilatildeo de escravidatildeo a submissatildeo seja de qualquer acircmbito representa o
mesmo uma rendiccedilatildeo sobretudo ao consideraacute-la em relaccedilatildeo aos deuses e Atridas que lhe
satildeo inimigos
Com efeito o suiciacutedio representa a fuga a essa submissatildeo agrave qual o mundo o aprisiona
A ironia entatildeo parece intensificar essa refutaccedilatildeo das regras vigentes pois do mesmo modo
26
Segundo Murachco o tempo futuro da liacutengua grega natildeo eacute verdadeiramente um tempo mas uma eventualidade uma antecipaccedilatildeo sobretudo porque corresponde a um desejo em certo grau de intensidade que justifica a projeccedilatildeo do ato verbal O autor prossegue evidenciando sobretudo a forma meacutedia de muitos futuros de verbos ativos a qual reflete o envolvimento do sujeito no ato verbal Essa noccedilatildeo semacircntica implica uma promessa um compromisso por parte do agente expressando-se de alguma maneira uma certeza na antecipaccedilatildeo o que justifica o uso do indicativo (MURACHCO 2007 p 456-457) Esse eacute o caso dos verbos εἰσόμεσθα (do verbo εἴδω cujo futuro eacute εἴσομαι) μαθησόμεσθα (do verbo μανθάνω cujo futuro eacute μαθήσομαι) e como veremos a seguir o verbo γνωσόμεσθα (do verbo γιγνώσκω cujo futuro eacute γνώσομαι)
98
que suas accedilotildees escapam e por isso zombam dessa condiccedilatildeo suas palavras parecem tomar o
mesmo caminho Logo tanto o falso compromisso assumido quanto a sacralidade dos
vocaacutebulos que revelam seu suiciacutedio promovem senatildeo sua uacuteltima desmedida em vida
sobretudo dramatizada tal qual a do proacutelogo em oposiccedilatildeo agravequelas referidas em analepse pelo
mensageiro no terceiro episoacutedio as quais juntas expotildeem o caraacuteter do personagem e sua
coerente unidade Todos esses atos excessivos se mostram assim agressivos e violentos agrave
posiccedilatildeo exercida pela divindade e pelos Atridas na peccedila
Em decorrecircncia dessa interpretaccedilatildeo a gravidade das accedilotildees do protagonista sobretudo
quanto agrave sua retoacuterica igualmente hostil mais do que justificar a sua escolha serve-nos de
apoio e contribuem para a caracterizaccedilatildeo iracunda do heroacutei que natildeo se esquece das
hostilidades dos amigos que se tornaram inimigos Toda ira e todo oacutedio se justificam tantos
nas palavras quanto nas accedilotildees e nelas podem ser observadas Com efeito a ira do
personagem contra aqueles que lhe causam mal tambeacutem o move a tomar a decisatildeo definitiva
de suicidar-se pois o heroacutei ocupando a posiccedilatildeo de inimigo para os gregos e os deuses uma
vez que reagiu contra eles excessivamente de forma que se justifica tal situaccedilatildeo e estando
incapaz de retornar agrave sua paacutetria pela honra inferior agrave do pai tambeacutem age considerando evitar
qualquer forma de agradar os Atridas e de se dobrar aos deuses que lhe satildeo hostis Dentro do
acircmbito da causalidade interna do enredo esse sentimento se mostra como um dos elementos
fundamentais na composiccedilatildeo da obra e de sua caracterizaccedilatildeo Por um lado ela impele o
personagem a evitar o ponto mais alto de sua gloacuteria a bela morte em um combate singular
com um igual e por outro permite em contrapartida uma accedilatildeo mais traacutegica na estrutura da
peccedila o suiciacutedio uma vez que esta uacuteltima accedilatildeo natildeo fornece a fuga agrave submissatildeo pois os
Atridas mesmo que por um tempo como chefes ainda impedem seus ritos fuacutenebres
Com efeito assim como se pontuou no capiacutetulo passado eacute necessaacuterio entender a
relaccedilatildeo entre ira e loucura segundo o que reconhecemos ser pertinente agrave trageacutedia
Anteriormente distinguimos a ira choacutelos da loucura maniacutea (μανία) ou da doenccedila noacutesos
(νόσος) uma vez que estas uacuteltimas satildeo extremamente recorrentes em Aias sobretudo usado
de forma conjunta com o reforccedilo de vaacuterios vocaacutebulos deles derivados Para Bernard Knox a
loucura consiste somente no extravio criado sobre os olhos fazendo o heroacutei ver homens no
lugar de animais e o encorajamento da deusa aos atos sobre os chefes como o assassinato e a
tortura segundo o autor representa um impulso a uma vontade jaacute em andamento quando em
sua sanidade (1961 p 5) Flaacutevio Ribeiro de Oliveira endossa essa perspectiva acrescentando
que o Telamocircnio ldquonatildeo tem sua natureza modificada quando arquiteta e executa a carnificina
noturna para o autor a violecircncia com que Aacutejax age eacute proacutepria do caraacuteter do heroacutei magniacutefico e
99
brutal o distuacuterbio visual que sofre e sua doenccedila satildeo uma uacutenica coisa (apud HUumlBSCHER
2011 p 27) Em reforccedilo a isso a perspectiva de Agatha Bacelar se mostra importante pois
para ela a vontade do protagonista retrata senatildeo a predisposiccedilatildeo dele mesmo ao excesso
configurando um estado proacuteprio e caracteriacutestico do desmedido ὑβριστής que ao seu ver
constitui a dicotomia presente na obra representando a natildeo civilizaccedilatildeo o selvagem o baacuterbaro
em oposiccedilatildeo ao civilizado e por isso moderado composto da σωφροσύνη (2006 p 236-238)
Eacute visiacutevel e clara a disposiccedilatildeo do heroacutei agrave desmesura sobretudo como bem pontua
Bacelar a partir do que diz Aristoacuteteles no primeiro livro da Retoacuterica (1274a 13) ldquoὑβρις
conota προαίρεσις uma decisatildeo que instaura um comprometimento eacutetico entre o agente e a
accedilatildeo uma vez que προαίρεσις depende de uma ἠθικὴ ἕξις de uma disposiccedilatildeo permanente de
caraacuteterrdquo (2006 p 235) Contudo isso contradiz a natureza do heroacutei se percebemos as
condiccedilotildees em que essa violecircncia se manifesta em uma accedilatildeo noturna e sorrateira
(HUumlBSCHER 2011 p 27) tanto se retomarmos a tradiccedilatildeo homeacuterica agrave qual Soacutefocles se
refere quanto se utilizarmos os indiacutecios textuais da proacutepria obra que isso reiteram
Em relaccedilatildeo agraves epopeias homeacutericas podemos citar dois exemplos O primeiro referido
tanto por Huumlbster (Ibidem p 27-28) quanto por Stanford (1978 p 189) nos estudos desta
peccedila corresponde aos versos 645 a 647 do Canto XVII da Iliacuteada que apresentam o heroacutei em
conjunto com os Aqueus cobertos por uma nuvem escura lanccedilada por Zeus para permitir o
avanccedilo troiano na batalha Neste momento o Telamocircnio roga por luz e eacute atendido O fato
importante eacute perceber que neste fragmento o proacuteprio heroacutei reconhece o caraacuteter auspicioso da
luz (Ibidem p 189-190) para o reconhecimento da virtude guerreira pois a Zeus ele a pede
(φάει v 647) suspeitando que talvez sua morte se aproximε O outro momento eacute o Canto
VII versos 273-293 no qual ele se encontra em vantagem contra Heitor em combate singular
cujo fim sem resoluccedilatildeo se faz pelo reconhecimento da chegada da noite (νύξ v 282 293)
Esta em oposiccedilatildeo ao dia de forma coerente com a passagem anterior eacute vista sobretudo como
inadequada ou mesmo nefasta para os combates Com efeito mesmo que excessivo e
violento um Aacutejax noturno contradiz a iacutendole agrave qual a audiecircncia estaria acostumada como eacute o
caso recorrente da peccedila da qual podemos ver vaacuterias referecircncias agrave essa disposiccedilatildeo ldquoagrave noiterdquo
(νύκτωρ v 57) nas palavras de Atena ldquoagrave noiterdquo (νυκτός v 141) nas do coro ldquoAacutejax
noturnordquo (νύκτερος Αἴας v 217) e ldquoagrave noiterdquo (νυκτός v 285) nas de Tecmessa ou na
significativa invocaccedilatildeo do Telamocircnio que chama para si a escuridatildeo diante da situaccedilatildeo em
que se encontra ldquotrevas minha luz Eacuterebo para mim o mais luminosordquo (σκότος ἐμὸν φάος
ἕρεβος ὦ φαεννότατον v 394-395)
100
Essa contradiccedilatildeo eacute sobretudo afirmada na peccedila natildeo especificamente ao ato noturno
mas ao comportamento em geral do personagem Ao menos dois exemplos podemos tirar da
trageacutedia em questatildeo que retratam o reconhecimento dos proacuteximos ao heroacutei que comprovam
esse fato Um deles eacute expresso pelo coro em fragmento jaacute visto neste capiacutetulo Os soldados de
Salamina afirmam que seu senhor ldquojaacute natildeo firme na natural iacutendole encontra-se desta afastadordquo
(οὐκέτι συντρόφοις ὀργαῖς ἔμπεδος ἀλλ ἐκτὸς ὁμιλεῖ v 639-640) Ou seja o heroacutei jaacute natildeo
executa accedilotildees conforme o costumeiro caraacuteter Sua cativa reforccedilando tal premissa diz que
῾Ο δ εὐθὺς ἐξῴμωξεν οἰμωγὰς λυγράς ἃς οὔποτ αὐτοῦ πρόσθεν εἰσήκουσ ἐγώmiddot πρὸς γὰρ κακοῦ τε καὶ βαρυψύχου γόους τοιούσδ ἀεί ποτ ἀνδρὸς ἐξηγεῖτ ἔχεινmiddot27 320
(Aias v 317-320)
Nessa passagem a cativa natildeo reconhece os atos do senhor que chora copiosamente
Segundo a iacutendole do heroacutei este julgava tal ato como proacuteprio de homem mau e abatido
ldquoκακοῦ τε καὶ βαρυψύχου [] ἀνδρὸςrdquo algo estranho ao seu comportamento por isso
Tecmessa revela ao coro a incoerecircncia daquela atitude vista como ineacutedita e assim grave
Natildeo sabendo como agir ela convoca os amigos a ajudaacute-la sobretudo porque estaacute surpresa com
a reaccedilatildeo de Aacutejax que foge completamente ao costume Uma informaccedilatildeo relevante para esse
estudo estaacute em um dos adjetivos vinculados ao substantivo homem βαρύψυχος em cujo
radical estaacute presente o termo βάρυς que significa pesado componente do particiacutepio que
descreve o heroacutei nas palavras de Atena pesado de ira (χόλῳ βαρυνθεὶς v 41)
Esse estado do heroacutei grave diante das circunstacircncias dos eventos da peccedila indica que
mesmo lhe sendo natural o excesso e a disposiccedilatildeo agrave hyacutebris seu comportamento natildeo eacute o
costumeiro seja o agente noturno que contradiz o da tradiccedilatildeo que invoca a luz seja aquele
que geme chora e arranca os cabelos contrariando o que era esperado pelos seus proacuteximos A
partir disso preferimos concordar com Bruno Huumlbscher que observa a loucura do heroacutei
lanccedilada por Atena natildeo consistir apenas em fazer o Telamocircnio ver nos animais do rebanho
grego a figura dos heroacuteis Ou ao menos reconhecer uma participaccedilatildeo maior da deusa aleacutem do
engano visual Assim pode-se dizer que a puniccedilatildeo divina ao personagem natildeo eacute direta pois
isso simplificaria a trama deixando-a menos traacutegica e inclusive enfraquecendo a questatildeo eacutetica
essencial agrave peccedila Dessa forma a puniccedilatildeo mais provavelmente se configura no acircmbito do
conjunto da intervenccedilatildeo divina e da vontade humana da mesma maneira como na composiccedilatildeo 27
E ele imediatamente gemeu lamentos tristes os quais eu nunca outrora ouvi dele pois ao lado de homem mau e abatido sempre explicava tais lamentos se deter (v 320)
101
homeacuterica as motivaccedilotildees divinas e humanas satildeo indissoluacuteveis uma vez que se daacute como
resposta ao heroacutei que inserido nesse paradigma beacutelico homeacuterico de sujeiccedilatildeo agrave divindade
rejeita a ajuda divina algo pensaacutevel apenas no seacuteculo V evidenciando-se um excesso de
caraacuteter que eacute proacuteprio do personagem de Soacutefocles (2011 p 39-40)
A ira do heroacutei entatildeo reitera o aspecto humano desse composto duplo representando
sobretudo a desmedida inerente ao personagem natural a ele pois revela ser a reaccedilatildeo
imediata ao julgamento das armas que potildee em evidecircncia a sobrevalorizaccedilatildeo de sua honra em
comparaccedilatildeo com a alheia No outro extremo o extravio visual eacute proacuteprio da accedilatildeo divina
Contudo a coacutelera do personagem nos parece ser a base sobre a qual Atena age confundindo-
se humano e divino nos atos do heroacutei fazendo-se gerar o excesso maacuteximo do personagem a
loucura que segundo Segal para os gregos consistia na negaccedilatildeo da civilizaccedilatildeo (apud
Huumlbscher p 27-28) De base humana e divina essa loucura reiterando o caraacuteter selvagem e
baacuterbaro do personagem faacute-lo ultrapassar os limites da comunidade e da cidade por um lado
rompendo com seus valores heroicos uma vez que age fora de sua iacutendole por outro
rompendo com a sociedade a que pertence uma vez que se entrega agrave carnificina dos
conterracircneos sobretudo se deleitando com tais atos
De forma significativa o vocaacutebulo loucura μανία e seus derivados satildeo tatildeo frequentes
quanto o vocaacutebulo doenccedila νόσος Este cujo sentido mais concreto eacute enfermidade abrange
tambeacutem o significado de loucura ou paixatildeo esta uacuteltima quando vinculada agrave ideia descontrole
emocional Por isso eacute relevante para noacutes quando Aacutejax se refere a uma atuaccedilatildeo dupla da deusa
que deixa tanto a sua visatildeo (ὄμμα v 447) quanto os seus pensamentos (φρένες v 447)
desencaminhados (διάστροφοι v 447) por ter sido ele proacuteprio a receber da deusa essa doenccedila
raivosa (λυσσώδη νόσον v 452) Ora visatildeo e pensamento parecem estar em campos
diferentes e distintos especialmente se reconhecermos no vocaacutebulo φρήν a ideia de juiacutezo
vinculado agrave moderaccedilatildeo pois sabemos o papel essencial de sentido em particular agrave trageacutedia em
questatildeo E essa doenccedila raivosa parece senatildeo retomar a ideia de afastamento da temperanccedila
aleacutem de sugerir atuar no mesmo campo semacircntico da ira χόλος mas de uma forma mais
intensa
Acrescente-se a isso o fato de a proacutepria divindade se expressar dessa forma ldquoeu o
heroacutei que se extravia em louca doenccedila excitava lanccedilava-o em direccedilatildeo a maacutes astuacutecias (᾿Εγὼ
δὲ φοιτῶντ ἄνδρα μανιάσιν νόσοις ὤτρυνον εἰσέβαλλον εἰς ἕρκη κακά v 59-60) Nesses
versos podemos ver claramente que a participaccedilatildeo da deusa vai aleacutem do engano visual pois
ela mesma diante de Odisseu afirma excitar ὤτρυνον e impelir εἰσέβαλλον o heroacutei
sobretudo parece-nos a insuflar seu acircnimo Um vocaacutebulo desse fragmento eacute significativo em
102
especial para vermos a accedilatildeo sobre a iacutendole do heroacutei ἕρκη Esse eacute o mesmo termo que compotildee
o epiacuteteto homeacuterico do heroacutei muralha dos Aqueus ἕρκος Ἀχαιῶν Esse vocaacutebulo abrange o
significado como jaacute dissemos de cercado muro defesa mas tambeacutem por definir um ardil em
prol da proteccedilatildeo acaba por tambeacutem se estender ao sentido de astuacutecia Irocircnico por parte da
deusa que se deleita com o infortuacutenio do heroacutei e provavelmente tambeacutem pelo uso da palavra
inserida em um contexto diferente Significativamente esse impulso em direccedilatildeo a uma astuacutecia
justifica de forma clara as accedilotildees de um Aacutejax noturno pois retrata senatildeo o episoacutedio da
Doloneia no Canto X da Iliacuteada no qual Odisseu e Diomedes caccedilam e aprisionam Doacutelon
espiatildeo troiano adquirindo muitas informaccedilotildees sobre as tropas inimigas O sucesso dessa
expediccedilatildeo noturna se daacute pela assistecircncia de Atena a quem os heroacuteis requerem ajuda e
prometem sacrifiacutecios Assim na peccedila a deusa diante do Laertida apresenta as condiccedilotildees da
expediccedilatildeo do Telamocircnio que astuto δόλιος (v 47) age agrave noite νύκτωρ (v 47) Se eacute a
proacutepria deusa que o impele a maacutes astuacutecias validamente podemos deduzir sua participaccedilatildeo no
planejamento da expediccedilatildeo do heroacutei sobretudo porque representa por um lado uma
repeticcedilatildeo da accedilatildeo bem-sucedida de Odisseu o qual ela mesma auxiliou em episoacutedio anterior
cronologicamente ao proacutelogo e por outro tambeacutem representa os domiacutenios e atributos que
satildeo conferidos a ela como por exemplo a inteligecircncia que no acircmbito militar reflete a
estrateacutegia astuta e perspicaz fundamental agrave primeira cena da peccedila
Em relaccedilatildeo agrave bestialidade corrobora-se a tortura dos animais em especial a dois
carneiros dos quais de um corta a cabeccedila e a liacutengua e de outro o corpo prende agrave coluna da
tenda o castigando com accediloites claramente representando Odisseu e Agamecircmnon Com
efeito Tecmessa reconhece nessas accedilotildees sobretudo nos insultos vis do heroacutei a origem divina
pois alega ldquotais coisas uma deidade e natildeo algueacutem dos homens ensinourdquo (ἃ δαίμων κοὐδεὶς
ἀνδρῶν ἐδίδαξεν v 243-244) Ela mesma reconhece uma presenccedila na tenda durante os atos
crueacuteis do heroacutei mas natildeo vecirc a deusa assim como nenhum outro percebendo-a como uma
sombra (σκιᾷ v 301) com quem Aacutejax por vezes dialoga
Todas essas explanaccedilotildees parecem nos conduzir ao entendimento dessa loucura μανία
ou doenccedila νόσος recorrentes na obra segundo o entendimento de Bruno Huumlbscher ou seja
como uma puniccedilatildeo divina indireta uma vez que confunde atos divinos e humanos levando o
personagem a executar accedilotildees desejadas passionalmente por ele (2011 p 39-40) Dessa forma
a ira parece reforccedilar o aspecto humano na accedilatildeo que causa o infortuacutenio do heroacutei segundo as
premissas aristoteacutelicas algo essencial para tornar a obra mais traacutegica e consequentemente
mais bela E quando agregada agrave participaccedilatildeo divina de Atena o que de forma alguma retira a
responsabilidade do heroacutei sobre seus atos e as decorrentes consequecircncias todo esse conjunto
103
parece retomar de maneira inversa as premissas do pensamento homeacuterico fortemente presente
na peccedila de Soacutefocles ressignificando-as ao contexto da trageacutedia Se na Iliacuteada o ato heroico
necessita da coparticipaccedilatildeo divina em um contexto em que esse entendimento eacute vaacutelido como
em Aias a ruiacutena heroica deve pressupor paralelamente tambeacutem essa mesma coparticipaccedilatildeo
Logo na loacutegica interna da obra para o infortuacutenio ou para a gloacuteria do personagem de modelo
arcaico e guerreiro haacute a intervenccedilatildeo divina O kyacutedos de origem divina necessaacuterio para heroacutei
eacutepico se transfigura na maniacutea tambeacutem de origem divina para Aacutejax induzindo-o a executar
atos que acarretam sua ruiacutena atraveacutes de um erro terriacutevel (ἄτῃ [] κακῆ v 123) segundo a
forma como tal conceito de erro eacute concebida (cf p 30-31) e cuja participaccedilatildeo divina consiste
tambeacutem mas natildeo apenas em extravio visual Essa nos parece ser sobretudo a relaccedilatildeo da ira
com a loucura a reiteraccedilatildeo do aspecto humano nos atos que acarretam o infortuacutenio do
protagonista de tal forma que a obra ressalta o papel fundamental desse sentimento na
composiccedilatildeo da trama da trageacutedia da maneira como tentamos mostrar acima
Com efeito podemos resumir o papel da ira do heroacutei e a sua estruturaccedilatildeo na
composiccedilatildeo da trama da peccedila em questatildeo Faccedilamos isso a partir de quatro perspectivas Duas
quanto agrave noccedilatildeo de causalidade do enredo interna e externa E outras duas do ponto de vista da
caracterizaccedilatildeo direta e indireta
Em relaccedilatildeo agraves duas primeiras esse sentimento que caracteriza o personagem no iniacutecio
da peccedila eacute retomado ao fim da mesma como jaacute vimos ambas de forma evidente
respectivamente nas palavras da deusa Atena e nas de seu irmatildeo Teucro ensejando um ciclo
perfeito que demarca a permanecircncia da ira em toda a extensatildeo da obra Mas se esse mesmo
estado do personagem estava configurado in medias res remetendo-se a accedilotildees anteriores ao
episoacutedio retratado na trageacutedia atraveacutes de analepses nas quais esse sentimento impulsiona as
accedilotildees do seu detentor o mesmo acontece pois assim se sugere agraves accedilotildees que lhe satildeo
posteriores uma vez que o ecircxodo permite compreender tal possibilidade Isso significa dizer
que Soacutefocles por um lado demarca os limites da atuaccedilatildeo desse estado do heroacutei dentro da
peccedila e por outro estende seu papel aleacutem das fronteiras da trageacutedia sobretudo e ao mesmo
tempo realinhando seu episoacutedio com a versatildeo da tradiccedilatildeo homeacuterica presente na Odisseia
como vimos no capiacutetulo anterior Infere-se dessa forma uma ira capaz de persistir no heroacutei
impelindo sua alma no mundo dos mortos a natildeo se reconciliar com Odisseu e assim sempre
a relembrar a sua origem a desonra pela pretericcedilatildeo de seu valor crido como indubitaacutevel
Logo o autor impotildee agrave ira do heroacutei a prerrogativa de uma causalidade tanto interna quanto
externa aos episoacutedios presentes ou referidos pela obra
104
Em relaccedilatildeo agraves duas uacuteltimas perspectivas agraves caracterizaccedilotildees direta e indireta ambas
podem ser contempladas no estilo de Soacutefocles Quanto agrave direta que representa um
procedimento estaacutetico constituiacutedo essencialmente de descriccedilotildees cuja finalidade de
caracterizaccedilatildeo eacute evidente recorremos agraves duas menccedilotildees expliacutecitas agrave ira choacutelos χόλος das
quais partiram nossas anaacutelises uma em relaccedilatildeo aos chefes gregos marcadamente Odisseu e os
Atridas outra em relaccedilatildeo aos deuses em especial a divindade Atena Jaacute quanto agrave indireta
que corresponde a um processo dinacircmico reconhecido nos discursos e nas suas accedilotildees
significativos do heroacutei elencamos os dois discursos dos heroacuteis estudados por noacutes pelos quais
demonstra-se a ira do personagem e pelos quais essa ira se confirma no suiciacutedio cometido
Entendemos por significativos segundo os criteacuterios aristoteacutelicos as accedilotildees e os discursos que
manifestem uma escolha e assim evidenciando um caraacuteter (Poeacutetica 1454a 17-19) Como a
decisatildeo de se suicidar corresponde agrave reflexatildeo de Aacutejax sobre sua situaccedilatildeo disso se levando em
conta a impossibilidade de se reconciliar com deuses e chefes gregos e de tomar alguma accedilatildeo
que agrade estes e que evite a perseguiccedilatildeo daqueles especialmente influenciado pela ira
contra esses vistos como responsaacuteveis pela situaccedilatildeo de desonra completa em que se encontra
os discursos estudados correspondem a um efetivo caraacuteter do heroacutei acerca desse sentimento
que o acomete E o ato em si confirma tal caracterizaccedilatildeo
Tentamos nessa seccedilatildeo a partir de tudo o que foi explanado revelar como as noccedilotildees
de virtude e de ira se apresentam como chaves de leitura essenciais para o entendimento mais
profundo da peccedila sobretudo detalhando como a composiccedilatildeo da trama necessita dessa
caracterizaccedilatildeo do heroacutei para alcanccedilar seus vaacuterios objetivos
2 2 A VERSAtildeO DE OVIacuteDIO
Nos propomos aqui a analisar o Livro XIII da obra que descrevem o episoacutedio da
metamorfose do heroacutei grego Aacutejax A anaacutelise estaraacute alicerccedilada em alguns traccedilos fundamentais
da caracterizaccedilatildeo desse personagem tanto aquelas marcas mais correntes provenientes da
tradiccedilatildeo arcaica do mito desse heroacutei quanto especialmente do episoacutedio especiacutefico da disputa
pelas armas de Aquiles
Dessa forma o estudo que pretendemos dispor se restringe a um fragmento
delimitado os primeiros 398 versos do livro XIII que descrevem o episoacutedio da disputa entre o
Telamocircnio e Ulisses pelas armas do Pelida o consequente suiciacutedio do primeiro e sua
metamorfose Poreacutem a anaacutelise que propomos bem como os criteacuterios adotados para apreciaccedilatildeo
105
estatildeo submissos a duas caracteriacutesticas essenciais ao heroacutei a virtude e a ira na caracterizaccedilatildeo
de Aacutejax Ambas tecircm igual papel estrutural no episoacutedio configurando-se como chaves de
leitura para a compreensatildeo da organicidade do texto Assim essa caracterizaccedilatildeo em que
consiste esta seccedilatildeo trata da forma pela qual Oviacutedio constroacutei esse personagem dando-lhe
profundidade e significado diante do contexto do episoacutedio Dessa forma em nossa anaacutelise
observaremos os fragmentos do texto que evidenciem esses traccedilos caracteriacutesticos do
Telamocircnio por meio de indiacutecios textuais capazes de demonstrar a funccedilatildeo estrutural dessas
subcategorias escolhidas para o episoacutedio utilizando-se tambeacutem da tipologia que distingue
caracterizaccedilatildeo direta e indireta de acordo com o que jaacute apresentamos na seccedilatildeo anterior
Tentaremos mostrar como o texto articula esses elementos de forma a fundamentar
sua estrutura tornando-se assim imprescindiacuteveis ao entendimento mais profundo do caraacuteter
literaacuterio desse episoacutedio da obra A partir dos resultados obtidos ao fim desta seccedilatildeo poderemos
fazer uma leitura intertextual no proacuteximo capiacutetulo a fim de observar semelhanccedilas e diferenccedilas
entre as obras de Oviacutedio e Soacutefocles componentes do corpus desse estudo evidenciando ateacute
que ponto aquele se utiliza das informaccedilotildees deste e ateacute que ponto se fornece uma nova leitura
agrave obra de seu predecessor sempre tendo como ponto de confronto os elementos desdobrados
da caracterizaccedilatildeo a qual mencionamos
Devido agrave perspectiva adotada e visto que nossa anaacutelise recairaacute apenas sobre alguns
versos dispostos no livro XIII faz-se necessaacuteria a estruturaccedilatildeo do episoacutedio em questatildeo de
modo a contextualizar em que passagens estatildeo inseridos os fragmentos escolhidos facilitando
a compreensatildeo do que seraacute apresentado Cabe-nos ressaltar que em nossa apreciaccedilatildeo do
texto recorreremos a configuraccedilatildeo apresentada abaixo Assim dispomos a composiccedilatildeo do
episoacutedio para uma clara apreensatildeo de sua estrutura
1 Descriccedilatildeo de Aacutejax (v 1 ndash 5) o narrador descreve o heroacutei no momento que antecede
seu discurso A partir de uma perspectiva externa essa passagem nos fornece informaccedilatildeo
sobre a construccedilatildeo do personagem dispondo-o iracundo antes mesmo de comeccedilar o seu
discurso
2 Discurso de Aacutejax (v 5 ndash 122) dada pelo narrador a voz ao personagem o
personagem faz um discurso de si e de seu adversaacuterio A composiccedilatildeo do discurso nos
permitiraacute fundamentar a caracterizaccedilatildeo do personagem pois nos revela seu comportamento e
seus princiacutepios A partir de um jogo de contrastes com Ulisses o heroacutei dispotildee sua linhagem e
suas accedilotildees de modo que a audiecircncia veja nele sua virtude guerreira tal qual ele proacuteprio a
enxerga extremamente preponderante agrave de seu adversaacuterio Dessa forma ele revela uma
tendecircncia a sobrevalorizar o meacuterito de sua virtude
106
3 Descriccedilatildeo de Ulisses (v 123 ndash 127) o narrador descreve Ulisses antes de proferir
seu discurso Tambeacutem a partir de uma perspectiva externa esse trecho nos fornece
informaccedilatildeo sobre o caraacuteter do personagem especialmente retomando caracterizaccedilotildees
homeacutericas do personagem
4 Discurso de Ulisses (128 ndash 381) dada pelo narrador a voz ao personagem esse
heroacutei apresenta contra-argumentos descontruindo o discurso de seu adversaacuterio Haacute ainda
pouca interferecircncia do narrador Com efeito o Laertida dispotildee seus feitos natildeo embasados
meramente na noccedilatildeo de virtude guerreira mas sobretudo fundamentados em uma causalidade
em que os seus resultados obtidos satildeo imprescindiacuteveis para a derrota de Troia ou seja
reforccedilando-se e reiterando que as suas accedilotildees satildeo essenciais e determinantes para vitoacuteria dos
gregos
5 Desfecho sumarizado (v 381 ndash 398) narraccedilatildeo final do episoacutedio que descreve em
formato de epiacutelogo a fuacuteria insuflada do Telamocircnio as suas uacuteltimas palavras o seu suiciacutedio e
a sua metamorfose Mais um trecho importante para fundamentar o caraacuteter do personagem
dentro da obra pois para esse ponto convergem em desfecho todos os elementos antecipados
e desenvolvidos acerca das categorias estudadas
Como se pode ver a proacutepria estruturaccedilatildeo do episoacutedio da disputa entre esses dois
gregos presente no livro XIII de Metamorfoses aponta a predominacircncia do discurso direto
dos personagens Contudo nossa anaacutelise equalizaraacute versos que representam a voz do narrador
e o discurso direto do personagem uma vez que esses dois guardam relevantes indiacutecios
textuais para o estudo a que nos propomos Desses dois modos narrativos desdobramos
sobretudo a caracterizaccedilatildeo direta e indireta respectivamente em que nesta uacuteltima seraacute
fundamental a autocaracterizaratildeo do Telamocircnio por apresentar seu ponto de vista
psicoloacutegico ideoloacutegico cultural etc
Quanto aos fragmentos correspondentes ao discurso direto o segmento que seraacute
predominantemente contemplado seraacute o discurso de Aacutejax pois ao nosso ver essa passagem
guarda mais indiacutecios textuais significativos para o estudo das noccedilotildees de virtude e ira desse
personagem e mostram sua perspectiva de mundo e de valor guerreiro Obviamente que
usaremos em nossa anaacutelise versos natildeo inseridos nesse corpus natildeo excluindo assim o longo
discurso de Ulisses imprescindiacutevel para uma melhor compreensatildeo do que seraacute contemplado
mas ainda de uso mais secundaacuterio e instrumental
Quanto aos fragmentos correspondentes agrave voz do narrador externo nos debruccedilaremos
especialmente na descriccedilatildeo de Aacutejax e no desfecho sumarizado pois como poderemos ver ao
107
longo da anaacutelise essas passagens sintetizam a unidade textual desenvolvida sobre as duas
caracteriacutesticas a ser apreciadas no estudo do personagem
Conveacutem agora iniciarmos a anaacutelise Primeiramente estudaremos a categoria virtude e
depois passaremos agrave ira tal qual fizemos na seccedilatildeo anterior comeccedilando pelos fragmentos
correspondentes ao narrador externo devido ao seu aspecto sintetizador de todo o episoacutedio
Ainda durante esse momento seraacute possiacutevel apresentar outros fragmentos isolados mesmo do
discurso direto como contraponto e para confirmar determinadas anaacutelises Depois
prosseguiremos com o estudo das categorias nos fragmentos correspondentes ao discurso
direto dos personagens especialmente o do heroacutei de Salamina como jaacute foi referido
anteriormente por retratar mais propriamente a caracterizaccedilatildeo indireta Por fim
demonstraremos como essas duas categorias se entrelaccedilam para alcanccedilar uma unidade textual
proacutepria para o episoacutedio assim para este representando fundamentais elemento e extinguindo
qualquer noccedilatildeo circunstancial que se possa inferir
2 2 1 Virtus a virtude do heroacutei na perspectiva latina
Nessa seccedilatildeo noacutes analisaremos os dois primeiros versos do livro em questatildeo os quais
retomam um importante epiacuteteto eacutepico do heroacutei e que estatildeo presentes na descriccedilatildeo de Aacutejax e
presentes no discurso de Aacutejax os versos 73-97 os quais demonstram a proeminente
excelecircncia guerreira do personagem especialmente sob o vieacutes de uma virtude defensiva E
seguida os seguintes presentes ainda no discurso direto do heroacutei os versos 9 ndash 20 nos quais
o Telamocircnio expotildee os atributos opostos entre ele e Ulisses que retomam a caracterizaccedilatildeo sob
a perspectiva da accedilatildeo e da palavra como jaacute vimos no capiacutetulo anterior ser proacutepria do
contraste entre esses dois chefes gregos os versos 34-47 e 103-122 que ressaltam a natureza
do Laertida como sendo contraacuteria agrave dos precircmios e que consequentemente retratam a desonra
do heroacutei de Salamina diante de uma disputa ao seu ver desnecessaacuteria pois sua virtude eacute
evidentemente superior agrave do seu adversaacuterio
A sua virtude (uirtus) mesmo inserida em um contexto claacutessico latino recupera na
obra em questatildeo noccedilotildees dos valores arcaicos gregos sobretudo homeacutericos Apesar de a antiga
uirtus aristocraacutetica romana poder ser situada proacutexima a areteacute grega (PEREIRA 2013 407)
isso natildeo parece acontecer plenamente quanto agrave caracterizaccedilatildeo do personagem em questatildeo
pois na nossa compreensatildeo esses valores satildeo postos ainda sob o prisma da eacutepoca de Oviacutedio
como seraacute pontuado na anaacutelise Sob o ponto de vista de valores tradicionais romanos
108
podemos dizer que a virtude (uirtus) teve no princiacutepio um sentido masculino cuja origem estaacute
na palavra que denomina o homem varatildeo (uir) por isso pertencia em um momento arcaico
apenas a este Contudo tendo se desenvolvido segundo Thomas Martin e podendo definir
inclusive um conjunto de atributos proacuteprios que uma mulher deveria ter de um modo geral
para a Roma antiga em relaccedilatildeo ao homem essa qualidade designava aquele que
protetor dos bons colocava o bem-estar do paiacutes em primeiro lugar seguido dos interesses da famiacutelia e por fim dos proacuteprios interesses [] Heroiacutesmo na batalha era a realizaccedilatildeo suprema para o homem ldquojustordquo mas soacute se o valor servisse agrave comunidade em vez de apenas agrave proacutepria gloacuteria individual (2014 p 29)
Esse heroiacutesmo em especial vinculado agrave accedilatildeo militar parece ser o ponto fulcral que
fundamenta o discurso de Aacutejax pois eacute a partir desse ponto em especial que o heroacutei expotildee os
valores apreciados por ele proacuteprio e segundo tais almeja a maacutexima honraria28 guerreira as
armas de Aquiles precircmios eventuais de sua patente virtude Contudo sua distinccedilatildeo beacutelica
parece seguir a disposiccedilatildeo da caracterizaccedilatildeo homeacuterica pois sugere se vincular a um aspecto
defensivo ou mesmo protetor em prol de um coletivo significativamente semelhante ao ideal
da uirtus romana da forma como a pontuamos acima Tentaremos observar tal hipoacutetese a
partir do estudo dos fragmentos supracitados sobretudo porque tal aspecto defensivo jaacute se
mostra possiacutevel nas epopeias homeacutericas Na necessidade de um fechamento teoacuterico mais
adequado utilizaremos o conceito de virtude (uirtus) estabelecido acima com a exceccedilatildeo de
que ela definiraacute apenas uma qualidade masculina sobretudo beacutelica devido ao conteuacutedo do
episoacutedio de Oviacutedio que retrata uma idade miacutetica na qual tal concepccedilatildeo parece ser verossiacutemil
e inclusive sugerida
Vejamos agora os dois primeiros versos do Livro XII que tratam da caracterizaccedilatildeo
direta do personagem sobretudo atraveacutes de uma foacutermula eacutepica conjuntamente com alguns do
final do Livro XII pois estes uacuteltimos servem para contextualizar melhor a cena que se segue
non ea Tydides non audet Oileos Aiax non minor Atrides non bello maior et aevo poscere non alii solis Telamone creatis
28
Segundo Rocha Pereira a honra (honor) pode ser concebida como exterior enquanto a virtude (uirtus) interior a quem a possui (2013 p 405) Certamente a primeira depende de um julgamento da comunidade ou seja depende de ldquoum reconhecimento puacuteblico do meacuteritordquo (Ibidem p 349) e a segunda conforme nos diz Ciacutecero ldquoexige honor nem outra eacute a recompensa da uirtus (Ibidem p 248) Dessa forma natildeo soacute o julgamento dos chefes gregos mas sobretudo a representaccedilatildeo material desse meacuterito visto como reconhecimento de seus feitos fazem Aacutejax ver a si mesmo como eventual vencedor pois a virtude para ele eacute senatildeo a excelecircncia guerreira que designa o heroiacutesmo do personagem
109
Laertaque fuit tantae fiducia laudis 625 a se Tantalides onus invidiamque removit Argolicosque duces mediis considere castris iussit et arbitrium litis traiecit in omnes [] Consedere duces et uulgi stante corona 1 Surgit ad hos clipei dominus septemplicis Aiax 29
(Metamorfoses XII v 622-628 XIII v 1 ndash 2)
Podemos ver pelo contexto dos versos que Oviacutedio retoma o episoacutedio da Odisseia
atribuindo agrave contenda um julgamento decidido atraveacutes da participaccedilatildeo de todos os chefes
gregos O diaacutelogo com a Iliacuteada tambeacutem parece evidente pois se apresenta um Agamecircmnon
que se absteacutem do encargo da decisatildeo (onus [] remouit v 626) e com isso o narrador parece
sugerir um chefe que evita o peso de um resultado que pode ser semelhante ao ocorrido no
caso do Pelida ou seja um desfecho funesto Acrescentamos a isso que muitos heroacuteis natildeo se
julgaram merecedores de tais precircmios a isso nos serve como indiacutecio textual o verbo ousar
(audet v 622) A contenda entatildeo deve ser travada por aqueles de maior iacutempeto pois esses
se atrevem a tal empreitada A conduta do Atrida eacute dessa forma prudente em especial se
considerarmos a referecircncia agrave eacutepica homeacuterica Certamente apenas o filho de Teacutelamon e o de
Laerte se consideram dignos das armas e haacute nas palavras utilizadas uma insinuaccedilatildeo a um
orgulho a uma excessiva confianccedila nos proacuteprios meacuteritos uma vez que o termo fiducia pode
ter esse sentido significando ateacute arrogacircncia Segundo a perspectiva do narrador isso se torna
mais perceptiacutevel devido agrave relaccedilatildeo que se faz com o verbo ousar Pois ao se atribuir a noccedilatildeo de
audaacutecia ao ato de reclamar as armas para si o heroacutei que as demanda age senatildeo de alguma
maneira altiva Na nossa compressatildeo o orgulho de Aacutejax sugerido por Homero na expressatildeo
iacutempeto viril ou orgulhoso ageacutenora thymoacuten (ἀγήνορα θυμόν Odisseia XI v 562) estudada
anteriormente parece na linguagem da obra Metamorfoses ser retomada como uma
confianccedila em tamanho meacuterito (tantae fiducia laudis v 625) O adjetivo tantae auxiliam como
um intensificador dessa qualidade
Esse meacuterito do heroacutei de Salamina eacute destacado especialmente pelo atributo conferido ao
personagem no segundo verso do Livro XIII no qual jaacute se apresenta a foacutermula clipei dominus
septemplicis Aiax que retoma o epiacuteteto homeacuterico e as grandes caracteriacutesticas de Aacutejax a
29 Estas [as armas] nem o Tidida nem Aacutejax Oileu ousa clamar nem o mais novo Atrida nem o maior na guerra e na idade nem outros somente para o nascido de Teacutelamon e o de Laerte houve confianccedila em tamanho valor (v 625) De si o Tantaacutelida removeu o ocircnus e a inveja e aos chefes Argoacutelicos no meio dos acampamentos ordenou se sentarem e atribuiu a todos o arbiacutetrio da questatildeo [] Sentaram-se juntos os chefes e os soldados formando-se um ciacuterculo junto a estes surge o senhor do escudo de sete dobras Aacutejax
110
dimensatildeo e a singularidade de seu escudo as quais simbolizam sua enorme estatura e sua
robusta compleiccedilatildeo fiacutesica Contudo o proacuteprio narrador externo configura outro heroacutei como o
maior na guerra (bello maior v 623) provavelmente Nestor e natildeo o Telamocircnio Assim em
parte Oviacutedio dialoga com as epopeias homeacutericas afastando de sua obra a ideia de uma
supremacia guerreira do heroacutei de Salamina mas recuperando a singularidade de seu escudo e
por certo a noccedilatildeo de muralha dos Aqueus conferida ele A retomada desse traccedilo do
personagem parece corroborar a noccedilatildeo de uma virtude defensiva jaacute costumeiramente lhe
atribuiacuteda nos estudos de Homero apresentados no capiacutetulo anterior
Com efeito a qualificaccedilatildeo do personagem como o senhor de escudo de sete dobras ou
sete camadas ldquoSurgit ad hos clipei dominus septemplicis Aiaxrdquo (Metamorfoses XII v 2) estaacute
disposta segundo o modelo eacutepico dos epiacutetetos homeacutericos E sobretudo segundo a perspectiva
de Rocha Pereira pois visto como do tipo distintivo e precedente de discurso direto contribui
para a melhor caracterizaccedilatildeo do personagem adequando-se tambeacutem ao contexto uma
qualidade especiacutefica e permitindo-se uma melhor compreensatildeo do episoacutedio em questatildeo e das
palavras do heroacutei (1985 p 5) A polivalecircncia liacuterica eacutepica e traacutegica da obra que a coloca em
um entrelugar permite-nos reconhecer essa disposiccedilatildeo como uma foacutermula homeacuterica
Vejamos como o proacuteprio esquema meacutetrico esse epiacuteteto atraveacutes da cesura do
hexacircmetro geralmente pentemiacutemera ou heftemiacutemera auxilia-nos na compreensatildeo da
passagem A cesura pentemiacutemera ou seja apoacutes cinco metades de peacute seria possiacutevel ao
esquema poreacutem pouco acrescentaria em termos significativos ao verso Vejamos ldquoSurgıt ad
hos clıpeı domınus se ptemplıcıs Aiaxrdquo A divisatildeo em dois hemistiacutequios faz com que a
cesura conflite com a estrutura e a pausa gramaticais sugeridas pela sintaxe latina pois essa
divisatildeo aparentemente sugere uma divisatildeo de sujeito e predicado Assim o nuacutecleo do adjunto
clipei estaria inserido na seccedilatildeo do predicado e natildeo ao termo essencial da oraccedilatildeo ao qual estaacute
ligado o sujeito
Preferimos entatildeo a cesura heftemiacutemera de sete metades de peacute por algumas razotildees
Primeiro porque acompanhada de sua comumente cesura secundaacuteria trimiacutemera de trecircs
metades de peacute (PLESSIS 1889) divide o verso em trecircs hemistiacutequios nos quais o primeiro
corresponde ao predicado e os dois seguintes ao sujeito favorecendo a elocuccedilatildeo latina e
consequentemente gerando uma fluidez na progressatildeo semacircntica do seu conteuacutedo por meio
da sincronia entre a meacutetrica e a disposiccedilatildeo sintaacutetica Vejamos ldquoSurgıt ad hos clıpeı
domınus se ptemplıcıs Aiaxrdquo Segundo porque para a disposiccedilatildeo mais natural da foacutermula
epiacuteteto acompanhado do nome do heroacutei que estaria disposta em uma relaccedilatildeo de extensatildeo com
o hemistiacutequio essa cesura reforccedilaria tambeacutem o caraacuteter oral do gecircnero eacutepico A foacutermula
111
assim estaria inserida dentro das cesuras do verso como um hemistiacutequio Em terceiro lugar
essa disposiccedilatildeo encadearia uma progressatildeo tripartida de significado esteticamente reforccedilando
uma expectativa uma vez que sequenciaria informaccedilotildees mais abrangentes e depois as
precisas descrevendo inicialmente uma accedilatildeo depois de forma epiteacutetica a qualidade do
sujeito que a praticou e por fim o seu nome Esse aspecto esteacutetico tambeacutem se observa nas
duas seccedilotildees do epiacuteteto que apresentam cada uma com a mesma estrutura espelhada formada
de genitivo mais nominativo de significado mais abrangente clipei dominus senhor do
escudo para um mais preciso septemplicis Aiax [senhor do escudo] de sete dobras ou
camadas Aacutejax As trecircs seccedilotildees dispostas progrediriam acumulando um sentido uma a uma
ateacute ao fim do verso em seu uacuteltimo peacute apresentar o nome proacuteprio do heroacutei ao qual todos os
elementos e a expectativa conduziam
A recorrecircncia das foacutermulas eacutepicas precedentes de discurso direto nas epopeias
homeacutericas corroboram a pertinecircncia do uso de tal recurso pelo proacuteprio Oviacutedio sobretudo
porque o torna mais significativo uma vez que o episoacutedio da disputa entre Aacutejax e Ulisses eacute
predominantemente marcado pelo discurso direto O autor faz essa escolha centralizando o
episoacutedio na oratoacuteria dos personagens destacando a relaccedilatildeo extremamente significativa entre a
forma escolhida e o seu conteuacutedo Assim a relaccedilatildeo praacutetica e simboacutelica do personagem com o
seu escudo referida no iniacutecio do Livro XIII parece-nos ter expressamente a finalidade de
descrever seu atributo mais relevante para esse episoacutedio de alguma maneira antecipando e
contextualizando os argumentos do heroacutei pois como tentaremos provar reforccedila na unidade
desse evento uma virtude defensiva
Para reforccedilar essa compreensatildeo mencionada acima passemos agora a analisar alguns
versos que destacam essa excelecircncia guerreira de Aacutejax a partir dessa perspectiva de defesa e
de proteccedilatildeo antecipada e em concordacircncia com o epiacuteteto estudado Com efeito isso nos
parece expressar os indiacutecios textuais presentes no fragmento abaixo sobretudo pelo sentido e
pela recorrecircncia do verbo suster (sustineo) empregado para descrever tudo aquilo que Aacutejax
foi capaz de conter como as chamas dos troianos Heitor e o proacuteprio Juacutepiter Vejamos alguns
versos de seu discurso
At non Hectoreis dubitauit cedere flammis 7 Quas ego sustinui quas hac a classe fugaui 8 [] Conclamat socios adsum uideoque trementem 73 Pallentemque metu et trepidantem morte futura Opposui molem clipei texique iacentem 75 Seruauique animam (minimum est hoc laudis) inertem
112
Si perstas certare locum redeamus in illum Redde hostem uulnusque tuum solitumque timorem Post clipeumque late et mecum contende sub illo At postquam eripui cui standi uulnera uires 80 Non dederant nullo tardatus uulnere fugit Hector adest secumque deos in proelia ducit Quaque ruit non tu tantum terreris Vlixe Sed fortes etiam tantum trahit ille timoris Hunc ego sanguineae successu caedis ouantem 85 Eminus ingenti resupinum pondere fudi Hunc ego poscentem cum quo concurreret unus Sustinui sortemque meam uouistis Achiui Et uestrae ualuere preces Si quaeritis huius Fortunam pugnae non sum superatus ab illo 90 Ecce ferunt Troes ferrumque ignesque Iouemque in Danaas classes ubi nunc facundus Vlixes Nempe ego mille meo protexi pectore puppes Spem uestri reditus date pro tot nauibus arma30
O heroacutei apresenta os seus feitos em prol dos conterracircneos accedilotildees sobretudo
testemunhadas e ao seu ver dignas da virtude guerreira especialmente porque remontam
eventos da guerra nos quais tendo Aquiles se retirado os troianos sobrepujaram os gregos
inclusive encurralando-os no litoral O proacuteprio texto sugere que a natureza das accedilotildees de Aacutejax
recai sobre os atributos da guerra Contudo parece-nos que o enfoque eacute realmente sobre uma
qualidade defensiva
Primeiramente o texto reforccedila duas vezes o verbo sustineo No verso 8 o verbo
expresso no aspecto perfeito sustinui eacute tambeacutem acompanhado pelo pronome ego que reforccedila
o agente da accedilatildeo No verso 88 novamente eacute expresso o verbo declinado sustinui que aleacutem ser
tambeacutem acompanhado pelo pronome ego (v 87) tambeacutem reforccedila o agente da accedilatildeo por meio
do adjetivo unus (v 87) No primeiro caso o heroacutei rememora sua accedilatildeo de suster as chamas que
procuravam queimar as naus dos gregos No segundo expressa-se a accedilatildeo de conter Heitor
que impulsionado por Juacutepiter causa a morte de muitos gregos Em ambos os eventos
retomados da Iliacuteada o heroacutei confere a si as accedilotildees maacuteximas que salvaram os gregos da derrota
30 Entretanto [Ulisses] natildeo hesitou em ir-se das chamas de Heitor (v 7) as quais eu sustive as quais desta frota afugentei (v 8) [] Invoca os companheiros estou presente e vejo o tremente e (v 73) paacutelido de medo e tambeacutem trepidante com a morte futura pus o volume do escudo agrave frente protegi o jazente (v75) E mantive o acircnimo inerte (isto de gloacuteria eacute o miacutenimo) Se persistes a certar voltemos agravequele lugar restitui a hoste o teu ferimento teu soacutelito temor esconde-te atraacutes do escudo e contende comigo sob ele Mas depois que retirei para quem ferimento de combater (v 80) as tropas natildeo deram o moroso fugiu sem ferimentos Heitor estaacute presente e consigo conduz os deuses no preacutelio precipita-se por toda parte natildeo apenas tu eacutes aterrorizado Ulisses mas os fortes tambeacutem aquele arrasta tanto de temor Este eu mesmo com sucesso de golpe sanguiacuteneo de longe (v 85) derrubei ressupino com peso ingente este clamante quando com algueacutem se apresentava eu mesmo sozinho sustive prometestes a minha sorte Aquivos e vossas preces valeram Se procurais o destino desta pugna natildeo fui superado por ele (v 90) Eis que os troianos trazem ferro fogo e Juacutepiter agraves frotas dacircnaas onde estaacute agora o Ulisses eloquente Certamente eu mesmo protegi mil popas com meu peito Recuperei a vossa esperanccedila dai as armas em lugar de tantas naus
113
e da morte destacando-se em especial como o maior responsaacutevel pela proteccedilatildeo dos
conterracircneos justificando assim o epiacuteteto homeacuterico muralhas dos Aqueus como jaacute visto
que reforccedila o aspecto defensivo conjuntamente como o epiacuteteto que destaca seu escudo
presente tambeacutem em Oviacutedio
Em segundo lugar agregam-se a isso os verbos tego e protego que carregam o sentido
de defender e proteger usados em suas accedilotildees No verso 75 o heroacutei revela ter protegido ateacute
mesmo Ulisses enquanto esse jazia no chatildeo (texi iacentem) No verso 93 o proacuteprio
Telamocircnio protegeu as naus dos gregos (ego protexi puppes) Apesar de ter vencido Heitor
sua vitoacuteria sobre este apenas repeliu o adversaacuterio natildeo o matando Dessa forma o texto
concentra tanto na voz do narrador externo quanto no discurso direto do personagem ou seja
na caracterizaccedilatildeo direta e indireta as qualidades de Aacutejax relacionadas a uma ideia de homem
da accedilatildeo poreacutem de forma especiacutefica e proacutepria de uma noccedilatildeo ou capacidade defensiva e
protetora
Assim para isso como jaacute dissemos a simbologia do escudo pelo menos no
tratamento de Oviacutedio parece fundamental Expresso na forma de uma foacutermula precedente do
discurso direto jaacute nos primeiros versos ele natildeo soacute antecipa mas direciona a compreensatildeo que
devemos ter do texto Por isso outras vezes ele eacute retomado no discurso direto
Ainda no verso 75 quando da proteccedilatildeo de Aacutejax a Ulisses noacutes temos a expressatildeo
literal desse manuseio do heroacutei ao escudo e de sua qualidade Primeiro o Telamocircnio potildee agrave
frente de Ulisses o corpo do escudo (opposui molem clipei) em seguida reforccedilando-se a
qualidade defensiva do heroacutei este ainda manteacutem o acircnimo inerte (serarui animam inertem v
76) como se essa proacutepria expressatildeo revelasse a proacutepria natureza da accedilatildeo e do heroacutei a
capacidade de resistir aos ataques imoacutevel como uma parede ou muralha Tal capacidade do
heroacutei eacute tatildeo proeminente que ele faz questatildeo de indicar isso em seu discurso Ele mesmo revela
que seu escudo sofre de mil golpes (nostro qui tela ferendo mille patet plagis v 118 ndash 119)
em oposiccedilatildeo ao de Ulisses que eacute iacutentegro ou seja sem marcas (integer est clipeus v 118)
Acreditamos que tal fato seja possiacutevel de ser comprovado se julgarmos o quatildeo fundamental
aos argumentos do personagem eacute contemplar com os olhos tais provas como veremos mais
adiante Outro fato importante e que merece comentaacuterios eacute o fato de os verbos tego e protego
serem usados para expressar a ideia de proteger Tal sentido abstrato eacute adquirido por extensatildeo
uma vez que a sua primeira noccedilatildeo eacute cobrir em seu aspecto mais concreto Assim a escolha
dos verbos e seu significado derivado precisam a unidade lexical do texto coadunando-se
com a utilizaccedilatildeo e a funccedilatildeo proacutepria do escudo realccedilando-se sua simbologia defensiva e de
proteccedilatildeo O contendor de Salamina entatildeo concentra sua qualidade em um uacutenico tipo de
114
atividade a excelecircncia para proteger e guardar proacutepria de uma virtude guerreira defensiva
segundo o modelo dos vaacuterios estudos dispostos sobre a caracterizaccedilatildeo desse mesmo heroacutei na
Iliacuteada Ao se considerar essa capacidade protetora efetivamente de contenccedilatildeo ao caraacuteter
homeacuterico do personagem devemos admitir a clara referecircncia de Oviacutedio agrave tradiccedilatildeo arcaica
Sabemos disso especialmente pelo seu contraponto Ulisses que faz questatildeo de
elencar a polivalecircncia de suas qualidades natildeo soacute do ceacuterebro mas tambeacutem dos atos O
Laertida mesmo destaca que seu adversaacuterio se sobressai apenas pelo corpo (tu tantum corpore
prodes v 365) e exerce a forccedila sem a mente (tu uires sine mente geris v 363) Mas
reconhecendo que o Telamocircnio realmente exerce sua potecircncia defensivamente o arguidor
eloquente aleacutem de retomar vaacuterios momentos que ressaltam qualidades distintas as quais
confere sobretudo a Minerva (Mineruae v 381) agrave deusa grega Atena tambeacutem realccedila
diferente de Aacutejax sua capacidade de matar seus oponentes e para isso enumera vaacuterios heroacuteis
como Ceacuterano filho de Iacutefito Alastor Crocircmio Alcandro Haacutelio Neacutemon Priacutetanis Toas
Caacuterope e Ecircnomo os quais foram mortos por sua espada (ferro [] meo v 255-256) Essa
polivalecircncia do Laertida contrasta com o atributo recorrentemente evidenciado pelo seu
opositor a qualidade defensiva de conter os assaltos inimigos
Com efeito Aacutejax atribui a si essa noccedilatildeo de forma tatildeo intensa que podemos reconhecer
essa qualidade como sendo proeminente nele Por isso no fragmento acima por quatro vezes o
pronome pessoal ldquoeurdquo aparece como reforccedilo agrave accedilatildeo individual do Telamocircnio na defesa dos
gregos ego (v 8 85 87 93) seja na proteccedilatildeo dos navios contra o fogo seja no combate
singular contra Heitor pois a todas essas coisas o proacuteprio heroacutei enfatiza ter sozinho (unus v
87) enfrentado e contido (sustinui v 8) Certamente esse caraacuteter defensivo do heroacutei ou seja
de se apresentar a serviccedilo da paacutetria protegendo os conterracircneos mesmo quando agindo
solitariamente realmente se mostra proeminente no heroacutei de acordo com sua perspectiva dos
fatos Aleacutem disso esse valor destacado parece-nos se revestir no texto de Oviacutedio de noccedilotildees
da uirtus propriamente romana Mesmo a partir de uma accedilatildeo individual e de uma decorrente
superestima do proacuteprio valor a comunidade e a proteccedilatildeo dela parecem estar acima de sua
gloacuteria pessoal e tambeacutem por isso em sua visatildeo tal concepccedilatildeo parece conferir aos seus atos o
maacuteximo meacuterito Essa caracterizaccedilatildeo sugere inclusive retomar o heroacutei romano Horaacutecio Cocles
que em seu mito defendeu sozinho dos etruscos a ponte que levava a Roma episoacutedio narrado
pelo historiador Tito Liacutevio que assim se refere ao militar ldquoheroacutei sozinho [] que se
estabeleceu na ponte em forte posiccedilatildeordquo (unus uir [] qui positus forte in statione pontis
Histoacuteria de Roma I 10 2-3) O caraacuteter defensivo e de contenccedilatildeo proacuteprio de Telamocircnio eacute
exatamente esse de Cocles natildeo recuar e fixo em um lugar conter os ataques inimigos Fato
115
significativo para essa interpretaccedilatildeo eacute a provaacutevel parcialidade pela qual o narrador externo
descreve a vitoacuteria do Laertida ldquoo eloquente conduziu as armas do heroacutei forterdquo (fortisque uiri
tulit arma disertus v 383) Certamente esse verso parece conferir ao derrotado um valor
maior e por isso provavelmente o genitivo ao qual se liga as armas precircmio da disputa
expressa os termos que marcam o heroacutei de maior excelecircncia guerreira Aacutejax
Prossigamos com a anaacutelise da introduccedilatildeo de seu discurso na qual o heroacutei jaacute apresenta
suas qualidades bem como as de seu adversaacuterio contrastando os conceitos de accedilatildeo e de
palavra que opotildee a natureza dos dois contendores
Tutius est igitur fictis contendere uerbis Quam pugnare manu Sed nec mihi dicere promptum 10 nec facere est isti quantumque ego Marte feroci Quantum acie valeo tantum valet iste loquendo Nec memoranda tamen uobis mea facta Pelasgi Esse reor uidistis enim sua narret Vlixes Quae sine teste gerit quorum nox conscia sola est 15 Praemia magna peti fator sed demit honorem Aemulus Aiaci non est tenuisse superbum Sit licet hoc ingens quicquid sperauit Vlixes Iste tulit pretium iam nunc temptaminis huius Quod cum uictus erit mecum certasse feretur31 20
(Metamorfoses Livro XIII v 9 ndash 20)
Pode-se ver a partir do fragmento como jaacute anunciamos anteriormente que em sua
introduccedilatildeo Aacutejax expotildee a ideia central de seu discurso posteriormente desenvolvido atraveacutes de
narrativas argumentaccedilotildees e provas O seu cerne entatildeo baseia-se em duas noccedilotildees a de agir e
a de discursar ou seja a qualidade da accedilatildeo e a da palavra Eacute imprescindiacutevel primeiramente
compreendermos como essas duas noccedilotildees se estruturam no discurso do heroacutei pois a oposiccedilatildeo
que se apresenta a partir delas fundamenta todo o discurso em questatildeo Soacute entatildeo poderemos
analisar propriamente o fragmento
Com efeito essa distinccedilatildeo almejada pelo Telamocircnio em seu discurso faz-se eficaz
especialmente por desenvolver a caracterizaccedilatildeo de cada um deles atraveacutes de um contraste
evidente e jaacute estabelecido Primeiramente um contraste coerente com a imagem fixada pela
tradiccedilatildeo ou seja um pressuposto conhecido aos leitores da eacutepoca de Oviacutedio Em segundo
31 Mais seguro portanto eacute contender com palavras forjadas do que lutar com a matildeo Mas para mim natildeo eacute faacutecil dizer (v 10) nem para esse fazer tanto eu por meio do feroz Marte e da lacircmina valho quanto esse vale discursando Contudo natildeo julgo meus feitos haverem de ser lembrados para voacutes Pelasgos pois vistes Ulisses narraraacute os seus Os quais sem testemunha produz deles soacute a noite eacute conhecedora (v 15) Confesso reclamar os magnos precircmios mas retira a honra o rival Para Aacutejax natildeo eacute orgulhoso segurar embora este seja grande algo que Ulisses esperou esse jaacute estaacute carregando meacuterito deste embate pois quando for vencido seraacute referido por ter lutado comigo (v 20)
116
lugar um contraste existente dentro do proacuteprio niacutevel intradiegeacutetico da narrativa pois tal
informaccedilatildeo pode ser inferida a partir das palavras de Fecircnix na Iliacuteada que refletem um
conhecimento comum assim tambeacutem se apresenta como um pressuposto conhecido na
perspectiva dos narrataacuterios ou seja dos personagens que escutam o discurso Esse realce agrave
singularidade de cada heroacutei delimitando-se suas qualidades mais evidentes eficazmente
alicerccedila uma boa base argumentativa pois constitui um princiacutepio retoacuterico persuasivo uma vez
que se apoia em um pressuposto abonado
No fragmento em questatildeo Oviacutedio dispotildee com clareza essa dicotomia retoacuterica exposta
pelo personagem Os termos utilizados na construccedilatildeo antiteacutetica dessa unidade textual estatildeo
listados a seguir Quanto agraves noccedilotildees de agir e de discursar temos matildeo manu (v 10) e
palavras uerbis (v 9) fazer facere (v 11) e dizer dicere (v 10) Marte feroz Marte feroce
(v 11) lacircmina acie (v 12) e o discursar loquendo (v 12)
Eacute oacutebvio que o heroacutei de Salamina vincula a si todos os primeiros elementos
constituintes dos pares apresentados pois expressam a qualidade da accedilatildeo Quando assim natildeo
o faz associa-se ao segundo elemento dos pares negando-lhe como eacute o caso de dicere
Assim para o Telamocircnio natildeo eacute faacutecil dizer (nec dicere promptum est v 10) Natildeo podemos
deixar de mencionar a proacutepria situaccedilatildeo do discurso ou seja o momento em que ele eacute
proferido ainda durante a guerra de Troia Isso eacute basilar para a retoacuterica do personagem pois a
noccedilatildeo de accedilatildeo que ele converge em seu discurso toca exatamente as proezas beacutelicas Assim
natildeo sem propoacutesito ele submete agrave accedilatildeo o juiacutezo de guerra pois junto dos termos manu e facere
listam-se Marte feroce e acie metoniacutemias do proacuteprio conceito de guerrear De mesmo modo
vinculam-se a Ulisses todos os segundos elementos que expressam a qualidade da palavra
com exceccedilatildeo do facere que lhe eacute associado tambeacutem por meio de sua negaccedilatildeo pois para ele
fazer natildeo eacute faacutecil (nec facere est v 11) E dentro desse contexto fazer tambeacutem significa as
accedilotildees proacuteprias da guerra Ao mesmo tempo que essas distinccedilotildees entre os heroacuteis satildeo
delineadas especialmente associando a qualidade da accedilatildeo ao contexto da guerra o heroacutei
sustenta uma segunda conjectura dependente da primeira
Nesta segunda conjectura o propoacutesito de Aacutejax eacute distinguir diferente do que estaacute na
tradiccedilatildeo grega uma noccedilatildeo superior entre as duas citadas acima pelo menos quando aplicadas
a ele proacuteprio e a Ulisses Ele elege a qualidade da accedilatildeo como superior natildeo por menos pois eacute
o seu atributo Para justificar uma superioridade dessa qualidade ao menos na situaccedilatildeo
particular desses dois heroacuteis o personagem agrega a essas duas noccedilotildees de accedilatildeo e de palavra
respectivamente mais duas outras opostas aquilo que eacute visto e testemunhado e aquilo que eacute
apenas narrado uma vez que natildeo teria sido necessariamente presenciado Por decorrecircncia
117
disso impotildee-se agrave segunda a noccedilatildeo de mentira por meio de seu o caraacuteter fictiacutecio uma vez que
muitos feitos satildeo construiacutedos pela forccedila da palavra que impressiona mas ausentes de verdade
Em oposiccedilatildeo a accedilatildeo presenciada vale por si soacute e isenta de palavra se vincula agrave ideia de
verdade
Para sustentar essa uacuteltima conjectura proposta pelo personagem Oviacutedio dispotildee de
alguns termos significativos para elucidar as ideias de verdade e mentira agregadas
respectivamente agraves noccedilotildees de agir e de discursar Temos entatildeo lembrar memoranda (v 13)
e narrar narret (v14) vertestemunhar uidistis (v 14) e sem testemunha sine teste (v 15)
noite nox (v 15) A primeira oposiccedilatildeo expressiva estaacute entre os verbos lembrar e narrar os
quais se vinculam respetivamente ao Telamocircnio homem de accedilatildeo e ao Laertida mestre da
palavra A carga significativa fica expressa no sentido dos verbos Para o primeiro seus feitos
natildeo satildeo narrados mas relembrados pois foram presenciados assim verdadeiros valendo por
si Jaacute as proezas do segundo devem ser narradas ou seja natildeo necessariamente presenciadas e
por isso natildeo comprovadas assim falsas e mentirosas valendo-se prioritariamente da
coerecircncia das tramas com as provas encontradas e da forccedila das palavras empregadas Por isso
o primeiro reforccedila seu discurso afirmando que os ouvintes viram e presenciaram os seus
feitos uidistis No entanto as proezas do segundo natildeo tecircm testemunhas sine teste ou melhor
haacute uma soacute testemunha a noite nox pois apenas ela eacute conhecedora desses fatos conscia sola
est Desdobra-se com isso a oposiccedilatildeo de luz e de escuridatildeo pois se submetem a isso o sentido
da visatildeo e a ideia de ver e natildeo ver assim de se lutar agrave noite ou seja natildeo sendo visto e de se
combater em pleno dia ou seja aos olhos e diante de todos A oposiccedilatildeo entre accedilatildeo e palavra
eacute entatildeo vinculada agrave oposiccedilatildeo entre verdade e mentira e entre luz e escuridatildeo Apenas a accedilatildeo
liga-se agrave verdade e agrave luz pois a palavra obrigatoriamente vincula-se apenas agrave mentira e agrave
escuridatildeo
Essa composiccedilatildeo retoacuterica do orador de Salamina eacute muito eficaz pois dentro do
discurso os heroacuteis satildeo vistos como opostos um ao outro com caracteriacutesticas inter-
relacionadas de forma inversamente proporcionais Do mesmo modo sabendo que uma
carrega valor positivo e outra um negativo ao se glorificar as qualidades de um inferioriza-
se as do outro criando um panorama de virtudes e desvirtudes o qual tem como intuito uma
terceira conjectura por deduccedilatildeo loacutegica a identificaccedilatildeo de um heroacutei melhor e por
consequecircncia de um pior Dentro desse contexto entatildeo Aacutejax seria superior a Ulisses uma
vez que o primeiro tem a primazia de accedilatildeo cuja superioridade quanto agrave palavra foi
demostrada e defendida
118
Essa eacute a compreensatildeo de mundo e de valores que o Telamocircnio possui Por isso ela
mesma nos sugere que ele percebe o embate oratoacuterio como inoacutecuo e contraditoacuterio uma vez
que ele se vecirc superior ao adversaacuterio Por consequecircncia disso o uacutenico meacuterito real para Ulisses
eacute o proacuteprio ato de confrontar aquele que porta o escudo de sete dobras Isso se explica pelo
uso do aspecto verbal de fero do perfeito tulit e pelo uso do tempo presente Por um lado
revela um ato recente do ponto de vista da posse desse meacuterito pois a contenda jaacute se iniciou
natildeo necessitando ao Laertida esperar o desfecho da disputa e assim por outro revela que
esse meacuterito jaacute estaacute presente no momento em questatildeo
Tal asserccedilatildeo se faz loacutegica pelo fato do heroacutei de Salamina acreditar que o uacutenico e
eventual precircmio da disputa para o Laertida eacute ser conhecido por ter lutado com ele (mecum
certasse feretur v 20) pois para este uacuteltimo tambeacutem eacute eventual a derrota (cum vinctus erit v
20) Essa eventualidade nos parece ser sugerida pelo modo indicativo e pelo tempo futuro
usado nos verbos feretur e erit das oraccedilotildees subordinadas em oposiccedilatildeo a uma ideia de
possibilidade por exemplo que soacute seria alcanccedilada como o uso de um modo subjuntivo Esses
satildeo os desdobramentos naturais da disputa na perspectiva de heroacutei da accedilatildeo logo eventuais
pois natildeo haveria outra possibilidade de resoluccedilatildeo
Como para Aacutejax sua superioridade estaria evidente e assim natildeo haveria
verdadeiramente uma contenda a inocuidade dessa disputa acarreta uma consequecircncia a
desonra do heroacutei superior Isso evidencia senatildeo uma superestima de sua virtude como jaacute
indicamos a ponto de o ato de enfrentar o adversaacuterio conferir ao personagem um demeacuterito O
proacuteprio Telamocircnio declara natildeo ser orgulhoso (superbum v 17) mesmo que seja grande
(ingens v 18) portar um precircmio que Ulisses reclama E nesse ato se insere o aspecto proacuteprio
da soberba e da altivez que o faz subestimar e depreciar de forma extrema a virtude de seu
reconhecido contendor Eacute importante destacar que tal procedimento implica a natildeo
consideraccedilatildeo do Laertida como um igual ou seja contraacuteria agrave premissa eacutepica que serve para
distinguir uma vitoacuteria valorosa uma vez que o vencedor triunfa sobre algueacutem digno Como
ocorre exatamente o contraacuterio ou seja a contenda eacute indigna para o Telamocircnio podemos
reconhecer como componente de sua caracterizaccedilatildeo dentro desse episoacutedio sobretudo
manifestada jaacute no iniacutecio de sua defesa a empaacutefia a soberba que parte como jaacute dissemos da
sobrevalorizaccedilatildeo da sua excelecircncia guerreira
Os indiacutecios textuais corroboram tal interpretaccedilatildeo pois mesmo sendo magnos os
precircmios (praemia magna v 16) que retomam claramente o γέρας μέγιστον da ode Nemeia
de Piacutendaro o adversaacuterio fere o valor das armas e retira a honra (demit honorem v 16) Aacutejax
revela ainda que as armas natildeo satildeo exigidas por ele mas o contraacuterio o heroacutei eacute por elas (Aiax
119
armis non Aiaci arma petuntur v 96) e por isso o personagem chegar inclusive a concluir
que maior honra eacute buscada por ela mais do que por ele mesmo (quaeritur istis quam mihi
maior honos v 95-96) Dessa forma conseguimos constatar de forma vaacutelida a superestima
do personagem em relaccedilatildeo ao seu proacuteprio valor revelando seu caraacuteter soberbo em especial
diante de Ulisses este que reconhece a vangloacuteria e o excesso nas palavras (magna loquendi
v 222 ingentia [] uerba v 340-341) do seu opositor
Logo a possibilidade de vitoacuteria do Laertida parece ao Telamocircnio contraditoacuteria e
paradoxal especialmente em se tratando da natureza do precircmio instrumento para guerra ou
seja para a accedilatildeo Tal percepccedilatildeo corrobora o estado de ira do personagem como veremos mais
adiante natildeo apenas depois mas desde antes e durante a disputa pois isso em si jaacute causa
indignaccedilatildeo e desonra ao personagem Esse entendimento jaacute justifica uma sobrevalorizaccedilatildeo da
virtude do heroacutei como parte de sua caracterizaccedilatildeo sugerida em Homero e aqui aprofundada
e desenvolvida
Acreditamos que essa conjectura de princiacutepios revelados em seu discurso natildeo seja
apenas de uso retoacuterico com a finalidade de vencer a disputa pois o heroacutei age realmente
segundo tal visatildeo de mundo sobretudo porque tambeacutem sabemos que o episoacutedio culmina com
o suiciacutedio de Aacutejax quando este conhece o resultado a inconcebiacutevel vitoacuteria do Laertida Logo
isso realmente se trata dos valores cridos por ele Por isso enfatiza em suas palavras esse
caraacuteter paradoxal e contraditoacuterio ao seu ver de Ulisses poder ser o portador das armas de
Aquiles Vejamos os fragmentos abaixo
An quod in arma prior nulloque sub indice ueni Arma neganda mihi potiorque uidebitur ille 35 Vltima qui cepit detrectauitque furore Militiam ficto donec sollertior isto Et sibi inutilior timidi commenta retexit Naupliades animi uitataque traxit ad arma Optima num sumat quia sumere noluit ulla 40 Nos inhonorati et donis patruelibus orbi Obtulimus quia nos ad prima pericula simus32
(Metamorfoses XIII v 34 ndash 42)
32
Ou porque eu vim primeiro agraves armas sob nenhuma denuacutencia as armas hatildeo de ser negadas para mim E pareceraacute mais preferiacutevel (v 35) aquele que tomou as uacuteltimas e recusou a expediccedilatildeo com loucura forjada ateacute que mais industrioso do que esse e mais prejudicial a si o Naupliacuteade revelou os fingimentos de espiacuterito covarde e trouxe-o para as armas evitadas Acaso tomaria as oacutetimas [armas] uma vez que natildeo quis tomar nenhuma (v 40) noacutes desonrados e privados dos presentes do primo seriacuteamos uma vez que nos oferecemos aos primeiros perigos
120
Nesse recorte do discurso do heroacutei o paradoxo e o contraditoacuterio satildeo ilustrados de
maneira bem simples relacionando-se a proacutepria natureza do precircmio com as caracteriacutesticas do
par dicotocircmico accedilatildeo e palavra Satildeo ainda enfatizados especialmente por meio de um recurso
linguiacutestico significativo as perguntas retoacutericas Estas certamente atraveacutes da deduccedilatildeo
conduzem os ouvintes a apenas um caminho a percepccedilatildeo do heroacutei de Iacutetaca como inadequado
agrave recepccedilatildeo das armas e logo o Telamocircnio como o vencedor da disputa
Referindo-se ao episoacutedio em que Palamedes revela a loucura fingida de Ulisses jaacute
explicado anteriormente Aacutejax dispotildee a natureza dos seus proacuteprios atos ir por primeiro agraves
armas ou seja agrave expediccedilatildeo (in arma prior [] ueni v 35) aos primeiros perigos (prima
pericula v 42) e sob nenhuma denuacutencia (nullo sub indice v 34) ou seja sem coerccedilatildeo por
vontade proacutepria Prossegue expondo a de seu adversaacuterio ir agraves armas por uacuteltimo (ultima v
36) e estas ainda evitadas (uitata v 39) pois ele natildeo queria empunhar nenhuma (sumere
noluit ulla v 40) ou seja o Laertida almejava evitar ir agrave guerra poreacutem mesmo assim
dirigiu-se a ela coagido pois sua loucura fingida (furore [] ficto) foi revelada pelo
Naupliacuteade Faz-se necessaacuterio agora uma pequena paraacutefrase do mito para a devida
contextualizaccedilatildeo dessa loucura do personagem A convocaccedilatildeo referida nesse fragmento se daacute
a todos os heroacuteis gregos pretendentes de Helena filha de Tiacutendaro porque seu pai por
conselhos do proacuteprio Ulisses exigiu uma garantia atraveacutes de um juramento de que todos
esses pretendentes se comprometeriam a ajudar o vencedor e futuro marido Passados os anos
e Helena raptada todos aqueles que juraram foram convocados Diante do nascimento de seu
filho Telecircmaco Ulisses tentou ser dispensado da expediccedilatildeo simulando loucura Palamedes
entatildeo descobriu a estrateacutegia ganhando por fim seu oacutedio (GRIMAL 2005) Eacute esse o fato
retomado em analepse para conferir uma natureza inferior ao Laertida
Assim observa-se pelo presente discurso que a natureza de Aacutejax espelha agrave natureza do
precircmio das armas de Aquiles e contrariamente a natureza de Ulisses agrave delas se opotildee Diante
dessa relaccedilatildeo uma conclusatildeo se infere a de uma ideia incoerente de ligar o precircmio a Ulisses e
a derrota a Aacutejax
Essa imagem paradoxal e contraditoacuteria ganha forccedila a partir do contraste estabelecido
entre o Laertida e o precircmio destacando-se dentro do discurso devido agraves perguntas retoacutericas
de Aacutejax que chamando a atenccedilatildeo para a sua situaccedilatildeo por um lado sintetizam sua oratoacuteria
mais emotiva e exortativa pois para ser efetiva sua retoacuterica deve impelir os juiacutezes a se
condoerem com a aparente injusticcedila e desonra apontada e por outro devem conduzir os
ouvintes por meio de uma participaccedilatildeo ativa para qual eacute necessaacuteria a reflexatildeo sobretudo do
ponto de vista moral
121
A passividade daqueles que escutam o discurso provavelmente se rompe quando da
necessidade de se alcanccedilar a conclusatildeo a partir de uma ponderaccedilatildeo imposta pelo proacuteprio
questionamento Contudo essa reflexatildeo eacute condicionada e orientada pela deduccedilatildeo proposta a
partir do contraste disposto entre os heroacuteis e entre estes e o precircmio Natildeo acreditamos que tal
imagem tenha uma finalidade de causar o riso por meio da ridicularizaccedilatildeo de Ulisses uma vez
que sua imagem de heroacutei eacute diminuiacuteda mas o objetivo de marcar o iacutempeto da retoacuterica
agressiva do Telamocircnio devido agrave desonra na qual jaacute se encontra pois a contenda afronta a
sua virtude e seus meacuteritos ou ao menos a confianccedila que nestes ele deteacutem A inferecircncia loacutegica
desse raciociacutenio do heroacutei eacute tatildeo forte que reforccedila significativamente a contradiccedilatildeo questionada
em suas perguntas retoacutericas as quais retratam o heroacutei mais preferiacutevel (portior v 35) ser
aquele que se nega ao auxiacutelio da proacutepria paacutetria em prol de uma vontade individual utilizando-
se inclusive de dolo para alcanccedilar tal fim e o heroacutei desonrado (inhonorati v 41) e privado
dos presentes (donis [] orbi v 41) ser aquele que se dispotildee a servir agrave naccedilatildeo
voluntariamente e que pela sua excelecircncia guerreira (uirtus) testemunhada deveria receber o
reconhecimento puacuteblico que no acircmbito latino se expressa no termo honra (honor) como jaacute
vimos O termo inhonorati eacute expressivo do sentimento do heroacutei de Salamina pois manisfesta
sua condiccedilatildeo nas proacuteprias circunstacircncias dessa disputa ou seja o caraacuteter puacuteblico que envolve
a contenda eacute senatildeo de acircmbito militar disposta nos acampamentos dos gregos e assim os
espectadores satildeo senatildeo soldados e os juiacutezes satildeo senatildeo generais e todos satildeo testemunhas
exatamente dos feitos beacutelicos do Telamocircmio Nesse cenaacuterio o personagem sentindo-se
encaixado expressa sua indignaccedilatildeo perante o contraste apresentado entre os contendores uma
vez que acredita ser entendido plenamente devido agrave audiecircncia militar
Contudo tambeacutem parece pertinente afirmar que as perguntas retoacutericas ressaltadoras
da imagem paradoxal e contraditoacuteria destacam o ponto mais empaacutetico de Aacutejax diante dos
ouvintes Pois aleacutem de convencecirc-los por meio de uma deduccedilatildeo loacutegica a partir de uma imagem
simples o personagem parece querer tocaacute-los a partir da imagem contraditoacuteria entre Ulisses e
o precircmio com a noccedilatildeo de uma injusticcedila que repercute natildeo na razatildeo mas em especial nas
paixotildees Essa injusticcedila que se apresenta para o Telamocircnio e que o agita tambeacutem precisa
alcanccedilar os espectadores pois a contenda que deveria reconhecer publicamente seu meacuterito na
verdade jaacute lhe causa vergonha puacuteblica Por consequecircncia disso parece-nos que os pontos mais
empaacuteticos do seu discurso devem concentrar o ponto mais alto de suas emoccedilotildees ou seja o
ponto mais alto da indignaccedilatildeo do heroacutei logo representativas dessa dor moral no iacutentimo do
personagem Isso se explica tambeacutem pelo caraacuteter exortativo e emotivo de sua retoacuterica que
pode ser constatado pelo murmuacuterio dos soldados (uulgi [] murmur v 123-124) que segue
122
em resposta ao discurso do personagem como uma forma de comoccedilatildeo em relaccedilatildeo ao que foi
exposto
Com efeito para noacutes satildeo as perguntas retoacutericas que carregam e desencadeiam esses
momentos pois apresentam a injusticcedila construiacuteda em uma imagem a da contradiccedilatildeo sempre
retomada e reforccedilada Como jaacute dissemos primeiramente porque sintetizam a oratoacuteria emotiva
e exortativa inclusive de uma forma mais didaacutetica atraveacutes de uma ilustraccedilatildeo a imagem da
injusticcedila Em segundo lugar porque retira dos ouvintes a passividade uma vez que os
convidam ou mais precisamente impelem a participar do discurso por meio da reflexatildeo
Dessa forma em um mesmo ponto vaacuterios mecanismos satildeo articulados simultaneamente para
que a compreensatildeo e a simpatia dos ouvintes sejam alcanccediladas plenamente Isso natildeo parece
ser apenas pertinente e como veremos tambeacutem recorrente
Vejamos outro fragmento que apresenta perguntas retoacutericas no discurso de Aacutejax ainda
tratando dessa mesma antiacutetese entre os heroacuteis
Conferat his Ithacus Rhesum inbellemque Dolona Priamidenque Helenum rapta cum Pallade captum Luce nihil gestum nihil est Diomede remoto 100 Si semel ista datis meritis tam vilibus arma Diuidite et pars sit maior Diomedis in illis Quo tamen haec Ithaco qui clam qui semper inermis Rem gerit et furtis incautum decipit hostem Ipse nitor galeae claro rediantis ab auro 105 Insidias prodet manifestabitque latentem Sed neque Dulichius sub Achillis casside uertex Pondera tanta feret nec non onerosa grauisque Pelias hasta potest inbeliibus esse lacertis Nec clipeus uasti caelatus imagine mundi 110 Conueniet timidae nataeque ad furta sinistrae Debilitaturum quid te petis improbe munus Quod tibi si populi donauerit error Achiui Cur spolieris erit non cur metuaris ab hoste Et fuga qua sola cunctos timidissime uincis 115 Tarda futura tibi est gestamina tanta trahenti Adde quod iste tuus tam raro proelia passus Integer est clipeus nostro qui tela ferendo Mille patet plagis nouus est sucessor habendus Denique quid uerbis opus est Spectemur agendo 120 Arma uiri fortis meacutedios mittantur in hostis Inde iubete peti et referentem ornate relatis33
33 Para estas o iacutethaco levaria Rheso Dolo imbele e o Priamida Heleno capturado com a Palas roubada faccedilanha alguma com luz nada haacute com Diomedes afastado (v 100) Se dais uma vez essas armas por meacuteritos tatildeo pequenos divide e a maior parte nelas seja de Diomedes Entretanto por que estas [armas] seratildeo para o iacutethaco que furtivamente e sempre desarmado executa algo e com ardis engana com o inimigo incauto O proacuteprio brilho da gaacutelea radiante pelo claro ouro (v 105) mostraraacute os artifiacutecios e revelaraacute aquele que se esconde Entretanto nem a cabeccedila duliacutequia sob o elmo de Aquiles carregaraacute tanto peso nem ainda a onerosa e grave haste Peliacuteade pode existir para braccedilos imbeles e nem o escudo esculpido com a imagem do vasto mundo (v
123
(Metamorfoses Livro XIII v 103 ndash 122)
Estudemos primeiro os versos 103-104 112 e 120 que intercalam argumentos e
equilibram com perguntas retoacutericas o segmento final do discurso de Aacutejax e que tambeacutem se
distanciam umas das outras de maneira bem equitativa Em todos os usos desse recurso
linguiacutestico mais uma vez se concentra a ilustraccedilatildeo da injusticcedila atraveacutes da imagem paradoxal e
contraditoacuteria entre Ulisses e a natureza do precircmio Por consequecircncia disso distribuem-se os
pontos de maior empatia do personagem nos quais ele fomenta compartilhar seu sentimento
de ira e de dor contaminando a todos com suas paixotildees
Nos versos 103 e 104 destaca-se a figura de um Ulisses jaacute visto por noacutes em anaacutelises
anteriores como a de um soldado sorrateiro e furtivo que age agraves escondidas (clam) ou seja
de atos noturnos natildeo vistos ou testemunhados lembremos do verso 15 os quais sem
testemunha produz deles soacute a noite eacute conhecedora (quae sine teste gerit quorum nox conscia
sola est) A isso reforccedila o verso 100 nenhuma faccedilanha com luz (luce nihil gestum) Aacutejax
ainda representa o seu opositor como soldado desarmando (inermis) que executa accedilotildees com
ardis (furtis) contra os adversaacuterios despreparados (incautum) Vaacuterios feitos de Ulisses satildeo
elencados para culminar nessa conclusatildeo Rheso Doacutelon Heleno e a Palas roubada feitos
executados sorrateiramente e sem testemunhas
Tal qual foi explicado o atributo do agir se expressa pela guerra e pelo combate e
como o proacuteprio Aacutejax jaacute mencionou relaciona-se tambeacutem ao sentido da visatildeo pois deve ser
visto e contemplado agrave luz do dia como estudamos anteriormente As proposiccedilotildees acerca do
Laertida bem como as arguiccedilotildees e provas conduzem-nos a percebecirc-lo como o mestre da
palavra e executor de feitos furtivos Assim se as armas precircmio da disputa em questatildeo satildeo
usadas para a guerra em batalhas vistas ao dia e a guerra eacute expressatildeo dos atributos da accedilatildeo a
pergunta levantada nos versos 103 e 104 impacta natildeo apenas por indicar o heroacutei mais
adequado a recebecirc-las a partir da identificaccedilatildeo do menos adequado mas principalmente por
incitar os espectadores a sentirem as emoccedilotildees suscitadas pela imagem de injusticcedila exposta o
mestre da palavra e natildeo o homem da accedilatildeo premiado com as armas
No verso 112 a pergunta retoacuterica reforccedila essa incoerente e injusta imagem de Ulisses
recebendo as armas pois para a loacutegica de Aacutejax o adversaacuterio enfraqueceraacute o precircmio em seu
110) Conviraacute agrave sinistra covarde e nascida para ardis Por que iacutemprobo reclamas para ti que haacute de enfraquecer a funccedilatildeo Porque se o erro do povo aquivo tiver presenteado a ti seraacute motivo por que sejas espoliado motivo por que natildeo sejas temido pelo inimigo E a fuga pela qual somente inteiro covardiacutessimo triunfas (v 115) haacute de ser morosa para ti que carrega tantos aparatos Acrescenta que esse teu tendo sofrido preacutelios tatildeo raramente eacute um escudo iacutentegro para o nosso que suportando lanccedilas sofre de mil golpes novo sucessor haacute de existir Afinal qual eacute o trabalho das palavras Sejamos contemplados conduzindo a disputa (v 120) as armas do forte varatildeo enviemos ao meio dos inimigos daiacute ordenai serem retomadas e honrai o portador das armas trazidas
124
propoacutesito beacutelico (debiliturum [] munus) As armas satildeo naturalmente improacuteprias para quem
contenda com palavras como eacute o caso do heroacutei de Iacutetaca Contudo a natureza delas se
harmoniza com a do Telamocircnio como esse mesmo diz ldquonossa gloacuteria estaacute unidardquo (coniuncta
gloria mostra est v 96)
Nos versos 105 ndash 118 o Telamocircnio condensa todas as ofensas ao caraacuteter de
adversaacuterio denegrindo sua imagem de heroacutei ateacute em sua virtude mais evidente A base do
ultraje eacute dupla tocando os conceitos de virtude guerreira e de inteligecircncia Quanto agrave primeira
insulta-se a compleiccedilatildeo fiacutesica de Ulisses sob dois aspectos a ausecircncia de forccedila no heroacutei
suficiente para erguer as armas (neque feret tanta pondera) e a ausecircncia mesma de robustez
beacutelica (inbellibus lacertis) Insulta-se tambeacutem o seu acircnimo pois o Laertida eacute referido como
covarde (timidae natae v 111 timidissime v 115) pois o recurso que ele utiliza para sair
triunfante eacute a fuga (fuga v 115) Quanto agrave segunda agrave inteligecircncia eacute vista pelo seu lado
negativo uma vez que seria utilizada para cometer ardis agraves ocultas Assim o elmo natildeo lhe eacute
adequado pois sendo radiante revela os artifiacutecios (insidias v 106) e tambeacutem o seu realizador
escondido (latentem v 106) Sua matildeo esquerda tambeacutem natildeo conveacutem ao escudo de Aquiles
pois eacute nascida para os ardis (ad furta sinistrae v 111) e Aacutejax comprova alegando que o
escudo do adversaacuterio natildeo possui marcas de batalhas eacute iacutentegro ou seja natildeo eacute utilizado
(integer est clipeus v 118) inferindo disso a imagem de um Ulisses natildeo combatente natildeo
beacutelico e sem excelecircncia guerreira
Apoacutes o ataque agrave virtude de Ulisses a imagem paradoxal e contraditoacuteria parece mais
latente e vaacutelida Assim em suas uacuteltimas palavras proclamadas nos versos 120 ndash 122 o
contendor de Salamina dispotildee sua uacuteltima pergunta retoacuterica questionando os espectadores
acerca da proacutepria maneira que se conduz a disputa ou seja por meio de uma querela da
palavra Natildeo haveria na sua perspectiva sentido em promover um debate para se decidir
quem eacute melhor combatente visto que as armas satildeo o precircmio e deveriam estar nas matildeos de
quem possui a virtude adequada Assim ele indaga o proacuteprio papel da palavra (denique quid
uerbis opus est) Essa indagaccedilatildeo potildee mais uma vez em evidecircncia a oposiccedilatildeo entre as duas
noccedilotildees de agir e discursar
Por isso apresenta-se uma proposta obviamente retoacuterica uma soluccedilatildeo para conduzir a
disputa de maneira mais adequada spectemur agendo Natildeo podemos ver o verbo conduzir
agendo sem o seu complemento jaacute manifesto nos versos 5 e 6 agimus [] causam Sua
proposta eacute resolver a disputa atraveacutes de uma querela baseada na qualidade da accedilatildeo ou seja a
guerra enviando as armas para os inimigos e presenteando aquele que recuperaacute-las Toda a
construccedilatildeo eacute retoacuterica Aacutejax natildeo pretende conduzir uma outra disputa mas indicar por meio de
125
sua sugestatildeo mais coerente devido agrave natureza do precircmio que ele mesmo deve ser o vencedor
pois provou ser um heroacutei exiacutemio na guerra o homem de accedilatildeo Contudo o reforccedilo a essa
deduccedilatildeo se faz tambeacutem na forma que os espectadores julgaratildeo a contenda presenciando ou
contemplando sentidos contidos no verbo spectemur Esse verbo abrange desde o sentido de
olhar e contemplar ao de observar atentamente Natildeo de forma arbitraacuteria o heroacutei utiliza esse
termo pois a oposiccedilatildeo entre accedilatildeo mais propriamente na guerra e palavra tambeacutem se
estabelece nas noccedilotildees de luz e de escuridatildeo e de fato presenciado e de natildeo testemunhado de
verdade e de mentira O precircmio tem que ser dado a partir de um evento verdadeiro ou seja de
um ato contemplado pelos olhos agrave luz do dia Logo Ulisses mestre da palavra e executor de
accedilotildees agrave ocultas porta atributos absolutamente contraacuterios aos necessaacuterios para vencer e assim
natildeo deveria recebecirc-los
Essa excelecircncia guerreira de Aacutejax de perspectiva defensiva e reforccediladamente
direcionada agrave proteccedilatildeo dos membros de sua paacutetria e ressoando por isso como a uirtus
romana manifesta-se majoritariamente atraveacutes das fragmentadas analepses trazidas pelo heroacutei
em seu discurso Ela se configura exatamente a partir das narraccedilotildees de proezas passadas em
relaccedilatildeo ao momento da disputa e por isso tais episoacutedios figuram uma caracterizaccedilatildeo indireta
uma vez que a virtude se delineia por meio das inferecircncias que o personagem retira de tais
eventos A exceccedilatildeo eacute a menccedilatildeo ao seu epiacuteteto homeacuterico senhor do escudo de sete dobras
destacadamente uma caracterizaccedilatildeo do tipo direta que reforccedila significativamente o discurso
que segue a descriccedilatildeo Com efeito essa proeminente excelecircncia guerreira fundamenta a
empaacutefia pela qual o heroacutei superestima seu valor diante de seu opositor Ulisses Essa
disposiccedilatildeo eacute fundamental para mover a ira profunda de Aacutejax imprescindiacutevel para o seu
suiciacutedio exatamente porque o heroacutei se encoleriza devido agrave convicccedilatildeo da depreciaccedilatildeo de seus
meacuteritos por parte de seus pares uma vez que ao seu ver a sua desonra foi causada pela
instauraccedilatildeo de uma disputa na qual a vitoacuteria lhe eacute tomada como certa Assim essa virtude do
personagem eacute indispensaacutevel para a estruturaccedilatildeo das motivaccedilotildees que movem o heroacutei
sobretudo do ponto de vista da sua causalidade interna Sua presenccedila alicerccedila a ira que se
prolonga do iniacutecio ao fim do episoacutedio
2 2 2 Ira a ira do heroacutei na perspectiva latina
Como poderemos ver a tradiccedilatildeo latina dos versos de Oviacutedio impotildee na caracterizaccedilatildeo
de Aacutejax a ira e a virtude Esses elementos satildeo representados em dois momentos distintos e
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opostos estruturalmente no iniacutecio do episoacutedio e ao seu final ambos representativos das
intervenccedilotildees do narrador externo
O primeiro elemento surge com um leacutexico proacuteprio e preciso tanto na descriccedilatildeo de Aacutejax
quanto no desfecho sumarizado o vocaacutebulo latino ira A primeira menccedilatildeo da palavra ira que
delineia o caraacuteter de Aacutejax estaacute inserida no iniacutecio do livro XIII mais precisamente no verso 3
que enfatiza o estado do heroacutei jaacute antes de conhecer o resultado da disputa e ateacute mesmo antes
de ele proferir as primeiras palavras em defesa de si A segunda e uacuteltima menccedilatildeo desse
vocaacutebulo se referindo a Aacutejax como veremos mais adiante eacute tambeacutem empregada por meio de
um narrador externo e situa-se ao fim do episoacutedio no verso 385 quando da decisatildeo do heroacutei
em retirar sua vida apoacutes ter conhecido a escolha dos juiacutezes Isto serve para explicitar como as
duas passagens primeiramente escolhidas para anaacutelise realccedilam como uma moldura os
discursos do personagem Em segundo lugar serve tambeacutem para destacar que a ira do
personagem apesar de se restringir ao episoacutedio da disputa das armas natildeo se daacute apenas depois
do resultado da contenda diferentemente da tradiccedilatildeo homeacuterica Esse sentimento de coacutelera
compotildee a caracteriacutestica do personagem acompanhando-o por todo o episoacutedio obviamente
agravando-se em seu final
Esse sentimento eacute bem conhecido entre os romanos figurando inclusive uma das
paixotildees estudadas nos textos filosoacuteficos de Secircneca nos quais define que ldquonatildeo haacute duacutevida que a
imagem carregada de injusticcedila mova a irardquo (Iram quin species oblata iniuriae moueat non est
dubium Sobre a ira II 1 3 1) ou quando diz que ldquoa causa da iracuacutendia eacute a convicccedilatildeo de
uma injusticcedilardquo (causa [] iracundiae opinio iniuriae est Ibidem II 22 2 2-3) Certamente
podemos reconhecer tais premissas na caracterizaccedilatildeo da ira do personagem em questatildeo uma
vez que este se sente ultrajado na honra ndash isso configura a injusticcedila no seu ponto de vista ndash no
momento em que um adversaacuterio tambeacutem reclama as armas do Pelida para si Como vimos na
seccedilatildeo passada esse ato eacute considerado pelo Telamocircnio como uma accedilatildeo depreciativa de seus
meacuteritos sobretudo porque para ele sua excelecircncia guerreira eacute reconhecidamente superior agrave
dos outros heroacuteis o que tornaria qualquer disputa acerca disso uma contenda inoacutecua
O segundo elemento a noccedilatildeo de virtude a priori beacutelica e defensiva como vimos
expressa-se por meio de um epiacuteteto mas tambeacutem pelo verbo sustineo Contudo esses dois
momentos do episoacutedio o iniacutecio e o fim fazem-se significativos pois de forma sinteacutetica
antecipatoacuteria e conclusiva delineiam as noccedilotildees de ira e de virtude emoldurando o longo
discurso direto de Aacutejax e Ulisses Passemos agora a ver como tais elementos se tornam
basilares agrave unidade textual disposta em todo o episoacutedio comeccedilando por essas interferecircncias
127
do narrador externo que configuram um estudo de caracterizaccedilatildeo propriamente direta Os
trechos a ser estudados satildeo os versos 1 ao 5 e os versos 385 ao 390
Vejamos entatildeo o primeiro fragmento alongado aqui por questotildees de compreensatildeo do
texto contendo a primeira menccedilatildeo ao termo ira Observa-se especialmente um dos dois
uacutenicos casos em que o vocaacutebulo latino ira eacute expresso se referindo a Aacutejax
Consedere duces et uulgi stante corona Surgit ad hos clipei dominus septemplicis Aiax Vtque erat inpatiens irae Sigeia toruo Litora respexit classemque in litore uultu Intendensque manus ldquoAgimus pro Iuppiterrdquo inquit 5 ldquoAnte rates causam et mecum confertur Ulixesrdquo34
(Metamorfoses XIII v 1 ndash 6)
Dentro dos versos acima citados de um todo significativo para o que tentamos
mostrar evidenciamos primeiramente o sintagma inpatiens irae O seu primeiro componente
eacute um adjetivo formado da partiacutecula negativa in unida ao particiacutepio presente do verbo depoente
patior Esse verbo abarca o significado de sofrer suportar durar permitir e alguns outros por
extensatildeo de sentido Cabe aqui precisarmos o significado mais saliente no trecho suportar
tolerar Por ser derivado de um radical verbal esse componente ainda admite complemento
que nesse sintagma daacute-se com o genitivo irae revelando-nos seu significado especiacutefico que
natildeo suporta ou conteacutem a ira Aleacutem disso esse verbo eacute depoente e transfere agraves suas formas
derivadas uma outra noccedilatildeo semacircntica que lhe eacute proacutepria Esse tipo de verbo expressa sentido
semelhante ao da voz meacutedia na liacutengua grega claacutessica jaacute explicada anteriormente
Devido agrave noccedilatildeo do verbo depoente o sintagma expressa que a accedilatildeo se realiza na esfera
do sujeito ou seja revelando algo que eacute proacuteprio do indiviacuteduo sobre o qual a accedilatildeo se
manifesta sendo-lhe subjetivo a incapacidade de domiacutenio de si a impossibilidade de conter a
emoccedilatildeo por alguma razatildeo particular a qual noacutes jaacute conhecemos a aparente depreciaccedilatildeo de sua
honra e de seus meacuteritos guerreiros A relaccedilatildeo de interesse do heroacutei com o ato verbal lhe
confere uma impossibilidade que lhe eacute proacutepria subjetiva a Aacutejax pois a singularidade maior
do sintagma estaacute na relaccedilatildeo pessoal do heroacutei com esse sentimento ndash no seu eventual embate
com ela e na sua eventual submissatildeo ndash traccedilo peculiar do personagem no episoacutedio em 34 Sentaram-se juntos os chefes e os soldados formando-se um ciacuterculo junto a estes surge o senhor do escudo de sete dobras Aacutejax e como natildeo estava suportando a ira para os litorais Sigeios e para a frota no litoral voltou o olhar com torva expressatildeo e estendendo as matildeos diz ldquoperante Juacutepiter diante das naus (v 5) conduzimos a disputa e comigo Ulisses eacute reunido
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questatildeo tambeacutem presente na tradiccedilatildeo Observamos assim que Oviacutedio natildeo se utiliza apenas
do elemento isolado ira para compor a caracterizaccedilatildeo do personagem pois a nuance
linguiacutestica da composiccedilatildeo manifesta muito mais do que apenas o sentimento de coacutelera
Podemos ainda observar o verso trecircs sob uma simulaccedilatildeo de foacutermula homeacuterica tal
como fizemos no verso dois anteriormente pois apesar de natildeo existir propriamente um
epiacuteteto ou uma foacutermula eacutepica a ira caracterizada do personagem parece simular uma foacutermula
epiteacutetica destacada pela cesura meacutetrica no sentido de reforccedilar um determinado aspecto do
personagem
O verso em questatildeo apresenta o estado do heroacutei por meio de uma oraccedilatildeo causal que
aparentemente apenas justifica seu comportamento na oraccedilatildeo que se segue ndash a torva
expressatildeo ndash e que se completa no verso seguinte ldquoVtque erat inpatiens irae Sigeia toruo []
uulturdquo De forma semelhante ao verso anterior uma cesura pentemiacutemera pouco acrescentaria
pois o segundo hemistiacutequio separaria o complemento irae do adjetivo inpatiens causando
novamente um estranhamento agrave elocuccedilatildeo latina e natildeo evidenciando o sintagma Vejamos
ldquo Vtque e rat ınpatıens ı rae Sı geıa toruordquo Mais uma vez preferimos a cesura
heftemiacutemera pois sua cesura principal separa as duas oraccedilotildees a que finda no verso trecircs e a
que se completa apenas no verso quatro e por consequecircncia evidencia a harmonia entre as
disposiccedilotildees meacutetrica e sintaacutetica fundamental para um destaque semacircntico Vejamos ldquoVtque
erat ınpatıens ı rae Sı geıa toruordquo Assim a estrutura natildeo soacute acentua a elocuccedilatildeo latina
pois ao ocupar todo um hemistiacutequio simula estruturalmente por meio da forma meacutetrica uma
foacutermula eacutepica que segue as mesmas diretrizes meacutetricas dos epiacutetetos homeacutericos Com efeito
aleacutem de delinear a ira como um estado do heroacutei isso tambeacutem nos permite vecirc-la como uma
caracteriacutestica natildeo meramente circunstancial mas destacadamente estrutural dentro do
episoacutedio
O verso trecircs ainda traz mais possibilidades de interpretaccedilatildeo Uma cesura secundaacuteria
trimiacutemera jaacute vista quase sempre acompanha a cesura heftemiacutemera principal ainda que por
tmese em partiacuteculas prefixais e eacute de uso frequente dos latinos (PLESSIS 1889) Vejamos
ldquo Vtque e rat ınpatıens ı rae Sı geıa toruordquo Essa possibilidade frequente nos latinos
nos conduz a uma interpretaccedilatildeo ainda mais significativa Ao separar no primeiro hemistiacutequio
o predicativo do verbo centraliza-se o sintagma estudado por noacutes em sua raiz primeira sem
prefixaccedilatildeo patiens irae Essa cesura secundaacuteria aleacutem de evidenciar o estado de Telamocircnio
essencial para a interpretaccedilatildeo do episoacutedio sugere pela pausa meacutetrica um duplo significado do
sintagma Junto ao primeiro ligado agrave ideia de suportar teriacuteamos o segundo sem a prefixaccedilatildeo
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ligado ao sentido de sofrer Como veremos mais adiante esse uacuteltimo sentido tambeacutem pareceraacute
fundamental na estrutura do mito
Poderiacuteamos supor ateacute entatildeo que o estado coleacuterico do heroacutei inicialmente parece
circunstancial ao episoacutedio pois seria apenas a causa ou o motivo da accedilatildeo do heroacutei descrita na
oraccedilatildeo seguinte que voltou o olhar com torva expressatildeo respexit toruo uultu Entretanto a
partir da importacircncia que a tradiccedilatildeo daacute a esse aspecto do personagem a ira no episoacutedio da
disputa pelas armas de Aquiles parece-nos natural observar com mais atenccedilatildeo o trecho Nesse
ponto entatildeo destaca-se a nossa anaacutelise que corrobora o papel estrutural e natildeo circunstancial
desse sentimento nesse episoacutedio uma vez que se junto agrave estrutura meacutetrica reforccedilativa
proacutepria dos epiacutetetos considerarmos a organicidade entre o uso das foacutermulas eacutepicas e os seus
discursos diretos procedentes no sentido de contextualizaccedilatildeo e de integraccedilatildeo daquelas com
relaccedilatildeo a estes Entretanto para validar nossa interpretaccedilatildeo ainda eacute preciso observar a carga
significativa desse traccedilo de Aacutejax no episoacutedio todo
Assim conveacutem contemplarmos o segundo fragmento escolhido para estudo ainda
correspondente ao narrador externo os versos 385 ndash 390 inseridos na seccedilatildeo desfecho
sumarizado Lembremos que nesta passagem vemos a segunda menccedilatildeo de todo o episoacutedio
do vocaacutebulo latino ira aplicado ao personagem bem como a referecircncia agrave qualidade defensiva
de sua virtude guerreira novamente por meio da utilizaccedilatildeo do verbo latino sustineo
recorrente nesse episoacutedio Vejamos como esses elementos se unem para compor o desfecho
do episoacutedio e para a melhor compreensatildeo da relaccedilatildeo das partes do texto na estruturaccedilatildeo de sua
unidade Abaixo segue o fragmento
Hectora qui solus qui ferrum ignesque Iouemque Sustinuit totiens unam non sustinet iram 385 Inuictumque uirum uincit dolor arripit ensem Et ldquoMeus hic certe est an et hunc sibi poscit Vlixes Hocrdquo ait ldquoitendum est in me mihi quique cruore Saepe Phrygum maduit domini nunc caede madebit Ne quisquam Aiacem possit superare nisi Aiaxrdquo 390 Dixit et in pectus tum demum uulnera passum Qua patuit ferro letatem condidit ensem35
(Metamorfoses XIII v 384 ndash 392)
35 (Aacutejax) que sozinho susteve Heitor e que o ferro as chamas e Juacutepiter tantas vezes susteve natildeo susteacutem somente a ira (v 385) a dor vence o heroacutei invicto toma a espada e diz ldquocertamente esta eacute minha acaso Ulisses exige para si Isto haveraacute de ser usado por mim contra mim e que vaacuterias vezes por cruor dos friacutegios esteve coberto agora estaraacute por sangue do dono ningueacutem possa superar Aacutejax senatildeo Aacutejaxrdquo (v 390) Disse e entatildeo finalmente afundou a espada letal no peito sofrido de dores no lugar que expocircs para o ferro
130
Dentro dessa passagem destacamos primeiramente a oraccedilatildeo unam non sustinet iram
Observamos nessa composiccedilatildeo o termo iram acompanhado do adjetivo unam que o restringe
fornecendo o significado uma soacute ira a ira somente O verbo sustineo possui o sentido de
suster sustentar suportar Natildeo haacute como natildeo o relacionar com o verbo patior referido no
trecho anterior pois os dois verbos se inserem dentro do mesmo campo semacircntico Nesse
fragmento mais uma vez o vocaacutebulo ira eacute complemento e Aacutejax aquele que pratica a accedilatildeo
Vemos assim uma estrutura linguiacutestica e semanticamente espelhada em que a ira eacute
complemento ora nominal ora verbal tanto em inpatiens irae quanto em non sustinet iram
Essa estrutura evidencia um aspecto chave no episoacutedio a impossibilidade do Telamocircnio em
conter a ira que o domina e impulsiona as suas accedilotildees durante todo o episoacutedio
A cesura meacutetrica do verso tambeacutem parece acentuar a importacircncia da passagem para o
entendimento do episoacutedio Vejamos ldquoSustınuıt totıens unam non sustınet ıramrdquo A
cesura pentemiacutemera primeiramente isola dois conteuacutedos dos quais o segundo retoma e
enfatiza a ira do heroacutei Essa ecircnfase se faz natildeo soacute pela divisatildeo dos conteuacutedos em dois
hemistiacutequios mas especialmente porque esses dois componentes se opotildeem e se completam
por meio de um mesmo verbo repetido no verso sustineo O entendimento do segundo
hemistiacutequio se faz a partir do primeiro pois se apenas a ira natildeo eacute sustentada por Aacutejax isso se
acentua diante de tudo aquilo que o heroacutei susteve ndash Heitor as armas pela metoniacutemia do ferro
as chamas e Juacutepiter ndash e que corrobora mais uma vez sua virtude guerreira em sua qualidade
defensiva Esses episoacutedios em analepse agora satildeo retomados a partir da voz do narrador
reforccedilando esses mesmos eventos que foram mencionados pelo proacuteprio contendor quando em
seu discurso
O entendimento pleno da passagem e da estrutura do episoacutedio se daacute ao contrapormos
esse verso aos iniciais jaacute estudados Isso nos conduz a uma relaccedilatildeo fundamental das partes do
texto que realccedila a funccedilatildeo da ira na versatildeo de Oviacutedio do mito vinculando a ela um outro
elemento o sentido de contenccedilatildeo ou seja a capacidade de suportar ou suster que junto agrave ira
daacute estruturaccedilatildeo ao episoacutedio A capacidade de contenccedilatildeo que marca o maior atributo do
personagem natildeo eacute suficiente para que ele domine seu temperamento Mesmo sendo de
acircmbitos diferentes a capacidade guerreira e a emocional o autor significativamente evidencia
a uniatildeo dessas qualidades uma vez que o verbo sustineo eacute usado para ambas Contudo mais
adiante veremos os propoacutesitos dessa conjunccedilatildeo
Podemos tambeacutem retirar outras relaccedilotildees significativas e esclarecedoras a partir da
estruturaccedilatildeo dos componentes dessas duas oraccedilotildees Na oraccedilatildeo non sustinet iram Aacutejax figura
o sujeito pois eacute aquele que pratica a accedilatildeo em oposiccedilatildeo a isso na oraccedilatildeo inuictumque uirum
131
uincit dolor o heroacutei representa o complemento verbal aquele que sofre a accedilatildeo Assim haacute
uma relaccedilatildeo significativa na accedilatildeo praticada que ao heroacutei retorna pois ora ele a executa e
consequentemente ora ele a sofre Dessa estrutura invertida e natildeo gratuita podemos
completar e reforccedilar o duplo sentido no sintagma inpatiens irae uma vez que ao fim do
episoacutedio dois sentidos satildeo conjugados o de dor sofrida e o de ira natildeo suportada fazendo com
que percebamos a relaccedilatildeo de desdobramento de patior em sofrer e suportar sintetizando
antecipadamente os sentidos de dolor e sustineo Pois se patior eacute um verbo depoente e traz
consigo toda uma relaccedilatildeo que suplanta atividade e passividade em um novo sentido as duas
oraccedilotildees dos versos 385 e 386 reforccedilam essa ideia ao expressar um heroacutei praticante de uma
accedilatildeo que resulta em outra que o acomete ou seja evidenciando uma relaccedilatildeo mais
significativa do personagem com essas accedilotildees
Diante desse entendimento o caraacuteter epiteacutetico reforccedilativo do sintagma inpatiens irae
entatildeo faz-se patente parece-nos pois sintetiza a dupla relaccedilatildeo do sentimento de ira e de
virtude expressa por meio da capacidade de conter que sustenta e alicerccedila a trama do
episoacutedio e sua rede de relaccedilotildees fundamentando a caracterizaccedilatildeo do personagem Essa
elaboraccedilatildeo literaacuteria faz com que as partes do texto dialoguem e se complementem
constituindo uma unidade textual uma estrutura fixada com um objetivo que ao ser revelada
permiti-nos compreender por exemplo a relaccedilatildeo da virtude preponderante de Aacutejax com
sintagma inpatiens irae Vimos em nossa anaacutelise que haacute um espelhamento entre inpatiens irae
e non sustinet iram poreacutem o sentido do verbo sustineo abarca apenas um dos dois
significados sugeridos no verso 3 o de suportar ou suster Mas a cesura meacutetrica desse mesmo
verso parece tambeacutem destacar o primeiro sentido de patior o de sofrer Conveacutem acentuarmos
esse significado a partir do verso 387 O trecho explicitamente agora acrescenta esse
elemento apenas sugerido no verso 3 descrevendo que a dor vence o heroacutei invicto
inuictumque uirum uincit dolor Natildeo haacute como natildeo relacionarmos dor a sofrer e por
consequecircncia dolor a patior e patior a sustineo A rede de relaccedilotildees torna-se cada vez mais
complexa contudo apenas intensifica a unidade textual estruturada nos conceitos de virtude e
de ira
No episoacutedio de Metamorfoses acerca da disputa das armas pode-se observar que o
Telamocircnio natildeo suporta a sua ira non sustinet iram e a dor o vence dolor vincit uirum e no
lugar onde ele crava a espada noacutes vemos mais um reforccedilo da participaccedilatildeo da dor no episoacutedio
O lugar exposto para o ferro patuit ferro eacute o peito pectus que se encontra ferido
machucado passum particiacutepio passado de patior mas natildeo de lesotildees fiacutesicas O proacuteprio texto
nos aponta isso pois no discurso de Ulisses ele revela que o Telamocircnio dedicou nada de
132
sangue aos amigos por todos os anos e tem o corpo sem ferimento at nihil impendit per tot
Telamonius annos sanguinis in socios et habet sine uulnere corpus (v 266-267)
Aacutejax natildeo foi ferido pelos inimigos e por isso possui o corpo sem ferimento sine
uulnere assim essa utilizaccedilatildeo da palavra se refere a um ferimento fiacutesico diferente do que
acontece com essa mesma palavra ao ser usada como o complemento de passum uulnera
pois reflete entatildeo somente o sentido de ferimento e dor causados pela desonra pela
depreciaccedilatildeo por que o personagem passou Se antes a ideia simultacircnea de suportar e de sofrer
parecia apenas possiacutevel sugerida pelo destaque meacutetrico do sintagma inpatiens irae que
simulava a forma e o caraacuteter reforccedilativo de um epiacuteteto agora parece-nos que essa imagem se
torna mais pertinente especialmente se considerarmos a Retoacuterica de Aristoacuteteles que alicerccedila
na ira a noccedilatildeo de dor bem como a obra Sobre a Ira de Secircneca que natildeo se afastando da
concepccedilatildeo do filoacutesofo grego diz ldquoa ira ser a vontade de devolver a dorrdquo (iram esse
cupiditatem doloris reponendi I 3 3 2) Logo do estado iracundo do heroacutei natildeo podemos
retirar os sentimentos de dor e de injusticcedila presentes Assim nada mais significativo do que
apresentar um personagem cujo sentimento de ira participaraacute de toda a cena ao menos
simulando as foacutermulas eacutepicas de maneira a sintetizar em um mesmo sintagma as concepccedilotildees
de dor injusticcedila essenciais sobretudo no episoacutedio em questatildeo conjuntamente com a de
coacutelera profunda
Para que possamos observar como nesse episoacutedio entrelaccedilam-se as noccedilotildees de ira e de
dor conveacutem contemplarmos a unidade textual proposta por Oviacutedio Esse autor parece precisar
esse pensamento por meio de sua unidade lexical que sugere diferenciar as vaacuterias nuances
desencadeadas por vocaacutebulos que exprimam significados proacuteximos ao do vocaacutebulo ira A
clareza do plano linguiacutestico do episoacutedio acarreta a exatidatildeo de pensamento e de sentido no
texto Aleacutem do vocaacutebulo latino ira outros se agregam com sentido semelhante entre eles
podemos citar o verbo de mesma raiz irascor e o substantivo furor Apesar de estarem
dentro do mesmo campo semacircntico as escolhas linguiacutesticas do autor pelo menos para o
episoacutedio em questatildeo parecem opor e precisar os seus significados tornando mais indubitaacutevel
a relaccedilatildeo de ira com dor Vejamos primeiramente o vocaacutebulo furor
Dentro do episoacutedio estudado esse vocaacutebulo aparece trecircs vezes Todas as menccedilotildees
estatildeo presentes no discurso de Aacutejax e tambeacutem estatildeo inseridas no mesmo contexto na
analepse do episoacutedio da artimanha de Ulisses para evitar a convocaccedilatildeo ao exeacutercito grego Eacute se
referindo a esse contexto que os versos satildeo mencionados e ao personagem Ulisses que o
vocaacutebulo furor se liga Abaixo seguem os versos das trecircs passagens seguidos das traduccedilotildees
133
Arma neganda mihi potiorque uidebitur ille 35 Vltima qui cepit detrectauitque furore Militiam ficto donec sollertior isto Et sibi inutilior timidi commenta retexit Naupliades animi uitataque traxit ad arma36
(Metamorfoses XIII v 35 ndash 39 grifo nosso) Atque utinam aut uerus furor ille aut creditus esset Nec comes hic Phrygias umquam venisset ad arces Hortator scelerum Non te Poentia proles 45 Expositum Lemnons nostro cum crimine haberet37
(Metamorfoses XIII v 43 ndash 46 grifo nosso) ille tamen uiuit quia non comitavit Vlixen 55 Mallet et infelix Palamedes esse relictus uiueret aut certe letum sine crimine haberet Quem male conuicti nimium memor iste furoris Prodere rem Danaam finxit fictumque probauit crimen et ostendit quod iam praefoderat aurum 38 60
(Metamorfoses XIII v 55 ndash 60 grifo nosso)
Podemos observar que o vocaacutebulo latino furor estaacute inserido em um campo semacircntico
ao qual se fixa ira visto que alguns dicionaacuterios abonam seu sentido de furor fuacuteria ira raiva
ou coacutelera Contudo haacute nessa palavra uma nuance primeira que lhe eacute proacutepria e que precisa o
seu significado no sentido de loucura devaneio frenesi Os trechos corroboram esse sentido
especiacutefico proacuteprio do vocaacutebulo pois rementem ao estado de loucura de Ulisses descrito no
episoacutedio do mito da convocaccedilatildeo dos heroacuteis gregos
Aqui trecircs coisas se fazem importantes A primeira se manifesta na qualidade dessa
loucura pois ela natildeo eacute verdadeira mas dissimulada forjada furore ficto A segunda reside no
desejo impossiacutevel e irreal de Aacutejax expresso com o subjuntivo passado esset de que aquela
loucura fosse verdadeira ille furor verus A terceira se expressa na consequecircncia loacutegica
revelada no argumento do discurso do Telamocircnio o desejo impossiacutevel e irreal encontra uma
finalidade pois seria a fim de que Ulisses natildeo viesse agrave guerra de Troia nec venisset ad arces
Phrygias Essa consequecircncia parece eventual e direta se a loucura fosse verdadeira
36 As armas hatildeo de ser negadas para mim E pareceraacute mais preferiacutevel (v 35) aquele que tomou as uacuteltimas e recusou a expediccedilatildeo com loucura forjada ateacute que mais industrioso que esse e mais prejudicial a si o Naupliacuteade revelou os fingimentos De espiacuterito covarde e trouxe-o para as armas evitadas 37 E que aquela loucura fosse verdadeiro ou fosse acreditada para que este companheiro natildeo viesse algum dia agraves cidadelas Friacutegias estimulador de crimes Prole de Peante que Lemnos (v 45) natildeo te tivesse abandonado com nosso crime 38 Aquele [Filoctetes] contudo vive pois natildeo seguiu Ulisses (v 55) o infeliz Palamedes preferisse ser deixado viveria ou certamente teria morte sem crime a quem este [Ulisses] bem lembrado da loucura mal provada forjou revelar tesouro dacircnao comprovou o crime forjado e mostrou o ouro pois jaacute o tinha enterrado antes (v 60)
134
Isso nos sugere uma oposiccedilatildeo imprescindiacutevel aos vocaacutebulos ira e furor e significativa
para o episoacutedio em questatildeo A princiacutepio a loucura ou o devaneio significados contidos em
furor natildeo nos parece ser passiacutevel de resistecircncia Parece-nos talvez natildeo relacionado a um
aspecto fiacutesico-emocional no acircmbito do autocontrole daquele que a loucura acomete Pois
aquele que estaacute submetido a esse frenesi eacute passivo nesse processo natildeo sendo possiacutevel se
desvencilhar da situaccedilatildeo a partir de uma accedilatildeo interna do proacuteprio sujeito pelo menos eacute o que
sugerem os versos A loucura de Ulisses se fosse verdadeira incapacitaacute-lo-ia de participar da
guerra pois a vitoacuteria do heroacutei sobre a mesma natildeo seria possiacutevel
Essa precisatildeo na escolha dos vocaacutebulos estrutura a unidade lexical do episoacutedio A
nuance semacircntica do vocaacutebulo furor que no texto se evidencia define melhor o proacuteprio
sentido de ira pois os dois a princiacutepio semelhantes se opotildeem completamente ao serem
usados em contextos diferentes Por um lado furor eacute utilizado para um sentido de loucura e
devaneio ira eacute usado mais para um sentido de rancor e coacutelera O primeiro arrebata o heroacutei
sem luta e sem resistecircncia o segundo o submete por meio de um confronto de forccedilas a partir
de um aspecto fiacutesico-emocional sobre o qual o sujeito tem poder de intervenccedilatildeo Assim Aacutejax
na versatildeo de Oviacutedio natildeo eacute tomado por uma loucura mas sim por uma ira profunda que nasce
da proacutepria situaccedilatildeo do episoacutedio e que o vence pois ele natildeo consegue sustentaacute-la ou contecirc-la
e que o impulsiona a cometer o suiciacutedio
A menccedilatildeo do verbo irascor ratifica a interpretaccedilatildeo de um sentido ligado a um aspecto
fiacutesico-emocional e o faz ainda retomando o elemento dor Vejamos o trecho abaixo que
descreve um fragmento do discurso de Ulisses
Vt dolor unius Danaos peruenit ad omnes Aulidaque Euboicam conplerunt mille carinae Exspectata diu nulla aut contraria classi Flamina erant duraeque iubent Agamemnona sortes Immeritam saevae natam mactare Dianae 185 Denegat hoc genitor diuisque irascitur ipsis39
(Metamorfoses XIII v 181- 186 grifo nosso)
Esses versos fazem referecircncia ao episoacutedio da guerra de Troia que situa o nuacutecleo da
convocaccedilatildeo dos heroacuteis gregos Em Aacuteulide os exeacutercitos se reuacutenem formando um uacutenico corpo
agora comandado por um soacute rei Agamecircmnon Esse episoacutedio trata de uma situaccedilatildeo que potildee
toda expediccedilatildeo diante de um possiacutevel fracasso pois os ventos favoraacuteveis agrave frota que a
39
A dor de um chega ateacute todos os Dacircnaos e mil popas encheram a Aacuteulide eubeia Muito tempo esperado nenhum vento era favoraacutevel agrave frota duras sortes decretam Agamecircmnon sacrificar a filha inocente para a feroz Diana (v 185) Este genitor recusa e ira-se com os proacuteprios deuses
135
levariam a Troia soacute satildeo possiacuteveis por meio do sacrifiacutecio da filha de Agamecircmnon O sucesso
da empreitada depende do seu liacuteder ao qual todo o exeacutercito se submete
Podemos ver que o fragmento descreve a dor de um homem chegar a todos os Dacircnaos
dolor unius Agamecircmnon tambeacutem sofre pelo decreto da deusa que o impele a matar a filha e
o exeacutercito sofre devido agrave possibilidade de a reuniatildeo ter sido em vatildeo Sabemos que
Agamecircmnon realiza aquilo desejado pela deusa mas Diana substitui Ifigecircnia por uma corccedila
Contudo os versos evidenciam todo o sofrimento e o dilema passado pelos gregos revelando
que antes de Agamecircmnon realizar o ato propriamente dito recusa executaacute-lo denegat
chegando a se indignar-se ou mais propriamente irar-se irascitur com os deuses
O verbo depoente irascor figura o envolvimento de Agamecircmnon com a accedilatildeo de irar-
se A noccedilatildeo depoente implica uma relaccedilatildeo subjetiva e pessoal do heroacutei nesse ato que
semelhantemente ao do Telamocircnio parece-nos mais uma vez relacionar-se com sofrimento e
com dor Na relaccedilatildeo semacircntica disposta no episoacutedio do sacrifiacutecio na versatildeo de Oviacutedio e na
loacutegica de causalidade expressa a dor de Agamecircmnon eacute imprescindiacutevel agrave sua ira contra os
deuses pois este sentimento se desenvolve a partir daquele
Podemos ainda relacionar uma cadeia maior por meio da noccedilatildeo de causalidade
corrente nessa analepse A sequecircncia se inicia com o decreto da deusa que implica a dor
individual de Agamecircmnon nele desenvolvendo-se a ira responsaacutevel pela recusa ao sacrifiacutecio
ato que acarreta a dor coletiva dos gregos pois representa o possiacutevel fracasso na campanha
militar contra os troianos A relaccedilatildeo entre sofrimento individual e o coletivo se faz no
envolvimento de Agamecircmnon com a accedilatildeo de irar-se em que estaacute necessariamente vinculada agrave
sua dor particular de pai diante da accedilatildeo a ser tomada contra sua proacutepria filha
Esse viacutenculo estrutural e semacircntico entre dor e ira disposto na caracterizaccedilatildeo tanto de
Aacutejax personagem central do episoacutedio quanto de Agamecircmnon de reforccedilo argumentativo
configura a ira ao menos nos dois casos desse episoacutedio desenvolvida sob o aspecto fiacutesico-
emocional e que se expressa senatildeo no interesse do agente verbal Dessa forma a dor parece
indissociaacutevel da noccedilatildeo da ira independente se surge do acircmbito afetivo cultural social etc
A partir dessas consideraccedilotildees o segundo verso do Livro XII nos parece mais
promissor O epiacuteteto senhor do escudo de sete camadas clipei dominus septemplicis natildeo eacute
referido arbitrariamente por Oviacutedio em seu texto pois atraveacutes dele toda uma imagem
significativa de heroacutei vem agrave tona a de proteccedilatildeo Eacute por meio da noccedilatildeo de proteccedilatildeo que se cria
imagem de um Aacutejax que conteacutem o inimigo e seus ataques O escudo para isso eacute fundamental
Esse sentido do epiacuteteto que se faz por si soacute ganha reforccedilo e destaque no episoacutedio quando nos
136
versos 385-386 descreve-se tudo aquilo que Aacutejax pocircde conter em oposiccedilatildeo agrave uacutenica coisa que
ele natildeo pocircde
Isso eacute importante porque por um lado os dois conteuacutedos trazidos nos versos 385 e
386 estruturam-se como complementos do verbo sustineo fornecendo uma carga semacircntica
que evidencia a oposiccedilatildeo de seus dois componentes aquilo que eacute contido pelo heroacutei como
Heitor as armas as chamas e Juacutepiter e aquilo que natildeo eacute contido restrito unicamente ao
sentimento de ira unam iram Por outro os mesmos dois conteuacutedos relacionam-se
estruturalmente e dialogam a partir do mesmo verbo sustineo convergindo o sentido dos dois
componentes em um mesmo ponto em um mesmo atributo caracteriacutestico de Aacutejax sua
virtude e mais propriamente sua capacidade de suster e conter que une e opotildee significados
beacutelicos e emocionais
Contudo eacute o conteuacutedo do discurso de Aacutejax que nos revela a natureza de sua
compreensatildeo de mundo e de valores importante pois por meio dela percebemos como o
personagem vecirc a proacutepria situaccedilatildeo em que se encontra responsaacutevel pela origem da ira e da dor
que o acometem Sua perspectiva de valores recai sobre dois conceitos importantes accedilatildeo e
palavra ou seja agir e discursar A oposiccedilatildeo entre estes dois eacute a base do encadeamento loacutegico
das proposiccedilotildees do personagem e por reflexo eacute tambeacutem a natureza de seu estilo retoacuterico que
recebe um reforccedilo significativo do seu estado iracundo
Para ampliar e reforccedilar o que jaacute foi estudado conveacutem lembrarmos do que a tradiccedilatildeo
homeacuterica guardou acerca da oratoacuteria de Aacutejax especialmente contraposta agrave de Ulisses
O exemplo claacutessico que jaacute citamos estaacute contido no Canto IX da Iliacuteada Podemos
observar de forma clara jaacute um elemento de diferenccedila entre os discursos de Odisseu e Aacutejax
Para o primeiro Homero dedicou oitenta e dois (82) versos (v 225-306) para o segundo
dezenove (19) versos (v 642-642) Isso nos mostra que na versatildeo homeacuterica o discurso do
Laertida eacute ao menos quatro vezes maior do que o do Telamocircnio caracterizando aquele como
mais prolixo e este mais direto
A versatildeo de Oviacutedio segue padrotildees semelhantes no entanto com uma diferenccedila menor
na extensatildeo do discurso O discurso de Ulisses se desenvolve em duzentos e cinquenta e
quatro (254) versos (v 128-381) enquanto o de Aacutejax se estende por cento e dezoito (118)
versos (v 5-122) Isso corresponde ao menos a um discurso duas vezes maior Apesar de
alongar o discurso do heroacutei de Salamina o de Iacutetaca ainda se mostra bem maior preservando
ainda a tradicional caracterizaccedilatildeo dos dois personagens Isso permite ao primeiro a
possibilidade de uma capacidade retoacuterica que segundo Elaine Fantham (KNOX 2009) e Neil
Hopkinson (2000) soacute natildeo foi efetiva porque natildeo estava direcionada aos seus iguais aos reis
137
mas agrave massa anocircnima de soldados Dessa forma natildeo lhe faltam no discurso e isso eacute
claramente visiacutevel sentenccedilas de cunho exortativo frases de efeito perguntas retoacutericas e uma
aguda ironia que para noacutes parece reforccedilar a ira do heroacutei presente antes e ao longo de seu
discurso
A complexidade levantada acerca da unidade textual do episoacutedio sustenta
significativamente como chave de leitura a ira do personagem como oriunda da dor que
acomete o heroacutei Esta se estabelece a partir da convicccedilatildeo de que o personagem tem da sua
proacutepria situaccedilatildeo baseado em seus valores guerreiros sobretudo defensivos vinculados agrave
oposiccedilatildeo entre as qualidades de accedilatildeo proacuteprias dele mesmo e da palavra proacuteprias de Ulisses
Assim parece-nos que o discurso de Aacutejax seria mais propriamente de estilo oratoacuterio emotivo
e exortativo como jaacute dissemos movido pela ira e pela dor e empregado para comover e
incitar os ouvintes fomentando-lhes a agitaccedilatildeo das emoccedilotildees e dos sentimentos ainda que se
utilize de princiacutepios loacutegicos e dedutivos Para chegarmos a uma conclusatildeo mais soacutelida sobre
esse pensamento devemos considerar ao menos as duas seguintes informaccedilotildees
A primeira nos eacute trazida por Neil Hopkinson ao analisar Aacutejax no livro XIII utilizando-
se de alguns escritos de Quintiliano dispostos abaixo (2000)
Nec hoc quidem negauerim sequi plerum hanc opinionem ut fortius dicere uideantur indocti primum uitio male iudicantium qui maiorem habere uim credunt ea quae non habent artem ut effringere quam aperire rumpere quam soluere trahere quam ducere putant robustius Nam et gladiator qui armorum inscius in rixam ruit et luctator qui totius corporis nisu in id quod semel invasit incumbit fortior ab his vocatur cum interim et hic frequenter suis uiribus ipse prosternitur et illum uehemens impetus excipit aduersii mollis articulus40
(Institutio Oratoria 2 12 1 ndash 2)
Neil Hopinkson para mostrar que o chefe de Salamina eacute representado por Oviacutedio
como de discurso objetivo e direto tal qual se condiz a um guerreiro mas tambeacutem de um
estilo oratoacuterio vigoroso e emotivo mal controlando-se suas emoccedilotildees compara os indocti do
fragmento acima a uulgi dos primeiros versos do livro XIII Pois se o discurso repercutiu
realmente sobre agrave massa dos soldados como vemos nos versos ldquotinha terminado o gerado de
Teacutelamon e da tropa o murmuacuterio que seguiu era as uacuteltimas coisasrdquo (finierat Telamone satus 40
Certamente ao seguir-se esta opiniatildeo geral isto natildeo neguemos que os ineptos sejam vistos dizendo mais vigorosamente primeiramente por mau erro dos que julgam que creem ter a forccedila maior as coisas que natildeo tecircm arte assim como acham mais vigoroso arrombar do que abrir romper do que solver e trazer do que conduzir E assim o gladiador que descuidado das armas precipita-se na contenda e o lutador que por esforccedilo de todo o corpo apoia-se no golpe que empreendeu satildeo chamados de mais fortes quando contudo tanto este mesmo frequentemente eacute derrubado pelas suas forccedilas quanto a mole articulaccedilatildeo do adversaacuterio susteacutem aquele de ataque rigoroso
138
uulgique secutum ultima mumur erat v 123 ndash 124) fez-se porque esse grupo representa a
opiniatildeo geral que associa a pujanccedila ao discurso sem retoacuterica porque prefere os que a ele se
assemelham nos dizeres eneacutergicos uma vez que se opotildee aos heroacuteis por natildeo possuir sua
moderaccedilatildeo Assim o estilo oratoacuterio de Aacutejax seria mais bem acolhido pelo corpo de soldados
como o fragmento ressaltou exatamente por representar a objetividade e o vigor emotivo
A segunda informaccedilatildeo a ser considerada eacute a caracterizaccedilatildeo do narrador externo que
anuncia contextualiza e direciona o proacuteprio discurso que se segue Natildeo devemos nos esquecer
dos termos inpatiens irae ndash natildeo suportando a ira ndash e toruo uultu ndash torva expressatildeo ndash jaacute
explicados anteriormente pois corroboram essa oratoacuteria vigorosa e emotiva precisando a
interpretaccedilatildeo que devemos considerar acerca do discurso do heroacutei e de sua caracterizaccedilatildeo
Diante disso impotildee-nos achar mais coerente ao episoacutedio e ao personagem o estilo
oratoacuterio emotivo e exortativo ou seja de dicccedilatildeo vigorosa Contudo como acima nos disse
Quintiliano um discurso forte natildeo necessariamente eacute aquele isento de uma formulaccedilatildeo
retoacuterica consciente ou como ele mesmo diz non habent artem ndash sem arte Com efeito
podemos ver que a estrutura do discurso do Telamocircnio desdobrando-se da oposiccedilatildeo dos dois
heroacuteis com base no valor positivo da accedilatildeo e do negativo da palavra a fim de glorificar um e
inferiorizar outro exprime uma consciecircncia retoacuterica nada inepta ou natildeo treinada
Apesar de natildeo possuir essa base retoacuterica mais intelectual do ponto de vista da
estruturaccedilatildeo dos conteuacutedos e da base dos argumentos devemos observar atentamente em que
se expressam os pontos culminantes de sua ira como nos pareceram ser as perguntas retoacutericas
que retratam o contraste entre os heroacuteis uma vez que nessas passagens o personagem
apresenta uma imagem inferior e exagerada do seu opositor Assim eacute exatamente nessa forma
de dizer ou seja de expressar sua perspectiva acerca dos valores sobretudo guerreiros que
podemos analisar a ira na caracterizaccedilatildeo do heroacutei Todas as descriccedilotildees hiperboacutelicas do porte
fiacutesico e da iacutendole moral inseridas em uma perspectiva depreciativa as quais estudamos
anteriormente reforccedilam significativamente o estado emocional do Telamocircnio quando
arguindo Isso destaca senatildeo a caracterizaccedilatildeo indireta desse sentimento no personagem uma
vez que se faz a partir de um processo mais dinacircmico e menos oacutebvio
Como jaacute vimos o Telamocircnio ofende o caraacuteter de Ulisses depreciando seu valor
guerreiro e sua imagem de heroacutei ateacute em sua preponderante inteligecircncia Por um lado o ultraje
se faz agrave virtude guerreira do heroacutei inferior o porte fiacutesico carece de atributos combativos pois
estes satildeo imbeles (inbellibus [] lacertis v 109) e insuficientes para carregar sobretudo o
peso das armas de Aquiles (pondera tanta feret v 108) e seu acircnimo inadequado agrave guerra
pois o chefe de Iacutetaca eacute referido como covarde (timidae natae v 111) e o mais covarde
139
(timidissime v 115) Esse superlativo reforccedila a inferioridade destacada do personagem
insultado sobretudo porque seria por meio dessa caracteriacutestica que ele triunfa (uincis v15)
com a fuga (fuga v 115) Por outro lado quanto agrave inteligecircncia esse ainda eacute visto pelo seu
lado negativo uma vez que sua mente seria utilizada para cometer ardis sobretudo
criminosos pois sua origem seria proveniente do heroacutei Siacutesifo (sanquine creatus Sisyphio v
31-32) o maior ludibriador e inescrupuloso dos mortais da mitologia grega como jaacute citamos
anteriormente A esse Ulisses se assemelharia tanto no furto quanto na fraude (furtisque et
fraude simillimus illi v 32) O proacuteprio Laertida reconhece as palavras do seu opositor serem
insultos (conuicia v 306) proferidos de uma boca insensata (stolidae [] linguae v 306) de
um heroacutei insensato (Aiacis stolidi v 327)
Certamente as perguntas retoacutericas tambeacutem desencadeiam pontos criacuteticos dessa
retoacuterica iracunda como podemos ver os momentos de escaacuternio e de ironia Com efeito
Ulisses eacute heroacutei e manifesta as devidas carateriacutesticas obviamente Contudo Aacutejax utiliza-se de
hipeacuterboles juntos agraves perguntas retoacutericas para descrever um caraacuteter de seu opositor bem
inferior a fim de escarnececirc-lo Essa ostensiva atitude de zombaria natildeo tem o intuito de
provocar o riso como jaacute dissemos pois um Aacutejax indignado e iracundo entretendo os ouvintes
natildeo se adequaria ao episoacutedio Seu objetivo nos parece ser outro insultar o adversaacuterio no
sentido de humilhaacute-lo e de rebaixaacute-lo da sua condiccedilatildeo de heroacutei diante de todos pois se
rememorarmos a premissa de Secircneca acerca da ira (iram esse cupiditatem doloris reponendi
Sobre a Ira I 3 3 2) podemos entender que o Telamocircnio realmente tem a vontade de
devolver ao contendor de Iacutetaca o insulto recebido em sua honra quando este ousou reclamar
as armas do Pelida Havendo como destacamos na honra (honor) a ideia de um
reconhecimento puacuteblico do meacuterito o ultraje cometido pelo Laertida foi puacuteblico logo a
resposta tambeacutem deve ser puacuteblica Dessa forma depreciar diante de todos os meacuteritos do
adversaacuterio a ponto de diminuir a sua virtude sobretudo de heroacutei eacute certamente desonraacute-lo E
Aacutejax assim o faz impulsionado pela convicccedilatildeo em sua proacutepria desonra para a qual o
demeacuterito reside na participaccedilatildeo do heroacutei em uma contenda cujo resultado lhe eacute evidente e
assim configurando-a como desnecessaacuteria senatildeo para ferir sua superior excelecircncia guerreira
Retomemos todas as informaccedilotildees para que possamos chegar a uma conclusatildeo Na
versatildeo de Oviacutedio a estruturaccedilatildeo do episoacutedio se daacute a partir da complementaridade e da relaccedilatildeo
trazidas pelos elementos virtude e ira pois eles satildeo necessaacuterios para dar agrave trama um elemento
que nos parece frequente ao mito e suas decorrentes versotildees uma espeacutecie de ironia natildeo no
sentido de figura de linguagem ou palavra mas de destino proacutepria dos textos traacutegicos que
conduz Aacutejax ao seu infortuacutenio contrariamente agrave expectativa ou seja de maneira peripeacutetica
140
em especial porque decorre de accedilotildees que envolvem especialmente o atributo que mais o
caracteriza no episoacutedio uma capacidade de suster de conter a priori no acircmbito beacutelico Esse
caraacuteter traacutegico soacute eacute possiacutevel porque o autor da obra une atraveacutes da unidade textual do
episoacutedio dois valores romanos uirtus e grauitas no qual o segundo se refere agrave capacidade de
limitar as manifestaccedilotildees de emoccedilatildeo e de ter autocontrole Tal tessitura tem propoacutesitos
literaacuterios e esteacuteticos adensando a estrutura formada pelo composto ira e virtude esta como
qualidade sobretudo de contenccedilatildeo a fim de trazer agrave tona o traacutegico no episoacutedio
Dessa forma eacute evidente a conjugaccedilatildeo dos valores romanos supracitados na capacidade
de contenccedilatildeo do heroacutei expressa especialmente mas natildeo apenas pelo verbo latino sustineo
Pois o autor usa o verbo tanto para a contenccedilatildeo dos sentimentos ou seja do controle das
emoccedilotildees quanto dos inimigos ou seja de sua resistecircncia diante dos assaltos dos troianos
revestindo Aacutejax de uma uirtus sobretudo romana Isso se adensa se considerarmos o momento
que o episoacutedio retrata o mundo arcaico Assim a distinccedilatildeo entre esses dois valores estaria
menos delimitada Com efeito tanto a uirtus romana quanto a ἀρετή grega estavam ligadas agrave
virilidade guerreira do sexo masculino por isso soacute o homem a possuiacutea nesse tempo miacutetico
Oviacutedio entatildeo liga a essa qualidade viril por excelecircncia a temperanccedila ou seja o
comedimento o domiacutenio de si mesmo a grauitas romana por meio de uma unidade lexical
Nada que cause estranhamento pois segundo Grimal (1992) essa qualidade tambeacutem era
masculina em oposiccedilatildeo ao que os romanos e gregos acreditavam ser a caracteriacutestica da
mulher a incapacidade de controlar a proacutepria natureza
Contraposta ao sentido de furor expresso no episoacutedio reforccedila-se a ira como algo
controlaacutevel ou suportaacutevel o que corrobora a estrutura dicotocircmica com base em ira e
capacidade de contenccedilatildeo na caracterizaccedilatildeo do Telamocircnio A rede de relaccedilotildees desenvolvida
por esses elementos chaves de leitura conduz o texto para uma ideia de ironia do destino
construiacuteda agrave guisa dos textos traacutegicos fazendo-a culminar ao final do episoacutedio A eficaacutecia
esteacutetica dessa ironia como nos diz Massaud Moiseacutes (2013) decorre da surpresa relacionada a
um pormenor do enredo e que eacute de conhecimento dos leitores mas natildeo do personagem
envolvido No caso do episoacutedio o pormenor natildeo se daacute necessariamente pela trama das accedilotildees
mas pela unidade textual ou seja pela tessitura a partir dos conceitos de virtude e de ira A
relaccedilatildeo leacutexico-semacircntica deste uacuteltimo com os valores romanos uirtus e grauitas potildee essa
ironia em seu cliacutemax nos versos 385 e 386 Hectora qui solus qui ferrum ignesque Iouemque
Sustinuit totiens unam non sustinet iram pois o verbo latino sustineo eacute usado tanto para
expressar a capacidade beacutelica de conter ataques do inimigo quanto para manifestar o
autocontrole das emoccedilotildees Tendo compreendido essa articulaccedilatildeo o elemento traacutegico e irocircnico
141
eacute entatildeo decorrente da surpresa construiacuteda a partir de uma accedilatildeo inesperada a morte alcanccedila o
heroacutei exatamente atraveacutes daquilo pelo qual o heroacutei mais se vale o aspecto mais desenvolvido
de sua caracterizaccedilatildeo dentro do episoacutedio Assim Aacutejax com toda sua virtude desenvolvida
como uma capacidade de suster e suportar a qual ele desempenha sobretudo sozinho unus (v
87) a tudo detendo eacute incapaz de conter somente uma coisa a ira pois ela sozinha unam iram
(v 385) eacute incontinente para o heroacutei o qual entatildeo encontra a morte vencido na qualidade que
mais o caracteriza Esta eacute validamente uma composiccedilatildeo de elementos traacutegicos corroborando
sobretudo a polivalecircncia literaacuteria e o entrelugar da obra se a entendermos sob o ponto de vista
da quebra de uma expectativa da peripeacutecia aristoteacutelica tanto se consideramos sua derrota
diante de Ulisses uma vez que para Aacutejax sua vitoacuteria seria eventual quanto se levarmos em
conta a morte do Telamocircnio cujo suiciacutedio ocorre porque como acabamos de dizer sua
superior capacidade de contenccedilatildeo que figura a sua virtude heroica eacute incapaz de suportar
unicamente a ira
Com efeito tambeacutem podemos sintetizar o papel da ira do heroacutei na composiccedilatildeo
estrutural do enredo desse episoacutedio tanto do ponto de vista da causalidade quanto da
caracterizaccedilatildeo direta e indireta
Para o primeiro visiacutevel sobretudo na perspectiva interna a ira move as accedilotildees do
personagem a mais desenvolvida o discurso e a mais sinteacutetica o suiciacutedio Na primeira eacute
possiacutevel constatar mesmo que de forma dispersa esse sentimento manifestado em especial no
tratamento que o heroacutei daacute agrave descriccedilatildeo excessivamente desvirtuosa de seu adversaacuterio
apresentando-o por meio de uma imagem completamente viciosa e oposta agrave virtude heroica
mais propriamente insultos reconhecidos pelo proacuteprio Ulisses Na segunda accedilatildeo eacute tambeacutem o
estado coleacuterico de Aacutejax que o faz atentar contra a proacutepria vida natildeo concebendo sua derrota
senatildeo a si mesmo Textualmente essa ira eacute insustentaacutevel para ele e por isso desencadeia tais
reaccedilotildees desmedidas Quanto agrave causalidade externa ainda podemos ao menos reconhecer que
o fim do episoacutedio se alinha com a tradiccedilatildeo homeacuterica que figura a ira persistir apoacutes a morte do
Telamocircnio
Para o segundo ponto de vista da caracterizaccedilatildeo reconhecemos o aspecto direto em
especial na expressatildeo inpatiens irae como corroborante de um atributo descrito
expressamente para tal finalidade sobretudo como parece ser o caso de tal sintagma emular
um epiacuteteto eacutepico que antecede de maneira significativa um discurso ao qual se integra
contextualizando toda a cena Jaacute quanto ao estudo do tipo indireto tal caracterizaccedilatildeo eacute mais
significativa na obra de Oviacutedio pois como vimos sendo a retoacuterica utilizada com a finalidade
maior de delinear traccedilos marcantes do heroacutei seu discurso contundente e excessivo de ultrajes
142
ao adversaacuterio eacute senatildeo uma evidecircncia textual de seu estado iracundo nascido da desonra aos
valores apregoados por ele mesmo tambeacutem presentes em suas proacuteprias palavras no episoacutedio
A ira eacute entatildeo fundamental agrave composiccedilatildeo do enredo desse episoacutedio sem a qual o sentido do
texto se desfaz parcial ou completamente
Nesta seccedilatildeo final do capiacutetulo intentamos destacar como as concepccedilotildees de virtude e de
ira provenientes tanto da cultura grega quanto da latina manifestam-se como chaves de
leitura imprescindiacuteveis para a compreensatildeo mais plena do episoacutedio em questatildeo acima de
tudo ressaltando como as minuacutecias textuais implicam essa caracterizaccedilatildeo de Aacutejax na
composiccedilatildeo semacircntica da disputa pelas armas de Aquiles
143
3 ESTUDO TRANSTEXTUAL DA CARACTERIZACcedilAtildeO DO HEROacuteI
Neste capiacutetulo realizaremos o estudo comparado entre a obra de Soacutefocles e a de
Oviacutedio O foco dessa comparaccedilatildeo eacute a caracterizaccedilatildeo do heroacutei Aacutejax sobretudo em relaccedilatildeo agraves
noccedilotildees de virtude e de ira uma vez que esses elementos exercem um papel fundamental na
composiccedilatildeo estrutural da trama dessas obras Tomaremos como base para tal anaacutelise as
consideraccedilotildees levantadas nos capiacutetulos anteriores porque atraveacutes delas eacute possiacutevel situar o que
pertence a tradiccedilatildeo arcaica e o que eacute considerado tratamento novo da tradiccedilatildeo claacutessica grega
ou em especial latina Com efeito utilizaremos nesse momento a teoria de transtextualidade
de Geacuterard Genette na tentativa de reconhecer uma influecircncia de Soacutefocles em Oviacutedio e na qual
seja possiacutevel mensurar em que grau essa transcendecircncia textual ocorre
Visando a tais finalidades essa etapa do trabalho estaacute dividida em duas seccedilotildees A
primeira apresenta a teoria do autor francecircs sobre a conhecida intertextualidade renomeada de
transtextualidade a qual compotildee um dos grandes procedimentos para o estudo da literatura
comparada Ainda neste momento enfocaremos a exposiccedilatildeo nas praacuteticas transtextuais que
utilizaremos em nosso estudo acomodando-se assim a teoria ao nosso propoacutesito e se
evitando digressotildees desnecessaacuterias A segunda e uacuteltima parte dispotildee a anaacutelise transtextual
propriamente dita das obras em questatildeo observando-se a influecircncia da trageacutedia grega a partir
da terminologia teoacuterica de Genette que precisa vaacuterios tipos e niacuteveis de relaccedilotildees
determinantes para um estudo mais acurado e exato como eacute caso ao qual nos predispomos
3 1 TRANSTEXTUALIDADE A CONCEPCcedilAtildeO DE GENETTE
Como bem nos diz Leyla Perrone-Moiseacutes pertencem ao acircmbito da literatura
comparada quaisquer estudos que visem estabelecer relaccedilotildees entre mais de uma obra sejam
quais forem as perspectivas entre obras autores movimentos fortuna criacutetica ou de enfoque
em determinados temas ou personagens (1990 p 91) Com base nas consideraccedilotildees da autora
hoje a literatura comparada eacute uma disciplina que estaria perto dos seus 180 anos de existecircncia
a partir dos quais se permitiram definir teorias e meacutetodos bem como seu campo de atuaccedilatildeo de
forma mais ou menos precisa Responsaacutevel por conceber e nomear a teoria da
intertextualidade Julia Kristeva retoma algumas propostas de Bakhtin cujo cerne seria o
diaacutelogo interno na obra e o diaacutelogo da mesma com outras Ainda afirma que a influecircncia
exercida por uma obra em outra natildeo reduz a obra influenciada ao acircmbito da recepccedilatildeo passiva
144
mas ao contraacuterio haacute uma transformaccedilatildeo entre elas que permite um vasto sistema de trocas
em que natildeo eacute possiacutevel estabelecer uma valoraccedilatildeo hieraacuterquica sobretudo em termos de
originalidade e imitaccedilatildeo (apud Ibidem p 94)
Tal teoria eacute continuada e desenvolvida por Geacuterard Genette sob o nome de
transtextualidade Esse eacute entatildeo nosso marco teoacuterico sobretudo pelo fato de o autor ter
esmiuccedilado tal concepccedilatildeo de maneira a desdobraacute-la em inuacutemeras praacuteticas transtextuais que nos
permite contemplar a influecircncia de uma obra literaacuteria em outra a partir de vaacuterios niacuteveis de
relaccedilatildeo Segundo o proacuteprio autor essa transcendecircncia textual se define como tudo o que
dispotildee um texto em relaccedilatildeo a outros de forma velada ou aberta no acircmbito da micro e da
macroestrutura (2010 p 13-14) Em busca de uma perspectiva mais exata das relaccedilotildees
transtextuais esse estudioso concebeu uma tipologia na qual cinco espeacutecies compotildeem seu
paradigma terminoloacutegico por um lado facilitando a precisatildeo de determinados viacutenculos
textuais e por outro gerando grandes discussotildees uma vez que eacute frequentemente inviaacutevel o
enquadramento da singularidade de uma obra literaacuteria em um modelo teoacuterico quanto mais
este for acima de tudo estanque Quando tal procedimento ocorre desse modo reconhecemos
muitas vezes a artificialidade do processo envolvido em especial para fins didaacuteticos
classificatoacuterios etc Vejamos brevemente as cinco espeacutecies elaboradas por Genette para depois
nos aprofundarmos nas praacuteticas que seratildeo utilizadas em nosso estudo
A primeira tem o nome de intertextualidade Esse tipo marca a relaccedilatildeo de co-presenccedila
entre dois ou mais textos de maneira efetiva Sua forma mais expliacutecita eacute nomeada de citaccedilatildeo
cujo texto eacute demarcado com aspas com ou sem referecircncia exata mas que destaca a disposiccedilatildeo
literal da presenccedila de outra obra A sua forma intermediaacuteria eacute chamada de plaacutegio sem
conotaccedilotildees negativas das quais se reveste esse termo do ponto de vista acadecircmico pois ele
apenas compotildee a nomenclatura que objetiva uma maior precisatildeo Eacute semelhante agrave citaccedilatildeo
porque eacute uma transcriccedilatildeo ainda literal mas sem aspas e assim natildeo declarada A menos
expliacutecita eacute a alusatildeo que corresponde a uma referecircncia menos literal de uma obra em outra e
cuja compreensatildeo plena da passagem pressupotildee o reconhecimento da relaccedilatildeo transtextual
existente da qual decorre necessariamente inferecircncias determinantes oriundas do eixo
semacircntico das obras envolvidas (Ibidem p 14) No caso do nosso estudo satildeo exemplos
maiores os epiacutetetos homeacutericos dos heroacuteis tomados literalmente ou traduzidos para o latim em
especial os de Aacutejax pois sem o entendimento dessas foacutermulas no contexto eacutepico e homeacuterico
natildeo haacute como compreender a proacutepria ideia de uma autovalorizaccedilatildeo excessiva do heroacutei cuja
iacutendole guerreira segue fortemente paradigmas arcaicos
145
A segunda chamada paratextualidade eacute a relaccedilatildeo que se estabelece entre um texto e
seu proacuteprio paratexto e por isto o autor entende o tiacutetulo subtiacutetulos prefaacutecios posfaacutecios
ilustraccedilotildees notas etc ou seja os vaacuterios elementos acessoacuterios que participam do conjunto
final de uma obra literaacuteria Assim seguindo os questionamentos de Genette ateacute onde o tiacutetulo
da Odisseia da Eneida de Os Lusiacuteadas ou mesma da trageacutedia Aias fazem parte do texto e de
seu estudo ajudando de alguma maneira a desvelar seu conteuacutedo Essa relaccedilatildeo seria como o
autor mesmo diz de ordem paratextual favorecendo inclusive aqueles que defendem o
fechamento do texto de forma mais hermenecircutica considerando ou natildeo tais elementos
(Ibidem p 15-16)
A terceira nomeada de metatextualidade eacute a relaccedilatildeo da criacutetica com a obra literaacuteria ou
seja o comentaacuterio que vincula um texto a outro natildeo havendo a necessidade de citar ou
mesmo nomear a obra a qual se comenta analisa ou estuda (Ibidem p 16-17) A tiacutetulo de
exemplo podemos citar a Poeacutetica de Aristoacuteteles na qual o autor jaacute apresenta diretrizes
interpretativas acerca das obras gregas sobretudo em relaccedilatildeo agraves trageacutedias para as quais
existe um tipo a pateacutetica (παθητική) em que se insere todas aquelas que remetem ao
infortuacutenio de Aacutejax (1455b 34 - 1456a 1) Essa denominaccedilatildeo reforccedila um aspecto
predominante nas peccedilas em torno do mito do heroacutei o sofrimento Tal recurso segundo
Aristoacuteteles parece ser o elemento corrente sobressaindo-se a outros como peripeacutecia e
reconhecimento
A quinta ndash essa eacute a ordem que Genette dispotildee deliberadamente retardando a quarta
mais importante como veremos abaixo ndash espeacutecie corresponde agrave relaccedilatildeo de natureza
estritamente taxonocircmica a arquitextualidade Reconhecidamente mais abstrata serve-nos
sobretudo para o reconhecimento de um status geneacuterico do texto uma vez que orienta a
leitura da obra articulando no maacuteximo indicaccedilotildees expliacutecitas e paratextuais em alguma de
suas partes com designaccedilatildeo deste tipo romance poema ensaios etc as quais inferidas a
partir de traccedilos especiacuteficos vinculados a determinados gecircneros indicam o caraacuteter da obra
(2010 p 17) Essa relaccedilatildeo eacute silenciosa como se pode ver mas necessariamente estaacute
submetida a um paradigma estabelecido pela tradiccedilatildeo literaacuteria sobretudo da criacutetica que
impotildee e discute determinadas terminologias Certamente o proacuteprio texto natildeo estaacute obrigado a
se inserir em um gecircnero preciso nem a seguir determinados padrotildees isso explica as
discussotildees e flutuaccedilotildees histoacutericas acerca da natureza dos gecircneros textuais e literaacuterios bem
como de seus subgecircneros Contudo eacute tambeacutem a partir da arquitextualidade que podemos
conceber um horizonte de expectativa do leitor e por isso compreender a importacircncia dessa
espeacutecie de transtextualidade para a literatura uma vez que a distinccedilatildeo entre as obras ou seja
146
uma classificaccedilatildeo mais rigorosa carece dessa relaccedilatildeo que manisfestando-se de maneira mais
ou menos evidente dispotildee-no uma natureza mais ou menos classificaacutevel (Ibidem 23-24)
A quarta espeacutecie eacute chamada hipertextualidade e figura a mais importante para o seu
livro Palimpsestos a literatura em segundo grau pois dela se ocupa predominantemente
uma vez que reconhece seu papel fundamental na literatura sobretudo na tradiccedilatildeo ocidental
Esse tipo trata do viacutenculo de um determinado texto nomeado hipertexto em relaccedilatildeo a um
outro chamado hipotexto do qual deriva e que lhe eacute anterior e imprescindiacutevel para sua
composiccedilatildeo sobretudo pela forma como a obra derivada se apresenta Tal derivaccedilatildeo natildeo eacute de
ordem metatextual ou seja de relaccedilatildeo criacutetica pois o hipertexto recebe mais frequentemente o
status de obra literaacuteria do que o metatexto em especial pelo fato de se manifestar ainda como
obra de ficccedilatildeo derivada de outra Com efeito haacute exceccedilotildees mas primordialmente essa eacute a
premissa do autor (Ibidem 18)
Os exemplos citados pelo proacuteprio autor satildeo a Eneida e Ulisses que dividem uma
mesma origem hipertextual a Odisseia Essa derivaccedilatildeo entatildeo evoca a obra anterior sem
necessariamente a nomear ou a citar mas cujo resultado se realiza atraveacutes de uma operaccedilatildeo
chamada transformaccedilatildeo uma vez que os elementos tomados do hipotexto satildeo ressignificados
dentro do hipertexto Essas transformaccedilotildees podem ser do tipo simples e direta ou complexa e
indireta esta que o autor prefere nomear imitaccedilatildeo O primeiro tipo por exemplo trata da
transportaccedilatildeo da accedilatildeo da Odisseia para Dublin do seacuteculo XX eacute o caso de Ulisses O segundo
como eacute o caso da Eneida exige adquirir um certo domiacutenio do hipotexto sobretudo dos traccedilos
imitados Assim Virgiacutelio natildeo teria apenas transferido a accedilatildeo de Odisseu agrave accedilatildeo de Eneias
pois ele narra uma histoacuteria completamente distinta mas o faz de modo semelhante ao de
Homero uma vez que se inspira em um mesmo modelo formal e temaacutetico (Ibidem 19-20)
A simetria e a assimetria de gecircneros satildeo usadas pelo autor de forma significativa para
ilustrar a entatildeo distinccedilatildeo entre transformaccedilatildeo e imitaccedilatildeo O autor transformador se apodera
de um texto e dele deriva outro transferindo-o em um outro estilo que lhe eacute estranho ou
modificando-o em relaccedilatildeo agrave limitaccedilatildeo formal e agrave intenccedilatildeo semacircntica de um ou do outro O
autor imitador se apodera de um estilo pelo qual reescreve um determinado assunto
independentemente se eacute inventado ou natildeo Isso eacute o fator determinante de sua obra
Geralmente assim dispotildeem-se o primeiro lida primordialmente com o texto ou seja com o
conteuacutedo abordado e acessoriamente com o estilo o segundo faz o contraacuterio ocupa-se
incidentalmente com o texto e essencialmente com o estilo e os motivos temaacuteticos que ele
envolve Dessa forma para a imitaccedilatildeo deve-se tomar a ideia de estilo em uma concepccedilatildeo mais
abrangente estendendo-se tambeacutem aos niacuteveis e motivos formais e temaacuteticos como os eacutepicos
147
por exemplo que recorrem a invocaccedilotildees a musas epiacutetetos descriccedilotildees de armas combate
singulares intervenccedilotildees divinas etc mesmo que tais elementos sejam usados dentro de outro
regime ou funccedilatildeo como a luacutedica ou a satiacuterica (1992 p 106-107) Para compreendermos a
transformaccedilatildeo a tiacutetulo de exemplo da literatura claacutessica podemos reconhececirc-la nas trageacutedias
oriundas dos episoacutedios da eacutepica sobretudo do ciclo eacutepico arcaico Com efeito a unidade natildeo
unitaacuteria destes uacuteltimos segundo o modelo de Aristoacuteteles possibilitou ainda o surgimento
abundante de peccedilas como eacute o caso citado pelo proacutepriacuteo estagirita das obras Cantos Ciacuteprios e
Pequena Iliacuteada (Poeacutetica 1459b 1-7) das quais hoje detemos apenas fragmentos e sinopses
que nos permitem observar relaccedilotildees puramente formais e quantitativas Como veremos agrave
frente essa eacute a natureza da relaccedilatildeo de Aias de Soacutefocles e do episoacutedio da disputa no Livro
XIII de Metamorfoses de Oviacutedio com essas obras do ciclo eacutepico arcaico e com outras
Certamente o fato de esses dois tipos hipertextuais procederem a partir de
singularidades proacuteprias natildeo exclui a possibilidade de praacuteticas mistas ou seja um hipertexto
poder transformar um texto e imitar um outro ou mesmo transformar e imitar o mesmo
hipotexto (GENETTE 2010 p 43-44) sobretudo porque e aleacutem disso ldquotodo objeto pode ser
transformado toda forma pode ser imitada nenhuma arte por natureza escapa a esses dois
modos de derivaccedilatildeo que definem a hipertextualidade na literaturardquo (Ibidem p 127)
Diante dessas consideraccedilotildees entendemos melhor a importacircncia desses dois processos
hipertextuais elaborados por Genette transformaccedilatildeo e imitaccedilatildeo no estudo literaacuterio em
especial para a literatura comparada e para o nosso estudo cuja natureza eacute comparativa Por
isso esse autor se deteacutem e se alonga acima de tudo na elaboraccedilatildeo detalhada de vaacuterios
procedimentos utilizados na relaccedilatildeo hipertextual Essa teoria da hipertextualidade eacute entatildeo
extremamente vasta uma vez que busca abarcar de alguma maneira a totalidade dos casos
presentes na literatura universal e por isso apresenta um aparato de categorias que na praacutetica
operam simultaneamente em um mesmo hipertexto e por vezes se contaminando impedindo
muito frequentemente o estudo de uma determinada caracteriacutestica sem outra com a qual
forma uma unidade de sentido (Ibidem p 63-64)
Por isso natildeo devemos tomar tais relaccedilotildees transtextuais como classes estanques
adverte-nos o autor (2010 p 22) sem observar nas mesmas uma comunicaccedilatildeo ou limites
porosos pelos quais as cincos acabem se contaminando Dessa forma conveacutem ressaltarmos e
repetirmos que toda teoria eacute artificial e convencional no sentido de que eacute completamente
inviaacutevel tentar enquadrar a singularidade de uma obra literaacuteria por meio de procedimentos que
natildeo foram de alguma maneira ajustados e acomodados para esse objetivo Uma mesma teoria
literaacuteria pode ser aplicada diferentemente a obras distintas sem que a mesma perca sua
148
validade em especial quanto ao propoacutesito de auxiliar e precisar uma determinada anaacutelise ou
estudo
Devido a isso natildeo trataremos de todos esses subtipos mas de alguns ndash tanto na
disposiccedilatildeo explicativa quanto na aplicaccedilatildeo analiacutetica ndash que se mostram mais pertinentes ao
nosso trabalho e agrave natureza das obras estudadas Aleacutem disso tais subcategorias seratildeo para noacutes
um guia um norteador das praacuteticas utilizadas pelos autores estudados uma vez que
consideraremos as relaccedilotildees transtextuais sobretudo as hipertextuais segundo as
conveniecircncias da nossa anaacutelise e organizaccedilatildeo ou seja inclusive diminuindo o rigor de certas
disposiccedilotildees com a finalidade de ajustaacute-las tanto agraves obras quanto ao nosso estudo da
caracterizaccedilatildeo do heroacutei Aacutejax O essencial deve ser a compreensatildeo da relaccedilatildeo transtextual
acima de tudo no processo de caracterizaccedilatildeo do personagem a partir da proacutepria obra ou seja
reconhecedo-se nela na medida do possiacutevel um modelo cuja base teoacuterica deve nos servir
mais para o propoacutesito de precisatildeo analiacutetica bem como para o didaacutetico-explicativo do que
para uma finalidade rigorosa e meramente classificatoacuteria Vejamos agora em uma seccedilatildeo
separada as praacuteticas hipertextuais escolhidas para o estudo
3 1 1 Praacuteticas hipertextuais transformaccedilotildees quantitativas pragmaacuteticas e modais
Como a nomenclatura jaacute evidencia essas transformaccedilotildees satildeo operaccedilotildees que se
inserem a priori no primeiro tipo da hipertextualidade naquela que se prende menos ao
estilo e mais ao texto seja por um vieacutes mais formal e quantitativo ou por um mais temaacutetico e
pragmaacutetico o qual retrata uma mudanccedila na intenccedilatildeo semacircntica mesmo que as fronteiras entre
esses tipos sejam como mesmo aponta Genette fraacutegeis e por exemplo ocorra que um
procedimento caracterizado como formal influencie fortemente o sentido da obra (Ibidem p
64) Com efeito disporemos tais operaccedilotildees de maneira um pouco diferente agrave do autor Este
aborda majoritariamente a hipertextualidade de um ponto de vista da relaccedilatildeo declarada e
maciccedila ou seja por um lado ela constitui uma derivaccedilatildeo reconhecida e a certo ponto oficial
e por outro constitui uma derivaccedilatildeo massiva e plena na qual a relaccedilatildeo entre o hipertexto e o
hipotexto eacute aquela em que toda uma obra deriva de toda uma outra (Ibidem p 24) Apesar de
abordarmos essa relaccedilatildeo transtextual segundo uma derivaccedilatildeo do tipo declarada como eacute bem
proacuteprio da literatura claacutessica greco-latina natildeo a trataremos a partir de uma vinculaccedilatildeo
prioritariamente maciccedila mas a faremos sobretudo a partir de uma fragmentada uma vez que
149
essas parecem tambeacutem ser recorrentes na transformaccedilatildeo significativa do hipertexto do mundo
greco-latino claacutessico
Nossa estruturaccedilatildeo seguiraacute a seguinte disposiccedilatildeo primeiramente trataremos das
transformaccedilotildees quantitativas abordando subcategorias nomeadas aumento e reduccedilatildeo as
quais comportam os tipos extensatildeo ampliaccedilatildeo excisatildeo e condensaccedilatildeo em seguida
trataremos das pragmaacuteticas enfocando os tipos transmotivaccedilatildeo e transvalorizaccedilatildeo que
abrangem noccedilotildees positivas e negativas como os subtipos motivaccedilatildeo e desmotivaccedilatildeo e os
valorizaccedilatildeo e desvalorizaccedilatildeo por fim abordaremos as modais denominadas
transmodalizaccedilotildees A explanaccedilatildeo acerca desses uacuteltimos precedimentos do tipo modal seraacute
realizada de modo mais breve em particular por acharmos essencial para o contexto greco-
latino mas natildeo aprofundaremos essas questotildees em nosso estudo A essa disposiccedilatildeo
acompanharatildeo exemplos da literatura claacutessica greco-latina pois elucidaratildeo questotildees que
tratam da mesma realidade literaacuteria transtextual e sobretudo alguns retirados das obras que
formam o corpus desse estudo e que apresentam mito do heroacutei Aacutejax uma vez que estatildeo mais
proacuteximos do horizonte de expectativa do leitor de nosso trabalho pois em capiacutetulos anteriores
jaacute fornecemos informaccedilotildees que ajudaratildeo a situar a aplicaccedilatildeo dessas praacuteticas hipertextuais
Esse procedimento nos auxiliaraacute no esclarecimento da metodologia analiacutetica que seraacute
contemplada na uacuteltima parte deste capiacutetulo Essas tambeacutem seratildeo as praacuteticas utilizadas em
nossa anaacutelise posterior e principalmente por isso reduzimos a nossa disposiccedilatildeo explicativa
da teoria a apenas estas no intuito de evitar digressotildees que possam se mostrar pouco
produtivas para a nossa pesquisa Iniciemos entatildeo pelas operaccedilotildees quantitativas
As transformaccedilotildees ditas quantitativas podem ser de dois tipos antiteacuteticos um que
consiste em aumentar e estender um texto e outro que trata de abreviar ou reduzi-lo Essas
duas operaccedilotildees foram chamadas pelo teoacuterico de aumento (augmentatiton) e reduccedilatildeo
(reacuteduction) (1982 p 321-323) Haacute para estes modos e subtipos O modo mais simples eacute um
procedimento puramente formal que corresponde a uma mudanccedila de dimensatildeo e de tamanho
O modo mais complexo nomeado ainda de quantitativo a partir de uma concepccedilatildeo mais
abrangente faz da mudanccedila de extensatildeo uma alteraccedilatildeo natildeo apenas da dimensatildeo mas
sobretudo do seu teor e de sua estrutura e consequentemente de seu sentido do hipertexto Os
tipos satildeo trecircs tanto para a reduccedilatildeo quanto para o aumento Para este Genette concebeu a
extensatildeo (extension) a expansatildeo (expansion) e a ampliaccedilatildeo (amplification) dos quais
trataremos de dois Para aquele concebeu a excisatildeo (excision) a concisatildeo (concision) e a
condensaccedilatildeo (condensation) e desses noacutes tambeacutem abordaremos dois
150
Comecemos pelos aumentos Enquanto a expansatildeo se daacute por meio de uma espeacutecie de
dilataccedilatildeo de estiliacutestica como por exemplo o acreacutescimo de figuras de linguagem a um
hipotexto muito literal ou de descriccedilotildees mais detalhadas de algo presente ou impliacutecito no
mesmo a extensatildeo ocorre atraveacutes de um acreacutescimo sobretudo temaacutetico uma adiccedilatildeo maciccedila
ou mais propriamente o acreacutescimo de um episoacutedio natildeo presente no texto de origem O
exemplo fornecido pelo autor eacute o caso de Apuleio o qual estende as Metamorfoses de Luacutecio
quando acrescenta o mito de Eros e Psiqueacute um episoacutedio ausente no hipotexto Aplicando tal
premissa a casos mais relevantes para o nosso trabalho podemos fornecer dois exemplos
desse procedimento Para entendermos o primeiro devemos tomar como base as epopeias
homeacutericas em especial o Canto XI da Odisseia que apresenta sinteticamente elementos
ligados agrave morte de Aacutejax segundo o que observamos (cf p 25-27) Desconsiderando-se
interpolaccedilotildees provaacuteveis ou especulativas reconhecemos que natildeo haacute aiacute a menccedilatildeo ao episoacutedio
do ataque aos rebanhos gregos quando o heroacutei estava tomado por loucura Natildeo haacute tambeacutem
em si menccedilatildeo agrave forma como o personagem morre mas a esta inferimos pelo conteuacutedo uma
carga funesta e de lamento Contudo esse episoacutedio da loucura do heroacutei estaria inserido em
uma obra do ciclo eacutepico composto por volta do seacuteculo VII a C a Pequena Iliacuteada de
Lesches de Mitilene Com conteuacutedos que preencheriam lacunas da Iacuteliada dispondo eventos
posteriores a morte de Aquiles seu iniacutecio apresentava a disputa pelas armas deste heroacutei
seguida do assalto de Aacutejax aos rebanhos e de seu suiciacutedio (WEST 2003 p 121) No acircmbito
literaacuterio esse segundo momento ou seja o ataque aos animais representaria uma extensatildeo
uma vez que retrata uma adiccedilatildeo maciccedila de um evento natildeo aludido nas epopeias homeacutericas
com as quais tal episoacutedio estabelece uma hipertextualidade se tomarmos como premissa a
percepccedilatildeo de que Homero eacute o texto matriz absoluto da literatura claacutessica greco-latina (GRAF
2006 p 110)
Certamente a Pequena Iliacuteada transforma e imita as obras de Homero mas como dela
nos resta fragmentos e sinopse preservados em escoacutelios a transtextualidade mais vaacutelida e
pertinente eacute ainda na perspectiva quantitativa Um segundo exemplo desse mesmo tipo de
aumento pode ainda ser visto na obra Aias de Soacutefocles A segunda parte da peccedila que
representa eventos posteriores agrave morte do heroacutei encena a defesa do funeral desse personagem
pelo seu irmatildeo Teucro e por Odisseu Todo esse debate parece natildeo figurar essas obras do ciclo
eacutepico apesar de constar na obra de Lesches a menccedilatildeo agrave fuacuteria de Agamecircmnon em relaccedilatildeo aos
atos do Telamocircnio de modo a natildeo permitir que o mesmo fosse cremado diferentemente do
ocorrido com outros heroacuteis (WEST 2003 p 121 127) Essa defesa configurando-se como
uma contenda de palavras sobretudo do ponto de vista retoacuterico do diaacutelogo eacute uma adiccedilatildeo
151
ineacutedita em especial pelo fato de suscitar na trageacutedia a reabilitaccedilatildeo do status de heroacutei ao
personagem Esse acreacutescimo de episoacutedio em relaccedilatildeo agrave Pequena Iliacuteada ou mesmo em relaccedilatildeo
agraves obras homeacutericas tem o valor de extensatildeo segundo o que entendemos dos pressupostos
teoacutericos de Genette
Ainda abordando o aumento hipertextual haacute um outro tipo nomeado ampliaccedilatildeo
Segundo o teoacuterico francecircs esse eacute um dos recursos essenciais do teatro claacutessico em especial
da trageacutedia desde Eacutesquilo ateacute no miacutenimo o final do seacuteculo XVIII (1982 p 375) A proacutepria
trageacutedia grega da forma como eacute conhecida nasce senatildeo do aumento cecircnico de episoacutedios
miacuteticos ou eacutepicos presentes na cultura grega A dilataccedilatildeo de um episoacutedio promovida por esse
recurso inclusive atraveacutes de um processo no qual participem outros tipos de aumento fornece
uma maior extensatildeo por meio de novos detalhes novas descriccedilotildees etc mas que reside ainda
em um evento presente no hipotexto Por isso frequentemente Soacutefocles e Euriacutepides parecem
retomar e aumentar com variaccedilotildees os mesmos episoacutedios de seu antecessor (Ibidem p 375-
376) pois os temas originais satildeo mais raros ou aleacutem disso esses dois autores parecem
ampliar os conteuacutedos das obras do ciclo eacutepico como vimos anteriormente ser um processo
confirmado por Aristoacuteteles (cf p 140) Esse procedimento que consite em inchar um objeto
temaacutetico ateacute atingir uma nova extensatildeo adequada agrave composiccedilatildeo do hipertexto seja para uma
nova trageacutedia ou eacutepica corresponde ao processo de ampliaccedilatildeo
Com efeito noacutes podemos tambeacutem vincular a trageacutedia Aias e o episoacutedio do Livro XIII
de Metamorfoses a esse modelo Apesar de existir uma trilogia de Eacutesquilo que discorra sobre
o assunto (cf p 33) dela natildeo conhecemos o texto e o teor Contudo podemos especular que o
procedimento de ampliaccedilatildeo dessas obras tem origem na Pequena Iliacuteada na qual se retratam
os temas do julgamento pelas armas da loucura que impele o heroacutei a matar animais e do seu
suiciacutedio dos quais ao menos um episoacutedio desta eacutepica eacute ateacute certo ponto oriunda da Odisseia
Esse julgamento jaacute estaacute inserido de forma sinteacutetica e embrionaacuteria no Canto XI dessa epopeia
homeacuterica a qual figura a participaccedilatildeo de Atena e dos Teucros na decisatildeo final A Pequena
Iliacuteada teria entatildeo ampliado essa sinteacutetica alusatildeo ao julgamento a ponto de tornaacute-lo
componente de um episoacutedio e que ainda retrata a participaccedilatildeo desses mesmos personagens
que contribuem para a escolha do merecedor dos precircmios pois essa eacutepica pelo que
conhecemos descreve o plano de Nestor chefe e conselheiro dos gregos de enviar um espiatildeo
agrave Troia para que este ouccedila dos proacuteprios inimigos quem seria o maior guerreiro entre os
contendores
Eacutesquilo e Soacutefocles em um gecircnero de natureza distinta entatildeo ampliariam ainda mais
alongando o episoacutedio ou parte dele em uma ou mais obras O primeiro teria feito do
152
julgamento das armas uma obra e do suiciacutedio outra Em relaccedilatildeo ao segundo autor sua obra
seria uma ampliaccedilatildeo sobretudo dos episoacutedios do heroacutei tomado por loucura (Αἴας δ` ἐμμανὴς
WEST p 121) e do seu suiciacutecio (ἑαυτὸν ἀναιρεῖ Ibidem p 121) com extensatildeo de novo
evento como explicamos acima o debate acerca do seu funeral Dessa forma uma vez que a
loucura e o suiciacutedio retratados em Soacutefocles natildeo satildeo temas novos o processo pelo qual este
tragedioacutegrafo os reelabora para atingir uma nova extensatildeo com a adiccedilatildeo de um tema ineacutedito
corresponde do ponto de vista puramente dimensional ou seja quantitativo a um novo tipo
de aumento complexo e nomeado na terminologia de Genette ampliaccedilatildeo
Para o caso de Oviacutedio que apresenta um episoacutedio que retrata eventos ligados tambeacutem
ao Telamocircnio poderiacuteamos dizer que haacute um aumento visiacutevel de um dos conteuacutedos do episoacutedio
da obra de Lesches do julgamento das armas Esse poeta latino certamente alonga seus
versos prioritariamente na defesa e acusaccedilatildeo dos heroacuteis em prol de demonstrarem sua virtude
e seu meacuterito Dois discursos satildeo alogandos um para cada personagem e compotildeem o cerne de
sua versatildeo do mito transformado quanto ao objeto temaacutetico da Pequena Iliacuteada e imitado
quanto ao estilo retoacuterico do texto que temos de Antiacutesthenes (cf p 49) A transformaccedilatildeo
quantitativa de Soacutefocles quanto agrave obra do ciclo eacutepico poderia ser designada como ampliaccedilatildeo
apesar de tanto acerca da Pequena Iliacuteada quanto da obra Julgamento das Armas de Eacutesquilo
natildeo termos muitas informaccedilotildees para precisarmos de onde proviria a maior influecircncia
Tendo disposto o essencial acerca do recurso aumento passemos agora a contemplar o
tipo reduccedilatildeo que como podemos inferir pode ser descrito como um processo inverso agravequele
exposto acima Seu primeiro tipo a excisatildeo corresponde a uma supressatildeo de um conteuacutedo
presente no hipotexto o qual natildeo figura no hipertexto semelhante inversamente ao processo
de extensatildeo Com efeito o corte deve proceder sobre um episoacutedio tematicamente
significativo No entanto como jaacute explicamos Genette se deteacutem sobre exemplos nos quais a
relaccedilatildeo transtextual quantitativa eacute maciccedila ou seja naquela em que toda uma obra deriva de
toda uma outra O autor dispotildee obras que receberam uma omissatildeo de partes inclusive para
fins paradidaacuteticos como por exemplo ediccedilotildees de Robinson Crusoeacute recortadas e elaboradas
para crianccedilas (2010 p 78) Lembremos que esse natildeo eacute o nosso intuito especialmente porque
natildeo nos serve para a anaacutelise e por isso elencaremos exemplos cuja transformaccedilatildeo eacute
fragmentada
No Livro XIII da obra de Oviacutedio podemos contemplar esse tipo de reduccedilatildeo Ao
compararmos o episoacutedio em questatildeo com o da Pequena Iliacuteada percebemos que entre a
disputa pelas armas e o suiciacutedio do heroacutei estaacute completamente ausente o episoacutedio da loucura
que move o heroacutei agrave matanccedila segundo o que estudamos no capiacutetulo anterior No Livro em
153
questatildeo de Metamorfoses figuram os discursos dos dois contedores que ocupam a maior
parte do episoacutedio e o suiciacutedio do Telamocircnio que compreende uma pequena parte Logo essa
versatildeo dispensa completamente o ataque do personagem aos animais como um evento
imprescindiacutevel para a disposiccedilatildeo causal que leva o heroacutei agrave morte
Outro caso que parece relevante ser mencionado ainda no episoacutedio de Oviacutedio eacute em
especial a defesa de Aacutejax junto agraves naus presente no discurso do heroacutei sobre seus meacuteritos e
que retoma eventos narrados por Homero na Iliacuteada Na versatildeo latina nenhuma das mortes
causadas pelo Telamocircnio satildeo relatadas acerca desse evento mesmo as que seguem a sua
vitoacuteria sobre Heitor no Canto XIV como a de Iacutertio (v 511) ou a de Arqueacuteloco filho de
Antenor (v 461-464) com a qual inclusive o Telamocircnio provoca as tropas troianas Tambeacutem
quando da defesa do corpo de Paacutetrocles no Canto XVII o chefe de Salamina eacute responsaacutevel
pela morte de Hipoacutetoo (v 291-299) e pela de Forco (v 309-315) Tais accedilotildees satildeo pontos
culminantes de seus atos em prol dos gregos inseridos sobretudo naqueles episoacutedios aos
quais muitos estudiosos recorrem para delinear uma iacutendole e uma caracterizaccedilatildeo do heroacutei em
questatildeo Essa omissatildeo nos parece relevante para o episoacutedio de Oviacutedio pois diferentemente
Ulisses em seu discurso enumera vaacuterios heroacuteis mortos pelas suas armas (cf p 107)
Do ponto de vista dimensional e quantitativo essa amputaccedilatildeo temaacutetica ou de conteuacutedo
eacute nomeada de excisatildeo Nos dois casos que elencamos esse procedimento aparenta ser
evidente uma vez que tais eventos satildeo significativos para o eixo semacircntico da Pequena Iliacuteada
e da Iliacuteada obras consideradas como hipotextos matrizes desses dois episoacutedios referidos na
obra Metamorfoses Com efeito como veremos melhor na seccedilatildeo seguinte essa reduccedilatildeo que
suprime uma parte tematicamente significativa eacute essencial para construccedilatildeo do sentido dessa
versatildeo latina do mito pois natildeo sendo meramente formal esse recurso confere a essa
transformaccedilatildeo quantitativa o status de alteraccedilatildeo complexa
O uacuteltimo caso de transformaccedilatildeo quantitativa a ser apresentado eacute um tipo de reduccedilatildeo
nomeado de condensaccedilatildeo Enquanto a concisatildeo reduz seu hipotexto em um niacutevel da
microestrutura estiliacutestica a condensaccedilatildeo o faz em um niacutevel de estrutura de conjunto Tal
procedimento parece ocorrer no sentido de reduzir o hipotexto ou no nosso caso uma de suas
partes significativas para o hipertexto retirando os detalhes que lhe datildeo corpo a ponto de
limitaacute-lo agrave sua significaccedilatildeo mais geral e superficial (2010 p 89) para noacutes algumas vezes
simboacutelica Genette em sua explicaccedilatildeo estende-se particularmente devido aos seus objetivos
ndash a observaccedilatildeo de uma hipertextualidade maciccedila ndash sobre o uso metaliteraacuterio desse recurso
recaindo em definiccedilotildees de resumo suacutemula sinopse digest etc de obras literaacuterias
154
Contrariamente noacutes que estamos tentando configurar tal procedimento tanto como
um procedimento mais fragmentado quanto como um procedimento hipertextual presente em
obras literaacuterias estendemos seu sentido a um recurso inversamente mais ou menos semelhante
ao da ampliaccedilatildeo em seu teor e fins literaacuterios Dessa forma teriacuteamos no hipertexto seccedilotildees que
de alguma maneira correspondem a uma siacutentese de passagens de um ou mais hipotextos uma
vez que esse tipo de processo serve para situar muitas vezes a carga de influecircncia do texto
matriz no texto derivado que com isso retoma cenaacuterios ambientes valores etc a partir dos
motivos temaacuteticos tomados emprestados por meio dessas transformaccedilotildees quantitativas Com
efeito para a literatura claacutessica isso eacute extremamente pertinente poreacutem dificultoso no
estabelecimento de um hipotexto uma vez que os mitos retratados fazem parte de uma longa
tradiccedilatildeo na qual tais lendas compotildeem o imaginaacuterio da cultura greco-latina e cujos
personagens jaacute possuem um certo modelo de caracterizaccedilatildeo No entanto podemos ainda fazer
algumas inferecircncias a partir das obras que chegaram ao nosso tempo em especial por
sabermos da reconhecida influecircncia de determinados autores os quais figuram o aacutepice da
literatura da Antiguidade como eacute o caso de Homero e dos tragedioacutegrafos por exemplo
Dentro desse caso podemos citar dois exemplos semelhantes o discurso de Teucro no
ecircxodo da peccedila de Soacutefocles em defesa do irmatildeo (Aias v 1266-1287) e a exposiccedilatildeo de Aacutejax
acerca de suas faccedilanhas (Metamorfoses XII v 82-94) Apesar de algumas diferenccedilas
sobretudo de fins semacircnticos ambos os textos fazem uma siacutentese da Iliacuteada sob o enfoque
dos eventos nos quais Aacutejax se sobressai como guerreiro Tal focalizaccedilatildeo evidentemente se
deteacutem sobre os Cantos VII XIII XIV e XV que retratam seu combate singular com Heitor e
as lutas em torno das naus gregas Essa reduccedilatildeo como vimos anteriormente prescinde dos
detalhes e logo das descriccedilotildees homeacutericas sobre os embates do heroacutei centrando-se assim
sobre sua significaccedilatildeo maior mais geneacuterica o valor guerreiro do personagem Ao nosso
entender esse resumo seletivo de uma parte da eacutepica homeacuterica inserida nesses hipertextos
figura uma relaccedilatildeo de hipertextualidade uma vez que diferentemente da intertextualidade a
relaccedilatildeo estabelecida entre Soacutefocles e Oviacutedio quanto a Homero natildeo serve meramente para a
compreensatildeo plena da passagem dos autores claacutessicos mas especialmente porque essa
referecircncia transforma o significado de suas obras servindo para a caracterizaccedilatildeo do
Telamocircnio da qual se revelam os princiacutepios que movem as accedilotildees do personagem no
desenvolvimento da trama fundamentais para o entendimento da composiccedilatildeo da trama Tal
reduccedilatildeo em questatildeo provecirc a obra de elementos significativos para isso em especial porque
podemos reconhecer nela recursos da caracterizaccedilatildeo indireta
155
Outro caso expressivo desse tipo de teacutecnica consta no fim do episoacutedio da dispusta
pelas armas da versatildeo de Oviacutedio O resultado do julgamento dos chefes e o suiciacutedio do heroacutei
satildeo apresentados sinteticamente nos versos 382-393 Com efeito essa passagem eacute utilizada
como desfecho da cena mas nela reconhecemos a retomada de um tema jaacute trabalhado por
Lesches de Mitilene por Eacutesquilo e por Soacutefocles Se em relaccedilatildeo a Homero estes trecircs
ampliaram esses episoacutedios ateacute alcanccedilarem extensotildees variadas Oviacutedio em relaccedilatildeo a eles teria
reduzido a pouco mais de dez versos Devido agraves poucas informaccedilotildees que temos da obra de
Lesches e de Eacutesquilo sobre este assunto natildeo haacute como mensurar apropriadamente a relaccedilatildeo de
hipertextualidade entre estes e o autor latino Contudo ao menos podemos deduzir disso uma
reduccedilatildeo quantitativa do episoacutedio no sentido de resumi-lo agrave sua significaccedilatildeo mais geral a uma
morte funesta Certamente o estudo de uma transformaccedilatildeo mais complexa do texto derivado
acarreta uma comparaccedilatildeo entre o episoacutedio do Livro XIII de Metamorfoses com a obra de
Soacutefocles uma vez que detemos esse hipotexto em condiccedilotildees apropriadas para tal anaacutelise
Esse tipo reduccedilatildeo nomeado de condensaccedilatildeo pelos motivos apresentados acima potildee
fim a nossa disposiccedilatildeo acerca das transformaccedilotildees quantitativas Passemos para as
pragmaacuteticas Tal transformaccedilatildeo eacute responsaacutevel por modificar o curso das accedilotildees do hipertexto e
seu suporte instrumental Essas modificaccedilotildees podem ser mais brandas ou mais graves poreacutem
devemos entendecirc-las dentro do eixo semacircntico do texto derivado pois o autor natildeo recorre a
tais recursos sem uma razatildeo ou objetivos apropriados (1982 p 442) Dessa forma
correspondem a um elemento de modificaccedilatildeo acima de tudo semacircntica Destas abordaremos
as nomeadas transmotivaccedilatildeo (transmotivation) e tranvalorizaccedilatildeo (transvalorisation)
A primeira trata da modificaccedilatildeo das causas que movem determinados eventos no texto
derivado em relaccedilatildeo agraves suas versotildees anteriores Esta pode ocorrer segundo trecircs subtipos ou
aspectos O primeiro eacute de tipo positivo a motivaccedilatildeo (motivation) ou seja trata da introduccedilatildeo
de uma causa um motivo que o hipotexo natildeo aparentava ter ou indicar seja do ponto de vista
pragmaacutetico ou psiacutequico pois a origem de uma determinada accedilatildeo ou seja o impulso para
realizaacute-la pode ser tanto um fato um evento ou uma determinada disposiccedilatildeo emocional
(1982 p 457) Esse eacute o seu modelo mais simples mas outros podem ser daiacute desdobrados
como o caso de uma motivaccedilatildeo aumentada e amplificada Tal fato pode ocorrer devido agrave
complexidade de uma determinada obra quanto agrave rede des causas que movem um determinado
evento ou personagem sobretudo se considerarmos o modelo aristoteacutelico de accedilatildeo para qual a
causalidade eacute essencial (Poeacutetica VIII 1451a 31-35) Isso pode ser facilmente observado em
Aias em que o seu protagonista tem como um dos motivos para a sua morte a vitoacuteria do
adversaacuterio Odisseu sobre ele mesmo na disputa pelas armas de Aquiles Certamente esse
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motivo estaacute presente na Odisseia (XI v 543-551) e tambeacutem ampliado estaacute na Pequena
Iliacuteada (WEST 2003 p 121) contudo um novo elemento adensa a motivaccedilatildeo desta uacuteltima
obra a loucura apesar de natildeo sabermos precisamente o teor dessa transformaccedilatildeo semacircntica
Essa motivaccedilatildeo eacute novamente ampliada na versatildeo de Soacutefocles uma vez que aleacutem da vitoacuteria do
adversaacuterio e da loucura apresenta-se a ideia de que ele mesmo sofreu uma grave desonra em
seu valor guerreiro duas vezes uma quando lhe foi negada a honraria devida as armas de
Aquiles e outra quando ataca animais imbeles pensando estar se vingando Essa concepccedilatildeo
de desonra e ultraje instrumentalizada a partir desses dois episoacutedios citados acima age como
a motivaccedilatildeo no acircmbito psicoloacutegico que acarreta seu estado iracundo a partir do qual executa
vaacuterias accedilotildees desmedidas responsaacuteveis pela sua ruiacutena e pelo seu suiciacutedio No entanto
reconhecemos que essa desonra tem como base uma caracteriacutestica crucial o orgulho do heroacutei
por sua virtude beacutelica Essa caracterizaccedilatildeo parece de alguma forma inserida tanto na Iliacuteada
quando o heroacutei provoca seus oponentes comparando seus feitos ao dos inimigos (XIV v 470-
475) embora o verbo gloriar-se (εὔχομαι) esteja propriamente aplicado agraves provocaccedilotildees dos
troianos (εὐξαμένοιο v 458 v 486) quanto sobretudo na Odisseia por meio de vocaacutebulo
sugestivo que caracteriza o heroacutei ldquoiacutempetordquo ou ldquoorgulho virilrdquo (ἀγήνορα θυμόν XI v 562)
Dessa forma tal transformaccedilatildeo eacute coerente com o novo eixo semacircntico do hipertexto e acima
de tudo mesmo ao se afastar da tradiccedilatildeo arcaica em termos de objetivos semacircnticos essa
mudanccedila ainda retoma alguns dos seus elementos impliacutecitos e potenciais
O segundo tipo a desmotivaccedilatildeo (deacutemotivation) de ordem negativa consiste em
suprimir ou elidir uma motivaccedilatildeo ou causa original (Ibidem p 458) ou por vezes minimizaacute-
la Uma das motivaccedilotildees importantes para a causalidade da obra de Soacutefocles figura fora do
episoacutedio da peccedila ou seja natildeo eacute encenada mas estaacute nela presente em analepse ou seja em
uma narrativa de um personagem Trata-se do motivo pelo qual os gregos atacam Troia o
rapto de Helena Com efeito isso configura um evento anterior cronologicamente aos limites
da trageacutedia mas sabendo-se que o tempo presente ainda se refere agrave guerra e que o proacuteprio
texto reforccedila tais premissas com analepses a sua supressatildeo ou elisatildeo causa profundas
modificaccedilotildees semacircnticas A Iliacuteada por exemplo fala claramente do rapto contudo a esse
evento alguns elementos satildeo acrescentados a ideia da honra de Menelau (τιμὴν Μενελάῳ I
v 159) a de uma lei de hospitalidade (ξεινοδόκον III v 354) e mais importante para essa
explanaccedilatildeo a de soberania exercida por Agamecircmnon uma vez que ele eacute o chefe dos heroacuteis
(ἄναξ ἀνδρῶν I v 7) o mais poderoso (φέρτερος I v 182 v 281) pois foi Zeus que lhe
deu essa gloacuteria (Ζευς χῦδος ἔδωκεν I v 279) fazendo os outros chefes se submeterem a ele e
o sigam contra Troia (I v 149-160) Decerto essa rede de motivos age em conjunto com o
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rapto pois o chefe dos heroacuteis eacute movido pela a desonra familiar e os reis pela submissatildeo
agravequele ou todos pelo pudor religioso que os impele a punir os troianos que receberam o autor
de uma falta grave contra os deuses Soacutefocles transforma essas motivaccedilotildees eacutepicas suprimindo
por exemplo a origem divina da soberania do Atrida a impiedade de Paacuteris e dos troianos
elidindo do ataque a Troia sobretudo o motivo primeiro o rapto de Helena pois a questatildeo
recai prioritariamente sobre juramentos os quais os tragedioacutegrafos da Atenas Claacutessica
frequentemente ligam a Tiacutendaro pai de Helena quando da escolha do marido de sua filha (v
1111-1114) Entendemos que essa desmotivaccedilatildeo ocorra mesmo que apenas na perspectiva de
Aacutejax e de seu irmatildeo ou seja a partir de uma transformaccedilatildeo de teor ao menos psicoloacutegico Tal
supressatildeo eacute significativa pois tambeacutem serve para embasar a iacutendole do protagonista o qual
natildeo se submete a Agamecircmnon exatamente por natildeo reconhecer neste uma chefia Assim por
acreditar ser autocircnomo ou seja chefe de si acrescidas outras motivaccedilotildees o Telamida eacute
movido a suicidar-se
Certamente esse procedimento de retirar um elemento da causalidade interna do
hipotexto pode fazer um outro eclodir em seu lugar uma vez que natildeo haacute a ideia de
causalidade sem que necessariamente exista a noccedilatildeo de accedilatildeo e reaccedilatildeo de causa e efeito Tal
resultado configura o terceiro tipo a transmotivaccedilatildeo (transmotivation) homocircnima do
procedimento geral Essa transformaccedilatildeo eacute vista como um processo de substituiccedilatildeo na qual
operam uma desmotivaccedilatildeo somada a uma (re)motivaccedilatildeo Esse caso em questatildeo segundos as
premissas de Genette natildeo pode suceder por um procedimento duplo de desmotivaccedilatildeo e
motivaccedilatildeo dos tipos de minimizaccedilatildeo e de amplificaccedilatildeo de causa mas realmente pela
supressatildeo e adiccedilatildeo massivas das motivaccedilotildees original e nova (Ibidem p 465) O exemplo
citado acima pode servir ateacute certo ponto pois haacute mesmo depois da remoccedilatildeo de alguns
motivos a presenccedila acessoacuteria do rapto de Helena e adiccedilatildeo de um novo elemento o
juramento que jaacute estaacute presente em obras do ciclo eacutepico como nos Cantos Ciacuteprios (WEST
2003 p 71) Contudo o motivo parece passar de uma questatildeo religiosa ndash a hospitalidade ndash e
social ndash a honra de Menelau ndash para um moral e eacutetica ndash a confianccedila na palavra dada ndash
relevante sobretudo porque os ideais do protagonista da peccedila o fazem reconhecer no mundo
valores estaacuteveis tal como a amizade e o juramento os quais desabam diante dos eventos
presentes na trageacutedia Como o personagem mesmo diz ldquoo terriacutevel juramento eacute condenadordquo
(ἁλίσκεται χὠ δεινὸς ὅρκος v 649-650) Com efeito por ser complexa a estruturaccedilatildeo da
transmotivaccedilatildeo e tambeacutem por natildeo ter sido observada no propoacutesito primeiro de nosso estudo
ou seja na relaccedilatildeo de hipertextualidade entre o Livro XIII de Metamorfoses e a obra da qual
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algumas de suas passagens derivam Aias natildeo nos deteremos em maiores explicaccedilotildees
Passemos para outro tipo de alteraccedilotildees pragmaacuteticas a transvalorizaccedilatildeo
Esse segundo processo de transformaccedilatildeo pragmaacutetica tem como base qualquer
operaccedilatildeo de natureza axioloacutegica ou seja de valor a qual de alguma maneira seja atribuiacuteda a
uma accedilatildeo ou conjunto de accedilotildees que caracterizam os personagens Tal procedimento pode ser
concebido a partir dos trecircs aspectos semelhantes aos mencionados na transmotivaccedilatildeo um
positivo a valorizaccedilatildeo (valorisation) um negativo a desvalorizaccedilatildeo (deacutevalorisation) e o
duplo movimento da substituiccedilatildeo a transvalorizaccedilatildeo (transvalorisation) contudo haacute nesta
uacuteltima uma noccedilatildeo mais complexa pois eacute tomada em um sentido mais forte da operaccedilatildeo de um
duplo movimento de valorizaccedilatildeo e de desvalorizaccedilatildeo (GENETTE 1982 p 483)
O primeiro subtipo corresponde ao processo de incrementar um personagem atraveacutes
de uma modificaccedilatildeo seja tambeacutem pragmaacutetica ou psicoloacutegica com um papel mais
significativo ou mais atrativo para o eixo semacircntico do hipertexto em relaccedilatildeo ao seu sistema
de valores (Ibidem p 483) Segundo o estudioso francecircs esse recurso eacute tanto o ato de
intensificar traccedilos no personagem presentes nos valores que atuam no hipotexto quanto o ato
de promover personagens secundaacuterios ignorados ou depreciados pela trama
Contudo haacute de se entender que a valorizaccedilatildeo consiste natildeo em perceber o grau de
participaccedilatildeo de um personagem na accedilatildeo da obra mas o investimento em sua caracterizaccedilatildeo a
qual depende do esquema axioloacutegico estabelecido uma vez que essa estruturaccedilatildeo eacute diferente
se consideramos a eacutepica a trageacutedia ou o mesmo o romance O texto eacutepico por exemplo
possui frequentemente um padratildeo homogecircneo de valores e que eacute sobretudo aristocraacutetico e
guerreiro Isso faz seus personagens de certa grandeza heroica confrontarem-se em batalhas
ou combates singulares nos quais natildeo haacute um real conflito de valores particularmente porque
eles se defrontam segundo os mesmos princiacutepios o mesmo credo E a partir desses
norteadores axioloacutegicos uns satildeo melhores e outros piores A trageacutedia jaacute opera diferentemente
pois como jaacute vimos natildeo soacute confronta valores sobretudo passados e presentes como tambeacutem
reveste seus personagens mais significativamente segundo as premissas de Aristoacuteteles de
uma posiccedilatildeo intermediaacuteria (Poeacutetica 1453a 7-12) ou seja de alguma forma retirando-lhes
sua grandeza heroica e lhes incutindo um certo grau de humanizaccedilatildeo O romance continua e
desenvolve tal procedimento sobretudo porque jaacute provecirc suas figuras de uma tessitura mais
profundamente humana em que se observam recorrentemente caracteriacutesticas como egoiacutesmo
ingenuidade covardice etc ou seja este gecircnero apresenta um outro sistema axioloacutegico o qual
alicerccedila um espaccedilo potencial para desenvolvimento de diferenciados de valores e de conflitos
Contudo isso deve ser visto como marcas dominantes as quais podem avanccedilar sobre os
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limites porosos que definem os gecircneros Portanto nada impede de reconhecermos ainda em
certo grau uma psicologia elaborada e uma vivacidade profundamente humana atribuiacutedas
normalmente aos textos do poacutes-romantismo nos textos eacutepicos por exemplo que estabelecem
alguma quebra nessa homogeneidade de valores especialmente porque discorremos sobre
esse assunto no primeiro capiacutetulo no qual vimos a profundidade de caracterizaccedilatildeo presente
nas obras homeacutericas
Esclarecida a natureza desses possiacuteveis sistemas de valor devemos entender que a
valorizaccedilatildeo eacute sobretudo desenvolver um personagem no eixo positivo do sistema apresentado
pelo hipertexto Segundo Genette isso pode ocorrer normalmente atraveacutes de duas noccedilotildees
uma primaacuteria (primaire) e outra secundaacuteria (secondaire) A primeira eacute definida natildeo pelo
mero investimento em uma proeminecircncia que o personagem em questatildeo jaacute detenha no texto
matriz mas pela elevaccedilatildeo de seu meacuterito e de seu valor simboacutelico (1982 p 491) A segunda
noccedilatildeo equivale a uma espeacutecie de reabilitaccedilatildeo das figuras que no hipotexto estatildeo inseridas no
eixo negativo dos valores dipostos ou devido a um papel menor a uma promoccedilatildeo daquelas
que estatildeo aqueacutem de uma caracterizaccedilatildeo que aponte quaisquer tendecircncias
A Eneida apresenta um exemplo claro do primeiro tipo de valorizaccedilatildeo Certamente
em se tratando de um eacutepica que retoma sobretudo Homero podemos reconhecer na obra um
sistema de valores semelhantes ao da Iliacuteada e da Odisseia de base guerreira e aristocraacutetica
Com efeito o personagem principal da obra de Viacutergilio Eneias eacute representado virtuoso tanto
na obra homeacuterica quanto na latina ou seja estaacute inserido no eixo positivo desse esquema
axioloacutegico Assim ele deteacutem os atributos proacuteprios de sua condiccedilatildeo e de sua grandeza heroica
Contudo acima do valor que lhe eacute conferido por Homero o poeta latino incrementa seus
inerentes meacuteritos e qualidades elevando-o acima dos heroacuteis gregos e o tornando siacutembolo
maacuteximo da gloacuteria de Roma Esse processo enaltece o personagem aleacutem dos limites do
hipotexto como se as obras matrizes natildeo tivessem exaltado o heroacutei de forma suficiente
Aplicada agrave obra de Soacutefocles a valorizaccedilatildeo secundaacuteria reside de modo especial na
personagem Tecmessa cativa de Aacutejax Na Iliacuteada nem ao menos um nome eacute mencionado agrave
sua cativa apesar de sabermos da existecircncia de uma no Canto I quando da ameaccedila de
Agamecircmnon em tomar as honrarias de Aquiles de Odisseu ou de Aacutejax No entanto em Aias
aleacutem de receber um nome e uma identidade essa personagem eacute valorizada em relaccedilatildeo a um
dos sistemas axioloacutegicos da peccedila a qual dispotildee a ideia de moderaccedilatildeo no eixo positivo e a de
excesso no eixo negativo Essa como vimos parece ser a diposiccedilatildeo mais evidente da obra agrave
qual se agregam outros sistemas a priori mais secundaacuterios Tecmessa em oposiccedilatildeo ao
protagonista e com o qual apresenta o conflito de valores estaacute imbuiacuteda de uma iacutendole cujas
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decorrentes accedilotildees demostram uma natureza comedida fazendo-a deter as virtudes essenciais
do eixo positivo dos valores da peccedila fundamentais para o seu objetivo semacircntico A liccedilatildeo
moral presente no proacutelogo proferida pela deusa Atena jaacute nos aponta a distinccedilatildeo qualitativa
do que eacute considerado bom e do que eacute mau Essa promoccedilatildeo a faz sair de uma posiccedilatildeo com
pouco significado e de nenhuma tendecircncia axioloacutegica e chegar a uma condiccedilatildeo mais
significante dentro do novo plano de valoraccedilatildeo estabelecido pelo hipertexto nesse caso na
trageacutedia Aias
A desvalorizaccedilatildeo eacute um movimento inverso de transformaccedilatildeo pragmaacutetica (Ibidem p
497) Apesar de natildeo nomear noccedilotildees primaacuteria e secundaacuteria o autor apresenta a possibilidade
tanto de se agravar no texto derivado o status axioloacutegico de um personagem jaacute presente no
eixo negativo da estrutura de valoraccedilatildeo do hipotexto (Ibidem p 498) quanto desenvolver
esse status ainda nesse mesmo eixo promovendo-o a essa condiccedilatildeo negativa ou retirando os
valores positivos do personagem presentes no hipotexto ou os desmistificando por meio de
transformaccedilotildees as quais confiram ao personagem um papel mais significativo no propoacutesito
semacircntico do hipertexto
Um exemplo do modelo de desvalorizaccedilatildeo eacute o de Ulisses na Eneida Tal personagem
eacute concebido nas epopeias homeacutericas pelo vieacutes da virtude especialmente a partir de um
atributo em particular sua inteligecircncia Essa caracteriacutestica eacute tatildeo reforccedilada que o heroacutei eacute
nomeado por meio de epiacutetetos a saber o muito inteligente polyacutemetis (πολύμητις) e o muito
artificioso polymeacutechanos (πολυμήχανος) que ressaltam tal valor tanto na Iliacuteada quanto na
Odisseia Contudo esse personagem sofre transformaccedilotildees que alteram completamente essa
sua inteligecircncia de algo positivo para algo negativo Uma vez que seu intelecto eacute engendrado
em accedilotildees cujos objetivos satildeo impiedosos e inescrupulosos tanto a iacutendole eacute modificada quanto
o sistema de valores sofre por algumas mutaccedilotildees mesmo em se tratando de uma eacutepica
hipertextual em que se esperaria uma homogeneidade axioloacutegica A nova configuraccedilatildeo de
Virgiacutelio permite que Ulisses tenha seu status rebaixado fazendo inclusive da vitoacuteria dos
gregos sobre os troianos menos ou totalmente ingloacuteria O heroacutei de Iacutetaca se torna na obra latina
um expoente natildeo dos aspectos positivos do eixo axioloacutegico da obra mas dos negativos pois
na perspectiva da Eneida ele eacute nomeado no Livro VI pela sua inteligecircncia perversa de
Eoacutelida estimulador de crimes (hortator scelerum Aeolides v 529) que ocupa todo um
hemistiacutequio heftemiacutemere tal qual um novo epiacuteteto Essa desmistificaccedilatildeo ou rebaixamento no
caraacuteter do personagem eacute claramente um processo de desvalorizaccedilatildeo
Para finalizarmos a explanaccedilatildeo acerca das transformaccedilotildees pragmaacuteticas apresentamos
a transvalorizaccedilatildeo em seu sentido mais estrito Essa operaccedilatildeo consiste em um duplo
161
movimento aplicado a um ou mais personagens poreacutem corresponde ao ato de retiraacute-los de
um sistema e colocaacute-los em outro como remover Aacutejax de sua grandeza heroica e imbui-lo de
uma humanidade na qual outras caracteriacutesticas satildeo mais significativas (GENETTE 1982 p
514) como vimos acima Esse parece ser o processo frequente quando se deslocam
hipertextualmente figuras eacutepicas para trageacutedias ou romances modernos
Aleacutem disso esse procedimento pode ocorrer tanto na substituiccedilatildeo de valores de um
hipotexto que apresente um sistema homogecircneo como eacute geralmente o caso da eacutepica ou
heterogecircneo como eacute o caso da trageacutedia a qual frequentemente apresenta conflito de valores
O hipertexto pode assim apresentar um esquema axioloacutegico novo ou mesmo inverter um
apresentado pelo texto matriz valorizando o que era depreciado ou depreciando o que era
valorizado ou seja revertendo completamente os eixos positivo e negativo
Este uacuteltimo caso parece ser o da Eneida que apresenta as iacutendoles gregas e troianas
distorcidas da visatildeo homeacuterica Na Iliacuteada por exemplo o eixo positivo estava de alguma
forma aplicado mais preponderantemente aos gregos e o negativo aos troianos uma vez que
vemos por exemplo estes natildeo cumprirem um juramento ou Paris esconder-se atraacutes dos
exeacutercitos cenas presentes no Canto III Com exceccedilatildeo de Heitor sobretudo pois sua condiccedilatildeo
valorosa serve para atribuir mais valor guerreiro a Aquiles A visatildeo grega entatildeo tende a
glorificar os seus heroacuteis Na obra de Virgiacutelio aleacutem de existir o rebaixamento de muitos
personagens aqueus como por exemplo Ulisses Menelau e Helena no Livro VI haacute a
tendecircncia de glorificar os troianos em especial do ramo de Eneias o qual no mito romano
compotildee a origem lendaacuteria de Roma este que tambeacutem figura como o ancestral de Rocircmulo e
Remo A exceccedilatildeo eacute o Pelida pois seraacute paracircmetro para o valor de Turno nomeadamente
ldquooutro Aquilesrdquo (alius [] Achilles Eneida VI 89) inimigo que seraacute derrotado por Eneias
conferindo a este a excelecircncia guerreira Essa inversatildeo promovida por Virgiacutelio pode ser
observada como um tipo da transvalorizaccedilatildeo
Certamente tambeacutem podemos ver na obra de Soacutefocles uma transvalorizaccedilatildeo uma vez
que se desloca o sistema de grandeza heroica eacutepica para um em que os personagens sejam
mais semenlhates aos espectadores e em que seja possiacutevel se realizar a catarse aristoteacutelica
(Poeacutetica 1453a 1-5) Assim Aacutejax Menelau e Agamecircmnon efetivamente dividem um coacutedigo
moral antigo visto como negativo no sistema axioloacutegico da peccedila que retrata no caraacuteter desses
heroacuteis uma individualidade que nos chega com tons de egoiacutesmo (HUBBARD 2003 p 167)
ou quando por parte dos Atridas retrata um certo juacutebilo com relaccedilatildeo agrave morte do Telamocircnio
Apesar de vermos um protagonista que se vecirc maior que deuses e chefes um ato que configura
sua hyacutebris observamos ainda seu valor ser reabilitado uma vez que outrora realizou faccedilanhas
162
em prol dos gregos ou ainda reconhecemos o caraacuteter comedido de Odisseu o qual o permite
compreender ateacute os atos mais violentos do protagonista natildeo como maldade mas como uma
fatalidade pois o Laertida reconhece a natureza fraacutegil dos mortais Dessa forma essa
transformaccedilatildeo que humaniza em certo grau os personagens removendo-os de sua natureza
superior e heroica modifica o sistema de valores de modo mais significativo para o propoacutesito
semacircntico do hipertexto sendo assim mais um dos casos da transvalorizaccedilatildeo Certamente
poderiacuteamos dizer que dentro desse processo de transvalorizaccedilatildeo por um lado Aacutejax recebe
uma valorizaccedilatildeo uma vez que seu caraacuteter intermediaacuterio eacute reforccedilado cumprindo-se o
propoacutesito semacircntico dessa transformaccedilatildeo e por outro Agamecircmnon e Menelau passam por
um processo de desvalorizaccedilatildeo uma vez que satildeo apresentados mais plenamente por meio de
viacutecios do que de virtudes Contudo em relaccedilatildeo ao sistema de valor que opotildee excesso e
desmedida poderiacuteamos dizer que o Telamocircnio eacute desvalorizado e o Laertida eacute valorizado
Dessa forma tentamos explicar como mais de um esquema axioloacutegico ao nosso
entendimento pode atuar em uma mesma obra e como operam os processos de valorizaccedilatildeo
desvalorizaccedilatildeo e transvalorizaccedilatildeo dentro desses contextos
Vejamos agora a uacuteltima praacutetica hipertextual desta seccedilatildeo a transmodalizaccedilatildeo
(transmodalisation) Sua praacutetica eacute mais comum e mais oacutebvia no acircmbito literaacuterio e isso
significa dizer que sua apreensatildeo eacute mais faacutecil porque sobretudo remete a outras praacuteticas
recorrentes das teorias literaacuterias Essa praacutetica a priori envolve transformaccedilotildees puramente
formais a partir de uma operaccedilatildeo de modificaccedilatildeo do modo ou no modo de representaccedilatildeo do
hipotexto ou seja o narrativo ou o dramaacutetico (GENETTE 2003 p 119) que satildeo aqueles nos
quais o estudioso francecircs se deteacutem Assim isso natildeo representa em si uma mudanccedila de gecircnero
literaacuterio pois tanto a eacutepica quanto o romance se desenvolvem sob o mesmo modo por
exemplo Com efeito esse procedimento ocorre segundo dois tipos o intermodal
(intermodale) que corresponde agrave passagem de um modo a outro seja do narrativo ao
dramaacutetico a dramatizaccedilatildeo (dramatisation) ou o contraacuterio a narrativizaccedilatildeo (narrativisation)
e o intramodal (intramodale) que corresponde agraves variaccedilotildees ocorridas dentro do mesmo
modo
Essas transformaccedilotildees afetam as modalidades do discurso e consenquentemente natildeo
alteram apenas sua forma mas tambeacutem seu sentido Satildeo mensuraacuteveis atraveacutes de instacircncias
propostas por Genette das quais nos restringiremos agraves de tempo e de modo (em sentido mais
estrito) De acordo com tais acircmbitos podemos entender as possibilidades de alteraccedilotildees
intramodal e sobretudo intermodal
163
Na instacircncia temporal por exemplo o modo narrativo acomoda melhor a alteraccedilatildeo da
ordem temporal dos eventos da histoacuteria como a analepse ou a prolepse O mesmo acontece
com o ritmo da narraccedilatildeo mais lento ou mais raacutepido no qual sumaacuterios se tornam cenas ou
cenas sumaacuterios Descriccedilotildees podem se alongar ou se reduzir elipses e paralipses podem ser
introduzidas a qualquer tempo O modo dramaacutetico em se tratando especialmente da trageacutedia
antiga jaacute sente a necessidade de comprimir a duraccedilatildeo da accedilatildeo o mais proacuteximo da
representaccedilatildeo o que acarreta um funcionamento em tempo real ou seja a cena propriamente
isocrocircnica As elipses por exemplo satildeo introduzidas frequentemente entre os atos ou as
cenas Assim fundamental eacute a relaccedilatildeo daquilo que eacute encenado com o aquilo que eacute elidido ou
pressuposto pois estando fora da dramatizaccedilatildeo algum fato que eacute importante para o sentido
da peccedila geralmente exige se tornar presente por meio de uma alusatildeo ou narraccedilatildeo Descriccedilotildees
que evoluiacuteram para ser atribuiacutedas aos gestos e agrave indumentaacuteria ndash componentes da teatralidade
ou seja o teatro menos o texto ndash nos antigos ganham ainda espaccedilo nas falas dos personagens
mas de forma mais objetiva e sinteacutetica
A instacircncia de modo no sentido mais estrito conforme dissemos eacute responsaacutevel por
regular a informaccedilatildeo sobretudo no sentido de seleccedilatildeo de quantidade e qualidade ou seja o
quanto se conta de algo e segundo qual ponto de vista No modo narrativo sobressaem-se daiacute
as noccedilotildees de distacircncia e de perspectiva narrativa A primeira pode ser reduzida em certo grau
agraves concepccedilotildees de diegesis e mimesis Esta eacute um procedimento que reduz a distacircncia entre a
histoacuteria e o narrador privilegiando diaacutelogos por exemplo na tentativa de retirar os sinais da
presenccedila de um mediador inclusive dramatizando os eventos da histoacuteria Aquela eacute um
processo inverso afastando o mediador de seu relato Esses recursos permitem ao modo
narrativo uma variaccedilatildeo potencialmente mais abundante do que o dramaacutetico Contudo este
uacuteltimo modo quanto ao teatro antigo apesar de agir segundo a mimesis ainda lhe eacute possiacutevel
reconhecer traccedilos de um mediador ora narrador ora comentador Esse papel eacute atribuiacutedo com
mais ou menos intensidade ao coro Quanto agrave noccedilatildeo de perspectiva ela recai sobre a
concepccedilatildeo de focalizaccedilatildeo ou seja o ponto de vista O modo narrativo pode adotar diferentes
focos desde um onisciente ao ponto de vista de um ou muacuteltiplos personagens e esse
procedimento certamente afeta as accedilotildees da histoacuteria uma vez que condiciona a quantidade de
eventos figuras espaccedilos etc envolvidos nela Em oposiccedilatildeo a isso o modo dramaacutetico tem
como uacutenico ponto de vista o do espectador No entanto a distribuiccedilatildeo dos discursos eacute
responsaacutevel pela transformaccedilatildeo da accedilatildeo seja privilegiando ou natildeo um determinado
personagem com mais falas uma vez que para o teatro antigo accedilatildeo eacute sobretudo falar discursar
e dialogar
164
Diante dessa exposiccedilatildeo podemos entender como em Aias houve um processo de
dramatizaccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave Pequena Iliacuteada a qual apresentava o episoacutedio do suiciacutedio do
Telamocircnio segundo outro modo de representaccedilatildeo Percebemos tambeacutem como o processo de
compressatildeo da accedilatildeo transforma a peccedila elidindo entre o proacutelogo e o paacuterodo o episoacutedio de
reconhecimento do heroacutei quando este percebe que matou animais e natildeo homens pois tal fato
natildeo eacute encenado mas relatado por Tecmessa ao coro em um processo de mediaccedilatildeo de
informaccedilatildeo que serve tanto para os guerreiros de Salamina quanto para os espectadores
Vejamos na seccedilatildeo seguinte como essas transformaccedilotildees transtextuais sobretudo
hipertextuais satildeo utilizadas por Oviacutedio para uma nova ressignificaccedilatildeo do episoacutedio que trata do
mito de Aacutejax
3 2 O EPISOacuteDIO TRANSTEXTUAL DE OVIacuteDIO
Nesta seccedilatildeo avaliaremos a obra de Soacutefocles em relaccedilatildeo ao seu caacuterater transtextual em
especial considerando possiacuteveis influecircncias oriundas de Soacutefocles e tambeacutem como jaacute
pontuamos procurando observar como a obra latina em questatildeo pode de alguma maneira
modificar a leitura da peccedila do autor grego Para isso utilizaremos sobretudo as conclusotildees
que retiramos das anaacutelises do capiacutetulo anterior Segundo a metodologia adotada
apresentaremos inicialmente disposiccedilotildees gerais seguidas de duas seccedilotildees uma para pontuar
transtextualidades significativas para a caracterizaccedilatildeo da virtude do heroacutei e outra para a da
ira que o acomete Comecemos pela transtextualidade e pelas suas transformaccedilotildees de caraacuteter
mais geral da obra de Oviacutedio e do episoacutedio em questatildeo
Com efeito jaacute reconhecemos que o caraacuteter polivalente dessa eacutepica de Oviacutedio eacute
evidente e que como o proacuteprio tiacutetulo sugere ela apresenta transformaccedilotildees expressivas em
relaccedilatildeo aos elementos mais tradicionais da tradiccedilatildeo da epopeia os quais tocam desde o
conteuacutedo ateacute a forma
Quanto ao conteuacutedo digamos assim eacute possiacutevel observar por exemplo que a obra
Metamorfoses desconstroacutei a grandeza heroica em favor de uma maior humanizaccedilatildeo dos
personagens com o propoacutesito de inserir um teor mais liacuterico e traacutegico agrave caracterizaccedilatildeo dos
heroacuteis de modo semelhante ao que fazem os tragedioacutegrafos gregos Isso em si promove uma
transvalorizaccedilatildeo no sentido estrito da palavra Por um lado em relaccedilatildeo ao proacuteprio gecircnero
eacutepico pois lhe retira a natural homogeneidade axioloacutegica desse modelo Por outro em relaccedilatildeo
agraves obras que descrevem o episoacutedio da morte de Aacutejax em especial Aias ou Odisseia uma vez
165
que se ressignificam seus conteuacutedos em um outro sistema de valor mais importante para o seu
eixo semacircntico Eacute importante ressaltar que em relaccedilatildeo agraves obras de Eacutesquilo de Lesches e
tantos outros as quais tambeacutem retratam o mito do heroacutei de Salamina natildeo haacute como avaliar a
obra latina transtextualmente uma vez que nos falta o texto para inferir qualquer sentido mais
profundo Por isso sempre pontuamos e pontuaremos as obras de Homero e Soacutefocles Com
efeito esse tratamento de Oviacutedio aos personagens em prol de um caraacuteter mais humano eacute
visiacutevel particularmente quando observamos os personagens mais expressivos representantes
maacuteximos dos valores aristocraacuteticos das obras homeacutericas
Um primeiro exemplo desse procedimento eacute o proacuteprio Agamecircmnon que na versatildeo de
Oviacutedio recebe um tratamento de caracterizaccedilatildeo mais humano e menos heroico a partir de uma
motivaccedilatildeo proacutepria da obra Metamorfoses aparentemente natildeo presente na tradiccedilatildeo arcaica e
claacutessica grega O julgamento das armas tanto na Odisseia quanto na Pequena Iliacuteada eacute um
episoacutedio que retrata os teucros ou seja os troianos como os juiacutezes da questatildeo juntamente
com Atena Contudo natildeo haacute nelas o que os tragedioacutegrafos pareceram preferir uma disputa
entre os dois heroacuteis a partir de um debate julgado pelos chefes gregos natildeo mais com a
participaccedilatildeo dos troianos Em Aias de Soacutefocles se menciona o episoacutedio da disputa como
decidida por meio de votos algo com o qual o seu protagonista natildeo concorda Certamente a
natureza do julgamento nesta uacuteltima obra insere-se dentro do campo que pertence ao eixo
dos valores positivos propostos pela peccedila pois representam um modelo proacuteprio da Atenas
Claacutessica em oposiccedilatildeo aos valores do eixo negativo que retratam princiacutepios arcaicos Nessa
obra natildeo haacute um motivo expliacutecito para a escolha de uma deliberaccedilatildeo por votos a natildeo ser pelo
objetivo semacircntico do texto que trata como naturais os elementos do periacuteodo claacutessico e como
baacuterbaros aqueles do arcaico No entanto Oviacutedio apresenta uma justificativa expliacutecita que
realccedila a iacutendole de Agamecircmnon de maneira a deslocaacute-lo de sua grandeza heroica O motivo da
predileccedilatildeo por um julgamento pelos chefes eacute para que o Atrida retire de si o ocircnus (ocircnus XII
v 626) e a inveja (inuidam XII v 626) Tal procedimento representa uma motivaccedilatildeo para o
eposoacutedio seja como um elemento novo ou reforccedilado pois impulsiona as accedilotildees do
personagem E para que sua compreensatildeo seja plena devemos reconhecer aiacute uma
intertextualidade com Iliacuteada uma vez que se alude agraves consequecircncias da proacutepria decisatildeo do
chefe grego em tomar o precircmio de Aquiles as grandes adversidades por que a tropa passou
com a ausecircncia do melhor dos aqueus Assim quando o proacuteprio texto sugere inveja disso
entendemos que o Atrida natildeo quer repetir o ato de outrora contra o Pelida tomando para si o
precircmio de outro e quando sugere ocircnus disso inferimos que o personagem sendo chefe natildeo
quer se tornar responsaacutevel novamente por consequecircncias desastrosas ao seu exeacutercito Dessa
166
forma o texto insinua que o chefe foge aos seus encargos parecendo-nos que tal incumbecircncia
eacute menos gloriosa e potencialmente mais onerosa aleacutem de nos incutir uma ideia de
aprendizado e evoluccedilatildeo do proacuteprio chefe uma vez que na Iliacuteada ele se fazia valer pela sua
posiccedilatildeo a qualquer custo Essa motivaccedilatildeo serve em especial para a transvalorizaccedilatildeo da obra
do autor latino
Um segundo caso significativo eacute o de Aquiles uma vez que na Iliacuteada vaacuterios
estudiosos reconhecem o modelo de excelecircncia grega aristocraacutetica e arcaica atribuiacuteda a este
heroacutei a exemplo de Werner Jaeger (2003) A partir desse heroacutei traccedila-se um ideal de bela
morte cujas premissas satildeo geralmente a de um guerreiro que tendo realizado grandes feitos
que homologam sua honra morre jovem nas matildeos de um igual e com isso alcanccedila a gloacuteria
maacutexima Essas questotildees satildeo inclusive a base que sustenta o entendimento mais profundo da
fuacuteria do heroacutei a qual forma o argumento da epopeia homeacuterica Honra e pudor satildeo elementos
fundamentais no sistema de valores das epopeias homeacutericas Contudo essas condiccedilotildees
grandiosas satildeo descontruiacutedas por Oviacutedio especialmente em relaccedilatildeo agrave bela morte de tal heroacutei
No Livro XII da obra Metamorfoses o Pelida eacute retratado por um vieacutes mais traacutegico do que
eacutepico e por isso entendemos que o heroacutei alcanccedila um fim ingloacuterio sobretudo de forma
inesperada e isso significa dizer que haacute uma ruptura com a expectativa Eacute possiacutevel observar
que essa eacutepica latina desenvolve um Aquiles vencedor de muitos heroacuteis (tantorum uictor v
608) mas que ao fim encontra a morte por meio de um combate feminino (femineo []
Marte v 610) pois eacute vencido pelo covarde raptor da esposa grega (victus [] a timido
Graiae raptore maritae v 609) ou seja por Paacuteris Esse processo de desvalorizaccedilatildeo do
Priamida em questatildeo ou seja de caracterizaacute-lo como um personagem sem virtude sobretudo
masculina e logo beacutelica diminui de alguma forma o valor de Aquiles para o sentido do texto
latino Assim apesar de sua gloacuteria ser retratada como que percorresse todo o mundo (gloria
compleat orbem v 617) o jogo entre as palavras uictor e uictus ressaltam a antiacutetese disposta
no texto do tatildeo grande Aquiles (tam magno Aquille v 615) apoacutes cremado resta algo de
ignoto (nescioquid v 616) Isso nos parece insinuar que embora tal heroacutei seja realizador de
grandes feitos sua morte eacute pequena assim inferior e de certo modo ingloacuteria
Jaacute quanto agrave forma apesar de Metamorfoses apresentar uma estrutura proacutepria da
epopeia como versos em hexacircmetro dactiacutelico podemos observar na mesma pelo menos em
relaccedilatildeo ao episoacutedio de Aacutejax um procedimento mais mimeacutetico do que diegeacutetico Este uacuteltimo eacute
um fundamental elemento da eacutepica uma vez que esse gecircnero eacute concebido pelo modo
manifestadamente narrativo No entanto a obra de Oviacutedio compotildee o episoacutedio em questatildeo de
quase 400 versos atribuindo a aproximadamente 25 deles a narraccedilatildeo distanciada
167
propriamente dita Isso significa que o narrador reduz a distacircncia entre ele e a histoacuteria na
preponderante maioria desses versos representando-a significativamente de maneira mais
dramatizada
Se a cena de debate presente na disputa pelas armas de Aquiles eacute certamente oriunda
ou ao menos preferida dos tragedioacutegrafos Oviacutedio teria transformado tal evento pelo processo
nomeado por Genette de transmodalizaccedilatildeo do tipo intramodal ou seja mais precisamente o
processo de narrativizaccedilatildeo Ele transfere o conteuacutedo que eacute encenado para um narrado
fazendo as adaptaccedilotildees necessaacuterias dentro de seu texto Das peccedilas sobre esse julgamento
acredita-se que ao menos as de Eacutesquilo e de Astidama ambos gregos e as de Pacuvius e
Accius latinos do periacuteodo republicano teriam encenado o debate apesar de natildeo determos
informaccedilotildees suficientes sobre tais obras
Contudo apesar da narrativizaccedilatildeo o procedimento mimeacutetico de Oviacutedio ressalta no
episoacutesio elementos do drama a partir de aspectos de duas instacircncias intermodais Na de modo
em seu sentido mais estrito o narrador dramatiza a accedilatildeo apesar de natildeo haver em si uma
encenaccedilatildeo A preponderacircncia que o autor latino concede aos diaacutelogos e ao discurso direto dos
personagens emula expressivamente o modelo dramaacutetico em particular porque vemos um
narrador que retira os sinais de sua presenccedila e de sua mediaccedilatildeo da histoacuteria Assim os proacuteprios
personagens proferem seus discursos de defesa com uma miacutenima interferecircncia externa Na
instacircncia temporal emula-se tambeacutem a cena isocrocircnica proacutepria do teatro ou seja o
desenvolvimento da cena em tempo real A mudanccedila do ritmo narrativo eacute reduzida ao
maacuteximo permitindo-se ao leitor contemplar o debate tal qual poderia ter ocorrido e tal qual
verdadeiros debates ocorriam na eacutepoca sem siacutenteses sem elipses ou omissotildees por exemplo
que satildeo caracteriacutesticas da presenccedila de um narrador
Natildeo temos como mensurar a influecircncia das iacutenumeras obras anteriores agrave de Oviacutedio ou
mesmo aquela cuja presenccedila eacute mais significativa contudo mesmo natildeo havendo em Aias de
Soacutefocles a encenaccedilatildeo do debate poderemos ver ainda certa relaccedilatildeo transtextual expressiva em
alguns pontos os quais trataremos na seccedilatildeo seguinte
Ainda em relaccedilatildeo ao episoacutedio da disputa pelas armas de Aquiles podemos apresentar
algumas disposiccedilotildees relevantes Tal episoacutedio presente no Livro XIII de Metarmorfoses
apresenta-se como um debate no qual os contendores defendem sua virtude e seus meacuteritos
Nele se estabelece um conflito de valores no qual a virtude eacute vista de duas formas diferentes
a depender de quem discursa Aacutejax a delineia a partir de uma ideia de accedilatildeo em oposiccedilatildeo agrave
palavra O virtuoso seria entatildeo o homem bravo que guerreia Contrariamente a essa
definiccedilatildeo Ulisses a delineia a partir de uma ideia de disposiccedilatildeo corporal em oposiccedilatildeo agrave
168
mental ou seja a inteligecircncia prevalece sobre a forccedila e a bravura O heroacutei valoroso seria
entatildeo o prudente Os dois personagens apresentam suas causas segundo esses eixos
axioloacutegicos ou seja por meio paracircmetros diferentes os quais fundamentam o conflito de
valores
Com efeito parece-nos conforme afirmamos anteriormente que o narrador valoriza
mesmo que discretamente o eixo descrito pelo Telamocircnio inclusive talvez porque tal
parcialidade adense o caraacuteter traacutegico da morte Dessa forma o narrador distanciado da
histoacuteria faz questatildeo de nomear o chefe de Salamina de heroacutei muito forte ou valente
(fortissimus heros X v 207) ou bravo varatildeo (fortis uiri XIII v 383) e o Laertida de
eloquente (disertus XIII 383) inclusive ainda descrevendo este a priori a fingir lamento
quando discorre sobre a morte de Aquiles com o objetivo de comover os espectadores (XIII
v 132-133) Essa parcialidade natildeo eacute algo descabido sobretudo se considerarmos as eacutepicas
latinas produzidas durante o Seacuteculo de Augusto as quais figuram a guerra de Troia
Geralmente nestas a linhagem de Eneias eacute glorificada e a linhagem de muitos ilustres heroacuteis
gregos eacute desvalorizada a exemplo claro da Eneida cujas accedilotildees de Ulisses como
mencionamos rapidamente satildeo caracterizadas por um vieacutes negativo
Essa caracterizaccedilatildeo negativa do heroacutei de Iacutetaca natildeo eacute estranha nem ao mundo grego
pois Piacutendaro por exemplo em sua ode Nemeia VIII jaacute assim o descrevia O episoacutedio da
disputa aludido no epiniacutecio desse autor eacute disposto segundo essa perspectiva de Aacutejax
presente na obra latina estudada por noacutes De acordo com a versatildeo desse poeta liacuterico
ldquolevantaram a maior honraria para a aacutegil mentira pois os Dacircnaos favoreceram Odisseu em
votaccedilatildeo secretardquo (μέγιστον δ` αἰόλῳ ψεύδει γέρας ἀντέταται κρυφίαισι γὰρ ἐν ψάφοις
Ὀδυσσῆ Δαναοὶ θεράπευσαν v 25-26)) Assim baseado nessas tradiccedilotildees e em uma
vinculaccedilatildeo mais significativa para a obra de Oviacutedio eacute possiacutevel e tambeacutem pertinente observar
uma certa tendecircncia do narrador ainda que sutil em validar as palavras de Aacutejax ligando a
eloquecircncia e a inteligecircncia do heroacutei a um eixo negativo Dessa forma seus discursos nos
revelam um pouco de como eles se veem e como eles satildeo na praacutetica caracterizados apesar de
que o narrador ainda de alguma maneira atesta o eixo de valores do heroacutei menos eloquente
No entanto natildeo eacute coerente validar apenas um eixo positivo e um negativo do modo
comumente visto na eacutepica pois apesar de ambos os contendores estarem inseridos em um
tempo miacutetico de grandeza heroica e que se valham de uma linhagem divina em seus
discursos eles satildeo retratados na eacutepica de Oviacutedio natildeo como tal mas a partir de uma
transvalorizaccedilatildeo que lhes impotildee um caraacuteter mais estritamente humano e intermediaacuterio
Consequentemente dentro desse uacuteltimo sistema axioloacutegico haacute ainda a uma espeacutecie de
169
valorizaccedilatildeo do Telamocircnio pois ao se atribuiacuterem virtudes e viacutecios ao heroacutei tal disposiccedilatildeo
contribui para a configuraccedilatildeo intermediaacuteria do personagem Por um lado reconhece-se sua
excelecircncia guerreira mas por outro esta implica a superestima de sua virtude que se faz
visiacutevel na ira na soberba no despudor excessivos que se estabelecem nessa caracterizaccedilatildeo de
Aacutejax A partir desse ponto de vista um novo eixo positivo desse sitema de valor se
estabelece aquele no qual o caraacuteter intermediaacuterio se situa essencial para os propoacutesitos liacutericos
e traacutegicos de Oviacutedio
Consequentemente o sistema de valor que se impotildee ao menos ao episoacutedio da disputa
das armas deve levar em consideraccedilatildeo para o objetivo semacircntico da obra um esquema duplo
um sistema mais evidente e presente em toda a obra em que se valoriza a profundidade
humana dos personagens em detrimento de uma grandeza heroica e outro mais discreto e
mais restrito ao episoacutedio estudado em que se valoriza mais a valentia guerreira de Aacutejax em
detrimento de uma aparente eloquecircncia dolosa A compreensatildeo do episoacutedio parece residir
nesse duplo sistema complexo atraveacutes do qual noacutes apontaremos e mensuraremos as praacuteticas
transtextuais utilizadas por Oviacutedio
Como dissemos tais questotildees seratildeo consideradas do ponto de vista da caracterizaccedilatildeo
do heroacutei e por isso recorreremos agravequela divisatildeo dupla das noccedilotildees de virtude e de ira
desenvolvidas no episoacutedio Comecemos pelas transtextualidades que figuram a concepccedilatildeo de
virtude do heroacutei
3 2 1 A virtude transtextual do heroacutei
Nesta seccedilatildeo retomaremos o conjunto de ideias que tratam do heroacutei em relaccedilatildeo agrave
virtude defensiva agrave empaacutefia que se desdobra de um excesso de confianccedila de Aacutejax nessa
excelecircncia guerreira e por fim agrave oposiccedilatildeo entre accedilatildeo e palavra ndash sobretudo quanto agrave questatildeo
de confronto entre ato visto e ato sorrateiro Tentaremos pontuar os tipos de
transtextualidades presentes na composiccedilatildeo dos elementos da virtude do personagem
ressaltando as noccedilotildees significativas de suas transformaccedilotildees diante do texto de Oviacutedio
Iniciemos pelo valor defensivo de sua excelecircncia guerreira
A primeira questatildeo relevante para isso eacute o epiacuteteto do heroacutei Oviacutedio nomeia o heroacutei
ldquosenhor do escudo de sete dobrasrdquo (clipei dominus septemplicis v 2) Com efeito esse autor
latino transpotildee para a sua obra um dos elementos caracteriacutesticos do Telamocircnio dentro da
Iliacuteada o seu escudo Nessa obra de Homero aleacutem de o escudo ter a forma de uma torre
170
(σάκος ἠύτε πύργον VII v 219 XI v 485 XVII v 128) ele eacute feito de sete camadas de
couro (σάκος ἑπταβόειον VII v 222 XI v 545) Essa constituiccedilatildeo singular compotildee a
imagem de um heroacutei que a priori se sobressai em sua funccedilatildeo protetora e defensiva segundo o
que pudemos observar ainda no primeiro capiacutetulo (cf p 20) Na passagem em questatildeo haacute ao
menos dois tipos significativos de transtextualidade do poeta latino em relaccedilatildeo a Homero
O primeiro tipo corresponde a uma intertextualidade no sentido estrito mencionado
por Genette Esse tipo marca a presenccedila efetiva de um texto em outro e no caso em questatildeo
trata-se da composiccedilatildeo do escudo do heroacutei Acreditamos haver certa referecircncia literal nessa
intertextualidade em um sentido mais abragente a qual possamos nomear de plaacutegio ou seja
um empreacutestimo natildeo declarado mas aparente Certamente para os dias de hoje a referecircncia
literal seria impossiacutevel quando tratamos de obras de liacutenguas diferentes contudo ainda sim eacute
possiacutevel aproximar leacutexicos No entanto natildeo podemos mensurar como e o quanto essa
aproximaccedilatildeo lexical seria concebida na praacutetica de traduccedilatildeo dentro do contexto histoacuterico do
Seacuteculo de Augusto Efetivamente a referecircncia estritamente literal natildeo eacute o que Oviacutedio faz
pois apesar de retomar vocaacutebulos expressivos dessa caracterizaccedilatildeo do personagem haacute ainda
algumas modificaccedilotildees O sintagma por exemplo clipei dominus teria sido proveniente do
sintagma ldquoportador de escudordquo (φέρων σάκος Iliacuteada VII v 219 XI v 485 XVII v 128)
Tambeacutem eacute essa a origem do termo usado por Soacutefocles em sua obra σακεσφόρῳ (Aias v 19)
Contudo o nuacutecleo do termo latino eacute um substantivo e o do texto de Homero eacute um particiacutepio
presente Natildeo sabemos ateacute onde seria possiacutevel para Oviacutedio por exemplo o uso do verbo
latino fero ndash de mesma origem que o grego ndash segundo o modelo do seu hipotexto ou seja a
utilizaccedilatildeo tambeacutem de um particiacutepio presente Aleacutem disso reconhecemos que as noccedilotildees
semacircnticas do termo dominus em especial no contexto romano parecem ir aleacutem do
correspondente hipotextual grego no sentido de que se agregam outros e novos significados
para o hipertexto No mesmo caminho parece se apresentar o termo septemplicis em relaccedilatildeo
ao ldquode sete peles de boirdquo (ἑπταβόειον VII v 222 XI v 545) O primeiro termo latino
forma-se a partir do numeral e do verbo plico cujo significado eacute ldquodobrarrdquo O segundo o
grego eacute composto a partir do numeral e do substantivo βοῦς que significa ldquoboirdquo Por sentidos
estritos diferentes ambos convergem para o mesmo sentido geral a constituiccedilatildeo do escudo
Por estarmos inseridos em um contexto histoacuterico diferente do de Oviacutedio para o qual poderia
haver uma intertextualidade literal e pelos motivos citados acima noacutes preferimos nomear
essa intertextualidade de plaacutegio tomando as premissas de Genette de forma mais abrangente
e dentro dos propoacutesitos em particular das noccedilotildees de traduccedilatildeo contemporacircnea Dessa forma
essa relaccedilatildeo transtextual recupera de certa forma uma estrutura linguiacutestica grega ndash pois haacute
171
uma semelhanccedila entre os sintagmas latino e grego ndash e sobretudo a partir dela permite-se a
compreensatildeo plena da passagem do Livro XIII uma vez que esta necessita das inferecircncias
oriundas de uma leitura da epopeia homeacuterica sobretudo acerca do papel essencial do
Telamocircnio na defesa dos gregos
O segundo tipo corresponde a uma hipertextualidade no sentido de transformaccedilatildeo
complexa e indireta ou seja de imitaccedilatildeo que trata da retomada de um estilo e dos motivos
temaacuteticos que ele envolve Assim Oviacutedio retoma um uso homeacuterico particular dos epiacutetetos
aleacutem da forma comum vista em todo o gecircnero eacutepico pois a referecircncia ao texto grego eacute
elaborada no texto latino na forma de um epiacuteteto que precede um discurso direto enquanto na
Iliacuteada tal composiccedilatildeo material das armas do heroacutei Aacutejax natildeo eacute disposta sequer como epiacuteteto
Na epopeia homeacuterica por exemplo as formas epiteacuteticas atribuiacutedas a Aacutejax recaem
particularmente sobre o sintagma muralha dos Aqueus ou portador do escudo em forma de
torre Com efeito aleacutem de caracterizar o personagem pelo seu escudo o epiacuteteto latino tal qual
o modelo homeacuterico antecipa o discurso direto do personagem segundo as observaccedilotildees de
Rocha Pereira (1984 p 3-5) como jaacute contemplamos em capiacutetulos anteriores adequando-se
ao contexto da cena e contribuindo para a melhor caracterizaccedilatildeo do momento bem como do
Telamocircnio
Dessa forma o caraacuteter intertextual do epiacuteteto usado por Oviacutedio gera inferecircncias ao
texto homeacuterico que ressaltam no heroacutei uma valorizaccedilatildeo Essa referecircncia retoma os episoacutedios
nos quais Aacutejax se sobressaiu na Iliacuteada em especial figurando-se o escudo como um
componente essencial de sua imagem e aparecircncia guerreira Essa valorizaccedilatildeo eacute ainda dupla
pois por um lado confere virtudes ao personagem que se contrabalanccedilam com viacutecios como
veremos ser o caso da soberba inserindo-o positivamente no esquema de valor presente no
sistema axioloacutegico mais abrangente da obra e por outro infere atributos guerreiros positivos
para o esquema mais restrito do sistema
A transformaccedilatildeo hipertextual promovida pelo epiacuteteto conduz o discurso do
personagem a argumentos fundamentados na excelecircncia beacutelica em especial a um atributo
mais defensivo dessa virtude guerreira Eacute dessa forma que noacutes contemplamos a imitaccedilatildeo de
Oviacutedio em relaccedilatildeo a Homero Isso diz respeito ao uso especiacutefico do epiacuteteto com os propoacutesitos
antecipatoacuterios do conteuacutedo que lhe eacute posterior Esse emprego peculiar enfatiza um dos
argumentos mais importantes na proacutepria defesa e louvor do heroacutei pois o personagem em
questatildeo restringiraacute sobretudo suas faccedilanhas beacutelicas ao caraacuteter protetor no qual o escudo teraacute
uma grande participaccedilatildeo sendo inclusive apontado como prova maacutexima de suas palavras
uma vez que tal arma revela o seu desgaste pela proacutepria condiccedilatildeo em que se encontra
172
Certamente a referecircncia intertextual e a hipertextual estabelecidas pelo epiacuteteto
promovem uma ressignificaccedilatildeo da virtude do Telamocircnio dentro do eixo semacircntico do
episoacutedio Pois eacute especialmente atraveacutes da imagem simboacutelica do escudo e das accedilotildees nas quais
tal arma tem participaccedilatildeo que se salienta a capacidade de resistecircncia e de contenccedilatildeo ndash militar
ou emocional ndash essencial para a composiccedilatildeo traacutegica do desfecho da cena Claramente essas
relaccedilotildees transtextuais tecircm como hipotexto a Iliacuteada e natildeo ainda ao nosso ver a trageacutedia de
Soacutefocles
Contudo parece-nos que esse procedimento especiacutefico de Oviacutedio se assemelha ao
realizado por Soacutefocles mas para fins diferentes Como vimos no capiacutetulo anterior (cf p 76-
77) o tragedioacutegrafo grego utiliza duas vezes essa mesma caracterizaccedilatildeo que tem como base a
referecircncia ao escudo singular do personagem A primeira no proacutelogo na forma de um epiacuteteto
ldquoo portador de escudordquo (τῷ σακεσφόρῳ v 19) A segunda no primeiro episoacutedio descrevendo
a constituiccedilatildeo particular dessa arma ldquoescudo de sete peles de boirdquo (ἑπτάβοιον [] σάκος v
576) Essa composiccedilatildeo do escudo do heroacutei de vieacutes beacutelico na obra homeacuterica serve para o
procedimento de valorizaccedilatildeo na peccedila de Soacutefocles pois nesta trageacutedia essa arma simboliza
sobretudo a iacutendole arcaica e excessiva de Aacutejax Essa operaccedilatildeo eacute fundamental para o sistema
axioloacutegico de Aias pois transforma seu sentido Para a Iliacuteada essa caracterizaccedilatildeo valorizava
sua grandeza heroica mas para a peccedila em questatildeo a transformaccedilatildeo promovida pelo autor
impotildee que tal caracteriacutestica valorize seu caraacuteter intermediaacuterio Dessa forma natildeo eacute
impertinente ou invaacutelido reconhecer que Oviacutedio tenha utilizado uma transformaccedilatildeo
semelhante agrave de Soacutefocles ressignificando um traccedilo marcante do personagem para um novo
eixo semacircntico em especial porque faz tal operaccedilatildeo sobre o mesmo personagem e sobre a
mesma caracteriacutestica o escudo iacutempar do heroacutei Esse processo hipertextual em relaccedilatildeo a esses
dois autores aparenta ser entatildeo uma imitaccedilatildeo pois o poeta posterior usa o mesmo recurso de
forma tatildeo significativa para o seu episoacutedio quanto o do tragedioacutegrafo eacute para sua peccedila
sobretudo do ponto de vista simboacutelico Esse recurso do poeta grego se afigura validamente
como um traccedilo estiliacutestico o qual eacute retomado por Oviacutedio Este autor entatildeo amplifica tal estilo
no momento em que faz o epiacuteteto tambeacutem usado no hipotexto ser usado ainda ao modelo
homeacuterico ou seja como uma foacutermula que precede o discurso direto antecipando seu
conteuacutedo e dessa forma indo aleacutem de uma marca caracterizante da iacutendole do heroacutei
A segunda questatildeo ainda relevante para essa qualidade defensiva segue o mesmo
procedimento imitativo Ela corresponde a uma condensaccedilatildeo estabelecida por Oviacutedio ou seja
uma transformaccedilatildeo redutora de um texto matriz em um tipo de siacutentese autocircnoma mantendo-
se ainda uma significaccedilatildeo mais geral do hipotexto Essa referecircncia transtextual nos parece
173
estabelecer uma relaccedilatildeo tanto com a Iliacuteada quanto com a obra Aias mesmo que com esta seja
bem tecircnue como a observada acima mas de todo modo presente
A reduccedilatildeo que me refiro foi estudada por noacutes no capiacutetulo anterior (cf p 104-107) e
correspondem aos versos 7-8 e 73-94 do Livro XIII de Metamorfoses os quais retratam
eventos inseridos no Canto VII XI e XIII-XV da Iliacuteada quando respectivamente do
combate singular entre Aacutejax e Heitor do resgate de Odisseu e do combate junto agraves naus
Certamente em relaccedilatildeo agrave epopeia homeacuterica noacutes podemos tratar de uma condensaccedilatildeo
contudo ainda uma reduccedilatildeo restrita pois ela natildeo reduz toda a obra de Homero mas apenas os
episoacutedios significativos para a valorizaccedilatildeo do heroacutei em termos de sua virtude guerreira
sobretudo defensiva Logo o recorte redutor do autor latino eacute feito a partir de um propoacutesito
semacircntico por um lado ele ressalta os atos que mostram grande faccedilanhas do personagem e o
insere no eixo positivo dos valores do heroacutei ou seja no eixo da accedilatildeo e natildeo da palavra por
outro restringe e enfoca seu atributo como defensivo em particular de contenccedilatildeo aos ataques
dos troianos protegendo aliados e os navios gregos
Essa valorizaccedilatildeo restrita eacute evidente como bem jaacute pontuamos e por isso
significativamente o narrador reitera o verbo conter ou suster (sustineo) nos versos 8 e 88 e a
esse acrescenta outros dois tambeacutem expressivos para esse propoacutesito os verbos defender
(tego) e proteger (protego) respectivamente nos versos 75 e 93 Aleacutem disso o proacuteprio escudo
(clipeus) eacute referido duas vezes nessa condensaccedilatildeo nos versos 75 e 79 sobretudo sendo
utilizado na proteccedilatildeo do Laertida Esse elemento componente do epiacuteteto do heroacutei ainda eacute
mencionado em seu discurso duas vezes no verso 110 e mais significativamente no 118
quando eacute utilizado como uma espeacutecie de prova uma vez que o escudo usado pelo Telamocircnio
apresenta mil marcas de golpes enquanto o de seu contendor eacute iacutentegro assim evidencia-se
que o primeiro heroacutei combateu inuacutemeras vezes ndash sobretudo em accedilotildees defensivas ndash e eacute o
homem da accedilatildeo enquanto o segundo aparentemente natildeo utiliza o escudo e dessa forma eacute o
homem da palavra Todos esses indiacutecios textuais convergem para uma valorizaccedilatildeo especiacutefica
a virtude defensiva a qual foi possiacutevel atraveacutes de uma condensaccedilatildeo que se dispotildee como uma
transformaccedilatildeo quantitativa do tipo complexa ou seja como anteriormente explicamos ela
representa uma operaccedilatildeo que afeta natildeo apenas a extensatildeo mas o teor e o sentido do hipotexto
os quais satildeo alterados e ressignificados no hipertexto
Observamos no primeiro capiacutetulo que essa qualidade defensiva do Telamocircnio no
acircmbito da Iliacuteada era algo latente e preponderante devido agraves circunstacircncias proacuteprias da trama
da obra e entre essas acima de tudo a garantia de Zeus no avanccedilo dos troianos enquanto
Aquiles estaacute ausente na guerra o que impotildee muitas adversidades aos gregos para os quais a
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sobrevivecircncia e a resistecircncia aos assaltos inimigos representam em si a uacutenica vitoacuteria possiacutevel
Mas esse atributo especiacutefico natildeo compunha unicamente ou majoritariamente as capacidades
beacutelicas do chefe de Salamina dentro da obra homeacuterica Em oposiccedilatildeo a isso o episoacutedio de
Oviacutedio modifica claramente esse conteuacutedo reduzindo-o e adequando a um objetivo semacircntico
diferente para o qual outras capacidades e habilidades guerreiras do heroacutei satildeo dispensaacuteveis e
suprimidas por isso natildeo figuram entre as palavras de nenhum dos contendores da disputa
Essa transformaccedilatildeo quantitativa complexa eacute a mesma realizada por Soacutefocles em sua
trageacutedia Aias Certamente esse tragedioacutegrafo a faz segundo outros objetivos semacircnticos
contudo isso parece sugerir alguma influecircncia na transformaccedilatildeo desenvolvida pelo autor
latino em sua obra Vejamos
Na peccedila haacute uma condensaccedilatildeo extremamente proacutexima agrave realizada no Livro XIII de
Metamorfoses As palavras de Teucro em defesa do irmatildeo (v 1272-1287) conforme vimos
anteriormente (cf p 67-69) no ecircxodo sintetiza os mesmos episoacutedios com exceccedilatildeo do resgate
especiacutefico de Odisseu no lugar do qual o texto grego apresenta um coletivo Soacutefocles utiliza
os verbos conter (ἀπεῖρξεν v 1280) e resgatar (ἐρρύσατο v 1276) para se referir agrave defesa das
naus do combate com Heitor e do salvamento aos gregos de tal situaccedilatildeo adversa O verbo
ἀπείργω certamente ecoa em sustineo e ῥύομαι em tego e protego A coincidecircncia eacute maior
pois a peccedila evidencia o caraacuteter individual das proezas de Aacutejax (μοῦνος v 1276 μόνος v
1283) e assim tambeacutem faz Oviacutedio (unus v 87) que reforccedila essa individualidade por meio da
reiteraccedilatildeo do pronome da primeira pessoa do singular (ego v 8 85 87) usado no texto para
realccedilar que Aacutejax sozinho realizou tais accedilotildees
Com efeito tal condensaccedilatildeo do tragedioacutegrafo tem dois propoacutesitos adequados ao seu
propoacutesito semacircntico Primeiramente como vimos essa siacutentese serve para caracterizar Aacutejax
segundo uma autonomia do protagonista dentro da peccedila acentuando sua renitecircncia em se
submeter a outros e assim valorizando seu caraacuteter intermediaacuterio a partir de comportamento
arcaico e negativo na concepccedilatildeo da Atenas Claacutessica ou seja a partir de uma conduta
individual e excessiva em pretericcedilatildeo a uma coletiva e comedida Em segundo lugar tal siacutentese
atua nessa valorizaccedilatildeo do personagem pois contrabalanccedila aspectos negativos com accedilotildees
corajosas em prol de seus aliados o que eacute significativo para a reabilitaccedilatildeo do Telamocircnio na
segunda parte da peccedila
Jaacute para Oviacutedio essa transformaccedilatildeo repercute em dois objetivos distintos do autor
grego adequados a outras intenccedilotildees semacircnticas O primeiro para enfatizar uma qualidade de
resistecircncia e de contenccedilatildeo ndash militar ou emocional ndash do personagem O segundo para focar na
sua capacidade individual de exercer tal virtude em prol do coletivo bem proacuteximo ao que
175
vimos definir a uirtus romana Ambas servem para a valorizaccedilatildeo da virtude do heroacutei
sobretudo em relaccedilatildeo ao esquema axioloacutegico que opotildee accedilatildeo e palavra Contudo tambeacutem se
prepara a expectativa que seraacute rompida a partir de outro elemento a ira que sozinha e
incontida causa a ruiacutena do heroacutei o que consequentemente eacute uma valorizaccedilatildeo dentro do
caraacuteter intermediaacuterio do personagem
Em relaccedilatildeo agrave Iliacuteada como observamos ainda neste capiacutetulo (cf p 147-148) tanto a
obra de Soacutefocles quanto a de Oviacutedio apresentam uma condensaccedilatildeo ou seja uma siacutentese
desprovida dos detalhes presentes na epopeia homeacuterica Contudo essa transformaccedilatildeo eacute
complexa pois os autores fazem nessa operaccedilatildeo mais do que reduzir um conteuacutedo ou seja
mais do que promover uma alteraccedilatildeo quantitativa Esse procedimento serve acima de tudo
para uma modificaccedilatildeo de seu sentido adequando uma nova caracterizaccedilatildeo por restriccedilatildeo ou
acreacutescimo de atributos mais significativa para o novo eixo semacircntico de cada uma delas Por
isso e aleacutem disso tal recurso incide em um processo de transvalorizaccedilatildeo do personagem
fundamental para as obras em questatildeo
Validamente mais uma vez haacute uma semelhanccedila muito proacutexima entre os
procedimentos realizados pelos autores Os conteuacutedos homeacutericos referidos e condensados satildeo
praticamente os mesmos inclusive o teor linguiacutestico que os expressa em especial a saber os
verbos que enfocam os atos do personagem em defesa dos gregos bem como os adjetivos e
pronomes que ressaltam o caraacuteter individual de suas faccedilanhas beacutelicas Analisar essa reduccedilatildeo
em particular e a mensurar em relaccedilatildeo a Eacutesquilo e a Lesches eacute um trabalho como jaacute dissemos
bastante inoacutecuo sobretudo ao se considerar a complexidade hipertextual que atinge os
objetivos semacircnticos da obra Contudo podemos especular que um discurso de defesa como
tal aplicado ora a Teucro em Aias e ora a Aacutejax em Metamorfoses possa ter base nos
autores dessas obras ou talvez em outros Dessa forma parece-nos pertinente observar uma
relaccedilatildeo de transtextualidade entre condensaccedilatildeo de Oviacutedio quanto agrave de Soacutefocles pois a
semelhanccedila muito proacutexima nos induz a reconhecer algum tipo de influecircncia Podemos assim
situaacute-la em trecircs instacircncias
Uma primeira de procedimento intertextual na qual reconhecemos um certo
empreacutestimo natildeo declarado de uma passagem que tem como cerne uma mesma condensaccedilatildeo
de episoacutedios homeacutericos Uma segunda de natureza pragmaacutetica cuja relaccedilatildeo hipertextual eacute de
transmodalizaccedilatildeo mais precisamente de narrativizaccedilatildeo ou seja uma modificaccedilatildeo
intramodal pois o texto dramaacutetico condensado se torna narrativo Essa segunda instacircncia
repercute em uma terceira uma transformaccedilatildeo intermodal atraveacutes da qual Oviacutedio concentra
sua obra em um processo mimeacutetico extremamente majoritaacuterio dentro do episoacutedio da disputa
176
das armas O autor latino procede segundo transformaccedilotildees intermodais proacuteprias do modo
dramaacutetico em particular do teatro antigo no qual devido ao processo inerentemente
mimeacutetico natildeo haacute uma noccedilatildeo de perspectiva ou seja esse modo tem como ponto de vista
unicamente o do espectador Assim a maneira de alterar a accedilatildeo eacute atraveacutes da distribuiccedilatildeo dos
discursos uma vez que para o teatro antigo accedilatildeo eacute sobretudo discursar como jaacute pontuamos
Dessa forma devido agrave mimesis extrema do episoacutedio de Oviacutedio a alteraccedilatildeo intermodal parece
ser privilegiar Aacutejax com o discurso de Teucro presente na obra de Soacutefocles e assim
transformar a accedilatildeo por meio da redistribuiccedilatildeo da fala dos personagens Essa modificaccedilatildeo eacute
consequecircncia da transformaccedilatildeo intramodal acompanhada de outras transformaccedilotildees
quantitativas que concentram o episoacutedio na disputa por um lado elidindo e retirando
personagens e eventos relacionados ao mito de Aacutejax mas por outro aumentando o debate em
uma operaccedilatildeo de ampliaccedilatildeo Acreditamos que essas trecircs possibilidades transtextuais sejam
pertinentes e vaacutelidas uma vez que as iacutenumeras semelhanccedilas entre as condensaccedilotildees dispostas
pelos dois autores estatildeo sem duacutevida aleacutem da mera coincidecircncia Dessa forma mais uma vez
nos parece que Oviacutedio tambeacutem opera por imitaccedilatildeo retomando o estilo do tragedioacutegrafo mas
com outra intenccedilatildeo semacircntica pois sua condensaccedilatildeo tem propoacutesitos diferentes
Vejamos agora a empaacutefia uma caracteriacutestica essencial de Aacutejax no episoacutedio de
Oviacutedio a qual se relaciona diretamente com a virtude guerreira porque desta se desdobra a
soberba a partir de um excesso de confianccedila do personagem Essa caracterizaccedilatildeo nos parece
receber a mais visiacutevel e relevente transformaccedilatildeo do autor latino em relaccedilatildeo ao tragedioacutegrafo
grego pois evidencia diretamente a influecircncia de Soacutefocles por meio de uma caracterizaccedilatildeo de
destaque no episoacutesio da metamorfose do heroacutei em questatildeo
De acordo com o que jaacute vimos ainda neste capiacutetulo (cf p 148-149) Soacutefocles teria
ampliado motivaccedilotildees das obras de Homero e Lesches Assim o impulso em realizar o
suiciacutedio teria como base a desonra quanto ao natildeo recebimento das armas de Aquiles ndash cuja
origem eacute a Odisseia ndash e o ultraje da carnificina aos animais quando do episoacutedio da loucura ndash
cuja origem eacute a Pequena Iliada provavelmente ndash ambos filtrados por uma caracteriacutestica
latente de Aacutejax nas epopeias homeacutericas um orgulho guerreiro mais extremo Na trageacutedia
Aias essas motivaccedilotildees satildeo aumentadas ganhando grande significaccedilatildeo dentro da peccedila e
fazendo decorrer disso uma caracterizaccedilatildeo reiterada do heroacutei a superestimaccedilatildeo de seu valor
que o torna extremamente arrogante a ponto de se achar superior aos deuses
Com efeito essa empaacutefia sofocliana do protagonista da peccedila eacute retomada na versatildeo de
Oviacutedio aos moldes do tragedioacutegrafo Acreditamos que esse orgulho eacute inclusive aumentado no
autor latino Obviamente tal comparaccedilatildeo natildeo deve ser vista de forma absoluta pois o Aacutejax
177
ovidiano natildeo revela excesso contra os deuses Contudo devemos reconhecer um confronto
desse traccedilo em termos proporcionais Isso significa observar o papel dessa soberba na
estrutura de cada uma das obras para que se possa compreender o grau desse aumento Trecircs
transformaccedilotildees satildeo essenciais para esse entendimento
A primeira eacute uma operaccedilatildeo quantitativa a excisatildeo ou seja a remoccedilatildeo massiva de um
episoacutedio presente no hipotexto Como eacute bem visiacutevel ao texto latino em questatildeo todo o
episoacutedio que envolve a loucura do Telamocircnio eacute removido Natildeo figura a intervenccedilatildeo da deusa
nas accedilotildees do chefe de Salamina em relaccedilatildeo a qualquer tipo de furor insano do personagem
ou ao ataque desse heroacutei ao rebanho grego Nada disso eacute mencionado ou sugerido no texto
que de alguma maneira influencie na composiccedilatildeo de sua trama Contudo haacute ao menos uma
alusatildeo significativa agrave deusa Atena uma vez que ao fim de seu discurso Ulisses aponta para
estaacutetua da deusa (Mineruae v 381) insinuando-se assim pelo menos uma intervenccedilatildeo mas
no julgamento das armas o que alinha esse episoacutedio com a tradiccedilatildeo arcaica Com efeito no
Livro XIII o suiciacutedio segue diretamente ao resultado da disputa pelas armas do Pelida
A segunda operaccedilatildeo decorre em funccedilatildeo dessa excisatildeo Essa segunda eacute uma
transformaccedilatildeo pragmaacutetica a desmotivaccedilatildeo Certamente a remoccedilatildeo de um episoacutedio pode
repercutir no eixo semacircntico como eacute comum no caso do tipo complexo jaacute explicado por noacutes
Poreacutem essa supressatildeo atinge um dos motivos pelos quais Aacutejax eacute levado ao suiciacutedio Essa
consequecircncia em si logo trata-se de um outro procedimento o qual corresponde agrave supressatildeo
ou minimizaccedilatildeo de uma motivaccedilatildeo Na obra de Soacutefocles a desonra causada pelo resultado da
disputa das armas e o ultraje causado pela carnificina dos animais tecircm igual peso nas
motivaccedilotildees do protagonista apesar de reconhecermos o foco maior na loucura em relaccedilatildeo a
esse autor Certamente ambos satildeo fundamentais na estrutura da peccedila Dessa forma ao
escolher suprimir de sua versatildeo o segundo episoacutedio Oviacutedio transforma significativamente
seus elementos por um lado revalidando a vertente homeacuterica e por outro promovendo algo
aparentemente novo ao mito em questatildeo
Como eacute bem natural o procedimento de desmotivaccedilatildeo fomenta a necessidade de outro
de motivaccedilatildeo a terceira transformaccedilatildeo que indicamos seja ou pela inclusatildeo de um motivo
novo ou pela ampliaccedilatildeo de um ainda presente no hipotexto Isso parece ocorrer em
Metamorfoses em relaccedilatildeo ao episoacutedio em questatildeo A retirada da loucura e da sua decorrente
carnificina promove na estrutura do Livro XIII o aumento expressivo do valor da desonra
quanto agrave questatildeo das armas de Aquiles ou seja uma amplificaccedilatildeo dessa motivaccedilatildeo pois se
torna no eixo semacircntico do hipertexto o uacutenico impulso que move o heroacutei a se matar
178
Todos os motivos parecem se reduzir a esse que eacute o mais significativo para a obra
latina Assim reforccedila-se a vertente homeacuterica da origem da funesta morte do heroacutei Contudo
haacute algo de novo nessa operaccedilatildeo natildeo sugerida em Homero e natildeo presente em Soacutefocles Essa
motivaccedilatildeo da desonra pelas armas eacute aumentada uma vez que em Oviacutedio ela figura antes
mesmo de se deliberar um resultado pois ela pode ser observada jaacute durante o proacuteprio discurso
do heroacutei Em Homero a desonra estaacute sugerida no Canto XI da Odisseia ao identificarmos a
causa da morte do heroacutei na disputa contudo poucas satildeo as informaccedilotildees sobre como decorre
pois haacute apenas uma alusatildeo ao evento
Em Soacutefocles que desenvolve tal episoacutedio podemos inferir que o sentimento de
desonra que inclusive impulsiona a ira do personagem como veremos na seccedilatildeo seguinte
parece se desenvolver significativamente apoacutes o resultado deliberado pelos chefes gregos
Isso eacute depreendido da fala de Odisseu (cf pg 64) na qual assim diz ldquopois tambeacutem para mim
era este [Aacutejax] o maior inimigo da tropa desde que a ele sobressaiacute por causa das armas de
Aquilesrdquo (Κἀμοὶ γὰρ ἦν ποθ οὗτος ἔχθιστος στρατοῦ ἐξ οὗ κράτησα τῶν ᾿Αχιλλείων
ὅπλων v 1336-1337) Essa hostilidade cuja origem eacute a desonra evidencia uma motivaccedilatildeo
que se instaura acima de tudo a partir resultado da disputa apesar de Aacutejax posteriormente
ainda evidenciar tambeacutem a decisatildeo por votos e o contexto em que essa deliberaccedilatildeo se
estabelece como sendo fatores odiados por ele Certamente essa desonra como motivo ou
impulso significativo em particular da hostilidade do protagonista desenvolve-se
posteriormente ao debate e ao seu resultado Assim parece-nos estrutura-se tal motivaccedilatildeo
dentro do eixo semacircntico de Aias
No caso do episoacutedio de Oviacutedio noacutes podemos observar claramente essa desonra do
heroacutei sendo inferida em suas palavras ainda proferidas durante o discurso Na versatildeo latina
para Aacutejax o proacuteprio ato de Ulisses reclamar e disputar as armas jaacute confere uma desonra agraves
armas (demit honorem v 16) e ao Telamocircnio uma vez que este mesmo revela jaacute natildeo ser
orgulhoso portar algo que o seu opositor reclamou (Aiaci non est tenuisse superbum []
quicquid sperauit Vlisses v 16-17) Apesar de natildeo seguir estritamente o que Genette pontuou
como transmotivaccedilatildeo ou seja a supressatildeo completa de um motivo e a inclusatildeo de um novo
podemos perceber claramente as transformaccedilotildees promovidas por Oviacutedio em relaccedilatildeo a
Soacutefocles por meio de uma operaccedilatildeo de desmotivaccedilatildeo como remoccedilatildeo massiva do ultraje
proveniente da excisatildeo do episoacutedio da loucura e de suas consequecircncias e tambeacutem de uma
motivaccedilatildeo do tipo aumentada uma vez que a desonra oriunda da questatildeo que envolve as
armas de Aquiles eacute expandida para antes do resultado do debate ou seja para a contenda em
si aparentemente se configurando uma inovaccedilatildeo para o mito em questatildeo Isso explica por que
179
o episoacutedio se concentra no lado discursivo e retoacuterico do episoacutedio pois a contenda eacute suficiente
para justificar as causas que movem o personagem ao suiciacutedio
Certamente essa cadeia de transformaccedilotildees transtextuais tem efeito direto na
caracterizaccedilatildeo do Telamocircnio pois atraveacutes dela podemos reconhecer o papel significativo de
sua empaacutefia e de sua soberba na composiccedilatildeo da trama do episoacutedio Esse traccedilo eacute
marcadamente referido como uma extrema confianccedila em determinado valor que se deteacutem
(fiducia laudis XII v 625) sugerida pelo proacuteprio narrador externo correspondendo no
hipertexto ao nosso ver agrave superestima de uma excelecircncia guerreira a qual se sobressai a
quaisquer outros valores e que toca a dignidade e a honra de um heroacutei Ilustrada na soberba
do heroacutei essa sobrevalorizaccedilatildeo da honra como elemento fundamental na estrutura da obra
instrumentalizada por meio da caracterizaccedilatildeo de Aacutejax foi como dissemos e acreditamos
desenvolvida de forma significativa e a priori inovadora por Soacutefocles em sua peccedila E por
ser uma caracteriacutestica extremamente relevante e essencial tambeacutem no acircmbito do episoacutedio de
Oviacutedio ou seja na estruturaccedilatildeo das motivaccedilotildees da trama parece-nos que essa empaacutefia sela
uma relaccedilatildeo de transtextualidade mais proacutepria entre esses dois autores
Com efeito esse traccedilo na iacutendole do personagem sofocliano e ovidiano representa a
transformaccedilatildeo psicoloacutegica que permite para o primeiro autor dispor a perspectiva de desonra
e ultraje aos episoacutedios da disputa e da loucura e para o segundo a de desonra em relaccedilatildeo agrave
contenda pelas armas de Aquiles Dessa forma quando comparamos a empaacutefia nas duas obras
e acreditamos esta ser aumentada na versatildeo latina entendemos que essa caracterizaccedilatildeo foi
instrumentalizada por meio de um episoacutedio diferente do tragedioacutegrafo que apesar de centrar-
se na loucura ela foi desenvolvida por meio de duas motivaccedilotildees que correspondem a dois
episoacutedios Logo a soberba que fundamenta os impulsos do heroacutei na versatildeo latina segundo
uma noccedilatildeo de causalidade movendo-o ao suiciacutedio em termos proporcionais parece maior
pois sendo estendida ao debate o resultado inesperado da derrota para Aacutejax eacute suficiente
para a sua morte Assim a empaacutefia da peccedila do tragedioacutegrafo necessita de dois motivos
significativos e a do autor latino precisa de apenas um para mover seu heroacutei ao suiciacutedio
Aleacutem disso tal operaccedilatildeo psicoloacutegica em ambos os poetas tambeacutem serve para a valorizaccedilatildeo
do caraacuteter intermediaacuterio do personagem contrabalanccedilando virtudes e viacutecios
Prossigamos por fim com a anaacutelise de possiacuteveis referecircncias do texto latino ao grego
em relaccedilatildeo agrave oposiccedilatildeo entre accedilatildeo e palavra na qual em especial o Telamocircnio valoriza
sobretudo accedilotildees beacutelicas que podem ser vistas e testemunhadas Essa oposiccedilatildeo eacute sobretudo
relevante pois fundamenta os valores de Aacutejax manifestando-se o que ele estima e o que
despreza essenciais para compreendermos a sua perspectiva que dispotildee a si como melhor e o
180
adversaacuterio como pior Ademais essa oposiccedilatildeo distingue uma importante relaccedilatildeo transtextual
que na nossa compreensatildeo permite uma nova leitura do hipotexto de alguma forma o
influenciando
Na disputa representada pela versatildeo latina o Telamocircnio tenta desqualificar seu
opositor por meio de algumas oposiccedilotildees A primeira mais importante eacute se mostrar o homem
da accedilatildeo cuja valentia prepondera a astuacutecia do homem da palavra Dessa forma apresenta-se
um Ulisses cuja inteligecircncia serve para a mentira e natildeo para a verdade A segunda mais
acessoacuteria sabendo-se das accedilotildees importantes do Laertida na guerra eacute desvalorizar tais accedilotildees
Para isso o chefe de Salamina apresenta a oposiccedilatildeo em accedilatildeo testemunhada e accedilatildeo sorrateira
na qual esse heroacutei liga suas proezas agravequela e as de seu opositor agrave esta Como pudemos ver na
anaacutelise do capiacutetulo anterior (cf p 115-118) vaacuterios satildeo os indiacutecios textuais do discurso do
heroacutei os quais apontam accedilotildees furtivas (clam v 103) noturnas (luce nihil v 100) tramadas
(furtis [] decipit v 104) e natildeo testemunhadas (sine teste v 15) como executadas por
homem covarde (timidissime v 115) que altera a natureza desses atos atraveacutes da palavra
(narret v 14) ou seja tais accedilotildees tornam-se grandiosas atraveacutes de mentiras das palavras que
persuadem Certamente essa perspectiva adensa o sistema axioloacutegico do episoacutedio
fomentando um conflito de valores que intensifica a transvalorizaccedilatildeo realizada por Oviacutedio
Esse conflito delineia mais claramente a caracterizaccedilatildeo tanto de Aacutejax quanto de Ulisses e
partem de uma oposiccedilatildeo jaacute desenvolvida em Homero como vimos no estudo de Jaeger (cf p
17-19) contudo a difereccedila entre a accedilatildeo valente e a covarde sobretudo relacionadas agrave luz e agrave
escuridatildeo eacute particularmente essencial para a relaccedilatildeo transtextual que queremos estabelecer
Homero se refere pontualmente a esse comportamente do Telamocircnio (Iliacuteada XVII v
645-647) Nesse momento o personagem invoca a luz a Zeus para que se for morto tal fato
decorra visiacutevel a todos ou seja suceda de forma gloriosa segundo o seu ponto de vista Com
efeito isso eacute reforccedilado na trageacutedia Aias para que reconheccedilamos o excesso do heroacutei e a
loucura que o acomete fazendo-o agir segundo os valores por ele negados Por isso o coro e
Tecmessa identificam no personagem uma conduta incoerente com os seus princiacutepios
particularmente em relaccedilatildeo aos seus lamentosos e tambeacutem como noacutes entedemos aos seus
atos notunos e tramados pois assim ressaltamos anteriormente (cf p 92-93) Natildeo sabemos
precisar o quanto esse valor guerreiro disposto na relaccedilatildeo com a luz e com a accedilatildeo
testemunhada era evidente para agrave Antiguidade sobretudo nos periacuteodos arcaico e claacutessico
gregos e por isso talvez natildeo necessitasse de um realce mais intenso dessa disposiccedilatildeo em
uma obra literaacuteria Contudo mais de dois milecircnios apoacutes a encenaccedilatildeo da peccedila de Soacutefocles
precisamos natildeo apenas inferir mas comprovar como tentamos fazer no capiacutetulo anterior que
181
o fato de Aacutejax agir segundo uma iacutendole a qual natildeo parece ser a sua reforccedila a participaccedilatildeo da
deusa Atena na loucura do heroacutei a qual estaacute aleacutem do mero distuacuterbio visual Fato eacute que ao se
considerar tal entendimento reconhecemos uma relaccedilatildeo de transtextualidade de Soacutefocles em
relaccedilatildeo a Homero que se estabelece a partir de uma transvalorizaccedilatildeo na qual se identifica
um caraacuteter intermediaacuterio do personagem atraveacutes de sua virtude guerreira contrabalanccedilada em
especial com o seu excesso tanto o natural ndash a soberba ndash quanto o mediado pela divindade ndash
a carnificina noturna
A partir do que foi exposto podemos entender como Oviacutedio influencia a obra de seu
antecessor grego Com efeito a ecircnfase do autor latino torna essa disposiccedilatildeo da virtude
guerreira ligada agrave luz e agrave accedilatildeo testemunhada muito mais evidente e viva na memoacuteria de
maneira que o seu procedimento de transvalorizaccedilatildeo em especial quanto a esse elemento
reforccedila a transvalorizaccedilatildeo da obra de Soacutefocles ressignificando e tornando mais evidente a
loucura que reverte os princiacutepios do protagonista a qual o impulsiona a agir de forma
contraacuteria agrave sua iacutendole Tal observaccedilatildeo eacute vaacutelida e pertinente ao menos para os leitores de hoje
cuja compreensatildeo transtextual desses mitos se daacute apenas pela leitura das obras literaacuterias uma
vez que os mitos greco-latinos em seu aspecto cultural e antropoloacutegico natildeo satildeo presentes
como eram para os povos latinos e gregos da Antiguidade Claacutessica
Com efeito devemos saber distinguir o que eacute um hipotexto e ateacute onde age sua
influecircncia em um determinado hipertexto Logo reconhecemos que o episoacutedio de Oviacutedio
retrata a valoraccedilatildeo especiacutefica a um determinado tipo de accedilatildeo beacutelica em um contexto
semacircntico no qual Aacutejax desvaloriza a do tipo sorrateira e noturna com o intuito de desprezar
a astuacutecia de Ulisses bem como Virgiacutelio jaacute fizera no Livro VI da Eneida Enquanto em
Metamorfoses essa valoraccedilatildeo especiacutefica serve para fundamentar o conflito de valores do
episoacutedio o qual tende aparentemente a valorizar a perspectiva do Telamocircnio em detrimento
daquela do Laertida em Aias ela serve como reforccedilo agrave loucura do protagonista a qual
fundamenta o excesso em um dos eixos negativos do sistema axioloacutegico da peccedila valorizando
Odisseu por meio de sua temperanccedila e moderaccedilatildeo em pretericcedilatildeo a Aacutejax pela sua natureza
desmedida Assim a transvalorizaccedilatildeo de Oviacutedio tambeacutem se faz em relaccedilatildeo ao tragedioacutegrafo
pela reversatildeo de um dos sistemas de valores no qual os contendores dos debates trocam de
lugar nos eixos positivos e negativos nos esquemas axioloacutegicos de cada uma dessas duas
obras segundo o que dispomos anteriormente (cf p 154) Eacute uma reversatildeo no sistema de valor
do hipotexto pelo qual Oviacutedio em seu hipertexto valoriza quem era desvalorizado e
desvaloriza aquele que era valorizado
182
Contrariamente agrave essa relaccedilatildeo de transtextualidade na qual um texto anterior sempre
influencia um texto posterior devemos reconhecer quando o inverso eacute possiacutevel obviamente
que natildeo do ponto de vista da elaboraccedilatildeo da obra mas do de sua recepccedilatildeo ou seja da
participaccedilatildeo do leitor na construccedilatildeo do sentido de um texto Assim quanto agrave esta uacuteltima
parece-nos que o tratamento do episoacutedio do Oviacutedio acerca do mito de Aacutejax influencia
efetivamente na leitura da peccedila de Soacutefocles intensificando o entendimento da loucura que
acomete o heroacutei Isso fica mais claro se lermos as obras que envolvem a histoacuteria desse heroacutei
segundo uma ordem cronoloacutegica dos episoacutedios miacuteticos e natildeo segundo uma de produccedilatildeo das
obras Ao dispormos essa sequecircncia de leitura teriacuteamos essa ordem por exemplo Iliacuteada
Odisseia Livro XII de Metamorfoses e Aias Certamente esta peccedila seraacute ressignificada pela
leitura do texto de Oviacutedio no sentido de que a accedilatildeo noturna e sorrateira de Aacutejax pareceraacute mais
visivelmente incoerente com sua natural iacutendole mas ainda necessaacuteria e verossiacutemil dentro da
trageacutedia devido agraves circunstacircncias nas quais as accedilotildees do heroacutei estatildeo inseridas
Diante de todas essas consideraccedilotildees podemos contemplar o papel dessas operaccedilotildees na
caracterizaccedilatildeo do heroacutei na obra de Oviacutedio quanto agrave sua virtude e os elementos que disso
decorrem Certamente por um lado essas relaccedilotildees de transtextualidade apontam para o
diaacutelogo natural e reconhecido entre os poetas latinos e gregos e a longa tradiccedilatildeo que os
precede e por outro esses processos transformadores sejam pragmaacuteticos quantitativos ou
modais em questatildeo ressaltam a complexidade e a profundidade do diaacutelogo promovido entre
tais autores o que representa um componente fundamental da qualidade literaacuteria dos textos da
Antiguidade Foi-nos possiacutevel entender tanto a forccedila exercida pela obra de Soacutefocles no texto
latino quanto tambeacutem a presenccedila de Homero como texto matriz absoluto sobretudo acerca
da caracterizaccedilatildeo dos personagens
Prossigamos entatildeo com a anaacutelise das operaccedilotildees transtextuais presentes na
caracterizaccedilatildeo da ira do heroacutei na versatildeo latina do episoacutedio
3 2 2 A ira transtextual do heroacutei
Nesta seccedilatildeo discorreremos segundo o modelo da seccedilatildeo anterior as relaccedilotildees
transtextuais significativas realizadas por Oviacutedio na caracterizaccedilatildeo de Aacutejax em relaccedilatildeo agrave
noccedilatildeo de ira em especial ressaltando-se como tais operaccedilotildees contribuem para a intenccedilatildeo
semacircntica da obra em questatildeo Veremos as relaccedilotildees de transtextualidade que configuram
ampliam e ressaltam a ira do heroacutei de modo que esse sentimento parece por um lado maior
183
do que nas obras dos autores gregos Homero e Soacutefocles e por outro mais significativo
dentro da composiccedilatildeo estrutural e do propoacutesito semacircntico do episoacutedio do Livro XIII de
Metamorfoses
Primeiramente veremos como algumas mesmas transformaccedilotildees hipertextuais que
operam na caracterizaccedilatildeo da virtude e da desdobrada empaacutefia do personagem tambeacutem atuam
na configuraccedilatildeo de sua ira Com efeito em termos de relaccedilotildees hipertextuais essas nos
parecem as transformaccedilotildees mais significativas para a ressignificaccedilatildeo dos episoacutedios que
compotildeem o mito de Aacutejax configurando-se uma nova relaccedilatildeo do heroacutei com tal sentimento Em
seguida disporemos as operaccedilotildees que envolvem a ira ressaltando-a em seu papel estrutural
no episoacutedio sobretudo na retoacuterica do heroacutei de Salamina em seu propoacutesito de ferir o caraacuteter do
adversaacuterio Para este objetivo traremos as passagens cujos conteuacutedos apresentam uma
linhagem demeacuterita do Laertida e a descriccedilatildeo das armas de Aquiles que retrata em Ulisses a
ausecircncia do vigor especial para portaacute-las Esses trecircs exemplos de hipertextualidade satildeo
fundamentais na reiteraccedilatildeo de uma retoacuterica iracunda que potildee em destaque a recorrecircncia do
elemento a que nos dispomos estudar nesta seccedilatildeo Por fim tentaremos observar alguma
relaccedilatildeo transtextual no sintagma inpatiens irae pois sendo extremamente significativo dentro
do texto latino tal termo revela uma relaccedilatildeo mais discreta de base linguiacutestica no seu diaacutelogo
com o texto de Soacutefocles
Iniciemos entatildeo pelas transformaccedilotildees quantitativas e pragmaacuteticas estudadas na seccedilatildeo
anterior vinculadas agrave anaacutelise acerca da virtude mas que tambeacutem ressaltam a presenccedila e a
intensidade da ira do personagem em uma nova configuraccedilatildeo na versatildeo latina Vejamos
sobretudo aquelas que tratam da empaacutefia em especial a motivaccedilatildeo e a desmotivaccedilatildeo Estas
como vimos transformam a soberba de Aacutejax em um elemento diretamente ligado agrave noccedilatildeo de
virtude que caracteriza o personagem mas que tambeacutem estaacute vinculada agrave noccedilatildeo de ira que
delineia toda sua disposiccedilatildeo emocional e por isso satildeo operaccedilotildees fundamentais para o nosso
estudo
Validamente a ira que move o personagem se estabelece em proporccedilatildeo com a
superestima de seu proacuteprio valor diante da dos outros Logo quanto maior eacute a estima em sua
virtude maior seraacute a perspectiva de desonra quando da negaccedilatildeo dos seus meacuteritos os quais
satildeo cridos como superiores pelo Telamocircnio E quanto mais profunda a desonra mais intensa a
ira Jaacute evidenciada anteriormente essa relaccedilatildeo eacute basilar tanto para a compreensatildeo do texto de
Soacutefocles quanto para a de Oviacutedio A empaacutefia caracterizada na versatildeo de Oviacutedio como vimos
na seccedilatildeo anterior eacute maior proporcionalmente do que a de Soacutefocles Isso se observou
exatamente porque para o personagem da versatildeo deste autor satildeo necessaacuterios dois motivos para
184
o desenvolvimento de uma desonra profunda que desencadeia o suiciacutedio os quais se
desdobram de dois episoacutedios a disputa pelas armas e o ataque aos animais Na obra grega a
sua desonra apenas se inicia aparentemente apoacutes o resultado da disputa pelas armas de
Aquiles No entanto para o personagem do autor latino eacute necessaacuterio somente um dos eventos
a contenda o que apoacutes transformaccedilatildeo e ressignificaccedilatildeo torna a empaacutefia e a perspectiva de
uma desonra perceptiacuteveis jaacute durante a proacutepria disputa e natildeo apenas apoacutes o seu resultado Com
efeito ainda na versatildeo de Oviacutedio a decisatildeo final dos juiacutezes eacute responsaacutevel pelo agravamento
de uma ira que jaacute se mostra presente
Utilizando-se a terminologia teoacuterica de Genette isso significa que a excisatildeo do
episoacutedio do ataque aos animais e a decorrente desmotivaccedilatildeo do ultraje promovido por tal
episoacutedio ambas transformaccedilotildees realizadas por Oviacutedio desencadeiam uma motivaccedilatildeo do tipo
aumentada que repercute na caracterizaccedilatildeo do heroacutei em relaccedilatildeo agrave proacutepria disposiccedilatildeo da
contenda Dessa forma a desonra pela derrota na disputa presente tanto em Homero quanto
em Soacutefocles eacute a uacutenica motivaccedilatildeo restante na versatildeo latina dentre as duas usadas pelo
tragedioacutegrafo Sendo entatildeo aparentemente a uacutenica responsaacutevel por desencadear o suiciacutedio do
personagem ela necessitaraacute de transformaccedilatildeo e ressignificaccedilatildeo as quais consistem no seu
aumento e na sua ampliaccedilatildeo Devido a isso no episoacutedio do autor latino a desonra jaacute eacute
impulsionada pelo simples ato de o heroacutei se submeter a uma disputa contra Ulisses concebido
como iacutemprobo e inferior pelo seu adversaacuterio Na perpectiva orgulhosa do Telamocircnio disputar
algo com algueacutem visto como inferior significa efetivamente se sujeitar agrave desonra e ao
demeacuterito Essa transformaccedilatildeo sobretudo de base psicoloacutegica aleacutem de acentuar sua empaacutefia e
soberba como expomos observada tanto na fala do Telamocircnio (cf p 171) quanto na do
Laertida (cf p 112) impacta conjuntamente a ira do chefe de Salamina Se por um lado eacute
possiacutevel reconhecer a empaacutefia e a perspectiva de desonra em Aacutejax ambas jaacute presentes no
momento do discurso por outro a presenccedila e o aumento da ira dentro de uma nova
estruturaccedilatildeo na versatildeo do autor latino em relaccedilatildeo aos hipotextos em virtude dessa motivaccedilatildeo
eacute inquestionaacutevel
Essa disposiccedilatildeo emocional do personagem eacute por isso expressa nos primeiros versos
do Livro XIII atraveacutes do sintagma inpatiens irae qualificando um estado intenso do
personagem acima de tudo e singularmente jaacute anterior agrave disputa acompanhando
efetivamente a intensidade da sobrevalorizaccedilatildeo de sua excelecircncia guerreira Essa disposiccedilatildeo
nos parece singular para a obra de Oviacutedio Ou seja essas operaccedilotildees desenvolvidas por Oviacutedio
servem para proporcionalmente intensificar tanto a soberba do heroacutei quanto a sua ira
ressignificando-as de tal modo que Aacutejax natildeo consegue conter esta uacuteltima nem antes nem
185
durante a sua defesa e muito menos apoacutes o resultado concebido como improvaacutevel dentro de
sua perspectiva dos fatos Diante dessa nova configuraccedilatildeo composicional Oviacutedio adequa a ira
do personagem recorrente no mito grego ao episoacutedio de maneira que a presenccedila desse
sentimento tal como estaacute parece singular agrave obra latina em se considerando as informaccedilotildees
que dispomos atualmente Assim devido a essa motivaccedilatildeo ampliada a ira entatildeo torna-se
elemento fundamental nessa versatildeo da disputa pelas armas de Aquiles aleacutem de expressamente
nomeada pelo narrador externo no iniacutecio e no fim do episoacutedio
Essas transformaccedilotildees pragmaacuteticas de motivaccedilatildeo e de desmotivaccedilatildeo e quantitativas
de excisatildeo jaacute operam na ressignificaccedilatildeo da virtude do heroacutei restringindo-a e agora
pudemos observar como elas atuam no destaque desse sentimento de ira dentro do novo eixo
semacircntico do hipertexto para o qual tal elemento se torna imprescindiacutevel Certamente como
dissemos elas nos parecem as mais significativas para essa nova estruturaccedilatildeo do episoacutedio e
para a essencial ressignificaccedilatildeo da ira do heroacutei
As outras transformaccedilotildees as quais nos propomos a analisar satildeo mais importantes
sobretudo na reiteraccedilatildeo e no reforccedilo dessa nova configuraccedilatildeo semacircntica Mas para entendecirc-las
mais eficazmente eacute notaacutevel observar que o autor latino desenvolve de forma mais
abrangente o episoacutedio em questatildeo por meio de uma operaccedilatildeo de hipertextualidade quando
promove uma ampliaccedilatildeo de um episoacutedio ndash a disputa pelas armas ndash da Odisseia e de Cantos
Ciacuteprios ou de intertextualidade quando dialoga com o texto de Eacutesquilo e de Soacutefocles por
exemplo No entanto aleacutem de fazer de forma aparentemente inovadora quando estrutura o
seu episoacutedio no qual a ira entatildeo torna-se elemento fundamental e caracterizante do heroacutei o
autor estende tal sentimento por todo o discurso de Aacutejax em especial desenvolvendo-o
atraveacutes da recorrente hostilidade com que tal personagem delineia uma iacutendole inferior no
adversaacuterio em relaccedilatildeo aos seus proacuteprios meacuteritos Dessa forma inserida em um episoacutedio que
potildee a retoacuterica em foco tal ira conduz as palavras do personagem segundo o que muitos
estudiosos jaacute pontuaram sobre Oviacutedio de maneira que os elementos retoacutericos encontram fins
literaacuterios e nesse caso em especial aprofundando a caracterizaccedilatildeo do orador de Salamina
Certamente dentro dos recursos retoacutericos em especial nas espeacutecies (εἴδη) de
discursos do tipo laudatoacuterio (ἐγκωμιαστικόν Retoacuterica a Alexandre I 1421b 10-12) e
vituperioso (ψεκτικόν Ibidem I 1421b 10-12) que se coadunam em prol do mesmo fim eacute
possiacutevel especificamente na segunda espeacutecie ironizar e ridicularizar o outro (εἰρωνεύεσθαι καὶ
καταγελᾶν Ibidem XXXV 1441b 24-25) embora mesmo assim o texto afirme que ldquoeacute
necessaacuterio natildeo escarnecer daquele que vituperemosrdquo (δεῖ δὲ μὴ σκώπτειν ὃν ἂν κακολογῶμεν
186
Ibidem XXXV 1441b 15-16) ou que isso deve ser evitado ldquoa fim de natildeo caluniar o caraacuteterrdquo
do adversaacuterio (ἵνα μὴ διαβάλῃς τὸ ἦθος Ibidem 1441 21-22)
Contudo a unidade do episoacutedio de Oviacutedio parece apresentar tais elementos retoacutericos
singularmente Agrave figura mais excessiva Aacutejax o discurso vituperioso com propoacutesito realmente
de caluniar e ridicularizar eacute imposto pelo autor com mais presenccedila e visibilidade mas para agrave
figura mais moderada quando tal propoacutesito parece perceptiacutevel seu discurso utiliza tais
recursos de maneira mais velada Essa disposiccedilatildeo eacute sobretudo calculada e reconhecida por
Ulisses o qual expressamente ressalta sua moderaccedilatildeo e o excesso do oponente Isso pode ser
identificado sinteticamente em duas passagens ambas dispostas no discurso do chefe de Iacutetaca
A primeira eacute notaacutevel no qualitativo que descreve Aacutejax filho de Oileu nomeado em
comparaccedilatildeo ao Telamocircnio de ldquoAacutejax mais moderadordquo (moderatior Aiax XIII v 356) A
segunda ressalta a iacutendole do Laertida diante da de seu adversaacuterio uma vez que Ulisses natildeo soacute
reconhece as proezas executadas pelo Telamocircnio (confiteor v 270 XIII) como tambeacutem diz
natildeo ser proacuteprio dele depreciar de forma vil as faccedilanhas dos outros (neque enim benefacta
maligne detractare meum est v 270-271 XIII)
Essa unidade textual estrutura os recursos retoacutericos presentes nos discursos dos
personagens de modo a adequaacute-los natildeo segundo as premissas da Retoacuterica mas de acordo com
o propoacutesito semacircntico do texto o qual tem como base a ira do heroacutei de Salamina como o
elemento fundamental na oposiccedilatildeo entre excesso e moderaccedilatildeo Dessa forma aleacutem daquelas
transformaccedilotildees significativas mencionadas anteriormente as duas que agora noacutes analisaremos
delineiam e reforccedilam o caraacuteter iracundo do personagem em especial por estarem
aparentemente vinculadas a essa retoacuterica mais agressiva e hostil de Aacutejax cujo objetivo eacute
claramente depreciar o adversaacuterio
A primeira que disporemos trata da linhagem dita nefanda de Ulisses cuja origem
seria Siacutesifo apresentada por Aacutejax como prova fundamental da iacutendole de seu opositor Parece-
nos que a linhagem especifica retratada por Oviacutedio representa uma transtextualidade em
relaccedilatildeo a obra de Soacutefocles
Homero por exemplo embora tenha composto uma ascendecircncia de Ulisses a qual
remonta os artifiacutecios de sua inteligecircncia vinculou tal habilidade agrave descendecircncia de Autoacutelico
avocirc materno do heroacutei Tal ancestral eacute visto como ldquoaquele que sobrepujara os homens tanto no
roubo quanto no juramentordquo (ὅς ἀνθρώπους ἐκέκαστο κλεπτοσύνῃ θrsquo ὅρκῳ τε v 395-396
XIX Odisseia) E isso significa dizer que ele foi o melhor na praacutetica de roubar e de perjurar
com o intuito de enganar os outros Com efeito para o mundo arcaico de Homero tais accedilotildees
ainda satildeo observadas com relativa gloacuteria ou seja como um talento em especial se forem
187
dirigidas a inimigos e adversaacuterios Exatamente por esse motivo o verbo utilizado no verso eacute o
καίνυμαι o qual significa sobrepujar exceder etc Esse verbo ressalta a ideia de uma
habilidade superior as dos outros ou seja a ideia de que tal personagem tem a supremacia em
algumas facetas do uso da inteligecircncia por mais que posteriormente essa praacutetica seja vista de
forma negativa Como jaacute vimos sobretudo em relaccedilatildeo aos tragedioacutegrafos a partir do
desenvolver da cultura disposiccedilotildees de valor mais antigas se alteram adequando-se a novos
contextos e os conceitos de outrora acabam por se tornar inadequados
Virgiacutelio um caso importante sobretudo na desvalorizaccedilatildeo do heroiacute de Iacutetaca em
especial acerca da depreciaccedilatildeo de sua insigne inteligecircncia traz a ancestraliadade criminosa e
imeacuterita do personagem vinculada jaacute a Siacutesifo Isso se ressalta no Livro VI da Eneida quando
Ulisses eacute nomeado Eoacutelida estimulador de crimes (hortator scelerum Aeolides v 529) pela
sua inteligecircncia perversa e iacutempia sobretudo a partir da versatildeo que Deiacutefobo irmatildeo de Heitor
descreve acerca dos atos dos gregos contra os troianos A designaccedilatildeo de Eoacutelida se faz
exatamente porque Siacutesifo era filho de Eacuteolo o que torna Ulisses um descendente de Eacuteolo logo
Eoacutelida Na Eneida isso reforccedila a linhagem criminosa de Ulisses pela reiteraccedilatildeo de um
antepassado tambeacutem criminoso e iacutempio
Com efeito Aias de Soacutefocles eacute um texto relevante no estabelecimento dessa
genealogia impiedosa que tem Siacutesifo como personagem fulcral para essa inteligecircncia
digamos criminosa e tambeacutem hereditaacuteria Esta obra reforccedila repetidamente atraveacutes da
perspectiva de Aacutejax a vocaccedilatildeo e a desenvoltura do heroacutei de Iacutetaca acima de tudo na
persuarsatildeo e na mentira talentos jaacute descritos em Piacutendaro (cf p 161) De acordo com o coro
da peccedila Ulisses persuade (πείθει v 150) e tambeacutem conjuntamente com os Atridas ainda
segundo os nautas e guerreiros sob o comando do Telamocircnio engana com narrativas
(κλέπτουσι μύθους v 189) Essa caracterizaccedilatildeo certamente influencia a iacutendole fraudulenta
de Ulisses na versatildeo latina que retoma tal ideia sobretudo a partir do vocaacutebulo narret (v
14 XIII) que delineia a natureza mentirosa e persuasiva de suas palavras Aleacutem disso a raiz eacute
a mesma tanto da palavra κλεπτοσύνῃ que define o ato de Autoacutelico na Odisseia quanto da
κλέπτουσι que delineia Odisseu em Aias Tal raiz se refere a noccedilatildeo de furto e engano
Contudo Soacutefocles imbui esse talento hereditaacuterio natildeo a Autoacutelico mas agrave linhagem dos Sisifidas
(Σισυφιδᾶν γενεᾶς v 190) claramente definindo ao nosso ver o caraacuteter de Odisseu Todos
os seus artifiacutecios os quais seriam utilizados com objetivos vis teriam ancestralidade em
Siacutesifo personagem notaacutevel pelos crimes e pela puniccedilatildeo exemplar no Hades como jaacute
dissemos Assim credita-se a Odisseu pela voz do coro natildeo apenas uma vocaccedilatildeo para os
crimes hereditaacuteria mas tambeacutem uma grande vocaccedilatildeo para tal praacutetica
188
Com efeito enquanto esse tragedioacutegrafo insere de maneira mais viva os assuntos
proacuteprios dos discursos de tipo laudatoacuterio (ἐγκωμιαστικόν) e do tipo vituperioso (ψεκτικόν)
Oviacutedio o desenvolve seguindo a estrutura formal do modelo retoacuterico Assim como jaacute vimos
na peccedila grega as referecircncias ao aspecto criminoso de Odisseu estatildeo distribuiacutedas nas falas de
vaacuterios personagens contudo aquela em relaccedilatildeo a Siacutesifo se insere na do coro Em
contrapartida ainda eacute possiacutevel por exemplo ver em Aias o elogio agrave linhagem do
protagonista seja em suas proacuteprias palavras quando louva os feitos do pai (v 434-436) ou
seja na fala de Teucro quando este glorifica tambeacutem as mesmas faccedilanhas (v 1300) No
entanto esses assuntos estatildeo bem dispersos na obra
O Telamocircnio da versatildeo latina descreve a sua genealogia e a de seu opositor um
assunto recorrente e dito pela Retoacuterica como componente dos ldquoelementos externos agrave virtuderdquo
(τὰ ἔξω τῆς ἀρετῆς Retoacuterica a Alexandre XXXV 1440b 15-20) de forma concentrada entre
os versos 21 e 33 E claramente tal elemento eacute disposto pelo heroacutei em defesa do seu valor e
em depreciaccedilatildeo da de seu adversaacuterio Segundo os postulados retoacutericos o proacuteprio heroacutei
reconhece sua linhagem excelente (nobilitate potens v 22 XIII) como natildeo sendo inerente agrave
virtude Ele mesmo diz que teria ao menos nobreza ldquose a virtude fosse dubitaacutevelrdquo (si uirtus
[] dubitabilis esset v 21 XIII)
Na versatildeo latina de Oviacutedio satildeo duas as referecircncias a Siacutesifo inseridas no discurso de
Aacutejax A primeira mais indireta no propoacutesito de depreciar o adversaacuterio pois em verdade
compotildee o elogio agrave famiacutelia do heroacutei desmoderado atraveacutes da descriccedilatildeo das atividades de seu
ancestral Eacuteaco filho de Juacutepiter O discurso laudatoacuterio glorifica a sua ancestralidade divina de
reis Aleacutem disso Eacuteaco eacute mencionado como juiz nos Infernos (v 25-26 XIII) ou seja detentor
de uma posiccedilatildeo privilegiada E para compor a imagem deste como um juiz refere-se ao seu
lugar de trabalho como aquele no qual a pesada rocha comprime o Eoacutelida Siacutesifo (ubi Aeoliden
saxum graue Sisyphon urget v 26 XIII) Neste momento natildeo se menciona qualquer relaccedilatildeo
com a linhagem de Ulisses contudo Eacuteaco e Siacutesifo satildeo postos como grandes figuras
sobretudo antagocircnicas pois o primeiro recebe os benefiacutecios tornando-se juiz como
consequecircncia provaacutevel de uma vida de praacutetica de justiccedila o segundo recebe uma puniccedilatildeo
exemplar como resultado de uma vida de praacutetica de crimes Assim embora ainda natildeo se
tranccedilando a linhagem do adversaacuterio do Telamocircnio comparam-se os acenstrais com naturezas
opostas uma positiva e outra negativa segundo a proacutepria oposiccedilatildeo que Aacutejax faz entre ele e
Ulisses A segunda referecircncia que prossegue textualmente agrave primeira apresenta Ulisses como
descendente direto de Siacutesifo (sanguine creatus Sisyphio v 31-32 XIII) e como semelhante
tanto no furto quanto na fraude (furtisque et fraude simillimus v 31 XIII) A linhagem e a
189
iacutendole do chefe de Iacutetaca satildeo assim efetivamente ofendidas uma vez que essas duas referecircncias
a uma ancestralidade nefanda e criminosa satildeo dispostas em puacuteblico diante de todos os chefes
e de toda a tropa Devemos lembrar que a unidade textual do episoacutedio e o seu propoacutesito
semacircntico se baseiam tambeacutem na oposiccedilatildeo entre excesso e moderaccedilatildeo Devido a tais
premissas vemos o orador mais moderado da disputa apenas refutar tal disposiccedilatildeo do seu
oponente Por um lado de forma mais especiacutefica apresentando Laertes como pai (mihi
Laertes pater est v 144 XIII) o qual eacute oriundo de Arceacutesio (Arcesius illi v 144 XIII) este
que eacute filho tambeacutem de Juacutepiter (Iuppiter huic v 145 XIII) semelhantemente a Teacutelamon ou
seja Ulisses natildeo soacute apresenta a mesma ancestralidade divina de reis como tambeacutem dispotildee
uma linhagem na qual natildeo haacute algueacutem condenado (neque in his quisquam damnatus v 145
XIII) o que contesta a versatildeo da genealogia iacutempia Por outro de forma mais abrangente o
autonomeado Laertida reconhece nas palavras do seu opositor insultos contra si (conuicia v
306)
A priori o ato de Ulisses em refutar Aacutejax aparentemente natildeo o insultando mas
apresentando uma outra genealogia e sobretudo repreendendo-se o vitupeacuterio e o atribuindo
ao proacuteprio caraacuteter desmoderado de seu adversaacuterio eacute certamente significativo para a unidade
textual do episoacutedio Com efeito o discurso vituperioso sai do acircmbito comum da retoacuterica e se
torna efetivamente um elemento proacuteprio e singular do estilo do Telamocircnio Dessa forma a
depreciaccedilatildeo puacuteblica da linhagem do opositor entatildeo manifesta-se validamente como um
insulto que revela a natureza iracunda do heroacutei que se sente desonrado quando relativizamos
o comportamento dos dois personagens na estruturaccedilatildeo do episoacutedio Esse parece ser o
propoacutesito literaacuterio dos elementos retoacutericos inseridos no Livro XIII de Metamorfoses
Tal diposiccedilatildeo genealoacutegica com propoacutesitos depreciativos de caraacuteter a qual apresenta
como ancestral mais importante de Ulisses o personagem Siacutesifo legando agravequele a inteligecircncia
astuta e criminosa parece-nos ter como influecircncia extremamente importante para a tradiccedilatildeo
da literatura claacutessica a obra Aias de Soacutefocles Esta peccedila certamente parece influenciar a obra
de Oviacutedio uma vez que os argumentos de Aacutejax estatildeo presentes naquela mas reelaborados Os
argumentos satildeo desenvolvidos pelo autor latino transformado-os seus conteuacutedos Duas
transformaccedilotildees satildeo perceptiacuteveis nesse processo hipertexual
A primeira eacute a relaccedilatildeo hipertextual de transmodalizaccedilatildeo mais especificamente uma
transformaccedilatildeo intermodal Sabendo-se que Oviacutedio desenvolve em seu texto transformaccedilotildees
intermodais proacuteprias do modo dramaacutetico extamente porque apresenta a disputa pelas armas
em um processo inerentemente mimeacutetico dessa forma a transformaccedilatildeo intermodal consiste
em privilegiar Aacutejax com os argumentos pertencentes ao coro da obra Aias A alteraccedilatildeo se
190
trata entatildeo da redistribuiccedilatildeo da fala dos personagens Aleacutem disso essa modificaccedilatildeo
hipertextual torna tal referecircncia a Siacutesifo mais significativa dentro do episoacutedio da vertente
latina Ela serve tanto para desvalorizar o caraacuteter do personagem ofendido quanto para
fundamentar a ideia de crimes cometidos por ele
A ancestralidade iacutempia confere ao descendente uma vocaccedilatildeo criminosa poreacutem esta
uacuteltima deixa de ser potencial e se torna extremamente verossiacutemil quando haacute a narraccedilatildeo de
fatos nos quais tal praacutetica pode ser identificada pois as narrativas satildeo mais convincentes por
refletirem o modo de algueacutem agir (Retoacuterica a Alexandre XXXV 1441b 15-21) No episoacutedio
em questatildeo de Metamorfoses a importacircncia da linhagem referida jaacute no iniacutecio do discurso do
Telamocircnio se faz sobretudo devido agrave sustentaccedilatildeo que tal elemento promove a trecircs fatos
narrados e descritas acerca de Ulisses a primeira sobre Palamedes a segundo acerca de
Filoctetes e a terceira em relaccedilatildeo a Nestor Todos esses trecircs eventos satildeo conhecidos do
puacuteblico mas eacute a perspectiva do orador que imputa nas accedilotildees um caraacuteter de revelaccedilatildeo acerca
da iacutendole de quem as praticou A accedilatildeo contra Palamedes causa a sua morte por meio de uma
dita fraude do Laertida uma vez que este forjou (finxit v 59 XIII) a traiccedilatildeo de um
compatriota A accedilatildeo contra Filoctetes o afasta da tropa e sendo detentor das armas de
Heacutercules conforme o oraacuteculo de Calcas ele seria necessaacuterio para a vitoacuteria sobre Troia A
accedilatildeo contra Nestor abandonando-o em combate eacute vista tambeacutem como um crime (crimen v
64 XIII) Dessa forma Ulisses natildeo soacute segundo Aacutejax teria enfraquecido as forccedilas dos gregos
como a forma com a qual age justifica a alcunha de estimulador de crimes (hortator scelerum
v 45 XIII) o mesmo vocaacutebulo usado por Virgiacutelio no Livro VI da Eneida Com efeito a
referecircncia agrave linhagem Sisifida eacute proporcionalmente mais significativa para o eixo semacircntico
do episoacutedio de Oviacutedio pois eacute fundamental para a sustentaccedilatildeo das narrativas e dos argumentos
que tem como propoacutesito a depreciaccedilatildeo e o insulto do adversaacuterio elementos essenciais para a
estruturaccedilatildeo de uma retoacuterica que revele o caraacuteter iracundo do personagem
A segunda eacute a relaccedilatildeo hipertextual de valorizaccedilatildeo A genealogia de Ulisses tal como eacute
estruturada segundo o que tambeacutem dispomos acima faz parte do estilo retoacuterico de Aacutejax que
revela e destaca sua ira Em se considerando no episoacutedio em questatildeo os propoacutesitos literaacuterios
do discurso vituperioso a ira do personagem a qual se torna mais intensa na obra em relaccedilatildeo
a outros hipotextos permite a valorizaccedilatildeo do heroacutei em seu caraacuteter intermediaacuterio proacuteprio do
sistema axioloacutegico da obra Metamorfoses promovendo como na trageacutedia uma accedilatildeo mais
traacutegica segundo as premissas aristoacutetelicas Assim a profunda ira do heroacutei se equilibra com a
sua excelecircncia guerreira compondo os elementos necessaacuterios mais propriamente uma ira
191
insustentaacutevel e a capacidade de resistecircncia e conteccedilatildeo do personagem os quais desencadeiam
o fim traacutegico de Aacutejax
A segunda transformaccedilatildeo que salienta o papel estrutural da ira eacute a referecircncia agraves armas
de Aquiles com o objetivo de diminuir a compleiccedilatildeo fiacutesica e guerreira de Ulisses contudo a
relaccedilatildeo de hipertextualidade retrata um diaacutelogo natildeo com Soacutefocles mas com Homero Com
efeito essa passagem inserida entre os versos 103 e 116 parece-nos a mais agressiva e
vituperiosa do Telamocircnio tanto porque denigre publicamente o adversaacuterio de forma
excessiva quanto porque as perguntas retoacutericas reforccedilam o aparente escaacuternio ao heroacutei de
Iacutetaca que natildeo eacute certamente tatildeo despreziacutevel quanto o fazem as palavras do seu opositor
Trecircs satildeo os componentes das armas de Aquiles utilizados no discurso de Aacutejax para
inferiorizar seu oponente de forma brutal o elmo a lanccedila e mais significativamente o escudo
do Pelida Tais armas satildeo referidas sob dois apectos o brilho oriundo do material de sua
composiccedilatildeo e o peso proacuteprio para pujantes guerreiros Esses dois aspectos satildeo fundamentais
para os argumentos do heroacutei que tenta provar a inadequaccedilatildeo da natureza do Laertida com as
das armas Vejamos uma anaacutelise de cada uma dessas armas
O elmo por exemplo eacute mencionado em especial pelo seu brilho que torna a peccedila
radiante (nitor galeae radiantis v 105 XIII) Tal fulgor proveacutem do ouro (claro ab auro v
105 XIII) que o compotildee Essa caracteriacutestica da peccedila beacutelica impede segundo o orador
iracundo o seu opositor de executar suas costumeiras accedilatildeos como os usuais artifiacutecios (insidias
v 106 XIII) aos inimigos desprevenidos (incautum hostem v 104 XIII) uma vez que
prejudica o ato de se esconder (laetentem v 106 XIII) necessaacuterio para tal proeza A
incoerecircncia desse personagem sorrateiro com a natureza do capacete eacute realccedilada com pergunta
retoacuterica ldquopor que estas [armas] seratildeo para o iacutetaco que [age] furtivamente [] e engana com
ardisrdquo (Quo tamen haec qui clam [] et furtis decipit v 103-104) Certamente essa pergunta
age com uma ironia que marca as naturezas opostas e confrontadas da arma e do Laertida
sobretudo pelo diaacutelogo com a Iliacuteada Podemos citar ao menos dois tipos O primeiro diaacutelogo
mais oacutebvio com a obra de Homero eacute a proacutepria natureza da gaacutelea composta de ouro e forjada
por Hefesto deus grego assemelhado ao Vulcano latino cujos domiacutenios e capacidades satildeo em
especial o fogo e seu trabalho industrioso
Eacute o Canto XVIII da Iacuteliada que apresenta por primeiro a descriccedilatildeo das armas fabricadas
pelo deus a qual se torna o foco do episoacutedio cujo argumento maior eacute a fabricaccedilatildeo divina delas
mesmas Esse episoacutedio descreve tal elmo (κόρυθα v 611) com cimo de ouro (χρύσεον
λόφον v 612) O Canto XIX apresenta mais uma descriccedilatildeo quando tais equipamentos satildeo
tomados por Aquiles Neste momento podemos observar que a ldquogaacutelea crinada brilhava como
192
estrelardquo (ἀστὴρ ὥς ἀπέλαμπεν ἵππουρις τρυφάλεια v 381-382) cujas ldquocrinas de ourordquo
(ἔθειραι χρύσεαι v 382-383) estavam no cimo (λόφον v 383) Estatildeo claras as recorrecircncias
do brilho e do material ouro tanto na composiccedilatildeo da imagem do elmo quanto inclusive na
das outras armas de Aquiles Vale salientar que tais caracteriacutesticas dessa arma revelam em
verdade aleacutem da exiacutemia habilidade industrial de Hefesto em prol de um ornamento artiacutestico a
ligaccedilatildeo divina entre os deuses sobretudo oliacutempicos e o objeto cujo reflexo ontoloacutegico se
observa no proacuteprio aspecto concreto do ouro como material belo e excelso que reluz
intensamente Consequentemente tais armas satildeo instrumentos de origem divina e por isso
superiores Devido a essa disposiccedilatildeo quando revestem Aquiles seu fulgor toca o ceacuteu (αἴγλη
δrsquo οὐρανόν ἷκε v 362)
Contudo para noacutes o diaacutelogo mais significativo em especial como hipotexto para o
episoacutedio de Oviacutedio eacute outro um segundo o qual pode ser observado por exemplo no Canto
XX quando Aquiles se apresenta aos troianos revestidos com suas armas Neste momento a
natureza divina delas revela sua funccedilatildeo essencial a guerra Logo seu fulgor eacute funesto Por
isso elas incitam nos troianos o medo terriacutevel (τρόμος αἰινὸς v 44) quando com tais armas
ο Pelida reluz (Πηλείωνα τευχεσι λαμπόμενον v 45-46) diante dos inimigos Dessa forma
tal como acredita o Telamocircnio o brilho das armas e consequentente do elmo manifesta sua
natureza divina e funesta para os inimigos natildeo devendo ser ocultada mas ao contraacuterio
exigindo se fazer visiacutevel e perceptiacutevel para cumprir seu objetivo Com efeito tais diaacutelogos
com a Iliacuteada alicerccedilam de forma mais expressiva os argumentos do orador iracundo da obra
de Oviacutedio
Essa transtextualidade presente no texto de Oviacutedio pode ser propriamente identificada
como uma alusatildeo uma vez que os episoacutedios homeacutericos mencionados acima satildeo fundamentais
para o entendimento da perspectiva do Telamocircnio acerca das armas Esses episoacutedios natildeo satildeo
transformados ou ressignificados mas satildeo referidos em um outro contexto e em uma outra
obra ainda de acordo com os mesmos valores e sentidos presentes no hipotexto Assim o
brilho do elmo (nitor galeae) sobretudo proveniente do ouro (auro) material visto como de
natureza divina natildeo pode ser associado a accedilotildees sorrateiras e noturnas Isso eventualmente
seria uma incoerecircncia por isso a pergunta retoacuterica eacute tatildeo relevante na ecircnfase dessa
contradiccedilatildeo uma vez que faz da imagem de um gatuno a portar tal reluzente instrumento uma
contundente ironia no intuito de diminuir Ulisses em relaccedilatildeo agraves armas e ao proacuteprio Aacutejax
Com efeito essa referecircncia intertextual a saber a alusatildeo contribui efetivamente na loacutegica
retoacuterica do Telamocircnio o qual inferioriza o Laertida por completo sobretudo em sua
193
excelecircncia guerreira foco da descriccedilatildeo das armas de Aquiles inserida jaacute ao fim de seu
discurso vituperioso
Vejamos agora a relaccedilatildeo de transtextualidade estabelecida com a referecircncia a outro
componente da descriccedilatildeo das armas a lanccedila singular do Pelida Se por um lado como
dissemos devido ao seu fulgor o elmo apresenta inadequaccedilatildeo com o heroacutei sorrateiro por
outro a lanccedila singular apresenta inadequaccedilatildeo com Ulisses porque eacute necessaacuterio grande vigor
para empunhaacute-la o qual segundo o orador iracundo o seu opositor natildeo deteacutem
Na Iliacuteada diferentemente do capacete de guerra de Aquiles a sua lanccedila natildeo foi
fabricada conjuntamente com as armas forjadas por Hefesto em substituiccedilatildeo agravequelas dadas a
Paacutetrocles pelo Pelida Contudo tal haste eacute ainda iacutempar e sua singularidade eacute mencionada ao
menos duas vezes no texto homeacuterico
A primeira menccedilatildeo estaacute inserida no Canto XVI quando essa arma eacute apresentada como
a uacutenica natildeo oferecida por Aquiles ao seu amigo dileto especialmente por sua composiccedilatildeo
oferecer difiacutecil manejo A lanccedila eacute pesada grande e robusta (ἔγχος [] βριθὺ μέγα στιβαρόν v
140-141) composta de freixo retirado do topo do monte Peacutelion (Πηλίου ἐκ κορυφῆς v 144)
e nenhum dos Aqueus era capaz de brandi-la (οὐ δύνατrsquo ἄλλος Ἀχαιῶν πάλλειν v 141-142)
soacute Aquiles o fazia (οῖος ἐπίστατο πῆλαι Ἀχιλλεὺς v 142) A segunda menccedilatildeo estaacute presente
no Canto XIX quando o heroacutei se prepara para voltar agrave guerra Nessa passagem como eacute
comum agrave estrutura eacutepica os mesmos versos do Canto VI satildeo repetidos entre os versos 387 ao
391 do Canto XIX tanto a composiccedilatildeo da lanccedila pesada grande robusta e de origem no
freixo do monte Peacutelion quanto a singularidade de apenas Aquiles ser capaz de manejaacute-la
Com exceccedilatildeo da restriccedilatildeo do manejo Oviacutedio retoma no Livro XIII de Metamorfoses
todas essas caracteriacutesticas descrevendo a lanccedila (hasta v 109) onerosa (onerosa v 108) ou
seja de difiacutecil manejo grave (grauis v 108) ou seja pesada para empunhar e Peliacuteade
(Pelias v 109) ou seja do monte Peacutelion Dessa forma tal arma eacute improacutepria para braccedilos
imbeles (inbeliibus lacertis v 109) como eacute descrita por Aacutejax toda a compleiccedilatildeo fiacutesica de
Ulisses desprovida de vigor guerreiro
Com efeito mais uma vez vemos a utilizaccedilatildeo de uma nova alusatildeo uma relaccedilatildeo de
intertextualidade com a Iliacuteada uma vez que o conhecimento desta obra eacute necessaacuterio para o
entendimento pleno da passagem da obra latina Contudo o propoacutesito ainda eacute o mesmo
reforccedilar os argumentos do Telamocircnio que opotildee em sua estrutura retoacuterica a natureza beacutelica
das armas agrave iacutendole imbele de seu opositor
A uacuteltima referecircncia transtextual do autor latino acerca da descriccedilatildeo das armas segundo
os mesmos objetivos das anteriores eacute sobre o escudo o qual recebe destaque na versatildeo
194
homeacuterica e na de Oviacutedio tambeacutem porque esse instrumento recebe um papel fundamental na
refutaccedilatildeo do Laertida contra a ideia de sua debilidade beacutelica e a favor de sua sagacidade
como veremos mais agrave frente
No Livro XIII de Metamorfoses a opulecircncia do escudo de Aquiles eacute referida por meio
de qualificativos que caracterizam na verdade a gravura nele representada Como expressa o
texto o escudo tem esculpido em si a imagem do vasto mundo (uasti imagine mundi v 110)
Logo de tal descriccedilatildeo podemos por meio de uma relaccedilatildeo figurada quase de hipaacutelage
transferir semanticamente a ideia da dimensatildeo da figura agrave arma em questatildeo Com efeito essa
vastidatildeo da imagem representada se compreende exatamente pela referecircncia ao texto
homeacuterico em que podemos ver a descriccedilatildeo de todas as figuras presentes
Eacute precisamente o Canto XVIII da Iliacuteada que apresenta o detalhamento do escudo (v
478-608) Nessa passagem diferentemente de Oviacutedio o texto revela expressamente a
opulecircncia do equipamento utilizando-se o leacutexico que descreve a lanccedila Peliacuteada Assim ele eacute
grande e robusto (μέγα τε στιβαρόν τε v 478) Aleacutem disso eacute denominado pelo vocaacutebulo que
descreve um tipo de escudo maior σάκος (v 478) o mesmo que comumente eacute utilizado para
descrever o escudo de Aacutejax na Iliacuteada (cf p 76) O vasto mundo referido por Oviacutedio nos
parece sintetizar sobretudo o que Homero descreve estar circunscrito pelo Oceano rio que
envolve a terra na representaccedilatildeo homeacuterica a terra o ceacuteu e o mar (ἐν μὲν γαῖαν ἔτευξ᾽ ἐν δ᾽
οὐρανόν ἐν δὲ θάλασσαν 483 XIII) e tudo aquilo que se insere nessas trecircs regiotildees ou seja
o mundo e a sua perspectiva do cosmos uma vez que vaacuterias constelaccedilotildees e astros estatildeo
representados na figura
Com efeito essa vastidatildeo do mundo mencionado pelo autor latino tanto conota a
robustez do escudo quanto dialoga com a Iliacuteada Tal disposiccedilatildeo sinteacutetica de Oviacutedio sugere que
o escudo eacute vasto para conter o mundo e consequentemente tambeacutem eacute pesado para
representar sua totalidade Assim reforccedila-se mais uma vez o caraacuteter beacutelico necessaacuterio para
empunhar tal arma sobretudo porque como tambeacutem o texto homeacuterico insinua as armas de
Aquiles e tambeacutem o escudo satildeo onerosos exigindo-se um vigor e forccedila fiacutesica superiores ateacute
aos heroacuteis gregos aleacutem de outras capacidades guerreiras Devido a isso tal instrumento eacute
inadequado (nec conueniet v 110-111 XIII) a Ulisses pois este personagem teria a matildeo
esquerda a que empunha o escudo tanto covarde (timidae v 111 XIII) quanto nascida para
os ardis (natae ad furta v 111 XIII) E por toda essa configuraccedilatildeo Aacutejax em seu discurso
iracundo de depreciaccedilatildeo coroa sua fala com insultos no vocativo diretos ao seu opositor
como ldquoo mais covarderdquo (timidissime v 115 XIII) e ldquoiacutemprobordquo (improbe v 112 XIII)
centrando e fechando seu argumento de que seu opositor eacute fraco imbele desonesto e finoacuterio
195
Aleacutem disso jaacute ao final de sua defesa o Telamocircnio explicitamente apresenta como
reforccedilo aos seus argumentos a ideia que apresentamos acima presente no Canto XX da Iliacuteada
a noccedilatildeo de que a natureza das armas se adequa agrave guerra tendo tornado assim Aquiles mais
aterrorizante e mais imponente quando em posse daquelas mesmas Como o estilo retoacuterico do
personagem em especial tem como base a oposiccedilatildeo e a contradiccedilatildeo a ecircnfase no contraacuterio ou
seja na inadequaccedilatildeo com as armas enfraquece a sua funccedilatildeo beacutelica Por isso com a perguta
retoacuterica do verso 112 recurso comum do orador iracundo o heroacutei destaca tal incoerecircncia
mencionando expressamente que o opositor efetivamente debilitaraacute o propoacutesito do escudo
(debilitaturum munus v 112 XIII) O participiacuteo futuro do verbo debilitar (debilito) ligado ao
pronome que se refere a Ulisses (te v 112 XIII) eacute contundente nesse objetivo em especial
pelo seu complemento que significa exatamente ldquofunccedilatildeordquo (munus v 112 XIII) Segundo a
loacutegica retoacuterica de Aacutejax a incoerecircncia eacute tamanha que o enfraquecimento de tal funccedilatildeo vai
gerar inclusive motivo para que o Laertida se usar as armas natildeo seja temido pelo inimigo
(non metuaris ab hoste v 114 XIII) ou seja o propoacutesito primeiro da posse de tais
instrumentos e desencadeie um motivo ainda pior encorajando-se os inimigos no intuito de
que o portador de tais seja espoliado (spolieris v 114 XIII)
Toda essa disposiccedilatildeo acerca da figura de Ulisses diante das armas de Aquiles
certamente nos parece incutir a caracterizaccedilatildeo da ira do personagem de Salamina A
conjuntura desses elementos como as perguntas retoacutericas os vocativos vituperiosos e a
depreciaccedilatildeo completa de todos os atributos do adversaacuterio fiacutesico moral e genealoacutegico permite
o reconhecimento de uma retoacuterica excessiva na agressatildeo e no vitupeacuterio quando comparada
efetivamente agrave de seu opositor moderada Tal sentimento de ira de Aacutejax parece extrapolar
quando dessa descriccedilatildeo comparada das armas pois mesmo moderado o Laertida nos parece
se exceder significativamente na refutaccedilatildeo desse uacuteltimo argumento em especiacutefico
Em resposta a tais alegaccedilotildees em especiacutefico quanto agrave questatildeo das armas o orador
moderado primeiramente potildee em cheque a ideia de que eacute imbele Ele o faz segundo sua loacutegica
retoacuterica mais recorrente apresentando fatos sem ofender o adversaacuterio como fez com a
questatildeo de sua ancestralidade No caso em questatildeo Oviacutedio potildee em suas proezas um fato que a
tradiccedilatildeo conferia a Aacutejax o resgate do cadaacutever de Aquiles Com efeito Lesches em sua
Pequena Iliacuteada (WEST 2003 p 125) e Exekias em suas pinturas em vasos (MOORE 1980
p 417) por exemplo seguem a tradiccedilatildeo mais corrente figurando-se o Telamocircnio como o
heroacutei que recupera o cadaacutever de Aquiles quando da morte do filho de Peleu Para o eixo
semacircntico da obra de Oviacutedio tal transformaccedilatildeo e ressignificaccedilatildeo desse evento permite Ulisses
comprovar seu vigor uma vez que em seus ombros carregou ele mesmo tanto o Pelida quanto
196
suas armas (umeris ego corpus Achillis et simul arma tulit v 284-285 XIII) Esse fato refuta
qualquer ideia de debilidade fiacutesica ao personagem sobretudo porque reforccedila
significativamente o feito com o pronome ego de maneira que disso depreendemos o fato de
ele ter executado tal accedilatildeo sozinho Contudo ele natildeo se restringe a isso pois avanccedila
parecendo-nos assemelhar-se levemente ao oponente em seu excesso Tendo primeiramente se
mostrado apto a usar as armas em seguida o heroacutei diminui o seu adversaacuterio diante do escudo
A perspectiva se torna natildeo mais a forccedila mas a inteligecircncia a qual como jaacute vimos eacute o eixo
positivo do sistema de valores apresentado por Ulisses
A compreensatildeo da arte infundida por Vulcano na arma se torna paracircmentro para
distinguir quem deve portar o escudo uma vez que a forccedila foi comprovada ser atributo de
ambos O heroacutei de Iacutetaca entatildeo denomina Aacutejax brusco (rudis v 290 XIII) soldado sem peito
(sine pectore miles v 290 XIII) o que configura tal heroacutei como desprovido tanto no intelecto
quanto na sensibilidade necessaacuteria para compreender plenamente o conhecimento e a arte
representados nas gravuras do escudo Alega assim que seu adversaacuterio pretende tomar as
armas as quais natildeo compreende (quae no intellegit arma v 295) Com efeito o Oceano
(Oceanum) as terras (terras) os astros no alto ceacuteu (alto sidera caelo) as Plecirciadas (Pleiadas)
as Hiacuteades (Hyadas) a Ursa (Arcton) e Orion (Orionis) presentes entres os versos 292 e 294
do Livro XIII apresentam-se como uma siacutentese uma condensaccedilatildeo aos termos de Genette de
todo o mundo grego representado no escudo descrito na Iliacuteada (XVIII 478-608) E toda essa
referecircncia serve como recurso para que Ulisses possa devolver a depreciaccedilatildeo sofrida Isso
realmente parace nos ser o excesso semelhante ao do Telamocircnio sobretudo certamente
porque sendo heroacutei tal conhecimento e arte estatildeo ao alcance deste heroacutei A rudeza ao menos
segundo o eixo semacircntico proposto por Oviacutedio estaria no acircmbito da ira como elemento
revelador de sua desmoderaccedilatildeo
Todas essas possibilidades transtextuais do acircmbito da genealogia e da grandeza das
armas diante de Ulisses satildeo pertinentes e vaacutelidas na caracterizaccedilatildeo de Aacutejax uma vez que
mesmo sendo uma referecircncia a Soacutefocles ou a Homero ambas promovem um aprofundamento
da ira do personagem em relaccedilatildeo aos seus hipotextos sentimento o qual jaacute na trageacutedia Aias
recebe destaque Logo a composiccedilatildeo e o papel significativo da ira tanto do heroacutei de Oviacutedio
quanto do de Soacutefocles conjuntamente com essas transtextualidade dispostas sugerem uma
influecircncia que nos parece ir certamente aleacutem da mera coincidecircncia
No entanto uma transtextualidade sobretudo de caraacuteter linguiacutestico reforccedila tal
suposiccedilatildeo fugindo inclusive um pouco aos limites da teoria postulada por Genette Essa
transformaccedilatildeo tem efeito especialmente no eixo semacircntico afetando-o a partir do leacutexico
197
escolhido Dessa forma a reiteraccedilatildeo do leacutexico significativo permite o reforccedilo ao eixo
semacircntico proposto por Oviacutedio em Metamorfoses O mais expressivo termo eacute o sintagma
inpatiens irae (v 3 XIII)
Com efeito a anaacutelise desse sintagma (cf p 120 et seq) jaacute nos mostrou sua relaccedilatildeo
com os elementos virtude e ira os quais compotildee a estrutura do episoacutedio em questatildeo (cf p
132) Inpatiens como vimos sobretudo quando falamos de seu verbo base patior insere-se
no eixo da virtude do heroacutei Aacutejax a qual estaacute na perspectiva de uma qualidade defensiva e
protetora mais propriamente de resistecircncia e de contenccedilatildeo tanto dos sentimos ou seja do
controle das emoccedilotildees quanto dos inimigos ou seja de sua resistecircncia diante dos assaltos dos
troianos O sentido expresso por essse termo se reitera por meio da grande recorrecircncia de
outro vocaacutebulo importante o verbo sustineo que aparece quatro vezes uma no verso 8 outra
no 88 e mais duas no 385 tanto no sentido militar quanto no emocional Tal verbo eacute usado
propositalmente nesse duplo sentido conjungando-se uma ideia de temperanccedila e resistecircncia
beacutelica a primeira ligada a grauitas e a segunda a uirtus (cf 133) A expectitativa construiacuteda
por tal estrutura eacute a de uma capacidade do Telamocircnio em resistir agrave ira profunda que o acomete
em razatildeo de sua desonra No entanto tal desfecho natildeo se realiza porque a ira eacute extrema em
sua desmedida ao ponto de ser o uacutenico fator (unam iram v 385 XIII) capaz de vencer a
resistecircncia do heroacutei O sintagma entatildeo resume essa incapacidade do personagem em relaccedilatildeo
ao sentimento que o acossa em virtude de uma honra superestimada supostamente
conspurcada A grande importacircncia desse termo na composiccedilatildeo estrutural justifica para noacutes
inclusive a sua adequaccedilatildeo meacutetrica e funcional semelhante agrave de um epiacuteteto (cf p 121) E tal
estrutura como um todo em prol de uma relaccedilatildeo conceitual e lexical com a ira como um
sentimento vinculado ao excesso parece-nos ecoar da proacutepria composiccedilatildeo de Soacutefocles
Soacutefocles como vimos natildeo restringe o excesso ao elemento ira mas desenvolve seu
eixo semacircntico sobretudo nesse sentimento e na locura infundida por Atena no protagonista
(cf 94 et seq) No entanto enquanto Oviacutedio evidencia em seu sintagma inpatiens irae o
excesso ou seja ira em conjunccedilatildeo com resistecircncia ou seja virtude de contenccedilatildeo Soacutefocles jaacute
fazia algo semelhante no sintagma Χόλῳ βαρυνθεὶς ndash pesado de coacutelera Em Aias o caraacuteter
semacircntico ligado a ideia de ldquopesordquo ldquosobrecargardquo etc eacute recorrente em um leacutexico
especialmente proveniente do nome baryacutes (βαρύς) que guarda em sua raiz esse sentido
Assim aleacutem do particiacutepio aoristo usado para desiginar a condiccedilatildeo do heroacutei ao menos outras
cinco vezes palavras com essa raiz compotildeem o texto abatido (βαρυψύχου v 319) usada para
descrever indiretamente o estado em que se encontra o heroacutei grave destino (βαρείας τύχης v
980) e grave na velhice (ἐν γήρᾳ βάρυς v 1017) respectivamente para qualificar Teucro e
198
Teacutelamon e por fim pesada coacutelera (μῆνιν βαρεῖαν v 656) e reveses pesados (βαρείαις
δυσπραξίαις v 759) usadas para qualificar as accedilotildees dos deuses A recorrecircncia dessa raiz
serve para enfatizar como o sentido de ldquopesadordquo contribui para criar a unidade textual que
opotildee excesso e moderaccedilatildeo
Dessa forma o sintagma inpatiens irae parece dialogar com o sintagma χόλῳ
βαρυνθεὶς na expressatildeo da profundidade e da importacircncia da ira em cada obra logicamente
que tal referecircncia deve ser considerada com o leacutexico mais significativo do eixo semacircntico
proacuteprio de cada uma delas Certamente o tragedioacutegrafo insere tal termo de forma
antecipatoacuteria e sobretudo sintetizadora dos valores essecircncias da obra tal qual tambeacutem faz
Oviacutedio em seu episoacutedio A influecircncia digamos lexical e sintaacutetica oferece um reflexo
aparente Βαρυνθεὶς assemelha-se a inpatiens O primeiro eacute particiacutepio e o segundo um
adjetivo formado a partir de um particiacutepio E ambos tecircm complementos que comportam o
sentimento de ira O primeiro com o genitivo irae e o segundo com o dativo χολῳ os quais
restrigem tal coacutelera como o sentimento base de todo o estado emocional descontrolado de
Aacutejax Tais sintagmas sugerem certamente uma referecircncia do autor latino em relaccedilatildeo ao grego
sobretudo em prol de uma estrutura poeacutetica que procure exprimir o maacuteximo de significado em
um miacutenimo de texto
Diante desses apontamentos sobre as praacuteticas de transtextualidade que operam na
caracterizaccedilatildeo da ira do heroacutei na obra de Oviacutedio pudemos obsevar a influecircncia do texto
sofocliano bem como do homeacuterico Todas essas transformaccedilotildees singularizam a ira do
personagem Aacutejax da versatildeo latina pois estabelecendo-se como um elemento fundamental
para a estrutura do texto esse sentimento eacute significativamente intensificado como nos foi
possiacutevel demostrar em relaccedilatildeo agraves obras de autores anteriores da literatura greco-latina
Com efeito a partir de tais consideraccedilotildees eacute possiacutevel reforccedilar como essas relaccedilotildees de
transtextualidade parecem naturais entre os autores claacutessicos da Antiguidade de modo que
todas essas operaccedilotildees transformadoras realmente revelam a complexidade e a profundidade
do diaacutelogo promovido entre eles o que representa um componente fundamental da qualidade
literaacuteria dos textos do mundo antigo
199
CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
Nosso estudo teve como objetivo apontar praacuteticas intertextuais ou segundo a teoria de
Genette transtextuais entre a obra Metamorfoses de Oviacutedio mais precisamente o seu Livro
XIII e a obra Aias de Soacutefocles O diaacutelogo que pretendemos apontar teve enfoque na
caracterizaccedilatildeo de um personagem presente nessas obras a saber Aacutejax heroacutei de Salamina A
ecircnfase desse trabalho foi dada a dois elementos virtude e ira a priori importantes para o mito
do personagem em especial no episoacutedio retratado em Metamorfoses cujo cerne eacute a disputa
entre Aacutejax e Ulisses pelas armas de Aquiles a qual desencadeia o suiciacutedo do primeiro A
virtude do heroacutei envolve suas capacidades beacutelicas e a ira trata do sentimento desmedido que o
consome e o impulsiona a agir de forma funesta Diante dessas motivaccedilotildees tentamos
comprovar como algumas das transformaccedilotildees promovidas pelo autor latino tiveram como
base a peccedila deste tragedioacutegrafo grego Para isso organizamos o trabalho de modo a permitir a
anaacutelise isolada e preacutevia dos textos envolvidos para em seguida observamos o estudo
comparado a partir dos resultados alcanccedilados Preferimos entatildeo seccionar esta tese em trecircs
capiacutetulos que pudessem apresentar claramente e didaticamente a proacutepria metodologia de sua
realizaccedilatildeo
O primeiro capiacutetulo nomeado a traduccedilatildeo literaacuteria do mito de Aacutejax cumpriu uma
dupla tarefa Buscou-se primeiramente neste momento apresentar a tradiccedilatildeo claacutessica do
heroacutei sobretudo nos poemas homeacutericos com o objetivo de reconhecer particularidades de
sua caracterizaccedilatildeo Tal proacuteposito foi alcanccedilado principalmente porque foi possiacutevel identificar
jaacute em Homero um exiacutemio trabalho literaacuterio de caracterizaccedilatildeo Os poemas homeacutericos assim
conferiram ao personagem excelecircncia guerreira Contudo na Iliacuteada em especial tal
capacidade beacutelica compunha uma virtude mais defensiva e protetora devido agraves proacuteprias
condiccedilotildees das faccedilanhas do Telamocircnio dentro da trama as quais datildeo ecircnfase agrave resistecircncia grega
diante dos troianos uma vez que a obra promove a ideia de avanccedilo grego apenas com a
participaccedilatildeo de seu melhor guerreiro Aquiles A partir da Odisseia reconhecemos o papel da
ira como caracteriacutestica do heroacutei Esse sentimento se faz presente em especial devido agrave
referecircncia ao episoacutedio em que Aacutejax e Ulisses se confrontam pelas armas de Aquiles e a
derrota do primeiro o torna iracundo uma vez que crecirc ser superior ao seu adversaacuterio Por isso
eacute recorrente na tradiccedilatildeo grega a ideia desse heroacutei ser identificado como o ldquomelhor dos
gregos depois do Pelidardquo cujo epiacuteteto se compotildee frequentemente na decorrrente literatura
pelo superlativo aacuteristos (ἄριστος) Esse contexto literaacuterio tambeacutem define a ira do heroacutei de
Salamina bem como a de outros da tradiccedilatildeo grega por meio de um leacutexico muitas vezes
200
especiacutefico cuja raiz estaacute na palavra coacutelera choacutelos (χόλος) Esses dois elementos se
comprovaram assim como fundamentais na composiccedilatildeo do caraacuteter do personagem da versatildeo
de Oviacutedio
O segundo objetivo cumprido ainda nesse primeiro capiacutetulo foi contextualizar
literariamente as obras estudadas com o propoacutesito de se reconhecer nelas tais elementos
ressignificados a um novo eixo semacircntico Quanto a Aias seu contexto ressaltou
significativamente nela a oposiccedilatildeo entre a ideia de excesso hyacutebris (ὕβρις) e a de moderaccedilatildeo
sophrosyacutene (σωφροσύνη) A peccedila entatildeo coloca Aacutejax no eixo da desmedida revestindo sua
ira com tal significado Esse sentimento se torna uma das manifestaccedilotildees funestas do excesso
recriminado na obra Contudo a peccedila reabilita o heroacutei diante de todas as suas proezas
passadas as quais comprovam uma virtude areteacute (ἀρετή) sobretudo beacutelica que natildeo deve ser
ignorada Quanto a Metamorfoses apesar de sua natureza aparentemente eacutepica foi-nos
possiacutevel reconhecer o tratamento liacuterico e traacutegico de seus personagens a partir de estudos sobre
a obra A estruturaccedilatildeo do caraacuteter do personagem em uma virtude defensiva e protetora que
reflete uma virtude romana (uirtus) e sua ira (ira) desmedida e incontinente figuram os
elementos essenciais no desfecho funesto do personagem Tal caracterizaccedilatildeo eacute observada a
partir do discurso dos personagens quando da disputa pelas armas O estilo retoacuterico do
Telamocircnio elaborado para fins literaacuterios permite a compreensatildeo mais plena de seus valores e
dos sentimentos que movem seu comportamento e suas accedilotildees
O segundo capiacutetulo intitulado Estudo isolado da caracterizaccedilatildeo do heroacutei tratou da
anaacutelise mais detalhada das obras em relaccedilatildeo agraves noccedilotildees de virtude sobretudo beacutelica e de ira
Esses dois componentes delineiam o caraacuteter intermediaacuterio do heroacutei necessaacuterio para o traacutegico
tanto na peccedila de Soacutefocles quanto na eacutepica de Oviacutedio
A virtude do heroacutei configura o eixo positivo da caracterizaccedilatildeo do personagem em
ambas as obras e por isso eacute essecircncial agrave sua composiccedilatildeo Em Aias tal primazia guerreira o
permite ser chamado de melhor dos Aqueus (ἄριστος Ἀχαιῶν) por duas vezes uma pelo coro
e outra por Odisseu A segunda parte da peccedila inclusive centra-se na defesa do protagonista
reabilitando-o como heroacutei cujos feitos passados natildeo podem ser suprimidos pelo ato
excessivo ainda que esta accedilatildeo possa pesar negativamente contra ele Em Metamorfoses a
virtude de Aacutejax manifesta restriccedilotildees maiores em relaccedilatildeo agrave tradiccedilatildeo pois se configura como
uma qualidade especialmente defensiva e protetora cuja funccedilatildeo eacute realccedilar a resistecircncia tanto
em relaccedilatildeo ao controle emocional quanto ao acircmbito militar Contudo tal qualidade do
personagem se apresenta efetivamente apenas no acircmbito guerreiro sendo assim incapaz de
conter a sua ira
201
A ira do heroacutei sobretudo como uma predisposiccedilatildeo psicoloacutegica contrabalanccedila o caraacuteter
intermediaacuterio do personagem em seu eixo negativo Para a obra de Soacutefocles a ira (χόλος)
fomenta o caraacuteter excessivo de Aacutejax como um de seus componentes pois a peccedila traz ainda a
ideia de primitividade do personagem e especialmente a loucura divina que o acossa ponto
maior de expressatildeo de tal desmedida Para Oviacutedio tal sentimento de ira (ira) eacute ele mesmo o
elemento mais significativo para o excesso que moveraacute a accedilatildeo funesta do heroacutei Contudo para
ambas as versotildees de Aacutejax grega ou latina a empaacutefia tratada como uma superestima de valor
atribuiacutedo a si compotildee o alicerce desse sentimento descontrolado uma vez que eacute o
reconhecimento de um aparente ultraje agrave desonra que incita em proporccedilotildees iguais a
intensidade da ira que move o personagem Em ambas as obras a ira as percorre Em Aias ela
eacute nomeada duas vezes com o vocaacutebulo choacutelos e presente desde o proacutelogo no significativo
sintagma ldquopesado de coacutelerardquo (χόλῳ βαρυνθεὶς v 41) que qualifica o protagonista permenace
nele apoacutes a sua morte mesmo que natildeo expressa uma vez que no ecircxodo Teucro natildeo permite
que Odisseu participe efetivamente dos ritos fuacutenebres em especial o impedindo de tocar o
cadaacutever Isso conforme diz o irmatildeo do cadaacutever reflete os sentimentos de Aacutejax e como
podemos constatar alinha o episoacutedio em questatildeo com a tradiccedilatildeo homeacuterica na qual o
personagem iracundo nega qualquer reconciliaccedilatildeo com o Laertida quando do encontro dos
dois no Hades no Canto XI da Odisseia No Livro XIII de Metamorfoses tal sentimento eacute
nomeado com o vocaacutebulo ira por duas vezes O sintagma ldquonatildeo sustendo a irardquo inpatiens irae
revela que esse sentimento acossa o personagem mesmo antes de ele comeccedilar a discursar e
defender o seu valor Essa primeira menccedilatildeo jaacute nos adianta e sintetiza o contexto do episoacutedio
que retrata a ira incontinente como o elemento fundamental para sua ruiacutena E tal componente
se revela ser a uacutenica coisa (unam iram) que vence a resistecircncia do heroacutei dotado de toda uma
capacidade de resistecircncia que singulariza a sua virtude O seu suiciacutedio por fim fornece a
violecircncia necessaacuteria para compor a sua transformaccedilatildeo em uma flor puacuterpura oriunda do
sangue derramado do heroacutei motivo pelo qual tal mito se torna presente na obra
Com efeito esse segundo capiacutetudo dispotildee como esses dois elementos virtude e ira
recebem uma funccedilatildeo estrutural no entendimento do propoacutesito semacircntico de cada uma dessas
obras Tanto em Aias quanto em Metamorfoses o conjunto desses dois elementos eacute
imprescindiacutevel na construccedilatildeo do caraacuteter intermediaacuterio do heroacutei necessaacuterio para o valor
traacutegico alcanccedilado dentro desse episoacutedio funesto do mito de Aacutejax representado em ambas as
obras
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O terceiro capiacutetulo deste trabalho apresenta as categorias transtextuais de Genette e as
aplica ao texto de Oviacutedio na busca de um diaacutelogo mais presente entre este autor latino e o
tragedioacutegrafo Soacutefocles especialmente na ressignificaccedilatildeo dos elementos virtude e ira
Nessa etapa apresentamos de forma abrangente os cinco tipos de transtextualidade a
saber a intertextualidade a paratextualidade a metatextualidade a arquitextualidade e a
hipertextualidade Contudo eacute especialmente acerca desta uacuteltima que nos detemos uma vez
que esta descreve a relaccedilatildeo na qual um texto parece ser derivado ou influenciado por uma
outra ou mais obras atraveacutes de transformaccedilotildees que repercutem sobretudo nos propoacutesitos
semacircnticos dos novos textos Assim entre as praacuteticas quantitativas pragmaacuteticas e modais da
hipertextualidade as quais tentamos observar na obra latina estatildeo o aumento e a reduccedilatildeo
que satildeo operaccedilotildees que no geral tratam de ampliar ou abreviar um texto cujo resultado eacute outra
obra as praacuteticas pragmaacuteticas de transmotivaccedilatildeo e transvalorizaccedilatildeo que representam aquelas
operaccedilotildees que modificam o curso das accedilotildees dentro do novo texto sobretudo para ressignificaacute-
las em um novo propoacutesito semacircntico seja ou alterando o grupo de motivos que movem o
personagem ou se investindo na caracterizaccedilatildeo deste de modo a lhe conferir um papel mais
significativo dentro do novo texto e as transmodalizaccedilotildees que tratam da modificaccedilatildeo do
modo ou no modo de representaccedilatildeo do hipotexto em especial de natureza narrativa ou
dramaacutetica
A parte final deste capiacutetulo para qual convergem todos os dados levantados em seccedilotildees
e capiacutetulos anteriores trata da observaccedilatildeo das praacuteticas transtextuais as quais teriam sido
utilizadas por Oviacutedio na estruturaccedilatildeo de seu episoacutedio do mito de Aacutejax sobretudo em relaccedilatildeo
a Soacutefocles Foi-nos possiacutevel ao longo da uacuteltima seccedilatildeo observar vaacuterias operaccedilotildees
transtextuais especialmente em diaacutelogo com as obras homeacutericas Contudo as mais
significativas no estabelecimento de uma transtextualidade com o tragedioacutegrafo grego satildeo
aquelas que atuam sobretudo no episoacutedio da loucura do Telamocircnio e aquelas que parecem
imitar as condensaccedilotildees de Soacutefocles em relaccedilatildeo aos textos homeacutericos
A excisatildeo ou seja a supressatildeo do episoacutedio da insanidade incutida por Atena na
versatildeo latina repercute semanticamente em sua composiccedilatildeo gerando-se expressivamente
tanto a transmotivaccedilatildeo da ira de modo a intensificaacute-la em relaccedilatildeo agrave peccedila grega quanto a
transvalorizaccedilatildeo do caraacuteter intermediaacuterio do personagem retomando-se as premissas
aristoteacutelicas traacutegicas aplicadas a uma eacutepica que se torna mais liacuterica e traacutegica do que o usual
As condensaccedilotildees de episoacutedios dos poemas homeacutericos operadas por Soacutefocles em sua
obra satildeo sobretudo utilizadas por Oviacutedio na configuraccedilatildeo da virtude defensiva e protetora do
heroacutei de Salamina Elas atuam no discurso do Telamocircnio vinculando-se aparentemente a
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uma virtude romana cujo propoacutesito eacute a defesa da paacutetria da famiacutelia e dos aliados Por isso na
perspectiva de Aacutejax suas accedilotildees e seus meacuteritos satildeo maiores significativamente aos do
oponente cujos atos visam apenas a si Dessa forma tais condensaccedilotildees reforccedilam e refletem o
discurso de soberba do heroacutei em relaccedilatildeo ao seu valor uma caracteriacutestica que parece ser
intensificada ou transmotivada na versatildeo de Oviacutedio quanto agrave peccedila de Soacutefocles Uma vez
que a empaacutefia do personagem da versatildeo latina repercute em uma ira que diferentemente da
versatildeo grega inicia-se antes mesmo da disputa pelas armas de Aquiles a ira profunda e
incontida desencadeada por tal soberba fomenta o suiciacutedio do heroacutei sem a necessidade do
episoacutedio da loucura Este uacuteltimo episoacutedio como bem sabemos promove a desonra e o ultraje
maacuteximos para a morte do protagonista de Aias
Certamente com a conclusatildeo deste trabalho por um lado acreditamos ter apontado
uma relaccedilatildeo expressiva entre autores latinos e tragedioacutegrafos gregos no que diz respeito ao
acircmbito da Literatura Comparada em especial a um de seus campos a transtextualidade
teorizada por Genette mas conhecida abragentemente pelo nome de intertextualidade Aleacutem
disso foi possiacutevel reconhecer em certo grau o status de texto matriz absoluto dos poemas
homeacutericos uma vez que o trabalho de caracterizaccedilatildeo dos heroacuteis gregos presente em sua obra
repercute significativamente na obra latina estudada por noacutes Por outro lado tambeacutem
esperamos ter contribuiacutedo com os estudos comparados da Literatura Claacutessica fomentando
metodologia e dados significativos para outros trabalhos que visem a estabelecer diaacutelogos
entre autores latinos e gregos e entre estes uacuteltimos em especial os tragedioacutegrafos
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