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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO MARANHÃO CENTRO DE EDUCAÇÃO, CIÊNCIAS EXATAS E NATURAIS
DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA E GEOGRAFIA CURSO DE HISTÓRIA
ARLINDYANE DOS ANJOS SANTOS
“GENTE NOBRE DA GOVERNANÇA”: (re) invenção da nobreza no Maranhão Seiscentista (1675-1695)
São Luís 2009
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ARLINDYANE DOS ANJOS SANTOS
“GENTE NOBRE DA GOVERNANÇA”: (re)invenção da nobreza no Maranhão Seiscentista (1675-1695)
Monografia apresentada como parte dos requisitos para obtenção do título de Graduação no Curso de História Licenciatura Plena da Universidade Estadual do Maranhão
Orientador: Prof.º Ms. Alírio Carvalho Cardoso
São Luís 2009
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Santos, Arlindyane dos Anjos. “Gente nobre da governança”: (re)invenção da nobreza no Maranhão Seiscentista (1675-1695) / Arlindyane dos Anjos Santos. – São Luís, 2009.
108 fl.
Monografia (Graduação) – Curso de História, Universidade Estadual do Maranhão, 2009.
Orientador: Prof.º Msc. Alírio Carvalho Cardoso
1. Nobreza 2. Reinvenção3. Maranhão 4. Século XVIII I. Título.
CDU: 94(812.1)
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ARLINDYANE DOS ANJOS SANTOS
“GENTE NOBRE DA GOVERNANÇA”: (re)invenção da nobreza no Maranhão Seiscentista (1675-1695)
Monografia apresentada como parte dos requisitos para obtenção do título de Graduação no Curso de História Licenciatura Plena da Universidade Estadual do Maranhão Orientador: Prof.º Ms. Alírio Carvalho Cardoso
Aprovada em: ____/____/____
BANCA EXAMINADORA
__________________________________________ Prof.º Ms. Alírio Carvalho Cardoso
(Orientador)
____________________________________________ 1º examinador (a)
_____________________________________________ 2º examinador (a)
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Em memória de Ambrosina de Jesus Duarte do Nascimento e Maria Vitória Ferreira do Nascimento
Para sempre.
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AGRADECIMENTOS
Tenho muito e a muitas pessoas para agradecer. A realização deste trabalho não
seria possível sem a participação, em diversos graus e em especiais momentos da minha
vida, de várias pessoas. Não poderia, em tão poucas linhas, incluir todos a quem sou
imensamente grata, mas aos que aqui agradeço, faço-o profunda e sinceramente, ciente
de que ainda assim não irei traduzir em tão poucas palavras o que cada um realmente
representou.
Algumas “dívidas de gratidão” acumulamos em uma vida inteira, e mesmo
sabendo não poder saldá-las apenas com palavras, agradeço primeiramente, de todo o
coração, aos meus “dois pares” de pais: Antônia, Arlindo, Maria e Osmarino. Sem o
infinito amor, confiança, compreensão, e os (muitos) e reconhecidos sacrifícios destes
quatro, eu nunca poderia ter realizado este trabalho. Minha mais profunda gratidão a
vocês, por toda a vida.
Agradeço de forma especial ao meu amor e companheiro de paixão por História,
Henrique. Obrigada pelo apoio, incentivo, pelas sugestões, pela (infinita) paciência e,
principalmente, por Arthur.
À Cristina, pela imensa dedicação e carinho, em todos esses anos da minha vida.
Minha mais sincera gratidão a Alírio Cardoso, que me orientou
competentemente, nas longas e por vezes tumultuadas trilhas deste trabalho, com grande
responsabilidade e sincero afinco. Obrigada pelas críticas valiosas, pelas sugestões
acuradas, pelo apoio e incentivo desmedido e, principalmente, pela confiança. O
resultado deste trabalho é, sem dúvida, fruto de sua grande confiança em mim
depositada. Sinto-me honrada.
Ao longo de pouco mais de quatro anos, a UEMA foi um dos lugares mais
importantes da minha vida. Ali cultivei amizades sinceras e encontrei profissionais
dedicados e competentes, que foram fundamentais na minha trajetória acadêmica e
pessoal. Agradeço, portanto, à Prof.ª Marivânia Furtado: das suas aulas levarei para
sempre aprendizagem e reflexões para a vida; ao Prof.º Henrique Borralho, a quem
seguramente devo o fato de ser completa e perdidamente apaixonada por História; à
Prof.ª Helidacy Correa, que com sua competência e zelo em sala de aula, foi a
responsável por minha paixão pelo Maranhão Colonial; ao Prof.º Yuri Costa, que
conheci a pouco tempo, mas a quem devo preciosos e fundamentais conselhos; aos
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professores Alan Kardec, Fábio Monteiro e Marcelo Cheche, que transformaram o meu
percurso acadêmico em uma experiência agradável e produtiva; aos professores Júlia e
Ximendes, por suas inabaláveis compreensão e carinho.
De forma especial, a todos os professores da UEMA, que de uma forma ou de
outra, contribuíram para a minha formação. Meus sinceros agradecimentos.
Ao querido e muito “requisitado” amigo Fábio Aurélio, por estar sempre à
disposição quando precisei (e não foram poucas vezes). Obrigada pela paciência.
Às amigas Gilliam e Luciana, quero agradecer pela consideração e carinho
infinito.
Uma parte fundamental na maravilhosa e preciosa “história” que vivi na UEMA
nestes últimos quatro anos e meio são, principalmente, os grandes amigos que
conquistei. Pessoas que irão estar presentes para o resto da minha vida. Agradeço,
então, a todos vocês que transformaram essa experiência em algo único e maravilhoso:
Camila, Clenílson, Daisy, Eloy, Fernando, Jorge, Leandro, Mariana, Marco Aurélio,
Nazaré, Neila, Paulo, Renata, Rafael e Roberta. Obrigada por estarem sempre comigo.
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“A herdada nobreza aumenta, mas não dá merecimento
dos heróis a grandeza deve-se ao braço, deve-se ao talento”
Inácio José de Alvarenga Peixoto, Minas Gerais, século XVIII
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RESUMO
O século XVII para o Império atlântico português pode ser pensado como um período
de profundas e significativas mudanças na estruturação das hierarquias de poder e nas
normas formais de classificação social vigente. Como um espaço constitutivo deste
Império, e inserido nas tramas do jogo político luso de Antigo Regime, o Antigo
Maranhão articulava-se a essa lógica de transformações pelas quais passava o corpo
societário português de fins dos Seiscentos. Com a dinâmica de mudanças processadas
no Império luso, categorias e relações sócio-políticas passaram a possuir sentidos
diversos do tradicional, dando novos significados à ocupação dos lugares sociais
estabelecidos. A concepção de nobreza é justamente uma dessas categorias que estão
sendo ressignificadas em Portugal no século XVII. No Maranhão, iremos encontrar um
grupo de indivíduos autodenominando-se de nobres, produzindo para tanto discursos e
práticas de distinção social e nobilitação, reinventando o tradicional conceito de nobreza
(de corte, hereditária, titulada) e adequando-o às circunstâncias e aos elementos locais
que permitiram tal reinvenção. Neste trabalho, analisamos as formas e estratégias
utilizadas por esses homens para reinventarem localmente essa idéia de nobreza,
moldando-a as suas possibilidades e interesses, garantindo assim um eficaz
reconhecimento entre seus pares na colônia.
Palavras-chave: Nobreza; Reinvenção; Maranhão; Século XVII.
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RÉSUMÉ
Le XVII siècle à l'Empire portugais atlantique peut être considérée comme une période
de profonds et importants changements dans la hiérarchie du pouvoir et de normes
officielles pour le classement social. Comme élément constitutif d'un espace empire, et
inséré dans le cadre du jeu politique de l'Ancien Régime portugais, l'ancien Maranhão
articulés à cette logique de traitement par la société portugaise qui a été à des fins de
Six. Avec le processus dynamique de changement dans l'Empire portugais, les
catégories et les relations socio-politiques ont commencé à avoir des sens différents de
la tradition, l'acquisition de nouvelles significations de l'occupation des lieux sociaux
fixés. Le concept de noblesse est une de ces catégories, qui sont de nouveau en
portugais au XVIIe siècle. Dans le Maranhão, on trouve un groupe d'individus est noble
de l'auto-produire pour les deux discours et des pratiques de distinction sociale et de
l'ennoblissement, de réinventer le concept traditionnel de la noblesse (découpage,
héréditaire, titrée) et de l'adapter aux circonstances et les éléments de preuve qui a
permis à ces sites réinvention. Dans cette étude, nous avons analysé les formes et les
stratégies utilisées par ces hommes à l'idée de réinventer la noblesse locale, l'élaboration
de leurs possibilités et leurs intérêts, assurant ainsi une reconnaissance effective de leurs
pairsdanslacolonie.
Mots-clés: Noblesse; Réinvention; Maranhão; XVII Siècle.
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SUMÁRIO
CONSIDERAÇÕES INICIAIS…………………....…………………….....11
1. UMA NOBREZA SEM CORTE……………………………………….......18
1.1 O jogo político no Império Português: palavras prévias..............18
1.2 As regras do jogo: alguns casos exemplares…………………......20
1.3 O Império Português em questão: uma historiografia colonial
renovada.........................................................................................25
1.4 Em busca de um conceito de nobreza...........................................31
1.5 Retratos do Maranhão Seiscentista: o cenário de reinvenção de
uma nobreza......................................................................................34
2. CONDIÇÕES DA NOBREZA LOCAL........................................................40
2.1 Status de nobreza e práticas econômicas......................................40
2.2 Senhores de terras e de gentes.......................................................45
2.3 “Os senhores do senado”: homens bons e status de nobreza.........53
3. O “LIVRO DA NOBREZA”: a condição de nobreza registrada em at........63
3.1 As Listas dos Cidadãos de São Luís.............................................65
3. 2 A Companhia da Nobreza............................................................72
3.3 A Câmara e a Companhia: circulação de homens e de poderes...78
3.4 Cidadãos, moradores, comerciantes, militares: as várias faces
da nobreza “maranhense”......................................................................86
CONSIDERAÇÕES FINAIS..........................................................................92
REFERÊNCIAS..............................................................................................95
ANEXOS.........................................................................................................101
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CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Os personagens que transitaram pelo Antigo Estado do Maranhão de fins do
século XVII deixaram registrados, em um bom número de escritos do período, seus
discursos, ações e também as formas como se moviam no espaço político em que
estavam inseridos e do qual também eram construtores. Engendraram estratégias,
buscaram mecanismos de distinção e prestígio, recriaram categorias e deram sentidos e
interpretações diferenciadas para conceitos e idéias circulantes no Antigo Regime.
Todos estes elementos nos permitem “rastrear” a forma como alguns destes homens
entendiam seu próprio papel dentro do complexo jogo político do Império Português.
Nas articulações das redes de poder sob as quais os homens do Maranhão
Seiscentista agiam e forjavam seus espaços e vivências, um dos pontos fundamentais
era a forma como esses indivíduos recriaram suas hierarquias sociais, suas camadas de
distinção e peso político locais.
Neste trabalho, nosso objetivo prima pela análise do que consideramos como um
processo de reinvenção da concepção de nobreza no Maranhão, entre os anos de 1675 e
1695. Atentando, portanto, para essas estratégias engendradas por um determinado
estrato social que entendia que, por um motivo ou por outro, sua condição seria
“superior” em relação aos outros habitantes do Estado.
A princípio, devemos ressaltar que as definições de lugares sociais e hierarquias
no Maranhão do século XVII encontram-se inseridas no quadro maior da dinâmica das
relações políticas que eram construídas no Império luso. As ressignificações do conceito
de nobreza no Maranhão e a análise dos mecanismos de alcance de status diferenciado,
questões que trataremos nos limites deste trabalho, só podem ser efetivadas na medida
em que se concebe o Maranhão enquanto território constitutivo do Império atlântico
português.
Iremos enfatizar a importância da dinâmica de situações mais específicas,
forjadas em uma conjuntura mais restrita, que tem como cenário o Maranhão de fins do
século XVII, sem perder de vista as diversas relações de poder estabelecidas entre a
região e outros espaços políticos do Império lusitano no período pretendido.
A abordagem da reinvenção da idéia de nobreza nos anos finais do século XVII
no Maranhão será efetivada pelo viés da chamada Nova História Política, por
entendermos que o enfoque de tais perspectivas historiográficas, que concebem as
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relações políticas como intimamente atreladas à noção de poder, melhor se adequam à
nossa proposta.
Segundo Francisco C. Falcon, esses novos olhares e abordagens lançados sobre a
perspectiva do político na História começaram a se consolidar nas três últimas décadas
do século XX, interessadas agora não apenas na tradicional e inexorável vinculação
entre Estado e poder, mas procurando dar visibilidade a outras instâncias onde esse
poder se revela. Esses estudos pautavam-se agora na ampliação das possibilidades de
interpretação acerca dos aspectos políticos e suas relações com a noção de poder,
vinculando-os a outros domínios da história, até então considerados inconciliáveis, a
exemplo da Historia Cultural1.
A análise dos mecanismos de nobilitação utilizados por um determinado estrato
social para se arrogarem à condição de nobres no Maranhão dos Seiscentos só pode ser
pensada como viável se levarmos em conta as formas díspares e plurais pelas quais o
poder de insere na sociedade em suas múltiplas articulações. Influenciadas pelas
análises genealógicas de Michel Foucault acerca da noção de poder as novas abordagens
empreendidas pela História Política relativizam, ou mesmo negam o papel absoluto do
Estado como aparelho central e exclusivo de poder, percebendo-o em outros espaços e
instituições2.
Foucault concebe o poder como uma prática social, e como tal, construída
historicamente, logo, não existe como forma homogênea e global, mas estabelecido em
formas díspares, em constante transformação3. Nesse sentido, o estudo do político na
historiografia nas últimas décadas tem atentado principalmente para as táticas
subjacentes ao “jogo político”, às interpretações simbólicas, às diversas práticas
discursivas associadas à construção das hierarquias de poder que estruturam uma
sociedade.
As novas perspectivas historiográficas do campo político e acerca da noção de
poder também deram novos rumos para o estudo das instituições portuguesas do
chamado Antigo Regime e também para as reflexões levadas a cabo pela recente
historiografia colonial brasileira. É por volta da década de 1980 que categorias como
“Estado”, “centralização” e “poder absoluto”, conceitos fundamentais no debate
1 FALCON, Francisco. História e Poder. In: CARDOSO, Ciro F. & VAINFAS, Ronaldo. Domínios da
História. Editora Campus, 1997. 2 FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. 22ª ed. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979, p. 10. 3 Idem, Ibid, p. 10-11.
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historiográfico do período, estão sendo rediscutidas, colocadas sob novos enfoques e
trabalhadas a partir de outros referenciais teóricos4.
António Manuel Hespanha, o nome de maior destaque dessa historiografia em
Portugal, questionou uma série de idéias estabelecidas sobre a constituição moderna
portuguesa, criando novas possibilidades de compreensão do papel da monarquia entre
os séculos XV e XVIII, agora caracterizada como parte de uma sociedade “corporativa”.
Segundo Hespanha, nessa sociedade entendida como “corporativa”, o poder real
partilhava o espaço político com poderes de maior ou menor hierarquia. O direito
legislativo da Coroa, por exemplo, era limitado e enquadrado pela doutrina jurídica (ius
commune) e pelos usos e práticas jurídicas locais; os deveres políticos cediam perante
os deveres morais (graça, misericórdia, piedade, gratidão). Os oficiais régios, portanto,
gozavam de uma proteção muito alargada dos seus direitos e atribuições, podendo fazê-
los valer mesmo em confronto com o rei, por isso, a minar e mesmo expropriar o poder
real5.
Essa noção de uma monarquia constituída de múltiplos poderes sugere, portanto,
novos olhares sobre a dinâmica dos locais sociais e da circulação de poderes na
sociedade colonial, pois direciona o nosso olhar para as possibilidades de atuação dos
agentes políticos e de outros pólos de poder no seio dessa sociedade.
Em vários desses estudos, percebemos um significativo destaque dado ao
processo de configuração social das elites coloniais6, além de um enfoque significativo
sobre o processo de estruturação das chamadas “nobrezas das terras” e das suas formas
de atuação política nos quadros do Império português.
Esse debate é privilegiado ainda pelo diálogo que vem sendo efetuado entre
historiadores brasileiros, portugueses e norte-americanos, ao discutirem as formas como
os agentes políticos têm redimensionado e criado novas configurações na hierarquia
política e social em terras do além-mar português. No Brasil, as pesquisas que abordam
a questão do processo de formação das nobrezas das terras têm ganhado destaque nos
4 HESPANHA, António Manuel. A constituição do Império português: revisão de alguns enviesamentos
correntes. In: FRAGOSO, João, BICALHO, Maria Fernanda & GOUVÊA, Maria de Fátima (Orgs.) O Antigo Regime nos Trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, p. 165.
5 Op.cit, p. 166 6 Empregamos aqui o termo “elites coloniais” no sentido em que o utiliza o historiador João Fragoso, ao
afirmar que seus componentes são os homens “que controlavam ou pretendiam controlar as artérias do mundo colonial. Elite no plural, pois vários grupos, mesmo em graus diferentes, partilhavam aquele papel”. Cf.: FRAGOSO, João, ALMEIDA, Carla Maria & SAMPAIO, Antonio Carlos Jucá (Orgs.) Conquistadores e Negociantes. História das elites no Antigo Regime nos Tópicos. América Lusa, século XVI a XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p. 19.
15
recentes trabalhos sobre o período colonial, na medida em que representam um espaço
de autonomia e de atuação dos poderes locais.
A atuação destes poderes locais, privilegiada pelos recentes estudos dessa
historiografia renovadora aponta para uma singular capacidade destes agentes coloniais
em redimensionarem idéias e conceitos vigorantes no reino e dar-lhes “novas
roupagens” no ultramar. Neste trabalho, portanto, pretendemos analisar de que forma
essas “novas roupagens” se aplicaram à tradicional concepção de nobreza.
O historiador francês George Duby relata o prazeroso contato inicial com as
“fontes” de sua pesquisa, quando nos informa que, tendo inicialmente definido seu
tema, foi orientado a “debruçar-se imediatamente sobre um documento de fácil
acesso”7. Nos desafios e “reviravoltas” a que qualquer pesquisa histórica está passível,
o caminho inverso, quando nos deparamos com uma documentação que nos suscita
indagações e questionamentos, para depois chegar-se a um tema, também pode ocorrer.
Esse “caminho inverso” no tocante aos meandros da pesquisa histórica pode
perfeitamente ser utilizado para referir-se às motivações primeiras deste nosso trabalho.
A escolha dessa temática adveio, antes de tudo, do intenso contato com documentação
do Maranhão do século XVII, onde as leituras e questionamentos suscitados acabaram
por moldar um profundo interesse por essa(s) história(s) e tramas que chegam até nós
por meio dos discursos presentes nesses documentos. Aliados a isso, encontram-se as
frutíferas discussões travadas durante a disciplina de Maranhão Colonial, ministrada no
Curso de História da UEMA, além das (muitas e) fundamentais conversas com o
orientador, que lançaram “luzes” e deram direcionamentos essenciais nos caminhos
trilhados neste trabalho agora apresentado.
Percebemos, apesar do intenso debate historiográfico em torno da formação e
estruturação das elites coloniais e, inserida nessa questão, a discussão em torno das
chamadas nobrezas das terras, a carência de estudos na historiografia maranhense que
se dediquem a esse tema tão caro atualmente aos historiadores do Brasil Colonial.
Nosso trabalho, portanto, coloca-se como uma tentativa de explorar uma
temática que, ao coadunar-se com as mais recentes pesquisas efetivadas na
historiografia brasileira, possa contribuir com a produção historiográfica do Maranhão
7 DUBY, Georges. A História Continua; tradução Clóvis Marques. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora,
1993, p. 27 e 28. Neste livro, Duby analisa as etapas da pesquisa histórica tomando como base sua própria experiência de pesquisador.
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acerca dos processos de atuação e legitimação dos grupos privilegiados na sociedade do
século XVII.
Esperamos, com este trabalho, apresentar novos rumos e possibilidades de
pesquisas, permitindo outros “olhares” sobre a sociedade “maranhense” dos Seiscentos,
ao optar por um viés que conceba a interpretação dessa sociedade para além da
tradicional dicotomia que opunha “Metrópole” e “Colônia”, buscando perceber os
elementos que interligavam o Antigo Estado do Maranhão aos outros territórios
constituintes do Império luso.
A abordagem metodológica que aplicamos na análise dos mecanismos de
reinvenção da nobreza no Maranhão nos anos finais do século XVII será efetivada
levando-se em conta que a documentação utilizada nessa pesquisa será percebida
enquanto discursos produzidos pelos atores políticos do período abordado. Ressalta-se,
porém, que pretendemos atentar para as práticas empregadas por esse grupo para balizar
e legitimar esses discursos na sociedade.
Para que possamos mapear essas estratégias utilizadas por um determinado
estrato social para ressignificarem a concepção de nobreza vigente no Império
português, pretendemos analisar os discursos contidos nos livros produzidos pelo
Senado da Câmara da cidade de São Luís que coincidem com a nossa delimitação
temporal (1675-1695). Serão utilizados, mais especificamente, os Livros de Acórdãos
de 1675 a 1681 e o de 1689 a 1705. Trabalhamos ainda com o “Livro Grosso do
Maranhão”, os volumes 66 e 67 dos Anais da Biblioteca Nacional. Outra documentação
importante que fizemos uso neste trabalho foi o Livro de Lista da Companhia da
Nobreza (1689-1710), que consiste em uma série de listas nominais onde são
identificados os “cidadãos” e os “privilegiados” da cidade no final do século XVII.
O aporte documental deste trabalho contará ainda com a análise dos manuscritos
relativos ao Maranhão, existentes no Arquivo Histórico Ultramarino, digitalizados e
disponíveis no Arquivo Público do Maranhão. Esse conjunto documental se mostra de
extremo valor para os objetivos que nos propomos. Através das consultas do Conselho
Ultramarino e das cartas enviadas para ( e pelo) monarca, percebemos um grande
número de pedidos, concessões, mas também de queixas e reclamações feitas por
moradores, religiosos, autoridades locais e do reino, que nos possibilita analisar as
diversas estratégias discursivas que possibilitaram, no Maranhão Seiscentista, a
configuração de um tipo distinto de nobreza.
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Quanto à organização tópica deste trabalho, optamos por estruturá-lo em três
capítulos. No primeiro deles, intitulado Uma Nobreza sem Corte, tratamos das relações
e do jogo político português no Antigo Regime, na tentativa de perceber como estes
elementos foram propiciadores da produção de discursos e práticas nobilitantes de
indivíduos dos territórios ultramarinos. Oferecemos ao leitor, portanto, alguns casos
exemplares que envolvem esses homens em suas estratégias de ganhos de privilégios e
em suas produções de discursos de merecimentos.
Ainda neste capítulo, apresentamos o atual debate historiográfico efetuado por
estudiosos que dialogam sobre o tema aqui proposto, atentando para suas pesquisas e
formulações que possibilitaram o embasamento teórico para nosso argumento de
reinvenção do ideal de nobreza no Maranhão. Mas que espaços eram esses de
reinvenção de uma concepção de nobreza? Respondendo a este questionamento,
terminamos o primeiro capítulo apresentando o cenário, o palco onde se movimentavam
estes atores sociais, os locais por onde esses homens circulavam e engendravam suas
ações de distinção e nobreza.
Como já havíamos ressaltado, a dinâmica de reinvenção da concepção de
nobreza vigente no reino para o Maranhão só pode ser pensada se levarmos em conta
elementos que eram próprios à conjuntura do Maranhão no período. A partir de quais
circunstâncias locais e situações específicas a este espaço um seleto grupo de homens
pôde readequar a idéia de ser nobre? No segundo capítulo, intitulado Condições da
Nobreza Local, tratamos justamente das vinculações entre estes elementos - práticas
econômicas, posse de homens e de terras, atuação nos quadros do poder municipal - e a
busca pelo status de nobreza e cidadania.
No terceiro capítulo, intitulado “O Livro da Nobreza”: a condição de nobre
registrada em ata, trabalhamos um Livro produzido pelo Senado da Câmara de São
Luís no final do século XVII, onde constam nomes de indivíduos considerados os
cidadãos (e seus filhos), os privilegiados, integrantes da Companhia da Nobreza da
cidade. Sobre esta, analisamos seu contexto de criação, traçando um paralelo com a
criação de outras Companhias do ultramar, nos detendo, para tanto, em aspectos e
características sobressalentes acerca da referida e seus integrantes: seu caráter militar e
ao mesmo tempo nobilitante.
Quem eram estes “nobres e cidadãos listados”? O que faziam? Que postos
ocupavam? Na tentativa de responder a estas e outras questões, abordamos a dinâmica
de circulação desses homens presentes nas Listas da Nobreza por outros espaços de
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poder, a exemplo do próprio Senado da Câmara. Entrecruzamos, por fim, informações
retiradas das Listas de Nobreza e outras tantas disponíveis sobre estes indivíduos em
outros documentos e bibliografias do período, outra parte fundamental do nosso
argumento de que esses homens, através de seus discursos e de suas ações, estavam
recriando e ressignificando a categoria de nobre no Maranhão Seiscentista.
O leitor talvez estranhe utilizarmos a concepção de “nobre” para qualificarmos
homens que viveram em casas rústicas e que possuíam poucas propriedades, se
comparadas às posses e distinções de outros ricos proprietários em outras regiões. Para
nos referirmos a homens que, se não viviam na “pobreza” e na “miséria” absoluta, mas
em circunstâncias por vezes adversas das de outros cenários encontrados no Brasil
Colonial, pareciam querer ostentar o mesmo status de um Marquês de Pombal ou de um
Duque de Olivares, nobres com todas as prerrogativas do termo.
Todavia, como vamos perceber nas próximas páginas, alguns destes homens
referiam-se a si próprios como nobres, e ao conjunto deles como “nobreza”. O que nos
propomos, portanto, é percebermos como estas circunstâncias diferenciadas e estes
homens que a princípio em nada lembram a posição e os privilégios de um nobre
tradicional, faziam usos e reformulavam os sentidos dessa concepção, de que forma a
utilização dos termos “nobre” ou “nobreza” na documentação trabalhada sustentava
situações concretas de ação e também de discursos. Alguns destes homens apareceram
“aqui e ali”, e nosso trabalho não raro consiste em juntar e selecionar verdadeiros
“retalhos” das vidas destes homens, retalhos, porém, que entendemos como peças
importantes para a análise dessa “nobreza” diferenciada.
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1 UMA NOBREZA SEM CORTE
“A verdadeira fidalguia é a ação (...) Cada um é as suas ações e não outra coisa (...)
Quando vos perguntarem quem sois vós, não vades revolver o nobiliário de vossos avós,
ide ver a matricula de vossas ações (...) O que fazeis, isso sois, nada mais.”
(Sermão da Terceira Dominga do Advento,
(Padre Antônio Vieira, 1644)
1.1 O jogo político no Império Português: palavras prévias
A “cultura jurídica”, entendida como um conjunto de códigos simbólicos
jurídico-políticos de representatividade da sociedade possuía extrema importância na
organização política e no ordenamento social no Antigo Regime8 português. Os textos
dos juristas, por exemplo, estão entre alguns destes elementos fundamentais para
perceber como as normas mais formais de organização social eram inseridas na
sociedade e como essas mesmas normas eram contextualizadas e significadas a partir de
circunstâncias locais e bem definidas9.
Desta forma, a política de concessões de honras e privilégios, de bens
patrimoniais e simbólicos e de distinções sociais da Coroa portuguesa, encontrava-se
fortemente integrada ao funcionamento destas práticas jurídicas de modo geral. Mas a
importância do direito e das normatizações jurídicas no Antigo Regime se inserem em
uma perspectiva mais ampla, que diz respeito à configuração dos poderes e à
administração do Império português no Seiscentos.
O historiador e jurista português António Manuel Hespanha afirma que a célebre
metáfora que representa o rei como a cabeça do “corpo social” é extremamente
adequada para pensar a posição do monarca em suas relações de mando na sociedade do
Antigo Regime. Esta metáfora, no entanto, não representava um governante absoluto e
8 Usamos aqui o termo Antigo Regime no sentido em que aparece no Dicionário do Brasil Colonial
(1500-1808). Para os autores do Dicionário, as sociedades de Antigo Regime ignoravam a idéia moderna de igualdade entre os indivíduos, e em vez da noção de direito, fundava-se na noção de privilégios desigualmente distribuídos no interior de uma sociedade concebida à imagem de um corpo [...]. A América portuguesa, portanto, foi espaço onde esses aspectos de Antigo Regime encontraram campo fértil, relacionando valores, privilégios e hierarquias do reino nas sociedades coloniais. VAINFAS, Ronaldo (Org.) Dicionário do Brasil Colonial (1500-1808). Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 2001, p. 43-46.
9 CARDIM, Pedro. Cortes e cultura jurídica no Portugal do Antigo Regime. Lisboa: Edições Cosmos, 1998, p. 12.
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com poderes ilimitados, mas simbolizava um rei que tinha o seu poder limitado e
partilhado com outras instâncias de poder presentes na sociedade. A constituição
política da época moderna, portanto, estava baseada em um “paradigma corporativista”
onde o corpo societário achava-se inserido em uma série de pólos políticos, cada um
autônomo em seu âmbito10. Pensar a sociedade e o jogo político no Antigo Regime luso,
portanto, significa levar em consideração a capacidade que cada corpo sócio-jurídico
tinha de reger-se por leis próprias, apesar de articulados ao poder real.
Em seu Tratado da Nobiliarchia Portugueza publicado no ano de 1676, o jurista
português António de Vilas Boas e Sampaio faz referência às mudanças na condição de
nobre em Portugal. Assegura que algumas pessoas de “nascimento humilde” chegam a
ser elevadas à posição de nobres por ações valorosas que obraram ou por cargos
honrosos que ocuparam11, principalmente nos postos da Res publica, ou seja, no
gerenciamento político da “coisa pública”.
Objetivamos, aqui, analisar a dinâmica de reinvenção da concepção de nobreza
no Antigo Estado do Maranhão, entre os anos de 1675 e 1695, atentando para as
estratégias engendradas por um determinado estrato social, estratégias estas que
permitiram redefinições e novas significações deste conceito. Convém ressaltarmos, de
início, que tal discussão proposta nos limites deste trabalho coaduna-se com as
perspectivas historiográficas que consideram o Antigo Estado do Maranhão dos anos
finais do século XVII enquanto um território inserido na dinâmica das relações políticas
presentes no extenso Império atlântico português, e seus personagens, como
construtores ativos das tramas políticas tecidas em termos imperiais.
Interessa-nos, portanto, atentar para questões comparativas, por entendermos
que tais questões nos possibilitam identificar as permanências e as similaridades que
ligavam o Maranhão Colonial ao Império Português; por outro lado, entendemos que é
10 Os estudos feitos por António Manuel Hespanha têm como foco principal as instituições políticas e as
formas de governo no Antigo Regime. Seu conceito de “concepção corporativa da sociedade” está relacionado a uma “idéia de indispensabilidade de todos os órgãos dessa sociedade”, em contraposição a uma perspectiva que concebe tais relações como centradas excessiva e unicamente na figura do rei. “Tão monstruoso quanto um corpo que se reduzisse à cabeça, seria uma sociedade em que todo o poder estivesse centrado no soberano. O poder era, por natureza, repartido, e numa sociedade bem governada, esta partilha natural traduzia-se na autonomia político-jurídica dos corpos sociais (...)”. Quanto a essa questão ver: A representação da sociedade e do poder. In: Hespanha, Antonio Manuel. (Coord.) História de Portugal: O Antigo Regime (1620-1807). Lisboa: Círculo de Leitores, 1993, vol. 4, pp. 122-123.
11 MONTEIRO, Nuno Gonçalo. O poder senhorial, estatuto nobiliárquico e aristocracia. In: HESPANHA, António Manuel (Coord.) História de Portugal: O Antigo Regime (1620-1807). Lisboa: Círculo de Leitores, 1993, vol. 4, p. 334. De acordo com Monteiro, este consiste em um dos tratados de nobreza mais conhecidos e citados em Portugal.
21
fundamental mapear justamente as especificidades e particularidades das conjunturas
próprias às vivências políticas locais e mais distintas, que matizavam de cores diversas
o mosaico de relações de poder construídas no Maranhão de fins do século XVII.
1.2 As regras do jogo: alguns casos exemplares
Alguns casos ocorridos no Maranhão no período aqui analisado nos permitem
perceber os mecanismos de produção de discursos e práticas de diferenciação social que
possibilitaram a constituição de um tipo distinto de nobreza, uma nobreza que, dentre
outras características, era oriunda dos trâmites do jogo político local.
Na cidade de São Luís, no ano de 1683, valendo-se das estratégias subjacentes
ao jogo político português e do conhecimento amplamente difundido no Império de que
os postos mais importantes deveriam ser ocupados pelos “principais das terras”, três
indivíduos estavam se “candidatando” ao posto de capitão da Capitania do Gurupá
(Pará)12.
Diogo Vaz Penalico, Gonçalo de Lemos Mascarenhas e André Pinheiro de
Lacerda foram os listados para o posto junto à Coroa portuguesa, tendo enumeradas as
várias funções que haviam ocupado anteriormente - o que conferia peso e legitimidade
às suas solicitações de mercê real. Mas é justamente quando arrolam os serviços e
honras prestadas em nome da Coroa lusa que estes homens se utilizam de mecanismos
políticos que possibilitavam a eles produzirem discursos e práticas nobilitantes.
No Regimento das Mercês, publicado durante o governo de D. Pedro II (príncipe
regente de novembro de 1667 a 1683; rei, de 1683 a 1703), e destinado a regular os
requerimentos de pessoas que solicitavam determinadas benesses à Coroa, a prestação
de honras por meio de “serviços feitos nas guerras” era de extrema relevância para a
obtenção de mercê real, principalmente através de ofícios militares ou administrativos13.
No caso aqui apresentado, o que não falta são alegações por parte dos três
requerentes de que haviam participado de várias batalhas em nome de Sua Majestade. É
o que alega Diogo Penalico, que depois de ter viajado por Pernambuco e Bahia, teria ido
“a Angola servir aly de capitam de infantaria com a qual se embarcou em hum navio
contra hua fragata Holandeza que se dizia andar naquella costa roubando nossas
12 Arquivo Histórico Ultramarino - Maranhão (Avulsos) Cx. 6, doc. 684 (6 de fevereiro de 1683).
(Doravante, iremos nos referir ao Arquivo Histórico Ultramarino pelas siglas AHU. 13 SUBTIL, José. Os poderes do centro. In: HESPANHA, António Manuel (Coord.) História de
Portugal: O Antigo Regime (1620-1807). Lisboa: Círculo de Leitores, 1993, vol. 4, p. 188.
22
embarcaçoes [...]”. Gonçalo de Lemos Mascarenhas também afirma ter servido em
Pernambuco, na Índia e “pela Bahia deste Reyno”, alegando ser neto por parte de pai de
Gonçalo Gomes de Lemos, “que serviu em Pernambuco e lutou contra os holandezes”,
além de ser neto por parte de mãe de Dom Nuno de Mascarenhas, conde de Palma, “que
morreu na Batalha de Alentejo” 14.
Percebemos que a ocupação de cargos administrativos e\ou militares nos
territórios ultramarinos por indivíduos social e politicamente diferenciados justificava-
se, principalmente, por seus discursos que remetiam uma questão de pertencimento a
um determinado grupo. Ser descendente dos primeiros conquistadores das terras da
Coroa, por exemplo, era fundamental para balizar argumentos e conferir a esses
indivíduos um status de superioridade por sua ascendência e “linhagem”15.
André Pinheiro de Lacerda, o segundo requerente ao cargo, alega ter servido
com patentes militares por quase treze anos na Capitania do Pará em meados do século
XVII. Seu principal argumento para ser agraciado com o dito ofício, no entanto,
consiste em ser filho do capitão Francisco Ferreira Pinheiro e neto de Francisco de
Araújo de Moura “pessoas q[ue] servirão a Vossa Alteza muitos annos naquelle Estado
sendo dos seus primeiros Conquistadores e Povoadores delle” 16.
O “sentimento de superioridade” 17 arrogado por essa nobreza de mérito passava
principalmente pela descendência, ou seja, o fato de serem filhos ou netos dos
responsáveis pela Conquista garantia a esses indivíduos a legitimação da capacidade de
mando e distinção em relação aos demais estratos sociais. As idéias de “conquistas” e
de “conquistadores”, no tocante à sociedade colonial, encontram-se estreitamente
relacionadas à legitimação do mando local, e nesse sentido, nos parece claro que os
primeiros habitantes portugueses e seus filhos e netos obtinham vantagens nas escolhas
de cargos e na primazia de postos privilegiados na sociedade.
Alguns anos depois do pedido pelo posto de capitão da Capitania do Gurupá, o
ofício de Escrivão da Fazenda, Alfândega e Almoxarifado da cidade de São Luís na
Capitania do Maranhão encontrava-se vago com o falecimento de sua antiga ocupante,
14 AHU - Maranhão (Avulsos) Cx. 6, doc. 684 (6 de fevereiro de 1683) 15 Termo empregado aqui no sentido de uma noção de distinção e estima social oriunda dos feitos de avós
e pais. FRAGOSO, João. A formação da economia colonial no Rio de Janeiro e de sua primeira elite senhorial (séculos XVI e XVII). In: FRAGOSO, João, BICALHO, Maria Fernanda & GOUVÊA, Maria de Fátima. O Antigo Regime nos Trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII), 2001, p. 52.
16 AHU - Maranhão (Avulsos) Cx. 6, doc. 684 (6 de fevereiro de 1683). 17 Op. cit, p. 53.
23
Maria Maciel da Cunha, na vila de Viana18. João Telles Vidigal “natural” da cidade de
Évora, um “cidadão do Reino” e “mui digno súdito”, estava requisitando formalmente o
cargo junto ao Conselho Ultramarino19. O outro requerente era João Dias Vieira, um
“natural da terra”, ocupante de patentes militares e fiel servidor da Coroa por mais de
dezesseis anos na Capitania do Maranhão.
Através do requerimento enviado ao rei percebemos que João Telles Vidigal e
João Dias Vieira também prestaram uma série de serviços à Coroa, e que eram filhos de
famílias importantes em seus respectivos lugares de nascimento, mas, principalmente,
que alegam terem servido em várias batalhas em nome do rei e, por isso, outorgavam-se
o direito de requisitar benesses por seus respectivos feitos.
A historiografia do período colonial nos informa que devido às dificuldades da
metrópole em custear as despesas militares nas colônias, o ônus com a defesa dos
territórios não raro ficava a cargo dos próprios colonos. Desta forma, a confirmação de
lealdade nas defesas territoriais era utilizada por indivíduos como Telles Vidigal e Dias
Vieira como “moeda de troca” nas posteriores negociações por privilégios locais20.
O século XVII iniciou-se com uma ameaça constante às possessões do império
luso por parte de estrangeiros, notadamente holandeses, presentes na Bahia (1624-5) e
em Pernambuco por volta de 163021. As participações nas guerras contra os holandeses
e espanhóis são, portanto, temas recorrentes na documentação que utilizamos neste
trabalho, além de consistirem em uma importante estratégia discursiva na obtenção de
mercê real. A alegação de ter lutado contra inimigos holandeses encontra-se entre uma
das mais utilizadas estratégias discursivas por parte dos “principais da terra”,
constituindo-se como a mais eficiente tópica política do período22.
De acordo com Mário Meirelles, autor clássico da historiografia maranhense, a
presença efetiva de holandeses no Maranhão data de 1641, vindos de Pernambuco. Já no
ano seguinte, Meirelles identifica a “resistência” dos habitantes à invasão dos
18 AHU - Maranhão (Avulsos) Cx.7, doc. 809 (29 de novembro de 1689) 19 Órgão da Coroa portuguesa criado em 1642, durante o período de Restauração. Suplantou o Conselho
da Fazenda e assumiu todos os assuntos coloniais se natureza civil e militar. SCHWARTZ, Stuart. Burocracia e sociedade no Brasil colonial. São Paulo: Editora Perspectiva, 1979, p. 192.
20 STUMPF, Roberta G. Os critérios hierárquicos na sociedade colonial: reflexões para um estudo da nobreza da terra americana. Revista Múltipla. Brasília, n.º 20, ano XI, junho 2006, pp. 65-79.
21 De acordo com o historiador britânico Charles Boxer, em clássico estudo sobre o Império atlântico português, o “ataque maciço ao império colonial luso foi ostensivamente motivado pela união das coroas espanhola e portuguesa na pessoa de Filipe II da Espanha, contra cujo governo, nos Países Baixos, os holandeses haviam se revoltado em 1568”. O Império Marítimo Português (1415-1825). São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 121.
22 CARDOZO, Alírio. Insubordinados, mas sempre devotos: poder local, acordos e conflitos no antigo Estado do Maranhão (1607-1653). Dissertação de Mestrado.UNICAMP, São Paulo, 2002, p. 188.
24
holandeses, narrando as renhidas lutas travadas contra os batavos para expulsá-los da
região. O autor chega ainda a fazer um paralelo com a Restauração portuguesa,
denominando os participantes do movimento de resistência de “restauradores” do
Maranhão23.
Outra freqüente referência ao merecimento de benesses reais por participações
em batalhas estava justamente relacionada à Restauração Portuguesa em 1640, sob a
realeza da dinastia de Bragança, quando os portugueses entraram em guerra com a
Espanha pela sua autonomia política. João Telles Vidigal, o primeiro requerente do
ofício de escrivão, alega ter lutado contra os castelhanos nas províncias portuguesas de
Alentejo e do Minho, e ainda na batalha de Montes Claros, em 1665, um dos grandes
combates travados entre espanhóis e portugueses. Nesta ocasião, quase todos os
participantes foram agraciados com títulos nobiliárquicos24.
João Dias Vieira também é identificado na documentação como um árduo
combatente nas guerras em favor da Coroa. No entanto, como um “natural” da terra,
suas batalhas tinham como cenário o Maranhão, e o temível inimigo a ser combatido
não era, nesse caso, o invasor europeu, mas o nativo que habitava a região. Vieira
afirma, então, que é nas guerras “a reduzir o gentio” pelas bandas dos Rios Mearin e
Capim que ele serviu bravamente à Coroa, “a tratar pazes com o gentio e quando as nao
quisessem aceitar a fazer lhe guerra (...)”25.
Percebemos, assim, que em um bom número de escritos do período por nós
analisados, os serviços prestados em favor da defesa e conservação da região e possíveis
mercês advindas deles estão relacionados às batalhas feitas contra os indígenas, às
“entradaz aos Reynos dos Barbaros”. O historiador Pedro Puntoni, analisando as guerras
envolvendo indígenas de meados do século XVII às primeiras décadas do século
seguinte, afirma que a remuneração dos serviços prestados nestas guerras empreendidas
contra os nativos “poderia vir a posteriori, com mercês e favores da Monarquia ou
mesmo com a garantia do butim obtido, fosse em escravos, fosse em mantimentos”26.
Os “méritos” arrolados por estes homens na tentativa de ocupar cargos
concedidos por graça real se inserem no que Hespanha denominou de “economia de
23 MEIRELES, Mário. Holandeses no Maranhão (1630-1654). São Luís: UFMA, 1991, p. 26. 24GOUVEIA, António Camões & MONTEIRO, Nuno Gonçalo. Milícia. In: HESPANHA, António
Manuel (Coord.) História de Portugal: O Antigo Regime (1620-1807). Lisboa: Circulo de Leitores, vol. 4, 1993, p. 198.
25 AHU - Maranhão (Avulsos) Cx.7, doc. 809 (29 de novembro de 1689) 26 PUNTONI, Pedro. A guerra dos bárbaros: povos indígenas e a colonização do sertão nordeste do
Brasil (1650-1720). São Paulo: Editora Hucitec , 2002, p. 192.
25
troca de favores”. De acordo com tal concepção, os serviços prestados em nome da
Coroa eram retribuídos pelo monarca com honras e privilégios, privilégios esses que
não raro eram concedidos em forma de cargos e ofícios nos territórios do além-mar
português. Isso acabava por engendrar relações políticas que eram estruturadas por uma
cadeia de atos beneficiais e de recompensas que envolviam o monarca português e seus
súditos no vasto Império ultramarino luso 27.
Em um requerimento enviado ao rei em 24 de abril de 1687, D. Maria Barbosa,
viúva do sargento-mor Francisco Valadares, em função de suas próprias “qualidades” e
alegando os vários “serviços que seu marido fez em defensa desta Coroa na provincia
do Alentejo e no estado do Maranhao [...]” também espera ser beneficiada com mercê
real. Solicita, portanto, em seu nome, o Hábito da Ordem de Cristo para quem casasse
com sua sobrinha Catarina Barbosa Luna, por esta ser “donzella de conhecida nobreza”
em função de sua ascendência. Este caso sinaliza para o fato de que não eram apenas
ofícios administrativos ou militares a serem requeridos no Maranhão, mas aponta para
uma diversidade maior nos tipos de recompensas pedidas à Coroa28.
Exemplar também nos parece o caso de Brás de Souza, natural e “morador” da
cidade de São Luís. No dia 9 de setembro de 1676, o Conselho Ultramarino fez uma
consulta ao rei acerca do pedido de Brás de Souza, que alega ter deixado “sua casa,
mulher e filhos em defensa da mesma cidade com grande valor e zello”, e em função
dos “serviços prestados” estava dignamente solicitando à Coroa os ofícios de
distribuidor, contador, inquiridor e escrivão da Câmara da cidade de São Luís 29.
Notamos, portanto, que as justificativas de serviços e préstimos constantemente
presentes nos discursos materializados na documentação trabalhada, são utilizadas como
instrumentos de negociação e barganha, que ia aos poucos engendrando uma lógica de
privilégios e distinção para um determinado estrato social. Os discursos de merecimento
e pedidos por primazia elaborados por homens nas terras das conquistas nos permite
afirmar que estes discursos se pautavam dentro de uma lógica existente e aceita no jogo
político imperial.
Essa dinâmica de concessões de favores e benesses, prática fundamental no
equilíbrio da sociedade seiscentista portuguesa, denotava um esforço da Coroa
portuguesa em manter certo controle sobre as normas de classificação e hierarquização
27 HESPANHA, António Manuel & XAVIER, Ângela Barreto. As redes clientelares. História de
Portugal: O Antigo Regime (1620-1807). Lisboa: Circulo de Leitores, vol. 4, 1993, p. 385 28 AHU - Maranhão (Avulsos), cx. 7, doc. 776 (24 de abril de 1687). 29 AHU - Maranhão (Avulsos) cx. 5, doc. 605 (9 de setembro 1676).
26
social. Tal prática, no entanto, vai progressivamente criando um leque maior de
possibilidades de nobilitação, tornando possível a configuração de uma “nobreza
política”30, nobreza essa forjada nas trocas de serviços e recompensas, proveniente de
acordos e alianças políticas estabelecidas no complexo jogo político português no reino
e no além-mar.
O exercício do mando na colônia, através da ocupação de postos da Res publica
necessitava de mecanismos de legitimação às pretensões de ascensão hierárquica de
alguns indivíduos31. Os estudos acerca desses mecanismos e de sua utilização na
configuração de uma determinada concepção de nobreza são fundamentais no
entendimento da dinâmica de ocupação dos lugares de poder na sociedade colonial.
No Maranhão dos anos finais do século XVII vamos encontrar um grupo
requisitando postos e ofícios, ocupando cargos, produzindo discursos e práticas que os
legitimavam como um tipo de diferenciado de nobreza, uma nobreza não
necessariamente “de sangue”, mas forjada nas estratégias e negociações com outras
fontes de poder presentes na sociedade.
1.3 O Império Português em questão: uma historiografia colonial renovada
Nas últimas décadas do século XX, a historiografia que trata do Antigo Regime
produziu uma gama de trabalhos que têm revisitado algumas questões relativas à
natureza do poder no período e, mais especificamente, questões concernentes à
administração do Império ultramarino português entre os séculos XVI e XVIII32.
É entre o final dos anos 80 e início da década de 90, que historiadores que
trabalham com o Brasil Colonial têm alargado as fronteiras das pesquisas sobre o tema,
produzindo importantes trabalhos que visam, antes de tudo, perceber o funcionamento
das relações entre o Brasil e Portugal de uma perspectiva mais ampla, que atente para as
30 O conceito de “nobreza política” é aqui empregado no sentido em que o utiliza o historiador português
Nuno Gonçalo Monteiro, na medida em que entendemos que a constituição desse tipo de nobreza passa, prioritariamente, pela teia das articulações políticas construídas na dinâmica de concessões e privilégios em retribuição a algum “favor”. Diferenciada, portanto, da tradicional conceituação de uma nobreza hereditária e titulada. MONTEIRO, Nuno. 1993, p. 335.
31 FRAGOSO, João, ALMEIDA, Carla Maria & SAMPAIO, Antonio Carlos Jucá (Org.) Conquistadores e Negociantes: História das elites no Antigo Regime dos Trópicos. América lusa, séculos XVII a XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p. 22.
32 No Brasil, refiro-me mais especificamente aos recentes trabalhos de historiadores como João Fragoso, Maria Fernanda Batista Bicalho, Carla Maria de Almeida, Antonio Carlos Sampaio e Laura de Mello e Souza.
27
complexidades e também para as similaridades que uniam as diversas partes do Império
luso.
Ao privilegiar uma perspectiva que concebe as relações políticas, econômicas e
sociais como sendo processadas em termos imperiais, essas novas pesquisas têm
possibilitado um profícuo diálogo historiográfico entre estudiosos brasileiros,
portugueses e norte-americanos, transitando por tendências, conceitos e metodologias
correntes na Europa e nas Américas que, utilizadas com o devido refinamento,
possibilitam uma maior compreensão da dinâmica política do Império Português33.
As novas interpretações pelas quais passaram os estudos sobre o Brasil Colônia
nestas últimas décadas muito se deve à influência dos trabalhos do historiador e jurista
português António Manuel Hespanha. O lançamento do seu livro em Portugal, Às
vésperas do Leviathan, no ano de 1989, questionou uma série de idéias firmemente
estabelecidas a respeito das instituições políticas de Portugal no Antigo Regime34.
De acordo com Hespanha, algumas concepções correntes sobre a história
política e institucional do Império português “careciam de profunda revisão, já que a
visão dominante é a da centralidade da Coroa, com suas instituições, seu direito e seus
oficiais”35. As investigações de Hespanha sobre o poder político e o funcionamento das
práticas administrativas no Império luso apontam para “um quadro atomístico”, com
uma pluralidade de tipos de laços políticos e uma autonomia dos poderes e dos “corpos
sociais” presentes na sociedade.
A constituição da monarquia portuguesa como sendo dotada de poderes
múltiplos e hierarquicamente delimitados alcançou, portanto, considerável ressonância
na produção acadêmica brasileira recente, e possibilitou aos historiadores revisitarem
questões como “centralidade excessiva” e mesmo “poder absoluto”, caros aos
historiadores que procuraram explicar os meandros da história colonial do Brasil.
Apesar de reconhecerem a importância de estudos já clássicos na historiografia
brasileira do período colonial, esses historiadores entendem que as relações travadas
entre Portugal e Brasil não se resumiam a um “dualismo rígido e inflexível”.
33RUSSELL-WOOD, A. J. R. Prefácio. In: FRAGOSO, João, BICALHO, Maria Fernanda & GOUVÊA,
Maria de Fátima. O Antigo Regime nos Trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, pp. 11-19.
34 Cf.: HESPANHA, António Manuel. Às vésperas do Leviathan: instituições e poder político (Portugal - séc. XVIII). Coimbra: Livraria Almeida, 1994.
35 HESPANHA, António Manuel. A constituição do Império português: revisão de alguns enviesamentos correntes. In: FRAGOSO, João, BICALHO, Maria Fernanda & GOUVÊA, Maria de Fátima. O Antigo Regime nos Trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, p. 167.
28
Perceberam que, para além do seu sentido comercial36 e das suas relações escravistas37 a
sociedade colonial estava também pautada em valores e práticas que regiam a sociedade
portuguesa no Antigo Regime.
Em uma já famosa coletânea de artigos, os autores buscam responder a algumas
questões que estão sendo colocadas pelas suas pesquisas, pelo contato com a
documentação e, principalmente, pelos novos vieses teórico-metodológicos que
norteiam seus trabalhos:
“Como desfazer uma interpretação fundada na irredutível dualidade econômica entre a metrópole e a colônia? Como esquecer que, ao lado dos - e, às vezes, simultaneamente aos - conflitos entre colonos e a Coroa, inúmeras foram as negociações que estabeleceram e ajudaram a dar vida e estabilidade ao Império? Como tecer um novo ponto de vista, ou um novo arcabouço teórico e conceitual que, ao dar conta da lógica do poder no Antigo Regime, possa explicar práticas e instituições presentes na sociedade colonial?” 38.
O conceito de “autoridades negociadas”, proposto pelo historiador norte
americano Jack P. Greene, também pode ser encontrado, com as devidas reservas ao
caso da América lusa, em vários dos trabalhos mais recentes que versam sobre o Brasil
Colonial. Para Greene, a autoridade não “flui” do “centro” para as “periferias”, mas é
construída, nas sociedades coloniais, por uma série de negociações, acordos e barganhas
promovidas tanto de um lado como do outro. Esta perspectiva favorece a percepção de
que havia um grande espaço de negociação entre o monarca e seus representantes no
ultramar. Greene afirma ainda que:
(...) a maior parte do poder, no que tange à construção de novas esferas administrativas pertencentes aos impérios da época moderna estava nas mãos dos próprios povoadores. Eles estabeleceram e reconstruíram novos espaços, criando a estrutura econômica e doméstica que lhes possibilitava habitar esses locais (...)”.39
36 Quanto a isso ver: PRADO JÚNIOR, Caio. “O sentido da colonização”. In: Formação do Brasil
Contemporâneo. 23ª ed. (3ª reimpressão). São Paulo: Editora Braziliense, 1994, pp. 19-32; NOVAIS, Fernando. Portugal e Brasil na crise do Antigo Sistema Colonial (1777-1808). São Paulo: Editora Hucitec, 1979.
37 Ver: SCHWARTZ, Stuart. “Uma sociedade escravista colonial”. In: Segredos Internos: engenhos e escravos na sociedade colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, pp. 209-223.
38 O já citado livro O Antigo Regime nos Trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séc. XVI-XVIII), volume organizado por João Fragoso, Maria Fernanda Baptista Bicalho e Maria de Fátima Gouveia, que reúne artigos de historiadores brasileiros e portugueses que tratam do Império português no Antigo Regime.
39 GREENE, Jack P. Reformulando a identidade inglesa na América britânica colonial: adaptação cultural e experiência provincial na construção de identidades corporativas. Almanack Braziliense/IEB-USP, nº 04, novembro 2006. Disponível em: http: //www. almanack.usp.br. O conceito de “autoridades negociadas” encontra-se no livro “Negotiated authorities: the problem of governance in the extended polities of the Early Modern Atlantic World”. In Negotiated Authorities. Essays in Colonial Political and Constitutional History. Charlottesville and London: University Press of Virginia, 1994.
29
Desta forma, a perspectiva de globalidade do Império português possibilitou a
esses estudiosos uma reavaliação dos mecanismos e práticas de representação local
(principalmente no que concerne ao Senado da Câmara), analisando em suas pesquisas
o que o historiador norte-americano A. J. R. Russell-Wood identificou como um
potencial de negociação e flexibilidade, de acordos políticos, de poder de adequação dos
colonos em relação às praticas da Coroa, no sentido de torná-las menos opressivas e/ou
mais de acordos com as prioridades, necessidades e práticas da sociedade colonial40.
Em vários desses estudos percebe-se um significativo destaque dado ao processo
de configuração social das chamadas elites coloniais, e mais especificamente, um
enfoque dado sobre o processo de estruturação das chamadas “nobrezas das terras” e
das suas formas de atuação política nos quadros do Império. Nesse sentido, destaca-se o
monumental trabalho empírico dessa historiografia, com especial destaque para a
documentação municipal.
No que concerne aos estudos acerca da concepção de nobreza e suas variantes
nos “trópicos”, o recente debate revela-se ainda mais proveitoso para a escrita da
história colonial. Maria Fernanda Bicalho, uma das principais estudiosas dessa
historiografia renovadora no Brasil, ao tratar de composição da “nobreza das terras” no
Império Português, e mais detidamente na cidade do Rio de Janeiro entre os séculos
XVII e XVIII, afirma que:
“Em cidades como o Rio de Janeiro, Olinda, Salvador, Goa, Luanda ou Macau, as pessoas que se arrogavam o titulo de “nobres” ou “principais” justificavam-no não enquanto uma categoria natural ou jurídica, de acordo com o direito do Antigo Regime, mas por um discurso que valorizava suas condições de protagonistas na conquista ultramarina” 41.
As câmaras no contexto do Império Português estão no centro dos estudos
empreendidos por Bicalho, e inserida nessa discussão, encontra-se a estreita relação
entre a composição dos ofícios camarários e o processo de estruturação da nobreza das
terras. Segundo a autora, os cargos dos conselhos, principalmente os ofícios dos senados
das câmaras, deveriam ser preenchidos pelos que se arrogavam à posição de nobres das
terras42. Isso não significava, no entanto, que os oficiais das câmaras fossem nobres no
40 RUSSELL-WOOD, A.J.R. Centros e Periferias no mundo luso-brasileiro, 1500-1808. Tradução de
Maria de Fátima Gouvêa. In: Revista Brasileira de História, v. 18, nº. 36, p. 187-249, 1998. 41 BICALHO, Maria Fernanda. As câmaras ultramarinas e o governo do Império. In: Fragoso, João,
Bicalho, Maria Fernanda & Gouveia, Maria de Fátima (Org.) O Antigo Regime nos Trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séc. XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, p. 218.
42 Op. cit, p.219.
30
sentido estamental vigente no Reino, contudo, esses homens acabaram por articular
meios de constituírem-se nobres a partir do exercício do poder municipal.
João Fragoso propõe-se a “deslindar o entrançado da formação, transformação,
estrutura e processos de legitimação das elites coloniais no Brasil”, atentando para as
trajetórias daqueles homens que controlavam ou pretendiam controlar as artérias do
mundo político, obtendo por isso o pleno exercício da governabilidade em
circunstâncias locais43. O autor, outro nome de destaque entre os historiadores que
pretendem rediscutir as práticas políticas, econômicas e administrativas de uma
perspectiva imperial, atribui considerável espaço em sua escrita para os processos que
permitiram a gestação e posterior consolidação de uma fidalguia dos trópicos, que vai
culminar na formação dos “homens de grossa aventura” do século XVIII, título de um
dos seus mais importantes trabalhos44.
De acordo com Fragoso, na gestação das elites coloniais está a constituição da
“nobreza da terra”, entendida como um “punhado de famílias que comandaram a
conquista da América para a monarquia portuguesa e, entre outros agentes, foram os
responsáveis pela organização da sua base produtiva e do governo da res publica”45.
Aqui cabe ressaltar que o conceito de “economia do bem comum” trabalhado pelo autor
ocupa lugar de destaque em suas análises:
“A presença nos dois lados do Atlântico luso de mecanismos de acumulação semelhantes - produto de um sistema de benefícios da Coroa e das atribuições econômicas da câmara - nos leva a pensar que as diferentes partes do Império compartilhavam um conjunto de mecanismos econômicos que, grosso modo, poderíamos chamar de economia do bem comum” 46.
Era principalmente o fiel serviço à Coroa, as participações nas conquistas e
manutenção dos territórios que permitiu que determinados indivíduos se arrogassem o
direito de serem reconhecidos com o título de nobreza principal das terras e, além disso,
de poderem partilhar com a monarquia a autoridade sobre a Res publica.
Fragoso chama ainda atenção para o fato de que mesmo que essas elites
coloniais não gozassem de privilégios similares aos seus pares reinóis, os nobres das
terras acabaram por inventar condições bastante peculiares de fidalguia, conseguindo
43 Cf.: FRAGOSO, João, 2007, p. 21. 44 Cf.: FRAGOSO, João. Homens de grossa aventura: acumulação e hierarquia na praça mercantil do
Rio de Janeiro (1790-1830). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional e Civilização Brasileira, 1992. Sobre essa discussão ver do mesmo autor: A nobreza da República: notas sobre a formação da primeira elite senhorial do Rio de Janeiro (sécs. XVI e XVII). In: Topoi. Revista de História, nº. 1. Rio de Janeiro: UFRJ, pp. 45-122. Disponível em: http://www.ifcs.ufrj.br/~ppghis/pdf/topoi1a2.pdf
45 Cf.: FRAGOSO, João, 2007, p. 22. 46 Ver: FRAGOSO, João, 2001, p. 47.
31
obter significativo reconhecimento entre os habitantes da América lusa. Os cargos dos
conselhos, por exemplo, tanto serviam para confirmar - no caso dos descendentes dos
conquistadores - quanto para conferir o status de nobreza, articulando um mecanismo de
legitimação que além de traduzir prestígio de um grupo, o reforçava pelo seu próprio
exercício47.
A escrita da história do Brasil Colonial nos últimos anos tem contado muito com
os trabalhos de Laura de Mello e Souza. Em seu mais recente livro, O Sol e a Sombra, a
autora debruça-se sobre as questões relativas à política e administração na América
portuguesa, “à luz de algumas situações específicas sem, contudo, perder de vista o
enquadramento geral”. Os “enquadramentos” mais gerais e a análise das trajetórias
pessoais de administradores nas terras do ultramar português destacados no livro se
inserem no estudo das relações de uma perspectiva historiográfica que vise “pensar o
Brasil na administração do Império português”. O “olhar” lançado por Laura de Mello e
Souza sobre o assunto acha-se, portanto, coadunado com os demais estudos
empreendidos pela recente historiografia colonial brasileira48.
Neste ponto, cabe uma importante ressalva. Apesar de articulada com o debate
atual no que concerne às dimensões políticas imperiais dos territórios lusos, Mello e
Souza diverge em pontos fundamentais dos seus colegas da chamada “escola do Rio”49,
constituindo uma interessante polêmica em torno de pressupostos conceituais das
recentes análises sobre a história do Brasil Colonial, sobretudo em torno do uso do
conceito de Antigo Regime50. Não entraremos nos pormenores da questão, que fugiria
em muito aos nossos objetivos, cabe-nos apenas situar brevemente o debate específico
em torno da polêmica designação de nobreza da terra na historiografia colonial.
Um dos capítulos de O Sol e a Sombra é dedicado às análises da “nobreza de
sangue e nobreza de costumes” ou das “oscilações entre o mérito e a origem”, quando a
autora esmiúça as trajetórias de alguns governantes das Minas Gerais Setecentistas em
busca de ascensão social. Apesar da aplicação da noção de nobreza para designar a
47 Cf.: FRAGOSO, João, 2007, p. 23. 48 SOUZA, Laura de Mello e. O Sol e a Sombra: política e administração na América portuguesa do
século XVIII. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. 49 Historiadores que em sua maioria fazem parte do Grupo de História Econômica do Programa de Pós-
Graduação em História Social da UFRJ. Incluem-se também nesta denominação os historiadores da UFF, nomeadamente Maria Fernanda Bicalho, Maria de Fátima Gouveia, Hebe Maria Mattos e Ronald Raminelli.
50 No que tange ao debate acerca da questão do termo “Antigo Regime”, ver recente artigo de António Manuel Hespanha: Depois do Leviathan. Revista Almanack Braziliense. n.º 5, maio 2007, pp. 55-66. Disponível em: www.almanack.usp.br/neste_numero.
32
condição desses homens em suas relações de prestígio, destacando não raro as
“reinvenções de procedimentos” no que tange ao status de nobre, Mello e Souza
posiciona-se de forma contrária à utilização da expressão nobreza da terra para referir-
se às elites coloniais51.
Dialogando com um trabalho de Nuno Monteiro intitulado O ethos
nobiliárquico no final do Antigo Regime: poder simbólico, império e imaginário
social52, Maria Fernanda Bicalho propõe-se a refletir acerca da utilização do conceito de
nobreza da terra para designar as elites coloniais da América portuguesa. A autora
argumenta que a formação da nobreza da terra no ultramar (uma sociedade escravista)
teria se dado “a partir da dinâmica de práticas e instituições regidas pelo ideário da
conquista, pelo sistema de mercês e pelo exercício do poder municipal”53.
Quanto à crítica feita por Mello e Souza sobre a utilização do termo nobreza da
terra, Bicalho assegura que o termo aparece em diferentes fontes da época, e o que é
válido, para a autora, não é discutir a utilização ou não do conceito de nobreza para os
territórios ultramarinos, mas mapear os mecanismos locais utilizados por homens social
e politicamente distintos para aliarem seus discursos de nobres (presentes na
documentação) às circunstâncias específicas do espaço colonial que atuavam,
reinventando o conceito de nobreza reinól.
1. 4 Em busca de um conceito de nobreza
O debate levado a cabo por esses historiadores em torno da designação nobreza
da terra nos parece interessante na medida em que serve para localizar nosso viés
interpretativo e matizar nossa posição no tocante à utilização de tal conceito.
51 De acordo com a autora, o fato de os membros das elites coloniais se autodenominarem “nobreza das
terras” não autoriza os historiadores a “tomarem o que é construção ideológica por conceito sociológico”, e parece considerar a “menos equívoca” aristocracia regional a do nordeste açucareiro, notadamente a de Pernambuco. SOUZA, Laura de Mello e. O Sol e a Sombra, p. 179. Entendemos, todavia, que, ao caracterizar de “construção ideológica” o discurso de um determinado grupo que se intitula de nobreza das terras, a autora parece dissociar essas (auto)representações das situações mais concretas de suas produções. Os historiadores que operam com o conceito de nobreza da terra não transportam o conceito de nobreza vigente no Reino para o ultramar, mas salientam constantemente as reformulações e readaptações desse mesmo conceito para situações e elementos próprios às sociedades coloniais nas quais está sendo utilizado e, portanto, redimensionado. Ressaltamos ainda que o termo aparece constantemente na documentação produzida por esses homens para referirem-se a si próprios.
52Artigo publicado na Revista Almanaque Braziliense, n.º 02, novembro 2005. Disponível em: www.almanack.usp.br
53Conquista, mercês e poder local: a nobreza da terra na América portuguesa e a cultura política do Antigo Regime. In: Revista Almanack Brazieliense. nº 02, novembro 2005. Disponível em:www. almanack.usp.br.
33
Entendemos que trabalhar com a idéia de uma nobreza reinventada na sociedade
“maranhense” do século XVII insere-se em uma perspectiva que concebe os atores
políticos da região como capazes de recriar, a partir dos locais de suas vivências, novas
formas de significação das taxinomias e hierarquias de poder existentes no Império.
Antes de darmos prosseguimento à análise das estratégias de enobrecimento
articuladas por alguns homens para serem reconhecidos como nobres em suas terras,
convém atentar para um aspecto fundamental nessa discussão: que concepção era essa
de nobreza que estava sendo reinventada por esses homens nos territórios do ultramar
português?
Quando nos remetemos à idéia de nobreza, é a classificação “oficial”, legitimada
pela definição jurídica desde o período medieval e cristalizada no tripé “clero, nobreza e
povo”, que de modo geral nos é mais familiar. O sociólogo Norbert Elias, em clássico
estudo acerca da “sociedade de corte” no Antigo Regime, afirma ser essa uma “estrutura
social sólida e coerente”. Para Elias, a existência dessa nobreza cortesã estava
relacionada a uma partilha de oportunidades de poder e de relações de dependência,
unida pelas necessidades criadas artificialmente pela configuração da sociedade de
Antigo Regime 54.
Analisando os sistemas de valores e o “comportamento cortês” da Europa entre
os séculos XVI e XVII através da obra O Cortesão, de Baltasar Castiglione, Peter Burke
não raro faz referências aos modos de vida e aos “padrões culturais” da nobreza
européia nesse período. Essa nobreza da época moderna, segundo Burke, estava ligada
aos ideais de civilitas (civilidade) e, como uma nobreza de corte, associada à busca por
boas maneiras e pelo ideal de areté, ou seja, a excelência naquilo a que estava destinada
por tradição. “O homem que possuísse areté era aristos, de onde deriva aristocracia,
literalmente, o governo dos melhores”55.
Para Burke, esse ideal de excelência aristocrático correspondia, na prática, ao
governo de uma nobreza que era, em suma, hereditária, acostumada com o ambiente e
os jogos simbólicos da corte. O autor ressalta, porém, que a tradição clássica que
determina os modos de vida e de valores vai passar por significativas mudanças, “sendo
54 ELIAS, Norbert. A sociedade de corte. 2ªed. Lisboa: Editorial Estampa, 1995, p. 13. 55 BURKE, Peter. As Fortunas d’ O Cortesão: a recepção européia a O Cortesão de Castiglione. São
Paulo: Editora Unesp, 1997, p. 19.
34
reconstruídos diversas vezes em prol de diferentes grupos sociais, em diversos
ambientes”56. [grifo nosso]
A tradicional classificação das hierarquias sociais, portanto, não correspondia
de forma linear à multiplicidade das práticas existentes na sociedade, sendo não raro
perpassadas por ambivalências e apropriações diversas que iam recriando novas
definições e conceituações. Quanto a isso, Nuno Monteiro explica que:
“A existência de uma taxinomia institucionalizada, legitimada pela tradição e consagrada pelo privilégio, constituía o quadro de estruturação dos grupos sociais nos antigos regimes: ao mesmo tempo, condicionava os seus conflitos de classificação, balizados por esquemas de percepção do mundo social recebidos e incorporados, dentro dos quais tinham de se legitimar (...). Neste caso, a imagem de continuidade serve para ocultar frequentemente as dimensões da mudança” 57.
Tal idéia de uma nobreza hereditária, titulada, gravitando em torno da corte e
cuja definição estava perfeitamente atrelada às determinações jurídicas, fundamentais
no entendimento da organização da sociedade, vai paulatinamente ganhando novas
atribuições conceituais ao longo do século XVII.
É ainda Nuno Monteiro, em estudo acerca do estatuto nobiliárquico português,
que nos informa que a definição da idéia de “ser nobre” no século XVII vai passar por
sucessivas e cruciais mudanças, ocasionando uma série de transformações nas normas
de classificação social oficial em Portugal. De acordo com Monteiro, “a multiplicação
de grelhas de classificação” foi aos poucos produzindo um “alargamento” do limiar da
definição jurídica da nobreza portuguesa. Tais tendências implicavam em uma
redefinição dos privilégios e, portanto, do processo de estruturação dos grupos sociais
privilegiados58.
Para o referido autor, esse “momento de transição” que foi o século XVII
provocou uma erosão das fronteiras inferiores da nobreza portuguesa, permitindo que
indivíduos de outros estratos sociais que não os tradicionalmente inseridos na
concepção estamental fossem alçados à categoria de nobres.
A ocupação de postos e ofícios nos espaços urbanos por um número cada vez
maior de indivíduos criou, assim, a necessidade de atribuição de um estatuto
diferenciado aos titulares dessas novas funções sociais. Ao lado dos estados tradicionais
- a representação trinitária de clero, nobreza e povo - a doutrina jurídica vai “criar” um
56 Idem, Ibid, p. 29. 57 MONTEIRO, Nuno Gonçalo. O poder senhorial, estatuto nobiliárquico e aristocracia. In: HESPANHA,
António Manuel (Coord.) História de Portugal: O Antigo Regime (1620-1807). Lisboa: Círculo de Leitores, 1993, vol. 4, p. 333.
58 Op. cit. p. 334.
35
“estado do meio”, ou “estado privilegiado”, que se não era a nobreza titulada (e mais
restrita), também não estava associada ao “povo mecânico”. Forjava-se assim, o
conceito de “nobreza civil ou política”, distinta da nobreza hereditária, titulada, de
corte, já largamente incorporado na literatura jurídica do século XVII, encontrando
ressonâncias na práxis das relações sociais59.
Monteiro ressalta que a “banalização” do limiar inferior da nobreza implicou
que se desenhassem múltiplas formas e diversificadas fronteiras de status no seu
interior, variáveis de uma região para outra e dificilmente traduzíveis em categorias
que pudessem ser hierarquizadas uniformemente. A legitimação dessa nova categoria
nobiliárquica como uma condição tácita, estava associada, portanto, ao “viver
nobremente”, pelo desempenho de funções nobilitantes, quais sejam: a pertença ao
corpo de oficiais do exército de primeira linha ou das ordenanças, à magistratura ou
simplesmente a uma câmara municipal60. [grifo nosso]
Como podemos inferir do que até aqui foi exposto, a constituição dessa nobreza
política, ao contrário da definição de “nobreza de sangue”, é proveniente de acordos, de
negociações, inserindo-se nas relações de concessões de honras e mercês por serviços
prestados à Coroa tanto no reino quanto nos territórios ultramarinos. Ora, em um
cenário político específico como o do Maranhão Seiscentista, era perfeitamente viável
que a categoria de nobre pudesse ser recriada partindo-se de elementos próprios à
situação local, ainda que essa categoria aludisse à definição mais formal do conceito de
nobreza existente no Império luso.
Os ocupantes dos “honrosos cargos da república” - e no caso das sociedades
coloniais lusas, principalmente os oficiais dos senados das câmaras, reconhecidos como
“homens bons” - vão se autodenominar também de nobres, ciosos de que a natureza de
suas condições de nobreza foram engendradas em situações diferenciadas dos nobres
reinóis, mas nem por isso de menor importância para os interesses do monarca e,
principalmente, para a manutenção e estabilidade do Império português. Mas veremos
isso mais adiante.
59 Idem, Ibid, p. 335. 60 Idem, Ibid, p. 337.
36
1.5 Retratos do Maranhão Seiscentista: o cenário de reinvenção de uma nobreza
Os mecanismos que possibilitaram a reinvenção da condição de nobreza nos
trópicos, especificamente no Maranhão dos anos finais do século XVII, foram gestados
em circunstâncias diferenciadas, que mesmo estando pautadas em valores e práticas de
Antigo Regime, incorporavam elementos que eram próprios à sociedade colonial
“maranhense”. Apresentamos, portanto, o cenário que produziu essas circunstâncias.
O palco no qual se desenrolam as tramas da nossa história e atuam os nossos
personagens é o Antigo Estado do Maranhão. Estabelecido formalmente por carta régia
de 13 de junho de 162161, e separado do restante do Estado do Brasil por questões
administrativas, o Antigo Maranhão estava localizado na porção norte do atlântico sul
português. Quando nos referimos ao Maranhão, portanto, estamos nos remetendo à
imensa região que começava a noroeste da Capitania do Ceará, onde a ocupação do
Império português se dava de forma mais efetiva, e ia até a desconhecida divisa com o
Vice-Reinado do Peru62. Nos dias de hoje, o Antigo Estado do Maranhão
corresponderia aos atuais Estados do Maranhão, Piauí, Amazonas, Pará, Acre,
Rondônia, Roraima, Tocantins e parte do Ceará.
O historiador paraense Rafael Chambouleyron afirma que o Antigo Estado do
Maranhão Seiscentista precisa ser percebido como uma região que, para além da sua
delimitação jurídica, é também fruto das percepções dos portugueses e dos “nascidos na
terra”. Como produtores de discursos acerca do que seria essa região, acabaram por
elaborar conceitos e representações que, em conjunto, definiriam o Maranhão do século
XVII 63.
O Antigo Maranhão passou por sucessivas redefinições territoriais e políticas, e
no espaço temporal do qual se ocupa o nosso trabalho, nos decênios finais do século
XVII, o Maranhão achava-se dividido entre duas capitanias, a do Maranhão,64 com sede
na cidade de São Luís, e a do Grão Pará, sediada na cidade de Belém.
De acordo com Alírio Cardozo, o cenário da cidade de São Luís dos anos iniciais
do século XVII correspondia às condições improvisadas do começo das cidades do 61 MEIRELES, Mario. História do Maranhão. São Paulo: Editora Siciliano, 2001, p. 69. 62 CARDOSO, Alírio. Insubordinados, mas sempre devotos: poder local, acordos e conflitos no antigo
Estado do Maranhão (1607-1653). Dissertação de Mestrado, Campinas, São Paulo, 2002. 63 Chambouleyron, Rafael. Opulência e Miséria na Amazônia Seiscentista. Raízes da Amazônia.
Manaus. Vol. 1, nº. 01, 2005, p. 107. 64 Era formada, nesse período, de sete capitanias subsidiarias, a saber: Ceará, Itapecuru, Icatu, Mearin,
sendo estas da Coroa portuguesa. Tapuitapera (Alcântara), Caeté e Vigia , eram capitanias particulares. Cf: MEIRELES, Mário, 2001, p. 72.
37
Estado do Brasil. Esse cenário era composto, via de regra, por igrejas e prédios públicos
constituídos em taipa, barro e palha. As táticas rudimentares também faziam parte do
primeiro ambiente urbano encontrado nos espaços urbanos das cidades da América
portuguesa65.
Ainda sobre o cenário da velha cidade de São Luís, o cronista jesuíta João Felipe
Bettendorff, faz referência a dois momentos distintos. Na primeira metade do século
XVII, o padre afirma não ser a cidade de São Luís “coisa de grande consideração”,
possuindo não mais que uma pequena fortaleza cercada por um muro estratégico66.
Esse muro a qual o padre faz referência teria sido o que foi criado por Bento Maciel
Parente para reforçar a proteção da cidade. Posteriormente conhecido como “trincheira”,
circunscrevia a Sé, o Colégio dos Jesuítas, a Câmara e o Palácio dos Governadores.
Esse primeiro momento “correspondia aos anos iniciais da ocupação portuguesa,
quando São Luís era uma cidade com poucas ruas, habitantes e prédios públicos que,
como outros centros urbanos do Império, crescia à sombra do próprio Forte” 67.
No final do século XVII, o cronista atesta o rápido crescimento da cidade. No
ano de 1693, já era “cidade bastante”, já possuía uma “praça”, o Forte (reerguido em
pedra e cal) e uma Câmara nova. Ajudavam a compor esse cenário quatro casas
religiosas: o Colégio da Companhia de Jesus, o Convento de Santo Antonio, o Convento
de Nossa Senhora do Carmo, e ao sul da cidade, o Convento de Nossa Senhora das
Mercês68.
As estimativas populacionais da cidade de São Luís, “cabeça do Estado”69 do
Antigo Maranhão no século XVII, não raro são baseadas em perspectivas bastante
imprecisas. As fontes portuguesas do século XVII que dizem respeito a quantitativos
populacionais, referem-se geralmente a fogos, moradores ou vizinhos (expressões
equivalentes, em princípio, a agregados domésticos)70, contudo, essas informações nos
ajudam a dar “contornos e cores” para montar o mosaico da velha cidade.
Em uma carta enviada ao rei Felipe III, o então governador Bento Maciel
Parente informa que no ano de 1637, existiam na cidade de São Luís e arredores 250
65 CARDOZO, Alírio. Poderes Internos: a cidade de São Luís e o discurso da Câmara no século XVII.
Ciências Humanas em Revista. São Luís, vol. 5, n.º 2, dezembro 2007. pp. 125- 142. 66 BETTENDORF, João Felipe. Crônica dos padres da Companhia de Jesus no Estado do Maranhão.
Belém: SECULT, 1990, p. 17. 67 Cf.: CARDOZO, Alírio, 2007, p. 129. 68 Cf.: BETTENDORF, João Felipe, 1993, p. 17. 69 AHU - Maranhão (Avulsos), cx.7, doc. 773 (29 de janeiro de 1687). 70 SERRÃO, José Vicente. O quadro humano. In: HESPANHA, António Manuel (Coord.) História de
Portugal: O Antigo Regime (1620-1807). Lisboa: Círculo de Leitores, vol. 4, 1993, p. 49.
38
moradores e 60 soldados. Em 1648, a população contava com “400 colonos portugueses
e 80 soldados, não sendo maior, por se ressentir ainda a pequena cidade dos desastrosos
efeitos produzidos pela invasão holandesa” 71.
O padre Bettendorf afirma que na segunda metade do século São Luís possuía
mais de 600 famílias72. Precisa-se levar em conta, entretanto, a ambigüidade dos termos
utilizados para referi-se à população na época, tais como “moradores”, “portugueses”,
“vizinhos” e “almas” (indivíduos maiores de 7 ou de 11 anos)73, pois esses termos não
raro referiam-se à população considerada branca, e as estatísticas populacionais, via de
regra, deixavam de referir-se à quantidade de nativos habitando a Capitania, outras
vezes, ignorando o número de mestiços presentes na sociedade 74.
A definição para o vocábulo cidade do mais importante dicionário de língua
portuguesa do início do século XVIII também nos ajuda a “lançar luz” sobre o cenário
da cidade de São Luís no final do século XVII. Para o frade de origem francesa Rafael
Bluteau, autor de um importante dicionário lançado nos anos iniciais do século XVIII,
cidade era “multidão de casas distribuídas em ruas e praças cercadas de muro e habitada
de homens que vivem com sociedade e subordinação”75. [grifo nosso]
Silvia Hunold Lara, em seu mais recente trabalho, chama atenção para o fato de
que a definição para cidade tal como aparece em Bluteau, contempla o aspecto espacial
e arquitetônico, contudo, percebe-se nesta definição um aspecto que quase sempre
escapa aos estudiosos da vida urbana no Brasil colonial: os aspectos políticos
associados à definição da cidade. Para a autora, apesar da importância que tem a
quantidade de construções ou a existências de ruas e muros (aspectos geralmente
classificados sobe a rubrica do urbanismo), deve-se atentar para os elementos políticos,
de circulação de poder no espaço urbano. Segundo Bluteau, os homens que habitam a
cidade “vivem em sociedade e subordinação”. Nesse sentido, Lara questiona:
subordinados a quem, e vivem segundo quais regras? 76
71 AMARAL, José Ribeiro do. O Maranhão Histórico. São Luís: Coleção Geia 2003, p. 61. 72 Ver: BETTENDORF, João Felipe, 1990, p. 17. 73 Cf.: SERRÃO, José Vicente, 1993, p. 49. 74CHAMBOULEYRON, Rafael. Portuguese Colonization of Amazon Region, 1640-1706. Tese de
Doutorado. Universidade de Cambridge, Inglaterra, 2005, p. 24. 75 BLUTEAU, Rafael. Vocabulário portuguez e latino. Coimbra, Colégio das artes da Companhia de
Jesus, 1712, p. 309 (edição digitalizada pela USP/IEB). Bluteau, um padre da Ordem de São Caetano, escreveu ao longo de nove anos os oito volumes que compõe o dicionário. Disponível em: www.ieb.usp.br/online/index.asp.
76 Ver: LARA, Silvia Hunold. Fragmentos Setecentistas: escravidão, cultura e poder na América portuguesa. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 29-30.
39
Outro verbete do mesmo dicionário nos ajuda a entender melhor essa questão.
Vila é definida como “povoação aberta ou cercada, que nem chega à cidade nem é tão
pequena quanto a aldeia. Tem juiz e Senado da Câmara e seu pelourinho”. Percebemos
que mais uma vez o frade chama atenção para os elementos políticos, e o que ganha
destaque é a “presença de autoridades locais, responsáveis pelo exercício do governo e
da justiça”77.
Na montagem do cenário de São Luís seiscentista além dos já citados aspectos
arquitetônicos e populacionais, interessa perceber como alguns desses espaços físicos
representavam também espaços de poder, espaços onde os indivíduos articulavam seus
acordos e estabeleciam seus conflitos. O Senado da Câmara da cidade de São Luís no
fim do XVII nos parece exemplar nesse sentido.
O Senado da Câmara de São Luís foi instituído provisoriamente em 1615 por
Alexandre de Moura, comandante português por ocasião da tomada da Ilha aos
franceses no início da conquista, contudo, apenas em 1619 a Câmara foi “instituída em
sua forma ritual definitiva”, com a eleição dos seus primeiros juizes, vereadores e
procurador78. Nesse sentido, é importante destacarmos que a atuação da Câmara como
instância de poder e influência sobre os assuntos da cidade deu-se, portanto, três anos
antes do estabelecimento do Antigo Estado do Maranhão.
Segundo Charles Boxer, o núcleo dos conselhos municipais era composto
geralmente por dois a seis vereadores, de acordo com o tamanho e a importância do
local, dois juízes ordinários (magistrados ou juízes de paz sem formação em direito) e o
procurador. Todos tinham direito a voto nas reuniões do Conselho e eram conhecidos
coletivamente como “oficiais da Câmara”. O escrivão, embora a princípio não tivesse
direito a voto, era muitas vezes incluído entre os oficiais, e era ainda o único com
obrigação de saber ler e escrever. Havia ainda, os que o autor chama de “funcionários
subalternos das municipalidades”, que não tinham direito a voto nas reuniões e seu
números variava de cidade para cidade, mas que incluíam em geral os almotacés,
(inspetores de mercados), responsáveis pela fixação de preços e fiscalização do
comércio,os juízes de órfãos e os alferes79. Estes indivíduos, segundo Adolfo Hansen,
77 Idem, Ibid. 78 MARTINS, Ananias. Municípios de São Luis e Alcântara no Maranhão: informes preliminares de
formação e função. In: História dos Municípios: administração, eleições e finanças. II Seminário Internacional – História do Município no Mundo Português. Coimbra: Centro de Estudos de História do Atlântico/Secretaria Regional do Turismo e Cultura, 2001, p. 46.
79 Cf.: BOXER, Charles. 2002, p. 286-287.
40
eram reconhecidos pelo tratamento próprio de “vossas mercês”, o que lhes conferia um
grau de prestígio e distinção na sociedade colonial80.
Os ofícios e cargos do Senado da Câmara eram ocupados pela elite local, os
chamados “cidadãos”, que também se auto-intitulavam como a “nobreza” da cidade.
Nesse sentido, interessa-nos ressaltar as intrínsecas relações entre a ocupação dos cargos
da Câmara e os meios de alcançar um status privilegiado na sociedade, já que a
governabilidade municipal garantia aos seus agentes uma gama de elementos
nobilitantes em seus espaços de poder e atuação. Trataremos dessa questão detidamente
no segundo capítulo, visto ser ela um dos pontos fundamentais para a reinvenção do
conceito de nobreza no Antigo Maranhão.
Estes são apenas alguns elementos que compõe o cenário onde estava sendo
reinventado o conceito de nobreza. Integrantes e construtores das práticas de
sociabilidade e das configurações sociais a nível imperial, os personagens das nossas
tramas irão redefinir a concepção de nobreza, fazendo uso das estratégias de nobilitação
correntes no Império português e adequando-as às circunstâncias próprias ao Maranhão
do final do século XVII.
Ao pedirem para serem providos nos cargos de capitães, provedores, escrivães,
ou para serem agraciados com o Hábito da Ordem de Cristo, homens como Diogo Vaz
Penalico, João Dias Vieira ou João Telles Vidigal estavam produzindo discursos que os
distinguiam dos demais estratos sociais no Maranhão do fim do século XVII. Arrolando
serviços e justificando privilégios, esses indivíduos estavam se inserindo nas relações de
concessões de mercês por préstimos à Coroa, e dessa forma, configurando um tipo
distinto de status nobiliárquico na sociedade, um status balizado, principalmente, pelo
servir nos cargos da “República” e pelo poder de mando na colônia.
80 Cf.: HANSEN, João Adolfo, 2004, pp. 86-87.
41
2 CONDIÇÕES DA NOBREZA LOCAL
“Nobilitas non praesumitur [...] quia nobilitas non insit a
natura, sed illustribus, factis, litteris, divitiis,
aut Principum, gratia pariatur hominibus[...]”
“A nobreza não se presume [...] pois não é intrínseca à natureza [comum] dos homens, mas atribuída [a
alguns, por feitos ilustres, pelas letras, pela riqueza, ou pela graça do Príncipe [...]”
Jorge de Cabedo, jurista português, século XVII
2.1 Status de nobreza e práticas econômicas
As atividades econômicas do Maranhão no século XVII estão entre os mais
conhecidos e tradicionais “retratos” pintados sobre a região. Expressões como miséria,
riqueza, pobreza, opulência, penúria, são recorrentes nos relatos acerca da economia
“maranhense” nesse período, e a historiografia que trata do Maranhão Colonial não raro
tem na discussão sobre a economia da região a “pedra de toque” de suas análises.
As interpretações historiográficas clássicas dão conta que no século XVII,
principalmente na sua primeira metade, predominaria uma economia de subsistência,
claramente associada à “penúria” e à “miséria” da região e de seus habitantes. A
economia, bastante acanhada, fundava-se na exploração de gêneros agrícolas destinados
ao auto-consumo; as exportações eram limitadas e raras, com uma produção reduzida e
comércio insignificante. Os produtos mais comuns eram: o arroz vermelho, a farinha de
mandioca, milho, mamona, café, baunilha, além de uma “pequena produção de algodão
usado geralmente nas permutações de compra e venda” 81.
Jerônimo de Viveiros, em estudo clássico, afirma que no Maranhão Colonial
vivia-se em estado de verdadeira “miséria”, onde os produtos mais básicos para a
sobrevivência faltavam aos moradores da região82. Este quadro de pobreza crônica e de
uma economia de subsistência “pintado” por uma historiografia tradicional tem sido, se
não abertamente contestado, mas pelo menos relativizado por recentes trabalhados sobre
o Maranhão dos séculos XVII e XVIII.
81GAIOSO, Raimundo José de Souza. Compêndio histórico-político dos princípios da lavoura no
Maranhão. Rio de Janeiro: Editora Livros de Mundo Inteiro, 1970, p. 168-169. 82VIVEIROS, Jerônimo de. História do comércio do Maranhão (1612-1895). São Luís: Associação do
Comércio do Maranhão, 1954, p. 22.
42
Estas interpretações, com destaque para os recentes estudos dos professores
Carlos Alberto Ximendes, Regina Faria, Rafael Chambouleyron, entre outros, nos
sugerem os indícios de uma economia relativamente complexa, com uma diversidade
significativa de mão de obra, atividades mecânicas e de mercado83. Como afirmam seus
autores, essas recentes pesquisas nos permitem “repensar” o cenário de pobreza e
miséria absoluta fornecido pela tradicional historiografia do período.
A dinâmica da reinvenção da condição de nobreza no Maranhão, portanto,
precisa ser pensada a partir de circunstâncias e aspectos específicos, que levem em
conta as singularidades locais que caracterizavam a região no final do século XVII. Um
desses aspectos que levaremos em conta é justamente a importância das atividades
econômicas praticadas pelos habitantes da região.
João Fragoso, em estudo acerca de economia política no século XVII, afirma
que a economia possuía extrema importância na hierarquização social do período, no
entanto, a lógica das práticas econômicas acabava por subordinar o cabedal ao status
político e social do individuo, “o homem bom antecedeu o senhor de engenho, e não o
contrário”84. Em outras palavras, a economia nos trópicos era, antes de tudo, baseada
em relações políticas, e são essas relações que levaremos em conta ao pensarmos sobre
as vinculações entre aspectos econômicos e status privilegiado na colônia.
Nos vários escritos dos moradores e autoridades do Maranhão relacionados às
práticas econômicas ainda na primeira metade do século XVII, evidencia-se a
preocupação com o que frequentemente aparece na documentação como “aumento” e
“conservação” da conquista. Ressaltamos, porém, que não somente os moradores da
região demonstravam preocupação com o desenvolvimento de atividades que
“aumentassem” o Antigo Maranhão, como o faz o morador de Belém João de Ornellas
da Câmara, provavelmente no inicio da década de 1660 85.
A Coroa portuguesa, em várias cartas e provisões durante todo o século XVII,
também manifestava seu interesse em relação aos produtos cultivados no Maranhão,
83 Sobre isso, ver: XIMENDES, Carlos Alberto. Economia e sociedade maranhense (1612-1755):
elementos para uma reinterpretação. Dissertação de Mestrado. UEP\Assis, 1999, p. 97. Sobre a questão da reinterpretação da pobreza no Maranhão Colonial, ver também: FARIA, Regina. Repensando a pobreza no Maranhão (1616-1755): uma discussão preliminar. Ciências Humanas em Revista. São Luís, vol. 1, n.º 1, abril 2003.
84 FRAGOSO, João. A nobreza vive em bandos: a economia política das melhores famílias da terra do Rio de Janeiro, século XVII. Algumas notas de pesquisa. Disponível em: http\\www.ppghis.ifcs.ufrj
85 CHAMBOULEYRON, Rafael. As várias utilidades do Maranhão: reflexões sobre o desenvolvimento da Amazônia no século XVII. In: NEVES, Fernando Arthur de Freitas & LIMA, Maria Roseane Pinto (Org.). Faces da História da Amazônia. Editora Paka-Tatu, 2006, p. 156.
43
principalmente no que diz respeito ao cacau, baunilha e canela, onde se percebe que as
atividades econômicas no Antigo Maranhão eram muito mais dinâmicas do que
frequentemente se achava a partir de leituras mais tradicionais. É o que se pode perceber
no discurso do monarca presente nesta provisão de 1667:
“[...] em razao da grande conveniencia que resultará á minha Fazenda e ao augmento d’aquelle Estado a agricultura das plantas das baunilhas e cacao e pela muita quantidade que ali há de um e outro genero e a forma em que se devia beneficiar para maior rendimento da Fazenda Real e bem d’aquelles vassalos [...]”86
Os constantes escritos enviados pelo monarca a moradores e autoridades do
governo, eclesiásticas e municipais acerca do cultivo de cacau e baunilha87 apontam
para um insistente incentivo da Coroa lusa em diversificar a produção agrícola da
região. Isto garantia (in)diretamente seus interesses com o aumento e a conservação do
Estado do Maranhão ao estimular os moradores a produzirem e comercializarem tais
produtos88.
Apesar das constantes legislações tratando do cultivo de produtos os mais
variados, era a cultura do açúcar, relacionado à posse de engenhos, que estava
diretamente relacionado ao status de proprietário e, portanto, ligado à idéia de prestígio
e distinção social que se revertia em privilégios no campo político89.
A posição de proprietário de engenhos oferecia as vantagens simultâneas de uma
atividade econômica lucrativa e os atributos e status de nobreza associados ao modo de
vida senhorial90. Assim, ao analisarmos a dinâmica de ressignificação do conceito de
nobreza no Antigo Maranhão, precisamos levar em consideração as maneiras como a
posse de engenhos91 e de escravos, indígenas e africanos, dava sustentação a um modo
de vida distinto e garantia a legitimação de um discurso e de práticas nobres
reinventadas na região.
Em 1687, durante o governo de Gomes Freire de Andrade (1685-1687), uma
consulta é encaminhada ao rei D. Pedro II (1683-1706) acerca de uma importante
86 Livro Grosso do Maranhão. 1ª parte, vol. 66. Anais da Biblioteca Nacional. 1948, fl. 38. 87 Livro Grosso do Maranhão. 1ª parte, vol. 66. Anais da Biblioteca Nacional. 1948, fls. 41, 42, 45, 46,
47 e 65. 88 Em uma carta enviada a Arthur de Sá e Menezes (1687-1690), em 24 de novembro de 1686, o monarca
reitera a abundância de cacau e baunilha no Estado, e ordena ao dito governador que passe a premiar a partir de então aos que dispusessem a cultivar esses produtos na região. Idem, fl. 73.
89 CHAMBOULEYRON, Rafael. 2006, p. 156. 90 SCHWARTZ, Stuart B. Segredos internos: engenhos e escravos na sociedade colonial (1550-1835). 3.
ª ed. São Paulo: Cia. das Letras, 2006, p. 225. 91Jerônimo de Viveiros afirma que o engenho mais antigo que se tem notícia no antigo Maranhão é de
1622, às margens do rio Itapecuru, pertencente a Antonio Muniz Barreiros. VIVEIROS, Jerônimo, 1954, p. 33.
44
questão para a política e a economia do Estado apresentada pelo dito governador: os
privilégios dos senhores de engenho no Maranhão. Segundo o governador, existiam
“muitos engenhos no estado do Maranhão” e estavam “se desmantelando todos não só
por falta dos escravos e do comercio do Assucar”, mas, principalmente, por não serem
observados certos privilégios que deveriam ser garantidos aos ditos proprietários de
engenhos92.
Os privilégios requisitados pelo governador para os donos de engenho no Estado
apontam para uma questão de suma importância em nossa análise, que é a intrínseca
relação entre a posse de engenhos e o servir nos postos da “República”, principalmente
nos ofícios do Senado da Câmara. Stuart Schwartz, em estudo sobre a “aristocracia do
açúcar”, afirma que a elite dos senhores de engenhos controlavam as câmaras, formando
um grupo significativo que tentava influenciar os conselhos93.
Na documentação trabalhada, podemos perceber os constantes discursos dos
camarários demonstrando seus interesses em relação ao cultivo da cana de açúcar, o que
nos permite inferir que grande parte dos senhores de engenho circulavam pelos cargos
do Senado da Câmara de São Luís, interligando interesses e possibilitando uma
circulação de poderes em vários lócus da colônia. Mas continuemos com os pedidos dos
cultivadores de cana de açúcar.
Freire de Andrade informa que os senhores de engenho não podiam ser
obrigados pelos governadores a “servir na camara” e nem que fossem executadas “suas
dividas nas fabricas dos mesmos engenhos”. Informa ainda que os “engenhos de
Assucar sempre erão necessarios para o uso dos mesmos [senhores de engenho] [...] e
que se lhe devem comceder os ditos privilegios apontados: o primeiro de não serem
obrigados a servir na Camara com os fundamentos da assistencia que devem fazer nos
engenhos; o segundo de que não possam ser executados nas fabricas dos taes engenhos
[...]”94.
A Consulta continua informando que “pareceo [...] o mesmo que a Gomes
Freire” e que seria “conveniente privilegiar esses homêns”, no entanto, chama atenção
para uma contradição importante: conceder os privilégios aos oficiais da Câmara de não
serem obrigados a servir no Senado em prejuízo de suas “fabricas de assucar”
acarretaria em “prejuizo ao servico da Republica”. Isto significava que dar primazia aos
92 AHU - Maranhão (Avulsos), cx. 7, doc. 783 (15 de Novembro de 1687) 93 SCHWARTZ, Stuart. Burocracia e sociedade no Brasil colonial. São Paulo: Editora Perspectiva,
1979, p. 148. 94 AHU - Maranhão (Avulsos), cx. 7, doc. 783 (15 de Novembro de 1687)
45
donos de engenho no cuidado de suas fábricas se refletiria em danos para o chamado
“bem comum do povo” 95, já que as atividades da Câmara, com a ausência
principalmente dos vereadores, seriam deixadas em segundo plano, afetando o
equilíbrio da “República” e do próprio funcionamento dos corpos políticos do Império.
Apesar do “prejuizo ao serviço da Republica” com a ausência dos donos de
engenho no Senado da Câmara, visto que a maioria dos oficiais camarários também
eram “senhores do açúcar”, Rafael Chambouleyron informa que já no ano de 1688, um
ano após a consulta sobre esta questão, o rei isentava, por meio de um Alvará, os
senhores de engenho de todo o Estado do Maranhão de servirem na Câmara. A
justificativa era que “os engenhos eram muito distantes das cidades”, e a ausência dos
senhores contribuía para agravar a já precária produção de açúcar da região, algo que a
corte queria evitar”96.
As afinidades econômicas e políticas que uniam os oficiais da Câmara e as
atividades em torno da produção de açúcar podem ser percebidas também em vários
escritos do século XVII. Um caso exemplar, nesse sentido, nos parece ser um
requerimento enviado no ano de 1662 pelos oficiais da Câmara de São Luís e pelo
procurador do povo, Jorge de Sampaio, ao rei D. Afonso VI (1656-1667), informando
que no Rio Munim existiam “terras varz[e]as” que seriam ideais “para nellas se
prantar[sic] canas de fazer asucar”97.
O requerimento prossegue informando ao monarca que nestas terras há a
possibilidade de “se fazerem athe seis engenhos que serão muito uteis para aquele
estado se fazer opulento”, para isso, no entanto, seria “necessario hir situar nellas uma
Aldeia de Indios”. Para tanto, pediam a “Vossa Magestade que faça mercê mandar
passar ordem nesesarias ao governador do dito estado para que se faca conduzir hua das
Aldeas do Para que hâ muitaz”, para aquela região do Munim.
Trinta anos depois, uma carta enviada ao rei D. Pedro II pelo ouvidor geral do
Estado, Manuel Nunes Colares, informa acerca da guerra que os moradores estavam
95 A idéia de “bem comum do povo” remete ao princípio ordenador da sociedade e o fim para o qual ela
deve se orientar do ponto de vista natural e temporal, e mesmo sendo um valor político por excelência, subordina-se sempre à moral. “O Bem Comum se distingue do bem individual e do bem público, e enquanto o bem público é um bem de todos por estarem unidos, o Bem Comum é dos indivíduos por serem membros de um Estado [...] um valor que os indivíduos só podem perseguir em conjunto, na concórdia”. MATTEUCCI, Nicola. Bem Comum. In: BOBBIO, Norbert, MATTEUCCI, Nicola & PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de Política. 8ª ed. Brasília: Editora da UnB, 1995, p, 106.
96 CHAMBOULEYRON, Rafael. Belém e seus moradores no século XVII. In: FONTES, Edilza. (Coord.) Contando a história do Pará: da conquista à sociedade da borracha. (séc. XVI-XIX). Belém: E. moticon, 2003, p. 88-89
97 AHU- Maranhão (Avulsos), cx. 4, doc. 463, (18 de novembro de 1662).
46
fazendo ao gentio de corso, em função dos prejuízos que estes estavam causando pelas
bandas do Rio Mearin, “ficando legitimamente escravos os que [...] se capturassem”98.
A preocupação dos moradores e as justificativas para fazerem guerra aos índios bravios
estão relacionadas ao fato de que às margens do Rio Mearin localizavam-se um bom
número de engenhos, assim como às margens dos rios Munim, Pindaré e,
principalmente, do Itapecuru99.
O teor desses escritos sinaliza para as constantes preocupações das autoridades
régias e acima de tudo, dos oficiais da Câmara de São Luís, com o plantio da cana de
açúcar e a construção de engenhos. Nestes discursos é possível perceber, portanto, que a
construção de engenhos seria útil para a opulência do Estado do Maranhão, ou seja, para
a manutenção do bem público. Por outro lado, também são reveladores dos interesses
particulares desses indivíduos, já que os homens bons do Senado se revezavam nos
ofícios de agentes do poder municipal e de donos de terras e de gentes na colônia.
2.2 Senhores de terras e de gentes
Como aludimos no primeiro capítulo, a posse de “homens e de terras”
funcionava como elemento de distinção social e de legitimação do mando político na
colônia. Possuir engenhos e escravos no século XVII denotava status econômico e
representatividade política que davam sustentáculo à qualidade de indivíduo
hierarquicamente superior na sociedade.
Em artigo sobre a escravidão nos quadros do Império português, a historiadora
Hebe Mattos discorre acerca das (aparentes) contradições na existência de sociedades
escravistas nas Américas, quando esta instituição estava progressivamente
desaparecendo do cenário europeu moderno. Mattos afirma que a escravidão, tanto de
indígenas quanto de africanos, em vez de significar uma contradição, representa a
condição básica para a existência de uma sociedade católica e escravista no Brasil
Colonial100.
Para a autora, a concepção de sociedade de Antigo Regime legitimava e
naturalizava as desigualdades e hierarquias sociais, e o contínuo processo de expansão
98 AHU - Maranhão (Avulsos), cx. 8, doc. 851 (4 de maio de 1692). 99 MORAES, Salomão Sá Menezes. O “açougue” da Amazônia: intrigas políticas no alvorecer do
município de São Luís (1615-1700). Monografia do Curso de História(UEMA). São Luís, 2006. 100 MATTOS, Hebe Maria. A escravidão moderna nos quadros do Império português: o Antigo Regime
em perspectiva atlântica. Cf.: In: FRAGOSO, João, BICALHO, Maria Fernanda & GOUVÊA, Maria de Fátima, 2001, p. 143.
47
do Império luso e de seu ordenamento jurídico permitiu a incorporação social e a
produção de novas relações costumeiras de poder, entre elas, a escravidão. Os quadros
mentais e sociais da América lusa, portanto, balizados na concepção corporativa da
sociedade, precisaram adequar-se à produção de novas categorias que “definissem a
função e o lugar social dos novos conversos, fossem mouros, judeus, ameríndios ou
africanos”. Afirma, Mattos, portanto, que:
[...] se equivocam os autores quando tomam como deturpação dos valores básicos da cristandade, forçada pelo primado de uma lógica mercantil, a construção de justificativas religiosas para a expansão da ordem econômica e social escravista na América portuguesa. Ao contrário, a possibilidade do cativeiro do gentio americano ou africano foi antes construção de quadros mentais e políticos, de fundo corporativo e religioso, possibilitadores daquela expansão, inclusive na sua dimensão comercial 101.
De acordo com João Fragoso, um dos elementos de reinvenção da condição de
nobreza nos trópicos estava pautado justamente na capacidade de recriar, a partir de
situações e circunstâncias próprias ao Novo Mundo, um estatuto de nobreza
diferenciada, não reconhecida por critérios estamentais, mas balizada pelo
reconhecimento na colônia. E esses “fidalgos” da terra encontravam justamente na
posse de escravos e de terras uma das principais possibilidades de enriquecimento e de
alcance de nobilitação102.
Na cidade de São Luís, durante todo o século XVII, a questão da necessidade de
escravos para trabalhar nas lavouras é tópica recorrente em vários escritos, sejam eles de
moradores, de funcionários régios e (principalmente) do “povo”103, representados
geralmente pelos oficiais da Câmara. Esses escravos serão de maioria indígena nos
primeiros decênios do Seiscentos, no entanto, percebemos que a partir da segunda
metade do século, em várias correspondências trocadas entre a Coroa, seus agentes no
ultramar e os oficiais da Câmara, a questão da necessidade de escravos negros colocava-
se presente.
Estudos mais tradicionais sobre o tema dão conta que a presença de africanos
escravizados no Maranhão data apenas da segunda metade do século XVIII, com a
“emancipação indígena” por decreto real104, e que a efetiva utilização desta mão de obra
101 Idem, ibid, p. 144 102 Ver: FRAGOSO, João. 2007, p. 23. 103 De acordo com Evaldo Cabral de Mello, na América portuguesa, “onde as posições e as fortunas eram
de aquisição recente”, não se poderia exigir um rigor vocabular que “tampouco existia no Reino”. O vocábulo povo, por exemplo, “podia ocasionalmente incorporar os próprios nobres (...)”. Ver: O Rubro Veio: o imaginário da restauração pernambucana. São Paulo: Alameda, 2008, p. 160.
104Sobre essa questão ver: MARQUES, César. Dicionário Histórico e Geográfico da Província do Maranhão. (1870) RJ: Editora Fon-Fon e Seleta, 1970.
48
só havia se dado quando da chegada ao Maranhão de Sebastião José de Carvalho e
Melo, depois Marquês de Pombal. Mário Meireles, apesar de contradizer César Marques
quanto ao período da chegada do “primeiro africano” ao Maranhão, (no ano de 1761,
segundo Marques), reforça a idéia de que nas mudanças políticas de Sebastião José para
a região encontram-se a “emancipação do indígena e a introdução da escravatura
negra”105.
Rafael Chambouleyron, em artigo que trata do tráfico de africanos para o Antigo
Maranhão afirma que, apesar da mão de obra indígena, escrava ou livre, ter sido a
principal força de trabalho na região durante o século XVII, a presença de africanos
escravizados não pode ser desconsiderada nesse período. De acordo com o autor, em
vários textos seiscentistas “escritos do e sobre o Estado do Maranhão, a imagem de que
o Estado do Brasil só havia prosperado graças ao uso de africanos torna-se um
argumento fundamental para defender o urgente envio de escravos da África para a
região”106.
Na documentação que utilizamos para este trabalho, um dos temas mais
freqüentes diz respeito justamente às solicitações de “escravos” para a região, e quase
sempre esses apelos de “moradores”, autoridades municipais e reais estão relacionados
ao “aumento e conservação” do Estado. Cabe ressaltar que nem sempre essa mesma
documentação deixa claro se esses personagens estão referindo-se a africanos ou a
indígenas. Em algumas situações, porém, podemos perceber que esses escritos dizem
respeito especificamente a africanos.
Em uma consulta do Conselho Ultramarino a D. Pedro II (na época príncipe
regente de Portugal), no ano de 1680, é discutida a questão do comércio de escravos
para o Maranhão, onde se afirma que “o meio mais conveniente para a conservação e
aumento do estado do Maranhão era o meterense negros nelle”, questão essa que o dito
Conselho afirma ter feito “antecipadamente varias diligencias [...] para se conseguirem
este negocio”107. Abaixo seguem algumas informações108 acerca da dinâmica da
105 MEIRELES, Mário. História do Maranhão. São Paulo: Editora Siciliano, 2001, p. 152. 106 CHAMBOULEYRON, Rafael. Escravos do Atlântico Equatorial: tráfico negreiro para o Estado do
Maranhão e Pará (século XVII e início do século XVIII). In: Revista Brasileira de História. Vol. 26, n.º 52, 2006, pp. 79-114. Disponível em: www.scielo.br/scielo.php
107 AHU - Maranhão (Avulsos), cx. 6, doc. 649 (2 de abril de 1680). 108 Navios que chegaram ao Estado do Maranhão. CHAMBOULEYRON, Rafael. Escravos do Atlântico Equatorial:
tráfico negreiro para o Estado do Maranhão e Pará (século XVII e início do século XVIII). In: Revista Brasileira de História. Vol. 26, n.º52, 2006, p. 21. Disponível em: www.scielo.br/scielo.php
49
presença de escravos africanos no Antigo Maranhão durante os séculos XVII e
primeiros anos do XVIII:
Ano Número de
escravos
Procedência Observações
1671 50 Angola O governador Pedro César de Menezes levou 50 escravos de
Angola para construir o engenho de anil
1671 400 Angola Duas naus holandesas chegam a São Luís, mas são impedidas
de comerciar com a população pelo governador
1673 - Guiné Capitão Domingos Lourenço, nau Nossa Senhora do Rosário
e Almas
1682 - Guiné Chegada de Pascoal Pereira Jansen (Estanco) ao Maranhão -
contrato 4
1684 200 Guiné Navio do Estanco chega a São Luís durante a revolta de
Beckman - contrato 4
1684 “poucos
escravos”
Guiné Navio do Estanco chega a São Luís - contrato 4
1685 - Guiné O capitão Silvestre da Silva chega ao Estado, pago pelo
Estanco, que já havia sido abolido.
1690 - Angola O governador Antonio de Albuquerque Coelho de Carvalho
refere-se a um navio vindo de Angola que teria naufragado na
costa do Pará
1693 139 Mina e
Guiné
Assento com a Companhia de Cabo Verde e Cachéu; capitão
Manuel Luís - contrato 5
1695 103 Guiné Assento com a Companhia de Cabo Verde e Cachéu; vendidos
aos senhores e lavradores “por particulares” - contrato 7
1696 18 - Provavelmente assentos, escravos vendidos aos senhores de
engenho e lavradores - provavelmente contrato 8
1698 108 Mina Assento com Antonio Freire de Ocanha e Manuel Francisco
Vilar; o capitão Diogo da Costa deveria entregar 218
escravos; uma das naus naufragou na costa da Mina - contrato
9
1702 110 Mina Assento com Antonio Freire de Ocanha e Manuel Francisco
Vilar; capitão Diogo da Costa - contrato 10
Em outra consulta feita ao rei pelo mesmo Conselho Ultramarino, no ano de
1693, percebemos como a questão da necessidade de escravos para o Maranhão
movimentava agentes diversos, quase sempre em conflitos, como governadores, oficiais
50
da Câmara e os moradores, mas que em determinadas ocasiões uniam-se em favor de
interesses convergentes, sob a idéia do sempre alegado “bem comum do povo” 109.
Nesta consulta, o Conselho informa sobre duas cartas do governador do Estado,
Antonio de Albuquerque Coelho de Carvalho, o Moço (1690-1701), onde o governador
demonstrava interesse “sobre os negros e fazendas que se lhe remeterão para
fornecimento dos moradôres daquelle Estado”. Mais que a remessa, porém, interessava
ao governador o “preço por que se venderão aos senhores de engenho e lavradores de
cana, tabaco e anil”. Apesar de reportar-se ao interesse maior de “conservação dos
vasallos” com o fornecimento de escravos para a região, percebemos um interesse, antes
de tudo, particular, de Coelho de Carvalho em relação aos preços de vendas aos
senhores de engenho.
Quanto a essa importante questão sobre o bom andamento da Res publica, o
documento informa que também foi consultado Gomes Freire de Andrade, que tinha
sido governador entre os anos de 1685 e 1687. Para o antigo governador, “[o]
forneçimento de negros se esperava sempre naquellas conquistaz que se conçeguirem
grandes conveniências ao serviço de Vossa Magestade [...] e na sua oppnião nenhum
outro socorro se lhe podia mandar na occazião presente que fosse tam neçessario como
este[...]”. O Conselho informa ainda que os oficiais da Câmara de São Luís também
enviaram uma carta demonstrando preocupações que se articulavam às dos
governadores em relação à remessa e aos preços dos negros, solicitando que “os preços
porque os dittos negros se venderem sejão mais moderados e se lhe continue com a
remesa delles”110.
Os interesses dos senhores da Câmara em relação a escravos, no entanto, podem
ser melhores percebidos em um termo de vereação da Câmara de São Luís do dia 1º de
julho do ano de 1678. Nesta sessão, foram chamadas ao Senado da Câmara “algumas
pessoas importantes da cidade”, tais como o procurador da Fazenda Real, o capitão
Manoel Campello de Andrade, o alferes José de Seixas, o capitão Diogo Freire, o
escrivão da Fazenda Real Antonio de Souza Soeiro, Manoel Andrada da Fonseca,
Antonio Lopes de Souza e Manoel Pereira Barreiros. O termo informa que, “sendo
todos juntos, o vereador mais velho o capitão Manoel Coutinho de Freitas”, informou
que o governador e capitão geral do Estado, Inácio Coelho da Silva, recomendou ao
Senado da Câmara para tratarem de enviar um barco para ir “fazer negocio” a fim de
109 AHU - Maranhão (Avulsos), cx. 8, doc. 869 (16 de novembro de 1693). 110 AHU - Maranhão (Avulsos), cx. 8, doc. 869 (16 de novembro de 1693).
51
buscar “algumas peças para este povo”, pois “havia noticia Bastante que em
Pernambuco e Ceara havia quantidade de escravos” 111. [grifo nosso]
No mesmo termo, os oficiais discutiam depois acerca da quantia que cada um
dos presentes destinaria para a contribuírem com essa “empreitada”. Manoel Campello
de Andrade, por exemplo, deu duzentos mil réis, Manoel Pereira Barreiros cedeu mil
réis, Manoel de Andrada da Fonseca também contribuiu com mil réis. Em um termo de
vereação de 2 de agosto do mesmo ano, a questão volta a ser levantada pelos oficiais da
Câmara, que solicitam aos “homens de negocio” da cidade para irem negociar “peças”
em Pernambuco, onde “havia bastante”112.
Faz-se necessário ressaltarmos que nestes casos específicos não temos como
saber ao certo se, ao se referirem à “peças”, os oficiais da Câmara estão tratando
especificamente de indígenas ou de africanos, contudo, algumas informações contidas
no documento nos levam a crer que trata-se de africanos, como, por exemplo, o fato de
que essas “peças” viriam de Pernambuco e Ceará, já que a historiografia do período
informa que os indígenas para trabalhar nas lavouras do Maranhão vinham geralmente
da capitania do Pará.
As guerras travadas contra os indígenas no Maranhão Seiscentista eram
utilizadas como justificativas de merecimentos de benesses por parte do poder real,
todavia, apesar do caráter simbólico de alcance de nobilitação, “reduzir o gentio”
também significava a garantia de posse de cativos na colônia. Em uma carta enviada
pelo rei D. Pedro II ao governador do Maranhão Francisco de Sá e Menezes (1682-
1684), essas duas vertentes do significado da guerra ao “gentio” ficam mais evidentes.
Na carta, que trata sobre a intenção de Sá e Menezes em construir uma fortaleza e
povoação no Itapecuru, o monarca afirma que isso pode ser “o principal remedio que
pode ter o Maranhão”, já que a região é constantemente alvo das “hostilidades do
gentio” e causa “de sua destruição”, deixando claro que “se não poderá conseguir
efficasmente sem a redução do gentio da Costa do Seara [sic] que a possa em união das
nossas forças resestir aos de corso que infestão, assaltão e destroem toda aquella parte
das terras”. Informa ainda o rei que avisou ao capitão da capitania do Ceará que “dê
toda ajuda e favor a esta empresa”, concluindo que todos os indivíduos que se lançarem
nessa empreitada em nome da Coroa e para o ‘bem comum” dos vassalos, se mostrando
“mais zellosos em ordem a se buscarem o dito gentio, lhes fareis as honras e mercês
111 Livro de Acórdãos da Câmara de São Luís, n.º 05 (1675-1681), fl. 103v-104. 112 Livro de Acórdãos da Câmara de São Luís, n.º 05 (1675-1681), fl. 104 v.
52
que couberem em suas pessoas, e pedirem o seus merecimentos, e da minha parte lhos
satisfareis [...]”113. [grifo nosso]
Em um traslado de um requerimento do procurador do Conselho da Câmara de
São Luís, feito em 18 de janeiro de 1676, também se evidencia a preocupação com a
necessidade de cativos para a região. A partir deste documento, portanto, podemos
analisar algumas questões relativas a essa (suposta) falta de escravos e aos discursos dos
“cidadãos” da cidade de São Luís no tocante a este tema. Neste requerimento, o
procurador José de Seixas afirma que os “senhores do Senado” e todo o povo dão conta
da “grande mizeria” em que se encontra todo o Estado e principalmente a cidade de São
Luís pela “falta de escravos”114. Segundo o procurador, a solução desse problema seria
então “para comservação he augmento desta cidade e dos sidadões della”115.
Duas questões se colocam de imediato. A primeira delas diz respeito ao discurso
de miséria116 rotineiramente formulado nos escritos dos senhores da Câmara. Tópica
freqüente na documentação produzida pela Câmara, a condição de pobreza e miséria
frequentemente encontra-se associada à falta de escravos para trabalhar nas lavouras da
região. A segunda remete aos interesses dos oficiais da Câmara, imiscuídos no discurso
produzido como a generalidade conhecida como “povo”.
João Adolfo Hansen, analisando os discursos presentes em Atas e Cartas do
Senado da Câmara de Salvador, na Bahia no século XVII, afirma que esses documentos
davam visibilidade política ao espaço da Cidade, seu referencial por excelência, e tais
discursos são divididos e unificados “segundo o que, para o sujeito discursivo, é visível,
notável: comércio do açúcar, privilégios, leis de precedências, trabalho escravo,
conflitos com o clero, impostos, murmuração”117. Para o autor, a leitura dos Livros da
Câmara precisa levar em consideração, antes de tudo, as propostas de ingerência desses
discursos sobre o espaço citadino e seus problemas.
Alírio Cardozo afirma que os Livros da Câmara, embora sejam documentos
ricos em informações sobre as cidades ultramarinas, devem ser lidos com extremo
cuidado, pois seus discursos eram produzidos a partir de pressupostos jurídico-políticos,
113 Livro Grosso do Maranhão. 1ª parte, vol. 66. Anais da Biblioteca Nacional. 1948, fl. 65. 114 Neste caso a documentação não especifica tratar-se de africanos, indígenas ou dos dois. 115 Livro de Acórdãos da Câmara de São Luís n.º 05 (1675-1681), fls. 29-30. 116 Segundo Ximendes, a constante referência à miséria econômica do Maranhão passa também pela
questão da perspectiva de obtenção de favores do soberano, pois “quanto mais trágica a situação de São Luís fosse retratada maiores seriam as possibilidades do não pagamento dos impostos reais”. XIMENDES, Carlos Alberto. 1999, p. 106.
117 Cf.: HANSEN, João Adolfo, 2004, p. 106.
53
culturais e mentais específicos, que se articulavam às circunstâncias e vivências locais
próprias ao período analisado118.
Para Cardozo, “as atas da Câmara, reproduzem parte do estilo epistolográfico
presente nas cartas do período. Essa reprodução, evidentemente, esbarra nas limitações
do escrivão e nas circunstâncias locais”. Os temas tratados nas atas da Câmara, portanto,
estão longe da objetividade que comumente lhe é atribuída, pois, conformadas a um
ambiente local, mas não prisioneiras dele, as atas e cartas da Câmara constroem uma
série bem conhecida de agentes e temas tipificados.
Assim é “o missionário", necessário, mas muitas vezes, desobediente; "O governador", com tendências a onipotência; "o capitão-mor", desrespeitoso. Da mesma forma que existem figuras típicas, há situações tipificadas. Nesse sentido, as Atas da Câmara, como gênero documental, reproduzem uma série de queixas: a falta de recursos, mesmo que estes existam; problemas com o soldo das tropas; motins; e até mesmo ausência de moeda. Essas situações convencionais, como tópicas consagradas, têm o poder de mobilizar a mercê real e são utilizadas enquanto recurso retórico pelas diversas Câmaras ultramarinas. [...] a documentação da Câmara da cidade de São Luis não foge essencialmente a essa formulação geral 119.
É o que podemos perceber em um pedido de licença formulado pelos oficiais da
Câmara de São Luís ao rei D. Afonso VI em 19 de dezembro de 1665, onde os “homens
bons” tratavam de duas das mais recorrentes tópicas retóricas presentes em suas
formulações e pedidos à Coroa portuguesa: a miséria do Estado e a falta de escravos:
Os officiais da Camara da Cidade de São Luis do Maranhão representão a Vossa Magestade em carta sua de 22 de Agosto passado as mizerias e as dificuldades que padesem os moradores daquelle estado em razão da grande falta de escravos [ilegível] naquella cidade[...] [e por isso se tem perdido] as fazendas de asucares e mais lavouras e estão os moradores imposibilitados e se tem perdido muitas fazendas por falta de escravos e pello mal de bexigas que em todo aquelle estado ocorre 120.
Neste pedido, podemos perceber a ratificação da situação de miséria vivida pelos
“moradores” do Estado, em função, principalmente, da ausência de escravos para
trabalhar nas lavouras e fazendas de açúcar do Maranhão. Ressaltamos, porém, que
nestes discursos produzidos pelos oficiais camarários encontram-se os interesses dos
mesmos pelo bom funcionamento da economia local, em particular no que diz respeito à
entrada de escravos para servirem de trabalhadores em suas lavouras e engenhos. Já que
eram os principais donos de terras e de lavouras no Estado, os camaristas tinham
118 CARDOZO, Alírio. O dom de governar: São Luís e a idéia de justiça nos Livros da Câmara (século
XVII). Ciências Humanas em Revista. São Luís, v. 5, n. 2 (dezembro, 2007). 119 CARDOZO, Alírio. Os poderes internos: a cidade de São Luís e o discurso da Câmara no século XVII.
Ciências Humanas em Revista. São Luís, v. 5, n.º 2 (dezembro 2007), pp. 125-142. 120 AHU - Maranhão (Avulsos), cx. 4, doc. 506 (19 de dezembro de 1665).
54
profundo interesse em interceder junto ao rei pela garantia dos seus lucros e status
privilegiados como proprietários de engenho e senhores de escravos na região,
revelando assim as relações intrínsecas entre as funções de representantes do poder
municipal e donos de terras e cativos.
Outra questão suscitada pela análise do discurso de “miséria” exposto pelos
oficiais da Câmara está relacionada à generalidade do lugar da fala desses indivíduos,
ao intercederem em nome dos “moradores”, categoria que remetia, antes de tudo, aos
chamados “cidadãos”: homens que possuíam escravos e detinham poder político, eram
majoritariamente brancos, de origem portuguesa, ou filhos dos primeiros conquistadores
da região121. Estas condições, entretanto, seriam pelo menos ideais, visto que devemos
levar em conta o grau de mestiçagem dessa população. O próprio Jerônimo de
Albuquerque Maranhão, comandante das batalhas contra os franceses em 1615, tinha
ascendência mestiça122.
Advogando em favor do todo, os oficiais pretendiam garantir privilégios para a
categoria social a qual pertenciam, pois a posse de escravo representava não só a
garantia de bons rendimentos econômicos provenientes de suas lavouras, significava,
principalmente, afastar-se do estigma de “oficial mecânico”, o que denotava uma noção
de distinção e prestígios nobilitantes123. Como afirma Adolfo Hansen, o sujeito
discursivo unificado como Câmara apresentava os temas relacionados à Cidade levando
em conta sua posição de representante da comunidade dos interesses locais e do
Império, pois, “legislando para o bem comum, os oficiais também legislam em causa
própria”124.
2.3 “Os senhores do senado”: homens bons e status de nobreza
No dia 14 de dezembro do ano do Nosso Senhor Jesus Cristo de 1675, “em os
paços do Conselho” o Senado da Câmara da cidade de São Luís, “cabeça do Estado” do
Maranhão estava se reunindo em vereação. Para isso, juntavam-se naquele dia “os juizes
e vereadores e o procurador do Conselho”, em suma, “os homens bons da nobreza que
121 CHAMBOULEYRON, Rafael. 2003, p. 86. 122 LACROIX, Maria de Lourdes Lauande. Jerônimo de Albuquerque Maranhão: guerra e fundação no
Brasil colonial. São Luís, UEMA, 2006, p. 37. Sobre a família Albuquerque ver ainda: CARDOZO, Alírio. Insubordinados, mas sempre devotos: poder local, acordos e conflitos no antigo Estado do Maranhão (1607-1653). Dissertação de Mestrado, Campinas, São Paulo, 2002, pp. 66-71.
123 MONTEIRO, Nuno. 2004, p. 334. 124 Cf.: HANSEN, Adolfo. 2004, p. 113.
55
costumam andar na governança da Republica desta cidade” 125. Este termo exemplifica
o fato de que os oficiais camarários, em suas reuniões no Senado da Câmara de São
Luís e em outros documentos produzidos no período, não raro referiam-se a si próprios
e a outros indivíduos importantes da colônia como a “nobreza da cidade”.
Charles Boxer, no clássico estudo empreendido no livro O Império marítimo
português afirma que, junto com a Santa Casa da Misericórdia, o Senado da Câmara era
uma das instituições que ajudaram a manter unidas as diversas partes do Império
português, pois garantiam uma continuidade que governadores, bispos e magistrados
transitórios não conseguiam assegurar, e seus membros constituíam “até certo ponto”
elites coloniais. Segundo o autor, pertencer à Câmara significava pertencer a um grupo
privilegiado, que detinha certas prerrogativas em relação a outros grupos sociais na
colônia126.
No capítulo anterior, ressaltamos o fato de que os cargos dos conselhos,
principalmente os ofícios da Câmara, serviam tanto para confirmar status de nobreza -
no caso dos descendentes dos conquistadores - quanto para conferir esse status, na
medida em que possibilitava a esses indivíduos articularem mecanismos de legitimação
que se traduziam em prestígio para este grupo, reforçando-o pelo seu próprio exercício.
Nuno Monteiro afirma que o conceito de nobreza em Portugal passou por
sucessivas e profundas mudanças ao longo do século XVII, provocando uma abertura
maior nas bases da classificação oficial da nobreza portuguesa, permitindo que
indivíduos de outros estratos sociais que não os tradicionalmente inseridos na definição
estamental de nobreza fossem alçados à categoria de nobres. A legitimação dessa nova
categoria social como uma condição tácita estava associada ao desempenho de algumas
funções e, entre elas, destacamos os ocupantes dos ofícios da Câmara, pois, segundo
Monteiro, desde os fins do século XVI os homens bons da Câmara designavam-se como
a “nobreza da terra”127. Destacamos, assim, que a idéia de nobreza que seria “da terra”
parece-nos estar relacionada, antes de tudo, a uma noção de lugar, de nobreza local,
algo perfeitamente articulado à situação de pertencer ao Conselho Municipal.
Ainda de acordo com Monteiro, o poder municipal da Câmara colocava-se
como principal contraponto à autoridade da Coroa e seus magistrados e, nesta
perspectiva, a vitalidade do poder municipal seria indissociável da constituição de
125 Livro de Acórdãos da Câmara de São Luís, n.º 05 (1675-1681), fl. 36. 126 Cf.: BOXER, Charles. 2002, pp. 286-289. 127 Cf.: MONTEIRO, Nuno. 1993, pp. 333-334.
56
restritas oligarquias camarárias. Este processo, por outro lado, significou a cristalização
do “grupo social da gente nobre da governança ou, mais simplesmente, nobres e
nobreza”128.
No Brasil, a historiadora Maria Fernanda Bicalho dedica atenção especial em
boa parte de seus estudos sobre as câmaras ultramarinas portuguesas às relações entre os
oficiais das câmaras e o processo de estruturação de uma “nobreza da terra”:
[...] esses “nobres”, também denominados “cidadãos”, sentiam-se participantes do grupo aristocrático e assumiam seus valores, seus padrões de conduta, o viver ao estilo da nobreza. Sentiam e se comportavam como a aristocracia ao considerarem degradante o manejo do dinheiro, ao presumirem-se honrados em participar do governo municipal, ao poderem - em decorrência disto - alardear pureza de sangue, prestígio, reconhecimento público, insígnias, precedências e aparato no exercício de funções 129. [grifo nosso]
Para Bicalho, ocupar os cargos do Senado da Câmara no ultramar surgia como
objeto de disputas entre grupos economicamente influentes das localidades, o que
denota a centralidade daqueles cargos não apenas enquanto espaço de distinção e de
hierarquização dos colonos, mas e, principalmente, de negociações com a Coroa130. No
primeiro capítulo, chamamos atenção para o fato de que a reinvenção da idéia de
nobreza nas colônias estava diretamente relacionada ao pertencimento a um
determinado estrato social, que se destacava por ser descendente dos protagonistas das
conquistas e, portanto, achava-se munido de todos os direitos de mando da Res publica.
Os indivíduos pertencentes a esse grupo social outorgavam-se determinados
privilégios, e continuamente reafirmavam o jogo simbólico de serviços em troca de
mercês reais que garantiam a eles a perpetuação de suas famílias no quadro das mais
importantes da região. Neste sentido, nos parece legítimo afirmar que usufruir de um
cargo da Câmara no Maranhão do século XVII consistia, assim, tanto em um argumento
de nobilitação quanto em ratificação desse argumento, pois ser um oficial camarário
significava ser descendente dos primeiros conquistadores, e isto também expressava
justificação de serviços para o monarca.
Estes elementos acabavam por se interelacionar, já que os indivíduos que
estavam constantemente solicitando cargos e préstimos à Coroa estavam de alguma
maneira ligados aos camaristas. Podemos explorar este ponto partindo da análise de um
abaixo assinado formulado pelos oficiais da Câmara em nome do “povo”. Neste
128 MONTEIRO, Nuno. Os concelhos e as comunidades. In: HESPANHA, Manuel (Coord. ). História de
Portugal: O Antigo Regime (1620-1807). Lisboa: Círculo de Leitores, 1993, vol. 4, pp. 310-325 129 BICALHO, Maria Fernanda Batista. 2000, p. 204. 130 Idem, Ibid. 2000, p. 207.
57
documento, os oficiais começam alegando que desde o “descobrimento” daquelas terras
foi necessário que “se expulcase o henemigo por duas vezes”, e que para isto deram
“seus avos e pais [...] seus sangues e vidas” e “suas fazendas”. Em função disto,
explicam os camaristas que o rei, vendo “que foi grande o seu valor os primiou em lhe
fazer mercê de que [g]ozassem os privilegios dos sidadõis da nobre cidade do Porto” 131.
O historiador pernambucano Evaldo Cabral de Mello, tratando no livro O
Rubro Veio, das lutas de expulsão dos holandeses de Pernambuco pelos “naturais da
terra”, analisa uma documentação que guarda importantes semelhanças com este abaixo
assinado dos oficiais de São Luís que apresentamos. De acordo com o autor, a Câmara
de Olinda, Recife, tal qual várias outras no Estado do Brasil, passou, a partir do papel
exercido na expulsão dos batavos, a justificar suas solicitações de benesses locais e
ocupação dos cargos públicos, alegando que “a partir de nossos sangues, vidas e
despesas de nossas fazendas, pugnamos há mais de cinco anos por as libertar [as terras
da capitania] da possessão injusta do holandês”132.
Como podemos inferir, o discurso de fidelidade e préstimos à Coroa (pelo qual
esperavam ser devidamente agraciados) construído pelos oficiais de São Luís,
articulava-se aos discursos formulados por vários outros conselhos ultramarinos. No que
se refere ao abaixo assinado, a princípio levaremos em conta o fato, aqui já destacado,
de que mais uma vez os oficiais da Câmara discursam em nome da coletividade
entendida como o povo, ou os cidadãos, e neste caso específico, para reafirmar ao rei
suas posições de conquistadores das terras da Coroa, merecedores, portanto, de
distinções e privilégios nestas mesmas terras.
Segundo João Fragoso, a nobreza da terra do Rio de Janeiro do século XVII se
destacava por ter cabedais para servir ao rei, e a participação destes indivíduos em
guerras em defesa da colônia servia como justificativa para futuros pedidos de sesmarias
“como recompensas por serviços prestados” e “deste modo, explicam-se alguns traços
recorrentes presentes naqueles pedidos, quais sejam: eles enfrentaram franceses e
tamoios a pedido da Coroa e o fizeram à custa de suas fazendas, leia-se com seus
parentes, escravos, índios” 133.
131 Livro de Acórdãos da Câmara de São Luís n.º 7, (1675-1681), fl. 53. 132 MELLO, Evaldo Cabral de. Rubro Veio: O imaginário da restauração pernambucana. 3ª ed. rev. São
Paulo: Alameda, 2008, p. 92. A análise de Cabral de Mello sobre a restauração pernambucana e suas relações com a formação de uma “nobreza da terra” pode ser melhor compreendida no terceiro capítulo do referido livro, intitulado À custa de nosso sangue, vidas e fazendas, pp. 91-124.
133 Cf.: FRAGOSO, João. 2007, p. 50.
58
Neste abaixo assinado da Câmara de São Luís, percebemos ainda a clara
intenção dos camaristas em comprovar suas ações e feitos e de “seus avós” nos
primeiros anos da ocupação das terras do Maranhão, às custas de suas “fazendas”,
reafirmando desta forma seus papéis de fiéis vassalos da Coroa. Estas justificativas,
como já ressaltamos, são fortes argumentos em favor de seus pedidos por benesses e
privilégios. Neste caso em particular, os senhores do senado afirmam que por “seu
grande valor” o monarca os premiou fazendo-lhes mercê de conceder a eles os mesmos
privilégios dos cidadãos da nobre cidade do Porto. Como poderemos notar na discussão
que se segue, a idéia de ser cidadão estava intimamente relacionada à noção de ser um
nobre na colônia.
Em função disto, convém atentarmos, de início, para o sentido do termo
cidadão na lógica do Antigo Regime, para os significados subjacentes a essa noção que
levariam à procura dessa distinção na sociedade. No mundo português moderno a
cidadania era atribuída por nascimento, concessão régia ou direito consuetudinário,
afirma Beatriz Catão Cruz Santos, para quem a noção de cidadania confundia-se com a
idéia de vizinhança, no sentido de estar radicado, morar e exercer cargos,
principalmente nas câmaras municipais134. [grifo nosso]
Para o frade Rafael Bluteau, no começo do século XVIII, o termo cidadão
encontra-se relacionado à idéia de “morar” em um lugar, de pertencer a uma localidade,
já que a definição principal deste vocábulo significa “morador de uma cidade”. No
entanto, ser cidadão não consistia apenas em residir, mas aludia ao fato de ter foro de
cidadão, ou seja, possuir o privilégio de decidir sobre determinadas coisas,
principalmente assuntos ligados à justiça135.
O historiador oitocentista maranhense João Francisco Lisboa também define
cidadão como “morador”, contudo, morador no sentido de descendente de português ou
próprio português, os brancos da sociedade. É interessante destacar que para Lisboa,
cidadania na colônia era sinônimo de nobreza, pois essa noção remetia aos “primeiros
conquistadores portugueses que povoaram a terra, e por haverem-na conquistado aos
franceses e índios se perpetuaram na governança [da cidade] ocupando os principais
cargos civis e militares da República”136.
134 SANTOS, Beatriz Catão Cruz. Irmandades, ofícios e cidadania no Rio de Janeiro do século XVII.
Disponível em: sitemason.vanderbilt.edu/files 135 Cf.: BLUTAEU, Rafael. (1712-1728), p. 179. 136 LISBOA, João Francisco. Jornal de Tímon: apontamentos, notícias e observações para servirem à
História do Maranhão. Vol. 2. Alumar (São Luís), 1992, p. 49.
59
Helidacy Corrêa afirma que João Lisboa, em suas precisas observações acerca
do papel das câmaras no Brasil colonial, ressaltava a grande relevância que possuíam os
agentes do poder municipal, no antigo Maranhão, nas questões do mundo político local.
Percebemos, assim, que esses amplos poderes dos “homens da República” destacados
por Lisboa se articulavam à lógica de uma noção de cidadania atrelada à questão do
mando e da governança local. Desta forma, Corrêa assevera que a percepção e os
questionamentos de Lisboa sobre a procedência do poder municipal “possibilita
problematizar a própria idéia de centralização do poder no Antigo Regime”137.
Entendemos, assim, que a idéia de cidadão para o Antigo Regime diferia
bastante da compreensão atual, onde a concepção de cidadania encontra-se atrelada à
idéia de igualdade em um conjunto de direitos e deveres, que inclui a participação
política. Nas sociedades modernas, o conceito de cidadão não levava em conta o
conjunto dos habitantes do local, por exemplo, mas se resumia a um grupo de poucos e
privilegiados homens. Segundo Santos:
“[...] o estatuto de cidadão se refere a um conjunto de prerrogativas que estão vinculadas aos cargos da administração local, principalmente da câmara. O cidadão é o homem bom, que se distingue dos demais por uma posição superior garantida pela hereditariedade ou alcançada por mecanismos de enobrecimento”138.
Maria Fernanda Bicalho afirma que a ocupação de cargos na administração
conselhia constituía-se na principal via de exercício da cidadania no Antigo Regime
português. A autora, citando o historiador português Vitorino Magalhães Godinho,
assegura que o exercício dessa cidadania estava ligado à noção de comunidade política,
ou seja, “à noção de comunidade tal como existia à escala concelhia, pois o concelho é a
primeira pessoa coletiva, e no quadro do concelho é que surge a noção de ‘cidadão’”.
Os cidadãos eram os indivíduos responsáveis pela gestão da Res publica, que traduzia-
se por “coisa pública”, articulando-se assim à governança da comunidade. Em suma, o
cidadão no Antigo Regime, através de eleição, era quem desempenhava cargos
administrativos nas câmaras, bem como seus descendentes139. A categoria de cidadão
também poderia ser aplicada àqueles que, mesmo que não exercessem cargos na
Câmara, mas que poderiam, ou teriam, condições de exercê-los, pois sua “nobreza”
garantia tal prerrogativa.
137 CORRÊA, Helidacy Maria Muniz. Câmaras, poder local e poder central: questões do Antigo Regime
em João Francisco Lisboa. Ciências Humanas em Revista. São Luís, v. 6, n.º 1 (julho 2008). 138 SANTOS, Beatriz Catão Cruz. (s/d). 139 BICALHO, Maria Fernanda. 2000, pp. 204-205.
60
A Coroa portuguesa favorecia a ascensão dos indivíduos ligados às câmaras
municipais, pois durante todo o século XVII, quase todas as intervenções legislativas da
Coroa lusa, bem como a atuação de seus magistrados, encaminharam-se no sentido de
garantir que os ofícios nas vereações e os cargos nas milícias e ordenanças fossem
ocupados pelos “principais das terras”. Assim, a ‘“cristalização das oligarquias locais’
deveu-se, em parte, às restrições à elegibilidade para os ofícios municipais verificados
ao longo daquela centúria”140.
No mesmo abaixo assinado da Câmara de São Luís, os oficiais, reforçando
seus méritos e justificando seus privilégios, também mencionam o fato de que caberia a
eles, cidadãos, exercerem o governo da “República”, reclamando que “nas eleições que
se tem feito metence neste senado alguns homens que não são aptos para os tais cargos
ficando sempre desterrados e esquecidos os naturais e parentes casados com as filhas
dos conquistadores”. Nesta ocasião, colocam-se contra a eleição de Manoel Carvalho de
Barros, reiterando que os oficiais não deveriam “concentir [na eleição] por não
concorrer nelle [Manoel de Barros] nenhum dos requisitos neçessarios para o dito
cargo”141.
Não podemos deixar de ressaltar que as reclamações dos camaristas no que
tange às eleições para os ofícios do Senado da Câmara muito se assemelham ao discurso
de extrema e recorrente “miséria” propalado nos seus escritos, principalmente nas
correspondências enviadas a funcionários e conselhos reais e ao próprio monarca.
Em meados do século XV, os cidadãos de algumas cidades portuguesas
receberam honras, liberdades e privilégios em razão de sua fidelidade e por terem se
destacado no ato de servir ao rei: Lisboa, Évora e Porto são exemplos de algumas delas.
Em relação à cidade do Porto, o rei D. João II (1481-1495) justificaria a concessão
dessa graça, no ano de 1490, devido aos “muitos e extremados serviços que sempre os
reis passados receberam, e nós recebido temos, da nossa mui nobre e leal Cidade do
Porto e cidadãos dela, com mui lealdade e fidelidade”142.
A cidade do Rio de Janeiro receberia as mesmas honras dos cidadãos da cidade
do Porto no ano de 1642, os da Bahia em 1646 e os de São Paulo e Luanda em 1662:
“Sem dúvida, todos aqueles colonos destacaram-se na fidelidade à Coroa quando da
140 Idem, Ibid, p. 212. 141 Livro de Acórdãos da Câmara de São Luís n.º 7, (1675-1681), fl. 53. 142 Idem, ibid, p. 205.
61
Restauração portuguesa, tendo-lhe igualmente empenhado os serviços na luta de
resistência aos holandeses” 143.
No ano de 1655, os habitantes das cidades de São Luís e de Belém, leia-se
conquistadores e seus descendentes, receberiam por provisão do rei D. João IV (1640-
1656), de 20 de julho, os mesmos privilégios concedidos por D. João II aos cidadãos do
Porto:
Dom João por graça de Deos Rey de Portugal et cetera. Faço saber a todos os corregedores, ouvidores, juizes, justiças e outros quaesquer officiaez e pessoas de nossos reynos, a que o conhecimento desta que por qualquer via que seja pertencer [...] pello que a nos convem fazer aos taes vassallos e por emnobrecimento e querendo lhes fazer graça e merce avemos por bem privilegiarmos a todos os cidadãos que ora sao em a dita cidade e ao diante forem e queremos e nos praz que daqui em diante para sempre sejao privilegiados [...]” 144.
O texto da provisão real informa que esses privilégios consistiam
principalmente em que não “fossem metidos a tormentos por nenhuns maleficios que
tenhão feitos, cometidos e cometerem e fizerem daqui por diante [...] e isso mesmo não
possam ser presos por nenhuns crimes [...]”145. João Lisboa, analisando a questão destes
privilégios outorgados aos cidadãos de São Luís, menciona a existência um “livro pouco
volumoso” onde esses privilégios se achavam descritos da forma como ele próprio
acabara de os expor. Afirma, ainda, que o referido livro merecia especial atenção por
parte dos mesmos cidadãos, e que “havia mais guarda” dos oficiais da Câmara em
relação a este livro146. Não encontramos até agora, porém, em nenhum documento da
Câmara de São Luís e em muitos outros relativos ao Maranhão, qualquer referência ou
vestígios deste livro mencionado pelo cronista.
Ainda segundo Lisboa, tais privilégios, “envoltos em uma espécie de mistério
e interpretados arbitrariamente ao sabor dos interessados”, mereciam, porém, o
empenho de muitos em alcançá-los, o que acabava, por muitas vezes, gerando “graves
abusos”, com a introdução de soldados, criados de servir, mercadores, cristãos novos e
até ‘infames pela raça’, nas vereações dos pelouros, “obtendo assim por uma parte, as
qualificações de nobreza e o exercício dos cargos da governança”147.
143 Idem, ibid, p. 206. 144 Lisboa, 20 de julho de 1655. BEP, Códice CXVI / 1-8, fl. 69-72v. Disponível no Apêndice documental
do livro de Lucinda Saragoça. Da feliz lusitânia aos confins da Amazônia (1615-62). Lisboa/Santarém: Cosmos/Câmara Municipal de Santarém, 2000.
145Sobre esse assunto, ver: LISBOA, João Francisco. Jornal de Tímon: Apontamentos, Noticias e Observações para servirem à História do Maranhão. Vol. 2. São Luís: Alumar, 1992, pp. 49-50.
146 Idem, ibid. 147 Idem, ibid.
62
Alírio Cardozo afirma que uma das aspirações mais antigas das câmaras de
Belém e São Luís era a mesma de tantos outros Conselhos municipais espalhados pelo
ultramar, e os privilégios da cidade do Porto eram os mais requeridos pelo vários
conselhos do Império luso148. Charles Boxer informa que não sabe ao certo por que os
privilégios da cidade do Porto eram os mais requisitados, já que a referência à primeira
edição impressa dos Privilégios dos cidadãos da cidade do Porto (1611) revela serem
estes idênticos e copiados textualmente dos de Lisboa149.
A concessão de mercê aos cidadãos do Maranhão no ano de 1655 foi
justificada pelo monarca, principalmente, como retribuição pelos serviços prestados em
nome da Coroa, quais sejam: as lutas na expulsão dos holandeses da região quase onze
anos antes. Como já havíamos anotado no primeiro capítulo, o historiador maranhense
Mário Meireles denomina os participantes do que chamou de “sublevação dos
maranhenses”, de “restauradores do Maranhão”, numa clara referência às guerras de
Restauração envolvendo Portugal e Espanha nos anos quarenta do século XVII, período
de intensa concessão de honras e mercês reais para os participantes dessas batalhas.
Precisamos aqui ressalvar dois pontos importantes no tocante a esta questão:
os privilégios da cidade do Porto foram concedidos aos cidadãos da cidade de São Luís,
e não a todos os habitantes indistintamente, apenas aos indivíduos ligados à gestão da
“Republica” e, portanto, com poder de mando político nas terras. O segundo ponto
imiscui-se no que Ângela Barreto Xavier e Antonio Manoel Hespanha, baseando-se nos
estudos do antropólogo francês Marcel Mauss, chamam de uma “economia moral do
dom” nas sociedades da época moderna. Segundo os autores, esta reflexão “procura
desvendar os níveis menos evidentes da ‘razão política’ na sociedade de Antigo
Regime”:
“Fixando os níveis políticos, mas igualmente constituindo-os (já que o dom cria a correspondente obrigação de receber), a comunicação pelo dom introduzia o benfeitor e o beneficiado numa economia de favores. Estes eram de natureza diversa e variavam consoante a posição dos actores nos vários planos do espaço social (e correlativa posse de capital económico, político, simbólico). Usualmente, o beneficio não possuía uma dimensão meramente econômica. Daí que fosse difícil definir os limites exactos de seu montante. Esse carácter incerto do montante da dádiva tendia a acrescentar também algo ao presumível valor do recebido. E assim sucessivamente. O que provocava um contínuo reforço econômico e afetivo dos laços que uniam, no inicio, os actores, numa crescente espiral de poder, subordinada a uma estratégia de ganhos simbólicos, que se estruturava sobre os actos de gratidão e serviço” 150.
148 Cf.: CARDOZO, Alírio. 2002, p. 137. 149 Cf.: BOXER, Charles, 2002, p. 291-292. 150 Cf.: HESPANHA, António Manuel & XAVIER, Ângela Barreto. 1993, p. 382.
63
De acordo com Hespanha, o ato de retribuir um serviço não implicava
realmente em um pacto entre quem dá e quem recebe, ao contrário, o ato da graça real
criava deveres quase-jurídicos (antidorais, era a palavra - de origem grega - para
designar esta obrigação não estritamente legal, mas essencialmente jurídica)151. A
concessão dos privilégios dos cidadãos do Porto aos cidadãos de São Luís insere-se
nesta lógica de retribuição de serviços feita pelo monarca, onde a expulsão dos
holandeses das terras da Coroa justificaria a fidelidade e, portanto, o merecimento das
honras e distinções recebidas em 1655.
Como assevera Fernanda Bicalho, no que diz respeito às câmaras ultramarinas
do Império português, a concessão de privilégios, honras e isenções, correspondeu a um
processo de nobilitação de seus componentes, tornando-se mais um traço distintivo da
chamada nobreza da terra152. Este “traço distintivo” de uma concepção de nobreza
reinventada na colônia possui extrema importância em nossa análise, na medida em que
pertencer à Câmara Municipal de São Luís no século XVII significava possuir
determinados “direitos” políticos balizados pelo fato de serem considerados cidadãos,
gestores do espaço citadino e, logo, os legítimos detentores das prerrogativas de exercer
o mando das terras junto com a Coroa portuguesa.
Os oficiais da Câmara de São Luís transitavam por vários lócus de poder
presentes na sociedade seiscentista e, através de determinadas práticas existentes na
lógica do Antigo Regime português, criavam (e recriavam) estratégias e mecanismos
político-sociais que tinham importante eficácia local. No que diz respeito à reinvenção
da noção de nobreza no Maranhão, os oficiais camarários eram importantes produtores
destes discursos que engendravam e também legitimavam uma concepção distinta da
idéia do que era se nobre no Maranhão do século XVII.
151 Cf.; HESPANHA, António Manuel. Por que é que foi “portuguesa” a expansão portuguesa? Ou o
revisionismo nos trópicos. Disponível em: http://www.hespanha.net/papers/2005. 152 BICALHO, Maria Fernanda. A cidade e o Império: o Rio de Janeiro no século XVIII. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2003, p. 324.
64
3 O “LIVRO DA NOBREZA”: a condição de nobre registrada em ata
“[que] se guardem os privilégios que vosa Magestade
nos tem concedido cuja catolica E Real pessoa deus guarde felizes annoz”
Carta dos oficiais da Câmara de São Luís, 20 de maio de 1675
No primeiro capítulo deste trabalho, apresentamos João Telles Vidigal, natural
de Évora, no Reino, que requisitava junto ao Conselho Ultramarino o ofício de escrivão
da Fazenda, Alfândega e Almoxarifado da cidade de São Luís no ano de 1689. Dois
anos antes, o mesmo Telles Vidigal já havia servido no posto de escrivão da Fazenda
Real do Maranhão153. Como já havíamos ressaltado, a ocupação de vários cargos
administrativos e militares na colônia destinava-se a um seleto grupo de indivíduos que,
por seus discursos e práticas, tentavam se diferenciar dos demais estratos sociais,
engendrando uma rede de privilégios e nobilitação.
Desta forma, podemos perceber que além dos constantes requerimentos, cartas,
representações, enviadas aos órgãos da Coroa e ao próprio monarca por esses
indivíduos, reiterando seus serviços e solicitando suas benesses, esses homens também
produziram discursos de distinção com importante valor e reconhecimento entre seus
pares. João Telles Vidigal, por exemplo, tinha seu nome escrito em uma importante lista
elaborada pelo Senado da Câmara de São Luís no final do século XVII: a “Lista dos
Cidadões [sic] da cidade”. Esta “Lista dos Cidadãos”, bem como a “Lista dos Filhos dos
Cidadãos”, a da “Companhia do Capitão Gaspar Fernandes da Fonseca” e a “Lista da
Companhia dos Privilegiados”, fazem parte de um conjunto de 38 listas contidas em um
Livro produzido pela Câmara de São Luís entre os anos de 1689 a 1710, a “Lista da
Companhia da Nobreza”154, um singular registro da forma como esses homens se auto-
definiram.
O Livro da Companhia da Nobreza chama atenção principalmente pelas
peculiaridades que guarda em relação a outros livros produzidos pelo Senado da Câmara
de São Luís, tais como os Livros de Acórdãos, os Livros de Receita e Despesa ou os
153 AHU - Maranhão (Avulsos) cx. 7, doc. 777( 26 de maio de 1687). 154 Lista da Companhia da Nobreza, n.º 08 (1689-1710) \ Livros da Câmara de São Luís - APEM.
Devemos ressaltar que apesar de constar neste Livro o número 8, esta é uma numeração estabelecida no APEM para fins de organização documental. Na primeira folha do referido Livro, consta ser o “Livro 1º”.
65
Livros de Registro Geral que, via de regra, tratam de temas relacionados à ingerência da
Câmara sobre os assuntos da cidade155.
O “Livro da Nobreza”, por outro lado, é essencialmente composto de listas
nominais de homens que viveram ou passaram pelo Antigo Maranhão entre os anos
finais do Seiscentos e o início do século seguinte. Ressaltamos, no entanto, que não se
tratam de quaisquer homens, mas de um determinado grupo, grupo este que podemos
identificar como sendo formado por uma elite social, política e econômica, homens que
se distinguiram por terem (e forjarem) determinadas vantagens sobre outros segmentos
da sociedade, construindo uma identidade de grupo de importante valor local.
Em um período em que as informações relacionadas aos habitantes do Maranhão
no século XVII ainda são relativamente pouco conhecidas - em função tanto da
quantidade quanto do próprio caráter da documentação disponível - entendemos que
uma documentação que nos permite acesso a nomes e a algumas informações sobre
esses indivíduos são de extrema importância para os estudos acerca da sociedade do
período e, mais especificamente, sobre os estratos privilegiados desta sociedade.
Um importante aspecto a ser destacado no tocante a esta documentação diz
respeito ao seu importante ineditismo. O Livro da Nobreza configura-se como um
importante registro da Câmara de São Luís ainda não trabalhado pela historiografia
maranhense do período colonial, e coloca-se, portanto, como uma análise desafiadora e
instigante. É pertinente ressaltar, porém, que ao final deste trabalho, ainda persistirão
dúvidas e vários serão os questionamentos não respondidos acerca desta documentação.
Desconhecemos, por exemplo, nos documentos produzidos pela Câmara de São Luís,
algum outro documento similar às Listas da Companhia da Nobreza, ou que façam pelo
menos referência a elas na grande quantidade de documentos do século XVII com os
quais tivemos contato.
Michel de Certeau, em sua apurada análise que define o trabalho do historiador
como uma prática articulada a um lugar específico de produção e, como tal, atrelada as
suas interpretações e visões de mundo, afirma que “ao trabalhar sobre um material para
transformá-lo em história” o historiador acaba por “empreender uma manipulação” que,
como outra, obedece a determinadas diretrizes. Para o autor, o trabalho com
155 Sobre este assunto, ver: HANSEN, João Adolfo. A sátira e o engenho: Gregório de Matos e a Bahia
do século XVII. São Paulo: Editora da Unicamp, 204, pp. 107-109. Hansen, ao empreender uma análise dos documentos do Senado da Câmara da cidade de Salvador, na Bahia do século XVII - especialmente Atas e Cartas - afirma que estes documentos permitem rastrear discursos dos agentes camarários sobre o espaço da Cidade, e logo, não fornecem ao leitor de hoje uma Bahia dada, pois, como “atos discursivos que são, hoje informam sobre modos históricos de ver e dizer”. [grifo nosso]
66
determinado “documento” em uma pesquisa histórica inicia-se pelo gesto de separá-lo,
selecioná-lo, e isto se constitui no primeiro passo de um processo que é também de
produção desses documentos156. Para o filósofo francês Michel Foucault, essa questão é
colocada da seguinte maneira:
“Ora, por uma mutação que não data de hoje, mas que, sem dúvida, ainda não se concluiu, a história mudou sua posição acerca do documento: ela considera como sua tarefa primordial, não interpretá-lo, não determinar se diz a verdade, nem qual é o seu valor expressivo, mas sim trabalhá-lo no interior e elaborá-lo: ela o organiza, recorta, distribui, ordena e reparte em níveis, estabelece séries, distingue o que é pertinente do que não é (...)”157.
O Livro da Companhia da Nobreza, portanto, possui 92 páginas, e suas Listas
foram produzidas no período entre 1689 e 1710. Tais Listas iniciam-se com um “título”
indicando em qual determinado “grupo” os nomes constantes delas se inserem, como no
caso da “Lista dos Cidadãos” e dos “Filhos dos Cidadãos”, ou como no caso da Lista do
“Capitão Miguel Ribeiro”. Ressaltamos que essas Listas trazem, além dos nomes de
vários indivíduos, pequenas informações e variados detalhes que tentaremos explorar
devidamente no decorrer deste capítulo, tais como o seu inegável aspecto militar e suas
relações com os oficiais da Câmara, dentre outros que abordaremos no momento
adequado158.
3.1 As Listas dos Cidadãos de São Luís
Apresentaremos agora a “Lista dos Cidadãos” de São Luís, primeira Lista do
Livro da Companhia da Nobreza, composta de 92 indivíduos e provavelmente
produzida nos anos finais da década de 1680159. Nela, iremos encontrar listados os
nomes de indivíduos identificados como pertencentes à categoria de cidadãos, além de
pequenas, mas significativas informações, acerca desses indivíduos.
156 CERTEAU, Michel de. A escrita da História. 2. ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007, pp.
79-81. 157 FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. 7 ed.ª Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005, p. 7. 158 Devemos chamar atenção para o fato de que não optamos por trabalhar com todas as Listas constantes
do Livro da Companhia da Nobreza, mas selecionamos algumas que melhor se adequam às nossas pretensões temáticas, levando em conta, ainda, que os limites desse trabalho impossibilitariam uma exploração mais satisfatória de toda essa documentação.
159 A “Lista dos Cidadãos”, apesar de ser a primeira Lista do Livro da Nobreza, não possui indicação exata do ano de sua produção, assim como a segunda Lista, “dos Filhos dos Cidadãos”. Não podemos afirmar, portanto, que foram escritas no ano de 1689, e não antes, apesar de que a terceira Lista, a do “Capitão João Ribeiro Câmara”, consta ser do ano de 1689.
67
Lista dos Cidadões [sic] desta Cidade [fl. 1]
Alberto Gonçalvez * Francisco de Almeida Leitão
Bartolomeu Barreiros de Miranda* morto Miguel Rodriguez Pinto
Manoel da Silva de Andrade*
[ilegível] morto
Gabriel de Moraes Rego* João de Moreira Lobo*
Sebastião Gonçalvez Bulcão* morto Agostinho Correa no Hicatu
Manoel Coutinho de Freitas* morto Lazaro de [ilegível] morto
Bartolomeu Furtado de Mendonça* morto
Manoel da Silva Pereira*
Paulo Pires Tourinho*
João Martins de Correa*
Antonio da Costa de Souza Francisco Pereira Laserda [sic]* morto
Gabriel Pereira da Silveira*
Luis Coelho da Fonseca
Francisco Teixeira de Moraes Cappitam Miguel Ribeiro morto
Bazilio Arnaut
Cappitam João Ribeiro da Câmera
Bartolomeu Pereira Capp. Gaspar Fernandes da Fonseca*
Pedro da Silva João Pessoa Cardoso
Manoel Gonçalvez Pereira Antonio Gonçalvez Coresma morto
Ignacio Mendes da Costa* morto Calistro Pereira ausente
Pedro Lansaro [?] Coelho morto Manoel Dornellas da Camera* morto
Manoel Gonçalvez Joseph de Seixas* morto
Antonio Ferreira d[e] Abreu morto Valério Rabelo
João Rodriguez Lisboa
Francisco de Almeida* [ilegível] morto
Antonio Selares [?] João Dias de Ornellas morto
Manoel Baldes de Lusina* morto
Matheus Francisco de Larseal [?]
Francisco Lopez da Fonseca* morto
Joseph de Lima de Ataide* morto Gonçalo Mouzinho*
68
[ilegível] Matheus Alvarez*
André Furtado de Mendonça* morto Antonio Mendes morto
Jasinto de Rezende morto Antonio Lopez de Souza*
Miguel Lopez Coelho no Para Jorge de Lemos Cabral
Antonio Martins morto Antonio de Materzintal [?]
Antonio da Rocha* Manoel Martins da Costa
Ignacio de Mendonça Furtado morto Pedro Antunes Baptista*
Antonio de Souza Soeiro Diogo Campello de Andrade morto
Manoel de Azevedo Madureira Manoel Pereira morto
Manoel Baião* morto Manoel da Silva Serra
Ignacio Ribeiro de Bitancort Eugenio Ferreira de Castro
Manoel Coelho da Fonseca morto Manoel Pestana*
Manoel de Faria no Hicatu Joseph Arnaut
Francisco de Amaral* Francisco Borges Pereira*
Joseph Rodriguez Coelho Domingos Bravo
Ignacio Soares Grases* Luiz Pinheiro Lobo
Francisco de Almeida* Manoel Amado da Fonseca
Matheus Fernandes Franco Estevão Gomes Malheiro morto
Bonifacio da Fonseca Silva Theodoro de Lemos o mesmo
Antonio Botelho Gago para cappitam reformado João Telles Vidigal o mesmo
Urbano Rodrigues o mesmo
Francisco Freire de Azevedo o mesmo
Francisco dos Santos p\ sargento mor
Em um interessante estudo acerca da recepção e das traduções do livro O
Cortesão, de Baltasar Castiglione, escrito no século XVI, na Itália, Peter Burke chama
atenção para o que denomina de “notas marginais” na análise de um documento: os
pequenos comentários, símbolos, palavras sublinhadas, escritos rabiscados nas margens,
que por vezes guardam importantes informações acerca do documento e do contexto em
que ele foi produzido160.
160 BURKE, Peter. As fortunas d’ O Cortesão: a recepção européia a O Cortesão de Castiglione.
Tradução de Álvaro Hattnher. São Paulo: Editora da UNESP, 1997, p. 91-93.
69
Como podemos perceber na Lista acima, ao lado dos nomes desses homens, não
raro aparecem algumas informações, às vezes em forma de abreviações legíveis e\ou
inteligíveis, como no caso da “Lista dos Cidadãos”, pequenos rabiscos que
consideramos relevantes na análise e investigação destas Listas161.
Dos 92 homens listados acima, pelo menos 33 são identificados nos rabiscos
laterais como estando mortos. Notamos, por exemplo, que a informação ao lado do
nome de Estevão Gomes Malheiros, é de que ele estava morto, e em seqüência, os
quatro nomes seguintes - contém a informação o mesmo. Se pressupusermos que “o
mesmo” significa “a mesma coisa”, o número de indivíduos mortos na Lista sobe para
37 - e neste caso, estes números incluem o nosso já conhecido João Telles Vidigal.
Alguns destes pequenos escritos ao lado dos nomes dizem respeito a
interessantes informações acerca das vivências e das práticas desses homens. De acordo
com Alírio Cardozo, geralmente os vereadores de São Luís possuíam negócios fora da
cidade, e não é raro encontrarmos nos documentos da Câmara durante todo o século
XVII, referências a “ausência” destes homens nas reuniões do Conselho, por acharem-
se em locais como o Mearin, Tapuitapera (Alcântara), em Icatú ou mesmo no Pará. No
ano de 1648, o vereador Belchior Teixeira, por exemplo, precisou ser substituído “por
estar ocupado demais nas terras que tinha no Pará”162.
Na Lista acima, ao lado de alguns nomes, há indícios de que estes cidadãos em
particular, muitos deles oficiais da Câmara de São Luís, circulavam por diferentes
espaços do Maranhão; este parece ser o caso de Miguel Lopez Coelho, que consta
achar-se em determinado momento que não podemos precisar, “no Pará”; também de
Manoel de Faria e Agostinho Correa, “no Icatú”, e de outros que achavam-se
simplesmente “ausentes”, como parecia ser o caso de Calistro Pereira.
Apresentamos agora outra importante Lista, a segunda do Livro da Nobreza,
denominada “Lista dos Filhos dos Cidadãos”, composta por nomes de 65 indivíduos.
Lista dos Filhos dos Cidadãos [fl. 2-2v]
Capitão
Alferes
161 Destacamos alguns nomes das Listas com um asterisco. No documento original, estes nomes estão
riscados, mas de forma a que podemos facilmente identificá-los na leitura do documento. Concluímos que estes rabiscos no documento, incluindo as informações de “morto” ao lado dos nomes, foram feitos posteriormente à escrita das Listas, com uma letra e tintas diferentes das usadas na escrita dos nomes.
162 Cf.: CARDOSO, Alírio. 2007, p. 138.
70
Sargento
Cabo de escoadra
Cabo de escoadra
Soldados
Joseph Grases Ignacio Furtado de Mattos morto
Joseph Maciel Parente alferes Joseph d[e] Abreu
Manoel dos Santos Tavares Antonio dos Santos de Abreu
Manoel d[e] Abreu Francisco Lopez morto
Joseph Correa da Silva Francisco Lopez da Veiga morto
Manoel Correa Lisboa Ignacio Ribeiro Pinto* frade
João Soares Bento do Rego Barbosa* clerigo
Agostinho Mozinho Bartolomeu Ribeira cidadão
+ Domingos Rodriguez Gomes Joseph Ribeira alferes
João Pereira de Caseres João Ribeira Maciel alferes morto
+ Antonio de Rezende Estacio Freire morto
Pascoal Furtado morto Miguel de Lemos Aranha*
Joaquim de São Paio* morto Antonio Barreiros de Miranda
Antonio Correa Sam Paio Luiz Pinheiro Lobo cidadão
+ Joseph Coutinho de Freitas auzente Miguel Nunes
João da Silva Pereira cidadão Feliciano Nunes
Joseph Rodriguez de Tarvial [?] Bonifacio de Brito
Manoel de Lima Phelipe de Faria no Hicatu
Joseph Baldes alferes Luiz Alvarez da Fonseca
Joseph Teixeira de Morais Antonio de Morais Lobo morto
Ricardo da Fonseca Diogo Campello passou a companhia dos cidadoiz por gozar dos privilegios dellez
Luis Amado da Fonseca Pedro Rocha Coelho morto
Manoel Amado cidadão Thome de Lisboa
Bonifacio da Fonseca alferes Antonio Correa d[e] Abreu
Joseph Fernandez Franco morto Manoel d[e] Abreu
Antonio de [ilegível] Thome da Silva
[ilegível] de Oliveira ordenansa Antonio Gomes da Silva cidadão
71
Francisco de Oliveira Francisco dos Santos sargento mor do Rio
Itapicuru
Salvador Correa de Abreu Manoel da Rocha morto
João Gonçalvez morto Manoel Correa de Lemos
Miguel de Lemos [ilegível] Joseph de Almeida
Antonio Botelho Gago capitão Antonio Lopez São Paio
Manoel Lopez* morto
Algumas “notas marginais” constantes da Lista acima nos parecem relevantes.
Aqui também alguns indivíduos aparecem como estando mortos, num total de 13, dos
65 integrantes. Curiosamente, ao lado dos nomes de dois indivíduos, Ignácio Ribeiro
Pinto e Bento do Rego Barbosa, existem as informações de “frade” e “clérigo”,
respectivamente, numa clara referência a carreiras religiosas. Mesmo levando-se em
conta que os missionários das diferentes ordens religiosas estabelecidas no Maranhão
(mercedários, franciscanos, jesuítas) tiveram participação ativa na feitura da complexa
teia de poderes presente no cenário político da época, as Listas do Livro da Nobreza nos
perecem estar claramente associadas aos ofícios militares, o que não impede, como
podemos notar nesta e em outras Listas, que constem delas a presença de indivíduos
ligados a funções de cunho religioso.
Nas listagens apresentadas encontram-se relacionados ainda nomes de
indivíduos que achavam-se inseridos nas categorias de cidadãos e de filhos dos
cidadãos da cidade de São Luís, e logo, eram reconhecidos (e reconheciam-se) como
representantes de um certo tipo de nobreza local, com prerrogativas e privilégios
próprios à essa categoria, forjados nos jogos políticos articulados localmente,
exemplificando o que Nuno Monteiro identificou como um “nobreza política”. Ao lado
de alguns nomes, tais como o de João da Silva Pereira, Manoel Amado, Antonio Gomes
da Silva e Luiz Pinheiro Lobo, por exemplo, as notas informam exatamente essa
qualidade. Parece-nos, no entanto, que na Lista dos “Filhos dos Cidadãos”, apenas
alguns poucos indivíduos são definidos como sendo cidadãos, e estão, portanto,
classificados, senão como sendo hierarquicamente “superiores”, mas pelo menos como
diferenciados da categoria de (apenas) filhos de um cidadão.
Nas duas Listas apresentadas um aspecto singular chama atenção. Uma
observação mais detalhada tanto da “Lista dos Cidadãos” quanto da Lista dos “Filhos
72
dos Cidadãos” nos possibilita perceber as semelhanças entre os sobrenomes dos
indivíduos listados. A própria existência de uma Lista onde constam os filhos dos
cidadãos já nos induz a estabelecer ligações relacionadas à questão familiar nas
estratégias de formação de um grupo de cidadãos privilegiados na cidade de São Luís.
Ora, a historiografia que trata da configuração das elites coloniais e do processo
de gestação de uma “nobreza da terra” está constantemente frisando como as relações
de poder que envolviam “as melhores famílias das terras” são pontos primordiais na
dinâmica de formação desses grupos. João Fragoso, em seus estudos sobre a formação
de uma primeira elite senhorial no Rio de Janeiro Seiscentista, atribui especial destaque
às análises genealógicas, aos estudos acerca das primeiras famílias das terras, afirmando
que no Rio de Janeiro, a expressão “nobreza da terra estaria ligada à antiguidade da
família no exercício do poder político-administrativo da cidade e à descendência dos
conquistadores”. Estas famílias, assegura Fragoso, possuíam certo pragmatismo em suas
políticas parentais, preocupadas, antes de tudo, em garantir sua hegemonia sobre a
cidade colonial 163. [grifo nosso]
A expressão família, no entanto, não pode nos induzir ao anacronismo. António
Manuel Hespanha afirma que a palavra família era uma “palavra de contornos muito
vastos”, não podendo, portanto, ser confundida com seu sentido “nuclear” e mais
recente. Na definição de família, do Antigo Regime português, poderiam ser incluídos
“agnados e cognados, criados, escravos e até bens”164. Não estamos afirmando que, nas
Listas, todos os indivíduos com os mesmos sobrenomes pertenciam a um grupo familiar
mais direto e mais restrito de pais e filhos, todavia, num contingente populacional não
tão numeroso como o Maranhão de fins do Seiscentos, as probabilidades de que pessoas
com os mesmos sobrenomes pudessem ser, pelo menos, “aparentadas”, não podem ser
de todo descartadas. Devemos ainda levar em conta, no tocante a esta questão, que as
“melhores” ou “principais famílias” das terras se revezavam no mando político,
perpetuando assim suas descendências nos cargos e postos da governança local.
Ao longo dos dois capítulos precedentes, e mais especificamente no 2º capítulo,
chamamos atenção para as intrínsecas relações entre os sentidos dos termos cidadão e
nobre, na lógica do Antigo Regime português. A noção de cidadania estava ligada ao
fato de um individuo ser morador de um determinado lugar, exercer cargos, possuir o
163 Ver: FRAGOSO, João, 2003, p. 51. 164 Cf.: HESPANHA, António Manuel. Fundamentos antropológicos da família de Antigo Regime: os
sentimentos familiares. In: HESPANHA, António Manuel. História de Portugal: O Antigo Regime (1620-1807), vol. 4. Lisboa: Circulo de Leitores, 1993, p. 278.
73
privilégio de mando sobre determinados assuntos que dissessem respeito à comunidade
e, principalmente, ser descendente dos primeiros conquistadores e povoadores das terras
da Coroa.
Silvia Hunold Lara afirma que a idéia de cidadania na colônia encontrava-se
diretamente ligada à prática do poder165. Os cidadãos na colônia eram, por excelência,
os indivíduos ligados às questões de poder político e, logo, considerados o “principais
das terras”, as pessoas mais importantes dos lugares. As Listas acima revelam, portanto,
que havia um determinado número de indivíduos que circulavam pelo Maranhão de fins
de século dezessete que eram representados e se auto-representavam como sendo
pertencentes à categoria dos cidadãos do lugar, ao elaborarem um Livro onde
constassem os nomes desses cidadãos e de seus filhos. Estavam, dessa forma, reiterando
a máxima de que os descendentes dos primeiros conquistadores e povoadores deveriam
ter a primazia dos postos e dos ofícios, utilizando para tanto estratégias que os
permitissem manterem-se (e à suas descendências) nestes postos166.
Entendemos, assim, que as referidas Listas inserem-se na lógica dos discursos
costumeiramente produzidos pelo Senado da Câmara, achando-se oficializados nos
documentos que chegam a nós na forma dos Livros que eram elaborados por seus
agentes. Ser reconhecido como cidadão, e participar de uma Companhia da Nobreza,
ajudava a balizar e a legitimar os freqüentes argumentos de distinção hierárquica destes
indivíduos, fundamental, a nosso ver, para a dinâmica de reinvenção, a partir das
condições e situações específicas, da idéia do que era ser nobre no Maranhão.
3. 2 A Companhia da Nobreza
O Livro da Lista da Companhia da Nobreza (1689-1710), até onde averiguamos
nesta pesquisa, não encontra semelhanças com nenhuma outra documentação do
período colonial no Maranhão. Além dos nomes, as poucas informações que constam
nas margens do Livro não dão “pistas” nem maiores detalhes acerca da Companhia da
Nobreza, nem para que se destinariam suas Listas, além do fato de manter o nível de
destaque local dos indivíduos nelas listados.
165LARA, Sílvia Hunold. Fragmentos setecentistas: escravidão, cultura e poder na América Portuguesa.
São Paulo: Cia. das Letras, 2007, p. 82. 166 Cf: BICALHO, Maria Fernanda. 2003, pp. 322-323.
74
Maria Fernanda Bicalho, discutindo sobre os privilégios concedidos aos
cidadãos da cidade do Rio de Janeiro, os mesmos que aos cidadãos da cidade do Porto,
chama especial atenção para um aspecto de fundamental importância acerca da
concessão desses privilégios no Rio: a isenção do serviço militar. A não obrigação de
servir nos postos militares foi algo adquirido por diferentes segmentos da sociedade
colonial, e não figuravam apenas entre os “reconhecidos cidadãos, aqueles que serviam
ou serviram nas câmaras e seus filhos, descendentes e criados, mas também os senhores
de engenho, seus parentes e todos aqueles que trabalhavam como oficiais nesses
engenhos”167.
Entre esses isentos, constavam ainda os membros de algumas ordens e
irmandades, como a da Santíssima Trindade e de Santo Antonio, além dos órfãos, filhos
de viúvas, serventes de conventos e eclesiásticos, membros da Misericórdia, cavaleiros
das ordens militares e familiares do Santo Ofício. Todos esses segmentos, por meios dos
privilégios que lhes eram outorgados, não poderiam servir nos postos militares e de
defesa das terras, tornando-se, portanto, “imunes a qualquer tentativa por parte dos
funcionários régios de arregimentá-los nos momentos necessários à sua segurança e
defesa”168.
Para os historiadores portugueses Antonio Camões Gouveia e Nuno G.
Monteiro, é justamente à guerra que temos de recorrer caso queiramos atentar para a
criação progressiva do aparelho militar no Antigo Regime: “É a guerra que gera surtos
legislativos e organizacionais entre 1640 e 1807”. Neste sentido, os autores chamam
atenção para a relação entre as criações das escolas militares e a mobilidade social e
nobilitação dos ocupantes desses ofícios169. Articulada a essa análise, Bicalho afirma
que três elementos se colocavam como fundamentais nos mecanismos de
governabilidade e política lusas na época moderna: o comercio, o fisco e a guerra.
Destes três, a guerra também possuía estreitas relações com os processos de
estruturação dos grupos privilegiados na colônia.
A guerra no continente europeu e seu desdobramento nas regiões ultramarinas,
para a autora, marca uma das principais modalidades de exercício de poder e de controle
dos homens pelos Estados de Antigo Regime: “a crescente arregimentação e
167 Op. cit, p. 324. 168 Idem, ibid. 169GOUVEIA, Antonio Camões & MONTEIRO, Nuno G. A Milícia. In: HESPANHA, António Manuel.
História de Portugal: o Antigo Regime (1620-1807). 4º vol. Lisboa: Círculo de Leitores, 1993, p. 197.
75
militarização da população”170. Este aspecto, a militarização é justamente um dos
pontos de análise que mais se destacam nas Listas da Nobreza.
As Listas, na sua grande maioria, são atribuídas a um determinado capitão, este,
por outro lado, é geralmente alguém identificado como sendo um “cidadão” da primeira
Lista. Posteriormente, encabeça as listas um pequeno grupo de nomes formado
geralmente por capitão, alferes, sargentos e cabos de esquadras (com exceção da “Lista
dos Cidadãos”). A Lista dos Filhos dos Cidadãos, por exemplo, possui exatamente esta
estrutura. Podemos perceber ainda que muitos dos cidadãos, dos nobres listados em São
Luís, quase sempre têm os seus nomes precedidos por algum ofício militar, como é o
caso dos capitães Miguel Ribeiro, João Ribeiro da Câmara e Gaspar Fernandes da
Fonseca, presentes na primeira Lista, a dos Cidadãos. Não por acaso, estes três homens
possuem suas próprias “companhias”, com nomes de outros militares de menores
patentes, como sargentos, alferes, cabos e soldados171.
Nas outras Listas, geralmente há uma pequena informação ao lado dos nomes
referente ao exercício de alguns desses ofícios militares. Entendemos, assim, que as
Listas da Nobreza possuíam um singular aspecto militarista, e que a própria estruturação
de uma elite da terra, de um seleto grupo de homens que se revezavam e até
acumulavam cargos da governança local constitui a formação de uma nobreza que
(também) era inegavelmente militar.
As estratégias com a questão da defesa e de ações que visassem a proteção das
fronteiras das áreas coloniais foram seguramente uma das maiores preocupações dos
Estados, visto a grande rivalidade entre as potências européias pela conquista e posse
dessas mesmas áreas172. Essa pressão pela proteção das fronteiras coloniais gerava a
constante necessidade de contingente disponível para atuar nos ofícios de guerra. Como
já havíamos destacado, ao longo do século XVII, foram justamente os colonos os
maiores responsáveis pelos financiamentos com as despesas e questões militares da
colônia, o que refletia-se em contínuos argumentos de méritos e privilégios por tais
170Acerca do processo de militarização da sociedade no Império português, ver: Soldados, colonos e
vagabundos, 13º capítulo de O Império marítimo Português (1415-1825), de Charles Boxer. Não utilizamos aqui as precisas análises de Boxer sobre este tema por entendermos que o autor direciona essas análises de forma mais específica para a parte oriental do Império luso, com destaque para as cidades de Goa e Macau.
171 Tal como afirmamos anteriormente, não trabalhamos com todas as 38 Listas do Livro da Nobreza, no entanto, as Listas de alguns “capitães” que constam os nomes na Lista dos Cidadãos encontram-se reproduzidas em Anexo ao fim deste capítulo, assim como a Lista dos Privilegiados da cidade.
172 BICALHO, Maria Fernanda. A cidade e o Império: o Rio de Janeiro no século XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p. 304.
76
ações, que deveriam ser de responsabilidade da Coroa. Se havia tanta necessidade de
proteção e de homens militarizados nas colônias, como resolver o impasse de que tantos
desses homens não poderiam, em vista de seus privilégios, serem utilizados pela Coroa
para assumir esses ofícios?
No Rio de Janeiro de fins do século XVII, encarando como um problema a
grande quantidade desses segmentos privilegiados na cidade, e diante da
vulnerabilidade das costas coloniais, o governador Arthur de Sá e Meneses criou uma
Companhia da Nobreza ou dos Privilegiados. Em carta de 25 de setembro de 1699, o
monarca endossava a iniciativa de Sá e Meneses, aconselhando ainda a criação de outras
companhias semelhantes a esta “ as quais hão de servir naquelas ocasiões em que forem
necessárias, porque em outro tempo, será ocasionar-lhes alguma vexação; e para isto é
que se deve ter atenção ao seu privilegio, para não ser tão comum os seus serviços como
nas mais [Companhias pagas]”173.
Esta Companhia da Nobreza da cidade do Rio não foi, contudo, bem aceita por
seus segmentos privilegiados, e a reação se mostrou imediata. Já no ano seguinte, estes
cidadãos requereram ao monarca o direito de ficarem isentos nas matrículas de tais
companhias, alegando para tanto os privilégios que lhes haviam sido concedidos
anteriormente: de não serem obrigados a servir nos postos militares. O impasse, de
acordo com Bicalho, foi apenas um dos elementos dos constantes conflitos entre as
autoridades militares na capitania e os mesmos privilegiados, que iriam continuar nas
décadas seguintes174.
Entendemos, assim, que analisar o processo de criação da Companhia de
Nobreza do Rio de Janeiro consiste em uma tentativa de fazer alguns paralelos entre
esta e a existência de uma Companhia semelhante em São Luís, pois entendemos que
isso seria um importante exercício de investigação acerca “da Companhia do
Maranhão” sobre a qual não temos praticamente nenhuma informação.
Começaremos pelo fato de que a criação da Companhia do Rio data do final do
século XVII, mesmo período encontrado em uma das primeiras Listas do Livro da
Companhia da Nobreza de São Luís, um fato interessante que aponta para a conjuntura
de criação de pelo menos duas dessas companhias, mesmo se levarmos em conta que,
como mencionamos a pouco, nada impede que a Companhia da Nobreza de São Luís
tenha sido criada num período anterior, visto que as duas primeiras Listas não
173 Documento citado por BICALHO, Maria Fernanda Baptista, 2003, p. 324. 174 Idem, ibid, p. 325.
77
apresentam data de produção. A delimitação temporal do Livro, devemos destacar,
deve-se mais a uma organização para fins de pesquisa documental efetuada no Arquivo
Público do Maranhão, levando em conta a data encontrada na 3ª e em uma das últimas
38 Listas do Livro.
Um segundo ponto de fundamental relevância diz respeito às circunstâncias da
criação da Companhia de Nobreza. No Rio de Janeiro, Bicalho deixa claro que a
iniciativa seria proveniente do governador do Estado, Arthur de Sá e Meneses, visando
congregar os indivíduos privilegiados numa Companhia que serviria também aos
propósitos de defesa militar da cidade175. Em relação à criação da Companhia da
Nobreza de São Luís, as informações são praticamente inexistentes na documentação
trabalhada. Lamentavelmente, não encontramos nenhuma referência em outras fontes
que lancem qualquer “luz” sobre esse assunto.
É João Francisco Lisboa quem nos fornece importantes informações acerca das
“companhias de nobreza” do Maranhão. De acordo com o velho historiador, os
empenhos que alguns faziam em alcançar os privilégios concedidos aos cidadãos estava
tornando-se verdadeiros “abusos”: “Procurou o governo por vezes reprimir estes
diversos abusos, e para modificar, em parte ao menos, uma das causas que para eles
concorriam, criaram-se as companhias chamadas da nobreza, em que as pessoas
qualificadas eram obrigadas a servir”. Lisboa continua informando que “ainda existem,
no Arquivo da Câmara de São Luís, alguns livros onde se lançavam por companhias
separadas, os nomes dos nobres, e os de seus filhos, servindo já depois por seu turno
estes mesmos [livros] de prova de nobreza”176. [grifo nosso]
Alguns pontos das afirmações de Lisboa merecem especial destaque. Em
primeiro lugar, podemos perceber interessantes semelhanças entre as circunstâncias de
criação da Companhia da Nobreza do Rio de Janeiro encontradas em Bicalho e as
informações presentes em Lisboa. As duas companhias perecem terem sido construídas
num contexto em que estavam presentes discussões sobre concessão de privilégios e os
conflitos surgidos em torno disto. No caso do Rio, a grande quantidade de “pessoas
ilustres” isentas dos serviços militares foi a razão para que o governador criasse a
primeira companhia de nobres e privilegiados. Entendemos, porém, que no caso da
Companhia da Nobreza de São Luís, afirmarmos que sua criação partiu de uma ação do
175 Idem, ibid. 176 Cf.: LISBOA, João. 1992, p. 51.
78
governo, à época nas mãos do mesmo Arthur de Sá e Meneses (1687-1690), seria no
mínimo precipitado.
Nosso argumento se baseia no fato de que, a nosso ver, o próprio texto de Lisboa
não deixa claro se foi o governador o responsável pela criação da Companhia da
Nobreza - “criaram-se as companhias chamadas da nobreza”. Parece-nos, no entanto,
que o discurso de Lisboa ressalta a relação entre a contrariedade do governo com os
“abusos” dos privilegiados e a criação destas companhias onde os nobres eram
obrigados a servir, apontando, desta forma, para os constantes e já conhecidos conflitos
entre os governantes reinóis e os representantes do poder local.
Seria cômodo afirmar que a Companhia da Nobreza de São Luís foi criada pelo
governador com o intuito de reprimir as liberdades em excesso dos cidadãos e nobres,
principalmente os direitos de isenção dos serviços militares alegados por estes
indivíduos. Nada do que foi trabalhado por nós até agora, porém, nos deixa à vontade
para tal hipótese.
A obrigatoriedade de servir na Companhia da Nobreza é o segundo ponto para o
qual queremos chamar atenção. Bicalho informa que a reação dos cidadãos da cidade do
Rio de Janeiro não se mostrou nada favorável a essa obrigatoriedade de matrícula nas
companhias proposta pelo governo. O rei D. Pedro II, informado sobre a recusa dos
cidadãos, mandou o “governador adverti-los de que não havia privilégio que os pudesse
eximir daquele encargo, ressalvando, porém, que não os obrigasse a servir fora da terra,
por maior que fosse a ocasião de perigo” 177. Em relação à Companhia da Nobreza de
São Luís, Lisboa também menciona a obrigatoriedade dos nobres em servir, todavia,
também não encontramos até o momento referências a possíveis desagrados ou mesmo
conflitos dos cidadãos de São Luís quanto à presença de seus nomes nas Listas da
Companhia da Nobreza.
Lisboa afirma ainda que existiam no Arquivo da Câmara de São Luís, na época
em que ele escrevia os Apontamentos, alguns desses livros da Companhia da Nobreza
onde os nomes dos nobres e de seus filhos estavam dispostos em “companhias
separadas”, e que mais tarde esses livros serviriam para (com)provar a qualidade de
nobreza de seus listados.
A descrição que Lisboa faz de tais livros se aplica perfeitamente ao Livro da
Companhia da Nobreza que utilizamos para este trabalho. As 38 Listas que compõe o
177 Cf. BICALHO, Maria Fernanda. 2003, p. 324.
79
referido Livro referem-se aos cidadãos, aos seus filhos, aos privilegiados da cidade, e às
“companhias separadas” de diversos capitães, todos constantes da Lista dos Cidadãos.
Devemos ressaltar, porém, que apesar de Lisboa referir-se a “livros”, atualmente existe
apenas um livro da Companhia da Nobreza entre todos os documentos da Câmara de
São Luís até agora conhecidos.
3.3 A Câmara e a Companhia: circulação de homens e de poderes
O Livro da Companhia da Nobreza é um dos livros produzidos pelo Senado da
Câmara de São Luís. Este, porém, não é o único aspecto que liga de forma intrínseca os
componentes das Listas da Nobreza à ocupação dos ofícios camarários. Como espaço de
circulação de homens e de poderes, a Câmara encontrava-se perfeitamente articulada à
dinâmica de reinvenção do ideal de nobreza no Maranhão, e o Livro da Nobreza,
portanto, colocava-se como eficaz instrumento a esse propósito.
Num termo de vereação da Câmara de São Luís do dia 14 de dezembro de 1675,
o qual já apresentamos no segundo capítulo, os juízes, vereadores e o procurador do
Conselho, os “homens bons”, além da “nobreza que costumava andar na governança da
Republica [da] cidade”, faziam-se presentes naquele dia178. Em outra reunião do dia 12
de junho de 1691, estavam presentes daquela vez, o sargento-mor do Estado, os juizes
ordinários, os vereadores, o procurador do Conselho e mais “os homens da nobreza da
cidade”179. Contudo, desta vez queremos chamar atenção para outro ponto importante
destes dois termos: as assinaturas que constavam ao final de cada um deles, que de
acordo com os rituais das câmaras municipais, pertenciam às pessoas que haviam
participado das referidas reuniões.
Mais do que informações sobre quem se fazia presente nas duas ocasiões
interessa-nos perceber que as assinaturas nos termos nos possibilita identificar quem
estava sendo representado como a “gente da nobreza” da cidade de São Luís nas duas
ocasiões. Que ligações poderiam existir entre os assinantes destes dois termos de
vereações da Câmara e os nomes das Listas da Companhia da Nobreza?
A este questionamento, tentamos responder efetuando um entrecruzamento de
informações em diferentes fontes documentais e bibliográficas do período, num
exercício desafiador e nem sempre fácil de tentar localizar os homens das Listas em
178 Livro de Acórdãos da Câmara de São Luís, n.º 7, (1675-1681), fl. 36. 179 Livro de Acórdãos da Câmara de São Luís, n.º 06 (1689-1705), fl. 48.
80
outros documentos da época. Esperamos, dessa forma, perceber os espaços de poder por
onde esses indivíduos circulavam, que postos ocupavam, quem eram no cenário político
do Maranhão de fins do século XVII e, principalmente, que pequenas “histórias de
vidas” de uma nobreza que se reinventava poderíamos vislumbrar a partir dessas
informações.
Em 1675, assinaram180 ao final do termo: Gabriel de Moraes Rego, Manoel da
Silva Pessanha, Manoel Coutinho de Freitas, Sebastião Gonçalves Bulcão, Antonio da
Costa de Souza, Manoel da Silva de Andrade, Agostinho Mouzinho, Miguel Ribeiro e
Francisco Tavares. Destes nove indivíduos, apenas Agostinho Mouzinho, Manoel da
Silva Pessanha e Francisco Tavares não constam da Lista dos Cidadãos.
No termo de dezesseis anos depois, os assinantes foram: Francisco Teixeira de
Moraes, Matheus Fernandes Franco, Antonio Ferreira de Abreu, Vicente da Silva,
Manoel Coelho da Fonseca, Paulo Pires Tourinho, Manoel Baldes, Gaspar Fernandes da
Fonseca, Manoel da Silva Pereira, Joseph de Lemos, Agostinho Lopes, Diogo Ferreira,
Antonio Nunes, João Rodrigues Lisboa, Manoel Bento Gonçalves, João Barbosa,
Manoel Gonçalves Pereira, Gabriel Pereira da Silveira, Antonio da Costa de Souza,
Manoel Francisco e Pedro da Silva. Encontramos algumas importantes informações
sobre quem eram, que cargos e funções ocupavam e por que espaços circulavam esses
homens. Apresentaremos, de início, informações referentes aos homens que assinaram o
termo de 1675, e depois, a alguns assinantes do termo de 1691.
Gabriel de Moraes Rego, o primeiro assinante de 1675, é pertencente a uma das
mais conhecidas e influentes famílias que se estabeleceram no Maranhão no século
XVII. Encontraremos os membros da família Morais Rego exercendo importantes
cargos no Maranhão pelo menos até o final do século XIX181. Quanto a Gabriel de
Moraes Rego, acreditamos que no mesmo ano de 1675, fosse um dos oficiais da
Câmara, já que, como pude notar no contato e leitura dos termos de vereações dos
Livros de Acórdãos, as primeiras assinaturas geralmente pertenciam aos oficiais em
180 Ressaltamos que, por tratar-se de assinaturas, e não da escrita do escrivão da Câmara na ocasião, não
nos foi possível identificar na leitura algumas assinaturas por completo. Preferimos, então, colocar aqui apenas os nomes referentes às assinaturas que nos foi possível identificar completamente.
181 Informações que obtive no trabalho de leitura e transcrição de documentos do Arquivo Público do Maranhão nos dois anos em que fui estagiária no referido órgão.
81
exercício. Anos depois, vamos encontrá-lo sendo eleito como um dos juízes ordinários
da Câmara na abertura do pelouro182 de 1º de janeiro de 1692183.
Manoel da Silva Pessanha, por motivos que desconhecemos, não consta da Lista
dos Cidadãos, no entanto, naquele ano de 1675, era o juiz ordinário da Câmara.
Agostinho Mouzinho, o outro que não possui o nome na Lista dos Cidadãos, era o
“vereador mais velho” também em 1675, e seu nome, porém, consta na Lista dos Filhos
dos Cidadãos 184.
Manoel Coutinho de Freitas, também pertencente à “nobreza da cidade”, já era
“vereador mais velho” no ano de 1676, posição que ocupou novamente dois anos
depois, de acordo com o termo de 12 de março de 1678185. Além de ser um dos
primeiros da Lista dos Cidadãos, seu nome também é citado pela historiadora Maria
Lieberman, que analisa as origens judaicas de Manoel e Thomas Beckman no contexto
do motim acontecido no Maranhão em 1684, que ficou conhecido como Revolta de
Beckman. Lieberman refere-se a Manoel Coutinho de Freitas como “um cidadão de São
Luís” que, juntamente com João de Souza, “cavaleiro professo da Ordem de Cristo e
provedor dos Defuntos e Ausentes” e Thomas Beckman, foram escolhidos para
“governarem juntamente com os oficiais da Câmara” por ocasião do motim186.
Sebastião Gonçalves Bulcão, outro dos nove assinantes do termo de 1675,
consta como um dos cinco primeiros nomes da Lista dos Cidadãos, assim como Antonio
da Costa de Souza. Não encontramos, porém, nenhuma referência a estes indivíduos nos
outros documentos e bibliografias que consultamos. Já Francisco Tavares, apesar de ter
assinado o referido termo, não consta em nenhuma das outras duas Listas e também não
encontramos nada a seu respeito.
Miguel Ribeiro, um dos últimos assinantes, é comumente identificado nos
documentos como capitão. Seu nome aparece precedido deste posto militar na Lista dos
Cidadãos, assim como em diversos termos de vereações da Câmara. Ribeiro parecia
estar ligado a diferentes ofícios de mando no cenário político do Maranhão e, como
outros, se revezava nesses ofícios de maneira contínua com o passar dos anos. Em 1675,
ao assinar o termo do dia 14 de dezembro, Miguel Ribeiro era um dos vereadores 182 Na descrição da eleição das Câmaras, Bicalho define pelouro como “bolas de cera” encerradas em um
cofre, ou arca, de onde eram retiradas as listas com os nomes dos indivíduos que serviriam como oficiais. Cf.: BICALHO, 2003, p. 192.
183 Livro de Acórdão da Câmara de São Luís, n.º 06 (1689-1705), fl. 184 Livro de Acórdão da Câmara de São Luís, n.º 05 (1675-1681), fl. 34. 185 Livro de Acórdão da Câmara de São Luís, n.º 06 (1675-1681), fl. 97. 186 LIEBERMAN, Maria. O levante do Maranhão. Judeu cabeça do motim: Manoel Beckman. São
Paulo: Centro de Estudos Judaicos da Universidade de São Paulo, 1983, p. 90.
82
daquele ano, junto com Agostinho Mouzinho. No termo de abertura de pelouro de 1º de
janeiro do ano de 1691, seu nome aparece como um dos três vereadores escolhidos para
aquele ano187. No ano seguinte, é eleito pra o ofício de almotacé para os meses de julho,
agosto e setembro188. De acordo com Lieberman, o capitão Miguel Ribeiro também foi
um dos vários assinantes da “Proposta” da Junta dos Três Estados, por ocasião do
motim de 1684. Podemos perceber, então, que ao longo de pelo menos 17 anos, o
capitão Miguel Ribeiro manteve-se nos espaços e postos de poder representados pela
ocupação dos ofícios camarários em São Luís e pela participação em momentos cruciais
da vida política da cidade.
O terceiro nome da Lista dos Cidadãos é o de Manoel da Silva de Andrade. No
termo de 1º de janeiro de 1692, que havia escolhido o já mencionado Gabriel de Moraes
Rego como um dos juizes da Câmara, foram eleitos três vereadores: João Rodrigues
Lisboa, além de Manoel Gonçalves Pereira e Bazílio Arnaut. Cinco dias depois, fazia-se
uma outra eleição para vereadores, pois Gonçalves Pereira e Arnaut, por motivos não
mencionados no termo, não puderam assumir seus ofícios. Em seus lugares, assumem o
capitão Paulo Pires Tourinho e o “terceiro cidadão” Manoel da Silva de Andrade.
Bazílio Arnaut, impossibilitado (ou impedido) de assumir seu ofício em 1692, também
consta da Lista dos Cidadãos, contudo, não encontramos outras informações sobre ele.
O outro vereador que não assumiu as funções em 1692 foi Manoel Gonçalves
Pereira, um dos nomes presentes na Lista dos Cidadãos. Junto com o capitão Miguel
Ribeiro, foi escolhido para a função de almotacé naquele ano. Pereira também assinou o
termo de 1691, onde estavam presentes os homens bons e a nobreza da cidade, pois
naquele mesmo ano consta que era o procurador do Conselho 189.
O primeiro a assinar o termo de 1691 foi Francisco Teixeira de Moraes. No
mesmo ano, era o juiz ordinário da Câmara que decidiu por nova eleição de vereadores
para os lugares de Gonçalves Pereira e Arnaut. Neste ano em que Teixeira de Moraes
era o juiz, um dos vereadores (além do já citado Miguel Ribeiro) era o capitão Matheus
Fernandes Franco. É de Matheus Fernandes Franco, também identificado como capitão,
a segunda assinatura do termo de 1691. Era um dos vereadores no mesmo ano,
juntamente com Miguel Ribeiro e Francisco Teixeira de Moraes. Seus nomes, de
Teixeira de Moraes e Fernandes Franco, também são arrolados na Lista que seleciona os
187 Livro de Acórdão da Câmara de São Luís, n.º 06 (1689-1705), fl. 6. 188 Livro de Acórdão da Câmara de São Luís, n.º 06 (1689-1705), fl. 78. 189 Cf. Livro de Acórdão da Câmara de São Luís, n.º 06 (1689-1705), fl. 17.
83
Cidadãos de São Luís no final do Seiscentos. No mesmo termo, somos informados que
os escolhidos para ocupar os postos de almotacés foram Manoel da Silva Pereira e
Ignácio de Mendonça Furtado. Ambos fazem parte da Lista dos Cidadãos.
O nome do capitão Paulo Pires Tourinho aparece associado a várias funções
importantes da Câmara nos anos finais do século XVII. Assinou o termo de 1691, como
um dos homens da “nobreza da cidade”, e como já havíamos mencionado, assumiu o
ofício de vereador no lugar de Manoel Gonçalves Pereira em 1692. Especulamos, a
princípio, que Tourinho fosse o escrivão da Câmara de São Luís por volta de 1689, visto
que são suas as assinaturas na maior parte do Livro da Companhia da Nobreza, cujas
primeiras Listas datadas são deste ano. Fazemos tal afirmação levando em conta que a
assinatura de Paulo Pires Tourinho ao final dos termos de vereações nos parece
compatível com a assinatura do lado direito e na parte de cima das Listas constantes no
Livro da Nobreza.
Outro aspecto relevante aqui é que o Livro de Lista da Companhia da Nobreza é
um dos livros da Câmara, o que nos levava a crer que seria razoável que Tourinho
também fosse o escrivão da Câmara na época de elaboração das Listas e que as
assinasse. Como não temos, por enquanto, como saber ao certo os anos em que as duas
primeiras Listas (dos Cidadãos e dos Filhos) foram escritas, essa questão permanece
uma dúvida.
O que ajuda a “lançar luz” sobre esta questão é que exatamente no ano de 1689,
Paulo Pires Tourinho é o juiz ordinário da Câmara. No Livro de Acórdãos da Câmara de
São Luís de 1689 a 1705, constam estas palavras na primeira folha:
“Ten este Livro q[ue] ha de servir para as vereassoins Duzentas e sessenta e duas folhas Rubricadas e numeradas por mim Paulo Pires Tourinho Juiz Ordinario [d]este prezente Anno de mil seis sentos e oitenta e nove São Luis 26 de março de 1689”.
Outro importante aspecto nos ajuda a refletir sobre isso. No Livro de Acórdãos
de 1675 a 1681190, Matheus Álvares, que também consta na Lista dos Cidadãos, é o
escrivão do Conselho do ano de 1675 até pelo menos 1683, todavia, não é sua a
assinatura na parte de cima à direita de todo o livro, e sim de “Barreiros”, que tanto
190 Este Livro, o número 06 da Lista dos livros originais da Câmara de São Luís disponíveis no APEM,
consta como sendo do período de 1675-1681, contudo, notamos que ultima reunião da Câmara constante neste Livro data do ano de 1683.
84
poderia ser de Bartolomeu Barreiros de Miranda como de Antonio Barreiros de
Miranda191.
Em análises posteriores dos registros camarários, verificamos depois que apesar
de assinar os Livros produzidos no período, o oficio de escrivão em 1689 pertencia a
Diogo Campello de Andrade192, um outro cidadão de São Luís, e não a Tourinho, o que
nos levou a supor que o escrivão poderia não ser o assinante dos Livros da Câmara, mas
um outro indivíduo com um cargo importante. Se Tourinho era o juiz ordinário (e
também um dos assinantes do Livro da Nobreza), talvez fosse o juiz ordinário o
responsável pelas assinaturas na parte de cima dos Livros.
Alguns casos apontam para uma maior “flexibilidade” nas normas e diretrizes da
ocupação dos ofícios municipais no Maranhão. Em 1690, por exemplo, Francisco
Teixeira de Moraes era o juiz ordinário, e no ano seguinte, continuava ocupando o
ofício que, como os outros, deveria passar por eleições anuais. Segundo o termo daquele
dia, Moraes permanecia na função “por especial ordem do doutor Manoel Nunes
Collares”193, que era o corregedor e ouvidor da Comarca na ocasião. Este caso nos leva
a refletir sobre o que afirma A. J. R Russell-Wood, ao apontar a existência de uma
grande margem de flexibilidade e poder de adequação dos colonos em relação às
práticas e diretrizes da Coroa194.
Estes questionamentos e especulações, no entanto, nos fizeram atentar para o
fato de que ainda muito pouco se sabe acerca da dinâmica da ocupação e da circulação
desses homens nos cargos e funções na Câmara de São Luís no século XVII e séculos
posteriores. Como os indivíduos privilegiados eram capazes de reinventar e readequar
conceitos e situações vigentes no Antigo Regime português às circunstancias locais e
mais específicas, caberiam futuros estudos que enfocassem os processos de criação e
estruturação de uma burocracia camarária no Maranhão Colonial.
O capitão João Rodrigues Lisboa, também um componente da nobreza de São
Luís, era o outro assinante das Listas da Nobreza195 e também um dos nomes presentes
na Lista dos Cidadãos. No ano de 1691, era um dos juizes da Câmara, e no ano seguinte,
191 É razoável supormos, contudo, tratar-se de Bartolomeu Barreiros de Miranda, o primeiro nome da
Lista dos Cidadãos, e que nos anos anteriores a 1675, geralmente ocupava importantes cargos na Câmara de São Luís.
192 Livro de Acórdãos da Câmara de São Luís, n.º 06 (1689-1705), fl. 12. Pelo menos durante os anos de 1689 a 1693, Campello de Andrade foi o escrivão da Câmara de São Luís.
193 Idem, fl. 25. 194 RUSSELL-WOOD, A.J.R. Centros e Periferias no mundo luso-brasileiro, 1500-1808. Tradução de Maria de Fátima Gouvêa. In: Revista Brasileira de História, v. 18, nº. 36, p. 187-249, 1998. 195 Paulo Pires Tourinho assinou 32 e João Rodrigues Lisboa assinou as 6 últimas Listas. .
85
o “vereador mais velho” dos três a assumirem. Neste mesmo ano, o procurador do
Conselho era Manoel Martins da Costa, outro cidadão da Lista. Segundo Maria
Lieberman, no ano da Revolta de Beckman um dos pontos da Proposta da Junta
governativa, era a escolha de “três nobres” que pudessem governar o Estado no lugar do
governador Francisco de Sá e Meneses. Segundo a autora, Manoel Martins da Costa,
escrivão da Câmara à época, foi um dos escolhidos196.
Vicente da Silva é outro assinante do termo do dia 12 de junho de 1691, onde
constam assinaturas de alguns dos principais homens da cidade de São Luís. Seu nome,
porém, não consta da Lista dos Cidadãos e nem na Lista dos Filhos destes. Encontramos
o nome de Vicente da Silva em uma outra interessante listagem presente num termo de
vereação do dia 6 de janeiro de 1691, reunião esta que se destinava à eleição dos
misteres e juízes de ofícios daquele ano197.
Os dois juízes dos místeres escolhidos foram Vicente da Silva e João Barbosa,
outro cuja assinatura encontra-se no termo de 1691. Como juiz de ofício de carapina, o
escolhido foi Francisco de Brito; para juiz de ofício de sapateiro, Miguel Duarte, e para
juiz de ofício de ferreiro, José Viegas. Notamos que, mesmo não ocupando cargos da
Câmara, Vicente da Silva e João Barbosa encontravam-se presentes nesta reunião da
Câmara para decidir assuntos importantes para o “bem comum” da “República”. Além
deles, o termo nos informa que estavam presentes naquela vereação os oficiais de
calafate Agostinho Lopes e Diogo Ferreira198, que também assinaram o dito termo junto
com a nobreza da cidade. Em outro termo de vereação do dia 13 de agosto de 1691,
consta que estavam presentes os juízes, vereadores, o procurador do Conselho”alem dos
misteres como os juízes de oficios”199.
Beatriz Catão Cruz Santos, em estudo sobre as condições de cidadania dos
oficiais mecânicos no Rio de Janeiro do século XVII, afirma que esta prerrogativa - ser
considerado um cidadão da “República” - não se aplicava de maneira alguma aos
196 Cf. LIEBERMAN, Maria, 1983, p. 90. 197 Livro de Acórdão da Câmara de São Luís, n. º 06 (1689-1705), fl. 32. 198 Os ofícios mecânicos e suas relações com a Câmara de São Luís no período foram melhores estudados
pelo Profº. Carlos Alberto Ximendes. Analisando a dinâmica da economia do Maranhão Colonial e apontando elementos que possibilitassem um novo olhar sobre a questão, Ximendes destaca o papel das corporações de ofícios como alavancas dessa economia. O que nos interessa mais especificamente nestas análises, no entanto, é que, segundo ele, aos oficiais de serviços mecânicos que compunham as corporações de ofícios era permitida a escolha, pela Câmara, de seus representantes, os juizes de ofícios “que seriam, junto com a Câmara, responsáveis pela organização e fiscalização de seus pares”. Cf.: XIMENDES, Carlos Alberto, p. 100.
199 Livro de Acórdãos da Câmara de São Luís, n.º 06, (1689-1705), fl. 19.
86
ocupantes de serviços mecânicos (tecelões, alfaiates, sapateiros, ferreiros, carpinteiros,
carapina, pescadores, etc.):
“A análise dos registros da Câmara da cidade do Rio de Janeiro [...] entre os fins do século XVIII e início do século XIX, permite concluir que aos oficiais mecânicos estava vedado o exercício da cidadania, excetuando-se entre 1640 e 1711, na Bahia - em que os representantes dos mesteres atuavam na Câmara sujeitos a restrições - e, em alguns momentos pontuais (1624, 1661, 1736) no Rio de Janeiro200.”
Santos assevera, portanto, que a prerrogativa de poder decisório na colônia,
claramente associada ao exercício da condição de cidadania, não poderia ser aplicada
aos ocupantes dos ofícios mecânicos. Na América Portuguesa, a própria capacidade de
alardear um ideal de nobreza consistia na não ocupação desses cargos, considerados
inferiores na hierarquia social. Oficiais mecânicos, por exemplo, não poderiam servir
nos ofícios da Câmara, posto por excelência da “nobreza das terras”.
Convém ressaltarmos, no entanto, que encontramos os nomes “Vicente da Silva”
e “João Barbosa” constam em uma das Listas do Livro da Nobreza: a do capitão Gaspar
Fernandes da Fonseca201. Ao lado do nome de Vicente da Silva, há uma pequena nota
que diz “escuzo por ordem dos officiais da Câmara”. Apesar de que esta não é uma
Lista que faz referência direta aos cidadãos, seus filhos ou aos privilegiados, e a
inscrição de “escuzo” por ordem dos oficiais da Câmara não nos parecer compreensível
neste momento, entendemos que os aspectos políticos, militares, econômicos, que
ligavam os oficiais mecânicos às relações de poder no Maranhão parecem mais
complexas do que a primeira vista se poderia cogitar. Nesse sentido, é interessante
percebermos em estudos posteriores quais ligações esses homens estabeleciam com os
cidadãos da Câmara, de que maneiras eram inseridos nas questões que afetavam o “bem
comum” e como essa inserção refletia-se em um importante poder participativo sobre os
assuntos da cidade, e também no bom andamento da “Republica”.
Sobre isso, uma análise de Charles Boxer nos parece pertinente. Discorrendo
sobre o funcionamento das câmaras no Império português, o autor chama atenção para o
fato de que algumas câmaras, “mas não todas” possuíam uma forma de representação de
trabalho que baseava-se no sistema das corporações. Segundo ele, os representantes dos
oficiais mecânicos, responsáveis pela garantia dos interesses dos seus pares no conselho
municipal, “tinham o direito de assistir a todas as reuniões do conselho e a votar em
200 SANTOS, Beatriz Catão. Irmandades, ofícios e cidadania no Rio de Janeiro do século XVII.
Disponível em: sitemason.vanderbilt.edu/files 201 Livro de Lista da Companhia da Nobreza, n.º 08, fls. 10 e 10v.
87
todas as questões que afetassem as guildas e corporações de artífices e a vida econômica
da vila ou cidade202”. [grifo nosso]
Entendemos, assim, que relações entre os oficiais mecânicos e os ofícios da
Câmara em São Luís não se pautavam estritamente na lógica de exercício de cidadania
como entendida como nobreza, mas abarcavam o caráter de decisão sobre a “coisa
pública”, um dos aspectos que também se ligavam à idéia de cidadania. Na dinâmica de
reinvenção da condição de nobreza no Maranhão, as relações que envolviam os
indivíduos que serviam (ou poderiam vir a servir) na Câmara e os ocupantes dos ofícios
mecânicos nos parecem embasadas em prerrogativas mais “fluídas” que em outras
partes do Império.
O poder de “adequação” e de flexibilidade dos habitantes da colônia em relação
a questões que, apesar de abranger os interesses da Coroa, dizia respeito mais imediato
às suas prioridades, necessidades e bom andamento dos seus acordos e barganhas
locais, parece-nos estar ligada às relações sócio-políticas que perpassavam a Câmara,
seus agentes e ofícios, dando mais plasticidade às normas e diretrizes que diziam
respeito aos oficiais mecânicos e suas inserções no poder municipal.
3.4 Cidadãos, moradores, comerciantes, militares: as várias faces da nobreza
“maranhense”
O padre João Felipe Bettendorff, ao produzir a Crônica dos Padres da
Companhia de Jesus no Estado do Maranhão nos anos finais do século XVII, não raro
permite que vislumbremos aspectos “seculares” da vida na colônia. Seus relatos não
obedecem a uma cronologia rígida, no entanto, são capazes de situar perfeitamente o
leitor ao seguir uma certa linearidade temporal dos acontecimentos, e suas histórias dos
padres da Companhia de Jesus no Maranhão estão recheadas de acontecimentos
políticos, do cotidiano, de detalhes curiosos e até pitorescos da dinâmica colonial.
Ao iniciar a Crônica, o próprio Bettendorff afirma aos leitores: “não haveis de
estranhar que vou sempre ajuntando o governo espiritual com o temporal [...] [visto
que] andáram sempre tão annexos [...] alem do que por esta via melhor se conhecerá o
que se obrou em qualquer tempo na missão”203.
202 Sobre esse assunto, cf.: BOXER, Charles, 2002, pp. 287-288. 203 Op. cit, p. (Ao Leitor).
88
Devemos considerar ainda o importante fato de que o período da Crônica de
Bettendorff coincide em grande parte com a delimitação temporal que priorizamos para
este trabalho, e transforma sua Crônica em uma preciosa contribuição para as análises
que intentamos sobre os nobres do Maranhão Seiscentista, ao revelar pequenos detalhes
que, juntamente com os registros dos livros da Câmara, e a bibliografia do período,
entendemos ser de fundamental importância para nossa tentativa de “seguir as trilhas”
da nobreza “maranhense”. Bettendorff chega ao Maranhão, vindo de Lisboa, no ano de
1660. Entre os anos de 1668 a 1674 e 1690 a 1693, foi o Superior da Missão204.
Nas várias referências que Bettendorff faz na Crônica às coisas “temporais”,
encontramos importantes informações sobre religiosos, governantes e, o que mais nos
interessa, moradores. Alguns dos indivíduos sobre os quais falamos até aqui, e também
outros que iremos mencionar agora, aparecem nos relatos que o padre coligiu.
Mas o que nos diz Bettendorff sobre alguns cidadãos das décadas finais do
século XVII? O primeiro que apresentaremos e sobre o qual Bettendorff faz algumas
considerações é Gabriel Pereira da Silveira. Segundo o padre, por ocasião da Revolta de
Beckman205, indicaram a Silveira para ser o sargento-mor do Estado “o qual, zombando
deste cargo assim concedido, não o quiz [sic] aceitar”. No entanto, Silveira parece o ter
aceitado num momento posterior, visto que depois é identificado pelo cronista como
sendo sargento-mor, mesmo “contra sua vontade”206. Constante da Lista dos Cidadãos,
Gabriel Pereira da Silveira assinou o termo de 12 de junho de 1691, em que a nobreza se
fazia presente. No ano seguinte, era um dos juizes do Senado da Câmara207. É
identificado ainda, como “o mais rico cidadão da região” nos decênios finais do século
XVII, tendo inclusive acesso à tomadas de decisões importantes sobre os rumos
políticos do Estado208.
Agostinho Correa é outro cidadão mencionado na Crônica. Presente na Lista dos
Cidadãos, a nota ao lado do seu nome informa “no Hicatu”, informação esta que parece
ser confirmada pelo padre, ao afirmar que este era o sargento-mor do Icatú. O nome de
Agostinho Correa, aparece ainda associado a um episódio envolvendo os irmãos
Manoel e Thomas Beckman, quando estes foram acusados juntamente com o cunhado
204 Idem, Ibid. (Nota do Org.) 205Sobre o motim que ficou conhecido na historiografia como Revolta de Beckman, ver:
CHAMBOULEYRON, Rafael. Justificadas e repetidas queixas: o Maranhão em Revolta (século XVII). Disponível em: http://cvc.instituto-camoes.pt\eaar\coloquio.
206 Cf.: BETTENDORFF, 1993, pp. 364-371. 207 Livro de Acórdãos da Câmara de São Luís, n.º 06 (1689-1705), fl. 57. 208 Sobre isso, ver: LIEBERMAN, Maria. 1983, p. 72.
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de ambos, José de Cáceres209, e o feitor Francisco de Barros, de envolvimento na morte
de Manoel Correa, filho de Agostinho. Conta Bettendorff que foi visitá-los quando estes
se achavam presos na cadeia pública da cidade210.
Neste mesmo episódio envolvendo Agostinho Correa e os irmãos Beckman, há
uma referência a outro importante cidadão. O nome de João Pereira de Cáceres, por
motivos que desconhecemos, não consta da Lista dos Cidadãos, mas sim na Lista dos
Filhos dos Cidadãos211. De acordo com Bettendorff, Cáceres era capitão-mor de
Tapuitapera e um dos homens mais ricos e influentes da região.
Segundo Maria Lieberman, o engenho de Vera Cruz, de propriedade dos
Beckman localizado no Rio Mearin, pertencia anteriormente ao sogro de ambos, João
Pereira de Cáceres, “riquíssimo proprietário local e comerciante de açúcar. Era
habitante antigo na Colônia, pois desempenhou papel significativo em 1639, quando
ocupou o posto de Comandante da Casa Forte do Gurupá, uma das fortalezas do
Maranhão”212.
O capitão Gaspar Fernandes da Fonseca não é mencionado na Crônica de
Bettendorff. Fonseca, no entanto, um dos capitães a possuírem “companhias separadas”
no Livro da Nobreza, possui em sua Lista alguns nomes nos quais constam ao lado uma
curiosa nota. Ao lado dos nomes de Ignácio de Almeida e Diogo Leitão, está escrito
“estudantes”. Em outra Lista do Livro, chamada “dos Filhos dos Cidadãos e mais
agregados”213 esta mesma referência encontra-se ao lado dos nomes de pelo menos 10
indivíduos, a saber: José Pereira de Cáceres, Alberto Bequimão, Manoel Bequimão,
Gonçalo Pereira Bulcão, Pedro Rodrigues Coelho, Antonio Mozinho Garro, Antonio de
Souza, Manoel Ribeiro Pinto, Severino da Rocha e Manoel da Rocha.
A princípio, o termo “estudante” ao lado de nomes presentes nas Listas da
Nobreza nos causou certo estranhamento, visto que não parecia haver qualquer ligação
aparente entre nomes de homens ligados aos ofícios da Câmara e às funções militares na
colônia - características que, a princípio, cremos serem as principais destas Listas - com
209 José de Cáceres é identificado como um dos filhos de João Pereira de Cáceres, o outro seria Ignácio
Pereira. Idem, Ibid, p. 70. 210 Cf. BETTENDOFF, p. 282. Este episódio também encontra-se narrado no livro de Maria Lieberma, O
levante do Maranhão, sendo inclusive uma carta escrita por Manoel Beckman na ocasião em que se achava preso na Fortaleza do Gurupá, o principal documento sobre o qual a autora embasa sua discussão. Ver: p. 71.
211 Cogitamos, a princípio, tratar-se de um filho de João Pereira de Cáceres, todavia, não encontramos nenhum indício de que ele teria tido um filho com esse nome, e ainda segundo Lieberaman, seus filhos chamavam-se José e Ignácio.
212 Op. cit. p. 70. 213 Livro de Lista da Companhia da Nobreza, n.º 08 (1689-1710), fl. 15v.
90
qualquer tipo de “estudo” ou “escola”. Uma busca posterior em outros documentos e
bibliografias que pelo menos fizessem referências à presença de estudantes no cenário
político-militar do Maranhão de fins do XVII se mostrou infrutífera.
É na Crônica de Bettendorff, contudo, que fomos encontrar uma rápida menção
à presença de estudantes no Antigo Maranhão. Conta-nos o cronista que por volta de
1695, o padre Manuel Galvão, no Reino, foi visitar o Colégio da Universidade de
Coimbra para “atiçar os ânimos” dos que estavam estudando para virem depois à missão
do Maranhão, e que na ocasião alguns “recolletos” se ofereceram para vir com Galvão e
continuar aqui seus estudos. Faltava-lhes as cadeiras de Filosofia e Teologia, e como no
Maranhão “não havia commodidade de abrir novo curso de philosophia”, foram
mandados para o Pará214. Bettendorff lista os irmãos “estudantes” que vieram a São
Luís e depois ao Pará. [grifo nosso]
Em primeiro lugar, devemos atentar para o fato de que os estudantes
mencionados por Bettendorff estão claramente associados aos estudos de cunho
religioso ministrados nos Colégios da Missão Jesuítica - nenhum nome dos estudantes
citados na Crônica coincide com os nomes na Lista dos “Cidadãos e mais agregados” -.
Por outro lado, esta referência aos estudantes vindos do Colégio da Universidade de
Coimbra a fim de terminarem seus estudos no Maranhão nos suscitou um importante
questionamento: se haviam cursos onde se aprendia filosofia e teologia no Maranhão, a
ponto de jovens de Coimbra terminá-los aqui ou no Pará, seriam esses cursos destinados
apenas aos jovens missionários? Poderiam estudar aqui (ou irem a Coimbra, por
exemplo) os filhos de homens importantes da região, da nobreza da cidade, no final do
século XVII?
Como podemos notar, o nome José Pereira de Cáceres aparece na listagem dos
estudantes, sendo que José era o primeiro nome de um dos filhos de João Pereira de
Cáceres. Há ainda dois “estudantes” cujos nomes estão associados aos Beckman,
Alberto Bequimão e Manoel Bequimão, uma das famílias mais conhecidas do Maranhão
Colonial, cujos membros estavam geralmente circulando nos espaços de poder da
região.
Entendemos, assim, que a Crônica de Bettendorff é mais um dos importantes
registros da passagem e da movimentação desses homens pelos espaços de poder onde
se reinventava a condição de nobre no Maranhão. Os termos de vereações da Câmara de
214 Cf.: BETTENDORFF, João Felipe, 1990, p. 583.
91
São Luís e as Listas do Livro da Nobreza também nos “dizem” muito acerca da
circulação dos nobres e privilegiados do Maranhão Seiscentista, ao mesmo tempo em
que sinalizam para questões ainda um tanto “obscuras” sobre esses mesmos homens e
seus espaços de atuação.
As referências a estudantes, por exemplo, em algumas das Listas ( a “dos Filhos
dos Cidadãos e mais agregados” é apenas a que possui o maior número delas) apontam
para um outro aspecto da composição e criação destas Listas, que a nosso ver difere do
caráter essencialmente militar que a princípio se sobressai. Esta questão, portanto, é
apenas mais uma a juntar-se a tantas outras que emergem da análise das Listas do Livro
da Nobreza.
Desta forma, podemos inferir que a reinvenção da condição de nobreza no
Maranhão achava-se pautada em uma miríade de relações sociais, políticas e
econômicas que eram gestadas e constantemente reconfiguradas de acordo com
circunstâncias locais e mais imediatas. Inserida no Império, a região do Maranhão
compartilhava conceitos, idéias, categorias e hierarquias sociais e políticas, “cenas” que
eram típicas do Antigo Regime português nos trópicos.
No cenário do Maranhão de fins do século XVII, vários indivíduos estavam
reinventando a idéia do que era ser nobre, utilizando argumentos e discursos válidos no
Reino e também flexibilizando conceitos e situações de forma a adequá-las e\ou torná-
las mais interessantes a seus propósitos. Forjando uma nobreza que não tinha um
estatuto aristocrático dado pela monarquia, esses homens, pertencentes a categorias
sociais diversas, encontraram meios de se legitimarem nobres em seus locais de
vivência e atuação político-econômica.
Uma maior mobilidade social e uma maior flexibilidade das relações
hierárquicas pareciam estar presentes nos trâmites do jogo político “maranhense” de
fins do Seiscentos. Podemos perceber que aqui outorgavam-se nobres e cidadãos
indivíduos que dificilmente o seriam em outras partes do Império português, no entanto,
esses homens redesenharam essas hierarquias e reformularam concepções vigentes,
dando-lhes novas nuances e sentidos, mais de acordo com suas experiências e
possibilidades locais.
Desde o início deste trabalho, apresentamos indivíduos ligados a funções
administrativas, aos ofícios camarários, às carreiras militares, filhos de militares,
oficiais mecânicos, comerciantes: homens ocupados nas mais diversas funções e que,
através de discursos e de práticas com eficiente circulação e aceitação locais, puderam
92
inserir-se num grupo que reivindicava um caráter nobre, distinto. Homens como João
Dias Vieira e João Telles Vidigal, Gonçalo de Lemos Mascarenhas e André Pinheiro,
assim como Miguel Ribeiro, João Pereira de Cáceres e mesmo Vicente da Silva:
homens da administração, da guerra, da Câmara.
Descendentes dos primeiros conquistadores e povoadores e, portanto, produtores
de discursos de distinção e merecimentos; ocupantes dos ofícios da Câmara, por
excelência a “gestora da cidade”, homens da governança e de poder local; homens
ligados a ofícios mecânicos, “menos nobres”, mas que se imiscuíam nos temas
importantes e decidiam juntamente com a “Nobreza da Republica”215 os assuntos e
destinos da cidade. Homens possuidores de terras e de escravos, ainda que poucos se
comparados às posses de tantos outros ricos proprietários coloniais. Há ainda os homens
que, mesmo não estando participando diretamente da Câmara em determinado
momento, mas que pertenciam a essa nobreza da “coisa pública” justamente pelo fato de
que poderiam vir a pertencer um dia.
Estes homens, cada qual em suas funções e produzindo falas e ações registradas
nos documentos que até nós chegam, formavam as várias faces da nobreza maranhense.
Uma nobreza forjada sem os pilares jurídicos estamentais, uma nobreza de significados
muito mais “plásticos” e “alargados” do que o sentido tradicional do termo poderia
supor, uma condição de nobre oriunda justamente da dinâmica de reinvenção e
ressignificação deste conceito no Maranhão do final do século XVII.
215 Livro de Acórdãos da Câmara de São Luís, n.º 5 (1675-1681), fl. 57-57v.
93
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O Maranhão do século XVII era mais um dos vários territórios ultramarinos do
Império português no Antigo Regime, e como tal, seus personagens inseriam-se nas
relações políticas e na reconfiguração das hierarquias de poder processadas em termos
imperiais. Como parte deste Império, a região do Maranhão e seus habitantes sentiram e
também foram partícipes das transformações processadas nas categorias e nas normas
de classificação sociais, palco dessas mudanças na sociedade lusa Seiscentista.
A idéia de nobreza e do que significava ser nobre em Portugal foi uma dessas
mudanças que ocorreram nas bases da taxinomia social reinól. A ocupação de novas
funções e a diversificação nas grelhas de classificação hierárquica foram aos poucos
permitindo que novos significados fossem inseridos na concepção estamental de
nobreza. Uma nobreza “de sangue”, passada de pai para filho, titulada, não deixou de
existir no espaço social luso, pelo contrário, este tipo de nobreza fortaleceu-se e tornou-
se mais restrita. Por outro lado, as “bases”, as fronteiras inferiores dessa concepção
juridicamente formalizada foram “alargadas” ao ponto de agregar pessoas e postos que
oficialmente não poderiam se inserir nesta categoria.
Estas mudanças, no entanto, não foram efetuadas apenas do ponto de vista da
literatura e das normatizações jurídicas, mas se traduziram também (e principalmente)
em novas configurações nas práticas e vivências mais imediatas dos indivíduos no
corpo social. Mais do que ter “nascido nobre”, essas mudanças levavam em conta
também o “viver nobremente”, situação que poderia ser alcançada pelo desempenho de
funções consideradas “nobilitantes”, como pertencer ao exército, exercer funções da
magistratura ou pertencer a uma Câmara Municipal, por exemplo.
Tanto em Portugal quanto em suas colônias, estes homens que viviam
nobremente ou “nas formas da nobreza”, não eram seguramente considerados nobres tal
como esta categoria era formalmente estabelecida. Não pertenciam, por certo, ao tipo de
nobreza conhecida por séculos como parte do tripé “clero, nobreza, povo”, estabelecido
desde o período medieval. A nobreza destes homens era condição barganhada, de
trocas, oriundas de acordos e negociações, criada (e recriada) a partir das alianças e
também dos conflitos com a Coroa portuguesa. Era, portanto, uma nobreza política,
forjada nas malhas do jogo de poder estabelecido entre metrópole e colônia. Um jogo
formado por discursos de merecimentos e de privilégios por parte dos súditos, de
concessões e mercês por parte da Coroa.
94
Esse jogo político era jogado com afinco por um seleto grupo de habitantes do
Maranhão Colonial, sujeitos que, através de seus discursos e práticas locais,
argumentavam pertencer a um determinado tipo de nobreza. Homens como João Dias
Vieira e João Telles Vidigal, que solicitavam cargos e postos por terem servido em
batalhas em nome da Coroa; ou tais como Gonçalo de Lemos Mascarenhas, por serem
filhos e netos de outros que, anos antes, ajudaram o rei a manter seguros seus territórios.
Homens que afirmavam, em vários registros deixados por eles, que detinham (e
deveriam deter) o governo e dar os rumos das “coisas públicas”. Que eram os cidadãos,
os privilegiados do lugar, os que mereciam, então, gerir a colônia junto com o monarca.
Como no reino e em outras paragens da Coroa lusa, também aqui no Maranhão
de fins do século XVII, a concepção de nobreza estava sendo reinventada, que havia
ganhado sentidos diversos do que lhe era tradicionalmente atribuído.
Percebemos que esta “nobreza maranhense” tinha diferentes facetas e operava
com diferentes discursos: era uma “nobreza das guerras” contra o estrangeiro e contra
os nativos e, por conseguinte, uma nobreza de mérito; era uma “nobreza de linhagem”,
que deveria ocupar os melhores postos e cargos devido aos feitos de seus antepassados;
era também uma “nobreza da República”, “da cidade”, do espaço urbano, que
controlava e geria os assuntos importantes, zelando pelo “bem comum”, principalmente
se este “bem comum” contemplasse suas necessidades e seus interesses. Uma condição
de nobreza, portanto, também associada aos cargos do Senado da Câmara, reservada e
destinada àqueles que transitavam pelos espaços do poder municipal, e que mesmo não
ocupando nenhum cargo camarário, tinha cabedal para ocupá-lo em qualquer momento.
Os nobres do Maranhão também pertenciam a uma nobreza de fronteira, responsável,
em nome da Coroa, pela defesa e desenvolvimento dessa região. Uma nobreza
“maranhense” que era, por fim, ao mesmo tempo militar, econômica e política.
Mais do que encarar essas categorias presentes na documentação como simples
termos ou apenas “construções ideológicas” percebemos que elas refletiam e também
eram reflexos das relações que eram construídas na sociedade do período, que
encontravam embasamento, e também legitimavam, a práxis política destes indivíduos
e, por fim, que tinham eficaz aceitação local. Ao afirmarem-se na documentação como
sendo nobres ou pertencentes a um determinado tipo de nobreza, alguns homens no
Maranhão do século XVII agiam e construíam suas relações sociais, econômicas e
políticas de uma perspectiva nobilitante.
95
Longe do cenário e das circunstâncias do reino e de outras paragens do Império
luso, alguns desses homens recriaram, com elementos próprios ao espaço em que
circulavam, uma idéia de nobreza que diferia da nobreza cortesã portuguesa, que
destacava-se por ser uma “nobreza local”. Não possuíam as prerrogativas e todos os
privilégios dos nobres “tradicionais”, afinal, seus espaços e seus elementos para
exercerem essa nobreza eram outros, todavia, era exatamente esta nobreza que
controlava e decidia (junto, e às vezes à revelia da Coroa) os destinos políticos e
econômicos do Maranhão Colonial. Como ela própria afirmava, era a “gente nobre da
governança”.
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REFERÊNCIAS
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103
Lista da Companhia dos Privilegiados216 [fl. 42-42v]
O cappitão Agostinho Mouzinho Garro
O Alferes Agostinho da Vega
O Sargento do [ileg.] Chrispim Ferreira
O Sargento Supra Balthazar Rodrigues
Cabo de escoadra Anastacio Dias
O cappitão Francisco Freire Domingos Pereira Lemos
O cappitão Francisco Ferreira Bernardes*
217 morto
Lourensso de Mattos Parâ
O cappitão Thomas Teixeira cidadão João Froes de Britto capittão
O cappitão Francisco Monteiro Manoel Serejo
O cappitão Manoel da Silva de Castro Francisco Serejo* morto
O cappitão Marcos da Boa Vida Joseph Dias Barreiros
O cappitão Joaquim Vidal Francisco Rodrigues
O cappitão Antonio Arnaut Vilella* morto Manoel de Mendonça
O cappitão Francisco Pinheiro Parâ Manoel Soares de Lemos
O cappitão Antonio de Ameida Parã Agostinho da Costa Coimbra O cappitão João Reis Afonsso Fernandes Vianna* morto
O cappitão Manoel Coelho Hiacinto de Moraes Rego
O cappitão Manoel de Lima Parâ +Joseph Pereira de Caseres para a companhia dos filhos dos cidadãos
O cappitão Manoel Sardinha +Alberto Bequiman*
O Alferes Antonio Reis Sameira [?] João Soares de Lemos
+ Manoel Correia Gabriel Pereira Leal
Verissimo Homen Antonio de Afonçequa
Thomas Bequimão passou dos cidadãos para a companhia dos filhos
Severino Rodrigues
+Manoel Inocêncio Bequiman* Lourensso da Silva Pinheiro
+Manoel Maciel Aranha [ilegível]
Francisco Tavares João de Espíndolla de Ataide
Mariano Evangelho Parâ O Alferes Francisco Lopes Goes
Melchior de Soa [ilegível]
216 Tal qual outras Listas da Nobreza, não está datada. 217 Nomes riscados.
104
Maximiano de Bairros Raimundo Correia Lisboa
Francisco Teixeira de Moraes Izidoro Ferreira
Domingos Serrão de Castro Francisco da Costa Coimbra
Diogo Freire
105
Lista da Companhia do Cappitão Miguel Ribeiro (1689) [fl. 5-5v]
Alferes João Ribeiro Massiel
Sargento Mig[u]el Dornelles
Sargento João da Silva mor do Icatú
Cabo de escoadra Asenco Gomes
Cabo de escoadra Francisco Coelho O Ajudante Domingos Fernandes de Mattos morto
Manoel de Avelar
O Alferes Manoel Faleiro Urbano Dias da Cunha
O Alferes Domingos Álvares Ribeiro Agostinho Lopes
O Alferes Pedro Avangelho Paulo Dias
O Alferes Amaro Dias morto Matias Nunes morto
O Sargento Andre João Ignacio de Souza
O Sargento Antonio da Silva Joseph Viegas
O Sargento Bento Pinheiro João Bernardes
Domingos Soeiro Joseph Fernandes Monis
Joseph Dias Manoel Dias sargento
Francisco Vieira Joseph Fernandes de Matos soldado
Diogo Costa Ignacio Dias
Joseph Rodrigues Amaro da Cunha
Manoel da Costa de Brito João Pereira
Domingos Falcão João de Oliveira
Joseph Fernandes soldado Joseph da Silva
Jerônimo Francisco Francisco [ilegível]
Pedro Dutra João Madeira
Agostinho da Costa Reiol [?] Ignacio Gonçalves Pereira
João Daniel Manoel da Silva
Antonio Pereira de Souza Afonço Fernandes Viana
Ignacio Nunes Jorge Moreira
Gonçalo Telles Manoel Dias Rodrigues
Manoel Serejo Ignacio Lopes
Joseph Maciel Aranha Paulo Pereira
Antonio da Fonseca Manoel da Silva
Domingos Pereira Pascoal Dornelas Tapuitapera
106
João da Silva Antonio Teixeira
João Coutinho de Azevedo morto Amado dos Reis
Antonio da Terra Joseph da Fonseca
Manoel Martins da Costa Liandro Pereira
Agostinho Pinto morto Francisco de Souza
Manoel da Silva de Castro Domingos Dornellas
Lucas Poderozo Antonio Correia
Firmiano Correa soldado Joseph Fernandes morto
Sebastião Cabral Ycatú Joseph da Costa
Manoel Pereira Nunes cidadão [ilegível] Dias
Marcos Ferreira Marinho
Joseph dos Reys soldado Manoel Gonçalves Manoel da Silva
107
Lista da Companhia do Cappitão Gaspar Fernandes da Fonseca (1689) [fl.10-10v]
Cappitão Gaspar Fernandes da Fonseca
Alferes Bonifacio da Fonseca
Sargento Antonio Coelho
Sargento Mathias Pimenta
Cabo de escoadra Manoel Pimenta
Cabo de escoadra Antonio Pereira de Lemos
Alferes Alvaro Ferreira Francisco de Paiva
Alferes Lucas Nunes Amaro Pereira morto
Alferes Manoel de Lemos Peixoto Manoel Dias
Alferes Francisco Serejo [ilegível]
Alferes Antonio Serejo Joseph d[e] Abreu
Sargento Domingos Afonço* escuzo João Moreno
Sargento Visente Galas Manoel Pestana
Sargento João Barboza Vitoriano de Carvalho*
Sargento Alberto Pinheiro morto Joseph de Lemos soldado
Miguel Rabello Severino da Silva
Sebastião Martins morto Antonio de Souza Moreira soldado
Antonio da Silva da Paz Manoel Nogueira soldado
Izidoro Gonçalves Ambrosio Dornelles soldado
João Aleixo de Vilhena morto Lourenço Dias Barreiros
João de Araújo passou a Companhia dos filhos dos cidadoiz por sentença
Manoel de Albernaz da Silva
Manoel da Costa Coimbra Joseph Ribeiro
Baltezar Duarte da Costa* escuzo Manoel Fernandes Garaiao [?]
Bernardo Rodrigues Ignacio de Almeida estudante
Anastásio Dias Barreiros Diogo Leitão estudante
Bento da Fonseca soldado Simão Cabreira
Simão de Azevedo Simão Dias soldado
Antonio de Abla morto Manoel Álvares
Vicente da Silva escuzo por ordem dos officiais da camara
Manoel Correa