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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
LEONARDO MINELLI SILVEIRA
MODERNIZAÇÃO DO VAREJO E CLASSES SOCIAIS:um estudo sobre a degradação do trabalho no comércio
CAMPINAS,
2019
LEONARDO MINELLI SILVEIRA
MODERNIZAÇÃO DO VAREJO E CLASSES SOCIAIS:um estudo sobre a degradação do trabalho no comércio
Dissertação apresentada ao Instituto deFilosofia e Ciências Humanas da UniversidadeEstadual de Campinas como parte dosrequisitos exigidos para obtenção do título deMestre em Sociologia.
Orientador/Supervisor: SÁVIO MACHADO CAVALCANTE
ESTE TRABALHO CORRESPONDE ÀVERSÃO FINAL DA DISSERTAÇÃODEFENDIDA PELO ALUNO LEONARDOMINELLI SILVEIRA E ORIENTADA PELOPROF. DR. SÁVIO MACHADOCAVALCANTE.
CAMPINAS2019
Ficha catalográficaUniversidade Estadual de Campinas
Biblioteca do Instituto de Filosofia e Ciências HumanasCecília Maria Jorge Nicolau - CRB 8/3387
Silveira, Leonardo Minelli, 1989-Si39m SilModernização do varejo e classes sociais : um estudo sobre a degradação do trabalho
no comércio / Leonardo Minelli Silveira. – Campinas, SP : [s.n.], 2019.SilOrientador: Sávio Cavalcante Machado.SilDissertação (mestrado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto deFilosofia e Ciências Humanas.Sil1. Marx, Karl, 1818-1883. 2. Comércio varejista. 3. Classes sociais. 4. Capitalismo. 5. Trabalho. I. Cavalcante, Sávio, 1982-. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. III. Título.
Informações para Biblioteca DigitalTítulo em outro idioma: Retail modernization and social classes : on the degradation of labor in commercePalavras-chave em inglês:Retail tradeSocial classesCapitalismLaborÁrea de concentração: SociologiaTitulação: Mestre em SociologiaBanca examinadora:Sávio Machado CavalcanteBárbara Geraldo de CastroHenrique Pereira BragaFábio Mascaro QueridoHenrique AmorimData de defesa: 22-03-2019Programa de Pós-Graduação: Sociologia
Identificação e informações acadêmicas do(a) aluno(a)
- ORCID do autor: 0000-0001-9882-7142
- Currículo Lattes do autor: http://lattes.cnpq.br/2941753290737089
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINASINSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
A Comissão Julgadora dos trabalhos de Defesa de Dissertação de Mestrado, composta pelosProfessores Doutores a seguir descritos, em sessão pública realizada em vinte e dois de março(22/04), considerou o candidato Leonardo Minelli Silveira aprovado.
Prof. Dr. Sávio Machado Cavalcante (orientador – Departamento de Sociologia -IFCH/UNICAMP)
Prof. Dra. Bárbara Geraldo de Castro (Departamento de Sociologia - IFCH/UNICAMP)
Prof. Dr. Henrique Pereira Braga (professor adjunto do Departamento de Economia daUniversidade Federal do Espírito Santo)
A Ata de Defesa com as respectivas assinaturas dos membros encontra-se no SIGA/Sistema deFluxo de Dissertações/Teses e na Secretaria do Programa de Pós-Graduação em Sociologia doInstituto de Filosofia e Ciências Humanas.
CAMPINAS2019
Agradecimentos
Antes de mais nada, agradeço à Fundação Capes por todo o apoio material e
institucional de subsídio a esta pesquisa, apoio que foi imprescindível para a realização de todo o
empreendimento. Sem o financiamento ativo dos programas de pós-graduação, não somente com
a estrutura material, mas com bolsas de estudo, a formação de uma tradição de pesquisa no país –
e a própria formação de um projeto de país – é impossível.
Agradeço aos meus pais, Beto e Rita, por todo o extenso apoio ao longo do período de
formação na Universidade, sem o qual a chegada ao término do mestrado seria inconcebível.
Além disso, agradeço também a todos os familiares, com quem deixei de vivenciar muitos
momentos em razão da dedicação aos estudos que confluíram nesta pesquisa.
Agradeço a minha companheira Vanessa, com quem partilhei tantos aprendizados e
discussões sobre os mais variados assuntos. Não fossem as inúmeras indicações de leituras e os
aprendizados conjuntos, certamente esse trabalho de pesquisa teria sido muito mais difícil –
especialmente no que se refere à escrita. Além disso, sou grato por todo o apoio afetivo e
cotidiano ao longo do período de escrita da dissertação.
Quero agradecer ao meu orientador, Sávio, que conheci numa disciplina ainda no
primeiro ano de faculdade sobre as temáticas de estrutura e estratificação social, assunto que,
desde então, me ajudou a ser atraído para o campo de pesquisa do trabalho e das classes sociais.
Além disso, agradeço por todo a ajuda desde a entrada no programa de mestrado até as últimas
conversas para fechamento da dissertação, várias das quais contribuíram para mudar os rumos
deste trabalho.
Quero agradecer ao professor Henrique Braga, que acompanhou esta pesquisa desde a
apresentação de um trabalho inicial no 4º Fórum de Pesquisa de Pós graduação em Sociologia,
passando ainda pela qualificação desta pesquisa. Em todos esses momentos, os comentários
precisos e argutos foram fundamentais para melhorar toda a compreensão sobre os objetos de
pesquisa, frequentemente trazendo pontos de vista novos para temas já conhecidos e referências
distintas para mobilizar nas discussões.
Ao professor Ricardo Antunes, agradeço pelos comentários gentis e construtivos durante
a qualificação e por toda a presença bibliográfica nos estudos críticos sobre o mundo do trabalho,
além de todos os aprendizados trazidos durante o curso sobre mundo do trabalho, ministrado para
a graduação em Ciências Sociais.
Sou grato à professora Bárbara Castro, seja pela presença nesta banca, seja pela
disciplina sobre raça, gênero e trabalho, que me deu novos olhos para compreender as relações
entre gênero, raça e classe, bem como para o entrelaçamento entre a luta pelos direitos civis dos
mais diversos grupos oprimidos socialmente. Agradeço à professora Mariana Chaguri pelos
inúmeros aprendizados trazidos na disciplina “Seminários de Dissertação”. A versatilidade na
mobilização de referências e a criatividade para solução de problemas de pesquisa são exemplos
que julgo fundamentais para toda prática da Sociologia e das Ciências Sociais, seja na área na
docência, seja na pesquisa.
Agradeço a todos os funcionários e professores do IFCH, por toda a formação permitida
ao longo dos anos de graduação e de mestrado. Experiência que marcou decisivamente toda a
trajetória de vida e que tornou esta pesquisa possível.
Por fim, quero deixar um agradecimento a alguns amigos que contribuíram para este
trabalho. Primeiramente, agradeço ao Guilherme Montanholli, com quem partilhei uma trajetória
de formação na tradição marxista, na sociologia do trabalho e nas teorias das classes sociais.
Além de todo o aprendizado partilhado nesses vários espaços de discussão, quero agradecer pelas
inúmeras conversas sobre temas direta ou indiretamente ligados a essa pesquisa. Inegavelmente,
toda essa experiência marcou decisivamente minha formação, tornando a chegada à conclusão
desse mestrado possível.
Quero agradecer também a algumas pessoas que ajudaram essa pesquisa ainda na fase
inicial, quando o projeto estava para ser submetido à avaliação no processo seletivo. As sugestões
de melhora ao projeto dadas por Rodolfo Moimaz, Laura Alberti e Patrícia Rocha Lemos foram
um importante apoio num momento decisivo.
A todos vocês, muito obrigado!
Para meus pais, Beto e Rita,
que, por tantos anos e sob tantoesforço, forneceram todo oapoio necessário para acontinuidade dos estudos.
RESUMO
O problema da presente pesquisa é a reconfiguração das relações de trabalho do setor varejista,que passou por um processo de deterioração do trabalho em razão da nova configuração técnica eorganizacional. A fim de conferir respaldo a esse posicionamento, os capítulos um e doisanalisam as transformações do setor varejista ao longo do século XX sob o ponto de vista da suaconfiguração técnica e organizacional. O primeiro capítulo volta-se para o tema da modernizaçãodo varejo, que será interpretado à luz da teoria marxista, enquanto o segundo capítulo esmiúça oproblema das transformações do setor no capitalismo flexível, analisando as respostas do varejo àcrise do capitalismo fordista. O capítulo terceiro analisa os significados e implicações dafinanceirização do varejo sob o ponto de vista da autonomização do capital comercial, resgatandoas pistas deixadas por Marx acerca do assunto no livro 3 de O capital. Por fim, no capítulo quatrosão analisadas as implicações da nova configuração do varejo sob o ponto de vista das relaçõesde trabalho. Argumenta-se que a nova configuração do trabalho do setor é efeito de umaintensificação da dominação capitalista sobre a estrutura técnica, que, por sua vez, tem comoefeitos alterações nas relações de classe no setor e a deterioração das condições de trabalho eemprego.
Palavras-chave: Modernização do varejo; Hegemonia do capital mercantil; Trabalho;Proletarização; Capitalismo
ABSTRACT
The problem investigated in this research is the reorganization of retail sector labor relations,which passed through a labor deterioration process due to the new technical and organizationalconfiguration. In order to support this positioning, chapters one and two analyses the retail sectortransformations along XX century from the technical and organizational point of view. Chapterone deals with the problem of the retail modernization, witch will be interpreted under Marxisttheory, while chapter two examines the sector’s transformations in flexible capitalism, analyzingthe retail responses to the fordist capitalism crisis. Chapter three analyses the meanings andimplications of retail financialization from the point of view of commercial capitalautonomization, bringing the trails left by Marx about the issue in The Capital book 3. Finally, inchapter four the implications of the new retail configuration are analyzed from the point of viewof labor relations. It is argued that the new labor configuration of the sector is an effect ofcapitalist domination over the technical structure, witch, in its turn, generates new class relationsin the sector and labor conditions and employment deterioration.
Keywords: Retail modernization; Merchant capital hegemony; Labor; Proletarianization;Capitalism
Espaço, lugar!Somos toscos, broncos!Rachamos os troncos, Que ao chão caem a atroar;Por matas, barrancos,Levamos aos trancos,Lenha e achas em montes;Ao rir ponde xeque,Sem nós, brutamontes,A suar no trabalho,Os finos, como é queQuebravam o galho,Por mais que brilhassem?Ficai avisados,Morríeis geladosSe os brutos não suassem.
(Goethe)
Índice
Introdução.....................................................................................................................................12
Capítulo 1 – Para uma problemática marxista da modernização do varejo...........................24
1.1 Definições preliminares.......................................................................................................25
1.2 Síntese das transformações do varejo: o conceito de modernização do varejo...................31
1.3. Problemáticas a respeito da modernização do varejo.........................................................51
1.4. Modernização do varejo e acumulação de capital..............................................................58
Capítulo 2 – A modernização do varejo na era da acumulação flexível..................................62
2.1 A crise capitalista do fim dos anos 1960 e da natureza do capitalismo pós-1970...............63
2.2 Varejo na globalização.........................................................................................................77
2.3 O varejo na era da tecnologia da informação.......................................................................89
2.4 A emergência da hegemonia do capital mercantil e outras implicações............................107
Capítulo 3 – Os sentidos da autonomização do capital comercial..........................................116
3.1 Definições preliminares.....................................................................................................117
3.2 O lucro comercial...............................................................................................................123
3.3 A importância da racionalização do trabalho no comércio................................................132
3.4 Autonomização do capital comercial e racionalização capitalista.....................................134
Capítulo 4 – O trabalhador comerciário..................................................................................137
4.1 Interpretações marxistas do trabalhador do comércio.......................................................138
4.2 Transformações técnico-organizacionais e o trabalho.......................................................153
4.3 A degradação das condições de emprego...........................................................................168
4.4 Para uma explicação alternativa da degradação do trabalho no varejo.............................189
4.5 A nova configuração das relações de classe no varejo.......................................................193
Conclusão....................................................................................................................................198
Referências bibliográficas..........................................................................................................202
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Introdução
O setor varejista tem sido o centro de controvérsias ao longo das últimas décadas. Por
um lado, ao passo que a sua importância econômica cresceu, fortaleceu-se um campo político-
ideológico de legitimação das transformações do setor (Gereffi e Christian, 2009), cujas
inovações foram fundamentais para a retomada do crescimento das economias desenvolvidas na
década de 1990 (Lichtenstein, 2006). Por outro lado, diversas implicações associadas à formação
de empresas gigantes no setor têm sido alvo de críticas. É o caso da estagnação dos salários ao
longo da década de 2000 (Lichtenstein, 2006), da deterioração das condições de trabalho no setor
(Gupta, 2013) e da associação entre essas empresas e a cadeias de fornecimento nas quais há
trabalho precário (Rosen, 2005; Gereffi e Christian, 2009).
Cada uma dessas questões envolve complicados problemas teóricos para os estudos do
trabalho e para a crítica social. Longe de solucioná-los, a presente pesquisa busca uma resposta
pontual a alguns dos temas associados a essas transformações: propõe-se um estudo teórico
voltado para as transformações nas relações de trabalho ao longo da modernização do varejo. A
principal tese da presente pesquisa consiste na identificação da associação entre as principais
transformações técnicas ligadas à acumulação de capital no varejo e uma reconfiguração das
relações de trabalho, transformações que se acentuaram a partir da transição do setor para a
condição de capital oligopsônico.1
Além desse tópico principal, são tangenciados outros problemas secundários, como o da
natureza das relações de classe do setor e o problema das posições de classe da força de trabalho.
Argumenta-se que a modernização do varejo, na verdade, consiste na transformação capitalista do
varejo, ou seja, ela coincide com a formação da relação social capitalista no setor. Se a
modernização do varejo implica formação da relação social capitalista, então ela traz para o setor
não só a dinâmica histórica do capitalismo, como também tendências da estrutura capitalista de
1 Entende-se por capital monopolista um montante de capital grande ao ponto de concentrar a maior parte dofornecimento de determinado bem para dado mercado. Acompanha-se o registro de Lênin (2011) quanto àinterpretação dos fenômenos da financeirização e transição ao capitalismo monopolista, que avalia que se tratam deresultados inevitáveis do desenvolvimento do modo de produção capitalista. Nessa abordagem, a transição ao capitalmonopolista implica uma fusão entre os capitais monopolistas bancário e industrial e uma destruição relativa dalógica concorrencial que historicamente caracterizou o capitalismo. No mundo contemporâneo, condição análogapode ser encontrada no grande capital varejista, cujas fronteiras com o capital bancário são difíceis de discernir e nasquais a “livre” concorrência foi suplantada há algumas décadas.
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classe. Desse modo, ainda que não solucione todas as questões, este estudo traz alguns
fundamentos teóricos para se entender não só a polarização de classe do setor, mas, sobretudo, o
sentido das transformações.
A tese da formação do capitalismo no varejo se desdobra na análise das transformações
pelas quais passou o setor no capitalismo flexível. Com efeito, a tendência à racionalização
capitalista não parou na transição do serviço varejista para as unidades modernas, mas prosseguiu
no avanço do setor em direção à flexibilização. Nesse contexto, assistiu-se à formação de
corporações gigantes no setor, à sua inserção nas cadeias globais de valor e à inserção de
tecnologias da informação. Como corolário dessas transformações, formou-se uma nova
configuração das relações entre fornecedores e capital varejista, desencadeando um processo de
transformações indissociável da acentuação dos conflitos de classe tanto no interior do varejo
quanto nas relações entre varejistas e outros setores da economia.
Outro tópico abordado é o da associação entre modernização do varejo e autonomização
do capital comercial, que consiste na formação de um tipo de capital especializado nas funções de
circulação comercial. Serão identificados alguns dos significados da formação do capital
comercial, quando será dado destaque para a formação da tendência à evolução da racionalidade
capitalista e para a importância da racionalização do trabalho no setor. Ademais, serão
sumarizados alguns debates pertinentes para a compreensão da natureza das relações de trabalho,
como os limites dos conceitos de trabalho produtivo e improdutivo.
Formuladas as principais teses, se faz necessária justificação para a natureza teórica da
presente pesquisa. O principal argumento consiste na natureza da investigação teórica, que
permite o tratamento de processos no âmbito conceitual. Trabalhando com os objetos neste nível
de abstração, torna-se viável a identificação de tendências gerais, que podem ser interpretadas por
meio de referências teóricas diferentes daquelas identificadas na bibliografia até então existente.
Ademais, o estudo teórico se justifica em razão da proposição de uma problemática marxista para
as transformações do setor varejista, dado que ainda não há bibliografia específica com tal
orientação teórica.
As referências mobilizadas na presente pesquisa advêm das teorias marxistas das classes
sociais. Trabalha-se com a tese da transformação na condição de classe do trabalhador
comerciário, que passou a se constituir no que o marxismo designa como classe trabalhadora. O
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setor, que era controlado por pequenos proprietários, não somente assistiu à intensa concentração
de capital, mas também a profundas transformações na natureza dos processos de trabalho. A tese
da presente pesquisa é que, em razão da nova configuração do trabalho no setor, o sentido dessas
transformações foi o da proletarização. Segundo Scott (2014), é possível identificar na literatura
diversas maneiras de encarar o conceito de proletarização. Nos termos do autor:
Ao menos quatro diferentes concepções de proletarização podem ser encontradas naliteratura. Para alguns comentadores, [1] o argumento refere-se ao tamanho relativo dasclasses. A proletarização, nesse sentido, implica um crescimento na proporção dasposições da classe trabalhadora no conjunto da estrutura de classes. [2] Outros olharampara dados referentes à mobilidade social, buscando calcular a probabilidade deindivíduos serem proletarizados pela mobilidade social descendente em direção à classetrabalhadora, seja de um ponto de partida nas classes médias, seja no curso de umacarreira ocupacional. Para esses autores, são mais as pessoas, e menos os lugares naestrutura, que constituem como os sujeitos do processo. [3] Um terceiro critério refere-seao processo de trabalho em si mesmo. Alguns pesquisadores argumentaram que muitasposições não proletárias da estrutura de classe (como aquelas ocupadas por funcionáriosda administração) frequentemente têm sido desqualificados em termos do conteúdo dotrabalho e da rotinização das tarefas, de modo a tornarem-se indistinguíveis da classetrabalhadora manual. [4] Um último critério refere-se à proletarização no sentido políticosociológico; isto é, ao grau em que certos grupos de classe média dentro da força detrabalho passam a identificar a si próprios como classe trabalhadora ou como aliados daclasse trabalhadora, e, desse modo, compartilhando suas aspirações políticas e cultura(Scott, 2014, p. 602-3)
Em outros termos, a proletarização consiste num processo de aproximação de um grupo
social da condição proletária, seja em termos objetivos ou subjetivos. No que se refere ao objeto
de investigação desta pesquisa, será demonstrado que é possível identificar um intenso processo
de proletarização em qualquer um dos sentidos indicados. Do ponto de vista dos critérios 1 e 2
apontados por Scott (2014), a modernização do varejo em larga medida consistiu na concentração
das funções de circulação comercial no varejo moderno, que substituiu o varejo tradicional, cujo
controle era realizado por pequenos e médios proprietários. Desse prisma, o processo consiste,
simultaneamente, no aumento relativo da classes trabalhadoras2 e numa diminuição quantitativa
das classes proprietárias, recriando no setor tendência de longo prazo do modo de produção
capitalista em diminuir a importância da pequena burguesia tradicional e em aumentar as
2 Acompanhamos o registro de Boito (2007) quanto a diferenciação de “classe proletária” e “classes trabalhadoras”.Enquanto para fazer parte primeira é necessário estar submetido a uma condição de plena dominação pelo capital,com a correspondente ocupação de uma posição subalterna na divisão capitalista do trabalho, o pertencimento nasclasses trabalhadoras é resultado do simples assalariamento. A expressão “classe trabalhadora”, no singular, serátratada como sinônimo de “classe operária”. O assunto será retomado no cap. 4.
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camadas assalariadas. Do ponto de vista do critério 3, também houve proletarização, na medida
em que a modernização do varejo veio acompanhada da formação de formas de organização e de
ação coletiva típicas da classe trabalhadora, tais como sindicatos e greves (Adams, 2006;
Coultner, 2014). Por fim, também é possível identificar proletarização no setor partindo do
critério 4, dado que, como será esmiuçado no capítulo 4, as transformações técnicas e
organizacionais do setor promoveram a separação entre funções manuais e intelectuais do
trabalho, ocasionando desqualificação e parcialização das tarefas.
O principal problema enfrentado por esta pesquisa consiste na análise das
transformações técnicas e organizacionais do setor varejista, as quais, realizadas sob os auspícios
do grande capital corporativo que se formou no setor a partir da década de 1950, implicaram
deterioração das relações de trabalho. Na avaliação desta pesquisa, as transformações do trabalho
no setor endossam as interpretações mais críticas a respeito da dinâmica das relações de trabalho
no mundo contemporâneo, na medida em que se caracterizaram pela combinação de
intensificação do trabalho, ganhos de produtividade não distribuídos igualmente aos
trabalhadores, desqualificação e flexibilização. Em larga medida, as transformações do setor
varejista replicaram no setor as tendências de longo prazo analisadas por Braverman em
Trabalho e Capital Monopolista (Braverman, 1987). Ademais, o setor assistiu à inserção de
dispositivos típicos do capitalismo contemporâneo, os quais, no setor, não apenas não
enfraqueceram as tendências seculares identificadas por Braverman, como ainda as
intensificaram.
Avalia-se que o trabalho no setor varejista em larga medida replicou algumas tendências
estruturais do mundo do trabalho contemporâneo, com destaque para as dimensões negativas do
trabalho no capitalismo flexível. Em primeiro lugar, parte das tendências consiste na mera
reprodução de tendências gerais das estruturas capitalistas de classe, caracterizadas pela
permanente transformação e pela polarização das posições de classe.3 Em segundo lugar, e de
acordo a tradição crítica de natureza marxista, a emergência do mundo contemporâneo do
trabalho consistiu numa resposta a um contexto de crise na dinâmica da acumulação, a qual, dada
a dificuldade de satisfazer todas as condições para a acumulação, entrou em desaceleração e crise
no final da década de 1960. No âmbito do trabalho, as reorganizações tinham vistas ao
3 Esse problema será retomado adiante. Ademais, ele será esmiuçado nos capítulos 1 e 2.
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incremento da intensificação e da exploração do trabalho, gerando, assim, o excedente necessário
à continuidade da acumulação no âmbito dos investimentos produtivos de capital (da qual
depende, de modo mais ou menos direto, toda a valorização do valor, seja a do capital portador de
juros, da renda da terra ou a valorização fictícia).4 Ao avaliar essas tendências, Dal Rosso (2008)
sustenta que, desde a década de 1970, o mundo do trabalho experimenta uma ampla onda de
intensificação do trabalho, que seria a terceira desde a implantação da revolução industrial. Estas
tendências gerais se expressaram com força no setor, que foi um dos que mais se transformaram
tecnicamente nas últimas décadas, recriando as piores tendências do modo de produção
capitalista no que se refere ao trabalho.
O tema das transformações nas relações de trabalho liga-se a outro sentido da
proletarização, o do pertencimento de classe dos trabalhadores do comércio. Trata-se de setor
historicamente classificado de modo ambíguo, seja pelo predomínio das pequenas e médias
propriedades, que levavam a classificar a força de trabalho como pequena burguesia, seja pelas
condições de trabalho, que muito diferiam das condições do proletariado fabril do século XIX e
início do século XX. Na avaliação desta pesquisa, as transformações na estrutura técnica do setor
em larga medida ajudaram a eliminar as controvérsias quanto à condição de classe do trabalhador
comerciário, aproximando-o das condições típicas da classe trabalhadora.
No que se refere ao problema, trabalha-se com uma conceituação relativamente restrita
de classe trabalhadora. Nessa acepção, a ausência de propriedade de meios de produção e o
assalariamento, não obstante sua importância, não são condições suficientes para designar um
setor como parte da classe trabalhadora. Nesse sentido, é possível ser parte das classes
trabalhadoras no plural (i. e., do conjunto de assalariados) sem ser parte da classe trabalhadora5
no singular, pois as condições para pertencimento nesta são mais restritas do que naquelas.
Uma das principais dificuldades teóricas do empreendimento de classificação das
posições de classe consiste na existência de diversos critérios para a identificação das classes, os
quais decorrem da própria existência multideterminada do modo de produção capitalista. De
4 A respeito do assunto, ver Grespan (2011) e Klagsbrunn (2008), que demonstram de modo consistente aimpossibilidade lógica de qualquer forma de valorização do valor de modo completamente independente davalorização no âmbito da produção.5 Até a década de 1980, a diferenciação seria entre “classe operária” e “classes trabalhadoras”. Dado o novo contextoideológico, no qual a autodenominação “classe operária” diminuiu sua presença discursiva, mobilizamos o aexpressão “classe trabalhadora”.
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modo sintético, para não mencionar as dimensões extraeconômicas e as dimensões associadas à
consciência de classe,6 a teoria marxista mobiliza tanto critérios associados à forma social da
riqueza (mercadoria, valorização do valor e funções na reprodução capitalista) quanto ao
conteúdo do trabalho (produção de valores de uso, processos de trabalho tecnicamente adequados
à natureza do capital) (Cavalcante, 2012). Muitos autores supostamente superam o problema da
sobredeterminação dos níveis de existência das classes pela adesão a um único critério ou, o que
em parte é a mesma postura, pela hipertrofia da importância de um em detrimento dos demais,
não buscando a integração de todo o arcabouço marxista da dialética do trabalho no capitalismo.7
No entanto, o próprio Marx não deu uma resposta unívoca a esse complexo de
problemas, mas sim formulações centradas em diferentes dimensões da questão, destacando ora
um, ora outro fenômeno a depender do grau de abstração das teorizações.8 Por essa razão, os
escritos de Marx a respeito do assunto são caracterizados por tensões, que desautorizam
interpretações excessivamente lineares e coerentes a respeito das características da classe
trabalhadora.9 Nos termos de Cavalcante (2014):
(...) essas tensões das formulações de Marx explicam-se pela difícil mediação entre adeterminação formal e os conteúdos (materiais ou não) da riqueza social. Em algunsmomentos, interessa a Marx se restringir ao nível de tratamento teórico mais voltadopara a determinação formal, em que a abstração do “modo especificamente capitalista de
6 A presente pesquisa trabalha com um recorte no que tange à compreensão das relações de classe, uma vez que sãoanalisadas sobretudo as dimensões econômicas estruturais das classes, isto é, as dimensões das relações de classeligadas aos determinantes econômicos vinculados ao modo de produção. A ênfase sobre esse nível de análise demodo algum implica adesão a uma dimensão economicista de classes, como se no movimento de transformação dasrelações de produção se encontrasse a essência de todos os fenômenos da vida social e da história. Embora adiramosà tese da determinação em última instância pelo econômico da sociedade e da economia, disso não se depreende queo social seja um epifenômeno da economia. No que se refere às classes, é notório que as dimensões políticas,ideológicas e discursivas são parte constitutiva da existência concreta das classes, sendo, por isso, partesindissociáveis delas. Aqui, contudo, por uma questão dos limites da pesquisa, seja em razão da natureza teórica dapesquisa, seja em razão da complexidade da própria dimensão econômica das sociedades capitalistas, enfatizaremosas dimensões econômicas estruturais das classes.7 Exemplos dessa solução encontram-se em Lojkine (2002), Lessa (2011) e no próprio Poulantzas (1978).8 Ademais, concorre para essa dificuldade a pluralidade de dimensões das próprias classes, que, além da dimensãoeconômica, abarcam as esferas políticas e ideológicas. A ênfase sobre determinados níveis de existência, oudeterminadas formas de expressão das classes, implica diferentes ênfases conceituais. Por isso, o conceito de classeconsiste em referência conceitual bastante plural e dificilmente esgotável pela análise científica e teórica.9 Ademais, acentua esse problema o fato de o Marx da maturidade não ter de fato elaborado uma teoria das classes àluz da análise da sua teoria do modo de produção capitalista. De acordo com Rosdolsky (2001 [1957-58]), o projetoexpositivo de Marx pretendia abordar em específico o problema das classes, havendo inclusive um capítuloinacabado a respeito no terceiro livro de O capital. As teorizações mais definidas de classe deixadas por Marx, comoaquelas do Manifesto Comunista (1998 [1848]) ou d’A Ideologia Alemã (2007 [1845]), não foram feitas à luz dacrítica da economia política.
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produção” se constrói a despeito das particularidades infinitas de sua reproduçãoconcreta. É, portanto, uma clara indicação de que as formas sociais determinam anatureza das coisas, isto é, são as relações sociais de produção que moldam as forçasprodutivas. Nesse sentido, algumas perguntas apenas serão colocadas em outros níveisde tratamento, como, por exemplo, a relação entre o tipo de valor de uso gerado e acapacidade de realização do valor, bem como as repercussões desse movimento notocante à acumulação de capital, às crises, etc. Nesse âmbito, ainda não se aventa apossibilidade de que muitas atividades, ao se tornarem assalariadas, fazem com que umcapital individual aumente, o “valoriza”, mas essa subordinação formal pode não elevaro capital social total de um país ou região (Cavalcante, 2014, p. 65, grifos no original)
E prossegue:
Ocorre que (...) a determinação formal da relação social capitalista aplica-se de maneiradistinta a cada conteúdo, modificando-os. Para Marx, o “modo especificamentecapitalista de produção” apenas se impõe quando, além da subsunção formal criada peloassalariamento e vinculação a um proprietário de meio de produção, há também asubsunção real do trabalho ao capital. Nessa situação, as forças produtivas estãoadequadas à extração de trabalho excedente, a força de trabalho coletiva étendencialmente desvalorizada e os conteúdos da riqueza são plenamente moldados poressa forma (Cavalcante, 2014, p. 65)
Em suma, na ótica de Marx, seria necessário considerar tanto o papel da forma social
como determinante das relações sociais e das posições de classe quanto a natureza de cada
processo de trabalho concreto, pois a influência da forma social sobre o modo de produzir teria
implicações evidentes para os assalariados a ela submetidos. Essa influência, contudo, não
ocorreria de modo igual em todos os processos de trabalho, pois alguns seriam mais facilmente
adequáveis às necessidades do capital.10
Essa discussão é particularmente pertinente para o setor comercial, pois, por excelência,
o setor tradicionalmente é classificado como uma das parcelas não proletárias das classes
trabalhadoras.11 Na ótica da presente pesquisa, em perspectiva histórica de longo prazo, a tensão
na definição do pertencimento de classe do trabalhador comerciário decorre tanto da forma social
quanto do conteúdo concreto, pois historicamente o setor fora controlado por pequenos
proprietários, não configurando por isso relação social capitalista plenamente desenvolvida.12 Por
10 A respeito da adequação da estrutura técnica ao conceito de capital, ver Belluzzo (1980).11 Em alguns casos, o trabalhador comerciário é diretamente tratado como parte das classes médias. Poulantzas, porexemplo, em razão da não realização de trabalho produtivo e da realização da atividades que dependem do intelecto eda capacidade de comunicação, inclui grande parte da força de trabalho do comércio na nova pequena burguesia.Autores como Lessa e Lojkine o definem como setores intermediários por não participarem diretamente da produçãode mais-valia.12 Para as definições de relação social capitalista plenamente desenvolvida e de desenvolvimento intermediário, verCavalcante (2012) e Milios e Economakis (2011).
19
sua vez, na contemporaneidade, a dificuldade decorre, sobretudo, do polo processo de trabalho,
pois, com o avanço da dominação capitalista sobre o varejo, o critério da forma social deixa de
ser capaz de excluir o comerciário da classe trabalhadora. Porém, no que se refere ao conteúdo do
trabalho, é necessária a identificação de critérios concernentes à estrutura técnico-organizacional
do setor. Em parte, a presente pesquisa visa dar substrato a essas discussões, uma vez que se
propõe a um resgate das principais transformações técnicas do setor nas últimas décadas.13
Como exposto, a presente pesquisa propõe uma reinterpretação das transformações do
setor varejista, que serão interpretadas à luz da teoria marxista das classes sociais. Nesse
empreendimento, serão realizados dois movimentos analíticos. Primeiramente, será feita síntese
crítica da bibliografia voltada para a modernização do varejo, para a financeirização do setor e
suas transformações na assim chamada “revolução do varejo”. Em outros termos, a teoria
marxista será trazida para formar novo olhar para as transformações do setor. Em segundo lugar,
esses processos serão trazidos para complexificar a teoria marxista. Esse segundo ponto é
importante porque, muito embora diversos analistas sustentem teses a respeito da condição de
classe do trabalhador comerciário (e. g., Lessa, 2011; Lojkine, 2002), regra geral, há pouca
consideração acerca das transformações concretas pelas quais o setor passou nas últimas décadas.
À luz desse problema, ao trazer a experiência histórica de um setor específico, a presente
pesquisa visa ampliação do escopo das análises marxistas das classes e do trabalho.
Como um dos argumentos secundários, a presente pesquisa sustenta que o trabalhador
comerciário passou por intenso processo de proletarização nas últimas décadas. Avalia-se que as
transformações técnicas do setor varejista ao longo da segunda metade do século XX conduziram
a uma aguda alteração no grau de dominação capitalista sobre a estrutura técnica do setor, a qual
teve como repercussão a intensificação do trabalho e a deterioração das condições de emprego.
13 Esse problema possui íntima relação com o problema da definição das determinações de classe da classe média,bem como de suas fronteiras com o proletariado. Com efeito, por um lado, se o capitalismo ao longo do século XXgeneralizou a condição de assalariamento, por outro, operou-se uma diferenciação interna aos assalariadossubmetidos ao capital. À luz dessa experiência histórica, a presente pesquisa acompanha Cavalcante (2012; 2014) naconsideração de que, dada a generalização das formas sociais capital e mercadoria, torna-se indispensável aconsideração da natureza das classes sob o ponto de vista da natureza técnica do trabalho. Mais precisamente, éfundamental designar em que consiste a condição proletária em termos dos processos de trabalho, bem como o quecaracteriza as ocupações econômicas da classe média, a fim de permitir designação do pertencimento de classe dosdiversos setores assalariados. Cabe, ainda, no interior das classes trabalhadoras, delimitar em que consistem oscontingentes proletários propriamente ditos, ou seja, aqueles contingentes que foram submetidos à subsunção real dotrabalho ao capital.
20
Portanto, o presente estudo visa uma reinterpretação de um processo social à luz da
teoria marxista, a qual tem alguns méritos e particularidades no que tange à resposta aos
problemas gerais supracitados. À luz dos objetivos da presente pesquisa, destacam-se três
dimensões privilegiadas para olhar para as transformações do setor do ponto de vista da teoria
marxista: (i) a da dinâmica histórica das estruturas capitalistas de classe, (ii) a do significado e
das implicações das relações de exploração e (iii) as classes como fundamento dos conflitos
distributivos.
O tema da dinâmica histórica de sociedades capitalistas possui longa data na tradição
marxista, confundindo-se com conceitos centrais da abordagem de Marx. Ele diz respeito às
classes não apenas como conjuntos de grupamentos cujas condições são compartilhadas, mas
principalmente como a tendência à transformação das estruturas sociais em razão da contradição
entre forma social e conteúdo concreto do trabalho.14 Dado que o capital busca incrementar as
condições da acumulação, ele procede a constantes reestruturações nas relações sociais.
Essa dimensão da abordagem das classes é explicitamente defendida por Braverman
(1987), mas ela encontra respaldo também no próprio Marx (2013). Com efeito, Em O capital,
sua obra de maturidade intelectual por excelência, não há exposição sistemática do conceito de
classes, não obstante toda a obra exponha leis de funcionamento nas quais há reprodução de
relações de classe. Pode-se depreender que as classes são mais momentos de uma dialética de
conflitos sociais, que no capitalismo ocorrem em torno da dinâmica da acumulação,15 e menos
contingentes populacionais que detêm condição social idêntica.16 Por seu turno, Braverman é
14 Em outros termos, trata-se da contradição entre valor de uso e valor traduzida para as relações de trabalho. O temaserá retomado no capítulo 4.15 A abordagem da obra madura de Marx como centrada em torno da dialética do trabalho pode ser encontrada, entreoutros autores, em Fisher e Fuchs (2015). Para os autores, na reorganização final de O capital, Marx não designounenhum capítulo em específico para tratar do trabalho porque toda a sua teorização a respeito do capitalismo é, aomesmo tempo, um tratamento da dinâmica do trabalho. Eles resgatam os Grundrisse (2011) para sustentar que o eixofundamental da obra de Marx é a dialética do capital como não-trabalho e do trabalho como não-capital. Em certosentido, a presente pesquisa trata precisamente dessa dialética no setor varejista.16 Nas palavras de Braverman, “o termo ‘classe trabalhadora’, adequadamente compreendido, jamais delineourigorosamente um conjunto de pessoas, mas foi antes uma expressão para um processo social em curso” (1987, p.31). Com isso o autor quer trazer mais determinações para o conceito de classe trabalhadora, com vistas a ir além domero assalariamento. Nesse empreendimento, mostra que a condição do assalariamento no capitalismo conduz adiversas implicações, como a reestruturação das relações de trabalho e a pressão do exército industrial de reserva.Esse modo concreto de encarar as classes sociais será esmiuçado nos capítulos 4 e 5.
21
explícito quanto à aceitação da continuidade entre sua obra e a do comunista alemão,17 chegando
a afirmar que, em termos de teoria, sua obra não possui nada de novo em relação a Marx.
Para o objeto da presente pesquisa, as relações de exploração são particularmente
importantes, pois se aborda um setor comumente definido como não produtivo (e. g. Lessa, 2011;
Poulantzas, 1978; Marx, 1986a).18 Conforme Wright (1997), as relações de exploração são um
dos principais pilares da teoria marxista das classes. Porque consistem num processo estruturado
e estruturante de diferenciação social, a exploração é um conceito sociológico fundamental. A
exploração capitalista não só forma diferentes condições de classe de acordo com a posição na
divisão do trabalho, como também cria dispositivos que asseguram a reprodução social dessas
condições.
Em outros termos, a exploração cria as condições para sua própria reprodução. A
exploração capitalista do trabalho se caracteriza pela apropriação do excedente no ato de
trabalho. Uma vez realizada a mais-valia, o capitalista pode (e, na verdade, deve) reinvestir os
frutos do trabalho para incrementar as condições da exploração. Os frutos do trabalho devem não
somente ser alienados do trabalhador, a fim de se recriar os meios de trabalho como posse do
capital, como também aperfeiçoar as condições da extração de mais-valor. Em suma, a
exploração lança bases tanto para sua própria continuidade quanto para a sua intensificação e, por
meio dessa abordagem, a teoria marxista lança fundamentos para se destrinchar a polarização de
interesses na estrutura social.
A abordagem marxista da exploração também tem o mérito de designar as relações de
dependência mútua entre explorador e explorado. Na medida em que o primeiro precisa do
segundo para colocar o empreendimento produtivo em funcionamento, o explorado
17 Apesar do profundo alinhamento entre as perspectivas de Braverman e a análise de Marx a respeito do trabalho nocapitalismo, para a presente pesquisa, Braverman foi excessivamente modesto nessa autoavaliação, uma vez que suaobra possui importantes avanços na análise do trabalho, os quais não se limitam à aplicação da teoria de Marx para astransformações do século XX. Além disso, o próprio empreendimento de tradução da perspectiva de Marx para astransformações do século XX é em si um trabalho teórico, se se considera a expressão no sentido conferido porAlthusser (1978).18 O tema da exploração do trabalhador comerciário é inerentemente polêmico em razão do seu posicionamento nocircuito de reprodução capitalista, pois ele atua na valorização do capitalista individual ao mesmo tempo em que nãogera mais-valia por se situar do momento de circulação da reprodução social. Carchedi (1996) fornece uma solução aesse problema com o conceito de opressão econômica, que permite identificar os trabalhos na circulação comooprimidos pelo capital, mas não explorados. No capítulo 3, onde o tema será destrinchado, argumenta-se que, emparte, esse problema foi solucionado atualmente em razão da hipertrofia das funções produtivas do capital no interiorda circulação, o que foi resultado da modernização do varejo. Em razão desse novo estado de coisas, o trabalhadorcomerciário é explorado, e não apenas oprimido economicamente.
22
necessariamente adquire algum poder potencial diante do explorador. Este poder potencial é o
fundamento dos conflitos distributivos no capitalismo, que passam a fazer parte do setor varejista.
Assim, a teoria marxista das classes fornece referências para a interpretação da natureza e das
tendências dos conflitos sociais no setor.19
Sob o ângulo das problemáticas propostas, a modernização do varejo (e a fortiori20 para
as transformações do varejo no capitalismo flexível) implicou a inserção de diversas
características da estrutura capitalista de classe no setor, tal como a polarização social e a
formação de conflitos distributivos. De acordo com a hipótese da presente pesquisa, as
transformações identificadas no setor varejista consistem precisamente na entrada dessas
tendências no setor. É o caso da dinâmica histórica do capitalismo, do antagonismo de classe e
dos conflitos distributivos.
Sumarizando a trajetória expositiva, no primeiro capítulo serão expostas algumas
definições preliminares e o conceito de modernização do varejo. Neste capítulo será exposto o
conjunto de causas atuantes sobre a modernização do setor, ao que se seguirá o destrinchamento
do conceito de varejo moderno. Por fim, será exposta a problemática da modernização do varejo
como transformação capitalista do setor.
O segundo capítulo apresentará as transformações do setor varejista nas circunstâncias
do capitalismo flexível, enfatizando o papel da globalização e das tecnologias da informação.
Nesse empreendimento, será destacada a emergência de uma nova forma de operação do setor,
mediante o qual ele formou-se como um sistema integrado, que tem na revolução logística uma
das suas condições fundamentais. Como corolário das transformações, formou-se uma nova
configuração das relações entre produção e circulação. Como interpretação dessa reconfiguração,
será exposta a tese da supremacia do capital comercial.
O terceiro capítulo tratará dos sentidos da autonomização do capital comercial. Serão
esmiuçados o papel da racionalização capitalista do trabalho no setor comercial e as relações
19 Assim, a presente pesquisa entende as classes, e em especial a formação da relação social capitalista, comofundamento dos conflitos distributivos, diferenciando-se de abordagens como a de Dahrendorf (1982 [1957]), cujocerne são conflitos por status nos quais não há protagonismo de determinantes de classe.20 Segundo Fiorin (2015), o argumento a fortiori sustenta uma tese a partir da sua relação com outra, sendo por issoum tipo de argumento por coexistência. O argumento a fortiori parte de uma tese aceita e sustenta que outra tesedeve também ser aceita quando concorrerem causas mais fortes para ela. No caso em específico, se se assume que amodernização do varejo conduz a conflitos de classe, deve-se aceitar que as transformações do varejo no capitalismotambém o fizeram, pois nelas todas as características do varejo moderno se intensificaram e generalizaram.
23
entre autonomização do capital comercial e formação de tendência à intensificação da exploração
do trabalho, temas fundamentais para a compreensão da dinâmica das transformações do setor,
bem como das suas relações de classe.
Por fim, o quarto e último capítulo tratará do impacto das transformações no setor
varejista do ponto de vista das relações de trabalho, avaliando o papel cumprido pela nova
estrutura técnica e organizacional do ponto de vista do trabalhador comerciário. Mais
precisamente, acompanha-se a perspectiva de Braverman21 segundo a qual é possível analisar o
trabalho de duas maneiras: uma do ponto de vista do seu encadeamento técnico, outra do ponto
de vista da relação do trabalhador com o processo de trabalho. O quarto capítulo investigará as
transformações técnicas do setor sob esta perspectiva, concluindo que, sob a nova configuração, o
setor experimentou processo de proletarização da força de trabalho e, consequentemente, de
deterioração das relações de trabalho e emprego.
21 O capítulo também reconstruirá as abordagens de analistas marxistas das classes acerca da condição de classe docomerciário. Mas precisamente, serão resgatados os registros de Wright (1989; 1996), Poulantzas (1978) eBraverman (1987).
24
Capítulo 1 – Para uma problemática marxista da modernização do varejo
A modernização do varejo é a transformação capitalista do varejo. Essa é a principal tese
do presente capítulo, que faz a primeira entrada nas transformações técnicas do setor. Tal
processo consiste na substituição das modalidades tradicionais de varejo por outras modernas,
que consistem em unidades do ramo que fazem parte de redes varejistas.
Essa tese implica um ponto de vista diferente daquele encontrado na bibliografia, que
em sua maioria é de matriz neoclássica. Enquanto para os neoclássicos as transformações do
varejo foram produtos da ação dos mercados, que resultaram em crescente racionalização social
com vistas ao bem estar geral, para a presente pesquisa se trata de um processo contraditório
capitaneado pelo impulso de maximização do lucro, que é inerente ao capitalismo.
Entender a modernização do varejo como transformação capitalista implica concebê-la
como efeito da formação de capital. Consequentemente, entende-se que em sua nova
configuração o setor varejista passou a replicar características do modo de produção capitalista
em geral, tais como a tendência à renovação técnica, ao crescimento econômico associado à
dinâmica da acumulação e à reprodução de antagonismos de classe. Se o processo é uma
transformação capitalista do varejo, as tendências possuem especificidade histórica e natureza de
classe.
Ademais, motiva a formulação dessa problemática o fato não ter sido encontrada
bibliografia que trate em específico do varejo a partir da teoria marxista. A presente pesquisa
busca precisamente trazer referências marxistas para interpretar esse setor da economia
capitalista,22 cuja importância cresceu progressivamente ao longo do século XX.
A fim de chegar a uma problemática marxista, é feita uma passagem pela literatura
voltada para os problemas específicos do setor, quando será realizada síntese bibliográfica com
vistas à construção do conceito de modernização do varejo. A primeira seção ocupa-se de
definições preliminares, como o papel da função varejista no ciclo da reprodução capitalista e dos
tipos de empreendimento varejista. A seção dois, que trata do conceito de modernização do
22 Apesar da relativa originalidade da proposta de uma problemática marxista acerca do setor varejista, pode-se notarque o presente estudo se limita a identificar no setor tendências gerais das sociedades capitalistas. Nesse sentido, asteses defendidas são inferíveis a partir da teoria marxista, não havendo, portanto, nenhuma novidade de fato nasformulações.
25
varejo, divide-se em três subseções. A seção 1.2 analisa questões gerais referentes à passagem da
demanda aos supermercados, bem como conceitos base para a análise; a segunda 1.3 analisa o
primeiro conjunto de causas, as quais vinculam-se com transformações na estrutura social das
sociedades capitalistas do século XX; por fim, a seção 1.4 analisa os dispositivos de redução de
custos, que em parte coincidem com a própria racionalização capitalista do varejo.
A terceira seção reconstrói duas problemáticas a respeito da modernização do varejo,
organizando os julgamentos encontrados na bibliografia em dois blocos, um crítico e outro
apologético. Finalmente, a quarta seção propõe uma problemática marxista que entende a
modernização do varejo a partir dos conceitos de acumulação, centralização e concentração de
capital.
1.1 Definições preliminares
A modernização do varejo consiste na substituição do modelo tradicional de varejo pelo
moderno. Entende-se varejo moderno como unidades varejistas nas quais há pertencimento a uma
rede varejista. Essa definição é parcialmente diferente da encontrada na literatura consultada (por
exemplo: Carden, 2011; Tilly, 2007a; Reardon, Timmer e Berdegue, 2004), que identifica as
modalidades modernas de varejo com o modelo supermercadista. O problema desta definição
consiste na exclusão de diversas modalidades de varejo que evidentemente são modernas, como
todas as corporações comerciais voltadas para o comércio especializado. Além de permitir captar
tendências mais gerais, a definição de varejo moderno como redes capitalistas permite designar a
natureza social do processo em questão, pois não se trata somente da emergência de um tipo de
empreendimento e de uma nova estrutura técnica, mas sobretudo da formação do capitalismo no
setor.
Apesar dessas críticas, é compreensível a identificação entre modernização do varejo e
expansão do setor supermercadista, pois a difusão do modelo supermercadista é principal forma
pela qual se deu a racionalização do setor. Em outros termos, trata-se do tipo de varejo moderno
no qual houve mais concentração de propriedade e racionalização capitalista dos recursos. Por
esses motivos, parte considerável da nossa exposição do conceito de modernização do varejo se
dará a partir do tratamento da dinâmica de expansão desse setor.
26
A crescente ocupação do setor varejista pelos supermercados define-se como
supermercadificação (Reardon, Timmer e Berdegue, 2004; Tilly, 2007a). Esta consiste em um
conjunto de transformações que têm como expressão o incremento do peso relativo de
modalidades supermercadistas. Nos termos de Tilly, o conceito expressa a “propagação do
moderno formato de supermercado para substituir formas mais antigas de varejo, tais como o
mercado tradicional ou as pequenas lojas” (Tilly, 2007a, p. 1) ou como concentração das funções
de varejo em supermercados.
Trabalha-se com o termo “supermercado” em acepção ampla, conforme a sugestão de
Reardon, Timmer e Berdegue (2004), de modo a englobar todas as variantes de grande varejo de
autosserviço. O autosserviço comercial23 é uma modalidade particular de funcionamento das
lojas, sendo caracterizada por uma organização do espaço que permite o trânsito dos
consumidores ao longo de corredores, onde ficam expostas as mercadorias para a “livre” escolha.
A definição de modalidades de varejo supermercadistas abarca fenômenos diversos, abrangendo
desde unidades de médio porte até vultosos hipermercados.
No registro marxista, a atividade varejista se situa no interior do momento de circulação
do processo de reprodução capitalista. Mais precisamente, ela é identificada com os
procedimentos ligados à mudança formal de propriedade de mercadorias, diferenciando-se da
circulação de dinheiro e/ou capital, que caracteriza os bancos e o capital portador de juros (Marx,
1986a; Rubin, 1987; Cavalcante, 2012). Além disso, ela também abarca todas as atividades
adjacentes a essa atividade-fim, tais como a coordenação dos transportes, a organização e
conservação de mercadorias.
No interior da função comercial a atividade varejista se distingue da atacadista. Segundo
o IBGE (2000, p. 151), varejo é a “revenda de produtos novos ou usados destinados,
predominantemente, às pessoas físicas, para consumo pessoal ou doméstico, independente da
natureza e quantidade vendida”. Por sua vez, a atividade atacadista consiste na “revenda de
produtos que serão utilizados no processo produtivo”, destinando-se “às instituições públicas,
revendedores, indústrias, profissionais autônomos, etc” (IBGE, 2000, p. 151). Em outros termos,
o varejo volta-se para a venda de produtos diretamente ao consumidor final, sem existência de
23 Nos termos do IBGE (2000, p. 35): “forma de comercialização baseada em estabelecimentos comerciais (unidadeslocais com receita de revenda) equipados com uma ou mais caixas, além de instalações destinadas a permitir o acessodireto dos consumidores às mercadorias (gôndolas, frigoríficos abertos, etc.)”.
27
intermediários, enquanto o atacado tem como função a venda tanto para intermediários quanto
para o consumo produtivo.
A definição de varejo moderno em parte se define através da diferença para com a de
varejo tradicional. De um modo geral, as definições de comércio, varejo, varejo tradicional e
varejo moderno são entendidas a partir do modelo de definição por gênero e espécie, ou seja,
cada conceito mais geral abarca características comuns aos mais concretos, os quais, por seu
turno, designam características mais particulares. Assim, varejo é comércio do mesmo modo que
as modalidades modernas e tradicionais são varejo.
Segundo o IBGE (2000, p. 35), o comércio tradicional se define como “forma de
comercialização na qual os consumidores não têm acesso direto às mercadorias expostas, sendo
necessária a presença de um ou mais balconistas para atendê-los”. Como se pode notar, tal
definição é bastante abrangente, já que ela abarca formas de comércio extremamente diversas.
Além disso, em perspectiva histórica, por meio dessa acepção a expressão “varejo tradicional”
agrupa atividades comerciais existentes em todas as formações sociais pré-capitalistas. Ao passo
que aumenta o seu escopo, diminui o seu rigor analítico. Apesar de a considerarmos equivocada
para interpretar o comércio de sociedades não capitalistas, essa definição é útil para os propósitos
do presente estudo, cujo objeto é o varejo moderno.
Portanto, a definição de varejo tradicional mobilizada é feita com base no princípio da
identidade (Fiorin, 2015), ou seja, varejo tradicional abarca todas aquelas modalidades de varejo
que não se adequam ao conceito de varejo moderno e vice versa. De modo mais concreto, varejo
tradicional abarca todas aquelas modalidades controladas por pequenos e médios proprietários
nas quais não há pertencimento a redes empresariais de varejo, enquanto o varejo moderno
consiste nas redes varejistas. Endereçando o problema do pertencimento a redes, Rangarajan
(2016) afirma que a diferença essencial entre o varejo tradicional e o moderno consiste na forma
de organização de cada um: enquanto neste os processos de mercado funcionam por meio de
agências organizadas e planejadas, naquele há operação da lei de mercado com mediação de
inúmeros intermediários.
Embora se fizesse presente em todos os países então em transição para o capitalismo
fordista, a modernização do varejo teve seu início mais sistemático nos Estados Unidos do
segundo quartel do século XX (Belik, 1999; Cleps, 2005). As primeiras redes varejistas surgiram
28
no país já no final do século XIX, sem, contudo, atingir o grau de desenvolvimento das redes
formadas posteriormente (Strasser, 2006). O autosserviço comercial surgiu na década de 1920 e o
primeiro modelo de supermercado na década de 1930 (Belik, 1999; Cleps, 2005, Strasser, 2006).
A expansão massiva das redes supermercadistas norte-americanas ocorreu apenas na
década de cinquenta, quando começou a formação das modernas redes de descontos; já nas outras
potências capitalistas ocorreu apenas na década de 1960 (Tilly, 2007a). Não obstante presente na
periferia do capitalismo desde a década de 1950, a supermercadificação era uma tendência
minoritária até a expansão de políticas neoliberais da conjuntura pós-1990, após o que ocorreram
bruscas transformações (Belik, 1999; Reardon, Timmer e Berdegue, 2004).24
Embora a bibliografia consultada quanto ao tema não esteja informada por quadros
teóricos de classes sociais, na sua exposição é nítido o impacto que essa transição implicou para a
estrutura de classes. A passagem do século XX assistiu a mudanças radicais no setor. Inicialmente
caracterizado pelo predomínio de pequenos proprietários, ao final do século o grande capital
havia tomado controle do setor. Um momento crítico de metamorfoses ocorreu no contexto de
globalização, quando algumas tendências prévias se exacerbaram e outras novas floresceram.25
De modo definitivo, o serviço varejista em todo o planeta estava sob o controle de “corporações
gigantes (...) de escala global” (Tilly, 2007a, p. 1), que comandavam cadeias de fornecimento e
concorriam em escala mundial (Tilly, 2007a).
A maior parte da literatura consultada examina o problema sob perspectiva econômica
neoclássica, que sobreleva a dimensão microeconômica como determinante das metamorfoses. É
o caso de Reardon, Timmer e Berdegue (2004), que se centra na internacionalização do varejo na
conjuntura neoliberal na periferia do capitalismo; de Carden (2011, p. 1), que trata o problema
como “um dos aspectos mais importantes da economia [norte]americana moderna” e de Vedder e
Cox (2006), que enfatizam o papel do varejo moderno na dinamização do consumo e dos
investimentos.
Uma segunda vertente acentua a dinâmica das formas comerciais no interior das
mudanças sociais do espaço urbano (Pintaudi, 1981), usando um argumento também presente em
24 A depender do andamento da pesquisa, será incluído um capítulo sobre a modernização do varejo na periferia docapitalismo.25 O tema das transformações do varejo no capitalismo flexível será tratado no capítulo 2.
29
Cleps (2005) e Barata-Salgueiro (1989). Essa chave explora as relações entre cidade, mobilidade
urbana e capitalismo e será pertinente para algumas teses do presente capítulo.
Uma terceira vertente examina as transformações do varejo a partir do registro
econômico institucionalista (Belik, 1999; Senhoras, 2003).26 Ao questionar a abordagem do livre
mercado, essa vertente propõe uma interpretação crítica da leitura neoclássica. No que diz
respeito à criação de condições para crescimento econômico, esses autores conferem destaque
para fatores culturais e institucionais. Essa abordagem será pertinente, pois permite identificar as
relações entre política, instituições e tipos de empreendimento empresarial bem sucedidos.
Embora a presente pesquisa entenda essas relações de modo diferente,27 o diálogo com esse
referencial será oportuno à luz de alguns problemas.
Finalmente, uma quarta vertente aborda criticamente as transformações do varejo. Esse
heterogêneo bloco de autores centra-se em diversos eixos: 1) a formação das grandes redes e a
consequente deterioração das condições de emprego e de trabalho no setor (Rosen, 2005;
Lichtenstein, 2006; Gupta, 2013); 2) a formação das corporações varejistas globais e a nova
relação de poder entre empresas comerciais e manufatureiros, condição responsável pela
formação de trabalho precário nas cadeias de fornecimento (Lichtenstein, 2006; Rosen, 2005); 3)
a relação entre formação das redes varejistas, barateamento das mercadorias e aumento de
vendas, o qual constituiu-se em fundamento da promoção da ideologia do consumismo (Strasser,
2006; Barata-Salgueiro, 1989).
Identificando um ponto comum nesse heterogêneo grupo, pode-se dizer que ele se
caracteriza pela crítica ao livre mercado como norma para regulação das relações de trabalho e
pela a defesa de controle normativo-institucional sobre o mercado de trabalho e sobre os modelos
corporativos. Lichtenstein (2017) e Gupta (2013) formulam de modo explícito abordagens nessa
26 No caso, trata-se do assim chamado “novo institucionalismo”, e não da abordagem sociológica de inspiraçãoweberiana, que comumente recebe a designação “institucionalismo”. Acompanhando Belik (1999), a abordagem neoinstitucionalista parte de uma crítica à tradição neoclássica, demonstrando que os contextos de oferta e procura nuncaocorrem em abstrato, tal como frequentemente idealiza a tradição neoclássica, mas sim em contextos institucionaisdefinidos. Por isso, parte fundamental da consideração sobre o funcionamento das economias capitalistas deveriadar-se a partir da análise das instituições que mediam o funcionamento do mercado.27 Nesse ponto, a presente pesquisa acompanha a abordagem marxista acerca das relações entre classes sociais e apolítica, vendo-a como esfera detida de autonomia relativa (Poulantzas, 1977). Embora a política não se reduza àslutas de classe, ela também não pode ser concebida senão à luz dos conflitos de classe, sejam entre classesantagônicas, seja entre as frações da classe dominante. Já para a abordagem institucionalista, não há consideraçãosobre os vínculos intrínsecos entre política, instituições e classes.
30
direção, defendendo a necessidade de mudança nos padrões de governança corporativa com
vistas à promoção de responsabilidade social pelas empresas.28 Por seu turno, nos outros autores
teses dessa natureza ficam mais implícitas do que explícitas.
Para os problemas da presente pesquisa, dentre essas alternativas a terceira e a quarta
vertente são as mais adequadas. No entanto, na primeira parte será realizado um diálogo
sobretudo com o primeiro grupo de autores. Essa opção decorre da natureza da análise dos
autores de inspiração neoclássica: embora seu registro seja idealista, reificado e ahistórico, esses
autores buscam a construção de um quadro explicativo para as transformações. Por seu turno, os
outros referenciais, embora mais afinados com nossas problemáticas, não ajudam a responder a
esse problema, uma vez que se centram em dimensões particulares dos eventos.29 Por essas
razões, todos os outros blocos interpretativos ficam, de certo modo, em débito com a
interpretação neoclássica, uma vez que realizam contribuições e críticas ao debate sem se lançar à
construção de um modelo teórico.
Assim, na primeira parte do capítulo 1, serão buscadas respostas às seguintes perguntas:
qual a conexão entre o desenvolvimento do modo de produção capitalista e a emergência de
modalidades modernas de varejo? Qual a anatomia técnica e organizacional do varejo moderno?
Como e porque o varejo moderno venceu a concorrência com os pequenos proprietários? Por que
na modernidade se compra mais em supermercados e menos no pequeno comércio?
28 Lichtenstein (2017) faz essas proposições à luz do que ele denomina Era Progressiva da história estadunidense.Para o historiador, o ciclo inaugurado pelas lutas reformistas na década de 30, cuja expressão no plano políticoinstitucional foi a formulação do New Deal, teve como um de seus epicentros a luta de movimentos trabalhistas e abatalha institucional pela criação de regulação estatal sobre os modelos corporativos. Parte dessa regulação realizou-se por meio da responsabilidade social na administração das empresas, que deviam preocupar-se com boas condiçõesde vida para seus funcionários. No entanto, a partir do fim da década de 1960 esse modelo foi progressivamentecorroído. Para Lichtenstein (2017), parte significativa desse fenômeno deveu-se à emergência do grandeempresariado comercial. O tema será retomado nos capítulos 2 e 5.29 Ainda que o diálogo seja travado sobretudo com o registro neoclássico, todas as abordagens contribuem com asdiscussões do presente capítulo.
31
1.2 Síntese das transformações do varejo: o conceito de modernização do varejo
1.2.1 A passagem da demanda para os supermercados
Como já enunciado, o processo de supermercadificação e a expansão das redes varejistas
são fenômenos inseparáveis. Segundo Carden,
(...) o varejo mudou no século XX à medida que varejistas independentes e pequenoscederam lugar para redes nacionais de lojas de venda massiva e generalizada. (...) Noséculo XX, a economia dos EUA mudou em direção aos serviços e deixou de sermajoritariamente composta pela agricultura e pela manufatura. O final do século XXassistiu a uma contínua mudança estrutural, se afastando dos varejistas de um únicoestabelecimento [“Mom-and-pop” stores] e indo em direção às redes nacionais dedescontos, que operavam grandes lojas e que ofereciam ampla gama de produtos paradiversos mercados (Carden, 2011, p. 2)
As redes consistem em grupos de lojas submetidas a um único proprietário ou a um
grupo unificado de sócios, sendo mais ou menos centradas ou dispersas ao longo de uma ou mais
cidades. Inicialmente, a formação das redes ocorreu no terreno intra-cidades, para depois ocupar
regiões, mercados nacionais e, no cenário do capitalismo mundial, o globo terrestre. A formação e
expansão das redes é parte da progressão crescente na concentração de propriedade.
Dada a profundidade da transição, a percepção de mudanças é inevitável. Por exemplo, a
fig. 1 mostra que, em 1948, nos EUA, 70% das vendas do varejo eram realizadas em empresas de
uma única loja, enquanto apenas 12% em redes com mais de cem lojas; já em 1997, 39% das
vendas eram realizadas em empresas de uma única empresa e 38% em empresas com mais de
cem lojas. No entanto, necessariamente a identificação de qualquer fenômeno é informado
teoricamente, já que é impossível interpelar um objeto sem mediação de um ponto de partida
teórico, ideológico e valorativo (Alexander, 1986). No caso, de modo sintético, a acepção
neoclássica apreende os eventos por meio de dois grupos de categorias: um primeiro associado às
relações entre oferta e procura dentro de um contexto de livre mercado e uma segunda vinculada
às economias de escala, escopo e densidade, que seriam combinadas para gerar as mudanças
organizacionais e tecnológicas.
As economias de escala, escopo e densidade possuem em comum a capacidade de salvar
custos em um empreendimento. Em outros termos, elas consistem em investimento que muda o
32
modo de produzir e que traz um retorno em relação ao valor adiantado.30 Sua diferença consiste
no tipo de mudança desencadeado nos processos de trabalhos.
As economias de escala são adições de produtividade conseguidas através do aumento
da quantidade de recursos investidos ou no aumento da escala da produção. Para tanto, não é
condição a mudança na natureza dos processos de trabalho, embora frequentemente os ganhos de
escala tomem a forma de inovações técnico-organizacionais. Por seu turno, as economias de
escopo são ganhos de eficiência atingidos por meio da diversificação das mercadorias produzidas,
sejam elas bens tangíveis ou serviços. Finalmente, as economias de densidade consistem em
reduções de custos provenientes da aproximação espacial das etapas do ciclo de reprodução de
um processo produtivo, o que também pode ser obtido por meio de melhoria nas comunicações e/
ou nos transportes. Usando a expressão de Harvey (2014), as economias de escopo podem ser
entendidas como compressões espaço-temporais das etapas da divisão do trabalho internas a uma
empresa.31
30 As críticas a essas categorias serão feitas no capítulo 4. Apenas adiantando a argumentação porvir, os conceitos deeconomias de escala, escopo e densidade são reificados por omitirem os conflitos de interesse de classe a elesinerentes, respaldando-se nas ideologias da neutralidade do desenvolvimento técnico no capitalismo. No que serefere às relações de trabalho, oculta-se, por exemplo, que os ganhos de escala quase sempre decorrem daspossibilidades de fordização e taylorização do trabalho, pois ganhos de escala facilitam a implementação dessasnormas produtivas.31 Como se pode notar, as fronteiras em seus preceitos são fluidas, visto que em muitos casos economias dedensidade poderiam ser encaradas como economias de escopo, assim como determinadas economias de escalapoderiam ser encontradas em todas as dimensões de um empreendimento.
33
Do ponto de vista da lei de mercado, a oferta do serviço supermercadista é determinada
por duas razões (Reardon, Timmer e Berdegue, 2004). Em primeiro lugar, ela decorre da
capacidade de oferta, que se caracteriza pelas condições de investimento em determinadas
circunstâncias econômicas institucionais. Em segundo lugar, pelo desejo do “mercado” em
realizar investimentos nessas mesmas circunstâncias. O fator capacidade de demanda atua como
determinante mais geral, ou seja, como condicionante do limite máximo dos investimentos. Por
seu turno, o desejo de investir define a quantidade concreta de novos empreendimentos de varejo
moderno, a qual necessariamente ocorre dentro dos limites da capacidade de investimento.
Dado que há influência de variáveis econômicas mais gerais, na determinação da oferta
está envolvida ampla gama de fatores, seja no que se refere à capacidade de oferta, seja no que
tange ao desejo de investir. Fazem-se presentes fatores como os preços e a disponibilidade de
crédito em dado país, o desempenho econômico geral e a confiança do mercado. Ademais,
políticas específicas para o setor varejista são especialmente relevantes.
Por esses motivos, as dimensões institucionais da modernização do varejo trazem
problemas ligados a cada contexto nacional específico, fugindo em parte ao problema em questão
34
no presente capítulo, já que se está considerando o processo social em seus termos gerais.32
Consequentemente, no que tange à lei de mercado, o foco será dado sobre a dimensão da
demanda. Esta divide-se em dois eixos equivalentes aos expostos quanto à oferta, caracterizando-
se pela capacidade de procura e pelo desejo pelos serviços supermercadistas. A primeira define-se
pelo poder de compra em cada mercado regional ou nacional, enquanto a segunda oscila
conforme a disposição para a escolha do varejo moderno em detrimento do tradicional.
Adiante a exposição designará o conjunto de causas responsáveis pela passagem da
demanda para o serviço supermercadista. A apresentação se dividirá em dois grandes eixos, cada
um dos quais abarcando um conjunto de causas INUS.33 Cada um à sua maneira, esses conjuntos
explicam a passagem da demanda em direção às redes varejistas, passagem que alimentou a
modernização do varejo. O primeiro grupo engloba as causas não estritamente econômicas,
ligando-se a algumas das principais transformações do capitalismo no século XX. O segundo
grupo engloba as causas econômicas em sentido estrito, abarcando todos aqueles dispositivos
associados à redução de custos. Essa distinção será útil para algumas hipóteses da presente
pesquisa.
No que tange à consideração da natureza das relações de causalidade, acompanha-se a
conceituação de Pessoa Júnior (2006) a respeito das causas INUS, que consistem num tipo de
causa que é fruto da associação entre diversos eventos ou agentes. As causas INUS se
caracterizam por uma junção de fatores que em si mesmos são insuficientes para determinar um
evento, mas que, ao combinarem-se, formam causas não necessárias, mas suficientes. Por sua
vez, cada uma das partes das condições suficientes são designadas causas contribuintes.
32 A respeito dessa especificidade de contextos institucionais, cabe mencionar o caso brasileiro, seguindo aexposição de Belik (1999). Os primeiros supermercados surgiram no país na década de cinquenta. Entretanto, suaexpansão era retardada pelo ambiente institucional, uma vez que prevaleciam condições fiscais que faziam aconcorrência pender de modo favorável para os pequenos proprietários. À época, vigorava um imposto “em cascata”,o qual incidia sobre todas as transações comerciais de um produto, de modo que os preços chegavam altos nosvarejistas. Nesse cenário imperavam as práticas de sonegação fiscal, amplamente praticadas no setor. Contudo,devido a seu tamanho e maior profissionalização, os supermercados tinham dificuldade de escapar à taxação, o quelhes conferia desvantagem. Essa situação só mudou no final da década de 1960, quando o imposto em cascata foiabolido e o aparato de fiscalização do sistema tributário se tornou robusto. Houve ainda outras duas mudanças quefavoreceram a supermercadificação no período da ditadura militar: 1) as políticas de coordenação estatal dadistribuição de alimentos, levando à economia de custos; 2) o estímulo creditício para o financiamento de grandeslojas e redes. Como se pode notar, a compreensão da dinâmica concreta do setor em cada país depende da políticaeconômica para o setor, envolvendo diversos componentes que dificultam generalização.33 A sigla INUS designa Insufficient but non-redundant parts of a condition which is itself unnecessary but sufficient(Pessoa Jr, 2006). Em tradução literal, partes insuficientes, mas não redundantes de uma condição suficiente, masnão necessária.
35
De modo resumido, uma causa suficiente (A) é um evento capaz de desencadear outro
(B), porém, se a causa é suficiente mas não necessária, a existência do consequente (B) não
conduz necessariamente à existência do evento causador (A). Em outros termos, as causas
suficientes têm capacidade de ocasionar um evento, mas não são a única causa possível para
desencadeá-lo, pois a condução necessária do consequente à causa é característica das causas
necessárias.
Em suma, as causas INUS são um tipo de causa suficiente. Sua especificidade reside na
designação de uma multiplicidade de fatores como condições da relação de causa e efeito. Essa
conceituação é adequada para o objeto investigado na presente pesquisa, pois como será
endossado ao longo da exposição, diversos fatores concorreram para a modernização do varejo,
sendo difícil discriminar um deles como a causa por excelência.
Ao levantarmos esses fatores por meio de incursão bibliográfica, foram identificados
dois conjuntos de causas. O primeiro deles, que designamos conjunto A, concerne a fatores extra
econômicos associados à passagem da demanda para as modalidades modernas de varejo. Por sua
vez, o segundo conjunto (B) abarca os dispositivos de redução de custos.
Após exposição dos dois conjuntos de causas, serão destrinchadas as problemáticas a
respeito da modernização do varejo, abrindo caminho para a proposição da problemática
alternativa que informa a presente pesquisa.
1.2.2 Transformações no capitalismo e modernização do varejo (conjunto de causas A)
A primeira causa contribuinte que ocasionou a passagem da demanda para os
supermercados foi a combinação de urbanização e mobilidade urbana, conforme a indicação de
todos os autores consultados (Belik, 1999; Reardon, Timmer e Berdegue, 2004; Carden, 2011;
com destaque para Cleps, 2005; Barata-Salgueiro, 1989 e Pintaudi, 1981). Por sua vinculação
com a criação da integração de mercado, a urbanização e a mobilidade urbana são uma das
principais causas.
Segundo Lefebvre (2011), o desenvolvimento do capitalismo induziu a urbanização,
sendo a mesma condição não só da proletarização, mas também da organização do mercado
interno. A concentração populacional traz consigo a disjunção entre os locais de moradia e os de
36
realização de outras atividades, criando um descompasso entre os espaços de residência, de
consumo da força de trabalho, de compra dos meios de subsistência e o de outras atividades de
natureza cultural. Essa condição inclui o problema da mobilidade urbana, entendida como a
capacidade de circulação pelo espaços urbanos, pois, se há há disparidade entre os espaços de
moradia e de outras funções sociais, a mobilidade torna-se imprescindível para a reprodução
social.
A formação dos transportes urbanos coletivos e a generalização do carro foram decisivos
para o problema da mobilidade, já que criaram condições para a circulação pelo espaço urbano
(Barata-Salgueiro, 1989; Cleps, 2005). Essa circunstância eleva a liberdade de escolha dos
consumidores, dado que se torna possível escolher o lugar de compras dentro de uma gama de
opções.34 Em outros termos, deixa de existir o imperativo do vínculo com o comércio local, base
secular do pequeno comércio.35
A combinação de urbanização e mobilidade urbana ocasionou a intensificação das
relações de competição entre comerciantes, pois só então as empresas passaram a oferecer seus
serviços em mercados unificados, cuja característica é a presença efetiva da lei da oferta e da
procura. A presença da lei de mercado é condição para o processo de concentração de
propriedade, constituindo um dos fundamentos da marcha de transição do capitalismo
concorrencial para o capitalismo monopolista. Além disso, mesmo os outros indutores da
modernização do varejo dependem em alguma medida dessa condição, que torna possíveis todas
as demais causas. Apenas para citar um exemplo: todo o segundo bloco de causas, vinculadas à
diminuição de custos, não teria eficácia caso não houvesse concorrência de mercado. Em alguma
medida, todas as causas da supermercadificação dependem dessa condição, o que justifica sua
34 Evidentemente, a presente pesquisa não acredita que exista efetiva liberdade de escolha mesmo no restrito terrenoda escolha de mercadorias. Entretanto, dado o modo de produção capitalista, teorias erigidas sobre os mecanismos demercado possuem algum potencial heurístico. Ademais, no final do capítulo serão endereçadas as críticas aoreferencial neoclássico.35 Essa transição possui implicações para o funcionamento cotidiano do varejo, sobretudo em termos das interaçõesintersubjetivas que ocorrem no seu seio. Segundo Cleps (2006, p .87), antes da modernização do varejo “havia certarelação social entre o cliente e o vendedor que, por sua vez, tinha conhecimento sobre as mercadorias, davaconselhos e sugestões, estimulava os clientes a comprar. Muitos vendedores conheciam seus clientes (...). O auto-serviço trouxe no seu bojo uma relação impessoal que acabou com esse contato social. Hoje, as mercadoriasapresentam características que atraem a atenção dos consumidores, como se elas próprias se auto-comercializassem”.
37
qualificação como causa de destacada importância. Em termos mais precisos, a urbanização é
uma condição para a atuação das demais causas.36.
A segunda causa contribuinte é o marketing. A concorrência de mercado faz com que
questões simbólicas associadas ao marketing ganhem maior relevância para a dinâmica das
empresas (Kim, 1999; Reardon, Timmer e Berdegue, 2004; Jia, 2008; Carden, 2011). A existência
de diversas opções de mercado faz com que questões associadas à “confiabilidade da marca”
(Carden, 2011) se tornem mais determinantes para as escolhas. A formação das redes de
supermercados veio acompanhada pelo incremento do montante de investimento em marketing
nos mais variados dispositivos de comunicação (padronização de slogans de acordo com o gosto
do público, divulgação na imprensa de massa, outdoors, etc). Além disso, as redes conseguem
maior adequação a dispositivos técnicos e organizacionais modernos, como inserção de
tecnologias mais avançadas e a padronização no fornecimento do serviço, fatores apontados pela
literatura como relevantes para a escolha do consumidor.
Regra geral, o crescimento do montante de capital investido no marketing cumpre dupla
função: em primeiro lugar, atua na criação de uma cultura consumista, que se vincula às
necessidades gerais da reprodução capitalista. Conforme Harvey (2014), todo incremento na
produção precisa ser complementado com aumento na ponta do consumo, de modo que o padrão
de acumulação massivo típico do capitalismo fordista precisa ser acompanhado do consumo
desenfreado. No setor varejista, não há qualquer especificidade dessa função, que ocorre de modo
idêntico a qualquer ramo da economia capitalista.
Em segundo lugar, o marketing emergiu como produto necessário do crescimento da
concorrência intercapitalista. Dada essa condição, que já se fazia presente no capitalismo fordista
(Harvey, 2014), a disputa do público cumpre papel decisivo para o sucesso da realização do valor.
36 Malgrado sua clareza no campo dos conceitos, nas situações reais as fronteiras entre causas longínquas econdições são de difícil discernimento. Segundo Pessoa Jr (2006), uma condição não tem poder de desencadear umevento, mas sim de torná-lo possível. Em outros termos, condições são as circunstâncias que permitem a atuação decausas sem possuir propriamente o potencial para gerar efeitos. Por seu turno, causas longínquas se caracterizam pelaatuação mediata, i e, pelo seu papel na criação das causas imediatas e efetivas. O único recurso possível é ocontrafactual, o qual na maioria dos casos assume natureza excessivamente especulativa.Para a presente pesquisa, a urbanização e a mobilidade urbana são tanto causas longínquas quanto condições. Sãocausas longínquas pois ocasionaram mudanças no modo de vida (ou cotidiano) das sociedades capitalistas avançadas,criando bases para a transição da demanda em direção aos supermercados; e são condições pois a lei de mercado écondição das causas que operam pela redução de custo, as quais não poderiam ser eficientes sem concorrência demercado.
38
Para completar o circuito da acumulação, é necessária a passagem pelo momento da realização do
valor, pois, de outro modo, a mais-valia gerada na produção não assume a forma de lucro real.
Dada a concorrência acirrada, o sucesso na atração de fatias de mercado vira condição de
sobrevivência para o capitalista individual. Como resultado, cresce progressivamente o montante
de valor investido nessas atividades. Também aqui o setor varejista apenas replica tendências
gerais do capitalismo. 37
O crescimento da importância do marketing ocasiona vantagens para os capitais mais
concentrados, já que apenas estes dispõe do montante necessário para fazer investimentos na
formação da marca e no contínuo aperfeiçoamento das lojas ao gosto do público.
A terceira causa contribuinte é a emergência do padrão de consumo típico do capitalismo
fordista-keynesiano (Harvey, 2014). O paradigma da produção massiva precisa vir acompanhado
de consumo massivo, pois o valor produzido precisa se realizar. Assim, o consumismo é produto
necessário do capitalismo (Harvey, 2014; Mészáros, 2002). Além disso, o consumo em massa
necessariamente ocasiona a diversificação dos valores de uso produzidos, pois de outro modo
seria impossível consumir para além das necessidades da subsistência.
As mudanças no consumo ajudam a compreender a transferência da demanda varejista
para o setor supermercadista, pois apenas as modalidades modernas de varejo comportam a
diversidade e a grande quantidade de mercadorias valorizadas pelos hábitos de consumo
emergentes (Belik, 1999; Reardon, Timmer e Berdegue, 2004). Uma expressão disso ocorre na
mudança nos hábitos de compras, que passam a ser realizadas ao longo de períodos de tempo
mais longos. Progressivamente as compras passam a ser feitas dominantemente em frequência
semanal, quinzenal e/ou mensal, restando sua realização diária apenas para produtos altamente
perecíveis.38
37 Talvez sua única especificidade resida na influência geral do marketing no setor: nos demais setores, aspropagandas promovem produtos individuais; por seu turno, a promoção do consumo pelo varejo promove oconsumismo em geral.38 Cabe ressaltar a confluência de sentido entre a mobilidade urbana, a difusão no uso do automóvel e os novoshábitos de compras. Dado que a realização de poucas compras por período de tempo faz necessárias comprasgrandes, os novos hábitos de consumo só se tornam possíveis por meio de incremento na capacidade de circulação,saltando à vista o papel cumprido pelo carro. Por essa razão, segundo Cleps (2005), “o automóvel é considerado pormuitos estudiosos como um dos principais, senão o principal, responsáveis pela redefinição dos locais de compras”.Só com o veículo as compras massivas, diversificadas e concentradas e de pouca frequência se tornarão viáveis.
39
A quarta causa contribuinte é o aumento da participação da mulher no mercado de
trabalho (Belik, 1999; Carden, 2011; Reardon, Timmer e Berdegue, 2004). Sob linguajar liberal,
uma entrada preliminar no problema é possível a partir da “elevação do custo de oportunidade”
(Reardon, Timmer e Berdegue, 2004). Essa expressão diz respeito ao aumento da capacidade de o
tempo de atividade das mulheres gerar renda (ou outras benesses). Como o tempo da mulher
passa a valer mais, torna-se menos viável dispendê-lo em afazeres domésticos. Por isso, dentre
outras razões, crescentemente as mulheres optaram pelo trabalho remunerado em detrimento do
trabalho doméstico.
Assim, as mudanças sociais por detrás da promoção da participação da mulher no
mercado de trabalho implicaram simultaneamente a diminuição do tempo de ocupação da mulher
com atividades domésticas. Essa transição criará um problema para sociedades capitalistas-
patriarcais, que supriam a necessidade do trabalho reprodutivo por meio do trabalho doméstico e
feminino não pago (Davis, 2016; Carrasco, 2008).39 Como, em parte, a mulher deixa de suprir
necessidades sociais com seu trabalho no ambiente doméstico, surge a demanda por satisfação
dessas carências por meio da economia social. Como resposta a esse problema, foram dadas duas
soluções: a emergência de serviços públicos (welfare state) e a mercadorização.40 Cada uma à sua
maneira, essas soluções permitiram a satisfação de necessidades sociais por meio de trabalho
social, solucionando em parte o problema criado com a entrada da mulher no mercado de
trabalho. Como será exposto adiante, essa transição influenciou as transformações do varejo.
A satisfação por trabalho social de necessidades antes supridas com trabalho reprodutivo
doméstico é base para o incremento da divisão social do trabalho, que, por sua vez, é fundamento
da formação de novos ramos industriais (Carrasco, 2008; Teixeira, 2008). Para o problema da
passagem da demanda para os supermercados, é especialmente pertinente a industrialização da
produção de alimentos, a qual abarca não só a produção de alimentos processados, mas também a
formação de novas formas de conservação. Segundo Braverman (1987), a formação de
refrigeradores e de outros métodos de conservação em geral cumpriu papel fundamental na
39 Segundo Davis (2016), é esse processo que promove o confinamento da mulher no ambiente doméstico. Emoutros termos, a emergência do capitalismo criou a circunscrição (relativa) da mulher ao ambiente doméstico, sendoas ideologias da feminilidade e da exclusão da mulher do ambiente público em parte resultados dessa transição.40 Acerca da satisfação de necessidades sociais por trabalho social, é necessário um apontamento: esse processo nãosolucionou o problema das hierarquias de sexo nas sociedades capitalistas patriarcais não somente por não terabolido as obrigações das mulheres no âmbito do trabalho reprodutivo doméstico, mas também porque tanto omercado de trabalho quanto o Estado reproduzem hierarquias de gênero. A esse respeito, ver Fraser (2011).
40
criação das condições da nacionalização dos mercados. Ademais, a renovação técnica dos
transportes e a melhoria da mobilidade urbana também contribuíram nessa transição, já que
permitiram diminuir o tempo despendido com o transporte, atenuando o problema da
perecibilidade dos produtos.
Essa onda de mercadorização41 contribuiu para a modernização do varejo, pois, como
assinalam Belik (1999) e Reardon, Timmer e Berdegue (2004), parte significativa da demanda
pelo serviço varejista ocupada pelos supermercados ocorre em razão da venda de produtos
alimentícios industrializados e/ou congelados. Paralelamente, mesmo no final do século XX, a
circulação de artigos altamente perecíveis continuou dispersa entre comerciantes de pequeno ou
médio porte (Reardon, Timmer e Berdegue, 2004). Exemplos desta tendência são encontrados
nos gêneros hortifrúti (frutas, legumes e verduras [FLV]), nos serviços de panificação e nas
carnes de corte, cuja realização ocorre em varejões, padarias e açougues de bairro,
respectivamente. Aliás, nesses gêneros os hábitos de compra continuaram a manter maior
frequência, tal como era típico no varejo tradicional. Embora também existam tendências de
concentração de capital na distribuição desse gêneros, regra geral ela continua a fazer-se de modo
descentralizado.42 Uma estratégia para submeter essas atividades ao varejo moderno foi integrá-
las progressivamente nas unidades supermercadistas, estratégia em parte bem sucedida (Belik,
1999).
A capitalização da produção de alimentos foi decisiva para a modernização do varejo,
pois foi pela concentração da venda de produtos industrializados que os supermercados
conseguiram centralizar grande parte da função social do varejo (Reardon, Timmer e Berdegue,
2004; Belik, 1999). De modo contrafactual, pode-se dizer que o processo de concentração teria
sido mais lento caso os supermercados dependessem da centralização das vendas de alimentos
41 Cabe assinalar que o processo de mercadorização que substituiu parcialmente o trabalho doméstico reprodutivopor mercadorias começou na era de ouro do capitalismo, e não apenas no capitalismo flexível, embora a partir dadécada de 70 tenha ocorrido uma acentuação dessa mercadorização.42 As principais tendências da formação de capital nesses setores ocorre pela formação de sistemas de franquias,que já abarca o varejo de FLV e os açougues. Apesar da sua importância, em termos de capitalização do setor e desuperação do domínio da pequena propriedade, o desenvolvimento capitalista ainda não obteve sucesso nessessetores. Nossa hipótese é: a natureza concreta dos processos de trabalho ligados à circulação desses bens torna difícila subsunção real do trabalho ao capital, não permitindo ao capital controlar o modo de produzir e nem incrementarde modo significativo a produtividade. Em outros termos, dada sua natureza concreta, eles são mais dificilmenteadequáveis à valorização do valor. Disso se depreende: a formação das relações capitalistas continuamente recriarelações pré-capitalistas ou relações mercantis (ou relações capitalistas de desenvolvimento intermediário, conformeCavalcante, 2012), conforme assevera Harvey (2014).
41
não industrializados. Como enunciado, uma evidência encontra-se na persistência do domínio de
pequenos e médios varejistas nesses gêneros mesmo no capitalismo globalizado.
42
Além da vinculação com a passagem da demanda para os supermercados, a liberação
(relativa) da mulher em relação ao trabalho reprodutivo doméstico para que se tornasse “livre
como pássaro” foi fundamental para que houvesse força de trabalho disponível para a
modernização do varejo.43 Ao longo da segunda metade do século XX, o ramo varejista passou
por intenso processo de expansão, o qual envolveu absorção contínua de maiores contingentes de
força de trabalho. Conforme indicado nas figura 2 e 3, na economia estadunidense o setor
comercial progressivamente absorveu maior parcela da força de trabalho: enquanto em 1910 ela
ocupava 10% da força de trabalho, em 1990 ocupava 17,1%; já a parcela combinada da força de
trabalho de varejo e atacado saltou de 17%, em 1919, para 22,5% em 1997.44 Sem a
43 A ideia de que a mulher foi “liberada” do trabalho reprodutivo e, por isso, pôde ocupar posições na economiadiretamente social precisa ser considerada com cuidado para não dar margem a interpretações funcionalistas, comoas que identificam um movimento incontornável de inserção das mulheres no mercado de trabalho comoconsequência da modernização. A razão para tanto é que as necessidades de inserção de novos contingentes de forçade trabalho podem ser supridas por outros grupos socialmente excluídos, inclusive no suprimento de força detrabalho para realização das funções precárias de trabalho, que comumente são designadas às mulheres.44 Nesse ponto, o setor é parte da tendência à terciarização das economias capitalistas desenvolvidas.
43
disponibilização de nova força de trabalho no mercado de trabalho, possibilitada pela maior
presença das mulheres nesses mercados, dificilmente essas expansões seriam possíveis.
Porém, o aumento da presença de mulheres no mercado de trabalho não teve papel
apenas na disponibilização de mão de obra em geral no mercado. Para além disso, a divisão
sexual do trabalho direcionou diretamente o contingente feminino para as ocupações nos serviços
em geral, do qual o varejo é parte. Uma parcela das mulheres recém-inseridas no mercado de
trabalho foi alocada diretamente no varejo, que passava por intensa expansão no mesmo período.
A composição de gênero da força de trabalho no varejo é evidência dessa tese, pois, com efeito,
no varejo latino-americano, europeu e norte-americano, a composição da força de trabalho é
dominantemente feminina (ILO, 2015).
De um modo geral, a transição do contingente feminino do trabalho reprodutivo
doméstico para o trabalho social é mediado pelas relações de gênero. A divisão sexual do trabalho
consiste precisamente na “separação e distribuição das atividades de produção e reprodução
sociais de acordo com o sexo” (Holzmann, 2006, p. 102). A distribuição da força de trabalho
responde a recorrências associadas às características de cada formação social. Entre outros
padrões, as mulheres ocupam a maior parte dos serviços de baixa produtividade e aquelas funções
entendidas como femininas pelo sistema de significação. Segundo Helleieth Saffiotti (1976), há
“acentuada tendência para a mão de obra feminina localizar-se no setor terciário das atividades
econômicas nas nações altamente desenvolvidas”.45 A ocupação dos postos de trabalho no varejo
é parte desses processos sociais gerais, sendo dimensão associada da transição rumo às estruturas
de classe pós-fordistas (Esping-Andersen, 1993).46
Portanto, parece consistente a hipótese de que a proletarização do contingente feminino
e supermercadificação são fenômenos associados, seja pela formação de gêneros alimentícios
cuja venda se concentrou nos supermercados, seja pelo assalariamento das mulheres. Ademais,
viu-se também que a urbanização, a mobilidade urbana, o consumismo típico do capitalismo
45 Ainda segundo Saffioti (1976, p. 48): “Nos Estados Unidos, em 1900, 55% dos efetivos femininos se dedicavamàs atividades terciárias, subindo este montante para 70% em 1950; na Bélgica, esta percentagem passa de 49% em1930 a 53% em 1947; na Suíça, eleva-se de 54% em 1930 a 59% em 1950; na Suécia, de 52% em 1930 a 68% em1950; na França, de 28% em 1921 a 47% em 1957”.
46 Como já indicado, os cargos dos supermercados são costumeiramente ocupados por mulheres. No entanto, hádivisão sexual do trabalho de acordo com as normas de gênero também no interior do varejo. Como será exposto, arenovação técnica se distribui desigualmente no interior do varejo. As funções que passaram por mais renovaçãotécnica são dominantemente masculinas, como é o caso dos setores de logística e de análise de sistemas.
44
fordista e a ascensão do marketing concorreram para impor demanda às modalidades modernas
de comércio.
Como todas essas mudanças estão imbricadas no desenvolvimento do capitalismo,
justifica-se a afirmação de Tilly segundo a qual “o grau de penetração dos supermercados está
intimamente associado com o nível de renda da nação” (Tilly, 2007a, p. 1). Como nível de renda
e desenvolvimento capitalista são fenômenos relacionados, sendo o primeiro efeito do segundo,
pode-se concluir que quanto maior for o nível de renda, maior será a presença das modalidades
modernas de varejo. Essa tese, já válida a partir da consideração das causas até agora elencadas, é
ainda mais verdadeira quando colocados em questão os dispositivos de redução de custos, tema
da próxima seção.
1.2.3 Os dispositivos de redução de custos (conjunto B)
No que diz respeito à natureza técnico-organizacional, para a abordagem neoclássica a
modernização do varejo emergiu como parte de “tendências de longo prazo do varejo, as quais
são explicadas por combinações de economias de escala e escopo e por economias de densidade”
(Carden, 2011, p. 2). Como essas inovações foram efeito das relações entre oferta e procura
mencionados na seção 1, a reestruturação técnica seria resultado de ações no âmbito
microeconômico. Aquelas inovações que efetivamente diminuíssem custos rapidamente se
irradiariam para todo o setor. Como resultado, as redes que a elas aderissem obteriam sucesso na
disputa concorrencial, replicando o movimentos de destruição criativa (Carden, 2011).
Também aqui mobilizam-se as relações de causalidade de tipo INUS. Houve um efeito
final, a diminuição de custos, que foi desencadeada por diversos fatores. Por si próprios, cada um
deles não seria suficiente para desencadear a mudança tecnológico-organizacional e nem a
redução de custos. Porém, por meio de sua associação, eles formaram uma condição não
necessária, mas suficiente para desencadear a transição. Cada um dos recursos de racionalização
foi uma causa contribuinte da modernização do varejo, visto que determinaram a redução de
custos e contribuíram para a passagem da demanda para os supermercados. Sob outra
terminologia, cada um desses recursos de diminuição de custo pode ser entendido como causa
45
longínqua da modernização do varejo, dado que eles geraram uma das causas imediatas da
transição - a dizer, a redução de custos.
Além de causa da modernização do varejo, em parte este conjunto de fatores coincide
com o próprio conceito de varejo moderno. Como enunciado, na acepção da presente pesquisa,
varejo moderno abarca as unidades varejistas nas quais há concentração de propriedade, ou seja,
nas quais há formação de redes. Uma consequência necessária das redes é a evolução da
produtividade, pois, por si sós, as redes permitem ganhos de escala em diversas esferas.47
Ademais, as redes de varejo possuem mais capacidade de investimento, facilitando as inovações
técnicas.
As reduções de custo expostas na presente seção coincidem com esses recursos de ganho
de escala, de escopo e de densidade. Assim, a presente seção apresentará de modo mais
sistemático o conceito de varejo moderno ou, em outros termos, complexificará a definição de
varejo moderno exposta no começo do capítulo.
A primeira causa contribuinte é a concentração de propriedade. Esta, inicialmente, se
corporifica na formação de redes no âmbito de uma cidade, as quais na sequência ocupam regiões
e no final mercados nacionais (Carden, 2011; Tilly, 2007a). O crescimento progressivo do
montante de propriedade é acompanhado de sucessivas transformações qualitativas na estrutura
das empresas, levando-as a vincular-se às demais metamorfoses. Por isso, pode-se dizer que a
concentração de propriedade é a dimensão mais abstrata das transformações técnicas do setor
varejista, já que se faz presente nas outras três. Em outros termos, a concentração de propriedade
é condição das demais causas, visto que dela dependem a capacidade de investimento e de
inovações.
A segunda causa contribuinte é o modelo de autosserviço, que é característico dos
modelos supermercadistas.48 Essa forma de funcionamento das lojas atua duplamente para elevar
a produtividade do trabalho. Em primeiro lugar, ela promove um aumento das vendas, visto que a
“livre” circulação do consumidor pelas lojas torna-o suscetível à sedução da mercadoria; em
47 Ademais, a formação das redes traz para o varejo a tendência à permanente evolução das forças produtivas, temaque será destrinchado no final deste capítulo.48 Ademais, para além do varejo modelos de empreendimento embasados no autosserviço tem se tornadoprogressivamente mais comuns no capitalismo contemporâneo (Koeber, Wright e Dingler, 2012).
46
segundo lugar, a objetificação do funcionamento das lojas permite que um menor número de
funcionários seja suficiente para realizar as funções produtivas necessárias.49
Conforme a literatura (Basker, 2015; Carden, 2011), a noção de produtividade do
trabalho é definida com base no montante de renda gerada pelo setor dividido pelo total de
trabalhadores empregados.50 Essa definição de produtividade do trabalho pode ocorrer levando-se
em consideração a renda gerada por trabalhador ou por hora de trabalho. No primeiro caso,
apenas divide-se o rendimento total por trabalhador. Já no segundo caso, divide-se o total de
renda pelo total de horas trabalhadas por todos os trabalhadores.51
A terceira causa contribuinte é a unificação dos dispositivos logísticos, a qual é
diretamente possibilitada pela concentração de propriedade. As funções logísticas consistem no
conjunto de tarefas voltadas para as funções de armazenamento, conservação e distribuição. A
aglutinação ocasiona ganhos de escala impossíveis para pequenos empresários, viabilizando
minoração dos preços finais ou, alternativamente, superlucros aos capitais maiores.
Os depósitos unificados consistem em unidades logísticas responsáveis por diversas
lojas e regiões, detendo abrangência proporcional à concentração das redes e ao seu grau de
penetração em um mercado regional. Essas unidades dão margem à formação de um padrão na
expansão das redes: costumeiramente, inaugura-se um centro logístico em uma região de
potencial de investimentos, para que, na sequência, sejam abertas lojas dentro do seu raio de
distribuição. A capacidade de esse dispositivo operar decréscimos de custo ocasiona sucesso na
disputa concorrencial, permitindo centralização da demanda pelo serviço de varejo. A mera
possibilidade de entrada de uma grande empresa num mercado local pode ser fator suficiente para
49 O tema do autosserviço e do trabalho será retomado no capítulo 4.50 Essa noção de produtividade é reificada, pois ela confunde produtividade do trabalho com a renda realizada pelossupermercados. Como a renda do varejo é criada por meio do montante de vendas, nesses rendimentos influemtambém fatores extraeconômicos que passaram a demanda para os supermercados. Por essa razão, torna-se difícilatribuir essa variação de rendimento ao trabalho sem intervenção de diversas mediações. Porém, apesar dainsuficiência dessa definição, não há condições de sustentar uma proposição alternativa por ora, já que identifica-sediversos problemas de difícil resolução. Com efeito, o conceito de produtividade do trabalho na acepção de Marx(2013) é de difícil mobilização para o setor comercial em geral. Por essa razão, identificamos produtividade dotrabalho com de rendimento gerado por trabalhador, a qual, de todo modo, serve como expressão do grau deracionalização do trabalho no setor.51 A respeito, ver especialmente Basker, 2015
47
que as pequenas empresas ou redes vendam suas propriedades, fazendo com que a disputa de
mercado acabe antes mesmo de começar de fato.52
Outra vantagem concorrencial da logística centralizada consiste na capacidade de
acelerar a velocidade de circulação das mercadorias. Como concentram a função de logística de
várias lojas e como operam com sistema de gestão unificado, a logística centralizada viabiliza
diminuição do montante total de capital cristalizado sob a forma de estoques. Conforme assevera
Harvey (2014; 2013), esse ponto é especialmente influente para a dinâmica da acumulação, posto
que incide sobre o tempo de rotação do capital, interagindo com a taxa de lucro. Quando o
montante de investimentos em capital fixo diminui sem que o quantum de lucro realizado mude,
opera-se um ganho proporcional no valor do lucro diante do total de capital investido, ou seja, se
realiza um aumento na taxa de retorno dos investimentos.53
A quarta causa contribuinte é a centralização das funções administrativas, tais como as
operações financeiras, de planejamento e de negociação comercial. Como em todas as outras
esferas, essa centralização ocasionou ganhos de escala, acarretando vantagem concorrencial. A
única especificidade das funções administrativas é quantitativa: dada sua natureza, é mais fácil
concentrar as funções de diversas lojas em um único departamento (Braverman, 1987).
Além disso, em razão da especificidade da função comercial, a centralização das funções
administrativas trouxe outras vantagens. Centros administrativos funcionando por meios de
comunicação modernos permitem a criação de vínculos com número maior de fornecedores,
tornando possíveis duas consequências: o incremento da diversidade de mercadorias oferecidas
pelas redes e o aumento na regularidade do fornecimento. Consequentemente, a diversidade e a
regularidade, vantagens que sempre acompanharam os supermercados, se tornaram benefícios
mais significativos à medida que as empresas cresceram.
A combinação dos fatores supracitados desencadeou ganhos significativos de
produtividade e a transformação da estrutura técnica do varejo. Como resultado, formou-se
processo de retroalimentação positiva: cada inovação técnica permitiu ganho de competitividade
52 Apesar da importância das aquisições, no mercado estadunidense o principal dispositivo de concentração depropriedade é o crescimento progressivo, sendo as aquisições o segundo principal recurso (Foster et al, 2015). Aindanão foram encontrados estudos equivalentes para outros mercados nacionais.53 Como assinalam Duménil e Levy (2005), a taxa de lucro é categoria decisiva para a dinâmica da economiacapitalista e, portanto, seu incremento ocasiona uma aceleração da acumulação de capital, sempre que combinadacom outras circunstâncias de mercado. O tema será retomado no capítulo 3.
48
para as empresas e, ao fazê-lo, permitiu-lhes ocupar maior parcela do mercado. Por sua vez, a
conquista de mercado criou as condições para o avanço das inovações técnicas. A culminação
desse processo é a revolução do varejo (Lichtenstein, 2006; Carden, 2011), que será tema do
próximo capítulo.
Do ponto de vista das lojas, esse processo resultou em constante incremento de tamanho,
que se expressou não somente no aumento progressivo do tamanho médio das unidades varejistas
(Carden, 2011), mas também na tendência à mudança dos tipos de loja predominantes. Os
modelos supermercadistas, cujo tamanho médio cresceu exponencialmente, tornaram-se
predominantes e, junto a essa expansão, formaram-se modalidades supermercadistas maiores,
como os hipermercados. A esse respeito, a figura 4 traz uma ilustração significativa, pois ela
mostra que o número de lojas de descontos na economia estadunidense saltou de 1340 em 1960
para 9700 em 1997, realizando um aumento de 623% nesse intervalo de 37 anos.5455
54 Os dados da figura 4 tornam-se ainda mais surpreendentes se vistos à luz da figura 5, pois percebe-se que nãoapenas mudou o panorama das lojas, cuja magnitude aumentou. Além disso, pode-se identificar que houve massivacentralização de propriedade, pois, ao mesmo tempo em que as empresas descontistas dominaram o setor varejista,algumas empresas centralizaram as lojas varejistas. Com efeito, a figura 5 mostra que o número de empresasdescontistas caiu de 1050 em 1960 para 200 em 1997. Ao mesmo tempo em que houve crescimento de 623% nonúmero absoluto de lojas de descontos, o número de empresas descontistas experimentou queda de cerca de 79%.
55 Os dados da figura 4 tornam-se ainda mais surpreendentes se vistos à luz da figura 5, pois percebe-se que nãoapenas mudou o panorama das lojas, cuja magnitude aumentou. Além disso, pode-se identificar que houve massivacentralização de propriedade, pois, ao mesmo tempo em que as empresas descontistas dominaram o setor varejista,algumas empresas centralizaram as lojas varejistas. Com efeito, a figura 5 mostra que o número de empresasdescontistas caiu de 1050 em 1960 para 200 em 1997. Ao mesmo tempo em que houve crescimento de 623% nonúmero absoluto de lojas de descontos, o número de empresas descontistas experimentou queda de cerca de 79%.
49
Além disso, na década de cinquenta forma-se uma nova e importante estratégia de
funcionamento das redes varejistas: o sistema de descontos. A emergência do varejo moderno
viabilizou a formação de uma estratégia de competição agressiva, denominada sistema de
descontos. Ela se define pela tática de diminuição do montante proporcional de lucro por
mercadoria vendida, a qual seria compensada pelo aumento das vendas. Esse preceito é inviável
para capitais pequenos, na medida em que a própria subsistência dos proprietários representa uma
fração considerável da renda arrecadada. Por isso, essa estratégia torna-se mais executável à
medida que o capital se centraliza.56 A essência desse estratagema consiste na alteração de preços
com vistas à obtenção de sucesso competitivo, o que ocasiona a bancarrota dos concorrentes (às
vezes sob a forma de aquisições) e o aumento de participação no mercado. Essa estratégia será
elaborada na década de cinquenta e desenvolvida na de sessenta, cuja história se confunde com a
formação dos gigantes do setor, tais como Carrefour, Kmart, Walmart, AEON, Tesco, entre
outras.
O modelo de descontos terá função importante na modernização do varejo, pois o
desenvolvimento desse sistema guardará relação com algumas transformações estruturais do
56 Essa dimensão da concentração de capital, que permite a liberação da mais-valia em relação ao imperativo dasubsistência de seu proprietário, é exposta de modo arguto por Marx (2013 [1867]).
50
capitalismo de sociedades capitalistas desenvolvidas. O modelo de descontos permitiu a
generalização do princípio do consumo massivo das sociedades capitalistas desenvolvidas,
viabilizando o avanço do amplo processo de mercadorização típico do capitalismo fordista. Esse
modelo de varejo ocasionou significativo barateamento dos produtos oferecidos ao consumidor
final, devido seu sucesso na racionalização dos recursos e à estratégia de descontos. Como
resultado, tornou-se viável o acesso ao mercado de consumo por setores de baixo rendimento,
operando uma mudança em relação à tradição do varejo moderno, que costumeiramente se
caracterizava pela venda para as classes médias (Reardon, Timmer e Berdegue, 2004). A
formação do sistema de descontos cumpriu seu papel na reversão desse estado de coisas,
permitindo o avanço da integração social via consumo no mercado.57
Inicialmente a formação do varejo moderno teve vigor nos EUA da década de cinquenta,
sendo mimetizado em outros países apenas a partir da década seguinte. Nos demais países de
capitalismo desenvolvido (Japão, França, Países Baixos, Alemanha) a transição rumo ao varejo
57 Não por acaso, após a década de sessenta todas as maiores empresas do setor serão empresas de descontos(Walmart, Kmart, Carrefour, Tesco, etc). Embora o sistema de descontos seja um modo específico de se operar omoderno varejo, ele repercutiu na própria modernização do varejo como fenômeno geral.
51
moderno se consumou nos anos 1960. As maiores empresas dos países de capitalismo
desenvolvido rapidamente emularam a anatomia técnica e organizacional desenvolvida pelas
companhias americanas, rumando em sua direção com vigor maior do que no processo de sua
formação originária.
Exposto o conceito de varejo moderno, serão tratadas brevemente algumas
problemáticas a respeito desse processo social.
1.3. Problemáticas a respeito da modernização do varejo
Como exposto, a modernização do varejo se caracteriza por um conjunto de
transformações intrínsecas à história do capitalismo do século XX. Ademais, viu-se que a
revolução do varejo é composta por alguns eixos inseparáveis: simultaneamente, ela representa
mudanças técnico-organizacionais, crescimento das redes e expansão das modalidades modernas
de varejo.58
Apesar da sua simplicidade, a modernização do varejo é um processo inerentemente
polêmico e controverso. Com efeito, toda interpretação de fenômenos histórico-sociais é
informada teoricamente, uma vez que os próprios termos mobilizados são a priori carregados de
significado político e ideológico (Alexander, 1986). Como a sociedade convive com pluralidade
ideológica, não é possível identificar um fenômeno sem fazê-lo de forma determinada e parcial.
No caso da modernização do varejo, pode-se organizar a bibliografia em torno de dois juízos
valorativos, os quais configuram blocos com posicionamentos teóricos e ideológicos
parcialmente idênticos.
O juízo valorativo positivo se assenta na importância da racionalização do setor, que se
expressa sobretudo nas economias de custos com a logística e com o trabalho nas lojas. Dessa
racionalização são extraídas implicações associadas à viabilização do acesso ao mercado de
consumo e à influência no desempenho econômico geral.
O acesso ao mercado consiste no aumento do poder de compra de toda a sociedade, o
que beneficiaria sobretudo as camadas mais pobres (Vedder e Cox, 2006; Gereffi e Christian
2009). Como a modernização do varejo permitiu economias de custo, ela desencadeou
58 A respeito da correlação desses eventos, ver fig. 4 e 5.
52
barateamento dos produtos finais e, consequentemente, ganhos na capacidade de compra do
dinheiro. Esse efeito se faria presente mesmo para os trabalhadores que perderiam em salários,
pois se, por um lado, o trabalhador perde em salários, por outro, ele ganha na capacidade de
consumo. Um salário menor é mais significativo se seu poder de compra é maior. Assim, a
modernização do varejo implicaria democratização do acesso ao mercado de consumo e elevação
dos padrões de vida de toda a sociedade em geral.
Ademais, o barateamento dos produtos teria como resultado o incremento do consumo,
contribuindo indiretamente para o ganho no desempenho econômico geral (Texto ILO, 2006).
Com produtos mais baratos, a sociedade consome mais (Strasser, 2006), ocasionando aumento da
demanda agregada e, consequentemente, melhores condições para os investimentos. Além disso,
com esse argumento, consegue-se justificar possíveis ônus da modernização do varejo para os
trabalhadores: se é verdade que ela gera diminuição dos postos de trabalho e intensificação do
trabalho, o que é indissociável do ganho de produtividade, também seria fato que o incremento do
consumo implicaria geração de empregos em outros ramos da economia. Assim, mesmo aqueles
trabalhadores que perdessem seus empregos em razão da renovação técnico-organizacional
seriam indiretamente beneficiados (ILO, 2006, 2015).
Além disso, há duas outras razões para a associação entre modernização do varejo e
incremento do desempenho econômico geral. A primeira (e mais evidente) consiste na maior
eficiência do varejo moderno em relação ao tradicional. Dado que o varejo moderno aumenta a
produtividade do trabalho, ele impacta em ganhos de produtividade na economia como um todo,
criando condições para a elevação da taxa de lucro geral e para aceleração do crescimento
econômico.59 Esse argumento seria reforçado pela experiência dos ganhos de produtividade no
setor varejista durante a década de 1990, quando esses ganhos foram fundamentais para a
retomada do crescimento. Segundo Gereffi e Christian (2009), parte significativa dos ganhos de
produtividade conquistados na economia norte-americana no período decorreram das inovações
no setor varejista.
A segunda razão decorre da melhor posição de mercado das redes com presença de
maior amplitude. Empresas maiores tendem a possuir melhor visão de mercado e melhor
59 O tema da importância da variável produtividade do trabalho para o desempenho econômico geral serádesenvolvida no capítulo 2.
53
vinculação com o mercado de crédito, fazendo-as aumentar a capacidade de investimento do
setor e a incrementar a capacidade geral de alocação de capital da economia (Vedder e Cox, 2006;
Gereffi e Christian, 2009). Por esses motivos, as redes impulsionariam os investimentos e
criariam distribuição equilibrada da divisão social do trabalho. Parte desse processo é sua maior
capacidade de integrar fornecedores no mercado, aumentando suas oportunidades e contribuindo
para o incremento da produtividade geral do trabalho pela via do aperfeiçoamento da divisão
social do trabalho (Reardon, Timmer e Berdegue, 2004).
Como se pode notar, o juízo valorativo positivo assenta-se fundamentalmente em
motivações econômicas. Resumindo o argumento ao máximo, ele consiste na associação entre
ganho de eficiência econômica e geração de benesses para toda a sociedade. Ao fazê-lo, respalda-
se no topos da quantidade,60 já que a reorganização do setor seria benéficas para a maioria da
população. Ademais, o argumento neoclássico se respalda na assunção da vinculação intrínseca
entre elevação de padrões de vida e consumo via mercado.61 Em razão dessa assunção, torna-se
viável a mobilização do argumento da causalidade para defender a necessidade da modernização
do varejo: como a racionalização do setor implica barateamento, ela incrementa o consumo,
sendo por isso fonte de elevação dos padrões de vida.
No que tange à interpretação do processo, como já exposto, os autores neoclássicos
identificam a modernização do varejo como produto combinado da ação das forças de mercado e
da resultante combinação de economias de escala, escopo e densidade (Carden, 2011). Essa
abordagem geral se respalda numa perspectiva científica de cariz positivista. Os intérpretes
neoclássicos da modernização do varejo identificam as transformações no setor do mesmo modo
que interpretam todo evento econômico, o que é possível pelo modelo nomotético-dedutivo
sustentado pelos neoclássicos.
Segundo essa problemática, a natureza de eventos particulares pode ser compreendida à
luz de leis gerais, as quais lançam os fundamentos para os eventos concretos. Por meio de
60 Segundo Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005), o lugar da quantidade é um dos principais moldes discursivos,abarcando todo tipo de argumento que se vale de uma quantidade, seja maior número pessoas representadas oubeneficiadas, seja um maior tamanho, etc. 61 Ao fazer essa redução de possibilidades, a abordagem neoclássica realiza um argumentum ad ignorantiam, que secaracteriza pela imposição de uma tese e pelo encerramento da discussão. Segundo Fiorin (2015), uma daspossibilidades de argumentum ad ignorantiam consiste na exigência de que “o adversário aceite uma tese por falta deuma alternativa viável: [de modo que,] como não existe [outra] alternativa viável” para solucionar um problema,deve-se aceitar uma proposta concreta existente, a qual supostamente seria a única alternativa (cf. Fiorin, p. 178-9).
54
raciocínios dedutivos, os modelos hempelianos62 inferem logicamente a natureza de eventos
particulares, ou seja, eles partem de afirmações universais para explicar fenômenos específicos
(Audi, 1999). Traduzida para a economia, essa abordagem identifica a articulação entre sujeitos
racionais que interagem por meio das leis de mercado, resultando em constantes inovações
técnico-organizacionais e tendência à melhoria da organização da sociedade como um todo. As
mesmas leis que presidem o funcionamento econômico geral o fazem no âmbito dos setores
particulares. Assim, oferta e demanda e a busca da maximização do ganho explicam tanto a
dinâmica econômica geral quanto cada setor em particular.
Essa modalidade de apreciação do problema possui um ponto de partida idealista, pois
concebe as mudanças como produto da ação das empresas (e/ou dos consumidores), designando
esses papéis de protagonismo sem fazer menção à dinâmica histórica do capitalismo, que não só
confina o comportamento dos agentes dentro de certos limites, como também os coage à
adequação a normas sociais. No que tange à renovação técnica, o grau de desenvolvimento geral
da técnica, bem como sua capacidade de adaptação para fins específicos, estabelecem limites
técnicos para as inovações; no que se refere às inovações, há uma especificidade social específica
ao capitalismo que impele os agentes à constante inovação.
Essa tradição neoclássica é refém da reificação, uma vez que aceita acriticamente como
premissas as formas econômico-sociais específicas do capitalismo (forma mercadoria e forma
capital), bem como os comportamentos determinados pela lógica social dessas formas. Por meio
desse recurso, pode-se assumir sem explicação que a sociedade é composta por agentes racionais
que buscam maximizar seus ganhos, daqui resultando a constante renovação técnica, que por isso
é naturalizada. Paralelamente, esse processo quase natural beneficiaria toda a sociedade. Ainda
que alguns fossem prejudicados no curto prazo, em termos gerais e no longo prazo todos se
beneficiariam. Por esses meios, a problemática neoclássica legitima a modernização do varejo.
Por seu turno, o juízo crítico tem dois eixos. Um deles tendo como base à crítica à
emergência da sociedade do consumo, que teria como resultado a criação de um modo de vida
insustentável do ponto de vista ideológico. Segundo Strasser (2006), o papel da revolução no
62 Segundo Audi (1999), os modelos hempelianos se consagraram como um dos principais recursos metodológicosdas ciências naturais no século XX, tendo sido parte da renovação do positivismo na forma do empirismo lógico.Eles consistem na formulação de modelos teóricos gerais que deduzem a natureza de fenômenos particulares a partirde leis universais. Assim, inferindo a que tipo de lei um fenômeno particular está ligado, ou seja, qual o tipo defenômeno do qual se trata, é possível mobilizar leis gerais que explicam cada uma das suas partes constitutivas.
55
varejo, e sobretudo das transformações recentes, com a expansão da gigante Walmart,
contribuíram decisivamente para criar um novo panorama de práticas de consumo, o qual seria
inviável do ponto de vista da reprodução sustentável dos ecossistemas.
O segundo eixo centra-se sobretudo no ônus das transformações do varejo para o
trabalho, dividindo-se em dois argumentos. O primeiro consiste na associação entre concentração
de propriedade e deterioração das condições do emprego no interior das redes, que se expressa na
deterioração das condições de trabalho e dos contratos de trabalho (Gupta, 2013; Lichtenstein,
2006; Rosen, 2005). O segundo consiste na associação entre as redes globais de varejo e as
cadeias de fornecimento, que, em razão da pressão imposta pelo capital varejista, reproduzem
trabalho precário (Lichtenstein, 2006; Rosen, 2005).
A deterioração das condições de trabalho divide-se em dois eixos, os quais são
associados: intensificação do trabalho e perda de autonomia do trabalhador (Gupta, 2013; Rosen,
2005).63 Segundo Rosso, o “termo intensidade do trabalho designa o conjunto de tarefas que um
determinado trabalhador executa em dado período de tempo e o consequente esforço requerido da
pessoa para essa execução” (Rosso, 2006, p. 166).64 Por isso, abstraindo outros fatores, “quanto
maior a intensidade, mais resultados do trabalho são obtidos no mesmo período de tempo”
(Rosso, idem, p. 166). Assim, como a intensificação do trabalho consiste no aumento do fator
intensidade do trabalho, ela ocasiona aumento da produtividade do trabalho e aumento do esforço
necessário da parte do trabalhador.
Por sua vez, a autonomia “remete a uma vasta gama de valores e experiências sociais
que têm como centro o princípio da livre determinação do indivíduo, de um grupo específico ou
de um conjunto político maior” (Cattani, 2006, p. 43). No que tange às relações de trabalho, o
princípio da autonomia se refere à capacidade de o trabalhador definir o modo de produzir, ou
seja, o conjunto de tarefas concretas que caracterizam um processo de trabalho e ritmo de sua
execução. Logo, a perda de autonomia consiste na alienação do produtor em relação ao modo de
produzir no qual está implicado.
A perda de autonomia é intrínseca às relações de trabalho nas quais há antagonismo de
classe, pois quando o produtor trabalha para outrem é necessário que haja controle sobre o
63 No presente capítulo, a entrada nos temas será preliminar. Eles serão retomados no capítulo 4.64 Grifos no original.
56
trabalho para manter a produtividade em níveis elevados.65 Por excelência a perda de autonomia
é um produto da organização do trabalho feita em concordância com os princípios tayloristas de
gestão. Segundo Braverman (1987), a essência da gerência científica consiste na passagem do
modo de produzir para os gerentes, que representam os interesses capitalistas no processo de
trabalho. Com isso, o conhecimento sobre o processo de trabalho, que antes ficava difuso entre os
trabalhadores, passa a concentrar-se na gerência. Com isso, a gerência passa a controlar o ritmo
de trabalho, além de adquirir o poder de reorganizar os processos de trabalho com vistas à
parcialização das funções e diferenciação entre trabalho manual e intelectual. Em razão dessas
circunstâncias, ocorrem simultaneamente algumas transições no processo de trabalho: à medida
em que o trabalhador individual perde autonomia, o controle do modo de produzir passa para o
capital e ocorre intensificação do trabalho. Em paralelo aos ganhos de produtividade, a condição
do trabalhador se degrada. Na leitura de diversos autores (Lichtenstein, 2006; Gupta, 2013;
Rosen, 2005) as relações de trabalho no varejo têm se caracterizado por essas tendências.
Também a deterioração das condições dos contratos de trabalho abarca duas dimensões.
Em primeiro lugar, ela significa deterioração de salários e de outros benefícios associados, como
planos de saúde. Diversos estudos (e.g, Gupta, 2013; Rosen, 2005; Gereffi e Christian, 2009,
Lichtenstein, 2006) têm sustentado a tese de que há associação entre a formação das grandes
redes varejistas e a deterioração dos salários. Em segundo lugar, ela significa avanço de formas
de contratação flexíveis, como contratação por jornadas de trabalho em tempo parcial, contratos
temporários e contratos sem jornada de trabalho com horários pré-fixados. Embora em alguns
casos a flexibilização possa interessar ao trabalhador, parte significativa dos casos ocorrem contra
a vontade do trabalhador (ILO, 2015). Ademais, como têm defendido ampla literatura crítica da
reestruturação produtiva, em geral a flexibilização dos contratos de trabalho é forma de
precarização das condições de trabalho em geral (Antunes, 2009; Marcelino, 2011). Segundo
Carré et al (2008), a principal tendência do mercado de trabalho no varejo nas últimas décadas é a
flexibilização.
65 A respeito das relações entre antagonismo de classe e a necessidade de incremento do controle sobre o trabalho,ver Cavalcante (2012). Resumindo o argumento, pode-se dizer que sociedades atravessadas por contradição de classenecessariamente precisam de funções intelectuais do trabalho para garantir um grau mínimo de intensidade eprodutividade do trabalho. Porque o trabalhador não produz para si, mas para uma classe apropriadora, sãonecessárias atividades que garantam que haverá alta produtividade.
57
Do ponto de vista das cadeias de fornecimento, a precarização do trabalho ocorre como
subproduto da relação de mercado desfavorável entre fornecedores e grandes empresas varejistas.
Como as empresas se situam em condição de oligopsônio diante de fornecedores que concorrem
em mercados nacionais e internacionais, a pressão pela redução de custos ocasiona degradação do
trabalho.66
Segundo Gupta (2013), se é verdade que as grandes empresas varejistas baratearam
preços, também é verdade que deterioraram as condições de trabalho para setores inteiros da
economia.67 Os autores críticos propõem um argumento baseado na inclusão, de acordo com o
qual “se transfere propriedades da parte para o todo” (Fiorin, 2015, p. 128) ou quando “o que vale
para as partes vale para o todo” (idem, p. 128). Em outros termos, eles defendem que não há
separação entre as dimensões positivas das transformações do setor (e g. barateamento de custos)
e as negativas (implicações negativas do ponto de vista do trabalho), mas que essas dimensões
negativas pertencem ao fenômeno como um todo. Se o moderno varejo reproduz trabalho
precário, ele é um fenômeno negativo. O barateamento de produtos finais não seria condição
suficiente para reverter essa avaliação negativa.
Além dos argumentos em torno do trabalho, alguns autores sustentam a relação entre
renovação técnica do varejo e promoção da ideologia consumista (Strasser, 2006; Gereffi e
Christian, 2009). De acordo com esse argumento, a finalidade do barateamento não seria o
aumento do bem estar da sociedade, mas a criação de condições para geração de lucro das
empresas. Ademais, como resultante, a promoção do consumo em massa seria uma das principais
causas da crise ambiental pela qual passa o mundo contemporâneo. Assim, não seria justificada a
defesa da promoção do consumismo, pois ele seria base de uma crise humanitária que não seria
compensada por melhora no desempenho econômico.
Apesar da nossa concordância com os argumentos da problemática crítica, será
apresentada uma problemática distinta para as transformações do varejo. Os motivos para tanto
são dois. Em primeiro lugar, todos os autores consultados apenas fazem menção às
transformações do setor no capitalismo contemporâneo, quando emergiram redes varejistas de
66 O tema será retomado no capítulo 2.67 Além da crítica através do trabalho, o bloco crítico possui registro que atesta a unidade da modernização do varejoe da cultura do consumismo. Assim, a transformação do varejo promoveu o reforço dessa forma de controle social, aqual, no contexto do capitalismo flexível, veio a gerar uma crise ambiental.
58
anatomia mundial, como o Walmart, Tesco, Carrefour, etc. Já a presente pesquisa pretende
apontar para algumas características gerais da modernização do varejo, que seriam anteriores às
transformações recentes. Apesar da abrangência desse processo social, é possível a realização de
algumas conclusões de ordem geral, como poderá ser identificado na seção seguinte. Com efeito,
muito do que os autores veem como específico do varejo controlado por corporações mundiais na
verdade é apenas expressão de tendências gerais do capitalismo. Em segundo lugar, as
problemáticas identificadas não trabalham com referenciais teóricos de classes sociais, muito
embora tangenciem o problema dos conflitos de classe no setor. Por sua vez, a problemática
proposta na presente pesquisa coloca as classes sociais como parte intrínseca da modernização do
varejo.
Adiante serão enunciados os termos dessa problemática.
1.4. Modernização do varejo e acumulação de capital
No registro da presente pesquisa, o referencial marxista da acumulação de capital (Marx,
2013) permite uma contribuição ao debate da modernização do varejo. Conforme exposto, há
diversos determinantes que iluminam essa transição, os quais foram divididos em dois conjuntos
de causas: o primeiro (conjunto A) associado a mudanças sociais amplas no capitalismo do século
XX, que fizeram com que a demanda se transferisse para os supermercados; e o segundo
(conjunto B) vinculado aos motivos econômicos ligados à busca por produtos mais baratos. Essa
distinção é importante por permitir afastamento de uma explicação economicista da transição, a
qual localizaria apenas nas reduções de custo a causa última para a modernização do varejo, o
que facilitaria a mobilização do conceito de acumulação de capital.
Entretanto, mesmo sob essa complexificação, a chave analítica da acumulação de capital
mostra-se um caminho profícuo para o entendimento da transição em direção ao moderno varejo,
pois quase todos os fatores não econômicos expostos se tornaram benefícios para as grandes
empresas em detrimento das pequenas, reproduzindo o movimento tipicamente capitalista de
expansão em espiral ascendente.68 Embora essa chave marxista tenha como finalidade a
interpretação da dinâmica estrutural da economia de sociedades capitalistas, identifica-se
68 Em outros termos, a acumulação de capital no varejo ocorreu desencadeando retroalimentação positiva.
59
aplicabilidade da categoria para interpretar a concentração de capital no setor varejista, mesmo no
que tange aos determinantes não econômicos. No que diz respeito à questão da economia de
custos, essa validade é ainda mais evidente. Ademais, esse conceito lança luz à natureza de classe
do processo, ligando-o a tendências mais gerais da estrutura social de sociedades capitalistas.
Embora sejam intimamente associados, os conceitos de concentração e de centralização
de capital não coincidem. Segundo Marx (2013), a concentração de capital consiste no processo
de integração de força de trabalho e de meios de produção à forma social capital, coincidindo
com o próprio processo de formação e desenvolvimento do modo de produção capitalista. Por sua
vez, a centralização de capital consiste na passagem da riqueza já sob forma capitalista para as
mãos de poucos proprietários, sem alterar a quantidade da riqueza social já nessa forma. O
entrelaçamento entre os conceitos é íntimo, pois a formação do capitalismo necessariamente
implica algum grau de centralização de capital, ou seja, não poder haver concentração de capital
sem que haja ao mesmo tempo algum grau de centralização. Além disso, a própria centralização
de capital é alavanca para a acumulação, já que capitais mais centralizados possuem mais
capacidade de investimento e, consequentemente, de inovação tecnológica (Marx, 2013). Apesar
da fluidez das fronteiras, analiticamente a distinção é importante, pois aponta para dispositivos de
natureza distinta.
A concorrência é o ponto de partida tanto da concentração quanto da centralização de
capital, uma vez que os capitalistas competem e, consequentemente, conquistam parcelas
diferenciadas da demanda. Como a concorrência de mercado é intrínseca à forma mercadoria, o
capitalismo convive com a permanente propensão à concentração e centralização de capital. A
formação das redes e de empresas de anatomia nacional corresponde a essa tendência no âmbito
do varejo. Pintaudi (1981) desenvolve essa tese, apontando sua conexão para com o
desenvolvimento do modo de produção capitalista. Segundo a autora:
(...) o supermercado, sem sombra de dúvida, foi uma das respostas encontradas na esferada troca de mercadorias para atender às necessidades da produção e do própriocomércio, ao reduzir significativamente os custos no sistema de vendas ao consumidor,permitindo o superlucro para os capitalistas do comércio que optaram por este tipo deempreendimento (pelo menos inicialmente). Assim, no modo capitalista de produção osupermercado surge no processo de concentração e centralização do capital, comoresposta às necessidades de lucro, e, no seu desenvolvimento histórico, tende tambémaos processos de concentração e centralização. (Pintaudi, 1981, p. 52, apud Cleps, 2005)
60
Acompanhando a sugestão da autora, será explorado o elo entre dois processos: por um
lado, o conjunto de transformações tecnológicas e organizacionais que caracterizam a
modernização do varejo, as quais foram sumarizadas anteriormente e cuja expressão é o
florescimento dos supermercados; por outro, o desenvolvimento da relação social capitalista no
setor varejista. Os dois processos são dimensões de um composto único e contraditório de
metamorfoses. Como relação social que estrutura o capital como sujeito histórico, o capitalismo
precisa promover contínuas mudanças a fim de criar a base técnica adequada à sua natureza
expansiva. Por sua vez, cada condição atingida é apenas novo limite a ser transcendido, de modo
que a base técnica revolucionada torna-se ponto de partida das novas transformações. Nesse
sentido, há uma relação dialética entre forma social e forma concreta do trabalho, em que uma
alimenta as mutações da outra.69
De acordo com esse referencial teórico, a acumulação de capital foi determinante
estrutural das mudanças do setor varejista, de modo que a trajetória exposta tanto seria impossível
quanto desnecessária caso não vigorasse o impulso de transcendência imanente ao capital. Sob
esse prisma, a transformação do setor em nicho de valorização do valor70 não apenas provocou as
mudanças expostas, como também deu vida a uma tendência permanente de reestruturações
tecnológicas e organizacionais, as quais seguem seu curso com as recentes inovações dos
gigantes mundiais do varejo. O referencial teórico da acumulação de capital designa a natureza
histórica específica dessas transformações, que não decorrem de nenhum processo natural
inevitável e tampouco da ação racional de agentes em abstrato.71 Sem essa chave analítica, torna-
se impossível a designação da causa do impulso imanente para as mudanças tecnológicas. Com
efeito, a literatura neoclássica “soluciona” esse problema tomando o homo economicus como
premissa teórica, o que lhe permite pressupor como natural a tendência ao desenvolvimento
69 Essa dimensão da lei do valor de Marx é profundamente analisada por Postone (2007). Braverman (1987)também é referência importante para enfrentar esse problema. O tema será retomado nos capítulos 3 e 4.70 Quando é mencionada a valorização do valor no setor comercial não se está ignorando as diferenças entre asfunções produtivas e improdutivas do capital, as quais são parte inseparável da teoria do valor-trabalho de Marx.Apenas está sendo feita menção ao fato de que com a formação de empresas capitalistas no setor, passam a ocorrerinvestimentos com vistas à apropriação de lucro. O problema da natureza da valorização do valor no setor comercialserá tratado no capítulo 3.71 Com essa consideração nosso estudo não desconsidera a importância das teorias erigidas sobre ao paradigmasociológico (e/ou econômico) da ação social, uma vez que tais teorias trazem luz à outras dimensões dos fenômenos.Contudo, nosso registro frisa a natureza histórica-estrutural das transformações, que sempre ocorrem quando háformação da relação social capitalista em algum ramo da economia. Para uma síntese a respeito das formasmercadoria e forma capital como determinantes de formas de consciência e de ação social, ver Postone (2007).
61
técnico. Por sua vez, o referencial marxista designa a natureza historicamente específica dessa
tendência, que é determinada pela relação social capitalista.
Assim, na perspectiva do presente estudo, a modernização do varejo é, na verdade, a
transformação capitalista do varejo. Por isso, na problemática adotada modernização do varejo e
transformação capitalista do varejo são expressões intercambiáveis. Em outros termos, quando
falamos em modernização do varejo tratamos da formação da relação social capitalista no setor,
bem como da criação da base técnica adequada à acumulação de capital.
Como resultado dessas tendências, a racionalização capitalista do setor se materializou
na formação das redes. A expansão das modalidades modernas de varejo é inseparável da
formação das redes, que implica a formação da relação social capitalista no setor. Logo, não há
expansão das modalidades modernas de varejo sem formação da tendência à permanente
racionalização capitalista e aos conflitos de classe.
A natureza imanente-transcendente do capital possui ligação com os temas do trabalho e
das classes sociais, pois parte significativa dessas mudanças concerne ao impulso de
racionalização do trabalho, cuja finalidade é a intensificação do domínio do capital sobre o
trabalho. No presente trabalho, questiona-se a respeito desse problema do ponto de vista da
proletarização do trabalho, ou seja, se o revolucionamento técnico do setor ocasionou a
transformação dos seus assalariados em proletários. Antes de inserir o problema, será feita
incursão no tema das transformações no varejo no contexto do capitalismo flexível, uma vez que
essas transformações têm muito a contribuir na resposta ao problema teórico mencionado. O
impulso de renovação técnica imanente ao capitalismo não se esgotou com a emergência e
generalização das modalidades modernas de varejo. Ela prosseguiu revolucionando as condições
de funcionamento do setor varejista, levando-o a tornar-se irreconhecível nas décadas de 70 e 80.
Após a exposição das principais transformações no pelas quais passou o setor, serão
levantadas perguntas a respeito das suas implicações do ponto de vista do trabalho, tema do
capítulo 4.
62
Capítulo 2 – A modernização do varejo na era da acumulação flexível
Conforme apontado no capítulo 1, a problemática que informa o presente trabalho
identifica a modernização do varejo como processo de transformação capitalista do varejo.
Segundo esse registro teórico, a transformação dos meios de trabalho em capital implica a
formação da dinâmica histórica específica ao capitalismo, que se caracteriza pela tendência
permanente à´transformação tecnológica e organizacional. A razão última para essa transição é o
impulso do capital para recriar a sociedade de modo adequado às necessidades da acumulação.
Em razão da concentração de capital no setor varejista, formou-se tendência à elevação
da produtividade do trabalho, a qual assumiu a forma de modernização do varejo. Como a
tendência à racionalização é permanente, cada nova configuração das sociedades capitalistas é
apenas novo limite a ser transcendido. Logo, a modernização do varejo tal como exposta no
capítulo 1, a qual em larga medida explica as principais tendências de transformação do setor até
a década de 1960, necessariamente viria a ser superada. Duas causas concorreram para essa
consequência: primeiramente, o desenvolvimento do capitalismo em geral, que implica na
necessidade de incremento da racionalidade das atividades associadas à realização do valor; e, em
segundo lugar, a formação de capital no setor, que traria dinâmica de transformações em razão
das contradições de classe.72
Por esses motivos, a marcha de transformações inerente a sociedades capitalistas
implicaria em mudanças no setor. O varejo seria parte de longínquos processos de racionalização,
os quais, no registro marxista, são epifenômenos da formação e desenvolvimento do modo de
produção capitalista. Em outros termos, em parte as transformações do varejo no capitalismo pós-
70 seriam apenas continuidade do amplo processo de racionalização capitalista. A única diferença
seria que a racionalização agora ocorreria sobre a base técnica já renovada do varejo moderno.
Entretanto, as transformações do capitalismo contemporâneo não podem ser
identificadas como mera reprodução espaço-temporal de tendências seculares da modernidade.
Ora, como sustenta ampla gama de autores, há novidades significativas no capitalismo pós-70
72 Sobretudo Braverman acentua essa dinâmica da chave analítica das classes sociais. Segundo o autor, o foco dasanálises de classe no capitalismo é sobretudo a identificação de padrões de transformação social, e menos aidentificação de condições comuns de determinados contingentes da população. Apesar disso, Braverman não negatal dimensão das análises de classe, apenas não as considera a parte principal. O tema será retomado no capítulo 4.
63
(e.g., Harvey, 2014; Brenner, 2006; Santos, 2006; Fraser, 2011). Como esses traços são
condicionantes das transformações do setor varejista do período, são necessárias considerações a
respeito da natureza do capitalismo pós-70. Como será exposto na exposição, as transformações
do setor em larga medida são expressões particulares de tendências gerais do capitalismo
contemporâneo.
Por esses motivos, a primeira seção do capítulo 2 fará uma construção dos registros de
Brenner (2006) e Harvey (2014) a respeito de alguns traços do capitalismo contemporâneo. Na
primeira parte da seção será feita incursão na interpretação de Robert Brenner a respeito da crise
do capitalismo fordista. A fim de explicar o que o autor identifica como declínio crônico da taxa
geral de lucro, o texto começará pelo resgate da sua problemática a respeito das crises capitalistas
em geral, já que sua análise concreta é indissociável desse quadro conceitual. Finalmente, serão
identificadas as diversas tentativas de resolução do problema do declínio da taxa de lucro.
Ao final do capítulo, será travado diálogo com o conceito de padrão de acumulação
flexível (Harvey, 2014), o qual será ponto de partida de algumas reflexões subsequentes, como a
da natureza da técnica no capitalismo contemporâneo. Apesar de Harvey partir de referências
teóricas distintas das de Brenner, a presente pesquisa entende como viável a integração da chave
acumulação flexível como uma das respostas ao problema do declínio crônica da taxa de lucro.73
As seções seguintes retomarão a exposição das transformações do setor varejista. A
segunda seção abordará a globalização do varejo e a terceira seção a sua informatização. À guisa
da conclusão, a quarta seção construirá a tese da hegemonia do capital comercial, abrindo
caminho para as considerações a respeito das classes.
2.1 A crise capitalista do fim dos anos 1960 e da natureza do capitalismo pós-1970
2.1.1 Padrão de acumulação e crise capitalista
Embora detenha especificidades, em larga medida a dinâmica do setor varejista é
explicável por tendências gerais das sociedades capitalistas. No caso das metamorfoses típicas do
73 As diferenças teóricas entre Brenner e Harvey bem como as mediações feitas para articulá-las no presente capítuloserão expostas adiante.
64
capitalismo global, há franca incidência da crise do capitalismo fordista sobre a dinâmica do
setor.
Para Brenner a crise dos anos 1960 é estrutural por vincular-se com alterações em
algumas das variáveis macroeconômicas fundamentais da acumulação de capital. No seu registro,
as duas principais variáveis incidentes sobre a dinâmica da acumulação são as taxas de lucro e a
taxa de evolução da produtividade do trabalho.74
A taxa de lucro consiste no montante proporcional de lucro gerado por unidade de valor
investida produtivamente. Como coincide com o retorno dos investimentos, a taxa de lucro incide
diretamente sobre o montante de capital passível de aplicação produtiva no capitalismo,
guardando relação com a demanda agregada e com o crescimento econômico. Porque os
investimentos são a principal fonte de crescimento econômico, de renovação técnica e de
expansão da escala da produção, Brenner (2006) conclui que em última instância a taxa de lucro é
a variável macroeconômica mais importante para a acumulação. Apesar de se influenciarem
mutuamente, a taxa de lucro possui maior independência na relação com as outras variáveis
macroeconômicas, que por isso são mais dependentes.
Por seu turno, a importância da taxa de evolução da produtividade decorre da sua
vinculação com a capacidade de dado tempo de trabalho gerar valores de uso. Quanto maior a
produtividade, maior a capacidade do tempo de trabalho produzir riqueza concreta. Essa variável
influencia não só a taxa de lucro, mas também a capacidade de aquisição de valores de uso pela
via do mercado. Influencia a taxa de lucro porque permite diminuição relativa do montante total
de valor apropriado para o consumo do capitalista e pelos salários, ou seja, aumenta o montante
de excedente. Já o ganho na capacidade de consumo é resultado da diminuição no valor das
mercadorias. À medida que a produtividade do trabalho aumenta, eleva-se o poder de compra dos
salários e do lucro.75 Por essas razões, ganhos de produtividade viabilizam crescimento absoluto
74 Nessa pesquisa, acompanhamos o registro de Brenner a respeito do diagnóstico das condições da crise docapitalismo fordista. Contudo, identificamos alguns limites na abordagem do estadunidense, sobretudo o da nãoconsideração devida de algumas dimensões estruturais para a queda na taxa de lucro. Dentre elas, a condiçãodificilmente contornável em sociedade dominada pela lógica do valor, a que a evolução da produtividade recrieconstantemente um estado de coisas no qual a taxa de lucro declina. A própria lógica do valor, demandando aumentode produtividade como condição de sobrevivência dos produtores, leva à limitação das condições da acumulação nolongo prazo. Apesar desses problemas, este estudo se manteve nos limites do registro de Brenner no que se refere aodiagnóstico do problema, seja por questões de recorte da pesquisa, cujo foco é outro, seja pela preocupação do autorcom respaldo empírico de suas teses.
65
da renda real do capital e do trabalho,76 criando condições para ciclos de reprodução ampliada
sustentados no médio e no longo prazo.
Para Brenner, essas duas categorias são fundamentais para explicar a dinâmica da
acumulação tanto em períodos de reprodução ampliada quanto em períodos de crise. O autor
formula-as à luz da experiência das economias capitalistas desenvolvidas do pós-guerra e do que
ele designa por período da “longa desaceleração” econômica (Brenner, 2006), que é característica
do pós-70.77 Além das categorias taxa de lucro, taxa dos investimentos e taxa da evolução da
produtividade, sua problemática respalda-se num resgate da leitura de Marx a respeito da
regulação social de sociedades mercadorizadas e acerca do estatuto teórico das crises
econômicas.
Os conceitos de acumulação de capital e de crise capitalista são intimamente
relacionados. Para Antunes e Benoit (2009) Marx não destinou um capítulo de O capital às crises
porque todo o seu sistema teórico estava comprometido com esse problema ou, em outros termos,
porque toda a teoria de Marx visa responder tanto ao problema da acumulação quanto ao das
crises capitalistas. Com efeito, em larga medida as crises se definem de modo negativo, já que
elas consistem precisamente no fracasso no processo da acumulação, que acaba por resultar num
processo retroalimentado de deterioração das variáveis macroeconômicas.
A teoria marxista das crises possui diversos níveis de existência, que são parte dos níveis
de existência do próprio capital (Antunes, Benoit, 2009). Os níveis mais abstratos concernem à
possibilidade formal da ocorrência de crises, enquanto os níveis mais concretos explicam sua
necessidade.
O nível mais geral decorre da forma de regulação social da distribuição do trabalho
social no capitalismo (Rubin, 1987). A regulação social do capitalismo é apenas parcialmente
75 Em termos mais precisos, o que aumenta é o poder de compra do valor em geral ou, o que é a mesma coisa masem termos diferentes, o mesmo valor é corporificado em mais valores de uso.76 Isso não significa que haja ganhos relativos para todos, o que é impossível. Ganhos absolutos ocorrem quando háaumento da renda real em termos quantitativos, ou seja, quando aumenta o seu montante em termos de poder decompra efetivo. Ganhos relativos consistem em aumento na participação proporcional de cada grupo na renda total.O ganho relativo generalizado é impossível, pois se trata de um jogo de soma zero: se os salários crescem, os lucrosdiminuem e vice versa.
77 Assim, por meio de um único referencial analítico Brenner interpreta tanto as três décadas de ouro quanto asdécadas subsequentes. Como havia ganhos sistemáticos na produtividade e nas taxas de lucro, tornava-se possível aconvivência pacífica de crescimento econômico, ganhos salariais (diretos e indiretos) em mercados consumidores emcrescente expansão
66
social, conforme sustentam Marx (2013), Rubin (1987) e Postone (2007). A mercadoria funciona
por meio de dispositivos de regulação reificados, pois ela tem como consequência necessária a
atribuição de propriedades sociais (valor de troca) às coisas. Dado que as relações capitalistas de
produção se caracterizam pela vinculação social dos agentes pelas trocas mercantis, o capitalismo
só pode existir por meio da mediação social da mercadoria e, correspondentemente, pela vigência
da lei de mercado.
Essa circunstância intrínseca ao capitalismo conduz os produtores à condição de
concorrência no mercado, ocasionando a formação da tendência à constante evolução das forças
produtivas. Como cada um busca seus interesses e como cada um corre o risco de não sobreviver
à competição, todos são forçados ao constante empenho de renovação técnica com vistas aos
ganhos de produtividade.
Se por um lado essa condição do produtor é fonte do potencial expansivo do capitalismo,
por outro ela é fundamento das crises. Como não há regulação social, cada produtor não possui
conhecimento a respeito das condições de mercado nas quais ocorre a competição. Como cada
produtor busca aumentar sua participação no mercado incrementando tecnicamente sua produção,
o capitalismo convive permanentemente com a tendência à superprodução. Se a busca pelo
aumento da produção conduz à “produção pela produção”, segundo a precisa expressão de Marx
(2013), de tempo em tempo o capitalismo necessariamente incorre em excesso de produção.
O resultado da busca da “produção pela produção” é a cristalização de montantes de
capital fixo superiores às necessidades sociais e à capacidade de absorção do mercado.78 Por seu
turno, o excedente de capital produtivo atua como causa do declínio da taxa de lucro por dois
meios: primeiramente, ele leva à diminuição dos preços, que se tornam menores do que o valor
das mercadorias, gerando um declínio do lucro em razão da realização parcial do valor
produzido; em segundo lugar, gera-se capital ocioso, fazendo com que parte do capital investido
não gere retorno produtivo. Portanto, o lucro gerado diminui em relação ao capital total investido,
impactando negativamente sobre as taxas de lucros.
78 A superprodução não necessariamente é um excesso de produção diante das necessidades sociais, mas sim dianteda demanda líquida. Com efeito, o capitalismo pode conviver com excesso de produção relativa (referente àcapacidade de absorção pelo mercado) e com insuficiência da produção absoluta (isto é, com produção abaixo dasnecessidades sociais) (Marx, 1986a).
67
Sob esse ângulo, em termos gerais as crises capitalistas decorrem de duas causas: do
excesso de concorrência intercapitalista e da ausência de dispositivos sociais de regulação social.
Combinadamente, esses fatores conduzem à deterioração das taxas de lucro, à diminuição do
crescimento econômico e à desaceleração da evolução da produtividade. Como corolário, forma-
se um ciclo de retroalimentação negativa, de modo que cada impacto negativo nas taxas de lucro,
na acumulação ou na elevação da produtividade incide negativamente sobre as demais variáveis.
Essa tendência geral à superprodução se realiza por meio de padrões regionalizados de
acumulação de capital e de difusão de padrões tecnológicos. Toda inovação técnica emerge
primeiramente nos setores econômicos mais concentrados e dentro das economias mais
desenvolvidas. Num segundo momento, ocorre difusão dos padrões técnicos para novas regiões,
que emulam o modelo técnico do(s) país(es) ou regiões mais desenvolvidos. Dada a inexistência
de regulação social planejada sobre essa generalização de padrões técnicos, o capitalismo convive
com a tendência à formação de capacidade industrial ociosa.
Para Brenner, a crise do final dos anos 1960 é produto dos processos de difusão
tecnológica e de formação de capacidade ociosa. Num primeiro momento, o fator desencadeador
foi o salto das economias japonesa e alemã ao patamar de desenvolvimento da economia
estadunidense. Num segundo momento, houve agravamento da crise em razão do salto industrial
realizado pelos países recém industrializados do leste asiático. 79
79 Essa forma de interpretação sobre as crises capitalistas é uma alternativa dentre inúmeras dentro da tradiçãomarxista. Segundo Clarke (1994), no que tange ao problema a tradição marxista se dividiu em três alternativas. Aprimeira centra-se na desproporção na distribuição social do trabalho, que identificaria o fundamento das crises nadistribuição equivocada do capital e da força de trabalho, que decorreria da natureza reificada da regulação social.Uma segunda seriam as teorias do subconsumo, que encontrariam na incapacidade de consumo das massas ofundamento das crises; porque o trabalho precisaria receber apenas parcela do valor recebido, necessariamente serecriaria desproporção entre produção e demanda, o que acarretaria em desaceleração da acumulação e em eventuaiscrises. A terceira conferiria destaque à tendência à queda na taxa de lucro, que identificaria na tendência à elevaçãoda composição orgânica do capital o fundamento das crises; por necessitar de incremento tecnológico, o capitalismoconduziria à erosão da sua própria base, que é o trabalho vivo, que tornaria-se ínfimo diante do montante de capitalconstante. Embora centrada no papel das taxas de lucro, em termos conceituais Brenner aproxima-se sobretudo doprimeiro grupo, pois para ele o fundamento das crises é a recriação de capacidade ociosa, cuja causa é a regulaçãosocial reificada.
68
2.1.2 Padrão de acumulação e crise do fordismo
Essa combinação de fatores foi a causa da crise capitalista do final da década de 1960.
Mais precisamente, ela foi produto de uma mudança fundamental no panorama econômico
internacional do período: a passagem das economias alemã e japonesa para patamares de
desenvolvimento capitalista equivalentes ao nível do capitalismo estadunidense. Essa
circunstância conduziu à progressiva ocupação dos mercados domésticos pelas corporações
nacionais desses países, levando-as a adquirir capacidade de competição com as empresas
estadunidenses. Dada a saturação dos mercados locais, a partir do fim da década de 1960 essas
corporações entraram na disputa pelo mercado internacional.
Como resultado dessa situação, a concorrência entre as grandes corporações se
intensificou no âmbito da economia mundial. Em outros termos, a crise do final dos anos 1960 é
produto do processo de difusão tecnológica e de formação de capacidade ociosa, que num
primeiro momento foi desencadeada pelo crescimento das corporações alemãs e japonesas e num
segundo pela industrialização de alguns países periféricos (sobretudo no leste asiático).
Dado que o capitalismo tem como fundamento a perseguição de interesses privados, a
resposta das corporações ao ambiente de concorrência agudizada foi o incremento da
produtividade do trabalho pelas vias da reorganização técnico-organizacional e pela ofensiva
sobre o trabalho. Por isso, ao invés de o declínio da taxa de lucro conduzir a uma redistribuição
geral do trabalho social com vistas ao reequilíbrio das taxas de lucro, ela gerou a continuidade da
superprodução. Por isso, a solução à crise seria apenas parcial, pois as circunstâncias que geraram
o declínio das taxas de lucro não apenas se mantiveram, como se intensificaram. O que foi
solução para a acumulação de capital no âmbito privado das corporações, permitindo-lhes ocupar
maior parcela da demanda líquida existente, tornou-se reprodução social das condições da crise.
O resultado geral desse estado de coisas foi a manutenção de elevados níveis de
capacidade ociosa nos principais setores industriais das economias capitalistas avançadas
(Brenner, 2006). Consequentemente, persistiu a incapacidade de realização de parcela do valor
produzido, incorrendo em baixa taxa de retorno dos investimentos.
Assim, a consequência mais geral é a deterioração da taxa média de lucro, a qual
transformou-se em declínio crônico em razão da reprodução das condições de superprodução. Ao
69
passo que a centralização de capital se intensificou sob protagonismo do grande capital
corporativo, a longa desaceleração econômica persistiu ao longo das décadas que seguiram.
Ademais, como corolário desse estado de coisas, houve deterioração do desempenho
econômico mais geral, o qual se expressou sob todas as principais variáveis macroeconômicas
(Brenner, 2006). O declínio na taxa de lucro foi acompanhada de queda nos investimentos, no
crescimento econômico, na evolução da produtividade e nos salários. Como produto combinado,
formaram-se os conhecidos problemas das economias capitalistas contemporâneas: o problema
da depreciação da demanda agregada e o dos déficits públicos crônicos. Apesar de se tratarem
antes de efeitos do que de causas, a deterioração destas variáveis virou problema à parte das
economias capitalistas.
2.1.3 Expressões da crise do fordismo
Para Brenner (2006), essa transição nas condições da acumulação é o fundamento das
transformações do capitalismo contemporâneo. Como um todo, as novas configurações do
capitalismo têm em comum uma finalidade: elas visam a criação de condições para a acumulação
de capital dentro de um contexto de declínio crônico da taxa de lucro. Segundo Brenner, no
último quartel do século XX (2006):
(...) as empresas, apoiadas pelos governos, em todo o mundo capitalista avançado seengajaram em um esforço abrangente, sistemático e cada vez mais auto-consciente pararestabelecer suas taxas de lucro pelas vias tanto da obsessiva redução de custos,sobretudo dos custos diretos e indiretos com o trabalho, quanto pela transformação dosmodos de fazer negócios. Eles eclodiram uma ofensiva cada vez mais perversa sobre asorganizações da classe trabalhadora com vistas à forçar o crescimento e, em algunscasos, para diminuir os níveis de compensação dos serviços sociais. Eles buscaramneoliberalizar a economia mundial pela desregulamentação dos mercados decommodities e de trabalho, pela privatização das empresas estatais e pela liberação doantes reprimido setor financeiro, enquanto ao longo do países menos desenvolvidosprocuraram forçar a abertura de mercados para mercadorias, para investimentosestrangeiros diretos, para os serviços financeiros e para os capitais de curto prazo. Elesmudaram o capital das linhas de manufaturas de altos custos e baixos lucros para colocá-lo nos serviços financeiros, e crescentemente voltaram-se à especulação. (...) De fato,todas essas medidas inter-relacionadas de redução de custos, neoliberalização eglobalização (...) constituíram um pouco mais ou menos de uma tentativa cada vez maisfrenética de lidar com o penetrante e persistente problema da lucratividade reduzida.Mas permanece o fato imperativo de que longe de ter restabelecido o dinamismoeconômico, essas medidas falharam em prevenir a performance econômica daseconomias capitalistas avançadas de piorar à medida em que o tempo passou. Como
70
consequência, ainda em 2000, a longa desaceleração continua muito longe de umasuperação (Brenner, 2006, p. 21-2).80
Assim, o capitalismo deu uma resposta multicentrada ao problema do declínio crônico
da taxa de lucro. As principais transformações foram (1) o aumento do desemprego, (2) a
mudança de postura do capital diante do trabalho, (3) a internacionalização, (4) a financeirização,
(5) a desconstrução dos direitos sociais, (6) a privatização e (7) a reestruturação produtiva.
1) O aumento do desemprego estrutural é produto combinado de aumento de demissões
e diminuição nos investimentos, os quais são uma ação quase espontânea da classe capitalista em
contexto de deterioração do desempenho econômico.81 Por si só, esse novo estado de coisas é
capaz de gerar inúmeras consequências, com especial destaque para a diminuição do poder social
do trabalho e das entidades de representação e organização operária, resultando em congelamento
dos salários (Harvey, 2014). Uma segunda consequência importante é a diminuição da demanda
agregada, fator que contribui para a manutenção da estagnação.
2) Além da mudança na relação de forças entre capital e trabalho em razão do
desemprego, a partir da crise de fins dos anos 1960 ocorreu uma mudança drástica na postura
político-ideológica da classe capitalista (e do Estado) para com a classe trabalhadora e para com
movimentos de defesa de direitos civis. De modo resumido, o capitalismo fordista teve como um
dos seus pilares a negociação entre capital e movimento operário feita sob intermediação do
Estado (Harvey, 2014), a qual era parte de uma tendência à crescente expansão dos direitos
sociais ligados ao trabalho. Na conjuntura de crise do fordismo, a postura de negociação e
concessão (relativa) de poder aos sindicatos será substituída pela não aceitação da
80 Tradução nossa. No original: “(...) firms, assisted by governments, throughout the advanced capitalist worldengaged in an ever more self-conscious, systematic, and all-encompassing effort to restore their profit rates by meansboth of the obsessive reduction of costs, above all direct and indirect labour costs, and the transformation of theirways of doing business. They detonated an ever more vicious assault on the organizations of the working class, so asto force down the growth and, in some cases, the level of compensation and social services. They sought toneoliberalize the global economy by deregulating commodity and labour markets, privatizing state enterprises, andfreeing up the formerly repressed financial sector, while seeking to force open markets for commodities, foreigndirect investment, financial services, and short-term capital throughout the less developed countries. They shiftedcapital out of high-cost, low-profit manufacturing lines, especially into financial services, and turned increasingly tospeculation. (...). In fact, all of these interrelated measures of cost reduction, neoliberalization and globalization (...)constituted little more or less than an ever frenzied attempt to cope with the pervasive and persistent of reducedprofitability. But the overinding fact remains that far from restore economic dynamism, these measures failed toprevent the performance of the advanced capitalist economies from worsening as time went on. As a consequence, asof 2000, the long downturn remained very far from overcome” (Brenner, 2006, p. 21-2)
81 Apesar disso, em certas circunstâncias, a classe capitalista atua conscientemente para criar desemprego com oobjetivo de controlar a evolução de salários e da força social do trabalho.
71
representatividade dos sindicatos, pelo uso do poder capitalista de classe e pelo uso de repressão
estatal contra movimentos grevistas e sociais (Bihr, 1999; Clarke, 1991).
3) Outra importante foi a internacionalização do capitalismo, a qual cumpriu tal papel
por diversas razões. Em primeiro lugar, ela permitiu ao capital corporativo a abertura de novos
mercados para investimento, fato significativo em razão da situação de esgotamento dos
mercados nacionais. O contexto de demanda declinante das economias desenvolvidas era causa
do esgotamento desses mercados, levando-os a ser incapazes de absorver investimentos
condizentes com o montante de capital disponível. A abertura de novos mercados criou condições
para a valorização de parte do capital excedente, ocasionando aumento da taxa média de lucro. 82
Além dos já mencionados declínio crônico da taxa de lucro e da sobreacumulação, outro
fator pertinente para explicar o papel da internacionalização é o excesso de regulamentação social
do capitalismo nos países de capitalismo fordista. Com efeito, o arranjo político, social e
institucional típico do capitalismo fordista formava ambiente de significativo constrangimento ao
capital, que vivia sob influência de normas rígidas que implicavam elevados custos. A
internacionalização foi recurso para abrir mercados sem arcabouço institucional rígido e sem
tradição de organização operária, fatores relevantes em termos de custos de investimento.
A internacionalização também viabilizou a compra de insumos como alternativa à
contratação de força de trabalho, tendo como vantagens tanto a diminuição de custos (diretos e
indiretos) quanto a flexibilização produtiva. No arranjo institucional fordista, era difícil se
desfazer de força de trabalho. Por essa razão, em termos da superação da rigidez fordista o papel
da internacionalização foi fundamental.
4) Outra das principais soluções para a crise do fordismo foi a financeirização do
capitalismo, entendida como a multiplicação e complexificação dos dispositivos de valorização
do valor que não demandam investimentos diretos na produção. A financeirização também se
caracteriza pelo entrelaçamento entre os capitais produtivo e financeiro, caracterizada pela
crescente diversificação da carteira de ativos do capital produtivo. Tanto em termos regionais,
nacionais e de setor econômico, a diversificação colocou-se como estratégia de maximização de
ganhos e de diminuição de riscos.
82 Essa dimensão da solução da crise reforça uma interpretação da crise do fordismo sob referencial teórico deHarvey (2014)
72
A financeirização também desempenhou papel fundamental na solução (parcial) do
problema da demanda agregada. A solução desse problema passou por dois dispositivos:
primeiramente, pela atuação do Estado, que socorreu algumas grandes empresas e grupos
econômicos em momentos críticos, impedindo a continuidade da bancarrota econômica; em
segundo lugar, por meio da criação artificial da demanda, a qual foi viabilizada por meio da
sofisticação e aumento de abrangência do sistema de crédito. O uso de hipotecas e de valorização
artificial de ativos como substrato para a criação de demanda tornaram-se norma no capitalismo
contemporâneo. Segundo Brenner, essas práticas, que podem ser descritas como “bubblenomics”
(Brenner, 2006), se caracterizam por dois momentos inseparáveis: (1) a geração de valorização
artificial de ativos, cujo valor de mercado sobe em razão de excesso de demanda e (2) demanda
gerada precisamente pela valorização dos mesmos ativos.83 Os ativos valorizados artificialmente
sustentaram a criação de crédito, que por sua vez criou a demanda.
Por fim, a financeirização também foi fundamental para a promoção da globalização,
uma vez que a facilidade de movimentação de capitais implica em facilidade na exportação de
investimentos e na formação de um mercado internacional de crédito. Sem a financeirização, a
globalização tal como a conhecemos não teria sido possível.
5) Outra solução foi a desconstrução dos direitos sociais, a qual guarda íntima relação
com as políticas de privatização. A diminuição nas responsabilidades do Estado apareceu como
solução para a grave crise fiscal pela qual passaram quase todas as economias capitalistas
desenvolvidas a partir da década de 1960, a qual era um produto da estagnação do crescimento84
em circunstância de crescentes aumentos no gasto público. 85 Parte associada dessa solução foi a
83 Uma bolha econômica se caracteriza precisamente por esse estado de coisas: um ativo valorizado cria ascondições da valorização do mesmo ativo. Seu risco decorre da fragilidade dessa articulação de fatores, pois umaeventual falha gera efeito em cadeia, podendo ocasionar uma crise econômica, a depender da grandeza do impactofinanceiro. A expressão “bubblenomics” de cariz jocoso, remete à associação da regulação econômica estatal com apromoção de práticas de ganho financeiro e especulativo, bem como ao crescimento econômico baseado em bolhas,que configuraria um modelo de acumulação frágil e voltado sobretudo ao ganho da fração financeira do grandecapital.84 Como havia estagnação e gastos crescentes do Estado, a solução foi a emissão de dinheiro a fim de evitar abancarrota no curto prazo. Como resultado, gerava-se inflação, pois o aumento de moeda circulando não foiacompanhado por expansão da economia real. Para designar esse estado de coisas cunhou-se o neologismo“estagflação”.85 De acordo com Saes (2001) os discursos da associação entre programa neoliberal e diminuição do tamanho doEstado são ficcionais. Na verdade, trata-se de uma mudança na natureza da regulação social sobre a economiaexercida pelo Estado, que passa a privilegiar as leis de mercado como princípio de regulação e a conceder maiorprotagonismo para o setor privado. Na prática, a transição rumo à regulação neoliberal implica aumento da máquinade Estado, o que decorre fundamentalmente de duas razões. Primeiramente, porque a liberalização do mercado
73
promoção de políticas de privatização, por meio das quais os Estados deixavam de se ocupar de
dispêndios em diversas áreas.
6) A diminuição dos gastos com direitos sociais guarda relação com a política de
privatização, uma vez que a reformulação das políticas sociais de Estado implica na criação de
demanda por esses serviços via mercado. A diminuição de investimentos implica em deterioração
da qualidade e da abrangência dos serviços, criando bases para que serviços de qualidade venham
a ser oferecidos via mercado.
7) Finalmente, a crise do fordismo ensejou um conjunto de transformações
denominadas reestruturação produtiva (Antunes, 2009). Segundo Baumgarten:
(…) a reestruturação produtiva e industrial consiste em um processo que compatibilizamudanças institucionais e organizacionais nas relações de produção e de trabalho, bemcomo em redefinição de papeis dos Estados nacionais e instituições financeiras (....),visando atender às necessidades de garantia de lucratividade (Baumgarten, 2006, p.237).
No fim dos anos 1960 o capitalismo fordista experimentou limites à sua expansão.
Dentre os fatores da crise, situa-se a incapacidade de dar continuidade aos ganhos sempre
renovados de produtividade típicos do capitalismo fordista. Junto à queda na lucratividade, esse
fator impedia que os salários crescessem, pois desse modo não restaria nenhum elemento
(excedente) para prosseguir a acumulação de capital, Por isso, fez-se necessário renovar o sistema
de dominação e as relações de trabalho, que precisavam aumentar a produtividade sem a
contrapartida dos ganhos de salário. Segundo Antunes:
Como resposta à própria crise, iniciou-se um processo de reorganização do capital e deseu sistema ideológico e político de dominação, cujos contornos mais evidentes formamo advento do neoliberalismo, com a privatização do Estado, a desregulamentação dosdireitos e do trabalho e a desmontagem do setor produtivo estatal, da qual a eraThatcher-Reagan foi expressão mais forte; a isso se seguiu também um intenso processode reestruturação da produção e do trabalho, com vistas a dotar o capital do instrumentalnecessário para tentar repor os patamares de expansão anteriores (Antunes, 2009, p. 31).
A reestruturação do trabalho visa reordenação dos processos de trabalho com vistas ao
incremento da exploração, o que atua para superar a crise de acumulação pela via do aumento da
implica consequências sociais deletérias, as quais aumentam os gastos estatais em área sociais. Em segundo lugarporque a intensificação dos conflitos inerente a plataforma neoliberal demanda aprimoramento dos aparatosrepressivos do Estado, cuja finalidade é manter a coesão social.
74
geração de mais valia e/ou da diminuição dos custos improdutivos com o trabalho. Por meio da
intensificação do trabalho, tornar-se-ia viável retomar a acumulação de capital.86
A reestruturação produtiva abarca tanto dimensões qualitativas quanto quantitativas
(Marcelino, 2011). As primeiras são novas formas de funcionamento dos processos de trabalho,
enquanto as últimas dizem respeito a novas formas de contratação, voltadas à facilitar as
oscilações na quantidade de trabalhadores contratados no curto prazo.
Os dispositivos flexíveis de gestão do trabalho cumprem dois papéis: primeiramente,
eles intensificam o trabalho por meio de protocolos diversos, como o acúmulo de funções, a
eliminação de funções do trabalho improdutivas, a eliminação de gestores e a
multifuncionalidade (Antunes, 2009; Marcelino, 2011). Além disso, a configuração flexível visa
adequação dos processos de trabalho às oscilações de curto prazo na demanda, pois um
componente comum dos dispositivos flexíveis é a capacidade de mudança nos produtos do
trabalho, que rapidamente se adequam às variações na demanda.
Já os dispositivos quantitativos visam à capacidade de o capital desfazer-se com
facilidade da força de trabalho contratada, viabilizando constante adequação do pessoal
empregado às oscilações de curto prazo na demanda. Dado o contexto de desempenho econômico
fraco característico do capitalismo pós-70, o capital constantemente não consegue renda
suficiente para valorizar o valor. Diante dessa circunstância, é necessária a constante adequação
da força de trabalho às necessidades da produção.
Como a finalidade geral da reestruturação flexível é a solução da crise de acumulação,
ela mobiliza todos os recursos eficientes para tal resultado. Por isso, parte do protocolo flexível
de reestruturação consiste na reciclagem e aperfeiçoamento dos dispositivos fordista-taylorianos.
Em razão dessa circunstância, alguns autores chegam a chamar a reestruturação produtiva pós-70
de neotaylorização (Antunes, 2009).
O resultado geral desse conjunto de reconfigurações é o incremento da polarização da
distribuição de renda das sociedades capitalistas avançadas (Brenner, 2006, Duménil e Levy,
2007). Por um lado houve estagnação e decréscimo do valor dos salários (diretos e indiretos)87 e
86 Para Rosso (2006) o capitalismo posterior à crise do fordismo entrou na terceira onda de intensificação dotrabalho.
87 Os salários diretos são a renda apropriada pelos trabalhadores diretamente na forma salarial, enquanto os saláriosindiretos seriam bens concedidos aos trabalhadores através de serviços fornecidos pelo Estado.
75
crescimento dos números absolutos e relativos de pobres. Por outro, aumentou a parcela da
riqueza social apropriada pelo grande capital corporativo e pela camada de altos gestores
(Brenner, 2006; Duménil e Levy, 2007).
Apesar das finalidades das novas configurações do capitalismo pós-70, houve fracasso
quanto à superação da causa fundamental da estagnação da acumulação. Malgrado sua
capacidade de criação de condições para a retomada da valorização do valor, os patamares de
expansão anteriores à crise dos anos 1960 nunca mais foram retomados. Mais do que isso, década
a década assiste-se à deterioração do desempenho econômico, que pode ser identificado por
qualquer uma das principais variáveis macroeconômicas (Brenner, 2006).
Por outro lado, ainda que incapaz de anular as causas do declínio crônica da taxa de
lucro, o poder das novas configurações do capitalismo permitiu a retomada da acumulação. Por
isso, a crise dos anos 1960 não tomou a forma de recessão permanente, mas de uma longa
desaceleração, que alterna períodos de crescimento de baixa intensidade com estagnação
(Brenner, 2006).88
2.1.4 David Harvey e o padrão de acumulação flexível
Uma segunda referência teórica importante para o presente estudo é o conceito de
regime de acumulação flexível, de Harvey (2014). Mais precisamente, essa referência será usada
como ponto de partida para a interpretação da natureza sociológica de algumas configurações do
capitalismo contemporâneo. Parte significativa das transformações do setor varejista, tal como a
incorporação de tecnologias da informação, a flexibilização dos contratos de trabalho e o lean
retailing são apreensíveis de modo acurado pelo prisma da flexibilização do padrão de
acumulação.
Segundo Harvey, a conjuntura de crise capitalista do final dos anos 1960 teve como
principal resultado a necessidade de superar a rigidez do capitalismo fordista.89 O novo contexto
88 Além disso, desde 1970 o capitalismo experimenta com mais frequência conjunturas de crise. A razão é a maiorpresença dos mercados financeiros no funcionamento da economia real, dadas as integrações finanças-produção eeconomias nacionais-sistema financeiro internacional. Ao mesmo tempo em que dinamiza a capacidade de alocaçãode capital, além de torná-la mais flexível, a financeirização torna a economia mais suscetível a choques externos.
89 Em Harvey, a leitura da crise do fordismo passa por referenciais distintos daqueles expostos até aqui no capítulo2. As diferentes problemáticas refletem diferentes teorias gerais a respeito da natureza das crises do capitalismo, que
76
de intensa competição intercapitalista tornava inviável a produção massificada e padronizada do
fordismo, uma vez que não mais havia demanda agregada em crescente expansão. Diante do
novo cenário, fez-se imprescindível a exploração de nichos específicos de mercado da parte do
empresariado, pois só neles seriam encontrados os meios de realização do valor das mercadorias
produzidas.
A busca por nichos de mercado tornou inviável a reprodução social do modelo de
empresa típica do fordismo por inúmeras razões: ela era incapaz de diversificar a produção e de
desfazer-se com rapidez da sua força de trabalho. Em todos esses terrenos, o arcabouço
institucional, cultural e político do fordismo constrangia a relação capital-trabalho por meio de
suas normas inflexíveis (em termos de sua capacidade de rápida adaptação). Por esses motivos,
A acumulação flexível (...) é marcada por um confronto direto com a rigidez dofordismo. Ela se apoia na flexibilidade dos processos de trabalho, dos mercados detrabalho, dos produtos e padrões de consumo. Caracteriza-se pelo surgimento de setoresde produção inteiramente novos, novas maneiras de fornecimento de serviçosfinanceiros, novos mercados e, sobretudo, taxas altamente intensificadas de inovaçãocomercial, tecnológica e organizacional. (Harvey, 2014, p. 140)
O “sistema de produção flexível” é caracterizado pela “ênfase na solução de problemas,
nas respostas rápidas, com frequência altamente especializadas, e na adaptabilidade de
habilidades para propósitos especiais” (Harvey, 2014, p. 146). Nesse novo sistema produtivo, as
tecnologias da informação cumprem papel fundamental. Com efeito, é possível dizer que sem
elas a flexibilização do capitalismo não teria sido possível, já que todas as dimensões da
flexibilidade de algum modo dependem da sua mediação.90
Esse ponto conduz o estudo ao problema da natureza sociológica das tecnologias da
informação. Segundo o registro de Harvey, elas são recurso para solucionar as dificuldades da
por sua vez decorrem de diferentes interpretações do capitalismo. Para Harvey (2013), as crises capitalistas temcomo causa principal a sobreacumulação de capital, tendo como epicentro montantes de capital que não encontramcondições para se valorizar, seja pela ausência de capacidade de absorção das mercadorias que seriam produzidas,seja pela baixíssima taxa de lucro, que inviabiliza investimentos lucrativos. Se todo o capital excedente seempregasse produtivamente, o capitalismo entraria rapidamente em profunda crise. Contudo, o não investimentoimplica em taxas de lucro baixíssimas se comparadas com o montante de capital existente. Desse impasse, nãopassível de plena resolução no interior do capitalismo, Harvey sugere que a acumulação flexível, antes do quesolução duradoura, não passa de um “reparo temporário” para permitir a continuidade da acumulação, sem noentanto conseguir replicar o desempenho econômico dos anos de ouro do capitalismo.90 Em termos contrafactuais, pode-se conceber que alguma forma de flexibilização capitalista teria sido possível semas TI’s, porém o capitalismo flexível que existe não poderia existir sem a informatização, dado o papel fundamentaldesta em quase todas as dimensões da flexibilidade.
77
acumulação de capital num contexto de crise e de longa estagnação. Mais do que puramente
técnicas, elas são fundamentalmente políticas e sociais. A finalidade a que estão voltadas
determina sua estrutura técnica, que por isso é capitalista e flexibilizante.
Sob esse ângulo, além de expressarem no plano mais geral as necessidades da
acumulação de capital, a informatização responde aos problemas específicos da conjuntura de
crise do fordismo. Sua finalidade, em parte bem sucedida, foi superar o conjunto de dispositivos
normativos e institucionais do capitalismo fordista, os quais em parte eram a corporificação do
poder das classes trabalhadoras organizadas (Harvey, 2014). Portanto, a informatização cumpriu
papel fundamental na inversão geral das relações de força entre capital e trabalho, sendo parte da
ampla ofensiva do capital corporativo que em geral caracteriza o neoliberalismo (franceses).
Como exposto na seção anterior, a crise do capitalismo fordista tem na flexibilização um
dos seus componentes, mas o significado geral das respostas à crise foi uma ofensiva de classe do
grande capital sobre a classe trabalhadora. Nesse ponto, a presente pesquisa acompanha Bihr
(1998) acerca da ênfase na luta de classes como dínamo de toda essa transição. Segundo essa
abordagem, o fundamento dessas transformações não é apenas técnico, ou seja, decorrente de
uma crise na acumulação, mas baseia-se na necessidade de uma ofensiva sobre o trabalho, que
implicava na ruptura do pacto policlassista que sustentava o capitalismo fordista.91
Expostos os referenciais analíticos que presidem a interpretação geral do capitalismo
pós-70, a presente pesquisa fica em condições de analisar as transformações específicas do setor
varejista. O primeiro problema investigado é a globalização do varejo.
2.2 Varejo na globalização
A globalização é um fenômeno multiforme, que abarca tanto a emergência de uma
cultura global quanto práticas nas esferas políticas e econômica (Scott, 2014). Ainda que algumas
91 Bihr (1998) sustenta ainda que a transição é resultado de uma crise de hegemonia, cujo fundamento seria aofensiva política e ideológica das classes subalternas, que questionaram a dominação burguesa na onda demobilizações do final da década de 1960. Dada essa crise, o projeto reformista que sustentava o pacto fordista entrouem crise. Ademais, dada a condição de crise da acumulação a qual levou à necessidade de ofensiva sobre o trabalho,o projeto socialdemocrata entrou em uma crise insolúvel, pois reformas progressivas não mais eram possíveis, como,a propósito, pode ser identificado nos anos seguintes à década de 1970, que são caracterizados por constanteretrocesso ou estagnação dos salários diretos e indiretos.
78
dimensões da cultura e da política sejam tangenciadas na presente pesquisa, regra geral o foco
residirá na estrutura econômica.
De acordo com a exposição da seção anterior, entende-se a globalização como uma das
soluções para viabilizar a continuidade da acumulação em um contexto de declínio crônica da
taxa geral de lucro.92 Muitas das vantagens gerais da globalização para as corporações
manufatureiras serão compartilhadas pelo capital varejista, havendo destaque para as benesses
associadas ao barateamento das mercadorias.
Em primeiro lugar, é importante ressaltar que as motivações que impeliram as
corporações manufatureiras à mundialização atuaram com força sobre o setor varejista. Mais
precisamente, a deterioração da taxa geral de lucro afetou de modo decisivo o setor em razão da
sua relação com o consumidor final. Havendo estagnação do crescimento econômico, aumento do
desemprego, paralisia nos investimentos públicos e privados e declínio da renda em geral,
naturalmente ocorre diminuição da demanda em geral, incluída aquela parcela pela qual o varejo
é responsável.
Além disso, as sociedades capitalistas avançadas são caracterizadas pela detenção de
pautas do consumo que em muito excedem as necessidades de subsistência, levando à existência
de elevada taxa de elasticidade na demanda da maioria das mercadorias.93 Se não se consome o
estritamente necessário, variações na renda e nos preços impactam diretamente no nível de
consumo.
Por último, ainda que o setor não experimentasse concorrência internacional com a
mesma intensidade do que o setor manufatureiro na década de 1960, o declínio da taxa de lucro
afetou o setor varejista do mesmo modo que os demais94. De acordo com a tradição marxista, a
taxa geral de lucro é determinada por meio da concorrência intersetorial,95 uma vez que os
92 Assim, a presente pesquisa concorda com a formulação de Chesnais, que critica os termos “globalização” e“mundialização” sem qualificações e sugere a a alternativa “mundialização do capital” (Chesnais, 2001). Essadesignação explicita a natureza de classe dos fenômenos em questão.93 No caso, a referência é a elasticidade em torno do preço, ou seja, na capacidade de variação da demanda em razãodas variações nos preços das mercadorias em questão.94 Ainda que a concorrência não fosse tão intensa quanto no setor manufatureiro, ela era significativa, como veremosadiante.95 A concorrência intrasetorial é aquela entre capitalistas de um mesmo setor, ou seja, daqueles produtos queconcorrem diretamente entre si, enquanto a concorrência intersetorial diz respeito à concorrência entre setoresdiferentes (Saad Filho, 2011). A concorrência intersetorial ocorre pelo fluxo de capital dos setores menos lucrativosaos mais lucrativos. O tema será retomado no capítulo 3.
79
capitais buscam maior lucratividade sem se importar com a atividade concreta na qual o valor é
investido (Saad Filho, 2011). Por esse motivo, há fluxo contínuo de capital para os setores mais
lucrativos, ocasionando a aproximação das taxas de lucro em relação à média geral.96 Portanto,
também o capital varejista sofre influência da equalização da taxa geral de lucro, de modo que,
ainda que diretamente a intensificação da concorrência internacional não depreciasse a taxa de
lucro dos varejistas, em pouco tempo a diminuição do lucro do capital produtivo se transferiria
para o setor comercial. Do ponto de vista da sobreacumulação, o setor foi tão afetado como todo
o capital corporativo.
Assim, a entrada do capitalismo na conjuntura de longa estagnação econômica criou
motivação pela internacionalização do setor com a mesma intensidade que em toda a economia
capitalista. Ainda que o varejo não tenha entrado em situação de acirrada concorrência
internacional tão cedo quanto o setor manufatureiro, não faltaram motivações para que as
corporações varejistas buscassem solução para seus problemas na internacionalização.
Tal como enunciado, no presente estudo o recorte da mundialização volta-se para a
dimensão econômica. Ademais, em concordância com Gereffi (1994), considera-se a distinção
entre globalização e internacionalização. Segundo o autor,
Cadeias globais de commodities são enraizadas em sistemas produtivos que dão origema padrões de comércio coordenado. Um ‘sistema produtivo” liga as atividadeseconômicas de empresas a redes tecnológicas e organizacionais que permitem àscompanhias desenvolver, manufaturar e distribuir commodities específicas. Nos sistemasde produção transnacionais que caracterizam o capitalismo global, a atividadeeconômica não é apenas internacional em escopo; ela também é global na suaorganização (...). Enquanto “internacionalização” se refere simplesmente à amplitudegeográfica das atividades econômicas para além das fronteiras nacionais, “globalização”implica um grau de integração funcional entre essas atividades dispersasinternacionalmente. A necessária coordenação administrativa é realizada por atorescorporativos tanto em estruturas econômicas centralizadas quanto descentralizadas.(Gereffi, 1994, p. 96)
Nesse sentido, a mundialização abarca duas dimensões: a internacionalização, definida
como o aumento de escopo da ação dos agentes econômicos no plano internacional, sendo parte
do que Harvey (2014) designa por “compressão espaço-temporal”; e a globalização, definida
como a integração das regiões e países como partes de um todo articulado e interdependente.
96 Marx designa esse processo por equalização da taxa geral de lucro (1986a). Esse ponto será destrinchado nocapítulo 3.
80
Direcionando para os pontos que interessam ao presente estudo, a globalização e a
internacionalização podem ainda ser destrinchadas em dois eixos. Primeiramente, elas abarcam a
transnacionalização da estrutura das empresas, que passam a se fazer presentes em diversos
mercados nacionais; em segundo lugar, ocorre uma intensificação da integração do regional para
com o comércio internacional.
Dado que o capitalismo não pode existir sem mercado mundial, a novidade consiste não
na existência de transnacionalização e de comércio mundial,97 mas na sua intensidade (Harvey,
2014; Santos, 2006). De acordo com a lei hegeliana da transformação de quantidade em
qualidade, mudanças quantitativas acumuladas ocasionam mudanças na natureza dos seres
(Marcuse, 1988). A intensificação acentuada da mundialização econômica levou a integração
mundial a assumir características únicas no capitalismo contemporâneo. Assim, ainda que algum
grau de mundialização se faça presente em todas de sociedades que conviveram com comércio, a
mundialização pós-70 é traço específico do capitalismo flexível.
A transnacionalização da estrutura das empresas ensejou a formação de uma classe
capitalista de presença internacional. Essa classe se caracteriza pela dispersão das partes
componentes de uma empresa em diversos países, partes que se articulam por meio de estruturas
verticalizadas situadas nos países originários das empresas.98
A transnacionalização responde a um contexto de crescente concorrência no setor.
Segundo Tilly (2007a), ao longo da década de 1960 o capital do setor varejista passou por
processo de crescimento exponencial nos países de capitalismo desenvolvido. O crescimento
contínuo das corporações fê-las adquirir anatomia nacional, conduzindo-as a esbarrar nos limites
dos mercados nacionais de origem. Por essa razão, a internacionalização “foi um resultado da
97 No registro do próprio Marx, o capitalismo não pode existir sem sistema colonial, que é parte da acumulaçãoprimitiva de capital. Em termos historiográficos, esse tema deu margem a amplos e polêmicos debates. Para umaposição consistente a respeito dos vínculos indissociáveis entre sistema colonial e formação do capitalismo, verNovais (1989).98 Quando o presente trabalho defende a tese da transnacionalização da estrutura empresarial, não está sendo feitaadesão às teses da formação de uma burguesia mundial, que, em razão de sua presença internacional, não teria maisvinculação política e econômica com nenhum país e Estado nação específico. Acompanhando Martuscelli (2010),entende-se que as teses da formação de uma burguesia mundial unificada reproduzem as ideologia burguesa daglobalização como fenômeno neutro. Para o presente estudo, a transnacionalização é parte da ofensiva do grandecapital dos países capitalistas desenvolvidos, que encontram na globalização um meio de manter sua hegemonia emcontexto de crise. Ademais, na esteira de Harvey (2005) entende-se o aumento da presença internacional decorporações capitalistas como parte do incremento e da diversificação dos recursos de acumulação por espoliação.Em suma, a transnacionalização incrementou a dominação imperialista e as hierarquias de classe, incluídas aquelasentre burguesias de diferentes países.
81
consolidação e saturação dos mercados varejistas domésticos dos países mais ricos” (Tilly, 2007a,
p. 2). Nesse sentido:
O comércio de varejo é cada vez mais internacional em escopo, com os varejistas dospaíses desenvolvidos se expandindo para países estrangeiros, tanto desenvolvidos quantoem desenvolvimento (...). À medida que os mercados nacionais tornam-se maissaturados, mais e mais negócios procuram novas oportunidades para expansão em paísesmenos desenvolvidos. Novas legislações comerciais, o crescimento da União Europeia ea desregulamentação das economias mundiais [deregulation of world’s economies],junto à criação de outras grandes áreas de livre comércio, como o NAFTA, o Mercosul,o ASEAN, etc, estão encorajando a globalização dos mercados. Os custos declinantes dacomunicação e dos sistemas de informação também estão facilitando ainternacionalização das atividades varejistas (ILO, 2003, p. 12)
Assim, a internacionalização das grandes corporações varejistas é produto da saturação
dos mercados locais.99 Essa tese é respaldada pela trajetória de internacionalização das maiores
empresas do ramo, as quais, aliás, são até hoje as maiores do setor. O Carrefour, líder no mercado
francês e segundo no varejo mundial, começou sua expansão em 69; a Metro, líder na Alemanha
e terceira no ranking mundial, iniciou sua transnacionalização em 68; a japonesa AEON em 85 e
a holandesa Royal Ahold em 77. Por sua vez, o Walmart, a maior empresa do mundo desde
2002,100 começou a sua apenas em 91. O motivo provável para a internacionalização tardia do
gigante estadunidense reside na sua presença no maior mercado doméstico do mundo (EUA),
levando ao relativo atraso no esgotamento das possibilidades de expansão no mercado interno
(Tilly, 2007a).101
No que diz respeito às relações com o mercado mundial, a principal mudança pela qual o
varejo passou no contexto do capitalismo global é óbvia: houve incremento do entrelaçamento do
setor para com o comércio internacional (Rosen, 2005; Lichtenstein, 2006).
As importações dos varejistas se realizam sobretudo na forma de manufaturados de
baixo valor agregado, cujos processos de produção são de baixo ou médio nível de intensidade
99 Como pode-se notar, o fragmento também aponta para o papel da política e das instituições. O tema seráretomado adiante.100 De acordo com a listagem da Forbes, o Walmart é a maior corporação do mundo em todos os anos entre 2002 e2016, com exceção dos anos de 2006 e 2009. Em termos de número de empregados, o gigante estadunidense tambémse situa no topo da lista, atualmente com 2,2 milhões de funcionários empregados diretamente pela empresa.101 Nesse momento da exposição, pode ser notado que o tema das transformações no varejo dos países decapitalismo desenvolvido liga-se de modo íntimo com as mudanças políticas e econômicas das sociedadescapitalistas periféricas, uma vez que a internacionalização das empresas em larga medida se dirigiu a esses países.Trataremos do assunto mais tarde, dedicando-lhe seção específica.
82
tecnológica. Os principais produtos são do setor têxtil e de vestuários, abarcando desde roupas
comuns até o mercado de alta moda. Além destes, também são significativas as importações de
eletrônicos, brinquedos, peças de máquinas de baixa intensidade tecnológica, etc. (Gereffi, 1994;
Rosen, 2005).
Como a maioria desses produtos são importados dos países recém industrializados do
Leste Asiático, parte significativa do surto de globalização pós-70 deu-se por meio da vinculação
entre essas economias e os países de capitalismo desenvolvido (Lichtenstein, 2006; Rosen, 2005;
Gereffi, 1994). Para Lichtenstein (2017), os dois nervos (sic) do capitalismo contemporâneo são
Bentonville, sede do gigante do varejo Walmart, e a província chinesa de Guandong, a qual , além
de pólo industrial, é o principal porto de exportações da china. Ademais, formaram-se eixos
importantes entre as economias capitalistas desenvolvidas (Euro-EUA-Japão). Para além desses
circuitos, houve incremento geral do quociente de importações, porém de modo menos
significativo (Gereffi, 1994).
Um dos principais fundamentos do incremento do comércio mundial é a intensificação
da divisão internacional do trabalho, pois, no que se refere às relações de produção, o comércio
internacional tem como premissa a criação de vínculos de mercado entre produtores, que por isso
constituem uma divisão social do trabalho. Com efeito, mais do que em qualquer outra época
econômica, no capitalismo flexível se constituiu uma articulação global de processos de
trabalho102. Com vistas à interpretação desse fenômeno, foi desenvolvido o conceito de “cadeias
globais de commodities” (CGC),103 cuja utilização tornou-se progressivamente costumeira,
inclusive pelo “mercado”. Wallerstein o elaborou para se referir a “redes de trabalho e de
processos de produção cujo resultado final é uma mercadoria final [finished commodity]”
(Wallerstein, 1974, apud Lichtenstein, 2017, p. 21). De modo mais detalhado, o conceito CGC
define-se como:
Uma rede de vínculos econômicos que integra processos de trabalho transnacionais ecorporações envolvidas no fornecimento global e no mercado mundial de produtos. As
102 De acordo com Hobsbawm (1994), a divisão internacional do trabalho sempre foi traço do capitalismo. Alémdisso, os “anos de ouro” do capitalismo assistiram a um incremento substancial da divisão internacional do trabalho.Nesse ponto, uma vez mais, nota-se que os traços constitutivos da globalização são antes potenciação de tendênciasjá existentes do que fenômeno qualitativamente novo, muito embora, como afirma a lei hegeliana da transformaçãoda quantidade em qualidade, mudanças quantitativas em grande escala gerem fenômenos de natureza nova.103 No original, global commodity chains (Gereffi, 1994)
83
análises das cadeias de commodities – também conhecida como "abordagem das cadeiasde commodities globais (CGC)" – é um desenvolvimento da perspectiva do sistemamundo. Ela desafia a assunção de que o capitalismo mantém-se dentro de estadosnacionais por traçar as dimensões organizacionais, geográficas e culturais de cadeiasmundiais de manufatura e de distribuição de bens (Scott, 2014, p. 99)
Além da ênfase na dinâmica global da economia, o conceito de cadeias de commodities
visa o destrinchamento de relações de poder na dispersão geográfica do capitalismo. Em outros
termos, ele busca identificar a formação dos “pontos chave do poder capitalista e do privilégio ao
longo de cadeias de produção dispersas geograficamente” (Lichtenstein, 2017, p. 22).104
Como já enunciado, o incremento do fluxo de transações internacionais funciona não
somente como dispositivo de redução de custo para as empresas, mas também como recurso de
flexibilização produtiva pelas vias do outsoursing e da substituição de mão de obra por insumos
importados. No que tange ao setor varejista, a vinculação com as cadeias de commodities foi
dispositivo para incrementar a capacidade de vitória concorrencial sobre os concorrentes. O
acesso ao mercado mundial viabiliza vantagens em três direções. Em primeiro lugar, ele implica
redução de custos, uma vez que torna possível a importação de produtos de países recém
industrializados nos quais há pouca regulação da relação capital-trabalho, i. e., há menos
impostos e proteções trabalhistas e ambientais. Em segundo lugar, aumenta a concorrência entre
os fornecedores, permitindo vantagens de mercado para os varejistas. Enfim, em terceiro lugar,
com maior número de fornecedores, diminuem as chances de falta de estoques ou de variações
acentuadas nos preços. Combinadamente, esses três fatores desencadeiam vantagens competitivas
para as empresas que fazem uso das cadeias globais de fornecimento.
Embora a abertura das fronteiras comerciais tenha facilitado o acesso a bens importados
para todos, regra geral o grande beneficiário dessa transição foi o grande capital.105 Dado que a
mobilização de recursos é condição para a participação nas CGC, há facilidade relativa para as
maiores empresas. No varejo essa tendência geral do capitalismo se expressa com mais força do
que nos outros setores. Por realizar função comercial, o papel do varejo é fazer circular as
104 A abordagem do sistema mundo entende que a formação do capitalismo implica a formação de uma dinâmicaeconômica internacional, a qual cria constrangimentos para as economias nacionais. Dentre seus determinantes,situa-se a necessidade da divisão do mundo entre países centrais e periféricos. Enquanto os primeiros monopolizamas condições de financiamento e os padrões tecnológicos mais desenvolvidos, os últimos enfrentam limitesestruturais para o desenvolvimento.
105 Essa consequência da globalização endossa a leitura de Chesnais (2001) a respeito da mundialização do capital,assim como a de Duménil e Levy (2007) a respeito da natureza de classe do neoliberalismo.
84
mercadorias. Por isso, parte significativa dos investimentos dos varejistas se direcionam para a
aquisição de mercadorias cujo tempo de rotação é baixo. Assim, a mundialização implica
aumento de escopo de fornecedores, aumentando o poder de mercado dos varejistas. Como
resultado, torna-se viável a mudança de fornecedores com relativa facilidade. Em termos práticos,
para os varejistas, oscilações positivas do mercado (como a redução de preços) se traduzem
diretamente em benefícios, ao passo que oscilações negativas nem sempre se traduzem em
resultados negativos, já que a condição de oligopsônio anula em parte o funcionamento das leis
de mercado.106 A abertura comercial amplifica algumas das vantagens competitivas que já
acompanhavam as redes varejistas em relação ao pequeno e médio proprietário.
Do entrelaçamento entre capital varejista e mercado mundial surge um tipo específico de
CGC, a qual será mais uma razão para a vantagem da globalização para o grande capital varejista.
Ao analisar a relação entre empresas varejistas e mercado mundial, Gereffi (1994) formula o
conceito de cadeias de commodities coordenadas pelos compradores, o qual ele desenvolve por
meio de uma comparação com o conceito de cadeias de commodities coordenadas pelos
produtores. Cada um desses tipos de cadeias de commodities “representam diferentes modos
alternativos de organizar as indústrias internacionais [organizing international industries]”
(Gereffi, 1994, p. 95), de modo que cada um dos tipos abarcaria determinada “estrutura de
governança”, sendo componente “essencial dos sistemas de produção internacionais” (Gereffi,
Idem, p. 97). Segundo o autor:
Cadeias de commodities dirigidas por produtores referem-se àquelas indústrias em queas corporações transnacionais (...) ou outras grandes empresas industriais integradasrealizam o papel central no controle dos sistemas de produção (incluindo suas ligaçõesanteriores e posteriores [backward and forward linkages]). Isso é mais característico deindústrias de capital e tecnologia intensiva, tais como a de automóveis, computadores,aeronaves e maquinaria elétrica. A dispersão geográfica dessas indústrias étransnacional, mas o número de países na cadeia de commodities e seus níveis dedesenvolvimento são variados. A subcontratação de componentes é comum,especialmente para os processos de produção mais intensivos em trabalho, assim comoalianças estratégicas entre rivais internacionais. O que distingue os sistemas de produção“dirigidos pelo comprador” é o controle administrativo exercido exercido na sede dasTNC’s [corporações transnacionais] (idem, p. 97)
106 Na verdade, a globalização faz parte das condições da hegemonia do capital mercantil, que é característica docapitalismo globalizado. O tema do oligopsônio e do poder de mercado dos varejistas no capitalismo contemporâneoserá retomado no fim do capítulo.
85
Para Gereffi, o critério definidor dos tipos de CGC reside no agente que ocupa a posição
central na rede de relações. Por sua vez, a natureza do agente central ocasiona diversas
características particulares. No caso das cadeias coordenadas pelo produtor, entre outras
características, há monopólio do modo de produzir pelas corporações transnacionais, que
concentram nas suas matrizes os processos de trabalho de alta intensidade tecnológica, restando o
outsoursing para os insumos de baixo valor agregado. Como resultado, forma-se uma divisão
social do trabalho na qual todos os agentes participantes dependem do produtor manufatureiro.
Esse tipo de divisão do trabalho em parte dependia da estrutura das empresas típicas do
capitalismo fordista, as quais concentravam a maior parte da produção no interior das
corporações (Antunes, 2009).
A coordenação de cadeias só é possível na medida em que o capital produtivo está
enredado em circunstâncias que lhe garantem boa condição de mercado. Com efeito, no arranjo
acima descrito, diversos produtores mantinham condição de dependência em relação aos grandes
manufatureiros. Parte dessa condição favorável decorre do marketing em torno dos produtos
manufaturados, pois, havendo demanda pouco elástica em torno de um produto, seu produtor
adquire margem para variar preços e/ou para constranger fornecedores. Como os únicos
detentores do modo de produzir eram os manufatureiros, que se situavam em mercados em
crescente expansão formava-se condição favorável a essa fração capitalista (Gereffi, 1994).
Essa forma de divisão social do trabalho caracterizou parte significativa da história do
capitalismo, sobretudo no período do capitalismo fordista, que se caracterizava pela hegemonia
das corporações manufatureiras. No entanto, para Gereffi (1994), o capitalismo contemporâneo
assistiu à emergência de uma nova configuração de cadeias de commodities, que têm como
agentes centrais corporações varejistas. Para o autor, na conjuntura pós-70 o setor varejista deteve
protagonismo considerável na intensificação da globalização - seja em termos da promoção da
transnacionalização das empresas, seja em termos da promoção da integração comercial.107 Dado
107 Para Gereffi (1994), a formação das CGC dirigidas por compradores implica uma importante mudança nadivisão internacional do trabalho, porém ela não ocasiona a eliminação das CGC dirigidas pelos produtores. Comefeito, parte significativa da globalização ocorreu sob os auspícios do capital produtivo de países centrais, queusaram do comércio mundial para flexibilizar a produção e para baratear insumos. A proposta do autor é explicitarum outro tipo de CGC que convive com as cadeias coordenadas pelos produtores. Essa interpretação de Gereffi(2004) alinha-se com o diagnóstico de diversos autores a respeito do capitalismo flexível, pois entende-se que asnormas flexibilizadoras não substituem as normas típicas do fordismo, mas convivem com elas em combinaçõescomplexas (por exemplo, Harvey, 2014, Antunes, 2009)
86
que as análises do sistema mundo se mantiveram centradas exclusivamente no papel do capital
manufatureiro, a nova configuração das CGC ocasionou uma defasagem da teoria em relação aos
processos sociais.
Segundo o autor, as cadeias de commodities dirigidas por compradores
(...) referem-se àquelas indústrias em que grandes varejistas, comerciantes de marcas[com presença de mercado] e companhias de comércio realizam o papel principal naconfiguração de redes de produção descentralizada em uma variedade de paísesexportadores, tipicamente localizados no Terceiro Mundo. Esse padrão deindustrialização liderado pelo comércio tornou-se comum em [indústrias de] trabalhointensivo e de bens de consumo, tais como tecidos, calçados, brinquedos, produtoseletrônicos de consumo, utensílios domésticos e uma ampla gama de itens feitos à mão(...). Os contratos de trabalho novamente são prevalentes, mas a produção geralmente éconduzida por fábricas independentes do Terceiro Mundo que fazem produtos finais(mais do que componentes ou partes) sob os arranjos dos fabricantes de máquinasoriginais. A especificação é fornecida pelos compradores e pelas companhias de marcaque projetam os bens. (Gereffi, idem, p. 97)
A emergência dessas cadeias é parte do surto de industrialização dos países recém
industrializados do leste europeu, cujo desenvolvimento é dirigido pelo comércio para
exportação. Trata-se de forma particular de divisão do trabalho, na qual há formação de capital
produtivo sob os auspícios do capital comercial.
As peculiaridades das CGC dirigidas por compradores são diversas. Em primeiro lugar,
nelas as negociações comerciais ocorrem dominantemente sem uso de contratos de fornecimento
de longo prazo, como acontece nas cadeias dirigidas por manufatureiros. Disso implica que na
maioria dos casos as encomendas são feitas para períodos de curto ou médio prazo, de modo a
permitir a constante atuação da lei de mercado. Por isso, nela os fornecedores estão
constantemente experimentando concorrência, permitindo aos compradores a mudança de país ou
de região quando conveniente.
Em segundo lugar, nas cadeias dirigidas pelos compradores os produtos são prontos e
quase sempre de baixo valor agregado. Esses produtos são voltados para o consumo final,
comumente seguindo diretamente de algum país exportador para as lojas das corporações de
países desenvolvidos. Trata-se de um sistema diferente das cadeias coordenadas pelos
manufatureiros, nas quais as importações consistiam em insumos produtivos e, portanto, não
produziam mercadorias finais.
87
Por fim, nas cadeias dirigidas pelos compradores “frequentemente as empresas centrais
(...) não possuem nenhuma instalação de produção” (Gereffi, 1994, p. 99). “Essas empresas se
apoiam sobre redes de contratantes articuladas de forma complexa que realizam todas as suas
atividades especializadas” (Idem, 1994, p. 99). “O principal trabalho da empresa principal nas
cadeias de commodities dirigidas pelos compradores é administrar essas redes de produção e de
comércio e garantir que todas as partes do processo se juntem como um todo integrado” (Gereffi,
ibidem, p. 99). Assim, o papel do capital varejista inserido na posição central nessas cadeias de
commodities é articular diversos processos produtivos, o que esse capital consegue fazer por
meio de sistemas de gerenciamento verticalizados e pela mobilização de sofisticadas tecnologias
da informação.
Para Gereffi, a distinção entre os tipos de cadeias de commodities se assenta na
discussão referente à produção em massa e aos sistemas de especialização flexível dasrelações industriais (...). A produção em massa é claramente um modelo dirigido peloprodutor (...) enquanto a especialização flexível foi gerada, em parte, pela crescenteimportância da demanda segmentada e pelos compradores mais criteriosos[discriminating buyers] nos mercados de países em desenvolvimento (Gereffi, idem p.99).
Em sua abordagem das cadeias de commodities, Gereffi se depara com o problema da
flexibilização do trabalho. Para o autor, as problemáticas a respeito da flexibilidade produtiva
frequentemente se assentam somente sobre a flexibilização do trabalho nos mercados domésticos
dos países desenvolvidos. Por sua vez, os conceitos de CGC dirigida por compradores destrincha
a estrutura organizacional da flexibilização no âmbito internacional (ibidem, 1994).
Em sentido mais geral, a formação de CGC dirigidas por compradores vem associada à
emergência do que alguns autores designam por empresa-rede. Estas são um tipo de empresa
caracterizado pela não entrada direta na produção, mas pela criação de marcas com
reconhecimento de mercado e pelos trabalhos imateriais de coordenação (Alves, Wolff, 2007). A
partir do direito de propriedade sobre a marca, essas empresas conseguem delegar funções do
trabalho produtivo para terceiros por meio do outsourcing. Em razão da facilidade dos fluxos de
investimentos internacionais e do barateamento das tarifas comerciais, torna-se economicamente
viável não entrar diretamente na produção.108 A emergência das empresas rede é traço
108 Expressões dessa tendência são encontradas em empresas como Benetton, Nike, Reebok, Adidas, Zara, etc.
88
característico da capitalismo flexível (Alves, Wolff), de modo que sua emergência no setor
varejista é parte de tendências mais gerais do capitalismo contemporâneo.
Como enunciado, em geral o conceito de CGC visa não apenas designar a integração
funcional global, mas também a reprodução de hierarquias regionais. Logo, o conceito de
cadeias coordenadas por compradores conduz à identificação de papel de destaque para o capital
varejista como agente do capitalismo global. Com base desse raciocínio, afirma Lichtenstein:
Nós vivemos em um mundo de rígidas e hierárquicas "cadeias de fornecimento"organizadas e controladas pelos varejistas da América do Norte e da Europa. Mais dametade de todos os conteineres e metade do valor das trocas que move-se do Leste daÁsia até Los Angeles, Newark, Felixtowe (Reino Unido), Rotterdã e Hamburgo sãodestinadas às prateleiras do Walmart, Tesco, Carrefour, Target e semelhantes. Essesmercadores controlam as cadeias de fornecimento, pressionam [squeeze] os produtoresfornecedores de mercadorias e mudam a produção de um local a outro com facilidade eeconomia. Assim como as casas de algodão do século XIX podiam mudar suas fontes desuprimento do Mississipi para a Índia ou Egito, podem hoje as empresas de celulares,camisetas e sapatos encontrar seu local de fabricação em Honduras, no Delta do Rio dasPérolas, na cidade Ho Chi Minh ou em Bangladesh (Lichtenstein, 2017, p. 21)
Em suma, parte significativa do incremento do comércio mundial característico do
capitalismo flexível é realizado diretamente pelo grande capital varejista. Por se tratar de
dimensão fundamental da globalização, infere-se que o capitalismo globalizado em parte foi
criado pelo capital varejista (Lichtenstein, 2006; Gereffi, 1994; Rosen 2005).
Além do seu papel na globalização, o conceito de cadeias coordenadas por compradores
conduz à polêmica tese da mudança nas relações de força entre produtores e compradores ou, em
termos marxistas, das relações entre capital produtivo e capital comercial. Lichtenstein (2006)
defende a tese da “supremacia do capital mercantil” como traço do capitalismo contemporâneo.109
O tema será retomado de modo mais detido na seção final. Por ora, cabe ressaltar que o
capitalismo flexível criou vantagens para o capital varejista, as quais foram conseguidas a
expensas dos pequenos varejistas e dos fornecedores.
Mesmo abstraindo a tese da hegemonia do capital mercantil, não se pode ignorar que
esse conjunto de mudanças configurou nova condição para o capital varejista. Regra geral, a
globalização foi usada como recurso para substituir mão de obra diretamente contratada pela
109 É possível identificar o conteúdo do conceito de hegemonia do capital comercial em diversos autores (porexemplo, Carden, 2011; Abernathy et al, 2000; Rosen, 2005), porém, a expressão só aparece de modo categórico emLichtenstein (2017). O tema será retomado no final, quando será feito um balanço das transformações gerais dovarejo no capitalismo flexível.
89
compra de insumos produtivos mais baratos, levando à diminuição do tamanho das empresas. No
caso do varejo o resultado tomou sentido contrário, pois a emergência de um contexto
excessivamente favorável gerou pura e simplesmente centralização de capital.110 No que tange ao
modelo corporativo, a transição rumo ao capitalismo flexível não implicou em horizontalização
das atividades empresariais, mas em incremento das hierarquias verticalizadas (Lichtenstein,
2017). A vinculação com o mercado mundial trouxe vantagens competitivas para as maiores
empresas, dando oportunidade para que a racionalização das cadeias logísticas se estendesse para
o plano global. Sobretudo as redes descontistas fizeram uso massivo das cadeias globais de
commodities, que foram parte constitutiva dos dispositivos de barateamento típicos dessa
estratégia empresarial.
Essas mudanças são parte de uma nova relação de forças entre capital varejista e
manufatureiros. Porque a globalização possui intrincados vínculos com outros traços do
capitalismo flexível, a assimilação das novas relações entre capital produtivo e comercial
demanda esclarecimento a respeito das outras dimensões da transformação flexível do varejo. Em
especial, salta à vista a importância dos recursos tecnológicos informacionais, sem os quais todo
o novo arranjo seria impossível.
Por esses motivos, antes de extrair algumas conclusões, será feito um resgate das
principais transformações no âmbito das tecnologias da informação. Na sequência, será retomado
o tema da hegemonia do capital comercial.
2.3 O varejo na era da tecnologia da informação
O propósito da presente seção é a realização de um breve panorama das transformações
tecnológicas e organizacionais no setor varejista dos países de capitalismo desenvolvido. Mais
precisamente, o faremos com destaque para o impacto das tecnologias da informação (TI’s).
110 No registro de Harvey (2014), o capitalismo flexível é caracterizado por relações dinâmicas e contraditóriasentre centralização e descentralização de capital, pois ao mesmo tempo em que proliferam os nichos de mercado eque se abre espaço para atuação de pequenas empresas, ocorre intensa centralização de capital. Para a presentepesquisa, essa complexa relação entre centralização e descentralização é mais simples no setor varejista, pois nelepredomina o polo centralização, seja no interior das empresas, seja no campo dos fornecedores, como será tratado naseção final.
90
Como o tema é abrangente, a exposição abarcará sobretudo as principais características e as
tendências gerais.
Em termos teóricos gerais, a interpretação do desenvolvimento tecnológico assenta-se na
tradição marxista, a qual avalia criticamente a natureza da técnica em sociedades caracterizadas
por antagonismo de classe. Em sociedades capitalistas o incremento da capacidade técnica não
corresponde apenas a um processo natural de expansão do controle humano sobre a natureza, mas
também ao propósito de reestruturação das relações sociais com vistas à sua adequação às
necessidades da acumulação de capital.
No que tange às TI’s, além das finalidades mais gerais ligadas à automação dos
processos de trabalho e ao incremento da capacidade de coordenação de maquinaria complexa, a
renovação técnica respondeu às necessidades da crise do capitalismo fordista. Consequentemente,
no seu emprego produtivo o papel assumido pelas TI’s foi o da flexibilização das relações de
produção. Dado o contexto de crise da acumulação, é inevitável que a aplicação tecnológica seja
determinada pelo modo de produção capitalista. Como a flexibilização se tornou condição da
valorização do valor, as mudanças na estrutura produtiva tomaram o curso da superação (relativa)
da rigidez do fordismo. Como produto desses determinantes sociais amplos e como resultado de
lutas de classe, as TI’s se cristalizaram nas formas que conhecemos.
2.3.1 Tecnologias no varejo
O primeiro constrangimento social à aplicação de tecnologias produtivas diz respeito aos
condicionantes gerais do uso de maquinaria no capitalismo. Para Marx (2013), toda técnica de
produção apenas possui aplicabilidade à medida que seus ganhos em termos de produtividade
compensem os custos dos investimentos nas inovações.111 Traduzindo essa consideração para o
setor varejista,112 Cortada afirma que “Tecnologias de manejo de informações [Information-
handling technologies] surgiram quando seus custos caíram o bastante para compensar os custos
de administração dos inventários e do trabalho com os métodos anteriores” (Cortada, 2004, p.
283)
111 Essa problemática a respeito da maquinaria é endossada por Rosdolsky (2001).112 Apesar dessa consideração, Cortada não se filia à tradição marxista, como nossa escrita possa sugerir. Arrumar.
91
Junto a outros fatores, esses condicionantes explicam a razão do relativo atraso da
implementação de TI’s no setor varejista. Diferentemente da manufatura, que já começou a
informatização no início da década de 1950, no comércio o mesmo processo só começou de
modo incipiente no final da mesma década (Cortada, 2004). Essa diferença se traduziu na
discrepância quanto ao pleno revolucionamento do setor pelas TI’s: enquanto nas manufaturas
essa mudança de qualidade ocorreu no final dos anos 1960, no comércio a revolução
informacional só foi implementada de fato no começo da década de 1980 (Cortada, 2004;
Abernathy et al, 2000).
Como até a década de 80 o setor era caracterizado por baixa intensidade tecnológica, no
comércio do período pré-informacional a principal fonte de custos consistia em salários. Por essa
razão, é conhecida a preocupação do setor em tentar implementar inovações técnicas que
desencadeassem eliminação de postos de trabalho (Cortada, 2004; Abernathy et al, 2000).
Costumeiramente, o segundo principal alvo de racionalização capitalista do setor foi a
gestão de estoques, o que se explica por diversas razões. Em primeiro lugar, no período pré-
informacional era grande o conjunto de funções do trabalho113 necessárias nesse empreendimento.
Dado que a maioria das atividades ligadas aos estoques são vinculadas à forma valor e que que
inexistiam recursos técnicos para processar as informações, havia necessidade de funções do
trabalho detidas de qualificação intelectual e técnica. Embora essas atividades não fossem além
da matemática básica em termos conceituais, as relações de grandeza e a multiplicidade de
operações associadas entre si faziam com que o trabalho nessas funções fosse dispendioso e
ineficiente.
Em termos dos fluxos de estoques, frequentemente esse estado de coisas resultava em
problemas de coordenação. Por haver incapacidade de avaliação precisa das vendas, havia
incapacidade de repor de modo os estoques, que frequentemente ficavam aquém ou além da
necessidade. No caso da falta de estoques, a consequência é a perda de oportunidade de vendas e
a piora na qualidade dos serviços da empresa, ocasionando perda de competitividade; no caso do
excesso, há duas possibilidades: ou o capital investido não consegue se valorizar (caso da
incapacidade de vendas), ou há demora no retorno lucrativo do investimento. Nas duas
113 Usamos funções do trabalho em termos genéricos para nos referir às funções do ponto de vista do processo detrabalho, e não para designar as funções sociais do ponto de vista da reprodução capitalista. O tema será explorado naseção 4.
92
possibilidades, há deterioração da taxa de lucro, seja em razão da destruição de valor, seja em
razão da diminuição no tempo de rotação do capital.114 Logo, excessos de estoque implicam
deterioração do desempenho econômico.
Por essas razões, no período pré-informacional os dois principais problemas enfrentados
pelas inovações técnicas eram a eliminação de postos de trabalho, a qual incorre no incremento
da produtividade do trabalho para os funcionários remanescentes, e a racionalização da gestão
dos estoques e da logística em geral. De fato, esses dois pontos foram o foco de todas as
transformações pelas quais o setor passou e, em certa medida, das mudanças pelas quais ainda
está passando.115
2.3.2 Os três períodos
Segundo Cortada, é possível identificar três grandes períodos de transformação
tecnológica no setor.116 Nos termos do autor:
A história das aplicações [tecnológicas] no varejo (e em boa parte no atacado) pode serdividida em três períodos (...). O primeiro, cobrindo o surgimento do digital e asprimeiras aplicações da informática, ocorreu nos anos 50 e ao longo do começo dos 70 –um período relativamente longo de gestação – enquanto se tentava encontrar maneiras deexplorar as tecnologias emergentes. Eles descobriram que computadores de propósitosgerais por si só não proviam aplicações tecnológicas economicamente atraentes e nemcapazes de alterar a indústria. Contudo, no segundo período, nos anos que vão da metadeda década de 70 (...) até o começo da década de 90, as circunstâncias se alteraramradicalmente. Novas tecnologias que eram específicas do setor [emergiram] (...) eaquelas que se mostraram de bom custo benefício e funcionalmente atraentes (...) seespalharam ao longo dessas indústrias. O terceiro período, abarcando os anos em que ainternet tomou sua própria configuração comercial (pós-1994), trouxe mudançasfundamentais no modo como os varejistas e atacadistas faziam negócios (...). As duasindústrias entraram no século XXI passando por mudanças básicas no modo comorealizavam seu trabalho e como se comunicavam e interagiam com os clientes, com osfornecedores e com os rivais. (Cortada, 2004, p. 285-6)
114 O conceito de tempo de rotação do capital, bem como sua vinculação com a taxa de lucro, será abordado nocapítulo 3.115 Como se pode notar, essas transformações replicam tendências gerais da reestruturação produtiva no setorvarejista. De acordo com Antunes (2009), parte significativa da flexibilização do trabalho consiste precisamente naeliminação de postos de trabalho improdutivas e no controle flexível de estoques.116 Certamente, a partir de 2009 seria possível identificar um quarto período de transformações no setor, as quaisdecorreram de inovações ligadas ao uso de smartphones e à manipulação massiva de dados. Contudo, dado o traçoainda muito recente das mudanças, acompanhamos a literatura mais sistemática, que analisou mais detalhadamentesobretudo as transformações até meados da década de 2000. Certamente, trata-se de um caminho instigante paraposteriores pesquisas.
93
Na leitura do autor há um processo progressivo de evolução da capacidade das TI’s no
que tange ao incremento da eficiência do setor varejista. Essa progressão, que não é linear, indica
sobretudo a existência de continuidades entre as inovações tecnológicas dos períodos. A ideia
subjacente diz respeito à necessidade de que toda inovação tecnológica faça uso dos dispositivos
de funcionamento já existentes nas empresas, pois toda evolução tecnológica não ocorre no plano
abstrato, mas em condições históricas concretas. Em alguma medida a destruição criativa
empreendida pelo capitalismo precisa ligar-se às estruturas técnicas existentes.
Procurando apontar para essas continuidades e descontinuidades, serão apontadas as
principais tendências de cada período.
2.3.3 O primeiro período
Como exposto, o atraso na informatização do varejo deveu-se sobretudo à ausência de
número significativo de empresas grandes no setor. Essa condição é explícita quando se compara
as empresas varejistas com o setor manufatureiro, dado que o capitalismo fordista tinha nas
corporações manufatureiras as empresas modelo (sic) da época. É o caso de empresas como GM,
Ford, General Eletric, Standart Oil Co., etc, cujos modelos corporativos eram paradigmáticos
para o capital corporativo (Lichtenstein, 2006). Essa condição do setor varejista foi fonte de
atraso nas inovações técnicas do setor.
Efetivamente, como é padrão no capitalismo, os setores mais concentrados e
centralizados do ponto de vista capitalista são os responsáveis pelas invenções e aplicações de
novas tecnologias (Marx, 2013; Harvey, 2013). A razão para essa característica geral consiste no
monopólio do grande capital sobre a capacidade de financiamento, a qual é condição da criação
de novas técnicas produtivas. Costumeiramente, as inovações técnicas são implementadas
primeiro em grandes corporações. À medida que a produção dessas novas técnicas ocorre em
escala, há barateamento das tecnologias, o que possibilita sua difusão ao longo das cadeias
produtivas. Em razão da ausência de um empresariado concentrado no varejo, o setor realizou
uma informatização pouco significativa até a década de 70 (Cortada, 2004).
Esse estado de coisas explica a natureza das tecnologias da informação no primeiro
período. De modo resumido, ela assumia duas formas: primeiramente, a do emprego de grandes
94
computadores por parte das maiores empresas do setor, traço geral que possui inúmeros exemplos
sobretudo na gestão de estoques;117 em segundo lugar, a do emprego de técnicas voltadas para o
mapeamento das vendas, permitindo identificação de tendências do mercado consumidor,
variações nos estoques e necessidades de reposição.
O saldo geral dessas inovações é ambíguo. Segundo Cortada (2004), no começo da
década de 70 o setor comercial em geral experimentava sentimento de frustração em relação às
tentativas de informatização, tendo em vista que a maioria delas trouxe poucos benefícios em
relação aos pesados investimentos dispendidos.118 Regra geral, as iniciativas fracassaram na
promoção de ganhos substanciais de produtividade, uma vez que elas ainda não conseguiam
realizar uma integração sistêmica do processamento de dados. As informações geradas em cada
uma das partes do sistema eram mediadas por trabalho vivo, que devia interpretá-las e transferi-
las de máquina a máquina ou de máquina a planilhas de preenchimento manual. Como corolário,
enquanto as tarefas de avaliação das variações de estoques continuavam essencialmente
vinculadas às habilidades dos trabalhadores, os dispositivos técnicos mantinham papel secundário
no funcionamento do sistema produtivo.
Por outro lado, sem as inovações, é difícil imaginar a continuidade da evolução técnica
experimentada pelo setor nas décadas seguintes, pois cada inovação têm em seu núcleo os
dispositivos técnicos usados e testados nos períodos anteriores. Ainda que tenha conduzido à
inexpressivas transformações, o primeiro período criou as bases para as mudanças posteriores.
Por certo, os sistemas integrados típicos do varejo globalizado seriam impossíveis sem as
primeiras aplicações de computadores no processamento de dados (Cortada, 2004). Essa regra
geral também é válida para a captação de informações a respeito do consumo, de modo que os
leitores de código de barras seriam inconcebíveis sem os punch cards119 utilizados amplamente
nos anos 70, sobretudo no varejo de vestuário.
117 A esse respeito, ver Cortada, 2004, p. 290-291.118 Nas palavras do autor: “As várias indústrias varejistas entraram os anos 1970 coletivamente frustrados com ograus e inovações tecnológicas em curso. As ferramentas de sofware de controle de inventário permaneciamdispersas [elusive], em larga medida por causa do enorme montante de trabalho necessário para registrar e localizartantos itens de estoque. As grandes lojas, por exemplo, carregavam mais de 100.000 itens, e um relatório do períodonotou que um número tão grande requeria milhões de horas de trabalho para contar e organizar oinventário”(Cortada, 2004, p. 293)119 Os punch cards são cartões com furos. Programando uma máquina para reconhecer os furos com sistemas decódigos, torna-se possível o processamento de informações por máquinas. O varejo utilizava esse sistema paramapear o consumo, sobretudo no setor de vestuário. Essa tecnologia foi precursora dos leitores de códigos de barras.
95
De todo modo, em razão das circunstâncias apontadas, até a década de 1960 o foco das
inovações era dado principalmente sobre os dispositivos organizacionais. A modernização do
varejo no período alterou pouco em relação ao quadro conceitual que construímos no capítulo 1,
ou seja, ela consistiu no aprimoramento do autosserviço, na centralização de capital, na
unificação de dispositivos administrativos e logísticos.120 Embora não contassem com apoio de
inovações tecnológicas substanciais, o aperfeiçoamento do autosserviço, a implementação de
maquinarias para facilitar o trabalho de funções parciais e a gestão taylorista do trabalho
viabilizaram ganhos contínuos de produtividade mesmo antes da revolução informacional. Além
disso, como exposto, algumas transformações no capitalismo do século XX contribuíram para
passar a demanda para as modalidades modernas de varejo. Assim, mesmo sem mudanças
técnicas substanciais, o varejo prosseguiu na racionalização capitalista dos seus recursos, abrindo
caminho para a revolução porvir.
2.3.4 O segundo período
O segundo período se caracteriza pela emergência de tecnologias específicas para o
varejo e pela tendência à sua crescente adoção ao longo de todos os procedimentos do setor.
Pode-se dizer que o signo geral das transformações consiste no esforço de integração de todas as
etapas em sistemas articulados de processamento de dados.
Em termos técnicos, há quatro mudanças fundamentais pelas quais o setor passou no
segundo período: os leitores de código de barras, a formação de tecnologias associadas à Troca
Eletrônica de Dados (conhecido por sua abreviação em inglês - EDI, referente à Eletronic Data
Interchange), os pontos de venda eletrônicos e os computadores. Após exposição de cada um,
será tratado o seu funcionamento articulado, quando demonstraremos a íntima conexão de sentido
entre eles.
120 A causa aparente para que já então existisse impulso por transformações técnicas e organizacionais é ocrescimento da concorrência intrasetorial no setor, a qual pressionava para baixo as taxas de lucro. Contudo, a causade fundo é a formação do modo de produção capitalista no setor, como será tratado mais tarde.
96
2.3.4.1 O leitor de códigos de barra
Originalmente designados como Universal Price Code (UPC), os códigos de barra
(CB’s) provavelmente foram a mais significativa das inovações tecnológicas (Basker, 2015;
Lichtenstein, 2017). A tecnologia consiste no uso de codificação numérica que toma a forma de
listras pretas identificáveis por escâneres a laser.121 Atrelado a computadores, o recurso viabiliza a
associação dos códigos numéricos para com informações do produto, tais como preço e
descrição. Como resultado, torna-se possível a inserção de informações de produtos em
computadores com mera passagem de leitores pelos códigos vinculados ao produto.
As vantagens dos CB’s atravessam todo o sistema varejista, implicando ganhos de
produtividade em todas as atividades do setor. Fazendo uma avaliação geral do seu impacto
econômico, afirma Cortada:
Os mais importantes desenvolvimentos [de tecnologias] digital[is] do século XX queafetaram a capacidade das indústrias usar computadores foram, sem dúvida, a invençãodo chip de computador, a capacidade de transmitir dados digitais por meio de linhastelefônicas, provavelmente o surgimento da Internet e mais certamente a criação doCódigos de Produto Universais122. Seria difícil exagerar a importância deste último itemtanto para a indústria quanto para a economia como um todo. Originalmentedesenvolvido em resposta às necessidades da Indústria Supermercadista nos anos 70, nofinal do século ela estava em uso em todo o varejo, atacado e indústrias manufatureiras;ela também apareceu em muitas outras indústrias, como serviços de entrega e deembalagem, em capas de revista e mesmo em bibliotecas. Nas indústrias varejistas elavarreu os velhos punch tickets como um maremoto, vinculou as lojas com os depósitosde modos claramente econômicos, mudou as relações entre varejistas e fornecedores,mudou o balanço de poder econômico da manufatura em direção ao varejo e no processofez o varejo uma das indústrias mais intensivas no final do século. Em suma, o CBcumpre os requisitos básicos que os acadêmicos demandam de qualquer mudança antesde dotá-las com o adjetivo revolução (Cortada, 2004, p. 296-7, grifos no original)
Para Cortada, a razão para denominar o processo de implantação dos CB’s como
“revolução” reside no seu espraiamento em toda a economia, além, é claro, da profundidade da
transformação das práticas. A inserção desse novo dispositivo tecnológico permitiu às mais
diversas indústrias adotarem um padrão de codificação informacional comum, de modo a
promover ganho de eficiência em todas as etapas das transações econômicas. Além do benefício
121 Existiram (e ainda existem) muitas outra disposições dos signos, porém a mais comum é a de listras pretasalinhadas na disposição vertical.122 Tradução literal para Universal Product Code, que no Brasil são conhecido como códigos de barras. Daqui emdiante sempre traduziremos Universal Product Code (UPC) por Códigos de Barras (CB).
97
econômico ligado à economia de custos, esse dispositivo possui impacto acentuado pela
facilitação da integração de mercado. Criando um padrão comum aceito em toda a economia
nacional – e, atualmente, internacional – torna-se mais fácil a integração dos produtores numa
única divisão social do trabalho. Por isso, além do ganho de eficiência para o capitalista
individual, esse dispositivo traz acentuados ganhos na melhoria geral das condições de
funcionamento da economia.
No que se refere ao varejo especificamente, as principais mudanças concernem ao
trabalho e à capacidade de levantar informações a respeito da dinâmica dos estoques (Basker,
2015; Lichtenstein, 2017). Acerca do trabalho, os leitores de código de barra tiveram implicações
que abarcaram desde a eliminação de postos de trabalho, a desqualificação e a taylorização dos
postos de trabalho de checkout.123 Do ponto de vista da capacidade de controle dos estoques, a
mudança é ainda mais substancial, pois os códigos de barra permitem o levantamento de
informações precisas a respeito das vendas. Segundo Dunlop e Rivkin,
Quando um consumidor compra um item… o leitor de código de barra na caixaregistradora lê o símbolo do código de barra do item. O ponto de venda usa o Códigopara procurar o preço atual do item em uma database local ou em um computadorcentral. Quase ao mesmo tempo, a informação de que a camiseta [e.g.] foi fendida étransmitida para os compradores da companhia [Federated’s buyers]. Lá a informação éusada de dois modos. Primeiro, ela provém a companhia [Federated] com conhecimentopreciso e imediato do que está sendo vendido e do que não. Os compradores podem usaresse conhecimento para ajustar suas compras dos fornecedores. Segundo, édesencadeado um processo de reposição do estoque de uma camisa de tecido, cor,tamanho e estilo particulares de uma loja (Dunlop e Rivkin, 1997, p. 10, apud Cortada,2004, p. 300)
Como os LCB’s viabilizam levantamento das informações de venda no ato da venda, seu
emprego desencadeia a possibilidade de armazenamento de maciços montantes de informação a
respeito das variações de estoques. Por essa razão, “o desenvolvimento do UPC [CB] contribuiu
enormemente para a computadorização das atividades dos ponto de venda”, já que se fazia
necessário o emprego de computadores eficientes para processamento dessas informações. Desse
modo, formaram-se as condições “para a criação de sistemas de processamento internos às lojas
nos 80’s e 90’s, e para a distribuição de aplicações de tecnologias da informação ao longo das
empresas” (Cortada, 2004, p. 297). Os leitores de código de barra cumpriram papel decisivo na
informatização do varejo.
123 A análise mais detalhada do impacto do ponto de vista do trabalho será realizada no cap. 5.
98
Esses sistemas só se tornaram viáveis à medida que ocorreram transformações
tecnológicas mais gerais nas sociedades capitalistas, as quais viabilizaram simultaneamente o
incremento da capacidade dos computadores e seu barateamento. À medida em que a qualidade
técnica dos computadores aumentaram, formaram-se sistemas integrados de computadores,
checkouts eletrônicos e controle de estoques. Inicialmente, o sistema foi implementado pelas
grandes empresas descontistas estadunidenses (com destaque para o Walmart, pioneiro em todas
as inovações tecnológicas, sem exceção, Lichtenstein, 2006; Gereffi e Christian, 2009), para se
generalizar progressivamente em todo o setor. Como será visto adiante, na década de 80 os
scanners e computadores mantiveram-se como privilégio das grandes corporações, só ocorrendo
sua generalização com o surto de expansão dos computadores dos anos 90.
2.3.4.2 Os EDI’s
O impacto dos leitores de CB’s tornou-se ainda mais efetivo em razão de outra
tecnologia desenvolvida em paralelo, com a qual possui funcionamento em estreita conexão: os
dispositivos de Troca de Dados Eletrônicos (conhecido pela sigla EDI). Trata-se de dispositivo
que padroniza as trocas de informação entre sistemas, permitindo fluxos de informações por
linhas telefônicas ou por dispositivos físicos de armazenamento de dados (como os cartuchos).
Em razão da padronização, Os EDI’s viabilizam processamento automatizado de informações, ou
seja, o fazem sem necessidade de mediação direta de trabalho para sua recepção, interpretação,
transferência e organização (Cortada, 2004; Abernathy et al, 2000).
Por essas razões, os resultados dos EDI’s são diversos. Em termos gerais, eles viabilizam
barateamento dos custos com trabalho, uma vez que diminui o número de pessoal necessário para
realização das funções de envio e recepção de informações. Além disso, ele também permite
eliminação de diversos custos com materiais associados à comunicação, tais como papéis, tintas e
outros materiais de escritório (Abernathy et al, 2000).
Apesar da sua relevância para o trabalho, o aspecto mais importante dos EDI’s consiste
nas suas vantagens no campo da integração dos sistemas, o que se torna possível pela aceleração
das comunicações e pelo incremento na sua eficiência. Em termos de tempo, os ganhos consistem
na possibilidade de transferência de informações complexas em formas padronizadas, as quais
99
podem ser enviadas em poucos segundos. Do ponto de vista da eficiência, as benesses dizem
respeito à precisão das informações, que deixam de ser suscetíveis a erros humanos ou a falhas
nos materiais (borrões nas informações, letras ilegíveis, informações incoerentes, depredação dos
materiais, etc). Segundo Abernathy et al:
[o] EDI facilita a rápida transmissão de grandes quantidades de informação com muitomais precisão do que qualquer meio de transmissão via papel. Como os códigos de barra,o EDI envolve tanto desenvolvimentos tecnológicos quanto a padronização de métodospara transferência de dados. A esse ponto, os padrões foram desenvolvidos paracomunicações entre empresas [business-to-business transactions], incluindo ordens decompra, faturas de remessas e transferência de fundos. E pela eliminação de tarefasadministrativas e de atividades de correspondência associadas com informação baseadaem papel, o EDI reduz custos, atrasos de tempo e erros (Abernathy et al, 2000, p. 9)
A combinação dos CB’s e dos EDI’s desencadeou resultados significativos no que tange
à inovação técnica do setor, muitas das quais situadas no âmbito logístico. Com efeito, todos os
autores são enfáticos ao avaliar que a maior parte das transformações técnicas do setor se situam
na parte de trás das lojas (Cortada, 2004; Abernathy et al, 2000).
2.3.5 Lean retailling e a revolução logística
O novo sistema caracterizado pelas tecnologias da informação e pelas transformações na
esfera logística chama-se lean retailing, o qual consiste na implementação dos dispositivos da
produção flexível no setor varejista. Em termos gerais, a lean production se caracteriza não só
pela relação dinâmica entre produção e consumo, mas também pela reorganização técnico-
organizacional com vistas a produzir o máximo com o mínimo de recursos (Antunes, 2009). No
caso do setor varejista, esses protocolos gerais se realizam tanto pela relação dinâmica entre
produção, circulação, armazenamento, organização, distribuição e consumo quanto pelo
incremento da racionalização capitalista sobre o trabalho e sobre os insumos produtivos.
Dada sua natureza dinâmica, a criação das condições do sistema flexível prescreve um
revolucionamento em todos os momentos da atividade comercial, abarcando desde as relações
com consumidores até o contato com as cadeias de fornecimento. Segundo Abernathy et al,
(...) coletar e gerar ordens eletronicamente é apenas uma parte da história. O leanretailling também precisa de um sistema para lidar de forma eficiente com os embarques
100
recebidos de fornecedores, para verificá-los diante das ordens dos varejistas, paraprocessar os recibos e os pagamentos dos fornecedores e para rapidamente dirigir essasordens às devidas lojas. Esses elementos se assentam sobre centros de distribuiçãocentralizados que servem às funções logísticas. Diferentemente de um simples depósito– ou da parte do fundo das lojas de varejo - que funciona como um ponto para retençãode estoque pedido muito antes da venda, um centro de distribuição direcionarapidamente para as lojas embarques que chegam de fornecedores (Abernathy et al,2000, p. 7-8)
Assim, a formação do lean retailing implica automação dos processos de trabalho no
âmbito da logística, uma vez que todo o sistema demanda rapidez e precisão. No âmbito do fluxo
de informações, essas necessidades são atendidas pelas EDI’s e pelo barateamento dos
computadores; do ponto de vista do levantamento das informações no âmbito do consumo, a
necessidade foi atendida pelos pontos de venda computadorizados e integrados com leitores de
CB’s. No âmbito do armazenamento, organização e transportes das mercadorias, a solução foi a
mecanização e a coordenação computadorizada dos fluxos de mercadoria (Cortada, 2004;
Abernathy et al, 2000).
No âmbito logístico, a transição em direção ao lean retailing é sintetizada em uma nova
concepção de modalidade organizacional: os centros de distribuição (CD’s), cujo funcionamento
se distingue dos simples depósitos. Nos termos de Abernathy et al:
Um centro de distribuição é a antítese de um depósito. Os depósitos servem como aexpressão física da necessidade de armazenar grandes inventários de bens, [sendo] oprincipal artefato do varejo tradicional. Os centros de distribuição, ao contrário, forma onexo entre os varejistas e seus fornecedores. Eles servem para processar os bensrecebidos [incoming goods] de forma eficiente, para garantir que as entregas recebidasse articulem [match] os pedidos de compras e para direcionar as encomendas pararemessa na loja correta. Mais do que um lugar para armazenamento, um centro dedistribuição consiste em compartimentos/aberturas [bays] para caminhões de chegada ede saída, uma rede de transporte automatizada e rápida conectando-os e um sofisticadosistema de informação [voltado] tanto para controlar os movimentos de recepção doscarregamentos quanto para processar as transações referentes às remessas (Abernathy etal, 2000, p. 10)
Os depósitos agrupam mercadorias que são gerenciadas por sistemas de controle
tradicionais, ou seja, sistemas fundamentalmente dependentes da habilidade dos trabalhadores.
Por seu turno, os CD’s são dinamicamente ligados aos fornecedores e ao consumo final. Para se
tornar viável, as unidades logísticas precisam ser integradas à administração e às lojas via TI’s.
No sistema flexível, os computadores não só processam as informações, mas também integram
todos os procedimentos das empresas; por sua vez, os leitores de CB’s levantam informações a
101
respeito do consumo e os EDI’s viabilizam a comunicação rápida e eficiente entre lojas, gerência,
CD’s e fornecedores. Em suma, cada uma das partes cumpre seu papel para a criação de um
sistema funcionalmente diferenciado e coerente.
A mecanização dos CD’s atingiu grau de incremento tecnológico extremamente alto,
sobretudo nas grandes corporações, nas quais o sistema logístico possui elevada composição
técnica. Conforme já enunciado, no varejo a maior parte da transformação tecnológica se situa
“na parte de trás das lojas”, uma vez que, em razão das suas características intrínsecas, há pouca
transformação técnica do trabalho no âmbito das lojas. Como atualmente o setor varejista como
um todo é considerado intenso em tecnologia (Abernathy et al, 2000), pode-se ter uma estimativa
do grau de mecanização na logística.
Os modernos CD’s funcionam por meio de uma combinação de máquinas automáticas,
cuja coordenação é computadorizada. A coordenação por meio de computadores ocorre por duas
vias: primeiramente, por meio do controle do sistema de máquinas, que confere conexão e
unidade para os processos de trabalho por meio de dispositivos eletrônicos. Como o processo de
trabalho no capitalismo é cooperativo e complexo tecnicamente, se faz necessária a criação de
funções do trabalho voltadas às dimensões intelectuais.124 No capitalismo da era das tecnologias
da informação, essas funções passaram por processo de substituição de trabalho vivo por
máquinas, processo que costumeiramente atingia apenas os trabalhos manuais. Como recurso de
coordenação de máquinas, o uso de microprocessadores viabilizou a eliminação de postos de
trabalho antes ocupados por gerentes e administradores.
A segundo modo da automação foi a integração dos fluxos de mercadoria de maneira
coordenada e centralizada pelas burocracias gestoras das grandes empresas (Abernathy et al,
2000; Lichtenstein, 2006). Esse processo veio acompanhado do incremento das hierarquias
verticais sobre o funcionamento das empresas, apenas tornando-se viável por meio da
combinação de dispositivos de TI’s, da compressão espaço-temporal das atividades de gestores,
do incremento da racionalização das relações verticais das empresas e de centralização de capital.
O melhor exemplo dessas transformações é a corporação Walmart, que foi vanguarda desse
modelo de empresa (Lichtenstein, 2006; Rosen, 2005).
124 Na tradição marxista e em toda a teoria das classes sociais há um longo debate a respeito da natureza das funçõesde gerência e dos postos de trabalho qualificados. Para um panorama do debate, ver Cavalcante (2012).
102
Sintetizando as transformações na logística do grande capital varejista, escreve Cortada:
Se se quiser comparar a aparência física e a sensação de um depósito dos anos 80 com,digamos, um dos anos 50 para sentir quais mudanças em estilo ocorreram, dever-se-iapassar pelos computadores do escritório principal e ir na propriamente área dos estoques.Lá sistemas de transportes controlados por microprocessadores, inicialmente instaladosna década de 70, tomaram seu lugar, tornando possível a operação mais eficiente demaiores centros de distribuição. Essa tecnologia tornou possível não somente mover comrobôs produtos ao longo do espaço, mas também para colocá-los em várias prateleiras(algumas chegando à 100 pés de altura), colocar produtos dos depósitos em locais queotimizam sua retirada de acordo com distância e frequência das entregas, bem como comos padrões de demanda. De modo típico, havia um padrão de adoção desse tipo detecnologia. Primeiro, um grande atacadista instalaria transportadores coordenados porcomputadores que organizavam os bens e que usavam códigos de scanner paraidentificar os inventários e para movê-los rapidamente. A geração seguinte de tecnologiacrescentemente integrou software e equipamentos que podiam monitorar o temponecessário para selecionar itens para envio ou para comparar os envios escolhidos comordens de compra originais. Nos anos 80, as duas aplicações se realizaramindependentemente; no começo dos anos 90, os atacadistas estavam juntando todas assuas aplicações do chão de fábrica [shop floor applications] em sistemas integrados.Geralmente esses sistemas reduziam 25 por cento do trabalho necessário por unidade detrabalho enquanto aumentava as qualificações técnicas daqueles remanescentes emáreas como a de manutenção de equipamentos de computador, de software, deadministração de TI’s [tecnologias da informação] e de contabilidade. Parte da razãopara o declínio no trabalho também veio do uso de veículos guiados automaticamente(...). Esses são veículos operados por bateria e sem condutores humanos, [sendo]executados, em vez disso, por microprocessadores capazes de selecionar e mover bensdentro do recinto. Algumas partes dos depósitos foram tão automatizados que aadministração economizou custos com energia por manter poucas ou nenhuma luz acesa(Cortada, 2004, p. 304).
A coordenação altamente centralizada e racionalizada criou condições para o
planejamento detalhado dos fluxos de mercadorias, de modo a tornar possível a criação de um
sistema de fluxos constantes de mercadorias. Por meio desse recurso, tornou-se viável a
diminuição do tempo de rotação do capital, uma vez que as mercadorias diminuem seu tempo de
estadia nos estoques. Do ponto de vista capitalista, a implicação é a diminuição no montante de
investimentos cristalizados sob a forma de capital constante, ocasionando aumento da taxa de
lucro.125
A segunda vantagem dos fluxos constantes de mercadoria consiste na possibilidade de
normalizar o trabalho segundo preceitos taylorista-fordianos ou, nos termos de Marx, em
organizar o processo de trabalho de modo a tornar o trabalhador um mero apêndice do sistema de
125 Como já enunciado, o tema será explorado no capítulo 3
103
máquinas.126 Sem a coordenação informatizada, o incremento do controle sobre o trabalho no
âmbito logístico não seria possível no grau em que ocorreu.
Junto à verticalização e à centralização de capital, o conjunto de transformações técnicas
associadas às tecnologias específicas para o setor desencadeou uma transição geral caracterizada
pela integração de todas as atividades do varejo em um sistema funcionalmente diferenciado e
articulado. Nos termos de Cortada:
A tendência fundamental pode ser sumarizada em uma palavra: integração. Os varejistasforam integrando seus sistemas onlines e offlines de POS [pontos de venda] e de outrasaplicações e processos de CRM [gerenciamento de resposta ao cliente] no final doséculo. Ainda que difíceis de realizar, especialmente a coleta de data em tempo hábilpara que pudesse ser usada em tempo real, isso não impediu as grandes redes [varejistas]de iniciar o processo de integração (Cortada, 2004, p. 309)
Todas as características componentes do lean retailing emergiram de modo
relativamente autônomo ao longo do segundo período, sobretudo nos anos 80. Como um
corolário das transformações em cada um dos momentos do empreendimento varejista, emergiu
um sistema integrado no qual cada uma das etapas faz parte de um sistema único.
A integração total é um ideal perseguido pelo capital varejista, que com as
reestruturações visa aumentar a produtividade do trabalho e diminuir o tempo de rotação. Tal
como a subsunção real do trabalho ao capital no registro de Marx (2013), toma a forma de
tendência permanente a transformação dos processos de trabalho com vistas à sua plena
adequação aos interesses da acumulação. Nos dois casos, o capital pretende transformar o
trabalho em mero momento de sua existência.
Por essas razões, necessariamente a tarefa da integração do varejo é sempre inconclusa.
Do mesmo modo que a luta entre capital e trabalho não pode deixar de existir em sociedades
capitalistas, a busca pela plena integração motiva o capital varejista a constantemente
revolucionar o setor. As revoluções características do segundo período, longe de terminarem em
si mesmas, constituíram novo ponto de partida para as transformações do setor, dando margem ao
terceiro período (Cortada, 2004).
126 O tema será retomado no capítulo 4.
104
2.3.6 O terceiro período
Todas características dos sistemas integrados de lean retailing emergiram no segundo
período, mas sua generalização só se efetivou no terceiro. De fato, este se caracteriza por duas
tendências: por um lado pela generalização e intensificação das características marcantes do
segundo período e, por outro, pela emergência de novos traços associados à internet. Com
exceção de algumas novas práticas ligadas à internet, como o e-commerce, suas tendências gerais
são continuidade da formação dos sistemas integrados típicos do segundo período. A própria
internet se inseriu como parte dos sistemas técnicos já existentes, o que é natural, dado que toda
inovação técnica em alguma medida precisa ter como ponto de partida a estrutura técnica
existente. Enfatizando essa continuidade, escreve Cortada (2004):
Pode-se argumentar que com exceção do e-business, a lista poderia começar nos anos 70ou 80, e esse é o ponto chave. À medida que novas tecnologias tornaram-se disponíveis,tais como a Internet, computadores baratos e ferramentas de software mais sofisticadas,elas foram adotadas no auxílio das funções de negócios de uma empresa e ao longo dasua indústria (Cortada, 2004, p. 307)
Além disso,
Muitos padrões evidentes nos anos 80 quando do desenvolvimento de softwares ehardwares permaneceram no começo dos anos 90 à medida em que o processo típico dosprimeiros de preencher as principais aplicações continuou: o uso dos POS [pontos devenda] e do EDI, a movimentação automatizada de produtos, a integração mais íntima[closer integration] e o compartilhamento de informações entre os distribuidores e osclientes varejistas, e assim por diante (Cortada, 2004, p. 305)
Em suma, o terceiro período se caracteriza por uma remodelação do varejo em razão dos
dispositivos de comunicação via internet e incremento da capacidade dos computadores, que
também aumentaram sua presença. Apesar da importância das mudanças, há manutenção do
sistema técnico-organizacional anterior, que mudou pouco em termos de sua estrutura, ou seja, de
como são articuladas cada uma das etapas do processo de trabalho.
No entanto, as continuidades entre segundo e terceiro período não podem apagar as
diferenças. Se é verdade que em termos os princípios as novas configurações apenas replicaram
os modelos anteriores, em termos das práticas concretas surgiram algumas novidades. Uma delas
consiste no incremento dos recursos para mapeamento das preferências dos clientes (Cortada,
105
2004). Com efeito, essa nova tendência se expressou em novas diretrizes para os departamentos
de administração do setor, que passaram a conferir destaque para a constante adaptação aos
interesses de nichos de mercado.127
Dentre esses recursos, destaca-se o aumento de investimento nos estudos sobre
preferências de clientes. Uma parte dessa transição se explica por tendências gerais do
capitalismo flexível. Da década de 80 em diante, ocorreram inovações no âmbito das formas de
gestão das empresas, as quais tiveram na captação da subjetividade dos trabalhadores e dos
clientes um dos seus pontos principais (Prado e Guedes Pinto, 2014; Antunes; Alves, 2004). Além
da iniciativa direta das empresas em direção à flexibilidade, essa transição é fruto de mudanças
na própria área de estudos de administração, que incorporaram crescentemente o problema das
preferências dos clientes. Parte dessa transição epistemológica foi operada pela emergência da
sociologia do consumo, que mobiliza o referencial sociológico para compreender o
comportamento dos clientes. Como resultado geral, a gestão das empresas tomou o problema
como maior centralidade.
O terceiro período também assistiu à formação de uma nova e importante tecnologia: a
identificação por radiofrequência, conhecido pela sigla RFID, que refere-se ao original Radio
Frequency Identification. Essa tecnologia, cuja implementação ainda é relativamente restrita,
permite identificação e rastreamento de ondas de rádio. Ela funciona junto a etiquetas que emitem
as ondas e que contêm informações a respeito dos produtos, de modo semelhante aos códigos de
barra. Porém o RFID possui algumas particularidades que fazem-no mais vantajoso do que os
CB’s.
Suas diferenças principais residem na capacidade de identificação automática, na
identificação à maior distância e na capacidade de rastrear as mercadorias (ILO, 2006). A
identificação automática e à distância são inseparáveis, pois é precisamente esta que permite
aquela, ou seja, é porque se identifica à distância que pode-se automatizar o processo. Com
efeito, por meio dos RDFI pode-se levantar a informação das mercadorias sem nenhum tipo de
trabalho manual direto, dado que a simples passagem das mercadorias pelos detectores é causa
127 Essa nova disposição tomou forma numa nova forma de gestão das empresas face o consumidor, expressando-sena formação do Consumer Response Management como um dos princípios da administração empresarial.
106
suficiente para que a informação seja inserida no sistema computacional. Por meio desse recurso,
diversas atividades podem ser completamente automatizadas (ILO, 2006).
A principal debilidade dos RDFI consiste no seu elevado custo frente aos leitores de
código de barra. Esses custos se referem tanto aos custos diretos com as etiquetas dos RDFI
quanto aos gastos com infraestrutura. No primeiro caso, o limitante é o aumento de preço
excessivo por cada mercadoria, fazendo o recurso viável somente para mercadorias caras (ILO,
2006). No caso dos gastos com infraestrutura, a diferença se deve sobretudo à necessidade de
incremento da capacidade dos sistemas computacionais, pois, por gerarem informações sobre a
localização das mercadorias em tempo real, a identificação por radiofrequência gera enormes
montantes de informação (ILO, 2006). Só sistemas computacionais sofisticados conseguem
processar essas informações sem sobrecarga. Ademais, há necessidade de instalação de antenas
detectoras, que também implicam custos.
Os RDFI’s viabilizam a eliminação de postos de trabalho em inúmeras funções. A
principal etapa na qual sua implementação tem obtido êxito nos últimos anos é a logística, pois
nela as etiquetas podem ser posicionadas em caixas e pallets, viabilizando utilização para muitas
mercadorias. Além disso, com a maior precisão das informações, pode-se melhorar a
racionalização dos trabalhos de distribuição. O RFID permite rastreamento das mercadorias em
tempo real, articulando as chegadas e saídas de mercadoria nos centros de distribuição.
Mediante uso de RFID, a automação também foi tentada no interior de lojas. Em
particular, nos controles de estoques e nos caixas. Nos caixas, a tecnologia permite plena
automação das funções do trabalho, pois a simples passagem das mercadorias pelo caixa é
suficiente para detectar as informações pertinentes à transação comercial. Por isso, o RDFI
inaugura a possibilidade de avanço na automação no trabalho nas lojas. No entanto, dados os
custo do empreendimento, ainda não há viabilidade na sua implementação, que só será viável à
medida houver barateamento de custos (ILO, 2006).
Exposto o quadro de transformações técnicas, serão sumarizadas algumas das principais
implicações da nova configuração do varejo.128
128 Como enunciado anteriormente, outras mudanças do terceiro período se caracterizam pela expansão do e-commerce. O tema não será explorado na presente pesquisa dado sua distância quanto aos problemas da presentepesquisa.
107
2.4 A emergência da hegemonia do capital mercantil e outras implicações
Como já enunciado, uma das transformações mais significativas do varejo no
capitalismo flexível é a centralização de capital, a qual é ao mesmo tempo ponto de partida e
ponto de chegada de todas as novas configurações. Com efeito, os protagonistas das inovações
foram as maiores empresas do setor, que mobilizaram-nas como recurso para vitória
concorrencial. Como discutido no capítulo 1, o uso de vantagens competitivas e a resultante
centralização de capital tanto não é único ao setor varejista quanto não é específico do
capitalismo globalizado. O que efetivamente há de novo é o grau em que deram-se tanto a
renovação técnica quanto o processo de centralização. Nesse processo, que alguns autores
chamam de revolução do varejo (Lichtenstein, 2006; Carden, 2011), o setor experimentou
centralização de propriedade sem paralelos na sua história.129
A associação entre centralização de capital e transformações técnicas implicou uma
mudança no capitalismo contemporâneo, que se caracteriza por uma nova relação entre produção
e circulação. Mais precisamente, emergiu uma nova configuração das relações entre empresas
varejistas e fornecedores.
Como o lean retailing se caracteriza pelo vínculo dinâmico entre produção e consumo,
ele torna necessária a aceleração dos processos de trabalho em toda a cadeia de fornecimento.
Num primeiro momento, essa tendência se expressa nos processos de trabalho subsumidos
formalmente ao capital, ou seja, na força de trabalho diretamente contratada para operar as lojas e
o sistema logístico. No entanto, o impulso de racionalização capitalista, que é alimentado pela
centralização de capital, não se limita aos processos de trabalho diretamente controlados pelo
capital varejista. Como é da natureza do capital, busca-se a reconfiguração de todas as relações
sociais com vistas à sua adequação às condições da acumulação. Consequentemente, tão logo o
capital varejista deteve poder para influenciar a produção no âmbito das cadeias de fornecimento,
ele assim o fez. O impulso à racionalização capitalista, cuja expressão foi sentida primeiro nas
lojas e depois na logística, estendeu-se aos fornecedores assim que o capital varejista deteve
poder para fazê-lo.
129 Se tomarmos em conta empresas como o Walmart, na verdade, pode-se dizer que a generalização pela qualpassou o varejo não encontra precedentes históricos em qualquer setor da economia.
108
Analisando as novas configurações entre capital comercial e fornecedores, Lichtenstein
desenvolve a tese da “hegemonia” dos “capitalistas mercantis da nossa época” (Lichtenstein,
2017, p. 26). Enfatizando o papel dos gigantes do varejo contemporâneo no mercado mundial,
escreve o autor:
Um mundo globalizado de comércio e de trabalho existiu por séculos (...). Mas aglobalização atual difere radicalmente daquela de mesmo algumas décadas atrás porcausa do papel contemporâneo realizado pelas empresas que fazem a cena política dosnossos dias,130 as redes varejistas de grandes lojas que ocupam as posições maisestratégicas antes tão bem guarnecidas pelas grandes empresas manufatureiras da eraFordista. No ponto crucial das cadeias globais de suprimento estão os Walmarts, osHome Depots e os Carrefours dos nossos tempos. Eles fazem os mercados, definem ospreços e determinam a distribuição do trabalho em escala mundial por meio do gigantefluxo de commodities que agora flui ao longo dos seus extremos. A desindustrializaçãode Detroit, Pittsburg e Cleveland implica não apenas a destruição de uma formaparticular de indústria e de comunidade, mas uma mudança de poder dentro dasestruturas do capitalismo global da manufatura para um setor varejista que hoje comandacadeias de fornecimento que envolvem toda a Terra e direciona a força de trabalho deuma classe trabalhadora cuja condição replica muito do que nós pensávamos comocaracterístico unicamente das fases mais desesperadas e primevas do crescimentocapitalista (Lichtenstein, 2007, p. 17)
A característica fundamental da hegemonia do capital mercantil é uma nova relação de
poder entre grandes corporações varejistas e os capitais produtivos. Sua formação depende de um
conjunto de condições, das quais se destacam quatro: aquelas ligadas à forma social da riqueza,
as ligadas à estrutura técnica, ao posicionamento das empresas varejistas na divisão social do
trabalho e aquelas associadas a dimensões político-institucionais.
Do ponto de vista da forma social, a centralização de capital é a condição mais geral. Ela
permite aos grandes varejistas colocarem-se em situação de oligopsônio diante dos fornecedores,
permitindo-lhes a aquisição de poder de barganha sobre os produtores. Essa condição da
centralização atua tanto nos planos nacionais quanto no âmbito internacional, onde a condição de
oligopsônio demanda massiva centralização de propriedade.
O monopsônio é uma condição parcialmente semelhante à de monopólio. Em termos de
identidade, ambos são condições nas quais um agente econômico possui vantagem sobre outro
130 O autor usa a expressão "king-makers of our days", fazendo uma analogia das grandes empresas varejistas de
hoje para com as empresas monopolistas da era dos regimes absolutistas mercantilistas. Dada a dificuldade da
tradução, usamos "empresas que fazem a cena política dos nossos dias" para trazer a ideia da influência sobre a
política.
109
em razão de circunstâncias de mercado. A diferença reside no tipo de relação que concede essa
vantagem: no caso do monopólio, a vantagem se origina do excesso de compradores para um ou
poucos vendedores, enquanto no caso do monopsônio a vantagem advém de um reduzido número
de compradores para amplo número de vendedores.131 A combinação de globalização, TI’s e
centralização de capital criou condição de oligopsônio para o capital varejista, o qual toma a
forma de monopsônio em circunstâncias específicas (Lichtenstein, 2006; Rosen, 2005; Gereffi,
1994).
Do ponto de vista da dimensão técnica, as condições foram criadas pelas tecnologias da
informação específicas do setor. Por certo, as TI’s permitem aos varejistas a detenção de
informação privilegiada a respeito dos produtos, uma vez que sua posição de operador das vendas
finais permite-lhes conhecer as tendências do mercado. No essencial, essas informações
consistem em conhecimento a respeito da dinâmica de mercado, como os locais das vendas, mas
abarcam também as preferências do público consumidor. Com frequência a posição dos varejistas
no mercado permite-lhes a detenção de mais conhecimento a respeito dos produtos do que o
próprio produtor (Abernathy et al, 2000).
Avaliando as implicações da nova estrutura técnica do setor comercial, Cortada (2004)
identifica três grandes consequências, todas alinhadas com a tese da hegemonia do capital
comercial.132 A primeira consiste na “mudança na posição relativa do varejo na cadeia de
suprimento. A segunda foi o declínio do papel central dos atacadistas” e a terceira na “capacidade
dos novos players133 de nichos de mercado de entrar no varejo com uma base massiva, ou seja,
com todos os recursos dos poderosos varejistas: marcas nacionais, grandes redes e [economias
de] escala e escopo” (Cortada, 2004, p. 315). A nova posição do varejo diz respeito ao seu papel
central nas cadeias de commodities; o declínio no papel dos atacadistas é consequência da
expansão das redes varejistas, o que levou-as a criar vínculos diretos com os fornecedores,
cumprindo o papel que antes cabia ao atacado.
131 Por seu turno, a diferença entre oligopsônio e monopsônio advém da quantidade de agentes na condição emquestão: monopsônio ocorre sempre que há um único agente em dado mercado; já o oligopsônio quando háquantidade reduzida de agentes nessa condição.132 Apesar de as conclusões de Cortada confluírem com a expressão “hegemonia do capital comercial” em termosde significado, o autor não usa esta expressão, como ficou sugerido no texto.133 Player é um termo figurado para remeter a empresas que competem em um mercado ou setor.
110
Do ponto de vista do posicionamento das redes varejistas na divisão social do trabalho,
as condições decorrem da posição dos varejistas tanto em mercados nacionais quanto
internacionais. A nacionalização da presença permite formação de concorrência entre os
concorrentes de amplas regiões internas a um país; por sua vez, a presença internacional cumpre
o mesmo papel no plano internacional.
Do ponto de vista institucional, as condições foram criadas pelas reformas neoliberais.134
A integração comercial coloca produtores de todo o globo em situação de concorrência,
deteriorando seu poder de barganha. Já a liberalização financeira facilita a realização de fluxos de
capital internacionais, eliminando a dependência do grande varejista em relação a produtores ao
mesmo tempo em que intensifica a dependência dos produtores para com os varejistas. Para
muitos pequenos produtores, conseguir contrato com empresas como Carrefour e Walmart é
questão de sobrevivência; para essas empresas, é fácil mudar suas cadeias de fornecimento para
outra região, estado, país ou continente.
A nova relação de forças entre capital comercial e produtivo se expressa em novas
formas de relação entre esses tipos de capital. Essas novas configurações abarcam dimensões
quantitativas (distribuição de riqueza) e qualitativas (influência sobre as relações de produção).
De modo resumido, as dimensões quantitativas são aquelas ligadas aos preços do produto e aos
prazos de fornecimento; já as qualitativas dizem respeito à natureza (valor de uso) dos produtos e
processos de trabalho.
As dimensões quantitativas dividem-se em dois eixos. Primeiramente, elas significam
capacidade de imposição de diminuição de custo das mercadorias. Esse fator será fonte de
vantagem competitiva para os grandes varejistas ao mesmo tempo em que desencadeará a
formação de trabalho precário no âmbito dos fornecedores, sendo uma das causas fundamentais
da criação de trabalho em condições degradantes no âmbito das cadeias globais de commodities.
A expressão mais candente dessa tendência são os países recém industrializados do Leste
Asiático, tais como Vietnã, China, Taiwan, etc, mas esse efeito das CGC controladas por
compradores também se faz presente em toda a periferia do sistema capitalista.
134 Para Lichtenstein (2006) parte significativa das reformas neoliberais na economia estadunidense foramrealizadas sob pressão e lobby do grande capital mercantil, que foi seu principal beneficiário.
111
O segundo eixo quantitativo diz respeito à imposição de normas rígidas de tempo de
produção e fornecimento. Com efeito, como já exposto, o lean retailing se caracteriza por relação
dinâmica (flexível) entre produção, circulação e consumo. A fim de viabilizar esse sistema, os
produtores precisam flexibilizar sua produção, uma vez que eles devem ser capazes de fornecer
produtos específicos em prazos curtos. Da parte dos fornecedores, a resposta a esse problema é
dada por três vias possíveis, as quais não são necessariamente excludentes entre si:
- Os fornecedores aumentam seus estoques, permitindo manutenção de certas
quantidades de mercadorias para conseguir suprir pedidos com rapidez;
- Os fornecedores aumentam o uso de contratos de trabalho flexíveis a fim de
responder às mudanças de curto prazo na demanda;
- Os fornecedores implementam eles próprios dispositivos técnicos a fim de mapear
as tendências de mercado, permitindo-lhes a realização de antecipações
relativamente acertadas acerca das necessidades de reposição de estoques.
De um modo ou de outro, as implicações são negativas para os fornecedores. No
primeiro caso, há incidência direta sobre a taxa de lucro do fornecedor, tendo em vista que o
aumento de estoques implica aumento de investimentos cujo tempo de rotação será grande. No
segundo caso, as implicações não necessariamente são negativas para o fornecedor, mas podem
sê-lo, pois a contratação de mão de obra temporária nem sempre é empreendimento fácil ou
realizável. Ademais, quando não há perdas para os fornecedores, há para os trabalhadores, pois
flexibilização dos contratos é forma de precarização do trabalho (Antunes, 2009; Marcelino,
2011).
No terceiro caso, a implicação é o aumento de custos para o fornecedor. No caso de
grandes empresas manufatureiras, o tamanho facilita a diversificação das suas atividades. Além
disso, dadas as condições da reprodução do capital no capitalismo flexível, a maioria das grandes
empresas já possui dispositivos de mapeamento das tendências do mercado, uma vez que
conhecimento a respeito das tendências de curto prazo tornou-se condição da valorização do
valor. Por essas razões, o impacto é quase nulo no que tange ao grande capital produtivo. No
entanto, esse dispositivo é inviável para pequenos fornecedores em razão dos investimentos
requeridos, de modo que o poder do capital comercial sobre os fornecedores se exerce sobretudo
sobre pequenos fornecedores, afirmando-se como poder de classe. As transformações no varejo
112
implicam um incremento do poder de classe do grande capital sobre os pequenos fornecedores, o
qual se expressa na desvantagem competitiva no âmbito do mercado. Para o pequeno
proprietário, as oportunidades de sobrevivência no mercado diminuem, resultando em
centralização de capital no âmbito dos fornecedores.135
Do ponto de vista qualitativo, é possível a identificação de três eixos: primeiramente, há
a imposição de exigências referentes à qualidade dos produtos. No contexto de concorrência
acirrada típica do capitalismo flexível, cresce a necessidade de diferenciação qualitativa dos
produtos, a qual torna-se condição para a conquista de nichos específicos de mercado (Harvey,
2014). No setor varejista, esse fator se expressa na preferência dos consumidores pelas empresas
que oferecem produtos de melhor qualidade em maior diversidade e de forma regular. Esse traço
se traduz na pressão realizada pelas corporações sobre os fornecedores, obrigando-os à contínua
elevação da qualidade dos produtos. Essa tendência é especialmente acentuada no setor
agroalimentar.
O segundo eixo qualitativo diz respeito à imposição de padrões de armazenamento e de
embalagem dos produtos, trazendo importantes implicações para sua circulação (com destaque
para o transporte). Dado seu poder de mercado, os varejistas conseguem impor padrões no
fornecimento, o que facilita seu trabalho na logística. Como um todo, o sistema ganha eficiência.
O varejista é seu grande beneficiário e o pequeno fornecedor arca com os ônus.136
Em terceiro lugar, o capital mercantil passou progressivamente a realizar funções típicas
do capital produtivo. Segundo Cavalcante (2012), o modo de produção capitalista traz consigo
necessariamente transformações nos processos de trabalho, que, a fim de se adequarem à natureza
da acumulação, tornam-se progressivamente mais cooperativos. Por essa razão, cria-se a
necessidade de funções do trabalho voltadas à conexão e unidade das diversas funções parciais do
trabalho. Essas funções produtivas, que originalmente cabiam à classe capitalista, foram
progressivamente designadas para setores assalariados.137 No entendimento da presente pesquisa,
135 Ao analisarem as transformações no setor varejista e suas relações para com as cadeias de fornecimentoagroalimentares, Belik (1999) e Reardon, Timmer e Berdegue (2004) defendem essa tese de modo enfático.136 Como se pode notar, há entrelaçamento entre as dimensões qualitativas e quantitativas das imposições dosvarejistas aos fornecedores, uma vez que parte significativa das pressões pela elevação da qualidade do produtopossuem implicações em termos de custo, os quais não necessariamente são repassados ao produto final.137 Para Cavalcante (2012) essa passagem das funções produtivas do capital para assalariados é um dosfundamentos da emergência das camadas assalariadas não proletárias, que podem ser designadas por classes médias.Nessa conceituação, parte da moderna classe média se caracteriza pela dualidade das funções realizadas nareprodução social: ao mesmo tempo em que realiza funções do trabalho e que é explorada, a classe média exerce as
113
a emergência de corporações varejistas realizou uma nova transição no plano dos agentes
responsáveis pela realização das funções de conexão e unidade.
Como exposto na seção 3, acompanhando Gereffi (1994), afirmou-se que parte
significativa da mundialização foi capitaneada pelo grande capital mercantil, que estruturou um
novo tipo de relação social, as cadeias de commodities coordenadas pelos compradores. Essa
forma de governança das cadeias globais deu margem à formação de empresas que não entram
diretamente na produção, mas que atuam unicamente pela articulação de processos de trabalho
concretos. Do ponto de vista das funções do trabalho, por meio das CGC em parte esse capital
comercial está realizando funções de capital produtivo, pois está atuando para conectar processos
de trabalho parciais, os quais combinadamente se materializam em mercadorias finais. Se essa
tese está correta, em parte o capital comercial assume características de capital produtivo,
borrando as fronteiras entre essas frações capitalistas.
De certo modo, os cinco pontos mencionados (qualitativos e quantitativos) se
caracterizam por uma relação de influência das empresas varejistas sobre a produção de
mercadorias. Do ponto de vista quantitativo, essa influência não determina diretamente sobre o
modo de produzir, embora o faça indiretamente, pois cria a necessidade de incremento da
intensidade do trabalho e de controle sobre o trabalhador. Porém, do ponto de vista das dimensões
qualitativas, é possível dizer que há incidência das corporações varejistas sobre o modo de
produzir dos fornecedores. Se se definem os preços, prazos de produção e de entrega e a natureza
dos produtos, então as corporações varejistas, ao menos parcialmente, dominam a produção. No
que se refere às funções produtivas do capital comercial nas cadeias de commodities, em parte o
capital comercial funciona como capital produtivo.
No entendimento da presente pesquisa, esse quadro de implicações se enquadra de modo
nítido no que Harvey (2005) definiu como acumulação por espoliação. No registro do autor, o
capitalismo possui duas formas gerais de acumulação. A primeira delas é a reprodução ampliada,
que se caracteriza pelo investimento dos lucros com vistas à expansão da escala da produção. A
funções intelectuais capitalistas em termos da função na reprodução social. No interior do processo de trabalho, essasfunções capitalistas possuem duas dimensões, uma delas vinculada à forma social (exercício de autoridade e pressãopor intensificação do trabalho) e outra à dimensão técnica (realização de conexão e unidade das funções particularesdo trabalho). Por essa razão, as classes médias seriam atravessadas por uma contradição, que se expressaria nas suasoscilações e contradições políticas e ideológicas, fazendo-as predispostas tanto à adesão a plataformas progressistasquanto a progremas conservadores.
114
segunda forma é a acumulação pela via da espoliação. Esta consiste em dispositivos que operam
uma transferência de riqueza e de força de trabalho para a forma social capitalista, ou seja,
operam uma formação de capital sem que haja geração anterior de lucro como produto de
investimentos.138 Na problemática de Harvey, o conceito se define sobretudo pela finalidade e
pelo resultado das ações, e não pelos seus meios, de modo que todo empreendimento que opere
transferência de riqueza para um capital é uma forma de acumulaçao por espoliação. Os
dispositivos característicos da hegemonia do capital mercantil se adequam com precisão ao
conceito, já que eles implicam em constantes transferências de riqueza e trabalho dos
fornecedores para a forma social capitalista. Assim, em parte a hegemonia do capital comercial
coincide com o desenvolvimento de recursos de espoliação por parte desta fração capitalista.
Por fim, é necessária uma retificação a respeito das relações entre capitalismo flexível e
hegemonia do capital comercial. Como implícito a partir da bibliografia mobilizada (e. g. Harvey,
2013; Duménil e Levy, 2007; Chesnais, 2001), em grande medida o presente estudo entende que
o capitalismo pós-70 se caracteriza por uma ampla e multicentrada ofensiva da classe capitalista,
cujo objetivo foi reforçar a dominação de classe em contexto de crise política, econômica e
social. Se as teses do presente trabalho estão corretas, uma das faces das reorganizações das
relações de classe típicas do capitalismo flexível é hegemonia do capital comercial. Esta tese não
somente não contradiz a tese da hegemonia do capital financeiro, como também a pressupõe, pois
sem os traços característicos da dominação financeira, a nova relação de forças em favor do
capital mercantil não seria possível. No que se refere ao tema, um tópico a ser explorado em
pesquisas posteriores é: até que ponto a hegemonia do capital comercial não depende
precisamente do seu funcionamento como capital financeiro, isto é, do entrelaçamento entre as
funções comerciais e bancárias? Parte do poder do capital mercantil pode advir da sua capacidade
de financiar a produção e da sua capacidade de fluir ao longo das fronteiras internacionais, sendo
ambos traços típicos do capital financeiro. Se esses fatores são predominantes no funcionamento
da hegemonia do capital financeiro, então é possível que a hegemonia do capital mercantil seja
apenas uma forma de expressão da hegemonia do capital financeiro.
138 A acumulação por espoliação também engloba os dispositivos que operam transferência de riqueza e força detrabalho que já são capital, ou seja, envolve não apenas os dispositivos que atuam concentrando capital, mas tambémaqueles que centralizam capital.
115
Além disso, o poder exercido pelo capital comercial de modo algum se exerce a
expensas do grande capital produtivo e do capital financeiro. Na verdade, as vantagens obtidas
pelo grande capital comercial no capitalismo flexível se exercem sobretudo sobre as pequenas e
médias empresas fornecedoras – muitas das quais mascaram relações entre capital e trabalho sob
a aparência de relações empresa-empresa – e sobre as pequenas e médias empresas do setor
varejista. Assim, mais do que um fenômeno de hegemonia sobre as demais frações capitalistas,
trata-se de um incremento geral da dominação de classe do capital em geral sobre toda a estrutura
de classes. Em outros termos, o incremento das relações de força em favor da fração comercial é
uma forma de particular de desenvolvimento do modo de produção capitalista, não contradizendo
suas tendências gerais e tampouco seus traços característicos na etapa neoliberal.
Dado esse esquema das principais transformações do setor no capitalismo flexível, serão
enfrentados os problemas das relações de classe no varejo.
116
Capítulo 3 – Os sentidos da autonomização do capital comercial
A modernização do varejo implica a autonomização do capital comercial diante do
produtivo, desencadeando a formação de uma fração de classe cuja função é a realização do
comércio de mercadorias. Esta é a tese do presente capítulo.
Por sua vez, a autonomização do capital comercial coincide com a formação de capital
no comércio, pois esse tipo de capital se define precisamente pelo investimento produtivo voltado
para as funções comerciais.139 Como a modernização do varejo consiste precisamente na
formação de capital no comércio, ela implica em autonomização do capital produtivo diante do
comercial. As funções de circulação, que antes eram realizadas em parte pelo capital produtivo e
em parte por pequenos proprietários, passam para uma fração capitalista especializada.
Essa dimensão da modernização do varejo é pertinente para a presente pesquisa por três
razões. Em primeiro lugar, ela permite entrada no debate a respeito da natureza das relações de
classe no setor comercial, dando, por essa razão, substrato para identificação da condição de
classe do trabalhador comerciário. Em segundo lugar, ele traz mais consistência à tese da
formação da dinâmica histórica específica do capitalismo no setor comercial, i e., da tese da
associação entre formação da relação social capitalista e tendência à evolução da produtividade.
Por fim, ela explica a importância da racionalização capitalista do trabalho no comércio,
rechaçando teses que sustentam que o ímpeto por racionalização do trabalho é mais intenso na
produção do que na circulação (e g.: Poulantzas, 1978; Lessa, 2011).140
139 O uso da expressão “investimento produtivo” precisa ser esclarecida, dado que se trata de um setor comercial,no qual parte das funções são improdutivas. O emprego da expressão decorre da consideração do uso do valor doponto de vista capitalista, que leva à consideração de investimento como produtivo para todo valor investido nacompra de mercadorias com o objetivo de produzir um bem ou um serviço com vistas à obtenção de um excedentede valor. Todo uso desse tipo se diferencia do dispêndio de valor como mera renda. Contudo, com isso nãoqueremos apagar as diferenças entre investimento produtivo strictu sensu, ou seja, investimento empregado naprodução de mais-valia, e investimento produtivo no sentido lato, ou seja, quando volta-se à produção de lucro paraum capitalista.
140 Com efeito, essa tese é parte de um preconceito mais geral que circunda os conceitos de trabalho produtivo eimprodutivo. Há uma consideração difusa, com especial incidência na crítica feminista (e. g. Teixeira, 2008;Carrasco, 2008), de que, para Marx, trabalho produtivo e trabalho improdutivo designam, respectivamente, funçõesimportantes e não importantes para a reprodução capitalista. Na verdade, trata-se de uma diferenciação voltada parao papel dos tipos de trabalho na reprodução capitalista e se há uma maior importância em última instância para ostrabalhos produtivos, disso não decorre que os improdutivos sejam pouco importantes. A presente pesquisaacompanha a conceituação de trabalho improdutivo de Duménil e Levy (2005), que o definem como trabalhomaximizador da taxa de lucro. Nessa acepção, os trabalhos improdutivos aumentam a taxa de lucro muito emboranão gerem o elemento da acumulação, sendo por isso de importância fundamental para acumulação. Ademais,
117
O presente capítulo divide-se em quatro seções. A primeira expõe definições que
fundamentam a discussão, tal como o conceito de capital comercial, além de explorar os vínculos
entre o desenvolvimento do capitalismo e a autonomização do capital comercial. A segunda seção
volta-se para o problema dos rendimentos do capital comercial. Como o capital comercial é
improdutivo, sua inserção na exposição dialética de Marx implica em intrincados problemas
teóricos. Sugere-se que a inserção do capital comercial no conceito de modo de produção é
viabilizado pela concreção dos conceitos de taxa de lucro e preços de produção.
A terceira seção sustenta a tese da importância da racionalização do trabalho no
comércio. Além disso, defende-se que, ainda que para o capitalismo o trabalho produtivo seja
mais importante do que o improdutivo, na prática disso não decorre diferenças no ímpeto por
racionalização do trabalho, pois no seu funcionamento concreto o capitalismo é operacionalizado
por dispositivos reificados.
Por fim, a quarta seção volta-se para o problema da implicação da autonomização do
capital comercial do ponto de vista das relações de classe. Nela mostra-se de modo preliminar os
limites das categorias de trabalho produtivo e improdutivo para se definir as classes no setor.
Também são feitas considerações preliminares a respeito da condição de classe do trabalhador
comerciário, tema que será o objeto dos capítulos 4 e 5.
3.1 Definições preliminares
No registro de Marx (1986a), o capital comercial é um tipo específico de capital
caracterizado pela especialização nas funções de circulação de natureza comercial. Trata-se de
um tipo de capital cuja atividade-fim são as atividades necessárias para a realização das
mudanças de propriedade formal das mercadorias.
O surgimento do capital comercial é fruto da autonomização das funções de circulação
originalmente associadas ao capital produtivo. Dada a natureza do valor, o capital produtivo
precisa necessariamente despender custos a fim de garantir a realização do valor portado pelas
mercadorias produzidas. Quando a escala da acumulação se desenvolve ao ponto de tornar
Duménil e Levy (2005) sustentam a interessante tese de que no começo do século XX o capitalismo passou por umarevolução gerencial que crescentemente concedeu centralidade aos trabalhos improdutivos.
118
economicamente racional do ponto de vista capitalista o emprego de um capital para concentrar
essa função comercial, o comércio torna-se campo de investimento e o capital comercial se
autonomiza diante do produtivo (Marx, 1986a; Cotrim, 2009). À medida que há incremento na
escala da acumulação, ocorre uma divisão do trabalho sob a forma de divisão de funções
capitalistas, levando as funções de produção e circulação a serem portadas por diferentes
capitalistas. Nos termos de Marx:
À medida que essa função do capital, que se encontra no processo de circulação, passa aser autonomizada como função específica de um capital específico, fixando-se, comouma função adjudicada pela divisão do trabalho, a uma espécie particular de capitalistas,o capital-mercadoria torna-se capital de comércio de mercadorias ou capital comercial.(Marx, 1986a, p. 203)
A autonomização do capital comercial é um momento do desenvolvimento do
capitalismo, sendo ao mesmo tempo produto e ponto de partida do incremento da escala da
acumulação. É produto porque o capital comercial não pode se autonomizar do capital produtivo
sem que haja dado grau de desenvolvimento da produção capitalista, uma vez que o
desenvolvimento cria as condições dessa autonomização; e é funcional por ser “indiretamente
produtivo” (Marx, 1986a, p. 211)141 para a reprodução capitalista, o que torna-o funcional para a
acumulação apesar do seu caráter diretamente improdutivo.142
A autonomização das funções capitalistas ocasiona incremento da capacidade de
acumulação do capital social total por diversas razões, podendo ser destacados três fatores
principais (Cotrim, 2009). A primeira e a mais geral consiste na diminuição do montante de valor
cristalizado na função de circulação; a segunda na diminuição do tempo de circulação e a terceira
no incremento da integração comercial.
141 Nos termos do próprio Marx: “O capital comercial não cria, portanto, nem valor nam mais-valia, isto é, nãodiretamente. À medida que contribui para encurtar o tempo de circulação, pode `ajudar a aumentar indiretamente amais-valia produzida pelo capitalista industrial” (Marx, 1986a, p. 211-212)142 A autonomização exposta diz respeito à dissociação do capital comercial do produtivo no interior do modo deprodução capitalista, o que não implica desconhecimento da parte de Marx a respeito da existência antediluviana docapital comercial. A formação do capitalismo consistiu precisamente na entrada do capital na produção. Numsegundo momento, dado o modo de produção capitalista desenvolvido, surgiram da dinâmica da acumulação anecessidade de formação de capital no comércio. Para Marx, existe uma “lei de que o desenvolvimento autônomo docapital comercial é inversamente proporcional ao grau de desenvolvimento da produção capitalista” (Marx, 1986a, p.247). Por isso, no interior do modo de produção capitalista, o capital comercial está subsumido às necessidades daacumulação, não possuindo portanto uma existência autônoma.
119
A diminuição no montante de capital cristalizado nas funções de circulação significa que
o capitalista especializado em comprar e vender consegue realizar a função de circulação de
diversos capitais produtivos com menos força de trabalho. Segundo Marx:
A limitada divisão do trabalho na oficina comercial, onde um cuida dos livros, outro dacaixa, um terceiro da correspondência, este compra, aquele vende, este viaja etc., poupatempo de trabalho em enormes quantidades, de tal modo que o número de trabalhadorescomerciais empregados no comércio atacadista não guarda nenhuma proporção com agrandeza relativa do negócio. Esse é o caso porque no comércio, muito mais do que naindústria, a mesma função, quer operada em grande ou em pequena escala, custa igualtempo de trabalho. Por isso a concentração no negócio comercial aparece historicamentemais cedo do que na oficina industrial (Marx, 1986b, p. 222)
Assim, a autonomização do capital comercial ocasiona diminuição do montante relativo
de valor cristalizado na circulação, o que, em outros termos, significa um aumento relativo do
montante de capital produtivo. Esse resultado da autonomização é importante em razão do caráter
improdutivo do capital comercial. Como atividade voltada à mera mudança formal de
propriedade, o empreendimento comercial se encaixa com precisão na definição marxista de
trabalho improdutivo. O ganho de eficiência viabilizado pelo capital comercial permite uma
diminuição do montante de capital social direcionado a essas funções improdutivas, tendo como
contrapartida o aumento relativo do montante de capital social produtivo (adiante retomaremos o
tema). Por isso, o capital comercial é “indiretamente produtivo”; apesar de improdutivo, ele
contribui para o incremento da produção do valor de outros capitais.
Em segundo lugar, a autonomização do capital comercial desencadeia diminuição do
tempo de circulação das mercadorias, uma vez que a especialização nas funções comerciais
viabiliza ganho de eficiência. Como resultado, há diminuição do tempo de rotação do capital,
implicando aumento da taxa média de lucro (Harvey, 2013).
O tempo de rotação se caracteriza pela soma dos tempos de produção e de circulação
(Marx, 1986a; Harvey, 2013). Em outros termos, ele consiste no intervalo que separa a realização
do investimento produtivo da consumação da venda final. Logo, o tempo de rotação abarca o
tempo de produção, dos transportes e de comercialização.
O tempo de rotação guarda relação com a taxa de lucro, pois ele coincide com o
intervalo de tempo necessário para que o valor passe por todas as etapas do circuito de
valorização do valor. Para Marx (2013), a valorização do valor ocorre ao mesmo tempo dentro e
120
fora da esfera da circulação, de modo que ela só se consuma à medida em que ocorra a venda
final. Por essa razão, o tempo de rotação se associa com a capacidade de dado montante de
capital ser reinvestido produtivamente em dado período de tempo. Em outros termos, menores
tempos de rotação viabilizam geração de valor em menor período de tempo, permitindo
dispobilização do capital para novo investimento produtivo. A diminuição no tempo de rotação
torna possível a realização de mais ciclos de produção de mais-valia com o mesmo montante de
capital. Logo, a diminuição no tempo de rotação implica aumento da taxa média de lucro, sendo
por isso de importância fundamental para a reprodução ampliada de capital. Nos termos de Marx:
O tempo de circulação constitui um limite, na verdade um limite elástico, que atua demodo mais ou menos restritivo sobre a formação de valor e de mais-valia, porque afeta ovolume do processo de produção. Por isso, a rotação intervém determinando, não comoelemento positivo, mas restritivo, a massa de mais-valia anualmente produzida e,portanto, a formação da taxa geral de lucro (Marx, 1986a, p. 229-30)
Os dispositivos de aceleração do tempo de rotação são diversos, podendo ser divididos
de acordo com sua relação com a produção. A aceleração do tempo de produção é uma forma de
acelerar diretamente o momento produção, enquanto as atividades associadas às transações
comerciais, às comunicações e aos transportes se referem à dimensão de circulação. Sempre que
ocorrer uma aceleração em qualquer uma dessas etapas, diminui o tempo de rotação e aumenta a
taxa média de lucro.
Em terceiro lugar, a formação do capital comercial ocasiona aumento da integração
comercial, uma vez que poucos capitais comerciais centralizam a função comercial antes dispersa
em diversos capitais produtivos. Essa possibilidade trazida pela especialização de alguns
capitalistas na função comercial permite que eles intermediem as relações de troca de amplas
regiões. Essa intermediação torna-se possível precisamente porque os capitalistas do comércio
concentram apenas a função comercial, permitindo que seu capital investido se especialize na
circulação e, ao fazê-lo, pode-se comprar e vender em um amplo escopo territorial. Como
corolário da nova configuração, realiza-se incremento da divisão social do trabalho, a qual é
fundamental para desenvolvimento da produtividade e para ampliação dos mercados, ambos
condições da acumulação de capital.
Assim, a autonomização do capital comercial cumpre função importante na promoção
do desenvolvimento do capitalismo. Sintetizando os três fatores enunciados, escreve Marx:
121
À medida que contribui para encurtar o tempo de circulação, pode `ajudar a aumentarindiretamente a mais-valia produzida pelo capitalista industrial. À medida que ajuda aampliar o mercado e medeia a divisão do trabalho entre os capitais, portanto capacita ocapital a trabalhar em escala mais ampla, sua função promove a produtividade do capitalindustrial e sua acumulação. À medida que encurta o tempo de circulação, eleva aproporção de mais-valia para o capital adiantado, portanto a taxa de lucro. À medida quereduz a parte do capital confinada na esfera da circulação, faz aumentar a parte docapital diretamente empregada na produção.” (Marx, 1986a, p. 211-2)
Em outros termos, a autonomização é ao mesmo tempo causa e efeito da acumulação de
capital. O incremento da divisão do trabalho, que também é condição e produto do capitalismo,
toma a forma de autonomização da diferenciação das funções de capital.
Para Cotrim, a concorrência, que “é motor da ampliação da produtividade do trabalho”,
“impele à transformação contínua” das “relações entre os múltiplos capitais”, de modo que “o
necessário desenvolvimento da concorrência, síntese das relações de distribuição do capital
social, que o desdobra em produtivo, comercial e financeiro”. Por seu turno, cada uma dessas
frações capitalistas continua a se desenvolver “conforme o exige a expansão do capital produtivo
social” (Cotrim, 2009, p. 106). Ou seja, em última instância há uma relação de causalidade, na
qual o desenvolvimento do capitalismo é a causa fundamental da divisão do capital entre suas
frações. Ao mesmo tempo, porém, a formação das frações capitalistas também determina o
desenvolvimento do modo de produção. Por isso, a autonomização do capital comercial é
momento da formação do capitalismo.
Quando discorre a respeito do capital comercial, um dos problemas enfrentados por
Marx é a explicação da funcionalidade do capital comercial, problema que decorre da natureza
improdutiva do capital comercial. Dada sua especialização na troca de mercadorias, o capital
comercial é improdutivo por excelência. Se ele é improdutivo, como sua formação pode ser
positiva para o capitalismo? Como exposto, a resposta de Marx explora os vínculos entre o
capital comercial e o incremento da capacidade geral da acumulação.
Apesar de solucionar alguns problemas importantes, essa resposta de Marx conduz a um
impasse teórico: se o capital comercial não produz valor, não pode ocorrer geração de mais-valia
na esfera comercial. Dada essa condição, qual a origem do lucro auferido pelo empresariado do
comércio? Ou, nos termos de Marx, “como o capital comercial se apodera da parte que lhe cabe
da mais-valia ou do lucro gerado pelo capital produtivo?” (Marx, 1986a, p. 214). Para responder
a essas perguntas, Marx opera uma transição no nível de exposição de O capital, realizando uma
122
complexificação de algumas categorias teóricas até então expostas.143 Mais precisamente, são
transformadas as categorias de taxa média de lucro e preços de produção, as quais passam a
incorporar o processo de distribuição de mais-valia entre as frações capitalistas (Grespan, 2011).
Como a exposição desse mecanismo distributivo tem como premissa os conceitos supracitados,
será dedicada uma seção para sua abordagem em específico.
Apesar da sua natureza teórica abstrata, essas categorias serão explicativas a respeito dos
problemas da presente pesquisa, como será explicitado em mais detalhes adiante. Adiantando a
argumentação, pode-se dizer que o debate a respeito da natureza do lucro comercial explica a
formação de concorrência entre frações capitalistas a fim de definir qual delas se apropria da
maior parte da riqueza social. Dado o incremento da concorrência daí decorrente, a ofensiva
sobre o trabalho surge como resultado necessário.
Além disso, a discussão a respeito da natureza do capital comercial e do lucro comercial
é importante para sustentar algumas teses do presente estudo. Avalia-se que parte dos intérpretes
(por exemplo, Poulantzas, 1978; Lessa, 2011) faz avaliações equivocadas a respeito da natureza
do capital comercial, criando os fundamentos teóricos abstratos para problemáticas equivocadas a
respeito do trabalho e das classes sociais no setor comercial. Como ficará explícito, a incursão no
tema esclarecerá algumas controvérsias, além de ajudar na sustentação de algumas teses
defendidas pela presente pesquisa.
Como o significado desses conceitos só tem sentido no interior da exposição dialética,
pois esta toma a forma de um progresso constante em direção a conceitos mais concretos, se faz
necessária uma breve recuperação da própria distinção entre produção e circulação no interior da
teoria marxista do capitalismo, para na sequência abordar os conceitos de taxa média de lucro e
preços de produção.
143 Essa constante complexificação do quadro conceitual é o método expositivo de Marx. Nos termos de Reuten e
Williams: “A apresentação é geralmente baseada na transcendência gradual de determinações abstratas, num
movimento rumo a determinações concretas, isto é, de concretização. A apresentação avança através da
transcendência das contradições e ao proporcionar o embasamento cada vez mais concreto - as condições de
existência - das determinações abstratas anteriores” (Reuten e Williams, 1989, p. 22, apud Saad Filho, p. 30)
123
3.2 O lucro comercial
3.2.1 Taxa média de lucro e preços de produção
Um dos pilares da teoria marxista consiste na centralidade da exploração do trabalho
para a natureza de sociedades capitalistas. Com efeito, segundo Saad (2011), a teoria do valor é
inseparável da teoria da mais-valia, sendo a exposição da exploração do trabalho um dos seus
principais objetivos.
A importância da exploração do trabalho para a teoria marxista decorre de muitas razões,
dentre elas a explicação da dinâmica da acumulação de capital. Como o capitalismo opera pela lei
da troca de equivalentes, coloca-se um problema para a teoria econômica: como explicar a
capacidade de expansão do capitalismo? Se as trocas são entre equivalentes, de onde advém o
excedente, base do crescimento econômico? Na problemática marxista, o problema é resolvido
pela mais-valia: a partir da relação de exploração do trabalho, torna-se possível a geração do
excedente sem que um capitalista precise lucrar a expensas de outro capitalista, o que
inviabilizaria a acumulação. Só com a relação de exploração pode-se explicar a acumulação de
capital em geral, ou seja, não a acumulação de capitais particulares.
Dadas essas considerações, a existência de capitais improdutivos coloca um problema
para a teoria marxista, que é o da explicação da geração de lucros nos setores improdutivos. Se
não há geração de mais-valia, não se gera o elemento do lucro. Nos termos de Marx:
O capital comercial é apenas capital funcionando dentro da esfera da circulação. Oprocesso de circulação é uma fase do processo global de reprodução. Mas no processode circulação não é produzido valor, portanto tampouco mais-valia. Ocorrem apenasmudanças de forma da mesma massa de valor. De fato só ocorre metamorfose dasmercadorias que, enquanto tal, nada tem a ver com criação de valor ou alteração [domontante] de valor (Marx, 1986a, p. 211)
E, procurando explicar de onde vem o lucro do capitalista comercial, prossegue:
Se na venda da mercadoria produzida é realizada mais-valia, isso ocorre porque esta jáexiste nela; por isso, no segundo ato, no novo intercâmbio de capital monetário pormercadoria (elementos da produção), não é realizada nenhuma mais-valia pelocomprador, mas apenas é introduzida, pelo intercâmbio do dinheiro por meios deprodução e força de trabalho, a produção de mais-valia (Marx, idem, p. 211)
124
Dada essa condição, qual a origem do lucro auferido pelo empresariado do comércio?
De onde vem a mais-valia que é “introduzida” no ato de intercâmbio? Para responder a esse
complexo problema, Marx opera uma transformação em todos os conceitos de O capital. De
modo mais preciso, a partir das categorias de taxa média de lucro e preços de produção, são
explicitados os dispositivos por meio dos quais há distribuição de mais-valia entre os capitais,
distribuição que ocorre pela apropriação de um montante de mais-valor pelo capitalista do
comércio.
Em sua natureza mais abstrata (isto é, abstraindo o capital comercial), os conceitos de
taxa média de lucro e preços de produção são dispositivos de distribuição de mais-valia entre os
capitais produtivos. Marx formula-os à luz da concorrência intersetorial, que se caracteriza pelo
constante fluxo de investimento para os ramos mais lucrativos (Saad, 2011). Como a natureza do
capital se caracteriza pela busca do mais-valor, para o capitalista é indiferente se seus
investimentos são feitos em um ou outro setor em particular, apenas sendo importante a
possibilidade de valorização do valor em maior quantidade possível. Como resultado desse
processo, os setores mais lucrativos atraem capital do mesmo modo que os menos lucrativos o
repelem, desencadeando pressão de mercado sobre os preços. Disso resulta a uma
complexificação da lei da troca de equivalentes, levando as mercadorias a não serem trocadas
por seus valores, mas por seus preços de produção (Marx, 1986a; Saad, 2011).
Os preços de produção são definidos pelo custo de produção multiplicado pela taxa
média de lucro sobre o investimento de capital (Marx, 1986a). O resultado concreto dos preços de
produção é a equalização da taxa de lucro em todos os setores, levando a que todo montante de
capital adquira a capacidade de auferir lucro de acordo com uma média.144 Sem a sua existência,
as taxas de lucro seriam desiguais em razão das distintas composições orgânicas dos capitais ou,
em outros termos, em razão das distintas proporções de capital constante e variável (Marx,
1986a). Como a origem do mais-valor é a exploração do trabalho, os capitais com maior
proporção de capital variável seriam mais lucrativos. A formação dos preços de produção implica
uma transferência de mais-valia em direção aos setores de maior composição orgânica.
144 Na presente apresentação, as categorias são apresentadas de forma simplificada, dados os propósitos do estudo,que apenas tangenciam os temas em questão. Com essa simplificação não se está ignorando a dificuldade da naturezadesses conceitos nem tampouco as controvérsias nas quais eles estão envolvidos. A respeito do tema das fraçõescapitalistas e da divisão da mais-valia, ver Grespan, 2011.
125
3.2.2 A inserção do capital comercial na exposição dialética de O capital
Quando teoriza a respeito da taxa geral de lucro pela primeira vez, a exposição de O
capital ainda ignora a existência de frações capitalistas por tipo de capital145, já que se considera
apenas a existência do capital produtivo ou, segundo a formulação de Rosdolsky (2001 [1957-
58]), o capital em geral.146 Num primeiro momento, a concreção da exposição (dialética) do livro
3 ocorre pela inserção da concorrência intersetorial, a qual conduz à conceituação da taxa geral
de lucro e aos preços de produção. Num segundo momento, a exposição não mais ignora as
frações capitalistas, sendo o capital comercial a primeira fração apresentada.147 Nos termos de
Marx:
Mas por que se admitiu que o capitalista industrial vende ao comerciante as mercadoriaspor seus preços de produção? Ou, muito mais, o que foi pressuposto nessa admissão?Que o capital mercantil (aqui só trataremos do mesmo enquanto capital de comércio demercadorias) não entra na formação da taxa geral de lucro. Partimos necessariamentedesse pressuposto na apresentação da taxa geral de lucro porque, naquele momento, ocapital mercantil enquanto tal ainda não existia para nós e, em segundo lugar, porque olucro médio, e portanto a taxa geral de lucro, de início tinha de ser desenvolvidonecessariamente como equalização dos lucros ou mais-valia realmente produzidos peloscapitais industriais das diferentes esferas da produção. No caso do capital comercial, noentanto, temos de tratar de um capital que participa do lucro sem participar de suaprodução. Agora é necessário, pois, complementar a exposição anterior. (Marx, 1986a, p.215)
E ainda:
145 De acordo com Saes (2014) o tipo de função capitalista é um dos principais critérios para definir as frações declasse. Os dois outros principais critérios são o posicionamento no sistema internacional de Estados e a magnitude docapital. Além do capital comercial e do produtivo, no que tange á função na reprodução social as outras principaisfrações são o capital portador de juros e o capital fundiário.146 Para Rosdolsky (2001) no livro 1 de O capital Marx abstraiu a esfera da concorrência, o que permitiu-lhe ignorarfenômenos associados a essa dimensão de existência do capitalismo, como a taxa média de lucro e a distribuição damais-valia entre as frações capitalistas. Essa teorização abstrata do capitalismo, no qual não haveria cisões no interiorda classe capitalista, coincidiria com o conceito de capital em geral. O objetivo fundamental do conceito de capitalem geral é destrinchar as relações de exploração no capitalismo, da qual todas as frações capitalistas dependem ecom qual guardam relações simbióticas, muito embora escondidas sob diversas camadas de reificação.147 Com efeito, na interpretação de Saad Filho (2011), o objeto do livro 3 consiste precisamente na inserção daconcorrência intersetorial e no correspondente fracionamento da mais-valia entre os diversos tipos de capital. Emrazão desses novos conceitos, opera-se transformação em todo o quadro analítico até então apresentado.
126
Na formação da taxa geral de lucro, o capital comercial entra de modo determinante prorata148 de parte que ele constitui do capital global. Com isso surge também umadeterminação mais precisa e mais restritiva do preço de produção. Por preço de produçãodeve entender-se, depois como antes, o preço de mercadoria = seus custos (...) + o lucromédio sobre eles. Mas esse lucro médio é agora determinado de outro modo. Edeterminado pelo lucro global que o capital produtivo total gera; mas não é calculadosobre esse capital produtivo total (...). Na taxa média de lucro já está calculada a parte dolucro global que cabe ao capital comercial (...). O preço de produção ou o preço peloqual o capitalista industrial vende enquanto tal é, portanto, menor do que o preço deprodução real da mercadoria; ou, se considerarmos a totalidade das mercadorias, entãoos preços pelos quais a classe dos capitalistas industriais as vende são menores do queseus valores. (Marx, 1986a, p. 216)
Em outros termos, a inserção do capital comercial, que antes era abstraído, complexifica
todas as categorias de O capital, pois entra em consideração um montante de capital social cuja
função é improdutiva mas imprescindível à reprodução capitalista. Na medida em que exista um
montante de capital cristalizado em funções improdutivas, decorrem duas implicações.
Primeiramente, há diminuição da taxa média de lucro, já que aumenta o capital social sem
variação na massa de mais-valia total; em segundo lugar, faz-se necessária a explicitação dos
dispositivos de distribuição da mais-valia entre os tipos de capital, já que, de outro modo,
nenhum capitalista investiria na esfera comercial.
A divisão da mais-valia entre o capital produtivo e o comercial toma a forma da
decomposição da mais-valia entre lucro comercial e lucro empresarial. Resumidamente, essa
distribuição se operacionaliza por meio da redefinição das categorias taxa média de lucro e
preços de produção. A primeira diminui à medida que ocorre formação de capital na esfera
comercial, enquanto a segunda se altera para acomodar os fluxos de renda entre as frações de
capital.
O modo concreto dessa operação de transferência é uma mudança nos preços de
produção. Ocorre uma diminuição no preço de produção das mercadorias vendidas pelo
capitalista industrial. Por seu turno, o capitalista do comércio as compra por um preço de
produção menor e as vende por seu preço de produção efetivo. Essas variações devem ocorrer de
modo a tornar possível uma apropriação de valor idêntica à taxa média de lucro, tanto para o
capital produtivo como para o comercial. Nada assegura que a realização dessas variações no
preço de produção ocorram de modo a viabilizar uma taxas de lucro setoriais em pleno
alinhamento com a média geral. No entanto, dada a prevalência da relação social capitalista, há
148 “Pro rata” é sinônimo de “em proporção”.
127
tendência em direção à média, pois os capitalistas investem nos setores mais lucrativos e retiram
capital dos setores menos rentáveis. Ao fazê-lo, cria-se uma pressão de mercado que faz o
montante de mais-valia apropriado por cada fração tender a equalizar-se com a média.
Assim, por meio desses dispositivos distributivos, os quais são capitaneados pela lei de
mercado,149 ocorrem redefinições das taxas média de lucro e dos preços de produção, que
caminham para uma tendência à distribuição equânime do mais-valor. Se a citação acima de fato
representa o pensamento de Marx, na consumação de sua apresentação dialética ele consideraria
como preço de produção e como taxa média de lucro apenas as configurações finais desses
conceitos, nos quais teria ocorrido transformações pela incorporação no quadro teórico geral pela
inclusão das frações capitalistas, bem como dos dispositivos de distribuição de valor. Em outros
termos, ele apenas apresentou suas configurações abstratas como parte de um empreendimento
teórico, que tinha vistas a uma posterior concreção.
3.2.3 Exposição dialética e classes sociais
Dado que o capital na esfera comercial é improdutivo do ponto de vista da reprodução
social, depreende-se que o trabalho na esfera comercial por excelência é improdutivo. Uma parte
dos intérpretes extrai dessa conclusão teses a respeito da condição de classe do trabalhador
comerciário, excluindo-o do proletariado. No entanto, essa conceituação é insuficiente para a
designação da posição de classe, ainda que detenha seu papel. As razões para tanto são diversas e
elas serão objeto de investigação mais tarde. Por ora, será exposta a inconsistência dessa tese
mesmo sob o ponto de vista do conceito de trabalho improdutivo.
Comumente (por exemplo, Poulantzas, 1978; Lessa, 2011), há um erro de interpretação
quanto à leitura dos excertos de Marx a respeito do trabalho no comércio.150 Quando trata do
assunto, Marx discorre sobre as “funções peculiares do capital comercial” (Marx, 1986a, 203),
mostrando-as “em sua forma pura” (Marx, 1986a, p. 204). Essas funções consistem nas
atividades ligadas à mudança formal de propriedade das mercadorias. Na sua problemática, as
149 Essas considerações mostram que alegações de que Marx não considera a lei de mercado são inócuas, pois osmecanismos de mercado são parte intrínseca de diversos conceitos fundamentais da obra de Marx.150 Com efeito, uma parte do problema reside na não consideração da provisoriedade da teorização de Marx arespeito do tema: ele não foi além de excertos, alguns dos quais contraditórios entre si, diga-se de passagem.
128
funções do trabalho no comércio de modo algum se reduzem a essas atividades. Nos termos do
próprio Marx:
Para nosso propósito, em que se trata de determinar a diferença específica dessa figuraparticular do capital, é preciso, portanto, abstrair aquelas funções. À medida que ocapital que funciona apenas no processo de circulação, especialmente o capital decomércio de mercadorias, combina em parte aquelas funções [as funções produtivas]com as suas, ele não se mostra em sua forma pura. Depois de despojado e distanciadodaquelas funções, temos a forma pura do mesmo (Marx, 1986a, p. 204)
A razão para as considerações de Marx que isolam as funções específicas do capital
comercial é o nível de abstração da sua exposição teórica. Ele não está preocupado com um
objeto histórico empiricamente dado (concreto), mas com o modo de produção capitalista
enquanto objeto teórico abstrato.151 Em outros termos, Marx não está apresentando uma formação
social concreta nem um processo histórico empiricamente dado, mas o conceito de modo de
produção capitalista.152 Por isso, ele abstrai de elementos da existência concreta dos objetos,
expondo apenas aquelas dimensões que coincidem com certos níveis de abstração.
Desse ponto de vista, a razão para Marx diferenciar as atividades comerciais das
“puramente comerciais” (Marx, 1986a) diz respeito à finalidade da seção sobre o capital
comercial, a qual situa-se no âmbito geral do livro terceiro: seu objetivo é progredir na concreção
teórica do objeto, de modo a não mais ignorar dimensões da sua natureza efetiva ou real. Quando
expõe o conceito de capital comercial, a ênfase é dada sobre dimensões que em parte contradizem
os conceitos até então apresentados. Como o capitalismo em geral se caracteriza pela relação
entre o capital produtivo e o trabalho em termos genéricos, não haveria sentido na exposição das
dimensões produtivas do capital comercial, pois elas não ocasionariam qualquer mudança no
conceito de modo de produção capitalista, já que são inteiramente alinhadas com o conceito de
capital em geral. Esse entendimento se alinha com a interpretação de Arthur, que concebe a
151 A exposição dialética se caracteriza pelo constante movimento de concreção das categorias. Primeiramente, elassão apresentadas sob forma abstrata e só mais tarde são progressivamente corrigidas por novas categorias, formandoum movimento progressivo de conservação-transformação (ou conservação-complexificação) do sistema deconceitos.
152 A respeito das relações entre concreto e abstrato e suas implicações teóricas, a presente pesquisa acompanhaAlthusser (1978). Acredita-se que as formulações do autor acerca da natureza dos conceitos teóricos “propriamenteditos” e dos conceitos empíricos sejam precisas, assim como sua interpretação acerca da natureza do objeto teóricode O capital, que é entendido como um objeto teórico abstrato, e não como fenômeno histórico concreto.
129
apresentação dialética como um processo de constante transformação dos conceitos. Nos termos
do autor:
(…) em um argumento dialético os significados dos conceitos sofrem modificações, poiso significado de qualquer elemento em uma figura completa não pode ser concretamentedefinido logo de saída. Se o significado de cada elemento é determinado por seu lugar natotalidade, mas a exposição é forçada a começar com alguma relação isolada (…), entãoo momento inicial pode ser caracterizado apenas em um modo subdeterminado eprovisório; na medida em que a apresentação do sistema avança para relações maiscomplexas, e concretas, a definição originária de um conceito move-se igualmente, emgeral em direção a uma determinação mais completa (Arthur, 2016, p. 41).
Segundo o entendimento da presente pesquisa, a não consideração a respeito dessa
natureza (teórica abstrata) da exposição de Marx é fonte de inúmeros erros quanto à determinação
de classe do trabalhador comerciário. Com efeito, desse ponto de vista acerca da exposição de
Marx se depreende a existência de funções produtivas do trabalho no interior da dimensão de
circulação da reprodução capitalista. Marx designou-as “momentos materiais” da esfera da
circulação (Marx, 1986a, p. 241).153
Os momentos produtivos da dimensão da circulação da reprodução capitalista dizem
respeito a todas as atividades cujo resultado imediato não é a mera mudança de propriedade
formal das mercadorias. Por isso, “indústria dos transportes, armazenamento e distribuição das
mercadorias (...) devem ser considerados como processos de produção que persistem dentro do
processo de circulação” (Marx, 1986a, p. 203). Como a exposição do capítulo 4 argumentará,
essas funções do trabalho certamente compõem a maior parte da força de trabalho no comércio.
Assim, parte significativa das funções do trabalho no comércio são produtivas do ponto
de vista capitalista. Se há diferenças entre trabalhadores do comércio e trabalhadores da produção
desde o ponto de vista da exploração do trabalho, essa diferença é menos nítida do que sustentam
autores como Poulantzas (1978), Lessa (2011) e Trópia (1994).154 Essa consideração mostra a
necessidade de mobilização de outros critérios para explicitar as diferenças internas da classe
trabalhadora.
153 Os momentos materiais se contrapõe às funções especificamente voltadas à mera mudança na propriedadeformal das mercadorias.154 No caso de Poulantzas, nem todos os trabalhadores são excluídos da classe trabalhadora, uma vez que parte dostrabalhadores dos supermercados, em razão da concentração de capital, passariam a realizar funções manuais,configurando a formação de um setor proletário no interior do varejo. O tema será retomado no capítulo 4.
130
O ponto de partida metodológico do presente estudo conduz a duas conclusões.
Primeiramente, os conceitos de trabalho produtivo/improdutivo possuem limites para tratar da
condição de classe do trabalhador comerciário.155 As imprescindíveis tarefas de estabelecimento
das fronteiras entre as classes e de identificação das diferenças internas às classes demandam
conceitos mais concretos do que a chave produtivo-improdutivo.156
Em segundo lugar, mesmo aceitando a dualidade produtivo/improdutivo como o critério
definitivo das fronteiras de classe, revela-se a inadequação de diversas problemáticas da classe
operária, tais como as de Poulantzas, Lessa e Trópia. Se a classe operária se define pela relação
de exploração, a qual é condição qualitativa, os trabalhadores do comércio fazem parte do
proletariado.
Outro ponto que muito contribui com a discussão é o da formação do trabalhador
coletivo na esfera comercial. Com efeito, como será tratado pela análise do capítulo 4, é difícil
discriminar as funções produtivas das funções improdutivas do trabalho no varejo. Também a
flexibilidade produtiva contribui para essa dificuldade de separação, tendo em vista que os
protocolos da alternância de funções e de multifuncionalidade levam os trabalhadores a
cumprirem funções do trabalho produtivas e improdutivas.
Dadas as considerações supracitadas, depreende-se que o capital comercial é constituído
ao mesmo tempo por funções produtivas e improdutivas, do que se conclui que há exploração do
trabalho no comércio. Essa questão soluciona alguns problemas, mas deixa outros em aberto: se
155 Analisando o problema da proletarização do trabalho docente, Cavalcante (2017) sustenta a tese da insuficiênciado papel da chave produtivo-improdutivo para designação do pertencimento de classe, embora o faça por umcaminho conceitual distinto do do presente capítulo. Entre outros argumentos, Cavalcante defende a necessidade deconsideração acerca da natureza concreta dos processos de trabalho como um dos critérios para designação dasposições de classe. Ao fazê-lo, torna-se possível discriminar diferentes classes no interior dos assalariados. Elesustenta que as diferentes conteúdos materiais do trabalho implicam em diferentes condições de proletarização dotrabalho, concluindo que o modo de produção especificamente capitalista se desenvolve desigualmente em cadaposição. Além disso, conclui que a natureza coletiva ou individual dos processos de trabalho implica em diferentescondições para a organização coletiva, fator também relevante para o pertencimento na classe proletária. Essasconsiderações são especialmente relevantes para o presente estudo, pois tratamos de um setor assalariado pelo capitalmas cujas condições materiais foram historicamente hostis á plena dominação capitalista. Acredita-se que astransformações do varejo no capitalismo flexível avançaram a dominação do capital sobre o trabalho, aproximando otrabalhador comerciário da condição proletária. As linhas argumentativas apresentadas por Cavalcante (2017;2014)serão retomadas no capítulo 4, quando esses problemas serão tratados em específico.156 A respeito desse problema, o presente estudo concorda com Patrícia Trópia (1994), que critica o excessivo usode categorias abstratas no debate sobre classes, situação que não seria problemática se as categorias abstratas fossemparticularizadas em categorias concretas. Apesar dessa concordância geral, as conclusões do presente estudodivergem das teses da autora a respeito da condição de classe do trabalhador comerciário.
131
há funções do trabalho improdutivas, existem algumas dimensões do capital varejista que são
improdutivas; e se há funções capitalistas improdutivas, há funções do trabalho improdutivas
quando essas funções são realizadas por força de trabalho assalariada. Em função desse estado de
coisas, o capital e o trabalho no comércio são parcialmente diferentes do capital produtivo no que
se refere à condição de produtivo-improdutivo. Em termos qualitativos, seriam iguais, porque
valorizam capital nos momentos de produção de valor, mas teriam uma diferença quantitativa em
relação ao capital industrial propriamente dito pois uma parte das funções seriam improdutivas.
No que se refere às funções improdutivas, a presente pesquisa acompanha a solução
parcial fornecida por Carchedi (1996). Segundo o autor, as funções do trabalho situadas na esfera
da circulação não seriam exploradas do ponto de vista capitalista, mas oprimidas
economicamente. Esse conceito visa designar o conflito de classe entre trabalhador comerciário e
capital varejista. Essa abordagem sustenta que o trabalho do comerciário é imprescindível para a
realização do valor na esfera da circulação, já que é momento necessário da apropriação da mais-
valia realizada pelo capital comercial. Contudo, o trabalhador comerciário não participa desses
ganhos, pois teria sua força de trabalho determinada do mesmo modo que o resto da classe
trabalhadora, isto é, pelo valor das mercadorias necessárias à sua reprodução (Carchedi, 1996;
Marx, 1986a).
Assim, o trabalhador comerciário é duplamente caracterizado em termos de sua relação
com o capital varejista. Por um lado, ele é explorado como todo o proletariado, uma vez que
produz valor nos momentos materiais da circulação comercial, os quais são grande parte das
funções do trabalho no varejo moderno. Por outro, o comerciário é oprimido economicamente,
pois apenas atua para realizar o valor no momento de circulação da reprodução capitalista,
permitindo ao capitalista do comércio se apropriar da mais-valia socialmente gerada. Dado o
entrelaçamento de funções do trabalho no varejo moderno, a desqualificação das funções do
trabalho e a flexibilização das funções do trabalho, tornou-se difícil distinguir o trabalhador
explorado pelo capital do trabalhador oprimido economicamente, fazendo-se necessária a
conclusão de que o trabalhador comerciário enquanto trabalhador coletivo é simultaneamente
oprimido e explorado pelo capital. Portanto, ainda que em grau distinto do trabalhador industrial,
o trabalhador comerciário é vítima da exploração capitalista.
132
Por essas razões, não é possível depreender da análise de Marx acerca da natureza
improdutiva do capital comercial a improdutividade do trabalhador comerciário, o que permitiria
excluí-lo das relações de exploração. Dito isso, o presente estudo se indagará acerca da
importância da racionalização capitalista do trabalho no comércio.
3.3 A importância da racionalização do trabalho no comércio
A presente seção visa responder à seguinte pergunta: por que a racionalização capitalista
do trabalho no comércio é fundamental para o desenvolvimento do capitalismo? A resposta será
dividida entre os diferentes tipos de função do trabalho no comércio. Do ponto de vista das
funções produtivas do capital, a importância é idêntica à existente em todas as funções produtivas
do capital, tal como enunciado na seção 3.3. O mais-valor é o “elemento” da acumulação. No
registro de Marx, a exploração do trabalho é decisiva para explicar a capacidade de expansão do
capitalismo. Se as trocas se dão em concordância com a lei da troca de equivalentes, o excedente
não pode advir da circulação. Se assim ocorresse, a valorização de um capital implicaria em
desvalorização de outro, inviabilizando a acumulação de capital no conjunto da formação social.
As funções comerciais necessariamente funcionam em relação simbiótica com as
funções produtivas da circulação, dado que não há troca sem transportes, organização e
armazenamento. No entanto estas funções aumentaram sua proporção à medida em que ocorreu
modernização do varejo, pois parte significativa da formação das redes deveu-se ao controle do
setor varejista sobre a logística, que antes era realizada dominantemente pelo atacado. Nesse
processo, crescentemente o setor hipertrofiou as funções do trabalho no setor logístico, muito
embora a elevação da composição técnica também tenha eliminado postos de trabalho nessas
funções. À medida em que houve aumento na proporção das funções produtivas do trabalho no
varejo, a importância da racionalização capitalista tornou-se idêntica àquela de todo outro setor
da economia: o capital busca aumentar a intensidade e a produtividade do trabalho com vistas ao
incremento da exploração.
Do ponto de vista das funções improdutivas, a racionalização do trabalho no comércio é
importante em razão da sua conexão com o tempo de rotação do capital. Como já enunciado, o
133
tempo de rotação incide diretamente sobre a taxa de lucro, pois ele coincide com a capacidade de
dado montante de capital gerar mais-valia em certo período de tempo.
A eficiência do capital comercial, que influencia o tempo de rotação de toda a formação
social, guarda estreita relação com a racionalização do trabalho. Com efeito, todos os traços
característicos do varejo moderno tem como resultado as vantagens associadas à autonomização
do capital comercial: elas permitiram diminuição do montante de investimentos nas funções de
circulação, promoveram aceleração do tempo de circulação e integração comercial. Cada um
desses resultados é inseparável da racionalização capitalista do trabalho, pois só processos de
trabalho intensos são suficientes para gerar rápidos fluxos de mercadorias. A alternativa ao
aumento de intensidade seria o aumento de postos de trabalho, o que seria pouco viável em
termos econômicos, acabando por neutralizar as benesses da autonomização do capital comercial.
Do ponto de vista da presente pesquisa, essa discussão é pertinente, pois ela dá substrato
para refutação das teses (explícitas ou implícitas) que sustentam uma hierarquização de
importância quanto à racionalização capitalista do trabalho, de acordo com a qual seria mais
importante para o capitalismo a racionalização do trabalho produtivo. Poulantzas formula
explicitamente essa tese, depositando nela um dos argumentos centrais para que o trabalho
produtivo seja critério por excelência para estabelecer a fronteira de classe entre o proletariado e
a “nova pequena burguesia”. Como o mais-valor é o fundamento da acumulação, a voracidade do
capital seria mais intensa sobre o trabalhador produtivo.
A consideração a respeito da importância do tempo de rotação fornece substrato para
crítica do argumento de Poulantzas. Como na dinâmica concreta do capitalismo a categoria
operante efetiva não é a mais-valia, mas a taxa de lucro, são fundamentais para o capitalismo
todos os recursos promotores de incremento na taxa de lucro.157 Para o capitalista, é indiferente se
o ganho econômico for obtido por meio de incremento da exploração do trabalho ou da
aceleração do tempo de circulação. Com efeito, a natureza do capital se caracteriza pela busca da
maximização em termos de riqueza abstrata, seja qual for sua forma ou dispositivo.
Além disso, quando sobreleva o papel do trabalho produtivo como motivo indutor da
racionalização capitalista, Poulantzas ignora que a regulação social do capitalismo funciona por
157 Esse argumento é explorado por Duménil e Levy (2005) a partir do conceito de trabalho produtivo comotrabalho maximizador de lucro.
134
meio de dispositivos reificados, os quais conduzem à formação de uma diferença entre a natureza
efetiva do capitalismo e o modo como ele se apresenta para os agentes (ou: na representação dos
agentes?). Com efeito, o livro três de O capital progressivamente constrói a tese da reificação do
capital como produto necessário do capitalismo: à medida em que a exposição se aproxima da
superfície da sociedade capitalista, maiores e mais complexas são as mediações do lucro concreto
para com a mais-valia. Simultaneamente, no plano das aparências, é progressivamente fortalecida
a imagem de que o mais-valor tem como origem o próprio capital. Na visão predominante, o
capital gera capital do mesmo modo que macieiras geram maçãs, segundo a expressão de Prado e
Guedes Pinto (2014), de modo que toda conexão com a exploração do trabalho é apagada no
campo das aparências. Por essas razões, a tese da associação entre trabalho produtivo e maior
impulso por racionalização dos recursos é inconsistente.
Por si só, as questões supracitadas explicam em parte a relação entre formação de capital
na esfera comercial e tendência a racionalização do trabalho. Além delas, adiante serão expostos
mais alguns argumentos para sustentação dessa tese.
3.4 Autonomização do capital comercial e racionalização capitalista
Finalizando a argumentação em torno da importância da racionalização capitalista do
trabalho sobre o trabalhador comerciário, pretende-se levantar respostas à seguinte questão: por
que a autonomização do capital comercial implica formação de tendência à racionalização
capitalista do trabalho no comércio? Em seu sentido mais genérico, pode-se responder a essa
pergunta sustentando que a autonomização leva à tendência à racionalização em razão das
características gerais do capital. Como a autonomização significa precisamente a transformação
do setor comercial em campo de investimento de capital, ela traz para o âmbito comercial
tendências gerais do modo de produção capitalista. Por seu turno, essa explicação genérica
precisa realizar-se em mecanismos concretos.
Os dispositivos concretos responsáveis pela imposição das leis gerais do capitalismo são
fundamentalmente a concorrência nas suas formas intra e intersetorial. A primeira se caracteriza
pela imposição mais geral da lei do valor trabalho, que passa a deter validade para o setor
comercial não obstante algumas das atividades do setor serem de natureza improdutiva. Já a
135
concorrência intersetorial se caracteriza pela tentativa de aumentar ao máximo o ganho do
capital. Como existem ramos com maior possibilidade de ganho, aumenta a disposição do
capitalista para tentar extrair o máximo de todo capital já investido.
Alguns dos motivos para a racionalização dos recursos não possuem qualquer
especificidade no setor comercial, uma vez que em todos os setores a concorrência intrasetorial
conduz à pressão pela economia de custos como condição de sobrevivência para os capitais
individuais. Essa implicação da concorrência abarca tanto trabalhos produtivos, que assim
aumentam a massa de mais-valia gerada, quanto os trabalhos improdutivos, que apenas geram
vantagem competitiva. A pressão da concorrência intrasetorial é um dos determinantes
fundamentais da lei do valor trabalho. Logo, sua presença no varejo traz as determinações do
valor para o setor.
Marx chega a comentar a necessidade de se aprofundar sobre a existência do tempo de
trabalho socialmente necessário no comércio. Mesmo se tratando de funções improdutivas, os
condicionantes do valor sobre o trabalho se colocariam de forma idêntica, dada a igual presença
da concorrência.
Em se tratando da circulação comercial, a função última do trabalho é a mudança formal
da propriedade das mercadorias. Dada essa característica, é difícil a formação de um parâmetro
objetivo de produtividade do trabalho, tal como nos setores de produção de mercadorias
(tangíveis ou não). No entanto, em cada formação social concreta, pode ser socialmente
determinado o montante de força de trabalho necessária para se fazer circular as mercadorias.
Essa pode ser entendida como o trabalho socialmente necessário para se vender as mercadorias.
Esse trabalho socialmente necessário se expressa no conjunto das tarefas do
empreendimento comercial, e não em cada trabalhador em particular, embora haja tendência à
homogeneização do modo de produzir em todo o setor comercial, permitindo a padronização e
normalização do trabalho em cada uma das funções do trabalho. A razão: as empresas concorrem
através do seu produto final com as demais, tornando impossível a separação entre quais parcelas
do produto final são produzidas por cada trabalhador individual. Esse componente da
concorrência intrasetorial no comércio reitera a natureza coletiva do processo de trabalho no
setor, implicando em dificuldade de separação entre os trabalhadores produtivos e improdutivos.
136
Pode-se dizer que todos possuem funções produtivas e improdutivas, portanto, em termos
qualitativos, todos sofrem exploração.
A especificidade da concorrência no setor comercial diz respeito a concorrência
intrasetorial expressa no tempo de rotação do capital. Com efeito, os capitalistas comerciais
concorrem não apenas no montante de força de trabalho necessária para colocar em
funcionamento os empreendimentos capitalistas, mas sobretudo por conseguir fazer com que um
mesmo montante de força de trabalho faça circular mais mercadorias em menos tempo.
A concorrência intra-setorial no comércio conduz às determinações do valor a atuarem
no tempo de rotação do capital: ao mesmo tempo em que aqueles situados abaixo da média não
conseguem auferir parcela de lucro proporcional ao montante de capital investido, os capitais
situados acima da média recebem super-lucros.
A implicação geral desse estado de coisas é: a autonomização do capital comercial do
produtivo desencadeia pressão por racionalização dos recursos, a qual tem como epicentro a
concorrência de capitalistas para aumentar sua participação na riqueza social total. Como
corolário dessa condição, dada a natureza antagonística dos interesses de classe intrínsecos à
relação social capitalista, agudiza-se o conflito distributivo entre capital e trabalho, motivado pela
pressões de diminuição de custo, de intensificação do trabalho e de diminuição do tempo de
rotação. Em outros termos, a autonomização do capital comercial desencadeia intensificação dos
conflitos distributivos em três direções, cada uma das quais implicando nas demais: entre frações
capitalistas dos diferentes setores, entre capitalistas do comércio e entre capital e trabalhador
comerciário.
Dado esse quadro como ponto de partida, serão analisados em pormenor os demais
condicionantes das relações de classe do trabalhador comerciário.
137
Capítulo 4 – O trabalhador comerciário
O principal propósito deste capítulo é avaliar a natureza das relações de trabalho do setor
varejista, sendo a tese principal que a transição do setor para a condição de capital monopolista,
assim como as transformações técnicas associadas, implicaram em deterioração das relações de
trabalho. Como parte desse complexo, sustenta-se que houve uma mudança na natureza das
relações de classe do setor, sendo parte do processo a proletarização da força de trabalho
assalariada pelo capital varejista.
Esses problemas serão examinados a partir de quatro eixos. Inicialmente, esse problema
será abordado pela reconstrução das abordagens de analistas marxistas sobre o trabalhador
comerciário Mais precisamente, além de um breve panorama geral, na primeira seção serão
retomados os registros de Eric Olin Wright, de Nicos Poulantzas e de Harry Braverman.
Na segunda seção, serão examinadas as principais transformações técnicas do setor ao
longo da sua financeirização. Embora não sejam sustentadas teses de um determinismo
tecnológico, de modo que as transformações na técnica sejam as principais causas da qualidade
do trabalho, avalia-se que a divisão técnica do trabalho tenha cumprido papel fundamental para a
configuração da nova anatomia do trabalho e para as novas relações de classe no setor.
Na terceira seção, serão analisados dados a respeito da estrutura de emprego no setor.
Em larga medida, essa análise de dados e da bibliografia que analisou o setor servirá como
evidência para as teses sustentadas nesta pesquisa. Uma vez que se avalia que há deterioração das
condições de emprego como efeito das condições de trabalho, pode-se identificar nos dados sobre
a deterioração do emprego confirmações das teses sustentadas teoricamente nesta pesquisa.158
Finalmente, na seção quatro serão sumarizadas as conclusões a respeito da nova
configuração das relações de classe e de trabalho do setor, com ênfase para a identificação da
deterioração do trabalho nas formas da separação das funções intelectuais e manuais, da
parcialização, desqualificação e rotinização do trabalho.
158 Apesar da menção à busca de evidências, com esta pesquisa não pretendemos comprovar as teses levantadas,dada a fragilidade da pesquisa empírica e a amplitude do objeto, mas sim encontrar dados que mostram oembasamento das conclusões propostas em processos sociais reais. Além disso, a pesquisa em larga medida indicacaminhos possíveis para continuidade da investigação, que, com análise de dados mais sistemática, pode de fatocomprovar as avaliações propostas a respeito das condições de trabalho e emprego e a respeito das relações de classeno setor varejista.
138
4.1 Interpretações marxistas do trabalhador do comércio
A literatura marxista se divide no que se refere à classificação dos trabalhadores do
comércio. De uma maneira geral, essa divisão pode ser sumarizada em dois grandes e
heterogêneos grupos. O primeiro deles inclui o trabalhador comerciário nas classes médias e/ou
nas classes apropriadoras da riqueza, excluindo-o das classes exploradas ou, ao menos, da
condição de antagonismo pleno em relação aos interesses do capital. É o caso de autores como
Lessa, Trópia e Poulantzas (1978).159 Por seu turno, o segundo grupo inclui o trabalhador
comerciário como camada da classe trabalhadora ou das classes trabalhadoras. Esse segundo
grupo se divide entre diversas variantes. Algumas delas consideram existirem diferenças
fundamentais entre os contingentes assalariados situados na produção e os da circulação,
enquanto outras avaliam que esse tipo de diferença não possui pertinência para o pertencimento
na classe trabalhadora.
No entanto, apesar dos posicionamentos acerca do setor, regra geral os marxistas não se
basearam em análises detalhadas sobre as transformações concretas pelas quais o setor comercial
passou nas últimas décadas, seja em termos da forma social, caracterizada por intensa
concentração e centralização de capital, seja em termos das transformações técnicas, a partir das
quais o setor adquiriu nova anatomia. Assim como nas áreas da Economia, da Demografia e da
Administração há pouca consideração a respeito do setor (Carré et al, 2005), nas análises
marxistas há pouco exame concreto do setor em específico.160 Em termos das classes, essa
condição se traduz em considerações esparsas e não sistemáticas sobre a posição de classe e sobre
as condições de trabalho. Ademais, boa parte das principais referências teóricas das análises
marxistas das classes, como todos os autores analisados no presente capítulo, empreenderam suas
produções científicas e teóricas em período anterior à transição do setor varejista ao capitalismo
monopolista e à internacionalização.
159 Como já assinalado, no que se refere à conceituação de Poulantzas, a proposta de classificação do comerciário émenos categórica, pois o greco francês identifica a existência de um contingente proletário no setor varejista, queteria se formado como resultado da concentração de capital, da racionalização capitalista e da concentração dasfunções manuais em alguns trabalhadores.160 O que, ademais, é atestado pelo resgate bibliográfico dos capítulos 1 e 2, para o qual pouca literatura marxistafoi encontrada
139
Nesse sentido, tendo em vista a atual configuração do setor, essa condição torna as
análises marxistas excessivamente genéricas e respaldadas em conceitos e análises teóricas
gerais, mas pouco embasadas empiricamente. Esse é o caso, por exemplo, de Lessa (2011), cujo
foco para excluir todos os trabalhadores da circulação da classe trabalhadora são as categorias de
formas de propriedade, trabalho produtivo e exploração. Esse também é o caso de Antunes, com
cuja abordagem, não obstante, temos inúmeras afinidades e aproximações, e cujos estudos
marxistas do trabalho foram fundamentais para a consolidação de um campo de reflexão marxista
crítica sobre o trabalho no mundo contemporâneo. O registro de Antunes (2009) centra-se no
assalariamento da força de trabalho em processos de trabalho que são valorização do valor, não
discriminando entre trabalhadores produtivos e improdutivos. Por meio desse critério,
trabalhadores situados na circulação, como os comerciários e os bancários, e ainda outros setores
do setor de serviços, fazem parte da classe trabalhadora.
O principal mérito dessa abordagem foi a possibilidade de identificação do que há de
comum entre diversas categorias de assalariados, que é o antagonismo de interesse em relação ao
capital e o significado comum dos vários processos de reestruturação produtiva em curso no
capitalismo contemporâneo. Ademais, essa inclusão de setores diferentes numa mesma
designação possui importante significação política, na medida em que permite unificar discursiva
e ideologicamente grupos assalariados distintos, fortalecendo a formação de um campo político e
ideológico de aliança dos subalternos.
Os principais limites desse tipo de abordagem já foram pontuados. Sumariamente, o
principal problema consiste na desconsideração das diferenças entre os diversos contingentes
assalariados, diferenças nos âmbitos econômicos, políticos e ideológicos que claramente situam
esses grupos em diferentes posições e papeis na estrutura social, papeis que frequentemente
entram em conflitos entre si. Enquanto algumas parcelas detêm qualificação e a responsabilidade
da autoridade no exercício de suas funções na divisão do trabalho, outros apenas realizam
funções manuais em processos de trabalho repetitivos e pouco (ou nada) qualificados.161 A não
161 Além das benesses econômicas diretamente associadas à qualificação do trabalho, esse atributo, socialmenteconstruído, como sustenta a própria literatura marxista (por exemplo, Poulantas, 1978), é possível encontrardimensões importantes da desigualdade do ponto de vista das relações de reconhecimento, na medida em que o statusligado ao trabalho é parte indissociável da estima social nas sociedades capitalistas. A respeito, ver Honneth, 2003.
140
consideração dessas diferenças implica erros na teorização da estrutura de classes e na
qualificação das classes sociais, tendo inclusive implicações no plano da estratégia política.
Feitas essas considerações, serão tratadas em específico algumas das abordagens que
examinaram de modo mais específico e sistemático a condição do trabalhador comerciário no
âmbito do debate marxista. Mais precisamente, será feita incursão nos registros de Eric Olin
Wright, Nicos Poulantzas e Harry Braverman.
4.1.1 Os registros de Wright, Poulantzas e Braverman
Para Wright, os trabalhadores da base da divisão do trabalho do comércio fazem parte da
classe trabalhadora, dado que sua classificação tem como referência sobretudo os ativos detidos
por um grupo social. Tendo em vista que a partir das transformações no varejo moderno toda
qualificação do trabalho se tornou desnecessária na maioria das funções, esse quadro de
referência conduz ao enquadramento dos trabalhadores manuais do setor como parte da classe
trabalhadora. Além disso, o referencial de Wright permite classificar os trabalhadores da gerência
e outras funções técnicas, como os programadores e analistas de sistema, como parte das posições
contraditórias de classe.162
Essa classificação do comerciário decorre de três pontos. Em primeiro lugar, Wright
parte de uma definição abstrata de exploração do trabalho, o que não o permite colocar em
questão a existência de contingentes assalariados não explorados pelo capital. Ele define a
relação de exploração como um resultado da condição de assalariamento por um capitalista:
havendo contratação de assalariados em uma organização voltada à produção de excedente, cria-
se um antagonismo de interesses materiais, já que a realização dos interesses materiais de uma
classe são incompatíveis com a da sua antagonista. Desse modo, havendo assalariamento em um
empreendimento que vise lucro, há exploração. Em segundo lugar, e intimamente associado ao
162 No que se refere ao referencial de Wright, a presente pesquisa tem como referência sobretudo os trabalhos emque o autor formula uma problemática da estrutura de classe baseada na tese das posições contraditórias de classe(e.g. 1997). Apesar dos limites de Wright no que se refere à consideração do papel da produção na estruturação dasposições de classe, seu registro permite compreender de modo arguto os conflitos distributivos entre as classes, alémde fornecer bases para compreender o grau de sujeição de um grupo social à dominação capitalista. Adiante asdiferenças com Wright serão esmiuçadas.
141
ponto anterior, o trabalhador do comércio não possui meios de produção e, em razão dos
dispositivos de reprodução social, vivencia uma condição na divisão do trabalho que o impede de
acessar a bens dessa natureza, criando uma condição típica de posições de classe, na qual um
grupo social tende a manter-se nas suas condições de origem.
Por último e em terceiro lugar, o trabalhador do comércio é parte da classe trabalhadora
por não deter nenhum ativo raro e importante para o funcionamento das economias capitalistas.
Os tipos de ativo identificados por Wright como típicos das modernas classes médias são a
qualificação técnica e a competência para o exercício da autoridade no processo de trabalho.
Dada a importância dessas funções para o capital e dada sua escassez, esses bens viabilizam a
participação privilegiada na distribuição da riqueza, o que leva Wright a incluir as classes médias
como classes apropriadoras do excedente socialmente produzido.163 Dada a configuração técnica
do varejo, com sua divisão entre funções manuais e intelectuais, a maior parte da força de
trabalho do setor mantém-se na condição proletária de classe, sendo apenas as camadas de
gerentes, administradores e algumas funções técnicas específicas parte das classes médias. No
que se refere aos problemas da presente pesquisa, Wright em larga medida endossa a tese da
proletarização do trabalho no setor. Isso é especialmente válido se considerarmos as
transformações técnicas posteriores, nas quais a detenção de qualificação técnica quase que foi
eliminada pela inserção de tecnologias que eliminaram a necessidade de qualificação; em certo
sentido, pode-se dizer que a qualificação foi substituída por tecnologias da informação, restando
apenas funções de classe média nas funções responsáveis pelo exercício de autoridade.
Na avaliação desta pesquisa, a problemática de Wright a respeito do trabalhador
comerciário possui tanto pontos fortes quanto debilidades, ambos decorrendo dos méritos e
limites da abordagem wrightiana das classes em geral. No que se refere aos problemas desta
pesquisa, há sobretudo três pontos positivos na problemática de Wright. Em primeiro lugar, sua
ênfase no conceito de exploração é um ponto crucial para deslindar as relações de antagonismo
de interesse no interior do varejo. Justamente por se fundamentar numa visão genérica de
exploração, Wright consegue captar a natureza contraditória e incompatível dos interesses de
classe entre capital e trabalho, o que permite ao seu referencial identificar a tendência de conflitos
163 Dado que as classes médias também são explorados pelo capital, eles ocupam posições contraditórias de classe,i. e., classes caracterizadas por uma dualidade de condições de classe, traço típico das modernas classes médias
142
de classe no interior do varejo,164 tendência fundamental para compreender a natureza antagonista
da técnica e das relações sociais no setor.
Em segundo lugar, um dos pontos nodais da problemática de Wright é a diferenciação
entre classes trabalhadoras e classes médias, o qual é um ponto crucial das análises de classe de
camadas assalariadas no mundo contemporâneo. Num setor frequentemente classificado pela
tradição marxista como classe média (e. g., Poulantzas, 1978; Lessa, 2011, Trópia, 1994), esse
debate torna-se premente. Os referenciais de Wright permitem identificar com clareza que a
maioria da força de trabalho no varejo é parte da classe trabalhadora, o que é especialmente
adequado se considerarmos as transformações no varejo financeirizado, o qual experimentou a
revolução do varejo a partir da década de 70.165
Em terceiro lugar, Wright confere destaque para a desqualificação do trabalho como
componente fundamental da classe trabalhadora. Como será detalhado nas seções 2 e 3, a partir
das reconfigurações tecnológicas e organizacionais ocorridas no setor varejista no contexto da
transição à acumulação flexível, tornou-se desnecessária a detenção de qualquer qualificação no
exercício da maior parte das funções do trabalho necessárias à reprodução social do varejo
supermercadista. Regra geral, o capital reconfigurou a divisão do trabalho de modo a expropriar
os trabalhadores de qualquer ativo raro, para usar a formulação wrightiana, tornando o
trabalhador plenamente dependente do capital.166 Por seu turno, essas reconfigurações, que têm na
desqualificação um dos seus pilares, são a base da elevação nos níveis de intensidade e de
exploração do trabalho, acentuando as contradições de classe.
Apesar dessas qualidades, o diagnóstico de Wright possui alguns limites significativos,
dos quais se destacam dois. Em primeiro lugar, dentre as determinações das classes, Wright
164 Por outro lado, o modo abstrato de interpretar a exploração também é um limite da problemática de Wright, namedida em que a exploração não é vista do ponto de vista da produção, mas sobretudo de uma luta distributiva. Arespeito desse e de outros problemas da teoria wrightiana da exploração, como a questão da especificidade docapitalismo, ver Carchedi, 1989.165 As seções subsequentes destrincharão as associações entre inovações técnicas e tendência à proletarização daforça de trabalho166 Apesar da dissonância em outros pontos importantes, essa dimensão do quadro teórico wrightiano alinha-se comuma das preocupações de Marx na análise das relações de trabalho em O capital, sobretudo quando sãodestrinchados os dispositivos de determinação do antagonismo de classe típico do capitalismo. Para Marx, um dostraços fundamentais da dominação capitalista de classe é a criação de dependência da força de trabalho em relação aocapital, à qual corresponde à independência do capital em relação à força de trabalho. Só por meio da criação dessadependência-independência torna-se viável a realização da exploração normal da força de trabalho, i. e., daexploração do trabalho em nível suficientemente intenso para gerar acumulação de capital.
143
confere excessivo destaque para a distribuição de ativos, modo problemático de encarar as classes
sociais por duas razões. Por um lado, essa abordagem tem como eixo a distribuição desigual de
bens, colocando teoricamente a questão de modo problemático, por não considerar o papel da
natureza capitalista da produção como dispositivo estruturante da desigualdade de classe167. Uma
problemática alternativa é considerar a natureza social e histórica específica do capitalismo e das
relações de classe em cada formação social, situando a distribuição de ativos como um resultado
dessa relação estrutural (Carchedi, 1996). Por outro lado, o foco na detenção de ativos, embora
traga vantagens para a classificação dos grupos sociais no âmbito de pesquisas quantitativas, o
que é uma preocupação cara a Wright, tem como contrapartida a formulação pouco sistemática de
referências para a análise qualitativa das relações de trabalho. Mais do que isso, esse referencial
não permite compreender o quanto a natureza capitalista da produção carrega uma tendência
imanente à reestruturação do trabalho de acordo com as necessidades da acumulação. Nesse
processo, o capital continuamente cria e recria o trabalho como um fator de produção
(Braverman, 1987) ou como trabalho abstrato (Arthur, 2016). A negatividade imanente ao capital
é levada ao trabalho, que, como resultado de uma luta, é negado/transformado continuamente de
acordo com a necessidade de valorização do valor.
Parte desses problemas168 é solucionado pela abordagem de Poulantzas, que avalia que
os trabalhadores do comércio dividem-se entre contingentes da nova pequena burguesia e
contingentes proletários. Os motivos que levam-no a entender parte dos comerciários como
pertencentes ao proletariado são a realização de funções manuais e a sujeição à racionalização
capitalista, de modo parecido com o argumentos sustentados nesta pesquisa, apesar de algumas
diferenças.169 No que se refere à classificação de parte do comerciário como nova pequena
burguesia, o argumento é um pouco mais complexo e, dada a pertinência do assunto, ele será
apresentado de forma um pouco mais detalhada.
167 A respeito do assunto, acompanhamos a crítica de Carchedi (1989) a Wright.168 Na avaliação da presente pesquisa, esses limites da abordagem de Wright em larga medida podem ser superadosa partir de uma inclusão de referências de outros analistas marxistas das classes. Mais precisamente, as problemáticasde Poulantzas e de Braverman alinham-se com algumas falhas do quadro wrightiano. Enquanto Poulantzas trazreferências sociológicas críticas para se identificar o papel da ideologia e da política capitalista na divisão dotrabalho, Braverman traz uma análise poderosa acerca das tendências imanentes do trabalho no capitalismo,capitalismo, investigando-as à luz da contradição entre conteúdo e forma social do trabalho.169 A problemática dessa pesquisa a respeito do assunto em larga medida acompanha o registro teórico deBraverman, que será esmiuçado adiante.
144
Para fundamentar a inclusão de parcela do comerciário como parte da nova pequena
burguesia, o marxista greco-francês mobiliza três argumentos principais. Em primeiro lugar,
algumas funções do trabalho no comércio se situariam nos momentos de circulação da
reprodução capitalista, enquanto que o pertencimento em processo de trabalho na produção seria
definida como condição necessária para a condição proletária de classe. Sendo assim, o
comerciário não seria explorado pelo capital, mas, do contrário, participaria na apropriação de
valor gerada na produção.
Em segundo lugar, em termos do seu processo de trabalho, as funções do comércio se
diferenciam das proletárias em razão do domínio sobre as etapas do seu processo de trabalho. Por
sua vez, a condição proletária é caracterizada pela realização de funções manuais do trabalho em
condição heteronômica, isto é, em processo de trabalho controlado intelectualmente por outros
agentes que não o próprio trabalhador. De acordo com Poulantzas, parte dos trabalhadores do
comércio controlam subjetivamente as etapas do seu processo de trabalho, fazendo parte, por essa
razão, de um processo de trabalho típico da nova pequena burguesia.
Em terceiro lugar, parte das funções do comércio seriam típicas da nova pequena
burguesia porque mobilizam habilidades de comunicação no seu trabalho, as quais são
socialmente significadas como trabalho intelectual. A função comercial da reprodução capitalista
carrega consigo, de forma imanente, a necessidade do exercício de tarefas intelectuais e
comunicativas, as quais só podem ocorrer mediante domínio subjetivo do trabalhador sobre seu
processo de trabalho. Além disso, como essas funções são estimadas socialmente e características
de estratos pequeno burgueses e das classes dominantes, o próprio trabalhador do comércio passa
a se identificar com a visão de mundo da pequena burguesia.
Apesar dessas funções típicas da condição da nova pequena burguesia, o próprio
Poulantzas reconhece que mesmo essas funções (e em outros grupos por ele classificados como
“nova pequena burguesia”) experimentaram intensos processos de racionalização capitalista já
nas décadas de 1950 e 1960, com uma correspondente aproximação desses setores em relação à
condição proletária de classe. Esses processos, para usar a expressão de Braverman (1987), em
larga medida funcionavam pela inserção nos novos postos de trabalho dos métodos de
organização do trabalho primeiramente desenvolvidas nas fábricas.
145
Apesar de sua importância, na ótica de Poulantzas essas transformações não alterariam
qualitativamente a condição de classe desses grupos sociais, dado que seriam mantidas as
condições estruturais típicas da pequena burguesia (comunicação, autonomia no trabalho e
realização de funções intelectuais). A esse fenômeno Poulantzas denominou burocratização do
trabalho intelectual, a qual seria, ao mesmo tempo, uma inserção de normas típicas do trabalho
proletarizado nos processos de trabalho dos contingentes pequeno burgueses, levando a uma
polarização das camadas médias. Algumas parcelas da pequena burguesia se aproximaria da
classe proletária, enquanto outras das classes dominantes. A burocratização, que seria o efeito da
implementação das normas da divisão capitalista do trabalho nas funções detidas de qualificação
intelectual, seria efeito da polarização da pequena burguesia pela estrutura de classes do
capitalismo. Uma parcela da pequena burguesia se aproximaria do proletariado, formando o que
Cavalcante (2012) chamaria por “baixas classes médias”, enquanto as outras parcelas se
aproximariam da burguesia, conformando as “altas classes médias”.
Do ponto de vista dos problemas desta pesquisa, o ponto forte da abordagem de
Poulantzas consiste na proposição de uma análise qualitativa da natureza da estrutura técnica e
organizacional do trabalho, a qual é vista como parte constitutiva (determinação) do modo de
produção e das relações de classe existentes em uma formação social. A técnica não é neutra, isto
é, ela responde a interesses de classe, além de recriar relações de poder e de dominação no âmbito
das relações de trabalho e de criar uma estrutura de posições socialmente determinada.
Essa combinação de fatores permite à teoria poulantziana ir além da abordagem de
Wright em alguns aspectos. Do ponto de vista dos problemas desta pesquisa, esse registro tem
uma contribuição importante por trazer referências para compreensão da condição de classe a
partir da natureza das tecnologias e da organização do trabalho. Dado que o objeto de
investigação passou por intensas transformações nas condições de trabalho, as quais claramente
afetaram a posição do comerciário na estrutura de classes, os referenciais de Poulantzas mostram-
se profícuos.
Como já notório em razão do histórico de críticas à teoria poulantziana das classes, os
limites da análise de Poulantzas sobre o trabalhador comerciário também são vários.
Resumidamente, podem ser levantadas duas objeções principais à classificação do comerciário
promovida por Poulantzas: (1) aquela associada ao argumento do trabalho produtivo como
146
condição de pertencimento na classe trabalhadora e (2) o da natureza do trabalho do comerciário,
o qual se enquadraria nas condições para pertencimento na nova pequena burguesia.
No que se refere ao argumento do trabalho produtivo,170 Poulantzas equivocadamente
avalia que a realização de trabalho produtivo é condição necessária para pertencimento na classe
trabalhadora, quando, na verdade, o antagonismo de classe típico do capitalismo é mais amplo e
complexo do que a relação de geração de mais-valor – como, contraditoriamente, sustenta o
próprio Poulantzas.. Esse problema tornou-se grave dadas as configurações do varejo no
capitalismo financeiro, perante as quais seu diagnóstico mostra-se claramente equivocado. Na
configuração atual do varejo, exceto para alguns postos de trabalho, é difícil separar as funções
produtivas e das improdutivas do trabalho, dado que dominantemente todas essas funções são
realizadas pelo trabalhador coletivo, de modo que os trabalhadores individuais alternam a
realização de funções no interior do sistema varejista. A parcialização das funções, a
desqualificação e a alternância de papeis tornaram inviável a discriminação entre os trabalhadores
explorados e os não explorados. Além disso, como será explicitado adiante, a revolução do varejo
em larga medida se caracteriza pela incorporação de atividades tipicamente produtivas no setor.
Por essas razões, seu diagnóstico de que parte da força de trabalho do setor compõe a nova
pequena burguesia é problemático.
Como já mencionado, Poulantzas não só exclui parte do comerciário da classe
trabalhadora, como ainda mobiliza argumentos para incluir esses contingentes na nova pequena
burguesia. Para fazê-lo, ele sustenta que o trabalhador do comércio precisa mobilizar seus
conhecimentos e atividades comunicacionais no ato de trabalho, tipos de atividade comuns aos
estratos da nova pequena burguesia. Dado o cenário do comércio europeu até a década de 1960,
onde até então a circulação de mercadorias em larga medida ocorria de forma pulverizada em
pequenos e médios negócios (Cleps, 2005; Belik, 1), seu diagnóstico em parte é consistente.171
Nesse contexto, o comerciante e os poucos funcionários por ele mobilizados detinham controle
170 Não será retomada toda a argumentação sobre os limites do conceito de trabalho produtivo no que tange àdeterminação das classes sociais. Para tanto, ver cap. 3, seção 3,3,3.171 Braverman, contudo, mesmo escrevendo alguns anos antes de Poulantzas, conseguiu antever a revolução porvir,extraindo ainda de seus prognósticos avaliações a respeito da condição futura do trabalhador comerciário.Possivelmente, essa diferença deva-se ao contexto nacional de cada um – enquanto Braverman situava-se noprimeiro país a experimentar a emergência das grandes redes descontistas (EUA), Poulantzas estava em um contexto(França) que só mimetizou o modelo de revolução do varejo alguns anos depois. De todo modo, a respeito desseponto, antes do que justificar os motivos do erro do greco-francês, cabe ressaltar os méritos de Braverman.
147
de todas as etapas do processo de trabalho, que não possuía um funcionamento objetivo.
Contudo, a partir das reestruturações técnicas expostas no capítulo 2, a avaliação do greco francês
tornou-se bastante inadequada.
As reorganizações técnicas baseadas nos princípios fordistas e tayloristas tornaram os
processos de trabalho não apenas independentes do trabalhador individual, mas ainda
autonomizado em relação ao próprio capitalista. O funcionamento do varejo passou a ocorrer por
meio de uma estrutura objetificada, a qual é organizada por meio do encadeamento de maquinaria
e de funções do trabalho pré-definidas e totalmente desqualificadas. Dadas essas novas
configurações, não há pertinência na alegação de que o trabalhador comerciário possui autonomia
no trabalho e que, por isso, ele faria parte das classes médias.172
Agora consideremos em específico o argumento das funções de comunicação como
típicas das classes médias. Em última instância, esse tópico deve ser subordinado ao ponto
anterior, i. e., à natureza da divisão do trabalho e de como o trabalhador se insere na mesma, uma
vez que o uso de habilidades de comunicação só poderia caracterizar funções de classe média se
o exercício dessas funções fosse realizado com autonomia do trabalhador e com mobilização de
qualificações de natureza intelectual. Caso o uso dessas competências no processo de trabalho
ocorra a partir da prescrição de funções pela gerência e/ou pela maquinaria, então está-se diante
de um processo de trabalho objetificado como capital, no qual o trabalho é um mero fator de
produção.173 A associação necessária feita por Poulantzas entre funções de comunicação e
condição pequeno-burguesa se baseia em uma falsa indução generalizadora: ele capta algumas
características típicas de alguns contingentes pequeno-burgueses e, a partir desse exemplar
172 A respeito desse ponto, cabe assinalar que Poulantzas não teve a oportunidade de analisar as transformações dosetor a partir da sua transição para o capitalismo monopolista, o que o impediu de acompanhar as mudanças técnicasdenominadas “revolução do varejo”. Nesse sentido, tendo em vista o cenário atual, é possível mobilizar asreferências de Poulantzas para compreender a condição de classe do trabalhador varejista no contextocontemporâneo. Esse movimento analítico será realizado na seção 4, após consideração mais detalhada sobre a novaestrutura técnica do setor.173 Como Braverman mostra em detalhe, as funções que em si mesmas são consideradas intelectuais podem serreorganizadas de acordo com os princípios tayloristas. Nesse empreendimento, elas podem ser decompostas entrefunções manuais e intelectuais, cabendo o monopólio do exercício de cada uma dessas funções para uma categoriadistinta de funcionários. As funções manuais, parcializadas e/ou meramente executivas desses processos de trabalho,estando ou não situadas em esferas intelectuais e/ou comunicacionais, são funções tipicamente proletárias. Tambémos trabalhos intelectuais e/ou comunicacionais podem ser divididos segundo os princípios tayloristas e, por essemeio, parte significativa dos trabalhos nas esferas intelectuais e/ou comunicacionais são manuais do ponto de vistasocial
148
restrito, considera essa característica como geral a todo o grupo social em questão sem tomar nota
pelo modo concreto como o trabalho é organizado.
Além de equivocado por não considerar o modo concreto como as funções
comunicacionais se situam na divisão do trabalho, essa conclusão se mostra ainda mais
problemática a partir da experiência histórica de reestruturação do trabalho característica do pós
fordismo. Muitas das dimensões do trabalho no capitalismo flexível questionam diretamente a
tese de Poulantzas acerca das funções de comunicação como traços típicos da nova pequena
burguesia, destacando-se dois. Em primeiro lugar, o fato de que parte significativa da
reestruturação do trabalho consistiu na passagem de novas atribuições aos contingentes
assalariados, sendo muitas dessas novas atribuições funções de responsabilidade, liderança e
comunicação no ambiente de trabalho (Antunes, 2009; Lojkine, 2002; Lehndorff, 2002). Em
segundo lugar, o fato de terem sido criados novos contingentes proletários em setores cuja função
é a realização de atividades comunicacionais, como os trabalhadores de telemarketing. Há uma
ampla literatura marxista sustentando com vigor e consistência que esses setores fazem parte do
proletariado.174 O erro do greco francês é compreensível nesse ponto, pois ele não pode observar
algumas novas configurações do mundo do trabalho na era da acumulação flexível, as quais
questionaram alguns dos fundamentos da organização social e do trabalho típica do capitalismo
fordista. Ainda assim, contudo, é necessário reconhecer os limites da sua contribuição para
avaliação das relações de classe no que tange a trabalhos de natureza comunicacional, bem como
avaliações de ordem geral acerca das fronteiras entre proletariado e classes médias.
Muitos desses limites são solucionados pela problemática de Braverman, que avalia que
os trabalhadores do comércio como um todo compõem a classe trabalhadora. O estadunidense
chega a essa conclusão como resultado de dois empreendimentos analíticos de Trabalho e capital
monopolista: por um lado, essa conclusão é resultado de uma formulação de critérios
relativamente amplos para definição da classe trabalhadora, o que permite inclusão de parte
significativa dos contingentes assalariados no proletariado; por outro lado, essa conclusão decorre
de uma análise concreta das relações de trabalho em diversos setores da economia capitalista, o
174 A esse respeito, ver a compilação de trabalhos organizada por Antunes e Braga (2009).
149
que permitiu-lhe identificação de condições de classe (ou: de trabalho) nos mais variados
segmentos assalariados das modernas economias.175
No que se refere ao comerciário, embora Braverman não tenha assistido ao processo de
revolucionamento ocorrido no fim da década de 70 e começo da de 80, ele surpreendentemente
identificou corretamente algumas tendências gerais de reorganização do setor comercial e de suas
relações de trabalho. Nos termos do autor:
No que se refere ao comércio menor, vale notar que em bora as “perícias” das operaçõesda loja tenha já de há muito sido desmontadas e em todos os aspectos avocadas pelagerência, está sendo agora preparada agora uma revolução que transformará ostrabalhadores em lojas, de um modo geral, em algo como operários de fábrica, de modoinimaginável. No varejo de alimentos, por exemplo, a demanda de empregados paramercearias, casas de frutas e vegetais, laticínios, carnes etc. Há muito foi substituída poruma configuração de trabalho em supermercados que emprega descarregadores decaminhões, arrumadores de prateleiras, empacotadores, conferentes e açougueiros;destes todos, só os últimos mantêm certa semelhança com o ofício, e de nenhum mododeles se exige conhecimento do comércio varejista. O uso de equipamento mecânicopara empilhagem, exposição e venda de produtos permaneceu assim no estágioprimitivo, em parte devido à existência de trabalho a baixo custo e em parte devido ànatureza do próprio processo. Com o aperfeiçoamento de numerosos sistemas deconferência computadorizados semi-automáticos, contudo, um número cada vez maiorde cadeias de mercados varejistas – em outros ramos como no dos alimentos – passou asubstituir seus sistemas de caixas registradoras por novos sistemas que, segundoestimam, quase duplicarão os sistemas de clientes atendidos por um caixa em dadotempo. O sistema implicará na fixação de cada mercadoria de um rótulo ou etiqueta como número adequado do estoque (um código de dez algarismos foi adotado pela indústriade alimentos) e talvez um preço, impresso em caracteres que podem ser reconhecidospor um dispositivo ótico. Desse modo, o funcionário simplesmente passará o artigo peloaparelho (ou levará uma lente dele ao rótulo) e o registro transmitirá a operação a umcomputador que pode ou fornecer o preço ou conferir com a lista atualizada. Os efeitosdesse sistema de controle de estoque, mudanças gerais e rápidas de preços, e relatóriosde venda a um ponto central não requer comentário. Mas no caso o caixa passa a adotaro ritmo de trabalho da linha de montagem da fábrica, em vez de seu próprio ritmo detrabalho. A "produção" de uma caixa registradora pode ser controlada de uma únicaestação central e as retardatárias anotadas para ação futura; e uma vez que não se exigeconhecimento dos preços, a velocidade de produção de um caixa pode ser mantida aomais alto nível em poucas horas após iniciado o trabalho, em vez das poucas semanasnecessárias para adquirir a prática e obter a desejada habilidade. É claro, a operação maislenta será a de ensacagem, e vários sistemas mecânicos para eliminar o "ensacador" epermitir ao caixa que imediatamente após passar o conferidor ótico em um sómovimento empacote e o produto já estão sendo inventados e experimentados(Braverman, 1987, p. 311-314)
175 Esses dois empreendimentos são responsáveis tanto pelos pontos mais positivos quanto dos mais negativos daclassificação empreendida por Braverman. Assim, esta pesquisa se afasta da perspectiva de Braverman no que tangeà conceituação das classes sociais, mas se aproxima no que se refere ao papel da análise concreta dos processos detrabalho como procedimento fundamental de delimitação das condições de existência da classe trabalhadora.
150
Resumidamente, Braverman sustenta que os trabalhadores do comércio se aproximaram
do operário fabril em termos de suas condições de trabalho, o que naturalmente implicaria uma
classificação de classe semelhante para ambos. Tendo condições materiais de vida semelhantes,
as quais no capitalismo teriam nas condições de trabalho e de emprego seus epicentros,
naturalmente distintos contingentes assalariados deveriam ser classificados de modo semelhante
do ponto de vista das relações de classe.176
Braverman classifica a classe trabalhadora de um modo ambíguo. Em parte, ele padece
de um problema comum nas teorias marxistas das classes, que é o da formulação de critérios
excessivamente amplos para definir a classe trabalhadora, o que o leva a incluir segmentos
muitos distintos numa mesma classe. Ele o faz mediante uma adesão parcial à concepção de
classe pelo assalariamento. Entretanto, por outro lado, Braverman traz componentes analíticos
mais detalhados ao empreender sua análise – os quais, na avaliação desta pesquisa, aproximam-
no dos princípios metodológicos de Marx em O capital.
Dois componentes se destacam positivamente na abordagem de Braverman. Em
primeiro lugar, ele teoriza as classes sociais não somente como grupos sociais detidos de
condição social comum na divisão social do trabalho, mas como uma condição social na qual há
permanente tendência à sujeição a determinadas tendências de transformação social. Nos termos
de Braverman:
O termo “classe trabalhadora”, adequadamente compreendido, jamais delineourigorosamente um conjunto de pessoas, mas foi antes uma expressão para um processosocial em curso. Apesar disso, na mente da maioria das pessoas ele representou pormuito tempo uma parte claramente bem definida da população de países capitalistas. (...)Experimento do mesmo sentimento daqueles leitores que gostariam que eu começassepor uma definição concisa e atualizada do termo “classe trabalhadora”. Tal definição, sepudesse ser facilmente ministrada, seria útil tanto para o escritor quanto para o leitor.Mas não posso atender, pois percebo que uma tentativa de dá-la de início resultaria emmais confusão que em esclarecimento. Não estamos lidando com termos estáticos deuma equação algébrica que exigem apenas quantidades a serem preenchidas, mas comum processo dinâmico cuja característica é a transformação de setores da população. Olugar de muitos desses setores na definição de classe é muito mais complexo do que ocontrário, e não pode ser tentado até que muito se tenha historiado e esclarecido ospadrões de análise (p. 31-2, grifos no original)
176 Na avaliação do presente estudo, a consideração sistemática das transformações técnicas e organizacionaisconcretas do trabalho é um dos pontos mais importantes da análise de Braverman, o qual faz com que ainda hoje suasanálises sejam paradigmáticas para as análises marxistas do processo de trabalho e das classes sociais no capitalismo.
151
Em outros termos, para Braverman, mais importante do que definições de classe como
conceitos designadores de traços comuns a grupos sociais, importaria a compreensão da
dinâmica social das relações de classe. Mais precisamente, Braverman considera como
fundamental a tendência, inerente ao capitalismo, a que os processos de trabalho sejam
continuamente transformados com vistas à sua adequação às condições da acumulação. Mediante
esse estado de coisas, inerente a todos os grupos de algum modo enredados na acumulação,177 as
relações sociais seriam permanentemente submetidas a uma pressão por transformação, que
alteraria continuamente as condições de vida desses grupos sociais.178
Em segundo lugar, e como uma decorrência do tópico anterior, para compreender as
relações de classe é indispensável analisar as transformações técnicas e organizacionais nas
relações sociais dominadas pelo capital. Dada a existência de capital, cria-se uma contradição
entre a necessidade de contínua valorização do valor e a natureza concreta dos processos de
trabalho, os quais em alguma medida limitam a capacidade de geração de excedente e de
apropriação. A partir de reorganizações organizacionais e tecnológicas, o capital romperia essas
barreiras, permitindo a continuidade e a expansão da acumulação.
Braverman identifica ao longo da transição ao capitalismo monopolista três
transformações principais para adequar a sociedade e a força de trabalho ao capital: (1) a
revolução gerencial, (2) a revolução tecnológica179 e (3) a mudança na estrutura organizacional
das corporações monopolistas.180
177 E, dado que em formações sociais dominadas pelo modo de produção capitalista este consegue impor suasdeterminações às relações sociais, depreende-se que em sociedades capitalistas todos os grupos sociais estariamsubmetidos à permanente tendência à transformação nas relações de trabalho e condições de vida.178 Parte fundamental dessa pressão por transformação advém da influência do exército industrial de reserva. Poressa razão, segundo Braverman, as inovações técnicas e organizacionais, cujos efeitos são a desqualificão e aeliminação de postos de trabalho, são tão fundamentais, já que elas permitem a criação de um contingente deassalariados facilmente substituíveis e, por isso, em relação de forças desfavorável com o capital.179 Braverman se refere à segunda revolução industrial, o que é natural, dado o período da redação de Trabalho eCapital Monopolista (1987). Contudo, claramente seu referencial permite, em parte, compreender as finalidade econdicionantes gerais da transformação técnica no capitalismo, servindo, desse ponto de vista, como ponto de apoiopara entender inclusive as transformações técnicas do capitalismo contemporâneo.180 Em razão da ênfase nos problemas específicos desta pesquisa, não o tópico da nova estrutura organizacional docapital monopolista não será esmiuçado. Resumidamente, para Braverman parte fundamental das transformações nocapitalismo monopolista decorreria de um duplo movimento realizado pelas grandes corporações ao longo do séculoXX: sua verticalização e sua horizontalização. No primeiro caso, ocorreria uma acentuação das hierarquias internas,com o aumento da sujeição dos processos de trabalho de linha de frente à administração científica e com oestabelecimento de uma longa hierarquia do topo até a base da divisão do trabalho. No segundo caso, as corporaçõesdiversificariam suas atividades, seja para ramos adjacentes às suas atividades fim, seja pela decomposição dasatividades comerciais, administrativas e financeiras.
152
Para Braverman, a gerência científica é um conjunto de preceitos voltados à
implementação e aperfeiçoamento da divisão capitalista do trabalho mediante mudanças na
organização do trabalho, imprimindo aumento da dominação do capital sobre o trabalho sem
alteração da estrutura tecnológica.. Seu mecanismo fundamental é a divisão manual e intelectual
do trabalho, que permite expropriar o saber dos trabalhadores, tornar o trabalho parcializado,
barato e altamente intenso. Já a maquinaria realiza o mesmo objetivo, porém com outros
resultados. Ela permite objetificação do processo de trabalho de modo a torná-lo independente do
trabalhador, aprofundamento da expropriação do conhecimento do trabalhador sobre o processo
de trabalho e imprimindo ritmo automático à produção. Conjuntamente, esses resultados
promovem a dominação do capital sobre o processo de trabalho, tornando o trabalhador um fator
de produção de fácil substituição no mercado de trabalho, além de desqualificá-lo e de torná-lo
mais produtivo.
A partir dessas referências, Braverman identifica que inúmeros contingentes sociais
passaram por intenso processo de sujeição ao capital ao longo do século XX, destacando-se os
trabalhadores de escritório. Por causa dessas transformações, esses contingentes experimentaram
condições de trabalho e de emprego muito parecidas com as do proletário fabril, levando-o a
elaborar a tese da expansão da classe trabalhadora, estando o trabalhador comerciário dentre
esses novos contingentes proletarizados.181 Ao serem vítimas da racionalização capitalista e se
tornarem um fator de produção facilmente substituível pelo capital, esses grupos sociais
passariam a compor a classe trabalhadora.
O ponto alto da abordagem de Braverman consiste na ênfase na dimensão concreta do
processo de trabalho como momento fundamental das relações de classe. Nesse momento, seu
registro confere referenciais analíticos consistentes para compreensão da condição de classe no
capitalismo contemporâneo. Na ótica da presente pesquisa, parte significativa do que ocorreu na
revolução do varejo, que ocorreu em simultâneo à transição ao capitalismo monopolista no setor,
pode ser interpretada a partir do exemplo de Trabalho e Capital Monopolista (Braverman, 1987).
Tanto a inserção de maquinaria como os novos modelos de organização do setor têm como
181 Nos termos de Braverman: "a gigantesca massa de tralhadores relativamente homogênea quanto à falta dequalificações, baixos salários e intercambiabilidade de pessoa e função (...) não se limita a escritórios e fábricas.Outra imensa concentração encontra-se nas ocupações chamadas prestação de serviços e no comércio menor"(Braverman, 1987, p. 303)
153
fundamento a inserção da divisão capitalista do trabalho no setor, promovendo separação entre
funções manuais e intelectuais, desqualificando o trabalhador e aumentando a intensidade do
trabalho.
Na próxima seção essas transformações serão examinadas em detalhe. Na subseção 3.1,
o modelo organizacional de autosserviço será analisado do ponto de vista das relações de
trabalho, enquanto na subseção 3.2 serão analisadas as principais tecnologias inseridas no varejo.
4.2 Transformações técnico-organizacionais e o trabalho
4.2.1 O modelo de autosserviço
Conforme assinala a bibliografia consultada (por exemplo, Belik, 1999 e Carden, 2013),
um dos primeiros expoentes da modernização do varejo foi o autosserviço, causa de inúmeras
vantagens para o setor. Segundo Cleps:
A introdução do auto-serviço adotada pelo varejo constitui-se uma das maioresinovações ocorridas no comércio. Desde o seu surgimento, ainda na década de 1920, nosEstados Unidos, até os dias atuais, ocorreram importantes e significativas modificaçõesnos métodos e técnicas de comercialização. Para compreender tal processo e suastransformações, faz-se necessário conceituar a atividade de auto-serviço. Como auto-serviço entende-se uma modalidade comercial que surgiu na periferia das grandescidades norte-americanas18 e que tem como características principais: a utilização decarrinhos ou cestas para carregar as mercadorias, num sistema de self-service, onde opróprio consumidor escolhe o produto que quer ou necessita; que possui um balcão nasaída da loja onde se encontram as máquinas registradoras – check-outs; e prateleiras(gôndolas) onde os produtos ficam dispostos, de forma acessível, para que osconsumidores possam servir-se (Cleps, 2005, p. 86)
A principal vantagem conseguida com o autosserviço foi a redução de custos na
operação das lojas, oportunizando diminuição de preços e sucesso competitivo (Carden, 2013;
Reardon et al, 2004, Belik, 1999; Cleps, 2004). Além disso, também é apontada a benesse
vinculada ao aumento de vendas propiciado por essa modalidade organizacional, já que a “livre”
circulação pelas lojas expõe o comprador à sedução da mercadoria.182
182 Esse ponto é acentuado por Barata-Salgueiro (1989), que confere destaque para o papel da emergência dasociedade do consumo como determinante das transformações do setor. Nessa abordagem, o autosserviço é resultado
154
Apesar das benesses supracitadas serem corretas, dado que são consistentes as
avaliações da economia de custos e do aumento de vendas como fenômenos associados ao
autosserviço, o presente estudo avalia que esse modo de considerar os benefícios do modelo
supermercadista tenham limites. A razão para tanto é a ausência de uma consideração qualitativa
e crítica sobre a natureza das relações de trabalho inerentes a esse modelo de organização das
lojas, natureza que é perpassada por relações contraditórias de classe. Na avaliação desta
pesquisa, é possível identificar uma associação entre o modelo supermercadista e a objetificação
capitalista do trabalho, sendo, portanto, dispositivo de incremento da dominação capitalista sobre
o processo de trabalho. A fim de sustentar essa tese, adiante serão sumarizados
argumentos/motivos para identificar a objetificação do trabalho como traço inerente desse
modelo produtivo.
O modelo supermercadista implica a dominação capitalista sobre a estrutura técnica do
varejo por duas razões. Em primeiro lugar, forma-se um modelo de organização do trabalho
passível de padronização, o qual é independente do saber dos trabalhadores responsáveis pela
reprodução dos empreendimentos varejistas, condição que decorre da disposição objetiva de
funcionamento do modelo supermercadista. A organização das lojas se configura como uma
estrutura objetificada, de modo que o proprietário dispõe sobre o modo de produzir a partir do
controle sobre o capital constante.183 A propriedade do edifício, das prateleiras e das máquinas de
check-out viabiliza ao capital concentrar em si a capacidade de organizar as várias partes
componentes do processo de trabalho, tornando o último independente do trabalhador
individual.184 Essa condição permite que a compra da força de trabalho se configure como mera
de uma nova configuração do mundo das mercadorias, na qual o marketing e o direcionamento do desejo viaconsumo precisavam de um tipo de varejo adaptado à exposição da mercadoria. Apesar desta pesquisa avaliar essaproblemática profícua, foi escolhido outro caminho para explicar a transição do setor, a qual não necessariamente éincompatível com a problemática centrada na sociedade do consumo, desde que as características da sociedade doconsumo sejam entendidas como resultados do modo de produção capitalista.183 No modelo supermercadista, as lojas funcionam por meio de uma organização dividida em três partes: odepartamento de estoques, a parte das prateleiras e a dos postos de checkout. Através da função intelectual dotrabalho concentrada nos gerentes e por meio da disposição do capitalista sobre o capital constante, todas essas partessão prefixadas de modo independente do saber do trabalho. Assim se configura uma divisão do trabalho tipicamentecapitalista (Cavalcante, 2012), na qual o próprio processo de trabalho cristaliza a divisão manual e intelectual dotrabalho. Cada uma das três partes da loja reproduz essa condição: os meios de trabalho são organizados previamentepor capitalistas e gestores, restando ao trabalho vivo ser consumido pelo pelo trabalho morto.184 Todos esses aspectos foram aprofundados pelas tecnologias mobilizadas como capital no setor. O tema seráabordado na seção 4.3.
155
aquisição de um fator de produção, a qual se incorpora como coisa a um processo de trabalho já
estruturado.
Além disso, o modelo supermercadista objetifica o trabalho em razão do dispositivo de
autosserviço. Dado esse modelo de funcionamento do empreendimento varejista, o trabalho se
torna independente do saber do trabalhador, pois a função do trabalho passa a ser apenas
organizar e disponibilizar as mercadorias, não sendo necessário conhecimento sobre os produtos.
Segundo Strasser (2006), parte fundamental dessa transição foi a objetificação dos preços, a qual
leva à força de trabalho a não ter nenhum papel direto na determinação dos valores das transações
com os clientes. Por meio dessa mudança, todas as qualificações necessárias ao conhecimento das
mercadorias e ao domínio de contabilidade se tornam desnecessários, viabilizando, pela divisão
do trabalho, a inserção da Lei de Babbage,185 barateando o custo da força de trabalho como um
conjunto.186
Em segundo lugar, o modelo supermercadista viabilizou a implementação das normas
tayloristas de racionalização do trabalho. A razão para tanto é que somente então tornou-se
possível decompor as funções do trabalho, permitindo tanto separar as funções manuais das
intelectuais, aspecto fundamental do taylorismo, quanto parcializar cada uma das funções. No
modelo de varejo tradicional, ambos os empreendimentos eram impossíveis em razão da
concentração dessas funções do trabalho nas mesmas pessoas. Apenas com o crescimento de
escala associado ao modelo supermercadista, crescimento de escala que, por definição, é
impossível no modelo tradicional, tornou-se possível a implementação da racionalização
taylorista.
Como discutido na seção 2, a taylorização é um dispositivo organizativo de avanço do
capital sobre o processo de trabalho, firmando-se, no capitalismo monopolista, como um dos
185 A Lei de Babbage consiste num conjunto de resultados da reorganização do trabalho com vistas à divisão detarefas, em princípio incorporado e desenvolvido no modelo taylorista de gestão do trabalho (Braverman, 1987).Resumidamente, de acordo com essa lei, a divisão de tarefas torna possível que cada um dos trabalhadores de umadivisão manufatureira detenham menos qualificação, pois nenhum dos trabalhadores precisa ter a qualificaçãonecessária a todas as funções. Desse modo, a divisão do trabalho opera um acentuado barateamento dos custos com otrabalho. 186 Como se pode notar, a objetificação dos preços, característica fundamental da objetificação da estrutura técnicado varejo, só foi possível em razão da emergência da moderna contabilidade, dado que, de outro modo, a fixaçãoprévia dos preços de modo independente do trabalhador comerciário seria impossível. Nesse ponto, pode-se notarmais uma vez como as transformações do setor varejista são intimamente vinculadas às transições gerais dassociedades capitalistas no século XX, uma vez que a as funções do trabalho ligadas à contabilidade são um dospilares das novas classes médias e da revolução gerencial (Duménil e Levy, 2014; Cavalcante, 2012).
156
principais dispositivos do antagonismo de classe. Por essa razão, a sujeição a esse tipo de
dispositivo organizacional é condição importante para o pertencimento na classe trabalhadora,
embora por si só não seja condição suficiente para tanto.
Assim, o modelo supermercadista traz consigo incremento da dominação do capital
sobre o trabalho, de modo que a generalização desse modelo implica uma transição de ordem
geral nas relações de classe do setor. Apesar da sua importância, esse modelo, por si só, não é
causa suficiente para alterar a condição de classe do trabalhador comerciário, sendo necessária a
atuação conjunta de outros determinantes.187 Contudo, por objetificar o trabalho e contribuir para
que a força de trabalho torne-se mero fator de produção como qualquer outra mercadoria, é certo
que trata-se de fator contribuinte para a mudança nas relações de classe em direção à
proletarização do trabalhador comerciário.188
A fim de conseguir uma imagem mais adequada da estrutura técnica e organizacional do
setor, na próxima subseção entrarão em consideração as transformações tecnológicas pelas quais
passou o setor ao longo da financeirização do varejo.
4.2.2. Revolução do varejo e trabalho
Tendo em vista a finalidade geral de avaliar a natureza das relações de trabalho, cujo
fim, por sua vez, é angariar substratos para compreensão da condição de classe do comerciário, a
presente subseção investigará as principais tecnologias inseridas pelas redes varejistas ao longo
do avanço do setor para a condição de capital financeiro. A partir do levantamento bibliográfico,
187 A alienação dos meios de produção no capital não é em si de uma condição suficiente para promover atransformação da força de trabalho em fator de produção, dado que, para tanto, é necessário também reorganizar otrabalho de modo a tornar o processo de trabalho simplificado, de modo a não depender da qualificação (saber) dotrabalhador. Porém, a objetificação da estrutura organizacional é parte das condições para promoção daproletarização do trabalho. Assim, em si mesmo, esse componente da supermercadificação, independentemente dosoutros fatores, é promotor de uma reestruturação técnica com vistas à aproximação do trabalhador em relação àcondição proletária.188 No capítulo 1, concluiu-se que existe uma correlação entre os processos de supermercadificação, da formaçãodas redes varejistas, da concentração e centralização de capital no varejo. A partir dessa análise do modelosupermercadista do ponto de vista do trabalho, compreende-se que esse complexo de transformações abarca ainda oincremento da dominação capitalista sobre o setor, trazendo consigo a recriação da estrutura capitalista de classe. A,a modernização do varejo, que comumente é apresentada como mera evolução técnica, como fonte de barateamentodos produtos e como promotora dos interesses gerais, mostra-se meio de recriação de relações contraditórias declasse. Esse tópico será explorado na seção 4.
157
foram identificados quatro tipos principais de tecnologia, algumas específicas do setor e outras
gerais: (1) os Eletronic Data Interchange (EDI), (2) os computadores e os pontos de venda
computadorizados; (3) os leitores de códigos de barra (leitores de CB’s) e (4) as tecnologias
ligadas a automação de processos de trabalho no âmbito logístico.
O papel das tecnologias na reconfiguração do trabalho no setor pode ser abordado em
duas frentes. A primeira consiste na análise dos resultados diretos ocasionados nos processos de
trabalho em termos de mudança no tipo de qualificação necessária, na natureza da divisão do
trabalho e na produtividade do trabalho. A segunda frente considera o papel cumprido por cada
uma das tecnologias no tange à criação de uma nova dinâmica geral de funcionamento do setor. A
principal tecnologia a atuar na primeira frente são os leitores de códigos de barra. Já as demais
atuaram sobretudo indiretamente como causas contribuintes da formação dos sistemas integrados.
Inicialmente serão considerados os papeis diretos causados pelas tecnologias e, na sequência, a
contribuição de cada uma delas para a emergência dos sistemas integrados.
O principal resultado dos Eletronic Data Interchange do ponto de vista do trabalho foi a
eliminação de postos de trabalho qualificados, uma vez que a tecnologia tornou possível
substituir mão de obra em função de circulação por bens de capital. Por concentrar em si o modus
operandi técnico das comunicações comerciais com fornecedores e por facilitar as comunicações
internas, a tecnologia, além de diminuir erros e aumentar a eficiência do sistema, permitiu
economizar duplamente com custos de trabalho, seja pela eliminação de postos de trabalho, seja
pela contratação de mão de obra menos qualificada, dado que a qualificação para o manejo dos
fluxos de informação é pequeno, podendo ser aprendido em curto período de treinamento pelos
próprios funcionários da empresa, implicando poucos custos (Cortada, 2004)
Já a combinação de computadores e leitores de códigos de barra possui implicações mais
profundas. Na verdade, em si mesmos, os computadores possuem um resultado bastante
semelhante ao dos EDI's, na medida em que propiciam aumento na eficiência na gestão de
informações sobre os estoques e eliminação de postos de trabalho qualificados, com sua
substituição por trabalhadores desqualificados. Contudo, sua contribuição é mais decisiva a partir
da ligação com os leitores de códigos de barra, para os quais os computadores são condição de
existência.
158
Os leitores de código de barra consistem em dispositivos de reconhecimento
automatizado de símbolos. Por meio de detecção da reflexão de lasers em uma superfície, torna-
se possível identificação automática de conteúdos informacionais associados a um símbolo. Por
meio da associação entre um registro numérico e formas na cor preta, torna-se possível vincular
conteúdos informacionais de uma mercadoria e de um código acoplado à sua embalagem. Com
um projetor de laser programado para identificar códigos padronizados, torna-se possível
reconhecimento imediato do valor das mercadorias.
Do ponto de vista do trabalho no empreendimento varejista, os impactos dessa
tecnologia são diversos. Os principais eixos da mudança dizem respeito à economia com custos
com trabalho e com a capacidade de levantar informações a respeito do consumo, funções que
permitem à tecnologia ter impacto econômico para além das lojas e, no limite, dos próprios
varejistas (Cortada, 2004; Abernathy et al, 2000; Basker, 2015).189
Do ponto de vista do trabalho, a razão da economia de custos é simples: a partir do
momento em que o código contém todas as informações necessárias à transação comercial dos
checkouts, a atividade do trabalhador dos checkouts se resume à passagem do leitor sobre o CB,
cuja localização é padronizada. Nessa circunstância, o tempo de realização das atividades é
menor, viabilizando diminuição dos postos de trabalho. Além disso, como a nova função não
exige nenhuma qualificação do trabalhador, torna-se viável a contratação de mão de obra menos
qualificada. Nas palavras de Basker:
Uma via por meio da qual esse processo de inovação afetou os preços é a redução decustos com trabalho. Com a implementação de scanners e códigos de pesquisa de preçospara produtos e carne, os operadores de caixa não mais precisavam se lembrar dospreços dos produtos, permitindo às empresas economizar custos com treinamento emonitoramento e custos de tempo com a correção de preços acima do correto, bem comocom perdas devidas a preços abaixo do adequado.190 O fato de que os preços de itens depeso variável caem mais dramaticamente com a adoção dos scanners sugere que essescustos eram substanciais. Além disso, caixas registradoras manuais eram simplesmáquinas de [operações de] soma; os operadores do caixa tinham que saber quais itenseram cobrados a qual preço, e quais itens eram elegíveis para os tickets de alimentos[food stamps]. Escanear era mais rápido do que a entrada manual dos preços: um estudoinicial feito pelo Departamento de Agricultura dos EUA previu que os scannerspoderiam incrementar a velocidade dos operadores em até 18-19%. Além disso,scanners poderiam ser programados para automaticamente calcular os preços de cada
189 Antes de abordar as mudanças no sentido mais geral, serão consideradas as mudanças no interior dosempreendimentos varejistas.190 No original, usa-se as expressões “over-charges” e “under-charges” para referir-se à preços cobrados acima ouabaixo do preço de fato. Para manter o sentido, traduzimos por “preços acima/abaixo do correto”
159
item. Esses efeitos se combinaram para reduzir custos de trabalho nas lojas digitalizadas.Um estudo preliminar (Basker, 2012), eu descobri que as lojas com scanner reduziramseus gastos salariais em cerca de 4,5% (Basker, 2015, p. 341).
Além disso, e ainda segundo Basker (2015), outra fonte de redução de custos com
trabalho diz respeito à funções auxiliares do funcionamento do varejo, tendo em vista que, com a
automatização, algumas funções do trabalho deixaram de ser necessárias. Um exemplo dessa
mudança pode ser encontrado na organização das mercadorias das lojas, uma vez que “antes dos
códigos de barra” cada mercadoria dos supermercados “precisava ser individualmente etiquetada
com uma etiquetadora de preços” (p. 341); a partir dos códigos de barra, a precificação funciona
diretamente por meio do trabalho (improdutivo) do setor administrativo, que associa os preços
aos códigos das mercadorias. No contexto contemporâneo, a eliminação de postos de trabalho e a
desqualificação associadas à objetificação dos preços foi ainda mais severa, dado que, com a
computadorização, o sistema tornou-se quase que inteiramente automatizado.
Além de viabilizar a automatização de parte das funções do trabalho no que tange à
organização, os códigos de barra possibilizaram também a automação do próprio atendimento aos
clientes mediante uma associação entre automação e autosserviço. Com a disponibilização de
máquinas para reconhecimento dos códigos de barra no interior das lojas, tornou-se possível
diminuir significativamente o montante de trabalhadores direcionados ao atendimento, uma vez
que o próprio cliente pode passar as mercadorias no leitor a fim de conseguir as informações
necessárias para a decisão da compra. Nesse aspecto, o setor varejista foi vanguarda de uma
transformação importante nas economias capitalistas flexíveis. Como sustentam Koeber, Wright e
Dingler (2012), uma das principais inovações no mundo contemporâneo é a tendência passagem
de funções do trabalho para os consumidores. Desse modo, o capital pode desvencilhar-se da
obrigação de contratação de força de trabalho, substituindo postos de trabalho por consumidores
que realizam trabalho produtivo durante a compra e/ou consumo das mercadorias.
Por fim, além dos argumentos mencionados por Basker (2012; 2015), cujo eixo é a
associação entre leitores de códigos de barras e a eliminação de postos de trabalho, é necessário,
por um lado, pontuar a vinculação entre a organização do trabalho com essa tecnologia e, por
outro, seus vínculos com a desqualificação do trabalho. A nova configuração do trabalho permite
o funcionamento do princípio de Babbage, que avalia que um dos principais benefícios da
parcialização das funções consiste no barateamento do trabalho. A partir da decomposições de
160
funções do trabalho em atividades simples, torna-se possível contratar trabalhadores detidos da
qualificação necessária somente a uma das funções. Se com a concentração das funções em um
único trabalhador se torna necessário contratar trabalhadores com a qualificação necessária a
todas as atividades, a partir da decomposição pode-se contratar força de trabalho com o mínimo
de qualificação necessário para que o empreendimento continue a funcionar. Além disso, essa
mudança permite diminuição de custos com treinamentos, dado que, nas novas funções, em
pouco tempo é possível dominar as habilidades necessárias ao posto de trabalho, o que também
aumenta a flexibilidade dos empreendimentos, já que se torna fácil a admissão e a demissão de
trabalhadores.
O conjunto de transformações ocasionadas pela implementação do autosserviço junto
aos leitores de códigos de barra foram as principais causas da economia com custos do trabalho
no interior das lojas. Combinadamente, esses fatores implicaram um aumento na produtividade
do trabalho e um barateamento da força de trabalho. Uma vez que passou a ser necessário menos
trabalhadores, em razão do ganho de produtividade, e que houve barateamento em razão da lei de
Babbage, o resultado geral foi a diminuição de custos com trabalho, impulsionando a acumulação
no setor. Evidências para essa tese serão apresentados na seção 4, onde é possível identificar uma
clara degradação das condições de emprego no setor. Na avaliação desta pesquisa, o fundamento
da transição encontra-se na nova condição de classe do comerciário, cuja base é uma
reconfiguração da estrutura técnica do setor.
Além de todas essas mudanças, os computadores, os EDI’s e os leitores de código de
barras contribuíram decisivamente para a emergência do varejo como um sistema integrado, uma
vez que elas foram o mecanismo mediante o qual tornou-se possível o levantamento de
informações a respeito das vendas, condição para o mapeamento da circulação e da necessidade
de reposição em tempo real. Adiante entrarão em consideração a natureza desse novo
funcionamento do setor, bem como suas implicações para as relações de trabalho.
4.2.3 Os sistemas integrados, a revolução logística e o trabalho
Nesta subseção serão examinadas um complexo de transformações de suma importância
para a mudança nas relações de trabalho no varejo: a reconfiguração do setor de modo a torná-lo
161
um sistema integrado. O principal propósito desta análise é a compreensão de uma mudança
capital para um dos setores mais importantes do varejo, a logística, que teria passado pelo que
analistas classificam como “revolução logística”. Para além do próprio setor, na verdade, segundo
Bonacich e Wilson (2008), trata-se de uma das mudanças econômicas mais importantes do
capitalismo contemporâneo, sendo responsável não somente pelo ganho de produtividade e
eficiência em praticamente toda a economia, mas dispositivo crucial para a criação do
capitalismo flexível.191
Em larga medida, a revolução logística ocorreu a partir da inserção de sistemas
integrados nos dispositivos de distribuição de mercadorias. Resumidamente, os sistemas
integrados são formas de organização do trabalho no qual cada uma das funções é organicamente
vinculada às demais, de modo a criar um conjunto no qual a natureza das funções do trabalho,
bem como o ritmo de sua realização, são conectados.192 Cada uma das partes não consegue
funcionar sem as demais. Regra geral, a integração ocorre mediante ideação prévia de um sistema
de máquinas internamente articulado. A partir da emergência do processamento automatizado de
informações, tornou-se possível ainda a mobilização de máquinas multifuncionais articuladas por
meio de computadores.
O principal efeito da integração consiste em tornar adaptadas cada uma das etapas de um
complexo produtivo às necessidades produtivas do conjunto. Essa reconfiguração tem como
resultado a criação de um regime de trabalho permanente, permitindo a cada uma das atividades
aproveitamento máximo de suas respectivas capacidades produtivas, além de eliminar ao máximo
o desperdício dos demais insumos produtivos. No que se refere ao trabalho, como analisado por
Marx (2013), a automatização permitiu ao capital avançar no domínio sobre o processo de
trabalho, uma vez que permitiu uma ruptura decisiva com o secular domínio do trabalhador sobre
seu processo de trabalho. Uma vez que as etapas do trabalho se articulam umas às outras, a
regência do ritmo de produção sai do escopo do trabalhador individual, que passa a precisar
191 Por referir-se à esfera logística como um todo, a revolução logística vai além do setor varejista. Contudo, partesignificativa das transformações do setor decorreram do protagonismo do grande capital varejista (Bonacich eWilson, 2008; Abernathy et al, 2000; Lichtenstein, 2006, 2017). Aqui serão examinadas apenas as dimensões ligadasao varejo, embora, naturalmente, seja impossível não realizar algumas considerações de ordem geral, como faz,inclusive, a própria bibliografia analisada.192 Em registro conceitual marxista, trata-se de uma integração de ordem mais geral entre produção, circulação econsumo, tendo no setor varejista um ator fundamental e a combinação de tecnologias da informação, automação econtrole da distribuição seus mecanismos principais
162
acompanhar o ritmo geral. Combinado com máquinas que mobilizam fontes energéticas para
operar, esse dispositivo viabiliza a objetificação do trabalho, o que, dada a predominância do
modo de produção capitalista, permite o funcionamento do processo de trabalho enquanto capital.
O varejo integrado consiste num sistema que integra as diversas partes do varejo. Mais
precisamente, são articulados o trabalho nas lojas, os trabalhos improdutivos das esferas da
administração e contabilidade e a esfera logística. Esta, por sua vez, pode ser decomposta na
gestão dos estoques, na administração e organização dos fluxos de mercadoria nas lojas e nos
centros de distribuição e no contato entre empresa varejista e fornecedores.
Dada a atividade-fim do varejo como a venda ao consumidor final, no setor a integração
consiste numa vinculação de todas as atividade-meio à dinâmica das vendas na loja, de modo a
fazer com que o ato de venda possa continuamente ser realizado sem qualquer impedimento,
como ausência de estoques e/ou de diversidade dos produtos. Além disso, em larga medida a
integração tem vistas a tornar os empreendimentos varejistas flexíveis, de modo a conseguir um
fluxo dinâmico entre as várias etapas controladas pelo setor, cujos resultados são a diminuição do
tempo de rotação do capital pela via da aceleração da circulação e o aumento da taxa de lucro
pela diminuição do montante de investimentos paralisados na forma de estoque.
O varejo integrado só tornou-se possível mediante a ação conjunta das diversas
tecnologias implementadas progressivamente a partir da década de 70, as quais em parte só foram
possíveis em razão da expansão das redes supermercadistas e da aplicação de normas tayloristas
de organização do trabalho.193 Com exceção dos leitores de código de barra, que por si só tiveram
impacto decisivo na reconfiguração do trabalho, as outras tecnologias tiveram um papel
sobretudo indireto na reorganização do trabalho. Elas não o afetaram diretamente, mas
contribuíram para criar o lean retailling e, por essa via, contribuíram para criar um novo
complexo de determinações para o funcionamento do setor, com profundas implicações para o
trabalho.
A combinação entre leitores de códigos de barras, EDI's, computadores e pontos de
venda eletrônicos deu margem à formação da integração. Os códigos de barra, à parte sua função
na taylorização do trabalho, contribuíram com o levantamento de informações no ato de
193 O papel cumprido pelas normas tayloristas na promoção da integração reside no seu papel na promoção da altaeficiência do trabalho no âmbito logístico, sem a qual a integração seria impossível.
163
consumação da venda. Assim que um produto é passado no leitor de códigos de barra do
checkout, as informações são enviadas para o sistema central de processamento de dados. A partir
da simples programação das informações das mercadorias por categoria e com registro do tempo
de intervalo entre chegada do produto e venda, torna-se possível criar informações precisas a
respeito das tendências de venda e das correspondentes necessidades de reposição.
Como se pode notar, a eficiência dos leitores de códigos de barra é nula em termos de
integração se não houver articulação com outras tecnologias, tendo em vista que o sistema de
processamento de dados só é possível mediante uma rede de computadores. Só esses podem
tornar útil o massivo montante de informações gerado por uma única loja, pois, de outro modo,
todos os dados gerados precisam ser interpretados e traduzidos em formas úteis para a
administração econômica. Só então eles se poderiam ser seguidos por avaliações a respeito das
tendências de mercado. Ademais, é nítida a necessidade de um sistema de comunicação barato,
rápido e preciso, já que, de outro modo, as informações geradas demorariam para serem
transmitidas às unidades competentes no âmbito logístico, não somente no interior do varejo, mas
também na esfera dos fornecedores. Sem a facilidade e a eficácia no fluxo de informações, o
levantamento de informações seria pouco útil. Essa função é cumprida pelos Eletronic Data
Exchange, que consistem num sistema padronizado para troca informações entre agentes via
conexão telefônica. Progressivamente, ao longo da terceira etapa de transformações tecnológicas,
a qual começou no começo da década de 90 e que ainda está em curso, os EDI's passaram a ser
utilizados conjuntamente com meios de comunicação por internet.
Os sistemas integrados incidiram sobre a organização do trabalho essencialmente a partir
de um ponto, o qual possui inúmeras implicações sociais e políticas para a natureza das relações
sociais no setor: a formação de um regime de trabalho permanente. Trata-se de um regime de
trabalho que ocorre em fluxo, ou seja, no qual os próprios meios de produção possuem uma
dinâmica de funcionamento como autômato, na qual o trabalhador cumpre papel de apêndice. A
criação do produto final do processo de trabalho ocorre em escala contínua, pois não há limite
material preestabelecido para a quantidade de trabalho a ser realizada durante dado período de
tempo. Esse regime de trabalho é essencialmente capitalista (ou: surgiu especificamente na época
burguesa). Ele é acionado/operacionalizado pelo dispositivo reificado de coordenação da divisão
do trabalho no capitalismo, tendo em vista que forma-se um regime permanente de produção de
164
coisas, no qual os agentes mediam suas relações entre si mediante a dinâmica social imposta pelo
mercado, cuja materialização é o capital e a (imparável) divisão mercantil do trabalho (realização
permanente de trocas).
Na avaliação deste estudo, esse traço geral da produção capitalista passou a se fazer
presente no setor varejista somente a partir da revolução do varejo,194 uma vez que somente então
passou a vigorar a natureza do trabalho em fluxo, sem responder a limites das necessidades locais
dos próprios produtores e/ou da comunidade onde o trabalho é realizado. Concorreram para essa
transição essencialmente duas causas. Em primeiro lugar, só a revolução do varejo trouxe consigo
centralização suficientemente significativa tanto de propriedade quanto das unidades logísticas, o
que é base para que o trabalho ganhe escala suficientemente grande para poder ser reorganizado
dos pontos de vista organizacional e tecnológico. Esse aspecto é importante porque um dos
principais significados sociais da lógica do valor no trabalho é permitir que a busca pelo
incremento da produtividade ocorra de modo incessante. Na logística do setor varejista, essa
dimensão da lei do valor, que é acentuada pela abordagem de Postone (2007) acerca do
capitalismo, só pôde ser efetivamente inserida com essas reconfigurações, pois, de outro modo, as
reorganizações técnico-organizacionais implicariam desperdício de capital.
Em segundo lugar, junto a escala, somente então houve levantamento suficiente de
informações (e em tempo suficientemente rápido e em eficiência suficientemente grande) para o
capital poder saber exatamente o montante de trabalho necessário, de modo a conseguir
previamente mobilizar força de trabalho normalizada, i. e., força de trabalho em grau socialmente
médio de intensidade e de produtividade do trabalho. De outro modo, seria impossível ao
capitalista distribuir a força de trabalho contratada de modo a fazê-la trabalhar de modo intenso
de modo uniformemente distribuído no tempo, i. e., de fazer o trabalhador trabalhar de modo
intenso e regular. Sem os conhecimentos precisos a respeito da dinâmica do próprio setor e sem a
escala, essa prévia ideação não era possível, não sendo possível determinar com antecedência o
montante de trabalho necessário. Por isso, as tecnologias da informação cumpriram papel
decisivo no estabelecimento de um novo regime de trabalho no setor.
194 Papel fundamental para essa transição foi cumprida pela revolução logística, que é indissociável daquela. Dado oprotagonismo das corporações varejistas na promoção da revolução logística (Bonacich e Wilson, 2008; Lichtenstein,2006; 2017), a partir de um raciocínio metonímico, é possível dizer que a revolução do varejo trouxe consigo alógica do trabalho em fluxo permanente para a logística do setor.
165
Esses dois fatores explicam porque, enquanto trabalho concreto, i. e., do ponto de vista
técnico, a lógica do valor só passou a se fazer presente na logística na medida em que ocorreu o
complexo de transformações denominado revolução do varejo.195 Antes dessas transformações, as
tarefas eram realizadas na medida em que surgiam necessidades concretas para sua realização,
seja no âmbito das lojas, seja no âmbito dos contatos com fornecedores. Todas as tarefas eram
realizadas, como ainda o são no varejo tradicional, na medida em que surgem necessidades
decorrentes do funcionamento do empreendimento, de modo que não existe um fluxo permanente
determinado pelo mundo das coisas. A partir da revolução do varejo, a lógica do trabalho
permanentemente intenso e da constante busca pela evolução da produtividade se tornaram
constantes no setor. Em outros termos, só então a lógica capitalista se imprimiu com toda
vitalidade sobre o trabalho.
Na avaliação desta pesquisa, esse aspecto é o mais fundamental e o mais abstrato da
mudança nas relações de trabalho no âmbito logístico.196 Ele atuou como criador de uma nova
condição para o trabalho nessa esfera, de modo a tornar possível aumentar indefinidamente tanto
a produtividade do trabalho quanto sua intensidade.197 Por esse motivo, ele esteve na base das
mudanças tecnológicas e organizacionais pelas quais passou o setor, das quais pode-se destacar a
taylorização do trabalho, a inserção de computadores como meio de gestão dos fluxos de estoque
e a implementação de maquinaria para alocação de mercadorias.
De acordo com Cortada (2004), o grau de intensidade das transformações técnicas pelas
quais a logística do varejo passou foi intensa ao ponto de tornar-se um dos setores mais intensos
em capital a partir da década de 80. Os centros de distribuição mais desenvolvidos
tecnologicamente contam com sistemas computadorizados de planejamento dos fluxos de
mercadoria, de modo que os caminhões chegam com cargas e imediatamente são recarregados,
não havendo período de espera (Bonacich e Wilson, 2008). Algumas partes do setor são tão
automatizadas que chegam a não precisar de iluminação, dada a inexistência de força de trabalho
195 A inserção de capital num ramo produtivo veio acompanhado de sua revolução técnica, a qual teve em vistaadequar o setor às necessidades do capital. A expressão dessa tendência no varejo é o varejo integrado, para a qualconcorreram, como explicitado nesta pesquisa, inúmeras alterações nos planos tecnológico e organizacional.196 E, portanto, dado o papel da natureza dos processos de trabalho na determinação da condição de classe, tal comosustentado no cap. 4, também o é para a determinação das relações de classe.197 Como indica Pessoa Jr (2006) é difícil, nos casos concretos, a diferenciação entre causas e condições paraatuação das causas. De todo modo, a integração pode ser vista tanto como condição da atuação das outras causasquanto como causa longínqua das transformações técnicas mais concretas no processo de trabalho.
166
viva atuando (Cortada, 2004). Máquinas eficientes e esteiras compõem um complexo que
permanentemente conduz mercadorias aos estoques ou diretamente para o transporte. De acordo
com Bonacich e Wilson, o novo funcionamento dos centros de logística pode ser sumarizado em
dois pontos. Nos termos dos autores:
Mais do que focar no armazenamento de bens, como nos antigos depósitos, os novosCD’s [centros de distribuição] engajaram-se em duas principais funções. Em primeirolugar, eles entrelaçam pontos de carga e descarga, o que significa que, quando umcaminham chega ao CD, ele é imediatamente descarregado, os bens são distribuídos nascorreiras de transporte de acordo com seus destinos, e os caminhões, ao invés depararem nos entornos do depósito, são alinhados do outro lado para receber os pacotespara seguir estrada. Em segundo lugar, eles desempacotam bens a fim de atingir osrequisitos para carregamentos específicos, o que é descrito como uma atividade “devalor adicionado”. Abernathy et al estima que um grande CD de um grande varejista fazentrelaçamentos de carga e descarga com 60 a 70% dos contêineres recebidos por dia,enquanto 30 a 40% dos bens permanecem mais tempo para serem processados(Bonacich e Wilson, 2008, p. 124) 198
Além de funcionarem como autômatos, em razão do fluxo permanente de mercadorias,
ao longo da revolução do varejo os dispositivos logísticos passaram a incorporar funções antes
exclusivas dos produtores. Essas inovações, que incluíram “funções de adição de valor” no setor,
incluem a adaptação de produtos para embalagens finais, desembalagem de produtos,
desmembramento de pallets e de contêineres. De acordo a estimativa de Abernathy el al (2000),
nos centros de distribuição contemporâneos cerca de 60 a 70% das mercadorias realizam o cross-
docking, atividade de mera transição de uma carga entre dois agentes, sem que haja qualquer
intervalo na qual elas fiquem paradas em estoques, e 30 a 40% das mercadorias ficam nos centros
de distribuição para processamento. Nessa nova condição, na logística ou as mercadorias estão
em movimento constante, o que acelera sua circulação, e por conseguinte diminui o tempo de
rotação, ou elas estão em processamento interno, ou seja, em atividades que adicionam valor. De
acordo com Bonacich e Wilson, de fato, “especialistas da logística trabalham com o princípio de
que capital não em movimento deixa de ser capital” (Bonacich e Wilson, 2008, p. 15). Os dois
dispositivos encontrados para solucionar o problema são o just-in-time e o processamento no
interior das unidades logísticas, tornando o fluxo de trabalho permanente e aumentando ao
máximo o aproveitamento produtivo dos recursos
198 Todas as citações de Bonacich e Wilson (2008) foram traduzidas por nós.
167
Do ponto de vista do trabalho, o resultado dessas transformações foi ambíguo. Por um
lado, ele criou postos de trabalho qualificados, na medida em que a operação das máquinas e o
trabalho com carregamentos demanda domínio básico de linguagem, de matemática e de
manuseio de computadores (Bonacich e Wilson, 2008). Por outro lado, o uso de leitores de
código de barra, de EDI’s e de computadores fez com que parte das qualificações se tornasse
desnecessária para os trabalhadores manuais, permitindo aplicação da lei de Babbage.
Consequentemente, no interior do varejo, a revolução logística eliminou postos de trabalho, criou
funções do trabalho qualificadas e desqualificadas ao mesmo tempo em que aumentou
exponencialmente a produtividade do trabalho no setor.199
A revolução do varejo em larga medida implicou a inserção da divisão capitalista do
trabalho no setor, permitindo ganhos de produtividade e intensidade do trabalho em paralelo à
desqualificação e barateamento da força de trabalho. Segundo Bonacich e Wilson (2008), é
possível identificar quatro transformações fundamentais ligadas à revolução do varejo: 1)
formou-se nova relação de poder para os varejistas em relação aos manufatureiros; 2) houve
mudanças no caráter da produção; 3) houve mudança no sistema de distribuição de
carregamentos; 4) houve mudanças no mundo do trabalho, que abarcaram tanto o universo dos
trabalhadores das lojas, da logística e nas cadeias de fornecimento.200
De acordo com Bonacich e Wilson, a razão para a deterioração do trabalho consiste num
papel fundamental promovido pela revolução logística. Na medida em que permitiu um
encadeamento sem precedentes das cadeias de fornecimento, que passaram a concorrer em
mercados nacionais e internacionais, a alta concorrência fez com que as empresas não mais
utilizassem contratos de longo prazo, mas que mudassem constantemente de fornecedores.
Consequentemente, dada a insegurança das empresas num contexto de elevada concorrência,
tornou-se necessário intensificar as formas flexíveis de contratação. Essa transição estaria na base
da deterioração das condições de trabalho, de emprego e no enfraquecimento dos sindicatos,
criando um círculo vicioso. O resultado geral é uma deterioração das relações de trabalho não
199 No caso dos Estados Unidos, “estatísticas mostram que os custos de logísticas nos EUA declinaramsignificativamente desde o começo dos anos 1980. Eles caíram de cerca de 19% do PIB para cerca de 10 (Bonacich eWilson, 2008, p. 20)200 Por sua vez, as mudanças no âmbito do trabalho se dividem entre (a) deterioração das condições de trabalho eemprego os trabalhadores e (b) enfraquecimento dos sindicatos, que são, evidentemente, intimamente conectadosentre si.
168
somente no setor varejista, mas em toda a cadeia de fornecimento. Por essas razões, Bonacich e
Wilson (2008) atribuem à revolução do varejo papel protagonista na promoção generalizada de
novos padrões (precários) para o mundo do trabalho e de aprofundamento da crise do
sindicalismo, que teria ficado relativamente inerte diante da nova configuração do capitalismo.201
Feito esse panorama das alterações técnicas e organizacionais no setor, adiante será
realizada análise das condições de emprego.
4.3 A degradação das condições de emprego
O propósito desta seção é avaliar a evolução das condições de emprego no setor
varejista, cujo objetivo é endossar a pesquisa qualitativa explicitada acerca das mudanças nas
relações de trabalho no setor varejista.202 Resumidamente, a hipótese consiste na interpretação dos
dados referentes à degradação do emprego como efeitos da transformação nas relações de
trabalho, que ocorreram em simultâneo à transição do setor à inserção de novas modalidades
técnicas de organização.
Como o objetivo visa mobilizar as condições de emprego como efeito, se faz necessário
um mínimo panorama da mudança mais geral nas condições de emprego. Uma dificuldade
inerente a esse empreendimento consiste em separar os diversos determinantes da alteração nas
condições de emprego no setor. Essa dificuldade é particularmente candente em razão da
transição geral pela qual passaram as economias capitalistas desenvolvidas a partir da década de
70, nas quais formou-se tendência geral à deterioração dos salários. Como houve uma
deterioração salarial generalizada, torna-se difícil discriminar quais fatores na verdade não são
201 Apesar da concordância quase integral com os diagnósticos de Bonacich e Wilson, sobretudo no que se refereaos seus impactos gerais no mundo do trabalho, avalia-se que há uma limitação em sua abordagem. A razão é que odiagnóstico proposto pelos autores se limita a uma crítica ao avanço da flexibilização, de modo que os problemas domundo do trabalho decorrem apenas do avanço do capitalismo flexível. O problema é a ausência de uma crítica ànatureza imanente da divisão capitalista do trabalho, que, por si só, é limitadora das condições de vida das classestrabalhadoras. Por isso, essa abordagem não encontra parte do problema nas formas de organização do trabalho nointerior da logística contemporânea, a qual, em larga medida, funciona mediante a divisão capitalista do trabalho. Acrítica a essa forma de abordar o problema será esmiuçada no final da seção 4.202No que se refere aos dados do emprego, são levantados dados do varejo estadunidense a partir das pesquisas deTilly (2007a) e Carré et al (2005; 2008). No que se refere ao varejo de países europeus, o estudo transnacional deCarré et al (2008) e a pesquisa de Jany-Catrice e Lehndorf (2002). O primeiro estudo abarca os países Portugal,Alemanha, Dinamarca, Finlândia, França e Suécia, enquanto o último os países França, Dinamarca, Alemanha,Holanda e Reino Unido.
169
específicos ao varejo (e que, portanto, em parte saem do escopo das teses desta pesquisa) e quais
são específicos aos processos sociais aqui analisados.
Uma solução para esse problema consiste em diferenciar as variações meramente
quantitativas dos salários (variações reais e nominais) das variações relativas (variações de um
setor diante da média). Nos dados analisados em relação ao emprego do comerciário nos Estados
Unidos, foi possível identificar uma deterioração salarial dos dois tipos no varejo, o que em parte
soluciona o problema supracitado. Por um lado, é possível associar a deterioração quantitativa
dos salários do setor tanto com mudanças externas quanto internas ao setor. Por outro lado,
porém, torna-se evidente que a deterioração relativa só pode ser compreendida mediante análise
das condições de trabalho do próprio setor. Dada a possibilidade dessa discriminação – e pela
efetiva existência de uma discrepância relativa – torna-se possível diferenciar os efeitos gerais
dos efeitos específicos, e consequentemente as hipóteses desta pesquisa podem ser sustentados
pelos dados da variação salarial.203
A presente seção se divide em 3 subseções. A primeira delas faz uma breve retomada dos
determinantes gerais da deterioração dos salários no capitalismo contemporâneo, tendo como
base o registro de Brenner (2006). Já a segunda subseção faz uma avaliação da deterioração das
condições de emprego do comerciário nas economias capitalistas desenvolvidas. Por fim, na
terceira subseção é feita reconstrução das interpretações encontradas em análise bibliográfica
para a deterioração das condições de emprego, a qual é acompanhada da proposição de uma
abordagem alternativa.
4.3.1 Deterioração dos salários e flexibilização
Retomando brevemente as características do capitalismo na atualidade, em termos de
salário, é possível observar uma longa estagnação da evolução dos salários nas sociedades
203 No caso dos dados da Europa, não foi encontrada na bibliografia análise que já propusesse um estudocomparando a evolução do emprego no setor com a média de outros setores da economia. Por essa razão, estapesquisa limitou-se a levantar dados a respeito da condição de emprego no setor na contemporaneidade. Dada asemelhança da condição empregatícia do comerciário nos países europeus em relação aos Estados Unidos, e dada acondição análoga do comerciário em relação a outras categorias, justifica-se a hipótese de que os países passaram porprocesso de reestruturação semelhante. No entanto, a comprovação dessa hipótese, que em larga medida extravasa oslimites desta pesquisa, precisa de mais investigação.
170
contemporâneas. Essa deterioração possui duas causas fundamentais: em primeiro lugar, a
deterioração crônica da taxa geral de lucro e, em segundo lugar, a emergência do complexo
normativo do padrão de acumulação flexível, que surgiu como uma tentativa de reparo para as
dificuldades da acumulação enfrentadas desde a década de 1960.
De acordo com Brenner, o que caracteriza a transição rumo ao capitalismo pós-fordista é
a transição de diversas economias para o patamar de pleno desenvolvimento tecnológico,204
quebrando a hegemonia estadunidense e concorrendo para criar ambiente de intensa concorrência
inter-capitalista no plano internacional. Segundo Postone (2007), a chave de Brenner confere
destaque para as condições da acumulação em contexto de uma economia regulada de modo
reificado (modo não social de regulação pela via do mercado), modo de regulação que conduz os
agentes econômicos a agirem apenas perseguindo seus próprios interesses em contexto
concorrencial. Dada essa condição, a economia mundial tende a produzir excedentes em relação
às condições de absorção dos mercados, conduzindo à deterioração da taxa de lucro. Como a
concorrência é excessivamente intensa, não fornecendo mercados suficientes para a valorização
de todos os capitais existentes, torna-se necessário incrementar a produtividade do trabalho a fim
de obter vantagem competitiva.205 Esses investimentos, realizados por todos os capitalistas em
simultâneo, gera um processo cíclico, no qual todos os capitalistas precisam aumentar
recorrentemente seus investimentos em capital fixo. A consequência geral é um excedente de
investimentos em capital. Por consistirem em montante de lucro em proporção do capital
investido, as taxas de lucro tendem a diminuir. Como resposta, os capitais precisam investir mais
para sobreviver em mercados ainda mais competitivos, levando à continuação do problema e a
formulação de uma tendência de longo prazo à desaceleração econômica (Brenner, 2006).
Essa forma de encarar o capitalismo pós crise do fordismo permite compreender
algumas tendências estruturais das relações de trabalho na contemporaneidade. Dado o cenário de
baixa lucratividade, necessariamente acentua-se o conflito distributivo entre capital e trabalho
pela definição da parcela da produção social apropriada. Nos contextos de assalariamento,
mesmo aqueles em que o capital não é plenamente concentrado nem centralizado, essa tendência
204 Tecnologia aqui se refere a formas de mediação entre relação ser humano, trabalho e natureza, não limitando-sea máquinas ou instrumentos de tipo específico.205 Ademais, disso decorre a necessidade de alteração na qualidade do produto, que tornou-se, no capitalismo pós-fordista, condição fundamental para garantir a valorização do valor.
171
se expressa diretamente na necessidade de contenção dos salários, uma vez que a acumulação
torna-se impossível caso os salários se apropriem de parte excessivamente grande do valor-
produto. Dada a relação social capitalista, com a consequente necessidade de que os
investimentos gerem lucros, torna-se imprescindível que o capital crie as condições para a
acumulação “pouco importam as consequências sociais, políticas, geopolíticas ou ecológicas”
(Harvey, 2014, p. 166). Nesse sentido, no que se refere aos salários, há sempre um
constrangimento mais ou menos restritivo para seu aumento dentro de formações sociais
capitalistas, limite que decorre sobretudo do próprio sucesso da acumulação e da evolução da
produtividade.
Com a longa desaceleração, que é um epifenômeno da baixa crônica da taxa geral de
lucro em contexto de economia reificada, forma-se constrangimento altamente incidente sobre a
dinâmica dos salários. Como nesse novo cenário em que a margem de lucro das empresas é
baixo, forma-se a necessidade de contensão dos salários, pois, de outro modo, a acumulação seria
inviável. Mantida a predominância do modo de produção capitalista, torna-se incontornável o
destino de estagnação ou de declínio dos salários,206 a qual pode ser mais ou menos incidente em
cada formação social capitalista a depender da interação com outros fatores, como regulações de
ordem institucional, grau de consciência das classes e conjuntura política e econômica.
Além das tendências supracitadas, outro fator contribuiu para a transição no panorama
geral dos salários e das condições de trabalho no capitalismo contemporâneo: a emergência do
setor de serviços. Trata-se de um fator central em razão das suas características materiais, as quais
o tornam dificilmente volúvel a movimentos de evolução técnica. Com raras exceções, os ramos
de serviço têm de dificuldade de implementação de mudanças técnicas significativas em termos
de melhoria na produtividade.207 A identificação da expansão desse setor nas economias
206 No que se refere ao trabalho, a problemática de Brenner permite compreender parte do dilema enfrentado pelassociedades capitalistas desenvolvidas após a crise do capitalismo fordista. Ao mesmo tempo em convive com adependência universal do trabalho assalariado, as sociedades contemporâneas não mais conseguem promover ganhossistemáticos de salário. 207 A tendência à estagnação da produtividade nos serviços é uma das razões da importância da revolução do varejo.Embora ela não tenha trazido evolução da produtividade tão grande quanto a já realizada pelos setores industriais deprodução material, ela permitiu significativa evolução da produtividade e de inovações técnicas em um setor deserviços (Lichtenstein, 2006; 2017). Contudo, segundo Carré et al (2005), essa evolução da produtividadeconseguida no varejo baseou-se quase que totalmente em modelo de desenvolvimento empresarial no qual ocrescimento só trouxe trabalho desqualificado. Em outros termos, tratou-se de modelo de crescimento sem fortecontrapartida para os salários, aprofundando a tendência à dualização dos mercados de trabalho. A retomada dasinterpretações encontradas na bibliografia sobre os problemas supracitados será feita na seção 4.
172
capitalistas avançadas e da sua dificuldade em termos de inovação técnica levou o economista
Baumol a empreender uma formulação de referência a respeito dos dilemas enfrentados pelas
economias capitalistas desenvolvidas: ao passo que cresce a presença dos setores de serviços,
declina a produtividade geral do trabalho. Consequentemente, ocorre uma erosão da base material
que permitia sustentar uma estrutura ocupacional dominantemente caracterizada por boas
condições de emprego.208
O resultado dessa reconfiguração de ordem estrutural do capitalismo pode ser
identificado na nova dinâmica das principais variáveis macroeconômicas, bem como na evolução
dos salários. No que se refere às principais economias capitalistas desenvolvidas do pós-guerra
(EUA, Alemanha e Japão), as variáveis taxa de investimentos, taxa de crescimento da
produtividade e evolução salarial sofreram diminuição substancial da taxa de crescimento. No
que se refere aos intervalos 1950-1973 e 1973-1996, as variáveis taxa de investimentos, taxa de
crescimento da produtividade do trabalho e evolução dos salários reais tiveram queda média
variando de 33% a 50%, enquanto as taxas médias de desemprego dobraram (Brenner, 2006, p.
4). Mais precisamente, no que se refere aos salários, de acordo com Brenner, entre 1950 e 1973 o
crescimento real dos salários nos Estados Unidos foi, em média, de 2,6% ao ano, enquanto de
1973 a 1996, de 0,5%. No caso da Alemanha, nos mesmos períodos, houve variação de 5,7 de
crescimento médio ao ano para 2,4%, enquanto no Japão a variação foi de 6,1% para 2,7.
(Brenner, 2006, p. 5).209
Fazendo uma avaliação a partir de dados do Conselho de Assessoria Econômica dos
EUA (U.S Council of Economic Advisors), Carré et al (2005) concluem que “nos Estados Unidos,
os trabalhadores da produção e fora de funções de supervisão viram seus ganhos médios reais
tenderem à queda por 20 anos, começando no começo dos anos 1970, e depois a passarem por
uma recuperação incompleta de 1995 em diante”, e ainda que “os trabalhadores do varejo viram
um declínio mais severo, e apenas uma recuperação um pouco mais favorável no mesmo
208 Por essas razões, o processo de crescimento relativo da participação dos serviços na estrutura ocupacional tendea promover a diminuição e/ou estagnação dos salários. Os ganhos de produtividade promovidos pelo sucesso daacumulação não conseguem se reverter em ganhos salariais, dado que os setores estagnados em produtividadepressionam o mercado de trabalho, criando pressão para manutenção ou deterioração dos salários mesmo nos setoresindustriais209 Brenner restringe-se à evolução dos salários na manufatura, pois são os únicos dados disponíveis acerca doperíodo. Ele baseia-se no estudo de A. Maddison (Dynamic Forces in the World Economy, 1 991, pp. 71, 1 40, 1 42;A. Maddison, The World Economy: Historical Statistics, 2003, pp. 84-86, Tobie 2b, and pp. 87-89), em relatórios doComitê de Análise Econômico e em relatórios do Comitê de Estatísticas do Trabalho.
173
período.” Comparando com a média do setor privado, “os salários dos trabalhadores do varejo
variaram de 90% em 1972 para 75% em 1991, e depois se incharam para 77% em 2004” (Carré et
al, 2005, p. 16).
No que se refere ao setor de serviços em geral e o setor varejista em específico,
escrevem Carré et al:
Grandes tendências nas compensações indicam uma piora da posição relativa dostrabalhadores de baixos salários. Entre 1979 e 2001, o salário real por hora dostrabalhadores com formação escolar menor do que o colegial diminuíram 18%. Acesso abenefícios pagos pelos empregadores, tais como plano de saúde e pensões, declinaram(…). Pressões econômicas sobre os empregadores se combinaram com mudançasinstitucionais, de modo alterar significativamente o ambiente em que as decisõesreferentes ao processo de produção e à implantação de trabalho ocorriam, comconsequências significativas para os trabalhadores da linha de frente (…) as pressõeseconômicas incluem a globalização dos mercados de capitais e da produção, avanços nastecnologias da informação que resultaram em automação de tarefas de rotina e quetornaram possível a formação de um mercado internacional de fornecimento de serviços,e um foco em resultados de curto prazo nos mercados financeiros. Mudançasinstitucionais incluíram a desregulamentação de setores-chave, o declínio da densidadesindical e do poder dos sindicatos, bem como a diminuição do valor real do saláriomínimo, uma variável que frequentemente estabelece o piso das condições de trabalhopara trabalhadores na condição de entrada no mercado de trabalho (Carré et al, 2005, p.1)
Para explicar a deterioração salarial nos postos menos qualificados, os autores aderem a
uma explicação de natureza pluricausal. Como causas principais, encontram-se (1) os dispositivos
de implantação da força de trabalho, que passaram a funcionar de acordo com as normas
flexibilizantes, resultando em perda de benefícios e de salário; (2) a globalização e a
financeirização, com o incremento da concorrência e a busca de resultados de curto prazo para
obter benefício no mercado de ações; (3) o avanço em tecnologias da informação que resultaram
em automação do trabalho; (4) mudanças institucionais como a desregulamentação das atividades
laborais em setores-chave; (5) o declínio da densidade sindical e do poder dos sindicatos e (6) o
enfraquecimento de políticas institucionais de proteção ao trabalho.
Ao se referirem ao emprego no varejo estadunidense a partir da década de 80, Carré el al
comentam que há “poucas boas notícias sobre a qualidade do emprego de linha de frente no
varejo” (Carré et al, 2005, p. 27). A situação seria crítica, já que “os salários no varejo são baixos
e ainda caíram tanto em termos reais quanto em relação à média dos salários do setor privado”,
queda salarial que ocorreu “num contexto de expansão do sistema de descontos, no
174
enfraquecimento de proteções institucionais – como o salário mínimo, com poder de compra
reduzido e desgaste da representação sindical – e desqualificação dos trabalhos da linha de frente
do varejo” (idem, 2005, p. 27).
O setor, que já era historicamente caracterizado por remuneração “menor do que a média
dos trabalhadores do setor privado como um todo” (Carré et al, 2005, p. 2), experimentou “uma
perda salarial generalizada desde a década de 70, tanto em termos absolutos quanto em termos
relativos em comparação com os trabalhadores dos outros setores” (Carré et al, 2005, p. 2).
Ainda de acordo com Carré et al (2005), “a hora de trabalho relativa do varejo – o
salário como uma porcentagem da média dos setores não agrários – caiu de 88% em 1975 para
75% em 1991, e permaneceu nessa proporção desde então. Ademais, os trabalhadores do varejo
recebem mais dificilmente benefícios pagos pelo empregador, tais como planos de saúde e
benefícios de aposentadoria." (Carré et al (2005, p. 3). Em outros termos, no que se refere à
economia estadunidense, que foi a pioneira na implementação das inovações técnicas do típicas
do varejo financeirizado, o valor médio do salário no setor passou de 88% para 75% da média
salarial do setor privado (excluído o setor agrícola), consolidando-se como um setor de baixos
salários por excelência e demonstrando protagonismo na criação da estrutura ocupacional dual
típica do capitalismo contemporâneo.
Considerando as compensações totais, que são uma medida ainda mais precisa do que os
salários, pode-se conseguir uma imagem ainda mais clara da condição deletéria do emprego no
setor varejista. Segundo Carré et al:
No que se refere à compensação total, considerando tanto os benefícios pagos peloempregador quanto os salários, os trabalhadores do varejo vivenciam má condição seconsiderarmos a força de trabalho como um todo. A média de compensação do varejoorbitava em torno de $11,49 em 2001, sendo só 51% da média da economia em geral.Em 1999, 31 por cento dos trabalhadores do comércio varejista tinham plano de saúdepago pelo empregador, comparado com 53% do conjunto da força de trabalho. Quadroscorrespondentes para benefícios de aposentadoria eram [respectivamente] de 30 e 48 porcento (…). O emprego por tempo parcial, que frequentemente implica benefíciosassociados, (…) é generalizado no setor varejista. Em 2002, 35 por cento dostrabalhadores, além de serem trabalhadores em tempo parcial, comiam e bebiam no localde trabalho, em comparação com 17% na economia como um todo (Carré et al, 2005,p. 5)
Como se pode notar, a condição empregatícia do trabalhador varejista passou por intensa
degradação a partir da década de 70. Todas essas considerações a respeito da sua condição
175
empregatícia tornam-se ainda mais incisivas se fizermos uma discriminação dos seus principais
setores. Em sua pesquisa, Carré et al (2005) identificaram que há acentuada desigualdade nas
condições de emprego dos três principais setores que compõem o comércio varejista, que são o
varejo alimentício (dominado pelo setor supermercadista), o general merchandising e o comércio
de eletrônicos. Desses setores, o último é o que mais se afasta das tendências analisadas na
presente pesquisa, uma vez que, dadas suas características técnicas inerentes, ele conserva
autonomia e qualificação no processo de trabalho. Inversamente, os outros dois tipos são
fielmente descritos do ponto de vista técnico e organizacional pelos referenciais explicitados na
seção 2, uma vez que inseriram intensamente as tecnologias da informação descritas e o modelo
de autosserviço como dispositivo de organização das lojas.
De acordo com Carré et al,
Enquanto a tendência nos salários relativos no varejo permaneceu estável ao longo doperíodo, os grandes ganhadores foram os trabalhadores das lojas de eletrônicos, que,iniciando com salários relativos de 90% da média durante o período investigado [1990-2004], recebia salários maiores do que os outros dois setores, além de ter assistido a umaumento (de 108%) em relação à média de todos os setores em 2004. Em contraste, ostrabalhadores da linha de frente no varejo e nos supermercados tinham os saláriosrelativos mais baixos e sua trajetória permaneceu praticamente estagnada em torno dos62% ao longo dos últimos 15 anos. Os trabalhadores de mercearias também assistiramsua posição piorar, de modo que seus salários relativos diminuíram e declinaram emtermos relativos de 75% em 1990 para 69% em 1004 (Carré et al, 2005, p. 6)
Esses dados são pertinentes, pois mostram que a situação do trabalhador do varejo
alimentar e de general mershandising é especialmente crítica. Mesmo incluindo o setor de
comércio de eletrônicos para tiragem das médias de evolução dos salários do setor, a situação do
trabalhador comerciário mostra-se altamente problemática, por replicar com especial intensidade
as tendências do capitalismo contemporâneo de formação de uma ampla massa trabalhadora
desqualificada e mal remunerada. Caso exclua-se o setor, nota-se que a situação do comércio
varejista e do general merchandising são dramáticas. Esses dados são importantes para os
problemas desta pesquisa, pois as transições técnicas analisadas são válidas sobretudo para os
setores do varejo alimentar e do general merchandising, por serem justamente os setores
caracterizados pela formação de capital monopolista, pela financeirização das corporações e pelas
mudanças técnicas típicas da revolução do varejo. Regra geral, nos setores de eletrônicos, assim
como em outras formas de comércio especializado, tendem a predominar os pequenos e médios
176
capitais a a persistir formas de organização do trabalho típicas do varejo tradicional. Por essas
razões, em larga medida, esses dados dão embasamento para as teses desta pesquisa, que
associam a financeirização do varejo à reconfiguração das relações de trabalho do comerciário, as
quais, por sua vez, têm como efeito a degradação das condições de trabalho e emprego. Mais
precisamente, essa diferenciação ajuda a sustentar a tese de que a nova configuração técnica-
organizacional implicou deterioração do trabalho pois mostra que não se trata unicamente de
decorrência das tendências gerais ligadas à longa desaceleração econômica. Se a única causa em
atuação fosse essa, a dinâmica salarial do setor permaneceria na média em comparação com
outras categorias; e tampouco haveria distinção entre os setores intenso do varejo.
Situação semelhante pode ser encontrada nas condições de emprego em países europeus.
Comparando os salários dos trabalhadores do varejo com os da economia em geral, Lehndorff e
Jany-Catrice concluem que há significativa variação, com o trabalhador comerciário em condição
salarial relativa parecida com a dos comerciários dos Estados Unidos. Mais precisamente, a partir
da comparação, eles concluem que “o nível salarial no varejo varia de 70 a 90% da média salarial
adquirida no setor privado como um todo. Desse modo, em muitos casos mesmo os empregos em
tempo integral provavelmente não oferecem mais do que uma base modesta para conseguir
meios de subsistência de modo independente” (Jany-Catrice e Lehndorff, 2002, p. 508).
Mais precisamente, a proporção dos salários do varejo em relação às médias da
economia é de 75% em Portugal, 77% na Alemanha, 80% na Dinamarca, 82% na Finlândia, 85%
na França e 92% na Suécia, o que leva Jany-Catrice e Lehndorff a sustentarem que “as
oportunidades de renda oferecidas são extremamente limitadas. Para número crescente de
empregados, o trabalho no setor varejista não constitui base suficiente para conseguir uma vida
independente” (Jany-Catrice e Lehndorff, 2002, p. 508).
De acordo com Carré et al, se referindo ao emprego em países europeus, “o comércio
varejista é, de modo consistente, um setor de baixos salários em todos os países investigados
nesse estudo transnacional” (Carré et al, 2005, p. 31). De acordo com o estudo comparativo
transnacional realizado pelos autores, cujo projeto visa analisar os empregos de baixos salários,
parte significativa da força de trabalho do setor situa-se em condição salarial abaixo dos
respectivos limites nacionais de baixos salários. Definindo os baixos salários como 2/3 da média
nacional, eles concluem que, no caso da França, a porcentagem de trabalhadores recebendo
177
baixos salários no varejo é de 18%. Para Dinamarca, 23%; Alemanha e Estados Unidos, 42%;
Holanda, 46% e Reino Unido 49% (Carré et al, 2008, p. 32). A maior parte desses baixos salários
encontra-se no setor de varejo alimentar, que, por sua vez, é dominado pelas redes
supermercadistas.
No que se refere à flexibilização, a situação dos empregos do varejo também é crítica.
Trata-se de um fator fundamental para considerar a evolução das condições de emprego por três
razões. Em primeiro lugar, trata-se, na maioria dos casos, de um indicador direto de precarização
e de barateamento do trabalho, sendo, por isso, um mecanismo fundamental para avaliar a
qualidade do emprego em si mesma. Em segundo lugar, as formas de contratação, costumam vir
acompanhados de determinados tipos de benefícios salariais; enquanto contratos de trabalho
permanentes e estáveis costumam vir acompanhados de mais benefícios, contratos de trabalho
flexíveis costumam vir acompanhados de menores benefícios. Por essa razão, o grau de
flexibilização das formas de contratação pode ser vista também como indicador dos níveis
salariais, embora essa correlação não seja necessária, dado que algumas funções qualificadas
podem se beneficiar de algum nível de flexibilidade.210 No que se refere à funções manuais, semi-
qualificadas ou desqualificadas, contudo, a flexibilidade pode ser tomada como indicador de
precarização salarial.
Finalmente, de acordo com Carré et al, os horários de trabalho, juntamente com os
salários e benefícios, são “o meio principal para conter os custos com o trabalho. Portanto, em um
ambiente em que os controles de custos são de primeira importância, a tarefas dos
administradores consiste em fazer coincidir de modo preciso o uso do trabalho com o fluxo de
consumo nas lojas e com outras necessidades” (Carré et al, 2005, p. 4). Em outros termos, em um
setor de trabalho intenso, contratar força de trabalho para ser utilizada de modo produtivo, sem
desperdício de tempo de trabalho, é fundamental para a economia de custos, atividade, por sua vez,
necessária para o sucesso da acumulação. Em setor desse tipo, dispor de mecanismos de
flexibilização do trabalho é indispensável para viabilizar a acumulação no contexto de baixa crônica
da taxa de lucro.
210 Embora não seja o caso para todos os postos de trabalho, pois alguns postos flexíveis produzidos no capitalismocontemporâneo são mais qualificados do que a média, na maioria dos casos, os postos de trabalho flexível sãoprecários (Antunes, 2009).
178
Segundo a bibliografia (Carré et al, 2005; Carré et al, 2008; Jany-Catrice e Lehndorff,
2002), também no que se refere à flexibilização o setor varejista ocupa posição de destaque no
que se refere à má qualidade dos contratos de trabalho. Nas análises encontradas, destacam-se
três fatores principais: a ampla presença de postos de trabalho flexíveis, a alta rotatividade e a
flexibilidade qualitativa do trabalho.
De acordo com Carré et al, o trabalho de tempo parcial possui “prevalência mais do que
dobrada no varejo do que na força de trabalho privada como um todo” (Carré et al, 2005, p. 3).
Além disso, “os trabalhadores em tempo parcial no varejo mais comumente do que outros
trabalhadores parciais trabalham períodos extramemnte curtos, como de menos de 16 horas por
semana” (Carré et al, 2005, p. 3). No que se refere à rotatividade, “o turnover dos empregados é
maior no varejo do que na economia (chegando a 56% anualmente em comparação com 41%), e
os ganhadores de baixos salários no varejo mais provavelmente permanecem presos no ganho de
baixos níveis salariais ao longo do tempo do que em outras indústrias” (idem, p. 3). Em outros
termos, trata-se de setor com altíssima taxa de rotatividade, sendo comum como emprego de
entrada no mercado de trabalho. Já para os funcionários que permanecem, o setor é caracterizado
por baixa possibilidade de mobilidade social, o que é decorrência da baixa qualificação exigida
pela profissão e pelo fato de o processo de trabalho não vir acompanhado de incorporação de
aprendizados, criando por isso um ciclo de permanência na condição de entrada, sem que os
trabalhadores incorporem qualquer benefício ao realizarem o processo de trabalho.
Por fim, o setor é altamente caracterizado pela flexibilidade qualitativa. De acordo com
Carré et al:
A multifuncionalidade é muito comum em supermercados. Isso ocorre menos em razãoda variação nos trabalhos particulares (ainda que alguns incluam ampla variedade detarefas), do que em razão de os trabalhadores serem puxados para outros trabalhos nabase da necessidade imediata. O processo de trabalho no varejo pode ser descrito comode “autonomia direcionada”, com maior autonomia para os trabalhadores em tempointegral do que para os trabalhadores em tempo parcial (Carré et al, 2008, p. 8)
Como já indicado, organizar os planejamentos de horário de trabalho é tarefa
fundamental para o controle de custos do setor. É justamente nessa função que a flexibilidade
qualitativa atua de modo decisivo. Ela permite que as empresas mantenham um núcleo de
funcionários estáveis detidos de relativa autonomia e voltados para realização de tarefas
179
necessárias no curto prazo. Desse modo, com um corpo de trabalhadores flexíveis, torna-se
possível ao capital varejista adaptar-se a variações no curto prazo sem dispender custos extras.211
Junto à flexibilização quantitativa, torna-se possível adaptar-se ainda para períodos de excesso de
trabalho sem ter de realizar compromisso de contratação de força de trabalho.
Fazendo uma avaliação a partir de um estudo transnacional das condições de emprego e
trabalho no varejo, Jany-Catrice e Lehndorff sustentam que
Independentemente das fronteiras nacionais e das formas de distribuição uma tendênciacomum pode ser observada na política de recursos humanos das grandes companhiasvarejistas: a racionalização tanto das estruturas de pessoal quanto de implementação [deforça de trabalho] mediante fragmentação, isto é, por meio da divisão do emprego e dotempo de trabalho em unidades menores e mais facilmente manuseáveis. Isso se mostrade modo especial no fato de que a taxa de trabalhadores por tempo parcial tenha crescidode modo maior do que o proporcional em todos os países investigados por nós (sendoPortugal a única exceção), excedendo desse modo a taxa média geral de toda a economia(…). Trabalho por tempo parcial é mais frequentemente encontrado nos postos detrabalho de vendas, e se refere sobretudo às mulheres. Uma dinâmica particularmenteforte do trabalho em tempo parcial pode ser observada no setor de varejo alimentar e nosempreendimentos de autosserviço de grande escala. Na Finlândia, por exemplo, aparcela de trabalhadores por tempo parcial nos mercados situa-se em torno de 16%acima da média de todo o comércio varejista doméstico. Trabalhadores em tempo parcialservindo a essas formas de distribuição são mais frequentemente empregados nos caixas.Nos checkouts dos hipermercados franceses, por exemplo, a parcela de trabalhadores emtempo parcial chega a aproximadamente 95% (Jany-Catrice e Lehndorff , 2002, p. 506-507)
Como se trata do principal dispositivo mobilizado pelo capital varejista dos mais
diversos países analisados, “aumentar a taxa de trabalhadores por tempo parcial é o instrumento
individual mais importante usado pelas companhias varejistas para ajustar os níveis de pessoal às
flutuações na atividade” (Jany-Catrice e Lehndorff, 2002, p. 509). Além disso, o setor seria
caracterizado por taxa de turnover maior do que a dos outros setores em todos os países
analisados (idem, 2002).
No que se refere aos outros dispositivos de flexibilização, haveria uma desigualdade
entre os diversos países. De um modo geral, a questão não é se há flexibilização, mas o modo em
que ela se dá e quem suporta o seu fardo (Jany-Catrice e Lehndorff, 2002). Em alguns países, a
tendência tem sido a combinação de tempo de trabalho parcial com contratos de duração pré
determinada (França), noutros implementaram agendas de horário de trabalho extremamente
211 Essa estrutura ocupacional, com alguns trabalhadores permanentes em regime de flexibilidade funcional e comdiversos trabalhadores em formas de contratação flexível, é vista por Harvey (2014) como típica do capitalismoflexível
180
flexíveis via utilização massiva de mão de obra jovem (Dinamarca), enquanto outros se situam
em condição intermediária entre essas duas vias de flexibilização do setor (Alemanha – Jany-
Catrice e Lehndorff, 2002).
Como esse breve panorama mostra, seja no que se refere às compensações, seja no que
se refere à flexibilidade, o setor varejista ocupa posição de destaque nas reestruturações
precarizantes do trabalho típicas do capitalismo flexível. Na próxima seção serão reconstruídas as
interpretações encontradas na bibliografia para a mudança no panorama do trabalho do setor; ao
final, será apresentada uma interpretação alternativa.
4.3.2 Interpretações sobre a evolução das condições de emprego no varejo
No que se refere a julgamento valorativo, a bibliografia se divide em duas interpretações
a respeito da dinâmica do trabalho ao longo da financeirização do varejo, as quais mobilizam
diferentes argumentos para sustentar os posicionamentos. Uma parte da bibliografia avalia as
transformações de modo apologético, enquanto a outra de modo crítico. A abordagem apologética
se respalda em dois caminhos principais para julgar positivamente as transformações no varejo
contemporâneo. Em primeiro lugar, uma parte da bibliografia avalia que a expansão das grandes
redes trouxe consigo benesses do ponto de vista salarial e, em segundo lugar, alguns autores
sustentam uma concepção mais geral de defesa do mercado e do capitalismo como formas de
organização social promotoras do bem estar geral. Esse argumento baseia-se num teoria mais
geral sustentada pela Economia Política burguesa, o qual originalmente foi desenvolvido por
Adam Smith em A Riqueza das Nações (1988) e que possui uma longa trajetória na história da
Economia,212 história que passa pelas mais diversas matrizes ideológicas.
O primeiro argumento é sustentado por Cardiff-Hicks et all (2015), que visa
explicitamente responder à onda de críticas que atingiu as corporações varejistas ao longo da
década de 2000, onda que teve ênfase sobretudo na corporação Walmart em razão do seu severo
papel na reestruturação do varejo estadunidense e na expansão de relações de trabalho precárias.
212 Trata-se de um debate central para desde Adam Smith, passando por Ricardo, Marx, pelos marginalistas e,contemporaneamente, para parte dos novos clássicos, para os desenvolvimentistas e para parte dos neokeynesianos.A razão é a consideração da necessidade da evolução da produtividade como dispositivo central. Para alguns, essanecessidade leva à apologia do mercado como instituição para promoção da evolução industrial, enquanto, paraoutros, a necessidade de evoluir a produtividade demonstra os limites do mercado.
181
Essa tese sustenta que a expansão das redes varejistas, e especialmente das maiores corporações,
trouxe consigo melhoria na estrutura empregatícia do varejo. Nos seus termos,
As grandes redes e os grandes estabelecimentos pagam consideravelmente mais do queos pequenos estabelecimentos. Ademais, grandes empresas e grandes estabelecimentosprovêm acesso a funções administrativas e de hierarquia, e os administradores, a maioriados quais supervisores de primeira linha, são parte significativa da força de trabalho dovarejo e recebem cerca de 20% a mais do que os outros trabalhadores. Grande partedesses ganhos de salário são recompensas por habilidades que os estabelecimentospromovem. O setor varejista paga consideravelmente menos do que a manufatura, mas osetor manufatureiro diminuiu ao longo do tempo, e o crescimento das modernas redes devarejo aumentou os salários reais e proveu mais oportunidades de promoção,particularmente para os trabalhadores mais capacitados (Cardiff-Hicks et al, 2015, p.660)213
Segundo essa interpretação, a inserção das grandes redes criaria melhores condições
para promoções em novos postos de trabalho, dando a oportunidade de mobilidade social para os
trabalhadores mais capazes. Paralelamente, os pequenos empreendimentos não teriam condição
de criar postos qualificados e detidos de autoridade, em parte, inclusive, porque essas funções
seriam realizadas pelos próprios proprietários. Assim, no agregado, seria possível encontrar
salários médios mais altos nas maiores corporações. Ademais, por permitir a premiação dos mais
capazes e esforçados, se trataria de um modelo mais justo de organização do trabalho.
Esse argumento baseia-se em pilares fundamentais da ideologia burguesa de organização
econômica e do trabalho. Em primeiro lugar, ele faz uma apologia da divisão capitalista do
trabalho, com a diferenciação de funções que vão da base da estrutura social até as posições mais
qualificadas. Nessa configuração, se tornaria possível criar uma estrutura de posições baseada no
mérito, permitindo maior mobilidade social, ou seja, que os trabalhadores mais capacitados
ascendessem a melhores postos em razão de suas qualidades inerentes e/ou de seu esforço. A
lógica do mercado permitiria a abertura das posições à qualificação. Dada a admissão de uma
pessoa na base da divisão do trabalho, estaria aberta a possibilidade de contratação para postos
melhores mediante desempenho no trabalho. Junto a essa nova estrutura, mais justa socialmente,
a nova configuração ainda levaria à melhoria nas condições de emprego no agregado. Em outros
termos, além de ser melhor em si mesma, por ser mais justa, ela beneficiaria a maioria das
pessoas, justificando-se com base em um argumento utilitarista.214
213 Tradução nossa.
182
À parte toda a carga ideológica subjacente a esse argumento, a constatação de que as
grandes corporações pagam maiores salários não é, de modo algum, incompatível com as teses
sustentadas nesta pesquisa. Na verdade, há uma tendência quase universal nas sociedades
capitalistas a que os setores com maior desenvolvimento tecnológico e organizacional paguem
salários maiores, o que não contradiz as tendências gerais à degradação do trabalho e das
condições de emprego no capitalismo. A razão para tanto reside nas consequências dessas novas
configurações técnico-organizacionais, que implicam ganhos de produtividade e intensificação do
trabalho ao mesmo tempo em que permitem ganho competitivo para os capitais que os
implementam. Com a vantagem competitiva, os capitais de maior composição técnica conseguem
obter super lucros, que torna-se possível mediante transferência de valor dos capitais de menor
produtividade para os de maior produtividade (Marx, Livro 3, 1986a; Mandel, 1980).215 No
entanto, como esses ganhos de competitividade são associados à intensificação do trabalho, para
conseguir que a força de trabalho aceite as novas condições de trabalho torna-se necessário
melhorar a contrapartida dos salários e benefícios. Por isso, regra geral, a implementação de
inovações técnicas substanciais, que são a base da elevação da produtividade, vêm associadas a
ganhos salariais nos setores de maior composição técnica.
Esse princípio, de associar inovações técnicas a concessão de benefícios empregatícios,
se fez presente durante a implementação do taylorismo, que tinha como um de seus preceitos o
pagamento de prêmios a trabalhadores mais produtivos (Braverman, 1987); era ainda mais
perceptível no projeto fordista, cujas empresas eram conhecidas por pagar salários
significativamente maiores do que os capitais do setor e que reconhecia explicitamente a
necessidade de combinar produção em massa com consumo em massa (Harvey, 2014). E, por
fim, no modelo originário do toyotismo, que concedia direitos trabalhistas significativos, como
carreira vitalícia e constante evolução salarial (Antunes, 2009). Em todos esses casos, a
214 Esse argumento apenas requenta e replica um argumento exaustivamente mobilizado para defender a divisãocapitalista do trabalho, baseando-se na suposta capacidade de o capitalismo promover o bem estar geral. O própriofordismo e o taylorismo, em suas formulações originárias, por exemplo, baseavam-se em linhas argumentativasextremamente parecidas (a respeito, ver Braverman, 1987).215 Mais precisamente, o que ocorre é que os capitais de menor produtividade vendem mercadoria em valor menordo que o tempo de trabalho implicado na produção das suas mercadorias, enquanto os mais produtivos vendem porvalor maior do que o dispendido em termos de tempo de trabalho. Assim, uns transferem valor para os outros. ParaMandel (1980), essa dimensão das relações de troca no capitalismo frequentemente se faz presente no relaçõesinternacionais, de modo que a desigualdade no plano internacional é condição para a reprodução do capital nospaíses de capitalismo desenvolvido.
183
concessão de benesses no plano do emprego foi condição inescapável para vencer a resistência da
força de trabalho em aceitar os novos preceitos de intensificação e aumento da produtividade do
trabalho, de modo que a expansão de preceitos promotores da degradação de modo algum
contradiz à tendência à deterioração das relações de trabalho.
Portanto, essas tendências de melhoria no emprego nas corporações mais desenvolvidas
não contradizem as teses gerais desta pesquisa no que se refere à degradação das condições de
trabalho, mas, na verdade, ajudam a explicá-las. Se, por um lado, o capital monopolista consegue
pagar salários mais altos em razão dos seus super lucros, em contrapartida, os pequenos e médios
capitais saem prejudicados dessa luta distributiva, pois pagam o super lucro do grande capital
com a transferência dos seus rendimentos. O resultado dessa configuração é a intensificação e a
degradação das condições de emprego nesses pequenos e médios capitais, de modo que a criação
de alguns postos qualificados nas grandes corporações vem acompanhada de deterioração
generalizada dos salários para toda a categoria em questão. A inserção da nova configuração, na
qual o trabalho é precarizado na média geral, opera mediante a inserção de desigualdades, que
são inerentes à própria lógica da acumulação. A constante recriação dessa desigualdade no
emprego e nos processos de trabalho é resultado necessário do desenvolvimento do modo de
produção especificamente capitalista, seja nos seus modelos produtivos taylorista, fordista ou
flexível.
No que se refere ao segundo argumento, sustenta-se que as transformações no varejo
contemporâneo são positivas por permitirem a configuração de um arranjo social promotor dos
interesses materiais em geral. Na medida em que as forças de mercado ganham universalidade
nas relações sociais, torna-se possível promover tanto um dispositivo adequado de regulação da
distribuição do trabalho social quanto um mecanismo promotor da divisão social do trabalho.216
O primeiro mecanismo atua mobilizando as capacidades dos agentes de modo a alocar
riqueza de modo racional, permitindo, portanto, a criação de parte fundamental das condições da
acumulação de capital, já que o sucesso na realização do valor é fundamental para que a produção
de riqueza possa aumentar continuamente. Sob esse prisma, a acumulação de capital, ao
concentrar capital nas mãos de agentes privados, melhoraria a capacidade de alocação de riqueza
216 Ainda hoje é tema controverso se o aspecto central do pensamento de Adam Smith consiste no papel do mercadocomo instituição reguladora ou se o aspecto central são as relações entre divisão social do trabalho, produtividade emelhoria do nível geral de vida. A respeito do assunto, ver Backhouse, 2002.
184
na economia, além de incrementar a capacidade de inovação. Já o segundo mecanismo atuaria
pela associação entre divisão social do trabalho e divisão técnica do trabalho no interior das
unidades produtivas. Somente por meio da divisão do trabalho pode o produtor individual
especializar-se na produção de alguns produtos; por sua vez, somente essa especialização da
unidade produtiva permite que, no interior de uma empresa, ocorra parcialização e especialização
das funções. Essa parcialização de funções acaba por ser a base fundamental dos ganhos de
produtividade, seja porque ela em si mesmo propicia benefícios, como o ganho de perícia e a
diminuição do desperdício de tempo na alternância de funções, seja porque ela viabiliza o
emprego de maquinaria.
Na medida em que as transformações ligadas à formação das redes varejistas implicaria
incremento da divisão social do trabalho, ele permitiria melhoria na produtividade, o que
aumentaria a geração de renda pelos empreendimentos varejistas. Conjuntamente, essas
consequências levariam à dinamização do mercado, acarretando crescimento econômico e ganho
de produtividade agregada, o que levaria o trabalhador comerciário, assim como a sociedade
como um todo, a beneficiar-se da financeirização do varejo.
Na avaliação desta pesquisa, apesar da discordância, o argumento supracitado é
consistente para promover a legitimação das transformações no varejo, pois, de acordo com o
mesmo, as transformações do setor são parte de uma marcha mais geral de desenvolvimento da
sociedade capitalista, de acordo com a qual a constante reorganização das relações sociais de
acordo com a lógica de mercado é um meio de promover a realização dos interesses gerais. Seja
pela via da regulação social do mercado, que adequaria a divisão social da riqueza, seja pela
promoção da divisão social do trabalho, e consequentemente do ganho na produtividade, esse
argumento vincula as mudanças no âmbito particular às transformações de natureza geral. Desse
modo, ele consegue justificar que mesmo mudanças evidentemente negativas no curto prazo são
positivas sejam linguisticamente invertidos no plano ideológico como fenômenos socialmente
positivos ou, em outros termos, sejam vistas como reorganizações sociais que atendem aos
interesses universais.217
217 Exemplos dessa abordagem podem ser encontradas em textos como o Relatório sobre os impactos sociais etrabalhistas do uso de tecnologias avançados (ILO, 2006), no livro de Vedder e Cox (Vedder e Cox, 2006), queconfere destaque para o papel positivo cumprido pela emergência do Walmart, nos trabalhos de Basker (2008; 2015),entre outros. Em todos os casos, a própria eliminação de postos de trabalho é vista como parte de um processo demelhoria das condições de emprego e como um incremento geral nas condições para o crescimento econômico, que,
185
No que se refere à reorganização do trabalho, há sobretudo dois pontos fracos nessa
linha argumentativa. Um primeiro é a necessidade de diferenciar efeitos de curto e de longo
prazo, fazendo com que as boas consequências no longo prazo justifiquem maus resultados no
curto. Assim, esse tipo de argumento costuma defender medidas (antipopulares) que levam à
desqualificação da força de trabalho e mesmo a eliminação de postos de trabalho no curto prazo,
sob o pretexto de aumentar a produtividade e gerar empregos no longo prazo, o que,
evidentemente, gera insatisfação social.
Em segundo lugar, essa abordagem tornou-se de difícil legitimação após algumas
décadas de implementação da norma liberal nas relações de trabalho, pois, como ela se respalda
num argumento de natureza geral e em efeitos de causalidade no longo prazo, é preciso que,
passado um período de sua implementação e da relativa universalização, haja efeitos positivos
nas relações de trabalho e emprego. Contudo, como atesta longa bibliografia, não só sobre o setor
varejista e nos serviços, mas em toda a economia, há uma longa e ampla tendência à deterioração
nas relações de emprego a partir da década de 80 (Antunes, 2009), a qual é proporcionalmente
intensa ao grau de realização das normas liberais de regulação do trabalho.
Regra geral, no que se refere às transformações no setor varejista, a literatura critica a
abordagem liberal a partir dos dois eixos supracitados, ou seja, ela critica as transformações no
varejo tanto a partir de um questionamento dos dispositivos de mercado como promotores da
melhoria nas relações de trabalho e emprego quanto a partir de uma avaliação dos resultados
concretos das reorganizações do trabalho. Essas críticas abarcam tanto a deterioração salarial e de
benefícios (ex.: Carré et al, 2005; Gupta, 2014; Rosen, 2005, Lichtenstein, 2006; 2017;
Lehndorff, 2002; Jany-Catrice e Lehndorff, 2002) quanto as suas dimensões flexíveis (Carré et al,
2005; Carré et al, 2008; Eurofound, 2014; Lehndorff, 2002), que impedem o planejamento
individual e a formação de carreiras, condições fundamentais para o projeto de cidadania
consolidado no fordismo, que associava a aquisição de direitos à realização de trabalhos de alta
produtividade para grandes corporações.218
naturalmente, levariam a melhoria indireta nas condições de vida de toda a sociedade. 218 Evidentemente, o projeto de promoção do bem estar social do fordismo é tema bem mais amplo e complexo,primeiramente por abarcar um conjunto de excluídos do pacto, que no limite só incluía homens brancos eheteronormativos das economias capitalistas desenvolvidas. Ainda assim, como demonstra Esping-Andersen (1991),todo Estado de bem estar social é composto por inúmeros dispositivos institucionais e por agentes concretos e, namaioria dos casos, os direitos concedidos via Estado cumprem papel fundamental, de modo que o acesso a boascondições materiais de vida não se limita ao recebimento de altos salários em companhias fordistas típicas.
186
A explicação dada pela bibliografia de cunho crítico para a degradação do trabalho no
varejo divide-se em dois eixos argumentativos: (1) o da crítica à mercantilização das relações de
trabalho, com o correspondente enfraquecimento das normas de proteção ao trabalho, (2) os
novos modelos de governança empresarial predominantes a partir da década de 1970, que são
definidos como a causa principal.
No primeiro eixo, há uma crítica mais geral ao modelo liberal de regulação das relações
de trabalho, o qual se baseia no levantamento de respaldo empírico para justificar a tese da
degradação dos empregos e das condições de trabalho. No que se refere à explicação teórica-
conceitual do problema, essa abordagem sustenta que todo mercado existe sob algum tipo de
regulação normativa (Lehndorff, 2002) e que, portanto, é ilusória a pretensão de existência de um
livre mercado em abstrato, já que este é sempre produzido por alguma política pública e pela
influência das ideologias em circulação.
O ponto central, portanto, é o tipo de regulação do mercado de trabalho promovido a
partir da década de 1970, o qual permitiu a flexibilização do trabalho e que diminuiu de um modo
geral a proteção institucional ao trabalho, ocasionando degradação das condições de emprego e
trabalho. O enfraquecimento de normas de proteção sobre o trabalho, como o salário mínimo, nos
EUA, a desagregação das categorias profissionais com planos de carreira previamente instituídos,
como na França, e o avanço de formas de contratação flexível em praticamente todos os países
incidem em toda a força de trabalho assalariada, mas são especialmente incidentes em setores
com baixa qualificação, com baixa densidade sindical e no qual predomina o modelo taylorista de
gestão empresarial, tal como o varejo supermercadista. A razão para tanto é que setores como
esse normalmente tendem a já ter salários baixos e, por essa razão, a serem especialmente
influenciados por legislações como a de salários mínimos, jornada de trabalho e piso salarial.
O segundo eixo argumentativo, o mais importante, na ótica das análises encontradas na
bibliografia, articula diversos fatores associados ao modelo de governança das empresas, que
passou por mudança a partir da década de 70 (as principais explicações encontradas nessa linha
são de Lehdorff, 2002; Carré et al, 2005; Carré et al, 2008 e Lichtenstein, 2017). Resumidamente,
a bibliografia adere a uma chave conceitual dual para entender as tendências organizacionais do
mundo empresarial no capitalismo contemporâneo, as quais abarcariam os fundamentos para
compreender o mundo do trabalho. Nessa chave de análise, as empresas adorariam um dos
187
caminhos possíveis para seu desenvolvimento: as estratégias “high road” e “low road” para o
desenvolvimento.
Resumidamente, a metáfora high road versus low road diz respeito ao tipo de estratégia
adotada por uma empresa para aumentar sua participação no mercado e para crescer
continuamente. Em um dos casos, a ênfase é dada na melhoria contínua da empresa e da sua força
de trabalho, com ênfase nos ganhos de produtividade, enquanto no outro a ênfase seria dada sobre
o corte de custos, sem que houvesse mudança substancial no modo de operar da empresa no
longo prazo.
Mais precisamente, segundo Carré et al (2005) e Lichtenstein (2017), esses modelos de
governança possuem diversos eixos de diferenciação, que podem ser sumarizados nos seguintes:
(1) grau de qualidade dos serviços, (2) custos dos produtos fornecidos, (3) estratégia de cortar
custos versus elevação da produtividade, (4) projeto diante da constante qualificação dos
trabalhadores, (5) tipo de tecnologia mobilizado, (6) postura diante da atividade sindical. Em
cada um desses eixos, o modelo “high road” criaria condições para boa qualidade do emprego,
enquanto a via “low road” cria trabalho precário. Parte fundamental dos problemas no mundo do
trabalho no capitalismo contemporâneo viria da crescente adesão das empresas ao modelo “low
road”, o que possui dois fundamentos. Por um lado, a adesão dessas empresas a esse novo
modelo de governança, o que poderia ser revertido com políticas públicas e com organização
sindical (Lichtenstein, 2006, 2017; Carré et al, 2005); por outro, em razão da emergência do setor
de serviços, que faz com que seja difícil a emergência de um projeto de constante elevação da
produtividade pelas razões já mencionadas. Isso, inclusive, leva Carré et al (2005) a terem
ceticismo sobre a possibilidade de solucionar o problema do trabalho precário no varejo pela via
da mudança no modelo de governança.
O modelo de high road seria conciliável com uma estrutura de emprego de boa
qualidade, pois, ao se basear no fornecimento de produtos de alta qualidade (no que está inclusa a
especialização/diversificação dos produtos), se tornaria possível ganhar o público consumidor
para a compra de produtos e serviços de melhor qualidade. Ao invés de respaldar-se no mero
corte de custos como meio de viabilização do lucro, essa estratégia promoveria o constante
aperfeiçoamento da qualificação dos trabalhadores, que deveriam aprender seja no próprio local
de trabalho, seja em programas específicos para a qualificação. Como a produtividade
188
aumentaria, tornar-se-ia possível uma convivência harmônica entre ganhos trabalhistas e
acumulação de capital. Dado que esse projeto conseguiria conciliar em alguma medida os
interesses de capital e trabalho, ele permitiria articular a gestão da empresa com projeto de
organização sindical, que participa da elaboração de projetos de evolução profissional.
Consequentemente, tornar-se-ia possível uma evolução constante da força de trabalho e das
condições de emprego. Parte desse projeto seria respaldado num investimento em tecnologias
articuladas com a qualificação do trabalhador, que deveria desenvolver autonomia para gerir o
processo de trabalho e progressivamente incorporar novas formas de trabalhar.
Por seu turno, o modelo low road seria incompatível com a promoção de empregos de
qualidade, pois teria como base a promoção de serviços de baixa qualidade, mas com vendas
massivas. A ênfase seria no aumento dos bens vendidos, cujo meio seria o constante corte de
custos. Nesse projeto, a força de trabalho apenas realizaria trabalhos desqualificados, sem
incorporação de aprendizado no próprio processo de trabalho. A estratégia de corte de custos têm
forte ênfase na ofensiva sobre o trabalho, na postura antissindical e na implementação de
tecnologias para eliminar postos de trabalho e para promover desqualificação.
Parte fundamental do modelo de governança seria a postura das empresas diante da
atividade sindical, que só seria compatível com a estratégia de governança high road.219 A razão
para a importância da atividade sindical não é específica ao setor, dado que a existência de
organização trabalhista possui diversos efeitos importantes sobre as relações de trabalho. Dentre
outros, a importância do sindicalismo relaciona-se à garantia de que direitos consolidados pela
categoria sejam de fato respeitados e à possibilidade de negociações coletivas para contratos de
trabalho, o que confere melhor relação de forças para as classes trabalhadoras, permitindo
conquista e acúmulo de direitos.
Contudo, os próprios analistas dessa chave teórica perceberam em partes os limites dessa
abordagem para compreensão do setor varejista. Segundo Carré et al (2005), as transformações
no setor na década de 1990 em larga medida borraram as linhas divisórias entre os dois modelos
de governança, pois no período o setor varejista experimentou intensa evolução da produtividade,
parte fundamental do modelo high road de desenvolvimento, sem que houvesse qualquer
219 A razão é que os ganhos sistemáticos de produtividade permitiriam ganhos contínuos também para a força detrabalho.
189
contrapartida de ganhos nos salários. De acordo com os analistas, o desenvolvimento do setor
assentou-se sobretudo na mobilização de bens de capital promotores de desqualificação do
trabalho. Desse modo, a concentração de capital, os ganhos de produtividade e a evolução técnica
foram acompanhados por deterioração das condições de trabalho e emprego.
Feita essa reconstrução das avaliações apologéticas e críticas, adiante será apresentada
uma abordagem alternativa para a compreensão das mudanças no trabalho no setor varejista.
4.4 Para uma explicação alternativa da degradação do trabalho no varejo
Os principais limites da abordagem liberal já foram consistentemente criticados pela
problemática crítica explicitada acima. Resta apenas indicar algumas ressalvas a fim de
reconsiderar alguns pontos fortes dessa abordagem. Sobretudo, são acuradas suas considerações a
respeito das relações entre divisão social do trabalho, ganhos de escala e produtividade. Com
efeito, trata-se de um ponto de importância capital para o entendimento mais geral acerca das
tendências a transformação do setor. Originalmente desenvolvida por A. Smith, esse modo de
considerar o trabalho em larga medida foi incorporado por Marx na sua interpretação do trabalho
no capitalismo. Esses referenciais são fundamentais para a reflexão acerca dos prognósticos para
desenvolvimento da capacidade de trabalho mesmo em projetos pós-capitalistas.
A principal diferença em relação ao modo (capitalista) de encarar as relações entre esses
conceitos é a reificação do mercado presente nessa abordagem, a qual se dá tanto num sentido
geral (naturalização e legitimação do modo de produção capitalista e da sua forma de
propriedade) quanto num sentido mais específico (legitimação de um modo de regulação liberal
do capitalismo).220 Entretanto, feita a crítica a esses pressupostos, a consideração sobre a
necessidade da divisão do trabalho, da escala e da produtividade é correta e em parte necessária
mesmo para pensar em alternativas ao capitalismo no que se refere à organização do trabalho.
No que se refere às abordagens críticas analisadas, a presente pesquisa adere às
principais teses desenvolvidas para compreensão da deterioração das condições de trabalho e
emprego. Seja no que se refere às transformações mais gerais, seja no que se refere ao setor
220 Nesse sentido, essas abordagens não somente legitimam a dominação de classe em geral, como ainda respaldamnormas de organização das relações de classe que acentuam essa dominação e que foram forjadas em período deofensiva do capital sobre as classes trabalhadoras
190
varejista em específico, os referenciais críticos mobilizam dois eixos argumentativos consistentes
para compreensão do trabalho no capitalismo contemporâneo. Em primeiro lugar, o papel da
reorganização das normas e das instituições de proteção ao trabalho e ao emprego, que deram
base tanto à deterioração de salários, benefícios, planos de carreira e de avanço de formas
flexíveis de contratação. Em segundo lugar, a consideração crítica a respeito dos modelos de
governança empresarial como promotores de condições de trabalho e emprego degradantes. A
ênfase no corte de custos, a falta de ênfase na evolução da produtividade e a postura antissindical
são explicativas acerca da degradação contemporânea do trabalho. Nesse aspecto, a bibliografia é
acurada ao perceber a importância fundamental, para a promoção das condições de trabalho
típicas do capitalismo fordista, da existência de modelo empresarial que até certo ponto
incorporava as demandas e necessidades das classes trabalhadoras e de suas organizações.
Todos esses fatores são explicativos sobre o trabalho no capitalismo contemporâneo em
todos os setores, mas são especialmente poderosos para compreender o setor varejista. As razões
para tanto são duas. Em primeiro lugar, como um dos principais membros do setor de serviços,
trata-se de um setor especialmente sensível a mudanças nas normas e instituições de proteção ao
trabalho, pois normas como salário mínimo e direitos trabalhistas elementares tendem a incidir
mais diretamente sobre esses setores das classes trabalhadoras, uma vez que parte significativa
recebe salários próximos ao mínimo firmado na legislação. Relação análoga pode ser feita a
respeito da flexibilização: pela relativa fragilidade das organizações trabalhistas no setor, há
tendência a que normas flexibilizadoras entrem com mais força no setor do que em outros, e que
as consequências do ponto de vista das condições de trabalho e emprego sejam mais incisivas.
Portanto, qualquer rebaixamento de direitos tende a implicar resultados especialmente negativos
para esses setores, de modo que a explicação proposta pela bibliografia em larga medida é
adequada.
A principal diferença desta pesquisa em relação às problemáticas da bibliografia
analisada consiste na ausência de considerações mais consistentes a respeito de determinantes
gerais do capitalismo e de características específicas do capitalismo contemporâneo. Essa
diferença pode ser sumarizada em dois eixos, que são (1) a não consideração do declínio crônico
da taxa de lucro e das suas consequências e (2) a não mobilização de referencial qualitativo para
191
compreender a natureza do capital, bem como das consequências de sua predominância em dada
formação social.
Como já indicado, no final da década de 1960 as sociedades capitalistas desenvolvidas
experimentaram intenso aumento da concorrência com a passagem das economias alemã e
japonesa para patamar de desenvolvimento tecnológico e social equivalentes ao da economia
estadunidense, o que permitiu às corporações originárias desses países concorrer em pé de
igualdade no mercado mundial. Mais tarde, esse problema intensificou-se significativamente com
o desenvolvimento dos tigres asiáticos e da China. A solução para o declínio das taxas de lucro,
nos marcos das relações sociais capitalistas, recria continuamente excesso de capacidade ociosa,
que por sua vez fazem o declínio dos lucros perdurarem no longo prazo. Como resultado geral, as
economias capitalistas experimentam longo processo de desaceleração, no qual, ademais, as
fragilidades e oscilações do mercado mundial, sobretudo de crédito, tendem a fazer das crises
econômicas mais corriqueiras (Brenner, 2006).
Parte do problema da não consideração dessa transição estrutural diz respeito às
soluções encontradas nos marcos do capitalismo para manter a marcha da acumulação. O
receituário para solução da crise, que mais se aproxima de um reparo temporário do que de uma
solução duradoura, para usar a expressão de Harvey (2014), foi promover a financeirização, a
globalização e a reestruturação produtiva como um conjunto de mudanças para prover condições
para acumulação em contexto de baixos lucros e alta concorrência. Para esta pesquisa, as razões
para que a não consideração crítica desse complexo de transformações seja um limite das
abordagens encontradas reside no fato de que, combinadamente, esse complexo cria
constrangimentos estruturais para as relações de trabalho e emprego e para os modelos de
governança das empresas, de modo que é difícil imaginar uma reversão dessas estratégias
empresariais no cenário econômico, político e social criado a partir da década de 80. Desse modo,
torna-se idealista a proposta de solução dos problemas mediante a expectativa de que
progressivamente as corporações adiram a projetos de governança alternativos, ou que projetos
progressistas já existentes em algumas empresas possam ser generalizados.221 Dada a pressão pela
221 Carré et al (2005) reconhecem essa possibilidade e, inclusive, a probabilidade de que esse tipo de solução não
seja viável, embora não busquem outra alternativa. Mais precisamente, em sua proposta geral, os autores avaliam a
possibilidade de que o modelo da empresa Cotsco se universalize no setor varejista, a qual possui planos de carreira e
192
geração de valorização de ativos no curto prazo, que é resultado da financeirização, e a
concorrência internacional com corporações que continuamente reorganizam o trabalho de modo
a barateá-lo e precarizá-lo, torna-se impossível a generalização de modelos empresariais não
baseados na precarização e desqualificação do trabalho. A pressão pela constante melhoria na
produtividade do trabalho, que é inerente ao capitalismo de acordo com Marx (2013) e Postone
(2007), torna uma consequência necessária a constante deterioração das condições de trabalho e
emprego, sendo excepcionais historicamente os períodos em que foi possível uma conciliação
entre os interesses de capital e trabalho, como o caso dos anos de ouro do pós-guerra.
Por sua vez, o segundo tópico diz respeito a uma consideração qualitativa a respeito do
conceito de capital, bem como da natureza das formações dominadas pelo modo de produção
capitalista. A razão para tanto é que muitos dos fenômenos ligados à deterioração das condições
de emprego e trabalho são, na verdade, resultados do avanço da lógica capitalista sobre a natureza
concreta dos trabalhos. Com efeito, conforma análise de Braverman (1987), a contradição entre
os conteúdos concretos do trabalho e a forma social capitalista tende a materializar-se em
constante transformação dos processos de trabalho, de modo a adequá-los progressivamente às
necessidades de constante autoexpansão do capital. Os objetivos gerais dessas transformações são
o aumento da produtividade, o barateamento do trabalho e a criação de capacidade de o capital se
desfazer com facilidade do trabalho. O modus operandi geral dessa ofensiva sobre o trabalho é
pela divisão capitalista, a qual promove separação entre funções manuais e intelectuais,
aumentando a produtividade e a intensidade do trabalho ao mesmo tempo em que o trabalho é
desqualificado, barateado e tornado facilmente substituível. As tendências contemporâneas à
flexibilização de modo algum eliminaram ou atenuaram as tendências seculares à fordização e à
taylorização do trabalho, de modo que os problemas típicos do capitalismo apenas estejam se
replicando em novos setores onde esses determinantes, por limitações de ordem técnica, não
conseguiam se realizar até então.222 O setor varejista é um bom exemplo dessas tendências gerais,
programas de qualificação muito melhores do que os das outras corporações varejistas. Os próprios autores
concluem, contudo, que, dadas as especificidades do mercado abarcado pela Cotsco, dificilmente seu modelo
empresarial seria replicado em outras condições.
222 Justamente por isso o caso do varejo é paradigmático a esse respeito. Trata-se por excelência de um ramo dosetor de serviços no qual tornou-se possível inserir a dominação capitalista sobre a estrutura técnica e organizacionaldo trabalho, sendo essa a base fundamental para os ganhos de produtividade e para a deterioração das condições detrabalho e emprego identificadas na bibliografia.
193
uma vez que foi um setor no qual a flexibilização, antes de enfraquecer a fordização, tendeu a
criar as condições para a automação do varejo, razão pela qual é difícil separar fordismo,
taylorismo e flexibilidade.
Apresentada essa interpretação alternativa para a transição nas relações de trabalho do
setor, adiante serão sumarizadas implicações dessas transformações do ponto de vista das
relações de classe.
4.5 A nova configuração das relações de classe no varejo
A principal conclusão consiste na identificação de que nas últimas décadas a força de
trabalho do varejo experimentou acentuada racionalização capitalista, a qual assumiu as formas
da desqualificação, da separação entre funções manuais e intelectuais e na rotinização do
trabalho. O tempo recente do incremento da dominação capitalista sobre o setor, se comparado
sobretudo com o setor industrial, decorre de uma miríade de fatores, tais como o fato de o
trabalhador comerciário situar-se numa função em parte improdutiva do ponto de vista capitalista,
onde por questões técnicas, historicamente o capital teve dificuldade de se inserir, de modo a
haver ampla predominância de pequenos negócios, onde a lógica capitalista conseguia se inserir
apenas parcialmente. Além disso, essa condição fazia com que houvesse pouca mudança
tecnológica no setor, de modo a haver também pouco controle dos proprietários sobre o processo
de trabalho, que funcionava em larga medida a partir do conhecimento detido pela própria força
de trabalho, seja na forma do proprietário, seja na de trabalhadores assalariados. Assim, vigorava
ou a condição da pequena burguesia tradicional, ou o que Marx denominou subsunção formal do
trabalho ao capital, condição na qual o processo de trabalho é submetido à finalidade da
valorização do valor sem que haja estrutura técnica adequada aos interesses do capital.
No que se refere às relações de classe, esse conjunto de fatores fazia com que o
trabalhador comerciário ocupasse posição ambígua, uma vez que, ao mesmo tempo em que o
comerciário situava-se em condição de antagonismo de interesse em relação ao capital, em razão
do assalariamento, não experimentava com toda intensidade a dominação capitalista sobre o
processo de trabalho, fazendo com que componentes intelectuais e comunicacionais fizessem
194
parte das suas funções. Contudo, as inovações técnicas e organizacionais experimentadas pelo
setor na revolução do varejo em larga medida eliminaram essas ambiguidades, fazendo do
trabalho no setor um dos mais desqualificados e precários da contemporaneidade. Além da
inserção de diversos dispositivos de intensificação do trabalho, o processo de trabalho
autonomizou-se plenamente do conhecimento do trabalhador, que apenas se insere como adendo
a um sistema previamente estabelecido de organização das lojas e do sistema logístico, cujas
bases são o modelo supermercadista e a maquinaria de tecnologias da informação. Essa
reconfiguração torna o trabalho parcializado, repetitivo, de alta intensidade e facilmente
descartável, indicando uma aproximação notória com a condição proletária de classe.
Na avaliação desta pesquisa, essa conclusão indica uma aproximação parcial com os
referenciais de autores marxistas apresentados na seção 1. Em todos os casos,, avalia-se que,
tendo em vista a financeirização do varejo, os quadros analíticos mobilizados pelos autores
provavelmente os levariam a classificar o comerciário como parte da classe trabalhadora. Essa
aproximação é especialmente incisiva no que se refere ao quadro analítico de Braverman, que,
feitas algumas atualizações referentes à inovações tecnológicas e organizacionais do capitalismo
flexível, mostra-se amplamente alinhado às tendências contemporâneas à reestruturação
produtiva. As transformações analisadas no setor varejista supermercadista em larga medida
endossam as principais teses do estadunidense a respeito das tendências gerais das sociedades
capitalistas. A partir do impulso por novos setores para sua valorização, o avanço do capital sobre
o varejo, e a subsequente transição do setor para a condição do capitalismo monopolista, foram a
base da reconfiguração do setor. Tal como analisara Braverman na década de 70, quando tratara
do avanço do capital e da proletarização de outros contingentes da força de trabalho, sobretudo
dos trabalhadores de escritório, vê-se hoje processo semelhante com os trabalhadores do
comércio varejista supermercadista. As reorganizações técnicas e organizacionais tornaram as
condições de trabalho no setor semelhantes às encontradas originalmente apenas nas fábricas. As
relações identificadas por Braverman entre transformação de um setor em nicho de valorização
do valor, avanço do capital ao monopolismo, reestruturação técnico-organizacional e expansão da
classe trabalhadora mostram a pertinência do quadro geral apresentado em Trabalho e Capital
Monopolista (1987) no que se refere à compreensão do mundo contemporâneo do trabalho.
195
Ademais, o diagnóstico de Braverman em larga medida se alinha com os princípios
metodológicos indicados por Marx quando da análise do trabalho e do capitalismo em O capital.
No que se refere às classes e ao trabalho, antes de procurar definições universais e independentes
dos processos sociais concretos, é necessário reconstruir os determinantes do antagonismo de
classe, os quais têm no processo de trabalho um de seus eixos fundamentais, a fim de avaliar o
grau de dominação do capital sobre dado contingente da força de trabalho. O que as referências
expostas neste capítulo mostram é que desde a década de 70 a iniciativa do capital para
reestruturar o setor varejista supermercadista de acordo com seus interesses em larga medida foi
bem-sucedida, de modo que o antagonismo de classe especificamente capitalista se inseriu no
setor com todo vigor.
Os principais meios mediante os quais o capital conseguiu reestruturar o setor foram as
vias organizacional e tecnológica. Nessas esferas, influenciaram a transição sobretudo os
dispositivos supermercadista e as normas tayloristas de organização do trabalho. Em si mesmo, o
modelo supermercadista implica uma transição nas relações de trabalho, de modo a autonomizar
o processo de trabalho do saber dos trabalhadores, uma vez que as funções passam a ser meros
apêndices do sistema previamente organizados dos estoques, prateleiras e checkouts.
Simultaneamente, o modelo torna supérflua parte significativa dos conhecimentos antes
necessários, uma vez que o trabalhador não precisa mais deter conhecimento e tampouco
participar de negociações comerciais com os clientes.
Por sua vez, o dispositivo taylorista passou a ser inserido no setor tão logo houve
crescimento de escala suficientemente grande, o que foi possível com a acumulação de capital na
forma das redes supermercadistas. Por si só, esses dispositivos seriam capazes de criar um novo
panorama para as relações de classe no setor, com uma maior polarização interna das posições na
divisão do trabalho. Contudo, elas foram intensamente aprofundadas pela revolução do varejo, na
qual tecnologias específicas para o setor foram desenvolvidas e combinadas para gerar novas
formas de operar.
No que se refere às tecnologias, podem ser identificados dois eixos gerais: a das
tecnologias inseridas no interior das lojas, e que propiciaram automatização e/ou desqualificação
do trabalho, e as tecnologias inseridas no âmbito logístico, as quais contribuíram para a formação
do varejo contemporâneo como um complexo sistema integrado.
196
No que se refere às mudanças internas as lojas, destacam-se os pontos de venda
computadorizados com os leitores de códigos de barra, a tecnologias dos códigos de barra e as
esteiras automatizadas. Essas tecnologias permitiram aumentar substantivamente a intensidade e
a produtividade do trabalho ao mesmo tempo em que desqualificaram a força de trabalho,
sobretudo das operadoras de checkout. Além disso, elas permitiram que a eliminação de
qualificação e de postos de trabalho também nas outras funções, uma vez que o trabalho de
organização das lojas tornou-se atividade exclusivamente manual.
No que se refere à logística, as transformações foram ainda mais substanciais, fazendo,
inclusive, com que, nas décadas recentes, emergisse um campo de estudo e de atuação voltado
especificamente à logística (Bonacich e Wilson, 2008). O principal destaque dessa transição é a
articulação entre produção, circulação e consumo, para o qual concorreram uma combinação de
tecnologias específicas do setor com a fordização-taylorização do trabalho nos centros de
distribuição. É notório que o resultado geral foi a eliminação de postos de trabalho, a vertiginosa
elevação da produtividade e a automação. No que se refere à qualidade do emprego, houve uma
combinação de formação de postos de trabalho qualificados (manuseio de máquinas e
computadores) com desqualificação dos trabalhos manuais, que foi possível pela implementação
de tecnologias como os leitores de CB’s e por esteiras mecânicas.
A principal tese desta pesquisa é que o signo geral dessas transformações é um avanço
do capital sobre a estrutura técnica do setor, implicando um domínio mais acentuado sobre a
força de trabalho. Na avaliação desta pesquisa, essa reconfiguração da estrutura do varejo é efeito
da nova natureza das relações de classe, que se caracteriza por um incremento da dominação
capitalista nas relações de produção do setor. Como corolário desse processo, a presente
configuração do varejo financeirizado tem como efeito a transformação da força de trabalho do
setor em parte da classe trabalhadora, isto é, em parte daquele setor que é explorado em processo
de valorização do valor em estrutura técnica organizada de acordo com as necessidades do
capital. Por sua vez, essas transições fundamentais no âmbito das relações de trabalho e de classe
são a base para a alteração nas condições de emprego. Assim, a deterioração dos contratos de
trabalho, seja em termos quantitativos, seja em termos dos tipos de contrato, é efeito da
dominação capitalista sobre o setor. A expansão do capital trouxe consigo a expansão da classe
trabalhadora, degradando o trabalho e recriando sob novas formas a polarização social.
197
Longe de eliminar as classes e de promover a realização dos interesses gerais, o avanço
da acumulação produz desigualdade e polarização social, limitando as possibilidades de vida dos
que vivem da venda da força de trabalho. Embora em sua expansão mais geral o capitalismo traga
consigo também a tendência à emergência das classes médias, o setor varejista é evidência de que
a polarização de classes típica do capitalismo continua a viver, tal como avaliam os prognósticos
mais negativos a respeito do sistema capitalista.
198
Conclusão
A partir da análise das transformações do setor, a principal conclusão desta pesquisa
consiste na compreensão de que o setor varejista replicou algumas tendências gerais do
capitalismo e do mundo do trabalho contemporâneo, na medida em que inseriu com força traços
da contemporaneidade. Na verdade, dada a coincidência das transformações do setor com a
formação dos novos traços do capitalismo contemporâneo, o mais correto é dizer que o setor
cumpriu papel fundamental nas transformações em questão – seja no âmbito da flexibilização das
relações de trabalho, do aumento na participação das mulheres no mercado de trabalho, na
globalização e na informatização da economia. Lichtenstein (2006; 2017) vai além dessas
considerações, sustentando que os traços típicos do capitalismo contemporâneo em grande parte
são resultados da passagem para o plano das regulações institucionais dos interesses das grandes
corporações varejistas, que foram protagonistas na renovação das cadeias globais de valor em sua
configuração contemporânea.
Como parte desse empreendimento, concluiu-se que houve uma mudança substancial na
natureza das relações de classe na qual o setor está enredado, implicando em proletarização da
força de trabalho. Esse empreendimento dividiu-se em quatro momentos. No primeiro deles, foi
visto que a modernização do varejo é, na verdade, a acumulação de capital no setor, a qual trouxe
consigo a centralização de capital e a dominação capitalista para o setor, com todos os seus
determinantes e características específicas. Sustentou-se que, mais do que as transformações
associadas a esse processo em si mesmas, sua principal marca foi a inserção da dinâmica
histórica do capitalismo para o setor. Nesse sentido, ali se encontra o fundamento para todas as
transições subsequentes, cuja culminação foi a sujeição da força de trabalho do setor a uma
estrutura técnica objetificada.
Como essa tendência à transformação é permanente, embora se expresse de modo
desigual entre os diversos setores e de modo não uniforme ao longo do tempo, ela não parou na
mera modernização do setor, mas prosseguiu em direção à sua financeirização. Dado o contexto
de transição ao padrão de acumulação flexível, o setor inseriu-se no contexto da globalização e da
informatização. Em razão do grau de centralização de capital já encontrado no varejo na década
199
de 1980, a qual decorreu da modernização do setor, este conseguiu ocupar posição de destaque
nessas transformações. Lichtenstein (2017), conforme visto, chega a sustentar que muitas das
características típicas do capitalismo contemporâneo foram produzidas sob os auspícios do
capital mercantil, que, justamente por isso, seria um dos seus principais beneficiários. Por essa
razão, como corolário das mudanças, emergiu o que o autor denomina por hegemonia do capital
mercantil, condição na qual as seculares relações de poder entre o capital comercial e o capital
industrial teriam se invertido, de modo a configurar uma relação de poder amplamente favorável
para o capital mercantil, sobretudo no que se refere às relações com pequenos e médios capitais
no âmbito das cadeias de fornecimento.
O fundamento desse novo estado de coisas residiu, como defendido, na combinação de
centralização de capital, no controle da dinâmica do mercado propiciado pela combinação de
leitores de códigos de barras e computadores, na internacionalização e na possibilidade de os
varejistas levantarem informações de amplos mercados (de escopo nacional e internacional) no
âmbito das cadeias de fornecimento. Essa articulação de determinações criou condição de
mercado amplamente favorável para as corporações varejistas por duas razões. Em primeiro
lugar, como explicitou Abernathy et al (2000), os grandes varejistas passaram a ter mais
conhecimento sobre as mercadorias do que o próprio produtor, caso se considere que parte
fundamental das mercadorias diz respeito à sua dinâmica de venda. Nesse contexto, os varejistas
passaram a ter uma mercadoria fundamental, que é a informação sobre o mercado consumidor.
Em segundo lugar, o novo estado de coisas colocou em situação de concorrência amplo escopo de
fornecedores. Como nesse mercado os agentes integradores são poucos, no caso as corporações
varejistas, sobretudo, formou-se condição de oligopsônio. O resultado é um incremento
significativo da capacidade de influência do setor, que consegue definir preços, qualidade da
produção, prazos e padrões de embalagem e de outros itens adjacentes.
Consecutivamente, as implicações desse estado de coisas foram (e são) bastante
incisivas sobre as relações de trabalho na contemporaneidade. De acordo com Lichtenstein (2006;
2017) e Rosen (2005), o fenômeno foi responsável pela degradação do trabalho no interior das
economias capitalistas desenvolvidas e no além-mar. Com efeito, criou-se uma situação bastante
problemática no que se refere à regulação institucional, pois as corporações, embora criassem a
pressão para a deterioração das condições de trabalho e emprego no âmbito dos fornecedores, não
200
possuíam qualquer responsabilidade jurídica sobre o que ocorre nas empresas fornecedoras. Por
isso, a revolução do varejo criou, indiretamente, em países de terceiro mundo, formas de trabalho
extremamente precárias. Para Bonacich e Wilson (2008), essa nova configuração da logística, na
qual as corporações varejistas possuem papel decisivo, foi a principal responsável pela
deterioração do trabalho no mundo contemporâneo, não só nos países da periferia do sistema
capitalista, mas também nos países capitalistas desenvolvidos.
As conclusões desta pesquisa visam lançar luz a uma das dimensões da transformação
do setor, qualificando os motivos para a deterioração do trabalho que resultou da expansão das
grandes corporações varejistas. Mais precisamente, e destoando da bibliografia analisada acerca
do setor, sustenta-se que as razões para parte das consequências negativas da revolução do varejo,
sobretudo daquelas associadas à deterioração do trabalho no interior das redes, consistem na
avaliação de que a força de trabalho no setor passou por acentuado processo de proletarização nas
últimas décadas.223 Esse traço fundamental tem como condição e efeito uma nova estrutura
técnica para o trabalho no setor, mediante o qual a força de trabalho torna-se uma mera
mercadoria. Como corolário do novo estado de coisas, o trabalho torna-se mais intenso e as
condições de emprego, piores. Evidências dessa transição podem ser encontradas nas condições
de emprego do setor, o qual, atualmente, figura entre os protagonistas na produção de empregos
de baixos salários em todo o mundo (Carré et al, 2005; 2008; Lichtenstein, 2006).
Infelizmente, no futuro imediato, os prognósticos para o setor são desalentadores. À
medida que, nos últimos anos, todas as causas atuantes não apenas persistiram, mas se
aprofundaram, a tendência é uma recriação dos problemas em escala ampliada. Em razão de sua
vinculação com diversos problemas do mundo contemporâneo do trabalho, esse estado de coisas
traz à tona a demanda por controle social do setor. Por sua vez, essa tarefa torna necessário
223 Aqui proletarização se refere sobretudo às dimensões econômicas estruturais das classes, isto é, àquelasdimensões ligadas às relações de produção, à estrutura técnica e à estrutura de posições econômicas decorrentes dadialética do trabalho típica do modo de produção capitalista. Um dos principais limites desta pesquisa consiste nonão tratamento das dimensões políticas, ideológicas, organizativas e discursivas das classes, que são partefundamental da sua existência. Contudo, este estudo, ao esmiuçar parte dos determinantes estruturais das classes,lança pontos de partida para eventuais futuras pesquisas que abordem o trabalhador comerciário de modo maiscompleto, isto é, incluindo a esfera da formação subjetiva da identidade de classe. Ao analisar a polarização dasrelações de classe no setor, a presente pesquisa fornece referenciais para compreender problemas do varejocontemporâneo, bem como para entender parte do problema das tendências políticas e ideológicas do trabalhadorcomerciário, cujas ideologias e formas de organização política naturalmente não são completamente independentesda dimensão econômica das classes.
201
transformar a insatisfação social esparsa em enfrentamento ao grande capital e em lutas de
natureza anticapitalista. Ou as organizações trabalhistas, movimentos sociais e pensamento crítico
se articulam para propor um mundo alternativo, ou assistiremos à contínua recriação de um
mundo velho.
202
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Documentos consultados:IBGE. Pesquisa Anual de Comércio. Série Relatórios Metodológicos - volume 12. 2a edição.Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão. Rio de Janeiro, RJ: 2000.