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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA FACULDADE DE EDUCAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO LYGIA MARIA DOS SANTOS BAHIA HISTÓRIAS E MEMÓRIAS DE MULHERES NADADORAS: O QUE A TRAVESSIA MAR GRANDESALVADOR REVELA SOBRE A EDUCAÇÃO DAS MULHERES EM SALVADOR/BA Salvador 2017

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA FACULDADE DE EDUCAO

PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM EDUCAO

LYGIA MARIA DOS SANTOS BAHIA

HISTRIAS E MEMRIAS DE MULHERES NADADORAS: O QUE A TRAVESSIA MAR GRANDESALVADOR REVELA SOBRE A EDUCAO DAS MULHERES EM SALVADOR/BA

Salvador 2017

LYGIA MARIA DOS SANTOS BAHIA

HISTRIAS E MEMRIAS DE MULHERES NADADORAS: O QUE A TRAVESSIA MAR GRANDESALVADOR REVELA SOBRE A EDUCAO DAS MULHERES EM SALVADOR/BA

Dissertao apresentada ao Programa de Ps Graduao em Educao da Faculdade de Educao da Universidade Federal da Bahia, como requisito para obteno do ttulo de mestre.

Orientadora: Profa. Dra. Maria Ceclia de Paula Silva

Salvador 2017

SIBI/UFBA/Faculdade de Educao Biblioteca Ansio Teixeira Bahia, Lygia Maria dos Santos. Histrias e memrias de mulheres nadadoras : o que a travessia Mar Grande - Salvador revela sobre a educao das mulheres em Salvador/BA / Lygia Maria dos Santos Bahia. - 2017. 104 f. : il. Orientadora: Prof. Dr. Maria Ceclia de Paula Silva. Dissertao (mestrado) - Universidade Federal da Bahia. Faculdade de Educao, Salvador, 2017. 1. Natao para mulheres - Brasil - Histria. 2. Natao em guas abertas - Bahia - Histria. 3. Mulheres - Educao - Brasil - Histria. 4. Imagem corporal em mulheres. I. Silva, Maria Ceclia de Paula. II. Universidade Federal da Bahia. Faculdade de Educao. III. Ttulo. CDD 797.21 23. ed.

LYGIA MARIA DOS SANTOS BAHIA

HISTRIAS E MEMRIAS DE MULHERES NADADORAS: O QUE A TRAVESSIA MAR GRANDESALVADOR REVELA

SOBRE A EDUCAO DAS MULHERES EM SALVADOR/BA

Dissertao apresentada como requisito parcial para obteno do grau de Mestre em Educao, Faculdade de Educao, da

Universidade Federal da Bahia.

Salvador, 10 de maio de 2017

Maria Ceclia de Paula Silva Orientadora _____________________________ Dra. em Educao Fsica pela Universidade Gama Filho/RJ Universidade Federal da Bahia

Admilson Santos _________________________________________________ Dr. em Educao pela Universidade Federal da Bahia Universidade Federal da Bahia

Anlia de Jesus Moreira____________________________________________ Dra. em Educao pela Universidade Federal da Bahia Universidade Federal do Recncavo da Bahia

Cristine Lima Pires________________________________________________ Dra. em Educao pela Universidade Federal da Bahia Secretaria de Educao da Bahia

Aos meus pais Antonio (in memoriam) e Maria Lygia,

a minha av Guiomar (in memoriam), e a todas as

mulheres que foram e so importantes na minha

vida.

Serei sempre grata,

A Deus, pela oportunidade da minha existncia e espiritualidade que me protege e

orienta;

minha me, pela compreenso dos momentos em que estive ausente;

s minhas filhas, Carolina e Luiza, por despertarem em mim os meus melhores

sentimentos, e pelas palavras de nimo e valorao;

Aos meus irmos, cunhadas e sobrinhos, pelo carinho e incentivo;

s minhas amigas, pela escuta e palavras encorajadoras;

A Ceclia, pela oportunidade, pela confiana, por regar com alegria e afetividade

todos os nossos encontros, transformando as nossas orientaes em momentos de

saber e prazer;

A Angela, Marilia, Desire e Fernanda, por aceitarem participar dessa pesquisa, pela

disponibilidade e acolhimento. As suas narrativas deram vida a esse projeto;

Aos colaboradores Ney e Sued, por se disponibilizarem e contriburem com as suas

experincias para enriquecer esse trabalho;

Aos colegas do grupo de pesquisa HCEL, pela acolhida, pela troca de experincia,

pelos aprendizados, pelos encontros alegres e descontrados que compartilhamos

nesses dois anos;

Ao Programa de Ps-Graduao em Educao da UFBA, pelos aprendizados e

convvio colaborativo dos funcionrios e professores que fizeram parte desse

processo;

Aos professores Anlia Moreira, Cristine Pires e Admilson Santos, que muito

contriburam para o enriquecimento da dissertao;

Aos professores e estagirios do Projeto Nadar, que seguraram as pontas em

todos os momentos de ausncia;

Aos meus colegas da UNIRB, pela pacincia com os meus momentos de ausncia;

A D. Lelinha, que em nome de Tavinho (Otvio de Oliveira Dantas), me recebeu com

carinho e alegria;

E outros (as) que cruzaram o meu caminho nesses dois anos e que, de alguma

forma, contriburam para a realizao desse sonho.

Eu sou aquela mulher a quem o tempo muito ensinou. Ensinou a amar a vida E no desistir da luta, recomear na derrota, renunciar a palavras e pensamentos negativos. Acreditar nos valores humanos e ser otimista.

Creio na fora imanente que vai gerando a famlia humana, numa corrente luminosa de fraternidade universal. Creio na solidariedade humana, na superao dos erros e angstias do presente. Aprendi que mais vale lutar do que recolher tudo fcil. Antes acreditar do que duvidar.

Cora Coralina

RESUMO

A pesquisa objetivou reconstruir, no tempo presente, uma das histrias da participao das mulheres na Travessia Mar GrandeSalvador, a fim de estabelecer relaes entre a educao das mulheres e a participao na prova. Investigou-se algumas edies dessa Travessia, que teve grande destaque nos anos 1950, e acontece at os dias atuais. As mulheres, consideradas sexo frgil, de corpo delicado neste perodo, realizaram a prova poca e continuam a realiz-la, a despeito de questes sociais e educacionais. Justifica-se a presente investigao pelos estudos escassos a respeito das relaes entre histria da educao das mulheres e a natao em mar aberto. Utilizou-se a metodologia da histria oral temtica (Thompson, 1992; Delgado, 2006) para elucidar e recuperar histrias e memrias dos envolvidos na Travessia, e outras fontes documentais. A produo dos sentidos foi igualmente contemplada, a partir dos pressupostos tericos da anlise de contedo (Vron, 1980). Os resultados indicam que a participao na prova, era e de mulheres da elite soteropolitana, em sua maioria branca. Esta participao permanece reduzida em relao dos homens, bem como de mulheres de outras classes sociais, ainda com resistncias. A despeito dessas resistncias, as mulheres que ousaram desafiar e desafiar-se admitem que a participao na Travessia foi importante na educao de forma geral, por oportunizar o conhecimento e superao dos limites de cada uma, promover a autoestima, o respeito ao outro, a convivncia com as diferenas, a disciplina, aquisio de novos saberes. Conclui-se que questes sociais, econmicas e educacionais, continuam a definir papis atribudos s mulheres na sociedade a exemplo do medo da masculinizao dos corpos femininos em determinadas classes sociais. Entre avanos e retrocessos na educao das mulheres no Brasil, considerou-se a Travessia um avano, um divisor de guas no sentido de visibilizar novos horizontes, superar estigmas, valores e papis historicamente naturalizadas para a mulher, como corpo frgil, medrosa, do lar, passiva. A participao da mulher nesse evento em mar aberto, pde contribuir para a ressignificao desses papis, ao ampliar suas potencialidades, seu lugar no mundo e, qui, para a construo de relaes sociais mais igualitrias.

Palavras-chave: Natao para mulheres - Brasil - Histria. Natao em guas

abertas - Bahia - Histria. Mulheres - Educao - Brasil - Histria. Imagem corporal

em mulheres.

ABSTRACT

This research had the purpose of reconstructing, in the present day, one of the stories of women's participation in the Mar Grande - Salvador crossing, in order to establish relations between women's education and participation in this event. We investigated some of these crossings, highlighted in the 50's, and that still happen to this date. The women, considered as the "fragile sex", with "delicated bodies" at that time, took part in the event back there and still take part nowadays, even with the social and educational issues. This investigation justifies itself in the lack of studies about the relations between women and open sea crossings. We used the thematic oral history methodology (Thompson, 1992; Delgado, 2006) to elucidate and recover stories and memories of those involved in the crossing, and other documental sources. The production of the meanings was equally included, from the content analysis theoric assumptions (Vron, 1980). The results tell that the participation in the event was and still is most of women from Salvador's elite class, mostly women of white skin. This participation remains reduced when compared to men's participation, as well as women from other social classes, still with resistance. Despite the resistance, women who dared defy and challenge themselves admit that taking part in the even was important in their general education, for bringing knowledge and overcoming their own limits, promoting selfsteem, respect to the other, living with difference, discipline, and new knowledges. Social, economical and educational issues still take a great role in defining women acting in society, as an example the fear of women's body masculinization in some social classes. Among advances and retractions of women's education in Brazil, we consider the crossing to be an advance, a game changer with the intent of new horizons, surpassing stigmas, values and roles historically associated to women, as fragile body, fearful, prone to domestic work, passive. Women participation in this open sea event has contributed to ressignification of these roles, by widening their power, their place in the world, and even the construction of more equal social relations. Keywords: Swimming for women Brasil History. Open water swimming Bahia History. Women Education - Brasil - History. Women body image.

LISTA DE ILUSTRAES

Figura 1 Primeiro Regulamento da Travessia Mar GrandeSalvador

(1955) ..............................................................................................25

Figura 2 Mapa da Travessia Mar GrandeSalvador (1955) ...........................26

Figura 3 Nota sobre a inscrio de Rita Ribeiro Nunes (1955).......................27

Figura 4 Angela Maria Carvalho (1956).........................................................32

Figura 5 Marlene Nascimento (1957).............................................................39

Figura 6 Angela Maria Carvalho (1957)..........................................................40

Figura 7 Marlia Barreiros (1957)....................................................................41

Figura 8 Fernanda Silva Scher (2016)............................................................47

Figura 9 Desire Dalia (2016).........................................................................48

.

SUMRIO

IMPLICAES TEMTICAS...................................................................11

1 INTRODUO..........................................................................................13

2 A TRAVESSIA MAR GRANDE-SALVADOR: UMA DAS MAIS ANTIGAS PROVAS DO GNERO DO PAS........................................21

2.1 A PRESENA DO BELO SEXO NA TRAVESSIA MAR GRANDE- SALVADOR.............................................................................................23 3 A HISTRIA DA EDUCAO DAS MULHERES NO BRASIL.............51

3.1 DOS ANOS DOURADOS AO INCIO DO NOVO MILNIO:

GESTANDO UMA NOVA MULHER........................................................56

3.2 A HISTRIA DA NATAO FEMININA E A EDUCAO DAS

MULHERES............................................................................................62

4 APRENDENDO NO BALANO DAS ONDAS: O QUE O MAR NOS ENSINOU.................................................................................................72

4.1 ONDAS E CORRENTEZAS DA EXPERINCIA......................................77

4.2 O QUE O MAR NOS ENSINOU...............................................................87

5 LUGAR DE MULHER NO MAR ABERTO? ........................................91

REFERNCIAS........................................................................................96

ANEXO A CARTA DE APRESENTAO DO PPGE ........................103

ANEXO B CARTA DE CESSO DE DIREITOS ................................104

IMPLICAES TEMTICAS

A temtica escolhida, nesse estudo, reflete a minha implicao com a natao,

e o meu interesse sobre a educao das mulheres. Inquietando-me sobre a

ausncia de sistematizao sobre a histria da participao das mulheres na

Travessia Mar Grande-Salvador, aventei a possibilidade de discutir sobre a relao

entre educao das mulheres e a Travessia.

Cabe, nesse momento, falar um pouco da relao entre a natao e minha

histria pessoal e profissional, porque foi ela que me trouxe at aqui, e da minha

afinidade com a relao gnero/educao.

A natao tem uma importncia especial na minha histria de vida e

caminhada profissional. Presente desde a infncia, quando iniciei as primeiras

braadas como aluna da escolinha de natao da Associao Atltica da Bahia, e

ocupou espao privilegiado nas minhas horas de lazer durante a juventude e

adultez.

Esta vivncia encontrou ressonncia no meu primeiro estgio, quando ainda

estudante do curso de Licenciatura Plena em Educao Fsica pela Universidade

Catlica do Salvador, fui contratada para dar aulas de natao. Minha caminhada

profissional que se iniciou nas ltimas dcadas dos anos de 1980, percorreu

diversos caminhos, mas, em todos eles, a natao sempre esteve presente, seja

como atividade principal seja como atividade coadjuvante.

A experincia com a natao tem abrangido o ensino nos diferentes nveis, ou

seja, do aprendizado ao treinamento esportivo e, na formao docente. Como

auxiliar tcnica do Iate Clube da Bahia no incio dos anos de 1990, tive a

oportunidade de acompanhar atletas masculinos e femininos na Travessia Mar

Grande-Salvador, experincia impar que influenciou a escolha da temtica dessa

pesquisa.

O desejo de elaborar um trabalho no campo da histria da natao surgiu

desde o momento em que almejei cursar um programa de ps-graduao stricto

sensu. Apesar de ser um dos primeiros esportes praticados em Salvador e, portanto,

parte da histria do esporte, em nossa cidade, no possui nenhum registro

historiogrfico, sendo assim, reconstruir esta histria tornou-se meu grande

interesse.

Com este propsito, concorri para a vaga do mestrado em educao com um

projeto que pretendia pesquisar a histria da natao soteropolitana. Aceita no

programa, continuei com esta inteno. Vrias ideias foram surgindo, que sendo

compartilhadas com os colegas e principalmente com a minha orientadora, resultou

na escolha da Histria da Travessia Mar Grande-Salvador. Avanando no

amadurecimento da temtica, resolvemos falar sobre a histria das mulheres que

realizaram a travessia supracitada por identificarmos a necessidade de valorizar e

dar visibilidade participao feminina.

Escolher falar de mulheres resgata o meu posicionamento poltico em relao

s questes de gnero, que afloraram desde a minha infncia. Mesmo no sendo

militante, sempre me coloquei em defesa dos direitos e das injustias historicamente

sofridas pelas mulheres. Por conseguinte desenvolver uma pesquisa sobre mulheres

me proporciona imensa alegria por poder contribuir para visibilizar a histria das

mulheres num espao hegemonicamente masculino, o esporte.

Por fim, sendo o Programa de Ps Graduao em Educao, aceitei o desafio

de fazer uma interseo temtica entre a histria da mulher na Travessia Mar

Grande-Salvador e a educao das mulheres.

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1 INTRODUO

Esta pesquisa tem como investigao uma das histrias e memrias das

mulheres sobre suas participaes na Travessia Mar-Grande Salvador, prova de

natao em mar aberto, na perspectiva de revelar o que esta experincia

representou para a sua educao.

A Prova Baa de Todos os Santos, como foi denominada no ato da sua criao,

mas que ficou popularmente conhecida como Travessia Mar Grande-Salvador,

uma competio de natao em mar aberto, realizada na Baa de Todos os Santos1

no estado da Bahia, com distncia aproximada de 10km. A largada realizada da

praia do Duro, distrito de Mar Grande, municpio de Vera Cruz, localizado na ilha de

Itaparica e chegada na praia do Porto da Barra, em Salvador. A prova completou em

janeiro de 2016, a 52 edio, sendo realizada desde 1955, com um interregno de

dez anos (1970 a 1979).

A temtica educao das mulheres tem revelado um campo vasto de

investigao e discusso. Nesse estudo, aceitamos o desafio de trazer a Travessia

Mar Grande-Salvador, como espao possvel para discutirmos a educao das

mulheres. Falar da histria das mulheres tir-las da invisibilidade, do

esquecimento, do confinamento a que tm estado submetidas. coloc-las frente

dos acontecimentos, portanto, construtoras de uma histria. contribuir para tornar

pblica a sua existncia e participao nos diversos contextos sociais, dentre eles o

esportivo, aqui representado pela natao em guas abertas.

A escolha do objeto justifica-se por reconhecer que estudos no campo da

histria oral/memria de mulheres so escassos e principalmente quando se trata de

estudos no marco da histria oral/memria que relacionam a educao das

mulheres s prticas esportivas, nesse estudo, em mar aberto, e em espaos no

formais de educao. Escolher a mulher como foco de interesse revela o desejo de

dar voz quem, historicamente, foi sublimada, silenciada e desvalorizada numa

sociedade preponderantemente masculina e, o esporte, sendo um territrio de

1 A Baa de Todos os Santos uma reentrncia da costa litornea brasileira, localizada no estado da Bahia com

uma rea 1.233 km.

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hegemonia masculina, carece de discusses do ponto de vista da educao das

mulheres.

A ausncia de historiografia sobre as prticas esportivas das mulheres em

Salvador, tambm fazem deste estudo, um campo rico de investigao e, ao se

tratar da Travessia Mar Grande-Salvador, reveste-se de relevncia dada

importncia do significado social e cultural dessa prova para a natao baiana, e por

se configurar como uma das mais antigas competies do gnero no pas. Sendo

assim, reconstruir a histria da participao das mulheres de fundamental

importncia para a sistematizao deste conhecimento.

A histria da educao das mulheres, no Brasil, tem sido marcada por um

longo processo de lutas contra as restries que lhes foram impostas nos diferentes

perodos histricos do pas. Herdeira de uma educao medieva europeia, trazida

pela corte portuguesa, a educao no Brasil se consolidou na estrutura patriarcal,

onde o homem exercia pleno poder. Neste contexto, a educao das mulheres

presava a subalternidade, a obedincia e a submisso ao homem. A sua vida restrita

ao ambiente domstico, tinha no casamento, na maternidade e nas tarefas

domsticas, o principal propsito. O conhecimento das letras era muito restrito na

sua educao e, quando presente, limitava-se mulher da elite.

Esse modelo, fortemente incorporado na cultura brasileira, permanece como

uma marca na educao da mulher, mesmo quando os novos ares de modernidade

bafejam sobre o Brasil do sculo XX, e as mulheres alargam seus espaos de

sociabilidade, ganhando mais autonomia, e mais liberdade. No Brasil dos anos de

1950, caractersticas como a feminilidade, a delicadeza e a elegncia,

representavam o perfil de mulher para a poca. Apesar da sada para o mercado do

trabalho e das conquistas na educao formal, a maternidade, o casamento e a vida

domstica, permaneciam privilegiados.

Dentre as prticas sociais incorporadas pelas mulheres na dcada de 1950

destacam-se as atividades esportivas. O discurso higienista presente no projeto

poltico do estado brasileiro, no incio do sculo XX, preconizava uma educao que

robustecesse a mulher, de maneira que gerasse filhos saudveis e fortes para a

ptria (GIS JUNIOR e SIMES, 2011). Isto favoreceu, nas dcadas subsequentes,

o acesso da mulher ao esporte, dentre eles a natao.

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A participao das mulheres na natao competitiva, no Brasil, inicia nas

primeiras dcadas do sculo XX e, apesar das resistncias sociais, era considerada

como um dos esportes mais apropriados para a mulher por no masculinizar os seus

corpos e por no comprometer a maternidade (DEVIDE, 2004).

A prtica dessa modalidade se propaga ao longo das dcadas iniciais do

sculo XX, chegando aos anos 1950, como um dos esportes prediletos para as

mulheres. Mouro (2000) aponta as Olimpadas Femininas, realizados nos anos 50

no Rio de Janeiro, como o marco da democratizao do esporte feminino naquela

cidade. Nesse perodo, surgem em outras localidades do pas, eventos esportivos

femininos, incentivando a participao de mulheres no esporte (GOELLNER, 2005).

O acesso ao esporte marca um novo momento na histria da educao da

mulher, mesmo que, a princpio, lhe tenham sido reservadas atividades corporais

que no comprometessem as caractersticas fsicas e comportamentais socialmente

esperadas, representou um avano para a sua emancipao enquanto sujeito social.

A participao das mulheres na Travessia Mar Grande-Salvador inicia nos anos

de 1950. O pioneirismo de algumas mulheres abriram caminhos e inspiraram outras

a se lanarem a esse desafio, contrariando a educao secular de que para a

mulher estava reservada a maternidade, o casamento e os cuidados para com a

famlia, desconstruindo, assim, valores, atitudes, comportamentos, esperados para

elas.

Ao se lanarem ao mar e percorrerem a distncia que separa uma ilha do

continente, afirmaram que o Belo Sexo2 tambm incorpora atributos tipificados

como masculinos como a coragem, a intrepidez, a fora, a resistncia, a

determinao, o que indica uma possvel mudana no seu processo educativo.

Seguindo esses passos iniciais, outras mulheres, ao longo dos 60 anos do

incio da participao das mulheres na Travessia Mar Grande-Salvador, lanaram-se

nas guas azuis da Baa de Todos os Santos, demonstrando que para mulher no

2 A expresso Belo Sexo aparece no jornal A Tarde citado nesse trabalho, quando se refere participao feminina na Travessia Mar Grande-Salvador. Trouxemos para o texto na perspectiva de mostrar a representao social que a beleza, a graa, tinham para a sociedade da poca.

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h determinismos biolgicos que lhe impossibilitem de realizar atividades

profissionais, sociais ou esportivas, como a da Travessia.

A prtica esportiva apresenta mltiplas possibilidades de aprendizado, sendo

assim, podemos dizer que a Travessia Mar Grande-Salvador uma experincia

potencialmente educativa. Larrosa (2002) discute a possibilidade de se pensar a

educao a partir da experincia, mas pensar a experincia a partir do par

experincia/sentido, o que significa dizer que para ser educativa, a experincia

precisa tocar a pessoa e, ao toc-la, forma-a e transforma-a.

Sobre os saberes advindos da experincia, Macedo (2015) ressalta que a

experincia no pode ser pensada apenas como resultado de processos cognitivos,

de linguagem e de pensamento. Compreender que a experincia humana [...]

institui uma memria incorporada, ou seja, o corpo cria e, ao mesmo tempo

habitado pela experincia, (MACEDO, 2015, p. 27), ou seja, no corpo que se

inscrevem as impresses, pensamentos, sentimentos, os sentidos do vivido.

Nesse sentido, a Travessia enquanto experincia educativa, oportuniza, aos

seus participantes, a possibilidade de adquirirem saberes para a vida e para o

convvio em sociedade. A respeito dessa formao em espaos no formais, Gohn

(2006) se refere ao campo da educao no-formal, como [...] aquela que se

aprende no mundo da vida, via processos de compartilhamento de experincias

[...]. Da mesma forma, Gadotti (2005, p.3) entende que educao no-formal

refere-se toda a sorte de aprendizagens para a vida, para a arte de bem viver e

conviver e que pode ser ofertada em mltiplos espaos.

Mediante essa caracterizao, identificamos a Travessia Mar Grande-

Salvador, no mbito da educao no-formal, por inferirmos que a experincia

vivida, reflete significativamente na formao, na vida, enfim, na educao das

pessoas que dela participam. Essa inferncia baseia-se em reconhecer que o

sujeito, ao viver a experincia, se torna diferente, mediante si prprio e em relao

ao mundo.

Frente s reflexes aqui expostas elaboramos a pergunta-sntese que norteia

essa pesquisa: Considerando a histria da participao das mulheres na Travessia

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Mar Grande-Salvador, quais as relaes que podemos estabelecer entre a educao

das mulheres e a participao na prova?

A partir dessa questo traamos o objetivo principal do estudo: Reconstruir, no

tempo presente, uma das histrias da participao das mulheres na Travessia Mar

Grande-Salvador, a fim de estabelecer relaes entre a educao das mulheres e a

participao na prova. De maneira a atender a este objetivo geral, traamos os

seguintes objetivos especficos: reconstruir a histria da Travessia Mar Grande-

Salvador, a partir do marco inicial, das primeiras e da ltima participao das

mulheres na prova; discutir as relaes entre a histria da educao das mulheres e

a histria da natao; analisar os sentidos e significados que a experincia da

Travessia Mar Grande-Salvador trouxe para a educao das mulheres.

Objetivando responder pergunta-sntese e atender aos objetivos,

percorremos um caminho metodolgico que se configurou em duas etapas

principais: a construo do referencial terico e a realizao da pesquisa emprica.

Privilegiamos a utilizao da metodologia da histria oral, por reconhecer suas

contribuies para estudos histricos do tempo presente. Alm das fontes orais,

recorremos s fontes documentais, onde destacamos os peridicos da poca. A

combinao entre histria oral e documental conferiu um maior rigor cientfico para a

construo do conhecimento, enriquecendo a interpretao dos dados que foram

analisados a partir dos pressupostos tericos da anlise do contedo.

Para Delgado (2006, p.16)

[...] a histria oral um procedimento, um meio, um caminho para a produo do conhecimento histrico. Traz em si um duplo ensinamento: sobre a poca enfocada pelo depoimento o tempo passado, e sobre a poca na qual o depoimento foi produzido o tempo presente.

Com o uso da histria oral, buscamos tambm conhecer a histria atravs de

quem a fez. Thompson (1992) aponta que a histria oral pode vir a ser um meio de

transformar tanto o contedo quanto a finalidade da histria. Alm disso, diz que a

histria oral, por dar voz aos atores que participaram do acontecimento, mas que

no foram ouvidos, propicia uma reconstruo histrica mais imparcial, mais

realista, o que confere histria oral um compromisso social.

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Para Thomson (2001), a histria oral entendida como prtica que recupera

histrias desconhecidas e permite s pessoas fazerem suas prprias histrias. Em

vista disso, espera-se que os depoentes reconstruam suas histrias, tornando-as

visveis, assumindo a importncia que possuem para a histria da participao das

mulheres na Travessia e para a histria da educao das mulheres.

Segundo Delgado (2006), histria, tempo e memria so processos

entrelaados, elos inseparveis. No entanto, a memria, no se resume ao ato de

recordar, construtora de identidades individuais e coletivas e oferece significados

nossa existncia e experincias vividas, dando suporte para reconstruirmos o

presente e construirmos o futuro.

Rememorar significa visitar o passado com o olhar do presente. Delgado

(2006) aponta que, a memria possibilita viajar atravs do tempo. Em seguida, ela

afirma que a memria elemento que cria a condio para o auto-reconhecimento

como pessoa e/ou membro de um grupo, como uma nao, como uma famlia,

sendo assim, ao relembrar o passado, todos se encontram consigo mesmos.

Corroborando com Delgado, Rousso (2001, p.94), diz que ela um elemento

essencial da identidade, da percepo de si e dos outros alm de ser,

[...] uma reconstruo psquica e intelectual que acarreta de uma representao seletiva do passado, um passado que nunca aquele do indivduo somente, mas de um indivduo inserido num contexto familiar, social, nacional.

Desta forma, ao relatar as suas memrias, os depoentes resgatam a si num

tempo passado, buscando colher as reminiscncias que os ligam ao fenmeno.

Porm ao lembrarem, falam de um lugar diferente, o que sugere que [...] falar

seno do presente, com as palavras de hoje, com sua sensibilidade do momento,

tendo em mente tudo quanto possa saber sobre esse passado que pretende

recuperar com sinceridade e veracidade (ROUSSO, 2001, p.98). Assim, ao nos

apropriarmos da memria dos depoentes, conheceremos suas histrias, que ao

emergirem so ressignificadas pelo presente.

Alberti (2005, p.155), se refere metodologia da histria oral como aquela que

consiste na realizao de entrevistas gravadas com indivduos que participaram de,

ou testemunharam, acontecimentos e conjunturas do passado e do presente. A

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entrevista o instrumento utilizado pela histria oral para colher informaes,

registrar experincias e testemunhos, fornecer verses e interpretaes do fato a ser

pesquisado, construir fontes, recuperar memrias dentre outros.

Devido natureza deste estudo, optamos pela entrevista temtica, por se

referir a experincias vividas ou testemunhadas pelos entrevistados (DELGADO,

2006). Para o processo de preparao, realizao e transcrio das entrevistas,

utilizamos as orientaes de Delgado (2006) e Meihy (2005), de modo a desenvolver

uma metodologia que atendesse as necessidades da pesquisa.

Seguindo a orientao de Delgado (2006) e Meyhy (2005), estabelecemos os

critrios de seleo para os entrevistados. A escolha dos depoentes, segundo

Meyhy (2005), deve ser baseada no papel social do colaborador para a pesquisa, ou

seja, devem-se evitar depoimentos que no sejam essenciais para a pesquisa.

Levando-se em conta essa observao, escolhemos quatro mulheres, tendo-se

como critrio a participao na segunda, terceira e ltima Travessia. Fizeram parte

tambm do estudo, dois colaboradores, por terem participado da estrutura e

organizao da Travessia ao longo dos anos.

A observao de Delgado (2006), quanto a entrevistar primeiramente aqueles

depoentes mais idosos e com maior relevncia no processo a ser investigado, no

foi atendida pela dificuldade de encontrar uma das colaboradoras e pela rotina

intensa de viagens e compromissos de outra depoente. Outro elemento importante,

considerado por Delgado (2006), diz respeito ao nmero de entrevistados, que,

segundo ela, deve ser suficiente para fornecer elementos importantes para a

pesquisa. Alm da observao desse critrio, levamos tambm em conta o tempo

limitado que tnhamos para o trabalho de campo, e tudo o que dele recorre, como as

transcries e anlises.

Os colaboradores foram contatados e convidados a participar da pesquisa,

escolhendo o dia, o horrio e o lugar que fosse mais conveniente para o encontro.

Foi elaborado um roteiro de entrevista comum para o grupo de mulheres,

considerando especificidade que cada entrevistada apresentava, e outro roteiro para

o grupo dos entrevistados. Em ambos os casos, utilizamos a entrevista

semiestruturada. As entrevistas foram gravadas e, posteriormente, transcritas e

analisadas. Na transcrio, optamos em preservar a fala original dos depoentes.

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Nos encontros com os entrevistados apresentamos a carta de apresentao cedida

pelo Programa de Ps-Graduao em Educao e o formulrio de cesso de direitos

retirado de Alberti (2005), que prontamente foi aceito e assinado.

Escolhemos a Anlise de Contedo proposta por Vron (1980) para analisar e

interpretar os dados qualitativos colhidos no trabalho de campo. Esse autor

considera que toda a produo do sentido depende do social, para ele [...]

impossvel conceber qualquer fenmeno de sentido margem do trabalho

significante de uma cultura [...] (VERN, 1980, p.173). Isso leva a considerar o

contexto histrico, social, e cultural em que o fenmeno produzido, como

importante para a compreenso do significado da linguagem.

Sendo assim, o discurso produzido socialmente est impregnado de crenas,

valores, opinies, do contexto em que foi produzido, que so identificados por

traos e simbologias, que o denunciam. Dessa forma, ao analisarmos um texto, uma

narrativa, precisamos ler na perspectiva de relacionar o produto produo, pois

No h, por conseguinte, nem pode haver, anlise de um texto em si mesmo

(VERN, 1980, p.205).

Nas nossas anlises buscamos ficar atentos ao contexto em que as narrativas

foram produzidas, assim como os traos e simbologias que emergiam da fala, dos

gestos, dos risos e silenciamentos dos nossos depoentes.

Considerando o exposto, apresentamos nossa proposta para as sees

seguintes desta dissertao: No segundo captulo, tratamos da histria da

Travessia, onde reconstrumos o marco inicial da prova ocorrido em 1955, as

primeiras participaes femininas, realizadas em 1956 e 1957, e a ltima edio

ocorrida em 2016; no terceiro captulo, discutimos a histria da educao das

mulheres e da natao feminina no Brasil; no quarto apresentamos as depoentes,

suas narrativas sobre a experincia da participao na Travessia Mar Grande-

Salvador, e as anlises; no quinto encerramos o trabalho com as consideraes

finais.

21

2 A TRAVESSIA MAR GRANDE - SALVADOR UMA DAS MAIS ANTIGA

PROVAS DO GNERO DO PAS

Neste captulo, pretendemos reconstruir uma parte da histria da Travessia

Mar Grande-Salvador. Consideramos importante iniciar com os aspectos geogrficos

e histricos das localidades envolvidas na Travessia. Em seguida, apresentamos um

panorama sobre relaes histricas e culturais da Travessia com o universo das

mulheres nesta prova, destacando alguns momentos e experincias.

Compreendemos que este mergulho em histrias de mulheres oportuniza a

aproximao dos tempos histricos e de aspectos culturais envolvidos nesta

articulao. Ao contarmos algumas histrias, privilegiamos as trs primeiras e a

ltima edio da prova. Nos apoiamos em sites, em matrias publicadas nos

peridicos on line, dialogamos com o universo histrico descrito em inmeras

edies do jornal A Tarde, nos anos de 1954 1957, pelo jornal Dirio da Bahia

(1923), e com estudos dos autores que tratam desses tempos histricos.

A Travessia Mar Grande-Salvador uma competio de natao criada em

1955, cujo percurso tem 9.250m em linha reta. Tem a peculiaridade de iniciar na ilha

de Itaparica, atravessar a Baa de Todos os Santos e terminar em Salvador, capital

da Bahia.

A ilha de Itaparica, que na lngua tupi significa cerca de pedra por causa dos

arrecifes que contornam toda a costa da ilha, foi descoberta em 1501, por Amrico

Vespcio (PREFEITURA DE ITAPARICA, 2013). Os ndios Tupinambs foram os

primeiros habitantes da ilha. Em 1560, fundado pelos jesutas o primeiro ncleo de

povoamento, sendo batizada Vila do Senhor da Vera Cruz. No meado do sculo

XVIII, era a maior ilha da colnia e por este motivo foi incorporada a Coroa

Portuguesa (IBGE CIDADES VERACRUZ, 2016).

A ilha foi emancipada de Salvador em 1833, e elevada categoria de cidade

em 1962. Posteriormente foi desmembrada em dois municpios: Itaparica e Vera

Cruz, possuindo quatro distritos: Mar Grande, Jiribatuba, Barra do Gil e Cacha

Pregos (IBGE CIDADES VERA CRUZ, 2016).

22

Desde a sua criao, a prova Baa de Todos os Santos ou Travessia Mar

GrandeSalvador, como ficou conhecida, tem a sua largada na praia do Duro,

distrito de Mar Grande, municpio de Vera Cruz. Pertencente Regio Metropolitana

de Salvador, o municpio de Vera Cruz possui, em 2016, atualmente uma populao

estimada de 43.162 hab. (IBGE CIDADES VERA CRUZ, 2016).

A Baa de Todos os Santos, local onde acontece a Travessia, uma grande

baa, localizada nas bordas da cidade de Salvador, com uma rea de 1.233 km, o

que a coloca como a segunda maior do Brasil. Na maior parte de sua extenso

rasa, com profundidade mdia de 6m e mxima de 70m. Foi descoberta pelos

portugueses, em 01 de novembro de 1501, que a nominaram de Todos os Santos

em homenagem ao dia catlico, era chamada pelos ndios tupinambs de Kirimur,

que significa grande mar interior. A Baa de Todos os Santos possui um enorme

valor histrico, econmico e cultural (HATJE; ANDRADE, 2009).

Salvador, ponto de chegada da prova, a primeira capital do Brasil e do atual

estado da Bahia. Foi fundada em 1549 por Thom de Souza, com o nome de So

Salvador da Bahia de Todos os Santos.

Com mais de 500 anos de histria, o maior municpio da Regio

Metropolitana de Salvador, com uma populao estimada de 2,938 milhes de

habitantes (IBGE CIDADES SALVADOR, 2016). Instalada a partir de seu litoral,

apresenta uma regio mais baixa conhecida como Cidade Baixa e outra mais alta, a

Cidade Alta.

O seu vasto litoral conta com mais de 50 km de praia, dentre elas, a do Porto

da Barra, de guas calmas e lmpidas (BAHIA, 2017). Localizada na entrada da Baa

de Todos os Santos, possui, alm da beleza, um enorme valor histrico, porque foi

l que aportou, em 1549, o primeiro governador geral do Brasil e fundador da

cidade, Thom de Souza.

Essa geografia e valor histrico conferem Travessia Mar Grande-Salvador um

encanto especial, e h mais de 60 anos tem sido palco de muitas experincias e

histrias.

23

2.1 A PRESENA DO BELO SEXO NA TRAVESSIA MAR GRANDE

SALVADOR

A Travessia surge numa dcada em que a expanso do capitalismo brasileiro

chega Bahia, provocando profundas modificaes socioeconmicas. Segundo

Risrio (2004), com a descoberta do petrleo na Bahia, e instalao da refinaria

Landulfo Alves, em Mataripe, Salvador iniciou durante a dcada de 1950, sua

revoluo industrial, tornando-se um polo de investimento patrocinado pelo governo

e empresrios.

Com o desenvolvimento dos setores industriais e tercirios, uma nova dinmica

instala-se na cidade, provocando um novo modelo de urbanidade e atualizando o

modo de ser baiano frente aos ares de modernidade, que chegavam capital

(RISRIO, 2004). Foi um perodo de transformaes na cidade, dos seus espaos

esportivos e de lazer, desenhando mudanas no estilo de vida da populao.

No incio dos anos de 1950, o esporte j era uma atividade consolidada, mas a

cidade ainda carecia de espaos para a sua prtica. Exemplo disso a natao, que

na poca era praticada prioritariamente no mar. Havia apenas duas piscinas da

cidade: a do Instituto Normal da Bahia, construda no perodo de 1936 a 1939

(AZEVEDO, 2007), e a do Yacth Clube da Bahia, inaugurada em 1938 (MAIA, 1995).

Sendo espaos restritos para uma reduzida parte da populao, as pessoas tinham

o mar como nico espao para a prtica da natao.

As poucas piscinas, associadas a um litoral de enseadas propcias para a

prtica da natao, favoreceram enormemente a cultura de se nadar no mar. O

Porto dos Tanheiros e o da Barra figuram entre os primeiros locais utilizados para

competies de natao. Sendo os espaos com piscina reservados para uma

pequena parcela da populao, a natao no mar continuou a ser uma prtica

comum nos anos de 1950.

Nadar em trajetos maiores era usual pelos adeptos ao esporte. Em A Tarde

(1955, n.14.379, p. 5), poca em que as notcias sobre a organizao da primeira

Travessia eram divulgadas quase que diariamente, um leitor escreve para o referido

jornal, informando que, no ano de 1930, [...] houve uma corrida entre Monte Serrat e

Porto da Barra, numa distncia de cinco mil metros aproximadamente.

24

Percebe-se que Salvador tinha uma vocao natural para a natao no mar, o

que, provavelmente, ensejou o aprendiz de eletricista Hylberto Ferreira, que tinha

por hbito nadar diariamente do Rio Vermelho Barra, a procurar o jornal A Tarde a

fim de que esse peridico anunciasse a sua inteno de realizar, a nado, a travessia

da Baa de Todos os Santos.

Para tornar o intento mais interessante, desafiava qualquer nadador que

tivesse o interesse de realizar a proeza, ficando a cargo deste, marcar dia e horrio

(A TARDE, 1954, n.14.358, p.5). dessa forma que surgiu a Prova Baa de Todos

os Santos, como foi denominada a competio, posteriormente conhecida como

Travessia Mar Grande-Salvador.

O desafio rapidamente teve repercusso e 14 dias depois, o primeiro

concorrente apareceu na redao da A Tarde, topando a peleja. Como o interesse

em realizar a travessia foi grande, achou-se por bem aguardar mais inscritos ao

tempo em que o referido jornal, juntamente com outros interessados pela realizao

do evento, ganhavam tempo para organiz-lo.

O jornalista Gensio Ramos considerado o criador da Travessia Mar

Grande-Salvador. O jornal A Tarde, desde a primeira Travessia, participou

ativamente da organizao e divulgao do evento e juntamente com a FBN3, na

figura do ento presidente, Carlos Catarino e de sua diretoria, realizaram uma

parceria que resultou, segundo o referido jornal, no sucesso da competio. O jornal,

ao promover a prova, almejava promover a prtica sadia do amadorismo (A TARDE,

1955, n.14.379, p. 5). Em 27 de janeiro, A Tarde (1955, n.14.381, p.8) divulgou o

regulamento da Prova Baa de Todos os Santos, o qual em 27 artigos determinava

as orientaes necessrias para o xito da prova (Figura 1), e o grfico do percurso

da travessia, elaborado pela Marinha, indicando os locais de sada, chegada e a

extenso da prova de 5 milhas martimas ou 9250 metros (Figura 2).

3 Federao Baiana de Natao.

25

Figura 1: Primeiro Regulamento da Travessia Mar Grande-Salvador (1955)

Fonte: Jornal A TARDE (1955)

26

Figura 2: Mapa da Travessia Mar Grande Salvador (1955)

Fonte: Jornal A TARDE (1955)

O percurso foi medido em 14 de janeiro pelo mdico e desportista Stanchy

Correia, que, estando veraneando em Mar Grande, se ofereceu para medir a

distncia, utilizando para fazer o trajeto uma lancha de carreira (A TARDE, 1955,

n.14.382, p. 5). Para a classificao era necessrio chegar a qualquer ponto entre a

Praia das Pedreiras4 e a praia do Porto da Barra at 1h aps a chegada do primeiro

nadador (art. 25 do regulamento).

Durante todo o ms de janeiro, o jornal A Tarde trazia notcias sobre o evento

esportivo que se realizaria no dia 30 do mesmo ms. As notcias versavam sobre o

nmero de inscritos, sobre premiaes, desafiantes da prova, alm de enaltecer a

indita prova nutica. Interessante a cobertura do jornal, que publicava

diariamente, no s a quantidade de inscritos mas tambm suas profisses, fotos e

4 Tambm chamada Praia da Preguia est localizada no final da Avenida Contorno.

27

peculiaridades dos seus participantes. A idade mnima para participar da prova era

18 anos.

Dentre os inscritos, houve apenas uma mulher. Com o ttulo Uma

representante do belo sexo, o jornal A Tarde (1955, n. 14.376, p. 5) anunciava a

inscrio da nadadora sergipana, Rita Ribeiro Nunes, que, juntamente ao irmo iria

defender as cores do S. C. Vitria na competio (Figura 3). Essa foi a nica

meno feita nadadora. Nas listas do resultado do exame mdico e dos

selecionados para a competio, divulgadas pelo jornal A Tarde em matrias

posteriores, o seu nome no aparece, o que nos deixa sem saber quais os motivos

da sua no participao.

Figura 3: Nota sobre a inscrio de Rita Ribeiro Nunes

Fonte: Jornal A TARDE (1955)

Com a frase, Est empolgando a cidade a prxima competio nutica, que

ser realizada dentro de alguns dias, entre a cidade e a pitoresca ilha de Mar

Grande e para a qual esto se preparando inmeros nadadores o jornal A Tarde

(1955, n. 14.373, p.8), discorria com grande animao sobre o intento at ento

indito; a travessia a nado de Mar Grande para Salvador.

28

Havia uma movimentao geral na cidade por parte de comerciantes, clubes e

desportistas, para angariar a premiao para aqueles que se aventuravam a realizar

to grande proeza, sendo ofertado inclusive, uma medalha de ouro para o vencedor

pelo desportista e ex-presidente da FBDT5, o senhor Raimundo Correia.

A mobilizao da sociedade no se limitava apenas a Salvador, havia tambm

um envolvimento da populao da ilha de Itaparica e dos veranistas, fato relatado

por Dr. Astor Baleeiro, responsvel pela comisso de hospedagem. Os veranistas e

moradores de Mar Grande esto organizando grandes festas para a chegada dos

nadadores disse o mdico, referindo-se vspera da competio, quando haveria a

necessidade de que os nadadores, equipes de arbitragem e outros envolvidos no

evento, pernoitassem na ilha a fim de amanhecerem no local de sada da prova (A

TARDE, 1955, n. 14383, p. 5).

Relativo ao acompanhamento dos nadadores durante o percurso, o jornal A

Tarde informava que, alm das 80 embarcaes que iriam prestigiar os concorrentes

acompanhando-os por vrios quilmetros, haveria as lanchas dos juzes, dos

mdicos e demais assistentes da competio. Sobre este aspecto, a comisso

organizadora solicitou a colaborao dos proprietrios de barcos a motor, a remo ou

vela da capital e de Itaparica, j que compreendiam ser um aspecto importante

para o xito da competio.

A prova foi realizada sob os auspcios da Marinha de Guerra em homenagem a

esta corporao bem como ateno dispensada por esta entidade organizao

da prova. Havia uma preocupao com a segurana dos nadadores, por isso a

compreenso da necessidade de cada nadador ser acompanhado por um barco (A

TARDE, 1955, n. 14382, p.5).

A expectativa da prova era muito grande. Para agraciar o xito, pessoas

fsicas, geralmente, desportistas, empresas, clubes e estabelecimentos comerciais

divulgavam nos jornais os prmios que iriam oferecer. A Empresa Fratelli Vita

Indstria e Comrcio S/A e as Casas Florensilva foram patrocinadores do evento. O

envolvimento da sociedade soteropolitana era expresso na quantidade de prmios

5 Federao Baiana de Desportos Terrestres.

29

oferecidos, observando-se mais o simbolismo da premiao do que o seu valor

material.

Medalha de prata banhada a ouro e cinco mil cruzeiros para o vencedor,

liquidificador Wallita tipo standart, toca disco electron, terno completo extra Imperial,

camisa esporte de linho, par de sapatos, medalha de prata, ventilador, 10 latas de

Ovomaltine, foram alguns dos prmios oferecidos aos nadadores. Vale destacar

que, numa taa com o nome da A Tarde, seria gravado anualmente o nome do

vencedor da prova e a data da sua realizao, ficando guardada na redao do

referido peridico.

Diferentemente dos anos seguintes, na primeira edio da Travessia, no

houve prova eliminatria. Assegurar a participao dependia apenas da liberao

mdica, composta por profissionais de relevo da medicina baiana, tais como: Renato

Teixeira, Menandro Faria, Stanchy Correia, Eduardo Bahiana, Edgard Teixeira, Jos

Figueiredo e Heitor do Passo Cunha. .

Em 30 de janeiro de 1955, com largada da praia do Duro, em Mar Grande, ilha

de Itaparica, s 7h, deu-se incio a primeira Travessia Mar Grande-Salvador. Nesta

edio, dos 73 inscritos, houve 15 desistncias, dentre elas a do desafiante da

prova, que, aps nadar mais de duas horas, desistiu e subiu no barco (A TARDE,

1955, n. 14.384, p. 2). Ao final, apenas cinco nadadores foram classificados: Jos

Sales Liberato de Matos6, Carlos Herberto Kelsch, Osmar dos Santos Bahia, Arlindo

Guimares e Anivaldo Albuquerque.

Podemos observar, nesta primeira edio, que o nvel dos nadadores da prova,

refletia mais o desejo de participar do grande evento e a iluso de conseguir sair da

ilha e chegar ao continente, mesmo sem ter condies para isso, do que o de

competir. Palavras como arrojo, coragem, fibra, vigor, heris, eram utilizadas

constantemente nas matrias do jornal A Tarde, o que criava uma qualidade quase

heroica para aqueles que se lanavam a fazer a Travessia, o que, de certa forma,

estimulou a participao.

6 Vencedor da primeira Travessia Mar Grande-Salvador.

30

Para coroar o sucesso da competio, foi organizada uma solenidade para a

entrega da premiao. Em 03 de fevereiro, s 20h e 30min, ao som da banda do

Corpo de Bombeiros, a premiao foi entregue aos ps do monumento histrico da

independncia no Campo Grande, local propositadamente escolhido para enaltecer

a bravura dos nadadores. A cerimnia contou com a participao de representantes

de A Tarde, do presidente da FBN, o representante do comandante Adalberto

Nunes, da Miss Brasil, Marta Rocha e todos os ofertantes de prmios.

As festividades comemorativas ao feito continuaram durante os dias que o

sucederam, quando agremiaes, particulares e personalidades, ofereceram

homenagens aos heris. Na Ilha de Itaparica, veranistas e moradores de Mar

Grande tambm promoveram uma grande festa para receberem os nadadores e j

cogitavam a organizao da 2 Travessia para que tivessem um brilho maior que a

primeira (A TARDE, 1955, n. 14.385, p. 2).

Identificados como heris, os nadadores se tornaram smbolo de civismo e

esportividade, [...] ou seja, a prtica do esporte pelo esporte (A TARDE, 1955, n.

14387, p.5). Entre ns, o esporte, conquanto ainda ningum se lembrasse erigir-lhe

um monumento, representa uma boa contribuio eugenia da raa [...]. Revela o

texto, a relao entre esporte e eugenia, viso muito defendida por simpatizantes e

defensores da Educao Fsica e do esporte como o higienista Fernando de

Azevedo nas primeiras dcadas do sculo XX.

Tal ideia foi disseminada no perodo Varguista, a fim de formar uma juventude

brasileira forte, saudvel e com ideais patriticos, nos moldes das organizaes

similares ento existentes nos pases fascistas. Vale lembrar que Getlio Vargas

morreu no ano em que a primeira Travessia Mar Grande-Salvador foi criada. Ele

cometeu suicdio em seus aposentos no Palcio do Catete, Rio de Janeiro, em 24

de agosto de 1954, portanto, o Brasil ainda vivia um momento de valorizao da

prtica esportiva numa perspectiva militarizante e eugnica.

A semente estava plantada, a primeira Travessia Mar Grande-Salvador que,

segundo informaes prestadas pelo oficial da Reserva Naval, Papyrio Brasil, ao

jornal A Tarde (1955, n. 14.383, p.5), era considerada na poca a maior prova

brasileira, figurando entre as maiores do mundo, informao essa colhida de

publicaes oficiais.

31

A segunda Travessia da Baa de Todos os Santos aconteceu em 22 de janeiro

de 1956 com o mesmo entusiasmo e sucesso da primeira. A Tarde (1955, n.

14.386, p.5) afirmava que, sem dvida alguma, era a maior atrao do esporte em

nossa cidade. A partir do ms de outubro, encontramos os primeiros noticirios

sobre a escolha da comisso organizadora e inscrio dos nadadores. Havia o

desejo de suplantar em organizao e nvel tcnico a primeira Travessia.

A expectativa era de que a Travessia de 1956 ultrapassasse o sucesso da

primeira edio, prevendo-se a participao de 100 nadadores. Nas suas chamadas

frequentes, o jornal convidava os desportistas da natao que estavam interessados

em colaborar com a organizao do evento, alm de confirmar a permanncia da

colaborao da Federao Baiana de Natao e apoio da Marinha de Guerra do

Brasil (A TARDE, 1955, n; 14.382, p.5).

Com o ttulo Uma Mulher na Prova de Natao Mar Grande-Salvador, o jornal

A Tarde anunciava a 94 inscrio, a de Angela Maria Carvalho (Figura 4), nadadora

de 18 anos. O jornal A Tarde (1956, n. 14668, p.2) frisava: A mulher bahiana estar

representada na segunda Travessia Baa de Todos os Santos, atravs da mocidade

e da beleza de Angela Maria.

Observamos na referncia feita nadadora, que h uma exaltao s

qualidades que representam a mulher do perodo, ou seja, enaltecem as formas, a

beleza, a elegncia. A imagem que representa a nadadora bem significativa nesse

sentido.

Na matria, informava tambm a passagem da nadadora pelo Clube de

Regatas Flamengo, quando foi campe juvenil, destacando-se naquele ano na

ltima Volta da Pennsula, em Salvador, com percurso aproximado em 5km.

Segundo o jornal, a atleta, relatou que nutria o desejo de completar o percurso, e

que estava treinando com muita disposio e mtodo para atingir o seu objetivo,.

A participao da nadadora constitua uma atrao para a segunda competio

Mar Grande-Salvador por ser a primeira moa a tentar tal faanha. Possuindo muita

fibra e sobretudo classe (A TARDE, 1956, n.14669, p.2), sendo tambm apontada

como um dos grandes valores da natao baiana.

32

Figura 4: Imagem Angela Maria Carvalho (1956)

Fonte: Jornal A TARDE (1956)

Seguindo o curso natural dos andamentos para a prova, as inscries foram

abertas a partir de 24 de novembro com prazo de encerramento para 15 dias antes

da data da competio. Os preparativos relativos a regulamento, estudos da mar,

dentre outros, iniciavam-se com antecedncia, de maneira a organizar a competio

com toda a estrutura possvel. Afinal, tratava-se de uma prova clssica, anual, que

tinha a pretenso de tornar-se parte da cultura esportiva baiana.

Nesta edio, semelhante primeira, as premiaes foram ofertadas por vrias

entidades, empresas e desportistas, que viam na prova um grande evento, portanto

merecendo de incentivo. O jornal A Tarde comprometia-se em premiar com

medalhas os 10 primeiros colocados e, oferecer medalha de ouro ao campeo alm

33

de gravar seu nome na Taa Clssica que ficava de posse do jornal (A TARDE,

1955, n. 14.388).

Lojas Duas Amricas, Bahia Turismo S/A, Reformadora de Pneus American,

S/A Inpertam, Chapelandia, O Adamastor, Savant Milisan, Associao Bahiana dos

Cronistas Desportivos, Transportadora RA, Clube Bahiano de Tnis, Cantinho da

Msica, eram algumas dessas empresas. Como naquele ano havia pela primeira vez

uma concorrente feminina, eram oferecidos produtos especficos para a nica

nadadora da prova, como por exemplo, a linha completa de beleza dos produtos

Max Factor-Hollywood.

Na Travessia de 1956, foi estabelecido que 10 dias antes da competio,

haveria uma prova eliminatria s para os atletas locais. Vindo a ser uma prova de

mbito nacional, j que era esperada a participao de nadadores de outros estados

e, com o aumento do nmero de inscritos, a comisso organizadora lanava mo da

eliminatria, a fim de poder dar uma melhor assistncia aos participantes (A TARDE,

1955). Afinal, esperava-se [...] a participao de azes da aqutica brasileira [...] (A

TARDE, 1955, n.14632, p. 5). Outro motivo era a quantidade de nadadores que, na

primeira edio, desistiram da prova demonstrando baixo nvel tcnico e, por

incrvel que possa parecer tentaram atravessar a massa lquida que separa Mar

Grande desta Capital nadando o engraado e precarssimo cachorrinho. (A

TARDE, 1956, n.14671, p.5)

A prova eliminatria foi realizada no dia 15 de janeiro, s 10h 15min, com

concentrao na Escola de Aprendizes de Marinheiro. O percurso compreendeu do

Quebra Mar em frente Marinha at o Porto da Barra. Apesar de 90 nadadores

inscritos, apenas 21 foram classificados. Ficaram isentos da prova os cinco

classificados na primeira Travessia Mar Grande-Salvador, atletas de outros estados

e Angela Maria, nica mulher inscrita.

Considerada uma prova com grande aceitao em vrias camadas sociais a

Travessia Mar Grande-Salvador angariava simpatia e, por ser uma prova em guas

abertas, possibilitava a participao de nadadores, nem sempre to bem preparados

para tal empreendimento. Na relao dos quase 100 inscritos da segunda edio,

quase cem por cento eram homens jovens, de 18 e 19 anos, solteiros e, com as

34

mais diversas ocupaes. Angela Maria, nica mulher tinha 18 anos e era

estudante.

Eram esperados nadadores de Pernambuco, Distrito Federal, So Paulo,

Esprito Santo, Alagoas, Sergipe (A TARDE, 1955, n. 14.632, p. 5). Dentre os locais,

alguns j haviam participado da primeira Travessia, e retornavam com o desejo de

atravessar a baa ou obter classificao.

Apesar da expectativa de que nadadores de outros estados participariam da

competio, no havia sido inscrita nenhuma outra mulher alm de Angela Maria

Carvalho. Considerada uma atrao singular, no dia anterior da prova, o jornal

enaltecia a sua participao:

A coragem e o desprendimento desta moa de 18 anos, merecem sem dvida alguma, as atenes do pblico esportivo da Bahia, no s pela sua condio de mulher como tambm pelo fato que ela nadar todo o percurso de prova em nado de costas,

reconhecidamente, em estilo de difcil aplicao em mar batido. (A TARDE,1956, n. 14676, p.5)

Na vspera da prova, os nadadores partiram para Mar Grande e,

diferentemente do ano anterior, ficaram hospedados no Hotel Deuaxille, onde

ficariam submetidos a uma dieta alimentar prpria para a competio, principalmente

a primeira refeio da manh (A TARDE, 1956, n. 14.675, p. 5). Ao chegarem a Mar

Grande, os nadadores foram recebidos pela populao local e veranistas, sob

palmas, principalmente Angela Maria, que recebeu uma calorosa recepo.

s 8h e 14min, do dia seguinte, foi dado o tiro de partida, junto ao farolete

existente na linha dos arrecifes defronte de Mar Grande. Neste local, encontravam-

se todos os participantes, cada um em seu barco, e ao sinal da pistola saltaram para

a gua rumo ao continente.

Durante a prova, muitas embarcaes acompanhariam o evento, o Yatch Clube

da Bahia acompanharia os nadadores com uma flotilha de iates. Dentre as

embarcaes, a lancha Simes Filho, cedida pelo inspetor da Sade do Porto,

estaria transportando os mdicos Menandro de Faria e Renato Carvalho para

qualquer eventualidade.

35

Neste evento, o patrocinador Fratelli Vita serviria para os integrantes das

embarcaes oficiais e as que estariam protegendo os nadadores, [...] os seus

afamados refrigerantes: Guaran Fratelli Vita, Sukita, Agua Tonica considerada

uma das melhores do mundo e gazozas. A empresa Cia Nestl tambm estaria

oferecendo alimentao aos passageiros e tripulantes das embarcaes (A TARDE,

1956, n. 14.666, p. 5).

Havia, porm, uma balsa montada em flutuadores, que portava senhoras e

senhoritas, sentadas confortavelmente em cadeiras de modo a acompanharem a

prova. Pintada de amarelo, ostentava uma faixa escrita: torcida de Angela.

Acompanhada por seu pai e preparador, Angela Maria, deslocava-se na gua

nadando de costas e, sem pressa respondia aos acenos dos espectadores. (A

TARDE, 1956, n. 14.678, p. 2)

A segunda Travessia Coroou-se de pleno xito [...]. Foi compreendendo sem

dvida, o motivo esportivo da maratona nutica e o que ela pode oferecer, nesse

importante setor de aperfeioamento fsico da raa, que a populao no faltou [...]

(A TARDE, 1956, n. 14678, p. 14). Com essas palavras, o jornal evidenciava no s

o sucesso do evento, mas a concepo eugnica, na poca muito difundida.

De acordo com A Tarde (1956, n. 14.678, p. 2), o Porto da Barra estava

repleto. A multido ocupava a balaustrada da Ladeira da Barra, a estrada do Yatch,

pelas pedras da praia e toda a sua extenso, alm dos barcos e banhistas que se

colocavam na gua, prximos ao funil de chegada.

Angela, devido s condies da mar, no conseguiu entrar no Porto da Barra.

Aps nadar 4h e 33min, foi recolhida ao barco depois de insistentes pedidos. Mesmo

no tendo conseguido completar a prova, foi a primeira mulher a se lanar ao

desafio de uma das mais antigas provas de guas abertas do pas e, em sendo

assim, merece estar na histria da natao brasileira.

Ficou decidido que a festa da premiao seria na Pennsula Itapagipana pelo

fato de a maioria dos nadadores classificados l residirem. Foi armado um enorme

palanque na frente do Clube de Natao e Regatas So Salvador, para receber

autoridades, desportistas e convidados. Aps a entrega dos prmios ao vencedor e

classificados na competio, foi feita uma homenagem especial a Angela Maria, a

36

corajosa moa que realizou a travessia, sob os aplausos e simpatia dos presentes,

e uma taa foi oferecida pela FBN e muitos outros presentes (A TARDE, 1956,

n.14.690).

Aps a cerimnia, houve um desfile em carro aberto pelas ruas do bairro,

promovido pelo Clube So Salvador, com os classificados, a nadadora Angela,

diretores e desportistas do referido clube. Ostentavam flmulas, bandeiras e

medalhas. Dentre os desportistas, desfilou num dos pelotes, a nadadora Mary

Gonalves, campe sul-americana, trajando um sweater verde constelado de

medalhas. Aps o desfile, todos foram recepcionados numa reunio danante

promovida pela diretoria do Clube (A TARDE, 1956, n. 14.689, p. 5).

Desta forma, encerrou-se a segunda Prova Baa de Todos os Santos,

consagrada no perodo como a maior atrao da aqutica nacional, por figurar como

uma das maiores em extenso da Amrica do Sul (A TARDE, 1956).

Foi visto que, desde o seu incio, a Travessia Mar Grande-Salvador despertava

interesse por parte dos amantes do esporte e j apontava uma projeo no cenrio

nacional e internacional.

Cresce gradativamente a expectativa do pblico esportivo de nossa

terra em torno da sensacional Travessia Baa de Todos os Santos [...] e que de ano para ano vem se tornando ainda mais conhecida no s em nosso pas como em vrias partes do continente Sul-Americano [...] sem dvida a maior prova em extenso levada a efeito no continente. (A TARDE, 1957, n. 14963, p.10)

Dessa forma, esperava-se que o sucesso das duas primeiras edies se

estendesse terceira Travessia. A medida que os dias vo se passando aumenta o

interesse em torno da empolgante prova que reunir grandes azes da aqutica

nacional (A TARDE, 1957, n. 14972, p. 8), notas como esta exemplificam a

expectativa em torno da prova.

Como foi visto, a segunda Travessia Mar Grande-Salvador, representa o marco

da participao das mulheres em provas de longa distncia em mar aberto na Bahia.

A nadadora Angela Maria Carvalho, mesmo sem ter concludo a prova no tempo

previsto, tem o mrito de ser a pioneira na histria da participao das mulheres na

Travessia.

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Semelhante s duas competies anteriores, havia um noticirio frequente,

quase cotidiano, a partir do ms de dezembro, realizado pelo jornal A Tarde. Sendo

o organizador da travessia, tinha o interesse de vincular no seu vespertino

informaes relativas prova a fim de atualizar os leitores e amantes do esporte.

Havia informaes sobre as inscries, participantes, patrocinadores, prova

eliminatria, exames mdicos, embarcaes que acompanhariam o evento, dentre

outras.

A competio realizou-se sob os auspcios do Ministrio da Marinha e com a

colaborao da Federao de Baiana de Natao e da Prefeitura da cidade.

Segundo o peridico, o interesse era tamanho que suplantou o futebol, sendo

assunto preferido das conversas (A TARDE, 1957).

Repetiu-se a preocupao com a segurana dos nadadores no que se refere

s embarcaes presentes no trajeto e s que os acompanhariam. [...] cada

nadador ter um saveiro como acompanhante seguindo neste o orientador, fiscal e

tripulao (A TARDE, 1957, n. 14969, p.11). As embarcaes que acompanhavam

os nadadores eram escolhidas por sorteio. Os nadadores eram identificados com

gorros7 numerados, exceto as mulheres, talvez pelo nmero reduzido de

participantes.

Outro cuidado era referente aos exames mdicos, que neste ano seriam

realizados no Hospital do Pronto Socorro do Canela pelo Dr. Menandro de Faria e

outros mdicos do hospital. Todos os nadadores classificados na prova eliminatria,

os campees das edies passadas (Jos Liberato Matos e Manuel da Paixo

Tosta) e as mulheres inscritas eram submetidos a um exame criterioso da equipe

mdica.

No que diz respeito transmisso do evento, alm do jornal A Tarde, a rdio

Cultura repetiu a parceria dos anos anteriores, prontificando-se a fazer toda a

cobertura (A TARDE, 1957, 14.388, p. 2). Fechando o contrato com a Frateli-Vita,

patrocinadora exclusiva da transmisso, se comprometeu a transmitir todas as

notcias durante a realizao da prova, a comear por Mar Grande, durante o

percurso (na lancha oficial) e, finalmente, do Porto da Barra, [...] narrando detalhes

7 Toucas utilizadas pelos nadadores.

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por detalhes da sensacional maratona aqutica (A TARDE, 1957, n. 14970, p. 7).

Na praia do Porto da Barra,, foi instalado um servio de amplificao, patrocinado

pela prefeitura, a fim de que as informaes fossem divulgadas para o pblico.

Os prmios doados eram os mais variados possveis, a empresa Wander doou

24 latas de latas de Ovomaltine, para os cinco primeiros nadadores que

completassem a prova. A Tarde ofereceu aos dez primeiros colocados: medalha de

ouro, prata e alpaca e trofu com inscrio do vencedor. Foi oferecido pela empresa

Milo uma corbeille para a primeira representante feminina. Empresas dos mais

variados ramos chegavam redao de A TARDE e ofereciam a sua contribuio.

Dentre elas a Loja Nova Amrica, Casa Krause, Laboratrios Reunidos da Bahia

Ltda, o Laboratrio Wander do Brasil, a Fratelli-Vita.

Para a terceira edio da prova, a expectativa de recorde de participantes era

grande porque, ao tornar-se uma prova interestadual, receberia atletas de outros

estados alm dos nadadores locais. Exemplo disso foi a notcia publicada no jornal A

Tarde (1957, n. 14.969, p.11), sobre a presena na travessia de Isa Teixeira e, do

nadador Aristarco Teixeira de Almeida, conhecido como Tanquinho, ambos

campees sul americanos e nadadores do Clube Fluminense do Rio de Janeiro,

que, na poca, liderava a natao brasileira. A expectativa era grande em relao

performance destes nadadores, sendo inclusive considerados os possveis

ganhadores da terceira Travessia, no s pela atuao no cenrio desportivo

aqutico brasileiro, mas por tambm terem ganho a primeira Travessia Leme-Forte

de Copacabana, no Rio de Janeiro, realizada meses antes.

A respeito da participao das mulheres, A Tarde (1957, n. 14.967, p. 7)

comentava: O belo sexo estar prestigiando de maneira decisiva a grande prova de

natao denominada Baa de Todos os Santos. Dessa forma, o jornal, informava

sobre a participao de Marlene Gomes Nascimento (Figura 5), a ndia de Mar

Grande, Angela Maria Carvalho (Figura 6), representante da Pennsula Itapagipana,

e Marlia Barreiros (Figura 7), atleta do Esporte Clube Vitria, considerada uma das

maiores estilistas do norte do pas. Era esperada tambm a nadadora Isa Teixeira e

a paulista Egle Blanco.

A utilizao da expresso o belo sexo, no ttulo da matria, para se referir

participao da mulher na Travessia, recorrente, e podemos atribuir ao modelo da

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mulher dos anos 1950, cuja feminilidade, graa, elegncia, e beleza das formas

eram sempre exaltadas em detrimento, no caso das nadadoras, das suas

performances e qualidades atlticas que eram invisibilizadas. Percebemos tambm

essa invisibilidade na ausncia de imagens, publicadas no jornal A Tarde, nos

diferentes momentos da competio. Diferentemente, os homens foram fotografados

em sua maioria, em trajes de banho, nadando, chegando ao trmino da prova,

dentre outras situaes da competio.

Figura 5: Imagem Marlene Nascimento (1957)

Fonte: Jornal A TARDE (1957)

Sobre a atuao de Angela, na segunda edio da competio, o jornal

elogiava dizendo que a mesma deu provas da bravura e da coragem da mulher

baiana, e que sozinha como legtima representante do belo sexo, chamou para si

quase toda a expectativa da competio, faltando muito pouco para concluir a prova.

Afirmava tambm a importncia da participao de Marlia na terceira edio da

Travessia, por verem nela uma possibilidade de sucesso, considerando-a uma

grande atrao o que iria abrilhantar a prova que, naquele ano, teria o carter

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interestadual. Ademais muito corajosa da acreditarmos na bela representante do

decano (A TARDE, 1957, n. 14967, p. 7).

Figura 6: Imagem Angela Maria Carvalho (1957)

Fonte: Jornal A TARDE (1957)

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Figura 7: Imagem Marlia Barreiros (1957)

Fonte: Jornal A TARDE (1957)

A terceira edio da Prova Baa de Todos os Santos foi a recordista em

nmero de inscries e participao de mulheres. Foram quatro as representantes:

Angela Maria Carvalho, do Esporte Clube Bahia, Marlia Barreiros, do Esporte Clube

Vitria, Marlene Nascimento, sem referncia de clube e Egle Blanco do

Internacional de Regatas de Santos.

Clubes soteropolitanos como o Esporte Clube Vitria, Clube de Natao e

Regatas So Salvador, Clube Esporte Clube Bahia, Clube Ipiranga, envolviam-se

ativamente na prova inscrevendo nadadores para represent-los. Alm de

nadadores baianos, esperavam-se representantes de ambos os sexos do Rio de

Janeiro, So Paulo, Sergipe, Pernambuco, Alagoas, Cear, Esprito Santo, Minas

Gerais, e Distrito Federal, alm de um fundista portugus.

No dia 06 de janeiro s 8h da manh foi dada a largada da prova eliminatria.

Os nadadores, daro uma volta na Pennsula Itapagipana, cujo percurso de 4.500m

servir de teste para a organizao do evento identificar quais atletas esto aptos

para participar da Travessia, noticiava A Tarde (1957, n. 14.965, p. 7). O percurso

42

era do Bonfim at o palanquinho de regatas do Porto dos Tainheiros. Dos mais de

50 concorrentes, somente 25 foram classificados. Semelhantes ao ano anterior,

mulheres e vencedores das competies passadas, ficaram isentos da prova

eliminatria.

A mobilizao em Salvador e em Mar Grande era intensa nos dias que

antecederam a prova. No s os veranistas, mas tambm os nativos da ilha

aguardavam e cooperavam com a organizao do evento. O embarque dos

nadadores classificados para a ilha de Itaparica aconteceu no dia 18, s 14h (A

TARDE, 1957, n. 14.976, p. 7). Repetiu-se o que ocorreu no ano anterior, quando

todos os nadadores ficaram concentrados no Hotel Mar Grande8. Havia uma rotina

prevista para os nadadores na vspera da competio, tais como horrios das

refeies, do descanso e do recolhimento.

Na data marcada, 20 de janeiro, foi realizada a terceira Travessia Mar Grande

Salvador. As 6,25horas o tenente da marinha [...] deu o tiro de largada para as

moas que se dispuseram a arriscada travessia (A TARDE 1957, n. 14978, p.9).

Com elas partiram dez embarcaes e a lancha Simes Filho da Sade dos Portos,

com os mdicos Menandro de Faria e Renato Medrado. Marlia tomou a direo do

Monte Serrate9, tendo ao seu lado a nadadora Egle Blanco de So Paulo.

Foi um duelo espetacular das duas formosas e jovens atletas, at a meia travessia, quando a bahiana conseguiu tomar a dianteira at o funil de chegada na praia da Barra, quando foi recebida com estrepitosas aclamaes pelo povo que ali se aglomerava nas balaustradas e pelos banhistas que acorreram a saud-la, tornando at difcil a penetrao no funil. Foi um dos momentos emocionantes da grande prova. (A TARDE, 1957, n. 14.978, p. 9)

As nadadoras Marlia, Angela e Egle foram levadas pela mar para o Farol da

Barra. Marlia nadou prxima s pedras, contra a mar e, conseguiu chegar ao

Porto, sendo a nica mulher a cruzar o funil10, aps a chegada do quinto homem. As

outras duas concorrentes chegaram a Salvador, mas em um outro ponto, devido

8 Ex-Hotel Deauxille.

9 Escrita da poca.

10 A colocao do moderno funil ficou a cargo do Yatch Clube da Bahia. Ao trmino do funil foi colocado um flutuador

onde ficava o juiz de chegada recebendo os nadadores que completavam a prova, o flutuador facilitava ao pblico identificar o vencedor e acompanhar os outros atleta que concluam o percurso.

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forte mar. Na classificao feminina, ficou Marlia em 1 lugar, Egle em 2 lugar e

Angela em 3 lugar. Marlene desistiu da competio faltando um pouco mais de

uma milha.

Apesar de sempre ter sido um evento de grande repercusso, algumas edies

foram mais expressivas por apresentarem feitos, fatos, novidades, eventos

inesperados que marcaram a sua histria, assim foi a terceira Travessia Mar

Grande-Salvador, realizada em 20 de janeiro de 1957. Esta possui um relevo

especial para a histria do esporte feminino brasileiro, pois foi nesta edio que uma

mulher concluiu pela primeira vez o percurso. Marlia Barreiros, a campeonssima,

como era referida pela imprensa baiana da poca, nadadora do Esporte Clube

Vitria, realizou este feito aos 18 anos de idade.

Passados 60 anos, desde a sua primeira edio, A Travessia Mar Grande-

Salvador permanece como um evento esportivo de relevo local e nacional,

continuando a seduzir nadadores (as). Para Jos Ney Santos do Nascimento,11 que

participou efetivamente da organizao da competio durante algumas dcadas,

at incio dos anos 2000, a Travessia mobilizava muita gente sendo uma verdadeira

festa no mar. Mesmo considerando que houve uma diminuio da frequncia da

populao em geral no dia da Mar Grande, ficando mais restrita aos familiares e

amigos dos nadadores (as) ela conserva o seu glamour.

Na sua 52 edio, a Travessia Mar Grande-Salvador, constitui-se o ponto

culminante para aqueles nadadores (as) que participam do Circuito Baiano de guas

Abertas12, sendo considerada por Sued Marcos Nogueira Awad13, rbitro

internacional de maratonas aquticas, como a cereja do bolo do ano.

Ao se referir prova, como a precursora das atuais maratonas aquticas, diz:

11

Professor de Educao Fsica graduado pela Universidade Catlica do Salvador e, doutor em Educao pela Universidade Federal da Bahia. Entrevista concedida em 13 de dezembro de 2016, Salvador Bahia.

12 O Circuito Baiano de guas Abertas formado por dez etapas que so realizadas ao longo da temporada.

13 Professor de Educao Fsica licenciado graduado pela Universidade Catlica do Salvador, diretor da

Federao Baiana de Desportos Aquticos, e rbitro internacional de maratonas aquticas. Entrevista concedida em 16 de maio de 2016, Salvador Bahia.

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[...] ela hoje tem o status de que tm que acontecer, ela faz parte da cultura de Salvador - Bahia. As maratonas aquticas esto hoje onde esto agradea a Mar GrandeSalvador. Se temos hoje dois atletas nas olimpadas, se temos dois rbitros internacionais, se temos o circuito mais forte do Brasil muito pela Travessia Mar-Grande. Hoje no vejo o circuito aqutico da Bahia sem a prova. A pessoa entra no

circuito para fazer a prova. (SUED AWAD, 16 mai. 2016)

Desde o seu surgimento, a prova realizada anualmente e preferencialmente

nos meses de janeiro. Partir de uma ilha, atravessar uma baa para chegar a um

continente, o grande desafio da Travessia, e o motivo que leva muitos nadadores

(as) a participarem durante o ano do Circuito Baiano de guas Abertas. Este circuito,

foi criado para classificar 100 nadadores para a Travessia Mar Grande-Salvador.

Ao longo das 52 edies, a competio foi se ajustando de maneira a atender

s diferentes pocas nas quais foi realizada. Na atualidade, goza de uma grande

estrutura, organizada pela Federao Baiana de Desportos Aquticos (FBDA), jornal

A Tarde, detentor dos seus direitos, tendo o apoio da Prefeitura, Polcia Militar e

Marinha, alm de patrocinadores.

Para a realizao de um evento do porte da Travessia Mar Grande-Salvador a

FBDA conta com vrios patrocinadores e instituies de apoio. Em matria

publicada, nos dias que antecederam a 52 Travessia Mar Grande-Salvador, Lima

(2016) comentava que para dar conta da rea da competio cerca de 15 rbitros da

Federao Baiana de Desportos Aquticos participariam do evento. Alm disso,

informou que o evento estava sendo realizado pela Record e Grupo A Tarde com o

apoio da Braskem, Embasa, Bahiags, Powerade, Vitalmed (em terra e gua, com

profissionais de planto e ambulncia equipada com UTI mvel),

Powerade, Prefeitura Municipal de Salvador e Governo do Estado da Bahia.

Apesar dos ajustes naturais, a fim de atender as demandas atuais, a

organizao da Travessia conserva, em vrios aspectos, o que foi planejado desde

a sua criao. Exemplo disso a utilizao de barcos-guias, que, na 52 edio,

somaram 101, e utilizao de equipes de apoio para a segurana do nadador.

Desde a largada, na praia do Duro, em Mar Grande, cada nadador ter a sua

prpria embarcao e equipe de apoio, indicando o caminho at o Porto da Barra,

nos 12 km de natao entre a Ilha de Itaparica e Salvador (LIMA , 2016).

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Sued Awad informa que hoje, a infraestrutura organizada para a Travessia

muito mais complexa que no passado. O Porto da Barra fechado, para que s os

atletas tenham acesso, na praia, montado um grande palco pelo jornal A Tarde,

alm de ambulncia, ambulancha, mdico, alimentao e hidratao para o atleta,

chuveires e rea vip, que so disponibilizados para dar suporte ao evento.

Complementa dizendo:

Um avano que inclusive a Bahia precursora, diz respeito ao sistema de filmagem da chegada da prova e o lanamento on line dos resultados, ou seja, a medida que os atletas vo chegando o nome e tempo dos mesmos vai sendo lanado na internet. Uma novidade tambm o apadrinhamento dos nadadores por personalidades

e pessoas pblicas. Na 52 Travessia, a cantora baiana Cat foi madrinha das

nadadoras e a apresentadora Jessica Senra foi madrinha dos nadadores. (LIMA,

2016)

Nas primeiras edies da competio, era evidente a expectativa de que a

Travessia Mar Grande-Salvador viesse a ter uma projeo nacional e internacional.

Esta afirmativa se apoia nos noticirios da poca, que, frequentemente, apontavam

a imensa aceitao e interesse por parte da sociedade baiana, das autoridades

locais, pessoas e instituies ligadas ao esporte e imprensa. Porm com a

evoluo das provas em guas abertas, e elaborao das regras por rgos

internacionais, terminou por alijar a incluso da Travessia no Circuito Nacional.

Sobre isso explica Sued Awad:

A regra da Federao Internacional diz que a prova at 10km no pode ter acompanhante, no pode ter um barco como ela .[...] o circuito brasileiro no medi o ngulo que voc tem que fazer por causa da mar. Ele mede em linha reta, quando ele mede em linha reta, a prova no mede 10km, d menos e a por conta disso ela deixou de ser uma etapa do Campeonato Nacional, por conta dessa metragem.

Para o nadador ficar sem o barco-guia, o percurso teria que ter vrias boias, e

isso triplicaria o custo da prova, ficando invivel para a atual estrutura da Mar

Grande, por isso ela saiu do circuito nacional, conclui.

Alm do barco-guia, a condio fsica do nadador (a) tambm tem sido motivo

de preocupao por parte da organizao. Como foi visto nas primeiras edies,

havia um grupo de mdicos que examinavam e atestavam a saude dos

46

participantes, mas essa conduta no era suficiente para evitar que muitos

nadadores, sem condies fsicas, desistissem da prova durante o trajeto. Lanaram

mos das eliminatrias, mas, com o tempo, verificou-se tambm a necessidade de

tambm o tcnico atestar se o seu (sua) atleta estava em condies tcnicas de

realizar a competio.

Sendo a Travessia uma prova em mar aberto e, portanto, sujeita mar e s

condies atmosfricas, o nadador se depara muitas vezes com impedimentos que

lhes fora interromper a prova. A desistncia varia a cada ano, porque a Mar Grande

tem uma peculiaridade; cada ano uma prova diferente. Isso acontece por conta da

mar e das condies climticas (vento, chuva). No entanto, muitos no desistem,

mas encerram a prova em funo do tempo limite, previsto para a realizao, j ter

sido esgotado, explica Sued Awad.

Esse tempo foi pensado para se ter um grau de segurana alm do que a baa fica fechada, no permitindo a passagem de embarcaes. A marinha pediu que determinssemos um tempo para ficar fechada. Portanto muitos atletas so obrigados a subir no barco depois das quatro horas. Fisicamente ele poderia chegar, mas chegaria muito acima do tempo e agente entende que pela segurana do prprio atleta j que a arbitragem vai se retirar. Alguns que esto pertos e que no correm risco agente deixa chegar na areia, mas so desclassificados.

Portanto, os critrios: Ser selecionado pelo Circuito Baiano de guas Abertas e

apresentar o atestado tcnico e mdico, para participarem da competio, fazem

com que dificilmente o nadador (a) desista por falta de condies fsicas. Desistir,

desistir, eu quero parar, eu no lembro de ningum falar isso, afirma Sued.

Os nadadores (as), que hoje participam da Travessia, possuem um nvel

tcnico e fsico maior do que os pioneiros (as) da prova. Naquela poca, a

preparao mais deficiente e o desejo de realizar a prova, muitas vezes pela simples

aventura, e pela novidade da competio, faziam com que muitos ficassem no

caminho por estarem despreparados. Hoje, h atletas reconhecidos mundialmente,

como o caso dos baianos Ana Marcela Cunha e Allan do Carmo, ambos hexa

campees da prova e considerados os melhores nadadores de maratonas aquticas

do pas. Assistimos tambm participao de para-atletas homens e mulheres,

realidade que provavelmente era impensada naquela poca.

A 52 Travessia Mar Grande-Salvador realizou-se no dia 10 de janeiro de 2016.

s 8h, partiram da Praia do Duro 101 nadadores. Semelhante s primeiras

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competies, nos dias que antecederam o evento, o jornal A Tarde, publicou vrias

matrias nos seus peridicos impresso e on line.

Com o ttulo Desafio move 'annimos' a completar a Mar Grande/Salvador

Lima (2016) falava sobre os estreantes e veteranos annimos que iriam fazer parte

da prova. Na matria cita Fernanda Scher, (Figura 8) nadadora de 24 anos que

estaria participando pela primeira vez da Travessia. Na notcia, nadadora informava

que fez doutorado com os colegas nadadores e com a tcnica Desire Dalia. Apesar

da estreia afirmava estar tranquila, j que alm dos 7.000 m nadados quase que

diariamente desde fevereiro do ano anterior, gozava de boa condio psicolgica.

Figura 8: Imagem Fernanda Silva Scher (2016)

Fonte: Arquivo pessoal da nadadora

Lima (2016) informava tambm sobre a recordista feminina em nmero de

participaes, Desire Dalia (Figura 9), que, naquela competio, estaria realizando

sua 22 Travessia. A respeito da sua segurana em participar da Mar Grande, a

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nadadora relatava que alm da experincia contava muito com a preparao fsica.

"A participao exige um treino semanal de 20 mil metros para completar a prova o

treinamento de um ano antes, o que equivale a 80 mil por ms", afirmava a

nadadora.

Fernanda e Desire so duas das 20 nadadoras que participaram da 52

Travessia Mar Grande-Salvador. Obviamente, nas notcias sobre a participao das

mulheres j no se observa a sensao que a participao feminina provocou nas

primeiras edies. Nessa edio da prova, Fernanda e Desire, atletas da Academia

Dalia se classificaram em 11 lugar e 17 lugar, respectivamente. A campe da

competio foi Marcia Santos do Salesiano/BA.

Figura 9: Imagem Desire Dalia (2016)

Fonte: Arquivo pessoal da nadadora

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As 20 mulheres participantes na 52 edio da Travessia, correspondem