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Universidade Estadual de Campinas
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas
LUCAS MESTRINELLI
Às vésperas do fim: visões sobre o futuro de Goa
CAMPINAS
2017
Universidade Estadual de Campinas
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas
A Comissão Julgadora dos trabalhos de Defesa de Dissertação de Mestrado,
composta pelos Professores Doutores a seguir descritos, em sessão pública
realizada em 25 de janeiro de 2017, considerou o candidato Lucas Mestrinelli
aprovado.
Prof. Dr. Omar Ribeiro Thomaz
Prof. Dr. João Felipe Ferreira Gonçalves
Prof. Dr. Christiano Key Tambascia
A Ata de Defesa, assinada pelos membros da Comissão Examinadora, consta no
processo de vida acadêmica do aluno
À memória de John Monteiro
Agradecimentos
Este trabalho é, antes de tudo, a realização de um sonho. Agradeço a todos
que, assim como eu, acreditaram e sonharam comigo. Aos meus pais, agradeço por
terem me apoiado, incondicionalmente, a seguir uma carreira que pouco conheciam
e conhecem, defendendo sobretudo a minha liberdade de decidir sobre meu futuro:
este trabalho é, também, um pouco sobre isso. Ensinaram-me, assim, que se este
sonho mudaria minha vida, algo continuaria inevitavelmente – e felizmente - o
mesmo. A meus irmãos, agradeço o refúgio de sempre poder retornar de onde parti,
e lembrar a todo tempo como fui. Agradeço com carinho à minha companheira
Flávia, que acompanhou de perto os caminhos menos óbvios desta pesquisa, e
também por ter sido minha mais presente interlocutora.
Dedico este livro à memória de John Monteiro, e lembro que, dentre todas as
razões possíveis do mundo, este trabalho é para mim uma fagulha de um sonho
seu, que levei adiante por caminhos não esperados. Deixo aqui essa dedicatória de
gratidão, pelas boas memórias, a felicidade de ter te encontrado a tempo.
Agradeço a Omar Ribeiro Thomaz, por ter me recebido de braços abertos.
Assim pudemos levar esse projeto adiante, com alegria. A Sandra Lobo, por ter me
recebido em Portugal com entusiasmo e generosidade e por ter participado de
minha banca de qualificação. Ao professor Christiano Tambascia, que também
participou da banca de qualificação, pelos valiosos comentários a esta pesquisa.
A todos os amigos do PPGAS – Unicamp, que tornaram este trabalho muito
mais agradável e interessante. Um abraço especial para Paulo Victor e Fábio
Pimentel, pela boa e velha – e cada vez mais velha – amizade. Agradeço a todos os
funcionários do IFCH, aos funcionários da Torre do Tombo (Lisboa) e da Biblioteca
Nacional de Portugal, que me receberam com generosidade e humor. Na
Universidade Nova de Lisboa, a todos que colaboraram para que meu estágio de
pesquisa fosse realizado.
Agradeço à FAPESP pelo financiamento que permitiu a realização desta
pesquisa, bem como o semestre de estágio na Universidade Nova de Lisboa.
“Talvez seja essa a sedução da queda, da
decadência: ir além de seu mero lado
negativo, de seu mero estado rebaixado”
(George Simmel)
Resumo
Esta pesquisa aborda os últimos anos da Índia Portuguesa, antes de sua
incorporação à União Indiana em dezembro de 1961. Em 1948, o goês Telo de
Mascarenhas retorna de Portugal para a Índia, onde publica, na década de 1950, um
periódico nacionalista: o Ressurge, Gôa!. A viagem de Gilberto Freyre à Goa em
1951-1952 foi abordada por este periódico, e será aqui também problematizada.
Acreditando em futuros distintos para Goa – Gilberto Freyre acreditava que Goa
seria para sempre luso-indiana, enquanto Telo de Mascarenhas defendia que seria
inevitavelmente indiana – é o geógrafo português Orlando Ribeiro que descreve,
com mais pormenores, a indecisão em relação ao que considerou ser um futuro de
incertezas. A leitura destes três autores problematiza o lugar da narrativa nacional
em suas respectivas obras.
Palavras-chave: Nacionalismo; Goa, Damão e Diu (Índia) – História; Índia –
Civilização – Influências Portuguesas.
Abstract
This research approaches the last few years of Portuguese India, before its
incorporation into the Indian Union, in December 1961. In 1948, the goan
intellectual Telo de Mascarenhas returns from Portugal to India, where he
published, during the 1950s, a nationalistic journal: the Ressurge, Gôa!. Gilberto
Freyre‟s travel to Goa in 1951-1952 was addressed by this journal, and will be
also discussed here. Believing in different futures to Goa – Gilberto Freyre believed
that Goa would be, forever, luso-indian, while Telo de Mascarenhas argued that it
would be inevitably Indian – is the portuguese geographer Orlando Ribeiro who
described, with more details, the indecision regarding to what he considered a future
of uncertainties. The reading of these three author aims to discuss the place of
national discourse in their respective works.
Keywords: Nationalism; Goa, Damão e Diu (India) – History; India – Civilization –
Portuguese influences.
Nota sobre as abreviaturas
A seção da “Índia Portuguesa” no Arquivo Oliveira Salazar (AOS) está dividida em
dez caixas de documentos, separadas por eixos temáticos e, no interior de cada
uma das caixas, por ordem cronológica. As caixas aqui apresentadas são as que
fazem referência direta ou indireta à chamada “Questão de Goa”. Nossa atenção
recaiu principalmente nos documentos reunidos durante a década de 1950, dada a
orientação deste projeto. O código de referência segue o seguinte padrão: PT
(Portugal); TT (Torre do Tombo); AOS (Arquivo Oliveira Salazar); D
(Correspondência Oficial); N (Ultramar); 14 (Índia Portuguesa). Os números
seguintes a estas referências iniciais correspondem ao número da caixa estudada. A
numeração entre parênteses faz referência à numeração original dos documentos.
Sumário
Introdução...................................................................................................................15
Notas sobre a luta pela libertação da Índia Portuguesa.............................................20
Capítulo 1 Goa será sempre luso-indiana: Gilberto Freyre no Instituto Vasco da Gama..............................................................26
1. Freyre e a especificidade colonial portuguesa
1.1. Decadências e Ressurgências.............................................................30
1.2. As viagens e o exagero do real............................................................44
2. A busca pelo semelhante................................................................................52
Capítulo 2 Goa sempre foi parte da Índia: Telo de Mascarenhas e o nacionalismo indiano em Goa...........................................60
1. Descobrindo a Índia em Portugal....................................................................63
2. O retorno à Índia
2.1. Chegando em Bombaim.......................................................................79
2.2. A cultura para fins coloniais..................................................................85
3. Conclusão: a grande farsa..............................................................................97
Capítulo 3 Goa em 1956: Um passado de abandono e um futuro de incertezas..............................................103
1. A originalidade de Goa: descrição e comparação.........................................105
2. O Relatório: Goa em 1956.............................................................................116
3. A ausência de sentimento nacional...............................................................135
Considerações finais................................................................................................139
Mapas e fotos...........................................................................................................143
Bibliografia................................................................................................................150
Gilberto Freyre (1900 – 1987)1
1 Acessado pelo autor em 12/01/2017, no site Britannica Escola Online.
Telo de Mascarenhas (1899 – 1979)2
2 Fonte: SHIRODKAR (1986:216)
Orlando Ribeiro (1911 – 1997)3
3 Acessado pelo autor em 12/01/2017 no site dedicado ao espólio científico de Orlando
Ribeiro.
Introdução
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O projeto de pesquisa que sustentou a elaboração desta dissertação tinha
como objetivo compreender o lugar do nacionalismo indiano em Goa (Índia). Em
outras palavras, eu buscava compreender em que medida o longo período de
permanência portuguesa em Goa teria levado à configuração de marcas espaciais e
de memória que se configurariam então como obstáculos à narrativa de uma Goa
indiana. O trabalho historiográfico de Ângela Barreto Xavier (2008) e Inêz Zupanov
(2005) foram importantes para a definição deste problema de pesquisa. As
historiadoras mostraram, em trabalhos de grande fôlego investigativo, que Goa havia
sido pensada dentro de uma concepção de Império que prezava pela sua
descentralização administrativa. Goa teria sido, assim, projetada para ser a capital
do Estado Português da Índia, ao que se seguiu sua elaboração enquanto réplica de
Lisboa na Ásia.
Nos anos que precederam a incorporação de Goa à Índia em 1961, o lugar de
Goa no imaginário português passou a ser destacado através de diversos veículos
de comunicação, tanto através da imprensa (metropolitana ou goesa) quanto a partir
da iniciativa de estudantes goeses no interior de Universidades na metrópole. Em
certo sentido, é com o advento da República em Portugal que a questão da Índia
Portuguesa voltou à agenda política, como bem mostrou o trabalho de Sandra Lobo
(2013) sobre o lugar das elites goesas neste período. Do ano da proclamação da
República portuguesa (1910), até o advento do Estado Novo em 1926, e mais
especificamente do “Acto Colonial” em 1930, um período de indecisão marcou esta
geração de intelectuais e escritores. Afinal, com a promulgação do “Acto Colonial”, a
questão que estava colocada para parte das elites goesas se referia ao lugar de Goa
no conjunto das colônias portuguesas. A questão da autonomia de Goa no interior
do Império Português animou parte considerável da intelectualidade goesa na
metrópole e em Goa 4. A frustração que se seguiu ao “Ato Colonial”, contudo, fez
com que parte significativa das elites goesas optassem por um alinhamento de Goa
com a Índia, o que se tornou uma realidade mais palpável com a formação e
independência da União Indiana em 1947.
A crescente importância da questão de Goa, em seu aspecto diplomático, foi
concomitante ao aumento de interesse por parte de Portugal no envio de
4 E certamente na diáspora goesa, marcante em contextos africanos anglófonos onde o debate
nacionalista era crescente nos anos 1950 (Quênia, Tanganica, Zanzibar e Uganda) e particularmente importante em Moçambique. No entanto, o debate goês em territórios africanos escapa ao escopo dessa dissertação.
17
observadores que atestassem a herança portuguesa no território. O argumento de
António de Oliveira Salazar (1889 – 1970) era que Goa, apesar de geograficamente
indiana, seria, contudo, culturalmente portuguesa. Veremos, então, que Gilberto
Freyre (1900 – 1997) ocupou um lugar central na definição de um espaço
lusotropical que pudesse congregar territórios dispersos, mas unidos por uma
“comunidade de sentimento e de cultura”. A viagem de Freyre a Goa em 1951-1952
buscou atestar a influência e seu incontornável vínculo com Portugal. É sua
abordagem que será objeto de reflexão no primeiro capítulo desta dissertação.
As descrições de Freyre apontam para uma grande semelhança entre Goa e
outras paisagens tropicais sobre as quais o autor refletira anteriormente,
principalmente as do nordeste brasileiro. Neste sentido, pretendo mostrar, à luz de
debates recentes sobre os aspectos formativos do pensamento freyriano, que seu
olhar seletivo sobre as características que justificariam essa comparação se sustenta
em um modo peculiar de compreender o papel de intelectual viajante que então
assumia. Para Gilberto Freyre, que se via como herdeiro de uma cultura que
configurava um modo específico de se lidar com valores e paisagens tropicais, Goa
deveria ser antes revelada – através de um método empático e intuitivo – do que
explicada em seus pormenores – o que implica em seu afastamento do que
denomina de estilo fotográfico.
As conclusões a que Gilberto Freyre chega sobre o futuro de Goa são assim
compreendidas, ao final do primeiro capítulo, em relação ao que entendia serem as
novas formas de articulações nacionais, que se impunham frente à decadência
reinante e as novas ressurgências tropicais. É seu elogio a Mahatma Gandhi (1869 –
1949) e ao primeiro-ministro indiano Jawaharlal Nehru (1889 – 1964), como
defensores de valores regionais e de um nacionalismo não agressivo, que fecham o
capítulo, mostrando de que maneira Gilberto Freyre compreendia o lugar dos que
denominava de “separatistas goeses”.
O segundo capítulo estabelece uma conexão com os debates levantados no
primeiro. Assim, tentarei acompanhar o envolvimento de um nacionalista goês, Telo
de Mascarenhas (1899 – 1979), com os debates em torno das ressurgências
orientais na Índia. É também em relação a este quadro mais amplo que podemos
compreender o lugar que Mascarenhas atribuía ao nacionalismo indiano.
Considerando que Telo de Mascarenhas foi aluno e admirador de Oliveira Salazar
durante os anos em que estudou em Coimbra, ganha relevo o fato de que sua obra
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sugere uma aproximação entre os principais elementos dos nacionalismos
português e indianos. Os valores autênticos do mundo da cultura deveriam ser
valorizados, seja em Portugal ou na Índia, e qualquer tentativa de assimilação para
fins coloniais estaria em oposição ao ideal de defesa dos valores tradicionais. Assim,
enquanto Gilberto Freyre propunha um argumento segundo o qual, através da
predisposição portuguesa aos trópicos, esses valores estariam ali legitimamente
enraizados, Telo de Mascarenhas compreendia que apenas através do retorno à
Índia – retorno tanto político quanto cultural – Goa poderia finalmente ressurgir ou,
em outras palavras, se realizar enquanto culturalmente indiana. Se por um lado
Freyre buscou selecionar elementos da paisagem e cultura Goesas para a partir daí
elaborar conexões com outros contextos de presença portuguesa, Telo de
Mascarenhas apostou nos fatos para desmascarar o que considerava ser a grande
farsa da narrativa colonial portuguesa. Para este efeito, editou o periódico Ressurge,
Gôa! que abordaremos no final do segundo capítulo.
A passagem para o terceiro capítulo se faz em torno da centralidade do
debate em torno da tensão entre distintas representações sobre Goa. Influenciado
pela visita anterior de Gilberto Freyre a Goa, o geógrafo português Orlando Ribeiro
(1911 – 1997) se frustra por não encontrar em Goa a influência portuguesa que
esperava. Assim, em 1956, envia um Relatório ao Governo Português, apresentando
alguns fatos que considera serem desagradáveis. Mantendo um compromisso
próximo ao de Telo de Mascarenhas no que se refere à tentativa de opor os
argumentos da propaganda aos dados ancorados na experiência social Goesa,
Orlando Ribeiro procura aconselhar Oliveira Salazar sobre que medidas tomar para
que Goa permanecesse portuguesa. Do quadro complexo e distante do paraíso
lusitano que Gilberto Freyre viu em Goa, Orlando Ribeiro mostra Goa enquanto um
caso paradoxal, em que múltiplas verdades estariam em jogo, e conhecê-las seria o
primeiro passo a ser tomado pelo Governo de Portugal. Analisarei sobretudo o
Relatório ao Governo Goa em 1956 que Orlando Ribeiro enviou ao Governo, mas
também trarei elementos da formação intelectual do geógrafo, mostrando sua crença
no caráter humanista do colonialismo português e de Goa como manifestação de um
“duplo tesouro de civilizações”.
Se para Gilberto Freyre Goa seria para sempre portuguesa, e para Telo de
Mascarenhas seria inevitavelmente indiana, Orlando Ribeiro é aquele que, dentre os
três autores, considera que não existiriam garantias que permitissem uma previsão
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segura sobre o futuro da Índia Portuguesa. Assim, apresento nesta dissertação uma
leitura em torno de autores que, através de processos de escrita, buscaram traduzir
a complexidade social de Goa a partir de narrativas que, de diferentes maneiras,
lidavam com a questão do nacionalismo. Apresento nesta Introdução os precedentes
que estavam em jogo no contexto da decisão tomada pelo governo português de
permitir, financiar e apoiar logisticamente as viagens de Gilberto Freyre e Orlando
Ribeiro, bem como no contexto dentro do qual Telo de Mascarenhas se inseriu na
cidade de Bombaim.
Em seu trabalho sobre a consolidação do nacionalismo português pelo regime
salazarista, Luís Trindade (2008) argumenta que o regime só pôde ser instituído
enquanto tal como resultado final de um longo processo de afastamento entre os
campos literário e político. Desta autonomia entre ambas as esferas é que o
salazarismo nutriu a perspectiva segundo a qual Portugal lhe era exterior, sendo que
à política restaria salvaguardar um patrimônio que não se confundia com as próprias
disputas políticas. É assim que a questão do realismo literário passa a ser central ao
processo de definição da identidade nacional, sendo que para o autor, “o
nacionalismo é uma formação cultural que apaga os traços da sua construção
porque consiste em fazer-se passar pela natureza das coisas” (Trindade, 2008:13).
Assim, o autor defende que apenas através da patrimonialização da nação
portuguesa aos olhos da literatura é que os estereótipos mais marcantes sobre a
nação portuguesa puderam estruturar o regime salazarista, afinal, “trata-se da
questão formal, e não substancial, de se estar preso, enquanto comunidade, a um
conjunto de estereótipos sobre a essência e o destino, de que parece impossível
escapar” (Trindade, 2008:20). Temos aqui uma questão importante para a pesquisa
que propomos, que se refere ao lugar da definição identitária – e a consequente
projeção de um futuro inescapável, visto ser a realização de um caráter – no interior
de narrativas nacionais, indianas ou portuguesas.
20
Notas sobre a luta pela libertação da Índia Portuguesa
Como veremos, Mahatma Gandhi se tornou uma figura central, admirada
tanto pelos nacionalistas de Goa quanto por portugueses contrários ao governo do
então primeiro-ministro Jawaharlal Nehru. A luta por liberdades cívicas em Goa
estivera impulsionada pelas então recentes negociações em torno da “transferência
de poder” da Índia Britânica ao Partido do Congresso. Apresento aqui o modo como
autores goeses, em sua maioria com passagem por universidades europeias,
buscaram fazer coincidir o futuro de Goa com aquele que se projetava para o
restante da Índia: a sua completa descolonização. No primeiro capítulo da
dissertação mostrarei de que modo Gilberto Freyre, em sua conferência apresentada
em Bombaim, defendeu sua admiração por Mahatma Gandhi, ainda que se
posicionando de forma contrária aos “separatistas” de Goa. As impressões que
Freyre guardou de Bombaim foram importantes para sua compreensão do papel que
Goa deveria desempenhar no sentido de amansar o que era percebido pelo
sociólogo como “asperezas do sistema social hindu”. Telo de Mascarenhas, por sua
vez, se inseriu de um modo muito particular no contexto político da cidade, sendo
que ali lançou seu periódico Ressurge, Gôa!, sem contudo se alinhar de forma
duradoura a nenhuma das organizações políticas ali existentes. Orlando Ribeiro
visita Goa em um contexto em que, após a invasão de Dadrá e Nagar Aveli liderada
por goeses de Bombaim, a União Indiana apenas era observada à distância, como
consequência do bloqueio que imperou em suas fronteiras5.
Neste contexto de grande complexidade, muitos sentidos devem aqui ser
buscados nas demandas que nacionalistas goeses apresentaram desde a década
de 1940, e que certamente remontam a um longo período de indeterminação de Goa
entre Portugal e Índia (Pinto, 2007). Se Telo de Mascarenhas se colocou, em suas
Memórias (1976) como protagonista da gênese do nacionalismo Goês, ao fundar
com amigos goeses em Coimbra o periódico Índia Nova, a referência mais
conhecida no nacionalismo em Goa aponta para o ano de 1946, quando Tristão de
Bragança Cunha (1891 – 1958)6 foi preso, e Rammanohar Lohia (1910 – 1967)7
5 Dadra e Nagar-Aveli eram dois enclaves portugueses sob administração do governo de
Damão (ver Mapa 1 p. 143). 6 Tristão de Bragança Cunha (1891 – 1958) é por muitos considerado o “pai do nacionalismo
goês”, embora esta posição tem sido questionada em trabalhos recentes (Pinto, 2007; Lobo, 2010).
21
proferiu seu famoso discurso em Margão (Goa). Tristão havia se formado bacharel
no estabelecimento francês de Pondicherry (Índia)8, de onde partiu para Paris, tendo
se graduado em engenharia elétrica na Universidade de Sorbonne. Na capital
francesa, atuou ao lado do romancista e erudito indólogo francês Romain Rolland
(1863 – 1944), divulgando as lutas pela independência da Índia, retornando a Goa
em 1926, onde fundou o Comitê do Congresso de Goa (CCG) neste mesmo ano,
com as intenções de coordenar a luta contra o colonialismo português9.
Tristão de Bragaça Cunha retornou a Goa, então no ambiente político
marcado pela luta contra a ditadura. A tese da alienação aparece destacada em
seus escritos, sendo que “em causa estaria a alienação, não somente da cultura e
realidade indiana decorrente da europeização, mas também, da modernidade pela
cultura que obstava à sua percepção” (Lobo, 2010:481). O famoso artigo “A
desnacionalização dos goeses” (Cunha, 1944), publicado em Bombaim, consolidava
assim um longo debate em torno da identidade goesa, que havia se intensificado no
ano de 1913, quando António Bernardo de Bragança Pereira (1883 - 1955)10 e
Roque Correia Afonso (1859 - 1937)11, procuraram (sem contudo encontrar) uma
consciência nacional goesa que estivesse desvinculada da cidadania portuguesa.
Sandra Lobo (2010) argumenta que havia então uma dificuldade por parte das elites
católicas de se situarem na chave do discurso nacionalista, marcando uma
identidade goesa que estivesse vinculada seja aos modelos de ocidentalidade ou
orientalidade. Para Roque Correia Afonso, a identidade goesa seria
fundalmentemente católica, enquanto para Bragança Pereira seria inconcebível
definir esta identidade ignorando a maioria populacional hindu.
Sua defesa de que os goeses estariam desnacionalizados se tornou referência para o retorno de Goa às suas origens culturais indianas. 7
Rammanohar Lohia (1910-1967) era natural de Akbarpur, Uttar Pradesh. Bacharel pela Universidade de Calcutá, seguiu seus estudos na Frederick William University, em Berlim, onde defendeu sua tese de doutorado sobre a taxação do sal na Índia e nas políticas socio-econômicas de Gandhi. 8
A Índia Francesa recebia a denominação de “Établissements français de l'Inde”, e correspondia aos territórios de Pondicherry, Chandernagore, Karikal, Yanon e Mahé. 9 Como veremos adiante, assim como Tristão de Bragança Cunha, Telo de Mascarenhas,
antes de retornar à Índia, teve um contato prévio com indólogos e orientalistas europeus, que defendiam os valores da civilização indiana e apontavam para nova formas de relação e entendimento entre Europa e as civilizações orientais. 10
António Bernardo de Bragança Pereira (1883 – 1955) foi autor da Etnografia da Índia Portuguesa (1911). Durante este debate com Correia Afonso, cursava Direito em Coimbra. Era primo de Luís de Menezes Bragança, de quem farei referência adiante. 11
João Joaquim Roque Correia Afonso (1859 – 1937) foi um advogado de grande expressão pública nos debates que tiveram por palco a I República portuguesa.
22
A questão passava, assim, para as relações entre hindus e católicos no
contexto político e de inserção na cidadania portuguesa. Para parcela da
intelectualidade goesa, era justamente entre os hindus que se encontrava a
possibilidade de se retomar os vínculos tradicionais que ligavam a identidade goesa
à Índia. Assim, o jornal Bharat “contestava a ideia de uma identidade goesa
essencialmente católica” (Lobo, 2010:427). É das articulações e demarcações entre
cultura e política que Sandra Lobo sugere que a questão deva ser abordada. Isto
porque a edificação de um movimento nacionalista goês não se deu sem obstáculos
que estavam dados na ordem da interpretação sobre a identidade local, marcada na
década de 1920 por profundas disputas entre as comunidades católicas e hindus.
Diante destas disputas identitárias, Luís de Menezes Bragança (1878 – 1938)
buscava defender que o debate se desse em termos laicos e que, sendo Portugal
uma República, a definição da identidade Goesa não deveria ser definida em termos
religiosos. Contudo, as relações de proximidade e interesse entre o movimento
hindu goês e o nacionalismo indiano eram claras (Lobo, 2010:436). Para os
contribuidores do jornal Bharat e o Hindu, “o desejável aprofundamento da
autonomia estava dependente, para ser profícuo, do reconhecimento da indianidade
goesa, propunham a reivindicação preliminar do fim da política de assimilação
cultural” (Lobo, 2010:450). É neste ambiente político que Sandra Lobo evidencia o
surgimento de uma geração de estudantes acadêmicos que tomaram os ideais do
nacionalismo indiano, menos a partir do complexo contexto local goês, e mais a
partir dos grandes clássicos da literatura indiana, como Tagore, e de indólogos
europeus, como Sylvain Lévi e Romain Rolland, mostrando que o próprio Telo de
Mascarenhas “sequer menciona qualquer convívio com os guardiões da
„indianidade‟ como repetidamente refeririam” (Lobo, 2010:457).
O contexto republicano permitia, contudo, que o fervor autonomista fosse
buscado no interior da política vigente, defendendo a compatibilidade entre os ideais
autonomistas e republicanos. “Para estes jovens católicos, o hinduísmo
representava o processo de reapropriação da sua indianidade, o afirmar de uma
herança comum que unia os indianos” (Lobo, 2010:463). E esta tradição
secundarizava, ela própria, a questão religiosa, ao definir a Índia como um berço
comum a diversas crenças, visto que “a plasticidade constituía a marca distintiva da
identidade hindu”, sendo que o “Índia Nova” buscava equacionar o nacionalismo e o
universalismo. Assim, existia uma questão de fundo que apontava para o futuro da
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humanidade, sendo que restaria à Europa, segundo Romain Rolland, “virar-se para
Oriente e aí buscar inspiração de um novo ideal, verdadeiramente revolucionário
para o futuro do velho continente e da humanidade” (Lobo, 2010:472). Esta postura,
Sandra Lobo diz, se destaca na corrente orientalista que via a grandiosidade
passada da Índia meramente pela via da arqueologia.
A tradição seria uma forma de vínculo regional, onde apesar da literatura
goesa ser escrita em português, associando-a inevitavelmente à literatura
metropolitana, era ainda enraizada na Índia, onde uma tradição que antecedia à
chegada dos europeus permitia que as referências literárias retomassem fontes
mitológicas indianas. Assim, “a fonte da renovação cultural, contudo, poderia ser
traçada até a mesma fonte da tradição que havia sido sugerida pela elite do
nacionalismo indiano” (Pinto, 2007:185). Em outras palavras, se a literatura Goesa
compartilhava com a literatura portuguesa o seu caráter marginal, encontraria em
suas próprias fontes regionais a possibilidade de retomar o fio da tradição. Este
momento representou uma fase das histórias da literatura em língua portuguesa,
onde a região forneceria os limites para a construção destas histórias, a despeito da
língua comum.
Foi Menezes Bragança que realizou uma associação entre as ideias
tradicionalistas e as antidemocráticas, vigentes em diversos países europeus, mas
com especial atenção ao caso português. Assim, “logo em julho de 1926, senão
antes, classificou o golpe militar demonstrando que os protagonistas não buscavam
simplesmente uma mudança violenta no governo, mas sim acabar com a República”
(Lobo, 2010:477). Esta dissertação define seu problema a partir daquele que Sandra
Lobo definiu como “o último golpe no imaginário local sobre o seu lugar na hierarquia
do Império” (Lobo, 2010:507). Trata-se do “Acto Colonial” de 1930, que dividiu a
população das colônias entre assimilados e indígenas, como mostra a autora a partir
do regulamento militar de 1932, bem como a partir das manifestações de protesto
que aconteceram em Goa principalmente no ano de 1933. Para parte das elites
goesas, o “Acto Colonial” e a afirmação da política colonial metropolitana
“representaram uma ruptura traumática na percepção do seu lugar no quadro
português” (Lobo, 2010:512).
Para Sandra Lobo, em sua tese sobre as elites intelectuais Goesas, os
sentimentos de decadência e de subalternidade “uniam mais do que separavam o
estado de espírito da intelectualidade goesa católica e da intelectualidade
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metropolitana. Para ambas constituiriam poderosos estímulos à crítica política e
cultural” (Lobo, 2010:18). Neste sentido, Sandra Lobo parte do debate de Rochelle
Pinto a respeito do conceito de entre-impérios para enfatizar porém que a auto-
imagem das elites Goesas era em grande medida matizada por seu estatuto político
diferenciado, e também pela sua circulação pela esfera político-cultural
metropolitana. Telo de Mascarenhas, que será estudado no segundo capítulo desta
dissertação, fez parte da geração de intelectuais goeses que, residindo e estudando
em Portugal, buscaram efetivar uma “intermediação do conhecimento e do diálogo
entre impérios e entre culturas” (Lobo, 2010:17). Pretendo apresentar de que modo
a passagem de Mascarenhas da posição de defensor do Estado Novo salazarista,
para a de um nacionalista empenhado na Libertação de Goa, procedeu de forma
mais suave do que a polarização política poderia sugerir. Em outras palavras, a fé
que depositou no ressurgimento nacional português, em um cenário marcado pela
perspectiva de decadência da Primeira República, é formalmente análoga à sua
defesa do ressurgimento nacional em Goa.
Esta aproximação sugerida através da percepção da decadência abrirá o
primeiro capítulo desta dissertação, que se insere assim nesta tentativa de detalhar
aspectos de como a análise da realidade Goesa se deu em um contexto de
crescente importância do conceito de cultura na configuração da esfera política,
atendendo assim a uma demanda crescente pela questão identirária. Sandra Lobo
argumenta que se tratava, para o membros das elites Goesas, em grande medida,
de reclamar o “direito de configurar o político e de se recriar politicamente, com a
vontade de afirmação da autonomia das suas dimensões crítica e criativa” (Lobo,
2010:23). A projeção do futuro local, de que fala a autora, passou assim a se realizar
sobre olhares em torno das heranças do passado. Para Sandra Lobo, a tomada de
consciência desta indianidade dos goeses se deu através do reconhecimento de
uma herança civilizacional que os uniria à Índia.
Esta ruptura se desenhou em relação a uma esperança de autogoverno que o
breve período republicano havia permitido florescer entre os goeses desejosos da
autonomia administrativa e, mais ainda, a um processo secular de aproximação das
elites goesas em relação à metrópole, príncipalmente nas esperanças depositadas
no projeto liberal. A questão da cidadania é central na avaliação da autora, na
medida em que evidencia que ao envolvimento político por parte das elites católicas
acompanhava uma série de posições referentes ao manejo de códigos culturais. É
25
por esta razão que Sandra Lobo argumenta que “induz em erro falar da
subordinação do cultural ao político” (Lobo, 2010:119). A característica que nos
importa ressaltar, e que evidencia o sentido dos protestos nativos ao “Acto Colonial”
foi a definição rígida de uma diferença colonial. Como afirma Lobo, “com este passo
abandonava-se o princípio do caráter transitório e circunscrito da diferença de
direitos, prevalescente na Primeira República” (Lobo, 2010:504).
A aproximação destas elites ao nacionalismo indiano foi assim resultado de
um longo processo político que, em meio a uma grande diversidade social de
posições e intresses, encontraram no nacionalismo uma pauta comum. É neste
contexto que Sandra Lobo argumenta que, para as elites Goesas, “o nacionalismo
indiano se apresentou como única alternativa sustentável, firmada pelos múltiplos
laços que uniam o território ao subcontinente” (Lobo, 2010:523)12. A questão de
Goa, que tornou atraente ao governo português o envio de Gilberto Freyre ao
território em 1951, é corolário de um longo processo em que parte das elites nativas
deixaram de depositar suas esperanças de futuro em uma comunidade portuguesa
ultramarina.
12
Lobo (2010:424) mostra como esse discurso nacionalista articulado emergiu primeiramente no periódico Bharat. Foi neste periódico que Telo de Mascarenhas publicou seu primeiro artigo.
26
Capítulo 1
Goa será sempre luso-indiana: Gilberto Freyre no Instituto Vasco da Gama
27
Introdução
A problematização das relações entre a ideologia colonial portuguesa e o
luso-tropicalismo passa necessariamente pela leitura dos trabalhos que Gilberto
Freyre publicou, sobretudo, a partir da década de 1950. As principais obras desse
período fazem referência à viagem que o autor brasileiro empreendeu às colônias
portuguesas na África e na Índia. Cláudia Castelo (1998) e Omar Ribeiro Thomaz
(2003) já haviam indicado a importância desta viagem para a consolidação do luso-
tropicalismo como ideologia colonial portuguesa, após uma recepção incerta da obra
de Freyre pela intelectualidade metropolitana dos anos 1930 e 1940. Esta recepção
distinta em cada um desses períodos foi muitas vezes interpretada enquanto fruto de
uma mudança no próprio pensamento de Gilberto Freyre, que a partir da década de
1950 teria se alinhado ao regime ditatorial de Oliveira Salazar.
Contudo, acredito que Cláudia Castelo e Omar Thomaz estão corretos ao
buscar as raízes do luso-tropicalismo em obras anteriores a Um brasileiro em terras
portuguesas (1953b) e Aventura e Rotina (1953a). A historiadora portuguesa afirma
que “os fundamentos do luso-tropicalismo começam a ser lançados em 1933 na
obra Casa-grande & Senzala” (Castelo,1999:137), quando Freyre começa a
estabelecer a contribuição da miscigenação e da interpenetração cultural para a
formação e o entendimento da sociedade brasileira. Trabalhos como os de Ricardo
Benzaquem do Araújo (1994) sobre Casa-Grande & Senzala contribuíram, nas
últimas décadas, para evidenciar aspectos do pensamento freyriano que corroboram
a importância de conceitos importantes ao luso-tropicalismo, dentre eles o de
equilíbrio de antagonismos. Reconhecendo a importância incontornável destas
contribuições ao entendimento da obra de Gilberto Freyre, o que pretendo
apresentar aqui é de que modo sua viagem às colônias portuguesas assumiu
referências ainda mais antigas da trajetória do autor, se inscrevendo assim em sua
própria formação intelectual.
No que se refere a alguns destes temas que acompanham a longa trajetória
intelectual de Gilberto Freyre, apresentarei inicialmente a relação entre decadência e
ressurgência em sua obra, tendo por base a leitura de seus trabalhos referentes à
viagem que realizou às colônias portuguesas. A temática esta presente desde o livro
inaugural de Freyre (1933), sendo que partirei da fortuna crítica sobre sua obra com
28
a intenção de compreenser os sentidos de algumas de suas principais descrições
sobre Goa. Assim, Freyre compreendia que a sociedade ocidental se encontrava em
decadência, decorrente de uma crise interna cujas razões podem ser remontadas à
noção freyriana de civilização. É a partir do conceito de lusismo, de uma diferença
fundamental entre os países ibéricos e o restante dos países europeus, que Elide
Bastos (2003) mostra que Freyre apresentou as condições que permitiam aos
lusitanos resistirem a esta crise. Assim, o conceito de decadência é fundamental
para compreendermos os termos da especificidade dos portugueses em sua relação
com paisagens e povos tropicais. Ainda, é em decorrência desta questão de base
que Freyre compreende o lugar das influências orientais na cultura brasileira, que
seriam determinantes para que, nos países marcados pela presença portuguesa, a
decadência não fosse sinônimo de morte social, mas sim de novas projeções da
tradição no presente e no futuro.
A questão do tempo é portanto central à leitura que aqui proponho. Elide
Bastos (2003) localizou, em trabalho sobre a influência de autores hispânicos na
formação intelectual de Freyre, que foi através da noção de tempo tríbio que o autor
brasileiro buscou compreender que decadência estava acompanhada por
ressurgências de valores adormecidos. São, portanto, ressurgências culturais que se
dão concomitantemente aos processos de fragmentação de culturas nativas que os
europeus estavam promovendo na África e na Índia. Em grande medida, ao longo de
toda sua viagem, Freyre tematizou justamente esta dinâmica existente entre as
“insurgências e ressurgências orientais e africanas em conflito com a civilização
ocidental – já em crises internas de insatisfação e transformação” (Freyre,
2010a:17). Neste capítulo, iniciarei assim com uma apresentação desta questão
central para a compreensão dos modos pelos quais Freyre defendia a capacidade
portuguesa de assimilar valores orientais que, desta forma, se projetaram para todo
o espaço da presença portuguesa nos trópicos.
É pelo fato de se assentar em uma capacidade específica do caráter
português que Freyre identifica essadinâmicade insurgências e ressurgências como
“dois aspectos de um complexo fenômeno psicocultural ou sociocultural” (idem).
Assim, após chegarmos à questão da temporalidade, acompanhando o modo pelo
qual uma noção específica de decadência permitia que valores nativos fossem
incorporados ainda vivos no interior do complexo cultural lusotropical, veremos que
Freyre empreendeu uma busca por esses valores enquanto um projeto que
29
permitiria a compreensão do sentido de unidade que prevalescia sobre essa
realidade aparentemente dispersa. É nestes termos que Gilberto Freyre entende sua
viagem às colônias portuguesas, e apresenta que o mesmo impressionismo que
marcou o olhar dos primeiros portugueses em contato com o Oriente seria o método
mais adequado para a compreensão desta realidade profunda que definiu através do
conceito de civilização lusotropical. Se o impressionismo seria um método
profundamente empático, dependendo assim do contato direto do autor com as
realidades regionalmente situadas, ele assumiu, nestas obras, o caráter de um
expressionismo, no sentido que Freyre defendeu: certos traços observados seriam
exagerados como um método de compreesão das características típicas destas
realidades. O trabalho de Fernanda Arêas Peixoto (2015) é bastante elucidativo das
relações entre viagens e formas de apreensão da realidade em Gilberto Freyre.
Organizarei este capítulo, assim, ao redor destas duas principais questões:
primeiramente, a dinâmica entre decadência e ressurgimento, e o modo ibérico de
se lidar com a questão; em segundo lugar, a defesa do impressionismo e do
expressionismo como formas de se lidar com esta realidade dinâmica, encontrando
entre os fragmentos de um passado aqueles que resistiriam à desintegração,
projetando-os no futuro. A partir destas duas questões problematizarei o lugar que
Freyre atribui às demandas goesas por autonomia ou por integração à Índia. Assim,
se ao mesmo tempo elogiava o que definiu como “uma saudável deseuropeização
nos modos de vida, nos gostos de paladar, nas flexões de língua ou de linguagem,
em ritmos de andar evidentes também em Goa” (Freyre, 2010a:16), Freyre também
era profundamente crítico do que denominava serem os nacionalismos politicamente
agressivos, que buscavam passar das ressurgências culturais para as insurgências
políticas marcadas por identidades antagônicas. A saída de Freyre apontava mais
uma vez para a harmonização de contrários (Araújo, 1994).
30
1. Freyre e a especificidade colonial portuguesa
1.1. Decadência e Ressurgências
A visão de decadência em Freyre está associada à perspectiva segundo a
qual a temporalidade dos povos ibéricos seria uma temporalidade tríbia, onde o
passado, presente e futuro, estariam superpostos, e em que “os elementos de
equilíbrio/desequilíbrio se põem e se repõem” (Bastos, 2003:77). Desta maneira,
onde Freyre encontrou fragmentos culturais marcados pela desagregação,
encontrou também elementos que poderiam ser projetados no futuro, se
recolocando no interior de novas formas de convívio. Argumentarei adiante que
desta percepção resulta uma das principais posições políticas do autor diante do
caso de Goa. Como mostra Elide Bastos (2003), a denominação dos tempos
superpostos enquanto tempo tríbio é tomada por Freyre da obra de Ortega y Gasset
(1983), e assume em sua obra um lugar central através do conceito de processo, ou
seja, de transformações que não se dão mediante rupturas. Vemos então que Freyre
defende, a partir do conceito orteguiano de tempo tríbio, que as transformações não
implicam em rupturas, mas em acomodações do tradicional com o novo 13.
O que vemos em Freyre, neste sentido, é a tentativa de captar a dinâmica
própria aos processos de transformação e permanência, temas centrais à sua
trilogia sobre a família patriarcal brasileira, recolocados de modo exemplar nas obras
que se seguiram à sua viagem pelas colônias portuguesas. O que marcaria esta
dinâmica própria, cuja marca seria a “simultaneidade dos tempos de formação,
consolidação e decadência” (Bastos, 2003:84), seria a integração de populações
nativas no seio da família patriarcal, marcada sobretudo por sua plasticidade. Por
sua vez, esta plasticidade seria a garantiria de que valores das culturas nativas
fossem conservados ainda vivos no interior de complexos de civilização cujas formas
receberiam, assim, conteúdos diversos. Na palestra que Freyre proferiu em Goa, ele
definiu este complexo civilizacional como o sistema lusotropical de cultura, que
representaria “ressurgências de valores que não se deixaram de todo
europeizar”(Freyre, 2010a:106). É neste sentido que o conceito de decadência de 13
Para Elide Bastos (2003), Freyre não faz uso de uma noção de transformação social repentina, na medida em que esta transformação “não ocorre de forma linear, mas tem a conformação de um labirinto. Sua obra é a reconstrução desses vaivéns sinuosos” (Bastos, 2003:83-84 [meus destaques]).
31
Freyre não é pessimista, se afastando na tese corrente de Oswald Spengler (1880-
1936) sobre a decadência do Ocidente14, afinal, para o autor a decadência de uma
forma social é ponto de partida para o nascimento de outra, conciliatória (Bastos,
2003:91). Como afirma o autor, as “consequências, desfavoráveis ao indígena, de
desintegração de sua cultura são quase inevitáveis, sob o impacto do industrialismo
capitalista” (Freyre, 2010a:401)15. Do contato imperial, então, resultaria assim essa
dissolução das culturas nativas, sob impacto das civilizações superiores do ponto de
vista técnico:
não resta então, aos europeus e aos cristãos, outra tarefa senão a de juntar restos às vezes podres e corruptos de culturas já mortas. Culturas que, doutra maneira, poderiam ser assimiladas, ainda vivas e sãs, a novos complexos de civilização em que as formas predominantemente européias e cristãs de organização se juntassem substâncias africanas de cultura quanto possível íntegras; e não reduzidas a simples curiosidades etnográficas (Freyre, 2010a:248).
A capacidade dos portugueses estaria justamente nesta possibilidade de
acomodação de substâncias nativas sobre formas sociologicamente cristãs. A
comparação com o Brasil é sugestiva da continuidade temática entre sua trilogia
sobra a família patriarcal e seu questionamento do processo em andamento nas
colônias portuguesas que então observava. É neste sentido de unidade que reside o
sentido de definição de um caráter português específico, portanto imutável. É no
sentido deste caráter permanente que Freyre realiza uma comparação entre as
fazendas de Angola eas fazendas patriarcais no Brasil, que segundo ele também
“fundaram-se e desenvolveram-se com negros arrancados a tribos africanas. Mas
incorporados a um sistema [onde] pudessem contribuir com seus africanismos ainda
vivos e fecundos e não esterilizados em peças de museu” (Freyre, 2010a:402). Sua
crítica à Companhia de Diamantes seria a de que este empreendimento estaria
agindo de forma contrária à tendência portuguesa, aproximando-se do modelo
meramente capitalista e técnico de se lidar com as populações nativas, atuando no
sentido de “reduzir as culturas indígenas a puro material de museu. Os indígenas
vivos interessam-nos quase exclusivamente como elementos de trabalho, tanto
14
Oswald Spengler publicou, em 1918, sua obra A decadência do Ocidente, que se tornou referência intelectual de diversos autores do período. Gilberto Freyre cita Spengler no Prefácio a Casa Grande & Senzala (1933). 15
Sobre a questão da indústria, Freyre dedica muitas páginas, relacionando esta questão com a problemática do romantismo (Freyre, 2010a:163).
32
melhores quanto mais desenraizados de suas culturas maternas e mecanizados em
técnicos, operários, e substitutos de animais de carga” (Freyre, 2010a:402).
Esta tendência seria observada, por exemplo, no imperialismo sul-africano em
Moçambique é uma “pequena amostra de que há hoje na áfrica um imperialismo
cultural ou econômico sul-africano, dissolvente de valores e estilos de cultura que
não sejam os seus” (Freyre, 2010a:448). As sobrevivências devem ser vistas, assim,
em seus aspectos vivos, sendo que o contato de Freyre com as ruínas de Velha Goa
é sugestivo de sua postura sobre o tema. Ali, Freyre diz que
as cidades são um tanto como os indivíduos no seu modo de, mesmo arruinados, conservarem um pouco da mejestade antiga. Na Goa de hoje, que é uma Goa em ruínas, ainda há um pouco da Roma que ela chegou a ser” (Freyre, 2010a: 329).
E ainda, apresenta a reveladora afirmação de que na existência dramática de
Goa, o “tempo deixou de ser o quantitativo para tornar-se o bergsonianamente
qualitativo” (idem), o que implicaria que no interior de uma temporalidade assim
definida, o tempo assumisse uma feição dramática, com o passado se estendendo
ao presente e se projetando ao futuro, tal qual podemos compreender em sua
definição do tempo tríbio acima apresentada.
No caso específico da presença europeia na África, o exemplo maometano
seria o único que se compararia ao dos portugueses, o que é sugestivo do próprio
argumento freyriano segundo o qual a influência maometana na origem do povo
português seria um fator condicionante de seu caráter extra-europeu. Em algumas
notas que escrevera sobre o colonialismo português, Freyre chega a recolocar a
disputa existente entre muçulmanos e cristãos diante destes restos culturais, à
espera de um novo sentido que lhes garantissem uma sobrevida, uma possibilidade
de ressurgirem em rebeldia diante do universalismo da técnica ocidental. Assim,
a expansão maometana muitas vezes se aproveita da obra de desintegração de culturas indígenas causada pelos europeus e por suas missões religiosas, muito mais etnocêntricas, quase sempre, que cristocêntricas, para, com os fragmentos de culturas assim despedaçadas, reconstituí-las no sentido maometano (Freyre, 2010a:256).
33
Estes valores seriam os meios através dos quais a tradição seria recuperada,
onde o passado se projetaria no futuro, se opondo assim às rupturas que de outra
forma seriam impositivas e destrutivas.
É assim possível aos africanos que sofrem o drama dessa desintegração atenuá-lo, transportando para formas maometanas de cultura [...] as substâncias que conseguem salvar do naufrágio de suas próprias culturas, esmagadas sob o impacto técnico e econômico das imperialmente européias (Freyre, 2010a:257).
Assim, chegamos ao ponto em que Freyre atribui aos portugueses a
vantagem de valorizarem elementos e incorporá-los a seu complexo de cultura. Esta
perspectiva está inscrita em um modo distinto de se lidar com a dinâmica entra
fragmentação e ressurgências, tema que estou abordando através da temática da
temporalidade16. Um exemplo desta perspectiva pode ser encontrado em uma
passagem de Freyre sobre a arquitetura híbrida que encontrou nas colônias
portuguesas, quando diz que tudo foi “dissolvido e recriado pela capacidade
portuguesa de assimilar o exótico” (Freyre, 2010a:147). Assim, se sob contato dos
ingleses tudo se dissolvia, a particularidade da capacidade portuguesa estaria na
assimilação e recriação destes valores dissolvidos. Este modo particular de se lidar
com elementos tradicionais residiria na própria origem do português, e aparece na
obra de Gilberto Freyre a partir da discussão em torno do iberismo. O exemplo
português e o maometano se opunham assim ao exemplo britânico, donde Freyre
alerta que se os portugueses imitassem os outros europeus, iriam perder suas
colônias (Freyre, 2010b: 161). Como afirma Elide Bastos (2006:47), “de certa forma,
é através do lusismo que Gilberto Freyre dialoga com os autores de sua época,
influenciados pela Europa não lusitana, portadora de ideias liberais”, e o que
marcaria a cultura ibérica seria, justamente, o fato de residir no encontro entre
Ocidente e Oriente.
Isto é, quando propõe, para a solução da crise que atravessa a sociedade brasileira, um retorno às tradições, não está lamentando o abandono de tradições ocidentais, cristãs, etc., mas sim aponta para a crise como resultado da paulatina perda dos elementos híbridos, ocidentais e orientais (Bastos, 2003:77).
16
Não fosse este agente de equilíbrio, o português, as culturas nativas seriam reduzidas a peças de museu, completamente inertes.
34
Existe, para Freyre, uma tarefa política a ser desempenhada pelos
portugueses, que afinal se resumia na tentativa de se projetar novas formas de
convívio que não fossem pautados por relações racistas e etnocêntricas17. Este
desafio era colocado ao Brasil enquanto “ativo mediador entre o Ocidente e o
Oriente, entre a Europa ou a América Setentrional e o trópico” (Freyre apud Bastos,
2006:161)18. Assim, o “apego às tradições, aparentemente um arcaísmo presente no
luso-hispano, se apresentaria como uma reação desses povos ao avanço de valores
da sociedade burguesa” (Bastos, 2006:162). É dentro desta perspectiva que Freyre
problematiza o lugar dos nacionalismos anti-coloniais, sendo que é esta temática
que nos interessa particularmente aqui. O projeto político que Freyre atribuiu aos
brasileiros é posteriormente ampliado para incluir os indianos, afinal, segundo o
autor, “depende principalmente de nós – indianos e brasileiros – o sucesso ou o
fracasso de formas modernas de civilização nos trópicos” (Freyre 2010b:155). Se os
nacionalismos poderiam ser compreendidos a partir das definições antagônicas
entre colonizadores e colonizados, é sugestivo que Freyre entenda que
tais antagonismos, a presença do português dissolveu ou amoleceu, criando entre grupos rivais motivos de unidade – a lusitana – superiores aos interesses antagônicos que os dividiam” (Freyre, 2010a:482).
Vemos assim que à dinâmica cultural corresponde o sentido de uma ação
política, que afastará Gilberto Freyre do que considerava serem nacionalismo
agressivos e separatistas que, no caso desta citação, dizia respeito especificamente
aos nacionalismos africanos. Em oposição aos nacionalismos agressivos, pautados
na ideia de ruptura, Freyre apresenta as possíveis insurgências de valores
tradicionais no interior do complexo lusotropical de cultura, que os mantivera vivos
até então. Afinal, “as insurreições orientais de hoje são menos explosões
„comunistas‟ contra o „capitalismo‟ do que manifestações de culturas ressurgentes
ou insurgentes contra o imperialismo europeu” (Freyre, 2010a:307). E um exemplo
desta insurgência positiva é descrita por Freyre quando toma contato com as
mulheres indianas em Bombaim, que adotavam o tradicional sari como
17
“Trata-se de buscar algo novo e essa tarefa tornaria os brasileiros pioneiros” (Bastos, 2006:161). 18
Interessante notar como isto leva Freyre a reconhecer o erro de Joseph Rudyard Kipling (1865 – 1936), para quem Ocidente e Oriente nunca se encontrariam (Freyre, 2010a: 357).
35
indumentária, em oposição ao que era considerado adequado no sentido europeu. É
neste sentido que afirma que
a revolta que hoje agita o Oriente, interpreto-a eu como animada menos de espírito positivamente comunista do que de sentido antieuropeu, anticapitalista e anti-imperialista de vida; como uma revolta antes de culturas ressurgentes que de populações politicamente insurgentes. Antes cultural do que simplesmente política ou econômica. Antes nacional ou regionalmente culturalista do que politicamente naturalista. Antes etnicocênctrica do que politicocêntrica (Freyre, 2010a:326).
Como Elide Bastos (2003) mostrou, Gilberto Freyre situa a questão da
decadência no interior da tradição ibérica, se afastando assim das principais teses
do decadentismo europeu: “é exatamente este traço que permite que possamos fugir
à crise” (Bastos, 2003:77). Ou ainda, “afirmar a orientalidade de nossa cultura
configura-se como estratégia para „contornar‟ a crise” (Bastos, 2003:77), e para
Freyre, a confraternização dos portugueses explicaria a resistência que possuíam
diante do anti-imperialismo (Freyre, 2010a:337). Em outras palavras, é justamente
através da retomada destes valores híbridos que as ressurgências culturais que
animavam o oriente não se transformariam em insurgências políticas de caráter
separatista, sendo que estes valores tradicionais apontam justamente para um
complexo harmônico de realidades porventura antagônicas19. Elide Bastos mostra
que este era o procedimento destacado por Freyre para o lugar específico da
formação brasileira diante da crise pela qual o mundo passava, e a retomada do
mesmo tema em seus livros da década de 1950 sugerem que Freyre tomou sua
viagem a Goa como exemplar na defesa desta harmonização entre Oriente e
Ocidente que entendia ser fundamental à compreensão do Brasil e de todo o
complexo lusotropical de cultura, “pois Goa, e não Salvador da Bahia, é que foi, no
século XVI, a base do movimento de comissão de culturas e de homens que venho
designando como civilização lusotropical” (Freyre, 2010a:321).
É neste sentido que Freyre coloca nos pontos de contato entre Oriente e
Ocidente, no interior dos quais Goa ocupa um lugar de destaque, a possibilidade de
se reconfigurar a relação entre o tradicional e o moderno, não reduzindo o primeiro a
uma decadência no sentido ocidental de morte social. É este poder de
19
Sobre a questão do “equilíbrio de antagonismos” na obra de Freyre, ver sobretudo o trabalho de Ricardo Benzaquen de Araújo (1994).
36
ressurgimento de forças tropicais, este novo patamar de equilíbrio no processo de
transformações intensas que o mundo passava, que definiu o tema de suas
conferências lidas em Bombaim e no Instituto Vasco da Gama, em Goa. Para
Freyre, o mundo caminhava para um equilíbrio de antagonismos, e a Índia
começava a contribuir para esse projeto através das figuras de estadistas que
buscavam desenvolver a obra de Mahatma Gandhi (1869-1948). É assim que
entendia que homens como Jawaharlal Nehru (1889-1964) buscavam “renovar as
velhas civilizações orientais” (Freyre, 2010b: 157) 20, que assim criam seus ritmos e
estilos de modernidade sem sacrificar seus valores antigos. Para Freyre, Gandhi e
Nehru cumpriam uma tarefa política, em que o mundo deveria ser visto como um
todo, mas respeitando os direitos e as particularidades regionais. Trabalhavam
assim na busca de um equilíbrio de antagonismos “pois, equilibrados os
antagonismos, resultam daí condições favoráveis à criação ou combinação nova de
valores” (Freyre, 2010b:159). Assim, Freyre apresenta esta admiração nos seguintes
termos:
Em Goa pergunta-me um indiano “separatista” se não me escandaliza em Portugal a miséria do Porto e de Lisboa. Respondo-lhe que sim; e que me escandaliza também a miséria de Bombaim [...] Mas nem por isso deixo de respeitar o esforço daqueles homens que como Nehru na Índia e Salazar em Portugal procuram dar estabilidade social a populações por tanto tempo desvalorizadas aos olhos do mundo (Freyre, 2010a:339).
Seria assim uma necessidade do momento político em que escrevia,
acreditava Freyre, que essa civilização lusotropical fosse mantida através da ação
dos portugueses e de seus descendentes. Segundo ele, essa foi a advertência que o
historiador e diplomata brasileiro Manuel de Oliveira Lima (1867-1928) havia tentado
mostrar ao jovem escritor goês Guilherme Joaquim de Moniz Barreto (1863-1896),
ansioso por viver e trabalhar em Paris, onde julgava existirem as condições ideais
para seu ofício intelectual. Para Freyre, “Oliveira Lima parece ter sentido como
ninguém o erro do amigo, numa época que era já de começo de decadência política
20
Descreve Tagore como “glorioso indiano que conheci quando estudante da Universidade Columbia” (Freyre, 2010a:20), o que inclusive o fizera ser tomado em alta estima por um representante de um jornal de Bombaim (Freyre, 2010a:351).
37
da Europa e de despertar de energias tropicais de cultura” (Freyre, 2010b:132) 21, e
ainda, diz que Moniz Barreto “foi vítima, mais do que Eça de Queiroz, da fascinação
de Paris, com prejuízo do gosto pelo Ultramar tropical e da visão de estar aí, e não
na Europa, o futuro não só da civilização de origem lusitana como, talvez, da própria
civilização humana” (Freyre, 2010b:134) 22. Freyre, que proferiu uma palestra sobre
Moniz Barreto no Instituto Vasco da Gama em Pangim (Goa), lembra também em
Aventura e Rotina (2010a) da amizade entre o escritor e o brasileiro Oliveira Lima,
apresentando, a partir dos contatos que ambos haviam tomado, que o retorno aos
trópicos era entendido como uma questão de crença nestas energias tropicais de
cultura que então apenas iniciavam seu processo de consolidação 23.
Se Moniz Barreto cometeu o erro de não encontrar nos trópicos um futuro
digno das grandes civilizações, Freyre remete a outros autores para evidenciar os
benefícios de se manter a tradição lusitana no que se refere aos modos de se lidar
com os trópicos. É a Hernâni Cidade (1887-1975) 24 que remonta a interpretação de
que para os viajantes portugueses o Oriente é artisticamente revelado antes de
sistematicamente ordenado (Freyre, 1987:111), e nesse aspecto recoloca a questão
do iberismo, apresentando, contudo, elementos mais precisos referentes a esta
particularidade. Em outras palavras, a questão da revelação artística aponta para
uma forma de conhecer o mundo que não se sustentava no ordenamento conceitual,
e é neste sentido que Freyre avalia a contribuição da filosofia experimental do
nominalismo franciscano para o empreendimento lusitano nos trópicos 25.
Outro exemplo que confirma seu argumento é o de que “à formação de Franz
Post faltava o toque nominalista que o predispusesse ao livre gosto por valores não
europeus e tropicais de vida, de paisagem e de cultura” (Freyre, 1987:204). Esta
avaliação da obra do holandês Frans Post (1612-1680)26 sugere assim a importância
do gosto ibérico pela vária cor e de sua predisposição à simbiose com os trópicos. A
21
Sobre as relações intelectuais e pessoais do próprio Gilberto Freyre com Oliveira Lima, ver o trabalho de Fernanda Arêas Peixoto (2015). 22
Sobre Moniz Barreto Freyre diz ainda que “dele já se disse que foi uma mariposa que as luzes de Paris atraíram para o consumir. Consumiram-no” (Freyre, 2010b:141). 23
Importante mencionar que o próprio Gilberto Freyre hesitou entre seguir sua carreira acadêmica nos Estados Unidos ou Europa e no Brasil (Pallares-Burke, 2005). 24
Hernâni António Cidade (1887- 1975) foi um escritor e jornalista português, tendo publicado trabalhos sobre a viagem de João de Barros ao Oriente. 25
Freyre afirma: “sou dos que pensam que o nominalismo franciscano favoreceu [...] o desenvolvimento de uma cultura que venho denominando lusotropical” (Freyre, 1987:199). 26
Frans Janszoon Post (1612-1680) foi um pintor holandês que acompanhou a comitiva de Maurício de Nassau ao Nordeste brasileiro
38
questão é então colocada como um fenômeno de ordem psico-cultural e também
socio-cultural, sendo que são justamente estes elementos “sócio-culturais que
condicionam um artista, limitando sua liberdade de interpretação do exótico, do
diferente, do inédito” (Freyre, 1987:204). É neste sentido que compreendemos estar
situada a interpretação de Freyre a partir das relações entre estas duas ordens, o
que lhe permite passar do particular ao geral, do empático ao sociológico, sendo que
desta indefinição não incorreria em nenhum deslize analítico, sustentando-se antes
em uma opção metodológica que o vinculava aos escritores que se colocavam na
corrente do lusismo ou iberismo.
No que se refere a esta corrente, Freyre contudo se situa entre aqueles que
adotam o universalismo como forma exemplar de associação do autor com a
diversidade observada. É o que Freyre denominou como sendo o lusismo
universalista de Antônio Sérgio de Souza Júnior (1883-1969)27 e de Joaquim Pedro
de Oliveira Martins (1845-1894)28, que também encontrou em Panduronga
Pissurlencar29, que o acompanhou durante sua visita a Velha Goa: “um lusismo que
se sente prejudicado pela ação da teocracia cristã sobre certas atitudes menos
universalistas de Portugal, quer no Oriente, quer na Europa” (Freyre, 2010a:306).
Freyre afirma, ainda, que visto Antônio Sérgio ter nascido na Índia Portuguesa, seu
“universalismo intenso” estava então associado ao espiritualismo oriental e a uma
tendência tipicamente indiana em secundarizar aspectos particularmente empíricos.
Vemos assim que para o autor brasileiro o argumento psicocultural e sociocultural
passava também pela questão da religiosidade, sendo que o grande drama que
julgava entrever nos trópicos seria aquele que opunha o racionalismo ocidental às
populações fervorosamente místicas e espirituais. Daí sua atenção ter se voltado
para aquelas culturas dotadas de uma profunda espiritualidade, característica que
estaria, por outro lado, “em agudo declínio, na década de 1950, entre ocidentais
civilizados” (idem). É neste sentido que personalidades como Antonio Sérgio e
Oliveira Salazar são elogiados por Freyre nos seguintes termos:
27
António Sérgio (1883-1969) era nascido em Damão, na então Índia Portuguesa, tendo exercido sua atividade intelectual em Portugal. 28
Joaquim Pedro de Oliveira Martins (1845-1894) foi um cientista social português. 29
Panduronga Pissurlencar havia sido diretor do Arquivo Histórico do Estado da Índia, sendo que recebeu, além de Gilberto Freyre, o geógrafo Orlando Ribeiro, como mostrarei no terceiro capítulo desta dissertação.
39
Em ideias, eu talvez me incline mais para as de Antonio Sergio que para as de Antônio de Oliveira Salazar, embora respeitando no grão-doutor um dos maiores portugueses de todos os tempos. Alguém que, na verdade, fez nascer de novo em Portugal muita virtude ou valor que adormecera até parecer morto (Freyre, 2010a:35 [meus destaques]).
Se Freyre faz assim a defesa do lusismo universalista do intelectual luso-
indiano, busca contudo ponderar o que considera ser um abstracionismo exagerado
das populações indianas, para quem a ação prática deveria ser induzida através de
atitudes enérgicas que dessem a ela um novo dinamismo, um equilíbrio entre a
aventura e a dominate rotina. Assim, apesar de se colocar como autor universalista,
Freyre insiste na tradição nominalista como forma de equilibrar as duas tendências
opostas do empirismo e do universalismo, mostrando que apenas através do
particular poderia se asceder às verdades gerais. O universalismo exclusivo levaria
os indianos ao quase torpor, a uma postura em relação ao mundo que os afastava
de qualquer ação. De forma complementar, Freyre mostrava que o que observara
em sua viagem seria um “choque em profundidade” que se realizava “entre gentes
predominantemente mágicas e místicas nas suas culturas – as orientais – e uma
civilização grandiosa – a ocidental – principalmente tecnocrática, economicista,
racional, lógica” (idem).
Se os excessos de abstracionismo marcavam os indianos, os excessos de
aventura marcaram a experiência portuguesa em Goa, trazendo resultados por sua
vez também desastrosos. É neste sentido que pede auxílio transnacional para a
manutenção da Escola Médica de Goa, dizendo que, sem o apoio de outros países
como Portugal e Brasil,
a Escola Médica de Goa será, dentro de alguns anos, outra ruína gloriosa em terra tropical do Oriente. Uma ruína igual à da Santa Casa que foi outrora assombro de europeus e não apenas de orientais. À do Colégio de São Paulo: fracasso dos jesuítas. À do Convento de Santa Mônica: outro fracasso (Freyre, 2010a:316).
É neste mesmo espírito que Freyre observa as ruínas de Velha Goa, e
imagina que a um português da Europa ela representaria “a tristeza de uma grande
aventura frustrada” (Freyre, 2010a:328). Nesta lógica entre as tendências
antagônicas da aventura e da rotina, Freyre colocava a questão de um diálogo entre
dois mundos. Afinal, via em seu tempo um “Ocidente tão em busca de valores
40
espirituais que o refortaleçam” (Freyre, 2010a:18), mas cuja presença na Índia
poderia por sua vez equilibrar a tendência oposto do espiritualismo exacerbado.
Vemos então que Freyre encontrou em Goa o espaço ideal para descrever esse
choque em profundidade entre Oriente e Ocidente, onde seus antagonismos haviam
sido harmonizados. A importância da tese do orientalismo da cultura brasileira é
mencionada por Freyre quando chega a Goa e se depara com o que descreve como
uma interpenetração das arquiteturas religiosas e domésticas, encontrando aí
muita confirmação para a tese por mim esboçada, em ensaios que datam de 1933 e de 1936: a de serem numerosos os orientalismos dissolvidos no complexo brasileiro de cultura. Mais numerosos do que geralmente supomos. Ponto de vista que pareceu exagerado a alguns críticos. Não só exagerado: fantástico (Freyre, 2010a:305).
Era o momento de se ponderar, harmonizar, essas duas posturas, e isto seria
feito através de uma defesa das ressurgências culturais que não se submetiam,
enquanto tais, a este imperialismo racional. A partir desta defesa, Gilberto Freyre
assume uma postura ativa enquanto escritor, selecionando nestes contextos aqueles
elementos que julgava serem representativos destas ressurgências. Assim, se
Freyre defende o impressionismo enquanto forma de compreensão do mundo
pautada na sensibilidade e não no conceito, é no expressionismo que pensa este
lugar ativo do escritor. Para o autor, o expressionismo e o impressionismo poderiam
ser pensados como dois modos distintos de se pensar a relação entre a luz e o
mundo. Se para o artista impressionista a luz incide sobre o objeto, para o
expressionista ela emana do próprio objeto, sendo esta portanto uma postura mais
ligada ao misticismo, em consonância com o elogio freyriano da capacidade ibérica
de revelação dos trópicos, mais do que de sua explicação através de raciocínios
lógicos.
Neste sentido, se a fortuna crítica de Gilberto Freyre tem apontado, até agora,
a importância do conceito de impressionismo em sua obra (Bastos, 2003; Pallares-
Burke, 2005), acredito que os trabalhos de Freyre da década de 1950, e
principalmente Aventura e Rotina (2010a), apontam para uma segunda inflexão em
sua defesa da especificidade dos modos ibéricos de se associar a valores e
paisagens tropicais. Tentarei apontar, assim, algumas consequências da postura
expressionista para à leitura política que Freyre realiza neste contexto, sendo
41
relevante compreender que sua definição de impressionismo recebeu um tratamento
neste mesmo sentido:
Mas não se trata de um realismo. Trata-se, antes, de um impressionismo.É marca do abandono do conceito pela acentuação da impressão, com as consequências aportadas por essa atitude à condução política da sociedade. (Bastos, 2003:109)
Desta filosofia experimental, marcada pela atenção ao particular e ao
concreto, é que Freyre enfatiza a importância da observação direta, que faria frente
ao abstracionismo dos demais colonizadores. A questão seria recorrente na obra de
Freyre, como mostra Elide Bastos em seu estudo sobre a influência de autores
hispânicos no trabalho do autor30. Como dirá em referência a Ortega, “o germânico
tem como instrumento de percepção da realidade o conceito, e o mediterrâneo, a
impressão” (Bastos, 2003:108)31. Fernanda Arêas Peixoto (2015) mostra, em seu
interessante trabalho sobre o lugar das viagens na obra de Freyre, o interesse
precoce do autor pelas artes visuais, o que endossa a perspectiva defendida por
Freyre que a impressão, a atenção aos pormenores sensíveis, seriam fundamentais
no exercício de compreensão da realidade. Freyre, nesse ponto, remete sua
lusotropicologia aos primeiros franciscanos, apontando no misticismo destes cristãos
como marca da especificidade da experiência colonial portuguesa.
O autor não hesita em apontar o pioneirismo de sua observação sobre “o
então começo de uma revolta de mágicos contra lógicos” (Freyre, 2010a:16), e no
que se refere ao lugar da religiosidade entre os ocidentais, menciona que o
islamismo estava ganhando destaque no processo de desintegração das culturas
africanas, “em relação a um já menos místico que nos seus grandes dias,
catolicismo romano” (Freyre, 2010a:18). Este poder de integração do islamismo e de
uma vertente mística do cristianismo seguem assim um direcionamento claramente
político, onde o sentido de unidade (neste caso, animado pelo monoteísmo), estaria
moldando a luta contra o colonialismo europeu.
30
A referência é ao sensualismo como marca das civilizações mediterrâneas 31
Sobre esta oposição, é sugestiva a afirmação de Freyre sobre duas formas distintas de organização social na formação brasileira: “a substância dessas duas formas de organização social é diferente: dois tipos de homem criam uma e outra” (Bastos, 2003:93). O argumento é, assim, de ordem psicosocial ou ainda psicocultural.
42
Tais hispanos [José de Acosta e Garcia da Orta] como que franciscanamente lançaram as bases de uma tropicologia ou ecologia tropical, completada por uma antropologia atenta a situações do homem diversas das européias: ecologia que já se vai constituindo em ciência do trópico, tendo dentro de si uma hispanotropicologia especial e uma especialíssima lusotropicologia (Freyre, 1987:209).
Esta questão da compreensão dos trópicos aparece nas obras aqui
estudadas principalmente diante do fato de que, sendo a decadência concomitante
com as ressurgências, apenas um olhar atento às pequenas particularidades poderia
entrever seu potencial de articular novos valores e sentidos. A desintegração
lançava ainda um desafio à própria compreensão, sendo necessário que agentes
sociais dessem a este conjunto de elementos uma linha de harmonização que a
tornasse compreensível. A condição das colônias portuguesas, segundo Freyre, era
favorável a esta compreensão, visto que aí os extremos haviam sido harmonizados.
O olhar que Freyre lança sobre as paisagens tropicais recebe a mediação de
agentes sociais e estéticos que tornam possível a própria experiência da
compreensão, sendo que sem a presença destes, “essa paisagem se desequilibra
ou decompõe, torna-se não só confusa como incompreensível, perde os seus
contornos mais expressivos para dissolver-se num quase borrão” (Freyre, 2010a:51).
Assim, Gilberto Freyre argumenta que, “sem os jesuítas, sem os franciscanos,
sem os frades, os padres, as freiras não teria havido Goa como não haveria hoje o
Brasil” (Freyre, 2010a:334), sendo sobretudo a eles que Freyre atribui o sucesso da
consolidação dos portugueses nos trópicos. E a harmonização de paisagens e
populações é o que distinguiria Goa do restante da Índia, e que Freyre encontra
mesmo nas paisagens tropicais, “paisagens na Índia portuguesa, diferentes das da
outra Índia, pelo que se descobre nelas de harmonização de formas e cores do
Ocidente com as do Oriente. Harmonização – note-se bem – e não de intrusão do
Ocidente no Oriente: as intrusões da arquitetura imperialmente inglesa, por exemplo”
(Freyre, 2010a: 335). Assim, se os portugueses equilibraram antagonismos, e
permitiram assim a emergência de um sentimento de unidade, era diante da
fragmentação política e da multiplicação de disputas étnicas que o autor acreditava
residir o dever político dos portugueses. Como vimos, é a partir da tese do iberismo
43
que Elide Bastos (2003) compreende a percepção freyriana da acomodação e do
equilíbrio de antagonismos32.
Equilibrar antagonismos significava valorizar a unidade em prol dos
separatismos, os processos de acomodação em prol das rupturas. Em sua
discussão sobre a influência do nominalismo franciscano sobre a ciência e o modo
de relacionamento dos hispanos tropicais aos trópicos, Freyre levanta o problema
das relações entre o particular e o universal. Assumida uma predisposição dos
franciscanos em compreenderem o mundo a partir da experiência direta, o problema
seria o modo pelo qual se partiria desse particular, do empírico, para se chegar a
universalismos. Freyre argumenta, e isso nos interessa particularmente, que o
método que permitiria equilibrar o particular e o universal seria a seleção intuitiva
dos valores mais representativos de uma determinada realidade. A vantagem deste
método residiria no fato de que o universalismo resultante não estaria em
desacordo com as realidades regionais e condições ecológicas. Vemos nesta
reflexão de Gilberto Freyre que a percepção estética e metodológica de um
procedimento se estende à organização social, na medida em que as disposições
psicoculturais acabam por se manifestarem em modos específicos de convívio
humano.
Insistamos nesse ponto: o estudo regional torna-se necessário nas ciências culturais mistas para purificação científica do próprio universal – universal por antecipação – tão comum na Sociologia dos finais do século XIX e dos começos do XX. (Freyre, 1945: 205)
Neste aspecto, a articulação de diversas culturas em um único complexo
civilizacional se realizaria atendendo às condições regionais que fossem comuns a
um espaço inter-regional mais amplo, no caso, os trópicos. Assim, não se trata em
Freyre apenas de uma busca por regionalismos, fundamental no que se refere à
continuidades locais, mas por elementos que permitissem a construção de uma
inter-regionalidade, ou seja, uma expansão no sentido de um universalismo. Vemos,
assim, que Gilberto Freyre está preocupado em estabelecer as bases de uma nova
comunidade transcultural onde os localismos não fossem sufocados por um
universalismo exógeno. Este universal emanaria do próprio particular, não sendo
assim uma imposição externa. Assim, inspirado por autores hispânicos e partindo de
32
Sobre este tema, ver Ricardo Benzaquen de Araújo (1994).
44
uma perspectiva comparada com base em observação direta em diversas regiões do
mundo, Freyre diz que as “curvas de harmonização” atingiram um grau máximo nas
regiões de colonização hispânica, e o mínimo em regiões de colonização anglo-
saxônica. A harmonização se refere a elementos culturais que, sem um elemento
formal articulador, se decomporiam em uma espécie de caos étnico. A
lusotropicologia estaria na base da formação de uma comunidade lusotropical,
sendo que sem esta predisposição à compreensão de valores particulares,
regionais, a incompreensão mútua levaria a rupturas em torno de diferenças de
superfície. Vemos que para Freyre, a profunda identificação que sentiu em Goa e na
Índia enquanto um todo seria fruto destas curvas de harmonização, que
possibilitaram que o re-conhecimento regional se desse através da leitura de traços
típicos presentes em toda a área tropical sob influência portuguesa.
1.2 – As viagens e o exagero do real
Gilberto Freyre apresenta, em Aventura e Rotina (2010a), uma defesa do
papel do viajante33, dando destaque à atitude de exagerar traços da realidade
observada. Interessante notar que esta predisposição em exagerar certos episódios
e omitir outros, é notada no trabalho de Gilberto Freyre por Maria Lúcia Pallares-
Burke, que diz que “às vezes, para produzir um efeito dramático, Freyre,
conscientemente ou não, desrespeita a cronologia, omite ou exagera episódios”
(Pallares-Burke, 2005:91). É curioso encontrar em Gilberto Freyre a caracterização
da excelência do viajante Fernão Mendes Pinto (1509-1583)34 justamente no fato de
que não existiria em sua “obra do século XVI, na qual se tem retificado muito
descuido de data, de nome, de sequência cronológica; muito exagero de
dramatização; mas quase nenhuma inverdade essencial” (Freyre, 1987:278). É o
que Freyre denomina de pioneirismo na revelação dos trópicos aos autores ibéricos,
denominando por esta capacidade de orientalistas tanto a Fernão Mendes Pinto
quanto a outros escritores e observadores portugueses que estavam animados pelo
mesmo espírito de “amoroso gosto de compreensão e não, apenas, fome de
33
Para uma abordagem detalhada sobre o lugar das narraticas de viagem na obra de Gilberto Freyre, ver Fernanda Arêas Peixoto (2015). 34
Fernão Mendes Pinto (1509-1583) foi autor de Peregrinação, obra que narra sua viagem ao Oriente.
45
pitoresco ou de exótico” (Freyre, 1987:279)35. Assim, estes autores são identificados
por Freyre como
grandes orientalistas e, sobretudo, tropicalistas dos séculos XV ao XVII. À sua obra, a de holandeses, ingleses, franceses acrescentou sistematização do disperso e exatidão no pormenor. Mas não excelência nem vigor nos traços decisivos de caracterização ou de revelação da natureza ou das culturas ou das populações tropicais (Freyre, 1987:279).
A caracterização de Fernão Mendes Pinto como maior escritor português de
seu tempo é sugestiva da simpatia que Freyre guardava pelos “flagrantes orientais
imortalizados pelo impressionismo realista de Fernão Mendes” (Freyre, 1987:284),
em sua capacidade de captar pormenores significativos e descrevê-los com riqueza
de detalhes, naquilo que Freyre considera ser uma antecipação do método de
Marcel Proust36. O grande mérito de Fernão Mendes Pinto teria sido, para Freyre, o
de se empenhar inteiramente à compreensão dos homens e paisagens orientais,
não privilegiando neste projeto apenas uma de suas personalidades: o jesuíta que
foi, mas também o pecador, o menino e o “homem com alguma coisa de efeminado
na atenção a pequenos nadas significativos” (Freyre, 1987:284).
A verdade é que nem Fernão nem Portugal mentiram à Europa. Por eles o europeu conheceu um mundo tão novo que lhes pareceu falso. Mas existia. O português vira-o antes que qualquer outro europeu, com olhos ao mesmo tempo de homem, de velho, de mulher, de adolescente, de poeta, de pintor, de cientista, de missionário, de comerciante, de político. Daí ter visto tanto e tão diversamente (Freyre, 1987:288).37
O que se coloca aqui, novamente, é a questão de que a compreensão do
mundo estaria, em Fernão Mendes Pinto, fundada nos sentidos. Este autor nos
interessa na medida em que Freyre via nele uma personagem típica na
caracterização dos portugueses de diversas origens que enveredaram pela aventura
35
Freyre considera Fernão Mendes Pinto maior que o próprio Camões, estando esse prejudicado por seu excessivo nacionalismo. Como veremos no Capítulo 3 desta dissertação, Orlando Ribeiro compartilhava desta perspectiva (Freyre, 1987:278). 36
Marcel Proust (1871-1922) foi um escritor francês, autor de Em busca do tempo perdido (1913-1927), obra que Gilberto Freyre cita em diversas passagens como exemplar no exercício de compreensão do passado que se projeta no presente. 37
Freyre lembra o autor de uma piada que se vulgarizou em Portugal com a finalidade de tratar de forma jocosa com a aventura supostamente mentirosa narrada por Fernão Mendes Pinto, e que se resumia ao trocadilho com o nome do autor: “Fernão mentes ? Minto!”.
46
de sentidos que se abriu pela expansão ultramarina. Esta seria uma distinção da
expansão portuguesa, para a qual contribuíram “a mulher, o velho, o menino, o
adolescente, o mestiço cristianizado e às vezes afidalgado pela condição do pai; e
não apenas o adulto branco do sexo masculino” (Freyre, 1987:293)38. A valorização
destas figuras tidas por secundárias à narrativa histórica oficial é presente ao longo
da obra de Gilberto Freyre, e apontam para sua valorização do povo enquanto
elemento de encarnação da intra-história. No caso de sua leitura da formação social
brasileira, já foi dito que “o pensamento freyriano confere anterioridade histórica às
figuras órficas face às prometeicas, isto é, ao escravo, à mulher e ao menino em
relação ao patriarca” (Bastos, 2003:112).
Elide Bastos reconhece também esse tributo de Freyre a Fernão Mendes
Pinto, dizendo que “transmitir a experiência vivida intensificando os fatos é a façanha
do autor de Peregrinação” (Bastos, 2003:174). É a esta experiência vivida que
devemos compreender o modo pelo qual Freyre percebeu sua viagem às colônias
portuguesas, se inserindo na tradição de escritores ibéricos cujos traços
característicos seriam a “intensificação da realidade, a invenção do real, a utilização
dos mitos, um realismo que articula os fatos à experiência e à imaginação” (Bastos,
2003:174). É a partir da experiência direta do autor que se projeta a reconstituição
do passado e a revelação do presente. Vemos assim, então, a partir do exemplo de
Fernão Mendes Pinto, que para Freyre a experiência do autor deve ser expandida,
através da empatia, para perceber, através de outras personalidades, realidades que
de outra forma não perceberia, alcançando assim um quadro mais completo em sua
diversidade de cores e perspectivas.
O autor, seja ele sociólogo ou artista, não descobre o que é típico por mágica,
mas sim à base de “profunda identificação, efetiva ou empática, com o social, com o
cultural, com o sócio-ecológico” (Freyre, 1987:207). As bases desta identificação
seriam assim as realidades concretas e regionais, e esta teria sido a lição que o
autor recebe dos franciscanos, sendo que o particular é a base do mais autêntico
universalismo, onde os motivos de expressão, por serem cristãs, não estão
subordinados a interesses de classe ou raça. Em Sociologia (1945), Freyre lembra
que para Wilhelm Dilthey (1833-1911) seria fundamental ao sociólogo considerar o
38
“Essa complexidade, ninguém a representa melhor, na literatura em língua portuguesa – nem mesmo Camões – que Fernão Mendes Pinto” (Freyre, 1987:293).
47
„poder de reconstrução [da realidade] pela imaginação‟; e essa reconstrução através da seleção de tipos que sejam sínteses ou símbolos de realidades difusas e até confusas; e que se tornem mais intensamente reais, depois de reduzidas as realidades dispersas a sínteses ou a símbolos (Freyre, 1945: 205).
Na busca de Pallares-Burke (2005) pelos aspectos formativos de Gilberto
Freyre, ela mostra a importância que teve em suas leituras de juventude as que
configuravam a relação entre leituras e viagens, sendo que acreditava, por exemplo,
que “‟acha-se na Europa o que se leva para lá, ou seja, reconhecemos lá fora
exatamente aquelas coisas que aprendemos a compreender em casa‟” (Pallares-
Burke, 2005:94). Aponto em Freyre uma perspectiva que busca complementar a
inevitabilidade de se configurar o mundo observado a partir de leituras pretéritas,
com a busca romântica por um olhar autêntico e livre. É através dos expressionistas
e franciscanos nominalistas que Freyre encontra o equilíbrio entre o posicionamento
individual do autor e a possibilidade de compreensão dos traços fundamentais a
todo um contexto. Ou seja, a partir de uma experiência particular, alcançar verdades
universais. A questão por ele esboçada é justamente a de encontrar aqueles traços
que seriam representativos de uma determinada realidade, através da
experiência viva do artista com complexos de que são retiradas as imagens típicas; ou num poder tal de empatia da parte do artista para com os tipos que escolhe para símbolos que é como se tivesse havido experiência viva do mesmo artista com relação à vida vivida por outro indivíduo a que sua arte conseguisse dar imortalidade artística através de síntese ou simplificação desse indivíduo em valor simbólico (Freyre, 1987: 206).
A importância da empatia torna incontornável, em Freyre, uma reflexão sobre
os modos pelos quais ele próprio se relacionou com as novas regiões que visitava.
Sobre a independência de visão e do desejo de não ser visto em sua viagem,
Pallares-Burke mostra que, já em 1926, havia uma “frase, aparentemente de
Unamuno, que ele anotou ao menos duas vezes como se fosse um provérbio a
advertir o viajante sobre a atitude a evitar, dizia: „os que viajam não para ver, nem
para ter visto, mas para ser visto [sic]‟” (Pallares-Burke, 2005:93). Isso aparece na
primeira frase de sua conferência lida em Goa, no Instituto Vasco da Gama, em
1951. Nesta ocasião, Freyre diz que seu desejo era “realizar a viagem que ora
realizo pelo Ultramar Português, a convite o eminente sr. Sarmento Rodrigues,
48
quase sem ser notado. Sem ser notado, para melhor notar [...] Desejava eu ver o
Ultramar quase sem ser visto; e ouvi-lo quase sem fazer-me ouvir” (Freyre,
2010b:127).
De qualquer modo, o que o livro “Um brasileiro em terras portuguesa” (2010b)
nos mostra é justamente como Freyre foi visto e escutado nas inúmeras
conferências e discursos que leu no Ultramar39. Mostra, acima de tudo, como a
presença de Freyre passou longe de ser desapercebida, como dizia almejar. Apesar
de Freyre mencionar que suas observações se deram com independência, e que
teve “liberdade para contatos os mais diversos – e não apenas os desejados ou
programados por elementos do então e, aliás honrado, governo de Portugal” (Freyre,
2010a:15), Cláudia Castelo (1998) mostra que durante sua viagem à Índia as
autoridades ligadas ao governo português o impediram de ter contato com
opositores em Bombaim. Curiosamente, o próprio Freyre apresenta o contraditório
desta afirmação, dizendo que, quando estava na cidade, havia tomado chá com
separatistas e comunistas goeses, que lhe fizeram perguntas indiscretas (Freyre,
2010a:351). Ainda em Bombaim, Freyre mostra que sua passagem foi observada
atentamente por importantes autoridades locais:
Lembro-me agora de que o cônsul honorário do Brasil em Bombaim – que é descendente de goeses e homem de formação portuguesa – levou-me, com a Sra. Heredia – admirável tipo de graça indiana -, à presença do atual arcebispo de Bombaim, monsenhor Valeriano Grácias, que eu, aliás, conhecera em Roma. É um gigante (Freyre, 2010a:349) 40.
Contudo, Freyre defende ao longo da descrição de sua viagem que seria esta
almejada “invisibilidade” que permitiria que ele adentrasse o espaço da intimidade. É
neste sentido que Freyre diz que, em Goa, viu jovens ávidos por leituras, e que
“mais de uma vez os tenho surpreendido a ler Eça de Queirós ou Oliveira Martins
com olhos de meninos que simplesmente lesses histórias de quadrinhos; ou,
escondidos dos adultos, novelas obscenas” (Freyre, 2010a: 319 [meus destaques]).
O que vemos em Freyre é este desejo manifesto de passar desapercebido, para
surpreender o movimento da vida cotidiana em sua autenticidade mais espontânea.
39
São um total de 4 conferências e 24 discursos, 30 discursos de agradecimento a Freyre pronunciados por anfitriões em todos as colônias que visitou, e 10 notícias de imprensa sobre sua viagem reproduzidas no final do volume. 40
Falarei no próximo capítulo sobre Valeriano Gracias, mas destaco que era uma figura controversa, ativamente engajada na luta anti-colonial em Goa.
49
Apesar de Freyre defender que as leituras eram fundamentais para sua visão de
mundo, ele buscava ao menos ter por referências autores que faziam, por sua vez, a
defesa do aspecto intuitivo das relações entre escritor e mundo.
Sobre o método empático, Pallares-Burke (2005) mostra que esta era uma
preocupação manifestada por Freyre desde seus anos de juventude, sendo que “ao
brasileiro com ambições intelectuais [...], cabia se aprofundar „no estudo daquilo que
é alongamento ou extensão da nossa própria vida‟, estudo para o qual as limitações
bibliográficas até podiam ser vistas como vantajosas” (Pallares-Burke, 2005:260).
Essa situação muito específica garantiria a este intelectual brasileiro “maior alcance
aos poderes de intuição, de observação direta e de introspecção” (Pallares-Burke,
2005:260). Era esse procedimento que permitiria ao intelectual descobrir aspectos
da realidade que ninguém mais conseguia ver, residindo aí seu espaço de atuação
por excelência. Ainda, a imaginação e o método empático recebem ampla
confirmação em sua viagem, do mesmo modo que o sentimento de déjà vu havia
feito Freyre re-conhecer paisagens nunca vistas. Assim,
muitas vezes minha impressão na Guiné tem sido a de que o verbo de velhas crônicas do Brasil colonial e imperial se faz carne diante dos meus olhos; e que cenas e flagrantes, meus velhos conhecidos de livros de viajantes e de gravuras de Debret e Rugendas, saem dos livros e das estampas e se encarnam de repente em negros de verdade, parentes dos que foram para o Brasil e são, hoje, brasileiros nos seus descententes [...] Deixa-me a Guiné de 1950 ver, e não apenas imaginar, muita coisa do Brasil de 1600, de 1700, de 1800” (Freyre, 2010a: 268-9 [meus destaques]).
É neste sentido que ao chegar à Goa, afirma em seu diário de viagem,
reproduzido em Um brasileiro em terras portuguesas (2010b): “Cuido às vezes ter
chegado não ao Oriente mas a uma daquelas províncias mais cheias de sol e mais
vibrantes de luz do Norte do Brasil que ventos mágicos tivessem deslocado da
América para a Ásia” (Freyre, 2010b:129). É neste mesmo sentido que, ao visitar em
Goa diversas casas-grandes que lhe lembram as brasileiras, diz ter se sentido “num
Brasil que já não existe. O dono dessa casa é um senhor de engenho do norte
brasileiro do século XIX desgarrado na Índia portuguesa do século XX” (Freyre,
2010a:309). Era neste sentido que Freyre “também queria evocar o passado por
meio de uma descrição vívida e deliberadamente „superficial‟ da família patriarcal”
(Pallares-Burke, 2005:265). Por descrição superficial entendemos um interesse
50
menos pelas causas históricas de tal fenômeno, e focado mais em detalhes da vida
cotidiana, sobre como as pessoas viviam ou se vestiam. O próprio gênero ensaístico
adotado por Gilberto Freyre coloca estes aspectos em relvo, em detrimento das
histórias político-militares (Pallares-Burke, 2005:64). É este o gênero que permitiria
ao autor equilibrar o intelectual e o sensível (Pallares-Burke, 2005:66), que Elide
Bastos também encontra ser, para Freyre, a tarefa do intelectual.
É no sentido deste exagero que Freyre descreve a publicação de seu livro
como um registro das diversas paisagens e populações do Ultramar que se afasta
do estilo fotográfico, considerado pelo autor como meramente impressionista,
abrindo espaço para que tomassem a forma de suas reações pessoais a estes
contextos. É no expressionismo que encontra assim o paralelo estético que mais se
aproxima de suas intenções textuais. Sua viagem ao Oriente lhe faz recordar de
uma breve estadia sua em Berlim, na década de 1920, quando viu a passagem do
“Orient Express”41, que incitou sua imaginação no sentido de viagens de encontro ao
exótico. É aos expressionistas de Munique que recorre para dar sentido a esta
busca do pitoresco e, como afirma Pallares-Burke (2005:64),
os Rubens, os Dürers, os El Grecos e as pinturas expressionistas que viu de perto nas pinacotecas e exposições que ali visitou serão para sempre lembradas por Freyre como experiências de grande significado em sua formação. Especialmente o movimento expressionista, que vira em primeira mão (Pallares-Burke, 2005:64).
É a El Greco que Freyre atribui o vigor de intensificação da realidade na
pintura, comparável assim a Fernão Mendes Pinto havia realizado na literatura
(Freyre, 2010a:345). Como afirma o autor em Um brasileiro em terras portuguesas:
Nesse quase diário de viagem o impressionismo às vezes toma aspecto de expressionismo, com alguma coisa de autobiográfico, de introspectivo, de lírico, e não apenas de parasociológico a acrescentar-se ao puro registro de impressões de paisagens, de populações e de pessoas. Um expressionismo em que as formas de paisagens e de populações são, mais do que as cores, intensificadas, em tentativas de expremir-se o autor, através de simplificações arbitrárias, no sentido de uma possível lusotropicologia (Freyre, 2010b:31).
41
“Orient Express” era o nome de um serviço de transporte ferroviário que ligava Londres, Paris e Constantinopla.
51
No prefácio à primeira edição de Aventura e Rotina (2010a), Freyre volta ao
mesmo argumento, mostrando que nesta obra as suas observações se alinham mais
ao expressionismo que ao impressionismo:
chegam algumas a ser reação crítica – e não apenas lírica – ao que observei. Outras a servir de pretexto a comentáios às vezes abstratos. Até a devaneios especulativos. A expansões autobiográficas de que peço perdão aos sociólogos que às vezes me supõem preso a eles por votos, que nunca fiz, de castidade sociológica (Freyre, 2010a:19).
A esta postura descreve como direito de expressionista, como uma técnica
que herdara de Fernão Mendes Pinto. O expressionista “pode passar do fato
concreto à abstração, do objetivo ao transobjetivo, do social ao pessoal” (Freyre,
2010a:19). Retomando o argumento apresentado nesta seção, à luz do sugestivo
excerto acima citado, vemos que para Freyre a lusotropicologia é feita através de
“simplificações arbitrárias”, confiadas apenas ao poder de empatia do próprio autor
em selecionar elementos tidos por simbólicos de um determinado contexto. Na
seção seguinte, mostrarei que os elementos encontrados por Gilberto Freyre
sustentaram uma busca por traços que guardavam familiaridade com sua memória
pessoal.
52
2. A busca pelo semelhante
O que está em jogo na viagem de Freyre é a sua incessante busca por
elementos culturais e da paisagem que atestassem a unidade do comunidade
lusotropical. A viagem de Freyre, neste aspecto, reatualiza a própria epopéia
nacional portuguesa, mostrando que, tal qual os primeiros portugueses que haviam
chegado à Índia, criaram um novo mundo nos trópicos, o contexto atual exigia uma
ação no mesmo sentido. Em face ao avanço modernizante, que estaria
fragmentando culturas anteriormente ordenadas, ou marcando suas fronteiras a
limites perigosos de etnocentrismo, rearticular as culturas estaria, segundo ele, a
serviço da confraternização entre os homens, da construção de um novo humanismo
em um mundo fragmentado. Esta construção se fundamentaria naquilo que existiria
de comum entre as diversas áreas da expansão portuguesa. É neste sentido que
Freyre pede que algum historiador brasileiro estude os papeis do Arquivo de Goa,
com a finalidade de recolher as “evidências daquelas relações íntimas do Brasil com
o Oriente, através da Índia, cuja insuspeitada importância suponho ter sido o
primeiro a considerar do ponto de vista sociológico” (Freyre, 2010a:321).
Lusotropical me parece a expressão própria a definir o que há de comum às civilizações de origem portuguesa, cuja projeção sobre áreas quase todas tropicais são animadas por um sentido tropical de paisagem, de vida, de cultura, só modificado ou alterado por variações secundárias de região ou província (Freyre, 2010b.136).
O sentido da viagem de Freyre é elucidativo assim de sua disposição
intelectual diante do que julga mais significativo e expressivo das diversas áreas que
visitou. Em Aventura e Rotina (2010a) diz que sua viagem foi feita
um tanto proustianamente como quem viesse ao Oriente em busca menos de um tempo que de uma presença de certo modo perdida; mas não tão perdida que não se encontrem seus traços nos homens e até nas coisas „imutáveis‟ (Freyre, 2010a:298).
Para Freyre, seria necessário um estudo sistemático para a captura desses
traços lusitanos no Oriente, sinais que estão dispersos mas que cuja união sob o
critério de área pode ser revelador da “penetração cultural” atingida pelos
portugueses no Oriente. Isto na medida em que os portugueses haviam exercido
53
uma influência em profundidade, “enquanto os ingleses, na Índia por eles dominada,
apenas conseguiram marcar a superfície das paisagens, dos seus ritos sociais”
(Freyre, 2010a:312). A questão é que os portugueses “conseguiram comunicar sua
própria alma nacional à da população das áreas indianas” (Freyre, 2010a:312).
A verdade é que se sente hoje, na Índia portuguesa, que o português não é aqui, de modo algum, o que outros europeus foram ou continuam a querer ser, noutras áreas orientais. Tanto quanto lhe permitiu o castismo hindu, o português confraternizou com a gente da terra, misturando-se docemente a ela (Freyre, 2010a:311)42.
Para Freyre, “a mestiçagem tem produzido nesta Índia combinações de cores
e formas humanas que se assemelham às produzidas no Brasil pelo cruzamento de
europeus com tupis-guaranis” (Freyre, 2010b:129). Freyre valoriza também o
potencial de unidade da língua, ante os “estreitos critérios nacionais que exaltem as
diferenças nacionais ou regionais de linguagem, com prejuízo da índole essencial da
língua comum ao Brasil e a todos os Portugais” (Freyre, 2010b:129). Mas não é
apenas nestes dois importantes setores que Freyre constata a influência portuguesa.
Afinal, antes de analiticamente constatada, ela foi primeiramente pressentida. É
baseado nesta empatia que estes elementos são selecionados e aparecem em
primeiro plano na narrativa freyriana, sob a imagem de um déjà vu, uma espécie de
memória involuntária. Gilberto Freyre afirma, no Prefácio de Aventura e Rotina
(2010a), que sua viagem pelo Ultramar português teve muitas vezes a impressão de
um déjà vu, de que antes de ver com seus próprios olhos as paisagens que
percorrera, já teria antecipado essas percepções como pressentimentos que vieram
se confirmar.
Em contato com o Oriente e com a África portuguesa, com algumas das principais ilhas portuguesas do Atlântico, com um Algarve que é quase África, com um alentejo ainda semimouro, com um Portugal que de Trás-os-Montes ao minho, e sem esquecer as Beiras, sonha com os trópicos, com o calor, com mouras desencantadas em mulheres de cor, senti confirmar-se uma realidade por mim há anos adivinhada ou pressentida através de algum estudo e de alguma meditação. (Freyre, 2010b: 32 [grifos meus])
42
Para Freyre, a confraternização dos portugueses explicaria a resistência que possuíam diante do anti-imperialismo (Freyre, 2010a:337). Seria dessa confraternização, também, levou os portugueses a serem criticados por outros europeus por sua falta de decoro nas relações com as populações nativas.
54
Defendo aqui que essa antecipação pode ser lida como fruto de uma política
de consenso característica das ideologias nacionais: não é preciso ter estado lá, na
medida em que a identidade é afirmada antes da própria experiência, e “mais de
uma vez minha impressão foi a do déjà vu, tal a unidade na diversidade que
caracteriza os vários Portugais espalhados pelo mundo” (Freyre, 2010a:19). Esta
unidade na diversidade de que fala Freyre é aqui considerada a partir do debate do
autor em torno do nacionalismo.
Deixasse Goa, amanhã, de ser província ultramarina de Portugal – o que talvez lhe trouxesse antes desvantagem do que vantagem [...] – e continuaria tão luso-indiana em sua cultura que sua situação dentro da União Indiana talvez viesse a ser, senão a de um corpo estranho, a de uma alma estranhíssima. A de uma alma penada (Freyre, 2010a:312).
Argumenta assim Gilberto Freyre que “esta viagem, apenas, confirmou em
mim a intuição do que agora, mais do que nunca, me parece uma clara realidade”
(Freyre, 2010b: 32), sendo que esta realidade apontava para a unidade de um
complexo disperso por regiões tropicais. Esta intuição é esboçada na conferência
“Uma cultura moderna: a lusotropical”43, que o autor proferiu no Instituto Vasco da
Gama, em novembro de 1951. Nesta conferência Freyre define o objetivo da
lusotropicologia, que segundo ele deve se dedicar ao “conjunto em que a aparência
ou realidade de dispersão é compensada pela realidade, mais profunda, de
semelhanças de cultura entre as várias populações dispersas, mas não
violentamente contraditórias ou desiguais” (Freyre, 2010b:139)44.
Essa sensação de déjà vu é explicada por Freyre através das trocas e
intercâmbio de valores entre Brasil e Oriente através de Goa, ou seja, estando o
litoral brasileiro “desde o século XVI orientalizado de tal modo no seu aspecto de
terra tropical a ponto do brasileiro descer hoje na Índia sob forte impressão de déjà
vu” (Freyre, 2010a:322)45. É através de sua experiência pessoal narrada nos dois
livros que resultaram de sua viagem, que podemos compreender o modo como
43
Esta conferência está reproduzida em Um brasileiro em terras portuguesas (2010b). 44
E um dos intelectuais cujos estudos apontavam neste sentido era o do próprio Orlando Ribeiro, que Freyre considera ter realizado uma pesquisa importantíssima sobre a introdução do milho americano em Portugal (idem). 45
A reiteração, o re-conhecimento, talvez incorpore de um modo mais acabado o que Herzfeld (1997) compreendeu como sendo a força retórica da similitude: um passado que se faz presente sem quaisquer mediações, que salta aos olhos com uma força de evidência que busca silenciar outras vinculações de sentido.
55
Freyre compreende a identidade profunda entre um conjunto culturalmente disperso
e diverso que seria a marca da expansão portuguesa nos trópicos. Acredito que a
defesa de que a viagem apenas confirmou uma intuição adivinhada por antecipação
é uma defesa ao próprio método expressionista que tenho aqui discutido. O tema da
identidade profunda que sentiu em sua viagem ao Oriente aparece já em seu
primeiro contato com a Índia, sendo tema de sua palestra proferida na “Real
Sociedade Asiática de Bombaim”, também em novembro de 195146.
É relevante notar que é justamente por ser da América tropical que Freyre diz
sentir afinidades com o Oriente. É neste sentido que proponho esta leitura das
reações que o autor teve em contato com as colônias portuguesas na África e na
Índia: o re-conhecimento (produto da sensação de déjà vu, que se afasta assim de
um suposto primeiro conhecimento), antes de afirmar a alteridade em relação a
novos contextos etnográficos, implica em um saber configurado pela busca de
semelhanças. Assim,
semelhanças despertaram em mim afinidades de espírito, de gosto, de cultura, que eu não sentiria, estou certo, com populações orientais, ou em face de paisagens do Oriente, se fosse um simples ou um puro europeu ou anglo-americano. Sinal de que são afinidades profundas e não apenas de superfície, as que prendem um homem da América tropical, latina e ameríndia, ao Egito, à Arábia, à Índia (Freyre, 2010b:153).
O subtítulo sugestivo do livro o define como uma busca pelas constantes
portuguesas de caráter e ação. Em Goa, estas constantes foram encontradas em
abundância e são tematizadas ao longo de todo o livro. Assim, Freyre afirma que
continuava “impressionado com as semelhanças da Índia Portuguesa com o Brasil.
Ou do Brasil com a Índia Portuguesa, desde que, daqui, assimilou o português muito
valor oriental, hoje dissolvido no complexo brasileiro de cultura” (Freyre, 2010a:302
[destaque meu])47. Vemos então uma relação íntima entre a sua impressão de
semelhança com o fato de que antes de conhecer Goa, Freyre já teria tido contato
com valores orientais, formativos do complexo cultural em que nascera. Antes
mesmo de chegar à Índia, diz que “é nesses contatos que o Brasil parece ter tido,
como nenhum outro país da América, com o Oriente é que principalmente venho
46
Esta palestra é reproduzida em Um brasileiro em terras portuguesas (2010b). 47
Freyre afirma que “um exotismo ou outro, é claro, dá cores orientais à paisagem e ao aspecto da população” (Freyre, 2010a: 299).
56
pensando durante a prineira hora do voo por avião da TWA, rumo da Índia” (Freyre,
2010a:296). E quando chega em Goa, afirma que haveria
todo um estudo sistemático a fazer-se no sentido de uma captura desses traços lusitanos no Oriente. Captura não por países, mas por áreas [...] Uma penetração que outras presenças europeias até hoje não alcançaram numa parte do mundo em que tais influências têm que ser consideradas principalmente como de culturas sobre culturas e não como de nações sobre nações, sabido que, para o Oriente como para a África, ainda hoje o nacionalismo é de significação ou ação secundária em relação com a significação e a ação de culturas em contato (Freyre, 2010a:298).
Quando busca encontrar a profundidade da influência lusitana no Oriente,
afirma que essas regiões estariam “há séculos lusitanizadas em intimidades e não
apenas em acessórios técnicos de sua cultura – em Goa, isto é, na Goa mais antiga,
como província portuguesa, toma um relevo espantoso” (Freyre, 2010a:299). Vemos
aqui que Freyre entende por Goa o que seria no período caracterizado como as
Velhas Conquistas, sendo que concorda com André Siegfried (1875 – 1959) que é
menos com Portugal e mais com o Brasil que ela se parece48.
Sei que não é fácil essa espécie de home-rule numa comunidade como a Índia portuguesa, dividida, ainda hoje, por sobrevivências de ódio teológico [...] a que se junta, desgraçadamente, na própria Índia portuguesa, sovrevivências do velho espírito indiano de casta (Freyre, 2010a:303).
Ainda sobre as castas diz que “venho observando com espanto, na Índia
portuguesa, que o espírito de casta sobrevive dentro do próprio cristianismo”
(Freyre, 2010a:304). É justamente esta sobrevivência que faz com que Freyre
pondere em sua defesa do home-rule, na medida em que as minorias não-hindus
poderiam permanecer abandonadas “a uma sobrevivência de casta, prejudicial ao
todo” (Freyre, 2010a:304). Assim, “seria um prejuízo para o processo de
democratização social” (Freyre, 2010a:304), que é muito mais profundo em Goa que
na Índia britânica, onde os ritos democráticos seriam apenas “ingresias de superfície
em contraste com os cortes em profundidade que vem sofrendo o castismo na Índia
portuguesa” (Freyre, 2010a:304). Freyre aconselha, deste modo, que os
48
André Siegfried foi também um dos autores citados por Orlando Ribeiro, como veremos no terceiro capítulo.
57
portugueses deixem de imitar os ritos sociais dos ingleses e belgas, na medida em
que esta imitação colocaria em perigo as formas de convívio entre subgrupos
antagônicos, porém inseridos em um complexo harmônico.
Após ponderar sobre estes riscos, Freyre conclui defendendo a maior
autonomia de Goa: “creio ter chegado para a Índia portuguesa o momento de ser
menos colonial e mais autônoma, mais indiana, mais paranacional até, no seu
governo [...] Não me parece que de uma maior participaçãodos luso-indianos no
governo da Índia portuguesa resultasse a separação da Índia, de Portugal” (Freyre,
2010a:304). Afinal, sobre a população de Goa, Freyre busca apartar o exemplo da
Índia Portuguesa com o da Índia Britânica, dizendo que em Goa, os portugueses
lidaram com uma
População que os portugueses conheceram em fase de cultura pré-nacional: adaptando-se às formas nacionais de cultura dos portugueses, os goeses não substituíram um nacionalismo asiático por outro, europeu, que lhes fosse imposto manu militari pelos invasores. Foi o primeiro nacionalismo que conheceram e a que foram admitidos, não como indianos, seus vizinhos, no nacionalismo inglês, como inferiores tolerados por superiores, mas em termos de cordial igualdade (Freyre, 2010a:313).
Ao visitar o Convento de Santa Mônica, que no período abrigava tropas
moçambicanas, Freyre sugere que “nesse particular o português deve voltar a ser
português. Admitir mouros, negros, indianos, chineses que sejam bons e provados
portugueses aos cargos de máxima responsabilidade político e militar” (Freyre,
2010a:333).
a presença desses pretos – diga-se de passagem – irrita os luso-indianos. Pois saliente-se – ainda de passagem – que os indianos em geral – não os da Índia portuguesa, em particular – são, à sua maneira, arianistas: consideram os negros com olhos de desdém e de superioridade (Freyre, 2010a:332).
Neste sentido, o que Freyre argumenta ao longo dessa obra é que a
comunidade lusotropical seria uma “comunidade de sentimento e cultura”, sendo que
apenas essa disposição que poderia fundamentar a edificação de uma comunidade
transnacional. Os europeus puros e anglo-americanos não teriam condições, como
mostra o excerto acima citado, de sentirem as afinidades que o autor destaca. Isto
porque segundo ele a Índia era “há séculos lusitanizada em intimidades e não
58
apenas em acessórios técnicos de sua cultura” (Freyre, 2010a:299). A este
colonialismo meramente técnico se resignavam agora os europeus e anglo
americanos diante das ressurgências culturais dos “povos de cor”, tema a que
retornarei no final deste capítulo. Por sua vez, os portugueses valorizaram a
interpenetração dos valores europeus e nativos, sendo que
Com toda essa interpenetração de valores não só de cultura como de paisagem – aqueles que afetam o próprio tempo “imutável” até parecer que o cajueiro sempre floresceu na Índia e a mangueira sempre foi árvore brasileira – era natural que acontecesse o que agora me acontece: a sensação de, estando na Índia portuguesa, estar um tanto no Brasil. (G.Freyre, 2010a:300)
Argumenta assim Gilberto Freyre que “esta viagem, apenas, confirmou em mim a
intuição do que agora, mais do que nunca, me parece uma clara realidade” (Freyre,
2010b: 32). Esta intuição é esboçada na conferência “Uma cultura moderna: a
lusotropical”, que o autor proferiu no Instituto Vasco da Gama, em novembro de
195149. Nesta conferência Freyre define o objetivo da lusotropicologia, que segundo
ele deve se dedicar ao “conjunto em que a aparência ou realidade de dispersão é
compensada pela realidade, mais profunda, de semelhanças de cultura entre as
várias populações dispersas, mas não violentamente contraditórias ou desiguais”
(Freyre, 2010a:139). É através de sua experiência pessoal narrada nos dois livros
que resultaram de sua viagem, que podemos compreender o modo como Freyre
compreende a identidade profunda entre um conjunto culturalmente disperso e
diverso que seria a marca da expansão portuguesa nos trópicos.
Tanto a questão da tradição, do “tempo imutável” quanto a do encontro de
afinidades profundas ao longo de sua jornada, vemos que Freyre promove uma
intercambialidade entre a imagem das constantes portuguesas de caráter e ação
com a realidade que então experimentava. Isto aproxima nossa abordagem daquela
trabalhada por Michael Herzfeld, que define o essencialismo nacional enquanto
retórica, visto que “não é meramente a atribuição de características inatas, inclusive
uma mentalidade nacional específica, mas a fusão de imagens com a realidade
experimentada” (Herzfeld, 1997:158). É a partir da criação de uma afinidade retórica
que, segundo Herzfeld, “consigo sempre distinguir os meus companheiros pela
maneira como andam, falam, mexem, etc” (Herzfeld, 1997:158). Assim, não apenas 49
Ref. Nota 48.
59
vemos essa relação de proximidade entre o metafórico e o literal, como Michael
Herzfeld argumenta, mas segundo ele, quanto mais a base metafórica da nação se
perde de vista e ganha protagonismo o apelo ao literal, mais ele se “essencializa
como realidade presente e imutável na vida das pessoas” (Herzfeld, 1997:165).
Acredito ser suficiente para afirmar que a viagem de Freyre se apresenta
como espécie de aventura doméstica, em que o brasileiro que chega a Goa se sente
um tanto em casa. Neste alargamento da domesticidade, Michael Herzfeld identifica
a projeção de metáforas de parentesco para a escala maior da nação, que não se
opõe portanto à esfera da intimidade, mas seria um “alargamento metonímico, para
ampliar a útil representação de Anderson, da imaginação agnática” (Herzfeld,
1997:176). É neste sentido que a intimidade cultural se dá para além das relações
face a face, permitindo um alargamento da identidade. Freyre diz que “uma das mais
agradáveis impressões que venho experimentando na Índia Portuguesa é a de
sentir-me tão próximo dessa gente como se, vindo de Bombaim, tivesse
desembarcado, não em Goa, mas no Maranhão” (Freyre, 2010a: 324). Freyre
continua, dizendo que sua sensação é de que
o ar que respiro é o mesmo. As cores que me fazem festa aos olhos, as mesmas cores brasileiras. O mesmo, o olhar das pessoas. O mesmo, o seu sorriso que não tem a exuberância do africano nem as reservas do europeu. Também a mesma fala (Freyre, 2010b:129)50.
Acredito então que só podemos compreender a antecipação das percepções
encontradas em Goa e nas demais colônias portuguesas se tivermos em conta que
os traços que sustentaram este déjà vu seriam aqueles que Freyre julgava serem os
mais expressivos de sua identidade. Sendo um alongamento do autor no mundo que
o rodeia, a perspectiva expressionista guarda profunda relação com a história de
vida do próprio autor. As referências à sua infância, ou às paisagens em que se
habituara ainda nos seus primeiros anos de vida são recorrentes ao longo da obra,
sendo que a viagem se configura como uma busca identitária pessoal, encarnação
da busca de Portugal por suas origens. Segundo Herzfeld, podemos ler este evento
como “uma tentativa de projectar a experiência social familiar em contextos
desconhecidos e de amiúde potencialmente ameaçadores” (Herzfeld, 1997:22).
50
Quanto visita a Escola Médica de Goa, Freyre diz que surpreendeu “fisionomias, olhos, sorrisos iguais aos dos estudantes brasileiros” (Freyre, 2010a:314).
60
Capítulo 2
Goa sempre foi parte da Índia: Telo de Mascarenhas e o nacionalismo indiano em Goa
61
Introdução
Este capítulo está dividido em duas partes, referentes a dois momentos
relevantes na trajetória de Telo de Mascarenhas (1889 – 1979). Na primeira parte,
apresentarei o período em que o autor viveu em Portugal, onde estudou em Lisboa e
Coimbra. Será importante aí considerar que Telo de Mascarenhas conviveu na
metrópole com outros estudantes goeses, com os quais organizou a publicação do
jornal Índia Nova e fundou o Centro Nacionalista Hindu. Ainda, quando estudou em
Coimbra Telo de Mascarenhas foi aluno de António de Oliveira Salazar, que era na
época professor da Universidade. A aproximação de Telo de Mascarenhas com
Salazar se sustenta a partir de algumas obras que o autor publicou com a finalidade
de felicitar seu antigo professor. Se o debate sobre o nacionalismo pode apresentar
rígidas fronteiras entre colonizadores e colonizados, o exemplo de Telo de
Mascarenhas sugere que a opção pelo nacionalismo não se deu de forma imediata.
Ainda, a temática do ressurgimento nacional como forma de enfrentar a decadência
e a barbárie é temática central dos trabalhos do autor.
Na segunda parte do capítulo, trabalharei com o retorno e permanência de
Telo de Mascarenhas na Índia, onde, após uma rápida passagem por Goa em 1948,
o autor passa a residir em exílio na cidade de Bombaim, entrando em contato com a
expressiva comunidade goesa da cidade. Boa parte do material aqui trabalhado foi
coletado no periódico Ressurge, Gôa!51 , que Telo de Mascarenhas publica no início
da década de 1950, com a contribuição de diversos autores. Com a leitura deste
periódico, pretendo situar Telo de Mascarenhas nos grandes debates que marcavam
o período, tendo por referência, principalmente, a temática que apresenta desde o
título do periódico. O ressurgimento tomava então por referência uma Goa
tradicionalmente indiana, que deveria então se reencontrar com suas raízes e
abdicar de toda cultura que servisse para fins coloniais. Isto não significava,
contudo, abandonar o catolicismo e sequer valores cuja referência fossem os
valores culturais de Portugal, na medida em que, desde que não fossem
instrumentalizados pelo colonialismo, seriam abarcados pelo espírito universalista da
tradição hindu.
51
Este periódico será referido como Ressurge ao longo desta dissertação.
62
Telo de Mascarenhas nasceu na vila de Velsao, no distrito de Mormugão,
cidade portuária de Goa, em 23 de março de 1889. Era filho único de João Menino
Arnaldo Mascarenhas, proprietário de terras, e Maria Leocadia Calorina Barreto. O
pai faleceu quando tinha apenas dois anos de idade, em 1891, sendo que seus dois
tios paternos exerceram grande influência sobre si. Em suas Memórias (1976), bem
como na biografia escrita por Shashikar Kelekar (1984:8), as figuras de Basílio
Mascarenhas e Bernard Mascarenhas ganham relevo52. Iniciarei este capítulo
apontando as palavras de admiração que Telo de Mascarenhas nutria por seu tio
Basílio Mascarenhas. Quanto a Bernard, é importante ressaltar que foi ele quem
guiou os estudos do sobrinho, desde sua matrícula no Liceu de Pangim, onde
Kelekar descreve que o ambiente era o das promessas de liberdade da República
em Portugal, onde “aos goeses era permitido um grau de liberdade que não haviam
sentido antes de 1910 e que não sentiriam depois da ditadura militar de 1926”
(Kelekar, 1984:9).
Neste ambiente, Telo de Mascarenhas organiza com seus colegas do Liceu
uma revista literária chamada Revista Academica, e contribui com publicações nos
jornais O Heraldo e A Província, dois dos principais jornais em circulação em Goa
neste período53. Assim, vemos que o envolvimento de Telo de Mascarenhas com o
mundo literário foi bastante precoce e, após terminar seu curso no Liceu de Pangim,
os tios organizaram sua ida a Lisboa para continuar os estudos no ensino superior.
Na viagem que o levou a Portugal, Telo de Mascarenhas teve de permanecer por
seis meses em Moçambique há espera de um navio que o levasse a Lisboa
(Kelekar, 1984:12). Durante este período, esteve com seu tio Basílio, de quem levou
para Lisboa memórias e discursos que foram posteriormente publicados. A
juventude de Telo de Mascarenhas em Portugal foi marcada por seu contato com
outros estudantes goeses, donde se destaca a publicação do jornal Índia Nova e a
fundação do Centro Nacionalista Hindu. O jornal e o Centro tinham, ambos, o
propósito de divulgar os valores da civilização indiana para o público português.
52
Basílio Mascarenhas era padre em Lourenço Marques, como mostrarei adiante em detalhes. Bernard Mascarenhas era músico e vivia em Burma. Apesar da distância, teve um papel fundamental no incentivo para que Telo de Mascarenhas continuasse seus estudos em Portugal (Mascarenhas, 1976; Kelekar, 1984:10). 53
Não tomei conhecimento da preservação de qualquer das publicações da adolescência de Telo de Mascarenhas.
63
1. Descobrindo a Índia em Portugal
Em Maio de 1937, Telo de Mascarenhas prefacia um livro cujo conteúdo era
um discurso proferido por seu tio paterno, o padre Basilio de Mascarenhas, antigo
Missionário e Secretário da Prelazia e Prior da Sé de Moçambique54. O autor do
discurso era nascido em Goa, onde foi ordenado no Seminário de Rachol e
nomeado Chantre da Sé de Velha Goa, de onde partiu para Moçambique55. O livro,
com o título de Rosa Mística (1937), foi publicado pelas Edições Oriente, em Lisboa.
Telo de Mascarenhas diz, no prefácio, que trouxe o manuscrito para Portugal
“quando a longos quinze anos deixei a Índia, meu país natal” (Mascarenhas,
1937:6). No prefácio que escreve, anuncia que o discurso do tio havia sido proferido
havia vinte anos, na Igreja Matriz de Goa, e que
tem máxima e palpitante actualidade no momento presente em que uma vaga de desalento e barbárie perpassa pela Europa, e Portugal, sob a égide do Estado Novo e do seu excelso arquitecto – Salazar, ressurge como Estado Cristão e Tradicionalista, ocupando no concerto internacional o merecido lugar de respeito e prestígio que lhe compete (Mascarenhas, 1937:3 [meus destaques])
O tema da decadência e do ressurgimento nacional é central à leitura que
aqui proponho, e aparece ao longo de toda a obra de Telo de Mascarenhas56. No
ano seguinte à publicação de Rosa Mística (1937), Telo de Mascarenhas publica um
livro dedicado inteiramente a felicitar o Estado Novo e Oliveira Salazar, novamente
enfatizando que o “excelso arquiteto” do Estado Novo reunia as qualidades
necessárias ao contexto de decadência pelo qual a Europa e Portugal passavam. No
livro Sob o Signo da Revolução Nacional (1938), Telo de Mascarenhas enaltece
assim seu antigo Professor na Universidade de Coimbra57 nos anos de 1927 e 1928,
54
Ainda sobre a passagem do tio por Moçambique, Telo de Mascarenhas diz que “por lá andou durante três longas décadas, evangelizando e espalhando a semente da doutrina de Cristo feita de paz e concórdia, de amor e de perdão” (Mascarenhas, 1937). 55
Chantre é um título eclesiástico que designa o mestre do coro ou cantor dos salmos. Telo de Mascarenhas menciona a visita que fez ao tio quando, em sua ida a Lisboa em outubro de 1921, seu navio fez escala em Moçambique por alguns meses (Mascarenhas,1976:52). 56
Apesar de não mencionar explicitamente, acredito que a temática da decadência e da barbárie europeias faz referência, em Telo de Mascarenhas, ao período posterior à I Guerra Mundial e, mais especificamente ao caso português, à crise republicana. 57
A dedicatória deste livro é ao Dr. Manuel Rodrigues Júnior (1889 – 1946), “grande mestre, grande estadista e estrenuo paladino do Estado Novo”, que ocupou vários ministérios durante o
64
portanto após a “Revolução” de 1926. O livro traz em seu frontispício uma imagem
do perfil de Salazar, ao lado da cruz flordelisada verde da Ordem de Avis, emblema
da “Legião Portuguesa” (LP)58, organização miliciana que assumia o objetivo
defender a Nação da ameaça comunista e anarquista59. A epígrafe ao livro é o lema
“aqui não reside o temôr”, que o próprio autor reconhece em suas Memórias (1976)
ser o lema da LP. Telo de Mascarenhas menciona que, durante seus anos de
estudante, havia em Coimbra um quartel distrital da LP, que segundo sua descrição
seria um grupo paramilitar formado por Salazar. A referência parece ser um tanto
anacrônica, visto a LP ter sido criada oficialmente apenas em 1936, sendo contudo
necessário investigar se já existia antes deste reconhecimento60.
Os temas centrais à defesa nacional engendrados pela LP aparecem em
grande medida na obra Sob o Signo da Revolução Nacional (1938), onde Telo de
Mascarenhas se dirige aos Legionários61 para dizer que dentre as causas da
decadência em voga estaria a “onda vermelha de barbárie e anarquia que ameaça
avassalar a Europa e o Mundo” (Mascarenhas, 1938: 66), sendo que no Estado
Novo existiria a “cooperação entre os três factores da riqueza: - a Propriedade, o
Capital e o Trabalho” (Mascarenhas, 1938:69). As palavras e promessas vazias
aparecem como o contraditório mais marcante aos discursos claros de Salazar e sua
orientação prática ao progresso, colocando-se assim contrário ao “canto de sereia
da Terceira Internacional, cantos enganosos que embalam mas que matam, cantos
que prometem o paraíso bolchevista afogado em sangue” (Mascarenhas, 1938: 54).
O discurso de Salazar era assim enaltecido por Telo de Mascarenhas, que
afirma que, a despeito dos cansativos capítulos do Orçamento e do balanço do
Banco de Portugal, as preleções do Professor eram para ele “puro deleite espiritual”.
Telo de Mascarenhas, que futuramente publicaria em seu periódico nacionalista
críticas aos pronunciamentos de Salazar, dizia então que os discursos do professor,
que eram “concisos, lapidares e breves retinem como taças de oiro damasquinado e
Estado Novo. O termo “Revolução Nacional” é comumente usado por apoiadores do Estado Novo, se referindo à data de 28 de Maio de 1926, quando teve fim a Primeira República em Portugal. 58
A partir daqui, farei referência à “Legião Portuguesa” através da sigla LP. 59
A LP foi fundada em 1936, tendo existido até o fim do Estado Novo em 1974. E tinha como grito de guerra o mote de enaltecimento a Salazar: “Legionários, quem vive? / Portugal! Portugal! Portugal! / Legionários, quem manda?/ Salazar! Salazar! Salazar!”. Este grito de guerra é reproduzido por Telo de Mascarenhas (1938:72). 60
O reconhecimento oficial foi instituído através do “Diário do Governo” de 30 de Setembro de 1936: https://dre.pt/application/dir/pdfgratis/1936/09/23000.pdf [acessado em 18 de novembro de 2016] 61
Os membros da (LP) eram conhecidos como “Legionários”.
65
são belos como poemas onde florissem rosas” (Mascarenhas, 1937: 18). No livro, o
autor enaltece a última lição do Professor em 1928, em uma excursão à cidade de
Évora que é registrada em foto no início do livro, antes de Salazar para Lisboa
assumir a pasta das Finanças.
Apesar de todos esses indícios de sua admiração por Salazar, nenhum
envolvimento com o Estado Novo ou com a LP aparece descrito no livro que Telo de
Mascarenhas publicou com suas Memórias (1976), sendo que ao período de
estudos em Coimbra ele apenas menciona seu envolvimento político com outros
estudantes goeses, como veremos adiante. Contudo, a obra posterior de Telo de
Mascarenhas, mormente aquela publicada na década de 1930, revela aspectos de
sua orientação política no período, e sugerem que a relação entre seu interesse pela
Índia não deve ser tida como incompatível com sua postura favorável ao Estado
Novo. Segundo uma palestra proferida nos paços do concelho da Vila do Bispo em
27 de maio de 1934, o Estado Novo representava para ele “a fé no ressurgimento
nacional” (Mascarenhas, 1937:26). No dia anterior à comemoração do aniversário da
“Revolução” de 28 de Maio de 1926, Telo de Mascarenhas não deixa de mencionar
que
foi em 28 de Maio que a espada refulgente da glória, que lampejou vitoriosa nos campos da Flandres e da África, do Marechal Gomes da Costa, realizou a obra da reconquista. Devido a intervenção enérgica do exército foi salvo o Paiz que ia rolando para o abismo. (Mascarenhas, 1937: 33 [meus destaques])
A menção em defesa a Salazar e aos heróis da nação portuguesa se faz,
assim, no contexto mais amplo da decadência de Portugal, que “ia rolando para o
abismo” (idem), seguindo, assim, a tendência mais geral que indicava que “uma
vaga de desalento e barbárie perpassa pela Europa” (ibidem, p.3). Neste livro, Telo
de Mascarenhas reproduz um discurso que proferiu em 27 de Maio de 1934, sobre o
significado do Estado Novo, se identificando como “convicto e leal servidor do
Estado Novo” (Mascarenhas, 1937:26)62. Temos, todavia, poucos elementos para
compreender se no período de estudos em Coimbra Telo Mascarenhas de fato
apoiou o processo em curso com a institucionalização do Estado Novo, ou se a
62
O discurso foi proferido em Vila do Bispo, Algarve, quando Telo de Mascarenhas cumpria ali funções de advogado.
66
admiração pelo Professor foi relembrada no período posterior como forma de
estabelecer um vínculo pessoal àquele que era a figura central ao novo regime.
Antes de abordarmos o envolvimento de Telo de Mascarenhas na imprensa
acadêmica em Coimbra, é preciso destacar que suas publicações aqui
mencionadas, sobretudo Sob o Signo da Revolução Nacional (1938), foi publicada
no mesmo período que outras obras, destinadas a compreender aquele que seria,
segundo afirma em Rosa Mística (1937), o seu país natal. Afinal, desde que chegou
a Portugal em 1921, Telo de Mascarenhas associou-se a outros estudantes goeses
na Metrópole, que se dedicavam a ler com entusiasmo tudo o que encontravam
sobre a Índia, algo que alegou que não podiam fazer em Goa, tanto pela falta de
documentos quanto pela proibição que lhes era imposta por razões políticas
(Mascarenhas, 1976).
Antes da publicação das duas obras acima citadas, nosso autor publicou, em
1935, Cantares D‟Amor, conjunto de poemas que tomam as belezas da tradição e
da paisagem indianas como tema. É aí tematizada “a Índia milenária, L‟Inde sans les
anglais, como viu Pierre Loti” (Mascarenhas,1935: s/p). No mesmo sentido, Telo de
Mascarenhas publica Kailâsha: contos e lendas do Hindustão (1937), no mesmo ano
de Rosa Mística, acima mencionado. Em Kailâsha, o autor apresenta um conjunto
de poemas e contos, repletos de imagens que remontavam ao ambiente, geografia e
cultura indianas. Neste livro encontramos temáticas que se tornaram clássicas nos
estudos sobre o orientalismo, como as bailadeiras, a Índia como associada ao
feminino e a pureza da religiosidade indiana63. Em 1943, publica A mulher Hindu, em
que exorta a feminilidade e os valores atribuídos à mulher no hinduísmo, em um
conjunto de ensaios que são publicados “no intuito de difundir o património espiritual
da Índia” (Mascarenhas, 1943: 12).
Assim, por mais que nos faltem elementos para compreender detalhes sobre
o envolvimento político de Telo de Mascarenhas durante o período de quase três
décadas que permaneceu em Portugal, temos como uma constante de sua presença
o interesse em intervir na imprensa local no sentido de divulgar o que considerava
serem “as maravilhas da arte e da literatura do meu distante Pais” (Mascarenhas,
1943: 12). E nosso autor publica ainda uma tradução da obra A casa e o Mundo
63
As bailadeiras compunham uma casta de dançarinas rituais dos templos hindus, que, como mostra Rosa Maria Perez (2010), foram comumente associadas no imaginário português como sendo prostitutas.
67
(1941) de Rabindranath Tagore e da História da Minha Vida, de Mahatma Gandhi
(1942). Ambos os autores são tidos em grande estima por Telo de Mascarenhas,
afinal, “se Mahatma Gandhi, o Apóstolo máximo, é a fôrça redentora e espiritual da
Índia, Tagore, o Poeta Santo, foi a encarnação védica e mística da Raça”
(Mascarenhas, 1943: 14). É justamente nas referências que estabelece
principalmente a estes dois indianos que eram amplamente conhecidos na Europa,
que podemos compreender o que Telo de Mascarenhas considerava ser a tarefa
política que, neste período de barbárie, deveria ser a lição indiana.
As palavras que dirige a Gandhi e Tagore apontam para o sentido do papel a
desempenhar pela Índia ao futuro da humanidade. No prefácio à sua tradução de
Tagore, Telo de Mascarenhas diz que “o Poeta realizou uma obra não destituída de
fins políticos – a aproximação do Oriente e do Ocidente” (Mascarenhas, 1943:12),
sendo este o verdadeiro universalismo que através da Universidade de
Santiniketan64 atestaria o “laço espiritual que liga os dois Mundos – a Europa e a
Ásia – separadas pelos preconceitos de raças e de côr” (Mascarenhas, 1943:12).
Importante ressaltar que no ano de 1921, quando Telo de Mascarenhas chegava a
Lisboa, o goês António Aleixo Santana Rodrigues, com quem veio a estabelecer
contatos através do Índia Nova, concedeu algumas entrevistas à imprensa lisboeta,
discursando sobre a importância do nacionalismo indiano e contrapondo-se aos
mitos orientalistas, destacando “o papel dos intelectuais indianos na gestação de um
novo humanismo que se desenhava a Oriente e Ocidente” (Lobo, 2010: 272).
Ao que tudo indica, logo que chegou a Portugal, Telo de Mascarenhas se
envolveu com outros intelectuais goeses na divulgação deste projeto. Em suas
Memórias (1976), descreve como a leitura de indologistas como William Jones, Max
Müller, Gustave Le Bon, Silvain Levy e outros, fez crescer nele o sentimento
nacionalista65. O reecontro da indianidade se fez assim primeiramente através da
literatura e outras representações artísticas, sendo por essa via que Telo de
64
A Universidade de Santiniketan havia sido fundada pelo poeta Rabindranath Tagore, em 1921, ou seja, depois do autor receber o Prêmio Nobel (1913). A Universidade se tornou um centro a partir do qual Tagore defendeu suas concepções pedagógicas. 65
William Jones (1746-1794) foi um orientalista, filólogo e jurista britânico, famoso por seu estudo sobre as origens comuns entre as línguas indo-europeias; Friedrich Max Müller (1823-1900) foi um linguista alemão, dedicado aos estudos referentes à Índia; Gustave Le Bom (1841-1931) foi um sociólogo francês que dedicou parte de sua carreira ao estudo das civilizações indianas; Silvain Levy (1863-1935) foi um indólogo francês dedicado ao estudo do hinduísmo. Por estas referências vemos a amplitude dos estudos orientalistas na Europa que chegaram ao conhecimento de Telo de Mascarenhas e seus colegas goeses em Portugal.
68
Mascarenhas passou a conhecer a Índia, descrita como seu país mesmo em seus
trabalhos de exaltação salazarista66. É possível que esta tentativa de valorizar a
dupla herança civilizacional dos goeses permitiu a Telo de Mascarenhas defender
ambos os nacionalismos que, do ponto de vista formal, acreditavam na ressurgência
de valores de um humanismo que faria frente à conjuntura decadente do período67.
O tema da religião é fundamental para a leitura que empreendemos da obra
de Telo de Mascarenhas, apontando inclusive para o que compreendia, nos anos
em que vivia em Portugal, serem as virtudes tanto do nacionalismo indiano quanto
do português. A orientação cristã do Estado Novo seria, segundo o autor, os
alicerces do regime, permitindo a este fazer “ressurgir a Nação dos caos e do
desbarato” (Mascarenhas, 1937:59)68. O tema da irreligiosidade aparece aqui,
sugestivamente, aliada a um argumento em torno do imperialismo europeu, dizendo
que
A irreligiosidade é a causa de todas as ambições, de todos os imperialismos egoistas e odiosos que, nos nossos dias, na Europa, na Ásia e na África, esmagam povos indefesos e retalham nações (Mascarenhas, 1937: 60).
Telo de Mascarenhas dá indícios de que, em sua perspectiva, o colonialismo
português não padecia dos males desta irreligiosidade, sendo suas ambições
descritas assim como legítimas. Neste sentido, em um discurso aos legionários da
LP, diz que “o nosso nacionalismo não é exclusivista, exacerbado e delirante, mas
calmo, ponderado e justo” (Mascarenhas, 1937:68). Sobre a importância da
manutenção das colônias, diz que “não pretendemos retalhar novos impérios mas
conservar à custa da própria vida se necessário fôr, o que hoje constitui patrimônio
sagrado, espiritual, moral e material da Nação” (Mascarenhas, 1937:68). A
aproximação de Telo de Mascarenhas com intelectuais indianos anti-imperialistas
como Gandhi e Tagore pode sugerir uma aproximação entre o que entendia ser a
defesa nacional, tanto em Portugal como na Índia, ou seja, a retomada de valores
66
A expressão “Reencontro da indianidade” é apresentada por Sandra Lobo (2010). 67
Esta hipótese não pretende se universalizar para os demais goeses que, neste período, se dedicavam a publicar na imprensa metropolitana. Muitos, ao contrário de Telo de Mascarenhas neste período (1927-1928), nutriam mais simpatias com a República do que com o Estado Novo (Lobo, 2010). 68
Telo de Mascarenhas faz este discurso na ocasião da inauguração dos crucifixos em escolas de ensino primário na Vila de Ourique, em 1934. Encontra-se reproduzido no mesmo livro (Mascarenhas, 1937).
69
tradicionais como forma de enfrentar a decadência seria uma postura louvável tanto
em Salazar quanto em Gandhi. Sobre Tagore, Telo de Mascarenhas diz que
se algumas nações da Europa tivessem escutado a sua mensagem de Paz, o mundo não conheceria o cataclismo, o Kali-Yoga, a idade da destruição em que se debate no momento actual (Mascarenhas, 1943: 13)69.
Assim, diante do quadro de destruição que perpassava pela Europa, havia
uma saída civilizacional contida na mensagem humanista e, portanto, universalista,
de Tagore. Justamente por ser assentada em um ideal universal é que poderia
superar a barreira de preconceitos entre Oriente e Ocidente e o lugar de Tagore
também é sugestivo por uma prece sua, reproduzida por Telo de Mascarenhas:
“Nesse Paraíso de Liberdade, Meu Pai,/ Permite que a minha Pátria desperte!”
(Mascarenhas, 1943: 13). A menção ao despertar da pátria aponta para
congruências entre as descrições de Telo de Mascarenhas sobre o nacionalismo
português e o nacionalismo indiano: ambos apontam para uma saída pautada na
tradição, no despertar de valores passados, na relação de equilíbrio entre o
tradicional e o moderno.
De modo análogo, Telo de Mascarenhas mostra como para Gandhi
patriotismo e humanismo se confundem, sendo que sua revolta não seria contra os
ingleses ou o Ocidente, mas sim contra o sistema imperial estabelecido pelos
ingleses na Índia. Por isso mesmo Telo de Mascarenhas lembra que “Mahatma
Gandhi considerou-se, ao princípio, um súbdito leal da Grã-Bretanha e serviu-a com
lealdade durante vinte e nove anos” (Mascarenhas, 1942: 10), se rebelando apenas
“quando se convenceu de que não podia aceitar como bons os métodos da
administração que a Inglaterra empregava na Índia” (Mascarenhas, 1942: 10). A
religiosidade de Gandhi servia assim de motor humano para sua rebeldia diante de
um imperialismo que se enquadrava, segundo descrição de Telo de Mascarenhas,
com os “imperialismos egoistas e odiosos” mencionados acima. Diante destes
imperialismos, Tagore e Gandhi traziam uma mensagem de sacrifício e redenção,
permeada de um misticismo que restaurava a dimensão humana da tradição.
Quando retorna à Índia e publica o Ressurge, Gôa!, Telo de Mascarenhas parece ter
69
Kali-Yoga, ou a Idade do Demônio Kali, faz referência, segundo textos sagrados do hinduísmo como o Mahabarata, à última etapa pela qual o mundo passa, sendo marcada pelo vício e degradação humana.
70
se convencido que os métodos imperiais utilizados pelos portugueses não se
distanciavam muito daqueles que legitimaram o nacionalismo de Gandhi.
Um exemplo sugestivo deste interesse de Telo de Mascarenhas pelas
tradições indianas reside em seu encontro com Júlio Dantas, diretor e professor da
Escola de Teatro de Lisboa, bem como um personagem central à vida cultural
lisboeta de então. Foi Júlio Dantas que apresentou a Telo de Mascarenhas o
conteúdo da Clay Cart de Shudraka70, “que ele [Júlio Dantas] havia conhecido
através da tradução do renomado sanscritólogo Silvain Levy” (Mascarenhas, 1976:
58), sendo este um dos primeiros contatos de Telo de Mascarenhas com a literatura
indiana71. A figura de Dantas é central à própria configuração do campo literário
português do início do século XX. Como argumenta Luís Trindade (2008), o grupo
de amigos a que pertencia Júlio Dantas “eram ainda de uma geração de transição
quando o espaço político e o espaço literário estavam apenas no início do processo
que os autonomizaria” (Trindade, 2008: 103). As relações entre literatura e política
aparecem em Telo de Mascarenhas de modo muito sugestivo, principalmente em
suas Memórias, balizadas a todo momento por referências literárias que, para ele,
parecem ter possibilitado o acesso à realidade indiana, que não havia conhecido
mesmo durante sua infância em Goa.
O encontro das influências indianas em Portugal parece ter surpreendido o
autor, o que nos sugere que, se Portugal teve que se instaurar enquanto patrimônio
(Trindade, 2008), parte deste conjunto de valores remetiam à experiência
ultramarina, e poderiam ser observados na própria metrópole. Assim, Telo de
Mascarenhas conta que, com seus amigos goeses, visitou o Palácio de Monsarrate,
e lembra que ele havia sido construído por João de Castro, vice-rei da Índia
Portuguesa:
A entrada do parque era adornada com um arco de ferro em estilo oriental trazido da Índia. No palácio havia diversas antiguidades Indianas raras, e em um nicho sobre a lareira, nós contemplamos com esplendor e admiração uma gigante estátua de Ganesh em mármore branco (Mascarenhas, 1976: 64).
70
A referência aqui é a Litlle Clay Cart assinada pelo dramaturgo Shudraka, que se tornou referência para o conhecimento da dramaturgia indiana. A escrita da obra é estimada em 200 a.C.. 71
Telo de Mascarenhas (1976) lembra que, quando era estudante em Coimbra, em 1928, assistiu também a um recital em que foram lidos por Berta Singerman alguns versos de The Crescent Moon (1913) de Rabindranath Tagore.
71
É em frente à esta estátua de Ganesh que Telo de Mascarenhas e seus dois
amigos posaram para uma foto que, no entanto, se perdeu, lamenta o autor em suas
Memórias (1976), dizendo que ela seria de grande interesse para uma história do
nacionalismo em Goa. A defesa do patrimônio nacional não deve ser secundarizada
na análise que aqui apresento, visto ser de grande importância ao nacionalismo
português do período. A ideia de um patrimônio, externo, material e observável, era
uma alternativa de sentido aos que criticavam os excessos da retórica parlamentar,
na medida em que buscavam impor uma naturalidade e uma objetividade à própria
nação (Trindade, 2008). Assim, é de grande relevância na trajetória de Telo de
Mascarenhas que ele tenha encontrado em Portugal tantas referências à civilização
indiana, tanto do ponto de vista literário quanto da cultura material.
É neste sentido que Telo de Mascarenhas, quando parte para Coimbra após o
28 de maio de 1926 72, se decepciona com a cidade, visto que “Coimbra
decididamente não era o que costumava ser nos tempos de Eça e Vicente Arnoso”
(Mascarenhas, 1976:70)73. Esta decepção é sugestiva da abordagem aqui proposta,
visto que as expectativas do autor se construíam em torno da representação literária
do real. A realidade indiana também era assim acessível através da literatura, e
seria através da intervenção no campo literário que se promoveria a cultura indiana
na Metrópole. É neste contexto que propôs a amigos a fundação de um períodico, o
Índia Nova – Jornal de Expansão da Cultura Indiana, que acabou por ser lançado
em 7 de Maio de 1928, em Coimbra, dirigido por Adeodato Barreto, José Teles e
Telo de Mascarenhas74. Relembro que Telo de Mascarenhas iniciou seus estudos
em Coimbra em 1927, após um período vinculado ao curso de Direito da
Universidade de Lisboa75. Em suas Memórias (1976), Telo de Mascarenhas lembra
que, ao contrário do que aconteceu quando se juntou ao Governo, neste período em
que Salazar era professor, ele não temia o nacionalismo goês nem o comunismo,
72
Em 28 de maio de 1926, um levante militar colocou fim ao curto e agitado período republicano em Portugal. Em outras obras, Telo de Mascarenhas faz referência à este acontecimento como sendo a Revolução Nacional, como era costume entre os defensores do Estado Novo. 73
Eça de Queirós (1845-1900) e Vicente Arnoso (1880-1925) são duas importantes referências literárias de Telo de Mascarenhas. O autor faz referência a Eça de Queirós mesmo após seu retorno a Goa na década de 1970, comparando as vilas de Goa às serras descritas por Eça. 74
Outros estudantes goeses tiveram envolvimento com este projeto, dentre os quais Telo de Mascarenhas cita os nomes de Atanasio Rodrigues, Marcos Colaço e Zacarias Antão (Mascarenhas,1976:70). Um breve histórico da trajetória de diversos desses autores pode ser encontrado em Sandra Lobo (2009). 75
Em seu livro de memórias, Telo de Mascarenhas menciona que deixou Lisboa após uma greve universitária que fez os estudantes perderem um ano de estudos, na sequência de fortes protestos que se seguiram à “Revolução” de 1926 (Mascarenhas,1976: 68).
72
inclusive recomendando leituras de autores reconhecidamente revolucionários,
embora Telo de Mascarenhas não mencione que autores seriam esses.
Findo o ano letivo de 1928, Telo de Mascarenhas retorna para Lisboa,
levando para lá o Índia Nova, junto com seu amigo José Teles76. O periódico, como
mostra Sandra Lobo (2009), foi levado a cabo por estudantes da elite católica goesa
que pertenciam a uma geração marcada pelo ambiente político e cultural da
República. Possivelmente um dos mais importantes elementos deste ambiente era a
noção de que os naturais das colônias teriam espaço mais amplo de atuação no
centro de decisões metropolitano. Eram os mesmos estudantes que haviam formado
o Instituto Indiano na Universidade de Coimbra. A posição de Telo de Mascarenhas
em relação ao ambiente da República parece, contudo, não ser aquela expressa por
seus demais companheiros. Como destaquei acima, o tradicionalismo cristão
defendido por Telo de Mascarenhas se aproximava da perspectiva reacionária citada
por Luís de Menezes Bragança no número inaugural do periódico.
É preciso lembrar que, assumindo o lugar de defesa do Estado Novo, os
termos deste louvor seriam balizados por uma crítica aos males do republicanismo.
E ainda mais, se as causas da barbárie e da decadência descritas podem remeter à
experiência republicana, vemos então que a defesa de Telo de Mascarenhas ao
Estado Novo e a Salazar se sustenta em um argumento central: apenas através do
abandono das palavras e promessas vazias e da retomada das ações práticas é que
seria possível fazer ressurgir a nação. O hino cristão da igualdade seria o alicerce da
orientação humanista desta ação, para que assim não se amesquinhasse em
imperialismos egoístas. É neste sentido que Telo de Mascarenhas sugere que o
colonialismo português, orientado pelo humanismo cristão, se destacaria daquele
que seria alvo do ataque dos nacionalistas indianos como Gandhi. Segundo Luís
Trindade (2008), a crítica à própria política foi uma marca do autoritarismo que
culminou no Estado Novo, sendo o liberalismo e o parlamentarismo os alvos por
excelência ante os quais se buscaria instituir Portugal como patrimônio, um dado
externo à esfera de sua concepção literária.
76
Dentre as razões apontadas para seu retorno, Telo de Mascarenhas menciona a atmosfera fechada e restrita de Coimbra, como por exemplo a da “Associação Católica, com seu outlook reacionário, da qual Salazar e o Cardeal Cerejeira foram os criadores e inspiradores” (Mascarenhas, 1976: 78).
73
A hora das grandes e maravilhosas promessas que vos faziam em caça do voto, passou. Estamos na época das realizações práticas, sem vãs e enganosas promessas (Mascarenhas, 1937: 29).
Deste modo, e ante as falsas promessas, “o Estado Novo é isto que vós
vêdes [...] as suas estradas, as suas pontes, os seus portos” (Mascarenhas, 1937:
36). E esta realidade passou a representar toda a nação portuguesa e a lhe conferir
a materialidade que almejava o Estado Novo que “será, assim, uma espécie de
redução da realidade a uma parte de tudo o que era Portugal” (Trindade, 2008: 15).
É esta realidade que, apesar de reduzida, foi tomada como sendo a totalidade, que
entendo ser articulado neste contexto como sendo a tradição, aquele conjunto de
elementos compartilhados pelo povo, e que lhe é legítimo defender como seu
patrimônio. Não se trata aqui de se questionar estes elementos materiais, negando-
lhes as vinculações de sentido que lhes foram oficialmente impostas, mas de
compreender em que medida o conjunto de estereótipos em jogo dizem respeito a
uma “questão formal, e não substancial, de se estar preso, enquanto comunidade, a
um conjunto de estereótipos sobre a essência e o destino” (Trindade, 2008: 20). Ou
seja, se o conteúdo material da nação lhe conferia a naturalidade que sua retórica
almejava instituir, os efeitos desta retórica seriam justamente afirmar uma identidade
atemporal e imutável, visto ser a manifestação de uma mesma essência ao longo do
tempo.
É a esta questão formal que compreendo a centralidade das noções de
decadência e ressurgência, que se colocam nos três autores centrais a esta
dissertação, e são uma preocupação ordenadora do pensamento de Telo de
Mascarenhas. Segundo Luís Trindade, uma das especificidades de Salazar foi retirar
sua legitimidade política de seu sucesso acadêmico (Trindade, 2008), ou seja,
justamente do fato de não ser um político no sentido republicano da palavra. E essa
autoridade acadêmica aparece narrada nos trabalhos publicados por Telo de
Mascarenhas, principalmente em dois livros aqui abordados, Rosa Mística (1937) e
Sob o signo da Revolução Nacional (1938). A construção das narrativas presentes
em ambos os trabalhos segue uma lógica parecida, tendo o início marcado por uma
defesa de Salazar, seu antigo professor. Assim, é da proximidade pessoal com
Salazar que Telo de Mascarenhas inicia sua defesa, o que nos obrigou a
74
compreender como se deram os primeiros anos de sua permanência em Portugal,
da chegada em Lisboa em 1921 até seu último ano em Coimbra, em 1927.
Tomadas de um livro de memórias, publicado no fim de sua vida, estas
imagens contrastam assim com as de feitio mais salazaristas que encontrei nas
obras de Telo de Mascarenhas de meados da década de 1930 e com as quais iniciei
minha abordagem. Desejo me afastar de qualquer perspectiva que aponte para a
contrariedade de ambos os posicionamentos, e minha leitura dos nacionalismos
português e indiano será aqui realizado a partir de sua semelhança formal, em que a
perspectiva da decadência e da fragmentação leva à busca por ressurgências que
visavam restaurar o vínculo a um passado nacional glorioso, seja em Portugal ou em
Goa. Seguindo a proposta de Trindade (2008), busco compreender aqui o estatuto
do campo literário na obra de Telo de Mascarenhas, na tentativa de compreender
em que medida este se relacionava, ou passou a se relacionar, com as aspirações
políticas que marcaram seu envolvimento no nacionalismo indiano em Goa. A obra
de Mascarenhas é especialmente relevante para essa abordagem, visto que aborda
em diversos momentos as representações sobre a Índia, sendo que seu retorno a
Goa tem por referência esse mundo literário.
Um dos mais importantes intelectuais de Goa neste período, Luís de Menezes
Bragança (1878 – 1938)77, escreve um opúsculo sobre a fundação do Instituto
Indiano, que é anunciado no primeiro número do periódico em questão. Segundo
Luís de Menezes Bragança, é digno de nota o amplo desinteresse que os
portugueses demonstravam pelo estudo da cultura indiana, a despeito de terem sido
os primeiros europeus a conhecê-la de modo mais íntimo. A razão desta situação é
exposta logo no início do referido opúsculo, com o título de “À margem de uma ideia”
(1928):
Compreende-se. Vinham dominados pelo preconceito clássico da unidade da civilização. Civilizados eram apenas os povos, como êles, formados na cultura greco-latina e cristãos. O resto era mais ou menos selvagem, mais ou menos bárbaro (Bragança, 1928:38).
Justificava assim a iniciativa dos estudantes de Coimbra que buscavam
reverter esse estado de incompreensão em relação aos valores culturais e
77
Luís de Menezes Bragança (1878-1938) foi um proeminente jornalista da Índia Portuguesa, que havia defendido ativamente uma maior autonomia para o território tornando-se um forte adversário à ditadura portuguesa.
75
civilizacionais da Índia. Em verdade, por mais ilustres e bem informados que fossem
os portugueses e missionários que passaram pela Índia Portuguesa, eles não deram
atenção aos elementos mais profundos da civilização indiana. Para eles, “a Índia era
apenas uma terra de lendas e curiosos exotismos, a falar à imaginação. Não
cuidavam de aprender o conteúdo ideológico da sua cultura” (Bragança, 1928: 42).
Somente com a consolidação dos métodos de observação e análise é que essa
barreira pôde ser superada, e apenas o foi através de intelectuais britânicos, dentre
os quais cita o pioneirismo de William Jones, Wilkins, Colebrooke e Burnouf. Isto se
dava porque, “ao iniciar-se esta fase de revisão crítica, o domínio português do
Oriente entrara em franca decadência” (Bragança, 1928:43). Luís de Menezes
adverte o leitor, contudo, que esta revisão crítica não significou o fim dos
preconceitos em relação às civilizações orientais, sendo que a Guerra que devastou
a Europa fez surgir forças reacionárias, dentre as quais coloca a obra de Henri
Massis (1886 – 1970)78 em um patamar de destaque, por sua insistência de que o
catolicismo seria exclusivamente europeu.
Henri Massis comete assim o erro de apagar da Europa as influências que
nela exerceram as civilizações orientais, sendo que o próprio cristianismo nascera
no Oriente. Para Luís de Menezes, “por pouco que não fez do Cristo europeu,
deslocando-lhe o berço do obscuro lugarejo da Palestina para a luminosa Ática ou
para a Roma soberba dos Césares” (Bragança, 1928:46). Do mesmo modo aponta
que a cultura mediterrânica não era exclusivamente greco-latina. A importante
conclusão desta passagem é a de que “o chamado renascimento católico, que
alimenta fantásticas esperanças, é um transitório efeito do traumatismo moral
provocado pela guerra” (Bragança, 1928: 49). A este amplo movimento intelectual
europeu, Luís de Menezes o acusa de defender uma regressão medieval. O que era
uma realidade em toda a Europa não o deixava de ser também em Portugal, que
segundo o autor apresentava uma “feição absorventemente retrospectiva”
(Bragança, 1928:52), com os portugueses olhando demasiadamente para o
passado, por acreditarem no equívoco de que a tradição seria sinônimo de
78
Henri Massis (1886-1970) acusava o risco de destruição da Europa pelo perigo oriental, representado principalmente na farsa do diálogo civilizacional existente no interior das Universidades europeias (Lobo, 2009: 237)
76
imobilidade79. É contra essa corrente predominante que enxerga a importância da
obra do Instituto Indiano, de que falarei brevemente.
A mesma percepção que Menezes Bragança apresentou do atraso português
no conhecimento da civilização indiana aparece também em Adeodato Barreto,
como nos mostra Sandra Lobo (2009: 234). A alternativa, para Menezes Bragança,
seria o olhar aproximado entre Europa e Índia, para que nacionalismos agressivos
não tivessem espaço em um mundo cada vez mais marcado pelo intercâmbio e pelo
cosmopolitismo. É esta outra alternativa que fomentava uma aproximação entre as
civilizações europeias e indiana, e que estava sendo levada a cabo por acadêmicos
europeus como Romain Rolland (1866-1944)80. A noção de que a Europa passava
por um período de decadência parece ter fomentado a busca por alternativas
civilizacionais, e por uma maior abertura da Europa ao reconhecimento de sua
formação plural, que garantisse a supressão de uma regressão que apenas
fortaleceria os nacionalismos fechados e agressivos. Vimos que Telo de
Mascarenhas defendia uma perspectiva do nacionalismo português que se alinhava
a alguns aspectos desta proposta, como atesta sua perspectiva segundo a qual o
nacionalismo português que manifestava não seria exclusivista (Mascarenhas, 1937:
68).
Curioso mencionar que, a despeito do interesse comum por autores europeus
que souberam avaliar com precisão a realidade indiana, os trabalhos de Telo de
Mascarenhas que foram publicados nos anos que se seguiram a sua intervenção no
Índia Nova se aproximam muito da posição tradicionalista criticada por Luís de
Menezes. Em consonância com o exotismo e distanciamento dos observadores
europeus criticados por Menezes Bragança, vemos que Telo de Mascarenhas
recoloca os principais temas orientalistas em voga, e marca seu distanciamento em
relação a Goa como um tema central a sua obra poética. É isto que podemos ler no
poema “Profissão de Fé”, onde Telo de Mascarenhas dirige-se a Sitabay, descrita
como sua bela amada, pedindo que lhe revele o deus que adorava. O pedido é, no
entanto, menos uma profissão de fé do que uma contemplação marcara pela
curiosidade diante do exótico. Assim, a verdadeira veneração do autor é ao amor
79
Como apresentei na Introdução a esta dissertação, Luís de Menezes Bragança foi um crítico do golpe de 1926, associando as ideias tradicionalistas com os movimentos reacionários. 80
Romain Rolland (1866-1944) foi um escritor francês laureado pelo Nobel de Literatura em 1915. Rolland tinha como uma das mais importantes referências literárias a filosofia Vedanta, e era um admirador confesso de Mahatma Gandhi (1869-1948).
77
que existe entre ele e Sitabay, “mas deixe-me primeiro contemplar o Buda que tu
adoras” (Mascarenhas,1937:9)81.
Telo de Mascarenhas se coloca, assim, em uma posição de estranhamento e
distanciamento que reforça a um tempo seu lugar de exterioridade e curiosidade:
“Eu, como um extranho [sic], de longe, dum recanto do teu santuário alumiado por
enorme lampadário de bronze, escutarei as tuas preces” (Mascarenhas, 1937:10)82.
Quase dez anos após essa publicação, em 1946, Telo de Mascarenhas publica um
livro com o título de Râma e Sîtá (1946), também pela Edições Orientes, em que
apresenta um profundo conhecimento da epopeia do Râmayana. Aponta que o
gênio hindu trouxe contribuições não apenas no âmbito metafísico, mas no da
ciência positiva, citando para isso Emile Burnouf: “vê-se que na Índia houve homens
pensando melhor do que nós e que traçaram o caminho da salvação” (Mascarenhas,
1946:21). O que se apreende do olhar de aproximação entre Ocidente e Oriente é a
sua condição de igualdade, e o questionamento sobre sua compatibilidade, mais
facilmente captada por aqueles que realizaram seus estudos na Europa.
Valentin Chirol dizia há anos ao jornalista francês Maurice Pernot, de que os indianos que tinham frequentado as Universidades inglesas, assimilado a sua cultura e adoptado os seus usos e costumes, uma vez que regressavam a India adoptavam os seus próprios usos e costumes, tornavando-se ardorosos nacionalistas, e combatiam o dominio ingles com as mesmas armas que a cultura inglesa lhes tinha transmitido, tais como os ideais democráticos 83 (Mascarenhas, 1946:45)
Uma perspectiva curiosa é a que aparece no artigo intitulado “Não é
Novidade” 84, que apresenta justamente o prestígio que indianos e a Índia possuem
na Europa, tal como muitos indianos que viajam para lá orgulhosamente notaram.
Assim, o autor comenta que “os povos e os paizes civilizados da Europa e da
America onde penetrou o reflexo da nossa civilização e da nossa cultura, olharam-
nos desde sempre com admiração”85. E ainda, cita o papel fundamental que
intelectuais e artistas indianos desempenharam na profusão dos valores da
81
Para isso, o autor traz grinaldas e todos os unguentos sagrados em um cofre de sândalo, que no entanto não se destinam ao deus de Sitabay, mas sim ao sacrifício de seu amor. 82
O livro está dividido em duas partes, sendo que na primeira Telo de Mascarenhas é autor em primeira pessoa do singular, e trata de poesia em prosa. A segunda parte narra contos do hindustão, onde o tema é o amor. 83
Ignatius Valentin Chirol (1852–1929) foi um jornalista britânico, historiador e diplomata. 84
(Ressurge, 25-12-1950). 85
Idem, p.6.
78
civilização indiana para o resto do mundo, como Rabindranath Tagore (1861-1941),
Mahatma Gandhi (1869-1948) e Aurobindo Ghose (1872-1950). Por sua vez, autores
europeus também souberam reconhecer o valor dessa tradição, e “Gustavo Le Bon,
Max Muller, Silvain Levy e Romain Rolland, revelaram ao mundo os valores mentais
e a nossa civilização”86.
A referência aos intelectuais indianos e europeus que atuavam nesta tarefa é
reveladora do mesmo aspecto que abordamos acima sobre a ressurgência da Índia
e de Goa. Se no plano político esse levantamento de um estado letárgico implicava
em uma adoção do nacionalismo indiano como instrumento de luta contra
artificialismos culturais impostos pelo colonizador, no plano intelectual este
ressurgimento implicava em descobrir a grandeza da Índia, seu esplendor e sua
história de grandes alcances nos planos culturais e científicos. O periódico
Ressurge, Gôa! traz ao longo de suas publicações uma série de exemplos de
personalidades que sustentam esta afirmação. Ainda em dezembro de 1950, a
homenagem prestada foi a Aurobindo Ghose e a Sardar Vallabhbhai Patel, ambos
nacionalistas indianos que fizeram seus estudos em Londres. Sobre Ghose, o
francês Romain Rolland escreveu uma biografia, e Sardar Patel era próximo a
Gandhi, tendo também estudado na Inglaterra e retornado à Índia para exercer a
advocacia. Romain Rolland aliás, é um dos autores que segundo o Ressurge havia
revelado os valores mentais da civilização indiana. Ao lado de Max Muller, Gustavo
Le Bon e Silvain Levy, contribuíram para que a Índia e os indianos gozassem de
grande prestígio nos países europeus, sendo de se destacar o grande prestígio de
Tagore.
Nesta hora tôrva de paixões mesquinhas, hora do homo hominis lupus, renovamos aquela prece para que no espírito do leitor as palavras de Mahatma Gandhi, feitas de Amor, de Verdade e Não-violência, se transformem em pérolas, palavras que são a própria mensagem de paz fraterna e mútuo entendimento da Índia milenária e ressurgida. (Mascarenhas, 1942:XVI)
86
Idem.
79
1. O retorno à Índia
1.1. Chegando em Bombaim
É com este espírito que Telo de Mascarenhas retorna à Índia em 1948,
defendendo a figura de Gandhi e se posicionando de forma contrária aos goeses
que defendiam que Goa permanecesse portuguesa. O discurso contrário à
autonomia se consolidou neste período, após as elites Goesas terem almejado se
tornarem uma província autônoma de Portugal. O advento do Estado Novo e o “Acto
Colonial” levaram a que muitos procedessem a um abandono da via do nacionalismo
português em prol da defesa de uma identidade Goesa de nacionalidade indiana87.
O Ressurge se coloca nesta corrente, sedimentando o que parecia ser a percepção
sobre o projeto de autonomia após a consolidação do Estado Novo em Portugal:
este não passaria de “uma farça quasi [sic] tragica e uma dura lição para aqueles
dos goeses que creem na boa-vontade dos imperialistas portugueses” 88.
Os espiritos e as consciencias evoluiram de tal forma em dois anos que Goa agora não mendiga migalhas da autonomia como esmola, mas soberania completa, como seu legítimo e incontroverso direito 89.
O movimento em defesa da autonomia havia acontecido em 1946, na cidade
de Margão90, onde um comício estabeleceu as bases do almejado Estatuto Político
para o Estado da Índia91. Após uma primeira reação afirmativa por parte do Governo
de Goa, o projeto de Estatuto apresentado pelo governador Fernando de Quintanilha
e Mendonça Dias (1898-1992) não atendia aos interesses dos goeses, e “nesse
interim a mare foi vazando e os anseios de alguns goeses diluindo”92. Era assim que
a denominação de Fernando de Quintanilha como “capitão que cuida”, havia sido,
87
A ideia de uma identidade goesa de nacionalidade indiana foi defendida por Sandra Lobo (2010). 88
(Ressurge, 29-02-1951-p.6). 89
(Ressurge, 29-02-1951-p.6). 90
Ver mapa 2 na p.144. 91
O Estatuto da Índia esteve em debate durante meados da década de 1940, e expressava os anseios de parte da população católica local em garantiar a ampliação da autonomia administrativa e política do Estado da Índia no interior do quadro imperial português. 92
(Ressurge, 29-02-1951-p.5).
80
segundo autor do referido artigo, um “título anacronico [sic] com que o mimoseou
Gilberto Freyre para retribuir a sua hospitalidade” 93. O debate sobre o Estatuto da
Índia Portuguesa estava em alta quando Telo de Mascarenhas chegou a Bombaim,
sendo que em 29 de março de 1947 a Associação Goesa de Bombaim enviou um
Memorandum ao governo português com sugestões para o Estatuto94.
É em 18 de agosto de 1949, pouco tempo após seu retorno à Índia e antes do
início da publicação do Ressurge, que Telo de Mascaranhas se encontra com outros
membros do Congresso Nacional (Goa)95 na cidade de Belgaum, para a publicação
de um Memorandum que, por sua vez, foi entregue não às autoridades portuguesas,
mas a Vengalil Krishnan Krishna Menon (1896-1974)96, para informá-lo sobre a
situação em Goa. Vemos assim, que entre a Associação Goesa de Bombaim,
presidida pelo goês Pompeia Viegas, e o Congresso Nacional (Goa), presidido por
Salvador Bermindo de Silva (1901 -)97, havia um desentendimento quanto ao futuro
de Goa, e que este desentendimento se organizava, principalmente, em torno da
questão da autonomia. É compreensível, como podemos ver a partir desta
documentação, que o Ressurge tenha sido lançado por Telo de Mascarenhas
justamente com a proposta de defesa da integração de Goa à Índia.
Estava também nesta reunião António Furtado (1898 - )98, que publicava em
Belgaum o periódico Free Goa, que contava com ampla participação do nacionalista
goês Tristão de Bragança Cunha. É preciso lembrar que António Furtado havia
organizado, junto com Telo de Mascarenhas, o Centro Nacionalista Hindu, em
Lisboa. Se Pompeia Viegas foi felicitado por Salazar por sua lealdade, o encontro de
Telo de Mascarenhas foi criticado pelo Administrador de Assuntos Cívicos de Goa,
que disse que ele era uma aventureiro que passava por Goa e que os goeses não
93
(Ressurge, 30-12-1951;p.2). 94
Não tive acesso ao conteúdo deste Memorandum, porém o debate em torno dele no Ressurge sugere que se alinhava a uma proposta de defesa da autonomia goesa, e não de sua incorporação à Índia. 95
O Congresso Nacional (Goa) era um grupo organizado que defendia a incorporação de Goa à Índia. Se originou como braço local do Congresso Nacional Indiano, partido de Mahatma Gandhi e Jawaharlal Nehru, e que após 1947 assumiu o governo indiano. 96
Vengalil Krishnan Krishna Menon (1896-1974) se tornou, posteriormente, Ministro da Defesa da Índia, durante o governo do primeiro-ministro Jawaharlal Nehru, sendo que desempenhou um importante papel nas atividades militares que levaram à incorporação de Goa à Índia em dezembro de 1961. 97
Salvador Bermindo de Silva era goês e advogado em Bombaim, sendo membro do INC (Indian National Congress). Na cidade, acabou se envolvendo ativamente na luta pela libertação de Goa (Shirodkar, 1986:332). Não tenho conhecimento da data de sua morte. 98
Antonio Furtado havia ocupado, anteriormente, o cargo de Administrador das Comunidades das Ilhas, e também foi membro do Tribunal Administrativo de Goa (Shirodkar, 1986:102).
81
precisavam de um aventureiro como representante. A crítica fazia menção à carta
aberta a Oliveira Salazar que Telo de Mascarenhas havia escrito e publicado no
Ressurge, sendo que Salvador Bermindo de Silva partiu em sua defesa Em
verdade, considerada esta crítica a Telo de Mascarenhas, podemos ver que
Salvador Bermindo de Silva foi criticado no jornal O Anglo-Lusitano com um
argumento muito semelhante, o de que seria um advogado de Bombaim com outfit
ocidental, mas que simpatizou com a causa Goesa99.
Vemos então que Telo de Mascarenhas e seu amigo próximo, Salvador
Bermindo de Silva, eram alvo da crítica das associações de goeses de Bombaim,
bem como do periódico O Anglo-Lusitano que, segundo afirma Sandra Lobo,
buscava evidenciar as apreensões dos emigrantes católicos diante do medo diante
de sua “desnacionalização” (Lobo, 2010: 215). A questão da religião tinha grande
relevância nos debates sobre a autonomia de Goa. O mesmo S.B. da Silva,
presidente do Congresso Nacional (Goa) publica um artigo no primeiro número do
Ressurge, onde traz a questão do preparo de Goa para viver em uma democracia,
visto ser inevitável que isto em breve aconteceria. Apesar das diferenças que
encontra em Goa entre duas religiões que não se entendem e entre castas que se
opõem, a esperança reside no fato de que estas diferenças são menos
pronunciadas em Goa que no restante da Índia, e que estão certamente deixando de
existir.
S.B. da Silva, autor de artigo acima mencionado sobre as possibilidades da
incorporação de Goa numa sociedade democrática, publicou um outro artigo sobre o
cristianismo na Índia, dizendo ser equivocada a afirmação de que foram os europeus
que levaram a fé cristã para a Índia. Faz um breve histórico de São Tomás e São
Bartolomeu, dizendo que os portugueses confundem Cristianismo com Ocidente,
tentando articular cultura e religião, coisa que eles desaprovam. S.B.da Silva diz que
goeses devem retornar aos modos de vida indianos, sem com isso precisar
abandonar sua fé. A tentativa de articular a identidade indiana com o catolicismo era
uma preocupação de longa data dos goeses que começaram a olhar com interesse
ao projeto nacional indiano.
99
O artigo ironiza assim o presidente do Congresso Nacional (Goa) dizendo que sua associação com Goa decorria das férias que lá passava e trazia ainda a afirmação de Pompeia Viegas de que os goeses não tinham nada a ver com Salvador Bermindo de Silva.
82
O mesmo tema sobre os modos de vida indianos abandonados pelos goeses
aparece nas Memórias (1976) de Telo de Mascarenhas. O autor conta que, logo
após chegar em Bombaim, em setembro de 1948, é convidado para um baile do
“Catholic Gymkhana”100, sendo que ali se assusta ao reconhecer que os goeses de
Bombaim estavam “desnacionalizados”, principalmente quando lhe oferecem uma
bebida alcoólica, ao que responde que imaginava que estariam seguindo os
ensinamentos de Gandhi. O posicionamento de oposição assumido em relação a
Pompeia Viegas da Associação Goesa marcou o perfil do periódico que Telo de
Mascarenhas iniciou a publicar também em Bombaim. Acredito que a defesa que
Telo de Mascarenhas faz dos intelectuais indianos que se formaram na Europa pode
ser lido à luz destas questões. Em que medida abraçou o nacionalismo indiano
enquanto estava em Portugal, e através das leituras que lá realizou são assim
fundamentais para a leitura do Ressurge.
Era a estes indianos nacionalistas e gandhianos que o periódico retoma em
seu primeiro número. A questão da integração de Goa à Índia ganhou destaque nos
anos seguintes à independência indiana. O periódico Ressurge, Gôa! teve seu
primeiro número publicado em 28 de fevereiro de 1950. A primeira página trazia um
retrato de Mahatma Gandhi, a quem prestavam homenagem, sob a manchete “O
nosso preito e os nossos anseios”101. Tratava de apresentar a linha norteadora do
periódico, claramente projetada para “unir os nossos destinos aos da Mãe-India,
nossa Patria comum, segundo também nos ensinou Mahatma Gandhi”. Aos goeses,
esta união deveria ser o objetivo norteador de sua ação política, visto que a obra da
independência da Índia estar incompleta enquanto possessões estrangeiras ainda
existissem em seu território. O periódico afirma seu reconhecimento das intenções
convergentes com o governo indiano,
Mas achamos que é tempo do Governo da República Indiana, ante a intransigencia do Governo Português e da larga sementeira de mentiras e falsidades espalhadas pelos agentes das autoridades portuguesas dentro e fora de Goa e no próprio território da União Indiana, passar do campo das meras declarações para o campo da acção directa102.
100
Não encontrei referências mais detalhadas sobre a “Catholic Gymkhana”, embora a descrição apresentada por Telo de Mascarenhas (1976) sugere se tratar de uma associação de migrantes goeses. 101
Reproduzido no primeiro volume também em inglês, no entanto, em uma versão resumida. 102
(Ressurge, 25-12-1950).
83
Para defender a tomada de uma ação mais direta por parte do Governo da
Índia, a primeira questão foi separar o caso de Goa e das demais possessões
estrangeiras na Índia do problema de Kashmir103. Afinal, como expõe o artigo
inaugural, “pensa-se que o problema de Kashmir tem feito protelar a solução do
problema das possessões estrangeiras da Índia”, ao que compete reconhecer que
enquanto a disputa em torno de Kashmir tratava-se de uma contenda doméstica
entre dois estados, os casos de Goa e demais possessões estrangeiras “é um
assunto que demanda imediata solução, porque vai nisso muito do prestigio e da
dignidade da India como nação independente” 104. Abaixo do retrato de Gandhi é
apresentado trechos de seus discursos que enfatizavam a necessidade de que
todos os territórios estrangeiros, nomeadamente os franceses e portugueses,
passem a pertencer à Índia. Ainda, reproduz um trecho do importante o discurso de
Jawaharlal Nehru proferido a poucas semanas antes da publicação, onde ele diz que
“O Governo da Índia entende que Goa deve pertencer à India” 105.
Um dos aspectos mais importantes em referência ao periódico era contudo
afastar o medo de que Goa deixaria de existir se fosse inserida no contexto indiano.
É neste espírito que o periódico reproduz a moção aprovada pelo Congresso
Nacional Indiano em 1948, em que é reconhecido que qualquer possessão
estrangeira na Índia configura uma anomalidade em relação aos princípios da
unidade e liberdade da Índia. Ainda, nesta moção o Congresso assumiu o
compromisso de que as especificidades culturais, linguísticas, educacionais, dentre
outras, seriam reconhecidas e respeitadas, sendo que “o Congresso exforçar-se-á
no sentido de que a presente herança cultural daquelas possessões se mantenha
tanto quanto o povo das mesmas possessões o desejar” 106.
Vemos assim, que em seu número inaugural, o Ressurge apresenta algumas
das linhas norteadoras de sua posição: contribuir para a total independência da
Índia, que permaneceria incompleta enquanto partes do território estivessem sob
domínio estrangeiro, e a continuação da obra de Mahatma Gandhi, cuja morte é
comparada ao martírio cristão, visto seu sangue ter sido derramado em nome de 103
Kashmir é uma região a noroeste da Índia, que foi palco da violenta partição entre Índia e Paquistão em 1947. A violência do processo de origem do Paquistão entre hindus e muçulmanos causou temores de que as minorias católicas sofreriam de forma análoga caso Goa fosse integrada à Índia. 104
(Ressurge, 25-12-1950). 105
(Ressurge, 25-12-1950). Jawaharlal Nehru (1889-1964) foi o primeiro Primeiro-Ministro da Índia, ocupando este cargo durante todo o processo de agravamento da questão de Goa. 106
(Ressurge, 25-12-1950).
84
uma “Causa Santa”. O discurso de Jawaharlal Nehru, primeiro-ministro indiano, no
mesmo mês de fevereiro de 1950, marcou em grande medida o posicionamento que
a União Indiana tomaria em relação às possessões estrangeiras, tendo por este
mesmo motivo causado inúmeras manifestações de apoio e repúdio. O
pronunciamento de Jawaharlal Nehru nesta data havia sido uma resposta às
afirmações do Cônsul Geral português que, em visita à África Oriental, disse que a
fusão de Goa com a Índia colocaria em perigo a Cristandade. O próprio Ressurge
menciona os telegramas recebidos pelo Ministro das Colônias Manuel Maria
Sarmento Rodrigues (1899-1979) em resposta às declarações de Jawaharlal Nehru
realizadas no dia 6 do mesmo mês de fevereiro, contradizendo o temor sobre o
futuro da cristandade.
Sem apoio nem simpatia internacional para a sua causa, do mal o menos, pensou o Sr. Ministro das Colonias e declarou com orgulho e bom som, não que tinha recebido protestos de solidariedade dos seus aliados e amigos, não que tinha recebido armas e munições para defender a sua soberania em Goa – mas que tinha recebido telegramas107.
Dentre estes telegramas estava uma mensagem dos indo-portugueses, que
protestaram, segundo o periódico, diante “não da suposta tentativa de absorção de
Goa, mas sim do regresso de Goa à situação que ela possuía anteriormente à
proeza quixotesca dos portugueses na Península Indiana” 108. Os indo-portugueses
em questão são descritos como descendentes de portugueses que nasceram em
Goa, e não legítimos goeses. Estes indo-portugueses defenderiam o colonialismo
português porque sabiam que, retornada Goa à União Indiana, cairia sobre eles e
seus cargos na metrópole “uma ofensiva, em forma, contra os goeses, igual à que a
Santa Inquisição desenvolveu contra os judeus”. Em suma,
não são propriamente goeses, mas anomalos portugueses apenas por haverem nascido em Goa e lá vivido durante algum tempo, e sem de nenhum modo estarem vinculados à terra, nem por laços de sangue nem de tradição, e portanto, aquela mensagem não pode ser considerada como sendo a vontade dos goeses109.
107
(Ressurge, 15-01-1951). 108
(Ressurge, 15-01-1951). 109
(Ressurge, 15-01-1951).
85
As manifestações de apoio ao Ministro das Colônias, e de protesto em
relação às declarações de Jawaharlal Nehru, mostram em que medida este evento
acabou por aprofundar e explicitar as fronteiras identitárias entre goeses de diversas
origens e posições. Se o exemplo dos indo-portugueses que aderiram à mensagem
de protesto causou lamentação por parte do periódico, o exemplo positivo aparece
logo em seguida, com as felicitações a Antonio Furtado, então Administrados das
Comunidades e editor do jornal Free Goa que, “recusando-se a assinar o protesto
contra as declarações de Nehru, alegando não ser inimigo de Portugal, mas também
não ser inimigo da Índia – fez cair sobre sua cabeça todo o odio [sic] imperialista a
ponto de o ameaçarem com o Tarrafal” 110. Antonio Furtado renunciou ao cargo que
ocupava e cruzou a fronteiro com a União Indiana. A saída de Goa de seus mais
apaixonados nacionalistas estaria transformando Goa, segundo o Ressurge, “em
cemitério de vivos – de funcionários publicos e de escravos submissos. Urge sacudi-
la do torpor mortal enquanto é tempo!”111.
1.2. A cultura para fins coloniais
Se os autores que serviram de referências aos jovens goeses em Portugal e
em Goa valorizavam os contatos entre Oriente e Ocidente, o debate em torno da
cultura portuguesa em Goa, feita pelo Ressurge, se concentra em defini-la como
uma forma instrumentalizada para o domínio político e econômico e, se há a
elevação da cultura asiática e indiana, não é de se menosprezar a cultura ocidental.
No entanto, é preciso absorver dela o que há de melhor, como muitos indianos
fizeram na Inglaterra, pois “A verdadeira cultura portuguesa não pode produzir
colaboracionistas”112. Esta admiração do mundo da cultura também é expressa no
elogio que fazem a Gilberto Freyre113:
110
A referência aqui é a uma tentativa do governo português de obrigar os goeses a declararem lealdade a Portugal através da recolha de assinaturas de protesto à declaração de Jawaharlal Nehru. 111
(Ressurge, 15-01-1951). 112
(Ressurge, 30-12-1951). 113
Não foi possível identificar se era do conhecimento dos escritores e diretores do periódico de que eram lidos por Freyre, o que se tornou evidente quando este publicou um dos artigos do Ressurge em Um brasileiro em terras portuguesas (2010b). De qualquer modo, este excerto sugere um possível aviso em relação à contradição que Freyre cairia caso viesse a defender a posição política portuguesa.
86
Gilberto Freyre não nos deu ainda nenhumas impressões da sua peregrinação por Goa, o que fez, por certo, com olhos de sociólogo e não de exaltado imperialista, que não é, porque então desvirtuaria todo o seu passado de anti-racista e de estudioso do fenomeno [sic] social e mancharia a magnifica obra de emancipação de que o Brasil deu provas 114.
É curioso que esta menção seja feita antes da publicação de Aventura e
Rotina (2010), e que neste mesmo artigo, o Ressurge apresente uma breve
discussão sobre a importância dos dois conceitos presentes no livro que seria
publicado por Freyre: para o autor do artigo, apesar de reconhecer o gênio
aventureiro nos portugueses, estes, “impelidos pela força trágica da rotina deixaram
estagnar o rico potencial das terras de que se apoderaram”115. Ante esta
estagnação, cujas provas de ordem social e econômica o periódico rotineiramente
expunha, o exemplo da independência brasileira avultava como o caminho político a
ser seguido por Goa, onde “desfeitas as algemas da servidão que a tem acorrentada
ao imperialismo verboso e jactancioso dos portugueses colonialistas, há de emergir
em breve para a nova vida de progresso e prosperidade”116. Além do exemplo de
liberdade e prosperidade que o autor menciona encontrar em O mundo que o
português criou (1940), é elogioso em relação à política de silêncio de Gilberto
Freyre:
E ante a insistência do jornalista, em o levar a fazer declarações de ordem política, aquele eminente escritor, acentuou: „Continuo dentro do meu programa de silencio [sic] ... Enquanto durar a minha viagem de observação e estudo por Portugal e pelo Ultramar, devo antes ouvir do que fazer-me ouvir, antes ver do que ser visto‟117.
É evidente que Freyre foi muito visto e ouvido, como já tive oportunidade de
mencionar no primeiro capítulo desta dissertação. No entanto, o “programa de
silêncio” parece ter surtido um efeito muito breve, visto que diante da publicação de
seu Um brasileiro em terras portuguesas (2010), quando Freyre defendeu o regime
colonial português de uma forma mais explícita118, ele recebeu duras críticas do
114
(Ressurge, 30-12-1951). 115
(Ressurge, 30-12-1951). 116
(Ressurge, 30-12-1951). 117
(Ressurge, 30-12-1951). 118
Acredito, como tentei deixar claro no primeiro capítulo, que não seja possível pensar uma ruptura no decurso da obra de Freyre no que se refere ao colonialismo português, sendo que os
87
Ressurge. Lembramos contudo que a referência do autor do Ressurge nesta
primeira menção ao sociólogo brasileiro é ao livro O mundo que o português criou
(1940), prefaciado por António Sérgio, “uma das mais altas celebrações do escól
intelectual de Portugal”119. É com ironia então que o elogiador de Freyre imagina o
riso que ele deveria ter contido ao ver o hindu Sirvoicar enaltecendo a bandeira
portuguesa no interior mesmo do templo hindu de Queulá120.
Finalmente, lembra o autor do discutido artigo que a menção de Freyre aos
portugueses se refere especificamente aos “homens de mentalidade elevada,
humana e tolerante, sem laivos do espírito imperialista [...] o „mundo de cultura‟ que
também nós admiramos” 121. E esta admiração é de fato enaltacida em diversos
números do Ressurge, evidenciando a separação entre cultura e política como um
dos projetos centrais do periódico, que permitiria a desvinculação do escol português
da cultura Goesa de qualquer argumento vinculatório ao nacionalismo lusitano.
A instrumentalização da cultura é realizada por meios violentos, mas também
através da propaganda. A ironia marca o uso colonial da cultura portuguesa, entre
aqueles que não pertencem evidentemente ao “mundo de cultura” acima elogiado. É
o caso do acontecimento narrado por um “Observador Goes” sobre o Chefe adjunto
dos Serviços de Informação e Estatística122, que na ocasião de um baile
Excedeu-se nos copos e julgando-se num arraial, armou chinfrim como é da praxe nas romarias na sua terra. Mas aqui não foi o varapau que andou no ar, mas copos e cadeiras, e os alvos foram as cabeças dos goeses colonizados, muitos dos quais saíram com ela mal-ferida. Não houve procedimento nem protestos, porque o sr. Branco goza de privilegios na transmissão da cultura portuguêsa para uso colonial aos goeses, mesmo a força de lhes partir a cabeça, para melhor a „empinharem‟ 123.
O trecho apresenta, em um cenário de confusão carnavalesca, tanto a
questão da confusão e do deslocamento dos portugueses em Goa, que julgam estar
fundamentos de sua retórica nacionalista/imperialista já se encontram desenvolvidos desde sua obra inaugural. 119
Lembro que, no primeiro capítulo, tive a oportunidade de mostrar que Freyre se sentia alinhado às ideias de universalismo em António Sérgio. 120
Esta visita é narrada em Aventura e Rotina (2010a). 121
(Ressurge, 30-12-1951). 122
Não encontrei maiores informações sobre a pessoa mencionada, sendo que o Ressurge faz a ele referência como sendo o “Sr. Santos”. 123
(Ressurge, 30-12-1951 [meus destaques]).
88
na sua terra, bem como a violência envolvida na “transmissão da cultura
portuguesa”, que é levada ao limite irônico de partir a cabeça dos goeses. E ainda,
findo o supradito baile, o sr. Sá, do Banco Nacional Ultramarino, já muito etilizado, embarcou para Cythère, no seu carro de 8 HP, com um um galante grupo de gentis moças, também um tanto ou quanto alegres como convém para uma tão gozada excursão [...] Pois bem, alguns metros andados, por alturas de Gaspar Dias, o carro chocou violentamente, com qualquer coisa negra, dura e comprida. E quando a apalparam aquela coisa negra, dura e comprida, conta a qual o carro se tinha espatifado, verificaram, que ela não passava de uma prosaica e indígena palmeira. Que desilusão!124.
A mesma página do Ressurge apresenta ainda uma discussão em torno da
circular do Governador-Geral de 24 de novembro último, que pedia que funcionários
públicos em Goa exercessem suas funções “devida e decentemente vestidos”, ao
que o autor diz que “os assimilados Chefes de Serviço, tanto hindus como cristãos,
interpretaram o termo „decentemente vestidos‟ como sendo vestidos à europeia, e
que o dhoti não obedece as regras da decência”125. O debate sobre a aclimatação
em torno da indumentária é recorrente, tendo aparecido também em Gilberto Freyre
(em um sentido contrário), e aponta para uma valorização do regional:
Porém nós, achamos que o dhoti convenientemente vestido é mais decente que os calções ou cuecas com que se apresentam alguns funcionários „fringuis‟ e oficiais, exibindo com absoluta falta de decoro e pudor as galbias cabeludas126.
Após esta crítica à circular mencionada, o autor ainda pede que o Governador
esclareça se o termo “decência” foi utilizado no sentido político ou moral. O que
estes excertos sugerem é o lugar que a cultura portuguesa em Goa ocupa nas linhas
gerais do Ressurge. Assim, apesar de valorizar a cultura portuguesa, esta
valorização se dá mediante uma distinção fundamental entre uma valorização do
valor cultural humano e tolerante, e uma imposição violenta de valores, próprio ao
imperialismo. Assim, a cultura portuguesa é valorizada mediante aquilo que
representa em termos de valores universais, a enriquecer-se mutuamente com os
valores da civilização indiana, e não sobrepondo-se a esta. O que está colocado
124
(Ressurge, 30-12-1951). 125
(Ressurge, 30-12-1951). 126
(Ressurge, 30-12-1951).
89
aqui é uma refração do debate mais amplo em torno das relações entre Oriente e
Ocidente.
A cultura portuguesa representada em Goa pelo Instituto Vasco da Gama, é tão deficiente, tão crioula, tão colonial e sub-europeia, que não poderá resistir ao primeiro ímpeto da cultura legitimamente indiana, quando esta for introduzida em Goa após a derrocada do poderio colonial e imperialista127.
Ainda sobre o debate em torno da aclimação, é de se destacar o impacto das
afirmações do Ministro do Ultramar, Comandante Sarmento Rodrigues, durante sua
visita a Goa em abril de 1952. Neste mês, o Ressurge dedicou-se quase que
inteiramente a rebater afirmações do Ministro. Em um artigo intitulado “O Primeiro
eco da Visita Ministerial”, afirma-se que “os goeses vivem na sua própria terra como
plantas de estufa, desenraizados do seu verdadeiro meio, donde essa sua atitude de
quase indiferença, que os imperialistas portugueses tomam por lusitanidade”128.
Sobre as afirmações de Sarmento Rodrigues de que Goa seria um ponto de
irradiação de valores ocidentais na Índia, o autor ainda diz que
É demasiada presunção pretender de que a sua colônia de Goa é um ponto de irradiação para todo o subcontinente indiano, um contacto direto com as ideias, com a civilização ocidental. Os indianos desejosos de tomar contacto com o Ocidente, as suas ideias e a sua civilização, fazem-no no próprio meio, e não pedindo água lustral à colônia portuguesa de Goa, cuja civilização é tipicamente sub-europeia ou colonial como muito bem acentuou Gilberto Freyre129.
Surge assim a questão cultural, e de como o cristianismo era um valor
universal que não fazia parte da cultura portuguesa. Em 30 de abril de 1952,
Francisco Alberto de Almeida Alves de Azevedo (1907-1992)130 afirmou que os
grandes pensadores do Oriente buscaram estreitar laços intelectuais com o
Ocidente, em vistas a compreender essa Unidade. No entanto, à Europa e à
América só interessam o progresso material. Portanto, ao contrário do que pretende
F.Alves de Azevedo, as bases da unidade espiritual entre Oriente e Ocidente já
127
(Ressurge, 15-05-1952). 128
(Ressurge, 30-04-1952). 129
(Ressurge, 30-04-1952-p.3 [meus destaques]). 130
Francisco Alberto de Almeida Alves de Azevedo (1907-1992) foi um escritor português formado na Universidade de Lisboa. Contribuiu com diversas publicações do Ressurge.
90
foram lançadas a muito tempo. As relações entre ambos sempre existiram. Assim o
que se ergue entre ambas não é um antagonismo cultural, mas uma hostilidade
fundada na exploração econômica. No entanto, percebo uma oscilação entre esta
perspectiva e aquela apontada em alguns artigos, como em 30 de maio de 1952, em
que se diz que todo o goês é estruturalmente indiano, mesmo que sob “a tintura
epidérmica do portuguesismo”.
A influência portuguesa existiu, resultado de mais de quatro séculos de
contato, mas só puderam levar ao hibridismo e à condição de “mogrel”. Esse
menosprezo pelo caráter hibrido me parece contrastar com a suposta admiração da
cultura portuguesa. Talvez a questão seja que, apesar de se admirar a cultura
portuguesa no que se refere a uma apreciação distanciada, quando esta é presente
em Goa ela é indesejável, pelas próprias condições do meio. Em 30 de maio de
1952, o Ressurge argumenta que Portugal usava o argumento da unidade cultural
para mascarar a separação imposta pelo “Acto Colonial”.
É na questão em torno do cristianismo que os usos imperialistas se fazem
mais problemáticos. No primeiro ano de sua publicação, na edição especial do Natal
de 1950, observamos alguns elementos interessantes que corroboram nossa
perspectiva. Mencionando a mensagem de Natal do Santo Padre, em defesa da paz,
a notícia com o título de “A impossível Paz” diz que “é entre os povos Asiáticos,
empenhados em manter a paz e defender o seu solo de imperialismos nocivos, que
a palavra do Sumo Pontífice poderá encontrar eco e acatamento”131. Diferente dos
países europeus, cuja história seria evidência da maior importância dos interesses
temporais sobre as ingerências da Igreja, na Índia e em Goa a paz era
verdadeiramente amada, “mas precisamos ter condições para ela e para as obter,
lutamos contra todas as forças satânicas que querem mergulhar o Mundo na idade
das trevas – no Kalyuga”132.
No Natal de 1951 o Ressurge volta a publicar a mensagem papal em defesa
da paz, dizendo que “estes reiterados apelos do Santo Padre não têm sido
escutados pelas nações que pretendem ser catolicas, porque para estas a ambição,
a cupidez e a preocupação de dominar está acima do seu ideal cristão”133. No
mesmo número, uma crônica sobre o Natal em Goa, escrita por Antonio do
131
(Ressurge, 25-12-1950; p.6) . 132
(Ressurge, 25-12-1950; p.6). 133
(Ressurge, 30-12-1951; p.5).
91
Sacramento mostra, por sua vez, o modo como a fé católica estava enraizada em
sua terra, ainda que a invocação seja feita à distância: “Natal da nossa infância,
como nós te evocamos, como um mundo perdido e distante”134. Sacramento
procede a uma descrição em detalhes, e sua crônica é ilustrada pelo quadro
“Natividade”, do pintor Goês Angelo da Fonseca, que retrata Virgem Maria em trajes
indianos. Ainda, o periódico reproduz trechos do discurso de Nehru no dia de Natal
em Belgaum, próximo à fronteira de Goa:
E se Goa é essencialmente cristã, como pretendem os portugueses, as declarações do Primeiro Ministro da Índia feitas no dia da data solene comemorativa do nascimento do Redentor, devem ser para a Nossa Terra e para a Nossa Gente a melhor prenda de Natal, aquela que vem iluminar o seu caminho do futuro – o caminho da Redenção 135.
Ainda sobre a redenção, o Ressurge cita o caminho percorrido pelo goês
colonialista Alberto Xavier (descrito como “canarin fedorento”), que foi “arrastado”
pelas ruas da amargura da burocracia até seu escritório na Rua do Crucifixo.
Quando da doação de arroz feita por Goa à União Indiana, e seu posterior uso
político, o periódico lembrou que isso era contrário ao ideal cristão, pois “Cristo disse
que a mão esquerda deve ignorar o que dá a mão direita”136. Assim, o lugar que o
cristianismo ocupa nas narrativas do periódico altera os termos da equação
anteriormente celebrada por Gilberto Freyre e Orlando Ribeiro. A ação missionária é
marcada pelo utilitarismo, pela política e defesa dos interesses metropolitanos, não
podendo portanto ser articulada em uma defesa da especificidade e do humanismo
do colonialismo português. Celebrando o nascimento de Jesus, o autor não deixa de
notar que um dos três Reis Magos era indiano.
Uma estrela no alto guiou os passos dos Tres Reis Magos, um dos quais indiano, Condophares, Ganaspar ou Gaspar de nome, que foram de longe, das terras do Oriente, ofertar-Lhe, em cofres preciosos, como um tributo da sua submissão – pois Ele era o Rei dos Reis – ouro, incenso e mirra137.
134
(Ressurge, 30-12-1951;p.3). 135
(Ressurge, 30-12-1951;p.3). 136
(Ressurge, 30-12-1951;p.5). 137
(Ressurge, 30-12-1951;p.1).
92
Ao identificar um dos três Reis Magos como cristão, o artigo busca mostrar
que os goeses possuem pleno direito de se dizerem cristãos sem com isso incorrer
em qualquer defesa do Estado Português em Goa. Essa quebra na articulação entre
cristianismo e a presença portuguesa será fundamental para que o projeto
nacionalista Goês possa incorporar em seu seio uma grande parcela da população
Goesa católica. A Mensagem do Natal é finalizada com a apresentação do
destinatário a que ela foi redigida, que eram Portugal e o Povo Português,
“esquecendo agravos e diferenduns”, e é ilustrada com um quadro da pintora Goesa
Ângela Trindade, com a legenda “Nasceu Jesus”.
Ainda, aponta um paradoxo chocante entre a mensagem de paz que a data
celebra e o violento imperialismo exercido pelos Estados Cristãos. Nos interessa
aqui particularmente duas questões que iremos encontrar ao longo de diversos
números posteriores do Ressurge, sendo possível afirmar que se trata de um tema
recorrente ao periódico. Ao mesmo tempo que tenta inserir a história cristã na
temporalidade indiana, tirando dos Estados Cristãos europeus o suposto privilégio
de serem os porta-vozes do Cristianismo, busca ainda mostrar que esses Estados
na verdade deturpam o verdadeiro sentido cristão, que defendia a paz e a harmonia.
Não obstante todos os sofrimentos infligidos a Ásia pelas hordas de unos brancos do século vinte, esta há de acabar por despertar e escorraçá-los do seu solo, e a sua redenção será a melhor Mensagem de Cristo que conquistará os nossos corações 138.
Alguns exemplos são dados no periódico, para convencer o leitor de que o
cristianismo é algo diferente daquilo que defendiam os Estados cristãos europeus.
Dois deles são aqui de grande importância: São Tomé e São Francisco Xavier.
Vemos assim que, mais do que incorporar o cristianismo por uma filiação que em
sua origem não passe por Portugal, trata-se também de evidenciar que o
cristianismo não é um problema em si. Longe de defender que a religião católica é
por si um instrumento de alheamento da população Goesa em relação às suas
origens, a imagem de S. Francisco Xavier é articulada para mostrar que a
mensagem cristã fundamental, a da paz e tolerância, é incrivelmente próxima
daquela que Telo de Mascarenhas via como baluarte da Índia, e que vimos em suas
138
(Ressurge, 30-12-1951;p.6).
93
“Memórias” (1976) se materializar na figura do imperador Akbar. Xavier, cuja história
é narrada no mesmo número do Ressurge, é visto como aquele que, ao chegar em
Goa, em 1542, foi um exemplo de humildade, andando descalço e lavando os
leprosos, recusando as formalidades oficiais que lhe foram destinadas.
O bom cristianismo não associa a condição dos cristãos com os interesses de
Portugal. Exemplo disso é a felicitação que o Ressurge presta a Valeriano Gracias
(1900-1978), filho de pais goeses que foi elevado à Arcebispo da Diocese de
Bombaim, que foi possível com a revogação do estatuto do Padroado, que pregava
a alternância de Arcebispos entre ingleses e Portugueses. Esse estatuto era então,
racista, e não permitia a um não-europeu que assumisse altos cargos eclesiásticos.
A questão do Padroado causou grande ressentimento entre católicos próximos às
pretensões de Portugal. Em 7 de janeiro de 1955, o vigário-geral de Goa, Piedade
Rebelo, afirmou que “todos os templos católicos de Bombaim foram construídos
quando a cidade fazia parte do padroado português”139, mencionando ainda que em
Bombaim os padres tinham que agora que entrar pela escada de serviço em virtude
de sua secundarização140. Desde o ano anterior, com a invasão de Dadrá e Nagar-
Aveli, que a imprensa metropolitana veiculava notícias de ataques a templos
cristãos141. A polêmica em torno da questão do Padroado se arrastava desde 1950.
Como pude observar a partir da documentação sobre o período, Valeriano
Gracias se envolveu em uma grande polêmica em agosto de 1954, entre Portugal e
o Vaticano, a ponto do Ministro dos Negócios Estrangeiros de Portugal pedir, em
carta à embaixada de Portugal no Vaticano, que a Santa Sé intercedesse diante das
declarações de Gracias, que segundo ele “nos parecia muito mais indiano do que
Cardeal”142. Quando deste pedido de intervenção, Gracias já causara incômodo nos
meios diplomáticos portugueses, ao declarar que a Índia era a pátria-mãe dos
goeses143. Meses após esta declaração, Garin transcreve um artigo que o Cardeal
havia publicado no “Sunday Standard Bombay News”, onde expressava esperanças
com a Independência e dizia que o medo sobre o futuro das relíquias de Francisco
139
PT-TT-AOS-D-N-14-6 (p.49). 140
Dias antes desta notícia, em 3 de janeiro de 1955, o “Diário da Manhã” publica um artigo com o título de “Governo de Nova Delhi prejudica atividade missionária”, onde aponta para a redução das conversões ao cristianismo em decorrência da perseguição do governo indiano. 141
Recorte do “Século”, de 31 de dezembro de 1954. “A profanação e encerramento dos templos de Nagar-Aveli pelos invasores”. PT-TT-AOS-D-N-14-6 (p.37). 142
PT-TT-AOS-D-N-14-8 (p.24-25). 143
Este incômodo é declarado por Garin em telegrama de 29 de março de 1954. PT-TT-AOS-D-N-14-8 (p.16-17).
94
Xavier e da Liberdade religiosa dos goeses não se fundamentavam 144. O artigo
levou o embaixador brasileiro a acusar Gracias de estar tomando partido daqueles
que pretendiam usar a violência, sugerindo assim uma conversa “enérgica” com o
Vaticano145. Gracias causou preocupações por suas declarações, “nomeadamente
através seu jornal „Examiner‟, com afirmação goeses quereriam anexação”[sic]146.
Essa carta do embaixador brasileiro é datada de 15 de Agosto de 1954, e a
tomada de violência mencionada se referia claramente às ameaças de que nesta
data Goa seria invadida por nacionalistas indianos e “libertada”. Quando o Ministro
dos Negócios Estrangeiros pediu intervenção junto ao Vaticano, ele menciona que
estava indignado pelo fato de a Santa Sé aceitar um membro que se manifestava
desta maneira. As semanas seguintes mostraram que a preocupação com as
declarações de Gracias resultaram em intervenções diplomáticas junto ao Vaticano,
onde o principal conselheiro de Krishna Menon sobre a questão de Goa e Presidente
da Associação Católica da Índia, Gilanis, iria a Roma onde esperava ser recebido
pelo Papa147. A disputa política em torno do posicionamento do Vaticano preocupava
o governo português, que estava desconfortavelmente ciente de que a Santa Sé não
tomaria partido por Portugal. Em decorrência destes desentendimentos, a Santa Sé
publica uma nota no “Osservatore Romano” negando a afirmação de Nehru de que a
Santa Sé estaria chocada com a atitude de Portugal148.
Assim, a posição de Valeriano Gracias estava em acordo com as aspirações
políticas expressas no Ressurge, sendo que seria a prova de que o catolicismo não
demandava uma necessária articulação com as vontades políticas de Portugal.
Como o periódico recorrentemente apresentava, era o racismo implícito no
colonialismo português que impedia que um clero nativo ganhasse destaque. Outro
exemplo desse racismo foi a não canonização do venerável José Vaz, que o autor
compara com a canonização de S. João de Brito, que contou até com peregrinação
a Roma149. E ainda com a nomeação do metropolitano D. José Vieira de Alvernaz,
que é contrária às intenções do Papa de tornar nacional o catolicismo. No que se
refere ao cristianismo via colonialistas, fala do uso colonial do corpo de São
Francisco de Xavier, sendo que os colonialistas usaram a sua corruptibilidade (fruto
144
PT-TT-AOS-D-N-14-8 (p.21). 145
PT-TT-AOS-D-N-14-8 (p.22). 146
PT-TT-AOS-D-N-14-8 (p.29). 147
PT-TT-AOS-D-N-14-8 (p.27). 148
PT-TT-AOS-D-N-14-8 (p.33-34). 149
(Ressurge, 15-01-1951).
95
de terem jogado cal sobre seu corpo) para defenderem a sua permanência na Índia
(essa discussão foi feita por Maurice Collis em The Land of The Great Image (1943).
Fala da Exposição de Arte Sacra Missionária, em Lisboa, no Mosteiro dos
Jerônimos, e em como foi desvirtuada para fins políticos e de propaganda. Fala do
conflito entre o Padroado e a Sagrada Congregação da Propaganda da Fé em Goa,
sendo que o primeiro tinha fins políticos e a segunda realizava apenas obra
evangelizadora. Na dita Exposição, Sarmento Rodrigues diz que a expansão
portuguesa teve por alvo o coração dos homens. O autor desmente essa afirmação,
citando vários relatos históricos que mostram a violência dos processos de
conversão. Afirma, no entanto, que apesar dessa violência o Goês foi e sempre será
indiano pelo temperamento e pelo sangue. Diz ainda que a “prioridade da
disseminação da Lei de Cristo na India não pertence aos portugueses, mas a São
Tomaz, o Apostolo”150. Cita ainda o caso do italiano Roberto Nobili, que tinha um
real interesse pelo hinduismo, mas que foi mandado embora da Índia por não se
adequar aos propósitos imperiais. Foi porque os métodos foram violentos que essa
raíz portuguesa é detestada e os goeses querem vê-la erradicada, “embora
conservando o Catolicismo, que é um ideal universal”151.
Este universalismo se opõe assim aos interesses imperialistas que visariam
apenas explorar os colonizados, não estando em comunhão com ele. Assim, Telo de
Mascarenhas nega que a dominação portuguesa se dê com doçura, como afirmou
Salazar152, e aponta autores que negam essa perspectiva, como o historiador Vicent
Smith, Francis Pyrard, Cláudio Lagrange e Cunha Rivara. Curiosamente, quando
aqui novamente aparece a crítica a Salazar, o autor acrescenta que Salazar é um
homem de vasta erudição e que sua afirmação decorre menos de sua má-fé e de
seu espírito imperialista do que de sua ignorância quanto à história das colonizações
portuguesas. No que se refere à visita do Ministro das Colônias a Goa, e ao seu
discurso no Instituto Vasco da Gama, o autor diz que a Índia soube absorver todas
as culturas, como fará com a portuguesa, a que nada deve. Na verdade a cultura
portuguesa só pode florescer em consequência das riquezas da Índia que
garantiram a ela o acume da prosperidade. Os primeiros portugueses na Índia não
se interessaram por seu aspecto cultural, mandando queimar livros e destruir
150 (Ressurge, 15-1-1951). 151 (Ressurge, 15-1-1951). 152
(Ressurge, 15-5-1952).
96
templos, como atestam Dr.Herbert H.Goven, Maurice Collis, Rev. Père Vath e o
próprio Cunha Rivara.
No primeiro número publicado pelo Ressurge, publicado no dia 28 de
fevereiro de 1950, podemos compreender em que medida a orientação nacionalista
do periódico se associava a um forte lastro cristão. O que é expresso no excerto
abaixo transcrito revela a aproximação entre o martírio de Cristo e de Mahatma
Gandhi, estabelecendo ainda uma relação profunda de sentido entre a morte dos
mártires e a “velho ensinamento dos Upanishads” no que diz respeito ao sentido
positivo da morte. Desta forma, o autor estabelece uma relação de equivalência
entre cristianismo e nacionalismo como a tradição indiana, se contrapondo assim
aos que pretendiam associar o cristianismo aos portugueses, ou ainda a entender
que somente com a permanência do colonialismo a fé cristã perduraria em Goa:
Como o sangue precioso de Cristo e de todos os grandes Mestres e Doutrinadores, o sangue derramado de Mahatma Gandhi em defesa da Causa Santa, com o fim de tornar iguais em direitos e deveres todos os filhos da Mãe-Índia, e para a purificar do sistema obsoleto das castas e da mácula da „intocabilidade‟, produziu os seus frutos, porque segundo o velho ensinamento dos Upanishads, „a Vida e a Morte são gêmeas; para que o trigo nasça é preciso que a semente pereça153.
Vemos aqui que o “sistema obsoleto das castas” seria um impeditivo, de
ordem social, para a real manifestação dos ideais universais do hinduísmo. Como
argumenta Telo de Mascarenhas, o potencial da civilização indiana residia inclusive
na possibilidade de agir beneficamente sobre os vícios da cultura europeia. É nesta
universalidade que reside a defesa dos valores civilizacionais, sejam europeus como
indianos.
Outra forma de atacar a pretensão cristã dos portugueses é denunciar tanto a
violência da conversão quanto do imperialismo em geral. Além disso, a contrapartida
da elevação da tradição oriental, Telo de Mascarenhas objetiva mostrar o absurdo
dos que apregoam a superioridade européia, mostrando como a barbárie está entre
eles. Critica a suposta ação humanistica portuguesa, falando dos expedicionários
que roubaram e violaram mulheres em Goa, e ainda da condição dos prisioneiros154.
153
(Ressurge, 28-02-1950). 154
(Ressurge, 30-12-1951).
97
Aliás, republica no Ressurge, em dezembro de 1950, uma “Carta aos
Expedicionários” que havia publicado anteriormente em 1948, onde diz que
Sem pretendermos pregar-vos insubmissão ou espirito de rebelião, mas para que se não rompa o elo de simpatia fraterna que une os Portugueses e os goeses, aconselhamo-vos a regressar ao vosso Pais [sic], antes que sejais utilizados como instrumentos cegos, duma política céga, dum imperialismo caduco155.
Antes desta sugestão, Telo de Mascarenhas inicia dizendo em pormenores os
detalhes das regiões de Portugal, da terra de onde vinham os expedicionários,
dizendo “Vê-de como conhecemos bem o vosso País, e porisso mesmo amamo-lo
tanto como vós”156.
Conclusão: a grande farsa
O que se extrai do que foi dito, dos usos políticos da retórica cristã e
humanista, é que para Telo de Mascarenhas o empreendimento colonial português
se sustentava sobre uma grande farsa. Em outras palavras, estabelecidos os planos
culturais autênticos e aqueles meramente imperialistas, cabe ao periódico desmentir
afirmações e posturas que não dizem respeito aos “fatos”. Uma publicação do
Congresso Nacional (Goa), em português e maratha, enfatizou que lhes havia sido
negado a reunião que haviam pedido com Sarmento Rodrigues157. Se esta
publicação se intitulava “Apelo aos goeses”, o Congresso Nacional (Goa) ainda
enviou ao Ministro um Memorandum158, onde dirigiam-se a ele em tom de lamento
pela reunião não concedida. A leitura do Ressurge mostrou que o encontro
pretendido estava programado para acontecer na cidade de Margão, sendo que o
pedido de uma reunião pública para a redação de um documento a ser entregue a
Sarmento Rodrigues havia sido realizado por António Bruto da Costa, Dr. Antonio
155
(Ressurge, 30-12-1950). 156
(Ressurge, 30-12-1950). 157
Ref: PT/TT/AOS/D-N/14/2 (439). 158
O Memorandum está assinado por K.L.Sanzguiri, presidente do Congresso Nacional – Goa, tendo sido escrito na cidade de Bombaim, em 27 de abril de 1952; PT/TT/AOS/D-N/14/2 (440-441).
98
Dias, e Dr. Antonio Colaço159. Importante mencionar que Orlando Ribeiro descreveu
uma longa conversa que estabeleceu com Antonio Colaço em Goa, em 1956, tendo
julgado importantes as suas observações e a sua disposição.
Neste momento, contudo, o pedido de organização do comício foi negado,
emitindo o governo, contudo, uma “Nota Oficiosa” dizendo que não havia sido
realizado nenhum pedido de reunião pública. Esta negação foi descrita pelo
Ressurge como a prova de que, ao contrário do que dizia a propaganda ao
promover a visita ministerial, “tudo isto não passou de uma farça, como uma grande
farçada vai ser a visita ministerial, para convencer o povo de Goa de que o Ministro
vem cá para lhe dar ouvidos”160. A verdadeira causa da visita de Sarmento
Rodrigues era identificada com os interesses da propaganda imperialista de
Portugal, e é por esse motivo que ele vinha “cheio de vento”:
Antigamente os governadores vinham em barcos de velas enfunadas. Hoje veem em barcos à vapor, e eles mesmos inchados de vento; não admira, pois, que, de quando em ves, deixem escapar...ruidos sonoros na altura desta „bem ardua missão ao serviço de Portugal‟161.
Diante deste falta de concretude das afirmações, diante destes ecos ruidosos
de homens inchados de vento, “a par e passo iremos abafando todos os ecos desta
visita que têm por fim torcer as verdades históricas a bem da propaganda
imperialista”162. Estas distorções se fundamentavam em duas razões, a primeira
derivando da própria natureza do regime imperialista e do lugar primordial de sua
propaganda, e a segunda se referia ao desconhecimento de Portugal em relação
aos goeses, daí que
todos os governadores que passaram por nossa terra, confessaram que pouco ou nada conhecem acêrca da nossa gente e do nosso pais [...] E tem eles razão porque o goes, como todo o oriental, e um tanto misterioso e não manifesta facilmente os seus sentimentos, principalmente à gente doutra raça e doutra côr163.
159
O pedido havia sido realizado “ao abrigo do que faculta a Constituição da República Portuguesa e do disposto no Decreto No. 22.468, de 11 de Abril de 1933” (Ressurge, 30-04-1952; p.2). 160
(Ressurge, 30-04-1952 - p.2). 161
(Ressurge, 30-04-1952 - p.3). 162
(Ressurge, 30-04-1952 - p.3). 163
(Ressurge, 30-04-1952).
99
Um importante aspecto das publicações do Ressurge no período aqui
abordado era lembrar aos leitores que a União Indiana poderia tomar a via da ação
armada para libertar Goa. No artigo “Primeiro eco da Visita Ministerial” o autor traz
um trecho de uma entrevista que Sarmento Rodrigues deu ao Diário Popular em 5
de abril de 1952, onde dizia, sobre a Índia Portuguesa, que
a índole da gente é boa. Muito humanos, apreciando o cristianismo devidamente, são incapazes de, deliberadamente, recorrerem à violência, preferindo, sempre, a consecução do que se propõe por meios pacíficos”164.
O autor credita a esta “excessiva confiança nos métodos não-violentos da
Índia” a intransigibilidade do Governo Português diante de qualquer acordo sobre o
futuro da Índia. Porém o Ressurge adverte, em “Nunca é demais repetir”, que
Não se fiem muito, pois, os imperialistas portugueses no espírito não-violento do Primeiro Ministro da India que, soada a hora do relógio do Destino, se pode transformar na mais violenta das violências165.
Outra deturpação identificada dizia respeito à exaltação da ação missionária
em Goa, sendo que Sarmento Rodrigues disse que “o espírito missionário é
essencialmente patriótico e universalista”166. Como veremos adiante, o
universalismo que o periódico identifica nos ideais cristãos seria aquele que, ao
contrário do afirmado, se dava para além da ação missionária, deturpada que esta
se encontrava para fins imperialistas. Em “Goa não é terra pacífica”, o autor faz um
histórico das principais revoluções e sublevações que aconteceram em Goa,
deixando evidente que a luta continua e que
Enquanto os imperialistas portugueses se obstinarem em manter Goa sob o regime colonial; enquanto os goeses não fôrem senhores do seu destino, esta nossa luta continuará – porque Goa não é terra pacífica167.
Este artigo é importante por fazer um histórico das lutas recentes dos
nacionalistas goeses, evidenciando em que medida os próprios autores se
164
(Ressurge, 30-04-1952; p.3). 165
(Ressurge, 30-04-1952). 166
(Ressurge, 30-04-1952). 167
(Ressurge, 30-04-1952).
100
colocavam no interior de uma trajetória de luta que estava marcada inicialmente
pelas declarações de Nehru em 16 de Julho de 1946. A ideia de farsa dos
colonialistas é muito recorrente, tendo sido enfadonhas as afirmações de Sarmento
Rodrigues sobre sua admiração a Gandhi e Tagore. A ausência de liberdades
cívicas seria prova do regime de terror imposto por Portugal, “E isto por parte duma
Nação que se diz...essencialmente católica!”168. A mentira e a farsa seriam
necessárias ao imperialismo, e apenas sua superação poderia levar a um real
entendimento entre Oriente e Ocidente:
É, pois, esta a condição essencial – a de serem os povos do Oriente completamente senhores do seu destino [...] O que se ergue entre o Oriente e o Ocidente, como uma barreira intransponível, contrario ao bom entendimento e leal corporação em prol da paz mundial, não é mero antagonismo entre as duas culturas – mas hostilidade fundada na exploração econômica e no poder político169.
Nada mais distante da noção de Gilberto Freyre sobre a “unidade de
sentimento e cultura” como base da comunidade lusotropical. Assim,
compreendemos que o Ressurge estabelece a cultura e a política a ordens distintas,
e qualquer uso político da cultura criaria apenas instrumentos de exploração
colonial. Em Goa, o que era reconhecido como cultura portuguesa nada mais era do
que uma imposição imperial, sendo que sua superação não implicava em negar os
valores da cultura portuguesa autêntica, mas o próprio regime de exploração
colonial. O local seria assim o lugar em que os valores externos seriam relidos. Em
última instância, o jogo entre as mútuas contribuições deveria necessariamente
passar pelo laivo da vida cotidiana. É neste sentido que apesar de ter seu valor
reconhecido, quando transplantada a Goa, a cultura portuguesa teria gerado, para
Telo de Mascarenhas, uma condição indesejável de hibridismo.
Esta farsa e a deturpação da realidade impediam o real entendimento entre
Oriente e Ocidente. É importante mencionar que, para os autores aí mencionados, o
cristianismo não fazia parte da cultura portuguesa. No artigo “A raíz portuguesa do
catolicismo”, o autor inicia com a Exposição de Arte Sacra Missionária, em Lisboa,
no Mosteiro dos Jerônimos, e em como foi desvirtuada para fins políticos e de
propaganda. Fala do conflito entre o Padroado e a Sagrada Congregação da
168
(Ressurge, 30-04-1952). 169
(Ressurge, 30-04-1952).
101
Propaganda da Fé em Goa, sendo que o primeiro tinha fins políticos e a segunda
realizava apenas obra evangelizadora. Na dita Exposição, Sarmento Rodrigues diz
que a expansão portuguesa teve por alvo o coração dos homens. O autor desmente
essa afirmação, citando vários relatos históricos que mostram a violência dos
processos de conversão.
Afirma no entanto que apesar dessa violência o Goês foi e sempre será
indiano pelo temperamento e pelo sangue. Diz ainda que o “prioridade da
disseminação da Lei de Cristo na India não pertence aos portugueses, mas a São
Tomaz, o Apostolo”170. Cita ainda o caso do italiano Roberto de Nobili (1577-
1656)171, que tinha um real interesse pelo hinduismo, mas que foi mandado embora
da Índia por não se adequar aos propósitos imperiais. Foi porque os métodos foram
violentos que essa raiz portuguesa é detestada e os goeses querem vê-la
erradicada, “embora conservando o Catolicismo, que é um ideal universal”. Assim, o
periódico prevê a possibilidade de ser indiano e cristão.
A posição que mantemos contra o colonialismo portugues [sic] imperante em Goa não nos desvairou a ponto de negarmos a existencia [sic] da cultura portuguesa, e muitos dos nossos são o produto dessa cultura, o que não nos impediu, e até certo ponto alentou, a nossa admiração pela cultura indiana e ateou no nosso coração o fôgo sagrado do nacionalismo172.
Esta passagem apresenta de forma clara a questão que tenho abordado aqui:
o reconhecimento do valor da cultura portuguesa não impede o nacionalismo
indiano, e muito menos autoriza a cultura portuguesa a se impor a outros contextos,
seja através da educação, da língua, ou mesmo da indumentária. Quando
transplantada inadvertidamente, e sem o atenuante dosador do universalismo, esta
cultura transplantada geraria a condição de híbrido. A cultura híbrida que se tem em
Goa não seria a cultura portugesa: “Ora, aquilatar pela cultura hibrida que temos em
Goa, a verdadeira cultura portuguesa, leva-nos a fechar os olhos a realidade e a
praticar graves injustiças”173. A deturpação do real se fazia ainda através da
170
São Tomaz ou São Thomé é tido como o apóstolo de Cristo designado a levar a fé cristã ao Oriente. Existem na Índia, até a contemporaneidade, cristãos que se denominam como “cristãos de São Tomé”. 171
Roberto de Nobili (1577-1656) foi um missionário jesuíta italiano. 172
(Ressurge, 30-04-1952 [meus destaques]). 173
(Ressurge, 30-04-1952).
102
perseguição ao ensino, afirma em “O sr. Inspector chegou” que diversas escolas
foram fechadas após a visita do Inspector da Instrução Pública, o sr. Carlos Xavier.
Como se vê, é uma ofensiva em forma contra as escolas do inglês e marata, que são consideradas como viveiros onde se insinuam na alma dos alunos a „negregada‟ semente do nacionalismo174.
No número de 15 de janeiro de 1951, voltamos ao tema da cooperação entre
Oriente e Ocidente, que segundo o autor sempre foi defendida pelos pensadores
indianos. Cita a entrevista de Salazar ao jornal O Século, em que diz que ele diz que
a Ásia está querendo seguir um caminho contra a Europa. Ele diz que Salazar é
prisionairo da Ditadura, que é homem sábio e que não diria estas coisas. Em notícia
de 30 de janeiro de 1951, o autor, comentando uma das cartas do Patriarca D. José
em que ele compara os imperialismos Ocidental e Oriental, diz que o Oriental
sempre se identificou com os povos dominados, enquanto o Ocidental apenas os
explora. Ainda, rebate a noção de que só pelos portugueses Goa pode ser civilizada.
Para isso, o Ressurge retoma a história e mostra que as grandes conquistas que os
portugueses advogam ter conquistado na Índia foi obra da população local, sendo os
mais ilustres homens de Goa todos estrangeiros. Faz crítica ao Patriarca de Goa,
notando que por S.Tomé o Cristianimso havia chego à Índia antes dos portugueses.
Cita Max Muller e Conde de Ficalho, que ambos afirmam que a Índia é uma grande
civilização que pode concorrer para o engrandecimento do Ocidente. “E agora,
convencei-vos, senhores imperialistas, que mesmo sem a vossa presença, Goa não
viveria destituída da luz da Civilização e da Fé”175.
174
(Ressurge, 30-12-1951). 175
(Ressurge, 30-12-1951).
103
Capítulo 3
Goa em 1956: Um passado de abandono e um futuro de incertezas
104
Introdução
Em 1957, durante o III Colóquio Internacional de Estudos Luso-Brasileiros
(Lisboa), Orlando Ribeiro apresenta seu trabalho com título “A originalidade de Goa”,
publicado posteriormente, em 1959176. As observações apresentadas, bem como os
dados estatísticos referentes à população de Goa, foram coletadas durante o
período que vai de outubro de 1955 a fevereiro de 1956, em que Orlando Ribeiro
chefiou a Missão de Geografia da Índia, ao lado de seus discípulos Mariano Feio e
Raquel de Soeiro Brito177. A missão foi primeiramente idealizada pelo próprio
Orlando Ribeiro, tendo sido proposta por ele ao então Ministro dos Negócios
Estrangeiros de Portugal, em janeiro de 1955178. Como afirma o autor em seu
Relatório (Ribeiro, 1999), o objetivo deste trabalho conjunto teria sido o de
evidenciar a profundidade a que chegara a influência portuguesa na Índia, o que
também estava em concordância com a motivação norteadora de seu trabalho
científico, sendo Ribeiro um autor que fazia de “Portugal e das marcas da sua
presença no mundo o fulcro da sua vida científica e o objecto quase permanente dos
seus estudos” (Ribeiro, 1999:65). Buscarei apresentar, inicialmente, os sentidos que
fundamentaram esta posição científica, na medida em que levam o autor a
compreender Goa através da definição de sua originalidade.
Esclarecidos alguns pormenores muito significativos a respeito do modo como
Orlando Ribeiro articulava e interpretava observações díspares, realizarei uma
leitura do Relatório que produziu a partir da missão de investigação que coordenou.
Este Relatório foi remetido diretamente ao Presidente do Conselho de Ministros de
Portugal, António de Oliveira Salazar. Na seção de Correspondências Oficiais sobre
a Índia Portuguesa, presente no “Arquivo Oliveira Salazar”, na Torre do Tombo
(Lisboa), consta uma cópia datilografada, acompanhada de um cartão de
identificação pessoal de Orlando Ribeiro, com a data de 2 de Maio de 1956179. O
Relatório a que se refere tem o título de “Notas acerca da Situação Actual da Índia
Portuguesa”, sendo que em suas últimas linhas podemos ler: “Dada a natureza do
176
O texto desta conferência foi publicado nas Actas do III Colóquio Internacional de Estudos Luso-Brasileiros (Ribeiro, 1959). 177
Desta Missão, Mariano Feio publicou “As castas hindus de Goa” (1979) e Raquel de Soeiro Brito o livro “Goa e as Praças do Norte” (1966), que recebeu uma edição revista e ampliada em (1998). 178
O então Ministro dos Negócios Estrangeiros era Paulo Cunha. 179
Suzanne Deuveau informa que a cópia do Relatório existente no Centro de Estudos Geográficos havia sido datilografada pelo secretário do Centro, António Machado Guerreiro.
105
assunto, este relatório conserva assim um caráter confidencial e terá apenas a
divulgação que o Governo entenda dever dar-lhe”180. O mesmo Relatório veio a
público apenas em 1999, apesar de Suzanne Daveau ter indicado que, no arquivo
de Orlando Ribeiro, existem diversas versões de projetos de publicação referentes
aos resultados da Missão, redigidos no mesmo ano de 1956.
1. A originalidade de Goa: descrição e comparação
Em uma coletânea que reuniu artigos publicados em diversos momentos de
sua vida intelectual, Orlando Ribeiro revela que foi a leitura da obra do etnógrafo,
arqueólogo e filólogo Leite de Vasconcelos (1858 – 1941) que, ainda no Liceu,
despertou nele o interesse pela “arte de evocar o passado através dos seus restos
miúdos e incompletos” (Ribeiro, 1970:12)181. Em Goa, foi diante dos restos de um
passado remoto que Ribeiro buscou definir o sentido da história nacional,
perguntando: “numa época utilitária e realista, que vale o facto de termos ligado à
terra de Goa pouco mais de metade da nossa história como nação independente?”
(Ribeiro, 1999:66). Em primeiro lugar, temos a questão da história nacional não ser
mediada apenas pelo interesse econômico e utilitário. Esta é uma questão que
norteia a leitura de Orlando Ribeiro sobre o caráter específico do colonialismo
português, a que voltarei adiante. A questão passa a ser o entendimento do valor
nacional de Goa, a partir justamente dos restos do passado, e desta forma, a
despeito das razões materiais que poderiam justificar a saída de Portugal da Índia,
há um sentido nacional profundo que está dado pela memória evocada182.
Quem visite as igrejas de Velha Goa, pisando as sepulturas de tanta gente ilustre que lá deixou os ossos, ou as muralhas de Diu cimentadas com o sangue de heróis, quem ouça os cristãos de Damão falar um crioulo que difere menos da língua padrão do que o sotaque
180
O código de referência é AOS/CO/UL – 28 A, página 264. 181 José Leite de Vasconcelos Cardoso Pereira de Melo, cuja formação original foi em medicina, pode ser considerado um dos pais da antropologia portuguesa, tendo deixado uma extensa e inescapável obra que vai da etnografia, à linguística e a arqueologia portuguesas, destacando-se os 10 volumes de Etnografia Portuguesa. Sobre Leite de Vasconcelos, ver o obituário escrito por Orlando Ribeiro. RIBEIRO, Orlando – José Leite de Vasconcellos. Coimbra: Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 1942 (Sep. de: Biblos, V. 18, T. 1). 182
Na próxima seção mostrarei como as razões materiais eram utilizadas para se questionar a presença portuguesa na Índia como um fardo para a metrópole, o que apenas reforçava a narrativa nacional portuguesa e a leitura de sua especificidade.
106
do Brasil, ou cantar as velhas canções que evocam toadas da nossa província, compreende, através da profunda emoção que estas relíquias provocam que, neste património histórico, está muito da nossa razão de ser como nação183.
Estas marcas exteriores das raízes nacionais na Índia Portuguesa são
percebidas primeiramente pela paisagem, e recolocam no argumento do autor a
questão desenvolvida por Leite de Vasconcelos. Assim, Ribeiro disse que para
Vasconcelos, “a Etnografia não era apenas a recolha e ordenação das tradições
populares, mas o estudo da vida coletiva de um povo, das origens às formas
actuais” (Ribeiro, 1970:17). A questão nacional seria assim central às preocupações
teóricas de ambos os autores184, e Orlando Ribeiro reitera a orientação analítica de
Roger Dion, que seria a de se “chegar à história pela observação” (Ribeiro,
1970:52). Se esta questão estava colocada desde sua leitura de Vasconcelos,
Orlando Ribeiro lembra que, nesta hesitação entre a História e a Geografia, foi a
leitura de Vidal de La Blache que o fez optar pela segunda ciência185. Contudo, esta
opção se deu justamente mediante o fato de que a aproximação entre Geografia e
História em Vidal de La Blache estabelecia como uma das principais características
da Geografia Humana o “princípio de explicar as formas actuais pelas suas
transformações no tempo” (Ribeiro, 1987:31).
A influência dos geógrafos franceses na formação de Orlando Ribeiro não se
resumiu a leitura de Vidal de La Blache, sendo de grande importância em sua
formação os contatos que estabeleceu durante os anos que viveu em Paris (1937-
1940). Sua preocupação diante da espacialização do tempo no Mediterrâneo sugere
uma aproximação aos estudos de autores como Fernand Braudel e Marc Bloch186. É
a esta tradição que se refere quando diz que, apesar de o contexto do pós-guerra ter
levado os geógrafos a refletirem sobre realidades muito dinâmicas, o interesse da
geografia deveria se concentrar principalmente nos elementos de permanência.
Afinal, como o próprio autor afirma , “alguma coisa permanece nas próprias obras e
183
(Ribeiro, 1999:67). 184
Destaco que a “questão nacional” - que se confundia com a “questão colonial” - marcou gerações de intelectuais portugueses ao longo do Estado Novo. Cf, entre outros, Thomaz, 1997; Castelo, 1999. 185
Importante considerar que o francês Vidal de la Blache exerceu grande influência neste período, sendo considerado o fundador da geografia regional francesa, muito lido por autores como Lucien Lefebvre. 186
Uma das obras mais conhecidas de Orlando Ribeiro é “Portugal, o Mediterrâneo e o Atlântico” (1945). É de se destacar que, junto com Lefebvre, Marc Bloch foi um dos fundadores da revista dos Annales.
107
nos destinos humanos” (Ribeiro, 1970:53), e era através do estudo da transformação
que se chegaria aos elementos desta realidade duradoura. Ribeiro faz assim uma
dura crítica aos trabalhos de “Geografia de grande actualidade, onde
sistematicamente o passado se omite ou desconhece, como se nele não estivesse,
tantas vezes, a compreensão do presente” (Ribeiro, 1970:50). A passagem seguinte
mostra o compromisso de Orlando Ribeiro em relação à aproximação entre história e
observação:
Ao ritmo imperceptível de transformações que a observação sugere mas só o espírito reconstitui, decorre o mais profundo da história humana, aquela que não tem datas nem personagens e flui obscuramente, através da vida popular, do princípio dos tempos até hoje187.
Nos seus Ensaios de Geografia Humana e Regional (1970), Orlando Ribeiro
cita a importância de Siegfried em sua orientação de estudos sob critério regional, e
mostra que esta orientação básica não era corrente em seu meio acadêmico, “como
se as 'regiões' não continuassem a ser as entidades fundamentais de qualquer
estudo de base e uma das faces de toda a Geografia” (Ribeiro, 1970:59). Tratava-se
assim de uma orientação que ganhava terreno no interior da Geografia de cunho
regional francesa, que Orlando Ribeiro buscava levar ao estudo de Portugal e de
suas colônias. A geografia caminhava, dentro desta perspectiva, “cada vez mais
para o estudo, essencialmente concreto, das diversidades regionais: territórios e
paisagens” (Ribeiro, 1987:28)188. No caso do estudo das marcas da expansão
portuguesa, esta orientação tinha a dupla vantagem de também possibilitar o estudo
científico, mesmo diante das lacunas de informações historiográficas sobre esta
expansão.
A etnografia de Jorge Dias (1907 – 1973)189 sobre a população da Ilha da
Madeira190, e o trabalho descritivo sobre arquitetura portuguesa em Goa de Mário
187
(Ribeiro, 1945:52). 188
É nesta mesma linha de argumento que Orlando Ribeiro afirma que é “do exame de fenômenos locais que ela procura elevar-se até às leis gerais que os regem” (Ribeiro, 1987:28). 189
Jorge Dias foi um etnólogo português com doutorado concluído em Munique em 1944, que aplicou em suas pesquisas as diretrizes da antropologia cultural. Sobre Jorge Dias ver Thomaz, Omar Ribeiro: “O bom povo português: usos e costumes d'aquém e d'além mar” in MANA 7(1):55-87, 2001; Leal, João: 2000. “A Antropologia Portuguesa entre 1870 e 1970: Um Retrato de Grupo”. In: Etnografias Portuguesas (1870-1970): Cultura Popular e Identidade Nacional. Lisboa: Dom Quixote 190
Ver Dias, Jorge: “Nótulas de etnografia madeirense: contribuição para o estudo das origens étnico-culturais da população da Ilha da Madeira”. In: Biblos, vol.28: 179 – 201.
108
Tavares Chicó (1905 – 1966)191 se tornam dois modelos a partir dos quais Orlando
Ribeiro defende a validade do método regional. Apresentarei brevemente o que
entendo ser a contribuição da abordagem de ambos os autores para Orlando
Ribeiro, para ilustrar a percepção regional da aproximação de aspectos físicos e
humanos na interpretação das paisagens, como afirmava Vidal de La Blache. Então,
poderei abordar a questão da civilização ibérica e do modo como os colonialismos
europeus se distinguiam em relação aos modos de se relacionar com as paisagens
tropicais.
Em “Aspectos e problemas da expansão portuguesa” (1962), Orlando Ribeiro
diz ter chegado, no decurso de suas “investigações de feição geográfica acerca da
expansão portuguesa no mundo tropical” (1962:23) a conclusões semelhantes ao do
etnólogo Jorge Dias192. Isto porque através do seu estudo dos instrumentos de
fixação do português nos trópicos, Orlando Ribeiro conseguiu dar uma resposta ao
grande debate sobre qual seria a origem do colonizador português. Observando
detalhes de ordem técnica sobre a moagem de cereais, encontrou na África do Norte
e em Portugal a mó de braço: “uma destas velhas técnicas que revelam a unidade
de civilização rural do mundo mediterrâneo” (Ribeiro, 1962:24). A mó de braço, típica
do Algarve, só se encontra em Cabo Verde, não existindo nos outros territórios
portugueses. Para o autor, isso seria um “indício de que os pródromos da expansão
portuguesa se fizeram à custa do Algarve, onde está mó de braço era de uso
corrente” (Ribeiro, 1962:25 – rever citação). É neste aspecto, comum aos estudos
etnológicos de Jorge Dias sobre o folclore, que Orlando Ribeiro busca encontrar, na
paisagem observada e descrita, raízes que remontam a um passado distante, e que
assim podem auxiliá-lo a compreendê-lo.
O trabalho de Mário Chicó foi publicado no mesmo ano da viagem de Orlando
Ribeiro a Goa, em um número especial da Revista Garcia da Orta, dedicada
exclusivamente ao estudo da Índia Portuguesa. Interessa-nos aqui compreender em
191 Mário Chicó foi um historiador da arte de origem luso-goesa formado na Faculdade de Letras
da Universidade de Lisboa. Sua obra sobre arquitetura medieval portuguesa e sobre arquitetura em Goa é referência até os dias atuais. Cf. entre outros França, José-Augusto: “O Prof. Mário T. Chicó: a propósito de A Arquitectura Gótica em Portugal” Mário Tavares Chicó, 1905-1966 . Lisboa : Tipogafia A. Coelho Dias [196?], pp.119-122. 192
A questão foi apresentada em termos dos instrumentos de fixação, muito caros ao debate em torno das condições de aclimatação do homem europeu nos trópicos. Neste contexto, a questão da alimentação (a importância do cultivo de cereais) e a questão das formas de residência (o debate arquitetônico sobre as casas) são de grande importância para Orlando Ribeiro, sendo que Gilberto Freyre dedicou algumas páginas a seus estudos sobre casas portuguesas na África.
109
que medida Chicó encontrou, através de uma minuciosa descrição, elementos
comprovativos de um “estilo nacional” na arquitetura religiosa de Goa, apesar da
fachada das principais igrejas seguirem padrões renascentistas italianos. A
observação, assim, deve ser minuciosa e metódica, não se deixando trair por falsas
impressões. Descreverei brevemente o argumento de Mário Chicó para então
mostrar de que maneira Orlando Ribeiro buscou se prevenir do perigo analítico de
tomar a semelhança por identidade, agrupando e comparando fatos de forma
descuidada.
Em seu estudo sobre arquitetura religiosa em Goa, Mário Chicó argumentava
que, ao contrário do Brasil, onde a ocupação urbana e os edifícios públicos
acompanharam o lento processo expansão do cristianismo, “na Índia, pelo contrário,
era preciso caminhar mais depressa e dar monumentalidade aos edifícios públicos,
às igrejas e aos conventos” (Chicó, 1956:326). Ao observar além das linhas da
ocupação urbana, o autor tenta compreender a genealogia do traçado das Igrejas da
Índia Portuguesa. Se a fachada é a parte “que mais prende a atenção dos
construtores por ser a que revela maior esforço monumental” (Chicó, 1956:3), é nos
detalhes de uma decoração interna a estas – a talha dourada – que ele consegue
ver além dos “vestígios da escultura renascentista de inspiração francesa e italiana”
(Chicó, 1956:4). Importante notar que, tanto em Jorge Dias como em Mário Chicó, as
observações eram lançadas sobre aspectos residuais, relegados ao presente como
relíquias que evocavam o passado que buscava se compreender.
Assim, vemos que para Orlando Ribeiro o debate sobre os instrumentos de
fixação, como as técnicas de moagem de cereais e a arquitetura adequada a
ambientes tropicais, são elementos de um problema mais amplo referente às
civilizações. E a questão das civilizações é importante, pois, sendo as regiões uma
simbiose entre aspectos físicos e humanos, é através da ação humana que a
paisagem ganharia suas feições mais características. É neste sentido de
transformação das paisagens que Orlando Ribeiro argumenta que o “homem não é
um „produto da superfície terrestre‟ determinado e explicado pelo condicionamento
natural que nela se realiza” (Ribeiro, 1980:55). Para Orlando Ribeiro, o movimento
de expansão europeia, que tornou
ubiquistas as formas de uma civilização, embora com expressões regionais de maior ou menor originalidade, é
110
porventura o desmentido mais categórico a este condicionamento natural que até então mantivera técnicas e hábitos dentro dos ambientes a que eles melhor se ajustavam193.
Assim, a região geográfica é entendida por Orlando Ribeiro como o “produto
de combinações naturais a que o homem, com a ferramenta da civilização, soube
dar certa „personalidade‟” (Ribeiro, 1965:16). É assim a ocupação regionalmente
orientada que garantiria a personalidade da região. A questão aqui recolocada é
então a das condições de aclimatação de técnicas e hábitos. Na medida em que a
civilização ocidental seria, de fato, “um poderoso agente de transformação das
paisagens” (Ribeiro, 1970:85), estaria em questão o avanço técnico que prosseguiu
no sentido de estar “rasoirando implacavelmente as expressões regionais das
paisagens e dos modos de vida” (Ribeiro, 1970:77). Desta maneira, Orlando Ribeiro
se coloca diante de uma questão complexa, em que a colonização pode representar
tanto “contatos revigorantes” e criativos, quanto processos destrutivos da
diversidade.
Aparentemente, Orlando Ribeiro oscila entre estas duas perspectivas,
argumentando em seu artigo “Região e rede urbana: formas tradicionais e estruturas
novas” (1965), que “a despeito dos poderosos recursos da técnica moderna – [...]
esta está longe de ser universal e toda poderosa” (1965:6). Acredito, contudo, que a
aparente indefinição seja reveladora da questão de fundo deste problema, qual seja,
o modo como diferentes formas de contato entre civilizações resultam em regiões de
maior ou menor originalidade. É, por exemplo, pelo fato da colonização portuguesa
ser ecológica que ficariam garantidas, nas paisagens que receberam sua influência,
a “personalidade própria de uma „região‟” (Ribeiro, 1970:90).
Vemos que a defesa da “região”, em Orlando Ribeiro, é multifacetada, sendo
tanto uma defesa de ordem científica quanto política. Isto ficará mais evidente na
leitura do Relatório na sessão seguinte, mas é importante destacar que é através
dela que Orlando Ribeiro compreende o lugar da originalidade, ou seja, das
tonalidades particulares entre paisagens que, pertencendo a uma mesma região,
não deixam, contudo, de se individualizarem194. A questão da unidade e da
193
(Ribeiro, 1970:79 [meus destaques]). 194
O conceito de região é alvo de longo debate por Orlando Ribeiro, que se afasta da percepção de que esta seria uma unidade homogênea. Para uma discussão bem detalhada sobre o tema, ver “Região e rede urbana: formas tradicionais e estruturas novas” (Ribeiro, 1965).
111
diversidade é central ao debate que Orlando Ribeiro estabelece em torno do
conceito de região, e levanta questões importantes para o presente trabalho. Em “A
originalidade de Goa” (1957), Orlando Ribeiro diz que “duas grandes civilizações, em
tantos aspectos feitas para se repelir, entraram aqui em contacto fecundo; nesse
contacto reside essencialmente a originalidade de Goa” (Ribeiro, 1957:170). Neste
artigo, Ribeiro faz uma leitura sugestiva da orientação metodológica que tenho aqui
abordado, apontando as condições sociais e históricas do contato de civilizações
estabelecido em Goa. Desta, destacava não terem existido “nenhuma inovação no
comércio ou na vida rural, permanência das formas de organização e ocupação do
espaço, mas assimilação profunda acompanhada de uma insignificante mestiçagem”
(Ribeiro, 1957:179).
Nesta assimilação profunda, um dos aspectos enfatizados por Ribeiro é, na
linha de sua formação teórica, a alteração da paisagem. Assim, afirma que “raros
lugares haverá em Portugal onde as marcas religiosas sejam tão aparentes; neste
sentido se falou, com toda a propriedade, de „uma paisagem romântica nos trópicos‟”
(Ribeiro, 1957:173). Seu argumento se assemelha aqui àquele de Mário Chicó sobre
a monumentalidade das igrejas de Goa, e do modo como marcavam de forma
inconteste a paisagem com um daqueles signos mais poderosos da civilização
ocidental: a religião cristã. Foi através do cristianismo que
entraram nela [a população cristã] usos, reacções, sentimentos, formas de vida de relação, maneiras de trajar, que aproximam dos Portugueses gente separada deles pela origem e pela língua195.
A questão que se coloca então é sobre os sentidos desta aproximação.
Assim, Orlando Ribeiro sugere cautela na interpretação destes fatos, mostrando
que, apesar da descrição e da comparação serem elementos centrais da Geografia
regional, um dos aspectos centrais a esta seria o conhecimento de que, a despeito
da semelhança, e visto que “certos traços de relevo, certa tonalidade de clima, certa
fisionomia de vegetação, aproximam lugares distantes, fazem lembrar paisagens já
vistas” (Ribeiro,1987:7 [meus destaques]), ainda assim “cada região é um ser único,
a resultante de combinações complexas que se não repetem integralmente noutro
lugar” (Ribeiro,1987:7). Em outras palavras, as semelhanças não devem nunca
suprimir o reconhecimento desta originalidade, com o risco de se incorrer em
195
(Ribeiro, 1957:174).
112
interpretações equivocadas sobre o sentido desta aproximação. A comparação
estabelecida por Ribeiro é em relação ao parentesco, onde “as pessoas se parecem
sem deixarem de ser diferentes” (Ribeiro, 1987:7).
A preocupação em torno deste perigo analítico é também expressa em
Geografia e reflexão filosófica (1980) em que Ribeiro toca em um assunto de grande
interesse a esta pesquisa. Como dirá o geógrafo, existem dois caminhos para o
raciocínio: a aproximação dos fatos, que seria o pensamento indutivo, e a
comprovação de ideias pré-estabelecidas, que seria o pensamento dedutivo. Ao
método indutivo, que defende como sendo o mais característico das ciências
experimentais como a Geografia, seria de grande importância a capacidade de
discernimento, “para não confundir semelhança com identidade e identidade com
aproximação” (Ribeiro, 1980:197). É sugestivo então o questionamento do autor, em
um artigo publicado na imprensa portuguesa: “Onde estamos? Na Índia ou no Brasil,
nos Açores ou em Cabo Verde, ou ainda entre velhas famílias da nossa aristocracia
mais provinciana e mais autêntica?!” (Ribeiro, 1956:50). Assim, sendo a comparação
definida pelo autor como a “alma da geografia”196, o discernimento se sustentaria
sobre a descrição.
É neste sentido que, em “Introdução ao estudo da Geografia regional”
(Ribeiro, 1987), o geógrafo adverte o leitor dos riscos inerentes ao espírito de
sistema, na medida em que este toma o semelhante por igual, ignorando elementos
que poderiam, potencialmente, sustentar separações197. Adverte assim que à
sedução da criação da ordem diante do caos, se apresenta o
perigo de, por espírito de sistema, mostrar igual o que é semelhante e semelhante o que é afim, retendo os caracteres comuns e classificando por eles, mas esquecendo (ou escamoteando...) tudo o que é diferente, e como tal, separador198.
196
A definição aparece em diversos momentos de sua obra, por exemplo, em Ribeiro (1970:25). 197
As duas tendências da Geografia, uma voltada à busca de universais, e outra à busca do particular, existiriam, segundo Orlando Ribeiro, desde a gênese da própria Geografia. A primeira remonta ao conceito de “ecúmena” de Ptolomeu, e a segunda teve sua maior expressão em Estrabão (Ribeiro, 1987:15). Ribeiro ainda dedica algumas importantes reflexões sobre Estrabão em seu livro Geografia e Reflexão filosófica (1980:187). 198
(Ribeiro,1987:8).
113
Humboldt e Carl Ritter, fundadores da moderna geografia, se colocam cada
um no interior de uma dessas correntes distintas199. Leite de Vasconcelos é
lembrado por Orlando Ribeiro como o mestre que lhe ensinara além de tudo a
humildade intelectual, a postura de estar “pronto a abandonar a sedução de uma
hipótese que uma exploração mais completa não permite manter ou confirmar”
(Ribeiro, 1980:200). A consciência claramente definida por Orlando Ribeiro é a de
que a busca pela objetividade deve guiar as investigações em geografia, por mais
que fora das ciências naturais não possa haver a definição de métodos e leis
rigidamente universais. Assim afirma que, partindo da observação e buscando nexo
explicativo entre fenômenos, é “precisamente em nome do espírito científico que não
se deve simplificar o que é complexo nem considerar „necessárias e previsíveis‟
relações contingentes e variáveis” (Ribeiro, 1987:11).
Se sua observação tivesse se resumido às famílias dos luso-descendentes de
Salcete, a imagem que teria passado a seus leitores seria a de uma Goa
profundamente lusitanisada: “Mas Goa não é só isto” (Ribeiro, 1956:54). Uma
descrição escrupulosa e ampla, aliada à comparação, teria o mérito de não tomar a
parte pelo todo, sugerindo desta forma uma realidade mais complexa do que as
primeiras impressões poderiam implicar. É através da comparação que Orlando
Ribeiro (1956) pôde afirmar que Goa seria um caso diferente do que ele próprio
havia visto em outros territórios do Ultramar 200. E foi a comparação que lhe permitiu,
em Goa, diferenciar a presença portuguesa entre as famílias de Salcete e do
restante do território. As conclusões que retirou da comparação entre Goa e Damão
serão trabalhadas na próxima sessão, mas sugerem a importância deste tipo de
abordagem para o autor.
Assim, é sugestivo ressaltar que, no que se refere a seu interesse pela
descrição como método, Orlando Ribeiro conta que, em Paris, fora discípulo de
Emanuel de Martonne, a quem descreve como “meu mestre, [que] praticava a
observação mais escrupulosa antes de concluir” (Ribeiro, 1980:197). Diante deste
elogio a seu mestre francês, Orlando Ribeiro apresenta ressalvas à prática de Pierre
199
Para Humboldt tratava-se de uma busca pelo geral, enquanto Ritter atentou-se para a ação humana e para as relações entre os espaços, que não estão nunca isolados (Ribeiro, 1987:XX). Apesar desta sua aproximação a Ritter, Orlando Ribeiro expressa uma profunda admiração por Humboldt (Ribeiro,1980:200). 200
O geógrafo nos revela, em seus cadernos de campo, ter chego à Goa através de uma viagem pelo norte e leste africano. Os cadernos de campo de Orlando Ribeiro estão disponíveis para consulta na secção de Reservados da Biblioteca Nacional de Portugal (Lisboa), em versão digitalizada.
114
Birot, também discípulo de Emanuel de Martonne, mas que “pratica sempre a
observação selectiva, eliminando os factos banais e desentranhando os que
considera significativos. Partindo de várias observações rápidas e, ao meu ver, nem
sempre completas” (Ribeiro,1980: 198)201. É neste sentido que diz que
excepto talvez Birot, com quem fiz inúmeros percursos apressados mas de cuja maneira de trabalhar mais me afasto, sem deixar de admirar profundamente o robusto talento e a vastidão da cultura, nunca os geógrafos referidos trabalharam a partir de modelos ou de teorias preconcebidas202.
Em um artigo em homenagem a este mestre em comum, Ribeiro enfatiza que
Birot praticava como método a elaboração de todas as hipóteses possíveis,
assumindo então as opções mais prováveis. Vemos que Orlando Ribeiro se afasta
deste método de observação, inserindo-se na genealogia intelectual que, através do
francês Emanuel de Martonne, o ligava aos geógrafos alemães que mais
admirava203. Ao lado de Pierre Gourou, Carl Troll, com quem Orlando Ribeiro havia
realizado pesquisas em diversas partes do mundo, afirma Ribeiro que “todos me
fortaleceram num conceito de Geografia como „descrição e interpretação das
paisagens terrestres‟” (Ribeiro, 1980:199). Se os modelos reduzem a diversidade do
mundo em um esquema uniforme de códigos, o geógrafo faz a defesa da descrição
enquanto método indutivo fundamental, que partiria da aproximação dos fatos para
construir então as ideias.
O postulado científico que embasava a posição de Orlando Ribeiro era aquele
que havia sido afirmado por Jacques Monod, para quem a natureza seria objetiva, e
não projetiva. A esta tendência a uma geografia projetiva Orlando Ribeiro também
denominou de geografia do futuro, visto pretender que um plano seja constituído a
partir das formas presentes de organização da paisagem. É com certa ironia que
Orlando Ribeiro se refere a esta perspectiva que busca associar região e
201
Orlando Ribeiro conheceu Pierre Birot durante seus anos de estudo em Paris, e o descreveu como “meu excelente amigo e colega Pierre Birot” (1973:166). 202
(Ribeiro,1980:200). 203
Emanuel de Martonne havia estudado na Alemanha, onde a referência principal evocada por Orlando Ribeiro é a de Lautensach (Ribeiro,1980:198).
115
planejamento, dizendo que “elas concernem à geografia do futuro, e...o futuro a
Deus pertence, diz a sabedoria popular da nossa língua” (Ribeiro,1973:11)204.
Enfatizado então seu interesse pela geografia regional descritiva, veremos
que Orlando Ribeiro estava consciente de estar apresentando, em seu Relatório ao
governo, realidades incômodas. A Missão tinha como objetivo dar validade científica
a narrativas díspares, sendo que as
observações francamente animadoras de geógrafos e sociólogos estrangeiros, como Gourou, Spate, Siegfried e Gilberto Freyre, receberiam assim ampla confirmação e o desenvolvimento que, nas actuais circunstâncias, parecia oportuno conceder-lhes205.
As observações consideradas animadoras eram aquelas que encontraram em
Goa um estável enraizamento da cultura portuguesa, a exemplo da leitura que
fizemos de Gilberto Freyre. Contudo, Orlando Ribeiro retratou em seu Relatório uma
imagem muito distinta, afirmando que Goa “apareceu aos meus olhos como a terra
menos portuguesa de todas as que vira até então, menos portuguesa do que a
Guiné, pacificada em 1912!” (Ribeiro, 1999:64).
Este é provavelmente o trecho mais citado do Relatório, na medida em que
evidencia uma quebra de expectativas que a leitura de outros observadores
enviados a Goa no mesmo período teria criado. Contudo, em uma publicação de
1957, ano posterior ao envio do Relatório ao governo, Orlando Ribeiro tenta conciliar
as perspectivas mencionadas, enfatizando “a originalidade de Goa na Índia, que as
observações insuspeitas de autores estrangeiros (Krebs, Gourou, Siegfried, Spate)
várias vezes puseram em relevo” (Ribeiro, 1957:179). A curiosa ausência de Freyre
nesta lista de autores pode sugerir dúvidas quanto ao caráter insuspeito do
observador brasileiro, por mais que Ribeiro abrace seus pressupostos teóricos
quanto ao caráter assimilador do português.
Há no trabalho assim proposto pelos membros da Missão de Geografia da
Índia uma necessidade de esquadrinhar a paisagem em seus menores detalhes.
Para a efetivação deste projeto, Orlando Ribeiro e seus dois discípulos percorreram
Goa durante vários meses, onde colocaram em prática os pressupostos da
204
Nada mais distante, assim, da postura assumida por Gilberto Freyre já no fim de sua vida, quando passa a se dedicar ao que denominava “futurologia”. Uma abordagem significativa deste seu projeto pode ser encontrada no livro “Além do apenas moderno” (Freyre, 1973). 205
(Ribeiro,1999:62).
116
descrição aqui abordados. Abordarei a seguir os aspectos que mais interessaram a
Orlando Ribeiro, que se afastou da propaganda oficial portuguesa sobre Goa ser um
território assimilado, defendendo contra essa a idéia de um encontro pacífico entre
duas civilizações. O equacionamento de ambas era então ainda incerto, não sendo
garantida a integração de Goa na comunidade de destinos que Gilberto Freyre via
entre os diversos territórios portugueses no ultramar.
Se muita gente visitou Goa nos últimos tempos, não sei de ninguém que, como nós, esquadrinhasse os seus recessos: uns viram apenas o que desejavam encontrar, outros o que lhes mostraram, alguns o que um excessivo apego ao conforto lhes permitia observar sem se desprenderem dele. O meu íntimo modo de ser, se não bastasse o propósito deste relatório, leva-me a ser inteiramente sincero, a não esconder aspectos menos agradáveis, a não dissimular facetas que ferem a nossa sensibilidade nacional. Penso que é bom olhar de frente a realidade, por menos grata que nos seja essa contemplação. Só assim se evitam equívocos, miragens, hesitações, e se sabe ao certo com que contar e donde se tem de partir206.
2. O Relatório: Goa em 1956
Lembro que um extenso relatório “reservado” sobre a situação de Goa em 1951 [sic], mandado espontaneamente ao Presidente da República e ao governo (Salazar agradeceu-me numa longa carta autografada a “preciosa informação”), não teve qualquer resultado prático (Ribeiro, 1981:190)207.
Buscarei abordar a mudança de perspectiva desvelada ao longo do Relatório,
apontando que, se no início somos levados a crer em um afastamento em relação a
Gilberto Freyre, a percepção sobre o núcleo lusitano de Diu nos coloca diante das
mesmas disposições teóricas do autor brasileiro. Mais do que isso, esse aparente
paradoxo se sustenta na construção da imagem do “outro colonizado”. Para Ribeiro,
a inexistência de mestiçagem em Goa não colocaria em risco a pertinência do
projeto português de assimilação dos povos, mas apenas levaria a uma acusação do
hermetismo do sistema de castas hindus, que criou obstáculos à manifestação do
verdadeiro caráter português. Prova disso seria a forte influência portuguesa em Diu.
É neste sentido que Orlando Ribeiro irá avaliar o hinduísmo renascente em Goa,
206
(Ribeiro:1999:65). 207
Apesar de mencionar o ano de 1951, os detalhes apresentados pelo autor comprovam que se trata, na realidade do Relatório que enviou ao governo em 1956 (Ribeiro, 1981:190).
117
onde centenas de cristãos convertidos foram reconvertidos ao hinduísmo. Esta é a
ameaça que Portugal deveria, segundo ele, combater.
É neste sentido que diz que é só nos descendentes que podem confiar, mas
ainda mantendo a ressalva de que o sincretismo é pernicioso, o duplo referencial
pode levar a que o jogo mude os termos quando menos se espera, e que este grupo
está em declínio desde a extinção do exército da Índia. Somente com a
consolidação de núcleos lusitanos e de um amplo sistema educacional sob critério
regional é que as raízes portuguesas em Goa, evidenciadas nos monumentos de
Velha Goa, poderão articular-se em um sentido de Pátria comum aos demais
portugueses. É neste sentido que o Dr. António Colaço (1898 – 1983)208 diz ao
geógrafo que, para ele, as duas razões do afastamento entre goeses e Portugueses
se deu pelo Salazarismo e pela figura de Gandhi. Este sentido de pátria ele pôde
encontrar em Damão, sendo que assim se alteraram suas percepções iniciais sobre
a ação lusitana na Índia, fornecendo a contraprova das disposições de caráter que
Goa parecia refutar.
Em referência ao esforço português de manter Goa, a despeito dos prejuízos
econômicos que advém desta posição, é preciso lembrar que para Orlando Ribeiro o
colonialismo português difere do anglo-saxão por não ser marcadamente utilitarista.
Segundo ele, sem amor não é possível governar, e a missão portuguesa em Goa
seria a de todo o Ocidente enquanto detentor da cultura universal. Assim, critica o
desinteresse dos intelectuais portugueses pelo Estado da Índia, mostrando que o
ensino sob salazar não contribui para o estado de coisas. Elogia os monumentos,
dizendo que os jovens deveriam vê-los, pois talvez seriam capazes de senti-los. Goa
faria parte de uma unidade nacional ainda incorrupta, e deveria permanecer
portuguesa.
Fala ainda sobre a divisão de Goa entre as Velhas e as Novas Conquistas,
sendo que na primeira foi maior o fervor assimilacionista, abandonado quando da
obtenção das Velhas Conquistas, cujo interesse foi maior no aspecto da defesa
militar. O hinduismo não foi extirpado até hoje, mas o migrante é sempre o cristão,
que fez do mundo sua casa. Por mais que os emigrantes em Bombaim sejam
notáveis por sua defesa de Portugal, muitos cristãos foram tomados pela miragem
da independência. Um dos maiores problemas de Goa em relação a Diu foi com as
208
O Dr. António Colaço (1898 – 1983) era membro da Escola Médica de Goa.
118
conversões em massa, que não garantiram uma verdadeira conversão dos hindus
aos ideais cristãos, sendo que a Igreja teve um papel na manutenção de um
sentimento goês, pela promoção do concanim, com deploráveis consequências209.
A força das castas é tanta mesmo entre os goeses cristãos de Moçambique e,
em Goa, o palácio visitado pelo Ministro do Ultramar teve que ser conspurcado.
Enfatiza o predomínio português entre famílias de Salcete, que não tem uma gota de
sangue português, e são os que melhor ilustram a capacidade de assimilação do
português. Assimilação que, no entanto, ocorreu sem a correspondente
miscigenação, o que talvez a torne incompleta. É assim que Ribeiro questiona: “Mas,
porque não penetrou nesta sociedade o sangue português, quando, em toda a parte,
a colonização se tingiu fortemente das cores das mulheres da terra? Porque a isso
se opunha o vigor do sistema de castas em que os Cristãos de Goa se encontram
divididos” (Ribeiro,1957:175 [grifos meus].
Os hindus, por sua vez, são dissimulados, hábeis e ingratos. De qualquer
modo, Orlando Ribeiro não recomenda a propaganda falsa: cristãos não são a
maioria, e o governo deve insistir no argumento da coexistência pacífica e no
respeito pela tradição hindu. A constatação de sua permanência é mais vantajosa
que mascarar sua existência sob a falsa égide de um ocidentalismo.
Ao contrário do Brasil ou da África, ou mesmo de Macau, onde o português se cruzou, atraído fortemente pela irresistível simpatia que tem para ele a mulher de cor, a mulher indiana repeliu sempre este intruso, que ainda hoje lhe desperta visível desconfiança, se não autêntica repugnância210.
Assim, as causas da marginalidade da mestiçagem em Goa se deu por
razões externas às disposição de caráter do colonizador. Se aqui Ribeiro se
aproxima do argumento de Gilberto Freyre sobre a predisposição à mestiçagem dos
portugueses, em outros momentos se afasta do autor brasileiro. Assim, quanto à
língua, diz que “o concanim é a fala do lar, da rua e do amor” (Ribeiro, 1956:80). Os
lusodescendentes representariam o elemento mais original da expansão portuguesa.
A originalidade de Goa reside neles, onde apesar da reduzida mestiçagem não
impediu a assimilação de valores ocidentais. Deste modo percebemos que as
209
O concanim é a língua vernácula de Goa, falado até a contemporaneidade pela esmagadora maioria de sua população. 210
(Ribeiro,1999[1956]:80).
119
publicações de Orlando Ribeiro sobre Goa acabam identificando esta como Velha
Goa e, mais especificamente, às famílias descendentes de Salcete. Seu Relatório
confidencial apresenta contudo uma imagem mais completa, em que o elemento
hindu aparecia enquanto a maioria da população, e o sentimento antiportuguês
prevalescia.
Assim, o Goês cristão se integra sem esforço naquela „unidade de sentimento e de cultura‟ (Gilberto Freyre) constituída por todos os povos de formação portuguesa de quatro partes do mundo (Ribeiro, 1957:177).
Retomemos por um instante a separação entre Velhas e Novas Conquistas tal
qual aparece no Relatório. Em artigo escrito ao Diário Popular quando ainda estava
em Goa, Orlando Ribeiro diz que “quer se chegue a Goa por navio ou por avião, o
viajante desembarca no coração das Velhas Conquistas e são as imagens de uma
terra cristianizada há quatro séculos as primeiras que lhe é dado observar” (Ribeiro,
1956:49). Antes de adicionar a esta imagem o hinduísmo majoritário, principalmente
nas Novas Conquistas, o autor descreve uma série de elementos da paisagem que
observou: “igrejas escrupulosamente caiadas, que se abrem para adros com
cruzeiros monumentais, capelas na margem dos rios ou no cimo dos outeiros”
(Ribeiro, 1956:49). É curioso que esta seja a imagem que o autor apresente para um
artigo destinado à imprensa metropolitana, quando em seu Relatório ao Governo
logo no início ele diz, notadamente desapontado, que Goa “apareceu aos meus
olhos como a terra menos portuguesa de todas as que vira até então, menos
portuguesa do que a Guiné, pacificada em 1912!” (Ribeiro, 1999: 64). O sentido
atribuído ao caráter português deve, contudo, ser investigado. Acredito que se trata
aqui de um sentido mais político-identitário, em comparação com o sentido mais
cultural defendido por Gilberto Freyre211.
No entanto, no mesmo Relatório, Orlando Ribeiro recomenda que o Governo
enfatize a convivência pacífica entre hindus e católicos, ao invés de defender que
Goa é majoritariamente católica e lusófona. É assim que no artigo ao Diário Popular
ele continua suas impressões dizendo que “Goa não é só isto. A população cristã é
hoje menos de metade da total” (Ribeiro, 1999: 54), e os sinais exteriores do tulsi e
211
Não pretendo, contudo, estabelecer que o político e o cultural não possam coincidir ou ao menos se entrecortar. A questão é compreender qual dos níveis cada um dos autores abordou de forma mais detalhada.
120
da cruz identificam a casa dos hindus e dos católicos, respectivamente212. As
interpenetrações de ambos os grupos é notada pelo autor, que mostra como os
hindus participam da festa de São Francisco Xavier do mesmo modo que os cristãos
participam da festa do zatra. Diz o autor que “nestas festas, nas reuniões, em
encontros de acaso, a gente de todas as crenças aparece misturada” (Ribeiro,
1999:58). O que Orlando Ribeiro apresenta é uma Goa socialmente complexa, longe
da imagem homogênea que lhe conferia a propaganda oficial. Como proceder para
que sob este único rótulo não se reúna demasiada e perigosa diversidade? A ênfase
em apenas um dos aspectos, a Goa católica, parece não ser a opção política mais
desejável. Como afirma o autor, os fatos podem ser desmentidos. Assim, é na
convivência pacífica de diferentes religiões que se deve insistir a propaganda, visto
ser esta convivência fruto do caráter imutável dos portugueses, que garantiria
unidade ao território.
Apesar desta convivência pacífica, enfatizada nas obras publicadas do autor,
o Relatório é claro quanto ao ambiente de hostilidade sentido em relação aos
portugueses. Assim, devo aqui mencionar alguns aspectos do contexto político local
em 1955, para compreender o lugar em que Ribeiro identificou a insatisfação goesa
em relação aos portugueses. Do ponto de vista moral e material, famílias estavam
separadas pela fronteira com a União Indiana, o que lhes causavam grandes
incômodos. Assim, “famílias que recebiam do homem, trabalhando na União Indiana,
o seu sustento, veem-se hoje privadas de recursos” (Ribeiro, 1956:113). A política
de isolamento estava sendo levada a cabo desde o início de 1954 por parte da
União Indiana, e é descrita em correspondências do então administrador do Banco
Nacional Ultramarino, Teófilo Duarte (1898 – 1958)213. Em 1955, após uma visita a
Goa em março, o administrador escreve um relatório pormenorizado alertando para
o agravamento da situação, onde aponta que existiam na Índia cerca de cem mil
goeses que enviavam mensalmente dinheiro para familiares em Goa, e que esse
212
Orlando Ribeiro faz referência, aqui, ao costume goês de se colocar, em frente às residências, a planta sagrada do hinduismo, o tulsi, ou o símbolo do cristianismo, a cruz. Para uma etnografia atenta especialmente a estes marcadores, ver Perez (2012). 213
Teófilo Duarte havia sido Governador de Cabo Verde em 1918-1919 e de Timor em 1927-1928. Entre os anos de 1947 a 1950 ocupara a cadeira de Ministro das Colônias. No início de 1954, o Reserve Bank indiano passou a consideram pessoas, firmas e companhias das possessões portuguesas como “não-residentes” o que implicava a necessidade de autorização para realizar operações.
121
circuito estava ameaçado pelas medidas de impedimento214. Teófilo Duarte fez parte
de uma comissão técnica de econômicos anunciada em janeiro de 1955 pela
Emissora Nacional215, e criada especialmente para buscar saídas ao bloqueio.
A importância dessas remessas já havia sido apontada pelo geógrafo Pierre
Gourou (1900 – 1999) em 1951, quando diz que o dinheiro enviado pelos goeses
emigrados era convertido em terra e casas, sendo que “é a estes emigrantes que
pertencem as casas de bonita aparência que parecem em desacordo com a pobreza
do país” (Gourou, 1951). De fato, e apesar das medidas econômicas terem se
agravado no início de 1955, desde o ano anterior que medidas eram executadas
pela União Indiana com a finalidade de dificultar a circulação de goeses entre as
Goa e Índia216. O bloqueio econômico se fez após as primeiras dificuldades criadas
à circulação de pessoas, e Ribeiro (1956) lembra que “dentro da rigidez do sistema
de castas, muita gente era obrigada a casar na Índia vizinha e não o pode fazer
hoje” (Ribeiro, 1956:113), o que causava um desconforto muito grande
principalmente aos goeses mais jovens. Apesar de os documentos pouco
mencionarem a respeito do impacto social do problema, centrando-se mais em
dados numéricos, estas observações sugerem que a dimensão do impacto destas
medidas ia dos arranjos familiares à exportação interrompida da noz de areca.
Assim, Orlando Ribeiro lamenta que a situação política o obrigou a tratar os
territórios portugueses como ilhas, e sua conclusão é disso sugestiva, dizendo que
“numa situação embrulhada como esta, tudo afinal se pode virar contra nós...”
(Ribeiro, 1956:118), e isto dar-se-ia na medida em que o nacionalismo indiano
estava atraindo cada vez mais goeses, principalmente tendo em vista que “a própria
população local está muito longe de compreender o sacrifício do país em assegurar-
lhe paz social e bem-estar econômico” (Ribeiro, 1956:66). Esta incompreensão
baseava-se na percepção de que Goa seria uma terra amplamente esquecida pelos
portugueses, afirmação que o autor se vê obrigado a endossar, propondo que o
quadro se altere com a aproximação material e intelectual entre Goa e a metrópole.
O afastamento de Goa e Portugal foi por Orlando Ribeiro discutido com o Dr.
214
O relatório de Teófilo Duarte aponta ainda que há um ano (ou seja, em 1954) havia uma afluência semanal de milhares de indianos que vinham da União abastecer o comércio em Goa, e que isso deixou de existir. A viagem do administrador foi relatada na metrópole, onde o jornal “Diário da Manhã” publica a manchete “Uma festa hindu em honra do capitão Teófilo Duarte”, em 7 de março de 1955, onde retrata uma festa com cânticos e danças oferecidas a ele pela família Dempó. 215
PT/TT/AOS/D-N/14/3 (p.122-125). 216
Uma carta de Vital Gomes,de 23 de Abril de 1954 informa que a Índia estaria criando dificuldades para a circulação de portugueses do Paquistão à Goa via Bombaim.
122
Antonio Colaço, que pareceu ao geógrafo “pessoa de inteligência invulgar, grande
aprumo moral e possuidor de uma virtude rara aqui – a sinceridade”
(Ribeiro,1956:119). O que apresenta é a necessidade de ser ouvida a população
local, mas, no entanto, Ribeiro parece sugerir que esta resposta não seria favorável
à Portugal, é o que argumenta sobre a questão da identidade goesa em oposição à
Portugal217.
Sobre a identidade goesa, Orlando Ribeiro menciona “um menosprezo da
tradição cristã e da história, um sentimento índio (quem sabe se no fundo não
hindu!) que se sobrepõe ao patriotismo português” (Ribeiro,1956:121). A exceção
ficava com os lusodescendentes, os únicos que possuíam um patriotismo seguro, e
que seriam, “em toda essa massa ondulante e dúbia, inegavelmente os únicos com
quem se pode confiar” (Ribeiro, 1999:122). Neste aspecto, o trabalho de Orlando
Ribeiro assume as diretrizes do pensamento freyriano, mas concorda com a
excepcionalidade do caso Goês tal qual trabalhada por Alberto Carlos Germano da
Silva Correia (1888 – 1967)218. em suas investigações sobre os lusodescendentes.
O comportamento castista dos descendentes não decorreria de uma disposição
racista própria, mas da fronteira imposta pelo sistema de castas. Deste modo,
compreendemos que mesmo em frentes que aparentemente colocariam à prova o
argumento freyriano sobre a mestiçagem, o recurso à narrativa da excepcionalidade,
associada a uma visão específica sobre o sistema social hindu, se colocaram à
margem da retórica lusotropicalista sem contestá-la em seu fundamento. O caráter
português permaneceria existente como potencial, a ser colocado em prática à
medida em que as condições sociológicas locais se tornassem disponíveis a tais
trocas culturais e de miscigenação. É deste modo que entendemos como Orlando
Ribeiro pôde encontrar entre os cristãos de Salcete a mais alta expressão do poder
lusitano de assimilação. Mesmo sem uma única gota de sangue português, eram
expressão viva da cultura portuguesa. Assim,
quase sem influxo de sangue e conservada intacta a estirpe originária da sociedade indiana que abraçou o Cristianismo, que
217
Sobre a indefinição em relação ao futuro, acredito ser essa uma postura que Orlando Ribeiro manifesta ao longo de sua obra. A exemplo disso ele diz: „a História teve, assim, várias possibilidades e qualquer conjectura não passa de puro jogo do espírito” (Ribeiro, 1981:323). 218
Alberto Carlos Germano da Silva Correia (1888 – 1967) foi um médico e antropólogo luso-indiano. Para maiores detalhes sobre sua obra, ver John Monteiro (2007) e Ricardo Roque (2000).
123
constitui porventura o mais paradoxal e demonstrativo exemplo da capacidade assimiladora do Português219.
A sociedade Goesa aparece assim como heterogênea, e divergente em seus
posicionamentos em relação a Portugal. Sugestivo o ponto de inflexão em relação
às suas primeiras observações, em que Ribeiro diz que “o estudo do elemento
cristão, a comparação com o núcleo tão português, embora tão restrito, de Damão,
alteraram e corrigiram as observações iniciais” (Ribeiro, 1999:65), sendo que estas
observações se referem à influência que os portugueses conseguiram exercer na
Índia. Em Goa, contudo, prevalecia a identidade Goesa, que se sobrepunha à
identidade portuguesa, e que poderia ou não a esta se vincular. Assim, Ribeiro
mostra que
Ao contrário da África Portuguesa, onde há o maior cuidado em empregar expressões como Metrópole e metropolitano, em Goa opõe-se esta província a Portugal e o goês cristão opõe-se a português. É corrente sermos assim designados por gente muito próxima de nós na fala e nos usos, mas alheia ao nosso sentido de Pátria. Pátria para o goês é Goa220.
A questão mais urgente, apresentada por Orlando Ribeiro, seria a da
educação “porque, ou nós conservamos Goa e vale a pena tentar fazer dela uma
terra mais portuguesa, ou, no dia em que a perdermos, se poderá invocar ainda este
facto contra a legitimidade do nosso domínio” (Ribeiro,1956:102). A ausência do
sentido de pátria seria causado pelo desconhecimento em relação à originalidade da
expansão portuguesa no mundo, bem como da contribuição portuguesa para uma
forma de convívio social que se afastava daquele existente no restante da Índia,
onde o Paquistão seria a prova concreta da intolerância religiosa que certamente
acometeria os católicos de Goa no caso de sua integração à União Indiana. É o que
comenta Ribeiro dizendo que “os cristãos de Goa, com a integração e o sentimento
antiportuguês de que ela necessariamente se faria acompanhar, seriam, se não
inexoravelmente esmagados, ao menos apeados da sua tradicional preponderância”
(Ribeiro,1956:121).
Esta postura era corrente inclusive na imprensa metropolitana, que buscava
definir que só em Goa a tolerância entre hindus e católicos seria possível. O Ministro
219
(Ribeiro, 1957:177). 220
(Ribeiro, 1956:119).
124
Interino dos Negócios Estrangeiros envia carta a Salazar, em julho de 1955, dizendo
que se Goa fosse integrada à União Indiana os católicos rapidamente
desapareceriam221.
O impacto na comunidade Goesa de Bombaim do violento processo de
formação do Paquistão (1947) necessitaria de um estudo a parte, mas em 1955, um
aerograma de Pinto Lima222 dizia que a separação entre Índia e Paquistão fez com
que goeses de Bombaim não quisessem a integração de Goa, temendo a violência
que tal projeto poderia desencadear. Diante desse quadro de violência comunal,
havia um esforço por parte do Governo Português em aproximar a questão da
permanência de Goa à Portugal com a própria manutenção da Cristandade na Índia.
A tolerância que Ribeiro (1956) identificava em Goa contrasta todavia com o
clima de ódio aos cristãos no restante da Índia, tal como a imprensa portuguesa
veiculava neste período. No início de 1955, o Secretariado Nacional da Informação
envia aos órgão de imprensa a notícia de que uma procissão de cristãos em Delhi
havia sido interrompida por sacerdotes hindus, que ameaçaram os padres e jogaram
terra na imagem de Nossa Senhora.223 Em junho do mesmo ano, o Diário de
Notícias diz que em entrevista ao jornal, um reverendo chamado Roberto Barreto224
havia confirmado que em Dadrá e Nagar-Aveli os cristãos estavam sendo
perseguidos, e que a imagem de São Francisco Xavier havia sido quebrada.
Possivelmente a voz mais ouvida sobre os cristãos de Goa foi a de Dom José da
Costa Nunes (1880 – 1976), o Patriarca-emérito das Índias Orientais225.
Assim, ante as dificuldades econômicas reais, Orlando Ribeiro sugere à
propaganda portuguesa que não insistisse “em aspectos que o conhecimento dos
factos possa desmentir”, sendo que “um aspecto em que me parece dever insistir-se
é na coexistência pacífica e tolerante de duas religiões, na ausência de conflitos, no
convívio entre cristãos e hindus” (Ribeiro, 1956:99). A questão religiosa ganha assim
uma dimensão primordial no trabalho de Orlando Ribeiro, configurando o sentido e a
originalidade da expansão portuguesa. Na verdade, parece que qualquer elemento
221
PT/TT/AOS/D-N/14/10 (p.196-214). 222
Pinto Lima era membro do corpo diplomático de Portugal em Nova Delhi. Não encontrei informações detalhadas sobre sua carreira e, sendo assim, mantive a referência a seu nome tal qual aparece no documento em questão. 223
PT/TT/AOS/D-N/14/3 (p.122-125). 224
Minhas tentativas de encontrar maiores referências sobre Roberto Barreto não tiveram resultados. 225
Dom José da Costa Nunes (1880 – 1976) foi ordenado Patriarca emérito das Índias Orientais em 1940, depois de ter sido bispo de Macau e Arcebispo de Goa e Damão.
125
que Ribeiro tente advogar como fulcral à identidade portuguesa de Goa é
constantemente deslocado e inseguro, em face do caráter e a índole dos sujeitos
hindus. Assim, “como algumas divindades hindus, providas de três rostos e seis
braços, também a verdade sobre Goa tem formas várias e movediças” (Ribeiro,
1956:134).
E, ainda, “numa época utilitarista e realista, que vale o facto de termos ligado
à terra de Goa mais de metade da nossa história como nação independente?”
(Ribeiro, 1956:66). Seria através do reconhecimento da originalidade em questão
que a aproximação entre portugueses e goeses poderia se realizar. Assim, Orlando
Ribeiro dizia, sobre a fronteira entre Velhas e Novas Conquistas, que
é hoje, em grande parte, uma fronteira histórica. É certo que separa dois mundos, mas dois mundos que se interpenetram a ponto de encontrarem uma maneira de conviver na tolerância e no respeito mútuo das suas crenças226.
O caráter português é aqui definido mais em termos formais de organização
das diferenças, no que estabelecido por conteúdos culturais específicos, como
catolicismo ou miscigenação. Mas nem por isso Ribeiro se furta a mencionar os
agravos ocasionados pelo isolamento social e econômico de Goa. Neste quadro de
crescente isolamento, a pesquisa arquivística sugere que alternativas eram
buscadas na tentativa de suprir as dificuldades. Uma carta de Teófilo Duarte ao
Governador-Geral da Índia Portuguesa Paulo Bénard Guedes diz, a respeito das
remessas de goeses emigrados, que “verifica-se que eles têm usado para isso as
vias Moçambique, África Oriental Inglesa e Londres, mas principalmente a primeira
para neutralizar as intenções do Governo da União”227. É importante ressaltar que
essas vias alternativas se confundem com os espaços de forte presença de
migrantes goeses. Não por outro motivo Orlando Ribeiro lembra que “queixam-se os
goeses que Portugal, com tão vastos territórios em África, não os abra ampla e
francamente a esta gente, que noutros lugares tantos serviços têm prestado”
(Ribeiro, 1956:125). Lidos de forma conjunta, a carta e as impressões de Ribeiro
mostram que aos goeses eram mais acessíveis os postos de trabalho na África
Oriental Inglesa do que em colônias portuguesas. É isto que apresenta o autor
226
(Ribeiro, 1956:54). 227
PT/TT/AOS/D-N/14/3 (p.340-350).
126
quando diz que “o viajante observa com surpresa a profusão de nomes portugueses
em cidades da África Inglesa; é quase certo que se trata de filhos de Goa” (Ribeiro,
1957:178), e sobre esta presença diz que trata-se de “emigração dos ambiciosos e
dos hábeis, Brâmanes ou Chardó, qualificados para a luta e desejosos de triunfo”
(Ribeiro, 1957:179). A importante exceção de Moçambique recebe do autor logo
uma ressalva, onde diz que “em Moçambique veriam serenamente a integração de
Goa na União Indiana como a forma de acabar com os detestáveis monhés”
(Ribeiro, 1956:125).
Outro contraponto que encontrei se refere à circulação de mercadorias
através do contrabando, como aponta o correspondente do jornal indiano
Statesman, em um artigo intitulado “Abundância de tudo em todas as lojas. A
proibição indiana quanto ao comércio deve ser examinada”. Fala que apesar das
sanções impostas pela Índia em 1955, os produtos são todos encontrados, até mais
baratos que na própria Índia228. Uma outra carta de Pinto Lima, apresenta ainda um
quadro menos homogêneo da comunidade goesa em Bombaim. Diz que os goeses
mais humildes não possuem família na Índia, se organizando em Clubes
Residenciais que agregam aproximadamente quarenta mil pessoas, e que remetem
todas as suas economias para familiares em Goa229. Um quadro distinto é o dos
goeses que são funcionários de escritório, engenheiros e médicos, que em sua
maioria possuiriam família na Índia. O que o quadro sugere é que mais do que sobre
a questão econômica, “ambos aqueles grupos estão todavia ligados à Índia
Portuguesa por um factor comum o catolicismo [sic]”230. A questão é aqui em grande
medida mostrar de que modo a identidade Goesa se associa ao catolicismo, embora
a associação entre este e a Índia Portuguesa não é necessariamente afirmada em
outros contextos que abordarei adiante.
O próprio Orlando Ribeiro ampliará este quadro, dizendo que não seria
apenas o catolicismo que uniria os goeses de Bombaim, mas que “é grande a
coesão desta gente, unida pela origem comum, pelo falar concanim, em terra onde
se fala guzerate e marata, pela religião em oposição aos gentios, pelos usos
228
Ao que parece, a situação se complicou quando o bloqueio de contas portuguesas na União Indiana implicou na impossibilidade de Portugal pagar a pensão devida a residentes no país (PT/TT/AOS/D-N/14/5). 229
Em julho de 1955, muitos goeses de Bombaim não tiveram seus permits renovados pelo governo da União Indiana, o que obrigou muitos a retornar a Goa. Esta expulsão recaiu sobre importantes lideranças dos Clubes, como Sanches de Souza Cruz e Fonseca. (PT/TT/AOS/D/N/14/8; p.119-120) 230
PT/TT/AOS/D/N/14/8 (p.47-49) .
127
ocidentais no vestuário e no comer à mesa com talher, etc.” (Ribeiro,1956:82). Ao
sentimento patriótico desta comunidade o autor faz calorosa menção, dizendo que
entre eles encontrou um portuguesismo maior do que o encontrado em Goa, e que
são alvo de forte propaganda indiana, a que a maioria resiste. Porém, muitos
libertadores de Goa são recrutados entre aqueles que estão “demasiado
comprometidos para voltar à terra e um tanto desiludidos nas suas ambições...”
(Ribeiro, 1956:83).
A despeito do sentido um tanto esquivo desta sua conclusão, é de se notar
que as opções em jogo são aí decididas, em última instância, pelas ambições
pessoais e pelo comprometimento individual. Um argumento análogo estava sendo
usado pelo governo português para deslegitimar as pretensões de autonomia por
parte de alguns goeses, sendo que, segundo Oliveira Salazar “as discussões sobre
regimes de maior ou menor autonomia na administração não passaram nunca de
disputas familiares”.231
No mesmo discurso proferido à Emissora Nacional, Salazar lamenta que na
Índia a poesia domine a política, “e seja a sua doce poesia a disparar armas de fogo
contra pacíficos portugueses”232. A postura política de Portugal buscava descrever
sua presença na Índia como dotada de valores que transcendiam os meros recursos
materiais e a presença militar característica de outros regimes coloniais. É assim que
poucos dias após essa sua manifestação, na data simbólica da independência da
Índia (15 de Agosto), em que as ameaças aos enclaves portugueses se
intensificavam, foi feita uma vigília em Roma que teve por objetivo proteger Goa, no
dia marcado para sua amputação. O Padre Antonio Antunes Borges, reitor do
Instituto Português de Santo António proferiu uma palestra na “Rádio Vaticano” no
dia 23 de Agosto, com o título de “Goa, presença da Igreja no Oriente”. Mencionou
esta vigília e falou da missão cristianizadora que os portugueses realizaram em Goa,
e disse que “mais que na força das armas se confiou no valor da oração e do
sacrifício”233. Esta não foi, contudo, a única manifestação de preocupação e fé em
relação ao futuro de Goa.
231
PT/TT/AOS/D-N/14/3.(p.69). Serviço de 10/8/954. ítulo: Discurso proferido pelo Senhor Professor Doutor Oliveira Salazar, Presidente do Conselho, aos microfones da Emissora Nacional. 232
PT/TT/AOS/D/N/14/3 (p.73) . 233
PT/TT/AOS/D/N/14/3 (p.99-101).
128
No dia anterior à esperada invasão, o Cardeal Valeriano Gracias234 deu uma
entrevista ao Sunday Standard Bombay News, em que expressava esperança com
a Independência e dizia que o medo sobre o futuro das relíquias de Francisco
Xavier e da Liberdade religiosa dos goeses, com a integração, não se
fundamentavam. Este artigo foi remetido a Lisboa, que não demorou a se posicionar
contrariamente à tomada de posição de Valeriano Gracias. No dia 15 de agosto, o
embaixador do Brasil acusou o Internúncio de estar tomando partido dos que
pretendiam usar a violência.235.
Orlando Ribeiro contudo questiona esta rápida associação entre cristianismo
e patriotismo português, ao mostrar que muitos cristãos goeses estavam associados
identitariamente à Índia. Assim, para o autor o sentimento anti-português era ainda
reforçado, pela ausência de patriotismo português mesmo entre os goeses cristãos,
cujo sincretismo era explorado pela propaganda indiana. Assim, descreve que uma
casa onde “encontrámos uma imagem de Buda (figurando como tal junto com santos
da Igreja), à qual se sobrepõe Cristo crucificado, amparando, com uma das mãos
desprendidas da cruz, Gandhi jorrando sangue” (Ribeiro,1956:121). É nestas casas
de famílias cristãs que encontrou muitas vezes o retrato autografado de Nehru,
problematizando assim que havia ali um cristianismo que não se vinculava ao
patriotismo português. A esta relação entre religião e identidade nacional o caso
descrito de Damão é muito esclarecedor.
A inquisição velou depois pela duvidosa pureza da fé destes convertidos e, através das suas proibições ou das suas tolerâncias, não é difícil surpreender a persistência de práticas rituais em que o hinduísmo é tão rico236.
Orlando Ribeiro corrobora, em seu Relatório, a questionável associação do
problema político de Goa com a questão da Igreja Católica, contrapondo-se assim a
um dos argumentos centrais de Salazar237. Lembra o autor que “a população cristã é
hoje menos de metade do total, desfalcada no cento de milhares de goeses que
vivem na União Indiana, no Paquistão, na África Oriental” (Ribeiro, 1956:54). A
234
Valeriano Gracias era defensor declarado da integração de Goa à Índia, sendo que suas declarações criaram inúmeras polêmicas durante os anos aqui trabalhados. 235
Diante das declarações de Gracias, Garin pediu uma conversa enérgica junto ao Vaticano. 236
(Ribeiro,1957:173). 237
Caldeira Coelho, membro da Legação de Portugal em Ottawa (Canadá), disse que esta postura gerava o incômodo de associal catolicismo com colonialismo.
129
busca por associar cultura e política, neste contexto, se fez em grande medida a
partir da questão religiosa. E a postura de Salazar em relação ao Vaticano
exemplifica em grande medida as dificuldades de seu posicionamento.
Assim, se as marcas cristãs na paisagem goesa são dadas constantemente
ao observador que ali chega nas Velhas Conquistas, Ribeiro diz, em artigo ao Diário
Popular, que “aqui a mestiçagem foi apenas de ordem espiritual. Custa a crer que
não corra nenhum sangue português nas veias da nobreza rural de Salcete ou das
antigas famílias cristãs de Margão” (Ribeiro,1956:50), tão perfeita seria, segundo
ele, a sua assimilação238. A questão do sangue português foi colocada pelo próprio
autor a seus interlocutores nativos, que em resposta apenas afirmaram o orgulho de
casta e a repugnância por casamentos com estranhos.239
É principalmente nestas descrições que encontramos em Orlando Ribeiro a
tentativa de fixar a identidade nativa, e onde a imagem do outro começa a ganhar
forma, ao mesmo tempo em que esta imagem é colocada como inoportuna à
solidariedade nacional. É assim que o autor afirma, ao mencionar justamente a
devoção dos goeses cristãos a São Francisco Xavier, que
os goeses cristãos, nos mandós (canções) ou no teatro, entregam-se à proteção de São Francisco de Xavier mas não têm uma palavra de simpatia ou agradecimento por aqueles que aqui vieram defender a integridade do seu território, o sossego dos seus lares e o livre exercício das suas crenças. A gratidão não é o seu forte. Teremos de dar muito, contando receber bem pouco...240.
A imagem do goês era de que mesmo convertido ao cristianismo ele
continuava a carregar em si a índole nativa, descrita como ingrata, dissimulada e
traiçoeira. Em sua grande maioria, atributos que retomam à uma instabilidade ou
falta de forma definida, sendo descrito sobre a mentalidade indiana que “tudo aí é
vário, mudável, assumindo formas transitórias e instáveis; assim como os animais
têm alma, não se admire que o espírito criador...tenha corpo!” (Ribeiro, 1999:86).
Orlando Ribeiro contrasta essa impressão com a que teve na Guiné, Cabo Verde e
238
No Relatório ao Governo (1956), Orlando Ribeiro apresenta o mesmo argumento, dizendo que “o que há de mais português nesta sociedade está representado por velhas e distintas famílias de Salcete” (Ribeiro, 1999:81). 239
A questão dos valores nobiliárquicos dos colonizadores e das elites nativas tem atualmente sido rearticuladas. 240
(Ribeiro, 1999:132 [meu destaque]).
130
São Tomé, onde “ficou-me a lembrança de simpatia, de caloroso acolhimento, que
ao português era reservado pelas populações africanas” (Ribeiro, 1999:132),
dizendo que “aqui [Goa], pelo contrário, domina a prevenção, a desconfiança,
quando não a antipatia mais ou menos declarada” (Ribeiro, 1999:132). A impressão
positiva das colônias atlânticas era carregada por Orlando Ribeiro desde a
juventude, quando participou de um cruzeiro de férias organizado durante seus
estudos de doutorado.
Ante essa difícil barreira a ser superada, Orlando Ribeiro pede que os
portugueses sigam os exemplos de homens que ganharam a confiança local através
do amor e do calor humano com que lidava com a população local. O exemplo
positivo vem também dos soldados moçambicanos que estavam em Goa. A barreira
que o “bom exemplo” deveria superar é aquela que, segundo Orlando Ribeiro, seria
característica essencial do hinduísmo “a educação que leva as pessoas a serem
hábeis, tortuosas, dissimuladas” (Ribeiro,1956:96). Ainda,
a sinceridade e a franqueza, a coerência e direitura de caráter, a fidelidade aos compromissos e o apego à palavra dada [...] não têm para o brâmane (e para a maioria dos hindus que o tomam por modelo), qualquer significação241.
Apesar deste fechamento rigoroso diante de contatos com estrangeiros, onde
“para o hindu o português é um estranho, um intruso, um impuro” (Ribeiro,1956:98),
o autor diz que, “no entanto, à face da lei, ele é cidadão português, todos os
caminhos lhe estão abertos e todos acha apertados para a sua insaciável ambição
de domínio” (Ribeiro,1956:99). Por estas razões que Orlando Ribeiro desaconselha
que os goeses sejam empregados em funções administrativas na África, dizendo
que
esta gente, mesmo quando cristã, não se desprende do seu orgulho de raça (julgam-se superiores aos brancos) [...] da sua repulsa pelos negros, em cuja inferioridade acreditam242.
Não poderiam, assim, segundo Orlando Ribeiro, contribuir com o projeto de
assimilação que vinha sendo empregado nos territórios africanos pelos portugueses.
A questão racial assume um lugar importante na obra de Orlando Ribeiro, e na
241
(Ribeiro,1956:96). 242
(Ribeiro,1956:126).
131
medida em que dela deriva uma das conclusões de maior peso em seu Relatório,
ela merece uma discussão mais detalhada.
A questão racial na obra de Orlando Ribeiro assume contornos próximos
àqueles estabelecidos por Gilberto Freyre, assumindo que, apesar de não existirem
raças superiores e inferiores, aspectos somáticos não devem ser desconsiderados
em sua dimensão social e política243. É neste sentido que Ribeiro retoma os
argumentos de Franz Boas sobre o papel do meio (social mas também geográfico)
na definição de características somáticas e comportamentais de “raças” distintas, na
medida em que as “entidades biológicas não escapam às malhas do contexto do
ambiente e da civilização que as envolvem” (Ribeiro, 1978:26)244. Em seu artigo “A
terra e a variedade humana. As raças” (1978), Orlando Ribeiro afirma existirem três
grandes raças (Brancos, Pretos e Amarelos), mas aponta para a confusão
comumente observada em tomar por características da “raça” elementos de ordem
cultural, o que o leva a aconselhar que
as raças deviam ser vistas em sua nudez originária, sem as vestimentas ou atavios que se tornaram elementos característicos, e como tal distintivos, da maior parte delas. Mas esses pertencem à civilização e com ela devem ser descritos e interpretados245.
É novamente ao contato das civilizações que Orlando Ribeiro orienta seu
interesse analítico, e é aí que encontra espaço para a leitura dos aspectos
populacionais de Goa e das demais colônias portuguesas. Como apresentei
anteriormente, o orgulho de raça condenado por Orlando Ribeiro entre os goeses
cristãos é a prova de que elementos civilizacionais (a sua inserção em uma
sociedade de castas) desempenham um papel fundamental no estabelecimento de
fronteiras raciais a partir de elementos de distintividade246. O caso de Goa seria
243
“A noção de „superioridade‟ de raça carece, cientificamente, de sentido. O que existe são as „prosápias‟ próprias de cada civilização” (Ribeiro,1978:24). Por “prosápia” entende-se linhagem, ascendência, no sentido aqui definido como conjunto de características próprias a cada civilização, mas entendidas por Ribeiro enquanto perniciosa e portencialmente violenta, sendo descrita por ele, curiosamente, como um “defeito humano” (Ribeiro, 1978:26). 244
O trabalho de Franz Boas que Orlando Ribeiro toma como padrão para essa discussão é o “Mudanças Somáticas nos Imigrantes dos Estados Unidos” (Boas, 1961). O imbricamento de características biológicas e culturais é central para Orlando Ribeiro, e sugerem um sentido bastante particular para sua leitura do comportamento dos goeses. 245
(Ribeiro, 1978:26). 246
Afirma deste modo que, em relação aos „descendentes‟ de Goa, que apesar de muitos serem brancos puros, “outros têm cabelo negro de azeviche e tom de pele bronzeada que não engana” (Ribeiro, 1978:31).
132
sugestivo destes contatos, visto teram ali se encontrado civilizações em grande
medida opostas em suas disposições fundamentais247.
A própria leitura da história local Goesa é vista por Ribeiro (1957) nos termos
assim definidos. Ao questionar a dificuldade que os portugueses enfrentaram para
se estabelecer no Ultramar, lembra que “perante a diplomacia oriental, hábil,
dissimulada e tortuosa, as reacções eram por vezes violentas e desastradas”
(Ribeiro,1957:172). Assim, os casos de violência corriqueiramente lembrados por
partidários da causa indiana de integração de Goa eram aqui explicadas como fruto
do caráter não confiável dos orientais. Para Ribeiro, contudo, a presença das tropas
portuguesas em Goa é vista como positiva, visto que “esta presença simpática e
correcta da gente portuguesa não deixará de contribuir para a aproximação de
diferentes parcelas da unidade nacional. A despeito de tudo que a propaganda
indiana possa dizer...” (Ribeiro,1956:132).
O que a propaganda indiana dizia era, de fato, muito distinto: um serviço de
escuta da Emissora Nacional de abril de 1955 interceptou a notícia da “Press of
India” que informava que “um soldado das forças expedicionárias portuguesas, de
22 anos, de nome Mário António da Silva, fugiu de Goa, encontrando-se
presentemente preso em Belgão”248, no estado indiano de Karnataka e muito
próximo à fronteira de Goa. Ainda, a imprensa periódica goesa apresentava
cotidianamente relatos de abuso por parte dos soldados expedicionários. O próprio
Orlando Ribeiro reconhece inicialmente que “parece que a tropa foi recebida com
desconfiança: mas, a pouco e pouco, as crianças foram-se chegando, os homens
convivendo, as mulheres perdendo o pavor e o pânico” (Ribeiro,1956:130).
A desconfiança própria dos nativos deveria, assim, ser revertida com
exemplos de amor, afinal, “sem calor humano não há obra de governo que perdure”
(Ribeiro,1956:133), e o exemplo dado é o de um oficial português em uma aldeia de
Satari, a quem os nativos descreviam como “homem bom”, e ao governador de
Damão, o “enérgico, humano e profundamente simpático à população, capitão
Romão Nogueira” (Ribeiro,1956:128). Ainda, Ribeiro menciona o episódio do
Almirante Quintanilha de Mendonça Dias que agrediu uma importante pessoa de
247
Um exemplo desta oposição é sua afirmação de que “os Brancos do Ocidente criaram uma civilização material sem par e desenvolveram as ciências da matéria, que os Hindus têm por grosseiras em comparação com o seu aprofundamento da vida interior” (Ribeiro, 1978:24). 248
PT/TT/AOS/D-N/14/3 (p.292-294). A notícia ainda informava que o descontentamento entre as tropas era imenso, sendo que se esperava que ao menos uma centena de outros expedicionários buscassem refugio na Índia.
133
Margão, “cena em extremo deplorável e ainda viva na memória de todos e por
muitos asperamente comentada” (Ribeiro,1956:121). O autor lembra amargurado
que o Almirante foi depois nomeado Ministro da Marinha.
Em uma carta escrita pelo ministro do Ultramar no ano seguinte ao Relatório
de Orlando Ribeiro, a imagem de desconfiança e suspeição é em grande medida
semelhante, ao questionar o patriotismo de um goês envolvido no negócio da
mineração “que, por acaso usa um título nobiliárquico português – acerca do qual
se diz que tinha na loja o retrato do Senhor Presidente do Conselho e no escritório a
fotografia do Pandita Nehru”249. Vemos que para Orlando Ribeiro essa ausência de
correlação entre nação e religião é vista enquanto um problema, sendo que o ideal
era o equacionamento que pôde observar em Damão. Ali,
como os cristãos não foram convertidos em massa, mas ganhos de verdade à nova religião, eles estão, ao contrário dos goeses, completamente assimilados, na língua, nos costumes, no sentir250.
Ainda em oposição ao caso de Goa, em Damão as castas haviam
desaparecido e a mestiçagem havia se realizado amplamente, sendo forte o
sentimento de aproximação aos portugueses. O contexto em que Orlando Ribeiro
visitou Damão ainda estava marcado pela ocupação indiana em Dadrá e Nagar-Aveli
em 1954. Quando estava em Damão e acompanhou a inauguração de um cinema,
Orlando Ribeiro diz que “comoveu-me às lágrimas a maneira como foi cantado o
hino nacional” (Ribeiro,1956:128). Quem cantava o hino eram, segundo ele, os filhos
de Aniceto do Rosário, damanense morto durante a tomada indiana do enclave, e
que se tornou uma personagem de grande destaque nas comemorações cívicas que
se seguiram ao evento.
Em seus Ensaios de Geografia Humana e Regional (1970), Orlando Ribeiro
argumenta que o sucesso da presença portuguesa em Diu, contra-imagem da
resistência Goesa em relação ao colonizador, é decorrente do forte predomínio
muçulmano na região. Assim, a tradicional percepção de abertura aos casamentos
interétnicos por parte dos islâmicos, que estaria inclusive nos fundamentos do
sistema português de casamentos, permitiu a efetiva manifestação do caráter
249
Esta carta foi escrita em 19 de março de 1957, logo após um atentado que destruiu geradores de energia e outras maquinarias das minas de Sirigão, sendo que o atentado foi atribuído a terroristas indianos. 250
(Ribeiro,1956:127).
134
português na Índia. Apesar da simpatia que Orlando Ribeiro diz ter encontrado entre
os portugueses de Damão e a população local, o medo em torno das ameaças de
ocupação de Damão estavam carregadas de projeções negativas sobre os indianos,
onde o governo de Damão emite uma nota dizendo que estavam se organizando
bandos de “gente das atrasadas tribos vizinhas”, em uma situação parecida com as
agressões precedentes em Dadrá e Nagar-Aveli.
Talvez a maior prova apresentada por Orlando Ribeiro na tentativa de afirmar
o patriotismo dos damanenses e sua fidelidade e Portugal seria que estes
“recusaram servir na Praganã de Nagar-Aveli sob a dominação estranha, não
obstante as vantagens e promessas que lhe ofereceram os ocupantes”
(Ribeiro,1956:127). Ao sentimento patriótico correspondia assim dois fatores
importantes na leitura de Orlando Ribeiro (1956) sobre Damão. O primeiro seria a
verdadeira conversão ao cristianismo, e o segundo a ampla mestiçagem. São estes
dois fatores que se alinham diretamente às formulações lusotropicalistas de Gilberto
Freyre. Em Damão “as castas desapareceram, a mestiçagem realizou-se
amplamente e hoje é impossível distinguir aí naturais e descendentes, tanto que o
tipo físico local, menos escuro do que o de Goa, se aproxima mais do nosso”
(Ribeiro,1956:127). Ou seja, em Damão a imagem dos portugueses encontrava
correspondências etnográficas que o autor não encontrou em Goa, a não ser entre
os “descendentes”, que no caso de Goa se distinguiam claramente dos “naturais”.
Em Goa, os nativos seriam marcados pela ingratidão.
O discípulo de Orlando Ribeiro, Mariano Feio, publicou em 1979 o resultado
das pesquisas realizadas de outubro 1955 a abril de 1956 com o título de “As castas
hindus de Goa”, onde diz que os “descendentes” tinham sua origem étnica nos
casamentos de portugueses com mulheres nativas, sendo reconhecidos por sua
fidelidade à metrópole, e ainda “com certeza de início sem espírito nem intenção de
casta, o facto de as outras castas os segregarem obrigaram-nos a formar um grupo
praticamente endogâmico” (Feio,1979:24). Assim como defendido por Orlando
Ribeiro, a mestiçagem era praticamente inexistente em Goa em decorrência da
estrutura de castas do meio social circundante, sendo o indiano fechado a
casamentos fora de sua casta e nutrindo certo desprezo pelos europeus. Segundo
apresenta, apenas mulheres de castas inferiores (principalmente entre as castas das
135
bailadeiras251) buscaram nestes casamentos possibilidades de ascensão social.
Aliás, essa busca por ascensão aparece ao longo de todo o Relatório de Orlando
Ribeiro, e sobre os goeses disse que “ser hábil em conseguir os seus fins – talvez
seja o que melhor define a sua ética de procedimento” (Ribeiro,1956:96).
Vemos assim que a questão da mestiçagem é fundamental para a construção
das índoles do português e do hindu, sendo estas em grande medida imagens
opostas. Em Damão e Diu, justamente pela presença muçulmana ser maior que a
hindu, o meio era favorável à mestiçagem. No entanto, as bases promovidas pela
mestiçagem são questionadas pelo próprio autor. Nos últimos dias de sua
permanência em Goa, Orlando Ribeiro faz referência aos ataques aos postos de
polícia, e comenta a boa impressão que as tropas de negros causava em Goa, e os
benefícios que este contato poderia trazer. Conclui ainda dizendo que o
comportamento português é o mesmo em toda parte, o problema seria a estrutura
social indiana. Dizendo que o Relatório se desalinha com estudos que se dedica,
justifica sua intromissão em questões políticas importantes para sua época.
Defender a todo o transe essa unidade afigura-se a única forma de servir os interesses não só de Portugal mas da Europa, e da própria civilização, ocidental ou universal, porque é ela só que possui verdadeira universalidade (Ribeiro,1956:73).
3. A ausência de sentimanto nacional
Durante o período que esteve em Goa, enquanto chefe da Missão de
Geografia à Índia, Orlando Ribeiro publica, em Garcia da Orta: Revista da Junta das
Missões Geográficas e de Investigações do Ultramar (1956), um artigo sobre a festa
de exposição das relíquias de São Francisco Xavier, em Velha Goa. Curiosamente,
diz ter presenciado uma cidade de ruínas e fantasmas que volta à vida, sob a fé
única em um santo que uniu em Goa gente de todas as religiões e origens. A
capacidade metafórica desta celebração é evidente, e foi articulada pelo próprio
governo português, que transformou a ocasião em uma grande celebração da
orientação humanística da presença portuguesa na Ásia. De qualquer modo,
251
As bailadeiras compõem uma casta de dançarinas dos templos hindus, uma função ritual descrita em pormenor por Rosa Maria Perez (2012).
136
Orlando Ribeiro sugere observações interessantes. Diz que “toda Goa vem aqui, e
esta é a melhor amostra da sua complexa sociedade” (Ribeiro, 1956:178). E nesta
amostra que o geógrafo entrevê que, sendo a sociedade hindu rígida em seu
sistema de castas, “é este o filão que pode revelar a que profundidade chegou,
numa sociedade estranha, a influência portuguesa” (Ribeiro, 1956:180). Como o
mesmo autor afirma em “A festa de São Francisco Xavier em Velha Goa” (1956),
se aqui não houve, esbarrando contra a força de uma sociedade imobilizada, a larga mestiçagem tão característica da restante colonização portuguesa, com uma fé nova entraram outros elementos da vida espiritual e afetiva252.
A festa observada por Orlando Ribeiro é elucidativa da permanência de
tradições católicas de origem portuguesa mesmo entre membros de diversos grupos
étnicos, religiosos e linguísticos. A mesma preocupação com a profundidade das
raízes portuguesas que o autor apresentou no Relatório de 1956 aparece aqui,
mostrando que é no cristianismo que reside a capacidade assimilacionista do
português em meios menos receptivos. Não deixa de apresentar, para fins desta
argumentação, um olhar comparativo com o caso de Damão. É da observação desta
originalidade que o papel do cristianismo encontra-se em sua forma mais pura em
todo o espaço do Ultramar português. É aqui que podemos ver que, mesmo em
condições mais adversas, o assimilacionismo português foi um fator preponderante.
A todo momento trata de pensar qual a relação entre as observações feitas em Goa,
em sua especificidade regional, com o modelo português, representativo da
permanência do caráter português. Este caráter é diferente daquele encontrado na
colonização britânica, na medida em que tem uma orientação humanista. Para o
geógrafo, Portugal possui uma identidade linear, homogênea, já os goeses são
marcados pelo sincretismo, pela inconstância e dubiedade. É essa observação que
o leva a pensar o lugar dos goeses nos quadros do Império Português, dizendo:
... ao contrário dos cabo-verdianos, colaboradores devotados e leiais dela [a administração ultramarina], tão portugueses nos sentimentos e na mentalidade, esta gente, mesmo quando cristã, não se desprende do seu orgulho de raça (julgam-se superiores aos brancos), dos seus preconceitos de casta, da sua repulsa pelos negros, em cuja inferioridade acreditam.
252
(Ribeiro, 1956:180).
137
Quer dizer: como colaboradores de uma política de indiscriminação étnica e de verdadeira assimilação, teriam tendência de se fazer o contrário do que se exigiria deles253.
Assim, Ribeiro, ao observar a inadequação dos preceitos do caráter
português de ação nos trópicos em Goa acaba por reafirmar os principais
estereótipos em jogo. Ou seja, defende o caráter português, que em Damão estaria
provado de que mesmo na Índia foi promovido com o mesmo empenho, e defende
também o estereótipo do indiano, marcado pelo preconceito e pela pretensa
superioridade. Sobre o preconceito de cor por parte dos goeses, lembra o autor que,
durante sua estadia em Moçambique, um descendente de goeses “surpreendeu-se
quando, numa excursão, convidei para nossa mesa o motorista preto. „Eles não
podem pensar que têm os mesmos direitos que nós, o governador pode saber...‟”
(Ribeiro, 1981:198). Outro exemplo que lembra é o do geógrafo luso-indiano
Francisco Xavier da Silva Telles (1860 – 1930), introdutor no ensino superior de
Portugal dos estudos geográficos254. Nascido em Goa, Telles pertencia ao grupo
restrito de famílias descendentes, que defendia a condição especial dos portugueses
em se adaptar aos trópicos, desde que atentas as condições de aclimatação e
higiene mais fundamentais.
Orlando Ribeiro buscou encontrar em Goa as razões da ausência do
sentimento patriótico (português). É importante ressaltar: em Goa! Pois, como
afirmou Orlando Ribeiro em um trabalho posterior,
os goeses, com quem convivi em tantos lugares, sentiam-se portugueses, tanto como quaisquer outros, menos em Goa, onde aflorava o patriotismo local. Era, aliás, a única “colônia” onde não se falava de “metrópole” e de “metropolitanos”, mas de Portugal e de portugueses – por muito representativos da nossa cultura e da nossa índole que alguns filhos de Goa tenham sido entre nós (Ribeiro, 1981:275 [meus destaques]).
Diversas razões foram abordadas – ausência de mestiçagem, religião híbrida,
fraca influência da língua portuguesa – sendo que a única saída seria, para ele,
apostar na rearticulação das identidades regionais. Apesar dos modos distintos de
se abordar Goa, quando comparado principalmente a Gilberto Freyre, a saída
253
(Ribeiro, 1999:126). 254
Francisco Xavier da Silva Telles (1860 – 1930) era nascido em Pondá, Goa, e era formado na Escola Médico – Cirúrgica de Lisboa. Em 1928, assume o cargo de reitor da Universidade de Lisboa.
138
parece ter sido, contudo, semelhante: em um contexto onde a influência portuguesa
havia sido pontual, eram esses valores que deveriam ser promovidos pelo Governo.
A secundarização dos demais não passou despercebida pelos nacionalistas goeses,
como pudemos ver a partir do trabalho de Telo de Mascarenhas.
139
Considerações finais
140
Esta dissertação se organizou em torno de três olhares sobre Goa na década
de 1950. Gilberto Freyre, que chegou a Goa em 1951, esteve no Instituto Vasco da
Gama, onde proferiu um discurso sobre o escritor goês Moniz Barreto. Tendo em
vista que Freyre descreveu sua viagem à Índia a partir de referências que remontam
a sua formação intelectual, tentei compreender em que medida o autor endossou o
conselho que Oliveira Lima havia dado a Moniz Barreto, de que nos trópicos
residiam suas esperanças no futuro não apenas das civilizações lusotropicais, mas
de uma nova forma de convívio humano. Assim, se os processos de descolonização
eram vistos como resultado de um processo positivo de retomada de valores
regionais, Freyre temia que esta retomada se desse de forma contrária ao caráter
português de equilíbrio de antagonismos. Em outras palavras, Gilberto Freyre
admirava o que entendia serem ressurgências culturais, mas condenava os
separatismos políticos que encontrou, por exemplo, em alguns goeses de Bombaim.
A viagem de Gilberto Freyre projetava para o futuro de Goa um passado que se
recolocaria no interior de uma nova comunidade transnacional, definida por Freyre
enquanto pertencentes a uma mesma comunidade de destinos.
A leitura de Gilberto Freyre me levou a problematizar as relações entre cultura
e política, ou entre uma tradição que se apresentava enquanto um dado da
experiência e projetos políticos que poderiam assumir diferentes orientações. Assim,
Gilberto Freyre elogiava tanto Oliveira Salazar quanto Jawaharlal Nehru, visto que
ambos defendiam a retomada de tradições e incentivavam essas ressurgências.
Esta mesma dinâmica entre cultura e política foi abordada no segundo capítulo,
quando procurei mostrar a realidade de muitos goeses que defendiam um regime de
autonomia administrativa no Estado da Índia Portuguesa que não implicava em sua
independência política de Portugal. A trajetória de Telo de Mascarenhas é sugestiva
de como estas duas alternativas estavam colocadas, na medida em que, em um
primeiro momento, o goês defendia que Goa permanecesse portuguesa, acreditando
inclusive que a presença portuguesa na Índia não se alinhava aos imperialismos de
outras nações europeias. No entanto, o seu retorno à Índia em 1948 assiste a uma
grande transformação e Telo de Mascarenhas passa a defender Goa como parte
integrante da Índia para a qual deveria “retornar”. Como busquei acompanhar
através do periódico Ressurge, Gôa!, essa mudança de posições políticas não
implicava em uma alteração fundamental das disposições que o autor apresentava
desde seus trabalhos de orientação salazarista. Assim, acredito que o definiu em
141
grande medida a passagem de Telo de Mascarenhas para a luta anticolonial em
Goa foi sua compreensão sobre as relações entre cultura e política. Assim, sua
defesa do nacionalismo indiano esteve associada ao entendimento de que, em Goa,
a cultura portuguesa estava instrumentalizada, servindo a fins coloniais, e não ao
real entendimento entre Oriente e Ocidente. Dessa forma, Telo de Mascarenhas
continuou alinhado a uma posição fundamental esboçada já nos anos em que foi
editor do Índia Nova, que seria a defesa de um amplo diálogo civilizacional cujo
palco ideal seria Goa.
Vemos assim que, se para Gilberto Freyre a cultura portuguesa estava
intimamente enraizada em Goa, sendo que as decisões políticas seriam secundárias
em relação a este vínculo real intimamente revelado, para Telo de Mascarenhas a
identidade indiana de Goa estava suplantada sob esse portuguesismo superficial,
instrumentalizado e inautêntico, e deveria em breve ressurgir. Se Gilberto Freyre
compreendeu a identidade portuguesa de Goa através da seleção de valores
culturais empaticamente revelados e tipicamente caracterizados, Telo de
Mascarenhas faz a defesa dos fatos em oposição à farsa da cultura portuguesa, que
estava orientada em Goa para servir aos fins coloniais de dominação dos goeses.
Estes fatos, contudo, eram menos observáveis do que compreendidos a partir de
uma releitura da história de Goa e do colonialismo português. Neste sentido, Telo de
Mascarenhas se aproxima das teses fundamentais do nacionalista goês Tristão de
Bragança Cunha, que defendia que os goeses estariam desnacionalizados, ou seja,
a cultura portuguesa constituiria uma barreira ao real entendimento sobre suas
origens culturais indianas.
A questão do sentimento nacional foi, como vimos, um dos elementos mais
importantes das observações do geógrafo Orlando Ribeiro. Foi este autor que
colocou em primeiro plano a diversidade inerente a uma sociedade marcada pelo
que entendia ser o encontro de duas civilizações. Assim, para o geógrafo português,
não se tratava nem de encontrar apenas o tipicamente português (embora o fizesse
também pelas mesmas vias sentimentais de Gilberto Freyre) nem de secundarizar
estes mesmos valores culturais (embora encontrasse a fragilidade do sentimento
nacional português entre os goeses). Os valores portugueses e indianos faziam,
ambos, parte da realidade social goesa, que era descrita, fotograficamente, em
todos os elementos que o autor pôde observar. Assim, argumentei que a própria
formação intelectual de Orlando Ribeiro apontava para esta forma de abordar as
142
paisagens e populações por ele observadas. O Relatório que produziu ao governo
português em 1956 é um material elucidativo desta sua postura, onde as relações
entre o cultural e o político são mais fluidas e, portanto, imprevisíveis.
A despeito de seu futuro político, Gilberto Freyre defendia, então, que Goa
havia sido intimamente reestruturada no sentido lusotropical de vida, e que seria
portanto para sempre lusoindiana. Telo de Mascarenhas afirmava, por sua vez, que
seu futuro espelhava nada mais que seu passado remoto, ainda que a tradição
indiana, por sua plasticidade, permitisse o intercâmbio de valores culturais de
origens diversas. Para Orlando Ribeiro, e por mais que seus conselhos ao governo
tivessem o intuito de fortalecer o sentimento nacional português entre os goeses, o
futuro de Goa estava em aberto. Por mais que seu diagnóstico apontasse para o
perigo iminente da dissolução da Índia Portuguesa, havia espaço para ação em
sentido contrário. E Orlando Ribeiro lamentou profundamente que seus conselhos
não foram seguidos por Salazar, perdendo-se em Goa a chance de uma sociedade
marcada por esse duplo tesouro de civilizações.
143
Mapas e Fotos
144
Mapa 1.
Mapa mostrando os três principais territórios da Índia Portuguesa (Goa, Damão e
Diu) e a cidade indiana de Bombaim 255.
255
Acessado pelo autor em 10/01/2017 no site Alcance a Geografia.
145
Mapa 2.
Mapa de Goa, mostrando a capital Pangim e a cidade portuária de Mormugão 256.
256
Acessado pelo autor em 10/01/2017 no site Old Photos Bombay.
146
Mapa 3.
Mapa de Damão, mostrando os enclaves de Dadrá e Nagar-Haveli 257.
257
Acessado pelo autor em 10/01/2017 no site Área Militar.
147
Foto 1.
Primeira página da Conferência lida por Gilberto Freyre no Instituto Vasco da Gama (Goa) em 24 de Novembro de 1951. Reproduzida do Boletim do Instituto Vasco da Gama, n.72, 1956 258.
258
Acessado pelo autor em 10/01/2017 no site Memórias de África e do Oriente.
148
Foto 2.
Página do Ressurge, Gôa!, de 30 de dezembro de 1951, felicitando a viagem de Gilberto Freyre a Goa 259.
259
Foto retirada pelo autor, do acervo da Biblioteca Nacional de Lisboa.
149
Foto 3.
Capa da primeira edição do Relatório ao Governo Goa em 1956, publicado em 1999 pela Comissão Nacional para a Comemoração dos Descobrimentos Portugueses 260.
260
Acessado pelo autor em 12/01/2017 no site dedicado ao espólio científico de Orlando Ribeiro.
150
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