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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO OESTE DO PARANÁ PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA MESTRADO EM FILOSOFIA JAQUELINE FÁTIMA ROMAN FUNDAMENTOS DE LEGITIMIDADE DO DIREITO POLÍTICO EM ROUSSEAU TOLEDO 2011

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO OESTE DO PARANÁ

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA

MESTRADO EM FILOSOFIA

JAQUELINE FÁTIMA ROMAN

FUNDAMENTOS DE LEGITIMIDADE DO DIREITO

POLÍTICO EM ROUSSEAU

TOLEDO

2011

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JAQUELINE FÁTIMA ROMAN

FUNDAMENTOS DE LEGITIMIDADE DO DIREITO

POLÍTICO EM ROUSSEAU

Dissertação de mestrado apresentada ao Programa

de Pós-Graduação em Filosofia do

CCHS/UNIOESTE, Campus de Toledo, como

requisito final à obtenção do título de Mestre em

Filosofia, sob a orientação do prof. Dr. Rosalvo

Schütz, e coorientação do prof. Dr. Cláudio

Boeira Garcia.

TOLEDO

2011

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Catalogação na Publicação elaborada pela Biblioteca Universitária

UNIOESTE/Campus de Toledo.

Bibliotecária: Marilene de Fátima Donadel - CRB – 9/924

Roman, Jaqueline Fátima

R758f Fundamentos de legitimidade do direito político em Rousseau /

Jaqueline Fátima Roman. -- Toledo, PR : [s. n.], 2011.

120 f.

Orientador: Dr. Rosalvo Schütz

Dissertação (Mestrado em Filosofia) - Universidade Estadual do

Oeste do Paraná. Campus de Toledo. Centro de Ciências Humanas e

Sociais.

1. Filosofia francesa 2. Ciência política 3. Rousseau, Jean-

Jacques 1712-1778 4. Filosofia política 5. Direito político 6.

Legitimidade governamental 7. Contrato social I. Schütz, Rosalvo

II. T.

CDD 20. ed. 194

320.1

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JAQUELINE FÁTIMA ROMAN

FUNDAMENTOS DE LEGITIMIDADE DO DIREITO POLÍTICO EM

ROUSSEAU

Dissertação de mestrado apresentada ao Programa

de Pós-Graduação em Filosofia do

CCHS/UNIOESTE, Campus de Toledo, como

requisito final à obtenção do título de Mestre em

Filosofia, sob a orientação do prof. Dr. Rosalvo

Schütz e coorientação do prof. Dr. Cláudio Boeira

Garcia.

COMISSÃO EXAMINADORA

_____________________________________ Prof. Dr. Rosalvo Schütz - Orientador

Universidade Estadual do Oeste do Paraná

_____________________________________

Prof. Dr. Tarcílio Ciotta - Membro

Universidade Estadual do Oeste do Paraná

_____________________________________

Profª. Dra. Neiva Afonso Oliveira - Membro

Universidade Federal de Pelotas

Toledo, 04 de Julho de 2011

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À minha família, em especial aos meus pais Armelindo e Izelinda.

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AGRADECIMENTOS

Ao Deus que eu não vejo, mas que sinto de verdade e que sempre é meu eterno alento.

Aos meus pais pelo apoio, incentivo e pelo que sou, e aos meus irmãos (Rosângela, Evandro e

Everton) pela ajuda e preocupação.

Ao Promotor de Justiça e professor Luciano Machado de Souza que despertou meu interesse

pela filosofia, me fazendo compreender sua importância para o direito.

À Capes pela concessão de uma bolsa de estudos que me permitiu realizar esse trabalho.

Ao professor Dr. Rosalvo Schütz pela gentileza de aceitar orientar um trabalho que já estava

em desenvolvimento, pelas orientações, pelas palavras de amparo (muitas vezes por e-mails)

que me acalmavam e me fortaleciam, e, sobretudo pela amizade e paciência comigo.

Ao professor Dr. Cláudio Boeira Garcia, que me deu o orgulho de por ele ser coorientada,

pelo bom humor característico, pelo afeto e pelas palavras doces, mas sobremaneira pelo

conhecimento compartilhado, e pela coorientação segura.

Aos professores Jadir Antunes e José Luiz Ames que juntamente com o professor Cláudio

participaram do meu exame de qualificação.

Aos avaliadores, professor Dr. Tarcílio Ciotta (UNIOESTE) e professora Neiva Afonso Oliveira

(UFPEL), cujas observações contribuíram para melhorar e ampliar minha visão em torno do tema

desta pesquisa.

Ao Professor Dr. Arlei de Espíndola, pela amizade que se manteve mesmo à distância e ainda

pela contribuição ao presente trabalho, como primeiro orientador.

À minha turma de 2009, em especial aos meus amigos da Linha de Pesquisa Ética e Filosofia

Política, e aos amigos do grupo de estudos de Teoria Crítica.

Aos amigos da UTFPR de Toledo pelas caronas, em especial à Janesca, Araceli, Raquel e

Gerson.

À amiga Maria Socorro de Lima pelo incentivo inicial, e pelas conversas e conselhos.

Aos meus amigos da filosofia e do direito, em especial à Adriana, Andréa, Fernanda,

Francieli, Gerson, Isabel, Lidiane e Josete, pelas conversas que muito contribuíram para o

presente trabalho.

Aos professores do Programa de Pós-Graduação em Filosofia.

Às demais pessoas envolvidas no Programa, especialmente a Edna Aparecida de Medeiros,

Maria Damke Anschau Roehrs e Natália Lulu de Oliveira.

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“Viver não é respirar, mas agir; é fazer uso de nossos órgãos, de

nossos sentidos, de nossas faculdades, de todas as partes de nós

mesmos que nos dão o sentimento de nossa existência. O homem que

mais viveu não é o que contou maior número de anos, mas aquele que

mais sentiu a vida.” – Jean Jacques Rousseau (Emílio, Livro I).

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ROMAN, Jaqueline Fátima. Os Fundamentos de Legitimidade do Direito Político em

Rousseau. 2011. 120 f. Dissertação (Mestrado em Filosofia) – Universidade Estadual do

Oeste do Paraná, Toledo, 2011.

RESUMO

O presente trabalho tem como objetivo investigar quais são os fundamentos de legitimidade

do direito político no pensamento de Jean Jacques Rousseau. Para o filósofo genebrino, o

homem não é um ser político por natureza, tendo em vista que a política está diretamente

relacionada com a vida social. Somente no estado social se pode falar em tal direito. No

entanto, o presente trabalho inicia com o estudo do estado de natureza, para posteriormente,

abordar o estado social. Tal fato se justifica, porque é nesse estado que Rousseau, através do

homem no estado de natureza, constrói a ideia do que considera ser um referencial de ser

humano. É debruçado sobre o homem no estado de natureza que ele encontra argumentos para

diferenciar características artificiais e naturais do homem. O estudo do estado de natureza

também é importante porque nele já existem sentimentos que serão necessários para a

formação de uma sociedade fundamentada em um direito político legítimo, como é o caso do

amor de si. Talvez seja esse o ponto de partida para a compreensão dos fundamentos de

legitimidade do direito político em Rousseau. A partir do estudo das diferenças entre o estado

natural e o estado social, é possível demonstrar porque o pacto dos ricos, fundamentado na

desigualdade, é considerado ilegítimo para Rousseau, e ainda discorrer sobre os fundamentos

políticos necessários para a construção de um pacto civil legítimo. Quais são as condições

necessárias para que o homem se mantenha em sociedade tão livre quanto antes? Na visão de

Rousseau, o homem não pode renunciar a sua liberdade, sob pena de perder a condição

humana, porque cada homem possui o mesmo valor que os demais de sua espécie, e por isso

não pode dominar ou obedecer. Assim, um pacto civil nos moldes do denominado pacto dos

ricos é para Rousseau completamente ilegítimo, porque legaliza a dominação de um homem

sobre o outro, desnaturando-o. O homem livre é aquele que obedece somente a sua própria

vontade. Mas como equacionar a vida em sociedade com a obediência somente aos seus

próprios desígnios, ou seja, a partir de que referência se torna possível fundamentar um pacto

legítimo e, por conseqüência, o Direito Político? Para resolver esse problema, nosso filósofo

propõe um novo pacto civil, e nele a ideia da soberania popular: o povo reunido em

assembléia é o único soberano legítimo e apto para aprovar leis que tem de obedecer. Essas

leis devem estar de acordo com a vontade geral, que sempre visa o bem comum e a utilidade

pública. Assim, cada homem vota de acordo com sua consciência, sem influências, e obedece

somente a sua própria vontade, que consequentemente esta refletida nas leis que aprova. Desta

forma, o homem não pode delegar a um representante o poder de aprovar as leis, porque o

exercício da soberania é inalienável. Essa é a forma legítima que Rousseau encontrou para o

homem obedecer sem servir.

Palavras-chave: Rousseau. Direito Político. Pacto Civil. Vontade Geral. Legitimidade.

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ROMAN, Jaqueline Fátima. The Legitimacy foundation in Rousseau´s Political Law. 2011.

120 f. Dissertation (Master’s Degree in Philosophy) – Universidade Estadual do Oeste do

Paraná, Toledo, 2011.

ABSTRACT

This work aims to investigate what are the legitimacy foundations of political law in the

thoughts of Jean Jacques Rousseau. For the Geneva-born philosopher, the man is not a

political being by nature, as politics is directly related to social life. Only in the social state it

is possible to talk about such law. However, the present work starts with the study of the state

of nature, and eventually it will approach the social state. This is justified by the fact that it is

in this state that Rousseau, through the hypothetical natural man, builds the idea of what he

considers to be a reference of human being. Leaning on the natural man, he finds arguments

to differ artificial and natural features of man. The study of the state of nature is also

important because in it there are feelings that will be necessary to form a society founded on

the legitimate political law, as it is the case of love of oneself. This might be the starting point

to understand the legitimacy foundation in Rousseau’s political law. Starting from the study

of the differences between the state of nature and the social state, it is possible to show why

the pact between rich and poor, founded on the inequality, is considered illegitimate by

Rousseau, and also reason about the necessary political foundations for the building of a

legitimate civil pact. What are the necessary conditions for the man to live in society as free

as before? In Rousseau’s point of view, the man cannot renounce his freedom; otherwise he

will lose his human condition, as each man has the same value as the others from his species,

and therefore cannot dominate or obey others. Thus, a civil pact similar to the pact between

rich and poor is completely illegitimate to Rousseau because it allows the domination of a

man over another, denaturalizing him. The free man is the one that obeys only his own will.

But how can we envisage life in society with the obedience of solely one’s own will, that is,

from what reference is it possible to found a legitimate pact and, consequently, Political Law?

To solve this problem, our philosopher proposes a new civil pact, and in it the idea of popular

sovereignty: people reunited in assembly are the only legitimate sovereign and apt to approve

laws which they have to obey. These laws must be in accordance with the general will, which

aims at the common well-being and the public utility. That way, each man votes according to

his conscience, without any influences, and obeys only his own will, which is consequently

reflected in the laws he has approved. Therefore, a man cannot relegate to a representative the

power to approve laws, because the exercise of sovereignty is inalienable. This is the

legitimate way that Rousseau found for the man to obey but not to serve.

KEY WORDS: Rousseau, Political Law, Civil Pact, General Will, Legitimacy.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO................................................................................................................

1 ESTADO DE NATUREZA E LIBERDADE NATURAL.........................................

1.1 CONHECIMENTO DO HOMEM...............................................................................

1.1.1 Perfectibilidade.........................................................................................................

1.1.2 Piedade .....................................................................................................................

1.1.3 Amor de si ................................................................................................................

1.1.4 Razão.........................................................................................................................

1.1.5 Homem do homem: o amor próprio..........................................................................

1.2 O ESTADO SOCIAL ..................................................................................................

1.2.1 Desigualdade.............................................................................................................

1.2.2 Propriedade e pacto dos ricos ...................................................................................

2 FUNDAMENTOS DE LEGITIMIDADE DO PENSAMENTO POLÍTICO DE

ROUSSEAU .....................................................................................................................

2.1 CONVENÇÃO E PACTO SOCIAL ...........................................................................

2.2 VONTADE GERAL ....................................................................................................

2.3 LEI E LIBERDADE CIVIL .........................................................................................

2.4 SOBERANO ................................................................................................................

2.5 SOBERANIA ..............................................................................................................

2.6 BEM COMUM ............................................................................................................

2.7 LEGISLADOR.............................................................................................................

2.8 GOVERNO E REPRESENTANTES ..........................................................................

2.9 VONTADE PARTICULAR E SOCIEDADES PARCIAIS........................................

2.10 TAMANHO DO ESTADO E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA....................................

3 CONCLUSÃO...............................................................................................................

4 REFERÊNCIAS............................................................................................................

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INTRODUÇÃO

Rousseau afirmou no Emílio em 1762: “O direito político está por nascer” (2004,

p. 676). Tal afirmação demonstra que o filósofo genebrino não interpretava as relações

políticas existentes a sua época como originárias do direito político. O modo como Rousseau

analisava o direito político era diferente daquele existente, o que fez com que não qualificasse

as relações políticas como provenientes de tal direito.

Realmente havia um direito político por nascer, que é o que se compreende hoje

por direito político moderno. Mas o que há de tão novo assim no pensamento de Rousseau? O

que o fez acreditar que importantes contribuições de pensadores como Aristóteles1 e mais

recentemente Maquiavel, Locke, Hobbes, Grotius2 e Montesquieu

3, dentre outros que o

antecederam e que trabalharam questões políticas, não poderiam receber a qualificação de

direito político? O que seria então o direito político para Rousseau?

É justamente esta questão que o presente trabalho visa responder. Apresentar ao

leitor à temática do direito político em Rousseau e seu sistema de funcionamento que

fundamenta a soberania e seu exercício no povo, a fim de demonstrar a inovação do

pensamento de Rousseau para a sua época. Pode-se afirmar que Rousseau acreditava ser ele

quem estabeleceria, ao menos em teoria4, o que poderia ser denominado de direito político. O

pensamento político de Rousseau se manifestou inicialmente através de sua obra Instituições

Políticas, tendo em vista que é dessa obra - que restou inacabada - que Rousseau extraiu a

1 A crítica que Rousseau faz a Aristóteles se refere ao fato deste acreditar na desigualdade natural entre os

homens: “Aristóteles, antes de todos eles, também dissera que os homens em absoluto não são naturalmente

iguais, mas nascem uns destinados à escravidão e outros à dominação. Aristóteles tinha razão, mas tomava o

efeito pela causa. Todo homem nascido na escravidão, nasce para ela; nada mais certo. Os escravos tudo perdem

sob seus grilhões, até o desejo de escapar deles; amam o cativeiro como os companheiros de Ulisses amavam seu

embrutecimento. Se há, pois escravos pela natureza, é porque houve escravos contra a natureza.” (ROUSSEAU,

1983, p. 24-5). 2 Rousseau se referindo ao livro O Direito da Paz e da Guerra critica Grotius no Do Contrato Social ao afirmar:

“Grotius nega que todo o poder humano se estabeleça em favor daqueles que são governados: cita, como

exemplo a escravidão. Sua maneira mais comum de raciocinar é sempre estabelecer o direito pelo fato. Poder-se-

ia recorrer a método mais conseqüente, não, porém, mais favorável aos tiranos. Resta, pois, em dúvida, segundo

Grotius se o gênero humano pertence a uma centena de homens ou se esses cem homens pertencem ao gênero

humano. No decorrer de todo o seu livro parece inclinar-se pela primeira suposição, sendo essa também a

opinião de Hobbes. Vemos assim, a espécie humana dividida como manadas de gado, tendo cada um seu chefe,

que o aguarda para devora-lo” (ROUSSEAU, 1983, p. 24). 3 “Ele tem o cuidado também de indicar no Emílio que não se deve confundir o “direito positivo dos governos

estabelecidos”, que foi a especialidade de Montesquieu, como o “direito político” que será a sua” (DERATHÉ,

2009, p. 94). 4 A frase completa de Rousseau é: “o direito político está por nascer e é de se presumir que nunca venha a

nascer” (ROUSSEAU, 2004, p. 676). A afirmação de que talvez o direito político nunca venha a nascer, pode ter

sido o reconhecimento de Rousseau da dificuldade de se colocar em prática o programa do Contrato Social.

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obra Do Contrato Social5, que norteará toda essa pesquisa. Nas Confissões, ao tratar das

Instituições Políticas, Rousseau afirma:

Embora já havia cinco ou seis anos eu trabalhasse nessa obra, ela não estava

ainda adiantada[...] não queria comunicar meu projeto a ninguém, nem

mesmo a Diderot. Receava que fosse muito ousado para o século e para o

país para que o escrevia, e que o susto dos meus amigos me constrangesse

na execução. Ignorava ainda se ele poderia ser feito a tempo e de modo a

poder aparecer enquanto eu ainda vivesse (ROUSSEAU, 1983, p. 371).

Rousseau estava consciente de que seu pensamento sobre o direito político seria

incompreendido em seu século, e que talvez não vivesse para poder vê-lo ser executado. Sabia

que assustaria até mesmo seus amigos com a ousadia de seu projeto. É no Do Contrato Social

- obra política por excelência que será muito utilizada neste trabalho – que se concentram os

conceitos caros ao estudo do direito político em Rousseau: convenção, estado civil, governo,

lei, legislador, pacto, povo, soberania, soberano e, por fim, vontade geral. No Emílio, “a

melhor de minhas obras, bem como a mais importante” (ROUSSEAU, 2008, p. 516), que

muito mais que do que um Tratado sobre a Educação, apresenta no Livro V uma minuta do

que seriam as Instituições Políticas6, e desta forma contribuirá para a presente pesquisa, bem

como o Discurso sobre a Desigualdade7, tratado aqui como Segundo Discurso, os

Manuscritos de Genebra8, e o Discurso sobre a Economia Política.

As demais obras do filósofo genebrino não serão ignoradas tais como: as

Considerações sobre o Governo da Polônia; o Discurso sobre as Ciências e as Artes, tratado

aqui como Primeiro Discurso; as Cartas9; as Confissões e os Devaneios de um Caminhante

Solitário. No entanto, serão utilizadas somente na medida em que contribuam para o objetivo

principal deste trabalho, a saber, analisar e compreender os fundamentos de legitimidade do

direito político em Rousseau.

É importante ressaltar que o conteúdo do presente trabalho é o estudo do legitima

o direito político no pensamento de Rousseau, e para tanto, a obra principal é o Do Contrato

Social, no qual o filósofo genebrino trata da possibilidade de se estabelecer uma nova ordem

5 “Tudo o que há de audaz no Contrato social já aparecera antes no Discurso sobre a Desigualdade”

(ROUSSEAU, 2008, p. 372). 6 “Relendo o texto do Emílio em que Rousseau dá o sumário, não do Contrato social, mas de suas Instituições

Políticas” (DERATHE, 1999, p. 95). 7 “Constituindo o segundo Discurso verdadeira introdução ao contrato e, em geral, ao pensamento político de

Rousseau” (MACHADO, 1968 p. 90). 8 “Falar do Manuscrito de Genebra já é falar do Contrato Social” (MACHADO, 1968, p.44).

9 Cartas Escritas da Montanha; Cartas a Christophe de Beaumont; Cartas a Malesherbes; Carta de J-J

Rousseau ao Senhor de Voltaire; Cartas Morais; Carta ao Senhor de Franquières e Carta a D´Alembert.

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social sem fundamentar-se na dominação de um homem pelo outro. Na referida obra, a

vontade geral é apresentada como uma forma de restabelecer a liberdade humana, através de

um novo pacto, que por não permitir a submissão de um homem ao outro e por manter a

liberdade individual, é considerado legítimo.

É na obra Do Contrato Social que se encontra a célebre frase: “O homem nasce

livre e por toda a parte encontra-se a ferros” (ROUSSEAU, 1983, p. 22). É da natureza do

homem a liberdade que não poderia lhe ser retirada, sob pena de perder a própria humanidade.

O homem deixaria de ser o que é: “Renunciar a liberdade, é renunciar a qualidade de homem,

aos direitos da humanidade, e até aos seus próprios deveres” (ROUSSEAU, 1983, p. 27). Um

homem não poderia concordar em se submeter a outro, a ser subjugado por outro “afirmar que

um homem se dá gratuitamente constitui uma afirmação absurda e inconcebível; tal ato é

ilegítimo e nulo, tão-só porque aquele que o pratica não se encontra no completo domínio de

seus sentidos” (ROUSSEAU, 1983, p.27).

Para Rousseau o homem não foi criado para ser dominado, mas sim para dominar-

se e ser seu próprio senhor, mantendo a liberdade inata. No entanto, o filósofo genebrino

afirma que essa liberdade é perdida através do convívio social, e que a partir deste convívio

ocorre à instituição da desigualdade entre os homens. Assim, Rousseau questiona: “Quero

indagar se pode existir na ordem civil, alguma regra de administração legítima e segura,

tomando os homens como são e as leis como podem ser” (ROUSSEAU, 1983, p. 21). Indagar

se existe alguma regra de administração que possa tomar os homens como são... Como são

os homens? Ora, são livres! Nascem livres, mas encontram-se a ferros por todas as partes.

Então Rousseau questiona: seria possível estabelecer um modo de convivência social que

mantivesse o homem tão livre quanto era ao nascer? A essa questão Rousseau responde

afirmativamente, resolvendo-a através de um pacto civil legítimo, no qual o povo submeter-

se-ia somente a vontade geral, que seria soberana, emanada do próprio povo reunido em

assembléia, sem a necessidade de representantes. Essa seria a forma libertadora do homem em

sociedade: fazer com que o homem dentro dos limites do possível seja conduzido ao que pode

ser.

Mas como chegar a esse direito político no qual o povo é soberano e se expressa

através da vontade geral, sem necessidade de submissão de um homem a outro? Qual é o

caminho que deve ser percorrido, como entender a natureza humana e suas faculdades e

paixões? Todos os povos poderiam utilizar-se da máxima da vontade geral? Quais seriam os

requisitos para a existência dessa vontade? Quando um povo se torna apto para expressar a

vontade geral? Como reconhecer essa vontade? Qual é o “guia” dessa vontade? Essas e outras

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questões serão abordadas no presente trabalho que será divido em dois capítulos dispostos da

seguinte maneira:

O primeiro capítulo abordará temas correlacionados com o direito político, mas

não o direito político em si, o que não significa que sejam temas menos importantes, porque é

através da compreensão da temática deste primeiro capítulo que se possibilitará a

compreensão posterior, de forma conjunta e a articulada do pensamento do filósofo genebrino

acerca do direito político. Este capítulo iniciará com o estudo do estado de natureza e da

liberdade natural, ressaltando a importância do tema, tendo em vista que é através da hipótese

do estado natural, que Rousseau busca as características inatas ao homem. Essas ideias do

homem genérico serão de muita importância quando se passar ao estudo do homem social, e

de seu processo de desnaturação, o que será importante, por sua vez, para se entender a

contrariedade à natureza que ocorre quando um homem se sujeita a outro.

Ainda no primeiro capítulo serão abordadas as paixões humanas inatas, a saber, a

liberdade e a perfectilidade, além da piedade natural e do amor de si, estes últimos, também

pertencentes aos animais. Esses são conceitos fundamentais para se compreender o

pensamento político de Rousseau, conforme se demonstrará. Dentre eles, destaco o da

liberdade - no primeiro capítulo será abordada a liberdade natural, sendo que a liberdade civil

será estudada no segundo capítulo - do amor de si e da perfectibilidade:

No que se refere à liberdade, conforme já mencionado e não sendo inútil repetir, o

homem não pode renunciá-la sob pena de deixar de ser o que é. Todo o trabalho de Rousseau

circunda tal tema, porque é para encontrar uma forma de manter o homem livre em sociedade

que ele escreve o Do Contrato Social, e desenvolve sua teoria sobre a legitimidade do direito

político.

Quanto ao amor de si, ou desejo de conservar-se, este é responsável por nossas

paixões doces e afetuosas, identifica as nossas verdadeiras necessidades, e é sempre bom e

que visa tão-só à conservação do homem. Mais do que estudar e conceituar o amor de si, o

propósito deste trabalho será demonstrar os danos que o homem sofre e causa quando o amor

de si é desnaturado e transformado em amor-próprio, sentimento que também será analisado

neste primeiro capítulo, e que pode ser encontrado no homem social.

Com relação à perfectibilidade, demonstrar-se-á que ela é a capacidade do homem

aperfeiçoar-se e responsável por distinguir o homem dos animais. Trata-se de uma capacidade

que desenvolve todas as outras capacidades “o animal, pelo contrário, ao fim de alguns meses,

é o que será por toda a vida, e sua espécie no fim de milhares de anos, o que era no primeiro

ano desses milhares” (ROUSSEAU, 1983, p. 243).

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No segundo capítulo adentrar-se-á propriamente no tema do direito político em

Rousseau. É neste capítulo que se concentrará o estudo do tema da vontade geral; povo;

soberano; soberania; lei; legislador; governo e tantos outros importantes para se compreender

o pensamento político de Rousseau. Demonstrar-se-á o que Rousseau entende por poder

soberano legítimo e de que forma este poder deve ser exercido para que a liberdade em

sociedade possa ser possível. No segundo capítulo destaco os temas: soberano, lei e vontade

geral:

A compreensão do que Rousseau entende por soberano é imprescindível: “Em

todo o Estado político, é preciso de uma potência suprema, um centro onde tudo esteja

relacionado, um princípio de onde tudo derive um soberano que possa tudo” (ROUSSEAU,

2006, p.332). Mas quem é esse soberano? Se for necessário que exista um soberano, como

então o povo poderá ser livre? Essa questão tão polêmica, que despertou muitas críticas será

desenvolvida no segundo capítulo.

No que se refere aos temas da lei e da vontade geral, que estão relacionados

intimamente, é possível afirmar que a lei para Rousseau deve ter um processo de formação

especial que a diferencia. A lei para ser legítima deverá preencher uma série de requisitos que

serão demonstrados. Um desses requisitos é ter passado pela aprovação da vontade geral, que

é um conceito central no pensamento de Rousseau, com o qual os demais conceitos do

segundo capítulo estarão correlacionados. Compreender a amplitude do conceito da vontade

geral e sua relação com todo o sistema do direito político em Rousseau, pode ser considerado

como o principal objetivo desse capítulo, e até mesmo do presente trabalho, considerando que

o tema é muito controverso e até mesmo na atualidade vem gerando dúvidas entre os

intérpretes de Rousseau.

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1 ESTADO DE NATUREZA E LIBERDADE NATURAL

Para estudar o estado de natureza é necessário retomar ao Segundo Discurso, que

visou responder a seguinte questão, proposta pela academia de Dijon10

: qual é a origem e o

fundamento da desigualdade entre os homens, e se ela é autorizada pela lei natural? Nele

Rousseau desenvolve um recurso retórico, construído a partir do que hipoteticamente teria

sido o estado de natureza. Tal recurso foi utilizado para ilustrar as características inatas à

condição humana em contraponto com o homem social, que teria adquirido tantas

características artificiais, que nem ele mesmo conseguiria diferenciar essas artificialidades

adquiridas no meio social das suas reais necessidades vitais.

Rousseau inicia o Segundo Discurso dizendo que estuda o homem: “É do homem

que devo falar e a questão que examino me diz que vou falar a homens, pois não se propõe

questões semelhantes quando se tem medo de honrar a verdade” (ROUSSEAU, 1983, p. 235).

Com essa frase inicial, esclarece que para abordar a questão da desigualdade deve primeiro

estudar o homem, não só o homem que tem diante dos olhos, mas sim um referencial humano,

sem os vícios artificiais. O homem que estava sob seus olhos, denominado de homem social

já estava corrompido pelos vícios e costumes, e teria adquirido tantas artificialidades que já

não conseguia ele próprio identificar o que seria necessidade natural (o que era

verdadeiramente essencial para sua subsistência) e o que lhe seria artificial (dispensável).

Rousseau descreve os traços do homem no estado de natureza em um exercício de

retórica, sem acreditar na existência efetiva de um estado de natureza, e com o objetivo de

buscar o que seria um referencial humano, presente em um homem livre e independente dos

demais de sua espécie. Este homem seria capaz de seguir os desígnios de seu coração, sem as

imposições que a vida em sociedade aplica a todos que dela participam. Para possibilitar a

convivência social, o filósofo genebrino descreve o homem no estado de natureza com muitas

minúcias e pormenores, apresentando inclusive características desse homem (físicas e

10

A academia de Dijon propunha concursos regulares cujos temas eram apresentados, muitas vezes, como

questões a serem respondidas. No Livro VIII das Confissões Rousseau narras as circunstâncias que cercaram a

composição do Discurso sobre as Ciências e as Artes. Narra que em fim de setembro, começo de outubro de

1749, quando estava a pé, se dirigindo para de Vincennes, com o objetivo de visitar Diderot que estava preso,

levando consigo o último exemplar do Mercure de France nas mãos, leu no jornal a questão que a academia de

Dijon acabava de propor: “o restabelecimento das ciências e das artes terá contribuído para aprimorar os

costumes?” Essa foi à questão respondida por Rousseau, através do Discurso sobre as Ciências e as Artes, que

lhe rendeu o prêmio da academia naquele ano. Em 1753 a Academia de Dijon propôs para o prêmio do ano

seguinte, a questão: Qual a origem da desigualdade entre os homens e será ela permitida pela lei natural?

Rousseau resolveu concorrer mais uma vez, e para tanto redigiu o Discurso sobre a Origem e o Fundamento da

Desigualdade entre os Homens.

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metafísicas), explicitando que é debruçado sobre essa ideia, que conseguirá identificar se a

desigualdade é ou não natural. Nesse sentido Garcia afirma:

Distinto é o modo como se pronuncia em outros textos e na Carta, em que

tem o homem natural - o homem em si - por objeto direto de considerações.

Ocupar-se deste homem genérico não é menos importante para Rousseau,

sobretudo pelo papel que as idéias abstratas e reguladoras assumem em seu

pensamento. Idéias que tornam possível sua crítica às concepções que

tomam os fatos contingentes do homem e da sociedade como verdades

adequadas à sua condição possível. Com isso, abdicam de visualizar as

diferenças e de compará-las tendo em vista uma idéia reguladora da

condição política humana (1999, p. 59).

Assim, no Segundo Discurso Rousseau esclarece o que entende ser a essência

humana: “Por importante que seja, para bem julgar o estado natural do homem, considerá-lo

desde a sua origem e examiná-lo, por assim dizer, no primeiro embrião da espécie”

(ROUSSEAU, 1983, p. 237). Rousseau descreve o homem em sua essência como um ser

muito resistente, que enfrenta as dificuldades apresentadas utilizando-se de sua força física:

Habituados desde a infância, às intempéries da atmosfera e ao rigor das estações,

experimentados na fadiga e forçados a defender, nus e sem armas, a vida e a prole

contra as outras bestas ferozes, ou a elas escapar correndo, os homens adquirem um

temperamento robusto. Sendo o corpo o único instrumento que o homem selvagem

conhece, é por ele empregado de diversos modos, de que são incapazes dada a falta

de exercício, nossos corpos, e foi nessa indústria que nos privou da força e da

agilidade que a necessidade obrigou o selvagem a adquirir (ROUSSEAU, 1983, p.

238/239).

O homem no estado de natureza estaria preparado para enfrentar intempéries, seria

ágil e vigoroso, capaz de manter sua própria sobrevivência e da prole, utilizando-se dos

recursos que lhe são fornecidos pela própria natureza “se não tem pele peluda, de modo algum

necessitam nas regiões quentes e, nas frias, desde logo sabem apropriar-se da dos animais que

dominaram; se só tem dois pés para correrem, têm dois braços para atenderem à sua defesa e à

sua necessidade” (ROUSSEAU, 1983, p. 242).

No estado de natureza, a própria natureza é a fonte vital, e maior riqueza, sendo

que nele praticamente não há necessidades, e as existentes são módicas e escassas,

normalmente relacionadas com questões de sobrevivência, como água, comida e abrigo. Para

respaldar essa suposição, Rousseau utiliza-se de uma afirmação visionária (hipotética) sobre o

homem no estado de natureza: “Vejo-o fartando-se sob um carvalho, refrigerando-se no

primeiro riacho, encontrando seu leito ao pé da mesma árvore que lhe forneceu o repasto e

assim satisfazendo todas as suas necessidades” (ROUSSEAU, 1983, p. 238).

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O estado de natureza apresenta poucos bens e se um homem nele fosse inserido,

temeria poucos males, porque sequer teria noção de sua própria existência. Não temeria a

morte, porque não teria noção da vida. Assim, por pouco conhecer, não desejaria muito, e o

que desejaria diria respeito às suas necessidades vitais: “os únicos bens que conhece no

universo são a alimentação, uma fêmea e o repouso; os únicos males que teme a dor e a fome”

(ROUSSEAU, 1983, p. 244). Rousseau acredita ser o estado de natureza um estado pacífico11

,

contrariando o estado de natureza de Hobbes, que seria um estado de guerra12

“sendo o estado

de natureza aquele no qual o cuidado de nossa conservação é o menos prejudicial à

conservação de outrem, esse estado era conseqüentemente o mais propício à paz e o mais

conveniente ao gênero humano” (ROUSSEAU, 1983, p. 252). Sendo propício para o

desenvolvimento da vida humana, nele cada um obedece somente a si e aos seus desígnios,

sem influências externas, e se guia somente por seu coração e assim é capaz de viver livre, de

forma errante, sem criar vínculos de dependência com seus semelhantes. Nesse estado o

homem se mantém livre como qualquer outro animal da terra, se diferenciado desses pelo fato

de ser consciente da liberdade que possui ao passo que os animais não o são. “Com efeito, é

impossível imaginar o porquê, nesse estado primitivo um homem sentiria mais necessidade de

um outro do que um macaco ou um lobo de seu semelhante” (ROUSSEAU, 1983, p. 250).

O homem no estado de natureza é um ser em relação imediata consigo e

com (sua) natureza. Mesmo quando integrado à natureza, possui qualidades

específicas de que essa, no seu conjunto, carece: a liberdade, a

perfectibilidade e a pitié13

. Essas são as capacidades virtuais e distintivas da

condição humana e, enquanto tais, decisivas – para o bem ou para o mal - a

11

“Embora admita por sua vez que o estado de natureza seja um estado de paz, Rousseau rejeita a teoria de

Locke e de Pufendorf, não menos do que a de Hobbes. Quão opostas sejam suas conclusões, todos esses autores

cometeram o mesmo erro de método. Nenhum deles foi capaz de considerar a noção de perfectibilidade ou as

modificações profundas que a vida em sociedade provoca na natureza do homem. No lugar de estudarem o

homem por um método genético, que lhes teria permitido “elucidar a gradação natural de seus sentimentos, eles

procederam analiticamente. No lugar de tomar o homem tal como ele sai das “mãos da natureza”, eles

observaram os homens que tinham diante dos olhos sem darem conta de que esses homens haviam sido formados

e transformados por séculos de civilização e de vida em sociedade. (DERATHE, p. 203, 2009). Se Locke e

Pufendorf admitiram que o estado de guerra poderia existir no estado de natureza, é porque eles faziam da

propriedade um direito natural, anterior ao estabelecimento na “ordem social, não poderia haver dano, nem

injúria nem guerra, no estado de natureza. É o que ele afirma numa passagem do Contrato social, na qual, pela

excessiva concisão, corre o risco de parecer enigmática. É a relação entre coisas, diz ele, e não entre homens que

constitui a guerra; e como o estado de guerra não pode nascer das simples relações pessoais, mas somente das

relações reais, a guerra privada, ou de homem a homem, não pode existir, nem no estado de natureza, em que

não há propriedade constante, nem no estado social em que tudo está sob autoridade das leis” (DERATHE, p.

208). 12

“Não há guerra entre os homens, diz Rousseau, mas somente entre os Estados. Quando Hobbes fala de uma

guerra geral de homem a homem, ele emprega portanto o termo guerra no sentido popular, pois se tomarmos a

palavra no sentido jurídico, não poderia haver verdadeira guerra entre os particulares, nem no estado de natureza,

nem no estado civil” (DERATHE, p. 206, 2009). 13

Essas três características citadas por GARCIA: a perfectibilidade, a liberdade, a pitié (piedade), e as paixões

serão mais bem analisadas no próximo tópico.

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qualquer mudança nesta condição imaginária ou de dever ser. Embora as

desigualdades estejam presentes nas características físicas ou mentais dos

homens, elas não desigualam, porque a condição que descreve o homem

natural apenas o considera em si mesmo ou em relação genérica com a

espécie. As desigualdades sociais desigualam porque o homem é

considerado, efetivamente, em meio às condições em que ela pode ser

efetivamente percebida. As desigualdades morais e políticas – produzidas

artificialmente – são efetivamente “negativas” e, só se tornaram possíveis

na condição das instituições sociais. Condição produzida pela conjugação

das várias capacidades distintivas do homem: a liberdade, a perfectibilidade,

as paixões, o engenho, os talentos, as circunstâncias geográficas, climáticas,

os acasos e, sobretudo, a pressão conjunta de todos esses fatores exercida

num determinado momento da história humana (GARCIA, 1999, p. 102).

No estado de natureza o homem não necessita de outro, e como não há

necessidade de relacionar-se não existe a submissão, a violência, a hierarquia, a luta pelo

poder. Nesse Estado, o homem não conhece a ira de seu semelhante, não sabe o que significa

as palavras escravidão, déspota, tirania, e desta forma, mantém-se livre, e pelo fato de não

conviver, não se aprisiona. “O que caracteriza o estado de natureza, segundo Rousseau, é a

transparência, a satisfação imediata de todas as necessidades e, com isso, ausência total de

obstáculos e de conflitos” (MONTEAGUDO, p. 29).

Desta forma, pela ausência de convivência no estado de natureza, não há que se

falar, nesse estado, em política ou em direito político. Rousseau sequer menciona uma

potencialidade para tanto. “Não há, portanto propriedade, nem injúria, no estado de natureza,

e Rousseau apropria-se da célebre fórmula de Hobbes: Natura dedit unicuique jus in omnia14

(DERATHE, 2009, p. 170).

Considerando que o desenvolvimento do pensamento do estado de natureza ocorre

quase em totalidade no Segundo Discurso, e que esta obra tem como objetivo responder a

academia de Dijon à pergunta sobre a desigualdade, o foco de Rousseau naquele momento

não era dissertar acerca do direito político. O Segundo Discurso objetivou analisar a origem

da desigualdade, detectar seu motivo e contrapô-la com a ordem natural, sem tentar

estabelecer uma hipótese para solucionar tal problema, ou tratar do direito político em si.

Concluída a análise do estado de natureza e suas características, passa-se à análise

da liberdade natural. Rousseau inicia o Capítulo 1 da obra Do Contrato Social tratando

justamente da liberdade com uma de suas frases mais conhecidas: “o homem nasce livre, e

por toda a parte se encontra a ferros. O que se crê senhor dos demais não deixa de ser mais

escravo do que eles” (ROUSSEAU, 1983, p. 22). Dizer que o homem nasce livre é afirmar

14

Traduzido livremente significa: A natureza deu a cada um o direito sobre todas as coisas.

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que a liberdade é inerente a cada ser humano desde o seu nascimento, e que a única condição

estabelecida para que o homem a adquira é nascer, sem quaisquer outras. Assim, a liberdade

está atrelada de forma íntima à condição humana.

A liberdade do estado de natureza é muito parecida com a independência, se é que

não é possível se afirmar que no referido estado, liberdade e independência são o mesmo. A

independência no estado natural e a ausência de vínculos com os semelhantes, faziam com

que o homem nesse estado pudesse agir conforme seus desígnios. Nessa mesma linha de

interpretação, destaca-se a afirmação de Robert Derathè: “Assim, por não ter admitido que o

estado de natureza é um estado de dispersão ou de isolamento, os filósofos se contentaram em

observar e em descrever “almas cem vezes remodeladas e fermentadas no levedo da

sociedade” ( 2009, p. 204).

Quando Rousseau propôs na obra Do Contrato Social, uma forma de tornar o

homem tão livre quanto antes, por certo que ele jamais quis que o homem deixasse de viver

em sociedade para “retomar” à liberdade natural. Em momento algum propalou a volta do

homem ao estado de natureza, e é justamente por visualizar todo o absurdo de que conteria a

afirmação “de volta ao estado de natureza” que Rousseau escreveu o Do Contrato Social,

onde apresenta uma solução para manter o homem livre em sociedade. No Emílio, Rousseau

afirma: “Um homem que quisesse considerar-se como um ser isolado, não dependendo

absolutamente de nada e bastando a si próprio, só poderia ser miserável. Ser-lhe ia até mesmo

impossível subsistir” (2004, p. 258). Rousseau é pleno conhecedor de que a liberdade natural

não pode subsistir no estado social. A única forma para Rousseau de se retomar a liberdade

natural (ilimitada) ocorre quando o pacto é rompido: “violando-se o pacto social, cada um

volta a seus primeiros direitos e retoma sua liberdade natural, perdendo a liberdade

convencional pela qual renunciara àquela” (ROUSSEAU, 1983, p.32). É importante dizer,

que essa liberdade natural de quem viola o pacto, não pode ser entendida como

independência, pois a liberdade natural sinônimo de independência é aquela do homem no

estado de natureza, que se trata apenas de uma hipótese levantada por Rousseau.

Todo homem possui a liberdade como característica que o diferencia dos animais:

“um escolhe ou rejeita por instinto, e o outro, por um ato de liberdade” (ROUSSEAU, 1983,

p. 242/243). O homem é livre e tem consciência da possibilidade de escolha “na consciência

dessa liberdade é que se mostra a espiritualidade de sua alma” (ROUSSEAU, 1983, p. 243). O

homem pode escolher, ao passo que os animais são guiados somente por seus instintos. A

liberdade, portanto, diferencia o homem do animal, e mesmo no estado de natureza, o homem

pode escolher.

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Ser livre é perseguir o objetivo de deliberar e obedecer às próprias

deliberações, isto é, permanecer livre. Mais uma vez a liberdade como

pressuposto e como finalidade. A liberdade pressupõe a virtude do cidadão

e do súdito, o que só é obtido quando a lei estiver inscrita no coração dos

cidadãos (MONTEAGUDO, 2006, p. 179).

Rousseau pensa que nada poderia compensar a perda de um bem tão precioso

quanto à liberdade, e a guerra civil lhe parece menos temível do que a tirania: “vive-se

tranqüilo nas masmorras; será que isso é suficiente para encontrar-se bem? Os gregos

fechados no antro de Ciclope viviam tranqüilos, aguardando sua vez de serem devorados”

(ROUSSEAU, 1983, p. 27). O que interessa para Rousseau não é a ausência de conflitos, mas

sim a legitimidade para cada um poder exercer sua liberdade. Nota-se que o tema da liberdade

orienta todo o pensamento de Rousseau: Todo homem, nasce livre e senhor de si mesmo,

ninguém pode, a qualquer pretexto imaginável, sujeitá-lo sem o seu consentimento. “afirmar

que um filho de um escravo nasce escravo é afirmar que não nasce homem” (ROUSSEAU,

1983, p. 120).

É inadmissível que um homem renuncie a sua própria liberdade, e mesmo que

fizesse isso, não poderia renunciar a liberdade de seus descendentes. A escravidão que a

época de Rousseau era vista como um direito, era considerada por ele um grande absurdo,

porque um homem não poderia renunciar a sua liberdade, sob pena de renunciar a própria

condição humana, e mesmo que renunciasse, não poderia renunciar a liberdade de outro

homem. Rousseau considera um absurdo maior ainda dizer que um filho de escravo nasce

escravo, seria o mesmo que dizer que não nasce homem, porque todo homem nasce livre.

O tema da liberdade está diretamente ligado aos fundamentos de legitimidade para

Rousseau. No próximo capítulo a liberdade social e lei serão estudadas conjuntamente. Por

ora, é necessário dizer que a liberdade do estado natural não poderia manter-se no estado

social, tendo em vista que o direito ilimitado de tudo a todos, não corresponde às necessidades

sociais. O homem que vive em sociedade, sofre e deve sofrer limitação a sua liberdade

natural, somente assim poderá ser livre. Desta forma, considerando que não se quer, muito

menos se pode recuperar a liberdade do estado natural na vida social, uma nova forma de

liberdade deveria ser encontrada para que o homem civil mantivesse-se livre, essa é a

liberdade convencional que será posteriormente estudada no tópico da liberdade civil, do

próximo capítulo.

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1.1 CONHECIMENTO DO HOMEM

No presente item se estudará algumas características e faculdades

que, segundo nosso autor, são inatas ao homem, como a liberdade, perfectibilidade, amor de si

e piedade, a razão, e ainda o amor próprio que é adquirido através do convívio social. É

dessas faculdades que se tratará agora, em uma análise das características metafísicas. Quando

se fala em metafísica, esta não deve ser entendida como a análise da moral, principalmente

porque algumas dessas características estão virtualmente presentes no homem no estado de

natureza, como a liberdade, a razão, o amor de si, a piedade, e o homem no estado de natureza

não é um ser moral, porque não tem noção do justo e do injusto, do bem e do mal, é

simplesmente um ser amoral: “parece a princípio, que os homens nesse estado de natureza,

não havendo entre si qualquer relação moral ou deveres comuns, não poderiam ser nem bons,

nem maus ou possuir vícios ou virtudes” (ROUSSEAU, 193, p. 251). O homem no estado de

natureza é amoral como um animal. Não se diz que uma fera atacou porque é má, mas sim

porque é uma fera. Não há moralidade na ação dela, há apenas a potencialidade de sua

espécie:

Não há assim moral entre os animais porque eles não podem resistir aos

impulsos da natureza. Além disso, como a consciência no estado de

natureza é transparente, não se pode atribuir ao homem natural faculdades e

paixões que a pervertem e desviam, pois só se desenvolve em sociedade.

(MONTEAGUDO, 2006, p. 28)

O que se abordará no presente item são as paixões humanas. “[...]

apesar do que dizem os moralistas, o entendimento humano muito deve às paixões, que

segundo uma opinião geral, lhe devem também muito. É pela sua atividade que nossa razão se

aperfeiçoa” (ROUSSEAU, 1983, p. 244). Rousseau no Emílio afirmava que “a fonte de todas

as paixões é a sensibilidade, a imaginação determina sua inclinação” (2004, p. 298). No

Discurso sobre a Desigualdade afirma que “As paixões por sua vez, encontram sua origem

em nossas necessidades e seu progresso em nossos conhecimentos, pois só se pode desejar ou

temer as coisas segundo as idéias que delas se pode fazer” (ROUSSEAU, 1983, p. 244). É a

sensibilidade humana, o sentimento humano que será objeto de estudo. As faculdades e

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paixões15

inatas ao homem que serão aqui analisadas: a liberdade; perfectibilidade; piedade,

amor de si e a razão, serão doravante abordadas:

Além das duas características específicas do homem - a liberdade e a

perfectibilidade –, há dois princípios naturais que o homem compartilha

com os animais: o amor-de-si, instinto pelo qual todo animal é levado a

cuidar da própria conservação; e a piedade ou comiseração, pela qual todo

animal tem repugnância natural em ver perecer ou sofrer qualquer ser

sensível (ROUSSEAU, 1983, ver p. 243).

A perfectibilidade e a liberdade são características peculiares à condição humana.

Somente o homem pode tê-las, sendo que nenhum outro animal poderá desenvolvê-las. No

entanto, como o tema da liberdade inata ao ser humano foi analisado no item anterior,

desnecessário se faz analisá-lo novamente, por este motivo passar-se-á diretamente a análise

da perfectibilidade, e na seqüência serão analisadas as demais paixões mencionadas.

1.1.1 Perfectibilidade

O homem tende a perfeição, é isso o que Rousseau quer dizer com a

perfectibilidade. O homem aperfeiçoa-se, ao passo que os animais possuem um determinado

potencial estabelecido, que com pouco tempo é alcançado e mantém-se inalterável, enquanto

que no homem há a possibilidade do contínuo aperfeiçoamento, sem limites preestabelecidos.

Para Rousseau, esse aperfeiçoamento é realizado pela razão, mas é motivado pelas paixões,

pois é através das paixões que nasce o desejo de conhecer.

A faculdade de aperfeiçoar-se, faculdade que, com o auxílio das circunstâncias

desenvolve sucessivamente todas as outras e se encontra, entre nós, tanto na espécie

quanto no indivíduo, o animal, ao contrário, ao fim de alguns meses, é o que será

por toda a vida, e sua espécie no fim de milhares de anos, o que era no primeiro

desses milhares (ROUSSEAU, 1983, p. 243).

15

“Nossas paixões são o principal instrumento de nossa conservação; portanto, é uma tentativa tão vã quanto

ridícula querer destruí-las; é governar a natureza, é reformar a obra de Deus. Se eu dissesse ao homem para

destruir as paixões que lhe dá, Deus quereria e não quereria; estaria se contradizendo. Ele nunca deu essa ordem

insensata, nada de semelhante está escrito no coração do humano, e o que Deus quer que um homem faça ele não

manda outro homem dizer, ele próprio o diz e o escreve no fundo do seu coração. Ora, eu acharia aquele que

quisesse impedir que as paixões nascessem quase tão louco quanto quem quisesse destruí-las, e aqueles que

acreditam que tenha sido esse o meu plano até aqui com certeza entenderam-me muito mal” (ROUSSEAU,

2004, p. 287).

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A perfectibilidade assim como a liberdade pertence somente à espécie humana,

porque o homem é o único que tem consciência de sua liberdade e que pode dirigir-se. A

perfectibilidade é motivada pelas paixões e exteriorizada pela razão. Nesse sentido

Monteagudo afirma:

Do ponto de vista físico, o homem é um animal. A diferença entre os

homens e os animais é a metafísica. Há duas características que distinguem

o homem dos outros animais. A primeira é a liberdade, pela qual o homem

pode resistir aos impulsos da natureza, enquanto os animais agem por puro

instinto [...] a segunda característica é a perfectibilidade pela qual o homem

pode desenvolver a faculdade da razão – caso esta se torne necessária e

outras que dela dependem e contribui também para sua autonomia. É

preciso reconhecer que o homem tem sempre a capacidade de aprender e de

se adaptar a novas circunstâncias (MONTEAGUDO, p. 27).

A capacidade do homem aperfeiçoar-se faz com que ele adquira capacidades que

ainda não tinha, e que melhore as que já possuía. É através dela que o homem consegue

adaptar-se às condições apresentadas, criando mecanismos para sobreviver sempre de forma a

tornar-se mais capaz e completo, suprindo suas necessidades na medida em que vão

aparecendo. Embora a perfectibilidade esteja no homem desde o seu nascimento, é na vida em

sociedade que esta se desenvolve de forma mais notória. Se o homem no estado de natureza

possui a perfectibilidade, é no homem social que essa paixão vai se desenvolver com maior

propriedade, tendo em vista que o homem social precisa constantemente adaptar-se ao seu

meio, e é na vida em sociedade que o homem se torna homem. Assim Garcia nos lembra do

comentário de Derathè sobre o lugar do conceito de perfectibilidade no pensamento de

Rousseau:

O que distingue o homem dos animais é juntamente com a liberdade ou sua

qualidade de agente livre, a perfectibilidade e as outras faculdades

“virtuais” que ele recebeu em “potência” da natureza, tais como a razão, a

imaginação e a consciência. Estas faculdades virtuais, que no estado de

natureza são “supérfluas” e que permanecem em repouso, não podem se

atualizar ou se tornarem ativas senão com a vida em sociedade a qual é a

condição de seus exercícios. A vida social faz elas passarem de potência a

ato porque são (...) os instrumentos de adaptação ao meio social. Se a

natureza as dispôs em reserva em nossa alma para que ela as possa utilizar

conforme necessite, é na realidade, porque o homem é, segundo a fórmula

da profissão de fé, senão sociável por sua natureza, pelo menos capaz de se

tornar tal. A natureza humana manifesta todas as suas virtualidades com a

vida social a qual segundo uma passagem célebre do Contrato Social: de um

animal estúpido e ilimitado fez um ser inteligente e um homem. A vida em

sociedade, as relações entre os homens com seus semelhantes, são as

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condições de desenvolvimento de nossas mais eminentes faculdades tais

como a razão e a consciência. Não é, pois, de modo absoluto nem definitivo

que a sociedade se opõe à natureza (GARCIA, 1999, p.57).

A primeira vista, tanto a liberdade quanto a perfectibilidade parece trazer somente

vantagens aos homens, por serem muito positivas (dão ao homem uma dimensão que os

animais não têm). A liberdade é considerada positiva, porque é sempre almejada (é o principal

objetivo da obra Do Contrato Social) no entanto, vale a seguinte observação:

Embora teça elogios à liberdade humana, Rousseau a avalia como boa e má ao

mesmo tempo. É movida por ela que o homem excede os ditames da natureza e cai

em excessos, arcando ao final com terríveis prejuízos ‘o animal não pode desviar-se

da regra que lhe é prescrita, mesmo quando lhe fora vantajoso fazê-lo, e o homem

em seu prejuízo, frequentemente é afastado dela (MARQUES, 2005, p. 285).

Apesar de ser a liberdade positiva, conforme já demonstrado por possibilitar ao

homem a escolha, ou seja, a natureza possibilitou ao homem ser um agente livre, pois

enquanto um animal “escolhe ou rejeita por instinto” (ROUSSEAU, 1983, p.242) o homem

escolhe ou rejeita “por um ato de liberdade” (ROUSSEAU, 1983, p. 243). Assim completa

Rousseau:

Um pombo morreria de fome perto de um prato das melhores carnes e um

gato sob um monte de frutas ou sementes, embora tanto um quanto outro

pudessem alimentar-se muito bem com o alimento que desdenham, se fosse

atilado para tentá-lo; assim os homens dissolutos se entregam a excessos

que lhes causam febre e morte, porque o espírito deprava os sentidos e a

vontade ainda fala quando a natureza se cala (ROUSSEAU, 1983, p. 243).

Nessa passagem Rousseau diferencia bem a natureza do animal que é conformado

aos desígnios de sua espécie e a natureza humana. Um pombo ou um gato, mesmo prestes a

morrerem de fome não se aventuram a comer o que não está prescrito para sua espécie,

embora se tentassem poderiam sobreviver. O mesmo não ocorre com o homem, que por ser

livre pode lançar-se ao desconhecido, inclusive podendo se entregar a excessos, o que lhe é

prejudicial. O homem também está submetido às regras da natureza: “a natureza manda em

todos os animais, e a besta obedece. O homem sofre a mesma influência, mas considera-se

livre para concordar ou resistir, e é sobretudo na consciência dessa liberdade que se mostra a

espiritualidade de sua alma”(ROUSSEAU, 1983, p. 243). Essa faculdade humana de dirigir-se

pode ser prejudicial ao homem, porque sem conhecer seus limites poderá dirigir-se para o que

lhe é nocivo, e nesse sentido a liberdade é negativa.

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25

Com relação à perfectibilidade16

(responsável pelo desenvolvimento das

habilidades humanas), também há restrições, porque pode ser fonte de muitos dos males da

humanidade17

. É inegável que a perfectibilidade é a paixão que faz o homem adaptar-se e

sobrevier, sempre buscando melhorar. No entanto, essa mesma paixão também possui um

lado negativo. É a perfectibilidade que faz com que o homem no estado social queira ser

reconhecido18

; é a perfectibilidade que faz com o homem supere o estado de natureza e

constitua o estado civil. É essa capacidade que faz o homem perceber que poderia ser

vantajoso viver em sociedade, e foi a partir daí que muitos males se originaram. É o que

afirma Rousseau, ao descrever a perfectibilidade:

Vermo-nos forçados a convir que seja essa faculdade, distinta e quase ilimitada, a

fonte de todos os males do homem; que seja ela que com o tempo, o tira dessa

condição original na qual passaria dias tranqüilos e inocentes; que seja ela que,

através dos séculos desabrochem suas luzes erros, seus vícios e virtudes, o torna

com o tempo o tirano de si mesmo e da natureza (ROUSSEAU, 1983, p. 243).

Desta forma, verifica-se que tanto a liberdade quanto a perfectibilidade que são

características inatas e inerentes a condição humana, responsáveis por tantos benefícios para a

vida do homem, podem ser desvantajosas e até mesmo perniciosas, quando, por exemplo, a

liberdade é mal utilizada, desregrada e voltada para excessos. Diferenciando a liberdade da

perfectibilidade, percebe-se ainda, que na liberdade há uma ação do homem (o homem usa

mal sua liberdade), enquanto que no que se refere à perfetibilidade, não há a exigência dessa

ação, ela em sim mesma, dentro de seu movimento natural é por si só perniciosa. Devido à

perfectibilidade que o homem criou uma série de necessidades artificiais quando passou a

viver em sociedade, que o desnaturou de tal forma, que hoje é praticamente impossível

separar o que é uma necessidade, e o que é artificialidade.

16

Posteriormente, Rousseau explicará que é pela liberdade e pela perfectibilidade que o homem vivendo em

sociedade se aprisionará, pois a perfectibilidade, aliada aos reveses da natureza, faz nascer um novo homem,

muito diferente do homem do estado natural. Esse novo homem é denominado de homem social. 17

Nesse sentido Garcia: “As desigualdades artificiais negativas são introduzidas pelo homem no momento em

que a perfectibilidade, a liberdade, o acaso e as pressões de várias ordens combinam-se para produzir a passagem

do estado de natureza para o de sociedade. É o exame da condição fictícia do homem nesse primeiro estada que

instaura uma idéia de vida, segundo a natureza, como norma razoável e, na verdade, irrealizável como

coincidência cristalina entre condição efetiva do homem social e a norma derivada da natureza” (1999, p. 98). 18

O desejo de reconhecimento também tem seu aspecto positivo, que será estudado no Segundo Capitulo do

presente trabalho.

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1.1.2 Piedade

A piedade19

poderia ser considerada como a repugnância inata ao ver sofrer. A

piedade natural seria um movimento da própria natureza que faz com que o homem, e até

mesmo alguns animais padeçam ao ver sofrer seus semelhantes. Não se trata de uma ação que

passa pelo crivo da razão, mas sim de um sentimento anterior a ela: “tal o movimento puro da

natureza, anterior a qualquer reflexão; tal a força da piedade natural que até os costumes mais

depravados tem dificuldade em destruir” (ROUSSEAU, 1983, p. 253). O próprio Rousseau

conceitua o que entende pela piedade natural:

Falo da piedade, disposição conveniente a seres tão fracos e sujeitos a

tantos males como o somos; virtude tanto mais universal e tanto mais útil no

homem quanto nele precede ao uso de qualquer reflexão e tão universal que

as próprias bestas, às vezes são dela alguns sinais perceptíveis. Sem falar da

ternura das mães pelos filinhos e dos perigos que enfrentam para garanti-

los, comumente se observa a repugnância que tem um cavalo ao pisar em

um ser vivo. Um animal não passa sem inquietação ao lado de um animal

morto de sua espécie; há alguns que lhe dão uma espécie de sepultura, e os

mugidos tristes do gado entrando no matadouro exprimem a impressão que

tem do horrível espetáculo que o impressiona (ROUSSEAU, 1983, p. 253).

Essa paixão natural, não somente ao homem como também a alguns animais, faz

com que se coloque no lugar do outro, no lugar daquele que sofre. “A pitié apresenta-se,

simultaneamente, portanto, como a mais privada e imediata das paixões e a paixão capaz de

produzir, pela mediação a alteridade” (GARCIA, 1999, p. 204).

Rousseau afirma que da piedade natural, outros sentimentos surgem: “com efeito,

que são a generosidade, a clemência, a humanidade, senão a piedade aplicada aos fracos, aos

culpados ou a espécie humana em geral?” (ROUSSEAU, 1983, p. 254). Essa paixão, segundo

o nosso autor, está mais fortemente presente no estado de natureza do que propriamente no

estado social. “Sentimento obscuro e vivo no homem selvagem, desenvolvido, mas fraco no

homem social” (ROUSSEAU, 1983, p. 254). No estado de natureza o homem é racional, mas

esse não é um estado de raciocínio, é um estado de sentimentos, e dentre esses sentimentos a

19

“Se nossas escolhas são feitas sempre a partir das paixões que já amamos, o teatro apenas purga as paixões que

não temos e fomenta as que temos, só reforça o que a natureza e os costumes inculcaram no coração do homem.

É a pitié -sentimento inato-, e não a sua educação, o que “sustenta” nosso interesse e sentimento de compaixão

para com nossos semelhantes. Mais ainda: a distância produzida entre a realidade e sua representação permite

que tomemos sem dificuldade o partido do justo, do bom e do belo” (GARCIA, 1999, p. 37).

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piedade ou comiseração está fortemente desenvolvida. O estado civil, por sua vez é um estado

de reflexão e raciocínio, e nele o amor-próprio, faz com que o homem volte-se mais para si do

que para o outro. É justamente isso que Rousseau pretende evitar através de seu direito

político. O objetivo da arte política para Rousseau se esclarece: trata-se de fortalecer a

piedade20

natural e enfraquecer o egoísmo do amor-próprio. Dissertando sobre a piedade,

Monteagudo:

Trata-se de um principio que amansa a ferocidade do amor-próprio antes de

seu surgimento, isto é, a exemplo da perfectibilidade que abrange a

possibilidade de desenvolvimento da razão, a piedade no homem (devido à

liberdade) também participa da possibilidade de desenvolvimento da

sociabilidade (e, por conseguinte, da moralidade) (2006, p. 31).

A piedade natural nunca abandona o homem, está presente em todos os estados. A

piedade nasce no coração humano “A precedência da pitié, cujo lugar é o coração do homem”

(MACHADO, 1968 p. 101). Ademais, ao conceber a existência de uma piedade natural,

“repugnância inata ao ver sofrer seu semelhante”, Rousseau a define como impulso natural,

incoercível, irracional, amoral. É no coração humano que ela permanece independentemente

do estado (natural ou social).

No estado social, a piedade é responsável por fazer com que o homem pense

menos em si, e consiga colocar-se no lugar de seu semelhante, o que facilita a convivência

social. A piedade amansa o homem, que se torna generoso compassivo através dela.

A capacidade de transportar-se para fora de si e de colocar no lugar do outro

é um dos traços essenciais da condição humana. A pitié é a paixão, virtude

natural, que, junto às outras faculdades, possibilitam a vida em comum. Sua

virtualidade se realiza no momento em que o homem estreita os laços com

seus parceiros [...] isso significa que a pitié tem a ver com a catarse e com a

imitação, na medida em que cada uma delas permite uma “mudança de

lugar”, um deslocamento para onde não existe coincidência entre a coisa

mesma e sua representação (GARCIA, p. 203).

A piedade funciona como se existisse um canal aberto de resgate de um

sentimento que estaria presente no estado natural. O fato da piedade estar presente tanto no

20

“Daí que parece plausível instalar a pitié no núcleo dos conceitos críticos decisivos de Rousseau. Destacar que,

por ser uma paixão que atravessa o estado fictício e o real, apresenta-se apta para fazer a mediação entre o lugar

abstrato conceitual em que circulam os conceitos centrais da crítica e as experiências efetivas do homem em

sociedade. Escrevendo de outro modo: a pitié é essencial para sustentar a crítica porque é uma paixão natural que

atravessa a ficção e a realidade. Se ela é virtual no estado de natureza, é, no entanto, essencial para a descrição”

(Garcia, 1999, p. 194).

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estado natural quanto no social, demonstra que para Rousseau ainda é possível restabelecer

virtudes presentes há muito tempo na natureza humana, embora ocultadas pela sociedade.

Ocorre que esse sentimento que possibilita a vida em sociedade, enfraquece-se justamente no

estado social, onde as relações humanas são mais próximas, e onde toda sua potencialidade

poderia ser desenvolvida. Esse enfraquecimento da piedade no estado civil se apresenta como

um paradoxo é o que sugere Garcia:

No entanto, embora as capacidades específicas sejam decisivas para

descrever o que veio a ser o homem, há um outro dado constitutivo

essencial a ser considerado: a pitié – paixão inata, cujo exame indispensável

para articular a crítica da representação e a crítica político moral da

sociedade. Essa é a paixão referência para todas as outras: a única que

nunca abandona o homem. Embora necessite do estado social para se

exercer plenamente, ela não é seu produto. Mais que isso: se a pitié, no

limite é impensável na ausência do “Outro”, então é igualmente impensável

subtraí-la a toda a forma de representação (GARCIA, 1999, p. 193).

O paradoxo da piedade reside no fato de que ela está presente no estado natural de

forma viva, nesse estado ela ocupa o lugar das leis, dos costumes e da virtude, mas ali não se

desenvolve plenamente, porque as relações humanas são escassas. Já no estado social, as

relações humanas são constantes. O homem social está próximo de seu semelhante, as

relações humanas são inerentes a esse estado, e é somente em sociedade que a piedade se

desenvolve plenamente. A piedade necessita do outro, porque é o desejo que o outro não

sofra, e visa à manutenção de toda a espécie. É um sentimento inato e irrefletido: “a piedade

representa um sentimento natural que, moderando em cada indivíduo a ação do amor de si

mesmo, concorre para a conservação mútua de toda a espécie” (ROUSSEAU, 1983, p. 254).

A piedade é o nexo fundamental das virtudes humanas, e funciona como um elo

entre a natureza artificial humana, e sua verdadeira natureza. É um resgate de si que o homem

possível ao homem através da piedade. É “o liame vital que mantém o grande ser uno,

coerente e vivo, indubitavelmente reside na trama de consciências que se traça entre as suas

partes constitutivas essenciais, mas que tem sua expressão superior na consciência do todo”

(MACHADO, 1981, p. 141).

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É na consciência humana que reside a piedade. A consciência não nos ensina a

pensar, mas a agir21

. Mas o que é a consciência? Rousseau responde a tal questão quando

conceitua-a na Quinta Carta22

Consciência, consciência, instinto divino, voz imortal e celeste, guia seguro de um

ignorante e limitado, mas inteligente e livre, juiz infalível do bem e do mal, sublime

emanação da substância eterna, que torna o homem semelhante aos deuses, és tu

apenas que perfazes a excelência da minha natureza. Sem ti não sinto nada em mim

que me eleve acima dos animais, a não ser o triste privilégio de me perder de erro

em erro com a ajuda de um entendimento sem regra e uma razão sem principio.

Esforçai-vos para fazer as coisas que amais ver feitas por outros (ROUSSEAU,

2006, p. 167-8).

A consciência é um instinto inato que permanece muda no homem, até que este

passe a viver em sociedade, quando assim ocorre, surge o que pode ser chamado de primeiros

movimentos do coração, e então a entrada do homem na ordem moral. É na consciência

humana que vão sendo construídos os conceitos de moral, de justiça, de bondade. Esses

termos não são apenas palavras vazias. O homem, ao passo que desenvolve sua consciência,

consegue dar nome as experiências que vive. Passa a reconhecê-las pelos termos específicos:

“Assim, bondade e justiça não são palavras vazias fabricadas pelos homens, mas experiências

bastante primitivas às quais o progresso da razão propicia dar um nome” (MARQUES, 2007,

p. 55).

Desta forma, a moral é construída pelo homem a partir de experiências que teve, e

através da reflexão, buscando-se o que é de mais privado no ser, é que se estabelecem os

princípios morais, esforçando-se para fazer as coisas que ama ver feitas por outros. “Rousseau

designou a pitié como o princípio extraordinário que opera o movimento do próprio círculo

sobre si mesmo e produz a abertura, o salto para fora, na direção do lugar do outro, do igual,

do diferente” (GARCIA, 1999, p. 122).

É medindo a si mesmo, é tentado reproduzir em si o que gosta de ver reproduzido

no outro, agir com o outro como gostaria que esse outro agisse consigo, “faze a outrem o

desejas que façam a ti” (ROUSSEAU, 1983, p. 254). É assim que se estabelecem os

princípios morais em Rousseau, que são fundamentados nos sentimentos e na consciência

21

“A consciência não nos diz a verdade das coisas, mas a regra de nossos deveres, ela não nos dita o que

devemos pensar, mas o que devemos fazer, ela não nos ensina a raciocinar corretamente, mas a bem agir”

(ROUSSEAU, apud, MARQUES 2007, p. 52). 22

Cartas Escritas da Montanha.

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humana. Assim, como o homem busca em si o que é bom, e quer o que é bom, é constituída a

bondade natural 23

em Rousseau.

O homem que faz a outrem o que gostaria que fosse feito a si, é o homem apto a

pensar no bem comum e na finalidade pública, é esse o homem apto para expressar o direito

político em Rousseau, aquele que é capaz de viver em sociedade, que faz ao outro apenas que

gostaria que lhe fosse feito e que age segundo a máxima: “alcança o teu bem com o menor

mal possível para outrem” (ROUSSEAU, 1983, p. 254).

1.1.3 Amor de si

Rousseau ainda no início da segunda parte do Discurso sobre a

Desigualdade informa que “o primeiro sentimento do homem foi o da sua existência, sua

primeira preocupação o de sua conservação” (ROUSSEAU, 1983, p. 260). No Emílio, ensina

que “é preciso que nos amemos para nos conservarmos é preciso que nos amemos mais do

que qualquer outra coisa, e, por uma conseqüência imediata do mesmo sentimento amamos o

que nos conserva” (ROUSSEAU, 2004, p. 289). Assim, o sentimento que é responsável pela

23

“Se a bondade moral estiver em conformidade com nossa natureza, o homem só poderá ser são e bem

constituído na medida em que for bom. Se não houver essa conformidade e o homem for naturalmente mau, não

poderá deixar de sê-lo sem se corromper. A bondade seria nele apenas um vício contra a natureza: feito para

causar dano a seus semelhantes, como o lobo para degolar sua presa, um homem humano seria um animal tão

pervertido quanto um lobo piedoso, e a virtude nada nos deixaria senão remorsos. Acreditais que existe no

mundo uma questão mais fácil de se resolver? Bastaria apenas voltarmos para nós mesmos e examinar, deixando

de lado o interesse pessoal, em qual direção nos conduzem nossas inclinações naturais. Qual é o espetáculo que

mais nos seduz: o dos tormentos ou da felicidade de outrem? Qual é a ação mais agradável de realizar e que nos

deixa melhor impressão após ter sido feita: um ato de beneficência ou um ato de maldade? Por quem vos

interessais em vossos teatros: é nos crimes que encontrais prazer, é pelos criminosos punidos que verteis

lágrimas? Entre o herói infeliz e o tirano triunfante, de qual dos dois vossos desejos secretos não cessam de dar

preferência e a tal ponto o horror de fazer o mal sobrepuja naturalmente em nós o horror de suportá-lo, que

forçado a escolher, quem de vós não preferiria ser antes o bom que sofre que o mau que prospera? Quando

vemos na rua ou no caminho algum ato de violência ou de injustiça, no mesmo instante um movimento de cólera

e indignação se eleva do fundo do coração e nos leva a tomar a defesa do oprimido, mas um dever mais poderoso

nos contém, e as leis nos privam do direito de proteger a inocência. Ao contrário, se algum ato de clemência ou

generosidade chega a nossos olhos, que admiração, que amor nos inspira! Quem não diz a si mesmo: gostaria de

ter agido da mesma forma? Mesmo as almas mais corrompidas não conseguiram perder completamente essa

primeira inclinação: o ladrão que despoja os passantes cobre, entretanto a nudez do pobre, não há assassino feroz

que não sustente um homem que cai desfalecido, e os próprios malfeitores, ao fazerem seus conluios, apertam as

mãos, dão sua palavra e a respeitam. “Homem perverso, por mais que faças, não vejo em ti senão um malfeitor

inconseqüente e desajeitado, pois a natureza não te fez para ser assim” (ROUSSEAU, 2005, p. 163-4).

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conservação do homem é o amor de si24

, é ele que faz com que nos amemos e amemos o que

nos conserva, o que nos preserva, ele é a origem das demais paixões:

A fonte de nossas paixões, a origem e o princípio de todas as outras, a única

que nasce com o homem e nunca o abandona enquanto ele vive é o amor de

si; paixão primitiva, inata, anterior a todas as outras e de que todas as outras

não passam, em certo sentido, de modificações. Nesse sentido, todas, se

quisermos, são naturais. Mas a maior parte dessas modificações tem causas

estranhas, sem as quais elas jamais ocorreriam; e essas mesmas

modificações, longe de nos serem vantajosas, são-nos nocivas; mudam o

primeiro objeto e vão contra seu princípio; é então que o homem vê-se fora

da natureza e põe-se em contradição consigo mesmo (ROUSSEAU, 2004,

p. 288).

Todas as paixões e sentimentos25

humanos derivam do amor de si, até mesmo a

formulação dos conceitos e a atribuição de conteúdo a esses conceitos dependem do amor de

si. Quando o homem se apega ao que o conserva, quando tem afeto ao que o favorece, ele está

seguindo um instinto natural de repugnar o que lhe é prejudicial e gostar do que lhe é

agradável. Esse instinto de procurar o que favorece, e afastar-se do que lhe é prejudicial, ainda

não é um sentimento. O que o transforma em sentimento é a voluntariedade do ato. “O que

transforma esse instinto em sentimento, o apego em amor, à aversão em ódio é a intenção

manifesta de prejudicar-nos ou de ser-nos útil” (ROUSSEAU, 2004, p. 288). Na seqüência

Rousseau segue explicando que temos verdadeiro amor aos que voluntariamente querem nos

ser útil, nos favorecer, e em contrapartida devotamos ódio aos que querem nos prejudicar. A

questão da voluntariedade das ações faz com que o sentimento apareça, seja ele de amor ou de

ódio: “o que nos serve, nós procuramos, mas o que nos quer servir, nós amamos. O que nos

prejudica, nós evitamos, mas o que quer nos prejudicar, nós odiamos” (ROUSSEAU, 2004, p.

288).

24

“O amor de si é sempre bom e sempre conforme a ordem. Estando cada qual encarregado de sua própria

conservação, o primeiro e mais importante de seus cuidados é e deve ser zelar por ela continuamente; e como

zelaríamos dessa maneira se não tivéssemos por ela o maior interesse? É preciso, portanto, que nos amemos para

nos conservarmos, é preciso que nos amemos mais do que qualquer outra coisa” (ROUSSEAU, 2004, p. 288). 25

“O sentimento é uma dimensão fundamental da existência, e esse termo engloba de fato toda a vida afetiva e

as emoções, e tem um papel chave na concepção da moral de Rousseau, porque é por ele que nascem os

conceitos morais. A investigação que Rousseau desenvolve sobre a moral é, em certa medida, uma investigação

sobre a origem dos conceitos morais [...] com a noção de sentimento define-se o que é propriamente humano na

sensibilidade. A natureza dos sentimentos, sua gênese, sua definição e sua valorização constituem um novo

sistema que substitui a teoria clássica das paixões. Rousseau reduz as paixões primárias como a alegria, tristeza,

desejo e indolência ao instinto natural, todas derivadas do amor de si, sentimento máximo primário que dá

origem aos outros sentimentos e aos conceitos morais. As paixões secundárias despertadas nas relações com o

outro, desenvolvem-se sob efeito de atração ou da coação social, em uma infinidade de sentimentos que

caracterizam a humanidade e fazem o homem mergulhar na vida moral” (MARQUES, 2007, p. 47).

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O verbo querer denota toda a voluntariedade da ação. Quando somos beneficiados,

tendemos a permanecer perto do que beneficia, do que favorece, mesmo que não seja um ato

voluntário, mas quando quem nos beneficia ou nos favorece o faz através de seu livre arbítrio,

com a intenção de nos fazer o bem, nós amamos essa pessoa. O mesmo ocorre quando somos

prejudicados, nós nos afastamos porque nos é prejudicial, mas quando somos prejudicados

pela vontade livre e consciente de outrem, nós odiamos essa pessoa. Assim, o primeiro

sentimento do homem é amar a si mesmo, e depois ele ama aos que estão próximos e lhe dão

atenção e assistência. Por isso, Rousseau afirma que a criança tende a benevolência “pois vê

que tudo que a rodeia dispõe-se a ajudá-la, e dessa observação ela toma o hábito de um

sentimento favorável à sua espécie” (ROUSSEAU, 2004, p. 289). Assim, é preciso tempo e

conhecimento para que se possa julgar o que lhe favorece e o que lhe prejudica, e assim

tornar-se capaz de amar.

O amor de si faz com que o homem tenha consciência da justiça e da injustiça,

tudo isso considerando as experiências próprias “a justiça é inseparável da bondade; ora a

bondade é o efeito necessário de uma potência sem limite e do amor de si, essencial a todo o

ser que a sente” (ROUSSEAU, 2004, p. 398). Os sentimentos de justiça e de bondade são

inseparáveis do amor de si, porque é percebendo no outro a voluntariedade de lhe favorecer

que o homem reconhece, neste ato, algo que gostaria que sempre lhe fosse feito, e a isso

denomina de bondade, e não sendo prejudicado, e recebendo o tratamento que julga devido,

chama a isso de justiça.

Mas o elemento decisivo desse progresso, nesse ponto da educação do

Emílio, é a descoberta do outro, a expansão, a abertura de si para com seu

semelhante pela piedade e amizade, que faz do interesse do outro, expansão

do nosso interesse pessoal. O amor de si permanece sempre na raiz de todo

o nosso desenvolvimento. Meu próximo só pode ser amado como a mim

mesmo se for, por pouco que seja, eu mesmo. Assim, o sentimento de

justiça se manifesta primeiro negativamente sob forma de injustiça sofrida,

e somente mais tarde Emílio descobrirá a reciprocidade do direito

(MARQUES, 2007, p. 55).

Amo o meu próximo quando consigo me colocar no lugar dele, quando consigo

“ser ele”. Comportamentos egoístas não condizem com as características do homem que

expressa o amor de si, pois este deve ter o bem comum como única preocupação. Não deve ter

vícios como o orgulho, ambição, o espírito de dominação, a maldade, e o amor-próprio. Para

o homem não depreciar-se moralmente, deve haver o resgate do amor de si. “Se não há nada

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de moral no coração do homem, de onde lhe vêm então os arroubos de admiração pelas ações

heróicas, os transportes de amor pelas grandes almas?” (ROUSSEAU, 2004, p. 406).

Assim, abordada a questão nos aspectos que dizem respeito aos objetivos deste

trabalho, no que se refere à liberdade, piedade e ao amor de si, se pode considerar que

também foram expostos os principais argumentos ao estudo da tríade mais importante para se

compreender o pensamento de Rousseau acerca das características inatas do homem.

1.1.4 Razão

A última das faculdades inatas ao homem que será estudada no presente tópico é

a razão, que embora esteja presente no estado natural, somente é desenvolvida no estado

social, pois o estado natural não é um estado de raciocínio e reflexão, mas sim um estado de

sentimento. Dessa forma, a razão permanece no homem em potencialidade até que no estado

social possa ser plenamente desenvolvida. Assim a razão é como a perfectibilidade, as duas

somente são desenvolvidas com a vida social, tendo em vista que o homem no estado de

natureza não utiliza da razão.

De todas as faculdades do homem, a razão, que não é por assim dizer, senão

um composto de todas as outras, é a que se desenvolve com mais

dificuldade e mais tardiamente, e é ela que se pretende utilizar para

desenvolver as primeiras! A obra-prima de uma boa educação é formar um

homem razoável, e pretende-se educar uma criança pela razão! Isto é

começar pelo fim, é da obra querer fazer o instrumento. Se as crianças

ouvissem a razão, não precisariam ser educadas (ROUSSEAU, 2004, p. 89-

90).

Quando Rousseau diz que educar a criança pela razão é começar pelo fim, e que

se as crianças ouvissem a razão não precisariam ser educadas, demonstra que a educação do

homem não deve começar pela razão, e sim ter como principal objetivo que ao fim dessa

educação a criança seja transformada em homem, expressão que não deve ser entendida

enquanto gênero, mas sim enquanto sinônimo de pessoa humana digna, e assim seja capaz de

fundamentar sua vida social na razão. A criança deve ser educada através de seu sentimento,

de suas paixões. É através delas que ela vai aprender a bem agir “Em vão a tranqüila razão

nos faz aprovar ou reprovar; somente a paixão nos faz agir” (ROUSSEAU, p. 1983, 243). São

as paixões que fazem com que o homem vivamente se interesse por algo, e nisso lance todo o

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seu ser, é assim que as crianças devem agir, pois a “infância é o sono da razão” (ROUSSEAU,

2004, p. 119).

O Emílio de Rousseau, no início de sua educação não é capaz de conhecer o bem

e o mal, o justo e o injusto, não é capaz de utilizar-se da razão, porque o conteúdo desses

conceitos (justiça; injustiça; bondade; maldade) não foram ainda desenvolvidos. Somente ao

passo que a criança sentir determinadas ações poderá ser capaz de julgar se estão de acordo

com a regra do bem agir, de fazer ao outro somente o que gostaria que fizesse a si. Deverá

verificar se essas atitudes alcançam o bem com o menor mal possível, e assim passará a

desenvolver o conteúdo desses conceitos, que não podem ser palavras vazias, no entanto,

construir conceitos leva tempo!

Se quiserdes colocar ordem e regra nas paixões nascentes, ampliai o espaço

durante o qual elas se desenvolvem, para que tenham tempo de se

arrumarem, à medida que vão nascendo. Não é, então, o homem quem as

ordena, mas a própria natureza; vosso trabalho é apenas deixar que ela

arranje a sua obra (Rousseau, 2004, p. 298).

Nesse tempo a criança já se tornou homem, e utilizando-se da razão, poderá

“conhecer o bem e o mal, perceber a razão dos deveres do homem e ver que não são coisas

para uma criança” (ROUSSEAU, 2004, p. 91).

Traçando uma analogia entre o Emílio de Rousseau e as características do homem

no estado de natureza, verifica-se que assim como na criança, a razão está em repouso neste

homem. Ela é muda, sendo que somente no estado social, quando o homem passa a construir

conceitos morais, ele se utilizará da razão, pois o estado natural é um estado amoral, nele não

há a idéia de justiça e bondade, ou de seus contrários.

Por certo, não se trata de uma renúncia de Rousseau a razão26

, mesmo porque o

homem que renuncia a sua razão renunciaria a sua própria qualidade de homem. A diferença no modo

de ver a razão em Rousseau reside no fato de que ela não é contrária ou inimiga das paixões e dos

sentimentos, pelo contrário são os sentimentos e as paixões que contribuem para que o homem através

26

“A idéia reguladora segundo a qual o direito procede dos dictamina rectae rationis não deveria ser alheia ao

pensamento jurídico-político do inclassificável Rousseau, que distinguirá com acuidade “o direito natural

propriamente dito” e o “direito natural raciocinado”. O primeiro corresponde – sobre esse ponto Rousseau está

de acordo com Hobbes e Spinoza – à espontaneidade imediata da vida que, em todo indivíduo, quer preservar;

como tal, ele não tem evidentemente, nenhuma dimensão jurídica e, declara Rousseau, “não é um verdadeiro

direito.” O segundo procede da “arte aperfeiçoada” inventada pela razão para instalar uma ordem jurídica no

trato dos homens; consistindo no estabelecimento de regras, de convenções, de pactos e de leis, ele é a base da

legislação positiva das sociedades civis. Para Rousseau, a dificuldade está em pôr em acordo o naturalismo e o

racionalismo; é por isso que ele atribui à lei não a tarefa de criar o direito (ele ignora o positivismo jurídico) mas

sim a de fixar os direitos” (GOYARD-FABRE, p. 2002, p. 101-2).

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de diversas experiências no cotidiano de sua vida, tomando-se como sua própria medida, possa julgar

o que lhe favorece do que lhe prejudica. Assim, o homem aproxima-se do que é bom, e ama as pessoas

que voluntariamente querem lhe fazer o bem, utilizando uma nomenclatura para tais situações, como

justiça e bondade. Não se trata de uma sensação que pertence à vida animal, mas sim de

sentimento que só depois passa pela consciência humana.

Assim, depois de sentir, o homem passa a raciocinar, a refletir sobre os sentimentos, e

sobre as maneiras de agir e ver se são bons ou não, se lhe são prejudiciais ou não. Por isso que

entender os atributos da razão em Rousseau exige a compreensão do que são as paixões. Nesse

sentido:

Rousseau é um pensador em que os movimentos do pensamento não são

simples. A vontade de ruptura que não demora a invadir sua meditação

febril não o conduz nem a uma decisão de censura sistemática nem a uma

filosofia anti-raiconalista intransigente: não se pode renunciar a razão,

escreve ele, sem renunciar a qualidade de homem, aos direitos da

humanidade, até aos seus deveres[...] com efeito, de um lado a razão que ele

reconhece no homem (pelo menos quando as potências que estão na criança

se desenvolvem não é a razão cartesiana que, por seu talento peculiar de

desenvolver as longas cadeias da razão se torna, na epistemologia moderna,

dona da verdade. Por outro lado, da razão enquanto faculdade, há que se

distinguir o uso que se faz dela. De um lado, a razão – da qual, segundo

Rousseau, o coração não é de modo algum inimigo como declarava Pascal –

é a indicação no homem do incontestável potencial de sabedoria de que ele

necessita para fazer sua liberdade. Do outro, o uso da razão pode,

arrancando-a de seus limites naturais, desviar seus recursos, transportá-los

através das especulações inúteis, para o caminho do erro: foi isso o que

ocorreu no racionalismo dogmático que se instalou na teoria jurídica. Aos

olhos de Rousseau, que tem o nítido pressentimento da finitude do homem,

transgredir a razão é torná-la uma operária do absoluto é o pior dos erros do

espírito (GOYARD-FABRE, 2002, p. 64).

Depois que o homem foi educado para pensar, para raciocinar a respeito das

paixões, depois que conseguir interpretá-las, será capaz de raciocinar adequadamente. Depois

que se tornou capaz de formar conceitos morais ele poderá pensar politicamente: “É preciso

estudar a sociedade pelos homens, e os homens pela sociedade; quem quiser tratar

separadamente a política e a moral nada entenderá de nenhuma das duas” (ROUSSEAU,

2004, p.325).

É esse homem que raciocina que será capaz de expressar o direito político em

Rousseau, porque a autoridade política e sua legitimidade estão fundamentadas na razão:

Na investigação fundamental da filosofia política que é a busca de uma base

legítima do poder, Rousseau e depois a Revolução Francesa não tardarão

em confirmar, na teoria e na prática, que a autoridade política encontra sua

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fundamentação e sua justificação nos poderes da razão27

(GOYARD-

FABRE, 2002, p. 279).

O direito político em Rousseau utiliza-se muito da razão, a teoria do Contrato

Social28

, não é nada mais que um exercício da razão. No entanto, essa mesma razão sempre

foi vista por Rousseau com muito cuidado:

obceca-o uma questão que, que lhe atormenta o espírito e aflora em seus

escritos, dos primeiros Discursos a seus Devaneios solitários: será

pertinente que os homens recorram com tanta segurança, tanto na teoria

quanto na prática, a essa celebérrima razão, pois, afinal, ela está longe de

“andar com movimentos sempre retos” (GOYARD-FABRE, 2006, p. 63).

Rousseau sabe que não se pode renunciar a razão, sem renunciar a qualidade de

homem, mas será que a razão é sempre uma fonte segura para o homem? Ao que tudo indica a

razão não é suficiente para legitimar o poder político, e por este motivo Rousseau recorre à

vontade, mesmo que geral. Para Rousseau as explicações existentes a sua época não eram

suficientes para fundamentar um direito político legítimo. Pensava o genebrino que deveria

reavaliar o pensamento jurídico existente, sendo que o excesso de raciocínios e as

especulações metafísicas não seriam indicados para se encontrar a legitimidade do direito

político. Rousseau privilegia a questão do fundamento do direito nas sociedades humanas.

“Rousseau ao adotar o procedimento que submete a razão ao seu próprio tribunal a fim de

desvelar o poder regulador e normativo dos princípios que ela projeta no universo do direito

[...]” (GOYARD-FABRE, 2006, p. 68). Essa é a técnica de Rousseau: avaliar a razão pela

própria razão. Em Rousseau os movimentos do pensamento não são simples, sendo que ele

não renuncia a razão (porque não se pode renunciá-la sem renunciar a qualidade de homem), e

27

Nesse sentido Goyard-Fabre afirma posteriormente que “Os modernos escolheram: a justificação do Poder (e,

correlativamente, da obrigação de obediência que se impõe) já não está ligada, como no mundo grego ou

romano, ao caráter prestigioso ou sagrado ou às qualidades exemplares de uma pessoa; sua validade deixa de ser

enxertada na santidade do “eterno ontem” que a continuidade dinástica, os usos e os costumes estabeleciam; no

mundo moderno, o “portador do poder” é racionalmente legitimado pelas regras que definem as competências

dos órgãos do Estado. Desde então é um traço do mundo moderno que na política, a legitimidade se una a

legalidade” (GOYARD-FABRE, 2002, p. 280). 28

“Com Rousseau, a teoria do contrato social penetra em uma nova via. Tem-se dito e repetido que Rousseau

formulou em seu Contrato social o princípio da soberania do povo, como Montesquieu havia formulado no

Espírito das leis o princípio da separação dos poderes. Convém entretanto, precisar o sentido que se deve dar a

esse princípio da soberania do povo, pois ele pode significar duas coisas bem diferentes. Com efeito, não se deve

confundir a origem com o exercício da soberania. Todos os pensadores que se vinculam a escola do direito

natural admitem que a soberania reside originalmente no povo, ele não teria dito nada a mais que Jurieu,

Pufendorf, ou até mesmo Hobbes, e o Contrato Social não teria feito época na história da filosofia política. O que

é novo em doutrina é a afirmação de que a soberania deve sempre residir no povo e que este não pode confiar

seu exercício aos governantes, quaisquer que sejam eles. A soberania é inalienável, não pode haver outro

soberano além do povo. O único Estado legítimo é aquele em que o próprio povo exerce a soberania, isto é, o

Estado Republicano” (DERATHE, 2009, p. 87).

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nem fundamenta sua teoria de legitimidade do poder político nela, sendo que o real

fundamento é à vontade.

1.1.5 Homem do homem: o amor próprio

No estado social, o homem desenvolve paixões que são denominadas por

Rousseau de artificiais, por não estarem presentes de forma inata. Essas paixões artificiais são

todas derivadas do amor-próprio, assim como as paixões naturais tem sua fonte no amor de si,

conforme mencionado no item anterior. Entender o conceito de amor próprio em Rousseau é

fundamental para compreender seu pensamento político. “O amor próprio é um instrumento

útil, mas perigoso, não raro fere a mão que dele se serve e raramente faz o bem sem o mal”

(ROUSSEAU, 2004, p. 340). Mas em que consistiria esse instrumento útil, mas perigoso, e

em que medida teria esses atributos?

Para se entender o amor próprio29

, se faz necessário entender o amor de si30

, não

sendo inútil repetir, que o amor de si é a paixão humana da qual resultam todas as demais

paixões doces e afetuosos. Ele é o verdadeiro responsável por nossa conservação. Em

contrapartida ao amor de si, o homem social desenvolve uma outra paixão denominada de

amor próprio, que pode ser entendido como um desvirtuamento do amor de si. O amor

próprio é o sentimento da comparação. O homem quando se compara ao seu semelhante acaba

por não satisfazer-se:

Nossas verdadeiras necessidades são satisfeitas, mas o amor-próprio, que se

compara, nunca está contente nem poderia estar, pois esse sentimento,

preferindo-nos aos outros, também exige que os outros prefiram-nos a eles,

o que é impossível. Eis como as paixões doces e afetuosas nascem do amor

de si, e como as paixões odientas e irascíveis nascem do amor-próprio.

Assim, o que torna o homem essencialmente bom é ter poucas necessidades

e pouco se comparar com os outros; o que o torna essencialmente mau é ter

muitas necessidades de dar muita atenção à opinião. A partir desse

29

Conforme afirma Monteagudo “o amor-próprio surge como uma variação do amor-de-si concomitante com a

integração social: é uma forma pervertida do amor-de-si e sua precipitação é contraditoriamente reduzida pela

piedade natural. Com isso há uma compensação natural para os efeitos maléficos da sociabilidade. Hobbes, por

outro lado, parece apenas ter reconhecido aquilo que Rousseau chama de amor-próprio. Rousseau concorda que

esta seja a causa das discórdias no estado civil, a saber, uma preferência natural por si mesmo, mas essa

preferência não diz respeito de maneira imediata ao homo homini lupus; pelo contrário, essa preferência é

enfraquecida pela piedade natural” (MONTEAGUDO, 2006, p. 31). 30

Segundo Derathè “sua teoria do amor-próprio distinto do amor de si é de inspiração hobbesiana. Foi Hobbes

quem lhe ensinou que as necessidades dividem os homens tanto quanto os unem, e que longe de constituir o laço

social por excelência, como acreditam os jurisconsultos, as necessidades são fontes perpétua de discórdias entre

os homens” (DERATHE, 2009, p. 172).

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princípio, é fácil ver como podemos dirigir para o bem ou para o mal todas

as paixões das crianças e dos homens (ROUSSEAU, 2004, p. 289-90).

Quando o homem passou a viver em sociedade e passou a observar e a ser

observado, passou a comparar-se com os demais: “começaram a apreciar-se mutuamente e se

lhes formou no espírito a ideia de consideração, cada um pretendeu ter direito a ela e a

ninguém foi possível deixar de tê-la impunemente” (ROUSSEAU, 1983, p. 263). Quando o

homem não se relacionava, e não mantinha vínculos, não observava aos demais, porque não

mantinha com eles relações e suas paixões eram limitadas: “Nossas paixões naturais são

muito limitadas31

, são os instrumentos de nossa liberdade, tendem a nos conservar. Todas as

paixões que nos subjugam e nos destroem vêm-nos de outra parte” (ROUSSEAU, p. 287).

A convivência social faz com que o homem passe além de observar-se

conscientemente, a observar os demais de sua espécie, e dessa atividade, comparações são

inevitáveis: Enquanto que no estado natural “cada homem, em particular, olha para si mesmo

como único espectador que se observa no estado social ele percebe os demais” (SALINAS

FORTES, 1997, p. 58).

Cada um começou a olhar os outros e a desejar se ele próprio olhado, passando

assim a estima pública a ter um preço. Aquele que cantava ou dançava melhor, o

mais belo, o mais forte, o mais astuto ou o mais eloqüente, passou a ser o mais

considerado e esse foi o primeiro passo para a desigualdade quanto para o vício;

dessas primeiras preferências nasceram de um lado a vaidade e o desprezo, e de

outro, a vergonha e a inveja. A fermentação determinada por esses novos germes

produziu, por fim, compostos funestos, à felicidade e à inocência (ROUSSEAU,

1983, p. 263).

Depois que o homem passou a conviver, surgiu em si a noção de reconhecimento.

“Digamos que a força do ambiente (natural ou social) sobre o homem é a necessidade, e a

reação do homem sobre o ambiente são as paixões artificiais que surgem a partir da

convivência social dos homens” (MONTEAGUDO, p. 30). O homem reagiu ao novo

ambiente de forma a desenvolver paixões artificiais: o desejo de ser bem visto pelos demais, e

quando esse desejo por reconhecimento não era correspondido, o homem se julgava ultrajado

pelo desprezo alheio: “eis como, cada um punindo o desprezo que lhe dispensavam

proporcionalmente à importância que se atribuía, as vinganças tornaram-se tremendas e os

homens sanguinários e cruéis” (ROUSSEAU, 1983, p. 263).

O gênero humano não teria deixado de ser bem miserável, se não tivesse

estabelecido a sociedade civil, mas é nessa sociedade que o amor de si se torna amor próprio,

31

“amor de si, o temor da dor, o horror à morte e o desejo de bem estar” (Emílio Livro V).

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mas em que momento essa transformação ocorre? Essa questão é respondida por Rousseau no

Emílio, como sendo exatamente o momento em que o homem se compara:

Tendo Emílio até o presente olhado apenas para si mesmo, o primeiro olhar

que lança a seus semelhantes leva-o a comparar-se a eles, e o primeiro

sentimento que excita nele esta comparação é desejar o primeiro lugar. Eis o

ponto em que o amor de si transforma-se em amor-próprio e onde começam

a nascer todas as paixões que dele dependem. Mas, para saber se as paixões

que prevalecerão em seu caráter serão humanas e doces ou cruéis e

maléficas, se serão paixões de benevolência e de comiseração ou de inveja e

cobiça, é preciso saber que lugar ele julgará ser o seu em meio aos homens,

e que tipos de obstáculos acreditará ter de vencer para chegar ao lugar que

pretende ocupar (ROUSSEAU, 2004, p. 324-25).

Assim o amor próprio é uma paixão que desenvolve as paixões irascíveis como o

desejo de reconhecimento e a vingança, orgulho e a vaidade, “Pensai que tão-logo o amor

próprio se desenvolve o eu relativo entra em jogo constantemente e nunca o jovem observa os

outros sem se voltar para si mesmo e comparar-se com eles” (ROUSSEAU, 2004, p. 337), o

amor próprio é o início do egoísmo do homem, é o que impede que o amor de si e a piedade

desenvolvam toda a sua potencialidade. O amor de si visa conservar o homem causando o

menor mal a seus semelhantes, nesse sentido afirma Garcia:

Note-se que o amor-próprio ocupa um lugar central no círculo conceitual

com o qual Rousseau descreve a atividade do mal no seio da vida social.

Rousseau caracteriza o amor-próprio por um conjunto de traços que o

distinguem do amor de si, paixão do homem uno, do homem junto a si, do

homem em que não existe mediação entre o sentir e o agir, enfim, do

homem que vive fora do plano da representação, aquém da consciência

entre um interior e um exterior. O amor-próprio: paixão artificial, relativa,

dependente do exercício de comparação, do desejo de ser o melhor, matriz

do egoísmo e da inibição dos sentimentos altruístas, paixão que se nutre e,

ao mesmo tempo, reforça o poder da opinião e do olhar dos outros (1999, p.

195-6).

No entanto conforme a citação do Emílio que afirma que ao comparar-se o próprio

Emílio deverá julgar que lugar é o seu entre os homens, e a partir desse julgamento ele terá

paixões doces e afetuosas, ou paixões odiosas. É fundamentada nessa capacidade humana de

raciocinar acerca das suas paixões e conformar-se a elas, através da opção pelas paixões

piedosas e compassivas, que se estabelece toda a teoria política de Rousseau. O fim da

política para Rousseau é uma forma de se tentar neutralizar esse amor artificial do qual todos

os sentimento odientos provêm, para que o amor de si e a piedade possam aparecer de forma

ampla no estado social. O homem político em Rousseau deve ser apto a pensar na

coletividade, no bem comum na finalidade e na utilidade pública, pensar no que é bom para os

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pactuantes de um modo geral. O amor próprio faz com que o homem social se torne egoísta a

ponto de procurar vantagens para si, sem preocupar-se com os demais. Ele abafa a piedade

natural, e é por isso que deve ser neutralizado em sociedade, para possibilitar que o homem

social possa pensar de forma coletiva, colocar-se no lugar do outro e querer o melhor para seu

semelhante de forma voluntária, querendo ajudar, querendo cuidar do outro. A contraposição

entre a piedade natural e ao amor próprio é esclarecida por Machado:

A piedade natural chocar-se-á com o egoísmo, com o amor-próprio que a

razão engendra e a reflexão ratifica. As próprias paixões só se tornarão

violentas quando desenvolvidas e aguçadas pela sociedade, como demonstra

o confronto da simplicidade do amor físico com as complicações dolorosas

do sentimento amoroso (1968, p. 101).

O modelo político de Rousseau propõe que o homem pactuante, através de sua

vontade livre e consciente, por meio de uma convenção ao qual adere, e depois de ter

percebido que é vantajoso convencionar, dando-se de forma igual para todos, sem onerar mais

uma pessoa do que outra, e ainda ganhando maior força para conservar tudo o que se tem, aja

voluntariamente no sentido de pensar em favor do todo, em querer pensar dessa forma, em

primeiro pensar no benefício da coletividade, para depois pensar em seu próprio benefício.

Essa empatia de colocar-se no lugar do outro, nada mais é que o exercício da piedade em

sociedade. É essa forma de pensar que é bloqueada pelo amor próprio que é egoísta e faz com

que o homem pense em si, e somente em si, por isso o amor-próprio deve ser transformado

em amor de si.

O querer pensar no outro, o querer cuidar do outro, não por uma obrigação ou por

uma necessidade, mas por pura afeição, por querer agir com essa pessoa como gostaria que

agisse comigo são formas de pensar carregadas do amor de si, e não de amor próprio, que

sequer permite que esse sentimento se desenvolva. Por isso, é correto se afirmar que a política

em Rousseau visa minimizar ao máximo a presença do amor próprio no homem, para que ele

possa deixar a piedade e o amor de si aparecerem de forma mais contundente na vida social.

Mas qual seria a utilidade do amor próprio? Até agora ele foi estudado como

sendo prejudicial aos planos políticos de Rousseau, por abafar o amor de si e a piedade que

são necessários para que o direito político seja desenvolvido. É o amor próprio que faz com

que o homem cada vez queira mais reconhecimento, que se esforce mais e mais para poder ser

reconhecido em sociedade. É a capacidade de aperfeiçoar-se (perfectibilidade) e a vontade de

ser melhor que os demais de sua espécie que faz com que o homem sempre busque

diferenciar-se dos demais, o que pode ser útil, tendo em vista que faz com que sociedade

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eleve seu nível de excelência, mas Rousseau mesmo advertia que quem se utiliza do amor

próprio, raramente faz o bem sem o mal, e acaba por ter a mão que dele se serve ferida,

conforme já mencionado.

No presente item, o amor próprio foi abordado como sendo uma virtude artificial,

que nasce no homem no estado social a partir do momento em que passa a relacionar-se com

os demais de sua espécie. O estudo dessa paixão humana artificial funcionou como uma

introdução ao estudo de como teria se formado o estado social e quais as implicações desse

estado no desenvolvimento humano, pois o amor próprio não foi à única transformação que

ocorreu no homem social, muitas outras aconteceram.

Desta forma, o próximo e último item do presente capítulo será dedicado ao

estudo das transformações que ocorrem com o advento da sociedade, bem como sobre o

processo de formação do estado social para Rousseau.

1.2 O ESTADO SOCIAL

O estudo da sociabilidade32

do homem em Rousseau pode gerar algumas

interpretações contraditórias. No Segundo Discurso, Rousseau trata a sociabilidade como algo

artificial a natureza humana. O homem não seria um animal social por natureza, mas quando o

homem foi forçado pelos reveses da natureza a conviver com seu semelhante, desenvolveu a

sociabilidade como recurso para tanto, porque passou a ser dependente dos demais de sua

32

“Rousseau “mede” suas palavras: “o homem é uma animal social por natureza” Para Launay, a fim de evitar

contradizer-se com o Discurso sobre as desigualdades, que em nenhum momento é renegado, Rousseau

acrescenta uma restrição obscura. À hesitação ou mudança se dão assim explicações que não se excluem. A

primeira, mais superficial, é de ordem literária. Para chocar, para surpreender seus leitores, Rousseau afirma e

sustenta no início que o homem não é social por natureza; que a sociabilidade é um caráter adquirido e que nada

tem a ver com a pitié, sentimento natural experimentado pelos animais. Graças a essa idéia produz-se um

impacto, abre-se no espírito do leitor um caminho para se evitarem preconceitos sociais mundanos. De qualquer

modo, essa afirmação produz um “lugar” no campo filosófico ocupado por algumas concessões sem prejuízo de

autor reconhecer que existe uma faculdade no homem que permite distinguir o homem (GARCIA, 1999, p. 116).

LAUNAY apud GARCIA: Existe continuidade entre o animal e o homem porque o essencial de seu ser é a

sensibilidade e existe uma ruptura graças à perfectibilidade [...]. É a natureza mesma que torna o homem social,

qualidade que não se revela senão pelos favores dos acasos da história da terra. [...]. O que é verdadeiro em

relação a história da humanidade em seu conjunto o é também para a história de cada indivíduo(...), eis porque

Rousseau pode afirmar que a sociedade é responsável pela corrupção dos costumes dos indivíduos e que os

indivíduos são responsáveis pelos esforços que podem fazer para lutar contra a corrupção e reconquistar a

inocência. Ninguém conhece sua natureza senão lutando para melhorá-la, ninguém conhece os limites do

possível senão lutando por uma sociedade justa. A descoberta de Rousseau nasce de uma introspecção, ou de

uma reflexão sobre sua própria experiência individual tanto sobre os aspectos efetivos e quanto intelectuais e

sobre seu trabalho de pensador e escritor” (1999, p. 117).

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espécie. Os homens conseguem adaptarem-se a vida social, porque possuem em

potencialidade a capacidade para desenvolverem a sociabilidade. Nas Cartas Escritas da

Montanha, Rousseau descreve quais são os sentimentos que considera inatos, e faz uma

importante afirmação sobre a potencialidade social natural do homem, quando afirma:

Para nós, existir é sentir, e nossa sensibilidade é incontestavelmente anterior

a nossa própria razão. Qualquer que seja a causa de nossa existência, ela

proveu a nossa conservação ao dar-nos sentimentos conforme à nossa

natureza, e não se poderia negar que ao menos estes sejam inatos. Tais

sentimentos, em relação ao indivíduo, são o amor a si mesmo, o medo da

dor e da morte e o desejo de bem-estar. Mas se, como não se pode duvidar o

homem é um animal sociável por sua natureza, ou, pelo menos feito para

tornar-se tal ele não pode sê-lo senão em virtude de outros sentimentos

inatos relativos à sua espécie. E é do sistema moral formado por essa dupla

relação consigo mesmo e com seus semelhantes que nasce o impulso natural

da consciência (ROUSSEAU, 2005, CARTA 5, p. 166).

O homem virtual, do estado natural, não manifesta qualquer inclinação para a vida

social, e tem por uma necessidade de sobrevivência de aproximar-se de seu semelhante para

poder dar continuidade à sua espécie. Segundo Rousseau, o homem não se aproximou

voluntariamente. A aproximação humana não passou pelo querer, foi uma ação natural,

através dos reveses da natureza que agrupou a espécie e obrigou o homem a partir de então

conviver. Dessa aproximação humana surge uma espécie de sociedade primitiva, que é

esclarecida por Salinas Fortes nos seguintes termos: “Nesse primeiro período, o homem ainda

não atingiu o estado propriamente social, mas já afastado do equilíbrio estático primitivo,

resvalou para uma condição na qual é empurrado gradativamente para a sociedade”

(SALINAS FORTES, 1989, p. 60).

Grandes inundações ou tremores de terras cercaram de águas ou de precipícios

algumas terras habitadas; revoluções do globo separaram e cortaram em ilhas

porções do continente. Concebe-se que entre os homens assim aproximados e

obrigados a viverem juntos. (ROUSSEAU, 1983, p. 263).

Esse homem hipotético desse primeiro período, ou de uma primeira fase rumo à

convivência social, vivencia um estado de transição (que não é estado de natureza, e também

não é estado social), nesse estado ainda não existe a sociedade, mas tão-só uma forma de

associação: “este é então o primeiro momento neste período e pode ser definido como o das

associações livres: nele vemos o esboço ou o germe de uma sociedade” (SALINAS FORTES,

1989, p. 61).

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Nessas primeiras aproximações humanas, com o estabelecimento da convivência

incipiente, não há que se falar em direito político, ou mesmo em submissão de um homem a

outro, tendo em vista que esse domínio não ocorreu nesse momento. A aproximação da

espécie se deve à necessidade de sobrevier para não perecer. Os desastres naturais teriam

alterado as características do estado de natureza, transformando-o de estado que tudo fornecia,

para um estado inóspito, no qual os membros da espécie mantinham relações de dependência

entre si, onde nenhum se sobrepunha ao outro. A coesão do grupo os manteria vivos, mesmo

que fosse uma coesão física, para protegerem-se do frio, assim o calor de todos tinha o mesmo

valor.

Posteriormente a essa primeira aproximação precária, o homem tem a idéia de

construir alojamentos para proteger-se das chuvas, inundações, frio, e assim com a construção

de cabanas, ocorre o que é denominado de “revolução técnica” (SALINAS, 1989, p. 61). A

construção das cabanas não significa que a sociedade está instaurada, mas tão-só o início de

uma segunda fase do processo de aproximação humana.

Ultrapassada essa segunda fase, uma nova fase é iniciada, muito parecida com a

segunda, exceto pelo fato de que nessa o número de habitações coletivas é multiplicado, e o

relacionamento interno entre pessoas de uma mesma família, restrito ao interior de uma

cabana, acaba por se estender às cabanas vizinhas, e assim os primeiros bandos são formados.

Essa fase, segundo Salinas Fortes, na história da humanidade, foi a mais feliz que o homem

viveu, pois nela, o homem conseguia relacionar-se com seus semelhantes de forma verdadeira

e pacífica, sem a necessidade de leis, em uma agrupação incipiente, a qual foi denominada de

juventude do mundo:

A terceira etapa será caracterizada como a sociedade começada. Levadas por

circunstâncias fortuitas e vivendo em uma permanente vizinhança as famílias

acabam por se reunir e formar bandos mais permanentes e, afinal uma nação

particular, unida por costumes e não regulamentos e leis. Esse momento de

juventude do mundo, que corresponde mais ou menos ao grau em que chegou a

maioria dos povos selvagens que nos é conhecida, constitui a época mais feliz e

melhor do homem, já que se situa em um justo meio entre a indolência e o estado

primitivo e a petulante atividade de nosso amor próprio (SALINAS FORTES,

1989, p. 62).

Por ser o momento mais feliz do homem no mundo, no qual os relacionamentos

humanos se estabelecem de forma que cada qual consegue relacionar-se com seu semelhante

sem causar-lhe mal, de forma mansa e pacífica, não há motivos para lutas ou confrontos e por

isso, não há a necessidade de leis para limitar o homem. A não existência da propriedade

contribui para o ambiente amistoso existente, pois tudo nessa fase ainda é de todos, e

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considerando que não se trata, ainda, de uma sociedade instalada, mas apenas de um

agrupamento cuja convivência não implica que um homem retire a liberdade do outro, os

relacionamentos não trazem problemas consigo. O homem convivendo mansamente,

limitando-se a sobreviver, sem causar mal a seu semelhante, não tenta retirar a liberdade deste

com dominações, e não lhe usurpa, porque nessa fase não desenvolve desejos e sentimentos

de posse, porque consegue manter-se sem afetar os demais, sem dominá-los ou torná-los

subservientes. Assim, a liberdade é mantida.

A convivência humana que no início foi pacífica, com o passar do tempo, na

medida em que o homem começou a querer se destacar e ser reconhecido deixa de ser. Surge

o amor próprio, e a vontade de ser reconhecido, e com eles não demora muito para surgir a

desigualdade, que será o próximo objeto de estudo.

1.2.1 Desigualdade

No Segundo Discurso, Rousseau traça um objetivo extremamente ousado:

desvendar, e explicar como o homem chegou à situação de desigualdade33

acentuada na qual

se encontra, e ainda se essa desigualdade tem algum fundamento natural. Essas questões nada

simples são assim resumidas por Rousseau:

De que trata, pois, precisamente neste Discurso? De assinalar, no progresso das

coisas, o momento em que sucedendo o direito à violência, submeteu-se a natureza

à lei; de explicar por que encadeamento de prodígios o forte pode resolver-se a

servir o fraco, e o povo a comprar uma tranqüilidade imaginária pelo preço de uma

felicidade real (ROUSSEAU, 1983, p. 235).

Essa passagem é central para se entender que Rousseau, ao responder a pergunta

da academia de Dijon (qual a origem da desigualdade entre os homens, e é ela autorizada pela

lei natural), denuncia na verdade o pacto civil ilegítimo, que será abordado posteriormente.

Quando Rousseau diz no “progresso das coisas”, a expressão “progresso” em uma

interpretação teleológica não significa avanço, melhoramento ou evolução, mas sim um

33

“Em relação ao conceito de desigualdades, pode-se dizer inicialmente que, no seu sentido mais forte e

persistente, Rousseau o concebe como: a condição adquirida ao longo da história e cujo resultado, no limite, é a

separação dos homens entre escravos/senhores, opressores/oprimidos, ricos/pobres. Esse parece ser o significado

mais marcante de desigualdade. E, talvez, seja a nitidez de suas descrições e à importância que ocupa no interior

do pensamento rousseauniano que nem sempre se presta a atenção necessária ao conceito de diferenças”

(GARCIA, 1999, p. 67).

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trâmite, como o desenrolar de um procedimento. Nosso filósofo não acreditava na existência

de um “progresso” quando o homem alienou sua liberdade, e por um encadeamento de

prodígios o forte resolveu servir ao fraco, o rico ao pobre, e o povo comprou uma

tranqüilidade imaginária. Assim, ardilosamente os ricos prometeram aos pobres garantir-lhes

a propriedade do que possuíam (quase nada). Assim o rico “serviria” ao pobre, garantido-lhe a

pobreza, e o pobre aceitando tal condição formou com o rico o pacto civil ilegítimo, o que

para Rousseau se tratou de uma fraude.

Rousseau no Segundo Discurso disserta sobre as duas desigualdades que entende

existir, uma delas denominada de desigualdade moral ou política, que realmente pode ser

entendida como desigualdade e uma outra denominada de natural, que pouco ou nada

interfere da vida do homem. A desigualdade natural ou física é assim chamada por “ser

estabelecida pela natureza e consiste na diferença das idades, da saúde das forças do corpo e

das qualidades do espírito e da alma” (ROUSSEAU, 1983, p. 235). Como o próprio nome

sugere, a desigualdade natural tem sua origem na própria natureza, os seres humanos nascem

diferentes entre si, não nascem com as mesmas características físicas, e ao desenvolverem-se

essas características se manifestam. Assim, a desigualdade natural pode ser compreendida no

sentido de diferenças naturais, mas não propriamente de desigualdades, porque são quase

imperceptíveis no estado natural.

A segunda desigualdade observada por Rousseau é a moral ou política, essa sim

perniciosa à vida em sociedade. Rousseau dirá que a desigualdade política, somente pode ser

estabelecida por um ato voluntário dos homens. O homem então, consentiria com o

estabelecimento da desigualdade, e desta forma autorizaria que alguns fossem mais

valorizados do que outros. Assim, abordando o tema da desigualdade política no Segundo

Discurso, afirma Rousseau:

depende de uma espécie de convenção e que é estabelecida, ou, pelo menos,

autorizada pelo consentimento dos homens. Esta consiste nos vários privilégios de

que gozam alguns em prejuízo de outros, como o serem mais ricos, mais poderosos

e homenageados do que estes, ou ainda por fazerem-se obedecer por eles (1983, p.

234).

Rousseau responde a pergunta da Academia de Dijon: o homem possui sim uma

desigualdade natural, mas essa desigualdade natural é tão insignificante que em nada contribui

para a desigualdade que se encontra na sociedade. A desigualdade social ou política, não tem

qualquer fundamentação natural, pelo contrário, é na artificialidade da vida social que a

desigualdade se instala e se desenvolve. É o próprio homem quem cria e legitima a

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desigualdade, que não tem qualquer respaldo na lei natural. Vale a pena citar aqui a passagem

do Contrato Social em que Rousseau contrariando as ideias de Aristóteles que dizia que

alguns homens nascem para a escravidão e outros a dominação, nega a escravidão como

sendo algo natural: “a força fez os primeiros escravos, sua covardia os perpetuou”

(ROUSSEAU, 1983, p. 25). Não é a natureza que cria alguns homens para serem escravos e

outros para serem livres, como se alguns fossem melhores do que outros. São os próprios

homens que pela força são tornados escravos, e pela falta de reação são mantidos nessas

condições.

Assim, a desigualdade não se fundamenta na lei natural, e tampouco é autorizada

por ela. A natureza estabeleceu a igualdade, e não o seu contrário, quem estabeleceu a

desigualdade foi o homem. É o que Rousseau afirma no Prefácio ao Segundo Discurso:

“como poderia meditar sobre a igualdade que a natureza estabeleceu entre os homens e sobre

a desigualdade instituída por eles” (ROUSSEAU, 1983, 217).

A desigualdade instituída pelos homens é perniciosa. Rousseau aponta a

desigualdade como fonte dos males da humanidade “A dedicatória do Segundo Discurso já

marca, em tom contundente, as desgraças que advém da introdução artificial das

desigualdades entre os homens” (GARCIA, 1999, p. 75). Nota-se que o que Rousseau rejeita

é a desigualdade, e não a diferença, assim se faz necessário traçar a distinção entre elas. A

desigualdade é uma artificialidade desenvolvida pelo homem social, que somente o prejudica.

Starobinski afirma que “A desigualdade e o mal são mais ou menos sinônimos” (1991, p.

301). Assim, o conceito de desigualdade para Rousseau é sempre visto de forma negativa,

causadora do mal social, prejudicando o homem. No entanto, o fato de Rousseau desprezar a

desigualdade, não significa que ele não admita a diferença, e é importante dizer isso, para se

evitar interpretações de que o pensamento de Rousseau não respeita as diferenças e

individualidades:

E se o conceito de desigualdades jamais desaparece do horizonte do

pensamento de Rousseau que com bastante clareza e estridência marca sua

negatividade, o mesmo não ocorre com relação ao termo diferenças e afins,

os quais, nos seus vários contextos de uso, são reconhecidos e valorados

positivamente (GARCIA, 1999, p. 68).

Os homens nascem iguais e estão todos submetidos às mesmas leis da natureza.

Todo homem é livre e não pode alienar sua liberdade sob pena de deixar de ser homem. No

entanto o homem pode apresentar peculiaridades, características individuais que o

diferenciam dos demais de sua espécie, mas que não se tratam de desigualdade, e essas

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características, ao contrário do que ocorre com as desigualdades são vistas de forma positiva

por Rousseau:

Grosso modo o termo desigualdades é marcado por um sinal negativo:

desde o momento em que elas se engendram no início da sociedade. Por sua

vez, o termo diferenças é positivado a partir do instante em que o fim do

estado da dispersão original produz, sobre toda a terra, povos e costumes

distintos (GARCIA, 1999, p. 73).

Assim, Rousseau não visa acabar com as diferenças, porque essas existiam no

estado natural e nem por isso prejudicavam a ordem das coisas, não foram as diferenças que

instituíram a desigualdade. No Emílio, Rousseau afirma: “há no estado de natureza uma

igualdade de fato real e indestrutível, porque é impossível nesse estado, que a mera diferença

de homem para homem seja suficientemente grande para tornar um dependente do outro”

(2004, p.324). As diferenças não são vistas por Rousseau como perniciosas:

Uma vez instituídos, os povos cristalizam suas diferenças em costumes,

tradições, instituições políticas que se positivam. Por conseguinte, se de um

lado as desigualdades são observáveis no âmbito das relações internas de

um corpo político, de outro lado, o plano adequado para observar as

diferenças é o que visualiza a diversidade dos povos e de suas formas de

vida. É essa perspectiva de observação e de valoração das diferenças que é

decisiva para o argumento de Rousseau em textos como a Carta. Ela

apresenta as condições para a crítica ao etnocentrismo, idéia segundo a qual

uma forma peculiar de sociabilidade pode ser critério de juízo as outras

(GARCIA, 1999, p. 99).

A natureza fez os homens iguais, todos com o mesmo valor, sem qualquer

distinção. Ninguém é feito pela natureza para ser dominado, ao contrário, o homem nasce

livre. Todo o homem nasce livre, não há diferenciação. “Mesmo quando cada um pudesse

alienar-se a si mesmo, não poderia alienar seus filhos” (ROUSSEAU, 1983, p. 27). A

liberdade de um homem não pode pertencer a ninguém, a não ser a ele mesmo. Assim a

desigualdade em Rousseau é vista de modo negativo, conforme ensina Garcia:

Descritas com contundência no Segundo Discurso, as desigualdades são

valoradas explicitamente de modo negativo; já que há um processo que

significativamente as acentua. Se a primeira etapa das desigualdades

coincide com o estabelecimento da propriedade, atinge-se o seu ponto

culminante com a implantação do poder arbitrário e pelo domínio do

escravo pelo senhor (1999, p. 85-6).

O estabelecimento da desigualdade através da propriedade será analisado no

próximo item, o qual abordará também o pacto ilegítimo, ou pacto dos ricos. Esses dois temas

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serão abordados em um mesmo item porque segundo Rousseau, a passagem do estado natural

para a sociedade se deu através do advento da propriedade, e foi fundamentalmente para

assegurar a posse da propriedade adquirida que por parte dos ricos surgiu a proposta do

denominado pacto dos ricos. Desta forma, a junção em um único item dos temas propriedade

e pacto dos ricos, se justifica pelo fato de para Rousseau ambos estão estreitamente

correlacionados, conforme se demonstrará.

1.2.2 Propriedade e Pacto dos Ricos

Depois de ter passado por um primeiro estágio de convivência grupal, no qual as

aproximações humanas se davam de forma que vivendo em um estado pré-social o homem

relacionava-se com o semelhante sem causar-lhe mal algum, no qual as relações eram

precárias, e os homens conviviam sem prejudicarem-se, o homem passa para outro estágio: a

vida em sociedade. Machado afirma que esse primeiro estágio de convivência grupal do

homem, somente seria tornado infeliz com o advento da propriedade, e a sua legalização:

No pensamento de Rousseau o estado social, enquanto convivência interindividual

e enquanto elemento coletivo introduzido no comportamento individual, não é

responsável pela miséria do homem atual, que resulta do estado civil, da sociedade

política. Enquanto medeia entre a indolência inicial e as misérias da desigualdade, o

homem encontra-se em um estado que, embora social, lhe é conveniente e só se

tornará infeliz quando, estabelecida a propriedade, fatalmente se lhe seguir a

consagração legal que, por sua vez, traz o estabelecimento do poder superior que

logo se torna ilegítimo (1968, p. 109).

Essa terceira fase de juventude do mundo teve seu fim decretado pela propriedade

“é com a introdução da propriedade que esse estado de juventude será destruído” (SALINAS

FORTES, 1989, p. 62). A instituição da propriedade é apontada por Rousseau como o marco

inicial da sociedade civil: “o verdadeiro fundador da sociedade civil foi o primeiro que tendo

cercado um terreno, lembrou-se de dizer isto é meu e encontrou pessoas suficientemente

simples para acreditá-lo” (ROUSSEAU, 1983, p. 259).

Rousseau percebeu que a propriedade privada pode tornar-se uma ameaça para a

liberdade quando não é mantida em limites estreitos. Da instituição da propriedade seguiram-

se brigas e combates. Houve a ruptura completa entre as características virtuais descritas por

Rousseau do homem no estado natural com o homem do estado civil. Nesse momento “como

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os mais fortes possivelmente foram os primeiros a fazer habitações que se sentiam capazes de

defender, é de crer que os fracos acharam mais rápido e seguro imitá-los do que tentar

desalojá-los” (ROUSSEAU, 1983, p. 262). Nota-se que aqui, o homem constrói habitações

para dizer que as tem e para defendê-las (para dizer que são suas), porque possui em si, já

desenvolvido, os desejos de posse e propriedade, diferentemente do que ocorria no início da

convivência grupal (e não social), na qual o homem construía sua cabana para proteger-se

(por necessidade). A instituição da propriedade transforma os agrupamentos em sociedades,

onde cada um passa a lutar para manter o que afirma ser seu.

Nessa sociedade nascente (pós-propriedade) segue uma grande desordem, o

homem passa por um processo de transição de um estado no qual era independente e solitário,

para a instituição de um novo, onde se torna dependente e sujeito ao convívio social. Aqui o

homem inicia seu aprisionamento, pois a vida em sociedade faz com que o homem perca

algumas das características que possuía no estado de natureza. Esse fenômeno foi introduzido

por Rousseau, no momento em que o filósofo genebrino trata do homem no estado natural,

onde sugere que caso esse homem tivesse os auxílios que tem o homem social, não seria forte

e resistente como era: “se tivesse um machado, seu punho romperia galhos tão resistentes? Se

tivesse uma funda, lançaria com a mão com tanto vigor, uma pedra? Se possuísse uma escada,

subiria uma árvore tão ligeiramente?” (ROUSSEAU, 1983, p. 239). Por fazer uso de tantos

objetos que tornaram sua vida mais fácil, o homem social já não pode possuir o mesmo vigor

físico, o que faz com que sozinho não consiga realizar tarefas que no estado natural

conseguiria perfeitamente, como por exemplo, suprir suas necessidades vitais: “mas se cada

um em separado tornou-se menos capaz de combater as bestas selvagens, em compensação foi

mais fácil reunirem-se para resistirem em comum” (ROUSSEAU, 1983, p. 263).

Pelo fato de enfraquecer-se individualmente, o homem torna-se dependente do

coletivo, entregando-se a dependência mútua, e com o decorrer da convivência tende a

aumentar a dependência, considerando que o tempo ocioso do homem social é ocupado com

atividades que cada vez mais criam novas necessidades:

gozando de um lazer bem maior, empregam-no na obtenção de inúmeras espécies

de comodidades desconhecidas por seus antepassados; foi o primeiro jugo que

impuseram a si mesmos e a primeira fonte de males que prepararam para seus

descendentes pois além de assim continuarem a enfraquecer o corpo e o espírito

essas comodidades, perdendo pelo hábito quase todo o seu deleite e degenerando ao

mesmo tempo em verdadeira necessidades, a privação se tornou muito mais cruel

do que doce fora sua posse (ROUSSEAU, 1983, p. 262).

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O homem se aprisiona no estado social, porque não pode ser independente dos

demais (já não tem a mesma disposição e o mesmo vigor do estado natural para ser

independente) e pelo fato de não perceber tal situação, ou se percebe, não sabe o que fazer

para remediá-la, passa a submeter-se aos desígnios de uma convivência social para a qual não

estava preparado, pois no entendimento de Rousseau a natureza humana não estaria inclinada

para a sociabilidade.

Assim, não há aqui uma atividade do homem para restabelecer a liberdade que está

sendo perdida, através da desigualdade que está se instalando. Nota-se que o estado natural

era de igualdade, sendo que após o advento do estado social, ela se manifesta. No estado

natural, não havia necessidade do reconhecimento alheio, nesse estado sequer existia a noção

de comparação. No estado social, no entanto, o homem passa a comparar-se com os demais,

sendo desejoso do mesmo, ou de um melhor reconhecimento que outros de sua espécie têm.

Quando esse reconhecimento, do qual o homem se julga merecedor não ocorre, surge uma

atividade reativa ao que se julgou preterido. A idéia de consideração se forma no homem, que

ao sentir-se desprezado reage34

.

O homem social desenvolve suas faculdades (aqui se manifesta plenamente a

perfectibilidade), e procura consideração, não só acumulando bens, mas demonstrando outras

habilidades a procura de mérito: “cada um que punindo o desprezo que lhe dispensavam

proporcionalmente a importância que se atribuía, as vinganças tornaram-se tremendas e os

homens sanguinários e cruéis” (ROUSSEAU, 1983, p. 263).

O convívio social conduz o homem a esse processo de desnaturação, que implica

na sua transformação de ser errante, pacífico, independente, amoral, para um ser egoísta,

vaidoso, cruel, e depravado. O agrupamento humano suaviza suas habilidades naturais (força,

agilidade), e se o homem primitivo conseguia sozinho enfrentar as dificuldades apresentadas

pela natureza para poder subsistir, o homem social já não consegue mais:

O homem, de livre e independente que antes era, devido a uma multidão de novas

necessidades passou a estar sujeito, por assim dizer, a toda a natureza e, sobretudo,

a seus semelhantes dos quais num certo sentido se torna escravo, mesmo quando se

torna senhor: rico tem necessidade de seu serviços; pobre, precisa de seu socorro, e

a mediocridade não o coloca em situação de viver sem eles (ROUSSEAU, 1983, p.

267).

O desejo de reconhecimento faz com que o homem se preocupe em cada vez mais

obter para si o que antes era de todos, não pelo trabalho, mas sim pela apropriação pura e

34

Nesse sentido ver o item 1.1.6 sobre o amor próprio

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simples, e assim sendo, nesse estado, alguns tem muito mais do que precisam, enquanto

outros não possuem nada, nem mesmo o necessário para poderem sobreviver:

Assim os mais poderosos ou os mais miseráveis, fazendo de suas forças ou de suas

necessidades uma espécie de direito ao bem alheio, equivalente, segundo eles ao de

propriedade, seguiu-se a rompida igualdade a pior desordem [...] A sociedade

nascente foi colocada no mais tremendo estado de guerra [...] os ricos logo

perceberam quanto lhes era desvantajosa uma guerra perpétua cujos gastos só eles

pagavam e na qual tanto o risco da sua vida como o dos bens particulares eram

comuns [...] (ROUSSEAU, 1983, p. 268).

Há, portanto, com o advento da propriedade uma ruptura do estado natural, e das

características apresentadas pelo homem virtual desse estado, e o conseqüente advento do

estado social. Essa ruptura traz várias conseqüências negativas, dentre elas, os já citados:

enfraquecimento físico do homem, nascimento de vícios até então inexistentes, e o acréscimo

de vontades (muitas delas consideradas desnecessárias), que são criadas pela busca da

consideração e do reconhecimento, pois o homem social convive sob a tirania da opinião

alheia:

A mola propulsora da vida em sociedade, que acaba por converter o amor-de-si em

amor próprio, é a tirania da opinião. Viver em sociedade nestas condições, é dar-se

em espetáculo para o outro [...] e o parecer feliz será mais importante do que a

própria felicidade (SALINAS FORTES, 1997, p.126).

Dessa ruptura da ordem natural resultante do advento da propriedade, e do

posterior estado de guerra, houve por certo, aqueles que conseguiram usurpar mais bens, e

aqueles que usurparam menos, ou nada. Os primeiro tornam-se ricos, e os demais, pobres. A

manutenção do estado de guerra, poderia fazer com que os pobres conseguissem retomar o

que havia sido usurpado, enquanto que aqueles que já possuíam tudo, só teriam a

desvantagem de tudo poderem perder. Fica claro, que com a manutenção do estado de guerra,

são os ricos que mais têm a perder. Assim, para evitar a usurpação da usurpação, os ricos

propõem um pacto: “unamo-nos, disse-lhes, para defender os fracos da opressão, conter os

ambiciosos e assegurar a cada um a posse daquilo que lhe pertence” (ROUSSEAU, 1983, p.

269). Esse pacto proposto pelos ricos, foi denominado de pacto ilegítimo pelas razões que

seguem:

Nota-se que o pacto proposto pelos ricos, sob o pretexto de proporcionar

segurança, e defender a todos da ambição alheia, a fim de garantir a todos a posse do que lhe

pertence, somente beneficiou seus proponentes ou seja, aos ricos. Eles perderiam mais com o

estado de guerra instalado na sociedade nascente, pois a proposta que cada um conserve o que

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tem nada acresce aos pobres (que nada tem a não ser a pobreza e a liberdade de tentar retomar

o que lhes teria sido usurpado). Quando da formação do pacto ilegítimo, onde cada um se

compromete a permanecer com o que tem, o pobre se compromete a permanecer com a

pobreza, renunciando assim ao direito de readquirir os bens usurpados pelos ricos, bem como

ao direito de libertar-se dessa dominação, e o rico se compromete a permanecer com a

riqueza. Assim foi que o pobre acreditando no rico, aprisionou-se ainda mais, e entregou as

chaves de seu cativeiro àqueles. Desta forma, é a sociedade que Rousseau tem sob seus olhos:

oriunda de um pacto proposto pelos ricos, que visa apenas favorecer-lhes.

Podemos resumir em quatro palavras o pacto social entre as duas partes:

Você tem necessidade de mim, porque sou rico e você é pobre; façamos

então um acordo: permitirei que você tenha a honra de me servir, desde que

me seja dado o pouco que lhe resta, em troca do meu comando

(ROUSSEAU, 1995, p. 52-3).

Esse pacto ignora o fato da natureza ter feito os homens iguais e livres entre si.

Mais do que desconsiderando tal igualdade natural, o pacto estabelecido fundamentou-se no

seu oposto (desigualdade). Para poder legitimar um falso poder hierárquico de homens ricos

sobre homens pobres, o pacto é criado sob pretexto de libertar o homem do estado de guerra, e

faz com os pobres, convencidos de que essa é a melhor opção (união dos homens onde cada

um conserva o que possui) aceitem o pacto.

No entanto, o homem ao invés de libertar-se, aprisiona-se ainda mais. Os pobres

pensando estarem se libertando de um cativeiro, convencem-se que no estado de guerra não

eram livres para conservarem suas vidas e seus bens, e para mudar tal situação, deveriam

todos, trocarem esse estado por uma segurança, que segundo os ricos, seria boa para as duas

partes. Assim aceitaram os homens pactuar e com isso, desnaturaram-se duas vezes em um só

ato: quando dominam e quando obedecem. Nesse sentido: “da mesma forma que o homem

não é livre para dominar, também não é livre para obedecer. O homem que entrega sua

liberdade para ser escravo é louco, e loucura não faz direito” (MARQUES, 2005, p. 334).

Rousseau prefere utilizar os termos pobres e ricos, a fortes e fracos, porque afirma

que “um homem não tinha antes das leis, quaisquer outros meios de dominar seus iguais,

senão atacando seus bens ou lhes transmitindo certa porção dos seus” (ROUSSEAU, 1983, p.

271).

Na sociedade fundamentada em um pacto que somente beneficia aos ricos, os

pobres se convencem (se iludem) que o estabelecimento de leis que supostamente acabariam

com o estado de guerra e com a desordem, seria o suficiente para consolidar um pacto,

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acreditam estar garantindo a liberdade e os direitos através desse mesmo pacto, que tão-só

legitima a arbitrariedade. Um governo incipiente é instituído, e os povos acreditam que há a

necessidade de instituírem um superior, um chefe para governar-lhes:

pois se não houvesse poder superior capaz de fazer-se fiador da felicidade dos

contratantes, nem de força-los a cumprir seus compromissos recíprocos, somente as

partes ficariam como juízes em causa própria e cada uma delas sempre estaria no

direito de renunciar o contrato assim que achasse que a outra estivesse infringindo

as condições ou desde que essas cessassem de convir-lhes (ROUSSEAU, 1983, p.

276).

Conforme já dito, o efeito obtido é justamente o contrário, os homens nomeados

chefes, se tornam tiranos, e usurpadores da liberdade. Quem consente com a nomeação de um

chefe, está sendo induzido ao erro, pois acreditando na promessa de segurança, institui a

tirania, mesmo que enganado, de forma voluntária, pois renega sua própria liberdade em favor

de outra pessoa, sem coação. O pacto onera apenas uma das partes, sem nada impor a outra, e

por isso não pode ser considerado legítimo: “será difícil demonstrar a validade de um contrato

que só obrigaria uma das partes, no qual tudo caberia a um lado e nada a outro, e só resultaria

em prejuízo de quem nele se compromete” (ROUSSEAU, 1983, p. 273).

A desigualdade35

que nasce como conseqüência do convívio é legalizada através

do pacto ilegítimo, pois o homem no estado social procura pela liberdade, renunciando

parcela da sua em favor de um chefe, e assim pensa estar conservando-a, e só faz perdê-la por

completo. A ordem social e a segurança prometida se fundamentam na desigualdade e na não

legitimidade, embora se apresente como legalidade. O pacto social existente é ilegítimo,

porque arbitrário, dominador, fundamentado na usurpação da liberdade, no qual somente os

pobres ficam com todos os ônus, e os ricos com todos os bônus. O homem social é

completamente aprisionado, desvirtuado de sua essência que não permite nem dominação,

nem obediência.

Esse contrato abusivo, caricatura do verdadeiro pacto social, não tem sua fonte na

vontade espontânea do grupo em formação. Obra de astúcia e sedução, ele está,

contudo, na base de nossa sociedade, constitui uma etapa determinante de nossa

história. Somos hoje os herdeiros desse mau negócio, em que a violência aberta da

guerra de todos contra todos foi substituída pela violência hipócrita das convenções

vantajosas para o rico (STAROBINSKI, 1991, p. 305).

35

“É, pois, necessário demonstrar que as desigualdades têm uma história que se aprofundou passo a passo; que

seu aperfeiçoamento no mundo, mais que uma escolha da humanidade, indica uma série e decisões e

conseqüências que repercutem fundamente na vida do homem civilizado; que ela tem a ver com perfectibilidade

e a liberdade enquanto traços constitutivos da condição humana; que necessitou do concurso fortuito de inúmeras

causas para realizar-se e que, se no limite a fonte das desigualdades não é invenção da propriedade, seu

aparecimento no mundo, no entanto, com ela coincide” (GARCIA, 1999, p. 80).

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Frente a esse pacto ilegítimo que é estabelecido, Rousseau questionava-se: há a

possibilidade do homem social recuperar sua liberdade e ser tão livre quanto era ao nascer?

Será que em sociedade o homem poderia ser livre, como era no estado natural? Ao que

poderíamos acrescentar: haveria a possibilidade e quais seriam as condições de existência de

um pacto legítimo? Essas questões são propostas e respondidas por Rousseau no Do Contrato

Social. Para nosso autor, deve ser criada uma nova ordem, que não pode ser fundamentada na

desigualdade e na dominação, sob pena de ser ilegítima. Para tanto será preciso estabelecer

uma nova referência de legitimidade36

. Assim, pois, nasce a proposta do direito político em

Rousseau, que será tema de estudo do próximo capítulo.

36

No capítulo seguinte veremos que a forma que Rousseau encontra de obrigar os homens sem submetê-los, sem

que haja aprisionamentos, passa pelas convenções: “O que faz com que um Estado seja um Estado? É a união de

seus membros. E de onde nasce a união de seus membros? Da obrigação que os liga. Tudo está de acordo até

aqui. Mas qual é o fundamento dessa obrigação? É aqui que os autores se dividem. Segundo alguns, é a força;

segundo outros é a autoridade paterna; ainda, segundo outros, é a vontade de Deus. Cada um estabelece seu

princípio e ataca o dos outros. Eu mesmo não fiz de maneira diferente, e, seguindo a parte mais sadia dos que

discutiram esses assuntos, estabeleci como fundamento do corpo político a convenção de seus membros e refutei

os princípios diferentes do meu” (ROUSSEAU, 2006, p. 318/319).

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2 FUNDAMENTOS DE LEGITIMIDADE DO PENSAMENTO POLÍTICO EM

ROUSSEAU

É difícil apontar um trabalho de Rousseau que não tenha conotação política.

Desde sua primeira obra, o Discurso sobre as ciências e as artes (Primeiro Discurso) em

1749, onde sustenta que as ciências e as artes não contribuíram para o aprimoramento dos

costumes, e que pelo contrário, os corrompeu, até quando escreve sua última obra Os

Devaneios de um Caminhante Solitário em 1776, a questão política está sempre presente. No

entanto, é no Contrato Social que está sua obra política por excelência, onde está a maioria

dos elementos do direito político.

Como se sabe, o Contrato Social37

resulta de uma obra maior, que não chegou a

ser terminada, a saber, as Instituições Políticas. É no Contrato Social38

que se encontram os

principais elementos necessários para se compreender o direito Político em Rousseau. O

filósofo genebrino quer saber qual é o meio de sujeitar os homens para torná-los livres, de tal

forma que obedeçam, mas que ninguém comande (o que se dará através da lei). “Não há, para

Rousseau, linhas divisórias entre a realidade humana, a moral e a política, expressões

variadas, porém exatas e autênticas, de uma mesma relação natural” (MACHADO, 196, 8 p.

144).

Uma vez estabelecida à sociedade, o homem necessita de seu semelhante para

sobreviver. O homem necessita viver coletivamente, como seria possível manter os homens

convivendo entre si, sem que haja a dominação de um homem sobre o outro? Existe a

necessidade de um soberano, como fazer então? Como evitar que o amor próprio que é a

paixão artificial nascida na sociedade domine o homem a ponto de impedi-lo de conviver com

os demais? “Os homens necessitam uns dos outros: eis o ponto de partida. Como uni-los

mantendo-os ao mesmo tempo livre? Eis a aporia da vida coletiva, eis o grande paradoxo de

toda a política” (SALINAS FORTES, 1997, p. 108).

37

“Tal como foi publicado o Contrato social é apenas um fragmento, um pequeno tratado de direito público

geral, como diríamos hoje. É uma obra abstrata cuja “matéria ingrata” é apropriada a poucos leitores”

(DERATHE, 2009, p. 102). 38

“Foi principalmente pela audácia de suas conclusões que o Contrato Social marcou uma guinada na história da

filosofia política. Mas pelas matérias que trata, pelo método que seguiu, pelo espírito mesmo de seu livro,

Rousseau se vincula a todos aqueles que antes dele tentaram determinar qual é a origem e quais são os

fundamentos do Estado, ou como se dizia então, da sociedade civil. Com efeito, esse problema fundamental

tinha preocupado um grande número de pensadores, tanto do século XVII como no XVIII” (DERATHE, 2009,

p. 54).

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56

Para responder às questões propostas, Rousseau quer tomar os homens como são e

as leis como podem ser, e partindo desse pressuposto escreve o Do Contrato Social. Na

referida obra, Rousseau elabora sua teoria contratualista, fazendo nascer o que considera ser o

direito político, que possui várias formas de interpretação39

. O que Rousseau percebe muito

bem é a diferença que existe entre a constituição dos homens e a forma como eles vivem. Para

Rousseau qualquer forma de dominação de um homem sobre outro, mesmo que consentida, é

nula e ilegítima. Para ele um homem não pode ser dominado por outro, não pode renunciar a

sua liberdade, porque renunciaria a sua própria condição humana. Em contrapartida a essa

constatação, Rousseau percebeu que a vida social estava repleta de relações de dominações,

de escravidão, de homens livres que concordam em se submeter à autoridade de um rei, ou de

um soberano arbitrário, o que para ele era inadmissível: Nos Diálogos, Rousseau declara que

desde sua juventude e, antes mesmo de ter composto o Primeiro Discurso, “ele entrevia uma

secreta oposição entre a constituição do homem e de nossas sociedades” (DERATHE, 2009,

p. 97).

Assim, Rousseau ao escrever o Contrato Social propõe uma nova forma de se

interpretar as relações sociais. Não é o Do Contrato Social uma obra de protesto: “Vê-lo

como uma exposição de um programa de reformas ou um caderno de reivindicações seria,

portanto, falsear o espírito da obra. Rousseau sempre se defendeu de ter escrito um libelo e

não quer ser confundido com um agitador político” (DERATHE, p. 103).

Rousseau visava contrapor sua forma de ver o direito político40

a de pensadores41

renomados e respeitados à época, mas que utilizavam de seus conhecimentos para legitimar

poderes políticos arbitrários que forçavam o homem a obedecer autoridades que não poderiam

39

“Uns escrevia em 1914 Giorge Del Vecchio, vêem em Rousseau o defensor da vontade todo-poderosa do

Estado, o teórico do absolutismo, eu teria sacrificado todo o traço da liberdade individual ao dogma da soberania

do povo, chegando, ao menos virtualmente, até a negação da propriedade privada; outros vêem nele o pai da

democracia constitucional e do liberalismo moderno, aquele que reivindica os direitos fundamentais do cidadão,

o individualista por excelência, que, abolindo toda autoridade, teria dado ao Estado a base atomística da vontade

mutável dos indivíduos. A um título ou a outro, segundo uma ou outra dessas interpretações (com freqüência,

compreendidas muito superficialmente) vemos Rousseau tanto exaltado e glorificado quanto combatido e mesmo

vilipendiado com uma violência de paixão sem igual na história da filosofia política, pois estudamos e

discutimos Aristóteles, Grotius, Hobbes, Espinosa, Locke, Montesquieu, mas Rousseau, ou amamos ou

odiamos” (DERATHÈ, 2009, p. 31). 40

“O direito político é o sustentáculo dos atos de poder institutivos e organizacionais que dão à existência

humana um caráter público” (GOYARD-FABRE, 2002, p. 307). 41

“Assim como num capítulo importante do Manuscrito de Genebra, consagrado em grande parte à refutação

dos jurisconsultos e outras pessoas pagas para fazer o povo crer que a escravidão, a tirania e a conquista são

legítimas. Esta fora de dúvida que é contra os jurisconsultos que ele pretende escrever, pois estes só deram

“falsas noções do laço social” e falsos “princípios do direito político” (DERATHE, 2009, p. 95).

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ser legítimas42

. Para Rousseau, não haveria legitimidade política em atos de submissão de um

homem ao outro, ou mesmo de um “povo” a um chefe:

Haverá sempre grande diferença entre subjugar uma multidão e reger uma

sociedade. Sejam homens isolados, quantos possam ser submetidos

sucessivamente a um só, e não verei nisso senão um senhor e escravos, de

modo algum considerando-os um povo e seu chefe (ROUSSEAU, 1983, p.

30).

Rousseau acreditava que todos os homens nascem iguais, pois a natureza assim os

fez, possuindo apenas diferenças mínimas (físicas) que não representam nada na vida social.

Não haveria legitimidade na autoridade de um homem sobre outro, haveria aí apenas uma

relação de escravidão, mesmo que seja um povo que se submeta. Aliás, Rousseau questiona

sobre a possibilidade de se utilizar a expressão “povo” para uma junção de pessoas que

resolvem obedecer: “um povo diz Grotius, pode dar-se a um rei.[..] antes, pois, de examinar o

ato pelo qual um povo elege um rei, conviria examinar o ato pelo qual um povo é um povo”

(ROUSSEAU, 1983, p. 30-1). Assim, Rousseau cria uma nova teoria “Rousseau pensa que

chegou o momento de se tornar célebre, tomando contra os jurisconsultos43

a defesa dos

povos e colocando assim sua pluma em prol da verdade. Ele se proporá, então, a estabelecer

os verdadeiros princípios do direito público” (DERATHE, 2009, p. 95).

Rousseau constrói seu sistema fundamentando-o na liberdade e na igualdade, e no

império da lei. O próprio Rousseau afirma que denomina de república o estado que é regido

por lei: “Chamo pois república todo o estado regido por leis, sob qualquer forma de

administração que possa conhecer” (ROUSSEAU, 1983, p. 55). Qualquer Estado, portanto,

não importando a forma de administração que possua, mas desde que regido por leis, é

considerado por Rousseau como sendo um Estado republicano, e acrescenta Rousseau: “Todo

governo legítimo é republicano” (ROUSSEAU, 1983, p. 55). Nota-se que o inverso não é

verdadeiro. Se todo governo legítimo é republicano, nem todo governo republicano é

legítimo, pois o fato do republicanismo estar fundamentado na lei, não significa que a forma

42

“Seria prova a cegueira intelectual afirmar sem matizes a identidade, no Estado moderno, entre a legitimidade

e a legalidade” (GOYARD-FABRE, 2002, p. 283). 43

“Rejeita, de um lado, a velha noção dos jurisconsultos antigos, que tomando por lei ‘a expressão das relações

gerais estabelecidas pela natureza entre todos os seres animados”, não escapam a permanecer em um plano

puramente físico e biológico que só por artifício se identificará com a realidade social. Rejeita, de outra parte, a

pretensão dos juristas modernos que tendo por lei toda a regra prescrita a um ser normal, isto é, inteligente, livre

e considerado em suas relações com outros seres’, haverão de alcançar-se a ‘princípios metafísicos’ sem,

contudo, atender às solicitações práticas, daí resultando as muitas controvérsias doutrinárias típicas do tempo,

que só se alcançam quando, firmando-se certas regras convenientes “à utilidade comum” ao seu conjunto se dá,

para resumir razões, “o nome de lei natural” (MACHADO, 1968, p. 93-4).

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como a lei é declarada é legítima. Para Rousseau, a forma de um governo legítimo deve aliar

o republicanismo (império da lei) com a soberania44

popular direta (o povo legislando a si

mesmo diretamente, sem representantes) e para isso, visando conciliar a necessidade da vida

coletiva, com a liberdade de cada homem, constrói a teoria da soberania da vontade geral:

Qual a solução da equação? Como conciliar igualmente a liberdade de todos

com as necessidades da vida coletiva, com as vicissitudes da convivência

tornada indispensável e inevitavelmente restritiva da independência natural?

A genial solução teórica encontrada por Rousseau, numa antecipação da

autonomia Kantiana, está justamente na noção de soberania da vontade

geral. Ou seja, na alienação total de cada associado com todos os seus

direitos a toda a comunidade, segundo anuncia lapidarmente a cláusula do

pacto primitivo. Por paradoxal que possa parecer, o momento do pacto

situa-se em uma espécie de estado de natureza social. Por outras palavras,

achamo-nos aqui diante e um estado ideal de convivência entre os homens,

que talvez nunca tenha existido e que talvez nunca venha a existiu

(SALINAS FORTES, 1997, p. 108).

Rousseau entende que todo povo precisa de um soberano, mas como então esse

povo pode permanecer livre? Rousseau transfere a soberania não para um indivíduo, mas sim

para o próprio povo. Se há a necessidade da existência de um soberano, este não poderá ser

diferente do povo, esse seria o único modo de fazer com que o povo obedeça sem servir.

“Cada um unindo-se a todos, só obedece, contudo a si mesmo, permanecendo assim tão livre

quanto antes” (ROUSSEAU, 1983, p. 32).

A conjunção do direito político com deveres cívicos é essencial para a manutenção

da comunidade social estatal. Longe de impor uma obediência passiva e cega aos

mandamentos do Poder, ela significa que a ordem pública depende da vontade de

coexistência dos seres responsáveis que são os cidadãos. Se por essa razão, implica

a lealdade de cada um no Estado do Contrato, é não obstante a superação do

individualismo egoísta (GOYARD-FABRE, 2002, p. 496).

Surge então à ideia da soberania popular, o povo se torna soberano de suas leis, e

obedecerá somente a si. Os componentes do povo, quando reunidos em assembléia são

denominados de soberano, e quando submetidos às leis que aprovam para si, são

denominados de súditos. Por certo que somente aprovarão leis que sejam boas, porque não

quererão seu próprio mal, aprovarão leis fundamentadas na vontade geral.

44

“A soberania define o dever ser que é norma de toda a política, seu conceito tem a envergadura de um

princípio universal: ela é, portanto a mesma, e os fundamentos do Estado não são diferentes segundo os diversos

modos do seu governo. Toda a sociedade civil tem raízes de direito numa democracia originária, já que a

soberania pelo ato do contrato, é a vontade do povo” (GOYARD-FABRE, 2002. p. 247).

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Fica patente que a idéia tradicional de soberania do rei a partir daí ficou

irremediavelmente superada. Ela parecia a Rousseau ser portadora dos

germes dessa arbitrariedade e desse absolutismo monárquicos que secretam

o despotismo e esmagam no homem o que há de mais precioso: a liberdade.

A esse respeito Rousseau, entre as múltiplas interpretações suscitadas por

sua obra, pôde passar por pai fundador do direito político moderno

(GOYARD-FABRE, 2002, p. 182).

Ninguém poderá se colocar acima da lei45

ou desafiá-la. Rousseau troca a

autoridade de uma pessoa, pela autoridade fundamentada na lei legitimada pelo soberano.

Todos estariam obrigados, mas não subjugados, sendo que a lei em Rousseau possui

qualidades bem específicas, como por exemplo, deverá emanar do povo soberano, pois só

assim será obrigatória e imperativa. Se a lei não retirar sua eficácia do próprio povo, não

possuirá legitimidade.

Essa nova forma de pensar o direito político, fundamentado na legitimidade

soberana, fez com que Rousseau acreditasse ter criado o direito político. Com fundamento

nesses ideais, Rousseau ficou conhecido como sendo o pai da democracia moderna. Derathè

afirma que Rousseau se volta para a via da democracia. “O contrato social só pode, segundo

ele, engendrar uma única forma de Estado, aquela em que o povo é soberano, isto é, o que

hoje chamamos de regime democrático” (2009, p. 88).

A soberania do povo é a máxima fundamental do direito político. Nesse sentido

Derathè prossegue:

De fato, ninguém foi mais resolutamente, mais sinceramente democrata do

que Rousseau, e isso numa época em que os mais liberais acomodavam-se

sem dificuldade com a “monarquia limitada”, ou mesmo com o despotismo

esclarecido. É a inspiração democrática de seu Contrato Social que faz a

novidade (DERATHE 2009, p. 90).

45

“Assim, Rousseau, que enaltece a lei civil e vê em seu estabelecimento a tarefa prioritária da República, é

manifestamente tentado pelo “positivismo”. No entanto, fascinado pelo modelo antigo que inseria o direito

natural nas estruturas da Cidade, Rousseau evita a vertente positivista. Mas corrige a teoria jusnaturalista: não

rejeita o direito natural mas transporta-o para outro registro; o direito naturalmente natural, isto é, originário e

imediato, torna-se analogicamente natural, isto é, embora sua finalidade não se modifique, ele precisa, para se

realizar, seguir as vias da razão organizadora em funcionamento no Estado. Nessa transformação, a lei civil

assume uma função dialética entre o estado de natureza e o Estado, ou se preferirem, entre o “direito natural

natural” e o “direito natural racional” que fixa as determinações da natureza. A meio do caminho entre Pufendorf

e Hegel, Rousseau, antes de Kant, inverte as teses jusnaturalistas sem por isso negar o direito natural: toda justiça

vem de Deus, ele é sua única fonte; mas, se soubéssemos recebê-la de tão alto, não teríamos necessidade nem de

governo nem de leis. Portanto, o direito natural já não é paradigma da ordem jurídica: cabe às leis civis dar às

normas naturais vindas de Deus a estampilha humana que as torna acessíveis e efetivas para os homens. Aliando

a antropologia à ciência do direito, Rousseau, que, em nome da igualdade, rejeitas as perspectivas hierárquicas

do naturalismo clássico, insere o direito civil nas instituições da Cidade. Forja assim um humanismo jurídico no

qual o homem, antes de mais nada cidadão, é reconhecido como um sujeito de direito” (GOYARD-FABRE,

2002, p. 83-4).

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Rousseau inova o pensamento político de seu tempo com a transferência do

exercício da soberania para o povo, sendo que o magistrado, seja ele um Príncipe ou não,

ocupa uma posição de comissário, apenas executa as ordens dadas pelo soberano. Surge, no

entanto, uma questão: Teria Rousseau desenvolvido sua teoria do direito político

fundamentado no poder do povo de voto e exercício da soberania, para algum Estado

específico? Há muito que essa questão foi levantada, sendo que surgiu a interpretação de que

a teoria foi desenvolvida para ser aplicada a Genebra. No entanto, na atualidade essa

interpretação de que o Do Contrato Social teve como modelo a Constituição de Genebra46

,

não prevalece. A teoria do Contrato enuncia, a seu modo, a forma ideal de uma sociedade bem

constituída. É uma teoria vazia, apta a ser medida para qualquer forma de sociabilidade.

Pode-se, sem dúvida, assinalar algumas aproximações entre a constituição

de Genebra e O Contrato Social, mas sustentar que um serviu de modelo ao

outro em uma visão simplista, que os adversários de Rousseau se apressam

em adotar com a intenção manifesta de diminuir, com isso, o alcance de sua

obra política... Assim, escrevendo o Contrato Social, Rousseau teria,

segundo seu próprio testemunho, pensando apenas em sua pátria, e é na

constituição de Genebra que seria preciso buscar a fonte de seus princípios

políticos. Essa tese que teve autoridade durante muito tempo, não resiste a

um exame sério e deve ser regulada junto às legendas que ainda atravancam

a história do rousseauísmo (DERATHÉ, p. 33).

A fim de encerrar essa parte introdutória a respeito do pensamento político de

Rousseau, é importante frisar o amor à pátria. Quando Rousseau aborda o tema do cidadão é

sempre com relação à pátria. A pátria funciona como um elo que faz com o que o cidadão

encontre um bem comum com seus semelhantes, do qual queira cuidar, o que faz com que se

sinta parte de um todo maior que ele. No entanto, esse amor à pátria deve ser ensinado. O

cidadão é aquele que pensa primeiramente no bem de sua pátria.

Não é suficiente dizer aos cidadãos que sejam bons, é preciso ensiná-los a

ser; e o próprio exemplo, que neste sentido é a primeira lição, não é o único

meio que se deve empregar – o amor à pátria é o mais eficaz; porque, como

já disse, todo o homem é virtuoso, quando sua vontade particular está em

46

“Apesar do que tenha dito, Rousseau jamais acreditou que a aplicação de seus princípios devesse limitar-se a

Genebra, nem mesmo aos pequenos Estados. Pois, se assim acreditasse, como poderia ter escrito as

Considerações sobre o Governo da Polônia? Na verdade, o Contrato Social é a seus olhos, um livro universal,

um livro para todos os tempos” (DERATHE, 2009, p. 35) e segue ainda Derathè: “Se o Contrato Social teve na

política e nas polêmicas genebrinas um papel de primeiro plano, ele não é, contudo um livro de inspiração

genebrina. Rousseau o compôs sem reconhecer seriamente as disposições da constituição de Genebra, e quando

as circunstâncias o levaram a estudá-la de perto, ele pode constatar até que ponto se distanciava de seus

princípios, já que finalmente ele pediu sua revisão” (DERATHE. p. 49)

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conformidade com a vontade geral, e de bom grado quer aquilo que querem

as pessoas que ama (ROUSSEAU, 1995, p. 34).

O amor à pátria, conforme será demonstrado na seqüência, poderá ser formado

através de uma valoração positiva dos costumes dentro do povo. O indivíduo que está

submetido à tirania da opinião alheia, vê o amor de si transformado em amor próprio. No

entanto, o desejo de ser estimado por seus semelhantes pode fazer com que o homem seja

educado para valorizar a vontade geral e o bem comum através da pátria, criando um

consenso no corpo político de que a pátria é bem sagrado, e quem assim considerá-la receberá

elevada estima de seus compatriotas, sendo que assim se forma o cidadão.

2.1 CONVENÇÃO E PACTO SOCIAL

O homem precisa buscar nas características que adquire no convívio social a saída

para sua libertação. Os sentimentos, as imaginações, o desenvolvimento das relações sociais

estão incorporados à natureza intrínseca do homem. Conforme anteriormente citado, não

sendo inútil repetir “Os homens necessitam uns dos outros: eis o ponto de partida. Como uni-

los mantendo-os ao mesmo tempo livres? Eis a aporia da vida coletiva, eis o grande paradoxo

de toda a política” (SALINAS FORTES, 1997, p. 108).

Rousseau considera que para o homem permanecer tão livre como era ao nascer, a

nova ordem social a ser estabelecida, não poderia legitimar a autoridade de um homem sobre

outro: “Visto que homem algum tem autoridade natural sobre seus semelhantes e que a força

não produz qualquer direito, só restam às convenções como base de toda a autoridade legítima

existente entre os homens” (ROUSSEAU, 1983, p.26). É necessário, portanto, que a nova

ordem seja fundamentada em uma convenção, porque a ordem social, diferentemente da

natural, se fundamenta nelas, é o que afirma Salinas Fortes: “De acordo com Rousseau, a

ordem social é descontínua em relação à ordem natural: ela não vem da natureza, mas está

fundada em convenções” (1989, p. 81).

O homem, sob pena de não construir um estado social legítimo, não pode

fundamentar-se na força e na imposição de sua vontade a outro, assim restam às convenções

como alternativa para se chegar a um acordo sobre o modo de convivência social. No entanto,

essa nova convenção que se torna necessária, não pode ser como foi a primeira47

(ilegítima),

47

Pacto dos ricos.

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na qual a liberdade de cada pactuante foi renunciada a favor de um representante, pois

conforme dito, Rousseau não admite a autoridade de um homem sobre outro. Há a

necessidade de se encontrar uma nova forma de associação, a qual assegure a liberdade de

cada um, e na qual, cada um seja submetido apenas a si mesmo:

Encontrar uma forma de associação que defenda e proteja a pessoa e os bens de

cada associado com toda a força comum, e pela qual, cada um, unindo-se a todos,

só obedeça, contudo a si mesmo, permanecendo assim tão livre quanto antes. Esse é

o problema fundamental cuja solução o contrato social oferece (ROUSSEAU,

1983, p. 32).

Essa forma de associação é proposta por Rousseau como sendo o pacto legítimo.

Nele há a possibilidade do homem conciliar igualdade e a liberdade, com a necessidade de

vida coletiva. “Cada um dando-se a todos não se dá a ninguém” (ROUSSEAU, 1983, p. 33).

Cada pactuante transfere seu poder particular para um todo, onde há uma vontade soberana

impera: “cada um de nós põe em comum sua pessoa e todo o seu poder sob a direção suprema

da vontade geral, e recebemos como corpo, cada membro como parte indivisível do todo”

(ROUSSEAU, 1983, p. 33).

Para Rousseau a única forma de obrigar os homens sem que haja aprisionamento é

pelas convenções:

O que faz com que um Estado seja um Estado? É a união de seus membros. E de

onde nasce a união de seus membros? Da obrigação que os liga. Tudo está de

acordo até aqui. Mas qual é o fundamento dessa obrigação? É aqui que os autores

se dividem. Segundo alguns, é a força; segundo outros é a autoridade paterna;

ainda, segundo outros, é a vontade de Deus. Cada um estabelece seu princípio e

ataca o dos outros. Eu mesmo não fiz de maneira diferente, e, seguindo a parte mais

sadia dos que discutiram esses assuntos, estabeleci como fundamento do corpo

político a convenção de seus membros e refutei os princípios diferentes do meu

(ROUSSEAU, 2006, p. 318/319).

Para que a vontade geral possa existir, é necessário que antes dela exista uma

convenção anterior. Tal tema é inclusive título de um dos capítulos do Do Contrato Social48

.

Toda a fundamentação do corpo político está em uma convenção. Rousseau não procura

outros modos de instituição, para ele, é incontestável a necessidade de uma convenção

anterior conforme já citado: “estabeleci como fundamento do corpo político a convenção de

seus membros e refutei os princípios diferentes do meu” (ROUSSEAU, 2006, p. 319).

Rousseau não fundamentou a formação do corpo político na força, ou em elementos

48

Ainda no Livro I, o capítulo V apresenta como título “De como é sempre preciso remontar a uma convenção

anterior”.

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transcendentais. Acreditava que a melhor forma de manter um povo vinculado a uma

determinada obrigação é se estabelecer uma convenção: “pois que fundamento é mais seguro

para a obrigação entre os homens do que o compromisso livre daquele que se obriga? Pode-se

discutir qualquer outro princípio, mas não esse” (ROUSSEAU, 2006, p. 319). A formação da

convenção possibilitará o pacto social, que exige a unanimidade e a alienação total de seus

membros, conforme mencionado no primeiro capítulo.

É manifesto que a vontade geral resulta do pacto civil legítimo e da alienação total

dos membros para a formação do soberano (agente expressivo da vontade geral). O que

poderia intrigar o estudioso, não é a exigência da convenção anterior e do pacto para a

formação da vontade geral, mas sim como se dará o livre compromisso entre os membros da

convenção. O homem social não é livre, aprisionou-se quando passa a depender da

convivência de seus semelhantes para sobreviver, e novamente aprisionou-se quando aceita a

dominação de um homem sobre o outro no pacto civil ilegítimo. O pacto civil legítimo,

fundamentado na convenção da alienação total, e na obediência da vontade geral, seria o meio

possível para que o homem social consiga libertar-se. Mas como poderia o homem social, que

não é livre, e que visa à liberdade firmar um compromisso livre?

A resposta para tal indagação não é dada por Rousseau, que não se detém com

explicações acerca de como se dá o processo de transição do pacto ilegítimo ao legítimo.

Rousseau narra com muitos detalhes o processo de aprisionamento do homem no Segundo

Discurso e apresenta uma solução na obra Do Contrato Social, mas entre essas duas obras

existe um processo de transição de um pacto ao outro, que não é abordado por Rousseau. O

que se pode afirmar é que quando os homens teriam firmado o pacto civil ilegítimo, eles

também não eram livres, pois já estavam aprisionados pela dependência mútua. No entanto,

essa ausência de liberdade para poder firmar o pacto ilegítimo, não parece ser um empecilho

para que o pacto legítimo seja firmado, pois o tal pacto também teria sido firmado por homens

que não eram livres, e tal fato não teria comprometido sua eficácia.

Poderia se dizer, que Rousseau afirma que o pacto legítimo deve ser fundamentado

na convenção firmada através do compromisso livre. Ele não exige que o homem que firma o

compromisso seja livre. Por compromisso livre poderia ser entendido aquele que não

apresenta vícios na vontade, ou seja, aquele que não possui vícios em seu consentimento, que

não é coagido a adotar determinadas ações. Mas como poderia um homem que não é livre,

possuir vontade livre e firmar compromisso livre? Rousseau não responde essas indagações.

Starobinski afirma que “de um só golpe, sem passar por etapas intermediárias, ele nos faz ter

acesso à decisão que funda o reino da vontade geral e da lei racional” (1991, p.42). Muitas

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etapas são suprimidas, e não são abordadas por Rousseau, uma delas é a da questão da

necessidade do compromisso livre do homem (prisioneiro social) para poder pactuar. Mas ele

advertia àqueles a quem seria preciso tudo dizer, que não o lessem!

Para Rousseau somente o consentimento49

e a convenção são capazes de produzir

um pacto civil legítimo. O compromisso livre de cada pactuante é a condição sine qua non

para o pacto, que não pode ser fundamentado na força (porque para Rousseau a força não

produz direito) e nem em Deus. É no poder do consentimento e da obrigação convencional

que se fundamenta a legitimidade do pacto. “Não é preciso remontar a Deus para encontrar

sua fonte, pois ela tem sua origem e seu fundamento nas convenções” (DERATHE; 2009 p.

78). Todas as sociedades se dão por convenção, exceto a família, quando os filhos ainda não

possuem capacidade para consentir, e para proverem suas próprias necessidades.

No pensamento de Rousseau a única sociedade natural50

é a família “A mais antiga

de todas as sociedades, e a única natural é a família; ainda assim só prendem os filhos ao pai

enquanto dele necessitam para a sua própria conservação” (ROUSSEAU, 1983, p. 23). Ao

comentar tal passagem, em nota51

, Machado sugere que “Em Rousseau, o conceito de natural

inclui o de “necessário” como no caso da família que é decorrência irremissível da

necessidade instintiva” (1983, p.23).

As demais sociedades, que não a família cujos filhos sejam necessariamente

dependentes dos pais, (e entenda-se aqui uma dependência de sobrevivência) não são

consideradas naturais por Rousseau. Essas são denominadas de sociedades convencionais, que

se estabelecem também por necessidade, mas por uma necessidade racionalizada, determinada

pela percepção de que a vida social poderia facilitar a sobrevivência e ser vantajosa, e através

de um ato voluntário as pessoas unem-se aos seus semelhantes. A convenção seria capaz,

portanto, de formar uma sociedade legítima. No entanto, surge a indagação: O pacto civil

49

“A exigência do consentimento para legitimar o pacto social demonstra a necessidade do individualismo de

cada pactuante: “traços do individualismo subsistem mesmo no Contrato social, no qual reencontramos, em

particular, a idéia tão cara a Locke de que somente o consentimento daqueles que se submetem pode tornar

legítima a autoridade política” (DERATHE, 2009, p. 185-86). 50

Nesse sentido Lourival Gomes Machado explica o significado da expressão natural: “Se Rousseau começa

afirmando que a mais antiga de todas as sociedades, e a única natural, é a família, o adjetivo “natural” refere-se

ao estado natural, à natureza primária do homem, como, aliás, o confirma a breve descrição do temporário apego

instintivo dos filhos aos pais: “desde que cesse tal necessidade, o liame natural se dissolve”[...] mas o animal

humano dispõe, ao menos potencialmente da razão sendo, ademais, livre em sua vontade. Daí poder aperceber-se

da presumível vantagem de permanecer ligado ao grupo familiar e, livremente o desejando, assim agir. “se

continuam a permanecer unidos, não é naturalmente, é voluntariamente; e a própria família não se mantém senão

por convenção – o trecho é bastante claro para mostrar-nos que “natural”, isto é, fundamental e instintivo, se

opõe a “voluntário”, isto é, a racional e livre, donde podemos concluir que a resultante “convenção” exprime

não a adoção de qualquer regra comum estatuída explicita ou tacitamente, mas uma compreensão da situação

relacional e uma ação resultante da vontade que, coincidentemente comuns a muitos homens, levarão a aludida

união “pelos caracteres” (MACHADO, 1968, p. 137-8). 51

Nota de rodapé nº 19 (ROUSSEAU, 1983, p. 23).

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ilegítimo foi fruto de uma convenção (ricos e pobres), no entanto, a existência de uma

convenção não foi suficiente para legitimá-lo. Resultante disso, é que a convenção em si não é

garantia de legitimidade de um pacto. Outros atributos são necessários para que um pacto se

torne legítimo.

Nota-se que a convenção não carrega em si atributos morais. Ela pode ser tanto

prejudicial, quanto benéfica. Ilustrativamente, o pacto civil ilegítimo não foi fundamentado na

força, ele foi, ao contrário, fundamentado em uma convenção ilegítima, porque somente

obrigava a uma das partes (pobres) que renunciava a tudo. Da mesma forma, a convenção é o

fundamento do pacto civil legítimo. Nesse sentido:

A convenção não é, em si, boa ou má. Nexo necessário do sistema esboçado

dialeticamnte, deve corresponder a uma passagem evolutiva também

necessária, e tanto Rousseau a admite como instrumento da consagração da

desigualdade, tal como conjecturou no discurso do rico premido pela

necessidade, quanto a faz figurar na base de um primeiro esquema de

sociedade justa e feliz (MACHADO, 1968, p. 126).

O termo convenção52

se liga essencialmente ao homem, tendo em vista que ele é o

agente da convenção. A convenção para Rousseau não se trata de um nexo formal. Trata-se de

um termo tomado à própria realidade, não apenas uma formalidade. É o ato de aceitação do

povo em submeter-se ao império da lei, desde que o soberano seja o povo.

O contrato - se, a rigor, podemos continuar a falar em contrato quando a

palavra passa a significar exclusivamente convenção projetada no plano das

representações psíquicas – reduz-se, afinal, numa tomada de consciência,

pelo homem, das transformações em si próprio resultantes da integração

social. Defrontamo-nos, por assim dizer, com uma consciência a tornar-se

auto-consciente, a dar-se conta de suas próprias dimensões e, pois, de suas

próprias solicitações. Rousseau, penetrando aspectos inéditos do

52

“Em síntese: no pensamento de Rousseau distinguem-se duas acepções de convenção, correspondendo, por

sua própria essência e função, a dois modos de vida social e, correlatamente, a dois planos da consciência, ou

melhor, da natureza humana. Em primeiro lugar há uma convenção espontânea, uma convergência

convencionalizante nascida da conferência de comportamentos equivalentes, que dá continuidade ao organismo

social surgido, naturalmente, quando o homem supera o estado original e, portanto, coaduna a uma

autoconsciência em que se entrelaçam a noção da própria liberdade e o sentido de apego aos semelhantes, num

equilíbrio psico-moral cuja expressão social está na sociedade nascente, também ela a representar um meio-

termo entre os primeiros progressos da desigualdade e a liberdade natural [..] em segundo lugar há uma

convenção – na inteira significação do termo- explícita e voluntariamente aceita pelos homens, característica da

sociedade civil, que vai opor a lei ao pleno arbítrio da autoridade paternal, os compromissos convencionais aos

sentimentos naturais, o bem comum aos interesses particulares e que, nessa desejada superação do estado de

natureza, chegará mesmo a contrariar a dinâmica primária do desenvolvimento vegetativo do grupo. Só nesta

segunda espécie de convenção é que encontramos, em Rousseau, algo correspondente ao pacto dos

contratualistas, porém diferindo dele” (MACHADO,1968, p. 138-9).

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conhecimento do homem, conseguiu fixar em suas menores minúcias, a

natureza ambivalente da consciência e, sobretudo, a possibilidade de

projetar-se nessa mesma consciência a ambivalência que lhe é inerente, para

transformar-se em razão motora e critério ajuizador dos movimentos de

acomodação recíproca do individual e do coletivo (MACHADO, 1968, p.

182-3).

A convenção é aceitação das condições e sua plena consciência. Para que a

convenção possa ser legítima deve existir igualdade entre os pactuantes (igualdade que não

existia no pacto ilegítimo), além da vontade livre. A igualdade entre os membros pactuantes, a

vontade livre e consciente de pactuar, e o consentimento com a obrigação resultante da

convenção são os responsáveis pela unidade política do corpo. Além da liberdade, há a

necessidade da igualdade “Por qualquer via que se remonte ao princípio, chega-se sempre à

mesma conclusão, a saber: o pacto social estabelece entre os cidadãos uma tal igualdade que

eles se comprometem todos nas mesmas condições [...]” (ROUSSEAU, 1983, p. 50)

Quando essas condições (igualdade entre os membros pactuantes; vontade livre e

consciente, e o consentimento) são reunidos é possível formar um pacto. No entanto em

Rousseau vale sempre lembrar que sua busca é por “uma forma de associação que defenda e

proteja as pessoas e os bens de cada associado com toda a força comum, e pela qual, cada um

unindo-se a todos, só obedece, contudo a si mesmo” (ROUSSEAU, 1983, p. 32). Desta

forma, mesmo existindo vontade livre e igualdade, se o consentimento dos pactuantes

admitisse a submissão de um homem a outro, esse pacto seria ilegítimo.

Constata-se então, que o consentimento em Rousseau é qualificado, na medida em

que nem todos os consentimentos produzem pactos legítimos, pois consentir em submeter-se,

em subjugar-se e em servir, faria com que o homem não agisse livremente e isso por si só

viciaria por completo o pacto, que por ser fundamentado na igualdade dos membros, não pode

admitir tal subordinação. A solução então para o pacto civil legítimo seria o consentimento

dos pactuantes na alienação total; “Essas cláusulas53

, quando bem compreendidas, reduzem-se

todas a uma só: a alienação total de cada associado, com todos os seus direitos, à comunidade

toda” (ROUSSEAU, 1983, p. 32). Desse ato de alienação total da pessoa e dos bens, surgirá

uma nova unidade, será formando um novo ente, que não terá uma existência física, mas que

terá uma existência moral, porque será dotado de vontade54

, que formará o que pode ser

denominada de corpo55

político ou corpo moral e coletivo:

53

Do Contrato Social. 54

Vontade Geral. 55

“Rousseau conceitua mais precisamente o organismo social, conservando o esquema de uma estrutura viva,

mas afastando-se da analogia com os seres animados descritíveis pela forma física autônoma: “o corpo político,

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Imediatamente, esse ato de associação produz, em lugar da pessoa particular

de cada contratante, um corpo moral e coletivo, composto de tantos

membros quantos são os votos da assembléia, e que por esse mesmo ato

ganha sua unidade, seu eu comum, sua vida e sua vontade. Essa pessoa

pública, que se forma, desse modo, pela união de todas as outras, tomava

antigamente o nome de cidade e hoje, o de república ou de corpo político, o

qual é chamado por seus membros de Estado quando passivo, soberano

quando ativo e potência quando comparado a seus semelhantes. Quanto aos

associados recebem eles, coletivamente o nome de povo e se chamam, em

particular, cidadãos, enquanto partícipes da autoridade soberana e súditos

enquanto submetidos às leis (ROUSSEAU, 1983, p. 33-4).

Já no Discurso sobre a Economia Política56

Rousseau antecipava o que

posteriormente estaria na obra Do Contrato Social57

, quando afirmou que o corpo político é

dotado de vontade, é essa vontade é a regra para se diferenciar o que justo de seu contrário “o

corpo político é também um ser moral58

, dotado de uma vontade; e essa vontade geral que

tende à conservação e ao bem-estar de todo e de cada parte e que é a fonte das leis, é para

todos os membros do Estado a regra do justo e do injusto” (ROUSSEAU, 1995, p. 25). É

dessa soma de elementos que resulta o Do Contrato Social59

, que se trata de uma ideia

reguladora, um objetivo a ser alcançado. Trata-se de um projeto “um jogo puro de imaginação

oscilando no plano de um horizonte de contato entre o ideal (dever ser) e a resistência e

opacidade efetiva do real (o que veio a ser)” (GARCIA, 1999, p. 71). Portanto, o Contrato

seria um ideal a ser aplicado ao mundo do ser, para que nele o dever ser possa existir. No

entanto, a aplicabilidade da teoria desenvolvida no Do Contrato Social, não foi analisada por

Rousseau, que tão-só visou fundamentar a legitimidade do direito político nas sociedades

humanas.

portanto é também um ser moral, que tem uma vontade, e essa vontade geral, que tende sempre à conservação e

ao bem-estar do todo e de cada parte, é que é fonte das leis, constitui para todos os membros do Estado, em

relação a eles e a si próprio, a regra do justo e do injusto.” Assim, a vontade geral surge como a expressão direta

e autêntica do grupo, que também é seu constante objetivo, e jamais poderá contrariar os interesses do corpo ou

dos membros porquanto resultante de sua integração mútua. Identifica-se à lei e, enfim, à regra moral – trata-se

se, dúvida, do termo mais necessário ao pensamento de Rousseau que, por seu intermédio atinge a síntese final”

(MACHADO, 1968, p. 141). 56

Publicado em 1755. 57

Publicado em 1762. 58

José Oscar de Almeida Marques comenta na nota 12 do Livro Economia política que A concepção de seres

morais de Pufendorf certamente influenciou Rousseau: “Portanto, na minha opinião, a definição mais exata que

se pode dar de SERES MORAIS é a seguinte: trata-se de certos modos que os seres inteligentes acrescentam às

coisas naturais ou aos movimentos físicos, procurando restringir ou dirigir a liberdade das ações voluntárias do

homem, com o objetivo de colocar em ordem, conveniência e beleza na vida humana” (Samuel Pufendorf, Lê

Droit de Nature et dês Gens, trad. Jean Barbeyrac, Londres, Jean Nours, 1740, Liv. I, cap. III, 3, p.3. 59

“O Contrato Social nada mais é senão a transposição, para o plano da consciência, da realidade social e

formulação explicita, em regra racionalmente formulada e voluntariamente aceita, do processo natural da

formação dos grupos e da transfiguração do individuo pelas relações sociais” (MACHADO, 1968, p. 172).

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2.2 VONTADE GERAL

A vontade geral60

é apresentada por Rousseau na obra Do Contrato Social, como

alternativa possível para que o homem social mantenha-se livre, no sentido de não estar

submetido a nenhuma outra vontade externa, mas tão-só, à vontade geral, que é a sua própria.

Estudar o conceito de vontade geral em Rousseau significa defrontar-se com um dos conceitos

mais significativos da teoria política do autor. Nesse sentido Derathè afirma que “O contrato

Social continua sendo um dos textos mais difíceis da literatura política” (2009, p. 22).

Compreender o conceito de vontade geral significa apropriar-se de uma das principais chaves

de leitura do pensamento de Rousseau. A dificuldade de se conseguir compreender a

amplitude do pensamento de Rousseau no Contrato Social tem relação direta com a

dificuldade de se compreender o conceito de vontade geral61

, pois “o conceito fundamental do

Contrato é o da vontade geral – que, mesmo atingindo a máxima extensão, não sofre qualquer

alteração na forma, sentido ou conteúdo” (MACHADO, 1968, p. 157).

A partir de uma análise da essência da vida em comum, temos assim

definido na primeira parte do Contrato o princípio ideal – a vontade geral-

em função do qual deve ser pensado e organizado todo o funcionamento de

uma comunidade qualquer. Esse princípio é definido a partir da idéia de

uma síntese entre as exigências opostas e a Natureza e da Sociedade, entre a

força centrífuga da independência natural e a força centrípeta da

colaboração social (SALINAS FORTES, 1997, p. 115).

Ao abordar o presente tema, é necessário estudar os demais conceitos que se

relacionam com este. É inegável que a vontade geral62

encerra em si vários outros conceitos, e

60

Quanto a origem do termo “Vontade Geral”, Monteagudo informa: “Sabemos que a expressão “vontade geral”

foi cunhada por Pufendorf para fundar o pacto de submissão. No verbete Direito natural, ela tem função positiva

de definir o direito natural: “O direito natural nunca muda porque é relativo à vontade geral e ao desejo comum

de toda espécie” (2006, p.92). 61

“Sem dúvidas, é da vontade geral que se derivam os conceitos, menos genéricos, de lei e soberania, que ambos

vão fundar-se na oposição dos interesses coletivos aos individuais. Não obstante o intuito de reduzir a

originalidade rousseauniana a essa única renovação conceitual, corresponde, segundo cremos, a uma

ambigüidade crítica que, ao atribuir que Rousseau tenha renovado o conhecimento político, deseja contudo

preservar o universo de discurso dos velhos sistemas. Por maior que seja a importância da vontade geral – e

somos os primeiros a atribuir-lhe função capital no sistema- impõe-se admitir que tal noção representa o ponto

de transição entre o social e o político, ou, para repetir quanto até agora afirmamos, entre o conhecer e a

realidade social espontaneamente gerado pela própria condição humana. Só se pode, portanto, tomar a vontade

geral como principio à maneira do que sucede no Contrato, quando supomos conhecido tudo quanto no conceito

de vontade geral fica implícito acerca da natureza humana e da vida social[...] tomar, pois, o conceito de vontade

geral como se fora suficiente em si mesmo, e sobretudo apreender no sentido vulgar certos elementos

imprescindíveis a sua exata compreensão, tais como interesse particular e interesse público, equivale a

desconhecer toda a trama de conhecimentos em que se apóia essa noção essencial” (MACHADO, 1968, p. 181). 62

“Conformar as leis com a vontade geral, ajustar as vontades particulares à vontade geral, colocar a propriedade

sob essa mesma vontade geral são as máximas do governo, ou seja, as aplicações práticas ou praticáveis do

princípio teoricamente fixado. A vontade geral enquanto sintetiza o fundamento de todas as leis e também o

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que entendê-los é uma um requisito para a compreensão desta. Há muitos outros conceitos

filosóficos trabalhados por Rousseau, que estão atrelados a ela, não apenas no Do Contrato

Social, como também em outras obras do autor, como no Segundo Discurso, e no Emílio. Há

que se compreender o processo da formação moral ideal do homem apto a expressar a vontade

geral, analisar o espaço geográfico propício para o desenvolvimento da vontade geral e as

condições necessárias para a vontade geral possa se estabelecer (igualdade, liberdade, não

existência de sociedades parciais...) o que será objeto de estudo no presente trabalho.

Como os temas abordados pelo filósofo genebrino não raramente se repetem em

escritos diferentes, cabe ao estudioso analisar suas observações e compará-las, para só então,

proferir uma conclusão a respeito do pensamento filosófico rousseauniano, que exige

conhecimento e atenção não apenas para com a obra que é o objeto de análise, mas também, e

principalmente, exige a interpretação conjunta e sistematizada de todas as obras que se

referem ao tema destinado ao estudo, para que se possa construir uma interpretação fidedigna

de seu pensamento.

Rousseau no Do Contrato Social não separou o tema e esgotou-o. Não há um

capítulo que aborde e esgote todo o tema da vontade geral, que traga seu conceito de forma

explícita. Em nenhum dos seus quatro livros há um capítulo dedicado à conceituação da

vontade, sendo que o tema é abordado em dois breves capítulos (um deles no Livro 2 e outro

no Livro 4, com os respectivos títulos: “se pode errar a vontade geral” e “de como a vontade

geral é indestrutível”). O fato de não existir nenhum capítulo com um título dedicado à

explicação do que seja a vontade geral, e de que os que existem estarem dispostos em livros

diferentes, não significa que Rousseau não mantenha um pensamento sistemático, mas tão-só,

o expressa da forma não concentrada. Essa forma de escrita lhe rendeu a fama de ser

contraditório, fama essa, que ao que parece, não incomodou Rousseau, que no Emílio

manifestou-se: “prefiro ser homem de paradoxo a ser homem de preconceito” (2004, p. 91).

Assim, nos parece, que ao estudioso do pensamento rousseauniano cabe o cuidado

de encontrar fragmentos teóricos dispersos nos textos, e conectá-los, e então, a partir desses

fragmentos construir uma interpretação, através da edificação de um conceito.

critério de equidade e justiça que deve prevalecer na ausência das expressões legais, torna-se uma regra de

governo que traduz, em termos concretos, a síntese sócio-política, pois não temos aqui um artificialismo gratuito

em que o homem opera à margem do natural, mas uma construção humana em que a razão, mesmo quando

contraria expressamente tendências espontâneas do indivíduo ou do grupo, o faz mediante um processo

interessando, a um só tempo, a consciência individual do social e a consciência social do indivíduo. Quando,

equivalentemente vemos a vontade geral assumir a função de princípio ético fundamental[...] conviremos em

que, na adoção desse critério moral-social, se enuncia outra síntese, qual seja, a integração recíproca dos valores

individuais e sociais” (MACHADO, 1968, p. 147).

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Atingir um conceito pleno de vontade geral é tarefa difícil. A diluição da vontade

geral dentro do Do Contrato Social, contribui sobremaneira para que haja problemas acerca

da sua definição, o que em nada facilita o presente trabalho, representando o que se poderia

chamar de primeiro obstáculo no caminho da construção do conceito de vontade geral. O

segundo obstáculo reside no fato de que o próprio Rousseau conceitua-a primeiramente de

forma negativa (dizendo o que a vontade geral não é), e detém-se mais nessa forma de

conceituação negativa, para posteriormente informar de modo mais abreviado a conceituação

positiva (dizendo o que a vontade geral é). Dessa forma, para se compreender a amplitude

conceitual que a vontade geral encerra, é necessário o estudo das suas características, que

somadas as afirmações do que ela não é, e do que ela é, compõe o que se poderia chamar de

conceito amplo da vontade geral, o que será realizado na seqüência.

A primeira vez que Rousseau trata da vontade geral na obra Do Contrato Social, é

ainda no Livro 1, no capítulo 7, de título “O soberano”, onde afirma: “aquele que se recusar

obedecer a vontade geral a tanto será constrangido por todo o corpo, o que não significa senão

que o forçarão a ser livre” (ROUSSEAU, 1983, p. 36). Nota-se que Rousseau, nessa

passagem inicial a respeito da vontade geral, não a conceitua, mas apresenta uma

característica, qual seja, a obrigatoriedade.

A obrigatoriedade da vontade geral conduz ao raciocínio conseqüente de que ela é

também auto-executável, pois obrigatório é tudo aquilo que é forçoso, inevitável. Se a pessoa

está obrigada ao cumprimento da vontade geral, e age de outra forma, a vontade geral pode

ser exigida dela de forma coativa, isso significa que é auto-executável, que não precisa de

outra ordem para se fazer cumprir, porque poderá através de todo o corpo coagir quem não a

obedece a obedecê-la. Quem não age de acordo com a vontade geral é forçado a vir a agir.

Determinada pessoa que possui uma conduta contrária à vontade geral, poderá ser coagida a

agir de forma compatível com ela, mesmo que através de uma forma impositiva. Essa

afirmação, parece ser, em uma análise incipiente, contraditória com a afirmação feita por

Rousseau na obra Do Contrato Social, de que quer questionar se pode existir um modo de

manter os homens tão livres em sociedade, quanto antes. Inevitavelmente surge o seguinte

questionamento: como poderia o homem manter-se livre através da coação? Como uma

vontade obrigatória, de cumprimento compulsório pode ser forma de libertação? E não sendo

suficiente o aparente paradoxo, como poderia dizer que essas pessoas seriam forçadas a se

tornarem livres? O que pode ser afirmado de antemão é que o homem que se submete à

vontade geral, se submete tão-só a sua própria vontade, porque é a sua vontade que forma a

vontade do todo, e obedecendo à vontade do todo, estaria obedecendo somente a si. Tal

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afirmação será melhor desenvolvida no decorrer do presente tópico, por ora, o objetivo

principal é apresentação das características da vontade geral.

Passando para a análise do Livro 2, onde se encontra a maior concentração dos

fragmentos teóricos que tratam da vontade geral, Rousseau afirma que “A primeira e mais

importante conseqüência decorrente dos princípios até aqui estabelecidos é que só a vontade

geral pode dirigir as forças do Estado de acordo com a finalidade de sua instituição, que é o

bem comum” (ROUSSEAU, 1983, p.43). Essa passagem nos dá mais duas características da

vontade geral. Dizer que a vontade geral dirige as forças do Estado, é dizer que a vontade

geral conduz o Estado, pois ela é que o manobra, que o guia, que o transporta, porque tem as

forças do Estado sob seu comando. A vontade geral incorpora essas forças e se transforma em

uma força ainda maior, uma força soberana. Constatando todo o poder que pertence à vontade

geral, questiona-se: será que a vontade geral tudo pode? A resposta a esta questão é negativa:

não, a vontade geral não pode tudo! Essa é a segunda característica retirada do fragmento

acima descrito, qual seja, a vontade geral deve visar o bem comum. Para ser plena da força do

Estado a vontade geral tem que ter como principal interesse e como principal fim a busca do

bem comum, e por isso, não está à vontade geral autorizada a agir fora dos limites do bem

comum63

.

Desde que voltada para o bem comum a vontade geral é plena de força, mas como

se exterioriza? Como se manifesta essa vontade? Essas questões são respondidas por

Rousseau, no momento que este disserta sobre a soberania, e traz uma importante informação,

atrelada a vontade geral: “Afirmo, pois que a soberania, não sendo senão o exercício da

vontade geral, jamais pode alienar-se [...]” (ROUSSEAU, 1983, p. 43/44). O que Rousseau

quer dizer é que a soberania é a vontade geral posta em prática. A vontade geral se exterioriza

através da soberania, ou seja, a vontade geral na teoria é vontade, mas quando é aplicada ao

plano prático se transfigura em soberania, que seria uma espécie de face empírica da vontade

geral. É, portanto, correto afirmar que vontade geral (vista pela lado prático) é também

soberania, o que implica em dizer que a vontade geral tem primazia, tem autoridade, possui o

poder supremo, o que coaduna com a afirmação anterior de que a vontade geral é plena de

força, desde de que voltada para o bem comum, pois reúne as forças do Estado em si.

Outra característica da vontade geral, além da obrigatoriedade é que ela nem

sempre precisa ser unânime: “existe uma única lei, que pela sua natureza, exige

consentimento unânime – é o pacto social, por ser a associação civil o mais voluntário dos

63

Ver item 2.6.

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atos deste mundo” (ROUSSEAU, 1983, p. 120). Ao analisar a presente passagem, na qual

Rousseau afirma que a vontade geral não precisa de unanimidade surge a indagação de como

então a vontade geral seria obtida nesses casos. Quando das somas das diferenças de vontades

se consegue retirar conclusões do que seria a vontade geral por unanimidade, a compreensão

da vontade geral se torna mais acessível, no entanto como a vontade geral pode ser obtida

mesmo havendo divergências de opiniões dentro do corpo social? Como seria obtida a

vontade geral nos casos de não unanimidade?

Talvez em uma primeira análise, a resposta a tal questão seria de que quando não

há unanimidade, prevaleceria à vontade da maioria. No entanto, essa interpretação não é

possível, pois o próprio Rousseau afirma que a vontade geral não é vontade da maioria, e a

interpretação da vontade geral seria em muito simplificada se assim fosse, porque se

estabelecendo uma equação matemática para se saber entre os posicionamentos divergentes,

qual deles angaria mais votos, a vontade da maioria ser declarada vontade geral. A resposta

para a questão está no fato de que o que faz da vontade uma vontade geral não é o número de

votos, mas sim o interesse comum: “menos do que o número de votos, aquilo que generaliza a

vontade é o interesse comum que os une, pois nessa instituição cada um necessariamente se

submete às condições que impõe aos outros” (ROUSSEAU, 1983, p. 50).

Mesmo sendo na obra Do Contrato Social que o tema da vontade geral é abordado

com maior especificidade por Rousseau, não é suficiente observar unicamente a referida obra

para poder compreender a amplitude que a vontade geral representa no pensamento

rousseauniano. No Discurso sobre a Economia Política encontra-se já um esboço da noção de

vontade geral, inclusive diferenciando o soberano e o governo64

, que se mostra muito

apropriada para nossos objetivos nesse momento, tendo em vista que Rousseau já afirmava

que a vontade geral deve ser sempre consultada:

A vontade geral, fonte e suporte de todas as leis deve ser sempre consultada,

em caso de dúvida. Alguém pode perguntar-me: como se pode conhecer a

vontade geral nos casos em que ela não está clara? Será necessário reunir

toda a nação a cada acontecimento imprevisto? Quanto mais certo estiver o

governo que sua decisão expressa a vontade geral, menos será necessário

reuni-la, essa alternativa é impraticável num grande povo e raramente é

necessária quando o governo é bem intencionado, pois os chefes sabem que

a vontade geral é sempre partidária do interesse público, isto é, da equidade,

de maneira que é necessário apenas ser justo para se estar seguro de seguir a

vontade geral (ROUSSEAU, 1995, p. 31).

64

A diferenciação entre soberano e governo será realizada nos próximos itens deste trabalho.

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Quanto às características da vontade geral, é importante frisar que esta não pode

ser representada65

, o que seria um o requisito negativo da vontade geral, porque os interesses

do soberano podem ser modificados enquanto que os interesses de um suposto representante

poderiam se manter inalteráveis, ou vice-versa. Consequentemente pelo fato da vontade geral

não poder obedecer, o que poderia ocorrer quando o desejo da vontade geral é um e do

representante outro, não poderia ser representada, assim também é una, porque a vontade

geral é ela mesma ou é outra, e não poderia ser dividida.

A soberania é indivisível pela mesma razão por que é inalienável, pois a vontade ou

é geral, ou não o é; ou é a do corpo do povo, ou somente de uma parte. No primeiro

caso, essa vontade declarada é um ato de soberania e faz lei; no segundo não passa

de uma vontade particular, ou de um ato de magistratura, quando muito de um

decreto (ROUSSEAU, 1983, p. 44).

Nessa passagem Rousseau cita exemplo dos charlatães do Japão que jogando uma

criança aos pedaços para cima, esta cairia viva e completamente recomposta, e comparando

com tal passagem afirma “mais ou menos assim fazem-se os passes de mágica de nossos

políticos: depois de desmembrarem o corpo social, por uma sorte digna de feiras, reúnem as

peças, não se sabe como” (ROUSSEAU, 1983, p. 45).

Além da afirmação da indivisibilidade da soberania66

, na mesma passagem

Rousseau faz a conceituação negativa da vontade geral como anteriormente mencionado,

dizendo em uma mesma oportunidade que a vontade geral se diferencia da vontade particular

e dos atos de magistratura67

.

A vontade geral possui ligação intrínseca com o tema da liberdade, pois é através

da vontade geral que o homem social mantém-se livre. A vontade geral não é a criadora da

liberdade do homem, pois o homem nasce livre, e por isso não pode dar ao homem o que já é

65

“Veremos então, como já foi, aliás, sugerido nos parágrafos anteriores, que, tanto no espaço da ‘Cidade’

quanto no tempo da duração do corpo político, o problema da “conservação” da sociedade coloca-se em

diferentes planos. E nestes diferentes planos a ‘vontade geral’, regra suprema, princípio regulador, reclamará

uma série de mediações para se manifestar concretamente ou, por outras palavras, para se fazer ‘representar’

efetivamente. Quais seriam esses diferentes níveis ou planos? Em primeiro lugar, o nível da própria expressão da

vontade. Seria justamente o nível da “lei”, definida como declaração da vontade geral. O que é uma lei? É um

“ato” declaratório da própria vontade geral, o meio, o veículo de expressão da vontade geral. O que quer de uma

comunidade qualquer, que não pode por definição ser confundido com nenhuma das vontades particulares em

presença e que não pode pó definição ser “representado” no sentido hobbesiano, não pode por outro lado, deixar

de sê-lo. Por outras palavras, para chegar a se efetivar e exercer soberanamente sobre o conjunto dos cidadãos,

este querer, por mais irrepresentável que seja, deve necessariamente encontrar alguma definição em termos de

representação articulada através de signos e através de uma linguagem. Assim, como a partir de um determinado

momento a “ajuda do discurso” é indispensável, a partir do momento em que se trata de pôr em execução e fazer

respeitar a vontade geral, é necessária a ajuda da linguagem das leis, a fim de que a vontade soberana se torne

soberanamente manifesta a todos os membros da associação” (SALINAS FORTES, 1997, p. 116). 66

Ver item 2.5. 67

Ver item 2.8.

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dele. No sistema estabelecido por Rousseau a vontade geral é responsável por assegurar a

liberdade no estado civil. Mas como definir essa chave do pensamento político rousseauniano,

que é a vontade geral?

A principal definição dada por Rousseau sobre a vontade geral é uma conceituação

mista composta por elementos positivos e negativos. Rousseau, após ter dito que a vontade

geral não é vontade particular e não é magistratura, afirma que ela também não é vontade de

todos, mas acrescenta uma novidade: pela primeira vez se refere à vontade geral através de

um conceito positivo:

Há comumente muita diferença entre a vontade de todos e a vontade geral. Essa se

prende somente ao interesse comum; a outra, ao interesse privado e não passa de

uma soma das vontades particulares. Quando se retiram, porém, dessas mesmas

vontades, os a-mais e os a-menos que nela se destroem mutuamente, resta como

soma das diferenças, a vontade geral (ROUSSEAU, 1983, p. 46/47).

Esse é o conceito da vontade geral apresentado por Rousseau, formando por uma

combinação de conceituação positiva e negativa. A conceituação negativa, em certa medida,

pode ajudar na compreensão, mas tão-só, do que ela não é. Dizer que a vontade geral não é

isso, ou não é aquilo, contribui para que ela não seja confundida com os elementos aos quais

ela é comparada, no entanto, ela pode ser todo o restante de elementos que não foram

mencionados na comparação. Exemplificando, quando Rousseau afirma que a vontade geral

não é vontade particular, não é magistratura e não é vontade de todos, ela pode ser qualquer

outra coisa que não isso, ou seja, ficaria muito ainda por esclarecer. Então surge a necessidade

de uma conceituação positiva, e é exatamente o que Rousseau faz ao dizer que a vontade geral

é o resultante das somas das diferenças retiradas da vontade particular.

Nota-se que apesar de não se confundir com a vontade particular, a vontade geral

não se afasta da vontade particular por ser produto dela. Retirando-se das vontades

particulares os a-mais e os a-menos, ou seja, realizando um balanço das vontades particulares,

a vontade geral seria resultante daquelas. Seria então a vontade geral o substrato do que há de

comum nas vontades particulares, pois ao excluir o mais e o menos, o que restaria seria a

vontade geral, sem esquecer, por certo, que deve estar voltada para o bem comum e a

utilidade pública.

Pode-se aceitar a idéia de que a vontade geral seja então um substrato do que há de

comum nas vontades particulares, mas como se obter esse substrato? Exemplificativamente,

em assembléia poderia haver a proposta de aumentar tributos, com um determinado objetivo

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comum68

. Nessa assembléia poderia haver quem pudesse ser beneficiado ou violado em suas

vontades particulares, mas pode haver um ponto em que as vontades particulares

convergem69

, e é dessa convergência das vontades particulares que nasce a vontade geral.

Verifica-se que a definição da vontade geral como sendo um substrato das

vontades particulares, não ignora a diferença e a contrariedade existente dentro do corpo

social. Rousseau reafirma a diferença existente entre os pactuantes, e a necessidade dessa

diferença para poder ser retirada a vontade geral que não nasce unânime, mas se torna

unânime, o que nos parece testemunhar contra possíveis acusações de que a vontade geral

seria totalitária70

.

Tentar extrair um conceito propriamente dito de vontade geral é uma atividade

complexa, que exige a análise comparativa e cumulativa de todos os fragmentos sobre o tema

que se encontram dispersos na obra Do Contrato Social. Para se tentar chegar próximo de

toda a estrutura que compõe a vontade geral, segundo nosso autor, se faz necessário o estudo

das condições especiais para a vontade geral ser expressa. Uma dessas condições especiais

refere-se a aplicação da vontade geral à nações jovens e a pequenos Estados, é o que nos

ensina Starobinski:

ele estabelece uma norma, cujas possibilidades de êxito são, talvez, limitadas (pois

convém apenas às nações jovens e aos pequenos Estados, mas cuja validade

normativa é, ao contrário, universal. Todo sistema concreto pode ser-lhe

confrontado para ser julgado, e eventualmente, condenado na proporção de sua

discordância com o modelo ideal (STAROBINSKI, 1981, p. 307).

O direito político em Rousseau fundamenta-se na vontade geral, mas essa por sua

vez, depende de uma série de outros requisitos, como por exemplo, a não existência de

sociedades parciais, a limitação territorial do Estado, e a existência do legislador, e de um

soberano (povo), sendo que esses elementos são todos cumulativos. A vontade geral é

conceito central no pensamento político de Rousseau, tendo em vista que a consciência

individual deve estar adaptada à vontade geral para que haja o direito político:

A vontade geral como estância soberana é, assim, não apenas a idéia

reguladora- “regra de administração”- para se pensar a legitimidade da

68

Construção de um hospital, por exemplo. 69

Todos podem estar convencidos particularmente da necessidade de existência de um hospital. 70

“Rousseau toma o partido dos marginalizados, dos rebeldes, dos artistas incompreendidos. É isso que faz dele

o fundador do romantismo e do individualismo selvagem, assim como de tantos outros movimentos do século

XIX – do socialismo e do comunismo, do autoritarismo e do nacionalismo, do liberalismo democrático e do

anarquismo, de praticamente tudo salvo aquilo que pode ser designado por civilização liberal, com o seu

obstinado amor pela cultura, nos dois séculos que se seguiram” (BERLIN, 2005, p. 65).

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ordem política, mas é também, ou deveria ser, tal como o imperativo

kantiano, a idéia reguladora do comportamento de cada membro da

associação. Se todos os membros da associação fossem soberanamente

governados por esta idéia, teríamos o estado perfeito onde encontrariam

solução as antinomias da vida política (SALINAS FORTES, 1997, p. 112).

Assim, recapitulado todas as características que foram até agora estudadas, o

conceito de vontade geral fornecido na obra Do Contrato Social, é o de que a vontade geral é

obrigatória, de cumprimento compulsório, é limitadora da liberdade em sociedade, dirige

todas as forças do Estado de acordo com a finalidade pública e com o bem comum. Tem na

soberania sua face prática ou empírica e por se exteriorizar na soberania, possui as

características desta, quais sejam, indivisibilidade e inalienabilidade, está sempre certa, não é

magistratura, não é vontade particular, não é vontade de todos, não é vontade da maioria, é

sim um substrato do que há de comum nas vontades particulares, extraindo dessas os a-mais e

a-menos.

2.3 LEI E LIBERDADE CIVIL

Encontrar uma forma de governo que coloque as leis acima do homem, eis o

objetivo de Rousseau, que afirma no Emílio:

Nenhuma sociedade pode existir sem troca, nenhuma troca sem medida

comum, e nenhuma medida comum sem igualdade. Assim, toda a sociedade

tem por primeira lei alguma igualdade convencional, quer entre os homens,

quer entre as coisas. A igualdade convencional entre os homens, muito

diferente da igualdade natural, torna necessário o direito positivo, isto é, o

governo e as leis (ROUSSEAU, 2004, p. 252).

Nas Cartas escritas da montanha a afirmação da liberdade fundamentada na lei é

ainda mais contundente:

Não há, pois, liberdade sem leis, nem onde alguém esteja acima das leis:

pois até mesmo no estado de natureza o homem só é livre de acordo com a

lei natural que comanda a todos. Um povo livre obedece, mas não serve.

Tem chefes e não senhores. Obedece às leis, mas só a elas, e é pela força

das leis que não obedece aos homens [...] um povo livre, qualquer que seja a

forma de governo, quando naquele que o governa não vê o homem, mas o

órgão da lei. Em suma, a liberdade segue sempre o destino das leis, ela reina

ou perece com elas, não conheço nada que seja mais certo do que isso

(ROUSSEAU, 2006, p. 372).

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Para Rousseau, somente haverá liberdade na medida em que esta é limitada pela

lei, lei essa que é expressão da vontade geral, extraindo-se então a conclusão de que a vontade

geral, através da lei, é fonte de liberdade e fonte de limitação de liberdade simultaneamente.

Embora a qualidade de ambas seja diferente, enquanto fonte de liberdade faz com o homem

obedeça sem se submeter a outro, sendo livre porque obedece somente à lei, que ele mesmo

fez, então obedece somente a si, e enquanto limitadora da liberdade, a lei é imperativa e de

cumprimento compulsório, o homem deve obediência a ela. Se descumprir a lei, ou agir fora

de seus limites, sofrerá sanções previstas na própria lei.

Quando Rousseau anuncia na obra Do Contrato Social que quer indagar se há a

possibilidade dos homens permanecerem em sociedade tão livres quanto antes71

, isso não

significa que a liberdade que o filósofo genebrino buscava era a liberdade natural, ilimitada. O

homem social não pode manter a liberdade natural. A liberdade natural seria então substituída

por uma liberdade convencional, que manteria o homem igualmente livre, mas dentro de uma

liberdade limitada pela vontade geral, como por exemplo, o respeito devido no estado de

sociedade ao direito de propriedade adquirido pelo trabalho.

O homem que vive em sociedade não é absolutamente livre, porque a liberdade

absoluta seria a escravidão, uma vez que sendo os homens sociais seres desejosos, se

pudessem concretizar todos seus desejos, sem limitações, acabariam afetando os demais, que

conseqüentemente sofreriam a incidência de tais atitudes. Assim, para Rousseau, só haveria

liberdade na lei, que asseguraria que todos fossem livres para atuarem dentro de limites, para

não afetarem os demais.

A liberdade que é inata ao homem é perdida no convívio social. O homem social

se encontra aprisionado e é justamente uma forma de libertar esse homem, mantendo-o em

sociedade que é proposta no Do Contrato Social.

O homem do estado civil, por sua vez, não possui mais a mesma liberdade do

estado natural, porque se tornou um ser dependente dos demais de sua espécie. O homem civil

já não consegue mais sobreviver sem a ajuda de seus semelhantes. Apesar de perder a

liberdade natural, o homem civil ganha a liberdade convencional: “o que o homem perde pelo

contrato social é a liberdade natural e um direito ilimitado a tudo quanto aventura e pode

alcançar. O que ganha é a liberdade civil” (ROUSSEAU, 1983, p.36). A liberdade natural é

71

“Tão livre quanto antes, sem dúvida, porém em uma diversa forma de liberdade, pois agora em lugar da

liberdade natural, a confundir-se com a irrestrição física, temos uma liberdade civil, uma liberdade

convencionada que é a segurança que estamos obrigados exatamente àquilo a que estão obrigados todos os

demais e a nada mais além disso. Eis onde liberdade e igualdade se consubstanciam numa mesma condição civil

instituída em defesa do homem [..]” (MACHADO, 1968, p. 45).

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substituída pela liberdade civil que passará a reger o homem, limitando-o. Há apenas um caso,

em que o homem social, poderá perder sua liberdade convencional e retomar a sua liberdade

natural: “quando, violando-se o pacto social, cada um volta-se a seus primeiros direitos e

retoma sua liberdade natural, perdendo a liberdade convencional pela qual renunciara àquela”

(ROUSSEAU, 1983, p.32).

A retomada da liberdade natural, portanto, é vista por Rousseau como uma espécie

de penalidade a aquele que viola as cláusulas do pacto, e que se coloca novamente em

liberdade natural. Depois de instituído o pacto social legítimo, não há vantagens para o

pactuante em descumprir tal pacto, porque perderá a liberdade convencional e a segurança do

pacto social. Perder a liberdade convencional significa para Rousseau perder o maior bem: O

primeiro de todos os bens não é a autoridade, mas a liberdade (ROUSSEAU, 2004, p. 81).

O homem civil não pode tudo, sua liberdade está vinculada, sendo que a vontade

geral é limitadora dessa liberdade: “[...]entre a liberdade natural que só conhece limites nas

forças do indivíduo, e a liberdade civil, que se limita pela vontade geral[...]” (ROUSSEAU,

1983, p.36). A vontade geral reduz determinadas proporções da liberdade, limitando-a, pois é

através da vontade geral que as leis são aprovadas, e é através das leis que se estabelece o que

é permitido ou proibido fazer, assim sendo, a vontade geral limita a liberdade dos que vivem

em sociedade, e estabelece os limites de atuação de cada um dos súditos livres perante os

demais, bem como de cada um deles perante o Estado, e do Estado perante todos.

O corpo se movimenta porque tem vontade, e tem vontade porque é livre.

Essa liberdade implica que seu movimento não é mecânico como o das

engrenagens de um relógio. O ideal seria que o movimento de um corpo

político fosse previsível, mas isso não é possível, porque o corpo é livre e,

em segundo lugar, não é desejável, porque anularia a liberdade e a própria

existência do corpo enquanto corpo moral. Ou seja, a liberdade é sempre

condição da existência e objetivo da permanência (MONTEGUDO, 2006,

p. 135).

Dessa forma, a liberdade no estado social é limitada pela lei, que assim é através

da vontade geral. As leis são necessárias para se estabelecer os limites, sendo que quem

aprova as leis é o soberano. Essa forma de atuação do povo soberano, e o fato deste ser o

responsável por dar eficácia e imperatividade às leis, é a única forma que o coletivo tem de

participar da política, não como mero espectador, mas sim como agente (autor).

Também no teatro da coletividade, se acaso despertamos os poderes da

separação representativa, corremos o risco da cisão e da servidão. A

participação na criação das leis coletivas seria nossa única possibilidade de

salvação. Como simples “espectadores”, seremos pura e simplesmente

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esmagados. Enquanto atores em uma festa coletiva, temos alguma chance

de exercitar nossa liberdade em toda a sua plenitude: que a festa sirva de

paradigma, pois, para a própria ordenação global da vida política

(SALINAS FROTES, 1997, p. 191).

Rousseau afirma no Do Contrato Social: “São, pois, necessárias convenções e leis

para unir os direitos ao deveres, e conduzir a justiça ao seu objetivo” (ROUSSEAU, 1983, p.

54). Mas o que é afinal uma lei para Rousseau? No Livro 2, da mesma obra ele afirma:

Quando todo o povo estatui algo para todo o povo, só considera a si mesmo

e, caso se estabeleça então uma relação, será entre todo objeto sob um certo

ponto de vista e todo o objeto sob um outro ponto de vista,72

sem qualquer

divisão do todo. Então, a matéria sobre a qual se estatui é geral como a

vontade que estatui. A esse ato dou o nome de lei (ROUSSEAU, 1983,

p.54).

Nota-se, pela citação acima descrita, que a conceituação da lei passa

obrigatoriamente pelas expressões povo, todo e vontade geral. A instituição da lei necessita

desses elementos. O povo que é o soberano será aquele que dirá se a proposta que lhe é

apresentada como sendo uma proposta de lei está ou não de acordo com o todo do pacto

social, e se a matéria da qual a lei trata é geral como a vontade que deverá proclamá-la.

Somente através das leis que a igualdade pode ser assegurada no estado civil, porque a lei é a

única garantia que os pactuantes têm de não serem subjugados, de não terem de obedecer a

um indivíduo. Assim, o homem poderá ter assegurado no estado social a justiça e a liberdade.

A lei é considerada por Rousseau como sendo a mais sublime de todas as instituições

humanas, e tem uma importância muito grande em seu pensamento político, tão bem retratado

no Discurso sobre a Economia Política, que vale a pena citá-lo:

Não importa quanto sejam os sofismas com que se pode colorir a situação; o

certo é que se alguém pode reprimir minha vontade, não sou mais livre, e

deixo de ser senhor de meus bens, se qualquer outra pessoa pode atingi-los.

Essa dificuldade que pode parecer instransponível foi superada junto com a

primeira, através da mais sublime de todas as instituições humanas ou,

principalmente, por uma inspiração celeste que ensinou o homem neste

mundo a imitar os decretos imutáveis da divindade. Que arte inconcebível é

essa por meio da qual se pode subjugar os homens para torná-los livres;

empregar a serviço do Estado os bens, os braços, e mesmo a vida de todos

os seus membros, sem reprimi-los e sem consultá-los; acorrentar sua

vontade através de sua própria confissão; fazer valer seu consentimento

contra sua recusa e forçá-los a se punirem a si próprios, quando fazem o que

72

Lourival Gomes Machado em nota de rodapé comenta: “os dois pontos de vista são o ponto de vista dos

membros do soberano, ao estatuírem a lei, e o ponto de vista dos súditos, que a obedecerão, tendo-se presente

que membros do soberano e súditos são os mesmos indivíduos que constituírem o corpo político” (1963, p.54 –

nota de rodapé, nº 54).

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não queriam? Como se pode, ao mesmo tempo, fazer que obedeçam e que

ninguém comande, que sirvam e que não tenham senhor, sendo de fato mais

livres sob uma aparente sujeição, onde ninguém perde parte da sua

liberdade, a não ser naquilo que pode se prejudicar a do outro? A lei é a

única responsável por esses prodígios. Os homens devem apenas a leis a

justiça e a liberdade [...] É essa voz celeste que dita a cada cidadão os

preceitos da razão pública e ensina-o a agir de acordo com as máximas de

seu próprio juízo e a não entrar em contradição consigo mesmo. Da mesma

forma, é tão somente a ela que os chefes devem fazer falar quando

comandam, porque se um homem pretende submeter um outro à sua

vontade particular, independentemente das leis, deixa por um instante o

estado de sociedade e se coloca em relação a ele em um estado puro de

natureza, onde a obediência é prescrita pela necessidade (ROUSSEAU,

1995, p. 28-9).

Essa passagem é central para compreender o significado da lei para Rousseau. A

lei legítima é fundamental para se manter no estado social a justiça e liberdade. Somente a

vontade geral que é anterior às leis pode legitimá-las, e estas então estariam aptas a comandar

os homens no estado social. Um homem não pode submeter outro à revelia da lei, porque se

assim agir deixará nesse instante o estado social. A lei deve sempre ter um objetivo geral e

abstrato, jamais poderá pronunciar-se a respeito de uma ação particular. A lei não poderá

nomear cidadãos instituindo privilégios a estes. Ninguém poderá estar acima da lei, todos

estão subordinados a ela, inclusive o Príncipe. Questiona-se: a lei poderá ser injusta?

Rousseau responde: não se deve mais perguntar [...] se a lei poderá ser injusta, pois ninguém é

injusto consigo mesmo (ROUSSEAU, 1983, p. 55).

No mundo civil (ou civilizado), pelo qual Rousseau, ao contrário dos

homens de seu tempo, não tem muita admiração, as leis são “muletas” para

os homens corrompidos; elas podem libertá-los de seus grilhões, pois em

seu dever-ser, elas tem suficiente pureza formal para traçar as vias da

liberdade e da igualdade, portanto, da justiça: como tais, instituem o direito,

cuja obra prodigiosa é forçar o homem a ser livre e justo. Justiça e liberdade

se firmam ou retrocedem com o direito dos Estados: segundo Rousseau, de

que outra maneira poderia ser, já que, ao contrário de Montesquieu, ele

declara que “a lei é anterior a justiça e não a justiça à lei? (GOYARD-

FABRE, 2002-b, p. 83).

As leis aprovadas pela vontade geral, que obedecem aos critérios de legitimidade,

são formas de libertação do homem em sociedade, e capazes de faze-lo livre. É através delas

que se resolve o problema da obediência civil. Ao obedecer às leis, ao obedecer à vontade

geral expressa através da lei, o súdito (quando obedece à lei) que também é soberano (quando

aprova a lei) obedece tão-somente a si mesmo. Partindo do princípio que ninguém tem por

natureza o direito de comandar os outros, os homens são submetidos a uma autoridade

comum (que é a da lei), e se submetem de forma voluntária a uma autoridade política.

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Sendo assim, se ninguém está por natureza submetido à autoridade de

outrem, é evidente que o direito de comandar, a soberania ou o imperium,

só pode nascer de uma convenção ou de um contrato pelo qual os

particulares se despojam, em favor de um homem, ou de uma assembléia,

do direito natural que eles tem de dispor plenamente de sua liberdade e de

suas forças. A única autoridade legítima é aquela que está fundada no

consentimento dos que a ela estão submetidos. Qualquer outra autoridade é

apenas um abuso, uma coerção e se reduz ao direito, ou mais precisamente,

à lei do mais forte. É nesse principio individualista, sobre o qual Puferndorf

e Locke não se cansam de insistir, que repousa toda a teoria do contrato

social (DERATHE, 2009, p. 199).

Dentro do Estado poderão existir três espécies de lei, que podem ser assim

classificadas: a lei política que existe na relação do soberano com o Estado, a lei civil que

existe na relação entre os membros, e a relação do homem com a lei, que é a lei criminal. É o

que afirma Machado:

A relação do todo com o todo, ou do soberano com o Estado, dá-nos a lei

política, enquanto a relação dos membros entre si, ou com o corpo inteiro

estabelece a lei civil, e, afinal, a relação entre o homem e a lei, que é

novidade necessária à própria organização, impõe-nos a lei criminal

(MACHADO, 1968, p. 179).

A lei, mais sublime de todas as instituições humanas, dirigida a todos de forma

geral e abstrata, sem estabelecer privilégios a quem quer que seja, estando todos submetidos a

seu império, inclusive o príncipe ou governante, proposta pelo legislador, aprovada pelo povo

soberano em assembléia, estando de acordo com a vontade geral, pode ser classificada quanto

à relação que possui com seus sujeitos (política, civil e criminal). Essas três espécies de leis

possuem o mesmo processo de elaboração e a mesma eficácia, sendo assim classificadas

apenas para facilitar a compreensão das formas de lei que podem estar presente dentro do

Estado.

No entanto, é de salutar importância fazer referência ao que o próprio Rousseau

denominou de quarta espécie de lei, ou então de outra fonte do direito político que é

fundamental para se compreender todo o pensamento de Rousseau, não somente seu

pensamento político, a saber, o costume. No Discurso sobre a Economia Política, Rousseau

esclarece que:

Se os políticos não estivessem tão cegos por sua ambição, perceberiam

como é possível manter qualquer estabelecimento – não importa qual-

segundo o espírito de sua instituição, se não é dirigido pela lei do dever;

saberiam que o maior fundamento da autoridade política está no coração

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dos cidadãos e que nada pode superar os costumes na manutenção do

governo (ROUSSEAU, 1995, p. 32).

A lei escrita no coração dos cidadãos, ou seja, os costumes de um povo são os

melhores e mais eficazes fundamentos da autoridade. A importância dos costumes é

constatada quando em comparação com a vontade geral. Para que a vontade geral seja

soberana, o povo soberano, que forma o corpo político deve estar disposto de tal forma que

esteja convencido dessa vontade. Não basta que seja proferida através da lei, e que seja

executada por algum órgão do governo. A vontade geral deve estar disposta dentro do

indivíduo, dentro do corpo político. Os indivíduos devem estar conformados à vontade geral.

Mas como isso seria possível? Como fazer com que cada indivíduo tenha a vontade geral

inscrita dentro de seu próprio coração, e que esteja conformado a ela? Salinas Fortes resolve

esta questão, afirmando que a resposta está, sobretudo na educação “É necessário que a

natureza de cada indivíduo venha a ser suprida pela mediação da educação, que não apenas

informa o entendimento, mas conforma as vontades individuais de maneira a fazê-las aptas a

produzir a comunidade” (1997, p. 118).

Salinas Fortes indica a educação como forma de realizar a transformação pela qual

os membros da associação devem passar a fim de se tornarem aptos a pensar coletivamente.

Quando os membros pactuam a alienação total, é através dela que o corpo político pode se

constituir e se conformar. É através dessa alienação que o corpo se mantém compacto, e se

constitui de forma comunitária. Para tanto o povo deve estar com seus costumes conformados

de tal forma que aceitem as condições do pacto social. Assim, os costumes do povo não

podem estar corrompidos a ponto desse povo não se comprometer em pactuar. A corrupção

dos costumes, segundo o nosso autor, é a incapacidade de pensar na finalidade pública e no

bem comum em primeiro lugar. Aquele que coloca seus interesses particulares em primeiro

lugar, em detrimento do interesse público está moralmente corrompido e é incapaz de fazer

leis legítimas. Dessa forma, dos costumes dependem todas as outras leis, porque nenhuma

outra lei legítima será instituída se os costumes estiverem corrompidos, pois o pacto civil

legítimo não seria possível.

Os usos e costumes de um povo podem ser considerados como a lei moral inscrita

nos corações dos homens e são a principal fonte da lei, tendo em vista que quando as leis de

um povo envelhecem, elas são renovadas, com fundamento nessa lei inscrita em seus

corações. No sistema político idealizado por Rousseau é o próprio povo que se dá as leis, que

as aprova, e que faz sua própria constituição, e assim o faz com fundamento em sua opinião,

em seus usos e costumes. Segundo Rousseau trata-se de uma lei gravada, não no bronze ou no

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mármore, mas no coração dos pactuantes “a mais importante de todas que não grava nem

sobre o mármore nem sobre o bronze, mas no coração dos cidadãos” (ROUSSEAU, 1983, p.

69). Todo o sucesso das demais leis depende da dos usos e costumes do povo.

São as leis não escritas que formam os costumes. As regras oriundas desse modo

peculiar de viver, de interpretar as relações, é o que se pode denominar de direito

consuetudinário. A forma como determinado povo vive, a forma como se estabelecem as

relações humanas, a forma de interpretar situações variadas, a forma de pensar, quando

idênticos dentro do povo, formam o que se pode denominar de costumes, ou seja o que é

apreciado, valorizado pelos cidadãos é visto como algo que deve ser incentivado pelas leis

escritas, enquanto o que é desprezado, ou o que é valorado de forma negativa, é através das

leis positivas repelido, afastado, punido. A legislação, portanto é inspirada nas regras morais.

É preciso que as opiniões e as particularidades de um povo sejam levadas em consideração

quando feitas as leis:

Os costumes e as opiniões têm força porque, embora não sendo “naturais” e

decorrendo da vida em sociedade, estão ainda bastante próximos da

natureza. Melhor do que isso: são de alguma maneira a “natureza” artificial

de um determinado povo. O hábito é aqui efetivamente uma segunda

natureza, assim como é efetivamente uma outra tradução da vontade geral

(SALINAS FORNTES, 1997, p.121).

Se as leis, para tornarem-se legítimas devem ser declaradas pela vontade geral, e

considerando que a opinião, e que os costumes são também uma declaração dessa mesma

vontade, podem então ser considerados como uma espécie de lei, e atuam desta forma, até

mesmo de forma mais eficaz, pois deles todas as outras leis retiram sua força. Mas em que

constituem exatamente os costumes? Como saber identificá-los? Seriam juízos, opiniões,

avaliações? O que faz de um costume um costume? Se a opinião pode ser considerada como

juízos formandos a respeito de determinado tema, Salinas Fortes afirma que os “costumes e

hábitos, seriam por outro lado, o mesmo que a opinião, vista sob um determinado aspecto; ou

seja, vista sob o aspecto da ação, do modo de agir: o costume é uma crença vivida

efetivamente” (1997, p. 122). Para confirmar tal passagem, Salinas Fortes cita o exemplo dos

duelos, que são utilizados por determinados povos como sendo forma de defender a honra

com a própria vida, esse seria um dos exemplos de costumes.

Mas outra questão surge: como são fundamentados os costumes? Como um

determinado povo chega à conclusão de que algumas ações deverão ser valoradas

positivamente e incentivadas, enquanto outras deverão ser afastadas e evitadas? Qual seria o

critério para tanto? Como saber o que deverá ser valorado de forma positiva ou negativa? Ou

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melhor, o que fará com que o homem reconheça o que deverá ser evitado e o que deverá ser

incentivado nos demais? Outra vez, Salinas Fortes antecipa-se e responde, com sua

interpretação do pensamento político de Rousseau:

No homem primitivo a paixão dominante é o amor-de-si, acompanhada da

pieté, como vimos. Com a passagem para o estado civil, esta paixão tende

perigosamente a tornar amor-próprio. Mas, antes que isso ocorra, a grande

alteração é a que produz a cisão entre o interior e o exterior e a grande

paixão que se constitui é a de ser estimado pelo outro. Essa é a principal

mola propulsora da vida em sociedade; é ela a paixão social propriamente

dita. É sobre ela igualmente que vão se assentar os costumes, pois os

indivíduos passarão a valorizar a estima daqueles com quem convivem e

agirão de acordo com os padrões de cada comunidade (1997, p. 123).

A resposta, portanto, está na estima. O que faz com que o indivíduo seja estimado

pelos demais é o que será valorizado positivamente, em sentido contrário, o que faz com que

o indivíduo seja preterido será valorizado negativamente, e deverá ser afastado. Assim, os

costumes são formados com fundamento na estima dos indivíduos. Cada povo estima mais

um bem que outro, e valoriza de formas diferentes determinadas características. Isso faz com

que as leis sejam diferentes, conforme os valores dos povos que as criam, nesse sentido:

“Como dissemos a mola propulsora da vida em sociedade, que acaba por converter o amor de

si em amor-próprio, é a tirania da opinião. Viver em sociedade, nestas condições, é dar-se em

espetáculo para o outro” (SALINAS FORTES, 1997, p. 126), conforme já citado.

Assim, a tirania da opinião não tem só um lado negativo que seria a conversão do

amor de si em amor-próprio, ela também possui um lado positivo que é a instituição dos

costumes através da opinião. Não há como ignorar que a vida em sociedade faz com que o

juízo e a opinião alheia sejam considerados, e utilizando-se desse recurso artificial formado

pela vida social, que é a estima alheia, é possível que se proponha a um povo que determinado

bem seja mais estimado do que tudo. Isso se dá através de uma educação para tanto, e é nesse

sentido que a educação conformará as vontades individuais e fará possível a comunidade.

Assim, o interesse geral poderá prevalecer sobre tendências egoístas através, por exemplo, do

amor à pátria:

Devemos fazer com que os indivíduos amem a pátria, amem a coisa pública

e amem a seus compatriotas. Isso supõe um aprendizado, já que a tendência

natural seria no sentido do amor-próprio. Ora, como a tendência no sentido

de se distinguir e de aparecer é própria da vida em sociedade, deve ela ser

aproveitada e a distinção será distinção como patriota (SALINAS FORTES,

1997, p. 130).

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As características do cidadão são sempre apresentadas quando relativas à pátria,

por isso que o cosmopolitismo, que é a capacidade do homem ver-se como membro de uma

só pátria, parte de apenas um todo, não serve para a aplicação ao cidadão:

Retomando os textos de Rousseau relativos ao patriotismo e ao

cosmopolitismo, nota-se que a valoração é feita segundo planos. Por isso

mesmo é relativa. Rousseau, quando pensa no cidadão, sempre o descreve

em relação à pátria. Neste contexto, a ótica de consideração do homem

natural ou do homem cosmopolita não é adequada para realçar as virtudes

específicas do cidadão. Em uma passagem do Emile, opera com clareza, as

duas óticas: a do homem natural, um inteiro que só tem relação consigo e

com seus semelhantes – a perspectiva do cosmopolitismo - e o homem civil

e o cidadão- cujos valores só fazem sentido em relação ao corpo social.

(GARCIA, 1999, p. 61-2).

Os costumes e opiniões de um povo são uma espécie de lei natural, sobre os quais

as demais leis são fundamentadas. Esses costumes podem ser inatos, ou seja, naturalmente um

povo pode valorar alguns atributos humanos, mas também podem sofrer influência externa,

ou seja, um povo poderá ser educado para valorizar outros bens que sejam importantes para

manter a coesão do pacto. Na Carta a D´Alambert, Rousseau afirma que existem somente três

formas de se agir sobre os costumes humanos: “Conheço apenas três espécies de

instrumentos, como o auxilio dos quais poderíamos agir sobre os costumes de um povo; a

saber, a força das leis; o império da opinião e os atrativos do prazer (1993, p. 74). O processo

de como um povo forma seus costumes, apesar de muito interessante, não será objeto de

estudo no presente trabalho, tendo em vista que, ao nosso ver, não contribuirá para a análise

dos fundamentos de legitimidade do pensamento político de Rousseau.

2.4 SOBERANO

Para Rousseau, o povo é o único legítimo soberano, o fundamento último do poder

soberano e de sua legitimidade. É o agente que forma a vontade geral, porque é dele a tarefa

de expressá-la quando se encontra reunido em assembléia (soberano). O povo é um ente

coletivo, que é formado pelo conjunto de indivíduos que o compõe. Esses indivíduos são, por

certo, necessários para que a vontade geral ocorra, pois sem indivíduos não há como se formar

o soberano.

O povo pode ser considerado como o primeiro requisito da vontade geral, porque

é somente através dele que ela pode ser expressa. O povo apto a expressar a vontade geral não

deve ser corrompido a tal ponto, que impeça o estabelecimento dessa vontade. A instituição

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da vontade geral visa possibilitar o estabelecimento da liberdade para o homem que vive em

sociedade, livrando-o da submissão aos seus semelhantes, fundamentando-se na igualdade. O

povo que quer ser soberano para expressar a vontade geral, deve ter como objetivo a

igualdade. Um povo muito avarento, muito desejoso do acúmulo de riquezas, pode ter

dificuldades para admitir a igualdade entre seus membros. “É verdade que, para Rousseau,

existem povos mais ou menos bem constituídos conforme se aproximem da natureza e das

normas ideais capazes de medir o homem do homem a partir do homem da natureza”

(GARCIA, 1999, p. 151).

O povo não pode possuir vícios que estejam tão assimilados a ponto de não mais

os reconhecer como tais, ou ser incapaz de desejar modificações. O povo não deve estar

corrompido de forma que não possa mais deixar de sê-lo. Assim, Rousseau aconselha que o

povo deva ser jovem, sem que os preconceitos estejam estabelecidos de maneira irreversível:

A maioria dos povos, como os homens, só são dóceis na juventude, envelhecendo,

tornam-se incorrigíveis. Desde que se estabeleçam os costumes e se enraízam os

preconceitos, constitui empresa perigosa e vã querer reformá-los. O povo nem

sequer admite que se toque em seus males para destruí-los, como aqueles doentes,

tolos e sem coragem, que tremem em presença do médico (ROUSSEAU, 1983, p.

60-61).

A analogia como o doente é a expressão exata de como Rousseau enxerga o povo

viciado. Tanto o povo jovem, quanto o envelhecido que apresenta vícios e preconceitos, que

se encontram corrompido estão doentes. A grande diferença é que o povo envelhecido não

deseja ajuda, e sequer admite que seus males sejam tocados, sendo que quem tentar ajudá-lo

correrá perigo. É como se o povo envelhecido não acreditasse mais na cura de seus males, ou

não tivesse mais ânimo ou disposição para enfrentá-los, ou já estivesse tão acostumado com

eles, que sequer os percebe, e, portanto não admite que fossem tratados. Por outro lado, o

povo jovem aceita a ajuda, quer tratar seus males, porque acredita na cura, porque não é um

doente tolo e sem coragem. Assim, povos jovens são mais adequados para se estabelecer a

vontade geral. Mas o que determina se um povo é jovem ou não? Rousseau ressalta que

“juventude não é infância” (ROUSSSEAU, 1983, p. 61), o que significa que não precisa ser

um povo novo, recém estabelecido, ou que esteja iniciando sua vida social. A juventude pode

significar o mesmo que maturidade. O povo ideal não é um povo infante, de todo ingênuo,

sem vícios, mas sim de um povo com certa maturidade, mas desde que não possua vícios

arraigados.

Outra questão surge: e como reconhecer a maturidade de um povo? O próprio

Rousseau admite que a resposta a essa questão não é fácil, porque os povos podem apresentar

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diferenças entre si quanto ao momento em que a maturidade é adquirida, e que um erro com

relação a existência dessa maturidade pode colocar tudo a perder: “a maturidade de um povo

nem sempre, porém, é facilmente reconhecível, e caso seja antecipada, põe-se a obra a perder.

Certo povo já ao nascer é disciplinável, um outro não o é senão ao fim de dez séculos [...]”

(ROUSSEAU, 1983, p. 61). Assim, quando Rousseau se refere à juventude de um povo,

comparando-o com a juventude humana, e afirmando que os jovens são mais dóceis, não se

trata por certo de uma questão cronológica. O que vai dizer se um povo é jovem, não é o

tempo de existência dele, mas a maturidade que ele possui para ser capaz de receber leis, e

dizer se elas estão ou não de acordo com a vontade geral.

É o povo que reunido em assembléia é o soberano legítimo, e não se pode

esquecer, que o povo é composto por um conjunto de indivíduos que estão ligados por laços

históricos e culturais, por uma língua, por costumes e tradições e é claro, por um determinado

território. Esses indivíduos que compõem o povo, também precisam possuir características

especiais para serem aptos a compor o soberano, e por conseqüência, expressarem a vontade

geral.

Ao contrário do que acontece com o legislador, e com o povo que são abordados

por Rousseau na obra Do Contrato Social, nada é mencionado sobre as características

necessárias ao indivíduo membro do povo na referida obra. O porquê dessa ausência pode ser

atribuído ao fato de que o Do Contrato Social é uma obra política, que tem como objetivo

tratar da composição do corpo político, das coisas públicas, das formas de Estado e governo, e

não de características particulares, individuais dos homens. Aqueles que acreditam em uma

relação entre as obras de Rousseau, defendem que as características necessárias ao homem

apto a proclamar a vontade geral se encontram no Emílio. O personagem que dá nome ao

livro, seria o modelo ideal de homem para firmar o pacto social.

Rousseau nas Cartas Escritas da Montanha já afirmava a necessidade de um

soberano “Em todo o Estado político, é preciso de uma potência suprema, um centro onde

tudo esteja relacionado, um princípio de onde tudo derive, um soberano que possa tudo”

(ROUSSEAU, 2006, p.332)73

. No Manuscrito de Genebra, afirmava que esse soberano não

poderia ser um simples indivíduo, porque o soberano é por sua natureza uma pessoa moral,

que só tem uma existência abstrata e coletiva, e que a idéia que vinculamos a essa palavra não

pode ser ligada à de simples indivíduo. Nesse sentido Derathè comenta: “O soberano em

Rousseau não é o conjunto dos cidadãos, mas a assembléia do povo. O povo soberano é o

73

Carta VII.

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povo reunido” (2009, p. 173).74

De fato, Rousseau não dirá outra coisa no Contrato Social.

Para ele, a dissolução do Estado ocorre quando o príncipe usurpa o poder do soberano: “No

instante em que o governo usurpa a soberania, diz ele, o pacto social é rompido, e todos os

simples cidadãos, retornando de direito a sua liberdade natural, são forçados, mas não

obrigados a obedecer” (ROUSSEAU, 1983, p. 101).

2.5 SOBERANIA

Para Rousseau a soberania75

é o exercício da vontade geral, e assim como os

demais conceitos até aqui estudados (vontade geral, lei, soberano), são importantes para se

compreender todo o sistema do pensamento político rousseaniano.

A idéia de soberania76

em Rousseau não é apartada da idéia do Contrato Social,

pelo contrário, é fundamentada nesse Contrato. A vontade geral, como fruto do pacto social.

“A natureza da soberania só pode derivar do procedimento contratual, segundo o qual a

multidão, unanimemente substitui as vontades particulares pela vontade geral: a essência da

soberania se identifica então com a vontade geral” (GOYARD-FABRE, 2002, p. 180).

A soberania em Rousseau possui características que lhe são peculiares, e que se

tornam importantes para a dinâmica da soberania dentro do pacto social. Essas características

são a indivisibilidade e a unidade da soberania, além é claro da inalienabilidade. Essas

características da soberania em Rousseau são de extrema importância, porque o

reconhecimento de que a soberania77

pertence ao povo já existia com os jusnaturalistas, no

entanto esses admitiam que a soberania fosse dividida e representada. No entanto, Rousseau

74

nota de rodapé nº 180. 75

Em nota nº 10 do Livro Economia Política, José Oscar de Almeida Marques citando M. Lê Chevalier de

Jaucort, 1765, tomo XV: “Para que se possa entender que a natureza da soberania consiste principalmente em

duas coisas, afirmo, inicialmente, que a soberania é o direito de comandar na sociedade como última instância. A

primeira consiste no direito de comandar os membros da sociedade, ou seja, de dirigir suas ações com autoridade

ou com poder de repressão; a segunda, é que o direito deve ser o último recurso, de tal forma que todos os

particulares sejam obrigados a se submeterem a ele, sem que ninguém possa resistir-lhe” (ROUSSEAU, 1995,

p.425). 76

“O autor ensina em todo o lugar, que a soberania só pode residir no povo; que o povo mesmo não pode aliená-

la, nem partilhá-la etc. Ele sustenta ainda, nessa mesma obra e naquela que trata da educação, sob o nome de

Emílio, que o povo é fonte de toda potência política” (DERATHE, 2009, p. 89). 77

“Como Hobbes, Rousseau é hostil a toda limitação e, a fortiori, a toda partilha da soberania. Só deve haver no

Estado uma única vontade comandando. Para Hobbes, contudo, essa vontade poderia ser indiferentemente a

vontade de um só homem ou de uma só assembléia. Em Rousseau, somente a vontade do corpo do povo, isto é,

do povo reunido em assembléia, é que pode constituir a vontade geral ou a vontade soberana. Rousseau reserva,

portanto, ao “povo reunido” o poder absoluto que Hobbes conferia igualmente ao rei” (DERATHÉ, 2009, p.

173).

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afirma não só que a soberania pertence ao povo, mas que seu exercício78

também pertence a

este, porque a soberania é a face empírica da vontade geral, e a vontade não se representa. A

soberania consiste essencialmente em vontade, e segundo nosso autor “a vontade

absolutamente não se representa. É ela mesma ou é outra, não há meio-termo” (ROUSSEAU,

1983, p. 108).

O exercício da soberania pertence, portanto, ao povo. Não somente não podemos

dele subtraí-la sem seu consentimento, como também, mesmo se o quisesse, o povo não teria

o direito de dele se despojar em benefício de quem quer que seja. Essa é a própria tese que

Rousseau sustentará no Contrato Social: “Aquele que redige as leis, diz ele, não tem, portanto,

ou não deve ter, nenhum direito legislativo, e o povo mesmo não pode despojar-se quando

quiser desse direito incomunicável” (DERATHÉ, 2009, p.15).

A soberania não pode ser alienada (dada ou vendida), por pertencer ao povo

soberano e também não pode ser dividida em fragmentos de soberania. O povo deve exercer a

soberania e ser seu único titular. Uma pessoa não é soberana, soberano é o povo reunido em

assembléia, e somente a esse povo pertence à soberania, não a cada pessoa em si. Não diz

Rousseau que o homem, ou o cidadão é soberano, mas sim, que o povo reunido em

assembléia é o soberano, sendo este seu titular legítimo, sem que possam ser admitidos

representantes, sem que possa ser transferida a outrem, e desta forma é indivisível. A

soberania retira essas características da vontade geral: “A soberania não pode ser representada

pela mesma razão por que não pode ser alienada, consiste essencialmente na vontade geral e a

vontade absolutamente não se representa” (ROUSSEAU, 1983, p. 107/108).

A soberania pertence ao povo, que é o único legitimado para exercê-la. A ideia da

partilha da soberania, para Rousseau atenta à própria soberania. A soberania é a face

pragmática da vontade geral, ambas possuem a mesma natureza, exemplificativamente, são

78

Nesse sentido GOYARD-FABRE afirma que “A insistência e a precisão com que Rousseau analisa essas

características permitem situar sua concepção de soberania em comparação com as teorias dos jurisconsultos

que, de Grotius a Burlamaqui, eram então respeitados: ressaltando a importância, ao seu ver fundamental, da

inalienabilidade da soberania, Rousseau inverte, de maneira definitiva nesse ponto, a posição dominante dos

jusnaturalistas dos séculos XVII e XVIII; ao mesmo tempo, atribui ao “povo” no Estado um estatuto filosófico

totalmente inédito [..]. Ao resumir para Émile as teses principais do Contrato Social, Rousseau escreve:

examinaremos se é possível que o povo se despoje de seu direito de soberania para com ele revestir um ou vários

homens: Desde Grotius, a questão é clássica. Todos os jurisconsultos da escola do direito natural, Pufendorf,

Barbeyrac, Bulamarqui, Jurieu etc. admitiam que, originariamente a soberania pertence ao povo. Mas nas

perspectivas contratualistas da teoria jusnaturalista deles, desde que um povo transferiu seu direito a um

Soberano, não se poderia supor, sem contradição, que ele continua a ser seu senhor. Diante de tal afirmação

Rousseau se indigna: na política assim concebida, é sempre possível despojar os povos de todos os seus direitos

para com eles revestir os reis com toda a arte possível. No Estado do Contrato, a soberania do povo como corpo

coincide com a vontade de um “ser coletivo” que só pode ser representado por si mesmo, ora, se o poder pode

ser transmitido, a vontade por sua vez, é intransmissível, em outras palavras a soberania é inalienável ou

incomunicável”.

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como lados diversos de uma mesma moeda. Não há representação da soberania, porque a

vontade não se representa.

Enquanto houver corpo político, há soberania. O corpo político deixa de existir, se

o povo concede em alienar (dar ou vender) seus direitos de soberano. Exemplificativamente,

se o povo concordar em se submeter a uma pessoa, a um senhor, através dessa concordância o

povo deixa de ser povo, “sejam homens isolados, quantos possam ser submetidos

sucessivamente a um só, e não verei nisso senão um senhor e escravos, de modo algum

considerando-os um povo e seu chefe” (ROUSSEUA, 1983, p. 30). O pacto político está

dissolvido, e com ele a soberania: “se o corpo político degenera e se dissolve, o povo se

desfaz e, simultaneamente, a soberania desaparece: por aí se vê que a soberania é atributo

essencial e indefectível do povo” (GOYARD-FABRE, 2002, p. 182).

Por sua natureza a soberania deve pertencer a toda a coletividade, a assembléia, e

jamais poderá ser confiada a uma pessoa, ou a um grupo de pessoas. A pior coisa que poderia

ocorrer para um homem é ver-se subjugado a autoridade de outro. O povo que é o soberano

tem poder, mas esse poder está limitado pelo bem comum e pela utilidade pública. É por certo

que o poder soberano não pode tudo79

, pois deve estar fundamentado no bem comum e na

utilidade pública, conforme se demonstrará no próximo item.

2.6 BEM COMUM

Quando foi estudado o conceito de vontade geral80

constatou-se que o que dá

conteúdo à vontade geral é o interesse comum, ou o bem comum. Para se compreender a

vontade geral, não há como se afastar do interesse público. Ocorre que não há no Do Contrato

Social uma definição do que seja o bem comum, utilidade pública, ou interesse público.

79

Boris Mirkine-Guetzèvitch Prélot, prefaciando o Livro de Derathè afirma: “Aproximada de suas origens, a

doutrina rousseauísta parece a R. Derathé claramente individualista, sem por isso ser liberal. O sistema situa-se

na antípoda das teses formuladas por Montesquieu e por Burlamaqui. Rousseau é hostil a qualquer partilha e a

qualquer limitação constitucional da Soberania. Ele não adere, entretanto, ao absolutismo de Hobbes e não

sacrifica a liberdade individual à independência do Estado. Contrariamente à maioria das interpretações que

devem, todavia, ser consideradas errôneas, Rousseau continua preocupado em fixar “limites ao poder soberano”,

mas, para ele, esses limites não podem provir nem de um poder exterior do Estado, nem tampouco da

constituição deste, eles resultam da natureza mesma da Soberania que se identifica à Vontade geral. Longe de

poder tudo, o Soberano só pode agir pelas Leis, cuja generalidade exclui a arbitrariedade. A teoria da Lei o

obriga, desse modo, a não sair dos “limites da utilidade pública”, e forma conseqüentemente a garantia dos

direitos individuais” (DEARTHÈ, 2009, p. 17). 80

Item nº 2.2.

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Todos os conceitos do direito político moderno têm suas raízes na idéia daquilo

que é “público”: assim, falamos da vida pública, do poder público, da responsabilidade

pública do governo perante o Parlamento, das liberdades públicas etc. (GOYAD-FABRE,

2002, p. 51).

É incontestável a dificuldade que existe ao se tentar atribuir conteúdo a vontade

geral. Quando Rousseau fornece os dados relativos a ela, verifica-se que o que dá sentido a

essa vontade é o bem comum e a utilidade pública. Essa conclusão extrai-se do capítulo 1

Livro 2 do Contrato Social, onde Rousseau afirma que “a vontade geral pode dirigir as forças

do Estado de acordo com a finalidade de sua instituição, que é o bem comum”, e no capítulo 2

do referido livro em que afirma “a vontade geral é sempre certa tende sempre a utilidade

pública”. Dessa maneira, dois novos termos são atrelados ao conceito de vontade geral: o

primeiro é o de bem comum, e o segundo é o de utilidade pública.

A vontade geral estaria ligada de forma originária ao bem comum e à utilidade

púbica, sendo guiada por eles, este seria, portanto, o critério de seu reconhecimento e também

o critério de legitimidade política, sem poder deles afastar-se sob pena de deixar de ser o que

é. O bem comum e a utilidade pública são as finalidades da vontade geral, e simultaneamente

seus fundamentos de referência e legitimidade. No entanto, muitas questões surgem a respeito

desses dois termos (bem comum e utilidade pública, que só podem ser definidos em contextos

específicos pelo povo – enquanto categoria do direito público - reunido em assembléia). Essas

expressões poderiam ser interpretadas como sinônimas? Ou seriam conceitos distintos? Existe

a possibilidade de diferenciação ou de aproximação desses conceitos dentro da obra Do

Contrato Social? Qual seria a relação entre eles? Certo é que o estudo da vontade geral deve

ser guiado sob a ótica do bem comum e da utilidade pública, pois são esses os fins a serem

alcançados, dos quais não poderá desvincular-se. No entanto, qual seria o processo ou

procedimento de identificação do que seria o bem comum e a utilidade pública? Como

reconhecê-los? Como saber o que são e como distingui-los do que não são? Quais seriam os

critérios utilizados para tanto? Essas indagações, ao que parece, não são respondidas

diretamente por Rousseau. Os conceitos de bem comum e de utilidade pública são abertos,

indeterminados, variáveis. Não há uma definição do que sejam.

É possível, no entanto, concluir-se através da interpretação do pensamento

rousseauniano de que há a primazia do bem comum sob o interesse particular, pois cada

pactuante põe sua pessoa e todo o seu poder sob a direção suprema da vontade geral. Assim,

imediatamente após o ato associativo, é criado em lugar de cada contratante, um corpo moral

e coletivo. Se essa primazia do bem comum é norteadora da vontade geral, é por certo

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necessário investigar-se sobre a possibilidade da construção de um conceito de bem comum

através do pensamento rousseauniano, bem como sobre as conseqüências negativas e

positivas que a ausência desse conceito pode causar. Já que, conforme anteriormente

mencionado, não há uma definição expressa realizada por Rousseau do bem comum e da

utilidade pública.

Alguns estudiosos do pensamento rousseauniano dedicaram-se à árdua tarefa do

esclarecimento desses conceitos. Machado afirma que o bem comum pode ser considerado

como noção coletiva, “incluindo-se, por isso mesmo, na consciência de cada um, e todas as

decisões, visando a atendê-lo, serão decisões de um corpo político, isto é, de uma sociedade

consciente de sua unidade, necessidades e aspirações” (1983, p. 30)81

. Nesse viés

interpretativo, o bem comum estaria, portanto presente na consciência de cada membro que

forma o pacto associativo, e só ele, quando requisitado a tomar decisões poderá dizer o que é

o bem comum, considerando a unidade e as necessidades da sociedade a qual pertence. Seria,

portanto, essa consciência individual, que se manifesta de forma coletiva através do soberano

(povo reunido em assembléia, e que talvez só possa se manifestar nesse momento) em

momentos e situações histórias específicas, o porta voz do bem comum. Somente cada

membro em si, considerando-se como parte de um todo unitário, e considerando as

necessidades e as aspirações desse todo, poderia ser capaz de dizer o que é o bem comum. Ou

seja, seria somente o próprio soberano que pode dar conteúdo a esses dois conceitos. Se seu

conteúdo fosse previamente definido o povo não seria mais soberano, pois suas decisões já

estariam delimitadas.

A não constatação de critérios objetivos substantivos de identificação do que seja o

bem comum pode ser objeto de críticas, porque dificultaria o direcionamento da vontade

geral, considerando que ela é guiada pelo bem comum, e se não há a possibilidade de

identificar objetivamente o que é o bem comum, logo a identificação da vontade geral poderia

restar também prejudicada. No entanto, em sentido contrário, poderia se afirmar que a

ausência de conceituação por parte de Rousseau de bem comum e utilidade pública, se deve

ao fato de que não haveria mesmo essa possibilidade de pré-definição, porque a conceituação

do bem comum se dá em concreto e não em abstrato. É o soberano que considerando as

necessidades e as aspirações de sua sociedade dirá o que é ou não bem comum. Considerando

o movimento que ocorre tanto na sociedade, com modificações de anseios e necessidades,

quanto à modificação que se dá no próprio soberano, pois é composto por pessoas (povo) e

81

nota de rodapé, nº 51.

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que pode ser renovado, consequentemente as noções de bem comum e utilidade pública

também ganham movimento, e é apenas no caso concreto que o soberano poderá dizer o que

é, ou não bem comum.

Questiona-se, no entanto, se há requisitos objetivos mínimos, negativos ou

positivos, explícitos ou implícitos, estabelecidos na obra Do Contrato Social que possam

contribuir para a identificação do bem comum e da utilidade pública, ou se estes podem ser

identificados somente subjetivamente?

Rousseau mostra que o interesse comum só existe porque os interesses

particulares são diferentes, pois, é devido às diferenças que existem que se faz necessária a

convenção, porque se houvesse sempre uma unanimidade quanto o que seja o interesse

comum, desnecessária seria a assembléia. É através da assembléia, na qual cada membro do

pacto poderá decidir sem influências externas se o objeto da votação está ou não de acordo

com a vontade geral, que se chegará ao bem comum e a utilidade pública.

2.7 LEGISLADOR

Além da convenção anterior e da limitação do Estado, é necessário que também

exista um legislador que fará as leis, e as submeterá ao soberano (povo), para que ele diga se

as leis estão ou não de acordo com a vontade geral. A figura do legislador em Rousseau é

dotada de caráter excepcional. “O legislador, sob todos os aspectos, é um homem

extraordinário no Estado. Se o deve ser pelo gênio, não o será menos pelo ofício”

(ROUSSEAU, 1983, p. 57). O legislador desempenha uma função extremamente importante

dentro do corpo político, na concepção de Rousseau. É ele o responsável por dar leis ao povo.

O povo que é soberano, no entanto, dirá se as leis estão ou não de acordo com a

vontade geral. É importante fazer uma observação nesse ponto. Rousseau afirma no capítulo

dedicado ao legislador82

que “Aquele, pois, que redige as leis, não tem e nem deve ter

qualquer direito legislativo. O próprio povo não poderia se desejasse, despojar-se desse direito

incomunicável” (1983, p. 58). O direito legislativo83

que Rousseau menciona, não é o direito

do legislador de fazer as leis, mas sim o de aprová-las. Com relação ao legislador, este pode

ser um homem, mas também pode ser o próprio povo em voz e voto, desde que é claro, este

82

Livro II, Cap. VII Do Contrato Social. 83

“O poder legislativo pertence ao povo e não pode pertencer senão a ele” (ROUSSEUA, 1983, p. 80).

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povo esteja tão bem constituído, que todos os membros componentes possam apresentar as

características necessárias a um legislador, e que todos sejam homens extraordinários dentro

do Estado. Tal interpretação é permitida quando se analisa a seguinte passagem do capítulo

dedicado a lei84

: “Mas, quando todo o povo estatui algo para todo o povo, só considera a si

mesmo e, caso se estabeleça então uma relação, será entre todo o objeto sob um certo ponto

de vista e todo o objeto sob um outro ponto de vista” (ROUSSEAU, 1983, p. 54).85

Desta

forma, o povo poderia além de “ser o boca da vontade geral” - dizer se a lei está ou não de

acordo com essa vontade, dando eficácia ou não as leis - ser também quem as constrói em voz

e voto na assembléia. Ocorre que, em contrapartida a essa interpretação, se o povo fosse tão

bem constituído a ponto dele mesmo ser capaz de legislar-se, se fosse capaz de discernir

sozinho quais são suas necessidades e adequá-las a vontade geral, as leis não seriam

necessárias.

No sistema político de Rousseau, ao povo reunido em assembléia (soberano) são

submetidas às leis elaboradas pelo legislador. Se o soberano entender que as leis estão de

acordo com a vontade geral, estas são aprovadas e passarão a ser obrigatórias. Se entender que

essas leis não estão de acordo com a vontade geral, elas são rejeitadas. O legislador apresenta

a lei, e o povo reunido em assembléia pronuncia-se a respeito dela para a partir de então, a lei

passar a ter eficácia. Nota-se que o legislador faz a lei, mas não lhe dá seus atributos, como a

obrigatoriedade, imperatividade, vigência, eficácia. Esses atributos só são adquiridos depois

que a lei é aprovada pelo soberano, estando de acordo com a vontade geral.

A aprovação da lei pelo soberano é uma deliberação sobre outra deliberação.

Primeiro o legislador delibera na lei que cria sobre determinado assunto, posteriormente o

povo deliberará sobre a deliberação do legislador, sendo que a lei somente poderá ser

entendida tal qual é, depois da última deliberação, porque na primeira ela é apenas o que pode

ser chamado de um projeto de lei, sem qualquer eficácia. A primeira deliberação cabe ao

legislador, que para desempenhar tal função deve possuir características especiais, difíceis de

serem encontradas nos homens, e comparadas por Rousseau às características necessárias aos

deuses:

uma inteligência superior, que visse todas as paixões humanas e não

experimentasse nenhuma delas, que não tivesse nenhuma relação com a nossa

natureza e que a conhecesse a fundo, cuja felicidade fosse independente de nós e

84

Livro II, Cap. VI Do Contrato Social. 85

Ao comentar essa passagem, Lourival Gomes Machado afirma que “os dois pontos de vista são o ponto de

vista dos membros do soberano, ao estatuírem a lei, e o ponto de vista dos súditos, que a obedecerão, tendo-se presente que membros do soberano e súditos são os mesmos indivíduos que constituem o corpo

político.” (nota de rodapé nº 148, 1983, p. 54).

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que, todavia quisesse se ocupar da nossa[...] seriam preciso deuses para dar leis aos

homens (ROUSSEAU, 1983, p. 56).

Rousseau atribui ao legislador o encargo de adequar a natureza humana, para

capacitar o homem a conviver em um todo maior de forma livre e igualitária, e é por isso que

sua natureza deveria ser ao mesmo tempo humana, mas que não sofresse a influência das

paixões humanas. O legislador se torna necessário na obra de Rousseau para adequar o

particular com o público. Eis a relação do legislador com a liberdade (particular) e a vontade

geral (público). O legislador propõe um caminho ao povo, apresentando a ele o que considera

estar de acordo com a vontade geral. O legislador, para tanto, deve ressaltar o que entender se

mais importante, e o que acredita estar de acordo com a vontade geral. Nessa função de saber

o que é mais importante, reside o principal atributo do legislador. Não cabe a ele somente

escrever as leis, sua função é transcendente, a ele cabe preservar os costumes86

, ou as leis não

escritas: “O campo de ação do legislador é justamente o da opinião (aparência), o das leis não-

escritas, pois as leis escritas praticamente decorrem das leis não-escritas (costumes etc.)”

(MONTEAGUDO, p. 137).

Vale relevar que o legislador não é apenas aquele que escreve as leis. Nesse

caso, ele teria uma função que podemos chamar de “legislativa”. Ele supera

essa função legislativa e antecede a função executiva que zela pelas leis,

pois ele é anterior à escrita. Ele é responsável sobretudo pelas leis não

escritas enquanto expressões da realidade do interesse comum, das quais a

lei escrita é mero corolário. Por isso pode ser considerado o inventor da

máquina política e assim de tudo o que dela decorre (MONTEAGUDO,

2006, p. 14).

Monteagudo ressalta com precisão a importância que o legislador tem na

preservação das leis não escritas (costumes). É através da interpretação realizada pelo

legislador dessas leis que devem ser propostas as leis escritas. No entanto, ao contrário do que

afirma Monteagudo, em nosso entendimento, o legislador não inventa a máquina política, ele

tão-só é responsável por olhar com mais cuidado para as leis não escritas, sendo que não é ele

o inventor dessas leis, que existem por si. O legislador seria um intérprete dos costumes,

traduzindo-os para a forma escrita, que assim só poderão ter eficácia após passarem pela

aprovação da vontade geral.

86

“Os costumes nascem através das relações constantes estabelecidas pela vontade geral, quando um povo se

institui como povo, isto é, como corpo moral. Ora, as relações constantes podem ser expressas por meio das leis,

mas o fluxo contínuo das relações é expresso por meio da opinião” (MONTEAGUDO, 2006, p. 152).

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96

Quando Rousseau afirma que o legislador é homem extraordinário, e que não

deve ter nenhuma relação com a nossa natureza, há de se convir que encontrar um homem que

não apresente paixões humanas, de uma natureza diferente dos demais, abrange certa

complexidade. Como poderia o legislador não ter nenhuma relação com a nossa natureza, e

ser um homem extraordinário?87

“Nota-se, assim, que a exposição conceitual do legislador

aparece sempre sob o signo do paradoxo: ele não é o que deveria ser e não pode ser o que é.

De um lado, cria leis, mas não é deus; de outro, guia uma multidão cega, mas não é tirano”

(MONTEAGUDO, p. 113).

O legislador deverá ter uma natureza próxima à natureza divina88

, porque seriam

necessários deuses para dar leis aos homens, além do que, a autoridade do legislador deve se

fundamentar em algo que transcenda a força e o raciocínio: “assim sendo não podendo o

legislador empregar nem força, e nem raciocínio, impõe-se como necessidade que ele recorra

a uma autoridade de outra ordem, a qual possa induzir sem violência e persuadir sem

convencer” (ROUSSEAU, 1983, p. 59). “Dessa forma, o legislador seria um milagre

necessário” (MONTEAGUDO, 2006 p. 112).

O próprio Rousseau observou prudentemente que qualquer homem poderá

intitular-se capaz de falar com os Deuses e transmitir suas mensagens aos demais. O

legislador de Rousseau, por certo, não pode ser fruto de charlatanismo “todo homem pode

gravar tábuas de pedra ou comprar um oráculo e fingir um comércio secreto com alguma

divindade” (ROUSSEAU, 1983, p. 59).

Ao referir-se a natureza divina do legislador, Rousseau cita “a lei judaica que

sempre subsiste, e a do filho de Ismael [...] anunciam ainda hoje os grandes homens que as

ditaram” (ROUSSEAU, 1983, p. 59). Vieira, ao definir o legislador afirma que:

O legislador, aquele que elabora o sistema de leis, se apresenta, como alguém que

tem uma clara consciência dos problemas comuns e cujas intenções são honestas. O

legislador nesse sentido é a razão encarnada. Entre o povo e a multidão cega existe

um abismo a ser transposto pela intervenção de um indivíduo excepcional – o

LEGISLADOR (VIEIRA, 1997, p. 77).

A tarefa do legislador é muito árdua. O homem, que segundo Rousseau não é um

ser social, teria que conviver em sociedade, e caberia ao legislador possibilitar essa

87

“Sabemos que as exigências teóricas que apresentam o legislador são tão exacerbadas que tornam sua

existência histórica impossível. Aparentemente, podemos dizer o mesmo da noção de vontade geral e de contrato

social em relação à lei e à legitimidade” (MONTEAGUDO, 206, p. 11). 88

“As decisões da razão sublime do legislador são atribuídas aos deuses, pois a razão sublime é incompreensível

aos homens vulgares. O legislador a coloca na boca dos deuses. Usa a autoridade divina com o objetivo de evitar

que a imprudência de homens cujo olhar não ultrapassa o próprio interesse particular comprometa a integridade

do corpo moral” (MONTEAGUDO, 2006, p. 165).

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convivência, é o que afirma Vieira: “para Rousseau é necessário adaptar as condições da vida

social e um ser que foi feito para viver só. Esta adaptação é um prodígio. E não é outra a

função do legislador a que se refere Rousseau no Contrato Social” (VIEIRA, 1997, p. 65).

89

O legislador tem como função esclarecer ao soberano e fazer com que veja a finalidade e a

utilidade públicas,90

é quem detecta o que acredita estar de acordo com a vontade geral e

submete ao soberano.

É inegável que quando o legislador não é o próprio povo, e sim um ser

extraordinário, surge à questão da representação, tão evitada por Rousseau. Quando cabe ao

legislador detectar o que acredita ser a vontade geral, sem descuidar dos costumes do povo, e

essa lei (em sentido estrito, porque não tem força da lei, porque não foi submetida à vontade

geral) é submetida à apreciação da vontade geral, há nesse caso certa representação91

. No

entanto, a soberania que é a expressão da vontade geral do povo, nunca será representada:

Na passagem da afirmação pura e simples da vontade geral - se é que isso é

possível - para sua declaração através de um sistema de Leis elaborado por

um Legislador, já há uma degradação, uma queda, uma perda de força e

uma passagem à representação. O mesmo ocorre no que se refere à

execução da vontade; daí surge o nível de governo e a instância executiva....

o corpo social resulta de um único ato de vontade, e toda a sua duração não

passa da sequência do efeito de um compromisso anterior, cuja força só

deixa de agir quando o corpo é dissolvido. Mas a soberania, que é somente

o exercício da vontade geral, é livre como essa, e não está submetida a

nenhuma espécie de compromisso. Cada ato de soberania, assim como cada

instante da sua duração, é absoluto, independentemente daquele que o

precede, e o soberano nunca age porque quis, mas porque quer (SALINAS

FORTES, 1997, p. 114).

89

“Note que isso equivale a afirmar que o legislador, na obra de Rousseau, é a figura conceitual responsável pela

história, já que não há histórias se não há conflitos, e toda a mudança legislativa é antecedida por problemas de

opinião. Com isso o legislador manifesta de certa forma a passagem do nível conceitual para o nível histórico,

dos paradoxos do dever ser para as contradições do ser” (MONTEAGUDO, p. 16). 90

“O Legislador servirá como medium na passagem da cega presença da vontade geral à sua expressão racional,

sua tradução em termos de linguagem inteligível e acessível a todos os espíritos. Dupla mediação, por

conseguinte. O que significa que há sempre a possibilidade de que a tradução não seja fiel. Mas como fazer, se

não se tem acesso diretamente ao original? Só nos resta conformarmo-nos com indícios que são necessariamente

da ordem do “sentimento”. E é nesse nível que surgem todos os problemas do “paradoxo do Legislador”, a essa

necessária representação por parte do Legislador de uma vontade geral necessariamente não-representável”

(SALINAS FORTES, 1997, p. 116). 91

“Esforçamo-nos, assim, por percorrer o conjunto de modalidades de “representação” no plano político. Há

“representação” por meio de signos – as leis- e de agentes- o Legislador -, no que se refere à expressão dos

conteúdos de vontade geral. Em segundo lugar, há “representação” no que se refere ao zelo pelo cumprimento

das leis, através de um agente que é o poder executivo. Finalmente há ainda “representação” através de símbolos

e atores, no que diz respeito à ordem dos fatos sobre os quais se deve sustentar todo o edifício político, mas que

só atuam uma vez criadas as condições para alguma forma de encarnação da coisa pública” (SALINAS

FORTES, 1997, p. 135).

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Para Rousseau, o povo não é somente fonte de soberania, mas ele deve sempre

conservar o exercício da soberania, sem o qual o corpo político é destruído, conforme já

mencionado. A transferência do exercício da soberania para o povo, pode ser apontada como

a principal inovação de Rousseau. O povo é o verdadeiro detentor do direito legislativo, e não

o legislador, que apenas redige as leis. É o povo que detém o poder legislativo e que é o

responsável por esse poder, sendo que mesmo que quisesse renunciá-lo, não poderia, porque

se trata de um direito irrenunciável. É através do sufrágio livre do povo que este dirá se a lei

redigida pelo legislador está ou não de acordo com a vontade geral.

2.8 GOVERNO E REPRESENTANTES

Nas Confissões, Rousseau afirma que há muito tempo, cerca de treze ou quatorze

anos estava se dedicando as Instituições Políticas, e que essa obra tinha como principal

objetivo responder a questão: “qual é a espécie de governo próprio a formar o povo mais

virtuoso, mais esclarecido, mais sábio, o melhor em suma, tomando a palavra em seu maior

sentido?” (ROUSSEAU, 2008, p. 370). Rousseau prossegue afirmando que acreditava que

essa questão se aproximaria muito de outra, isso se é que pode haver alguma diferença entre

elas: “qual é o governo que por sua natureza, se mantém sempre mais próximo da lei?”

(ROUSSEAU, 1983, p.370). E daí qual é a lei?

Na obra Do Contrato Social, Rousseau aborda o tema do governo no capítulo I do

Livro 3, cujo título é “Do governo em geral”. Nesse capítulo, afirma que dentro do corpo

político distinguem-se a força e a vontade “esta sob o nome de poder legislativo e aquela de

poder executivo” (ROUSSEAU, 1983, p. 73). Nota-se que Rousseau inicia o estudo do

governo, através de uma comparação com o legislativo, afirmando que o legislativo tem a

vontade, enquanto que o executivo tem a força de executá-la. Quanto ao poder legislativo,

este foi analisado no presente trabalho, nos itens relativos ao soberano e ao legislador92

, onde

foi demonstrado que pertence ao povo soberano93

. Somente o povo é legitimado para aprovar

suas leis, sem qualquer representação, tendo em vista que o legislativo é vontade, e a vontade

é ela mesma, ou é outra, como afirmou o próprio Rousseau. O governo, por outro lado, é

diferente: “não pode pertencer à generalidade como legisladora ou soberana, porque esse

92

Ver item 2.7. 93

Ver item 2.4.

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poder só consiste em atos particulares que não são absolutamente de alçada da lei, nem

consequentemente do soberano, cujos atos todos só podem ser leis (ROUSSEAU, 1983, p.

74). A distinção entre governo e soberania antes da obra Do Contrato Social, já havia

aparecido no Discurso sobre a Economia Política, no qual Rousseau atribui ao governo a

nomenclatura de economia política:

Ainda é preciso insistir com os leitores para que distingam claramente a

economia política, de que falei e que chamo de governo, da autoridade

suprema, que chamo de soberania, distinção que consiste em que a primeira

possui o direito legislativo, e obriga em alguns casos a nação como um

todo, enquanto a segunda só tem o poder executor e só pode obrigar os

particulares (ROUSSEAU, 1995, p.24).

A primeira preocupação demonstrada por Rousseau foi a de diferenciar o governo

do legislativo. Ambos são considerados como forças do corpo político, porém possuem

titulares diferentes - um pertence ao povo (legislativo) e o outro não pode pertencer ao povo -

porque consiste em atos particulares, e o povo está restrito a pronunciar-se sobre atos gerais,

abstratos e impessoais, conforme afirmou Rousseau. Mas se não poderá o povo exercer o

governo, a quem pertencerá? “Necessita, pois, a força pública de um agente próprio que reúna

e ponha em ação segundo as diretrizes da vontade geral, que sirva a comunicação entre o

Estado e soberano” (ROUSSEAU, 1983, p. 74). Pertencerá então a um agente público, a um

agente que deverá promover a “união entre alma e corpo” (ROUSSEAU, 1983, p.74).

Unir corpo e alma seria como unir vontade soberana e o Estado formado pelo

pacto social. Cabe ao governo, através de seu agente, ou de seus membros, fazer uma espécie

de intermediação entre quem faz a lei e a quem a ela está sujeito. É importante, então,

relembrar e entender a terminologia utilizada por Rousseau: o corpo político é denominado

Soberano quando ativo e Estado quando passivo, e que os membros do povo são cidadãos

enquanto participavam da autoridade soberana, e súditos quando submetidos às leis do

Estado. Essa distinção é muito importante para entender a afirmação que Rousseau faz ao

conceituar as atribuições do governo: “Que será, pois, o Governo? É um corpo intermediário

entre os súditos e o soberano para sua mútua correspondência, encarregado da execução das

leis e da manutenção da liberdade, tanto civil, quanto política” (ROUSSEAU, 1983, p. 74).

Desta forma, a comunicação entre Soberano e Estado é atribuição do governo.

É, portanto tarefa do governo garantir a execução das leis, ele é o responsável por

colocar em prática as leis aprovadas, de forma que é através dessas leis que tanto a liberdade

civil, quanto a liberdade política estão garantidas. A liberdade civil é aquela que se dá entre os

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cidadãos, nas relações civis estabelecidas entre si, enquanto que a liberdade política é aquela

que se dá entre os cidadãos e o Estado. É o governo que garante que o processo político seja

legítimo, executando as leis que regem os atos políticos dentro do Estado, no que se refere,

por exemplo, ao processo de votação, ao direito a voz e voto.

Rousseau denomina os membros do governo como sendo magistrados. Essa

nomenclatura não se confunde com a designação atual de magistrados, ou seja, magistrados

para Rousseau são todos aqueles agentes públicos encarregados de executar a lei, enquanto na

nomenclatura atual magistrados são os membros do poder judiciário, encarregados de julgar

(juízes). Assim, a expressão magistrados em Rousseau se refere aos que executam a lei. Esses

seriam os que “como simples funcionários do soberano, exercem em seu nome o poder de que

os fez depositários, e que os pode limitar, modificar e retomar quando aprouver”

(ROUSSEAU, 1983, p. 75).

Essa forma de interpretar aquele que executa as leis como sendo funcionário do

soberano, que é o verdadeiro detentor de todo o poder, inclusive de retomar o poder do

executor quando quiser, à época representou uma afronta para a monarquia. O rei que era

visto como fonte de poder passou apenas a ser o representante, depositário do poder que é do

soberano, seria apenas o responsável por executar a vontade geral. Assim, os atos da

magistratura não se confundem com a vontade geral, pois a magistratura é a execução pelo

magistrado do que é deliberado e aprovado pela assembléia soberana, com a possibilidade de

atuação além do que foi deliberado, restrita apenas ao que não for de interesse social

relevante, como alguns atos ou decretos de conteúdo burocrático, que tão-só regulamentariam,

portanto, sem execução autônoma. Desta forma, a vontade geral é concretizada através dos

atos de magistratura, mas não se confunde com eles, porque os antecede.

No que se refere à relação entre a vontade geral e o governo, não se poderia deixar

de citar uma afirmação de Rousseau que deverá ser analisada com muito cuidado, no que diz

respeito à possibilidade da vontade do chefe (governante) ser também a vontade geral. Apesar

de afirmar que a vontade geral é livre e que não pode se comprometer em obedecer, informa:

[...] isso não quer dizer que não possam as ordens dos chefes ser consideradas

vontades gerais, desde que o soberano, livre para tanto não se oponha. Em tal caso,

pelo silêncio universal deve-se presumir o consentimento do povo (ROUSSEAU,

1983, p. 44).

Rousseau nos diz que legislativo e o governo não se confundem, cada qual é

responsável por uma força do corpo político, sendo que suas titularidades pertencem a agentes

diferentes: ao povo o legislativo e ao agente, ou agentes públicos o governo ou magistratura.

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No entanto, em algum momento, poderá acontecer da vontade do soberano ser a mesma

vontade do executor da lei. Nesse momento, estando o soberano livre para discordar da

vontade do executor (magistrado) e assim não o fizer, presume-se que essa vontade também é

sua, e sendo vontade do soberano, é vontade geral.

Essa afirmação de Rousseau deve ser interpretada de forma cuidadosa. Não é

sempre que a vontade do magistrado será vontade geral, somente quando houver identidade

entre as vontades, quando elas forem à mesma vontade, e quando o povo estiver livre para

discordar, e não o fizer. Povo livre para discordar é aquele que não sofre qualquer violação

em sua vontade, que age livre e conscientemente, que consegue pensar de forma autônoma,

sem coação. Rousseau utiliza a palavra ordem, que assim é somente quando for aprovada pela

vontade geral. Um mandamento só se torna imperativo depois de passar pela aprovação do

soberano, sob pena de não tornar-se uma ordem, pois conforme outrora afirmado, somente a

vontade geral detém as forças do Estado, inclusive a força de dar força às leis (ordens). Se

uma proposta de lei não passar pela aprovação da vontade geral, ela não se torna imperativa, e

assim não pode ser reconhecida como uma ordem, e sim qualquer outra coisa, como por

exemplo, um conselho, um pedido ou pedido. Assim, as ordens somente são realmente ordens

quando passam pelo crivo da vontade geral, dessa forma, a ordem de um chefe, só tem

eficácia quando encontra respaldo no povo. Nesse sentido:

A primeira e mais importante máxima do governo legítimo ou popular, ou

seja, daquele que tem por objetivo o bem do povo, é – como já disse –

seguir em tudo a vontade geral; mas para segui-la é necessário conhecê-la,

e, sobretudo, distingui-la da vontade particular, a começar por si mesmo;

distinção sempre muito difícil de fazer, e para a qual só a mais sublime

virtude pode proporcionar luzes suficientes. Como para querer é necessário

ser livre, uma outra dificuldade, não muito menor, é assegurar ao mesmo

tempo a liberdade pública e a autoridade do governo (ROUSSEAU, 1983,

p. 28).

O governante, para que seus atos sejam legítimos não poderá

confundir sua vontade particular com a vontade geral, ou melhor, fazer sua vontade particular

passar-se por vontade geral. Se o governante procede de tal forma, perderá a legitimidade do

poder que a ele foi delegado, pois a coerência com a vontade geral é o critério último da

legitimidade. O governo somente utilizar-se-á do que lhe foi concedido pelo soberano, não

poderá utilizar-se de mais poder do que lhe foi concedido, sob pena de se tornar arbitrário e

consequentemente ilegítimo. É o soberano que dirá quanto poder terá o governo, ou seja,

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trata-se de uma relação proporcional. Rousseau alerta para que não haja confusão entre as

atividades que são inerentes ao legislativo, e as do governo:

Se o soberano quer governar ou se o magistrado quer fazer leis ou, ainda, se

os súditos recusam-se a obedecer, a desordem toma lugar da regra, a força e

a vontade não agem mais de acordo o Estado em dissolução, cai assim no

despotismo ou na anarquia (ROUSSEAU, 1983, p. 75).

As funções do legislativo e do executivo não podem confundir-se, porque se

assim ocorrer, põe-se em risco o próprio Estado, pois a anarquia e o despotismo farão com

que a vontade seja sufocada. Cada qual deverá ter sua função dentro do Estado, mas isso não

significa partilhar a soberania, porque conforme anteriormente exposto, para Rousseau a

soberania pertence ao povo e não poderá ser partilhada. Não se pode falar em representação

da soberania para Rousseau:

Tanto Rousseau quanto Hobbes crêem que a unidade do corpo político se dá

pela soberania cuja fonte é o pacto. A diferença é que Hobbes acha que a

unidade da vontade que caracteriza o soberano deve estar nas mãos do

governo que representa assim o soberano. Já Rousseau crê que a unidade de

vontade do soberano é a vontade geral da qual o governo é um mero

comissário. No primeiro, a representação é absoluta, no segundo, a

representação é nula (MONTEAGUDO, p. 61).

Portanto, segundo a concepção de Rousseau, é incorreto dizer que o governo

(magistrado) é representante da soberania. Ele não é representante da soberania, ele é apenas

quem executa as deliberações da vontade geral, e não haveria nisso uma representação. A

vontade que deverá ser consultada quando da execução é a vontade geral, e cabe ao

magistrado tal função: consultar a vontade geral e aplicá-la, sem questionar, esse é o requisito

necessário para um governo ser considerado legítimo. Caso contrário, se o governo levar em

consideração a opinião do seu chefe em detrimento da vontade geral, será tirânico. É o que

Rousseau afirma no Discurso sobre a Economia Política, diferenciando um governo tirânico

do governo legítimo, que denomina de popular:

Ao estabelecer a vontade geral como primeiro princípio de economia

política e como regra fundamental do governo, não julguei necessário

examinar seriamente se os magistrados pertencem ao povo ou o povo aos

magistrados e se, nos negócios públicos, deve-se consultar o bem do Estado

ou o dos chefes. Há muito tempo que essa questão é decidida em um

sentido, na prática, e em outro pela razão; além de que, seria uma grande

loucura esperar que aqueles que são especialistas no assunto preferissem um

outro interesse que não o seu. Então, deve-se dividir a economia pública em

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popular e tirânica. A primeira corresponde a todo o Estado onde reina a

unidade de interesses e de vontade entre o povo e os chefes; a outra, existirá

necessariamente em todo lugar onde o povo e o governo tiverem interesses

diferentes, e, consequentemente, vontades opostas (ROUSSEAU, 1995, p.

27-8).

A tarefa do governo é ser o guardião das leis, a ele não cabe questionar a vontade

geral, ou interpretá-la de acordo com a vontade particular do governante. Mas surge a

questão: Para Rousseau, qual seria o principal atributo do governo? A resposta está no fato de

que é o governo o responsável pela comunicação entre soberano e Estado ou, em outras

palavras, é ele que articula no corpo público as condições de cidadão e de súdito. O governo

deve zelar para que a vontade geral seja sempre respeitada e observada. Administrar de

acordo com a vontade geral tem tamanha importância que para Rousseau essa é a primeira

regra do governo, denominado de Economia Política: Concluo, então que da mesma forma

que o primeiro dever do legislador é adequar as leis à vontade geral, a primeira regra da

economia política é administrar de acordo com as leis” (ROUSSEAU, 1995, p. 30).

Depois de diferenciar o governo do legislativo, Rousseau trata no capítulo II do

Livro 3, as várias formas de governo. Não há a necessidade de que o governo seja formado

por apenas um homem. Dependendo do número de pessoas que compõe o governo, ele poderá

ser uma democracia (governo de muitos); aristocracia (governo de poucos) ou monarquia

(governo de um). Ao contrário do que se pode pensar, Rousseau não acredita que o governo

democrático seja sempre o melhor, pois adverte: “quanto mais numerosos forem os

magistrados, tanto mais fraco será o governo” (ROUSSEAU, 1983, p. 80). Quanto mais se

aumenta o número de magistrados, menos parcela de poder do governo cada um terá, e com

isso o governo se enfraquece. É a mesma relação inversa que posteriormente será constatada

quando da análise da parcela do poder soberano que cada membro possui quando o Estado é

demasiadamente grande94

.

Rousseau afirma que o governo de muitos nem sempre é vantajoso, e tem por

fundamento a separação entre legislativo e executivo estudada no início do presente tópico.

Para o filósofo genebrino o governo e o legislativo não devem confundir-se, mas se o governo

for composto por muitos membros do povo, que é o soberano, essa confusão ocorrerá. A

primeira vista, parecerá vantajoso que o povo seja o detentor de ambos (governo e

legislativo), mas Rousseau já advertia que não seria bom que quem fizesse as leis, fosse a

mesma pessoa a executá-las, mesmo que essa pessoa fosse o próprio povo enquanto ente

94

Ver item 2.9.

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moral e coletivo. Dissertando sobre essa possibilidade do povo exercer o governo, Rousseau

afirma que essa forma de governar tornaria o próprio governo insuficiente:

No entanto, justamente isso torna o governo insuficiente em certos aspectos,

porque as coisas que devem ser distinguidas não o são, porque o príncipe e

o soberano não sendo senão a mesma pessoa, formam por assim dizer um

Governo sem Governo. Não será bom que aquele que faz as leis as execute,

nem que o corpo do povo desvie sua atenção dos desígnios gerais para

empresta-la aos objetivos particulares[...] o abuso da lei pelo governo é mal

menor do que a corrupção do legislador (ROUSSEAU, 1983, p.83).

Nota-se que Rousseau se mostra descrente quanto à eficácia de um governo

democrático, não só porque não considera adequado que legislativo e governo se confundam,

mas mais do que isso, Rousseau é descrente da existência desse próprio governo democrático,

é o que afirma: “tomando-se o termo no rigor da acepção, jamais existiu, jamais existirá uma

democracia verdadeira. É contra a ordem natural governar o grande número e ser o menor

número governado” (ROUSSEAU, 1983, p.84). Essa passagem do pensamento político de

Rousseau é fundamental para se compreender que ao contrário do que muitos pensam,

Rousseau que foi considerado como sendo o pai da democracia popular, está mais para pai da

soberania popular. A democracia é uma forma de governo na qual muitos governam, sendo

que Rousseau ressaltou as desvantagens existentes na confusão de soberano e governo, e

mais, declarou abertamente que a democracia verdadeira jamais existiu e jamais existirá. Tais

colocações demonstram que para Rousseau a democracia é um objetivo inalcançável e até

mesmo indesejado, porque ele próprio não enxerga vantagens nessa forma de governo.

Acrescenta que um governo democrático enfrenta ainda, outros obstáculos, porque muitas

outras “coisas difíceis de reunir supõem esse Governo” (ROUSSEAU, 1983, p. 85). Rousseau

elenca quatro requisitos necessários para que ela exista:

Em primeiro lugar, um Estado muito pequeno, no qual seja fácil reunir o

povo e onde cada cidadão possa sem esforço conhecer todos os demais;

segundo uma grande simplicidade de costumes que evite a acumulação de

questões e as discussões espinhosas; depois, bastante igualdade entre as

classes e as fortunas, sem o que a igualdade não poderia subsistir nos

direitos e na autoridade, por fim, pouco ou nade de luxo – pois o luxo ou é

efeito de riquezas, ou as torna necessárias (ROUSSEAU, 1983, p. 85).

Assim a forma democrática é quase impossível de ser alcançada, porque exige a

combinação de muitos pressupostos, tanto objetivos, como por exemplo, o tamanho do

Estado, e a igualdade econômica, quanto subjetivos, no que se refere aos costumes dos

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cidadãos. Assim, conseguir reunir tais condições em um mesmo Estado é tarefa difícil, quase

impossível, e mesmo que fosse plenamente realizável, um governo democrático, por mais

estranho e contraditório que possa parecer, não seria vantajoso.

Há duas passagens emblemáticas utilizadas por Rousseau que demonstram

respectivamente sua visão negativa dos governos democráticos e a sua descrença na

possibilidade da existência deles. A primeira passagem afirma que “não há forma de governo

mais sujeita a guerras civis e a agitações intestinais quanto à forma democrática ou popular”

(ROUSSEAU, 1983, p.85). Isso se deve ao fato de que a forma democrática está em constante

movimento, justamente por se fundar na igualdade política, por ser de fácil acesso a todos, e

estar em constante modificação, o que pode provocar desavenças dentro do Estado,

principalmente porque poderão ocorrer tentativas de manipular as opiniões em benefício

próprio, a fim de conseguir objetivos privados. A segunda passagem é que “se existisse um

povo de deuses, governar-se-ia democraticamente. Governo tão perfeito, não convém aos

homens” (ROUSSEAU, 1983, p. 86). O governo democrático não pertenceria ao homem. Para

que um povo fosse governado democraticamente deveria ser um povo de Deuses, e não de

homens. Mas qual seria o melhor governo? Rousseau aponta a aristocracia eletiva como sendo

o melhor. Mas por quê? Responde Rousseau: “por ser por eleição, meio pelo qual a

probidade, as luzes e a experiência e todos os outros motivos de preferência e de estima

pública constituem outras novas garantias de que se será governado sabiamente”

(ROUSSEAU, 1983, p.87). E ainda, por não correr o risco de haver confusão entre governo e

soberano, tendo em vista que a aristocracia é governo de poucos.

Verifica-se que a expressão governo democrático em Rousseau possui significado

muito diferente da concepção política vigente. Os governos considerados democráticos na

atualidade não precisam preencher os requisitos estabelecidos por Rousseau, sendo que são

considerados democráticos os governos cujo poder emana do povo, que o exerce por meio de

representantes - o que para Rousseau é inadmissível pelos motivos aqui já demonstrados95

.

Outra ressalva que é importante se fazer, diz respeito à afirmação de que a

democracia se efetivaria, dentro outras exigências, quando um grande número de pessoas

governasse. Nota-se que dizer que democracia é um governo de muitos, significa para

Rousseau, dizer que muitos compõem o governo e que poucos são os governados, o que não

estará de acordo com a ordem natural.

95

Ver itens 2.2 e 2.5.

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É importante ressaltar que Rousseau reconhece que o magistrado está acometido

por três vontades distintas, a saber: a sua própria vontade, que Rousseau denomina de vontade

particular; a vontade do grupo ao qual faz parte (magistrados), denominada de vontade do

corpo, e uma terceira vontade que é a daqueles que compõe o soberano, chamada de vontade

do povo, vontade soberana ou vontade geral. De todas essas vontades, o magistrado deverá

fazer com que se sobreponha às demais, a vontade soberana, essa é a premissa de uma

legislação perfeita. No entanto, o que naturalmente ocorrerá é o inverso disso:

De acordo com a ordem natural, pelo contrário, essas várias vontades

tornam-se mais ativas à medida que se concentram. Assim, a vontade geral

é sempre a mais fraca, tendo em segundo lugar a vontade do corpo, e a

vontade particular o primeiro, de modo que no governo cada membro é

primeiramente ele próprio, depois magistrado e depois cidadão. Tal

gradação opõe-se inteiramente à exigida pela ordem social (ROUSSEAU,

1983, p. 80).

O governante precisará disciplinar-se para vencer sua natureza, para vencer a

vontade do corpo e em detrimento de sua própria vontade, levar em consideração a vontade

geral, pois somente assim seus atos serão legítimos, porque a gradação das vontades naturais é

exatamente oposta à gradação necessária para a vida social. Em sociedade, a vontade que

deverá prevalecer é a vontade geral, porque é a essa vontade que o governo deverá executar e

não a sua própria, e nem a vontade do corpo de magistrados do qual faz parte, porque se agir

de acordo com sua própria vontade, não estará respeitando a vontade soberana, e por certo,

violará o pacto social.

Segundo Goyard-Fabre “Rousseau foi o primeiro a fornecer uma análise técnica

rigorosa das máximas do governo do Estado. O estudo difícil e sutil ao qual procede no Livro

III do Contrato Social” (2002, p. 221). Antes mesmo de escrever a obra Do Contrato Social

Rousseau estabelece no Discurso sobre a Economia Política duas regra que deverão ser

observadas pelo soberano: a primeira delas é o respeito às leis, que são expressões da vontade

geral, então, seria o respeito à vontade geral, e a segunda regra é a conformidade das vontades

particulares à vontade geral, de forma que a virtude reine. A virtude nada mais é do que a

conformidade da vontade particular à vontade geral: “deseja-se a realização da vontade geral?

Deve-se então fazer com que todas as vontades se reportem a ela; e como a virtude nada mais

é do que essa conformidade da vontade particular à geral” [...] basta fazer reinar a virtude

(1995, p. 32). O próximo item abordará essa relação entre vontade particular e vontade geral,

e ainda a questão das sociedades parciais.

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2.9 VONTADE PARTICULAR E SOCIEDADES PARCIAIS

No que se refere às diferenças entre a vontade particular e a vontade geral, a

primeira afirmação a ser feita é de que a vontade particular não é a vontade geral, embora

ambas possam ocasionalmente ser coincidentes. Rousseau diferencia a vontade geral da

vontade particular afirmando que eventualmente pode haver muitas contradições entre elas,

mas que não é impossível que elas possam ser em um determinado momento a mesma

vontade, com a ressalva de que a comunhão dessas vontades pode não ser duradoura, porque

“[..] a vontade particular tende pela sua natureza às predileções e a vontade geral à

igualdade[...]” (ROUSSEAU, 1983, p. 44). A vontade particular é aquela que visa interesses

que não são da coletividade, mas sim, que são pessoais, particulares, próprios. Pode ocorrer

que em algumas vezes os interesses pessoais estejam de acordo com a vontade geral, mas isso,

segundo Rousseau, pode ser por acaso, porque a vontade geral está sempre voltada para a

utilidade pública e para o bem comum, e não para o interesse próprio.

Quando as vontades particulares se organizam em prol de um interesse particular

comum, que não corresponde com a vontade geral, formam o que se pode denominar de

sociedades parciais dentro do Estado. Para que a vontade geral venha a existir não deve haver

sociedades parciais. Para que a vontade geral possa ser expressa é necessária a não existência

de interesses privados organizados em facções divergentes dentro do Estado. Em prol do bem

comum, não pode haver divisões de interesses privados organizadas dentro da sociedade, pois

os interesses de determinada parcela do povo, por exemplo, de determinada classe, grupo ou

categoria que estivessem ligados entre si por alguma circunstância, se estivessem organizados

atentariam contra a vontade geral. Esses interesses particulares poderiam até, de certa forma,

se sobreporem à vontade geral, regendo as forças do Estado (porque é isso que a vontade geral

faz), mas não em benefício de pessoas indeterminadas, transindividuais, mas sim em seus

próprios benefícios, o que não satisfaz o requisito do bem comum.

Os interesses de determinada classe passariam a ser considerados como interesses

de todos, e é exatamente este o problema que surge segundo Rousseau, quando se têm

associações parciais ou facções dentro de do Estado, pois elas destroem a vontade geral: “mas

quando se estabelecem facções, associações parciais e expensas da grande, a vontade geral de

cada uma dessas associações torna-se geral em relação a seus membros e particular em

relação ao Estado [...]” (ROUSSEAU, 1983, p. 47). Desta forma, não devem existir facções

ou de associações parciais dentro do Estado, para que a vontade geral possa se estabelecer.

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Nota-se que o problema não está no fato de cada cidadão exercer sua

individualidade expressando suas opiniões. Pelo contrário, para que a vontade geral seja

obtida, conforme afirmado por Rousseau, se faz necessário que de cada vontade particular

seja extraído o substrato que dará origem a vontade geral, por isso, é correto dizer que a

vontade geral depende das vontades particulares. É bom que se ressalte essa relação de

dependência, para comprovar o que anteriormente foi dito, de que a vontade geral está sempre

em movimento, de acordo com as mudanças da vontade particular, desde que, é claro,

vinculada ao bem comum. Desta forma, é necessário que cada cidadão tenha a oportunidade

de formar sua própria opinião, não sendo conduzido por interesses parciais, mas sim

unicamente por seus próprios interesses, porque é dos interesses particulares que é extraída a

vontade geral, pois o interesse particular não é necessariamente um interesse egoísta, ou pelo

menos a natureza humana não pode ser reduzida a este sentimento, vejamos:

Por que é sempre certa a vontade geral e por que desejam todos constantemente a

felicidade de cada um, senão por não haver ninguém que não se aproprie da

expressão cada um e não pense em si mesmo ao votar por todos? Eis a prova de que

a igualdade de direito e a noção de justiça, por aquela determinada, derivam da

preferência que cada um tem por si mesmo e consequentemente da natureza do

homem (ROUSSEAU, 1983, p. 49).

Todos desejam a felicidade de cada um, e assim desejam a própria e é por isso que

é sempre certa a vontade geral, pois não exclui nenhum pactuante da sua proteção, visando o

bem de todos. Aquele que pensa nos demais quando exerce a função de soberano, está por

conseqüência se beneficiando pela sua atitude. É necessário que cada cidadão tenha sua

opinião, e que seja livre de influências parciais externas que possam manipulá-lo,

conduzindo-o para outra direção que não a da sua própria vontade, e conseqüentemente

conduzindo a vontade geral (que da particular depende) também para outra direção. Daí a

seguinte passagem: “[...] importa, pois, para alcançar o verdadeiro enunciado da vontade

geral, que não haja no Estado sociedade parcial e que cada cidadão só opine de acordo

consigo mesmo[...]” (ROUSSEAU, 1983, p. 47). Opinar de acordo consigo mesmo,

considerando seus interesses individuais é requisito decorrente da existência da liberdade, ou

seja, a expressão da vontade particular de cada membro do soberano é necessária, para que se

encontre o que há de comum nessas vontades para que delas seja retirada à vontade geral, sem

influências externas. Nota-se que para Rousseau o homem é livre quando em assembléia é

capaz de agir (manifestar-se) apenas com fundamento em sua própria consciência, sem

influências.

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Essas facções parciais prejudicam o desenvolvimento da vontade geral, porque

visam apenas interesses próprios de seus membros, ignorando os fins últimos da vontade geral

que são o bem comum e a utilidade pública. A vontade geral deve partir de cada um, sem

facções que impeçam esse desenvolvimento em prol da coletividade:

A prova de que a vontade geral para ser verdadeiramente geral, deve sê-lo tanto no

objeto quanto na essência; a prova de que essa vontade deve partir de todos para

aplicar-se a todos, e de que perde a explicação natural quando tende a um objetivo

individual e determinado, porque então julgando aquilo que nos é estranho, não

temos qualquer princípio verdadeiro de equidade para guiar-nos (ROUSSEAU,

1983, p. 49).

Portanto, a inexistência de facções é requisito de existência da vontade geral. No

entanto, há aqui uma ressalva a ser feita: Rousseau ao se referir às facções dentro do Estado,

afirma que elas não devem existir, mas ressalta que quando elas existirem deve ser em

número tão grande, que nenhuma delas tenha força para dominar. Havendo interesses parciais

fortalecidos, esses se tornariam pequenas vontades gerais perante uma coletividade e em

vontades particulares perante a homogeneidade do povo.

Do contraste entre a vontade particular e a vontade geral depende a existência do

corpo social, o mesmo ocorre do contrataste entre a liberdade civil e a vontade particular.

Enquanto o homem civil busca a independência, o homem no estado natural nasce

independente. Assim, a vontade particular está submetida à vontade geral, e a expressão da

vontade geral é a lei, então todos estão submetidos a ela. Conforme afirma Monteagudo, “a

vontade geral é resultante de todas as vontades particulares e, se não há resultante, a união não

pode existir, não há associação, não há pacto, não há corpo moral” (2006, p. 143-4). Assim,

há essa relação de dependência da vontade geral em relação à vontade particular, sendo que

esta pode ser denominada de matéria prima que compõe àquela. Todos que estão vinculados

ao pacto devem contribuir para se determinar a vontade geral.

2.10 TAMANHO DO ESTADO E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA

O Estado ideal no qual o direito político de Rousseau pode se desenvolver e se

manter é aquele com limitação extensiva. Rousseau é enfático ao descrever as características

dos Estados menores, como sendo mais favoráveis para que as leis sejam observadas:

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“conclui-se que quanto mais o estado aumenta, mais diminui a liberdade” (ROUSSEAU,

1983, p. 76).

Os Estados pequenos possuem menos problemas para serem administrados, porque

as fronteiras são menores, o que facilita a defesa, tornando-a menos onerosa. Devido a

pequena extensão, o governo tem mais força e presteza e consegue fazer com que as leis

sejam observadas. O Estado apto a receber a legislação que será fundamentada na vontade

geral não deve ser extenso a ponto de tornar a defesa de seu território difícil, no entanto não

pode ser limitado demais a ponto de não ser suficiente para abrigar e manter sua população,

fazendo com que ela necessite de outros Estados.

É notável a preferência por Estados menores, em detrimento dos maiores, no

entanto quando menciona a limitação do Estado, ele não sugere uma extensão exata de

quilômetros quadros que seria ideal para comportar a legislação oriunda da vontade geral. O

Estado deve ser pequeno, mas não pequeno demais. Um Estado é pequeno demais quando

suas terras não fornecem comida suficiente aos seus moradores, e estes não conseguem

sobreviver sem a ajuda dos outros Estados. Nota-se, portanto, que não se trata apenas de uma

questão de quantidade de terra, mas também de densidade demográfica, ou seja, deve haver

uma relação equilibrada entre geografia e demografia para que o Estado seja capaz de abarcar

a legislação oriunda da vontade geral. A localização do Estado, seu clima, a fertilidade e a

produtividade do solo, a proximidade com o mar, o número de habitantes do Estado, tudo

influenciará. Deve existir harmonia entre a capacidade produtiva do solo, e o consumo dos

alimentos produzidos pelos habitantes, e os índices de natalidade. Assim, por exemplo, se o

solo não for capaz de produzir, deve estar em proximidade com o mar, que poderá suprimir

essa falta de produtividade do solo. Os índices de natalidade devem ser proporcionais para

que não faltem habitantes no Estado para sua conservação e também para que não exceda a

capacidade do Estado de abrigá-los e mantê-los. Portanto, o Estado deve ser bem conformado,

é o que afirma Rousseau:

Assim como a natureza deu limite à estatura de um homem bem conformado, além

dos quais produz gigantes ou anões, do mesmo modo existem, relativamente a

melhor constituição de um Estado, limites da possível extensão, a fim de que não

seja demasiado grande para ser bem governado, nem muito pequeno para manter-se

por si mesmo (ROUSSEAU, 1983, p. 62).

Assim o Estado deve ser pequeno o suficiente para que possa ser comandado pelo

império da vontade geral: “quanto mais se estende o liame social, tanto mais se afrouxa, e em

geral um estado pequeno é proporcionalmente mais forte do que um grande. Mil razões

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demonstram essa máxima” (ROUSSEAU, 1983, p. 62). O Estado pequeno tem mais

vantagens para Rousseau, tanto o pequeno em extensão de terra, cujas fronteiras são mais

fácies de serem defendidas, quanto o Estado pequeno em densidade demográfica:

Suponhamos que o Estado se componha de dez mil cidadãos. O soberano

não pode ser considerado senão coletivamente e como um corpo; cada

particular, porém, na qualidade de súdito, é considerado como indivíduo;

assim o soberano está para o súdito como dez mil estão para um, isto é, cada

membro do Estado tem por sua a décima milésima parte da autoridade

soberana, conquanto esteja inteiramente submetida a ele. Seja o povo

composto de cem mil homens, e não muda a situação dos súditos,

suportando cada um igualmente todo o império das leis, enquanto seu

sufrágio, reduzido a um centésimo de milésimo, tem dez vezes menos

influência na redação delas (ROUSSEAU, 1983, p. 76).

Quanto maior o número de habitantes no Estado, menor será a parcela de

soberania de cada um deles, pois considerando que para se obter a parcela de soberana de

cada membro, deve-se dividi-la igualmente entre os pactuantes, quanto maior for o numero de

membros, maior será o divisor, e consequentemente, tendo em vista que a relação é

inversamente proporcional, quanto maior for o número habitantes do Estado, menor será a

parcela de soberania de cada um.

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3 CONCLUSÃO

Rousseau não percebia nas manifestações políticas de seu tempo a existência de

um direito político, por isso escreveu que o direito político estaria por nascer. Nosso filósofo

acreditava que a disciplina das relações políticas que era aplicada a sua época estava longe de

receber a classificação de direito político. Essa interpretação se deve ao fato de que o

genebrino não enxergava nas relações políticas estabelecidas à existência de um vínculo

jurídico fundamentado na legitimidade. Ao contrário disso, avaliava as relações políticas de

seu tempo como sendo fundamentadas na desigualdade e na dominação de um homem sobre o

outro, e por isso, eivadas de ilegitimidade.

Quando Rousseau escreve o Segundo Discurso e nele responde a questão da

academia de Dijon afirmando que a origem da desigualdade entre os homens não é natural,

mas sim uma artificialidade que se iniciou quando o homem passou a conviver com os demais

de sua espécie e a desejar reconhecimento, desenvolveu nessa obra o conceito do pacto dos

ricos. Esse pacto é na verdade a leitura que Rousseau faz do que acontecia na sociedade a qual

pertencia.

Não é inútil relembrar que para Rousseau o pacto dos ricos foi uma proposta

realizada por aqueles que conseguiram agregar maior propriedade na sociedade incipiente em

vista da manutenção da desigualdade daí originada, emprestando-lhe uma aparente

legitimidade. Há uma linha lógica e cronológica traçada pelo genebrino que indica que

quando houve a transição do estado de natureza para o estado social (transição que se deu

com o surgimento da propriedade privada) houve um estado de guerra de todos contra todos.

O homem que se lançava para a vida social, que convivia com os demais de sua espécie, tinha

em si o desejo de reconhecimento e de individualização. Necessitava diferenciar-se dos

demais, a ter, fazer e criar coisas que fossem somente suas, que fossem reconhecidamente

melhores do que as dos outros: ser reconhecido perante seus semelhantes.

O homem desse período de transição via em seu semelhante um rival, um

adversário a ser vencido na luta pelo reconhecimento. O desejo pela propriedade era latente, e

eis que por parte daqueles que acumularam maiores riquezas surge a seguinte proposta: para

que todos tenham segurança, para que a guerra generalizada de todos contra todos termine, e

para que cada um viva em paz, devemos realizar um pacto. Nele cada pactuante se

compromete a manter os bens que possui, e também renuncia a possibilidade de adquirir

novos em um âmbito que ultrapasse regras previamente estabelecidas por essa sociedade. Por

que Rousseau pressupõe que os proponentes do pacto foram os ricos? A resposta é simples:

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porque os ricos seriam os únicos que perderiam com a guerra generalizada de todos contra

todos, pois se os pobres continuassem a lutar em busca da propriedade que já estava na posse

dos ricos, ainda teriam chances de adquiri-la, o que por certo seria muito desvantajoso para os

primeiros. Assim surgiu a proposta de cada um manter o que tinha, através de mecanismos

jurídicos, sendo que os ricos conseguiram convencer os pobres (que só tinham a pobreza) a

com ela ficar, e ainda a renunciar ao direito de tentar reaver o que perderam (a liberdade).

Rousseau explica essa passagem do pacto dos ricos também no Discurso sobre a Economia

Política96

quando resume o pacto a uma fraude, na qual os ricos comandariam os pobres em

troca permitiram aos pobres terem a honra de servi-los.

O pacto dos ricos por ser fundamentado na dominação de um homem sobre outro,

e desta forma na conseqüente desigualdade, e ainda na renúncia da liberdade, recebeu de

Rousseau o título de ilegítimo, porque contraria as leis da natureza. O homem não é

naturalmente desigual, as desigualdades naturais existentes são somente físicas, que em nada

afetam a vida social e a igualdade que nela deve ser pressuposta. O homem que vive em

sociedade não deve estar subjugado à vontade de um outro homem, sob pena de perder sua

liberdade, e consequentemente renunciar a sua própria condição humana.

Rousseau afirma que a liberdade e a perfectibilidade97

são as duas características

pertencentes à espécie humana. A perfectibilidade é a capacidade de o homem aperfeiçoar-se,

que não admite renúncia porque é manifestação intelectual involuntária, inerente à espécie, e

assim não poderia ser renunciada. Quanto à liberdade, quando um homem aceita submeter-se

a outro, a viver sob o comando e dominação de um senhor, e a servi-lo, renuncia a sua

liberdade. Esse ato de renúncia à liberdade humana é visto por Rousseau como uma renúncia

à própria condição humana, pois somente o homem é livre para escolher, enquanto os animais

apenas cumprem os desígnios de suas espécies.

Renunciando a esta especificidade o homem, portanto, renuncia a sua própria

condição humana. Quando os pobres, portanto, renunciaram à liberdade, afetaram um direito

humano inerente à própria condição, que jamais poderia ter sido renunciado, sob pena de

renunciar a própria qualidade humana. Para Rousseau esse ato tornou o pacto realizado

ilegítimo, porque não estaria de acordo com a lei natural, e por isso seria injusto. Desta forma,

Rousseau analisava as relações políticas existentes ao seu tempo, que se fundamentavam na

dominação de um homem sobre outro, como sendo ilegítimas. O fato de um homem se

96

“Podemos resumir em quatro palavras o pacto social entre as duas partes: Você tem necessidade de mim,

porque sou rico e você é pobre; façamos então um acordo: permitirei que você tenha a honra de me servir, desde

que me seja dado o pouco que lhe resta, em troca do meu comando” (ROUSSEAU, 1995, p. 52-3). 97

Ver item 1.1.1.

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submeter a outro, ou de um grupo de pessoas pertencentes a uma nação se submeterem a um

soberano carece para Rousseau de legitimidade.

A questão-problema que se impõe diz respeito, à quais seriam então os

fundamentos de um pacto, e, portanto de um poder político legítimo. No pensamento do nosso

autor, deveria existir uma forma do homem conviver em sociedade, sem servir a quem quer

que seja, mantendo-se livre, obedecendo somente a si e aos seus desígnios, sem submeter-se a

vontade de ninguém, decidindo por si, sem influências, sem servidão. Só assim, através dessa

capacidade de se auto-determinar o homem poderia pactuar legitimamente. Mas como

resolver essa questão? Como equacionar a vida em sociedade que exige conformação de seus

membros a certos limites necessários para sua possibilidade, com a premente necessidade de

ser livre e obedecer somente a si, sob pena de pactuar ilegitimamente? Como conciliar a vida

coletiva com a liberdade individual?

É justamente para responder a essa questão nada simples que Rousseau escreve a

obra Do Contrato Social. Nela, se encontra grande parte dos fundamentos de legitimidade do

direito político de Rousseau. Quando Rousseau disse no Emílio que o direito político estava

por nascer98

, era do direito político com fundamentos de legitimidade que falava. Rousseau

então escreveu uma obra maior (Instituições Políticas) na qual tratava desses fundamentos,

mas essa obra não chegou a ser terminada, sendo que acabou por originar uma obra menor

denominada de Do Contrato Social, onde Rousseau apresenta a grande maioria dos

fundamentos do que entende ser o direito político legítimo. Mas quais seriam então esses

fundamentos que permitiriam com que o homem pactuasse legitimamente?

Para responder a essa questão, é preciso levar em conta a importância de se estudar

o pacto civil dos ricos, considerado ilegítimo por Rousseau. O que havia de ilegítimo no pacto

dos ricos? É justamente essa ilegitimidade que não poderá ser reproduzida no pacto legítimo.

Essencialmente, o pacto dos ricos foi considerado ilegítimo porque se fundamentava na

desigualdade entre ricos e pobres, sendo que os primeiros dominavam os demais, em troca de

uma falsa segurança proporcionada por um “estado de paz”, no qual os ricos só tinham a

ganhar, e também na renúncia a liberdade dos pobres que aceitaram obedecer e servir aos

ricos. Portanto, o pacto civil legítimo não poderia ter os mesmos vícios da desigualdade e da

renúncia da liberdade. Surge então outra questão: como garantir a igualdade e a liberdade aos

pactuantes? Através de um novo pacto social, tendo em vista que para Rousseau a fonte de

legitimidade não está em Deus, ou na força, mas sim nas convenções. É através de um novo

98

“O direito político está por nascer” (2004, p. 676).

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pacto social, no qual os homens reuniriam suas forças em uma agregação, na qual cada um

unindo-se ao todo obedecesse somente a si. O pacto social legítimo seria fundamentado em

uma cláusula: a da alienação total de cada associado, de todos os seus direitos, a comunidade

toda. Mas como poderia isto ser possível? Para ser livre seria necessário que o homem se

alienasse totalmente? Não seria esta uma incoerência?

A resposta a essa questão é negativa. Todos os pactuantes fazendo alienação sem

reservas, formam um todo perfeito, e a ninguém resta o poder superior que pudesse decidir. É

a fórmula de Rousseau: “cada um dando-se a todos não se dá a ninguém” (ROUSSEAU, p.

33, 1983). Cada pactuante no ato de associação se coloca sob a direção suprema da vontade

geral, e contribui para a formação de um corpo moral e coletivo, que se manifestará através

dos votos em assembléia. É através do complexo conceito da vontade geral99

que o povo

quando reunido em assembléia se torna o único soberano100

legítimo.

Portanto, ao invés de fundamentar a soberania em uma pessoa, Rousseau transfere-

a para o povo, que não poderá delegar seu exercício. Cada membro componente do pacto tem

o mesmo poder de voz e voto em assembléia, que deverá exercer pessoalmente, sem

representantes e sem influências dos demais membros. Cada um guiado por sua própria

consciência decidirá se o tema a ser votado está ou não de acordo com a vontade geral, que

sempre visa o bem comum101

e a finalidade pública.

É importante ressaltar que cada membro no momento de avaliar o objeto de

votação, não deverá levar em consideração a sua vontade particular, nem a vontade da

maioria, nem a vontade de todos, mas sim a vontade geral, que visa o bem comum. Essa

consulta que cada um faz a sua própria consciência, verificando se a regra está ou não de

acordo com a vontade geral, deve ser norteada principalmente pela piedade102

, pelo amor de

si103

, mas nunca pelo amor próprio104

. Por isso a importância do estudo desses conceitos no

primeiro capítulo, porque são de extrema relevância no momento do povo soberano

manifestar-se sobre a vontade geral, pois somente a apreciação da proposta de lei feita pelo

legislador105

, e posteriormente analisada pelo crivo da vontade geral, faz com que esta se

torne efetivamente uma lei.

99

Ver item 2.2. 100

Ver item 2.4. 101

Ver item 2.6. 102

Ver item 1.1.2. 103

Ver item 1.1.3. 104

Ver item 1.1.5. 105

Ver item 2.7.

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Essa lei aprovada pelo povo deverá ser por este cumprida, e nesse momento o

povo que era soberano quando da aprovação, se torna súdito, estando obrigado a respeitar a

lei. Questiona-se: ao obedecer à lei, o homem não estaria renunciando a sua liberdade? A

resposta é negativa. Para Rousseau, não há liberdade sem leis, nem onde exista alguém que

esteja acima das leis. No entanto, não se trata de qualquer lei, mas sim aquela lei

fundamentada na soberania da vontade geral, pois o pacto ilegítimo também propunha leis, e

inclusive pregava a soberania das leis, mas se tratava de uma lei ilegítima, porque fazia com

que o homem renunciasse a sua condição humana. A soberania popular não pode prescindir

das leis. Onde não há leis legítimas, o povo resta por obedecer aos homens. A lei aprovada

pela vontade geral, que pressupõe a liberdade fundamentada na soberania popular é impessoal

e visa o bem comum e a utilidade pública. Quando o que rege é o império da lei legítima, que

deve ser dirigida para todos, sem procurar beneficiar ou prejudicar ninguém, faz com que

todos estejam sob seu comando, sem exceções, sendo que somente o soberano é livre para

modificar as leis quando julgar necessário. Essa é a forma do povo obedecer sem servir, sem

ser subjugado. A lei no estado social é a própria garantia de liberdade, mas não deve ser

qualquer lei, mas sim aquela proposta pelo legislador, e que está de acordo com a vontade

geral, e por isso visa o bem comum. Trata-se da lei que foi aprovada em assembléia pelo

próprio povo soberano, que exerceu pessoalmente seu direito de voto, sem influências

externas.

Nesse sentido o presente estudo teve como objetivo central demonstrar os vários

requisitos necessários apresentados por Rousseau para a construção de um direito político

legítimo, sendo que cada item deste estudo representa um dos requisitos necessários para que

a legitimidade política ocorra segundo o pensamento político de Rousseau.

É sempre importante ressaltar que a obra Do Contrato Social foi escrita no século

XVIII, voltada para seu tempo, e que mesmo naquela época, talvez sua aplicação seria

inviável. Mas então, por que estudar o direito político de um filósofo cujo pensamento seria

talvez inaplicável? Porque Rousseau ao escrever a obra Do Contrato Social desenvolveu uma

escala do que seria ideal para o homem viver em sociedade sem a necessidade de servir a

outro, mantendo-se livre. Rousseau não se preocupou com a aplicação prática de sua teoria,

tinha o objetivo filosófico de detectar o problema de falta de legitimidade e apresentar sua

teoria de um direito político legítimo. Rousseau desenvolveu sua teoria política fundamentada

na soberania popular através da vontade geral. Somente o povo é soberano, e deve exercer

pessoalmente essa soberania, sem a possibilidade de delegação ou representação. O povo

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reunido em assembléia deve manifestar-se de acordo com a vontade geral, que é sempre certa

e visa o bem comum e a utilidade pública.

Verifica-se que Rousseau ao desenvolver sua teoria detectou que critérios jurídicos

de legalidade não são suficientes para se garantir a legitimidade. Ao analisar o pacto civil

ilegítimo, que teve como pressuposto a renúncia à liberdade (os pobres se comprometiam a

servir os ricos) e a desigualdade (caracterizada pelas diferenças econômicas existentes entre

ricos e pobres), Rousseau notou que mesmo sendo fundamentado em critério de legalidade

(uma convenção) estava eivado e ilegitimidade, porque contrariava a lei natural. O homem

nasce livre e igual e qualquer convenção que desconsidere esses pressupostos não pode ser

legítima. Mas como possibilitar a vida em sociedade, se todos são livres e iguais com a

necessidade de um soberano? O soberano não poderia ser uma pessoa, porque se assim fosse,

os pressupostos de igualdade e liberdade seriam afetados. A resposta encontrada por Rousseau

foi a transferência da soberania para todo o povo, que deveria exercê-la em conjunto, quando

reunido em assembléia.

O povo manifestar-se-ia de acordo com a vontade geral. O conceito de vontade

geral é extremamente importante para se compreender a teoria da legitimidade do direito

político em Rousseau, no entanto é inegável que embora muitos estudiosos se debrucem sobre

tal conceito, ainda resta muito a ser analisado, e muito ainda a ser respondido. Mais que isso,

é necessário ainda estudar a pertinência, a atualidade, a necessidade de adequação da resposta

dada por Rousseau de como se equacionar a vida em sociedade com a liberdade e a igualdade

entre os homens, principalmente no que se refere ao tema da vontade geral, que ocupa posição

central, e que deve ser atualizado em cada sociedade.

O pacto civil legítimo, fundamentado na alienação total e na soberania popular

expressa através da vontade geral, que visa manter o homem livre e igual foi a maneira

encontrada por Rousseau de legitimar o poder político. Foi a transferência do exercício da

soberania ao povo a grande inovação do pensamento político de Rousseau, e essa forma de

legitimação do poder político encontrada pelo filósofo genebrino foi o objeto de estudo do

presente trabalho.

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