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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS LEONARDO MINELLI SILVEIRA MODERNIZAÇÃO DO VAREJO E CLASSES SOCIAIS: um estudo sobre a degradação do trabalho no comércio CAMPINAS, 2019

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

LEONARDO MINELLI SILVEIRA

MODERNIZAÇÃO DO VAREJO E CLASSES SOCIAIS:um estudo sobre a degradação do trabalho no comércio

CAMPINAS,

2019

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LEONARDO MINELLI SILVEIRA

MODERNIZAÇÃO DO VAREJO E CLASSES SOCIAIS:um estudo sobre a degradação do trabalho no comércio

Dissertação apresentada ao Instituto deFilosofia e Ciências Humanas da UniversidadeEstadual de Campinas como parte dosrequisitos exigidos para obtenção do título deMestre em Sociologia.

Orientador/Supervisor: SÁVIO MACHADO CAVALCANTE

ESTE TRABALHO CORRESPONDE ÀVERSÃO FINAL DA DISSERTAÇÃODEFENDIDA PELO ALUNO LEONARDOMINELLI SILVEIRA E ORIENTADA PELOPROF. DR. SÁVIO MACHADOCAVALCANTE.

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Ficha catalográficaUniversidade Estadual de Campinas

Biblioteca do Instituto de Filosofia e Ciências HumanasCecília Maria Jorge Nicolau - CRB 8/3387

Silveira, Leonardo Minelli, 1989-Si39m SilModernização do varejo e classes sociais : um estudo sobre a degradação do trabalho

no comércio / Leonardo Minelli Silveira. – Campinas, SP : [s.n.], 2019.SilOrientador: Sávio Cavalcante Machado.SilDissertação (mestrado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto deFilosofia e Ciências Humanas.Sil1. Marx, Karl, 1818-1883. 2. Comércio varejista. 3. Classes sociais. 4. Capitalismo. 5. Trabalho. I. Cavalcante, Sávio, 1982-. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. III. Título.

Informações para Biblioteca DigitalTítulo em outro idioma: Retail modernization and social classes : on the degradation of labor in commercePalavras-chave em inglês:Retail tradeSocial classesCapitalismLaborÁrea de concentração: SociologiaTitulação: Mestre em SociologiaBanca examinadora:Sávio Machado CavalcanteBárbara Geraldo de CastroHenrique Pereira BragaFábio Mascaro QueridoHenrique AmorimData de defesa: 22-03-2019Programa de Pós-Graduação: Sociologia

Identificação e informações acadêmicas do(a) aluno(a)

- ORCID do autor: 0000-0001-9882-7142

- Currículo Lattes do autor: http://lattes.cnpq.br/2941753290737089

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINASINSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

A Comissão Julgadora dos trabalhos de Defesa de Dissertação de Mestrado, composta pelosProfessores Doutores a seguir descritos, em sessão pública realizada em vinte e dois de março(22/04), considerou o candidato Leonardo Minelli Silveira aprovado.

Prof. Dr. Sávio Machado Cavalcante (orientador – Departamento de Sociologia -IFCH/UNICAMP)

Prof. Dra. Bárbara Geraldo de Castro (Departamento de Sociologia - IFCH/UNICAMP)

Prof. Dr. Henrique Pereira Braga (professor adjunto do Departamento de Economia daUniversidade Federal do Espírito Santo)

A Ata de Defesa com as respectivas assinaturas dos membros encontra-se no SIGA/Sistema deFluxo de Dissertações/Teses e na Secretaria do Programa de Pós-Graduação em Sociologia doInstituto de Filosofia e Ciências Humanas.

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Agradecimentos

Antes de mais nada, agradeço à Fundação Capes por todo o apoio material e

institucional de subsídio a esta pesquisa, apoio que foi imprescindível para a realização de todo o

empreendimento. Sem o financiamento ativo dos programas de pós-graduação, não somente com

a estrutura material, mas com bolsas de estudo, a formação de uma tradição de pesquisa no país –

e a própria formação de um projeto de país – é impossível.

Agradeço aos meus pais, Beto e Rita, por todo o extenso apoio ao longo do período de

formação na Universidade, sem o qual a chegada ao término do mestrado seria inconcebível.

Além disso, agradeço também a todos os familiares, com quem deixei de vivenciar muitos

momentos em razão da dedicação aos estudos que confluíram nesta pesquisa.

Agradeço a minha companheira Vanessa, com quem partilhei tantos aprendizados e

discussões sobre os mais variados assuntos. Não fossem as inúmeras indicações de leituras e os

aprendizados conjuntos, certamente esse trabalho de pesquisa teria sido muito mais difícil –

especialmente no que se refere à escrita. Além disso, sou grato por todo o apoio afetivo e

cotidiano ao longo do período de escrita da dissertação.

Quero agradecer ao meu orientador, Sávio, que conheci numa disciplina ainda no

primeiro ano de faculdade sobre as temáticas de estrutura e estratificação social, assunto que,

desde então, me ajudou a ser atraído para o campo de pesquisa do trabalho e das classes sociais.

Além disso, agradeço por todo a ajuda desde a entrada no programa de mestrado até as últimas

conversas para fechamento da dissertação, várias das quais contribuíram para mudar os rumos

deste trabalho.

Quero agradecer ao professor Henrique Braga, que acompanhou esta pesquisa desde a

apresentação de um trabalho inicial no 4º Fórum de Pesquisa de Pós graduação em Sociologia,

passando ainda pela qualificação desta pesquisa. Em todos esses momentos, os comentários

precisos e argutos foram fundamentais para melhorar toda a compreensão sobre os objetos de

pesquisa, frequentemente trazendo pontos de vista novos para temas já conhecidos e referências

distintas para mobilizar nas discussões.

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Ao professor Ricardo Antunes, agradeço pelos comentários gentis e construtivos durante

a qualificação e por toda a presença bibliográfica nos estudos críticos sobre o mundo do trabalho,

além de todos os aprendizados trazidos durante o curso sobre mundo do trabalho, ministrado para

a graduação em Ciências Sociais.

Sou grato à professora Bárbara Castro, seja pela presença nesta banca, seja pela

disciplina sobre raça, gênero e trabalho, que me deu novos olhos para compreender as relações

entre gênero, raça e classe, bem como para o entrelaçamento entre a luta pelos direitos civis dos

mais diversos grupos oprimidos socialmente. Agradeço à professora Mariana Chaguri pelos

inúmeros aprendizados trazidos na disciplina “Seminários de Dissertação”. A versatilidade na

mobilização de referências e a criatividade para solução de problemas de pesquisa são exemplos

que julgo fundamentais para toda prática da Sociologia e das Ciências Sociais, seja na área na

docência, seja na pesquisa.

Agradeço a todos os funcionários e professores do IFCH, por toda a formação permitida

ao longo dos anos de graduação e de mestrado. Experiência que marcou decisivamente toda a

trajetória de vida e que tornou esta pesquisa possível.

Por fim, quero deixar um agradecimento a alguns amigos que contribuíram para este

trabalho. Primeiramente, agradeço ao Guilherme Montanholli, com quem partilhei uma trajetória

de formação na tradição marxista, na sociologia do trabalho e nas teorias das classes sociais.

Além de todo o aprendizado partilhado nesses vários espaços de discussão, quero agradecer pelas

inúmeras conversas sobre temas direta ou indiretamente ligados a essa pesquisa. Inegavelmente,

toda essa experiência marcou decisivamente minha formação, tornando a chegada à conclusão

desse mestrado possível.

Quero agradecer também a algumas pessoas que ajudaram essa pesquisa ainda na fase

inicial, quando o projeto estava para ser submetido à avaliação no processo seletivo. As sugestões

de melhora ao projeto dadas por Rodolfo Moimaz, Laura Alberti e Patrícia Rocha Lemos foram

um importante apoio num momento decisivo.

A todos vocês, muito obrigado!

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Para meus pais, Beto e Rita,

que, por tantos anos e sob tantoesforço, forneceram todo oapoio necessário para acontinuidade dos estudos.

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RESUMO

O problema da presente pesquisa é a reconfiguração das relações de trabalho do setor varejista,que passou por um processo de deterioração do trabalho em razão da nova configuração técnica eorganizacional. A fim de conferir respaldo a esse posicionamento, os capítulos um e doisanalisam as transformações do setor varejista ao longo do século XX sob o ponto de vista da suaconfiguração técnica e organizacional. O primeiro capítulo volta-se para o tema da modernizaçãodo varejo, que será interpretado à luz da teoria marxista, enquanto o segundo capítulo esmiúça oproblema das transformações do setor no capitalismo flexível, analisando as respostas do varejo àcrise do capitalismo fordista. O capítulo terceiro analisa os significados e implicações dafinanceirização do varejo sob o ponto de vista da autonomização do capital comercial, resgatandoas pistas deixadas por Marx acerca do assunto no livro 3 de O capital. Por fim, no capítulo quatrosão analisadas as implicações da nova configuração do varejo sob o ponto de vista das relaçõesde trabalho. Argumenta-se que a nova configuração do trabalho do setor é efeito de umaintensificação da dominação capitalista sobre a estrutura técnica, que, por sua vez, tem comoefeitos alterações nas relações de classe no setor e a deterioração das condições de trabalho eemprego.

Palavras-chave: Modernização do varejo; Hegemonia do capital mercantil; Trabalho;Proletarização; Capitalismo

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ABSTRACT

The problem investigated in this research is the reorganization of retail sector labor relations,which passed through a labor deterioration process due to the new technical and organizationalconfiguration. In order to support this positioning, chapters one and two analyses the retail sectortransformations along XX century from the technical and organizational point of view. Chapterone deals with the problem of the retail modernization, witch will be interpreted under Marxisttheory, while chapter two examines the sector’s transformations in flexible capitalism, analyzingthe retail responses to the fordist capitalism crisis. Chapter three analyses the meanings andimplications of retail financialization from the point of view of commercial capitalautonomization, bringing the trails left by Marx about the issue in The Capital book 3. Finally, inchapter four the implications of the new retail configuration are analyzed from the point of viewof labor relations. It is argued that the new labor configuration of the sector is an effect ofcapitalist domination over the technical structure, witch, in its turn, generates new class relationsin the sector and labor conditions and employment deterioration.

Keywords: Retail modernization; Merchant capital hegemony; Labor; Proletarianization;Capitalism

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Espaço, lugar!Somos toscos, broncos!Rachamos os troncos, Que ao chão caem a atroar;Por matas, barrancos,Levamos aos trancos,Lenha e achas em montes;Ao rir ponde xeque,Sem nós, brutamontes,A suar no trabalho,Os finos, como é queQuebravam o galho,Por mais que brilhassem?Ficai avisados,Morríeis geladosSe os brutos não suassem.

(Goethe)

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Índice

Introdução.....................................................................................................................................12

Capítulo 1 – Para uma problemática marxista da modernização do varejo...........................24

1.1 Definições preliminares.......................................................................................................25

1.2 Síntese das transformações do varejo: o conceito de modernização do varejo...................31

1.3. Problemáticas a respeito da modernização do varejo.........................................................51

1.4. Modernização do varejo e acumulação de capital..............................................................58

Capítulo 2 – A modernização do varejo na era da acumulação flexível..................................62

2.1 A crise capitalista do fim dos anos 1960 e da natureza do capitalismo pós-1970...............63

2.2 Varejo na globalização.........................................................................................................77

2.3 O varejo na era da tecnologia da informação.......................................................................89

2.4 A emergência da hegemonia do capital mercantil e outras implicações............................107

Capítulo 3 – Os sentidos da autonomização do capital comercial..........................................116

3.1 Definições preliminares.....................................................................................................117

3.2 O lucro comercial...............................................................................................................123

3.3 A importância da racionalização do trabalho no comércio................................................132

3.4 Autonomização do capital comercial e racionalização capitalista.....................................134

Capítulo 4 – O trabalhador comerciário..................................................................................137

4.1 Interpretações marxistas do trabalhador do comércio.......................................................138

4.2 Transformações técnico-organizacionais e o trabalho.......................................................153

4.3 A degradação das condições de emprego...........................................................................168

4.4 Para uma explicação alternativa da degradação do trabalho no varejo.............................189

4.5 A nova configuração das relações de classe no varejo.......................................................193

Conclusão....................................................................................................................................198

Referências bibliográficas..........................................................................................................202

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Introdução

O setor varejista tem sido o centro de controvérsias ao longo das últimas décadas. Por

um lado, ao passo que a sua importância econômica cresceu, fortaleceu-se um campo político-

ideológico de legitimação das transformações do setor (Gereffi e Christian, 2009), cujas

inovações foram fundamentais para a retomada do crescimento das economias desenvolvidas na

década de 1990 (Lichtenstein, 2006). Por outro lado, diversas implicações associadas à formação

de empresas gigantes no setor têm sido alvo de críticas. É o caso da estagnação dos salários ao

longo da década de 2000 (Lichtenstein, 2006), da deterioração das condições de trabalho no setor

(Gupta, 2013) e da associação entre essas empresas e a cadeias de fornecimento nas quais há

trabalho precário (Rosen, 2005; Gereffi e Christian, 2009).

Cada uma dessas questões envolve complicados problemas teóricos para os estudos do

trabalho e para a crítica social. Longe de solucioná-los, a presente pesquisa busca uma resposta

pontual a alguns dos temas associados a essas transformações: propõe-se um estudo teórico

voltado para as transformações nas relações de trabalho ao longo da modernização do varejo. A

principal tese da presente pesquisa consiste na identificação da associação entre as principais

transformações técnicas ligadas à acumulação de capital no varejo e uma reconfiguração das

relações de trabalho, transformações que se acentuaram a partir da transição do setor para a

condição de capital oligopsônico.1

Além desse tópico principal, são tangenciados outros problemas secundários, como o da

natureza das relações de classe do setor e o problema das posições de classe da força de trabalho.

Argumenta-se que a modernização do varejo, na verdade, consiste na transformação capitalista do

varejo, ou seja, ela coincide com a formação da relação social capitalista no setor. Se a

modernização do varejo implica formação da relação social capitalista, então ela traz para o setor

não só a dinâmica histórica do capitalismo, como também tendências da estrutura capitalista de

1 Entende-se por capital monopolista um montante de capital grande ao ponto de concentrar a maior parte dofornecimento de determinado bem para dado mercado. Acompanha-se o registro de Lênin (2011) quanto àinterpretação dos fenômenos da financeirização e transição ao capitalismo monopolista, que avalia que se tratam deresultados inevitáveis do desenvolvimento do modo de produção capitalista. Nessa abordagem, a transição ao capitalmonopolista implica uma fusão entre os capitais monopolistas bancário e industrial e uma destruição relativa dalógica concorrencial que historicamente caracterizou o capitalismo. No mundo contemporâneo, condição análogapode ser encontrada no grande capital varejista, cujas fronteiras com o capital bancário são difíceis de discernir e nasquais a “livre” concorrência foi suplantada há algumas décadas.

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classe. Desse modo, ainda que não solucione todas as questões, este estudo traz alguns

fundamentos teóricos para se entender não só a polarização de classe do setor, mas, sobretudo, o

sentido das transformações.

A tese da formação do capitalismo no varejo se desdobra na análise das transformações

pelas quais passou o setor no capitalismo flexível. Com efeito, a tendência à racionalização

capitalista não parou na transição do serviço varejista para as unidades modernas, mas prosseguiu

no avanço do setor em direção à flexibilização. Nesse contexto, assistiu-se à formação de

corporações gigantes no setor, à sua inserção nas cadeias globais de valor e à inserção de

tecnologias da informação. Como corolário dessas transformações, formou-se uma nova

configuração das relações entre fornecedores e capital varejista, desencadeando um processo de

transformações indissociável da acentuação dos conflitos de classe tanto no interior do varejo

quanto nas relações entre varejistas e outros setores da economia.

Outro tópico abordado é o da associação entre modernização do varejo e autonomização

do capital comercial, que consiste na formação de um tipo de capital especializado nas funções de

circulação comercial. Serão identificados alguns dos significados da formação do capital

comercial, quando será dado destaque para a formação da tendência à evolução da racionalidade

capitalista e para a importância da racionalização do trabalho no setor. Ademais, serão

sumarizados alguns debates pertinentes para a compreensão da natureza das relações de trabalho,

como os limites dos conceitos de trabalho produtivo e improdutivo.

Formuladas as principais teses, se faz necessária justificação para a natureza teórica da

presente pesquisa. O principal argumento consiste na natureza da investigação teórica, que

permite o tratamento de processos no âmbito conceitual. Trabalhando com os objetos neste nível

de abstração, torna-se viável a identificação de tendências gerais, que podem ser interpretadas por

meio de referências teóricas diferentes daquelas identificadas na bibliografia até então existente.

Ademais, o estudo teórico se justifica em razão da proposição de uma problemática marxista para

as transformações do setor varejista, dado que ainda não há bibliografia específica com tal

orientação teórica.

As referências mobilizadas na presente pesquisa advêm das teorias marxistas das classes

sociais. Trabalha-se com a tese da transformação na condição de classe do trabalhador

comerciário, que passou a se constituir no que o marxismo designa como classe trabalhadora. O

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setor, que era controlado por pequenos proprietários, não somente assistiu à intensa concentração

de capital, mas também a profundas transformações na natureza dos processos de trabalho. A tese

da presente pesquisa é que, em razão da nova configuração do trabalho no setor, o sentido dessas

transformações foi o da proletarização. Segundo Scott (2014), é possível identificar na literatura

diversas maneiras de encarar o conceito de proletarização. Nos termos do autor:

Ao menos quatro diferentes concepções de proletarização podem ser encontradas naliteratura. Para alguns comentadores, [1] o argumento refere-se ao tamanho relativo dasclasses. A proletarização, nesse sentido, implica um crescimento na proporção dasposições da classe trabalhadora no conjunto da estrutura de classes. [2] Outros olharampara dados referentes à mobilidade social, buscando calcular a probabilidade deindivíduos serem proletarizados pela mobilidade social descendente em direção à classetrabalhadora, seja de um ponto de partida nas classes médias, seja no curso de umacarreira ocupacional. Para esses autores, são mais as pessoas, e menos os lugares naestrutura, que constituem como os sujeitos do processo. [3] Um terceiro critério refere-seao processo de trabalho em si mesmo. Alguns pesquisadores argumentaram que muitasposições não proletárias da estrutura de classe (como aquelas ocupadas por funcionáriosda administração) frequentemente têm sido desqualificados em termos do conteúdo dotrabalho e da rotinização das tarefas, de modo a tornarem-se indistinguíveis da classetrabalhadora manual. [4] Um último critério refere-se à proletarização no sentido políticosociológico; isto é, ao grau em que certos grupos de classe média dentro da força detrabalho passam a identificar a si próprios como classe trabalhadora ou como aliados daclasse trabalhadora, e, desse modo, compartilhando suas aspirações políticas e cultura(Scott, 2014, p. 602-3)

Em outros termos, a proletarização consiste num processo de aproximação de um grupo

social da condição proletária, seja em termos objetivos ou subjetivos. No que se refere ao objeto

de investigação desta pesquisa, será demonstrado que é possível identificar um intenso processo

de proletarização em qualquer um dos sentidos indicados. Do ponto de vista dos critérios 1 e 2

apontados por Scott (2014), a modernização do varejo em larga medida consistiu na concentração

das funções de circulação comercial no varejo moderno, que substituiu o varejo tradicional, cujo

controle era realizado por pequenos e médios proprietários. Desse prisma, o processo consiste,

simultaneamente, no aumento relativo da classes trabalhadoras2 e numa diminuição quantitativa

das classes proprietárias, recriando no setor tendência de longo prazo do modo de produção

capitalista em diminuir a importância da pequena burguesia tradicional e em aumentar as

2 Acompanhamos o registro de Boito (2007) quanto a diferenciação de “classe proletária” e “classes trabalhadoras”.Enquanto para fazer parte primeira é necessário estar submetido a uma condição de plena dominação pelo capital,com a correspondente ocupação de uma posição subalterna na divisão capitalista do trabalho, o pertencimento nasclasses trabalhadoras é resultado do simples assalariamento. A expressão “classe trabalhadora”, no singular, serátratada como sinônimo de “classe operária”. O assunto será retomado no cap. 4.

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camadas assalariadas. Do ponto de vista do critério 3, também houve proletarização, na medida

em que a modernização do varejo veio acompanhada da formação de formas de organização e de

ação coletiva típicas da classe trabalhadora, tais como sindicatos e greves (Adams, 2006;

Coultner, 2014). Por fim, também é possível identificar proletarização no setor partindo do

critério 4, dado que, como será esmiuçado no capítulo 4, as transformações técnicas e

organizacionais do setor promoveram a separação entre funções manuais e intelectuais do

trabalho, ocasionando desqualificação e parcialização das tarefas.

O principal problema enfrentado por esta pesquisa consiste na análise das

transformações técnicas e organizacionais do setor varejista, as quais, realizadas sob os auspícios

do grande capital corporativo que se formou no setor a partir da década de 1950, implicaram

deterioração das relações de trabalho. Na avaliação desta pesquisa, as transformações do trabalho

no setor endossam as interpretações mais críticas a respeito da dinâmica das relações de trabalho

no mundo contemporâneo, na medida em que se caracterizaram pela combinação de

intensificação do trabalho, ganhos de produtividade não distribuídos igualmente aos

trabalhadores, desqualificação e flexibilização. Em larga medida, as transformações do setor

varejista replicaram no setor as tendências de longo prazo analisadas por Braverman em

Trabalho e Capital Monopolista (Braverman, 1987). Ademais, o setor assistiu à inserção de

dispositivos típicos do capitalismo contemporâneo, os quais, no setor, não apenas não

enfraqueceram as tendências seculares identificadas por Braverman, como ainda as

intensificaram.

Avalia-se que o trabalho no setor varejista em larga medida replicou algumas tendências

estruturais do mundo do trabalho contemporâneo, com destaque para as dimensões negativas do

trabalho no capitalismo flexível. Em primeiro lugar, parte das tendências consiste na mera

reprodução de tendências gerais das estruturas capitalistas de classe, caracterizadas pela

permanente transformação e pela polarização das posições de classe.3 Em segundo lugar, e de

acordo a tradição crítica de natureza marxista, a emergência do mundo contemporâneo do

trabalho consistiu numa resposta a um contexto de crise na dinâmica da acumulação, a qual, dada

a dificuldade de satisfazer todas as condições para a acumulação, entrou em desaceleração e crise

no final da década de 1960. No âmbito do trabalho, as reorganizações tinham vistas ao

3 Esse problema será retomado adiante. Ademais, ele será esmiuçado nos capítulos 1 e 2.

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incremento da intensificação e da exploração do trabalho, gerando, assim, o excedente necessário

à continuidade da acumulação no âmbito dos investimentos produtivos de capital (da qual

depende, de modo mais ou menos direto, toda a valorização do valor, seja a do capital portador de

juros, da renda da terra ou a valorização fictícia).4 Ao avaliar essas tendências, Dal Rosso (2008)

sustenta que, desde a década de 1970, o mundo do trabalho experimenta uma ampla onda de

intensificação do trabalho, que seria a terceira desde a implantação da revolução industrial. Estas

tendências gerais se expressaram com força no setor, que foi um dos que mais se transformaram

tecnicamente nas últimas décadas, recriando as piores tendências do modo de produção

capitalista no que se refere ao trabalho.

O tema das transformações nas relações de trabalho liga-se a outro sentido da

proletarização, o do pertencimento de classe dos trabalhadores do comércio. Trata-se de setor

historicamente classificado de modo ambíguo, seja pelo predomínio das pequenas e médias

propriedades, que levavam a classificar a força de trabalho como pequena burguesia, seja pelas

condições de trabalho, que muito diferiam das condições do proletariado fabril do século XIX e

início do século XX. Na avaliação desta pesquisa, as transformações na estrutura técnica do setor

em larga medida ajudaram a eliminar as controvérsias quanto à condição de classe do trabalhador

comerciário, aproximando-o das condições típicas da classe trabalhadora.

No que se refere ao problema, trabalha-se com uma conceituação relativamente restrita

de classe trabalhadora. Nessa acepção, a ausência de propriedade de meios de produção e o

assalariamento, não obstante sua importância, não são condições suficientes para designar um

setor como parte da classe trabalhadora. Nesse sentido, é possível ser parte das classes

trabalhadoras no plural (i. e., do conjunto de assalariados) sem ser parte da classe trabalhadora5

no singular, pois as condições para pertencimento nesta são mais restritas do que naquelas.

Uma das principais dificuldades teóricas do empreendimento de classificação das

posições de classe consiste na existência de diversos critérios para a identificação das classes, os

quais decorrem da própria existência multideterminada do modo de produção capitalista. De

4 A respeito do assunto, ver Grespan (2011) e Klagsbrunn (2008), que demonstram de modo consistente aimpossibilidade lógica de qualquer forma de valorização do valor de modo completamente independente davalorização no âmbito da produção.5 Até a década de 1980, a diferenciação seria entre “classe operária” e “classes trabalhadoras”. Dado o novo contextoideológico, no qual a autodenominação “classe operária” diminuiu sua presença discursiva, mobilizamos o aexpressão “classe trabalhadora”.

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modo sintético, para não mencionar as dimensões extraeconômicas e as dimensões associadas à

consciência de classe,6 a teoria marxista mobiliza tanto critérios associados à forma social da

riqueza (mercadoria, valorização do valor e funções na reprodução capitalista) quanto ao

conteúdo do trabalho (produção de valores de uso, processos de trabalho tecnicamente adequados

à natureza do capital) (Cavalcante, 2012). Muitos autores supostamente superam o problema da

sobredeterminação dos níveis de existência das classes pela adesão a um único critério ou, o que

em parte é a mesma postura, pela hipertrofia da importância de um em detrimento dos demais,

não buscando a integração de todo o arcabouço marxista da dialética do trabalho no capitalismo.7

No entanto, o próprio Marx não deu uma resposta unívoca a esse complexo de

problemas, mas sim formulações centradas em diferentes dimensões da questão, destacando ora

um, ora outro fenômeno a depender do grau de abstração das teorizações.8 Por essa razão, os

escritos de Marx a respeito do assunto são caracterizados por tensões, que desautorizam

interpretações excessivamente lineares e coerentes a respeito das características da classe

trabalhadora.9 Nos termos de Cavalcante (2014):

(...) essas tensões das formulações de Marx explicam-se pela difícil mediação entre adeterminação formal e os conteúdos (materiais ou não) da riqueza social. Em algunsmomentos, interessa a Marx se restringir ao nível de tratamento teórico mais voltadopara a determinação formal, em que a abstração do “modo especificamente capitalista de

6 A presente pesquisa trabalha com um recorte no que tange à compreensão das relações de classe, uma vez que sãoanalisadas sobretudo as dimensões econômicas estruturais das classes, isto é, as dimensões das relações de classeligadas aos determinantes econômicos vinculados ao modo de produção. A ênfase sobre esse nível de análise demodo algum implica adesão a uma dimensão economicista de classes, como se no movimento de transformação dasrelações de produção se encontrasse a essência de todos os fenômenos da vida social e da história. Embora adiramosà tese da determinação em última instância pelo econômico da sociedade e da economia, disso não se depreende queo social seja um epifenômeno da economia. No que se refere às classes, é notório que as dimensões políticas,ideológicas e discursivas são parte constitutiva da existência concreta das classes, sendo, por isso, partesindissociáveis delas. Aqui, contudo, por uma questão dos limites da pesquisa, seja em razão da natureza teórica dapesquisa, seja em razão da complexidade da própria dimensão econômica das sociedades capitalistas, enfatizaremosas dimensões econômicas estruturais das classes.7 Exemplos dessa solução encontram-se em Lojkine (2002), Lessa (2011) e no próprio Poulantzas (1978).8 Ademais, concorre para essa dificuldade a pluralidade de dimensões das próprias classes, que, além da dimensãoeconômica, abarcam as esferas políticas e ideológicas. A ênfase sobre determinados níveis de existência, oudeterminadas formas de expressão das classes, implica diferentes ênfases conceituais. Por isso, o conceito de classeconsiste em referência conceitual bastante plural e dificilmente esgotável pela análise científica e teórica.9 Ademais, acentua esse problema o fato de o Marx da maturidade não ter de fato elaborado uma teoria das classes àluz da análise da sua teoria do modo de produção capitalista. De acordo com Rosdolsky (2001 [1957-58]), o projetoexpositivo de Marx pretendia abordar em específico o problema das classes, havendo inclusive um capítuloinacabado a respeito no terceiro livro de O capital. As teorizações mais definidas de classe deixadas por Marx, comoaquelas do Manifesto Comunista (1998 [1848]) ou d’A Ideologia Alemã (2007 [1845]), não foram feitas à luz dacrítica da economia política.

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produção” se constrói a despeito das particularidades infinitas de sua reproduçãoconcreta. É, portanto, uma clara indicação de que as formas sociais determinam anatureza das coisas, isto é, são as relações sociais de produção que moldam as forçasprodutivas. Nesse sentido, algumas perguntas apenas serão colocadas em outros níveisde tratamento, como, por exemplo, a relação entre o tipo de valor de uso gerado e acapacidade de realização do valor, bem como as repercussões desse movimento notocante à acumulação de capital, às crises, etc. Nesse âmbito, ainda não se aventa apossibilidade de que muitas atividades, ao se tornarem assalariadas, fazem com que umcapital individual aumente, o “valoriza”, mas essa subordinação formal pode não elevaro capital social total de um país ou região (Cavalcante, 2014, p. 65, grifos no original)

E prossegue:

Ocorre que (...) a determinação formal da relação social capitalista aplica-se de maneiradistinta a cada conteúdo, modificando-os. Para Marx, o “modo especificamentecapitalista de produção” apenas se impõe quando, além da subsunção formal criada peloassalariamento e vinculação a um proprietário de meio de produção, há também asubsunção real do trabalho ao capital. Nessa situação, as forças produtivas estãoadequadas à extração de trabalho excedente, a força de trabalho coletiva étendencialmente desvalorizada e os conteúdos da riqueza são plenamente moldados poressa forma (Cavalcante, 2014, p. 65)

Em suma, na ótica de Marx, seria necessário considerar tanto o papel da forma social

como determinante das relações sociais e das posições de classe quanto a natureza de cada

processo de trabalho concreto, pois a influência da forma social sobre o modo de produzir teria

implicações evidentes para os assalariados a ela submetidos. Essa influência, contudo, não

ocorreria de modo igual em todos os processos de trabalho, pois alguns seriam mais facilmente

adequáveis às necessidades do capital.10

Essa discussão é particularmente pertinente para o setor comercial, pois, por excelência,

o setor tradicionalmente é classificado como uma das parcelas não proletárias das classes

trabalhadoras.11 Na ótica da presente pesquisa, em perspectiva histórica de longo prazo, a tensão

na definição do pertencimento de classe do trabalhador comerciário decorre tanto da forma social

quanto do conteúdo concreto, pois historicamente o setor fora controlado por pequenos

proprietários, não configurando por isso relação social capitalista plenamente desenvolvida.12 Por

10 A respeito da adequação da estrutura técnica ao conceito de capital, ver Belluzzo (1980).11 Em alguns casos, o trabalhador comerciário é diretamente tratado como parte das classes médias. Poulantzas, porexemplo, em razão da não realização de trabalho produtivo e da realização da atividades que dependem do intelecto eda capacidade de comunicação, inclui grande parte da força de trabalho do comércio na nova pequena burguesia.Autores como Lessa e Lojkine o definem como setores intermediários por não participarem diretamente da produçãode mais-valia.12 Para as definições de relação social capitalista plenamente desenvolvida e de desenvolvimento intermediário, verCavalcante (2012) e Milios e Economakis (2011).

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sua vez, na contemporaneidade, a dificuldade decorre, sobretudo, do polo processo de trabalho,

pois, com o avanço da dominação capitalista sobre o varejo, o critério da forma social deixa de

ser capaz de excluir o comerciário da classe trabalhadora. Porém, no que se refere ao conteúdo do

trabalho, é necessária a identificação de critérios concernentes à estrutura técnico-organizacional

do setor. Em parte, a presente pesquisa visa dar substrato a essas discussões, uma vez que se

propõe a um resgate das principais transformações técnicas do setor nas últimas décadas.13

Como exposto, a presente pesquisa propõe uma reinterpretação das transformações do

setor varejista, que serão interpretadas à luz da teoria marxista das classes sociais. Nesse

empreendimento, serão realizados dois movimentos analíticos. Primeiramente, será feita síntese

crítica da bibliografia voltada para a modernização do varejo, para a financeirização do setor e

suas transformações na assim chamada “revolução do varejo”. Em outros termos, a teoria

marxista será trazida para formar novo olhar para as transformações do setor. Em segundo lugar,

esses processos serão trazidos para complexificar a teoria marxista. Esse segundo ponto é

importante porque, muito embora diversos analistas sustentem teses a respeito da condição de

classe do trabalhador comerciário (e. g., Lessa, 2011; Lojkine, 2002), regra geral, há pouca

consideração acerca das transformações concretas pelas quais o setor passou nas últimas décadas.

À luz desse problema, ao trazer a experiência histórica de um setor específico, a presente

pesquisa visa ampliação do escopo das análises marxistas das classes e do trabalho.

Como um dos argumentos secundários, a presente pesquisa sustenta que o trabalhador

comerciário passou por intenso processo de proletarização nas últimas décadas. Avalia-se que as

transformações técnicas do setor varejista ao longo da segunda metade do século XX conduziram

a uma aguda alteração no grau de dominação capitalista sobre a estrutura técnica do setor, a qual

teve como repercussão a intensificação do trabalho e a deterioração das condições de emprego.

13 Esse problema possui íntima relação com o problema da definição das determinações de classe da classe média,bem como de suas fronteiras com o proletariado. Com efeito, por um lado, se o capitalismo ao longo do século XXgeneralizou a condição de assalariamento, por outro, operou-se uma diferenciação interna aos assalariadossubmetidos ao capital. À luz dessa experiência histórica, a presente pesquisa acompanha Cavalcante (2012; 2014) naconsideração de que, dada a generalização das formas sociais capital e mercadoria, torna-se indispensável aconsideração da natureza das classes sob o ponto de vista da natureza técnica do trabalho. Mais precisamente, éfundamental designar em que consiste a condição proletária em termos dos processos de trabalho, bem como o quecaracteriza as ocupações econômicas da classe média, a fim de permitir designação do pertencimento de classe dosdiversos setores assalariados. Cabe, ainda, no interior das classes trabalhadoras, delimitar em que consistem oscontingentes proletários propriamente ditos, ou seja, aqueles contingentes que foram submetidos à subsunção real dotrabalho ao capital.

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Portanto, o presente estudo visa uma reinterpretação de um processo social à luz da

teoria marxista, a qual tem alguns méritos e particularidades no que tange à resposta aos

problemas gerais supracitados. À luz dos objetivos da presente pesquisa, destacam-se três

dimensões privilegiadas para olhar para as transformações do setor do ponto de vista da teoria

marxista: (i) a da dinâmica histórica das estruturas capitalistas de classe, (ii) a do significado e

das implicações das relações de exploração e (iii) as classes como fundamento dos conflitos

distributivos.

O tema da dinâmica histórica de sociedades capitalistas possui longa data na tradição

marxista, confundindo-se com conceitos centrais da abordagem de Marx. Ele diz respeito às

classes não apenas como conjuntos de grupamentos cujas condições são compartilhadas, mas

principalmente como a tendência à transformação das estruturas sociais em razão da contradição

entre forma social e conteúdo concreto do trabalho.14 Dado que o capital busca incrementar as

condições da acumulação, ele procede a constantes reestruturações nas relações sociais.

Essa dimensão da abordagem das classes é explicitamente defendida por Braverman

(1987), mas ela encontra respaldo também no próprio Marx (2013). Com efeito, Em O capital,

sua obra de maturidade intelectual por excelência, não há exposição sistemática do conceito de

classes, não obstante toda a obra exponha leis de funcionamento nas quais há reprodução de

relações de classe. Pode-se depreender que as classes são mais momentos de uma dialética de

conflitos sociais, que no capitalismo ocorrem em torno da dinâmica da acumulação,15 e menos

contingentes populacionais que detêm condição social idêntica.16 Por seu turno, Braverman é

14 Em outros termos, trata-se da contradição entre valor de uso e valor traduzida para as relações de trabalho. O temaserá retomado no capítulo 4.15 A abordagem da obra madura de Marx como centrada em torno da dialética do trabalho pode ser encontrada, entreoutros autores, em Fisher e Fuchs (2015). Para os autores, na reorganização final de O capital, Marx não designounenhum capítulo em específico para tratar do trabalho porque toda a sua teorização a respeito do capitalismo é, aomesmo tempo, um tratamento da dinâmica do trabalho. Eles resgatam os Grundrisse (2011) para sustentar que o eixofundamental da obra de Marx é a dialética do capital como não-trabalho e do trabalho como não-capital. Em certosentido, a presente pesquisa trata precisamente dessa dialética no setor varejista.16 Nas palavras de Braverman, “o termo ‘classe trabalhadora’, adequadamente compreendido, jamais delineourigorosamente um conjunto de pessoas, mas foi antes uma expressão para um processo social em curso” (1987, p.31). Com isso o autor quer trazer mais determinações para o conceito de classe trabalhadora, com vistas a ir além domero assalariamento. Nesse empreendimento, mostra que a condição do assalariamento no capitalismo conduz adiversas implicações, como a reestruturação das relações de trabalho e a pressão do exército industrial de reserva.Esse modo concreto de encarar as classes sociais será esmiuçado nos capítulos 4 e 5.

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explícito quanto à aceitação da continuidade entre sua obra e a do comunista alemão,17 chegando

a afirmar que, em termos de teoria, sua obra não possui nada de novo em relação a Marx.

Para o objeto da presente pesquisa, as relações de exploração são particularmente

importantes, pois se aborda um setor comumente definido como não produtivo (e. g. Lessa, 2011;

Poulantzas, 1978; Marx, 1986a).18 Conforme Wright (1997), as relações de exploração são um

dos principais pilares da teoria marxista das classes. Porque consistem num processo estruturado

e estruturante de diferenciação social, a exploração é um conceito sociológico fundamental. A

exploração capitalista não só forma diferentes condições de classe de acordo com a posição na

divisão do trabalho, como também cria dispositivos que asseguram a reprodução social dessas

condições.

Em outros termos, a exploração cria as condições para sua própria reprodução. A

exploração capitalista do trabalho se caracteriza pela apropriação do excedente no ato de

trabalho. Uma vez realizada a mais-valia, o capitalista pode (e, na verdade, deve) reinvestir os

frutos do trabalho para incrementar as condições da exploração. Os frutos do trabalho devem não

somente ser alienados do trabalhador, a fim de se recriar os meios de trabalho como posse do

capital, como também aperfeiçoar as condições da extração de mais-valor. Em suma, a

exploração lança bases tanto para sua própria continuidade quanto para a sua intensificação e, por

meio dessa abordagem, a teoria marxista lança fundamentos para se destrinchar a polarização de

interesses na estrutura social.

A abordagem marxista da exploração também tem o mérito de designar as relações de

dependência mútua entre explorador e explorado. Na medida em que o primeiro precisa do

segundo para colocar o empreendimento produtivo em funcionamento, o explorado

17 Apesar do profundo alinhamento entre as perspectivas de Braverman e a análise de Marx a respeito do trabalho nocapitalismo, para a presente pesquisa, Braverman foi excessivamente modesto nessa autoavaliação, uma vez que suaobra possui importantes avanços na análise do trabalho, os quais não se limitam à aplicação da teoria de Marx para astransformações do século XX. Além disso, o próprio empreendimento de tradução da perspectiva de Marx para astransformações do século XX é em si um trabalho teórico, se se considera a expressão no sentido conferido porAlthusser (1978).18 O tema da exploração do trabalhador comerciário é inerentemente polêmico em razão do seu posicionamento nocircuito de reprodução capitalista, pois ele atua na valorização do capitalista individual ao mesmo tempo em que nãogera mais-valia por se situar do momento de circulação da reprodução social. Carchedi (1996) fornece uma solução aesse problema com o conceito de opressão econômica, que permite identificar os trabalhos na circulação comooprimidos pelo capital, mas não explorados. No capítulo 3, onde o tema será destrinchado, argumenta-se que, emparte, esse problema foi solucionado atualmente em razão da hipertrofia das funções produtivas do capital no interiorda circulação, o que foi resultado da modernização do varejo. Em razão desse novo estado de coisas, o trabalhadorcomerciário é explorado, e não apenas oprimido economicamente.

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necessariamente adquire algum poder potencial diante do explorador. Este poder potencial é o

fundamento dos conflitos distributivos no capitalismo, que passam a fazer parte do setor varejista.

Assim, a teoria marxista das classes fornece referências para a interpretação da natureza e das

tendências dos conflitos sociais no setor.19

Sob o ângulo das problemáticas propostas, a modernização do varejo (e a fortiori20 para

as transformações do varejo no capitalismo flexível) implicou a inserção de diversas

características da estrutura capitalista de classe no setor, tal como a polarização social e a

formação de conflitos distributivos. De acordo com a hipótese da presente pesquisa, as

transformações identificadas no setor varejista consistem precisamente na entrada dessas

tendências no setor. É o caso da dinâmica histórica do capitalismo, do antagonismo de classe e

dos conflitos distributivos.

Sumarizando a trajetória expositiva, no primeiro capítulo serão expostas algumas

definições preliminares e o conceito de modernização do varejo. Neste capítulo será exposto o

conjunto de causas atuantes sobre a modernização do setor, ao que se seguirá o destrinchamento

do conceito de varejo moderno. Por fim, será exposta a problemática da modernização do varejo

como transformação capitalista do setor.

O segundo capítulo apresentará as transformações do setor varejista nas circunstâncias

do capitalismo flexível, enfatizando o papel da globalização e das tecnologias da informação.

Nesse empreendimento, será destacada a emergência de uma nova forma de operação do setor,

mediante o qual ele formou-se como um sistema integrado, que tem na revolução logística uma

das suas condições fundamentais. Como corolário das transformações, formou-se uma nova

configuração das relações entre produção e circulação. Como interpretação dessa reconfiguração,

será exposta a tese da supremacia do capital comercial.

O terceiro capítulo tratará dos sentidos da autonomização do capital comercial. Serão

esmiuçados o papel da racionalização capitalista do trabalho no setor comercial e as relações

19 Assim, a presente pesquisa entende as classes, e em especial a formação da relação social capitalista, comofundamento dos conflitos distributivos, diferenciando-se de abordagens como a de Dahrendorf (1982 [1957]), cujocerne são conflitos por status nos quais não há protagonismo de determinantes de classe.20 Segundo Fiorin (2015), o argumento a fortiori sustenta uma tese a partir da sua relação com outra, sendo por issoum tipo de argumento por coexistência. O argumento a fortiori parte de uma tese aceita e sustenta que outra tesedeve também ser aceita quando concorrerem causas mais fortes para ela. No caso em específico, se se assume que amodernização do varejo conduz a conflitos de classe, deve-se aceitar que as transformações do varejo no capitalismotambém o fizeram, pois nelas todas as características do varejo moderno se intensificaram e generalizaram.

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entre autonomização do capital comercial e formação de tendência à intensificação da exploração

do trabalho, temas fundamentais para a compreensão da dinâmica das transformações do setor,

bem como das suas relações de classe.

Por fim, o quarto e último capítulo tratará do impacto das transformações no setor

varejista do ponto de vista das relações de trabalho, avaliando o papel cumprido pela nova

estrutura técnica e organizacional do ponto de vista do trabalhador comerciário. Mais

precisamente, acompanha-se a perspectiva de Braverman21 segundo a qual é possível analisar o

trabalho de duas maneiras: uma do ponto de vista do seu encadeamento técnico, outra do ponto

de vista da relação do trabalhador com o processo de trabalho. O quarto capítulo investigará as

transformações técnicas do setor sob esta perspectiva, concluindo que, sob a nova configuração, o

setor experimentou processo de proletarização da força de trabalho e, consequentemente, de

deterioração das relações de trabalho e emprego.

21 O capítulo também reconstruirá as abordagens de analistas marxistas das classes acerca da condição de classe docomerciário. Mas precisamente, serão resgatados os registros de Wright (1989; 1996), Poulantzas (1978) eBraverman (1987).

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Capítulo 1 – Para uma problemática marxista da modernização do varejo

A modernização do varejo é a transformação capitalista do varejo. Essa é a principal tese

do presente capítulo, que faz a primeira entrada nas transformações técnicas do setor. Tal

processo consiste na substituição das modalidades tradicionais de varejo por outras modernas,

que consistem em unidades do ramo que fazem parte de redes varejistas.

Essa tese implica um ponto de vista diferente daquele encontrado na bibliografia, que

em sua maioria é de matriz neoclássica. Enquanto para os neoclássicos as transformações do

varejo foram produtos da ação dos mercados, que resultaram em crescente racionalização social

com vistas ao bem estar geral, para a presente pesquisa se trata de um processo contraditório

capitaneado pelo impulso de maximização do lucro, que é inerente ao capitalismo.

Entender a modernização do varejo como transformação capitalista implica concebê-la

como efeito da formação de capital. Consequentemente, entende-se que em sua nova

configuração o setor varejista passou a replicar características do modo de produção capitalista

em geral, tais como a tendência à renovação técnica, ao crescimento econômico associado à

dinâmica da acumulação e à reprodução de antagonismos de classe. Se o processo é uma

transformação capitalista do varejo, as tendências possuem especificidade histórica e natureza de

classe.

Ademais, motiva a formulação dessa problemática o fato não ter sido encontrada

bibliografia que trate em específico do varejo a partir da teoria marxista. A presente pesquisa

busca precisamente trazer referências marxistas para interpretar esse setor da economia

capitalista,22 cuja importância cresceu progressivamente ao longo do século XX.

A fim de chegar a uma problemática marxista, é feita uma passagem pela literatura

voltada para os problemas específicos do setor, quando será realizada síntese bibliográfica com

vistas à construção do conceito de modernização do varejo. A primeira seção ocupa-se de

definições preliminares, como o papel da função varejista no ciclo da reprodução capitalista e dos

tipos de empreendimento varejista. A seção dois, que trata do conceito de modernização do

22 Apesar da relativa originalidade da proposta de uma problemática marxista acerca do setor varejista, pode-se notarque o presente estudo se limita a identificar no setor tendências gerais das sociedades capitalistas. Nesse sentido, asteses defendidas são inferíveis a partir da teoria marxista, não havendo, portanto, nenhuma novidade de fato nasformulações.

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varejo, divide-se em três subseções. A seção 1.2 analisa questões gerais referentes à passagem da

demanda aos supermercados, bem como conceitos base para a análise; a segunda 1.3 analisa o

primeiro conjunto de causas, as quais vinculam-se com transformações na estrutura social das

sociedades capitalistas do século XX; por fim, a seção 1.4 analisa os dispositivos de redução de

custos, que em parte coincidem com a própria racionalização capitalista do varejo.

A terceira seção reconstrói duas problemáticas a respeito da modernização do varejo,

organizando os julgamentos encontrados na bibliografia em dois blocos, um crítico e outro

apologético. Finalmente, a quarta seção propõe uma problemática marxista que entende a

modernização do varejo a partir dos conceitos de acumulação, centralização e concentração de

capital.

1.1 Definições preliminares

A modernização do varejo consiste na substituição do modelo tradicional de varejo pelo

moderno. Entende-se varejo moderno como unidades varejistas nas quais há pertencimento a uma

rede varejista. Essa definição é parcialmente diferente da encontrada na literatura consultada (por

exemplo: Carden, 2011; Tilly, 2007a; Reardon, Timmer e Berdegue, 2004), que identifica as

modalidades modernas de varejo com o modelo supermercadista. O problema desta definição

consiste na exclusão de diversas modalidades de varejo que evidentemente são modernas, como

todas as corporações comerciais voltadas para o comércio especializado. Além de permitir captar

tendências mais gerais, a definição de varejo moderno como redes capitalistas permite designar a

natureza social do processo em questão, pois não se trata somente da emergência de um tipo de

empreendimento e de uma nova estrutura técnica, mas sobretudo da formação do capitalismo no

setor.

Apesar dessas críticas, é compreensível a identificação entre modernização do varejo e

expansão do setor supermercadista, pois a difusão do modelo supermercadista é principal forma

pela qual se deu a racionalização do setor. Em outros termos, trata-se do tipo de varejo moderno

no qual houve mais concentração de propriedade e racionalização capitalista dos recursos. Por

esses motivos, parte considerável da nossa exposição do conceito de modernização do varejo se

dará a partir do tratamento da dinâmica de expansão desse setor.

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A crescente ocupação do setor varejista pelos supermercados define-se como

supermercadificação (Reardon, Timmer e Berdegue, 2004; Tilly, 2007a). Esta consiste em um

conjunto de transformações que têm como expressão o incremento do peso relativo de

modalidades supermercadistas. Nos termos de Tilly, o conceito expressa a “propagação do

moderno formato de supermercado para substituir formas mais antigas de varejo, tais como o

mercado tradicional ou as pequenas lojas” (Tilly, 2007a, p. 1) ou como concentração das funções

de varejo em supermercados.

Trabalha-se com o termo “supermercado” em acepção ampla, conforme a sugestão de

Reardon, Timmer e Berdegue (2004), de modo a englobar todas as variantes de grande varejo de

autosserviço. O autosserviço comercial23 é uma modalidade particular de funcionamento das

lojas, sendo caracterizada por uma organização do espaço que permite o trânsito dos

consumidores ao longo de corredores, onde ficam expostas as mercadorias para a “livre” escolha.

A definição de modalidades de varejo supermercadistas abarca fenômenos diversos, abrangendo

desde unidades de médio porte até vultosos hipermercados.

No registro marxista, a atividade varejista se situa no interior do momento de circulação

do processo de reprodução capitalista. Mais precisamente, ela é identificada com os

procedimentos ligados à mudança formal de propriedade de mercadorias, diferenciando-se da

circulação de dinheiro e/ou capital, que caracteriza os bancos e o capital portador de juros (Marx,

1986a; Rubin, 1987; Cavalcante, 2012). Além disso, ela também abarca todas as atividades

adjacentes a essa atividade-fim, tais como a coordenação dos transportes, a organização e

conservação de mercadorias.

No interior da função comercial a atividade varejista se distingue da atacadista. Segundo

o IBGE (2000, p. 151), varejo é a “revenda de produtos novos ou usados destinados,

predominantemente, às pessoas físicas, para consumo pessoal ou doméstico, independente da

natureza e quantidade vendida”. Por sua vez, a atividade atacadista consiste na “revenda de

produtos que serão utilizados no processo produtivo”, destinando-se “às instituições públicas,

revendedores, indústrias, profissionais autônomos, etc” (IBGE, 2000, p. 151). Em outros termos,

o varejo volta-se para a venda de produtos diretamente ao consumidor final, sem existência de

23 Nos termos do IBGE (2000, p. 35): “forma de comercialização baseada em estabelecimentos comerciais (unidadeslocais com receita de revenda) equipados com uma ou mais caixas, além de instalações destinadas a permitir o acessodireto dos consumidores às mercadorias (gôndolas, frigoríficos abertos, etc.)”.

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intermediários, enquanto o atacado tem como função a venda tanto para intermediários quanto

para o consumo produtivo.

A definição de varejo moderno em parte se define através da diferença para com a de

varejo tradicional. De um modo geral, as definições de comércio, varejo, varejo tradicional e

varejo moderno são entendidas a partir do modelo de definição por gênero e espécie, ou seja,

cada conceito mais geral abarca características comuns aos mais concretos, os quais, por seu

turno, designam características mais particulares. Assim, varejo é comércio do mesmo modo que

as modalidades modernas e tradicionais são varejo.

Segundo o IBGE (2000, p. 35), o comércio tradicional se define como “forma de

comercialização na qual os consumidores não têm acesso direto às mercadorias expostas, sendo

necessária a presença de um ou mais balconistas para atendê-los”. Como se pode notar, tal

definição é bastante abrangente, já que ela abarca formas de comércio extremamente diversas.

Além disso, em perspectiva histórica, por meio dessa acepção a expressão “varejo tradicional”

agrupa atividades comerciais existentes em todas as formações sociais pré-capitalistas. Ao passo

que aumenta o seu escopo, diminui o seu rigor analítico. Apesar de a considerarmos equivocada

para interpretar o comércio de sociedades não capitalistas, essa definição é útil para os propósitos

do presente estudo, cujo objeto é o varejo moderno.

Portanto, a definição de varejo tradicional mobilizada é feita com base no princípio da

identidade (Fiorin, 2015), ou seja, varejo tradicional abarca todas aquelas modalidades de varejo

que não se adequam ao conceito de varejo moderno e vice versa. De modo mais concreto, varejo

tradicional abarca todas aquelas modalidades controladas por pequenos e médios proprietários

nas quais não há pertencimento a redes empresariais de varejo, enquanto o varejo moderno

consiste nas redes varejistas. Endereçando o problema do pertencimento a redes, Rangarajan

(2016) afirma que a diferença essencial entre o varejo tradicional e o moderno consiste na forma

de organização de cada um: enquanto neste os processos de mercado funcionam por meio de

agências organizadas e planejadas, naquele há operação da lei de mercado com mediação de

inúmeros intermediários.

Embora se fizesse presente em todos os países então em transição para o capitalismo

fordista, a modernização do varejo teve seu início mais sistemático nos Estados Unidos do

segundo quartel do século XX (Belik, 1999; Cleps, 2005). As primeiras redes varejistas surgiram

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no país já no final do século XIX, sem, contudo, atingir o grau de desenvolvimento das redes

formadas posteriormente (Strasser, 2006). O autosserviço comercial surgiu na década de 1920 e o

primeiro modelo de supermercado na década de 1930 (Belik, 1999; Cleps, 2005, Strasser, 2006).

A expansão massiva das redes supermercadistas norte-americanas ocorreu apenas na

década de cinquenta, quando começou a formação das modernas redes de descontos; já nas outras

potências capitalistas ocorreu apenas na década de 1960 (Tilly, 2007a). Não obstante presente na

periferia do capitalismo desde a década de 1950, a supermercadificação era uma tendência

minoritária até a expansão de políticas neoliberais da conjuntura pós-1990, após o que ocorreram

bruscas transformações (Belik, 1999; Reardon, Timmer e Berdegue, 2004).24

Embora a bibliografia consultada quanto ao tema não esteja informada por quadros

teóricos de classes sociais, na sua exposição é nítido o impacto que essa transição implicou para a

estrutura de classes. A passagem do século XX assistiu a mudanças radicais no setor. Inicialmente

caracterizado pelo predomínio de pequenos proprietários, ao final do século o grande capital

havia tomado controle do setor. Um momento crítico de metamorfoses ocorreu no contexto de

globalização, quando algumas tendências prévias se exacerbaram e outras novas floresceram.25

De modo definitivo, o serviço varejista em todo o planeta estava sob o controle de “corporações

gigantes (...) de escala global” (Tilly, 2007a, p. 1), que comandavam cadeias de fornecimento e

concorriam em escala mundial (Tilly, 2007a).

A maior parte da literatura consultada examina o problema sob perspectiva econômica

neoclássica, que sobreleva a dimensão microeconômica como determinante das metamorfoses. É

o caso de Reardon, Timmer e Berdegue (2004), que se centra na internacionalização do varejo na

conjuntura neoliberal na periferia do capitalismo; de Carden (2011, p. 1), que trata o problema

como “um dos aspectos mais importantes da economia [norte]americana moderna” e de Vedder e

Cox (2006), que enfatizam o papel do varejo moderno na dinamização do consumo e dos

investimentos.

Uma segunda vertente acentua a dinâmica das formas comerciais no interior das

mudanças sociais do espaço urbano (Pintaudi, 1981), usando um argumento também presente em

24 A depender do andamento da pesquisa, será incluído um capítulo sobre a modernização do varejo na periferia docapitalismo.25 O tema das transformações do varejo no capitalismo flexível será tratado no capítulo 2.

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Cleps (2005) e Barata-Salgueiro (1989). Essa chave explora as relações entre cidade, mobilidade

urbana e capitalismo e será pertinente para algumas teses do presente capítulo.

Uma terceira vertente examina as transformações do varejo a partir do registro

econômico institucionalista (Belik, 1999; Senhoras, 2003).26 Ao questionar a abordagem do livre

mercado, essa vertente propõe uma interpretação crítica da leitura neoclássica. No que diz

respeito à criação de condições para crescimento econômico, esses autores conferem destaque

para fatores culturais e institucionais. Essa abordagem será pertinente, pois permite identificar as

relações entre política, instituições e tipos de empreendimento empresarial bem sucedidos.

Embora a presente pesquisa entenda essas relações de modo diferente,27 o diálogo com esse

referencial será oportuno à luz de alguns problemas.

Finalmente, uma quarta vertente aborda criticamente as transformações do varejo. Esse

heterogêneo bloco de autores centra-se em diversos eixos: 1) a formação das grandes redes e a

consequente deterioração das condições de emprego e de trabalho no setor (Rosen, 2005;

Lichtenstein, 2006; Gupta, 2013); 2) a formação das corporações varejistas globais e a nova

relação de poder entre empresas comerciais e manufatureiros, condição responsável pela

formação de trabalho precário nas cadeias de fornecimento (Lichtenstein, 2006; Rosen, 2005); 3)

a relação entre formação das redes varejistas, barateamento das mercadorias e aumento de

vendas, o qual constituiu-se em fundamento da promoção da ideologia do consumismo (Strasser,

2006; Barata-Salgueiro, 1989).

Identificando um ponto comum nesse heterogêneo grupo, pode-se dizer que ele se

caracteriza pela crítica ao livre mercado como norma para regulação das relações de trabalho e

pela a defesa de controle normativo-institucional sobre o mercado de trabalho e sobre os modelos

corporativos. Lichtenstein (2017) e Gupta (2013) formulam de modo explícito abordagens nessa

26 No caso, trata-se do assim chamado “novo institucionalismo”, e não da abordagem sociológica de inspiraçãoweberiana, que comumente recebe a designação “institucionalismo”. Acompanhando Belik (1999), a abordagem neoinstitucionalista parte de uma crítica à tradição neoclássica, demonstrando que os contextos de oferta e procura nuncaocorrem em abstrato, tal como frequentemente idealiza a tradição neoclássica, mas sim em contextos institucionaisdefinidos. Por isso, parte fundamental da consideração sobre o funcionamento das economias capitalistas deveriadar-se a partir da análise das instituições que mediam o funcionamento do mercado.27 Nesse ponto, a presente pesquisa acompanha a abordagem marxista acerca das relações entre classes sociais e apolítica, vendo-a como esfera detida de autonomia relativa (Poulantzas, 1977). Embora a política não se reduza àslutas de classe, ela também não pode ser concebida senão à luz dos conflitos de classe, sejam entre classesantagônicas, seja entre as frações da classe dominante. Já para a abordagem institucionalista, não há consideraçãosobre os vínculos intrínsecos entre política, instituições e classes.

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direção, defendendo a necessidade de mudança nos padrões de governança corporativa com

vistas à promoção de responsabilidade social pelas empresas.28 Por seu turno, nos outros autores

teses dessa natureza ficam mais implícitas do que explícitas.

Para os problemas da presente pesquisa, dentre essas alternativas a terceira e a quarta

vertente são as mais adequadas. No entanto, na primeira parte será realizado um diálogo

sobretudo com o primeiro grupo de autores. Essa opção decorre da natureza da análise dos

autores de inspiração neoclássica: embora seu registro seja idealista, reificado e ahistórico, esses

autores buscam a construção de um quadro explicativo para as transformações. Por seu turno, os

outros referenciais, embora mais afinados com nossas problemáticas, não ajudam a responder a

esse problema, uma vez que se centram em dimensões particulares dos eventos.29 Por essas

razões, todos os outros blocos interpretativos ficam, de certo modo, em débito com a

interpretação neoclássica, uma vez que realizam contribuições e críticas ao debate sem se lançar à

construção de um modelo teórico.

Assim, na primeira parte do capítulo 1, serão buscadas respostas às seguintes perguntas:

qual a conexão entre o desenvolvimento do modo de produção capitalista e a emergência de

modalidades modernas de varejo? Qual a anatomia técnica e organizacional do varejo moderno?

Como e porque o varejo moderno venceu a concorrência com os pequenos proprietários? Por que

na modernidade se compra mais em supermercados e menos no pequeno comércio?

28 Lichtenstein (2017) faz essas proposições à luz do que ele denomina Era Progressiva da história estadunidense.Para o historiador, o ciclo inaugurado pelas lutas reformistas na década de 30, cuja expressão no plano políticoinstitucional foi a formulação do New Deal, teve como um de seus epicentros a luta de movimentos trabalhistas e abatalha institucional pela criação de regulação estatal sobre os modelos corporativos. Parte dessa regulação realizou-se por meio da responsabilidade social na administração das empresas, que deviam preocupar-se com boas condiçõesde vida para seus funcionários. No entanto, a partir do fim da década de 1960 esse modelo foi progressivamentecorroído. Para Lichtenstein (2017), parte significativa desse fenômeno deveu-se à emergência do grandeempresariado comercial. O tema será retomado nos capítulos 2 e 5.29 Ainda que o diálogo seja travado sobretudo com o registro neoclássico, todas as abordagens contribuem com asdiscussões do presente capítulo.

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1.2 Síntese das transformações do varejo: o conceito de modernização do varejo

1.2.1 A passagem da demanda para os supermercados

Como já enunciado, o processo de supermercadificação e a expansão das redes varejistas

são fenômenos inseparáveis. Segundo Carden,

(...) o varejo mudou no século XX à medida que varejistas independentes e pequenoscederam lugar para redes nacionais de lojas de venda massiva e generalizada. (...) Noséculo XX, a economia dos EUA mudou em direção aos serviços e deixou de sermajoritariamente composta pela agricultura e pela manufatura. O final do século XXassistiu a uma contínua mudança estrutural, se afastando dos varejistas de um únicoestabelecimento [“Mom-and-pop” stores] e indo em direção às redes nacionais dedescontos, que operavam grandes lojas e que ofereciam ampla gama de produtos paradiversos mercados (Carden, 2011, p. 2)

As redes consistem em grupos de lojas submetidas a um único proprietário ou a um

grupo unificado de sócios, sendo mais ou menos centradas ou dispersas ao longo de uma ou mais

cidades. Inicialmente, a formação das redes ocorreu no terreno intra-cidades, para depois ocupar

regiões, mercados nacionais e, no cenário do capitalismo mundial, o globo terrestre. A formação e

expansão das redes é parte da progressão crescente na concentração de propriedade.

Dada a profundidade da transição, a percepção de mudanças é inevitável. Por exemplo, a

fig. 1 mostra que, em 1948, nos EUA, 70% das vendas do varejo eram realizadas em empresas de

uma única loja, enquanto apenas 12% em redes com mais de cem lojas; já em 1997, 39% das

vendas eram realizadas em empresas de uma única empresa e 38% em empresas com mais de

cem lojas. No entanto, necessariamente a identificação de qualquer fenômeno é informado

teoricamente, já que é impossível interpelar um objeto sem mediação de um ponto de partida

teórico, ideológico e valorativo (Alexander, 1986). No caso, de modo sintético, a acepção

neoclássica apreende os eventos por meio de dois grupos de categorias: um primeiro associado às

relações entre oferta e procura dentro de um contexto de livre mercado e uma segunda vinculada

às economias de escala, escopo e densidade, que seriam combinadas para gerar as mudanças

organizacionais e tecnológicas.

As economias de escala, escopo e densidade possuem em comum a capacidade de salvar

custos em um empreendimento. Em outros termos, elas consistem em investimento que muda o

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modo de produzir e que traz um retorno em relação ao valor adiantado.30 Sua diferença consiste

no tipo de mudança desencadeado nos processos de trabalhos.

As economias de escala são adições de produtividade conseguidas através do aumento

da quantidade de recursos investidos ou no aumento da escala da produção. Para tanto, não é

condição a mudança na natureza dos processos de trabalho, embora frequentemente os ganhos de

escala tomem a forma de inovações técnico-organizacionais. Por seu turno, as economias de

escopo são ganhos de eficiência atingidos por meio da diversificação das mercadorias produzidas,

sejam elas bens tangíveis ou serviços. Finalmente, as economias de densidade consistem em

reduções de custos provenientes da aproximação espacial das etapas do ciclo de reprodução de

um processo produtivo, o que também pode ser obtido por meio de melhoria nas comunicações e/

ou nos transportes. Usando a expressão de Harvey (2014), as economias de escopo podem ser

entendidas como compressões espaço-temporais das etapas da divisão do trabalho internas a uma

empresa.31

30 As críticas a essas categorias serão feitas no capítulo 4. Apenas adiantando a argumentação porvir, os conceitos deeconomias de escala, escopo e densidade são reificados por omitirem os conflitos de interesse de classe a elesinerentes, respaldando-se nas ideologias da neutralidade do desenvolvimento técnico no capitalismo. No que serefere às relações de trabalho, oculta-se, por exemplo, que os ganhos de escala quase sempre decorrem daspossibilidades de fordização e taylorização do trabalho, pois ganhos de escala facilitam a implementação dessasnormas produtivas.31 Como se pode notar, as fronteiras em seus preceitos são fluidas, visto que em muitos casos economias dedensidade poderiam ser encaradas como economias de escopo, assim como determinadas economias de escalapoderiam ser encontradas em todas as dimensões de um empreendimento.

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Do ponto de vista da lei de mercado, a oferta do serviço supermercadista é determinada

por duas razões (Reardon, Timmer e Berdegue, 2004). Em primeiro lugar, ela decorre da

capacidade de oferta, que se caracteriza pelas condições de investimento em determinadas

circunstâncias econômicas institucionais. Em segundo lugar, pelo desejo do “mercado” em

realizar investimentos nessas mesmas circunstâncias. O fator capacidade de demanda atua como

determinante mais geral, ou seja, como condicionante do limite máximo dos investimentos. Por

seu turno, o desejo de investir define a quantidade concreta de novos empreendimentos de varejo

moderno, a qual necessariamente ocorre dentro dos limites da capacidade de investimento.

Dado que há influência de variáveis econômicas mais gerais, na determinação da oferta

está envolvida ampla gama de fatores, seja no que se refere à capacidade de oferta, seja no que

tange ao desejo de investir. Fazem-se presentes fatores como os preços e a disponibilidade de

crédito em dado país, o desempenho econômico geral e a confiança do mercado. Ademais,

políticas específicas para o setor varejista são especialmente relevantes.

Por esses motivos, as dimensões institucionais da modernização do varejo trazem

problemas ligados a cada contexto nacional específico, fugindo em parte ao problema em questão

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no presente capítulo, já que se está considerando o processo social em seus termos gerais.32

Consequentemente, no que tange à lei de mercado, o foco será dado sobre a dimensão da

demanda. Esta divide-se em dois eixos equivalentes aos expostos quanto à oferta, caracterizando-

se pela capacidade de procura e pelo desejo pelos serviços supermercadistas. A primeira define-se

pelo poder de compra em cada mercado regional ou nacional, enquanto a segunda oscila

conforme a disposição para a escolha do varejo moderno em detrimento do tradicional.

Adiante a exposição designará o conjunto de causas responsáveis pela passagem da

demanda para o serviço supermercadista. A apresentação se dividirá em dois grandes eixos, cada

um dos quais abarcando um conjunto de causas INUS.33 Cada um à sua maneira, esses conjuntos

explicam a passagem da demanda em direção às redes varejistas, passagem que alimentou a

modernização do varejo. O primeiro grupo engloba as causas não estritamente econômicas,

ligando-se a algumas das principais transformações do capitalismo no século XX. O segundo

grupo engloba as causas econômicas em sentido estrito, abarcando todos aqueles dispositivos

associados à redução de custos. Essa distinção será útil para algumas hipóteses da presente

pesquisa.

No que tange à consideração da natureza das relações de causalidade, acompanha-se a

conceituação de Pessoa Júnior (2006) a respeito das causas INUS, que consistem num tipo de

causa que é fruto da associação entre diversos eventos ou agentes. As causas INUS se

caracterizam por uma junção de fatores que em si mesmos são insuficientes para determinar um

evento, mas que, ao combinarem-se, formam causas não necessárias, mas suficientes. Por sua

vez, cada uma das partes das condições suficientes são designadas causas contribuintes.

32 A respeito dessa especificidade de contextos institucionais, cabe mencionar o caso brasileiro, seguindo aexposição de Belik (1999). Os primeiros supermercados surgiram no país na década de cinquenta. Entretanto, suaexpansão era retardada pelo ambiente institucional, uma vez que prevaleciam condições fiscais que faziam aconcorrência pender de modo favorável para os pequenos proprietários. À época, vigorava um imposto “em cascata”,o qual incidia sobre todas as transações comerciais de um produto, de modo que os preços chegavam altos nosvarejistas. Nesse cenário imperavam as práticas de sonegação fiscal, amplamente praticadas no setor. Contudo,devido a seu tamanho e maior profissionalização, os supermercados tinham dificuldade de escapar à taxação, o quelhes conferia desvantagem. Essa situação só mudou no final da década de 1960, quando o imposto em cascata foiabolido e o aparato de fiscalização do sistema tributário se tornou robusto. Houve ainda outras duas mudanças quefavoreceram a supermercadificação no período da ditadura militar: 1) as políticas de coordenação estatal dadistribuição de alimentos, levando à economia de custos; 2) o estímulo creditício para o financiamento de grandeslojas e redes. Como se pode notar, a compreensão da dinâmica concreta do setor em cada país depende da políticaeconômica para o setor, envolvendo diversos componentes que dificultam generalização.33 A sigla INUS designa Insufficient but non-redundant parts of a condition which is itself unnecessary but sufficient(Pessoa Jr, 2006). Em tradução literal, partes insuficientes, mas não redundantes de uma condição suficiente, masnão necessária.

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De modo resumido, uma causa suficiente (A) é um evento capaz de desencadear outro

(B), porém, se a causa é suficiente mas não necessária, a existência do consequente (B) não

conduz necessariamente à existência do evento causador (A). Em outros termos, as causas

suficientes têm capacidade de ocasionar um evento, mas não são a única causa possível para

desencadeá-lo, pois a condução necessária do consequente à causa é característica das causas

necessárias.

Em suma, as causas INUS são um tipo de causa suficiente. Sua especificidade reside na

designação de uma multiplicidade de fatores como condições da relação de causa e efeito. Essa

conceituação é adequada para o objeto investigado na presente pesquisa, pois como será

endossado ao longo da exposição, diversos fatores concorreram para a modernização do varejo,

sendo difícil discriminar um deles como a causa por excelência.

Ao levantarmos esses fatores por meio de incursão bibliográfica, foram identificados

dois conjuntos de causas. O primeiro deles, que designamos conjunto A, concerne a fatores extra

econômicos associados à passagem da demanda para as modalidades modernas de varejo. Por sua

vez, o segundo conjunto (B) abarca os dispositivos de redução de custos.

Após exposição dos dois conjuntos de causas, serão destrinchadas as problemáticas a

respeito da modernização do varejo, abrindo caminho para a proposição da problemática

alternativa que informa a presente pesquisa.

1.2.2 Transformações no capitalismo e modernização do varejo (conjunto de causas A)

A primeira causa contribuinte que ocasionou a passagem da demanda para os

supermercados foi a combinação de urbanização e mobilidade urbana, conforme a indicação de

todos os autores consultados (Belik, 1999; Reardon, Timmer e Berdegue, 2004; Carden, 2011;

com destaque para Cleps, 2005; Barata-Salgueiro, 1989 e Pintaudi, 1981). Por sua vinculação

com a criação da integração de mercado, a urbanização e a mobilidade urbana são uma das

principais causas.

Segundo Lefebvre (2011), o desenvolvimento do capitalismo induziu a urbanização,

sendo a mesma condição não só da proletarização, mas também da organização do mercado

interno. A concentração populacional traz consigo a disjunção entre os locais de moradia e os de

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realização de outras atividades, criando um descompasso entre os espaços de residência, de

consumo da força de trabalho, de compra dos meios de subsistência e o de outras atividades de

natureza cultural. Essa condição inclui o problema da mobilidade urbana, entendida como a

capacidade de circulação pelo espaços urbanos, pois, se há há disparidade entre os espaços de

moradia e de outras funções sociais, a mobilidade torna-se imprescindível para a reprodução

social.

A formação dos transportes urbanos coletivos e a generalização do carro foram decisivos

para o problema da mobilidade, já que criaram condições para a circulação pelo espaço urbano

(Barata-Salgueiro, 1989; Cleps, 2005). Essa circunstância eleva a liberdade de escolha dos

consumidores, dado que se torna possível escolher o lugar de compras dentro de uma gama de

opções.34 Em outros termos, deixa de existir o imperativo do vínculo com o comércio local, base

secular do pequeno comércio.35

A combinação de urbanização e mobilidade urbana ocasionou a intensificação das

relações de competição entre comerciantes, pois só então as empresas passaram a oferecer seus

serviços em mercados unificados, cuja característica é a presença efetiva da lei da oferta e da

procura. A presença da lei de mercado é condição para o processo de concentração de

propriedade, constituindo um dos fundamentos da marcha de transição do capitalismo

concorrencial para o capitalismo monopolista. Além disso, mesmo os outros indutores da

modernização do varejo dependem em alguma medida dessa condição, que torna possíveis todas

as demais causas. Apenas para citar um exemplo: todo o segundo bloco de causas, vinculadas à

diminuição de custos, não teria eficácia caso não houvesse concorrência de mercado. Em alguma

medida, todas as causas da supermercadificação dependem dessa condição, o que justifica sua

34 Evidentemente, a presente pesquisa não acredita que exista efetiva liberdade de escolha mesmo no restrito terrenoda escolha de mercadorias. Entretanto, dado o modo de produção capitalista, teorias erigidas sobre os mecanismos demercado possuem algum potencial heurístico. Ademais, no final do capítulo serão endereçadas as críticas aoreferencial neoclássico.35 Essa transição possui implicações para o funcionamento cotidiano do varejo, sobretudo em termos das interaçõesintersubjetivas que ocorrem no seu seio. Segundo Cleps (2006, p .87), antes da modernização do varejo “havia certarelação social entre o cliente e o vendedor que, por sua vez, tinha conhecimento sobre as mercadorias, davaconselhos e sugestões, estimulava os clientes a comprar. Muitos vendedores conheciam seus clientes (...). O auto-serviço trouxe no seu bojo uma relação impessoal que acabou com esse contato social. Hoje, as mercadoriasapresentam características que atraem a atenção dos consumidores, como se elas próprias se auto-comercializassem”.

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qualificação como causa de destacada importância. Em termos mais precisos, a urbanização é

uma condição para a atuação das demais causas.36.

A segunda causa contribuinte é o marketing. A concorrência de mercado faz com que

questões simbólicas associadas ao marketing ganhem maior relevância para a dinâmica das

empresas (Kim, 1999; Reardon, Timmer e Berdegue, 2004; Jia, 2008; Carden, 2011). A existência

de diversas opções de mercado faz com que questões associadas à “confiabilidade da marca”

(Carden, 2011) se tornem mais determinantes para as escolhas. A formação das redes de

supermercados veio acompanhada pelo incremento do montante de investimento em marketing

nos mais variados dispositivos de comunicação (padronização de slogans de acordo com o gosto

do público, divulgação na imprensa de massa, outdoors, etc). Além disso, as redes conseguem

maior adequação a dispositivos técnicos e organizacionais modernos, como inserção de

tecnologias mais avançadas e a padronização no fornecimento do serviço, fatores apontados pela

literatura como relevantes para a escolha do consumidor.

Regra geral, o crescimento do montante de capital investido no marketing cumpre dupla

função: em primeiro lugar, atua na criação de uma cultura consumista, que se vincula às

necessidades gerais da reprodução capitalista. Conforme Harvey (2014), todo incremento na

produção precisa ser complementado com aumento na ponta do consumo, de modo que o padrão

de acumulação massivo típico do capitalismo fordista precisa ser acompanhado do consumo

desenfreado. No setor varejista, não há qualquer especificidade dessa função, que ocorre de modo

idêntico a qualquer ramo da economia capitalista.

Em segundo lugar, o marketing emergiu como produto necessário do crescimento da

concorrência intercapitalista. Dada essa condição, que já se fazia presente no capitalismo fordista

(Harvey, 2014), a disputa do público cumpre papel decisivo para o sucesso da realização do valor.

36 Malgrado sua clareza no campo dos conceitos, nas situações reais as fronteiras entre causas longínquas econdições são de difícil discernimento. Segundo Pessoa Jr (2006), uma condição não tem poder de desencadear umevento, mas sim de torná-lo possível. Em outros termos, condições são as circunstâncias que permitem a atuação decausas sem possuir propriamente o potencial para gerar efeitos. Por seu turno, causas longínquas se caracterizam pelaatuação mediata, i e, pelo seu papel na criação das causas imediatas e efetivas. O único recurso possível é ocontrafactual, o qual na maioria dos casos assume natureza excessivamente especulativa.Para a presente pesquisa, a urbanização e a mobilidade urbana são tanto causas longínquas quanto condições. Sãocausas longínquas pois ocasionaram mudanças no modo de vida (ou cotidiano) das sociedades capitalistas avançadas,criando bases para a transição da demanda em direção aos supermercados; e são condições pois a lei de mercado écondição das causas que operam pela redução de custo, as quais não poderiam ser eficientes sem concorrência demercado.

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Para completar o circuito da acumulação, é necessária a passagem pelo momento da realização do

valor, pois, de outro modo, a mais-valia gerada na produção não assume a forma de lucro real.

Dada a concorrência acirrada, o sucesso na atração de fatias de mercado vira condição de

sobrevivência para o capitalista individual. Como resultado, cresce progressivamente o montante

de valor investido nessas atividades. Também aqui o setor varejista apenas replica tendências

gerais do capitalismo. 37

O crescimento da importância do marketing ocasiona vantagens para os capitais mais

concentrados, já que apenas estes dispõe do montante necessário para fazer investimentos na

formação da marca e no contínuo aperfeiçoamento das lojas ao gosto do público.

A terceira causa contribuinte é a emergência do padrão de consumo típico do capitalismo

fordista-keynesiano (Harvey, 2014). O paradigma da produção massiva precisa vir acompanhado

de consumo massivo, pois o valor produzido precisa se realizar. Assim, o consumismo é produto

necessário do capitalismo (Harvey, 2014; Mészáros, 2002). Além disso, o consumo em massa

necessariamente ocasiona a diversificação dos valores de uso produzidos, pois de outro modo

seria impossível consumir para além das necessidades da subsistência.

As mudanças no consumo ajudam a compreender a transferência da demanda varejista

para o setor supermercadista, pois apenas as modalidades modernas de varejo comportam a

diversidade e a grande quantidade de mercadorias valorizadas pelos hábitos de consumo

emergentes (Belik, 1999; Reardon, Timmer e Berdegue, 2004). Uma expressão disso ocorre na

mudança nos hábitos de compras, que passam a ser realizadas ao longo de períodos de tempo

mais longos. Progressivamente as compras passam a ser feitas dominantemente em frequência

semanal, quinzenal e/ou mensal, restando sua realização diária apenas para produtos altamente

perecíveis.38

37 Talvez sua única especificidade resida na influência geral do marketing no setor: nos demais setores, aspropagandas promovem produtos individuais; por seu turno, a promoção do consumo pelo varejo promove oconsumismo em geral.38 Cabe ressaltar a confluência de sentido entre a mobilidade urbana, a difusão no uso do automóvel e os novoshábitos de compras. Dado que a realização de poucas compras por período de tempo faz necessárias comprasgrandes, os novos hábitos de consumo só se tornam possíveis por meio de incremento na capacidade de circulação,saltando à vista o papel cumprido pelo carro. Por essa razão, segundo Cleps (2005), “o automóvel é considerado pormuitos estudiosos como um dos principais, senão o principal, responsáveis pela redefinição dos locais de compras”.Só com o veículo as compras massivas, diversificadas e concentradas e de pouca frequência se tornarão viáveis.

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A quarta causa contribuinte é o aumento da participação da mulher no mercado de

trabalho (Belik, 1999; Carden, 2011; Reardon, Timmer e Berdegue, 2004). Sob linguajar liberal,

uma entrada preliminar no problema é possível a partir da “elevação do custo de oportunidade”

(Reardon, Timmer e Berdegue, 2004). Essa expressão diz respeito ao aumento da capacidade de o

tempo de atividade das mulheres gerar renda (ou outras benesses). Como o tempo da mulher

passa a valer mais, torna-se menos viável dispendê-lo em afazeres domésticos. Por isso, dentre

outras razões, crescentemente as mulheres optaram pelo trabalho remunerado em detrimento do

trabalho doméstico.

Assim, as mudanças sociais por detrás da promoção da participação da mulher no

mercado de trabalho implicaram simultaneamente a diminuição do tempo de ocupação da mulher

com atividades domésticas. Essa transição criará um problema para sociedades capitalistas-

patriarcais, que supriam a necessidade do trabalho reprodutivo por meio do trabalho doméstico e

feminino não pago (Davis, 2016; Carrasco, 2008).39 Como, em parte, a mulher deixa de suprir

necessidades sociais com seu trabalho no ambiente doméstico, surge a demanda por satisfação

dessas carências por meio da economia social. Como resposta a esse problema, foram dadas duas

soluções: a emergência de serviços públicos (welfare state) e a mercadorização.40 Cada uma à sua

maneira, essas soluções permitiram a satisfação de necessidades sociais por meio de trabalho

social, solucionando em parte o problema criado com a entrada da mulher no mercado de

trabalho. Como será exposto adiante, essa transição influenciou as transformações do varejo.

A satisfação por trabalho social de necessidades antes supridas com trabalho reprodutivo

doméstico é base para o incremento da divisão social do trabalho, que, por sua vez, é fundamento

da formação de novos ramos industriais (Carrasco, 2008; Teixeira, 2008). Para o problema da

passagem da demanda para os supermercados, é especialmente pertinente a industrialização da

produção de alimentos, a qual abarca não só a produção de alimentos processados, mas também a

formação de novas formas de conservação. Segundo Braverman (1987), a formação de

refrigeradores e de outros métodos de conservação em geral cumpriu papel fundamental na

39 Segundo Davis (2016), é esse processo que promove o confinamento da mulher no ambiente doméstico. Emoutros termos, a emergência do capitalismo criou a circunscrição (relativa) da mulher ao ambiente doméstico, sendoas ideologias da feminilidade e da exclusão da mulher do ambiente público em parte resultados dessa transição.40 Acerca da satisfação de necessidades sociais por trabalho social, é necessário um apontamento: esse processo nãosolucionou o problema das hierarquias de sexo nas sociedades capitalistas patriarcais não somente por não terabolido as obrigações das mulheres no âmbito do trabalho reprodutivo doméstico, mas também porque tanto omercado de trabalho quanto o Estado reproduzem hierarquias de gênero. A esse respeito, ver Fraser (2011).

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criação das condições da nacionalização dos mercados. Ademais, a renovação técnica dos

transportes e a melhoria da mobilidade urbana também contribuíram nessa transição, já que

permitiram diminuir o tempo despendido com o transporte, atenuando o problema da

perecibilidade dos produtos.

Essa onda de mercadorização41 contribuiu para a modernização do varejo, pois, como

assinalam Belik (1999) e Reardon, Timmer e Berdegue (2004), parte significativa da demanda

pelo serviço varejista ocupada pelos supermercados ocorre em razão da venda de produtos

alimentícios industrializados e/ou congelados. Paralelamente, mesmo no final do século XX, a

circulação de artigos altamente perecíveis continuou dispersa entre comerciantes de pequeno ou

médio porte (Reardon, Timmer e Berdegue, 2004). Exemplos desta tendência são encontrados

nos gêneros hortifrúti (frutas, legumes e verduras [FLV]), nos serviços de panificação e nas

carnes de corte, cuja realização ocorre em varejões, padarias e açougues de bairro,

respectivamente. Aliás, nesses gêneros os hábitos de compra continuaram a manter maior

frequência, tal como era típico no varejo tradicional. Embora também existam tendências de

concentração de capital na distribuição desse gêneros, regra geral ela continua a fazer-se de modo

descentralizado.42 Uma estratégia para submeter essas atividades ao varejo moderno foi integrá-

las progressivamente nas unidades supermercadistas, estratégia em parte bem sucedida (Belik,

1999).

A capitalização da produção de alimentos foi decisiva para a modernização do varejo,

pois foi pela concentração da venda de produtos industrializados que os supermercados

conseguiram centralizar grande parte da função social do varejo (Reardon, Timmer e Berdegue,

2004; Belik, 1999). De modo contrafactual, pode-se dizer que o processo de concentração teria

sido mais lento caso os supermercados dependessem da centralização das vendas de alimentos

41 Cabe assinalar que o processo de mercadorização que substituiu parcialmente o trabalho doméstico reprodutivopor mercadorias começou na era de ouro do capitalismo, e não apenas no capitalismo flexível, embora a partir dadécada de 70 tenha ocorrido uma acentuação dessa mercadorização.42 As principais tendências da formação de capital nesses setores ocorre pela formação de sistemas de franquias,que já abarca o varejo de FLV e os açougues. Apesar da sua importância, em termos de capitalização do setor e desuperação do domínio da pequena propriedade, o desenvolvimento capitalista ainda não obteve sucesso nessessetores. Nossa hipótese é: a natureza concreta dos processos de trabalho ligados à circulação desses bens torna difícila subsunção real do trabalho ao capital, não permitindo ao capital controlar o modo de produzir e nem incrementarde modo significativo a produtividade. Em outros termos, dada sua natureza concreta, eles são mais dificilmenteadequáveis à valorização do valor. Disso se depreende: a formação das relações capitalistas continuamente recriarelações pré-capitalistas ou relações mercantis (ou relações capitalistas de desenvolvimento intermediário, conformeCavalcante, 2012), conforme assevera Harvey (2014).

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não industrializados. Como enunciado, uma evidência encontra-se na persistência do domínio de

pequenos e médios varejistas nesses gêneros mesmo no capitalismo globalizado.

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Além da vinculação com a passagem da demanda para os supermercados, a liberação

(relativa) da mulher em relação ao trabalho reprodutivo doméstico para que se tornasse “livre

como pássaro” foi fundamental para que houvesse força de trabalho disponível para a

modernização do varejo.43 Ao longo da segunda metade do século XX, o ramo varejista passou

por intenso processo de expansão, o qual envolveu absorção contínua de maiores contingentes de

força de trabalho. Conforme indicado nas figura 2 e 3, na economia estadunidense o setor

comercial progressivamente absorveu maior parcela da força de trabalho: enquanto em 1910 ela

ocupava 10% da força de trabalho, em 1990 ocupava 17,1%; já a parcela combinada da força de

trabalho de varejo e atacado saltou de 17%, em 1919, para 22,5% em 1997.44 Sem a

43 A ideia de que a mulher foi “liberada” do trabalho reprodutivo e, por isso, pôde ocupar posições na economiadiretamente social precisa ser considerada com cuidado para não dar margem a interpretações funcionalistas, comoas que identificam um movimento incontornável de inserção das mulheres no mercado de trabalho comoconsequência da modernização. A razão para tanto é que as necessidades de inserção de novos contingentes de forçade trabalho podem ser supridas por outros grupos socialmente excluídos, inclusive no suprimento de força detrabalho para realização das funções precárias de trabalho, que comumente são designadas às mulheres.44 Nesse ponto, o setor é parte da tendência à terciarização das economias capitalistas desenvolvidas.

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disponibilização de nova força de trabalho no mercado de trabalho, possibilitada pela maior

presença das mulheres nesses mercados, dificilmente essas expansões seriam possíveis.

Porém, o aumento da presença de mulheres no mercado de trabalho não teve papel

apenas na disponibilização de mão de obra em geral no mercado. Para além disso, a divisão

sexual do trabalho direcionou diretamente o contingente feminino para as ocupações nos serviços

em geral, do qual o varejo é parte. Uma parcela das mulheres recém-inseridas no mercado de

trabalho foi alocada diretamente no varejo, que passava por intensa expansão no mesmo período.

A composição de gênero da força de trabalho no varejo é evidência dessa tese, pois, com efeito,

no varejo latino-americano, europeu e norte-americano, a composição da força de trabalho é

dominantemente feminina (ILO, 2015).

De um modo geral, a transição do contingente feminino do trabalho reprodutivo

doméstico para o trabalho social é mediado pelas relações de gênero. A divisão sexual do trabalho

consiste precisamente na “separação e distribuição das atividades de produção e reprodução

sociais de acordo com o sexo” (Holzmann, 2006, p. 102). A distribuição da força de trabalho

responde a recorrências associadas às características de cada formação social. Entre outros

padrões, as mulheres ocupam a maior parte dos serviços de baixa produtividade e aquelas funções

entendidas como femininas pelo sistema de significação. Segundo Helleieth Saffiotti (1976), há

“acentuada tendência para a mão de obra feminina localizar-se no setor terciário das atividades

econômicas nas nações altamente desenvolvidas”.45 A ocupação dos postos de trabalho no varejo

é parte desses processos sociais gerais, sendo dimensão associada da transição rumo às estruturas

de classe pós-fordistas (Esping-Andersen, 1993).46

Portanto, parece consistente a hipótese de que a proletarização do contingente feminino

e supermercadificação são fenômenos associados, seja pela formação de gêneros alimentícios

cuja venda se concentrou nos supermercados, seja pelo assalariamento das mulheres. Ademais,

viu-se também que a urbanização, a mobilidade urbana, o consumismo típico do capitalismo

45 Ainda segundo Saffioti (1976, p. 48): “Nos Estados Unidos, em 1900, 55% dos efetivos femininos se dedicavamàs atividades terciárias, subindo este montante para 70% em 1950; na Bélgica, esta percentagem passa de 49% em1930 a 53% em 1947; na Suíça, eleva-se de 54% em 1930 a 59% em 1950; na Suécia, de 52% em 1930 a 68% em1950; na França, de 28% em 1921 a 47% em 1957”.

46 Como já indicado, os cargos dos supermercados são costumeiramente ocupados por mulheres. No entanto, hádivisão sexual do trabalho de acordo com as normas de gênero também no interior do varejo. Como será exposto, arenovação técnica se distribui desigualmente no interior do varejo. As funções que passaram por mais renovaçãotécnica são dominantemente masculinas, como é o caso dos setores de logística e de análise de sistemas.

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fordista e a ascensão do marketing concorreram para impor demanda às modalidades modernas

de comércio.

Como todas essas mudanças estão imbricadas no desenvolvimento do capitalismo,

justifica-se a afirmação de Tilly segundo a qual “o grau de penetração dos supermercados está

intimamente associado com o nível de renda da nação” (Tilly, 2007a, p. 1). Como nível de renda

e desenvolvimento capitalista são fenômenos relacionados, sendo o primeiro efeito do segundo,

pode-se concluir que quanto maior for o nível de renda, maior será a presença das modalidades

modernas de varejo. Essa tese, já válida a partir da consideração das causas até agora elencadas, é

ainda mais verdadeira quando colocados em questão os dispositivos de redução de custos, tema

da próxima seção.

1.2.3 Os dispositivos de redução de custos (conjunto B)

No que diz respeito à natureza técnico-organizacional, para a abordagem neoclássica a

modernização do varejo emergiu como parte de “tendências de longo prazo do varejo, as quais

são explicadas por combinações de economias de escala e escopo e por economias de densidade”

(Carden, 2011, p. 2). Como essas inovações foram efeito das relações entre oferta e procura

mencionados na seção 1, a reestruturação técnica seria resultado de ações no âmbito

microeconômico. Aquelas inovações que efetivamente diminuíssem custos rapidamente se

irradiariam para todo o setor. Como resultado, as redes que a elas aderissem obteriam sucesso na

disputa concorrencial, replicando o movimentos de destruição criativa (Carden, 2011).

Também aqui mobilizam-se as relações de causalidade de tipo INUS. Houve um efeito

final, a diminuição de custos, que foi desencadeada por diversos fatores. Por si próprios, cada um

deles não seria suficiente para desencadear a mudança tecnológico-organizacional e nem a

redução de custos. Porém, por meio de sua associação, eles formaram uma condição não

necessária, mas suficiente para desencadear a transição. Cada um dos recursos de racionalização

foi uma causa contribuinte da modernização do varejo, visto que determinaram a redução de

custos e contribuíram para a passagem da demanda para os supermercados. Sob outra

terminologia, cada um desses recursos de diminuição de custo pode ser entendido como causa

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longínqua da modernização do varejo, dado que eles geraram uma das causas imediatas da

transição - a dizer, a redução de custos.

Além de causa da modernização do varejo, em parte este conjunto de fatores coincide

com o próprio conceito de varejo moderno. Como enunciado, na acepção da presente pesquisa,

varejo moderno abarca as unidades varejistas nas quais há concentração de propriedade, ou seja,

nas quais há formação de redes. Uma consequência necessária das redes é a evolução da

produtividade, pois, por si sós, as redes permitem ganhos de escala em diversas esferas.47

Ademais, as redes de varejo possuem mais capacidade de investimento, facilitando as inovações

técnicas.

As reduções de custo expostas na presente seção coincidem com esses recursos de ganho

de escala, de escopo e de densidade. Assim, a presente seção apresentará de modo mais

sistemático o conceito de varejo moderno ou, em outros termos, complexificará a definição de

varejo moderno exposta no começo do capítulo.

A primeira causa contribuinte é a concentração de propriedade. Esta, inicialmente, se

corporifica na formação de redes no âmbito de uma cidade, as quais na sequência ocupam regiões

e no final mercados nacionais (Carden, 2011; Tilly, 2007a). O crescimento progressivo do

montante de propriedade é acompanhado de sucessivas transformações qualitativas na estrutura

das empresas, levando-as a vincular-se às demais metamorfoses. Por isso, pode-se dizer que a

concentração de propriedade é a dimensão mais abstrata das transformações técnicas do setor

varejista, já que se faz presente nas outras três. Em outros termos, a concentração de propriedade

é condição das demais causas, visto que dela dependem a capacidade de investimento e de

inovações.

A segunda causa contribuinte é o modelo de autosserviço, que é característico dos

modelos supermercadistas.48 Essa forma de funcionamento das lojas atua duplamente para elevar

a produtividade do trabalho. Em primeiro lugar, ela promove um aumento das vendas, visto que a

“livre” circulação do consumidor pelas lojas torna-o suscetível à sedução da mercadoria; em

47 Ademais, a formação das redes traz para o varejo a tendência à permanente evolução das forças produtivas, temaque será destrinchado no final deste capítulo.48 Ademais, para além do varejo modelos de empreendimento embasados no autosserviço tem se tornadoprogressivamente mais comuns no capitalismo contemporâneo (Koeber, Wright e Dingler, 2012).

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segundo lugar, a objetificação do funcionamento das lojas permite que um menor número de

funcionários seja suficiente para realizar as funções produtivas necessárias.49

Conforme a literatura (Basker, 2015; Carden, 2011), a noção de produtividade do

trabalho é definida com base no montante de renda gerada pelo setor dividido pelo total de

trabalhadores empregados.50 Essa definição de produtividade do trabalho pode ocorrer levando-se

em consideração a renda gerada por trabalhador ou por hora de trabalho. No primeiro caso,

apenas divide-se o rendimento total por trabalhador. Já no segundo caso, divide-se o total de

renda pelo total de horas trabalhadas por todos os trabalhadores.51

A terceira causa contribuinte é a unificação dos dispositivos logísticos, a qual é

diretamente possibilitada pela concentração de propriedade. As funções logísticas consistem no

conjunto de tarefas voltadas para as funções de armazenamento, conservação e distribuição. A

aglutinação ocasiona ganhos de escala impossíveis para pequenos empresários, viabilizando

minoração dos preços finais ou, alternativamente, superlucros aos capitais maiores.

Os depósitos unificados consistem em unidades logísticas responsáveis por diversas

lojas e regiões, detendo abrangência proporcional à concentração das redes e ao seu grau de

penetração em um mercado regional. Essas unidades dão margem à formação de um padrão na

expansão das redes: costumeiramente, inaugura-se um centro logístico em uma região de

potencial de investimentos, para que, na sequência, sejam abertas lojas dentro do seu raio de

distribuição. A capacidade de esse dispositivo operar decréscimos de custo ocasiona sucesso na

disputa concorrencial, permitindo centralização da demanda pelo serviço de varejo. A mera

possibilidade de entrada de uma grande empresa num mercado local pode ser fator suficiente para

49 O tema do autosserviço e do trabalho será retomado no capítulo 4.50 Essa noção de produtividade é reificada, pois ela confunde produtividade do trabalho com a renda realizada pelossupermercados. Como a renda do varejo é criada por meio do montante de vendas, nesses rendimentos influemtambém fatores extraeconômicos que passaram a demanda para os supermercados. Por essa razão, torna-se difícilatribuir essa variação de rendimento ao trabalho sem intervenção de diversas mediações. Porém, apesar dainsuficiência dessa definição, não há condições de sustentar uma proposição alternativa por ora, já que identifica-sediversos problemas de difícil resolução. Com efeito, o conceito de produtividade do trabalho na acepção de Marx(2013) é de difícil mobilização para o setor comercial em geral. Por essa razão, identificamos produtividade dotrabalho com de rendimento gerado por trabalhador, a qual, de todo modo, serve como expressão do grau deracionalização do trabalho no setor.51 A respeito, ver especialmente Basker, 2015

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que as pequenas empresas ou redes vendam suas propriedades, fazendo com que a disputa de

mercado acabe antes mesmo de começar de fato.52

Outra vantagem concorrencial da logística centralizada consiste na capacidade de

acelerar a velocidade de circulação das mercadorias. Como concentram a função de logística de

várias lojas e como operam com sistema de gestão unificado, a logística centralizada viabiliza

diminuição do montante total de capital cristalizado sob a forma de estoques. Conforme assevera

Harvey (2014; 2013), esse ponto é especialmente influente para a dinâmica da acumulação, posto

que incide sobre o tempo de rotação do capital, interagindo com a taxa de lucro. Quando o

montante de investimentos em capital fixo diminui sem que o quantum de lucro realizado mude,

opera-se um ganho proporcional no valor do lucro diante do total de capital investido, ou seja, se

realiza um aumento na taxa de retorno dos investimentos.53

A quarta causa contribuinte é a centralização das funções administrativas, tais como as

operações financeiras, de planejamento e de negociação comercial. Como em todas as outras

esferas, essa centralização ocasionou ganhos de escala, acarretando vantagem concorrencial. A

única especificidade das funções administrativas é quantitativa: dada sua natureza, é mais fácil

concentrar as funções de diversas lojas em um único departamento (Braverman, 1987).

Além disso, em razão da especificidade da função comercial, a centralização das funções

administrativas trouxe outras vantagens. Centros administrativos funcionando por meios de

comunicação modernos permitem a criação de vínculos com número maior de fornecedores,

tornando possíveis duas consequências: o incremento da diversidade de mercadorias oferecidas

pelas redes e o aumento na regularidade do fornecimento. Consequentemente, a diversidade e a

regularidade, vantagens que sempre acompanharam os supermercados, se tornaram benefícios

mais significativos à medida que as empresas cresceram.

A combinação dos fatores supracitados desencadeou ganhos significativos de

produtividade e a transformação da estrutura técnica do varejo. Como resultado, formou-se

processo de retroalimentação positiva: cada inovação técnica permitiu ganho de competitividade

52 Apesar da importância das aquisições, no mercado estadunidense o principal dispositivo de concentração depropriedade é o crescimento progressivo, sendo as aquisições o segundo principal recurso (Foster et al, 2015). Aindanão foram encontrados estudos equivalentes para outros mercados nacionais.53 Como assinalam Duménil e Levy (2005), a taxa de lucro é categoria decisiva para a dinâmica da economiacapitalista e, portanto, seu incremento ocasiona uma aceleração da acumulação de capital, sempre que combinadacom outras circunstâncias de mercado. O tema será retomado no capítulo 3.

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para as empresas e, ao fazê-lo, permitiu-lhes ocupar maior parcela do mercado. Por sua vez, a

conquista de mercado criou as condições para o avanço das inovações técnicas. A culminação

desse processo é a revolução do varejo (Lichtenstein, 2006; Carden, 2011), que será tema do

próximo capítulo.

Do ponto de vista das lojas, esse processo resultou em constante incremento de tamanho,

que se expressou não somente no aumento progressivo do tamanho médio das unidades varejistas

(Carden, 2011), mas também na tendência à mudança dos tipos de loja predominantes. Os

modelos supermercadistas, cujo tamanho médio cresceu exponencialmente, tornaram-se

predominantes e, junto a essa expansão, formaram-se modalidades supermercadistas maiores,

como os hipermercados. A esse respeito, a figura 4 traz uma ilustração significativa, pois ela

mostra que o número de lojas de descontos na economia estadunidense saltou de 1340 em 1960

para 9700 em 1997, realizando um aumento de 623% nesse intervalo de 37 anos.5455

54 Os dados da figura 4 tornam-se ainda mais surpreendentes se vistos à luz da figura 5, pois percebe-se que nãoapenas mudou o panorama das lojas, cuja magnitude aumentou. Além disso, pode-se identificar que houve massivacentralização de propriedade, pois, ao mesmo tempo em que as empresas descontistas dominaram o setor varejista,algumas empresas centralizaram as lojas varejistas. Com efeito, a figura 5 mostra que o número de empresasdescontistas caiu de 1050 em 1960 para 200 em 1997. Ao mesmo tempo em que houve crescimento de 623% nonúmero absoluto de lojas de descontos, o número de empresas descontistas experimentou queda de cerca de 79%.

55 Os dados da figura 4 tornam-se ainda mais surpreendentes se vistos à luz da figura 5, pois percebe-se que nãoapenas mudou o panorama das lojas, cuja magnitude aumentou. Além disso, pode-se identificar que houve massivacentralização de propriedade, pois, ao mesmo tempo em que as empresas descontistas dominaram o setor varejista,algumas empresas centralizaram as lojas varejistas. Com efeito, a figura 5 mostra que o número de empresasdescontistas caiu de 1050 em 1960 para 200 em 1997. Ao mesmo tempo em que houve crescimento de 623% nonúmero absoluto de lojas de descontos, o número de empresas descontistas experimentou queda de cerca de 79%.

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Além disso, na década de cinquenta forma-se uma nova e importante estratégia de

funcionamento das redes varejistas: o sistema de descontos. A emergência do varejo moderno

viabilizou a formação de uma estratégia de competição agressiva, denominada sistema de

descontos. Ela se define pela tática de diminuição do montante proporcional de lucro por

mercadoria vendida, a qual seria compensada pelo aumento das vendas. Esse preceito é inviável

para capitais pequenos, na medida em que a própria subsistência dos proprietários representa uma

fração considerável da renda arrecadada. Por isso, essa estratégia torna-se mais executável à

medida que o capital se centraliza.56 A essência desse estratagema consiste na alteração de preços

com vistas à obtenção de sucesso competitivo, o que ocasiona a bancarrota dos concorrentes (às

vezes sob a forma de aquisições) e o aumento de participação no mercado. Essa estratégia será

elaborada na década de cinquenta e desenvolvida na de sessenta, cuja história se confunde com a

formação dos gigantes do setor, tais como Carrefour, Kmart, Walmart, AEON, Tesco, entre

outras.

O modelo de descontos terá função importante na modernização do varejo, pois o

desenvolvimento desse sistema guardará relação com algumas transformações estruturais do

56 Essa dimensão da concentração de capital, que permite a liberação da mais-valia em relação ao imperativo dasubsistência de seu proprietário, é exposta de modo arguto por Marx (2013 [1867]).

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capitalismo de sociedades capitalistas desenvolvidas. O modelo de descontos permitiu a

generalização do princípio do consumo massivo das sociedades capitalistas desenvolvidas,

viabilizando o avanço do amplo processo de mercadorização típico do capitalismo fordista. Esse

modelo de varejo ocasionou significativo barateamento dos produtos oferecidos ao consumidor

final, devido seu sucesso na racionalização dos recursos e à estratégia de descontos. Como

resultado, tornou-se viável o acesso ao mercado de consumo por setores de baixo rendimento,

operando uma mudança em relação à tradição do varejo moderno, que costumeiramente se

caracterizava pela venda para as classes médias (Reardon, Timmer e Berdegue, 2004). A

formação do sistema de descontos cumpriu seu papel na reversão desse estado de coisas,

permitindo o avanço da integração social via consumo no mercado.57

Inicialmente a formação do varejo moderno teve vigor nos EUA da década de cinquenta,

sendo mimetizado em outros países apenas a partir da década seguinte. Nos demais países de

capitalismo desenvolvido (Japão, França, Países Baixos, Alemanha) a transição rumo ao varejo

57 Não por acaso, após a década de sessenta todas as maiores empresas do setor serão empresas de descontos(Walmart, Kmart, Carrefour, Tesco, etc). Embora o sistema de descontos seja um modo específico de se operar omoderno varejo, ele repercutiu na própria modernização do varejo como fenômeno geral.

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moderno se consumou nos anos 1960. As maiores empresas dos países de capitalismo

desenvolvido rapidamente emularam a anatomia técnica e organizacional desenvolvida pelas

companhias americanas, rumando em sua direção com vigor maior do que no processo de sua

formação originária.

Exposto o conceito de varejo moderno, serão tratadas brevemente algumas

problemáticas a respeito desse processo social.

1.3. Problemáticas a respeito da modernização do varejo

Como exposto, a modernização do varejo se caracteriza por um conjunto de

transformações intrínsecas à história do capitalismo do século XX. Ademais, viu-se que a

revolução do varejo é composta por alguns eixos inseparáveis: simultaneamente, ela representa

mudanças técnico-organizacionais, crescimento das redes e expansão das modalidades modernas

de varejo.58

Apesar da sua simplicidade, a modernização do varejo é um processo inerentemente

polêmico e controverso. Com efeito, toda interpretação de fenômenos histórico-sociais é

informada teoricamente, uma vez que os próprios termos mobilizados são a priori carregados de

significado político e ideológico (Alexander, 1986). Como a sociedade convive com pluralidade

ideológica, não é possível identificar um fenômeno sem fazê-lo de forma determinada e parcial.

No caso da modernização do varejo, pode-se organizar a bibliografia em torno de dois juízos

valorativos, os quais configuram blocos com posicionamentos teóricos e ideológicos

parcialmente idênticos.

O juízo valorativo positivo se assenta na importância da racionalização do setor, que se

expressa sobretudo nas economias de custos com a logística e com o trabalho nas lojas. Dessa

racionalização são extraídas implicações associadas à viabilização do acesso ao mercado de

consumo e à influência no desempenho econômico geral.

O acesso ao mercado consiste no aumento do poder de compra de toda a sociedade, o

que beneficiaria sobretudo as camadas mais pobres (Vedder e Cox, 2006; Gereffi e Christian

2009). Como a modernização do varejo permitiu economias de custo, ela desencadeou

58 A respeito da correlação desses eventos, ver fig. 4 e 5.

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barateamento dos produtos finais e, consequentemente, ganhos na capacidade de compra do

dinheiro. Esse efeito se faria presente mesmo para os trabalhadores que perderiam em salários,

pois se, por um lado, o trabalhador perde em salários, por outro, ele ganha na capacidade de

consumo. Um salário menor é mais significativo se seu poder de compra é maior. Assim, a

modernização do varejo implicaria democratização do acesso ao mercado de consumo e elevação

dos padrões de vida de toda a sociedade em geral.

Ademais, o barateamento dos produtos teria como resultado o incremento do consumo,

contribuindo indiretamente para o ganho no desempenho econômico geral (Texto ILO, 2006).

Com produtos mais baratos, a sociedade consome mais (Strasser, 2006), ocasionando aumento da

demanda agregada e, consequentemente, melhores condições para os investimentos. Além disso,

com esse argumento, consegue-se justificar possíveis ônus da modernização do varejo para os

trabalhadores: se é verdade que ela gera diminuição dos postos de trabalho e intensificação do

trabalho, o que é indissociável do ganho de produtividade, também seria fato que o incremento do

consumo implicaria geração de empregos em outros ramos da economia. Assim, mesmo aqueles

trabalhadores que perdessem seus empregos em razão da renovação técnico-organizacional

seriam indiretamente beneficiados (ILO, 2006, 2015).

Além disso, há duas outras razões para a associação entre modernização do varejo e

incremento do desempenho econômico geral. A primeira (e mais evidente) consiste na maior

eficiência do varejo moderno em relação ao tradicional. Dado que o varejo moderno aumenta a

produtividade do trabalho, ele impacta em ganhos de produtividade na economia como um todo,

criando condições para a elevação da taxa de lucro geral e para aceleração do crescimento

econômico.59 Esse argumento seria reforçado pela experiência dos ganhos de produtividade no

setor varejista durante a década de 1990, quando esses ganhos foram fundamentais para a

retomada do crescimento. Segundo Gereffi e Christian (2009), parte significativa dos ganhos de

produtividade conquistados na economia norte-americana no período decorreram das inovações

no setor varejista.

A segunda razão decorre da melhor posição de mercado das redes com presença de

maior amplitude. Empresas maiores tendem a possuir melhor visão de mercado e melhor

59 O tema da importância da variável produtividade do trabalho para o desempenho econômico geral serádesenvolvida no capítulo 2.

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vinculação com o mercado de crédito, fazendo-as aumentar a capacidade de investimento do

setor e a incrementar a capacidade geral de alocação de capital da economia (Vedder e Cox, 2006;

Gereffi e Christian, 2009). Por esses motivos, as redes impulsionariam os investimentos e

criariam distribuição equilibrada da divisão social do trabalho. Parte desse processo é sua maior

capacidade de integrar fornecedores no mercado, aumentando suas oportunidades e contribuindo

para o incremento da produtividade geral do trabalho pela via do aperfeiçoamento da divisão

social do trabalho (Reardon, Timmer e Berdegue, 2004).

Como se pode notar, o juízo valorativo positivo assenta-se fundamentalmente em

motivações econômicas. Resumindo o argumento ao máximo, ele consiste na associação entre

ganho de eficiência econômica e geração de benesses para toda a sociedade. Ao fazê-lo, respalda-

se no topos da quantidade,60 já que a reorganização do setor seria benéficas para a maioria da

população. Ademais, o argumento neoclássico se respalda na assunção da vinculação intrínseca

entre elevação de padrões de vida e consumo via mercado.61 Em razão dessa assunção, torna-se

viável a mobilização do argumento da causalidade para defender a necessidade da modernização

do varejo: como a racionalização do setor implica barateamento, ela incrementa o consumo,

sendo por isso fonte de elevação dos padrões de vida.

No que tange à interpretação do processo, como já exposto, os autores neoclássicos

identificam a modernização do varejo como produto combinado da ação das forças de mercado e

da resultante combinação de economias de escala, escopo e densidade (Carden, 2011). Essa

abordagem geral se respalda numa perspectiva científica de cariz positivista. Os intérpretes

neoclássicos da modernização do varejo identificam as transformações no setor do mesmo modo

que interpretam todo evento econômico, o que é possível pelo modelo nomotético-dedutivo

sustentado pelos neoclássicos.

Segundo essa problemática, a natureza de eventos particulares pode ser compreendida à

luz de leis gerais, as quais lançam os fundamentos para os eventos concretos. Por meio de

60 Segundo Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005), o lugar da quantidade é um dos principais moldes discursivos,abarcando todo tipo de argumento que se vale de uma quantidade, seja maior número pessoas representadas oubeneficiadas, seja um maior tamanho, etc. 61 Ao fazer essa redução de possibilidades, a abordagem neoclássica realiza um argumentum ad ignorantiam, que secaracteriza pela imposição de uma tese e pelo encerramento da discussão. Segundo Fiorin (2015), uma daspossibilidades de argumentum ad ignorantiam consiste na exigência de que “o adversário aceite uma tese por falta deuma alternativa viável: [de modo que,] como não existe [outra] alternativa viável” para solucionar um problema,deve-se aceitar uma proposta concreta existente, a qual supostamente seria a única alternativa (cf. Fiorin, p. 178-9).

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raciocínios dedutivos, os modelos hempelianos62 inferem logicamente a natureza de eventos

particulares, ou seja, eles partem de afirmações universais para explicar fenômenos específicos

(Audi, 1999). Traduzida para a economia, essa abordagem identifica a articulação entre sujeitos

racionais que interagem por meio das leis de mercado, resultando em constantes inovações

técnico-organizacionais e tendência à melhoria da organização da sociedade como um todo. As

mesmas leis que presidem o funcionamento econômico geral o fazem no âmbito dos setores

particulares. Assim, oferta e demanda e a busca da maximização do ganho explicam tanto a

dinâmica econômica geral quanto cada setor em particular.

Essa modalidade de apreciação do problema possui um ponto de partida idealista, pois

concebe as mudanças como produto da ação das empresas (e/ou dos consumidores), designando

esses papéis de protagonismo sem fazer menção à dinâmica histórica do capitalismo, que não só

confina o comportamento dos agentes dentro de certos limites, como também os coage à

adequação a normas sociais. No que tange à renovação técnica, o grau de desenvolvimento geral

da técnica, bem como sua capacidade de adaptação para fins específicos, estabelecem limites

técnicos para as inovações; no que se refere às inovações, há uma especificidade social específica

ao capitalismo que impele os agentes à constante inovação.

Essa tradição neoclássica é refém da reificação, uma vez que aceita acriticamente como

premissas as formas econômico-sociais específicas do capitalismo (forma mercadoria e forma

capital), bem como os comportamentos determinados pela lógica social dessas formas. Por meio

desse recurso, pode-se assumir sem explicação que a sociedade é composta por agentes racionais

que buscam maximizar seus ganhos, daqui resultando a constante renovação técnica, que por isso

é naturalizada. Paralelamente, esse processo quase natural beneficiaria toda a sociedade. Ainda

que alguns fossem prejudicados no curto prazo, em termos gerais e no longo prazo todos se

beneficiariam. Por esses meios, a problemática neoclássica legitima a modernização do varejo.

Por seu turno, o juízo crítico tem dois eixos. Um deles tendo como base à crítica à

emergência da sociedade do consumo, que teria como resultado a criação de um modo de vida

insustentável do ponto de vista ideológico. Segundo Strasser (2006), o papel da revolução no

62 Segundo Audi (1999), os modelos hempelianos se consagraram como um dos principais recursos metodológicosdas ciências naturais no século XX, tendo sido parte da renovação do positivismo na forma do empirismo lógico.Eles consistem na formulação de modelos teóricos gerais que deduzem a natureza de fenômenos particulares a partirde leis universais. Assim, inferindo a que tipo de lei um fenômeno particular está ligado, ou seja, qual o tipo defenômeno do qual se trata, é possível mobilizar leis gerais que explicam cada uma das suas partes constitutivas.

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varejo, e sobretudo das transformações recentes, com a expansão da gigante Walmart,

contribuíram decisivamente para criar um novo panorama de práticas de consumo, o qual seria

inviável do ponto de vista da reprodução sustentável dos ecossistemas.

O segundo eixo centra-se sobretudo no ônus das transformações do varejo para o

trabalho, dividindo-se em dois argumentos. O primeiro consiste na associação entre concentração

de propriedade e deterioração das condições do emprego no interior das redes, que se expressa na

deterioração das condições de trabalho e dos contratos de trabalho (Gupta, 2013; Lichtenstein,

2006; Rosen, 2005). O segundo consiste na associação entre as redes globais de varejo e as

cadeias de fornecimento, que, em razão da pressão imposta pelo capital varejista, reproduzem

trabalho precário (Lichtenstein, 2006; Rosen, 2005).

A deterioração das condições de trabalho divide-se em dois eixos, os quais são

associados: intensificação do trabalho e perda de autonomia do trabalhador (Gupta, 2013; Rosen,

2005).63 Segundo Rosso, o “termo intensidade do trabalho designa o conjunto de tarefas que um

determinado trabalhador executa em dado período de tempo e o consequente esforço requerido da

pessoa para essa execução” (Rosso, 2006, p. 166).64 Por isso, abstraindo outros fatores, “quanto

maior a intensidade, mais resultados do trabalho são obtidos no mesmo período de tempo”

(Rosso, idem, p. 166). Assim, como a intensificação do trabalho consiste no aumento do fator

intensidade do trabalho, ela ocasiona aumento da produtividade do trabalho e aumento do esforço

necessário da parte do trabalhador.

Por sua vez, a autonomia “remete a uma vasta gama de valores e experiências sociais

que têm como centro o princípio da livre determinação do indivíduo, de um grupo específico ou

de um conjunto político maior” (Cattani, 2006, p. 43). No que tange às relações de trabalho, o

princípio da autonomia se refere à capacidade de o trabalhador definir o modo de produzir, ou

seja, o conjunto de tarefas concretas que caracterizam um processo de trabalho e ritmo de sua

execução. Logo, a perda de autonomia consiste na alienação do produtor em relação ao modo de

produzir no qual está implicado.

A perda de autonomia é intrínseca às relações de trabalho nas quais há antagonismo de

classe, pois quando o produtor trabalha para outrem é necessário que haja controle sobre o

63 No presente capítulo, a entrada nos temas será preliminar. Eles serão retomados no capítulo 4.64 Grifos no original.

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trabalho para manter a produtividade em níveis elevados.65 Por excelência a perda de autonomia

é um produto da organização do trabalho feita em concordância com os princípios tayloristas de

gestão. Segundo Braverman (1987), a essência da gerência científica consiste na passagem do

modo de produzir para os gerentes, que representam os interesses capitalistas no processo de

trabalho. Com isso, o conhecimento sobre o processo de trabalho, que antes ficava difuso entre os

trabalhadores, passa a concentrar-se na gerência. Com isso, a gerência passa a controlar o ritmo

de trabalho, além de adquirir o poder de reorganizar os processos de trabalho com vistas à

parcialização das funções e diferenciação entre trabalho manual e intelectual. Em razão dessas

circunstâncias, ocorrem simultaneamente algumas transições no processo de trabalho: à medida

em que o trabalhador individual perde autonomia, o controle do modo de produzir passa para o

capital e ocorre intensificação do trabalho. Em paralelo aos ganhos de produtividade, a condição

do trabalhador se degrada. Na leitura de diversos autores (Lichtenstein, 2006; Gupta, 2013;

Rosen, 2005) as relações de trabalho no varejo têm se caracterizado por essas tendências.

Também a deterioração das condições dos contratos de trabalho abarca duas dimensões.

Em primeiro lugar, ela significa deterioração de salários e de outros benefícios associados, como

planos de saúde. Diversos estudos (e.g, Gupta, 2013; Rosen, 2005; Gereffi e Christian, 2009,

Lichtenstein, 2006) têm sustentado a tese de que há associação entre a formação das grandes

redes varejistas e a deterioração dos salários. Em segundo lugar, ela significa avanço de formas

de contratação flexíveis, como contratação por jornadas de trabalho em tempo parcial, contratos

temporários e contratos sem jornada de trabalho com horários pré-fixados. Embora em alguns

casos a flexibilização possa interessar ao trabalhador, parte significativa dos casos ocorrem contra

a vontade do trabalhador (ILO, 2015). Ademais, como têm defendido ampla literatura crítica da

reestruturação produtiva, em geral a flexibilização dos contratos de trabalho é forma de

precarização das condições de trabalho em geral (Antunes, 2009; Marcelino, 2011). Segundo

Carré et al (2008), a principal tendência do mercado de trabalho no varejo nas últimas décadas é a

flexibilização.

65 A respeito das relações entre antagonismo de classe e a necessidade de incremento do controle sobre o trabalho,ver Cavalcante (2012). Resumindo o argumento, pode-se dizer que sociedades atravessadas por contradição de classenecessariamente precisam de funções intelectuais do trabalho para garantir um grau mínimo de intensidade eprodutividade do trabalho. Porque o trabalhador não produz para si, mas para uma classe apropriadora, sãonecessárias atividades que garantam que haverá alta produtividade.

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Do ponto de vista das cadeias de fornecimento, a precarização do trabalho ocorre como

subproduto da relação de mercado desfavorável entre fornecedores e grandes empresas varejistas.

Como as empresas se situam em condição de oligopsônio diante de fornecedores que concorrem

em mercados nacionais e internacionais, a pressão pela redução de custos ocasiona degradação do

trabalho.66

Segundo Gupta (2013), se é verdade que as grandes empresas varejistas baratearam

preços, também é verdade que deterioraram as condições de trabalho para setores inteiros da

economia.67 Os autores críticos propõem um argumento baseado na inclusão, de acordo com o

qual “se transfere propriedades da parte para o todo” (Fiorin, 2015, p. 128) ou quando “o que vale

para as partes vale para o todo” (idem, p. 128). Em outros termos, eles defendem que não há

separação entre as dimensões positivas das transformações do setor (e g. barateamento de custos)

e as negativas (implicações negativas do ponto de vista do trabalho), mas que essas dimensões

negativas pertencem ao fenômeno como um todo. Se o moderno varejo reproduz trabalho

precário, ele é um fenômeno negativo. O barateamento de produtos finais não seria condição

suficiente para reverter essa avaliação negativa.

Além dos argumentos em torno do trabalho, alguns autores sustentam a relação entre

renovação técnica do varejo e promoção da ideologia consumista (Strasser, 2006; Gereffi e

Christian, 2009). De acordo com esse argumento, a finalidade do barateamento não seria o

aumento do bem estar da sociedade, mas a criação de condições para geração de lucro das

empresas. Ademais, como resultante, a promoção do consumo em massa seria uma das principais

causas da crise ambiental pela qual passa o mundo contemporâneo. Assim, não seria justificada a

defesa da promoção do consumismo, pois ele seria base de uma crise humanitária que não seria

compensada por melhora no desempenho econômico.

Apesar da nossa concordância com os argumentos da problemática crítica, será

apresentada uma problemática distinta para as transformações do varejo. Os motivos para tanto

são dois. Em primeiro lugar, todos os autores consultados apenas fazem menção às

transformações do setor no capitalismo contemporâneo, quando emergiram redes varejistas de

66 O tema será retomado no capítulo 2.67 Além da crítica através do trabalho, o bloco crítico possui registro que atesta a unidade da modernização do varejoe da cultura do consumismo. Assim, a transformação do varejo promoveu o reforço dessa forma de controle social, aqual, no contexto do capitalismo flexível, veio a gerar uma crise ambiental.

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anatomia mundial, como o Walmart, Tesco, Carrefour, etc. Já a presente pesquisa pretende

apontar para algumas características gerais da modernização do varejo, que seriam anteriores às

transformações recentes. Apesar da abrangência desse processo social, é possível a realização de

algumas conclusões de ordem geral, como poderá ser identificado na seção seguinte. Com efeito,

muito do que os autores veem como específico do varejo controlado por corporações mundiais na

verdade é apenas expressão de tendências gerais do capitalismo. Em segundo lugar, as

problemáticas identificadas não trabalham com referenciais teóricos de classes sociais, muito

embora tangenciem o problema dos conflitos de classe no setor. Por sua vez, a problemática

proposta na presente pesquisa coloca as classes sociais como parte intrínseca da modernização do

varejo.

Adiante serão enunciados os termos dessa problemática.

1.4. Modernização do varejo e acumulação de capital

No registro da presente pesquisa, o referencial marxista da acumulação de capital (Marx,

2013) permite uma contribuição ao debate da modernização do varejo. Conforme exposto, há

diversos determinantes que iluminam essa transição, os quais foram divididos em dois conjuntos

de causas: o primeiro (conjunto A) associado a mudanças sociais amplas no capitalismo do século

XX, que fizeram com que a demanda se transferisse para os supermercados; e o segundo

(conjunto B) vinculado aos motivos econômicos ligados à busca por produtos mais baratos. Essa

distinção é importante por permitir afastamento de uma explicação economicista da transição, a

qual localizaria apenas nas reduções de custo a causa última para a modernização do varejo, o

que facilitaria a mobilização do conceito de acumulação de capital.

Entretanto, mesmo sob essa complexificação, a chave analítica da acumulação de capital

mostra-se um caminho profícuo para o entendimento da transição em direção ao moderno varejo,

pois quase todos os fatores não econômicos expostos se tornaram benefícios para as grandes

empresas em detrimento das pequenas, reproduzindo o movimento tipicamente capitalista de

expansão em espiral ascendente.68 Embora essa chave marxista tenha como finalidade a

interpretação da dinâmica estrutural da economia de sociedades capitalistas, identifica-se

68 Em outros termos, a acumulação de capital no varejo ocorreu desencadeando retroalimentação positiva.

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aplicabilidade da categoria para interpretar a concentração de capital no setor varejista, mesmo no

que tange aos determinantes não econômicos. No que diz respeito à questão da economia de

custos, essa validade é ainda mais evidente. Ademais, esse conceito lança luz à natureza de classe

do processo, ligando-o a tendências mais gerais da estrutura social de sociedades capitalistas.

Embora sejam intimamente associados, os conceitos de concentração e de centralização

de capital não coincidem. Segundo Marx (2013), a concentração de capital consiste no processo

de integração de força de trabalho e de meios de produção à forma social capital, coincidindo

com o próprio processo de formação e desenvolvimento do modo de produção capitalista. Por sua

vez, a centralização de capital consiste na passagem da riqueza já sob forma capitalista para as

mãos de poucos proprietários, sem alterar a quantidade da riqueza social já nessa forma. O

entrelaçamento entre os conceitos é íntimo, pois a formação do capitalismo necessariamente

implica algum grau de centralização de capital, ou seja, não poder haver concentração de capital

sem que haja ao mesmo tempo algum grau de centralização. Além disso, a própria centralização

de capital é alavanca para a acumulação, já que capitais mais centralizados possuem mais

capacidade de investimento e, consequentemente, de inovação tecnológica (Marx, 2013). Apesar

da fluidez das fronteiras, analiticamente a distinção é importante, pois aponta para dispositivos de

natureza distinta.

A concorrência é o ponto de partida tanto da concentração quanto da centralização de

capital, uma vez que os capitalistas competem e, consequentemente, conquistam parcelas

diferenciadas da demanda. Como a concorrência de mercado é intrínseca à forma mercadoria, o

capitalismo convive com a permanente propensão à concentração e centralização de capital. A

formação das redes e de empresas de anatomia nacional corresponde a essa tendência no âmbito

do varejo. Pintaudi (1981) desenvolve essa tese, apontando sua conexão para com o

desenvolvimento do modo de produção capitalista. Segundo a autora:

(...) o supermercado, sem sombra de dúvida, foi uma das respostas encontradas na esferada troca de mercadorias para atender às necessidades da produção e do própriocomércio, ao reduzir significativamente os custos no sistema de vendas ao consumidor,permitindo o superlucro para os capitalistas do comércio que optaram por este tipo deempreendimento (pelo menos inicialmente). Assim, no modo capitalista de produção osupermercado surge no processo de concentração e centralização do capital, comoresposta às necessidades de lucro, e, no seu desenvolvimento histórico, tende tambémaos processos de concentração e centralização. (Pintaudi, 1981, p. 52, apud Cleps, 2005)

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Acompanhando a sugestão da autora, será explorado o elo entre dois processos: por um

lado, o conjunto de transformações tecnológicas e organizacionais que caracterizam a

modernização do varejo, as quais foram sumarizadas anteriormente e cuja expressão é o

florescimento dos supermercados; por outro, o desenvolvimento da relação social capitalista no

setor varejista. Os dois processos são dimensões de um composto único e contraditório de

metamorfoses. Como relação social que estrutura o capital como sujeito histórico, o capitalismo

precisa promover contínuas mudanças a fim de criar a base técnica adequada à sua natureza

expansiva. Por sua vez, cada condição atingida é apenas novo limite a ser transcendido, de modo

que a base técnica revolucionada torna-se ponto de partida das novas transformações. Nesse

sentido, há uma relação dialética entre forma social e forma concreta do trabalho, em que uma

alimenta as mutações da outra.69

De acordo com esse referencial teórico, a acumulação de capital foi determinante

estrutural das mudanças do setor varejista, de modo que a trajetória exposta tanto seria impossível

quanto desnecessária caso não vigorasse o impulso de transcendência imanente ao capital. Sob

esse prisma, a transformação do setor em nicho de valorização do valor70 não apenas provocou as

mudanças expostas, como também deu vida a uma tendência permanente de reestruturações

tecnológicas e organizacionais, as quais seguem seu curso com as recentes inovações dos

gigantes mundiais do varejo. O referencial teórico da acumulação de capital designa a natureza

histórica específica dessas transformações, que não decorrem de nenhum processo natural

inevitável e tampouco da ação racional de agentes em abstrato.71 Sem essa chave analítica, torna-

se impossível a designação da causa do impulso imanente para as mudanças tecnológicas. Com

efeito, a literatura neoclássica “soluciona” esse problema tomando o homo economicus como

premissa teórica, o que lhe permite pressupor como natural a tendência ao desenvolvimento

69 Essa dimensão da lei do valor de Marx é profundamente analisada por Postone (2007). Braverman (1987)também é referência importante para enfrentar esse problema. O tema será retomado nos capítulos 3 e 4.70 Quando é mencionada a valorização do valor no setor comercial não se está ignorando as diferenças entre asfunções produtivas e improdutivas do capital, as quais são parte inseparável da teoria do valor-trabalho de Marx.Apenas está sendo feita menção ao fato de que com a formação de empresas capitalistas no setor, passam a ocorrerinvestimentos com vistas à apropriação de lucro. O problema da natureza da valorização do valor no setor comercialserá tratado no capítulo 3.71 Com essa consideração nosso estudo não desconsidera a importância das teorias erigidas sobre ao paradigmasociológico (e/ou econômico) da ação social, uma vez que tais teorias trazem luz à outras dimensões dos fenômenos.Contudo, nosso registro frisa a natureza histórica-estrutural das transformações, que sempre ocorrem quando háformação da relação social capitalista em algum ramo da economia. Para uma síntese a respeito das formasmercadoria e forma capital como determinantes de formas de consciência e de ação social, ver Postone (2007).

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técnico. Por sua vez, o referencial marxista designa a natureza historicamente específica dessa

tendência, que é determinada pela relação social capitalista.

Assim, na perspectiva do presente estudo, a modernização do varejo é, na verdade, a

transformação capitalista do varejo. Por isso, na problemática adotada modernização do varejo e

transformação capitalista do varejo são expressões intercambiáveis. Em outros termos, quando

falamos em modernização do varejo tratamos da formação da relação social capitalista no setor,

bem como da criação da base técnica adequada à acumulação de capital.

Como resultado dessas tendências, a racionalização capitalista do setor se materializou

na formação das redes. A expansão das modalidades modernas de varejo é inseparável da

formação das redes, que implica a formação da relação social capitalista no setor. Logo, não há

expansão das modalidades modernas de varejo sem formação da tendência à permanente

racionalização capitalista e aos conflitos de classe.

A natureza imanente-transcendente do capital possui ligação com os temas do trabalho e

das classes sociais, pois parte significativa dessas mudanças concerne ao impulso de

racionalização do trabalho, cuja finalidade é a intensificação do domínio do capital sobre o

trabalho. No presente trabalho, questiona-se a respeito desse problema do ponto de vista da

proletarização do trabalho, ou seja, se o revolucionamento técnico do setor ocasionou a

transformação dos seus assalariados em proletários. Antes de inserir o problema, será feita

incursão no tema das transformações no varejo no contexto do capitalismo flexível, uma vez que

essas transformações têm muito a contribuir na resposta ao problema teórico mencionado. O

impulso de renovação técnica imanente ao capitalismo não se esgotou com a emergência e

generalização das modalidades modernas de varejo. Ela prosseguiu revolucionando as condições

de funcionamento do setor varejista, levando-o a tornar-se irreconhecível nas décadas de 70 e 80.

Após a exposição das principais transformações no pelas quais passou o setor, serão

levantadas perguntas a respeito das suas implicações do ponto de vista do trabalho, tema do

capítulo 4.

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Capítulo 2 – A modernização do varejo na era da acumulação flexível

Conforme apontado no capítulo 1, a problemática que informa o presente trabalho

identifica a modernização do varejo como processo de transformação capitalista do varejo.

Segundo esse registro teórico, a transformação dos meios de trabalho em capital implica a

formação da dinâmica histórica específica ao capitalismo, que se caracteriza pela tendência

permanente à´transformação tecnológica e organizacional. A razão última para essa transição é o

impulso do capital para recriar a sociedade de modo adequado às necessidades da acumulação.

Em razão da concentração de capital no setor varejista, formou-se tendência à elevação

da produtividade do trabalho, a qual assumiu a forma de modernização do varejo. Como a

tendência à racionalização é permanente, cada nova configuração das sociedades capitalistas é

apenas novo limite a ser transcendido. Logo, a modernização do varejo tal como exposta no

capítulo 1, a qual em larga medida explica as principais tendências de transformação do setor até

a década de 1960, necessariamente viria a ser superada. Duas causas concorreram para essa

consequência: primeiramente, o desenvolvimento do capitalismo em geral, que implica na

necessidade de incremento da racionalidade das atividades associadas à realização do valor; e, em

segundo lugar, a formação de capital no setor, que traria dinâmica de transformações em razão

das contradições de classe.72

Por esses motivos, a marcha de transformações inerente a sociedades capitalistas

implicaria em mudanças no setor. O varejo seria parte de longínquos processos de racionalização,

os quais, no registro marxista, são epifenômenos da formação e desenvolvimento do modo de

produção capitalista. Em outros termos, em parte as transformações do varejo no capitalismo pós-

70 seriam apenas continuidade do amplo processo de racionalização capitalista. A única diferença

seria que a racionalização agora ocorreria sobre a base técnica já renovada do varejo moderno.

Entretanto, as transformações do capitalismo contemporâneo não podem ser

identificadas como mera reprodução espaço-temporal de tendências seculares da modernidade.

Ora, como sustenta ampla gama de autores, há novidades significativas no capitalismo pós-70

72 Sobretudo Braverman acentua essa dinâmica da chave analítica das classes sociais. Segundo o autor, o foco dasanálises de classe no capitalismo é sobretudo a identificação de padrões de transformação social, e menos aidentificação de condições comuns de determinados contingentes da população. Apesar disso, Braverman não negatal dimensão das análises de classe, apenas não as considera a parte principal. O tema será retomado no capítulo 4.

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(e.g., Harvey, 2014; Brenner, 2006; Santos, 2006; Fraser, 2011). Como esses traços são

condicionantes das transformações do setor varejista do período, são necessárias considerações a

respeito da natureza do capitalismo pós-70. Como será exposto na exposição, as transformações

do setor em larga medida são expressões particulares de tendências gerais do capitalismo

contemporâneo.

Por esses motivos, a primeira seção do capítulo 2 fará uma construção dos registros de

Brenner (2006) e Harvey (2014) a respeito de alguns traços do capitalismo contemporâneo. Na

primeira parte da seção será feita incursão na interpretação de Robert Brenner a respeito da crise

do capitalismo fordista. A fim de explicar o que o autor identifica como declínio crônico da taxa

geral de lucro, o texto começará pelo resgate da sua problemática a respeito das crises capitalistas

em geral, já que sua análise concreta é indissociável desse quadro conceitual. Finalmente, serão

identificadas as diversas tentativas de resolução do problema do declínio da taxa de lucro.

Ao final do capítulo, será travado diálogo com o conceito de padrão de acumulação

flexível (Harvey, 2014), o qual será ponto de partida de algumas reflexões subsequentes, como a

da natureza da técnica no capitalismo contemporâneo. Apesar de Harvey partir de referências

teóricas distintas das de Brenner, a presente pesquisa entende como viável a integração da chave

acumulação flexível como uma das respostas ao problema do declínio crônica da taxa de lucro.73

As seções seguintes retomarão a exposição das transformações do setor varejista. A

segunda seção abordará a globalização do varejo e a terceira seção a sua informatização. À guisa

da conclusão, a quarta seção construirá a tese da hegemonia do capital comercial, abrindo

caminho para as considerações a respeito das classes.

2.1 A crise capitalista do fim dos anos 1960 e da natureza do capitalismo pós-1970

2.1.1 Padrão de acumulação e crise capitalista

Embora detenha especificidades, em larga medida a dinâmica do setor varejista é

explicável por tendências gerais das sociedades capitalistas. No caso das metamorfoses típicas do

73 As diferenças teóricas entre Brenner e Harvey bem como as mediações feitas para articulá-las no presente capítuloserão expostas adiante.

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capitalismo global, há franca incidência da crise do capitalismo fordista sobre a dinâmica do

setor.

Para Brenner a crise dos anos 1960 é estrutural por vincular-se com alterações em

algumas das variáveis macroeconômicas fundamentais da acumulação de capital. No seu registro,

as duas principais variáveis incidentes sobre a dinâmica da acumulação são as taxas de lucro e a

taxa de evolução da produtividade do trabalho.74

A taxa de lucro consiste no montante proporcional de lucro gerado por unidade de valor

investida produtivamente. Como coincide com o retorno dos investimentos, a taxa de lucro incide

diretamente sobre o montante de capital passível de aplicação produtiva no capitalismo,

guardando relação com a demanda agregada e com o crescimento econômico. Porque os

investimentos são a principal fonte de crescimento econômico, de renovação técnica e de

expansão da escala da produção, Brenner (2006) conclui que em última instância a taxa de lucro é

a variável macroeconômica mais importante para a acumulação. Apesar de se influenciarem

mutuamente, a taxa de lucro possui maior independência na relação com as outras variáveis

macroeconômicas, que por isso são mais dependentes.

Por seu turno, a importância da taxa de evolução da produtividade decorre da sua

vinculação com a capacidade de dado tempo de trabalho gerar valores de uso. Quanto maior a

produtividade, maior a capacidade do tempo de trabalho produzir riqueza concreta. Essa variável

influencia não só a taxa de lucro, mas também a capacidade de aquisição de valores de uso pela

via do mercado. Influencia a taxa de lucro porque permite diminuição relativa do montante total

de valor apropriado para o consumo do capitalista e pelos salários, ou seja, aumenta o montante

de excedente. Já o ganho na capacidade de consumo é resultado da diminuição no valor das

mercadorias. À medida que a produtividade do trabalho aumenta, eleva-se o poder de compra dos

salários e do lucro.75 Por essas razões, ganhos de produtividade viabilizam crescimento absoluto

74 Nessa pesquisa, acompanhamos o registro de Brenner a respeito do diagnóstico das condições da crise docapitalismo fordista. Contudo, identificamos alguns limites na abordagem do estadunidense, sobretudo o da nãoconsideração devida de algumas dimensões estruturais para a queda na taxa de lucro. Dentre elas, a condiçãodificilmente contornável em sociedade dominada pela lógica do valor, a que a evolução da produtividade recrieconstantemente um estado de coisas no qual a taxa de lucro declina. A própria lógica do valor, demandando aumentode produtividade como condição de sobrevivência dos produtores, leva à limitação das condições da acumulação nolongo prazo. Apesar desses problemas, este estudo se manteve nos limites do registro de Brenner no que se refere aodiagnóstico do problema, seja por questões de recorte da pesquisa, cujo foco é outro, seja pela preocupação do autorcom respaldo empírico de suas teses.

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da renda real do capital e do trabalho,76 criando condições para ciclos de reprodução ampliada

sustentados no médio e no longo prazo.

Para Brenner, essas duas categorias são fundamentais para explicar a dinâmica da

acumulação tanto em períodos de reprodução ampliada quanto em períodos de crise. O autor

formula-as à luz da experiência das economias capitalistas desenvolvidas do pós-guerra e do que

ele designa por período da “longa desaceleração” econômica (Brenner, 2006), que é característica

do pós-70.77 Além das categorias taxa de lucro, taxa dos investimentos e taxa da evolução da

produtividade, sua problemática respalda-se num resgate da leitura de Marx a respeito da

regulação social de sociedades mercadorizadas e acerca do estatuto teórico das crises

econômicas.

Os conceitos de acumulação de capital e de crise capitalista são intimamente

relacionados. Para Antunes e Benoit (2009) Marx não destinou um capítulo de O capital às crises

porque todo o seu sistema teórico estava comprometido com esse problema ou, em outros termos,

porque toda a teoria de Marx visa responder tanto ao problema da acumulação quanto ao das

crises capitalistas. Com efeito, em larga medida as crises se definem de modo negativo, já que

elas consistem precisamente no fracasso no processo da acumulação, que acaba por resultar num

processo retroalimentado de deterioração das variáveis macroeconômicas.

A teoria marxista das crises possui diversos níveis de existência, que são parte dos níveis

de existência do próprio capital (Antunes, Benoit, 2009). Os níveis mais abstratos concernem à

possibilidade formal da ocorrência de crises, enquanto os níveis mais concretos explicam sua

necessidade.

O nível mais geral decorre da forma de regulação social da distribuição do trabalho

social no capitalismo (Rubin, 1987). A regulação social do capitalismo é apenas parcialmente

75 Em termos mais precisos, o que aumenta é o poder de compra do valor em geral ou, o que é a mesma coisa masem termos diferentes, o mesmo valor é corporificado em mais valores de uso.76 Isso não significa que haja ganhos relativos para todos, o que é impossível. Ganhos absolutos ocorrem quando háaumento da renda real em termos quantitativos, ou seja, quando aumenta o seu montante em termos de poder decompra efetivo. Ganhos relativos consistem em aumento na participação proporcional de cada grupo na renda total.O ganho relativo generalizado é impossível, pois se trata de um jogo de soma zero: se os salários crescem, os lucrosdiminuem e vice versa.

77 Assim, por meio de um único referencial analítico Brenner interpreta tanto as três décadas de ouro quanto asdécadas subsequentes. Como havia ganhos sistemáticos na produtividade e nas taxas de lucro, tornava-se possível aconvivência pacífica de crescimento econômico, ganhos salariais (diretos e indiretos) em mercados consumidores emcrescente expansão

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social, conforme sustentam Marx (2013), Rubin (1987) e Postone (2007). A mercadoria funciona

por meio de dispositivos de regulação reificados, pois ela tem como consequência necessária a

atribuição de propriedades sociais (valor de troca) às coisas. Dado que as relações capitalistas de

produção se caracterizam pela vinculação social dos agentes pelas trocas mercantis, o capitalismo

só pode existir por meio da mediação social da mercadoria e, correspondentemente, pela vigência

da lei de mercado.

Essa circunstância intrínseca ao capitalismo conduz os produtores à condição de

concorrência no mercado, ocasionando a formação da tendência à constante evolução das forças

produtivas. Como cada um busca seus interesses e como cada um corre o risco de não sobreviver

à competição, todos são forçados ao constante empenho de renovação técnica com vistas aos

ganhos de produtividade.

Se por um lado essa condição do produtor é fonte do potencial expansivo do capitalismo,

por outro ela é fundamento das crises. Como não há regulação social, cada produtor não possui

conhecimento a respeito das condições de mercado nas quais ocorre a competição. Como cada

produtor busca aumentar sua participação no mercado incrementando tecnicamente sua produção,

o capitalismo convive permanentemente com a tendência à superprodução. Se a busca pelo

aumento da produção conduz à “produção pela produção”, segundo a precisa expressão de Marx

(2013), de tempo em tempo o capitalismo necessariamente incorre em excesso de produção.

O resultado da busca da “produção pela produção” é a cristalização de montantes de

capital fixo superiores às necessidades sociais e à capacidade de absorção do mercado.78 Por seu

turno, o excedente de capital produtivo atua como causa do declínio da taxa de lucro por dois

meios: primeiramente, ele leva à diminuição dos preços, que se tornam menores do que o valor

das mercadorias, gerando um declínio do lucro em razão da realização parcial do valor

produzido; em segundo lugar, gera-se capital ocioso, fazendo com que parte do capital investido

não gere retorno produtivo. Portanto, o lucro gerado diminui em relação ao capital total investido,

impactando negativamente sobre as taxas de lucros.

78 A superprodução não necessariamente é um excesso de produção diante das necessidades sociais, mas sim dianteda demanda líquida. Com efeito, o capitalismo pode conviver com excesso de produção relativa (referente àcapacidade de absorção pelo mercado) e com insuficiência da produção absoluta (isto é, com produção abaixo dasnecessidades sociais) (Marx, 1986a).

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Sob esse ângulo, em termos gerais as crises capitalistas decorrem de duas causas: do

excesso de concorrência intercapitalista e da ausência de dispositivos sociais de regulação social.

Combinadamente, esses fatores conduzem à deterioração das taxas de lucro, à diminuição do

crescimento econômico e à desaceleração da evolução da produtividade. Como corolário, forma-

se um ciclo de retroalimentação negativa, de modo que cada impacto negativo nas taxas de lucro,

na acumulação ou na elevação da produtividade incide negativamente sobre as demais variáveis.

Essa tendência geral à superprodução se realiza por meio de padrões regionalizados de

acumulação de capital e de difusão de padrões tecnológicos. Toda inovação técnica emerge

primeiramente nos setores econômicos mais concentrados e dentro das economias mais

desenvolvidas. Num segundo momento, ocorre difusão dos padrões técnicos para novas regiões,

que emulam o modelo técnico do(s) país(es) ou regiões mais desenvolvidos. Dada a inexistência

de regulação social planejada sobre essa generalização de padrões técnicos, o capitalismo convive

com a tendência à formação de capacidade industrial ociosa.

Para Brenner, a crise do final dos anos 1960 é produto dos processos de difusão

tecnológica e de formação de capacidade ociosa. Num primeiro momento, o fator desencadeador

foi o salto das economias japonesa e alemã ao patamar de desenvolvimento da economia

estadunidense. Num segundo momento, houve agravamento da crise em razão do salto industrial

realizado pelos países recém industrializados do leste asiático. 79

79 Essa forma de interpretação sobre as crises capitalistas é uma alternativa dentre inúmeras dentro da tradiçãomarxista. Segundo Clarke (1994), no que tange ao problema a tradição marxista se dividiu em três alternativas. Aprimeira centra-se na desproporção na distribuição social do trabalho, que identificaria o fundamento das crises nadistribuição equivocada do capital e da força de trabalho, que decorreria da natureza reificada da regulação social.Uma segunda seriam as teorias do subconsumo, que encontrariam na incapacidade de consumo das massas ofundamento das crises; porque o trabalho precisaria receber apenas parcela do valor recebido, necessariamente serecriaria desproporção entre produção e demanda, o que acarretaria em desaceleração da acumulação e em eventuaiscrises. A terceira conferiria destaque à tendência à queda na taxa de lucro, que identificaria na tendência à elevaçãoda composição orgânica do capital o fundamento das crises; por necessitar de incremento tecnológico, o capitalismoconduziria à erosão da sua própria base, que é o trabalho vivo, que tornaria-se ínfimo diante do montante de capitalconstante. Embora centrada no papel das taxas de lucro, em termos conceituais Brenner aproxima-se sobretudo doprimeiro grupo, pois para ele o fundamento das crises é a recriação de capacidade ociosa, cuja causa é a regulaçãosocial reificada.

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2.1.2 Padrão de acumulação e crise do fordismo

Essa combinação de fatores foi a causa da crise capitalista do final da década de 1960.

Mais precisamente, ela foi produto de uma mudança fundamental no panorama econômico

internacional do período: a passagem das economias alemã e japonesa para patamares de

desenvolvimento capitalista equivalentes ao nível do capitalismo estadunidense. Essa

circunstância conduziu à progressiva ocupação dos mercados domésticos pelas corporações

nacionais desses países, levando-as a adquirir capacidade de competição com as empresas

estadunidenses. Dada a saturação dos mercados locais, a partir do fim da década de 1960 essas

corporações entraram na disputa pelo mercado internacional.

Como resultado dessa situação, a concorrência entre as grandes corporações se

intensificou no âmbito da economia mundial. Em outros termos, a crise do final dos anos 1960 é

produto do processo de difusão tecnológica e de formação de capacidade ociosa, que num

primeiro momento foi desencadeada pelo crescimento das corporações alemãs e japonesas e num

segundo pela industrialização de alguns países periféricos (sobretudo no leste asiático).

Dado que o capitalismo tem como fundamento a perseguição de interesses privados, a

resposta das corporações ao ambiente de concorrência agudizada foi o incremento da

produtividade do trabalho pelas vias da reorganização técnico-organizacional e pela ofensiva

sobre o trabalho. Por isso, ao invés de o declínio da taxa de lucro conduzir a uma redistribuição

geral do trabalho social com vistas ao reequilíbrio das taxas de lucro, ela gerou a continuidade da

superprodução. Por isso, a solução à crise seria apenas parcial, pois as circunstâncias que geraram

o declínio das taxas de lucro não apenas se mantiveram, como se intensificaram. O que foi

solução para a acumulação de capital no âmbito privado das corporações, permitindo-lhes ocupar

maior parcela da demanda líquida existente, tornou-se reprodução social das condições da crise.

O resultado geral desse estado de coisas foi a manutenção de elevados níveis de

capacidade ociosa nos principais setores industriais das economias capitalistas avançadas

(Brenner, 2006). Consequentemente, persistiu a incapacidade de realização de parcela do valor

produzido, incorrendo em baixa taxa de retorno dos investimentos.

Assim, a consequência mais geral é a deterioração da taxa média de lucro, a qual

transformou-se em declínio crônico em razão da reprodução das condições de superprodução. Ao

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passo que a centralização de capital se intensificou sob protagonismo do grande capital

corporativo, a longa desaceleração econômica persistiu ao longo das décadas que seguiram.

Ademais, como corolário desse estado de coisas, houve deterioração do desempenho

econômico mais geral, o qual se expressou sob todas as principais variáveis macroeconômicas

(Brenner, 2006). O declínio na taxa de lucro foi acompanhada de queda nos investimentos, no

crescimento econômico, na evolução da produtividade e nos salários. Como produto combinado,

formaram-se os conhecidos problemas das economias capitalistas contemporâneas: o problema

da depreciação da demanda agregada e o dos déficits públicos crônicos. Apesar de se tratarem

antes de efeitos do que de causas, a deterioração destas variáveis virou problema à parte das

economias capitalistas.

2.1.3 Expressões da crise do fordismo

Para Brenner (2006), essa transição nas condições da acumulação é o fundamento das

transformações do capitalismo contemporâneo. Como um todo, as novas configurações do

capitalismo têm em comum uma finalidade: elas visam a criação de condições para a acumulação

de capital dentro de um contexto de declínio crônico da taxa de lucro. Segundo Brenner, no

último quartel do século XX (2006):

(...) as empresas, apoiadas pelos governos, em todo o mundo capitalista avançado seengajaram em um esforço abrangente, sistemático e cada vez mais auto-consciente pararestabelecer suas taxas de lucro pelas vias tanto da obsessiva redução de custos,sobretudo dos custos diretos e indiretos com o trabalho, quanto pela transformação dosmodos de fazer negócios. Eles eclodiram uma ofensiva cada vez mais perversa sobre asorganizações da classe trabalhadora com vistas à forçar o crescimento e, em algunscasos, para diminuir os níveis de compensação dos serviços sociais. Eles buscaramneoliberalizar a economia mundial pela desregulamentação dos mercados decommodities e de trabalho, pela privatização das empresas estatais e pela liberação doantes reprimido setor financeiro, enquanto ao longo do países menos desenvolvidosprocuraram forçar a abertura de mercados para mercadorias, para investimentosestrangeiros diretos, para os serviços financeiros e para os capitais de curto prazo. Elesmudaram o capital das linhas de manufaturas de altos custos e baixos lucros para colocá-lo nos serviços financeiros, e crescentemente voltaram-se à especulação. (...) De fato,todas essas medidas inter-relacionadas de redução de custos, neoliberalização eglobalização (...) constituíram um pouco mais ou menos de uma tentativa cada vez maisfrenética de lidar com o penetrante e persistente problema da lucratividade reduzida.Mas permanece o fato imperativo de que longe de ter restabelecido o dinamismoeconômico, essas medidas falharam em prevenir a performance econômica daseconomias capitalistas avançadas de piorar à medida em que o tempo passou. Como

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consequência, ainda em 2000, a longa desaceleração continua muito longe de umasuperação (Brenner, 2006, p. 21-2).80

Assim, o capitalismo deu uma resposta multicentrada ao problema do declínio crônico

da taxa de lucro. As principais transformações foram (1) o aumento do desemprego, (2) a

mudança de postura do capital diante do trabalho, (3) a internacionalização, (4) a financeirização,

(5) a desconstrução dos direitos sociais, (6) a privatização e (7) a reestruturação produtiva.

1) O aumento do desemprego estrutural é produto combinado de aumento de demissões

e diminuição nos investimentos, os quais são uma ação quase espontânea da classe capitalista em

contexto de deterioração do desempenho econômico.81 Por si só, esse novo estado de coisas é

capaz de gerar inúmeras consequências, com especial destaque para a diminuição do poder social

do trabalho e das entidades de representação e organização operária, resultando em congelamento

dos salários (Harvey, 2014). Uma segunda consequência importante é a diminuição da demanda

agregada, fator que contribui para a manutenção da estagnação.

2) Além da mudança na relação de forças entre capital e trabalho em razão do

desemprego, a partir da crise de fins dos anos 1960 ocorreu uma mudança drástica na postura

político-ideológica da classe capitalista (e do Estado) para com a classe trabalhadora e para com

movimentos de defesa de direitos civis. De modo resumido, o capitalismo fordista teve como um

dos seus pilares a negociação entre capital e movimento operário feita sob intermediação do

Estado (Harvey, 2014), a qual era parte de uma tendência à crescente expansão dos direitos

sociais ligados ao trabalho. Na conjuntura de crise do fordismo, a postura de negociação e

concessão (relativa) de poder aos sindicatos será substituída pela não aceitação da

80 Tradução nossa. No original: “(...) firms, assisted by governments, throughout the advanced capitalist worldengaged in an ever more self-conscious, systematic, and all-encompassing effort to restore their profit rates by meansboth of the obsessive reduction of costs, above all direct and indirect labour costs, and the transformation of theirways of doing business. They detonated an ever more vicious assault on the organizations of the working class, so asto force down the growth and, in some cases, the level of compensation and social services. They sought toneoliberalize the global economy by deregulating commodity and labour markets, privatizing state enterprises, andfreeing up the formerly repressed financial sector, while seeking to force open markets for commodities, foreigndirect investment, financial services, and short-term capital throughout the less developed countries. They shiftedcapital out of high-cost, low-profit manufacturing lines, especially into financial services, and turned increasingly tospeculation. (...). In fact, all of these interrelated measures of cost reduction, neoliberalization and globalization (...)constituted little more or less than an ever frenzied attempt to cope with the pervasive and persistent of reducedprofitability. But the overinding fact remains that far from restore economic dynamism, these measures failed toprevent the performance of the advanced capitalist economies from worsening as time went on. As a consequence, asof 2000, the long downturn remained very far from overcome” (Brenner, 2006, p. 21-2)

81 Apesar disso, em certas circunstâncias, a classe capitalista atua conscientemente para criar desemprego com oobjetivo de controlar a evolução de salários e da força social do trabalho.

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representatividade dos sindicatos, pelo uso do poder capitalista de classe e pelo uso de repressão

estatal contra movimentos grevistas e sociais (Bihr, 1999; Clarke, 1991).

3) Outra importante foi a internacionalização do capitalismo, a qual cumpriu tal papel

por diversas razões. Em primeiro lugar, ela permitiu ao capital corporativo a abertura de novos

mercados para investimento, fato significativo em razão da situação de esgotamento dos

mercados nacionais. O contexto de demanda declinante das economias desenvolvidas era causa

do esgotamento desses mercados, levando-os a ser incapazes de absorver investimentos

condizentes com o montante de capital disponível. A abertura de novos mercados criou condições

para a valorização de parte do capital excedente, ocasionando aumento da taxa média de lucro. 82

Além dos já mencionados declínio crônico da taxa de lucro e da sobreacumulação, outro

fator pertinente para explicar o papel da internacionalização é o excesso de regulamentação social

do capitalismo nos países de capitalismo fordista. Com efeito, o arranjo político, social e

institucional típico do capitalismo fordista formava ambiente de significativo constrangimento ao

capital, que vivia sob influência de normas rígidas que implicavam elevados custos. A

internacionalização foi recurso para abrir mercados sem arcabouço institucional rígido e sem

tradição de organização operária, fatores relevantes em termos de custos de investimento.

A internacionalização também viabilizou a compra de insumos como alternativa à

contratação de força de trabalho, tendo como vantagens tanto a diminuição de custos (diretos e

indiretos) quanto a flexibilização produtiva. No arranjo institucional fordista, era difícil se

desfazer de força de trabalho. Por essa razão, em termos da superação da rigidez fordista o papel

da internacionalização foi fundamental.

4) Outra das principais soluções para a crise do fordismo foi a financeirização do

capitalismo, entendida como a multiplicação e complexificação dos dispositivos de valorização

do valor que não demandam investimentos diretos na produção. A financeirização também se

caracteriza pelo entrelaçamento entre os capitais produtivo e financeiro, caracterizada pela

crescente diversificação da carteira de ativos do capital produtivo. Tanto em termos regionais,

nacionais e de setor econômico, a diversificação colocou-se como estratégia de maximização de

ganhos e de diminuição de riscos.

82 Essa dimensão da solução da crise reforça uma interpretação da crise do fordismo sob referencial teórico deHarvey (2014)

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A financeirização também desempenhou papel fundamental na solução (parcial) do

problema da demanda agregada. A solução desse problema passou por dois dispositivos:

primeiramente, pela atuação do Estado, que socorreu algumas grandes empresas e grupos

econômicos em momentos críticos, impedindo a continuidade da bancarrota econômica; em

segundo lugar, por meio da criação artificial da demanda, a qual foi viabilizada por meio da

sofisticação e aumento de abrangência do sistema de crédito. O uso de hipotecas e de valorização

artificial de ativos como substrato para a criação de demanda tornaram-se norma no capitalismo

contemporâneo. Segundo Brenner, essas práticas, que podem ser descritas como “bubblenomics”

(Brenner, 2006), se caracterizam por dois momentos inseparáveis: (1) a geração de valorização

artificial de ativos, cujo valor de mercado sobe em razão de excesso de demanda e (2) demanda

gerada precisamente pela valorização dos mesmos ativos.83 Os ativos valorizados artificialmente

sustentaram a criação de crédito, que por sua vez criou a demanda.

Por fim, a financeirização também foi fundamental para a promoção da globalização,

uma vez que a facilidade de movimentação de capitais implica em facilidade na exportação de

investimentos e na formação de um mercado internacional de crédito. Sem a financeirização, a

globalização tal como a conhecemos não teria sido possível.

5) Outra solução foi a desconstrução dos direitos sociais, a qual guarda íntima relação

com as políticas de privatização. A diminuição nas responsabilidades do Estado apareceu como

solução para a grave crise fiscal pela qual passaram quase todas as economias capitalistas

desenvolvidas a partir da década de 1960, a qual era um produto da estagnação do crescimento84

em circunstância de crescentes aumentos no gasto público. 85 Parte associada dessa solução foi a

83 Uma bolha econômica se caracteriza precisamente por esse estado de coisas: um ativo valorizado cria ascondições da valorização do mesmo ativo. Seu risco decorre da fragilidade dessa articulação de fatores, pois umaeventual falha gera efeito em cadeia, podendo ocasionar uma crise econômica, a depender da grandeza do impactofinanceiro. A expressão “bubblenomics” de cariz jocoso, remete à associação da regulação econômica estatal com apromoção de práticas de ganho financeiro e especulativo, bem como ao crescimento econômico baseado em bolhas,que configuraria um modelo de acumulação frágil e voltado sobretudo ao ganho da fração financeira do grandecapital.84 Como havia estagnação e gastos crescentes do Estado, a solução foi a emissão de dinheiro a fim de evitar abancarrota no curto prazo. Como resultado, gerava-se inflação, pois o aumento de moeda circulando não foiacompanhado por expansão da economia real. Para designar esse estado de coisas cunhou-se o neologismo“estagflação”.85 De acordo com Saes (2001) os discursos da associação entre programa neoliberal e diminuição do tamanho doEstado são ficcionais. Na verdade, trata-se de uma mudança na natureza da regulação social sobre a economiaexercida pelo Estado, que passa a privilegiar as leis de mercado como princípio de regulação e a conceder maiorprotagonismo para o setor privado. Na prática, a transição rumo à regulação neoliberal implica aumento da máquinade Estado, o que decorre fundamentalmente de duas razões. Primeiramente, porque a liberalização do mercado

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promoção de políticas de privatização, por meio das quais os Estados deixavam de se ocupar de

dispêndios em diversas áreas.

6) A diminuição dos gastos com direitos sociais guarda relação com a política de

privatização, uma vez que a reformulação das políticas sociais de Estado implica na criação de

demanda por esses serviços via mercado. A diminuição de investimentos implica em deterioração

da qualidade e da abrangência dos serviços, criando bases para que serviços de qualidade venham

a ser oferecidos via mercado.

7) Finalmente, a crise do fordismo ensejou um conjunto de transformações

denominadas reestruturação produtiva (Antunes, 2009). Segundo Baumgarten:

(…) a reestruturação produtiva e industrial consiste em um processo que compatibilizamudanças institucionais e organizacionais nas relações de produção e de trabalho, bemcomo em redefinição de papeis dos Estados nacionais e instituições financeiras (....),visando atender às necessidades de garantia de lucratividade (Baumgarten, 2006, p.237).

No fim dos anos 1960 o capitalismo fordista experimentou limites à sua expansão.

Dentre os fatores da crise, situa-se a incapacidade de dar continuidade aos ganhos sempre

renovados de produtividade típicos do capitalismo fordista. Junto à queda na lucratividade, esse

fator impedia que os salários crescessem, pois desse modo não restaria nenhum elemento

(excedente) para prosseguir a acumulação de capital, Por isso, fez-se necessário renovar o sistema

de dominação e as relações de trabalho, que precisavam aumentar a produtividade sem a

contrapartida dos ganhos de salário. Segundo Antunes:

Como resposta à própria crise, iniciou-se um processo de reorganização do capital e deseu sistema ideológico e político de dominação, cujos contornos mais evidentes formamo advento do neoliberalismo, com a privatização do Estado, a desregulamentação dosdireitos e do trabalho e a desmontagem do setor produtivo estatal, da qual a eraThatcher-Reagan foi expressão mais forte; a isso se seguiu também um intenso processode reestruturação da produção e do trabalho, com vistas a dotar o capital do instrumentalnecessário para tentar repor os patamares de expansão anteriores (Antunes, 2009, p. 31).

A reestruturação do trabalho visa reordenação dos processos de trabalho com vistas ao

incremento da exploração, o que atua para superar a crise de acumulação pela via do aumento da

implica consequências sociais deletérias, as quais aumentam os gastos estatais em área sociais. Em segundo lugarporque a intensificação dos conflitos inerente a plataforma neoliberal demanda aprimoramento dos aparatosrepressivos do Estado, cuja finalidade é manter a coesão social.

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geração de mais valia e/ou da diminuição dos custos improdutivos com o trabalho. Por meio da

intensificação do trabalho, tornar-se-ia viável retomar a acumulação de capital.86

A reestruturação produtiva abarca tanto dimensões qualitativas quanto quantitativas

(Marcelino, 2011). As primeiras são novas formas de funcionamento dos processos de trabalho,

enquanto as últimas dizem respeito a novas formas de contratação, voltadas à facilitar as

oscilações na quantidade de trabalhadores contratados no curto prazo.

Os dispositivos flexíveis de gestão do trabalho cumprem dois papéis: primeiramente,

eles intensificam o trabalho por meio de protocolos diversos, como o acúmulo de funções, a

eliminação de funções do trabalho improdutivas, a eliminação de gestores e a

multifuncionalidade (Antunes, 2009; Marcelino, 2011). Além disso, a configuração flexível visa

adequação dos processos de trabalho às oscilações de curto prazo na demanda, pois um

componente comum dos dispositivos flexíveis é a capacidade de mudança nos produtos do

trabalho, que rapidamente se adequam às variações na demanda.

Já os dispositivos quantitativos visam à capacidade de o capital desfazer-se com

facilidade da força de trabalho contratada, viabilizando constante adequação do pessoal

empregado às oscilações de curto prazo na demanda. Dado o contexto de desempenho econômico

fraco característico do capitalismo pós-70, o capital constantemente não consegue renda

suficiente para valorizar o valor. Diante dessa circunstância, é necessária a constante adequação

da força de trabalho às necessidades da produção.

Como a finalidade geral da reestruturação flexível é a solução da crise de acumulação,

ela mobiliza todos os recursos eficientes para tal resultado. Por isso, parte do protocolo flexível

de reestruturação consiste na reciclagem e aperfeiçoamento dos dispositivos fordista-taylorianos.

Em razão dessa circunstância, alguns autores chegam a chamar a reestruturação produtiva pós-70

de neotaylorização (Antunes, 2009).

O resultado geral desse conjunto de reconfigurações é o incremento da polarização da

distribuição de renda das sociedades capitalistas avançadas (Brenner, 2006, Duménil e Levy,

2007). Por um lado houve estagnação e decréscimo do valor dos salários (diretos e indiretos)87 e

86 Para Rosso (2006) o capitalismo posterior à crise do fordismo entrou na terceira onda de intensificação dotrabalho.

87 Os salários diretos são a renda apropriada pelos trabalhadores diretamente na forma salarial, enquanto os saláriosindiretos seriam bens concedidos aos trabalhadores através de serviços fornecidos pelo Estado.

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crescimento dos números absolutos e relativos de pobres. Por outro, aumentou a parcela da

riqueza social apropriada pelo grande capital corporativo e pela camada de altos gestores

(Brenner, 2006; Duménil e Levy, 2007).

Apesar das finalidades das novas configurações do capitalismo pós-70, houve fracasso

quanto à superação da causa fundamental da estagnação da acumulação. Malgrado sua

capacidade de criação de condições para a retomada da valorização do valor, os patamares de

expansão anteriores à crise dos anos 1960 nunca mais foram retomados. Mais do que isso, década

a década assiste-se à deterioração do desempenho econômico, que pode ser identificado por

qualquer uma das principais variáveis macroeconômicas (Brenner, 2006).

Por outro lado, ainda que incapaz de anular as causas do declínio crônica da taxa de

lucro, o poder das novas configurações do capitalismo permitiu a retomada da acumulação. Por

isso, a crise dos anos 1960 não tomou a forma de recessão permanente, mas de uma longa

desaceleração, que alterna períodos de crescimento de baixa intensidade com estagnação

(Brenner, 2006).88

2.1.4 David Harvey e o padrão de acumulação flexível

Uma segunda referência teórica importante para o presente estudo é o conceito de

regime de acumulação flexível, de Harvey (2014). Mais precisamente, essa referência será usada

como ponto de partida para a interpretação da natureza sociológica de algumas configurações do

capitalismo contemporâneo. Parte significativa das transformações do setor varejista, tal como a

incorporação de tecnologias da informação, a flexibilização dos contratos de trabalho e o lean

retailing são apreensíveis de modo acurado pelo prisma da flexibilização do padrão de

acumulação.

Segundo Harvey, a conjuntura de crise capitalista do final dos anos 1960 teve como

principal resultado a necessidade de superar a rigidez do capitalismo fordista.89 O novo contexto

88 Além disso, desde 1970 o capitalismo experimenta com mais frequência conjunturas de crise. A razão é a maiorpresença dos mercados financeiros no funcionamento da economia real, dadas as integrações finanças-produção eeconomias nacionais-sistema financeiro internacional. Ao mesmo tempo em que dinamiza a capacidade de alocaçãode capital, além de torná-la mais flexível, a financeirização torna a economia mais suscetível a choques externos.

89 Em Harvey, a leitura da crise do fordismo passa por referenciais distintos daqueles expostos até aqui no capítulo2. As diferentes problemáticas refletem diferentes teorias gerais a respeito da natureza das crises do capitalismo, que

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de intensa competição intercapitalista tornava inviável a produção massificada e padronizada do

fordismo, uma vez que não mais havia demanda agregada em crescente expansão. Diante do

novo cenário, fez-se imprescindível a exploração de nichos específicos de mercado da parte do

empresariado, pois só neles seriam encontrados os meios de realização do valor das mercadorias

produzidas.

A busca por nichos de mercado tornou inviável a reprodução social do modelo de

empresa típica do fordismo por inúmeras razões: ela era incapaz de diversificar a produção e de

desfazer-se com rapidez da sua força de trabalho. Em todos esses terrenos, o arcabouço

institucional, cultural e político do fordismo constrangia a relação capital-trabalho por meio de

suas normas inflexíveis (em termos de sua capacidade de rápida adaptação). Por esses motivos,

A acumulação flexível (...) é marcada por um confronto direto com a rigidez dofordismo. Ela se apoia na flexibilidade dos processos de trabalho, dos mercados detrabalho, dos produtos e padrões de consumo. Caracteriza-se pelo surgimento de setoresde produção inteiramente novos, novas maneiras de fornecimento de serviçosfinanceiros, novos mercados e, sobretudo, taxas altamente intensificadas de inovaçãocomercial, tecnológica e organizacional. (Harvey, 2014, p. 140)

O “sistema de produção flexível” é caracterizado pela “ênfase na solução de problemas,

nas respostas rápidas, com frequência altamente especializadas, e na adaptabilidade de

habilidades para propósitos especiais” (Harvey, 2014, p. 146). Nesse novo sistema produtivo, as

tecnologias da informação cumprem papel fundamental. Com efeito, é possível dizer que sem

elas a flexibilização do capitalismo não teria sido possível, já que todas as dimensões da

flexibilidade de algum modo dependem da sua mediação.90

Esse ponto conduz o estudo ao problema da natureza sociológica das tecnologias da

informação. Segundo o registro de Harvey, elas são recurso para solucionar as dificuldades da

por sua vez decorrem de diferentes interpretações do capitalismo. Para Harvey (2013), as crises capitalistas temcomo causa principal a sobreacumulação de capital, tendo como epicentro montantes de capital que não encontramcondições para se valorizar, seja pela ausência de capacidade de absorção das mercadorias que seriam produzidas,seja pela baixíssima taxa de lucro, que inviabiliza investimentos lucrativos. Se todo o capital excedente seempregasse produtivamente, o capitalismo entraria rapidamente em profunda crise. Contudo, o não investimentoimplica em taxas de lucro baixíssimas se comparadas com o montante de capital existente. Desse impasse, nãopassível de plena resolução no interior do capitalismo, Harvey sugere que a acumulação flexível, antes do quesolução duradoura, não passa de um “reparo temporário” para permitir a continuidade da acumulação, sem noentanto conseguir replicar o desempenho econômico dos anos de ouro do capitalismo.90 Em termos contrafactuais, pode-se conceber que alguma forma de flexibilização capitalista teria sido possível semas TI’s, porém o capitalismo flexível que existe não poderia existir sem a informatização, dado o papel fundamentaldesta em quase todas as dimensões da flexibilidade.

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acumulação de capital num contexto de crise e de longa estagnação. Mais do que puramente

técnicas, elas são fundamentalmente políticas e sociais. A finalidade a que estão voltadas

determina sua estrutura técnica, que por isso é capitalista e flexibilizante.

Sob esse ângulo, além de expressarem no plano mais geral as necessidades da

acumulação de capital, a informatização responde aos problemas específicos da conjuntura de

crise do fordismo. Sua finalidade, em parte bem sucedida, foi superar o conjunto de dispositivos

normativos e institucionais do capitalismo fordista, os quais em parte eram a corporificação do

poder das classes trabalhadoras organizadas (Harvey, 2014). Portanto, a informatização cumpriu

papel fundamental na inversão geral das relações de força entre capital e trabalho, sendo parte da

ampla ofensiva do capital corporativo que em geral caracteriza o neoliberalismo (franceses).

Como exposto na seção anterior, a crise do capitalismo fordista tem na flexibilização um

dos seus componentes, mas o significado geral das respostas à crise foi uma ofensiva de classe do

grande capital sobre a classe trabalhadora. Nesse ponto, a presente pesquisa acompanha Bihr

(1998) acerca da ênfase na luta de classes como dínamo de toda essa transição. Segundo essa

abordagem, o fundamento dessas transformações não é apenas técnico, ou seja, decorrente de

uma crise na acumulação, mas baseia-se na necessidade de uma ofensiva sobre o trabalho, que

implicava na ruptura do pacto policlassista que sustentava o capitalismo fordista.91

Expostos os referenciais analíticos que presidem a interpretação geral do capitalismo

pós-70, a presente pesquisa fica em condições de analisar as transformações específicas do setor

varejista. O primeiro problema investigado é a globalização do varejo.

2.2 Varejo na globalização

A globalização é um fenômeno multiforme, que abarca tanto a emergência de uma

cultura global quanto práticas nas esferas políticas e econômica (Scott, 2014). Ainda que algumas

91 Bihr (1998) sustenta ainda que a transição é resultado de uma crise de hegemonia, cujo fundamento seria aofensiva política e ideológica das classes subalternas, que questionaram a dominação burguesa na onda demobilizações do final da década de 1960. Dada essa crise, o projeto reformista que sustentava o pacto fordista entrouem crise. Ademais, dada a condição de crise da acumulação a qual levou à necessidade de ofensiva sobre o trabalho,o projeto socialdemocrata entrou em uma crise insolúvel, pois reformas progressivas não mais eram possíveis, como,a propósito, pode ser identificado nos anos seguintes à década de 1970, que são caracterizados por constanteretrocesso ou estagnação dos salários diretos e indiretos.

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dimensões da cultura e da política sejam tangenciadas na presente pesquisa, regra geral o foco

residirá na estrutura econômica.

De acordo com a exposição da seção anterior, entende-se a globalização como uma das

soluções para viabilizar a continuidade da acumulação em um contexto de declínio crônica da

taxa geral de lucro.92 Muitas das vantagens gerais da globalização para as corporações

manufatureiras serão compartilhadas pelo capital varejista, havendo destaque para as benesses

associadas ao barateamento das mercadorias.

Em primeiro lugar, é importante ressaltar que as motivações que impeliram as

corporações manufatureiras à mundialização atuaram com força sobre o setor varejista. Mais

precisamente, a deterioração da taxa geral de lucro afetou de modo decisivo o setor em razão da

sua relação com o consumidor final. Havendo estagnação do crescimento econômico, aumento do

desemprego, paralisia nos investimentos públicos e privados e declínio da renda em geral,

naturalmente ocorre diminuição da demanda em geral, incluída aquela parcela pela qual o varejo

é responsável.

Além disso, as sociedades capitalistas avançadas são caracterizadas pela detenção de

pautas do consumo que em muito excedem as necessidades de subsistência, levando à existência

de elevada taxa de elasticidade na demanda da maioria das mercadorias.93 Se não se consome o

estritamente necessário, variações na renda e nos preços impactam diretamente no nível de

consumo.

Por último, ainda que o setor não experimentasse concorrência internacional com a

mesma intensidade do que o setor manufatureiro na década de 1960, o declínio da taxa de lucro

afetou o setor varejista do mesmo modo que os demais94. De acordo com a tradição marxista, a

taxa geral de lucro é determinada por meio da concorrência intersetorial,95 uma vez que os

92 Assim, a presente pesquisa concorda com a formulação de Chesnais, que critica os termos “globalização” e“mundialização” sem qualificações e sugere a a alternativa “mundialização do capital” (Chesnais, 2001). Essadesignação explicita a natureza de classe dos fenômenos em questão.93 No caso, a referência é a elasticidade em torno do preço, ou seja, na capacidade de variação da demanda em razãodas variações nos preços das mercadorias em questão.94 Ainda que a concorrência não fosse tão intensa quanto no setor manufatureiro, ela era significativa, como veremosadiante.95 A concorrência intrasetorial é aquela entre capitalistas de um mesmo setor, ou seja, daqueles produtos queconcorrem diretamente entre si, enquanto a concorrência intersetorial diz respeito à concorrência entre setoresdiferentes (Saad Filho, 2011). A concorrência intersetorial ocorre pelo fluxo de capital dos setores menos lucrativosaos mais lucrativos. O tema será retomado no capítulo 3.

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capitais buscam maior lucratividade sem se importar com a atividade concreta na qual o valor é

investido (Saad Filho, 2011). Por esse motivo, há fluxo contínuo de capital para os setores mais

lucrativos, ocasionando a aproximação das taxas de lucro em relação à média geral.96 Portanto,

também o capital varejista sofre influência da equalização da taxa geral de lucro, de modo que,

ainda que diretamente a intensificação da concorrência internacional não depreciasse a taxa de

lucro dos varejistas, em pouco tempo a diminuição do lucro do capital produtivo se transferiria

para o setor comercial. Do ponto de vista da sobreacumulação, o setor foi tão afetado como todo

o capital corporativo.

Assim, a entrada do capitalismo na conjuntura de longa estagnação econômica criou

motivação pela internacionalização do setor com a mesma intensidade que em toda a economia

capitalista. Ainda que o varejo não tenha entrado em situação de acirrada concorrência

internacional tão cedo quanto o setor manufatureiro, não faltaram motivações para que as

corporações varejistas buscassem solução para seus problemas na internacionalização.

Tal como enunciado, no presente estudo o recorte da mundialização volta-se para a

dimensão econômica. Ademais, em concordância com Gereffi (1994), considera-se a distinção

entre globalização e internacionalização. Segundo o autor,

Cadeias globais de commodities são enraizadas em sistemas produtivos que dão origema padrões de comércio coordenado. Um ‘sistema produtivo” liga as atividadeseconômicas de empresas a redes tecnológicas e organizacionais que permitem àscompanhias desenvolver, manufaturar e distribuir commodities específicas. Nos sistemasde produção transnacionais que caracterizam o capitalismo global, a atividadeeconômica não é apenas internacional em escopo; ela também é global na suaorganização (...). Enquanto “internacionalização” se refere simplesmente à amplitudegeográfica das atividades econômicas para além das fronteiras nacionais, “globalização”implica um grau de integração funcional entre essas atividades dispersasinternacionalmente. A necessária coordenação administrativa é realizada por atorescorporativos tanto em estruturas econômicas centralizadas quanto descentralizadas.(Gereffi, 1994, p. 96)

Nesse sentido, a mundialização abarca duas dimensões: a internacionalização, definida

como o aumento de escopo da ação dos agentes econômicos no plano internacional, sendo parte

do que Harvey (2014) designa por “compressão espaço-temporal”; e a globalização, definida

como a integração das regiões e países como partes de um todo articulado e interdependente.

96 Marx designa esse processo por equalização da taxa geral de lucro (1986a). Esse ponto será destrinchado nocapítulo 3.

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Direcionando para os pontos que interessam ao presente estudo, a globalização e a

internacionalização podem ainda ser destrinchadas em dois eixos. Primeiramente, elas abarcam a

transnacionalização da estrutura das empresas, que passam a se fazer presentes em diversos

mercados nacionais; em segundo lugar, ocorre uma intensificação da integração do regional para

com o comércio internacional.

Dado que o capitalismo não pode existir sem mercado mundial, a novidade consiste não

na existência de transnacionalização e de comércio mundial,97 mas na sua intensidade (Harvey,

2014; Santos, 2006). De acordo com a lei hegeliana da transformação de quantidade em

qualidade, mudanças quantitativas acumuladas ocasionam mudanças na natureza dos seres

(Marcuse, 1988). A intensificação acentuada da mundialização econômica levou a integração

mundial a assumir características únicas no capitalismo contemporâneo. Assim, ainda que algum

grau de mundialização se faça presente em todas de sociedades que conviveram com comércio, a

mundialização pós-70 é traço específico do capitalismo flexível.

A transnacionalização da estrutura das empresas ensejou a formação de uma classe

capitalista de presença internacional. Essa classe se caracteriza pela dispersão das partes

componentes de uma empresa em diversos países, partes que se articulam por meio de estruturas

verticalizadas situadas nos países originários das empresas.98

A transnacionalização responde a um contexto de crescente concorrência no setor.

Segundo Tilly (2007a), ao longo da década de 1960 o capital do setor varejista passou por

processo de crescimento exponencial nos países de capitalismo desenvolvido. O crescimento

contínuo das corporações fê-las adquirir anatomia nacional, conduzindo-as a esbarrar nos limites

dos mercados nacionais de origem. Por essa razão, a internacionalização “foi um resultado da

97 No registro do próprio Marx, o capitalismo não pode existir sem sistema colonial, que é parte da acumulaçãoprimitiva de capital. Em termos historiográficos, esse tema deu margem a amplos e polêmicos debates. Para umaposição consistente a respeito dos vínculos indissociáveis entre sistema colonial e formação do capitalismo, verNovais (1989).98 Quando o presente trabalho defende a tese da transnacionalização da estrutura empresarial, não está sendo feitaadesão às teses da formação de uma burguesia mundial, que, em razão de sua presença internacional, não teria maisvinculação política e econômica com nenhum país e Estado nação específico. Acompanhando Martuscelli (2010),entende-se que as teses da formação de uma burguesia mundial unificada reproduzem as ideologia burguesa daglobalização como fenômeno neutro. Para o presente estudo, a transnacionalização é parte da ofensiva do grandecapital dos países capitalistas desenvolvidos, que encontram na globalização um meio de manter sua hegemonia emcontexto de crise. Ademais, na esteira de Harvey (2005) entende-se o aumento da presença internacional decorporações capitalistas como parte do incremento e da diversificação dos recursos de acumulação por espoliação.Em suma, a transnacionalização incrementou a dominação imperialista e as hierarquias de classe, incluídas aquelasentre burguesias de diferentes países.

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consolidação e saturação dos mercados varejistas domésticos dos países mais ricos” (Tilly, 2007a,

p. 2). Nesse sentido:

O comércio de varejo é cada vez mais internacional em escopo, com os varejistas dospaíses desenvolvidos se expandindo para países estrangeiros, tanto desenvolvidos quantoem desenvolvimento (...). À medida que os mercados nacionais tornam-se maissaturados, mais e mais negócios procuram novas oportunidades para expansão em paísesmenos desenvolvidos. Novas legislações comerciais, o crescimento da União Europeia ea desregulamentação das economias mundiais [deregulation of world’s economies],junto à criação de outras grandes áreas de livre comércio, como o NAFTA, o Mercosul,o ASEAN, etc, estão encorajando a globalização dos mercados. Os custos declinantes dacomunicação e dos sistemas de informação também estão facilitando ainternacionalização das atividades varejistas (ILO, 2003, p. 12)

Assim, a internacionalização das grandes corporações varejistas é produto da saturação

dos mercados locais.99 Essa tese é respaldada pela trajetória de internacionalização das maiores

empresas do ramo, as quais, aliás, são até hoje as maiores do setor. O Carrefour, líder no mercado

francês e segundo no varejo mundial, começou sua expansão em 69; a Metro, líder na Alemanha

e terceira no ranking mundial, iniciou sua transnacionalização em 68; a japonesa AEON em 85 e

a holandesa Royal Ahold em 77. Por sua vez, o Walmart, a maior empresa do mundo desde

2002,100 começou a sua apenas em 91. O motivo provável para a internacionalização tardia do

gigante estadunidense reside na sua presença no maior mercado doméstico do mundo (EUA),

levando ao relativo atraso no esgotamento das possibilidades de expansão no mercado interno

(Tilly, 2007a).101

No que diz respeito às relações com o mercado mundial, a principal mudança pela qual o

varejo passou no contexto do capitalismo global é óbvia: houve incremento do entrelaçamento do

setor para com o comércio internacional (Rosen, 2005; Lichtenstein, 2006).

As importações dos varejistas se realizam sobretudo na forma de manufaturados de

baixo valor agregado, cujos processos de produção são de baixo ou médio nível de intensidade

99 Como pode-se notar, o fragmento também aponta para o papel da política e das instituições. O tema seráretomado adiante.100 De acordo com a listagem da Forbes, o Walmart é a maior corporação do mundo em todos os anos entre 2002 e2016, com exceção dos anos de 2006 e 2009. Em termos de número de empregados, o gigante estadunidense tambémse situa no topo da lista, atualmente com 2,2 milhões de funcionários empregados diretamente pela empresa.101 Nesse momento da exposição, pode ser notado que o tema das transformações no varejo dos países decapitalismo desenvolvido liga-se de modo íntimo com as mudanças políticas e econômicas das sociedadescapitalistas periféricas, uma vez que a internacionalização das empresas em larga medida se dirigiu a esses países.Trataremos do assunto mais tarde, dedicando-lhe seção específica.

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tecnológica. Os principais produtos são do setor têxtil e de vestuários, abarcando desde roupas

comuns até o mercado de alta moda. Além destes, também são significativas as importações de

eletrônicos, brinquedos, peças de máquinas de baixa intensidade tecnológica, etc. (Gereffi, 1994;

Rosen, 2005).

Como a maioria desses produtos são importados dos países recém industrializados do

Leste Asiático, parte significativa do surto de globalização pós-70 deu-se por meio da vinculação

entre essas economias e os países de capitalismo desenvolvido (Lichtenstein, 2006; Rosen, 2005;

Gereffi, 1994). Para Lichtenstein (2017), os dois nervos (sic) do capitalismo contemporâneo são

Bentonville, sede do gigante do varejo Walmart, e a província chinesa de Guandong, a qual , além

de pólo industrial, é o principal porto de exportações da china. Ademais, formaram-se eixos

importantes entre as economias capitalistas desenvolvidas (Euro-EUA-Japão). Para além desses

circuitos, houve incremento geral do quociente de importações, porém de modo menos

significativo (Gereffi, 1994).

Um dos principais fundamentos do incremento do comércio mundial é a intensificação

da divisão internacional do trabalho, pois, no que se refere às relações de produção, o comércio

internacional tem como premissa a criação de vínculos de mercado entre produtores, que por isso

constituem uma divisão social do trabalho. Com efeito, mais do que em qualquer outra época

econômica, no capitalismo flexível se constituiu uma articulação global de processos de

trabalho102. Com vistas à interpretação desse fenômeno, foi desenvolvido o conceito de “cadeias

globais de commodities” (CGC),103 cuja utilização tornou-se progressivamente costumeira,

inclusive pelo “mercado”. Wallerstein o elaborou para se referir a “redes de trabalho e de

processos de produção cujo resultado final é uma mercadoria final [finished commodity]”

(Wallerstein, 1974, apud Lichtenstein, 2017, p. 21). De modo mais detalhado, o conceito CGC

define-se como:

Uma rede de vínculos econômicos que integra processos de trabalho transnacionais ecorporações envolvidas no fornecimento global e no mercado mundial de produtos. As

102 De acordo com Hobsbawm (1994), a divisão internacional do trabalho sempre foi traço do capitalismo. Alémdisso, os “anos de ouro” do capitalismo assistiram a um incremento substancial da divisão internacional do trabalho.Nesse ponto, uma vez mais, nota-se que os traços constitutivos da globalização são antes potenciação de tendênciasjá existentes do que fenômeno qualitativamente novo, muito embora, como afirma a lei hegeliana da transformaçãoda quantidade em qualidade, mudanças quantitativas em grande escala gerem fenômenos de natureza nova.103 No original, global commodity chains (Gereffi, 1994)

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análises das cadeias de commodities – também conhecida como "abordagem das cadeiasde commodities globais (CGC)" – é um desenvolvimento da perspectiva do sistemamundo. Ela desafia a assunção de que o capitalismo mantém-se dentro de estadosnacionais por traçar as dimensões organizacionais, geográficas e culturais de cadeiasmundiais de manufatura e de distribuição de bens (Scott, 2014, p. 99)

Além da ênfase na dinâmica global da economia, o conceito de cadeias de commodities

visa o destrinchamento de relações de poder na dispersão geográfica do capitalismo. Em outros

termos, ele busca identificar a formação dos “pontos chave do poder capitalista e do privilégio ao

longo de cadeias de produção dispersas geograficamente” (Lichtenstein, 2017, p. 22).104

Como já enunciado, o incremento do fluxo de transações internacionais funciona não

somente como dispositivo de redução de custo para as empresas, mas também como recurso de

flexibilização produtiva pelas vias do outsoursing e da substituição de mão de obra por insumos

importados. No que tange ao setor varejista, a vinculação com as cadeias de commodities foi

dispositivo para incrementar a capacidade de vitória concorrencial sobre os concorrentes. O

acesso ao mercado mundial viabiliza vantagens em três direções. Em primeiro lugar, ele implica

redução de custos, uma vez que torna possível a importação de produtos de países recém

industrializados nos quais há pouca regulação da relação capital-trabalho, i. e., há menos

impostos e proteções trabalhistas e ambientais. Em segundo lugar, aumenta a concorrência entre

os fornecedores, permitindo vantagens de mercado para os varejistas. Enfim, em terceiro lugar,

com maior número de fornecedores, diminuem as chances de falta de estoques ou de variações

acentuadas nos preços. Combinadamente, esses três fatores desencadeiam vantagens competitivas

para as empresas que fazem uso das cadeias globais de fornecimento.

Embora a abertura das fronteiras comerciais tenha facilitado o acesso a bens importados

para todos, regra geral o grande beneficiário dessa transição foi o grande capital.105 Dado que a

mobilização de recursos é condição para a participação nas CGC, há facilidade relativa para as

maiores empresas. No varejo essa tendência geral do capitalismo se expressa com mais força do

que nos outros setores. Por realizar função comercial, o papel do varejo é fazer circular as

104 A abordagem do sistema mundo entende que a formação do capitalismo implica a formação de uma dinâmicaeconômica internacional, a qual cria constrangimentos para as economias nacionais. Dentre seus determinantes,situa-se a necessidade da divisão do mundo entre países centrais e periféricos. Enquanto os primeiros monopolizamas condições de financiamento e os padrões tecnológicos mais desenvolvidos, os últimos enfrentam limitesestruturais para o desenvolvimento.

105 Essa consequência da globalização endossa a leitura de Chesnais (2001) a respeito da mundialização do capital,assim como a de Duménil e Levy (2007) a respeito da natureza de classe do neoliberalismo.

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mercadorias. Por isso, parte significativa dos investimentos dos varejistas se direcionam para a

aquisição de mercadorias cujo tempo de rotação é baixo. Assim, a mundialização implica

aumento de escopo de fornecedores, aumentando o poder de mercado dos varejistas. Como

resultado, torna-se viável a mudança de fornecedores com relativa facilidade. Em termos práticos,

para os varejistas, oscilações positivas do mercado (como a redução de preços) se traduzem

diretamente em benefícios, ao passo que oscilações negativas nem sempre se traduzem em

resultados negativos, já que a condição de oligopsônio anula em parte o funcionamento das leis

de mercado.106 A abertura comercial amplifica algumas das vantagens competitivas que já

acompanhavam as redes varejistas em relação ao pequeno e médio proprietário.

Do entrelaçamento entre capital varejista e mercado mundial surge um tipo específico de

CGC, a qual será mais uma razão para a vantagem da globalização para o grande capital varejista.

Ao analisar a relação entre empresas varejistas e mercado mundial, Gereffi (1994) formula o

conceito de cadeias de commodities coordenadas pelos compradores, o qual ele desenvolve por

meio de uma comparação com o conceito de cadeias de commodities coordenadas pelos

produtores. Cada um desses tipos de cadeias de commodities “representam diferentes modos

alternativos de organizar as indústrias internacionais [organizing international industries]”

(Gereffi, 1994, p. 95), de modo que cada um dos tipos abarcaria determinada “estrutura de

governança”, sendo componente “essencial dos sistemas de produção internacionais” (Gereffi,

Idem, p. 97). Segundo o autor:

Cadeias de commodities dirigidas por produtores referem-se àquelas indústrias em queas corporações transnacionais (...) ou outras grandes empresas industriais integradasrealizam o papel central no controle dos sistemas de produção (incluindo suas ligaçõesanteriores e posteriores [backward and forward linkages]). Isso é mais característico deindústrias de capital e tecnologia intensiva, tais como a de automóveis, computadores,aeronaves e maquinaria elétrica. A dispersão geográfica dessas indústrias étransnacional, mas o número de países na cadeia de commodities e seus níveis dedesenvolvimento são variados. A subcontratação de componentes é comum,especialmente para os processos de produção mais intensivos em trabalho, assim comoalianças estratégicas entre rivais internacionais. O que distingue os sistemas de produção“dirigidos pelo comprador” é o controle administrativo exercido exercido na sede dasTNC’s [corporações transnacionais] (idem, p. 97)

106 Na verdade, a globalização faz parte das condições da hegemonia do capital mercantil, que é característica docapitalismo globalizado. O tema do oligopsônio e do poder de mercado dos varejistas no capitalismo contemporâneoserá retomado no fim do capítulo.

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Para Gereffi, o critério definidor dos tipos de CGC reside no agente que ocupa a posição

central na rede de relações. Por sua vez, a natureza do agente central ocasiona diversas

características particulares. No caso das cadeias coordenadas pelo produtor, entre outras

características, há monopólio do modo de produzir pelas corporações transnacionais, que

concentram nas suas matrizes os processos de trabalho de alta intensidade tecnológica, restando o

outsoursing para os insumos de baixo valor agregado. Como resultado, forma-se uma divisão

social do trabalho na qual todos os agentes participantes dependem do produtor manufatureiro.

Esse tipo de divisão do trabalho em parte dependia da estrutura das empresas típicas do

capitalismo fordista, as quais concentravam a maior parte da produção no interior das

corporações (Antunes, 2009).

A coordenação de cadeias só é possível na medida em que o capital produtivo está

enredado em circunstâncias que lhe garantem boa condição de mercado. Com efeito, no arranjo

acima descrito, diversos produtores mantinham condição de dependência em relação aos grandes

manufatureiros. Parte dessa condição favorável decorre do marketing em torno dos produtos

manufaturados, pois, havendo demanda pouco elástica em torno de um produto, seu produtor

adquire margem para variar preços e/ou para constranger fornecedores. Como os únicos

detentores do modo de produzir eram os manufatureiros, que se situavam em mercados em

crescente expansão formava-se condição favorável a essa fração capitalista (Gereffi, 1994).

Essa forma de divisão social do trabalho caracterizou parte significativa da história do

capitalismo, sobretudo no período do capitalismo fordista, que se caracterizava pela hegemonia

das corporações manufatureiras. No entanto, para Gereffi (1994), o capitalismo contemporâneo

assistiu à emergência de uma nova configuração de cadeias de commodities, que têm como

agentes centrais corporações varejistas. Para o autor, na conjuntura pós-70 o setor varejista deteve

protagonismo considerável na intensificação da globalização - seja em termos da promoção da

transnacionalização das empresas, seja em termos da promoção da integração comercial.107 Dado

107 Para Gereffi (1994), a formação das CGC dirigidas por compradores implica uma importante mudança nadivisão internacional do trabalho, porém ela não ocasiona a eliminação das CGC dirigidas pelos produtores. Comefeito, parte significativa da globalização ocorreu sob os auspícios do capital produtivo de países centrais, queusaram do comércio mundial para flexibilizar a produção e para baratear insumos. A proposta do autor é explicitarum outro tipo de CGC que convive com as cadeias coordenadas pelos produtores. Essa interpretação de Gereffi(2004) alinha-se com o diagnóstico de diversos autores a respeito do capitalismo flexível, pois entende-se que asnormas flexibilizadoras não substituem as normas típicas do fordismo, mas convivem com elas em combinaçõescomplexas (por exemplo, Harvey, 2014, Antunes, 2009)

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que as análises do sistema mundo se mantiveram centradas exclusivamente no papel do capital

manufatureiro, a nova configuração das CGC ocasionou uma defasagem da teoria em relação aos

processos sociais.

Segundo o autor, as cadeias de commodities dirigidas por compradores

(...) referem-se àquelas indústrias em que grandes varejistas, comerciantes de marcas[com presença de mercado] e companhias de comércio realizam o papel principal naconfiguração de redes de produção descentralizada em uma variedade de paísesexportadores, tipicamente localizados no Terceiro Mundo. Esse padrão deindustrialização liderado pelo comércio tornou-se comum em [indústrias de] trabalhointensivo e de bens de consumo, tais como tecidos, calçados, brinquedos, produtoseletrônicos de consumo, utensílios domésticos e uma ampla gama de itens feitos à mão(...). Os contratos de trabalho novamente são prevalentes, mas a produção geralmente éconduzida por fábricas independentes do Terceiro Mundo que fazem produtos finais(mais do que componentes ou partes) sob os arranjos dos fabricantes de máquinasoriginais. A especificação é fornecida pelos compradores e pelas companhias de marcaque projetam os bens. (Gereffi, idem, p. 97)

A emergência dessas cadeias é parte do surto de industrialização dos países recém

industrializados do leste europeu, cujo desenvolvimento é dirigido pelo comércio para

exportação. Trata-se de forma particular de divisão do trabalho, na qual há formação de capital

produtivo sob os auspícios do capital comercial.

As peculiaridades das CGC dirigidas por compradores são diversas. Em primeiro lugar,

nelas as negociações comerciais ocorrem dominantemente sem uso de contratos de fornecimento

de longo prazo, como acontece nas cadeias dirigidas por manufatureiros. Disso implica que na

maioria dos casos as encomendas são feitas para períodos de curto ou médio prazo, de modo a

permitir a constante atuação da lei de mercado. Por isso, nela os fornecedores estão

constantemente experimentando concorrência, permitindo aos compradores a mudança de país ou

de região quando conveniente.

Em segundo lugar, nas cadeias dirigidas pelos compradores os produtos são prontos e

quase sempre de baixo valor agregado. Esses produtos são voltados para o consumo final,

comumente seguindo diretamente de algum país exportador para as lojas das corporações de

países desenvolvidos. Trata-se de um sistema diferente das cadeias coordenadas pelos

manufatureiros, nas quais as importações consistiam em insumos produtivos e, portanto, não

produziam mercadorias finais.

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Por fim, nas cadeias dirigidas pelos compradores “frequentemente as empresas centrais

(...) não possuem nenhuma instalação de produção” (Gereffi, 1994, p. 99). “Essas empresas se

apoiam sobre redes de contratantes articuladas de forma complexa que realizam todas as suas

atividades especializadas” (Idem, 1994, p. 99). “O principal trabalho da empresa principal nas

cadeias de commodities dirigidas pelos compradores é administrar essas redes de produção e de

comércio e garantir que todas as partes do processo se juntem como um todo integrado” (Gereffi,

ibidem, p. 99). Assim, o papel do capital varejista inserido na posição central nessas cadeias de

commodities é articular diversos processos produtivos, o que esse capital consegue fazer por

meio de sistemas de gerenciamento verticalizados e pela mobilização de sofisticadas tecnologias

da informação.

Para Gereffi, a distinção entre os tipos de cadeias de commodities se assenta na

discussão referente à produção em massa e aos sistemas de especialização flexível dasrelações industriais (...). A produção em massa é claramente um modelo dirigido peloprodutor (...) enquanto a especialização flexível foi gerada, em parte, pela crescenteimportância da demanda segmentada e pelos compradores mais criteriosos[discriminating buyers] nos mercados de países em desenvolvimento (Gereffi, idem p.99).

Em sua abordagem das cadeias de commodities, Gereffi se depara com o problema da

flexibilização do trabalho. Para o autor, as problemáticas a respeito da flexibilidade produtiva

frequentemente se assentam somente sobre a flexibilização do trabalho nos mercados domésticos

dos países desenvolvidos. Por sua vez, os conceitos de CGC dirigida por compradores destrincha

a estrutura organizacional da flexibilização no âmbito internacional (ibidem, 1994).

Em sentido mais geral, a formação de CGC dirigidas por compradores vem associada à

emergência do que alguns autores designam por empresa-rede. Estas são um tipo de empresa

caracterizado pela não entrada direta na produção, mas pela criação de marcas com

reconhecimento de mercado e pelos trabalhos imateriais de coordenação (Alves, Wolff, 2007). A

partir do direito de propriedade sobre a marca, essas empresas conseguem delegar funções do

trabalho produtivo para terceiros por meio do outsourcing. Em razão da facilidade dos fluxos de

investimentos internacionais e do barateamento das tarifas comerciais, torna-se economicamente

viável não entrar diretamente na produção.108 A emergência das empresas rede é traço

108 Expressões dessa tendência são encontradas em empresas como Benetton, Nike, Reebok, Adidas, Zara, etc.

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característico da capitalismo flexível (Alves, Wolff), de modo que sua emergência no setor

varejista é parte de tendências mais gerais do capitalismo contemporâneo.

Como enunciado, em geral o conceito de CGC visa não apenas designar a integração

funcional global, mas também a reprodução de hierarquias regionais. Logo, o conceito de

cadeias coordenadas por compradores conduz à identificação de papel de destaque para o capital

varejista como agente do capitalismo global. Com base desse raciocínio, afirma Lichtenstein:

Nós vivemos em um mundo de rígidas e hierárquicas "cadeias de fornecimento"organizadas e controladas pelos varejistas da América do Norte e da Europa. Mais dametade de todos os conteineres e metade do valor das trocas que move-se do Leste daÁsia até Los Angeles, Newark, Felixtowe (Reino Unido), Rotterdã e Hamburgo sãodestinadas às prateleiras do Walmart, Tesco, Carrefour, Target e semelhantes. Essesmercadores controlam as cadeias de fornecimento, pressionam [squeeze] os produtoresfornecedores de mercadorias e mudam a produção de um local a outro com facilidade eeconomia. Assim como as casas de algodão do século XIX podiam mudar suas fontes desuprimento do Mississipi para a Índia ou Egito, podem hoje as empresas de celulares,camisetas e sapatos encontrar seu local de fabricação em Honduras, no Delta do Rio dasPérolas, na cidade Ho Chi Minh ou em Bangladesh (Lichtenstein, 2017, p. 21)

Em suma, parte significativa do incremento do comércio mundial característico do

capitalismo flexível é realizado diretamente pelo grande capital varejista. Por se tratar de

dimensão fundamental da globalização, infere-se que o capitalismo globalizado em parte foi

criado pelo capital varejista (Lichtenstein, 2006; Gereffi, 1994; Rosen 2005).

Além do seu papel na globalização, o conceito de cadeias coordenadas por compradores

conduz à polêmica tese da mudança nas relações de força entre produtores e compradores ou, em

termos marxistas, das relações entre capital produtivo e capital comercial. Lichtenstein (2006)

defende a tese da “supremacia do capital mercantil” como traço do capitalismo contemporâneo.109

O tema será retomado de modo mais detido na seção final. Por ora, cabe ressaltar que o

capitalismo flexível criou vantagens para o capital varejista, as quais foram conseguidas a

expensas dos pequenos varejistas e dos fornecedores.

Mesmo abstraindo a tese da hegemonia do capital mercantil, não se pode ignorar que

esse conjunto de mudanças configurou nova condição para o capital varejista. Regra geral, a

globalização foi usada como recurso para substituir mão de obra diretamente contratada pela

109 É possível identificar o conteúdo do conceito de hegemonia do capital comercial em diversos autores (porexemplo, Carden, 2011; Abernathy et al, 2000; Rosen, 2005), porém, a expressão só aparece de modo categórico emLichtenstein (2017). O tema será retomado no final, quando será feito um balanço das transformações gerais dovarejo no capitalismo flexível.

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compra de insumos produtivos mais baratos, levando à diminuição do tamanho das empresas. No

caso do varejo o resultado tomou sentido contrário, pois a emergência de um contexto

excessivamente favorável gerou pura e simplesmente centralização de capital.110 No que tange ao

modelo corporativo, a transição rumo ao capitalismo flexível não implicou em horizontalização

das atividades empresariais, mas em incremento das hierarquias verticalizadas (Lichtenstein,

2017). A vinculação com o mercado mundial trouxe vantagens competitivas para as maiores

empresas, dando oportunidade para que a racionalização das cadeias logísticas se estendesse para

o plano global. Sobretudo as redes descontistas fizeram uso massivo das cadeias globais de

commodities, que foram parte constitutiva dos dispositivos de barateamento típicos dessa

estratégia empresarial.

Essas mudanças são parte de uma nova relação de forças entre capital varejista e

manufatureiros. Porque a globalização possui intrincados vínculos com outros traços do

capitalismo flexível, a assimilação das novas relações entre capital produtivo e comercial

demanda esclarecimento a respeito das outras dimensões da transformação flexível do varejo. Em

especial, salta à vista a importância dos recursos tecnológicos informacionais, sem os quais todo

o novo arranjo seria impossível.

Por esses motivos, antes de extrair algumas conclusões, será feito um resgate das

principais transformações no âmbito das tecnologias da informação. Na sequência, será retomado

o tema da hegemonia do capital comercial.

2.3 O varejo na era da tecnologia da informação

O propósito da presente seção é a realização de um breve panorama das transformações

tecnológicas e organizacionais no setor varejista dos países de capitalismo desenvolvido. Mais

precisamente, o faremos com destaque para o impacto das tecnologias da informação (TI’s).

110 No registro de Harvey (2014), o capitalismo flexível é caracterizado por relações dinâmicas e contraditóriasentre centralização e descentralização de capital, pois ao mesmo tempo em que proliferam os nichos de mercado eque se abre espaço para atuação de pequenas empresas, ocorre intensa centralização de capital. Para a presentepesquisa, essa complexa relação entre centralização e descentralização é mais simples no setor varejista, pois nelepredomina o polo centralização, seja no interior das empresas, seja no campo dos fornecedores, como será tratado naseção final.

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Como o tema é abrangente, a exposição abarcará sobretudo as principais características e as

tendências gerais.

Em termos teóricos gerais, a interpretação do desenvolvimento tecnológico assenta-se na

tradição marxista, a qual avalia criticamente a natureza da técnica em sociedades caracterizadas

por antagonismo de classe. Em sociedades capitalistas o incremento da capacidade técnica não

corresponde apenas a um processo natural de expansão do controle humano sobre a natureza, mas

também ao propósito de reestruturação das relações sociais com vistas à sua adequação às

necessidades da acumulação de capital.

No que tange às TI’s, além das finalidades mais gerais ligadas à automação dos

processos de trabalho e ao incremento da capacidade de coordenação de maquinaria complexa, a

renovação técnica respondeu às necessidades da crise do capitalismo fordista. Consequentemente,

no seu emprego produtivo o papel assumido pelas TI’s foi o da flexibilização das relações de

produção. Dado o contexto de crise da acumulação, é inevitável que a aplicação tecnológica seja

determinada pelo modo de produção capitalista. Como a flexibilização se tornou condição da

valorização do valor, as mudanças na estrutura produtiva tomaram o curso da superação (relativa)

da rigidez do fordismo. Como produto desses determinantes sociais amplos e como resultado de

lutas de classe, as TI’s se cristalizaram nas formas que conhecemos.

2.3.1 Tecnologias no varejo

O primeiro constrangimento social à aplicação de tecnologias produtivas diz respeito aos

condicionantes gerais do uso de maquinaria no capitalismo. Para Marx (2013), toda técnica de

produção apenas possui aplicabilidade à medida que seus ganhos em termos de produtividade

compensem os custos dos investimentos nas inovações.111 Traduzindo essa consideração para o

setor varejista,112 Cortada afirma que “Tecnologias de manejo de informações [Information-

handling technologies] surgiram quando seus custos caíram o bastante para compensar os custos

de administração dos inventários e do trabalho com os métodos anteriores” (Cortada, 2004, p.

283)

111 Essa problemática a respeito da maquinaria é endossada por Rosdolsky (2001).112 Apesar dessa consideração, Cortada não se filia à tradição marxista, como nossa escrita possa sugerir. Arrumar.

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Junto a outros fatores, esses condicionantes explicam a razão do relativo atraso da

implementação de TI’s no setor varejista. Diferentemente da manufatura, que já começou a

informatização no início da década de 1950, no comércio o mesmo processo só começou de

modo incipiente no final da mesma década (Cortada, 2004). Essa diferença se traduziu na

discrepância quanto ao pleno revolucionamento do setor pelas TI’s: enquanto nas manufaturas

essa mudança de qualidade ocorreu no final dos anos 1960, no comércio a revolução

informacional só foi implementada de fato no começo da década de 1980 (Cortada, 2004;

Abernathy et al, 2000).

Como até a década de 80 o setor era caracterizado por baixa intensidade tecnológica, no

comércio do período pré-informacional a principal fonte de custos consistia em salários. Por essa

razão, é conhecida a preocupação do setor em tentar implementar inovações técnicas que

desencadeassem eliminação de postos de trabalho (Cortada, 2004; Abernathy et al, 2000).

Costumeiramente, o segundo principal alvo de racionalização capitalista do setor foi a

gestão de estoques, o que se explica por diversas razões. Em primeiro lugar, no período pré-

informacional era grande o conjunto de funções do trabalho113 necessárias nesse empreendimento.

Dado que a maioria das atividades ligadas aos estoques são vinculadas à forma valor e que que

inexistiam recursos técnicos para processar as informações, havia necessidade de funções do

trabalho detidas de qualificação intelectual e técnica. Embora essas atividades não fossem além

da matemática básica em termos conceituais, as relações de grandeza e a multiplicidade de

operações associadas entre si faziam com que o trabalho nessas funções fosse dispendioso e

ineficiente.

Em termos dos fluxos de estoques, frequentemente esse estado de coisas resultava em

problemas de coordenação. Por haver incapacidade de avaliação precisa das vendas, havia

incapacidade de repor de modo os estoques, que frequentemente ficavam aquém ou além da

necessidade. No caso da falta de estoques, a consequência é a perda de oportunidade de vendas e

a piora na qualidade dos serviços da empresa, ocasionando perda de competitividade; no caso do

excesso, há duas possibilidades: ou o capital investido não consegue se valorizar (caso da

incapacidade de vendas), ou há demora no retorno lucrativo do investimento. Nas duas

113 Usamos funções do trabalho em termos genéricos para nos referir às funções do ponto de vista do processo detrabalho, e não para designar as funções sociais do ponto de vista da reprodução capitalista. O tema será explorado naseção 4.

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possibilidades, há deterioração da taxa de lucro, seja em razão da destruição de valor, seja em

razão da diminuição no tempo de rotação do capital.114 Logo, excessos de estoque implicam

deterioração do desempenho econômico.

Por essas razões, no período pré-informacional os dois principais problemas enfrentados

pelas inovações técnicas eram a eliminação de postos de trabalho, a qual incorre no incremento

da produtividade do trabalho para os funcionários remanescentes, e a racionalização da gestão

dos estoques e da logística em geral. De fato, esses dois pontos foram o foco de todas as

transformações pelas quais o setor passou e, em certa medida, das mudanças pelas quais ainda

está passando.115

2.3.2 Os três períodos

Segundo Cortada, é possível identificar três grandes períodos de transformação

tecnológica no setor.116 Nos termos do autor:

A história das aplicações [tecnológicas] no varejo (e em boa parte no atacado) pode serdividida em três períodos (...). O primeiro, cobrindo o surgimento do digital e asprimeiras aplicações da informática, ocorreu nos anos 50 e ao longo do começo dos 70 –um período relativamente longo de gestação – enquanto se tentava encontrar maneiras deexplorar as tecnologias emergentes. Eles descobriram que computadores de propósitosgerais por si só não proviam aplicações tecnológicas economicamente atraentes e nemcapazes de alterar a indústria. Contudo, no segundo período, nos anos que vão da metadeda década de 70 (...) até o começo da década de 90, as circunstâncias se alteraramradicalmente. Novas tecnologias que eram específicas do setor [emergiram] (...) eaquelas que se mostraram de bom custo benefício e funcionalmente atraentes (...) seespalharam ao longo dessas indústrias. O terceiro período, abarcando os anos em que ainternet tomou sua própria configuração comercial (pós-1994), trouxe mudançasfundamentais no modo como os varejistas e atacadistas faziam negócios (...). As duasindústrias entraram no século XXI passando por mudanças básicas no modo comorealizavam seu trabalho e como se comunicavam e interagiam com os clientes, com osfornecedores e com os rivais. (Cortada, 2004, p. 285-6)

114 O conceito de tempo de rotação do capital, bem como sua vinculação com a taxa de lucro, será abordado nocapítulo 3.115 Como se pode notar, essas transformações replicam tendências gerais da reestruturação produtiva no setorvarejista. De acordo com Antunes (2009), parte significativa da flexibilização do trabalho consiste precisamente naeliminação de postos de trabalho improdutivas e no controle flexível de estoques.116 Certamente, a partir de 2009 seria possível identificar um quarto período de transformações no setor, as quaisdecorreram de inovações ligadas ao uso de smartphones e à manipulação massiva de dados. Contudo, dado o traçoainda muito recente das mudanças, acompanhamos a literatura mais sistemática, que analisou mais detalhadamentesobretudo as transformações até meados da década de 2000. Certamente, trata-se de um caminho instigante paraposteriores pesquisas.

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Na leitura do autor há um processo progressivo de evolução da capacidade das TI’s no

que tange ao incremento da eficiência do setor varejista. Essa progressão, que não é linear, indica

sobretudo a existência de continuidades entre as inovações tecnológicas dos períodos. A ideia

subjacente diz respeito à necessidade de que toda inovação tecnológica faça uso dos dispositivos

de funcionamento já existentes nas empresas, pois toda evolução tecnológica não ocorre no plano

abstrato, mas em condições históricas concretas. Em alguma medida a destruição criativa

empreendida pelo capitalismo precisa ligar-se às estruturas técnicas existentes.

Procurando apontar para essas continuidades e descontinuidades, serão apontadas as

principais tendências de cada período.

2.3.3 O primeiro período

Como exposto, o atraso na informatização do varejo deveu-se sobretudo à ausência de

número significativo de empresas grandes no setor. Essa condição é explícita quando se compara

as empresas varejistas com o setor manufatureiro, dado que o capitalismo fordista tinha nas

corporações manufatureiras as empresas modelo (sic) da época. É o caso de empresas como GM,

Ford, General Eletric, Standart Oil Co., etc, cujos modelos corporativos eram paradigmáticos

para o capital corporativo (Lichtenstein, 2006). Essa condição do setor varejista foi fonte de

atraso nas inovações técnicas do setor.

Efetivamente, como é padrão no capitalismo, os setores mais concentrados e

centralizados do ponto de vista capitalista são os responsáveis pelas invenções e aplicações de

novas tecnologias (Marx, 2013; Harvey, 2013). A razão para essa característica geral consiste no

monopólio do grande capital sobre a capacidade de financiamento, a qual é condição da criação

de novas técnicas produtivas. Costumeiramente, as inovações técnicas são implementadas

primeiro em grandes corporações. À medida que a produção dessas novas técnicas ocorre em

escala, há barateamento das tecnologias, o que possibilita sua difusão ao longo das cadeias

produtivas. Em razão da ausência de um empresariado concentrado no varejo, o setor realizou

uma informatização pouco significativa até a década de 70 (Cortada, 2004).

Esse estado de coisas explica a natureza das tecnologias da informação no primeiro

período. De modo resumido, ela assumia duas formas: primeiramente, a do emprego de grandes

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computadores por parte das maiores empresas do setor, traço geral que possui inúmeros exemplos

sobretudo na gestão de estoques;117 em segundo lugar, a do emprego de técnicas voltadas para o

mapeamento das vendas, permitindo identificação de tendências do mercado consumidor,

variações nos estoques e necessidades de reposição.

O saldo geral dessas inovações é ambíguo. Segundo Cortada (2004), no começo da

década de 70 o setor comercial em geral experimentava sentimento de frustração em relação às

tentativas de informatização, tendo em vista que a maioria delas trouxe poucos benefícios em

relação aos pesados investimentos dispendidos.118 Regra geral, as iniciativas fracassaram na

promoção de ganhos substanciais de produtividade, uma vez que elas ainda não conseguiam

realizar uma integração sistêmica do processamento de dados. As informações geradas em cada

uma das partes do sistema eram mediadas por trabalho vivo, que devia interpretá-las e transferi-

las de máquina a máquina ou de máquina a planilhas de preenchimento manual. Como corolário,

enquanto as tarefas de avaliação das variações de estoques continuavam essencialmente

vinculadas às habilidades dos trabalhadores, os dispositivos técnicos mantinham papel secundário

no funcionamento do sistema produtivo.

Por outro lado, sem as inovações, é difícil imaginar a continuidade da evolução técnica

experimentada pelo setor nas décadas seguintes, pois cada inovação têm em seu núcleo os

dispositivos técnicos usados e testados nos períodos anteriores. Ainda que tenha conduzido à

inexpressivas transformações, o primeiro período criou as bases para as mudanças posteriores.

Por certo, os sistemas integrados típicos do varejo globalizado seriam impossíveis sem as

primeiras aplicações de computadores no processamento de dados (Cortada, 2004). Essa regra

geral também é válida para a captação de informações a respeito do consumo, de modo que os

leitores de código de barras seriam inconcebíveis sem os punch cards119 utilizados amplamente

nos anos 70, sobretudo no varejo de vestuário.

117 A esse respeito, ver Cortada, 2004, p. 290-291.118 Nas palavras do autor: “As várias indústrias varejistas entraram os anos 1970 coletivamente frustrados com ograus e inovações tecnológicas em curso. As ferramentas de sofware de controle de inventário permaneciamdispersas [elusive], em larga medida por causa do enorme montante de trabalho necessário para registrar e localizartantos itens de estoque. As grandes lojas, por exemplo, carregavam mais de 100.000 itens, e um relatório do períodonotou que um número tão grande requeria milhões de horas de trabalho para contar e organizar oinventário”(Cortada, 2004, p. 293)119 Os punch cards são cartões com furos. Programando uma máquina para reconhecer os furos com sistemas decódigos, torna-se possível o processamento de informações por máquinas. O varejo utilizava esse sistema paramapear o consumo, sobretudo no setor de vestuário. Essa tecnologia foi precursora dos leitores de códigos de barras.

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De todo modo, em razão das circunstâncias apontadas, até a década de 1960 o foco das

inovações era dado principalmente sobre os dispositivos organizacionais. A modernização do

varejo no período alterou pouco em relação ao quadro conceitual que construímos no capítulo 1,

ou seja, ela consistiu no aprimoramento do autosserviço, na centralização de capital, na

unificação de dispositivos administrativos e logísticos.120 Embora não contassem com apoio de

inovações tecnológicas substanciais, o aperfeiçoamento do autosserviço, a implementação de

maquinarias para facilitar o trabalho de funções parciais e a gestão taylorista do trabalho

viabilizaram ganhos contínuos de produtividade mesmo antes da revolução informacional. Além

disso, como exposto, algumas transformações no capitalismo do século XX contribuíram para

passar a demanda para as modalidades modernas de varejo. Assim, mesmo sem mudanças

técnicas substanciais, o varejo prosseguiu na racionalização capitalista dos seus recursos, abrindo

caminho para a revolução porvir.

2.3.4 O segundo período

O segundo período se caracteriza pela emergência de tecnologias específicas para o

varejo e pela tendência à sua crescente adoção ao longo de todos os procedimentos do setor.

Pode-se dizer que o signo geral das transformações consiste no esforço de integração de todas as

etapas em sistemas articulados de processamento de dados.

Em termos técnicos, há quatro mudanças fundamentais pelas quais o setor passou no

segundo período: os leitores de código de barras, a formação de tecnologias associadas à Troca

Eletrônica de Dados (conhecido por sua abreviação em inglês - EDI, referente à Eletronic Data

Interchange), os pontos de venda eletrônicos e os computadores. Após exposição de cada um,

será tratado o seu funcionamento articulado, quando demonstraremos a íntima conexão de sentido

entre eles.

120 A causa aparente para que já então existisse impulso por transformações técnicas e organizacionais é ocrescimento da concorrência intrasetorial no setor, a qual pressionava para baixo as taxas de lucro. Contudo, a causade fundo é a formação do modo de produção capitalista no setor, como será tratado mais tarde.

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2.3.4.1 O leitor de códigos de barra

Originalmente designados como Universal Price Code (UPC), os códigos de barra

(CB’s) provavelmente foram a mais significativa das inovações tecnológicas (Basker, 2015;

Lichtenstein, 2017). A tecnologia consiste no uso de codificação numérica que toma a forma de

listras pretas identificáveis por escâneres a laser.121 Atrelado a computadores, o recurso viabiliza a

associação dos códigos numéricos para com informações do produto, tais como preço e

descrição. Como resultado, torna-se possível a inserção de informações de produtos em

computadores com mera passagem de leitores pelos códigos vinculados ao produto.

As vantagens dos CB’s atravessam todo o sistema varejista, implicando ganhos de

produtividade em todas as atividades do setor. Fazendo uma avaliação geral do seu impacto

econômico, afirma Cortada:

Os mais importantes desenvolvimentos [de tecnologias] digital[is] do século XX queafetaram a capacidade das indústrias usar computadores foram, sem dúvida, a invençãodo chip de computador, a capacidade de transmitir dados digitais por meio de linhastelefônicas, provavelmente o surgimento da Internet e mais certamente a criação doCódigos de Produto Universais122. Seria difícil exagerar a importância deste último itemtanto para a indústria quanto para a economia como um todo. Originalmentedesenvolvido em resposta às necessidades da Indústria Supermercadista nos anos 70, nofinal do século ela estava em uso em todo o varejo, atacado e indústrias manufatureiras;ela também apareceu em muitas outras indústrias, como serviços de entrega e deembalagem, em capas de revista e mesmo em bibliotecas. Nas indústrias varejistas elavarreu os velhos punch tickets como um maremoto, vinculou as lojas com os depósitosde modos claramente econômicos, mudou as relações entre varejistas e fornecedores,mudou o balanço de poder econômico da manufatura em direção ao varejo e no processofez o varejo uma das indústrias mais intensivas no final do século. Em suma, o CBcumpre os requisitos básicos que os acadêmicos demandam de qualquer mudança antesde dotá-las com o adjetivo revolução (Cortada, 2004, p. 296-7, grifos no original)

Para Cortada, a razão para denominar o processo de implantação dos CB’s como

“revolução” reside no seu espraiamento em toda a economia, além, é claro, da profundidade da

transformação das práticas. A inserção desse novo dispositivo tecnológico permitiu às mais

diversas indústrias adotarem um padrão de codificação informacional comum, de modo a

promover ganho de eficiência em todas as etapas das transações econômicas. Além do benefício

121 Existiram (e ainda existem) muitas outra disposições dos signos, porém a mais comum é a de listras pretasalinhadas na disposição vertical.122 Tradução literal para Universal Product Code, que no Brasil são conhecido como códigos de barras. Daqui emdiante sempre traduziremos Universal Product Code (UPC) por Códigos de Barras (CB).

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econômico ligado à economia de custos, esse dispositivo possui impacto acentuado pela

facilitação da integração de mercado. Criando um padrão comum aceito em toda a economia

nacional – e, atualmente, internacional – torna-se mais fácil a integração dos produtores numa

única divisão social do trabalho. Por isso, além do ganho de eficiência para o capitalista

individual, esse dispositivo traz acentuados ganhos na melhoria geral das condições de

funcionamento da economia.

No que se refere ao varejo especificamente, as principais mudanças concernem ao

trabalho e à capacidade de levantar informações a respeito da dinâmica dos estoques (Basker,

2015; Lichtenstein, 2017). Acerca do trabalho, os leitores de código de barra tiveram implicações

que abarcaram desde a eliminação de postos de trabalho, a desqualificação e a taylorização dos

postos de trabalho de checkout.123 Do ponto de vista da capacidade de controle dos estoques, a

mudança é ainda mais substancial, pois os códigos de barra permitem o levantamento de

informações precisas a respeito das vendas. Segundo Dunlop e Rivkin,

Quando um consumidor compra um item… o leitor de código de barra na caixaregistradora lê o símbolo do código de barra do item. O ponto de venda usa o Códigopara procurar o preço atual do item em uma database local ou em um computadorcentral. Quase ao mesmo tempo, a informação de que a camiseta [e.g.] foi fendida étransmitida para os compradores da companhia [Federated’s buyers]. Lá a informação éusada de dois modos. Primeiro, ela provém a companhia [Federated] com conhecimentopreciso e imediato do que está sendo vendido e do que não. Os compradores podem usaresse conhecimento para ajustar suas compras dos fornecedores. Segundo, édesencadeado um processo de reposição do estoque de uma camisa de tecido, cor,tamanho e estilo particulares de uma loja (Dunlop e Rivkin, 1997, p. 10, apud Cortada,2004, p. 300)

Como os LCB’s viabilizam levantamento das informações de venda no ato da venda, seu

emprego desencadeia a possibilidade de armazenamento de maciços montantes de informação a

respeito das variações de estoques. Por essa razão, “o desenvolvimento do UPC [CB] contribuiu

enormemente para a computadorização das atividades dos ponto de venda”, já que se fazia

necessário o emprego de computadores eficientes para processamento dessas informações. Desse

modo, formaram-se as condições “para a criação de sistemas de processamento internos às lojas

nos 80’s e 90’s, e para a distribuição de aplicações de tecnologias da informação ao longo das

empresas” (Cortada, 2004, p. 297). Os leitores de código de barra cumpriram papel decisivo na

informatização do varejo.

123 A análise mais detalhada do impacto do ponto de vista do trabalho será realizada no cap. 5.

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Esses sistemas só se tornaram viáveis à medida que ocorreram transformações

tecnológicas mais gerais nas sociedades capitalistas, as quais viabilizaram simultaneamente o

incremento da capacidade dos computadores e seu barateamento. À medida em que a qualidade

técnica dos computadores aumentaram, formaram-se sistemas integrados de computadores,

checkouts eletrônicos e controle de estoques. Inicialmente, o sistema foi implementado pelas

grandes empresas descontistas estadunidenses (com destaque para o Walmart, pioneiro em todas

as inovações tecnológicas, sem exceção, Lichtenstein, 2006; Gereffi e Christian, 2009), para se

generalizar progressivamente em todo o setor. Como será visto adiante, na década de 80 os

scanners e computadores mantiveram-se como privilégio das grandes corporações, só ocorrendo

sua generalização com o surto de expansão dos computadores dos anos 90.

2.3.4.2 Os EDI’s

O impacto dos leitores de CB’s tornou-se ainda mais efetivo em razão de outra

tecnologia desenvolvida em paralelo, com a qual possui funcionamento em estreita conexão: os

dispositivos de Troca de Dados Eletrônicos (conhecido pela sigla EDI). Trata-se de dispositivo

que padroniza as trocas de informação entre sistemas, permitindo fluxos de informações por

linhas telefônicas ou por dispositivos físicos de armazenamento de dados (como os cartuchos).

Em razão da padronização, Os EDI’s viabilizam processamento automatizado de informações, ou

seja, o fazem sem necessidade de mediação direta de trabalho para sua recepção, interpretação,

transferência e organização (Cortada, 2004; Abernathy et al, 2000).

Por essas razões, os resultados dos EDI’s são diversos. Em termos gerais, eles viabilizam

barateamento dos custos com trabalho, uma vez que diminui o número de pessoal necessário para

realização das funções de envio e recepção de informações. Além disso, ele também permite

eliminação de diversos custos com materiais associados à comunicação, tais como papéis, tintas e

outros materiais de escritório (Abernathy et al, 2000).

Apesar da sua relevância para o trabalho, o aspecto mais importante dos EDI’s consiste

nas suas vantagens no campo da integração dos sistemas, o que se torna possível pela aceleração

das comunicações e pelo incremento na sua eficiência. Em termos de tempo, os ganhos consistem

na possibilidade de transferência de informações complexas em formas padronizadas, as quais

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podem ser enviadas em poucos segundos. Do ponto de vista da eficiência, as benesses dizem

respeito à precisão das informações, que deixam de ser suscetíveis a erros humanos ou a falhas

nos materiais (borrões nas informações, letras ilegíveis, informações incoerentes, depredação dos

materiais, etc). Segundo Abernathy et al:

[o] EDI facilita a rápida transmissão de grandes quantidades de informação com muitomais precisão do que qualquer meio de transmissão via papel. Como os códigos de barra,o EDI envolve tanto desenvolvimentos tecnológicos quanto a padronização de métodospara transferência de dados. A esse ponto, os padrões foram desenvolvidos paracomunicações entre empresas [business-to-business transactions], incluindo ordens decompra, faturas de remessas e transferência de fundos. E pela eliminação de tarefasadministrativas e de atividades de correspondência associadas com informação baseadaem papel, o EDI reduz custos, atrasos de tempo e erros (Abernathy et al, 2000, p. 9)

A combinação dos CB’s e dos EDI’s desencadeou resultados significativos no que tange

à inovação técnica do setor, muitas das quais situadas no âmbito logístico. Com efeito, todos os

autores são enfáticos ao avaliar que a maior parte das transformações técnicas do setor se situam

na parte de trás das lojas (Cortada, 2004; Abernathy et al, 2000).

2.3.5 Lean retailling e a revolução logística

O novo sistema caracterizado pelas tecnologias da informação e pelas transformações na

esfera logística chama-se lean retailing, o qual consiste na implementação dos dispositivos da

produção flexível no setor varejista. Em termos gerais, a lean production se caracteriza não só

pela relação dinâmica entre produção e consumo, mas também pela reorganização técnico-

organizacional com vistas a produzir o máximo com o mínimo de recursos (Antunes, 2009). No

caso do setor varejista, esses protocolos gerais se realizam tanto pela relação dinâmica entre

produção, circulação, armazenamento, organização, distribuição e consumo quanto pelo

incremento da racionalização capitalista sobre o trabalho e sobre os insumos produtivos.

Dada sua natureza dinâmica, a criação das condições do sistema flexível prescreve um

revolucionamento em todos os momentos da atividade comercial, abarcando desde as relações

com consumidores até o contato com as cadeias de fornecimento. Segundo Abernathy et al,

(...) coletar e gerar ordens eletronicamente é apenas uma parte da história. O leanretailling também precisa de um sistema para lidar de forma eficiente com os embarques

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recebidos de fornecedores, para verificá-los diante das ordens dos varejistas, paraprocessar os recibos e os pagamentos dos fornecedores e para rapidamente dirigir essasordens às devidas lojas. Esses elementos se assentam sobre centros de distribuiçãocentralizados que servem às funções logísticas. Diferentemente de um simples depósito– ou da parte do fundo das lojas de varejo - que funciona como um ponto para retençãode estoque pedido muito antes da venda, um centro de distribuição direcionarapidamente para as lojas embarques que chegam de fornecedores (Abernathy et al,2000, p. 7-8)

Assim, a formação do lean retailing implica automação dos processos de trabalho no

âmbito da logística, uma vez que todo o sistema demanda rapidez e precisão. No âmbito do fluxo

de informações, essas necessidades são atendidas pelas EDI’s e pelo barateamento dos

computadores; do ponto de vista do levantamento das informações no âmbito do consumo, a

necessidade foi atendida pelos pontos de venda computadorizados e integrados com leitores de

CB’s. No âmbito do armazenamento, organização e transportes das mercadorias, a solução foi a

mecanização e a coordenação computadorizada dos fluxos de mercadoria (Cortada, 2004;

Abernathy et al, 2000).

No âmbito logístico, a transição em direção ao lean retailing é sintetizada em uma nova

concepção de modalidade organizacional: os centros de distribuição (CD’s), cujo funcionamento

se distingue dos simples depósitos. Nos termos de Abernathy et al:

Um centro de distribuição é a antítese de um depósito. Os depósitos servem como aexpressão física da necessidade de armazenar grandes inventários de bens, [sendo] oprincipal artefato do varejo tradicional. Os centros de distribuição, ao contrário, forma onexo entre os varejistas e seus fornecedores. Eles servem para processar os bensrecebidos [incoming goods] de forma eficiente, para garantir que as entregas recebidasse articulem [match] os pedidos de compras e para direcionar as encomendas pararemessa na loja correta. Mais do que um lugar para armazenamento, um centro dedistribuição consiste em compartimentos/aberturas [bays] para caminhões de chegada ede saída, uma rede de transporte automatizada e rápida conectando-os e um sofisticadosistema de informação [voltado] tanto para controlar os movimentos de recepção doscarregamentos quanto para processar as transações referentes às remessas (Abernathy etal, 2000, p. 10)

Os depósitos agrupam mercadorias que são gerenciadas por sistemas de controle

tradicionais, ou seja, sistemas fundamentalmente dependentes da habilidade dos trabalhadores.

Por seu turno, os CD’s são dinamicamente ligados aos fornecedores e ao consumo final. Para se

tornar viável, as unidades logísticas precisam ser integradas à administração e às lojas via TI’s.

No sistema flexível, os computadores não só processam as informações, mas também integram

todos os procedimentos das empresas; por sua vez, os leitores de CB’s levantam informações a

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respeito do consumo e os EDI’s viabilizam a comunicação rápida e eficiente entre lojas, gerência,

CD’s e fornecedores. Em suma, cada uma das partes cumpre seu papel para a criação de um

sistema funcionalmente diferenciado e coerente.

A mecanização dos CD’s atingiu grau de incremento tecnológico extremamente alto,

sobretudo nas grandes corporações, nas quais o sistema logístico possui elevada composição

técnica. Conforme já enunciado, no varejo a maior parte da transformação tecnológica se situa

“na parte de trás das lojas”, uma vez que, em razão das suas características intrínsecas, há pouca

transformação técnica do trabalho no âmbito das lojas. Como atualmente o setor varejista como

um todo é considerado intenso em tecnologia (Abernathy et al, 2000), pode-se ter uma estimativa

do grau de mecanização na logística.

Os modernos CD’s funcionam por meio de uma combinação de máquinas automáticas,

cuja coordenação é computadorizada. A coordenação por meio de computadores ocorre por duas

vias: primeiramente, por meio do controle do sistema de máquinas, que confere conexão e

unidade para os processos de trabalho por meio de dispositivos eletrônicos. Como o processo de

trabalho no capitalismo é cooperativo e complexo tecnicamente, se faz necessária a criação de

funções do trabalho voltadas às dimensões intelectuais.124 No capitalismo da era das tecnologias

da informação, essas funções passaram por processo de substituição de trabalho vivo por

máquinas, processo que costumeiramente atingia apenas os trabalhos manuais. Como recurso de

coordenação de máquinas, o uso de microprocessadores viabilizou a eliminação de postos de

trabalho antes ocupados por gerentes e administradores.

A segundo modo da automação foi a integração dos fluxos de mercadoria de maneira

coordenada e centralizada pelas burocracias gestoras das grandes empresas (Abernathy et al,

2000; Lichtenstein, 2006). Esse processo veio acompanhado do incremento das hierarquias

verticais sobre o funcionamento das empresas, apenas tornando-se viável por meio da

combinação de dispositivos de TI’s, da compressão espaço-temporal das atividades de gestores,

do incremento da racionalização das relações verticais das empresas e de centralização de capital.

O melhor exemplo dessas transformações é a corporação Walmart, que foi vanguarda desse

modelo de empresa (Lichtenstein, 2006; Rosen, 2005).

124 Na tradição marxista e em toda a teoria das classes sociais há um longo debate a respeito da natureza das funçõesde gerência e dos postos de trabalho qualificados. Para um panorama do debate, ver Cavalcante (2012).

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Sintetizando as transformações na logística do grande capital varejista, escreve Cortada:

Se se quiser comparar a aparência física e a sensação de um depósito dos anos 80 com,digamos, um dos anos 50 para sentir quais mudanças em estilo ocorreram, dever-se-iapassar pelos computadores do escritório principal e ir na propriamente área dos estoques.Lá sistemas de transportes controlados por microprocessadores, inicialmente instaladosna década de 70, tomaram seu lugar, tornando possível a operação mais eficiente demaiores centros de distribuição. Essa tecnologia tornou possível não somente mover comrobôs produtos ao longo do espaço, mas também para colocá-los em várias prateleiras(algumas chegando à 100 pés de altura), colocar produtos dos depósitos em locais queotimizam sua retirada de acordo com distância e frequência das entregas, bem como comos padrões de demanda. De modo típico, havia um padrão de adoção desse tipo detecnologia. Primeiro, um grande atacadista instalaria transportadores coordenados porcomputadores que organizavam os bens e que usavam códigos de scanner paraidentificar os inventários e para movê-los rapidamente. A geração seguinte de tecnologiacrescentemente integrou software e equipamentos que podiam monitorar o temponecessário para selecionar itens para envio ou para comparar os envios escolhidos comordens de compra originais. Nos anos 80, as duas aplicações se realizaramindependentemente; no começo dos anos 90, os atacadistas estavam juntando todas assuas aplicações do chão de fábrica [shop floor applications] em sistemas integrados.Geralmente esses sistemas reduziam 25 por cento do trabalho necessário por unidade detrabalho enquanto aumentava as qualificações técnicas daqueles remanescentes emáreas como a de manutenção de equipamentos de computador, de software, deadministração de TI’s [tecnologias da informação] e de contabilidade. Parte da razãopara o declínio no trabalho também veio do uso de veículos guiados automaticamente(...). Esses são veículos operados por bateria e sem condutores humanos, [sendo]executados, em vez disso, por microprocessadores capazes de selecionar e mover bensdentro do recinto. Algumas partes dos depósitos foram tão automatizados que aadministração economizou custos com energia por manter poucas ou nenhuma luz acesa(Cortada, 2004, p. 304).

A coordenação altamente centralizada e racionalizada criou condições para o

planejamento detalhado dos fluxos de mercadorias, de modo a tornar possível a criação de um

sistema de fluxos constantes de mercadorias. Por meio desse recurso, tornou-se viável a

diminuição do tempo de rotação do capital, uma vez que as mercadorias diminuem seu tempo de

estadia nos estoques. Do ponto de vista capitalista, a implicação é a diminuição no montante de

investimentos cristalizados sob a forma de capital constante, ocasionando aumento da taxa de

lucro.125

A segunda vantagem dos fluxos constantes de mercadoria consiste na possibilidade de

normalizar o trabalho segundo preceitos taylorista-fordianos ou, nos termos de Marx, em

organizar o processo de trabalho de modo a tornar o trabalhador um mero apêndice do sistema de

125 Como já enunciado, o tema será explorado no capítulo 3

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máquinas.126 Sem a coordenação informatizada, o incremento do controle sobre o trabalho no

âmbito logístico não seria possível no grau em que ocorreu.

Junto à verticalização e à centralização de capital, o conjunto de transformações técnicas

associadas às tecnologias específicas para o setor desencadeou uma transição geral caracterizada

pela integração de todas as atividades do varejo em um sistema funcionalmente diferenciado e

articulado. Nos termos de Cortada:

A tendência fundamental pode ser sumarizada em uma palavra: integração. Os varejistasforam integrando seus sistemas onlines e offlines de POS [pontos de venda] e de outrasaplicações e processos de CRM [gerenciamento de resposta ao cliente] no final doséculo. Ainda que difíceis de realizar, especialmente a coleta de data em tempo hábilpara que pudesse ser usada em tempo real, isso não impediu as grandes redes [varejistas]de iniciar o processo de integração (Cortada, 2004, p. 309)

Todas as características componentes do lean retailing emergiram de modo

relativamente autônomo ao longo do segundo período, sobretudo nos anos 80. Como um

corolário das transformações em cada um dos momentos do empreendimento varejista, emergiu

um sistema integrado no qual cada uma das etapas faz parte de um sistema único.

A integração total é um ideal perseguido pelo capital varejista, que com as

reestruturações visa aumentar a produtividade do trabalho e diminuir o tempo de rotação. Tal

como a subsunção real do trabalho ao capital no registro de Marx (2013), toma a forma de

tendência permanente a transformação dos processos de trabalho com vistas à sua plena

adequação aos interesses da acumulação. Nos dois casos, o capital pretende transformar o

trabalho em mero momento de sua existência.

Por essas razões, necessariamente a tarefa da integração do varejo é sempre inconclusa.

Do mesmo modo que a luta entre capital e trabalho não pode deixar de existir em sociedades

capitalistas, a busca pela plena integração motiva o capital varejista a constantemente

revolucionar o setor. As revoluções características do segundo período, longe de terminarem em

si mesmas, constituíram novo ponto de partida para as transformações do setor, dando margem ao

terceiro período (Cortada, 2004).

126 O tema será retomado no capítulo 4.

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2.3.6 O terceiro período

Todas características dos sistemas integrados de lean retailing emergiram no segundo

período, mas sua generalização só se efetivou no terceiro. De fato, este se caracteriza por duas

tendências: por um lado pela generalização e intensificação das características marcantes do

segundo período e, por outro, pela emergência de novos traços associados à internet. Com

exceção de algumas novas práticas ligadas à internet, como o e-commerce, suas tendências gerais

são continuidade da formação dos sistemas integrados típicos do segundo período. A própria

internet se inseriu como parte dos sistemas técnicos já existentes, o que é natural, dado que toda

inovação técnica em alguma medida precisa ter como ponto de partida a estrutura técnica

existente. Enfatizando essa continuidade, escreve Cortada (2004):

Pode-se argumentar que com exceção do e-business, a lista poderia começar nos anos 70ou 80, e esse é o ponto chave. À medida que novas tecnologias tornaram-se disponíveis,tais como a Internet, computadores baratos e ferramentas de software mais sofisticadas,elas foram adotadas no auxílio das funções de negócios de uma empresa e ao longo dasua indústria (Cortada, 2004, p. 307)

Além disso,

Muitos padrões evidentes nos anos 80 quando do desenvolvimento de softwares ehardwares permaneceram no começo dos anos 90 à medida em que o processo típico dosprimeiros de preencher as principais aplicações continuou: o uso dos POS [pontos devenda] e do EDI, a movimentação automatizada de produtos, a integração mais íntima[closer integration] e o compartilhamento de informações entre os distribuidores e osclientes varejistas, e assim por diante (Cortada, 2004, p. 305)

Em suma, o terceiro período se caracteriza por uma remodelação do varejo em razão dos

dispositivos de comunicação via internet e incremento da capacidade dos computadores, que

também aumentaram sua presença. Apesar da importância das mudanças, há manutenção do

sistema técnico-organizacional anterior, que mudou pouco em termos de sua estrutura, ou seja, de

como são articuladas cada uma das etapas do processo de trabalho.

No entanto, as continuidades entre segundo e terceiro período não podem apagar as

diferenças. Se é verdade que em termos os princípios as novas configurações apenas replicaram

os modelos anteriores, em termos das práticas concretas surgiram algumas novidades. Uma delas

consiste no incremento dos recursos para mapeamento das preferências dos clientes (Cortada,

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2004). Com efeito, essa nova tendência se expressou em novas diretrizes para os departamentos

de administração do setor, que passaram a conferir destaque para a constante adaptação aos

interesses de nichos de mercado.127

Dentre esses recursos, destaca-se o aumento de investimento nos estudos sobre

preferências de clientes. Uma parte dessa transição se explica por tendências gerais do

capitalismo flexível. Da década de 80 em diante, ocorreram inovações no âmbito das formas de

gestão das empresas, as quais tiveram na captação da subjetividade dos trabalhadores e dos

clientes um dos seus pontos principais (Prado e Guedes Pinto, 2014; Antunes; Alves, 2004). Além

da iniciativa direta das empresas em direção à flexibilidade, essa transição é fruto de mudanças

na própria área de estudos de administração, que incorporaram crescentemente o problema das

preferências dos clientes. Parte dessa transição epistemológica foi operada pela emergência da

sociologia do consumo, que mobiliza o referencial sociológico para compreender o

comportamento dos clientes. Como resultado geral, a gestão das empresas tomou o problema

como maior centralidade.

O terceiro período também assistiu à formação de uma nova e importante tecnologia: a

identificação por radiofrequência, conhecido pela sigla RFID, que refere-se ao original Radio

Frequency Identification. Essa tecnologia, cuja implementação ainda é relativamente restrita,

permite identificação e rastreamento de ondas de rádio. Ela funciona junto a etiquetas que emitem

as ondas e que contêm informações a respeito dos produtos, de modo semelhante aos códigos de

barra. Porém o RFID possui algumas particularidades que fazem-no mais vantajoso do que os

CB’s.

Suas diferenças principais residem na capacidade de identificação automática, na

identificação à maior distância e na capacidade de rastrear as mercadorias (ILO, 2006). A

identificação automática e à distância são inseparáveis, pois é precisamente esta que permite

aquela, ou seja, é porque se identifica à distância que pode-se automatizar o processo. Com

efeito, por meio dos RDFI pode-se levantar a informação das mercadorias sem nenhum tipo de

trabalho manual direto, dado que a simples passagem das mercadorias pelos detectores é causa

127 Essa nova disposição tomou forma numa nova forma de gestão das empresas face o consumidor, expressando-sena formação do Consumer Response Management como um dos princípios da administração empresarial.

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suficiente para que a informação seja inserida no sistema computacional. Por meio desse recurso,

diversas atividades podem ser completamente automatizadas (ILO, 2006).

A principal debilidade dos RDFI consiste no seu elevado custo frente aos leitores de

código de barra. Esses custos se referem tanto aos custos diretos com as etiquetas dos RDFI

quanto aos gastos com infraestrutura. No primeiro caso, o limitante é o aumento de preço

excessivo por cada mercadoria, fazendo o recurso viável somente para mercadorias caras (ILO,

2006). No caso dos gastos com infraestrutura, a diferença se deve sobretudo à necessidade de

incremento da capacidade dos sistemas computacionais, pois, por gerarem informações sobre a

localização das mercadorias em tempo real, a identificação por radiofrequência gera enormes

montantes de informação (ILO, 2006). Só sistemas computacionais sofisticados conseguem

processar essas informações sem sobrecarga. Ademais, há necessidade de instalação de antenas

detectoras, que também implicam custos.

Os RDFI’s viabilizam a eliminação de postos de trabalho em inúmeras funções. A

principal etapa na qual sua implementação tem obtido êxito nos últimos anos é a logística, pois

nela as etiquetas podem ser posicionadas em caixas e pallets, viabilizando utilização para muitas

mercadorias. Além disso, com a maior precisão das informações, pode-se melhorar a

racionalização dos trabalhos de distribuição. O RFID permite rastreamento das mercadorias em

tempo real, articulando as chegadas e saídas de mercadoria nos centros de distribuição.

Mediante uso de RFID, a automação também foi tentada no interior de lojas. Em

particular, nos controles de estoques e nos caixas. Nos caixas, a tecnologia permite plena

automação das funções do trabalho, pois a simples passagem das mercadorias pelo caixa é

suficiente para detectar as informações pertinentes à transação comercial. Por isso, o RDFI

inaugura a possibilidade de avanço na automação no trabalho nas lojas. No entanto, dados os

custo do empreendimento, ainda não há viabilidade na sua implementação, que só será viável à

medida houver barateamento de custos (ILO, 2006).

Exposto o quadro de transformações técnicas, serão sumarizadas algumas das principais

implicações da nova configuração do varejo.128

128 Como enunciado anteriormente, outras mudanças do terceiro período se caracterizam pela expansão do e-commerce. O tema não será explorado na presente pesquisa dado sua distância quanto aos problemas da presentepesquisa.

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2.4 A emergência da hegemonia do capital mercantil e outras implicações

Como já enunciado, uma das transformações mais significativas do varejo no

capitalismo flexível é a centralização de capital, a qual é ao mesmo tempo ponto de partida e

ponto de chegada de todas as novas configurações. Com efeito, os protagonistas das inovações

foram as maiores empresas do setor, que mobilizaram-nas como recurso para vitória

concorrencial. Como discutido no capítulo 1, o uso de vantagens competitivas e a resultante

centralização de capital tanto não é único ao setor varejista quanto não é específico do

capitalismo globalizado. O que efetivamente há de novo é o grau em que deram-se tanto a

renovação técnica quanto o processo de centralização. Nesse processo, que alguns autores

chamam de revolução do varejo (Lichtenstein, 2006; Carden, 2011), o setor experimentou

centralização de propriedade sem paralelos na sua história.129

A associação entre centralização de capital e transformações técnicas implicou uma

mudança no capitalismo contemporâneo, que se caracteriza por uma nova relação entre produção

e circulação. Mais precisamente, emergiu uma nova configuração das relações entre empresas

varejistas e fornecedores.

Como o lean retailing se caracteriza pelo vínculo dinâmico entre produção e consumo,

ele torna necessária a aceleração dos processos de trabalho em toda a cadeia de fornecimento.

Num primeiro momento, essa tendência se expressa nos processos de trabalho subsumidos

formalmente ao capital, ou seja, na força de trabalho diretamente contratada para operar as lojas e

o sistema logístico. No entanto, o impulso de racionalização capitalista, que é alimentado pela

centralização de capital, não se limita aos processos de trabalho diretamente controlados pelo

capital varejista. Como é da natureza do capital, busca-se a reconfiguração de todas as relações

sociais com vistas à sua adequação às condições da acumulação. Consequentemente, tão logo o

capital varejista deteve poder para influenciar a produção no âmbito das cadeias de fornecimento,

ele assim o fez. O impulso à racionalização capitalista, cuja expressão foi sentida primeiro nas

lojas e depois na logística, estendeu-se aos fornecedores assim que o capital varejista deteve

poder para fazê-lo.

129 Se tomarmos em conta empresas como o Walmart, na verdade, pode-se dizer que a generalização pela qualpassou o varejo não encontra precedentes históricos em qualquer setor da economia.

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Analisando as novas configurações entre capital comercial e fornecedores, Lichtenstein

desenvolve a tese da “hegemonia” dos “capitalistas mercantis da nossa época” (Lichtenstein,

2017, p. 26). Enfatizando o papel dos gigantes do varejo contemporâneo no mercado mundial,

escreve o autor:

Um mundo globalizado de comércio e de trabalho existiu por séculos (...). Mas aglobalização atual difere radicalmente daquela de mesmo algumas décadas atrás porcausa do papel contemporâneo realizado pelas empresas que fazem a cena política dosnossos dias,130 as redes varejistas de grandes lojas que ocupam as posições maisestratégicas antes tão bem guarnecidas pelas grandes empresas manufatureiras da eraFordista. No ponto crucial das cadeias globais de suprimento estão os Walmarts, osHome Depots e os Carrefours dos nossos tempos. Eles fazem os mercados, definem ospreços e determinam a distribuição do trabalho em escala mundial por meio do gigantefluxo de commodities que agora flui ao longo dos seus extremos. A desindustrializaçãode Detroit, Pittsburg e Cleveland implica não apenas a destruição de uma formaparticular de indústria e de comunidade, mas uma mudança de poder dentro dasestruturas do capitalismo global da manufatura para um setor varejista que hoje comandacadeias de fornecimento que envolvem toda a Terra e direciona a força de trabalho deuma classe trabalhadora cuja condição replica muito do que nós pensávamos comocaracterístico unicamente das fases mais desesperadas e primevas do crescimentocapitalista (Lichtenstein, 2007, p. 17)

A característica fundamental da hegemonia do capital mercantil é uma nova relação de

poder entre grandes corporações varejistas e os capitais produtivos. Sua formação depende de um

conjunto de condições, das quais se destacam quatro: aquelas ligadas à forma social da riqueza,

as ligadas à estrutura técnica, ao posicionamento das empresas varejistas na divisão social do

trabalho e aquelas associadas a dimensões político-institucionais.

Do ponto de vista da forma social, a centralização de capital é a condição mais geral. Ela

permite aos grandes varejistas colocarem-se em situação de oligopsônio diante dos fornecedores,

permitindo-lhes a aquisição de poder de barganha sobre os produtores. Essa condição da

centralização atua tanto nos planos nacionais quanto no âmbito internacional, onde a condição de

oligopsônio demanda massiva centralização de propriedade.

O monopsônio é uma condição parcialmente semelhante à de monopólio. Em termos de

identidade, ambos são condições nas quais um agente econômico possui vantagem sobre outro

130 O autor usa a expressão "king-makers of our days", fazendo uma analogia das grandes empresas varejistas de

hoje para com as empresas monopolistas da era dos regimes absolutistas mercantilistas. Dada a dificuldade da

tradução, usamos "empresas que fazem a cena política dos nossos dias" para trazer a ideia da influência sobre a

política.

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em razão de circunstâncias de mercado. A diferença reside no tipo de relação que concede essa

vantagem: no caso do monopólio, a vantagem se origina do excesso de compradores para um ou

poucos vendedores, enquanto no caso do monopsônio a vantagem advém de um reduzido número

de compradores para amplo número de vendedores.131 A combinação de globalização, TI’s e

centralização de capital criou condição de oligopsônio para o capital varejista, o qual toma a

forma de monopsônio em circunstâncias específicas (Lichtenstein, 2006; Rosen, 2005; Gereffi,

1994).

Do ponto de vista da dimensão técnica, as condições foram criadas pelas tecnologias da

informação específicas do setor. Por certo, as TI’s permitem aos varejistas a detenção de

informação privilegiada a respeito dos produtos, uma vez que sua posição de operador das vendas

finais permite-lhes conhecer as tendências do mercado. No essencial, essas informações

consistem em conhecimento a respeito da dinâmica de mercado, como os locais das vendas, mas

abarcam também as preferências do público consumidor. Com frequência a posição dos varejistas

no mercado permite-lhes a detenção de mais conhecimento a respeito dos produtos do que o

próprio produtor (Abernathy et al, 2000).

Avaliando as implicações da nova estrutura técnica do setor comercial, Cortada (2004)

identifica três grandes consequências, todas alinhadas com a tese da hegemonia do capital

comercial.132 A primeira consiste na “mudança na posição relativa do varejo na cadeia de

suprimento. A segunda foi o declínio do papel central dos atacadistas” e a terceira na “capacidade

dos novos players133 de nichos de mercado de entrar no varejo com uma base massiva, ou seja,

com todos os recursos dos poderosos varejistas: marcas nacionais, grandes redes e [economias

de] escala e escopo” (Cortada, 2004, p. 315). A nova posição do varejo diz respeito ao seu papel

central nas cadeias de commodities; o declínio no papel dos atacadistas é consequência da

expansão das redes varejistas, o que levou-as a criar vínculos diretos com os fornecedores,

cumprindo o papel que antes cabia ao atacado.

131 Por seu turno, a diferença entre oligopsônio e monopsônio advém da quantidade de agentes na condição emquestão: monopsônio ocorre sempre que há um único agente em dado mercado; já o oligopsônio quando háquantidade reduzida de agentes nessa condição.132 Apesar de as conclusões de Cortada confluírem com a expressão “hegemonia do capital comercial” em termosde significado, o autor não usa esta expressão, como ficou sugerido no texto.133 Player é um termo figurado para remeter a empresas que competem em um mercado ou setor.

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Do ponto de vista do posicionamento das redes varejistas na divisão social do trabalho,

as condições decorrem da posição dos varejistas tanto em mercados nacionais quanto

internacionais. A nacionalização da presença permite formação de concorrência entre os

concorrentes de amplas regiões internas a um país; por sua vez, a presença internacional cumpre

o mesmo papel no plano internacional.

Do ponto de vista institucional, as condições foram criadas pelas reformas neoliberais.134

A integração comercial coloca produtores de todo o globo em situação de concorrência,

deteriorando seu poder de barganha. Já a liberalização financeira facilita a realização de fluxos de

capital internacionais, eliminando a dependência do grande varejista em relação a produtores ao

mesmo tempo em que intensifica a dependência dos produtores para com os varejistas. Para

muitos pequenos produtores, conseguir contrato com empresas como Carrefour e Walmart é

questão de sobrevivência; para essas empresas, é fácil mudar suas cadeias de fornecimento para

outra região, estado, país ou continente.

A nova relação de forças entre capital comercial e produtivo se expressa em novas

formas de relação entre esses tipos de capital. Essas novas configurações abarcam dimensões

quantitativas (distribuição de riqueza) e qualitativas (influência sobre as relações de produção).

De modo resumido, as dimensões quantitativas são aquelas ligadas aos preços do produto e aos

prazos de fornecimento; já as qualitativas dizem respeito à natureza (valor de uso) dos produtos e

processos de trabalho.

As dimensões quantitativas dividem-se em dois eixos. Primeiramente, elas significam

capacidade de imposição de diminuição de custo das mercadorias. Esse fator será fonte de

vantagem competitiva para os grandes varejistas ao mesmo tempo em que desencadeará a

formação de trabalho precário no âmbito dos fornecedores, sendo uma das causas fundamentais

da criação de trabalho em condições degradantes no âmbito das cadeias globais de commodities.

A expressão mais candente dessa tendência são os países recém industrializados do Leste

Asiático, tais como Vietnã, China, Taiwan, etc, mas esse efeito das CGC controladas por

compradores também se faz presente em toda a periferia do sistema capitalista.

134 Para Lichtenstein (2006) parte significativa das reformas neoliberais na economia estadunidense foramrealizadas sob pressão e lobby do grande capital mercantil, que foi seu principal beneficiário.

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O segundo eixo quantitativo diz respeito à imposição de normas rígidas de tempo de

produção e fornecimento. Com efeito, como já exposto, o lean retailing se caracteriza por relação

dinâmica (flexível) entre produção, circulação e consumo. A fim de viabilizar esse sistema, os

produtores precisam flexibilizar sua produção, uma vez que eles devem ser capazes de fornecer

produtos específicos em prazos curtos. Da parte dos fornecedores, a resposta a esse problema é

dada por três vias possíveis, as quais não são necessariamente excludentes entre si:

- Os fornecedores aumentam seus estoques, permitindo manutenção de certas

quantidades de mercadorias para conseguir suprir pedidos com rapidez;

- Os fornecedores aumentam o uso de contratos de trabalho flexíveis a fim de

responder às mudanças de curto prazo na demanda;

- Os fornecedores implementam eles próprios dispositivos técnicos a fim de mapear

as tendências de mercado, permitindo-lhes a realização de antecipações

relativamente acertadas acerca das necessidades de reposição de estoques.

De um modo ou de outro, as implicações são negativas para os fornecedores. No

primeiro caso, há incidência direta sobre a taxa de lucro do fornecedor, tendo em vista que o

aumento de estoques implica aumento de investimentos cujo tempo de rotação será grande. No

segundo caso, as implicações não necessariamente são negativas para o fornecedor, mas podem

sê-lo, pois a contratação de mão de obra temporária nem sempre é empreendimento fácil ou

realizável. Ademais, quando não há perdas para os fornecedores, há para os trabalhadores, pois

flexibilização dos contratos é forma de precarização do trabalho (Antunes, 2009; Marcelino,

2011).

No terceiro caso, a implicação é o aumento de custos para o fornecedor. No caso de

grandes empresas manufatureiras, o tamanho facilita a diversificação das suas atividades. Além

disso, dadas as condições da reprodução do capital no capitalismo flexível, a maioria das grandes

empresas já possui dispositivos de mapeamento das tendências do mercado, uma vez que

conhecimento a respeito das tendências de curto prazo tornou-se condição da valorização do

valor. Por essas razões, o impacto é quase nulo no que tange ao grande capital produtivo. No

entanto, esse dispositivo é inviável para pequenos fornecedores em razão dos investimentos

requeridos, de modo que o poder do capital comercial sobre os fornecedores se exerce sobretudo

sobre pequenos fornecedores, afirmando-se como poder de classe. As transformações no varejo

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implicam um incremento do poder de classe do grande capital sobre os pequenos fornecedores, o

qual se expressa na desvantagem competitiva no âmbito do mercado. Para o pequeno

proprietário, as oportunidades de sobrevivência no mercado diminuem, resultando em

centralização de capital no âmbito dos fornecedores.135

Do ponto de vista qualitativo, é possível a identificação de três eixos: primeiramente, há

a imposição de exigências referentes à qualidade dos produtos. No contexto de concorrência

acirrada típica do capitalismo flexível, cresce a necessidade de diferenciação qualitativa dos

produtos, a qual torna-se condição para a conquista de nichos específicos de mercado (Harvey,

2014). No setor varejista, esse fator se expressa na preferência dos consumidores pelas empresas

que oferecem produtos de melhor qualidade em maior diversidade e de forma regular. Esse traço

se traduz na pressão realizada pelas corporações sobre os fornecedores, obrigando-os à contínua

elevação da qualidade dos produtos. Essa tendência é especialmente acentuada no setor

agroalimentar.

O segundo eixo qualitativo diz respeito à imposição de padrões de armazenamento e de

embalagem dos produtos, trazendo importantes implicações para sua circulação (com destaque

para o transporte). Dado seu poder de mercado, os varejistas conseguem impor padrões no

fornecimento, o que facilita seu trabalho na logística. Como um todo, o sistema ganha eficiência.

O varejista é seu grande beneficiário e o pequeno fornecedor arca com os ônus.136

Em terceiro lugar, o capital mercantil passou progressivamente a realizar funções típicas

do capital produtivo. Segundo Cavalcante (2012), o modo de produção capitalista traz consigo

necessariamente transformações nos processos de trabalho, que, a fim de se adequarem à natureza

da acumulação, tornam-se progressivamente mais cooperativos. Por essa razão, cria-se a

necessidade de funções do trabalho voltadas à conexão e unidade das diversas funções parciais do

trabalho. Essas funções produtivas, que originalmente cabiam à classe capitalista, foram

progressivamente designadas para setores assalariados.137 No entendimento da presente pesquisa,

135 Ao analisarem as transformações no setor varejista e suas relações para com as cadeias de fornecimentoagroalimentares, Belik (1999) e Reardon, Timmer e Berdegue (2004) defendem essa tese de modo enfático.136 Como se pode notar, há entrelaçamento entre as dimensões qualitativas e quantitativas das imposições dosvarejistas aos fornecedores, uma vez que parte significativa das pressões pela elevação da qualidade do produtopossuem implicações em termos de custo, os quais não necessariamente são repassados ao produto final.137 Para Cavalcante (2012) essa passagem das funções produtivas do capital para assalariados é um dosfundamentos da emergência das camadas assalariadas não proletárias, que podem ser designadas por classes médias.Nessa conceituação, parte da moderna classe média se caracteriza pela dualidade das funções realizadas nareprodução social: ao mesmo tempo em que realiza funções do trabalho e que é explorada, a classe média exerce as

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a emergência de corporações varejistas realizou uma nova transição no plano dos agentes

responsáveis pela realização das funções de conexão e unidade.

Como exposto na seção 3, acompanhando Gereffi (1994), afirmou-se que parte

significativa da mundialização foi capitaneada pelo grande capital mercantil, que estruturou um

novo tipo de relação social, as cadeias de commodities coordenadas pelos compradores. Essa

forma de governança das cadeias globais deu margem à formação de empresas que não entram

diretamente na produção, mas que atuam unicamente pela articulação de processos de trabalho

concretos. Do ponto de vista das funções do trabalho, por meio das CGC em parte esse capital

comercial está realizando funções de capital produtivo, pois está atuando para conectar processos

de trabalho parciais, os quais combinadamente se materializam em mercadorias finais. Se essa

tese está correta, em parte o capital comercial assume características de capital produtivo,

borrando as fronteiras entre essas frações capitalistas.

De certo modo, os cinco pontos mencionados (qualitativos e quantitativos) se

caracterizam por uma relação de influência das empresas varejistas sobre a produção de

mercadorias. Do ponto de vista quantitativo, essa influência não determina diretamente sobre o

modo de produzir, embora o faça indiretamente, pois cria a necessidade de incremento da

intensidade do trabalho e de controle sobre o trabalhador. Porém, do ponto de vista das dimensões

qualitativas, é possível dizer que há incidência das corporações varejistas sobre o modo de

produzir dos fornecedores. Se se definem os preços, prazos de produção e de entrega e a natureza

dos produtos, então as corporações varejistas, ao menos parcialmente, dominam a produção. No

que se refere às funções produtivas do capital comercial nas cadeias de commodities, em parte o

capital comercial funciona como capital produtivo.

No entendimento da presente pesquisa, esse quadro de implicações se enquadra de modo

nítido no que Harvey (2005) definiu como acumulação por espoliação. No registro do autor, o

capitalismo possui duas formas gerais de acumulação. A primeira delas é a reprodução ampliada,

que se caracteriza pelo investimento dos lucros com vistas à expansão da escala da produção. A

funções intelectuais capitalistas em termos da função na reprodução social. No interior do processo de trabalho, essasfunções capitalistas possuem duas dimensões, uma delas vinculada à forma social (exercício de autoridade e pressãopor intensificação do trabalho) e outra à dimensão técnica (realização de conexão e unidade das funções particularesdo trabalho). Por essa razão, as classes médias seriam atravessadas por uma contradição, que se expressaria nas suasoscilações e contradições políticas e ideológicas, fazendo-as predispostas tanto à adesão a plataformas progressistasquanto a progremas conservadores.

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segunda forma é a acumulação pela via da espoliação. Esta consiste em dispositivos que operam

uma transferência de riqueza e de força de trabalho para a forma social capitalista, ou seja,

operam uma formação de capital sem que haja geração anterior de lucro como produto de

investimentos.138 Na problemática de Harvey, o conceito se define sobretudo pela finalidade e

pelo resultado das ações, e não pelos seus meios, de modo que todo empreendimento que opere

transferência de riqueza para um capital é uma forma de acumulaçao por espoliação. Os

dispositivos característicos da hegemonia do capital mercantil se adequam com precisão ao

conceito, já que eles implicam em constantes transferências de riqueza e trabalho dos

fornecedores para a forma social capitalista. Assim, em parte a hegemonia do capital comercial

coincide com o desenvolvimento de recursos de espoliação por parte desta fração capitalista.

Por fim, é necessária uma retificação a respeito das relações entre capitalismo flexível e

hegemonia do capital comercial. Como implícito a partir da bibliografia mobilizada (e. g. Harvey,

2013; Duménil e Levy, 2007; Chesnais, 2001), em grande medida o presente estudo entende que

o capitalismo pós-70 se caracteriza por uma ampla e multicentrada ofensiva da classe capitalista,

cujo objetivo foi reforçar a dominação de classe em contexto de crise política, econômica e

social. Se as teses do presente trabalho estão corretas, uma das faces das reorganizações das

relações de classe típicas do capitalismo flexível é hegemonia do capital comercial. Esta tese não

somente não contradiz a tese da hegemonia do capital financeiro, como também a pressupõe, pois

sem os traços característicos da dominação financeira, a nova relação de forças em favor do

capital mercantil não seria possível. No que se refere ao tema, um tópico a ser explorado em

pesquisas posteriores é: até que ponto a hegemonia do capital comercial não depende

precisamente do seu funcionamento como capital financeiro, isto é, do entrelaçamento entre as

funções comerciais e bancárias? Parte do poder do capital mercantil pode advir da sua capacidade

de financiar a produção e da sua capacidade de fluir ao longo das fronteiras internacionais, sendo

ambos traços típicos do capital financeiro. Se esses fatores são predominantes no funcionamento

da hegemonia do capital financeiro, então é possível que a hegemonia do capital mercantil seja

apenas uma forma de expressão da hegemonia do capital financeiro.

138 A acumulação por espoliação também engloba os dispositivos que operam transferência de riqueza e força detrabalho que já são capital, ou seja, envolve não apenas os dispositivos que atuam concentrando capital, mas tambémaqueles que centralizam capital.

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Além disso, o poder exercido pelo capital comercial de modo algum se exerce a

expensas do grande capital produtivo e do capital financeiro. Na verdade, as vantagens obtidas

pelo grande capital comercial no capitalismo flexível se exercem sobretudo sobre as pequenas e

médias empresas fornecedoras – muitas das quais mascaram relações entre capital e trabalho sob

a aparência de relações empresa-empresa – e sobre as pequenas e médias empresas do setor

varejista. Assim, mais do que um fenômeno de hegemonia sobre as demais frações capitalistas,

trata-se de um incremento geral da dominação de classe do capital em geral sobre toda a estrutura

de classes. Em outros termos, o incremento das relações de força em favor da fração comercial é

uma forma de particular de desenvolvimento do modo de produção capitalista, não contradizendo

suas tendências gerais e tampouco seus traços característicos na etapa neoliberal.

Dado esse esquema das principais transformações do setor no capitalismo flexível, serão

enfrentados os problemas das relações de classe no varejo.

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Capítulo 3 – Os sentidos da autonomização do capital comercial

A modernização do varejo implica a autonomização do capital comercial diante do

produtivo, desencadeando a formação de uma fração de classe cuja função é a realização do

comércio de mercadorias. Esta é a tese do presente capítulo.

Por sua vez, a autonomização do capital comercial coincide com a formação de capital

no comércio, pois esse tipo de capital se define precisamente pelo investimento produtivo voltado

para as funções comerciais.139 Como a modernização do varejo consiste precisamente na

formação de capital no comércio, ela implica em autonomização do capital produtivo diante do

comercial. As funções de circulação, que antes eram realizadas em parte pelo capital produtivo e

em parte por pequenos proprietários, passam para uma fração capitalista especializada.

Essa dimensão da modernização do varejo é pertinente para a presente pesquisa por três

razões. Em primeiro lugar, ela permite entrada no debate a respeito da natureza das relações de

classe no setor comercial, dando, por essa razão, substrato para identificação da condição de

classe do trabalhador comerciário. Em segundo lugar, ele traz mais consistência à tese da

formação da dinâmica histórica específica do capitalismo no setor comercial, i e., da tese da

associação entre formação da relação social capitalista e tendência à evolução da produtividade.

Por fim, ela explica a importância da racionalização capitalista do trabalho no comércio,

rechaçando teses que sustentam que o ímpeto por racionalização do trabalho é mais intenso na

produção do que na circulação (e g.: Poulantzas, 1978; Lessa, 2011).140

139 O uso da expressão “investimento produtivo” precisa ser esclarecida, dado que se trata de um setor comercial,no qual parte das funções são improdutivas. O emprego da expressão decorre da consideração do uso do valor doponto de vista capitalista, que leva à consideração de investimento como produtivo para todo valor investido nacompra de mercadorias com o objetivo de produzir um bem ou um serviço com vistas à obtenção de um excedentede valor. Todo uso desse tipo se diferencia do dispêndio de valor como mera renda. Contudo, com isso nãoqueremos apagar as diferenças entre investimento produtivo strictu sensu, ou seja, investimento empregado naprodução de mais-valia, e investimento produtivo no sentido lato, ou seja, quando volta-se à produção de lucro paraum capitalista.

140 Com efeito, essa tese é parte de um preconceito mais geral que circunda os conceitos de trabalho produtivo eimprodutivo. Há uma consideração difusa, com especial incidência na crítica feminista (e. g. Teixeira, 2008;Carrasco, 2008), de que, para Marx, trabalho produtivo e trabalho improdutivo designam, respectivamente, funçõesimportantes e não importantes para a reprodução capitalista. Na verdade, trata-se de uma diferenciação voltada parao papel dos tipos de trabalho na reprodução capitalista e se há uma maior importância em última instância para ostrabalhos produtivos, disso não decorre que os improdutivos sejam pouco importantes. A presente pesquisaacompanha a conceituação de trabalho improdutivo de Duménil e Levy (2005), que o definem como trabalhomaximizador da taxa de lucro. Nessa acepção, os trabalhos improdutivos aumentam a taxa de lucro muito emboranão gerem o elemento da acumulação, sendo por isso de importância fundamental para acumulação. Ademais,

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O presente capítulo divide-se em quatro seções. A primeira expõe definições que

fundamentam a discussão, tal como o conceito de capital comercial, além de explorar os vínculos

entre o desenvolvimento do capitalismo e a autonomização do capital comercial. A segunda seção

volta-se para o problema dos rendimentos do capital comercial. Como o capital comercial é

improdutivo, sua inserção na exposição dialética de Marx implica em intrincados problemas

teóricos. Sugere-se que a inserção do capital comercial no conceito de modo de produção é

viabilizado pela concreção dos conceitos de taxa de lucro e preços de produção.

A terceira seção sustenta a tese da importância da racionalização do trabalho no

comércio. Além disso, defende-se que, ainda que para o capitalismo o trabalho produtivo seja

mais importante do que o improdutivo, na prática disso não decorre diferenças no ímpeto por

racionalização do trabalho, pois no seu funcionamento concreto o capitalismo é operacionalizado

por dispositivos reificados.

Por fim, a quarta seção volta-se para o problema da implicação da autonomização do

capital comercial do ponto de vista das relações de classe. Nela mostra-se de modo preliminar os

limites das categorias de trabalho produtivo e improdutivo para se definir as classes no setor.

Também são feitas considerações preliminares a respeito da condição de classe do trabalhador

comerciário, tema que será o objeto dos capítulos 4 e 5.

3.1 Definições preliminares

No registro de Marx (1986a), o capital comercial é um tipo específico de capital

caracterizado pela especialização nas funções de circulação de natureza comercial. Trata-se de

um tipo de capital cuja atividade-fim são as atividades necessárias para a realização das

mudanças de propriedade formal das mercadorias.

O surgimento do capital comercial é fruto da autonomização das funções de circulação

originalmente associadas ao capital produtivo. Dada a natureza do valor, o capital produtivo

precisa necessariamente despender custos a fim de garantir a realização do valor portado pelas

mercadorias produzidas. Quando a escala da acumulação se desenvolve ao ponto de tornar

Duménil e Levy (2005) sustentam a interessante tese de que no começo do século XX o capitalismo passou por umarevolução gerencial que crescentemente concedeu centralidade aos trabalhos improdutivos.

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economicamente racional do ponto de vista capitalista o emprego de um capital para concentrar

essa função comercial, o comércio torna-se campo de investimento e o capital comercial se

autonomiza diante do produtivo (Marx, 1986a; Cotrim, 2009). À medida que há incremento na

escala da acumulação, ocorre uma divisão do trabalho sob a forma de divisão de funções

capitalistas, levando as funções de produção e circulação a serem portadas por diferentes

capitalistas. Nos termos de Marx:

À medida que essa função do capital, que se encontra no processo de circulação, passa aser autonomizada como função específica de um capital específico, fixando-se, comouma função adjudicada pela divisão do trabalho, a uma espécie particular de capitalistas,o capital-mercadoria torna-se capital de comércio de mercadorias ou capital comercial.(Marx, 1986a, p. 203)

A autonomização do capital comercial é um momento do desenvolvimento do

capitalismo, sendo ao mesmo tempo produto e ponto de partida do incremento da escala da

acumulação. É produto porque o capital comercial não pode se autonomizar do capital produtivo

sem que haja dado grau de desenvolvimento da produção capitalista, uma vez que o

desenvolvimento cria as condições dessa autonomização; e é funcional por ser “indiretamente

produtivo” (Marx, 1986a, p. 211)141 para a reprodução capitalista, o que torna-o funcional para a

acumulação apesar do seu caráter diretamente improdutivo.142

A autonomização das funções capitalistas ocasiona incremento da capacidade de

acumulação do capital social total por diversas razões, podendo ser destacados três fatores

principais (Cotrim, 2009). A primeira e a mais geral consiste na diminuição do montante de valor

cristalizado na função de circulação; a segunda na diminuição do tempo de circulação e a terceira

no incremento da integração comercial.

141 Nos termos do próprio Marx: “O capital comercial não cria, portanto, nem valor nam mais-valia, isto é, nãodiretamente. À medida que contribui para encurtar o tempo de circulação, pode `ajudar a aumentar indiretamente amais-valia produzida pelo capitalista industrial” (Marx, 1986a, p. 211-212)142 A autonomização exposta diz respeito à dissociação do capital comercial do produtivo no interior do modo deprodução capitalista, o que não implica desconhecimento da parte de Marx a respeito da existência antediluviana docapital comercial. A formação do capitalismo consistiu precisamente na entrada do capital na produção. Numsegundo momento, dado o modo de produção capitalista desenvolvido, surgiram da dinâmica da acumulação anecessidade de formação de capital no comércio. Para Marx, existe uma “lei de que o desenvolvimento autônomo docapital comercial é inversamente proporcional ao grau de desenvolvimento da produção capitalista” (Marx, 1986a, p.247). Por isso, no interior do modo de produção capitalista, o capital comercial está subsumido às necessidades daacumulação, não possuindo portanto uma existência autônoma.

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A diminuição no montante de capital cristalizado nas funções de circulação significa que

o capitalista especializado em comprar e vender consegue realizar a função de circulação de

diversos capitais produtivos com menos força de trabalho. Segundo Marx:

A limitada divisão do trabalho na oficina comercial, onde um cuida dos livros, outro dacaixa, um terceiro da correspondência, este compra, aquele vende, este viaja etc., poupatempo de trabalho em enormes quantidades, de tal modo que o número de trabalhadorescomerciais empregados no comércio atacadista não guarda nenhuma proporção com agrandeza relativa do negócio. Esse é o caso porque no comércio, muito mais do que naindústria, a mesma função, quer operada em grande ou em pequena escala, custa igualtempo de trabalho. Por isso a concentração no negócio comercial aparece historicamentemais cedo do que na oficina industrial (Marx, 1986b, p. 222)

Assim, a autonomização do capital comercial ocasiona diminuição do montante relativo

de valor cristalizado na circulação, o que, em outros termos, significa um aumento relativo do

montante de capital produtivo. Esse resultado da autonomização é importante em razão do caráter

improdutivo do capital comercial. Como atividade voltada à mera mudança formal de

propriedade, o empreendimento comercial se encaixa com precisão na definição marxista de

trabalho improdutivo. O ganho de eficiência viabilizado pelo capital comercial permite uma

diminuição do montante de capital social direcionado a essas funções improdutivas, tendo como

contrapartida o aumento relativo do montante de capital social produtivo (adiante retomaremos o

tema). Por isso, o capital comercial é “indiretamente produtivo”; apesar de improdutivo, ele

contribui para o incremento da produção do valor de outros capitais.

Em segundo lugar, a autonomização do capital comercial desencadeia diminuição do

tempo de circulação das mercadorias, uma vez que a especialização nas funções comerciais

viabiliza ganho de eficiência. Como resultado, há diminuição do tempo de rotação do capital,

implicando aumento da taxa média de lucro (Harvey, 2013).

O tempo de rotação se caracteriza pela soma dos tempos de produção e de circulação

(Marx, 1986a; Harvey, 2013). Em outros termos, ele consiste no intervalo que separa a realização

do investimento produtivo da consumação da venda final. Logo, o tempo de rotação abarca o

tempo de produção, dos transportes e de comercialização.

O tempo de rotação guarda relação com a taxa de lucro, pois ele coincide com o

intervalo de tempo necessário para que o valor passe por todas as etapas do circuito de

valorização do valor. Para Marx (2013), a valorização do valor ocorre ao mesmo tempo dentro e

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fora da esfera da circulação, de modo que ela só se consuma à medida em que ocorra a venda

final. Por essa razão, o tempo de rotação se associa com a capacidade de dado montante de

capital ser reinvestido produtivamente em dado período de tempo. Em outros termos, menores

tempos de rotação viabilizam geração de valor em menor período de tempo, permitindo

dispobilização do capital para novo investimento produtivo. A diminuição no tempo de rotação

torna possível a realização de mais ciclos de produção de mais-valia com o mesmo montante de

capital. Logo, a diminuição no tempo de rotação implica aumento da taxa média de lucro, sendo

por isso de importância fundamental para a reprodução ampliada de capital. Nos termos de Marx:

O tempo de circulação constitui um limite, na verdade um limite elástico, que atua demodo mais ou menos restritivo sobre a formação de valor e de mais-valia, porque afeta ovolume do processo de produção. Por isso, a rotação intervém determinando, não comoelemento positivo, mas restritivo, a massa de mais-valia anualmente produzida e,portanto, a formação da taxa geral de lucro (Marx, 1986a, p. 229-30)

Os dispositivos de aceleração do tempo de rotação são diversos, podendo ser divididos

de acordo com sua relação com a produção. A aceleração do tempo de produção é uma forma de

acelerar diretamente o momento produção, enquanto as atividades associadas às transações

comerciais, às comunicações e aos transportes se referem à dimensão de circulação. Sempre que

ocorrer uma aceleração em qualquer uma dessas etapas, diminui o tempo de rotação e aumenta a

taxa média de lucro.

Em terceiro lugar, a formação do capital comercial ocasiona aumento da integração

comercial, uma vez que poucos capitais comerciais centralizam a função comercial antes dispersa

em diversos capitais produtivos. Essa possibilidade trazida pela especialização de alguns

capitalistas na função comercial permite que eles intermediem as relações de troca de amplas

regiões. Essa intermediação torna-se possível precisamente porque os capitalistas do comércio

concentram apenas a função comercial, permitindo que seu capital investido se especialize na

circulação e, ao fazê-lo, pode-se comprar e vender em um amplo escopo territorial. Como

corolário da nova configuração, realiza-se incremento da divisão social do trabalho, a qual é

fundamental para desenvolvimento da produtividade e para ampliação dos mercados, ambos

condições da acumulação de capital.

Assim, a autonomização do capital comercial cumpre função importante na promoção

do desenvolvimento do capitalismo. Sintetizando os três fatores enunciados, escreve Marx:

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À medida que contribui para encurtar o tempo de circulação, pode `ajudar a aumentarindiretamente a mais-valia produzida pelo capitalista industrial. À medida que ajuda aampliar o mercado e medeia a divisão do trabalho entre os capitais, portanto capacita ocapital a trabalhar em escala mais ampla, sua função promove a produtividade do capitalindustrial e sua acumulação. À medida que encurta o tempo de circulação, eleva aproporção de mais-valia para o capital adiantado, portanto a taxa de lucro. À medida quereduz a parte do capital confinada na esfera da circulação, faz aumentar a parte docapital diretamente empregada na produção.” (Marx, 1986a, p. 211-2)

Em outros termos, a autonomização é ao mesmo tempo causa e efeito da acumulação de

capital. O incremento da divisão do trabalho, que também é condição e produto do capitalismo,

toma a forma de autonomização da diferenciação das funções de capital.

Para Cotrim, a concorrência, que “é motor da ampliação da produtividade do trabalho”,

“impele à transformação contínua” das “relações entre os múltiplos capitais”, de modo que “o

necessário desenvolvimento da concorrência, síntese das relações de distribuição do capital

social, que o desdobra em produtivo, comercial e financeiro”. Por seu turno, cada uma dessas

frações capitalistas continua a se desenvolver “conforme o exige a expansão do capital produtivo

social” (Cotrim, 2009, p. 106). Ou seja, em última instância há uma relação de causalidade, na

qual o desenvolvimento do capitalismo é a causa fundamental da divisão do capital entre suas

frações. Ao mesmo tempo, porém, a formação das frações capitalistas também determina o

desenvolvimento do modo de produção. Por isso, a autonomização do capital comercial é

momento da formação do capitalismo.

Quando discorre a respeito do capital comercial, um dos problemas enfrentados por

Marx é a explicação da funcionalidade do capital comercial, problema que decorre da natureza

improdutiva do capital comercial. Dada sua especialização na troca de mercadorias, o capital

comercial é improdutivo por excelência. Se ele é improdutivo, como sua formação pode ser

positiva para o capitalismo? Como exposto, a resposta de Marx explora os vínculos entre o

capital comercial e o incremento da capacidade geral da acumulação.

Apesar de solucionar alguns problemas importantes, essa resposta de Marx conduz a um

impasse teórico: se o capital comercial não produz valor, não pode ocorrer geração de mais-valia

na esfera comercial. Dada essa condição, qual a origem do lucro auferido pelo empresariado do

comércio? Ou, nos termos de Marx, “como o capital comercial se apodera da parte que lhe cabe

da mais-valia ou do lucro gerado pelo capital produtivo?” (Marx, 1986a, p. 214). Para responder

a essas perguntas, Marx opera uma transição no nível de exposição de O capital, realizando uma

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complexificação de algumas categorias teóricas até então expostas.143 Mais precisamente, são

transformadas as categorias de taxa média de lucro e preços de produção, as quais passam a

incorporar o processo de distribuição de mais-valia entre as frações capitalistas (Grespan, 2011).

Como a exposição desse mecanismo distributivo tem como premissa os conceitos supracitados,

será dedicada uma seção para sua abordagem em específico.

Apesar da sua natureza teórica abstrata, essas categorias serão explicativas a respeito dos

problemas da presente pesquisa, como será explicitado em mais detalhes adiante. Adiantando a

argumentação, pode-se dizer que o debate a respeito da natureza do lucro comercial explica a

formação de concorrência entre frações capitalistas a fim de definir qual delas se apropria da

maior parte da riqueza social. Dado o incremento da concorrência daí decorrente, a ofensiva

sobre o trabalho surge como resultado necessário.

Além disso, a discussão a respeito da natureza do capital comercial e do lucro comercial

é importante para sustentar algumas teses do presente estudo. Avalia-se que parte dos intérpretes

(por exemplo, Poulantzas, 1978; Lessa, 2011) faz avaliações equivocadas a respeito da natureza

do capital comercial, criando os fundamentos teóricos abstratos para problemáticas equivocadas a

respeito do trabalho e das classes sociais no setor comercial. Como ficará explícito, a incursão no

tema esclarecerá algumas controvérsias, além de ajudar na sustentação de algumas teses

defendidas pela presente pesquisa.

Como o significado desses conceitos só tem sentido no interior da exposição dialética,

pois esta toma a forma de um progresso constante em direção a conceitos mais concretos, se faz

necessária uma breve recuperação da própria distinção entre produção e circulação no interior da

teoria marxista do capitalismo, para na sequência abordar os conceitos de taxa média de lucro e

preços de produção.

143 Essa constante complexificação do quadro conceitual é o método expositivo de Marx. Nos termos de Reuten e

Williams: “A apresentação é geralmente baseada na transcendência gradual de determinações abstratas, num

movimento rumo a determinações concretas, isto é, de concretização. A apresentação avança através da

transcendência das contradições e ao proporcionar o embasamento cada vez mais concreto - as condições de

existência - das determinações abstratas anteriores” (Reuten e Williams, 1989, p. 22, apud Saad Filho, p. 30)

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123

3.2 O lucro comercial

3.2.1 Taxa média de lucro e preços de produção

Um dos pilares da teoria marxista consiste na centralidade da exploração do trabalho

para a natureza de sociedades capitalistas. Com efeito, segundo Saad (2011), a teoria do valor é

inseparável da teoria da mais-valia, sendo a exposição da exploração do trabalho um dos seus

principais objetivos.

A importância da exploração do trabalho para a teoria marxista decorre de muitas razões,

dentre elas a explicação da dinâmica da acumulação de capital. Como o capitalismo opera pela lei

da troca de equivalentes, coloca-se um problema para a teoria econômica: como explicar a

capacidade de expansão do capitalismo? Se as trocas são entre equivalentes, de onde advém o

excedente, base do crescimento econômico? Na problemática marxista, o problema é resolvido

pela mais-valia: a partir da relação de exploração do trabalho, torna-se possível a geração do

excedente sem que um capitalista precise lucrar a expensas de outro capitalista, o que

inviabilizaria a acumulação. Só com a relação de exploração pode-se explicar a acumulação de

capital em geral, ou seja, não a acumulação de capitais particulares.

Dadas essas considerações, a existência de capitais improdutivos coloca um problema

para a teoria marxista, que é o da explicação da geração de lucros nos setores improdutivos. Se

não há geração de mais-valia, não se gera o elemento do lucro. Nos termos de Marx:

O capital comercial é apenas capital funcionando dentro da esfera da circulação. Oprocesso de circulação é uma fase do processo global de reprodução. Mas no processode circulação não é produzido valor, portanto tampouco mais-valia. Ocorrem apenasmudanças de forma da mesma massa de valor. De fato só ocorre metamorfose dasmercadorias que, enquanto tal, nada tem a ver com criação de valor ou alteração [domontante] de valor (Marx, 1986a, p. 211)

E, procurando explicar de onde vem o lucro do capitalista comercial, prossegue:

Se na venda da mercadoria produzida é realizada mais-valia, isso ocorre porque esta jáexiste nela; por isso, no segundo ato, no novo intercâmbio de capital monetário pormercadoria (elementos da produção), não é realizada nenhuma mais-valia pelocomprador, mas apenas é introduzida, pelo intercâmbio do dinheiro por meios deprodução e força de trabalho, a produção de mais-valia (Marx, idem, p. 211)

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Dada essa condição, qual a origem do lucro auferido pelo empresariado do comércio?

De onde vem a mais-valia que é “introduzida” no ato de intercâmbio? Para responder a esse

complexo problema, Marx opera uma transformação em todos os conceitos de O capital. De

modo mais preciso, a partir das categorias de taxa média de lucro e preços de produção, são

explicitados os dispositivos por meio dos quais há distribuição de mais-valia entre os capitais,

distribuição que ocorre pela apropriação de um montante de mais-valor pelo capitalista do

comércio.

Em sua natureza mais abstrata (isto é, abstraindo o capital comercial), os conceitos de

taxa média de lucro e preços de produção são dispositivos de distribuição de mais-valia entre os

capitais produtivos. Marx formula-os à luz da concorrência intersetorial, que se caracteriza pelo

constante fluxo de investimento para os ramos mais lucrativos (Saad, 2011). Como a natureza do

capital se caracteriza pela busca do mais-valor, para o capitalista é indiferente se seus

investimentos são feitos em um ou outro setor em particular, apenas sendo importante a

possibilidade de valorização do valor em maior quantidade possível. Como resultado desse

processo, os setores mais lucrativos atraem capital do mesmo modo que os menos lucrativos o

repelem, desencadeando pressão de mercado sobre os preços. Disso resulta a uma

complexificação da lei da troca de equivalentes, levando as mercadorias a não serem trocadas

por seus valores, mas por seus preços de produção (Marx, 1986a; Saad, 2011).

Os preços de produção são definidos pelo custo de produção multiplicado pela taxa

média de lucro sobre o investimento de capital (Marx, 1986a). O resultado concreto dos preços de

produção é a equalização da taxa de lucro em todos os setores, levando a que todo montante de

capital adquira a capacidade de auferir lucro de acordo com uma média.144 Sem a sua existência,

as taxas de lucro seriam desiguais em razão das distintas composições orgânicas dos capitais ou,

em outros termos, em razão das distintas proporções de capital constante e variável (Marx,

1986a). Como a origem do mais-valor é a exploração do trabalho, os capitais com maior

proporção de capital variável seriam mais lucrativos. A formação dos preços de produção implica

uma transferência de mais-valia em direção aos setores de maior composição orgânica.

144 Na presente apresentação, as categorias são apresentadas de forma simplificada, dados os propósitos do estudo,que apenas tangenciam os temas em questão. Com essa simplificação não se está ignorando a dificuldade da naturezadesses conceitos nem tampouco as controvérsias nas quais eles estão envolvidos. A respeito do tema das fraçõescapitalistas e da divisão da mais-valia, ver Grespan, 2011.

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3.2.2 A inserção do capital comercial na exposição dialética de O capital

Quando teoriza a respeito da taxa geral de lucro pela primeira vez, a exposição de O

capital ainda ignora a existência de frações capitalistas por tipo de capital145, já que se considera

apenas a existência do capital produtivo ou, segundo a formulação de Rosdolsky (2001 [1957-

58]), o capital em geral.146 Num primeiro momento, a concreção da exposição (dialética) do livro

3 ocorre pela inserção da concorrência intersetorial, a qual conduz à conceituação da taxa geral

de lucro e aos preços de produção. Num segundo momento, a exposição não mais ignora as

frações capitalistas, sendo o capital comercial a primeira fração apresentada.147 Nos termos de

Marx:

Mas por que se admitiu que o capitalista industrial vende ao comerciante as mercadoriaspor seus preços de produção? Ou, muito mais, o que foi pressuposto nessa admissão?Que o capital mercantil (aqui só trataremos do mesmo enquanto capital de comércio demercadorias) não entra na formação da taxa geral de lucro. Partimos necessariamentedesse pressuposto na apresentação da taxa geral de lucro porque, naquele momento, ocapital mercantil enquanto tal ainda não existia para nós e, em segundo lugar, porque olucro médio, e portanto a taxa geral de lucro, de início tinha de ser desenvolvidonecessariamente como equalização dos lucros ou mais-valia realmente produzidos peloscapitais industriais das diferentes esferas da produção. No caso do capital comercial, noentanto, temos de tratar de um capital que participa do lucro sem participar de suaprodução. Agora é necessário, pois, complementar a exposição anterior. (Marx, 1986a, p.215)

E ainda:

145 De acordo com Saes (2014) o tipo de função capitalista é um dos principais critérios para definir as frações declasse. Os dois outros principais critérios são o posicionamento no sistema internacional de Estados e a magnitude docapital. Além do capital comercial e do produtivo, no que tange á função na reprodução social as outras principaisfrações são o capital portador de juros e o capital fundiário.146 Para Rosdolsky (2001) no livro 1 de O capital Marx abstraiu a esfera da concorrência, o que permitiu-lhe ignorarfenômenos associados a essa dimensão de existência do capitalismo, como a taxa média de lucro e a distribuição damais-valia entre as frações capitalistas. Essa teorização abstrata do capitalismo, no qual não haveria cisões no interiorda classe capitalista, coincidiria com o conceito de capital em geral. O objetivo fundamental do conceito de capitalem geral é destrinchar as relações de exploração no capitalismo, da qual todas as frações capitalistas dependem ecom qual guardam relações simbióticas, muito embora escondidas sob diversas camadas de reificação.147 Com efeito, na interpretação de Saad Filho (2011), o objeto do livro 3 consiste precisamente na inserção daconcorrência intersetorial e no correspondente fracionamento da mais-valia entre os diversos tipos de capital. Emrazão desses novos conceitos, opera-se transformação em todo o quadro analítico até então apresentado.

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Na formação da taxa geral de lucro, o capital comercial entra de modo determinante prorata148 de parte que ele constitui do capital global. Com isso surge também umadeterminação mais precisa e mais restritiva do preço de produção. Por preço de produçãodeve entender-se, depois como antes, o preço de mercadoria = seus custos (...) + o lucromédio sobre eles. Mas esse lucro médio é agora determinado de outro modo. Edeterminado pelo lucro global que o capital produtivo total gera; mas não é calculadosobre esse capital produtivo total (...). Na taxa média de lucro já está calculada a parte dolucro global que cabe ao capital comercial (...). O preço de produção ou o preço peloqual o capitalista industrial vende enquanto tal é, portanto, menor do que o preço deprodução real da mercadoria; ou, se considerarmos a totalidade das mercadorias, entãoos preços pelos quais a classe dos capitalistas industriais as vende são menores do queseus valores. (Marx, 1986a, p. 216)

Em outros termos, a inserção do capital comercial, que antes era abstraído, complexifica

todas as categorias de O capital, pois entra em consideração um montante de capital social cuja

função é improdutiva mas imprescindível à reprodução capitalista. Na medida em que exista um

montante de capital cristalizado em funções improdutivas, decorrem duas implicações.

Primeiramente, há diminuição da taxa média de lucro, já que aumenta o capital social sem

variação na massa de mais-valia total; em segundo lugar, faz-se necessária a explicitação dos

dispositivos de distribuição da mais-valia entre os tipos de capital, já que, de outro modo,

nenhum capitalista investiria na esfera comercial.

A divisão da mais-valia entre o capital produtivo e o comercial toma a forma da

decomposição da mais-valia entre lucro comercial e lucro empresarial. Resumidamente, essa

distribuição se operacionaliza por meio da redefinição das categorias taxa média de lucro e

preços de produção. A primeira diminui à medida que ocorre formação de capital na esfera

comercial, enquanto a segunda se altera para acomodar os fluxos de renda entre as frações de

capital.

O modo concreto dessa operação de transferência é uma mudança nos preços de

produção. Ocorre uma diminuição no preço de produção das mercadorias vendidas pelo

capitalista industrial. Por seu turno, o capitalista do comércio as compra por um preço de

produção menor e as vende por seu preço de produção efetivo. Essas variações devem ocorrer de

modo a tornar possível uma apropriação de valor idêntica à taxa média de lucro, tanto para o

capital produtivo como para o comercial. Nada assegura que a realização dessas variações no

preço de produção ocorram de modo a viabilizar uma taxas de lucro setoriais em pleno

alinhamento com a média geral. No entanto, dada a prevalência da relação social capitalista, há

148 “Pro rata” é sinônimo de “em proporção”.

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tendência em direção à média, pois os capitalistas investem nos setores mais lucrativos e retiram

capital dos setores menos rentáveis. Ao fazê-lo, cria-se uma pressão de mercado que faz o

montante de mais-valia apropriado por cada fração tender a equalizar-se com a média.

Assim, por meio desses dispositivos distributivos, os quais são capitaneados pela lei de

mercado,149 ocorrem redefinições das taxas média de lucro e dos preços de produção, que

caminham para uma tendência à distribuição equânime do mais-valor. Se a citação acima de fato

representa o pensamento de Marx, na consumação de sua apresentação dialética ele consideraria

como preço de produção e como taxa média de lucro apenas as configurações finais desses

conceitos, nos quais teria ocorrido transformações pela incorporação no quadro teórico geral pela

inclusão das frações capitalistas, bem como dos dispositivos de distribuição de valor. Em outros

termos, ele apenas apresentou suas configurações abstratas como parte de um empreendimento

teórico, que tinha vistas a uma posterior concreção.

3.2.3 Exposição dialética e classes sociais

Dado que o capital na esfera comercial é improdutivo do ponto de vista da reprodução

social, depreende-se que o trabalho na esfera comercial por excelência é improdutivo. Uma parte

dos intérpretes extrai dessa conclusão teses a respeito da condição de classe do trabalhador

comerciário, excluindo-o do proletariado. No entanto, essa conceituação é insuficiente para a

designação da posição de classe, ainda que detenha seu papel. As razões para tanto são diversas e

elas serão objeto de investigação mais tarde. Por ora, será exposta a inconsistência dessa tese

mesmo sob o ponto de vista do conceito de trabalho improdutivo.

Comumente (por exemplo, Poulantzas, 1978; Lessa, 2011), há um erro de interpretação

quanto à leitura dos excertos de Marx a respeito do trabalho no comércio.150 Quando trata do

assunto, Marx discorre sobre as “funções peculiares do capital comercial” (Marx, 1986a, 203),

mostrando-as “em sua forma pura” (Marx, 1986a, p. 204). Essas funções consistem nas

atividades ligadas à mudança formal de propriedade das mercadorias. Na sua problemática, as

149 Essas considerações mostram que alegações de que Marx não considera a lei de mercado são inócuas, pois osmecanismos de mercado são parte intrínseca de diversos conceitos fundamentais da obra de Marx.150 Com efeito, uma parte do problema reside na não consideração da provisoriedade da teorização de Marx arespeito do tema: ele não foi além de excertos, alguns dos quais contraditórios entre si, diga-se de passagem.

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funções do trabalho no comércio de modo algum se reduzem a essas atividades. Nos termos do

próprio Marx:

Para nosso propósito, em que se trata de determinar a diferença específica dessa figuraparticular do capital, é preciso, portanto, abstrair aquelas funções. À medida que ocapital que funciona apenas no processo de circulação, especialmente o capital decomércio de mercadorias, combina em parte aquelas funções [as funções produtivas]com as suas, ele não se mostra em sua forma pura. Depois de despojado e distanciadodaquelas funções, temos a forma pura do mesmo (Marx, 1986a, p. 204)

A razão para as considerações de Marx que isolam as funções específicas do capital

comercial é o nível de abstração da sua exposição teórica. Ele não está preocupado com um

objeto histórico empiricamente dado (concreto), mas com o modo de produção capitalista

enquanto objeto teórico abstrato.151 Em outros termos, Marx não está apresentando uma formação

social concreta nem um processo histórico empiricamente dado, mas o conceito de modo de

produção capitalista.152 Por isso, ele abstrai de elementos da existência concreta dos objetos,

expondo apenas aquelas dimensões que coincidem com certos níveis de abstração.

Desse ponto de vista, a razão para Marx diferenciar as atividades comerciais das

“puramente comerciais” (Marx, 1986a) diz respeito à finalidade da seção sobre o capital

comercial, a qual situa-se no âmbito geral do livro terceiro: seu objetivo é progredir na concreção

teórica do objeto, de modo a não mais ignorar dimensões da sua natureza efetiva ou real. Quando

expõe o conceito de capital comercial, a ênfase é dada sobre dimensões que em parte contradizem

os conceitos até então apresentados. Como o capitalismo em geral se caracteriza pela relação

entre o capital produtivo e o trabalho em termos genéricos, não haveria sentido na exposição das

dimensões produtivas do capital comercial, pois elas não ocasionariam qualquer mudança no

conceito de modo de produção capitalista, já que são inteiramente alinhadas com o conceito de

capital em geral. Esse entendimento se alinha com a interpretação de Arthur, que concebe a

151 A exposição dialética se caracteriza pelo constante movimento de concreção das categorias. Primeiramente, elassão apresentadas sob forma abstrata e só mais tarde são progressivamente corrigidas por novas categorias, formandoum movimento progressivo de conservação-transformação (ou conservação-complexificação) do sistema deconceitos.

152 A respeito das relações entre concreto e abstrato e suas implicações teóricas, a presente pesquisa acompanhaAlthusser (1978). Acredita-se que as formulações do autor acerca da natureza dos conceitos teóricos “propriamenteditos” e dos conceitos empíricos sejam precisas, assim como sua interpretação acerca da natureza do objeto teóricode O capital, que é entendido como um objeto teórico abstrato, e não como fenômeno histórico concreto.

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apresentação dialética como um processo de constante transformação dos conceitos. Nos termos

do autor:

(…) em um argumento dialético os significados dos conceitos sofrem modificações, poiso significado de qualquer elemento em uma figura completa não pode ser concretamentedefinido logo de saída. Se o significado de cada elemento é determinado por seu lugar natotalidade, mas a exposição é forçada a começar com alguma relação isolada (…), entãoo momento inicial pode ser caracterizado apenas em um modo subdeterminado eprovisório; na medida em que a apresentação do sistema avança para relações maiscomplexas, e concretas, a definição originária de um conceito move-se igualmente, emgeral em direção a uma determinação mais completa (Arthur, 2016, p. 41).

Segundo o entendimento da presente pesquisa, a não consideração a respeito dessa

natureza (teórica abstrata) da exposição de Marx é fonte de inúmeros erros quanto à determinação

de classe do trabalhador comerciário. Com efeito, desse ponto de vista acerca da exposição de

Marx se depreende a existência de funções produtivas do trabalho no interior da dimensão de

circulação da reprodução capitalista. Marx designou-as “momentos materiais” da esfera da

circulação (Marx, 1986a, p. 241).153

Os momentos produtivos da dimensão da circulação da reprodução capitalista dizem

respeito a todas as atividades cujo resultado imediato não é a mera mudança de propriedade

formal das mercadorias. Por isso, “indústria dos transportes, armazenamento e distribuição das

mercadorias (...) devem ser considerados como processos de produção que persistem dentro do

processo de circulação” (Marx, 1986a, p. 203). Como a exposição do capítulo 4 argumentará,

essas funções do trabalho certamente compõem a maior parte da força de trabalho no comércio.

Assim, parte significativa das funções do trabalho no comércio são produtivas do ponto

de vista capitalista. Se há diferenças entre trabalhadores do comércio e trabalhadores da produção

desde o ponto de vista da exploração do trabalho, essa diferença é menos nítida do que sustentam

autores como Poulantzas (1978), Lessa (2011) e Trópia (1994).154 Essa consideração mostra a

necessidade de mobilização de outros critérios para explicitar as diferenças internas da classe

trabalhadora.

153 Os momentos materiais se contrapõe às funções especificamente voltadas à mera mudança na propriedadeformal das mercadorias.154 No caso de Poulantzas, nem todos os trabalhadores são excluídos da classe trabalhadora, uma vez que parte dostrabalhadores dos supermercados, em razão da concentração de capital, passariam a realizar funções manuais,configurando a formação de um setor proletário no interior do varejo. O tema será retomado no capítulo 4.

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O ponto de partida metodológico do presente estudo conduz a duas conclusões.

Primeiramente, os conceitos de trabalho produtivo/improdutivo possuem limites para tratar da

condição de classe do trabalhador comerciário.155 As imprescindíveis tarefas de estabelecimento

das fronteiras entre as classes e de identificação das diferenças internas às classes demandam

conceitos mais concretos do que a chave produtivo-improdutivo.156

Em segundo lugar, mesmo aceitando a dualidade produtivo/improdutivo como o critério

definitivo das fronteiras de classe, revela-se a inadequação de diversas problemáticas da classe

operária, tais como as de Poulantzas, Lessa e Trópia. Se a classe operária se define pela relação

de exploração, a qual é condição qualitativa, os trabalhadores do comércio fazem parte do

proletariado.

Outro ponto que muito contribui com a discussão é o da formação do trabalhador

coletivo na esfera comercial. Com efeito, como será tratado pela análise do capítulo 4, é difícil

discriminar as funções produtivas das funções improdutivas do trabalho no varejo. Também a

flexibilidade produtiva contribui para essa dificuldade de separação, tendo em vista que os

protocolos da alternância de funções e de multifuncionalidade levam os trabalhadores a

cumprirem funções do trabalho produtivas e improdutivas.

Dadas as considerações supracitadas, depreende-se que o capital comercial é constituído

ao mesmo tempo por funções produtivas e improdutivas, do que se conclui que há exploração do

trabalho no comércio. Essa questão soluciona alguns problemas, mas deixa outros em aberto: se

155 Analisando o problema da proletarização do trabalho docente, Cavalcante (2017) sustenta a tese da insuficiênciado papel da chave produtivo-improdutivo para designação do pertencimento de classe, embora o faça por umcaminho conceitual distinto do do presente capítulo. Entre outros argumentos, Cavalcante defende a necessidade deconsideração acerca da natureza concreta dos processos de trabalho como um dos critérios para designação dasposições de classe. Ao fazê-lo, torna-se possível discriminar diferentes classes no interior dos assalariados. Elesustenta que as diferentes conteúdos materiais do trabalho implicam em diferentes condições de proletarização dotrabalho, concluindo que o modo de produção especificamente capitalista se desenvolve desigualmente em cadaposição. Além disso, conclui que a natureza coletiva ou individual dos processos de trabalho implica em diferentescondições para a organização coletiva, fator também relevante para o pertencimento na classe proletária. Essasconsiderações são especialmente relevantes para o presente estudo, pois tratamos de um setor assalariado pelo capitalmas cujas condições materiais foram historicamente hostis á plena dominação capitalista. Acredita-se que astransformações do varejo no capitalismo flexível avançaram a dominação do capital sobre o trabalho, aproximando otrabalhador comerciário da condição proletária. As linhas argumentativas apresentadas por Cavalcante (2017;2014)serão retomadas no capítulo 4, quando esses problemas serão tratados em específico.156 A respeito desse problema, o presente estudo concorda com Patrícia Trópia (1994), que critica o excessivo usode categorias abstratas no debate sobre classes, situação que não seria problemática se as categorias abstratas fossemparticularizadas em categorias concretas. Apesar dessa concordância geral, as conclusões do presente estudodivergem das teses da autora a respeito da condição de classe do trabalhador comerciário.

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há funções do trabalho improdutivas, existem algumas dimensões do capital varejista que são

improdutivas; e se há funções capitalistas improdutivas, há funções do trabalho improdutivas

quando essas funções são realizadas por força de trabalho assalariada. Em função desse estado de

coisas, o capital e o trabalho no comércio são parcialmente diferentes do capital produtivo no que

se refere à condição de produtivo-improdutivo. Em termos qualitativos, seriam iguais, porque

valorizam capital nos momentos de produção de valor, mas teriam uma diferença quantitativa em

relação ao capital industrial propriamente dito pois uma parte das funções seriam improdutivas.

No que se refere às funções improdutivas, a presente pesquisa acompanha a solução

parcial fornecida por Carchedi (1996). Segundo o autor, as funções do trabalho situadas na esfera

da circulação não seriam exploradas do ponto de vista capitalista, mas oprimidas

economicamente. Esse conceito visa designar o conflito de classe entre trabalhador comerciário e

capital varejista. Essa abordagem sustenta que o trabalho do comerciário é imprescindível para a

realização do valor na esfera da circulação, já que é momento necessário da apropriação da mais-

valia realizada pelo capital comercial. Contudo, o trabalhador comerciário não participa desses

ganhos, pois teria sua força de trabalho determinada do mesmo modo que o resto da classe

trabalhadora, isto é, pelo valor das mercadorias necessárias à sua reprodução (Carchedi, 1996;

Marx, 1986a).

Assim, o trabalhador comerciário é duplamente caracterizado em termos de sua relação

com o capital varejista. Por um lado, ele é explorado como todo o proletariado, uma vez que

produz valor nos momentos materiais da circulação comercial, os quais são grande parte das

funções do trabalho no varejo moderno. Por outro, o comerciário é oprimido economicamente,

pois apenas atua para realizar o valor no momento de circulação da reprodução capitalista,

permitindo ao capitalista do comércio se apropriar da mais-valia socialmente gerada. Dado o

entrelaçamento de funções do trabalho no varejo moderno, a desqualificação das funções do

trabalho e a flexibilização das funções do trabalho, tornou-se difícil distinguir o trabalhador

explorado pelo capital do trabalhador oprimido economicamente, fazendo-se necessária a

conclusão de que o trabalhador comerciário enquanto trabalhador coletivo é simultaneamente

oprimido e explorado pelo capital. Portanto, ainda que em grau distinto do trabalhador industrial,

o trabalhador comerciário é vítima da exploração capitalista.

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Por essas razões, não é possível depreender da análise de Marx acerca da natureza

improdutiva do capital comercial a improdutividade do trabalhador comerciário, o que permitiria

excluí-lo das relações de exploração. Dito isso, o presente estudo se indagará acerca da

importância da racionalização capitalista do trabalho no comércio.

3.3 A importância da racionalização do trabalho no comércio

A presente seção visa responder à seguinte pergunta: por que a racionalização capitalista

do trabalho no comércio é fundamental para o desenvolvimento do capitalismo? A resposta será

dividida entre os diferentes tipos de função do trabalho no comércio. Do ponto de vista das

funções produtivas do capital, a importância é idêntica à existente em todas as funções produtivas

do capital, tal como enunciado na seção 3.3. O mais-valor é o “elemento” da acumulação. No

registro de Marx, a exploração do trabalho é decisiva para explicar a capacidade de expansão do

capitalismo. Se as trocas se dão em concordância com a lei da troca de equivalentes, o excedente

não pode advir da circulação. Se assim ocorresse, a valorização de um capital implicaria em

desvalorização de outro, inviabilizando a acumulação de capital no conjunto da formação social.

As funções comerciais necessariamente funcionam em relação simbiótica com as

funções produtivas da circulação, dado que não há troca sem transportes, organização e

armazenamento. No entanto estas funções aumentaram sua proporção à medida em que ocorreu

modernização do varejo, pois parte significativa da formação das redes deveu-se ao controle do

setor varejista sobre a logística, que antes era realizada dominantemente pelo atacado. Nesse

processo, crescentemente o setor hipertrofiou as funções do trabalho no setor logístico, muito

embora a elevação da composição técnica também tenha eliminado postos de trabalho nessas

funções. À medida em que houve aumento na proporção das funções produtivas do trabalho no

varejo, a importância da racionalização capitalista tornou-se idêntica àquela de todo outro setor

da economia: o capital busca aumentar a intensidade e a produtividade do trabalho com vistas ao

incremento da exploração.

Do ponto de vista das funções improdutivas, a racionalização do trabalho no comércio é

importante em razão da sua conexão com o tempo de rotação do capital. Como já enunciado, o

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tempo de rotação incide diretamente sobre a taxa de lucro, pois ele coincide com a capacidade de

dado montante de capital gerar mais-valia em certo período de tempo.

A eficiência do capital comercial, que influencia o tempo de rotação de toda a formação

social, guarda estreita relação com a racionalização do trabalho. Com efeito, todos os traços

característicos do varejo moderno tem como resultado as vantagens associadas à autonomização

do capital comercial: elas permitiram diminuição do montante de investimentos nas funções de

circulação, promoveram aceleração do tempo de circulação e integração comercial. Cada um

desses resultados é inseparável da racionalização capitalista do trabalho, pois só processos de

trabalho intensos são suficientes para gerar rápidos fluxos de mercadorias. A alternativa ao

aumento de intensidade seria o aumento de postos de trabalho, o que seria pouco viável em

termos econômicos, acabando por neutralizar as benesses da autonomização do capital comercial.

Do ponto de vista da presente pesquisa, essa discussão é pertinente, pois ela dá substrato

para refutação das teses (explícitas ou implícitas) que sustentam uma hierarquização de

importância quanto à racionalização capitalista do trabalho, de acordo com a qual seria mais

importante para o capitalismo a racionalização do trabalho produtivo. Poulantzas formula

explicitamente essa tese, depositando nela um dos argumentos centrais para que o trabalho

produtivo seja critério por excelência para estabelecer a fronteira de classe entre o proletariado e

a “nova pequena burguesia”. Como o mais-valor é o fundamento da acumulação, a voracidade do

capital seria mais intensa sobre o trabalhador produtivo.

A consideração a respeito da importância do tempo de rotação fornece substrato para

crítica do argumento de Poulantzas. Como na dinâmica concreta do capitalismo a categoria

operante efetiva não é a mais-valia, mas a taxa de lucro, são fundamentais para o capitalismo

todos os recursos promotores de incremento na taxa de lucro.157 Para o capitalista, é indiferente se

o ganho econômico for obtido por meio de incremento da exploração do trabalho ou da

aceleração do tempo de circulação. Com efeito, a natureza do capital se caracteriza pela busca da

maximização em termos de riqueza abstrata, seja qual for sua forma ou dispositivo.

Além disso, quando sobreleva o papel do trabalho produtivo como motivo indutor da

racionalização capitalista, Poulantzas ignora que a regulação social do capitalismo funciona por

157 Esse argumento é explorado por Duménil e Levy (2005) a partir do conceito de trabalho produtivo comotrabalho maximizador de lucro.

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meio de dispositivos reificados, os quais conduzem à formação de uma diferença entre a natureza

efetiva do capitalismo e o modo como ele se apresenta para os agentes (ou: na representação dos

agentes?). Com efeito, o livro três de O capital progressivamente constrói a tese da reificação do

capital como produto necessário do capitalismo: à medida em que a exposição se aproxima da

superfície da sociedade capitalista, maiores e mais complexas são as mediações do lucro concreto

para com a mais-valia. Simultaneamente, no plano das aparências, é progressivamente fortalecida

a imagem de que o mais-valor tem como origem o próprio capital. Na visão predominante, o

capital gera capital do mesmo modo que macieiras geram maçãs, segundo a expressão de Prado e

Guedes Pinto (2014), de modo que toda conexão com a exploração do trabalho é apagada no

campo das aparências. Por essas razões, a tese da associação entre trabalho produtivo e maior

impulso por racionalização dos recursos é inconsistente.

Por si só, as questões supracitadas explicam em parte a relação entre formação de capital

na esfera comercial e tendência a racionalização do trabalho. Além delas, adiante serão expostos

mais alguns argumentos para sustentação dessa tese.

3.4 Autonomização do capital comercial e racionalização capitalista

Finalizando a argumentação em torno da importância da racionalização capitalista do

trabalho sobre o trabalhador comerciário, pretende-se levantar respostas à seguinte questão: por

que a autonomização do capital comercial implica formação de tendência à racionalização

capitalista do trabalho no comércio? Em seu sentido mais genérico, pode-se responder a essa

pergunta sustentando que a autonomização leva à tendência à racionalização em razão das

características gerais do capital. Como a autonomização significa precisamente a transformação

do setor comercial em campo de investimento de capital, ela traz para o âmbito comercial

tendências gerais do modo de produção capitalista. Por seu turno, essa explicação genérica

precisa realizar-se em mecanismos concretos.

Os dispositivos concretos responsáveis pela imposição das leis gerais do capitalismo são

fundamentalmente a concorrência nas suas formas intra e intersetorial. A primeira se caracteriza

pela imposição mais geral da lei do valor trabalho, que passa a deter validade para o setor

comercial não obstante algumas das atividades do setor serem de natureza improdutiva. Já a

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concorrência intersetorial se caracteriza pela tentativa de aumentar ao máximo o ganho do

capital. Como existem ramos com maior possibilidade de ganho, aumenta a disposição do

capitalista para tentar extrair o máximo de todo capital já investido.

Alguns dos motivos para a racionalização dos recursos não possuem qualquer

especificidade no setor comercial, uma vez que em todos os setores a concorrência intrasetorial

conduz à pressão pela economia de custos como condição de sobrevivência para os capitais

individuais. Essa implicação da concorrência abarca tanto trabalhos produtivos, que assim

aumentam a massa de mais-valia gerada, quanto os trabalhos improdutivos, que apenas geram

vantagem competitiva. A pressão da concorrência intrasetorial é um dos determinantes

fundamentais da lei do valor trabalho. Logo, sua presença no varejo traz as determinações do

valor para o setor.

Marx chega a comentar a necessidade de se aprofundar sobre a existência do tempo de

trabalho socialmente necessário no comércio. Mesmo se tratando de funções improdutivas, os

condicionantes do valor sobre o trabalho se colocariam de forma idêntica, dada a igual presença

da concorrência.

Em se tratando da circulação comercial, a função última do trabalho é a mudança formal

da propriedade das mercadorias. Dada essa característica, é difícil a formação de um parâmetro

objetivo de produtividade do trabalho, tal como nos setores de produção de mercadorias

(tangíveis ou não). No entanto, em cada formação social concreta, pode ser socialmente

determinado o montante de força de trabalho necessária para se fazer circular as mercadorias.

Essa pode ser entendida como o trabalho socialmente necessário para se vender as mercadorias.

Esse trabalho socialmente necessário se expressa no conjunto das tarefas do

empreendimento comercial, e não em cada trabalhador em particular, embora haja tendência à

homogeneização do modo de produzir em todo o setor comercial, permitindo a padronização e

normalização do trabalho em cada uma das funções do trabalho. A razão: as empresas concorrem

através do seu produto final com as demais, tornando impossível a separação entre quais parcelas

do produto final são produzidas por cada trabalhador individual. Esse componente da

concorrência intrasetorial no comércio reitera a natureza coletiva do processo de trabalho no

setor, implicando em dificuldade de separação entre os trabalhadores produtivos e improdutivos.

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Pode-se dizer que todos possuem funções produtivas e improdutivas, portanto, em termos

qualitativos, todos sofrem exploração.

A especificidade da concorrência no setor comercial diz respeito a concorrência

intrasetorial expressa no tempo de rotação do capital. Com efeito, os capitalistas comerciais

concorrem não apenas no montante de força de trabalho necessária para colocar em

funcionamento os empreendimentos capitalistas, mas sobretudo por conseguir fazer com que um

mesmo montante de força de trabalho faça circular mais mercadorias em menos tempo.

A concorrência intra-setorial no comércio conduz às determinações do valor a atuarem

no tempo de rotação do capital: ao mesmo tempo em que aqueles situados abaixo da média não

conseguem auferir parcela de lucro proporcional ao montante de capital investido, os capitais

situados acima da média recebem super-lucros.

A implicação geral desse estado de coisas é: a autonomização do capital comercial do

produtivo desencadeia pressão por racionalização dos recursos, a qual tem como epicentro a

concorrência de capitalistas para aumentar sua participação na riqueza social total. Como

corolário dessa condição, dada a natureza antagonística dos interesses de classe intrínsecos à

relação social capitalista, agudiza-se o conflito distributivo entre capital e trabalho, motivado pela

pressões de diminuição de custo, de intensificação do trabalho e de diminuição do tempo de

rotação. Em outros termos, a autonomização do capital comercial desencadeia intensificação dos

conflitos distributivos em três direções, cada uma das quais implicando nas demais: entre frações

capitalistas dos diferentes setores, entre capitalistas do comércio e entre capital e trabalhador

comerciário.

Dado esse quadro como ponto de partida, serão analisados em pormenor os demais

condicionantes das relações de classe do trabalhador comerciário.

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Capítulo 4 – O trabalhador comerciário

O principal propósito deste capítulo é avaliar a natureza das relações de trabalho do setor

varejista, sendo a tese principal que a transição do setor para a condição de capital monopolista,

assim como as transformações técnicas associadas, implicaram em deterioração das relações de

trabalho. Como parte desse complexo, sustenta-se que houve uma mudança na natureza das

relações de classe do setor, sendo parte do processo a proletarização da força de trabalho

assalariada pelo capital varejista.

Esses problemas serão examinados a partir de quatro eixos. Inicialmente, esse problema

será abordado pela reconstrução das abordagens de analistas marxistas sobre o trabalhador

comerciário Mais precisamente, além de um breve panorama geral, na primeira seção serão

retomados os registros de Eric Olin Wright, de Nicos Poulantzas e de Harry Braverman.

Na segunda seção, serão examinadas as principais transformações técnicas do setor ao

longo da sua financeirização. Embora não sejam sustentadas teses de um determinismo

tecnológico, de modo que as transformações na técnica sejam as principais causas da qualidade

do trabalho, avalia-se que a divisão técnica do trabalho tenha cumprido papel fundamental para a

configuração da nova anatomia do trabalho e para as novas relações de classe no setor.

Na terceira seção, serão analisados dados a respeito da estrutura de emprego no setor.

Em larga medida, essa análise de dados e da bibliografia que analisou o setor servirá como

evidência para as teses sustentadas nesta pesquisa. Uma vez que se avalia que há deterioração das

condições de emprego como efeito das condições de trabalho, pode-se identificar nos dados sobre

a deterioração do emprego confirmações das teses sustentadas teoricamente nesta pesquisa.158

Finalmente, na seção quatro serão sumarizadas as conclusões a respeito da nova

configuração das relações de classe e de trabalho do setor, com ênfase para a identificação da

deterioração do trabalho nas formas da separação das funções intelectuais e manuais, da

parcialização, desqualificação e rotinização do trabalho.

158 Apesar da menção à busca de evidências, com esta pesquisa não pretendemos comprovar as teses levantadas,dada a fragilidade da pesquisa empírica e a amplitude do objeto, mas sim encontrar dados que mostram oembasamento das conclusões propostas em processos sociais reais. Além disso, a pesquisa em larga medida indicacaminhos possíveis para continuidade da investigação, que, com análise de dados mais sistemática, pode de fatocomprovar as avaliações propostas a respeito das condições de trabalho e emprego e a respeito das relações de classeno setor varejista.

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4.1 Interpretações marxistas do trabalhador do comércio

A literatura marxista se divide no que se refere à classificação dos trabalhadores do

comércio. De uma maneira geral, essa divisão pode ser sumarizada em dois grandes e

heterogêneos grupos. O primeiro deles inclui o trabalhador comerciário nas classes médias e/ou

nas classes apropriadoras da riqueza, excluindo-o das classes exploradas ou, ao menos, da

condição de antagonismo pleno em relação aos interesses do capital. É o caso de autores como

Lessa, Trópia e Poulantzas (1978).159 Por seu turno, o segundo grupo inclui o trabalhador

comerciário como camada da classe trabalhadora ou das classes trabalhadoras. Esse segundo

grupo se divide entre diversas variantes. Algumas delas consideram existirem diferenças

fundamentais entre os contingentes assalariados situados na produção e os da circulação,

enquanto outras avaliam que esse tipo de diferença não possui pertinência para o pertencimento

na classe trabalhadora.

No entanto, apesar dos posicionamentos acerca do setor, regra geral os marxistas não se

basearam em análises detalhadas sobre as transformações concretas pelas quais o setor comercial

passou nas últimas décadas, seja em termos da forma social, caracterizada por intensa

concentração e centralização de capital, seja em termos das transformações técnicas, a partir das

quais o setor adquiriu nova anatomia. Assim como nas áreas da Economia, da Demografia e da

Administração há pouca consideração a respeito do setor (Carré et al, 2005), nas análises

marxistas há pouco exame concreto do setor em específico.160 Em termos das classes, essa

condição se traduz em considerações esparsas e não sistemáticas sobre a posição de classe e sobre

as condições de trabalho. Ademais, boa parte das principais referências teóricas das análises

marxistas das classes, como todos os autores analisados no presente capítulo, empreenderam suas

produções científicas e teóricas em período anterior à transição do setor varejista ao capitalismo

monopolista e à internacionalização.

159 Como já assinalado, no que se refere à conceituação de Poulantzas, a proposta de classificação do comerciário émenos categórica, pois o greco francês identifica a existência de um contingente proletário no setor varejista, queteria se formado como resultado da concentração de capital, da racionalização capitalista e da concentração dasfunções manuais em alguns trabalhadores.160 O que, ademais, é atestado pelo resgate bibliográfico dos capítulos 1 e 2, para o qual pouca literatura marxistafoi encontrada

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Nesse sentido, tendo em vista a atual configuração do setor, essa condição torna as

análises marxistas excessivamente genéricas e respaldadas em conceitos e análises teóricas

gerais, mas pouco embasadas empiricamente. Esse é o caso, por exemplo, de Lessa (2011), cujo

foco para excluir todos os trabalhadores da circulação da classe trabalhadora são as categorias de

formas de propriedade, trabalho produtivo e exploração. Esse também é o caso de Antunes, com

cuja abordagem, não obstante, temos inúmeras afinidades e aproximações, e cujos estudos

marxistas do trabalho foram fundamentais para a consolidação de um campo de reflexão marxista

crítica sobre o trabalho no mundo contemporâneo. O registro de Antunes (2009) centra-se no

assalariamento da força de trabalho em processos de trabalho que são valorização do valor, não

discriminando entre trabalhadores produtivos e improdutivos. Por meio desse critério,

trabalhadores situados na circulação, como os comerciários e os bancários, e ainda outros setores

do setor de serviços, fazem parte da classe trabalhadora.

O principal mérito dessa abordagem foi a possibilidade de identificação do que há de

comum entre diversas categorias de assalariados, que é o antagonismo de interesse em relação ao

capital e o significado comum dos vários processos de reestruturação produtiva em curso no

capitalismo contemporâneo. Ademais, essa inclusão de setores diferentes numa mesma

designação possui importante significação política, na medida em que permite unificar discursiva

e ideologicamente grupos assalariados distintos, fortalecendo a formação de um campo político e

ideológico de aliança dos subalternos.

Os principais limites desse tipo de abordagem já foram pontuados. Sumariamente, o

principal problema consiste na desconsideração das diferenças entre os diversos contingentes

assalariados, diferenças nos âmbitos econômicos, políticos e ideológicos que claramente situam

esses grupos em diferentes posições e papeis na estrutura social, papeis que frequentemente

entram em conflitos entre si. Enquanto algumas parcelas detêm qualificação e a responsabilidade

da autoridade no exercício de suas funções na divisão do trabalho, outros apenas realizam

funções manuais em processos de trabalho repetitivos e pouco (ou nada) qualificados.161 A não

161 Além das benesses econômicas diretamente associadas à qualificação do trabalho, esse atributo, socialmenteconstruído, como sustenta a própria literatura marxista (por exemplo, Poulantas, 1978), é possível encontrardimensões importantes da desigualdade do ponto de vista das relações de reconhecimento, na medida em que o statusligado ao trabalho é parte indissociável da estima social nas sociedades capitalistas. A respeito, ver Honneth, 2003.

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consideração dessas diferenças implica erros na teorização da estrutura de classes e na

qualificação das classes sociais, tendo inclusive implicações no plano da estratégia política.

Feitas essas considerações, serão tratadas em específico algumas das abordagens que

examinaram de modo mais específico e sistemático a condição do trabalhador comerciário no

âmbito do debate marxista. Mais precisamente, será feita incursão nos registros de Eric Olin

Wright, Nicos Poulantzas e Harry Braverman.

4.1.1 Os registros de Wright, Poulantzas e Braverman

Para Wright, os trabalhadores da base da divisão do trabalho do comércio fazem parte da

classe trabalhadora, dado que sua classificação tem como referência sobretudo os ativos detidos

por um grupo social. Tendo em vista que a partir das transformações no varejo moderno toda

qualificação do trabalho se tornou desnecessária na maioria das funções, esse quadro de

referência conduz ao enquadramento dos trabalhadores manuais do setor como parte da classe

trabalhadora. Além disso, o referencial de Wright permite classificar os trabalhadores da gerência

e outras funções técnicas, como os programadores e analistas de sistema, como parte das posições

contraditórias de classe.162

Essa classificação do comerciário decorre de três pontos. Em primeiro lugar, Wright

parte de uma definição abstrata de exploração do trabalho, o que não o permite colocar em

questão a existência de contingentes assalariados não explorados pelo capital. Ele define a

relação de exploração como um resultado da condição de assalariamento por um capitalista:

havendo contratação de assalariados em uma organização voltada à produção de excedente, cria-

se um antagonismo de interesses materiais, já que a realização dos interesses materiais de uma

classe são incompatíveis com a da sua antagonista. Desse modo, havendo assalariamento em um

empreendimento que vise lucro, há exploração. Em segundo lugar, e intimamente associado ao

162 No que se refere ao referencial de Wright, a presente pesquisa tem como referência sobretudo os trabalhos emque o autor formula uma problemática da estrutura de classe baseada na tese das posições contraditórias de classe(e.g. 1997). Apesar dos limites de Wright no que se refere à consideração do papel da produção na estruturação dasposições de classe, seu registro permite compreender de modo arguto os conflitos distributivos entre as classes, alémde fornecer bases para compreender o grau de sujeição de um grupo social à dominação capitalista. Adiante asdiferenças com Wright serão esmiuçadas.

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ponto anterior, o trabalhador do comércio não possui meios de produção e, em razão dos

dispositivos de reprodução social, vivencia uma condição na divisão do trabalho que o impede de

acessar a bens dessa natureza, criando uma condição típica de posições de classe, na qual um

grupo social tende a manter-se nas suas condições de origem.

Por último e em terceiro lugar, o trabalhador do comércio é parte da classe trabalhadora

por não deter nenhum ativo raro e importante para o funcionamento das economias capitalistas.

Os tipos de ativo identificados por Wright como típicos das modernas classes médias são a

qualificação técnica e a competência para o exercício da autoridade no processo de trabalho.

Dada a importância dessas funções para o capital e dada sua escassez, esses bens viabilizam a

participação privilegiada na distribuição da riqueza, o que leva Wright a incluir as classes médias

como classes apropriadoras do excedente socialmente produzido.163 Dada a configuração técnica

do varejo, com sua divisão entre funções manuais e intelectuais, a maior parte da força de

trabalho do setor mantém-se na condição proletária de classe, sendo apenas as camadas de

gerentes, administradores e algumas funções técnicas específicas parte das classes médias. No

que se refere aos problemas da presente pesquisa, Wright em larga medida endossa a tese da

proletarização do trabalho no setor. Isso é especialmente válido se considerarmos as

transformações técnicas posteriores, nas quais a detenção de qualificação técnica quase que foi

eliminada pela inserção de tecnologias que eliminaram a necessidade de qualificação; em certo

sentido, pode-se dizer que a qualificação foi substituída por tecnologias da informação, restando

apenas funções de classe média nas funções responsáveis pelo exercício de autoridade.

Na avaliação desta pesquisa, a problemática de Wright a respeito do trabalhador

comerciário possui tanto pontos fortes quanto debilidades, ambos decorrendo dos méritos e

limites da abordagem wrightiana das classes em geral. No que se refere aos problemas desta

pesquisa, há sobretudo três pontos positivos na problemática de Wright. Em primeiro lugar, sua

ênfase no conceito de exploração é um ponto crucial para deslindar as relações de antagonismo

de interesse no interior do varejo. Justamente por se fundamentar numa visão genérica de

exploração, Wright consegue captar a natureza contraditória e incompatível dos interesses de

classe entre capital e trabalho, o que permite ao seu referencial identificar a tendência de conflitos

163 Dado que as classes médias também são explorados pelo capital, eles ocupam posições contraditórias de classe,i. e., classes caracterizadas por uma dualidade de condições de classe, traço típico das modernas classes médias

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de classe no interior do varejo,164 tendência fundamental para compreender a natureza antagonista

da técnica e das relações sociais no setor.

Em segundo lugar, um dos pontos nodais da problemática de Wright é a diferenciação

entre classes trabalhadoras e classes médias, o qual é um ponto crucial das análises de classe de

camadas assalariadas no mundo contemporâneo. Num setor frequentemente classificado pela

tradição marxista como classe média (e. g., Poulantzas, 1978; Lessa, 2011, Trópia, 1994), esse

debate torna-se premente. Os referenciais de Wright permitem identificar com clareza que a

maioria da força de trabalho no varejo é parte da classe trabalhadora, o que é especialmente

adequado se considerarmos as transformações no varejo financeirizado, o qual experimentou a

revolução do varejo a partir da década de 70.165

Em terceiro lugar, Wright confere destaque para a desqualificação do trabalho como

componente fundamental da classe trabalhadora. Como será detalhado nas seções 2 e 3, a partir

das reconfigurações tecnológicas e organizacionais ocorridas no setor varejista no contexto da

transição à acumulação flexível, tornou-se desnecessária a detenção de qualquer qualificação no

exercício da maior parte das funções do trabalho necessárias à reprodução social do varejo

supermercadista. Regra geral, o capital reconfigurou a divisão do trabalho de modo a expropriar

os trabalhadores de qualquer ativo raro, para usar a formulação wrightiana, tornando o

trabalhador plenamente dependente do capital.166 Por seu turno, essas reconfigurações, que têm na

desqualificação um dos seus pilares, são a base da elevação nos níveis de intensidade e de

exploração do trabalho, acentuando as contradições de classe.

Apesar dessas qualidades, o diagnóstico de Wright possui alguns limites significativos,

dos quais se destacam dois. Em primeiro lugar, dentre as determinações das classes, Wright

164 Por outro lado, o modo abstrato de interpretar a exploração também é um limite da problemática de Wright, namedida em que a exploração não é vista do ponto de vista da produção, mas sobretudo de uma luta distributiva. Arespeito desse e de outros problemas da teoria wrightiana da exploração, como a questão da especificidade docapitalismo, ver Carchedi, 1989.165 As seções subsequentes destrincharão as associações entre inovações técnicas e tendência à proletarização daforça de trabalho166 Apesar da dissonância em outros pontos importantes, essa dimensão do quadro teórico wrightiano alinha-se comuma das preocupações de Marx na análise das relações de trabalho em O capital, sobretudo quando sãodestrinchados os dispositivos de determinação do antagonismo de classe típico do capitalismo. Para Marx, um dostraços fundamentais da dominação capitalista de classe é a criação de dependência da força de trabalho em relação aocapital, à qual corresponde à independência do capital em relação à força de trabalho. Só por meio da criação dessadependência-independência torna-se viável a realização da exploração normal da força de trabalho, i. e., daexploração do trabalho em nível suficientemente intenso para gerar acumulação de capital.

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confere excessivo destaque para a distribuição de ativos, modo problemático de encarar as classes

sociais por duas razões. Por um lado, essa abordagem tem como eixo a distribuição desigual de

bens, colocando teoricamente a questão de modo problemático, por não considerar o papel da

natureza capitalista da produção como dispositivo estruturante da desigualdade de classe167. Uma

problemática alternativa é considerar a natureza social e histórica específica do capitalismo e das

relações de classe em cada formação social, situando a distribuição de ativos como um resultado

dessa relação estrutural (Carchedi, 1996). Por outro lado, o foco na detenção de ativos, embora

traga vantagens para a classificação dos grupos sociais no âmbito de pesquisas quantitativas, o

que é uma preocupação cara a Wright, tem como contrapartida a formulação pouco sistemática de

referências para a análise qualitativa das relações de trabalho. Mais do que isso, esse referencial

não permite compreender o quanto a natureza capitalista da produção carrega uma tendência

imanente à reestruturação do trabalho de acordo com as necessidades da acumulação. Nesse

processo, o capital continuamente cria e recria o trabalho como um fator de produção

(Braverman, 1987) ou como trabalho abstrato (Arthur, 2016). A negatividade imanente ao capital

é levada ao trabalho, que, como resultado de uma luta, é negado/transformado continuamente de

acordo com a necessidade de valorização do valor.

Parte desses problemas168 é solucionado pela abordagem de Poulantzas, que avalia que

os trabalhadores do comércio dividem-se entre contingentes da nova pequena burguesia e

contingentes proletários. Os motivos que levam-no a entender parte dos comerciários como

pertencentes ao proletariado são a realização de funções manuais e a sujeição à racionalização

capitalista, de modo parecido com o argumentos sustentados nesta pesquisa, apesar de algumas

diferenças.169 No que se refere à classificação de parte do comerciário como nova pequena

burguesia, o argumento é um pouco mais complexo e, dada a pertinência do assunto, ele será

apresentado de forma um pouco mais detalhada.

167 A respeito do assunto, acompanhamos a crítica de Carchedi (1989) a Wright.168 Na avaliação da presente pesquisa, esses limites da abordagem de Wright em larga medida podem ser superadosa partir de uma inclusão de referências de outros analistas marxistas das classes. Mais precisamente, as problemáticasde Poulantzas e de Braverman alinham-se com algumas falhas do quadro wrightiano. Enquanto Poulantzas trazreferências sociológicas críticas para se identificar o papel da ideologia e da política capitalista na divisão dotrabalho, Braverman traz uma análise poderosa acerca das tendências imanentes do trabalho no capitalismo,capitalismo, investigando-as à luz da contradição entre conteúdo e forma social do trabalho.169 A problemática dessa pesquisa a respeito do assunto em larga medida acompanha o registro teórico deBraverman, que será esmiuçado adiante.

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Para fundamentar a inclusão de parcela do comerciário como parte da nova pequena

burguesia, o marxista greco-francês mobiliza três argumentos principais. Em primeiro lugar,

algumas funções do trabalho no comércio se situariam nos momentos de circulação da

reprodução capitalista, enquanto que o pertencimento em processo de trabalho na produção seria

definida como condição necessária para a condição proletária de classe. Sendo assim, o

comerciário não seria explorado pelo capital, mas, do contrário, participaria na apropriação de

valor gerada na produção.

Em segundo lugar, em termos do seu processo de trabalho, as funções do comércio se

diferenciam das proletárias em razão do domínio sobre as etapas do seu processo de trabalho. Por

sua vez, a condição proletária é caracterizada pela realização de funções manuais do trabalho em

condição heteronômica, isto é, em processo de trabalho controlado intelectualmente por outros

agentes que não o próprio trabalhador. De acordo com Poulantzas, parte dos trabalhadores do

comércio controlam subjetivamente as etapas do seu processo de trabalho, fazendo parte, por essa

razão, de um processo de trabalho típico da nova pequena burguesia.

Em terceiro lugar, parte das funções do comércio seriam típicas da nova pequena

burguesia porque mobilizam habilidades de comunicação no seu trabalho, as quais são

socialmente significadas como trabalho intelectual. A função comercial da reprodução capitalista

carrega consigo, de forma imanente, a necessidade do exercício de tarefas intelectuais e

comunicativas, as quais só podem ocorrer mediante domínio subjetivo do trabalhador sobre seu

processo de trabalho. Além disso, como essas funções são estimadas socialmente e características

de estratos pequeno burgueses e das classes dominantes, o próprio trabalhador do comércio passa

a se identificar com a visão de mundo da pequena burguesia.

Apesar dessas funções típicas da condição da nova pequena burguesia, o próprio

Poulantzas reconhece que mesmo essas funções (e em outros grupos por ele classificados como

“nova pequena burguesia”) experimentaram intensos processos de racionalização capitalista já

nas décadas de 1950 e 1960, com uma correspondente aproximação desses setores em relação à

condição proletária de classe. Esses processos, para usar a expressão de Braverman (1987), em

larga medida funcionavam pela inserção nos novos postos de trabalho dos métodos de

organização do trabalho primeiramente desenvolvidas nas fábricas.

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Apesar de sua importância, na ótica de Poulantzas essas transformações não alterariam

qualitativamente a condição de classe desses grupos sociais, dado que seriam mantidas as

condições estruturais típicas da pequena burguesia (comunicação, autonomia no trabalho e

realização de funções intelectuais). A esse fenômeno Poulantzas denominou burocratização do

trabalho intelectual, a qual seria, ao mesmo tempo, uma inserção de normas típicas do trabalho

proletarizado nos processos de trabalho dos contingentes pequeno burgueses, levando a uma

polarização das camadas médias. Algumas parcelas da pequena burguesia se aproximaria da

classe proletária, enquanto outras das classes dominantes. A burocratização, que seria o efeito da

implementação das normas da divisão capitalista do trabalho nas funções detidas de qualificação

intelectual, seria efeito da polarização da pequena burguesia pela estrutura de classes do

capitalismo. Uma parcela da pequena burguesia se aproximaria do proletariado, formando o que

Cavalcante (2012) chamaria por “baixas classes médias”, enquanto as outras parcelas se

aproximariam da burguesia, conformando as “altas classes médias”.

Do ponto de vista dos problemas desta pesquisa, o ponto forte da abordagem de

Poulantzas consiste na proposição de uma análise qualitativa da natureza da estrutura técnica e

organizacional do trabalho, a qual é vista como parte constitutiva (determinação) do modo de

produção e das relações de classe existentes em uma formação social. A técnica não é neutra, isto

é, ela responde a interesses de classe, além de recriar relações de poder e de dominação no âmbito

das relações de trabalho e de criar uma estrutura de posições socialmente determinada.

Essa combinação de fatores permite à teoria poulantziana ir além da abordagem de

Wright em alguns aspectos. Do ponto de vista dos problemas desta pesquisa, esse registro tem

uma contribuição importante por trazer referências para compreensão da condição de classe a

partir da natureza das tecnologias e da organização do trabalho. Dado que o objeto de

investigação passou por intensas transformações nas condições de trabalho, as quais claramente

afetaram a posição do comerciário na estrutura de classes, os referenciais de Poulantzas mostram-

se profícuos.

Como já notório em razão do histórico de críticas à teoria poulantziana das classes, os

limites da análise de Poulantzas sobre o trabalhador comerciário também são vários.

Resumidamente, podem ser levantadas duas objeções principais à classificação do comerciário

promovida por Poulantzas: (1) aquela associada ao argumento do trabalho produtivo como

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condição de pertencimento na classe trabalhadora e (2) o da natureza do trabalho do comerciário,

o qual se enquadraria nas condições para pertencimento na nova pequena burguesia.

No que se refere ao argumento do trabalho produtivo,170 Poulantzas equivocadamente

avalia que a realização de trabalho produtivo é condição necessária para pertencimento na classe

trabalhadora, quando, na verdade, o antagonismo de classe típico do capitalismo é mais amplo e

complexo do que a relação de geração de mais-valor – como, contraditoriamente, sustenta o

próprio Poulantzas.. Esse problema tornou-se grave dadas as configurações do varejo no

capitalismo financeiro, perante as quais seu diagnóstico mostra-se claramente equivocado. Na

configuração atual do varejo, exceto para alguns postos de trabalho, é difícil separar as funções

produtivas e das improdutivas do trabalho, dado que dominantemente todas essas funções são

realizadas pelo trabalhador coletivo, de modo que os trabalhadores individuais alternam a

realização de funções no interior do sistema varejista. A parcialização das funções, a

desqualificação e a alternância de papeis tornaram inviável a discriminação entre os trabalhadores

explorados e os não explorados. Além disso, como será explicitado adiante, a revolução do varejo

em larga medida se caracteriza pela incorporação de atividades tipicamente produtivas no setor.

Por essas razões, seu diagnóstico de que parte da força de trabalho do setor compõe a nova

pequena burguesia é problemático.

Como já mencionado, Poulantzas não só exclui parte do comerciário da classe

trabalhadora, como ainda mobiliza argumentos para incluir esses contingentes na nova pequena

burguesia. Para fazê-lo, ele sustenta que o trabalhador do comércio precisa mobilizar seus

conhecimentos e atividades comunicacionais no ato de trabalho, tipos de atividade comuns aos

estratos da nova pequena burguesia. Dado o cenário do comércio europeu até a década de 1960,

onde até então a circulação de mercadorias em larga medida ocorria de forma pulverizada em

pequenos e médios negócios (Cleps, 2005; Belik, 1), seu diagnóstico em parte é consistente.171

Nesse contexto, o comerciante e os poucos funcionários por ele mobilizados detinham controle

170 Não será retomada toda a argumentação sobre os limites do conceito de trabalho produtivo no que tange àdeterminação das classes sociais. Para tanto, ver cap. 3, seção 3,3,3.171 Braverman, contudo, mesmo escrevendo alguns anos antes de Poulantzas, conseguiu antever a revolução porvir,extraindo ainda de seus prognósticos avaliações a respeito da condição futura do trabalhador comerciário.Possivelmente, essa diferença deva-se ao contexto nacional de cada um – enquanto Braverman situava-se noprimeiro país a experimentar a emergência das grandes redes descontistas (EUA), Poulantzas estava em um contexto(França) que só mimetizou o modelo de revolução do varejo alguns anos depois. De todo modo, a respeito desseponto, antes do que justificar os motivos do erro do greco-francês, cabe ressaltar os méritos de Braverman.

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de todas as etapas do processo de trabalho, que não possuía um funcionamento objetivo.

Contudo, a partir das reestruturações técnicas expostas no capítulo 2, a avaliação do greco francês

tornou-se bastante inadequada.

As reorganizações técnicas baseadas nos princípios fordistas e tayloristas tornaram os

processos de trabalho não apenas independentes do trabalhador individual, mas ainda

autonomizado em relação ao próprio capitalista. O funcionamento do varejo passou a ocorrer por

meio de uma estrutura objetificada, a qual é organizada por meio do encadeamento de maquinaria

e de funções do trabalho pré-definidas e totalmente desqualificadas. Dadas essas novas

configurações, não há pertinência na alegação de que o trabalhador comerciário possui autonomia

no trabalho e que, por isso, ele faria parte das classes médias.172

Agora consideremos em específico o argumento das funções de comunicação como

típicas das classes médias. Em última instância, esse tópico deve ser subordinado ao ponto

anterior, i. e., à natureza da divisão do trabalho e de como o trabalhador se insere na mesma, uma

vez que o uso de habilidades de comunicação só poderia caracterizar funções de classe média se

o exercício dessas funções fosse realizado com autonomia do trabalhador e com mobilização de

qualificações de natureza intelectual. Caso o uso dessas competências no processo de trabalho

ocorra a partir da prescrição de funções pela gerência e/ou pela maquinaria, então está-se diante

de um processo de trabalho objetificado como capital, no qual o trabalho é um mero fator de

produção.173 A associação necessária feita por Poulantzas entre funções de comunicação e

condição pequeno-burguesa se baseia em uma falsa indução generalizadora: ele capta algumas

características típicas de alguns contingentes pequeno-burgueses e, a partir desse exemplar

172 A respeito desse ponto, cabe assinalar que Poulantzas não teve a oportunidade de analisar as transformações dosetor a partir da sua transição para o capitalismo monopolista, o que o impediu de acompanhar as mudanças técnicasdenominadas “revolução do varejo”. Nesse sentido, tendo em vista o cenário atual, é possível mobilizar asreferências de Poulantzas para compreender a condição de classe do trabalhador varejista no contextocontemporâneo. Esse movimento analítico será realizado na seção 4, após consideração mais detalhada sobre a novaestrutura técnica do setor.173 Como Braverman mostra em detalhe, as funções que em si mesmas são consideradas intelectuais podem serreorganizadas de acordo com os princípios tayloristas. Nesse empreendimento, elas podem ser decompostas entrefunções manuais e intelectuais, cabendo o monopólio do exercício de cada uma dessas funções para uma categoriadistinta de funcionários. As funções manuais, parcializadas e/ou meramente executivas desses processos de trabalho,estando ou não situadas em esferas intelectuais e/ou comunicacionais, são funções tipicamente proletárias. Tambémos trabalhos intelectuais e/ou comunicacionais podem ser divididos segundo os princípios tayloristas e, por essemeio, parte significativa dos trabalhos nas esferas intelectuais e/ou comunicacionais são manuais do ponto de vistasocial

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restrito, considera essa característica como geral a todo o grupo social em questão sem tomar nota

pelo modo concreto como o trabalho é organizado.

Além de equivocado por não considerar o modo concreto como as funções

comunicacionais se situam na divisão do trabalho, essa conclusão se mostra ainda mais

problemática a partir da experiência histórica de reestruturação do trabalho característica do pós

fordismo. Muitas das dimensões do trabalho no capitalismo flexível questionam diretamente a

tese de Poulantzas acerca das funções de comunicação como traços típicos da nova pequena

burguesia, destacando-se dois. Em primeiro lugar, o fato de que parte significativa da

reestruturação do trabalho consistiu na passagem de novas atribuições aos contingentes

assalariados, sendo muitas dessas novas atribuições funções de responsabilidade, liderança e

comunicação no ambiente de trabalho (Antunes, 2009; Lojkine, 2002; Lehndorff, 2002). Em

segundo lugar, o fato de terem sido criados novos contingentes proletários em setores cuja função

é a realização de atividades comunicacionais, como os trabalhadores de telemarketing. Há uma

ampla literatura marxista sustentando com vigor e consistência que esses setores fazem parte do

proletariado.174 O erro do greco francês é compreensível nesse ponto, pois ele não pode observar

algumas novas configurações do mundo do trabalho na era da acumulação flexível, as quais

questionaram alguns dos fundamentos da organização social e do trabalho típica do capitalismo

fordista. Ainda assim, contudo, é necessário reconhecer os limites da sua contribuição para

avaliação das relações de classe no que tange a trabalhos de natureza comunicacional, bem como

avaliações de ordem geral acerca das fronteiras entre proletariado e classes médias.

Muitos desses limites são solucionados pela problemática de Braverman, que avalia que

os trabalhadores do comércio como um todo compõem a classe trabalhadora. O estadunidense

chega a essa conclusão como resultado de dois empreendimentos analíticos de Trabalho e capital

monopolista: por um lado, essa conclusão é resultado de uma formulação de critérios

relativamente amplos para definição da classe trabalhadora, o que permite inclusão de parte

significativa dos contingentes assalariados no proletariado; por outro lado, essa conclusão decorre

de uma análise concreta das relações de trabalho em diversos setores da economia capitalista, o

174 A esse respeito, ver a compilação de trabalhos organizada por Antunes e Braga (2009).

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que permitiu-lhe identificação de condições de classe (ou: de trabalho) nos mais variados

segmentos assalariados das modernas economias.175

No que se refere ao comerciário, embora Braverman não tenha assistido ao processo de

revolucionamento ocorrido no fim da década de 70 e começo da de 80, ele surpreendentemente

identificou corretamente algumas tendências gerais de reorganização do setor comercial e de suas

relações de trabalho. Nos termos do autor:

No que se refere ao comércio menor, vale notar que em bora as “perícias” das operaçõesda loja tenha já de há muito sido desmontadas e em todos os aspectos avocadas pelagerência, está sendo agora preparada agora uma revolução que transformará ostrabalhadores em lojas, de um modo geral, em algo como operários de fábrica, de modoinimaginável. No varejo de alimentos, por exemplo, a demanda de empregados paramercearias, casas de frutas e vegetais, laticínios, carnes etc. Há muito foi substituída poruma configuração de trabalho em supermercados que emprega descarregadores decaminhões, arrumadores de prateleiras, empacotadores, conferentes e açougueiros;destes todos, só os últimos mantêm certa semelhança com o ofício, e de nenhum mododeles se exige conhecimento do comércio varejista. O uso de equipamento mecânicopara empilhagem, exposição e venda de produtos permaneceu assim no estágioprimitivo, em parte devido à existência de trabalho a baixo custo e em parte devido ànatureza do próprio processo. Com o aperfeiçoamento de numerosos sistemas deconferência computadorizados semi-automáticos, contudo, um número cada vez maiorde cadeias de mercados varejistas – em outros ramos como no dos alimentos – passou asubstituir seus sistemas de caixas registradoras por novos sistemas que, segundoestimam, quase duplicarão os sistemas de clientes atendidos por um caixa em dadotempo. O sistema implicará na fixação de cada mercadoria de um rótulo ou etiqueta como número adequado do estoque (um código de dez algarismos foi adotado pela indústriade alimentos) e talvez um preço, impresso em caracteres que podem ser reconhecidospor um dispositivo ótico. Desse modo, o funcionário simplesmente passará o artigo peloaparelho (ou levará uma lente dele ao rótulo) e o registro transmitirá a operação a umcomputador que pode ou fornecer o preço ou conferir com a lista atualizada. Os efeitosdesse sistema de controle de estoque, mudanças gerais e rápidas de preços, e relatóriosde venda a um ponto central não requer comentário. Mas no caso o caixa passa a adotaro ritmo de trabalho da linha de montagem da fábrica, em vez de seu próprio ritmo detrabalho. A "produção" de uma caixa registradora pode ser controlada de uma únicaestação central e as retardatárias anotadas para ação futura; e uma vez que não se exigeconhecimento dos preços, a velocidade de produção de um caixa pode ser mantida aomais alto nível em poucas horas após iniciado o trabalho, em vez das poucas semanasnecessárias para adquirir a prática e obter a desejada habilidade. É claro, a operação maislenta será a de ensacagem, e vários sistemas mecânicos para eliminar o "ensacador" epermitir ao caixa que imediatamente após passar o conferidor ótico em um sómovimento empacote e o produto já estão sendo inventados e experimentados(Braverman, 1987, p. 311-314)

175 Esses dois empreendimentos são responsáveis tanto pelos pontos mais positivos quanto dos mais negativos daclassificação empreendida por Braverman. Assim, esta pesquisa se afasta da perspectiva de Braverman no que tangeà conceituação das classes sociais, mas se aproxima no que se refere ao papel da análise concreta dos processos detrabalho como procedimento fundamental de delimitação das condições de existência da classe trabalhadora.

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Resumidamente, Braverman sustenta que os trabalhadores do comércio se aproximaram

do operário fabril em termos de suas condições de trabalho, o que naturalmente implicaria uma

classificação de classe semelhante para ambos. Tendo condições materiais de vida semelhantes,

as quais no capitalismo teriam nas condições de trabalho e de emprego seus epicentros,

naturalmente distintos contingentes assalariados deveriam ser classificados de modo semelhante

do ponto de vista das relações de classe.176

Braverman classifica a classe trabalhadora de um modo ambíguo. Em parte, ele padece

de um problema comum nas teorias marxistas das classes, que é o da formulação de critérios

excessivamente amplos para definir a classe trabalhadora, o que o leva a incluir segmentos

muitos distintos numa mesma classe. Ele o faz mediante uma adesão parcial à concepção de

classe pelo assalariamento. Entretanto, por outro lado, Braverman traz componentes analíticos

mais detalhados ao empreender sua análise – os quais, na avaliação desta pesquisa, aproximam-

no dos princípios metodológicos de Marx em O capital.

Dois componentes se destacam positivamente na abordagem de Braverman. Em

primeiro lugar, ele teoriza as classes sociais não somente como grupos sociais detidos de

condição social comum na divisão social do trabalho, mas como uma condição social na qual há

permanente tendência à sujeição a determinadas tendências de transformação social. Nos termos

de Braverman:

O termo “classe trabalhadora”, adequadamente compreendido, jamais delineourigorosamente um conjunto de pessoas, mas foi antes uma expressão para um processosocial em curso. Apesar disso, na mente da maioria das pessoas ele representou pormuito tempo uma parte claramente bem definida da população de países capitalistas. (...)Experimento do mesmo sentimento daqueles leitores que gostariam que eu começassepor uma definição concisa e atualizada do termo “classe trabalhadora”. Tal definição, sepudesse ser facilmente ministrada, seria útil tanto para o escritor quanto para o leitor.Mas não posso atender, pois percebo que uma tentativa de dá-la de início resultaria emmais confusão que em esclarecimento. Não estamos lidando com termos estáticos deuma equação algébrica que exigem apenas quantidades a serem preenchidas, mas comum processo dinâmico cuja característica é a transformação de setores da população. Olugar de muitos desses setores na definição de classe é muito mais complexo do que ocontrário, e não pode ser tentado até que muito se tenha historiado e esclarecido ospadrões de análise (p. 31-2, grifos no original)

176 Na avaliação do presente estudo, a consideração sistemática das transformações técnicas e organizacionaisconcretas do trabalho é um dos pontos mais importantes da análise de Braverman, o qual faz com que ainda hoje suasanálises sejam paradigmáticas para as análises marxistas do processo de trabalho e das classes sociais no capitalismo.

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Em outros termos, para Braverman, mais importante do que definições de classe como

conceitos designadores de traços comuns a grupos sociais, importaria a compreensão da

dinâmica social das relações de classe. Mais precisamente, Braverman considera como

fundamental a tendência, inerente ao capitalismo, a que os processos de trabalho sejam

continuamente transformados com vistas à sua adequação às condições da acumulação. Mediante

esse estado de coisas, inerente a todos os grupos de algum modo enredados na acumulação,177 as

relações sociais seriam permanentemente submetidas a uma pressão por transformação, que

alteraria continuamente as condições de vida desses grupos sociais.178

Em segundo lugar, e como uma decorrência do tópico anterior, para compreender as

relações de classe é indispensável analisar as transformações técnicas e organizacionais nas

relações sociais dominadas pelo capital. Dada a existência de capital, cria-se uma contradição

entre a necessidade de contínua valorização do valor e a natureza concreta dos processos de

trabalho, os quais em alguma medida limitam a capacidade de geração de excedente e de

apropriação. A partir de reorganizações organizacionais e tecnológicas, o capital romperia essas

barreiras, permitindo a continuidade e a expansão da acumulação.

Braverman identifica ao longo da transição ao capitalismo monopolista três

transformações principais para adequar a sociedade e a força de trabalho ao capital: (1) a

revolução gerencial, (2) a revolução tecnológica179 e (3) a mudança na estrutura organizacional

das corporações monopolistas.180

177 E, dado que em formações sociais dominadas pelo modo de produção capitalista este consegue impor suasdeterminações às relações sociais, depreende-se que em sociedades capitalistas todos os grupos sociais estariamsubmetidos à permanente tendência à transformação nas relações de trabalho e condições de vida.178 Parte fundamental dessa pressão por transformação advém da influência do exército industrial de reserva. Poressa razão, segundo Braverman, as inovações técnicas e organizacionais, cujos efeitos são a desqualificão e aeliminação de postos de trabalho, são tão fundamentais, já que elas permitem a criação de um contingente deassalariados facilmente substituíveis e, por isso, em relação de forças desfavorável com o capital.179 Braverman se refere à segunda revolução industrial, o que é natural, dado o período da redação de Trabalho eCapital Monopolista (1987). Contudo, claramente seu referencial permite, em parte, compreender as finalidade econdicionantes gerais da transformação técnica no capitalismo, servindo, desse ponto de vista, como ponto de apoiopara entender inclusive as transformações técnicas do capitalismo contemporâneo.180 Em razão da ênfase nos problemas específicos desta pesquisa, não o tópico da nova estrutura organizacional docapital monopolista não será esmiuçado. Resumidamente, para Braverman parte fundamental das transformações nocapitalismo monopolista decorreria de um duplo movimento realizado pelas grandes corporações ao longo do séculoXX: sua verticalização e sua horizontalização. No primeiro caso, ocorreria uma acentuação das hierarquias internas,com o aumento da sujeição dos processos de trabalho de linha de frente à administração científica e com oestabelecimento de uma longa hierarquia do topo até a base da divisão do trabalho. No segundo caso, as corporaçõesdiversificariam suas atividades, seja para ramos adjacentes às suas atividades fim, seja pela decomposição dasatividades comerciais, administrativas e financeiras.

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Para Braverman, a gerência científica é um conjunto de preceitos voltados à

implementação e aperfeiçoamento da divisão capitalista do trabalho mediante mudanças na

organização do trabalho, imprimindo aumento da dominação do capital sobre o trabalho sem

alteração da estrutura tecnológica.. Seu mecanismo fundamental é a divisão manual e intelectual

do trabalho, que permite expropriar o saber dos trabalhadores, tornar o trabalho parcializado,

barato e altamente intenso. Já a maquinaria realiza o mesmo objetivo, porém com outros

resultados. Ela permite objetificação do processo de trabalho de modo a torná-lo independente do

trabalhador, aprofundamento da expropriação do conhecimento do trabalhador sobre o processo

de trabalho e imprimindo ritmo automático à produção. Conjuntamente, esses resultados

promovem a dominação do capital sobre o processo de trabalho, tornando o trabalhador um fator

de produção de fácil substituição no mercado de trabalho, além de desqualificá-lo e de torná-lo

mais produtivo.

A partir dessas referências, Braverman identifica que inúmeros contingentes sociais

passaram por intenso processo de sujeição ao capital ao longo do século XX, destacando-se os

trabalhadores de escritório. Por causa dessas transformações, esses contingentes experimentaram

condições de trabalho e de emprego muito parecidas com as do proletário fabril, levando-o a

elaborar a tese da expansão da classe trabalhadora, estando o trabalhador comerciário dentre

esses novos contingentes proletarizados.181 Ao serem vítimas da racionalização capitalista e se

tornarem um fator de produção facilmente substituível pelo capital, esses grupos sociais

passariam a compor a classe trabalhadora.

O ponto alto da abordagem de Braverman consiste na ênfase na dimensão concreta do

processo de trabalho como momento fundamental das relações de classe. Nesse momento, seu

registro confere referenciais analíticos consistentes para compreensão da condição de classe no

capitalismo contemporâneo. Na ótica da presente pesquisa, parte significativa do que ocorreu na

revolução do varejo, que ocorreu em simultâneo à transição ao capitalismo monopolista no setor,

pode ser interpretada a partir do exemplo de Trabalho e Capital Monopolista (Braverman, 1987).

Tanto a inserção de maquinaria como os novos modelos de organização do setor têm como

181 Nos termos de Braverman: "a gigantesca massa de tralhadores relativamente homogênea quanto à falta dequalificações, baixos salários e intercambiabilidade de pessoa e função (...) não se limita a escritórios e fábricas.Outra imensa concentração encontra-se nas ocupações chamadas prestação de serviços e no comércio menor"(Braverman, 1987, p. 303)

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fundamento a inserção da divisão capitalista do trabalho no setor, promovendo separação entre

funções manuais e intelectuais, desqualificando o trabalhador e aumentando a intensidade do

trabalho.

Na próxima seção essas transformações serão examinadas em detalhe. Na subseção 3.1,

o modelo organizacional de autosserviço será analisado do ponto de vista das relações de

trabalho, enquanto na subseção 3.2 serão analisadas as principais tecnologias inseridas no varejo.

4.2 Transformações técnico-organizacionais e o trabalho

4.2.1 O modelo de autosserviço

Conforme assinala a bibliografia consultada (por exemplo, Belik, 1999 e Carden, 2013),

um dos primeiros expoentes da modernização do varejo foi o autosserviço, causa de inúmeras

vantagens para o setor. Segundo Cleps:

A introdução do auto-serviço adotada pelo varejo constitui-se uma das maioresinovações ocorridas no comércio. Desde o seu surgimento, ainda na década de 1920, nosEstados Unidos, até os dias atuais, ocorreram importantes e significativas modificaçõesnos métodos e técnicas de comercialização. Para compreender tal processo e suastransformações, faz-se necessário conceituar a atividade de auto-serviço. Como auto-serviço entende-se uma modalidade comercial que surgiu na periferia das grandescidades norte-americanas18 e que tem como características principais: a utilização decarrinhos ou cestas para carregar as mercadorias, num sistema de self-service, onde opróprio consumidor escolhe o produto que quer ou necessita; que possui um balcão nasaída da loja onde se encontram as máquinas registradoras – check-outs; e prateleiras(gôndolas) onde os produtos ficam dispostos, de forma acessível, para que osconsumidores possam servir-se (Cleps, 2005, p. 86)

A principal vantagem conseguida com o autosserviço foi a redução de custos na

operação das lojas, oportunizando diminuição de preços e sucesso competitivo (Carden, 2013;

Reardon et al, 2004, Belik, 1999; Cleps, 2004). Além disso, também é apontada a benesse

vinculada ao aumento de vendas propiciado por essa modalidade organizacional, já que a “livre”

circulação pelas lojas expõe o comprador à sedução da mercadoria.182

182 Esse ponto é acentuado por Barata-Salgueiro (1989), que confere destaque para o papel da emergência dasociedade do consumo como determinante das transformações do setor. Nessa abordagem, o autosserviço é resultado

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Apesar das benesses supracitadas serem corretas, dado que são consistentes as

avaliações da economia de custos e do aumento de vendas como fenômenos associados ao

autosserviço, o presente estudo avalia que esse modo de considerar os benefícios do modelo

supermercadista tenham limites. A razão para tanto é a ausência de uma consideração qualitativa

e crítica sobre a natureza das relações de trabalho inerentes a esse modelo de organização das

lojas, natureza que é perpassada por relações contraditórias de classe. Na avaliação desta

pesquisa, é possível identificar uma associação entre o modelo supermercadista e a objetificação

capitalista do trabalho, sendo, portanto, dispositivo de incremento da dominação capitalista sobre

o processo de trabalho. A fim de sustentar essa tese, adiante serão sumarizados

argumentos/motivos para identificar a objetificação do trabalho como traço inerente desse

modelo produtivo.

O modelo supermercadista implica a dominação capitalista sobre a estrutura técnica do

varejo por duas razões. Em primeiro lugar, forma-se um modelo de organização do trabalho

passível de padronização, o qual é independente do saber dos trabalhadores responsáveis pela

reprodução dos empreendimentos varejistas, condição que decorre da disposição objetiva de

funcionamento do modelo supermercadista. A organização das lojas se configura como uma

estrutura objetificada, de modo que o proprietário dispõe sobre o modo de produzir a partir do

controle sobre o capital constante.183 A propriedade do edifício, das prateleiras e das máquinas de

check-out viabiliza ao capital concentrar em si a capacidade de organizar as várias partes

componentes do processo de trabalho, tornando o último independente do trabalhador

individual.184 Essa condição permite que a compra da força de trabalho se configure como mera

de uma nova configuração do mundo das mercadorias, na qual o marketing e o direcionamento do desejo viaconsumo precisavam de um tipo de varejo adaptado à exposição da mercadoria. Apesar desta pesquisa avaliar essaproblemática profícua, foi escolhido outro caminho para explicar a transição do setor, a qual não necessariamente éincompatível com a problemática centrada na sociedade do consumo, desde que as características da sociedade doconsumo sejam entendidas como resultados do modo de produção capitalista.183 No modelo supermercadista, as lojas funcionam por meio de uma organização dividida em três partes: odepartamento de estoques, a parte das prateleiras e a dos postos de checkout. Através da função intelectual dotrabalho concentrada nos gerentes e por meio da disposição do capitalista sobre o capital constante, todas essas partessão prefixadas de modo independente do saber do trabalho. Assim se configura uma divisão do trabalho tipicamentecapitalista (Cavalcante, 2012), na qual o próprio processo de trabalho cristaliza a divisão manual e intelectual dotrabalho. Cada uma das três partes da loja reproduz essa condição: os meios de trabalho são organizados previamentepor capitalistas e gestores, restando ao trabalho vivo ser consumido pelo pelo trabalho morto.184 Todos esses aspectos foram aprofundados pelas tecnologias mobilizadas como capital no setor. O tema seráabordado na seção 4.3.

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aquisição de um fator de produção, a qual se incorpora como coisa a um processo de trabalho já

estruturado.

Além disso, o modelo supermercadista objetifica o trabalho em razão do dispositivo de

autosserviço. Dado esse modelo de funcionamento do empreendimento varejista, o trabalho se

torna independente do saber do trabalhador, pois a função do trabalho passa a ser apenas

organizar e disponibilizar as mercadorias, não sendo necessário conhecimento sobre os produtos.

Segundo Strasser (2006), parte fundamental dessa transição foi a objetificação dos preços, a qual

leva à força de trabalho a não ter nenhum papel direto na determinação dos valores das transações

com os clientes. Por meio dessa mudança, todas as qualificações necessárias ao conhecimento das

mercadorias e ao domínio de contabilidade se tornam desnecessários, viabilizando, pela divisão

do trabalho, a inserção da Lei de Babbage,185 barateando o custo da força de trabalho como um

conjunto.186

Em segundo lugar, o modelo supermercadista viabilizou a implementação das normas

tayloristas de racionalização do trabalho. A razão para tanto é que somente então tornou-se

possível decompor as funções do trabalho, permitindo tanto separar as funções manuais das

intelectuais, aspecto fundamental do taylorismo, quanto parcializar cada uma das funções. No

modelo de varejo tradicional, ambos os empreendimentos eram impossíveis em razão da

concentração dessas funções do trabalho nas mesmas pessoas. Apenas com o crescimento de

escala associado ao modelo supermercadista, crescimento de escala que, por definição, é

impossível no modelo tradicional, tornou-se possível a implementação da racionalização

taylorista.

Como discutido na seção 2, a taylorização é um dispositivo organizativo de avanço do

capital sobre o processo de trabalho, firmando-se, no capitalismo monopolista, como um dos

185 A Lei de Babbage consiste num conjunto de resultados da reorganização do trabalho com vistas à divisão detarefas, em princípio incorporado e desenvolvido no modelo taylorista de gestão do trabalho (Braverman, 1987).Resumidamente, de acordo com essa lei, a divisão de tarefas torna possível que cada um dos trabalhadores de umadivisão manufatureira detenham menos qualificação, pois nenhum dos trabalhadores precisa ter a qualificaçãonecessária a todas as funções. Desse modo, a divisão do trabalho opera um acentuado barateamento dos custos com otrabalho. 186 Como se pode notar, a objetificação dos preços, característica fundamental da objetificação da estrutura técnicado varejo, só foi possível em razão da emergência da moderna contabilidade, dado que, de outro modo, a fixaçãoprévia dos preços de modo independente do trabalhador comerciário seria impossível. Nesse ponto, pode-se notarmais uma vez como as transformações do setor varejista são intimamente vinculadas às transições gerais dassociedades capitalistas no século XX, uma vez que a as funções do trabalho ligadas à contabilidade são um dospilares das novas classes médias e da revolução gerencial (Duménil e Levy, 2014; Cavalcante, 2012).

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principais dispositivos do antagonismo de classe. Por essa razão, a sujeição a esse tipo de

dispositivo organizacional é condição importante para o pertencimento na classe trabalhadora,

embora por si só não seja condição suficiente para tanto.

Assim, o modelo supermercadista traz consigo incremento da dominação do capital

sobre o trabalho, de modo que a generalização desse modelo implica uma transição de ordem

geral nas relações de classe do setor. Apesar da sua importância, esse modelo, por si só, não é

causa suficiente para alterar a condição de classe do trabalhador comerciário, sendo necessária a

atuação conjunta de outros determinantes.187 Contudo, por objetificar o trabalho e contribuir para

que a força de trabalho torne-se mero fator de produção como qualquer outra mercadoria, é certo

que trata-se de fator contribuinte para a mudança nas relações de classe em direção à

proletarização do trabalhador comerciário.188

A fim de conseguir uma imagem mais adequada da estrutura técnica e organizacional do

setor, na próxima subseção entrarão em consideração as transformações tecnológicas pelas quais

passou o setor ao longo da financeirização do varejo.

4.2.2. Revolução do varejo e trabalho

Tendo em vista a finalidade geral de avaliar a natureza das relações de trabalho, cujo

fim, por sua vez, é angariar substratos para compreensão da condição de classe do comerciário, a

presente subseção investigará as principais tecnologias inseridas pelas redes varejistas ao longo

do avanço do setor para a condição de capital financeiro. A partir do levantamento bibliográfico,

187 A alienação dos meios de produção no capital não é em si de uma condição suficiente para promover atransformação da força de trabalho em fator de produção, dado que, para tanto, é necessário também reorganizar otrabalho de modo a tornar o processo de trabalho simplificado, de modo a não depender da qualificação (saber) dotrabalhador. Porém, a objetificação da estrutura organizacional é parte das condições para promoção daproletarização do trabalho. Assim, em si mesmo, esse componente da supermercadificação, independentemente dosoutros fatores, é promotor de uma reestruturação técnica com vistas à aproximação do trabalhador em relação àcondição proletária.188 No capítulo 1, concluiu-se que existe uma correlação entre os processos de supermercadificação, da formaçãodas redes varejistas, da concentração e centralização de capital no varejo. A partir dessa análise do modelosupermercadista do ponto de vista do trabalho, compreende-se que esse complexo de transformações abarca ainda oincremento da dominação capitalista sobre o setor, trazendo consigo a recriação da estrutura capitalista de classe. A,a modernização do varejo, que comumente é apresentada como mera evolução técnica, como fonte de barateamentodos produtos e como promotora dos interesses gerais, mostra-se meio de recriação de relações contraditórias declasse. Esse tópico será explorado na seção 4.

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foram identificados quatro tipos principais de tecnologia, algumas específicas do setor e outras

gerais: (1) os Eletronic Data Interchange (EDI), (2) os computadores e os pontos de venda

computadorizados; (3) os leitores de códigos de barra (leitores de CB’s) e (4) as tecnologias

ligadas a automação de processos de trabalho no âmbito logístico.

O papel das tecnologias na reconfiguração do trabalho no setor pode ser abordado em

duas frentes. A primeira consiste na análise dos resultados diretos ocasionados nos processos de

trabalho em termos de mudança no tipo de qualificação necessária, na natureza da divisão do

trabalho e na produtividade do trabalho. A segunda frente considera o papel cumprido por cada

uma das tecnologias no tange à criação de uma nova dinâmica geral de funcionamento do setor. A

principal tecnologia a atuar na primeira frente são os leitores de códigos de barra. Já as demais

atuaram sobretudo indiretamente como causas contribuintes da formação dos sistemas integrados.

Inicialmente serão considerados os papeis diretos causados pelas tecnologias e, na sequência, a

contribuição de cada uma delas para a emergência dos sistemas integrados.

O principal resultado dos Eletronic Data Interchange do ponto de vista do trabalho foi a

eliminação de postos de trabalho qualificados, uma vez que a tecnologia tornou possível

substituir mão de obra em função de circulação por bens de capital. Por concentrar em si o modus

operandi técnico das comunicações comerciais com fornecedores e por facilitar as comunicações

internas, a tecnologia, além de diminuir erros e aumentar a eficiência do sistema, permitiu

economizar duplamente com custos de trabalho, seja pela eliminação de postos de trabalho, seja

pela contratação de mão de obra menos qualificada, dado que a qualificação para o manejo dos

fluxos de informação é pequeno, podendo ser aprendido em curto período de treinamento pelos

próprios funcionários da empresa, implicando poucos custos (Cortada, 2004)

Já a combinação de computadores e leitores de códigos de barra possui implicações mais

profundas. Na verdade, em si mesmos, os computadores possuem um resultado bastante

semelhante ao dos EDI's, na medida em que propiciam aumento na eficiência na gestão de

informações sobre os estoques e eliminação de postos de trabalho qualificados, com sua

substituição por trabalhadores desqualificados. Contudo, sua contribuição é mais decisiva a partir

da ligação com os leitores de códigos de barra, para os quais os computadores são condição de

existência.

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Os leitores de código de barra consistem em dispositivos de reconhecimento

automatizado de símbolos. Por meio de detecção da reflexão de lasers em uma superfície, torna-

se possível identificação automática de conteúdos informacionais associados a um símbolo. Por

meio da associação entre um registro numérico e formas na cor preta, torna-se possível vincular

conteúdos informacionais de uma mercadoria e de um código acoplado à sua embalagem. Com

um projetor de laser programado para identificar códigos padronizados, torna-se possível

reconhecimento imediato do valor das mercadorias.

Do ponto de vista do trabalho no empreendimento varejista, os impactos dessa

tecnologia são diversos. Os principais eixos da mudança dizem respeito à economia com custos

com trabalho e com a capacidade de levantar informações a respeito do consumo, funções que

permitem à tecnologia ter impacto econômico para além das lojas e, no limite, dos próprios

varejistas (Cortada, 2004; Abernathy et al, 2000; Basker, 2015).189

Do ponto de vista do trabalho, a razão da economia de custos é simples: a partir do

momento em que o código contém todas as informações necessárias à transação comercial dos

checkouts, a atividade do trabalhador dos checkouts se resume à passagem do leitor sobre o CB,

cuja localização é padronizada. Nessa circunstância, o tempo de realização das atividades é

menor, viabilizando diminuição dos postos de trabalho. Além disso, como a nova função não

exige nenhuma qualificação do trabalhador, torna-se viável a contratação de mão de obra menos

qualificada. Nas palavras de Basker:

Uma via por meio da qual esse processo de inovação afetou os preços é a redução decustos com trabalho. Com a implementação de scanners e códigos de pesquisa de preçospara produtos e carne, os operadores de caixa não mais precisavam se lembrar dospreços dos produtos, permitindo às empresas economizar custos com treinamento emonitoramento e custos de tempo com a correção de preços acima do correto, bem comocom perdas devidas a preços abaixo do adequado.190 O fato de que os preços de itens depeso variável caem mais dramaticamente com a adoção dos scanners sugere que essescustos eram substanciais. Além disso, caixas registradoras manuais eram simplesmáquinas de [operações de] soma; os operadores do caixa tinham que saber quais itenseram cobrados a qual preço, e quais itens eram elegíveis para os tickets de alimentos[food stamps]. Escanear era mais rápido do que a entrada manual dos preços: um estudoinicial feito pelo Departamento de Agricultura dos EUA previu que os scannerspoderiam incrementar a velocidade dos operadores em até 18-19%. Além disso,scanners poderiam ser programados para automaticamente calcular os preços de cada

189 Antes de abordar as mudanças no sentido mais geral, serão consideradas as mudanças no interior dosempreendimentos varejistas.190 No original, usa-se as expressões “over-charges” e “under-charges” para referir-se à preços cobrados acima ouabaixo do preço de fato. Para manter o sentido, traduzimos por “preços acima/abaixo do correto”

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item. Esses efeitos se combinaram para reduzir custos de trabalho nas lojas digitalizadas.Um estudo preliminar (Basker, 2012), eu descobri que as lojas com scanner reduziramseus gastos salariais em cerca de 4,5% (Basker, 2015, p. 341).

Além disso, e ainda segundo Basker (2015), outra fonte de redução de custos com

trabalho diz respeito à funções auxiliares do funcionamento do varejo, tendo em vista que, com a

automatização, algumas funções do trabalho deixaram de ser necessárias. Um exemplo dessa

mudança pode ser encontrado na organização das mercadorias das lojas, uma vez que “antes dos

códigos de barra” cada mercadoria dos supermercados “precisava ser individualmente etiquetada

com uma etiquetadora de preços” (p. 341); a partir dos códigos de barra, a precificação funciona

diretamente por meio do trabalho (improdutivo) do setor administrativo, que associa os preços

aos códigos das mercadorias. No contexto contemporâneo, a eliminação de postos de trabalho e a

desqualificação associadas à objetificação dos preços foi ainda mais severa, dado que, com a

computadorização, o sistema tornou-se quase que inteiramente automatizado.

Além de viabilizar a automatização de parte das funções do trabalho no que tange à

organização, os códigos de barra possibilizaram também a automação do próprio atendimento aos

clientes mediante uma associação entre automação e autosserviço. Com a disponibilização de

máquinas para reconhecimento dos códigos de barra no interior das lojas, tornou-se possível

diminuir significativamente o montante de trabalhadores direcionados ao atendimento, uma vez

que o próprio cliente pode passar as mercadorias no leitor a fim de conseguir as informações

necessárias para a decisão da compra. Nesse aspecto, o setor varejista foi vanguarda de uma

transformação importante nas economias capitalistas flexíveis. Como sustentam Koeber, Wright e

Dingler (2012), uma das principais inovações no mundo contemporâneo é a tendência passagem

de funções do trabalho para os consumidores. Desse modo, o capital pode desvencilhar-se da

obrigação de contratação de força de trabalho, substituindo postos de trabalho por consumidores

que realizam trabalho produtivo durante a compra e/ou consumo das mercadorias.

Por fim, além dos argumentos mencionados por Basker (2012; 2015), cujo eixo é a

associação entre leitores de códigos de barras e a eliminação de postos de trabalho, é necessário,

por um lado, pontuar a vinculação entre a organização do trabalho com essa tecnologia e, por

outro, seus vínculos com a desqualificação do trabalho. A nova configuração do trabalho permite

o funcionamento do princípio de Babbage, que avalia que um dos principais benefícios da

parcialização das funções consiste no barateamento do trabalho. A partir da decomposições de

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funções do trabalho em atividades simples, torna-se possível contratar trabalhadores detidos da

qualificação necessária somente a uma das funções. Se com a concentração das funções em um

único trabalhador se torna necessário contratar trabalhadores com a qualificação necessária a

todas as atividades, a partir da decomposição pode-se contratar força de trabalho com o mínimo

de qualificação necessário para que o empreendimento continue a funcionar. Além disso, essa

mudança permite diminuição de custos com treinamentos, dado que, nas novas funções, em

pouco tempo é possível dominar as habilidades necessárias ao posto de trabalho, o que também

aumenta a flexibilidade dos empreendimentos, já que se torna fácil a admissão e a demissão de

trabalhadores.

O conjunto de transformações ocasionadas pela implementação do autosserviço junto

aos leitores de códigos de barra foram as principais causas da economia com custos do trabalho

no interior das lojas. Combinadamente, esses fatores implicaram um aumento na produtividade

do trabalho e um barateamento da força de trabalho. Uma vez que passou a ser necessário menos

trabalhadores, em razão do ganho de produtividade, e que houve barateamento em razão da lei de

Babbage, o resultado geral foi a diminuição de custos com trabalho, impulsionando a acumulação

no setor. Evidências para essa tese serão apresentados na seção 4, onde é possível identificar uma

clara degradação das condições de emprego no setor. Na avaliação desta pesquisa, o fundamento

da transição encontra-se na nova condição de classe do comerciário, cuja base é uma

reconfiguração da estrutura técnica do setor.

Além de todas essas mudanças, os computadores, os EDI’s e os leitores de código de

barras contribuíram decisivamente para a emergência do varejo como um sistema integrado, uma

vez que elas foram o mecanismo mediante o qual tornou-se possível o levantamento de

informações a respeito das vendas, condição para o mapeamento da circulação e da necessidade

de reposição em tempo real. Adiante entrarão em consideração a natureza desse novo

funcionamento do setor, bem como suas implicações para as relações de trabalho.

4.2.3 Os sistemas integrados, a revolução logística e o trabalho

Nesta subseção serão examinadas um complexo de transformações de suma importância

para a mudança nas relações de trabalho no varejo: a reconfiguração do setor de modo a torná-lo

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um sistema integrado. O principal propósito desta análise é a compreensão de uma mudança

capital para um dos setores mais importantes do varejo, a logística, que teria passado pelo que

analistas classificam como “revolução logística”. Para além do próprio setor, na verdade, segundo

Bonacich e Wilson (2008), trata-se de uma das mudanças econômicas mais importantes do

capitalismo contemporâneo, sendo responsável não somente pelo ganho de produtividade e

eficiência em praticamente toda a economia, mas dispositivo crucial para a criação do

capitalismo flexível.191

Em larga medida, a revolução logística ocorreu a partir da inserção de sistemas

integrados nos dispositivos de distribuição de mercadorias. Resumidamente, os sistemas

integrados são formas de organização do trabalho no qual cada uma das funções é organicamente

vinculada às demais, de modo a criar um conjunto no qual a natureza das funções do trabalho,

bem como o ritmo de sua realização, são conectados.192 Cada uma das partes não consegue

funcionar sem as demais. Regra geral, a integração ocorre mediante ideação prévia de um sistema

de máquinas internamente articulado. A partir da emergência do processamento automatizado de

informações, tornou-se possível ainda a mobilização de máquinas multifuncionais articuladas por

meio de computadores.

O principal efeito da integração consiste em tornar adaptadas cada uma das etapas de um

complexo produtivo às necessidades produtivas do conjunto. Essa reconfiguração tem como

resultado a criação de um regime de trabalho permanente, permitindo a cada uma das atividades

aproveitamento máximo de suas respectivas capacidades produtivas, além de eliminar ao máximo

o desperdício dos demais insumos produtivos. No que se refere ao trabalho, como analisado por

Marx (2013), a automatização permitiu ao capital avançar no domínio sobre o processo de

trabalho, uma vez que permitiu uma ruptura decisiva com o secular domínio do trabalhador sobre

seu processo de trabalho. Uma vez que as etapas do trabalho se articulam umas às outras, a

regência do ritmo de produção sai do escopo do trabalhador individual, que passa a precisar

191 Por referir-se à esfera logística como um todo, a revolução logística vai além do setor varejista. Contudo, partesignificativa das transformações do setor decorreram do protagonismo do grande capital varejista (Bonacich eWilson, 2008; Abernathy et al, 2000; Lichtenstein, 2006, 2017). Aqui serão examinadas apenas as dimensões ligadasao varejo, embora, naturalmente, seja impossível não realizar algumas considerações de ordem geral, como faz,inclusive, a própria bibliografia analisada.192 Em registro conceitual marxista, trata-se de uma integração de ordem mais geral entre produção, circulação econsumo, tendo no setor varejista um ator fundamental e a combinação de tecnologias da informação, automação econtrole da distribuição seus mecanismos principais

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acompanhar o ritmo geral. Combinado com máquinas que mobilizam fontes energéticas para

operar, esse dispositivo viabiliza a objetificação do trabalho, o que, dada a predominância do

modo de produção capitalista, permite o funcionamento do processo de trabalho enquanto capital.

O varejo integrado consiste num sistema que integra as diversas partes do varejo. Mais

precisamente, são articulados o trabalho nas lojas, os trabalhos improdutivos das esferas da

administração e contabilidade e a esfera logística. Esta, por sua vez, pode ser decomposta na

gestão dos estoques, na administração e organização dos fluxos de mercadoria nas lojas e nos

centros de distribuição e no contato entre empresa varejista e fornecedores.

Dada a atividade-fim do varejo como a venda ao consumidor final, no setor a integração

consiste numa vinculação de todas as atividade-meio à dinâmica das vendas na loja, de modo a

fazer com que o ato de venda possa continuamente ser realizado sem qualquer impedimento,

como ausência de estoques e/ou de diversidade dos produtos. Além disso, em larga medida a

integração tem vistas a tornar os empreendimentos varejistas flexíveis, de modo a conseguir um

fluxo dinâmico entre as várias etapas controladas pelo setor, cujos resultados são a diminuição do

tempo de rotação do capital pela via da aceleração da circulação e o aumento da taxa de lucro

pela diminuição do montante de investimentos paralisados na forma de estoque.

O varejo integrado só tornou-se possível mediante a ação conjunta das diversas

tecnologias implementadas progressivamente a partir da década de 70, as quais em parte só foram

possíveis em razão da expansão das redes supermercadistas e da aplicação de normas tayloristas

de organização do trabalho.193 Com exceção dos leitores de código de barra, que por si só tiveram

impacto decisivo na reconfiguração do trabalho, as outras tecnologias tiveram um papel

sobretudo indireto na reorganização do trabalho. Elas não o afetaram diretamente, mas

contribuíram para criar o lean retailling e, por essa via, contribuíram para criar um novo

complexo de determinações para o funcionamento do setor, com profundas implicações para o

trabalho.

A combinação entre leitores de códigos de barras, EDI's, computadores e pontos de

venda eletrônicos deu margem à formação da integração. Os códigos de barra, à parte sua função

na taylorização do trabalho, contribuíram com o levantamento de informações no ato de

193 O papel cumprido pelas normas tayloristas na promoção da integração reside no seu papel na promoção da altaeficiência do trabalho no âmbito logístico, sem a qual a integração seria impossível.

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consumação da venda. Assim que um produto é passado no leitor de códigos de barra do

checkout, as informações são enviadas para o sistema central de processamento de dados. A partir

da simples programação das informações das mercadorias por categoria e com registro do tempo

de intervalo entre chegada do produto e venda, torna-se possível criar informações precisas a

respeito das tendências de venda e das correspondentes necessidades de reposição.

Como se pode notar, a eficiência dos leitores de códigos de barra é nula em termos de

integração se não houver articulação com outras tecnologias, tendo em vista que o sistema de

processamento de dados só é possível mediante uma rede de computadores. Só esses podem

tornar útil o massivo montante de informações gerado por uma única loja, pois, de outro modo,

todos os dados gerados precisam ser interpretados e traduzidos em formas úteis para a

administração econômica. Só então eles se poderiam ser seguidos por avaliações a respeito das

tendências de mercado. Ademais, é nítida a necessidade de um sistema de comunicação barato,

rápido e preciso, já que, de outro modo, as informações geradas demorariam para serem

transmitidas às unidades competentes no âmbito logístico, não somente no interior do varejo, mas

também na esfera dos fornecedores. Sem a facilidade e a eficácia no fluxo de informações, o

levantamento de informações seria pouco útil. Essa função é cumprida pelos Eletronic Data

Exchange, que consistem num sistema padronizado para troca informações entre agentes via

conexão telefônica. Progressivamente, ao longo da terceira etapa de transformações tecnológicas,

a qual começou no começo da década de 90 e que ainda está em curso, os EDI's passaram a ser

utilizados conjuntamente com meios de comunicação por internet.

Os sistemas integrados incidiram sobre a organização do trabalho essencialmente a partir

de um ponto, o qual possui inúmeras implicações sociais e políticas para a natureza das relações

sociais no setor: a formação de um regime de trabalho permanente. Trata-se de um regime de

trabalho que ocorre em fluxo, ou seja, no qual os próprios meios de produção possuem uma

dinâmica de funcionamento como autômato, na qual o trabalhador cumpre papel de apêndice. A

criação do produto final do processo de trabalho ocorre em escala contínua, pois não há limite

material preestabelecido para a quantidade de trabalho a ser realizada durante dado período de

tempo. Esse regime de trabalho é essencialmente capitalista (ou: surgiu especificamente na época

burguesa). Ele é acionado/operacionalizado pelo dispositivo reificado de coordenação da divisão

do trabalho no capitalismo, tendo em vista que forma-se um regime permanente de produção de

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coisas, no qual os agentes mediam suas relações entre si mediante a dinâmica social imposta pelo

mercado, cuja materialização é o capital e a (imparável) divisão mercantil do trabalho (realização

permanente de trocas).

Na avaliação deste estudo, esse traço geral da produção capitalista passou a se fazer

presente no setor varejista somente a partir da revolução do varejo,194 uma vez que somente então

passou a vigorar a natureza do trabalho em fluxo, sem responder a limites das necessidades locais

dos próprios produtores e/ou da comunidade onde o trabalho é realizado. Concorreram para essa

transição essencialmente duas causas. Em primeiro lugar, só a revolução do varejo trouxe consigo

centralização suficientemente significativa tanto de propriedade quanto das unidades logísticas, o

que é base para que o trabalho ganhe escala suficientemente grande para poder ser reorganizado

dos pontos de vista organizacional e tecnológico. Esse aspecto é importante porque um dos

principais significados sociais da lógica do valor no trabalho é permitir que a busca pelo

incremento da produtividade ocorra de modo incessante. Na logística do setor varejista, essa

dimensão da lei do valor, que é acentuada pela abordagem de Postone (2007) acerca do

capitalismo, só pôde ser efetivamente inserida com essas reconfigurações, pois, de outro modo, as

reorganizações técnico-organizacionais implicariam desperdício de capital.

Em segundo lugar, junto a escala, somente então houve levantamento suficiente de

informações (e em tempo suficientemente rápido e em eficiência suficientemente grande) para o

capital poder saber exatamente o montante de trabalho necessário, de modo a conseguir

previamente mobilizar força de trabalho normalizada, i. e., força de trabalho em grau socialmente

médio de intensidade e de produtividade do trabalho. De outro modo, seria impossível ao

capitalista distribuir a força de trabalho contratada de modo a fazê-la trabalhar de modo intenso

de modo uniformemente distribuído no tempo, i. e., de fazer o trabalhador trabalhar de modo

intenso e regular. Sem os conhecimentos precisos a respeito da dinâmica do próprio setor e sem a

escala, essa prévia ideação não era possível, não sendo possível determinar com antecedência o

montante de trabalho necessário. Por isso, as tecnologias da informação cumpriram papel

decisivo no estabelecimento de um novo regime de trabalho no setor.

194 Papel fundamental para essa transição foi cumprida pela revolução logística, que é indissociável daquela. Dado oprotagonismo das corporações varejistas na promoção da revolução logística (Bonacich e Wilson, 2008; Lichtenstein,2006; 2017), a partir de um raciocínio metonímico, é possível dizer que a revolução do varejo trouxe consigo alógica do trabalho em fluxo permanente para a logística do setor.

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Esses dois fatores explicam porque, enquanto trabalho concreto, i. e., do ponto de vista

técnico, a lógica do valor só passou a se fazer presente na logística na medida em que ocorreu o

complexo de transformações denominado revolução do varejo.195 Antes dessas transformações, as

tarefas eram realizadas na medida em que surgiam necessidades concretas para sua realização,

seja no âmbito das lojas, seja no âmbito dos contatos com fornecedores. Todas as tarefas eram

realizadas, como ainda o são no varejo tradicional, na medida em que surgem necessidades

decorrentes do funcionamento do empreendimento, de modo que não existe um fluxo permanente

determinado pelo mundo das coisas. A partir da revolução do varejo, a lógica do trabalho

permanentemente intenso e da constante busca pela evolução da produtividade se tornaram

constantes no setor. Em outros termos, só então a lógica capitalista se imprimiu com toda

vitalidade sobre o trabalho.

Na avaliação desta pesquisa, esse aspecto é o mais fundamental e o mais abstrato da

mudança nas relações de trabalho no âmbito logístico.196 Ele atuou como criador de uma nova

condição para o trabalho nessa esfera, de modo a tornar possível aumentar indefinidamente tanto

a produtividade do trabalho quanto sua intensidade.197 Por esse motivo, ele esteve na base das

mudanças tecnológicas e organizacionais pelas quais passou o setor, das quais pode-se destacar a

taylorização do trabalho, a inserção de computadores como meio de gestão dos fluxos de estoque

e a implementação de maquinaria para alocação de mercadorias.

De acordo com Cortada (2004), o grau de intensidade das transformações técnicas pelas

quais a logística do varejo passou foi intensa ao ponto de tornar-se um dos setores mais intensos

em capital a partir da década de 80. Os centros de distribuição mais desenvolvidos

tecnologicamente contam com sistemas computadorizados de planejamento dos fluxos de

mercadoria, de modo que os caminhões chegam com cargas e imediatamente são recarregados,

não havendo período de espera (Bonacich e Wilson, 2008). Algumas partes do setor são tão

automatizadas que chegam a não precisar de iluminação, dada a inexistência de força de trabalho

195 A inserção de capital num ramo produtivo veio acompanhado de sua revolução técnica, a qual teve em vistaadequar o setor às necessidades do capital. A expressão dessa tendência no varejo é o varejo integrado, para a qualconcorreram, como explicitado nesta pesquisa, inúmeras alterações nos planos tecnológico e organizacional.196 E, portanto, dado o papel da natureza dos processos de trabalho na determinação da condição de classe, tal comosustentado no cap. 4, também o é para a determinação das relações de classe.197 Como indica Pessoa Jr (2006) é difícil, nos casos concretos, a diferenciação entre causas e condições paraatuação das causas. De todo modo, a integração pode ser vista tanto como condição da atuação das outras causasquanto como causa longínqua das transformações técnicas mais concretas no processo de trabalho.

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viva atuando (Cortada, 2004). Máquinas eficientes e esteiras compõem um complexo que

permanentemente conduz mercadorias aos estoques ou diretamente para o transporte. De acordo

com Bonacich e Wilson, o novo funcionamento dos centros de logística pode ser sumarizado em

dois pontos. Nos termos dos autores:

Mais do que focar no armazenamento de bens, como nos antigos depósitos, os novosCD’s [centros de distribuição] engajaram-se em duas principais funções. Em primeirolugar, eles entrelaçam pontos de carga e descarga, o que significa que, quando umcaminham chega ao CD, ele é imediatamente descarregado, os bens são distribuídos nascorreiras de transporte de acordo com seus destinos, e os caminhões, ao invés depararem nos entornos do depósito, são alinhados do outro lado para receber os pacotespara seguir estrada. Em segundo lugar, eles desempacotam bens a fim de atingir osrequisitos para carregamentos específicos, o que é descrito como uma atividade “devalor adicionado”. Abernathy et al estima que um grande CD de um grande varejista fazentrelaçamentos de carga e descarga com 60 a 70% dos contêineres recebidos por dia,enquanto 30 a 40% dos bens permanecem mais tempo para serem processados(Bonacich e Wilson, 2008, p. 124) 198

Além de funcionarem como autômatos, em razão do fluxo permanente de mercadorias,

ao longo da revolução do varejo os dispositivos logísticos passaram a incorporar funções antes

exclusivas dos produtores. Essas inovações, que incluíram “funções de adição de valor” no setor,

incluem a adaptação de produtos para embalagens finais, desembalagem de produtos,

desmembramento de pallets e de contêineres. De acordo a estimativa de Abernathy el al (2000),

nos centros de distribuição contemporâneos cerca de 60 a 70% das mercadorias realizam o cross-

docking, atividade de mera transição de uma carga entre dois agentes, sem que haja qualquer

intervalo na qual elas fiquem paradas em estoques, e 30 a 40% das mercadorias ficam nos centros

de distribuição para processamento. Nessa nova condição, na logística ou as mercadorias estão

em movimento constante, o que acelera sua circulação, e por conseguinte diminui o tempo de

rotação, ou elas estão em processamento interno, ou seja, em atividades que adicionam valor. De

acordo com Bonacich e Wilson, de fato, “especialistas da logística trabalham com o princípio de

que capital não em movimento deixa de ser capital” (Bonacich e Wilson, 2008, p. 15). Os dois

dispositivos encontrados para solucionar o problema são o just-in-time e o processamento no

interior das unidades logísticas, tornando o fluxo de trabalho permanente e aumentando ao

máximo o aproveitamento produtivo dos recursos

198 Todas as citações de Bonacich e Wilson (2008) foram traduzidas por nós.

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Do ponto de vista do trabalho, o resultado dessas transformações foi ambíguo. Por um

lado, ele criou postos de trabalho qualificados, na medida em que a operação das máquinas e o

trabalho com carregamentos demanda domínio básico de linguagem, de matemática e de

manuseio de computadores (Bonacich e Wilson, 2008). Por outro lado, o uso de leitores de

código de barra, de EDI’s e de computadores fez com que parte das qualificações se tornasse

desnecessária para os trabalhadores manuais, permitindo aplicação da lei de Babbage.

Consequentemente, no interior do varejo, a revolução logística eliminou postos de trabalho, criou

funções do trabalho qualificadas e desqualificadas ao mesmo tempo em que aumentou

exponencialmente a produtividade do trabalho no setor.199

A revolução do varejo em larga medida implicou a inserção da divisão capitalista do

trabalho no setor, permitindo ganhos de produtividade e intensidade do trabalho em paralelo à

desqualificação e barateamento da força de trabalho. Segundo Bonacich e Wilson (2008), é

possível identificar quatro transformações fundamentais ligadas à revolução do varejo: 1)

formou-se nova relação de poder para os varejistas em relação aos manufatureiros; 2) houve

mudanças no caráter da produção; 3) houve mudança no sistema de distribuição de

carregamentos; 4) houve mudanças no mundo do trabalho, que abarcaram tanto o universo dos

trabalhadores das lojas, da logística e nas cadeias de fornecimento.200

De acordo com Bonacich e Wilson, a razão para a deterioração do trabalho consiste num

papel fundamental promovido pela revolução logística. Na medida em que permitiu um

encadeamento sem precedentes das cadeias de fornecimento, que passaram a concorrer em

mercados nacionais e internacionais, a alta concorrência fez com que as empresas não mais

utilizassem contratos de longo prazo, mas que mudassem constantemente de fornecedores.

Consequentemente, dada a insegurança das empresas num contexto de elevada concorrência,

tornou-se necessário intensificar as formas flexíveis de contratação. Essa transição estaria na base

da deterioração das condições de trabalho, de emprego e no enfraquecimento dos sindicatos,

criando um círculo vicioso. O resultado geral é uma deterioração das relações de trabalho não

199 No caso dos Estados Unidos, “estatísticas mostram que os custos de logísticas nos EUA declinaramsignificativamente desde o começo dos anos 1980. Eles caíram de cerca de 19% do PIB para cerca de 10 (Bonacich eWilson, 2008, p. 20)200 Por sua vez, as mudanças no âmbito do trabalho se dividem entre (a) deterioração das condições de trabalho eemprego os trabalhadores e (b) enfraquecimento dos sindicatos, que são, evidentemente, intimamente conectadosentre si.

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somente no setor varejista, mas em toda a cadeia de fornecimento. Por essas razões, Bonacich e

Wilson (2008) atribuem à revolução do varejo papel protagonista na promoção generalizada de

novos padrões (precários) para o mundo do trabalho e de aprofundamento da crise do

sindicalismo, que teria ficado relativamente inerte diante da nova configuração do capitalismo.201

Feito esse panorama das alterações técnicas e organizacionais no setor, adiante será

realizada análise das condições de emprego.

4.3 A degradação das condições de emprego

O propósito desta seção é avaliar a evolução das condições de emprego no setor

varejista, cujo objetivo é endossar a pesquisa qualitativa explicitada acerca das mudanças nas

relações de trabalho no setor varejista.202 Resumidamente, a hipótese consiste na interpretação dos

dados referentes à degradação do emprego como efeitos da transformação nas relações de

trabalho, que ocorreram em simultâneo à transição do setor à inserção de novas modalidades

técnicas de organização.

Como o objetivo visa mobilizar as condições de emprego como efeito, se faz necessário

um mínimo panorama da mudança mais geral nas condições de emprego. Uma dificuldade

inerente a esse empreendimento consiste em separar os diversos determinantes da alteração nas

condições de emprego no setor. Essa dificuldade é particularmente candente em razão da

transição geral pela qual passaram as economias capitalistas desenvolvidas a partir da década de

70, nas quais formou-se tendência geral à deterioração dos salários. Como houve uma

deterioração salarial generalizada, torna-se difícil discriminar quais fatores na verdade não são

201 Apesar da concordância quase integral com os diagnósticos de Bonacich e Wilson, sobretudo no que se refereaos seus impactos gerais no mundo do trabalho, avalia-se que há uma limitação em sua abordagem. A razão é que odiagnóstico proposto pelos autores se limita a uma crítica ao avanço da flexibilização, de modo que os problemas domundo do trabalho decorrem apenas do avanço do capitalismo flexível. O problema é a ausência de uma crítica ànatureza imanente da divisão capitalista do trabalho, que, por si só, é limitadora das condições de vida das classestrabalhadoras. Por isso, essa abordagem não encontra parte do problema nas formas de organização do trabalho nointerior da logística contemporânea, a qual, em larga medida, funciona mediante a divisão capitalista do trabalho. Acrítica a essa forma de abordar o problema será esmiuçada no final da seção 4.202No que se refere aos dados do emprego, são levantados dados do varejo estadunidense a partir das pesquisas deTilly (2007a) e Carré et al (2005; 2008). No que se refere ao varejo de países europeus, o estudo transnacional deCarré et al (2008) e a pesquisa de Jany-Catrice e Lehndorf (2002). O primeiro estudo abarca os países Portugal,Alemanha, Dinamarca, Finlândia, França e Suécia, enquanto o último os países França, Dinamarca, Alemanha,Holanda e Reino Unido.

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específicos ao varejo (e que, portanto, em parte saem do escopo das teses desta pesquisa) e quais

são específicos aos processos sociais aqui analisados.

Uma solução para esse problema consiste em diferenciar as variações meramente

quantitativas dos salários (variações reais e nominais) das variações relativas (variações de um

setor diante da média). Nos dados analisados em relação ao emprego do comerciário nos Estados

Unidos, foi possível identificar uma deterioração salarial dos dois tipos no varejo, o que em parte

soluciona o problema supracitado. Por um lado, é possível associar a deterioração quantitativa

dos salários do setor tanto com mudanças externas quanto internas ao setor. Por outro lado,

porém, torna-se evidente que a deterioração relativa só pode ser compreendida mediante análise

das condições de trabalho do próprio setor. Dada a possibilidade dessa discriminação – e pela

efetiva existência de uma discrepância relativa – torna-se possível diferenciar os efeitos gerais

dos efeitos específicos, e consequentemente as hipóteses desta pesquisa podem ser sustentados

pelos dados da variação salarial.203

A presente seção se divide em 3 subseções. A primeira delas faz uma breve retomada dos

determinantes gerais da deterioração dos salários no capitalismo contemporâneo, tendo como

base o registro de Brenner (2006). Já a segunda subseção faz uma avaliação da deterioração das

condições de emprego do comerciário nas economias capitalistas desenvolvidas. Por fim, na

terceira subseção é feita reconstrução das interpretações encontradas em análise bibliográfica

para a deterioração das condições de emprego, a qual é acompanhada da proposição de uma

abordagem alternativa.

4.3.1 Deterioração dos salários e flexibilização

Retomando brevemente as características do capitalismo na atualidade, em termos de

salário, é possível observar uma longa estagnação da evolução dos salários nas sociedades

203 No caso dos dados da Europa, não foi encontrada na bibliografia análise que já propusesse um estudocomparando a evolução do emprego no setor com a média de outros setores da economia. Por essa razão, estapesquisa limitou-se a levantar dados a respeito da condição de emprego no setor na contemporaneidade. Dada asemelhança da condição empregatícia do comerciário nos países europeus em relação aos Estados Unidos, e dada acondição análoga do comerciário em relação a outras categorias, justifica-se a hipótese de que os países passaram porprocesso de reestruturação semelhante. No entanto, a comprovação dessa hipótese, que em larga medida extravasa oslimites desta pesquisa, precisa de mais investigação.

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contemporâneas. Essa deterioração possui duas causas fundamentais: em primeiro lugar, a

deterioração crônica da taxa geral de lucro e, em segundo lugar, a emergência do complexo

normativo do padrão de acumulação flexível, que surgiu como uma tentativa de reparo para as

dificuldades da acumulação enfrentadas desde a década de 1960.

De acordo com Brenner, o que caracteriza a transição rumo ao capitalismo pós-fordista é

a transição de diversas economias para o patamar de pleno desenvolvimento tecnológico,204

quebrando a hegemonia estadunidense e concorrendo para criar ambiente de intensa concorrência

inter-capitalista no plano internacional. Segundo Postone (2007), a chave de Brenner confere

destaque para as condições da acumulação em contexto de uma economia regulada de modo

reificado (modo não social de regulação pela via do mercado), modo de regulação que conduz os

agentes econômicos a agirem apenas perseguindo seus próprios interesses em contexto

concorrencial. Dada essa condição, a economia mundial tende a produzir excedentes em relação

às condições de absorção dos mercados, conduzindo à deterioração da taxa de lucro. Como a

concorrência é excessivamente intensa, não fornecendo mercados suficientes para a valorização

de todos os capitais existentes, torna-se necessário incrementar a produtividade do trabalho a fim

de obter vantagem competitiva.205 Esses investimentos, realizados por todos os capitalistas em

simultâneo, gera um processo cíclico, no qual todos os capitalistas precisam aumentar

recorrentemente seus investimentos em capital fixo. A consequência geral é um excedente de

investimentos em capital. Por consistirem em montante de lucro em proporção do capital

investido, as taxas de lucro tendem a diminuir. Como resposta, os capitais precisam investir mais

para sobreviver em mercados ainda mais competitivos, levando à continuação do problema e a

formulação de uma tendência de longo prazo à desaceleração econômica (Brenner, 2006).

Essa forma de encarar o capitalismo pós crise do fordismo permite compreender

algumas tendências estruturais das relações de trabalho na contemporaneidade. Dado o cenário de

baixa lucratividade, necessariamente acentua-se o conflito distributivo entre capital e trabalho

pela definição da parcela da produção social apropriada. Nos contextos de assalariamento,

mesmo aqueles em que o capital não é plenamente concentrado nem centralizado, essa tendência

204 Tecnologia aqui se refere a formas de mediação entre relação ser humano, trabalho e natureza, não limitando-sea máquinas ou instrumentos de tipo específico.205 Ademais, disso decorre a necessidade de alteração na qualidade do produto, que tornou-se, no capitalismo pós-fordista, condição fundamental para garantir a valorização do valor.

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se expressa diretamente na necessidade de contenção dos salários, uma vez que a acumulação

torna-se impossível caso os salários se apropriem de parte excessivamente grande do valor-

produto. Dada a relação social capitalista, com a consequente necessidade de que os

investimentos gerem lucros, torna-se imprescindível que o capital crie as condições para a

acumulação “pouco importam as consequências sociais, políticas, geopolíticas ou ecológicas”

(Harvey, 2014, p. 166). Nesse sentido, no que se refere aos salários, há sempre um

constrangimento mais ou menos restritivo para seu aumento dentro de formações sociais

capitalistas, limite que decorre sobretudo do próprio sucesso da acumulação e da evolução da

produtividade.

Com a longa desaceleração, que é um epifenômeno da baixa crônica da taxa geral de

lucro em contexto de economia reificada, forma-se constrangimento altamente incidente sobre a

dinâmica dos salários. Como nesse novo cenário em que a margem de lucro das empresas é

baixo, forma-se a necessidade de contensão dos salários, pois, de outro modo, a acumulação seria

inviável. Mantida a predominância do modo de produção capitalista, torna-se incontornável o

destino de estagnação ou de declínio dos salários,206 a qual pode ser mais ou menos incidente em

cada formação social capitalista a depender da interação com outros fatores, como regulações de

ordem institucional, grau de consciência das classes e conjuntura política e econômica.

Além das tendências supracitadas, outro fator contribuiu para a transição no panorama

geral dos salários e das condições de trabalho no capitalismo contemporâneo: a emergência do

setor de serviços. Trata-se de um fator central em razão das suas características materiais, as quais

o tornam dificilmente volúvel a movimentos de evolução técnica. Com raras exceções, os ramos

de serviço têm de dificuldade de implementação de mudanças técnicas significativas em termos

de melhoria na produtividade.207 A identificação da expansão desse setor nas economias

206 No que se refere ao trabalho, a problemática de Brenner permite compreender parte do dilema enfrentado pelassociedades capitalistas desenvolvidas após a crise do capitalismo fordista. Ao mesmo tempo em convive com adependência universal do trabalho assalariado, as sociedades contemporâneas não mais conseguem promover ganhossistemáticos de salário. 207 A tendência à estagnação da produtividade nos serviços é uma das razões da importância da revolução do varejo.Embora ela não tenha trazido evolução da produtividade tão grande quanto a já realizada pelos setores industriais deprodução material, ela permitiu significativa evolução da produtividade e de inovações técnicas em um setor deserviços (Lichtenstein, 2006; 2017). Contudo, segundo Carré et al (2005), essa evolução da produtividadeconseguida no varejo baseou-se quase que totalmente em modelo de desenvolvimento empresarial no qual ocrescimento só trouxe trabalho desqualificado. Em outros termos, tratou-se de modelo de crescimento sem fortecontrapartida para os salários, aprofundando a tendência à dualização dos mercados de trabalho. A retomada dasinterpretações encontradas na bibliografia sobre os problemas supracitados será feita na seção 4.

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capitalistas avançadas e da sua dificuldade em termos de inovação técnica levou o economista

Baumol a empreender uma formulação de referência a respeito dos dilemas enfrentados pelas

economias capitalistas desenvolvidas: ao passo que cresce a presença dos setores de serviços,

declina a produtividade geral do trabalho. Consequentemente, ocorre uma erosão da base material

que permitia sustentar uma estrutura ocupacional dominantemente caracterizada por boas

condições de emprego.208

O resultado dessa reconfiguração de ordem estrutural do capitalismo pode ser

identificado na nova dinâmica das principais variáveis macroeconômicas, bem como na evolução

dos salários. No que se refere às principais economias capitalistas desenvolvidas do pós-guerra

(EUA, Alemanha e Japão), as variáveis taxa de investimentos, taxa de crescimento da

produtividade e evolução salarial sofreram diminuição substancial da taxa de crescimento. No

que se refere aos intervalos 1950-1973 e 1973-1996, as variáveis taxa de investimentos, taxa de

crescimento da produtividade do trabalho e evolução dos salários reais tiveram queda média

variando de 33% a 50%, enquanto as taxas médias de desemprego dobraram (Brenner, 2006, p.

4). Mais precisamente, no que se refere aos salários, de acordo com Brenner, entre 1950 e 1973 o

crescimento real dos salários nos Estados Unidos foi, em média, de 2,6% ao ano, enquanto de

1973 a 1996, de 0,5%. No caso da Alemanha, nos mesmos períodos, houve variação de 5,7 de

crescimento médio ao ano para 2,4%, enquanto no Japão a variação foi de 6,1% para 2,7.

(Brenner, 2006, p. 5).209

Fazendo uma avaliação a partir de dados do Conselho de Assessoria Econômica dos

EUA (U.S Council of Economic Advisors), Carré et al (2005) concluem que “nos Estados Unidos,

os trabalhadores da produção e fora de funções de supervisão viram seus ganhos médios reais

tenderem à queda por 20 anos, começando no começo dos anos 1970, e depois a passarem por

uma recuperação incompleta de 1995 em diante”, e ainda que “os trabalhadores do varejo viram

um declínio mais severo, e apenas uma recuperação um pouco mais favorável no mesmo

208 Por essas razões, o processo de crescimento relativo da participação dos serviços na estrutura ocupacional tendea promover a diminuição e/ou estagnação dos salários. Os ganhos de produtividade promovidos pelo sucesso daacumulação não conseguem se reverter em ganhos salariais, dado que os setores estagnados em produtividadepressionam o mercado de trabalho, criando pressão para manutenção ou deterioração dos salários mesmo nos setoresindustriais209 Brenner restringe-se à evolução dos salários na manufatura, pois são os únicos dados disponíveis acerca doperíodo. Ele baseia-se no estudo de A. Maddison (Dynamic Forces in the World Economy, 1 991, pp. 71, 1 40, 1 42;A. Maddison, The World Economy: Historical Statistics, 2003, pp. 84-86, Tobie 2b, and pp. 87-89), em relatórios doComitê de Análise Econômico e em relatórios do Comitê de Estatísticas do Trabalho.

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período.” Comparando com a média do setor privado, “os salários dos trabalhadores do varejo

variaram de 90% em 1972 para 75% em 1991, e depois se incharam para 77% em 2004” (Carré et

al, 2005, p. 16).

No que se refere ao setor de serviços em geral e o setor varejista em específico,

escrevem Carré et al:

Grandes tendências nas compensações indicam uma piora da posição relativa dostrabalhadores de baixos salários. Entre 1979 e 2001, o salário real por hora dostrabalhadores com formação escolar menor do que o colegial diminuíram 18%. Acesso abenefícios pagos pelos empregadores, tais como plano de saúde e pensões, declinaram(…). Pressões econômicas sobre os empregadores se combinaram com mudançasinstitucionais, de modo alterar significativamente o ambiente em que as decisõesreferentes ao processo de produção e à implantação de trabalho ocorriam, comconsequências significativas para os trabalhadores da linha de frente (…) as pressõeseconômicas incluem a globalização dos mercados de capitais e da produção, avanços nastecnologias da informação que resultaram em automação de tarefas de rotina e quetornaram possível a formação de um mercado internacional de fornecimento de serviços,e um foco em resultados de curto prazo nos mercados financeiros. Mudançasinstitucionais incluíram a desregulamentação de setores-chave, o declínio da densidadesindical e do poder dos sindicatos, bem como a diminuição do valor real do saláriomínimo, uma variável que frequentemente estabelece o piso das condições de trabalhopara trabalhadores na condição de entrada no mercado de trabalho (Carré et al, 2005, p.1)

Para explicar a deterioração salarial nos postos menos qualificados, os autores aderem a

uma explicação de natureza pluricausal. Como causas principais, encontram-se (1) os dispositivos

de implantação da força de trabalho, que passaram a funcionar de acordo com as normas

flexibilizantes, resultando em perda de benefícios e de salário; (2) a globalização e a

financeirização, com o incremento da concorrência e a busca de resultados de curto prazo para

obter benefício no mercado de ações; (3) o avanço em tecnologias da informação que resultaram

em automação do trabalho; (4) mudanças institucionais como a desregulamentação das atividades

laborais em setores-chave; (5) o declínio da densidade sindical e do poder dos sindicatos e (6) o

enfraquecimento de políticas institucionais de proteção ao trabalho.

Ao se referirem ao emprego no varejo estadunidense a partir da década de 80, Carré el al

comentam que há “poucas boas notícias sobre a qualidade do emprego de linha de frente no

varejo” (Carré et al, 2005, p. 27). A situação seria crítica, já que “os salários no varejo são baixos

e ainda caíram tanto em termos reais quanto em relação à média dos salários do setor privado”,

queda salarial que ocorreu “num contexto de expansão do sistema de descontos, no

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enfraquecimento de proteções institucionais – como o salário mínimo, com poder de compra

reduzido e desgaste da representação sindical – e desqualificação dos trabalhos da linha de frente

do varejo” (idem, 2005, p. 27).

O setor, que já era historicamente caracterizado por remuneração “menor do que a média

dos trabalhadores do setor privado como um todo” (Carré et al, 2005, p. 2), experimentou “uma

perda salarial generalizada desde a década de 70, tanto em termos absolutos quanto em termos

relativos em comparação com os trabalhadores dos outros setores” (Carré et al, 2005, p. 2).

Ainda de acordo com Carré et al (2005), “a hora de trabalho relativa do varejo – o

salário como uma porcentagem da média dos setores não agrários – caiu de 88% em 1975 para

75% em 1991, e permaneceu nessa proporção desde então. Ademais, os trabalhadores do varejo

recebem mais dificilmente benefícios pagos pelo empregador, tais como planos de saúde e

benefícios de aposentadoria." (Carré et al (2005, p. 3). Em outros termos, no que se refere à

economia estadunidense, que foi a pioneira na implementação das inovações técnicas do típicas

do varejo financeirizado, o valor médio do salário no setor passou de 88% para 75% da média

salarial do setor privado (excluído o setor agrícola), consolidando-se como um setor de baixos

salários por excelência e demonstrando protagonismo na criação da estrutura ocupacional dual

típica do capitalismo contemporâneo.

Considerando as compensações totais, que são uma medida ainda mais precisa do que os

salários, pode-se conseguir uma imagem ainda mais clara da condição deletéria do emprego no

setor varejista. Segundo Carré et al:

No que se refere à compensação total, considerando tanto os benefícios pagos peloempregador quanto os salários, os trabalhadores do varejo vivenciam má condição seconsiderarmos a força de trabalho como um todo. A média de compensação do varejoorbitava em torno de $11,49 em 2001, sendo só 51% da média da economia em geral.Em 1999, 31 por cento dos trabalhadores do comércio varejista tinham plano de saúdepago pelo empregador, comparado com 53% do conjunto da força de trabalho. Quadroscorrespondentes para benefícios de aposentadoria eram [respectivamente] de 30 e 48 porcento (…). O emprego por tempo parcial, que frequentemente implica benefíciosassociados, (…) é generalizado no setor varejista. Em 2002, 35 por cento dostrabalhadores, além de serem trabalhadores em tempo parcial, comiam e bebiam no localde trabalho, em comparação com 17% na economia como um todo (Carré et al, 2005,p. 5)

Como se pode notar, a condição empregatícia do trabalhador varejista passou por intensa

degradação a partir da década de 70. Todas essas considerações a respeito da sua condição

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empregatícia tornam-se ainda mais incisivas se fizermos uma discriminação dos seus principais

setores. Em sua pesquisa, Carré et al (2005) identificaram que há acentuada desigualdade nas

condições de emprego dos três principais setores que compõem o comércio varejista, que são o

varejo alimentício (dominado pelo setor supermercadista), o general merchandising e o comércio

de eletrônicos. Desses setores, o último é o que mais se afasta das tendências analisadas na

presente pesquisa, uma vez que, dadas suas características técnicas inerentes, ele conserva

autonomia e qualificação no processo de trabalho. Inversamente, os outros dois tipos são

fielmente descritos do ponto de vista técnico e organizacional pelos referenciais explicitados na

seção 2, uma vez que inseriram intensamente as tecnologias da informação descritas e o modelo

de autosserviço como dispositivo de organização das lojas.

De acordo com Carré et al,

Enquanto a tendência nos salários relativos no varejo permaneceu estável ao longo doperíodo, os grandes ganhadores foram os trabalhadores das lojas de eletrônicos, que,iniciando com salários relativos de 90% da média durante o período investigado [1990-2004], recebia salários maiores do que os outros dois setores, além de ter assistido a umaumento (de 108%) em relação à média de todos os setores em 2004. Em contraste, ostrabalhadores da linha de frente no varejo e nos supermercados tinham os saláriosrelativos mais baixos e sua trajetória permaneceu praticamente estagnada em torno dos62% ao longo dos últimos 15 anos. Os trabalhadores de mercearias também assistiramsua posição piorar, de modo que seus salários relativos diminuíram e declinaram emtermos relativos de 75% em 1990 para 69% em 1004 (Carré et al, 2005, p. 6)

Esses dados são pertinentes, pois mostram que a situação do trabalhador do varejo

alimentar e de general mershandising é especialmente crítica. Mesmo incluindo o setor de

comércio de eletrônicos para tiragem das médias de evolução dos salários do setor, a situação do

trabalhador comerciário mostra-se altamente problemática, por replicar com especial intensidade

as tendências do capitalismo contemporâneo de formação de uma ampla massa trabalhadora

desqualificada e mal remunerada. Caso exclua-se o setor, nota-se que a situação do comércio

varejista e do general merchandising são dramáticas. Esses dados são importantes para os

problemas desta pesquisa, pois as transições técnicas analisadas são válidas sobretudo para os

setores do varejo alimentar e do general merchandising, por serem justamente os setores

caracterizados pela formação de capital monopolista, pela financeirização das corporações e pelas

mudanças técnicas típicas da revolução do varejo. Regra geral, nos setores de eletrônicos, assim

como em outras formas de comércio especializado, tendem a predominar os pequenos e médios

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capitais a a persistir formas de organização do trabalho típicas do varejo tradicional. Por essas

razões, em larga medida, esses dados dão embasamento para as teses desta pesquisa, que

associam a financeirização do varejo à reconfiguração das relações de trabalho do comerciário, as

quais, por sua vez, têm como efeito a degradação das condições de trabalho e emprego. Mais

precisamente, essa diferenciação ajuda a sustentar a tese de que a nova configuração técnica-

organizacional implicou deterioração do trabalho pois mostra que não se trata unicamente de

decorrência das tendências gerais ligadas à longa desaceleração econômica. Se a única causa em

atuação fosse essa, a dinâmica salarial do setor permaneceria na média em comparação com

outras categorias; e tampouco haveria distinção entre os setores intenso do varejo.

Situação semelhante pode ser encontrada nas condições de emprego em países europeus.

Comparando os salários dos trabalhadores do varejo com os da economia em geral, Lehndorff e

Jany-Catrice concluem que há significativa variação, com o trabalhador comerciário em condição

salarial relativa parecida com a dos comerciários dos Estados Unidos. Mais precisamente, a partir

da comparação, eles concluem que “o nível salarial no varejo varia de 70 a 90% da média salarial

adquirida no setor privado como um todo. Desse modo, em muitos casos mesmo os empregos em

tempo integral provavelmente não oferecem mais do que uma base modesta para conseguir

meios de subsistência de modo independente” (Jany-Catrice e Lehndorff, 2002, p. 508).

Mais precisamente, a proporção dos salários do varejo em relação às médias da

economia é de 75% em Portugal, 77% na Alemanha, 80% na Dinamarca, 82% na Finlândia, 85%

na França e 92% na Suécia, o que leva Jany-Catrice e Lehndorff a sustentarem que “as

oportunidades de renda oferecidas são extremamente limitadas. Para número crescente de

empregados, o trabalho no setor varejista não constitui base suficiente para conseguir uma vida

independente” (Jany-Catrice e Lehndorff, 2002, p. 508).

De acordo com Carré et al, se referindo ao emprego em países europeus, “o comércio

varejista é, de modo consistente, um setor de baixos salários em todos os países investigados

nesse estudo transnacional” (Carré et al, 2005, p. 31). De acordo com o estudo comparativo

transnacional realizado pelos autores, cujo projeto visa analisar os empregos de baixos salários,

parte significativa da força de trabalho do setor situa-se em condição salarial abaixo dos

respectivos limites nacionais de baixos salários. Definindo os baixos salários como 2/3 da média

nacional, eles concluem que, no caso da França, a porcentagem de trabalhadores recebendo

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baixos salários no varejo é de 18%. Para Dinamarca, 23%; Alemanha e Estados Unidos, 42%;

Holanda, 46% e Reino Unido 49% (Carré et al, 2008, p. 32). A maior parte desses baixos salários

encontra-se no setor de varejo alimentar, que, por sua vez, é dominado pelas redes

supermercadistas.

No que se refere à flexibilização, a situação dos empregos do varejo também é crítica.

Trata-se de um fator fundamental para considerar a evolução das condições de emprego por três

razões. Em primeiro lugar, trata-se, na maioria dos casos, de um indicador direto de precarização

e de barateamento do trabalho, sendo, por isso, um mecanismo fundamental para avaliar a

qualidade do emprego em si mesma. Em segundo lugar, as formas de contratação, costumam vir

acompanhados de determinados tipos de benefícios salariais; enquanto contratos de trabalho

permanentes e estáveis costumam vir acompanhados de mais benefícios, contratos de trabalho

flexíveis costumam vir acompanhados de menores benefícios. Por essa razão, o grau de

flexibilização das formas de contratação pode ser vista também como indicador dos níveis

salariais, embora essa correlação não seja necessária, dado que algumas funções qualificadas

podem se beneficiar de algum nível de flexibilidade.210 No que se refere à funções manuais, semi-

qualificadas ou desqualificadas, contudo, a flexibilidade pode ser tomada como indicador de

precarização salarial.

Finalmente, de acordo com Carré et al, os horários de trabalho, juntamente com os

salários e benefícios, são “o meio principal para conter os custos com o trabalho. Portanto, em um

ambiente em que os controles de custos são de primeira importância, a tarefas dos

administradores consiste em fazer coincidir de modo preciso o uso do trabalho com o fluxo de

consumo nas lojas e com outras necessidades” (Carré et al, 2005, p. 4). Em outros termos, em um

setor de trabalho intenso, contratar força de trabalho para ser utilizada de modo produtivo, sem

desperdício de tempo de trabalho, é fundamental para a economia de custos, atividade, por sua vez,

necessária para o sucesso da acumulação. Em setor desse tipo, dispor de mecanismos de

flexibilização do trabalho é indispensável para viabilizar a acumulação no contexto de baixa crônica

da taxa de lucro.

210 Embora não seja o caso para todos os postos de trabalho, pois alguns postos flexíveis produzidos no capitalismocontemporâneo são mais qualificados do que a média, na maioria dos casos, os postos de trabalho flexível sãoprecários (Antunes, 2009).

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Segundo a bibliografia (Carré et al, 2005; Carré et al, 2008; Jany-Catrice e Lehndorff,

2002), também no que se refere à flexibilização o setor varejista ocupa posição de destaque no

que se refere à má qualidade dos contratos de trabalho. Nas análises encontradas, destacam-se

três fatores principais: a ampla presença de postos de trabalho flexíveis, a alta rotatividade e a

flexibilidade qualitativa do trabalho.

De acordo com Carré et al, o trabalho de tempo parcial possui “prevalência mais do que

dobrada no varejo do que na força de trabalho privada como um todo” (Carré et al, 2005, p. 3).

Além disso, “os trabalhadores em tempo parcial no varejo mais comumente do que outros

trabalhadores parciais trabalham períodos extramemnte curtos, como de menos de 16 horas por

semana” (Carré et al, 2005, p. 3). No que se refere à rotatividade, “o turnover dos empregados é

maior no varejo do que na economia (chegando a 56% anualmente em comparação com 41%), e

os ganhadores de baixos salários no varejo mais provavelmente permanecem presos no ganho de

baixos níveis salariais ao longo do tempo do que em outras indústrias” (idem, p. 3). Em outros

termos, trata-se de setor com altíssima taxa de rotatividade, sendo comum como emprego de

entrada no mercado de trabalho. Já para os funcionários que permanecem, o setor é caracterizado

por baixa possibilidade de mobilidade social, o que é decorrência da baixa qualificação exigida

pela profissão e pelo fato de o processo de trabalho não vir acompanhado de incorporação de

aprendizados, criando por isso um ciclo de permanência na condição de entrada, sem que os

trabalhadores incorporem qualquer benefício ao realizarem o processo de trabalho.

Por fim, o setor é altamente caracterizado pela flexibilidade qualitativa. De acordo com

Carré et al:

A multifuncionalidade é muito comum em supermercados. Isso ocorre menos em razãoda variação nos trabalhos particulares (ainda que alguns incluam ampla variedade detarefas), do que em razão de os trabalhadores serem puxados para outros trabalhos nabase da necessidade imediata. O processo de trabalho no varejo pode ser descrito comode “autonomia direcionada”, com maior autonomia para os trabalhadores em tempointegral do que para os trabalhadores em tempo parcial (Carré et al, 2008, p. 8)

Como já indicado, organizar os planejamentos de horário de trabalho é tarefa

fundamental para o controle de custos do setor. É justamente nessa função que a flexibilidade

qualitativa atua de modo decisivo. Ela permite que as empresas mantenham um núcleo de

funcionários estáveis detidos de relativa autonomia e voltados para realização de tarefas

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necessárias no curto prazo. Desse modo, com um corpo de trabalhadores flexíveis, torna-se

possível ao capital varejista adaptar-se a variações no curto prazo sem dispender custos extras.211

Junto à flexibilização quantitativa, torna-se possível adaptar-se ainda para períodos de excesso de

trabalho sem ter de realizar compromisso de contratação de força de trabalho.

Fazendo uma avaliação a partir de um estudo transnacional das condições de emprego e

trabalho no varejo, Jany-Catrice e Lehndorff sustentam que

Independentemente das fronteiras nacionais e das formas de distribuição uma tendênciacomum pode ser observada na política de recursos humanos das grandes companhiasvarejistas: a racionalização tanto das estruturas de pessoal quanto de implementação [deforça de trabalho] mediante fragmentação, isto é, por meio da divisão do emprego e dotempo de trabalho em unidades menores e mais facilmente manuseáveis. Isso se mostrade modo especial no fato de que a taxa de trabalhadores por tempo parcial tenha crescidode modo maior do que o proporcional em todos os países investigados por nós (sendoPortugal a única exceção), excedendo desse modo a taxa média geral de toda a economia(…). Trabalho por tempo parcial é mais frequentemente encontrado nos postos detrabalho de vendas, e se refere sobretudo às mulheres. Uma dinâmica particularmenteforte do trabalho em tempo parcial pode ser observada no setor de varejo alimentar e nosempreendimentos de autosserviço de grande escala. Na Finlândia, por exemplo, aparcela de trabalhadores por tempo parcial nos mercados situa-se em torno de 16%acima da média de todo o comércio varejista doméstico. Trabalhadores em tempo parcialservindo a essas formas de distribuição são mais frequentemente empregados nos caixas.Nos checkouts dos hipermercados franceses, por exemplo, a parcela de trabalhadores emtempo parcial chega a aproximadamente 95% (Jany-Catrice e Lehndorff , 2002, p. 506-507)

Como se trata do principal dispositivo mobilizado pelo capital varejista dos mais

diversos países analisados, “aumentar a taxa de trabalhadores por tempo parcial é o instrumento

individual mais importante usado pelas companhias varejistas para ajustar os níveis de pessoal às

flutuações na atividade” (Jany-Catrice e Lehndorff, 2002, p. 509). Além disso, o setor seria

caracterizado por taxa de turnover maior do que a dos outros setores em todos os países

analisados (idem, 2002).

No que se refere aos outros dispositivos de flexibilização, haveria uma desigualdade

entre os diversos países. De um modo geral, a questão não é se há flexibilização, mas o modo em

que ela se dá e quem suporta o seu fardo (Jany-Catrice e Lehndorff, 2002). Em alguns países, a

tendência tem sido a combinação de tempo de trabalho parcial com contratos de duração pré

determinada (França), noutros implementaram agendas de horário de trabalho extremamente

211 Essa estrutura ocupacional, com alguns trabalhadores permanentes em regime de flexibilidade funcional e comdiversos trabalhadores em formas de contratação flexível, é vista por Harvey (2014) como típica do capitalismoflexível

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flexíveis via utilização massiva de mão de obra jovem (Dinamarca), enquanto outros se situam

em condição intermediária entre essas duas vias de flexibilização do setor (Alemanha – Jany-

Catrice e Lehndorff, 2002).

Como esse breve panorama mostra, seja no que se refere às compensações, seja no que

se refere à flexibilidade, o setor varejista ocupa posição de destaque nas reestruturações

precarizantes do trabalho típicas do capitalismo flexível. Na próxima seção serão reconstruídas as

interpretações encontradas na bibliografia para a mudança no panorama do trabalho do setor; ao

final, será apresentada uma interpretação alternativa.

4.3.2 Interpretações sobre a evolução das condições de emprego no varejo

No que se refere a julgamento valorativo, a bibliografia se divide em duas interpretações

a respeito da dinâmica do trabalho ao longo da financeirização do varejo, as quais mobilizam

diferentes argumentos para sustentar os posicionamentos. Uma parte da bibliografia avalia as

transformações de modo apologético, enquanto a outra de modo crítico. A abordagem apologética

se respalda em dois caminhos principais para julgar positivamente as transformações no varejo

contemporâneo. Em primeiro lugar, uma parte da bibliografia avalia que a expansão das grandes

redes trouxe consigo benesses do ponto de vista salarial e, em segundo lugar, alguns autores

sustentam uma concepção mais geral de defesa do mercado e do capitalismo como formas de

organização social promotoras do bem estar geral. Esse argumento baseia-se num teoria mais

geral sustentada pela Economia Política burguesa, o qual originalmente foi desenvolvido por

Adam Smith em A Riqueza das Nações (1988) e que possui uma longa trajetória na história da

Economia,212 história que passa pelas mais diversas matrizes ideológicas.

O primeiro argumento é sustentado por Cardiff-Hicks et all (2015), que visa

explicitamente responder à onda de críticas que atingiu as corporações varejistas ao longo da

década de 2000, onda que teve ênfase sobretudo na corporação Walmart em razão do seu severo

papel na reestruturação do varejo estadunidense e na expansão de relações de trabalho precárias.

212 Trata-se de um debate central para desde Adam Smith, passando por Ricardo, Marx, pelos marginalistas e,contemporaneamente, para parte dos novos clássicos, para os desenvolvimentistas e para parte dos neokeynesianos.A razão é a consideração da necessidade da evolução da produtividade como dispositivo central. Para alguns, essanecessidade leva à apologia do mercado como instituição para promoção da evolução industrial, enquanto, paraoutros, a necessidade de evoluir a produtividade demonstra os limites do mercado.

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Essa tese sustenta que a expansão das redes varejistas, e especialmente das maiores corporações,

trouxe consigo melhoria na estrutura empregatícia do varejo. Nos seus termos,

As grandes redes e os grandes estabelecimentos pagam consideravelmente mais do queos pequenos estabelecimentos. Ademais, grandes empresas e grandes estabelecimentosprovêm acesso a funções administrativas e de hierarquia, e os administradores, a maioriados quais supervisores de primeira linha, são parte significativa da força de trabalho dovarejo e recebem cerca de 20% a mais do que os outros trabalhadores. Grande partedesses ganhos de salário são recompensas por habilidades que os estabelecimentospromovem. O setor varejista paga consideravelmente menos do que a manufatura, mas osetor manufatureiro diminuiu ao longo do tempo, e o crescimento das modernas redes devarejo aumentou os salários reais e proveu mais oportunidades de promoção,particularmente para os trabalhadores mais capacitados (Cardiff-Hicks et al, 2015, p.660)213

Segundo essa interpretação, a inserção das grandes redes criaria melhores condições

para promoções em novos postos de trabalho, dando a oportunidade de mobilidade social para os

trabalhadores mais capazes. Paralelamente, os pequenos empreendimentos não teriam condição

de criar postos qualificados e detidos de autoridade, em parte, inclusive, porque essas funções

seriam realizadas pelos próprios proprietários. Assim, no agregado, seria possível encontrar

salários médios mais altos nas maiores corporações. Ademais, por permitir a premiação dos mais

capazes e esforçados, se trataria de um modelo mais justo de organização do trabalho.

Esse argumento baseia-se em pilares fundamentais da ideologia burguesa de organização

econômica e do trabalho. Em primeiro lugar, ele faz uma apologia da divisão capitalista do

trabalho, com a diferenciação de funções que vão da base da estrutura social até as posições mais

qualificadas. Nessa configuração, se tornaria possível criar uma estrutura de posições baseada no

mérito, permitindo maior mobilidade social, ou seja, que os trabalhadores mais capacitados

ascendessem a melhores postos em razão de suas qualidades inerentes e/ou de seu esforço. A

lógica do mercado permitiria a abertura das posições à qualificação. Dada a admissão de uma

pessoa na base da divisão do trabalho, estaria aberta a possibilidade de contratação para postos

melhores mediante desempenho no trabalho. Junto a essa nova estrutura, mais justa socialmente,

a nova configuração ainda levaria à melhoria nas condições de emprego no agregado. Em outros

termos, além de ser melhor em si mesma, por ser mais justa, ela beneficiaria a maioria das

pessoas, justificando-se com base em um argumento utilitarista.214

213 Tradução nossa.

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À parte toda a carga ideológica subjacente a esse argumento, a constatação de que as

grandes corporações pagam maiores salários não é, de modo algum, incompatível com as teses

sustentadas nesta pesquisa. Na verdade, há uma tendência quase universal nas sociedades

capitalistas a que os setores com maior desenvolvimento tecnológico e organizacional paguem

salários maiores, o que não contradiz as tendências gerais à degradação do trabalho e das

condições de emprego no capitalismo. A razão para tanto reside nas consequências dessas novas

configurações técnico-organizacionais, que implicam ganhos de produtividade e intensificação do

trabalho ao mesmo tempo em que permitem ganho competitivo para os capitais que os

implementam. Com a vantagem competitiva, os capitais de maior composição técnica conseguem

obter super lucros, que torna-se possível mediante transferência de valor dos capitais de menor

produtividade para os de maior produtividade (Marx, Livro 3, 1986a; Mandel, 1980).215 No

entanto, como esses ganhos de competitividade são associados à intensificação do trabalho, para

conseguir que a força de trabalho aceite as novas condições de trabalho torna-se necessário

melhorar a contrapartida dos salários e benefícios. Por isso, regra geral, a implementação de

inovações técnicas substanciais, que são a base da elevação da produtividade, vêm associadas a

ganhos salariais nos setores de maior composição técnica.

Esse princípio, de associar inovações técnicas a concessão de benefícios empregatícios,

se fez presente durante a implementação do taylorismo, que tinha como um de seus preceitos o

pagamento de prêmios a trabalhadores mais produtivos (Braverman, 1987); era ainda mais

perceptível no projeto fordista, cujas empresas eram conhecidas por pagar salários

significativamente maiores do que os capitais do setor e que reconhecia explicitamente a

necessidade de combinar produção em massa com consumo em massa (Harvey, 2014). E, por

fim, no modelo originário do toyotismo, que concedia direitos trabalhistas significativos, como

carreira vitalícia e constante evolução salarial (Antunes, 2009). Em todos esses casos, a

214 Esse argumento apenas requenta e replica um argumento exaustivamente mobilizado para defender a divisãocapitalista do trabalho, baseando-se na suposta capacidade de o capitalismo promover o bem estar geral. O própriofordismo e o taylorismo, em suas formulações originárias, por exemplo, baseavam-se em linhas argumentativasextremamente parecidas (a respeito, ver Braverman, 1987).215 Mais precisamente, o que ocorre é que os capitais de menor produtividade vendem mercadoria em valor menordo que o tempo de trabalho implicado na produção das suas mercadorias, enquanto os mais produtivos vendem porvalor maior do que o dispendido em termos de tempo de trabalho. Assim, uns transferem valor para os outros. ParaMandel (1980), essa dimensão das relações de troca no capitalismo frequentemente se faz presente no relaçõesinternacionais, de modo que a desigualdade no plano internacional é condição para a reprodução do capital nospaíses de capitalismo desenvolvido.

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concessão de benesses no plano do emprego foi condição inescapável para vencer a resistência da

força de trabalho em aceitar os novos preceitos de intensificação e aumento da produtividade do

trabalho, de modo que a expansão de preceitos promotores da degradação de modo algum

contradiz à tendência à deterioração das relações de trabalho.

Portanto, essas tendências de melhoria no emprego nas corporações mais desenvolvidas

não contradizem as teses gerais desta pesquisa no que se refere à degradação das condições de

trabalho, mas, na verdade, ajudam a explicá-las. Se, por um lado, o capital monopolista consegue

pagar salários mais altos em razão dos seus super lucros, em contrapartida, os pequenos e médios

capitais saem prejudicados dessa luta distributiva, pois pagam o super lucro do grande capital

com a transferência dos seus rendimentos. O resultado dessa configuração é a intensificação e a

degradação das condições de emprego nesses pequenos e médios capitais, de modo que a criação

de alguns postos qualificados nas grandes corporações vem acompanhada de deterioração

generalizada dos salários para toda a categoria em questão. A inserção da nova configuração, na

qual o trabalho é precarizado na média geral, opera mediante a inserção de desigualdades, que

são inerentes à própria lógica da acumulação. A constante recriação dessa desigualdade no

emprego e nos processos de trabalho é resultado necessário do desenvolvimento do modo de

produção especificamente capitalista, seja nos seus modelos produtivos taylorista, fordista ou

flexível.

No que se refere ao segundo argumento, sustenta-se que as transformações no varejo

contemporâneo são positivas por permitirem a configuração de um arranjo social promotor dos

interesses materiais em geral. Na medida em que as forças de mercado ganham universalidade

nas relações sociais, torna-se possível promover tanto um dispositivo adequado de regulação da

distribuição do trabalho social quanto um mecanismo promotor da divisão social do trabalho.216

O primeiro mecanismo atua mobilizando as capacidades dos agentes de modo a alocar

riqueza de modo racional, permitindo, portanto, a criação de parte fundamental das condições da

acumulação de capital, já que o sucesso na realização do valor é fundamental para que a produção

de riqueza possa aumentar continuamente. Sob esse prisma, a acumulação de capital, ao

concentrar capital nas mãos de agentes privados, melhoraria a capacidade de alocação de riqueza

216 Ainda hoje é tema controverso se o aspecto central do pensamento de Adam Smith consiste no papel do mercadocomo instituição reguladora ou se o aspecto central são as relações entre divisão social do trabalho, produtividade emelhoria do nível geral de vida. A respeito do assunto, ver Backhouse, 2002.

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na economia, além de incrementar a capacidade de inovação. Já o segundo mecanismo atuaria

pela associação entre divisão social do trabalho e divisão técnica do trabalho no interior das

unidades produtivas. Somente por meio da divisão do trabalho pode o produtor individual

especializar-se na produção de alguns produtos; por sua vez, somente essa especialização da

unidade produtiva permite que, no interior de uma empresa, ocorra parcialização e especialização

das funções. Essa parcialização de funções acaba por ser a base fundamental dos ganhos de

produtividade, seja porque ela em si mesmo propicia benefícios, como o ganho de perícia e a

diminuição do desperdício de tempo na alternância de funções, seja porque ela viabiliza o

emprego de maquinaria.

Na medida em que as transformações ligadas à formação das redes varejistas implicaria

incremento da divisão social do trabalho, ele permitiria melhoria na produtividade, o que

aumentaria a geração de renda pelos empreendimentos varejistas. Conjuntamente, essas

consequências levariam à dinamização do mercado, acarretando crescimento econômico e ganho

de produtividade agregada, o que levaria o trabalhador comerciário, assim como a sociedade

como um todo, a beneficiar-se da financeirização do varejo.

Na avaliação desta pesquisa, apesar da discordância, o argumento supracitado é

consistente para promover a legitimação das transformações no varejo, pois, de acordo com o

mesmo, as transformações do setor são parte de uma marcha mais geral de desenvolvimento da

sociedade capitalista, de acordo com a qual a constante reorganização das relações sociais de

acordo com a lógica de mercado é um meio de promover a realização dos interesses gerais. Seja

pela via da regulação social do mercado, que adequaria a divisão social da riqueza, seja pela

promoção da divisão social do trabalho, e consequentemente do ganho na produtividade, esse

argumento vincula as mudanças no âmbito particular às transformações de natureza geral. Desse

modo, ele consegue justificar que mesmo mudanças evidentemente negativas no curto prazo são

positivas sejam linguisticamente invertidos no plano ideológico como fenômenos socialmente

positivos ou, em outros termos, sejam vistas como reorganizações sociais que atendem aos

interesses universais.217

217 Exemplos dessa abordagem podem ser encontradas em textos como o Relatório sobre os impactos sociais etrabalhistas do uso de tecnologias avançados (ILO, 2006), no livro de Vedder e Cox (Vedder e Cox, 2006), queconfere destaque para o papel positivo cumprido pela emergência do Walmart, nos trabalhos de Basker (2008; 2015),entre outros. Em todos os casos, a própria eliminação de postos de trabalho é vista como parte de um processo demelhoria das condições de emprego e como um incremento geral nas condições para o crescimento econômico, que,

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No que se refere à reorganização do trabalho, há sobretudo dois pontos fracos nessa

linha argumentativa. Um primeiro é a necessidade de diferenciar efeitos de curto e de longo

prazo, fazendo com que as boas consequências no longo prazo justifiquem maus resultados no

curto. Assim, esse tipo de argumento costuma defender medidas (antipopulares) que levam à

desqualificação da força de trabalho e mesmo a eliminação de postos de trabalho no curto prazo,

sob o pretexto de aumentar a produtividade e gerar empregos no longo prazo, o que,

evidentemente, gera insatisfação social.

Em segundo lugar, essa abordagem tornou-se de difícil legitimação após algumas

décadas de implementação da norma liberal nas relações de trabalho, pois, como ela se respalda

num argumento de natureza geral e em efeitos de causalidade no longo prazo, é preciso que,

passado um período de sua implementação e da relativa universalização, haja efeitos positivos

nas relações de trabalho e emprego. Contudo, como atesta longa bibliografia, não só sobre o setor

varejista e nos serviços, mas em toda a economia, há uma longa e ampla tendência à deterioração

nas relações de emprego a partir da década de 80 (Antunes, 2009), a qual é proporcionalmente

intensa ao grau de realização das normas liberais de regulação do trabalho.

Regra geral, no que se refere às transformações no setor varejista, a literatura critica a

abordagem liberal a partir dos dois eixos supracitados, ou seja, ela critica as transformações no

varejo tanto a partir de um questionamento dos dispositivos de mercado como promotores da

melhoria nas relações de trabalho e emprego quanto a partir de uma avaliação dos resultados

concretos das reorganizações do trabalho. Essas críticas abarcam tanto a deterioração salarial e de

benefícios (ex.: Carré et al, 2005; Gupta, 2014; Rosen, 2005, Lichtenstein, 2006; 2017;

Lehndorff, 2002; Jany-Catrice e Lehndorff, 2002) quanto as suas dimensões flexíveis (Carré et al,

2005; Carré et al, 2008; Eurofound, 2014; Lehndorff, 2002), que impedem o planejamento

individual e a formação de carreiras, condições fundamentais para o projeto de cidadania

consolidado no fordismo, que associava a aquisição de direitos à realização de trabalhos de alta

produtividade para grandes corporações.218

naturalmente, levariam a melhoria indireta nas condições de vida de toda a sociedade. 218 Evidentemente, o projeto de promoção do bem estar social do fordismo é tema bem mais amplo e complexo,primeiramente por abarcar um conjunto de excluídos do pacto, que no limite só incluía homens brancos eheteronormativos das economias capitalistas desenvolvidas. Ainda assim, como demonstra Esping-Andersen (1991),todo Estado de bem estar social é composto por inúmeros dispositivos institucionais e por agentes concretos e, namaioria dos casos, os direitos concedidos via Estado cumprem papel fundamental, de modo que o acesso a boascondições materiais de vida não se limita ao recebimento de altos salários em companhias fordistas típicas.

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A explicação dada pela bibliografia de cunho crítico para a degradação do trabalho no

varejo divide-se em dois eixos argumentativos: (1) o da crítica à mercantilização das relações de

trabalho, com o correspondente enfraquecimento das normas de proteção ao trabalho, (2) os

novos modelos de governança empresarial predominantes a partir da década de 1970, que são

definidos como a causa principal.

No primeiro eixo, há uma crítica mais geral ao modelo liberal de regulação das relações

de trabalho, o qual se baseia no levantamento de respaldo empírico para justificar a tese da

degradação dos empregos e das condições de trabalho. No que se refere à explicação teórica-

conceitual do problema, essa abordagem sustenta que todo mercado existe sob algum tipo de

regulação normativa (Lehndorff, 2002) e que, portanto, é ilusória a pretensão de existência de um

livre mercado em abstrato, já que este é sempre produzido por alguma política pública e pela

influência das ideologias em circulação.

O ponto central, portanto, é o tipo de regulação do mercado de trabalho promovido a

partir da década de 1970, o qual permitiu a flexibilização do trabalho e que diminuiu de um modo

geral a proteção institucional ao trabalho, ocasionando degradação das condições de emprego e

trabalho. O enfraquecimento de normas de proteção sobre o trabalho, como o salário mínimo, nos

EUA, a desagregação das categorias profissionais com planos de carreira previamente instituídos,

como na França, e o avanço de formas de contratação flexível em praticamente todos os países

incidem em toda a força de trabalho assalariada, mas são especialmente incidentes em setores

com baixa qualificação, com baixa densidade sindical e no qual predomina o modelo taylorista de

gestão empresarial, tal como o varejo supermercadista. A razão para tanto é que setores como

esse normalmente tendem a já ter salários baixos e, por essa razão, a serem especialmente

influenciados por legislações como a de salários mínimos, jornada de trabalho e piso salarial.

O segundo eixo argumentativo, o mais importante, na ótica das análises encontradas na

bibliografia, articula diversos fatores associados ao modelo de governança das empresas, que

passou por mudança a partir da década de 70 (as principais explicações encontradas nessa linha

são de Lehdorff, 2002; Carré et al, 2005; Carré et al, 2008 e Lichtenstein, 2017). Resumidamente,

a bibliografia adere a uma chave conceitual dual para entender as tendências organizacionais do

mundo empresarial no capitalismo contemporâneo, as quais abarcariam os fundamentos para

compreender o mundo do trabalho. Nessa chave de análise, as empresas adorariam um dos

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caminhos possíveis para seu desenvolvimento: as estratégias “high road” e “low road” para o

desenvolvimento.

Resumidamente, a metáfora high road versus low road diz respeito ao tipo de estratégia

adotada por uma empresa para aumentar sua participação no mercado e para crescer

continuamente. Em um dos casos, a ênfase é dada na melhoria contínua da empresa e da sua força

de trabalho, com ênfase nos ganhos de produtividade, enquanto no outro a ênfase seria dada sobre

o corte de custos, sem que houvesse mudança substancial no modo de operar da empresa no

longo prazo.

Mais precisamente, segundo Carré et al (2005) e Lichtenstein (2017), esses modelos de

governança possuem diversos eixos de diferenciação, que podem ser sumarizados nos seguintes:

(1) grau de qualidade dos serviços, (2) custos dos produtos fornecidos, (3) estratégia de cortar

custos versus elevação da produtividade, (4) projeto diante da constante qualificação dos

trabalhadores, (5) tipo de tecnologia mobilizado, (6) postura diante da atividade sindical. Em

cada um desses eixos, o modelo “high road” criaria condições para boa qualidade do emprego,

enquanto a via “low road” cria trabalho precário. Parte fundamental dos problemas no mundo do

trabalho no capitalismo contemporâneo viria da crescente adesão das empresas ao modelo “low

road”, o que possui dois fundamentos. Por um lado, a adesão dessas empresas a esse novo

modelo de governança, o que poderia ser revertido com políticas públicas e com organização

sindical (Lichtenstein, 2006, 2017; Carré et al, 2005); por outro, em razão da emergência do setor

de serviços, que faz com que seja difícil a emergência de um projeto de constante elevação da

produtividade pelas razões já mencionadas. Isso, inclusive, leva Carré et al (2005) a terem

ceticismo sobre a possibilidade de solucionar o problema do trabalho precário no varejo pela via

da mudança no modelo de governança.

O modelo de high road seria conciliável com uma estrutura de emprego de boa

qualidade, pois, ao se basear no fornecimento de produtos de alta qualidade (no que está inclusa a

especialização/diversificação dos produtos), se tornaria possível ganhar o público consumidor

para a compra de produtos e serviços de melhor qualidade. Ao invés de respaldar-se no mero

corte de custos como meio de viabilização do lucro, essa estratégia promoveria o constante

aperfeiçoamento da qualificação dos trabalhadores, que deveriam aprender seja no próprio local

de trabalho, seja em programas específicos para a qualificação. Como a produtividade

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aumentaria, tornar-se-ia possível uma convivência harmônica entre ganhos trabalhistas e

acumulação de capital. Dado que esse projeto conseguiria conciliar em alguma medida os

interesses de capital e trabalho, ele permitiria articular a gestão da empresa com projeto de

organização sindical, que participa da elaboração de projetos de evolução profissional.

Consequentemente, tornar-se-ia possível uma evolução constante da força de trabalho e das

condições de emprego. Parte desse projeto seria respaldado num investimento em tecnologias

articuladas com a qualificação do trabalhador, que deveria desenvolver autonomia para gerir o

processo de trabalho e progressivamente incorporar novas formas de trabalhar.

Por seu turno, o modelo low road seria incompatível com a promoção de empregos de

qualidade, pois teria como base a promoção de serviços de baixa qualidade, mas com vendas

massivas. A ênfase seria no aumento dos bens vendidos, cujo meio seria o constante corte de

custos. Nesse projeto, a força de trabalho apenas realizaria trabalhos desqualificados, sem

incorporação de aprendizado no próprio processo de trabalho. A estratégia de corte de custos têm

forte ênfase na ofensiva sobre o trabalho, na postura antissindical e na implementação de

tecnologias para eliminar postos de trabalho e para promover desqualificação.

Parte fundamental do modelo de governança seria a postura das empresas diante da

atividade sindical, que só seria compatível com a estratégia de governança high road.219 A razão

para a importância da atividade sindical não é específica ao setor, dado que a existência de

organização trabalhista possui diversos efeitos importantes sobre as relações de trabalho. Dentre

outros, a importância do sindicalismo relaciona-se à garantia de que direitos consolidados pela

categoria sejam de fato respeitados e à possibilidade de negociações coletivas para contratos de

trabalho, o que confere melhor relação de forças para as classes trabalhadoras, permitindo

conquista e acúmulo de direitos.

Contudo, os próprios analistas dessa chave teórica perceberam em partes os limites dessa

abordagem para compreensão do setor varejista. Segundo Carré et al (2005), as transformações

no setor na década de 1990 em larga medida borraram as linhas divisórias entre os dois modelos

de governança, pois no período o setor varejista experimentou intensa evolução da produtividade,

parte fundamental do modelo high road de desenvolvimento, sem que houvesse qualquer

219 A razão é que os ganhos sistemáticos de produtividade permitiriam ganhos contínuos também para a força detrabalho.

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contrapartida de ganhos nos salários. De acordo com os analistas, o desenvolvimento do setor

assentou-se sobretudo na mobilização de bens de capital promotores de desqualificação do

trabalho. Desse modo, a concentração de capital, os ganhos de produtividade e a evolução técnica

foram acompanhados por deterioração das condições de trabalho e emprego.

Feita essa reconstrução das avaliações apologéticas e críticas, adiante será apresentada

uma abordagem alternativa para a compreensão das mudanças no trabalho no setor varejista.

4.4 Para uma explicação alternativa da degradação do trabalho no varejo

Os principais limites da abordagem liberal já foram consistentemente criticados pela

problemática crítica explicitada acima. Resta apenas indicar algumas ressalvas a fim de

reconsiderar alguns pontos fortes dessa abordagem. Sobretudo, são acuradas suas considerações a

respeito das relações entre divisão social do trabalho, ganhos de escala e produtividade. Com

efeito, trata-se de um ponto de importância capital para o entendimento mais geral acerca das

tendências a transformação do setor. Originalmente desenvolvida por A. Smith, esse modo de

considerar o trabalho em larga medida foi incorporado por Marx na sua interpretação do trabalho

no capitalismo. Esses referenciais são fundamentais para a reflexão acerca dos prognósticos para

desenvolvimento da capacidade de trabalho mesmo em projetos pós-capitalistas.

A principal diferença em relação ao modo (capitalista) de encarar as relações entre esses

conceitos é a reificação do mercado presente nessa abordagem, a qual se dá tanto num sentido

geral (naturalização e legitimação do modo de produção capitalista e da sua forma de

propriedade) quanto num sentido mais específico (legitimação de um modo de regulação liberal

do capitalismo).220 Entretanto, feita a crítica a esses pressupostos, a consideração sobre a

necessidade da divisão do trabalho, da escala e da produtividade é correta e em parte necessária

mesmo para pensar em alternativas ao capitalismo no que se refere à organização do trabalho.

No que se refere às abordagens críticas analisadas, a presente pesquisa adere às

principais teses desenvolvidas para compreensão da deterioração das condições de trabalho e

emprego. Seja no que se refere às transformações mais gerais, seja no que se refere ao setor

220 Nesse sentido, essas abordagens não somente legitimam a dominação de classe em geral, como ainda respaldamnormas de organização das relações de classe que acentuam essa dominação e que foram forjadas em período deofensiva do capital sobre as classes trabalhadoras

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varejista em específico, os referenciais críticos mobilizam dois eixos argumentativos consistentes

para compreensão do trabalho no capitalismo contemporâneo. Em primeiro lugar, o papel da

reorganização das normas e das instituições de proteção ao trabalho e ao emprego, que deram

base tanto à deterioração de salários, benefícios, planos de carreira e de avanço de formas

flexíveis de contratação. Em segundo lugar, a consideração crítica a respeito dos modelos de

governança empresarial como promotores de condições de trabalho e emprego degradantes. A

ênfase no corte de custos, a falta de ênfase na evolução da produtividade e a postura antissindical

são explicativas acerca da degradação contemporânea do trabalho. Nesse aspecto, a bibliografia é

acurada ao perceber a importância fundamental, para a promoção das condições de trabalho

típicas do capitalismo fordista, da existência de modelo empresarial que até certo ponto

incorporava as demandas e necessidades das classes trabalhadoras e de suas organizações.

Todos esses fatores são explicativos sobre o trabalho no capitalismo contemporâneo em

todos os setores, mas são especialmente poderosos para compreender o setor varejista. As razões

para tanto são duas. Em primeiro lugar, como um dos principais membros do setor de serviços,

trata-se de um setor especialmente sensível a mudanças nas normas e instituições de proteção ao

trabalho, pois normas como salário mínimo e direitos trabalhistas elementares tendem a incidir

mais diretamente sobre esses setores das classes trabalhadoras, uma vez que parte significativa

recebe salários próximos ao mínimo firmado na legislação. Relação análoga pode ser feita a

respeito da flexibilização: pela relativa fragilidade das organizações trabalhistas no setor, há

tendência a que normas flexibilizadoras entrem com mais força no setor do que em outros, e que

as consequências do ponto de vista das condições de trabalho e emprego sejam mais incisivas.

Portanto, qualquer rebaixamento de direitos tende a implicar resultados especialmente negativos

para esses setores, de modo que a explicação proposta pela bibliografia em larga medida é

adequada.

A principal diferença desta pesquisa em relação às problemáticas da bibliografia

analisada consiste na ausência de considerações mais consistentes a respeito de determinantes

gerais do capitalismo e de características específicas do capitalismo contemporâneo. Essa

diferença pode ser sumarizada em dois eixos, que são (1) a não consideração do declínio crônico

da taxa de lucro e das suas consequências e (2) a não mobilização de referencial qualitativo para

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compreender a natureza do capital, bem como das consequências de sua predominância em dada

formação social.

Como já indicado, no final da década de 1960 as sociedades capitalistas desenvolvidas

experimentaram intenso aumento da concorrência com a passagem das economias alemã e

japonesa para patamar de desenvolvimento tecnológico e social equivalentes ao da economia

estadunidense, o que permitiu às corporações originárias desses países concorrer em pé de

igualdade no mercado mundial. Mais tarde, esse problema intensificou-se significativamente com

o desenvolvimento dos tigres asiáticos e da China. A solução para o declínio das taxas de lucro,

nos marcos das relações sociais capitalistas, recria continuamente excesso de capacidade ociosa,

que por sua vez fazem o declínio dos lucros perdurarem no longo prazo. Como resultado geral, as

economias capitalistas experimentam longo processo de desaceleração, no qual, ademais, as

fragilidades e oscilações do mercado mundial, sobretudo de crédito, tendem a fazer das crises

econômicas mais corriqueiras (Brenner, 2006).

Parte do problema da não consideração dessa transição estrutural diz respeito às

soluções encontradas nos marcos do capitalismo para manter a marcha da acumulação. O

receituário para solução da crise, que mais se aproxima de um reparo temporário do que de uma

solução duradoura, para usar a expressão de Harvey (2014), foi promover a financeirização, a

globalização e a reestruturação produtiva como um conjunto de mudanças para prover condições

para acumulação em contexto de baixos lucros e alta concorrência. Para esta pesquisa, as razões

para que a não consideração crítica desse complexo de transformações seja um limite das

abordagens encontradas reside no fato de que, combinadamente, esse complexo cria

constrangimentos estruturais para as relações de trabalho e emprego e para os modelos de

governança das empresas, de modo que é difícil imaginar uma reversão dessas estratégias

empresariais no cenário econômico, político e social criado a partir da década de 80. Desse modo,

torna-se idealista a proposta de solução dos problemas mediante a expectativa de que

progressivamente as corporações adiram a projetos de governança alternativos, ou que projetos

progressistas já existentes em algumas empresas possam ser generalizados.221 Dada a pressão pela

221 Carré et al (2005) reconhecem essa possibilidade e, inclusive, a probabilidade de que esse tipo de solução não

seja viável, embora não busquem outra alternativa. Mais precisamente, em sua proposta geral, os autores avaliam a

possibilidade de que o modelo da empresa Cotsco se universalize no setor varejista, a qual possui planos de carreira e

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geração de valorização de ativos no curto prazo, que é resultado da financeirização, e a

concorrência internacional com corporações que continuamente reorganizam o trabalho de modo

a barateá-lo e precarizá-lo, torna-se impossível a generalização de modelos empresariais não

baseados na precarização e desqualificação do trabalho. A pressão pela constante melhoria na

produtividade do trabalho, que é inerente ao capitalismo de acordo com Marx (2013) e Postone

(2007), torna uma consequência necessária a constante deterioração das condições de trabalho e

emprego, sendo excepcionais historicamente os períodos em que foi possível uma conciliação

entre os interesses de capital e trabalho, como o caso dos anos de ouro do pós-guerra.

Por sua vez, o segundo tópico diz respeito a uma consideração qualitativa a respeito do

conceito de capital, bem como da natureza das formações dominadas pelo modo de produção

capitalista. A razão para tanto é que muitos dos fenômenos ligados à deterioração das condições

de emprego e trabalho são, na verdade, resultados do avanço da lógica capitalista sobre a natureza

concreta dos trabalhos. Com efeito, conforma análise de Braverman (1987), a contradição entre

os conteúdos concretos do trabalho e a forma social capitalista tende a materializar-se em

constante transformação dos processos de trabalho, de modo a adequá-los progressivamente às

necessidades de constante autoexpansão do capital. Os objetivos gerais dessas transformações são

o aumento da produtividade, o barateamento do trabalho e a criação de capacidade de o capital se

desfazer com facilidade do trabalho. O modus operandi geral dessa ofensiva sobre o trabalho é

pela divisão capitalista, a qual promove separação entre funções manuais e intelectuais,

aumentando a produtividade e a intensidade do trabalho ao mesmo tempo em que o trabalho é

desqualificado, barateado e tornado facilmente substituível. As tendências contemporâneas à

flexibilização de modo algum eliminaram ou atenuaram as tendências seculares à fordização e à

taylorização do trabalho, de modo que os problemas típicos do capitalismo apenas estejam se

replicando em novos setores onde esses determinantes, por limitações de ordem técnica, não

conseguiam se realizar até então.222 O setor varejista é um bom exemplo dessas tendências gerais,

programas de qualificação muito melhores do que os das outras corporações varejistas. Os próprios autores

concluem, contudo, que, dadas as especificidades do mercado abarcado pela Cotsco, dificilmente seu modelo

empresarial seria replicado em outras condições.

222 Justamente por isso o caso do varejo é paradigmático a esse respeito. Trata-se por excelência de um ramo dosetor de serviços no qual tornou-se possível inserir a dominação capitalista sobre a estrutura técnica e organizacionaldo trabalho, sendo essa a base fundamental para os ganhos de produtividade e para a deterioração das condições detrabalho e emprego identificadas na bibliografia.

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uma vez que foi um setor no qual a flexibilização, antes de enfraquecer a fordização, tendeu a

criar as condições para a automação do varejo, razão pela qual é difícil separar fordismo,

taylorismo e flexibilidade.

Apresentada essa interpretação alternativa para a transição nas relações de trabalho do

setor, adiante serão sumarizadas implicações dessas transformações do ponto de vista das

relações de classe.

4.5 A nova configuração das relações de classe no varejo

A principal conclusão consiste na identificação de que nas últimas décadas a força de

trabalho do varejo experimentou acentuada racionalização capitalista, a qual assumiu as formas

da desqualificação, da separação entre funções manuais e intelectuais e na rotinização do

trabalho. O tempo recente do incremento da dominação capitalista sobre o setor, se comparado

sobretudo com o setor industrial, decorre de uma miríade de fatores, tais como o fato de o

trabalhador comerciário situar-se numa função em parte improdutiva do ponto de vista capitalista,

onde por questões técnicas, historicamente o capital teve dificuldade de se inserir, de modo a

haver ampla predominância de pequenos negócios, onde a lógica capitalista conseguia se inserir

apenas parcialmente. Além disso, essa condição fazia com que houvesse pouca mudança

tecnológica no setor, de modo a haver também pouco controle dos proprietários sobre o processo

de trabalho, que funcionava em larga medida a partir do conhecimento detido pela própria força

de trabalho, seja na forma do proprietário, seja na de trabalhadores assalariados. Assim, vigorava

ou a condição da pequena burguesia tradicional, ou o que Marx denominou subsunção formal do

trabalho ao capital, condição na qual o processo de trabalho é submetido à finalidade da

valorização do valor sem que haja estrutura técnica adequada aos interesses do capital.

No que se refere às relações de classe, esse conjunto de fatores fazia com que o

trabalhador comerciário ocupasse posição ambígua, uma vez que, ao mesmo tempo em que o

comerciário situava-se em condição de antagonismo de interesse em relação ao capital, em razão

do assalariamento, não experimentava com toda intensidade a dominação capitalista sobre o

processo de trabalho, fazendo com que componentes intelectuais e comunicacionais fizessem

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parte das suas funções. Contudo, as inovações técnicas e organizacionais experimentadas pelo

setor na revolução do varejo em larga medida eliminaram essas ambiguidades, fazendo do

trabalho no setor um dos mais desqualificados e precários da contemporaneidade. Além da

inserção de diversos dispositivos de intensificação do trabalho, o processo de trabalho

autonomizou-se plenamente do conhecimento do trabalhador, que apenas se insere como adendo

a um sistema previamente estabelecido de organização das lojas e do sistema logístico, cujas

bases são o modelo supermercadista e a maquinaria de tecnologias da informação. Essa

reconfiguração torna o trabalho parcializado, repetitivo, de alta intensidade e facilmente

descartável, indicando uma aproximação notória com a condição proletária de classe.

Na avaliação desta pesquisa, essa conclusão indica uma aproximação parcial com os

referenciais de autores marxistas apresentados na seção 1. Em todos os casos,, avalia-se que,

tendo em vista a financeirização do varejo, os quadros analíticos mobilizados pelos autores

provavelmente os levariam a classificar o comerciário como parte da classe trabalhadora. Essa

aproximação é especialmente incisiva no que se refere ao quadro analítico de Braverman, que,

feitas algumas atualizações referentes à inovações tecnológicas e organizacionais do capitalismo

flexível, mostra-se amplamente alinhado às tendências contemporâneas à reestruturação

produtiva. As transformações analisadas no setor varejista supermercadista em larga medida

endossam as principais teses do estadunidense a respeito das tendências gerais das sociedades

capitalistas. A partir do impulso por novos setores para sua valorização, o avanço do capital sobre

o varejo, e a subsequente transição do setor para a condição do capitalismo monopolista, foram a

base da reconfiguração do setor. Tal como analisara Braverman na década de 70, quando tratara

do avanço do capital e da proletarização de outros contingentes da força de trabalho, sobretudo

dos trabalhadores de escritório, vê-se hoje processo semelhante com os trabalhadores do

comércio varejista supermercadista. As reorganizações técnicas e organizacionais tornaram as

condições de trabalho no setor semelhantes às encontradas originalmente apenas nas fábricas. As

relações identificadas por Braverman entre transformação de um setor em nicho de valorização

do valor, avanço do capital ao monopolismo, reestruturação técnico-organizacional e expansão da

classe trabalhadora mostram a pertinência do quadro geral apresentado em Trabalho e Capital

Monopolista (1987) no que se refere à compreensão do mundo contemporâneo do trabalho.

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Ademais, o diagnóstico de Braverman em larga medida se alinha com os princípios

metodológicos indicados por Marx quando da análise do trabalho e do capitalismo em O capital.

No que se refere às classes e ao trabalho, antes de procurar definições universais e independentes

dos processos sociais concretos, é necessário reconstruir os determinantes do antagonismo de

classe, os quais têm no processo de trabalho um de seus eixos fundamentais, a fim de avaliar o

grau de dominação do capital sobre dado contingente da força de trabalho. O que as referências

expostas neste capítulo mostram é que desde a década de 70 a iniciativa do capital para

reestruturar o setor varejista supermercadista de acordo com seus interesses em larga medida foi

bem-sucedida, de modo que o antagonismo de classe especificamente capitalista se inseriu no

setor com todo vigor.

Os principais meios mediante os quais o capital conseguiu reestruturar o setor foram as

vias organizacional e tecnológica. Nessas esferas, influenciaram a transição sobretudo os

dispositivos supermercadista e as normas tayloristas de organização do trabalho. Em si mesmo, o

modelo supermercadista implica uma transição nas relações de trabalho, de modo a autonomizar

o processo de trabalho do saber dos trabalhadores, uma vez que as funções passam a ser meros

apêndices do sistema previamente organizados dos estoques, prateleiras e checkouts.

Simultaneamente, o modelo torna supérflua parte significativa dos conhecimentos antes

necessários, uma vez que o trabalhador não precisa mais deter conhecimento e tampouco

participar de negociações comerciais com os clientes.

Por sua vez, o dispositivo taylorista passou a ser inserido no setor tão logo houve

crescimento de escala suficientemente grande, o que foi possível com a acumulação de capital na

forma das redes supermercadistas. Por si só, esses dispositivos seriam capazes de criar um novo

panorama para as relações de classe no setor, com uma maior polarização interna das posições na

divisão do trabalho. Contudo, elas foram intensamente aprofundadas pela revolução do varejo, na

qual tecnologias específicas para o setor foram desenvolvidas e combinadas para gerar novas

formas de operar.

No que se refere às tecnologias, podem ser identificados dois eixos gerais: a das

tecnologias inseridas no interior das lojas, e que propiciaram automatização e/ou desqualificação

do trabalho, e as tecnologias inseridas no âmbito logístico, as quais contribuíram para a formação

do varejo contemporâneo como um complexo sistema integrado.

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No que se refere às mudanças internas as lojas, destacam-se os pontos de venda

computadorizados com os leitores de códigos de barra, a tecnologias dos códigos de barra e as

esteiras automatizadas. Essas tecnologias permitiram aumentar substantivamente a intensidade e

a produtividade do trabalho ao mesmo tempo em que desqualificaram a força de trabalho,

sobretudo das operadoras de checkout. Além disso, elas permitiram que a eliminação de

qualificação e de postos de trabalho também nas outras funções, uma vez que o trabalho de

organização das lojas tornou-se atividade exclusivamente manual.

No que se refere à logística, as transformações foram ainda mais substanciais, fazendo,

inclusive, com que, nas décadas recentes, emergisse um campo de estudo e de atuação voltado

especificamente à logística (Bonacich e Wilson, 2008). O principal destaque dessa transição é a

articulação entre produção, circulação e consumo, para o qual concorreram uma combinação de

tecnologias específicas do setor com a fordização-taylorização do trabalho nos centros de

distribuição. É notório que o resultado geral foi a eliminação de postos de trabalho, a vertiginosa

elevação da produtividade e a automação. No que se refere à qualidade do emprego, houve uma

combinação de formação de postos de trabalho qualificados (manuseio de máquinas e

computadores) com desqualificação dos trabalhos manuais, que foi possível pela implementação

de tecnologias como os leitores de CB’s e por esteiras mecânicas.

A principal tese desta pesquisa é que o signo geral dessas transformações é um avanço

do capital sobre a estrutura técnica do setor, implicando um domínio mais acentuado sobre a

força de trabalho. Na avaliação desta pesquisa, essa reconfiguração da estrutura do varejo é efeito

da nova natureza das relações de classe, que se caracteriza por um incremento da dominação

capitalista nas relações de produção do setor. Como corolário desse processo, a presente

configuração do varejo financeirizado tem como efeito a transformação da força de trabalho do

setor em parte da classe trabalhadora, isto é, em parte daquele setor que é explorado em processo

de valorização do valor em estrutura técnica organizada de acordo com as necessidades do

capital. Por sua vez, essas transições fundamentais no âmbito das relações de trabalho e de classe

são a base para a alteração nas condições de emprego. Assim, a deterioração dos contratos de

trabalho, seja em termos quantitativos, seja em termos dos tipos de contrato, é efeito da

dominação capitalista sobre o setor. A expansão do capital trouxe consigo a expansão da classe

trabalhadora, degradando o trabalho e recriando sob novas formas a polarização social.

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Longe de eliminar as classes e de promover a realização dos interesses gerais, o avanço

da acumulação produz desigualdade e polarização social, limitando as possibilidades de vida dos

que vivem da venda da força de trabalho. Embora em sua expansão mais geral o capitalismo traga

consigo também a tendência à emergência das classes médias, o setor varejista é evidência de que

a polarização de classes típica do capitalismo continua a viver, tal como avaliam os prognósticos

mais negativos a respeito do sistema capitalista.

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Conclusão

A partir da análise das transformações do setor, a principal conclusão desta pesquisa

consiste na compreensão de que o setor varejista replicou algumas tendências gerais do

capitalismo e do mundo do trabalho contemporâneo, na medida em que inseriu com força traços

da contemporaneidade. Na verdade, dada a coincidência das transformações do setor com a

formação dos novos traços do capitalismo contemporâneo, o mais correto é dizer que o setor

cumpriu papel fundamental nas transformações em questão – seja no âmbito da flexibilização das

relações de trabalho, do aumento na participação das mulheres no mercado de trabalho, na

globalização e na informatização da economia. Lichtenstein (2006; 2017) vai além dessas

considerações, sustentando que os traços típicos do capitalismo contemporâneo em grande parte

são resultados da passagem para o plano das regulações institucionais dos interesses das grandes

corporações varejistas, que foram protagonistas na renovação das cadeias globais de valor em sua

configuração contemporânea.

Como parte desse empreendimento, concluiu-se que houve uma mudança substancial na

natureza das relações de classe na qual o setor está enredado, implicando em proletarização da

força de trabalho. Esse empreendimento dividiu-se em quatro momentos. No primeiro deles, foi

visto que a modernização do varejo é, na verdade, a acumulação de capital no setor, a qual trouxe

consigo a centralização de capital e a dominação capitalista para o setor, com todos os seus

determinantes e características específicas. Sustentou-se que, mais do que as transformações

associadas a esse processo em si mesmas, sua principal marca foi a inserção da dinâmica

histórica do capitalismo para o setor. Nesse sentido, ali se encontra o fundamento para todas as

transições subsequentes, cuja culminação foi a sujeição da força de trabalho do setor a uma

estrutura técnica objetificada.

Como essa tendência à transformação é permanente, embora se expresse de modo

desigual entre os diversos setores e de modo não uniforme ao longo do tempo, ela não parou na

mera modernização do setor, mas prosseguiu em direção à sua financeirização. Dado o contexto

de transição ao padrão de acumulação flexível, o setor inseriu-se no contexto da globalização e da

informatização. Em razão do grau de centralização de capital já encontrado no varejo na década

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de 1980, a qual decorreu da modernização do setor, este conseguiu ocupar posição de destaque

nessas transformações. Lichtenstein (2017), conforme visto, chega a sustentar que muitas das

características típicas do capitalismo contemporâneo foram produzidas sob os auspícios do

capital mercantil, que, justamente por isso, seria um dos seus principais beneficiários. Por essa

razão, como corolário das mudanças, emergiu o que o autor denomina por hegemonia do capital

mercantil, condição na qual as seculares relações de poder entre o capital comercial e o capital

industrial teriam se invertido, de modo a configurar uma relação de poder amplamente favorável

para o capital mercantil, sobretudo no que se refere às relações com pequenos e médios capitais

no âmbito das cadeias de fornecimento.

O fundamento desse novo estado de coisas residiu, como defendido, na combinação de

centralização de capital, no controle da dinâmica do mercado propiciado pela combinação de

leitores de códigos de barras e computadores, na internacionalização e na possibilidade de os

varejistas levantarem informações de amplos mercados (de escopo nacional e internacional) no

âmbito das cadeias de fornecimento. Essa articulação de determinações criou condição de

mercado amplamente favorável para as corporações varejistas por duas razões. Em primeiro

lugar, como explicitou Abernathy et al (2000), os grandes varejistas passaram a ter mais

conhecimento sobre as mercadorias do que o próprio produtor, caso se considere que parte

fundamental das mercadorias diz respeito à sua dinâmica de venda. Nesse contexto, os varejistas

passaram a ter uma mercadoria fundamental, que é a informação sobre o mercado consumidor.

Em segundo lugar, o novo estado de coisas colocou em situação de concorrência amplo escopo de

fornecedores. Como nesse mercado os agentes integradores são poucos, no caso as corporações

varejistas, sobretudo, formou-se condição de oligopsônio. O resultado é um incremento

significativo da capacidade de influência do setor, que consegue definir preços, qualidade da

produção, prazos e padrões de embalagem e de outros itens adjacentes.

Consecutivamente, as implicações desse estado de coisas foram (e são) bastante

incisivas sobre as relações de trabalho na contemporaneidade. De acordo com Lichtenstein (2006;

2017) e Rosen (2005), o fenômeno foi responsável pela degradação do trabalho no interior das

economias capitalistas desenvolvidas e no além-mar. Com efeito, criou-se uma situação bastante

problemática no que se refere à regulação institucional, pois as corporações, embora criassem a

pressão para a deterioração das condições de trabalho e emprego no âmbito dos fornecedores, não

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possuíam qualquer responsabilidade jurídica sobre o que ocorre nas empresas fornecedoras. Por

isso, a revolução do varejo criou, indiretamente, em países de terceiro mundo, formas de trabalho

extremamente precárias. Para Bonacich e Wilson (2008), essa nova configuração da logística, na

qual as corporações varejistas possuem papel decisivo, foi a principal responsável pela

deterioração do trabalho no mundo contemporâneo, não só nos países da periferia do sistema

capitalista, mas também nos países capitalistas desenvolvidos.

As conclusões desta pesquisa visam lançar luz a uma das dimensões da transformação

do setor, qualificando os motivos para a deterioração do trabalho que resultou da expansão das

grandes corporações varejistas. Mais precisamente, e destoando da bibliografia analisada acerca

do setor, sustenta-se que as razões para parte das consequências negativas da revolução do varejo,

sobretudo daquelas associadas à deterioração do trabalho no interior das redes, consistem na

avaliação de que a força de trabalho no setor passou por acentuado processo de proletarização nas

últimas décadas.223 Esse traço fundamental tem como condição e efeito uma nova estrutura

técnica para o trabalho no setor, mediante o qual a força de trabalho torna-se uma mera

mercadoria. Como corolário do novo estado de coisas, o trabalho torna-se mais intenso e as

condições de emprego, piores. Evidências dessa transição podem ser encontradas nas condições

de emprego do setor, o qual, atualmente, figura entre os protagonistas na produção de empregos

de baixos salários em todo o mundo (Carré et al, 2005; 2008; Lichtenstein, 2006).

Infelizmente, no futuro imediato, os prognósticos para o setor são desalentadores. À

medida que, nos últimos anos, todas as causas atuantes não apenas persistiram, mas se

aprofundaram, a tendência é uma recriação dos problemas em escala ampliada. Em razão de sua

vinculação com diversos problemas do mundo contemporâneo do trabalho, esse estado de coisas

traz à tona a demanda por controle social do setor. Por sua vez, essa tarefa torna necessário

223 Aqui proletarização se refere sobretudo às dimensões econômicas estruturais das classes, isto é, àquelasdimensões ligadas às relações de produção, à estrutura técnica e à estrutura de posições econômicas decorrentes dadialética do trabalho típica do modo de produção capitalista. Um dos principais limites desta pesquisa consiste nonão tratamento das dimensões políticas, ideológicas, organizativas e discursivas das classes, que são partefundamental da sua existência. Contudo, este estudo, ao esmiuçar parte dos determinantes estruturais das classes,lança pontos de partida para eventuais futuras pesquisas que abordem o trabalhador comerciário de modo maiscompleto, isto é, incluindo a esfera da formação subjetiva da identidade de classe. Ao analisar a polarização dasrelações de classe no setor, a presente pesquisa fornece referenciais para compreender problemas do varejocontemporâneo, bem como para entender parte do problema das tendências políticas e ideológicas do trabalhadorcomerciário, cujas ideologias e formas de organização política naturalmente não são completamente independentesda dimensão econômica das classes.

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transformar a insatisfação social esparsa em enfrentamento ao grande capital e em lutas de

natureza anticapitalista. Ou as organizações trabalhistas, movimentos sociais e pensamento crítico

se articulam para propor um mundo alternativo, ou assistiremos à contínua recriação de um

mundo velho.

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Referências bibliográficas

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WRIGHT, Erik Olin. Class Counts. Cambridge, Inglaterra: Cambridge University Press, 1997._______. Introdução. In: WRIGHT, Erik Olin (org.). Análise de Classe. Abordagens. Petrópolis,RJ: Editora Vozes, 2016. ______. A General Framework for the Analysis of Class Structure. In WRIGHT, Erik Olin(org.). The debate on classes. p. 3-47. Verso Books, London New York: 1989.

Documentos consultados:IBGE. Pesquisa Anual de Comércio. Série Relatórios Metodológicos - volume 12. 2a edição.Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão. Rio de Janeiro, RJ: 2000.