UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE ARTES...
Transcript of UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE ARTES...
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
INSTITUTO DE ARTES
JULIANA SOARES DA COSTA SILVA
PRÁTICAS MUSICAIS, COMUNIDADE, LOCALIDADE E
VELHICE: UM ESTUDO ETNOGRÁFICO SOBRE A
CORPORAÇÃO MUSICAL OPERÁRIA DA LAPA
CAMPINAS
2018
JULIANA SOARES DA COSTA SILVA
PRÁTICAS MUSICAIS, COMUNIDADE, LOCALIDADE E VELHICE: UM
ESTUDO ETNOGRÁFICO SOBRE A CORPORAÇÃO MUSICAL OPERÁRIA DA
LAPA
MUSICAL PRACTICES, COMMUNITY, LOCALITY AND OLD AGE: AN ETHNOGRAPHIC
STUDY ABOUT THE CORPORAÇÃO MUSICAL OPERÁRIA DA LAPA
Dissertação apresentada ao Instituto de Artes da Universidade
Estadual de Campinas como parte dos requisitos exigidos para
a obtenção do título de Mestra em Música, na área de
concentração Música: Teoria, Criação e Prática.
Orientadora: Profa. Dra. Suzel Ana Reily
Este exemplar corresponde à versão final
da Dissertação de Mestrado defendida pela
aluna Juliana Soares da Costa Silva e
orientada pela Profa. Dra. Suzel Ana Reily.
CAMPINAS
2018
BANCA EXAMINADORA DA DEFESA DE MESTRADO
JULIANA SOARES DA COSTA SILVA
ORIENTADORA: PROFA. DRA. SUZEL ANA REILY
MEMBROS:
1. PROFA. DRA. SUZEL ANA REILY
2. PROF. DR. JOSÉ ROBERTO ZAN
3. PROF. DR. MARCOS CÂMARA DE CASTRO
Programa de Pós-Graduação em Música do Instituto de Artes da Universidade Estadual de
Campinas.
A ata de defesa com as respectivas assinaturas dos membros da banca examinadora
encontra-se no processo de vida acadêmica da aluna.
DATA DA DEFESA: 11/06/2018
Para Gabriel e Valdemir
AGRADECIMENTOS
À Universidade Estadual de Campinas, pela oportunidade e o privilégio da realização deste
trabalho.
Ao Programa de Pós-Graduação em Música do Instituto de Artes, por possibilitar a pesquisa.
Aos colegas, professores e funcionários do Instituto de Artes.
Ao arquivo Edgar Leuenroth e ao Centro de Memória da Unicamp pela consulta a materiais
históricos.
À minha orientadora, Profa. Dra. Suzel Reily, que acreditou neste trabalho desde o início, pelo
cuidado, paciência, generosidade e inacabável dedicação.
Ao grupo temático de pesquisa “Musicar Local – Novas Trilhas para a Etnomusicologia”, pelas
valiosas reuniões, leituras e apoio.
Ao Prof. Dr. José Roberto Zan, membro da banca de qualificação e defesa e que acompanhou
com interesse este trabalho, pelos preciosos conselhos e sugestões que contribuíram para o
enriquecimento da pesquisa.
Ao Prof. Dr. Marcos Câmara de Castro, membro da banca de defesa, pela prontidão e gentileza
em participar da defesa e pelas relevantes observações.
Ao Sr. José Maria Tamburu, atual presidente da Corporação Musical Operária da Lapa, pelo
acolhimento, colaboração e disposição em todos os momentos.
Ao Sr. Nestor Avelino Pinheiro, atual regente da Corporação Musical Operária da Lapa, pela
atenção e viabilização da pesquisa em campo.
A todos os integrantes da Corporação Musical Operária da Lapa, protagonistas do trabalho, pela
amizade, receptividade, cooperação nas entrevistas, viabilização de material histórico, carinho
e confiança no trabalho.
Em especial,
Ao meu marido Valdemir, pelo apoio incondicional, paciência e colaboração ilimitada, sempre.
Ao nosso filho Gabriel, pela alegria, apoio e auxílio em campo.
RESUMO
Este é um estudo etnográfico sobre a Corporação Musical Operária da Lapa. Qualificada por
seus integrantes como “a banda de música mais antiga da cidade de São Paulo”, o grupo surgiu
em fins do século XIX, um momento específico da história paulistana, onde a imigração estava
em seu auge e as classes operárias se formavam. A banda é um produto de seu tempo. Ao se
apresentar ao longo do século XX em diversos contextos na cidade, chegou à atualidade
formada por pouco mais de 20 músicos amadores, em sua maioria idosos. Para estes músicos,
o encontro na banda para tocar é o foco central de suas vidas. Assim, o objetivo principal da
pesquisa foi determinar o papel que o grupo tem proporcionado aos seus integrantes. O estudo
foi estruturado principalmente através dos conceitos de comunidades de prática de Étienne
Wenger e “musicar” (musicking) de Christopher Small, termos que, de alguma forma, englobam
formas de envolvimento com a produção e prática musical. A metodologia empregada foi a
abordagem qualitativa, com ênfase na etnografia, que incluiu principalmente a observação
participativa, entrevistas e manuseio de material histórico e bibliográfico. Foi constatado que
instituições coletivas, como bandas de música amadoras, têm sua atividade e existência
justificadas pela prática musical em grupo e pelos diversos contextos em que atuam. Neste
sentido a banda da Lapa, por meio de suas atividades e performances, ainda tem capacidade de
servir sua localidade, integrar ouvintes, além de proporcionar uma atividade prazerosa para seus
integrantes, ou seja, um meio para que se sintam úteis e ativos.
Palavras-chave: bandas de música; práticas musicais; comunidade; velhice.
ABSTRACT
This is an ethnographic study about Corporação Musical Operária da Lapa. It is qualified by its
members as “The oldest wind band in São Paulo city”. The group appeared in the late nineteenth
century, a specific moment in São Paulo history, where immigration reached its peak and the
working classes were formed. The band is a product of its time. It performed throughout the
twentieth century in many contexts in the city. It has arrived in the present time with little more
than 20 amateur musicians, most of them elders. For these musicians, meeting at the band to
play together is the main focus of their lives. Therefore, the main purpose of the research was
determining the role which the group has given to its members. The study was structured
essentially through the concepts of “communities of practice”, by Étienne Wenger, and
“musicking”, from Christopher Small, terms which somehow include ways to involve with
musical production and practice. The methodology used was the qualitative approach, with
emphasis on ethnography, which included mainly participatory observation, interviews and the
handling of historical and bibliographical material. It was verified that collective institutions
such as amateur wind bands, have their existence and activity justified by the practice of music
in a group and by the different contexts in which they act; in this very sense the Lapa band,
through its activities and performances, still has the capacity to serve its locality, to integrate
listeners, besides being an enjoyable activity for its members, in other words, a way for them
to feel useful and active.
Key Words: wind bands; musical practices; community; old age.
LISTA DE QUADROS
Quadro 1: Integrantes da CMOL – 2018
Quadro 2: Acervo da CMOL – 2018
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Figura 1: Mapa da Rede Ferroviária da Grande São Paulo – CPTM
Figura 2: A Lanterna – 19/10/1912
Figura 3: Correio Paulistano – 13/09/1888
Figura 4: A Província de São Paulo – 25/09/1889
Figura 5: O Estado de São Paulo – 05/02/2012
Figura 6: O Estado de São Paulo – 01/05/1905; 16/10/1910
Figura 7: Caderno de Marchas Fúnebres – Década de 1970
Figura 8: O Estado de São Paulo – 26/01/1910
Figura 9: Diário Nacional – 21/09/1930
Figura 10: O Estado de São Paulo – 22/09/1919
Figura 11: Folha da Manhã – 27/09/1925
Figura 12: Correio Paulistano – 29/05/1920
Figura 13: O Estado de São Paulo – 22/01/1954
Figura 14: O Estado de São Paulo – 20/05/1961; 12/06/1971
Figura 15: Revista do Bairro da Lapa. Nº 61 – 2009
Figura 16: Jornal da Gente – 28/10/2017 a 03/11/2017
Figura 17: Situação 1
Figura 18: Situação 2
LISTA DE FOTOS
Foto 1: Fachada da CMOL – 2017
Foto 2: Ensaio da CMOL – 2016
Foto3: Ensaio da CMOL – 2017
Foto 4: CMOL e o Maestro Victor Barbieri – 1964
Foto 5: Sr. Nestor Avelino Pinheiro – 2016
Foto 6: CMOL – Folha de São Paulo – 1980
Foto 7: Corporação Musical Operária da Lapa através dos Tempos – Acervo CMOL
Foto 8: Ensaio da CMOL – 2017
Foto 9: Ensaio da CMOL – 2017
Foto 10: Ensaio da CMOL – 2017
Foto 11: Tendal da Lapa – Apresentação – 11/11/2017
Foto 12: Tendal da Lapa – Apresentação – 11/11/2017
Foto 13: Shopping Pirituba – Apresentação – 16/12/2017
Foto 14: Procissão e Festa de Nossa Senhora de Casaluce – 28/05/2017
Foto 15: Procissão e Festa de Nossa Senhora de Casaluce – 28/05/2017
LISTA DE PARTITURAS
Partitura 1: A Bela e a Fera. Partitura editada. Arquivo CMOL.
Partitura 2: Com minha mãe estarei. Partitura manuscrita. Arquivo CMOL.
Partitura 3: Dobrado Silvino Rodrigues. Partitura editada. Edição “Governo do Ceará –
Secretaria da Cultura e Desporto”.
Partitura 4: O povo de Deus. Partitura manuscrita. Arquivo CMOL.
LISTA DE ABREVIATURAS
CDR: Centro Dramático e Recreativo Royal
CdP: Comunidades de Prática
CEP: Comitê de Ética em Pesquisa
CET: Companhia de Engenharia de Tráfego
CMOL: Corporação Musical Operária da Lapa
CONPRESP: Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e
Ambiental de São Paulo
CPTM: Companhia Paulista de Trens Metropolitanos
NP3: Nível de Preservação 3
SPR: São Paulo Railway Company
TCLE: Termo de Consentimento Livre e Esclarecido
SUMÁRIO
CAPÍTULO 1 – INTRODUÇÃO ............................................................................... 16
1.1 Apresentação ........................................................................................................ 16
1.2 A Etnomusicologia das Bandas de Música ......................................................... 17
1.3 Música e Velhice ............................................................................................ 19
1.4 A Banda de Música como uma Comunidade Local ............................................. 22
1.5 Metodologia ........................................................................................................ 24
CAPÍTULO 2 – HISTÓRICO DA CORPORAÇÃO MUSICAL OPERÁRIA DA LAPA
................................................................................................................................ 30
2.1 A Lapa paulistana e os primórdios do movimento operário .................................. 30
2.2 Fases .................................................................................................................... 34
2.2.1 Fase 1 – Aparecimento ................................................................................. 34
2.2.2 Fase 2 – A Era de Ouro ................................................................................. 44
2.2.3 Fase 3 – A Decadência ................................................................................. 53
2.2.4 Fase 4 – A Atualidade ................................................................................. 60
CAPÍTULO 3 – ESTRUTURA ................................................................................. 67
3.1 Organização Social ............................................................................................. 67
3.2 Perfil dos Músicos ............................................................................................. 69
3.3 Instrumentação ......................................................................................................... 77
3.4 Repertório ......................................................................................................... 81
CAPÍTULO 4 – ENSAIOS ............................................................................................. 83
4.1 Um Ensaio ......................................................................................................... 83
4.2 Dinâmica dos Ensaios ............................................................................................. 87
4.3 Noções de Ensaio versus Ensaio da CMOL ......................................................... 89
4.4 Temas dos Ensaios ............................................................................................. 92
CAPÍTULO 5 – PERFORMANCES ..................................................................... 98
5.1 Performance apresentacional: Concerto ..................................................................... 98
5.2 Performance participativa: Procissão ................................................................... 105
5.3 Reflexões e análise sobre as práticas musicais da CMOL ................................ 112
5.4 Reconhecimento do público e o papel da banda ....................................................... 115
CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................... 117
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................... 121
ANEXOS .................................................................................................................. 127
1. Parecer CEP/Plataforma Brasil ................................................................... 127
2. Termo de Consentimento Livre e Esclarecido ........................................... 128
3. Estatuto CMOL .......................................................................................... 134
16
CAPÍTULO 1 – INTRODUÇÃO
1.1 Apresentação
“O que eu adoro mais, é a amizade que eu fiz”.
O Sr. Cristiano1 é um clarinetista de 83 anos, um dos primeiros músicos da
Corporação Musical Operária da Lapa a nos conceder uma entrevista. Notavelmente
encabulado, ruborizado, estava preocupado se sairia bem em seu depoimento. No decorrer do
relato de suas memórias, já desinibido e com o olhar direto, Seu Cristiano revela como a banda
lhe traz bem-estar, laços fortes e uma memória compartilhada com seus companheiros músicos
obtidos ao longo de 20 anos. Todas as terças e quintas-feiras, este mecânico aposentado chega
por volta das 18: 00 horas com seu clarinete para ensaiar. Ao dizer que “foi muito bom pra mim
e pra minha saúde” tocar na banda, Seu Cristiano expressa o impacto da música sobre sua
saúde, além de deixar evidente que a prática musical nas suas diversas formas e em localidades
diversas, representa um papel fundamental tanto para sua vida quanto para seus companheiros
de banda.
A resistente Corporação Musical Operária da Lapa é uma comunidade musical
amadora formada nos primórdios do movimento operário. Surgiu em fins do século XIX no
bairro paulistano da Lapa, conectando-se diretamente com a história de São Paulo, com a
história da Lapa, com a formação da classe operária, com a imigração, principalmente italiana,
e com a construção das linhas e oficinas da São Paulo Railway Company. É qualificada por
seus músicos como sendo “a banda mais antiga de São Paulo”. Seus membros, antigos e atuais,
são trabalhadores com funções distintas: mecânicos, metalúrgicos, eletricistas, frentistas,
bancários, militares e professores que, através do compartilhamento de conhecimentos e
experiências, ajudaram a construir uma história impregnada de simbolismos. Localizada na
Lapa paulistana, o grupo possui sede própria tombada pela prefeitura de São Paulo. Suas
atividades no bairro e em diversos contextos na cidade têm demonstrado o quanto instituições
coletivas como bandas de música amadoras têm sua atividade e existência justificadas pela
prática musical em grupo e pelos diversos contextos em que atuam.
Nessa perspectiva, este trabalho apresenta-se como um estudo etnográfico com a
finalidade de documentar as práticas da Corporação Musical Operária da Lapa, focando seu
1 BRICKS FILHO, 2017.
17
papel na vida de seus integrantes atuais e na forma como o grupo atende às necessidades sociais
e de bem-estar desses senhores idosos. Quer dizer, nossa intenção foi responder qual o papel da
banda para seus integrantes, o que a banda significa para seus músicos e como os músicos
sentem-se ao servir à banda e à comunidade. Para isso, posicionamos a investigação no campo
das práticas musicais locais e das comunidades musicais, e, ao agregarmos a questão da terceira
idade, o trabalho, além de evidenciar a história deste grupo, mostrará a prática musical como
compartilhamento de vivências, experiências e proporcionadora de um envelhecimento bem-
sucedido.
1.2 A Etnomusicologia das Bandas de Música
De acordo com Vicente Salles (2006), das diversidades existentes na cultura urbana
brasileira, as bandas de música2 são creditadas como uma das formas iniciais de prática
instrumental ligadas à criação e à divulgação de música no Brasil. Nas suas múltiplas
formações, a banda de música brasileira tem ostentado a característica e a capacidade de inserir-
se e atender a distintas manifestações culturais, de festas populares, religiosas e cívicas até suas
populares apresentações em espaço público, como a rua, a avenida, a quadra, a praça e o coreto.
Esses contextos, por vezes informais, favorecem seu caráter amador e reproduzem vínculos
consistentes com suas comunidades.
No seu atual formato, consolidado em fins do século XIX, tanto no Brasil como ao
redor do mundo, a banda de música civil e seus domínios têm experimentado certo desdém na
academia. A despeito de tantas características favoráveis, benefícios proporcionados aos
integrantes, principalmente aos da terceira idade, diálogos com a comunidade e em “constante
processo de adaptação às condições locais vigentes” (REILY, 2009, p. 24), a banda de música,
por muito tempo, permaneceu exterior às pesquisas científicas sistemáticas. Formada
habitualmente por amadores, estudantes e semiprofissionais, foi postergada a uma posição de
conjunto não oficial e obsoleto. Na prática, ficou inobservado, também, que esses grupos são
um dispositivo eficiente para a formação de instrumentistas, arranjadores, compositores e
regentes (SALLES, 2006), além de contribuir para o surgimento de copistas, arquivistas e
montadores de palco de que se têm nutrido as orquestras profissionais. Bandas comunitárias
2 ANDRADE, 1999, p.44: Banda é um “Conjunto de instrumentos de sopro, acompanhados de percussão”. No
Brasil, incluem-se Corporações, Sociedades Musicais, Liras, Grêmios, Filarmônicas, Euterpes, Clubes, Banda
Musical, Banda de Concerto, Banda Sinfônica, Orquestra de Sopros, Banda Militar, Fanfarra, Banda Marcial,
Banda de Coreto, Charanga, Orquestra de Metais, Conjunto de Metais, etc.
18
amadoras, que é o caso da CMOL3, têm sua atividade e existência justificadas pela prática
musical em grupo e por preencher e conduzir a música das variadas manifestações e contextos
em que atuam.
Por conta desse caráter amador, informal e funcional, por exemplo, a flexibilidade
e adaptabilidade aos inúmeros arranjos e transcrições de música erudita e pop, a instabilidade
de sua instrumentação e também por ser capaz de atender aos diversos contextos, a banda de
música se vê, por vezes, entre o artístico e o autêntico, entre o musical e o social (BRUCHER;
REILY, 2013), entre o formal e o informal. Com isso, ela detém consideráveis possibilidades
de pesquisa e focos de debate contemporâneo. Além disso, esse seu relacionamento íntimo com
múltiplas expressões populares tem lhe transfigurado continuamente em um objeto de práticas
e vínculos sociais. Este aspecto mantém acessível a oportunidade para explorar a transmissão
musical como expressão de uma determinada coletividade. Pegando emprestado de Ruth
Finnegan (1989) a expressão “sistemas invisíveis aos olhos acadêmicos”, a Corporação Musical
Operária da Lapa surge aqui como um grupo em que novas interpretações e reflexões do
fenômeno sociocultural, da sociabilidade e da prática musical são possíveis.
Trevor Herbert, trombonista, musicólogo inglês e especialista no estudo das bandas
de música britânicas, sustenta que várias das características da banda de música são
consequência de sua relativa modernidade e que “quase nenhuma das condições que
conduziram às práticas de banda existiam antes do século XIX” (HERBERT, 2013, p. 37,
tradução nossa). Além disso, assim como o militarismo, a expansão colonial e a revolução
industrial também colaboraram para sua evolução e desenvolvimento; “[...] o ímpeto veio em
grande parte, no século XIX, a partir da coincidência de uma ampla variedade de agitações
demográficas, econômicas, comerciais, tecnológicas e culturais”4.
No Brasil, particularmente na cidade de São Paulo, a formação de bandas civis,
incluindo as bandas amadoras comunitárias e operárias, tiveram seu aparecimento conectado
diretamente à industrialização, à urbanização do espaço público, à imigração e à formação da
classe operária (HARDMAN, 2002). Tais elementos contribuíram substancialmente para a
organização social e cultural operária, incluindo aí, suas formas de sociabilidade. Portanto, a
música foi um elemento característico desta fase histórica da formação de classes em São Paulo.
A existência de bandas e outros conjuntos musicais entre operários não constitui
fenômeno restrito às manifestações políticas, mas antes um aspecto geral e inerente à
formação da classe. Reunia trabalhadores por fábrica, bairro, categoria profissional ou
3 Para efeitos de parcimônia do uso do título Corporação Musical Operária da Lapa, adotaremos eventualmente,
no decorrer do trabalho, a sigla CMOL, além das expressões “banda da Lapa” e “Corporação”. 4 Ibidem, p. 37, tradução nossa.
19
nacionalidade, sendo uma prática muitas vezes vinculada às entidades sindicais e, sem
dúvida, ao próprio lazer operário (HARDMAN, 2002, p. 369).
Como grupo urbano, a banda de música detém um volume considerável de
características, pois, além de envolver a prática musical em grupo, a maioria de suas
performances acontece em contextos públicos. E como tradição conhecida e valorizada,
mantém seus integrantes envolvidos pelo ato coletivo de fazer e receber música. Logo, esse
encontro de músicos amadores para tocar em grupo por prazer e por sentirem-se úteis e
produtivos nesta atividade, evidencia como a prática musical abrange a atuação de todos os que
fazem parte de determinada performance musical (SMALL, 1998). Algumas bandas, como a
CMOL, são hoje compostas predominantemente por idosos, sendo este um foco de suas vidas
sociais. Assim, este contexto musical apresenta-se como um meio privilegiado de investigar
também o papel da música na terceira idade.
1.3 Música e Velhice
A velhice, para muitos, é uma fase da vida em que não apenas modificações físicas
interagem com o indivíduo, mas todo um conjunto de fatores abrangendo problemas tais como
solidão, redução de mobilidade, dependência, perda progressiva de habilidades cognitivas como
a memória, visão, audição e até mesmo as patologias degenerativas integram esta transitória e
importante fase da vida. Entre os vários conceitos e categorias existentes para o termo
envelhecimento, a definição de Papaléo Netto (2006) mostra que o período é marcado por
alterações e transformações:
[...] um processo dinâmico e progressivo, no qual há modificações morfológicas,
funcionais, bioquímicas e psicológicas que determinam perda da capacidade de
adaptação do indivíduo ao meio ambiente, ocasionando maior vulnerabilidade e maior
incidência de processos patológicos [...] (PAPALÉO NETTO, 2006).
Por vezes, a questão do envelhecimento – ou da velhice – é associada aos termos
aposentadoria, descanso, ociosidade, doença, invalidez, fragilidade, despesa com a previdência
e saúde, mudanças de conduta, hábitos, crenças e outros elementos que podem alterar
consideravelmente esse período da vida. Mas, contrariando esse pensamento, que carrega uma
dose de preconceito, Anita Neri (1991) tem defendido que o envelhecimento começa de forma
ambígua e cronológica: “[...] idades funcionam como ‘relógios sociais’, estabelecendo agendas
para o tempo e o ritmo esperados” (NERI, 1991, p. 79). Ou seja, o envelhecimento está
20
associado diretamente a aspectos cronológicos, biológicos, psicológicos, individuais, grupais,
sociais e culturais. Guita Grin Debert (2004, p. 13) complementa esta definição como “uma
experiência heterogênea, uma construção social histórica e socialmente determinada”.
Na atualidade do idoso brasileiro, o Estatuto do Idoso desenvolvido pelo Ministério
da Saúde (BRASIL, 2003), determina que idosa é a pessoa com idade igual ou superior a
sessenta anos, e, a partir de uma estimativa do IBGE, até 2050 haverá 73 idosos para cada 100
crianças. Essas estatísticas evidenciam a pronta necessidade de atividades e práticas para a
terceira idade, ou melhor, a possibilidade de um envelhecimento aprazível e menos traumático.
A aposentadoria, por exemplo, pode ser um momento onde o idoso tem oportunidade para
sentir-se útil, servir-se e servir a alguém ou a algo, isto é, ter uma atividade que lhe proporcione
contextos de sociabilidade.
A prática musical no envelhecimento tem ganhado cada vez mais destaque na área
da pesquisa em música. Para os idosos, quase sempre, as práticas musicais têm sido associadas
ao melhoramento das habilidades verbais, memória visual, velocidade de processamento e
função de planejamento (FAUVEL et al., 2014). Em outras palavras, terapia ou intervenções
musicais, de certo modo, possuem potencial para favorecer uma melhor qualidade de vida
durante o processo de envelhecimento. Tais estudos têm comprovado a elevação da autoestima,
o aumento dos sentimentos de competência, independência e a diminuição da experiência do
isolamento social (PEACHEY et al., 2013).
Comunidades musicais como bandas de música, ao lado de outros grupos
instrumentais e aprendizado coletivo de instrumentos, podem proporcionar aos seus integrantes
uma melhor socialização, comunicação, criatividade, melhoria da cognição e preenchimento do
tempo livre, além de possibilitar uma melhor compreensão sobre a velhice. Alguns desses
exemplos podemos verificar em pesquisas de Hettie Malcomson (2012), que mostra um grupo
de danzón formado por idosos de Porto de Veracruz, México, onde, através dessa prática, os
integrantes resgatam a tradição do danzón na região, além de se exercitarem e interagirem com
outras pessoas; Meygla Bueno (2008), que trabalhou a criatividade, coordenação e a memória
através do aprendizado da flauta doce com um grupo de associação de idosos de Goiânia, essa
pesquisa verificou que a prática musical colabora para um melhor envelhecimento; e Marilda
Lopes (2008) que pesquisou integrantes idosos de um grupo de choro em Vitória, sua pesquisa
constatou que os idosos “chorões” tinham a autoestima elevada devido à interação coletiva.
Pelas referências citadas, vemos que esses idosos, e incluindo aqui os músicos da
Corporação, ao se comprometerem com certas práticas, como a aprendizagem de um
instrumento e a prática musical coletiva, estão exercitando suas habilidades cognitivas. Mesmo
21
com pesquisas mostrando que numa etapa mais tardia do envelhecimento funções cognitivas
são desproporcionalmente afetadas, habilidades do conhecimento, como os sistemas
linguísticos, permanecem relativamente estáveis ao longo da vida5. Esses sistemas
compartilham recursos neurais, mas operam de forma independente. O cérebro, nesta etapa,
mantém suas propriedades dinâmicas com rearranjos estruturais e funcionais, permitindo novos
aperfeiçoamentos na aprendizagem e nas habilidades. A música, neste caso, ao agir no sistema
nervoso autônomo, é capaz até de aliviar a dor e diminuir o estresse (LEVITIN, 2010).
Tais evidências sugerem que a atividade musical, como por exemplo tocar um
instrumento, ouvir música e compor, está associada diretamente à reorganização cerebral,
agindo diretamente no treinamento da plasticidade cerebral, sobretudo no envelhecimento. Com
isso, a experiência e a prática musical poderiam modificar estruturalmente o cérebro, já que são
utilizadas uma grande variedade de experiências multissensoriais, incluindo funções motoras6.
Logo, o treinamento musical intensivo levaria a modificações na estrutura e nas funções
cerebrais (WAN; SCHLAUG, 2013). Daniel Levitin (2010), através de seus estudos de
neuroimagem, incluindo processamento neurológico e pesquisas no campo da psicologia
cognitiva, mostrou que atividades e práticas musicais mobilizam várias áreas já conhecidas do
cérebro, “indo de encontro à antiga e simplista ideia de que a arte e a música são processadas
no hemisfério direito do cérebro, e a linguagem e a matemática, no esquerdo” (LEVITIN, 2010,
p. 15). Daí podemos associar a utilização da música como estímulo das funções cognitivas,
como coadjuvante no tratamento de doenças e recuperações neurológicas lesionadas e
definitivamente como terapia mental e física. Tais dados podem reforçar o que Seu Nestor
(PINHEIRO, 2017), regente atual da Corporação nos respondeu quando interrogado sobre o
que o trazia à banda: “Minha filha, se eu não vier pra cá, eu morro”!
Com efeito, esses elementos da cognição musical podem ser aplicados à atualidade
da Corporação Musical Operária da Lapa que ao perder funções no decorrer do século XX,
transformou-se em uma banda formada por idosos. Como toda comunidade se constitui e se
perpetua a partir de uma relação com o passado, seus integrantes têm oportunidade para reviver
este passado através das atividades da banda ao mesmo tempo em que passam por um
envelhecimento menos traumático.
5 PARK apud FAUVEL, 2014. 6 Ibidem, 2010.
22
1.4 A Banda de Música como uma Comunidade Musical
As comunidades sociais que se reconhecem mutuamente associadas a um conjunto
de fazeres são denominadas por Étienne Wenger (2008) “Comunidades de Prática”. Nessa
concepção, grupos de pessoas partilham um interesse ou uma questão que enfrentam
regularmente no trabalho ou nas suas vidas. “[...] Elas são tão informais e tão difundidas que
raramente entram em foco explícito, mas pelas mesmas razões elas também são bastante
familiares” (WENGER, 2008, p. 7, tradução nossa). O vínculo entre os membros é um fator
relevante, pois é o responsável por desenvolver conhecimento de forma a criar uma prática em
torno do tópico de interesse. Os propósitos do compromisso mútuo, iniciativa coletiva e o
conjunto de repertórios (elementos ou recursos) compartilhados são as principais características
desse tipo de comunidade.
Segundo o autor, um grupo se define como uma comunidade de prática quando
possui também, três elementos. O primeiro é o Domínio: tem de haver um assunto sobre o qual
a comunidade fala. Neste caso, a Música. O segundo, a própria Comunidade: as pessoas têm de
interagir e construir relações entre si em torno do domínio. Por exemplo, diversos integrantes e
também um público distinto para cada tipo de apresentação e atividade. O terceiro é a Prática:
tem de existir uma prática, e não apenas um interesse que as pessoas partilham.
Neste caso, entendemos “prática” como prática social, “isso implica em um fazer,
mas não apenas um fazer em si mesmo. Um fazer em um contexto histórico e social que dá
estrutura e significado ao que se faz” (WENGER, 2008, p. 47, tradução nossa). É nesse sentido
que as práticas e interações em grupos musicais são importantes, porque permitem e contribuem
para que os participantes se percebam comprometidos com algo em comum.
Estar vivo como seres humanos significa que estamos constantemente engajados na
busca de objetivos de todos os tipos, desde garantir nossa sobrevivência física até a
busca dos mais elevados prazeres. À medida que definimos esses objetivos e nos
envolvemos em sua busca, interagimos uns com os outros e com o mundo e
sintonizamos nossas relações com os outros e com o mundo. Em outras palavras,
aprendemos (WENGER, 2008, p. 45, tradução nossa).
A Corporação Musical Operária da Lapa, por sua vez, pode ser descrita como uma
comunidade de prática, pois sua trajetória se desenvolveu ao redor de elementos que
interessavam aos integrantes: o próprio fazer musical englobando os ensaios, as performances,
reuniões, etc. O fato de organizarem-se em torno da prática musical para atender um propósito,
transmitiu aos membros um senso de iniciativa conjunta, de pertencimento e de identidade,
além de produzirem um complexo de ideias, compromissos e memórias compartilhadas. Logo,
23
desenvolveram espontaneamente o uso de recursos próprios como linguagens, rotinas,
vocabulário e símbolos que de algum modo conduzem o conhecimento acumulado pela
comunidade. Dessa forma, a existência do grupo pode ser justificada pelo valor que produz aos
seus integrantes. Por outro lado, essas mesmas características da CMOL podem ser justificadas
pela prática musical em grupo e pelos diversos contextos em que tem atuado. É o que Kay
Kaufman Shelemay (2011) chamou de uma coletividade construída e sustentada através da
prática musical, ou seja, uma comunidade musical:
A comunidade musical [...] pode ser socialmente e/ou simbolicamente constituída; a
música pode dar origem a relações sociais em tempo real ou pode existir mais
plenamente no reino de um ambiente virtual ou na imaginação. A comunidade musical
não requer a presença de elementos estruturais convencionais nem deve ser ancorada
num único local, embora os elementos estruturais e locais possam assumir
importância em pontos do processo de formação da comunidade, bem como em sua
existência contínua. Em vez disso, uma comunidade musical é uma entidade social,
um resultado de uma combinação de processos sociais e musicais, tornando
aqueles que participam da música, cientes de uma ligação entre si (SHELEMAY,
2011, p. 350, tradução e grifos nossos).
A partir desta definição de Shelemay (2011) para comunidade musical, percebemos
a música sendo constantemente empregada a serviço de todas as variedades da imaginação
social e muitas vezes impulsionando a formação de coletividades pela capacidade de integrar
os músicos e também de se comunicar com os ouvintes7. Christopher Small (2011) ao conceber
o termo musicking (2011), que serve não apenas para expressar a ideia de atuar, tocar ou cantar,
mas para expressar a ideia de tomar parte numa performance musical, nos indica que a ideia da
comunidade musical pode ser estendida para além dos músicos. O envolvimento de outras
pessoas e de outras comunidades na construção das atividades da banda, tanto de forma ativa
ou passiva, coopera para que o grupo seja um local de encontro, um espaço para a sociabilidade;
ou melhor, um lugar marcante para o compartilhamento de experiências e vivências. Essas
participações na construção do “musicar” permitem o engajamento musical na sua prática, daí
seu caráter social.
A capacidade da Corporação Musical Operária da Lapa, enquanto comunidade
musical amadora, em servir sua localidade, o bairro da Lapa, e outras comunidades através dos
diversos contextos e manifestações, (uma comunidade mais ampla), promove naturalmente a
integração e possibilita ao grupo ser valorizado através de suas performances. Com isso, seus
7 Ibidem, p. 363.
24
integrantes têm oportunidade de sentirem-se úteis e ativos por desempenharem tais práticas. É
aí também que a questão do preenchimento do tempo livre, já mencionada, além da melhoria
da qualidade de vida, da saúde, do aumento da autoestima e das capacidades cognitivas se
conectam. Para Ruth Finnegan (1989), formações de banda caracterizam-se fundamentalmente
como espaços de sociabilidade, pois, “[...] ao tocarem juntas, estabeleceram relacionamentos
intensos e forneceram uma esfera na qual poderiam ser formadas mais conexões, que por sua
vez ligavam seus membros ainda mais [...]” (FINNEGAN, 1989, p. 54, tradução nossa).
[...] bandas e fazer musical numa comunidade, decorrem não apenas das maneiras que
as bandas servem às pessoas que compartilham de sua localidade através da
performance, mas também a partir das formas que o processo de fazer música constitui
uma comunidade para os próprios músicos (REILY, 2013: 23, tradução nossa).
O que torna uma comunidade musical local é sua capacidade em servir uma
determinada localidade. Portanto, a Corporação Musical Operária da Lapa, ao longo de sua
história, se estabeleceu gradativamente em um espaço que oferece possibilidades de
comunicação e sociabilidade entre seus integrantes e o público. Como argumentou Finnegan
(1989, p. 56, tradução nossa), “o sentimento de pertencimento a um mundo distinto e integrado,
herdeiro de uma tradição orgulhosa e independente, foi reforçado ainda mais pela continuação
da longa tradição de bandas de música que desempenham uma função pública para a
comunidade local”.
1.5 Metodologia
Como muitos instrumentistas de sopro, tive minha primeira educação musical
realizada ainda na adolescência através de uma banda de música evangélica. Desde então,
minha atuação como clarinetista tanto em grupos profissionais quanto em bandas amadoras, me
motivou a apreender e divulgar esse universo: o das bandas de música, que é tão complexo e
abrangente. O primeiro contato com a Corporação Musical Operária da Lapa foi inusitado e
singular.
Todo ano, há mais de 118 anos, no bairro do Brás, em São Paulo, acontece um
festejo italiano de rua, a Festa de Nossa Senhora de Casaluce, que é promovida pela Paróquia
Nossa Senhora de Casaluce do mesmo bairro. Como moradora da região, sempre ouvia no dia
de encerramento uma pequena banda ao longe. Certo dia, o último da festa, fui conferir de perto.
Era uma procissão, pouquinha gente e a banda lentamente conduzia o andor com o quadro –
25
não a imagem – de Nossa Senhora de Casaluce. O pequeno grupo, formado em sua maioria por
idosos com quepe branco, destacava-se. Depois de algum tempo, já com o pretexto para este
trabalho, fui até a Lapa.
A pequena casa estava com a porta entreaberta, bati e pedi para assistir ao ensaio.
Foram cordiais. Perguntaram se eu tocava. Mesmo querendo dizer não, disse que
sim. O maestro se colocou desconfiado.
Um tubista de uns 80 anos disse com ternura: “Tem uma clarineta aí. Quer pegar?”
Constrangida, disse que tinha vindo apenas conhecê-los.
[...] Não sei mais em quantas procissões toquei!
Diários de Campo
Sabendo que o grupo possuía uma história centenária e que seus músicos eram
amadores e idosos, a intenção inicial foi de elaborar um diagnóstico social e musical de seu
universo, investigando principalmente o papel que o grupo exerce para seus integrantes. Como
estratégia metodológica, seguimos pressupostos da abordagem qualitativa, com ênfase no
estudo etnográfico, incluindo principalmente a observação participativa em campo. A questão
em tornar-se integrante da Corporação Musical Operária da Lapa certamente me instigou a
refletir sobre a complexidade de seu contexto e do que é realizar uma etnografia de um mundo
musical extremamente familiar. O desafio era produzir estranhamento e distanciamento dentro
do que já é a mim habitual.
A apreensão do universo do outro necessitava flexibilidade e autodescoberta.
Mércio Pereira Gomes (2014, p. 11) mostra que “[...] para surgir a antropologia – cuja
característica mais essencial é mirar o Outro como um possível igual a si mesmo – seria preciso
um tempo de dúvidas e ao mesmo tempo de abertura ao reconhecimento do valor próprio de
outras culturas”. Nessa perspectiva de compreender e pensar o sistema de representação do
outro, “tomando distância da própria cultura” (GOMES, 2014, p. 12), a imprevisibilidade, a
subjetividade e a inconstância no campo colaboraram para nossa desfamiliarização.
Seguindo a ideia da produção de uma “etnografia em casa”, que segundo Roberto
DaMatta (1981) em O ofício do etnólogo ou como ter Anthropological Blues, o “tempo” é que
possibilita ao antropólogo tornar exótico o que é familiar, e familiar o que é exótico, o primeiro
ano de minha participação como integrante da banda, chamado pelo autor de fase teórico-
intelectual e depois fase de período prático, nos evidenciou o quanto o prejulgamento, a
implicância e a ausência de empatia estão arraigadas no ser humano. Em um primeiro momento
não disse a que vinha, nem o que fazia, nem onde estudava, nem onde havia tocado. Isso
começou a ser revelado nas idas consecutivas aos ensaios. Em pouco tempo, não era possível
26
continuar velando: o clarinete francês profissional e a comodidade com os dobrados denunciava
e provocava curiosidade.
[...] É preciso pensar em que espaço se move o etnólogo que está engajado numa
pesquisa de campo e refletir sobre as ambivalências de um estado existencial onde
não se está nem numa sociedade nem na outra e no entanto está-se enfiado até o
pescoço em uma e outra [...] (DAMATTA, 1981, p. 153-154).
Assim que assumi minha intenção, recebi em troca confiança, credibilidade através
da amizade e também o consentimento, pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Unicamp, para
documentar as experiências e trajetórias do grupo. O trabalho de consulta no arquivo Edgar
Leuenroth, no Centro de Memória da Unicamp e na Hemeroteca Municipal de São Paulo a
documentos, materiais e jornais antigos e também ao próprio arquivo da banda e dos músicos
colaborou para o esboço inicial de sua trajetória. Além disso, possibilitou compreender o que o
grupo foi e o que o grupo se tornou ao longo de sua história.
No contexto atual da banda, a observação participativa nos ensaios, apresentações,
reuniões, entrevistas, além das fotografias e filmagens, nos permitiram entrar na fase
pessoal/existencial, onde a visão do outro é mais nítida. Esses materiais viabilizaram perceber
principalmente a condição da banda na atualidade e o significado do grupo para os integrantes.
Esse “sentido da ação” entre os músicos e o conjunto como um todo foi um desafio em potencial
para se chegar a algumas respostas. DaMatta (1981) evidencia a visão de conjunto desta fase
do trabalho de campo. Nessa dimensão é que se percebe a perturbação da realidade e o diálogo
concreto com as pessoas, daí também a tentativa em decifrar o “indizível” do relato (QUEIRÓZ,
1996). Este momento da pesquisa, responsável pela construção intersubjetiva da verdade, foi
um aspecto desafiador e custoso. Com efeito, as entrevistas em especial, cooperaram para o
aprimoramento desta visão. É aí que o questionamento da construção das realidades sob mais
de um ponto de vista torna-se indispensável. Thomas Turino (1999) chamou atenção ao referir-
se aos vários níveis de significados contextuais num episódio etnográfico. Ele propõe aos
etnógrafos de música “uma ação reflexiva que leve em conta seu papel ambivalente de serem,
ao mesmo tempo, críticos e participantes de sistemas sociais de dominação” (TURINO, 1999,
p. 13). O autor enfatiza ainda que a “representação etnográfica das práticas de outras pessoas
reforça uma certa maneira de conhecer e faz parte de um processo mais amplo de afirmação de
categorias sociais ocidentais politicamente situadas [...]”8.
8 Ibidem, p. 14.
27
Ainda sobre os depoimentos, inicialmente, foi elaborado um questionário para
servir de guia. A intenção era conduzir uma entrevista semiestruturada com cada músico sem
tempo definido. No entanto, conforme o desenvolver da pesquisa, o trabalho em campo tornou-
se cada vez mais imprevisível e inconstante. Foi aí que se deu a compreensão do verdadeiro
sentido da palavra flexibilidade: idosos não têm tempo para responder perguntas, eles têm
tempo para falar sobre algo que lembram e estão disponíveis para discorrer sobre o que está
patente e notório em suas memórias. Além disso, submetê-los a perguntas fechadas seria
fatigante e austero. A propósito, propiciar desconforto ao entrevistado é um dos itens previstos
no TCLE9 durante a realização das entrevistas: “possíveis desconfortos decorrentes poderão
ocorrer”. O comprometimento era para não ocasionar desânimo e aborrecimento ao
“recordador”10 – termo utilizado por Ecléa Bosi (1994).
Bosi (1994), ao manusear os conceitos de memória, percepção, recordação e
principalmente lembrança em Memória e Sociedade: Lembranças de Velhos (1994), mostra
apoiada em Maurice Halbwachs, que a lembrança é a sobrevivência do passado. Lembrar e/ou
Recordar permite viver, resignificar a vida, além de reconstituir o passado dos recordadores e
também o de uma comunidade. Como a memória possui caráter livre e espontâneo, “o narrador
tira o que narra da própria experiência e a transforma em experiência dos que o escutam” (BOSI,
1994, p. 85).
Na maior parte das vezes, lembrar não é reviver, mas refazer, reconstruir, repensar,
com imagens e ideias de hoje, as experiências do passado. A memória não é sonho, é
trabalho. Se assim é, deve-se duvidar da sobrevivência do passado, “tal como foi”, e
que se daria no inconsciente de cada sujeito (BOSI, 1994, p. 55).
Nessa perspectiva, é com este suporte que conduzimos os relatos dos músicos do
grupo. Dentre os 21 integrantes da banda, 16 se disponibilizaram a contar, livremente, sobre
suas trajetórias na música, experiências, a circunstância de seus ingressos no grupo e também
o que sabiam sobre a Corporação, além de suas alegrias, descontentamentos e o que mais
quisessem “recordar”. Para o trabalho, foram selecionados trechos de todos os depoimentos
considerados relevantes para a pesquisa. Embora anteriormente no tópico “1.3 Música e
Velhice” tenham sido evocados estudos ligados à cognição musical, não foi seguida uma
metodologia experimental; porém, vemos nesse material um subsídio para compreender as falas
dos recordadores.
9 TCLE – Termo de Consentimento Livre e Esclarecido/Plataforma Brasil/Comitê de Ética. Em anexo. 10 Ibidem, 1994. Ecléa Bosi, assim como os membros de sua banca de livre docência - Marilena Chauí em especial
- usa o termo “recordadores” para se referir aos idosos entrevistados para sua pesquisa.
28
A dissertação está organizada em cinco capítulos. A intenção deste primeiro, a
introdução, foi teorizar acerca das diversas possibilidades que a pesquisa etnográfica traz para
o estudo do amplo universo das bandas de música. O propósito da fundamentação teórica para
comunidades musicais através de Wenger (2008) e Shelemay (2011) foi mostrar como todo
grupo musical voluntário com um longo histórico de performances pode se perpetuar através
de suas práticas.
O segundo capítulo, “Histórico da CMOL”, mostra a contextualização histórica do
bairro da Lapa paulistano, suas características passadas e atuais e a ênfase para o movimento
operário. Procuramos evidenciar como a formação da classe trabalhadora no Brasil e
especificamente em São Paulo, influenciou o aparecimento de bandas de música civis amadoras
na cidade. Ao descrevermos o aparecimento da Corporação, evidenciamos os inúmeros
anúncios em jornais da época e as oscilações que viveu antes de ser registrada como
“corporação musical operária da Lapa”. É neste sentido que o conceito de memória social de
Paul Connerton (1999) colaborou para o entendimento da narrativa ou “mitologia” do fato de a
banda ter sido fundada por Luigi Chiaffarelli em 1881, tornando-se motivo de orgulho para a
instituição.
A descrição das quatro fases da trajetória da banda, procurou evidenciar o que ela
foi e o que se tornou no decorrer de sua trajetória. Tal qual Bosi (1994), registramos o que foi
lembrado e conquistado através de um vínculo de amizade e confiança. Alguns depoimentos se
desenharam como uma confissão, outros foram relatos biográficos emocionados de suas vidas
musicais e outros se transfiguraram em denúncia e desabafo. Aliás, a maioria desses relatos
traziam valores e emoções escondidas. Aí é que tivemos a oportunidade de entender a
coletividade a partir das relações do indivíduo com o grupo. Queiróz (1986) em Relatos Orais
deixa claro que a voz do entrevistado, suas entonações, suas pausas, seu vai-e-vem no que conta,
constitui outros tantos dados preciosos para o estudo (1986, p. 02); é neste sentido que “o relato
oral está na base da obtenção de toda a sorte de informações e antecede a outras técnicas de
obtenção e conservação do saber” (1986: 03).
No terceiro capítulo descrevemos a atual estrutura social do grupo, enfatizando sua
hierarquia, o perfil dos músicos com destaque para o caráter amador e social da instituição,
além da instrumentação e repertório. A intenção principal foi de demonstrar a adaptabilidade e
a flexibilidade que a banda de música brasileira possui na circulação de diferentes repertórios.
No quarto capítulo, “Ensaios”, a finalidade foi ilustrar o contraste entre um ensaio
propriamente dito e o ensaio da Corporação. Noções de ensaio do ponto de vista da música
ocidental são apresentados a fim de que o conceito de comunidades de prática fique evidente
29
dentro das dinâmicas de ensaio da banda. O grupo, nesta perspectiva, é um objeto de práticas e
vínculos sociais para seus integrantes.
O capítulo final, “Performances”, apresenta a definição e a descrição dos campos
de performance atualmente comuns para a Corporação: a performance apresentacional, a
performance apresentacional com dimensões participativas e a performance participativa. O
objetivo foi mostrar que bandas de música se apresentam em espaços públicos e sempre se
apresentarão. Uma das características mais notáveis desses grupos, e que os diferencia de outras
práticas instrumentais, é que eles continuam a prosperar como formas públicas do fazer musical.
Nas considerações finais, deixamos claro o quanto o grupo colabora para um melhor
envelhecimento de seus integrantes.
30
CAPÍTULO 2 – HISTÓRICO DA CORPORAÇÃO MUSICAL OPERÁRIA DA LAPA
2.1 A Lapa paulistana e os primórdios do movimento operário
Durante o exame de historiografias e bibliografias sobre a cidade de São Paulo,
percebemos que a história e o desenvolvimento da Lapa paulistana não se confundem, mas se
integram à história de São Paulo. Nessa perspectiva, o início da trajetória da Corporação
Musical Operária da Lapa só pode ser compreendido a partir das histórias do bairro, da
imigração, do movimento operário e das ferrovias.
A Lapa paulistana – hoje predominantemente comercial, outrora operária e antes
agrária – teve seu nascimento durante o povoamento de São Paulo, quando ainda era São Paulo
de Piratininga. O lugar era chamado pelos índios locais de Emboaçava (lugar por onde se passa).
A região “[...] situava-se no ângulo formado pela confluência dos rios Tietê e Pinheiros, nas
imediações da atual ponte de ligação Lapa e Vila dos Remédios” (SANTOS, 1980, p. 17).
A então paragem de Emboaçava, no século XVI, se limitava com os campos de
Piratininga (altura do Pacaembu), Aldeia de Pinheiros, Jaraguá (que compreendia
Pirituba e Freguesia do Ó) e campos de Carapicuíba na altura do município de Osasco.
O povoamento disperso, com sítios e fazendas, se fez lentamente a partir da
construção de uma “fortaleza” para a defesa da Vila de São Paulo, situada além do rio
Pinheiros, em 1590 (SEGATTO, 1988: 9).
Até meados do século XVIII, fim da hegemonia jesuítica, a localidade era povoada
em sua maioria por índios, escravos, portugueses, bandeirantes e, evidentemente, pela
Companhia de Jesus, que como parte do processo de colonização recebeu também, assim como
os colonos, terras junto ao rio Pinheiros. Como condição para manter a posse dessas terras, os
jesuítas deviam realizar uma missa anual a Nossa Senhora da Lapa11. Com isso, o lugar passou
a ser conhecido e chamado de Fazendinha da Lapa. Com a implantação da produção de cana de
açúcar, todo o movimento das tropas da rota interior São Paulo, passava pela localidade e
necessitava de pouso; “[...] os ranchos, com funções diversas, [...] antes eram simples pousadas,
deveriam, então, satisfazer as solicitações das tropas, especialmente das mercadorias
transportadas, pois a principal carga era representada pelo açúcar [...]”12.
A partir de 1800, enquanto os tropeiros iam e vinham, Emboaçava já era conhecida
como Lapa pela população local. Foi então que um elemento integrante da Segunda Revolução
11 Ibidem, p. 26. 12 Ibidem, p. 32.
31
Industrial chegaria expandindo a demografia de São Paulo e transformando definitivamente a
região: a Estrada de Ferro. Duas linhas ferroviárias foram responsáveis pela transformação de
uma Emboaçava agrária numa Lapa operária: A São Paulo Railway Company, apelidada de “A
Inglesa”, primeira ferrovia da então província de São Paulo, inaugurada em 1867 (SAES, 1981),
posteriormente conhecida como Estrada de Ferro Santos Jundiaí e atualmente parte das Linhas
7 Rubi e 10 Turquesa da CPTM. Além desta, também a Companhia Estrada de Ferro
Sorocabana, fundada em 1871, parte da atual Linha 8 Diamante da CPTM. Ambas as linhas
possuem estações Lapa.
Figura 1: Mapa Atual da Rede Ferroviária da Grande São Paulo administrada pela CPTM. Em
destaque estações Lapa das linhas 7 e 8 (site da CPTM, acesso em junho/2017).
Estas ferrovias e outras, que não passavam pela região da Lapa e sim pelo interior
de São Paulo, como a Mogiana (1872), a Paulista (Companhia Paulista de Estradas de Ferro,
de 1868) e a Ituana (1871), foram os principais transportes na província de São Paulo para o
café; produto que a partir de sua expansão, trouxe uma nova elite social no decorrer do Império:
os Barões do Café. Ora, podemos questionar: qual a relação entre as elites cafeeiras, o café, a
ferrovia, a Lapa paulistana e a Banda da Lapa? Imigração e movimento operário.
32
Existentes até a Primeira República e integrando a chamada “política do café com
leite”, essas pequenas oligarquias e grandes proprietárias de escravos, apesar da contradição de
controlar e exercer influência no país através de seu poder econômico, ostentando riqueza e
alargando as diferenças, financiaram a construção de ferrovias e estradas e patrocinaram o
traslado de imigrantes para mão-de-obra em suas lavouras, elementos que impulsionaram
significativamente a urbanização e o desenvolvimento da Grande São Paulo. Affonso
d'Escragnolle Taunay (2004), ao mostrar a chegada de imigrantes através da SPR, insinua o
contexto problemático da urbanização da cidade em razão do “problema” da serra, as
adversidades na construção da ferrovia na serra, o transporte do café pela ferrovia e o
desenvolvimento econômico por meio do café:
Durante os primeiros quatro e meio decênios da era imperial o grande empecilho
imposto ao progresso da cidade de São Paulo proviera do agravo da transposição da
serra de Paranapiacaba. Mas a remoção do garrote asfixiador do progresso, por
intermédio dos trilhos da São Paulo Railway, só se tornou possível em virtude de
irresistível empuxo econômico. E este veio do café [...]. Com a abertura do tráfego da
São Paulo Railway começaram a Província e sua capital a receber a alusão de já
sensíveis contingentes alienígenas (TAUNAY, 2004, p. 324).
Notamos a partir daí que as primeiras formações operárias no Brasil, mais
especificamente em São Paulo, formaram-se a partir de uma necessidade da aristocracia do
café. Ainda que a Lei Eusébio de Queirós13 de 1850 fosse violada constantemente, alguns
fatores práticos cooperaram significantemente para tornar insustentável e custoso aos Barões
manter a escravidão: o ativismo político empreendido nas diversas insurgências, movimentos e
lutas sociais da época, a intensa campanha abolicionista e, evidentemente, a inevitável pressão
externa. Como na Europa o sistema de produção das fábricas já estava sendo substituído por
máquinas, amplo desemprego foi promovido entre os trabalhadores (COTRIM, 2002), daí o
desembarque de “sensíveis contingentes alienígenas”14 em Santos a partir de meados do século
XIX.
Espanhóis, franceses, lituanos, poloneses, ingleses especializados em ferrovia e
sobretudo italianos, entre outros imigrantes, ao iniciarem suas jornadas de trabalho na capital
paulista, ajudaram a fundar ligas de ofício, associações mutualistas, associações recreativas,
cooperativas, sindicatos, imprensa operária e jornais anarquistas. Percebemos ao examinar
13 Lei Eusébio de Queirós. Lei nº 581 de 04 de setembro de 1850. Promulgada pelo governo imperial do segundo
reinado, a lei proibia terminantemente o tráfico de escravos para o Brasil. O nome da lei faz referência ao seu
autor, o Ministro da Justiça Eusébio de Queirós Coutinho Matoso da Câmara. 14 TAUNAY, op. cit.
33
alguns exemplares de periódicos da época que o surgimento de ligas, além de clubes de lazer,
nos bairros do Brás, Belém, Mooca e Lapa em fins do século XIX e início do século XX, foi
um modelo de organização e conscientização entre os trabalhadores. Esses elementos
convergiram substancialmente para o aparecimento de conjuntos musicais como bandas15 civis
formadas por operários. Durante o manuseio desses periódicos16, encontramos anúncios das
atuações dessas bandas. Muitas delas pertenciam a associações mutualistas e recreativas. Além
de preencherem a música de suas festas, comemorações e também desfiles e bailes, esses grupos
colaboravam intensamente em passeatas, protestos e greves.
Figura 2: Jornal A Lanterna – SP – 19/10/1912 - Edição 161, p. 3.
A organização social e cultural operária foi um aspecto relevante para a formação
de bandas e grupos musicais entre trabalhadores. Segundo Francisco Foot Hardman (2001), tal
particularidade não foi apenas um fenômeno isolado ou “restrito às manifestações políticas [...],
foi um aspecto geral e inerente à formação da classe” (HARDMAN, 2002, p. 369). Podemos
dizer nesse sentido, que o aparecimento de bandas durante o movimento operário em São Paulo,
além de prática de luta e manifestação das categorias, era, também, prática de entretenimento e
lazer. E foi nesse ínterim, durante os movimentos abolicionistas, início da República,
imigração, nascimento do trabalho assalariado e formação de classes, que a Corporação Musical
15 Dentre as muitas bandas de música operárias que se formaram e se destacaram durante a imigração e o
movimento operário em São Paulo destacam-se: Banda Musical União dos Operários, Corporação Musical União
Operária, Banda de Música da União Internacional do Brás, Banda Musical Lyra Operária, Banda Musical Lyra
da Serra, Corporação Musical Luso-Brasileira, Banda da Sociedade Popular de Beneficência, Banda Musical
Humanitária, Banda União Operária da Mooca, Banda Bianca dela Mooca, Sociedade Recreativa Musical União
da Mooca, Banda Musical Lyra da Mooca, Banda Bersaglieri do Bom Retiro, Banda Giuseppe Verdi, Corporação
Musical Lyra de Euterpe, entre outras. 16 A Lanterna, A Vanguarda, O Combate, Fanfulla, O Saci, Il Paschino, Il Moscone, além dos jornais O Comércio
de São Paulo, A Província de São Paulo, O Estado de São Paulo, A Gazeta, O Correio de São Paulo, O Correio
Paulistano, entre outros.
34
Operária da Lapa surgiu, tanto para suprir demandas operárias como para ser um espaço de
socialização dos próprios integrantes.
Já na própria Lapa, as condições que a levaram a se definir como bairro operário
durante o século XIX estão associadas diretamente aos mesmos elementos: aos barões, ao café,
às ferrovias SPR e Sorocabana, aos imigrantes, ao operariado e à indústria. Várias oficinas,
tecelagens e companhias como a Vidraria Santa Marina, atual Saint Gobain, e os frigoríficos
Swift e Wilson se estabeleceriam na região. O bonde que passava pela Rua Guaicurus também
cooperou para que o comércio se desenvolvesse na região. Ao avançar no século XX, a Lapa
passou por um processo de urbanização intenso. Deixou de ser puramente industrial e dividiu-
se em extensas áreas residenciais conhecidas como Alto da Lapa, City Lapa, Parque da Lapa,
Vila Romana, Vila Anastácio, Vila Ipojuca, Bela Aliança, além de Vila Leopoldina e Vila
Hamburguesa. Atualmente essas áreas compreendem prédios, sobrados, escolas, hospitais e
bares. Já a conhecida Lapa de Baixo, que fica do outro lado da linha do trem, antes residência
de operários, permaneceu abrigando grandes galpões, além da sede da TV Cultura/Fundação
Padre Anchieta e a superintendência da Polícia Federal. O “centro” da Lapa, onde se localizam
o Mercado Municipal, as estações de trem, o terminal de ônibus, o shopping center e a Estação
Ciência, permaneceu estritamente comercial.
Várias lojas de departamento e de vestuário, junto a inúmeros estabelecimentos do
setor terciário como bancos, escritórios de advocacia, administração e contabilidade, além de
cartórios, despachantes, igrejas, escolas e salões de beleza, podem ser vistos nessa região.
Algumas construções antigas também podem ser vistas e visitadas, tais como a Casa de Cultura
Tendal da Lapa, a própria Estação Ciência, a Igreja Nossa Senhora da Lapa, o prédio do Sesc
Pompéia, o prédio da União Fraterna, o Casarão de Henrique Dumont Vilares, a fábrica da
Companhia Melhoramentos e a pequena casa da Corporação Musical Operária da Lapa, todas
tombadas pela prefeitura de São Paulo.
2.2 Fases
2.2.1 Fase 1 - Aparecimento
Através do material histórico, das entrevistas e também a partir de dados de outros
estudos de bandas, notamos que a história e a trajetória do grupo podem ser estruturadas em
quatro fases distintas. Essas fases são momentos específicos da história brasileira, que a banda
se integrou a sociedade também de uma forma específica. A intenção não foi demarcar essas
épocas de forma rígida, mas acentuar, que o grupo acompanhou a história e suas transformações
35
e se organizou como pôde dentro de cada período. A primeira fase do grupo, um período dúbio,
justamente pela carência de informações e a falta de registros, compreende sua fundação e se
estende até a fixação do nome “Corporação Musical Operária da Lapa” em 1914. Este período
específico, caracterizado principalmente pela formação do operariado em São Paulo, onde as
diversas formas de atividades para o lazer do trabalhador incluíam a formação de conjuntos e
bandas musicais, foi, para o grupo, uma fase marcada pelas intrincadas tentativas de se
estabelecer como banda operária remunerada. Seus primeiros nomes (Lyra da Lapa, Banda XV
de Novembro e Banda dos Empregados da SPR), a grande influência italiana através de seus
integrantes e singularmente o fato de estar entre as dezenas de bandas e grupos operários de
São Paulo expressa que o conjunto foi um produto de seu tempo.
De acordo com a documentação recente da banda, depoimentos, algumas matérias
de jornais, os livros de Hardman (2002, p. 371)17, Moraes (1995, p. 157)18 e Santos (1980, p.
81)19 e também de páginas da web, o aparecimento da CMOL é atribuído ao pianista e professor
italiano Luigi Chiaffarelli (1856-1923). No entanto, essa informação é indefinida. Conforme
Franco Cenni (2003, p. 441), Chiaffarelli e a família vieram para o Brasil em 1880 a convite de
um grupo de fazendeiros de Rio Claro, a fim de ministrar aulas de piano às filhas de fazendeiros
do café. Contudo, Chiaffarelli permaneceu em Rio Claro por pouco tempo e regressou à capital
em 1888. O jornal Correio Paulistano de 13 de setembro de 1888 mostrou o pianista e sua
família dentre os “chegados a São Paulo”:
Figura 3: Jornal Correio Paulistano – SP – 13/09/1888, p. 1.
17 HARDMAN, 2002. 18 MORAES, 1995. 19 SANTOS, 1980.
36
A referência sugere que Chiaffarelli não poderia ter formado a banda em 1881, já
que se estabeleceu em São Paulo somente em 1888. Há ainda um trabalho sobre Guiomar
Novaes (ORSINI, 1992) em que é mencionado o ano de 1885 como sendo o da chegada de
Chiaffarelli. O fato preciso é que o professor, ao se estabelecer na Rua dos Bambús, atual
Avenida Rio Branco, começou a promover uma série de apresentações e se dispôs a ministrar
aulas de línguas e música. O próprio jornal A Província/Estado de São Paulo fez o seguinte
anúncio seguidas vezes:
Figura 4: Jornal A Província de São Paulo – SP – 25/09/1889, p. 2.
Chiaffarelli, ao idealizar uma escola de interpretação pianística na cidade, tornou-
se um influente professor no Conservatório Dramático e Musical de São Paulo. Guiomar
Novaes, Francisco Mignone, Souza Lima, Menininha Lobo, entre outros, foram seus alunos,
além de sua filha Liddy Chiaffarelli Mignone ter sido casada com Francisco Mignone. Alguns
estudos acadêmicos recentes20 com enfoque biográfico sobre Luigi e/ou Liddy Chiaffarelli não
trouxeram referências que associam o pianista à banda da Lapa. Contudo, há o depoimento dos
próprios músicos afirmando que Chiaffarelli foi seu primeiro regente.
Quanto à data exata do aparecimento do grupo, existem também certas
indeterminações. Em diversas páginas veiculadas na web, a maioria indica o ano de 1881. Já
nos livros de Santos (1980) e Segatto (1988), o ano indicado é 1882. Um documento21, um
júbilo oferecido à banda por seu papel e serviços prestados à comunidade, emitido pela Câmara
Municipal de São Paulo em outubro de 2005 e assinado pelo vereador Claudio Roberto Barbosa
de Souza, também mostra o ano de fundação como sendo 1882. Já a placa da fachada da sede
20 AMATO, Rita de Cássia Fucci. “Cultura musical e pianística nacional: seus crescendos e diminuendos”. EM
PAUTA - v. 17 - n. 28 - janeiro a junho de 2006 e JUNQUEIRA, Maria Francisca Paez. Escola de música de Luigi
Chiaffarelli. Tese de Doutorado. São Paulo: Universidade Mackenzie São Paulo, 1982. 21 Disponível em: http://www2.camara.sp.gov.br/projetos/2005/00/00/05/4P/0000054PW.PDF, acesso em agosto
de 2016.
37
mostra a fundação do grupo datando de 07 de setembro de 1914. Essas informações trazem
outra desconexão que cerca as origens do grupo: os vários nomes que teve.
Levando em consideração os depoimentos dos músicos atuais, principalmente do
seu atual regente, Sr. Nestor Avelino Pinheiro, e também de matérias recentes veiculadas na
web, as circunstâncias da formação da banda se deram quando operários da SPR, que eram
imigrantes e também músicos, se reuniram para tocar no largo da Lapa em uma comemoração
de 07 de setembro do ano de 1881. Na ocasião chamaram o conjunto de “Lyra da Lapa”, esta é
a origem mais aceita entre seus membros, considerada oficial por eles, e tem sido passada
através dos anos pelos próprios músicos da banda. Depois, com a Proclamação da República
em 1889 e a intenção de homenagear o evento, os músicos passaram a chamar o grupo de
“Banda XV de Novembro”. Segundo relato do Sr. Nestor (PINHEIRO, 2016), este título durou
apenas o tempo de os integrantes envolverem-se em um conflito com monarquistas durante uma
apresentação. Houve um confronto, instrumentos foram quebrados e até mesmo alguns foram
presos pela “desordem”. Segundo o regente, houve seguidos incidentes por conta do nome “XV
de Novembro” que mudou em 1908. Como a banda era formada em sua maioria por ferroviários
funcionários da São Paulo Railway, decidiram em assembleia renomear o conjunto para “Banda
dos Empregados da SPR” – com esta denominação os músicos esperavam obter alguma espécie
de apoio financeiro, o que não se realizou – passando depois para Corporação Musical Operária
da Lapa.
Ora, é necessário salientar que essas três denominações atribuídas ao grupo (Lyra
da Lapa, Banda XV de Novembro e Banda dos Empregados da SPR) foram designações cujos
registros o atual grupo não conservou, ou nunca possuiu, ou, ainda, foram perdidos por gestões
precedentes. Contudo, são denominações conferidas à banda desde sempre, se perpetuando
através dos relatos dos integrantes. É uma versão comumente aceita entre a diretoria da atual
banda que a divulga nos meios de comunicação. Os atuais componentes do grupo durante as
entrevistas não mostraram possuir lembranças desse período, o que se justifica, já que são
contemporâneos à fase atual e não possuem parentes ou conhecidos que integraram o grupo
nesse período. O que de fato o conjunto coletivamente possui, são informações transmitidas
oralmente de geração em geração e que muitas vezes são veiculadas pela imprensa e web. Entre
essas informações divulgadas frequentemente, como já vimos, estão sobretudo o nome do
“fundador”, Luigi Chiaffarelli, a data do aparecimento em 07 de setembro de 1881, a formação
por operários imigrantes que trabalhavam na SPR e também as várias denominações antes de
se tornar definitivamente Corporação Musical Operária da Lapa em 1914.
38
Figura 5: Jornal O Estado de São Paulo – SP – 05/02/2012, p. C10.
Para esta questão, em especial, é necessário aqui nos remetermos a Paul Connerton
(1999) e sua noção de memória social. Faremos a mesma pergunta que está na introdução de
Como as sociedades recordam (1999): “como é que a memória dos grupos é transmitida e
conservada?” (CONNERTON, 1999, p. 01). Como afirmou Ecléa Bosi (1994, p. 414), “as
lembranças grupais se apoiam umas nas outras formando um sistema que subsiste enquanto
puder sobreviver a memória grupal”. Ao longo da observação participativa e do manuseio de
documentos e reportagens, vimos a banda se reconhecendo como fundada em 1881. Como
mencionado, é uma informação perpetuada pelo conjunto por toda sua existência, e ao redor
disso criou-se uma narrativa – ou uma “mitologia” – tornando-se uma marca de orgulho para a
banda, ter sido fundada por Luigi Chiaffarelli em 1881. Connerton argumenta que “todos os
inícios contêm um elemento de recordação, e isto acontece principalmente quando um grupo
39
social faz um esforço concertado para começar de um ponto de partida inteiramente novo”
(CONNERTON, 1999, p. 07). Ainda segundo o autor, a recordação é seletiva e atua em duas
áreas da atividade social: cerimônias comemorativas e práticas corporais. Neste caso, podemos
sugerir que alguma performance de banda no bairro da Lapa, em 1881, formada por operários
músicos com algum contato próximo a Chiaffarelli, mais tarde faria parte da Corporação,
marcando assim o início da fundação do grupo.
[...] as nossas experiências do presente dependem em grande medida do conhecimento
que temos do passado e que as nossas imagens desse passado servem normalmente
para legitimar a ordem social presente. [...] as imagens do passado e o conhecimento
dele recolhido são transmitidos e conservados através das performances
(CONNERTON, 1999, p. 04).
Percebemos que a memória social não necessita comprovação: ela é aquilo que teve
relevância no passado, que as pessoas lembram e que continua a ter relevância no presente,
perpetuando-se. Isso quer dizer que a memória é um espaço onde as esferas biológicas e
socioculturais do ser humano se encontram e, ao serem integradas à vida em sociedade,
adquirem significados (REILY, 2014). A figura de Chiaffarelli e a data de 1881 indicam para
os integrantes a importância da banda e trazem um capital simbólico (BOURDIEU, 2013) para
o grupo, além do sentimento de compromisso com a continuidade da banda.
Por outro lado, indo em direção à reconstrução histórica, encontramos durante o
manuseio do jornal A Província/Estado de São Paulo, alguns dados que mostram algumas
bandas em atividade na Lapa e na cidade: Banda de música 15 de Novembro, banda musical da
Lapa, banda musical Quinze de Novembro da Lapa, Sociedade Musical Operária da Lapa e
banda de música da São Paulo Railway. Embora esses títulos possuam semelhanças com os
nomes difundidos pelo grupo, fica pendente associar à atual CMOL – mesmo porque algumas
datas das performances não coincidem com as informações que o grupo tem disseminado
através dos tempos.
O período em questão, o fim do século XIX, como mencionado, foi um período de
formação das bandas civis operárias em São Paulo, fenômeno não limitado apenas às
manifestações operárias e políticas, nem militares, mas a um aspecto geral e característico da
própria formação das classes (HARDMAN, 2002) e associado diretamente à imigração. Nesse
sentido, a estabilidade dessas bandas e/ou associações era muito precária. Na mesma velocidade
com que se formavam, se desfaziam. Quer dizer, os integrantes passavam de uma banda a outra
na mesma agilidade que esses grupos também trocavam de nome.
40
Além disso, de acordo com a memória social da CMOL, o nome XV de Novembro,
por ocasião da Proclamação da República, dava um caráter mais nacionalista e/ou militar ao
grupo. Diversas bandas “15 de novembro” em várias regiões do Brasil como as de Paraibuna –
SP (Correio Paulistano, 14/08/1895, p. 02), de Bragança Paulista – SP (O Estado de São Paulo,
06/12/1902, p. 01), de Mariana – MG (O Pharol, 18/12/1906, p. 02), do Rio de Janeiro – RJ (O
Fluminense, 19/05/1906, p. 02), de Belém – PA (Estado do Pará, 30/03/1919, p. 05) entre
outras, também quiseram homenagear o “acontecimento”.
Colhemos em algumas edições do jornal O Estado de São Paulo anúncios de
performances de bandas de música na Lapa deste período (início do século XX) em eventos
pelo bairro. No primeiro anúncio abaixo, de 1905, fica claro que a banda que tocaria em uma
alvorada seria pertencente à associação “Centro Socialista da Lapa”, comprovando igualmente
a época expressiva em que as associações mutualistas fundadas por operários atuavam pela
cidade de São Paulo. O outro anúncio de 1910, confirma definitivamente uma certa banda
musical “15 de Novembro” atuante na Lapa. Este minúsculo anúncio pode sugerir alguns
pontos, sendo que os dois primeiros são opostos:
I- As duas bandas eram a mesma. Apenas mudou o nome.
II- As duas bandas não tinham nenhuma ligação, eram distintas.
III- Uma das bandas tinha ligação com a atual CMOL e se tornou a atual CMOL.
IV- A banda “15 de Novembro”, ou parte de seus integrantes era a atual CMOL,
contrariando o que o grupo atual sempre divulga (que o nome XV de Novembro
durou até 1908).
Figura 6: Jornal O Estado de São Paulo – SP – 01/05/1905, p. 02; 16/10/1910, p. 02.
Referente a outro nome, “banda de música da São Paulo Railway”, que constitui
fortemente a “memória social” do grupo (os músicos antigos e atuais afirmam categoricamente
que os primeiros integrantes da banda eram funcionários da SPR), encontramos uma ocasião
41
em que um grupo assim denominado atuou na Lapa. O jornal O Estado de São Paulo de 04 de
maio de 1917, página 3, diz o seguinte:
O Sr. Coronel Oscar Porto teve hontem [sic], por motivo do seu anniversario [sic]
natalício a sua residência repleta de amigos e parentes. Ao anoitecer, o anniversariante
[sic] foi alvo de uma manifestação, promovida por habitantes da Lapa que, com a
banda de música da “S. Paulo Railway” a [sic] frente, foram oferecer-lhe um bouquet
(O Estado de São Paulo, 14/05/1917, p. 3).
Percebe-se por esta notícia de 1917 que havia uma banda da São Paulo Railway
(SPR) em São Paulo. No entanto, já estamos em 1917. Segundo matéria do mesmo jornal de 26
de janeiro de 1910, página 10, uma certa Sociedade Musical Operária da Lapa anuncia sua
extinção. O curioso anúncio de 1910 aponta algumas informações: a existência de uma banda
de música na Lapa, a existência de uma sociedade operária na Lapa, as dívidas dessa sociedade,
“outras razões” não mencionadas e o contato na Lapa para se tratar da venda dos instrumentos.
Seria essa sociedade a Corporação Musical Operária da Lapa? Algumas informações contidas
no anúncio podem fazer-nos pressupor que sim. O início do anúncio traz o seguinte
comunicado:
Por razões econômicas, a Sociedade Musical Operária da Lapa desde esta data deixa
de existir. Tendo esta sociedade algumas dívidas, por conseguinte, faz-se saber ao
público que, tendo um pequeno patrimônio social (do qual dá-se a nota em baixo)
[sic], este patrimônio vem offerecido [sic] a quem queira comprar, o qual servirá para
o pagamento das ditas dívidas. Para mais informações na Lapa, com o Sr. Telemaco
Ozzetti Ocogue (O Estado de São Paulo, 26/01/1910, p. 10).
Esse mesmo anúncio foi publicado sem nenhuma alteração dois dias depois, em 28
de janeiro de 1910, também na página 10. Contudo, o que chama atenção são os itens dispostos
para venda. Entre esses itens há “cadernetas de marcha”. Na banda atual há caderninhos antigos
de marcha, daqueles que se prendem em uma lira22 acoplada ao instrumento. Solicitamos a vista
deste material ao secretário e arquivista, Sr. Luiz (ALVES, 2016), e percebemos que não
pertencem à década de 1910 e sim à década de 1970 e contêm marchas e músicas fúnebres. Já
o último item posto à venda no anúncio, cartelas para jogos de tômbola, podem confirmar que
se trata da atual banda da Lapa, pois há inúmeros comunicados sobretudo nos jornais Correio
Paulistano e Correio de São Paulo onde a mesma se apresenta em eventos com jogos de
tômbola. O indício mais claro é de que a “sociedade” não foi desfeita e a banda foi mantida.
22 Lira, neste caso, não é o instrumento de cordas e nem a lira de percussão e sim uma pequena estante adaptada a
cada instrumento. Nela, são colocadas pequenas partituras e, normalmente, é utilizada em ocasiões em que a banda
toca andando ou marchando.
42
Figura 7: Caderno de Marchas Fúnebres – Década de 1970. Acervo CMOL.
Figura 8: Jornal O Estado de São Paulo – SP – 26/01/1910, p. 10.
43
Ao colocarmos esses dados em contraposição com informações do jornal Diário
Nacional: A Democracia em Marcha de 21 de setembro de 1930, página 5, cuja matéria convida
a todos para a inauguração da atual sede, percebemos que a banda do anúncio do Estado de
1910 é a atual Corporação. Da matéria do Diário Nacional, por se encontrar em péssimo estado
de visualização, optamos apenas por reproduzir o trecho descrito: “A Corporação Musical
Operária da Lapa foi fundada em 1910 por um grupo de amantes da música. Só mais tarde,
porém, em 1914, legalizou os seus estatutos, passando a ter sede e elegendo a sua primeira
diretoria [...]”. Mesmo com um longo período entre 1910 e 1930 podemos constatar,
independentemente se seus músicos integraram ou integravam outras bandas, ou se tais bandas
mudavam de nome, que a banda foi formada até mesmo antes de 1910. Podemos perceber
também, pelo anúncio de 1910, que era uma sociedade formada por músicos, tinha estatuto,
havia sócios que contribuíam para seu funcionamento, além dos concertos serem pagos e os
músicos remunerados. Tais elementos coincidem com os dados de 1930. Ora, essas informações
em jornais, como nomes de bandas atuantes na Lapa e apresentações, podem sugerir que muitos
músicos imigrantes e operários da região da Lapa, incluindo os funcionários da SPR, fizeram
parte das bandas citadas, já que haviam tantas na cidade, para depois formar uma “Sociedade
Musical Operária”. Sobre o aparecimento da CMOL, concluímos, portanto, dois fatos:
I- Segundo a “memória social” dos integrantes, o grupo foi formado pela primeira
vez em 1881 com operários imigrantes, provavelmente italianos, com
participação direta de Luigi Chiaffarelli, em ocasião de um desfile de 07 de
setembro, passando depois pelas três denominações mencionadas.
II- De acordo com o jornal Diário Nacional, a atual banda foi registrada em 07 de
julho de 1914. A data em julho sugere um erro de digitação por parte do jornal.
No entanto, a placa da fachada da sede, além do indicado no estatuto mantém a
data de 07 de setembro de 1914.
Ainda durante esta primeira fase, segundo documentação da Corporação, o grupo
também não possuía um espaço definitivo para a realização dos ensaios, os locais eram as
próprias casas dos músicos. De acordo com o Jornal Nosso Bairro – Revista A, nº 22, 2001, p.
14-15, o grupo teve os seguintes locais para ensaios antes da sede: primeiramente, uma casa
localizada na Rua Felix Guilhem, esquina com a Rua Coronel Bento Bicudo na Lapa de Baixo;
depois, após a saída do Maestro Chiaffarelli em 1908, o Maestro Paulo Chianato assume
44
brevemente a banda, passando a ensaiar na Rua Guaicurus, esquina com a Rua Catão23; então,
após curto período com o Maestro Chianato, a banda passa a ser liderada por Antonio Valeriani.
Foi aí que o lapeano Sr. Antônio Machado cedeu um espaço em sua própria casa, que era na
Rua George Schmidt (SANTOS, 1980, p. 81), até a inauguração da sede na Rua Joaquim
Machado.
2.2.2 Fase 2 – A Era de Ouro
Com a fixação e o registro do nome “Corporação Musical Operária da Lapa” em
1914, a banda deu início a uma série de performances pela cidade de São Paulo, além de
construir e inaugurar sua sede em 1930. A partir desses eventos, o grupo entrou na segunda fase
de sua trajetória, um período de mais de 50 anos, que se estendeu até o início dos anos 1970.
Como lembramos no início da descrição das fases24, não é uma delimitação rígida.
A demarcação de fases é com o objetivo de destacar a produção e as características do grupo
durante as transformações da sociedade brasileira. O grupo movimentou-se de acordo com a
história, e, sua atuação, mais especificamente a partir da Era de Vargas que compreendeu um
civismo e um nacionalismo exacerbados, foi direcionada a este período.
A temporalidade própria da história pode ser buscada, entre outras formas, em sua
concreção no espaço. Não se trata de espaço abstrato ou cósmico; se se fala de um
espaço que guardou as chaves históricas do tempo, deve-se pensar, pelo menos ao
início da reflexão, no espaço cênico, definido pela geografia [...] (HARDMAN, 2002,
p. 272).
Para a Corporação, podemos dizer que este período principiou sobretudo a partir da
aquisição da sede: um conhecido imigrante italiano da região e sócio da CMOL, Nicola Festa
(1863-1938), fruticultor, proprietário de terrenos e morador do bairro da Lapa, conhecido na
localidade como patrono das tradições musicais justamente por ajudar e financiar a atividade
musical no bairro da Lapa, em fins da década de 1910, doou um lote para a construção da sede.
De acordo com reportagem já citada do Diário Nacional: A Democracia em Marcha de 21 de
setembro de 1930, página 5, os próprios músicos ficaram responsáveis pela construção e
manutenção do espaço, que foi inaugurado no mesmo dia da reportagem. Nela, o Diário
convida a todos para a inauguração da sede, que aconteceria às 14:00 horas na Rua Joaquim
Machado, nº 1, e louva os “esforços da sua diretoria” pela construção do empreendimento:
23 Ibidem, p. 14. 24 Cf. p. 34.
45
Figura 9: Jornal Diário Nacional: A Democracia em Marcha – SP –
21/09/1930, ed. 00992, p. 5.
Segundo o 10º Oficial de Registro de Imóveis da Comarca do Estado de São Paulo
de 1963, essa construção possui “3,30 m de frente, do lado direito mede aproximadamente
7,80m de quem olha o imóvel para a rua, pelo eixo do Córrego Mandi, do lado esquerdo mede
8,10m, confrontando com o remanescente da propriedade do expropriado, tendo nos fundos
aproximadamente 3,50 metros, confrontando com o imóvel nº 157 da Rua Trajano, de
propriedade de Luiza Festa e Nicolau Festa Júnior, ou sucessores, encerrando a área de 25,40m
quadrados”.
Foto 1: Fachada atual da CMOL. Foto: Google Maps – junho/2017.
46
Já a escritura foi lavrada em 15 de dezembro de 1950 no 19º Cartório de Notas de
São Paulo. A descrição do oficial de registro aponta a construção confrontando com o eixo do
Córrego Mandi. Em depoimento, o Sr. Arnaldo25, de 83 anos, tubista da banda desde a década
de 1960, confirma que o córrego “beirava” a construção: “[...] de vez em quando, de sexta-
feira eu ficava aqui, que aqui não tinha viela, ali passava um córrego, [aponta para fora
mostrando a rua] e tinha ali umas grades, tipo uma pontinha, e eu ficava naquela grade ali [faz
gesto com os braços] ouvindo a banda tocar”.
A estrutura da pequena construção de alvenaria de andar único, coberta por telhas
de barro francesa, é dividida em sala de ensaio, banheiro e um mezanino. Suas paredes externas
e internas são pintadas meio a meio de marrom e creme, o piso é de cerâmica marrom e o teto
está forrado. Há uma janela na frente e outras duas na lateral esquerda. Na parte interna, na
lateral direita, três sousafones estão dispostos lado a lado. No vértice, à frente, numa prateleira
elevada, uma demonstração de fé e religiosidade da banda: uma imagem coroada de Nossa
Senhora de Fátima. Por vezes essa imagem é reverenciada pelos músicos. Logo abaixo, um
pequeno arquivo cinza de escritório comporta as mais de 300 partituras da banda. A maioria
são cópias de dobrados e marchas conhecidas, e há ainda alguns manuscritos, além de arranjos
diversos de música popular.
A disposição de cadeiras e estantes permanece de frente para a porta, em direção a
rua. Desse ângulo, o público que passar pela calçada terá visão plena da banda através da porta
que sempre fica aberta durante os ensaios. Dentro da sala, à direita, ao fundo, encontra-se a
escada que antigamente dava para um mezanino. Este mezanino, segundo os músicos da banda,
foi fechado durante a década de 1990. O regente atual, Sr. Nestor26, tem relatado
constantemente durante os ensaios que “antigamente, provavelmente depois da inauguração da
sede, entre os anos 1930 até 1950, muitas famílias e pessoas importantes subiam naquele
mezanino e assistiam aos ensaios da banda”.
Segundo a Resolução nº 05/2009 do CONPRESP – Conselho Municipal de
Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental de São Paulo, em 2009 o imóvel foi
tombado pela Prefeitura de São Paulo. Foi exigido um Nível de Preservação 3 (NP3), onde se
preserva e resguarda características arquitetônicas externas, incluindo fachadas, volumetria e
cobertura do imóvel.
25 MOURA, 2017. 26 PINHEIRO, 2016.
47
Foto 2: Ensaio da Corporação Musical Operária da Lapa – SP – 06/10/2016. No
fundo à direita, a escada que leva ao mezanino. Acervo da autora.
Como evidenciamos, depois da construção da sede da CMOL, esta fase foi
caracterizada principalmente por uma grande demanda de apresentações. Os aspectos mais
notáveis que percebemos foram os contextos de performances. O período abrangeu
primeiramente apresentações ao ar livre no Largo da Estação da Lapa, apresentações
beneficentes em jogos de tômbola, apresentações em clubes operários como a União Lapa
Clube, Clube Carnavalesco Lapeano e os inúmeros concertos beneficentes em favor do asilo de
expostos da Santa Casa de São Paulo.
Figura 10: Jornal O Estado de São Paulo – SP – 22/09/1919, p.4.
48
É necessário destacar que as várias performances da Corporação em favor do asilo
de expostos, sugerem, que a cidade de São Paulo mesmo tendo se destacado neste período como
centro de industrialização, urbanização e polo operário, foi uma cidade provinciana e arraigada
a uma sociedade patriarcal e conservadora. Como a reorganização do espaço público
demandava formalização de outros padrões e costumes, no final dos anos 1940, a banda deixou
de fazer essas apresentações.
Para performances ao ar livre, destacamos abaixo, um concerto de 1925 divulgado
no antigo jornal Folha da Manhã. No anúncio em questão, é comunicado que a banda faria uma
apresentação no Largo da Estação, na Lapa. É detalhado ainda um complexo e pesado repertório
que seria executado durante duas horas. É possível perceber pela divulgação da “Retreta” que
a Corporação antes desta data já era proprietária de um “vasto repertório”, pois além de abranger
peças de concerto consagradas, como transcrições de trechos de óperas, compreendia música
popular:
Figura 11: Jornal Folha da Manhã – SP – 27/09/1925, p.2.
Nota-se, também, que metade do programa executado é composto por obras de
compositores italianos o que demonstra a descendência e grande influência italiana no conjunto
durante esta fase. A última peça anunciada, o samba Fubá, de Romeu Silva, na verdade um
maxixe, única música brasileira descrita no programa, havia acabado de ser lançado no ano
anterior, 1924, confirmando que a banda era atualizada com composições do período e
empenhava-se para sua divulgação.
49
Depois, já no período getulista, foi a vez dos numerosos bailes de carnaval no
C.D.R.27 Royal, que acontecia frequentemente no Cine República sob a regência do Maestro
Vicente Santoro. Esses bailes aconteceram entre o final dos anos 1920 e se estenderam até o
início dos anos 1940. O jornal Correio de São Paulo, ao longo da década de 1930, anunciou
seguidas vezes esses bailes do “Royal no Cine República”. Em um dos anúncios do Correio de
São Paulo (03 abr. 1936, p.6), é mostrado que a banda executaria as “novidades do carnaval”
de 1936 no Cine República com um número de 65 integrantes sob a regência do Maestro
Vicente Santoro:
Mais uma vez, o Royal abrirá as portas do Cine República, para assistir a invasão de
pierrots e colombinas, não satisfeitos do último carnaval. Essa reabertura será no
próximo sábado dia 11 de Abril, Alleluia [sic], das 21 horas em diante, ao som da
Corporação Musical Operária da Lapa, sob regência do Maestro Santoro, que a frente
dos seus 65 músicos, fará executar as novidades do carnaval de 1936, comparecendo
ainda o Jazz ‘Centro’ e a orchestra [sic] Typica De Lascio (Correio de São Paulo,
03/04/1936, p.6).
Em relação à quantidade de músicos, 65, é provável que nesta ocasião, como mostra
o anúncio, fossem mais de dois a três grupos tocando juntos, pois o estatuto28 da Corporação
deixa claro que o número de instrumentistas não pode exceder a trinta.
Além dessas apresentações, a banda se destacou neste período principalmente por
conduzir e preencher festividades e procissões religiosas. O registro mais antigo disponível
sobre a atuação do grupo nesse tipo de manifestação consta de 1920. O evento foi uma procissão
da “Festa do Divino Espírito Santo”, na Freguesia do Ó, em São Paulo. Em contraste com a
data de 1920, temos a banda conduzindo a mesma procissão em outras ocasiões, sendo que a
última foi em 28 de maio de 2017. A partir desses dois registros, percebemos que o grupo atende
este evento há 97 anos, confirmando que as festas de padroeiros e a procissão católica em espaço
público não perderam posição junto às manifestações populares brasileiras – ao contrário, é
uma prática comum que desde a instalação da colônia em território brasileiro vem sendo
acompanhada por música.
Essas festas, incluindo também as quermesses são performances especiais para a
banda, pois o grupo tem a oportunidade de usar seu repertório e sua sonoridade para mobilizar
os participantes. É como um ritual nas ruas, onde o espaço social determinado pelo coletivo une
uma série de elementos: devoção, dedicação, fé, objetos simbólicos, gestos, comportamentos,
27 Centro Dramático e Recreativo Royal. 28 Estatuto da CMOL. Capítulo I, artigo 5º. Anexo.
50
orações, cantos e músicas executadas. Isto, definitivamente, constitui um espaço marcante para
a socialização da banda, pois agrupa pessoas de perfis diversos: religiosos, civis, mulheres,
homens, crianças, adolescentes, idosos e músicos. Este é um ponto que abordaremos mais à
frente, no último capítulo.
Figura 12: Jornal Correio Paulistano – SP – 29/05/1920, p. 3 ed.
20439.
Em relação aos eventos religiosos da banda neste período, o Sr. Paulo (MACUCO,
2017), 78 anos, saxofonista da banda desde 2007, nos relatou que conheceu o grupo em sua
adolescência, precisamente, por volta dos anos 1950. Nesta época o Maestro Vicente Santoro
já estava afastado, e o Maestro Victor Barbieri já tinha assumido a banda. A lembrança do Sr.
Paulo mostra um desses contextos religiosos preenchidos pela Corporação: “[...] a banda foi
importante, porque eu era mocinho, eu frequentava quermesse. Essa banda tocava nas
quermesses que eu frequentava. [...] Na Vila Mangalot, onde eu morei, a banda ia fazer
quermesse lá, essa banda aqui! Eu lembro”29.
A partir de 1950, já com o Maestro Victor Barbieri, contramestre de Vicente
Santoro, a Corporação passou a se apresentar frequentemente em praças e coretos paulistanos,
constatando que o grupo sempre esteve comprometido com sua comunidade e com uma
comunidade mais ampla. O Sr. Arnaldo30, de 83 anos, tubista da banda, nos relatou que iniciou
seus estudos de música em 1949, por volta dos 10 anos, junto à Corporação Musical Ordem e
29 MACUCO, 2017. 30 MOURA, 2017.
51
Progresso, cuja sede também ficava na Lapa (Lapa de Baixo). Tal fato o permitiu, nessa época,
conhecer a banda da Lapa e tornar-se um de seus integrantes. Em seu relato, ele menciona a
marcante presença italiana no grupo, o nome do Maestro Victor Barbieri, assim como uma
apresentação da banda no Coreto da Praça da República. Esse, foi um dos inúmeros “Concertos
Públicos em Diversos Bairros da Cidade”, tanto da banda da Lapa como de outras bandas,
anunciadas frequentemente pelo jornal O Estado de São Paulo ao longo da década de 1950:
Figura 13: Jornal O Estado de São Paulo – SP – 22/01/1954, p. 07.
[...] Essa é a quarta ou quinta geração. Os antigos daqui, eram todos italianos, parece
que só eles sabiam [gesticula como italiano] [...]. [O senhor lembra do regente nessa
época?] Era... o regente naquele tempo era o Victor Barbieri. Ele que regia a banda.
Enérgico, brabo... [Então o senhor pegou ele aqui? Quando foi?] Não tenho ideia, mas
cheguei a tocar com ele. Não me lembro o ano, mas toquei na época dele, Maestro
Victor Barbieri. A gente fazia muito serviço lá na Praça da República, aquele coreto
chinês que tem lá! A banda tocava lá. Todo domingo à noite, ou sábado à noite
também. [E qual era o repertório?] O repertório era tudo. Dobrado, valsa, aqueles
maxixes antigos, coisa sinfônica... O Victor Barbieri tinha muita coisa sinfônica.
Tinha um bom número de músicos a banda.
Uma noite a gente estava tocando na Praça da República, eu não tocava tuba, tocava
sax genes31, chiquinha, tocava aquilo. E uma noite na Praça da República, eu estava
meio gripado, aquela tosse forte, tinha hora que tossia, dava aquela crise de tosse.
Chegou no ensaio, o Victor Barbieri falou pra mim: “o senhor quase derrubou a banda
lá na Praça da República”, ele falava áspero “mas com essa tosse”! É, fazer o quê! Ele
era rígido. “O senhor vai continuar na banda aqui com a gente”? Eu pretendo. “Então
o senhor vem meia hora antes do ensaio, você me traz um Bona”! Ele queria que eu
batesse o Bona pra tocar sax genes? Eu falei, que isso! Ah não! Não vou bater Bona
pra tocar sax de harmonia! Conheço compasso, andamento, tudo! Aí peguei e me
afastei. Não me lembro que ano que foi. [O senhor lembra dos músicos dessa época?]
31 Sax genes é o mesmo que Sax horn. No Brasil, principalmente em bandas militares, bandas amadoras e
bandas/orquestras evangélicas, as expressões sax genes, sax de harmonia e até mesmo chiquinha são comuns e se
referem ao mesmo instrumento.
52
Ah, tinha um pernambucano que tocava requinta com a palheta invertida, parecia um
canário. E também o Nabor Pires Camargo, vou procurar... tenho em casa um papel
com o nome dele. Ele foi do municipal, né? [Sim. E o Santoro [Vicente Santoro] o
senhor conheceu?] Ah, ele era da Força Pública, ficou aqui também, até 1950.
Velhinho... [...] (MOURA, 2017).
Foto 3: À esquerda, em pé, com o sousafone, o Sr. Arnaldo Moura em ensaio da Corporação
Musical Operária da Lapa em 13/05/2017. Acervo da autora.
O relato do Sr. Arnaldo, além de evidenciar o conflito gerado entre ele e o
comportamento severo do Maestro Barbieri, mostra também o repertório nessa fase e o grau de
conhecimento e disciplina que se exigia dos músicos. Um documento, uma espécie de memorial
redigido pela atual diretoria da banda, consta que Barbieri assumiu como regente em 1948, pois
Vicente Santoro já se encontrava em idade avançada. Esse dado confirma o que Seu Arnaldo
nos relatou. Dos depoimentos dos instrumentistas que lembraram da época, evidentemente,
quando ainda vivos, podemos verificar, em uma reportagem de 2001, (“Revista A” – Lapa, nº
22, suplemento do Jornal Nosso Bairro), que a banda estava no seu auge:
Nos apresentamos em frente à igreja matriz da Freguesia do Ó, com o Maestro Victor
Barbieri. Na ocasião executamos uma peça da música O Guarani de Carlos Gomes.
Naquele dia, nos encontramos na sede a tarde e subimos até a igreja, onde fizemos
uma apresentação de duas horas, com marcha sinfônica e parabéns pra você. Havia
uns 30 músicos e o maestro era o Barbieri. Então chamamos o cônego Marcelo, que
estava nos apreciando, para fazer parte de um retrato (Manoel Antônio. Revista A –
Lapa, nº 22, 2001, p. 16).
Logo no início da década de 60 tinha aproximadamente 40 integrantes. Era tanta gente
que chegamos a dividir a banda em três grupos para ensaiar. Tocávamos até nos dias
úteis, no período diurno, para empresas da região como a Siemens. Éramos
contratados para vários tipos de festas, em sua maioria ligadas à quermesse e
53
procissão, como a ocorrida em 1968, na Igreja Nossa Senhora Auxiliadora de Pirituba
(Alfredo Moro. Revista A – Lapa, nº 22, 2001, p. 16).
Foto 4: CMOL e o Maestro Victor Barbieri. Igreja Matriz da Lapa. 1964. Revista A – Lapa, nº 22,
2001.
Através dessas narrativas, dos músicos e de ex-músicos, assim como do material
jornalístico, é possível notar uma intensa atividade da banda nesse período. Além disso, o
Maestro Barbieri, antes de assumir como regente, já atuava como contramestre de Vicente
Santoro. Ele foi o autor do hino da Lapa e permaneceu no grupo até meados dos anos 1970. O
Professor Francisco Foot Hardman do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp,
por ocasião de sua pesquisa pôde entrevistá-lo em 1976. Trechos de seus relatos podem ser
verificados em Nem Pátria, nem patrão! Memória operária, cultura e literatura no Brasil
(HARDMAN, 2002, p. 372).
2.2.3 Fase 3 – A Decadência
Segundo o memorial/documento da banda redigido pela própria diretoria, depois
do falecimento do Maestro Victor Barbieri, assumiu a regência da Corporação o Maestro Enrico
Salvadori. Em seu curto período com a banda, já que faleceu em 22 de julho de 1977, gravou o
primeiro disco, um LP, com o grupo. Depois de seu falecimento, assumiu a direção o Maestro
João Batista Ferreira. O Sr. Nestor Avelino Pinheiro, atual regente, em depoimento, nos contou
54
que o maestro João Batista certo dia viajou com toda sua família e sofreu um acidente. Na
ocasião, sua família faleceu e sobreviveu apenas ele. Pouco tempo depois, abalado com tudo,
deixou as atividades da banda. Os relatos abaixo do Sr. Nestor e do Sr. Tamburu, atual
presidente da CMOL, mostram, respectivamente, o procedimento do Maestro João Batista na
banda, a citação de um dobrado que Pedro Salgado compôs em homenagem a ele e a época em
que foi gravado o LP:
[...] O regente se chamava João Batista, já faleceu. Ele era bem... [Seu Nestor faz cara
de bravo e rígido], ali onde eu fico [no lugar do regente] tinha uma campainha. Então
quando ele chegava e passava pelo corredor, entrava lá na salinha [do fundo], não
falava com ninguém, nem boa noite, nada! Quando dava 8:00 horas ele vinha, subia
[no pódio] e tocava a campainha. Todo mundo silenciava e começava a ensaiar a
banda. Na época só tinha homem. As meninas entraram depois. O que aconteceu?
Fiquei com ele menos de um ano. Ele foi fazer uma viagem, levou filho, neto, sofreu
um acidente e morreu todo mundo... Só ficou ele. E não voltou mais na banda. Morreu
depois (PINHEIRO, 2017).
Eu lembro do Maestro João Batista, lembro da figura dele. Inclusive tocamos a música
dele ontem, dobrado João Batista Ferreira de Pedro Salgado, lembro que essa música
foi gravada num compacto simples, um disco de vinil. Esse foi um dos primeiros
momentos que eu lembro. Nessa época eu não tocava, eu só via meu pai [Sr. João
Tamburu, já falecido] ensaiar, ele tocava trompete. Eu estudava à noite, era garotão,
então eu não tocava, só ia ver meu pai. Isso foi mais ou menos em 75, 74 por aí [...]
(TAMBURU, 2017).
Com esses fatos, a Corporação entrou gradualmente em uma terceira fase de sua
trajetória: um período de aproximadamente 40 anos, compreendendo o início dos anos 1970,
até a escolha do Sr. Nestor Avelino Pinheiro como regente no início dos anos 2000. Esta fase
foi o período de decadência progressiva do conjunto. Mesmo mantendo frequentes
apresentações, o número de integrantes foi aos poucos sendo reduzido, além de diversos
regentes passarem por sua direção.
Ora, faz-se necessário lembrarmos aqui, que, por ocasião do golpe militar de 1964,
as artes em geral, incluindo a música e as manifestações e culturas populares, sofreram
sufocamento e censura. Não é novidade que, neste período, diversos grupos, com atividades
essencialmente populares, tenham sofrido boicote e encontrado a partir do “novo quadro
político e institucional” dificuldades para desempenho de suas práticas. É possível, e mais
provável, que neste período o grupo tenha adotado uma postura neutra; contudo,
espontaneamente simpatizava com o regime através de sua indumentária e música. Seu
tradicional quepe, de cor escura na época, é uma peça que, inquestionavelmente, dá um aspecto
militar ao conjunto e, evidentemente, as marchas, dobrados e hinos, também contribuíam para
55
aquele sentimento “patriótico” tão peculiar aos sistemas autoritários. No entanto, uma banda
com tal aparência, e que conduzia santos por avenidas, certamente se deparou com obstáculos
para continuar mantendo a agenda de apresentações junto às comunidades que atendia. Além
disso, o nome “operária”, que sugere uma ligação direta com operários que se manifestam
através de sua arte, (portanto algo supostamente subversivo ao regime), deve ter chamado a
atenção de possíveis censores. Curiosamente em algumas edições do jornal O Estado de São
Paulo deste período, e de período anterior próximo (como mencionamos, não é uma datação
rígida que estamos empregando), nas quais aparecem anúncios atribuídos a apresentações da
banda, o nome “operária” não é citado.
Figura 14: Jornal O Estado de São Paulo – SP – 20/05/1961, p.7; 12/06/1971, p.14.
É relevante também evocarmos que durante este período, o surgimento da música
eletrônica (como a guitarra e o sintetizador, por exemplo), assim como novos gêneros, ritmos e
tendências musicais, como a Tropicália, a canção de protesto, a Jovem Guarda, etc., além da
popularização da televisão e do rádio, trouxeram um período de grande saturação sonora (e que
se estende até hoje). Tal fato, colaborou diretamente para novas preferências e novas
oportunidades. Daí então, o declínio de grupos musicais tradicionais. A banda da Lapa, assim
como muitas outras bandas, foi compelida a buscar novas formas de interlocução com a
sociedade.
56
Contudo, essa fase, para a Corporação, não chegou repentinamente. A banda
continuava a manter atividades, nunca deixou de ser solicitada. Um dos exemplos mais
marcantes para os integrantes da época era a festa que o presidente da antiga VASP realizava
todo ano para os funcionários da empresa e convidava a banda para animar o evento. O regente
atual, Sr. Nestor (PINHEIRO, 2017), de 77 anos, há “mais de 30” na Corporação, relatou um
desses episódios. Exclusivamente essa “lembrança”, trata-se de um relato da “memória social”
do Sr. Nestor. É possível perceber que sua “recordação” está nos anos 1970. O episódio
relatado, ocorreu, o mais provável, na década de 1990, pois o presidente da VASP, Walter
Canhedo, assumiu sua presidência a partir dessa época:
Existia aqui em São Paulo uma empresa aérea chamada VASP, era Viação Aérea São
Paulo, do governo do estado. E essa companhia fazia aniversário no dia 07 de
setembro, exatamente no aniversário da banda, muito bem. [...] Todo dia 07 de
setembro, o presidente da VASP, nessa época se chamava Walter Canhedo. Esse
presidente fazia uma baita de uma festa na colônia de férias e levava a banda, pra tocar
lá. Então a banda nem se preocupava mais em fazer sua festa de 07 de setembro que
é aniversário dela, já estava garantido. [...] Então nesse dia, ele levava um monte de
gente pra fazer a festa. Ele colocava cerveja e refrigerante em todo lugar e no outro
canto ele fazia churrasco. E a banda ia tocar. [Quê ano?] Anos 70, talvez um pouco
antes... E nesse lugar tinha um lugar que fazia o cerimonial. Então o que acontecia
com a banda, a banda chegava de manhã, postava nesse cerimonial e começava a
tocar. Quando dava uma folguinha, a banda saía, descansava... E aí era engraçado que
eu achava o fim da picada, mas era engraçado: os músicos, como já sabiam, ia daqui
pra lá com sacolinha (risos), é! Com sacolinha! Quando voltava de lá, garanto pra
você, tinha músico que trazia mais de dois quilos de carne! Porque era uma
abundância! Inclusive o presidente da banda! Que era Seu Benedito (PINHEIRO,
2017).
Foto 5: Sr. Nestor Avelino Pinheiro em confraternização de 135 anos da CMOL -
11/09/2016. Acervo da autora.
57
[...] Então a brincadeira da banda que eu ia contar pra você era o seguinte: Teve um
07 de setembro, que a banda foi tocar lá e essa cerimônia que eu falei pra você que
acontecia, era sempre meio-dia. Por volta de meio-dia, sai no microfone chamando o
povo para a cerimônia. Lá pelas tantas, vinha o Canhedo, [...] e ele convidava sempre
umas autoridades. Aí, chegou perto da banda e falou assim: “essa banda é fantástica,
essa banda é extraordinária, eu nunca vi uma banda melhor no mundo que essa aqui!
Um dia eu vou levar essa banda pra tocar lá no Rio Grande do Sul, vou levar. Um dia
eu vou levar essa banda pra tocar lá em Manaus, junto comigo! Cê [sic] quer saber de
uma coisa: um dia eu vou levar essa banda pra tocar lá em Salvador”. Aí, tinha um
músico, que tocava clarineta, desses bem simplório, olhou pra ele e falou assim: “mas
nós vamos como”? (Risos), aí o Canhedo olhou bem e disse: “Nós vamos... Nós
vamos... Vamos de barco! Nós vamos de barco”! Presidente da VASP! Nós vamos de
barco! (risos) [...] E a banda tinha uns 25 músicos, nesse dia aparecia 30! Aparecia
músico que eu nem sei de onde vinha! [Mas a banda foi pra algum desses lugares?]
Foi nada! [...] (PINHEIRO, 2017).
A narrativa bem-humorada do Sr. Nestor revela que a banda durante esse período
mantinha um número considerável de integrantes e também continuava a ser requisitada em
certos eventos. No entanto, alguns fatores podem ter colaborado para sua decadência. Como
vimos, a morte de integrantes, o conflito entre integrantes, o extravio de partituras e
documentos, a falta de recursos para saldar despesas (por causa da falta de apresentações), as
avarias na sede, entre outros elementos, contribuíram potencialmente para que a banda fosse
identificada nos anos 1980 como nostálgica e obsoleta. O jornal Folha de São Paulo de 22 de
setembro de 1980, página 19 do caderno “Ilustrada”, fez uma reportagem de página inteira
sobre uma feira de antiguidades que acontecia na Lapa todos os domingos. Entre as atrações e
relíquias expostas para compra, a Corporação, que se apresentou no evento foi alcunhada pelo
jornal de “antiga como os objetos”.
Foto 6: Jornal Folha de São Paulo – SP – 22/09/1980, p. 19.
58
Seu Nestor, na continuação de seu relato, revelou também o cenário conflituoso a
que o grupo muitas vezes era submetido durante este período. Agravada pela dificuldade técnica
dos integrantes e somada ao desprovimento de aptidão, intolerância da liderança e aos
problemas já citados (de morte por exemplo), a banda foi reduzida pela metade. Por
considerarmos o trecho abaixo potencialmente ofensivo aos personagens citados e às suas
famílias, optamos em apenas chamá-los de “Seu X, Seu Y e Seu Z”. O episódio também
motivou Seu Nestor, na época trompetista do grupo, a se afastar por um longo tempo:
[...] Aqui tinha um negócio assim, o tal presidente da banda nessa época, não era nem
Seu X, era o Seu Y e o que ele fazia? Ele punha uma música pra banda ensaiar, ele
nem regia a banda, ele tocava bombardino sentado bem ali. Ele dava sinal, um, dois.
Ele era assim. Mas o que acontecia? Se aquela peça que ele punha lá pra ensaiar não
dava certo, ele encostava! Vamos pegar outra! Vamos pegar outra! E numa dessas
ocasiões, eu estava tocando trompete aí e a música estava difícil de tocar. Então eu
fiquei olhando a partitura do trompete, minha e do meu companheiro, parece que não
é tão difícil assim... Daí eu cheguei pra ele lá, vamos tocar de novo, que eu vou dar
uma mão para o trompete. E comecei a ajudar. Ele parou o ensaio, olhou pra mim e
falou: “o regente da banda aqui sou eu, não é o senhor! O senhor não é regente da
banda, o que o senhor está fazendo”? Aí peguei e fui embora. Não voltei mais,
demorou bastante tempo, mas passou bastante tempo mesmo pra eu voltar
(PINHEIRO, 2017).
Sr. Luiz Alves (ALVES, 2016), 68 anos, baterista e arquivista da banda, também
confirma certas adversidades e complicações e mostra que, em meados de 1990, por ocasião de
sua entrada, a banda estava com apenas meia dúzia de músicos e unicamente com duas
comunidades fazendo convites: Paróquia San Genaro na Mooca e Igreja Ortodoxa Grega no
Bom Retiro. Seu relato também nos fornece nomes de músicos dessa fase, as lideranças e outros
transtornos enfrentados pelo grupo:
[...] A banda estava numa fase que eu achei que ia acabar! Isso era 96, a banda estava
numa fase que estava em extermínio! Uma pena! Dava pra contar os músicos que
tinha aí! Uma pena! Dava pra contar! O pai do Tamburu, tocava trompete, Seu João.
Seu Albino estava aí, tocava clarinete, tinha outro, Seu Manuel, tocava clarinete!
Todos falecidos! E o regente era Seu Y, tocava bombardino, foi militar também. [...]
Seu Y teve alguns problemas...Tipo mercenário, só pensava em dinheiro. Aí tivemos
Seu X, tocava sax alto, só que Seu X era muito sistemático, quando ele não gostava
de uma pessoa era um problema! Ele implicava com o Paulinho, do trombone. Aqui
na caixa quem tocava era o Sabiá, não tinha bateria. Só a caixa e bumbo. Eu falei pra
ele, “como tem um na caixa e outro no bumbo, então vou bater prato”! E comecei com
o prato. Quando o Sabiá não vinha, eu pegava a caixa. E a gente revezava. Mas a
banda estava numa situação delicada! E o que aconteceu? Seu Y e Seu X, a chave da
banda só ficava com eles. Ninguém tinha acesso, “vam bora” [sic] e trancava, acabou!
Se precisava de alguma coisa, era ele que abria. Seu X era metódico, mas se dava bem
comigo, ele era do interior, lá de Birigui. Aí, eles criaram um problema aqui na banda,
começaram a brigar com todo mundo, em vez de eles se aproximarem das pessoas,
começaram a se afastar. Aí, na igreja não tocava porque o padre era não sei o quê, na
subprefeitura não tocava, porque o subprefeito era não sei o quê, resumindo, não
tocava em nenhum lugar!
59
[...] Quando eu entrei aqui, a banda só tocava em dois lugares, a gente fazia procissão
lá na paróquia San Genaro, na Mooca, que era o padre Pascoal, e nós tocávamos lá no
Bom Retiro também, numa igreja ortodoxa, só! Eram dois trabalhos que a gente fazia!
Não fazia mais nada! Então o que acontecia? Os músicos não vinham ensaiar, não
tinha estímulo! Ficava um clima chato! E outra coisa, o que vinha aí, às vezes não
tocava nada! Seu Y ficava louco! O trompete não conseguia tocar, o pessoal era fraco,
não conseguia ler. E foi aí que eu ingressei. [...]. [...] Mas o Nestor teve problema com
Seu Y. E quando o Seu Y se afastou, o X continuou como presidente da banda. Aí
veio um rapaz chamado Z reger a banda, o Z era bom, tinha tocado na aeronáutica,
era militar e começou a reger a banda, antes do Nestor. O Nestor, na realidade, era
músico, tocava trompete, tinha uns três ou quatro trompetes aí. Aí houve um problema
com o Z, ele brigou com a mulher, (risos) era um rolo, ele morava em Várzea Paulista,
ele vinha toda sexta-feira ensaiar, depois pegava o trem e voltava. Aí deu um problema
lá com a mulher dele, então ele veio pra cá e na época autorizaram ele a morar aqui
na banda! Ixi! Aí foi um rolo desgramado [sic]! Ele trouxe as coisas dele, aí começou...
a gente queria tirar ele daqui e não sabia como! Ficou uma coisa difícil!
Profissionalmente ele era muito bom e conhecia! Ele escrevia muito! Depois
conseguimos tirar o Z daqui de dentro. Nesse ínterim que o Nestor assumiu a banda.
Ele passou a ser regente e presidente (ALVES, 2016).
Os relatos dos recordadores (Senhores Nestor e Luiz) mostram, como não poderia
deixar de ser, que a banda nesta fase experimentou rígidas alterações até chegar à atualidade. O
período durante a ditadura militar influenciou e contribuiu para a rigidez das lideranças, gerando
conflitos e diminuindo o grupo. A discordância de procedimentos e conflitos com colegas
também contribuíram para o esfacelamento do quadro de integrantes. O papel e as funções
destinadas à comunidade gradualmente também se modificaram. Daí a circunstância de ter se
tornado uma banda de idosos. Como competia com outras práticas artísticas ligadas ao
entretenimento, a pequena banda se viu quase desfeita em vários momentos. Ser comparada
pela Folha de São Paulo a uma antiqualha, demonstra que o grupo manteve as características
de suas primeiras fases, porém a perda de apresentações nos contextos em que outrora se
apresentava, a mudança de regentes, o extravio de partituras, a ruína da sede, o envelhecimento
de integrantes, a morte de integrantes, a substituição de integrantes, as mudanças de diretoria,
a falta de recursos e até mesmo o conservadorismo, o conflito, a competição e a vaidade a
tornaram obsoleta e dispensável.
Esses elementos combinados a saturação sonora deste período, nos fornecem
algumas perguntas pertinentes: o autoritarismo na banda, não estaria revelando uma cobrança
interna frente às transformações que a sociedade estava sofrendo? Essas transformações
acabaram comprometendo a relação que a banda estabelecia com a sociedade? Isso não
produziu internamente uma expectativa de profissionalização? O que move esses dilemas e
mal-estar na banda? E como a banda sobreviveu a esse período/contexto? Bem, com a saturação
sonora as frequentes performances em espaço público – largos, praças, coretos – gradualmente
diminuíram e deram lugar a apresentações em shoppings e salas fechadas. A cobrança interna
60
mesclada à rigidez das lideranças, foi uma tentativa frustrada de acompanhar e competir, no
mesmo nível, com outras práticas mais atualizadas. O perfil de seus integrantes também mudou.
Os imigrantes italianos, capacitados músicos, faleceram e deram lugar a outros trabalhadores
com treinamento musical insuficiente e lideranças igualmente sem formação específica. Muitos
conflitos surgiram daí, gerando descontentamento e a quase extinção do grupo. No entanto,
podemos dizer que a relação que a banda mantinha com suas comunidades, foi transformada e
mantida de outra forma: algumas manifestações como blocos carnavalescos e as procissões
continuaram – e ainda continuam – a manter a banda com as contas de luz e água pagas. E
outros contextos como os bailes e as apresentações em coretos paulistanos? A Corporação
precisou se redefinir, para isso se transfigurou naturalmente numa banda exclusiva para a
sociabilidade, onde a música não é mais uma obrigação e sim um deleite, o tocar é
amadoristicamente descompromissado. Foi com estas características que o grupo entrou em sua
fase atual.
2.2.4 Fase 4 – A Atualidade
Com a escolha do Sr. Nestor Avelino Pinheiro em 2003 como regente, a diretoria e
os músicos iniciaram um trabalho intenso pela restauração e revitalização do grupo. Visitas e
reuniões a diversos departamentos da Subprefeitura da Lapa, ao CIESP e a muitos comerciantes
e empresários da região, culminaram na gravação de um CD em 2004, na reforma da sede, na
estruturação do arquivo de partituras e na gravação de dois documentários: Banda da Lapa –
mais de 100 anos de tradição paulistana, direção de Hernani Ramos e Música Operária com
direção de Lucas Gervilla, ambos de 2014.
Figura 15: Revista do Bairro. Lapa, São Paulo – SP – Ano VI, nº 61, 2009, p. 23.
61
Percebemos não só por este anúncio, mas também por outros32, que a reforma da
sede em especial foi um desafio para a nova diretoria. Pela descrição da sede no tópico “2.2.2
Fase 2 – A Era de Ouro”, vimos que, inevitavelmente, a construção ao atravessar o tempo,
encontrou-se em situação alarmante de reforma. Em depoimento o percussionista e arquivista
já citado, Sr. Luiz Alves, integrante da Corporação desde 1985, relatou que ao ingressar no
grupo “[...] a banda estava numa situação delicada, uma decadência que dava medo!
Praticamente pra fechar as portas! A sede chegou numa situação deprimente, o forro estava
caindo, era terrível, chovia tudo aqui em cima, a gente tinha partitura, estragou tudo”! Outro
relato, da clarinetista Sra. Rute Almeida (ALMEIDA, 2017), 54 anos integrante há quase 20
anos na Corporação, confirma igualmente a situação precária da construção e as melhorias
realizadas:
[...] a gestão que hoje está na banda, tem muito de positivo. Muitas conquistas... é a
sede, a infraestrutura que hoje é outra, tinha época que chovia na gente, entrava água
lá dentro porque não tinha aquela comporta. Então... muitas coisas positivas a gente
deve ao presidente e à gestão atual (ALMEIDA, 2017).
É possível verificar, pelos relatos que o momento atual é o período em que a
construção se encontra em melhores condições. Este progresso em particular, da reforma da
sede, se deve a mobilização da atual diretoria do grupo que espontaneamente se voluntariou
juntamente com os músicos para reestruturá-la. Honrado e tocado pelo esforço dos músicos, o
Sr. Tamburu manifestou qual era sua função junto à banda:
[...] eu procuro me dedicar ao máximo, procuro agradar as pessoas, agradar a banda,
procuro fazer com que a Corporação cresça, se desenvolva, melhore. Eu acho que essa
é a função de um presidente, lutar pela Corporação. Deixar o máximo que ele puder
de condições de visibilidade de apresentações, de deixar o músico confortável. Na
minha opinião, cuidar do patrimônio, da sede. Eu acho que é isso que um presidente
tem que fazer (TAMBURU, 2017).
De outro lado, algumas características da terceira fase, assim como certas
dificuldades, ainda perduram no conjunto. Segundo os relatos do Sr. José Maria Tamburu
(2017) e do Sr. Itamar (SILVA, 2017), 68 anos, trompetista na Corporação desde 2010, alguns
obstáculos e complicações, enfrentadas pela maioria das bandas, impedem o progresso da
prática musical desses grupos. Enquanto Seu Itamar reclama que o gosto que se tinha
antigamente pela banda de música foi perdido, Seu Tamburu denuncia o quadro sofrível a que
algumas bandas são submetidas. Além disso, intensifica que a banda de música, incluindo a
32 Jornal Nosso Bairro, edições de 28 de março a 08 de abril de 2009, p.6; 06 a 12 de junho de 2009, p. 08; 07 a
13 de março de 2009, p. 06 e Jornal da Gente, edições de 15 a 21 de dezembro de 2007 e 07 a 13 de março de
2009, p. 12.
62
banda da Lapa, deveria passar por modernizações e mudanças como na aparência, no repertório
e na organização, ou seja, por uma reestruturação que acompanhe a modernidade:
[...] Veja bem, a banda em si, não só daqui, mas todas as bandas, depois que surgiu a
música eletrônica, o próprio povo se desinteressou pelo instrumento metálico. Se
desinteressaram. Já antigamente não, eu me lembro muito bem, que a gente era
convidado pra ir tocar numa fazenda, numa chácara e tal. Aquilo, tinha comida com
fartura, bebida com fartura. Não tinha esse clamor que tem hoje, a dificuldade pra
você arrumar uma condução pra te levar, entendeu? A pobreza que é pra uma pessoa
te dá um cachê pra você ir tocar! Não existia nada disso! A pessoa queria ver aquilo e
presenciar com gosto. Existia o sentimento pela música dos particulares. Hoje não!
Hoje o músico tem que estar basicamente implorando pra tocar. Hoje o músico, se ele
não for um músico concursado pra participar de uma orquestra, de um jazz, assim
como profissional, ele tem que estar pedindo favor, porque é a coisa que eu acho mais
triste no campo musical! (SILVA, 2017).
[...] E o que aconteceu com as bandas de música? Além de todo progresso tecnológico,
as mudanças de gosto musical, o que aconteceu? O culpado por isso ter acontecido,
muitas vezes foram os próprios músicos, os regentes, os arranjadores... a banda não
se preocupou em mudar seu repertório, em mudar sua forma de vestir, a sua
indumentária, então eu acho que a banda não se modernizou, não acompanhou! Ficou
aquela coisa de tocar só dobrado, dobrado... Que é uma tradição de banda, mas deveria
ter mudado! É mais ou menos o que aconteceu um pouco com a banda da Lapa. Chega
lá [em alguma apresentação] vai tocar dobrado, vai tocar dobrado... puxa vida! Tanta
coisa acontecendo... então isso desgastou! Na minha opinião... [...] As pessoas na
verdade querem ouvir aquilo que elas ouvem no seu dia-a-dia, não é isso? Que nem
esse Game of Thrones [arranjo do tema de abertura para banda], nós estávamos [ele e
a família] outro dia em Santos, teve o 07 de setembro, a Banda da Polícia estava
tocando, todo mundo reconheceu a música! Então eu acho que o que aconteceu foi
isso! Foi um pouco disso. As nossas tradições culturais também, vão se perdendo, o
povo vai mudando. E tem que haver mudança, precisa mudar! (TAMBURU, 2017).
Ao mencionar essas questões, os recordadores (Senhores Tamburu e Itamar) nos
alertam do que já nos referimos na introdução33 deste trabalho: a indiferença que a banda de
música brasileira tem experimentado nos estudos científicos e nas culturas midiáticas em geral.
Mesmo com características positivas – espaço para sociabilidade, formação de instrumentistas,
diálogos com a comunidade, adaptabilidade a diversos contextos culturais, flexibilidade aos
diversos repertórios, divulgação da música brasileira, etc. – tem sido referenciada e considerada
por vezes como grupo não oficial, informal e até ultrapassado. Segundo Suzel Ana Reily (2013),
o amadorismo musical, também frequentemente associado às bandas, proporciona o caráter
comunitário. Essas características “têm desestimulado a pesquisa musicológica entre bandas,
pois a tradição na musicologia histórica privilegia as esferas musicais onde o que domina é o
ideal da arte pela arte e a identificação da genialidade individual” (REILY, 2013, p. 23).
33 Cf. p. 17-18.
63
Maria Elizabeth Lucas (2013), também percebeu que, entre as várias concepções
difundidas tanto na mídia e no meio musical acadêmico, a banda de música evoca um “estado
de penúria, decadência, passadismo e até mesmo uma certa posição anacrônica” em relação a
outros grupos que tradicionalmente recebem apoio e projeção. A autora complementa ainda,
que essa condição “não se difere das posições que a etnomusicologia teve que enfrentar, e ainda
enfrenta, em relação às expressões musicais que se distanciam e se diferenciam daquelas
amparadas e consagradas na história da música ocidental” (LUCAS, 2003, p. 56).
Mesmo com uma nova geração de etnomusicólogos e antropólogos estudando sob
uma perspectiva crítica a diversidade musical no Brasil34, percebemos que as adversidades que
a banda de música enfrenta, muitas vezes são problemas técnicos, financeiros, de velhice, de
doença, de desatualização, de desinformação, de falta de treinamento e habilidade, de disputa,
de vaidade, dentre outros fatores que passam despercebidos até mesmo para os próprios
membros.
Por exemplo, o descontentamento com a falta de apresentações e convites na
atualidade da banda da Lapa, é um aspecto constrangedor para os entrevistados e um problema
de grande proporção para bandas de música amadoras. Seu Paulo (MACUCO, 2017), ao
recordar do passado, lamentou o declínio embaraçoso das bandas de música na atualidade e a
condição preocupante que vive a Corporação:
[...] eu acho que nem tem mais banda, eu acho que em São Paulo só tem essa, se não
me engano... tirando as militares, mas banda assim... só essa! Inclusive devia ter até
local, como era antigamente, tinha um monte de coreto por aí, a banda podia ir tocar,
né? Não tem nenhum lugar pra gente tocar... Tem que estar pedindo, tem que estar
implorando, tem que esperar ser convidado... Na rua... Seu Nestor de vez em quando
fala pra gente ir, mas não pode fazer essas coisas também, qualquer lugar... Chegar,
montar a banda ali na avenida e tocar, não pode! Essas coisas que mexem com trânsito
[...] (MACUCO, 2017).
Contudo, segundo o Sr. Tamburu, algumas medidas poderiam ser adotadas para
que a banda adquirisse novamente importância e tornasse a ser mais requisitada nos eventos da
cidade:
O que eu falo pra banda, é ela ser mais reconhecida, ser mais requisitada,
principalmente pelos lapeanos, pela cidade de São Paulo, pela comunidade, pelas
nossas autoridades, pela classe política, ser mais conhecida, atrair músicos jovens,
pessoas mais jovens pra poder dar continuidade, né? Acertar o repertório, um
repertório mais qualificado, não querendo desqualificar nenhum tipo de música,
ritmo... Mas uma coisa assim, mais rica, que as pessoas possam falar assim: “poxa
vida, que coisa bonita”! Eu acho que falta esses detalhes. Uma instituição que tem 136
anos e às vezes não é nem lembrada... Por exemplo, o bairro da Lapa fez 427 anos e
fizeram várias comemorações e ninguém lembrou da banda! Eu peguei e mandei uma
34 Loc. cit.
64
nota pro jornal [Jornal da Gente, periódico de distribuição gratuita circulante no
bairro da Lapa], eles publicaram, mas... Eu acho que a gente é muito desprezado, não
sei por quê! (TAMBURU, 2017).
Figura 16: Jornal da Gente – Lapa, São Paulo – SP – 28/10/2017 a 03/11/2017, p. 6.
O recordador, Sr. Tamburu (TAMBURU, 2017) e também o Sr. Paulo (MACUCO,
2017) por meio de suas reivindicações aflitas, admitem que a banda poderia ser um conjunto de
qualidade mais satisfatória. A possível solução sugerida pelo Seu Tamburu, trabalhar com
outros repertórios ou repertórios novos para atrair jovens, confirma a cristalização pela qual o
conjunto se encontra. Ao lamentar que “a gente é muito desprezado”, ele reconhece a
necessidade da banda de melhorar, a necessidade de ter uma orientação e uma contribuição que
seja treinada e habilitada para que o grupo seja mais requisitado. Como a sociedade se
transformou e a informação e a pesquisa têm preço, tornou-se cada vez mais problemático ter
um profissional habilitado e que atue voluntariamente.
A depreciação, entre vários fatores e problemas enfrentados por muitas bandas de
música, tem contribuído significantemente para seu declínio e extinção. Entretanto, as
manifestações e contextos culturais, mesmo que poucos, em que a banda se apresenta,
curiosamente têm contribuído de maneira positiva para a preservação de sua existência, mesmo
com problemas. Esta é sua principal característica na atualidade. A prática musical e/ou as
performances têm sido o elemento principal que possibilita à Corporação seguir com sua
existência. E não apenas no aspecto de se ter recurso capital para manter a instituição e
recompensar os músicos, mas como uma oportunidade que os membros têm de tocar um
instrumento, se apresentar para um público e continuar sendo requisitados continuamente para
65
os eventos de diversas comunidades. Isto quer dizer, como argumenta Shelemay (2011), que a
banda da Lapa é “uma coletividade construída e sustentada através de performances musicais”:
[...] Os processos através dos quais essas comunidades surgem e se sustentam muitas
vezes ocorrem através do impacto catalizador da performance musical. Música ajuda
a gerar e manter o coletivo, enquanto, ao mesmo tempo, contribui para estabelecer
limites sociais, tanto dentro do grupo e com os que estão fora dele [...] (SHELEMAY,
2011, p. 368, tradução nossa).
A outra característica nesta fase atual do grupo é justamente o papel que a banda
proporciona aos seus membros. Algumas manifestações coletivas, como as procissões e blocos
carnavalescos de rua, por exemplo, fornecem a oportunidade aos músicos, de recriar e
simbolizar essas formas. Essas atividades contribuem para o bem-estar geral de seus músicos,
sendo que no caso de homens idosos, em particular, a banda proporciona um contexto regular
de encontro com outras pessoas. Esse fator permite que tais músicos tenham oportunidade de
sentir-se úteis para si mesmos, para a banda e para a comunidade, mesmo sendo pouco
requisitados. Ao longo dos tópicos seguintes deste trabalho, citaremos algumas “lembranças”
dos recordadores onde eles narram, como abaixo, suas experiências e a função da banda em
suas vidas:
[...] Ah, a música não é um complemento mais, a música é minha vida. Não me sinto
mais em outro contexto, me sinto na música. E tudo que agrega conhecimento musical,
que vá aprimorar meu conhecimento, eu vou em busca. E também, eu gosto muito
dessa vivência aqui, meio lúdica, de como a música se concretiza na vida das pessoas,
nos vários momentos, carnaval, no Natal. A gente vê que a banda tem uma
representatividade muito grande pra população local. Nós somos muito bem acolhidos
aqui na Lapa de Baixo, no Natal quando nós vamos tocar no evento lá nos prédios,
nossa! Nós somos hiper bem acolhidos! Então a gente sente que a banda faz parte da
coletividade. E eu me sinto grata por isso, estar junto, vivenciar esses momentos [...].
[...] Em primeiro lugar pra mim é um legado que foi deixado e que da minha parte,
vou procurar honrar com essa tradição. Me faz muito gosto sair da minha casa e pensar
que eu venho pra banda tocar, seja num momento como esse de confraternização, ou
seja num momento participativo, de procissões, onde for que a banda esteja, pra mim
é uma honra, porque estar nesse processo da história, da construção da banda, ajuda
também no reconhecimento da minha identidade como pessoa e não só como mulher
na sociedade, como integrante desse grande legado que deixaram e graças a Deus tem
alguém levando avante aí. Pra mim é uma honra, um prazer, espero honrar sempre
com essa tradição e representar bem a Corporação (ALMEIDA, 2017).
Com tais aspectos, percebemos através da clarinetista Sr.ª Rute Almeida (2016;
2017) há quase 20 anos na Corporação, que o grupo vive uma surpreendente contradição: ao
mesmo tempo em que conserva características de grupo nostálgico e obsoleto, perdido no
66
tempo, seu relacionamento íntimo com expressões populares o transfigura continuamente em
um objeto de práticas e vínculos sociais.
Foto 7: Corporação Musical Operária da Lapa através dos Tempos – Acervo CMOL. Primeira linha à
esquerda, imagem de 1927; à direita, imagem da década de 1950: ao centro, com a auriflama, o Maestro
Victor Barbieri. Na segunda linha à esquerda, imagem dos anos 1990; à direita, imagem atual, de 19 de
março de 2017, com o regente Nestor Avelino Pinheiro sentado. Todas as imagens são pertencentes ao
acervo da CMOL.
67
CAPÍTULO 3 – ESTRUTURA
3.1 Organização Social
De acordo com o 4º Oficial de Registro de Títulos e Documentos e Civil de Pessoa
Jurídica da Capital – SP, a CMOL é uma associação privada, registrada em 13 de junho de 1972
sob o nome fantasia de “Banda da Lapa”. Já o nome e a razão social “Corporação Musical
Operária da Lapa”, vêm sendo mantidos desde 1914. No capítulo I, artigo 1º de seu estatuto35,
é discriminado o seguinte: “sob denominação de Corporação Musical Operária da Lapa, fica
criada nesta Capital, no Bairro da Lapa, com sua sede social a Rua Joaquim Machado, nº 99,
uma associação, recreativa, fundada a sete de setembro de hum [sic] mil novecentos e catorze”.
Segundo o artigo 6º do capítulo II do estatuto, a banda possui também dois órgãos
sociais, a assembleia geral e o conselho diretor, de fato e de direito. Este conselho diretor, ou
diretoria seria formada pelo presidente, vice-presidente, 1º e 2º secretários, 1º tesoureiro, 1º e
2º arquivistas e um conselheiro fiscal. A cada 2 anos, é convocada a assembleia geral onde é
eleito o conselho diretor com mandato de 2 anos, podendo ser reeleito. As competências deste
conselho são administrar o grupo, nomear os membros das comissões que julgar necessário
para o período de sua gestão e deliberar/resolver sobre a matéria que lhe for presente (Capítulo
VI, Artigo 23º).
Atualmente o presidente é o saxofonista Sr. José Maria Tamburu, responsável por
representar a banda e por realizar contatos para as apresentações. O cargo de vice-presidente
atualmente está vago. O primeiro secretário é o Sr. César Vasconcelos e, o segundo secretário
o Sr. Itamar Martins. O tesoureiro e também regente é o Sr. Nestor Avelino Pinheiro que se
responsabiliza pela contabilidade e por fazer arranjos e ensaiar a banda. O Sr. Luiz Alves,
percussionista e arquivista, cuida do arquivo de partituras, cópias, pastas e documentos.
Segundo o capítulo V do estatuto (“Dos Associados”), a banda seria formada e
mantida por 3 categorias de associados: contribuintes, beneméritos e honorários. Este dado
confirma a forma em que a banda se manteve durante as suas primeiras fases. No entanto, esta
prática foi abandonada há muitos anos e a instituição vem sendo mantida apenas com recursos
dos cachês provenientes das apresentações, onde uma porcentagem é utilizada para as despesas
do prédio e do funcionamento da instituição. O restante é dividido em forma de ajuda de custo
entre os músicos. Seu patrimônio é composto pela sede e pelos materiais divididos em
35 Estatuto da CMOL. 31º Cartório de Pirituba. 4º Registro de Pessoas Jurídicas. Em anexo.
68
instrumentos (1 clarinete, 1 saxofone alto, 3 trompetes, 1 trombone de pisto, 1 tuba, 3
sousafones, 2 sax genes, 1 bateria completa [drum set], 2 caixas, 3 bumbos, 2 jogos de pratos)
e outros materiais (cerca de 40 estantes, 30 cadeiras, 1 lousa, 1 quadro, 1 arquivo, 2 armários e
todos os uniformes que os músicos usam, além de um acervo de documentos, fotos e
aproximadamente 300 partituras.
Como o grupo atualmente é pequeno, com cerca de 15 a 22 músicos, não há chefes
de naipe designados. Possíveis orientações durante os ensaios são realizadas pelo regente e
propostas relacionadas a qualquer ordem são decididas pela diretoria em exercício. É um
sistema clássico de hierarquia vertical que, como vimos pela descrição da “Fase 3 – A
Decadência”, por vezes gera conflitos entre os membros. Muitos relatos têm demonstrado
insatisfação diante de certos procedimentos empregados e isso tem sido um fator desfavorável,
colaborando para o desgaste, limitação e desânimo do grupo. Entre os vários relatos referentes
a esta matéria, selecionamos dois que consideramos relevantes e que representam a maioria das
reivindicações:
[...] A banda é importante, o único problema é que eu me encontro na banda da Lapa,
presta bem atenção o que eu vou falar, muitas coisas, ela mesma não se valoriza...
Uma banda de música que tem uma sede própria, tem uma diretoria montada, ela tem
que se esforçar pra impor respeito. Principalmente em relação aos serviços. No meu
ponto de vista eu mudaria sistema de ensaio, repertório... Mudaria alguns cargos na
diretoria, mudaria estatuto. Então pra funcionar precisa a união de cada um com suas
responsabilidades. Mas mesmo com isso, eu sou feliz, a banda, a música, o coleguismo
aqui... [...] (SILVA, 2017).
[...] Mas há coisas que se pode revisar, por exemplo uma das críticas minhas, é em
relação a algumas regras, com relação a disciplina, assiduidade, presença nos eventos,
porque a banda não é construída de uma única pessoa, é do conjunto, a gente precisa
um do outro, todos são importantes. Então, penso eu, não é certo você chegar em casa
e pensar: “ah, não vou hoje não”. Não! Você é um membro importante! Então essa
falta de discernimento das pessoas, do quanto elas fazem falta, isso faz falta! E a banda
tem muito mais coisas positivas. A integração entre os próprios músicos...
(ALMEIDA, 2017).
É possível notar que o clamor não se estende apenas a aspectos técnicos, mas
principalmente a elementos que complementariam o sucesso do conjunto: a responsabilidade e
o comprometimento. Por outro lado, percebe-se também a preservação do lado mais positivo
no grupo, o reconhecimento do papel que a banda desempenha para seus integrantes. O
coleguismo citado pelo Sr. Itamar Silva (2017) e a integração entre os músicos apontada pela
Sr.ª Rute Almeida (2017), são aspectos que, como citamos no tópico “2.2.4 – A Atualidade”,
não só definem as características do grupo atual, mas também integram a própria estrutura
69
social da banda. Os músicos, de uma forma ou de outra, estão sempre trocando informações,
ideias, trazendo arranjos e sugerindo propostas para o grupo.
Em relação ao estatuto36, ao qual o Sr. Itamar se referiu, sabe-se que foi redigido
por ocasião do registro da banda em 1914. A última “versão” é de 07 de setembro de 2010 e
não traz alterações adaptadas à atualidade. O artigo 3º do capítulo I por exemplo, expressa que
“poderão fazer parte do quadro associativo da corporação musical operária da Lapa, elementos
de bons costumes [...]”, já o artigo 33º do capítulo XII determina que “a banda será regida por
um Mestre ou Contramestre, nomeado pelo conselho diretor e com amplos poderes e do melhor
modo dirigi-la para o bom nome da corporação”. Trata-se apenas de uma linguagem da época,
traduzindo igualmente “valores” praticados pela sociedade do início do século XX.
3.2 Perfil dos Músicos
De acordo com material documental e depoimento dos músicos, a banda da Lapa
inicialmente foi formada por imigrantes de procedência operária e que conheciam música e
tocavam instrumentos de banda. A partir da segunda fase em diante, alguns militares e músicos
profissionais fizeram parte do grupo, como o Maestro Vicente Santoro, que foi sargento da
antiga Força Pública, o clarinetista Nabor Pires Camargo, que foi o 1º clarinetista do Teatro
Municipal de São Paulo, Dorival Auriani, o Buda, que foi integrante da orquestra de Ray
Conniff, e outros, principalmente militares.
Atualmente, como mencionamos, o grupo apresenta um número entre 15 e 22
músicos. Entre eles, percebemos que a faixa etária compreende 45-85 anos, com a
predominância de integrantes com mais de 70 anos. Desses integrantes que espontaneamente
nos concederam entrevista, a maioria declarou ser paulistano, dois ou três do interior de São
Paulo, outros mineiros, um, Sr. Joziere, do estado da Paraíba e outro, Sr. Haroldo, de Santa
Catarina. Todos eles tiveram ou têm uma profissão concomitantemente à música e quase todos
são aposentados de suas ocupações: mecânico, frentista, funcionário público, eletricista, militar,
zelador, bancário, professor de ensino fundamental e médio, publicitário e auxiliar de
enfermagem, entre outras ocupações. O quadro abaixo mostra os atuais músicos da CMOL:
36 Em anexo.
70
Instrumento Quantidade Músicos
Clarinete
6
Cristiano Bricks Filho,
Benedito Alves de
Oliveira, Liber Matteucci,
Maria de Cássia Gomes,
Rute Aparecida Almeida e
Eduardo Romão
Saxofone
4
Hélio Silva, José Maria
Tamburu, Joziere Macedo,
e Paulo Ramos Macuco
Trompete
4
Cirilo Gomes, César
Vasconcelos, Itamar
Martins e João Aparecido.
Trombone
2
Genilson Santos, Antenor
Lourenço e Paulo Padilha*
Bombardino
1
Haroldo Aleixo
Tuba
1
Arnaldo Moura
Percussão
1
Luiz Antônio Alves e
Elizabeth Vieira*
Regência
1
Nestor Avelino Pinheiro
Quadro 1: Integrantes da CMOL. 2018. * In Memoriam Paulo Padilha & Elizabeth Vieira 37.
Dois dos músicos da Corporação relataram ter cursado educação musical formal, a
Sr.ª Rute Almeida, 54 anos, professora de matemática aposentada que está finalizando o
Bacharelado em Regência na USP, e o Sr. César Vasconcelos, que concluiu um curso de Pós-
Graduação (Lato Sensu) em Educação Musical na Faculdade Campos Elísios. À parte desses,
notamos três tipos de aprendizado musical informal, sendo que os tipos I e II se conectam:
I – Músicos que iniciaram na música por influência dos pais que eram também
músicos amadores ou tocavam em bandas: senhores Itamar, Arnaldo, Rute, Luiz e Tamburu.
II – Músicos que iniciaram o aprendizado musical em bandas de música: senhores
Arnaldo, Itamar, Nestor, Rute, Luiz, Benedito e Tamburu.
37 O trombonista Sr. Paulo Padilha foi integrante da banda desde a década de 1990 e faleceu em março de 2018. A
percussionista Sr.ª Elizabeth Vieira foi integrante desde os anos 2000 e faleceu em fevereiro de 2018.
71
III – Músicos que iniciaram seus estudos através de professores ou amigos para
depois ingressarem em banda: senhores Cristiano, Joziere, Paulo, Hélio, César, Haroldo e Líber.
Acompanhando essa característica, percebemos, também, o sistema de ingresso na
banda. Os relatos demonstraram duas principais situações: a primeira, por amizade – um músico
levando o outro, ou seja, por convite; a segunda forma, independentemente – o músico tomou
conhecimento da banda passando pela rua e entrou em contato. Ainda, uma outra situação que
seria comum, mas deixou de ocorrer, seria do parentesco. Nesta situação há apenas um exemplo,
o do Sr. Tamburu, 60 anos, professor aposentado, cujo pai, Sr. João Tamburu, já falecido, foi
integrante da banda por mais de 30 anos.
Dos músicos que conversaram conosco e que se tornaram membros da banda a
partir da primeira situação, por amizade, os senhores Arnaldo, Itamar, Paulo, Nestor, Rute,
Luiz, Cristiano e Benedito. Do Sr. Benedito38, chamado carinhosamente de Seu Benê pelos
companheiros de banda, selecionamos um pequeno trecho de depoimento, por considerarmos
relevante a forma com que muitos jovens se lançavam no aprendizado musical por meio das
muitas bandas de música existentes nas cidades de interior durante a década de 1960. O relato
também evidencia a vida profissional, os problemas de saúde e as circunstâncias em que Seu
Benê passou a fazer parte da banda:
[...] Quando você fala clarinetista, dá impressão que eu sou exímio, mas tudo bem...
Eu ainda estou aprendendo, ainda estou tentando chegar lá! A esperança é que move!
Então, isso foi no interior, em Santa Fé do Sul, interior de São Paulo. Foi em 1964, a
vontade de tocar numa bandinha. E lá [em Santa Fé] a gente estudou com o maestro
da banda da cidade, Antônio Frutuoso, um senhor muito bom, que nem Seu Nestor.
Compramos o Bona, éramos em 14 rapazes. Com 20 anos eu ia na casa dele, andava
3, 4 quilômetros pra estudar à noite. Estudar o Bona, fazer divisão... Aí já era 1965,
precisava de um instrumento, ele foi perguntando um a um. Eu falei que eu gostaria
de tocar clarinete. Como eu não tinha dinheiro, ele vendeu algumas coisas e comprou
instrumento usado pra nós! Isso foi em 1965. E aí falou pra solfejar marchinhas e foi
indo [...].
[...] Em 1967 eu vim pra São Paulo, fiquei muito tempo parado. Depois fui ensaiar
com a Banda Santa Luzia, na época tinha Seu Firmino, o Haroldo [integrantes da
banda da Lapa]. Isso paralelo à minha profissão, eu trabalhei 40 anos em hospital, eu
era atendente de enfermagem, depois como técnico de raio X. Então a música foi
paralela. Fiquei viúvo, tive 3 filhos e 3 netos. Meu filho trabalha na mesma profissão.
Radiologia. Só que ele estudou mais, ele é Tecnólogo, ele aprofundou mais os estudos,
tem noção de ultrassonografia, tem noção de ressonância magnética e eu não tinha. E
ele foi trabalhar no mesmo local que eu me aposentei. Me aposentei em 2007. [...] Em
fevereiro de 2008 eu tive um câncer de próstata e parei. Tive que repousar, fiquei
muito tempo parado, até recuperar do tratamento. Então encontrei com o Seu Firmino
e ele me convidou pra participar dos ensaios na Lapa. E naquela época era às terças e
38OLIVEIRA, 2017.
72
sextas-feiras. Então quando comecei foi em meados de 2014 a participar dos ensaios
na Corporação. Foi por intermédio do Seu Firmino [...] (OLIVEIRA, 2017).
Na segunda forma de ingresso, independentemente, os saxofonistas, senhores
Joziere Macedo e Hélio da Silva39, afirmaram ter conhecido a banda, passando pela rua. Em
seu relato, o Sr. Hélio, 54 anos, além de mostrar como conheceu a banda, também revela que o
fato de pertencer a uma família de músicos amadores colaborou para sua decisão em estudar
música. Ele ainda nos fornece o nome do regente da época (anos 1980) e também de alguns
músicos do mesmo período, a terceira fase da banda:
Eu passava sempre aqui em frente, nessa época eu não era músico ainda, uns trinta
anos atrás. Eu completei esse mês 54 anos e eu comecei a estudar música com 21 pra
22 anos. Eu passava aqui, eu não era músico, mas eu já ouvia a banda. Eu morava no
Remédios, próximo à Leopoldina. Eu passava várias vezes aqui e ouvia a banda tocar.
E com aquela vontade, porque eu já tenho antecedente... Antes de iniciar minha
carreira aqui, eu já tive umas influências, embora eu não seja de família de músicos
profissionais, meu pai tocava acordeon e um dos meus irmãos tocava viola caipira,
eram músicos amadores, tocavam em casa. Mas aquilo pra minha infância já bastou
pra ir acendendo aquela vontade... E um dia eu entrei na banda. Eu entrei e fiquei
assistindo, é claro que fiquei encantado, aquele monte de instrumentos! [...] O regente
chamava Seu Benedito, era um negro forte, alto, que por sinal tocava o mesmo
instrumento que eu, o sax alto. E aí eu entrei, fiquei assistindo. E um dos senhores que
me atendeu, porque sempre um músico atende alguém: “olha, senta”. Ele tocava prato,
era Seu Francisco, o pratista da banda. E ele conversando comigo, falou: “entra, senta,
assiste o ensaio”, aí eu vim, vim outras vezes, aí eu fui pegando amizade com ele.
“Ah, onde você mora”? Moro nos Remédios. “Moro lá também, poxa que
interessante”! [...] Como eu já tinha o saxofone em casa, que tinha ganhado de um
primo e não achava um professor, aí vindo aqui, eu conheci ele. Aí ele falou pra mim:
“meu filho faz faculdade de música, ele é pianista. Vai lá em casa”! Aí eu fui na casa
dele, aí peguei amizade com o filho dele, e o filho dele conhecia uma pessoa que
tocava sax alto na Banda Sinfônica de São Saulo. [...] Aí comecei a estudar com esse
professor, ele se chamava Orimar, inclusive ele passou por essa banda também. Fiquei
estudando com ele, acho que nos dois anos que eu estava estudando com ele, que eu
já estava lendo Bona e também o instrumento, eu senti que já dava pra eu vir pra cá.
Eu vim pra banda, claro, me entusiasmei, porque já comecei a tocar... Tocava muito
em procissões e tinha algumas festas também. Eu gostava, gostava, porque era o início
pra mim, era um mundo novo [...] (SILVA, 2017).
Uma outra forma de ingresso na banda também foi identificada através do relato do
Sr. Liber40, 68 anos, clarinetista e publicitário aposentado. Durante sua narrativa, ele nos revela
a circunstância inusitada em que conheceu a Corporação e como passou a fazer parte do grupo
a partir de 2016:
Minha mulher é muito católica, ela ouve a Rádio Nove de Julho. E um dos padres da
Rádio Nove de Julho é fã da banda aqui da Lapa, eu esqueço o nome dele... Aí ela
39 SILVA, 2017. 40 MATTEUCCI, 2017.
73
falou, “é, olha só, tem uma banda aqui na Lapa”! Porque eu moro em Perdizes.
Procurei na internet o endereço, e vi que vocês ensaiavam se não me engano às sextas-
feiras. Aí eu vim aqui, fechado... Aí fui lá no bar, “agora estão ensaiando às quintas”.
Voltei na outra semana, encontrei o Seu Cristiano, o Seu Nestor, eu expliquei a
situação, será que eu posso ensaiar com vocês? Então a pretensão era tocar, o prazer
de ensaiar. Expliquei que tinha tocado numa banda em Portugal, viram que eu sabia
ler um pouquinho, desafino, mas nem tanto. E fui ficando [...] (MATTEUCCI, 2017).
Outro elemento relevante que percebemos acerca do perfil dos integrantes, é a
questão de o grupo ser, ou ter sido, uma banda de música operária. “A maioria trabalhou em
outra coisa”41. Nos relatos, é possível notar que a questão operária já esteve em maior evidência
e que na atualidade trata-se apenas de um grupo musical amador formado por pessoas que
trabalhavam, ou trabalham, em outras funções ou profissões e têm a música como uma segunda
atividade:
[...] Eu acho que o nome “operária” ficou no próprio nome. Ali tem pessoas das mais
variadas profissões, mas esse nome nem se usa mais, já caiu em desuso essa palavra.
Na verdade, não deixamos de ser operários, cada um na sua atividade mesmo
aposentado. As pessoas nem sabem mais o que significa a palavra operária, a
juventude talvez nem interprete mais essa palavra. Mas a banda continua sendo
mantida por pessoas simples, humildes, trabalhadoras (TAMBURU, 2017).
[...] A maioria dos músicos que aqui estão, é gente que vendeu hora de trabalho para
alguém. Foi prestador de serviço pra alguém. [...] Mesmo os que estão aqui e são
aposentados, uns aposentaram como metalúrgico, outro aposentou como marceneiro,
um outro aposentou como vidraceiro. E aqui você pode contar quantas pessoas
trabalharam por conta própria. Então por isso que eu considero assim [uma banda
operária] (SILVA, 2017).
[...] Agora eu digo assim: banda aposentada! Não é mais uma banda operária. Mas a
banda foi importante, porque eu era mocinho, eu frequentava quermesse, essa banda
tocava nas quermesses que eu frequentava. Quando eu era mais molequinho, ainda
não tinha estudado música, eu ficava perto do músico tocando, eu não conseguia
entender porque não estava escrito a letra da música aqui [mostra uma partitura] e ele
tocava. Eu não entendia isso... (MACUCO, 2017).
Foi possível notarmos, também outros pontos e elementos em comum entre os
integrantes. Algumas características como o fato de estarem na terceira idade, ou se
aproximando da terceira idade, o fato de terem tido uma profissão concomitantemente à música,
ou seja, serem músicos amadores, o fato de estarem aposentados e, principalmente de forma
mais evidente, o fato de terem a Corporação e a música como uma atividade prazerosa.
41 MOURA, 2017.
74
Em certos relatos, por exemplo, alguns até emocionados como do Sr. Arnaldo, o
integrante mais antigo na Corporação, ficou evidente o quanto esses músicos estão no grupo
porque gostam, porque gostam dos companheiros, porque gostam das atividades da banda e
como se sentem responsáveis pelos companheiros e pelo funcionamento do grupo:
[...] Eu, graças a Deus, apesar da minha idade, vou fazer 82, já toquei [conta nos dedos]
caixinha, comecei com genes, sax de harmonia. Depois... Eu toco porque gosto, não
estou a fim de... [faz gesto de pagamento, esfregando os dedos] Se a banda sai pra
tocar gratuito, vamos lá! [Então a música faz bem para o senhor?] Faz bem! Eu fiz
exames rotineiros, fiz exame de sangue, de diabetes, não deu colesterol. Fiz exame de
urina, também não deu infecção, não deu nada! E às vezes eu quero deixar [a banda],
a minha sobrinha [fala]: “Tio, não deixa não. Não deixa da banda não. O senhor está
com saúde”! Então pra mim faz bem. Eu toco essa tuba, duas, três horas em procissão
e não sinto canseira. E nós chegamos a tocar dentro do Teatro Municipal. Foi uma
virada cultural. A primeira virada cultural que teve. Então começamos lá na Praça da
Sé, descemos, pegamos a Rua Direita, pegamos o Viaduto do Chá e o povo atrás da
banda! Depois entramos no Teatro Municipal, lá nos camarins, demos uma
afinadinha, comemos... Depois saímos e fomos lá pra escadaria e tocamos até mais de
meia-noite. E aquelas moças, “vem cá, deixa eu tirar uma foto com o senhor”! Me
levava com o baixo nas costas, tirava foto... Eu estou aqui porque gosto. Eu gosto, a
gente é amador. Pego meu tuba, agora pego no bumbo, Seu Firmino está doente...
Então tem que substituí-lo. Não sei se ele vai voltar... Eu toco porque eu gosto.
Estamos aqui até quando Deus permitir! (MOURA, 2017).
O Sr. Benedito, em continuação do seu relato, também nos respondeu qual era seu
sentimento para com a banda e os colegas. Respectivamente, o presidente da banda, Sr.
Tamburu, ao relembrar de seu pai, também nos revelou seu sentimento pelo grupo:
[E como está sendo para o senhor participar da banda?] Olha, eu posso não ser um
bom clarinetista, né? Mas eu gosto, eu adoro tocar! Adoro participar! Adoro os
colegas! Pra mim, mesmo que eu vá aos ensaios e não tem ensaio, eu volto pra casa
um pouco mais feliz! E a gente que tem os colegas, a gente conversa, né! Distrai, é
uma terapia pra mim! Não só estar ensaiando, estar tocando quando tem algum evento,
mas a convivência com os colegas da banda. É uma terapia e é muito bom! [Então a
banda faz bem para o senhor?] Ah claro! Sim! Nossa! Você vê, o Seu Nestor é uma
pessoa de Deus, abençoada. Ficou internado, teve problema na perna, fui visitá-lo. O
finado Albino, clarinetista, eu ia no hospital fazer visita pra ele, ele ficou internado no
HC. A amizade com os colegas, isso é muito bom! (OLIVEIRA, 2017).
Ver o meu pai, o gosto de estar com as pessoas, com os colegas, com os amigos, a
satisfação de estar fazendo uma coisa bem-feita, agradar a todos e manter a tradição!
Então é o amor à arte, o amor à música, o amor às tradições, o amor às pessoas. A
gente não tem muita explicação, é uma coisa assim muito pessoal, né! Na verdade, é
um sentimento muito grande. E as amizades, o companheirismo, eu acho que isso é
que faz a gente lutar pra que as coisas melhorem cada vez mais, pra que a gente se
dedique cada vez mais [...] (TAMBURU, 2017).
75
Tais particularidades entre a maioria dos músicos da banda, ser idoso, ser
aposentado, ser músico amador, tocar um instrumento, sentir-se útil, tocar na banda para ver os
colegas, cuidar da banda e tocar para um público, são elementos que atualmente definem o
perfil dos integrantes da CMOL.
Sobre o regente, de acordo com a diretoria e com o Artigo 33 do capítulo XII do
estatuto, “a Banda será regida por um Mestre ou Contramestre, nomeado pelo Conselho diretor
e com amplos poderes e do melhor modo dirigi-la para o bom nome da corporação”42. O atual
regente, Sr. Nestor Avelino Pinheiro, 77 anos, é natural de Nazaré Paulista – SP. Formado em
Economia, trabalhou e se aposentou como bancário no antigo BANESPA em 1992. É casado
há quase 50 anos e tem 4 filhos, 8 netos e 3 bisnetos. Segundo sua “memória social”43, é
integrante da banda da Lapa desde a década de 1970 e em 2003 foi eleito pela diretoria como
regente titular. Ao nos relatar suas lembranças, Seu Nestor evidencia sua paixão por bandas de
música, o início de seu interesse e aprendizado musical, seu descontentamento por iniciar seus
estudos musicais somente aos 40 anos, suas vivências na banda e também seus planos para o
futuro:
Então, lá em Nazaré, tem três festividades que eles fazem no ano. Janeiro, julho e
novembro. Só que nas três festas, o que pega mesmo é essa de julho, a Festa do Divino.
Então tem Congada, Caiapó, Moçambique, Folia de Reis e a Banda de Música. Então
eu pegava um gravador que eu tinha, quando era criança, desse tamanho assim [mostra
com a mão], punha a fita e saía correndo atrás da banda. Porque sabe... Aquela coisa...
O que é a música? A arte de combinar os sons! Então você vê um negócio assim, bem
combinado! Os sons! [...] Eu tinha 13, 14 anos. Eu pegava o gravador do meu pai. Eu
comprava fita, fita cassete44 [faz gesto de enrolar com o dedo], punha no gravador e
saía atrás da banda! Depois ficava ouvindo. Chegaram até a conversar com o maestro
da banda. “Como é que faz pra aprender?” Quer dizer, o negócio tá dentro... Às vezes
eu falo pra minha mulher assim: Só comecei a aprender música depois de 40 anos!
Até 40 anos, eu não conseguia fazer uma nota no fundo da garrafa. Fui aprender depois
dos 40. Então eu falo pra ela: Se alguém que estava na minha terra, tivesse me
ensinado música, com 7 anos, com 6, 7 anos, nossa! Depois dos 40 anos! [faz gesto
com as mãos]. E na verdade foi assim, meu filho olhou um jornal uma vez, que tinha
alguém lá na USP ensinando bateria. Ele queria aprender a tocar bateria. “Pai, cê me
leva lá”? Todo sábado. Levo! Lá na reitoria da USP. Agora virou antiga reitoria. Então
o que acontecia? Eu deixava o menino com o professor de bateria e ficava passeando
até terminar. E comecei a ouvir [faz gesto com o dedo no ouvido] uma banda tocando.
Era fanático por banda! Banda tocando aqui?! Eu desci uns dois andares e vi uma
banda. Parei na porta e fiquei ouvindo. No outro sábado de novo, no outro. Até que
um dia, o maestro da banda, chegou pra mim e perguntou: “Cê gosta de banda”? Oh!
“Por que você não entra pra tocar? Eu vou arrumar um instrumento pra você”! E foi
lá num depósito e me trouxe um trompete. “Pega esse instrumento aí, que você vai
aprender esse instrumento”. Tá bom. Eu peguei aquele instrumento e comecei [...]
(PINHEIRO, 2017).
42 Estatuto da Corporação Musical Operária da Lapa. Em anexo. 43 O relato do Seu Nestor, suas datas citadas e sua idade não estão em acordo com o próprio depoimento, já que
ele afirma ter iniciado seus estudos musicais aos 40 anos. A data provável de seu ingresso na banda seria a década
de 1980. Trata-se, portanto, de uma “memória social”. 44 Novamente um registro da “memória social” de Seu Nestor. Como a fita cassete surgiu em 1963, pode ser que
ele estava utilizando um tape deck de rolo de 1935.
76
É interessante notar que, Seu Nestor, ao descrever que encontrou uma banda na
USP, mostra um projeto que foi criado em 1967 por Benito Juarez. Além do Coral, ativo até
hoje, havia também a banda que pouco tempo depois foi dissolvida: “[...] E aí chamava
Bandusp, por que Bandusp? Porque tinha o Coralusp. Então fizeram o Bandusp. Acabou a
Bandusp e ficou só o Coralusp”45. Dissolvida a banda que tinha na USP, passou a integrar a
“Banda Santo Antônio” do bairro do Limão. Pouco tempo depois, foi levado para a Lapa por
um colega, Sr. Albino, clarinetista da Corporação, falecido em 2015. Era a época do Maestro
João Batista Ferreira. Antes de ser levado pelo Seu Albino à Corporação, Seu Nestor revela,
que na banda, do Limão, indicaram-lhe um professor, pois desejava aprofundar seus estudos de
música. Recomendaram-lhe na ocasião o Maestro João Bonello, regente da “Orquestra Ritmo
das Américas”, mais conhecida por atuar no “Clube União Fraterna” da Lapa:
[...] liguei pra ele. Fiquei na escola dele, estudando trompete e teoria. Fiz o método de
trompete inteirinho, clave de sol, clave de dó, de fá. Chegou um dia, ele falou assim:
“Agora eu quero que você vá comigo lá pra orquestra”. E fui tocar lá na orquestra
dele. No primeiro dia não toquei nada! Disse que não ia mais. “Você vai, eu exijo que
você vá”! Um dia, ele [Bonello] colocou um solo de um mambo pra eu fazer:
“Levanta, levanta”! Foi ali que eu aprendi música! Fiquei lá uns 8, 9 anos. Era um
baile por semana, todo domingo (PINHEIRO, 2017).
Após ser nomeado pela diretoria em 23 de fevereiro de 2003 como regente do
grupo, Seu Nestor se viu diante de muitos problemas. Como mencionamos, a banda não tinha
um arquivo sistematizado. O que o grupo tinha, até então, eram partituras espalhadas. A sede
precisava urgentemente de reforma, o número de músicos estava reduzido e, além disso,
precisava de ajuda para melhorar o grupo:
[...] a verdade é essa, em matéria de cego, quem tem olho... Eu estou na frente não
porque entendo, porque eu conheço. Eu apanho pra caramba lá, só que eu levo a
partitura pra casa e olho, olho, olho, vou no meu teclado, vejo... Ponho no Encore,
fico ouvindo... sabe? Pra poder chegar lá e fazer alguma coisa! E como eu falei pra
você, fui aprender música com 40 anos, então eu me esforço muito e eu gosto de banda
de música! Eu gosto da arte de combinar os sons! (PINHEIRO, 2016).
Seu Nestor, ao admitir limitações, confessa sua paixão por bandas de música e
amplo empenho para realizar um bom trabalho como regente. Além de sua dedicação e interesse
na banda, fica evidente o significado de uma atividade aprazível neste momento de sua vida.
Ao nos relatar, por exemplo, as idas do grupo à Colônia de Férias da VASP46, ele se mostra
45 PINHEIRO, 2017. 46 Cf. p. 54.
77
privilegiado e feliz por ter participado dessas atividades, além de expressar o quanto se sente
útil em servir a banda:
Na época do Seu X, havia um problema de fazer pagamentos de contas. Não se sabia
ao certo se determinada conta havia sido paga, ou se havia recurso em caixa. Foi aí
que perguntei: “Seu X, quer que eu faça uma contabilidade da banda”? Foi aí que eu
comecei a fazer e estou fazendo até hoje. [...] Tudo mudou, está mais difícil, mais
complicado. Você participa aqui e você vê que é difícil... poucos músicos... Você vê
por exemplo, eu ia mentir pra você dizendo o porquê de ter chegado um pouquinho
tarde. Mas não dá pra mentir. Eu estava lá sabe, envolvido com aquela música que
eles passaram pra mim, o tal do Hawaii 5.0, fazendo um arranjo lá. Então quando você
começa a entrar... Parte de clarinete, trompete... Eu... eu gosto! Nunca faço uma coisa
bem-feita, que eu não tenho essa noção... Mas eu gosto, eu gosto! (PINHEIRO, 2017).
Seu Nestor é aposentado desde 1992. Desde então, tem ocupado a maior parte de
seu tempo com as atividades da banda. Ao se comprometer com certas práticas, como a
contabilidade da instituição, os arranjos e a regência, está exercitando suas habilidades
cognitivas. Como mencionado na introdução, tópico “1.3 Música e Velhice”47, durante o
processo de envelhecimento, funções cognitivas podem ser potencialmente afetadas; contudo,
a prática da música colabora no treinamento da plasticidade cerebral (LEVITIN, 2010), além
de promover principalmente a elevação da autoestima, o sentimento de competência,
independência (PEACHEY et al., 2013) e a ocupação do tempo ocupado com uma atividade
que lhe apraz.
3.3 Instrumentação
A instrumentação da Corporação é semelhante a uma pequena banda militar e varia
de tempos em tempos, de acordo com a saúde e com a disponibilidade de alguns integrantes, já
que todos residem em outros bairros. Alguns, inclusive, em bairros bem distantes da Lapa.
Como mencionamos, o número de músicos também varia entre 15 e 22
instrumentistas. Nos ensaios e apresentações, o grupo está formado habitualmente por cinco ou
seis clarinetes, dois ou três saxofones alto e um ou dois saxofones tenor. Os metais são formados
por dois ou três trompetes, dois trombones, um eufônio, uma ou duas tubas, bumbo, caixa e
prato. A disposição na sala de ensaio foi por muito tempo de forma enfileirada, com clarinetes
à frente e logo atrás saxofones, e depois os metais. Entretanto, com a recente mobilização da
diretoria com objetivos claros em reestruturar e elevar a qualidade do grupo, foi proposta uma
47 Cf. p. 19-21.
78
formação mais parecida à de uma banda sinfônica, em semicírculo e com os clarinetes à direita
do regente, os saxofones à frente e os metais e percussão à esquerda.
Foto 8: Ensaio da Corporação Musical Operária a Lapa – 31/10/2017. Ao centro, o regente convidado
Valdemir Silva. Acervo da autora.
Sobre o manuseio de alguns instrumentos, percebemos certos obstáculos que têm
alterado frequentemente a sonoridade do conjunto. Ora, nosso objetivo, com a descrição a
seguir, não é evidenciar apenas aspectos negativos no grupo, mas demonstrar que algumas das
dificuldades que a banda tem vivido (falta de convites, por exemplo e falta de interesse por
parte de órgãos públicos) se devem ao que é praticado atualmente no conjunto. São elementos
que alteram desfavoravelmente a sonoridade e a estrutura da banda, corroborando o que Seu
Tamburu anteriormente lamentou: “uma instituição que tem 136 anos e às vezes não é nem
lembrada”48.
Alguns instrumentos, como eufônio, conhecido popularmente nas bandas como
bombardino, assim como o trombone e a tuba, provavelmente devido a uma orientação
equivocada anterior e que foi mantida por algum motivo, se comportam como se fossem
instrumentos transpositores49. A principal complicação neste caso é que, independente do
48 TAMBURU, 2017. 49 Instrumento transpositor é aquele cuja nota soa diferente daquela que está escrito em relação a um instrumento
de som real, como o piano por exemplo. De acordo com Bohumil Med (1996, p. 381), instrumentos transpositores
são instrumentos construídos em tamanhos diferentes (no caso de instrumentos de sopro, o comprimento do tubo
sonoro varia). A variação do comprimento do tubo de cada um desses instrumentos faz com que eles produzam,
na mesma posição, sons de alturas diferentes. Por razões práticas de execução, mantém-se o mesmo nome da nota
79
instrumento, afinação e claves utilizadas, todos tocam na mesma posição e/ou com a mesma
digitação, acreditando ser a mesma nota. Identificamos duas situações em que estes problemas
aparecem:
I - Dois dos três trombones, o bombardino e uma das tubas leem partituras em clave
de sol e utilizam a digitação semelhante à do trompete. Assim, para tocar a nota dó, por
exemplo, usam a 1ª posição com as 3 chaves/válvulas soltas. Pelo esquema abaixo é possível
perceber as notas que de fato soam:
Figura 17: Situação 1.
II - Em relação a uma das tubas, porém menos comum e que tem acontecido no
conjunto: mesmo a tuba utilizando a clave correta, de fá, se comporta como instrumento
transpositor. A nota tocada/soada, mesmo com o instrumentista utilizando a 1ª posição, é
diferente daquela que está escrita:
para cada posição/dedilhado, apesar de o som real não coincidir com o nome da nota escrita para tal instrumento.
Corne-inglês, clarinete, saxofone e trompete são alguns dos instrumentos transpositores.
80
Figura 18: Situação 2.
Tais dificuldades, assim também como esforços de leitura, de leitura em uma clave
que não estão habituados, de executar passagens que exigem um grau de técnica mais
desenvolvida, ou de conhecer melhor a digitação do instrumento, de conseguir afinar, de
conseguir uma articulação ideal, etc., não descartam a possibilidade de os próprios músicos
entrarem em acordo para tal. Articulações diferentes também são comuns e ilustram a
necessidade de chefes de naipe ou de acordo prévio, ou ainda de partituras suficientemente
claras com indicações de articulação. Frequentemente há disputa sobre qual modo seria o
correto para executar determinada passagem, e os próprios músicos decidem por si mesmos os
tipos de articulação, fraseado e dinâmicas que devem empregar. No trecho abaixo por exemplo,
da parte de 1º clarinete da adaptação do Sr. Nestor do tema do filme A Bela e a Fera, são
executadas pelos clarinetistas tanto a ligadura de frase quanto o tenuto no trecho:
Partitura 1: Trecho de parte de 1º Clarinete do arranjo de A Bela e a Fera. Acervo CMOL.
81
Como apontamos, a intenção não é patentear características do amadorismo
musical, nem expor aspectos negativos e dificuldades do grupo, mas indicar alternativas simples
e possíveis para um conjunto capaz de resultados musicais surpreendentes. Ser uma “associação
recreativa” não significa ser apenas um grupo amador que faz música voluntariamente para
passar o tempo. Seus músicos são amigos e interagem uns com os outros, partilhando
experiências, além de comprometerem-se em continuar preservando o grupo. Essa trajetória,
como mencionado na introdução deste trabalho, foi desenvolvida ao redor de elementos de
comum interesse: a prática musical, as performances, o aprendizado musical, etc. E é neste
sentido que a banda da Lapa se configura como uma Comunidade Musical.
3.4 Repertório
O repertório da banda, conforme vimos na descrição da segunda fase, tem sido
versátil e diversificado. A fim de atender às suas comunidades de acordo com o contexto
proposto, tanto a música de concerto quanto a música popular fazem parte de suas estantes. Já
os dobrados e as marchas são os gêneros mais executados e solicitados por seu público.
Recentemente, por iniciativa do presidente, Sr. Tamburu e de alguns músicos, um programa
com músicas compostas para filmes foi incorporado ao arquivo. Vários arranjos do próprio
regente e também de outros autores passaram a fazer parte das estantes do grupo.
Em relação a esses repertórios, atualmente esta é a fase em que, de fato, um acervo
está disposto e classificado. Antes de o Sr. Nestor assumir a Corporação como regente, não
havia pastas, não havia um repertório sistematizado e não havia um arquivo físico onde as
partituras eram preservadas. “Nós tínhamos dificuldade com partitura, a pasta não tinha, nós
criamos a pasta, foi o Nestor que teve a ideia, fizemos uma pesquisa e fizemos as pastas”50. O
que o grupo tinha, até então, eram partituras dispersas. Além disso com a enchente que inundou
a sede nos anos 1990, quase todo o repertório antigo foi perdido ou extraviado. O arquivo
efetivo, as pastas com repertório habitual e os caderninhos de marcha e música religiosa foram
organizados pela atual diretoria. Seu Luiz, como citado, foi designado como arquivista e, com
dedicação, encarrega-se desta atividade, além de tocar.
Normalmente, as músicas a serem executadas são escolhidas pelo regente, que
segue o critério de um repertório já incorporado e aprendido pelo conjunto. Já músicas inéditas,
são adaptações ou arranjos que ele mesmo prepara com textura homofônica simples e harmonia
básica, onde a maioria dos instrumentos tocam em uníssono ou em oitavas. É levada em
50 ALVES, 2017.
82
consideração a instrumentação que a banda tem naquele momento e a facilidade para leitura e
execução. Quando o conjunto consegue ler a peça nova, soa bem do ponto de vista do grupo e
tem boa aceitação, imediatamente passa a fazer parte do repertório usual. O quadro a seguir
mostra o atual arquivo constituído por vários gêneros, estilos e ritmos:
Gênero/Estilo/Ritmo Quantidades
Dobrados 85
Marchas 36
Marchinhas de Carnaval 33
Valsas 24
Sambas 80
Maxixes 10
Frevos Indefinido
Choros Indefinido
MPB variada Indefinido
Música religiosa 37
Música de concerto Indefinido
Música pop internacional Indefinido
Hinos 11
Trilha sonora 18
Outras Indefinido
Quadro 2: Acervo Corporação Musical Operária da Lapa. 2018.
Entre este repertório, há músicas conhecidas que já estão memorizadas pelo
conjunto e que tocam há muito tempo, como os dobrados Palazoli, de Celso Poli, e Dois
Corações de Pedro Salgado, além de sambas e marchinhas de carnaval. O material jornalístico
manuseado colaborou também nos mostrando que a banda, ao se apresentar em ambientes
públicos, sempre executou um repertório variado, compreendendo dobrados, valsas, sambas e
músicas religiosas.
83
CAPÍTULO 4 – ENSAIOS
4.1 Um Ensaio
Dezessete de novembro de 2016, por volta de 19:00 horas. Seu Nestor está sentado
ao lado de um aluno de trompete. É um rapaz de meia idade que ainda não faz parte da banda.
Está estudando a marcha Brasil. Enquanto vai tocando com dificuldade, o maestro solfeja junto,
falando o nome das notas para o aluno. Enquanto isso, Seu Firmino, que já chegou, marca no
bumbo o tempo. Como eu, Seu Liber e Seu Arnaldo já estávamos presentes, Seu Nestor pediu:
“clarineta! Vamo lá”.
Pegamos a marcha da capo. No fim, o regente pede: Mais uma vez! E então:
“tranquilex, tranquilex! No cabelo só Gumex. Vai Brotas! [o dobrado] Que é o 3! Brotas Futebol
Clube... Eu nunca vi esse Brotas disputar um campeonato! Cê viu Arnaldo? O Brotas”?
Seu Arnaldo: Não...
Seu Nestor [bravo]: Ué disputar campeonato! Não é Brotas Futebol Clube? Luiz,
disputou algum campeonato?
Seu Arnaldo: ...é da cidade do interior...
Seu Luiz: [inaudível] Nunca vi...
Enquanto isso, Liber faz escalas e toca a introdução do Brotas. Seu Nestor solfeja
as notas para seu aluno.
Seu Arnaldo: [inaudível]...lá de Brotas...
Seu Nestor: Ó! Aqui é assim, [bate forte com a batuta na estante] dó si dó ré dó ré
mi ré mi fá mi ré sol fá mi ré si dó...
Enquanto isso, Seu Luiz, prestativo e simpático, me traz uma foto antiga da banda:
“... se você quiser pro trabalho. Eu vou ver se eu acho mais algumas...”
Subitamente Seu Nestor decide pegar a Canção do Soldado – o célebre arranjo
Capitão Caçula. Como seu aluno tem dificuldade, ele conta um compasso em branco com
metade do andamento habitual. Bruscamente, todos ouvem um assobio forte, a música para e
ele solfeja as notas para o aluno. Apesar de ainda não ter começado oficialmente o ensaio, já
estão acompanhando dois clarinetes, Seu Liber e eu; Seu Tamburu no sax, Seu Arnaldo na tuba,
Seu Luiz na caixa e Seu Firmino no bumbo.
A composição é tocada com todas as voltas até o fim. Seu Nestor percebe a
dificuldade do aluno e pede: “da capo! Conto dois, vai”! Ao terminar, Seu Liber vira-se e
84
desabafa quase emocionado: “é bonito, né? E eu gosto dessas tercinas”. Eu confirmo com a
cabeça. Os presentes também comentam: “é um dobrado bonito”.
Foto 9: Ensaio de 17/11/2017. Sentado, de azul, Seu Nestor cantando notas ao lado de seu
aluno. Ao fundo, Seu Arnaldo com o sousafone e Seu Luiz na bateria. Acervo da autora.
Visivelmente empolgado o maestro continua: “pega o seis! [Marcha Fête
Triumphal] Lá lá lá lá láááá... Espera só um minutinho... Ré ré ré rééééé...Atenção, bem
devagar! Conto dois, devagar”! Ao chegar no fim, Seu Nestor decide levantar de onde está
sentado e encerra a aula de seu aluno. Os outros músicos decidem fazer escalas. Os mais velhos
preferem conversar. É aí que Seu Nestor pergunta quem quer tomar café. Os mais velhos saem,
os mais novos ficam.
Ao retornar, Seu Nestor encontra todos conversando e pede a música 3 do
caderninho de marchas [dobrado Palazoli de Celso Poli]. Este é um dobrado que foi
memorizado pela banda, no entanto, para ajudar o aluno, o regente faz questão de pedir a parte
B novamente. “Olha o contratempo. Vai”! Ao terminar, Seu Liber, que está ao meu lado,
comenta: “engraçado, eu já acostumei a tocar o contratempo, quando vem o tempo eu erro”.
Em seguida o regente grita: “pega o número 15! Silvino Rodrigues, vai! Não precisa correr
muito não”.
Antes de a música começar, Seu Liber vai tocando sozinho a introdução. Seu Nestor
bate com a batuta na estante para interromper e conta: “um, dois”! Enquanto o dobrado avança
para a repetição da parte A, Seu Arnaldo, que está no sousafone, vai tocando e batendo palmas,
como se ajudasse Seu Luiz na percussão. Ao fim, o regente olha para seu aluno: “tem que fazer
85
igual o Gabriel Jesus, se bem que ele é Jesus! Entrou, puffff, acabou com a raça! Comigo é
assim”!
Enquanto isso, Seu Luiz, curioso, examina o jornalzinho da Lapa [Jornal da Gente
– Periódico de distribuição gratuita no bairro da Lapa] como se procurasse algo muito
importante. Seu Arnaldo pega o caderninho de dobrado e passa as folhas, depois pergunta para
Seu Luiz de alguém e este responde: “ encontrei outro dia com ela... vou conversar com ela”.
O regente cantarola uma passagem enquanto os músicos conversam uns com os outros. Os
assuntos: a vida, a família, a política, o governo, futebol, filmes, novelas, livros, comida,
partitura, arranjo, música, outras bandas, outros músicos, etc.
“Tem outro que é bom pra aprender, o 17”, diz Seu Nestor. É a marcha The
Thunderer, que ele cantarola: “taaan tan raaan, tan tan tan tan tan tan! Vamo lá”! Ao fim, Seu
Luiz vem novamente me trazer outro jornal: “ isso aqui é lá na Freguesia. Agora essa foto aqui...
É lá na Casa Verde. Depois vou trazer mais”. Os músicos estão conversando uns com os outros.
Seu Arnaldo, que estava no fundo da sala, agora está na frente e discute algo com Seu Tamburu.
Em seguida, ele retorna ao seu lugar e mostra o lugar “das batidas” à Dona Elizabeth (in
memoriam) que está com o prato.
Depois de certo tempo de interlocuções e depois de examinar sua pasta, Seu Nestor
pede músicas de procissão: A Nós Descei, Ave de Fátima, Com minha mãe estarei.
“Percussão, percussão, presta atenção! Com minha mãe estarei até o japonês
conhece essa música, la raaa la ri ri raaa, não fica esperando, entra direto”, diz Seu Nestor. “E
todo mundo vai fazer si aí, ré sol sol si ré... Aliás, empresta uma caneta aqui”. Seu Nestor
corrige a partitura dele, pois estava com a nota errada e todos discutem entre si, onde é que tem
que corrigir a nota.
De repente, Seu Benê pergunta: “que horas é o jogo”? Seu Tamburu responde:
“Nove horas a gente vai parar o ensaio, vou ligar o rádio e a gente vai ficar torcendo”.
A nota do Com minha mãe estarei ainda não foi corrigida por todos e se instaura na
sala uma mistura de bate-papos com escalas e trechos da música tocados ao mesmo tempo. O
assunto é sobre onde e por que se deve colocar a nota si. Seu Paulo chama atenção: “Vaaaaamo
Seu Nestor”! Uma caneta passa de mão em mão, alguns têm dificuldade em saber onde devem
alterar. Outros discutem que “sempre tocaram assim”. Os que já corrigiram, experimentam
tocando do modo correto. Seu Nestor pede da capo. “Vai”!
86
Partitura 2: Partitura manuscrita do Com minha mãe estarei, com a nota corrigida no 1º
compasso – Parte de 1º Clarinete. Acervo CMOL.
“Pessoal, atenção, atenção, tá quase na hora da gente ir embora”! Interrompe Seu
Nestor olhando para o relógio. A música é repetida novamente. Depois, como já passava das
21 horas, Seu Tamburu levanta e diz que Seu Itamar teve um problema de saúde, um princípio
de AVC, mas que agora está tudo bem e que ele devia ficar descansando, porque com essas
coisas não se brinca, é uma coisa muito séria. Seu Nestor retoma a banda e pede o dobrado
Maestro João Massaini de Pedro Salgado. Antes de descer o braço, ele traz o seguinte: “um
dia, lá na Rua da Consolação em volta do Cemitério da Consolação, sabe? Ficava um rapaz,
taaarde da noite, ficava rodeando o cemitério, andando, andando... alguém viu e perguntou:
escuta, você não tem medo de ficar aqui no cemitério, tarde da noite? Até essa hora? Quando
eu era vivo eu tinha”! Alguns reagem com gargalhadas, outros se irritam. Seu Nestor grita,
“vai”! Ao final do dobrado, ele explica que “essa tem que tocar mais” e que terça-feira ele estará
lá. Alguns repetem: “eu também venho”!
87
4.2 Dinâmica dos Ensaios
Há cerca de uns 5 anos ou mais, os ensaios da banda da Lapa costumavam acontecer
às sextas-feiras, porém, devido ao barulho dos “karaokês” nostálgicos e agitação dos bares
próximos, ficava impossível tocar, ensaiar, ouvir ou realizar qualquer outra atividade musical
simultaneamente. A diretoria chegou a reclamar várias vezes. Seu Nestor ficava chateado,
queria chamar a polícia. Não foi possível solucionar ou negociar, então o jeito foi mudar o dia
do ensaio geral para quinta-feira. Os ensaios ficaram então fixados para todas as terças e
quintas-feiras, das 19:30 às 21:30 horas.
Às terças-feiras é o dia que Seu Nestor dá aula para quem quer tocar um instrumento
ou ingressar na banda. Às vezes tem um aluno, outras vezes, dois ou mais. Essas aulas
normalmente acontecem antes de o ensaio começar. Como o número de músicos neste dia é
reduzido, por vezes acaba sendo um encontro para bate-papos e passagem de músicas que
estarão na próxima apresentação. Já aconteceu, em algumas terças-feiras de o regente ficar
sozinho na sede, ou ele e mais dois músicos. Já os ensaios de quinta, como vimos, são mais
dinâmicos, o grupo comparece na íntegra e normalmente pessoas chegam para assistir.
Foto 10: Ensaio da Corporação Musical Operária da Lapa – 26/10/2017. Acervo da autora.
Não há ponto, listas ou livros de presença, algo bem comum em bandas
remuneradas ou profissionais. Isso acontece, por vezes, quando há pagamento de ajuda de custo
vindo de procissão ou de alguma outra performance. Seu Luiz, secretário e arquivista, divide o
recurso pelo número de músicos que compareceu à apresentação; chama um por um, lá na
salinha do fundo, e paga. Frequentemente, ele chega mais cedo, por volta das 17:00 horas,
88
organiza documentos, livros, limpa a sede, arruma pastas, tira e coloca músicas no arquivo, sai,
tira “xerox”, volta com mais cópias, coloca um CD com dobrados para tocar e, conforme vão
chegando os músicos, adianta as conversas e as notícias.
Por volta de 18:30 horas, começam a chegar outros músicos. Seu Cristiano, o
primeiro a ser citado neste trabalho, também é um dos primeiros a chegar. Seu ritual: estende a
mão amavelmente para quem está presente, senta, monta sua clarineta e começa a tocar músicas
de cabaré e filmes antigos. Depois para e vai ler o Jornal da Gente, periódico gratuito circulante
no bairro da Lapa. O próximo a chegar é Seu Arnaldo, tubista, um dos músicos mais antigos da
Corporação. Sempre atencioso e amável, fica empolgado com músicos novos. Nos últimos
meses desta pesquisa, sempre trazia uma sacola com fotos e reportagens antigas sobre a banda:
“é pra ajudar no seu trabalho”, ele dizia. E depois cantarolava uma música qualquer e
perguntava: “você conhece”? E cantarolava mais, “e essa? De quem que é mesmo”?
Como relatamos no tópico “3.3 Instrumentação”51, espontaneamente, outros pontos
de natureza mais técnica são menos favoráveis dentro do grupo. Alguns relatos e
comportamentos mostraram insatisfação e/ou discordância dos procedimentos empregados pela
liderança durante os ensaios, tal como nas apresentações. Isso, como mencionamos, tem
colaborado para o esgotamento do conjunto. Alguns recordadores (Senhores Haroldo e Paulo)
evidenciaram, por exemplo, o quanto seria positiva a manutenção do repertório e a observação
mais detalhada da partitura:
[...] Ah, o negócio talvez se... Eu gostaria que mudasse um pouco o repertório... Mas
a gente bate muito em conflito, então... Quando chega num lugar, não tem porque não
abrir com dobrado, mas depois tem que passar pra música popular, tem vez que a
gente não passa! Tem vez que a gente toca três, quatro dobrados! É uma música muito
pesada! Não é? E se tiver quente... Conforme o músico, arrebenta... trompete,
trombone... Esquenta o bico [sic] e ... Então a gente vai por esse lado aí... Mas é...
Tempo... (ALEIXO, 2016).
[...] A gente se adapta né, Juliana. Você vê como que é aqui, a turma não obedece
muito aos critérios musicais, é tudo na base do tapa. E a gente vai se adaptando! [...]
Aqui tem os ensaios e alguns servicinhos que aparece. Mas faço com o maior prazer!
Dedico mesmo. Pegou pra fazer, tem que fazer direito! Eu procuro fazer o melhor
possível. O máximo que eu sei! [...] (MACUCO, 2017).
Como a prioridade para a liderança é sempre fazer o conjunto tocar, as músicas são
repetidas várias vezes. Normalmente, elementos que têm quebrado essa dinâmica são arranjos
51 Cf. p.75-79.
89
novos52, ou músicas novas que o presidente – ou até mesmo algum músico – traz. Se a banda
ler bem e gostar, quer dizer, se a música “ficar boa” na visão do conjunto, passa a fazer parte
da pasta. Como alguns tem dificuldade com leituras à primeira vista, é preciso haver aceitação
unânime para que a novidade seja incorporada ao grupo. Este é um ponto positivamente
incoerente que descobrimos nas dinâmicas de ensaios da banda: notamos o quanto os músicos
são propensos a incorporar inovações. Constantemente estão dizendo “e se mudasse um pouco
o repertório”, “eu tenho uns arranjos em casa bem legais”, “eu vou trazer um arranjo do Piratas
do Caribe”, “o repertório de trilha sonora é bom, mas também tem que tocar umas coisas mais
modernas...”, “precisa fazer ensaio de naipe”, “tem que passar essas músicas direito”, “precisa
encostar um pouco esses dobrados”, “não tem jeito, tem que afinar”, “precisava fazer solfejo”,
“ah, tem que estudar isso aí”, “precisava fazer nota longa”.
Também percebemos como foi bem aceita a nova configuração dos instrumentos
em formato de meia-lua. Muitos músicos relataram que daquela forma era possível ouvir e ver
melhor o companheiro e também o conjunto. Além disso, com a recente participação especial
de músicos mais jovens na banda, os músicos mais velhos passaram a admitir a necessidade de
o conjunto melhorar, e, por isso, constantemente evidenciam, mesmo que de forma velada, que
deveriam insistir em trabalhar mais detalhadamente a partitura, “interpretar melhor” e repensar
como realizar um ensaio melhor.
4.3 Noções de Ensaio versus Ensaio da CMOL
Na tradição de estudos da música ocidental, sobretudo da “música erudita”, os
instrumentistas tendem a focar na performance magistral que é o resultado de um complexo
processo de preparo e aquisição de habilidades. Segundo Reily e Giesbrecht (2018), há uma
distinção clara entre praticar e ensaiar:
Praticar tende a se referir de modo geral à aquisição de habilidades performativas, e
ensaios são vistos como contextos para a preparação de uma peça ou de um conjunto
de peças para uma performance específica. Em outras palavras, uma pessoa pratica
seu instrumento sozinho, mas ensaia com seu grupo para o próximo concerto (REILY;
GIESBRECHT, 2018, tradução nossa).
52 Entre os arranjos recentes que foram incorporados ao repertório da Corporação, podemos destacar os arranjos
de Valdemir Silva das músicas I just call to say love you e And I love her; do Sr. Nestor de A Bela e a Fera e de
Michael Sweeney de Hey Jude.
90
A prática, nesse caso, envolve uma série de elementos que inclui exercícios
técnicos, tanto de respiração, de afinação, de articulação, de passagens difíceis, de repetição,
etc., como também de variadas metodologias de aprimoramento para a proficiência musical.
Esta, poderá ser aplicada nos repertórios ensaiados em grupo com a finalidade última da
performance. De acordo com as autoras, a prática exige concentração direcionada a questões
de técnicas para assegurar a competência tanto no ensaio, como na performance. A distinção
entre praticar e ensaiar, neste caso, é coerente com o tipo de habilidades que se requer do
performer.
Normalmente em corais, orquestras, bandas e outros conjuntos instrumentais com
um número razoável de integrantes, é exigido, da parte dos músicos, incluindo o regente, um
grau avançado de disciplina musical (SPITZER; ZASLAW, 2002). É pela disciplina musical –
aplicada nos ensaios – que se busca a uniformidade e o desenvolvimento da capacidade de
interpretar o que a partitura pede. Desse modo, segundo Soraya Heinrich Eberle (2008), o
ensaio é um trabalho musical minucioso que antecede a performance:
O ensaio constitui-se num espaço prévio à performance, onde acontece o exame e o
estudo do material musical oferecido (partitura), bem como é realizada a experiência
musical prévia com o referido material. Trata-se de uma prática que atravessa os
séculos da história da música ocidental [...] O ensaio possui as características de
estudo, tentativa, experiência ou treino preliminar à performance, mas sem perdê-la
de vista [...] (EBERLE, 2008, p. 45, grifo original).
Ainda de acordo com a autora, o ensaio é como “uma oportunidade de troca de
experiências musicais, de desenvolvimento das percepções e de entrosamento em torno da
música”. Neste sentido ainda, podemos definir o ensaio como um espaço coletivo, onde a
aprendizagem e a habilidade são adquiridas por meio da participação. Segundo Schutz (1970),
o ensaio é um espaço organizado, um mundo social compartilhado por diversos músicos que,
por sua vez, fazem parte de vários mundos. É “como uma rede fina de relacionamentos sociais,
de sistemas de signos e de símbolos com sua estrutura de significado particular, de formas
institucionalizadas de organização social de sistemas de status e prestígio” (SCHUTZ, 1970, p.
80).
Isto também quer dizer que é no ensaio que os músicos têm oportunidade para trocar
conhecimentos e ensinar, de forma espontânea – através do exemplo – outros a adaptarem-se
com o ritual que precede o ensaio: a chegada com antecedência, a montagem do instrumento, o
ajuste do instrumento, a escolha de palhetas, o aquecimento, a revisão de passagens
consideradas críticas, a anotação prévia da partitura, o acordo com os colegas em relação às
91
posições a se fazer em determinado trecho, articulações, fraseados e dinâmicas e até mesmo a
limpeza e desmontagem do instrumento ao fim do ensaio.
De outro lado, o ensaio é também um momento onde vários eventos acontecem
simultaneamente. Na descrição do tópico “4.1 Um Ensaio”53, vimos vários interesses
permearem o antes e o durante do “ensaio” da banda: a conversa com os colegas, a brincadeira
com os colegas, a troca de informações familiares, os avisos sobre problemas, os anúncios de
interesse geral e a música. Essas características, ou melhor, esses interesses compartilhados em
um encontro, só são possíveis através do vínculo estabelecido entre os participantes do grupo.
Esse “encontro”, ou compartilhamento em torno de um interesse, ou causa em
comum, à qual nos referimos na introdução54 deste trabalho, transfigura a banda em uma
“comunidade de prática” (WENGER, 2008). Como já vimos, as CdP funcionam dentro de um
contexto participativo e exclusivamente com vínculos estabelecidos entre os integrantes.
Assim, o ensaio, que é um ambiente participativo para a CMOL, proporciona a prática em torno
da música e a integração entre os músicos. Para Reily e Giesbrecht (2018), “[...] Além das
habilidades processuais práticas básicas envolvidas na performance, os ensaios permitem que
os músicos se envolvam nos assuntos do dia-a-dia do grupo, o que significa aprender a
identificar os membros e seus papéis dentro do grupo [...]”.
Com frequência, as competências exigidas na prática musical participativa fazem
conexão com a participação de outras pessoas. A sugestão, neste caso, é de que grupos
envolvidos no musicar participativo não praticam e não ensaiam (REILY; GIESBRECHT,
2018). Nesta perspectiva, a banda da Lapa não pratica, nem ensaia. O “ensaiar”, para o grupo,
é um momento de encontro entre os músicos, uma oportunidade para compartilhar experiências,
trocar ideias, trocar alegrias, traçar estratégias e tocar.
É possível perceber, pela descrição do “ensaio” da Corporação, que um complexo
de ideias e recursos próprios como linguagens, rotinas, vocabulários e símbolos está presente
nessas dinâmicas. O “Repertório Compartilhado” a que Wenger (2008) se referiu dentro dessas
comunidades é um elemento importante a ser destacado. Na banda, os músicos estão inclinados
a identificar como repertório as músicas para a performance. No entanto, de acordo com Reily
e Giesbrecht (2018), quando Wenger faz uso do termo, ele se refere aos “recursos para negociar
o significado” que o grupo desenvolve ao longo do tempo, abrangendo “atividades específicas,
símbolos e artefatos”, que são continuamente “ensaiados” à medida que a comunidade persegue
sua empresa (2008, p. 82-83). Neste caso, o repertório seria “uma história de engajamento
53 Cf. p. 81-84. 54 Cf. p. 22-24.
92
conjunto” (2008, p. 83), constituindo assim a “história compartilhada” do grupo. A banda, nesta
situação, propõe que, quanto maior o envolvimento entre os membros, maior a sensação de ser
parte desta história compartilhada, o que, por sua vez, promove a identificação e os sentimentos
de pertencimento à comunidade. Essa ligação ou sentimento é o que promove o compromisso
ou o comprometimento com o grupo e suas práticas e projetos (WENGER, 2008).
Com efeito, o ensaio da Corporação pode ser definido como um encontro da
comunidade, pois as dinâmicas (atividades conjuntas e repertório) do grupo giram em torno de
um objetivo coletivo específico: o de ter e manter a banda. Para isso, seus músicos elaboraram
certas práticas que vemos acontecendo nos ensaios: ter espaço para conversar, ver os amigos,
ter um repertório (aqui no seu sentido estrito) para tocar, ter uma narrativa durante o tocar – por
exemplo o regente sempre lembrar aos músicos: “conto dois” ou “olha o contratempo”. O que
queremos de fato evidenciar, é que, neste tipo de coletividade, a música é o elemento
responsável por originar as relações sociais. Tanto praticar quanto ensaiar, neste caso, é o que
faz com que os membros tenham ciência da ligação que estabelecem uns com os outros.
4.4 Temas dos Ensaios
De acordo com nossa observação participativa em campo, percebemos alguns temas
que permeiam as dinâmicas de “ensaio” da banda da Lapa: sociabilidade,
aprendizagem/preparo, definição de repertórios e a passagem das músicas, ou o “ensaio”
propriamente dito.
A sociabilidade é o principal e mais intenso elemento percebido nos ensaios. Como
já mencionamos, são momentos espontâneos de encontro onde o músico tem oportunidade para
conversar, brincar, relaxar, distrair, rever os colegas, rir, brigar, discordar, concordar, tocar e
aprender. Quer dizer, é o momento de vivência da banda, onde é possível perceber claramente
o vínculo entre os membros e interesses partilhados. Para constatar que este tema está
impregnado dentro do conjunto, selecionamos alguns relatos que demonstram o quanto as
práticas no grupo interferem na vida de seus integrantes, tornando-os realizados.
Quando fui pra banda, estava muito depressivo, tinha perdido a mulher, estava sem
chão, fazia pouco tempo que tinha morrido meu pai, depois morreu minha mãe. Foi
tudo seguido. Eu vim pra cá em 2007. Minha mulher morreu em 2005. Fiquei meio
desgostoso. Parei de tocar. O Cristiano que toca aqui, foi lá em casa um dia. Já era
amigo meu, de antes, da minha família. “Cê não tá tocando mais”? Não, não estou.
Parei. “Não senhor, você tá ofendendo a memória da sua mulher! Ela gostava tanto de
ver você tocar. Vai lá na banda comigo”! Não, não gosto de banda. Não sou muito
adepto de banda, rapaz! Aí ele pra dá uma zuada: “estamos precisando de um cara
bom assim, que nem você”! Só pra me engrandecer... Tá bom eu vou! Aí eu vim. E
93
aqui eu não me arrependo, entendeu? Por várias coisas: primeiro, porque muita
amizade, né! Segundo, conheci a Rute. É minha amiga, minha filha, minha namorada,
é tudo meu. Eu sou feliz. Quando eu não posso vir aqui, porque eu toco numa
orquestra também, eu sinto falta. [...] Depois que comecei a tocar com aquele montão
de gente, que tinha aqueles arranjos, eu me sentia até orgulhoso... de conseguir fazer
aquilo! Eu fiquei feliz desde que entrei, não tenho do que reclamar. Eu gosto da banda!
Participo com muita vontade (MACUCO, 2017).
Percebemos no relato do Sr. Paulo (MACUCO, 2017), que as palavras “amizade”
e “feliz” se destacam. Por conhecer Seu Cristiano e também ter iniciado um relacionamento na
banda, Seu Paulo sente-se realizado por fazer parte do conjunto e também recuperado e
confortado por ter perdido familiares. A Senhora Rute (ALMEIDA, 2017), sua companheira
também complementa esse sentimento expressando o valor que a banda tem, não só como grupo
histórico tradicional, mas como um conjunto que confraterniza, se reúne e se integra às pessoas.
Por ter atuado anteriormente como professora de matemática nos ensinos fundamental e médio,
a clarinetista revela que hoje a música faz parte de sua vida inteiramente, não sendo mais uma
atividade paralela. Ela reconhece brilhantemente como as performances da Corporação são
importantes para os músicos, para as pessoas e para o bairro da Lapa. A importância dessa
integração é o que de fato une as pessoas:
Me faz muito gosto sair da minha casa e pensar que eu venho pra banda tocar, seja
num momento como esse de confraternização, ou seja num momento participativo, de
procissões, onde for que a banda esteja, pra mim é uma honra, porque estar nesse
processo da história, da construção da banda, ajuda também no reconhecimento da
minha identidade como pessoa e não só como mulher na sociedade, como integrante
desse grande legado que deixaram e graças a Deus tem alguém levando avante aí. Pra
mim é uma honra, um prazer, espero honrar sempre com essa tradição e representar
bem a Corporação. [...] E a música não é um complemento mais, a música é minha
vida. Não me sinto mais em outro contexto, me sinto na música. E tudo que agrega
conhecimento musical, que vá aprimorar meu conhecimento, eu vou em busca. E
também, eu gosto muito dessa vivência aqui, meio lúdica, de como a música se
concretiza na vida das pessoas, nos vários momentos, carnaval, no Natal. A gente vê
que a banda tem uma representatividade muito grande pra população local. Nós
somos muito bem acolhidos aqui na Lapa de Baixo, no Natal quando nós vamos tocar
no evento lá nos prédios, nossa! Nós somos hiper bem acolhidos! Então a gente sente
que a banda faz parte da coletividade. E eu me sinto grata por isso, estar junto,
vivenciar esses momentos (ALMEIDA, 2017, grifo nosso).
O Sr. Hélio da Silva (SILVA, 2017), 54 anos, saxofonista, por meio do seu relato,
também expressou um sentimento de amizade, destacando principalmente que a banda,
enquanto coletividade, traz a união entre seus membros. Para ele, estar na banda, participar de
seus ensaios e performances, fazer música e estar com as pessoas lhe proporciona uma sensação
de bem-estar e realização:
94
[...] Se você me perguntasse qual a contribuição que ela [a banda] me deu, eu te diria
isso, não só solidificou algumas amizades, alguns contatos que permanecem até hoje,
como também me posicionou a decidir o que eu queria tocar. E esse é um assunto que
por mais que você entre por vários lados, você vai cair nisso. Tudo está relacionado.
[...] Então eu venho pra banda, porque músico que alimenta o músico... O som me
encanta, qualquer música me agrada, eu gosto de tocar, de estar junto com as pessoas,
de estar conversando. Aqui embora eu não conheça todos, porque com esse meu
retorno, mudou bastante o corpo musical, então alguns que eu conhecia, outros estou
fazendo amizade. A gente vê que é uma espécie de uma Irmandade. Porque todo
corpo coletivo, vai tendo isso, né? Você vai pegando amizade, vai sentindo falta
das amizades, falta das pessoas, né? E isso é importante. Então eu acredito que
isso une as duas coisas, une a música, estar tocando, exercitando, o som... e une
as amizades que é importantíssimo. Às vezes, não vou dizer problema, mas tem
alguma coisa que te chateia... você vem, toca, conversa e aquilo parece que apaga! Eu
sinto assim, toda vez que eu toco, seja qual tipo de apresentação for, eu me sinto
realizado! Sinto que eu não preciso de mais nada! Isso me completa. Música me
completa. Então quando eu toco, a sensação que eu tenho, eu diria é que até a próxima
tocata, próximo evento, eu sinto que estou realizado até lá. A música me realiza,
independente de questão econômica, se tem dinheiro, melhor! Mas se não tem, o efeito
que ela causa pra mim é o mesmo. A mesma sensação que eu tenho em tocar por aí,
com as pessoas, com público vendo e ensaiar, pra mim, o efeito é o mesmo. Eu gosto
do público, todos gostam do público. Mas o ensaio pra mim, dá o mesmo efeito. Então
eu saio realizado. Esse realizado eu não consigo explicar, eu acho que não tem muita
explicação. É um sentimento que eu tenho, é uma coisa particular minha. Então isso
pra mim, é suficiente, já basta (SILVA, 2017, grifo nosso).
Em um dos relatos do Sr. Liber (MATTEUCCI, 2016), 68 anos, clarinetista,
percebemos também que o grupo, mesmo com todos os problemas e oposições, é uma
coletividade onde os membros apresentam o mesmo objetivo e interesse. Elementos como a
união, a receptividade, a hospitalidade e a atenção, ou seja, o perfil acolhedor da banda,
motivam os próprios integrantes a fazerem parte e se manterem neste grupo.
[...] E eu gosto do folclore da banda, o uniforme, a união dos músicos, sempre essa
gula, tem almoço, não tem almoço, Portugal é igualzinho, “vai ter almoço”? Aquele
lanchinho...[...] Enfim... Aqui, eu acho o Seu Nestor uma pessoa magnífica, coração
de ouro, pra mim isso vale mais do que qualquer outra coisa. O primeiro dia ele foi
tão gentil, eu acho que isso conta também, né? (MATTEUCCI, 2016).
Outro tema que se destaca dentro das dinâmicas de ensaio da banda é a
aprendizagem ou o preparo do repertório. Na descrição do tópico 4.1, podemos perceber que o
regente está do lado de um aluno com um trompete. Enquanto o aluno vai tocando, Seu Nestor
fala o nome de cada nota. Na medida em que a sala vai sendo ocupada por outros músicos, o
regente pede para que todos acompanhem o rapaz. A sugestão é que todos participem do
aprendizado e colaborem com o aprendizado do aluno.
Acredita-se que, em um contexto de aprendizagem musical coletiva, onde a parte
de cada um colabora para o aprendizado do outro, os participantes naturalmente adquirem
95
prática através da repetição. Ora, como a CMOL é uma comunidade musical participativa, onde
seus ensaios são de práticas participativas, esse procedimento adotado pela liderança justifica-
se. Neste caso, de acordo com Reily e Giesbrecht (2018), “uma prática não é um destino para o
desempenho impecável de uma peça ou repertório específico, mas sim de facilitar sua
integração na atividade do grupo: uma prática para melhor participar” (2018, p. 02, tradução
nossa).
Ao “passar” um dobrado com a banda, permitindo que o grupo toque de uma única
vez com todos os ritornelli55 que a partitura pede, Seu Nestor indiretamente está solicitando a
participação de todos os membros da banda. Isso quer dizer, que a definição do repertório, outro
tema percebido nas dinâmicas de ensaios, é feita de acordo com as capacidades dos
participantes. Quando Seu Nestor grita: “pega o número 15! Silvino Rodrigues, vai! Não precisa
correr muito não”. É a participação de todos que de fato importa.
Algumas ocasiões em que o ensaio antecede a alguma performance, seja procissão
ou até mesmo um concerto em shopping, o repertório escolhido para ser “passado” são as
músicas da performance. Como descrito no tópico “3.3 Instrumentação”56, alguns integrantes
têm dificuldades, de leitura, de leitura em uma clave que não estão habituados, de executar
passagens que exigem um grau de técnica mais desenvolvida, de acertar ou de conhecer melhor
a digitação do instrumento, de conseguir afinar, de conseguir uma articulação ideal, etc. A fim
de contornar essas dificuldades, é escolhido pelo regente um repertório que já está incorporado
e aprendido pelo conjunto, como, por exemplo, os dobrados Palazoli (Celso Poli) e Dois
Corações (Pedro Salgado). Já músicas inéditas, como descrito no mesmo tópico, são adaptações
ou arranjos que o próprio Sr. Nestor prepara, levando em consideração a instrumentação que a
banda tem naquele momento e a facilidade para leitura e execução. Alguns dos arranjos
executados no programa de “Músicas de Filmes” no Tendal da Lapa em 11 de novembro de
2017 foram exclusivamente para atender esse objetivo, da instrumentação e facilidade de
leitura. Esses são exemplos de práticas que a Corporação desenvolveu ao longo do tempo para
tornar o ensaio uma “coisa exclusivamente deles”.
O outro tema relevante percebido nas dinâmicas de ensaios é a “passagem das
músicas”, ou o ensaio própriamente dito. Fruto de boa parte de nossa observação participativa,
pode-se dizer que este é um momento de total descontração, mesmo se anteceder a uma
performance que os músicos consideram importante: não há cobranças, nem um trabalho
55 Plural para ritornello em italiano. 56 Cf. p. 75.
96
exaustivo para que as peças sejam ensaiadas detalhadamente com o objetivo de se obter uma
melhor interpretação.
Esta questão, particularmente, nos leva a discutir sobre o desejo dos músicos de
querer elevar a qualidade da banda. Vimos no decorrer do trabalho alguns relatos discordando
e/ou contestando certos procedimentos. Podemos indagar, qual a dificuldade de um regente em
um grupo amador? Na banda, o regente, Sr. Nestor Avelino Pinheiro, se encontra nas seguintes
posições:
a) Se exigir demais dos músicos, eles podem se ofender e ir embora;
b) Se não exigir o suficiente, a banda não vai melhorar e nem atrair músicos
melhores.
Alguns regentes são lembrados como extremamente exigentes ou até mesmo
“bravos”, como foi o caso do Maestro Victor Barbieri, lembrado pelo Sr. Arnaldo. Outros são
lembrados por não respeitarem os músicos, como nos exemplos dos Senhores X, Y e Z,
lembrados principalmente pelo Sr. Luiz e também pelo Sr. Nestor. Outros são lembrados por
possuirem carência de treinamento específico para a função e outros são lembrados por
balancearem todos esses extremos. Regentes em grupos voluntários enfrentam este desafio:
buscar uma musicalidade cada vez mais desenvolvida entre músicos de treinamento
diferenciado.
No relato do Sr. Nestor (tópico “2.2.3 Fase 3 – A Decadência”57), vimos transtornos
e ofensas entre músicos e liderança. Frequentemente, em se tratando de conjuntos amadores
voluntários, as relações sociais envolvem diretamente a produção musical, e é aí que a ofensa
pode ser um obstáculo (REILY, 2002, p. 111-114). Durante nossa observação participativa, não
notamos nenhum caso de ofensa maior entre músicos, nem entre liderança e músicos. Contudo,
a fim de ilustrar um exemplo muito corriqueiro, alguns músicos, por algum motivo, tocam
durante alguma orientação que Seu Nestor está fazendo para algum naipe, ou tocam naquele
intervalo entre uma música e outra, fazendo escalas, ou tocando isoladamente o trecho inicial
da música pedida. Alguns músicos diante disso, sentem-se incomodados, porém
impossibilitados de alguma ação. Essas disparidades existentes entre os membros são casos
isolados. No entanto, o grupo tende a se unir contra o comportamento que julga inadequado. A
etiqueta ou a falta dela no ensaio da Corporação não chega a ser um empecilho a ponto de
alguns músicos desistirem da banda; no entanto, esse exemplo é apenas um dentre as
insatisfações que os músicos demonstram.
57 Cf. p. 52-58.
97
Por outro lado, a convivência com os colegas, a oportunidade de aprender em grupo,
fazer parte de um grupo e tocar um instrumento são os principais fatores positivos nas dinâmicas
de ensaios da banda da Lapa. O compromisso de “não deixar a banda morrer”, o compromisso
de manter um público fiel, o compromisso de sustentar uma prática que é um “capital
simbólico”, supera as adversidades que o grupo tem vivido.
98
CAPÍTULO 5 – PERFORMANCES
5.1 Performance apresentacional: Concerto
Os concertos em ambientes fechados, como teatros, centros culturais e shoppings,
possuem uma dimensão de caráter apresentacional para a banda da Lapa. Segundo Thomas
Turino (2008), que idealizou os campos da performance58, a performance apresentacional,
abrange apresentações musicais onde há evidente distinção entre artistas e plateia com quase
ou nenhuma interação entre os dois. Nela, formas longas e fechadas, contrastes e
desenvolvimentos, virtuosidade individual enfatizada, texturas transparentes e densas, repetição
balanceada e foco nos músicos são as principais características. No caso da Corporação, esses
aspectos podem ser melhor observados a partir das performances do grupo em ambientes
fechados, onde os instrumentistas têm a oportunidade de tocar sentados, lendo uma partitura e
usando um uniforme mais formal. Alguns dos músicos demonstraram esse aspecto através de
seus relatos, incluindo também o tipo de repertório:
Ah, eu gosto mais das apresentações, concerto... Eu gosto mais! E eu gosto de um
repertório bem eclético! A finalidade da banda é dobrado, isso aí não pode tirar, não
pode deixar de ter, né? Mas no meio do dobrado, coloca lá valsa, samba, bolero...
Coloca sei lá, tudo que existe, né? (MACUCO, 2017).
Eu gosto de todos os lugares que convida. Mas principalmente lugares que têm palco,
que a gente possa tocar sentado. Como no Sesc Pompéia, aquele de Itaquera, você foi?
[Sim, sim. O senhor gosta de concerto, então?] Isso! Na Barra Funda, no Memorial
da América Latina que foi em palco. Outros lugares que nós fomos, eu não me
lembro... Mas que a gente possa ficar sentado e ler partitura. Eu adoro! Eu dou tudo
de mim, Juliana! Eu toco dentro do ritmo certo, pra ajudar os colegas! Ah, é muito
bom! (OLIVEIRA, 2017).
Hoje eu gosto de fazer procissão, claro que eu prefiro outros trabalhos musicais, eu
prefiro mais trabalhos de palco, não vou dizer preferência, mas eu gosto mais.
Concertos... [...] A mesma sensação que eu tenho em tocar por aí, com o público
assistindo e ensaiar, pra mim, o efeito é o mesmo. E eu gosto do público, todos gostam
do público (SILVA, 2017).
58 Os quatros campos da performance concebidos por Thomas Turino (2008): Música em Tempo Real
(performance participativa e performance presentacional) e Música Gravada (Gravações em High Fidelity e Áudio
– Arte de estúdio).
99
Devido a algumas condições da banda, como ser formada por poucos integrantes,
em sua maioria por idosos, músicos amadores, por apresentar um repertório mais popular e
principalmente por seu público ser formado por familiares, amigos e conhecidos, é possível
notar, na descrição da performance a seguir, uma interação tanto do regente quanto do
presidente da banda com os espectadores. Tal fato mostra que a “performance apresentacional”
(Turino, 2008), pode ter várias dimensões, ou como prefere Britta Sweers (2018), “musicar”
apresentacional, que inclui elementos participativos. A autora argumenta que a diferenciação
entre música apresentacional e participativa de fato tem despertado uma nova consciência da
importância do musicar participativo e sugere que seria necessário “ler não apenas a
complexidade e as nuances da apresentação, mas também a função real da performance em um
contexto local” (SWEERS, 2018, p. 7-42, tradução nossa).
O contexto local é o que justamente chama atenção neste tipo de performance.
Como demonstra Sweers (2018), “dadas as funções multifacetadas, bem como as interconexões
entre performers e ouvintes dentro desses contextos”59, é uma performance situada em uma
atmosfera quase informal, onde se admitem imprecisões, improvisações e interações com o
público, além de ser uma experiência comunitária, em um ambiente local/comunitário.
[...] o “musicar” de apresentação pode ser uma característica significativa de uma
comunidade, não apenas na vida cultural em geral, mas também como um meio de ir
além das restrições de atividades confinadas a uma determinada localidade. [...] a
“apresentacionalidade” é apenas um aspecto de um campo de experiência muito maior
no âmbito das performances apresentacionais, que estão sempre inseridas em um
contexto sociocultural abrangente que também é significativo para o trabalho
integrativo local (SWEERS, 2018, p. 37-42, tradução nossa).
Na sequência, descrevemos uma performance realizada dia 11 de novembro de
2017, no Tendal da Lapa, em São Paulo. As músicas apresentadas no concerto foram gravadas
em vídeo e três delas estão disponíveis na plataforma de vídeos on-line YouTube, no canal
“Corporação Musical Operária da Lapa”60. O concerto teve a participação do regente convidado
Valdemir Silva, do regente atual Nestor Avelino Pinheiro, de 19 músicos e de um pequeno
público integrado por parentes e amigos dos integrantes da banda (cerca de 60 pessoas).
A preparação, ou melhor, os ensaios, para este concerto surgiram da decisão da
diretoria em criar um “repertório temático”. Nesse caso, um programa composto por trilhas
sonoras. O presidente, Sr. José Maria Tamburu, em sua constante luta e procura por
59 Ibidem, p. 9-42, tradução nossa. 60 Disponível em: https://www.youtube.com/channel/UCReZIvHVSIqK9RqO_TaD0Xw. Acesso em 20/12/2017.
100
apresentações, entrou em contato com o Tendal da Lapa para requerer uma apresentação e lhe
foi solicitado um repertório temático. Neste ínterim, em setembro de 2017, o regente, Sr. Nestor
Avelino Pinheiro sofreu um acidente e quebrou o braço. Nos primeiros ensaios após o acidente,
um dos trompetistas da banda, César Vasconcelos, conduziu os ensaios do grupo. No terceiro
dia, o Sr. Tamburu perguntou aos outros músicos quem estaria disposto a realizar o ensaio:
como ninguém se propôs, ele perguntou se conheciam alguém que pudesse ensaiar a banda na
próxima semana. Foi aí que recomendei o regente Valdemir Silva61, que tinha conhecimento
do conjunto e de seu funcionamento. Tanto o Sr. Tamburu quanto a banda consideraram a ideia
apropriada e os ensaios seguintes foram conduzidos pelo regente convidado. A aceitação da
parte dos músicos foi unânime, todos ficaram animados e estimulados com a novidade e se
empenharam com suas partes.
O Tendal da Lapa, localizado na Rua Guaicurús, próximo ao Terminal da Lapa, até
1970, data em que foi desativado, era um local que funcionava como centro de distribuição e
armazenamento de bovinos. Hoje, é um espaço que funciona como centro cultural e abriga a
subprefeitura da Lapa. No espaço, há apresentações de música, dança, teatro, esportes e
oficinas. Como é um local próximo à sede da banda, cada músico se dirigiu sozinho ou em
pequenos grupos até o local da apresentação. Os músicos chegaram com antecedência e todos
ajudaram na montagem das cadeiras, estantes e pastas. Boa parte dos músicos vieram
acompanhados de um parente ou conhecido, pois já previam que precisariam de público. Ao
chegarem, o comentário era unânime: “cadê o público”? “E as pessoas”? “Não teve
divulgação”. “Ninguém avisou”. Mesmo assim, mantinham expectativa e concentração. O
desafio era tocar um programa diferente, num lugar diferente e com um regente diferente. O
programa foi dividido em duas partes: a primeira parte e o encerramento foram conduzidos pelo
Maestro Valdemir e a segunda parte pelo Maestro Nestor.
Primeira Parte:
Assim falou Zarathustra, op. 30 [2001, uma odisseia no espaço] (Richard
Strauss)
Carruagens de fogo (Vangelis)
Colonel Bogey – March (Kenneth J. Alford)
I just called to say I love you (Stevie Wonder)
Hawaii 5.0 (Mort Stevens)
61 Cônjuge da autora.
101
Marcha – Apolo XI (pot-pourri anônimo)
Ao Mestre, com carinho (Mark London)
Segunda Parte:
Exodus (Ernest Gold)
A Bela e a Fera (Alan Menken)
Luzes da ribalta – Valsa [Limelight] (Charles Chaplin)
My heart will go on (James Horner)
My Way (Jacques Revaux/Claude François)
Tema de Lara (Maurice Jarre)
Unchained Melody (Alex North)
Encerramento:
Game of Thrones – Tema (Ramin Djawadi)
La Bamba (Folclore mexicano)
Foto 11: Apresentação Tendal da Lapa – 11/11/2017. Acervo da autora.
O pequeno público composto em sua maioria por conhecidos da banda, aplaudia
calorosamente cada música. Já os músicos, procuravam se concentrar, pois a experiência com
uma direção diferente da que estavam acostumados causava ansiedade, o receio de falhar era
vísivel. Como o Sr. Tamburu e também o Sr. Nestor perceberam que a banda estava tensa, a
cada música conversavam com o público falando sobre a história da banda e relacionando cada
música com seu filme: “[...] a próxima é de um filme muito conhecido nos anos 60, Exodus
102
[...], os senhores vão gostar”! Mesmo a partir da segunda parte, sob direção de Seu Nestor, os
músicos continuavam concentrados e procuravam seguir a partitura. Após o encerramento, já
com o regente Valdemir, a banda repetiu a marcha Colonel Bogey e o público acompanhou com
palmas.
Seguindo o encerramento, os acompanhantes dos músicos e até mesmo o público
cumprimentaram os regentes e os músicos. Os comentários na maior parte foram: “puxa, como
a banda melhorou”! “Muito legal, parabéns”! “A banda tem muito potencial”! “Por que a banda
não toca mais dessas músicas”? Boa parte dos músicos estavam satisfeitos em fazer algo que
consideravam incomum ao que sempre faziam. Outros comentavam entre si: “da próxima vai
ser melhor ainda”! “É assim que tem que fazer”! Ao receber os elogios da família, muitos
músicos ficaram emocionados e satisfeitos. O presidente Tamburu e os músicos prestigiaram o
regente convidado e o convidaram para continuar colaborando com o grupo, dizendo: “é disso
que a banda precisa! Desse incentivo, desse trabalho”! Já os organizadores do Tendal
anunciaram: “vai ter mais, em breve. Foi ótimo”!
Foto 12: Apresentação Tendal da Lapa – 11/11/2017. Acervo da autora.
Outro tipo de performance apresentacional que a Corporação faz, também com
aspectos e elementos semelhantes a apresentação do Tendal, são os concertos em shoppings.
No dia 16 de dezembro de 2017, no Shopping Center Pirituba no bairro de Pirituba em São
Paulo, a banda fez mais um dos seus anuais Concertos de Natal. Como o próprio nome indica,
o repertório foi formado por músicas natalinas e intercalado por alguns arranjos de música pop.
103
Podemos perceber que algumas músicas tocadas no Tendal também foram tocadas nesta
apresentação:
Marcha – Apolo XI (pot-pourri anônimo)
I just called to say I love you (Stevie Wonder)
Árvore de Natal (tradicional)
Luzes da ribalta – Valsa [Limelight] (Charles Chaplin)
Feliz Navidad (José Feliciano)
My heart will go on (James Horner)
Jingle bells (tradicional)
Parabéns pra você (tradicional)
My way (Jacques Revaux/Claude François)
Então é Natal (John Lennon)
We wish you a merry Christmas (tradicional)
Boas festas (Assis Valente)
Noite feliz (Franz Gruber)
Deixei meu sapatinho [O Velhinho] (Octavio Babo Filho)
O Shopping Pirituba é um pequeno shopping de bairro, com um pequeno número
de lojas. Bem no meio da construção, há um agradável espaço aberto, uma espécie de praça,
onde a banda ficou disposta. Esta posição privilegiava a apresentação, pois o principal acesso
era pela avenida que dá direto nesta praça. E, como os shoppings são espaços particulares, mas
com acesso público, essas apresentações, apesar de a banda tocar também sentada e lendo
partitura, tendem a ter um caráter mais informal e com algumas características participativas.
As pessoas que circulam pelos arredores, comprando, passeando, ou até mesmo trabalhando,
mesmo que não queiram assistir, ou não possam parar por uma questão de tempo, acabam
prestando atenção ou param por um instante para apreciar. A atmosfera de ambiente natalino,
evidentemente, faz outras pessoas pararem seus passeios para apreciar o que está sendo
apresentado. Tiram fotos, gravam trechos, aplaudem, cantam junto, dançam, conversam com
os músicos e conversam com o regente, ou seja, participam, e de acordo com Small (2011),
estão “musicando”.
104
Foto 13: Apresentação Shopping Center Pirituba – 16/12/2017. Acervo da autora.
A apresentação estava marcada para as 14:30, mas como são os próprios músicos
que devem fazer a montagem dos instrumentos, cadeiras e estantes, eles já estavam no local
bem antes da hora. De repente, Seu Nestor pediu a música Apollo XI com o pretexto de aquecer.
Com isso, muitas pessoas começaram a se aproximar e ficaram assistindo curiosas. Depois,
como mencionado, o regente começou a intercalar músicas pop com músicas natalinas. A
quantidade de pessoas em volta do local em que a banda estava disposta, não pôde ser
determinada. Não havia muitas, mas as que lá estavam, cantavam e batiam palmas em todas as
músicas. Algumas crianças corriam em volta brincando e dançando.
De repente, entre uma música e outra, uma senhora se aproximou e cumprimentou
a banda e o maestro e disse entusiasmada que adorava banda. Foi aí que ela perguntou se era
possível tocar o Parabéns pra você, pois a mãe dela estava fazendo 80 anos naquele dia, e ela
queria fazer uma surpresa. Seu Nestor concordou. Depois de a banda tocar mais algumas
músicas, a mesma senhora retornou com a mãe e a banda tocou o Parabéns. Emocionada, a
idosa abraçou o maestro, agradeceu e cumprimentou a todos. Como começava a chover, a banda
se locomoveu para um espaço coberto e terminou seu programa natalino. No fim, as pessoas
que estavam assistindo cumprimentaram e agradeceram os músicos dizendo: “que coisa
bonita”!
105
5.2 Performance participativa: Procissão
Enquanto o concerto é uma performance impregnada de glamour e prestígio, pois
deriva de uma noção ocidental da música que ficou hegemônica, quer dizer, algo para
contemplação, as práticas coletivas como as procissões são opostas, ou seja, algo para ser
vivido. No geral, performances participativas, como práticas religiosas em ambiente público,
trazem elementos e representações identificadas pelos participantes. A música, objeto
substancial e de caráter orgânico para tal prática, tem a finalidade de anunciar, convidar e
conduzir a procissão. Turino (2008) especificou como alguns gêneros de música participativa
incluem certas peculiaridades: normalmente são utilizadas formas pequenas e abertas, a
demonstração de virtuosismo é minimizada, há pouco contraste com uso de frases curtas e
repetitivas, que é o caso das canções religiosas cantadas durante o trajeto, andamento fixo,
pouco contraste dinâmico e, principalmente, apelo à participação de todos os presentes. Isso
significa que, neste tipo de performance, não há distinção entre performers e plateia. Os
participantes desempenham distintos papéis. A finalidade principal é envolver o maior número
de pessoas em alguma função da performance (TURINO, 2008, p. 28), como em uma procissão
religiosa preenchida e conduzida por uma banda de música.
[...] Estou usando a ideia de participação no sentido restrito de contribuir ativamente
para o som e movimento de um evento musical, dançando, cantando, batendo palmas
e tocando instrumentos musicais quando cada uma dessas atividades é considerada
integral para a performance. Em ocasiões totalmente participativas, não há distinções
artista-público, apenas participantes e potenciais participantes. Atenção é dada à
interação sonora e cinésica entre os participantes. [...] A qualidade de som e do
movimento também é muito importante para o sucesso de uma performance
participativa, porque inspira uma maior participação entre os presentes e a qualidade
da performance é julgada em última instância pelo nível de participação alcançado. A
qualidade é avaliada pela forma como os participantes se sentem durante a atividade.
[...] Eventos profundamente participativos são fundamentados em um ethos que
sustenta que todos os presentes podem, e de fato devem, participar do som e do
movimento da performance (TURINO, 2008, p. 28-29, tradução nossa).
Habituada a conduzir procissões desde a década de 1910, a banda da Lapa se
adaptou a intercalar músicas religiosas com marchas e dobrados. O dobrado, em especial,
tornou-se uma possibilidade eficaz para acompanhamento, já que seu compasso 2/4, o
andamento rápido, o modo maior e suas partes com ritornello incorporadas ao timbre das
madeiras, metais e percussão, possibilitam seu caráter brilhante e intenso, que é tão peculiar.
Além de estimular a marcha dos integrantes, estabelece o movimento da caminhada.
106
Partitura 3: Full score do dobrado Silvino Rodrigues – Composição de Mário Zan. Edição Governo do
Ceará – Secretaria da Cultura e Desporto. Coordenação de Música.
107
O dobrado Silvino Rodrigues, composição de Mário Zan, primeira música a ser
executada na performance descrita a seguir, é um ternário especificamente festivo, ligeiro e
impactante. Frederico Meireles Dantas (2015), em um trabalho sobre composições para banda,
mostra que “o dobrado é peça característica e indispensável, pois é com ele que a banda de
música se movimenta” (DANTAS, 2015, p. 17). Para esta questão, Reily (2009) afirma: “no
sudeste brasileiro as procissões são acompanhadas geralmente por dobrados, que são
suficientemente ‘leves’ para dar à procissão um ethos festivo e estimular os passos dos fiéis
sem ‘carnavalizar’ o evento, tirando-lhe o caráter devocional” (REILY, 2009, p. 27).
Por vezes, confundido com a marcha, que usualmente é acentuada no primeiro
tempo e marcada pelos militares com o pé direito durante os desfiles, o dobrado, com acento
no segundo tempo, adquiriu, através dos anos, uma posição pública e popular. Ao ser executado
fora do ambiente militar, se adequando aos coretos, à praça, à igreja, às quermesses, às
procissões, aos circos, às solenidades políticas e aos protestos e greves de trabalhadores,
conquistou reconhecimento de seu público. Ao integrar o versátil repertório das bandas,
incluindo tanto os grupos civis quanto os militares, o dobrado tornou-se o “gênero natural de
banda” (DUPRAT, 2011), já que sempre está presente em contextos cívicos, patrióticos,
comunitários, populares e religiosos.
Alguns cortejos tendem a ter um caráter extremamente festivo, como as procissões
da Festa do Divino Espírito Santo, por exemplo. Já procissões de padroeiros, como a da Nossa
Senhora de Casaluce, possuem um caráter mais devocional e introspectivo. É nesse sentido que
o dobrado, assim como a marcha, funciona como uma linguagem, traduzindo simbolicamente
a dimensão e aspectos da cerimônia. Da mesma forma, age no propósito de convocar os
participantes e proclamar a festa às imediações. É aí que a performance participativa se torna
um campo específico de atividade no qual som e movimento são conceituados, principalmente,
como interação social (TURINO, 2008, p. 28).
É importante lembrarmos que, o processo de popularização do dobrado brasileiro,
ocorreu, sobretudo, através de sua presença marcante em ambientes coletivos, públicos e
religiosos. Como prática performativa, o dobrado envolve não só banda e seus instrumentistas,
mas todo o público que se insere no contexto de performance. Festas comunitárias e religiosas,
assim como quaisquer atividades que envolvam a natureza de um evento musical preenchido
por dobrados, são de alguma maneira afetadas pela ação da música. Essa é também a noção
ampla de Small (2011) do ato de musicking, que leva em consideração sua dimensão social,
dessa forma, pode-se concluir que o dobrado é um tipo de performance participativa, onde a
performance possui uma função social.
108
A performance do dia 28 de maio de 2017 no bairro Brás, em São Paulo, procissão
de encerramento da 117ª Festa de Nossa Senhora de Casaluce foi aberta e encerrada com
dobrados. Porém, foi entremeada por músicas religiosas que a comunidade Casaluce costuma
cantar em sua liturgia e demais atividades. Essas músicas, Maria de Nazaré, Hino a Nossa
Senhora de Casaluce, O povo de Deus e Viva a Mãe de Deus e nossa, foram empregadas na
procissão com a função de trazer o ritual para o ambiente público, neste caso, a rua.
Partitura 4: O Povo de Deus – Parte de 1º Clarinete do arranjo executado pela CMOL.
Acervo CMOL.
Obedecendo a uma estrutura formal AB, O Povo de Deus, com autoria de D. Pedro
Casaldáliga e música de Luiz Passos, trouxe ao cortejo uma atmosfera carregada de meditação
e emoção. Se o dobrado convoca as pessoas, estabelecendo um caráter brilhante e intenso para
a festa, além de determinar a velocidade do trajeto, as canções, por sua vez, normalmente
carregadas de simbolismos e significação agem como adoração. Os participantes, ao cantar, têm
a oportunidade, junto da banda, de expressar sua fé e religiosidade, além de homenagear e
cultuar a padroeira da festa, Nossa Senhora de Casaluce.
Essa festividade italiana, existente no Brás desde 1900, é uma das comemorações
de rua mais tradicionais de São Paulo, ao lado das festas de Nossa Senhora de Achiropita no
Bexiga e da festa de São Vito Mártir, também no Brás. Abrangendo parte da Rua Caetano Pinto,
109
normalmente o evento acontece entre o fim do mês de abril e vai até o fim do mês de maio
ocupando todos os sábados e domingos até as 23:00 horas. De acordo com o site da paróquia,
a festa reúne cerca de 200 voluntários da comunidade na preparação da festividade e conta com
mais de 28 barracas de comida, bebida e doces típicos. Grupos tradicionais também cantam e
dançam no evento. Habitualmente a procissão e a missa solene encerram o festejo.
Por volta de 15:00 horas, toda a Rua Caetano Pinto já está tomada, tanto pelas
barracas quanto pelo altar cuidadosamente disposto para a missa que seria celebrada ali mesmo,
na rua. A comunidade Casaluce estava reunida em frente à Paróquia. Entre os presentes estavam
padres, freiras, coroinhas, diáconos, crianças, a comunidade devota, os voluntários que
trabalhavam na festa e a banda da Lapa. No meio de toda a agitação que naturalmente tomava
conta do evento, os responsáveis se movimentavam, tentando reunir e direcionar as pessoas
para o trajeto. Foi aí que um dos organizadores solicitou ao regente que tocasse um dobrado.
A banda estava com o número reduzido, 15 músicos, além do Seu Nestor. Postados
em um cantinho apertado na calçada e enfileirados de 3 em 3, iniciaram com o Silvino Rodrigues
de Mário Zan. Os presentes entenderam de imediato o que estava prestes a se desenrolar e
começaram a correr tomando lugar na disposição para o trajeto. Ao terminar o dobrado, a banda
foi aplaudida com entusiasmo. Em seguida, a banda atacou a Canção do Soldado62. Esse arranjo
para banda, Capitão Caçula, funcionou notadamente como o início da festa. Os organizadores
corriam atrás de um e de outro tentando passar informações. Enquanto isso, o andor saiu da
paróquia carregado por oito pessoas visivelmente emocionadas. Os outros corriam para assumir
seus lugares. Enquanto a música avançava, os músicos também começavam a caminhar. Seu
Nestor não sabia exatamente onde ir com a banda, já que mais de uma pessoa das que corriam
sem parar, ordenava que se apressasse. Um caráter alegre e festivo marcou o início do cortejo.
Neste momento, já estavam ordenados: ajudantes de altar e coroinhas com incenso à frente;
diáconos com lanternas processionais e estandartes; crianças vestidas de anjinhos com
bandeiras; e em seguida, o andor com o quadro de Nossa Senhora de Casaluce (que é revezado
por todo percurso pela comunidade). Atrás do andor a comunidade devota com bandeiras azuis
e brancas, e por último, a Corporação Musical Operária da Lapa. A CET (Companhia de
Engenharia de Tráfego) e um carro de som também acompanhavam.
62 Canção do Soldado: Oficialmente, Canção do Exército Brasileiro. Música reivindicada por Teófilo Dolor
Monteiro de Magalhães. Outras fontes atribuem a música a Euclides da Costa Maranhão. A autoria da letra aparece
normalmente como sendo do Tenente Coronel Alberto Augusto Martins, e, menos frequentemente, do Capitão da
PM Cassulo de Melo, do qual é o título de um arranjo para Banda, Capitão Caçula.
110
O trajeto seguido foi contrário ao fluxo usual do trânsito. Saiu da Rua Caetano
Pinto, entrou na Rua Visconde de Parnaíba e virou na Rua Carneiro Leão, onde se localizava a
primeira estação63. Depois, dobrou à direita na Rua Torquato Neto e seguiu até a Rua
Piratininga, passando por mais uma estação. Em seguida, Rua Campos Sales, terceira estação,
e terminando novamente na Rua Caetano Pinto. Enquanto o cortejo avançava pela Visconde de
Parnaíba, um dos organizadores já tinha solicitado ao maestro que tocasse outra música. Foi
iniciado Maria de Nazaré. Em quase todos os estabelecimentos e casas, pessoas se colocavam
nas janelas e portas, olhando e saudando a procissão. Muitos no cortejo já estavam comovidos
cantando a letra da música, outros concentrados, introspectivos e alguns curiosos, quase se
divertindo. As crianças vestidas de branco agitavam suas bandeirinhas brancas e azuis.
Foto 14: Procissão da Festa de Nossa Senhora de Casaluce – 28/05/2017. Acervo da autora.
Enquanto fogos estouravam, Seu Nestor dava recados, ia à frente da banda onde
estavam os clarinetes, e se dirigia para trás de onde estava a percussão. Devotos já se
misturavam à banda e o padre continuava a cantar, mesmo com a banda já tendo finalizado a
música por ordem de uma das coordenadoras. Ao entrar na Rua Carneiro Leão, primeira
estação, todos pararam para a Ave Maria. Mais de uma pessoa solicita ao regente que toque.
Seu Nestor, visivelmente irritado pela quantidade de pessoas comandando, andava de costas
tentando dar entrada no Hino a Nossa Senhora de Casaluce. Entrando à direita na Rua Torquato
Neto, segunda estação, mais uma oração e O Povo de Deus pela banda. As pessoas cantavam e
agitavam suas bandeiras enquanto nas janelas dos condomínios as pessoas se benziam e
63 Estações, neste sentido, são paradas em locais específicos, onde o cortejo é interrompido para que os
participantes façam preces e orações.
111
gritavam: “viva Nossa Senhora de Casaluuuceeeee”! “Vivaaaaaa”! Ao mesmo tempo, devotos
e banda se misturavam, as campanas dos clarinetes, propositalmente, tocavam as costas das
pessoas, que apressavam o passo.
O trecho da Rua Piratininga era curto, uma distância de uns 50 metros, e as pessoas
aproveitavam para se revezar com o andor. Ao entrar na Rua Campos Sales, última estação, a
multidão orou o Pai Nosso, enquanto a banda folheava o caderninho de músicas religiosas a
procura do Hino à Nossa Senhora da Conceição Aparecida (Viva a Mãe de Deus e Nossa). Seu
Nestor, zangado por receber ordens desencontradas de diversas pessoas, reclamava com Seu
Tamburu, presidente da banda. Enquanto o andor caminhava, fogos estouravam e as pessoas
cantavam já separadas da banda. O padre foi acelerando a canção ao entrar na Rua Caetano
Pinto. Conforme o cortejo se aproximava de sua origem, da porta da paróquia, as pessoas se
dispersavam. Ao finalizar a música, a banda se viu sozinha na rua em meio a fogos estourando.
Foto 15: Procissão da Festa de Nossa Senhora de Casaluce – 28/05/2017. Acervo da autora.
Como solicitado para o encerramento, a banda iniciou um dobrado, Palazoli, de
Celso Poli. Um dos organizadores da festa chamou o maestro, que guiava o grupo para o local
da missa. Antes de voltar ao ritornello da partitura, o cerimonial já queria que a banda parasse.
Seu Nestor, incomodado, cortou a música. A missa começou. Devotos estavam sentados e o
conjunto da igreja tocava e cantava debaixo da tenda montada na rua. Caiu a noite e a banda,
que estava assistindo à missa, ainda não sabia se já poderia ir embora. Depois de cumprida toda
liturgia e comunhão, a banda tocou I’ve been working on the railroad seguida do Parabéns pra
você. Muitos do público, já sensibilizados comentam: “é muito bonito”, “uma benção”! De
112
repente, algum responsável convidou os músicos para o jantar no salão da igreja. Às 24:00
horas, sem banda, uma outra queima de fogos, mesclada à performance do Sole mio pelo
conjunto italiano encerraram o festejo.
5.3 Reflexões e análise sobre as práticas musicais da CMOL
Através de nossa observação participante tanto nos ensaios quanto nas
performances e pelo material histórico e documentação, vimos que a Corporação Musical
Operária da Lapa, ao longo de sua existência, sempre se apresentou tanto em ambientes
fechados como em ambientes ao ar livre (coretos, praças, festas de rua, procissões, blocos
carnavalescos, etc.). Performances em ambientes ao ar livre se definem, fundamentalmente,
como contextos públicos e participativos onde o grupo se apresenta de pé e parado, ou, mais
frequentemente, caminhando. Os músicos tocam “de memória” ou com auxílio de uma lira64
acoplada ao instrumento. Executam dobrados, marchas, música religiosa e marchinhas.
Já os contextos em ambientes fechados (teatros, escolas, salas, centros culturais,
shoppings, igrejas, etc.) são normalmente performances apresentacionais65 ou apresentacionais
com dimensões participativas66. Em algumas dessas ocasiões a banda se apresenta com traje
formal, (uma jaqueta branca com epaulet azul e gravata) e toca sentada, utilizando estante e
partitura. Por outras vezes, utiliza o seu característico quepe, que lhe dá um aspecto mais
militarizado. Habitualmente, também nestas performances, o repertório contém dobrados, além
de arranjos de outras músicas como música pop, música “erudita” e música brasileira.
Sobre essa questão, do repertório, é necessário destacar que a flexibilidade na
circulação de diferentes repertórios vem permitindo que a banda continue sendo convidada a
atender contextos e coletividades que a consideram apta para tal objetivo. Esse papel com o
público, formato definido e até certo ponto imutável, Trevor Herbert (2013, p. 33-34) chamou
de “Domínios da Performance”. Segundo o autor, um domínio da performance existe quando
uma tradição de fazer musical é estabelecida (2013, p. 46). Para ele, as bandas britânicas
(British brass bands), e aqui as bandas de música brasileiras, ao longo de suas trajetórias,
ocuparam, ou aprenderam a ocupar, um espaço determinado, definido principalmente, pela sua
forma de execução e, consequentemente pela sonoridade. Além desses conjuntos manterem
uma continuidade de suas atividades, tornaram-se impermeáveis à mudança idiomática. Isso
64 Cf. Nota de rodapé p. 41. 65 TURINO, 2008. 66 SWEERS, 2018.
113
significa também que a forma básica da banda de música, ou, como o autor prefere expressar,
sua musical make-up, é perdurável ou constante.
O autor complementa ainda que, de alguma forma, um domínio de performance
deriva de um legado e é capaz de, por exemplo, manter sua identidade enquanto passa por
momentos de mudança ou absorção de novo repertório. É justamente por causa de repertórios
novos que, o grupo, mesmo com formato fechado, se mantém “novo” ou relevante para a vida
contemporânea.
Uma banda de música detém um domínio de performance, quando tem basicamente
três características: sonoridade definida que é o produto histórico delegado; um
respeito compartilhado pela formalidade musical e um nível de valores
autossuficientes (exclusividade na qual ações particulares e processos culturais e
musicais prevalecem) [...] (HERBERT, 2013, p. 49-50, tradução nossa).
O autor reconhece ainda, que a prática de banda (banding) é uma atividade
exclusiva e autossuficiente, capaz de influenciar modelos diferentes manifestados em várias
regiões do mundo. Essa característica notável, está presente na Corporação Musical Operária
da Lapa. O grupo, como percebemos, atravessou os anos desempenhando “serviço” às suas
comunidades. Seu formato básico com instrumentos de sopro (metais e madeiras) e percussão,
o som característico desses instrumentos, o repertório à base de marchas e dobrados, ou o
repertório adaptado à sua instrumentação, o traje que imita o uniforme militar, ou ainda o traje
social, a montagem (disposição) dos instrumentos e a sua própria aparência, são praticamente
as mesmas desde seus primórdios.
Alguns músicos, como vimos pelos depoimentos, queixaram-se dessa “falta de
mudança”. No entanto, isso vem a sugerir que, se a Corporação sair desse formato, que é
definido/fechado como destacou Trevor Herbert (2013) em relação a todas as brass bands, pode
ser que deixe de existir. Se, por exemplo, instrumentos que originalmente não pertençam à
formação original de uma banda de música, como guitarra elétrica ou teclado elétrico, forem
inseridos, ela se altera, ou perde seu “formato definido”. Não é possível imaginar, por exemplo,
um dobrado com sons sintéticos. E as igrejas e paróquias que convidam a Corporação para
preencher e conduzir suas procissões, necessitam da sonoridade autêntica de banda de música.
Isso, em especial, conecta-se com uma prática estabelecida; entretanto, é exatamente sua
instrumentação acústica que a habilita para contextos e manifestações públicas ao ar livre. Não
há necessidade de caixas de som, nem eletricidade. Mas este é apenas um exemplo de que a
banda de música pode ser o grupo musical ideal para contextos ao ar livre: “bandas se
114
apresentam em espaços públicos e sempre se apresentarão. Uma das características que as
distingue de outras formas de fazer musical é que elas começam e continuam a prosperar como
formas públicas de fazer musical” (HERBERT, 2013, p. 53, tradução nossa). Ora, com isso
queremos argumentar que, para a banda da Lapa, a performance em uma procissão, por
exemplo, que é um contexto público, funciona tão positivamente, exatamente devido ao seu
formato.
Percebemos com tudo isso, que a banda de música funciona como uma instituição
de transferência. Transferência de gêneros, estilos, ritmos, etc. É aí que a diferença entre o
popular e o “erudito” fica mais diluída. Esse formato também nos remete ao outro lado das
práticas da Corporação: a definição de que o conjunto é uma comunidade de prática. Como
mostramos nos tópicos “3.2 Perfil dos músicos” e “4.2/4.4 Dinâmicas/Temas dos ensaios”, a
banda tem um papel e um significado para seus membros. A questão da velhice que abordamos
na introdução é o ponto a ser destacado, visto que a maioria dos músicos estão em uma fase de
suas vidas onde o contato e o vínculo com outras pessoas e “o algo para se fazer” são
importantes para o processo de envelhecimento de cada um. Perguntamos ao Sr. Haroldo
Aleixo67, eufonista da Corporação há mais de quinze anos, se ele se lembrava de alguma história
ou “causo” que tinha vivido na banda. Seu Haroldo respondeu sem jeito, timidamente: “não...
O legal é estar aqui! Às vezes a esposa pergunta, “ganha alguma coisa”? Não... Mas é a
amizade.... O ambiente... E a gente acostuma também, se habitua... E quando chega no dia do
ensaio...”.
Bernard Lehmann (apud CASTRO, 2009) ao descrever os “estilhaços” da
orquestra, apontou que muitos instrumentistas de orquestra sinfônica fazem atividades musicais
paralelas (formam conjuntos de câmara, tocam em grupos de jazz, se apresentam com músicos
populares, etc.), não só pela necessidade de complementar a renda, evidentemente, mas para
escapar de um trabalho hierarquizado, rotinizado, isto é, fazer uma atividade musical
descompromissada, desinteressada. Ora, podemos indagar: o quanto tem valor essa atividade
desinteressada, na banda da Lapa? A maioria das “lembranças” e relatos dos recordadores
mostraram que as atividades na banda, ensaiar e se apresentar, são o que cada músico considera
de mais importante, juntamente com suas famílias, em suas vidas. O ritual de ir à Lapa, ver os
colegas, conversar com os colegas, montar o instrumento, tocar o instrumento, fazer novas
leituras de músicas desconhecidas, além de se arrumar para um concerto, tocar e ser aplaudido
por um público, denotam que os interesses estão compartilhados e os vínculos estão
67 ALEIXO, 2016.
115
estabelecidos. Ou seja, a prática musical na banda é o que traz lucro. Não lucro material, mas
lucro em estar vivo, lucro em realizar algo agradável, lucro em sentir-se bem; ou seja, é uma
necessidade, contudo, descompromissada.
5.4 Reconhecimento do público e o papel da banda
Sobre minha experiência pessoal nesses mais de dois anos como pesquisadora,
observadora e integrante da banda da Lapa, posso argumentar que tem sido uma experiência
desafiadora e única. Entre essas atividades do grupo (ensaios, apresentações, reuniões, etc.),
pude observar o quanto a banda gera curiosidade ao mesmo tempo em que é apreciada e querida
pelo seu público. Tenho me perguntado ao fim deste trabalho: “o que a banda evoca para mim?
O que a banda me faz lembrar? O que a banda passou a significar para mim”? Esta última
pergunta é justamente semelhante à problemática principal deste trabalho: qual o papel da banda
para os músicos? Para o que serve a banda da Lapa?
Depois de conviver, tocar, aprender, ensinar, ajudar, ser ajudada, conhecer e fazer
amizades, a resposta é simples: o prazer de tocar em uma banda. O papel é a oportunidade de
se apresentar em público. O papel é a satisfação em prestar um serviço para a comunidade. O
papel é a capacidade de sentir-se útil de alguma forma, sentir-se útil na velhice, útil para si, para
a banda e para o público. Este último, o público, percebi que, também exerce um papel relevante
para os integrantes. Na apresentação no Shopping Pirituba, por exemplo, quando aquela senhora
pediu que a banda tocasse o Parabéns, o contato dela com o grupo criou um ambiente de
sociabilidade para todos e a fez feliz em conseguir homenagear sua mãe. O depoimento68 do
Sr. Hélio Silva, saxofonista, também revelou que a banda, ao se apresentar em uma determinada
comunidade, produz encantamento nas pessoas, mesmo que seja um ato simples o de tocar, mas
tem importância para as pessoas que estão assistindo. “Para muitas pessoas, os concertos ao
vivo ocupam uma importante posição em sua experiência musical. A interação entre público e
artistas cria uma tensão especial, que também influencia os músicos” (MOELANTS et al., 2012,
tradução nossa).
[...] Em qualquer lugar que você for, com quem você conversar, vai estar tudo
interligado, a música, as pessoas, ao social, a comunidade, porque não tem como
desvincular uma coisa da outra. A música é um elemento muito forte, está presente na
vida social de todos, né? É um encantamento tão grande, que você vê que as pessoas
só de ver, de assistir, de olhar, já desperta interesse. Só desse primeiro contato. Tal é,
que você viu a última apresentação da gente, as pessoas vieram agradecer por ter feito
o trabalho lá, pra nós era uma coisa simples, mas pra eles, tem uma grandeza! (SILVA,
2017).
68 SILVA, 2017.
116
Ensaiando e se apresentando com a banda da Lapa, pude ver de fato esse
“encantamento” ao qual o Sr. Hélio se referiu. As pessoas se juntam em volta da banda. Em
momentos que antecedem o início de alguma performance, aquele momento da montagem dos
instrumentos, das pastas, das estantes, etc., as pessoas já estabelecem um primeiro contato.
Muitos até fazem perguntas, querem saber de onde a banda é, qual banda é, onde ensaiamos, o
que vamos tocar, quando vamos tocar novamente, onde será o próximo concerto, etc. E depois,
já durante a apresentação, muitos querem gravar, tirar fotos. Essa curiosidade, esse interesse do
público, percebi o quanto é importante e faz bem para os músicos da banda. O Sr. Arnaldo,
quando me contou sobre a participação da banda na primeira Virada Cultural em São Paulo,
estava entusiasmado por ser tratado como uma celebridade: “depois saímos e fomos lá para
escadaria e tocamos até mais de meia noite. E aquelas moças, “vem cá, deixa eu tirar uma foto
com o senhor”! Me levava com o baixo nas costas, tirava foto”69. É exatamente essa relação,
estabelecida entre os integrantes e o público, que produz ambientes específicos para a
sociabilidade. Algumas vezes após apresentação, ou até mesmo depois dos ensaios, pois sempre
tem uma, duas, ou até mais pessoas que assistem aos ensaios, essas pessoas estão tomadas por
uma sensação de interior, de nostalgia, lembram do pai, lembram de suas cidades, lembram de
suas infâncias. Tenho me perguntado, por que essas sensações?
Será o caráter amador? A instrumentação? O tipo de sonoridade? O repertório? O
tipo de arranjo? Idosos tocando? A aparência? São todos esses elementos. A Corporação
alcançou reconhecimento de seu público, também por essas características, mas, sobretudo, pela
inserção dela em uma comunidade mais ampla. Essa inserção e integração, pude perceber
tocando principalmente nas procissões, não só pela questão “participativa” de Turino (2008),
já referida, mas pela apreciação do público pela participação da banda no evento. As pessoas
não só tiram fotos do andor, do santo, da multidão: elas tiram fotos da banda, ao final aplaudem
e agradecem a banda pela participação, conversam com os músicos e os convidam novamente.
Esse reconhecimento do público e essa integração, que leva ao musicking de Small
(2011), têm me mostrado que o envolvimento de outras pessoas e de outras comunidades nas
atividades da banda, mesmo que indiretamente, possibilita ao grupo ser de fato um local de
encontro, isto é, uma comunidade, com vínculos estabelecidos. Isso me indicou também que
estar musicando na CMOL é estar participando de uma comunidade localizada. Esta
comunidade se estendeu para além dos músicos, o público passou a ser também, esta
comunidade.
69 MOURA, 2017.
117
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao fim desta pesquisa, consideramos relevante apontar alguns pontos principais no
trabalho. O grupo surgiu em um momento específico da história paulistana. Criada em fins do
século XIX, início da República, auge da imigração e do movimento operário, a banda é um
produto deste momento na história da cidade de São Paulo. Por ter uma sede própria, manter
um formato definido e um número significativo de apresentações, o grupo se destacou dentre
as muitas bandas amadoras operárias contemporâneas à sua primeira fase e manteve-se ativa
desde seus primórdios. É um dos poucos grupos instrumentais na cidade de São Paulo que
mantém um formato tradicional de banda e se apresenta igualmente em contextos tradicionais.
Durante o decorrer de sua trajetória, mesmo passando por adversidades e constantes
trocas de lideranças e componentes, a Corporação foi valorizada por seu público. Essa natural
predisposição ao espaço urbano/público – que todas as bandas de música possuem – essa
disponibilidade em preencher e conduzir uma ampla variedade de contextos, tanto civis,
religiosos e comunitários como também seus populares concertos ao ar livre, além de sua
agilidade no manuseio de sua instrumentação e flexibilidade na circulação de diferentes
repertórios, a transfigurou em um dispositivo significativo de prática musical instrumental. Esta
condição, na verdade, é característica de muitas bandas de música civis amadoras que possuem
o mesmo formato e são mantidas ou sustentadas independentemente ou com o auxílio de
projetos aprovados pela Lei Rouanet e/ou Ministério da Cultura, ou ainda, através de
patrocinadores.
O segundo ponto relevante a ser apontado é a questão da velhice. Percebemos,
através do material etnográfico, que as atividades que a banda desempenhava outrora, eram
uma tradição que fazia parte do cotidiano da época, agregavam parte da vida naquele momento.
Os concertos em favor do “Asylo [sic] de Expostos” da Santa Casa durante as décadas de 1910
e 1920 e as apresentações em jogos de tômbola são um exemplo. Com o passar do tempo e as
mudanças na própria história, os jovens foram atraídos para outros tipos de contextos e
preferências e somente “os mais velhos” passaram a se interessar por bandas. Olhando por essa
perspectiva, é possível perceber um elemento positivo para seus músicos: a necessidade de uma
ocupação no envelhecimento e a oportunidade de servir a uma comunidade com sua música.
Como comentamos no início do trabalho, a velhice para alguns é um período de
solidão. Mas, com a banda, não há solidão. Na banda há amigos, atividades, coisas para fazer,
coisas para resolver, coisas para comprar, tem como passar o tempo, músicas para tocar,
músicas para serem arranjadas, músicas para serem “xerocopiadas”, elogios para receber,
118
amigos para ver e conversar, fofocas a se fazer, desafios a serem atingidos, mudanças a se fazer,
lugares e pessoas para conhecer nas apresentações e tem a própria banda para preservar. O fato
de serem músicos amadores, homens, idosos e aposentados, e integrarem a banda por mais de
vinte ou trinta anos, tem possibilitado a eles serem predispostos a desempenhar tais práticas.
Ademais, a velhice é uma fase da vida em que não só modificações físicas acontecem com o
indivíduo, mas um conjunto de fatores desde solidão até perda de habilidades cognitivas. Por
isso os músicos entrevistados, ao descreverem seus relatos, mostraram um nível elevado de
comprometimento com o grupo. A densidade da ação desses instrumentistas, no contexto do
grupo, revelou um ambiente acolhedor, inclusivo, favorável à amizade, ao preenchimento do
tempo livre e sobretudo à experiência do não isolamento social. São elementos que se integram
ao terceiro ponto relevante, a sociabilidade.
A Corporação está formada atualmente por músicos amadores idosos, em sua
maioria. Isso a transfigura num espaço marcante para o compartilhamento de experiências e
vivências. O encontro para tocar em grupo, é um foco central nas suas vidas. Pelos relatos, foi
verificado que as interações sociais proporcionavam uma sensação de bem-estar e grande
realização pessoal. Consideramos como elementar papel da banda as atividades musicais,
incluindo os ensaios, as apresentações e as reuniões. A oportunidade e a satisfação de tocar um
instrumento em grupo é o principal motivador. Muitos integrantes consideraram que a
socialização através da prática musical era um fator essencial para suas vidas, tanto quanto
manter as relações familiares. Logo, a principal característica da CMOL é ser um meio para
que seus músicos se sintam úteis e ativos. A banda, nesta perspectiva, colabora para um melhor
envelhecimento, pois preenche o tempo livre desses músicos, os incorpora em grupo, os
disponibiliza para a utilização de suas capacidades intelectuais e emocionais e os estimula para
a reativação da memória e elevação da autoestima.
A questão de integrar um grupo que tem 136 anos é um privilégio e vantagem do
ponto de vista dos músicos, ou seja, é o capital simbólico do grupo. O objetivo de “ter” e
“manter” a banda é o que tem também permitido aos músicos desenvolver certas práticas em
torno dessa finalidade. Por esse motivo, estão sempre discutindo uns com os outros: “tem que
melhorar”, “tocar coisas novas”, “ensaiar”, “estudar”, “tem que acertar”, “tem que afinar”...Tal
dinâmica entre os membros da Corporação Musical Operária da Lapa é o que tem mobilizado
os integrantes. Esses elementos, ao serem apontados, respondem às principais problemáticas do
trabalho: o papel relevante da banda da Lapa na vida dos músicos e das comunidades servidas
com as performances, a relação com a comunidade e o significado da banda para os músicos.
A Corporação, desde sua fundação, sempre serviu às comunidades, tanto aos eventos da Lapa
119
quanto aos de outras localidades. Este sempre foi um papel que a banda representou através dos
tempos. Seja se apresentando em festas políticas, festas beneficentes, ou simplesmente
animando bailes e conduzindo procissões e blocos carnavalescos de rua. Alguns desses
contextos se modificaram e deram lugar a outros contextos atualizados, como, por exemplo, o
fato do grupo se apresentar em shoppings e não mais em festas beneficentes em favor de alguma
causa. Ou, ainda, não mais se apresentar em coretos porque estes caíram em desuso, e passar a
se apresentar no Sesc, por exemplo. Este papel de servir à comunidade, leva a outro fator, a
relação com a comunidade.
Como banda de música, a banda da Lapa espontaneamente possui capacidade para
inserir-se em distintas manifestações culturais. Estes contextos, por vezes informais, favorecem
o caráter amador do grupo, mas também oferecem possiblidades de comunicação e
sociabilidade entre seus integrantes e o público. Este papel da banda como comunidade musical
na vida de cada um dos músicos, e a inserção numa comunidade mais ampla, demonstram que
uma tradição de fazer musical foi estabelecida.
Sobre a participação especial de um outro regente nos ensaios para a preparação de
novo repertório, o que foi possível aprender na trajetória da banda com o maestro Valdemir
durante o período de recuperação do Maestro Nestor? Uma pessoa sensível à história,
procedimentos e limitações do conjunto e que extrai uma certa musicalidade evidenciando o
potencial que o grupo possui, é um elemento e processo importante para a CMOL. Isso nos
mostra também, o que é uma liderança que conduz o grupo de forma igualitária, respeitando as
habilidades e interesse dos integrantes. Lideranças em contextos igualitários, exigem que sejam
enfáticas e perseverantes, porém, com afetuosidade e flexibilidade.
Nas dinâmicas de ensaios, principalmente, notamos que é um lugar de conflitos,
lutas, competição e vaidade. Mas por outro lado, também é lugar para a ludicidade, amizade,
companheirismo e compaixão. É comum em todos os ensaios, os músicos se auxiliarem e
colaborarem uns com os outros, já que alguns têm dificuldades, seja de leitura, com posições
no instrumento, ou qualquer outro aspecto que necessite auxílio. É com esta característica, que
a Corporação se configura hoje como uma comunidade musical.
A relação que os integrantes estabelecem com essa instituição é de familiaridade e
coleguismo, pois seus músicos encontram um ambiente acolhedor. As interações sociais têm
proporcionado sensação de bem-estar e grande realização pessoal. A oportunidade de tocar um
instrumento em grupo e se apresentar para um público são os principais elementos motivadores.
Muitos integrantes evidenciaram que a socialização através da prática musical era um fator
essencial para a qualidade de vida, tanto quanto manter as relações familiares. A pesquisa entre
120
os integrantes idosos mostrou, ainda, que a necessidade de uma ocupação na etapa do
envelhecimento é um fator obrigatório para se manter uma vida ativa. Ao refletirmos sobre os
comentários e depoimentos desses participantes, constatamos que a prática musical numa banda
de música, assegura o bem-estar e a possibilidade que cada músico tem de sentir-se útil em
desempenhar uma função pública para a comunidade local.
121
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
A LANTERNA. São Paulo, 19 mar. 1912, p. 3.
ALEIXO, Haroldo. São Paulo, Brasil, 27 out. 2016. Gravação em vídeo. Entrevista concedida
a Juliana Soares da Costa Silva.
ALVES, Luiz Antônio. São Paulo, Brasil, 13 out. 2016. Gravação em vídeo. Entrevista
concedida a Juliana Soares da Costa Silva.
ALMEIDA, Rute Aparecida de. São Paulo, Brasil, 11 set. 2016. Gravação em vídeo. Entrevista
concedida a Juliana Soares da Costa Silva.
________________________. São Paulo, Brasil, 09 nov. 2017. Gravação em áudio. Entrevista
concedida a Juliana Soares da Costa Silva.
A PROVÍNCIA DE SÃO PAULO. São Paulo, 25 set. 1889, p. 02.
AMATO, Rita de Cássia Fucci. “Cultura musical e pianística nacional: seus crescendos e
diminuendos”. In: EM PAUTA - v. 17 - n. 28 - janeiro a junho de 2006, p. 19-37.
ANDRADE, Mario de. Dicionário Musical Brasileiro. Belo Horizonte/Rio de Janeiro: Editora
Itatiaia Ltda, 1999.
BARDIN, Laurence. Análise de Conteúdo. São Paulo: Edições 70, 2016.
BIASON, Mary Angela (org). I Anais do Seminário de Música do Museu da Inconfidência.
Ouro Preto: Museu da Inconfidência, 2008.
BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade: Lembranças de Velhos. São Paulo: Companhia das Letras,
1994.
BOURDIEU, Pierre. “Capital simbólico e classes sociais”. In: NOVOS ESTUDOS CEBRAP
96, julho 2013, p. 105-115.
BRASIL. Ministério da Saúde. Estatuto do Idoso. Brasília: Ministério da Saúde, 2006.
BRICKS FILHO, Cristiano. São Paulo, Brasil, 21 jul. 2016. Gravação em vídeo. Entrevista
concedida a Juliana Soares da Costa Silva.
BUENO, Meygla. A Flauta Doce em um Processo de Musicalização na Terceira Idade.
Goiânia. 2008. 175f. Dissertação (Mestrado em Música e Educação) - Universidade Federal de
Goiás, Goiânia, 2008.
CASTRO, Marcos Câmara de. Os estilhaços da orquestra: Resenha do livro L’orchestre dans
tous ses éclats: ethnographie des formations symphoniques, de Bernard Lehmann. Opus,
Goiânia, v. 15, n. I, p. 24-34, jun. 2009.
CENNI, Franco. Italianos no Brasil – andiamo in Merica. São Paulo: Edusp, 2003.
CONNERTON, Paul. Como as Sociedades Recordam. Oeiras: Celta Editoras, 1999.
CORREIO DE SÃO PAULO. São Paulo, 03 abr. 1936, p. 06.
CORREIO PAULISTANO. São Paulo, 13 set. 1888, p. 01.
______________________. São Paulo, 14 ago. 1895, p. 02
______________________. São Paulo, 29 mai. 1920, p. 03.
122
COTRIM, Gilberto. História Global: Brasil e Geral. São Paulo: Saraiva, 2002.
DAMATTA, Roberto. “O ofício de Etnólogo, ou como ter ‘Anthropological Blues’”. In: Nunes,
Edson de Oliveira (org.). A Aventura Sociológica. Rio de Janeiro: Zahar, 1978, p. 23-35.
__________________. Relativizando. Uma introdução à Antropologia Social. Petrópolis:
Vozes, 1981.
DANTAS, Frederico Meirelles. Composição para Banda Filarmônica: atitudes inovadoras.
2015. 276f. Tese (Doutorado em Música) – Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2015.
DEBERT, Guita Grin. “A construção e a reconstrução da velhice: família, classe social e
etnicidade”. In: CASTRO, César. Leitura de adultos com escolaridade tardia. São Luís,
UFMA, 1999, p. 41-68.
__________________. A Reinvenção da Velhice: Socialização Processos de Reprivatização
do Envelhecimento. São Paulo: Edusp/Fapesp, 2004.
DIÁRIO NACIONAL: A DEMOCRACIA EM MARCHA. São Paulo, 21 set. 1930, p. 05.
DUPRAT, Régis. A Música no Vale do Paraíba e o Resgate de um Repertório. Disponível em:
www.jornalolince.com.br/2011/arquivos/historia-musicavaledoparaiba-edicao040.pdf. Acesso
em: 23/08/2017.
______________. Dobrados: Encarte (COLP 12.389), disco 4 da coleção Três Séculos de
Música Brasileira. Rio de Janeiro, Fab. Copacabana, 1979.
EBERLE, Soraya Heinrich. Ensaio pra quê? – reflexões iniciais sobre a partilha de saberes: o
grupo de Louvor e Adoração como agente e espaço formador teológico-musical. 2008. 112 f.
Dissertação (Mestrado em Teologia) - Escola Superior de Teologia, Instituto Ecumênico de
Pós-Graduação, Religião e Educação, São Leopoldo, 2008.
ESTADO DO PARÁ. Belém, 30 mar. 1919, p. 05.
FAUVEL, Baptiste et al. “Musical practice and cognitive aging: two cross-sectional studies
point to phonemic fluency as a potential candidate for a use-dependent adaptation”. In: Journal
Frontiers in Aging Neuroscience. ISSN 1663: Frontiers Media S. A., 2014.
https://doaj.org/article/64c35d507df44edfa1109702e50e12ca. Acesso em: 22/06/2016.
FINNEGAN, Ruth. The Hidden Musicians: making music in English Town. Cambridge:
Cambridge University Press, 1989.
FOLHA DA MANHÃ. São Paulo, 27 set. 1925, p. 02.
FOLHA DE SÃO PAULO. São Paulo, 22 set. 1980, p. 19.
FRANÇA, Júnia Lessa; VASCONCELLOS, Ana Cristina de. Manual para Normalização de
publicações técnico-científicas. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2014.
GOMES, Mércio Pereira. Antropologia: ciência do homem: filosofia da cultura. São Paulo:
Contexto, 2014.
HARDMAN, Francisco Foot. Nem Pátria, nem Patrão! Memória Operária, cultura e literatura
no Brasil. São Paulo: Editora Unesp, 2002.
HERBERT, Trevor. “Brass and Military Bands in Britain – Performance Domains, the Factors
that construct them and their Influence”. In: REILY, Suzel Ana; BRUCHER, Katherine (orgs).
123
Brass Bands of the World: Militarism, Colonial Legacies, and Local Music Making. Aldershot:
Ashgate Publishing, 2013, p. 33-53.
INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Censo Demográfico 2010.
JORNAL DA GENTE. São Paulo, 28 out.-03 nov. 2017, p. 06.
JORNAL NOSSO BAIRRO – REVISTA A. São Paulo, n. 22, 2001, p. 14-15.
JUNQUEIRA, Maria Francisca Paez. Escola de música de Luigi Chiaffarelli. 1982. Tese
(Doutorado em Comunicação) – Universidade Mackenzie, São Paulo, 1982.
LEVITIN, Daniel. A música no seu cérebro: a ciência de uma obsessão humana. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.
LOPES, Marilda. Chorinho: No compasso da Longevidade: A Longevidade como oportunidade
para o desenvolvimento de habilidades musicais em um grupo de idosos na cidade de Vitória
(ES). 2008. 87f. Dissertação (Mestrado em Gerontologia) – Pontifícia Universidade Católica,
São Paulo, 2008.
LUCAS, Maria Elizabeth. “Bandas de música no Rio Grande do Sul: temas para uma
interpret/ação etnomusicológica”. In: BIASON, Mary Angela (org.). Seminário de Música do
Museu da Inconfidência. I Anais. Ouro Preto: Museu da Inconfidência, 2009, p. 55-63.
MACUCO, Paulo Ramos. São Paulo, Brasil, 17 ago. 2017. Gravação em vídeo. Entrevista
concedida a Juliana Soares da Costa Silva.
MALCOMSON, Hettie. “New generations, older bodies: danzón, age and ‘cultural rescue’ in
the Port of Veracruz”. In: Popular Music/Volume 31/2. Cambridge University Press, 2012, p.
217 – 230. Doi:10.1017/S0261143012000062. Acesso em: 22/06/2016.
MATTEUCCI, Liber. São Paulo, Brasil, 29 set. 2016. Gravação em vídeo. Entrevista concedida
a Juliana Soares da Costa Silva.
MED, Bohumil. Teoria da Música. Brasília: MusiMed, 1996.
MOELANTS, Dirk et al. “The Influence of an Audience on Performers: A Comparison
Between Rehearsal and Concert Using Audio, Video and Movement Data”. In: Journal of New
Music Research, 41:1, 2012, p. 67-78.
MORAES, José Geraldo Vinci de. As Sonoridades Paulistanas: a música popular na cidade de
São Paulo – final do século XIX ao início do século XX. Rio de Janeiro: Funarte, 1995.
MOURA, Arnaldo Alves de. São Paulo, Brasil, 05 out. 2017. Gravação em vídeo. Entrevista
concedida a Juliana Soares da Costa Silva.
NERI, Anita Liberalesso. Envelhecer num país de jovens. Significados de velho e velhice
segundo brasileiros não idosos. Campinas: Editora UNICAMP, 1991.
O ESTADO DE SÃO PAULO. São Paulo, 06 dez. 1902, p. 01.
_________________________. São Paulo, 01 mar. 1905, p. 02.
_________________________. São Paulo, 26 jan. 1910, p. 10.
_________________________. São Paulo, 28 jan. 1910, p. 10.
_________________________. São Paulo, 16 out. 1910, p. 02.
124
_________________________. São Paulo, 14 mar. 1917, p. 03.
_________________________. São Paulo, 22 set. 1919, p. 04.
_________________________. São Paulo, 20 mai. 1961, p. 07.
_________________________. São Paulo, 12 jun. 1971, p. 14.
_________________________. São Paulo, 05 fev. 2012, p. C10.
O FLUMINENSE. Rio de Janeiro, 19 mar. 1906, p. 02.
OLIVEIRA, Benedito Alves de. São Paulo, 02 mar.2017. Gravação em áudio. Entrevista
concedida a Juliana Soares da Costa Silva.
O PHAROL. Rio de Janeiro, 18 dez. 1906, p. 02.
ORSINI, Maria Stella. Guiomar Novaes: uma arrebatadora história de amor. São Paulo:
Editora C.I., 1992.
PAPALÉO NETTO, Matheus. “O Estudo da Velhice no Século XX: Histórico, Definição do
Campo Termos Básicos”. In: FREITAS, E. et al. (orgs). Tratado de Geriatria e Gerontologia.
Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2006, p. 02-12.
PEACHEY, D. et al. “Music and ageing”. In: Australian Psychological Society College of
Health Psychologists Inaugural APS Health Psychology Conference, 5-6 April 2013.
http://works.bepress.com/nerina_caltabiano/81/. Acesso em: 18/10/2016.
PINHEIRO, Nestor Avelino. São Paulo, Brasil, 11 set. 2016. Gravação em vídeo. Entrevista
concedida a Juliana Soares da Costa Silva.
_______________________. São Paulo, Brasil, 31 ago. 2017. Gravação em vídeo. Entrevista
concedida a Juliana Soares da Costa Silva.
QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. “Relatos orais: do “indizível” ao “dizível””. In: SIMSON,
Olga Moraes Von (org.) Experimentos com Histórias de Vida: Itália-Brasil. São Paulo: Vértice,
1988, p. 14-43.
REILY, Suzel Ana. “A música e a prática da memória – uma abordagem
etnomusicológica”. In: Revista da Associação Brasileira de Etnomusicologia. V. 9. N. 1,
2014, p.1-18.
_________________. “Bandas de sopro: um diálogo transcultural”. In: BIASON, Mary Angela
(org.). Seminário de Música do Museu da Inconfidência. I Anais. Ouro Preto: Museu da
Inconfidência, 2009, p. 23-31.
_________________. Voices of the Magi: Enchanted Journeys in Southeast Brazil. Chicago:
The University of Chicago Press, 2002.
REILY, Suzel Ana; BRUCHER, Katherine (orgs.). Brass Bands of the World: Militarism,
Colonial Legacies, and Local Music Making. Aldershot: Ashgate Publishing, 2013.
REILY, Suzel; GIESBRECHT. Rehearsing Memory: The Bumba meu Boi and Urucungos in
Campinas. Ethnomusicology Forum, 2018.
REVISTA A – LAPA. São Paulo, n. 22, 2001, p. 14-17.
REVISTA DO BAIRRO. São Paulo, ano VI, n. 61, 2009, p. 23.
125
SAES, Flávio Azevedo Marques de. As Ferrovias de São Paulo 1870 - 1940. São Paulo: Editora
Hucitec, 1981.
SALLES, Vicente. “Bandas de Música: Tradição e Atualidade”. In: VI Anais – Encontro de
Musicologia Histórica. Juiz de Fora: Centro Cultural Pró Música, 2006, p. 222-229.
SANTOS, Wanderley. Lapa - história dos bairros de São Paulo. São Paulo: Departamento do
Patrimônio Histórico/Cultura, 1980.
SCHUTZ, Alfred. “O mundo das relações sociais”. In: WAGNER, Helmut R. Fenomenologia
das relações sociais: textos escolhidos de Alfred Schutz. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1970,
p. 123-193.
SEGATTO, José Antônio. Lapa - Evolução Histórica. São Paulo: Departamento do Patrimônio
histórico, 1988.
SHELEMAY, Kay Kaufman. “Musical Communities: Rethinking the Collective in Music”. In:
Journal of the American Musicological Society, Vol. 64, No. 2, 2011, p. 349-390. University
of California Press on behalf of the American Musicological Society Stable.
http://www.jstor.org/stable/10.1525/jams.2011.64.2.349. Acesso em: 22/03/2016.
SILVA, Claudia Felipe da. Bandas de música, Imigração Italiana e Educação Musical – O
corpo Musicale “Umberto I” de Serra Negra, uma localidade interiorana com forte presença
italiana. 2009. 289f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Faculdade de Educação,
Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2009.
______________________. Vida Musical, Imigração Italiana e Desenvolvimento Urbano: a
trajetória sócio-histórico-cultural de Serra Negra, ao longo do século XX. 2017. 366f. Tese
(Doutorado em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade Estadual de Campinas,
Campinas, 2017.
SILVA, Hélio da. São Paulo, Brasil, 29 jun. 2017. Gravação em vídeo. Entrevista concedida a
Juliana Soares da Costa Silva.
SILVA, Itamar Martins da. São Paulo, Brasil, 22 ago. 2017. Gravação em vídeo. Entrevista
concedida a Juliana Soares da Costa Silva.
SMALL, Christopher. Musicking: the meanings of performance and listening. Middletown, Ct:
Wesleyan University Press, 2011.
SOUZA, Jusamara. “Educação musical e práticas sociais”. In: Revista da ABEM, Porto Alegre,
v. 10, 2004, p. 7-11.
SPITZER, John; ZASLAW, Neal. Orchestra: bibliography. In: SADIE, Stanley; TYRRELL,
John (ed.). The new grove dictionary of music and musicians. New York: Macmillan Publishers
Limited, 2002.
SWEERS, Britta. “Protestant-Lutheran Choir Singing in Northern Germany – Dimensions of
Presentational Musicking in the Local Community”. In: REILY, Suzel; BRUCHER, Katherine
(orgs.). The Routledge Companion to the Study of Local Musicking. New York: Routledge,
2018, p. 29-42.
TAMBURU, José Maria. São Paulo, Brasil, 11 set. 2016. Gravação em vídeo. Entrevista
concedida a Juliana Soares da Costa Silva.
____________________. São Paulo, Brasil, 17 nov. 2017. Gravação em áudio. Entrevista
concedida a Juliana Soares da Costa Silva.
126
TAUNAY, Affonso d'Escragnolle. História da cidade de São Paulo. Brasília: Edições Senado
Federal, 2004.
TEIXEIRA, Palmira Petratti. “A ferrovia ‘The São Paulo Railway’ (SPR) e a industrialização
da cidade de São Paulo”. In: Anuário del CEH, Nº 2-3, Año 2 y 3, 2002-2003, p. 125-134.
TINHORÃO, José Ramos. História Social da Música Popular Brasileira. São Paulo: Editora
34, 2010.
TURINO, Thomas. “Estrutura, Contexto e Estratégia na Etnografia Musical”. In: Horizontes
Antropológicos. Porto Alegre, ano 5, n. 11, 1999, p. 13-28.
_______________. Music as Social Life. The Politics of Participation. Chicago: The University
of Chicago Press, 2008.
WAN, Catherine; SCHLAUG, Gottfried. “Brain Plasticity Induced by Musical Training”. In:
DEUTSCH, Diana (ed.). Psychology of Music. San Diego: Academic Press, 2013, p. 565-581.
WENGER, Etienne. Communities of Practice - learning, meaning and identity.
Cambridge/New York: Cambridge University Press, 2008.
127
ANEXOS
1. Aprovação/Parecer Plataforma Brasil/Comitê de Ética em Pesquisa (CEP)
128
2. Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE)/Comitê de Ética
129
130
131
132
133
134
3. Estatuto da Corporação Musical Operária da Lapa
135
136
137
138
139
140
141
142