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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS FABIO MASCARO QUERIDO RESISTÊNCIA INTELECTUAL E ENGAJAMENTO POLÍTICO EM MICHAEL LÖWY E DANIEL BENSAÏD: AFINIDADES BENJAMINIANAS CAMPINAS 2016

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

FABIO MASCARO QUERIDO

RESISTÊNCIA INTELECTUAL E ENGAJAMENTO POLÍTICO EM MICHAEL LÖWY E DANIEL BENSAÏD: AFINIDADES

BENJAMINIANAS

CAMPINAS

2016

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

A Comissão Julgadora dos trabalhos de Defesa de Tese de Doutorado, composta pelos Professores Doutores a seguir descritos, em sessão pública realizada em 23 de março

de 2016, considerou o candidato Fabio Mascaro Querido aprovado.

Prof. Dr. Marcelo Siqueira Ridenti

Prof(a). Dra. Isabel Maria Loureiro

Prof. Dr. Alvaro Gabriel Bianchi

Prof. Dr. José Corrêa Leite

Prof(a). Dra. Maria Elisa Cevasco

A ata de Defesa, assinada pelos membros da Comissão Examinadora, consta no

processo de vida acadêmica do aluno.

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Agradecimentos

Como nem poderia deixar de ser, esta tese não poderia ter sido realizada sem o apoio

inestimável de diversas pessoas que, no plano particular, acadêmico e/ou intelectual,

contribuíram de modo decisivo, direta ou indiretamente, para o bom andamento da pesquisa.

Antes de tudo, devo agradecer ao meu orientador, professor Marcelo Ridenti, cujo apoio

– não isento de críticas, sempre construtivas e respeitosas - foi inestimável para a realização da

pesquisa. Sem o seu apoio, a realização deste trabalho teria sido certamente um intento muito

mais difícil, e os avanços da pesquisa, bem mais escassos.

Agradeço, em seguida, à professora Isabel Loureiro, com que tive a oportunidade de

estabelecer, nos últimos anos, frutífera relação de diálogo intelectual, e a cujas leituras críticas

e sugestões devo alguns dos principais achados da pesquisa.

Agradeço igualmente aos professores membros da banca de avaliação, cujas críticas,

sugestões e/ou comentários certamente serão de profunda relevância para a elaboração da

versão definitiva da tese.

A Michael Löwy agradeço pela disponibilidade e pelas ajudas com livros e materiais

relacionados à obra e ao percurso político-intelectual de Daniel Bensaïd, assim como pela

acolhida no âmbito da École des Hauts Études en Sciences Sociales (EHESS), em Paris.

Agradecimento especial dispenso a Sophie Bensaïd, viúva e companheira de Daniel

desde 1972. Ao longo da minha estadia em Paris, Sophie ajudou-me inestimavelmente não

apenas através do acesso a materiais inéditos de Daniel Bensaïd, senão também de conversas e

depoimentos sobre a sua trajetória.

Agradeço igualmente a todos os entrevistados e/ou aqueles com os quais conversei sobre

algum aspecto das obras/trajetórias de Löwy e de Bensaïd, tais como André Tosel, Alain

Krivine, Olivier Besancenot, Edwy Plenel, Lucien Sanchez, Antoine Artous, Jaime Pastor

Verdú, Gérard Filoche, Paul Alliès, Sebastian Budgen, Phillipe Corcuff e Fernando Matamoros

Ponce.

A Razmig Keucheyan agradeço pelas conversas sobre marxismo e pensamento crítico

contemporâneo, assim como pelos convites para participar de seminários e colóquios em Paris.

Ao amigo Darren Roso, companheiro de estudos sobre a obra bensaïdiana em Paris,

agradeço pelas conversas, pelos textos e projetos em comum, tanto quanto pelo encorajamento.

Agradeço aos meus amigos de toda hora Rubens José Ferreira Júnior, Luiz Henrique

“Pitú”, Bruna, Renata e Débora Taño, Lucas Bevilaqua, Luís Martinez Andrade, assim como a

Bruno Rubiatti, Daniela Vieira dos Santos, Caroline Gomes Leme, Adriana Cardoso, Ettore

Medina, Luciana Aparecida dos Santos, Camila Massaro e Maurício “Ceará”, dentre outros e

outras.

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Agradeço aos meus pais pela paciência com o filho por vezes ausente.

Por fim, agradeço à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp)

pelas bolsas de doutorado regular (no país) e de estágio doutoral (1 ano) na EHESS, em Paris,

as quais foram fundamentais para a realização da pesquisa ora apresentada na forma de tese de

doutorado em sociologia.

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“[...] A constatação do caráter não fechado do passado é idealista se não assimilar a do fechamento. As

injustiças do passado aconteceram e consumaram-se. Os que a violência matou estão realmente mortos.

Em última análise, a sua afirmação é teológica. Se levarmos a sério o caráter não consumado do passado,

temos de acreditar no Juízo Final [...]”.

Carta de Max Horkheimer a Walter Benjamin, 16 de março de 19371.

“[...] a história não é apenas uma ciência, ele também uma forma de rememoração. O que a ciência

‘constatou’, a rememoração pode modificar. A rememoração pode transformar o que se encontra não

consumado (a felicidade) em algo consumado e o que é consumado (o sofrimento) em algo não

consumado. É teologia; mas a experiência que fazemos na rememoração nos proíbe de conceber a

história de modo ateológico, mesmo se não temos, pelo instante, o direito de tentar escrever com

conceitos imediatamente teológicos”.

Comentário de Walter Benjamin sobre a carta de Horkheimer, inserido nas notas do projeto das

Passagens2.

“A todo momento, vocês supõem um outro momento seguinte que não aquele que aconteceu: a todo

presente imaginário em que se colocam, imaginam um outro futuro que não aquele que se realizou”.

Paul Valery, “Discurso sobre a história”, 19383.

1 In: Walter Benjamin, O anjo da história. Organização e tradução: João Barrento. Belo Horizonte: Autêntica,

2012, p.240. 2 Walter Benjamin, Paris, capitale du XIXe siècle. Le livre des Passages. Paris: Cerf, 1989, p.489. 3 Paul Valery, “Discurso sobre a história”. In: Variedades. São Paulo: Iluminuras, 2007, p.114.

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Resumo

À luz das transformações histórico-políticas e cultural-ideológicas das últimas quatro décadas,

o objetivo desta tese é analisar a obra e o percurso de dois intelectuais contemporâneos, Michael

Löwy (1938- ) e Daniel Bensaïd (1946-2010), destacando a forma como ambos se confrontaram

– através de uma atualização benjaminiana do marxismo – à mudança de época que inicia a

partir do final dos anos 1970, consolidando-se na década seguinte, com a queda do Muro e a

derrocada do “socialismo realmente existente” entre 1989 e 1991. Busca-se – por meio da

análise da obra e da reconstituição da trajetória em suas relações com as mudanças no contexto

histórico-social, na “visão de mundo” dos autores, assim como no campo intelectual

correspondente – investigar o reposicionamento político e intelectual levado a cabo por Löwy

e por Bensaïd a partir de meados da década de 1980, reposicionamento estimulado, em ambos

os casos, por uma interpretação seletiva e singular do pensamento de Walter Benjamin (1892-

1940). Analisando as afinidades tanto quanto as diferenças, as grandezas tanto quanto os limites

de suas obras posteriores à incorporação de Benjamin, almeja-se assim contribuir para a

compreensão dos dilemas dos intelectuais engajados hoje.

Palavras-chave: intelectuais; engajamento; marxismo; política.

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Abstract

The objective of this thesis is to analysis the work and trajectory of two contemporary

intellectuals, Michael Löwy and Daniel Bensaïd in light of the historical, political, cultural-

ideological transformations of recent decades, by outlining the way both confronted the change

of historical period that began in the 1970s. Through the comprehension of their oeuvres and

the reconstruction of their itineraries with respect to the changes in historical and social context,

the worldview of the respective authors, together with the intellectual field itself, it aims to

analyse the political and intellectual repositioning Michael Löwy and Daniel Bensaïd undertook

from the 1980s. This repositioning was stimulated, in both cases, through a selective and

singular interpretation of Walter Benjamin’s thought. In analysing both the affinities and

differences, the grandeurs and limits of their post-Benjaminian works, in order contribute to the

comprehension of the dilemmas of engaged and/or militant intellectuals today.

Key words: intellectuals; engagement; politics; marxism.

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Glossário de siglas

LSI - Liga Socialista Independente (Brasil)

OMR-POLOP - Organização Marxista Revolucionária–Política Operária (Brasil)

PCB - Partido Comunista Brasileiro

PSB – Partido Socialista Brasileiro

UDS – União Democrática Socialista (Brasil)

ED – Esquerda Democrática (Brasil)

JUC – Juventude Universitária Católica (Brasil)

JEC – Juventude Estudantil Católica (Brasil)

AP – Ação Popular (Brasil)

POI - Partido Operário Internacionalista (Brasil)

POR – Partido Operário Revolucionário (Brasil)

POC – Partido Operário Comunista (Brasil)

COLINA – Comandos de Libertação Nacional (Brasil)

VPR – Vanguarda Popular Revolucionária (Brasil)

PT – Partido dos Trabalhadores (Brasil)

DS – Democracia Socialista (Brasil)

PSOL – Partido Socialismo e Liberdade

MST - Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (Brasil)

CPT – Comissão Pastoral da Terra

TL – Teologia da Libertação

FSM – Fórum Social Mundial

EZLN - Exército Zapatista de Libertação Nacional (México)

POI – Partido Operário Internacionalista (França)

PCI – Partido Comunista Internacionalista (França)

JC - Juventudes Comunistas (França)

UEC – União dos Estudantes Comunistas (França)

UNEF – União Nacional dos Estudantes da França

JCR - Juventude Comunista Revolucionária (França)

PCF - Partido Comunista Francês

FCR – Frente Comunista Revolucionária (França)

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LC - Liga Comunista (França)

LCR - Liga Comunista Revolucionária (França)

SU – Secretariado Unificado da IV Internacional

NPA – Novo Partido Anticapitalista

PSU – Partido Socialista Unificado (França)

SFIO - Secção Francesa da Internacional Operária (França)

PS – Partido Socialista (França)

GP – Esquerda Proletária (Gauche prolétarienne – França)

UJCML – União das Juventudes Marxistas-Leninistas (França)

AJR – Aliança dos Jovens Revolucionários pelo socialismo (França)

OCI – Organização Comunista Internacionalista (França)

LO – Luta Operária (França)

PG – Partido de Esquerda (Parti de Gauche – França)

FG – Frente de Esquerda (Front de Gauche – França)

EELV - Europe Écologie Les Verts (França)

FHAR – Frente Homossexual de Ação Revolucionária (França)

ON – Ordem Nova (França)

FN – Frente Nacional (França)

AFA – Ação Antifascista (França)

JNR – Juventudes Nacionalistas Revolucionárias (França)

CGT - Confederação Geral do Trabalho (França)

SUD - União Sindical Solidariedade (França)

CFDT - Confederação Francesa Democrática do Trabalho (França)

EHESS – Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais (França)

ENS – Escola Normal Superior (França)

CNRS – Centro Nacional de Pesquisa Científica

SPRAT – Sociedade pela Resistência ao Ar do Tempo (França)

ATTAC – Associação pela taxação das transações financeiras e pela ação cidadã

SDS – União Estudantil Socialista (Alemanha)

ETA – Pátria Basca e Liberdade (Euskadi Ta Askatasuna – País Basco/Espanha)

MIR – Movimento da Esquerda Revolucionária (Movimiento de la Izquierda Revolucionaria

– Chile)

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PRT – Partido Revolucionário dos Trabalhadores (Argentina)

PST - Partido Socialista dos Trabalhadores (Argentina)

ERP - Exército Revolucionário do Povo (Argentina)

PO – Partido Operário (Argentina)

SWP – Partido Socialista dos Trabalhadores (Socialist Workers Party - EUA)

WRP – Partido Revolucionário dos Trabalhadores (Workers Revolutionary Party – Inglaterra)

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Sumário

Introdução

1. Trajetórias intelectuais entre passado e presente.......................................................................15

2. Qual sociologia dos intelectuais hoje?.......................................................................................22

3. Intelectuais, política e classes sociais no debate sociológico.....................................................29

4. Intelectuais engajados ou militantes intelectuais........................................................................52

I Parte

Intelectuais e política: em busca da subjetividade revolucionária

1. Entre a esquerda revolucionária e o marxismo ocidental: o itinerário intelectual de

Michael Löwy nos anos 1950, 60 e 70..........................................................................67

1.1. Tempos de formação: a infância e adolescência paulistana de Michael Löwy...........................67

1.2. Löwy, o jovem Marx e Paris: um rendez-vous non manqué.......................................................77

1.3. Anos 1970: um marxismo humanista, historicista e revolucionário...........................................89

1.4. Admissão no CNRS e sociologia do conhecimento..................................................................106

1.5. Virada benjaminiana e entrada em “sociologia da religião”.....................................................118

2. Um “intelectual orgânico” da extrema-esquerda: Daniel Bensaïd ou o primado da

política leninista

2.1. Infância e adolescência toulouseanas: do PCF ao “trotsko-guevarismo”.................................124

2.2. Pós-68: o “leninismo apressado” e a tentação militarista.........................................................132

2.3. 1974 e a criação da LCR: a atualização da estratégia leninista-revolucionária........................159

2.4. Os sombrios anos 1980: entre política e profissão...........................................................................168

3. A “última geração de outubro”.................................................................................................174

3.1. Maio de 68 e o trotskismo ultraleninista da Liga Comunista (1969-73) ...................................176

3.2. LCR: lócus de intelectuais revolucionários? ............................................................................183

3.3. Travessia no deserto: resistência e renovação nos anos 1980.........................................................187

II Parte

Pensar a derrota sem perder a esperança: sociologia de uma inflexão

benjaminiana............................................................................................................................. .....................199

4. Walter Benjamin: um intelectual “out of joint”………………………………………….201

4.1. Benjamin e Paris: esperança e melancolia................................................................................213

4.2. Recepção, atualização e reinterpretação: Qual atualidade benjaminiana? ...............................222

5. Romântico, marxista e messiânico: o Benjamin de Michael Löwy

5.1. Intelectuais judeus, párias e rebeldes na Europa Central..........................................................232

5.2. Política, messianismo e metafísica em Benjamin.....................................................................236

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5.3. Religiosidade utópica na América Latina: o cristianismo de libertação....................................245

5.4. Religião, política e utopia: entre Lucien Goldmann e Ernst Bloch...........................................253

6. À esquerda do possível: o Benjamin de Daniel Bensaïd

6.1. O passado (no presente) em questão.........................................................................................258

6.2. “Razão messiânica”: estratégia intelectual no coração da catástrofe......................................265

6.3. Messianismo estratégico contra a utopia..................................................................................270

6.4. Uma virada sem volta: continuidades e descontinuidades........................................................273

6.5. Convergências (e discordâncias) benjaminianas: entre política e teologia...............................278

III Parte

Reverberações benjaminianas..............................................................................................289

7. Marxismo e críticas da modernidade em Michael Löwy

7.1. Romantismo e marxismo: dilemas do anticapitalismo.............................................................290

7.2. O espectro weberiano: distâncias e aproximações....................................................................309

7.3. Crise civilizatória, questão ecossocialista e movimentos sociais: o marxismo na

berlinda....................................................................................................................................325

8. Daniel Bensaïd entre resistência intelectual e reposicionamento político

8.1. Ética e política da resistência....................................................................................................345

8.2. Engajamentos e polêmicas intelectuais....................................................................................360

8.3. Da “atualidade da revolução” à política profana dos oprimidos.............................................378

9. O despertar da esquerda radical

9.1. O novembro de 1995 francês e o renascimento da LCR...........................................................398

9.2. Passagem de gerações: de Löwy e Bensaïd a Olivier Besancenot............................................405

Considerações finais - Afinidades e antinomias benjaminianas: Michael Löwy, Daniel

Bensaïd e os dilemas do marxismo contemporâneo.............................................................412

Bibliografia.................................................................................................................... ....................418

Anexo - Breve biografia dos entrevistados...........................................................................447

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Introdução

1. Trajetórias intelectuais entre passado e presente

O objetivo desta tese, ora apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia do

IFCH, da UNICAMP, e para cuja realização foi possível contar com um estágio de um ano na

École de Hauts Études en Sciences Sociales, em Paris, é analisar a obra e a trajetória de dois

intelectuais contemporâneos cujos percursos sintetizam, em alguma medida, as grandezas e os

limites da condição de intelectuais engajados à extrema-esquerda do espectro político hoje,

espreitados entre a respeitabilidade acadêmica-intelectual (com seu habitus específico) e a

convicção político-anticapitalista inescapável: Michael Löwy e Daniel Bensaïd.

Trata-se, como se sabe, de dois herdeiros tanto da tradição da esquerda política

revolucionária – oriunda de marxistas “clássicos” como Marx, Lênin, Rosa Luxemburgo e

Trotsky –, quanto da tradição filosófica e sociológica vinculada ao “marxismo ocidental”, que

vivenciaram as transformações resultantes no declínio dessas duas tradições político-

intelectuais a partir do final dos anos 1970, sem renegá-las, buscando ao contrário reativá-las,

renovando-as à luz das novas condições de possibilidade que se impunham gradativamente aos

intelectuais marxistas “críticos”. A análise da obra e do percurso de ambos, dos anos 1950/60

até 2010, data da morte de Bensaïd, destacando as transformações pelas quais passaram e, em

especial, a forma como – através, em grande medida, de uma interpretação bastante singular de

Walter Benjamin – enfrentaram os novos desafios ao marxismo a partir dos anos 1980, pode

significar, portanto, se bem efetuada, uma contribuição relevante para a história e a sociologia

dos intelectuais e suas ideias nas sociedades contemporâneas, permitindo, ao mesmo tempo,

visualizar algumas de suas possibilidades futuras, uma vez que se trata de um processo de

transição histórica, cultural e ideológica ainda em andamento, e cujo desfecho (ainda) é incerto.

Nascidos, respectivamente, em 1938 e 1946, o primeiro em São Paulo, o segundo em

Toulouse, Löwy e Bensaïd optaram desde muito jovens, pelas razões que veremos, por se

tornarem militantes socialistas: em grande medida, a escolha pelo trabalho intelectual, e em

especial por carreiras acadêmicas que melhor o propiciam (as ciências sociais e a filosofia)

decorre dessa perspectiva política “fundacional”, a qual delimitou o campo de possibilidades

sob o qual se moveram os dois intelectuais quando jovens. Com apenas 16 anos, ambos

iniciaram suas trajetórias político-militantes, Löwy em pequenas organizações da esquerda

revolucionária anti-stalinista brasileira (a LSI e, depois, a POLOP), Bensaïd na organização de

juventude (as JCs) do então imponente PCF, que ainda colhia os frutos – malgrado os abalos

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causados pelas revelações de Khrushchov no XX Congresso da URSS e pela invasão soviética

da Hungria, em 1956 – da popularidade conquistada após a Liberação.

Desde então, e com mais intensidade no caso de Daniel Bensaïd, a ótica da luta política

condicionaria em larga medida suas perspectivas, assim como suas trajetórias intelectuais, de

tal forma que não se pode abordar uma sem revelar suas conexões com a outra. Tanto quanto,

ou ainda mais, do que as inferências específicas do campo acadêmico ou intelectual, os

acontecimentos e/ou os debates político-ideológicos extra-acadêmicos jogam um papel

determinante nas bifurcações e possibilidades que foram se abrindo (ou se fechando) ao longo

de seus percursos, os quais não estavam, muito pelo contrário, definidos de antemão. Investigar

as possibilidades não efetivadas, quer dizer, aquilo que poderia ter sido mas não foi, constituiu

evidentemente também uma das preocupações da pesquisa, uma vez que essa abordagem, se

não evita, ao menos desestimula a tentação à “ilusão biográfica”, na qual o percurso do

intelectual em questão reduz-se a uma sucessão de etapas de um desenvolvimento necessário,

como se o que aconteceu no passado estivesse destinado a desembocar naquilo que se apresenta

no presente.

Oriundos de uma geração que despertou para a vida política sob os impulsos da

radicalização das lutas “terceiro-mundistas” (Cuba, Argélia, Vietnã), a partir da virada para os

anos 1960, tanto Löwy quanto Bensaïd puderam usufruir de uma formação teórico-cultural viva,

em contato permanente com os (não poucos) acontecimentos da época. Seja como ativista

político na linha de frente da batalha (como Bensaïd em “maio de 68”) ou como espectador

engajado e/ou interessado (tal qual, por exemplo, Michael Löwy na revolução portuguesa em

1975, na condição de “observante participativo” enviado pela IV Internacional), ambos

vivenciaram, de fato, alguns dos principais acontecimentos políticos das décadas de 1960 e

1970 e, mais tarde, dos anos 1990 e 2000. Ainda mais porque, por motivos sobretudo políticos,

mas também intelectuais-acadêmicos ou mesmo pessoais, tanto Löwy quanto Bensaïd

estabeleceram fortes laços internacionais, em especial nos outros países da Europa e na América

Latina, esta última uma espécie de paixão obsessiva dos dois intelectuais. Essas relações – mais

do que do apenas com pessoas, com círculos políticos ou intelectuais – permitiram-lhes alargar

na medida do possível o horizonte não apenas de seus interesses, senão também da ótica através

da qual abordá-los.

Politicamente, ambos pertencem a uma geração de transição, que entra para a militância

por volta da virada dos anos 1960 (ou um pouco antes, no caso de Löwy), vivencia a ascensão,

após 1968, do marxismo e da esquerda política revolucionária anti-stalinista na Europa,

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sentindo os impactos, na virada para a década de 1980, do refluxo das lutas políticas e do

declínio vertiginoso do marxismo no interior do campo intelectual francês e europeu.

Espectadores engajados dessas transformações históricas, Löwy e Bensaïd fizeram parte da

“última geração de Outubro”, conforme a expressão de Benjamin Stora, última geração da

esquerda a tomar como modelo hegemônico a revolução russa de outubro de 1917, no âmbito

de um período até então caracterizado como o da “atualidade da revolução”, segundo o termo

cunhado por Lukács em referência ao pensamento político de Lênin4.

Após os sombrios anos 1980, essa época histórica se fecha definitivamente em 1989-

1991, sem que uma nova tenha ainda emergido: não se trata, bem entendido, do esgotamento

definitivo das energias revolucionárias, sobre cujo futuro pouco se pode prever, mas sim do fim

de uma determinada época histórica, na qual, para uma parcela nada desprezível da esquerda

político-revolucionária, tratava-se de se estimular um processo de ruptura com o capitalismo

semelhante ao impulsionado pelos bolcheviques russos em 1917. A desagregação da URSS e

dos países do leste, sintomas da derrocada final do stalinismo, em vez de estimular o

renascimento do modelo de 1917, como apostavam alguns trotskistas, significou o início de

uma rediscussão das condições de possibilidade de uma estratégia revolucionária, deslocando

o eixo do debate para aspectos até então tidos como cláusulas pétreas, signos de distinção dos

revolucionários em relação às outras forças sociais se reclamando das classes trabalhadoras.

Vivenciando direta ou indiretamente esses acontecimentos políticos, assim como seus

efeitos no plano dos debates intelectuais ora em curso, Michael Löwy e Daniel Bensaïd

visualizaram no tournant que começara a se anunciar já na virada para os anos 1980 um

momento no qual se impunha a mise en œuvre de um processo de renovação do marxismo, tanto

no que se refere à sua abordagem teórica quanto à sua capacidade de diálogo com outras

tradições do pensamento crítico. Assim, após passarem por esta transição de época, buscando

dela extrair a matéria para um marxismo afinado ao novo tempo, ambos os intelectuais se

afirmaram nas décadas de 1990 e 2000, momento de reemergência da crítica social e política,

como importantes representantes do que o sociólogo franco-suíço Razmig Keucheyan designou

como “pensamentos críticos contemporâneos”, no plural, em decorrência da diversidade

inevitável dos autores que compõem essa categoria.

Como demonstra muito bem Keucheyan, em um trabalho por ele mesmo denominado

de “sociologia das ideias”, os principais “pensadores críticos contemporâneos” pertencem,

4 Cf. Benjamin Stora, La dernière génération d’Octobre. Paris: Hachette, 2008.

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grosso modo, às mesmas gerações de Michael Löwy e Daniel Bensaïd: “As teorias críticas de

hoje não são elaboradas por ‘novos’ teóricos”, ou seja, por “intelectuais biologicamente

jovens”. É bem verdade, diz ele, que “existem atualmente jovens autores que desenvolvem

pensamentos críticos inovadores, mas os pensadores críticos reconhecidos no espaço público

passaram, na maior parte dos casos, dos 60 anos, e às vezes até mesmo dos 70”. Não por acaso,

por mais “contemporâneos” que eles sejam, “as análises desses autores são, para uma parte

importante dentre eles, o fruto de experiências políticas no âmbito de um ciclo político passado,

aquele dos anos de 1960 e 1970”5. Em outras palavras: “As novas teorias críticas são elaboradas

pelos ‘veteranos’ do pensamento crítico, quer dizer, por pensadores cujas características

sociológicas e cujas ideias são originárias do período anterior”6.

Trata-se, assim, de uma geração de passeurs, que, tendo vivenciado maio de 68 e o

apogeu do marxismo intelectual francês nas décadas de 60 e 70, buscaram reelaborar a reflexão

crítica sobre o capitalismo à luz das novas possibilidades abertas pelo renascimento das lutas

sociais a partir de meados da década de 1990. “As novas teorias críticas consistem assim no

esforço efetuado por intelectuais formados ao longo de um ciclo político já finalizado de pensar

a abertura de um novo ciclo, que nasce em algum momento entre a insurreição zapatista de

1994, as greves de dezembro de 1995 e as manifestações de Seattle de 1999”7. No interior da

tipologia construída por Keucheyan para designar as reações - no âmbito desse conjunto plural

que são os “pensadores críticos contemporâneos” - ao refluxo dos movimentos políticos e

sociais a partir do final da década de 1970 (“convertidos”, “pessimistas”, “resistentes”,

“inovadores”, “experts” e “dirigentes”), Michael Löwy e Daniel Bensaïd filiam-se ao mesmo

tempo, e num equilíbrio inelutavelmente instável, tanto aos “resistentes” quanto aos

“inovadores”, no primeiro caso porque – tal como boa parcela dos trotskistas8 – eles

mantiveram, mesmo após as derrotas e o tournant do final da década de 1970, suas posições

políticas e intelectuais de orientação marxista, e no segundo porque incorporaram, nesse

5 Razmig Keucheyan, Hémisphère gauche. Une cartographie des nouvelles pensées critiques. Paris: La

Découverte, 2013, p.51. Tradução livre. Salvo indicação em contrário, todas as citações de obras de línguas

estrangeiras deste trabalho foram traduzidas livremente por mim. 6 Idem, p.52. 7 Idem, p.51. 8 “Dentre os marxistas, os trotskistas fornecem um contingente importante de resistentes. Os comunistas se

referiam à URSS e seus países satélites, os maoístas à China, os terceiro-mundistas à Argélia ou Cuba, e os

socialdemocratas aos países escandinavos. Os trotskistas nunca puderam se referir a um regime ‘realmente

existente’ deste tipo, à exceção dos primeiros anos da revolução russa. Este fato explica de uma parte sua

debilidade numérica ao longo do século XX, mas também [porque] eles [foram] pouco afetados pelo colapso do

socialismo real. O trotskismo sempre foi uma corrente projetada para o futuro, que opôs à ‘traição’ stalinista uma

forma de autenticidade revolucionária”. Idem, p.92.

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período, um conjunto heterogêneo de referências teóricas e temáticas “externas” visando à

renovação ou enriquecimento do marxismo.

No plano teórico, “resistentes” como Michael Löwy e Daniel Bensaïd inscreveram suas

atividades teóricas no âmbito de uma “dialética aliando conservação e inovação”, da qual o

resgate da figura do “marrano” por parte de Bensaïd constitui – como veremos em detalhe mais

adiante – um exemplo quase ideal-típico. Judeus sefarditas, convertidos à força ao cristianismo

sob a Inquisição, os marranos conservaram secretamente a fé judaica praticando os rituais de

modo clandestino. Aos olhos do “resistente”, “inovador” e do “dirigente” Bensaïd ao longo dos

anos 1990 e 2000, o marrano caracteriza-se exatamente pela dialética entre continuidade e

ruptura em relação à tradição e ao passado, na qual se conserva o núcleo básico da tradição

revolucionária, transmitindo-a às novas gerações, mas, ao mesmo tempo, busca-se dotá-la de

condições para confrontar o novo “tempo-de-agora”, para utilizar a expressão benjaminiana.

Essa relação ativa com a tradição marxista – em uma dialética entre, de um lado, a resistência

e a fidelidade a um passado coletivo e, de outro, a necessidade de colocá-lo à prova dos desafios

políticos e intelectuais contemporâneos, sob pena do ostracismo – também caracteriza a

trajetória de Michael Löwy, em seu caso já a partir do início da década de 1980.

Ainda mais porque, desde meados dos anos 1970, o marxismo não constitui mais a

principal referência central dos pensamentos críticos contemporâneos, o que não é pouca coisa

quando se tem em conta que, desde a segunda metade do século XIX, ele havia se constituído

como a mais influente das teorias críticas9. Com a ascensão do estruturalismo, e depois do pós-

estruturalismo, na França na década de 1970, o marxismo, “pela primeira vez na sua história,

encontrou um concorrente digno desse nome, perdendo a hegemonia teórica da qual dispunha

até então na esquerda”. Segundo Razmig Keucheyan, “vários dos teóricos críticos reivindicam

hoje uma forma ou outra de estruturalismo ou de pós-estruturalismo”.

Nesse processo, o próprio marxismo, mais do que nunca, diversifica-se em uma

pluralidade de vertentes, levando às últimas consequências uma característica que lhe é

inelutável desde seus primórdios – um marxismo como o de Kautsky, por exemplo, pouco tem

a ver com o de Benjamin ou o de Adorno. Simultaneamente ao seu declínio como corrente

capaz de influenciar o debate político e/ou intelectual, verifica-se então a irrupção do que André

Tosel – inspirando-se em expressão cunhada originalmente por Immanuel Wallerstein –

9 “Seu reinado [do marxismo] era indiscutível, inclusive nas regiões onde teorias críticas concorrentes, como o

anarquismo, estavam bem implantadas”. Idem, p.39.

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chamou de “mil marxismos”, desde pelo menos 1989. Muito além do “fim do marxismo”, como

aventado por alguns neoliberais eufóricos na virada para os anos 1990, assistir-se-ia nas últimas

décadas, segundo Tosel, à floração dispersa e sem grande influência na prática social concreta,

de uma pluralidade de marxismos, que significam o fim não do marxismo, e sim de um ciclo

de sua história, marcado pela “dialética” entre o “marxismo-leninismo como ortodoxia una e

dominante” e as “grandes heresias marxistas” envoltas com a esperança de um marxismo

igualmente unificado mas autêntico10.

Se o fim do ciclo do “marxismo ocidental” se manifestou, na França, em meados da

década de 1970 (tendo já sido abalado em maio de 68), o esgotamento das ortodoxias “marxista-

leninistas”, embora também iniciado em 1968 e nas décadas seguintes, não se efetivou

plenamente senão com os acontecimentos políticos de 1989-1991, que colocaram por terra as

ditaduras burocráticas na URSS e no leste europeu. Mais amplamente, esses “mil marxismos”

desenvolvem-se simultaneamente à ascensão e à crise do liberalismo, no âmbito do processo de

mundialização capitalista que ganhou novo fôlego na virada para os anos 1990. Em outras

palavras: “a queda do muro de Berlim seguida do fim da URSS, abre definitivamente o período

dos mil marxismos, que se confrontam à mundialização capitalista e à vasta empresa de

desemancipação que o acompanha”11. De onde, aliás, a tentativa de aproximação, por parte de

alguns dos representantes desses “mil marxismos”, com os chamados movimentos

“altermundialistas”, que recolocaram em questão a crítica social através da crítica da

mundialização capitalista, proporcionando um novo impulso à produção teórica marxista.

Após a desagregação do “marxismo ocidental” e o declínio das lutas do “movimento

operário como movimento anti-sistêmico” (por um tempo substituído pelo “movimento

nacional-popular anti-imperialista”), a emergência do período histórico dos mil marxismos

“representa – segundo Tosel - a maior fratura da história do marxismo, e impõe a um só tempo

o trabalho de luto de uma certa continuidade e a tarefa de pensar uma unidade [possível]”. Após

1968, até meados da década de 1970, desenvolveram-se as últimas tentativas de renovação da

teoria marxista inscritas na esteira da III Internacional ou às suas margens12, dentre as quais se

destacava aquela da Liga Comunista Revolucionária, através notadamente da pena de Daniel

Bensaïd, principal responsável pela explicitação teórica da perspectiva política da organização.

Esgotado esse último suspiro de um “marxismo-leninismo” hostil à sua versão stalinista e capaz

10 André Tosel, « Devenir du marxisme de la fin du léninisme aux mille marxismes (France et Italie) ». Le

marxisme du XXe siècle. Paris : Syllepse, 2009, pp.59-96 (p.64). 11 Idem, p.79. 12 Idem, p.59.

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de com ela rivalizar, um novo laço – mais frágil e instável – se estabelece com a tradição

marxista-revolucionária do passado. “Afastados da prática política dos antigos partidos

comunistas [e] em busca de novo vínculo da teoria e da prática”, os mil marxismos “constituem

a forma frágil da continuidade interrompida e descontinua com a tradição marxista”13.

Michael Löwy e Daniel Bensaïd são ao mesmo tempo resultado e atores ativos desse

processo de fim de um ciclo e de transição incerta para um outro, que já não apresenta, e nem

poderia – dada a amplitude da derrota política e intelectual em questão –, as mesmas condições

de possibilidade para a aliança entre atividade teórica marxista e prática política revolucionária.

Daí uma abertura, na reflexão de ambos, abertura que é característica dos “mil marxismos”,

para as novas formas de crítica teórica e de movimento social “anticapitalista” do final do século

XX e começo do XXI. Os dilemas que eles enfrentam nessa empreitada, em se tratando de dois

intelectuais para os quais a unidade entre teoria e prática (e, portanto, o engajamento intelectual)

continua sendo um elemento decisivo do marxismo, refletem de alguma forma os limites a eles

impostos pela própria fragilidade dessa unidade hoje, desprovida de bases concretas com

relativo peso político (e intelectual).

Evidentemente, como já havia demonstrado Perry Anderson em seu ensaio sobre o

“marxismo ocidental”14, a distância entre os intelectuais críticos e as organizações operárias

e/ou populares impacta de forma decisiva o tipo de teoria por eles produzida, ainda que esses

intelectuais sigam militando seja em pequenos partidos da extrema-esquerda ou, no caso

contemporâneo, no interior de alguma das diversas organizações ligadas ao movimento

altermundialista. Mesmo porque, conforme sustenta Razmig Keucheyan, “ser membro do

Partido operário socialdemocrata da Rússia no início do século XX não comporta as mesmas

obrigações que a participação no conselho científico da Attac”15. No segundo caso, se o

intelectual em questão resguarda seu tempo para se tornar um professor e/ou pesquisador

universitário, com um distanciamento que lhe garante maior percepção crítica da própria

esquerda, ele perde, por outro lado, algo da oxigenação que, para todos os intelectuais

identificados com o marxismo ou com alguma teoria crítica do capitalismo, significa a

13 Idem, p.64. 14 Perry Anderson, Considerações sobre o marxismo ocidental / Nas trilhas do materialismo histórico. São Paulo:

Boitempo, 2004. Sobre a relação entre derrota política e produção teórica dos intelectuais de esquerda, ver: Razmig

Keucheyan, “Figures de la défaite. Sur les conséquences théoriques des défaites politiques”, in: Contretemps, n.3

(nova série), 2009. 15 Razmig Keucheyan, Hémisphère Gauche. Une cartographie des nouvelles pensées critiques, op.cit., p.23.

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participação em uma organização capaz de influenciar os debates políticos e intelectuais da

época.

Em larga medida, como se poderá conferir ao longo deste trabalho, a recorrência algo

abstrata à aposta messiânica ou às utopias (no caso de Löwy) significa, na reflexão

contemporânea dos dois autores, uma tentativa de preencher esse vazio, sob a forma de uma

antecipação que, quiçá, poderá se materializar no futuro através de uma nova articulação entre

teoria crítica e prática revolucionária. Essa aliança não pode mais ser visualizada como um

desenvolvimento inelutável da dialética inscrita na lógica da dominação burguesa, mas sim

como esforço consciente de uma resistência comum, entendida como um primeiro passo para a

reconstrução, sobre novas bases, de uma unidade possível. Assim, como diz André Tosel a

propósito de Bensaïd: “o comunismo não é mais pensado, ao modo marxiano positivo, como a

realização dos possíveis impedidos pela dominação capitalista, mas como um esforço ético e

político para resistir à catástrofe que ameaça”16. À diferença de muitos dos seus colegas, “que

frequentemente aderiram ao Partido Socialista para nele se dissolver”, tal como os

“convertidos” de que fala Keucheyan, Daniel Bensaïd representaria, segundo Tosel, “um

pensador da revolução na época do seu declínio”17. O mesmo se pode dizer, grosso modo, de

Michael Löwy: em linha benjaminiana, a revolução é concebida antes de tudo como ato de

resistência e aposta na possibilidade de um outro futuro.

2. Qual sociologia dos intelectuais hoje?

Ora, se, por um lado, o fato de terem vivenciado esse conjunto de transformações

históricas, políticas e intelectuais garante a relevância sociológica, por assim dizer, das

trajetórias de Michael Löwy e de Daniel Bensaïd, essa condição de intelectuais marxistas

contemporâneos impõe importantes dificuldades e desafios à análise. Em primeiro lugar, em

função da proximidade temporal: embora constituídas, em seu período de formação, nas

décadas de 1960 e 1970, suas trajetórias chegam até a época contemporânea, revelando questões

e desafios que são aqueles do presente. Mesmo no caso de Daniel Bensaïd, já falecido (2010),

trata-se de uma obra cujos contornos, em especial no que diz respeito à sua reflexão

propriamente filosófica, elaborou-se em contato com um mundo em transformação que ainda

16 Idem, p.91. 17 Fabio Mascaro Querido, “Para uma história marxista do marxismo: passado e presente – Entrevista com André

Tosel”. In: Crítica Marxista, n.40. São Paulo: Editora da Unesp, 2015, p.149.

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é, em grande medida, o mundo em que vivemos. Mais ainda em se tratando de Löwy, que segue

vivo e, até o presente, em plena forma intelectual, já avistando as oito décadas de vida (que

completará em 2018).

Com efeito, como analisar sociologicamente a trajetória de dois intelectuais cuja história

ainda nos é basicamente contemporânea? Talvez uma primeira aproximação à resposta resida

no fato de que Löwy e Bensaïd trilharam um percurso em cujo núcleo se encontram os traços

de uma transição de época que, embora ainda esteja em aberto nas suas consequências finais,

se completou no que diz respeito à distinção cultural em relação à época precedente, como

buscaremos demonstrar. Em consequência, se elas “chegam” até nós, em particular até as jovens

gerações de hoje (nas quais se inclui este que escreve), nos sendo, portanto, contemporâneas,

suas trajetórias intelectuais carregam a marca de uma época cujo contraste com o mundo atual

constitui um dos seus elementos definidores.

Outra dificuldade imposta à análise se deve ao fato de que tanto Löwy quanto Bensaïd

constituíram seus percursos simultaneamente ao declínio não apenas da intelligentsia de

esquerda, senão também dos intelectuais de uma forma geral. Em outras palavras, ambos são

intelectuais em um momento em que estes não mais gozam da mesma aura e, sobretudo, do

mesmo poder de influência que até outrora, meados dos anos 1970, eles detinham na França e

na Europa. Como diz Enzo Traverso: “A figura do intelectual atravessou o século XX. Ela surge

na aurora da modernidade e parece desparecer no início do século XXI, quer dizer, no período

que se abre com a queda do muro de Berlim (1989). Ora, o século XX foi uma época de conflitos

políticos e ideológicos, marcado pelos movimentos sociais de grande amplitude nos quais os

intelectuais foram chamados a jogar um papel: a guerra da Espanha, a Resistência, a guerra da

Argélia, a guerra do Vietnã, a luta pelos direitos civis dos negros americanos... Mas, ao final da

guerra fria, a paisagem mudou”18.

Intelectuais em uma época caracterizada pela massificação do ensino superior e pela

proletarização das camadas intelectuais, Michael Löwy e Daniel Bensaïd são contemporâneos

de mudanças importantes no campo intelectual, tendencialmente reduzido à torre de marfim

acadêmica em um momento em que esta perde importância social e política. Muitas vezes a

única opção viável de carreira profissional capaz de assegurar um tempo mínimo para a

pesquisa, essa inserção no espaço universitário doravante socialmente desprestigiado (em

comparação com o passado) não poderia deixar de impactar a produção teórica dos pensadores

18 Enzo Traverso, Où sont passés les intellectuels ? Conversation avec Régis Meyran. Paris : Textuel, p.51.

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críticos. Mais ainda porque, a essa situação seguiu-se uma mudança geográfica, com a ascensão

das universidades norte-americanas em detrimento daquelas da Europa continental: “ora, uma

vez que evoluem principalmente nos meios universitários, os teóricos críticos são submissos às

leis que os regem. Dentre essas, há uma fundamental, que é a dominação, sobre o mercado

mundial do ensino superior e da pesquisa, das universidades norte-americanas em matéria de

financiamentos, de publicações e de facilidades infra-estruturais”19.

Esse deslocamento geográfico da produção intelectual em geral e, em grande medida,

da produção intelectual dos teóricos críticos, já havia começado em meados dos anos 1970, na

esteira do fim do ciclo do “marxismo ocidental”, momento em que, como afirmara Perry

Anderson na mesma época, ao declínio da intelectualidade marxista-ocidental nos países da

Europa Latina (em especial França e Itália) acompanha-se a ascensão relativa do marxismo nos

países anglo-saxões, de início na Inglaterra e depois nos Estados Unidos. Mas o processo se

acelera nos anos 1980, ganhando novo fôlego e nova configuração, o marxismo cada vez mais

sendo suplantado por teorias críticas moduladas por outras formas de reflexão teórico-política,

como o pós-estruturalismo, que, por exemplo, embora de origem francesa, condicionou os

debates sobre as “políticas de identidade” nos EUA. A França, por sua vez, desde pelo menos

a irrupção midiática dos “novos filósofos” em 1975/6/7, seria palco de um tournant conservador

no plano intelectual, a tal ponto que Paris se torna, nessa época, “a capital da reação europeia”,

como a designou o mesmo Perry Anderson.

Nesse cenário, tanto Michael Löwy – cuja trajetória acadêmica começa bem cedo, com

o doutorado concluído aos 26 anos, ao qual se seguiu a carreira de professor em Israel, em

Manchester, professor-assistente em Vincennes e, finalmente, pesquisador e, depois, diretor de

pesquisas no CNRS em Paris, ao final dos anos 1970 –, quanto Daniel Bensaïd – que, ao

contrário, não realizou seu doutorado em ciência política senão em 1983, na Universidade de

Montpellier, já com 37 anos, começando a lecionar na mesma década na Universidade de Paris

VIII, em Saint-Denis – ocupam, em especial no caso do segundo, uma posição não apenas

objetivamente subalterna no campo acadêmico em geral, e nos círculos das ciências humanas

em particular, senão também subjetivamente percebida e valorizada como tal, como se se

buscasse deliberadamente uma demarcação diante de instâncias de consagração visualizadas

19 Razmig Keucheyan, Hémisphère Gauche, op.cit., p.36. O próprio Löwy atuou como professor-visitante em

várias universidades dos EUA.

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como conservadoras e hostis à vocação do intelectual militante, acusado de trazer para o interior

do campo motivações e perspectivas que lhes são (ou deveriam ser) alheias20.

Deste ponto de vista, não constitui um acaso o fato de que, nesse contexto, de diferentes

formas (um, com uma abordagem mais político-sociológica, através da análise de trajetórias, o

outro, sob uma ótica mais político-filosófica), tanto Löwy como Bensaïd tenham se dedicado à

reflexão sobre os intelectuais, talvez como uma forma de auto-análise, como que almejando

responder aos seus próprios dilemas enquanto intelectuais militantes em um mundo no qual a

especialização e a ascensão do “intelectual específico” são inversamente proporcionais ao

declínio do “capital simbólico” do intelectual envolvido em causas “universais”.

Em sua segunda tese de doutorado (doctorat d’État), por exemplo, um estudo de

“sociologia dos intelectuais revolucionários” a partir da análise da evolução político-ideológico

do jovem Lukács da visão trágico-romântica de mundo até o marxismo, finalizada em 1974,

Michael Löwy dedicou o último capítulo exatamente à reflexão sobre as transformações das

condições de possibilidade de radicalização dos intelectuais nos anos de 1960, em relação à

época de Lukács. Entre uma época e outra, poder-se-ia visualizar uma mudança substantiva nas

possibilidades de tomada de posição político-ideológica por parte dos intelectuais, em meio ao

processo de massificação e, mais importante ainda, de proletarização dos intelectuais. Se o

jovem Lukács constitui um dos casos mais emblemáticos de grandes intelectuais “tradicionais”,

humanistas, que, por força de uma recusa ética-moral individual de alguns princípios do

capitalismo, aderem ao marxismo e à luta revolucionária, bem diferentes seriam as formas de

engajamento socialista dos intelectuais no final dos anos 1960. Em comparação com a época

de Lukács, em especial entre 1914 e 1924, a “oposição radical dos intelectuais” ao capitalismo

e sua adesão ao movimento dos trabalhadores “assumiram um caráter mais de massa” a partir

de meados da década de 1960.

A despeito de uma certa nostalgia em relação aos grandes intelectuais humanistas do

passado, Löwy depositava – na esteira da vaga aberta em 1968 – significativas esperanças na

possibilidade de uma radicalização político-revolucionária massiva dos intelectuais, que

elevaria a um novo patamar aquilo que, no tempo de Lukács, restringia-se a alguns membros

20 Muito embora tenha tido uma carreira acadêmica bastante exitosa, com as consagrações correspondentes (ele

foi agraciado em 1994, por exemplo, com a “medalha de prata” do CNRS), Michael Löwy sempre manteve algo

de outsider no plano institucional, em função, entre outras coisas, da sua total ausência de ambição burocrática ou

de poder – mesmo sua integração no âmbito do grupo da sociologia de religião permanece parcial, talvez pela

singularidade de sua trajetória política e intelectual em relação à de seus colegas. Por outro lado, estabeleceu laços

sólidos com casas editoriais de todo o mundo (“consagradas” ou militantes), logrando um canal por onde publicar

seus livros em diversos países, às vezes de modo quase simultâneo.

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da intelligentsia. Para ele, “o itinerário político-ideológico de Lukács [é], sob vários aspectos,

exemplar e de uma espantosa atualidade. Hoje, mais do que nunca, extensas camadas de

intelectuais (sobretudo jovens) entram para o movimento operário, para o marxismo, para a

extrema-esquerda revolucionária, em consequência de certas determinações socioeconômicas

e movidos por motivos ético-culturais, por uma ardente e, por vezes, romântica repulsa pelo

capitalismo”21. Aos seus olhos, “mais do que no passado, hoje [1974] podemos contar com a

‘conquista ideológica’ dos intelectuais tradicionais pelo proletariado de que falava Gramsci,

mesmo que grande parte da intelligentsia ainda esteja visceralmente atada à burguesia e

continue a produzir e reproduzir a ideologia dominante”22.

Na ótica de Löwy, a explicação sociológica desse processo de radicalização dos

intelectuais, particularmente na França, nos anos 1960, reside tanto em transformações

estruturais objetivas do capitalismo, que atingem diretamente a categoria social dos intelectuais,

quanto na dinâmica específica da intelectualidade, cuja proximidade subjetiva com os valores

humanistas pode impulsioná-la na direção da oposição à realidade reificada e quantificada do

sistema capitalista. Com efeito, desde o final da segunda guerra, tal como demonstrara Ernest

Mandel em O capitalismo tardio, com a chamada “terceira revolução industrial” e a extensão

massiva do setor “terciário” (dos serviços), observa-se um salto qualitativo na

“industrialização” e “mercantilização” de todos as esferas da atividade social. Essas mutações

“objetivas”, que acarretam a emergência de uma “nova fração do proletariado”, o “proletariado

intelectual” – e não uma “nova pequena burguesia”, conforme a designação de Nicos Poulantzas

–, significa a um só tempo uma submissão dos trabalhadores intelectuais a um poder exterior,

obrigados a “traficar suas almas”, para parafrasear Balzac, e uma oportunidade para a sua

radicalização político-ideológico, cuja efetivação, porém, dependeria de características

específicas à categoria social dos intelectuais, cuja tomada de posição política passa por

“mediações essencialmente ‘superestruturais’, ideológicos, ético-culturais e político-morais”23.

Embora mais próximos do proletariado que do antigo mandarinato universitário, os

jovens intelectuais dos anos 60 também se ressentiam da contradição entre um “conjunto de

valores éticos, estéticos, humanos e culturais” e um mundo, o capitalismo, regido pela

quantificação mercantil, de tal forma que, também eles “se encontram, por assim dizer,

naturalmente, espontaneamente, organicamente, em contradição com o universo do

21 Michael Löwy, A evolução política de Lukács (1909-1929). São Paulo: Cortez, 1998, p.259, 260. 22 Idem, p.261, 262. 23 Idem, p.271.

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capitalismo, dirigido rigorosamente por valores quantitativos, os valores de troca”24. A

diferença é que, na década de 1960, simultaneamente ao avanço irresistível da mercantilização,

poder-se-ia observar uma ampliação significativa da resistência dos intelectuais aos valores (ou

à falta deles) identificados com o capitalismo. Nas palavras de Löwy: “Se a radicalização dos

intelectuais (sobretudo os jovens) atingiu hoje [1974] proporções de massa, muito mais

importantes que na época de Lukács, é porque a reificação, a dominação opressiva e irresistível

das ‘coisas’, a quantificação e a mercantilização, a ‘capitalização do espírito’ (Lukács) e a

comercialização da cultura desenvolveram-se numa escala muito maior”25. Os acontecimentos

de maio de 68 não seriam senão o estopim dessa “grande recusa” dos jovens estudantes e

intelectuais à beira da proletarização em face da dominação fetichista da mercadoria.

Segundo Löwy, em aliança com a classe operária, essa radicalização dos intelectuais

poderia sinalizar uma “nova chance histórica da revolução socialista na França”. Portadores de

um anticapitalismo radical, os intelectuais revolucionários poderiam tornar-se um “sustentáculo

da vanguarda revolucionária”, levando às últimas consequências a “contestação total, política,

cultural e moral do sistema capitalista”. Em suma, o intelectual radicalizado, anticapitalista,

tornar-se-ia o legatário da “revolução total” de que falava Henri Lefebvre. Afinal, “o que o

intelectual que se tornou anticapitalista recusa não é tal ou qual aspecto quantitativo, parcial,

superficial, do modo de produção capitalista, mas seu fundamento: a dominação de toda a vida

humana pelo valor de troca. O que deseja não é uma melhora, uma reforma ou uma acomodação

do sistema, mas sua devastação total, e sua substituição por um modo de vida qualitativamente

diferente. Donde o fato paradoxal de que a extrema esquerda do movimento operário seja

composta frequentemente por grande número de intelectuais e estudantes”26.

Retrospectivamente, não é difícil visualizar a dimensão algo otimista e idealizada das

esperanças depositadas por Löwy nas consequências políticas do processo de radicalização dos

intelectuais, ainda que, à época, a aposta tinha alguma base real, tendo em vista as mutações

socioculturais e universitárias na França dos anos 1960, as quais atingiam em cheio uma nova

geração – nascida no pós-guerra –, os baby-boomers, que acabaram por revelar uma disposição

então inesperada à politização e à adesão à extrema-esquerda revolucionária, em oposição ao

“reformismo” identificado ao PCF. Na realidade, o próprio Löwy e, em maior medida, Daniel

Bensaïd, constituem de alguma forma expressões desse processo descrito pelo primeiro.

24 Idem, p.29. 25 Idem, p.271. 26 Idem, p.283.

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Estudantes e intelectuais desde cedo engajados na militância socialista, ambos aderem à

esquerda revolucionária anti-stalinista, acabando por se encontrar, já na França no final da

década de 1960, nas fileiras da trotskista Liga Comunista, em um momento em que esta, assim

como outras organizações (maoístas ou libertárias) oxigenadas pelo maio de 68, estavam em

plena ascensão. Era compreensível, portanto, até certo ponto, que Löwy apostasse, na tese

redigida nos primeiros anos da década de 1960, na possibilidade de uma nova aliança histórica

entre o movimento dos trabalhadores e os intelectuais revolucionários, estes últimos servindo

como caução face à tentação do reformismo. Vivia-se, afinal, talvez o último período da

“atualidade da revolução”.

Ora, sabe-se bem que, a partir do final da década de 1970, as condições políticas para a

radicalização e o engajamento dos intelectuais revelar-se-iam duramente transformadas. Ainda

que de uma forma implícita, essas mutações políticas impactaram as trajetórias de Michael

Löwy e de Daniel Bensaïd. Se este último ainda permanecia, à época, defendendo a unidade à

maneira clássica entre trabalhadores e intelectuais revolucionários, Löwy, por seu lado, dá

início a uma nova etapa de suas reflexões sobre os intelectuais anticapitalistas, cujo parâmetro

ideal-típico será a figura de Walter Benjamin, autor que ele “redescobre”, como se verá, em

1979. Nessa mesma época, começam as suas pesquisas sobre os intelectuais judeus romântico-

messiânicos e “esquerdizantes”, marxistas e/ou libertários, ou tudo isso ao mesmo tempo, como

no caso de Benjamin, que, tal como se observa em um dos aforismos de Rua de Mão Única, “O

caráter destrutivo”, encontrava-se no “cruzamento dos caminhos”.

Pelas razões que buscaremos (ao menos parcialmente) explicar e explicitar, Löwy

visualiza em Benjamin, desde então, tal como o fará mais tarde Daniel Bensaïd, a um só tempo

um exemplo concreto de intelectual radicalizado, heterodoxo, que carrega em si diversas formas

possíveis de crítica do capitalismo, e uma bússola para a significativa abertura temática e teórica

de suas reflexões futuras. De agora em diante, o espectro de Benjamin interfere tanto na escolha

dos “objetos” quanto no tratamento dado a eles. Se até então a obra de Löwy se caracterizava

por análises - à luz do método da “sociologia da cultura” de Lucien Goldmann - de intelectuais

marxistas “clássicos”, por assim dizer, como – além do próprio Marx, tema da tese de doutorado

– Rosa Luxemburgo, Lênin e Lukács, dentre outros, buscando destacar sua evolução político-

ideológica, agora ele extrapola os limites do marxismo não apenas de um ponto de vista

temático, senão também de uma perspectiva teórica, mais “aberta” a influxos “externos”, à

procura das afinidades eletivas possíveis entre formas diferentes do anticapitalismo.

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29

É nesse contexto, no qual se perfilam em sua escala de interesses uma plêiade de

intelectuais anticapitalistas “heréticos”, responsáveis por recusas frequentemente ambivalentes

– e sem a caução do marxismo e da aliança com a classe operária – do capitalismo ou, ainda

mais, da modernidade, que Michael Löwy intensifica sua valorização (parcial e condicionada,

é bem verdade) da concepção dos intelectuais desenvolvida por Karl Mannheim em Ideologia

e Utopia. Já manifestada em seus trabalhos anteriores, como a tese sobre Lukács ou,

principalmente, em seus estudos sobre a sociologia do conhecimento, todos os dois realizados

na década de 1970, esse elogio da óptica mannheimniana acerca dos intelectuais “sem

vínculos”, “livremente flutuante”, assume sua máxima expressão a partir da virada para os 80,

exatamente (não por acaso) quando Benjamin é alçado ao centro de seu horizonte intelectual.

Ainda que, à diferença de Mannheim, Löwy jamais acate plenamente a tese do caráter

permanentemente “flutuante” dos intelectuais, insistindo sobre a necessidade, em um momento

ou outro, de estes assumirem um dos pontos de vista em disputa – os quais estão sempre direta

ou indiretamente vinculados a grupos ou classes sociais concretas –, ele parece visualizar nessa

concepção bastante “positiva” dos intelectuais uma espécie de “resposta” a um declínio da

categoria social dos intelectuais cuja raiz reside, na verdade, no declínio das “grandes

narrativas” universais, das quais eram portadores os intelectuais “engajados” no auge do

marxismo francês em meados da década de 1960. Em outras palavras, se a hipótese se confirma,

essa fidelidade a uma visão dos intelectuais “humanistas” que, fiéis ao seu vínculo específico

com os valores qualitativos que os definem, acabariam por questionar radicalmente o sistema

capitalista e seus valores meramente quantitativos, seria uma forma de contrabalançar a virada

conservadora do campo acadêmico e intelectual francês, que coincide com a desmoralização do

velho intelectual engajado em causas mais ou menos “universais”.

3. Intelectuais, política e classes sociais no debate sociológico

Esse conjunto de fatores e especificidades relacionadas à condição dos intelectuais na

época contemporânea condiciona, e nem poderia ser diferente, as possibilidades analíticas, por

assim dizer, que se colocam ao pesquisador das trajetórias de Michael Löwy e de Daniel

Bensaïd. De onde a necessidade de debater, à luz das singularidades dos intelectuais

contemporâneos, as possíveis formas de análise histórico-social ou sociológica dos intelectuais

e de suas obras e trajetórias.

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A questão dos intelectuais, e, em especial, o problema da relação entre intelectuais e

engajamento político é ao menos tão antigo como o surgimento do marxismo e do movimento

dos trabalhadores – embora o termo tenha se popularizado, de fato, apenas com o chamado

affaire Dreyfus, no final do século XIX. Em particular porque os intelectuais, não pertencendo,

enquanto tal (salvo casos específicos), nem à burguesia e tampouco ao proletariado, se

apresentam sob o manto de uma autonomia relativa em relação às classes sociais, e, portanto,

em relação à realidade social. Categoria social definida, antes de tudo, por seu papel ideológico,

e não por seu posicionamento no processo de produção econômico, os intelectuais gozam de

uma certa autonomia diante das condições materiais, uma vez que, dentre os grupos sociais

estabelecidos, eles constituem aquele para o qual os valores, o mundo das ideias, detém maior

importância27. Assim, quando Karl Mannheim apresenta, em Ideologia e Utopia, sua concepção

da intelectualidade “livremente flutuante”, capaz de escapar das determinações particulares das

classes e grupos sociais, alcançando a “síntese” dos pontos de vistas diferentes, ele não faz

senão “absolutizar” e tornar “estável”, de forma algo idealista, diga-se de passagem, a

especificidade da condição dos intelectuais, mais próximos à pequena-burguesia, mas ainda

assim sem um enraizamento social pré-definido (a princípio, um intelectual pode ser originário

de não importa qual classe ou grupo social).

Todavia, se a categoria social dos intelectuais, à diferença das classes sociais, é

irredutível às análises deterministas (“sociologistas” ou marxistas-economicistas) que reduzem

a obra de um autor às determinações sociais de sua origem ou do seu “meio”, isso não significa,

em revanche, que as obras e trajetórias dos intelectuais só possam ser analisadas em seu

desenvolvimento puramente interno, cujo movimento independeria das agruras da

exterioridade histórico-social. Como defendera Lucien Goldmann, a compreensão de uma obra

pressupõe a sua integração à visão de mundo de um grupo e/ou classe social, a qual por sua vez

remete à totalidade histórica, socioeconômica e político-social de uma época. A questão central

aqui é como estabelecer as mediações entre o pensamento de um autor, a visão de mundo que

lhe garante uma estrutura significativa, a cena política, os debates intelectuais e ideológicos e,

enfim, o contexto histórico-social mais geral, condicionado pelo movimento articulado de uma

totalidade concreta em movimento.

27 Como escreveu Gramsci, “a relação entre os intelectuais e o mundo da produção não é imediata, como ocorre

no caso dos grupos sociais fundamentais, mas é ‘mediatizada’, em diversos graus, por todo o tecido social, pelo

conjunto das superestruturas, do qual os intelectuais são precisamente os ‘funcionários’”. Antonio Gramsci,

Cadernos do Cárcere. Os intelectuais. O princípio educativo. Jornalismo. Vol. II [edição e organização: Carlos

Nelson Coutinho]. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000, p.21.

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No âmbito específico da sociologia, Pierre Bourdieu foi responsável pela construção de

um modelo de análise que, sem dúvida, tornou-se, não apenas na França, uma das mais (se não

a mais) influentes referências teóricas das investigações sociológicas sobre os intelectuais.

Parte fundamental de sua sociologia reflexiva da cultura, a “sociologia dos intelectuais” que se

perfila na obra de Bourdieu assenta-se rigorosamente nos mesmos pressupostos teórico-

metodológicos que condicionam a sua tentativa ambiciosa de consolidar uma démarche

epistemológica especificamente sociológica, capaz de defini-la nitidamente em face das outras

disciplinas das ciências humanas, igualmente envoltas com questões referentes a aspectos da

realidade social. Como diz Pierre Mounier, “se, para Bourdieu, nenhuma sociologia é possível

sem uma sociologia da sociologia e, em consequência, sem uma sociologia dos intelectuais,

isso se deve ao fato que, desde os primórdios de seu trabalho, ele se interrogou sobre as

condições de possibilidade da cientificidade de tal disciplina”28.

Nessa perspectiva, um dos principais esforços de Pierre Bourdieu refere-se à sua

tentativa de distinguir a sociologia científica das análises filosóficas ou político-doutrinárias,

ambas, em especial no caso da primeira delas, formas de conhecimento que, para o sociólogo

francês, recaem na “fetichização da razão teórica” que está na base do que ele designa,

particularmente em suas Meditações pascalianas, como razão escolástica29. À diferença da

lógica prática, que busca apreender as “disposições duráveis” - quase sempre não transparentes

para os “sujeitos” - que constituem um habitus específico a um determinado grupo ou campo

social, o “ponto de vista escolástico” concebe os agentes sociais como sujeitos racionais

imbuídos de uma prática (intelectualmente) consciente. Legitimando-se através dos seus

próprios critérios de consagração, a razão escolástica criticada por Bourdieu orienta-se pela

busca de um universalismo já pressuposto de antemão, um universalismo racionalista, incapaz

- em função de sua perspectiva intelectualista - de conceder a devida importância analítica às

condições sociais de possibilidade nada universais das quais ele emergiu30.

Uma abordagem genuinamente sociológica, ao contrário, deve, na ótica de Bourdieu,

ademais de elaborar uma teoria da sociedade (uma lógica da prática social), desvendar, por

28 Pierre Mounier, Pierre Bourdieu, une introduction. Paris : La Découverte, 2001, p.9. 29 Pierre Bourdieu, Méditations pascaliennes. Éléments pour une philosophie négative. Paris : Seuil, 1997.

“Reformulação dos principais temas abordados em Le Sens pratique, mas também em La Distinction, La

Reproduction, La Noblesse d’État, o livro organiza-se como uma confrontação com a filosofia”. Tratar-se-ia de

uma “critica a um só tempo sociológica e epistemológica ao que Bourdieu denomina ‘razão escolástica’, que se

encontra no núcleo da produção filosófica”. Pierre Mounier, P. Bourdieu, une introduction, op.cit., p.171. 30 Cf. Pierre Bourdieu, “Le point de vue scolastique”. In: Raisons pratiques. Sur la théorie de la pratique. Paris:

Éditions du Seuil, 1994, sobretudo p.217-223.

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assim dizer, as condições sociais de produção do conhecimento científico, inclusive da própria

sociologia enquanto disciplina. A sociologia implica, portanto, como condição de sua

cientificidade, em oposição ao ponto de vista filosófico-escolástico, e como uma de suas

dimensões fundamentais, a existência de uma sociologia da sociologia, uma sociologia

reflexiva, na medida em que a revelação das condições sociais de sua produção já é um elemento

relevante da investigação sociológica. Em face da pretensão escolástica à universalidade da

razão pura, a análise sociológica almeja, segundo Bourdieu, destacar as condições

sociohistoricas da emergência desta razão teórica. Trata-se, assim, da única forma de se evitar

a fetichização (consciente ou inconsciente) da razão teórica, que pode então ser revelada naquilo

que realmente é: a violência simbólica de uma razão que se impõe como a razão legítima

através, entre outras coisas, da ocultação das condições sociais favoráveis à sua origem

histórica.

Não surpreende, nesse cenário, diz Bourdieu, que a análise sociológica dos intelectuais,

tal como por ele revelada em seus pressupostos fundamentais, tenha suscitado tamanha aversão

entre seus pares, que se sentiram questionados naquilo que, simbólica e socialmente, parecia

ser a garantia de sua superioridade espiritual: a autonomia ao menos relativa em face das

contingências e urgências da vida social. Nas palavras de Bourdieu: “Parece-me que a

resistência que tantos intelectuais opõem à análise sociológica, sempre suspeita de grosseria

reducionista, e particularmente odiosa quando ela se aplica diretamente a seu universo, enraíza-

se em uma espécie de questão de honra (espiritualista) deslocada que os impede de aceitar a

representação realista da ação humana que é condição fundamental para um conhecimento

científico do mundo social, ou, mais exatamente, em uma ideia perfeitamente inadequada de

suas dignidades de ‘sujeitos’, que os faz ver na análise científica das práticas um atentado contra

suas ‘liberdades’”31.

À sociologia caberia desmistificar essa reivindicação espiritualista de independência dos

intelectuais, revelando os mecanismos através dos quais a possibilidade mesma da autonomia

de certas camadas intelectuais depende de condições sociais favoráveis em um espaço agônico,

no qual os agentes sociais se definem pela posição relativa por eles ocupada no interior do

campo social. Mas, malgrado a tentação cientificista que ronda a concepção bouerdieusiana da

sociologia e do seu papel de desvendamento das reais condições sociais que pressupõem a

atividade intelectual, a sua análise sociológica dos intelectuais ambiciona, além da investigação

31 Pierre Bourdieu, “Avant-propos”. In: Raisons pratiques. Sur la théorie de la pratique. Paris: Éditions du Seuil,

1994, p.11.

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de elementos externos tal qual o contexto sociohistórico, a apreciação dos aspectos internos à

obra e à trajetória do autor. Pierre Bourdieu buscava, desse modo, superar a dicotomia entre as

leituras “internalistas” e as “externalistas”, ambas incapazes, na sua ótica, de apreender na sua

especificidade sociológica a produção intelectual.

Enquanto a primeira, a interpretação “internalista”, recusa-se – como no caso de Michel

Foucault – a investigar as condições sociais de produção, definindo como absolutamente

autônomo o sistema das obras, a segunda, a leitura “externalista”, da qual o marxismo, nas suas

diversas expressões, seria a expressão mais célebre, caracteriza-se pela redução direta da obra

ao contexto: “pensando a relação entre o mundo social e as obras culturais na lógica do reflexo”,

a perspectiva “externalista” vincula “diretamente as obras às características sociais dos autores

(à sua origem social) ou dos grupos destinatários, reais ou supostos”, diante dos quais as obras

são encaixadas em um esquema de análise do contexto pré-definido32. Em particular, as

pesquisas de inspiração marxista realizadas por autores como Lukács, Goldmann ou Adorno, a

despeito da significativa diferente entre eles, pecariam, na opinião de Bourdieu, pela tentativa

reducionista de “remeter as obras às visões de mundo ou aos interesses sociais de uma classe

social. Pressupõe-se, assim, que a compreensão da obra significa a compreensão da visão de

mundo do grupo social que se exprime através do artista [escritor] atuando como uma espécie

de médium”33. Tudo se passa como se um grupo social, seja ele qual for, fosse a causa

determinante ou a causa final (função) da produção efetiva das obras.

É exatamente diante dessa antinomia que Bourdieu elabora seu método de análise,

apresentando-o como a via possível para escapar dos becos-sem-saída a que nos teriam

submetido ora as análises “internalistas” para os quais o “autor morreu” (para falar como

Roland Barthes), ora as “externalistas”, exclusivamente interessadas na função social das obras.

Esse método assenta-se, e nele baseia sua especificidade, na construção da teoria bourdieusiana

do campo. Seu veredicto é direto e algo ambicioso, como quase sempre em se tratando de quem

é: “É contra este curto-circuito redutor que eu desenvolvi a teoria do campo”34. Aos olhos de

Bourdieu, a teoria dos campos, tal como por ele formulada, constitui uma mediação

indispensável para a análise dos artistas e/ou intelectuais, sem a qual não restaria outra opção,

para uma abordagem sociológica, senão aquela compartilhada pelo marxismo, que estabeleceria

uma relação direta e “externalista” entre texto e contexto.

32 Pierre Bourdieu, “Pour une science des œuvres”. In: Raisons pratiques, op.cit., p.65, 66. 33 Idem, p.67. 34 Pierre Bourdieu, “Pour une science des œuvres”, op.cit., p.67.

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Apenas através da análise do campo intelectual, por exemplo, é que se pode chegar à

compreensão das determinações sociológicas tanto dos elementos “externos”, como a função

social da obra, quanto da lógica “interna” dos objetos culturais e do grupo social dos produtores.

O campo intelectual, assim como o artístico, constitui, nessa perspectiva, um “microcosmo

social” no interior do qual se perfilam os vínculos complexos entre posições relacionais dos

agentes e tomadas de posição intelectuais. Tratar-se-ia de um “espaço de possíveis” que,

embora “transcendente aos agentes singulares”, funcionaria como uma “espécie de sistema de

coordenadas comuns que faz com que, mesmo quando eles não se referem conscientemente uns

aos outros, os criadores contemporâneos são objetivamente situados uns em relação aos

outros”35.

A estratégia dos agentes engajados nas lutas no interior do campo, isto é, suas tomadas

de posição (“específicas, ou seja, estilísticas, por exemplo, ou não específicas, políticas, éticas,

etc.”), depende da posição por eles ocupada na estrutura do campo, posição sobredeterminada

por uma distribuição e reprodução desigual de capital simbólico. É por meio da avaliação das

possibilidades inscritas em um determinado campo social que os agentes compõem, no caso

dos intelectuais, seus projetos criativos: entre as forças do campo e os agentes singulares, isto

é, entre posições e tomadas de posição, haveria uma relação complexa e não mecânica, que se

objetiva em uma trajetória e uma obra.

Determinado pelos atributos e disposições inconscientemente incorporadas, os agentes

singulares são também ativos e determinantes, traçando sua trajetória não como uma história

linear própria das “ilusões biográficas”, mas sim como o resultado de uma “série de posições

sucessivamente ocupadas por um mesmo agente (ou um mesmo grupo) em um espaço [...]

submetido a incessantes transformações”36. À diferença das “biografias ordinárias”, a noção de

trajetória busca descrever as posições tomadas de posições de um mesmo escritor e/ou

intelectual em momentos diferentes e sucessivos do campo literário e/ou acadêmico, “tendo-se

em conta que é apenas na estrutura de um campo, quer dizer, relacionalmente, que se define o

sentido dessas posições sucessivas, publicação nesta ou naquela revista ou em tal ou tal editor,

participação em tal ou tal grupo, etc.”37.

35 Idem, p.61, 62. 36 Pierre Bourdieu, “L’illusion biographique”. In: Raisons pratiques. Sur la théorie de la pratique. Paris: Éditions

du Seuil, 1994, p.88. 37 Pierre Bourdieu, “Pour une science des œuvres”, op.cit., p.78, 79.

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Dotados de uma racionalidade própria, assim como de um habitus específico, estes

espaços de luta que são os campos sociais definem as condições nas quais “determinações

externas” como aquelas “invocadas pelos marxistas” (“por exemplo, o efeito das crises

econômicas, das transformações técnicas ou das revoluções políticas”) são internalizadas e,

assim, podem exercem uma função social delimitada. Por meio de transformações na sua

estrutura, o campo exerce assim um “efeito de refração (tal qual um prisma)”: é somente através

da compreensão das “leis específicas de seu funcionamento (seu ‘coeficiente de refração’, quer

dizer, seu grau de autonomia)” que se pode compreender as transformações das relações de

força no mundo intelectual que indiretamente resultem de uma mudança de regime político ou

de uma crise econômica38. Na mesma medida de sua autonomização crescente, as mudanças no

interior do campo revelam-se, para Bourdieu, cada vez mais independentes das transformações

do contexto sócio-histórico “externo”: “o que se produz no campo é cada vez mais dependente

da história específica do campo, e cada vez mais difícil de deduzir e de prever a partir do

conhecimento do estado do mundo social (situação econômica, política, etc.) no momento

analisado”39.

É nesse sentido que, para Bourdieu, a teoria dos campos, insistindo na necessidade de

uma análise específica do espaço social objetivamente constituído, o qual define as condições

de possibilidade das relações entre os agentes, não é nem “internalista” e tampouco, ao contrário

do que postulavam várias das críticas por ele recebida, “externalista”. Na ótica de Bourdieu,

articulando a compreensão de aspectos “internos” e “externos”, “a análise das obras culturais

tem por objeto a correspondência entre duas estruturas homólogas, a estrutura das obras (quer

dizer, dos gêneros, mas também das formas, dos estilos, e dos temas, etc.) e a estrutura do

campo literário (ou artístico, científico, jurídico, etc.), campo de forças que é inseparavelmente

um campo de lutas”40.

Referência inescapável dos debates sociológicos sobre a cultura e, mais precisamente,

sobre os intelectuais, o método de análise de Pierre Bourdieu detém méritos inegáveis, inclusive

de um ponto de vista marxista. Ao insistir na necessidade imperativa e central da análise das

condições sociais de possibilidade do conhecimento e da vida intelectual, Bourdieu acompanha

a resistência da crítica cultural materialista às histórias idealistas e reificadas das ideias, que

concebem o desenvolvimento das obras e/ou tendências intelectuais como um desenrolar

38 Idem, p.68. 39 Idem, p.77. 40 Idem, p.70, 71.

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imanente, independente de todo condicionamento “externo”, seja ele do contexto histórico mais

geral ou de aspectos mais específicos como aqueles relacionados ao que Bourdieu

provavelmente designaria como pertencentes ao campo político, intelectual, acadêmico ou

artístico. Para Gramsci, por exemplo, o “erro metodológico mais difundido” nas análises dos

traços distintivos dos intelectuais em relação aos outros “agrupamentos sociais”, foi o de “ter

buscado esse critério de distinção no que é intrínseco às atividades intelectuais, em vez de

buscá-lo no conjunto do sistema de relações no qual estas atividades (e, portanto, os grupos que

a personificam) se encontram no conjunto geral das relações sociais”41.

Além disso, concebendo – no quadro de sua sociologia “agonística”42 – o campo como

um espaço de luta que se realiza sob relações de força frequentemente inconscientes aos

agentes, Bourdieu aproxima-se da teoria marxista da dominação. A metodologia bourdiesiana

constitui, portanto, um parâmetro (positivo ou negativo, a depender do ponto de vista) inelutável

no âmbito do que se denomina sociologia dos intelectuais: em grande medida, na verdade, a

simples menção à ideia de uma sociologia dos intelectuais remete, quase que por reflexo, à

figura de Bourdieu, do mesmo modo, por exemplo, que a referência à noção de classe social

encontra-se intimamente vinculada ao pensamento de Marx.

Mas se ela fascina por sua amplitude e por sua sistematicidade, a sociologia

bourdieusiana dos intelectuais não deixa de apresentar seus limites e suas inconveniências

analíticas, em especial quando se trata da investigação de dois intelectuais, como Michael Löwy

e Daniel Bensaïd, que transitam (tornando porosos) pelos mais diversos campos sociais, sem

nunca se limitarem às tomadas de posição no interior do campo acadêmico e mesmo do campo

intelectual. Um dos principais problemas, digamos assim, do método de análise dos intelectuais

tal como preconizado por Bourdieu vincula-se à sua sociologia “exclusivista”, dotada de uma

epistemologia própria, capaz de se diferenciar, e de demarcar um território próprio, tanto em

relação à história quanto à filosofia social e/ou política. Desta posição de princípio decorre sua

insistência em delimitar, rigorosamente, o espaço das análises sociológicas, reivindicando,

explícita ou implicitamente, sua superioridade em face das análises filosóficas das ideias e dos

intelectuais, que apenas reproduziriam aquilo que se trata de explicar: as condições sociais que

41 Antonio Gramsci, Cadernos do Cárcere. Os intelectuais. O princípio educativo. Jornalismo. Vol. II, op.cit.,

p.24, 25. 42 Cf. Loïc Wacquant, “Notes tardives sur le ‘marxisme’ de Bourdieu”. In: Actuel Marx, n.20, 1996, pp.83-90.

“Marx e Bourdieu se distinguem de Durkheim e se aproximam de Max Weber na medida em que suas concepções

do mundo social são fundamentalmente agonísticas. Aos seus olhos, as configurações sociais são o produto de

lutas – lutas de classes através da história no corredator do Manifesto Comunista, luta de classificações que

transbordam amplamente o registro exclusivo das classes buscando incorporá-la, no autor de A Distinção”.

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determinam o espaço dos possíveis no âmbito do desenvolvimento do mundo das ideias, em

suas lutas e contradições, assim como em suas transformações.

Nessa empreitada emerge a pretensão inconfessa de transformar sua teoria no método

de análise da sociologia da cultura e dos intelectuais, cuja intenção de exclusividade impõe

obstáculos ao diálogo com as eventuais contribuições de outras formas de análise dos

intelectuais, especialmente daquelas que transcendem os limites da sociologia, como a história

dos intelectuais, para ficar apenas em um exemplo. Para Bourdieu e, em particular, para os seus

discípulos, que tendem a generalizar ainda mais o método do mestre, é como se, no que diz

respeito à análise dos intelectuais, o que não é a sua sociologia, não pode ser efetivamente

sociologia, recaindo, pelas razões que se deve elucidar, ora no ensaísmo filosófico ou literário,

ora na intervenção diretamente política, ora, enfim, no jornalismo sociológico diletante.

A fim de destacar essa dimensão especificamente sociológica do seu método de análise

da cultura, através da elaboração de uma concepção geral da “lógica prática” que orienta, sem

emergir plenamente à consciência, a ação dos agentes, Pierre Bourdieu explicita outro dos

limites de sua teoria: o determinismo “sociologista” que frequentemente se desdobra em suas

análises, malgrado suas advertências em sentido contrário. No âmbito da análise específica dos

intelectuais, isto é, do habitus e da prática dessa categoria social no interior do seu campo

específico, esse determinismo revela-se por meio de uma tendência a explicar a obra ou a

produção criativa de um autor através seja da análise estrita das estruturas e das relações de

forma no campo intelectual, seja da origem e trajetória social do intelectual ou intelectuais em

questão, ou ainda, evidentemente, através da combinação desses dois enfoques analíticos. Nas

palavras de Bourdieu: “É no interior de um estado determinado do campo, definido por um

certo estado do espaço dos possíveis que, em função da posição mais ou menos rara que ele aí

ocupa, e que ele avalia de modo diferente conforme as disposições de sua origem social, o

escritor se orienta na direção de tal ou qual dos possíveis oferecidos, e isso de maneira quase

sempre inconsciente”43.

Assim, é o próprio Bourdieu quem, a despeito de suas recomendações de princípio,

acaba por se valer de uma concepção analítica “externalista” da relação entre a obra e trajetória

intelectual e o campo ou contexto social. Se ele reprova o marxismo (visando muito mais uma

certa leitura unilateral do marxismo) por este estabelecer uma relação direta e, portanto,

“externalista”, entre obra e contexto, a perspectiva de Bourdieu parece padecer de um problema

43 Pierre Bourdieu, “Pour une science des œuvres”, op.cit., p.79.

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análogo: ela funda uma relação não menos “externalista” entre obra e algo que a determina do

“exterior”, neste caso, a estrutura do campo e o espaço dos possíveis que nele se perfila, assim

como a origem social do autor em questão. Trata-se de uma subordinação da análise da obra à

análise de alguma estrutura determinante que a condiciona: o campo no qual a produção dessa

obra encontra-se situada, ou as condições sociais ligadas à vida do intelectual. Nessa

perspectiva, vale dizer, não há espaço algum para a crítica imanente da obra, que, partindo da

análise dos textos, caminharia na direção da identificação das forças sociais e da visão de mundo

que neles se apresentam, de forma a compreender as ideias como elementos importantes de um

conjunto mais amplo de fatores complexos que se sobredeterminam.

A bem dizer, esse espaço não existe porque, na ótica bourdieusiana, esse tipo de análise

escapa aos limites da investigação sociológica, para a qual a obra não seria senão um aspecto

inferior de uma dimensão social mais tangente, materializada particularmente na constituição

dos campos sociais, espaços nos quais se condensam relações objetivadas objetivantes entre os

agentes. A obra de um intelectual seria apenas parte subordinada de sua trajetória, concretizada

em suas tomadas de posição no interior do campo correspondente, que se orientam pela

tentativa de maximizar o acúmulo de capital simbólico a fim de ampliar o espaço dos possíveis.

Em um espaço relacional e caracterizado pela luta permanente pela conservação ou

transformação das estruturas de dominação, todos se tornam agentes conscientes ou (sobretudo)

inconscientes de uma estratégia no interior do campo. E é este conflito, e as estratégias nele

dispensadas pelos participantes, o centro do interesse do método de sociologia da cultura e/ou

dos intelectuais de Pierre Bourdieu.

Embora de forma um pouco simplista, Peter Bürger não está exatamente equivocado

quando afirma: “Bourdieu [...] analisa as ações dos sujeitos no que ele denomina campo cultural

tomando em conta exclusivamente as chances de conquistar poder e prestígio e considera os

objetos simplesmente como meios estratégicos que os produtores empregam na luta pelo

poder”44. Nesse conflito permanente pela reprodução ou subversão das disposições que

delimitam o acesso ao capital simbólico vinculado a um determinado campo social, a obra

propriamente dita encontra-se diluída em meio a uma disputa que a transcende e, no limite, a

determina, transformando-a em expressão ou reflexo de uma estratégia de inserção no espaço

relacional do campo acadêmico e/ou intelectual. Destacando a centralidade, para uma análise

sociológica, da investigação sobre as condições sociais que definem o espaço no interior do

44 Peter Bürger, “On the Literary History”. In: Poetics, agosto 1985, pp. 199-207.

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qual são elaboradas as produções intelectuais dos autores, cujas trajetórias se caracterizam pelas

estratégias e tomadas de posição no âmbito dos embates dos quais elas tomam parte, Bourdieu

acaba por relegar ao segundo plano a análise da obra, isto é, das ideias, que, longe de atuarem

como forças sociais reflexivas interpeladas pelos debates políticos, culturais e ideológicos da

época, seriam antes uma manifestação de uma ambição não-explicitada.

Ironicamente, seriam alguns marxistas os responsáveis por algumas das mais

importantes tentativas de escapar a um só tempo do “externalismo” típico das leituras

dogmáticas do marxismo, para o qual as obras não são senão expressão de uma realidade social

que a determina, e do “internalismo” das leituras “puras’, que não admitem qualquer princípio

explicativo exterior ao texto. Na França, por exemplo, em um momento em que as fronteiras

entre a sociologia e a filosofia ainda eram porosas, ao ponto de se falar em uma “sociologia

marxista”, Lucien Goldmann, romeno radicado em Paris, elaborou, como prelúdio de suas

pesquisas concretas, um método da sociologia da cultura de inspiração marxista –

filosoficamente baseado na leitura historicista da obra marxiana realizada por Lukács, em

História e Consciência de Classe –, entre cujas razões de ser encontrava-se exatamente a

tentativa de articular e, assim, superar esses dois enfoques.

Na introdução ao seu estudo sobre a visão de mundo trágica nas obras de Pascal e de

Racine, Le Dieu Caché, tal como Bourdieu, Goldmann rechaça as leituras “internalistas”, que

resistem a extrapolar os limites do texto. Nas palavras do sociólogo romeno: “Partindo do

princípio fundamental do pensamento dialético – isto é, do princípio de que o conhecimento

dos fatos empíricos permanece abstrato e superficial enquanto ele não for concretizado por sua

integração ao único conjunto que permite ultrapassar o fenômeno parcial e abstrato para chegar

à sua essência concreta, e, implicitamente, para chegar à sua significação – não cremos que o

pensamento e a obra de um autor possam ser compreendidos por si mesmos se permanecermos

no plano dos escritos e mesmo no plano das leituras e das influências”. Isso porque, no limite,

o pensamento não é senão “um aspecto parcial de uma realidade: o homem vivo e inteiro. E

este, por sua vez, é apenas um elemento do conjunto que é o grupo social. Uma ideia, uma obra

só recebe sua verdadeira significação quando é integrada ao conjunto de uma vida e de um

comportamento”, comportamento que, ademais daquele do próprio autor, envolve aqueles do

grupo ou da classe social ao qual ele se vincula45.

45 Lucien Goldmann, “Introdução”. In: Dialética e Cultura. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1967, p.7, 8.

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Para Goldmann, do ponto de vista de uma sociologia ou história dialética dos

intelectuais, é somente integrando as partes à totalidade que se pode distinguir, entre os textos

(que constituem, para todos os efeitos, a matéria-prima e o ponto de partida da análise), aqueles

“essenciais” daqueles “acidentais”. O significado de um texto se define na sua relação complexa

com o “conjunto coerente da obra”, o qual por sua vez só pode ser compreendido remetendo-

se à visão de mundo que o condicionou. Toda obra se define, na sua essencialidade, por sua

relação com uma visão de mundo determinada, que constitui “a expressão psíquica da relação

entre certos grupos humanos e seu meio social e natural”46. Uma visão de mundo constitui o

conjunto de aspirações, sentimentos e ideias que reúne os membros de um grupo, em oposição

aos outros, delimitando então sua especificidade nas relações complexas e contraditórias entre

os grupos. Nessa perspectiva, uma obra é tanto mais importante quanto mais se aproxima do

máximo de coerência de uma visão de mundo determinada, ou seja, do máximo de consciência

possível do grupo social por ela exprimida.

“Instrumento conceitual de trabalho indispensável para compreender as expressões

imediatas do pensamento dos indivíduos”, e não um “dado empírico imediato”, a noção de visão

de mundo, vinculada à consciência transindividual de um grupo ou (mais raramente) de uma

classe social, constitui uma mediação indispensável para a análise dos escritos dos autores –

cumprindo assim um papel semelhante, guardadas as devidas proporções, àquele da noção de

campo na sociologia dos intelectuais de Bourdieu. Situada na sua relação com a visão de

mundo, a obra de um autor pode ser melhor compreendida tanto em sua significação objetiva

quanto em seus limites. A visão de mundo constitui, assim, uma espécie de parâmetro a partir

do qual se pode investigar o significado objetivo de uma ou várias obras, inserindo-as no

espectro mais amplo dos grupos sociais em disputa, nas mais diferentes esferas da vida social.

Através desta noção, se torna possível identificar a relevância analítica das obras analisadas,

uma vez que ela permite apreender o sentido concreto das estratégias (e/ou “tomadas de

posição”, como diria Bourdieu) intelectuais, políticas, ideológicas, e até mesmo acadêmicas, se

for o caso.

À luz dessas premissas, torna-se possível investigar as razões sociais ou individuais que

fazem com que esta ou aquela visão de mundo tenha se expressado em tal obra, em tal lugar e

em tal época, de tal ou qual maneira. Ainda mais, é à luz dessa relação de mão dupla entre obra

e visão de mundo que se pode constatar “as inconsequências, os desvios que separam a obra

46 Idem, p.23.

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estudada de uma expressão coerente da visão de mundo que lhe corresponde”47. Na tentativa

de compreender essas “inconsequências”, além dos fatores sociais e históricos, pode-se recorrer

igualmente à análise de “fatores relevantes da biografia e da psicologia individual, fatores que

encontram aqui seu verdadeiro domínio de aplicação”48. Para Goldmann, quanto maior for a

necessidade de compreender as “inconsequências” e/ou “fraquezas” de uma obra, maior será a

necessidade de se recorrer ao domínio “intermediário” e “secundário” que é a individualidade

e a biografia de um autor. “Assim, toda uma série de jogos aleatórios de Goethe sem grande

valor literário e mesmo algumas partes mais fracas do segundo Fausto se explicam por suas

obrigações mundanas na corte de Weimar. É quando Goethe não se encontra em sua própria

altitude que o ministro de Weimar se faz sentir em sua obra”49.

Isso não significa, porém, absolutamente, que a análise marxista-dialética, tal qual a

entendia Goldmann, tenha como eixo de análise a tentativa de explicar a obra através da

biografia de seu autor e do meio social no qual viveu, conforme um dos mais grosseiros “mal-

entendidos” propalados pelos adversários, mas igualmente reproduzidos por alguns partidários

do materialismo dialético, “mais preocupados em se defenderem do que em conservarem o

contato com os fatos e com a realidade”50. Aos olhos do sociólogo de origem romena,

“dificilmente poder-se-ia imaginar uma ideia mais estranha ao materialismo dialético”. Como

diz Goldmann: “Nada menos trágico, pelo menos aparentemente, do que a vida de Kant ou de

Racine; nada mais alheio à visão operária do mundo do que a pintura de Picasso, que [era]

membro do Partido Comunista”51.

Do ponto de vista do “materialismo dialético” conforme o compreendia Goldmann, à

diferença de um “sociologismo abstrato e mecanicista”, se o pensamento não constitui, por

certo, uma “entidade metafísica, separada do resto da vida econômica e social”, isso não

significa que o escritor, ou intelectual, ou artista, não tenha nenhuma liberdade e/ou autonomia,

bem ao contrário: “seus laços com a vida social [são] muito mais mediatizados e complexos, a

lógica interna de sua obra muito mais autônoma do que jamais pretendeu admitir” a explicação

sociológica reducionista52. Além disso, a classe e/ou grupo social de origem do autor nem

47 Idem, p.22. 48 Ibidem. 49 Lucien Goldmann, “Materialismo dialético e história da literatura”. In: Dialética e Cultura. Rio de Janeiro: Paz

e Terra, 1967, p.78. 50 Idem, p.72. 51 Idem, p.80. 52 Idem, p.73. “O indivíduo é um ser muito complexo, suas funções no conjunto da vida social são bastante

múltiplas, as mediações entre seu pensamento e a realidade econômica são muito numerosas e variadas para que

se possa reduzi-lo ao esquema vazio de uma sociologia mecânica e simplista”. Idem, p.74, 75.

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sempre coincide com a classe ou grupo social exprimido através da “visão de mundo” que

condiciona os seus escritos: um autor como Lukács, por exemplo, oriundo de uma família típica

da alta burguesia judaica húngara, aderiu, por força de condicionantes sociais, políticos e

culturais determinados, à visão de mundo “proletária”, marxista-dialética. Os grupos ou classes

sociais que estão na base da visão de mundo propalada pelos escritos do autor “não são

necessariamente aqueles nos quais o escritor ou o filósofo passaram sua juventude ou uma parte

considerável de sua vida”53.

Não por acaso, para Goldmann, nem a análise biográfica, e tampouco as análises

baseadas nas intenções do autor, conseguem apreender as complexidades que envolvem as

relações entre a obra e o conjunto de suas determinações. No primeiro caso, ainda que tenha

sua importância, a análise biográfica é somente um instrumento parcial e auxiliar, “cujos

resultados deverão ser controlados por diferentes métodos”, e em nenhuma circunstância

podendo se tornar o fundamento da explicação: ela é um aspecto secundário no âmbito da

relação “essencial” entre a obra e a visão de mundo correspondente às classes e/ou grupos

sociais. A tentativa de ultrapassar o texto através da sua integração à biografia do autor não

apresenta senão resultados duvidosos. Uma dificuldade similar é encontrada quando se busca

compreender a obra a partir das intenções explícitas do autor, na medida em que “a intenção de

um escritor e a significação subjetiva que ele tem de sua obra nem sempre coincidem com o

significado objetivo, geralmente pouco consciente para seu próprio criador”.

Em Lucien Goldmann, e daí advém em boa medida a relevância e a operacionalidade

do seu método, a “estrutura significativa”, quer dizer, a coerência interna de uma obra, só pode

ser compreendida não através da vida e/ou do comportamento do autor, mas sim da “inserção

das estruturas significativas pesquisadas, antes mesmo que elas sejam inteiramente deduzidas,

em estruturas mais amplas das quais constituem elementos parciais”. Com isso, restabelecida a

importância e a centralidade da análise da obra, assim como o seu primado sobre o autor54,

trata-se de se operar uma espécie de “circularidade dialética” entre obra, visão de mundo e a

“totalidade significativa mais ampla” representada pelos movimentos intelectuais, sociais e

econômicos. Trata-se, em outras palavras, de “um vai-e-vem permanente da parte ao todo e

vice-versa” 55.

53 Idem, p.74. 54 “No atual estado das ciências humanas é muito mais a interpretação da obra que determina a imagem que se faz

do autor do que o inverso”. Lucien Goldmann, “O conceito de estrutura significativa na História da Cultura”. In:

Dialética e Cultura. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1967, p.102. 55 Idem, p.102, 103.

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Lucien Goldmann propõe, assim, uma abordagem da obra que a toma, ao menos em um

primeiro momento, naquilo que ela é, sem qualquer suspeição “exterior” (como em Bourdieu),

para em seguida analisar a relação entre a sua estrutura significativa “interna” e aquela da visão

de mundo que lhe corresponde. No limite, “a tarefa do historiador dialético” seria explicitar,

por meio de uma análise imanente, “a significação objetiva da obra, significação que é a única

que ele pode, em seguida, tentar relacionar com os fatores econômicos, sociais e culturais da

época”56. A relação entre obra e as estruturas significativas mais amplas e afastadas, as

“estruturas fundamentais da realidade histórica e social”, é, portanto, plena de mediações e de

“influências mútuas”, e não direta e “externalista”, no sentido bouerdieusiano.

É apenas depois de encontrada a “estrutura significativa” da obra, em seu vínculo com

a visão de mundo, que se torna possível analisar as relações entre o pensamento estudado e a

“vida social e econômica dos homens entre os quais tal pensamento nasceu e se desenvolveu”.

Mas essa relação entre pensamento e vida social, embora mediada, não é um complemento

exterior à análise imanente; ao contrário, trata-se de um elemento indispensável à boa

compreensão do próprio texto e/ou obra de um autor. Isso porque, “se é verdade que não se

pode explicar por seus fundamentos sociais e econômicos um pensamento antes de conhecê-lo

em sua totalidade e em sua estrutura própria, também é certo que a pesquisa de seus

fundamentos sociais e econômicos, por sua vez, permite melhor enxergar e compreender o

próprio conteúdo do pensamento estudado, além de ajudar-nos a encontrar aí certo número de

significados e detalhes que antes nos haviam escapado”57. No final das contas, “a explicação

social e econômica permite compreender, o melhor possível, o próprio pensamento”, cuja

matéria expressiva constituiu o ponto de partida da análise imanente. Estabelece-se, assim, entre

consciência e realidade social e econômica, uma “influência mútua”, ou seja, uma iluminação

recíproca, que se constitui em torno de “relações estruturadas” concretas, as quais se trata

exatamente de – por meio da análise – elucidar.

Dentre os maiores méritos do método proposto por Lucien Goldmann, especialmente se

comparado àquele defendido por Bourdieu, encontra-se a importância por ele dada, no interior

de um esquema de análise de inspiração sociológica (oriunda de uma sociologia dialética), à

obra propriamente dita, para além dos comportamentos e/ou das estratégias dos intelectuais

estudados. Embora compartilhe com Bourdieu a mesma preocupação de ordem sociológica em

56 Lucien Goldmann, “Materialismo dialético e história da literatura”, op.cit., p.76. 57 Lucien Goldmann, “Materialismo dialético e história da filosofia”. In: Dialética e Cultura. Rio de Janeiro: Paz

e Terra, 1967, p.65.

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torno da necessidade de se investigar as condições sociais de possibilidade da produção

intelectual, Goldmann concentra o eixo analítico na necessidade de, por meio da crítica

imanente do texto, encontrar a estrutura significativa da obra que, dando-lhe coerência, permite

apreendê-la como expressão específica, em uma situação concreta, de uma visão de mundo

determinada.

Assim posta, e Goldmann constitui nesse sentido tão-somente uma expressão dentre

várias outras no âmbito do marxismo, o vínculo entre obra e contexto se realiza por uma série

de mediações intermediárias, dentre as quais a visão de mundo, de uma tal forma que ela, a

obra, é mantida como referência básica para a análise da trajetória de um intelectual, ainda que

esta dependa de desdobramentos que a ultrapassem, e que dizem respeito às externalidades

sociais às quais estão submetidas – mesmo quando a elas reagem – as produções intelectuais.

As sugestões metodológicas de Goldmann deixam, assim, um flanco aberto por meio do qual a

análise sociológica pode investigar como uma obra determinada, de um autor determinado,

“internalizou”, através das especificidades da reflexão conceitual ou da pesquisa acadêmica –

e a partir de um ponto de vista particular –, os movimentos políticos, ideológicos, culturais e

econômicos da época, sem convertê-la quase que de imediato em signo de uma relação de força

e de uma estratégia de conquista de legitimidade no campo social correspondente.

Propondo um vai-e-vem entre obra, visão de mundo, movimentos político-ideológicos

e contexto histórico, Goldmann logrou escapar ao reducionismo sociologista que caracteriza a

maior parte das análises dos intelectuais e/ou dos artistas inspiradas no método de Pierre

Bourdieu, reducionismo para o qual, como dissera Raymond Williams em artigo em

homenagem ao próprio sociólogo romeno, “as experiências e as ações humanas específicas da

criação [são] convertidas de forma rápida e mecânica em classificações que sempre

encontraram a sua realidade e significância em outro lugar”58. A bem dizer, o problema não é

a busca pelas condicionantes estruturais do trabalho intelectual, tal como Bourdieu anunciara,

por exemplo, em seu célebre artigo, publicado em 1971, “Campo de poder, campo intelectual

e habitus de classe”; bem ao contrário, como já se afirmou aqui, trata-se, essa busca, de algo

mais do que necessário, sob pena da recaída em concepções idealistas e reificadas do mundo

das ideias, o que seria tão anti-sociológico quanto antimarxista. Ocorre que, ao se contrapor às

histórias convencionais da arte e dos intelectuais, incapazes que estas eram de ir além dos

“materiais expressivos internos” das obras, e ao buscar delimitar um campo específico à análise

58 Raymond Williams, “Literatura e Sociedade: em memória de Lucien Goldmann”. In: Cultura e materialismo.

São Paulo: Editora Unesp, 2011, p.26.

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propriamente sociológica (em contraposição ao ensaismo filosófico, por exemplo), Bourdieu

não raro pendeu para o extremo oposto, chancelando um tipo de interpretação que, levada às

últimas consequências, acaba por reduzir a obra e a trajetória dos intelectuais seja às lutas no

interior do campo, seja à condição de efeito da relação entre a origem social do autor e a

estrutura das classes dirigentes59.

Para a sociologia dialética reivindicada por Goldmann, entre ideias, trajetórias

intelectuais e contexto histórico-social e político, configura-se uma relação complexa e não-

determinista, no âmbito da qual a produção teórica resguarda sua importância na definição das

conexões de sentido que percorrem a realidade social em seus antagonismos e tensões. Esta

realidade não constitui, afinal, elemento “externo” condicionante à reflexão teórica, mas sim

um aspecto “internalizado” pela produção intelectual do autor. Mantém-se, assim, a

importância das ideias como força social reflexiva, investigando-as em sua relação com as

transformações do contexto histórico-social, das lutas culturais, intelectuais, políticas e, tão

importante quanto, das mudanças sofridas pela “visão de mundo” à qual se filiam os intelectuais

em questão.

Trata-se, portanto, no caso aqui em questão, de se analisar a forma através da qual Löwy

e Bensaïd “internalizaram”, por assim dizer, a partir de posições específicas, os debates da

esquerda política e dos círculos intelectuais críticos desde os anos de 1960, destacando a virada

benjaminiana pela qual suas obras passaram em meados da década de 1980. Muito além de

mero reflexo de uma condição social específica, ou de uma estratégia inconsciente (ancorada

em um habitus específico) de conquista e status no interior do campo intelectual, as ideias – os

textos – possuem uma importância fundamental para a análise, na medida em que elas

condensam a “posição” dos autores diante dos debates de cada presente determinado. Daí a

relevância da “crítica imanente”, cujo objetivo é interpretar os textos à luz de sua relação com

outras determinações ligadas à vida do autor e/ou ao contexto histórico-político. Como diz a

59 No Brasil, tal sociologia dos intelectuais focada na análise biográfica, assim como encontra nas relações entre origem social e classes dirigentes, encontra nas formulações de Sérgio Miceli sua expressão mais completa. Em

Intelectuais e classes dirigentes no Brasil (1920-45), de 1979, Miceli atribui um privilégio metodológico central

à análise da biografia dos intelectuais em questão, enfatizando a compreensão do “perfil de seus investimentos na

atividade intelectual, em detrimento do conteúdo de suas obras, tal como aparece reificado na história das ideias”.

Sérgio Miceli, “Intelectuais e classes dirigentes no Brasil (1920-45)”. In: Intelectuais à Brasileira. São Paulo:

Companhia das Letras, pp. 69-291, 2001, p.210. Para uma excelente crítica à perspectiva de Miceli em relação à

sociologia dos intelectuais, e ao pouco espaço que ela reserva à produção intelectual propriamente dita, cf. Élide

Rugai Bastos & André Botelho, “Para uma sociologia dos intelectuais”. In: Dados – Revista de Ciências Sociais,

vol.53, n.4, Rio de Janeiro, pp.889-919, 2010.

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ensaísta norte-americana Susan Sontag, “não se pode interpretar a obra a partir da vida. Mas

pode-se, a partir da obra, interpretar a vida”.

Por certo, o posicionamento de Michael Löwy e de Daniel Bensaïd no interior dos

campos acadêmico e, sobretudo, intelectual, condicionaram algo de suas trajetórias e, ainda

mais, da forma assumida por suas “tomadas de posição”. Com uma posição acadêmica

consolidada desde o final dos anos 1970, quando se tornou pesquisador no CNRS, em Paris,

Michael Löwy estabelecera-se antes de tudo como um intelectual (um intelectual militante,

engajado, mas antes de tudo um intelectual), de tal forma que sua relação com os

acontecimentos e os debates diretamente políticos sempre foi mais nuançada, dada a maior

distância – se comparada à obra de Daniel Bensaïd – entre as reflexões teóricas e pesquisas

acadêmicas e as interpelações políticas imediatas. Dirigente político e professor acadêmico

ocasional até meados dos anos 1980, espécie de “intelectual orgânico” da extrema-esquerda

francesa da época, Bensaïd começou a intervir diretamente, enquanto filósofo e intelectual

marxista, no espaço público do país a partir dos anos 1990, valendo-se não do seu prestígio

acadêmico (que inexistia), mas sim de uma relevância acima de tudo político-intelectual, que o

qualificaria inclusive para a participação em ambientes do debate público por ele tão criticados,

como as mídias televisivas, que passou a frequentar na condição de filósofo resistente e

impenitente, servindo como caução ao suposto pluralismo do espaço público francês. Não por

acaso, em sua obra, a relação entre reflexão teórico-filosófica e debates políticos sempre foi

mais direta e explícita do que aquela que marcara a trajetória de Löwy. Mesmo após o tournant

dos anos 1990, se não mais às necessidades da intervenção política direta, como outrora, a

reflexão de Bensaïd continua legatária de uma estratégia baseada na “luta de classes na teoria”,

para retomar livremente a fórmula althusseriana.

Todavia, a posição relativa de ambos no campo intelectual, se contribui para

compreender algumas das suas opções intelectuais, não esgota a análise, e tampouco explica

por inteiro a relação mais complexa e dinâmica entre produção teórica e/ou intelectual e seus

múltiplos condicionantes “externos” internalizados na obra. Ora, exatamente em função desse

dinamismo, assim como das especificidades da condição dos intelectuais hoje, a sociologia dos

intelectuais de Lucien Goldmann revela, ela também, seus limites. Como argumentara

Raymond Williams em seu artigo-homenagem supracitado, ansioso em definir e consolidar um

método dialético compatível com uma sociologia da cultura, no limite da formalização abstrata,

Goldmann estabelece uma relação algo “estática” (e normativa, seria possível acrescentar) entre

produção criativa e prática social, tal qual se pode observar em sua noção de “visão de mundo”,

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cuja plenitude, por assim dizer, coincide com o máximo de consciência possível acessível

apenas a alguns privilegiados (artistas e escritores, no geral), e, portanto, distante dos processos

sociais e culturais concretos, isto é, dinâmicos. “Preso como estava em muitas controvérsias

imediatas, muitas vezes parece que ele [Goldmann] esteve limitado a reafirmar suas posições

mais gerais”60.

Essa ênfase nas grandes obras e nos grandes escritores, uma vez que somente eles seriam

capazes de expressar no seu mais alto grau uma determinada visão de mundo, associada a uma

tendência a formulações categoriais demasiadamente amplas e, muitas vezes, abstratas,

constituem um obstáculo importante, embora não insuperável, para a análise de intelectuais

contemporâneos como Michael Löwy e Daniel Bensaïd. À evidência, as obras de Löwy e de

Bensaïd não constituem o “máximo de consciência possível” da visão de mundo à qual se filiam

(o marxismo, ponto de vista do proletariado), até mesmo porque seria bastante difícil

determinar hoje o que significa a visão de mundo marxista-proletária em sentido único, e ainda

menos a sua consciência plena, em um momento no qual seria mais adequado do que nunca (já

o era antes) falar de uma pluralidade de marxismos, cada qual buscando tecer os laços que os

uniriam à consciência possível de uma classe social (o proletariado) que, ela também, encontra-

se confrontada a transformações que resultaram, por ora, no seu enfraquecimento político e

ideológico. Em um momento de transformações significativas na “morfologia” da classe social

que dá sustentação material e prática à visão de mundo marxista, esta encontra-se diretamente

afetada, exigindo redefinições e reelaborações.

Se muito, pode-se dizer que Michael Löwy e Daniel Bensaïd tateiam, cada qual ao seu

modo, a consciência possível de uma visão de mundo, o marxismo, cujos vínculos com seu

grupo social de origem estão sendo redefinidos. Ambos participam dessa redefinição, e veem

nela, malgrado seus aspectos nitidamente regressivos, uma oportunidade para a busca por uma

nova relação entre o marxismo e as práticas sociais e políticas das classes trabalhadoras e

oprimidas contemporâneas. Aliás, é exatamente essa disposição em redefinir os parâmetros para

a renovação interna do marxismo e, mais ainda, para contribuir para uma nova relação possível

entre reflexão teórica e prática social e política das classes subalternas em transformação, que

garante a relevância analítica, ou potência cognitiva, por assim dizer, das obras e das trajetórias

de Michael Löwy e de Daniel Bensaïd. Acompanhando os desdobramentos da transição

histórica, política e cultural ainda em curso, sem se afiançar em uma determinação do

60 Raymond Williams, “Literatura e Sociedade: em memória de Lucien Goldmann”, op.cit., p.41.

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“verdadeiro” Marx contra suas falsificações, ambos se constituíram, assim, em uma expressão

bastante singular, por seus desenvolvimentos e inflexões internas, de um marxismo “aberto”

não em busca de uma qualquer identidade perdida, mas sim de uma revitalização de sua

capacidade (auto) crítica, a fim de estimular o retorno teórico e prática dos anticapitalismos

contemporâneos.

Como reconhece o próprio Goldmann, ademais de se realizar plenamente apenas em

algumas grandes obras e/ou grandes escritores, uma visão de mundo não logra atingir o seu

máximo de consciência possível senão em momentos históricos determinados, e bastante

excepcionais, deve-se dizer. Trata-se de períodos marcados por grandes transformações e/ou

transições históricas, nos quais se revelam um entusiasmo coletivo profícuo à emergência de

uma “unidade viva” entre obras artísticas e/ou intelectuais e uma classe social determinada, em

especial aquela em fase de ascensão histórica. Bem diferente seriam, de acordo com Goldmann,

as épocas de estagnação ou recuo histórico. Nestas, as relações entre a criação

cultural/intelectual e grupos sociais se realizam através de múltiplas e complexas mediações.

Findada a relação orgânica entre escritores e visão de mundo que caracterizam os períodos de

ascensão e efervescência coletiva, os tempos são propícios à irrupção das heresias e

dissidências: “nas grandes épocas do pensamento cristão, foi a Igreja que construiu as catedrais;

nas épocas de declínio, devemos nos voltar para as heresias se quisermos escutar a voz do

espírito”. Em épocas como esta, tais heresias podem ser a forma mais apropriada para se buscar

a renovação da criação espiritual, dada a maior liberdade relativa em face das visões de mundo

e dos grupos sociais existentes: “foi no momento em que divergiram de Port-Royal que Racine

e Pascal elaboraram a mais alta expressão filosófica e literária deste grupo e da classe social

que expressava”61.

Nessa perspectiva, as obras de Michael Löwy e de Daniel Bensaïd podem ser lidas como

constituindo uma das vertentes “heréticas” de uma visão de mundo em fase de reconstrução,

em meio a um contexto ainda marcado pelo refluxo da esquerda intelectual e política. Este seria

o eixo concreto que garantiria a “estrutura significativa” da obra de ambos os autores. Mas,

como advertira Raymond Williams, um dos problemas da análise de Goldmann, o qual vemos

aqui em um caso concreto de pesquisa, é a sua tendência a vincular muito diretamente, “ou com

meros intervalos e complicações”, a consciência possível a um grupo ou classe social qualquer,

cuja estrutura impõe “o limite objetivo que pode ser atingido por uma classe antes que ela se

61 Lucien Goldmann, “Materialismo dialético e história da literatura”, op.cit., p.81, 82.

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torne outra classe ou seja substituída”62. Com isso, tal como se pode ver com a noção de visão

de mundo, Goldmann mobiliza categorias excessivamente amplas para permitir uma

aproximação adequada às manifestações concretas no plano intelectual e/ou estético, exceto em

momentos de crise e de transição “macro-histórica”, quando emerge uma “conjuntura radical e

fundamental de substituição de uma classe por outra”. Nas palavras de Williams: “Quando leio

Goldmann, vejo-o muito consciente dessa dificuldade, mas então não estou certo de que seja

acidental o fato de ele ser muito mais convincente quando trata de Racine e Pascal, em um

momento de crise evidente entre o mundo feudal e o burguês, do que quando mudanças

aparentemente pequenas, mas não menos importantes dentro de uma sociedade burguesa, têm

de ser abordadas a partir do que pode ser chamado de análise microestrutural”63.

Em se tratando do estudo de dois intelectuais contemporâneos, que vivenciaram as

transformações significativas “dentro de uma sociedade burguesa” nas últimas décadas, a

distinção histórica, política, cultural e ideológica das diferentes “etapas”, ou momentos, da

dinâmica do capitalismo e, em decorrência, dos marxismos, torna-se mais do que necessária.

Tão-somente essa distinção pode permitir a análise das especificidades da história política e

intelectual contemporânea, a qual delimita o espaço dos possíveis em que as reflexões de

Michael Löwy e de Daniel Bensaïd foram constituídas, apreendendo assim a relação

significativa dinâmica entre suas obras e os processos sociais e históricos mais amplos no

capitalismo das últimas quatro décadas. Por seu caráter estático e abstrato, a noção de visão de

mundo, desenvolvida por Goldmann, pode – caso utilizada de forma acrítica – ser antes um

obstáculo do que um instrumento profícuo de análise, em particular no caso aqui em questão,

em que a hipótese de uma visão de mundo inteiramente adequada à consciência possível de um

determinado grupo social parece um tanto deslocada em um momento no qual – sem passarmos

por uma transição histórica-global, por assim dizer, com a substituição de um sistema social

por outro – ocorrem transformações significativas na composição social e ideológica dos grupos

sociais e das visões de mundo em jogo, as quais são muito mais heterogêneas, esparsas e

dinâmicas do que o sugerido pela noção goldmanniana.

Não por acaso, embora tenha lhe servido como inspiração, foi exatamente para não

recorrer a noções como a de visão de mundo que Raymond Williams desenvolveu seu conceito

de “estruturas de sentimento, a fim de superar a “distância” em relação aos processos culturais

reais. “Desenvolvi minha própria ideia de estruturas de sentimento justamente em resposta a

62 Raymond Williams, “Literatura e Sociedade: em memória de Lucien Goldmann”, op.cit., p.36. 63 Ibidem.

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essa noção de uma certa distância”64. Tal noção se pretende mais dinâmica e operativa, o que

permitiria mobilizá-la para entender processos culturais e/ou intelectuais diferentes e

específicos. Ela busca, nas palavras de Maria Elisa Cevasco, “descrever como nossas práticas

sociais e hábitos mentais se coordenam com as formas de produção e de organização

socioeconômica que as estruturam em termos do sentido que consignamos à experiência do

vivido”65.

Nessa perspectiva, pode-se dizer que Michael Löwy e Daniel Bensaïd compartilham,

especialmente no período posterior às suas incorporações da obra de Benjamin, uma mesma

“estrutura de sentimento” (marxista-herética), na medida em que visualizam de um ponto de

vista similar, embora divergente em algumas de suas proposições políticas concretas, o declínio

da relevância histórica tanto dos intelectuais marxistas comprometidos com a esquerda política

radical, quanto dos intelectuais – do “poder intelectual”, como diria Régis Debray – de uma

forma geral. Em grande medida, a evolução e consolidação de suas trajetórias intelectuais é

simultânea a esse “declínio” dos intelectuais, signo sociológico de um estreitamento do

horizonte utópico e mesmo, para alguns, do “fim das ideologias”, invalidando assim a real

necessidade e relevância dos intelectuais em sentido amplo (enquanto intelligentsia), para além

da condição de expert ou, em sua versão mais amena, de “intelectual específico”, tal qual a

designação de Michel Foucault. Desde o final da década de 1970, “o intelectual não é mais o

inventor das utopias. É o fim do intelectual teorizado por Karl Mannheim [em] Ideologia e

Utopia”66, exatamente o tipo de intelectual, aliás, valorizado por Löwy em suas pesquisas.

Apreensão de uma experiência e prática intelectuais geralmente vinculadas a grupos

culturais ou políticos determinados, a noção de “estrutura de sentimento” permite uma

abordagem capaz de situar de modo não reducionista e dinâmico as obras intelectuais no

contexto histórico-intelectual mais amplo. Assim, pode-se afirmar que o declínio das bases do

“marxismo-leninismo” e do “marxismo ocidental”, desde meados da década de 1970, as duas

fontes das quais se serviram tanto Michael Löwy quanto Daniel Bensaïd, impactaram

decisivamente a evolução de suas trajetórias, uma vez que transformaram a configuração dos

grupos culturais e políticos aos quais ambos pertenciam e, em grande medida, continuam a

pertencer. Fiéis frequentadores dos círculos militantes e intelectuais da esquerda radical

francesa, europeia e mesmo mundial, ambos vivenciam do seu interior as mutações por eles

64 Idem, p.34. 65 Maria Elisa Cevasco, Para ler Raymond Williams. São Paulo: Paz e Terra, 2001, p.97. 66 Enzo Traverso, “Où sont passés les intellectuels?”, op.cit., p.53.

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sofridas ao longo da década de 1980, o que os impeliu tanto a estabelecer fortes relações com

as novas gerações militantes e intelectuais (basta observar a relação de ambos com uma figura

como Olivier Besancenot, como veremos na última parte) quanto a expandir a rede de vínculos

à intelectualidade crítica não-marxista.

À luz de um marxismo não-reducionista, Williams aporta assim algumas contribuições

fundamentais para uma sociologia dialética dos intelectuais (ou das ideias), preocupada com a

produção (e não apenas reprodução superestrutural) das ideias e da cultura em sua relação com

as condições sociais que as tornam possíveis, sem as determinar. À diferença de um sistema

abstrato, fixado em um modelo analítico “universal”, o marxismo é então concebido, por

Raymond Williams, como uma “história e análise das ideias e das forças e movimentos sociais

através das ideias”67. Para o intelectual galês, afinal, “o que o ‘marxismo’ é, em qualquer

momento, parece dependente, enfim, menos da história das ideias, que ainda é, entre a maioria

dos marxistas, a sua forma habitual de definição, do que do desenvolvimento complexo do ser

social e da consciência reais”68.

Teoria crítica do capitalismo que vincula seu ponto de vista teórico ao destino da prática

social e política concretas de uma classe social específica (o proletariado), o marxismo

englobaria, portanto, tal como defende Perry Anderson, uma necessária capacidade de analisar

a si mesmo, quer dizer, analisar a sua própria história, à luz dos desdobramentos de sua relação

com a prática dos movimentos sociais e políticos reais, a qual determina suas condições de

possibilidade. Em outras palavras, seguidas as premissas dessa leitura da teoria social fundada

por Marx, abre-se a possibilidade, que se impõe como necessidade, sob pena de irrelevância,

de uma análise marxista da história do marxismo, que busca explicitar não apenas os conteúdos

internos da teoria em questão, senão também os aspectos externos que delimitam os caminhos

trilhados por essas reflexões. Em seu famoso estudo sobre o “marxismo ocidental”, por

exemplo, Anderson demonstra como alguns acontecimentos históricos (a derrota da revolução

alemã no início da década de 1920 e o esgotamento da vaga revolucionária que começara em

1917) influíram decisivamente sobre o conteúdo do pensamento dos “marxistas ocidentais”. A

ruptura durável entre os partidos comunistas e os intelectuais revolucionários, consolidada pelo

avanço do stalinismo, impeliu estes últimos, na aparente ausência de alternativa, a concentrarem

67 Raymond Williams, “Notas sobre o marxismo na Grã-Bretanha desde 1945”, in: Cultura e materialismo, op.cit.,

p.342. 68 Idem, p.335, 336.

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seus esforços em temas cada vez mais “abstratos”, ligados à reflexão epistemológica ou estética,

e cada vez menos ligados à reflexão estratégica que caracterizava o marxismo “clássico”.

Seria possível aplicar essa perspectiva para a análise de intelectuais marxistas críticos

contemporâneos como Michael Löwy e Daniel Bensaïd? Aos olhos de Razmig Keucheyan,

trata-se de uma hipótese não apenas possível como credível e mesmo necessária. Em sua

“cartografia dos novos pensamentos críticos”, Keucheyan defende que, tal como Anderson em

seu trabalho sobre os marxistas ocidentais, é necessário investigar, em qualquer análise de um

intelectual “crítico” contemporâneo, a relação entre estes e a “derrota sofrida pelos movimentos

sociais na segunda metade dos anos 1970”69. É preciso, mais ainda, se interrogar sobre a forma

através da qual “as doutrinas críticas dos anos 1960 e 1970 se ‘transmutaram’ ao contato com

a derrota, tornando-se as teorias críticas que apareceram nos anos 1990”.

Trata-se, assim, de se investigar as relações entre movimentos sociais das classes

subalternas, particularmente os acontecimentos políticos, e as ideias. Como diz Keucheyan,

“naturalmente, é muito mais difícil colocar essa questão em relação às ideias e movimentos

sociais contemporâneos do que às revoluções do passado”70. Nos casos aqui em questão, trata-

se de se analisar como a evolução interna do conteúdo das obras de Michael Löwy e Daniel

Bensaïd responde, por assim dizer, direta ou (sobretudo) indiretamente, tanto ao refluxo da

esquerda revolucionária europeia no final da década de 1970, quanto à emergência de novos

movimentos anticapitalistas (em sentido amplo) a partir de meados da década de 1990, cuja

irrupção na cena política define novos parâmetros para a reflexão crítica e, evidentemente, para

o marxismo ainda existente.

4. Intelectuais engajados ou militantes intelectuais

Nesta tentativa de analisar a obra de autores marxistas a partir de uma certa leitura do

marxismo, impõe-se, inevitavelmente, a questão do engajamento político-intelectual dos

intelectuais. Faz-se necessário investigar como as eventuais inflexões do engajamento

intelectual ou diretamente político dos autores em questão são “internalizadas” no corpo de suas

obras, seja através de um tratamento direto do tema, seja por meio de mudanças no escopo de

interesse e na forma de análise. Essas premissas tornam-se ainda mais fundamentais no caso da

69 Razmig Keucheyan, Hémisphère gauche, op.cit, p.22. 70 Razmig Keucheyan, “Sociologie des pensées critiques contemporaines”. In: Fabien Granjon (dir.), De quoi la

critique est-elle le nom?, Paris, Mare & Martin, 2013.

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análise das obras e das trajetórias de intelectuais como Michael Löwy e Daniel Bensaïd, que

fizeram do engajamento intelectual e político uma de suas marcas. Ambos apostaram na

possibilidade de uma aliança real entre intelectuais radicalizados, revolucionários, e os

movimentos das classes subalternas. Bensaïd, em especial, levou essa aposta às últimas

consequências, quer dizer, quase até a fusão não entre intelectual e movimento operário, mas

sim entre intelectual e uma organização política específica que se pretendia (embora não o fosse

efetivamente) uma organização representativa dos trabalhadores71.

Desde Marx, aliás, passando por Gramsci, trata-se de uma questão central da reflexão

marxista, uma vez que remete a um problema que lhes diz diretamente respeito, intelectuais

revolucionários que se tornaram. Não surpreende que, num momento marcado pelo declínio

dos intelectuais engajados, após um século (XX) no qual, como diz Enzo Traverso, a noção de

intelectual parecia indissociável daquela de engajamento político, tanto Michael Löwy quanto

Daniel Bensaïd tenham se interessado pela questão dos intelectuais e suas formas de

radicalização política. Em ambos os casos, como se poderá ver, os posicionamentos de princípio

sobre os intelectuais exprimem uma certa autocompreensão (e autolegitimação, evidentemente)

em relação às suas próprias condições, defendendo uma concepção dessa categoria social

adaptável, por assim dizer, às suas próprias trajetórias.

Ademais, em ambos os casos, tal leitura se condensa em suas interpretações da obra e

da figura de Walter Benjamin: enquanto para Löwy o filósofo alemão constitui uma expressão

ideal-típica do intelectual anticapitalista outsider, cujo engajamento ocasional não anula a

irredutibilidade do intelectual, com seus vínculos específicos com a esfera dos valores, em

Bensaïd, por sua vez, até mesmo Benjamin é transformado em um “messias armado”, um

intelectual para o qual a revolução é a única salvação (individual e coletiva) possível. Essas

imagens do intelectual, sem se confundirem totalmente com suas condições reais, contribuem

ainda assim para a compreensão da forma pela qual Löwy e Bensaïd visualizam uma questão

que, no limite, remete a um posicionamento especifico em face da situação concreta dos

intelectuais, e particularmente dos intelectuais da esquerda radical, hoje.

71 Uma afirmação de Gramsci, no Caderno 12 (“Apontamentos e notas dispersas para um grupo de ensaios sobre

a história dos intelectuais”), é interessante para pensar a convivência, em Bensaïd, do “intelectual tradicional” e

do “intelectual orgânico” (se não da classe, do grupo social ao qual sua organização conferia expressão política).

Escreve ele: “um intelectual que passa a fazer parte do partido político de um determinado grupo social confunde-

se com os intelectuais orgânicos do próprio grupo, liga-se estreitamente ao grupo”. Antonio Gramsci, Cadernos

do Cárcere. Vol. II, op.cit., p.24.

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Ora, o próprio paradoxo das condições respectivas de Michael Löwy e de Daniel

Bensaïd, enquanto intelectuais engajados (no caso do primeiro) ou militantes (em se tratando

do segundo) em um contexto de baixa de ambas as figuras, sugere a necessidade de uma

abordagem dos intelectuais capaz de explicar suas motivações ético-políticos nas suas conexões

com os movimentos sociais e políticos da época, quer dizer, sem circunscrevê-los ao espaço

restrito do campo acadêmico ou mesmo intelectual. Mais do que uma renúncia a desempenhar

o que seria o verdadeiro papel dos intelectuais – a saber: restringir-se e respeitar a autonomia

do campo, sem contaminá-lo com demandas extrínsecas –, tais motivações, que se encontram

na base do engajamento político dos intelectuais, são reveladoras das grandezas e das misérias

envolvidas nas relações, ao longo de todo o século XX, entre intelectuais e movimentos

políticos de esquerda, de onde a importância de se estudá-las.

É claro que isso pressupõe, de alguma forma, a convicção de que essas convergências

entre intelectuais e esquerda política são não apenas historicamente importantes, senão também

um problema contemporâneo, que se coloca aos intelectuais hoje. Se Pierre Bourdieu, por

exemplo, foi tão reticente em relação às análises dos intelectuais que, acatando os termos do

próprio discurso do autor analisado, almejam compreender as motivações ético-políticas dos

intelectuais e suas condições sociais de possibilidade, isso se deve em grande medida, malgrado

suas próprias posições a respeito, à sua descrença na possibilidade mesma de uma aliança real

entre intelectuais e classes subalternas. Logo, quando muito, a tomada de posição política de

um ou mais intelectuais não poderia ser senão compreendida, para ele, como parte de uma

estratégia de conquista de legitimidade em terrenos outros que não aquele do campo acadêmico

(como os do campo político), já que este se lhe encontraria total ou parcialmente bloqueado.

Tratar-se-ia, assim, no caso de tais intelectuais pretensamente “revolucionários”, de uma

espécie de lumpen-intelligentsia ressentida, que visualiza na intervenção política a ocasião para

uma revanche contra aqueles que dominam o mundo intelectual e respeitam seus limites.

Na ótica do sociólogo francês, a construção de alianças através das fronteiras dos

campos – especialmente entre intelectuais e trabalhadores – era tão temerária quanto

indesejável. Para Bourdieu, “as alianças baseadas nas homologias entre posições – cito, como

exemplo, aquelas que são estabelecidas conjunturalmente entre agentes ocupando posições

subordinadas no campo acadêmico e agentes ocupando posições subordinadas no campo social

como um todo – são deste tipo: a não ser que elas permaneçam restritas ao âmbito imaginário,

como são certos tipos de sonhados encontros entre os ‘intelectuais’ e o ‘proletariado’, elas têm

maiores chances de se materializar e perseverar se os parceiros que elas congregam a distância

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em torno de slogans vazios, de manifestos abstratos e de programas formais tiverem

oportunidade maiores de entrar em interação direta para se verem e se falarem uns com os

outros”. Pertencentes a campos distintos, cada qual com seu habitus específico, a aliança entre

intelectuais e trabalhadores, para continuar com o exemplo citado, constitui assim uma

tentativa, fadada ao fracasso, de conciliar disposições sociais e culturais divergentes, sendo os

intelectuais membros da fração dominada das classes dominantes72.

Da ilusão em torno da possibilidade real desta aliança emerge, segundo Bourdieu, o que

ele designa como “a mitologia do intelectual orgânico”, que desenvolve uma identificação

ilusória com os trabalhadores, baseada na tentativa equivocada de transplantar sua “lógica

teórica” aos agentes sociais guiados por uma “lógica prática”. Ao produzirem uma

representação da classe trabalhadora “sem terem o habitus do trabalhador”, os intelectuais

“apreendem as condições da classe trabalhadora através de esquemas de percepção e de

apreciação que não são aqueles que os próprios membros dessa classe mobilizam na apreensão

do mundo social”. Enquanto o habitus dos intelectuais é formado pela skholè, e protegido pela

autonomia do campo acadêmico-científico, o habitus da classe trabalhadora é forjado na luta

cotidiana pela subsistência. Esse descolamento impõe-se como obstáculo ao diálogo e à aliança

real entre intelectuais e trabalhadores, a despeito do eventual ímpeto “populista” dos primeiros,

cujo “engajamento” não seria senão uma forma de liquidação da possibilidade de ascenderem

ao conhecimento científico, todo ele caracterizado, afinal, por uma ruptura epistemológica com

o senso comum e sua “lógica prática”73.

Como observa muito bem Michael Buroway, trata-se, como se vê, “[de] uma visão

bastante sombria em relação às possiblidades de engajamento dos intelectuais com quaisquer

outros grupos – além deles mesmos, naturalmente”74. Os intelectuais jamais poderiam levar a

classe trabalhadora a “tomar consciência” da sua situação pelo simples fato que essa classe

vivencia a dominação que lhe é imposta a partir de uma “lógica prática”, inconsciente, e, por

conseguinte, incapaz de apreensão conceitual. À diferença de alguém como Gramsci, por

exemplo (eixo do diálogo imaginário entre Bourdieu e o marxismo realizado por Burawoy),

para quem a hegemonia é conscientemente incorporada pelos dominados, os quais poderiam,

72 Pierre Bourdieu, Homo academicus. Citado por Michel Burawoy, O marxismo encontra Bourdieu. Campinas:

Editora da Unicamp, 2010, p.72. A bem dizer, “tais encontros – diz Bourdieu – colocam em contato não indivíduos

abstratos e definidos apenas em relação a suas posições em uma determinada região do espaço social, mas sim

pessoais totais, cujas práticas, discursos e até mesmo a simples aparência corporal expressam sistemas de

disposições (habitus) divergentes e, pelo menos, potencialmente antagônicos”. 73 Cf. Idem, p.61. 74 Ibidem.

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por sua vez, dela se desprenderem, Bourdieu acreditava que a dominação simbólica,

incorporada através de um habitus específico, impunha-se aos agentes de forma inconsciente e

durável, a tal ponto que, por si mesmos ou pela ajuda de seus amigos intelectuais, estes não

poderiam escapar à lógica da reprodução do sistema. Deste ponto de vista, a própria ideia de

um “intelectual orgânico”, vinculado à perspectiva de uma classe social específica, não faria

nenhum sentido, a não ser para ativar as ilusões dos intelectuais, estimulando uma postura

potencialmente despótica e manipuladora diante das massas75.

“Tradicional” e apenas isso, o tipo de intelectual preconizado por Bourdieu se

circunscreve à necessária autonomia do campo intelectual, em especial dos campos acadêmicos

específicos, lócus da produção da verdade científica. Apenas em um ambiente autônomo e

protegido dos influxos eternos imediatos, os intelectuais estarão aptos a alcançar, sem garantia

de sucesso, uma compreensão verdadeiramente científica do mundo social. Esta é a condição

para a produção de uma teoria científica, condição que somente uma ciência reflexiva como a

sociologia, preocupada em explicitar as condições de sua própria existência, pode elucidar.

Desde que exercida com destreza, a sociologia encontra-se apta a compreender as condições

especiais de sua produção, mantendo-se ao abrigo das ilusões escolásticas tão típicas na

filosofia ou nas outras ciências sociais.

Tão-somente assim, quer dizer, em um ambiente relativamente autônomo como a

universidade, é que se torna possível, aos olhos de Bourdieu, desvendar os mecanismos de uma

dominação inacessível (em sua lógica teórica, conceitual) aos agentes “comuns”, sutilmente

adaptados na inconsciência dos mecanismos que regem a vida social. Essa seria, afinal, a maior

contribuição do sociólogo, a saber, a explicitação dos mecanismos através dos quais a

dominação é exercida no interior do campo correspondente, este concebido como um espaço

relacional e desigual, regido pela luta por um “capital” simbólico específico. O melhor que os

intelectuais, em particular os sociólogos, poderiam fazer para contribuir com os dominados

seria desvelar, a partir do rigor científico, a lógica da dominação, cujo anúncio, porém, é logo

75 A crítica bourdieusiana da noção de “intelectual orgânico” simplifica, porém, a concepção tal como ela foi

formulada por Gramsci. Como diz Bensaïd, “em Gramsci, o intelectual orgânico não é, como parece acreditar Bourdieu, um iluminador que vai ao povo [...] valorizar sua mediocridade, mas aquele que emerge no âmbito de

um grupo ou de classe social em formação. Assim, cada grupo social nascente em um modo de produção

determinado ‘cria [...], organicamente, uma ou várias camadas de intelectuais que lhe garantem sua

homogeneidade e a consciência de sua própria função’. Estes ‘intelectuais orgânicos’, gerados por uma nova classe

em formação, ‘são na maior parte do tempo a cristalização de certos aspectos parciais da atividade do novo tipo

social ao qual a nova classe dá origem’. As classes oprimidas também produzem, portanto (por vias que não se

limitam às carreiras universitárias), seus intelectuais orgânicos; não são necessariamente os intelectuais

certificados por diplomas, mas também autoditadas, militantes e líderes sociais formados na experiência das lutas”.

Cf. Daniel Bensaïd, “Pierre Bourdieu, l’intellectuel et le politique”. In: Contretemps, n.4, 2002.

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mitigado pela constatação de que aqueles e aquelas que sofrem a dominação jamais poderão

compreendê-la totalmente.

Este paradoxo, ou contradição, para dizer claramente, encontra-se no âmago da

sociologia bourdieusiana, aí incluída a sua sociologia dos intelectuais, como bem demonstra

Michael Burawoy. E ela se tornaria ainda mais aguda com o engajamento político e intelectual

(na contramão do air du temps, bem como de algumas de suas recomendações) de Bourdieu em

defesa do massivo movimento social contra os ataques neoliberais ao serviço público na França

em novembro/dezembro de 1995. Afinal, o que estaria fazendo em seu célebre discurso em

defesa dos trabalhadores em greve na estação de Lyon (uma das mais importantes estações

metroviárias e ferroviárias de Paris) senão aspirando a ser uma espécie de “intelectual orgânico”

dos dominados, à semelhança de alguém como Sartre que ele tanto repudiara no passado por

seu engajamento supostamente indolente e pretensioso? Aqui, mais do que nunca, a insistência

de Bourdieu “em realizar a ruptura radical com o senso comum e seu temor de que o

engajamento dos intelectuais com os dominados fosse algo perigoso estavam em desacordo

com seu projeto de tornar a dominação totalmente transparente”. Sua teoria encontrar-se-ia,

então “atrasada” em relação a sua prática, impelida pela urgência das questões da época, em

cujo avanço neoliberal ele visualizava, como revelou em seu discurso de dezembro de 1995,

uma ameaça à própria “civilização”76.

Seja como for, é sempre enquanto intelectual que Bourdieu intervém no espaço público,

conforme se pôde ver no seu discurso de 1995, no qual ele sequer menciona as questões

específicas em jogo na greve (a reforma da seguridade social e do regime das aposentadorias),

alçando o combate ao nível da defesa da civilização contra a barbárie promovida pelo

pensamento neoliberal e por seus experts. Esse modelo de intervenção - que mal oculta a tensão

entre autonomia, responsabilidade e engajamento - havia sido anunciado por Bourdieu no post-

scriptum d’As regras da arte, redigido em 1991, cujo título sugere o caráter abertamente

normativo do texto, algo inusitado em se tratando do autor francês. Nele, Bourdieu proclama a

necessidade de uma “internacional dos intelectuais”, capaz de – na contramão do “mito do

‘intelectual orgânico’” – estimular os intelectuais a “trabalhar[em] coletivamente pela defesa

dos seus próprios interesses”. Através de uma “realpolitik da razão”, os intelectuais deveriam

se engajar na defesa da autonomia do seu próprio campo, diante das ameaças de colonização

76 Michael Burawoy, O marxismo encontra Bourdieu, op.cit., p.57.

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pela lógica econômica e de expulsão dos intelectuais dos debates públicos, em benefício da

ascensão dos jornalistas ou dos experts, responsáveis pela legitimação do neoliberalismo.

Contra essas ameaças, os intelectuais deveriam lutar pela reapropriação dos seus

instrumentos de produção: com a criação da revista Actes de la recherche en Sciences Sociales,

das edições Raisons d’agir, assim como com o livro A Miséria do mundo (1993), dentre outros

“empreendimentos” intelectuais, Bourdieu deu a sua própria contribuição a essa tentativa de

elaboração de um “intelectual coletivo”, cujo objetivo seria a “ação racional em defesa das

condições de autonomia” dos “universos socialmente privilegiados” que são os campos

acadêmico e/ou intelectual, “nos quais são produzidos e reproduzidos os instrumentos materiais

e intelectuais daquilo que nós chamamos a razão”. Para Bourdieu, se essa “Realpolitik da razão”

for suspeita ou acusada de corporativismo, “será parte da sua tarefa provar – pelos fins a serviço

dos quais ele disporá os meios – que este será o corporativismo do universal”.

Paradoxalmente, o mesmo autor que em suas Meditações pascalianas disse detestar o

intelectual que havia em si (desgosto cujo único remédio seria a aplicação reflexiva de uma

sociologia crítica dos intelectuais)77, ao proclamar a necessidade do intelectual se projetar como

“funcionário do universal”, para além da visão de uma classe social particular, acaba se

aproximando de concepções com as quais, a priori, ele se pretendia em ruptura, tal qual aquelas

de Karl Mannheim (com seu “intelectual sem amarras”) ou de Julien Benda (com sua defesa

dos clérigos comprometidos não com uma causa em particular, mas sim com valores universais

e eternos). Com efeito, tal como questiona Burawoy, “ao dissecar as falácias escolásticas dos

outros autores, [não] teria Bourdieu omitido a maior ilusão de todas: o autoengano dos

intelectuais, acreditando serem eles os potenciais mensageiros de um universalismo bastante

duvidoso?”78.

Ainda mais porque essa busca por um intelectual coletivo “universal” esbarra no fato de

que esse intelectual não pode ser formado (individualmente) senão no interior do ambiente

protegido representado por seu campo correspondente. De um ponto de vista bourdieusiano, se

pode demandar se a proposição do próprio Bourdieu em defesa de um “intelectual coletivo”

não constitui uma contradição em relação à sua afirmação da necessidade de se respeitar as

especificidades do modo de funcionamento autônomo do campo intelectual. No limite,

77 Pierre Bourdieu, Méditations pascaliennes. Paris: Le Seuil, 1997, p.16. 78 Michael Burawoy, O marxismo encontra Bourdieu, op.cit., p.65.

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portanto, o engajamento de Bourdieu nos anos 1990 serve para problematizar a sua própria

concepção dos intelectuais tal como formulada nas décadas anteriores.

Tanto o intelectual militante, Michael Löwy, como o militante intelectual, Daniel

Bensaïd, se identificam muito mais, evidentemente, com o Bourdieu ativista intelectual dos

anos 1990 do que com o sociólogo preocupado com a consolidação e a autonomia científica da

disciplina. Daniel Bensaïd, aliás, chegou a estabelecer um diálogo com Pierre Bourdieu nos

anos 1990, somando-se aos seus esforços de reconstrução do movimento social após o novo

ciclo aberto em 1995, e, quando necessário, defendendo seu engajamento na vida pública diante

das diversas campanhas midiáticas contrárias ao “populismo” do intelectual francês que estaria

traindo seus próprios ideais científicos79. Nas palavras de Bensaïd: “Após a publicação, em

1993, de A Miséria do Mundo e após as greves de inverno de 1995, as intervenções públicas de

Pierre Bourdieu deram um novo élan ao retorno da questão social e do engajamento político.

Redirecionando seu próprio capital simbólico contra o discurso dominante da expertise e da

competência, opondo ‘um efeito de autoridade a outro’, desviando ao serviço dos dominados

as estratégias de dominação, Bourdieu legitimava uma palavra de resistência e respondia ao

velho apelo de [Paul] Nizan de trair a burguesia pelo homem. As inteligências servis da

contrarreforma liberal [como Bernard Henry-Levy] não perdoaram ao intelectual plebeu essa

honrosa traição”. Na realidade, através de Bourdieu, “era o espírito de 1995 que era visado”80.

Por isso mesmo, sem “sacralizar” Bourdieu e tampouco renunciar a uma leitura crítica dos seus

textos, Bensaïd definira-se nessa época como “anti-anti-Bourdieu”, não apenas para defender a

figura do intelectual injustiçado por seus detratores, mas sobretudo para defender aquilo que,

naquele momento, ele representava: o retorno da possibilidade de uma aliança frutífera entre

intelectuais críticos e movimento social renovado81.

As greves de novembro e dezembro de 1995 tiveram, como se verá em detalhes, uma

importância fundamental à época, na medida em que abriram um novo ciclo de lutas sociais,

após o marasmo dos anos 1980, em defesa do público, quer dizer, do comum, na contramão do

avanço da mercantilização promovido pelas políticas neoliberais. O movimento social que

então se formou estimulou a emergência de sindicatos radicais (SUD, Solidariedade, Unidade

e Democracia) por fora do controle dos sindicatos tradicionais (CGT), assim como possibilitou

o avanço da “esquerda da esquerda”, inclusive de pequenas organizações como a Liga

79 Olivier Mongin e Joël Roman, por exemplo, denunciaram nas páginas da revista Esprit a passagem de Bourdieu

de uma “sociologia da denúncia” a um “discurso populista da revolta”. 80 Daniel Bensaïd, “Pierre Bourdieu, l’intellectuel et le politique”. In: Contretemps, n.4., 2002. 81 Daniel Bensaïd, “Désacraliser Bourdieu”. In: Les Inrockuptibles, setembro de 1998.

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Comunista Revolucionária, à qual pertenciam tanto Bensaïd como Löwy. Tão importante

quanto, os acontecimentos deram origem a uma polarização do debate no campo intelectual,

com uma “guerra de petições” favoráveis ou contrárias às greves, da qual Bourdieu seria um

dos protagonistas.

A defesa do engajamento de Bourdieu em favor dos movimentos sociais não impediu

Daniel Bensaïd, por outro lado, de apontar o que ele considera as ambivalências do ativismo do

sociólogo francês. Em um artigo redigido em conjunto com Philliphe Corcuff, “Le diable et

Bourdieu”, publicado no jornal Libération no dia 21 de outubro de 1998, ao mesmo tempo em

que saúdam o apelo de Bourdieu e do coletivo Raisons d’agir “Por uma esquerda de esquerda”,

lançado no mesmo ano, defendendo-o das reações de “diabolização” por parte de alguns

intelectuais midiáticos, Bensaïd e Corcuff criticam a fetichização da autonomia dos intelectuais

promovida por Bourdieu e pelos demais autores do chamado, cuja tentativa de intervir apenas

“enquanto” intelectual revelaria a ilusão em torno da possibilidade de um “partido dos

intelectuais”, tão impossível quanto indesejável. “Pierre Bourdieu contribuiu o bastante à crítica

sociológica do Homo academicus para ser insensível aos perigos [de uma tal démarche]”,

escrevem os autores, que acrescentam: “O conhecimento íntimo dos universos acadêmicos

conduz a hesitar entre as risadas e o terror diante da ideia de um reagrupamento políticos dos

intelectuais enquanto intelectuais”. Pelo “narcisismo exacerbado”, pelas “pequenas guerras sem

fim”, parece pouco provável, de acordo com os autores, que os intelectuais possam gozar da

“humildade e do senso do interesse geral em face dos seus pares”.

Para Daniel Bensaïd, a ideia de um intelectual universal, autônomo e livre constitui uma

ilusão perigosa; em nome da oposição entre ciência e opinião, entre sociologia e doxa, esquiva-

se assim das questões referentes à tensão entre essas esferas (entre teoria e prática), tensão no

interior da qual se move o engajamento político, em particular quando se trata dos intelectuais.

Em uma entrevista concedida a uma revista iraniana, em agosto de 2009, ou seja, alguns meses

antes do seu falecimento, Bensaïd afirmou: “eu não vejo papel ou missão própria a um

intelectual, distinta dos deveres de todo cidadão, a não ser talvez o de tomar um cuidado especial

com o manejo da língua. Um intelectual que dispõe de um certo ‘capital simbólico’, conforme

o vocabulário de Bourdieu, em razão de sua obra literária ou do seu prestígio acadêmico, pode

utilizá-los para defender uma causa, mas sem cultivar a ilusão que este estatuto lhe confere uma

competência e uma aptidão particular, acima do comum dos mortais, para se pronunciar sobre

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tal ou tal causa. Ele utiliza uma tribuna que lhe e mais acessível que aos outros, mas ele não

deve se glorificar disso”83.

Em uma visão um tanto instrumental, além de autolegitimadora, Bensaïd se opõe, a bem

dizer, à própria noção de “intelectual engajado”, a qual faria do engajamento político o resultado

de uma decisão soberana de um sujeito racional “livre”. Aos seus olhos, “o termo mesmo de

engajamento” pressupõe uma “exterioridade original da qual nasceria a decisão soberana de se

engajar (de tomar parte em um conflito que não necessariamente diz respeito aos

intelectuais)”84. No limite, também no caso dos intelectuais, “a existência determina a

consciência. Eles não escapam nem ao fetichismo da mercadoria, nem aos efeitos da ideologia

dominante”, e, tal como os demais mortais, encontram-se sujeitos à cooptação social, financeira

e/ou simbólica. Para Bensaïd, “o único contrapeso imaginável [...] às sirenes da cooptação

social é o engajamento em um coletivo que os vincule socialmente [os intelectuais] à classe

crítica suscetível de transformar a ordem estabelecida”85.

Dado que os intelectuais, como todas as outras pessoas, encontram-se “embarcados”,

queiram ou não, “o engajamento partidário” (no sentido amplo) constitui um “princípio de

modéstia e de responsabilidade”: de modéstia, “porque militando com camaradas de diferentes

origens sociais e culturais, verifica-se cada dia que nunca se é inteligente sozinho”; e de

responsabilidade, “porque quando se milita em um coletivo, existe evidentemente o direito de

se enganar, de mudar de ideia”, desde que se explique, se preste contas e se argumente, à

diferença dos “intelectuais midiáticos irresponsáveis” que contradizem o que disseram na

véspera sem nenhum escrúpulo e sentido de responsabilidade para com aqueles para os quais

se almeja expressar86. É nessa perspectiva que, malgrado o sectarismo de sua posição, reflexo

do chamado “terceiro período” da Internacional Comunista, Daniel Bensaïd saúda a figura de

Paul Nizan e seu chamado à aliança “orgânica” dos intelectuais com os oprimidos, na

contramão dos defensores de uma filosofia “pura”, acima dos conflitos mundanos87.

Daniel Bensaïd não esconde, assim (como Michael Löwy, aliás), uma certa nostalgia

em relação à figura dos “intelectuais revolucionários ou críticos”, que ele prefere à noção de

“intelectual engajado”, figura que emergiu especialmente na França, país que havia sido a

83 Daniel Bensaïd, “Intellectuels et pouvoir”. In: Arash Mag, Irã, 3 de agosto de 2009. “A ideia segundo a qual

trabalhar com as palavras e as ideias mais do que com instrumentos materiais implica uma ‘independência’

essencial do intelectual é mítica”. 84 Daniel Bensaïd, “Paul Nizan. Clercs et chiens de garde”. In: Contretemps, n.15, 2006. 85 Daniel Bensaïd, “Intellectuels et pouvoir”, op.cit., s/p. 86 Idem, s/p. 87 Daniel Bensaïd, “Paul Nizan. Clercs et chiens de garde”, op.cit., s/p.

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capital dos intelectuais, notadamente dos intelectuais de esquerda, desde o affaire Dreyfus88.

Como diz Enzo Traverso, ao longo da maior parte do século XX, parcela significativa dos

intelectuais revelou-se crítica do poder estabelecido, assim como buscou inventar utopias, que

buscavam mobilizar junto aos grupos sociais subalternas. O cenário muda completamente a

partir de meados dos anos 1970, consolidando-se na década seguinte, quando a derrota política

e ideológica das forças sociais nas quais se ancoravam suas reflexões – o movimento dos

trabalhadores e a esquerda política –, prepara o terreno para o chamado “silêncio” dos

intelectuais críticos, engajados, ou mesmo dos compagnons de route, deslegitimados pela crise

do “socialismo” na URSS e dos partidos comunistas ocidentais.

A “crise” dos intelectuais “engajados”, “universalistas”, constitui igualmente, e acima

de tudo, uma crise das bases políticas e sociais que possibilitavam a existência de um intelectual

revolucionário. Expressando essa erosão das forças de sustentação das revoluções, assim como

das grandes narrativas universalistas às quais os intelectuais do século XX muito se apegaram,

Michel Foucault proclama, na década de 1970, a emergência do intelectual “específico”, que

intervém no espaço público mobilizando apenas seu saber particular, sua contra-expertise, e

não grandes valores que o ultrapassam, como o faz o “intelectual universal”, encarnado por

alguém como Sartre89. Para Daniel Bensaïd, esse processo se completa ao longo dos anos 1980,

em especial na França, onde a débâcle se manifesta em todo o seu vigor, “ligada ao fracasso da

experiência do que era uma figura possível do intelectual revolucionário, ou crítico”90.

A nostalgia em relação aos “grandes” intelectuais revolucionários do passado convive,

tanto em Michael Löwy quanto em Daniel Bensaïd, a partir dos anos 1990, com a afirmação da

necessidade de se estabelecer as bases para uma nova aliança entre intelectuais e movimentos

sociais emergentes contrários à globalização neoliberal. Essa aliança constitui, para ambos, o

único caminho possível para a formação de novas camadas de intelectuais críticos,

anticapitalistas. O recurso recorrente de Löwy e de Bensaïd à figura intelectual de Walter

Benjamin constitui, nesse contexto, uma expressão da instabilidade e da precariedade da

situação dos intelectuais críticos, em busca de uma unidade orgânica (ainda) improvável com

88 Cf. Pascal Ory e Jean-François Sirinelli, Les intellectuels en France, de l’affaire Dreyfus à nos jours. Paris:

Arand Launay, 1986. 89 Cf. Michel Foucault, “Les intellectuels et le pouvoir”. In: Dits et écrits, tomo II. Paris: Gallimard, 1994, pp.306-

315. Gérard Noiriel visualizou no apoio às greves de 1995 um momento de aliança entre “intelectuais específicos”

e a última leva dos “intelectuais revolucionários”, contra os “intelectuais de governo”. Cf. Gérard Noiriel, Le fils

maudit. Paris: Fayard, 2005. 90 Daniel Bensaïd e Gérard Noiriel, “Les intellectuels dans la République” (entrevista realizada por Sylvian

Pattieu). In: Contretemps, n.15, 2006. Cf. também, François Cusset, La décennie: le grand cauchemar des années

1980. Paris: La Découverte, 2006.

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os movimentos sociais. Em particular, o interesse de Michael Löwy, desde o início dos anos

1980, pelos mais variados tipos de intelectuais anticapitalistas (em sentido amplo) do passado,

intelectuais outsiders, exilados, libertários, religiosos ou profanos, pode ser interpretada como

uma tentativa de “responder” a esse momento de redefinição da figura do intelectual.

Na contracorrente da época, tanto Michael Löwy quanto Daniel Bensaïd fizeram da

busca pelo engajamento e/ou militância nos movimentos sociais e políticos das classes

subalternas um aspecto fundamental, decisivo no caso do segundo, de suas trajetórias

intelectuais nas últimas duas ou três décadas. Essa disposição condiciona amplamente a forma

como concebem a figura do intelectual e sua relação com a política. A análise comparada de

suas trajetórias intelectuais deve ser orientada, portanto, pela análise das determinações

recíprocas e complexas entre a obra, as transformações da visão de mundo ou da “estrutura de

sentimento” à qual se filiam, a dinâmica do campo intelectual (e, eventualmente, do campo

acadêmico), o cenário político-ideológico e, enfim, o contexto histórico-social. No interior

dessas conexões analíticas, busca-se destacar a relação entre a obra e o reposicionamento

político e intelectual dos autores, objetivo para o qual a compreensão dos impactos que a

incorporação de Walter Benjamin ocasionou em suas trajetórias é fundamental, uma vez que é

nessa incorporação que se condensa a forma através da qual ambos respondem aos novos

desafios impostos à esquerda política e intelectual desde o final da década de 1970 e início dos

anos 1980.

Por certo, tal análise – que constitui também, num sentido mais geral, uma investigação

sobre os intelectuais anticapitalistas hoje – supõe ao menos a aposta na possibilidade de que

essa figura meio anacrônica possa não apenas ainda existir, senão também ter alguma relevância

analítica. A tese ora apresentada partiu da hipótese de que essa figura existe, como o

comprovam os casos em análise, mas também que se trata de uma problemática (a análise de

intelectuais anticapitalistas contemporâneos) tão relevante quanto atual, não somente pelo fato

de serem dois autores propriamente contemporâneos, senão também porque permite sondar

alguns dos fatores que favorecem ou desfavorecem a existência de uma intelectualidade crítica,

anticapitalista, hoje, cujo destino depende da dinâmica dos movimentos sociais e políticos.

Entre outras coisas, algumas das quais pudemos ver nesta introdução, é a inexistência

dessa predisposição em aceitar, a priori, a boa-fé daqueles intelectuais que vinculam sua

produção teórica e/ou acadêmica a uma tomada de posição político-intelectual deliberadamente

assumida que faz com que o modelo explicativo que se perfila na sociologia dos intelectuais de

Bourdieu seja restritivo para analisar as trajetórias de Michael Löwy e de Daniel Bensaïd. O

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modelo bourdieusiano provavelmente seria inadequado, aliás, até mesmo para a análise da fase

“engajada” do próprio Bourdieu dos anos 1990, já que este modelo pressupõe uma concepção

normativa do que deve ser o intelectual (respeitador da autonomia do campo e da sua condição,

assim como imune às tentações populistas), no âmbito da qual não há lugar para uma apreciação

não depreciativa dos intelectuais que, tal qual ele próprio na última década de vida, fizeram do

engajamento político-intelectual um aspecto importante ou decisivo de suas reflexões teóricas

e/ou acadêmicas.

Em grande medida, é bem verdade, essa premissa está associada ao fato de que, dentre

as novas gerações, incluindo aí a minha, se não é uma tendência dominante, não constitui mais

um tabu, graças ao engajamento de intelectuais como Bourdieu, a preocupação, que se traduz

em temas de pesquisa e de reflexão, sobre as possibilidades e o significado dos intelectuais

anticapitalistas no mundo contemporâneo. Como diz Maria Elisa Cevasco, é preciso confessar

(“reflexividade” obriga, diria Bourdieu): “É exatamente porque eles aspiram a especificar o que

significa o anticapitalismo em diferentes momentos da história que vários dentre nós estudam

os trabalhos de intelectuais marxistas, esperando que suas análises e descobertas teóricas

contribuirão para elucidar o modo pelo qual o capitalismo funciona e as possibilidades de

derrotá-lo”91.

***

À luz das preocupações metodológicas expostas na introdução, o trabalho encontra-se

dividido em três partes que, por sua vez, subdividem-se cada uma em três capítulos. Definidas

a partir da análise das transformações pelas quais passaram os percursos intelectuais dos dois

intelectuais, estas três partes almejam investigar a obra e o percurso intelectual de Michael

Löwy e de Daniel Bensaïd antes, durante e depois, por assim dizer, da incorporação por eles

realizada da reflexão de Walter Benjamin, alçando-a ao centro de suas preocupações e

interesses intelectuais - uma vez que, conforme se argumentará, tal incorporação constitui o

signo mais visível da forma como respondem, repensando suas próprias obras, à nova época

histórica que estava se consolidando.

91 Maria Elisa Cevasco, “L’intellectuel et l’engagement: Michael Löwy, Raymond Williams et György Lukács”.

In: Vincent Delecroix e Erwan Dianteill, Cartographie de l’utopie. L’œuvre indisciplinée de Michael Löwy, Paris:

Sandre Actes, 2011, p.41.

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Na primeira parte, analisa-se o período anterior à virada benjaminiana dos anos 1980,

ou seja, a evolução de suas trajetórias nas décadas de 1950, 60 e 70, marcadas por uma

perspectiva relativamente otimista em relação à possibilidade e mesmo à iminência (no caso de

Bensaïd) da revolução socialista. Enquanto o primeiro capítulo aborda o desenvolvimento da

obra e da trajetória intelectual de Michael Löwy até a virada para os anos 1980, destacando a

sua articulação entre as tradições “clássica” e “ocidental” do marxismo - sob o primado de um

luxemburguismo-lukacsiano -, o segundo analisa o percurso político-intelectual de Daniel

Bensaïd desde meados da década de 1960, passando por maio de 68, pela aparente ascensão

revolucionária nos anos 1970, até o refluxo que se consolida na década seguinte, período em

que, embora de forma cada vez mais matizada, seu pensamento se caracterizava, na linha da

organização à qual pertencia, por um ultra-leninismo voluntarista, igualmente inspirado na

leitura lukacsiana da reflexão do revolucionário russo. Enfim, no terceiro capítulo, intitulado

“A ‘última geração de outubro’”, investiga-se as especificidades da organização (LCR) à qual

ambos, Löwy e Bensaïd, em especial o segundo, dedicavam então parcela considerável dos seus

esforços intelectuais, procurando compreender a forma como os dois autores se situavam no

seu interior.

O objetivo da segunda parte, depois de explicitados os percursos dos dois jovens

intelectuais, é esboçar uma compreensão dos condicionantes objetivos e das motivações

subjetivas que explicam as inflexões benjaminianas sofridas pelas obras de Michael Löwy e de

Daniel Bensaïd, destacando as convergências e divergências entre suas leituras do filósofo

alemão. Após a exposição, no quarto capítulo, da trajetória intelectual singular de Walter

Benjamin, assim como dos principais traços da recepção de sua obra, busca-se analisar as

leituras específicas do autor das Passagens realizadas por Löwy e por Bensaïd (quinto e sexto

capítulos, respectivamente), almejando verificar como ambos constroem cada qual o seu

Benjamin, cuja imagem idealizada atende à tentativa de (auto) legitimação de suas posições

marginais, de outsiders em relação à doxa e ao establishment intelectual e acadêmico. Em larga

medida, a proximidade entre suas interpretações da obra benjaminiana reside, para além de suas

determinações “internas”, referentes às ideias propriamente ditas, na posição singular (a de

intelectuais militantes ou engajados) a partir da qual ambos entrevêem os novos desafios

impostos ao marxismo e ao pensamento crítico desde pelo menos meados dos anos 1980. Nesse

enraizamento histórico, político e intelectual comum, inscreve-se a convergência benjaminiana

entre Löwy e Bensaïd nas décadas de 1990 e 2000.

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É o que pode ver, por exemplo, na terceira parte da tese, intitulada “Reverberações

benjaminianas”. Analisa-se, nessa parte, a obra e a trajetória de Michael Löwy e de Daniel

Bensaïd posteriores à incorporação de Benjamin - nos sétimo e oitavo capítulos,

respectivamente -, com ênfase não apenas nas mudanças no conteúdo de suas ideias, bem como

de suas escolhas temáticas, senão também nos engajamentos e no reposicionamento intelectual

por eles levados a cabo. Enquanto no sétimo capítulo, o objetivo é problematizar de maneira

crítica as variadas facetas assumidas pela defesa de Löwy de uma renovação do marxismo a

partir da radicalização de sua crítica da modernidade, em diálogo aberto outros diagnósticos

críticos do capitalismo moderno (tais como o romantismo, a análise weberiana e a interpelação

ecológica do atual paradigma civilizatório), no oitavo, pretende-se investigar e colocar em

perspectiva histórica a reivindicação de Daniel Bensaïd da resistência como princípio ético-

político-intelectual fundamental em um contexto marcado pela estreitamento do horizonte de

expectativa, eixo de um reposicionamento intelectual que se acelera a partir do redespertar de

uma esquerda radical e de uma intelectualidade crítica no espaço público francês, na esteira do

massivo movimento social de novembro de 1995. Desde então, conforme se vê na última seção

do capítulo, Bensaïd concentra seus esforços intelectuais em um tema que, segundo ele,

sintetiza os dilemas da esquerda radical contemporânea, a saber: a questão do que ele denomina

política profana dos oprimidos, na contramão tanto do totalitarismo econômico quanto dos

recuos identitários e/ou religiosos. Não constitui um acaso se o objetivo do nono e último

capítulo é a apresentação deste despertar da esquerda radical em 1995 e do lugar aí ocupado

pela LCR e, através dela, por Löwy e, sobretudo, por Bensaïd.

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I Parte

Intelectuais e política: em busca da subjetividade revolucionária

1. Entre a esquerda revolucionária e o marxismo ocidental: o itinerário intelectual de

Michael Löwy nos anos 1950, 60 e 70

1.1.Tempos de formação: a infância e adolescência paulistana de Michael Löwy

Filho de país judeus, de nacionalidade austríaca, Michael Löwy nasceu em São Paulo,

em 1938, quatro anos após seus pais chegarem, tal como várias outras famílias judias da Europa

Central, a um país e um continente distantes da ameaça nazifascista e relativamente poupado

da crise econômica que então se abatia sobre o velho continente. Ter nascido no Brasil e, mais

ainda, na América Latina, lugares com os quais jamais deixaria de entretecer íntimas e intensas

relações, constitui assim o primeiro dos vários “acasos objetivos” que se perfilam na trajetória

intelectual de Löwy. Embora tenha percorrido um itinerário como o de qualquer outro grande

intelectual europeu, Löwy fez da América Latina, como veremos, essa região que acolhera sua

família, e que o acolhera, o seu reservatório utópico em um momento em que o horizonte

histórico no continente europeu se estreitava a passos largos, a partir da virada para os anos

1980.

Atingidos pelo desemprego, após a guerra civil entre socialdemocratas e fascistas, a

família Löwy decidiu tentar a sorte no Brasil, onde tinha alguns contatos, se estabelecendo em

São Paulo, em 1934. Crescido em um ambiente familiar ainda marcado pela vida pretérita, o

pequeno Félix Michael Löwy não aprendera senão o alemão até os cinco anos de idade. Em

casa, começou a ler na língua de Goethe por meio da escrita gótica. Somente então, com os

meninos da rua, e depois da escola pública (onde estudou no ensino fundamental e médio),

Michael Löwy começou a falar e a manejar o português. O ambiente cultural familiar era todo

ele “austríaco-vienense”, algo que se consolidava mediante um círculo de amizade quase

restrito aos judeus austríacos. Se não havia, então, propriamente, um sentimento de exílio,

malgrado a ascensão nazista na Alemanha, havia, como diz Löwy, um “espírito de comunidade

judaico-austríaco [...] muito forte”92.

Não obstante, apesar da importante identificação judaica, a religião propriamente dita

não desempenhava um papel significativo na família, para além dos hábitos protocolares, como

ir à Sinagoga uma vez por ano no “dia do perdão”. A despeito do pouco interesse pela religião,

92 Fabio Mascaro Querido. Entrevista com Michael Löwy, Paris, setembro de 2014. As demais citações deste

capítulo não indicadas provêm dessa entrevista.

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o pequeno Félix Michael rezara até os 7 anos, antes de dormir, o pai nosso judaico. Essa

religiosidade meramente cerimonial seria contraposta, na adolescência, simultaneamente à

aproximação ao marxismo, por uma “visão antirreligiosa, anticlerical” – seria apenas bem mais

tarde, no final da década de 1970, que o intelectual Michael Löwy buscaria reatar os laços com

a herança religiosa (judaica, depois cristã) para nela visualizar uma dimensão utópica profícua

à renovação do marxismo então asfixiado pela crise de suas ortodoxias instituídas.

O paradoxal, aqui, não é a disposição antirreligiosa do jovem que acabara de descobrir

o marxismo e a extrema-esquerda (seria estranho se, naquele contexto, fosse diferente), mas

sim o fato de que o primeiro impulso para o despertar do seu interesse pelo socialismo foi dado

por seu irmão mais velho, um sionista-socialista (ou socialdemocrata) que lhe apresentara Marx,

Engels e o Manifesto Comunista. Mais importante ainda, foi este irmão quem o colocou em

contato, por volta de 1954, antes de se mudar para Israel, com uma figura que seria decisiva na

sua formação intelectual e, sobretudo, política: Paul Singer, que havia sido dirigente do

movimento sionista-socialista, mas que, em seguida, preferira dedicar-se à militância

exclusivamente pelo socialismo. A pedido do irmão, Singer se ocuparia da formação política

de Michael Löwy, orientando suas primeiras incursões políticas. Tal como o mentor, Löwy

aderiria à esquerda do Partido Socialista Brasileiro, no qualper maneceria alguns meses, antes

de romperem, juntos, com a linha reputada cada vez mais direitista da direção do partido, que

chegara a apoiar a candidatura de Jânio Quadros em São Paulo.

Nessa época, por volta de 1955, afastado do PSB, Paul Singer entrara em contato com

aqueles que, em 1956, formariam uma nova organização, “socialista-revolucionária”, a Liga

Socialista Independente (LSI): Maurício Tragtenberg, Hermínio Sacchetta, Luíz Alberto Moniz

Bandeira, dentre outros. Socialistas de esquerda, antistalinistas, mas igualmente distantes dos

trotskistas (dos quais Sachetta havia se afastado), era em Rosa Luxemburgo que os poucos

membros da LSI, que se reuniam em um espaço minúsculo na Avenida Brigadeiro Luíz

Antônio, em São Paulo, buscavam a inspiração política e teórica necessária para dar forma à

nova organização. Mais que Trotsky, Rosa Luxemburgo era a referência principal contra o

stalinismo e a social-democracia.

Ainda assim, a inspiração da figura do revolucionário russo não estava totalmente

ausente. O próprio Paul Singer, por exemplo, mantinha relações com um grupo trotskista

dissidente dos EUA, denominado exatamente Independent Socialist League, e dirigido por Max

Shachtman e Hal Draper, que haviam rompido com Trotsky na virada para os anos de 1940,

recusando-se a aceitar a tese de que a URSS era um Estado operário (burocratizado ou

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degenerado): para eles o que havia ali era, quando muito, uma espécie de “coletivismo

burocrático”. Assim como Singer, Löwy, que assinara o jornal do grupo, encantara-se com este

coletivo de trotskistas dissidentes que se referiam a Rosa Luxemburgo para criticar algumas das

tendências do bolchevismo. Não por acaso, seria Paul Singer o responsável pela proposição do

nome da nova organização (LSI), imediatamente aceito por Sachetta, Tragtenberg e pelos

demais. Löwy, além disso, mantinha já nessa época boas relações com os trotskistas do POR,

em especial com os irmãos Boris e Ruy Fausto, a despeito do fato de estes últimos, inspirados

na linha “posadista” (em referência a Juan Posadas, trotskista argentino responsável durante um

bom tempo pelas seções latino-americanas da IV Internacional), acusarem a LSI de ser a um só

tempo centrista e ultra-esquerdista.

Nessa época, através de Paul Singer e da militância socialista, Rosa Luxemburgo

consolidara-se como a principal referência política de Michael Löwy no âmbito do marxismo e

do socialismo revolucionário, uma referência que permanecerá central ao longo de toda sua

vida, a despeito das transformações pelas quais passou a sua trajetória. Esses primeiros anos de

militância e de aprendizagem política seriam fundamentais na formação do jovem Michael

Löwy, delimitando uma perspectiva a partir da qual ele faria suas escolhas nos planos

acadêmico e profissional. No jornal da LSI, Ação Socialista, Löwy publicou seus primeiros

artigos de intervenção, devidamente assinados com pseudônimos – dois, na verdade: ora Carlos

Rossi, o qual ele carregaria em sua temporada europeia, ora Antônio I. Martinez, em

homenagem a um operário anarquista assassinado pela polícia durante a greve de 1917 em São

Paulo, e o qual ele acabaria abandonando.

Respaldado pela convicção militante, Löwy começou a cursar em 1956 a graduação em

Ciências Sociais na USP da rua Maria Antônia. Para um jovem socialista, acreditava ele, o

curso de Ciências Sociais apresentava-se como o mais apropriado, particularmente a fim de

propiciar o conhecimento teórico necessário para a avaliação da política mais adequada à classe

trabalhadora brasileira. Colega de turma de Francisco Weffort, Roberto Schwarz, Gabriel

Bolafi, dentre outros e outras, seria com estes dois últimos que Löwy entreteceria estreitas

relações de amizade – juntos, os três foram apelidos de “os três mosqueteiros” pelos colegas.

Com Schwarz, o vínculo seria ainda mais forte e duradouro: ambos filhos de judeus austríacos

emigrados no Brasil, Löwy e Schwarz haviam se conhecido alguns anos antes, em uma colônia

de férias judaica em Campos do Jordão, dedicada às comunidades judaico-austríaco e judaico

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alemã paulistanas93. Não demorou, logo na viagem de ônibus, para os dois jovens de 15 anos

descobrirem-se através do interesse por assuntos que, do ponto de vista do rabino responsável

pela colônia, eram no mínimo inconvenientes, tais como socialismo, psicanálise, literatura94.

Dividindo seu tempo entre os estudos e a militância, Michael Löwy recrutou em 1959

para a LSI os irmãos Eder e Emir Sader, também alunos do curso de Ciências Sociais e membros

da União dos Estudantes. Simultaneamente, porém, por divergência com Ermínio Sachetta,

Paul Singer afastou-se da Liga, ao que foi seguido, depois de algum tempo, por Tragtenberg e

por Luiz Alberto Muniz Bandeira. As poucas adesões, entre as quais as dos irmãos Sader,

conseguiram, quando muito, tão-somente repor parte da perda dos militantes, de tal forma que

a LSI jamais passou da barra das duas dezenas de militantes. Retrospectivamente, Löwy atribui

esses limites, parcialmente, à linha ultraesquerdista que, de fato, servia de orientação para a

organização, sob a influência hegemônica da figura de Sachetta95.

Na época de estudante, Michael Löwy empenhou-se na criação do Departamento de

União Operário-Estudantil, no âmbito do qual participava das reuniões sindicais como

representante dos estudantes. Ademais, era ele quem assinava, em nome da aliança operário-

estudantil, o panfleto do Pacto de Unidade Intersindical. Na universidade, mais do que

Florestan Fernandes, cuja despolitização decepcionava o jovem militante socialista-

revolucionário, Antônio Cândido ou mesmo do que Fernando Henrique Cardoso e Octávio

Ianni, estes sim marxistas politizados, o professor com o qual Löwy mais se identificou foi Aziz

Simão, tio dos seus amigos Sader, que – segundo Löwy, em definição paradoxal – “era um

socialista de esquerda, antistalinista, quase anticomunista”, mas, mais importante para o jovem

estudante, era o único dos professores interessado no movimento operário96. Foi com Aziz

93 Entre 1926 e 1942, mais de 50 mil migrantes judeus (boa parte dos quais oriundos da Europa Central) entraram

no Brasil, estabelecendo-se especialmente em São Paulo, e isso apesar das leis restritivas do Estado Novo. Cf.

René Daniel Decol, “Judeus no Brasil: explorando os dados censitários”. In: Revista Brasileira de Ciências

Sociais, v.16, n.46, 2000. 94 Roberto Schwarz, “Aos olhos de um velho amigo”. In: Ivana Jinkings & João Alexandre Peschanski, As utopias

de Michael Löwy: reflexões sobre um marxista insubordinado. São Paulo: Boitempo, 2007, p.155. 95 Nas palavras de Löwy: “Intransigente na discussão, Sachetta era ao mesmo tempo um espírito profundamente

democrático, que acreditava na virtude catártica da discussão [...]. Isolado, nadando contra a corrente, profeta desarmado e (quase) sem discípulos, Sacchetta não transigia com suas ideias e os princípios. Às vezes sectário,

sempre sincero e coerente com suas convicções, ele aparece como uma figura original, quase única, no panorama

político e intelectual dos anos 1950”. Michael Löwy, “Testemunho”, in: Hermínio Sacchetta, O caldeirão das

bruxas e outros escritos políticos. Campinas: Editora da Unicamp, 1992, p.81, 82. 96 Na realidade, Azis Simão era membro, em São Paulo, ao lado de A. Candido, Paulo Emílio Salles Gomes e

Febus Gikovate, da União Democrática Socialista (UDS), que compunha o núcleo paulista da Esquerda

Democrática, agrupamento que, em 1947, fundou o PSB. Cf. Margarida Luiza de Matos Vieira, “O Partido

Socialista Brasileiro e o marxismo (1947-1965)”, in: Marcelo Ridenti & Daniel Aarão Reis Filho (orgs.), História

do marxismo no Brasil. Volume V. Partidos e organizações dos anos 20 aos 60, op.cit., p.163, 164, 165.

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Simão que Löwy fez suas primeiras incursões teóricas e investigativas sobre a consciência de

classe dos trabalhadores paulistanos, tema de sua predileção e a partir do qual ele descobriria,

mais tarde, através de Goldmann, a obra maior do jovem Lukács, História e Consciência de

Classe.

Com a ajuda de Simão, e através do DIEESE, onde trabalhava como voluntário, Löwy

fez uma pesquisa sobre a consciência de classe entre operários metalúrgicos do estado de São

Paulo, distribuindo um questionário no congresso do sindicato da categoria. A ideia era aferir

os diferentes níveis de consciência de classe, por meio da análise das opções políticas e sindicais

dos trabalhadores (trabalhista, socialista, anarquista ou comunista). Para surpresa do jovem

“pesquisador-militante”, ele foi agraciado pelo trabalho com o primeiro prêmio do “Centro de

Pesquisa dos alunos de Ciências Sociais”. A síntese da pesquisa foi publicada em forma de

artigo na Revista Brasileira Estudos Políticos, no começo dos anos 1960, e, mais tarde, em uma

versão mais sofisticada, nos Cahiers Internationaux de Sociologie97.

A compreensão do contexto brasileiro dos anos 1950, tanto político quanto intelectual,

é fundamental para se avaliar a formação do jovem Michael Löwy. Para Marcelo Ridenti, por

exemplo, mais do que algum “traumatismo ético-cultural”, tal qual a Primeira Guerra para um

intelectual como Lukács, foram “circunstâncias positivas que levaram parte significativa dos

intelectuais brasileiros [da época] a aderir a visões de mundo marxistas”. Educada sob a

vigência da constituição de 1946, e ancorada no pacto de classes dito populista, “a geração de

Löwy – que chegou à universidade nos anos 1950 – foi criada em clima democrático e de

esperança, apesar da Guerra Fria e das desigualdades seculares da sociedade brasileira, com as

quais se esperava romper por intermédio do desenvolvimento”98. No bojo da modernização e

urbanização acelerada da sociedade brasileira, uma das mais rápidas da histórica da

humanidade, a geração de Löwy vivenciou, na juventude, um dos períodos mais política e

culturalmente efervescentes da história do país. Dos CPCs ao teatro de Arena, passando pelo

Oficina e a Bossa Nova, até o cinema novo e o concretismo, dentre vários outros movimentos

artístico-culturais, o Brasil vivia no período, como demonstrou Ridenti no livro Em busca do

97 Michael Löwy, “Opiniões e atitudes de dirigentes sindicais brasileiros”, Revista Brasileira de Estudos Políticos,

n.13, 1962; e Michael Löwy, “Structure de la conscience de classe ouvrière au Brésil”, Cahiers Internationaux de

Sociologie, vol. XLIX, 1970. 98 Marcelo Ridenti, “Romântico e errante”, in: Ivana Jinkings & João Alexandre Peschanski, As utopias de Michael

Löwy: reflexões sobre um marxista insubordinado. São Paulo: Boitempo, 2007, p.169.

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povo brasileiro99, talvez o último e mais forte sopro das vanguardas à brasileira, cuja

originalidade assentava-se na capacidade de a um só tempo apostar em utopias de futuro e

resgatar aspectos do passado – não por acaso, inspirado em Löwy, Ridenti caracterizará como

“romântico-revolucionária” a estrutura de sentimento (Williams) compartilhada por estes

movimentos.

Ora, embora a caracterização de Marcelo Ridenti seja certeira para a compreensão dos

movimentos socioculturais por ele analisados, talvez não se aplique com a mesma destreza no

caso de Michael Löwy. Se a caracterização do período continua, em linhas gerais, válida, a

relação que Löwy entretém com ele é bastante específica. Assim, se é verdade que o jovem

Löwy compartilhou algo do clima de otimismo da época, sob o impulso da modernização

desenvolvimentista, ele o fez de um horizonte muito particular, no qual a visão da época não

era tão esperançosa, ao menos não antes da revolução cubana, que, tal como a revolução

francesa de 1789 para os alemães, estimulou a aposta, no Brasil, de que apesar de todos os

obstáculos, era possível vencer. Membro de uma pequena organização da esquerda

revolucionária, que jamais ultrapassou as duas dezenas de militantes, distante tanto do

reformismo nacionalista do PCB quanto do dogmatismo do trotskismo posadista dos seus

amigos do POR, Löwy talvez não tenha vivenciado, ao menos não com a mesma intensidade,

a atmosfera efervescente compartilhada pelos movimentos artísticos e/ou culturais que se

identificavam, ainda que de forma crítica, com o pacto nacional-populista e seus possíveis

desdobramentos positivos para o país – embora, evidentemente, tenha se beneficiado do

contexto geral de ampliação das oportunidades para setores sociais médios com acesso à

universidade.

Na ótica do próprio Michael Löwy, por exemplo, não havia de fato, nos anos 1950, “um

clima de grande radicalização”. Para ele, “o clima era bem tíbio”. Na esquerda, apenas o

“Partidão” era uma força organizada, enquanto os trotskistas e a LSI, juntos, pouco influíam

nos debates do movimento operário. Eram “totalmente marginais”, diz ele. O que havia era um

horizonte desenvolvimentista comum aos nacionalistas e aos comunistas, em especial após o

giro à direita deste último, realizado pela direção do partido em 1958, com a chamada

“Declaração de Março”. Havia algo de “exótico”, segundo Löwy, em participar de um “grupo

99 Marcelo Ridenti, Em busca do povo brasileiro: Artistas da revolução, do CPC à era da TV. São Paulo: Editora

Unesp, 2014. Do autor, conferir igualmente: Brasilidade revolucionária. Um século de cultura e política. São

Paulo: Editora da Unesp, 2010.

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luxemburguista” nesse contexto do Brasil dos anos 50, “em que predominava o nacionalismo e

o stalinismo do Partidão”100.

Na USP da Maria Antônia, por sua vez, ao contrário da mitologia retrospectiva em torno

da época, o clima não era de muita politização, nem mesmo no curso de Ciências sociais. Eram

poucos os que realmente participavam de algo. “E esses – diz Löwy – eram vistos como

curiosidades pelos outros alunos. Havia interesse político, havia interesse pela teoria marxista,

mas militância política, não, era muito limitada”. Na sua turma, por exemplo, dos cerca de 25-

30 alunos, apenas ele e Francisco Weffort – além de “mais um ou dois que eram comunistas” –

eram militantes políticos de fato101. Assim como em vários outros países no mesmo período, a

alternativa não era das mais sedutoras para um jovem socialista antistalinista: de um lado o PCB

e sua linha de aliança com a burguesia nacional e totalmente comprometida com os interesses

da “pátria mãe” do socialismo (URSS); de outro, a emergência de um marxismo acadêmico

renovado, mas desvinculado de toda prática política, em uma espécie de “marxismo ocidental”

à brasileira.

Como vivia de perto essa irrupção de um marxismo renovado, embora circunscrito aos

limites da reclusão teórica, Michael Löwy não se furtou a participar, na condição de aluno, ao

lado de Roberto Schwarz, do assim chamado Seminário do Capital, em que uma plêiade de

jovens professores, ademais de poucos estudantes, se reuniam quinzenalmente para ler e debater

a obra magna de Karl Marx, à luz do método de explicação do texto que José Arthur Gianotti

trouxera da sua temporada filosófica francesa. Dentre os participantes, pode-se destacar figuras

como - além de Gianotti, que se colocava como maître à penser do grupo - os sociólogos

Fernando Henrique Cardoso e Octávio Ianni, o historiador Fernando Novaes, o (futuro)

economista Paul Singer, dentre outros.

Mesmo aí, entre marxistas (ou “marxólogos”, no caso de alguns), a militância de

Michael Löwy não estaria isenta da suspeição, quando não da chacota, vinda daqueles para os

quais o engajamento político colocaria obstáculos à seriedade da reflexão e da pesquisa

acadêmicas, ainda que estas estivessem relacionadas ao marxismo ou à obra de Marx. Gianotti,

por exemplo, diante dos avisos de Löwy de que não poderia comparecer à próxima sessão em

100 Michael Löwy, “A atualidade latino-americana de Rosa Luxemburgo. Entrevista concedida a Danilo César e

Isabel Loureiro”. In: Isabel Loureiro (org.), Socialismo ou barbárie. Rosa Luxemburgo no Brasil. São Paulo:

Instituto Rosa Luxemburgo, 2008. pp.33-46. (p.34).

101 Ângela de Castro Gomes e Daniel Aarão Reis, “Um intelectual marxista: entrevista com Michael Löwy”.

Tempo, Rio de Janeiro, Vol. 1, n° 2, 1996, pp. 166-183.

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função de alguma atividade militante, ironizava o jovem iludido: “Lá vai o escoteiro fazer a sua

boa ação!”. Não surpreendentemente, tais brincadeiras irritavam “profundamente” o jovem

cioso da responsabilidade militante, embora igualmente cuidadoso nos estudos, tal qual revelam

os testemunhos da época.

Michael Löwy era, nesse contexto, uma figura singular, preocupado em articular

reflexão intelectual e militância política, à diferença tanto das limitações teórica do PCB quanto

da inapetência para a prática dos seus colegas marxistas na universidade. Movendo-se nesse

terreno, ele cultivara desde então uma disposição (qualidade para alguns, deficiência para

outros) em estabelecer laços com diferentes círculos políticos e/ou intelectuais: ele era um

luxemburguista próximo dos trotskistas, assim como aberto às discussões com seus amigos

“marxistas ocidentais” da faculdade, sem se reduzir aos limites de nenhum dos dois grupos. Sua

referência principal seguia sendo Paul Singer, outro que buscara articular teoria e prática e com

o qual, diria Löwy, ele “aprendeu tanto quanto na faculdade” – sem dúvida um exagero, a

assertiva dá uma boa medida, porém, da escala de preocupações do jovem intelectual102.

Os principais interesses de Löwy estavam, naquela época, bem longe dos cursos da

Maria Antônia - embora jamais tenha se descuidado das preocupações e da ambição acadêmica.

Eles estavam, por exemplo, nos revolucionários que, das montanhas de Sierra Maestra, deram

início à revolução cubana, triunfante em 1959, a qual, em especial após a radicalização

socialista de 1961, tornara-se reservatório das esperanças revolucionárias das novas gerações

de jovens militantes mundo afora, e no Brasil e na América Latina em particular. Löwy foi

muito impactado pela revolução cubana, a tal ponto que este acontecimento acabaria por definir

em boa medida a sua concepção ético-voluntarista do socialismo, inspirada na dimensão

humanista e antiburocrática da figura de Che Guevara – o nome de sua única filha, Tamara,

seria inspirado em Tamara Bunke, argentina (filha de um alemão e de uma polonesa) que se

juntou à guerrilha de Che na Bolívia, sendo assassinada em agosto de 1967, dois meses antes

do próprio Ernesto Guevara.

Na virada para os anos 1960, Michael Löwy, ao lado de alguns outros militantes da LSI,

como os irmãos Eder e Emir Sader e Renato Caldas, dentre outros, participou do processo de

reagrupamento da esquerda socialista antistalinista que daria origem à formação da

102 “Tenho a impressão de que em conversas discussões com Paul Singer aprendi tanto quanto na universidade. Do

ponto de vista da formação intelectual e política marxista, ele foi uma espécie de universidade particular para

mim”. Ângela de Castro Gomes e Daniel Aarão Reis, “Um intelectual marxista: entrevista com Michael Löwy”,

op.cit., p.168.

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“Organização Marxista Revolucionária – Política Operária”, a POLOP. O congresso de

fundação, do qual Sachetta se recusou a participar (selando assim a desagregação da LSI),

ocorreu em Jundiaí, no interior de São Paulo, em fevereiro de 1961, contando com a

participação de figuras como Theotônio dos Santos, Ruy Mauro Marini, Vânia Bambirra, Juarez

Guimarães, além de Paul Singer e Eric Sachs, responsável pela sugestão do nome “Política

Operária”, baseado na corrente dissidente do Partido Comunista Alemão de mesmo nome,

dirigida por Heinrich Brandler. Composta por “luxemburguistas”, trotskistas, remanescentes da

esquerda trabalhista e/ou socialista, além de grupos e/ou intelectuais “independentes”, a

POLOP constituiu-se em torno da defesa da tese do caráter socialista da revolução brasileira,

em oposição à linha política do PCB, que sustentava a necessidade de uma etapa democrático-

burguesa da revolução no país, deixando o socialismo para um futuro hipotético. Para a POLOP,

a realidade econômico-social brasileira já era plenamente capitalista, o que fazia com que o

caráter da revolução fosse necessariamente, e desde o início, socialista, sob a liderança do

proletariado104.

A própria organização, porém, não contava senão com cerca de 3,7% de trabalhadores

manuais urbanos (índice bem menor do que o das outras organizações da esquerda, de 13,5%),

segundo o levantamento feito por Marcelo Ridenti com base nos dados compilados pelo Projeto

Brasil Nunca Mais a partir de processos na Justiça Militar105. Por outro lado, cerca de 40% dos

militantes da POLOP eram estudantes ou professores, 15 % profissionais liberais e, o que era

uma marca distintiva da organização, 20% eram militares de baixa patente (contra 3,2% na

média geral das esquerdas). Assim, como sustenta Marcelo Badaró, “embora tenha pregado, ao

longo de sua curta trajetória, o papel central do proletariado no processo revolucionário,

associado mesmo à insurgência operária, [a POLOP] teve uma militância operária bastante

reduzida”106. Na POLOP, o estudante/professor Michael Löwy chegou a ser, não por muito

tempo, um dos responsáveis pelas relações internacionais da organização, estabelecendo

contatos com grupos como o argentino Práxis, dirigido por Silvio Frondizi.

104 Cf. Marcelo Badaró Mattos, “Em busca da revolução socialista: a trajetória da Polop (1961-1967)”, in: Marcelo

Ridenti & Daniel Aarão Reis Filho (orgs.), História do marxismo no Brasil. Volume V. Partidos e organizações

dos anos 20 aos 60, op.cit., p.186. A POLOP se desintegrou em seu congresso nacional de 1967, quando ocorreu

um racha na organização. Enquanto alguns dos que restaram se uniram à Dissidência Leninista do Rio de Grande

do Sul para formar o POC, os que saíram se juntaram na formação da COLINA, em 1978, ou da VPR, no mesmo

ano. Em 1969, estas duas organizações oriundas da POLOP fundiram-se em uma única, a VAR – Palmares. Idem,

p.186, 187. 105 Marcelo Ridenti, O fantasma da revolução brasileira. São Paulo: Editora da Unesp, 1993, p.69. 106 Marcelo Badaró Mattos, “Em busca da revolução socialista: a trajetória da Polop...”, op.cit., p.188.

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Depois de se formar em Ciências Sociais, em 1960, o jovem cientista social foi trabalhar

como professor na Faculdade de Filosofia de São José do Rio Preto, no interior de São Paulo.

No pouco tempo que por lá esteve, Löwy envolveu-se com a luta dos camponeses de Santa Fé

do Sul pela libertação de Joffre Corrêa Netto, liderança camponesa que havia sido encarcerado

após conflitos com jagunços a mando dos latifundiários. Löwy chegou a escrever um pequeno

artigo sobre o episódio no jornal Ação Socialista, “Libertemos Joffre Corrêa Netto”. Chegou a

visitá-lo na prisão.

A estadia interiorana seria, porém, bem curta (1 ano), pois, agraciado com uma bolsa de

estudos, Löwy foi cursar o doutorado em Paris, na Sorbonne, com uma pesquisa sobre a

evolução político-intelectual do jovem Marx e sob a orientação daquele que, após conhecer sua

obra alguns anos antes, tornara-se a sua referência para uma perspectiva a um só tempo marxista

e “sociológica”: Lucien Goldmann, autor com quem ele tomara contato no terceiro ano da

faculdade, apresentado por seu amigo Gabriel Bolaffi. Naquele momento, por volta de 1958, a

descoberta de Lucien Goldmann propiciara ao então militante estudante (mais do que estudante

militante) a possibilidade de uma “conciliação” entre marxismo e sociologia, esta última

deixando de ser de imediato assimilada à “sociologia burguesa”. O pequeno livro de Goldmann

(Ciências Humanas e Filosofia) abriu-lhe várias “portas e janelas”, estimulando-o a “subir

andares para descobrir, do terraço, novas paisagens”. Ele forneceu-lhe, ademais, “uma bússola

no labirinto das ciências humanas, evitando vias sem saída: o positivismo, o cientificismo, o

materialismo vulgar, [e] uma certa sociologia conformista”108.

Exatamente na mesma época, nos últimos anos da década de 1950, Goldmann se

beneficiara de um processo simultâneo de ascensão (o primeiro curso de doutorado de terceiro

ciclo em sociologia foi inaugurado em 1958) e de relativa abertura da sociologia francesa,

reestimulando os debates fundadores da época dos clássicos. “Tornada uma disciplina

autônoma” a partir de 1958, ano da criação de uma graduação e de um doutorado de terceiro

ciclo específicos, “a sociologia se interroga sobre as possibilidades de sua existência, reatando

assim com os debates que haviam marcado seu nascimento”. Dentre esses debates, destaca-se

a discussão sobre a questão da objetividade, no interior da qual se visualiza a possibilidade de

uma “sociologia marxista”: “afora alguns irredutíveis, a associação dos dois termos não aparece

mais aos marxistas como uma monstruosidade”. Esse debate, bem candente na obra de

Goldmann, marcaria igualmente a perspectiva através da qual Löwy buscaria analisar

108 Michael Löwy, “Hommage à Lucien Goldmann”. In: Vincent Delecroix e Erwan Dianteill, Cartographie de

l’utopie. L’œuvre indisciplinée de Michael Löwy, Paris: Sandre Actes, 2011, p.177.

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“sociologicamente”, na sua tese de doutorado, a evolução político-ideológica do jovem Marx,

sustentando a possibilidade de uma análise marxista, com seus critérios específicos de

objetividade, da gênese do próprio marxismo.

Fascinado, desde 1955, pelo surrealismo, e apaixonado pela cultura e pela literatura

francesas, a opção por estudar em Paris, sob orientação de Goldmann, impusera-se então quase

que naturalmente. Capital das revoluções, lócus no qual se desenvolvera o movimento

surrealista, Paris acabou sendo escolhida, forjada a possibilidade de sustentação material, como

uma espécie de exílio voluntário, local para se estabelecer novos laços intelectuais e militantes,

abrindo novas perspectivas, inclusive acadêmicas. Ao mesmo tempo, a disposição do jovem

recém-formado em conseguir uma bolsa de estudos para realizar o doutorado no exterior

relativiza o seu discurso retrospectivo de que, na época, o militantismo quase que monopolizava

suas preocupações intelectuais, na contramão da suposta apatia política dos seus colegas

uspianos. Tanto quanto muitos dos seus conhecidos da Maria Antônia, Löwy aproveitou-se da

oportunidade de estudar no exterior, forjando desde muito cedo uma trajetória acadêmica que,

vista de hoje, revela-se inequivocamente exitosa, para além da opinião específica que se pode

ter em relação a este ou aquele aspecto do seu pensamento.

Naquele momento, em 1961, pouco depois de Jango assumir a presidência, Löwy só não

poderia saber que a viagem não teria volta nas duas próximas décadas, já que a ideia inicial era

ir a Paris, fazer a tese, e voltar para o Brasil. Quando termina o doutorado, exatamente em 1964,

a ditadura militar que se impusera no Brasil já havia restringido as possibilidades de retorno em

segurança ao país. Löwy acompanhou o processo que culminou na derrubada de Jango e no

golpe militar por meio dos testemunhos dos seus camaradas de POLOP, Paul Singer, Eder e

Emir Sader, com as quais trocava frequentes correspondências. Entretempo, a morte do seu pai,

vítima de acidente automobilístico, associada à mudança de sua mãe para Israel (onde já vivia

o irmão), tornou ainda mais distante o país no qual vivera seus primeiros 23 anos de vida. Ele

apenas retornaria ao Brasil no início da década de 1980, no crepúsculo da ditadura.

1.2. Löwy, o jovem Marx e Paris: um rendez-vous non manqué

Recém-chegado em Paris, o jovem, então 23 anos, foi logo encontrar Goldmann, com o

qual já tinha estabelecido contato prévio por correspondência postal. O primeiro encontro,

porém, esteve muito longe do que gostaria Michael Löwy. Tratou-se mesmo de um verdadeiro

“desastre”, como ele diria mais tarde. Quando perguntado por Goldmann quais dos seus escritos

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havia lido, Michael Löwy respondeu que apenas o pequeno Ciências Humanas e Filosofia.

Levemente contrariado, Goldmann censurou-o por ainda não ter lido seu principal livro, Le

Dieu Caché, solicitando-lhe que lesse a obra. Envergonhado com o desconhecimento do

essencial da obra goldmanniana, Löwy foi prontamente ler o livro, mas, “no começo, não me

impactou muito”, disse ele, “porque se tratava de coisas que não interessavam. Eu estava

interessado em Marx!”. Interessava-lhe muito mais os cursos sobre Marx que o próprio

Goldmann estava ministrando à época (e que contavam com participações de figuras como

Marcuse e Lefebvre) do que Racine e Pascal, que “para mim eram coisa de outro mundo”.

Ao lado de outros escritos, a introdução metodológica de Le Dieu Caché tornou-se,

ainda assim, uma referência central na pesquisa e na tese sobre a evolução político-ideológica

do jovem Marx, analisada a partir da óptica da constituição de uma nova visão de mundo

ancorada na teoria da revolução como autoemancipação dos trabalhadores. Através das

sugestões goldmannianas, tratava-se para Löwy de se vincular o desenvolvimento teórico-

intelectual do jovem filósofo alemão às condições sociais e políticas que o condicionavam, cujo

movimento de influência recíproca entre teoria e prática, filosofia e história, desautoriza as

interpretações da obra marxiana meramente “internas”, quer dizer, focadas exclusivamente no

desenrolar imanente da reflexão teórica do autor em suas absorções crítico-filosóficas da

herança hegeliana ou feuerbachiana.

O interesse pelo jovem Marx começara a ser cultivado alguns anos antes, depois do

encantamento gerado pela leitura dos Manuscritos de 1844. Ainda no Brasil, o cientista social

em formação publicara um artigo na revista Brasiliense sobre o jovem Marx, no qual já revelava

a tonalidade lukacsiana (inspirada em História e Consciência de Classe) de sua leitura da obra

do autor alemão109. A tomada de conhecimento da obra magna do jovem Lukács, cuja

publicação (sem autorização do autor húngaro) da edição em francês ocorrera exatamente em

1960, consolidara em Michael Löwy o interesse por questões como a reificação e a práxis

109 Michael Löwy, “Homem e sociedade na obra do jovem Marx”. Revista Brasiliense, São Paulo, n.40, 1961.

Antes deste, Löwy havia publicado na mesma revista Brasiliense (n.31, 1960) o artigo “Notas sobre a questão

agrária no Brasil”, o qual, por se distanciar da linha política (reformista) assumida pela revista, veio acompanhado de uma nota explicativa do diretor-responsável pela publicação, o jornalista Elias Chaves Neto, em que se

afirmava: “as conclusões do presente artigo não se encadram na orientação da Revista, que é nacionalista,

conforme foi firmada em seu manifesto de constituição. Por nacionalista se compreende a política que visa unir as

mais amplas camadas do povo brasileiro na luta anti-imperialista, promovendo a melhoria [das] condições de vida

do povo dentro do regime político e social vigentes” (Idem, p.55). Segundo Fernando Limongi, trata-se do

“primeiro artigo” na revista Brasiliense em que o autor defende “explicitamente a adoção da alternativa

revolucionária”, ao qual se seguirão mais alguns nos números seguintes, de outros autores. Fernando Papaterra

Limongi, “Marxismo, nacionalismo e cultura: Caio Prado Jr. e a revista Brasiliense”, in: Revista Brasileira de

Ciências Sociais, n.5, v.2, 1987, p.41.

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revolucionária capaz de superá-la, questões que o estimulariam a se voltar à trajetória do jovem

Marx, a fim de visualizar a gestação da visão de mundo marxista, a qual se distinguia, na sua

perspectiva, por ser a um só tempo crítico-teórico e prática: o próprio diagnóstico da realidade

objetiva do capitalismo só pode ser efetivamente crítico porque se encontra entrelaçado ao

ponto de vista de uma classe particular por meio de cuja práxis se poderá chegar à consciência

de sua real situação e, tão importante quanto, das suas possibilidades (auto) emancipatórias.

Em 1962, quando já se encontrava instalado em Paris, Michael Löwy publicou, na

mesma Revista Brasiliense um artigo intitulado “Consciência de Classe e Partido

Revolucionário”, no qual, após debater as contribuições políticas de Lênin, Rosa Luxemburgo

e, de modo pioneiro, Gramsci, projeta em HCC a realização de uma “síntese teórica”, a mesma

que, anos depois, ele visualizaria, em relação à gênese do marxismo, nas teses sobre Feuerbach

de 1845. A “síntese” lukacsiana, tal como a marxiana, aliás, manifesta-se na superação dialética

das dicotomias entre espontaneísmo e sectarismo, entre voluntarismo e fatalismo objetivista,

dicotomias que teriam imperado em maior ou menor nível na obra dos marxistas “clássicos”.

Essa perspectiva se revela em especial na abordagem da questão organizativa, que mostraria a

via para, por meio da práxis e da interação partido-massa, se chegar à consciência de classe: “a

colocação dialética do problema organizatório, que superaria a alternativa: jacobinismo

partidário x ‘autonomismo’ da massa, seria concretizada pela interação viva entre o partido e

as massas inorganizadas, interação essa regulada em uma estrutura pelo processo de evolução

da consciência de classe”111.

Mas esse interesse por temas que se relacionavam ao jovem Marx e, consequentemente,

à obra de Lukács, mais do que mera escolha individual, acompanhava uma tendência de

crescimento do interesse pelos escritos de juventude do filósofo alemão nos círculos intelectuais

marxistas europeus. Desde o final da segunda guerra mundial, os escritos de juventude de Marx,

em particular os Manuscritos de 1844 (publicado em 1932) começaram a ser alçados ao centro

111 Michael Löwy, “Consciência de classe e partido revolucionário”, Revista Brasiliense, n.41, 1962, p.159, 160.

Nas palavras de Celso Frederico (“A presença de Lukács na política cultural do PCB e na universidade”. In: João

Quartim Moraes, org. História do marxismo no Brasil. Vol II. Os influxos teóricos. Campinas: Editora da Unicamp,

1995): “Um dos primeiros intelectuais brasileiros a encampar as ideias de HCC foi Michael Löwy. Em 1962, ele

publicou o ensaio ‘Consciência de Classe e Partido Revolucionário’, na Revista Brasiliense (número 41), em que

traça um painel das posições teóricas sobre a relação entre partido político e espontaneidade operária. O texto

concentra-se na exposição das ideias de Lênin, Rosa, Gramsci (este último pela primeira vez é apresentado ao

público brasileiro) e o Lukács de HCC, ocupando uma posição de honra (a última parte tem como subtítulo ‘A

síntese teórica de Lukács’)”. Segundo testemunha Carlos N. Coutinho (“O marxismo no Brasil”. In: Ivana Jinkings

& João Alexandre Peschanski, orgs. As utopias de Michael Löwy: reflexões sobre um marxista insubordinado.

São Paulo: Boitempo Editorial, 2007, p.129), “esse artigo foi muito importante para os jovens brasileiros que,

como eu, buscavam no marxismo uma fonte de inspiração teórica e política”.

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dos debates no interior do “marxismo ocidental”. Não poucos autores identificados ao epíteto

de Perry Anderson foram mais ou menos influenciados pelos escritos do jovem Marx: Lukács,

Henri Lefebvre, Herbert Marcuse, Della Volpe e Jean-Paul Sartre.

O tema se impôs de tal forma que se tornou inescapável mesmo para os que o rejeitavam,

como o demonstra o caso de Louis Althusser e de seus discípulos, para os quais os Manuscritos

constituíam a expressão de uma fase ainda “pré-materialista” da obra de Marx, a qual seria

superada pelo “corte epistemológico” que se apresenta a partir d’A Ideologia Alemã, em

1845/6112. A retomada do jovem Marx, e dos Manuscritos em especial, coincidiam, por assim

dizer, com um tipo de experiência que se tornara comum nos anos 1950 e 1960: a experiência

da alienação, tema central no dispositivo conceitual dos Manuscritos de 1844, cuja concepção

do comunismo assentava-se na ideia de uma reapropriação do controle do homem (dos

produtores livremente associados) sobre o seu próprio trabalho, libertando-o da subordinação

que, sob o capitalismo, ele se encontra submetido pela alienação e pelo primado da propriedade

privada.

Segundo afirma Pierre Nora, a alienação tornou-se a “palavra do momento” no período

entre 1945 e 1975, quer dizer, exatamente o período dos “Trinta Gloriosos”, marcado por forte

crescimento econômico, urbanização e aceleração do êxodo rural que, apesar do bem-estar

material propiciado às camadas médias dos países desenvolvidos, estimulou uma experiência

crescente de ruptura entre as aspirações pela vida “autêntica”, frequente entre os intelectuais, e

o caráter alienante da vida social real, tal que se pode ver, por exemplo, em um romance como

As Coisas, de Georges Perec (escrito entre 1961 e 1965), o “romance mesmo da alienação”113.

Esse sentimento difuso da alienação se exprime em elaborações como as da Critique de la vie

quotidienne, de Henri Lefebvre (1958-1961), nos escritos de Marcuse da época, como L'Homme

unidimensionnel (1964), ou ainda em A Sociedade do Espetáculo, publicado em 1967 por Guy

Debord. Nesses casos, em maior ou menor medida, havia a inspiração da análise da temática

realizada pelo jovem Lukács em HCC, no ensaio central sobre a “reificação”, desenvolvido em

um momento no qual os escritos do jovem Marx ainda eram desconhecidos, chegando, porém,

a intuições semelhantes sobre a “alienação”, através de uma articulação inventiva, sob o

112 Cf. Louis Althusser, Pour Marx. Paris: La Découverte, 2005. 113 Pierre Nora, “Aliénation”. In: Anne Simonin e Hélène Clastres (orgs.), Les Idées en France, 1945-1988. Paris:

Gallimard, 1989, p.453. Cf. Delphine Bouffartigue, Histoire et mémoire. Georges Perec écrivain de sa génération,

DEA, Instituto de Estudos Políticos (Science Po) de Paris, 1991; e Georges Perec, Les Choses. Une histoire des

années soixante. Paris: Julliard, 1965.

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primado do método dialético, da análise marxiana do fetichismo da mercadoria e da teoria

weberiana da racionalização.

Inspirado no jovem Lukács, fundamentalmente em HCC, assim como nas sugestões

metodológicas da sociologia da cultura de Lucien Goldmann, a pesquisa de Michael Löwy

sobre a trajetória político-intelectual do jovem Marx inscreve-se no contexto desse despertar

para temáticas características da obra de juventude do filósofo alemão. A bem dizer, o estudo

de Löwy, iniciado em 1961 e finalizado três anos depois, é pioneiro em diversos sentidos. Antes

mesmo da irrupção althusseriana, em 1965, com a publicação de Pour Marx (embora os ensaios

aí reunidos tivessem sido redigidos entre 1961 e 1965), Löwy analisara a evolução e, sobretudo,

a inflexão (acima de tudo política, e não tanto epistemológica, como defenderia o filósofo de

origem argelina) pela qual passou a trajetória do jovem intelectual alemão por volta de 1845,

momento de redação das Teses sobre Feuerbach e, ao lado de Engels, d’A Ideologia Alemã,

superando o comunismo filosófico-especulativo que predominava em seus textos até 1844,

inclusive nos Manuscritos.

Para Löwy, tal inflexão decorria não apenas de uma evolução meramente teórico-

filosófica, decorrente das leituras e descobertas filosóficas de Marx na época, mas sim da forma

através da qual a sua reflexão teórica se modificava à luz dos contatos do autor com o nascente

movimento operário do período. A partir de uma leitura específica do marxismo – que não

separa dicotomicamente teoria e “ideologia”, “juízos de fato” e “juízos de valor” –, Löwy

examina o itinerário de Marx não apenas do ponto de vista do seu desenvolvimento teórico,

senão também da sua relação com os conflitos sociais e políticos concretos de sua época, diante

dos quais o jovem filósofo era impelido a se manifestar. Mesmo porque, “a atividade militante

de Marx não é uma anedota biográfica, mas o complemento necessário da obra, já que tanto

uma quanto a outra tem a mesma finalidade: não somente interpretar o mundo, mas transformá-

lo e interpretá-lo para transformá-lo”114.

Partindo da noção marxista-goldmanniana de que as ideias estão sempre vinculadas a

um grupo e/ou classe social e, portanto, a um ponto de vista social e político específico, Michael

Löwy propõe-se a “compreender” e “explicar”, em A Teoria da Revolução no Jovem Marx,

como isso ocorre na própria trajetória do jovem Marx, e como este movimento geral desemboca

na concepção de uma nova concepção de mundo, ao mesmo tempo “científica” e

“revolucionária”. Da sua ótica, é a descoberta do caráter politicamente independente do

114 Michael Löwy, A Teoria da Revolução no Jovem Marx. Petrópolis: Vozes, 2002, p.40.

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proletariado que, segundo Löwy, permite a Marx avançar na sua definição do comunismo como

o movimento revolucionário real que, baseado na práxis do proletariado, transforma as

condições materiais e objetivas de existência e, assim, transforma-se a si mesmo,

subjetivamente. Como afirmara Marx na terceira tese sobre Feuerbach, “a coincidência entre a

alteração das circunstâncias e a atividade humana só pode ser apreendida e racionalmente

entendida como prática revolucionária”.

Por isso mesmo, se retém algo da atmosfera predominante na esquerda intelectual da

época – no interior da qual proliferaram, à época, diferentes versões sobre a “integração” ou

“assimilação” do proletariado à sociedade burguesa, levando a diferentes conclusões políticas

–, Michael Löwy se distinguia dessa tendência ao insistir, tal como Lukács em HCC (e à

diferença de Goldmann, associado a uma posição “reformista-revolucionária”), na

possibilidade objetiva de uma subversão e subsequente superação da realidade reificada do

capitalismo. Na sua ótica, essa possibilidade ancora-se na categoria central que demarca a

passagem do jovem Marx de uma postura ainda dualista (entre ser e consciência, objetividade

e subjetividade) e, portanto, especulativa, para a defesa do comunismo como transformação

simultânea das estruturas objetivas e da subjetividade dos agentes: trata-se da categoria da

práxis, a qual constitui, para Löwy, não por acaso, uma característica essencial e definidora do

que é, ou deveria ser, o marxismo enquanto visão de mundo específica, assentada na perspectiva

de uma classe social particular, o proletariado.

Como nem poderia ser diferente, o vínculo estabelecido entre a reflexão teórica do

jovem Marx e a posição social potencialmente revolucionária do proletariado (concretizada por

meio da categoria da práxis) tornava a tese de Löwy bastante singular no interior da

universidade francesa, e mesmo em relação ao próprio Goldmann, que não por acaso

manifestou sua discordância exatamente sobre esse ponto: a apreensão da teoria de Marx como

a expressão do ponto de vista (ou “consciência possível”) do proletariado revolucionário. Do

seu ponto de vista, a teoria de Marx era muito mais expressão da ala esquerda da (pequena)

burguesia, já que, rigorosamente falando, não existiria ainda classe operária na época do jovem

Marx.

Como escreveu o sociólogo romeno, mencionando explicitamente a tese de Löwy: “que

Marx confere ao proletariado um papel revolucionário fundamental, é evidente; mas que este

pensamento seja, no momento em que emergiu na França, na Inglaterra, o pensamento do

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proletariado [...], eu não estou seguro”115. Em face das posições do mestre, das quais não

partilhava as consequências políticas, Löwy se definira desde esta época como uma espécie de

“neo-goldmanniano de esquerda”. A distinção política entre ambos se refletia em seus

engajamentos políticos: enquanto Löwy, desde que chegara à França (responsabilidade

militante obrigava), logo se integrou a uma corrente da esquerda do Partido Socialista

Unificado (PSU), Goldmann identificava-se com as alas mais (relativamente) “à direita” do

partido. A tendência na qual Löwy militava, chamada “Socialismo revolucionário”, era dirigida,

na prática, por Michel Lequenne, trotskista que estava prestes a voltar à IV Internacional (da

qual havia saído) e que, nos anos 1970, seria responsável pela tendência interna da LCR com a

qual Löwy mais se identificaria.

Metodologicamente inspirada na sociologia marxista de Goldmann, a tese de Löwy

carrega uma perspectiva política inegável, de tonalidade luxemburguista, revelando a

importância do seu período de militância no Brasil. Mais do que Lênin, cuja concepção do

partido de vanguarda não estava isenta da possibilidade de derivas autoritárias, era Rosa

Luxemburgo quem, na ótica de Löwy, se constituía na herdeira legítima da teoria marxiana da

práxis: a emancipação dos trabalhadores só pode ser uma autoemancipação porque é na luta e

na experiência políticas que eles, de fato, apreendem as condições de sua própria vida e, assim,

combatem pela transformação das estruturas sociais objetivas ao mesmo tempo em que

modificam sua própria visão do mundo. Politicamente, Rosa Luxemburgo era seu recurso

contra a aparente ausência de alternativas revolucionárias no horizonte europeu. Essa leitura

luxemburguista do marxismo respaldava-se nos ensaios de HCC dedicados à revolucionária

polonesa, nos quais Lukács visualiza em Rosa, por sua concepção da práxis, assim como por

sua utilização da categoria da totalidade, a principal continuadora da “ciência revolucionária”

de Marx.

Michael Löwy atuava, assim, nesse seu principal trabalho de fôlego, o qual lhe valeria

o título de doutor aos 25 anos, em duas frentes centrais: 1) na primeira, acadêmico-científica,

por assim dizer, ele almejava defender a legitimidade epistemológica do marxismo,

demonstrando, para isso, a possibilidade de uma análise marxista – com seus critérios

específicos de objetividade – da gênese do próprio marxismo. Nessa frente, ele lograva intervir

em questões então centrais, vinculadas ao debate epistemológico, tanto para os “marxistas

ocidentais” quanto para alguns sociólogos, tal qual a questão da objetividade ou, o que seria

115 Lucien Goldmann, “Révolution et bureaucratie”. In: Épistémologie et philosophie politique. Paris: Denoël,

1978, p.188, 9.

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apenas uma forma diferente de colocar o mesmo problema, da relação entre ciência e prática

social; 2) na segunda frente, ético-política, digamos assim, Löwy buscava, apoiando-se nessa

legitimidade científico-epistemológica, reafirmar, na perspectiva dos marxistas “clássicos” do

passado, a possibilidade objetiva da revolução socialista, o que o levaria não raro a apostar de

maneira simplista, malgrado declarações em contrário, na “práxis revolucionária” como

tendência inelutável que levará o proletariado na direção do marxismo e de sua consciência

possível: a consciência comunista.

Esse curto-circuito deliberado entre ciência e política, teoria e prática, estimulou muitas

vezes uma argumentação circular, tautológica, que perpassa a tese: a teoria de Marx é científica

porque, ao apreender a totalidade, expressa o ponto de vista do proletariado, sendo, portanto,

revolucionária; e ela é autenticamente revolucionária porque, colocando-se do ponto de vista

do proletariado, e, assim, logrando apreender a totalidade, é verdadeiramente científica. “Em

suma, a ciência de Marx é crítica e revolucionária porque se situa na perspectiva de classe do

proletariado, porque é a forma coerente da consciência revolucionária da classe proletária”116.

A práxis seria a categoria que explicaria essa dupla função da “ciência revolucionária” de Marx:

análise realista da objetividade existente e afirmação da possibilidade de uma subversão

revolucionária, realizada pelo proletariado e sua consciência de classe tendencialmente

comunista. Para Löwy, a “doutrina da revolução comunista de massas de Marx” é uma “teoria

política realista porque se funda em uma análise ‘crítico-científico’ da sociedade capitalista”:

“a possibilidade de transformação da realidade social está inscrita no próprio real”. No limite,

porém, é a hipótese do “caráter potencialmente revolucionário e comunista do proletariado”

que garante a unidade, a “relação orgânica entre a teoria política de Marx e sua sociologia,

economia, filosofia da história, etc.”117.

Ora, se tal leitura francamente voluntarista da unidade entre teoria e prática em Marx

costuma ser frequente em momentos caracterizados pela possibilidade concreta de grandes

transformações históricas, quando a análise crítica e a ação revolucionária fundem-se num

mesmo movimento, ela o é muito menos em tempos de relativa estabilidade, como a França no

período em que Löwy produziu a tese (1961-64). A própria posição política de Goldmann na

época, às voltas com seu “reformismo revolucionário”, decorria da sensação de relativa

estabilidade que então imperava, consolidada em um plano mais amplo pelo avanço e pelo

triunfo da reificação que ele havia identificado, em forma estético-literária, nos escritores

116 Michael Löwy, A Teoria da Revolução no Jovem Marx, op.cit., p.40. 117 Ibidem.

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associados ao chamado nouveau roman francês. Se o romance, como demonstrara Lukács em

A Teoria do Romance118, constitui a forma por excelência de literatura no mundo burguês, ele

já não mais possuiria, na época do nouveau roman, a mesma capacidade de problematização

(através exatamente do seu herói problemático) e a mesma negatividade das fases “liberal” e

“imperialista” do capitalismo: agora, com o chamado “capitalismo de organização”, vinculada

ao ciclo de estabilidade e prosperidade econômica do pós guerra, o romance, enquanto

expressão literária do período, não faz senão registrar a vitória definitiva da reificação, o triunfo

das coisas sobre os homens, conforme se pode ver nos romances de Alain Robbe-Grillet119.

Em um artigo de 1961, Goldmann, à diferença do seu célebre texto sobre a reificação

publicado dois anos antes, decreta o esgotamento da capacidade de resistência operária à

reificação capitalista: “O proletariado ocidental, longe de permanecer estranho à sociedade

reificada e de se opor a ela enquanto força revolucionária encontra-se, ao contrário, em grande

medida integrado e sua ação sindical, política, ao invés de revolucionar essa sociedade

substituindo-a por um mundo socialista, permitiu-lhe assegurar-se um lugar relativamente

melhor do que previsto pelas análises de Marx”120. A atmosfera de estabilidade política,

consolidada após a proclamação da “V República” em 1958 (que confere um poder quase

monárquico ao chefe de Estado eleito pelo sufrágio universal), simultaneamente ao abalo

sofrido pela reputação da URSS dentre os intelectuais desde a invasão da Hungria em 1956

(sem falar na revelação dos crimes de Stálin no XX Congresso), estimulou, dentre outras coisas,

o declínio do existencialismo sartreano, com sua ênfase na práxis, na consciência e na liberdade

dos sujeitos, e, na mesma toada, a ascensão, a partir do início dos anos 1960, do estruturalismo,

com sua preocupação com a reprodução (inconsciente) da ordem sincrônica, em detrimento das

transformações diacrônicas, quer dizer, históricas. No interior do marxismo, o estruturalismo

serviu, através da figura de Louis Althusser, para respaldar uma tentativa de emancipar a teoria

– atribuindo-lhe uma dimensão “produtiva” específica (a “prática teórica”) –, da tutela da

orientação ditada pelo PCF, com o qual, porém, ele hesitava em romper. Para tanto, era preciso

conferir ao marxismo a legitimidade científica necessária para adentrar no lócus privilegiado

da produção de conhecimento que é a universidade, cuja organização hierárquica deve ser

respeitada pois que responde às necessidades da “divisão técnica do trabalho” – que não se

118 Georg Lukács, A Teoria do Romance. São Paulo: Livraria Duas Cidades e Editora 34, 2000. 119 Lucien Goldmann, Sociologia da literatura. Rio de Janeiro : Paz e Terra, 1967. 120 Lucien Goldmann, “Marx, Lukács, Girard et la sociologie du roman”, Médiations, n.2, 1961, p.151.

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confunde com a “divisão social do trabalho”, marcada pelas contradições devidamente

apontadas por Marx.

No limite, Althusser proclamara uma cisão deliberada entre teoria e prática (restringindo

essa aos limites de um PCF incontornável), a fim de realizar aquilo que os dirigentes políticos

comunistas não poderiam realizar, condenando o marxismo a um déficit teórico que poderia

levá-lo a uma asfixia total. Com seu obreirismo anti-intelectual, o PCF impôs um dogmatismo

(o “dia-mat”) que impediu qualquer desenvolvimento real da filosofia marxista,

impossibilitando o diálogo com o “racionalismo à francesa” (Bachelard, Cavaillès,

Canguilhem) com o qual Althusser buscava, de alguma forma, reatar121. O fim desse

dogmatismo, constata Althusser no prefácio a Pour Marx, redigido em março de 1965, fim do

dogmatismo que teria ocorrido em 1956, “nos colocou em face dessa realidade: que a filosofia

marxista, fundada por Marx no mesmo ato da fundação de sua teoria da história, encontra-se

ainda em grande medida a ser constituída”. O fim do dogmatismo filosófico no interior do

marxismo ainda não havia possibilitado um desenvolvimento da filosofia marxista na sua

integralidade122. Com a estabilidade política vigente, o problema de fundo era teórico, e,

portanto, caberia aos intelectuais marxistas resolvê-lo dentro das possibilidades existentes.

Via Goldmann, Lukács e Rosa Luxemburgo, o jovem pesquisador Michael Löwy

buscava traçar um caminho particular no contexto intelectual francês, almejando torná-lo

compatível com a luta política. Ele seguia assim na contramão seja do decadente

existencialismo sartreano, que se chocava com a concepção goldmanniana de “sujeito

transindividual”, seja do althusserianismo, para o qual o desenvolvimento científico do

marxismo impunha uma abdicação temporária da luta política, entregue à direção do partido,

ou ainda da leitura “ontológica” do “velho” Lukács, que – no exato oposto da perspectiva

althusseriana – tendia a enxergar no jovem Marx, em particular nos Manuscritos de 1844, a

essência da reflexão filosófica marxiana. Com efeito, ao mesmo tempo em que defendia, na

contramão da hegemonia althusseriana em formação, um marxismo “humanista e historicista”,

Löwy reafirmava a aposta na práxis revolucionária dos trabalhadores como único caminho

capaz de romper a dominação capitalista na direção de uma sociedade socialista. Deslocada no

contexto em que a tese foi redigida (1961-64), essa aposta ganharia novo fôlego, como se verá,

121 Cf. André Tosel, “Matérialisme, dialectique et ‘rationalisme moderne’. La philosophie des sciences à la

française et le marxisme (1931-1945)”, in: Le marxisme du XXe siècle. Paris: Syllepse, 2009, p.273, 274. 122 Louis Althusser, “Préface. Aujourd’hui”. In: Pour Marx, op.cit., p.21. Cf. também, para uma inserção de Pour

Marx no contexto intelectual da época, Étienne Balibar, “Avant-propos pour la réédition de 1996”. In: Louis

Althusser, Pour Marx, op.cit., pp.I-XIV.

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a partir de 1965, quando a luta contra a guerra do Vietnã serviria como detonador das lutas

sociais e políticas na França, culminando no maio de 68. Mas, por um acaso biográfico, Löwy

não vivenciara de perto esse processo, contrariando Goldmann, que já alimentava planos para

o pupilo no CNRS: terminada a tese, Löwy foi morar em Israel, onde já viviam sua mãe e seu

irmão, sem publicar a tese, não voltando à Europa senão em 1968/9, primeiro para Manchester,

depois (definitivamente) para Paris.

Em Israel, ao lado do que restara da sua família, Michael Löwy passou seu primeiro ano

dedicando-se ao estudo do hebraico em um kibutz, trabalhando apenas metade do período.

Passado o “estágio” linguístico, foi convidado a trabalhar como professor de história das ideias

políticas, de início na Universidade de Jerusalém e, depois, na Universidade de Tel-Aviv. Lá,

ministrou aulas sobre Maquiavel, Hobbes, Locke, Tocqueville, Hegel, Marx, entre outros. “Foi

um bom aprendizado”, diz ele, sem esconder, porém, o lado predominantemente decepcionante

da estadia israelense, nos seus quatro anos de duração. Curiosamente, mais uma vez, a despeito

do irmão sionista e do entorno agora inequivocamente judeu, Michael Löwy não se interessou

pela religiosidade ou pela cultura judaica. À época, sentindo-se sufocado em Israel, Löwy

parecia estar mais preocupado com a situação brasileira ou europeia. Não por acaso, a

deflagração de “maio em 68” foi um dos estopins para reforçar sua ideia de voltar ao velho

continente. Em uma carta endereçada a Emir Sader desta época, além de solicitar informações

sobre o Brasil, Löwy lamenta ter estado em Israel durante o maio de 68 de Paris, confessando

ter o sentimento de estar sempre no lugar errado: longe da América Latina e das barricadas

parisienses123.

Quase simultaneamente, um conflito com o diretor do Departamento de Ciências

Políticas da Universidade de Tel-Aviv (onde ele então trabalhava), que queria demití-lo,

contribuiu para selar o retorno. Sob o argumento de que Löwy não tinha publicações o

suficiente, o alvo eram os seus laços políticos com a extrema-esquerda israelense, onde chegou

a organizar um comitê de apoio à resistência vietnamita. Todo o processo, tornado público,

gerou intensos debates na universidade e mesmo fora dela, alguns jornais discutindo

abertamente se a demissão de Michael Löwy seria por motivos políticos ou não. Devido aos

vínculos políticos e intelectuais de Löwy, o caso ganhou repercussão internacional: um amigo

que havia vivido em Israel, mas estava na época na Inglaterra, o historiador Theodor Chamu,

123 Cf. Emir Sader, “Apologia da militância revolucionária”. In: Ivana Jinkings & João Alexandre Peschanski

(orgs.), As utopias de Michael Löwy: reflexões sobre um marxista insubordinado. São Paulo: Boitempo, 2007,

p.165, 166.

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redigiu um pequeno artigo sobre o ocorrido na importante revista britânica New Statesman, no

qual denunciava o “macarthismo na Universidade de Tel-Aviv”. Foi graças a esse artigo que

um amigo de Chamu, Peter Worsley, comunicou-lhe que a Universidade de Manchester, onde

trabalhara e havia sido o primeiro professor de sociologia, resolvera convidar Michael Löwy a

ministrar aulas lá, em solidariedade ao ocorrido em Israel. No fim, mesmo com o Departamento

de Ciências Políticas e a Universidade de Tel-Aviv voltando atrás, dispondo-se a recontratar o

professor licenciado, a oportunidade de trabalhar em Manchester foi sentida como um alívio

por Löwy, uma vez que o recolocaria mais perto do lugar que ele acabaria escolhendo como o

lugar para estabelecer sua vida: Paris.

Em Israel, Michael Löwy publicou apenas dois artigos em hebreu: o primeiro, sobre

“Kafka e o anarquismo”, publicado em abril de 1967 na revista International Problems, do

Instituto de Ciências Políticas da Universidade de Tel-Aviv; o segundo, sobre a “filosofia da

negatividade crítica” de Herbert Marcuse, na revista Bashaar, igualmente de Tel-Aviv, em

1968124. Na mesma época, publicou na França o artigo “Marx devant l’événement: la révolution

espagnole (1854-1856)”, na revista Le mouvement social, e no Brasil, uma pequena parte de

sua tese de doutorado, “Marx e o partido comunista 1846-1848”, na revista Teoria e Prática,

editada por seus amigos de São Paulo125. Afora isso, Löwy dedicou-se muito mais à docência

do que à pesquisa. “Não havia um clima muito favorável à pesquisa” em Israel, diz ele126. Ainda

assim, publicou em 1969, na França, um artigo sobre “A história social em Israel (1963-1967)”,

talvez seu único texto diretamente sobre o país no qual vivera quatro anos127.

Antes mesmo de partir para Manchester, ainda em Israel, Löwy solicitou uma bolsa de

estudos na França, pedido que seria aceito apenas um ano depois – foi nesse curto período que

ele trabalhou como professor na cidade do noroeste da Inglaterra. Em Manchester, ao lado de

Peter Worsley, Löwy ministrou um curso de sociologia política, ocasião que o estimulou a

estudar a sério Max Weber, o centro da disciplina. Aproveitando-se das pesquisas para o curso,

Michael Löwy escreveu um artigo que, apesar de ser, no limite, uma crítica marxista de Weber,

já esboçava a possibilidade de um “diálogo implícito” entre os dois autores alemães, tema que,

124 Michael Löwy, “Kafka et l’anarchie” (hébreu), International Problems. Revista do Instituto de Ciências

Políticas da Universidade de Tel-Aviv, vol.5, n.1-2, abril 1967; e “Herbert Marcuse, la philosophie de la négativité

dialectique” (hébreu), Bashaar, Tel-Aviv, n.85, julho 1968. 125 “Marx devant l’événement: la révolution espagnole (1854-1856)”, Le mouvement social, Paris, n.60, 1967;

“Marx e o partido comunista 1846-1848”, Teoria e Prática. São Paulo, n.3, 1968. 126 Ângela de Castro Gomes e Daniel Aarão Reis, “Um intelectual marxista...”, op.cit., p.174. 127 Michael Löwy, “L’histoire sociale en Israël (1963-1967). Remarques bibliographiques”, Le mouvement social,

n.66, 1969.

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como se poderá ver, será decisivo na obra löwyana dos anos 1990 e 2000128. Mas foi também

do ponto de vista político que a breve estadia inglesa se revelou importante, talvez em

decorrência da sua posição institucional instável: foi na Inglaterra que Michael Löwy começou

a militar, agora deliberadamente (a decisão havia sido tomada junto com o amigo Emir Sader),

em uma organização trotskista, co-irmã da Liga Comunista francesa que estava em formação,

dirigida pelos “míticos” - pelas histórias de maio de 68 - Alain Krivine, Henri Weber e Daniel

Bensaïd.

Assim, quando retornou a Paris, ainda em 1969, Löwy já era militante da LC, a mais

iconoclasta das organizações trotskistas francesas, tanto pela participação decisiva dos seus

militantes (da então JCR) nos acontecimentos de 68 quanto pelo relativo peso dos intelectuais

e professores na composição interna da organização, como veremos no terceiro capítulo. Para

o professor Michael Löwy, descartada a mística maoísta, a qual pouco o atraía (sem falar, é

claro, da repulsa evidente pela dogmática stalinista), nada mais sedutor do que essa nova

organização vinculada a uma certa leitura do trotskismo (aquela de Ernest Mandel) que, porém,

carregava algo dos influxos libertários de “maio de 68”, oriundos da sua composição

predominantemente jovem, assim como dos ventos e esperanças revolucionárias que vinham

do “terceiro-mundo” (Cuba, Argélia, Vietnã), sintetizadas na figura de Ernesto “Che” Guevara.

Acaso objetivo ou simples coincidência, o principal interesse “teórico” de Löwy no seu período

inglês, mais do que Weber, era exatamente Guevara, sobre o qual ele redigiu um livro,

publicado em 1970 pela editora de François Maspero (que naquele mesmo ano aderira à LC),

a mesma que publicara meses antes, enfim, a sua tese de doutorado defendida em 1964129. Trata-

se, de fato, dos dois primeiros livros publicados de Michael Löwy, os primeiros de mais de três

dezenas que, dali em diante, ele redigiria, em especial a partir da virada para os anos 1980.

1.3. Paris pós maio de 68: um marxismo humanista, historicista e revolucionário

De volta a Paris, em meados de 1969, Michael Löwy reencontrou uma atmosfera política

significativamente diferente da aparente estabilidade que caracterizava o país que deixara em

1964, em pleno auge do gaullismo, apesar das agitações relacionadas à guerra da Argélia.

Nesses cinco anos, muita coisa acontecera no ambiente político-intelectual da esquerda

128 Michael Löwy, “Weber et Marx, notes critiques sur um dialogue implicite”, L’homme et la société. n.20, abril-

junho de 1971. 129 Michael Löwy, La Pensée de “Che” Guevara. Paris: Maspero, 1970; e La Théorie de la révolution chez le

jeune Marx. Paris: Maspero, 1970.

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francesa. Desde 1965, com o avanço vertiginoso da luta contra a guerra do Vietnã, abriu-se um

novo período profícuo à radicalização dos jovens, em especial dos jovens intelectuais que, em

função da massificação do ensino e da impossibilidade de absorver a todos no mercado de

trabalho, seriam jogados no rolo compressor da proletarização. Tão importante quanto, essa

radicalização se desenvolveu à esquerda (e muitas vezes contra) do PCF, cuja hesitação em

sustentar ativamente os combatentes vietnamitas, ademais do apoio desde o primeiro turno à

candidatura de François Mitterrand nas eleições presidenciais de 1965 (a primeira por sufrágio

universal direto), irritava profundamente os jovens militantes responsáveis pela criação dos

Comitês Nacionais Vietnamitas, mais afeitos, na sua franja mais engajada, aos pequenos grupos

de extrema-esquerda (como a JCR de Bensaïd), que não por acaso cresceram de forma

significativa a partir dessa época, preparando o terreno, por assim dizer, para a irrupção de maio

de 68130.

A partir de 1965, configurava-se um novo cenário ideológico, “marcado pelo

desenvolvimento de uma extrema-esquerda às margens do PCF e [pela] mobilização anti-

imperialista”131. A experiência política da luta contra a guerra marcou o início da trajetória

militante de uma nova geração (os baby-boomers, mas não só) menos comprometida com o

PCF do que as gerações anteriores, ainda impactadas pelos relatos heroicos do papel dos

comunistas na libération. Além disso, a luta contra a guerra norte-americana na península

indochinesa reativou o engajamento dos intelectuais (e a “guerra de petições” que os

acompanha nos momentos de maior intervenção na vida pública), em particular nos seus ramos

mais afeitos à extrema-esquerda, antecipando, também nesse aspecto, o que viria a acontecer

nos acontecimentos de março-abril-maio de 1968132. Ora, nunca é demais lembrar, conforme

veremos em detalhes, que foi em reação à prisão de um estudante após os ataques à sede do

“American Express” em um ato contra a guerra, no dia 20 de março de 1968, que se fundou em

Nanterre o “movimento 22 de março”, sob a liderança de Daniel Bensaïd (pela JCR) e de Daniel

Cohn-Bendit (pelos libertários), o estopim que faltava para a faísca da revolta se alastrar e

transformar-se no que, mais tarde, se convencionou denominar, de forma um tanto mítica, de

130 A este propósito, cf. Laurent Jalabert, “Aux origines de la génération 68: les étudiants français et la guerre du

Viêtnam”, Vingtième Siécle. Revue d’histoire, n.55, julho-setembro 1997 ; e Nicolas Pas, “Six heures pour le

Viêtnam. Histoire des Comités Viêtnam français 1965-1968”, Revue historique, n.613, 2000. 131 Jean-François Sirinelli, Les baby-boomers. Une génération 1945-1969. Paris: Hachette, 2003, p.242. 132 Jean-François Sirinelli, Intellectuels et passions françaises. Manifestes et pétitions au XXe siècle. Paris:

Gallimard, 1990, p.368.

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“maio de 68”. Com isso, como diz Sirinelli, “o papel da guerra do Vietnã na eclosão do Maio

francês estava assim simbolicamente representada”133.

O ano de 1968 abriu, na França e na Europa, um novo ciclo de lutas, assim como uma

nova chance para a esquerda revolucionária “marxista-leninista” anti-stalinista. Os

acontecimentos de 1968 pareciam colocar na ordem do dia a possibilidade de superação pela

esquerda da ortodoxia stalinista134. Michael Löwy não poderia senão se animar com a atmosfera

efervescente que encontrou quando retornou à França: enfim, as esperanças revolucionárias

pareciam ter chegado à Europa, embora também continuassem em alguns lugares da América

Latina (malgrado a morte do Che em 1967), caso do Chile, por exemplo, que vivenciava o clima

de mobilização que levaria à vitória eleitoral da Unidade Popular dirigida por Salvador

Allende. Exilado em Paris, e então assistente de Nicos Poulantzas na recém-criada Universidade

de Vincennes, Emir Sader resolve partir nessa época para o Chile, a fim de participar da

experiência socialista no país, deixando vago o seu posto de trabalho. Sader, então, em uma

recompensa àquele que fora seu “formador” político ainda no Brasil, recomenda Löwy para

ocupar o seu lugar, o que é aceito por Poulantzas.

Muito embora as diferenças entre ambos, no âmbito do marxismo, não pudessem ser

maiores, Poulantzas e Löwy se entenderam muito bem. Segundo Löwy, “Nicos era alguém

muito caloroso. Um caráter mediterrânico, como imaginamos os gregos... [...]. Seu suicídio em

1979 pode dar a impressão retrospectiva de que ele tinha um caráter desconfiado, mas não era

assim”. No início da colaboração entre ambos, Poulantzas sabia muito pouco do pedigree

teórico e político deste brasileiro filho de judeus austríacos que tinha vivido em Israel mas não

era sionista, e que agora retornava a Paris para surfar na onda do avanço da esquerda

revolucionária. Mas, como a recomendação viera de Sader, não havia razões para desconfiança,

ao menos não do ponto de vista pessoal. Porque, dos pontos de vista tanto teórico quanto

político, as diferenças não eram pequenas, em especial naquele momento de polarização e de

disputa pela interpretação mais adequada do marxismo. No relato do próprio Löwy, “nós

pertencíamos [...] a ‘tribos’ muito diferentes no âmbito do marxismo: ele era althusseriano e eu,

lukacsiano, ele era ‘maoïsante’ e logo eurocomunista, enquanto eu era trotskista. E, no entanto,

nós nos entendemos maravilhosamente bem”135. Na época em que Löwy começou a trabalhar

133 Jean-François Sirinelli, Les baby-boomers…, op.cit., p.253. 134 Cf. André Tosel, “Devenir du marxisme de la fin du léninisme aux mille marxismes”, in: Le marxisme du 20e

siècle, op.cit., p.60. 135 Fabio Mascaro Querido, Alexis Cukier e Razmig Keucheyan, “Nicos Poulantzas tel que je l’ai connu, par

Michael Löwy”. Contretemps web, dezembro de 2014. Disponível em:

http://www.contretemps.eu/interviews/nicos-poulantzas-tel-que-je-ai-connu-par-michael-l%C3%B6wy.

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com Poulantzas, em 1969, este último tinha acabado de publicar talvez seu primeiro livro de

grande destaque, e sem dúvida o mais althusseriano dentre todos, Pouvoir politique et classes

sociales (1968)136.

As divergências não impediram, assim, em boa parte desses oito anos de convivência

docente, que ambos ministrassem conjuntamente cursos sobre temas dos mais variados, tais

como a Terceira Internacional, a questão nacional, a teoria do Estado, Lênin, Gramsci..., ou

seja, temas que se encontravam dentre as preocupações teóricas e políticas de Poulantzas quanto

de Löwy. No caso do autor grego, a teoria do Estado será talvez a principal questão teórica que

decidiu enfrentar, a partir de uma ótica marxista, e por isso mesmo se trata de um tema mediante

o qual se torna possível visualizar a sua “evolução” em direção a uma posição política designada

como “eurocomunista de esquerda”, assentada na busca por uma via democrática de transição

ao socialismo, tema já presente em seus livros mais políticos de meados dos anos 1970, como

La Crise des dictatures : Portugal, Grèce, Espagne, mas que se apresenta em toda a sua

densidade teórica em O Estado, o poder, o socialismo (1978), seu último livro publicado em

vida137.

Acrescenta-se a isso a atmosfera efervescente do “Centro Experimental” de Vincennes,

criado pelo ministro da educação Edgar Faure em resposta às demandas de maio de 68138. Ainda

que membros do departamento de Sociologia, nem Poulantzas e Löwy tivessem muitos contatos

com os célebres professores de filosofia Michel Foucault, Gilles Deleuze e Jean-François

Lyotard, o clima na universidade era dos mais abertos aos debates teóricos e políticos

gauchistes, particularmente entre os estudantes. Politicamente, a esquerda radical marcava

presença em Vincennes na época, e a LCR em particular. Henri Weber, por exemplo, um dos

principais dirigentes da LCR na época, fez seu doutorado e trabalhou como professor de ciência

política na universidade, antes dela ser transferida para Saint-Denis, transformando-se na atual

Universidade Paris VIII. Weber foi, aliás, o encarregado por entrevistar Poulantzas para a

revista Critique Communiste (a revista da LCR), em 1977139. Nessa entrevista, que se tornou

136 Nicos Poulantzas, Pouvoir politique et classes sociales de l'état capitaliste, Paris : Maspero, 1968. 137 Nicos Poulantzas, La Crise des dictatures : Portugal, Grèce, Espagne. Paris: Maspero, 1975; L'État, le pouvoir,

le socialisme. Paris: PUF, 1978. Sobre as inflexões na trajetória de Poulantzas nos anos 1970, ver a apresentação

de Razmig Keucheyan à recente reedição de Pouvoir politique et classes sociales, “Lénine, Foucault, Poulantzas”,

in: Nicos Poulantzas, L´État, le pouvoir et le socialisme. Paris : Les Prairies ordinaires, 2013, pp.7-36; e James

Martin (org.), The Poulantzas Reader. Marxism, Law and the State. London: Verso, 2008. 138 Sobre a experiência de Vincennes, ver Jean-Michel Djian. Vincennes, une aventure de la pensée critique. Paris:

Flammarion, 2009. 139 Cf . “L’État et la transition au socialisme. Interview de Nicos Poulantzas par Henri Weber”, in: Critique

communiste (revue de la Ligue communiste révolutionnaire), n°16, 1977.

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muito importante por instar Poulantzas a se manifestar em relação às consequências políticas

de sua teoria do Estado, Weber defende a posição leninista da LCR de que o centro do processo

revolucionário é a construção de mecanismos de duplo-poder e a luta “frontal”, por assim dizer,

contra o Estado burguês, criticando o reformismo latente na estratégia poulantziana de uma

transição ao socialismo assentada na articulação entre a radicalização da democracia

representativa (e das lutas no interior de um Estado que é “relacional”) e as experiências de

autogestão e de “contra-poder”.

Logo depois de retornar a Paris, em 1969, além de trabalhar com Poulantzas, Löwy

retomou contato com Lucien Goldmann, com o qual pouco se correspondeu no seu período

israelense. Começou a frequentar seus seminários, e com Goldmann decidiu fazer sua segunda

tese de doutorado (doctorat d’État), exatamente sobre aquele da obra do qual ambos, mestre e

discípulo, extraíram os principais recursos para suas abordagens específicas do marxismo: o

jovem Lukács, autor cuja ênfase na necessidade da subjetividade revolucionária contra a

reificação parecia ter adquirido notória relevância após maio de 68. Mais uma vez, Löwy faria

a tese sobre o tema que queria, com quem ele queria, se não fosse a morte imprevista e

prematura (ele tinha 57 anos) de Goldmann, em 1970, episódio que forçou o intelectual franco-

brasileiro a mudar, para sua infelicidade, de orientador, mas não de tema. O contexto

demandava, na sua visão, uma análise sobre as condições de possibilidade da radicalização

revolucionária dos intelectuais, e a trajetória do jovem Lukács, impulsionado ao marxismo

através do impacto da revolução russa de 1917, parecia exemplar a este respeito. Tal como

professava a LCR à época, um novo “outubro” poderia estar à espreita. Não havia muito tempo

a perder.

Enquanto fazia as pesquisas para a tese, para as quais viajou inúmeras vezes à Hungria,

Löwy trabalhou na redação de um livro de introdução à obra de Goldmann –redigido em

companhia de um outro aluno do sociólogo romeno, Sami Naïr – e de vários artigos que

confirmavam e, em alguma medida, radicalizavam sua leitura “lukacsiana-goldmaniana” do

marxismo, em explícita oposição à leitura althusseriana e a de seus discípulos141. À diferença

da época da redação da tese de doutorado sobre o jovem Marx (1961-1964), quando o impacto

da démarche althusseriana ainda não se fizera sentir, Löwy se deparava agora com um cenário

no qual a leitura de Marx proposta por Althusser havia se consolidado como opção plausível

para muitos intelectuais marxistas, o que parece tê-lo estimulado a explicitar sua oposição às

141 Michael Löwy & Sami Naïr, Lucien Goldmann ou la dialectique de la totalité. Paris: Seghers, 1973.

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teses althusserianas, em nome de uma interpretação declaradamente humanista e historicista

do marxismo. Como ele mesmo diz, nessa época, quando retornou a Paris, “comprei a briga dos

lukacsianos contra Althusser”.

Já em 1970, por exemplo, Löwy publicou na revista L’Homme et la Société (revista

fundada em 1966 exatamente em oposição ao determinismo “estruturalista” ou “materialista-

naturalista”) um artigo cujo título era explícito quanto à posição por ele assumida:

“L’humanisme historiciste de Marx ou relire le Capital”142. Em 1973, com mais dez artigos

publicados originalmente entre 1967 e 1972, Löwy publicou a coletânea Dialectique et

révolution. Essais de sociologie et d’histoire du marxisme143. Envolvido em uma espécie de

“fla x flu doutrinário”, como disse Roberto Schwarz a propósito dos seus escritos nessa época,

embate no qual a figura de Althusser servia como parâmetro “negativo”, Michael Löwy atua

para distinguir, e assim reforçar, os princípios metodológicos da sua leitura historicista e

humanista do marxismo, prefigurando, deste modo, os seus futuros trabalhos sobre a sociologia

do conhecimento, no final da década de 1970, trabalhos que constituem uma síntese final, na

sua trajetória, desse período em que as disputas teóricas (lukacsianos versus althusserianos etc.)

se assemelhavam às disputas políticas (trotskistas versus maoístas versus stalinistas etc.)

internas ao marxismo. Ademais do artigo acima mencionado (“L’humanisme historiciste de

Marx ou relire le Capital”), pode-se destacar o texto “Objectivité et point de vue de classe dans

les sciences sociales”, publicado originalmente na revista Critique de l’économie politique144.

Neste último texto, partindo do pressuposto de que toda ciência social é “engajada”, ou

seja, encontra-se vinculada ao ponto de vista de um grupo e/ou classe social, Löwy defende a

tese de que apenas o marxismo, enquanto “ponto de vista do proletariado”, é capaz de conciliar

o caráter “partidário” de sua perspectiva e o “conhecimento objetivo da verdade”145. Isso

porque, para o proletariado – e, portanto, para a “ciência do proletariado” que é o marxismo –,

“a verdade é [...] um meio de luta, uma arma indispensável à revolução”. Sob os efeitos da

atmosfera da época, a conclusão, que não peca pela falta de clareza, assim o faz por seu

142 Michael Löwy, “L’humanisme historiciste de Marx ou relire le Capital”, in: L’Homme et la Société, n.17, 1997. 143 Michael Löwy, Dialectique et révolution. Essais de sociologie et d’histoire du marxisme. Paris: Anthropos,

1973. No Brasil, alguns desses textos foram publicados na coletânea Método dialético e teoria política (Rio de

Janeiro: Paz e Terra, 1975). 144 Michael Löwy, “Objectivité et point de vue de classe dans les Sciences Sociales”, Critique de l’économie

politique, n.9, Maspero, 1972. 145 Michael Löwy, “Science et révolution: objectivité et point de vue de classe dans les sciences sociales”. In:

Dialectique et révolution. Essais de sociologie et d’histoire du marxisme, op.cit., p.201. “É o ponto de vista de

classe que defini o campo de visibilidade de uma teoria social, o que ela ‘enxerga’ e o que ele não enxerga [...],

sua iluminação e sua cegueira, sua miopia e sua hipermetropia”, Ibidem, p.212.

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simplismo: “As classes dominantes, a burguesia (e também os burocratas, em um outro

contexto) tem necessidade de mentiras para manter seu poder. O proletariado revolucionário

tem necessidade de verdade...”146. Daí a superioridade inelutável (embora não garantida de

antemão) do ponto de vista do proletariado e, então, do marxismo, já que o atual estágio da

história o coloca como herdeiro de uma verdade que, como diria Gramsci, não por acaso citado

na epígrafe do texto, “é sempre revolucionária”.

Essa perspectiva define, como vimos, a posição assumida por Michael Löwy nos

debates internos ao marxismo, em meio aos embates entre correntes teóricas e políticas

distintas. Compreendendo-o como ciência proletária e, portanto, revolucionária – tal como ele

já havia destacado em sua tese de doutorado de 1964, embora sem a sistematização requerida

pela intervenção nos debates em torno da sociologia do conhecimento –, Löwy defende a

herança do que ele denomina “a grande corrente dialética revolucionária do marxismo

moderno”, representada, além de Lênin, Trotsky e Rosa Luxemburgo (a última geração do

marxismo “clássico”), por Lukács, Korsch e Gramsci (exatamente a “corrente impropriamente

designada”, por Althusser, como “esquerdismo teórico”). Dentre estes, diz ele, “a contribuição

de Lukács é particularmente importante, porque é ele quem vai tornar preciso o sentido do

conceito de ‘ponto de vista do proletariado’: não se trata do vivido imediato, da consciência

empírica da classe operária, mas do ponto de vista que corresponde racionalmente a seus

interesses históricos objetivos”148.

Ora, é dessa perspectiva voluntarista que Löwy aborda criticamente a interpretação

althusseriana do marxismo. Na ótica de Löwy, ao reagir, nos anos 1960, à tragédia do

stalinismo/“lyssenkismo”, da qual ele havia sido partidário, Althusser acabou por se aproximar,

“em certa medida, do positivismo”, uma vez que tendeu a absolutizar a autonomia da prática

científica em relação à estrutura social. Identificando o ponto de vista do proletariado com a

posição do partido (stalinista), Althusser e seus discípulos não lograram senão o retorno a uma

concepção “neo-positivista”, na qual a obra de Marx é destacada pela revolução teórica por ela

produzida no interior do campo científico, com a inauguração de uma nova “ciência da

história”. “Em reação contra o jdanovo-lyssenkismo dos anos 1950, Althusser joga na fossa do

146 Ibidem, p.236. 148 Michael Löwy, “Science et révolution...”, op.cit., p.216, 217.

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‘esquerdismo’ o bebê marxista com a água suja stalinista, a fim de se situar em um campo

teórico minado pelo positivismo”149.

Em “L’humanisme historiciste de Marx ou relire le Capital”, em uma crítica por vezes

superficial das teses de Althusser, Michael Löwy reforça a sua leitura do marxismo como um

humanismo revolucionário, humanismo que apenas é revolucionário porque é simultaneamente

historicista, e vice-versa, à diferença da naturalização da história promovida pelos economistas

clássicos. Para Löwy, ao contrário do que acredita Althusser, o pensamento de Marx “é

historicista porque é humanista”: afinal, ainda que em condições históricas determinadas, os

homens efetivamente fazem (e, portanto, são sujeitos da) a história. E seu método é

“revolucionário” precisamente “porque ele é humanista-historicista: as relações de produção

capitalistas não são independentes dos homens, eternas e imutáveis como as leis da natureza;

elas são produzidas pelos homens e podem ser transformadas pelos homens em uma

revolução”. Por fim, para fechar o círculo, o método de Marx somente é historicista-

revolucionária porque ele se situa do ponto de vista do proletariado, “único ponto de vista social

que permite apreender [o] caráter transitório do capitalismo superando o ‘horizonte das

perspectivas’ burguesas”150.

Ao rejeitar a ideia de que os homens são sujeitos da história, reduzindo-os à condição

de “suporte das relações de produção”, o althusserianismo não deixaria espaço para a

transformação revolucionária, a qual desapareceria do seu campo de visibilidade teórica. Afinal,

“se os seres humanos não são senão ‘suportes das relações de produção’, como poderiam eles,

um belo dia, transformar essas relações de produção?”. Na ótica do “trotsko-luxemburguista”

e “lukacsiano-goldmanniano” Michael Löwy, esperançoso com a vaga aberta em 1968, as teses

althusserianas pareciam demasiado conservadoras, sem ancoragem prática, apresentando-se

como uma versão marxista do que o marxismo revolucionário deveria negar: uma apologia da

ordem (ou da estrutura), tendência denunciada por Henri Lefebvre na mesma época (1971), em

A Ideologia estruturalista151.

149 Ibidem, p.229. “Uma ‘sociologia do althusserianismo’ provavelmente descobriria por trás de suas teses a

resistência (bastante compreensível) de certas camadas intelectuais do PCF contra a submissão aos imperativos

políticos cambiantes do partido, pelo reconhecimento da independência e da dignidade do trabalho científico. No

entanto, incapazes de distinguir a perspectiva histórica do proletariado da sua caricatura burocrática stalinista, eles

transformam seu desejo de emancipação em relação ao aparelho do partido em teoria da emancipação do

proletariado em relação ao proletariado”. Ibidem, p.229. 150 Michael Löwy, “L’humanisme historiciste de Marx ou relire le Capital”. In: Dialectique et révolution. Essais

de sociologie et d’histoire du marxisme, op.cit., p.75, 76. 151 Henri Lefebvre, L'idéologie structuraliste. Paris: Anthropos, 1971.

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Militante da Liga Comunista, organização trotskista que, à época, em função do seu

apelo guevarista, apoiava a política de luta armada contra as ditaduras na América Latina,

Michael Löwy se situava na tensão entre um certo voluntarismo humanista – que almejava a

elaboração de uma subjetividade revolucionária contra a reificação – e uma espécie de

determinismo historicista, que visualizava o ponto de vista do proletariado como o “ponto de

vista que corresponde racionalmente [aos] interesses históricos objetivos” do proletariado,

interesses estes que o levam à luta revolucionária. Embora acentue o papel da subjetividade

revolucionária (e, nesse contexto do partido revolucionário), haveria, portanto, uma medida

“objetiva” (os “interesses históricos objetivos” do proletariado) historicamente determinada,

servindo como caução à afirmação da vocação revolucionária da classe e, por conseguinte, da

visão de mundo a ela vinculada: o marxismo. Para Löwy, é como se o marxismo e o

proletariado, ou são revolucionários, ou não são.

Apesar da sistematicidade acadêmica, à la Goldmann, os textos de Michael Löwy do

início dos anos de 1970 caracterizam-se pela forte dimensão política. Dos onze artigos de

Dialectique et révolution, por exemplo, três versam sobre Rosa Luxemburgo, dois sobre Lênin

e o marxismo russo, dois sobre Guevara e o marxismo latino-americano. Trata-se de textos de

intervenção a um só tempo intelectual e política, em um momento em que essas duas esferas de

atividade, por assim dizer, encontravam-se significativamente articuladas. Academicamente, a

“mistura” poderia não ser bem-vinda, e muitas vezes não era. No início da década de 1970,

Michael Löwy encontrou-se com Pierre Naville – ex-surrealista e ex-trotskista convertido à

sociologia (do trabalho) profissional – a fim de sondar a possibilidade de apresentar seus textos

já publicados (dentre os quais aqueles de Dialectique et révolution, dentre outros) como

requisito para obtenção de um novo título de doutorado (doctorat d’État). Pouco entusiasmado

com a ideia, Naville lhe respondeu, após examinar os escritos, que tudo aquilo nada tinha de

acadêmico, o que obviamente os invalidava enquanto material suscetível de ser transformado

em título universitário. O episódio, frustrante, ao menos reforçou em Löwy o ímpeto para fazer

a tese sobre Lukács a fim de obter a titulação.

Com a morte de Goldmann, Michael Löwy aproximou-se (foi “adotado”, como chegou

a dizer152) de um outro universitário marxista de origem romena: Georges Haupt. Nessa época,

Löwy conheceu aquela que seria sua segunda companheira: Eleni Varikas, grega igualmente

entristecida pela morte de Goldmann, com quem tinha vindo estudar em Paris, e igualmente

152 Michael Löwy, “Hommage à Lucien Goldmann”, op.cit., p.180.

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acolhida por Haupt153. Diretor de estudos na École de Hauts Études en Sciences Sociales

(EHESS), especialista em socialismo internacional, Haupt interessava-se vivamente, tal como

Löwy, pelos debates marxistas sobre a questão nacional, tema, aliás, de alguns dos cursos então

ministrados por Löwy e Poulantzas em Vincennes. Baseados nesse interesse comum, ambos

organizaram, ao lado de Claudie Weill, a antologia Les Marxistes et la question nationale 1848-

1914, publicada em 1974 pelas edições Maspero, sem dúvida uma das editoras mais receptivas

aos trabalhos marxistas e/ou de autores provenientes da esquerda revolucionária154.

Apresentada em 1974, na Universidade Paris V (René Descartes), sob a orientação de

Louis-Vincent Thomas, antropólogo especialista no continente africano, para obtenção do título

de doutorado em letras (e não sociologia!), a tese buscava debater as condições de possibilidade

da radicalização anticapitalista dos intelectuais à luz da trajetória concreta do jovem Lukács,

mas sempre almejando pensá-la desde o presente, quer dizer, a partir das possibilidades atuais

da passagem dos intelectuais para o campo do marxismo e da revolução. Produzida sob o élan

da vaga aberta em 1968, que reativara a questão da subjetividade revolucionária (tão cara aos

intelectuais), o pano de fundo político da tese (que não diminuía o rigor da pesquisa) assentava-

se na esperança em uma nova onda muito mais profícua à radicalização dos intelectuais do que

aquela pela qual passara a geração de Lukács, marcada pela experiência da primeira guerra e

da revolução russa de outubro de 1917. Daí talvez o sugestivo (embora inexato) título do livro

resultante da tese: Pour une sociologie des intellectuels révolutionnaires, publicado em 1976.

Do ponto de vista teórico-metodológico, a hipótese que servira de base à pesquisa era,

uma vez mais, de origem goldmanniana, mais precisamente, de sua Sociologie du roman, na

qual os escritores, artistas e intelectuais são apresentados como portadores potenciais de valores

qualitativos – morais, religiosos, culturais, políticos – contraditórios à lógica puramente

quantitativa da economia de mercado. Essa hipótese “positiva” sobre os intelectuais, os quais

tenderiam, pelas especificidades de sua condição social, à oposição ao capitalismo, seria um

dos fundamentos não apenas dos trabalhos de Michael Löwy em torno da sociologia dos

intelectuais, como a tese sobre Lukács, senão também, como se verá, nos seus trabalhos

posteriores sobre a cultura romântica, ela também compreendida a partir dessa oposição

fundamental aos valores burgueses-quantitativos.

153 Antes, Michael Löwy foi casado com Ilana, mãe dos seus dois filhos. 154 Michael Löwy, Claudie Weill e Georges Haupt (orgs.), Les Marxistes et la question nationale 1848-1914. Paris:

Maspero, 1974.

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Ora, nada melhor do que, a fim de confirmar tal hipótese, analisar a trajetória do jovem

Lukács, talvez um dos mais emblemáticos exemplos de um intelectual tradicional que, pela

mediação provisória de uma recusa trágica e romântica do mundo burguês, assim como pela

ação intempestiva dos acontecimentos da época (guerra e revolução socialista), aderiu ao

pensamento revolucionário e, após um flerte com o esquerdismo anarquista, ao comunismo

marxista. Mesmo porque, teria sido este o caminho que acabara levando Lukács à formulação,

em HCC, da interpretação do marxismo validada por Goldmann e, consequentemente, por

Löwy, assentada, grosso modo, na teoria da práxis, na categoria da totalidade como princípio

revolucionário no conhecimento e na análise crítica da reificação. De tal maneira que o estudo

de Löwy era, no final das contas, não apenas um estudo marxista de um intelectual marxista

determinado, mas também, e sobretudo, uma análise lukacsiana de Lukács, como ele próprio

reconheceria155.

Assim, além de uma “instigante” sociologia dialética das condições de possibilidade da

passagem dos intelectuais para o campo da revolução – que escapa tanto do enfoque “estrutural”

abstrato quanto de uma focalização “concreta”, meramente conjuntural156 – o livro constitui

uma defesa lukacsiana do percurso teórico e político do jovem Lukács, trajeto que desembocaria

em HCC, em 1922, quando o pensamento lukacsiano “atinge seu ápice”, superando pelo recurso

à dialética revolucionária as antinomias e os dualismos que ainda habitavam a sua visão trágica

de mundo, que vigorou até meados da década de 1910157. Para Löwy, a originalidade de HCC

(sobretudo do ensaio central, sobre a reificação) explica-se em grande medida pela capacidade

de Lukács de recolher e “superar” dialeticamente alguns temas clássicos da tradição

anticapitalista romântica (como a quantificação da vida social sob o capitalismo),

redirecionando-as à luz de uma perspectiva marxista. Em Lukács, portanto, após sua adesão ao

marxismo, “a crítica romântica do capitalismo não é pura e simplesmente eliminada, mas

negada-conservada-superada: Lukács integra alguns dos seus elementos em sua perspectiva

marxista de conjunto, atribuindo-lhes, porém, um sentido e uma significação radicalmente

novos”158.

155 Michael Löwy, A evolução política de Lukács 1909-1929. São Paulo: Cortez, 1998, p.18, 19. 156 Cf. Wolfgang Leo Maar, “A dialética da inserção social dos intelectuais”. In: Ivana Jinkings & João Alexandre

Peschanski (orgs.), As utopias de Michael Löwy: reflexões sobre um marxista insubordinado. São Paulo:

Boitempo, 2007, p.58. 157 Michael Löwy, A evolução política de Lukács, op.cit., p.207. 158 Michael Löwy, “A sociedade reificada e a possibilidade objetiva de seu conhecimento na obra de Lukács”. In:

Romantismo e Messianismo: ensaios sobre Lukács e Benjamin. São Paulo: Edusp; Editora Perspectiva. 1990, p.71.

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O romantismo constitui, então, no caso de Lukács, mas também no de outros autores,

uma “mediação ético-cultural e político-moral” propícia ao desencadeamento de um processo

de radicalização anticapitalista dos intelectuais. Aos olhos de Löwy, além disso, algo desse

romantismo, que mais tarde ele designaria como “romantismo revolucionário”, parecia estar

presente no imaginário dos jovens intelectuais que participaram ativamente das revoltas de

1968, muitos dos quais passaram a militar em organizações da esquerda revolucionária

(trotskistas ou maoístas), apostando na possibilidade de um novo “outubro”, agora no centro do

sistema, a Europa. Para ele, portanto, uma dimensão romântica – ancorada no vínculo específico

dos intelectuais com valores qualitativos – parecia um momento fundamental, mesmo quando

posteriormente superado, como no caso de Lukács, da passagem para o marxismo, em particular

para a “corrente quente” do marxismo, preocupada com a elaboração de uma subjetividade

revolucionária capaz de “quebrar” as estruturas sociais reificadas, circunscritas à lógica das

águas gélidas do cálculo egoísta.

Bem entendido, essa ênfase na subjetividade, que às vezes se mesclava a uma teleologia

voluntarista, reforçava a oposição de Michael Löwy à leitura althusseriana do marxismo. Ao

mesmo tempo, a tese tampouco agradava aqueles que, como seus amigos brasileiros Carlos

Nelson Coutinho e Leandro Konder, enxergavam na obra de maturidade de Lukács, isto é,

aquela posterior ao giro do final dos anos 1920, as contribuições mais importantes do filósofo

húngaro, na crítica literária, na filosofia, assim como na política. Seguindo as indicações do

próprio Lukács, que rejeitara seus escritos juvenis, reputando-os como esquerdistas, os avalistas

dos trabalhos do “velho” Lukács visualizam (e aprovam) na trajetória do mestre algo do que

ocorrera com Hegel, outro que havia passado de um radicalismo juvenil para a “reconciliação

com a realidade”, base do seu realismo dialético avesso a todo excesso subjetivista e sem

ancoragem nas contradições concretas do real. Ora, inspirado em Goldmann, por meio de quem

conheceu a obra de Lukács, a ótica de Löwy é exatamente a inversa. Em 1997, ele escreveria:

“Como discípulo de Lucien Goldmann, sempre considerei – e ainda considero – os escritos de

Lukács até 1924 como os mais interessantes e significativos, do ponto de vista da história do

marxismo no século XX”160.

A fim de demarcar a “dialética revolucionária” do período de HCC do “realismo

estreito” assumido pelo velho Lukács, Michael Löwy analisa, no quinto capítulo da tese,

intitulado “Lukács e o stalinismo (1926-1929)”, a emergência de uma posição diferente na obra

160 Michael Löwy, A evolução política de Lukács, op.cit.., p.14.

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do filósofo húngaro, cada vez mais alinhada à Realpolitik stalinista na URSS. Politicamente

sobredeterminada, a obra lukacsiana a partir de meados da segunda metade da década de 1920

acompanha, por assim dizer, a ascensão do stalinismo na URSS, adaptando-se a ele, já que, tal

como Hegel e o Termidor na revolução burguesa, os percalços do regime soviético, assim como

de Stálin, constituiriam uma “fase necessária”, “progressista”, da evolução do proletariado e do

socialismo, não havendo outra opção senão o apoio indireto ao inimigo161. Com a estabilidade

do mundo capitalista, a política de Stálin (do “socialismo em um só país”) revelou-se, na ótica

do intelectual húngaro, não apenas a mais “realista”, mas também a única possível, argumento

para o qual uma figura como Trotsky só pode aparecer como uma ameaça.

Para Löwy, filosoficamente, a virada no percurso de Lukács situa-se já em 1926, no

ensaio “Moses Hess e os problemas da dialética idealista” (que antecipa, em alguma medida, o

ensaio sobre O Jovem Hegel, de 1938), atingindo uma dimensão explicitamente política nas

chamadas “teses de Blum” (pseudônimo de Lukács), de 1928. Nas palavras de Löwy, “a partir

de 1926 começa na vida e na obra de Lukács uma mudança decisiva, uma ruptura teórica e

política profunda com todo seu antigo pensamento revolucionário e, em particular, com

História e Consciência de Classe”; em outras palavras, “seus escritos pós 1926 caracterizam-

se pela conversão bem entendido, com muitas reservas e reticências – ao stalinismo”162. Em sua

valorização do “realismo” do “velho” Hegel, em oposição ao “utopismo revolucionário” de

Fichte e/ou Moses Hess, realismo de quem soube aceitar a racionalidade do real, Lukács acaba

explicitando, segundo Löwy, “o fundamento metodológico” de sua “adesão [...] ao ‘Termidor

Soviético’”, com o abandono dos “ideais revolucionários juvenis” de 1919-1924 e a

“reconciliação com a realidade prosaica e bonapartista da URSS stalinista”163.

Tal como Hegel outrora, Lukács inclina-se, a partir de 1926, progressivamente, para um

“realismo estreito” entre cujas consequências políticas está “a aceitação da Realpolitik não

revolucionária de Stálin”, conforme se pode ver nas suas “teses de Blum”, originalmente um

documento para ser debatido no II Congresso do Partido Comunista Húngaro. Propondo uma

revolução democrática “cujo conteúdo imediato e concreto não ultrapasse a sociedade

burguesa”, Lukács aplicava à Hungria, na ótica de Löwy, da política do Komintern que vigorara

161 “O que Lukács não compreendia é que o Termidor stalinista era muito mais nefasto para a revolução proletária

que o Termidor francês havia sido para a revolução burguesa; por uma razão fundamental, que o jovem Lukács

havia ressaltado em HCC: a revolução socialista não é, como a revolução burguesa, um processo cego e

automático, mas a transformação consciente da sociedade pelos próprios trabalhadores”. Michael Löwy, A

evolução política de Lukács, op.cit., p.237. 162 Ibidem, p.232. 163 Ibidem, p.234, 235.

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do giro à direita de 1924 até 1927, um ano antes da redação das teses e no mesmo ano da virada

esquerdista-sectária da Internacional, inaugurando o chamado “Terceiro Período”, que duraria

até 1933. Daí as duras críticas recebidas por Lukács: adaptadas à perspectiva que vigorava entre

1924 e 1927, e uma espécie de antecipação em germe da estratégia de frente popular dos anos

1934-1938, as “teses de Blum” entravam em contradição com a linha esquerdista desde então

em vigor, motivo pelo qual a maioria das críticas que lhe foram endereçadas censuravam o

caráter moderado, reformista, circunscritos aos limites da democracia burguesa, de suas

proposições táticas e estratégicas.

Com efeito, se o texto sobre Moses Hess oferece o fundamento metodológico, as “teses

de Blum” constituem, para Michael Löwy, “o fundamento ideológico de toda sua produção

intelectual a partir de 1928”, algo reconhecido, aliás, tanto por Lukács quanto pelos

lukacsianos164. Mesmo em seus trabalhos de crítica literária, a partir dos anos 1930, a concepção

de uma “frente popular”, baseada na aliança entre o proletariado e as forças democráticas e

progressistas da burguesia, estava não apenas presente como dava a tônica de suas intervenções

e/ou julgamentos estéticos. De acordo com Löwy, em especial após 1934, após a adoção pelo

Komintern da estratégia de frente popular (que não se confunde com a tática da frente única,

que supõe a independência de classe), Lukács defendeu vigorosamente o resgate da herança

cultural humanista-burguesa contra as correntes de vanguarda (na URSS ou fora dela),

elaborando uma concepção sui generis do realismo crítico, que se distingue, porém, tanto do

naturalismo objetivista e reificado quanto do realismo socialista tal como elevado à condição

de política de Estado na URSS.

Como dissera certa vez Isaac Deutscher, em tom nitidamente crítico: “da Frente Popular,

simples tática, [Lukács] fez uma ideologia, e aplicava seu princípio à filosofia, à história

literária e à crítica da arte”165. No âmbito da literatura, os esforços de Lukács em estabelecer

uma frente ideológica comum seriam a “face cultural” da tática de coalização política com “a

burguesia não fascista (renunciando a toda posição de classe)”166. Na opinião de Michael Löwy,

até 1968, quando ele teria esboçado pela primeira vez uma “crítica de esquerda do stalinismo”,

Lukács apenas pode ser considerado um “opositor interno” ao stalinismo nos períodos em que

este assumiu uma linha mais “esquerdista” (especialmente em 1929-1930, em 1941, quando

chegou a ser preso, e 1949-1950), sendo membro do establishment político-cultural do

164 Ibidem, p.241. 165 Isaac Deutscher, “Lukács critique de Thomas Mann”. In: L’enfance de Lénine et autres essais. Paris: Payot,

1971, p.251, 2. 166 Michael Löwy, A evolução política de Lukács, op.cit., p.243.

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movimento comunista internacional nos anos de 1934-1938 e 1944-1948, períodos marcados

pelo primado ideológico da tática da aliança entre proletariado e burguesia democrática contra

o fascismo. Não por acaso, suas críticas ao stalinismo após 1956 tendem a abordá-lo como um

“subjetivismo sectário”, “esquerdista”: em La signification présente du réalisme critique, por

exemplo, texto redigido em setembro de 1956, Lukács enxerga no stalinismo uma combinação

de “subjetivismo econômico” e “romantismo revolucionário”167. Nas palavras de Deutscher,

não por acaso citadas por Löwy: “Mesmo que tenha dado provas de obediência, certamente não

se sentiu à vontade diante das viradas de extrema esquerda do stalinismo. Em contrapartida, é

de coração aberto que adere às correntes moderadas de direita do stalinismo”168.

Por certo, uma tal perspectiva crítica em relação ao percurso de maturidade de Lukács

pode suscitar justos questionamentos sobre uma possível “sobrepolitização” da análise, no

sentido de que tenderia a acentuar o papel do engajamento político-ideológico na determinação

da obra de um autor. Inspirada tanto na própria obra de juventude do filósofo húngaro quanto

em uma abordagem nitidamente trotskista dos debates da esquerda política marxista, ambas

formulações assentadas na esperança de uma ascensão revolucionária iminente, Löwy talvez

ignore alguns matizes que permitiriam enxergar os elementos de resistência interna e as

ambivalências que caracterizam a relação de Lukács com o fenômeno stalinista. Nesse sentido,

pode-se compreender que Leandro Konder – que nessa mesma época trabalhara sobre Lukács

na Universidade de Bonn (Alemanha), de onde acompanhou parte da pesquisa de Löwy –,

embora elogie o trabalho do colega radicado em Paris, censura-o por um excesso de

“doutrinarismo trotskista”, que teria o impedido de compreender as nuances da posição político-

ideológica lukacsiana.

Politicamente, porém, a análise de Michael Löwy era mais do que coerente com sua

posição à época, e os alvos, bem definidos: partindo da perspectiva da esquerda revolucionária,

Löwy criticara Lukács não apenas por sua anuência ao stalinismo (manifestada, por exemplo,

em seus inúmeros elogios à figura de Stálin), mas também por sua concepção moderada e, no

limite, reformista, interclassista, da política socialista, materializada na sua defesa da política

de frente popular. Mirando em Lukács, era o conjunto do “reformismo stalinista” que era

visado, reformismo que sobrevivera em partidos como o PCF e que, naquele momento, havia

sido erigido à condição de principal empecilho para o desenvolvimento das potencialidades

167 Georg Lukács, La signification présente du réalisme critique. Paris: Gallimard, 1960. 168 Isaac Deutscher, “Lukács critique de Thomas Mann”, op.cit., 250.

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revolucionárias do proletariado. Essa era, por exemplo, a linha política da organização na qual

Löwy militava, a LCR.

Parece evidente, assim, que os debates da esquerda francesa (e europeia) condicionaram

em alguma medida a constituição da perspectiva política subjacente à tese, ancorada tanto na

valorização do voluntarismo revolucionário do jovem Lukács como na recusa do “realismo

estreito” do “velho” filósofo embarcado na ala direita do stalinismo, ala direita então

predominante nos partidos “stalinistas” mundo afora. A ênfase do jovem Lukács, em especial

em HCC, na necessidade de constituição de uma subjetividade revolucionária mediante a práxis

contra as estruturas reificadas do capitalismo, articulava-se muito bem, na ótica de Löwy, com

as esperanças na ascensão da esquerda revolucionária (trotskista) a partir de 1968, em oposição

a um PCF aparentemente declinante. Ainda mais porque o próprio “velho” Lukács, impactado

pelos acontecimentos de 1968 (revoltas estudantis ao logo do mundo, “primavera de praga” e a

invasão soviética à Tchecoslováquia etc.), parecia retornar, até a sua morte em 1971, “à

orientação revolucionária de sua juventude”, malgrado as devidas diferenças entre as épocas169.

Na realização da pesquisa, Michael Löwy entrevistou aquele que havia sido o mais

próximo intelectual de Lukács em sua juventude: Ernst Bloch. Ocorrida em Tübingen, cidade

alemã na qual Bloch vivia com sua esposa, Karola, que participou ativamente do encontro, a

entrevista centrou-se nas afinidades entre os dois jovens intelectuais que, juntos, participaram

do célebre “círculo Max Weber” em Heidelberg, assim como nas divergências que,

particularmente nos anos 1930, iriam afastá-los tanto teórico-política quanto pessoalmente.

Sem dúvida, a entrevista com Bloch, ele também crítico em relação à trajetória do ex-amigo,

serviu para Löwy reafirmar a sua visão crítica da relação de Lukács com o stalinismo,

transformando-a em parâmetro para a avaliação até mesmo da obra lukacsiana de crítica

literária. Para Bloch, como ele deixa claro na entrevista, haveria uma relação inescapável entre

a evolução política de Lukács e as suas avaliações estéticas, as quais motivaram, diga-se, as

divergências inconciliáveis entre os dois filósofos.

Na ótica blochiana, “sob a influência do Partido seu horizonte [de Lukács] se estreitou,

seus julgamentos eram obedientes e marcados pelo selo dos apparatchniks; sua escala de

valores eliminava, destruía e desconhecia tudo o que não era homogêneo com os apparatchniks

169 “Evidentemente, a História não se repete e o Lukács de 1969-1971 não pode, em absoluto, ser assimilado ou

identificado ao de 1919-1924: a expressão ‘retorno’ é uma metáfora que chama a atenção sobre certa analogia

entre dois fenômenos distintos”. Michael Löwy, A evolução política de Lukács, op.cit., p.253.

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de Moscou”170. Isso explicaria a postura “neoclassicista”, obcecada pela “ordem”, pela

“retidão”, a partir da qual ele rejeitaria não apenas Dostoievsky (escritor em quem ele havia

depositado a esperança de uma nova epopeia em A Teoria do Romance), senão também o

conjunto das artes modernas, do expressionismo ao surrealismo, de Brecht, Kafka e Joyce a

Musil, dentre outros, todos eles de alguma forma associados às consequências da “decadência

da burguesia tardia”. Ora, ao destacar o entrelaçamento e o condicionamento recíproco, em

Lukács, entre a defesa da frente popular, em aliança com a herança burguesa progressista, nas

esferas da política, da literatura e/ou da filosofia, Löwy almejava, como Bloch, demarcar o que

entendia ser uma crítica a um só tempo política e estética da perspectiva lukacsiana realizada

desde um ponto de vista “duplo”: da esquerda “revolucionária” anti-stalinista e da literatura e

das vanguardas modernas (notadamente o surrealismo).

Em abril de 1974, em grande parte por dominar o português, Michael Löwy foi enviado

pela LCR e pela direção do Secretariado Unificado (SU) da IV Internacional a Portugal, para

acompanhar de perto a chamada revolução dos cravos. Nos dias em que ali permaneceu, pôde

vivenciar a experiência de um processo no qual a esquerda “revolucionária” europeia depositou

muitas esperanças, apostando na possibilidade de deflagração de um cenário de duplo poder,

com a criação de comitês de soldados e conselhos dos trabalhadores. De volta a Paris, Michael

Löwy organizou, ao lado de Daniel Bensaïd e de Charles Andre-Udry (o membro da direção do

SU mais próximo de Mandel), o livro Portugal: la révolution en marche, publicado em 1975.

Na ocasião, como fazia em suas intervenções mais diretamente políticas (por exemplo: em seus

textos na revista Critique Communiste, a revista da LCR, da qual chegou a ser membro do

comitê editorial em meados dos anos 1970), Löwy assinou como Carlos Rossi, seu pseudônimo

não abandonado, talvez temendo alguma represália acadêmica171.

Sustentando a linha política da LCR e da IV Internacional, o livro visualiza na ausência

de uma centralização das experiências de poder de base (conselhos e comitês de soldados e

trabalhadores) o principal limite do processo revolucionário. Apenas tal postura tornaria

possível, conforme a ótica leninista em questão, a edificação de um “duplo poder”, capaz de

preparar a ruptura e a subversão do Estado burguês. Período mais “trotskista” de Löwy, os anos

1970 constituem também, não por acaso, seu momento mais “leninista”. Na entrevista com

Henri Weber, publicada na revista Critique Communiste em 1977, Nicos Poulantzas criticou

170 Michael Löwy, “Entrevista com Ernst Bloch”, in: A evolução política de Lukács, op.cit., p.299. 171 Carlos Rossi (Michael Löwy), Daniel Bensaïd, Charles Andre-Udry (orgs.), Portugal: la révolution en marche.

Paris: Christian Bourgois, 1975.

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diretamente este livro, como veremos mais adiante, apreendendo-o como exemplo do

“leninismo” que ele estava tentando superar. Para Poulantzas, embora possa envolver uma certa

ruptura com a ordem estabelecida, um processo de transição socialista não implicará em um

embate frontal entre o Estado burguês e um poder político-social que lhe seria “exterior”: o

poder organizado e centralizado (pelo partido, mas não só) dos trabalhadores armados, que não

mais reconhece a “legitimidade” da violência de um Estado agora visto como estando a serviço

dos dominantes172.

1.4. Admissão ao CNRS e sociologia do conhecimento

Em meados da década de 1970, com a sensação de que uma volta ao Brasil estava cada

vez mais distante, especialmente pelo endurecimento e estabilização da ditadura, Michael Löwy

perdeu até mesmo a “nacionalidade” brasileira através do confisco do seu passaporte na

embaixada. “Fui renovar o meu passaporte na embaixada e me explicam que eu era persona

non grata. Eu já não tinha nem legalmente como voltar ao Brasil”173. Como se não bastasse,

praticamente na mesma época, em 1975, Löwy teve seu pedido de naturalização francesa

recusado, o que o deixara legalmente apátrida. Sem ser exatamente um exilado no sentido

“clássico”, Löwy vivenciou nessa época o sentimento de efetivamente ser um “intelectual

desterritorializado”, consolidando sua simbologia de intelectual cosmopolita, internacionalista

e revolucionário. Do ponto de vista legal, a solução encontrada não deixa de ser curiosa: de

súbito, em função dos seus pais austríacos, Löwy tornou-se legalmente austríaco. “Durante

vários anos fui austríaco”, diz ele. A naturalização francesa viria apenas alguns anos depois, na

primeira metade da década de 1980, após muitas tentativas e investidas.

Por volta de 1975, além dos problemas burocráticos, a situação de Michael Löwy não

era das mais confortáveis. Em Vincennes, apesar do prazer em trabalhar com uma figura como

Poulantzas, a ausência de perspectivas em relação à possibilidade de efetivação como professor

deixava-o preocupado, à beira dos quarenta anos de idade. Aliado a isso, a Europa, e a França

em particular, era palco dos primeiros indícios do que se comprovaria depois como uma

mudança substantiva (uma “virada”) da atmosfera política e ideológica. A derrota da revolução

172 Cf. “L’État et la transition au socialisme. Interview de Nicos Poulantzas par Henri Weber”, in: Critique

communiste (revista da Ligue communiste révolutionnaire), n°16, juin 1977. É curioso que, ao citar o livro

Portugal: la révolution en marche, Poulantzas menciona apenas o nome de Daniel Bensaïd, e não o de Michael

Löwy, talvez por não conhecer o pseudônimo político do seu assistente. 173 Ângela de Castro Gomes e Daniel Aarão Reis, “Um intelectual marxista: entrevista com Michael Löwy”, op.cit.,

p.180.

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portuguesa e o desfecho da transição espanhola seriam o sinal de alarme do fim de um ciclo

político-ideológico, que impactou de forma espetacular o ambiente intelectual francês, com o

declínio dos intelectuais de esquerda (marxistas, “engajados”) e a ascensão de “tendências”,

não raro compostas por ex-esquerdistas, como os chamados “novos filósofos”, cuja irrupção

promoveu a emergência de novo “tipo” de intelectual: os intelectuais midiáticos.

É nesse contexto que, em 1977, Löwy decide se candidatar a uma vaga de pesquisador

no Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS). A aposta era arriscada, uma vez que

o seu projeto, sobre a questão da sociologia do conhecimento, era o único dentre os

apresentados que versava acerca de um tema teórico-metodológico, contrariando a “tradição”

informal do CNRS de privilegiar pesquisas empíricas. Aprovado como attaché de recherche,

Löwy se integrou, de início, ao Centre d’études transdisciplinaires: sociologia, anthropologie

et sémiologie (CETSAS), um amplo e heterogêneo grupo de pesquisas, vinculado ao CNRS e

à EHESS, dirigido por Edgar Morin ao lado de Claude Lefort e Christian Metz (um dos

criadores da “semiologia do cinema”). Como revelam os relatórios das atividades do CETSAS

dos anos letivos 1977-78 e 1978-79 (os dois anos em que Löwy constava entre os membros do

centro), o grupo contava com figuras tão importantes quando diversas no campo acadêmico e

intelectual francês, que se aglutinavam em linhas de pesquisa igualmente heterogêneas entre

si174.

Para se ter uma ideia, enquanto Morin pesquisava, na linha “Bio-antropo-sociologia”, a

“paradigmatologia e epistemologia das ciências antropo-sociais”, Lefort trabalhava, “no

cruzamento entre filosofia, sociologia e história”, as transformações do “corpo político” na

França do século XIX, em uma linha de pesquisa intitulada “Problemas do político”175. Por sua

vez, outros pesquisadores se dividiam entre as linhas “Pesquisas em sociologia contemporânea”

(da qual fazia parte Nicole Benoit-Lapierre, que militava na LCR), “Semiologia do cinema”

(Christian Metz), “Sócio-semiótica do discurso” (Antoine Compagnon e Julia Kristeva) e

“Semiologia literária”, na qual se destacava Tzvetan Todorov, que na época estava engajado

em uma pesquisa sobre “alguns representantes do pensamento estético e literário moderno (pós-

romântico)”, tais como Roland Barthes (que era membro do grupo), B. Brecht, M. Bakhtine, e

os formalistas russos176.

174 Cf. “Activités du Centre d’études transdisciplinaires 1977-78”, Communications, n.30, 1979, pp.259-271; e

“Activités du Centre d’études transdisciplinaires 1978-79”, Communications, n.31, 1979, pp.211-224. 175 Ibidem, p.213. 176 Idem, p.215.

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Em meio a esse turbilhão, a referência institucional de Michael Löwy era Claude Lefort,

autor já famoso desde a experiência do grupo Socialismo ou barbárie, mas que, assim como C.

Castoriadis, havia sido alçado ao centro das atenções intelectuais francesas após o tournant

anti-totalitário que se produziu a partir de meados da década de 1970177. Foi essa afinidade

antitotalitária de Lefort com alguém como François Furet (apesar das evidentes diferenças

políticas) que lhe abriu as portas da École de Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS),

onde foi admitido em 1977, momento em que já era pesquisador do CNRS178. Era Lefort quem

supervisionava e avaliava a pesquisa de Michael Löwy sobre a questão da sociologia do

conhecimento, embora nela não interferisse.

É curioso que Löwy, militante de uma organização leninista, nada mencione sobre

alguma possível querela com Lefort sobre sua participação na consolidação daquilo que

Michael Scott Chistofferson denominou como “momento antitotalitário” da vida intelectual

francesa, talvez porque suas relações se resumissem ao plano estritamente profissional. Embora

muito mais sofisticado do que a vulgata perpetrada pelos “novos filósofos”, Lefort (ao lado de

Castoriadis) foi um agente ativo da consolidação de um novo ambiente intelectual caracterizado

pelo declínio e pela rejeição comum do marxismo e do “comunismo” stalinista. Do interior da

EHESS, que se tornara então um bastião acadêmico do antitotalitarismo, esses intelectuais

contribuíram (assim como Foucault, aliás) para dar legitimidade intelectual ao novo cenário

hegemônico que emergia, marcado não apenas pelo declínio do PCF (ultrapassado pelas

manobras mitterandianas), mas também da extrema-esquerda leninista e/ou trotskista, esta

última vista, em última análise, segundo a sentença de Castoriadis, como a “fração no exílio da

burocracia soviética”179.

Em seus trabalhos sobre sociologia do conhecimento, os quais deram origem ao livro

Paysage de la vérité. Idéologie et connaissance dans les sciences sociales - publicado no

mesmo ano no Brasil (apenas em 1985, ou seja, sete anos depois do início da pesquisa) com o

título As aventuras de Karl Marx contra o Barão de Münchhausen180, talvez o seu livro mais

177 Como diz Michael Scott Christofferson, “em 1977, Lefort e Castoriadis tornam-se ícones vivos do

antitotalitarismo francês”, em função de seus passados antistalinistas. Michael Scott Christofferson, Les intellectuels contre la gauche. L’idéologie antitotalitaire en France (1968-1981), Marselha: Agone, 2014, p.392. 178 François Furet chegou a ser presidente da EHESS entre 1977 e 1985, instituição na qual ele havia entrado no

início dos anos 1960 (na antiga École pratique des hautes études) através da nomeação de Fernand Braudel, mesmo

sem jamais ter terminado sua tese de doutorado (doctorat d’État). Valendo-se de sua posição e legitimidade no

interior (e no exterior) da instituição, Furet ajudou diretamente Lefort, Castoriadis, além de Marcel Gauchet e

Pierre Rosanvallon (discípulos do primeiro), a fazer carreira na EHESS. Cf. Ibidem, p.198 e p.419. 179 Cornélius Castoriadis, “La source hongroise”, Libre, n.1. Paris: Payot, 1977, p.82. 180 Michael Löwy, As aventuras de Karl Marx contra o Barão de Münchhausen. Marxismo e positivismo na

sociologia do conhecimento. São Paulo: Cortez Editora, 2009.

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lido no seu país de origem (embora esteja longe de ser o melhor) –, Michael Löwy dá

seguimento à tentativa de defender a superioridade epistemológica de uma certa leitura do

marxismo, humanista e historicista, ancorando sua universalidade “cognitiva” potencial, por

assim dizer, na universalidade do ponto de vista da classe da qual ele almeja constituir a visão

de mundo: o proletariado. Tratava-se, assim, de mais um capítulo da sua intervenção nos

debates não apenas entre marxistas e antimarxistas (dominantes no terreno da “sociologia do

conhecimento”), mas também no interior do próprio marxismo, com diversas correntes

concorrendo entre si pela leitura mais legítima da tradição marxista.

Foi nesses trabalhos, porém, que Michael Löwy tomou a sério um autor não marxista

(embora por ele tenha sido influenciado) que lhe servirá como base para a elaboração das

questões e hipóteses da pesquisa, ainda que não para as respostas e conclusões oferecidas, por

exemplo, em As aventuras de Karl Marx...: Karl Mannheim, autor que ele havia lido en passant

durante a graduação, por recomendação de sua professora Paula Beiguelman, mas que agora

era alçado ao centro de sua pesquisa sociológica. O ponto de partida da análise era

simultaneamente marxista e “mannheimniano”: o reconhecimento da determinação ou

condicionamento social do conhecimento, toda teoria do e sobre o social sendo uma forma de

expressão (explícita ou implícita) de algum grupo e/ou classe social, tornando inseparável,

assim, os juízos de fato e os juízos de valor.

A sociologia do conhecimento de Mannheim seria, na ótica de Löwy, a última forma do

historicismo relativista, após as reflexões de Wilhelm Dilthey e Georg Simmel e da tradição

das chamadas “ciências do espírito”181. A originalidade da posição de Mannheim é que ele

articula ao historicismo uma certa leitura do marxismo, muito inspirada em HCC, do jovem

Lukács. Com isso, mais além do vínculo entre conhecimento e condicionantes como períodos

históricos, culturas nacionais ou religiosas em sentido amplo, Mannheim estabelece a ligação

entre as doutrinas (sejam elas utópicas ou ideológicas) e posições sociais determinadas, não

apenas, mas sobretudo posições de classe. Mais do que historicamente relativo, tal como já

sustentavam o historicismo idealista (alemão), o conhecimento seria também socialmente

relativo, vinculado a posições determinadas na estrutura de classes, conforme demonstrara

Lukács.

Através de Mannheim, Löwy almejava apreender o melhor do historicismo a fim de

integrá-lo em uma perspectiva marxista, mas de um marxismo adaptado aos termos da

181 Mannheim foi aluno de Simmel.

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sociologia do conhecimento. Mas, enquanto para Mannheim a “solução” para a relatividade

inevitável do conhecimento encontrava-se na “síntese dinâmica” e eclética dos vários pontos

de vista promovida pela “intelligentsia sem amarras”, categoria social “livremente flutuante”,

para Löwy e seu marxismo historicista tal capacidade de espreitar a universalidade seria

privilégio, em geral, das classes revolucionárias e, em especial, do proletariado moderno, única

classe na história entre cujos objetivos está a própria auto-superação enquanto classe.

No contexto francês, a recuperação marxista da obra de Mannheim, especialmente

d’Ideologia e Utopia, promovida por Michael Löwy é pioneira na tentativa de resgatá-lo da má

vontade com a qual ele até então havia sido tratado pelas ciências sociais na França, envolto na

hostilidade, que perdurara dos anos 1950 aos 1970, tanto da sociologia “burguesa” (que o

acusava de marxista) quanto da sociologia “marxista” (que não o reconhecia como um dos seus,

muito ao contrário), sem falar no desprezo que ele alimentava em Bourdieu. Oriundo da tradição

“filosófico-sociológica” alemã, e com uma significativa penetração no cenário anglo-saxônico,

Mannheim não encontrou na França o melhor ambiente para a recepção de sua obra, em

particular por sua ausência de vínculos com alguma escola ou corrente teórica e/ou política. No

âmbito do marxismo, as obras de Lukács e, sobretudo, de Lucien Goldmann, que não

economizava nas críticas ao autor húngaro, ofuscaram a já pouco representativa obra de

Mannheim. Seria apenas a partir do final da década de 1970, ou seja, época em que Löwy dava

início aos seus trabalhos sobre a sociologia do conhecimento, e na qual o marxismo deixava

gradativamente de ser a clivagem central das ciências humanas, que as reflexões

mannheimnianas começaram a ser recuperadas182.

Michael Löwy foi, assim, em certa medida, pioneiro no resgate da obra de Mannheim,

à luz do marxismo lukacsiano-goldmanniano, tanto mais porque seu mestre Goldmann jamais

tomou o autor húngaro a sério, acusando-o de transformar, em sua concepção da “intelligentsia

sem amarras” (freischwebende Intelligenz), “a verdade em privilégio de um certo número de

diplomados e de especialistas em sociologia”183. Para Löwy, embora parcialmente correta, tal

crítica é insuficiente na medida em que não compreende o “elemento de verdade” na elaboração

de Mannheim: por sua condição social específica, o que é diferente de autônoma, os intelectuais

de fato manifestam algo dessa “livre flutuação” de que fala o autor húngaro, em especial porque

a “classe” social de que eles mais se aproximam, a pequena-burguesia, caracteriza-se

182 Cf. Gérard Mauger, “Introduction”, in: Karl Mannheim, Le problème des générations. Paris: Armand Colin,

2011, p.24-31. Nas décadas seguintes, a obra de Mannheim seria recuperada na França pela ótica da sociologia

das gerações, em especial da sociologia da juventude. Ibidem, p.31-36. 183 Lucien Goldmann, Sciences Humaines et philosophie. Paris : PUF, 1952, p.38.

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igualmente por esta pretensão de estar acima ou em um nível intermediário entre as classes. O

equívoco da posição mannheimniana localizar-se-ia, antes, na não percepção de que essa

flutuação dos intelectuais é provisória: uma hora ou outra, eles são sempre “atraídos” para uma

das classes sociais existentes e antagônicas, conforme ocorre, aliás, com a própria pequena-

burguesia.

Por meio dessa incorporação crítica de Mannheim, Löwy reafirmou a sua caracterização

dos intelectuais como categoria social específica, tal como realizada em sua tese sobre Lukács,

dotando-a, porém, agora, de uma elaboração mais sistemática, em torno da ideia de autonomia

relativa da esfera do conhecimento e da produção intelectual. No âmbito da sociologia

diferencial do conhecimento que buscou elaborar, esse resguardo da autonomia relativa da

produção intelectual ancorou-se igualmente na revisão goldmanniana da tese lukacsiana da

identidade entre sujeito e objeto: ao contrário do que afirmava Lukács, para o qual a consciência

do sujeito (o proletariado) era já a ciência do objeto (a totalidade do capitalismo), dada a

coincidência entre ciência e consciência, entre sujeito e objeto, não há, para Goldmann, uma

relação direta e exclusiva entre conhecimento e posição social de classe. A ciência não se reduz

unicamente à classe social, ainda que esta seja uma dimensão fundamental dos condicionantes

da prática intelectual nas ciências humanas. A consciência de classe, por exemplo, não significa

imediatamente uma ciência do proletariado, senão através de mediações por meio das quais o

pensamento afinado com o ponto de vista do proletariado almeja construí-la.

Para Goldmann, entre sujeito e objeto há, de fato, uma identidade, como reconhece,

aliás, a tradição marxista-historicista. Mas essa identidade seria apenas parcial. Conquanto as

classes sejam a infraestrutura das visões sociais de mundo, estas comportam outras mediações

cujo conhecimento não se deixa reduzir ao autoconhecimento da classe, como as mediações

culturais, de geração, nacionais etc. Essa autonomia relativa da esfera do conhecimento,

ressaltada sob formas diferentes tanto por Mannheim quanto por Goldmann, é que explicaria a

possibilidade, segundo Löwy, na contramão do que acreditava Lukács em HCC184 – para o qual,

no capitalismo, a burguesia e o proletariado seriam as únicas classes capazes de apresentar uma

visão social de conjunto –, de que visões de mundo antiburguesas, mas não marxistas, ou seja,

visões frequentemente passadistas e nostálgicas de uma época pré-capitalista, podem se

aproximar mais do conhecimento da realidade burguesa do que as visões de mundo burguesas

184 De acordo com Lukács: “a burguesia e o proletariado são as únicas classes puras da sociedade, isto é, são as

únicas classes cuja existência e evolução baseiam-se exclusivamente no desenvolvimento do processo moderno

de produção. Além disso, somente suas condições de existência permitem imaginar um plano para a organização

de toda a sociedade”. Georg Lukács, História e Consciência de Classe. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p.153.

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supostamente progressistas. Aos olhos de Löwy, o “modelo cognitivo” lukacsiano, “que

privilegia a burguesia com relação às classes pré-capitalistas”, seria incapaz de “dar conta das

intuições profundas sobre a natureza do capitalismo que o próprio Lukács reconhecia e saudava

em um Sismondi ou em Carlyle”185.

Em Le Dieu Caché, análise da “visão trágica de mundo”, em que a concebe como

autêntica precursora do pensamento dialético, Goldmann demonstra a fertilidade dessa hipótese

metodológica. Ao relacionar as obras de Pascal (pensamento) e de Racine (teatro) ao

jansenismo (movimento religioso “herético”, caracterizado pela recusa não histórica e não

mística do mundo) e, mais amplamente, à nobreza de toga da França do século XVII, revelando

como a visão trágica de mundo destes autores era uma expressão da impotência social da

nobreza de toga na época do absolutismo, Goldmann demonstrara a possibilidade de que uma

visão de mundo vinculada a uma posição de classe conservadora possa exprimir uma concepção

genuinamente crítica do capitalismo moderno. Para o sociólogo romeno, esse foi o caso de

Pascal. A partir “de uma posição de classe mais conservadora, Pascal pôde ver e criticar certas

limitações da visão de mundo racionalista da burguesia em expansão”, visualizando algumas

antinomias do pensamento burguês que os progressistas da época não podiam enxergar186. Para

Löwy e Nair, “a aposta de Pascal é um momento fundamental, uma guinada na história do

pensamento moderno: a passagem dos individualistas-racionalistas e dogmáticos – ou

empiristas e céticos – para o pensamento trágico enquanto etapa intermediária no caminho que

leva ao pensamento dialético”187.

Enquanto a obra de Lukács (HCC), apostando na possibilidade de uma reconciliação

entre sujeito e objeto através da figura do proletariado, era a expressão de uma conjuntura

histórica bastante particular, caracterizada pela ascensão das forças revolucionárias na Europa,

não apenas com a revolução russa de 1917, mas também com a revolução húngara de 1919, da

qual ele participou na condição de comissário do povo para a Educação, a obra goldmanniana

(Le Dieu Caché) foi elaborada em um contexto de relativa estabilidade do sistema na Europa

(anos 1950), constituindo-se, antes de tudo, em um livro marxista-acadêmico de um

“historiador expatriado trabalhando na Sorbonne”, como sugeriu Edward Saïd188. Entre a

Budapeste do final dos anos de 1910 e a Paris dos anos de 1950, malgrado a hegemonia do

marxismo “oficial” nesta última, havia poucas similaridades no tocante à efervescência

185 Michael Löwy, As aventuras de Karl Marx contra o Barão de Münchhausen. São Paulo: Cortez, 1994, p.119. 186 Michael Löwy & Sami Nair, Lucien Goldmann ou a dialética da totalidade. São Paulo: Boitempo, 2008, p.68. 187 Idem, p.63. 188 Edward Saïd, “Travelling theory”, in: The Edward Saïd Reader. Londres: Granta, 2000, p.204.

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revolucionária. “Viajando” de um lugar a outro, de uma época a outra, a teoria (a interpretação

lukacsiana do marxismo) não poderia deixar de ser “atingida”, de onde a reticência de

Goldmann em assumir todas as consequências teóricas e políticas da posição lukacsiana, a qual

desautorizaria por completo qualquer diálogo com as ciências sociais acadêmicas, e talvez não

lhe permitisse levar adiante pesquisas como as sobre a visão trágica de mundo ou o nouveau

roman.

Michael Löwy, por sua vez, embora politicamente à esquerda de Goldmann, e em um

contexto mais interessante para o marxismo revolucionário do que aquele dos anos 1950 e início

dos 1960, enfrentava dilemas semelhantes: a adoção integral da posição lukacsiana, com sua

indistinção entre ciência e consciência, deixaria pouco espaço para o diálogo e a inserção

acadêmica. Se ciência e consciência coincidissem, uma ciência “burguesa” não poderia senão

reproduzir uma consciência “burguesa”, recaindo inevitavelmente nas antinomias que são

próprias das visões burguesas de mundo. Não por acaso, sem abandonar o núcleo da hipótese

principal de HCC (a superioridade do ponto de vista do proletariado como único capaz de

compreender e superar a reificação), Löwy problematiza, com a ajuda de Goldmann, as formas

de produção intelectual possíveis para se alcançar o máximo de consciência possível, por assim

dizer, deste “ponto de vista”. Tratava-se de se investigar o caminho específico para se chegar

ao conhecimento objetivo da realidade social, à luz das diferentes visões de mundo.

Nesse processo, mesmo que tenha maiores possibilidades (que os seus “concorrentes”)

de ascender a um campo de visibilidade mais elevado da realidade social, o marxismo pode (e

deve) dialogar com outras teorias sociais, acadêmicas e não-marxistas, até como uma forma de

ativar a sua capacidade autocrítica, quer dizer, a sua capacidade de pensar a sua própria história,

do passado ao presente e vice-versa. Somente assim o marxismo (ou uma certa leitura dele)

poderia, segundo Michael Löwy, desfrutar efetivamente de um maior campo de visibilidade

para o conhecimento “objetivo” da totalidade do real. O seu vínculo com o “ponto de vista do

proletariado”, inclusive porque este é sempre objeto de disputa, não constitui uma garantia do

acesso à verdade, uma vez que tanto a “ciência” quanto a “consciência de classe” do

proletariado seriam resultado de um processo dinâmico cujo desfecho não está definido de

antemão.

Nas palavras de Michael Löwy, “a ciência situada na perspectiva mais vasta e mais

totalizante [...] pode e deve ser capaz de integrar em seu ‘quadro’ da paisagem as verdades

parciais produzidas pela ciência dos níveis inferiores e mais limitados. Esta incorporação ou

absorção de elementos de verdade em um conjunto estruturado e ‘engajado’ não tem nada a ver

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com o ecletismo e não significa absolutamente que as oposições irredutíveis entre visões de

mundo antagônicas desapareceram”189. A relação do marxismo com as outras visões de mundo

não está baseada em uma “distinção entre ‘verdade’ e ‘erro’ (ou ‘ciência’ e ‘ideologia’), mas

entre horizontes científicos mais ou menos vastos, entre limites mais estreitos ou mais amplos

da paisagem cognitiva percebida”190.

Ora, ainda que busque nuançar a posição lukacsiana, Michael Löwy não está isento dos

dilemas que percorrem o historicismo radical de HCC. A tentativa de escapar do reducionismo

lukacsiano não o libera da tentação historicista de reduzir o pensamento à condição de

expressão de uma época, de uma classe etc. Embora mais matizada, tal perspectiva, sob a forma

de um marxismo historicista, implicava a aceitação implícita de uma concepção “progressista”

da história, na qual a classe ascendente possui sempre uma superioridade epistemológica em

relação à classe “decadente”. Deste ponto de vista, não surpreende que, antes mesmo da

incorporação explícita da obra de Walter Benjamin, o questionamento das consequências

“progressistas” (ou mesmo evolucionistas) do historicismo se manifeste, em Michael Löwy,

através da hipótese de que, em certas situações históricas determinadas, uma visão de mundo

vinculada a uma classe “decadente” pode desenvolver uma percepção mais lúcida das

contradições do capitalismo moderno do que a burguesia apologista do (seu) progresso. Esta

será, não por acaso, a hipótese de partida das suas pesquisas sobre o que ele chamará de visão

de mundo romântica.

Em um artigo originalmente publicado em 1979, “La société réifiée et la possibilité

objective de sa connaissance chez Lukács”, Michael Löwy sustenta que a “incapacidade” de

Lukács, em HCC, de “analisar as bases sócio-históricas” de teorias sociais que, no entanto, o

influenciaram diretamente, como as dos autores da “sociologia” alemã da virada para o século

XX (Tönnies, Simmel, Weber etc.), constitui “uma das limitações mais evidentes da [sua]

sociologia do conhecimento esboçada em História e Consciência de Classe”191. Embora

incorpore elementos das obras destes autores em prol de sua própria crítica da reificação,

Lukács se esquiva da “questão do ponto de vista de classe dos sociólogos alemães nos quais se

inspira”, e tampouco se questiona sobre a possibilidade de que eles representem uma visão

social de mundo (neorromântica) comum192. Os estudos de Löwy sobre o romantismo

189 Michael Löwy, As aventuras de Karl Marx contra o Barão de Münchhausen, op.cit., p.217. 190 Michael Löwy, As aventuras..., op.cit., 1994, p.211. 191 Michael Löwy, “La société réifiée et la possibilité objective de sa connaissance chez Lukács”, Recherche

Sociale, n.72, 1979. Edição portuguesa (citada): “A sociedade reificada e a possibilidade objetiva de seu

conhecimento na obra de Lukács”. In: Romantismo e Messianismo. São Paulo: Perspectiva; Edusp, 1990, p.79. 192 Idem, p.78.

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constituem, assim, em certa medida, uma forma de continuidade em relação à inflexão

goldmanniana (por meio da análise da visão trágica) do progressismo lukacsiano; mas eles

constituem, ao mesmo tempo, como veremos, uma superação da própria problemática

historicista, ainda que ele continue a reivindicá-la. Uma superação, bem entendido, que se

encontra no centro de sua incorporação da obra de Walter Benjamin.

Uma expressão interessante da defesa crítica que Löwy fazia da perspectiva

lukacsiana/mannheimniana (destacando o vínculo entre conhecimento e posição social,

simultaneamente à afirmação da possibilidade da verdade objetiva) pode ser encontrada em sua

interpretação, à época, sob o ponto de vista das questões da sociologia do conhecimento, do

marxismo dos autores da Escola de Frankfurt (EF). No artigo “Le marxisme rationaliste de

l'École de Francfort”, publicado em 1982 na revista L’Homme et la société (e depois

reproduzido como capítulo do seu principal livro sobre a sociologia do conhecimento), Michael

Löwy interroga os autores da EF (Marcuse, Horkheimer e Adorno) à luz da óptica de uma

sociologia marxista do conhecimento, analisando não apenas a relação entre teoria crítica e

ponto de vista de classe, senão também os critérios segundo os quais seria possível atingir o

conhecimento da verdade objetiva.

Para Löwy, ao se afastarem tanto da perspectiva lukacsiana (do marxismo como

expressão do ponto de vista do proletariado revolucionário) quanto da sociologia

mannheimniana do conhecimento (a qual julgavam por demais relativista), Marcuse,

Horkheimer e/ou Adorno não poderiam senão dar uma fundamentação ético-racional “abstrata,

ahistórica e socialmente vaga” à teoria que estavam produzindo. Ao contrário de Lukács em

HCC, esses autores não assentam a superioridade da teoria crítica – ou do marxismo – na busca

pela verdade objetiva, no ponto de vista do proletariado (que decorre, por sua vez, da sua

situação objetiva de classe), mas sim na superioridade ética (“segundo critérios

transhistóricos”) do objetivo para o qual o proletariado luta: a sociedade socialista.

Max Horkheimer, por exemplo, embora se questione, no célebre texto “Teoria

tradicional e teoria crítica”, de 1937, sobre a relação entre intelectuais críticos e movimento

operário revolucionário – de tal forma que se trata, na opinião de Löwy, do seu mais texto em

que mais se aproxima da perspectiva lukacsiana –, sustenta que a teoria crítica não pode padecer

de uma “dependência servil em relação ao existente”, mesmo ao existente conforme a óptica

(frequentemente distorcida) do proletariado. Dada a situação concreta do proletariado, o único

fundamento sólido para a crítica do capitalismo seria a razão, mediante a qual se poderia lutar

por uma “organização racional da atividade humana”. Essa “orientação racionalista abstrata”,

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como a denominou Löwy, estaria presente até mesmo em Dialética do Esclarecimento, em que

Horkheimer, ao lado de Adorno, defende como única resposta adequada ao avanço da

racionalidade instrumental a autorreflexão da razão (razão objetiva) sobre seus próprios

limites193.

Aos olhos de Michael Löwy, ao se esquivar da espinhosa questão do vínculo entre

objetividade no conhecimento e posição social de classe, o que se explica em grande medida

por suas condições de intelectuais críticos independentes tanto da socialdemocracia quanto do

stalinismo (e do trotskismo, por má associação), os autores da EF, cujo “engajamento partidário

profundo e autêntico pela revolução” é destacado de modo surpreendentemente exagerado,

jamais conseguiriam romper a barreira de um “marxismo racionalista” sem ancoragem

histórico-social194. Mas, quer eles reconheçam quer não, diz Löwy, “suas perspectivas teóricas

estavam enraizadas na luta de classe do proletariado pelo socialismo”195. A não compreensão

(talvez por um impedimento da situação objetiva em que estavam) desse vínculo constitui

exatamente o limite mais evidente da teoria crítica tal como formulada pelos autores da EF.

Embora publicado em 1982, este artigo, assim como o restante dos trabalhos sobre

sociologia do conhecimento (como o livro Paysage de la vérité, publicado em 1985), pertence

a uma etapa de sua trajetória que, naquele mesmo momento, Löwy estava se preparando para

superar. Em 1979, ele publicou, por exemplo, a coletânea Marxisme et romantisme

révolutionnaire: essais sur Lukács et Rosa Luxemburg, primeiro esboço do que seria, mais

tarde, sua reformulação (em companhia de Robert Sayre) da abordagem marxista do

romantismo. Na longa introdução do livro, publicado como artigo dois anos depois em inglês

na revista norte-americana Telos, Löwy delineia uma definição global do fenômeno romântico,

definindo-a, porém, como uma “hipótese de trabalho” a ser melhor desenvolvida196. Nesse

texto, Löwy sublinhava o “hermafrodismo ideológico” e a ambivalência do romantismo, que

pode ir da esquerda à direita do espectro político.

Seja como for, ao final da introdução, Michael Löwy defende sem ambiguidade, talvez

pela primeira vez de forma tão explícita, a atualidade (no sentido benjaminiano) da crítica

romântica da modernidade capitalista, atualidade que seria potencializada pela atual etapa do

progresso burguês: “Nesse momento, não apenas a humanidade se encontra, graças ao

193 Michael Löwy, “Le marxisme rationaliste de l'École de Francfort”, L’Homme et la société, n.65/66, 1982, p.55. 194 Idem, p.64. 195 Idem, p.59. 196 Michael Löwy, Marxisme et romantisme révolutionnaire: essais sur Lukács et Rosa Luxemburg. Paris: Le

Sycomore, 1979, p.9; e “Marxism and Revolutionary Romanticism”, Telos, n.49, 1981, pp.83-95.

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‘progresso técnico’, sob a ameaça permanente de um holocausto atômico, mas também nos

aproximamos, a passos de gigante, de uma ruptura catastrófica do equilíbrio ecológico do

planeta [...]. Daí a importância, a nosso ver, de reencontrar a dimensão romântico-

revolucionária do marxismo e enriquecer a perspectiva socialista do futuro com a herança

perdida do passado pré-capitalista, com o tesouro precioso dos valores qualitativos

comunitários, culturais, éticos e sociais afogados pelo capital, nas ‘águas glaciais do cálculo

egoísta’”197.

A reelaboração da história aqui implicada, prefigurando a virada benjaminiana da sua

obra, subverte os princípios de todo progressismo historicista, mesmo aquele em sua versão

mais sofisticada. Doravante, em nome da crítica da modernidade capitalista, passado e presente

são colocados em diálogo, ao modo de uma “imagem dialética”, na qual o vínculo com um

ponto de vista de classe não é imediato: entre teoria e prática esboça-se, assim, um espaço para

a imaginação crítica necessária para a renovação do marxismo como crítica radical da

modernidade. A recuperação do romantismo em prol da perspectiva revolucionária constitui

parte dessa reativação da dimensão imaginativa (utópica) da crítica marxista do capitalismo.

Desde então, e ainda mais depois de sua incorporação ativa de Walter Benjamin (que

surpreendentemente ainda não é mencionado, nem no texto sobre a EF e tampouco em

Marxismo e romantismo revolucionário), o ponto de vista do proletariado, com sua rigidez

lukacsiana e pouco operatória numa época de refluxo revolucionário, cede lugar ao “ponto de

vista dos vencidos”, do passado e do presente, quer dizer, ao ponto de vista dos “oprimidos”, o

que evidentemente inclui o proletariado, mas busca articulá-lo a um conjunto de outras frentes

de luta (e de percepção e conhecimento específicas do real).

No prefácio à reedição de Paysage de la vérité na França, em 2012, desta vez com o

nome “brasileiro”, Les aventures de Karl Marx contre le baron de Münchhausen. Introduction

à une sociologie critique de la connaissance, o próprio Löwy sustenta que, para ser

“atualizado”, o livro precisaria ser reescrito à luz também das novas questões

“epistemológicas”, digamos assim, que emergiram no âmbito das ciências sociais, tais como a

questão de um possível ponto de vista específico nas teorias latino-americanas da

descolonização (Aníbal Quijano e Enrique Dussel), a questão, suscitada por algumas autoras

feministas como Christine Delphy, de um ponto de vista cognitivo das mulheres (resultantes de

197 No Brasil este texto foi publicado com o título “A crítica romântica e a crítica marxista da civilização moderna”,

e inserido na coletânea Romantismo e Messianismo: ensaios sobre Lukács e Benjamin. São Paulo: Edusp; Editora

Perspectiva. 1990. p.33.

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sua situação social de – dupla – opressão), ou dos párias em geral. De uma forma ou de outra,

essas novas reflexões levantaram a problemática do que se convencionou chamar de

“interseccionalidade” ou “interconexão” das dominações e, portanto, da resistência (não apenas

prática, mas também teórico-epistemológica) a elas. Ressurge, então, a questão de qual o “ponto

arquimédico” que melhor permite a apreensão objetiva da realidade social. Para Michael Löwy,

agora, mais do que uma condição social particular por si só, apenas um “universalismo

estratégico” (como o denomina Eleni Varikas) pode servir como horizonte regulador para que

a dominação sofrida pelos oprimidos de todos os matizes seja pensada na sua interdependência,

tornando possível, assim, a teoria e a prática de um outro mundo no qual caibam todos os

mundos198.

1.5. Virada benjaminiana e “sociologia da religião”

Na trajetória de Michael Löwy, a virada decisiva ocorre ao final da década de 1970,

mais precisamente em 1978/79, anos em que um conjunto de acontecimentos coincidem, tal

como um “acaso objetivo” (conforme diriam André Breton e os surrealistas), provocando uma

inflexão incontornável no seu itinerário, tanto do ponto de vista teórico-intelectual quanto

institucional-acadêmico, tudo isso num contexto no qual a Europa já não vivia a mesma

efervescência política (de esquerda) do início da década. Sem grandes perspectivas no interior

do CETSAS, embora se entendesse bem com Lefort, Löwy viu-se abrir, inesperadamente, uma

nova oportunidade, no exato momento em que a transformação na sua forma de interpretar o

marxismo o tornava mais disponível para o novo campo temático: convidado por Jean Séguy,

do Grupo de Sociologia das Religiões (GSR), para expor o capítulo acerca do “Círculo Max

Weber de Heidelberg” de sua tese sobre Lukács, Löwy não apenas aceitou o convite como

acabou se tornando, via Séguy, membro permanente do grupo. Ainda em 1978, Löwy publicou

na revista editada pelo GSR, e até hoje existente, Archives de sciences sociales des religions

(revista na qual o intelectual nascido no Brasil publicaria a maior parte dos seus trabalhos sobre

o tema), o artigo “Idéologie révolutionnaire et messianisme mystique chez le jeune Lukács

(1909-1919)”, uma síntese de algumas partes da tese199.

198 Michael Löwy, “Préface”. In: Les aventures de Karl Marx contre le baron de Münchhausen. Introduction à

une sociologie critique de la connaissance. Paris: Syllepse, 2012, p.7-12. 199 Michael Löwy, “Idéologie révolutionnaire et messianisme mystique chez le jeune Lukács (1909-1919)”,

Archives de sciences sociales des religions, n.45, 1978.

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Sentindo-se acolhido, e respeitado na sua abordagem resolutamente marxista da cultura

e/ou dos intelectuais, Löwy integrou-se ao grupo, “entrou” em sociologia da religião, como ele

diz, e de imediato pôs-se a preparar suas primeiras pesquisas no novo domínio acadêmico.

Quase simultaneamente, em 1979, e daí o núcleo do “acaso objetivo” em questão, Michael

Löwy “redescobre”, e incorpora ativamente, a obra de Walter Benjamin, cuja articulação entre

marxismo e teologia, na forma de um messianismo revolucionário na contramão do progresso

capitalista, o fascina e lhe abre novas possibilidades intelectuais e mesmo acadêmicas. “É a

partir de Benjamin que eu descubro o judaísmo e a religião”, disse Löwy200. Discípulo de

Goldmann, Michael Löwy não dera atenção, até então, à sociologia da religião esboçada pelo

mestre. Foi apenas depois de se incorporar ao GSR, e de descobrir Benjamin, que Löwy pôde

apreciar em toda a sua significância os estudos goldmannianas sobre a relação entre concepções

teológicas, culturais e filosóficas. Não constitui por isso um acaso que a sua primeira pesquisa

na condição de “sociólogo da religião”, que agora se associava ao sociólogo da cultura/dos

intelectuais que ele jamais deixaria de ser, tenha sido exatamente sobre intelectuais judeus

messiânicos anticapitalistas (marxistas e/ou anarquistas/libertários) da Europa Central de

cultura alemã, uma constelação intelectual em cujo núcleo, no “cruzamento dos caminhos”,

encontra-se a figura inclassificável de Benjamin.

Com a ideia geral do projeto em mente, Michael Löwy foi a Israel encontrar-se com

Gershom Scholem (um dos seus novos “objetos” de pesquisa) em dezembro de 1979, a fim de

conferir a opinião do filósofo e teólogo judeu sobre o assunto. Segundo relata, “o contato com

Scholem muito me impressionou e encorajou”201. Em 1980, Michael Löwy publicou o artigo,

na revista New German Critique (EUA), “Jewish Messianism and Libertarian Utopias in

Central Europe”, depois republicado em versão mais ampla e aprofundada na revista Archives

de sciences sociales des religions, agora já como membro do GSR, com o mesmo título, apenas

acrescentando o recorte temporal entre parênteses “(1905-1923)”. A estes seguiram-se, a partir

de então, vários outros textos sobre aspectos da mesma temática geral, culminando na

publicação, em 1988, de Redenção e Utopia. O judaísmo libertário na Europa Central. Um

estudo de afinidade eletiva, com o qual fechava sua primeira dezena de livros, exatamente no

ano em que completara meio século de vida202.

200 Ângela de Castro Gomes e Daniel Aarão Reis, “Um intelectual marxista: entrevista com Michael Löwy”, op.cit.,

p.182. 201 Témoignages GSR, Michael Löwy, Paris, le 5 mai 2014, propos recueillis par Pierre Lassave (manuscrito). 202 Michael Löwy, “Jewish Messianism and Libertarin Utopias in Central Europe”, New German Critique, Ithaca

(Cornell University), n.20, 1980; “Messianisme juif et utopies libertaires em Europe centrale (1905-1923)”,

Archives de sciences sociales des religions, n.51.1, 1981. E Michael Löwy, Rédemption et utopie. Le judaïsme

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Neste trabalho – muito lido na França e nem tanto no Brasil, sem dúvida pelas diferenças

em que a “questão judaica” se apresenta nos dois países –, Michael Löwy analisa as “afinidades

eletivas” que se desenvolveram entre messianismo judaico e utopias libertárias e/ou

“marxizantes”, em um tempo (o primeiro quarto do século XX) e espaço (a Europa Central de

cultura alemã) determinados, marcados por um avanço significativo da industrialização

capitalista que se chocava com os interesses e valores (e privilégios) dos intelectuais e do

mandarinato universitário. Em torno de Walter Benjamin, expressão “mais ousada e radical”

dessa articulação utópica entre universos religiosos e políticos, Löwy passou em revista

inúmeros intelectuais e/ou escritores judeus que, de uma forma ou de outra, mais profanos ou

mais religiosos, anarquistas ou protomarxistas, manifestaram algo dessa mesma atmosfera (ou

“estrutura de sentimento”, para dizer como Raymond Williams), distinguindo-os em três

“vertentes”: 1) os judeus religiosos anarquizantes, como Franz Rosenzweig, Martin Buber e

Gershom Scholem; 2) os anarquistas religiosos judaizantes, como Gustav Landauer, Franz

Kafka e Benjamin; 3) os judeus assimilados, ateu-religiosos, anarco-bolchevistas, como o

escritor expressionista Ernst Toller e os jovens Ernst Bloch e Georg Lukács. Para Löwy,

malgrado suas diferenças, esses intelectuais definem-se como um grupo porque “suas obras

contêm, sobre um fundo cultural neorromântico e em uma relação de afinidade eletiva, uma

dimensão messiânica judia e uma dimensão utópico-libertária” – condições cuja amplitude se

revela na pluralidade e heterogeneidade de autores analisados203.

Em suas expressões mais consequentes, esses autores deram origem a uma “nova

concepção da história”, a um só tempo romântica e messiânico-utópica, na qual memória do

passado e esperança de futuro são mobilizados contra as inúmeras ideologias do progresso que,

desde o racionalismo iluminista, constituíram-se no fundo comum de tendências variadas do

pensamento social e político, desde alguns conservadores à socialdemocracia, dos liberais ao

stalinismo. Na contramão dessa “concepção estritamente quantitativa da temporalidade”,

tratava-se, para esses autores, explícita ou implicitamente, de se cultivar uma nova percepção,

qualitativa e não-evolucionista, do tempo histórico, na qual o “retorno” ao passado significa

um passo na direção da prospecção de uma utopia voltada para o futuro. Walter Benjamin

constitui, aqui, uma vez mais, o “máximo de consciência possível”, por assim dizer, dessa nova

percepção da história, concentrando em si as tensões entre teologia judaica e materialismo

libertaire en Europe centrale. Une étude d’affinité élective. Paris: PUF, collection « Sociologie d’Aujourd’hui »,

1988. Dentre os artigos que precederam o livro, dois deles foram publicadas nos Archives...: “Pour une sociologie

de la mystique juive: à propos et autor du Shabattai Sevi de Gershom Scholem”, n.57.1, janeiro-março 1984” e

“Le messianisme romantique de Gustav Landauer”, n.60.1, julho-setembro 1985. 203 Michael Löwy, “Messianismo judeu...”, op.cit., 1990, p.142.

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histórico, comunismo e anarquismo, romantismo e revolução, messianismo místico e utopia

profana.

Ora, conforme se poderá ver mais adiante, essa primeira interpretação de Benjamin por

Löwy, inserindo-o no âmbito dessa constelação mais ampla de intelectuais judeus

“messiânicos”, “romântico-revolucionários”, servirá de base aos seus estudos subsequentes

sobre o (e inspirados pelo) filósofo alemão. Aos olhos de Löwy, tal qual desenvolverá em

Alarme de incêndio (2002), a originalidade e, mais, a atualidade da (anti) filosofia da história

de Benjamin, em especial daquela posterior à adesão ao marxismo (1925), reside na articulação

iconoclasta por ele realizada entre marxismo (ou o “materialismo histórico”, como denominara

nas teses de 1940), romantismo e messianismo, abrindo um flanco por meio do qual se perfila

uma nova concepção marxista das utopias – aí incluídas as utopias religiosas.

Não surpreende que, após suas pesquisas sobre os intelectuais judeus messiânicos, Löwy

tenha se dedicado, na segunda metade da década de 1980, ao estudo do processo de

radicalização política dos cristãos/católicos latino-americanos a partir dos anos 1950,

configurando o que ele denominou como “cristianismo de libertação”, da qual a conhecida

“teologia da libertação seria a sua face mais visível”. O mesmo impulso messiânico dos

intelectuais judeus utópico-libertários está presente, segundo Löwy, no cristianismo de

libertação, igualmente envolto numa tentativa de resgate do passado (cristianismo primitivo e

igualitário ou a revolta dos camponeses de Thomas Münzer) a fim de lutar por outro futuro, em

oposição à modernidade capitalista do presente204.

Mais ainda do que a constelação intelectual judaico-messiânica da Europa Central da

qual o próprio Benjamin fazia parte, o cristianismo de libertação – que era, ademais, um

fenômeno ainda atual, vide a participação dos católicos de esquerda na revolução sandinista em

1979 – permitia a Löwy melhor apreender a aliança benjaminiana entre teologia e materialismo

histórico. Para Löwy, essa junção existiu, de fato, na América Latina, tornando possível

compreender esse aspecto central da obra de Benjamin (o messianismo revolucionário) que,

para boa parte da esquerda intelectual europeia “protoiluminista”, restava incompreensível.

Assim, ao mesmo tempo em que realiza uma leitura “benjaminiana” do cristianismo de

204 Cf. Erwan Dianteill, “Les trois constellations Löwy. Contribution à une sociologie benjaminienne de la

connaissance”. In: Vincent Delecroix e Erwan Dianteill, Cartographie de l’utopie. L’œuvre indisciplinée de

Michael Löwy. Paris: Sandre Actes, 2011, p.57.

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libertação, a experiência concreta da América Latina confere-lhe melhores condições para

compreender a perspectiva proposta pelo autor das Passagens.

Com essa imersão na dimensão utópica das religiosidades (judaísmo e cristianismo),

Michael Löwy reatava, além do mais, os fios desencapados de seus vínculos biográficos: os

meios judaicos na Europa Central, de onde viera sua família, e a tradição revolucionária do

Brasil e da América Latina, lugar no qual nascera e com o qual, especialmente a partir dos anos

1980, ou seja, em sua fase pós-descoberta de Benjamin, restabelecera uma relação de grande

proximidade política, intelectual e sentimental. Se, até então, Löwy jamais deixara de nutrir

interesse pelo Brasil e pela América Latina, acompanhando, na medida do possível, o cenário

político na região, seria a partir dos anos 1980 que ele colocaria no centro de suas preocupações

intelectuais a crítica singular da modernidade capitalista que se realizou no subcontinente, em

reação ao caráter “problemático”, para dizer o mínimo, do “progresso” que aqui ocorrera –

crítica que pode ser visualizada em autores e/ou movimentos diferentes, de José Carlos

Mariátegui aos neozapatistas contemporâneos, passando pela teologia da libertação, pelo MST

brasileiro e pelos movimentos indígenas na Bolívia, Peru e/ou Equador.

Em 1980, Löwy organizou a coletânea de textos O marxismo na América Latina de 1909

aos nossos dias, para a qual ele redigiu um longo prefácio, em que faz uma leitura do marxismo

na região bastante inspirada na ótica “trotskista”, destacando aqueles autores ou correntes que,

na contramão do etapismo identificado aos PCs, foram capazes de interpretar o subcontinente

latino-americano à luz do “desenvolvimento desigual e combinado” do capitalismo global, com

sua divisão e entrelaçamento necessários entre países centrais e subalternos. Já havia, aqui, um

elogio de autores como Mariátegui, considerado, ao lado do cubano Julio Antonio Mella, como

o fundador do marxismo latino-americano, bem como a menção positiva à teologia da

libertação. Mas seria apenas a partir dos anos seguintes que Löwy daria maior atenção aos

fenômenos de crítica (profana ou religiosa) da modernidade e do progresso na região, que

resgatam a memória dos “vencidos” do passado como fonte de inspiração para as lutas do

presente, ilustrando algo da “imagem dialética” concebida por Benjamin.

Desde então, importava a Löwy, sem renegar a tradição do trotskismo ou a tradição

marxista “clássica” - à qual ele ascendeu, bem entendido, com a ajuda de um marxista

“ocidental” como Lukács -, analisar as mais diferentes formas de críticas da modernidade,

almejando estabelecer alguns parâmetros, à luz de um marxismo crítico cada vez mais

heterodoxo, para descobrir as possíveis “afinidades eletivas” entre cosmovisões originalmente

distintas que reúnem em comum uma crítica (explícita ou implícita) radical da modernidade

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burguesa. Em um contexto no qual, na Europa, a esquerda radical começa a confrontar os

dilemas e encruzilhadas de uma ascensão revolucionária que não veio, jogando por terra as

esperanças em um novo “Outubro”, dessa vez em países centrais do sistema, Michael Löwy

distancia-se da abordagem marxista “clássica” dos fenômenos ideológicos e/ou religiosos, que

tendem a reduzi-los à condição de expressão de uma posição social e/ou econômica, tal como

o “ponto de vista do proletariado” lukacsiano.

O espectro de Benjamin revela-se aqui novamente presente. O filósofo alemão, com sua

inabitual, instável e ambivalente articulação entre marxismo, romantismo e messianismo

libertário, constitui a expressão mesma, condensada em uma só figura intelectual, desse

processo de “afinidades eletivas” entre visões de mundo distintas, quando não antagônicas.

Benjamin dava-lhe assim, a Michael Löwy, um parâmetro por meio do qual, partindo de uma

certa leitura do marxismo, tornar-se-ia possível colocá-lo em diálogo crítico com outras formas

de crítica da modernidade, ajustando um caminho, por assim dizer, para um projeto de

renovação do marxismo, projeto tipicamente benjaminiano que ele compartilhará, no

fundamental, com Daniel Bensaïd.

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2. Um “intelectual orgânico” da extrema-esquerda: Daniel Bensaïd ou o primado da

política leninista

2.1. Infância e adolescência toulouseanas: do PCF ao “trotsko-guevarismo”

Desde os anos 1960, até a sua morte em 2010, o percurso político e intelectual de Daniel

Bensaïd sintetiza, em alguma medida, alguns dos caminhos tomados por uma parcela

importante da esquerda anticapitalista francesa, europeia e, até certo ponto, internacional. Mas,

se a sua trajetória apresenta similaridades notáveis com outros intelectuais da esquerda

revolucionária, ela contém algo de singular: dirigente político, “homem de partido”, por assim

dizer, no sentido rigoroso do termo (à diferença dos “compagnons de route” tão frequentes na

vida intelectual francesa), Bensaïd era igualmente um intelectual refinado, um escritor

brilhante. Mesmo quando estava na direção das organizações das quais fez parte, Bensaïd se

distinguia por sua capacidade de analisar teoricamente, à luz dos clássicos do marxismo (assim

como de marxistas contemporâneos como Mandel ou Lefebvre), os aspectos mais cotidianos,

concretos, da prática política da extrema-esquerda.

Filho de um pai judeu de Mascara (Argélia), de origem pobre, e de uma mãe proveniente

de uma família republicana de esquerda de Blois, pequena cidade da região do Val de Loire, na

França, Daniel Bensaïd nasceu em Toulouse no dia 25 de março de 1946. Do lado da família

materna, “on chantait rouge”: seu avô, Eugène Louis Hippolyte Jules, trabalhava na passagem

da Main-d’Or, no coração do faubourg “rebelde” Saint-Antoine, bem ao lado da Bastille,

vivendo de perto, com apenas 14 anos, os acontecimentos da Comuna de Paris em 1871. As

histórias sobre o avô, com quem pouco conviveu, povoavam a imaginação do menino ainda

pequeno, mas já tomando parte no interior de uma forma de sociabilidade que seria bastante

importante nas suas escolhas políticas e intelectuais futuras. Além do avô longínquo, quase toda

a família (como, por exemplo, seu primo Jean, que o levava nos cursos de formação da CGT)

continuava permeada por uma certa atmosfera comunista latina, bastante afastada da frieza

anglo-saxã – ou mesmo, em certos casos, parisiense.

Na família do pai, por seu turno, “o peso da herança ideológica era leve”. Trabalhando

como atendente de um café durante toda a sua adolescência, seu pai tentou ser boxeador, então

uma das raras possibilidades de promoção social para os judeus da África do Norte. Campeão

amador da região, ele se viu forçado, porém, a interromper sua carreira, em consequência da

incompatibilidade dos treinamentos com o trabalho noturno. Bem jovem, o próprio Daniel

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Bensaïd chegou a participar, não por muito tempo, de algumas aulas de boxe, rapidamente

abandonadas em função de suas “mãos muito frágeis (mãos de intelectual!) para esse tipo de

exercício”, conforme sentenciara sua mãe206. Prisioneiro durante a segunda grande guerra, seu

pai conseguiu escapar em 1943, vindo a adquirir (“graças a um empréstimo”) um pequeno café

em Toulouse, desde então denominado “le Bar des Amis”. O pequeno Daniel Bensaïd observava

com muita curiosidade a “clientela popular” que frequentava o bistrô: de refugiados espanhóis

e antifascistas italianos, passando pelos operários, carteiros, ferroviários e pequenos

comerciantes, até os comunistas do PCF, que adotaram o café como lugar de seu encontro anual

preparatório. “O balcão do bistrô – escreve Bensaïd – foi minha primeira escola e meu primeiro

observatório sociológico”. Ele adorava escutar os relatos dos sobreviventes da guerra civil

espanhola ou dos antigos combatentes das Brigadas Internacionais. Na escola – da qual

“gostava muito” –, especialmente na sexta-série do ensino fundamental, Daniel Bensaïd se

aproximou de um jovem professor de francês, M. Le Bihan, maurrasiano e católico (mas não

antissemita), que indicava leituras extraescolares ao jovem infelizmente (para ele) atraído pelos

tentáculos da esquerda política.

Seria um pouco depois da morte do seu pai, vítima de um câncer, em 1960, que Daniel

Bensaïd – imerso em um “período de meditação mórbida”207 – tomaria conhecimento, através

de um amigo de escola, Bernard, do Manifesto Comunista. Em 1962, enfim, ele e mais alguns

amigos criam no liceu um círculo das Juventudes Comunistas (JC), a seção jovem do PCF, logo

após a brutal repressão pela polícia (deixando 9 mortos), no dia 8 de fevereiro de 1962, a uma

manifestação em Paris, convocada pelo PCF e outras organizações de esquerda, contra a guerra

da Argélia e contra Organisation de l'armée secrète (OAS), organização político-militar

defensora da presença francesa no país da África do Norte, no que ficou conhecido como a

tragédia do metrô Charonne, em referência à estação ao redor da qual ocorreu o fatídico

episódio. Na trajetória de Daniel Bensaïd, tratava-se de sua “entrada” – desde então sem

interrupção – na política, o que colocaria fim tanto à sua carreira futebolística quanto às suas

ambições teatrais.

206 Daniel Bensaïd, Une lente impatience. Paris : Stock, 2004, p.37. 207 Além da precariedade material, a morte do pai jogou Daniel (então com apenas 14 anos) em uma atmosfera

melancólica. Em uma lição de casa de janeiro de 1961, ou seja, seis meses após o falecimento do pai, Daniel

Bensaïd revela – em um exercício de ficção baseado no poema “Les fenêtres”, de Baudelaire –, uma sensibilidade

e uma capacidade de imaginação, assim como um estilo de escrita, inacreditáveis em se tratando de um jovem da

sua idade, em uma prosa carregada de melancolia e de descrença. Arquivos pessoais aos cuidado de Sophie

Bensaïd.

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A militância nas fileiras das JCs e da União dos Estudantes Comunistas (UEC)

perduraria até 1965, quando, sob o impulso da radicalização das lutas contra a guerra do Vietnã,

do rechaço em apoiar desde o primeiro turno a candidatura presidencial de François Mitterrand

e da crítica aos hábitos conservadores propalados no interior do PCF, o jovem Daniel é expulso

da UEC e das JCs, juntamente com a “corrente de esquerda” animada por Alain Krivine e Henri

Weber em Paris, uma das quatro tendências que existiam até então na UEC: 1) os fiéis ao

partido; 2) os “italianos”, de linha modernizadora, reformista de esquerda, daí o nome, e

antistalinista; 3) os jovens discípulos de Louis Althusser da École Normale Supérieure (ENS)

da Rua d’Ulm, futuros maoístas então ainda inteiramente dedicados ao rigor da “prática

teórica”; e, enfim, 4) os cerca de 500 membros da oposição de esquerda, os quais iriam fundar

as Juventudes Comunistas Revolucionárias (JCR), no dia 2 de abril de 1966 em Paris, em um

café da praça Saint-Sulpice208.

Socialmente composta por estudantes, a JCR era considerada, no início, mais

“guevarista” que propriamente “trotskista”. Daniel Bensaïd, em especial, sentia-se mais

próximo da perspectiva “guevarista”, defendida por Janette Habel, jovem militante que havia

viajado a Cuba e visto de perto as realizações concretas da revolução, do que dos tenores

trotskistas da direção: Alain Krivine209, Henri Weber et Gérard Verbizier210. No dia 19 de

outubro de 1967, dez dias após o assassinato do revolucionário argentino na Bolívia, a JCR

organizou na Mutualité um encontro (meeting) em homenagem a Che Guevara, com a presença

de mais de 1500 pessoas em torno de uma tribuna composta por Ernest Mandel, Maurice

Nadeau, Alain Krivine et Janette Habel (cujo verdadeiro nome era Jeannette Pienkny), a qual

“pronuncia um discurso que emociona a sala”211. Segundo Bensaïd, que foi eleito para a direção

da JCR no primeiro congresso da organização realizado em Paris em março de 1967, no âmbito

208 Cf. V. Faburel, « La LCR, avril 1966 – juin 1968 », mémoire de maîtrise, Université de Paris I, juin 1988. Além

dos estudantes expulsos das JCs e da UEC, havia também alguns jovens expulsos dos Estudantes Socialistas

Unificados, a organização de juventude do PSU. Cf. Florence Joshua, De la LCR au NPA (1966-2009). Sociologie

politique des métamorphoses de l’engagement anticapitaliste, Thèse soutenue à Paris (Science Po), 2011. 209 Os irmãos de Alain, Jean-Michel e seu gêmeo Hubert Krivine já haviam aderido a IV Internacional desde o fim

dos anos 1950. O próprio Alain supostamente apenas ficou sabendo do trotskismo dos irmãos em meados da

década, mais ou menos na época de fundação da LCR. Cf. Alain Krivine, Ça te passera avec l’âge. Paris: Flammarion, 2006, p.23. 210 Daniel Bensaïd escreveu uma pequena nota biográfica de Gérard Verbizier após sua morte na rubrica « Os

nossos » do jornal Rouge, n.2076, 2 septembre 2004. Disponível em: http://danielbensaid.org/Gerard-de-

Verbizier-Verjat?lang=fr. 211 Alain Krivine, Ça te passera avec l’âge, op.cit., p.94. De acordo com Hervé Hamon e Patrick Rotman: “A JCR

[...] organizou na Mutualité uma noite de adeus na qual a emoção foi comovente no momento em que os

participantes cantavam, na surdina, o Chant des martyrs. Mais de um aprendiz bolchevique se emocionou

escutando Jeannette, cuja fala era interrompida por breves soluços. Hervé Hamon et Patrick Rotman, Génération

I, op.cit., p.384.

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da atmosfera de radicalização terceiro-mundista da época, “Che era nosso melhor antidoto à

mística maoísta”. Em 1967, a JCR organiza a distribuição, com a ajuda de François Maspero,

de 5000 exemplares da “Mensagem do Che à Tricontinental213.

Ainda em Toulouse, os anos de “cursos preparatórios” (espécie de cursinho pré-

graduação), entre 1964 e 1966, foram decisivos na formação intelectual e política do jovem

Daniel Bensaïd. Recolhendo as sobras do festim parisiense, é com imensa curiosidade

intelectual e inquietude política que Daniel e seus colegas leem os recém publicados opúsculos

althusserianos, Pour Marx e Lire le Capital, este último uma coletânea com textos de Althusser

e seus discípulos diretamente resultantes dos debates do grupo de discussão d’O Capital

realizado na ENS. Ao mesmo tempo em que foram impactados pela ambição da empreitada

althusseriana, que almejava nada menos do elevar o marxismo à condição de ciência baseada

na descoberta do “continente histórico”, Daniel Bensaïd e os demais jovens toulouseanos se

indagavam sobre os impasses políticos de tal perspectiva, cuja ênfase nas estruturas parecia

deixar pouco espaço à intervenção político-revolucionária que eles, recém chegados à vida

militante, estavam dispostos a construir. Em Toulouse, ao lado de Marx e Lênin, eles liam

Marcuse, Korsch, Lukacs, Sartre, Goldmann, Lefebvre e até mesmo Wilhelm Reich.

É nesse contexto que, no início de 1966, Daniel Bensaïd desembarcou na estação de

Austerlitz, em Paris, a fim de estudar filosofia na École Normale Supérieure (ENS) de Saint-

Cloud, para a qual havia sido aprovado, e tornar-se, como ele dirá, um “intermitente do

conceito”, encurralado em uma “no man’s land” entre os fiéis à ortodoxia do PCF e os

adoradores do Grande Timoneiro chinês. Membro do círculo “sociophilo” da JCR, Bensaïd

viveria em Paris ao lado de Martine (sua companheira, na época), e do casal de amigos Alain

Brossat e Denise Avenas. A célula se reunia na casa de David Rousset, pai do jovem Pierre

Rousset, e contava com a participação – além de Daniel e Pierre – de Henri Weber, Dominique

Mehl, Guy Hocquenghem, dentre outros e outras.

Em 1967, com o diploma em mãos, Daniel Bensaïd e Alain Brossat decidem, juntos, se

inscrever no mestrado em filosofia na Universidade de Nanterre, sob a direção de Henri

Lefebvre, que acolhe os dois jovens “trotsko-guevaristas” mais preocupados com o

desenvolvimento de sua organização política do que com os rituais acadêmicos. Enquanto

Brossat propusera como tema a noção de “changement de terrain” em Althusser e Foucault,

213 Jean-Paul Salles, La Ligue communiste révolutionnaire (1968-1981). Instrument du Grand Soir ou lieu

d’apprentissage ?, Presses Universitaires de Rennes, 2005, p.48.

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Bensaïd escolhera, como “objeto” de pesquisa, “inspirado por um sexto sentido político”,

segundo ele (sem muita modéstia, aliás), a noção de crise revolucionária em Lênin214. No

campus de “Nanterre-la-folie”, a JCR estava bem implantada, sendo o grupo político

organizado mais importante na Universidade, com cerca de 25 militantes e 15 simpatizantes215.

Na esteira das solidariedades com as lutas dos povos do terceiro-mundo, a JCR

organizou-se de imediato em torno da luta contra a intervenção americana no Vietnã, no quadro

dos “Comitês Vietnã Nacional” (CVN) que ela ajudou ativamente a fundar, no dia 30 de

novembro de 1966, ao lado de personalidades como Laurent Schwarz, Pierre Vidal-Naquet e

Jean-Paul Sartre216. A luta contra a guerra do Vietnã significou, para a geração de jovens que

ensaiava os primeiros passos no militantismo de esquerda, especialmente após 1965, um

verdadeiro batismo militante, constituindo-se no início de um processo de radicalização da qual

os acontecimentos de maio de 68 foram o momento culminante. Entre 1965 e 1968, a luta contra

a guerra torna-se um “núcleo de mobilização”, impulsionando uma forma de socialização e

experiência política cuja radicalidade ultrapassava pela esquerda o PCF, o que reavivava ainda

mais as lembranças da moderação deste último no momento da guerra da Argélia217. A luta

contra a guerra na Indochina servia, além do mais, para reatar os laços entre os jovens recém

entrados na militância e a geração imediatamente anterior, formada na luta pela independência

da Argélia. Seria exatamente na junção entre essas duas “gerações” que se formaria a JCR:

enquanto os irmãos Krivine, um pouco mais velhos, socializaram-se politicamente no âmbito

da solidariedade ativa à luta dos argelinos, a geração de Bensaïd e Henri Weber o fez na luta

contra a guerra do Vietnã. A ascensão de uma esquerda revolucionária que, por fora do PCF,

irrompeu em 1968, começara, na verdade, a ser gestada a partir de 1965.

Não constitui um mero acaso o fato de que o estopim do que veio a ser maio de 68 (o

“movimento 22 de março” em Nanterre) tenha ligação direta com a luta contra a guerra. Em 20

de março de 1968, em mais uma “ação exemplar” impulsionada pela JCR e por simpatizantes,

diversos manifestantes quebraram e explodiram as vitrines de estabelecimentos norte-

americanos, tal como o American Express. A repressão policial foi bastante forte. A prisão de

214 Ainda que o tema não fosse muito acadêmico, para dizer o mínimo, Lênin tinha sido agraciado na época com

um certo lustro filosófico no campo intelectual francês, para o qual contribuíram Louis Althusser, que tinha

acabado de ministrar na Sorbonne sua conhecida conferência sobre o revolucionário russo, intitulada “Lénine et

la philosophie”, além do próprio Henri Lefebvre, que havia publicado La pensée de Lénine (Paris: Éditions Bordas)

em 1957. 215 Jean-Paul Salles, La Ligue..., op.cit., p.50. 216 Sobre os CVN, cf. Nicolas Pas, “Six heures pour le Viêtnam. Histoire des Comités Viêtnam français 1965-

1968”, Revue historique, n. 613, 2000, pp.157-185. 217 Jean-François Sirinelli, Les baby-boomers. Une génération 1945-1969. Paris: Hachette, 2003, p.240.

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vários jovens durante o ocorrido – dentre os quais Xavier Langlade, militante da JCR e

estudante em Nanterre – estimulou, como resposta, a ocupação, por cerca de 150 estudantes, do

prédio administrativo (reitoria) da Universidade: ali se originara o “movimento 22 de março”

(nome inspirado no “movimento 26 de julho”, dos revolucionários cubanos), fruto de uma

aliança entre a JCR, liderada por Bensaïd, e os anarquistas/libertários, liderados pelo estudante

alemão Daniel Cohn-Bendit, do grupo “Noir et Rouge”. O movimento se definia como anti-

imperialista (solidariedade aos povos indochineses e cubano), anti-burocrático (solidariedade

aos estudantes poloneses e da primavera de Praga) e anticapitalista (solidariedade aos operários

de Caen e de Redon).

Ao longo dos acontecimentos de maio de 68, seja em Nanterre ou no Quartier Latin, a

JCR e Daniel Bensaïd estavam presentes em todas as manifestações, ao lado de Daniel Cohn-

Bendit e dos libertários, inclusive na célebre noite das barricadas, do 10 ao 11 de maio, à

diferença de correntes como os “lambertistas” da Fédération Étudiante Révolutionnaire, que

abandonaram as barricadas, ou os maoístas da UJCML, que dela sequer participaram. Para

ambas as correntes, a luta dos estudantes, concentradas no Quartier Latin, e sob a forma

romântica das barricadas, não era senão uma reação “pequeno-burguesa”, em detrimento dos

verdadeiros desafios do movimento operário. Debilmente implantada entre os trabalhadores, a

JCR insistia, porém, na possibilidade do movimento estudantil estimular a radicalização do

movimento operário, por fora das direções “reformistas”, o que aconteceu, de fato, apenas em

escala muito limitada. Por isso, a maior greve geral da história da França – que se seguiu à

repressão dos estudantes nas barricadas – não originou uma verdadeira convergência entre os

movimentos estudantis e operários, no quadro da construção coletiva de um projeto

revolucionário. Isso apenas revelava algumas das dificuldades afrontadas pela JCR, de

composição social essencialmente estudante, mas tenazmente ligada à ideia do proletariado

como único sujeito efetivamente revolucionário.

Seja como for, os acontecimentos de maio de 68 modificaram substancialmente o

cenário da esquerda francesa, abrindo uma brecha, como já vimos, para a emergência e o

desenvolvimento dos “grupúsculos” de extrema-esquerda, seja os trotskistas, os maoístas ou

ainda os libertários. Maio de 68 inaugura, nessa perspectiva, um novo ciclo político para as

esquerdas revolucionárias, as quais, se não lograram subverter a hegemonia das direções

“reformistas”, ao menos conseguiram se afirmar como instrumentos políticos capazes de

intervir e influenciar, em certas circunstâncias, a dinâmica das relações de força no âmbito da

esquerda em geral. O desenvolvimento da JCR – que viu aumentar seus efetivos, passando de

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350 a cerca de 1000 militantes de abril a junho de 1968223 - constituía, ele próprio, uma amostra

do processo que estaria em curso e, além do mais, da importância e da visibilidade da pequena

organização nos acontecimentos que sacudiram Paris entre março e maio de 68.

No dia 12 de junho de 68, com o cenário já apaziguado e a ordem perfeitamente

restaurada, a JCR e mais doze outras organizações da extrema-esquerda (dentre as quais o “PCI

– minoritário”, trotskista) foram dissolvidas por um decreto do governo. Pierre Rousset, Isaac

Joshua e Alain Krivine, militantes da JCR, foram encarcerados. Daniel Bensaïd e Henri Weber,

por sua vez, procurados pela polícia sob a acusação de “reconstituição de liga dissolvida”,

encontraram refúgio no apartamento de Marguerite Duras, em Saint-Germain-des-Prés, a fim

de escrever à chaud um livro sobre os acontecimentos de maio para as edições Maspero (trata-

se do livro Mai 68, une répétition générale). De acordo com Herve Hamon e Patrick Rotman:

“Bensaïd e Weber se escondem chez Marguerite Duras, na rua Saint-Benoît. Eles consagram

seus dias à redação, para o editor François Maspero, de um livro sobre a primavera quente que

a França acabava de viver. O título é rapidamente definido: Une répétition générale [um ensaio

geral]. Nos fins de tarde, cansados de escrever que a próxima será a boa, eles descem, violando

as regras mais elementares de prudência, para tomar algo [...]. De vez em quando, os chefes

trotskistas se encontram no apartamento de alguma insuspeitável celebridade”224. Nesse livro

(Une répétition générale), publicado ainda em 1968, os autores visualizam a abertura, na

França, de uma situação pré-revolucionária, cujo desfecho positivo dependeria da existência de

um partido de vanguarda preparado para não perder o momento decisivo. Os acontecimentos

de maio-junho seriam apenas o início de uma radicalização do movimento operário e das

camadas populares, “transbordando” as organizações reformistas. Tratava-se, em outras

palavras, de um “ensaio geral”, que colocava na ordem do dia a necessidade inelutável de um

partido capaz de conferir expressão política à luta da classe trabalhadora pela tomada do

poder225.

Ainda em meados de 1968, os militantes da Liga retomam contato entre si, reagrupando-

se nos Círculos Vermelhos e através do jornal Rouge, cujo primeiro número é datado de 18 de

dezembro de 1968. “Aos stalinistas envoltos na bandeira tricolor, nós respondemos com Rouge,

223 Idem, p.53. 224 Hervé Hamon et Patrick Rotman, Génération 1, op.cit., p.576. 225 Em 1998, quer dizer, mais de uma década após sua adesão ao PS (tornando-se assistente de Laurent Fabius e,

mais tarde, senador e deputado europeu pelo partido), Henri Weber tenha escrito um livro no qual saúda a

contribuição de maio de 68 como uma virada “amplamente positiva” na direção de uma sociedade “mais liberal,

mais democrática”, com uma não negligenciável “modernização dos costumes”. Cf. Henri Weber, Que reste-il de

Mai 68 ?, Paris : Points Seuil, 1998.

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jornal de ação comunista”226, diziam os editores na apresentação do primeiro número,

financiado com os dinheiros repassados por Maspero aos coautores de Mai 68, ensaio geral227.

Em agosto de 1968, a maioria da direção da JCR (salvo os que estavam presos) se reencontrou

em Bruxelas para fazer o balanço das atividades nos meses anteriores. Para a maior parte dos

que ali estavam, maio havia demonstrado a necessidade de se reconstruir a organização, dessa

vez como uma verdadeira organização revolucionária, pronta a começar desde já os

preparativos para o sonhado novo Outubro.

Nos debates que precederam a fundação da nova organização, batizada de Liga

Comunista, a adesão (ou não) à IV Internacional era, sem dúvida, a questão mais polêmica.

Tratava-se do momento de se definir a favor ou contra a passagem a uma nova etapa, com a

abertura da organização aos “velhos”228 do Partido Comunista Internacionalista e a possível

integração a uma organização internacional. Embora todas autoproclamadas internacionalistas,

três posições emergiram nos debates preparatórios. A primeira, majoritária, defendida pelos

militantes que já eram membros do “PCI – minoritário” e da IV Internacional, notadamente A.

Krivine, H. Weber e G. de Verbizier. A segunda tendência, dita minoritária, era contra a adesão

imediata à IV: seus principais animadores, Henri Maler e Isaac Joshua, acabaram por deixar a

LC em 1971, fundando o grupo Révolution!229. A terceira posição, enfim, encabeçada sobretudo

por militantes parisienses, denunciava “o ponto de vista ultra-organizacional” ou o “fetichismo

organizacional” da corrente majoritária e da direção da IV. No final das contas, a adesão à IV

Internacional foi aprovada por 203 votos contra 46 contra e 1 abstençãp230.

Daniel Bensaïd fazia parte daqueles que, embora mantendo-se supostamente “a-

trotskistas”, acabaram por apoiar a posição da maioria, pela adesão à IV Internacional231.

Bensaïd sempre buscou reiterar seu papel de “independente” (mais guevarista que trotskista)

226 Rouge hebdomadaire, n.1, 18 septembre 1968. 227 Daniel Bensaïd, Une lente impatience, op.cit., p.86. 228 Em uma entrevista que nos concedeu em Port-Leucate, em agosto de 2014, na Universidade de Verão do NPA,

Alain Krivine utilizou essa expressão – os “velhos” – em referência aos antigos do PCI que fundaram com os

jovens da ex-JCR a Liga Comunista em 1969. Em certa medida, como veremos, esse tratamento parece revelar

uma certa desconfiança, da parte dos jovens saídos da atmosfera de radicalização “terceiro-mundista”, em relação

às antigas figuras do trotskismo francês. 229 As reservas de Henri Maler e Isaac Joshua, assim como de outros membros da Liga que aderiram ao grupo

Révolution!, em relação à IV Internacional, diziam respeito ao “formalismo dos “trotsko-triunfalistas” que

reduziriam o internacionalismo ao pertencimento a uma organização internacional. Além disso, eles tinham uma

abordagem mais positiva, comparativamente à maioria da Liga, sobre a revolução cultural chinesa. Bulletin

Intérieur de la LC, février 1971. Cf. Jean-Paul Salles, La Ligue communiste révolutionnaire, op.cit., p.102. 230 Jean-Paul Salles, La Ligue communiste révolutionnaire, op.cit., p.54, 55. 231 Os outros eram, em particular, Camille Scalabrino, Michel Recanati e Michel Rotman. Juntos, eles escreveram

o texto “Por que nós aderimos”. Cf. “De l’internationalisme à l’Internationale. Pourquoi nous avons adhéré…”,

in: Rouge, n. 24, 1969.

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nesse momento, talvez para reafirmar, a posteriori, sua repulsa em relação à tendência, presente

em algumas correntes trotskistas, de sacralizar os textos “clássicos”, em detrimento da análise

concreta das situações concretas. “Sem sentir a menor hostilidade em relação ao trotskismo (eu

tinha o maior respeito pelos veteranos que haviam atravessado sem renunciar a ‘meia-noite no

século’ evocado por Victor Serge), eu sentia que – a história apressando o passado – era

necessário virar a página, ir ao encontro do novo que estava nascendo, e considerar a

possibilidade de uma V Internacional inédita”232.

Era preciso, portanto, para Bensaïd, caminhar para além (integrando-a) da tradição

específica do trotskismo, cujos contornos foram forjados no contexto dramático da luta contra

o stalinismo. Em um momento em que se acreditava que a revolução estava na ordem do dia, o

jovem Daniel Bensaïd apostava que a ascensão do proletariado revolucionária tornaria

anacrônico o simples retorno a uma tradição determinada do movimento comunista, na medida

em que era mais do que nunca necessário restabelecer a unidade de todos os marxismos

revolucionários, qualquer que fosse a tradição política herdada. Mais do que trotskista, Bensaïd

professava à época, conforme se verá, um “ultraleninismo” colorido simbolicamente de um

guevarismo terceiro-mundista e tingido de uma certa tentação militarista.

2.2. Pós-68: o “leninismo apressado” e a tentação militarista

É nesse contexto que Daniel Bensaïd escreve, no final de 1968, sua dissertação de

mestrado sobre a crise revolucionária em Lênin. Ainda que (na medida do possível!) com um

perfil mais acadêmico – através da apropriação de autores como Gaston Bachelard, Freud,

Sartre, Poulantzas, além de Lukács, cujo dispositivo teórico é para ele central –, o texto estava

estreitamente vinculado aos debates preparatórios ao congresso de fundação da LC. A partir

das definições de Lênin em A falência da II Internacional e de Trotsky em sua História da

revolução russa, Bensaïd destaca, no texto, a importância do elemento subjetivo (o partido) na

emergência e na possibilidade de uma saída efetivamente revolucionária à crise, através da

construção e do desenvolvimento de mecanismos de duplo poder.

A intervenção subjetiva da classe revolucionária, ou seja, fundamentalmente do partido

– de uma vanguarda articulada em torno de uma vontade estratégica comum –, constitui o ponto

de diferenciação entre a simples situação revolucionária e uma verdadeira crise revolucionária,

232 Daniel Bensaïd, Une lente impatience, op.cit., 128.

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“a hora da verdade”. Para Lênin, conforme a interpretação de Bensaïd, a crise revolucionária

emerge quando a “diversidade não mensurável que funda a situação revolucionária é unificada

pela organização que a interioriza”. O núcleo da crise, assim, não reside mais “em um ou outro

dos elementos objetivos”, encontrando-se “transferida ao âmbito do sujeito que os sintetiza e

os interioriza”233. Deste ponto de vista, a crise revolucionária significa o “ponto de ruptura

privilegiado” no qual o proletariado irrompe revelando a “verdade latente” da história, a qual,

como a “velha toupeira” de Marx, assume a frente da cena.

Essa leitura “voluntarista”, por assim dizer, de Lênin, era explicitamente influenciada

por aquela de Lukács em História e Consciência de Classe, especialmente no ensaio

“Observações metodológicas sobre a questão da organização” (1922), no qual o partido é

compreendido como a encarnação da subjetividade capaz de estimular a ruptura com a

objetividade coisificada do capital e do Estado burguês. Em Bensaïd, tal perspectiva revelava-

se na sua concepção da passagem de um “sujeito teórico” tão ausente quanto abstrato (o

proletariado inscrito na estrutura do modo de produção, a “classe-em-si”) a um “sujeito

prático”, representado pela vanguarda, responsável por elevar a classe à condição de “classe-

para-si”, consciente do seu próprio papel na história. Para ele, o partido, “sujeito prático-

político” cuja ação ocorre no âmbito de uma formação social determinada, encarna e representa,

então, “não o proletariado em si, econômica, política e ideologicamente dominado, mas o

proletariado ‘para si’, consciente do processo de produção no seu conjunto e de seu próprio

papel nesse processo”234.

Por essa razão, a consciência política da classe só pode ser aportada, segundo Lênin (e

Bensaïd, à época), “de fora”. Em si mesma, entregue às suas próprias forças, “a classe operária

pode apenas alcançar uma consciência trade-unionista”, diria Lênin em Que fazer?

Espontaneamente, o proletariado não consegue ir além do terreno da luta econômica. O partido,

com seus “intelectuais orgânicos”, conforme afirmou Gramsci mais tarde, constitui, portanto,

o instrumento através do qual a “fração consciente do proletariado” acede à luta política

preparando o enfrentamento com o Estado burguês – o qual seria a “pedra angular da formação

social capitalista”235. O partido constitui a fusão do movimento operário e do socialismo. Assim,

como diz Lênin, “a luta dos operários não se torna luta de classe senão quando todos os

233 Daniel Bensaïd, La notion de crise révolutionnaire chez Lénine. Mémoire de maitrise en philosophie sous la

direction d’Henri Lefebvre, Université de Nanterre, 1968. Disponible : http://danielbensaid.org/La-notion-de-

crise-revolutionnaire?lang=fr, s/p. 234 Daniel Bensaïd, La notion de crise révolutionnaire chez Lénine, op.cit., s/p. 235 Idem, s/p.

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representantes de vanguarda do conjunto da classe operária de todo o país possuem a

consciência de formar uma só classe operária e começam a lutar não contra tal ou tal patrão,

mas contra a classe capitalista inteira e contra o governo que a sustenta”236.

Na ótica do jovem Bensaïd, os partidos operários constituem uma espécie de mediação

entre um sujeito (o proletariado) que não tem ainda total consciência de sua missão histórica e

um objeto (a formação social capitalista) que eles devem transformar237. Em outros termos, o

partido traduz em alguma medida, segundo a leitura leninista de Daniel Bensaïd, um “projeto”

no sentido sartreano, tal como exposto em La critique de la raison dialectique (1960): o projeto

constitui uma “superação subjetiva da objetividade”, na qual se almeja estabelecer o

entrelaçamento entre as condições “objetivas” e o horizonte aberto dos possíveis. “Tensionado

entre as condições objetivas do meio e das estruturas objetivas do campo dos possíveis”, o

projeto “representa a unidade dinâmica da objetividade e a subjetividade”. Por conseguinte, o

“subjetivo” (identificado ao partido, nesse caso) retém em si “o objetivo que ele nega e que ele

supera na direção de uma objetividade nova, e essa nova objetividade, em seu nível de

objetivação, exterioriza a interioridade do projeto como subjetividade objetivada”238.

Daniel Bensaïd busca, assim, apreender as complexidades da passagem da classe-em-si

à classe-para-si. O partido constitui, porém, em última análise, o instrumento para a tomada de

consciência da classe em um sentido propriamente político: “Para além do esquematismo

simplista do consciente e do inconsciente, atributos respectivos do partido e da classe, a

problemática leninista da organização acompanha, a bem dizer, a remodelação freudiana

iniciada em Au-delà du principe de plaisir, onde a oposição entre consciente e inconsciente é

substituída por aquela entre ‘eu coerente’ e ‘elementos recalcados’ e na qual o inconsciente

constitui um atributo que afeta os dois termos”. Assim, não haveria, “na problemática leninista

da organização”, um encadeamento contínuo do em-si ao para-si, do inconsciente ao

consciente. Esta problemática exprime o fato de que, em uma formação social capitalista, “a

classe operária para-si não existe como realidade, mas apenas como projeto pela mediação do

partido”.

Ora, não é difícil perceber o quanto o ultraleninismo do jovem Bensaïd transformava o

partido em uma espécie de equivalente do espírito absoluto hegeliano, afastado das

contingências da consciência de classe cotidiana. Não por acaso, a dissertação sistematizava no

236 Lénine, cité par Bensaïd, La notion de crise révolutionnaire chez Lénine, op.cit., s/p. 237 Daniel Bensaïd, La notion de crise révolutionnaire chez Lénine, op.cit., s/p. 238 Jean-Paul Sartre, La critique de la raison dialectique, Paris : Gallimard, 1960, p.66, 67.

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plano teórico uma concepção da política (e do partido) cujo objetivo era fazer face às “ilusões

líricas” de um momento no qual o “mao-espontaneísmo”, representado particularmente pela

Gauche prolétarienne, era uma das correntes hegemônicas na extrema-esquerda. A ênfase posta

no partido, enquanto instrumento capaz de ultrapassar os limites do movimento espontâneo da

classe, conferindo-o um caráter propriamente político, significava em Bensaïd a única resposta

crível diante da provável e talvez iminente irrupção da crise revolucionária. O texto de Daniel

Bensaïd dotava de um fundamento teórico o voluntarismo político da LC, ainda impactada pelos

acontecimentos de 68.

Tratava-se, bem evidentemente, de uma leitura “leninista-lukacsiana” em tudo oposta à

fascinação que, para Bensaïd à época, Althusser dedicava às estruturas e à ordem. Aos olhos de

Bensaïd, o cientificismo estruturalista de Althusser – típico de um “marxismo glacial” –

acabava por legitimar o “real” existente em detrimento do possível. Para o jovem Daniel

Bensaïd e seus colegas da JCR/LC, um acontecimento como “maio de 68” demonstrava os

limites do anti-historicismo e do anti-humanismo de Althusser, revelando uma nova

subjetividade revolucionária em formação. “Nutridos da leitura de HCC, nós respondíamos à

tirania da estrutura impessoal através de uma subjetivação (indo até um voluntarismo

propriamente esquerdista). À frieza erudita das estruturas ventríloquas, através da palavra que

irrompe dos ‘grupos em fusão’ [Sartre, N.A.]”239.

Assim, mais do que teórica, a questão era de fundo política. Para Bensaïd, o desdém

althusseriano pela história permitia-lhe se esquivar de um balanço franco sobre o stalinismo.

Não surpreende que seu pensamento tenha servido como caução teórica para empreitadas

políticas como aquela de muitos dos seus alunos e discípulos na ENS, que aderiram subitamente

ao maoísmo. O pensamento de Althusser permitia, desse modo, “aos aprendizes de mandarins

vermelhos conciliar um projeto subversivo intensamente proclamado com a herança positivista

dominante na universidade francesa”. Em outras palavras: “Tocados pela graça maoísta”,

tornava-se possível “conciliar uma revolta geracional anti-hierárquica com um sólido apetite de

poder e de promoção social. O maoísmo francês não tardaria a perecer desta contradição”240.

239 Daniel Bensaïd, Une lente impatience, op.cit., p.113. Em La formation de la pensée économique de Karl Marx,

publicado em 1967 pela Maspero, Ernest Mandel havia criticado, à luz dos Grundrisse, a noção de “corte

epistemológico”. 240 Daniel Bensaïd, Une lente impatience, op.cit., p.111. A bem dizer, nessa passagem ao maoísmo há, em alguns

alunos de Althusser, elementos de uma ruptura com o mestre. Basta mencionar as críticas violentas que Althusser

recebeu de La Cause du Peuple, jornal criado em maio de 68 e que se tornaria o jornal da Gauche Prolétarienne

(GP), grupo maoísta do qual fizeram parte muitos dos ex-alunos e discípulos do filósofo argelino. Por sua vez, a

relação de Althusser com o maoísmo foi bastante ambivalente. Sem jamais romper com o PCF, ele publicou em

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Em 1974, para coroar essa perspectiva anti-althusseriana, Daniel Bensaïd publicaria, ao lado de

outros intelectuais militantes ou simpatizantes da LCR (como Jean-Marie Vincent, Alain

Brossat, Denise Avenas, J.-M. Brohm, CatherineColliot-Thélène, e J.-M. Poiron), uma

coletânea de artigos intitulada, sem rodeios, e “no limite do excesso”, como reconheceria mais

tarde: Contre Althusser241.

A despeito de sua démarche fortemente anti-althusseriana, Bensaïd não hesitou, porém,

na dissertação de 1968, em utilizar a distinção – retomada por Nicos Poulantzas em Pouvoir

politique et classes sociales, que tinha acabado de ser publicado pela Maspero – entre a

abstração teórica do “modo de produção” e a realidade concreta da “formação social”,

compreendida como a “sobreposição específica de vários modos de produção ‘puros’”, sob a

hegemonia de um dentre eles. Nas palavras de Poulantzas, “a formação social constitui uma

unidade complexa com a dominância de um determinado modo de produção sobre os outros

que a compõem”242. Tratava-se do livro mais althusseriano de Poulantzas, na medida em que

ele retoma – dentre várias outras coisas – a definição proposta por Althusser da nova ciência

fundada por Marx como “a ciência da história das ‘formações sociais’”. A crise revolucionária,

no sentido pensado por Lênin, não significa, portanto, para Bensaïd (apoiando-se na formulação

althusseriana de Poulantzas) a crise de um modo de produção, “porque entre modos de produção

há transformação e não crise”. A crise, a bem dizer, é aquela de uma formação social específica,

“na qual as contradições do modo de produção adquirem vida e se atualizam através das forças

sociais reais nele implicadas”243.

Não constitui um acaso o fato de que Lênin dedicou uma parte importante de suas

reflexões, como por exemplo em Le développement du capitalisme en Russie244, à análise da

formação social russa, uma vez que desta análise se tornava possível determinar o caráter da

revolução, assim como as alianças táticas e estratégicas necessárias. Para Lênin, a Rússia era

uma formação social à dominante (modo de produção) capitalista, o que determinava, portanto,

o caráter socialista da revolução no país, sob a direção do proletariado em aliança com o

campesinato. Segundo Bensaïd: “no momento em que caracteriza como capitalista a formação

1966, de forma anônima, o artigo « Sur la révolution culturelle » na revista Cahiers marxistes-léninistes, do grupo

maoísta Union des Jeunesses Communistes Marxistes-Léninistes (UJCML), predecessor da GP. 241 Contre Althusser, Collection Rouge, 1974 (ou Paris: Les Editions de la Passion, 1999). 242 Nicos Poulantzas, Pouvoir politique et classes sociales, Paris : Maspero, 1968, p.11. 243 Daniel Bensaïd, La notion de crise révolutionnaire chez Lénine, op.cit., s/p. 244 Lénine, « Le développement du Capitalisme en Russie ». Œuvres. Tome 3, Paris : Editions sociales, 1977.

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social russa, [Lênin] ilumina a autonomia enquanto classe do proletariado, única classe capaz

de superar as contradições de uma tal sociedade”.

Aos olhos de Daniel Bensaïd, o que se avistava na França, após os acontecimentos de

1968, era a possibilidade de uma crise da formação social, em face da qual apenas o proletariado

seria capaz de levar adiante uma saída efetivamente revolucionária, ainda que as razões dessa

crise ultrapassem as questões puramente de classe. No contexto das múltiplas crises (política e

ideológica, em especial), assim como dos processos de radicalização que se desenvolveram no

curso dos anos 1960, a juventude escolarizada, diretamente atingida pela massificação e pela

crise da instituição escolar e da Universidade (ancoradas em dispositivos “retrógrados” que

pouco haviam sido modificados desde o século XIX), teria preenchido no campo político em

1968, em ruptura com a prática reformista, uma função de “substituto” ao partido

revolucionário que faltava – de onde, evidentemente, os limites da empreitada.

Essa combatividade – favorecendo a emergência em seu seio de vários pequenos grupos

de extrema-esquerda – conferiu ao movimento estudantil radicalizado uma função

vanguardista, confrontando-o aos problemas fundamentas dos movimentos revolucionários:

“articulação das lutas estudantis e lutas operárias, relação com o movimento operário

organizado, estratégia de conquista do poder, tática de construção do partido etc.”, tal como

escreve Henri Weber em Marxisme et Conscience de Classe. Graças a sua intervenção na luta

propriamente política, o movimento estudantil estimulou o processo de radicalização das

massas, contribuindo “para a maturação da vanguarda”245. Em agosto de 1969, Daniel Bensaïd

redigiu, ao lado de Camille Scalabrino, a brochura Le deuxième souffle, em que propunha

“reconstruir um movimento estudantil diretamente sob a impulsão da vanguarda”, apreendendo

“as determinações políticas do movimento estudantil”246. Para os autores, tal qual para os

maoístas, o sindicalismo estudantil estava “arruinado”: tratava-se assim da “agonia da UNEF”,

o sindicato estudantil nacional. Mais do que buscar ressuscitá-la, era preciso criar comitês de

luta. Mas, como o defendiam os dois membros da LC, tratava-se apenas de um começo: “a

radicalização da juventude escolarizada, sua constituição em força de extrema-esquerda

assumindo uma função vanguardista no campo político não representam um fim em si. Elas são

a primeira manifestação de um processo de conjunto, o prenúncio da radicalização operária”247.

245 Henri Weber, Marxisme et Conscience de Classe. Paris : Union Générale d’Éditions, 1975, p.382, 383. 246 Daniel Bensaïd & Camille Scalabrino, « Le deuxième souffle : problème du mouvement étudiant ». Cahiers

Rouge, n.12, 1969, p.54, 36, respectivement. 247 Idem, p.383.

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Se a crise constitui sempre a crise de uma formação social concreta, cuja atualização é

realizada pela luta de classes, trata-se então de uma categoria especificamente política, à

diferença da despolitização que, para Bensaïd, seria a consequência inelutável do

“cientificismo” althusseriano. Daí a força, na ótica de Bensaïd, da reflexão política de Lênin,

responsável por uma ruptura no âmbito do marxismo, ao conceber a especificidade da política

em relação ao nível social da classe. Responsável por uma “revolução na revolução”, Lênin foi

o primeiro, no quadro do marxismo, que concebeu a especificidade do campo político, lócus no

qual se desenvolve um jogo de poderes e de antagonismos sociais transfigurados, “traduzidos

– escreve Bensaïd – em uma linguagem própria, cheia de movimentos, condensações e de lapsos

reveladores”248.

É no nível político que se joga a verdadeira batalha contra o núcleo que garante a

dominação capitalista: o Estado burguês. O afrontamento entre as classes fundamentais tende

assim a se reduzir a um enfrentamento entre o partido e o Estado. Aos olhos de Lênin, a

elaboração de uma estratégia revolucionária não pode ser dissociada da estratégia de construção

de uma organização revolucionária: as duas necessidades se condicionam reciprocamente, a

estratégia política revolucionária sendo a condição de eficácia da organização, enquanto essa,

de outra parte, constitui a condição de existência da estratégia. De onde a sentença ultraleninista

de então, professada por Bensaïd: “todas as revisões dos princípios de Lênin em matéria de

organização procedem, portanto, de um jeito ou de outro, de um deslize para fora do campo

político”, e, portanto, para fora do espaço no qual se joga o essencial da crise revolucionária: o

Estado.

De acordo com Bensaïd, Lênin sempre buscou delimitar o partido e a política em relação

à classe e ao social: se, em uma crise revolucionária, o partido tende a se identificar à classe, é

porque então se torna possível a ela ascender massivamente à luta política. Para Bensaïd,

delimitando a autonomia relativa e a estruturação específica da política, Lênin colidia com as

leituras mais hegelianas ou luxemburguistas do marxismo, para as quais haveria um

desenvolvimento inelutável, quase espontâneo, da passagem da classe enquanto sujeito teórico

em-si à classe enquanto sujeito prático-político para-si, desprezando o papel essencial do

partido e do nível político.

Essa crítica radical (e, em uma certa medida, injusta) a Rosa Luxemburgo, por parte de

Bensaïd, se revelou em toda a sua virulência no artigo redigido junto com Samy Naïr, “A propos

248 Daniel Bensaïd, Une lente impatience, op.cit., p.121.

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de la question de l’organisation: Lénine et Rosa Luxembourg”, publicado na revista Partisans

em 1968/1969249. Escrito sob o fogo cruzado das polêmicas em torno das interpretações da

greve geral de maio de 68 e de qual seguimento dar às lutas futuras, o texto defende

vigorosamente – mais ainda do que na sua dissertação de mestrado – a teoria da organização do

partido de Lênin contra a tendência espontaneista que, segundo os autores, estaria implícita em

Rosa Luxemburgo. Na contramão das “ilusões espontâneas” do momento, Bensaïd e Naïr

visualizaram em Rosa Luxemburgo (de modo um pouco exagerado) uma espécie de inspiração

implícita dos grupos “marxistas-libertários” saídos de maio. No início do texto, os autores

afirmam: “a corrente antistalinista que se desenvolve hoje nas novas vanguardas reabilita Rosa

Luxemburgo como teórica do movimento operário. A crítica das burocracias operárias extrai

de sua obra referências e citações”250.

Para os leninistas e/ou trotskistas da JCR/LC, era preciso ao contrário definir o caráter

estratégico da organização, no sentido mais estrito e resoluto. Como disse Daniel Bensaïd 40

anos depois (2008), em uma “introdução revisitada”: nessa época, “cada corrente estava

preocupada em se delimitar rigorosamente a fim de forjar a lâmina mais afiada e se mostrar à

altura dos desafios decisivos. Se a crise da humanidade se reduzia, como havia dito outrora

Trotsky, à aquela das direções revolucionárias, a responsabilidade era gigantesca.

Acrescentemos a isso que nós tínhamos 22 anos, o entusiasmo intacto da juventude, e que nós

tínhamos acabado de viver a mais massiva e mais longa greve geral da história [da França]”251.

Com seu “simplismo entusiasta” e sua “metafísica cheia de boas intenções”, assentada

em uma concepção catastrófica do capitalismo, Rosa Luxemburgo teria acabado por

superestimar, na ótica de Bensaïd e de Naïr, o movimento de massas, subestimando, em

revanche, a necessidade e o papel do partido – circunscrevendo as teses leninistas à realidade

específica da Rússia. Inspirando-se na problemática hegeliana do “em-si” e do “para-si”, Rosa

apostava em um desenvolvimento crescente da consciência de classe, a despeito das derrotas

conjunturais, o que a teria levado a negligenciar a dimensão propriamente política (ou

ideológica) da luta de classes, com o papel central da organização, ou das organizações, da

249 Daniel Bensaïd & Samy Naïr, « A propos de la question de l’organisation : Lénine et Rosa Luxembourg »,

Partisans, 45, décembre 1968 – janvier 1969. Mais tarde, Bensaïd reconheceria que, “tingido de ultra-bolchevismo

juvenil, o artigo de Partisans é respeitoso, mas muitas vezes injusto para com Rosa Luxemburgo”. Cf. Bensaïd, «

Quarante ans après. Une introduction revisitée ». In : « A propos de la question de l’organisation : Lénine et Rosa

Luxembourg », op.cit., s/p. Disponible dans : http://www.europe-solidaire.org/IMG/article_PDF/A-propos-de-la-

question-de-l_a10230.pdf. 250 Daniel Bensaïd & Samy Naïr, « A propos de la question de l’organisation… », op.cit., s/p. 251 Bensaïd, « Quarante ans après. Une introduction revisitée », op.cit., s/p.

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classe trabalhadora. De onde o “pecado de hegelianismo” que Daniel Bensaïd lhe atribui, de

uma maneira injusta, já que, em Rosa, se há de fato uma aposta no crescimento progressivo da

consciência de classe, essa “passagem” à “classe-para-si” só pode ser realizada através da luta

(social, cultural e política) das classes subalternas; nada a ver, nesse sentido, com o idealismo

hegeliano, ancorado, como se sabe, em uma teodiceia metahistórica.

Mas, de acordo com Bensaïd, em função desses “indícios de hegelianismo”,

consequência de uma “dialética metapolítica”, as reflexões de Rosa Luxemburgo em torno do

partido como uma “organização-processo” – quer dizer, como um “produto histórico da luta de

classes”, uma expressão do desenvolvimento autônomo da (consciência de) classe – serviram

para fomentar os grupos que estavam, após maio de 68, em busca de um “partido de novo tipo”.

Os jovens dirigentes da LC, que tinham acabado de se vincular organicamente à tradição

trotskista representada na França pelo PCI de Pierre Frank (lenda do trotskismo mundial que

chegou a trabalhar diretamente com Trotsky nos anos 1930), se sentiam a um só tempo

expressão e agentes ativos da ascensão da esquerda revolucionária que havia começado em

1968. Entusiasmados, jovens dotados de um alto capital cultural, eles eram “apressados” uma

vez que, para eles havia chegado o momento no qual o enfrentamento revolucionário contra o

Estado burguês não seria mais uma miragem de esquerdistas incuráveis, estando, ao contrário,

quase na ordem do dia. A ênfase posta na especificidade e na centralidade da política, do mesmo

modo que a recusa dos discursos obreiristas (o sectarismo da LC era de outra ordem, político-

organizativa), constituíam assim a forma através da qual esses jovens “intellos” poderiam

atribuir a eles mesmos um lugar no processo de radicalização em curso. Como resumiu Bensaïd

em um debate da Liga nos anos 1970, nessa época, eles pensavam que “a história nos mordia a

nuca!”. O sentimento de urgência parecia necessário, uma vez que “o velho mundo estava

agonizando. Ernest Mandel nos prometia a revolução na Europa em 5 anos no máximo”.

À espreita, em seguida à demissão do general De Gaulle do governo, a LC decide lançar,

após certa hesitação, a candidatura de Alain Krivine às eleições presidenciais antecipadas. Com

seu “look romântico doutrinário”253 e sua gravata ironizada pelos libertários (que o alcunharam

de Alain “Kravate”), Krivine teve apenas cerca de 1% dos votos na eleição finalmente vencida,

em segundo turno, por Georges Pompidou, jogando um balde de água fria nas esperanças de

uma ascensão eleitoral da LC. Nos anos seguintes, 1970-71, Daniel Bensaïd fez seus estágios

docentes, começando, na retomada do ano escolar em 1971, a trabalhar como professor em um

253 Daniel Bensaïd, Une lente impatience, op.cit., p.131.

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liceu em Condé-sur-Escaut, na região do Nord-Pas-de-Calais, próximo à fronteira com a

Bélgica. Exílio efêmero, a experiência pedagógica foi de curta duração: era necessário preparar

a “grande noite”.

Nestes mesmos anos, Daniel Bensaïd faria sua primeira incursão militante propriamente

internacional, ao lado de Robert March. Ambos foram os responsáveis por estabelecer relações

com os núcleos, em Barcelona e em Madrid, do que ia se tornar a organização espanhola da IV

Internacional. Simultaneamente, em nome da LC francesa e da direção da IV, eles se reuniram

clandestinamente em diversas ocasiões com os dirigentes do ETA-VI, organização que havia

passado do nacionalismo tradicional a um internacionalismo de tipo guevarista – não por acaso,

o manifesto do chamado ETA-VI, em referência ao congresso que definiu a mudança,

intitulava-se “Euskadi, Cuba da Europa”. Juntos, Bensaïd e March mantiveram relações tanto

com os trotskistas da LCR espanhola – fundada em 1971 – quanto com o ETA-VI em plena

radicalização revolucionária-internacionalista. O ETA-VI acabaria por aderir à IV Internacional

em 1973, fusionando-se com a LCR espanhola no ano seguinte.

Daniel Bensaïd e Robert March participaram ativamente dos dois processos,

contribuindo decisivamente para o sucesso da fusão entre a jovem LCR e o ETA-VI, colocando-

as sob a órbita da IV Internacional, notadamente da corrente representada por Ernest Mandel e

pela Liga Comunista francesa – já que o grupo “Comunismo”, o predecessor da LCR espanhola,

havia tido relações com a “Fração Trotskista”, vinculada às posições de Pierre Lambert na

França254. Segundo Martí Caussa: “No período que vai desde a fundação da LCR até a fusão

com ETA-VI, a IV Internacional teve uma influência decisiva”255.

Além da proximidade entre as Ligas Comunistas francesa e espanhola, a organização

do Hexágono serviu – e Bensaïd muito contribuiu para tal – como uma espécie de inspiração e,

ao mesmo tempo, de parâmetro para a formação e o desenvolvimento de sua homóloga ibérica.

Os membros do grupo “Comunismo”, na Espanha, se identificavam com a ação da JCR nas

lutas de maio de 68, bem como com a criação da LC. Para os jovens militantes espanhóis, o

exemplo da LC resumia os desafios de sua própria situação, igualmente envolta na busca pela

construção de um “verdadeiro” partido revolucionário. Como nos disse Jaime Pastor em uma

254 Martí Caussa, « Los orígenes de la LCR (1969-1973) », in: Martí Caussa & Ricard Martínez i Muntada (dir.),

Historia de la Liga Comunista Revolucionaria (1970-1991). Madrid: La Oveja Roja, Colección Viento Sur, 2014,

pp.17-33 (p.25). 255 Martí Caussa, « Los orígenes de la LCR », op.cit., p.32. Sur l’évolution de l’ÉTA du nationalisme

révolutionnaire à la radicalisation anticapitaliste, ver : Petxo Idoyaga, « Évolución de ETA VI (1970-1973) », in :

Martí Caussa & Ricard Martínez i Muntada (dir.), Historia de la Liga Comunista Revolucionaria (1970-1991).

Madrid: La Oveja Roja, Colección Viento Sur, 2014, pp.35-50.

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entrevista em novembro de 2014, havia então uma tendência, na organização espanhola, a

“imitar o modelo francês”257.

Impregnado de um ethos comunista latino, desde sua adolescência em Toulouse, Daniel

Bensaïd estabeleceu uma relação estreita com a Espanha (país no qual ele permanece bastante

popular no seio da esquerda anticapitalista), assim como, igualmente nos anos 1970, com a

América Latina, região mítica para uma geração apaixonada pelo voluntarismo revolucionário

de Che, e que acreditava, como ele, que o dever de todo revolucionário era fazer a revolução.

À época, a América Latina constituía também, ao lado da Europa, uma das grandes esperanças

para a IV Internacional. “Espécie de continente gêmeo”, a América Latina jogava um papel

importante no imaginário político dos jovens militantes europeus: “Por um espelho geracional,

nós reconhecíamos nossos semelhantes nos jovens militantes do Movimento da Esquerda

Revolucionária (MIR) chileno, do MLN – Tupumaros uruguaio, a fortiori, do Partido

Revolucionário dos Trabalhadores argentino (seção da IV Internacional). Essas organizações

haviam emergido na década da onda de choque provocada pelas revoluções argelina, cubana e

vietnamita”258.

Reafirmando o “trotsko-guevarismo” do momento, o IX Congresso da IV Internacional,

que teve lugar na Itália em maio de 1969, adotou – com a participação de seis seções latino-

americanas – uma estratégia de luta armada para a América Latina, a despeito da oposição do

Socialist Workers Party (SWP-EUA) e de uma minoria internacional. Nessa época, afirma Jean-

Paul Salles, “se há uma outra ‘trincheira da revolução mundial’ à qual os militantes concedem

bastante atenção, esse lugar é a América Latina”; a vitória de Fidel Castro e seus companheiros

em 1959, em Cuba, parecia provar “a eficácia da ação de um pequeno grupo de militantes

armados”259. Nas palavras de um delegado latino-americano, pronunciadas no IX Congresso:

“Nós entramos na etapa final do assalto à fortaleza capitalista”. Por conseguinte, “o partido

revolucionário deve ser convertido em exército revolucionário”; para ele, tanto quanto para a

direção do Secretariado Unificado (SU) da IV Internacional, “a luta armada sob suas diferentes

formas, dentre as quais a guerrilha, é a solução lógica na situação atual. É a continuação do

movimento de massas nas condições atuais”. E, disse ele ainda: “que não nos digam que isso

257 Fabio Mascaro Querido. Entrevista com Jaime Pastor. Madrid, 17 de novembro de 2014. Jaime Pastor conheceu

Daniel Bensaïd em 1969, em Paris, quando, exilado na França em fuga do franquismo, começou a militar na LC

na célula de Vincennes, onde estudava sociologia. Pastor retornaria a Madrid em 1973. 258 Daniel Bensaïd, Une lente impatience, op.cit., p.134, 5. 259 Jean-Paul Salles, La Ligue communiste révolutionnaire (1968-1981). Instrument du Grand Soir ou lieu

d’apprentissage ?, op.cit., p.65.

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não é marxismo, que isso é castrismo”, já que era tempo de “se unificar com as forças

revolucionárias que agem”260.

Em setembro de 1969, a jovem LC lança uma campanha financeira em benefício do

Partido Operário Internacionalista de Hugo Gonzales Moscoso, na Bolívia, cisão do POR de

Guillermo Lora (próximo dos lambertistas) que havia se engajado na luta armada (de estratégia

“foquista”) ao lado do Exército de Liberação Nacional (ELN) boliviano – criado por Che

Guevara. Alguns meses depois, em maio de 1970, a ação de financiamento é considerada um

sucesso, conseguindo arrecadar duas vezes a soma inicialmente prevista261. Mas seria a

Argentina a preocupação principal da IV Internacional, da seção francesa (LC) e, nesse

contexto, especialmente de Daniel Bensaïd, que foi diretamente implicado na mediação entre a

seção local e a direção internacional, tendo vivido aí o que ele designaria como o episódio “mais

doloroso da [sua] vida militante”262.

Divididos em relação à orientação de luta armada, o “Partido Revolucionário dos

Trabalhadores” (PRT), seção local da IV Internacional – nesse país com uma tradição trotskista

relativamente bem implantada desde o final dos anos 1920 –, se apresenta no Congresso com

duas delegações diferentes: o PRT chamado Combatiente, dirigido por Mario Roberto

Santucho, favorável à luta armada (guerrilha urbana) e o PRT La Verdad, de Nahuel Moreno263,

contrário à estratégia enfim adotada. Buscando seduzir a nova geração militante através da ação

direta, o PRT Combatiente construiu paralelamente ao partido um exército revolucionário, o

Ejército Revolucionario del Pueblo (ERP), responsável pelas ações diretas militares da

organização, como as operações de recuperações de armas, as expropriações militantes, o

sequestro de diretores de grandes empresas etc.

Em outubro de 1973, quer dizer, apenas um mês após o golpe militar liderado por

Pinochet no Chile, Daniel Bensaïd desembarcou em Buenos Aires com a tarefa de defender –

ao lado de Heda Garza (EUA) e Ramiro del Valle (Mexique) – as posições majoritárias da

Internacional. Na Argentina, Bensaïd e seus camaradas tiveram encontros com as três correntes

que se perfilavam no interior da IV Internacional: com os “opositores” (à linha majoritária) do

PRT-La Verdad, com os aliados do PRT-Combatiente e com os também aliados da “Fração

260 Rouge hebdomadaire, n.19, 14 mai 1969, p.10. Cité par Jean-Paul Salles, La Ligue…, op.cit., p.65. Em uma

resolução do IX Congresso, defende-se a unidade com os castristas, “a integração na frente revolucionária

continental constituída pela OLAS”. Revue QI, 37, 1969. 261 Cf. Jean-Paul Salles, La Ligue…, op.cit., p.66. 262 Daniel Bensaïd, Une lente impatience, op.cit., p.198. 263 Além do PRT – La Verdad, os “lambertistas” da Política Obrera (PO) também eram hostis à estratégia da luta

armada.

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Vermelha” do PRT-Combatiente, composto em grande medida por brasileiros que tinham

aderido à LC francesa durante o exílio parisiense: Paulo Paranaguá e sua companheira Maria

Regina “Neneca”, além de Flavio Koutzii267.

O PRT-Combatiente, bem como a “Fração Vermelha”, defendia um projeto de “guerra

popular prolongada”, baseada antes no modelo vietnamita do que no cubano. O PRT-La

Verdad, por seu turno, que logo se tornou o Partido Socialista dos Trabalhadores (PST),

aproveitando-se da abertura democrática, buscava consolidar sua estratégia de acumulação de

forças e de implantação na classe operária, na contramão da deriva militarista que havia sido

chancelada pela direção da IV Internacional. Como representante da direção da IV

Internacional, Daniel Bensaïd debateu com os militantes “morenistas”, que se demonstravam

mais do que dispostos a acertar as contas do fracasso cada vez mais evidente da orientação da

luta armada. Segundo as lembranças de Bensaïd, os debates foram um “pesadelo”. Em um

meeting em Córdoba, por exemplo, tomado por um mal-estar intestinal, Bensaïd teve que

confrontar a hostilidade dos militantes que ali estavam, e que o identificavam (não sem razão,

bem entendido) à linha defendida pela maioria da direção do SU. À sua frente, havia uma

“ampla mesa” na qual estavam dispostas as obras completas de Trotsky. “A cada uma das

minhas intervenções, meia-dúzia de assistentes mergulhavam febrilmente nos volumes a fim de

pescar a citação que mata”269.

A “triste experiência” argentina foi difícil de ser digerida por Daniel Bensaïd, na medida

em que ela lhe revelou os equívocos da orientação da luta armada, assim como a tendência ao

primado da lógica militar sobre a dimensão propriamente política. Com apenas 27 anos,

Bensaïd visualizou de perto os perigos de uma visão abstrata e mítica da luta armada e da

violência, como se esta última fosse o ponto de distinção entre revolucionários e reformistas.

No plano pessoal, do mesmo modo, Bensaïd sentiu uma certa “culpa”, como nos confiou Sophie

Bensaïd, uma vez que tinha sido vivamente favorável à orientação majoritária270. Na Argentina,

Bensaïd visualizou a “décalage” entre as esperanças no momento da adoção da estratégia de

luta armada e a realidade concreta, com seus torturados, seus mortos e suas tristezas. “Nossos

camaradas eram jovens, intrépidos, cheios de confiança no futuro socialista da humanidade.

267 Daniel Bensaïd, Une lente impatience…, op.cit., p.179. Militante surrealista na juventude, Paulo Paranaguá

tornou-se jornalista especialista em questões culturais. Hoje trabalha no jornal Le Monde. 269 Idem, p.183. 270 Fabio Mascaro Querido. Entrevista com Sophie Bensaïd, abril de 2014, Paris.

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Três anos mais tarde, a metade daqueles que eu conheci nessas reuniões tinham sido presos,

torturados, assassinados”271.

Na LCR francesa, Daniel Bensaïd foi um dos principais responsáveis pela formulação

teórica da linha leninista “substitucionista”, na qual a violência minoritária, desde que não

terrorista, passava por virtude vanguardista. Em germe, é como se essa violência antecipasse a

questão decisiva da violência revolucionária para a conquista do poder político e a transição ao

socialismo: a realização desse tipo de ação constituía, assim, uma forma de colocar desde então

problemas que a organização não podia (ainda) resolver, mas que, enquanto vanguarda, deveria

contribuir para trazer à ordem do dia. Esta era, no fundo, a perspectiva do “célebre” (no

imaginário da extrema-esquerda francesa) Bulletin Intérieur n.30, cujo título não pecava pela

falta de clareza: “Le problème du pouvoir se pose, posons-nous le!”. Uma vez que se tratava de

um texto interno à organização, não destinado à publicação, as coisas são ditas de forma

límpida, sem esconder as consequências práticas. Enfim, malgrado o fato de que esse

“manifesto do esquerdismo”, como disse mais tarde Bensaïd, tenha recebido muitas críticas

(como as de Gérard Filoche e/ou de Pierre Rousset, notadamente272), ele expressava a posição

majoritária na LC nesse momento.

Nesse texto, proposto para a abertura do debate preparatório ao terceiro congresso da

LC, os autores (Bensaïd e Antoine Artous, notadamente) defendiam, em linha com o que

Bensaïd tinha afirmado em sua dissertação de mestrado (1968), que havia chegado o momento

no qual era necessário que a questão do poder fosse claramente posta pelo único instrumento

(subjetivo) que um dia poderia resolvê-la: o partido revolucionário. “Não se trata, portanto,

escrevem os autores, de contar os dias do regime ou do sistema, de estabelecer de antemão um

calendário necrológico. Trata-se de parar de dizer, em rima, que o problema do poder está

colocado (por quem? para quem?). E de começar a colocá-lo nós mesmos. Se nós almejamos

resolvê-lo um dia”273.

271 Bensaïd, Une lente impatience…, op.cit., p.181. 272 Lucien Sanchez, velho militante da LC(R) e amigo de juventude de Bensaïd e de Artous, nos falou bastante do debate interno suscitado pelo texto. Entrevista em Port-Laucate, agosto de 2014. Artous, por sua vez, se recorda

com mais detalhes das críticas de Pierre Rousset. Entrevista com Antoine Artous, Paris, janeiro de 2015. Ambos

reprovavam, em todo caso, o “ultraleninismo” do documento. 273 Daniel Bensaïd (assinado Jebracq, seu principal pseudônimo) & Antoine Artous, « Bulletin intérieur n° 30. Le

problème du pouvoir se pose, posons-nous le ! (BI 30) ». Montpellier le 21 juin 1972. Disponible :

http://danielbensaid.org/Le-probleme-du-pouvoir-se-pose?lang=fr. O outro pseudônimo utilizado com menor

frequência por Bensaïd é Ségur. Nas palavras de Edwy Plenel, a utilização do pseudônimo não significa

“necessariamente uma preocupação prosaica, conspiradora e complotista. Ela revela também uma tradição

messiânica, na qual, sob a identidade assumida, se esconde a profecia secreta: um homem novo virá, um dia”.

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Ainda que se dizendo contrários à mitificação de Outubro de 1917, a revolução iminente

era sempre pensada em termos de um afrontamento frontal com o Estado burguês e suas forças

armadas, no qual o partido tem um papel central, já que cabe a ele preparar (política e

militarmente) o confronto decisivo274. Nas palavras dos autores: “A organização revolucionária

deve ser a vanguarda política e militar da luta de classe, sem a qual a propaganda sobre a

autodefesa e as milícias permanece vazia”. Assim, “se, portanto, se concebe a crise

revolucionária, não como o momento abençoado no qual as massas se põem em marcha e se

armam espontaneamente, mas como um momento no qual o impulso das massas permite

vislumbrar uma saída vitoriosa em um processo de luta prolongada, a fase preparatória assumirá

para nós uma importância tanto maior quanto é nosso dever reintroduzir a dimensão da

violência revolucionária em oposição às pesadas tradições de legalidade do movimento

operário”. Sob a direção do proletariado, o partido deve assim atrair as diferentes camadas

sociais, a fim de se beneficiar das capacidades militares do campesinato (guerrilhas rurais) e

das camadas médias urbanas (guerrilhas urbanas).

Acreditando em uma ascensão revolucionária em escala europeia, os autores (e a LC)

apostavam em uma estratégia de “transbordamento”, em face do qual o partido deveria ser

construído simultaneamente ao desenvolvimento das lutas pelo poder, a fim de aproveitar uma

situação que, de outro modo, seria apenas uma repetição infrutífera de maio de 68. Diante de

um Estado forte, seria bastante improvável, segundo os próceres da LC, um crescimento

progressivo da vanguarda, algo que eles haviam visualizado imediatamente após maio de 68,

através da fórmula (alcunhada por Bensaïd e Weber) do “ensaio geral”. Nas palavras dos

autores do texto de 1972, “[...] a imagem de maio de 68 como “ensaio geral” é, tomada ao pé

da letra, amplamente enganadora. Grosso modo, ele estimula a acreditar que basta crescer um

pouco e esperar a nova greve de massas para superar a burguesia. O que não é tão simples

assim”275.

À diferença do caso espanhol, no qual a relação de forças entre o PC e a extrema-

esquerda permitia considerar a possibilidade da tática da “Frente Única Operária” (FUO), os

autores defendiam, na França, uma tática de “transbordamento sistemático” contra o

“reformismo stalinista”. No âmbito de uma “dialética entre unidade de ação [com os

Edwy Plenel, Secrets de jeunesse. Paris: Stock, 2001, p.39. O próprio Plenel adotou como pseudônimo Joseph

Krasny (vermelho em russo). 274 “O partido leninista não é o partido revolucionário adequado ao ‘esquema clássico’, mas o partido da revolução

proletária em geral”. Idem, s/p. 275 Bensaïd, Artous et.alli., « Bulletin intérieur n° 30. Le problème du pouvoir se pose, posons-nous le ! (BI 30) »,

op.cit., s/p.

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reformistas] e transbordamento”, tratava-se de impulsionar uma tática unitária acima de tudo

com as outras correntes da extrema-esquerda, na direção da superação da perspectiva pacifista

e legalista da ação política. Para os autores, uma tática privilegiando o transbordamento

implicava uma antecipação, por parte da vanguarda, “da experiência das massas no que diz

respeito às ações armadas, substituindo-se parcialmente a eles”, colocando “em causa, todo o

quadro legal existente e toda a educação legalista do movimento operário”276.

Do mesmo modo, em oposição aos lambertistas da Organização Comunista

Internacionalista (OCI), que defendiam a estratégia “clássica” de construção “paciente” de um

partido ancorado no núcleo duro da classe operária – de onde a adoção da tática da FUO e a

recusa da violência minoritária –, para Bensaïd e a LC, havia chegado o momento no qual seria

necessário reintroduzir a violência da luta de classes, o que, escrevem os autores, passava “pela

iniciativa deliberada, um pouco voluntarista, da vanguarda”. Eles esperavam, assim,

impulsionar na direção de sua radicalização revolucionária a “dialética violência de

massa/violência minoritária”. Como afirmou Benjamin Stora, que era então militante da OCI,

cuja rivalidade com os jovens da LC era enorme277: “A LC lança, de repente, sua mobilização

para o fortalecimento de uma ‘vanguarda radicalizada’, valorizando as palavras-de-ordem

contra o exército do capital, prefiguração da luta pelos ‘comitês de soldados’ no exército. Ela

[a Liga] proclama de imediato que era necessário acabar com o ‘fascismo e o autoritarismo’.

Para ela, a hora da confrontação e da autodefesa contra o Estado havia enfim chegado278.

Para Bensaïd, Artous e a direção da LC, efetivamente, o trabalho de construção paciente

do partido e do movimento operário, ainda que muito importante, não era suficiente, na medida

em que “a história nos atingirá no caminho; nós seremos confrontados ao problema da tomada

do poder antes de termos reconstruído um movimento operário revolucionário”280. Daí a

necessidade de utilizar o terreno da legalidade sem dele tornar-se refém, sabendo que, no âmbito

das “leis da burguesia”, os revolucionários são sempre “foras-da-lei sob indulto”. Na ótica de

Bensaïd e companhia, não é apenas a problemática do poder – e, portanto, da violência

revolucionária – que está em questão, mas também o problema de suas possíveis (e/ou

necessárias) soluções, de onde a importância fundamental de uma organização capaz de aplicá-

las na prática. O que estava posto, mais do que nunca, para eles, era a prova concreta da

276 Idem, s/p. 277 No dia 15 de outubro de 1972, por exemplo, militantes da LC e da OCI enfrentaram-se fisicamente em uma

manifestação contra a guerra do Vietnã. 278 Benjamin Stora, La dernière génération d’Octobre. Paris : Hachette, 2008, p.127. 280 Bensaïd, Artous et.alli., « Bulletin intérieur n° 30. Le problème du pouvoir… », op.cit., s/p.

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“atualidade da revolução”, verdadeiro batismo de fogo para o partido, responsável por

impulsionar os “fatores subjetivos” necessários a uma saída revolucionária da crise vista como

iminente.

A defesa insistente da violência revolucionária, enquanto marca de distinção com os

reformistas, contrapunha-se à esquerda “tradicional” em um momento em que esta parecia

recompor seu fôlego, com a assinatura no dia 27 de junho de 1972, do chamado “Programa

Comum”. Composta pelo PCF, pelos “radicais de esquerda” (que de radicais pouco tinham), o

PCF e o PS em sua versão renovada (depois do célebre Congresso de Epinay283), a “União da

Esquerda” daí resultante visava participar de forma unitária nas eleições, em um processo que,

depois de vitórias e derrotas, logrou eleger François Mitterrand (do PS) para a presidência da

França em 1981. Em face dessa aliança dos reformistas (caracterizada pelo renascimento do

PS, sob o comando de Mitterrand), Bensaïd e seus companheiros da LC reafirmavam o

vocabulário revolucionário, almejando a construção do partido no quadro das lutas pelo

“transbordamento” das direções reformistas do movimento operário.

Na brochura “Quand il seront ministres...”, publicada como suplemento do jornal Rouge

no dia seguinte à assinatura do Programa Comum, Daniel Bensaïd e a LC criticam o enfoque

eleitoralista, e, portanto, legalista, do acordo, sem qualquer referência ao papel das lutas e

mobilizações dos trabalhadores. “Eles dizem o que farão quando forem ministros. Eles pedirão

à burguesia a autorização para avançar a democracia”, sem mesmo proporem a revogação do

ultra-presidencialismo característico da V República, inaugurada em 1958284. Segundo o texto,

para os próceres do PS/PCF, “os trabalhadores são eleitores mais do que produtores”, razão

pela qual o Programa Comum nada diz sobre o controle operário da produção (no quadro de

uma “democracia operária”) ou, no limite, sobre a necessidade da construção de milícias de

autodefesa operária. Na ótica da LC, ou se avança em uma direção revolucionária, apoiada nas

lutas e mobilizações da classe operária, ou se recua no respeito à legalidade burguesa,

reproduzindo os dilemas da estratégia reformista, que busca conter a perspectiva política dos

trabalhadores no âmbito eleitoral.

À luz dos debates sobre a “União da Esquerda”, Daniel Bensaïd e a LC também

acentuavam os perigos da estratégia reformista tomando como exemplo as dificuldades da

283 Sob a direção de François Miterrand, o “congresso de épinay” foi o congresso de unificação e renascimento

dos socialistas, até então agrupados na SFIO. 284 Daniel Bensaïd et alli, « Programme commun. Quand ils seront ministres… », Rouge, 164, 1972. Disponível

em: http://danielbensaid.org/Quand-ils-seront-ministres?lang=fr.

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União Popular, no Chile, cuja experiência tinha sido interrompida em 11 de setembro de 1973,

por ocasião do golpe militar de Estado dirigido pelo general Augusto Pinochet. Se a esquerda

francesa hegemônica (PCF e PS), engajada no processo de aliança em torno do Programa

Comum, observava com muita simpatia a experiência chilena – já que ela parecia ser a prova

de que uma união de esquerda era não somente possível, mas sobretudo necessária –, a LC

evocava desde setembro de 1970, quer dizer, logo após a eleição de Salvador Allende, o risco

de um golpe de Estado de tipo militar, criticando as forças de esquerda pela inação e apatia

diante da possibilidade de um eventual movimento nesse sentido dos militares chilenos,

apoiados pela burguesia nacional e internacional285.

Imediatamente após o golpe de Estado, Bensaïd redigiu os textos “Chili, quatre

questions, quatre réponses”; “Chili: ceux qui manquent de pudeur” e “Chili, la marche au coup

d’État”, nos quais questiona, mais uma vez, a ausência de uma preparação ao provável

enfrentamento contra a “ofensiva fascista”, tendo em vista as dificuldades de resolução eleitoral

da situação. No final das contas, a experiência teria demonstrado uma vez que, seja no Chile ou

na França, não menos do que na Grécia ou no Brasil, não se pode mudar a natureza do Estado

chegando ao governo pelas vias eleitorais. O fracasso da UP seria o fracasso da transição

pacífica ao socialismo. Enquanto “meio de dominação da burguesia sobre o proletariado”, o

Estado “deve ser subvertido, não emprestado”; assim, somente uma revolução seria capaz de

dar uma saída “consequente” aos dilemas da transição socialista.

Essa perspectiva de um afrontamento revolucionário iminente levou a LC a consagrar

imensa energia ao que se denominava “travail à l’armée” (trabalho nas forças armadas). Para

os próceres da LC, se as forças armadas eram um braço decisivo do Estado burguês, seria

preciso transformá-las – subvertendo a hierarquia militar – a partir de seu interior, através da

ação sindical e política junto à base do exército. Com esse objetivo, os militantes da LC

aceitavam cumprir os requisitos do serviço militar, a fim de impulsionar a mobilização dos

soldados por direitos políticos como os de qualquer cidadão, assim como sua solidariedade de

classe com o proletariado. Essa participação no serviço militar poderia servir, ademais, para “a

instrução militar do proletariado”, como afirmou Alain Krivine em 1969, exatamente quando

era soldado294.

285 Rouge hebdomadaire, n.79, 14 septembre 1970, p.11. Cité par Jean-Paul Salles, La Ligue…, op.cit., 69. 294 Publicado em Rouge hebdomadaire, n.21, 28 maio 1969, p.9. Alain Krivine servia como soldado quando a LC

decidiu lançar sua candidatura à eleição presidencial de 1969.

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Os militantes da organização realizaram diversas campanhas, nessa época, em defesa

dos direitos políticos e sindicais dos soldados, e, mais precisamente, contra a repressão no

interior das forças armadas. Um dos momentos mais importantes desse trabalho foi o

lançamento, em 1974, pela Liga, do apelo público em defesa de reivindicações democráticas de

tipo sindical (transportes gratuitos para os recrutas, salários etc.), assassinado por cem soldados

de todas as forças armadas, conhecido como o “apelo dos cem”. Inúmeros comitês de soldados

foram construídos. Em cidades como Draguignan e Karlsruhe, animados por militantes da Liga

como Robert Pelletier e Luc Bénières, respectivamente, os comitês organizaram até mesmo

manifestações de rua de soldados uniformizados, algo jamais visto, como disse Bensaïd295.

Em consequência da ênfase no papel fundamental no processo de transformação

revolucionária, assim como de sua articulação à crença na iminência da revolução, a LC foi

bastante criticada por suposta deriva militarista, na qual a violência minoritária ultraesquerdista

tornava-se cada vez mais o centro de gravidade em torno do qual o partido se orientava. A

espera pelo enfrentamento julgado inevitável conferia à dimensão militar um lugar central, a

fim de “se proteger contra a reação dos explorados expropriados”296. Daí a energia investida na

organização de um Serviço de Ordem (comissão encarregada da segurança) exemplar, sob a

direção, no início, de Henri Weber e de Michel Recanati – Weber havia participado na sua

juventude de uma organização sionista-socialista chamada Hachomer Hatzaïr (“A Jovem

Guarda”), na qual aprendeu, às vezes com a ajuda de soldados israelenses, ensinamentos para

a constituição de um Serviço de Ordem (SO) eficiente. O SO da JCR havia jogado, aliás, um

papel central em maio de 68, sendo responsável pela “segurança” das grandes manifestações

que então ocorreram.

Em 1970, a direção da Liga decidiu criar uma “Comissão Técnica Especial” para - além

da organização do SO - “preparar os golpes baixos, aqueles que não são da legalidade”297.

Apesar da ênfase consciente na necessidade de subordinação da dimensão “militar” (do SO) à

orientação política (e não o contrário), a ascensão da lógica militar ameaçava, para os críticos

da LC, transformá-la no coração da estratégia revolucionária, em detrimento dos outros níveis

de ação do partido. Em Os trotskismos, por exemplo, especialmente no capítulo “A tentativa

insurrecional da LCR nos anos 1970”, o jornalista Christophe Nick critica essa tendência ao

primado da lógica militar, que jogava ao segundo plano os outros setores de atividade do

295 Daniel Bensaïd, Une lente impatience, op.cit., p.225. 296 Ce que veut la Ligue communiste, Paris : Maspero, 1972, p.166. 297 Hervé Hamon et Patrick Rotman, Génération II, op.cit., p.499.

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partido298. Henri Weber, por sua vez, quando já havia aderido ao PS, em uma explicação

autocrítica caricatural e reducionista, destaca o “excesso de testosterona” que estaria, segundo

ele, na base da violência da Liga até junho de 1973299.

Segundo vários testemunhos, além de seu papel decisivo como o mais importante

teórico da linha esquerdista/ultraleninista da Liga no início dos anos 1970, Daniel Bensaïd

estava sempre na linha de frente dos combates de rua e das ações violentas “exemplares” – com

sua “estética do bon coup réussi”300 – promovidas pela Liga. Para Gérard Filoche, por exemplo,

Bensaïd defendia, nessa época, “a preparação prática da luta armada na França”301. De acordo

com Bensaïd, por outro lado, tratava-se, ao menos em sua concepção inicial, de ações antes de

tudo simbólicas, “espetaculares”, e não propriamente violentas. Tratava-se, segundo ele, em

uma perspectiva mais autoindulgente, de “fazer como se”, quer dizer, de mostrar o que “nós

poderíamos ter feito se nós não estivéssemos fixados em nós mesmos os limites a não

ultrapassar, por razões tanto morais como políticas”. Havia, portanto, na opinião de Bensaïd, a

preocupação “para que nossas ações fossem justificáveis e compreensíveis entre os

trabalhadores”302.

Em todo caso, ele próprio sabia, tanto quanto outros membros da Liga, que essa

violência “simbólica” poderia, a todo momento, tornar-se um enfrentamento político e

militarmente perigoso. Essa escalada militarista, sustentada pela LC e IV através do apoio à

luta armada na América Latina, estimulava na França uma expectativa pelo combate inevitável,

impulsionando os debates sobre as estratégias de preparação armada. Era nesse contexto de

violência sistêmica – na América Latina ou na Itália, por exemplo – que a LC replicava uma

visão um tanto simplista da violência revolucionária. Três décadas mais tarde, Bensaïd reprova

a “falta de evolução” da esquerda radical, desde os anos 1960, em relação às transformações

quantitativas e qualitativas da violência sistêmica303. Ainda que crítica em relação aos maoístas

“spontex” (“espontaneístas”) da Gauche Prolétarienne (GP), acusada de defender uma

concepção militarista e minoritária da violência – reprovando, por exemplo, o sequestro de um

298 C. Nick, « La tentative insurrectionnelle de la LCR dans les années 1970 », in : Les trotskistes, Paris: Fayard, 2002, pp.71-131. 299 P. Mobbs. De la JCR à la LCR : histoire d’un parti trotskiste à travers son journal, Rouge (1968-1981),

mémoire de maîtrise, Université de Besançon, 2000, annexe D, p.3. 300 Interview de Daniel Bensaïd, in: Isabelle Sommier, La Violence politique et son deuil, Rennes : PUR, 1998,

p.92. 301 Gérard Filoche, « En dépit de quarante ans de polémiques intimes, hommage au militant Bensaïd, Jebracq,

Ségur ». Blog du Gérard Filoche, www.filoche.net. 302 Idem, p.214. 303 Idem, p.212.

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executivo da Renault pelos militantes da GP, em represália ao assassinato do militante maoísta

Pierre Overlay em 1972 –, o fato é que a LC também flertou com essa “fetichização” da

violência revolucionária. A diferença é que, apesar de utilizar essa violência, a LC tinha muito

mais com as consequências políticas dessas ações “musclées”.

Bem mais tarde, quando retoma o assunto, Daniel Bensaïd parece cultivar uma posição

ambígua. Ao mesmo tempo em que critica os equívocos e os limites dessa “retórica da violência

libertadora inocente”, ele tende a subestimar sua própria adesão e participação, na época, na

reprodução dessa concepção, como se desde o início já houvesse percebido os perigos de uma

concepção estreita do papel da violência no quadro de uma política revolucionária. Assim, por

exemplo, sobre a sua experiência na Argentina, no início da década de 1970, ele afirma: “Minha

missão inicial na Argentina me vacinou contra uma visão abstrata e mítica da luta armada. Eu

constatei que as armas não são uma fronteira instransponível entre reforma e revolução e que

pode existir um reformismo armado: a longa história do populismo latino-americano fornece

muitos exemplos”304. Existe sempre o perigo, diz Bensaïd, de um confinamento na lógica

estreita (e politicamente reducionista) das armas, provocando uma espiral autoreprodutora:

“comprar armas, estocá-las [...], alugar casas operacionais, manter os militantes clandestinos

custa caro. É preciso dinheiro. Para alcançá-lo, é necessário expropriar bancos”. Do mesmo

modo, “para expropriar bancos, é preciso armas. Nessa espiral, cada vez mais militantes são

profissional e socialmente desenraizados. Em lugar de se fundir em um meio social como um

peixe na água, sua existência depende cada vez mais de um aparelho em expansão”305.

Mais precisamente no que se refere à Liga, o debate sobre a questão do papel da

violência em uma política revolucionária começou a ser realizado em seguida aos confrontos

com a polícia em uma contramanifestação organizada por ocasião de um encontro do grupo

Ordre Nouveau (germe do que seria, mais tarde, a Frente Nacional) contra a “imigração

selvagem”, na Mutualité, dia 21 de junho de 1973. Segundo vários testemunhos, esse episódio

tornou-se um acontecimento “mítico” no interior da Liga e da extrema-esquerda francesa,

destacando a reputação violenta e militarista da organização. A luta contra a extrema-direita e

o fascismo era para a LC um “dever sagrado”: “Não à liberdade para os inimigos da liberdade”,

gritavam os militantes, de tal forma que era necessário “esmagar o fascismo no ovo”. Mais

especificamente, a Liga não deixava passar nenhuma manifestação da ON sem a organização

304 Daniel Bensaïd, Une lente impatience, op.cit., p.194, 5. 305 Idem, p.195. Segundo Bensaïd, no seu apogeu, o PRT (Argentina) “tinha um orçamento comparável àquele de

um (pequeno) Estado africano”, idem, p.195.

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de contramanifestações. Como afirmou Alain Krivine, “a cada iniciativa de ON, nós tentávamos

organizar contramanifestações radicais. Nós almejávamos impedir assim a banalização de suas

iniciativas”306.

No momento da divulgação do meeting de ON em 1973, os debates na direção da LC

sobre qual atitude tomar revelaram posições divergentes. Segundo Krivine, enquanto uma

minoria era contra uma ação violenta, sob o pretexto dos riscos que tal ação pudesse ser mal

compreendida pela população, a maioria – da qual ele e Daniel Bensaïd faziam parte – acabou

por decidir pela organização de uma contramanifestação radical, visando ao enfrentamento

direto com o SO de Ordre Nouveau307. Com Michel Recanati e Charles Michaloux, Daniel

Bensaïd foi encarregado da direção das operações: alguns dias antes do conflito, eles estocaram,

em caixotes de uma construção em andamento, uma quantidade considerável de coquetéis

molotov e barras de ferro, a fim de utilizá-las no grande dia. Reunindo por volta de 5000 pessoas

(de acordo com Alain Krivine), o primeiro confronto do cortejo ocorreu com a polícia, que se

interpôs entre os militantes da LC e simpatizantes e o SO de Ordre Nouveau, nas proximidades

da Mutualité.

Nas palavras de Daniel Bensaïd, que não esconde uma certa satisfação ao falar/escrever

sobre o episódio: “após o primeiro ataque e a primeira cortina de fogo, o medo dominado se

transforma em furor. Como uma mola que relaxa, a audácia dos manifestantes tornava-se

inversamente proporcional ao pânico que lhe precedera. Nós nunca tínhamos visto um tal salve-

se-quem-puder de policiais correndo, se empurrando, rolando na sarjeta, com manifestantes

furiosos sobre seus calcanhares. Enquanto as linhas de frente os atacavam, grupos móveis

laterais os bombardeavam com coquetéis [...]. De coelhos tínhamos passado a caçadores”308.

Depois do confronto, o saldo esteve à altura: mais de 70 policiais feridos. Após se afastarem

entusiasmados da Mutualité, os militantes foram em direção à Praça da Bastille, onde uma

tragédia quase aconteceu: quando uma viatura da polícia passava pela praça, com as sirenes

ligadas, alguns militantes da LC jogaram um coquetel molotov no veículo, incendiando-o quase

imediatamente. O policial e o condutor conseguiram sair do carro: o primeiro, fora da viatura,

ainda foi agredido por um punhado de militantes, enquanto o segundo, tendo melhor sorte,

recebeu ajuda para apagar as chamas. “Em 21 de junho, afirma Jean-Paul Salles, a catástrofe

306 Alain Krivine, Ça te passera avec l’âge, op.cit., p.140. 307 Idem, p.140, 1. Segundo C. Nick, o ataque foi decidido por alguns membros da direção (Krivine, Bensaïd e

Michel Recanati), sem que Gérald Filoche, que era contra esse tipo de ação, tenha sido informado. Cf. Nick, Les

trotskistes, op.cit., p.109. 308 Daniel Bensaïd, Une lente impatience, op.cit., p.168.

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foi por pouco evitada. É in extremis que militantes do SO impediram que alguns excitados

linchassem os dois ocupantes de um carro da polícia em fogo”309.

No dia seguinte aos conflitos, o governo – através de seu ministro do interior Raymond

Marcellin – decretou a dissolução da LC e, para dar um ar de imparcialidade, também da ON.

Acusado de tentativa de morte dos agentes da força pública, Pierre Rousset – do bureau político

da LC, mas que não tinha participado da manifestação – foi preso no dia 22 de junho de 1973,

na sede da LC, então na rua Saint-Antoine. Alain Krivine, que estava em Nice na noite dos

enfrentamentos, se entregou à polícia, por decisão da direção da Liga. Mas, para bem aproveitar

da publicidade política da prisão, a Liga dissolvida organizou uma conferência de imprensa no

primeiro andar de um café na praça Châtelet, “com a presença de uma multidão de jornalistas

e de representantes de diversas organizações que foram testemunhar sua solidariedade. Estavam

lá, por exemplo, Charles Hernu pelo PS, Edmond Maire, então secretário geral da CFDT, a Liga

dos Direitos do homem e muitos outros”310. Em seguida à conferência de imprensa, Krivine foi

à sede do PS para encontrar François Mitterrand, que lhe afirmou sua solidariedade contra a

repressão. De lá, Krivine voltou à sua casa, onde se entregou às forças policiais. Ele seria solto

em 5 semanas, dia 2 de agosto de 1973; Pierre Rousset, por seu turno, ficou preso muito mais

tempo.

Michel Recanati (“Ludo”), considerado o principal responsável pela ação, partiu

imediatamente para a Suíça, sendo preso algum tempo depois. Ainda que breve, a prisão

constituiu, na vida de Recanati, o início de uma espiral que iria conduzi-lo ao suicídio em 1979.

Daniel Bensaïd e Henri Weber, por sua vez, uma vez mais, encontraram refúgio no apartamento

de Marguerite Duras. Mesmo se, mais tarde, ele afirmaria a necessidade de uma reflexão mais

substantiva sobre as complexidades da relação entre política e violência – na medida em que o

debate sobre a “dialética do direito e da força”, desde Walter Benjamin ou Georges Sorel, não

teve os prolongamentos e os aprofundamentos que requeriam –, Daniel Bensaïd continuava,

ainda em 2004, a escrever sobre o episódio de junho de 1973 com um certo encantamento, até

mesmo um certo prazer: “Essa noite, a reunião de balanço foi jubilosa, a despeito das vagas

inquietudes quanto às atitudes a tomar dali em diante”. Além disso, segundo ele, mesmo que

“estrategicamente discutível, a ação do 21 de junho foi hegemonicamente bem vista nas

empresas”311.

309 Jean-Paul Salles, La Ligue communiste révolutionnaire, op.cit., p.91. 310 Alain Krivine, Ça te passera avec l’âge, op.cit., p.143. 311 Daniel Bensaïd, Une lente impatience, op.cit., p.169, 170.

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Seja como for, a ação acabou por suscitar reflexões, debates e, sobretudo,

questionamentos sobre os perigos de uma deriva esquerdista e militarista, tornando-se um

momento importante da história da Liga, ao impulsionar uma revisão da linha política adotada

pela organização. Desde o dia seguinte ao ocorrido, a atmosfera era tensa: “os quadros do

movimento”, escrevem Hamon e Rotman, “compartilhavam o sentimento de ter ido muito

longe; o objetivo fixado foi ultrapassado e os trotskistas tinham a impressão de terem sidos

atraídos em uma engrenagem que eles não souberam controlar”312. A maior parte da direção

logo criticou – sem colocar em questão a necessidade de uma resposta ao meeting racista de

ON – “a forma que ela assumiu, a preparação insuficiente, a ausência de cobertura

democrática”313. Henri Weber e, sobretudo, Janette Habel, denunciaram a “ação exemplar”

como uma forma de ativismo que mal escondia a impotência política e a ausência de um

verdadeiro trabalho de construção e de explicação das ações da vanguarda. Responsável pelo

“setor operário” da Liga, J. Habel já defendia, à época, um esforço de “proletarização”, de

implantação obstinada nas empresas, desconfiando do ativismo esquerdista dos jovens tenores

da organização314. Os responsáveis pela ação, por sua vez, tentaram defendê-la, malgrado a

dificuldade da tarefa. Como reconhece Bensaïd: “diretamente responsável pelo 21 de junho, a

troika formada por Recanati, Michaloux e eu mesmo não estava nada inclinada à autocrítica”315.

Curiosamente, eles receberam o apoio inesperado dos “antigos” Pierre Frank e Michel

Lequenne, para os quais as inúmeras demonstrações de solidariedade em favor da Liga

justificavam as eventuais derrapagens militares.

Em um outro nível, a ação do 21 de junho de 1973 jogou luz sobre outra crise que então

já começava a aparecer: a crise de um certo modelo militante, elaborado conforme as

orientações de Lênin, mas intensificada no caso da Liga em função do hiperleninismo

“politicista” que, no plano da militância, estimulava um “bolchevismo voluntarista”, “fictício”.

Segundo Alain Krivine, “nesses anos, os pseudônimos, o serviço de ordem, as viagens mais ou

menos clandestinas simbolizavam um certo estilo de militantismo. Eles contribuíram para dar

à Liga uma imagem de grupúsculo esquerdista e inquietante”316. Em um texto publicado na

revista Critique Communiste (número especial sobre “militantismo e vida cotidiana”), no final

312 Hamon & Rotman, Génération II, op.cit., p.497, 498. 313 Idem, p.498. 314 Idem, p.498. Nas palavras do próprio Bensaïd: “Os responsáveis pelo setor das empresas voltaram-se contra as

derivas esquerdistas. Eles estimavam que a desaventura nos desorganizava em um momento crucial para nossa

implantação operária”. Daniel Bensaïd, Une lente impatience, op.cit., p.171. 315 Daniel Bensaïd, Une lente impatience, op.cit., p.171. 316 Alain Krivine, Ça te passera avec l’âge, op.cit., p.145.

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de 1976, Denise Avenas e Alain Brossat debatem de modo crítico sobre o tipo de militantismo

que teria marcado os primeiros anos da Liga. Esse texto (assim como os outros do dossiê) é

particularmente interessante porque, através da questão da “crise do militantismo”, os autores

abordam problemas políticos centrais da Liga, os quais residiriam na linha ultra-leninista

preconizada pela direção e traduzida teoricamente por Daniel Bensaïd. “O hiperleninismo

propagandista, no terreno geral da prática revolucionária tinha como correspondente inevitável,

no plano do modelo militante, um bolchevismo voluntarista”317.

De acordo com Avenas e Brossat, o “hiperleninismo” da Liga, ancorado em um

diagnóstico da iminência da crise revolucionária, concentrando-se em questões diretamente

políticas (ou mesmo “militares”), teria impulsionado uma concepção viril, masculina, heroica,

da figura do militante revolucionário “profissional”, na qual não há lugar para a compreensão

da crise das relações sociais e dos valores testemunhados pela emergência dos “novos”

movimentos sociais como o feminismo. Em nome do combate contra as derivas hedonistas ou

libertárias (“pequeno-burguesas”) saídas de maio de 68, a Liga teria, aos olhos dos autores,

negligenciado “a dimensão das mutações sociais em curso sob a forma de crise das relações

sociais, das instituições, do sujeito, crise que deveria ter constituído uma dimensão nova da

prática revolucionária”318. Em outras palavras, a Liga teria permanecido no quadro de um

“moralismo ultraconservador”, que reproduzia as formas da moral dominante então em crise.

“Sociologicamente, ideologicamente, a organização que nós construímos cumpriu um papel de

casulo que nos protegia das ‘agressões’ inerentes à crise das relações sociais”319.

Assim, não por acaso, toda forma de questão “privada” aparecia como um problema

“pequeno-burguês”, “não proletário”: “nós relegávamos à penumbra nossos ‘problemas

pessoais’, reproduzindo ao nosso modo a cisão burguesa do indivíduo ‘privado’ e do indivíduo

‘público’”. Desta maneira, a Liga (e a extrema-esquerda de forma geral) não teria logrado

perceber a crise da individualidade burguesa que colocava em questão o modelo do militante

revolucionário profissional, inteiramente dedicado à causa (da revolução iminente). Como

afirmam os autores, “nós nos encontramos acossados por problemas que, politicamente, nós

tínhamos não apenas negligenciado, mas claramente rejeitado”320.

317 Denise Avenas & Alain Brossat, « Notre génération », in : Critique Communiste, n.11/12, 1976/7 (dossier

« militantisme et vie quotidienne »), p.23. 318 Idem, p.24. 319 Idem, p.24. 320 Idem, p.25.

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Para eles, figuras clássicas do marxismo revolucionário, como o próprio Marx, Lênin

ou Trotsky constituíam em certa medida “produtos” singulares da individualidade burguesa que

se constituiu na fase ascendente do capitalismo. Eles encarnavam “a forma mais elevada da

individualidade revolucionária burguesa, ao mesmo tempo em que se constituiu uma imagem

do militante revolucionário cujos fundamentos remetiam aos valores da burguesia

ascendente”321. Nem Lênin nem Trotsky não puderam colocar em questão as consequências da

cisão entre a “vida política”, militante, e uma vida privada reduzida ao mínimo, e que, em

função disso, reproduzia alguns traços das normas e costumes da época. “Lênin e Trotsky

viviam uma parte de sua existência segundo os cânones que não os afastavam

consideravelmente das normas em vigor à época, tampouco da ideologia dominante. Porque o

complemento de sua existência inteiramente mobilizada pela prática política é um modo de vida

enraizado nas formas comuns de existência da sociedade burguesa em sua belle époque”322.

Ora, com as novas reivindicações dos movimentos sociais pós-maio de 68 – que buscavam

responder aos novos desafios impostos pela “crise das relações sociais” –, a situação tornou-se

profundamente diferente daquela da época de Lênin e Trotsky. A transformação da

“consciência social e política das massas” impunha a necessidade “de uma extensão do campo

da prática revolucionária, de um aprofundamento e de uma extensão da reflexão marxista

revolucionária em domínios até então pouco ou nada explorados”323.

Para Frédérique Vinteuil (pseudônimo utilizado por Monique Saliou), tal como para

Denise Avenas e Alain Brossat, Daniel Bensaïd era diretamente responsável não apenas pela

linha política ultraleninista, mas também pela afirmação de um modelo militante coerente com

essa perspectiva, ou seja, um militante “orgulhoso de seu combate, silencioso e desconfiado

sobre sua vida privada, afastando-se no pôr do sol em direção à sua ‘solidão solidária’”. Em

busca de uma “virilidade mística”, o militante projetado por Bensaïd não se distingue dos

“mitos” vinculados à figura do revolucionário profissional, cuja reverência ao partido de tipo

leninista mal oculta um “empilhamento hierárquico”326. Circunscrito em seu leninismo

impaciente, “politicista”, Bensaïd não teria percebido a dimensão da “crise do militantismo”

que atravessava a Liga e as demais organizações revolucionárias, razão pela qual mesmo em

um texto em que buscava abordar a questão – o último capítulo do livro La Révolution et le

321 Idem, p.39. 322 Idem, p.44. 323 Idem, p.41. 326 Idem, p.68.

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Pouvoir (1976), intitulado “A inquietude militante” –, ele não ultrapassou uma abordagem

superficial do problema327.

A este propósito, a valorização da figura do “Che”, que outrora havia servido como

estimulante para a radicalização anticapitalista e antistalinista dos jovens fundadores da LC, era

visualizada agora como uma das razões da leitura voluntarista de Lênin e da tradição

revolucionária, a qual incentivava uma concepção “ativista” da vida militante, tal como

defendida por Bensaïd e pelos outros membros da maioria da direção da Liga. Aos olhos de

Frédérique Vinteuil, por exemplo, se os escritos de Che Guevara sobre o “homem novo” (como

Le socialisme et l’homme à Cuba) lhes havia servido como contraposição à pobreza stalinista,

eles concorreram igualmente para a proliferação de valores “ascéticos” como a exaltação do

sacrifício sob o fundo de uma “fraternidade viril”. Na sua opinião, “nossa organização, desde

68, viveu ao mesmo tempo sobre o vazio teórico no que se refere à vida privada e sua interação

sobre a vida militante, e sobre um condensado desfocado da tradição moral revolucionária tal

como o guevarismo o exprimia em matéria de vida política”328.

Todos os textos do dossiê chegam à “conclusão” que, diante da chamada “crise do

militantismo”, seria preciso enriquecer as concepções do marxismo revolucionário com os

novos desafios legados pela crise dos valores burgueses que se manifestou em maio de 68.

Nessa perspectiva, a crise seria também uma oportunidade: “a crise militante de hoje tem o

mérito inegável de estimular o surgimento da exigência de outros parâmetros para definir a

consciência revolucionária”, afirma Frédérique Vinteuil329. Segundo ela, “é necessário

encontrar outras razões para militar”, uma vez que, à diferença do grande entusiasmo do pós-

maio 68, a militância tornou-se em certa medida uma “aposta” em que a vitória não é garantida,

“uma verdadeira aposta no sentido da vida e da morte”330. Por isso mesmo, tratar-se-ia para

Vinteuil de se “militar sem mitologias”. Nas palavras de Michel Lequenne: “Nós estamos [...]

em um momento [em que] o militantismo revolucionário deve se despojar de todo romantismo,

[privilegiando] o trabalho de toupeira. Nós valorizamos em demasia a palavra-de-ordem do

Che: ‘o revolucionário é aquele que faz a revolução’, sem perceber que a este respeito, nem

Marx e Engels, tampouco Lênin e Trotsky durante a maior parte de suas vidas, não poderiam

ser considerados revolucionários. De fato, o revolucionário é aquele que prepara a revolução

327 Denise Avenas & Alain Brossat, “Notre génération”, op.cit., p.20, 21. 328 Idem, p.66, 67. 329 Frédérique Vinteuil, “Militer sans mythologie”, in : Critique Communiste, n.11/12, 1976/7 (dossier

« militantisme et vie quotidienne »), p.66. 330 Idem, p.68.

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e, quando ela ocorre, esforça-se por dirigi-la [...]. As derivas em relação a essa condição

conduzem diretamente ao substitucionismo”331.

2.3. 1974 e a criação da LCR: a atualização da estratégia leninista-revolucionária

Seja no plano propriamente político, seja no plano da concepção organizacional e

militante, a ação do 21 de junho de 1973 ativou no interior da Liga um debate sobre a linha da

organização, cujo resultado seria um questionamento parcial da perspectiva ultraleninista

teorizada por Bensaïd e até então hegemônica no partido. A ação, especialmente suas

consequências (dissolução da Liga, prisões de alguns dirigentes etc.), constituiu assim a ocasião

para uma mudança da perspectiva política e organizativa, ainda no quadro do leninismo, mas

de um leninismo nuançado em função dos novos desafios impostos à esquerda revolucionária.

Após a dissolução em junho de 1973, por volta de trinta “ex” da Liga divulgaram um

apelo pela criação de um Front communiste révolutionnaire. Entretempo, o jornal Rouge

continuou a ser publicado, não mais como “órgão da Liga Comunista”, mas simplesmente como

“jornal de ação comunista”. No apartamento do ator Paul Crauchet, no terceiro arrondissement

de Paris, Daniel Bensaïd e Alain Brossat eram os responsáveis pela continuidade da publicação.

Na esfera logística, Politique hebdo e o jornal cotidiano Libération – que havia sido fundado

nesse mesmo ano, 1973, sob a bandeira do maoísmo – emprestavam seus teclados de

fotocomposição e suas mesas de luz para layout. Através do jornal, os militantes da Liga

organizaram ao longo desse período campanhas contra a dissolução e de apoio aos

trabalhadores da empresa Lip em greve. A sobrevivência do jornal permitiu aos militantes da

ex-Liga “transformá-lo em vetor de uma campanha de apoio imediata e relativamente massiva”

à organização dissolvida332.

Mesmo o PCF, que não hesitava em condenar o “esquerdismo pequeno-burguês” da

Liga e dos outros “grupúsculos” (tal qual os maoístas), acabou por declarar solidariedade,

criticando o decreto de dissolução da LC. Em uma carta aberta ao então ministro do interior,

Daniel Bensaïd felicitou-se explicitamente pela condenação, por parte do PCF, da medida

repressiva. Por pouco que pareça, tratava-se de algo jamais visto. O editorial da revista da IV

Internacional de novembro-dezembro de 1973, não sem alguma malícia, revelou a surpresa e o

contentamento de ver um “partido stalinista” assumir a defesa de um grupo trotskista depois de

331 Michel Lequenne, in : Critique Communiste, n.11/12, 1976/7 (dossier « militantisme et vie quotidienne »), p.58. 332 Jean-Paul Salles, La Ligue…, op.cit., p.146.

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50 anos da mais pura hostilidade, desde o nascimento da “oposição de esquerda”333. No meeting

no Cirque d’Hiver contra a prisão de Alain Krivine, sob a bandeira do recém-criado “Coletivo

pela defesa das liberdades”, a “única” exigência prévia do PCF para a participação no encontro

era a ausência de qualquer membro da Liga dissolvida dentre os oradores. Seria demasiado para

o partido e seu velho dirigente Jacques Duclos. Ao mesmo tempo, além das manifestações da

esquerda política, o apoio à LC mobilizou artistas e intelectuais como Sartre e Simone de

Beauvoir, Michel Foucault, Michel Leiris, o matemático trotskista Laurent Schwarz, o

sociólogo Alain Touraine, o cineasta Constantin Costa-Gavras ou o operário (líder da greve da

Lip) Charles Piaget334.

Com a morte de Georges Pompidou, no início de abril de 1974, e a convocação de novas

eleições para o mês seguinte, a FCR rechaça a possibilidade de apoiar desde o primeiro turno a

candidatura de François Mitterrand pelo PS. Em um artigo da época publicado em Rouge

hebdomadaire, Bensaïd anuncia a disposição da FCR em votar pela “União da Esquerda” (PS-

PCF) no segundo turno, à condição, afirma ele de modo um tanto impreciso, que a aliança “não

aceite uma coalização governamental com partes significativas da burguesia”336. Para o

primeiro turno, a Liga propõe à extrema-esquerda e às correntes de esquerda do PSU a

candidatura de Charles Piaget, operário de Lip e militante da CFDT, figura expressiva da nova

combatividade operária do pós-maio de 68. Aliando-se à candidatura de Mitterrand, a direção

(Michel Rocard) e a maioria do PSU declinaram do convite. Aparentemente sem outra opção,

a FCR decide apresentar mais uma vez Alain Krivine como candidato às eleições presidenciais:

dessa vez, ele teria apenas 0,36% dos sufrágios, recolhendo 93990 votos, um recuo em relação

à eleição anterior, em 1969 (230 mil votos)337.

Em seguida ao relaxamento das acusações da justiça, os ex-militantes da Liga criaram

a Ligue communiste révolutionnaire, em um congresso de fundação realizado em dezembro de

1974. Essa refundação coincidiu com o primeiro “tournant operário” da Liga, o qual reatava

com uma perspectiva mais “clássica” em relação ao movimento operário e às camadas

populares, na contramão do voluntarismo excessivo do pós-maio. A partir de então, os

militantes foram estimulados a trabalhar em certas fábricas, provocando no interior da

333 Revue QI, novembre-décembre 1973. Cité par Jean-Paul Salles, La Ligue…, op.cit., p.146. 334 Cf. Hamon & Rotman, Génération II, op.cit., 508, 509. Militantes da Liga participaram como figurantes no

filme Section Spéciale, de Costa-Gravas. 336 Rouge hebdomadaire, n.251, 19 avril 1974. Cité par Jean-Paul Salles, La Ligue…, op.cit., p.148. 337 Cf. Jean-Paul Salles, La Ligue…, op.cit., p.148. No primeiro turno, Mitterrand teve 43% dos sufrágios contra

33% de Valéry Giscard d’Estaing, que ganharia, porém, no segundo turno, com 50,81% dos votos e 425 mil votos

a mais que o adversário.

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organização uma “onda de formações profissionais, de empregos industriais, de mutações

geográficas”338. Simultaneamente, a LCR lança os Cahiers de la Taupe, cuja editora era Sophie

(companheira de Daniel Bensaïd até o final de sua vida) e que servia como aporte para a

militância nas fábricas e nos sindicatos, a fim de construir tendências “lutas de classes” na

Confédération Générale du Travail (CGT) e/ou na Confédération française démocratique du

travail (CFDT).

Mais do que uma mudança de nome (na verdade, um acréscimo de revolucionária), a

refundação da Liga marcava uma nova etapa em relação ao ativismo desenfreado que vigorara

até então, sem, todavia, com ele romper totalmente. Segundo Krivine, a dissolução de junho de

1973 “fecha uma época”, aquela do primado da ação direta, na rua. “Nós não tínhamos total

consciência, mas o movimento estudantil se esgotava. A ascensão da União de Esquerda, o

renascimento do PS [e] o aparecimento de uma solução eleitoral transformavam as condições

de nossa intervenção política”339. Uma vez mais, Daniel Bensaïd seria um dos responsáveis pela

“nova” linha política, menos “substitucionista” e baseada no partido concebido como “falange

da história”, e mais voltada para as “modalidades de sua construção em relação com o

desenvolvimento da consciência de classe”. A tarefa central para a LCR torna-se então a

conquista, na contramão dos “reformistas”, do que o X Congresso da IV Internacional, ocorrido

igualmente em 1974, havia denominado “Vanguarda operária ampla”.

Na obra de Daniel Bensaïd, perfeitamente expressivo dessa (relativamente) nova

perspectiva é o livro La Révolution et le Pouvoir, redigido em 1975 e publicado no ano seguinte.

Nas quase quinhentas páginas da obra, Bensaïd se engaja em uma reflexão sobre as

complexidades da transição ao socialismo, jogando luz nas questões ligadas à construção de

uma nova hegemonia antes e depois da ruptura revolucionária, em especial (mas não apenas)

quando se trata de países do “centro” do sistema. “A primeira revolução proletária deu sua

resposta ao problema do Estado”, afirma Bensaïd na abertura do livro. “Sua degenerescência

nos lega aquele do poder. O Estado deve ser destruído, sua maquinaria quebrada. O poder deve

ser desfeito, em suas instituições, suas ancoragens subterrâneas (a divisão do trabalho,

notadamente)”. Com efeito, “como a luta através da qual o proletariado se constitui em classe

dominante pode, malgrado a contradição aparente, contribuir nesse processo?”. De acordo com

Bensaïd, o partido de vanguarda é ainda o instrumento através do qual o proletariado pode

superar a “força da ideologia dominante”: “Somente uma minoria, uma vanguarda, pode se

338 Daniel Bensaïd, Une lente impatience, op.cit., p.235. 339 Hamon & Rotman, Génération II, op.cit., p.514.

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elevar acima do horizonte da produção mercantil generalizada pelo capitalismo; e a maioria

apenas pode ascender a essa visão de seus próprios interesses históricos gerais em situações de

crise, rupturas, perturbação da ordem estabelecida”.

Tal como havia escrito em sua dissertação de mestrado, ou no artigo da revista Partisans

em 1969 (ao lado de Sami Naïr), somente o partido pode dar uma saída vitoriosa à crise

revolucionária, através da tomada do poder político. Mas, em La Révolution et le Pouvoir (e

em outros textos políticos de Bensaïd deste período), a atenção às modalidades da dominação

e da construção da consciência de classe, bem como ao peso relativo das direções reformistas,

impõe uma concepção mais nuançada, por assim dizer, da preparação prévia à tomada do poder,

de onde o interesse pelo papel de dispositivos institucionais como a família conjugal-

monogâmica – instância disciplinar visando a manutenção da esfera reprodutiva da vida privada

– ou a instituição escolar – cuja crise significa a crise de um modelo de controle e de

normalização essencial. O importante, para Bensaïd, era apreender o “enraizamento” dessas

questões sobre o poder e as instituições (e as dominações e opressões) na divisão do trabalho,

“que constitui a base”. Trata-se de uma questão estratégica, já que a existência (ou não) dessa

articulação determina a perspectiva política assumida: “A crítica das instituições não pode

perder de vista esse ponto de fixação [...]. Perdendo esse ponto de referência, orienta-se em

direção a uma grande frente de revoltas, um movimento de libertação de todos os oprimidos e

aliados no qual se dissolvem os contornos do interesse de classe”340.

Para Bensaïd, os desafios estratégicos da LCR em meados dos anos 1970 eram parecidos

àqueles da III Internacional: após um período esquerdista, com a euforia da ascensão

revolucionária, o terceiro e, sobretudo, o quarto congresso marcaram uma virada na III

Internacional, colocando em marcha a tática da Frente Única e do governo operário. Do mesmo

modo, se, após 1968, a LC recaiu em uma posição esquerdista, na qual o partido seria a tradução

consciente de um movimento inconsciente já em andamento, à espera da próxima crise, o

momento havia chegado, com a formação da LCR em 1974, para a reconfiguração da

perspectiva político-estratégica. Tratava-se de “tentar retomar onde ele foi interrompido o

debate estratégico da III Internacional, aprofundando-o à luz das experiências contemporâneas,

e mostrando em que a política revolucionária é parte integrante de um projeto de sociedade, o

do socialismo que nós queremos”, conforme escreve em La Révolution et le Pouvoir.

340 Daniel Bensaïd, La Révolution et le Pouvoir. Paris : Stock, 1976, p.96.

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A reafirmação da tradição revolucionária se acompanhava assim de uma

problematização das questões do poder e da dialética das relações entre democracia socialista

e auto-organização das massas, entre hegemonia e ditadura do proletariado, a fim de se opor a

um só tempo aos reformismos “stalinista” (PCF)341, “socialdemocrata” (PS), “autogestionário”

(PSU, Rocard) e/ou “eurocomunista”, e aos “novos filósofos”, ex-esquerdistas que haviam

embarcado na onda “antitotalitária”. “Fundar uma démarche revolucionária que parta de uma

crítica radical do stalinismo, é polemizar tanto com as organizações reformistas do movimento

operário quanto com as correntes que, perdendo toda bússola, derivaram à direita, mesmo

quando fizeram a viagem de Maio”. O diagnóstico é duro, e muito menos otimista que os textos

do pós-maio: “Não queremos acusar ninguém. Mas somente dar o alerta. Há hoje uma ideologia

de direita em gestação na Universidade [...]. O perigo é tanto mais real porque maio de 68 ainda

não produziu sua geração de intelectuais revolucionários, e porque os maîtres-à-penser da

esquerda universitária se dividem hoje entre a corrente althusseriana, explicitamente ao serviço

dos projetos políticos do PCF, e a corrente dos desejantes-derivantes da qual é preciso situar a

função”.

Para Bensaïd, nesse momento, em face da capacidade de resistência das direções

reformistas, era mais do que nunca necessário analisar novamente as relações entre os

movimentos sociais de massa e suas articulações políticas, à diferença das análises do pós-maio,

nas quais a subestimação da problemática da Frente Única decorria da esperança de um

transbordamento generalizado do movimento dos trabalhadores por sobre os limites do

reformismo. O partido revolucionário não constitui mais o agente abstrato da verdade histórica

encarnada pelo proletariado, à espera do grande dia, mas antes de tudo um instrumento capaz

de intervir nos diversos níveis da luta dos trabalhadores, impulsionando-a na direção da

unificação da classe (através, mas não só, das FUs) e do enfrentamento contra a ordem

burguesa. O papel decisivo do partido se deve exatamente a essa tarefa de unificação da classe,

por meio de suas próprias lutas. Não por acaso, Bensaïd visualizava com muito menos

indulgência, se comparado aos escritos anteriores, as possibilidades que se abriram em maio de

68: “Se, na lembrança de 68, a festa toma a frente sobre o combate, é porque a questão do poder

341 Na ótica de Bensaïd, a passagem do PCF ao reformismo selou-se em definitivo com o abandono da noção de

“ditadura do proletariado” em 1976. Como ele diria em 1979: “Na prática, o abandono da ditadura do proletariado

e sua superação formal pela articulação da democracia mista acabam por legitimar as instituições parlamentares

[...], opondo-se aos órgãos de democracia direta no momento em que eles entram em conflito”. Cf. Daniel Bensaïd,

“Grève générale, front unique, dualité du pouvoir”, in: Critique communiste, n. 26, janeiro de 1979; por isso,

tratava-se, sob nova roupagem, do ressurgimento do “velho debate entre bolchevismo e revisionismo (sob suas

variantes social-democratas, austro-marxistas ou euro-comunistas) que ressurge com vigor”. Cf.

“Eurocommunisme, austromarxisme et bolchevisme”, in: Critique communiste, n. 18-19, 1977.

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não se colocou de modo prático, concretamente. Os reformistas não queriam sequer ouvir falar

[da questão do poder]. E a classe operária, saindo de várias décadas de legalismo, de anestesia

parlamentar, deu apenas passos, pequenos, hesitantes, na direção da construção de seus próprios

órgãos de poder. Para um movimento grevista dessa amplitude, alguns comitês de ação,

algumas experiências de controle operário, é irrisório”342.

Em um artigo co-escrito com Antoine Artous, publicado em 1977 na revista Critique

Communiste, Daniel Bensaïd coloca em questão as concepções do proletariado enquanto sujeito

homogêneo, cujo partido seria a expressão consciente. Se existe um “vínculo dialético entre a

construção do movimento operário e a construção de uma consciência social, coletiva, sobre a

qual se desenvolvia a subversão da dominação capitalista”, essa consciência “não se opõe a

uma não-consciência”, em outras palavras, “ela não constitui a razão de uma desrazão”343. Ela

constitui antes um processo social, de modo que o sujeito portador da “consciência de classe”

não é “a réplica ou a projeção coletiva do sujeito individual da psicologia clássica”. Essa

equação clássica entre sujeito, consciência e razão, atingida em cheio pela crise da

individualidade burguesa, não pode funcionar porque, entre outras coisas, o proletariado não é

“uma unidade espontaneamente constituída. Ele teve que se definir na sua luta, em meio a sua

heterogeneidade e suas diferenças”. A identidade do proletariado como classe (“o sentimento

de pertencimento dos seus membros”) não constitui um dado espontâneo: de sua existência

objetiva à sua expressão consciente “há a lacuna da luta e de um processo histórico

complexo”344.

Daí a importância, segundo Bensaïd e Artous, da “luta cultural no sentido amplo”, a

qual não é simples subproduto da luta de classes, mas antes um elemento ativo, “constitutivo

da própria consciência de classe, um teste das capacidades do proletariado de conduzir a

transição em direção a uma sociedade diferente”. Essa luta é ainda mais importante em um

momento da evolução do capitalismo cuja generalização da produção e consumo de

mercadorias provocou a perda da “autonomia cultural” e da “identidade de classe” que, outrora,

se manifestava nos partidos e organizações operárias, que constituíam verdadeiras contra-

sociedades, tal como no exemplo clássico da socialdemocracia alemã do início do século XX345.

342 Daniel Bensaïd, La Révolution et le Pouvoir, op.cit., p.14, 15. 343 Daniel Bensaïd & Antoine Artous, “Hégémonie, autogestion et dictature du prolétariat”, in: Critique

Communiste, n.16, 1977, p.55 344 Idem, p.56 345 Idem, p.58, 59.

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Essa batalha hegemônica, que reconhece a diversidade dos movimentos sociais, não

invalida, na ótica de Bensaïd, a centralidade da luta de classes e, mais ainda, o papel decisivo

da luta política, a partir da estratégia de unificação da classe. “A questão é saber precisamente

como a luta específica desses movimentos socioculturais pode se articular à luta de classe sobre

os locais de produção, em uma frente de classe orgânica e não em uma adição inconsistente das

frentes de luta”346. Na medida em que “o revisionismo é [ainda] o perigo principal” e “a

clivagem determinante no âmbito do movimento operário permanece aquela entre

revolucionários e reformistas”, apenas uma estratégia baseada na independência de classe pode

se tornar o núcleo pelo qual se pode articular uma “alternativa social de conjunto”. Em outros

termos, somente o movimento organizado dos trabalhadores permite a construção de uma

alternativa revolucionária tanto no plano econômico, político e social quanto no cultural, moral

e do “modo de vida”. Sob uma estratégia político-revolucionária, a necessidade da luta

hegemônica prolongada “não anula as noções estratégicas centrais de crise revolucionária e de

dualidade de poder”347.

Em certa medida, tratava-se, em Daniel Bensaïd, essa extensão relativa do campo de

reflexão sobre a prática revolucionária, de uma espécie de “resposta” às críticas recebidas em

função da linha ultraleninista e “politicista” da Liga, da qual ele foi um dos principais

responsáveis teóricos. Ao mesmo tempo, embora não significasse uma ruptura com a orientação

geral leninista da organização, essa ampliação do escopo reflexivo constituía expressão, mesmo

que não totalmente consciente, do início de uma mudança histórica (econômica, política e

intelectual) importante, na qual o fim do ciclo político aberto em 1968 coincidia com a

emergência de um questionamento das grandes esperanças revolucionárias associadas à

“modernidade de esquerda”, por assim dizer348. Não constitui um acaso se os debates sobre a

modernidade apareceram, na França e na Europa, exatamente no final dos anos 1970. Era a

passagem aos “sombrios anos 1980”, quando uma mudança de época parecia estar emergindo

e, aos poucos, se consolidando – uma mudança que, no plano político e intelectual, era o

resultado de uma derrota.

Em Daniel Bensaïd, bem como no interior da Liga, a derrota da revolução portuguesa,

em 1975, combinada ao desfecho frustrante dos pactos pós-Franco na Espanha, constitui o

primeiro sinal, ainda incipiente à época, do fechamento de uma época, sem que uma nova tenha

346 Idem, p.61. 347 Idem, p.71. 348 Cf. Göran Therborn, Do marxismo ao pós-marxismo? São Paulo: Boitempo, 2012.

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ainda começado a aparecer. É verdade que, nesse momento, não havia, em Bensaïd, uma

compreensão do que estava ocorrendo, tanto mais porque ainda havia no ar, mesmo que de uma

forma menos intensa, algo da atmosfera e dos ventos do pós-maio que ainda não haviam sido

sufocados. Em todo caso, essa transformação da atmosfera – que, a posteriori, não é difícil

identificar – aparecia nas reflexões de Daniel Bensaïd sob a pressão dos novos desafios

impostos à esquerda política e intelectual. Deste ponto de vista, um livro como La Révolution

et le Pouvoir, tal como vimos, demarca uma nova etapa do leninismo de Bensaïd, na medida

em que ele é “coagido” a ampliar o campo de reflexão de forma a integrar (dando-lhes uma

resposta “marxista-revolucionária”) as novas questões e os novos problemas trazidos pela

emergência de uma direita new-age, edulcorada de elementos supostamente subversivos em

relação à ordem normativa.

Em um nível propriamente intelectual, os anos de 1974 e 1975 marcaram o início de

uma mudança importante no cenário intelectual francês, com as primeiras manifestações do que

mais tarde seria conhecido como o “momento antitotalitário”. Após as polêmicas em torno da

publicação do livro de Alexander Soljenitsyne, L’Archipel du Goulag, a temática do

totalitarismo, ou antes, da crítica do totalitarismo, começa a ser “internalizada” na França,

particularmente por intelectuais saídos da esquerda mas que, a partir desse momento, tornaram-

se bastante críticos em relação ao PCF e sua “União da Esquerda” com o PS. Diretamente ligada

aos debates políticos e intelectuais franceses, a ascensão do “antitotalitarismo” servia para

confrontar ideologicamente o PCF, em um momento no qual este partido, ainda vinculado

estreitamente à URSS, era cada vez menos uma referência para os intelectuais. A referência a

Soljenitsyne e seu Archipel du Goulag permitia aos intelectuais franceses “identificar suas

estratégias antitotalitárias a um combate universal. Acomodando Soljenitsyne às suas causas,

os antitotalitários se identificam a uma figura profética e corajosa”349.

Mas, mais em geral, era toda a esquerda e, além disso, a ideia mesma de revolução e/ou

da utopia de uma sociedade mais além do capitalismo que eram atingidas. Tratava-se, segundo

Michael Scott Christofferson, de uma “vigorosa ofensiva contra o ‘totalitarismo de esquerda’

[que] sacudiu a vida política francesa”. Estes intelectuais “antitotalitários” denunciaram, “em

um tom dramático, a filiação entre as concepções marxistas e revolucionárias e o totalitarismo.

Saídos eles mesmos da esquerda e não temendo senão uma frágil oposição de sua parte, os

antitotalitários logo marginalizaram o pensamento marxista, conseguindo minar a legitimidade

349 Michael Scott Christofferson, Les intellectuels contre la gauche. L'idéologie antitotalitaire en France (1968-

1981), Marseille, Agone, collection « Contre-feux », 2004, p.167.

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da tradição revolucionária francesa. Assim, eles abriram a via às soluções políticas pós-

modernas, liberais e republicanas moderadas dos anos 1980 e 1990”350.

Mais ou menos em 1977, quando o fôlego de 1968 parecia cada vez menos presente, e

após a derrota da revolução portuguesa, o triunfo dos “novos filósofos” marcava a emergência

da “idade de ouro” do antitotalitarismo francês. Inextricavelmente intelectual e midiática, como

observou Régis Debray, o sucesso dos “novos filósofos” – dentre os quais ex-maoistas como

André Glucksmann e Bernard Henry-Levy – consolidou o avanço de um quase consenso em

relação à ideia de que “o totalitarismo seria o produto inevitável dos projetos e dos discursos

revolucionárias (em particular quando se trata de atribuir um papel central ao Estado), e que,

nesse sentido, a França de 1977 estava envolvida, em função da União da Esquerda”351.

Vanguarda mediática de uma “frente antitotalitária” tão heterogênea quando plural, os “novos

filósofos” conferiam uma imagem satisfatória para os “soixante-huitards” cada vez mais

afastados das esperanças coletivas revolucionárias: “o individualismo iconoclasta dos ‘novos

filósofos’ oferecia à geração de 68 uma identidade alternativa à identidade militante, e

igualmente um álibi bem profícuo à ‘nova filosofia’”352. Em suma, ao final de 1977, o

antitotalitarismo tornou-se dominante nas fileiras da esquerda intelectual “não-comunista”, com

exceção dos trotskistas (como Michael Löwy e Daniel Bensaïd, aliás). Mesmo intelectuais

como Michel Foucault (que apoiou publicamente os “novos filósofos”), Claude Lefort e/ou

Cornelius Castoriadis, muito contribuíram a esta ofensiva antitotalitária, cujo alvo era o PCF e,

mais em geral, o próprio marxismo.

Igualmente no curso dos anos 1970, especialmente após a crise do petróleo em 1973, na

esteira da guerra entre Israel, de um lado, e Egito e Síria, de outro, pode-se observar o

fechamento do ciclo econômico dos chamados “trinta gloriosos” na Europa, assim como o

início de um processo de transição cujo resultado seria a imposição hegemônica das políticas

neoliberais, a partir do final da década, a fim de responder à crise econômica e à queda

tendencial da taxa de lucro. Assim, além do recuo da esquerda política e do marxismo

intelectual, pode-se visualizar o começo de uma nova “grande transformação” econômica,

tendo como consequência uma reconfiguração geral do sistema, modificando as relações de

força nos mais diferentes domínios da vida social.

350 Idem, p.17. 351 Idem, p.324. 352 Idem, p.342.

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Na França, a esperança de uma ascensão eleitoral da União de Esquerda, particularmente

a partir de 1977, conferia ao país um papel singular diante do refluxo generalizado da esquerda

nos outros países da Europa (Inglaterra, Portugal, Espanha, Itália). Para a LCR, uma eventual

vitória da esquerda, apresentando-se como efeito retardado de maio de 68, poderia impulsionar

o movimento dos trabalhadores e da juventude rumo à radicalização política, cujos resultados

seriam imprevisíveis para o PCF e, mais ainda, para o PS, cada vez mais fortalecido graças às

manobras políticas de François Mitterrand.

2.4. Os sombrios anos 1980: entre política e profissão

Membro da direção da LCR, no final dos anos 1970, Bensaïd continuou a se engajar na

defesa da herança leninista-revolucionária a partir dos novos desafios que emergiram com os

debates no âmbito da esquerda política e intelectual. Além da crítica aos reformistas

“stalinistas” ou “eurocomunistas”, Bensaïd se dedicou, no fim da década, à “desconstrução”

dos novos discursos sobre a autogestão proferidos sobretudo pela CFDT e pelas correntes em

torno de Michel Rocard no PSU e, depois, no PS. Desde o final da década de 1970, Bensaïd

buscou revelar como os discursos em defesa da autogestão, deslocados de toda perspectiva de

classe, quer dizer, de todo projeto de transformação revolucionária da sociedade, acabavam na

maior parte dos casos recaindo em uma forma de reformismo cuja valorização da vitalidade da

“sociedade civil” seria apenas um primeiro passo na direção da adesão às políticas neoliberais

– através de uma utopia tecnocrática e modernizadora, na qual a austeridade orçamentária era

compreendida como uma necessidade para a retomada da competitividade. É nessa perspectiva

que ele publicou, em 1980, o livro L’anti-Rocard ou les haillons de l’utopie, no qual analisa,

na esteira de alguns dos seus textos precedentes, as condições de possibilidade a partir das quais

o discurso “autogestionário” de Michel Rocard e de uma parte da CFDT convergiam com

alguns dos principais dogmas neoliberais, em mais uma demonstração da capacidade do sistema

de se apropriar de elementos que, até outrora, formavam parte dos ideais antagônicos.

Em um contexto caracterizado pelo refluxo das lutas sociais e políticas do movimento

operário, as proposições em torno da autogestão, da parte de Michel Rocard e seus congêneres,

articulando-se à aceitação do liberalismo político e da democracia formal e, assim,

permanecendo dentro dos limites estreitos da ordem capitalista, acabavam por favorecer o

discurso neoliberal, pronto a aceitar pequenas bolhas de “autogestão” ou, o que é mais nítido,

de “associativismo”. “Em período de austeridade e de reorganização internacional do

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capitalismo, o encorajamento das práticas associativas constitui, portanto, o verso esquerdo da

ideologia neoliberal”353. Na contramão deste “parlamentarismo autogestionário”, Daniel

Bensaïd opõe a “autogestão socialista”, no quadro da luta pela hegemonia proletária354.

Ao longo dos anos 1980, em seguida ao recuo das lutas sociais e política na Europa,

Daniel Bensaïd foi designado pela direção da IV Internacional para seguir de perto o processo

de construção do Partido dos Trabalhadores no Brasil, em particular de sua seção local, a

“Democracia Socialista” (DS). Nessa época, o Brasil representou, para Bensaïd (e, igualmente,

para Löwy), uma passageira contra-tendência ao declínio da esquerda política e intelectual

europeia e à ascensão do turbilhão neoliberal. A formação do PT, em fevereiro de 1980,

contrastava, à época, com a paisagem da esquerda mundial. “Não somente ela era

contemporânea da contra-ofensiva liberal na Europa e na América do Norte, mas também

precedia por pouco os primeiros sinais da desindustrialização em certos países latino-

americanos”.

Por isso, ela gerou grandes expectativas na esquerda mundial, e no Secretariado

Unificado (SU) da IV Internacional em particular: a DS – que se tornaria a seção brasileira da

IV Internacional em 1985 – engajou-se ativamente no processo de formação do partido. Ernest

Mandel, por exemplo, enxergava o Brasil, naquela época, “como a terra de todos os

renascimentos e de todas as esperanças”. Munido de um “racionalismo sociológico inabalável”,

recorda Bensaïd, “Ernest [Mandel] visualizava no Brasil uma espécie de equivalente tropical

da Alemanha bismarckiana, berço do movimento operário moderno”, dado o proletariado

massivo e concentrado engendrado pelo “milagre econômico” da década de 1970. Mandel

“estava convencido que nós (a IV Internacional) poderíamos desenvolver no país, rapidamente,

uma organização revolucionária de vários milhares de militantes”356.

Trabalhando no Comitê Executivo Internacional (1981-1986) do SU, cuja sede havia

retornado a Paris – depois de anos em Bruxelas –, e tendo estabelecido sólidas amizades com

os intelectuais brasileiros exilados na França ou na Argentina, além de manejar razoavelmente

o “portunhol”, Bensaïd foi o “indicado” para esta “aventura”357. Por esta razão, visitou inúmeras

vezes o país no decorrer da década de 1980 (de duas a três vezes por ano!), a tal ponto que o

353 Daniel Bensaïd, L’anti-Rocard ou les haillons de l’utopie. Paris : La Brèche, 1980, p.42, 43. 354 Cf. aussi, D. Bensaïd & Antoine Artous, « Hégémonie, autogestion et dictature du prolétariat ». In : Critique

communiste, n° 16, juin 1977. 356 Daniel Bensaïd, Une lente impatience, op.cit., p.303. 357 Em um “balanço” posterior, Bensaïd afirma, sobre a experiência no Brasil na década de 1980: “Em relação ao

pesadelo argentino dos anos de 1970, a experiência foi gratificante”. Une lente impatience, op.cit., p.312.

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Brasil se transformou em uma de suas grandes paixões, o que se evidencia no grande número

de referências na sua autobiografia – à experiência brasileira ele consagrou um capítulo inteiro

do seu livro autobiográfico, intitulado “E agora, Zé?”, sob inspiração do poema “José”, de

Carlos Drummond de Andrade358. Daniel Bensaïd chegou mesmo a participar das massivas

assembleias do movimento operário no estádio da Vila Euclides, em São Bernardo, que

reuniram mais de 60 mil pessoas. Desde então, Daniel Bensaïd “estabeleceu laços profundos

de amizade no Brasil, iniciando-se com júbilo à sua vida cultural, social e política”359. Em 1980,

na primeira visita, a DS contava com apenas 60 militantes; no final da década, a corrente

contabilizava cerca de mil militantes, e recolhia em torno de 10% dos votos dos delegados nos

congressos do partido. Bensaïd participou ativamente desse processo.

Em textos do período, como “Brésil, nouvelles victoires dans la construction du Parti

des travailleurs”, de 1982, Bensaïd demonstra um surpreendente conhecimento dos meandros

da realidade social e do cenário político brasileiro, assim como das relações de forças internas

ao PT (moderação da direção estadual paulista, posição mais à esquerda das seções do Rio

Grande do Sul etc.)360. Em meio aos limites do processo de “abertura” democrática, ele saúda

a independência política de classe do PT, que lograra elaborar uma linha autônoma em relação

à “oposição burguesa” ao regime (PMDB, ao redor do qual orbitava o PCB), mencionando a

este respeito um artigo de Francisco Welfort, então membro da direção nacional do partido, na

Folha de São Paulo. À época, Bensaïd parecia alimentar bastante otimismo em relação à

evolução do PT, apostando – como o fazia a DS, à diferença de outras correntes trotskistas – na

possibilidade do partido se transformar num partido revolucionário de massas. Em uma

entrevista realizada em 1982 com o “célebre” líder operário doravante dirigente partidário,

Bensaïd se regozija em face da defesa intransigente, por parte de Lula, da necessidade da

independência de classe, à luz da qual – evitando tanto o “vanguardismo quanto o eleitoralismo”

– se tornaria possível construir uma perspectiva socialista à brasileira, correspondendo “aos

interesses do povo brasileiro, às suas necessidades, às suas particularidades”361. Em referência

ao sindicato polonês Solidariedade (liderado por Lech Walesa), que enfrentava a repressão da

ditadura burocrática “socialista”, Lula afirma: “Eu acredito que o socialismo é a única solução

possível no mundo inteiro”, um socialismo democrático, acrescenta ele, com controle dos

358 Daniel Bensaïd, Une lente impatience, op.cit., p.294-329. 359 João Machado, “Brésil”, in: François Sabado (org.). Daniel Bensaïd, l’intempestif. Paris: La Découverte, 2012,

p.120, 121. 360 Daniel Jebrac (Bensaïd), “Brésil, nouvelles victoires dans la construction du Parti des travailleurs”, in: Inprecor,

n.126, maio de 1982. 361 Daniel Jebrac (Bensaïd), “Brésil, un entretien avec Lula”, in: Inprecor, n. 120, março de 1982.

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trabalhadores sobre a produção; por isso, lamentava que, diante de uma organização autônoma

dos trabalhadores, “um regime que se pretende socialista use dos mesmos procedimentos para

massacrar os trabalhadores que o regime capitalista”.

Bem diferente era a situação na França, cuja atmosfera cinzenta foi confirmada pelo

chamado “tournant do rigor” promovido por François Mitterrand em 1983/4. Ao contrário do

que postulara a LCR à época, a nova orientação do governo, explicitamente social-liberal, não

provocou as reações esperadas no movimento operário e popular. Como afirma Fanny Gallot,

“no início dos anos 1980, a LCR parece desorientada pelo pouco de reação que provoca na

sociedade a política de austeridade levada a cabo pela esquerda do governo reunida em torno

de François Mitterrand”362. Através de um governo “socialista”, os ventos neoliberais

chegavam aos poucos na França, abrindo um novo ciclo político que não seria parcialmente

contestado senão em novembro de 1995, com o grande movimento social contra as reformas

do governo de Alain Juppé.

Além das viagens constantes, e do trabalho na direção da Internacional (no CEI), Daniel

Bensaïd dedicava-se nos anos 1980 à edição mensal da revista do SU, Inprecor, à codireção

(1984-1990), ao lado de Pierre Rousset, do “Institut International de Recherche et de

Formation”, sediado em Amsterdam, e, a partir de 1984, às aulas na Universidade Paris VIII

(Saint-Denis) como professor assistente. Em 1983, Bensaïd obteve seu título de doutorado em

ciência política, na Universidade de Montpellier, sob a orientação de Michel Miaille, tendo

como avaliador (“rapporteur”) Paul Alliès, então militante da LCR. Com o título “Pouvoir

politique et construction du socialisme”, tratava-se de um doctorat sur travail, em que o

pretendente apresenta e recompila sua obra já produzida, avaliando-se então a pertinência (ou

não) da outorga do título. Embora o texto de sustentação tenha “desaparecido”, é possível

conjecturar, pelo título e pela época, que a explanação tenha se baseado largamente nos

argumentos expostos no livro A Revolução e o Poder (1976), bem como em outros textos

menores da época363.

Nesse período, embalado pelo otimismo com a situação brasileira, bem como com os

possíveis desdobramentos da crise nos países do leste europeu, Bensaïd parece hesitar em

362 Fanny Gallot. « Le ‘travail ouvrier’ de la LCR et de LO : le cas de Renault Cléon ». Trotskismes en France.

Dissidences, vol.6, 2009, p.153. Em várias das entrevistas realizadas, os interlocutores (Alain Krivine, Lucien

Sanchez e Antoine Artous) confirmaram que o momento posterior ao “tournant do rigor” foi bastante difícil para

a organização, dando o sinal de que, talvez, um ciclo estava se fechando. 363 Nem Sophie Bensaïd, nem Paul Alliès, nem Michel Miaille, e tampouco a biblioteca da Universidade de

Montpellier possuem um exemplar do texto. No site da biblioteca aparece a inscrição: “Thèse introuvable à

Montpellier”. O próprio Daniel Bensaïd tampouco menciona a realização desse doutorado, nem na sua

“autobiografia” (2004) nem no seu relatório para a obtenção da habilitação para orientar teses (2001), este último

igualmente destinado à apresentação da sua obra produzida até então.

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perceber a dimensão da mudança histórica que estava em curso, malgrado os indícios internos

e externos à LCR – que passava por uma verdadeira hemorragia militante – de que os ventos

haviam tomado outro rumo. Seria apenas em meados da década de 1980 que Daniel Bensaïd

começaria a perceber a dimensão da virada histórica que estava se iniciando. Em um texto

intitulado “Contribution à un débat nécessaire sur la situation politique et notre projet de

construction du parti”, publicada na revista Critique Communiste em janeiro de 1986, pode-se

observar interrogações sobre a necessidade de um questionamento da estratégia da LCR, tendo

em conta a virada histórica que havia começado na Europa em meados da década de 1970364.

Se, em uma entrevista de 1978, Bensaïd já reconhecia a emergência de uma “nova situação

política” em relação àquela do pós-maio, mas não uma “mudança de período” – estaríamos

ainda segundo ele na época da “atualidade da revolução” –, no texto de 1986 ele menciona

diretamente o “colapso de um projeto não substituído”, aquele baseado na esperança de um

transbordamento dos partidos reformistas tradicionais – desmascarados pelo exercício do poder

–, tendo como resultado o avanço organizacional para além da vitória eleitoral da esquerda365.

O fim do jornal Rouge quotidien, dois anos após seu lançamento, em janeiro de 1979, constituía

uma expressão do fracasso dessa perspectiva otimista.

É nesse contexto de transição, de mudança de época, entre 1985/6, que Daniel Bensaïd

“descobre” a importância da obra de um pensador até então pouco explorado pela esquerda

radical, mas cuja reflexão o ajudaria a confrontar os novos desafios de uma nova época, sob o

signo da crise (do socialismo burocrático, do marxismo e da própria esquerda): trata-se de

Walter Benjamin (1982-1940), filósofo alemão, marxista heterodoxo, cuja principal

contribuição à cultura política da esquerda foi sua tentativa de elaborar uma concepção da

história em ruptura com as ideologias do progresso. O primeiro texto no qual Bensaïd menciona

explicitamente Benjamin é Estratégia e Partido, livro composto a partir de cursos que ele

ministrou em uma escola de formação da LCR em 1986367. Trata-se apenas de uma nota de

rodapé, mas cuja perspectiva revelava a démarche benjaminiana de Bensaïd: ele cita as teses de

Benjamin a fim de criticar as concepções evolucionistas, lineares, do progresso histórico, seja

em sua versão reformista, gradualista, enfim, socialdemocrata, seja na sua variante stalinista.

“Na sua teoria e mais ainda na sua prática, a socialdemocracia se orientou por uma concepção

do progresso que emitia uma pretensão dogmática”, escreve Benjamin na tese XIII. A este

364 Daniel Bensaïd, “Contribution à un débat nécessaire sur la situation politique et notre projet de construction du

parti”, in: Critique Communiste, n.48, 1986. Disponível em: http://danielbensaid.org/Contribution-a-un-debat-

necessaire?lang=fr. 365 Cf. Daniel Bensaïd, “France - Actualité de la révolution. Entretien”, in: Inprecor, n. 29, maio de 1978. 367 Daniel Bensaïd, Stratégie et Parti. Paris: Éditions La Brèche, 1987.

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conformismo do progresso, pleno de confiança no desenrolar do “tempo vazio e homogêneo”,

Benjamin opõe uma concepção do tempo ancorada no presente, compreendido como tempo por

excelência da política. O socialismo, portanto, não seria a última estação de uma evolução

histórica inelutável, mas antes o resultado de uma interrupção, de uma atualização que é

também uma bifurcação, o instante da decisão, enfim, da estratégia. É por isso que, para

Benjamin, muito além do progresso, é a atualização a categoria principal de uma concepção

revolucionária da temporalidade histórica.

Em Benjamin, Bensaïd encontrou uma espécie de “bússola” a fim de compreender uma

época histórica que se abria, para a esquerda política e intelectual, sob o signo da crise e da

derrota. É exatamente essa capacidade benjaminiana de pensar “a contratempo” que, aos olhos

de Bensaïd, carrega uma atualidade incontestável e intempestiva. Nas suas palavras: “a vida de

Benjamin não cessou de bater a contratempo. Em plena revolução alemã, quando se define o

destino da batalha, da qual Hitler será apenas o epílogo, ele está longe. Quando ele se volta para

o bolchevismo, é para encarar com vigor o Termidor stalinista e a burocracia arrogante. Quando

ele atravessa os Pirineus, a rota para a América já está fechada. Não se passa mais. Esse

deslocamento, essa marginalidade aguçam a percepção da história que se faz”368.

Em 1989, com o início da derrocada do “socialismo real”, a débâcle se completa. Ainda

mais porque também no Brasil e na América Latina 1989 marcou um tournant regressivo,

materializado nas derrotas eleitorais dos sandinistas na Nicarágua e de Lula e do PT no Brasil.

Conjuntamente, esses acontecimentos contribuíram para consolidar a mudança histórica em

curso, deixando a totalidade da esquerda em uma situação mais do que difícil. Como se não

bastasse, no plano pessoal, a descoberta de que era portador de grave doença (HIV), em 1990,

impôs-lhe algumas transformações bruscas na organização de sua vida cotidiana, o que acabou

por reforçar o sentimento de que uma nova época estava emergindo. Afastado da militância

cotidiana e das funções de dirigente político – muito embora sempre tenha continuado militante

e representando um papel fundamental nos debates no interior da LCR, até a sua autodissolução

em 2009, no momento da formação do Novo Partido Anticapitalista (NPA) –, Daniel Bensaïd

dá início a um novo período de seu percurso político e intelectual, caracterizado por uma

produção teórica infatigável (mais de 25 livros em 20 anos), tornando-se um dos mais

importantes intelectuais da esquerda anticapitalista francesa e europeia, para além das fileiras

da LCR.

368 Daniel Bensaïd, Walter Benjamin, sentinelle messianique, Paris: Les Prairies ordinaires, 2010, p.32.

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3. A “última geração de outubro”

Desde quando jovens, logo após completarem a primeira quinzena de vida, como se

pôde perceber, tanto Michael Löwy quanto Daniel Bensaïd cultivaram, ao lado da vocação

intelectual latente, uma intensa atividade militante nas fileiras da esquerda revolucionária.

Desde sempre em correntes da oposição de esquerda, por assim dizer, aos PCs e ao stalinismo,

Löwy participou de fundação, ainda no Brasil, de pequenas organizações “luxemburguistas”

(LSI, POLOP), depois militou, entre 1961 e 1964, em uma corrente de esquerda do PSU

(“Socialismo Revolucionário”), em Paris, e, finalmente, em Manchester, na Inglaterra, aderiu à

IV Internacional e ao trotskismo, estabelecendo-se como militante da recém criada Liga

Comunista em seu retorno definitivo a Paris no final da década de 1960, organização a qual ele

permaneceria vinculado até a sua autodissolução em 2009, para a fundação do NPA, em um

processo (idealizado em grande medida por Bensaïd) do qual ele igualmente participou.

Daniel Bensaïd, por seu turno, começou a militar na juventude do PCF (as “Juventudes

Comunistas”) em 1962, em um momento em que o partido gozava de prestígio no movimento

da classe trabalhadora, e até mesmo em parcelas expressivas das camadas médias da população

francesa. Desde o final da segunda guerra, por seu papel heroico na resistência antinazista, o

PCF contava em suas fileiras várias centenas de milhares de aderentes/militantes, apresentando-

se sob a aura do “partido dos 70 mil fuzilados”. Beneficiando-se da fragilidade do PS de então

(a SFIO), descreditado tanto por sua política interna quanto pelo apoio às guerras coloniais

(Indochina, Argélia), o PCF era incontestavelmente hegemônico no âmbito da esquerda

política, recolhendo entre 20 e 25% dos sufrágios eleitorais. Para os operários e os habitantes

dos meios populares, o PCF constituía uma espécie de “contra-sociedade”, semelhante,

guardadas as devidas proporções, à socialdemocracia alemã na virada nas últimas décadas do

século XIX e início do XX369. Como afirma Alain Krivine, que militou no partido entre 1956 e

1965 (quando foi expulso junto com Bensaïd e o grupo da “oposição de esquerda”), nessa

época, a força do PCF representava um “instrumento de promoção intelectual e social para os

militantes operários”: “nas empresas, eles eram explorados e desprezados. No seio do partido,

eles eram considerados; eles tinham acesso à cultura que a sociedade lhes havia recusado; eles

369 Cf. Annie Kriegel, Les communistes français. Essai d’ethnographie politique. Paris: Editions du Seuil, 1968.

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exerciam responsabilidades; eles se sentiam valorizados”. O partido constituía, assim, um

“instrumento de proteção, de educação e de luta”370.

Para os intelectuais, cujas motivações pelo engajamento são antes de tudo ideológicas

e/ou éticas, a adesão ao partido significava a adesão “à classe operária”. Aparentemente, não

havia alternativa possível à esquerda intelectual marxista fora do PCF. O sentimento à época

era de que – como diz Bensaïd – “romper com o partido era [...] como se exilar da classe para

embarcar em uma aventura sem saída de intelectuais renegados”371. Não por acaso, no retorno

a Toulouse, após serem oficialmente expulsos do PCF em 1966, em Nanterre, em um congresso

da UEC, Daniel Bensaïd e os camaradas toulouseanos (dentre eles, Antoine Artous) que haviam

sido excluídos tiveram que se defrontar com um clima hostil nos antigos círculos de militância

e de sociabilidade. Era como se eles fossem “suspeitos de deserção, se não de traição”. O

sentimento de “exílio” e de “quarentena” confirmou-se até mesmo pela reação silenciosa, mas

eloquente, da clientela comunista do bistrô familiar, então comandado pela mãe. Jovem

estudante com futuro brilhante, era como se Daniel Bensaïd tivesse passado ao outro lado,

atraído pelas promessas da ascensão social via educação. Mais um “trânsfuga de classe”372.

Em todo caso, o ano em que, de fato, Daniel Bensaïd e os membros da “oposição de

esquerda” da UEC foram excluídos do PCF, 1965, marca o início de uma mudança importante

no âmbito da esquerda francesa, com a ascensão relativa de uma extrema-esquerda que,

aproveitando-se da moderação dos “comunistas”, logrou estabelecer-se como referência para

camadas sociais em processo de radicalização, tal como os estudantes. Expulsos, entre outras

razões, por discordarem da moderação do PCF na solidariedade aos combatentes vietnamitas

contra o imperialismo norte-americano, Bensaïd e os outros fundadores da JCR fizeram da

oposição ativa à guerra na Indochina talvez o principal eixo de sua atividade militante até a

irrupção de maio de 68. Começando, na realidade, em 1965/66, o ciclo aberto em 1968

caracterizou-se pela aparição de uma extrema-esquerda ativa e, em alguma medida,

representativa de alguns setores radicalizados, ainda que minoritários. Seja através da irrupção

maoísta, ou da perspectiva trotskista, o momento parecia profícuo à emergência de uma

esquerda comunista por fora do reformismo (ou “revisionismo”) dos comunistas “oficiais” do

PCF, possibilitando uma espécie de retorno ao impulso original da revolução de outubro de

1917 na Rússia. Pela primeira vez desde algum tempo, o PCF deparava-se com “concorrentes”

370 Alain Krivine, Ça te passera avec l’âge. Paris: Flammarion, 2006, p.31, 32. 371 Daniel Bensaïd, Une lente impatience, op.cit., p.55. 372 Idem, p.57, 58.

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à sua esquerda que, se não ameaçavam a sua hegemonia política, questionavam a sua ambição

de ser o partido da classe operária e das camadas populares373.

Não chega a surpreender, portanto, que Benjamin Stora, à época militante da AJR (de

tendência lambertista), designe essa geração – que entrou para a militância política “em torno

de 1968 e que foi talvez a última na França a acreditar nos ideais trazidos pela Revolução Russa

[...] de 1917” – como a “última geração de outubro”374. Até meados da década de 1970, a

esperança de um renascimento do comunismo revolucionário autêntico, por sobre a deformação

stalinista, vigorou praticamente no conjunto da extrema-esquerda, notadamente dos trotskistas,

e dentre estes particularmente a LC (R) de Daniel Bensaïd.

3.1. Maio de 68 e o trotskismo ultraleninista da Liga Comunista (1969-73)

Se há uma corrente que incorporou e levou às últimas consequências este espírito de

“outubro” no pós-68, esta foi a Liga Comunista (Revolucionária)376. Mais do que as outras

tendências do trotskismo, a LC, então JCR, nasceu diretamente da experiência adquirida pelos

jovens militantes entre 1965 e 1968, culminando na participação central, se não decisiva (tendo

em conta o papel da organização tanto na irrupção quanto no desenvolvimento da radicalização

estudantil), nas lutas de maio daquele ano. Mais do que outras correntes da extrema-esquerda,

os jovens da recém-formada LC visualizaram em maio de 68 o prenúncio de um “outubro”

futuro possível, agora no centro do sistema377. Como diz Alain Krivine, “para os militantes da

minha geração, a revolução russa de 1917 representava o acontecimento fundador. Qualquer

um que aderia ao movimento trotskista devia conhecer todos os debates que haviam agitado o

partido bolchevique na época”. O aparente vácuo de poder no dia 29 de maio de 68 (quando De

Gaulle viaja com a família ocultamente a Baden-Baden na Alemanha) dava-lhes a esperança de

que não era impossível cumprir na França o dever de todo revolucionário, segundo a máxima

373 No plano imediato, o PCF não perdeu militantes em números absolutos. No entanto, o partido jamais

conseguiria se recompor do rendez-vous manqué com as novas gerações operárias. “A hegemonia do Partido

Comunista não cessou de ser contestada desde 1968, de um lado pela ascensão do Partido Socialista, de outro pelo

desenvolvimento minoritário, mas tenaz, de uma extrema-esquerda revolucionária”. Alain Krivine & Daniel Bensaïd, Mai si! Rebelles et repentis. Paris: La Brèche, 1988, p.52. Ao longo dos anos 1970, o PCF começa a

perder sua ancoragem nos meios populares. Cf. Julian Mischi, Le communisme désarmé. Le PCF et les classes

populaires depuis les années 1970. Paris: Agone, 2014. 374 Benjamin Stora. La dernière génération d’Octobre, op.cit., p.13. 376 Cf. Jean-Paul Salles, La Ligue Communiste, tentative de construction d’un parti révolutionnaire en France

après Mai 68. DEA, Universidade de Poitiers, 1996, 87p. 377 Concebendo a situação como “pré-revolucionária”, em virtude da ausência do “fator subjetivo”, os jovens da

JCR esquivaram-se, porém, parcialmente, da panaceia maoísta, tal como exposta em Vers la guerre civile (Paris:

Éditions et publications Premières, 1969), de Serge July, Alain Geismar e Erlyn Morane.

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de “Che” Guevara: “fazer a revolução”. Maio tinha sido apenas o “ensaio geral”, como a

revolução de 1905 ou de fevereiro de 1917 na Rússia.

Essa “marca de nascença”, por assim dizer, condicionou em larga medida a perspectiva

assumida pela LC (R), bem como a sua especificidade no âmbito da extrema-esquerda francesa,

desde o final dos anos 1960, passando pela transição das décadas de 1980 e 1990, até a

autodissolução em 2010. A experiência de 68, tanto quanto a feição “terceiro-mundista” da

perspectiva dos jovens da JCR, quase todos saídos da militância no PCF, conferiu ao trotskismo

da Liga Comunista, a partir de 1969, um aspecto bastante particular, diferenciando-a das outras

correntes do trotskismo francês, em especial dos lambertistas, “inimigo íntimo” dos pablistas

desde a cisão de 1952. A querela teve lugar em reação à proposição da direção da IV

Internacional, por meio do seu principal dirigente, Michel Raptis (Pablo), de se preparar um

“entrismo sui generis” (clandestino) nos PCs. Na ótica de Pablo, dada a fragilidade do

movimento trotskista, o mundo dividia-se então em dois campos centrais: aquele da URSS

(“progressista” malgré tout) e dos movimentos terceiro-mundistas e anti-imperialistas, e aquele

liderado pelos EUA, capitalista e imperialista. Daí a perspectiva de que um “entrismo” secreto

nos PCs era a melhor solução. A maioria da seção francesa (denominada Partido Comunista

Internacionalista), porém, se opôs à linha pablista, dando origem à cisão entre o PCI-

minoritário, dirigido por Pablo e, depois, por Pierre Frank, e o PCI-majoritário, liderado por

Pierre Boussel (Lambert), mais preocupado no trabalho paciente de construção de organizações

trotskistas independentes, recusando qualquer relação com o PCF378. Em 1965, o PCI-

majoritário transformou-se na Organização Comunista Internacionalista (OCI)379. É nesse

período que os diferentes grupos trotskistas franceses adquirem os traços que definem suas

identidades respectivas, forjando e fomentando culturas políticas distintas380.

Em alguma medida, a JCR e, em 1969, a LC, constituem um resultado desse “entrismo

sui generis”, em especial no setor de juventude do PCF, a União dos Estudantes Comunistas

(UEC), cuja margem de liberdade em relação à direção partidária permitia uma relativa

pluralidade de posições. Do interior da UEC, os “trotskistas” do PCI-minoritário serão os mais

378 Sobre a cisão de 1952, cf. François-Xavier Breton, La scission du PCI (Parti communiste internationaliste),

section française de la IV Internationale en 1952, mestrado em história, Universidade de Bourgogne, 1992. Sobre

os lambertistas nesse período, cf. Jean Hentzgen, Agir au sein de la classe. Les trotskystes français majoritaires

de 1952 à 1955. Dissertação de mestrado, Universidade Paris I, 2006. 379 Cf. Emmanuel Brandely, L’OCI-PCI de 1965 à 1985. Contribution à l’histoire nationale d’une organisation

trotskyste, mestrado em história, Universidade de Bourgogne, 2001. 380 Philippe Raynaud, L’extrême gauche plurielle. Entre démocratie radicale et révolution. Paris: Perrin, 2010,

p.71, 72, 73.

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combativos na solidariedade ativa à luta dos argelinos pela independência, em 1962. Em alguns

círculos, como o de “Letras” (englobando, na verdade, as ciências humanas de forma geral) da

Sorbonne, dirigido por Alain Krivine, estudante de história, eles detinham a hegemonia da

UEC. Com esse “capital político”, “trotskistas” como os irmãos Krivine estavam prontos, ao

lado de “independentes” como Daniel Bensaïd, no momento em que foram expulsos em 1965,

para formar uma nova organização, a JCR, cuja radicalidade encontraria vazão em maio de

68381. A presença significativa desses “independentes”, comunistas revolucionários, guevaristas

ou trotskizantes como os militantes (liderados por Michel Lequenne) oriundos da tendência

Socialismo Revolucionário do PSU (da qual Löwy fez parte entre 1961 e 1964), conferia à JCR

uma ótica mais aberta, se comparada àquela dos trotskistas “clássicos” da OCI, ou da LO, por

exemplo.

De outro ponto de vista, porém, a construção da JCR e, mais tarde, da LC, significou

uma ruptura com a estratégia de entrismo do PCI. A adesão oficial à IV Internacional, em 1969,

após a formação da Liga, teve lugar exatamente em um momento no qual as diferenças de

posição tendiam a ser eclipsadas pela crença quase consensual de que era preciso, de forma

urgente, construir o “fator subjetivo” que havia faltado ao encontro em maio de 68: o partido

revolucionário. Mesmo “guevaristas” como Daniel Bensaïd compartilhavam dessa posição,

cujo voluntarismo transbordante logo se transformaria, como vimos, em um leninismo ativista

e “substitucionista”.

A despeito do “leninismo apressado” da época, baseado em um diagnóstico simplista da

crise, das possibilidades e dos limites de maio de 68, a LC distinguia-se das outras tendências

da extrema-esquerda por sua cultura política mais aberta, formada sob os influxos libertários da

juventude da época. Para Razmig Keucheyan, por exemplo, “a Liga comunista revolucionária

sem dúvida foi mais influenciada pelo espírito libertário de Maio de 68 do que por aquele do

‘centralismo democrático’. Seu discurso [era], no entanto, fortemente tingido de leninismo”383.

Mesmo os adversários da organização reconhecem, a fim de censurar a falta de foco dos jovens

ativistas – o seu “ativismo pequeno-burguês” –, a disposição da Liga em integrar as mais

diferentes frentes de luta, na contramão do conservadorismo cultural tanto do PCF quanto dos

lambertistas da OCI.

381 Alain Krivine havia aderido ao PCI em 1960. Até 1965, momento da expulsão, ele fez parte, portanto, dos

“entristas” trotskistas no interior do PCF. 383 Razmig Keucheyan, Hémisphère gauche, op.cit., p.59.

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À época, a JCR/LC expressava melhor do que qualquer outra organização a articulação

efêmera, mas politicamente importante, que se produziu em 68 entre o movimento operário

“clássico” e os “novos” movimentos sociais (“libertários”) em germe. Essa tentativa de

incorporar, desde o marxismo revolucionário, problemáticas que começaram a emergir em 1968

pode ser visualizada nos debates e dossiês publicados na revista Critique Communiste nos anos

1970, sobre o militantismo e vida cotidiana, feminismo, homossexualidade etc384. Por isso

mesmo, “a Liga jamais foi uma seita, mesmo se ela às vezes se utilizou de métodos sectários.

No decorrer da década de 1970, ela busca se abrir à sociedade, compreendendo-a e, às vezes,

se adaptando a ela. Esse período é, portanto, para ela, bastante diferente daqueles que a

precederam, na medida em que, no essencial, se tratava de ‘preservar’ o legado teórico do

leninismo e do trotskismo”385.

Mesmo no seu período mais esquerdista, ativista e militarista, entre 1969 e 1973, a

originalidade e a inventividade dos encontros e manifestações organizadas pela LC revelavam

a tônica algo libertária que a organização incorporou em maio de 68, na contramão da

monotonia dos desfiles “tradicionais”. Essa “capacidade de tomar iniciativas”, aliada a um

“senso do ‘golpe político’”, conferiram uma sólida reputação à LC, mediante a qual ela lograva

reverter parcialmente a relação de forças numericamente desfavorável (em relação aos cortejos

da CGT e do PCF). Parte dessa inventividade nas manifestações públicas, às vezes como

prenúncio de uma “ação exemplar”, foi adquirida na relação que os jovens da JCR mantiveram

com o SDS, organização dos estudantes socialistas da Alemanha Ocidental em ruptura com a

socialdemocracia, liderada por Rudi Dutschke, que seria assassinado em 1968. Juntos, a JCR e

a SDS organizaram manifestações de dimensões europeias, como as de Liège em 1966,

Bruxelas em 1967 e, sobretudo, a de Berlim em fevereiro de 1968, nas quais os slogans, o ritmo,

as palavras-de-ordem e os instrumentos imagéticos demonstravam uma fina compreensão, da

parte dos jovens militantes, dos mecanismos sutis pelos quais se materializa a hegemonia.

De modo semelhante, enquanto expressão da atmosfera “terceiro-mundista” da época,

na qual o Vietnã remetia à Argélia que, por sua vez, lembrava Cuba e a figura do “Che” –

encarnação da articulação revolucionária entre lutas de libertação nacional e luta de classes –,

os jovens da JCR e, depois, da LC, sempre manifestaram, até meados da década de 1970, uma

solidariedade integral às lutas por independência, a despeito das limitações mais ou menos

384 Sobre a presença da questão feminista na primeira década da JCR/LCR, cf. Jessica Lathus, Le féminisme et la

LCR de 1967 à 1978. Université de La Rochelle, dissertação de mestrado, 2004. 385 Michel Dreyfus, “Préface”, in: Jean-Paul Salles, La Ligue communiste révolutionnaire, op.cit., p.11.

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inevitáveis das direções políticas desses processos ou dos métodos de luta. Essa postura, se os

diferenciava das leituras dogmáticas da teoria trotskista da revolução permanente, para as quais

nenhum desses processos estava à altura das necessidades requeridas, estimulou ao contrário,

algumas vezes, um apoio acrítico e incondicional às direções políticas dessas lutas, o que

acabaria por cobrar seu preço anos mais tarde, com o desenrolar trágico dos regimes instaurados

no Vietnã e/ou no Camboja, por exemplo.

Pelo alto “capital cultural” dos seus membros, em grande parte estudantes e intelectuais,

de onde a alcunha irônica de “parti de profs”, submergidos na atmosfera pós-68, “os trotskistas

da Liga” não se contentaram em reproduzir a linha trotskista genuína contra o revisionismo

stalinista: “eles igualmente levaram em conta os aportes das correntes mais interessantes e mais

‘modernas’ da crítica do capitalismo, e é aí que se pode bem perceber de adaptação às

transformações das sociedades contemporâneas”, como diz Philippe Raynaud, cientista político

discípulo de Raymond Aron387. Isso porque, à diferença da OCI ou da LO, os dirigentes da Liga

eram, em sua maioria, jovens recém-formados politicamente cujo vínculo com os “velhos”

trotskistas do PCI e da IV Internacional388, enfim selado em 1969, não os impediu de submeter

essa tradição aos novos ventos que eles, e somente eles, em sua arrogância juvenil, poderiam

de fato compreender, integrando-os à luta revolucionária. Em 1969, no momento de sua

fundação, a LC contava em suas fileiras com cerca de 70% de jovens, em sua grande maioria

estudantes: a média de idade da organização era de apenas 20 anos389. Seria somente a partir de

1976, quando a organização beirou os 4000 militantes, que os jovens/estudantes não mais

constituiriam a maioria na composição social da Liga, com 25% dos efetivos.

A distância deliberada desses jovens em relação aos pioneiros do trotskismo, os

“antigos” do PCI, era tal que não seria um absurdo falar de um “conflito de gerações”: Michel

Lequenne, por exemplo, representante da “velha” geração, evoca o excesso de “pretensão” e o

“verdadeiro complexo de superioridade” dos jovens dirigentes da JCR (Krivine, Bensaïd,

Weber etc.), dopados pela experiência de maio de 68390. Em 1977, principal expoente de uma

das tendências internas da LCR, Lequenne fustigou o intelectualismo “[d]estes [jovens]

387 Philippe Raynaud, L’extrême gauche plurielle. Entre démocratie radicale et révolution, op.cit., p.80. 388 Em uma entrevista que nos concedeu, Alain Krivine utiliza essa expressão para mencionar a forma como ele,

Bensaïd, Weber e os outros jovens da JCR se referiam à velha guarda trotskista francesa (Pierre Frank, Michel

Lequenne etc.). 389 Florence Joshua, De la LCR au NPA (1966-2009). Sociologie politique des métamorphoses de l’engagement

anticapitaliste. Tese em sociologia política, Science Po, 2011, p.113. 390 Michel Lequenne, entrevista concedida a Jean-Paul Salles, in: La Ligue communiste révolutionnaire, op.cit.,

p.291.

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neófitos em estilo arruaceiro universitário” que acreditavam ter inventado a roda391. Para os

jovens militantes, por outro lado, havia a nítida sensação de que era preciso dar um passo além,

para o qual a velha geração, manchada pelas dúvidas quanto à efetiva participação na

Resistência, não estaria preparada, restando a eles, os jovens, impulsionados pela experiência

de 68, levá-la a cabo392. Como afirmaram Alain Brossat e Denise Avenas em um livro publicado

em 1971, a marginalidade das organizações trotskistas do passado, nos anos 1940 e 50,

transformaram-nas em “seitas”, “guardiãs do templo”: era chegado o momento, então, de uma

atualização do legado em todos os domínios, tarefa para a qual os jovens da JCR/LC se

postavam como depositários393. A pretensa fusão entre JCR e PCI seria, portanto, no fundo,

uma incorporação do último pela primeira, na direção da construção de uma organização

revolucionária independente, na contramão, portanto, da estratégia “entrista” patrocinada pelo

PCI.

Seja como for, os jovens da JCR estabeleceram relações com a vertente

incontestavelmente mais heterodoxa do trotskismo francês e mundial, liderada por Pablo, Pierre

Frank e, sobretudo, Ernest Mandel, economista belga que, depois da ruptura com Pablo em

1964/5 e da exclusão deste do SU, tornou-se o principal dirigente da IV Internacional394. O que

não a isenta, ao contrário, de eventuais equívocos como o apoio desastroso à luta armada na

América Latina, política definida no congresso de 1969 da IV Internacional com o patrocínio

da direção seção francesa. Ou ainda o flerte com o “obreirismo” (outrora utilizado para criticar

os maoístas), através dos chamados “tournants operários” adotados pela Liga em 1974 e 1979,

com poucos resultados práticos.

“Pai do trotskismo” na França, Pierre Frank foi secretário pessoal de Trotsky em

Prinkipo, durante o seu primeiro exílio na Turquia, após ser banido da URSS, logrando, apesar

dos debates e cisões, manter na França um núcleo militante coeso395. Não é por acaso que Pierre

Frank foi, ao lado de Ernest Mandel, um dos “antigos”, dos “velhos” mais apreciados pelos

391 Michel Lequenne, “Ni rire, ni pleurer, compreendre”. Rouge quotidien n.319, 8 abril de 1977, p.11. 392 Há muitas controvérsias sobre o papel dos trotskistas franceses na resistência. Internacionalistas, muitos deles

pensavam se tratar de mais uma guerra inter-imperialista “clássica”, recusando-se a combater os soldados alemães, enquanto uma parte não negligenciável decide, após 1941, se engajar na resistência. Sobre o assunto, cf. Jean-

Michel Brabant, Les partisans de la IV Internationale en France sous l’Occupation (POI, CCI, groupe Octobre)

et leur fusion, mestrado em história, Universidade Paris VIII, 1976. 393 Denise Avenas & Alain Brossat, De l’antitrotskysme, élements d’histoire et de théorie. Paris: Maspero, 1971,

p.10, 11. 394 Conselheiro de Ben Bella na Argélia independente, Pablo deixou a IV Internacional em 1964/5. Em seguida à

exclusão da IV, ele anima uma organização internacional minoritária (cuja seção francesa era a Aliança marxista

revolucionária) voltada para o reagrupamento da extrema-esquerda em torno da questão da autogestão. 395 Alain Krivine, Ça te passera avec l’âge, op.cit., p.81.

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jovens oriundos da JCR. Mandel, por sua vez, representava para os jovens militantes a

vitalidade teórica que faltava às correntes mais preocupadas em reproduzir a herança do que

em analisar concretamente a situação concreta do capitalismo e as condições de possibilidade

da luta revolucionária. Buscando apreender as especificidades do capitalismo no pós-guerra –

que parecia desmentir as previsões de Trotsky e, em especial, o catastrofismo dos lambertistas

–, Mandel reformulou o programa trotskista à luz do dinamismo do desenvolvimento capitalista

no pós-guerra, ao invés de se apegar piedosamente à herança dos clássicos. Assim, ele projetava

a tradição trotskista à altura dos desafios colocados pela chamada “nova esquerda”, que, na

França, encontrou uma ampla ressonância em corrente “autogestionárias” ou “reformistas

revolucionárias” da CFDT e do PSU. A boa implantação da Liga na CFDT (mais do que na

“cortina de ferro” da CGT controlada pelo PCF), assim como o poder de atração que ela exerceu

nos militantes da esquerda do PSU, demonstram a capacidade de diálogo da organização – em

grande medida pelos esforços teóricos de Mandel – com outras correntes da esquerda radical.

Para Michael Löwy e Daniel Bensaïd, em particular, Ernest Mandel representava uma

espécie de passeur entre duas gerações, entre aquela dos primeiros “trotskistas” e a nova

geração de militantes que emergira politicamente a partir dos anos de 1960. Somente alguém

como Mandel e seu espírito relativamente aberto no contexto do trotskismo da época poderia

representar – para os jovens militantes mais preocupados em preparar a revolução do que em

repetir os ensinamentos de uma tradição específica – uma passarela menos dogmática de acesso

à herança do marxismo revolucionário do passado396. Na ótica retrospectiva de Löwy, Mandel

“teve papel determinante para a renovação intelectual e política [do] trotskismo”, seja “por suas

análises do capitalismo tardio” seja “por sua visão ampla e generosa da democracia socialista,

que afirma – inspirado pelas ideias de Rosa Luxemburgo – a irrestrita liberdade de expressão e

de participação política”397. Daniel Bensaïd, por sua vez, trabalhou diretamente com Mandel na

direção do SU em Paris, vendo-o como um “tutor teórico”, malgrado o seu determinismo

sociológico na análise das potencialidades revolucionárias de uma dada situação –

determinismo que desagradava ao jovem Bensaïd, mais “leninista” e, por isso, partidário de

uma leitura mais “política” da crise e do processo revolucionário398. “Nós aprendemos muito

396 Cf. Ernest Mandel, De la Commune à Mai 68. Paris: La Breche, 1978; Les étudiants, les intellectuels et la lutte

des classes. Paris: La Brèche, 1979; “Leçons de Mai 68”, Inprecor n° 424, 1998. 397 Emir Sader & Ivana Jinkings, “Entrevista com Michael Löwy”, in: Margem Esquerda, n.4, 2004, p.18. 398 Mais tarde, Daniel Bensaïd diria que Ernest Mandel “manejava virtuosamente uma dialética histórica tingida

de positivismo e de objetivismo sociológico. Essa dialética, demasiadamente formal ao meu gosto, tendia a se

transformar em trucagem retórica e em máquina de escamotear no sentido da história universal as dificuldades

políticas da conjuntura. Confrontado a acontecimentos que se integram mal nos esquemas preconcebidos (a

revolução nicaraguense ou a guerra do Afeganistão), Ernest esquivava-se da dificuldade invocando diversos

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com ele, sem que ele tenha se tornado em nenhum momento um guru autoritário, à maneira de

Pablo, de Juan Posadas, de Pierre Lambert ou Tony Cliff”. Para Bensaïd, “conviver com Ernest

no cotidiano era uma fonte de conhecimentos e uma iniciação permanente aos fundamentos do

marxismo”399.

3.2. LCR: lócus de intelectuais revolucionários?

Não poucos autores acreditam que essa maior “abertura” da LCR vincula-se à notória

participação, nas suas fileiras, de intelectuais militantes, que teriam conferido à organização a

consistência e a elasticidade necessárias à sua perenidade. Aos olhos de Keucheyan, por

exemplo, “o fato de que a LCR tenha perdurado sob diversas formas desde a sua fundação em

1966 é um caso interessante. A plasticidade dessa organização se deve em grande medida ao

fato de que os intelectuais que nela militam tenham persistido no seu engajamento político [...].

O ‘capital simbólico’ – para falar como Bourdieu – por eles investido na atividade interna da

organização (direção, formação), assim como na sua representação pública (legitimação),

explica sem dúvida em alguma medida sua longevidade”400.

Dessa presença decisiva dos intelectuais na composição social da organização, malgrado

as tentativas de “proletarização” (“tournants operários”), decorre a importância concedida à

formação teórica e política dos militantes, uma formação que, a bem dizer, revelou-se lhes

muito mais útil do que a mera doutrinação, servindo-lhes como uma verdadeira universidade

revolucionária401. Vários dos professores nas escolas de formação do partido eram/são

professores/pesquisadores do ensino superior: Hubert Krivine (irmão gêmeo de Alain), físico

de formação, Catherine Samary, especialista em países do leste europeu e professora na

Universidade Paris VIII, Jacques Valier e J.-F. Godchau, professores da Universidade de

Nanterre, Paul Alliès, da Universidade de Montpellier (orientador de doutorado de Bensaïd),

além de Henri Weber, que ministrava cursos em Vincennes, e Daniel Bensaïd, que em 1971/2

encarregou-se de uma disciplina (Unidade de Valor), no nova universidade, sobre “a natureza

dos Estados operários”402. Segundo François Sabado, histórico militante da LCR, “uma das

antecedentes históricos e tomando todas as precauções teóricas, sem se pronunciar sobre a questão precisa”. Daniel

Bensaïd, Une lente impatience, op.cit., p.365. 399 Daniel Bensaïd, Une lente impatience, op.cit., p.363. 400 Razmig Keucheyan, Hémisphère gauche, op.cit., p.78. 401 Não por acaso o título da tese de Jean-Paul Salles, em forma de questão retórica, é: A LCR, instrumento da

Grande Noite ou lugar de aprendizagem?, op.cit. 402 Jean-Paul Salles, La LCR..., op.cit., 260.

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especificidades da nossa corrente internacional [SU], é o papel central das ideias. E Daniel

[Bensaïd] cumpriu um papel decisivo. Ao lado de outros, é claro, como Mandel ou Charles-

André Udry”. Mais do que os outros, porém, diz Sabado, “Daniel representou um papel

fundamental na ênfase à importância do debate de ideias, a confrontação com os outros, a troca

e a compreensão fina das linhas de argumentação em seu contexto”403. Não por acaso, ele foi

um dos principais animadores, junto com C-A. Udry e Pierre Rousset, da constituição em 1983,

do Institut International de recherche et de formation (IIRF), sediado em Amsterdam, e

responsável pela formação de centenas, se não milhares, de militantes ao longo dos anos.

No plano das artes e da cultura, mesmo em seu período mais politicamente sectário, a

LC(R) demonstrou uma abertura para escritores, poetas e/ou artistas das mais diferentes

“linhagens”, como o revelam os artigos publicados no jornal Rouge sobre autores como P.

Modiano, Sade, J. Prévert, A. Robbe-Grillet, Malraux, Drieu La Rochelle, G. Sand, Voltaire, a

geração beat (saudada em vários textos), etc., a maioria em tom elogioso, a despeito das

reservas de praxe, e muitos dos quais assinados por Michel Lequenne, sem dúvida o mais

profícuo na crítica das artes dentre os trotskistas da Liga. Remetendo à ligação tardia de Trotsky

e André Breton – que se conheceram no México, em 1938 –, Lequenne se interessa vivamente

pelo surrealismo, razão pela qual o jornal Rouge dedica, em novembro de 1974, um dossiê de

quatro páginas ao assunto404. Ao lado do brasileiro Paulo Paranaguá e, não à toa, de Michael

Löwy, Lequenne participava do grupo surrealista de Paris, reconstituído após maio de 68 por

iniciativa de Vincent Bounoure405. Muito mais do que o PCF, cuja conservadorismo no plano

cultural era notório, ou dos seus congêneres da extrema-esquerda (em particular os trotskistas

lambertistas), a Liga buscou conectar-se às demandas da (contra) cultura radical da época,

buscando seguir a máxima estabelecida no manifesto da FIARI, redigido por Trotsky e Breton:

a liberdade total no domínio da arte, sem nenhum controle prévio (político e/ou estatal).

Essa postura explica a atração exercida pela Liga, desde os seus primórdios, dentre

alguns artistas escritores e personalidades da cultura de esquerda que, embora em sua maioria

jamais tenham militado na organização, não escondiam sua simpatia pelos jovens aprendizes

de revolucionários. Da atriz Marguerite Duras ao editor François Maspero (que chegou a militar

por algum tempo na organização), passando por Michel Picolli e pelo cineasta Constantino

403 François Sabado, “L’Internationale”, in: François Sabado (org.). Daniel Bensaïd, l’intempestif. Paris: La

Découverte, 2012, p.162. 404 Rouge hebdomadaire, n.274, 15 de novembro de 1974, pp.9-12. 405 Informação concedida por Michael Löwy ao autor na Universidade de Verão do NPA em Port-Leucate (França),

em agosto de 2014.

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Costa-Gavras, são vários os exemplos que ilustram essa relação, a qual confere à Liga uma

áurea que ultrapassava em muito a sua força real.

Uma boa amostra do voluntarismo político-cultural na construção da Liga ao longo da

década de 1970 foi a decisão tomada pela direção nacional em maio de 1975 de transformar o

jornal Rouge, até então semanal, em um cotidiano. Tratava-se de algo inédito no âmbito da IV

Internacional: salvo organizações como os Worker’s Revolutionary Party da Grã-Bretanha, que

manteve um jornal cotidiano por algum tempo nos anos 1960, nenhuma outra organização se

reivindicando do trotskismo, muito menos pertencente à IV Internacional, tinha dado um passo

tão grande na construção de um “organizador coletivo”, no sentido leninista, capaz de orientar

e intervir cotidianamente nos debates e nas lutas políticas da esquerda revolucionária.

Apostando em uma hipotética mudança na conjuntura política que viria com uma eventual

vitória da “União de Esquerda”, a empreitada, como várias outras iniciativas levadas a cabo

pela organização, revelou-se acima das capacidades e possibilidades reais da Liga na época.

Como diria Bensaïd, “sem experiência técnica e jornalística, nós fizemos tudo ao avesso [...].

Tratava-se ainda, desta vez aplicada à guerrilha jornalística, uma manifestação do voluntarismo

guevarista e um ato de fé nas virtudes da ação exemplar”407.

Contando com a ajuda financeira de personalidades como Sartre, Michel Picolli,

Delphine Seyrig, dentre outros (e com a recusa em contribuir de Jean-Luc Godard, para o qual

um jornal seria uma empreitada necessariamente fascista408), o primeiro número de Rouge

quotidien aparece em março de 1976. De início, trabalhavam na redação e na gráfica, em

Montreuil (na região metropolitana de Paris), por volta de 20 técnicos e 25 redatores, nem

sempre dos mais preparados, em especial no primeiro caso – Luc Besnières, por exemplo,

militante e membro da equipe técnica do jornal, acidentou-se gravemente em fevereiro de 1977,

trabalhando na rotativa. Pela inexperiência e falta de formação dos seus membros, pela “má

gestão” e, em outro plano, pelo estilo julgado (por alguns leitores) demasiadamente

“intelectual” e “esotérico”, a versão cotidiana do jornal não sobreviveu por muito tempo,

voltando a tornar-se semanal em fevereiro de 1979, ou seja, quase três anos após sua aparição.

Nas palavras de Jean-Paul Salles, “[...] a direção da Liga tomou uma iniciativa ousada lançando

o cotidiano: nem a dedicação dos militantes, nem os diversos períodos eleitorais (notadamente

as legislativas de 1978), não permitiram tornar [a] iniciativa viável”409. A vitória da direita em

1978 representou um golpe fatal para o cotidiano. Embora vendesse de 10 a 12 mil exemplares

407 Daniel Bensaïd, Une lente impatience, op.cit., p.241. 408 Essa foi, segundo Bensaïd, a justificativa dada pelo cineasta para não contribuir financeiramente com o projeto. 409 Jean-Paul Salles, La LCR..., op.cit., p.234.

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por dia em período escolar, o que era um número considerável, o déficit financeiro, associado

à depressão pós-eleitoral, colocaram termo ao projeto, entre cujas consequências estava o

desemprego para boa parcela dos técnicos e dos redatores.

Enquanto durou, Rouge quotidien significou, para vários jovens, uma verdadeira escola

de jornalismo militante, permitindo aos seus colaborares aprender uma profissão e

estabelecendo, assim, passarelas de integração social para ex-militantes. Entre março de 1976

e janeiro de 1979, Daniel Bensaïd, Alain Krivine, Alain Bobbio e Gérard Filoche foram os

editores-responsáveis pela publicação. Nela, além dos próceres da organização, trabalharam

figuras como Alain Brossat, Denise Avenas, Xavier Langlade e, em especial, Edwy Plenel.

Trabalhando em um pequeno escritório no subsolo do edifício, Plenel era o responsável pelas

questões de educação no jornal. Seria através dessa rubrica (“educação”) que ele se tornaria,

em 1980, um ano depois de deixar a LCR, jornalista no Le Monde, jornal do qual assumiu a

direção em 1996, afastando-se em 2004. Em 2008, Plenel fundou o projeto de um jornal

independente em linha, chamado Mediapart, através do qual ele acredita manter de pé a vocação

trotskista (de um “trotskismo cultural”, como ele diz) pela busca da verdade410.

Na década de 1970, a vitalidade relativa dos debates intelectuais e políticos no interior

da LCR revelava-se igualmente através do confronto de posições entre as tendências, que

culminava no congresso nacional da organização. Bastava a assinatura de 30 militantes titulares

para a constituição de uma tendência, com possibilidade de se exprimir no jornal Rouge, nos

Boletins Interiores (BI) e, tão importante quanto, com os eventuais custos de deslocamento dos

líderes de tendência financiados pela organização. No primeiro congresso da LCR, em

dezembro de 1974, três tendências se destacavam: 1) a posição majoritária, chamada “T2”, que

recolheu 59% dos votos; trata-se da tendência leninista mais “ortodoxa”, liderada pelos três

principais membros da JCR: Alain Krivine, Henri Weber e Daniel Bensaïd, este último

responsável pela sistematização teórica da perspectiva política da tendência; 2) a tendência

liderada por Gerard Filoche, a “T1” que teve 18% dos votos, crítica da “seduções militaristas”

da LC e defensora de um redirecionamento do foco da organização para o núcleo da classe

operária organizada, nos sindicatos, nas fábricas e nas universidades.

E, por fim, a “T3”, inspirada por Michel Lequenne (de pseudônimo Hoffman), talvez a

mais heterodoxa dentre as tendências da LCR, contando com 19% dos votos dos delegados do

congresso; apelando à ruptura com o “leninismo dogmático”, Lequenne lamenta, na contramão

410 Entrevista do autor com Edwy Plenel na sede do Mediapart (Paris), novembro de 2014.

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das outras tendências, o privilégio excessivo e fetichista concedido às lutas operárias, em

detrimento, por exemplo, das lutas estudantis: “Nós recusamos reduzir a Vanguarda Ampla à

Vanguarda Operária Ampla”, dizia ele. Com um discurso anti-obreirista, além da personalidade

carismática de Lequenne, essa tendência seduziu parcelas importantes dos setores jovens,

estudantis e das mulheres, por sua abertura às questões da época411. No terceiro congresso, em

1979, a “T3” chegou a ter 39% dos votos, contra 38,5% da tendência unificada entre a maioria

(Krivine, Bensaïd) e Filoche. Não constitui um acaso o fato de que, no interior da Liga, Löwy

tenha sempre se sentido mais próximo da “T3” e de Lequenne, com quem, ademais da afinidade

surrealista, ele havia militado na corrente Socialismo Revolucionário do PSU412.

3.3. A travessia no deserto: resistência e renovação nos anos 1980

Articulados, esse conjunto de fatores explica a capacidade de adaptação, de resistência

e mesmo, em algumas ocasiões, de renovação, demonstrada pela LCR desde 1966 (com a

criação da JCR) até a sua autodissolução em 2009. Compreende-se, assim, porque tanto Michael

Löwy quanto Daniel Bensaïd, de formas diferentes, foram, ao longo desse período, sobretudo

o segundo, dois dos principais dentre os inúmeros intelectuais militantes da LCR: tal qual a

organização à qual pertenciam, e pour cause, ambos se destacaram, como se busca sustentar

neste trabalho, pela tentativa (mais ou menos bem sucedida, a depender do avaliador) de

“atualizar” o marxismo a partir dos novos desafios (políticos e intelectuais) que lhes foram

impostos seja por teorias rivais ou pelos acontecimentos que, desde o final da década de 1970,

mudaram a atmosfera europeia.

Isso não significa que a travessia, tanto de Michael Löwy e de Daniel Bensaïd quanto

da LCR, tenha se dado sem grandes dificuldades. Muito pelo contrário. A organização, assim

como Bensaïd, em particular, demorou a perceber a dimensão da ruptura de época que estava

ocorrendo, desde meados da década de 1970. As esperanças em torno da vitória do candidato

da “União da Esquerda” – que efetivamente aconteceu em 1981, com a eleição de François

Mitterrand –, e, mais, da possibilidade de um “transbordamento” das direções reformistas pela

411 Jean-Paul Salles, La LCR..., op.cit , p.235. 412 Nascido em 1921 no Havre (França), Michel Lequenne constitui outra das figuras lendárias do trotskismo

francês. Membro do PCI-unificado desde 1944, ele se opõe à linha pablista na cisão de 1952. Três anos depois,

porém, é expulso do PCI-majoritário (lambertista). Em 1960, adere ao PSU, animando a tendência Socialista

Revolucionária. Ainda dentro do PSU, torna-se militante do PCI-minoritário (pablista) em 1961, organização na

qual se manteve até a formação da LC em 1969. Militou na LC e, depois, na LCR até 1988. Sobre o trotskismo

francês, é autor de uma obra notável: Michel Lequenne, Le trotskysme, une histoire sans fard, Paris: Syllepse,

2005. Para Löwy, trata-se do melhor livro militante sobre o tema. Certamente essa não é uma opinião da qual

Bensaïd compartilharia.

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dinâmica das lutas dos trabalhadores que tal processo poderia desencadear, retardaram a

apreensão de uma mudança de época (e não apenas de situação política) cujo desfecho dos

acontecimentos como a revolução portuguesa e a transição espanhola já permitia entrever.

Como vimos, seria apenas após o “tournant do rigor” promovido pelo primeiro-ministro

Laurent Fabius, em 1983, com o início de uma verdadeira “travessia do deserto” para Bensaïd

e para a LCR, que se começou a visualizar a dimensão das transformações em curso, buscando

adaptar-se à nova situação, o que não ocorreria em obstáculos, desafios e, às vezes, grandes

dificuldades.

Em 1979, por exemplo, no mesmo ano em que a IV Internacional (SU) adotou o célebre

documento intitulado “Democracia Socialista”, que buscava avançar na concepção de uma

perspectiva socialista a um só tempo revolucionária e democrática, a LCR, baseando-se na

caracterização de que a URSS era, apesar de tudo, o núcleo do campo “progressista”, recusa-se

a exigir a retirada das tropas soviéticos do Afeganistão, país que havia sido invadido em reação

às tentativas de derrubada do governo afegão, apoiado por Moscou. No limite, com base em

algumas “sutilezas dialéticas”, a LCR e o SU enxergavam efeitos positivos na intervenção

soviética, uma vez que ela permitiria avançar na liquidação dos restos feudais do país. Diante

dos dois campos antagônicos, era preciso, como já dissera Trotsky décadas atrás, defender a

URSS413. A despeito de tudo, a URSS poderia cumprir, no Afeganistão, um papel objetivamente

revolucionário. A Daniel Bensaïd coube, uma vez mais, o papel de defender as posições da

maioria da LCR/SU, em oposição à crítica de uma minoria da Internacional, no meio da qual

encontravam-se figuras como Tariq Ali, Gilbert Achcar e Lequenne. Uma autocrítica seria de

fato realizada apenas em 1981, quando a organização passou a exigir a imediata retirada das

tropas soviéticas, doravante qualificadas de “tropas de ocupação”414.

Dificuldade semelhante se revelaria no momento de apreender a dinâmica da derrocada

do “socialismo” burocrático na URSS e nos países do leste europeu, entre 1989 e 1991. Tal

413 Levando às últimas consequências essa fórmula na qual os inimigos de nossos inimigos são necessariamente

nossos amigos, a seção norte-americana do SU da IV Internacional havia defendido vigorosamente a

revolução iraniana naquele mesmo 1979, chegando a se manifestar em Nova York com as provocadoras barbas do aiatolá Khomeini. Enquanto isso, os militantes trotskistas e/ou de esquerda de uma forma geral, retornando do

exílio ao país, eram presos e ameaçados com a pena de morte no Irã. 414 M. Rovere, “Afghanistan, une autocritique nécessaire”. Critique Communiste, n.3, 1981, pp. 30-33. Em sua

autobiografia, Daniel Bensaïd é um tanto autoindulgente em relação à posição do SU/LCR em relação à invasão

soviética no Afeganistão. Para ele, “se nós denunciávamos as investidas do imperialismo na região do Golfo [...],

nós nos recusávamos a ver na política soviética sobre aspectos geoestratégicos regionais, o menor aspecto

progressista”, o que é evidentemente duvidoso. Tanto que, como ele mesmo afirma, embora denunciassem

“intervenção soviética como reacionária [...], nós nos recusávamos a defender a palavra de ordem de retirada

imediata das tropas soviéticas”.

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como para outras correntes trotskistas, com raras exceções individuais, o SU e, em particular,

Ernest Mandel apostavam que a desagregação das burocracias significaria enfim a possibilidade

de que a proposição de Trotsky em torno da necessidade de uma “revolução política”,

democrática, na URSS, fosse confirmada na prática. Acreditando que as massas jamais

aceitariam sem resistência uma simples restauração capitalista, saindo em defesa não da

burocracia, mas sim das conquistas do “socialismo”, Mandel e o SU visualizaram nos

acontecimentos que começaram em 1989 o início de uma reviravolta histórica, que renderia

justiça aos primeiros oponentes da burocracia stalinista que agora se esfacelava: os trotskistas

e a oposição de esquerda. Tornou-se célebre, por seu otimismo deslocado do real (ou

simplesmente “patético”, como diz Bensaïd), o discurso de Mandel em um meeting da LCR em

janeiro de 1990, na Mutualité, sobre os acontecimentos na Europa: após o longo parêntese

stalinista, disse ele, diante de um auditório perplexo, a revolução se recolocará em marcha,

reatando os laços com a revolução alemã do final da década de 1910, abafada com o assassinato

de Rosa Luxemburgo e dos spartakistas415.

Esse “otimismo antropológico”, conforme a designação de Michael Löwy, caracteriza

o pensamento político de Mandel, no que apenas traduz ao seu modo uma tendência do

trotskismo de forma mais ampla416. Em Redenção, romance sobre a desorientação dos

trotskistas (em particular a corrente mandelista, na França) em meio ao colapso das ditaduras

burocráticas, Tarik Ali, que militou nas fileiras da IV Internacional, ironiza o otimismo de

Mandel na época, ao ponto de torná-lo patético. No romance, um nítido acerto de contas do

autor com seu passado militante, Mandel (o personagem principal, chamado Ezra Einstein417)

convoca um congresso extraordinário (na Mutualité!) convidando todos os trotskistas, de todas

tendências e de todas as partes do mundo, para discutir os acontecimentos na Alemanha e na

Europa do Leste. A trama se articula em torno dos preparativos e da realização desse Congresso,

que definiria o futuro do movimento fundado pelo “velho” mais de cinco décadas atrás. Dentre

os inúmeros personagens inspirados em pessoas reais, destacam-se, além de Mandel, Pierre

Frank (Antoine Renard), Michael Löwy (Padre Rossi), Daniel Bensaïd (Philliphe), Michel

Pablo (Diablo), Alain Krivine (um dos “trigêmeos”, provavelmente Simon), Charles-André

415 Várias pessoas entrevistadas (Krivine, Lucien Sanchez, Artous), que pertenciam à LCR naquele momento,

relataram a perplexidade que a intervenção de Mandel causou entre os militantes. 416 Cf. M. Löwy, “L’humanisme révolutionnaire d’Ernest Mandel”, in: Gilbert Achcar (org.). Le marxisme

d’Ernest Mandel. Paris: PUF, 1999. Curiosamente, Enzo Traverso utiliza, conforme veremos, a mesma expressão

– “otimismo antropológico” - para designar a estrutura de sentimento por trás do pensamento do próprio Löwy. 417 Filho de judeus poloneses, Ezra é o nome de batismo de Mandel. Sobre a vida “real” de Ernest Mandel, ver a

biografia escrita pelo historiador holandês Jan Willem Stutje, Ernest Mandel: A Rebel’s Dream Deferred, London:

Verso, 2009.

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Udry (Jean-Michel/Cuco), Pierre Lambert (François Pelletier) e até mesmo Henri Weber

(Pierre Kosminsky), socialdemocrata convidado por engano para congresso, além de Ted Grant

(Jed Burroughs), Tony Cliff (Jimmy Rock), entre vários outros e outras418.

O romance - que não goza de prestígio estético e reconhecidamente não está entre os

melhores do autor - destila uma visão caricatural e psicologista dos grupos e dirigentes políticos

trotskistas, tratando-os, no melhor dos casos, como otimistas inocentes (Mandel ou Löwy) ou,

no pior, como estrategistas meticulosos e desonestos, prontos a tudo fazer pela reprodução do

(seu) aparato, quando não como simplesmente psicopatas e/ou pervertidos sexuais. Mandel, ou

melhor, Ezra Einstein, casado com uma jovem brasileira (Maya) que conhecera num dos

comícios da campanha de Lula, e, no alto dos seus 70 anos, prestes a ser pai de uma criança

devidamente batizada como Ho (em homenagem a Ho Chi Minh), é retratado como um

dirigente político déboussolé, mas esperançoso nas possibilidades que, segundo ele,

necessariamente se abririam. Em um dos diálogos, com Cuco (Jean-Michel, na verdade

Charles-André Udry), Ezra Einstein afirma: “Jean-Michel, ouça. Estou convencido de que, se

mudássemos drasticamente nossa estratégia e nossa tática, poderíamos ser a ponta de lança de

uma revolução mundial. Estamos mais próximos dela do que estávamos nos anos 20, nos anos

40, e nos anos 60”419. Einstein estava convencido quanto “à impossibilidade de uma restauração

sem a feroz resistência dos trabalhadores”420, ainda que reconhecesse que, infelizmente, não

seriam os trotskistas, de imediato, a dirigi-los em sua luta.

No discurso de inauguração do tal congresso, Ezra Einstein diz aos seus camaradas na

plateia: “A série de acontecimentos na Europa Oriental e na União Soviética está desafiando

toda ortodoxia, inclusive a nossa. Claro que muitas previsões do Velho estão sendo preenchidas.

Ele falava, como estão lembrados, do ódio e da raiva varrendo os burocratas para fora do poder

e negando-lhes um lugar nos novos órgãos de representação [...]. Mas, subjacente ao seu

pensamento, havia uma pressuposição geralmente implícita. O Velho supunha que estas

transformações seriam efetuadas por nós, ou pelo menos por partidos do estilo bolchevique,

cuja criação era a razão de nossa existência. Crescemos mil vezes desde que fundamos nosso

movimento há cinquenta anos, mas o sucesso até agora nos tem escapado. Acho que chegou a

hora de nos perguntarmos por quê [...]. Estamos vivendo através de uma impressionante

418 O próprio Tarik Ali é evasivo em relação à inspiração de alguns personagens. Mas uma leitura atenta, aliada ao

conhecimento das grandes querelas do trotskismo, permite identificar com relativa facilidade em quem se baseiam

os personagens do romance. A identificação acima é de minha inteira responsabilidade e, portanto, está sujeita a

equívocos. 419 Tarik Ali, Redenção. São Paulo: Editora Record, 2005, p.22. 420 Idem, p.72.

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procissão de cenas de uma luta popular, antiburocrática, que continua enquanto nos reunimos

aqui”421.

Em um “acesso de delírio” durante o discurso, no qual uma “força misteriosa parecia ter

tomado conta dele”, Ezra Einstein propõe aos seus camaradas, em face do protagonismo das

religiões nas transformações pelas quais passava o mundo à época (Irã, Polônia, Alemanha

Oriental), que eles adotassem uma política de “entrismo” nas instituições religiosas: “Devemos

entrar nas igrejas, nas mesquitas, nas sinagogas, nos templos e proporcionar liderança”, diz ele,

que continua: “Dentro de dez anos, posso prever que pelo menos três ou quatro cardeais, dois

aiatolás, dúzias de rabinos e algumas das melhores igrejas como os metodistas em partes da

Grã-Bretanha estarão sob nosso controle. Nosso objetivo é ocupar o movimento e eleger um

papa do nosso movimento”422. Após o discurso ter causado um previsível rebuliço nas fileiras

do “movimento”, Simon (Alain Krivine), dirigente do PSR (na verdade a LCR) confiou ao padre

Pedro Rossi (Michael Löwy423) a incumbência de defender as posições de Ezra Einstein

(Mandel).

Teólogo brasileiro da libertação, guerrilheiro contra a ditadura militar, admirador de

Camilo Torres, o padre Pedro Rossi é descrito como um “brilhante jovem brasileiro”, que fora

aluno de Louis Althusser e de Régis Debray, “cujas teses iluminadas sobre a Teologia da

libertação o haviam colocado em sério conflito com o Vaticano, mas lhe valeram um

professorado em Teologia em Vincennes”, após ter participado, no Brasil, do sequestro do

embaixador alemão. “Amigo pessoal íntimo de Ezra”, e então apaixonado pela búlgara Lina

(inspirada em Eleni Varikas, sua companheira de origem grega424), que não se dava bem com

Einstein, Pedro Rossi, com seu “estilo seco e pedagógico”, seus “tons polidos e clericais”,

defendeu em sua intervenção a dimensão revolucionária da crítica religiosa da modernidade,

em uma descrição que bem poderia se referir ao verdadeiro Michael Löwy: essa crítica, afirma

o narrador, resumindo a fala do personagem, “combatia o presente avançando utopias

revolucionárias inspiradas na religião. Estas não tinham um caráter regressivo. Queriam tomar

421 Idem, p.266, 267. 422 Idem, p.269, 270. 423 Trata-se, como se vê, do mesmo sobrenome do pseudônimo militante de Michael Löwy, Rossi. Mas enquanto

o pseudônimo é Carlos Rossi, o personagem é Pedro Rossi. 424 Foi o que me foi confirmado tanto por Michael Löwy quanto pela própria Eleni Varikas, que, por sua vez,

receberam a óbvia confissão de Tarik Ali, do qual sempre foram amigos. Eleni Varikas menciona até mesmo que,

na época em que estava escrevendo o livro, sem revelar a ninguém o projeto, Tarik Ali costumava fazer pequenas

anotações no meio de conversas, encontros e/ou jantares entre eles. Conversa informal com Michael Löwy e Eleni

Varikas, Paris, maio de 2014.

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um desvio através do passado em direção do novo mundo e de um novo futuro425. Essa crítica

da modernidade podia ser profundamente radical e os reinos messiânicos do futuro não eram,

em teoria, tão diferentes das utopias sem Estado antecipadas por Lênin em Estado e

Revolução”426. Ao final, por apenas um voto de diferença (fraudado), venceu a linha proposta

por Ezra Einstein, não sem ser acusada de liquidacionista e revisionista pelos inimigos de

sempre, dentre os quais o autor destaca negativamente a figura de François Pelletier (Pierre

Lambert), cujos seguidores são conhecidos como “os robôs”. Diante da proposta de Einstein,

em aliança com os rivais ingleses, Pelletier advoga pela criação de uma nova seita, o

“crislãmaçonismo”.

Embora seja um dos personagens mais simpáticos (ou menos patéticos) do romance, o

padre Pedro Rossi, tanto quanto Ezra Einstein, não escapa de situações das mais desagradáveis,

como quando, no funeral de Antoine Renard (Pierre Frank), foi cercado nu por prostitutas (dos

“coletivos das operárias do corpo”) que dançavam ao seu redor, enquanto ele “cobria suas partes

intimas com as mãos, deixando o bumbum sem proteção. Cada operária-do-corpo entrava na

roda, dava-lhe um tapa na bunda e saía correndo. O objetivo era obrigá-lo a proteger o traseiro

para que pudessem vê-lo frontalmente, mas ele estava impassível”. Enfim, Rossi foi “salvo” do

entrevero por Lina (Eleni Varikas) e Maya (companheira de Ezra Einstein e mãe da pequena

Ho), as quais estavam, pouco antes, fuxicando sobre os dotes sexuais do ainda padre427.

No âmbito desse “movimento que produzira mais esquisitices e excentricidades do que

até os jesuítas”, Tarik Ali atribui, em suas elucubrações romanescas, um papel modesto a Daniel

Bensaïd, do qual também fora muito próximo. Talvez porque Bensaïd, mais ainda do que Löwy,

dificilmente poderia se deixar caricaturar a tal ponto, e Ali, conhecedor do amigo, aquele que,

como disse Edwy Plenel, “nunca se utilizou da baixeza, sempre foi ‘elegante’ acima de tudo”428,

talvez não tenha logrado uma forma de encaixá-lo nesse entrevero de figuras oportunistas ou,

na melhor das hipóteses, utopistas sonhadoras, como Erza (Mandel) e Rossi (Löwy). Essa talvez

seja a razão pela qual Bensaïd (aliás Philippe) apareça apenas duas vezes, sempre de forma

rápida e episódica e longe das questões centrais do congresso em questão, e, em especial, em

425 Essa ideia de um “desvio” pelo passado em direção ao futuro é explicitamente mencionada por Löwy, como se

verá, na sua caracterização do “romantismo revolucionário”. 426 Idem, p.287. 427 Idem, p.335, 336. Segundo me contou Michael Löwy, à época da publicação do livro, Mandel ficou enfurecido

com Tarik Ali. Löwy, quanto a ele, preferiu “levar na brincadeira”, como se diz, embora não tenha apreciado

esteticamente o livro. 428 Fabio Mascaro Querido. Entrevista com Edwy Plenel, sede do Médiapart, Paris, 20 de setembro de 2014, com

a participação de Darren Roso. Plenel terminou a entrevista com essas palavras, falando do amigo que, para ele,

mais do que um intelectual e político, poderia ter sido um brilhante escritor.

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descrições que se aproximam em muito da sua vida “real”, salvo num ponto essencial:

amargurado com as manobras do aparato, Phillipe “deixou o movimento [...], mas preservou

seu senso de humor e manteve contato com muitos de seus camaradas do PSR”. Bensaïd, como

se sabe, nunca deixou o “movimento”, embora tenha tentado transformá-lo. Mas essa talvez

tenha sido a forma encontrada por Tarik Ali para poupá-lo das peripécias dos seus

companheiros de movimento em meio a um acontecimento decisivo em sua história.

Natural de Toulouse, Philippe (assim como Bensaïd) militou na “organização estudantil

do Partido Comunista”, a qual deixou para ajudar a fundar a Jeunesse Socialiste

Révolutionnaire (na realidade, a JCR), que se tornou umas das principais organizações das lutas

de maio de 68429. Fisicamente (muito bem) descrito como uma “mistura travessa de Charles

Aznavour [cantor francês de origem armênia] e Woody Allen”, a doença tinha lhe tirado a

possibilidade de continuar na direção da Internacional (o “Centro em Paris”), abrindo caminho

para as ambições autoritárias e oportunistas de Cuco (Charles-André Udry). “Depois de anos

trabalhando em tempo integral para o Centro, viajando ao redor do mundo com a mensagem e

muitas ouras coisas mais, sua doença acabou sendo politicamente fatal”430.

Na realidade, Daniel Bensaïd manteve uma significativa importância política e

intelectual ao menos no âmbito da LCR, sendo fundamental, como veremos, no processo de

renovação da organização em meio aos acontecimentos descritos no livro de Tarik Ali. Tal

como Michael Löwy, ele passara a ocupar desde então um lugar singular, distanciando-se

sensivelmente da ortodoxia trotskista, mesmo em sua versão mandelista. Essa postura impactou

a perspectiva política e programática da Liga, implicando em uma abertura para a apreensão

dos aspectos genuinamente novos do capitalismo contemporâneo, assim como das formas

particulares assumidas pelo antagonismo entre as classes. Do mesmo modo que contribuiu, na

década de 1970, para a teorização da linha esquerdista da Liga, Daniel Bensaïd, “o principal

teórico da LCR desde a sua fundação”431, teve papel central e, em certa medida, pioneiro na

travessia no deserto dos anos 1980 e no processo de renovação da organização na virada para

os anos 1990. Ao contrário de Mandel ou de outras correntes do trotskismo, com seu otimismo

irredutível, Bensaïd percebeu relativamente cedo, desde meados da década de 1980, que era

preciso começar a escovar a história a contrapelo: pela primeira vez a sua geração, crescida

sob a simbologia progressista do pós-guerra, e “batizada” politicamente em 68, necessitava

429 Idem, p.243. 430 Idem, p.217. 431 Florence Joshua, De la LCR au NPA (1966-2009)…, op.cit., p.293.

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remar contra a maré, já que a história, por si só, não renderia justiça a ninguém, nem mesmo

aos primeiros críticos da burocracia stalinista e do desfecho desastroso que, uma hora ou outra,

ele acarretaria.

Tornou-se bastante conhecida a reação de Daniel Bensaïd diante de um militante

(provavelmente Gérard Filoche) que, com a queda do Muro em 1989, propôs que todos

comemorassem bebendo champanha. Para Bensaïd, se a champanhe era bem-vinda a fim de

celebrar a desagregação de um cadáver que poluía o projeto socialista, junto com ela era preciso

tomar “Alka-Seltzer” (medicamento para dor de cabeça e ressaca), uma vez que a dinâmica do

processo não os pouparia, significando na verdade uma derrota histórica do movimento

operário. Também no seu caso, porém, a transição para uma posição mais heterodoxa no âmbito

do trotskismo não se realizou sem algumas dificuldades, ligadas à relação específica que essa

tradição política mantém com os (seus) textos clássicos. Em 1986, por exemplo, embora já

reconhecesse em outros textos a emergência de um novo período histórico, Daniel Bensaïd

ainda defendia vigorosamente, em um documento interno da LCR, a caracterização trotskista

da URSS como Estado operário degenerado, assim como a perspectiva política dela decorrente

(“defesa da URSS”), almejando apenas “completá-la” à luz dos acontecimentos posteriores à

segunda grande guerra. Dado o caráter muitas vezes imperialista assumida pela URSS, a

palavra-de-ordem “Defesa da URSS” deveria ser associada a uma intervenção decididamente

anti-imperialista, na qual a solidariedade ativa com as forças revolucionárias e/ou de libertação

nacional do “terceiro-mundo” seriam decisivas. Mesmo porque, diz Bensaïd, essas forças

poderiam contribuir para a luta pela “revolução política” na URSS e nos países do leste, que

ele ainda acreditava ser possível (1986!), já que elas permitiriam superar o campismo que

reduzia as alternativas entre capitalismo e “socialismo” burocrático433.

No livro Mai Si! Rebelles et repentis, publicado em 1988, por sua vez, em companhia

de Alain Krivine434, Daniel Bensaïd sustenta a necessidade, diante da universalização do

“perigo burocrático”, de definir “um projeto de socialismo democrático, pluralista e

433 Ségur (Daniel Bensaïd), “L’URSS dans le système mondial”. Bulletin intérieur de la LCR, 25 mai 1986.

Disponível em: http://danielbensaid.org/L-URSS-dans-le-systeme-mondial?lang=fr, acessado em 28/08/2014.

Nesse BI, em que não peca pela clareza (uma vez que se tratava de um documento interno), Daniel Bensaïd se

refere aos militantes trotskistas como “vanguarda socialista da humanidade”, formulação que já não aparecia mais

em seus textos na época. 434 A bem dizer, não é difícil perceber, pelo estilo da escrita e pelas referências utilizadas, que o livro foi quase

que inteiramente concebido e redigido por Bensaïd. Quando questionado sobre o assunto, Krivine confessou que,

possivelmente, fora de fato Daniel quem havia escrito a maior parte do texto. Cf. Entrevista com Alain Krivine,

Port-Lecaute (França), agosto de 2014.

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autogestionário”435. Baseado em uma concepção “sem fetiches” da revolução, em cujo núcleo

estaria o proletariado real (e não a sua imagem homogênea e mítica), em aliança com as demais

camadas opressivas, esse projeto não poderia se esquivar, segundo os autores, dos “desafios”

da questão democrática (e da autogestão), do feminismo, internacionalismo e, igualmente, o

“desafio ecologista”. Os autores (ou, antes, Bensaïd) evocam até mesmo a crítica de Walter

Benjamin, na XI tese sobre o conceito de história, às concepções de trabalho e de natureza

subjacentes à noção burguesa de progresso. Apelando a uma “redefiniçao do conceito de

progresso”, condição fundamental para a construção do tal “projeto de socialismo democrático,

pluralista e autogestionário”, Bensaïd destacava, antes mesmo de Michael Löwy, a importância

de Benjamin para uma reelaboração “eco-socialista” (ou “eco-comunista”, como preferia o

filósofo francês) do marxismo.

Na mesma época, já envolto com sua reformulação da concepção marxista do

romantismo, Michael Löwy sentia-se ainda mais independente do que Bensaïd em relação à

tradição trotskista. Encampando a ótica “terceiro-mundista” da LCR, e cada vez mais com os

olhos voltados para a América Latina, desde a virada para os anos 1980, Löwy parecia já há

muito bastante descrente em relação à possibilidade real de uma “revolução política

democrática” na URSS e nos países no leste europeu, embora também tenha alimentado tímidas

esperanças nos desdobramentos dos acontecimentos de 1989-1991. A bem dizer, a reordenação

da temporalidade histórica por ele reivindicada, desde a sua descoberta de Benjamin em 1979,

impelia Löwy à ruptura com a visão mandeliana (ou simplesmente trotskista) segundo a qual,

findado o desvio stalinista, a revolução de 1917 poderia voltar aos trilhos. Para Michael Löwy,

o mais interessante da obra política de Trotsky residia na sua formulação eminentemente

dialética da teoria da revolução permanente como a política decorrente da teoria do

desenvolvimento desigual e combinado, na contramão do etapismo evolucionista (e amparado

em uma noção simplista do progresso, tal qual o stalinismo denunciado por Benjamin) dos

Partidos Comunistas da periferia do capitalismo437.

Michael Löwy e Daniel Bensaïd estiveram, portanto, à frente de um processo de

renovação que, na realidade, ainda está em curso. Como bem observa Pierre Rousset: “Nesse

processo [de reformulação das teses do trotskismo], Daniel [Bensaïd] foi, junto com Michael

Löwy, um dos que foram mais rápido e mais longe na reelaboração fundamental que conduz à

435 Alain Krivine & Daniel Bensaïd, Mai si ! Rebelles et repentis, op.cit., p.79. 437 Cf., por exemplo, o livro, originalmente publicado na Inglaterra em 1981, A política do desenvolvimento

desigual e combinado - a Teoria da Revolução Permanente. São Paulo: Editora Sundermann, 2014.

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noção de história ‘aberta’”438. Bem entendido, igualmente para ambos, os acontecimentos de

1989-1991, com o desfecho que se seguiu (restauração capitalista), significaram o declínio

definitivo de uma era, de um período histórico, o que impunha avançar ainda mais no processo

de renovação de uma tradição política, o trotskismo, cuja identidade forjou-se na crítica e na

luta contra o stalinismo no seio do movimento operário e estudantil.

Em Socialisme ou barbarie au seuil du XXIe siècle, documento sintetizando as

resoluções adotadas no seu décimo-terceiro congresso mundial, a IV Internacional tenta

exatamente analisar esse “novo período”, assim como as suas consequências políticas para a

esquerda revolucionária, não sem algumas autocríticas inevitáveis. Muito além do que se

previra, a derrocada das “sociedades sob dominação burocrática na URSS e na Europa do Leste,

constata o documento, significou uma “crise de credibilidade do socialismo enquanto objetivo

social global aos olhos das massas”. A “forma concreta” assumida pela queda das ditaduras

burocráticas a leste, sem qualquer avanço na direção de um socialismo democrático, contribuiu

significativamente para esse descrédito, malgrado o aumento exponencial das desigualdades

nas sociedades capitalistas desde a depressão que começou nos anos 1970439.

Segundo o texto, a esperança na possibilidade de uma “revolução política” dos

trabalhadores que, ao mesmo tempo, preservasse as conquistas materiais do regime e avançasse

na direção da democratização, tal como alimentada pela IV Internacional (Mandel), baseava-se

em uma análise anacrônica, que fora incapaz de perceber a mudança na atitude das massas em

face da crise da URSS e dos países do Leste a partir do final dos anos 1970, início dos 1980.

Além da repressão, que se abateu sobre o potencial socialista dos movimentos dos

trabalhadores, a crise e a subsequente tomada de consciência da bancarrota das “economias de

comando” (burocrático) estimulava um declínio da própria ideia de uma economia socialista-

planificada. Nessas condições, afirma o documento, “as massas na Europa do Leste e na URSS

não confrontaram as crises do colapso das ditaduras stalinistas e pós-stalinistas em 1989-1991

com qualquer iniciativa de classe”. Ao contrário, “eles deixaram, no imediato, o campo livre às

frações da burocracia, inclusive das frações pré-capitalistas, e aos ‘liberais’ da pequena e média

burguesia para as quais a ‘economia de mercado’ é a forma de se engajar na acumulação

primitiva do capital”. Da incompreensão dessas questões decorreu em grande medida o

438 Pierre Rousset, “La révolution permanente”. In: François Sabado (org.). Daniel Bensaïd, l’intempestif. Paris:

La Découverte, 2012, p.119. 439 Socialisme ou barbarie au seuil du XXIe siècle. Manifeste programmatique de la Quatrième internationale.

Disponível em: http://jcrorg.chez.com/sommaire.html. Acesso em: 20/08/2014.

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otimismo exagerado e sem fundamento real demonstrado pela IV Internacional no início dos

acontecimentos de 1989-91.

Estrategicamente, a démarche geral do documento permanece aquela do programa de

transição: “partir das preocupações imediatas das massas a fim de estimulá-las, através de sua

própria experiência de luta, a se orientar na direção da subversão do capitalismo”. Diante da

falência não apenas do stalinismo, senão também da socialdemocracia, a instauração de um

“socialismo autêntico e democrático” implica necessariamente a “ruptura com o capitalismo”,

de sua “reversão” pela mobilização das massas, “em uma palavra, a revolução”. Em uma

assertiva mais luxemburguista do que propriamente leninista, porém, o processo revolucionário

é compreendido como um “verdadeiro laboratório histórico no qual nenhuma via mestra está

traçada de antemão”. Os equívocos são inevitáveis e, por isso, contém uma dimensão

pedagógica, possibilitada por uma “democracia socialista” a mais ampla possível, garantia da

autoatividade das massas. Somente assim, o “combate socialista” poderá significar o “combate

por uma sociedade no seio da qual o livre desenvolvimento de todos e todas dependerá do livre

desenvolvimento de cada um e cada uma”. Assim, à diferença do estigma colado ao projeto

socialista pela degeneração stalinista, diante de um mundo caracterizado pelo cinismo, pelo

desespero quanto ao futuro, “a luta pelo socialismo, recolocado no caminho correto, [será]

também a luta pelo renascimento da esperança de felicidade”.

Ainda assim, a despeito da autocrítica e da tonalidade mais contida e lúcida (se não

pessimista) do documento, o texto termina – trotskismo obriga! – com uma perspectiva

sensivelmente otimista em relação ao futuro próximo, quando “os efeitos positivos da

eliminação do [...] stalinismo aparecerão”. Provavelmente redigido por Mandel, o texto

sustentava que, nos países da “Europa oriental” e na ex-URSS “páginas inéditas do duplo

combate de massa pela democracia e contra a privatização vão ser escritas”. Dessas lutas,

continua o texto, em um exercício de futurologia política, “emergirá pouco a pouco um

movimento operário político revitalizado, fundado na independência em relação ao Estado, na

rejeição de todo monopólio político, na separação de todos os partidos políticos do Estado, na

representação e na igualdade para as mulheres e as minorias nacionais, no exercício do poder

pelos organismos democraticamente eleitos, no desmantelamento dos corpos repressivos, na

autogestão”.

Bem menos otimista é a apreciação de Daniel Bensaïd na mesma época. Em um

“boletim de debate” preparatório ao XIII Congresso mundial da IV, redigido em 1990, Bensaïd

constata que, malgrado o colapso das ditaduras burocráticas, liberando energias sociais

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represadas por décadas, as “burguesias imperialistas” estavam com a iniciativa, enquanto que

“o movimento operário e as organizações revolucionárias” mantinham-se relegados à

“defensiva”. Ainda que reafirmando a necessidade de se manter a luta pela revolução política

naqueles países, fazia-se necessário, segundo ele, reconhecer que os “ventos do Leste”440 não

estavam soprando “no sentido de um renascimento dos conselhos e da auto-organização

popular, e sim do fascínio pelas supostas maravilhas do mercado”. Até aquele momento,

constatava Bensaïd, em tom bastante diferente daquele de Mandel, “[era] a atração pela Europa

capitalista que está ganhando”, o que significaria, como de fato significou, o fim dos “Estados

operários” (“degenerados”). Por isso, nem mesmo a retomada da atividade democrática das

massas tornava aceitável, ou positiva, a restauração capitalista, comprovação em negativo das

esperanças de Trotsky. A debacle que se avistava seria de tal monta que, diante de uma possível

crise do imperialismo (em função, dentre outras coisas, dos custos da incorporação capitalista

dos países do Leste), o movimento dos trabalhadores encontrar-se-ia impotente, dada a

“profunda” e “grave” “crise do fator subjetivo [...], que não se reduz às carências e aos eventuais

méritos da IV Internacional, colocando o problema mais vasto da situação da vanguarda no

sentido amplo (quadros, organizadores, homens de confiança da classe), sobre as diferentes

frentes da situação mundial após meio século de stalinismo”441.

440 Referência à expressão de Gérard Filoche, bem mais esperançoso nas consequências democráticas do colapso

das ditaduras burocráticas. 441 Ségur (Daniel Bensaïd), “Débats et enjeux du prochain congrès mondial”. Critique communiste, XIIIe congrès

mondial, bulletin de débat n° 2, 1990.

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II Parte

Pensar a derrota sem perder a esperança: sociologia política de uma inflexão

benjaminiana

Nas décadas de 1960 e 1970, como vimos, em meio à aparente confirmação da

“atualidade da revolução”, tanto Michael Löwy quanto Daniel Bensaïd destacavam-se pela

tentativa de articular o “marxismo clássico” das tradições leninistas, trotskistas e/ou

luxemburguistas, com uma vertente específica do “marxismo ocidental” (anti-althusseriana),

vertente que ainda mantinha certa influência no cenário intelectual francês da época, a despeito

do eclipse gradativo que sofreria a partir de meados da década de 1970. Acentuando o papel da

subjetividade no processo da luta revolucionária – por meio de uma apropriação política das

teses de HCC –, Löwy e Bensaïd, malgrado suas diferenças, contrapunham-se ao que

interpretavam como uma tentação “neo-positivista” presente na leitura althusseriana da obra de

Marx. O marxismo “estruturalista” de Althusser lhes aparecia como cúmplice de um

objetivismo científico que transformava os sujeitos em meros apêndices de relações estruturais.

Para Michael Löwy, como para Daniel Bensaïd, tão-somente a intervenção do sujeito

revolucionário seria capaz de romper a reprodução infernal das “estruturas objetivas”.

Impulsionados pelo clima da época, tanto Michael Löwy quanto Daniel Bensaïd realçavam a

importância da subjetividade revolucionária, e da unidade entre teoria e prática, contrapondo-

se ao “teoricismo” que estaria subjacente à ênfase na “prática teórica” defendida por Althusser.

Essa sensação de que a emergência de um processo revolucionário, na Europa, estava

posta no horizonte no curto ou médio prazo, entrou gradativamente em declínio a partir da

segunda metade da década de 1970 e início da década seguinte. Desde então, a manutenção da

perspectiva revolucionária implicava cada vez mais uma necessidade de apreender a realidade

a contrapelo, a contratempo, apresentando-se acima de tudo como uma aposta na bifurcação

possível de uma história que, por si só, não faz nada, a não ser caminhar na direção da catástrofe

do progresso. Como nem poderia deixar de ser, esse estreitamento do “horizonte de

expectativa”, para utilizar o termo de Reinhart Koselleck442, impactou a leitura do marxismo e

da crítica do capitalismo realizada (não só) por autores como Michael Löwy ou Daniel Bensaïd,

442 Cf. Reinhart Koselleck, Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro:

Contraponto/PUC-RJ, 2006. Sobre o decrescimento contemporâneo do “horizonte de expectativas” em relação ao

“espaço de experiência”, no contexto de um “tempo intemporal da urgência perpétua”, que reduz o imaginário

utópico, cf. Paulo Arantes, O novo tempo do mundo. São Paulo: Boitempo, 2014, especialmente o ensaio que dá

nome ao livro, pp.27-97.

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redefinindo o eixo de preocupações político-intelectuais, bem como o escopo dos autores

incorporados.

Ora, se, nos anos 1960 e 1970, quando a importância de um autor era medida por sua

dimensão politicamente estratégica, a obra de Benjamin permaneceu esquecida, a partir da

década seguinte ela pôde começar a ser apreendida em toda a sua relevância para o marxismo

crítico – em grande medida, especialmente na França, pelos esforços pioneiros dos próprios

Michael Löwy e, pouco depois, de Daniel Bensaïd, responsáveis pelas primeiras interpretações

efetivamente marxistas (não apenas teórica, mas politicamente) de Benjamin no país de

Baudelaire. Para os vencidos do presente, nada melhor do que um autor que fez da rememoração

dos vencidos do passado, articulando-a em uma verdadeira “tradição dos oprimidos”, um

aspecto central da crítica marxista do “progresso” dos (ainda) dominantes, um “progresso”

agora reatualizado sob o manto neoliberal. A fim de não sucumbir ao canto de sereia dos

“vencedores”, tratava-se então de se resgatar, no passado e no presente, a razão dos vencidos,

sobrepondo-a a contrapelo à narrativa daqueles “que não cessam de vencer”.

Sob formas diferentes, a experiência da “derrota” (ou, ao menos, da não conformação

prática das expectativas imaginadas) estimulou, em Michael Löwy e em Daniel Bensaïd, um

movimento semelhante àquele dos “marxistas ocidentais” a partir dos anos de 1930, colocando

em questão as bases filosóficas do (s) marxismo (s), à luz do novo tempo. Mas esse movimento

não significou, na trajetória dos dois intelectuais, uma “fuga para a abstração”, como em grande

parte dos “marxistas ocidentais” do passado. Continuando militantes políticos, tal movimento

impulsionou, em ambos, uma reinterpretação da crítica marxista do capitalismo, de modo a

contribuir à re-emergência de uma perspectiva política mais bem adaptada às condições de

possibilidade das sociedades (e das lutas sociais) contemporâneas.

Guardadas as devidas proporções, Walter Benjamin vivenciou uma dinâmica parecida

em sua trajetória intelectual. Mas seu caso foi ainda mais emblemático: romântico-niilista

durante os acontecimentos de 1914-1918 (especialmente a revolução russa), Benjamin adere ao

marxismo, por volta de 1924/5, exatamente no momento em que a onda revolucionária, iniciada

em 1917, revela-se esgotada. Inspirado por História e Consciência de Classe, cuja leitura muito

o impactou, e influenciado por amigos como Adorno ou paixões como Asja Lacis (bolchevique

de origem letã que ele havia conhecido à época), Benjamin encampa uma leitura radical-

revolucionária do marxismo no momento mesmo em que a revolução deixa de estar na ordem

do dia.

Essas condições marcaram a compreensão do marxismo por ele realizada, assim como

a sua relação com outras modalidades de crítica da modernidade, constituindo-se, assim, no

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pano de fundo de sua obra idiossincrática, às vezes hermética. Como afirmou Hannah Arendt,

Benjamin “foi provavelmente o marxista mais singular já produzido por esse movimento que,

sabe Deus, teve seu quinhão completo de excentricidades”443. Para intelectuais contemporâneos

como Löwy e/ou Bensaïd, uma tal obra não poderia senão exercer um forte poder de atração,

erigindo-se sob a premissa de que a “derrota” impõe não o abandono das convicções não

realizadas, mas sim a atualização e/ou renovação em novas bases da crítica marxista do

capitalismo.

No “marxismo da adversidade” de Walter Benjamin, em especial em sua “nova escrita

da história”, Löwy e Bensaïd encontraram uma referência capaz de lhes fornecer elementos

para vivenciar esta passagem para uma época relativamente nova não como a derrota definitiva

dos subalternos, mas como momento de recomeço, de redespertar do longo sonho dogmático

para, assim, compreender as misérias do mundo tal como elas são. Em face do desencantamento

que se abateu sobre a esquerda política e intelectual, no auge da euforia neoliberal – com direito

a proclamação do “fim da história” e da “morte” do marxismo –, este “despertar” benjaminiano

deveria servir como ponto de orientação para a renovação do marxismo.

4. Walter Benjamin: um intelectual “out of joint”

Nascido em Berlim, em 1892, Benjamin viveu uma típica infância burguesa, cercado

pelo ambiente dos judeus ricos assimilados, no qual a religiosidade resumia-se a uma

simbologia difusa, desprovida de substância concreta. Na juventude, é contra a superficialidade

da religiosidade praticada em casa, reforçada pela “auto-ilusão” estimulada pela assimilação,

que Benjamin, assim como vários outros jovens intelectuais judeus de sua geração, concentra

sua revolta – a Carta ao pai, de Franz Kafka, constitui talvez a melhor expressão deste “conflito

geracional”. No caso do jovem Benjamin, esta revolta ética foi um dos grandes estímulos à sua

militância, de 1912 a 1914, no Movimento da Juventude Livre Alemã, tutelada por seu amigo

Gustav Wyneken. Foi nas fileiras deste movimento, do qual chegou a ser presidente em Berlim,

que Benjamin expressou pela primeira vez sua vontade de ruptura radical com o mundo burguês

aceito de bom grado pelos judeus assimilados, os parvenus (novos-ricos). Metafisicamente

apreendida, a juventude encarnava para ele, naquele momento, um ímpeto messiânico e

subversivo em relação à vida social da geração dos seus pais. Atribuindo à juventude um papel

redentor, Benjamin não hesita, na conferência “Romantismo” (1913), em proclamar o advento

443 Hannah Arendt, “Walter Benjamin (1892-1940)”. In: Homens em Tempos Sombrios. São Paulo: Companhia

das Letras, 2008, pp.165-222.

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de uma “nova juventude, a juventude sóbria e romântica”, distinta do “falso romantismo”, uma

juventude cuja meta é “a vontade romântica para a beleza, a vontade romântica para a verdade,

a vontade romântica para a ação”445.

Em 1915, quando a ruptura com os movimentos de juventude estava consumada, em

razão do apoio destes à guerra, Benjamin conhece um jovem intelectual judeu que será, por

toda a sua vida, um dos seus interlocutores privilegiados: Gershom Scholem. “Vasos

comunicantes”, Scholem despertou em Benjamin um interesse intelectual pela dimensão

subterrânea do judaísmo e pelo messianismo judeu, para além da religiosidade meramente

protocolar com que convivera no ambiente familiar. Com ele, Benjamin estabeleceu uma

relação epistolar que perduraria por toda a vida – especialmente após 1923, quando Scholem

decide viver na Palestina –, abrangendo a evolução, as rupturas e descontinuidades da sua

reflexão e da sua trajetória. Em 1919, na Suíça, para onde havia ido a fim de escapar do

alistamento no exército alemão, Benjamin defendeu sua tese de doutorado, O conceito de crítica

de arte no romantismo alemão, na Universidade de Berna, na qual aborda a concepção da crítica

para os românticos como um “complemento” permanente à obra analisada.

Sua carreira acadêmica, porém, seria abruptamente interrompida com a recusa, pela

Universidade de Frankfurt, em 1925, da sua tese de habilitação sobre a Origem do Drama

Barroco Alemão, sob o argumento de que o manuscrito era incompreensível. Tal episódio foi,

sem dúvida, um acontecimento decisivo na trajetória intelectual de Benjamin. Após o malogro

relativamente precoce de toda esperança de uma carreira acadêmica, e, portanto, de uma forma

“estável” de ganhar a vida, Benjamin viu-se na dependência crescente da demanda por

realização de pequenos trabalhos para revistas e periódicos tais como Die Literarische Welt e

no suplemento cultural do Frankfurter Zeitung, dirigido por seu amigo Siegfried Kracauer, que

ele havia conhecido em 1923, mesmo ano em que tomou contato pela primeira vez, via

Kracauer, com Adorno.

É nesse contexto que Benjamin “descobre” o marxismo através 1) da leitura de História

e Consciência de Classe, obra que – por meio de uma resenha do seu amigo Ernst Bloch – muito

o impactou, abrindo-lhe novos horizontes em relação à superação do seu “niilismo” anterior

quanto à práxis política. Em 1929, Benjamin se refere ao livro de Lukács como “a obra mais

acabada da literatura marxista”, cuja “singularidade está baseada na segurança com a qual ele

captou, por um lado, a situação crítica da luta de classes na situação crítica da filosofia e, por

outro, a revolução, a partir de então concretamente madura, como precondição absoluta, e até

445 Walter Benjamin, “Romantismo”, in: O capitalismo como religião. Michael Löwy (org.). São Paulo. Boitempo

Editorial, 2013, p.57.

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mesmo a realização e a conclusão do conhecimento teórico”; 2) a paixão repentina por Asja

Lacis – dramaturga e atriz bolchevique de origem letã que ele havia conhecido na ilha de Capri

e que havia sido assistente de Brecht; a influência política por ela exercida em Benjamin (em

uma espécie de erotização da política e politização do amor) pode ser atestada nas suas cartas e

reflexões da época. Essa “figura excepcional” que era Asja Lacis encarnava, para Benjamin, a

expressão perfeita da conjunção entre teoria e prática evocada em HCC, provocando-lhe “uma

intensa atenção à atualidade do comunismo radical”446. “Desde minha estadia aqui [em Capri],

a práxis política do comunismo (não tanto como problema teórico, mas sim como conduta que

engaja) se situa para mim em uma luz completamente diferente do que antes”, escreve ele a

Scholem no dia 16 de setembro de 1924, para desespero do amigo que desconfiava da repentina

“conversão” benjaminiana ao comunismo447.

As condições desse processo de “adesão” ao marxismo, associadas à forma através da

qual ele reposicionou suas influências anteriores (romantismo, messianismo etc.), provocou a

ebulição de um pensamento idiossincrático, profundamente original, que se revela através de

uma escrita singular – na qual, como disse Susan Sontag, “cada sentença é escrita como se fosse

a primeira, ou a última”. Desde então, Benjamin abandona definitivamente toda ambição

sistemática, elaborando uma obra através de aforismos, pequenos relatos, imagens ou

fragmentos de pensamento, citações etc. A primeira expressão dessa nova disposição da sua

reflexão encontra-se no conjunto de aforismos Rua de Mão Única, publicado em 1928 (mesmo

ano da publicação em livro da tese de habilitação rejeitada na universidade) e o primeiro

trabalho benjaminiano em que a influência do marxismo, ainda que de um marxismo bastante

heterodoxo, se faz sentir – não por acaso, o livro é dedicado a Asja Lacis: “Esta rua se chama /

Rua Asja Lacis / Em homenagem àquela que, / Na qualidade de engenheira, / A rasgou dentro

do autor”.

Em Rua de Mão Única, Benjamin esboça pela primeira vez o que seria, mais tarde, sua

proto-história alegórica da modernidade, construída a partir das “pequenas partículas materiais

que apontam para as essências” – como disse S. Kracauer à época, em uma resenha do livro; a

partir, em outras palavras, de uma “dialética das essências” fundada na atenção às “ruínas”, ao

“terreno do insignificante [...], do ignorado da história”, dos fragmentos que compõem a cidade

moderna. Para Benjamin, segundo Kracauer, para chegar à “essência do mundo”, seria

446 Walter Benjamin, Correspondance (1919-1928), tomo I. Paris: Aubier Montaigne, 1979, p.321. 447 Idem, p.325.

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necessário antes estilhaçá-lo em pequenos indícios de uma alegoria da modernidade448. No

aforismo “Alarme de incêndio”, um dos mais impressionantes de Rua de Mão Única, Benjamin

revela uma das características marcantes do seu marxismo crítico: o pessimismo ativo quanto

ao “destino” da modernidade, a não ser que ela seja interrompida na sua corrida ao abismo. “Se

a eliminação da burguesia não estiver efetivada até um momento quase calculável do

desenvolvimento econômico e técnico, tudo está perdido”, afirma o ensaísta alemão. Por isso,

continua ele, “Antes que a centelha chegue à dinamite, é preciso que o pavio que queima seja

cortado”449. Nessa espécie de profecia condicional da (e contra a) catástrofe, Benjamin esperava

contribuir para o despertar do sonho entorpecente a que estavam submetidos os homens e

mulheres modernos. “Que Benjamin queira despertar o mundo de seu sonho, é o que revelam

um certo número de aforismos radicais de Rua de Mão Única”450.

Ainda mais porque, à diferença do “despertar” esperado, a URSS já revelava, à época,

os primeiros sinais do “pesadelo” stalinista. Curioso pela realidade do socialismo soviético e,

sobretudo, atraído pela perspectiva de encontrar Asja Lacis – que lá trabalhava em um teatro

experimental para crianças –, Benjamin viajou a Moscou no final de 1926, permanecendo até

fevereiro de 1927. Em meio às caminhadas e passeios pela cidade, às sessões de teatro, aos

desencontros com Asja – que, para seu desespero, ele pouco encontrará de fato –, Benjamin

transcreve, em seu Diário de Moscou, suas impressões ambivalentes, às vezes contraditórias,

sobre a transição socialista no país451. Admitindo a possibilidade tanto do “sucesso” quanto do

“fracasso da revolução”, Benjamin não esconde seu mal-estar com a nova religiosidade de

Estado e com sua estética monumental, que contribuem para a “suspensão do comunismo

militante”. A extrema politização da vida individual tinha como reverso necessário a

“despolitização da vida cívica”, da política ativa dos de baixo. Não surpreende que, apreensivo

em relação ao destino do socialismo na ÚRSS, assim como angustiado pelos desencontros com

Asja Lacis (que passou boa parte do tempo em um sanatório cuidando da saúde), Benjamin

tenha partido de Moscou desolado, “chorando, pelas ruas crepusculares, no caminho da

estação”.

448 Siegfried Kracauer, « Sur les écrits de Walter Benjamin ». In : L’Herne, Benjamin. Paris: L’Herne, 2013, p.58,

59, 60. 449 Walter Benjamin, Rua de Mão Única, Obras Escolhidas II. São Paulo: Brasiliense, 2000, p.45, 46. 450 Siegfried Kracauer, « Sur les écrits de Walter Benjamin », op.cit., p.60. 451 Walter Benjamin, Diário de Moscou. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. A partir das anotações desse

diário, Benjamin redigiu um ensaio sobre Moscou para a revista Die Kreatur (A Criatura), por encomenda de

Matin Buber. Cf. Gershom Scholem. “Prefácio”, In: Walter Benjamin, Diário de Moscou. São Paulo: Companhia

das Letras, 1989, pp.11-15.

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Em 1927, Benjamin dá início, após uma estadia de 6 meses em Paris – na qual

descobriu a cidade com a ajuda do seu amigo Franz Hessel, com quem, ademais, trabalhou na

tradução de Marcel Proust para o alemão –, ao seu trabalho mais ambicioso e que, como tal,

interrompido pela morte do autor, permaneceu inacabado: o chamado “projeto das Passagens”.

Nele, sua leitura singular do marxismo assumirá a máxima plenitude na análise das

“fantasmagorias” que habitam o “inconsciente coletivo” na modernidade. Ao culto barroco e

alegórico das ruínas – da “fixidez cadavérica” do mundo – em Origem do Drama Barroco

Alemão, soma-se agora, nas Passagens, uma nova “representação” da modernidade,

vinculando-a ao movimento fantasmagórico da mercadoria, tal qual se pode visualizar na obra

poética de Charles Baudelaire. As alegorias do poeta francês tornaram-se, em Benjamin, o

centro de uma história da burguesia e, sobretudo, da cultura burguesa moderna, tal qual ele se

apresentava na Paris do século XIX452. Aos olhos do filósofo alemão, Baudelaire compreendeu

como poucos, ainda que intuitivamente, as transformações da percepção provocadas pelo

declínio da “experiência”, em benefício da vivência do “choque” das multidões das grandes

metrópoles.

Por isso mesmo, ao contrário de Berlim, sua cidade natal, Paris representava, para

Benjamin, a verdadeira capital da modernidade, em particular porque, malgrado as

transformações pelas quais passou, a cidade-luz mantinha-se como a memória viva da sua

irrupção moderna no século XIX. Como escreve Hannah Arendt, “a viagem de Berlim à Paris

equivalia a uma viagem no tempo: não a uma viagem de um país a outro, mas uma viagem do

século XX ao século XIX”. Um século XIX, aliás, no qual a capital francesa, além de ser a

capital da modernidade burguesa emergente, foi marcada pelo espectro da revolução social –

espectro que o filósofo almejou, por assim dizer, reativar no presente. “Terra de três grandes

revoluções, país dos exilados, origem do socialismo utópico, pátria de Quinet e de Michelet,

que detestavam os tiranos, terra na qual repousam os communards”, assim Benjamin descreve

Paris no seu ensaio sobre Eduard Fuchs (1935). Seja como tradutor de Baudelaire e/ou Proust,

ou como crítico literário/cultural nas páginas da Literarische Welt, Benjamin contribuiu

significativamente para a difusão da cultura francesa na Alemanha de Weimar.

Não por acaso, além de um resgate inventivo da noção de “fetichismo da mercadoria”

desenvolvida por Marx n’O Capital, assim como da crítica lukacsiana da reificação em HCC,

a empreitada benjaminiana apoiava-se na abordagem surrealista da cidade moderna (Paris).

Tanto o mundo barroco quanto a cidade surrealista são compostos de coisas, objetos, emblemas,

452 Hans Mayer. Réflexions sur un contemporain. Paris: Le Promeneur, 1995, p.60.

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enfim, ruínas, em cuja petrificação se busca extrair algum significado alegórico possível453. Em

O Camponês de Paris, de Louis Aragon, muito particularmente, e em Nadja, de André Breton,

Benjamin visualizou a possibilidade de transformar as ruínas do labirinto mitológico da Paris

capital do século XIX em alegorias reveladoras do “universo de fantasmagorias” tão bem

representado pelas “passagens” – estas primeiras catedrais da mercadoria. Não

surpreendentemente, conforme Benjamin escreve, se o “pai” do surrealismo foi Dada, “sua mãe

[foi] uma galeria chamada ‘passagem’”, mais precisamente, a antiga Passagem da Ópera, à

qual Aragon consagrou mais de 130 páginas d’O Camponês de Paris454.

Em uma carta a seu amigo Gershom Scholem, após ter sido questionado sobre o projeto

das Passagens, Benjamin sustenta que “o trabalho representa a um só tempo uma aplicação

filosófica do surrealismo – inclusive sua superação – e uma tentativa de fixar a imagem da

história nos aspectos mais insignificantes da existência, quer dizer, nos seus dejetos”455. Adorno

não está, portanto, equivocado quando afirma que, para Benjamin, “a filosofia não devia apenas

alcançar o surrealismo, mas se tornar ela mesma surrealista”456. Mais tarde, em uma das “notas

preparatórias” às teses, Benjamin sustentaria: “O ritmo acelerado da técnica, a que corresponde

também uma rápida decadência da tradição, faz emergir muito mais depressa do que antes o

que há de inconsciente coletivo, o rosto arcaico de uma época, e o faz tendo em vista já a época

que se segue. É daí que vem o olhar surrealista sobre a história”457.

Assim, tal como Ernst Bloch, com sua “dialética pluriespacial e pluritemporal”, Walter

Benjamin propõe uma apropriação revolucionária – visualizando-a em alguma medida nos

surrealistas – do “não-contemporâneo”, a fim de resgatar o conteúdo utópico liberado pela

desagregação daquilo que resiste à marcha triunfal do progresso capitalista. À diferença de

Georg Lukács, que rejeitava como irracionalistas as formas decadentes de rejeição da

453 Sobre essa apropriação bastante singular do tema do fetichismo e das fantasmagorias por Benjamin, toma-se a

liberdade de sugerir, Cf. Fabio Mascaro Querido, “Fetichismo e fantasmagorias da modernidade capitalista: Walter

Benjamin leitor de Marx”, in: Outubro, São Paulo, n.21, 2013. 454 Walter Benjamin, Paris, capitale du XIXe siècle. Paris : Cerf, 1989, p.107. 455 Walter Benjamin & Gershom Scholem, Correspondência (1933-1940). São Paulo: Editora Perspectiva, 1993.

Em L’amour fou, André Breton afirma que “maior fraqueza do pensamento contemporâneo reside na

superestimação extravagante do conhecido em relação ao que resta a conhecer”. André Breton, L’amour fou. Paris:

Gallimard, 1976, p.61. 456 Theodor Adorno, “Portrait de Benjamin”, in: Prismes. Paris: Payot, 1978, p.253. Em uma resenha de Rua de

Mão Única, Ernst Bloch atribui a Benjamin um “filosofar surrealista”, em que o mundo aparece em miniatura. Cf.

Ernst Bloch, “La forme de la revue dans la philosophie”, in: Héritage de ce temps. Paris: Payot, 1978, p.340.

Curiosamente, o mesmo Benjamin que afirmara a Scholem que o trabalho das Passagens constituía uma “aplicação

filosófica do surrealismo” rejeitou a caracterização blochiana do “filosofar surrealista” de Rua de Mão Única.

Sobre o assunto, cf. Andrea Allerkamp, “Du ‘philosopher surréaliste”: Myslowice – Brauschweig – Marseille”,

in: L’Herne, Benjamin. Paris: L’Herne, 2013, pp.214-220. 457 Walter Benjamin, “Sobre o conceito de história” [Paralipômenos, reflexões preparatórias, fragmentos], in: O

anjo da história (organização e tradução: João Barrento). Belo Horizonte: Autêntica, 2012, p.181.

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modernidade, a recuperação dos elementos do sonho coletivo que resistem no “arcaico”

significava, para Benjamin, ou para Bloch, a única forma de fazer frente à apropriação

reacionária/fascista deste passado inacabado que ainda diz algo ao presente458. Há em Benjamin

um esforço em “resgatar o sentido positivo dos períodos de decadência em geral”, partindo do

pressuposto de que as ruínas dizem mais sobre uma época do que os seus momentos de

esplendor459. Para ele, “a superação dos conceitos de ‘progresso’ e de ‘época de decadência’ são

apenas dois lados de uma mesma coisa”460.

Subintitulado, na primeira fase (1927-29), Um conto de fadas dialético, o projeto das

Passagens revelava a paixão pelo método surrealista de apreensão da realidade cotidiana. Tal

como um “trapeiro surrealista”461, Benjamin buscava, como ele disse no seu ensaio sobre o

movimento (1929), “mobilizar para a revolução as energias da embriaguez”, transformando

Paris “no mais onírico dos seus objetos”462. Tanto quanto para o flâneur, a rua se torna, para os

surrealistas, o “apartamento do coletivo”, a paisagem à qual ele se entrega sem objetivo pré-

definido, permitindo-lhe experimentar uma espécie de “embriaguez”, uma embriaguez que

“não apenas encontra seu alimento naquilo que é perceptível à vista, mas se apropria do saber

simples, dos dados inertes, que se transformam assim em algo de vivido, uma experiência”463.

Daí a similitude entre o flâneur surrealista e o consumidor de haxixe (como o próprio Benjamin,

que fez experiências com o uso e a qualificação dos efeitos da droga), ambos procedendo a uma

outra percepção do tempo e do espaço, na contramão da lógica da reprodução capitalista464.

Na ótica de Benjamin, os surrealistas “foram os primeiros a terem pressentido as

energias revolucionárias que transparecem no ‘antiquado’, nas primeiras construções de ferro,

nas primeiras fábricas, nas primeiras fotografias, nos objetos que começam a extinguir-se”. Os

surrealistas foram os que melhor compreenderam “a relação entre estes objetos e a Revolução.

458 Sobre a relação entre Benjamin e Bloch, cf. Arno Münster, Utopia, messianismo e apocalipse nas primeiras

obras de Ernst Bloch (São Paulo: Unesp, 1997), em particular os capítulos VIII e o XIX (pp.203-235). As

indisposições de Benjamin com relação a Bloch aparecem com certa frequência em sua correspondência com

Gershom Scholem, que não ocultava sua percepção negativa do filósofo da esperança (Cf. também G. Scholem,

Walter Benjamin: a história de uma amizade. São Paulo: Perspectiva, 2008), sobretudo as págs. 86, 87, 94, 95,

113). 459 Luis Ignácio García, “Alegoría y montaje. El trabajo del fragmento en Walter Benjamin”. In: Políticas de la

memoria y de la imagen. Ensayos sobre uma actualidad político-cultural. Santiago: Universidad de Chile, 2011, p.125, 126. 460 Walter Benjamin, Paris, capitale du XIXe siècle, op.cit., p.477. 461 Cf. Fabio Mascaro Querido, “Le chiffonnier surréaliste et les spectres de la marchandise. Walter Benjamin et

les passages parisiens”, in: Passages de Paris, n.10, 2015, pp. 49-60. 462 Walter Benjamin, “Le surréalisme. Le dernier instantané de l’intelligentsia européenne”, in: Œuvres II. Paris:

Gallimard, 2000, p.130. 463 Walter Benjamin, Paris, capitale du XIXe siècle, op.cit., p.435. 464 Cf. Walter Benjamin, Sur le haschich. Paris: Christian Bougois, 1983. Benjamin realizou a maioria dos seus

experimentos com haxixe em companhia de Ernst Bloch e do médico Ernst Joël.

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Antes desses videntes e intérpretes de sinais, ninguém havia percebido de que modo a miséria,

não somente a social como a arquitetônica, a miséria dos interiores, as coisas escravizadas e

escravizantes, transformavam-se em niilismo revolucionário”465 – através do que Benjamin

designava (em oposição ao encantamento quase religioso provocado pelo culto fetichista da

mercadoria) como “iluminação profana”, de “inspiração materialista, antropológica, [e] para a

qual o haxixe, o ópio e todas as drogas que quisermos podem servir de propedêutica”466.

A “hostilidade da burguesia” à “radical liberdade intelectual” dos surrealistas

contribuiu, segundo Benjamin, para “impulsioná-lo à esquerda”, jogando um “papel essencial”

na passagem de “uma atitude contemplativa [...] à oposição revolucionária”467. O surrealismo

constitui, assim, para Benjamin, conforme observa Enzo Traverso, uma “superação, em um

sentido revolucionário, das ambiguidades políticas da revolta boêmia do século XIX, das quais

ele havia claramente detectado os sintomas em Baudelaire, como alternativa às suas derivas

fascistas no século XX, que ele visualizava em Céline”468. À diferença de Marx, para quem a

boemia – por sua condição social “flutuante”, “errante” – jamais poderia alcançar uma

“consciência teórica nítida” dos interesses históricos do proletariado, Benjamin acentuava o

antagonismo entre o ethos boêmio – com sua existência precária, sua moral antiprodutivista,

seu desprezo pelo dinheiro, seu culto da liberdade – e os traços fundamentais do espírito do

capitalismo descrito por Max Weber. A bem dizer, a valorização benjaminiana – em

comparação a Marx – da boemia tinha algo de retrato autobiográfico e, em certa medida,

autolegitimador, revelando, como diz Enzo Traverso, “uma vocação mais profunda” do filósofo

alemão, conforme o indicariam “tanto seu interesse pelo surrealismo, pelas drogas, pelo

erotismo e o sonho enquanto experiência literárias quanto sua atração por Baudelaire e sua

época”469.

Mas, para Benjamin, e aqui ele se distanciava da boemia e dos surrealistas, o elemento

de embriaguez – que “está vivo em cada ato revolucionário” – não basta. Uma autêntica

“dialética da embriaguez” pressupõe, além da apropriação libertária do mundo onírico, da

constelação do sonho, o momento do “despertar”, segundo expressão por ele empregada nas

Passagens, o qual logra interromper o destino mítico imposto pelo “reino do sonho”. Para

Benjamin, “enquanto Aragon persiste no domínio do sonho, deve ser encontrada aqui a

465 Walter Benjamin, “Le surréalisme. Le dernier instantané de l’intelligentsia européenne”, op.cit., p.120. 466 Idem, p.116, 117. 467 Idem, p.125. 468 Enzo Traverso, « Bohème, exil et révolution : Notes sur Marx et Benjamin ». In : La pensée dispersée. Figures

de l’exil judéo-allemand. Paris : Lignes, 2004, pp.19-54 (p.44). 469 Idem, p.52.

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constelação do despertar”. Como uma “reviravolta dialética”, o despertar assinala o momento

em que a política assume o primado sobre a história, quer dizer, o momento em que a “astúcia

dos oprimidos” logra interromper o destino mítico imposto pelo “reino do sonho” dos

dominantes. À diferença do que sustentaria mais tarde Adorno – para o qual a noção

benjaminiana de consciência coletiva menospreza a assimetria entre as classes –, só as classes

oprimidas podem provocar, na ótica de Benjamin, a libertação do “coletivo onírico” – enquanto

a burguesia, como defendeu Lukács em HCC, não pode senão contemplar este sonho do qual

ela necessita para se reproduzir (para ela, se houve história, já não há mais); neste sentido, o

“coletivo onírico” não é senão a imagem do “coletivo burguês”.

Em Benjamin, o principal desafio do surrealismo, assim como de todo movimento

anticapitalista, encontra-se na necessidade de se vincular a revolta à revolução, de forma que a

“grande recusa” (para falar como Marcuse) se perfile como elemento destrutivo, anárquico, de

uma construção política suficientemente forte e disciplinada para subverter a ordem dominante.

Uma conhecida anedota resume, em uma imagem, e de modo evidentemente alegorizado, a

perspectiva benjaminiana: no final dos anos 1960, havia um pôster, na Alemanha (Roten

Buchläden), ilustrando Benjamin com um baseado em uma mão e uma Kalachnikov na outra.

No ensaio de 1929, “O último instantâneo da intelligentsia europeia” – talvez o mais

límpido testemunho do seu “marxismo libertário” –, Benjamin saúda os surrealistas por seu

“pessimismo integral”, “sem exceção”, quer dizer, por sua “desconfiança acerca do destino da

literatura”, “da liberdade”, “da humanidade europeia”, e, “principalmente, desconfiança com

relação a qualquer forma de entendimento mútuo: entre as classes, entre os povos, entre os

indivíduos”. Surrealismo e comunismo convergem, segundo ele, neste pessimismo crítico em

face do “otimismo beato” dos apologistas do progresso. Se, desde 1924/5, o “comunismo

radical” aparecer-lhe-ia como o único caminho possível para a subversão da ordem burguesa,

essa solução jamais se deixou alimentar por qualquer crença no otimismo das ideologias do

progresso, ao preço da persistência de uma dimensão irredutivelmente melancólica em seu

pensamento, a qual nem mesmo sua amizade com alguém como Bertold Brecht, que se

intensificou a partir de 1929, logrou aliviar por completo.

A amizade com Brecht, que se acolheria por diversas ocasiões em sua casa no exílio

dinamarquês, ao longo da década de 1930, seria, tanto quanto aquela com Scholem ou com

Adorno, decisiva na trajetória intelectual de Walter Benjamin. Para Hannah Arendt, Brecht foi,

na verdade, a pessoa mais importante na última década da vida de Benjamin, julgamento sem

dúvida estimulado por sua repulsa a Adorno e, em menor medida, a Scholem. Ao lado de

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Brecht, em longas conversas, entremeadas de partidas de xadrez, Benjamin calibrou, por assim

dizer, sua reflexão sobre a radicalização/politização dos intelectuais (ou “produtores

intelectuais”). Acatando parcialmente a designação mannheimniana do intelectual “sem

amarras”, “livremente flutuante” – o que, em alguma medida, de fato exprimia a situação em

que estavam: intelectuais exilados, apátridas, sem qualquer vínculo institucional –, ambos

buscaram estabelecer as bases de uma reflexão sobre as condições para a politização dos

intelectuais e artistas enquanto força produtiva eminentemente coletiva, tema que será objeto

de vários textos de Benjamin nos anos seguintes470.

Foi com esta perspectiva que, juntos, no final de outubro de 1930, Benjamin e Brecht

conceberam o projeto, que ficou apenas no esboço programático, de uma revista intitulada Crise

e Crítica. A ideia, cujo fracasso foi consequência tanto de divergências no projeto da revista

quanto da derrocada financeira da editora responsável (Rowohlt), era elaborar coletivamente

uma “crítica” – no sentido rigoroso, enquanto forma de intervenção específica dos intelectuais

– da “crise” que então se vivia, a crise do capitalismo e das democracias liberais. Tratava-se

nada menos do que construir “um organismo no qual especialistas saídos do campo burguês

buscarão apresentar a crise nas ciências e nas artes”471. Através da reformulação da crítica como

gênero singular, tema que atraíra Benjamin desde sua tese de doutorado, tornar-se-ia possível

aos intelectuais dotar-se de um instrumento “adequado” à intervenção, ao engajamento e à

politização472. À crítica caberia, além de analisar, propor a transformação da sociedade, de tal

forma que “a política seria sua continuação por outros meios”473. Dentre os possíveis

colaboradores da revista, selecionados por Benjamin e por Brecht, que não pecaram pela falta

de ambição474, encontravam-se Ernst Bloch, Kracauer, Karl Korsch, Adorno, Wilhelm Reich e

Georg Lukács, embora este último já tivesse declinado do convite, segundo afirma Erdmut

Wizisla475.

Ponto de vista semelhante é desenvolvido por Benjamin, na mesma época, na sua

resenha do livro de Kracauer, Les employés, originalmente publicada em 1930 com o título

470 Cf. Erdmut Wizisla, Benjamin e Brecht: História de uma Amizade, São Paulo: Edusp, 2013, p.139. 471 Walter Benjamin, Correspondance (1928-1940), tomo II. Paris: Aubier Montaigne, 1979, p.41. 472 Em uma carta a G. Scholem de 20 de janeiro de 1930, Benjamin justifica ao seu amigo que não pôde ir viver na Palestina porque tinha uma tarefa ambiciosa a cumprir em Berlim: “ser considerado o maior crítico literário

alemão”, o que implicava, por certo, “recriá-la como gênero”. Cf. Walter Benjamin, Correspondance (1928-1940),

op.cit., p.28. De fato, nos últimos anos da República de Weimar, em meio à crise e à ascensão nazista, Benjamin

tornou-se efetivamente um dos maiores “críticos” da Alemanha: a despeito do seu isolamento, ele trabalhava, à

época, na rádio – onde dirigia um programa –, e colaborava regularmente nos maiores jornais literários da época. 473 Designação de Brecht, citada por Bernd Witte, Walter Benjamin. Une biographie. Paris: Cerf, 1988, p.151. 474 “O projeto da revista é incrivelmente exigente, e no fundo perfeitamente utópico”. Bruno Tackels, Walter

Benjamin, une vie dans les textes. Essai biographique. Paris: Actes Sud, 2009, p.332. 475 Idem, p.125.

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“Politização da intelligentsia”. Na ótica de Benjamin, com seu estudo iconoclasta sobre os

“empregados” médios berlinenses, Kracauer revelou, através das “fantasmagorias” da realidade

cotidiana e da cultura desses trabalhadores que se sentiam mais próximos do horizonte burguês

do que do seus homólogos proletários, o deslocamento existente entre sua ideologia e sua

“situação econômica real”, num exemplo concreto de formação da falsa consciência. Tal qual

um “marginal que sai da sombra”, “[deixando] em casa o chapéu de doutor em sociologia”

(como diz Benjamin ironicamente), Kracauer assumiu assim a condição de um intelectual que,

ciente dos seus limites de classe, que lhe impõem – à diferença do romance-reportagem ou da

chamada Nova Objetividade – a necessária renúncia “a todo efeito político [...], a todo efeito

demagógico”, não hesitou em “desmascarar” e/ou “desmistificar” as “imagens de sonho” que

povoavam a distorção reacionária da autoconsciência da camada social dos “empregados”476.

“Enfant pródigo e enfant terrible em um só, [Kracauer] nos desvenda aqui os segredos deste

mundo de sonho”477.

Consciente de que “mesmo a proletarização do intelectual não produz quase nunca um

proletário”, dada sua origem e solidariedade mais próxima à burguesia, Kracauer contribui

então para o “efeito indireto” que, segundo Benjamin, caberia aos intelectuais provocar: a

politização de sua própria classe, quer dizer, a “politização da intelligentsia”, já que uma

“eficácia direta só pode nascer da prática”478. Mesmo porque, como ele diria alguns anos mais

tarde, no artigo (publicado em 1934 na versão francesa da revista do “Instituto de Pesquisa

Social”) “La position sociale actuelle de l’écrivain français”, “o caminho do intelectual para

chegar à crítica radical da ordem é o mais longo, tanto quanto aquele do proletariado é o mais

curto”479. A alegoria do intelectual (Kracauer) como um “marginal”, “isolado”, “solitário”,

enfim, “um trapeiro na aurora da revolução”, que se infiltra nos meandros da realidade social a

fim de ajudar no trabalho de “despertar”, tal como elaborada por Benjamin, reflete a condição

paradoxal dessa camada social (e, por conseguinte, dos próprios Kracauer e Benjamin), nem

proletária tampouco verdadeiramente burguesa, proletarizada, mas, no final das contas, ainda

burguesa. Nas palavras de Bruno Tackels, em um trabalho notável: “Reconhece-se sem

dificuldade Walter Benjamin nesse homem [Kracauer] que ‘não segue mais’ a comédia social,

476 Walter Benjamin, “Un marginal sort de l’ombre. A propos des Employés de S. Kracauer”, in: Œuvres II. Paris:

Gallimard, 2000, p.180. 477 Idem, p.186. 478 Idem, p.187. 479 Walter Benjamin, “La position sociale actuelle de l’écrivain français”, in: Œuvres II. Paris: Gallimard, 2000,

p.408.

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jogando fora a máscara falsamente universitária, e tomando caminhos de travessia para

‘desmascarar’ seus contemporâneos – um gesto de penetração dialética do tecido social”480.

Em Brecht, especificamente, Benjamin visualizou elementos para melhor definir sua

própria estética materialista, no âmbito da qual tornar-se-ia possível conceber os intelectuais

e/ou artistas como “produtores” da cultura, tal como ele sustenta, por exemplo, na conferência

(1934) “O autor como produtor”, sem dúvida o texto mais “brechtiano” do autor das Passagens.

Pronunciada no “Instituto para o estudo do fascismo” (INFA), em abril de 1934, Benjamin

propõe, nessa conferência, que ele apresenta como o prolongamento das suas reflexões sobre o

“teatro épico”, a transformação da relação entre artistas e meios de produção estéticos. Mais do

que uma questão da “tendência” política da obra, uma arte revolucionária deve se interrogar

sobre o seu próprio papel no âmbito das relações de produção estéticas, de onde a importância

da questão da técnica (ou da forma) literária e/ou artística. Trata-se de – transformando a função

da arte – “nada entregar ao aparelho de produção sem modificá-lo, ao mesmo tempo, e tanto

quanto possível, no sentido do socialismo”481. Assim, abandonando toda ambição de autonomia

(para desespero de Adorno), o artista/intelectual revolucionário deveria, para Benjamin, tornar-

se uma espécie de “engenheiro” que, “traindo” sua classe de origem, organiza-se coletivamente

com vistas a se engajar no processo de produção livrando-o da instrumentalização capitalista.

No limite, afirma Benjamin na última frase do ensaio, à diferença do que pensam os “homens

de espírito” progressistas, “o combate revolucionário não se desenrola entre o capitalismo e o

espírito, mas entre o capitalismo e o proletariado”482.

Ao lado de Asja Lacis, que lhe apresentara o construtivismo soviético, Brecht fornecia

a Benjamin elementos para uma valorização marxista das vanguardas artísticas modernas, na

contramão, por exemplo, da defesa “neoclassicista” de Lukács do realismo crítico, com seu

repúdio ao conjunto da arte moderna, relegada, desde Kafka, aos infortúnios da decadência

ideológica da “burguesia”483. No teatro, bem como nos poemas ou textos programáticos de

Brecht, Benjamin visualizou aqueles aspectos que, especialmente entre 1933 e 1935,

condicionaram a faceta mais “modernista”, por assim dizer – fundada em uma preocupação

com a possibilidade de utilização revolucionária da técnica –, do seu pensamento, uma faceta

480 Bruno Tackels, Walter Benjamin, une vie dans les textes. Essai biographique, op.cit., p.316. Daniel Bensaïd

escreveu uma interessante resenha desse livro de quase 900 páginas. Cf. Bensaïd, “La traversée des décombres”,

in: La Revue internationale des livres et des idées (Rili), n. 13, setembro-outubro 2009. 481 Walter Benjamin, “L’acteur comme producteur”, in: Essais sur Bertold Brecht. Paris : Maspero, 1969, p.117. 482 Idem, p.128. 483 A valorização ou a crítica às vanguardas modernas associa-se, tanto em Lukács quanto em Benjamin, com

sinais invertidos, à distinção entre símbolo e alegoria. A fim de rejeitar toda a arte moderna, desde Kafka, Lukács

menciona diretamente Benjamin e sua teoria da alegoria. Cf. Georg Lukács, La signification présente du réalisme

critique, op.cit.

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em permanente tensão com a dimensão mais melancólica/pessimista/romântica tanto das suas

reflexões quanto da sua personalidade.

4.1. Benjamin e Paris: esperança e melancolia

A partir de 1933, Benjamin exila-se, em definitivo, em Paris, após a ascensão de Hitler

ao poder e a débâcle da República de Weimar na Alemanha. Ele viverá, desde então, até seu

suicídio em 1940, alguns dos momentos mais difíceis de sua vida. De início, sem qualquer meio

fixo de sustentação, sobrevive de pequenos trabalhos e da ajuda de amigos junto aos quais

passava temporadas a fim de economizar, ou, no pior dos casos, de não gastar o que não tinha.

A partir de 1935, começa a receber uma pequena bolsa de estudos concedida pelo “Instituto de

Pesquisa Social”, que havia emigrado para Genebra e, depois, para Nova York, onde se

exilaram Max Horkheimer e, a partir de 1938, Theodor W. Adorno. Mas, até mesmo pela

ameaça constante de interrupção do recebimento da bolsa, assim como pelo valor

aparentemente insuficiente da mesma, a situação de Benjamin permaneceu instável e precária:

entre 1934 e 1939, para se ter uma ideia, ele mudou de endereço 18 vezes em Paris.

Nesse período, Adorno tornou-se o mediador privilegiado da relação de Benjamin com

o “Instituto”. Desde então, a relação entre ambos, fundamentalmente epistolar, assumiu um

novo curso, significativamente diferente daquele que vigorara até então, marcado pela

reverência de Adorno (10 anos mais jovem) em relação a Benjamin, cujo pensamento, aliás,

inspirou decisivamente a sua tese sobre Kierkegaard, publicada em 1933484. A partir de meados

da década de 1930, em particular do tournant de 1933, estabelece-se entre ambos uma relação

não apenas paradoxal, senão igualmente “desigual”, como argumenta Traverso, para quem

Adorno, apoiado em uma situação de superioridade material e também intelectual, logrou

impor-se diante da primazia intelectual de Benjamin, tornando-se o “juiz” (ou “censor”) dos

seus escritos para o “Instituto”485. Baseado na “dependência”, quando não no “medo”, como

disse Hannah Arendt – que por vezes acompanhara a angústia do amigo à espera da aprovação

(ou não) de algum dos seus escritos, da qual dependeria a continuidade do vínculo com o

484 Theodor Adorno, Kierkegaard. Construction de l’esthétique. Paris : Payot, 1995. 485 Enzo Traverso, “Adorno et Benjamin. Une correspondance à minuit dans le siècle”, in: La pensée dispersée.

Figures de l’exil judéo-allemand. Paris: Lignes, 2004, p.86, 87, 88. Publicado originalmente como introdução à

correspondência entre Adorno e Benjamin (1928-1940), pela editora La Fabrique (Paris, 2002), este texto foi

severamente reprovado pelos detentores dos direitos das obras de Adorno (a editora Suhrkamp, sob influência dos

Arquivos Adorno), que ameaçaram recorrer às vias legais – alegando que nenhum outro texto poderia ser inserido

na obra sem o seu aval – se a edição não fosse tirada de circulação, o que efetivamente ocorreu. Embora às vezes

exagerado, o texto de Enzo Traverso é, porém, certeiro. Para uma abordagem diferente da relação entre Benjamin

e Adorno, bem mais favorável a este último (sem ser desfavorável ao primeiro), cf. Rainer Rochlitz, “Le meilleur

disciple de Walter Benjamin”, in: L’Herne, Benjamin. Paris: L’Herne, 2013, pp.274-282.

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Instituto –, tal relação fez do jovem detentor de uma obra ainda incipiente (os textos adornianos

mais originais seriam publicados no pós-guerra) o responsável pelo “destino” imediato daquele

(Benjamin) que o próprio Adorno reconheceria como um dos mais brilhantes pensadores de sua

época486. E, conforme sustenta Enzo Traverso, “se Adorno não havia criado tal situação, nela

ele se instalou confortavelmente”487.

Muito menos impactado politicamente, à época, pela ascensão do fascismo do que

Benjamin, Adorno revelava, na verdade, subjacente às suas críticas às insuficiências da

dialética benjaminiana, uma desconfiança, se não discordância, em relação às possíveis (e

prováveis) consequências práticas da reflexão do filósofo berlinense, que ele (assim como

Scholem) reputava à influência perniciosa de Brecht. Assim, quando censura seu amigo por

“déficit de interpretação” ou de “mediação”, encarnando a posição do defensor rigoroso, se não

ortodoxo, da dialética hegeliana “clássica” (ainda que recusando toda síntese “positiva”),

Adorno manifesta, a bem dizer, seu rechaço radical ao que considerava o perigo de uma

“politização” excessiva do projeto das Passagens. Nas palavras de Traverso: “No limite,

Adorno recusava a priori toda hipótese de engajamento político, enquanto Benjamin

denunciava como estéril e impotente uma crítica do capitalismo limitada à esfera estética”488.

Benjamin era igualmente um “herético”, um “dissidente”, mesmo entre seus colegas

frankfurtianos. Espécie de “outsider de esquerda”, “sentinela solitária”, carregado de uma

“apatia saturnina” (“o astro da revolução mais lenta, o planeta dos desvios e das dilações”, como

ele mesmo diz), sua melancolia revolucionária baseava-se na aposta de que não há esperança

senão na “frágil força messiânica” dos oprimidos. Interessava-lhe, acima de tudo, manter

abertas as vias de acesso às mais diversas (marxista, teológica e estética) formas de crítica

radical do estabelecido. Ao contrário de Adorno – que se adaptava com muito mais desenvoltura

às benesses da criticada sociedade de massas –, Benjamin jamais abandonaria uma “aposta

melancólica” (para parafrasear Daniel Bensaïd) na possibilidade de que a humanidade acione o

“freio de emergência” de uma locomotiva histórica que caminha em direção à catástrofe.

Reticente em entrar para o Partido Comunista depois de sua adesão ao marxismo, em

função dos desdobramentos ambivalentes da URSS cuja realidade ele conhecera de perto,

admirador de Trotsky desde 1931, e crítico radical, ao longo dos anos 1930, tanto da

socialdemocracia quanto do stalinismo, Benjamin condensou sua forma singular – marxista-

486 “A história [dessa] relação é a crônica da dependência crescente de um em relação ao outro”. Enzo Traverso,

“Adorno et Benjamin...”, op.cit., p.90. 487 Idem, p.88. 488 Idem, p.123, 124.

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teológica – de resistência político-intelectual nos últimos 4 anos de vida (1936-1940). Última

“fase” de elaboração do projeto das Passagens, trata-se igualmente de um momento histórico

marcado por importantes acontecimentos políticos (processos de Moscou, desdobramentos da

Frente Popular na França, eclosão da segunda grande guerra, pacto germano-soviético etc.) que

jogariam um papel fundamental da elaboração do seu texto mais iconoclasta, paradoxal e

criativo, base de uma forma de compreender, à luz do marxismo, a relação entre história e

política, marxismo e messianismo: as chamadas “teses sobre o conceito de história”, redigidas

poucos meses antes da sua morte.

Em larga medida, embora direta e imediatamente estimuladas pelo pacto entre Hitler e

Stalin em agosto de 1939, que jogou por terra suas últimas (e já pequenas) esperanças na

renovação do socialismo na URSS, as “teses” constituem uma síntese da reflexão

epistemológica implícita no desenvolvimento do projeto das Passagens, especialmente após

1935, quando Benjamin redigiu o primeiro Exposé do trabalho. Tema da seção N das

Passagens, intitulada “Reflexões teóricas sobre o conhecimento, teoria do progresso”, assim

como de uma parte não negligenciável do ensaio “Eduard Fuchs, colecionador e historiador”,

publicado em 1937 na revista do “Instituto”, a nova abordagem da história esboçada nas “teses”

serviu-lhe também como “armadura” para os seus trabalhos da época sobre Baudelaire.

Para Benjamin, em face da relativa incompreensão tanto da socialdemocracia quanto do

stalinismo do fenômeno fascista, concebendo-o como uma regressão ou anomalia da norma

histórica do progresso, um marxismo crítico e revolucionário deveria elaborar um “novo

conceito de história”, capaz de perceber que o “estado de exceção” no qual se vivia era “regra”,

como ele diz na tese VIII. Perceber-se-ia, então, que, diante de um mundo caminhando para a

catástrofe, era preciso lutar para “instaurar o real estado de exceção”, graças ao qual “nossa

posição na luta contra o fascismo tornar-se-á melhor”489. Esta ruptura radical com as ideologias

do progresso, com sua mistura de positivismo e historicismo, era, na ótica de Benjamin, uma

dimensão decisiva para a revitalização política do marxismo revolucionário, fundando-o acima

de tudo na esperança da ação do proletariado e das classes oprimidos.

Para tanto, ele não hesita em defender um retorno crítico ao próprio Marx, cuja

concepção de uma história aberta, baseada nos desdobramentos imprevisíveis da luta de classes,

não impediu que cultivasse, em certos momentos, uma crença nas virtudes do progresso – das

“forças produtivas”, quase sempre. Em uma das notas redigidas simultaneamente às “teses”,

mas não incluída no manuscrito tal como posteriormente publicado, Benjamin afirma:

489 Walter Benjamin, “Teses sobre o conceito de história”, op.cit., p.83.

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“Podemos identificar na obra de Marx três conceitos e considerar toda a armadura que a sustenta

como a tentativa de soldar esses três conceitos uns aos outros. São eles: a luta de classes do

proletariado, o andamento do processo histórico (o progresso) e a sociedade sem classes”. Tudo

se passaria da seguinte forma: “por meio de uma série de lutas de classes, a humanidade chega,

no decorrer do processo histórico, à sociedade sem classes”. Na perspectiva de Benjamin,

porém, “a sociedade sem classes não pode ser concebida como ponto de chegada do

desenvolvimento histórico”. Dessa concepção equivocada “nasceu nos epígonos, entre outras

coisas, a ideia de uma ‘situação revolucionária’ que, como se sabe nunca mais chegava”. Na

realidade, diz Benjamin, “o conceito da sociedade sem classes tem de recuperar o seu

verdadeiro rosto messiânico, no próprio interesse da política revolucionária do proletariado”490.

Pois, como afirma na tese XVIIa, “a sociedade sem classes não é a meta final do progresso na

história, mas, sim, sua interrupção, tantas vezes malograda, finalmente efetuada”491.

Assim, à diferença de Marx, para quem “as revoluções são a locomotiva da história

mundial”, elas constituem, para Benjamin, “o ato através do qual a humanidade que viaja neste

trem puxa o freio de emergência”492. Irrupção intempestiva, uma revolução instaura

necessariamente uma “bifurcação” radical, um “antes” e um “depois”, estando, portanto, por

definição, sempre a contratempo. Interrupção de um progresso que significa, na realidade, a

reprodução da catástrofe (“Que ‘as coisas continuem assim’, eis a catástrofe”, afirma ele nas

Passagens), a revolução constitui, aos olhos de Benjamin, um “despertar” que é ao mesmo

tempo uma “explosão do contínuo da história” (tese XV). De modo que, para ele, “a consciência

da descontinuidade histórica é o próprio das classes revolucionárias no momento de sua

ação”493.

No âmbito dessa ruptura com o culto sonolento do progresso, Benjamin procede a uma

verdadeira reorganização do tempo histórico, redistribuindo os sentidos do passado e do futuro

à luz e a partir do presente. Nesse processo, o primado conferido a um “conceito radicalmente

político” do presente vincula-se a uma “reabertura” não apenas das expectativas (utópicas) de

futuro, mas especialmente do passado, até então considerado, em proveito dos vencedores,

como consumado e, portanto, como “fechado”. Tal qual afirma no ensaio sobre E. Fuchs (1937),

490 Walter Benjamin, “Sobre o conceito de história” [Paralipômenos, reflexões preparatórias, fragmentos], in: O

anjo da história (organização e tradução: João Barrento). Belo Horizonte: Autêntica, 2012, p.178. 491 Walter Benjamin, “Teses sobre o conceito de história”, op.cit., p.134. 492 Walter Benjamin, “Sobre o conceito de história”, op.cit., p.177, 178. 493 Walter Benjamin, “Sobre o conceito de história”, op.cit., p.182.

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para o materialista histórico – na contramão do historicismo, com sua “imagem eterna do

passado” –, “a obra do passado não está consumada, nem fechada”494.

A partir de um presente político, tempo no qual se pode “bifurcar” o sentido da história,

torna-se possível, assim, para Benjamin, estabelecer uma nova relação não tanto com o passado

em geral, e sim com o passado dos vencidos, cuja sorte ainda se joga no “agora”, já que os

vencedores não cessam de vencer. Em outras palavras, a interrupção messiânica no presente

inscreve a possibilidade, para o materialista histórico, de uma “atualização” do passado dos

oprimidos, concebendo uma “imagem dialética” (Passagens) ou uma “constelação” (“teses...”)

na qual o outrora e o agora são “imobilizados” em uma “dialética em suspenso”, sob o primado

deste último. A partir de um instante histórico imobilizado, “a imagem dialética é um relâmpago

em forma de cone que atravessa todo o horizonte do passado”496. Melhor dizendo, em uma

“imagem dialética” – enquanto imagem do conceito, ou “imagens de pensamento”, conforme

alcunhou Adorno497 – o outrora encontra o agora em um relâmpago para formar uma

constelação”. A “imagem” constitui, assim, uma “dialética em suspenso”, uma vez que,

“enquanto a relação do presente com o passado é puramente temporal, contínua, a relação do

outrora com o agora presente é dialética”498.

Sendo a história, para Benjamin, “objeto de construção, cujo lugar não é formado pelo

tempo homogêneo e vazio, mas por aquele saturado pelo tempo-de-agora”, como diz na tese

XVII, a ruptura com o continuum histórico abre a possibilidade de uma nova “chance

revolucionária na luta a favor do passado oprimido” (tese XVI)499. Para isso, mais do que

conceber o passado “tal como ele propriamente foi”, trata-se de “capturar uma imagem do

passado como ela inesperadamente se coloca para o sujeito histórico no instante do perigo”,

que ameaça circunscrever a “tradição” ao “conformismo que está na iminência de subjugá-la”

através da fetichização do fato consumado. É nesse “instante de perigo” que uma imagem

redentora do passado se torna possível, em oposição à empatia historicista com vencedores (“a

identificação afetiva com o vencedor ocorre sempre em proveito dos vencedores de turno”),

forjando uma verdadeira “tradição dos oprimidos”, da qual o proletariado seria o “último

herdeiro” e, portanto, o responsável por – escovando a história a contrapelo (tese VII) – fazer

com que a luta pela irrupção revolucionário-messiânica no presente seja também, e

simultaneamente, uma luta pela redenção dos vencidos do passado. “Existe uma ligação muito

494 Walter Benjamin, “Eduard Fuchs, colecionador e historiador”, in: O anjo da história, op.cit., p.137. 496 Walter Benjamin, “Sobre o conceito de história”, op.cit., p.179. 497 Theodor Adorno, “Sens unique”, in: Sur Walter Benjamin. Paris: Allia, 1999, p.23. 498 Walter Benjamin, Paris, capitale du XIX siècle, op.cit., p.478, 479. 499 Walter Benjamin, “Teses sobre o conceito de história”, op.cit., p.70 (tese VII) e p.130 (tese XVI).

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estreita entre a ação histórica de uma classe e a noção que essa classe tem não apenas da história

por vir, como também da passada”500.

Por isso mesmo, o proletariado constitui, para o Marx interpretado por Benjamin, “a

última classe escravizada, a classe vingadoura que, em nome da geração de derrotados, leva a

termo a obra de libertação”501. E “a própria classe oprimida, a classe combatente”, o

proletariado, “o sujeito [desse] conhecimento histórico”, diz Benjamin, sob nítida inspiração de

HCC, do jovem Lukács. Na perspectiva benjaminiana, é isso o que explica a articulação

necessária, no proletariado, entre o poder destrutivo e a vocação redentora, articulação que tanto

a socialdemocracia quanto o stalinismo haviam perdido de vista. Em uma das “notas”

preparatórias às teses, Benjamin escreve: “Três motivos devem ser introduzidos nos

fundamentos da concepção materialista da história: a descontinuidade do tempo histórico, o

poder destruidor da classe trabalhadora, a tradição dos oprimidos”502.

Ora, para o último Benjamin, entre 1936/7 e 1940, cujo pensamento se reveste de uma

dimensão cada vez mais obscura e melancólica, ainda que de uma melancolia ativa, ninguém

expressou melhor esse “poder destruidor da classe trabalhadora” do que Auguste Blanqui,

figura trágica do revolucionário vencido, pensador da repetição da catástrofe e, portanto, da

necessidade de interrompê-la, que o filósofo alemão conhecera em 1937, por meio do livro de

G. Geffroy, L’Enfermé503. A descoberta de Blanqui produziu em Benjamin um verdadeiro

“choque”, tornando-se, como afirmou Miguel Abensour, “uma presença constante, cada vez

mais insistente, quase despótica, como se a visão infernal de Blanqui acompanhasse, reforçasse

em Benjamin sua crença na catástrofe final”504. A presença (ou o espectro) de Blanqui pode ser

observada nos dois artigos sobre Baudelaire do período (“A Paris do Segundo Império em

Baudelaire” e “Parque central”), no segundo Exposé, de 1939, do projeto das Passagens, assim

como nas “teses...”, em que ele é diretamente mencionado na tese XII.

Se, como propõe Miguel Abensour em um excelente texto sobre o significado de

Blanqui para Benjamin, “pode-se ler as teses Sobre o conceito de história como o protocolo de

um verdadeiro exercício face ao ‘estado de exceção’”, poucos vivenciaram, como o

revolucionário/conspirador francês, a experiência concreta desse “estado de exceção que se

500 Walter Benjamin, “Sobre o conceito de história”, op.cit., p.187. 501 Walter Benjamin, “Teses sobre o conceito de história”, op.cit., p.108 (tese XII). 502 Walter Benjamin, “Tesis sobre la historia: apuntes, notas y variantes”. In: Tesis sobre la historia y otros

fragmentos. Rosário: Prohistoria ediciones, 2009, p.56. 503 G. Geffroy, L’Enfermé. Paris: Charpentier, 1897. 504 Miguel Abensour, Les passages Blanqui. Walter Benjamin entre mélancolie et révolution. Paris: Sens&Tonka,

2013, p.18.

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tornou regra”505. Através de Blanqui, Benjamin apropria-se, assim, de uma outra imagem do

proletariado, não uma classe herdeira do desenvolvimento burguês que se encontraria “nadando

no sentido da corrente”, mas sim uma classe radical, “destruidora”, os “escravos modernos”

que, por isso mesmo, podem reparar a sorte dos seus “ancestrais escravizados” do passado.

O mesmo elemento destrutivo visualizado nas alegorias de Baudelaire é aqui mobilizado

a fim de “explodir” a pretensa harmonia de um progresso que, na realidade, se apresenta como

o infernal “eterno retorno do mesmo”, do qual nem o poeta francês, e tampouco Blanqui

lograram escapar completamente506. Ao lado de Baudelaire e também, em menor medida, de

Nietzsche, Blanqui compõe, para o último Benjamin, “uma configuração histórica na qual, pela

ideia fixa do novo e do retorno do mesmo, Les Fleurs du mal vinculam-se à L’Éternité par les

astres de Blanqui e à vontade de potência (L´Eternel retour) de Nietzsche”, tal como sustenta

em uma carta a Max Horkheimer de 16 de abril de 1938507. Malgrado as diferenças entre si,

especialmente entre Blanqui e Nietzsche, tratava-se, na ótica benjaminiana, de três pensadores

e/ou meditadores do “sentimento da catástrofe em permanência” (o sentimento que corresponde

ao spleen), em face da qual fizeram prova de uma violência “heroica”, a ser reapropriada por

um marxismo em busca de uma nova crítica da modernidade.

Em Blanqui, Benjamin antevê uma percepção acurada da falsa novidade em

permanência que caracteriza a modernidade, cujas fantasmagorias ele, no final da vida,

resignado na prisão, generalizou para o conjunto do cosmos, como se a fantasmagoria da

repetição engendrasse a repetição da fantasmagoria508. Nas reflexões de Blanqui, o eterno

retorno apresenta-se como “o novo sempre velho, e o velho sempre novo”, cuja aparência de

novidade confere legitimidade ideológica à mitologia do progresso – formando, assim, um

dueto antinômico que se trata de superar; afinal, como afirma Benjamin: “a crença no progresso,

em sua infinita perfectibilidade, e a representação do eterno retorno são complementares. São

as antinomias indissolúveis a partir das quais deve ser desenvolvido o conceito dialético do

tempo histórico”509.

505 Miguel Abensour, Les passages Blanqui, op.cit., p. 20, 41. 506 “A alegoria de Baudelaire porta os traços da violência que era necessária para demolir a fachada harmoniosa do mundo à sua volta”. Walter Benjamin, Paris, capitale du XIXe siècle, op.cit., p.342. 507 Walter Benjamin, Correspondance, tomo II, op.cit., p.242. A apropriação nietzschiana de Benjamin é

evidentemente seletiva, não anulando as diferenças entre suas perspectivas: enquanto Nietzsche propunha

“abandonar” e “condenar” o passado, Benjamin almejava “salvá-lo” a partir de uma interrupção messiânica no

presente. Cf. Daniel Bensaïd, Walter Benjamin, sentinelle messianique, op.cit., p.79. 508 Cf. Miguel Abensour, Les passages Blanqui, op.cit., p.51. 509 Walter Benjamin, Paris, capitale du XIXe siècle, op.cit., p.144. “A ideia do eterno retorno aparece como o

‘racionalismo raso’, que a crença no progresso tem a má fama de representar, sendo que esta crença pertence à

maneira de pensar mítica tanto quanto a representação do eterno retorno”. Ibidem.

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É no contexto desse círculo vicioso do mito do progresso, que conduz a uma “apologia

do fato consumado”, como se o real fosse necessariamente racional, que Benjamin resgata o

gesto de revolta radical de Blanqui (antes da sua trágica capitulação), revolta que, no plano

intelectual, contrapõe-se frontalmente tanto ao positivismo (comteano ou mesmo marxista)

quanto ao historicismo racionalista “hegeliano”. Contra esses “fatalistas da história, adoradores

do fato consumado”, como diz o conspirador510, que repelem qualquer noção de justiça, Blanqui

e Benjamin justapõem a razão dos vencidos como base para uma aposta, sem garantia de

sucesso, na “frágil força messiânica” que é dada a cada geração, e “à qual o passado tem

pretensão”511. Assim, tal qual escreve Benjamin em “Zentralpark”, um dos ensaios sobre

Baudelaire, a “resolução de, no último momento, arrancar a humanidade da catástrofe que a

ameaça permanentemente, foi fundamental para Blanqui [...]”512.

Associada à visão infernal da repetição permanente, a esperança sobrevive em Blanqui,

e em Benjamin, como aposta em um instante improvável, uma “porta estreita pela qual [pode]

entrar o messias”513, reativando, portanto, a dimensão teológica de uma crença na possibilidade

de uma interrupção na qual não se joga apenas a sorte das gerações futuras, senão também de

toda a história da humanidade. Pois “só à humanidade redimida cabe o passado em sua

inteireza”, quer dizer, “só à humanidade redimida o seu passado tornou-se citável em cada um

dos seus instantes. Cada um dos instantes vividos por ela torna-se uma citation à l’ordre du

jour – dia que é justamente, o do Juízo Final”514. No “tempo-de-agora”, enquanto “modelo do

tempo messiânico” se decide, em uma mistura de messianismo e milenarismo, o destino de todo

o passado, que não está jamais “perdido”. Como diz Franz Rosenzweig, uma das grandes

influências “judaicas” de Benjamin (depois de Scholem), em L’Étoile de la Rédemption, “cada

instante deve estar pronto para receber a plenitude da eternidade”, o que implica, em sua visão,

uma permanente luta pela precipitação do messias, na contramão de toda crença no progresso:

“Nada colide mais com essa ideia do progresso do que a possibilidade de que o ‘objetivo final’

poderia e deveria, talvez, muito bem realizar-se desde o instante que chega, e até mesmo neste

instante”515. O historiador materialista se comporta, nesse contexto, como um “profeta de olhos

postos no passado”516 ou, como ele diria na tese IX, inspirada no quadro “Angelus Novus” de

510 Auguste Blanqui, “Contre le positivisme”, in: Instructions pour une prise d’armes. Paris: Sens&Tonka, 2000,

p.205. 511 Walter Benjamin, “Teses sobre o conceito de história”, op.cit., p.48 (tese II). 512 Walter Benjamin, “Zentralpark”, in: Charles Baudelaire. Paris: Payot, 1982, p.40. 513 Walter Benjamin, “Teses sobre o conceito de história”, op.cit., p.142 (Apêndice B). 514 Idem, p.54 (Tese III). 515 Franz Rosenzweig, L’Étoile de la Rédemption. Paris: Éditions du Seuil, 2003, p.269. 516 Walter Benjamin, “Sobre o conceito de história”, op.cit.,, p.183.

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Paul Klee – que ele havia adquirido em 1921 –, como um “anjo da história” com “seu rosto

voltado para o passado”, onde “enxerga uma única catástrofe, que sem cessar amontoa

escombros sobre escombros e os arremessa a seus pés”517.

Essa relação paradoxal com a teologia, que se manteve mesmo após a sua incorporação

do marxismo, parece ter-se acentuado nos últimos anos de vida de Benjamin, como se

condensasse, sob as pressões da “meia-noite do século” (Victor Serge) que se aproximava, o

caráter idiossincrático de sua adesão ao pensamento revolucionário. Em dos fragmentos

preparatórios às “teses...”, o filósofo alemão sustenta, de forma enigmática: “O meu

pensamento está para a teologia como o mata-borrão para a tinta. Está complemente embebido

dela. Mas se o mata-borrão mandasse não restaria nada daquilo que é escrito”518. Na primeira

das “teses”, por sua vez, ele descreve, alegoricamente, essa aliança inconfessa entre

“materialismo histórico” e teologia: mesmo “pequena e feia” e sem “se deixar ver”, esta última

significa, para o filósofo alemão, uma forma de potencializar a força “explosiva”, “destrutiva”,

até mesmo “apocalíptica”, do marxismo/“materialismo histórico”, reduzido por seus epígonos

à condição de mísero “autômato”519. Não constitui um acaso o fato de que essa questão esteja,

como veremos, no centro dos debates e da recepção da obra benjaminiana (de juventude ou

“tardia”), bem como seja ela um dos elementos que pautam, de diferentes formas, a

interpretação do pensamento de Benjamin realizada por Michael Löwy e Daniel Bensaïd.

O suicídio de Walter Benjamin em 26 de setembro de 1940, na fronteira franco-

espanhola, após se ver na iminência de ser despachado de volta às autoridades francesas e,

previsivelmente, à Gestapo, constitui o desfecho trágico de uma catástrofe que ele mesmo

visualizava no estado das coisas da época, contribuindo para a “aura” que se construirá ao redor

de sua figura décadas mais tarde. Para muitos, tratava-se de um derradeiro ato de resistência,

uma espécie de resposta da vontade heroica à derrota da vontade, como afirmou certa vez Susan

Sontag (“Sob o signo de Saturno”). Como diz Enzo Traverso, “seu suicídio não foi uma

demissão, e sim tanto um ato de desespero quanto um último protesto contra o fascismo, no

momento em que nenhuma alternativa lhe parecia possível”520. Tornar-se mais um personagem

talhado por este “heroísmo da vida moderna” que é o suicídio, acabou sendo, no final das contas,

a última forma de Benjamin dizer que, ele próprio, era mais um vencido da história.

517 Walter Benjamin, “Teses sobre o conceito de história”, op.cit., p.87. 518 Walter Benjamin, “Sobre o conceito de história”, op.cit.,, p.181. 519 Idem, p.41. 520 Enzo Traverso, “Adorno et Benjamin. Une correspondance à minuit dans le siècle”, op.cit., p.97, 98.

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Benjamin, ele mesmo, tornava-se um espectro, tal como toda a “tradição dos

oprimidos”, um espectro que, mesmo “suicidado pela vida”, continua assombrando a

continuidade da dominação no presente. É próprio do espectro (como o “espectro de Marx” de

Derrida) esta ambivalência, esta “constelação” entre passado e presente, entre o que poderia ter

sido e o que está sendo, entre o que foi, e o que será. Talvez seja também pensando em si

próprio, tal qual um espectro, que Benjamin tenha escrito, na II tese, que “o passado leva

consigo um índice secreto pelo qual ele é remetido à redenção. Não nos afaga, pois – continua

ele –, levemente um sopro de ar que envolveu os que nos precederam? Não ressoa nas vozes a

que damos ouvido um eco das que estão, agora, caladas?”. “Se assim é, um encontro está então

marcado entre as gerações passadas e a nossa”.

4.2. Recepção, atualização e reinterpretação: Qual atualidade benjaminiana?

A recepção de um autor e/ou de um pensamento, muito além de um acúmulo gradativo

de conhecimentos sobre obras acabadas em si mesmas, revela, antes, um processo permanente

de reinterpretação a partir de um espaço/tempo cultural e intelectual particular, quer dizer, de

um presente histórico determinado. O presente, em seus antagonismos, é sempre o horizonte

sob o qual se realiza a leitura das obras do passado. Não se olha “puramente” o passado. Ao

contrário. Como diz Walter Benjamin no projeto das Passagens: “todo conhecimento histórico

pode ser representado pela imagem de uma balança em equilíbrio, que tem sobre um de seus

pratos o ocorrido e sobre o outro o conhecimento do presente”521.

Para o filósofo alemão, o presente é o momento do despertar, o “agora da

cognoscibilidade” cujas possibilidades delimitam as pré-condições, digamos assim, da leitura

propriamente dita de um pensamento originalmente situado no passado. Em outras palavras:

cada “novo” presente impõe novas condições de (im) possibilidade para a leitura e recepção de

uma obra. Com efeito, segundo Benjamin, “a ‘compreensão’ histórica deve ser

fundamentalmente entendida como uma vida posterior do que é compreendido e, por isso,

aquilo que foi reconhecido na análise da ‘vida posterior das obras’, de sua ‘fortuna crítica’, deve

ser considerado como o fundamento da história em geral”522.

Pois bem: a recepção da obra de Walter Benjamin, sobredeterminada pelas

descontinuidades e contingências inescapáveis de sua trajetória intelectual, constitui ela mesma

um exemplo paradigmático do quanto o pensamento de um autor pode, a depender do enfoque

analítico pressuposto, assim como das relações de força vigentes em cada época, ser objeto de

521 Walter Benjamin, Paris, capitale du XIXe siècle, op.cit., p.485. 522 Walter Benjamin, Paris, capitale du XIXe siècle, op.cit., 477.

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uma pluralidade de interpretações. Como assinala o filósofo Sándor Radnóti, mais do que a de

seus contemporâneos, “a obra de Walter Benjamin, o teórico da recepção, é, sem nenhuma

dúvida [...], marcada por recepções fundamentalmente divergentes”523. No limite, pode-se

afirmar, sem exagero, a existência de vários “Benjamins”.

Equilibrando-se entre influências e interlocutores dos mais diversos, quando não

antagônicos entre si, o pensamento de Benjamin apresenta, como pudemos conferir “diferentes

facetas à medida que nele vão se delineando, como em um espelho mágico, os traços

fisionômicos de cada um dos autores com os quais estabeleceu estreito vínculo pessoal e

intelectual”524. Prensado entre amigos não apenas diversos, mas que quase sempre se

detestavam entre si (Scholem e Adorno odiavam Brecht e Asja Lacis; Hannah Arendt não

suportava Adorno, que dela tampouco gostava, e por aí vai), Benjamin manteve-se quase

sempre no “cruzamento dos caminhos” diante das expectativas dos interlocutores. Não por

acaso, o “triângulo infernal” formado por Scholem, Adorno e Brecht tornou-se o eixo a partir

do qual sobressaíram caracterizações relativamente diversas de Walter Benjamin, após o seu

suicídio em 1940.

Nas duas décadas subsequentes, G. Scholem e, sobretudo, Adorno, foram os principais

responsáveis pela construção da “imagem” predominante de Walter Benjamin nos círculos

intelectuais europeus. Organizador das primeiras publicações póstumas do filósofo alemão,

Adorno teve papel pioneiro na divulgação do pensamento de Benjamin525. Através da

publicação de alguns ensaios sobre a obra de Benjamin – como “Caracterização de Walter

Benjamin” (1950), “Introdução aos Escritos de Walter Benjamin” (1955) ou “O Benjamin

epistolar” (1966), dentre outros –, Adorno cumpriu a importante tarefa de reavivar, ou de

despertar, entre certos setores intelectuais, o interesse pela obra do ensaísta alemão. Mas não

de qualquer Benjamin, e sim daquele reinterpretado conforme a perspectiva do próprio Adorno,

cuja ênfase na originalidade do método de concreção – em oposição à tirania da identidade e

do universal abstrato – levou-o a menosprezar, como vimos, o acento do último Benjamin na

práxis política como forma de interrupção da continuidade de uma história que estaria nos

523 Sándor Radnóti, “Chers spectateurs, allez, trouvez vous-mêmes la fin”. In: H. Wismann (org.). Walter Benjamin

et Paris. Paris: Les Éditions du Cerf, 1986, p.883. 524 Miguel Vedda, La irrealidade de la desesperación. Estúdios sobre Siegfried Kracauer y Walter Benjamin.

Buenos Aires: Editorial Gorla, 2011, p.5. 525 Klaus Garber, “Étapes de la réception de Benjamin”, in: H. Wismann (org.). Walter Benjamin et Paris. Paris:

Les Éditions du Cerf, 1986, p.921. Em 1955, Adorno e sua esposa Gretel – também amiga de Benjamin, com quem

manteve farta correspondência – co-organizaram uma pioneira edição de ensaios do filósofo alemão. O primeiro

volume das obras completas do filósofo alemão foi publicado apenas em 1972, sob a direção de Rolf Tiedemann

– discípulo de Adorno.

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levando à catástrofe526. De modo semelhante ao que havia procedido em relação a Kracauer527,

Adorno contribuiu, a bem dizer, para a consolidação de uma imagem de Benjamin na qual

foram ressaltados os elementos de convergência com a sua própria perspectiva e com aquela do

Instituto de Pesquisa Social, ao passo que os elementos discordantes foram colocados em

segundo plano, quando não explicitamente rechaçados.

É nessa perspectiva, por exemplo, que se torna possível compreender as críticas de

Adorno ao marxismo de Benjamin, por este aplicado artificialmente como um complemento

“externo” à análise propriamente dita. Para Adorno, o “conhecimento e a compreensão que

Benjamin tinha de Marx eram extraordinariamente limitados”529. Não surpreende, desse modo,

que Adorno chegue mesmo a considerar, numa carta a Benjamin de 20/05/1935, que uma

possível influência de B. Brecht na elaboração do projeto das Passagens, uma vez que

estimularia ainda mais a adoção desse marxismo rudimentar, não seria menos do que uma

“desgraça”530.

Em sua “Introdução aos Escritos de Walter Benjamin”, o autor de Dialética Negativa

sugere a hipótese de que o que mais atraiu Benjamin “no materialismo dialético não foi tanto o

conteúdo teórico deste como a esperança de um discurso potenciado, coletivamente garantido”,

refletindo uma tentativa desesperada – que sempre malogrou, desde sua militância juvenil no

movimento estudantil e da juventude – de integração em alguma comunidade ou ordem supra-

individual. Desta perspectiva, a tentativa benjaminiana, a partir da metade da década de 1920,

de liberar as energias político-revolucionárias que se encontram em experiências como a dos

surrealistas, seria um “intento de evasão” cujo fracasso é apenas a contraface da

inadaptabilidade de Benjamin a qualquer ordem intelectual e/ou política coletiva. Tal como o

engajamento comunista dos surrealistas, a perspectiva “política” implícita no marxismo de

Benjamin seria, no limite, um verdadeiro “mal-entendido”, segundo as palavras de Rolf

Tiedemann – cuja leitura da obra de Benjamin, em Études sur la philosophie de Walter

Benjamin, reproduz a perspectiva (e as críticas) de Adorno, o qual, aliás, assina o prefácio do

livro531.

526 Idem, p.924, 925. 527 À mesma época, Adorno redigiu também os pequenos ensaios “Rastros, de Bloch” (1960), e “O curioso realista. Sobre Siegfried Kracauer” (1964), contribuindo – como no caso de Benjamin – para a divulgação do pensamento

destes dois autores alemães. 529 Adorno, “Sobre la interpretación de Benjamin. Notas para um proyectado artículo (1968)”. In: Sobre Walter

Benjamin. Madrid: Cátedra, 1995, p.96. 530 Walter Benjamin & Theodor Adorno. Correspondência (1928-1940), op.cit., 94. Além do Exposé de 1935, de

“A Obra de Arte na era de sua reprodutibilidade técnica”, e do ensaio “A Paris do Segundo Império em

Baudelaire”, Adorno manifestou-se criticamente em relação ao ensaio de Benjamin sobre Kafka. Jean-Michel,

Walter Benjamin. Um itinéraire théorique. Paris: Les Belles Lettres, 2010, pp.381-410. 531 Rolf Tiedemann, Études sur la philosophie de Walter Benjamin. Paris: Actes Sud, 1987, p.152, 153.

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É somente na segunda metade da década de 1960 que as opções editoriais e a perspectiva

interpretativa de Adorno (e de seu discípulo Rolf Tiedmann) sofreram os primeiros

questionamentos. Em 1967, a revista Alternative publicou um número duplo (56/57)

especialmente dedicado à obra de Benjamin, no qual foi aberta uma polêmica contra a leitura

adorniana do autor das Passagens. O debate se estendeu através de réplicas e tréplicas tanto por

parte de autores críticos à perspectiva do filósofo frankfurtiano (notadamente Hannah

Arendt532) quanto do próprio Adorno e/ou de R. Tiedmann. No pequeno texto “Notificação

provisória”, por exemplo, de 1968, Adorno defende algumas de suas escolhas editoriais e rebate

a acusação de “violentar” o objeto – neste caso, o próprio Benjamin –, monopolizando os

arquivos sobre o autor reunidos no Instituto de Pesquisa Social.

Afora suas diferenças substanciais com a leitura benjaminiana de Adorno, G. Scholem

– outro importante divulgador da obra do autor alemão – caracterizou-se igualmente pela

indisposição em relação à dimensão política e, sobretudo, marxista, de Walter Benjamin. Ao

mesmo tempo em que acentua os traços metafísico-teológicos de Benjamin533, Scholem

acompanha Adorno na reprovação à tentativa do filósofo alemão de justificar seu pensamento

(cerceando-o) nos termos do materialismo histórico. Em suas palavras, numa conferência

proferida em 1964: “Benjamin tentou equiparar sua dialética, própria de um metafísico e um

teólogo, com a dialética materialista e teve que pagar por isso um preço muito alto, diria

demasiadamente alto”534.

A aproximação de Benjamin ao marxismo, desde 1924, seria a “negação de sua

verdadeira vocação filosófica”535. E, assim como Adorno, Scholem – que nunca escondeu sua

antipatia pela figura de Asja Lacis – também considerava que “a influência de Brecht na

produção de Benjamin dos anos 30 resultou funesta e em alguns casos até catastrófica”536. Para

o estudioso da Cabala, “o gênio metafísico de Benjamin dominou seus escritos desde o ensaio

532 Nas notas preparatórias para um artigo – nunca redigido – em que responderia às objeções de Hannah Arendt

e de Helmut Heissenbüttel, Adorno contrapõe-se à tese arendtiana de que Benjamin não era, de fato, um filósofo.

Para o autor de Mínima Moralia, “o conceito de crítica em Benjamin só tem substancialidade graças a seu conteúdo

filosófico” (1995, p.95). Cf. “Sobre a interpretação de Benjamin. Notas para um projetado artigo (1968)”. G.

Scholem também acredita que Benjamin foi, acima de tudo, um filósofo, “em todas as fases de sua atividade e em

cada uma das formas que esta adotou” (2004, p.19). 533 Em Walter Benjamin. História de uma amizade (São Paulo: Editora Perspectiva, 2008, p.213), Scholem afirma

ter se surpreendido positivamente com a compreensão de Adorno “do elemento teológico constante em Benjamin.

Eu esperava encontrar um marxista que insistisse na liquidação daquilo que, na minha opinião, era a mobília mais

valiosa no lar intelectual de Benjamin. Em vez disso encontrei aqui um homem que, definitivamente, tinha uma

mente aberta e mesmo uma atitude positiva para com estes traços, embora ele os considerasse a partir de sua

própria perspectiva dialética”. 534 Gershom Scholem, Los nombres secretos de Walter Benjamin. Madrid: Editorial Trotta, 2004, p.31. 535 Idem, p.14. 536 Idem, p.36.

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‘Metafísica da Juventude’, que escreveu em 1913 quando tinha 21 anos, até as ‘Teses da

filosofia da história’, de 1940, que constituem sua última produção consumada”537. Este último

escrito, em especial, constituiria implicitamente – como ele afirma na conferência “Walter

Benjamin e seu anjo”, de 1972 –, uma “justificação metafísica de um ‘materialismo histórico’

que é muito mais tributário da teologia, à qual se refere com tanta ênfase, do que gostariam seus

atuais leitores ‘marxistas’”538.

Nas últimas três ou quatro décadas, momento em que Michael Löwy e Daniel Bensaïd

incorporam o pensamento de Benjamin, pôde-se constatar um crescimento exponencial da

recepção de sua obra, uma das poucas desse século que conseguiu atravessar as ondas de modas

numa ascensão por mais de quatro décadas539, sobretudo com a expansão da incorporação

acadêmica de sua obra. Os estudos sobre Benjamin atingiram uma quantidade tão significativa

que a recepção de sua obra se tornou um tema específico de pesquisa. Benjamin –

impossibilitado de seguir carreira acadêmica – transformava-se agora em personagem central

de alguns círculos acadêmicos especializados. Não sem certa ironia, Susan Buck-Morss

constatou, num texto pioneiro publicado em 1981 – “Walter Benjamin, escritor revolucionário”:

“a florescente bibliografia secundária sobre Benjamin, gerada por e para o establishment

acadêmico que o rechaçara nos anos 20, demonstra que sua obra se tornou respeitável”540. Sua

obra fragmentada transformava-se em justificativa para leituras violentamente recortadas,

atendendo às demandas das disciplinas universitárias. Mesmo porque, “seus escritos crípticos

e carregados de imagens se prestam facilmente aos métodos pós-estruturalistas de leitura”, no

âmbito dos quais os textos, “arrancados da história concreta que lhes dá origem”, tornam-se

objeto de uma variedade aparentemente ilimitada de possibilidades interpretativas, “entres as

quais se elege a mais ‘interessante’ de acordo com o clima acadêmico do momento”541.

Seja no âmbito da crítica literária (com os ensaios sobre Kafta, sobre “O Narrador”,

dentre outros), das análises de aspectos culturais das grandes metrópoles, das abordagens

estéticas ou das teorias da comunicação (responsáveis pela celebridade desproporcional do

ensaio sobre “A Obra de Arte na era de sua reprodutibilidade técnica”), os escritos de Benjamin

passaram a ser apropriados conforme as necessidades e circunstâncias das monografias

537 Idem, p.22, 23. 538 Idem, p.96. Como veremos mais adiante, esta objeção de Scholem não se aplica a uma leitura “marxista” de

Benjamin como a de Michael Löwy. 539 Günter Karl Pressler. Benjamin, Brasil. São Paulo: Annablume, 2006, p.24. 540 “Enquanto que os cientistas sociais não o conceberam como demasiado valioso, [Benjamin] se converteu num

favorito no campo da crítica literária”. Susan Buck-Morss. Walter Benjamin, escritor revolucionário. Buenos

Aires: Interzona Editorial, 2005, p.12. 541 Idem, p.12.

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acadêmicas, o que só fez proliferar a imagem multifacetada do filósofo alemão, contribuindo

para a difusão das apreciações unilaterais que estão na base dos modismos intelectuais. Tomem-

se, para mencionar apenas um exemplo bem conhecido, as inúmeras tentativas de visualizar em

Benjamin uma contraposição “otimista” – do ponto de vista das possibilidades abertas pela

reprodutibilidade técnica da arte – ao “elitismo” aristocrático implícito na rejeição adorniana

da “indústria cultural” e na consequente defesa irredutível da autonomia estética como forma

insubstituível de ativar a negatividade em face da razão instrumental.

Em comum, a despeito das diferenças de abordagem e de perspectiva interpretativa,

pode-se observar, na ampla maioria das leituras de Benjamin efetuadas nas últimas décadas,

um menosprezo pelas preocupações políticas presentes na reflexão filosófica do ensaísta

alemão542. Não por acaso, no começo da década de 1980, Terry Eagleton alertou para o perigo

do conformismo que busca se apoderar da obra benjaminiana: “Todos os sinais indicam que

Benjamin está em perigo iminente de ser apropriado por um establishment crítico que considera

seu marxismo um pecado leve e eventual ou excentricidade tolerável”543. Para Eagleton,

Benjamin estava a caminho de ser transformado num “tesouro cultural” domesticado pelo

conformismo que, segundo suas próprias palavras, legitima o “cortejo triunfal” dos vencedores

(Tese VII)544. Isso porque, em especial num contexto caracterizado pelo refluxo das grandes

narrativas revolucionárias, “Benjamin oferece uma imagem consoladoramente familiar a

intelectuais deserdados em toda parte, abatidos como estão pela monotonia cultural de uma

burguesia cujos direitos de propriedade muitos deles indubitavelmente defenderiam até a

morte”545.

Em alguma medida, Michael Löwy e Daniel Bensaïd inserem-se nessa vaga

contemporânea da recepção de Benjamin, vaga que se apoia, conforme se observou, em

algumas “afinidades”, por assim dizer, entre a reflexão do filósofo alemão e a atmosfera cultural

e ideológica contemporânea. Mas, no contexto dessa atualidade difusa de Benjamin, talhada

por recepções divergentes, Löwy e Bensaïd situam-se desde um ponto de vista bastante

específico: aquele para o qual a atualidade de Benjamin diz respeito acima de tudo à sua

capacidade de “responder”, digamos assim, avant la lettre, aos dilemas da modernidade

burguesa (com suas “fantasmagorias” e sua “mitologia” do progresso) sem renunciar, porém, à

aposta em uma grande narrativa heterodoxa sobre a possibilidade de uma bifurcação histórica.

542 Jean-Michel Palmier, Walter Benjamin. Um itinéraire théorique. Paris: Les Belles Lettres, 2010, p.20. 543 Terry Eagleton. Walter Benjamin: rumo a uma crítica revolucionária. Fortaleza: OMNI, 2010, p.15. 544 Walter Benjamin, “Teses sobre o conceito de história”, op.cit., p.70. 545 Terry Eagleton. Walter Benjamin: rumo a uma crítica revolucionária, op.cit., p.161.

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Assim, para eles, se o pensamento de Benjamin permanecia atual, talvez mais ainda do que em

sua época (como mais um profeta desarmado), isso se devia à possibilidade que ele oferece para

uma renovação do projeto marxista de crítica da modernidade capitalista, e não porque

“antecipou” o desconstrução pós-moderna dos grandes relatos, dentre eles o próprio marxismo:

Benjamin “desconstruiu”, dialeticamente, se assim se pode dizer, a grande narrativa burguesa

do progresso, mas não toda e qualquer perspectiva emancipatória “universalizante”.

Em meio à pulverização da recepção benjaminiana, Michael Löwy e Daniel Bensaïd

encontraram em Benjamin, portanto, alguém mediante o pensamento do qual se tornava

possível esboçar uma redefinição político-estratégica e intelectual da esquerda radical, em um

contexto pós-derrota. Se, como diz Razmig Keucheyan, “no âmbito do marxismo, o autor das

teses... constitui, por excelência, aquele que [melhor] permite pensar a derrota”, tratava-se então

de tomá-lo como guia de um recomeço, não um recomeço absoluto, e sim um recomeço a partir

dos destroços e da herança do passado546. Na contramão das leituras circunscritas à

especialização acadêmica e refratárias a qualquer abordagem que não seja crítica em relação à

motivação político-messiânica por trás das reflexões do filósofo alemão, Löwy e Bensaïd

visualizam em Benjamin (em 1979 para o primeiro, 1985/6 no caso do segundo) um aliado no

trabalho de reconstrução do diagnóstico marxista-crítico da modernidade. Mesmo em se

tratando de Löwy, cuja redescoberta de Benjamin foi quase simultânea à sua “entrada” no

campo da sociologia da religião, delimitando em alguma medida a forma de abordagem da obra

do autor alemão, essa motivação inescapavelmente política encontra-se direta ou indiretamente

presente. Foi essa motivação, por exemplo, que ajudou a redespertar seu interesse pelos

movimentos sociais e teológicos latino-americanos de esquerda, os quais logo se transformaram

em tema de pesquisa. Como reconhecia até mesmo alguém como Max Weber, as paixões do

pesquisador condicionam amplamente a escolha dos seus “objetos” de pesquisa.

Em suas reflexões propriamente teóricas, Benjamin forneceu-lhes uma nova rota de

acesso a uma “tradição” herética – no contexto do ambiente intelectual proto-positivista francês

–, mediante a qual se buscava revitalizar as potencialidades críticas do marxismo. A. Blanqui,

G. Sorel, B. Lazare e C. Péguy, dentre outros, tornam-se referências importantes na renovação

crítica do marxismo proposta por Löwy e por Bensaïd, renovação para cuja realização se impõe

a necessidade de uma “abertura” teórica e política para perspectivas que lhe são “exteriores”.

Segundo afirmariam mais tarde no artigo “Auguste Blanqui, comunista herege”: “é como

marxistas críticos que relemos os ‘socialistas dissidentes’ (Blanqui, Sorel, Péguy, Lazare),

546 Razmig Keucheyan, Hemisphère gauche, op.cit., p.54.

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convencidos de que eles podem contribuir para enriquecer o marxismo e para desembaraçá-lo

de certo número de escórias”547. Como se pode ver neste mesmo artigo, é Benjamin quem lhes

sinaliza este caminho de retorno crítico às tradições dissidentes, com suas intuições voltadas à

radicalização da ruptura do marxismo com as concepções lineares do progresso histórico.

No limite, foi no contexto dessa incorporação benjaminiana que Michael Löwy e Daniel

Bensaïd, antes relativamente distantes no interior e fora da LCR – o primeiro por vezes

“chocado” com o ultra-leninismo do segundo, e este, por sua vez, provavelmente impaciente

com o excesso de zelo intelectual daquele –, perfilaram pela primeira vez uma convergência

inequívoca, que, ademais, lhes dava um estatuto particular dentro da organização à qual

pertenciam. Não raro sob desconfiança da velha guarda da LCR, em função do interesse por

Benjamin e outros “hereges” distantes das referências tradicionais da política revolucionária

cultivadas na organização, Löwy e Bensaïd até esboçaram a redação de um artigo ou de um

livro sobre o filósofo alemão por volta de 1987548. Na época, Löwy convidou Bensaïd para que

escrevessem juntos um artigo sobre Benjamin, ao que o filósofo toulouseano replicou: “E por

que não um livro?”. O projeto não avançou, por várias razões, dentre elas a falta de tempo, mas

revela a afinidade benjaminiana que então se formava entre os dois.

Em Walter Benjamin, Michael Löwy e Daniel Bensaïd encontraram, cada qual a seu

modo, uma figura paradoxal do intelectual “revolucionário”, intransigente nas suas convicções

político-filosóficas (fundadas, desde 1925, em um marxismo messiânico), mas incapaz de

traduzir o apego aos princípios em engajamento concreto, permanecendo uma espécie de

“outsider de esquerda”, como diz Bensaïd. Com todas essas ambivalências, tal figura revelaria,

à época (anos 1980), uma lucidez intempestiva e inesperada em face do declínio da figura

“típica” do intelectual engajado à Sartre. “Resistência privada de um pequeno-burguês

incurável?”, se perguntaria Daniel Bensaïd em 1990, diante do engajamento “que não é jamais

uma adesão” de Benjamin, “ou resistência instintiva à emergência de uma nova razão de

Estado?”. Em um momento de transformações históricas de grande amplitude, como as que

estavam em gestação a partir do final da década de 1980, a hesitação benjaminiana se transmuta,

547 Daniel Bensaïd & Michael Löwy, “Auguste Blanqui, comunista herege”, Margem Esquerda, n.10. Boitempo

Editorial, 2007, p.129, 130. 548 O próprio Alain Krivine confessou, em entrevista para esta pesquisa, um certo incômodo com as novas

preocupações do amigo/camarada, talvez pelo receio de um possível desvio intelectualista. Cf. Fabio Mascaro

Querido, Entrevista com Alain Krivine, agosto de 2014, França. Segundo contou Löwy, em conversa informal,

logo após as publicações de Daniel Bensaïd da virada para os anos 1990, Krivine pediu-lhe que escrevesse resenhas

dos livros de Bensaïd, pois “nós não entendemos nada”. Malgrado o tom meio (conscientemente) fanfarrão e

exagerado de Krivine, o episódio joga luz sobre a novidade do caminho intelectual tomado por Bensaïd em relação

à tradição trotskista clássica.

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mesmo para dois trotskistas, em capacidade de resistência sob uma atmosfera hostil, na qual as

referências são resignificadas. A disposição de Benjamin em se manter no “cruzamento dos

caminhos”, distante de todas as correntes (Adorno), a fim de manter abertas as várias vias de

acesso (teológica, comunista, estética) à “destruição” do mundo, parecia agora dotar-se de uma

renovada atualidade, do ponto de vista ao qual se alinhavam Löwy e Bensaïd.

Algo parecido se passa com a posição ambivalente e paradoxal de Benjamin em relação

à modernidade, entre a crítica radical (predominante) e a ilusão (restrita a alguns textos

emblemáticos) quanto às suas possibilidades emancipatórias. Se descartarmos a aparência de

equidade por ele sugerida, Jameson está certo ao afirmar que Benjamin tinha uma “atitude não

resolvida e ambígua em relação à moderna civilização industrial, a qual parece tê-lo fascinado

e deprimido ao mesmo tempo”549. Para Michael Löwy e Daniel Bensaïd, Benjamin se

apresentava como um ponto de referência para interpelar os desafios vinculados aos debates

sobre a “crise” da modernidade, debate que começara “explicitamente” pela intervenção de Jean

François Lyotard, ex-militante do grupo “Socialismo ou Barbárie”, através da publicação do

seu A condição pós-moderna, em 1979.

Tratava-se, como apontou Perry Anderson, tanto no título quanto no tema, “o primeiro

livro a tratar a pós-modernidade como uma mudança geral na condição humana”, pautando em

grande medida os debates sobre a questão que se seguiram550. Para Lyotard, em coincidência

com a nova ordem social pós-industrial – teorizada, por exemplo, por Daniel Bell (EUA) e

Alain Touraine (França) –, a emergência da nova cultural pós-moderna, com seu relativismo

endêmico, teria dissolvido a credibilidade política e cultural das “grandes narrativas”, dentre as

quais se encontrava no centro do alvo o marxismo. A partir de 1980, Habermas adentrou no

debate através da conferência “Modernidade – um projeto inacabado”, proferida por ocasião do

recebimento do prêmio Adorno em Frankfurt, reconhecendo a “crise” da modernidade, mas não

para celebrar o advento da nova era pós-moderna, e sim para refundar, em condições adversas,

o projeto moderno sobre novas bases teóricas e políticas551. Como disse Perry Anderson, “as

intervenções coincidentes de Lyotard e Habermas” concederam primeira vez “autoridade

filosófica” aos debates sobre a (pós) modernidade. Para ele: “A formação original dos dois

549 Fredric Jameson, “Walter Benjamin; ou nostalgia”. In: Marxismo e Forma. Teorias dialéticas da literatura no

século XX. São Paulo: Hucitec, 1985, p.68. 550 Perry Anderson, As origens da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999, p.33. 551 Jürgen Habermas. “Modernidade – um projeto inacabado”. In: Otília Arantes. & Paulo Arantes. Um Ponto

Cego no Projeto Moderno de Jürgen Habermas. São Paulo: Brasiliense, 1992, pp. 99-123.

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pensadores foi marxista, mas é espantoso o pouco que daí trouxeram para suas análises da pós-

modernidade”552.

Ora, diante da antinomia entre a recusa relativista da modernidade defendida por

Lyotard e os apologistas da “pós-modernidade”, e a nostalgia iluminista de Habermas em torno

da modernidade como um projeto (racionalista) inacabado, e, portanto, fonte de uma construção

(ainda) a ser realizada, Michael Löwy e Daniel Bensaïd entreveem em Benjamin elementos

para uma crítica radical da modernidade, mas uma crítica que, embora intransigente na denúncia

da barbárie moderna, se pretende “dialética” na medida em que propõe, simultaneamente à

negação da ordem vigente, uma “síntese” que não poderá se furtar às conquistas do mundo

moderno. Uma “crítica moderna da modernidade”, como dirá Löwy.

552 Idem, p.52. A primeira intervenção “marxista” no debate sobre a pós-modernidade ocorreu em 1982, por meio

de Fredric Jameson, que então publicava seu primeiro texto sobre o assunto. Desde então ele se tornará uma

referência do debate dentro e fora do marxismo. Cf. Fredric Jameson, Pós-modernismo: a lógica cultural do

capitalismo tardio. São Paulo: Ática, 2007.

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5. Romântico, marxista e messiânico: o Benjamin de Michael Löwy

5.1. Intelectuais judeus, párias e rebeldes na Europa Central

Ainda em sua adolescência paulistana, na segunda metade dos anos de 1950, Michael

Löwy havia sido apresentado, graças ao intermédio de seu amigo Roberto Schwarz, ao

pensamento de Walter Benjamin. Tratava-se, porém, de uma leitura “brechtiana” da obra

benjaminiana, centrada nos textos mais “modernistas” do crítico alemão – e afinada com o

debate da esquerda brasileira em torno da “responsabilidade” e da “politização” dos artistas e

intelectuais. À época, malgrado a reverência de praxe ao importante teórico marxista da cultura,

Löwy não manifestou maior interesse pelo pensamento deste que seria, mais tarde, sua principal

referência teórico-política. Seria apenas por volta de 1979, como vimos, ou seja, quase duas

décadas depois, que a “re-descoberta” da obra de Benjamin, particularmente das “teses sobre o

conceito de história”, provocaria um impacto significativo em sua trajetória.

A inflexão (e não ruptura) acarretada pela incorporação da obra de Benjamin seria logo

visível, especialmente através da abertura de novos e mais amplos horizontes teóricos e

temáticos, os quais lhe permitiriam assentar as bases para a confrontação crítica do marxismo

com os novos desafios decorrentes das transformações econômicas, sociais, políticas e culturais

que se avistavam. Não por acaso, como diz o próprio autor, a “descoberta” de Walter Benjamin

lhe possibilitou dar “um passo além do marxismo goldmaniano-lukacsiano”553. A leitura das

“teses”, em particular, “afetou minhas certezas”, disse Löwy, “transformou minhas hipóteses,

inverteu (alguns de) meus dogmas; em resumo, ela me obrigou a refletir de outra maneira,

sobre uma série de questões fundamentais: o progresso, a religião, a história, a utopia, a política.

Nada saiu imune desse encontro capital”554. As reflexões benjaminianas permitiram a Löwy

extrair todas as consequências de aspectos teóricos que, até então, permaneciam latentes,

estimulando-o a uma significativa ampliação temática de seus trabalhos. Concentrando-se nas

considerações de Walter Benjamin sobre a modernidade e sobre a história, Michael Löwy

encontrou nas reflexões benjaminianas um apoio teórico e metodológico para seus estudos

sobre a “história dos vencidos”555.

553 Ângela de Castro Gomes & Daniel Aarão Reis. “Um intelectual marxista: entrevista com Michael Löwy”.

Tempo, Rio de Janeiro, Vol.1, n.2, 1996, p.177.

554 Michael Löwy, Alarme de incêndio. São Paulo: Boitempo, 2005, p.39. 555 Vincent Delacroix, “Les temps romantique de Michael Löwy”. In: V. Delacroix & E. Dianteill (orgs.).

Cartographie de l´utopie. L´œuvre indisciplinée de Michael Löwy. Paris: Sandre Actes, 2011, p.118, 119.

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Seu primeiro texto sobre o filósofo alemão, “Marcuse and Benjamin: the romantic

dimension”, foi publicado já em 1980, na revista Telos, de Nova York556. Três anos mais tarde,

em 1983, publicou dois textos fundamentais, que sugeriam o horizonte a partir do qual Löwy

analisaria a obra de Walter Benjamin: “L’anarchisme messianique de Walter Benjamin”,

publicado em Les Temps Modernes, e “Franz Rosenzweig et Walter Benjamin. Messianisme et

révolution”, na revista Traces. Michael Löwy contribuiu, assim, para uma nova etapa da

recepção francesa da obra de Benjamin, que ganhara fôlego com as publicações de textos até

então inéditos no país – Sens unique, Enfance berlinoise et Paysages urbains em 1978,

Correspondance em 1979, Journal de Moscou em 1983, Origine du drame baroque allemand

em 1985, dentre outros. O ponto alto dessa redescoberta francesa de Benjamin – em 1947, as

“teses...”, traduzidas por Pierre Missac, haviam sido publicadas em Les temps modernes – foi a

realização do monumental – contando com a participação dos principais “benjaminianos”

mundo afora – colóquio “Walter Benjamin et Paris” em 1983, organizado por Heinz Wismann

e pela École de Hautes Études en Sciences Sociales.

No evento, Löwy apresentou o trabalho “Walter Benjamin critique du progrès: à la

recherche de l’expérience perdue”, depois publicado no volumoso livro com os anais do

colóquio, editado pelo próprio Wisman557. Desde estes primeiros artigos, passando por um

trabalho decisivo como Redenção e Utopia (1988)558, e, por fim, pelo livro Walter Benjamin:

aviso de incêndio. Uma leitura das “teses sobre o conceito de história” (2002), Michael Löwy

acentua a importância decisiva do messianismo libertário – romântico e utópico-teológico – no

pensamento de Benjamin, elemento definidor, na sua fase de maturidade, do seu “marxismo da

imprevisibilidade” e, sobretudo, a sua atualidade em um contexto de crise do modelo

civilizatório (capitalista-moderno) vigente e de aparente “fechamento” da história.

Por essa razão Löwy analisa a obra de Benjamin situando-a no âmbito de uma

“constelação” mais ampla de intelectuais judeus messiânico-libertários da Europa Central de

cultura germânica de seu tempo (como Franz Rosenzweig, Ernst Bloch, Gustav Landauer, G.

Scholem, dentre outros) – que entraram em “conflito geracional” (como demonstrou Hannah

556 Sobre Marcuse, Löwy havia publicado, ainda em 1968, quando vivia em Israel, o artigo “Herbert Marcuse,

filósofo da negatividade dialética” (em hebreu), na revista Bashaar (Tel Aviv), n.85. A reativação desta

“negatividade dialética” seria, na década de 1980, articulada ao resgate das utopias, um dos alicerces da re-leitura,

operada por Löwy, da crítica romântica da modernidade. 557 Cf. H. Wisman (org.), Walter Benjamin et Paris. Paris: Cerf, 1986. 558 Uma primeira versão do que viria a ser o livro Redenção e Utopia, foi publicada em 1981, nos Archives de

Sciences Sociales des Religions, n.51, com o título “Messianismo judaico e utopias libertárias na Europa Central

(1905-1923)”. Em português, este primeiro texto encontra-se na coletânea Romantismo e messianismo, publicada

em 1990 pelas editoras Edusp e Perspectiva.

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Arendt559) com a geração dos seus pais, os judeus parvenus (novos ricos), marcados pelo alto

nível de assimilação. Particularmente após a emergência da primeira guerra – que demonstrava,

a um só tempo, a crise da civilização ocidental-europeia e o absurdo das ilusões

assimilacionistas dos judeus alemães – muitos destes jovens denunciaram a incoerência de um

meio familiar que aspirava a fusão à sociedade dominante, preservando, quando muito, uma

fidelidade formal e desencarnada ao passado judaico. Para muitos destes jovens, exatamente

por conduzir a um conformismo pequeno-burguês ávido por reproduzir as normas da ordem

social vigente, o meio familiar judeo-alemão no qual viviam estimulava uma concepção do

judaísmo que o privava de toda aura metafísica560. O caso de Scholem é, a este respeito,

paradigmático. Em 1914, ele chegou a ser expulso da casa de seu pai em virtude da atitude

“antipatriótica” representada por sua recusa da guerra.

Ao contrário dos seus pais assimilados, para os quais o judaísmo não passava de alguns

rituais simbólicos, os jovens intelectuais judeus depararam-se diretamente com a “questão

judaica”, “pois seu próprio judaísmo, que dificilmente desempenhava algum papel em seu

espaço espiritual, determinava extraordinariamente sua vida social e, portanto, apresentava-se

a eles como uma questão moral de primeira ordem”561. Michael Löwy interessa-se, nesse

contexto, pelos intelectuais judeus enquanto “camada social”, exemplo típico-ideal da

“inteligência sem amarras” tal como definida por Karl Mannheim, intelectuais cuja

marginalidade social lhes reservava uma sensibilidade pouco comum para as injustiças e a

opressão e, por isso mesmo, um ponto de vista crítico e potencialmente subversivo em relação

à ordem estabelecida. Munidos de um certo “privilégio epistemológico do exílio” (conforme a

expressão de Enzo Traverso, em referência aos intelectuais judeo-alemães exilados na década

de 1930562), estes intelectuais judeus cultivavam uma visão anti-conformista do mundo, que

escapava às convenções estabelecidas. De onde sobressaia, aliás, a proximidade significativa

de muitos deles com visões de mundo utópicas. Nas palavras de David Biale, diante de “uma

comunidade judaica que não oferecia grande atração e uma sociedade alemã ainda pouco à

vontade com seus cidadãos judeus”, a juventude judaica optava, com frequência, “pelas

alternativas mais radicais, em geral o socialismo ou o sionismo, mas por vezes, outrossim, o

nacionalismo germânico de extrema direita”563.

559 Hannah Arendt, “Walter Benjamin: 1892-1940”. In: Homens em tempos sombrios, op.cit., pp.165-222. 560 Stéphane Mosès. L’ange de l’histoire. Rosenzweig, Benjamin, Scholem. Paris: Gallimard, 2006, p.50. 561 Hannah Arendt, “Walter Benjamin...”, op.cit., p.198. 562 Cf. Enzo Traverso, La pensée dispersée. Paris: Léo Scheer Ed., 2003. 563 David Biale, Cabala e contra-história: Gershom Scholem. São Paulo: Perspectiva, 2004, p.2.

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O intelectual judeu, “pária consciente”, ou “rebelde” (como Benjamin), constitui,

segundo Löwy, “um marginal que assume sua marginalidade, um espírito não-conformista, que

transforma sua exclusão social” no núcleo de uma crítica radical da ordem estabelecida”564.

Nesse processo de resistência, eles elaboram – conforme as palavras de Hannah Arendt –, uma

“nova ideia de ser humano, extremamente importante para a humanidade moderna”565. Ainda

que provenientes de famílias assimiladas à sociedade alemã já há algumas gerações, estes

jovens intelectuais “permaneciam suficientemente marginais para poder cultivar um olhar

distanciado sobre o mundo que os rodeia” – aquele do ambiente familiar, entrevisto desde a

infância como lugar de contradições sociais e intelectuais insuportáveis566.

É como “sociólogo dos intelectuais” e, simultaneamente, “sociólogo da religião”,

portanto, que Michael Löwy alçará ao centro de gravidade de suas atrações intelectuais as

figuras de Benjamin e dos intelectuais judeus da Europa Central de cultura germânica, utópico-

libertários, romântico-messiânicos, ateus e/ou religiosos567. Em certa medida, já em sua tese

sobre Lukács, Löwy havia analisado as ambivalências do “anticapitalismo romântico” que

rondava a atmosfera intelectual na Europa Central do início do século XX, e que impactava,

com ainda mais força, intelectuais judeus como o autor de Budapeste. Mas, enquanto na tese,

realizada em meados da década de 1970, as raízes românticas, místicas e messiânicas do

pensamento do jovem Lukács eram compreendidas do ponto de vista da “superação”

representada pela adesão do filósofo húngaro ao marxismo, pode-se perceber em suas análises

sobre Benjamin e os intelectuais judeus messiânicos (incluindo aí o próprio Lukács), uma maior

“abertura” para o “excedente utópico” inscrito no coração do pensamento destes “párias,

rebeldes e românticos”.

O grande responsável por esta “abertura”, inútil repetir, era o próprio Benjamin, que

estimulou a visita a estes “continentes” pouco explorados, em cujas fontes encontram-se

elementos para uma oxigenação utópica do marxismo crítico contemporâneo. À luz das

564 Michael Löwy, “Le concept de ‘paria conscient’ chez Hannah Arendt, et le cas des intellectuels juifs d’Europe Centrale”. Loxias, 24, 2009, s/p. 565 Hannah Arendt, La tradition cachée, le juif comme paria. Paris: Christian Bourgeois, 1987, p.180. 566 Stéphane Mosès. L’ange de l’histoire, op.cit., p.50. 567 Esta “sociologia dos intelectuais” inscreve-se no âmbito de uma “sociologia da cultura”, na perspectiva

metodológica sintetizada por Lucien Goldmann, perspectiva, aliás, utilizada por Löwy desde seu primeiro grande

trabalho, sobre Marx. Em Redenção e Utopia, segundo o próprio autor (São Paulo: Companhia das Letras, 1989,

p.10), o objetivo era, “por um caminho que parte da sociologia da cultura, analisar o surgimento de uma categoria

social nova, a intelectualidade judaica, e as condições que favoreceram a eclosão, em seu seio, de uma dupla

configuração espiritual: a utopia romântica e o messianismo restitucionista”.

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reflexões benjaminianas, a rememoração desta geração de “vencidos da história”568 não

constituía, então, um ato de estetização da derrota, mas sim uma “redescoberta” de intelectuais

cujas obras – embora enraizadas no contexto de sua época – revelavam uma inesperada

atualidade diante da “crise” da modernidade que se prenunciava já na virada para os anos de

1980. Nas palavras de Michael Löwy: “Por um paradoxo mais aparente que real, é justamente

porque são vencidos, marginais na contracorrente de sua época, românticos obstinados e

utópicos incuráveis, que sua obra se torna cada vez mais atual, cada vez mais carregada de

sentido à medida que nos aproximamos do fim do século XX”569.

Para Michael Löwy, a originalidade do pensamento de Walter Benjamin decorre de sua

capacidade incomum de articular o marxismo (do qual ele se aproximou em meados da década

de 1920), às raízes românticas e utópico-teológicos de suas reflexões de juventude. Segundo

ele, marxismo libertário, romantismo e messianismo judaico combinam-se, no pensamento

benjaminiano, no contexto de uma crítica radical às ideologias do progresso e ao paradigma

civilizatório moderno. Como sustenta desde Redenção e utopia: o judaísmo libertário na

Europa Central, em Benjamin, as “afinidades eletivas” entre estas correntes resultam numa

verdadeira fusão, “isto é, no nascimento de uma forma de pensamento nova, irredutível a seus

componentes”570.

5.2. Política, messianismo e metafísica em Benjamin

Ao destacar a dimensão messiânico-teológica da obra benjaminiana, na contramão da

maior parte das interpretações marxistas da obra do filósofo alemão, Michael Löwy apoia-se

amplamente nas contribuições de Gershom Scholem, intelectual que, com a conivência ativa

do amigo, atuava como uma espécie de “superego judeu” de Benjamin, influenciando

significativamente o seu pensamento desde 1915, ano em que se conheceram, até o seu suicídio

em 1940571. Embora seja irredutível ao que ele entender ser a “abordagem unilateral de

Scholem”, a interpretação de Michael Löwy da obra benjaminiana é tributária, sobretudo em

seu aspecto teológico-messiânico, da leitura realizada pelo historiador da Cabala. Conforme ele

568 A epígrafe de Redenção e Utopia não poderia, nesse caso, ser mais adequada. Trata-se das palavras de Walter

Benjamin: “Nossa geração teve de pagar para saber, pois a única imagem que irá deixar é a de uma geração vencida.

Será este o seu legado aos que virão”. 569 Michael Löwy, Redenção e Utopia, op.cit., p.10. 570 Idem, p.85. 571 Robert Alter, Les anges nécessaires. Kafka, Benjamin et Scholem entre tradition et modernité. Paris: Les Belles

Lettres, 2001, p.4.

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mesmo reconhece: “Devo dizer que minha leitura do messianismo judeu e de Walter Benjamin

deve bastante aos escritos de Scholem”572.

Na perspectiva de Löwy, a obra de Scholem “representa não apenas um monumento

inigualável da historiografia moderna”, mas carrega também um “novo olhar” sobre a tradição

religiosa judaica, “restituindo-lhe sua dimensão messiânica e apocalíptica escamoteada pela

leitura racionalista/liberal da Wissenschaft des Judentums e da sociologia alemã”. Enquanto

pensadores como Max Weber573 ou Werner Sombart não enxergavam na espiritualidade judaica

senão um racionalismo calculista, “Scholem pôs em evidência as correntes religiosas

subterrâneas, místicas, heréticas, messiânicas e utópicas da história do judaísmo”574. Uma das

grandes originalidades de Scholem foi, para Löwy, “a descoberta – ou melhor, a redescoberta

– de um domínio quase inteiramente esquecido da tradição religiosa judaica”, a saber: “as

doutrinas místicas desde a Cabala até o messianismo herético de Sabatai Tzvi”575.

Como diz David Biale, em cujos trabalhos – sobretudo Cabala e contra-história:

Gershom Scholem – Löwy muito se inspira: “a importância de Scholem vai muito além do seu

impacto sobre os especialistas em estudos judaicos. Seus trabalhos sobre mística e messianismo

judaicos forçaram, quase por si sós, uma drástica revisão da maneira como os judeus concebiam

sua história e religião”576. Em oposição às leituras exclusivamente “racionais e legalistas”,

como a dos scholars do século XIX, “Scholem mostrou que no coração do judaísmo, em sua

feição mais usual, latejavam poderosas forças do mito e da mística”. Enquanto as interpretações

racionalistas enxergavam no misticismo e no mito obstáculos instransponíveis ao progresso da

história judaica, para Scholem eles constituíam forças essenciais desta tradição viva, ativa,

antítese do conservantismo e do dogmatismo dos herdeiros “oficiais” da tradição. Scholem

acreditava, de acordo com Biale, que o racionalismo do século XIX “levou diretamente à

tendência de ‘espiritualizar’ o judaísmo e o congelar em um rígido dogma teológico”577. O

primado deste “dogmatismo” significava, na ótica de Scholem, a dissolução das fontes

profundas do judaísmo em um espiritualismo ético. Abrangendo “tanto o racionalismo quanto

o irracionalismo demoníaco”, a teologia judaica é, ou deveria ser, para Scholem,

572 Michael Löwy, Judeus Heterodoxos. Messianismo, Romantismo e Utopia. São Paulo: Perspectiva, 2012, p.XIV. 573 Nas pesquisas de Max Weber, o judaísmo antigo – baseado em um monoteísmo ético e não-mágico – aparece

como um dos mais importantes prelúdios da modernidade ocidental, contribuindo para o processo de

racionalização da vida que caracteriza a modernidade capitalista. Cf. Eduardo Weisz, “Le judaïsme antique aux

origines de la modernité: les desseins de l’étude wébérienne”. In: Michael Löwy, Max Weber et les paradoxes de

la modernité. Paris: PUF, 2012, p.14-17. 574 Idem, p.142. 575 Michael Löwy, Redenção e utopia, op.cit., p.59. 576 David Biale, Cabala e contra-história: Gershom Scholem, op.cit., p.XIII. 577 Idem, p.XVII.

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fundamentalmente “anarquista”, uma vez que “não produz nenhuma fórmula autoritária ou

dogma”. No limite, a vitalidade desta tradição encontra-se nesse anarquismo, pois o dogma, aos

olhos de Scholem, “é por definição despido de vida”578.

Michael Löwy entrevê no “sionismo libertário” de Scholem uma concepção a um só

tempo restauracionista e utópica do messianismo judaico, concepção que percorre o conjunto

dos intelectuais judeus da Europa Central do início do século XX. Embora a sistematize apenas

nos anos de 1950, em seu artigo “Para compreender o messianismo judaico”, as raízes desta

concepção remontam, aos olhos de Löwy, aos seus primeiros escritos, nas décadas de 1920 e

1930579. Na realidade, tal perspectiva “atravessa o conjunto de sua obra, mas sua atitude não é

simplesmente a de um historiador erudito do messianismo judaico”. Seus trabalhos não

escondem sua “sim-patia (no sentido etimológico grego da palavra) do pesquisador com seu

tema”580.

Em Gershom Scholem, o dinamismo revolucionário do messianismo judaico se deve à

dialética histórica entre seus polos restaurativo-tradicionalista e apocalíptico ou utópico-

catastrófico. De um lado, a dimensão restauradora remete à ideia de um retorno dos “exilados”

a um estado de plenitude original perdido, à reunificação dos reinos de Judah e Israel. Como

diz Stéphane Mosès, este “elemento restaurativo” pode ser visualizado, sob uma forma ou outra,

“em todas as concepções messiânicas judaicas”, sobretudo porque em uma história cujas fontes

são extraídas de um projeto divino original, “não há inovação possível que não se refira [...] a

esta paisagem original da verdade”. Em outras palavras, mesmo as visões escatológicas as mais

radicais “devem ser compatíveis com o projeto inicial da Criação”581. Historicamente, esta

dimensão restauradora é um dos núcleos da historiografia judaica nacionalista. De outro lado,

a dimensão utópica do messianismo assenta-se exatamente na esperança redentora de uma

subversão e de uma transformação radicais da realidade, quer dizer, da emergência, ou melhor,

578 Na opinião de David Biale (Idem, p.53): “Contrário à ideia de um judaísmo exclusivamente jurídico ou

filosófico, Scholem demonstrou a importância do irracionalismo no âmbito da tradição. Uma tradição normativa

não tem necessidade de ser monolítica, pois a essência do judaísmo é um pluralismo vital em que figuram ao

mesmo tempo a Lei e a mística, a filosofia racional e o mito irracional”. Embora compartilhe do núcleo deste

argumento sobre Scholem, Michael Löwy provavelmente reprovaria a utilização da ideia de “irracional” como

sendo a face místico-messiânica do judaísmo. Muito possivelmente ele sentiria mais próximo da perspectiva de

Stéphane Mosès, para quem o que fascinou Scholem na Cabala, desde o início, não era o “mergulho em um universo irracional, mas a descoberta intuitiva de um outro tipo de racionalidade”. Cf. Stéphane Mosès. L’ange

de l’histoire, op.cit., p.268. 579 Stéphane Mosès (Idem, p.271) parece oscilar em sua caracterização da questão do messianismo no pensamento

de Scholem. De início, ele afirma que, entre os múltiplos temas da mística judaica que Scholem estudou, “aquele

do messianismo é um dos que aparecem mais tarde em sua obra”. Em seguida, diz que, “no entanto, é verdade que

o problema do messianismo havia começado a preocupa-lo bem cedo, pelo menos desde 1923, data de sua chegada

à Palestina”. 580 Michael Löwy, Redenção e Utopia, op.cit., p.61. 581 Stéphane Mosès. L’ange de l’histoire, op.cit., p.277, 278, 280.

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da irrupção de um mundo absolutamente novo, resultado de uma ruptura apocalíptica que se

seguiria às catástrofes e ruínas da história humana e que remeteria, portanto, à rememoração da

perfeição original perdida. Por isso mesmo, nenhuma destas duas tendências (ou dimensões) do

messianismo judaico apresenta-se em estado puro: todo projeto utópico comporta aspectos

restaurativos, do mesmo modo que toda perspectiva restauradora pressupõe um elemento de

utopia.

À diferença da reinterpretação liberal e racionalista da ideia messiânica empreendida

por “judeus iluministas” como Herman Cohen, em cuja dissolução tanto do aspecto restaurador

quanto do utópico do messianismo revelava-se um desejo de assimilação universal à pátria

europeia, Scholem reabilita o “apocalipticismo” (e não apenas a dimensão restauracionista,

também resgatada pelos historiados nacionalistas582) “como um motivo recorrente no

messianismo judaico”, segundo sustenta David Biale583. Com isso, ele transladou para o campo

dos estudos judaicos uma tendência já há muito desenvolvida pela historiografia cristã. Nas

palavras do próprio Scholem, “na origem e na natureza do messianismo judeu encontra-se uma

teoria da catástrofe. Esta teoria enfatiza o elemento revolucionário, cataclísmico, na transição

do presente histórico ao devir messiânico”584.

Sua definição do messianismo pressupõe sempre esta dimensão “escatológica”, fundada

na ideia de uma irrupção fulgurante e apocalíptica do novo. Tal como para Walter Benjamin,

ou para Franz Rosenzweig, a redenção não constitui, para Scholem, a consequência de uma

evolução histórica contínua até um estado ideal das coisas. Scholem dissocia radicalmente, no

messianismo judaico, a ideia de redenção do conceito de progresso, concebendo-a como

resultado de uma verdadeira explosão da continuidade histórica. Para ele, como afirma Löwy,

“só a catástrofe revolucionária, com um colossal desarraigamento, com uma destruição total da

ordem existente, abre via à redenção messiânica”585.

Segundo Stéphane Mosès, “a ideia segundo a qual a redenção não é o término de um

processo [...], e que ela pode, a todo momento, romper o tecido do tempo”, é um dos aspectos

comuns “à obra de Scholem, de Benjamin e de Rosenzweig”. A insistência de Scholem na ideia

“de uma iminência possível da redenção evoca a um só tempo a noção de antecipação da

582 Segundo Biale (Cabala e contra-história: Gershom Scholem, op.cit., p.175), “na qualidade de sionista cultural,

(Scholem) encarava o sionismo em primeiro lugar como uma solução revolucionária para o problema cultural e

espiritual do judaísmo num mundo secular”, e não apenas para o problema “nacional” em sentido estrito. A

emigração para a Palestina deveria estar acompanhada, segundo ele, de um retorno às fontes da tradição,

revitalizando-as sobre novas bases. 583 Idem, p.85. 584 Gershom Scholem, “Pour compreendre le messianisme juif”. In: Le messianisme juif. Essais sur la spiritualité

du judaïsme. Calmann-Lévy, 1974, p.31. 585 Michael Löwy, Judeus heterodoxos, op.cit., p.212.

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redenção em Rosenzweig e o conceito benjaminiano do ‘tempo-de-agora’”586. Em perspectiva

semelhante, Michael Löwy igualmente acentua as afinidades entre estes três autores no espectro

de uma crítica radical da “ideia especificamente moderna do progresso”. Em todos eles, o

presente apresenta-se como “instante messiânico”, isto é, como “oportunidade revolucionária”

na qual, como disse Benjamin no “apêndice B” das teses de 1940, “cada segundo” pode ser “a

porta estreita por onde o messias pode entrar”587.

A figura intelectual de Scholem é central – malgrado as diferenças políticas aí existentes

– na interpretação e nas pesquisas de Michael Löwy sobre o messianismo judaico, não apenas

em relação a Benjamin, senão também à própria definição – “utópico-libertária” – do fenômeno

tal como ele se manifestava nos jovens intelectuais judeus da Europa Central da época. Não por

acaso, conforme se observou, Löwy submeteu seu primeiro esboço das pesquisas sobre o tema

à avaliação do próprio Scholem, a quem foi encontrar em Jerusalém, em dezembro de 1979. O

historiador judeu ainda ajudou na correção do primeiro artigo que Löwy publicou sobre o tema,

um ano mais tarde, nos Archives de Sciences Sociales des Religions. Mais ainda: foi nessa

conversa com Scholem, no final da década de 1970, que Löwy “tomou conhecimento”,

“tardiamente”, das “teses” benjaminianas “sobre o conceito de história”, simultaneamente à

emergência de seu profundo interesse pelas relações entre messianismo e utopia no judaísmo.

Com sua concepção restauradora e utópico-catastrófica do messianismo, Scholem

fornecia a Löwy um parâmetro, às vezes um “ponto fixo”, para analisar as múltiplas expressões

intelectuais das afinidades entre anarquismo messiânico e redenção utópica, sobre um fundo

histórico-social significativamente implicado pelo romantismo. A dimensão restauradora do

messianismo ajudava-o a justificar a faceta neorromântica (e, parcial ou totalmente, nostálgica)

dos intelectuais judeus, ao passo que a dimensão utópico-apocalíptica, destacada por Scholem,

servia-lhe como argumento explicativo da aproximação destes às formas mais radicais da aposta

em uma redenção que, como ruptura apocalíptica, brotaria das ruínas da catástrofe. Em outras

palavras, Scholem fornecia-lhe um modelo para sua leitura “romântico-revolucionária” de

muitos destes intelectuais, malgrado as reticências do próprio historiador judeu em relação à

importância das fontes românticas em sua obra, assim como em sua concepção do

messianismo588.

586 Stéphane Mosès, L’ange de l’histoire, op.cit., p.285. 587 Walter Benjamin, “Teses sobre o conceito de história”, op.cit., p.142. 588 Para uma boa crítica à leitura de Löwy da obra de Scholem, cf. Pierre Bouretz, “Sur quelques affinités electives”.

In: V. Delacroix & E. Dianteill, Cartographie de l´utopie. L´oeuvre indisciplinée de Michael Löwy. Paris: Sandre

Actes, 2011, pp.155-173.

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Inspirando-se em David Biale, Löwy sublinha a dimensão “anarquista demoníaca” de

sua obra de historiador. É verdade, ressalta Löwy, que o anarquismo permanece sempre uma

dimensão “subterrânea” na obra de Scholem: “raramente surge como uma filosofia social

assumida enquanto tal”589. Todavia, “provavelmente é uma das fontes espirituais de toda a sua

atitude em face dos fenômenos religiosos e, especialmente, de seu interesse pelos movimentos

messiânicos heréticos ‘anarquistas’ dos séculos XVII e XVIII”. Para Michael Löwy, foram

exatamente as “concepções anarquizantes” de Scholem que o “atraíram” para o fenômeno do

sabataísmo (sobretudo para seus aspectos “libertários”)590. Seu anarquismo não se resumia ao

domínio das religiões: tratava-se, antes, de um elemento constituinte de sua própria visão social

de mundo.

Aliás, esta tendência anarquista-messiânica será, na opinião de Löwy, uma das razões

das afinidades entre os jovens Scholem e Benjamin. Se Scholem marcou profundamente o

pensamento de Benjamin, imputando-lhe uma preocupação permanente em relação à dimensão

metafísica subterrânea do judaísmo, o autor das Passagens, por seu turno, inspirou

consideravelmente as intenções “heréticas” que orientariam as pesquisas do historiador da

Cabala. Como diz o próprio Scholem: “Através de Benjamin experimentei, da maneira mais

viva, o que significa pensar”591. Para Stéphane Mosès, “os vintes meses que ele (Scholem) passa

em Berna, em companhia de Benjamin, foram decisivos para sua formação intelectual”592.

Nesta época (de maio de 1918 a agosto de 1919), Scholem esboça as categorias fundamentais

que, implícita ou explicitamente, estarão sempre presentes em sua obra.

Nas palavras de David Biale, “o desejo inicial, em Scholem, de escrever uma tese a

respeito da filosofia da linguagem da Cabala nasceu, é provável, sob a influência de suas

discussões com Benjamin sobre a questão”. No pensamento do amigo, que era seis anos mais

velho, Scholem encontrou “uma filosofia com dimensão mística, muito distante de tudo a que

tivera acesso nas universidades que frequentara”594. À época, na contramão radical do

positivismo, Benjamin recorria à teologia no contexto de uma tentativa de fundar seu

pensamento sobre as bases da filosofia da linguagem e da visão da história do romantismo

alemão. Através da mediação de Benjamin, Scholem descobriu as ideias clássicas da mística

alemã, as quais o ajudariam a elucidar alguns dos principais conceitos que, mais tarde, foram

por ele utilizados em sua teoria da linguagem da Cabala. Segundo Scholem, já em 1915

589 Michael Löwy, Redenção e Utopia, op.cit., p.62. 590 Idem, p.62, 63. 591 Gershom Scholem, Los nombres secretos de Walter Benjamin, op.cit., p.14. 592 Stéphane Mosès, L’ange de l’histoire, op.cit., p.267. 594 David Biale, Cabala e contra-história..., op.cit., p.28.

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Benjamin e ele travaram as “primeiras conversas sobre a Cabala; naquele tempo, eu ainda

estava longe do estudo das suas origens, mas já sentia uma atração obscura por este mundo”595.

Particularmente importante a este respeito foi a influência do texto “Sobre a linguagem

em geral e sobre a linguagem em particular”, redigido por Benjamin por volta de 1915/1916,

ensaio em que o filósofo alemão esboça uma teoria da linguagem amplamente inspirada, além

do judaísmo, no romantismo alemão. A ideia central, desenvolvida por Benjamin, da

decadência (após o pecado original) da “linguagem divina”, ou “linguagem adâmica” – na qual

reinava uma adequação perfeita entre as palavras e as coisas –, dissolvida no predomínio da

linguagem como mero instrumento de comunicação, desprovida de qualquer poder de

“nomeação”, será uma das inspirações de Scholem em sua tentativa de resgatar os aspectos

“simbólicos”, “mágicos”, que estão presentes (mesmo que de forma “oculta”) em toda língua,

aspectos que, como se pode ver na Cabala, atuariam como contraface “tradicional”, por assim

dizer, em relação ao primado da língua puramente profana e instrumental.

Para Scholem, mais do que no ensaio sobre Kafka, a questão judaica sempre esteve

presente nas reflexões de Benjamin, de sua juventude aos textos posteriores à adesão ao

marxismo, mesmo quando ela não se apresenta diretamente na superfície do texto. “Suas

considerações são próprias de um teólogo que adentrou no profano”598. O filósofo alemão passa

sem rodeios do profano ao teológico, rastreando os traços do teológico ali onde esta parecia

completamente dissolvido no mundano. Segundo Scholem, esta presença do elemento judaico

– que “perturbava Brecht visivelmente” – pode ser visualizada na apropriação benjaminiana de

duas categorias decisivas do seu pensamento: de um lado, a revelação, central nas reflexões do

jovem Benjamin, mas que tende a desaparecer dos seus textos “materialistas”; de outro lado, as

ideias “gêmeas” da redenção e do messianismo, as quais – ao lado da rememoração –

atravessam a obra do filósofo alemão, alçando-se ao centro do seu último escrito, as “teses” de

1940599.

A persistência desta ótica teológica, em Benjamin, encontra-se articulada à dimensão

“metafísica” que, de acordo com Scholem, determina sua forma de pensar, dos textos de

juventude ao momento “materialista”, posterior à descoberta do marxismo. Para o estudioso da

Cabala, “o gênio metafísico de Benjamin dominou seus escritos desde o ensaio ‘Metafísica da

595 Gershom Scholem, Walter Benjamin: a história de uma amizade, op.cit., 1989, p.47, 48. 598 Gershom Scholem, Los nombres secretos de Walter Benjamin., op.cit., p.33. Para Robert Alter (Les anges

nécessaires. Kafka, Benjamin et Scholem entre tradition et modernité, op.cit., p.5), em sintonia com a interpretação

de Scholem, “mesmo no curso de suas peripécias mais apaixonantes de seu idílio jamais totalmente consumado

com o comunismo, sua atração pelo judaísmo não se enfraqueceu - engajamento que lhe tornou sempre vagamente

suspeito aos olhos dos marxistas, notadamente àqueles de seu problemático (sic) amigo, Bertold Brecht”. 599 Gershom Scholem, Walter Benjamin: a história de uma amizade, op.cit., p.205.

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Juventude’, que escreveu em 1913 quando tinha 21 anos, até as ‘Teses da filosofia da história’,

de 1940, que constituem sua última produção consumada”600. A sentença é precisa, e de

ambição definitiva: “Ele era um metafísico. Diria inclusive: um caso puro de metafísico”601.

Mesmo quando examina “questões literárias, políticas ou de história contemporânea”,

permanece a “morada do metafísico”, que “penetra profundamente e revela nos objetos de sua

contemplação camadas sobre as quais brilha uma luz de estranho fulgor”602.

Para Scholem, inclusive após sua aproximação ao marxismo, a partir de meados da

década de 1920, a “vocação metafísica” de Benjamin continua presente, embora sob

permanente relação de tensão com o “materialismo histórico” assumido no plano consciente do

discurso. Na polêmica opinião de Scholem, “toda a originalidade do materialismo de Benjamin”

corresponde ao desajuste entre seu “verdadeiro método de pensamento” (“metafísico”) e seu

“pretendido método materialista”604. Benjamin “traduz” as ideias metafísico-teológicas “no

idioma do materialismo histórico”, de onde seus aspectos ambíguos e até mesmo seus

“equívocos”. Neste desajuste reside, para Scholem, a força, mas, sobretudo, a debilidade dos

seus trabalhos posteriores à descoberta do marxismo605. Sua força encontra-se na capacidade

de “abrir ao método materialista uma enorme profundidade, uma riqueza infinita”. Sua

debilidade, por sua vez, está no fato de que esta “tradução” tende a “negar sua própria

essência”606.

Com esta leitura, Scholem foi responsável, segundo Löwy, por uma das três principais

“escolas de interpretação” da obra de Benjamin, em especial das teses de 1940. Trata-se da

“escola teológica”. Assim como a “escola materialista” – para a qual, na linha de Brecht,

Benjamin é, antes de tudo, um marxista, “um materialista consequente” cujas formulações

teológicas são apenas metáforas, “como uma forma exótica que acoberta verdades

materialistas” –, e a “escola da contradição” – para a qual a tentativa de conciliar marxismo e

teologia judaica, materialismo e messianismo, resultou numa ambivalência indissolúvel, como

defenderam, por vias diferentes, tanto Habermas quanto R. Tiedemann –, a “escola teológica”

“tem razão e se equivoca ao mesmo tempo”, sustenta Löwy608. Diante dessas três “escolas”, ele

propõe nada menos do que uma “quarta abordagem”, que não é senão uma espécie de síntese,

cujas ambiguidades remeteriam às ambivalências do próprio filósofo alemão. Nas palavras de

600 Gershom Scholem, Los nombres secretos de Walter Benjamin, op.cit., p.22, 23. 601 Idem, p.19. 602 Idem, p.20. 604 Idem, p.32. 605 Idem, p.33. 606 Idem, p.36. 608 Michael Löwy, Alarme de incêndio, op.cit., p.36.

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Löwy: “W. Benjamin é marxista e teólogo. É verdade que essas duas concepções são

habitualmente contraditórias, mas o autor das teses não é um pensador ‘habitual’: ele as

reinterpreta, transforma e situa numa relação de esclarecimento recíproco que permite articulá-

las de forma coerente”.

Seja como for, parece inegável que, dentre estas “escolas”, aquela encabeçada pela

interpretação de Scholem ocupa, na leitura de Löwy, um lugar privilegiado, o que dá um aspecto

particular a uma interpretação inspirada no marxismo. Nitidamente assentada neste último, a

interpretação realizada por Löwy distingue-se das outras leituras “materialistas” precisamente

por esta ênfase no elemento “teológico” em Benjamin. A suposta contradição desfaz-se, então,

em uma defesa da articulação original, no Benjamin das décadas de 1920 e 1930, do marxismo

e da teologia, da utopia revolucionária e do messianismo. Para isso, Löwy lança mão de uma

estratégia curiosa: ele “politiza” a interpretação scholeniana, à luz de uma certa leitura do

marxismo, a fim de forçá-la para além dos limites (metafísicos-teológicos) que ela impõe a si

mesmo e, em especial, à leitura da obra do seu amigo Benjamin. É a partir do marxismo

heterodoxo que Michael Löwy retoma a importância da dimensão judaico-teológica de

Benjamin, e, portanto, é igualmente através desta perspectiva que ele retoma a obra de Scholem,

particularmente sua interpretação do pensamento benjaminiano. O resgate da teologia (mais

precisamente, do messianismo judaico) como um dos elementos fundamentais da obra de

Benjamin remete, em Löwy, à busca por uma leitura do filósofo alemão que, sem abdicar de

seus pressupostos político-revolucionários (ressaltados por seus leitores marxistas

“materialistas”), conclama a uma revalorização de seus aspectos mais críticos em relação ao

“discurso filosófico da modernidade” – aspectos que se concentram em sua crítica marxista-

messiânica da temporalidade “vazia e homogênea” das ideologias do progresso.

O “marxismo messiânico” de Benjamin, fundado numa paradoxal concepção de

“revolução-redenção”, caracteriza-se exatamente pela combinação entre materialismo e

teologia, hermeticamente traduzida pela alegoria da primeira “tese” sobre o conceito de história.

Na ótica de Löwy, a teologia, em Benjamin, estaria “a serviço da luta dos oprimidos. Mais

precisamente, ela deve servir para restabelecer a força explosiva, messiânica, revolucionária do

materialismo histórico – reduzido, por seus epígonos, a um mísero autômato”610. Entre

materialismo e teologia, quer dizer, entre o autômato e o anão corcunda da primeira tese, haveria

uma espécie de “complementaridade dialética”: ora o anão teológico aparece como o mestre do

autômato, ora ele está “a serviço” do autômato materialista. “A teologia e o materialismo

610 Michael Löwy, Alarme de incêndio, op.cit., p.45.

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histórico são ora o mestre, ora o servo; são ao mesmo tempo mestre e servo um do outro, eles

precisam um do outro”611. Löwy opõe-se, assim, à interpretação de Rolf Tiedemann da primeira

tese, na qual o anão teológico, como o conjunto do autômato, está “morto” e “talvez já

represente o campo de mortes e ruínas da tese IX” (da alegoria do “anjo da história”). Para

Michael Löwy, ao contrário, “se o conjunto, inclusive o anão, está morto e arruinado, como

pode ganhar a partida contra o adversário?”. Na verdade, “o que a tese sugere é exatamente o

contrário: graças à ação revitalizadora do anão (teológico), o conjunto se torna vivo e

ativo...”612.

Ao lado de Gustav Landauer e Ernst Bloch, Walter Benjamin inscreve-se naquilo que

Michael Löwy – seguindo as indicações de Georg Lukács em sua caracterização de Dostoievski

– denomina “ateísmo religioso”, uma vez que os “temas proféticos, místicos ou messiânicos

são, ao menos em certa medida, secularizados em sua utopia socialista”613. Todavia, mesmo no

pensamento destes “judeus ateus”, e no de Benjamin em particular, a dimensão religiosa

continua presente, subterraneamente, como uma marca fundamental de suas “profecias utópicas

e revolucionárias”. Em suas formas paradoxais de secularização, como diz Löwy, “o universo

simbólico religioso se inscreve explicitamente no discurso revolucionário e o carrega de uma

espiritualidade milenarista, que parece escapar às distinções habituais entre o sagrado e o

profano”614.

5.3. Religiosidade utópica na América Latina: o cristianismo de libertação

A “tradição profética messiânica”, longe de manter Löwy no universo fechado do

mundo judaico, abriu-lhe novos horizontes e perspectivas para o “excedente utópico” inscrito

em diversas outras modalidades de religiosidade, tal como o “cristianismo de libertação”, vasto

fenômeno latino-americano da segunda metade do século XX que teve na “Teologia da

Libertação” a sua expressão mais sintomática. Uma vez mais, Löwy volta sua atenção à

América Latina, mas agora a partir de uma perspectiva centrada na análise dos “cruzamentos”

entre religião e política no subcontinente, com destaque para as manifestações “utópicas” da

religiosidade.

611 Idem, p.45. 612 Idem, p.43. 613 Michael Löwy, Judeus heterodoxos, op.cit., p.26. 614 Idem, p.26. Sobre a importância da teologia judaica no pensamento de Benjamin, sobretudo após 1915 (quando

conhece G. Scholem) ver também Jean-Michel Palmier, “Judaïsme, sionisme et philosophie: annés d’amitié avec

Gerhard Scholem” (pp.147-244). In: Walter Benjamin, Um itinéraire théorique (2010). E Stéphane Mosès, cap. 4,

“Les métaphores de l’origine: idées, noms, étoiles” (pp.135-169). In: L’ange de l’Histoire (2006).

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Em outubro de 1988, Michael Löwy procurou Alfredo Bosi – que havia participado da

Juventude Universitária Católica (JUC) no final dos anos de 1950 e sempre fora simpatizante

das correntes da esquerda cristã – para “conversarem” sobre a história do socialismo cristão no

Brasil615. O primeiro artigo de Löwy sobre a “teologia da libertação” foi publicado neste mesmo

ano, na revista Cristianismo y Sociedad, com o título “Marxismo y religión: el desafio de la

teologia de la liberacion”. No ano seguinte, aqui no Brasil, no terceiro número da revista

Estudos Avançados (editada por Alfredo Bosi), o artigo “O catolicismo latino-americano

radicalizado”, e, na revista Lua Nova (n.19), o texto “Marxismo e cristianismo na América

Latina”. Em 1989 publicou também o seu primeiro livro sobre o assunto, na França, Marxisme

et théologie de la libération. Seu trabalho mais elaborado a tal propósito, A Guerra dos Deuses:

religião e política na América Latina, seria publicado em 1996, originalmente em inglês, depois

traduzido para o francês, o espanhol e o português, em 2000 – no Brasil, o livro foi agraciado

com o prêmio “Sérgio Buarque de Holanda” de melhor ensaio do ano de 2000, concedido pelo

Ministério da Cultura.

Almejando analisar, a partir do método goldmanniano da “sociologia da cultura”, a

complexa evolução dos “laços entre as culturas religiosa e política”, em especial nos

movimentos religiosos voltados à emancipação social, Michael Löwy compreende a teologia

da libertação como parte de um movimento “muito mais profundo [...] que uma mera corrente

teológica”. Trata-se de um amplo “movimento social/religioso” que não se resume a algumas

correntes da Igreja enquanto instituição e tampouco à teologia em sentido estrito.

No âmbito da conjuntura radicalizada que se desenvolveu na América Latina a partir do

final dos anos de 1950 e começo da década seguinte, Löwy destaca, cronologicamente, três

momentos de “importância histórica decisiva” da convergência entre cristianismo e marxismo:

1) a esquerda cristã brasileira do começo dos anos 60, representadas pela JUC, pela JEC e,

politicamente, pela Ação Popular (AP). É a primeira forma assumida pela articulação entre fé

cristã e política marxista; 2) a própria teologia da libertação. E, por fim, 3) a revolução

sandinista em 1979, primeira revolução desde 1789 na qual os cristãos – leigos e clero –

representaram, nas palavras de Löwy, “um papel determinante tanto na base como na direção

do movimento”; em outros termos, “a primeira na qual os cristãos não foram ‘aliados’, mas

615 Alfredo Bosi, “Da esquerda cristã à Teologia da Libertação”. In: Ivana Jinkings & João Alexandre Peschanski

(orgs.). As utopias de Michael Löwy: reflexões sobre um marxista insubordinado. São Paulo: Boitempo Editorial,

2007, p.87.

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uma componente orgânica da vanguarda revolucionária, a Frente Sandinista de Libertação

Nacional”617.

Em meio a esta “constelação” sociocultural complexa, “a teologia da libertação não é a

origem do cristianismo radical, mas sim, como insistem os próprios teólogos, o produto, o

resultado de toda uma prática, de uma experiência anterior – a começar pela JUC brasileira de

1960-62”618. A teologia da libertação não seria senão “a ponta visível de um iceberg”, a

“expressão religiosa mais avançada” – que emergiu da evolução interna de setores importantes

da Igreja – de um “imenso movimento social” nascido a partir de meados dos anos 60 e

“composto por comunidades de base, pastorais populares – da terra, operária, indígena, da

juventude – por redes do clero progressista (especialmente nas ordens religiosas), associações

de bairros pobres, movimentos de camponeses sem-terra etc” (Löwy, 1996, s/p)619. Este amplo

fenômeno denominado cristianismo de libertação “deu forma à cultura religiosa e política de

várias gerações de militantes cristãos no continente”. Mais do que isso, ele contribuiu para a

emergência “de uma multiplicidade de movimentos sociais e políticos não religiosos”.

Estimulado por suas pesquisas sobre o judaísmo messiânico e sobre o cristianismo de

libertação, orientadas pela referência benjaminiana, Michael Löwy ressaltou a necessidade de

uma reinterpretação da análise marxista “clássica” da religião, para além da sua mera

circunscrição à condição de ideologia destinada a ocultar os reais interesses sociais, oferecendo

soluções ilusórias e transcendentais. Na opinião de Löwy, tal reinterpretação passa pelo resgate

de uma concepção dialética da religião, esboçada (mas não desenvolvida) em alguns textos de

Marx e Engels. Em 1844, na Introdução à crítica da filosofia do direito de Hegel, ao mesmo

tempo em que afirma a célebre (e unilateralmente empregada) frase de que a “religião é o ópio

do povo”, Marx concebe-a, por outro lado, como um “protesto” contra a “miséria real”. Em

suas palavras: “a miséria religiosa constitui ao mesmo tempo a expressão da miséria real e o

protesto contra a miséria real. A religião é o suspiro da criatura oprimida, o ânimo de um mundo

sem coração e a alma de situações sem alma. A religião é o ópio do povo”620. Como diz Michael

Löwy em A Guerra dos Deuses, “a emergência do cristianismo revolucionário e da teologia da

libertação na América Latina (e em outras regiões) abre um novo capítulo histórico e levanta

617 Michael Löwy, “Marxismo e cristianismo na América Latina”. Lua Nova (São Paulo), n.19, 1989, p.17. 618 Idem, p.14. 619 As obras pioneiras de Gustavo Gutierrez e Hugo Assmann foram publicadas em 1971. Nas palavras de Löwy:

“a teologia da libertação é o produto espiritual (como sabemos, o termo vem de A Ideologia Alemã, de Marx) desse

movimento social, mas, ao legitimá-lo, ao lhe fornecer uma doutrina religiosa coerente, ela contribuiu

enormemente para sua expansão e fortalecimento”. A guerra dos deuses: religião e política na América Latina,

Petrópolis: Vozes, 2000, p.59. 620 Karl Marx, “Crítica da filosofia do direito de Hegel – Introdução”. In: Crítica da filosofia do direito de Hegel.

São Paulo: Boitempo Editorial, 2005, p.145.

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questões também novas que não podem ser respondidas sem uma renovação da análise marxista

da religião”621. Um fenômeno social como a teologia da libertação latino-americana impõe a

necessidade de compreender esta persistência da religião como “protesto” contra a “miséria

real”, sublinhando não apenas sua faceta ideológica, senão também seu ímpeto crítico e, no

limite, anticapitalista.

Michael Löwy opõe-se, nesse sentido, ao postulado do avanço inexorável do processo

de secularização. Para ele, a permanência do elemento religioso não significa a mera

persistência de traços anacrônicos, mas sim a manutenção de sua função proativa na dinâmica

da história presente622. Nas reflexões de Max Weber, a despeito da defesa deste último da tese

da secularização, Löwy encontrará um aporte para esta defesa do papel ativo da religião na

construção da realidade social. Aliás, a própria noção de “afinidades eletivas” (retomada, em

grande medida, da obra do pensamento do sociólogo alemão) é reveladora, em Löwy, de uma

tentativa de pensar a reciprocidade dialética entre as “condições histórico-materiais”, por assim

dizer, e as representações simbólicas e religiosas vinculadas a algum grupo social em particular,

no âmbito de um marxismo radicalmente anti-determinista. Deste ponto de vista, de fato, “a

análise, proposta por Michael Löwy, da relação entre catolicismo e modernidade assinala,

mesmo quando reivindica uma fidelidade a Marx, uma superação dos cânones habituais da

teoria marxista da religião”623.

Nas palavras de Philippe Portier, se o “marxismo ortodoxo deixou uma imagem unívoca

da religião”, reduzindo-a a sua “função ideológica”, “Löwy visualiza as coisas de outra forma”:

“A Igreja se transformou, é claro, em vários momentos de sua história, em auxiliar dos regimes

de opressão, do sistema feudal, de início, do regime capitalista, mais tarde”. Porém, “desde a

época medieval, o cristianismo, mesmo em sua variante católica, sempre comportou em seu

âmbito uma franja ‘utópica’, vinculada a uma exegese revolucionária do texto santo”624. Na

segunda parte do primeiro capítulo de A Guerra dos Deuses, Michael Löwy sugere a hipótese

de que, ao contrário do protestantismo – cuja ética apresenta notáveis “afinidades eletivas” com

o ethos capitalista –, o cristianismo católico constitui um ambiente muito menos favorável (“se

não completamente hostil”) ao desenvolvimento do capitalismo625.

621 Michael Löwy, A guerra dos deuses, op.cit., p.11. 622 Philippe Portier, “Catholicisme et modernité dans l’oeuvre de Michael Löwy”. In: V. Delacroix & E. Dianteill

(orgs.). Cartographie de l´utopie. L´oeuvre indisciplinée de Michael Löwy. Paris: Sandre Actes, 2011, p.153. 623 Idem, p.152. 624 Idem, p.148. 625 Mesmo assim, em mais uma demonstração de sua hermenêutica utópica, Löwy acredita que “o cristianismo de

libertação (na AL) não é só católico”. Ainda que minoritário, e sem o peso sócio-histórico da TL, “ele tem também

um ramo protestante significativo que se desenvolveu paralelamente, nas décadas de 60 e 70. [...] Suas raízes

podem ser encontradas na cultura religiosa das chamadas denominações protestantes ‘históricas’, tais como

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Para o sociólogo brasileiro, esta “tensão entre o catolicismo e o capitalismo” é um

“subtexto evidente, um contra-argumento não escrito construído na própria estrutura de A ética

protestante”626. Neste e em outros escritos, Weber insinua a existência de uma “aversão”, de

uma “antipatia cultural”, da Igreja Católica (ou de algumas de suas tendências) em relação à

“desvalorização ética” do espírito racional econômico. Em outras palavras, trata-se, no caso do

catolicismo, de uma “exata inversão da afinidade eletiva entre a ética protestante (algumas

formas dela) e o espírito do capitalismo”. Em Weber, haveria, entre a ética católica e o

capitalismo, segundo a leitura de Löwy, uma “espécie de afinidade negativa – usando este termo

como Weber o faz quando fala dos ‘privilégios negativos’ das comunidades párias”627. Muito

embora essa “antipatia” em potencial não tenha impedido a adaptação “realista” das instituições

católicas ao capitalismo, e tampouco a transformação da Igreja – em alguns momentos da

história – em alicerce das formas mais reacionárias do sistema (nostálgicas, conservadoras,

anti-semitas), ainda persiste, profundamente enraizada na cultura católica (implícita ou

explicitamente), uma “aversão ética” à modernidade capitalista628.

Nas palavras de Löwy, num nítido exemplo de sua tentativa de radicalizar “à esquerda”

a análise weberiana: “Embora Weber estivesse interessado principalmente nas consequências

(sobretudo negativas) da ética católica para a ascensão e o crescimento da economia industrial

moderna, podemos demonstrar facilmente que o mesmo tipo de anticapitalismo religioso

inspirou o envolvimento ativo dos católicos com a emancipação social dos pobres”629. Foi a

partir desta “antipatia” que os teólogos da libertação levaram às últimas consequências a

identificação ética e religiosa de Cristo com os pobres, elevando-os à condição de sujeito

histórico. É em razão desta “afinidade negativa” com o ethos capitalista que, na opinião de

Löwy, o catolicismo tornou-se base de sustentação ideológica de movimentos socioculturais

anticapitalistas como a “teologia da libertação”.

Nesse contexto, o interesse de muitos teólogos da libertação pelo marxismo não se reduz

a uma mera apropriação teórico-conceitual, implicando também, e sobretudo, uma dimensão

ética, quer dizer, “os valores do marxismo”, suas opções morais e políticas, assim como sua

luteranos, presbiterianos, metodistas, unitaristas – e não na das igrejas evangélicas mais recentes, do tipo

pentecostal”. Michael Löwy, A guerra dos deuses, op.cit., p.176. 626 Idem, p.35. 627 Idem, p.40. 628 Idem, p.41. Tal como o romantismo, o “anticapitalismo católico” pode ser tanto conservador quanto utópico-

revolucionário, conforme se comprova pelo exemplo daquilo que Marx chamou de “socialismo feudal ou cristão”,

no Manifesto Comunista. Para ilustrar esta ambivalência, Löwy recorre frequentemente ao paradoxal personagem

de Thomas Mann em A Montanha Mágica, Leon Naphta, tomando-o como o representante mais instigante das

ambiguidades que atravessam a cultura católica romântica: jesuíta revolucionário e partidário ardente da Igreja

Medieval, Naphta constitui simultaneamente “um profeta apocalíptico do comunismo mundial”. Idem, p.50. 629 Idem, p.47.

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“aspiração utópica de mudança social”632. Esta “fascinação” dos teólogos da libertação pelo

marxismo ancora-se em algumas “homologias estruturais” que, num contexto caracterizado

pela polarização social e política na América Latina a partir do final da década de 1950 (com a

revolução cubana, dentre outros acontecimentos), estimularam um processo de atração

recíproca, baseada no compartilhamento de valores transindividuais potencialmente

antagônicos ao individualismo capitalista.

Por essa ênfase na dimensão ética, os teólogos da libertação foram seduzidos não pelo

marxismo “petrificado” tanto da burocracia soviética quanto dos Partidos Comunistas latino-

americanos, mas sim por alguns autores vinculados ao chamado “marxismo ocidental”, tais

como Ernst Bloch (o autor mais citado na obra seminal do principal teórico do cristianismo de

libertação: Gustavo Gutiérrez), Lukács, Gramsci, Henri Lefebvre, Lucien Goldmann, Ernest

Mandel, dentre outros, sem falar em referências latino-americanas como José Carlos Mariátegui

e os autores vinculados à “teoria da dependência” (particularmente Fernando Henrique

Cardoso, André Gunder Frank, Theotônio dos Santos e o cientista social peruano Aníbal

Quijano633). Assim, “a velha tradição anticapitalista da Igreja entra em relação de afinidade

eletiva com a análise marxista da exploração capitalista e com a crítica dos marxistas latino-

americanos (teoria da dependência) ao capitalismo dependente como fundamento estrutural do

subdesenvolvimento, da miséria e do autoritarismo militar”634.

Em grande medida, a Teologia da Libertação é a expressão mais paradigmática das

afinidades eletivas entre o anticapitalismo católico-religioso e a utopia socialista. Por isso, tal

como alguns dos autores “marxistas” nos quais se inspiraram, os teólogos da libertação

desenvolveram uma dialética original entre tradição e modernidade. Baseando-se na

perspectiva de uma “reapropriação moderna da tradição”, a teologia da libertação “tanto

preserva como nega a tradição e a modernidade, em um processo de síntese ‘dialética’”635. Ao

mesmo tempo em que resguarda algumas conquistas associadas à modernidade, os teólogos da

libertação resgatam, seletivamente, aspectos importantes da “tradição”, como a defesa das

comunidades tradicionais na América Latina (de camponeses pobres ou de tribos indígenas

ameaçadas). Sua crítica da modernidade capitalista é realizada “tanto em nome de valores pré-

modernos como de uma modernidade utópica (a sociedade sem classes), através da mediação

socioanalítica da teoria marxista, que une a crítica dos primeiros e a promessa da segunda”. A

632 Michael Löwy, A Guerra dos deuses, op.cit., p.121. 633 Mais tarde, Quijano se destacaria pela reformulação latino-americana das narrativas da modernidade a partir da

noção de “colonialidade do poder”. 634 Michael Löwy, “Marxismo e cristianismo na América Latina”, op.cit., p.15. 635 Idem, p.109.

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“opção preferencial pelos pobres” (pela “força histórica dos pobres”, conforme o título de um

dos livros de Gustavo Gutiérrez) constitui o “critério segundo o qual” os teólogos da libertação

julgam e avaliam “a doutrina tradicional da Igreja e também a sociedade ocidental moderna”.

Não por mero acaso, à diferença do otimismo característico das teologias

“progressistas” europeias, a teologia da libertação apreende a história a partir da perspectiva

dos “vencidos e excluídos”, quer dizer, dos “pobres” em seu sentido mais amplo, englobando

as classes, raças e culturas oprimidas. Muito embora compartilhe alguns aspectos centrais da

cultura “progressista” ocidental, a teologia da libertação carrega, segundo Löwy, uma forte

carga romântica, na medida em que seu protesto contra a modernidade capitalista inspira-se em

alguns valores “pré-modernos” – “nesse caso, a religião e a comunidade” – ainda presentes na

realidade latino-americana636.

Na ótica de Löwy, a teologia da libertação manifestou, com sua articulação entre

exegese bíblica e análise marxista, a reivindicação de Walter Benjamin, na primeira das “teses”

de 1940, da necessidade de uma “aliança”, ou “associação”, baseada em uma reciprocidade

ativa, entre teologia e marxismo. De fato, como reconhece Michael Löwy, em diversos

aspectos, a teologia da libertação “é muito diferente da ‘teologia da revolução’ esboçada por

Benjamin – aliás, desconhecida pelos teólogos latino-americanos”. No caso da teologia da

libertação, “foi a teologia que se tornou um boneco imobilizado, e a introdução do marxismo –

não necessariamente escondido – a revitalizou”. Ademais, “trata-se de uma teologia cristã e não

judaica – mesmo que a dimensão messiânica/profética esteja bem presente nela e que os

teólogos da libertação insistam muito no caráter ‘hebraico’ do primeiro cristianismo e na

continuidade entre este e o espírito do Antigo Testamento”. No entanto, ainda assim, acrescenta

Löwy, “a associação entre teologia e marxismo com que sonhava o intelectual judaico

[Benjamin] revelou-se, à luz da experiência histórica, não só possível e frutífera, mas portadora

de mudanças revolucionárias”637.

Muitos dos acontecimentos sociais e políticos da segunda metade do século XX, na

América Latina – como a revolução nicaraguense, a insurgência popular em El Salvador, o

novo movimento operário e popular no Brasil que deu origem ao Partido dos Trabalhadores, e

também movimentos sociais recentes, como o MST e o mexicano EZLN – são

incompreensíveis sem a consideração da profunda modificação da cultura católica latino-

americana resultante da integração, por importantes setores da Igreja, de alguns pontos

essenciais do marxismo. E, para Michael Löwy, é exatamente esta importância da religiosidade

636 Idem, p.110, 112. 637 Michael Löwy, Alarme de incêndio, op.cit., p.46.

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– do cristianismo e/ou da mística revolucionária –, em muitas das lutas e dos movimentos

sociais e políticos no subcontinente, que atestaria uma inconteste “atualidade latino-americana”

de Walter Benjamin.

Sob a prova concreta da América Latina, Michael Löwy descobre afinidades

“impressionantes” entre a abordagem benjaminiana da história e a “mística revolucionária” de

José Carlos Mariátegui – este pioneiro representante do marxismo (“romântico-

revolucionário”) latino-americano. Nas reflexões de ambos, é possível encontrar elementos

profícuos à crítica radical da continuidade histórica do progresso dos vencedores na região,

assim como uma atenção pouco comum entre os marxistas para a dimensão potencialmente

revolucionária da religiosidade. Mais recentemente, tais características, valorizadas tanto por

Benjamin quanto por Mariátegui, podem ser visualizadas, segundo Löwy, para citar um

exemplo, no ato de “reparação simbólica” realizado pelos zapatistas em 1992, por ocasião do

V Centenário da “descoberta” da América, quando uma multidão de indígenas que desceu das

montanhas destruiu a estátua de Diego de Mazariega, o conquistador, no centro de San Cristobal

de las Casas, capital do estado de Chiapas639.

E isso porque, seja para Benjamin, para Mariátegui, ou para os movimentos sociais na

América Latina contemporânea, mais do que um conjunto de fatos consumados catalogados

como “historicamente necessários”, o passado – especialmente a sua face conflitiva, agônica –

“permanece presente na memória coletiva das classes e das comunidades étnicas: a tradição dos

vencedores e a tradição dos oprimidos se opõem inevitavelmente”640. O passado é também um

lócus de disputa simbólica, que interpela criticamente o presente, e em cujo espectro se

encontram fragmentos da opressão e exploração de séculos, mas também “imagens de desejo”

cuja iluminação instantânea auxilia a projeção utópica de um outro futuro possível.

Este “desvio” da obra de Benjamin em direção ao subcontinente latino-americano

constitui, em Löwy, também nesse caso, um mecanismo profícuo à reinterpretação do

pensamento benjaminiano na atualidade. Não surpreende, portanto, que, em muitos dos seus

ensaios dedicados à leitura benjaminiana da história, Löwy utilize acontecimentos latino-

americanos (do passado e do presente) para ilustrar uma abordagem da história desde o ponto

de vista dos oprimidos. Em Walter Benjamin: alarme de incêndio, ele próprio explicita logo na

apresentação: “Neste livro, não só usamos com frequência exemplos latino-americanos – alguns

brasileiros – para ilustrar os argumentos de Walter Benjamin, como toda a leitura das teses [...]

639 Michael Löwy, Alarme de incêndio, op.cit., p.81, 82. 640 Michael Löwy, “‘A contrapelo’. A concepção dialética na cultura nas teses de Walter Benjamin”. Revista Lutas

Sociais, n.25/26, São Paulo, 2010/2011, p.26 (Tradução: Fabio Mascaro Querido).

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que propomos é inspirada, até certo ponto, em uma perspectiva ‘latino-americana’”. Por meio

destes “exemplos latino-americanos”, Löwy almeja “colocar em evidência ao mesmo tempo a

universalidade e a atualidade do conceito de história de Walter Benjamin”641.

5.4. Religião, política e utopia: entre Lucien Goldmann e Ernst Bloch

Além da presença subterrânea permanente de Walter Benjamin, é preciso destacar as

influências igualmente importantes – que inspiram e são inspiradas pela leitura benjaminiana

do autor, no contexto dessa reinterpretação das relações entre religião e política – de Lucien

Goldmann (agora também como sociólogo da religião) e de Ernst Bloch. Da obra de Goldman,

especialmente do seminal Le Dieu Caché, Michael Löwy retoma a tentativa de compreender a

religião como um objeto privilegiado da “sociologia da cultura”. Em grande medida, é a partir

da perspectiva metodológica aberta por Goldmann, com seu “estruturalismo genético”, que

Michael Löwy investiga as relações entre religião, literatura e política, situando a gênese dos

fenômenos culturais e das correntes religiosas nos conflitos sociais de uma época determinada.

Por meio da análise da “visão trágica de mundo” – compreendida como expressão da

situação existencial de uma camada social específica, a nobreza de toga do século XVII, e que

encontrou na filosofia de Pascal e no teatro de Racine seu “máximo de consciência possível” –

, Lucien Goldmann demonstra, segundo Löwy, a “afinidade oculta” entre a “fé religiosa” e a

“fé marxista”, ou melhor, entre o “cristianismo trágico” de Pascal e o socialismo de Marx.

Graças a sua interpretação original e heterodoxa de Pascal, o “marxista pascaliano” Goldmann

descobre o “túnel subterrâneo” que liga, “por sob a montanha das Luzes”, a visão trágica

(religiosa) do mundo e o socialismo moderno. Ambos, “visão trágica” e “visão marxista-

dialética” de mundo compartilham – na contramão do individualismo racionalista ou empirista

– uma mesma crença em valores transindividuais: Deus pela religião, a comunidade humana

autêntica (o comunismo) pelo marxismo643.

Nos dois casos, a fé (entendida em sentido amplo, como crença em um conjunto de

valores que transcendem o indivíduo) “tem como base uma aposta – a aposta pascalina na

existência de Deus e a aposta marxista na liberação da humanidade – que pressupõe riscos, o

perigo de erro e a esperança de sucesso”644. Mais do que uma mera opção individual, a aposta

641 Michael Löwy, Alarme de incêndio, op.cit., p.10. 643 “Enquanto Manhheim, Bloch e muitos outros se interessem pelas relações entre marxismo e milenarismo,

socialismo e messianismo, revolução e quiliasmo, Goldmann se distingue por uma abordagem original, que intenta

circunscrever as afinidades entre Pascal e Marx”. Michael Löwy & Erwan Dianteill. “Lucien Goldmann (1913-

1970): sociologia del Dios escondido”. In: Erwan Dianteill & Michael Löwy. Sociologías y religíon:

aproximaciones disidentes. Buenos Aires: Manantial, 2009, p.169. 644 Michael Löwy, A guerra dos deuses, op.cit., p.32.

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é necessária e, mais, inevitável para aqueles que sabem que, como diria Pascal, já estamos

“embarcados”. A necessidade de “apostar” decorre da constatação de que o indivíduo, por si

só, “não tem condições de realizar [...] nenhum valor autêntico e que precisa sempre de um

auxílio transindividual, na existência do qual ele deve apostar, pois não poderia viver, nem agir,

senão na perspectiva de um sucesso no qual tem de acreditar”645.

A diferença é que, enquanto a aposta religiosa assenta-se em uma fé transcendental e

supra-histórica em um Deus escondido (que não fala mais diretamente ao homem), a fé marxista

na possibilidade da emancipação humana é imanente e histórica, quer dizer, vinculada às

incertezas do mundo profano. Ao contrário da visão trágico-religiosa, que se caracteriza pela

ausência de perspectiva histórica e de esperança no porvir – não reconhecendo senão uma única

dimensão temporal: o presente –, o socialismo marxista “orienta-se radicalmente para o porvir

da humanidade”646. Sem qualquer referência a alguma transcendência sobrenatural, “a fé

marxista – nas palavras de Goldmann – é uma fé no porvir histórico, realizado pelos próprios

homens”, ou seja, “é uma aposta no sucesso de nossas ações”. Assim, “a transcendência que é

objeto dessa forma de fé não é nem sobrenatural nem trans-histórica, mas supra-individual,

nada mais, mas também, nada menos”647.

A “fé marxista” baseia-se em uma “significação imanente”. O pensamento dialético, e

o socialismo marxista em particular, constituem-se a partir da proposta de resolução concreta

das antinomias e inquietudes que, sob a ótica da visão trágica de mundo, apresentam-se como

insolúveis, insuperáveis. Como diz Goldmann: “O problema central do pensamento trágico,

problema que só o pensamento dialético poderá resolver no plano ao mesmo tempo científico

e moral, é o de saber se nesse espaço racional [...] existe ainda um meio, uma esperança qualquer

de reintegrar os valores morais supra-individuais, se o homem poderá ainda reencontrar Deus

ou aquilo que para nós é sinônimo, além de menos ideológico: a comunidade e o universo”648.

Nas reflexões de Ernst Bloch, por sua vez, particularmente a partir de Redenção e

Utopia, Michael Löwy visualiza uma “abertura” para a dimensão utópica de certas formas de

religiosidade. Desde seus primeiros livros, Espírito da Utopia (1918) e Thomas Münzer,

teólogo da revolução (1921), Bloch dedicou, em sua cartografia das paisagens e imagens-de-

desejo utópicas, um lugar de destaque à religião, na contramão do ímpeto “iluminista” e anti-

645 Lucien Goldmann, Le Dieu Caché. Étude sur la vision tragique dans les Pensées de Pascal et dans le théâtre

de Racine. Paris: Gallimard, 1959, p.337.

646 Michael Löwy & Sami Naïr, Lucien Goldmann ou a dialética da totalidade. São Paulo: Boitempo Editorial,

2008, p.175. 647 Lucien Goldmann, Le Dieu Caché, op.cit., p.99. 648 Idem, p.43, 44.

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religioso que condicionou parcela significativa do marxismo. Desde seus primórdios, o “projeto

sócio-filosófico” de Bloch era, em nítida oposição ao reducionismo econômico, “renovar de

ponta a ponta a análise marxista da religião, desembaraçando-se do desprezo antirreligioso

herdado dos enciclopedistas”649. Ele foi, não por acaso, rigorosamente, o primeiro autor

marxista a superar o arcabouço teórico do “padrão marxista clássico” de análise das religiões,

“sem, no entanto, abandonar a perspectiva marxista revolucionária”650.

Em O Princípio Esperança (1949-1959), particularmente, esta grande enciclopédia das

utopias e imagens-de-desejo, guiada por uma “ontologia do ainda-não-ser” em suas mais

diversas expressões, Ernst Bloch concebe a religião, em suas formas “rebeldes”, como uma das

formas mais significativas de “consciência antecipatória”. Em contradição com o mundo

existente, a religião constitui para Bloch, conforme a interpretação de Löwy, a “utopia por

excelência”, a manifestação da “totalidade da esperança”. O filósofo alemão interessa-se, acima

de tudo, pelo conteúdo sócio-utópico das doutrinas religiosas, tal como se pode ver no capítulo

36 (trinta e seis) do segundo volume de O Princípio Esperança, intitulado “Imagens sociais

desejantes do passado”651.

Ernst Bloch opõe à Igreja Senhoril do cristianismo paulino – cujo “deslocamento cada

vez maior para o além” sagrou-se vitorioso –, a utopia social do comunismo primitivo e do

“comunismo do amor” do primeiro cristianismo e da tradição profética, remetendo-os à

imanência. Esta “aspiração” utópica não se refere a “um além após a morte, onde os anjos

cantam, mas o reino de amor tanto terrestre quanto supraterrestre, do qual a primeira Igreja

cristã já devia representar um enclave. O reino daquele mundo passou a ser interpretado como

transcendental apenas pós a catástrofe da cruz [...]; porque a classe dominante tinha todo o

interesse de distender o comunismo de amor da maneira mais espiritual possível”652.

Nessa mesma perspectiva, Bloch resgata a “utopia social cristã revolucionária” do

calabrês Joaquim de Fiori. Em plena Idade Média (por volta de 1200), Joaquim assenta as bases

de sua “democracia mística” (sem senhores nem Estado) no horizonte histórico imanente,

deslocando a “salvação” do “reino da luz do além e da consolação transcendental para dentro

da história, ainda que para um estágio final da história”. A utopia, para Joaquim, como para os

649 Erwan Dianteill & Michael Löwy, Sociologías y religíon: aproximaciones disidentes. Buenos Aires: Manantial,

2009, p.47. 650 Michael Löwy, A guerra dos deuses, op.cit., p.29. 651 Ernst Bloch, O Princípio Esperança, v.II. Rio de Janeiro: Contraponto, 2006, p.52-69. A religiosidade de Bloch

recorre, segundo Löwy (Redenção e Utopia, op.cit., p.122), “tanto a fontes cristãs – o apocalipse, Joaquim de

Fiore, os místicos e heréticos da Idade Média – quanto judaicas: o Antigo Testamento (especialmente o livro II de

Isaías), a Cabala (e os cabalistas cristãos), o hassidismo, os escritos de Buber etc.”. 652 Idem, p.56.

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profetas, apresenta-se na modalidade de futuro histórico. Seus “eleitos” são os pobres, “que

serão levados ao paraíso como o corpo vivo, não apenas como espírito”653. De acordo com

Bloch, na utopia social projetada por Joaquim de Fiori, “Jesus é novamente o messias de uma

nova terra e o cristianismo acontece na realidade, não apenas no culto e na consolação para

mais tarde; acontece sem senhores e propriedade, numa democracia mística”654.

Ernst Bloch integra estes elementos utópico-religiosos do passado em sua concepção do

socialismo moderno. A religiosidade constitui o aspecto dominante do seu romantismo utópico.

Seu principal objetivo é “salvar”, transportando-os à imanência, os tesouros da esperança

associados e os conteúdos de desejo da religião655. Trata-se, por isso, para Bloch, de uma

“religião ateia” (segundo sua própria fórmula em O ateísmo no cristianismo), uma vez que –

embora distinta de todo materialismo vulgar – ela é sempre remetida à imanência (e às

incertezas) do mundo dos homens, descartando qualquer apego a uma solução puramente

transcendental.

Na obra de Bloch, ademais, Michael Löwy encontrou uma inspiração para sua defesa

de uma revalorização marxista das utopias em geral (não apenas religiosas). Em um contexto

caracterizado pela baixa de todo horizonte societário alternativo (ou melhor, de desagregação

das “grandes narrativas”), a renovação do anticapitalismo implica, segundo Löwy, a

necessidade de uma reinvenção utópica do socialismo, resgatando os sonhos e as aspirações

dos oprimidos e explorados do passado e do presente. Hoje, mais urgente do que nunca, é

preciso “começar a elaborar [...] especulações, reflexões, projetos, sonhos acordados, como diz

Bloch, do que poderia ser um futuro socialista”656.

Se, como diz Löwy, “Marx deliberadamente estabelecia limites severos sobre si mesmo

quando se tratava de uma visão utópica”, pois acreditava que a “preocupação com os problemas

relacionados com a realização do socialismo” era uma questão que dizia respeito às gerações

futuras, “nossa geração não pode adotar essa postura”. Após a débâcle de sociedades

burocráticas “pós-capitalistas” que se proclamavam como realização do “socialismo”, emerge

“uma necessidade imperativa de modelos alternativos, de uma verdadeira livre associação de

produtores (Marx)”657. No dizer de Löwy, hoje em dia, “a credibilidade de um projeto de

transformação revolucionária do mundo requer a existência de modelos de uma sociedade

653 Idem, p.65. 654 Idem, p.66. 655 Michael Löwy, Judeus heterodoxos, op.cit., p.17. 656 Michael Löwy, “Marxismo: resistência e utopia”. In: Michael Löwy & Daniel Bensaïd, Marxismo,

modernidade e utopia, São Paulo: Xamã, 2000, p.247. 657 Michael Löwy, “Marxismo e utopia”. In: Michael Löwy & Daniel Bensaïd, Marxismo..., op.cit., 2000, p.127 –

grifos do original).

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alternativa, visões de um futuro radicalmente diferente e a perspectiva de uma humanidade

verdadeiramente livre”658. É preciso, insiste Löwy, “dar rédea livre à imaginação criativa, aos

devaneios, à esperança ativa e ao espírito visionário vermelho”, desde que não se abandone por

um instante sequer a “preocupação realista com a estratégia revolucionária e a tática e com os

problemas materiais da transição ao socialismo”659.

As reflexões do filósofo alemão tornaram-se a fonte desta tentativa, por Löwy, de

resgatar, dialeticamente, os elementos utópicos muitas vezes “ocultados” pela realidade da

reificação. Mais que um mero imperativo ético e político, a utopia informa, portanto, o método

mesmo através do qual Löwy (e Bloch) almeja compreender tanto os fenômenos do passado

quanto as manifestações socioculturais do presente. Michael Löwy encontrou em Bloch –

apoiando-se, desde seus trabalhos sobre a sociologia do conhecimento, na conceituação

mannheiniana da utopia como aspiração crítica e subversiva a um estado de coisas ainda

inexistente – uma reativação do excedente utópico que, articulado à vocação crítico-destrutiva

do “pessimismo revolucionário” de Benjamin, restitui a importância das “imagens-de-desejo”

oníricas (religiosas ou não) no enfrentamento contra o continuum histórico da catástrofe

responsável pelo “amontoado de ruínas” que tanto espanta o anjo (benjaminiano) da história.

658 Idem, p.127. 659 Idem, p.127.

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6. À esquerda do possível: o Benjamin de Daniel Bensaïd

6.1. O passado (no presente) em questão

Assim como em Michael Löwy, conforme se observou, a leitura e incorporação de

aspectos da obra de Walter Benjamin, por Daniel Bensaïd, foi decisiva em sua trajetória política

e intelectual. Isso porque, de forma ainda mais “direta” e inequívoca do que no caso do primeiro,

essa “descoberta” coincide, em Bensaïd, com a constatação, em meados da década de 1980, de

que uma mudança de época estava em curso, mudança da qual o refluxo da onda pós-1968 seria

apenas o indicador político mais visível. Embora não se saiba – nenhum dos entrevistados quis

arriscar uma hipótese credível, nem mesmo Sophie Bensaïd – a data precisa em que a leitura,

ou releitura de Benjamin, tenha lhe produzido o “estalo” cujo impacto redefiniria, sem rupturas

absolutas, sua perspectiva político-intelectual subsequente, pode-se supor, a partir de alguns

elementos, que tal “encontro” tenha se dado por volta da virada para 1986. Trata-se do ano em

que Bensaïd ministrou os cursos no interior da LCR que, depois, reunidos sob a forma textual,

foram publicados no ano seguinte no livro Estratégia e Partido, primeiro escrito no qual, como

destacamos, o filósofo toulouseano menciona explicitamente Benjamin, ainda que apenas em

uma nota de pé de página. Mesmo que tal nota tenha sido incluída a posteriori, isto é, que o

nome de Benjamin sequer tenha sido citado nos cursos, tudo leva a crer que 1986, ou mesmo

antes (1985), seja o ano do tournant benjaminiano de Bensaïd, ano em que, em texto interno da

IV Internacional, ele reconhecia a “mudança de período” que se estava produzindo, exigindo

uma reorientação significativa da esquerda dita revolucionária660.

Sem muita dúvida, Michael Löwy, que havia publicado diversos textos sobre o autor

das Passagens na primeira metade da década de 1980, serviu como referência, no início, para

esse despertar benjaminiano de Daniel Bensaïd. Revelando-lhe uma interpretação de Benjamin

marxista sui generis, vinda de outro intelectual membro da mesma organização “trotskista” à

qual pertencia, o exemplo de Löwy contribuíra, à época, para dissipar as possíveis resistências

de um dirigente político/intelectual (Bensaïd) em relação a uma figura tão inclassificável e

diletante como o filósofo alemão. Não constitui um acaso se, em um pequeno rascunho não

publicado, de 1989, o primeiro texto diretamente sobre Benjamin, Daniel Bensaïd se utilize

amplamente de parâmetros de leitura fixados por Löwy661.

660 Daniel Bensaïd, “Contribution à un débat nécessaire sur la situation politique et notre projet de construction du

parti”. Critique Communiste, janeiro de 1986. 661 Daniel Bensaïd, “Projet de synopsis. Walter Benjamin et l’école de Francfort”, novembro de 1989. Arquivos

pessoais sob os cuidados de Sophie Bensaïd. Além de Michael Löwy, Bensaïd sofreu certa influência nesse

processo de “descoberta” de Benjamin, ao menos em um primeiro momento, de Enzo Traverso (aluno de Löwy e

também militante da LCR) e de Arno Münster, através notadamente da questão do messianismo judaico.

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Redigido após a queda do Muro, em novembro de 1989, Bensaïd menciona de modo

explícito, sem citar a fonte, a noção de “messianismo libertário”, para se referir a Benjamin. Ao

rememorar o episódio em que Benjamin deixa Moscou às lágrimas, Bensaïd as atribuiu a um

duplo desencontro: com sua amada Asja Lacis e com a “revolução libertadora de seu

messianismo libertário”. O fato é ainda mais interessante quando se tem em conta que Bensaïd

jamais empregará novamente esse termo, especialmente porque o seu Benjamin, conforme

veremos, à diferença daquele de Löwy, não é lá muito “libertário”, e seu messianismo

supostamente “profano”662. No seu livro sobre Walter Benjamin, Sentinela Messiânica (1990),

por exemplo, em passagem semelhante à que estava no texto, na qual menciona a triste

despedida de Benjamin da capital russa, Bensaïd não cita a expressão, tampouco em qualquer

outra parte do livro663.

Um impulso decisivo, que estimulou o redespertar de sua vocação ensaístico-literária e,

nesse sentido, abriu um flanco por onde Bensaïd poderia incorporar efetivamente a obra de

Benjamin ao centro de suas reflexões, foi dado pelos amigos Edwy Plenel e Nicole Lapierre,

casal do qual ele e Sophie tornaram-se ainda mais próximos depois da saída de ambos da LCR

no final da década de 1970664. Em 1987, cioso do destino da “elegância” e do sentido do estilo

e da forma que, para ele, caracterizavam a escrita e o pensamento do amigo, ainda que até então

eclipsado pelo dirigente político, Edwy Plenel, que – além de trabalhar no jornal Le Monde –

dirigia a coleção Au vif du sujet (algo como “No cerne da questão”), na prestigiosa editora

Gallimard, sugeriu para Bensaïd que escrevesse um livro sobre o vigésimo aniversário de maio

de 68, cuja “comemoração” se daria no ano seguinte. Profundamente avesso às celebrações

geracionais – ainda mais de sua própria geração, os soixant-huitards, a maioria dos quais já

havia se convertido, naquele momento, às benesses da direita ou do social-liberalismo

miterrandiano, justificando a participação em maio de 68 como um ritual de passagem juvenil

–, Daniel Bensaïd declinou do convite do amigo jornalista e editor.

O assunto, porém, parece tê-lo marcado, como se – simultaneamente à rejeição das

comemorações geracionais e/ou oficiais – fosse necessário, naquele contexto marcado pela

atmosfera cinzenta que se iniciara após o fim do ciclo aberto em 68, resgatar o acontecimento

de um outro ponto de vista, daqueles que, tendo participado das lutas de então, continuam com

a mesma perspectiva política “revolucionária”. Diante das “comemorações” oficiais, para as

quais o passado é mantido “fechado”, pacificado, era preciso, pensara Bensaïd em linha

662 “O judaísmo de Walter Benjamin é um judaísmo europeu, das Luzes e da diáspora, universalista”. Idem. 663 Daniel Bensaïd, Walter Benjamin, sentinelle messianique, op.cit., p.34. 664 Algo afirmado tanto por Plenel quanto por Sophie Bensaïd.

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benjaminiana, opor uma “rememoração” do acontecimento, reativando-o no contexto presente.

Daí, ao que parece, a sua decisão de escrever, ao lado de Alain Krivine, outro participante ativo

dos de 68 e que continuava fiel à perspectiva de então, o livro Mai si! 1968-1998: rebelles et

repentis, publicado pela editora da LCR, La Brèche665.

Trata-se, por assim dizer, de um livro de transição na trajetória de Daniel Bensaïd. De

um lado, observa-se a presença explícita ou implícita constante da figura de Walter Benjamin,

encampando o seu apelo por uma rememoração ativa do passado (no caso, de 1968) contra os

“inimigos que não cessam de vencer”, como se vê logo na epígrafe do livro, retirada da sexta

das “teses sobre o conceito de história”666. Os autores buscavam, como dizem, “entrar no

passado para tentar compreender porque e como ele produz, ainda hoje, seus efeitos”667. Para

isso, na contramão dos apologistas do fato consumado, eles almejavam dialogar com o passado

como um tempo em aberto, em que o que aconteceu poderia não ter ocorrido e vice-versa, em

que o “senso do possível” é tão importante quanto o “senso do real”, para utilizar os termos de

Robert Musil, cujo romance inacabado O homem sem qualidades é citado como epígrafe do

primeiro capítulo668. É por isso que, nas palavras dos autores669: “O presente não cessa de

lembrar a si mesmo o passado, de despertá-lo, de redefinir suas intenções [...], de tirar da

obscuridade o que havia escapado ao olhar, de redistribuir os papéis entre vencedores e

vencidos da véspera. A colina maio de 1968 é ainda um ponto algébrico, uma obra aberta. Ele

será, em grande medida, aquilo que dela faremos, hoje, amanhã e depois de amanhã”.

Por outro lado, apesar do ponto de partida benjaminiano, ainda se trata, no contexto da

trajetória de Daniel Bensaïd, de um livro “pré-virada”, se podemos dizer assim, uma vez que

antecede imediatamente, antecipando alguns temas, o início da obra propriamente

“benjaminiana” do filósofo francês, que ocorreria, de fato, no ano seguinte. O livro Mai si!

constitui ainda, malgré tout, um livro de dois dirigentes políticos de uma organização (a LCR)

que, prestes a completar duas décadas de existência, enfrentava uma de suas mais duras crises.

665 Alain Krivine & Daniel Bensaïd, Mai si! 1968-1998: rebelles et repentis. Paris: La Brèche, 1988. 666 O trecho reproduzido na epígrafe é o seguinte: “O dom de ater ao passado a centelha da esperança pertence

somente àquele historiador que está perpassado pela convicção de que também os mortos não estarão seguros

diante do inimigo, se ele for vitorioso. E esse inimigo não tem cessado de vencer”. Walter Benjamin, “Teses sobre o conceito de história”, op.cit., p.65. 667 Alain Krivine & Daniel Bensaïd, Mai si! 1968-1998: rebelles et repentis, op.cit., p.8. 668 “Se há um senso do real, e ninguém duvidará que ele tenha direito à existência, deve haver também algo que

poderíamos denominar como sentido do possível”, escreve Robert Musil (citado por Idem, p.9). Além de Musil,

talvez a referência mais “deslocada”, e de Benjamin, constam também nas epígrafes passagens de Charles Péguy,

André Breton, Auguste Blanqui, Gustav Landauer e Georges Sorel. 669 Como indicamos, salvo nas partes mais político-programáticas do livro (como, por exemplo, a última parte, na

qual se debate questões concretas em torno de uma possível candidatura do dissidente do PCF, Pierre Jucquin, à

presidência), não há qualquer dúvida, pela forma e pelo conteúdo, de que Bensaïd redigiu sozinho o livro.

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Um livro, portanto, no qual os autores reafirmam a todo momento suas posições específicas

sobre o assunto abordado, como se se tratasse de rearticular, a partir dos temas debatidos,

esboços de um programa político. Não por acaso, ao refletirem sobre a posteridade de maio de

68, os autores efetuam um balanço da sua própria organização, cuja história esteve

indissociavelmente ligada às lutas de 68 e aos seus desdobramentos subsequentes.

Obstinado, Edwy Plenel propôs novamente a Daniel Bensaïd a redação de um livro para

sua coleção na Gallimard, desta vez sobre o bicentenário da revolução francesa, cuja

“comemoração” estava sendo organizada de forma pomposa pelo governo “socialista” de

François Mitterrand. Incomodado com o “show consensual”, no qual a revolução era diluída

nas trilhas da ordem e do “progresso”, ademais liderado diretamente por Mitterrand, Bensaïd

aceitou o convite de Plenel, e colocou-se a meditar, em 1988, sobre o conteúdo e, o que seria

ainda mais importante, sobre a forma do livro, tratando-se de um assunto complexo e

multifacetado, presente sob diversas embalagens no imaginário republicano francês. Desse

projeto surgiria o provocativo Moi, la révolution. Remembrances d’un bicentenaire indigne,

livro a partir do qual a virada em seu percurso e em sua obra se efetiva, liberando aquilo que,

até então, permanecia em germe desde meados da década de 1980. Descobre-se aí, como diz o

próprio Michael Löwy, um “novo” Bensaïd, que não se furta a lançar mão de toda a sua fibra

literária, assim como de todo o seu repertório de referências670.

Essa “novidade” se faz notar antes de tudo na forma escolhida para a redação do livro,

a fim de tentar conciliar a seriedade requerida pelo assunto com a paixão fulgurante da

rememoração crítica. A opção por escrever na primeira pessoa, “em nome” da revolução

francesa e seus dilemas, dirigindo-se diretamente ao “cidadão-presidente” François Mitterrand

(“mestre de cerimônias” das comemorações ao bicentenário), abriu-lhe nova perspectiva na

abordagem desse passado “fundador” (a “grande revolução”) à luz dos debates políticos e

intelectuais da França no presente. “Quando eu te falo de ontem, eu te falo do presente, no

presente”671, diz ele, encarnando a revolução que, “atualizada”, interpela o presidente de

“esquerda” cuja perspectiva apaziguadora, republicano-conservadora, em relação à revolução

francesa, apenas refletiria, no presente, as renúncias pelas quais se caracterizou seu governo,

particularmente após a virada liberal de 1983.

Uma vez que se dirigia à figura do presidente da república, Mitterrand, a editora

Gallimard, por sugestão dos seus advogados, exigiu, a princípio, alguns cortes em certas

670 Cf. Fabio Mascaro Querido & Darren Roso. Entrevista com Michael Löwy sobre Daniel Bensaïd. Paris, 22 de

janeiro de 2015. 671 Daniel Bensaïd, Moi, la révolution. Remembrances d’un bicentenaire indigne. Paris: Gallimard, 1989, p.33.

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passagens mais efusivas e veementes, as quais contabilizavam, no total, em torno de vinte

páginas. Ciente de que Bensaïd se recusaria a ceder, mesmo que isso implicasse a renúncia da

editora à publicação, Edwy Plenel pressionou para que o livro saísse sem cortes, ameaçando,

em caso contrário, se demitir da direção da coleção. Ele chegou mesmo a propor a outra editora

a publicação do livro com as partes indicadas para supressão em itálico. Em meio aos debates

no âmbito da Gallimard, o assunto chegou até Mitterrand, que, ao que parece, garantiu que não

ofereceria qualquer denúncia jurídica contra a obra. Por fim, completada a anedota, o livro saiu

sem nenhum corte, e tampouco parece ter deixado algum problema pelo caminho: dois anos

depois, pela mesma coleção, dirigida pelo mesmo Edwy Plenel, Bensaïd publicaria o outro de

seus dois livros mais idiossincráticos, sobre Jeanne d’Arc672.

Em 1989, a ocasião parecia profícua, então, para confrontar as narrativas republicanas

consensuais (à esquerda e à direita) sobre a revolução francesa, expurgada de seus

“radicalismos”. Para tanto, na contramão de alguém como François Furet, uma das estrelas

intelectuais da celebração, para quem “a revolução francesa acabou”, sendo um fato consumado

bem situado no passado, a revolução “encarnada” por Daniel Bensaïd constitui um “projeto

inacabado”, por assim dizer, ininterrupto, dotado de um impulso permanente que não se esgota

no seu ato fundacional. “Vocês querem terminar comigo. Eu quero continuar”, diz a

“revolução”. Tudo depende da forma como concebemos esse passado que, de uma forma ou de

outra, chega até nós. Para Bensaïd – em formulação benjaminiana –, do ponto de vista dos

oprimidos, a rememoração faz com que o passado permaneça “aberto”. “A memória engaja.

Ela reivindica justiça. Ela promete ressurreições”. Somente ela “pode inverter os signos [...] e

salvar o passado. Enquanto ela arder, a última palavra nunca está dita; a derrota pode ser

metamorfoseada em vitória”. Por isso, diz a “revolução” imaginada por Bensaïd: “eu pertenço

à memória, não ao passado. É preciso nunca confundir”673.

Aos olhos de Bensaïd, essa “memória” funda-se na ideia de que – como se viu no

impulso original revolucionário, entre os anos de 1789 e 1793, antes da emergência do

thermidor contrarrevolucionário – a revolução francesa não se resume, ao contrário das teses

marxistas clássicas sobre o assunto, à sua dimensão burguesa, encaixando-se como etapa de

uma determinada concepção do progresso. “A burguesia foi uma parte inegável de mim mesma.

Mas uma parte somente”674. Tampouco a revolução francesa se confunde, na narrativa

672 Contado em pé de página por Daniel Bensaïd na sua “autobiografia” Une lente impatience (op.cit., p.375, 376),

o episódio me foi confirmado por Edwy Plenel em entrevista (Paris, novembro de 2014). 673 Daniel Bensaïd, Moi, la révolution, op.cit., p.232,233. 674 Idem, p.132.

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bensaïdiana, com a república, sua “irmã inimiga”: embora tenham nascido do mesmo élan,

sendo mesmo aliadas “femininas” entre os anos efervescentes de 1789 e 1793, a segunda

subordinou-se, a partir de então, e com ainda mais afinco a partir de 1848, à particularidade da

dominação burguesa, com sua razão de Estado e sua equação centralizadora e homogeneizadora

entre povo, nação e território. A revolução, quanto a ela, com seu impulso universalista (cuja

absolutização levou aos dilemas de figuras como Robespierre e Saint-Just, tal como

problematiza Bensaïd), jamais perdeu sua marca de nascença, assombrando como um espectro

as lutas populares e, depois, proletárias, contra a dominação particular da república burguesa.

E esse impulso original universalista, que chegou ao seu grau máximo com a

proclamação, em 1793, do primado do “direito à existência” sobre todos os outros, inclusive

sobre o direito de propriedade, esse impulso original continuaria presente, sob novas formas

concretas, nas lutas anticapitalistas dos séculos XIX e XX, ganhando nova atualidade nos

combates contra a espoliação neoliberal e sua ambição de mercantilizar o conjunto da vida

social. Vencida pela primeira vez em 1794, com a proclamação do direito inviolável à

propriedade, depois em 1848, 1871, 1968, a vocação universalista de 1789-93 continuaria ainda

assim presente, atualizada pela memória ativa. “Tomando a defesa do possível, contra as falsas

evidências do real, eu salvo o passado e preservo o futuro”, evoca a “revolução” de Daniel

Bensaïd675.

Em um momento em que não apenas a revolução russa, mas também a revolução

francesa é identificada ao totalitarismo, identificação para a qual Furet contribuiu de maneira

significativa, Bensaïd busca “salvar” o espírito da revolução de 1789, “salvação”, porém, cuja

eficácia depende do desfecho das lutas do presente. Com efeito, é como se, para Bensaïd, em

contraposição aos que gostariam de apagar a chama mais ardente da revolução francesa, a única

forma de se fazer justiça ao espectro da revolução seria refazê-la, em um novo contexto, sob

uma nova forma e, evidentemente, com uma radicalidade de novo tipo: anticapitalista e

socialista, para além dos limites que se impuseram à revolução em 1789. Esta foi, aliás, a

indagação que lhe foi posta pelo apresentador do programa Apostrophes, Bernard Pivot, no

debate intitulado “Demain on prend la Bastille”, no dia 13 de julho de 1989, um dia antes do

início das comemorações oficiais. Ao que Bensaïd respondeu: “É claro, é exatamente isso [é

preciso refazer a revolução]”.

Essa concepção “aberta” do passado, em que a revolução francesa torna-se um impulso

permanente, constantemente renovado, muito mais do que uma revolução burguesa datada e

675 Idem, p.220.

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ocorrida no passado, revela-se profundamente heterodoxa diante da periodização histórica mais

ou menos consensual no âmbito do marxismo. Para Antoine Artous, por exemplo, em um debate

com Bensaïd logo depois da publicação de Moi, la révolution, a inevitabilidade de uma

periodização histórica impõe a necessidade de determinar as “condições objetivas de

possibilidade” de uma revolução como a francesa de 1789, a qual não poderia, portanto, ser

senão uma revolução burguesa, fato histórico bem situado no passado. “É complicado falar hoje

de uma dinâmica inacabada da revolução francesa [...]. Furet se apoia, portanto, em algo de real

quando ele diz que a revolução francesa terminou”676. Aos olhos de Bensaïd, ao contrário,

embora a revolução francesa seja, evidentemente, um acontecimento histórico datado no tempo,

sua imagem, sua “paixão”, a “memória em suspenso” que ela suscita, e muitas das questões que

ela apenas esboçou (igualdade, liberdade e fraternidade), interpelam o presente, como uma

“imagem dialética” benjaminiana. Trata-se assim de um combate pela memória, no qual os

acontecimentos, ainda que de certa forma “terminados”, revelam algo que os ultrapassa,

reverberando seus estilhaços no presente. Daí a determinação de Furet e sua confraria de

“terminar” a revolução, pois o que os motiva é menos a análise factual do passado do que o

perigo de um novo 1789 ou de um novo 1793, ou, quem sabe, de um novo 1917. “Acredito que,

diz Bensaïd, se existe uma tal bravura da corrente [de] Furet em considerar a revolução como

um objeto morto, é porque, à sua maneira, ele encampa uma batalha de memória”.

No âmbito do percurso de Bensaïd, Moi, la révolution constitui pela primeira vez, de

fato, um livro de um intelectual da esquerda radical, de um intelectual-militante (ou vice-versa)

e ainda dirigente político, mas, acima de tudo, de um intelectual cuja produção teórico-filosófica

não se resume, de agora em diante, às necessidades mais ou menos imediatas da organização à

qual pertence. Em larga medida, foi esta ampliação do escopo de sua autonomia intelectual,

para além da tradição leninista-trotskista “clássica”, por assim dizer, que permitiu a Bensaïd

absorver em todas as suas consequências o pensamento de Benjamin e, através dele, integrar

um conjunto de novos autores e referências, em particular aqueles que expressam, em suas

obras e trajetórias, o passado revolucionário francês – Robespierre, Saint-Just, Blanqui, Péguy

e Jeanne d’Arc, estes dois últimos igualmente objeto de culto por parte da direita e pelos quais

Bensaïd alimentava particular afeição desde a adolescência677.

676 Cf. Antoine Artous & Daniel Bensaïd, “Le passé, enjeu au présent… Entretien entre Daniel Bensaïd et Antoine

Artous, à propos de Moi la révolution”. In: Critique communiste, n.89, 1989. 677 Cf. Fabio Mascaro Querido. Entrevista com Sophie Bensaïd. Paris, maio de 2014. Péguy foi-lhe apresentado

ainda em Toulouse, por um professor conservador, católico fervoroso (embora não antissemita) e, como se não

bastasse, “maurrasiano” - em referência a Charles Maurras, nacionalista de extrema-direita que chegou a defender

o regime de Vichy na época da Ocupação Alemã.

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É a disputa pelo legado desse passado francês que, desde então, constitui uma das

motivações de Bensaïd, assim como um dos caminhos pelos quais ele intervém no debate

“público” (político e intelectual) francês, para além dos círculos da esquerda radical. Na

discussão com Artous, Bensaïd afirma: “Penso que nós não cultivamos o suficiente essa

memória [da revolução francesa e suas implicações]. O fato de que nós frequentemente demos

a impressão de termos emergido à história com a revolução russa é uma fraqueza, não apenas

cultural, aliás, mas política. Hoje, encontramo-nos às vezes obrigados a correr atrás de nossas

sombras, mas o efeito é positivo”678. Tanto quanto em relação à revolução russa, os dilemas da

revolução francesa reverberavam na atualidade da época, exigindo uma nova reflexão sobre os

desafios da soberania popular, da mediação e representação política, do papel da violência

libertadora no processo de transição, da relação entre poder e direito, entre exceção e norma

jurídica – desafios que remetem à construção de uma nova legitimidade, de uma nova

hegemonia, sem recair seja no terror jacobino (com sua soberania sem mediação, na qual o povo

homogeneizado se identifica com a pátria, relegando à condição de inimigos toda discordância),

seja no terror stalinista (com sua usurpação burocrática da representação proletária,

subsumindo-a ao partido único, que se pretende a encarnação política da própria classe,

transformando em “traição” todo tipo de dissidência).

6.2. “Razão messiânica”: estratégia intelectual no coração da catástrofe

Um novo passo na consolidação dessa “transição” benjaminiana foi dado, em 1990, com

a publicação de Walter Benjamin, sentinelle messianique. À la gauche du possible. Publicada

pela editora Plon, sob recomendação de Edwy Plenel, esse livro demarca, consolida e

sistematiza as intuições benjaminianas que estavam se desenvolvendo em sua reflexão, em meio

a uma transição de época que o crítico alemão, muito mais do que o “Velho” (que agora parecia,

em certa medida, figurativamente um pouco “envelhecido”), ajuda-o a compreender, tornando-

se, portanto, uma figura decisiva para a reativação de um marxismo crítico. Sozinho, Daniel

Bensaïd levava adiante, assim, o projeto que considerou realizar ao lado de Michael Löwy três

anos antes. Sozinho talvez porque, já nessa época, Bensaïd começara a perceber que, a despeito

da convergência de fundo que ligava suas interpretações benjaminianas, situando-as no mesmo

quadro geral (releitura marxista-messiânica de Benjamin em contato com a tradição

revolucionária clássica), havia divergências importantes entre ele e Löwy quanto a questões

políticas concretas – que continuavam extremamente importantes para o ainda dirigente político

678 Antoine Artous & Daniel Bensaïd, “Le passé, enjeu au présent…, op.cit., s/p.

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Bensaïd, à procura de um novo caminho para a corrente da qual não apenas fazia parte, como

Löwy, mas era o principal responsável pela sistematização teórica da linha político-

programática a ser assumida.

Ora, essas diferenças sutis, mas importantes, condicionam as diferenças na forma e no

fundo em suas leituras de Benjamin. Mais do que a leitura de Michael Löwy, que dialoga com

a recepção acadêmica (ao menos com uma parte significativa dela) da obra benjaminiana, a

interpretação realizada por Daniel Bensaïd revela-se profundamente singular, sui generis, se se

preferir. À diferença de Löwy, por exemplo, Bensaïd não analisa sociologicamente a obra e a

trajetória de Walter Benjamin, inserindo-as no âmbito de uma constelação intelectual (centro-

europeia de cultura alemã) que as cerca, assim como vinculando-as necessariamente ao

contexto histórico-social da época. Trata-se, em Bensaïd, muito mais, de uma reflexão, ou

meditação, propriamente político-filosófica sobre e/ou a partir de Benjamin, submetendo-as,

por assim dizer, aos desafios do “tempo-de-agora” – após o acúmulo de derrotas na década de

1980. Por isso, mais do que “comentar” as teses, na primeira parte do livro, Bensaïd as

reescreve, intercalando passagens do texto original com novos trechos por ele redigidos.

Buscava assim, em Benjamin, um “princípio de inteligibilidade”, quer dizer, um princípio “de

orientação nos labirintos da história”, para entender o presente679.

Não surpreende que, em função dessa leitura assumidamente diletante (considerando a

feição igualmente subversiva do termo, frente à doxa acadêmica), o livro de Bensaïd, publicado

exatamente em um ano em que abundavam os colóquios e homenagens por ocasião dos 50 anos

da morte de Benjamin, tenha suscitado pouco interesse da parte da recepção acadêmica da obra

do filósofo alemão. O que não chegava, aparentemente, a incomodar Daniel Bensaïd, já que o

figurino político e antiacadêmico era necessário para – assim como proclamara Terry Eagleton

no início da década de 1980, e como estava procedendo, em alguma medida, o próprio Löwy –

lustrar uma das facetas mais relevantes da batalha em curso: “salvar” o passado do conformismo

que dele se apodera, neste caso, “salvar” o próprio Benjamin da sua confiscação apaziguadora.

Uma vez mais, tratava-se de “rememorar” Benjamin, o que implicava uma abordagem

necessariamente política de sua obra, em oposição às “comemorações” dos exegetas

acadêmicos. Por isso, “nessa avalanche de colóquios e publicações científicas, o livro de Daniel

Bensaïd se distinguia por seu caráter atípico e singular”, conforme escreveu Enzo Traverso680.

679 Daniel Bensaïd, Walter Benjamin, sentinelle messianique. À la gauche du possible. Paris: Les Prairies

Ordinaires, 2010, p.28. 680 Enzo Traverso, “La concordance des temps. Daniel Bensaïd et Walter Benjamin”, in: Daniel Bensaïd, Sentinelle

messianique, op.cit. Trata-se do prefácio à reedição, em 2010, do livro de Bensaïd, um prefácio que, apesar de

favorável, apoia-se em Michael Löwy para criticar o que Traverso entende como problemas da leitura de Bensaïd.

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Tanto quanto Löwy, embora de forma ainda mais enfática, “o Benjamin que fascina

Bensaïd”, afirma Arno Münster, “é precisamente o Benjamin leitor de Blanqui, de Proust e de

Péguy, é o Benjamin antinazista e antistalinista, o Benjamin crítico da socialdemocracia [...]

que, desde 1926, lê O Capital e Para onde vai a Inglaterra, de Trotsky”; um Benjamin “que

discute apaixonadamente com Brecht sobre o conflito entre Stálin e Trotsky e sobre o

antissemitismo na URSS”; que, em 1931, “‘descobre com grande entusiasmo’ a História da

Revolução Russa depois Minha vida, de Trotsky”. Um Benjamin, enfim, “que acompanha sem

nenhuma ilusão a vitória, seguida do fracasso, da Frente Popular [na França]”681. Para esta

rememoração política do filósofo alemão, Daniel Bensaïd prioriza, no vasto e heterogêneo

arquipélago benjaminiano, o projeto das Passagens (especialmente sua última fase, entre 1936

e 1940) e as “teses sobre o conceito de história”682. É exatamente este o período, como vimos,

em que Benjamin encontrava-se sob forte inspiração de Auguste Blanqui, um período em que,

paradoxalmente, o projeto das Passagens assumira uma feição mais “racionalista” (ou menos

“surrealista”, como no início, 1927-29) e, ao mesmo tempo, mais carregada de uma dimensão

teológico-messiânica da qual as teses, redigidas em alto nível de desespero político e pessoal,

constituem a expressão mais enfática. Um “racionalismo”, portanto, bem diferente do

“materialismo” que ele cultivara anos antes, entre 1933 e 35, ou seja, na sua fase mais

“brechtiana” e mais “modernista”, assentada na esperança em torno das possibilidades de

utilização revolucionária das novas técnicas de reprodução artística.

Assim, tal como Löwy, Daniel Bensaïd realiza uma leitura marxista-não brechtiana de

Benjamin, embora menos crítica da modernidade do que aquela do primeiro. Se ambos, Löwy

e Bensaïd, veem com bons olhos o messianismo benjaminiano, o segundo esforça-se, muito

mais que o primeiro, por “profanizá-lo”, a fim de conectá-lo não com as utopias em geral, mas

com a política revolucionária concreta, de onde o seu afastamento da leitura scholemniana,

assim como daquela de Adorno. Deste esforço algo paradoxal, na qual se observa o intento de

articular Benjamin e a vertente dissidente (anti-positivista) do “racionalismo” francês (Pascal,

Blanqui, Péguy, Sorel etc.), emerge a noção, que constitui a base de sua interpretação

benjaminiana, de “razão messiânica”. Para Bensaïd, em oposição aos defensores de uma “frente

popular em filosofia”, de uma “grande aliança do conceito”, na qual, não raro, o marxismo

encontra-se subordinado ao racionalismo clássico683, a “razão messiânica” reivindica a

681 Arno Münster, “Daniel Bensaïd, lecteur de Marx et de Benjamin”, in: Lignes, n.32, 2010, p.103. 682 Daniel Bensaïd menciona muito pouco os textos de juventude de Walter Benjamin, tal como, por exemplo, o

ensaio “Crítica da Violência” (1921), não obstante reprovado por seu “anarquismo”. 683 Nos anos de Frente Popular, Georges Politzer, teórico do PCF, defendeu ardorosamente essa aliança entre

marxismo e racionalismo clássico francês. Cf. Georges Politzer, La Philosophie et les Mythes. Paris: Éditions

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necessidade de uma “desconstrução dos grandes edifícios da razão abstrata”, a fim de recolher

os “cacos” da “totalidade quebrada” e, assim, inscrever uma compreensão do presente atenta às

“rupturas, bifurcações e passagens”, quer dizer, às intermitências de cada presente, do presente

do presente, do presente do passado e do presente do futuro684.

Nas fontes deste “judaísmo dissidente” – que encontra em Spinoza sua primeira e

sintomática expressão – Bensaïd encontra traços de uma nova forma de cientificidade, cuja

concepção da temporalidade contrapõe-se tanto à razão sociológica e positivista quanto à

causalidade mecânica do marxismo vulgar. Radicalmente imanente, esta “ciência alemã” (em

oposição à “ciência positiva”) manifesta-se, em Benjamin, por meio de sua atenção ao

fragmento, às pequenas “imagens” através das quais se atinge a “visibilidade” da história, assim

como de sua recusa dos grandes esquemas históricos, em cujo caráter monumental se esconde

o apego a uma transcendência exterior ao controle dos homens reais. “Na contracorrente das

arquiteturas monumentais da história universal, Benjamin elabora ‘grandes construções a partir

dos pequenos elementos’, procura ‘na análise do pequeno momento singular o cristal do

acontecimento total’. Ele intenta exprimir o conjunto pelo detalhe, o geral pelo particular [...],

formular um saber em migalhas, em ‘pedaços arbitrariamente cortados’, mas que conservam a

memória de sua relação”685.

Na contramão das hipóstases da razão histórica – cuja temporalidade abstrata, “vazia e

homogênea”, se impõe do exterior à imanência das relações sociais, de onde seu caráter

reificado –, Daniel Bensaïd visualiza nas heresias messiânicas a possibilidade de realização de

um “desvio” profano pelo continente cultural do judaísmo e, particularmente, pela mística

judaica. Sentinela messiânica representa, portanto, no itinerário intelectual de Bensaïd, uma

primeira “abertura” para a dimensão “positiva”, por assim dizer, da herança judaica, e, em certa

medida, um primeiro “acerto de contas” com o “pertencimento negativo” a essa tradição. Walter

Benjamin, responsável por uma interpretação herética tanto do marxismo quanto do judaísmo,

transformar-se-ia em uma espécie de mediação para o diálogo crítico com alguns próceres do

judaísmo anticapitalista, como Bernard Lazare (Le Fumier de Job), Franz Rosensweig (L’Étoile

de la Rédemption), Gustav Landauer e até mesmo Gershom Scholem e Martin Buber.

“Profanizada”, com a ajuda da tradição revolucionária francesa, a tradição do

messianismo judaico pode contribuir para uma “oxigenação” do materialismo histórico, na

Sociales, 1969. De uma forma muito mais sofisticada, e no contexto do que ele entendia ser uma luta contra o

“irracionalismo” nazi-fascista, Georg Lukács defendeu perspectiva semelhante, estendendo-a inclusive à literatura. 684 Daniel Bensaïd, Walter Benjamin, sentinelle messianique, op.cit., p.41. 685 Idem, p.38.

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direção de um “materialismo aleatório”, aberto às contingências de um presente compreendido

como “instante messiânico”. Em oposição aos “fatalistas da história”, “adoradores do fato

consumado”, que serviam à legitimação da razão de Estado stalinista (interessada em

transformar o materialismo histórico em um mísero autômato, sem vida), Daniel Bensaïd

retoma, a seu modo, a reivindicação benjaminiana da necessidade de uma nova aliança entre

marxismo e teologia, ou melhor, entre materialismo histórico e messianismo profano –

reivindicação que surge logo na primeira das teses sobre o conceito de história. A partir do

presente, esta aliança provoca uma nova concepção do passado, baseada em uma rememoração

ativa dos vencidos da história, na qual – mais do que subscrever o que foi – intenta-se “resgatar”

o que poderia ter sido (por força das catástrofes pela qual passou, ao povo judeu restou a

obrigação da rememoração permanente). “Por vias diferentes, judaísmo e marxismo podem

contribuir para reconciliar memória e história, as camadas enigmáticas da memória coletiva e

o lampejo simbólico do acontecimento histórico”686.

Para Enzo Traverso, essa revalorização do messianismo ativo, “racional”, que Bensaïd

encontra em Benjamin, vincula-se diretamente ao estreitamento do horizonte histórico, na

virada para os anos 1990, diante do qual o intelectual francês propõe uma “estratégia de

urgência no coração da catástrofe”. Nesse contexto, argumenta Traverso, “o comunismo só

poderia sobreviver sob uma forma messiânica, como promessa de uma redenção”, quer dizer,

como “testemunho de uma fidelidade aos vencidos, ato de fé em uma interrupção possível (mas

inatual) do curso da história”687. Na ótica de Traverso, trata-se de um contexto que, guardadas

as devidas proporções, apresenta notáveis semelhantes com os anos 1930, última década na

vida de Benjamin. É nessa “constelação dialética” entre essas duas épocas, aliás, que, para o

historiador italiano, se encontra a raiz da “afinidade eletiva” entre Benjamin e Bensaïd.

Duas épocas que, embora incomparáveis em sua singularidade irredutível, apresentam-

se como épocas de “bifurcação histórica”. E, apesar de “menos trágico”, nem por isso o que se

vivia no momento em que Bensaïd redigia o livro sobre Benjamin era menos impactante: “desde

a chegada de Hitler ao poder em 1933, a vitória de Franco e o pacto germano-soviético em

1939, o sentimento de uma derrota histórica do movimento operário não tinha sido tão difuso e

avassalador quanto com a queda do Muro de Berlim e a implosão da URSS. Essa constatação

se impunha como uma evidência a todo mundo, inclusive àqueles que, como Daniel Bensaïd,

haviam sempre combatido o stalinismo”688. Em tais contextos, Benjamin nos anos 1930 e

686 Idem, p.39. 687 Enzo Traverso, “La concordances des temps”, op.cit., p.11. 688 Idem, p.10.

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Bensaïd nos anos 1990 se mantiveram, cada qual ao seu modo, “à esquerda do possível” (como

indica o subtítulo de Sentinela messiânica).

6.3. Messianismo estratégico contra a utopia

Em sua interpretação do pensamento de Walter Benjamin, essa leitura política de

Benjamin exprime-se na ênfase posta por Bensaïd no presente como categoria central da

rearticulação benjaminiana da história, como se, assim, procedendo, estivesse sendo mais fiel

a Benjamin do que seus exegetas acadêmicos. Para Daniel Bensaïd, na obra de Benjamin, o

presente, ou melhor, o “instante” é sempre uma “oportunidade revolucionária” para os

oprimidos, à medida que constitui o momento da decisão estratégica. “Cada instante é o instante

do juízo sobre certos instantes que o precederam”689. Ao fetichismo da história, Benjamin opõe,

segundo Bensaïd, sua politização”. Assim, é nesse “instante fugaz” que é o presente, marcado

por uma “detenção messiânica do acontecer”, que se torna possível reconhecer uma nova

imagem do passado, uma imagem dialética, um “relâmpago que ilumina todo o horizonte do

passado”690. Na contramão da assertiva hegeliana de que a história do mundo é o tribunal do

mundo, cuja “apologia do fato consumado” faz do sucesso, do êxito e da vitória o último critério

do juízo, Benjamin resgata o passado a partir do ponto de vista dos vencidos, quer dizer, a partir

do que não foi mas poderia ter sido, das bifurcações da história pretérita, enfim, daquilo que S.

Kracauer denominou como a “tradição das causas perdidas”, que nomeia o que, até agora,

permanece inominado691.

Esse messianismo paradoxalmente “profano” e “imanente”, fundado no presente, que

Bensaïd visualiza em Benjamin, encontra-se em oposição, segundo ele, à temporalidade das

utopias, articulada em torno de um futuro hipotético e abstratamente arquitetado. Enquanto “a

utopia se conjuga no futuro, o messianismo se enuncia no presente”, diz Bensaïd em Sentinelle

Messianique692. Essa clivagem define a diferença essencial, segundo Bensaïd, entre Benjamin

e Ernst Bloch. Se, em Bloch, “o futuro permanece a categoria dominante”, já que, “para ele, o

passado só emerge mais tarde e o presente autêntico não está ainda aqui”, em Benjamin, ao

689 Walter Benjamin, “Tesis sobre la historia: apuntes, notas y variantes”. In: Tesis sobre la historia y otros fragmentos, op.cit., p.56. 690 Idem, p.39. 691 Siegfried Kracauer, Historia. Las últimas cosas antes de las últimas. Buenos Aires: Las Cuarenta, 2010, p.243.

É curioso que, apesar de mencioná-lo en passant como exemplo de crítica da razão histórica, Bensaïd não tenha

concedido maior atenção a este que foi o último livro de Kracauer, o qual poderia ajudá-lo a problematizar a sua

própria interpretação da concepção benjaminiana da história. Para uma utilização propriamente historiográfica

dessa concepção aberta da história, ancorada na categoria do possível, cf. Quentin Deluermoz & Pierre

Singaravélou, Pour une histoire des possibles. Analyses contrefactuelles et futurs non advenus. Paris: Seuil, 2016. 692 Daniel Bensaïd, Walter Benjamin, sentinelle messianique, op.cit., p.241.

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contrário, “cada presente está carregado de uma missão redentora”, a ser visualizada pela razão

messiânica693. Para a razão messiânica, centrada no campo do possível do presente, “o futuro

não é um lugar imóvel de uma terra prometida, mas o horizonte em movimento no qual se

atualizam os possíveis”694. E “quando o possível se atualiza na fermentação revolucionária, a

utopia, enquanto ‘sentimento não prático do possível’ (Henri Lefebvre), se retira. Ela se apaga

em face do senso prático do real”695. Desde Walter Benjamin, Sentinelle Messianique, Bensaïd

opõe à noção de utopia as de “messianismo secularizado” ou de “esperança” (derivada antes de

Charles Péguy696 do que de Ernst Bloch).

Ora, é bem verdade que esta cruzada anti-utópica (e antirromântica) de Daniel Bensaïd

– articulada em torno da ênfase na razão político-messiânica assentada no presente – não

significa, absolutamente, um retorno às abordagens neo-positivistas dos “verdadeiros”

herdeiros do “socialismo científico”. Do mesmo modo, sua defesa da ação como despertar dos

oprimidos no presente encontra-se nas antípodas de toda tentativa de restringir o marxismo à

explicação das “leis objetivas” que definem o destino pós-capitalista do mundo. Por isso

mesmo, é no mínimo estranha a sua tendência a fazer de Ernst Bloch (e de sua reflexão utópica)

um defensor do primado de um futuro abstrato atuando como garantia transcendente diante das

incertezas do presente.

Seja no segundo ou no terceiro volume de O Princípio Esperança, nos capítulos

dedicados a Marx, Bloch define o marxismo como uma forma de “utopia concreta”, ancorada

na unidade entre a lucidez e o entusiasmo, entre o real e o possível, para o qual a esperança

projetada para o futuro deve ser encontrada na “tendência-latência” da própria imanência

histórica – sempre incerta e, portanto, “aberta”, ou seja, em termos muito próximos aos que o

próprio Bensaïd conceberá mais tarde. Nas suas palavras, o marxismo destaca-se exatamente

por ter sido a única teoria social “que promoveu a teoria-práxis de um mundo melhor, não para

esquecer o mundo presente, mas para transformá-lo em termos dialético-econômicos”697. Para

Bloch, enquanto forma de antecipação utópico-concreta, “toda a obra de Marx serve ao futuro,

sim, porque na realidade só pode ser compreendida e concretizada no horizonte do futuro, mas

693 Daniel Bensaïd, “Utopie et messianisme – Bloch, Benjamin et le sens du virtuel”. In: La Discordance des temps. Essais sur les crises, les classes, l’histoire. Paris: Les Editions de la Passion, 1995, p.212. 694 Daniel Bensaïd, Walter Benjamin, sentinelle messianique, op.cit., p.238. 695 Idem, p.232. 696 Nas palavras de Philippe Pignarre (“La philosophie de Daniel Bensaïd: la question du temps”. Contretemps,

Paris, n.8, 2011, s/p), “Péguy ocupa um lugar considerável no trabalho filosófico de Daniel. Desde seu livro sobre

Jeanne d’Arc até seus últimos textos”, Péguy permanece uma referência “permanente”. Com menor intensidade,

Michael Löwy valoriza positivamente o “romantismo” religioso inscrito no “socialismo místico” de Péguy. Cf.

“Romanticismo y religión: el socialismo místico de Charles Péguy”. In: Revolta e Melancolia (2008, pp.199-212). 697 Ernst Bloch, O Princípio Esperança, v.III. Rio de Janeiro: Contraponto, 2006, p.456.

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não como pintado em cores abstrato-utópicas”, senão, “pelo contrário, como futuro que é

iluminado de forma materialista-histórica sob e a partir do passado e da atualidade, portanto,

das tendências atuantes e persistentes, a fim de ser dessa maneira um futuro conscientemente

moldável”698. A uma utopia concreta como o marxismo, “importa compreender com exatidão

o sonho do seu objeto, inerente ao próprio movimento histórico”699. Isso porque “o mero desejar

ainda não saciou ninguém. De nada adianta, sim, até debilita, se a ele não se junta um querer

enfático. E com ele um olhar aguçado, atento, que mostra ao querer o que pode ser feito”700.

Em outras palavras, o futuro utópico-concreto se desenha em Bloch não como modelo

transcendente à ação humana, mas sim como “horizonte regulador” (para citar um termo

utilizado pelo próprio Bensaïd) das possibilidades inscritas no presente. Sua reflexão utópica

se inscreve no quadro do que, em Herança desta época (1935), ele denomina “dialética

pluriespacial e pluritemporal”, ancorada na possibilidade de apropriação, a partir do presente,

de aspectos “não-contemporâneos” (passado) portadores de “imagens de desejo” utópicas.

Tanto assim que, em toda sua obra, e mesmo em O Princípio Esperança, Bloch não diz quase

nada sobre o futuro, e tampouco ensaia prefigurar as bases do porvir utópico. Na realidade, o

“sonhar para adiante” significa, para Bloch, entre outras coisas, um resgate das “ideias

realmente grandes do passado”, mas um resgate que, impreterivelmente, ocorre sempre sob as

intempéries do presente701. Como ele afirma: “todo começo verdadeiro ainda está por vir e vive

no passado como uma antecipação do futuro”702.

Nessa perspectiva, ao contrário do que postula Daniel Bensaïd, nem o messianismo

benjaminiano encontra-se inteiramente atado ao presente, em detrimento de toda utopia, nem a

“filosofia da esperança” de Ernst Bloch está circunscrita à projeção de um futuro hipotético,

alheio às incertezas do presente. Ambos, cada qual a seu modo, anunciam a possibilidade de

uma nova semântica da temporalidade histórica, na qual passado, presente e futuro – deslocados

de sua continuidade cronológica – são realocados numa nova constelação, que visa liberar as

energias utópicas imersas nos escombros do passado e do presente703. Enzo Traverso não está

698 Ernst Bloch, O Princípio Esperança, v.II. Rio de Janeiro: Contraponto, 2006, p.176. 699 Idem, p.177. 700 Ernst Bloch, O Princípio Esperança, v.III, op.cit., p.440. “Na miséria Marx não vê apenas a miséria, à maneira de todos os compadecidos abstratos e ainda dos utopistas abstratos; ao contrário, o revoltante da miséria de fato

assume esse nome, tornando-se a força ativa da revolta contra aquilo que a causa”. Idem, p.443. 701 Ernst Bloch, Idem, p.450, 451. 702 Ernst Bloch, Le athéisme dans le christianisme. Paris: Gallimard, 1978, p.153. 703 Assim como Michael Löwy, Arno Münster propõe uma leitura atenta não apenas às diferenças, mas também às

semelhanças entre os pensamentos de Benjamin e Bloch. Diz ele: “É forçoso constatar que, a despeito de suas

diferenças políticas possíveis, a obra dos dois pensadores marxistas ‘irmãos’ testemunha, apesar de tudo, um

grande número de afinidades seletivas que parecem apagar, em larga medida, todas as polêmicas e mal-entendidos

que, em um momento dado, poderiam ter manchado a história de sua amizade”. Arno Münster, “Images

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equivocado, portanto, quando afirma que a utopia – articulada ao seu messianismo – “atravessa

[...] a obra de Benjamin, como testemunham sua fascinação por Fourier, seus escritos sobre

Bachofen e, mais amplamente, sua arqueologia de Paris como imenso reservatório de ‘imagens

dialéticas’, pontos de condensação entre a memória e o sonho de uma sociedade liberada”704.

Não há dúvidas de que a experiência militante de Daniel Bensaïd é crucial nessa ênfase

por ele outorgada – em sua leitura de Benjamin – ao presente, em linha anti-utópica e

antirromântica. Ela sobredetermina, por assim dizer, a sua opção em demarcar a dimensão

supostamente político-estratégica das reflexões de Benjamin. Muito embora reconheça que “o

engajamento de Benjamin não é jamais uma adesão”, Bensaïd visualiza no seu “messianismo

laicizado” esboços de uma “razão estratégica”. Em suas palavras: “Por trás da tranquila, calma

e pacífica delicadeza de Benjamin, têm-se um messias armado”705. Ora, como argumenta Enzo

Traverso, “ver no messianismo de Benjamin” os traços de uma “razão estratégica” e, ainda

mais, completamente “laicizada”, é, no mínimo, “audacioso”, se não simplesmente um

equívoco, revelando uma espécie de “mimetização”, por Bensaïd, entre dois percursos

heterogêneos: o seu próprio, do “militante revolucionário impregnado de literatura”, e aquele

de Benjamin, do “crítico literário fascinado pela revolução”. Para Traverso, porém, se “Daniel

Bensaïd tinha uma fibra de escritor [...] e todos os seus livros possuem uma forte dimensão

literária”, muito mais difícil, por outro lado, é “imaginar Benjamin metamorfoseado em

militante, ainda menos em dirigente político”706.

6.4. Uma virada sem volta: continuidades e descontinuidades

Já enquanto trabalhava na redação do livro sobre Walter Benjamin em 1990, Bensaïd

começou a sentir os primeiros sinais físicos da doença que, descoberta naquela mesmo ano,

impactaria significativamente a sua trajetória subsequente. Discreto, como se tentasse

resguardar um espaço mínimo para a vida privada, cuja politização total poderia resvalar para

alguma forma de totalitarismo, Bensaïd informou que era portador do HIV, de início, apenas

para os amigos e camaradas mais próximos. Mesmo para Alain Krivine, Bensaïd comentou

sobre a doença, “repentinamente”, em um café em Paris, apenas alguns meses depois de tê-la

descoberto707. É nesse contexto extremamente difícil no plano pessoal que Edwy Plenel,

dialectiques, archéologie de la modernité, utopie et ‘ilumination’ critique du présent dans les ‘passages parisiens’

de Benjamin et dans la pensée d’Ernst Bloch”. In: Progrès et catastrophie, Walter Benjamin et l’histoire.

Réflexions sur l’itinéraire philosophique d’un marxisme “mélancolique”. Paris: Éditions Kime, 1996, p.100. 704 Enzo Traverso, “La concordance des temps…”, op.cit., p.19. 705 Daniel Bensaïd, Walter Benjamin, sentinelle messianique, op.cit., p.182. 706 Enzo Traverso, “La concordance des temps”, op.cit., p.16. 707 Fabio Mascaro Querido. Entrevista com Alain Krivine, Port-Leucate (França), agosto 2014.

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percebendo que, de agora em diante, a escrita poderia se tornar, enfim, uma das prioridades na

vida do amigo, propõe-lhe a redação de um livro sobre Joana d’Arc, publicado em 1991 na

mesma coleção Au vif du sujet, das edições Gallimard. Primeiro livro escrito após a descoberta

da doença, Jeanne de guerre lasse. Chroniques de ce temps constitui, na opinião de Plenel, o

mais poético livro de Daniel Bensaïd708. Nesse livro, acredita Plenel, Bensaïd desenvolve a

fundo o seu “estilo” próprio, que ele cultivava como Péguy, um estilo que carrega a marca do

escritor que ele poderia ter sido, não fosse a paixão vertiginosa, embora não isenta de

contradições, pela militância política.

Munido não apenas do arsenal crítico benjaminiano, senão também de toda uma tradição

francesa dissidente, Daniel Bensaïd empreende uma nova batalha de memória, mas, dessa vez,

a “descida” é ainda mais “funda”, chegando às profundezas e ambivalências originais do

imaginário nacional francês. Símbolo da extrema-direita contemporânea, a figura de Joana

d’Arc inscreve um espaço “imaginário” no âmbito do qual estão em disputa, ainda no presente,

diferentes concepções da sociedade francesa. “Encarnação para alguns da fé, do patriotismo, da

virtude militar; emblema para outros da liberdade de consciência e do direito à dissidência.

Santa ou herética, ela era o lócus de todas as guerras de memória, o espelho obrigatório de todas

as querelas nacionais, o enigma de um affaire interminável”. Nesse labirinto, Bensaïd buscava

mais uma vez um caminho possível para retornar ao presente – tempo de transição, e de

meditação. “A cada um sua Jeanne? Por que não a minha?”709. Foi assim que Daniel Bensaïd –

o que apenas confirmava a inflexão em curso –, conhecido por ser o mais sofisticado intelectual

da extrema-esquerda francesa, tornou-se, como observou Alex Callinicos, talvez “o único

trotskista a ter escrito um livro sobre Joana D’Arc”710.

A fim de construir a sua Jeanne, tal qual uma “imagem dialética” benjaminiana, o autor

dialoga, a partir do seu presente inescapável, com o espectro imaginário de Jeanne d’Arc, em

um “anacronismo” deliberado cujo objetivo é reacender a atualidade não da “patrona da França”

heroína da Frente Nacional e de grupos monarquistas, reabilitada e canonizada pela Igreja em

1920 em recompensa à França vitoriosa na guerra, mas sim da figura herética e frágil, com sua

fé plebeia e sua religiosidade popular, julgada e condenada pelas autoridades eclesiais (com a

ajuda dos sábios da Sorbonne), queimada viva, e, portanto, irredutível às cooptações

apaziguadoras. Em suas palavras, dirigidas à figura quase mitológica: “Você me conquistou,

708 Fabio Mascaro Querido & Darren Roso. Entrevista com Edwy Plenel, Paris, novembro de 2014. 709 Daniel Bensaïd, Jeanne de guerre lasse. Chroniques de ce temps. Paris: Gallimard, 1991, p.17. 710 Alex Callinicos, “Le temps brisé de la politique”. In: François Sabado (org.). Daniel Bensaïd, l’intempestif.

Paris: La Découverte, 2012, p.68

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Jeanne. Não pela força da tua lenda. Nem pela certeza da tua santidade. Pela fragilidade do teu

ser. Pela incerteza de tua missão”711. Essa incerteza ecoa uma esperança que transborda a sua

subordinação à lógica reacionária do culto católico à pátria, desde que “resgatada” da

recuperação conformista. “Mulher e herética, traída e queimada”, Jeanne, la pucelle, “pertence

à grande fraternidade dos vencidos. Abandoná-la a seus vencedores seria eternizar seu suplício.

Tomada nas águas glaciais da História, ela aguarda os degelos da memória”712.

Com sua ode a essa ambivalente e “infatigável passante baudelairiana” que é Jeanne

d’Arc, entre duas épocas, entre dois mundos, Daniel Bensaïd fecha o ciclo, por assim dizer, da

“trilogia sobre a história e a memória” que, entre 1989 e 1991, significou para ele uma espécie

de “passagem necessária”, de desvio herético para voltar a Marx em novas condições, relendo-

o à altura do que estava em questão no novo período que emergia. Sob impulso benjaminiano,

tratava-se de um momento – um “instante messiânico”, como diria Franz Rosenzweig –

propício a um “despertar proustiano”, incitado pela redescoberta de novas potencialidades no

âmbito da teoria crítica e do marxismo.

Determinar em que medida essa “transição benjaminiana” da obra e da trajetória de

Daniel Bensaïd, concretizada nos anos 1989-1991, significou algum nível de ruptura, ou, o que

seria mais adequado, de descontinuidade em relação ao período anterior, constitui uma questão

central na definição das linhas de força do seu percurso intelectual. É fato que, assim como no

caso de Michael Löwy, a descoberta e incorporação de Benjamin, simultaneamente às

transformações histórico-políticas da época, não ocasionou uma ruptura, no sentido forte, na

trajetória de Bensaïd, como se o que viesse depois se colocasse como contraponto (auto) crítico

absoluto ao que se passara antes. Conforme argumenta Samy Joshua, “seria profundamente

injusto não ver senão ruptura sem medir a continuidade”. Afinal de contas, “o ‘marxismo

aberto’ que se lhe atribui estava lá desde o início. Ele estava talvez dissimulado nas

mesquinharias do combate político cotidiano, dos textos polêmicos de circunstância, mas

jamais seu marxismo foi medíocre”713.

A afirmação corresponde, ao menos parcialmente, à realidade: de fato, embora um

pouco sectária, uma vez que se tratava da atmosfera da extrema-esquerda da época, as análises

de Bensaïd, na década de 1970, sobre a importância de Lênin como primeiro pensador marxista

a ter efetivamente apreendido a especificidade, a autonomia relativa e a centralidade da política

em relação aos outros níveis da realidade social (e em relação às “leis da história”), já revelava

711 Idem, p.70. 712 Idem, p.268. 713 Samy Joshua, “Daniel Bensaïd, Résistance, Révolte et Révolution”. Lignes, n.32. Paris: Lignes, 2010, p.54, 55.

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um esforço em realizar uma leitura anti-determinista do marxismo. Nesse sentido, pode-se dizer

que Enzo Traverso exagera no grau e/ou na intensidade por ele conferida à inflexão de Daniel

Bensaïd entre os anos de 1989 e 1991, na mesma medida em que acentua a virada histórica

então produzida, com o fim do “curto século XX”. “Descobrindo Benjamin, ele descarta

Mandel”, chega a dizer Traverso, uma vez que este último simbolizaria como ninguém a etapa

precedente, marcada pela última fase da “atualidade da revolução” que começara em 1917 e

que ganhara novo fôlego, na Europa, na passagem para a década de 1970714.

No entanto, se não há de fato uma ruptura ou uma disjunção absoluta em relação ao seu

percurso anterior, como sugere Enzo Traverso715, parece inegável que, entre 1986 e 1991, e

especialmente nos últimos três anos desse sexteto (1989, 90 e 91) – e esta é nossa hipótese de

chegada –, a obra e a trajetória de Daniel Bensaïd tenham passado por uma inflexão

significativa, até mesmo decisiva. Para além de uma mudança da forma e/ou do conteúdo da

reflexão (na “obra”), trata-se de uma transformação cujo impacto atinge as modalidades do seu

engajamento político-intelectual, forçando um reposicionamento necessário no contexto do

cenário intelectual francês – então bastante desfavorável, diga-se.

Nas palavras de Stathis Kouvélakis, “a trajetória de Daniel Bensaïd testemunha a

existência de alguma coisa que parecia possível, mesmo imediatamente realizável, em torno de

68, alguma coisa que cessou de existir sob as mesmas formas a partir dos anos de 1980, e que

é preciso hoje reinventar, com a ajuda daquilo que ele nos legou”716. Ele próprio incumbiu-se,

a partir de 1989-1990, deliberadamente, de contribuir para essa “passagem” para uma nova

época, “passagem” que não implicava (ou não deveria) fazer tabula-rasa das tradições

anticapitalistas do passado – incluindo aí o marxismo “clássico” de Lênin, Trotsky ou Mandel

(nunca se começa do zero, mas sempre “do meio”, costumava dizer Bensaïd, citando Deleuze).

Ao contrário, para Daniel Bensaïd, tratava-se – começando pelo “meio” – de retomar estas

tradições submetendo-as à prova do tempo presente. Como reconhece o próprio Traverso, a

tentativa de transbordar os limites do marxismo-trotskismo acompanhava-se da busca por

“salvar” esta tradição, reintegrando-a em uma nova realidade ao colocá-la em contato com

culturas políticas que permaneciam, pare ele, até então, “estrangeiras”717.

Muito em função da inestimável ajuda de Edwy Plenel, extremamente bem situado na

“vida” intelectual e/ou jornalística da época, Daniel Bensaïd dá início, a partir de então (1989,

714 Enzo Traverso, “La concordance des temps. Daniel Bensaïd et Walter Benjamin”, op.cit., p.11. 715 Enzo Traverso, “Le passeur”. In: Lignes, n.32. Paris: Lignes, 2010, pp.174-184. 716 Stathis Kouvelakis. “Daniel Bensaïd: La dialectique du temps et de la lutte”. In: Lignes, n.32. Paris: Lignes,

2010, p.60. 717 Enzo Traverso, “Le passeur”, op.cit., p.175.

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com a publicação de Moi, la révolution), a uma intervenção mais explícita e “direta” no que

restou da esfera “pública” francesa, razão pela qual ele não hesitará, para desconforto de alguns

dos seus camaradas de organização, em polemizar com figuras eminentes da intelectualidade

midiática, em particular contra aquele que será um dos seus alvos prediletos: o ex-maoísta

convertido à direita “liberal” Bernard Henri-Levy. Desde a virada para os anos 1990, as

intervenções de Bensaïd extrapolam em muito os limites do público militante. Essa intervenção

mais ativa no campo intelectual, em sentido amplo, coincide com a sua retirada (parcial718) de

cena das questões cotidianas da direção partidária, em razão da doença, assim como com uma

produção infatigável, que, ainda mais para alguém convivendo com a degradação física

provocada pelo HIV, ultrapassa a “humana medida”, como diz o sempre entusiasta Edwy

Plenel. Se, até 1988, ele havia publicado alguns livros e artigos, quase sempre diretamente

vinculados a preocupações políticas imediatas, a partir de 1989, até a morte em 2010, o filósofo

francês escreve mais de duas dezenas de livros, além de centenas de artigos, publicados em

diversas línguas.

Açoitado pela temporalidade emergencial imposta pela doença, como se cada livro ou

texto redigido pudesse ser o último, como se tudo pudesse acabar antes de se ter completado a

necessária “passagem” geracional política e intelectual, Daniel Bensaïd “pôde” se entregar à

“vocação” e à “servidão” que rondam a escrita. Como que racionalizando essa angústia

existencial e intelectual, espremido entre a pressa e a busca da “forma” adequada, Bensaïd

afirmaria em sua “autobiografia”: “escrever é uma servidão mais que uma vocação. Construção

sempre recomeçada, o livro atormenta a cabeça. Demanda esforços desmedidos para um

resultado tão decepcionante quanto efêmero”719. Afrontando essas condições ambivalentes,

Bensaïd desenvolveu um “estilo de pensamento” próprio, como diz Enzo Traverso720. Se,

conforme sustentou Gilbert Aschar, “toda a obra de Daniel Bensaïd deixa transparecer [a]

tensão entre uma vocação literária frustrada e uma vocação política, adotada em detrimento da

primeira, uma tensão que encontramos em Trotsky”721, essa “tensão” foi sensivelmente

atenuada na virada para os anos 1990, quando o filósofo assume a primeira sem abandonar a

segunda, buscando um equilíbrio instável e complexo, mas doravante não impossível.

718 Parcial porque, conforme vários testemunhos, Daniel Bensaïd continuou tendo um papel decisivo no interior

da organização, em especial na definição de sua linha político-programática. Ademais, mesmo no plano das esferas

de poder dentro da LCR, Gérard Filoche acusa Bensaïd de ter sido o principal responsável pelas “manobras

sectárias” que levaram à expulsão da sua tendência (Democracia Socialista) da organização em 1994. Cf.

Correspondência com Filoche, agosto/setembro de 2015. 719 Daniel Bensaïd, Une lente impatience, op.cit., p.376. 720 Enzo Traverso, “Le passeur”, op.cit., p.175. 721 Gilbert Achcar, “L’intellectuel symbolique”. In: Lignes, n.32, Paris: Lignes, 2010, p.19.

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É nesse contexto que se pode compreender o “ensaísmo” sui generis desenvolvido por

Bensaïd, repleto de idas e vindas, de comentários e complementos “cortados” por afirmações

aparentemente peremptórias, mas que constituem sínteses provisórias de uma reflexão em

movimento. Distanciando-se da escrita monótona que caracteriza ampla parcela do trotskismo

do pós-segunda guerra, Daniel Bensaïd aproximava-se, ao mesmo tempo, da prosa sofisticada

de alguns autores vinculados à geração anterior desta tradição, a qual inclui nomes como Isaac

Deutscher, Maurice Nadeau e C. L. R. James sem falar no próprio Trotsky722.

6.5. Convergências (e discordâncias) benjaminianas: entre política e teologia

Por razões e contingências políticas, intelectuais e existenciais diferentes, o “encontro”

de Michael Löwy e Daniel Bensaïd com Walter Benjamin foi, para ambos, como pudemos

conferir, decisivo. Os dois se depararam com as interpelações benjaminianas em um algum

momento (Löwy mais cedo, Bensaïd um pouco mais tarde) de um quadrante histórico marcado

por uma articulação talvez sem precedentes de múltiplas crises: uma crise propriamente

econômica, cujo sinal de alarme ocorreu no choque do petróleo em 1973, anunciando a crise e

o desmonte do modelo de regulação keynesiano-fordista que vigorou no pós-guerra, desmonte

posto em marcha a partir do final da década de 1970, com a ascensão de Thatcher na Inglaterra

e Reagan nos EUA e o consequente avanço das políticas neoliberais; uma crise cultural, no

sentido amplo, que atinge diretamente as solidariedades de classe e parecia anunciar um novo

modo (“pós-moderno”) de reprodução do sistema; e, enfim, uma crise “política”, vinculada às

outras duas, transformando as relações de força e as condições nas quais se desenrola a luta

e/ou negociação de classes, e cujo maior derrotado foi o movimento operário e as esquerdas

políticas e intelectuais.

Embora sem provocar nenhuma ruptura, a incorporação de Benjamin por Löwy e por

Bensaïd transfigura, por assim dizer, as transformações que então ocorriam, nele buscando

elementos para a “crítica” da “crise”. Em Daniel Bensaïd, cuja redescoberta de Benjamin é

posterior (1985/6), essa “transfiguração” é ainda mais sensível, uma vez que realizada sob o

impacto da constatação do fim melancólico de um ciclo político, o que tornou o contraste com

o período anterior (dominado por uma leitura singular da ortodoxia leninista) mais nítido.

Menos impactante, já que desde antes havia arriscado algumas escapadas heterodoxas, tal

inflexão não é, porém, menos verdadeira quando se trata de Löwy, conforme se notou. Para

722 Sebastian Budgen, “Le hussard rouge: Daniel Bensaïd, 1946-2010”. Revista Contretemps web. Disponível em:

www.contretemps.eu/interventions/hussard-rouge-daniel-bensaïd-1946-2010.

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ambos, Benjamin tornou-se uma passagem para outros temas e preocupações, ou para novas

abordagens das questões anteriores, facultando-lhes a possibilidade, exatamente num momento

de “transição”, de se reposicionaram frente às suas próprias “raízes” familiares (e, portanto,

sociais, culturais, religiosas e nacionais).

É assim que, via Benjamin, ambos “reencontram” suas origens familiares (judaicas), as

quais, por sua vez, parecem condicionar não apenas a escolha do tema, senão também a forma

de o abordar. Assim, o filho de judeus austríacos Michael Löwy inclinou-se para uma análise

de Benjamin que o compreendia no contexto de uma constelação mais ampla de intelectuais da

Europa Central de cultura alemã, opção analítica que determina a sua forma de interpretar o

pensamento do filósofo alemão. Dessa escolha decorrem, por exemplo, a importância conferida

à juventude de Benjamin e, em consequência, às dimensões teológica e romântica de sua obra,

as quais ele valoriza como um ganho que não será abandonado – bem ao contrário – nem mesmo

com a adesão do autor ao marxismo. O filho de um judeu sefardita da África do Norte e de uma

republicana da França profunda Daniel Bensaïd, por sua vez, que viveu em sua juventude a

atmosfera republicano-comunista “latina” de Toulouse, não esconde sua preferência, como

vimos, por um Benjamin lido em relação direta com uma certa tradição revolucionária francesa

dissidente e anti-positivista (e anticlerical): Blanqui, Péguy, Sorel e mesmo, com nuances,

Robespierre e Saint-Just. Daí a ênfase em um Benjamin vivamente político como aquele dos

últimos anos de vida, espremido entre o stalinismo e o fascismo, leitor de Blanqui,

“melancólico-revolucionário” e “racionalista-messiânico”. Sob inspiração dessa plêiade

revolucionário-francesa-dissidente, Bensaïd busca “profanizar”, por assim dizer, o

messianismo benjaminiano, dotando-o de uma dimensão estratégica e, assim, imanente.

Enquanto o Benjamin de Löwy permanece, mesmo depois de sua adesão ao marxismo,

hospedeiro de uma dimensão teológica (e romântica) irredutível, apoiando-se para tal,

parcialmente, nas posições de Scholem, o Benjamin de Bensaïd, tão ou mais imaginário que o

do amigo, revela-se um opositor profano ao gosto romântico-teológico pelas práticas ocultas,

que para ele não seria senão o “reverso ilusório do desencantamento técnico”. Ao contrário de

Löwy, para quem a política de Benjamin resta impregnada de religiosidade judaica, sendo ao

mesmo tempo materialista e teológica, Bensaïd acredita, segundo afirmou no primeiro texto

sobre o autor, em 1989, que “o judaísmo de Benjamin é um judaísmo europeu, das Luzes e da

diáspora, universalista” – por isso ele jamais cumpriu a promessa de ir viver na Palestina ao

lado de seu amigo sionista G. Scholem724.

724 Daniel Bensaïd, “Projet de synopsis. Walter Benjamin et l’école de Francfort”, op.cit., s/p.

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A bem dizer, para Bensaïd, naquilo que poderia ser uma autodescrição (e tudo o que

isso envolve de mistificação), Benjamin encarnava uma “modalidade negativa de existência

judaica”, cujo sentimento de não-pertencimento afirma-se como heresia frente à adesão

petrificada às certezas dogmáticas. À contracorrente tanto da assimilação como do sionismo, o

judaísmo de Benjamin seria, na ótica de Daniel Bensaïd, um “judaísmo em dissimulação”.

Herdeiro herético da dialética da razão, como ele diria mais tarde, “Benjamin permanece um

homem das luzes que mobiliza paradoxalmente os recursos da mística judaica para reanimar

um marxismo degenerado em razão de Estado”725. O seu “judaísmo não-religioso” seria apenas

uma forma de radicalizar a “dissidência contra a petrificação burocrática do pensamento”726.

À diferença de Michael Löwy, então, Bensaïd acredita que a originalidade (e a

atualidade) de Benjamin reside não em sua capacidade de incorporar ao marxismo as “grandes

recusas” utópico-religiosas e/ou românticas, e sim na sua “profanação” da herança teológica

(do messianismo judeu), visando sublinhar o primado do presente como espaço-tempo da

política e, portanto, como campo no qual passado e futuro são permanentemente interpelados727.

Eis por que Bensaïd negligencia, em suas análises – na contramão de Löwy –, a influência de

Scholem no pensamento de Benjamin. Para o filósofo francês, tal como outros heréticos,

Benjamin absorve a tradição judaica apenas para ultrapassá-la em direção a um novo patamar

de universalidade, agarrando-se a um presente entendido como momento de seleção dos

possíveis, no qual a “razão” política passa à frente das “desrazões” religiosas e/ou étnicas.

Ao lado de outros heréticos como Spinoza, Freud, Marx, Rosa Luxemburgo e/ou

Trotsky (e do próprio Bensaïd?), Benjamin filia-se, conforme ele diz, à tradição heterogênea de

intelectuais de origem judaica cujo “universalismo exuberante” transborda as fronteiras do

“espaço estreito do sionismo em sua precipitação mortífera”728. Para Daniel Bensaïd, após sua

excomunhão, Spinoza – este “pária ainda não consciente” excomungado pelo judaísmo oficial,

“anti-sionista radical” – prefigura o secularismo judaico e a política profana, levando a cabo a

dissolução da identidade judaica na universalidade da razão. “O racionalismo universalista de

Spinoza minava as fronteiras da nação e os fundamentos de um Estado construído sobre um

725 Daniel Bensaïd, “Walter Benjamin: la traversé de décombres”. Revue Internationale des livres et des idées,

n.13, 2009, s/p. Disponível em: http://www.europe-solidaire.org/spip.php?article15282. 726 Walter Benjamin, Sentinelle messianique, op.cit., p.31. 727 Em seu prefácio a Sentinelle Messianique, de Bensaïd, Enzo Traverso (“Le concordance des temps. Daniel

Bensaïd et Walter Benjamin”, op.cit., p.17) critica o ímpeto anti-utópico e anti-teológico da interpretação

benjaminiana realizada pelo filósofo francês. Em sua opinião, “a categoria forjada por Isaac Deutscher do ‘judeu-

não-judeu’ [...] se aplica perfeitamente a Daniel Bensaïd, mas muito mais dificilmente a Walter Benjamin”. Para

ele, “à diferença daquele de Bensaïd, o messias de Benjamin não era ‘laicizado’”. 728 Daniel Bensaïd, “Le marranisme, un internationalisme réinventé. Entretien sur les mouvements d’émancipation

d’hier et d’aujourd’hui”, Passant, n. 38, janvier-février 2002. Disponível em: http://danielbensaid.org/Le-

marranisme-un-internationalisme?lang=fr.

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princípio étnico-teocrático”, baseado numa “ontologização do ser judeu”729. Ele constitui,

assim, um prelúdio do pária universal da modernidade, dos outsiders cuja resistência contribui

para a formação de um universalismo concreto, mais além dos “pânicos identitários” e das

“identidades autárquicas”.

Seja em Spinoza e/ou em Benjamin, Bensaïd valoriza a passagem da resistência

específica da condição pária à política potencialmente universal, em um movimento capaz de

ativar a dimensão messiânica ativa da razão profana e do republicanismo radical. Após a

descoberta da obra de Benjamin, no entanto, Bensaïd resgata – assim como Löwy – a figura do

“pária rebelde”, o pária judeu “marrano”, como ponto de apoio para uma releitura do marxismo

e de suas relações com as demais tradições do pensamento anticapitalista. Mas enquanto Löwy

realiza um retorno às fontes do “sionismo libertário” e/ou do comunismo de intelectuais judeus

da Europa Central anteriores ao genocídio nazista (e, portanto, anteriores à construção do

Estado de Israel), Daniel Bensaïd apoia-se na tradição universalista-republicana francesa (onde

o processo de assimilação se desenvolveu de forma mais profunda, apesar de episódios como o

caso Dreyfus) para reivindicar a figura do “judeu desjudeizado” (Proust), do “judeu

excomungado”, herético (Spinoza), como uma nova via de acesso ao universalismo concreto,

revolucionário e, sobretudo, inteiramente profano.

Daí sua apreciação positiva da figura do “marrano”730, cujo equilíbrio instável, no limiar

entre o singular e o universal, é refratário aos enraizamentos e petrificações identitárias. Nas

palavras de Bensaïd: “o que me interessa no marrano imaginário é a sua dupla identidade sem

duplicidade”; é a sua característica de “passagem”, “mutação”, “de um mundo a outro, de uma

época a outra”, que faz com que a herança histórica seja permanentemente rediscutida e

atualizada, e não apenas reproduzida. Esta impossibilidade de reconciliação “é propícia às

invenções, aos esquemas engenhosos”, à originalidade731. A figura do “marrano” sugere, assim,

uma outra relação com a tradição, uma relação ativa e mutável, na mesma medida de sua

“instabilidade” existencial, para além do apego dogmático ao texto – um perigo que ronda o

judaísmo, mas também outra das tradições com as quais Bensaïd se deparou: o trotskismo.

Nessa perspectiva, o marrano indica uma via possível de reinterpretação das tradições (judaica

729 Daniel Bensaïd, “Da Costa et Spinoza: affaires non classées. Préface”, in: Uriel da Costa, Image d’une vie

humaine. Paris: éditions Climats, 2002. Disponível em: http://danielbensaid.org/Da-Costa-et-Spinoza-affaires-

non?lang=fr. 730 Em espanhol, “marrano” – “porco”, no seu sentido pejorativo – designa, como vimos na introdução, os judeus

convertidos à força ao catolicismo a partir de 1492, mas que continuaram professando em segredo o judaísmo.

Trata-se, portanto, de uma figura que, simbolicamente, representa uma dupla existência, que se encontra em

equilíbrio precário entre o mito do povo eleito e o universalismo cristão. 731 Daniel Bensaïd, “Le marranisme, un internationalisme réinventé..., op.cit., s/p.

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e trotskista), sem renunciar – por meio de veleidades “ortodoxas” – ao risco necessário da

heresia e da “infidelidade”, que, muitas vezes, é mais fiel ao espírito de uma dada tradição do

que os fetichistas da letra.

Para Daniel Bensaïd, a relativa “independência” do marrano, entre o particular e o

universal, lhe garante certo “privilégio epistemológico” que o torna habilitado a escapar tanto

do particularismo identitário e/ou religioso quanto do universalismo abstrato. Segundo Bensaïd:

“em política, o marranismo conduz, assim, a uma terceira via entre os pânicos identitários e a

indiferenciação de um cosmopolitismo mercantil”732. “Sentinela solitária”, “judeu-não-judeu”,

Benjamin encarna as ambivalências de um “comunismo marrano”733, espreitado entre a

particularidade do seu “judaísmo não-religioso” e a universalidade concreta do seu marxismo

idiossincrático. É este “comunismo marrano” que, segundo Bensaïd, estimula em Benjamin

uma reinterpretação heterodoxa tanto do judaísmo quanto do marxismo, conduzindo a um

“internacionalismo reinventado”, como ele diz em sua “autobiografia” Une lente impatience734.

Não há dúvida de que a abordagem de Daniel Bensaïd da questão do judaísmo (e do

marranismo etc.), em seu intento de ultrapassar qualquer resquício religioso e/ou identitário,

encontra-se sobredeterminada pela oposição política e ideológica radical às atitudes do Estado

de Israel a partir da guerra dos Seis Dias (1967), que muito o impactou nos primeiros anos de

sua vida militante. Desde então, e com mais afinco nos anos 1990 e 2000, Daniel Bensaïd

sustenta a necessidade de uma crítica política do sionismo, desvinculando-a de todo traço de

anti-semitismo racial e/ou étnico. Em sua opinião, a identificação entre anti-sionismo (enquanto

oposição política às pretensões agressivas do Estado de Israel) e anti-semitismo (como rejeição

aos judeus enquanto tais) constitui uma tentativa de instrumentalizar a memória da perseguição

aos judeus como argumento de legitimação das bases nas quais se assenta Israel – tarefa

“ideológica” que sempre contou com o auxílio inestimável dos judeus ricos (novos “parvenus”)

dos EUA e (o que mais irritava Bensaïd) de alguns intelectuais franceses, respaldados pelas

fortes instituições judaicas na França736. Se assim fosse, como se quer fazer crer, todo anti-

sionismo político seria, no limite, uma manifestação do anti-semitismo, e todo apoio aos direitos

732 Idem, s/p. 733 Daniel Bensaïd, Sentinelle messianique, op.cit., p.36, 37. 734 Daniel Bensaïd, Une lente impatience, op.cit., p.399. 736 Isso não o impediu, porém, de ser convidado para o XXXII Colloque des Intellectuels Juifs, em 1991, cujo tema

era “Morale et Politique en Péril”, título do livro publicado dois anos mais tarde. No texto apresentado, intitulado

“Les rêves de gauche?”, Bensaïd reafirma sua “judeidade negativa” e sua reivindicação de um “comunismo

marrano”: “eu me considero de esquerda e trotskista do mesmo modo que me reivindico judeu, sem pânico

identitário nem aderência comunitária. Por determinação negativa. Eu sou de esquerda face à direita. Eu sou

‘trotskista’ face a um stalinista (porque ainda existe). Tal como sou resolutamente judeu face a um antissemita”.

Cf. Daniel Bensaïd, “Les rêves de gauche?”, in: Jean Halpérin; Georges Lévitte, Morale et Politique en Péril,

1993, pp.87-102.

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dos palestinos – o que está indissociavelmente ligado à crítica às políticas de Israel –, portanto,

um crime. E foi exatamente sob esse tipo de argumento que vários intelectuais franceses críticos

das políticas de Israel, como Edgar Morin, Daniele Sallanave, Alain Badiou e Samy Naïr foram

processados e, em alguns casos, condenados por “difamação racial”737.

Como revela Daniel Bensaïd no quarto capítulo – “Hantologies de l’Être juif” – do livro

Fragments mécréants. Mythes identitaires et république imaginaire, publicado em 2005, “o

anti-sionismo político não contesta a presença de uma comunidade nacional judaica, cujas

formas de coabitação com o povo palestino aguardam uma resolução. Ele critica as instituições

etno-tecnocratas de um Estado fundado, em virtude da lei do retorno, sobre o direito de sangue”.

O anti-sionismo significa, acima de tudo, em sua ótica, uma posição política concreta. “Não se

pode confundi-lo com uma orientação racial ou religiosa, do mesmo modo que o antinazismo

não poderia ser confundido com a germanofobia ou o anti-imperialismo com o

antiamericanismo estúpido”738.

Evidentemente, Michael Löwy também sempre se opôs às políticas militaristas de Israel,

manifestando-se, por exemplo, contra a guerra dos Seis Dias no próprio país, onde então vivia,

o que lhe valeu problemas no ambiente acadêmico. Em coerência com essa posição, Löwy

assinou o manifesto de 2001 organizado por Bensaïd, En tant que juifs..., assim como sempre

defendeu a luta e a resistência palestinas. Mas sua ótica da questão mais ampla do judaísmo e,

especialmente, do judaísmo intelectual, é desde cedo sensivelmente diferente daquela de

Bensaïd. Seu irmão mais velho, como vimos, sua primeira referência sobre o socialismo, era

sionista convicto, em uma época em que as contingências do Estado de Israel ainda mantinham

acesas as esperanças de um sionismo socialista-libertário. Em Israel, Löwy viveu, com a mãe e

o irmão, em um Kibutz, símbolo desse outro caminho possível. Assim, embora nesse período

aparentemente Löwy demonstrasse pouco interesse pela questão judaica e pelo futuro do Estado

de Israel, tal vivência ajuda a compreender seu apreço, que se manifestaria bem mais tarde (via

Benjamin), por intelectuais judeus messiânico-libertários, de esquerda, como que para “salvar”

essa outra tradição judaica, cada vez mais sobreposta pela razão de Estado de Israel. É como

se, por trás das ruínas da realpolitik sionista-israelense, existisse ainda a vocação libertária de

alguém como Scholem e Martin Buber (ou mesmo, em outra chave, Benjamin).

737 O próprio Daniel Bensaïd foi “intelectualmente” acusado de “antissemitismo judeu”, por Alain Finkielkraut, o

mesmo que, em seu programa na Rádio France Culture, disse que Bensaïd andava com uma estrela de David em

um bolso e com a suástica de outro. Segundo disse Sophie Bensaïd, algum tempo depois, consciente da estupidez

da acusação realizada, Finkielkraut se desculpou com Bensaïd convidando-o inúmeras outras vezes para seu

programa. Entrevista com Sophie Bensaïd, Paris, maio de 2014. 738 Daniel Bensaïd, “Hantologies de l’Être juif”, in: Fragments mécréants. Mythes identitaires et république

imaginaire. Paris: Lignes, 2005, p.90, 91.

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Entremeadas por condicionantes das mais variadas ordens (histórico-social, política,

cultural, existencial), as leituras benjaminianas realizadas por Michael Löwy e Daniel Bensaïd

são, portanto, necessariamente seletivas e, em alguma medida, autolegitimadoras, ainda mais

porque se tratava, nos seus casos, não tanto de uma análise meramente exegética da obra de

Benjamin, como de uma interpretação explicitamente inspirada nos desafios político-

intelectuais do presente. Nesse percurso, respondendo às condições da época, assim como às

contingências de suas trajetórias, cada qual constrói o seu próprio Benjamin, com seus limites

e marcas específicas. Do ponto de vista do “conjunto” da obra de Benjamin, ambos minimizam

em seu próprio proveito as complexidades do “objeto”, simplificando-o até torná-lo palatável

ao projeto político-intelectual mais amplo que os guiava, vinculado à aposta em uma renovação

possível do marxismo – da qual eles não sabem senão aquilo de que é preciso se desvencilhar

(o progresso, o racionalismo instrumental, o positivismo etc.), o que explica a dimensão

dialeticamente “negativa” de suas empreitadas.

À diferença de Daniel Bensaïd, que sequer justifica suas opções por este ou aquele

Benjamin, concebendo-as sempre no plano do debate político da esquerda radical, Michael

Löwy, cuja pesquisa insere-se em contexto acadêmico-institucional (sociologia da religião),

além de estar mais integrado aos círculos benjaminianos (como demonstra sua participação no

colóquio de 1983 em Paris), esboça uma caracterização do conjunto da trajetória do filósofo

alemão, seja relacionando-a a outros intelectuais judeus contemporâneos, seja analisando-a no

seu desenvolvimento interno. No seu caso, é no âmbito dessa qualificação das “etapas” do

percurso/obra de Benjamin que se revelam as dificuldades de conciliar a leitura do texto em seu

contexto, e a interpretação que necessariamente remete ao seu próprio presente, horizonte

inelutável da apropriação do passado.

Assim, por exemplo, a fim de sustentar a ênfase posta nas dimensões romântico-utópica

e teológico-messiânica da obra benjaminiana, Löwy é obrigado a minimizar a importância de

Brecht em seu itinerário, circunscrevendo o período em que Benjamin esteve mais diretamente

sob sua influência (entre 1933 e 1935) a um suposto “parêntese progressista”. Nas suas palavras,

em nítida contraposição às leituras “materialistas” e brechtianas de Benjamin: “Durante um

breve período ‘experimental’, entre 1933 e 1935, a época do Segundo Plano Quinquenal, alguns

textos marxistas de Benjamin parecem próximos do ‘produtivismo’ soviético e de uma adesão

pouco crítica às promessas do progresso tecnológico”739.

739 Michael Löwy, Alarme de incêndio, op.cit., p.26.

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Para Löwy, os ensaios dessa época – dentre os quais se pode destacar “Experiência e

Pobreza” (1933), “O autor como produtor” (1934), além do célebre e polêmico “A obra de arte

na era de sua reprodutibilidade técnica” – encontram-se na fronteira “de um materialismo

histórico ‘clássico’, se não ortodoxo”, em consequência de uma apreciação positiva das novas

possibilidades do progresso técnico740. Para Löwy, tal “parêntese progressista” perde força com

a retomada da análise crítica das “fantasmagorias” da modernidade no projeto das Passagens,

sobretudo nos ensaios sobre Baudelaire e a ele vinculados, a partir de 1936. Aqui, no âmbito de

uma análise crítica das fantasmagorias inscritas na produção e na cultura das mercadorias, a

alegoria do autômato – sob os escombros de toda experiência genuína – indica a vigência de

uma repetição infernal do “sempre-igual”, do “novo sempre velho, e do velho sempre novo”,

repetição que nada mais é do que a contraface historicamente necessária da proliferação das

ideologias modernas do progresso741.

Ora, ao insistir na coerência interna da obra de Benjamin, coerência reordenada após a

sua adesão ao marxismo, Löwy acaba tratando os textos que não se encaixam no seu modelo

explicativo como expressões de um “parêntese” em que, suscetível à influência do materialismo

brechtiano, o crítico alemão teria se aproximado temporariamente de uma leitura mais

“modernista” do marxismo. É como se, sem confessar, e talvez mesmo inconscientemente,

Löwy acabe chancelando a visão negativa que Adorno e Scholem tinham sobre a influência de

Brecht sobre Benjamin, como se a esta influência fosse creditada, ao menos parcialmente, o

flerte benjaminiano com um marxismo “progressista” e “tecnicista-modernista”. Tal

interpretação, porém, tanto quanto as de Scholem e de Adorno, é incapaz de apreender as

nuances que atravessam a obra benjaminiana, a qual, vista em seu conjunto, torna-se irredutível

aos seus componentes esparsos. De certa forma, nem Scholem, nem Adorno e tampouco Brecht,

além de Löwy e de Bensaïd, apreendem em toda a sua complexidade as ambivalências que

rodeiam a posição de Walter Benjamin em relação à modernidade, a qual ele parecia a um só

tempo condenar radicalmente e, em outro instante, deslumbrar-se até mesmo com certa

740 Das críticas à perspectiva interpretativa de Michael Löwy em relação a Benjamin, talvez a mais interessante

seja a de Jeanne-Marie Gagnebin, em História e narração em Walter Benjamin (São Paulo: Perspectiva, 2007).

Na opinião da autora, com a opção por uma interpretação romântico-revolucionária do pensamento do filósofo

alemão, Michael Löwy realiza “uma leitura por demais realista da Urgeschichte (história original, pré-história) na filosofia da história de Benjamin”. Ele “insiste sobre o lado arcaizante desse conceito e, embora mencione a crítica

de Adorno a este respeito, continua a defender este arcaísmo latente como uma contribuição decisiva e positiva

para a teoria da história e da revolução em Benjamin” (p.8). 741 “a alegoria do autômato, a percepção aguda e desesperante do caráter mecânico, uniforme, vazio e repetitivo

da vida dos indivíduos na sociedade industrial, é uma das grandes iluminações que atravessam os últimos escritos

de Benjamin”. Michael Löwy, Redenção e Utopia, op.cit., p.101.

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ingenuidade, tal como ocorre, por exemplo, em seu célebre ensaio sobre a obra de arte na era

de sua reprodutibilidade técnica.

Tomando-o como responsável por uma “crítica moderna da modernidade”, Michael

Löwy tenta conferir coerência a essa antinomia, mas o faz de um viés explicitamente

“romântico-negativo”: nele, essa “crítica moderna” é mais crítica (da modernidade) do que

propriamente “moderna”, já que acentua a ruptura com os paradigmas vinculados à “civilização

capitalista-moderna”. E mesmo quando se trata do Benjamin “surrealista”, a ênfase recai

sobretudo sobre os aspectos místico-românticos, quando não nostálgicos, do movimento

liderado por André Breton. Para Löwy, por exemplo, o que aproxima Benjamin de um

surrealista como Breton é um “marxismo gótico” por ambos compartilhado, um marxismo

romântico-revolucionário que valoriza certos aspectos específicos do passado como forma de

reencantamento do mundo, em oposição a um presente desencantado e dominado pela gaiola

de aço e pela racionalidade instrumental.

Daniel Bensaïd, por sua vez, vendo em Benjamin uma crítica “racional-messiânica” da

“razão histórica”, bem como uma defesa da política profana contra o culto sonolento do

progresso, descarta sumariamente o elemento místico-teológico e utópico que perpassa toda a

trajetória do filósofo alemão, em nome de uma racionalidade político-estratégica estrangeira às

preocupações benjaminianas. Seu Benjamin é aquele da ação revolucionária, da bifurcação

blanquista, figura universalista como os “judeus não judeus” do passado – Marx, Rosa, Trotsky

etc. Um Benjamin, porém, que, embora corresponda parcialmente a um momento determinado

da vida do filósofo alemão, é igualmente apreendido de forma redutora e algo imaginária, como

se dotado fosse de uma ótica político-estratégica. “Para nós, Benjamin se torna uma imagem

dialética, o ponto de cristalização de um pensamento messiânico lutando contra as hipóstases

de razão histórica”742.

Se Löwy vê em Benjamin um “marxista gótico” que almeja reencantar o mundo a fim

de transformá-lo, Bensaïd compreende a “racionalidade messiânica” – que ele extrai da obra

benjaminiana – como um desencantamento necessário diante do encantamento fetichista do

mundo das mercadorias, em outras palavras, como um trabalho de desmistificação sui generis,

não mais baseado em um racionalismo estreito – que opõe a razão da teoria à desrazão do real

–, mas sim uma razão atenta à possibilidade do acontecimento político, para além da

passividade subjacente à crença na corrente da história. Nos termos utilizados pelo próprio

Benjamin no projeto das Passagens, pode-se dizer que, enquanto Michael Löwy insiste (como

742 Daniel Bensaïd, Walter Benjamin, sentinelle messianique, op.cit., p.37.

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os surrealistas, aliás) na necessidade de reativação da carga utópica (romântica e/ou religiosa)

da constelação do “sonho” – com seu reencantamento do mundo –, Daniel Bensaïd acentua a

importância de revitalização de uma razão messiânica profana e “desencantadora” como

prelúdio do momento do “despertar” da práxis política.

Para Daniel Bensaïd, “em meio aos escombros, não se trata de sonhar, mas – para

retomar uma fórmula benjaminiana – de despertar dos pesadelos deste século”743. Através do

“machado afiado da razão”, conforme disse Benjamin nas Passagens, confirmar-se-ia a

possibilidade de uma política profana capaz de desmistificar um mundo no qual “viceja a

loucura”744. Michael Löwy, ao contrário, retoma as afinidades de Benjamin com a abordagem

surrealista, rejeitando a tese – que se tornou um lugar-comum dentre os estudiosos

benjaminianos – de que a oposição entre despertar e sonho, no livro das Passagens, seria uma

comprovação das diferenças substanciais entre o filósofo alemão e o movimento liderado por

André Breton745. Na opinião de Löwy, quando afirma que, à diferença d’O Camponês de Paris,

de Louis Aragon, que “persiste no domínio do sonho”, “deve ser encontrada aqui a constelação

do despertar”, Benjamin está se referindo apenas ao próprio Aragon ou, se muito, à “etapa

heroica” do movimento em seus primórdios, mas “não ao surrealismo tal como se desenvolveu

no curso dos anos 1927-1928”. Mesmo porque, diz ele, tal como Baudelaire e/ou André Breton,

“a aspiração de Benjamin não é a criação de um mundo novo onde a ação seria enfim irmã do

sonho?”746.

Movendo-se ao redor dessa polaridade entre teologia e política, sonho e despertar,

reencantamento e desencantamento, respectivamente, no âmbito de um mesmo quadro de

leitura, Michael Löwy e Daniel Bensaïd revelam suas posições de princípio, demarcando duas

interpretações possíveis de Benjamin à luz de um “marxismo messiânico” que se lhes tornou

comum. É certo, porém, que Walter Benjamin não é nem tão surrealista quanto gostaria Löwy,

nem tão racionalista-messiânico como queria Bensaïd; nem tão romântico-utópico como

sustenta Löwy, tampouco um anti-utópico e estrategista como afirma Bensaïd; nem tão

teológico como acredita Löwy, nem tão “desjudeizado”, como assevera Bensaïd. Talvez, tanto

743 Daniel Bensaïd, “Qu’ont-ils fait des rêves de gauche?”. In: Penser, agir. Paris: Lignes, 2008, p.40. 744 “Tornar cultiváveis regiões onde até agora viceja apenas a loucura. Avançar com o machado afiado da razão,

sem olhar nem para a direita nem para a esquerda, para não sucumbir ao horror que acena das profundezas da

selva. Todo solo deve alguma vez ter sido revolvido pela razão, carpido do matagal do desvario e do mito. É o que

deve ser realizado aqui para o solo do século XIX”. Walter Benjamin, Paris, capitale du XIXe siècle, op.cit., p.473,

474.

745 Michael Löwy, “Walter Benjamin e o surrealismo: história de um encantamento revolucionário”. In: A estrela

da manhã: surrealismo e marxismo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002, p.53, 54. 746 Idem, p.54.

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pela evolução cheia de sobressaltos de sua trajetória quanto pelo caráter idiossincrático com

que tomava os autores que o influenciavam, Benjamin seja quase sempre ambas as coisas ao

mesmo tempo, de tal forma que as interpretações de Löwy e de Bensaïd, em suas diferenças,

acabam sedimentando um caminho mais ou menos comum no contexto das recepções

benjaminianas, bem como no espectro do marxismo crítico contemporâneo.

Essa combinação entre a convergência em torno de um projeto comum (“marxista-

messiânico”) e as divergências no tratamento concreto de Benjamin, cada qual ocupando uma

polaridade desse quadro recíproco (sonho/teologia – despertar/política profana), condicionam,

e/ou exprimem as afinidades e as discordâncias em suas reflexões e pesquisas nos anos 1990 e

2000, quando as “reverberações benjaminianas” se revelam nos temas específicos que

compõem, nesse período, suas obras.

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III Parte

Reverberações benjaminianas

Inspirados na verve benjaminiana, Michael Löwy e Daniel Bensaïd abriram-se, por

assim dizer, para um conjunto de novos temas e, mais, de novas abordagens teóricas, como se

à incorporação dos primeiros devesse se seguir uma problematização das segundas. As formas

através das quais procedem nesse trabalho de reposicionamento teórico-intelectual são, assim,

reveladoras do percurso de seus trabalhos após a incorporação de Benjamin, uma vez que

sinalizam, em suas peças específicas, a diferença substantiva com o momento “anterior” (“pré-

benjaminiano”, digamos) de suas trajetórias. Nesta perspectiva, o objetivo desta terceira e

última parte do trabalho é analisar criticamente o desenvolvimento dos itinerários e das obras

intelectuais de Michael Löwy e de Daniel Bensaïd após suas “inflexões” benjaminianas,

particularmente nas décadas de 1990 e 2000, momento em que a nova orientação se desdobra

na reflexão renovada sobre velhas e novas temáticas.

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7. Marxismo e críticas da modernidade em Michael Löwy747

7.1. Romantismo e marxismo: dilemas do anticapitalismo

Desde a virada para os anos 1980, simultaneamente à incorporação do pensamento de

Walter Benjamin, Michael Löwy estabeleceu como um dos eixos de suas reflexões e trabalhos

intelectuais a tentativa de reativar o marxismo, colocando-o em contato com diversas outras

formas de crítica da modernidade, das quais este sempre se manteve prudente distância, a fim

de se diferenciar das rejeições nostálgicas e/ou reacionárias do presente moderno. Para Löwy,

a situação atual exigia uma nova postura. Como ele afirma em texto da década de 1990, que

resume o alicerce de fundo (político) de seu posicionamento intelectual: “para enfrentar os

problemas atuais”, dentre os quais a crise ecológica, o marxismo precisa “radicalizar sua crítica

da modernidade, do paradigma da civilização ocidental, industrial, moderna, burguesa”748.

Em Löwy, tal problemática apresenta-se em toda a sua amplitude e sistematicidade

(assim como em seus limites) em sua tentativa de reelaboração da “visão de mundo” romântica.

Em seu primeiro e ainda incipiente trabalho sobre o “romantismo revolucionário”, ele escreveu:

“Nesse momento, não apenas a humanidade se encontra, graças ao ‘progresso técnico’, sob a

ameaça permanente de um holocausto atômico, mas também nos aproximamos, a passos de

gigante, de uma ruptura catastrófica do equilíbrio ecológico do planeta [...]. Daí a importância,

a nosso ver, de reencontrar a dimensão romântico-revolucionária do marxismo e enriquecer a

perspectiva socialista do futuro com a herança perdida do passado pré-capitalista, com o tesouro

precioso dos valores qualitativos comunitários, culturais, éticos e sociais afogados pelo capital,

nas ‘águas glaciais do cálculo egoísta’”749.

Neste livro, Marxisme et romantisme revolutionnaire: essais sur Lukács et Rosa

Luxemburg, publicado em 1979, Löwy esboça pela primeira vez uma “definição global” do

fenômeno, mas ainda destaca, na esteira de sua tese sobre Lukács, a ambivalência da nebulosa

romântica, caracterizado por um “hermafroditismo ideológico”. Seria apenas a partir do início

da década de 1980, quando começa seu trabalho conjunto com Robert Sayre, que Löwy

sistematiza uma concepção mais ampla (demasiadamente, como se argumentará) do

romantismo entendido como uma “visão de mundo” moderna que atravessa o conjunto do

747 Em outra chave, analisei a questão das diversas facetas da crítica da modernidade na obra de Michael Löwy em

minha dissertação de mestrado, recentemente publicada em livro. Em certa medida, a discussão aqui realizada

retoma alguns pontos debatidos no livro, dando-lhes, porém, um outro tratamento, em conformidade aos objetivos

da pesquisa de doutorado. Cf. Fabio Mascaro Querido, Michael Löwy: marxismo e crítica da modernidade. São

Paulo: Boitempo Editorial, 2016. 748 Michael Löwy, “Marxismo: resistência e utopia”. In: Michael Löwy & Daniel Bensaïd, Marxismo,

modernidade e utopia (seleção e organização: José Corrêa Leite). São Paulo: Xamã, 2000, p.242. 749 Michael Löwy, “A crítica romântica...”, op.cit., 1990, p.33. Originalmente publicado em Marxisme et

romantisme révolutionnaire: essais sur Lukács et Rosa Luxemburg. Paris: Le Sycomore, 1979.

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espectro político e as diversas esferas culturais e/ou intelectuais. Depois de vários artigos

publicados em separado, esse trabalho de colaboração desembocaria no livro Revolta e

Melancolia: o romantismo na contramão da modernidade, originalmente publicado na França

em 1992.

Para Michael Löwy e Robert Sayre, ambos ex-alunos e discípulos de Lucien Goldmann,

tratava-se – à luz do método da “sociologia da cultura” propalado pelo mestre – de se analisar,

para além de sua diversidade intrínseca, os traços unificadores que permitem reelaborar

conceitualmente o que seria uma “visão social de mundo” romântica. Com isso, buscavam

deliberadamente preencher o que entendiam ser uma lacuna persistente na obra de Goldmann,

que jamais se esforçara por compreender a dinâmica e as complexidades do romantismo. Para

isso, em diálogo crítico com a bibliografia crítica já existente sobre o assunto, o primeiro passo

era readequar a abordagem do romantismo, retirando-a do cárcere analítico para o qual este não

seria senão uma mera corrente artística e/ou literária europeia do começo do século XIX, a fim

de esboçar uma “análise global do fenômeno que leve em conta toda a sua verdadeira extensão

e toda a sua multiplicidade”751.

Contemporânea – “sombra projetada que a acompanha” – da modernidade, a visão

social de mundo romântica apresenta-se, de acordo com Löwy e Sayre, em todos os campos

culturais, da literatura e das artes à filosofia e teologia, passando pelo pensamento político,

econômico ou jurídico. Enquanto crítica cultural “na contramão” e, portanto, “co-extensiva” à

modernidade, o fenômeno romântico deve igualmente ser temporalmente redefinido:

emergindo ao final do século XVIII, simultaneamente aos primeiros avanços do capitalismo

“moderno”, na França, na Alemanha e na Inglaterra, a visão de mundo romântica continuou a

existir ao longo dos séculos subsequentes, e continua a existir até os dias atuais, uma vez que

seu inimigo (e, assim, sua razão de ser: a oposição ao mundo burguês) segue vigente e

hegemonicamente soberano na definição dos contornos sociais contemporâneos.

Forma específica de “crítica moderna da modernidade”, o romantismo constitui, para

Löwy e Sayre, tal como a forma-romance teorizada por Lucien Goldmann em sua Sociologia

do Romance, a expressão do conflito entre a sociedade burguesa e certos valores humanos

qualitativos752. Reagindo ao lento e profundo processo de emergência e desenvolvimento do

capitalismo, a especificidade do romantismo se deve ao fato de que sua crítica da modernidade,

embora genuinamente moderna, é realizada em nome de valores e ideais do passado (pré-

751 Idem, p.34. 752 Lucien Goldmann, Pour une sociologie du roman. Paris: Gallimard, 1964.

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capitalista, pré-moderno). Busca-se nesse passado certos valores humanos essenciais que foram

perdidos com a alienação, a mecanização, a quantificação e a dissolução dos vínculos sociais,

e que, resgatados no presente, podem servir como parâmetros para a crítica de um mundo (a

modernidade) desencantado e movido por uma racionalidade meramente instrumental.

Motivada por uma experiência da perda, que estimula uma nostalgia melancólica, a

crítica romântica da modernidade pode, porém, apresentar-se sob as mais diferentes roupagens

políticas, do conservadorismo resignado, passando pelo fascismo, até as utopias

revolucionárias, para as quais “a lembrança do passado serve como arma na luta pelo futuro”753.

Assim, à diferença de Lukács, que lhes serve de inspiração – mas para o qual o romantismo

constituía acima de tudo uma adjetivação possível para as formas reacionárias e/ou retrógradas

de anticapitalismo, que mimetizavam os efeitos da decadência burguesa –, Löwy e Sayre

destacam a pluralidade político-ideológica da visão de mundo romântica, esboçando até

mesmo, em um dos capítulos do livro, uma “tipologia do romantismo” (metodologicamente

weberiana), constituída em função da posição assumida diante da modernidade, e que engloba:

1) o romantismo restitucionista; 2) o conservador; 3) o fascista; 4) o resignado; 5) o

reformador; e, enfim, 6) o revolucionário e/ou utópico, o qual, por sua vez, pode ser

subdividido nas tendências: i) jacobino-democrática; ii) populista; iii) socialista utópico-

humanista; iv) libertária; e v) marxista.

Michael Löwy e Robert Sayre não escondem sua predileção pela vertente

“revolucionário-utópica” do romantismo e, no interior desta, pelas tendências libertárias e,

sobretudo, marxistas, tanto por razões político-intelectuais quanto analíticas: na ótica dos

autores, o romantismo revolucionário constitui uma chave de leitura fundamental para

compreender alguns dos principais movimentos sociais, políticos e artísticos do século XX,

como maio de 68, a teologia da libertação ou o surrealismo, assim como autores como Charles

Péguy. Além disso, a existência de um romantismo revolucionário indicava a possibilidade de

existência de um “romantismo marxista”, ou melhor, de um “marxismo romântico”, talvez a

mais ardente das “correntes quentes” do marxismo, conforme a designação de Ernst Bloch.

A existência de “marxistas românticos” não anula, pura e simplesmente, as

ambivalências entre as duas visões de mundo. Bem ao contrário, essas ambivalências se tornam

um tema da própria reflexão dos representantes dessa “vertente”, espreitados, por assim dizer,

entre a admiração pelo romantismo e o respeito à herança progressista das Luzes, cujo espírito

753 Michael Löwy & Robert Sayre, Revolta e Melancolia, op.cit., p.46, 47.

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muito inspirou Marx e marxistas como Rosa Luxemburgo e mesmo Lukács, os três analisados

em um capítulo de Revolta e Melancolia. Além deles, e de William Morris (“marxista-

anarquista-romântico”), intelectuais como Benjamin, Ernst Bloch, André Breton, Marcuse,

Henri Lefebvre, E. P. Thompson, Raymond Williams, dentre vários outros, integrariam,

segundo os autores, essa “frente” marxista-romântica, uns mais outros menos “românticos”, e

mais ou menos “iluministas”, mas todos portadores ao menos de uma dimensão romântica,

mesmo que “escondida”, como no caso do próprio Marx. Para Löwy e Sayre, romantismo e

iluminismo, embora “inimigos” ideológicos, não são necessariamente antitéticos, podendo, ao

contrário, articular-se no interior de uma mesma obra intelectual ou artística, algo que se

comprovaria pela existência não apenas de um “romantismo marxista”, senão também de um

“romantismo jacobino-democrático”.

No plano político-intelectual, o período de reflexões que dá origem ao livro Revolta e

Melancolia é contemporâneo aos debates sobre a “crise” da modernidade, na virada para os

anos 1980. Não surpreende, então, que este debate seja um dos panos-de-fundo da conceituação

do romantismo realizada pelos autores, assim como do tipo de marxismo por eles escolhido

para servir de base à análise. Ao acentuar a dimensão moderna da crítica romântica da

modernidade, tratava-se de estabelecer um espaço de contato com outra crítica moderna da

modernidade: o marxismo. Apoiando-se em Marx, Weber e Karl Polanyi754, a definição de

modernidade utilizada pelos autores encaixa-se na medida a esta finalidade, uma vez que

estabelece um parâmetro negativo ao qual se opõem tanto o romantismo quanto o marxismo.

Consolidação do processo de acumulação e reprodução capitalista, caracterizado pelo

desencantamento racionalista e/ou autonomia e dominação da economia frente às outras esferas

sociais, a modernidade engendra um conjunto difuso de elementos específicos que a compõem,

e contra os quais se revoltam, não sem alguma melancolia, os românticos e, com eles, a vertente

dos marxistas menos encantada pelo canto da sereia do desenvolvimento ininterrupto das forças

produtivas.

Ora, se essa abordagem elástica da modernidade (assim como do seu inimigo íntimo

permanente: o romantismo) ganha em amplitude e flexibilidade, ela perde em concretude, o que

acaba impedindo uma abordagem mais matizada historicamente das formas e etapas do

desenvolvimento capitalista. Se o mundo capitalista-moderno segue, mais do que nunca, ainda

vigente, como insiste Löwy, ele passou por transformações substanciais ao longo do tempo,

754 Karl Polanyi, A grande transformação: as origens de nossa época. Rio de Janeiro: Campus, 1960.

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algumas das quais ocasionaram mutações históricas irreversíveis, que chegaram até mesmo a

abalar alguns dos pilares “clássicos” da modernidade. O próprio debate sobre a “crise” da

modernidade, ou sobre a emergência de um capitalismo “pós-moderno”, como sustentam de

formas distintas autores marxistas como Fredric Jameson ou Terry Eagleton755, constitui um

sintoma dessas transformações histórico-culturais. Numa época marcada pela proclamação do

“fim das grandes narrativas” iluministas-modernas, o capitalismo contemporâneo logrou

incorporar em seu próprio proveito alguns aspectos que outrora faziam parte do repertório das

críticas anticapitalistas, colocando-os a serviço de um sistema renovado em busca de novas

instâncias de legitimação756.

Nesse cenário, traços do romantismo, ao menos na descrição dos autores, talvez não

tenham mais, e nem poderiam ter, a mesma disposição essencialmente anticapitalista: há quem

diga que o capitalismo “pós-moderno” é, ele próprio, em alguma medida, “romântico”,

mobilizando a crítica da modernidade a fim de contribuir para um novo modo de sociabilidade

capitalista, mais hedonista e maravilhado com o encantamento consumista, menos

racional/instrumental. É claro que, nessa perspectiva, o romantismo deixa de ser “por essência”

anticapitalista, como defendem Löwy e Sayre, revelando-se uma visão de mundo que,

“desconstruída”, pode ser mobilizada até mesmo para a composição e legitimação do

capitalismo.

Ao que tudo indica, o avanço brutal da mercantilização nas sociedades contemporâneas

significou ao mesmo tempo a mercantilização de muitos aspectos que outrora eram

identificados com o que Löwy e Sayre definem por romantismo. Se assim for, e se as

transformações históricas vividas desde meados da década de 1970 (momento em que os

próprios autores dizem ser aquele da “ofensiva antirromântica” na França) podem ser

equiparadas a uma nova “grande transformação”, talvez fosse necessária uma reformulação da

projeção em torno da vigência temporal do romantismo, em particular do romantismo

revolucionário. Definindo o fenômeno por sua “coextensividade” à modernidade (entendida na

sua formulação webero-marxista), sem dar a devida importância às transformações históricas

ocorridas no interior ou contra essa modernidade “clássica”, por assim dizer, arrisca-se a

reproduzir, hoje, um “romantismo revolucionário imaginário”, algo anacrônico, hors du temps,

755 Cf. Fredric Jameson, Pós-modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio. São Paulo: Ática, 2007; “Cinco

teses sobre o marxismo realmente existente”. In: Ellen Wood & John Bellamy Foster (orgs.). Em defesa da

história: marxismo e pós-modernismo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999. E Terry Eagleton, As ilusões do pós-

modernismo. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. 756 Cf. Luc Boltanski e Eve Chiapello, Le nouvel esprit du capitalisme. Paris: Gallimard, 2000.

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no qual se toma como modelo o que valia até meados do século XX, mas que, atualmente,

assume um outro papel histórico-político-cultural, muitas vezes diverso ou até mesmo

antagônico em face daquele.

Naturalmente, essa valorização do romantismo, assim como de outras cosmovisões

(profanas ou religiosas) críticas do capitalismo, vincula-se estreitamente à interpretação que os

autores, em particular Michael Löwy, fazem do marxismo, e, sobretudo, ao papel que se atribui

ao diálogo crítico com outras visões de mundo. Para Löwy, à diferença de um sistema teórico

fechado, capaz de explicar tudo em não importa qual momento, o marxismo constitui uma teoria

“aberta”, em permanente dinamismo, modificando-se à luz das mutações históricas tanto da

ordem social à qual ela se contrapõe, quanto da prática política das classes e grupos que

compõem potencialmente a base social de um projeto de transformação radical da sociedade

vigente. Dessa perspectiva, enquanto teoria ou “filosofia da práxis” – definição que, para ele, é

a que melhor define o sentido da teoria crítica fundada por Marx757 –, o marxismo caracteriza-

se entre outras coisas por sua capacidade de assimilar contribuições teóricas, políticas e

culturais de visões de mundo que lhe são exteriores, mas que interpelam o mesmo “objeto”: a

prática social dos sujeitos em luta.

Em um texto do final da década de 1980, ao se indagar sobre a possibilidade de um

“cristianismo marxista”, Michael Löwy assevera, em um argumento que pode ser aplicado à

sua visão do romantismo, assim como das utopias em geral: “Se poderá discutir longamente

entre nós (marxistas e ateus) sobre o enigma filosófico – ou o desafio teórico – que significa o

cristianismo marxista do ponto de vista do materialismo histórico ou dialético. Se se define o

marxismo antes de tudo como um materialismo (abstrato e metafísico), se trata sem dúvida de

uma heresia inaceitável. Se, ao contrário, ele é concebido prioritariamente como uma filosofia

da práxis (Gramsci), uma teoria da prática revolucionária de transformação do mundo, sua

incorporação por afinidade eletiva no seio do cristianismo revolucionário é perfeitamente

compreensível”758. Por isso mesmo, desde que considerado uma “filosofia da práxis”, e não um

757 Mais do que em Gramsci, Löwy inspirou-se, em sua defesa do marxismo como filosofia ou teoria da práxis,

nas reflexões de Rosa Luxemburgo, Lukács (HCC), Guevara e Goldmann. O eixo dessa leitura encontra-se, porém, na interpretação que, já em sua tese de doutorado sobre a teoria da revolução no jovem Marx, defendida em 1964,

Löwy fazia da III tese sobre Feuerbach de Marx, na qual a prática revolucionária é apresentada como mediação

através da qual a mudança das circunstâncias coincide com a transformação subjetiva dos homens. Cf. A teoria da

revolução no jovem Marx. Petrópolis: Vozes, 2002; para entender a forma como Löwy articula esses vários autores

na direção desta leitura específica do marxismo como teoria da práxis, cf. “Le marxisme révolutionnaire de Rosa

Luxemburg”. In: Dialectique et révolution. Essais de sociologie et d’histoire du marxisme. Paris: Anthrophos,

1973. 758 Michael Löwy, “Marxismo e cristianismo na América Latina”, Lua Nova, n.19, novembro 1989, São Paulo,

p.21.

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materialismo abstrato, o marxismo pode – e deve – dialogar com outras formas de crítica da

modernidade capitalista, buscando influenciá-las, radicalizá-las ou, quando possível, incorporá-

las, a fim de estabelecer uma relação significativa que remete à reciprocidade ativa entre duas

figuras socioculturais distintas.

Em particular após o “tournant” benjaminiano de sua trajetória intelectual, na virada

para os anos 1980, Michael Löwy fez da busca pelas “afinidades eletivas” entre visões de

mundo originalmente distintas uma verdadeira profissão de fé, como destacou Alfredo Bosi,

alçando-a à condição de eixo de uma estratégia de “abertura” e renovação do marxismo759. Com

efeito, em vez de proclamar a necessidade de uma “superação” do marxismo, em função da

renúncia à exclusividade e ao monopólio da teoria e da luta anticapitalista (monopólio que, de

fato, ele nunca teve), Löwy transforma essa “renúncia” em ponto de partida para um processo

de renovação crítica da teoria crítica fundada por Marx, cuja atualidade depende da sua

capacidade de se expurgar da arrogância positivista ou metafísica, que não sabe senão encaixar

a prática social e política das classes em luta em esquemas históricos abstratos previamente

definidos.

No caso específico do romantismo, sua dissidência em relação à modernidade, a priori

tão distante da crítica marxista-dialética do capitalismo, pode com ela contribuir em função da

sua capacidade de visualizar o que permanecia oculto do ponto de vista dos defensores – dentre

os quais muitos marxistas – da modernidade. Em contraposição à cegueira das ideologias do

progresso, “os críticos românticos tocaram – mesmo que de maneira intuitiva e parcial – no que

não era pensado no pensamento burguês, eles viram o que estava fora do campo da visão liberal

individualista do mundo: a reificação, a quantificação, a perda dos valores humanos e culturais

qualitativos, a solidão dos indivíduos, o desenraizamento, a alienação pela mercadoria, a

dinâmica incontrolável do maquinismo e da tecnologia, a temporalidade reduzida ao

instantâneo do maquinismo e da tecnologia, a temporalidade reduzida ao instantâneo, a

degradação da natureza. Em uma palavra, eles descreveram a facies hipocrática da civilização

moderna. O fato de que tenham frequentemente apresentado esse diagnóstico penetrante em

nome de um esteticismo elitista, de uma religião retrógrada ou de uma ideologia reacionária,

não diminui em nada sua perspicácia e valor – como diagnóstico. Apesar de nem sempre

estarem em condição de propor soluções às catástrofes provocadas pelo progresso industrial –

759 Cf. Alfredo Bosi. “Da esquerda cristã à Teologia da Libertação”, op.cit., pp.87-100.

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exceto um retorno ilusório ao passado perdido –, eles puseram em evidência os malefícios da

modernização ocidental”760.

Se em sua tese sobre o jovem Lukács, defendida em 1974 (e publicada em 1976), Löwy

ainda acreditava que o romantismo anticapitalista “nada [tinha] a ver, social e

ideologicamente”, com o socialismo marxista, em seus trabalhos que se iniciam a partir do

início da década de 1980 – ou seja, após a incorporação da obra de Benjamin –, a busca pelas

convergências entre marxismo e romantismo, chegando mesmo à “fusão” em alguns casos, dá

o tom de sua perspectiva intelectual, preocupada com a renovação da teoria marxista à luz da

crise da civilização capitalista-moderna. Praticamente na mesma época em que Löwy começava

a esboçar sua reformulação, e consequente revalorização, do romantismo761, Raymond

Williams, em uma resenha da edição inglesa da tese sobre Lukács (publicada em 1979, pela

New Left Books) criticava – após destacar a “extraordinária” importância e “originalidade” do

livro, em função da capacidade de situar dialeticamente a análise da trajetória intelectual do

autor húngaro no contexto mais global das “situações sociais completas e dinâmicas”762 – as

ambivalências de Löwy em relação ao fenômeno romântico, cujo valoração negativa ficava

subentendida no próprio título do livro na sua versão inglesa: Georg Lukács: do romantismo ao

bolchevismo763.

Agindo assim, como se houvesse, na trajetória de Lukács do romantismo ao marxismo

bolchevista, uma “passagem do erro à verdade”, Michael Löwy acabaria por abafar um dos

pontos altos do seu próprio trabalho: a importância concedida à herança romântica na

elaboração, pelo filósofo húngaro, no momento de sua adesão ao marxismo por volta do final

da década de 1910, de um marxismo crítico genuinamente heterodoxo em relação à tradição

neo-positivista da II Internacional pelo último Engels. Especialmente com sua teoria da

reificação, desenvolvida no ensaio central de História e Consciência de Classe, Lukács

demonstrara a fertilidade intelectual do resgate e da reinterpretação dialética de certos temas

comumente associados à tradição romântica, revelando o quanto a rejeição sumária desses

760 Michael Löwy e Robert Sayre, Revolta e Melancolia, op.cit., p.265. 761 A publicação de Marxisme et romantisme revolutionnaire, por exemplo, como se observou há pouco, ocorre em 1979. 762 “O livro de Michael Löwy [...] é um estudo de extraordinário interesse sobre o desenvolvimento intelectual e

político de Lukács. Seu grande mérito reside em analisar as ideias em suas formações sociais e intelectuais: um

procedimento necessário na análise marxista, que raramente é seguido em detalhe”. Raymond Williams, “O que é

o anticapitalismo?”. In: Ivana Jinkings e José Alexandre Peschanski (orgs.), As utopias de Michael Löwy: reflexões

sobre um marxista insubordinado. São Paulo: Boitempo, 2007, p.53. 763 Michael Löwy, Pour une sociologie des intellectuels révolutionnaires. L’évolution politique de Georg Lukács

1909-1929. Paris: PUF, 1976. Edição brasileira: A evolução política de Lukács: 1909-1929. São Paulo: Cortez

Editora, 1998. E inglesa: Georg Lukács – from Romanticism to Bolchevism. Londres: New Left Books, 1979.

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temas, sob pretexto de que eles não seriam senão resíduos idealistas já superados pelo

materialismo histórico, foi uma das principais lacunas dos marxismos do passado. Para

Williams, “a exclusão de algumas daquelas questões – a natureza e os efeitos da produção

industrial moderna e de uma economia do ‘crescimento’; a liberdade individual; os processos

sociais reais da vida política democrática – foi tão prejudicial no período de rejeição confiante

desses problemas como noções e escrúpulos ‘românticos’ que ela tem de ser hoje diagnosticada

como uma causa importante do dano à teoria e à prática do próprio socialismo”764.

Nas palavras do autor britânico, “em especial na análise da ‘reificação’, ele [Lukács]

encontrou maneiras de restabelecer a crítica da consciência quantitativa e instrumental e das

relações sociais em termos que genuinamente se vinculavam à luta em prol do socialismo”765.

Michael Löwy, do mesmo modo, além de reconhecer que o romantismo pode ter uma “visão

mais lúcida das contradições de classe no interior da sociedade industrial que a ideologia liberal

burguesa”, já se questionava se o caso de Lukács, com sua reinterpretação marxista de

problemáticas tipicamente românticas, oriundas da filosofia e sociologia alemãs, “não poderia

estimular um reexame das relações entre o marxismo e o romantismo e uma reavaliação da

tradição romântica?”766.

Para Williams, se o “anticapitalismo difuso” (termo que se pretende mais ameno que

“romântico”) dos tempos do jovem Lukács “gastou tanto tempo analisando os problemas da

burocracia estatal, das relações entre um sistema industrial moderno e os tipos quantitativos de

pensamento e de administração, das diferenças entre as comunidades reais e a ordem social

monetária centralizada, dificilmente podemos, desde o final dos anos 1970, supor que estava

perdendo seu tempo ou deixando escapar alguma verdade central simples”767. Bem ao contrário,

esse “anticapitalismo” já antecipava muitos dos becos-sem-saída do mal chamado “socialismo

realmente existente”, assim como dos marxismos “modernistas” do século XX, para os quais

temas românticos como a crítica da ideia de “dominação da natureza” e dos efeitos da produção

industrial moderna encontravam-se fora do escopo da crítica marxista do capitalismo. A

negligência dos aportes fundamentais do romantismo privou parcela importante do marxismo

de uma crítica não apenas da economia capitalista, senão da civilização capitalista-moderna

como um todo, denunciando a correlação entre o sistema moderno industrial e a formação de

uma consciência “quantitativa”, que se manifesta, por exemplo, na diferença entre uma

764 Idem, p.55, 56. 765 Idem, p.56. 766 Michael Löwy, A evolução política de Lukács, op.cit., p.217. 767 Idem, p.54.

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comunidade humana real e as relações sociais de uma sociedade ancorada no dinheiro e no

poder.

Michael Löwy, que, nesse exato momento, na virada para os anos 1980, vivenciava uma

inflexão em sua trajetória, após a redescoberta de Walter Benjamin e o início dos seus trabalhos

sobre as religiosidades utópicas, sustenta que a crítica de Williams estimulou-o ainda mais a

reelaborar a análise marxista do romantismo. A resenha do crítico britânico conferia, assim,

legitimidade à empreitada que estava por vir. Nas suas palavras, Williams “tinha toda a razão!

Minhas pesquisas sobre o romantismo, desenvolvidas nos últimos dez anos, em colaboração

com meu amigo Robert Sayre, me convenceram de que a crítica romântica da civilização

capitalista é um componente importante do pensamento de Marx e Engels e o ponto de partida

de uma corrente de pensamento ‘marxista-romântica’”768, no âmbito da qual poder-se-ia inserir,

segundo Löwy, o próprio Raymond Williams, conforme ele ressaltou em artigo (igualmente

redigido com Sayre) sobre “a corrente romântica nas ciências sociais inglesas”769.

Na realidade, ao sistematizar e reinterpretar o romantismo, definindo-o como uma visão

social de mundo global, Löwy (em companhia de Sayre) buscava exatamente tentar superar a

ambiguidade e a confusão que, segundo Williams, caracterizam o termo “romântico” ou

“anticapitalismo romântico”, “entre a referência histórica e o sentido depreciativo de

‘irrealista’, ‘nebuloso’, ‘não prático’”. Michael Löwy almejava, assim, restituindo o estatuto do

fenômeno, evitar que o sentido pejorativo do termo continuasse a ser um empecilho à

apreciação de inúmeras questões que, ontem como hoje, são questões que dizem respeito

também à tradição socialista. Desde então, desenvolvendo a dimensão romântica que parecia

presente, ainda que de forma mais matizada, desde o início de sua trajetória770, Löwy transforma

a reinterpretação marxista do fenômeno romântico em um dos eixos da atualização da crítica

do capitalismo, dotando-a de condições de confrontar os novos desafios impostos às teorias e

movimentos pretensamente anticapitalistas.

768 Ivana Jinkings & Emir Sader, op.cit., 2004, p.14. 769 Michael Löwy & Robert Sayre, “A corrente romântica nas Ciências Sociais da Inglaterra: Edward P. Thompson

e Raymond Williams”. In: Crítica Marxista, São Paulo, n.8, 1999, pp.43-66. 770 Para o próprio Robert Sayre, “se olhamos o conjunto da obra de Michael Löwy, parece claro que o romantismo

– enquanto conceito e campo de estudo – constitui um dos eixos principais, um eixo fundamental”. Robert Sayre,

“Romantisme...”, op.cit., p. 61. Na ótica de Marcelo Ridenti, em perspectiva parecida, “desde o início, a obra de

Löwy continha uma forte influência romântica que não era, porém, explicitamente assumida, talvez em razão da

força da ambiguidade entre romantismo e marxismo”. Marcelo Ridenti, “Romantique et vagabond”. In: Vincent

Delecroix e Erwan Dianteill, Cartographie de l’utopie. L’oeuvre indisciplinée de Michael Löwy, Paris: Sandre

Actes, 2011, p.79.

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A questão do romantismo e do seu papel para uma renovação do marxismo articula-se,

na obra de Michael Löwy, com uma rearticulação radical da temporalidade histórica, assentada

em uma leitura singular de Benjamin. Como bem destaca Vincent Delecroix, tal concepção do

romantismo encontra-se, em Löwy, na base de uma “desestruturação e reestruturação da

temporalidade” sob o primado do presente. Este, “para o romantismo, o presente no qual ocorre

a atitude romântica e que é determinada por sua relação com a modernidade capitalista,

testemunha uma rearticulação do tempo que encontra em Benjamin, através da ideia do instante-

presente, sua expressão propriamente revolucionária e, ao mesmo tempo, seu efeito de

redistribuição do tempo. O tempo [...] se decompõe depois se recompõe a partir do presente”771.

Em ruptura com o tempo linear, “vazio e homogêneo”, o “tempo romântico” de Michael

Löwy, tal como o tempo messiânico de Walter Benjamin e/ou de Franz Rosenzweig, ancora-se

em um presente compreendido como “instante revolucionário”, momento em que se redistribui

o sentido do passado e as projeções do futuro. Sob o primado de um “presente romântico”

entendido como momento de descontinuidade histórica, a rememoração significa a um só tempo

uma atualização e uma modificação do passado, em função das necessidades políticas do

“tempo-de-agora”. Através do romantismo, introduz-se assim uma descontinuidade no tempo

e na história – “uma descontinuidade introduzida por um presente pleno, que possui a

consistência dos fragmentos do tempo messiânico de que fala Benjamin”. Um presente,

continua Delecroix, “que mobiliza no instante fulgurante o passado e futuro e que,

redistribuindo as dimensões do tempo a partir dele, rompe o tempo linear próprio ao

historicismo”772.

Iluminado, desde sua origem, pela dupla luz da estrela da revolta e do “sol negro da

melancolia” (Nerval), o romantismo alimenta-se de uma concepção qualitativa do tempo,

articulada no e pelo presente: “se elas são as marcas ‘psicológicas’ da relação crítica à

modernidade”, a revolta e a melancolia o são porque constituem as “operadoras” de uma

reorganização do tempo a partir do presente. Michael Löwy busca romper, deste modo, com a

concepção burguesa do progresso tomada de empréstimo – via herança iluminista – por muitos

marxistas, apropriando-se de uma visão da temporalidade histórica não mais baseada na

dicotomia entre progresso e decadência. Como dissera Walter Benjamin, em premissa seguida

771 Vincent Delecroix, “Le temps romantique de Michael Löwy”, op.cit., p.118. 772 Idem, p.122.

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com rigor por Löwy, “a superação dos conceitos de ‘progresso’ e de ‘época de decadência’ são

apenas dois lados de uma mesma coisa”773.

Pode-se dizer, portanto, “que Revolta e Melancolia é uma tentativa não apenas

sociológica de apreender o fenômeno romântico, mas também um ensaio de ‘história dos

vencidos’, como o é Redenção e Utopia, igualmente assombrado pela figura do Angelus Novus

de Klee e de Benjamin”774. Uma “história dos vencidos” interessa-se não apenas por aquilo que

efetivamente aconteceu, senão também por aquilo que poderia ter ocorrido. Em resposta a uma

carta de Max Horkheimer, que censurava sua visão do “inacabamento” da história como

“idealista”, Benjamin afirmara: “a história não é apenas uma ciência; [...] ela é tanto quanto

uma forma de rememoração. O que a ciência ‘constatou’, a rememoração pode modificar”775.

Nessa leitura, desatando o amálgama entre apologia do real racional hegeliano e defesa

do progresso histórico, torna-se possível reconhecer visões críticas do capitalismo que não

necessariamente estão posicionadas no chamado campo “progressista”, caso, por exemplo, de

Balzac, ou mesmo de boa parte dos românticos. Assim, como dissera Adorno em um dos

aforismos de Minima Moralia, “uma das tarefas – não das menores – diante das quais se vê

confrontado o pensamento é a de colocar todos os argumentos reacionários contra a civilização

ocidental a serviço da Aufklärung progressista”776. Ora, em alguma medida, a

reinterpretação/recuperação do romantismo, realizada por Löwy, com a ajuda de românticos

revolucionários do passado, constitui uma forma de enfrentar este desafio, dotando a crítica ao

capitalismo de novos horizontes teóricos e políticos, e, em particular, de uma nova relação com

o passado. Não por acaso, segundo afirma Vincent Delecroix, “Michael Löwy pensa o presente

romântico como uma categoria a um só tempo política e historiográfica (para não dizer

epistemológica). Porque, em acordo com a perspectiva de Benjamin, este presente

revolucionário é ao mesmo tempo o ponto de vista daquele que escreve a história, ‘história dos

773 Walter Benjamin, Paris, capitale du XIXe siècle. Le livre des passages. Paris : Cerf, 1989, p.477. 774 Vincent Delecroix, “Le temps romantique de Michael Löwy”, op.cit., p.118, 119. 775 Cf. Walter Benjamin, Paris, capital du XIXe siècle, op.cit., p.489. Bem diferente, por exemplo, é a concepção

marxista ontológico-hegeliana do Lukács da maturidade, para o qual “a história é um processo irreversível; por

isso, parece óbvio tomar como ponto de partida, na investigação sobre a história essa irreversibilidade do tempo”.

In: Ontologia do ser social. São Paulo: Ciências Humanas, 1979, p.77. É evidente que, nessa concepção, ou se é

“progressista” (e, de preferência, em sua versão mais avançada: socialista), aceitando-se a “necessidade” do

desenvolvimento histórico, ou se é “decadente”, quando se nega, por devaneios subjetivistas ou reacionarismo

político, esse desenvolvimento, tal qual o caso, para ele, dos românticos, incapazes de acatar essa “irreversibilidade

do tempo”. 776 Theodor Adorno, Minima Moralia: Réflexions sur la vie mutilée. Paris, Payot, 1983, p.179.

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vencidos’ que não é uma simples história nostálgica dos combates perdidos que a história dos

vencedores se apressa a reduzir a nada, mas a carga explosiva do próprio presente”777.

A reinterpretação do romantismo, compreendendo-o como visão de mundo coextensiva

à modernidade, constitui, portanto, tal como se condensa em Revolta e Melancolia, um

elemento decisivo da trajetória “pós-benjaminiana” de Michael Löwy. Ela radicaliza e, ao

mesmo tempo, dá forma a uma compreensão inventiva, do ponto de vista do marxismo, da

temporalidade histórica, na contramão do tempo linear das ideologias do progresso.

Rearticulando a temporalidade histórica em torno de um “presente romântico”, Löwy

reposiciona a crítica marxista do capitalismo em um momento marcado pela crise do paradigma

civilizatório moderno e, em especial, pela necessidade, segundo ele, do marxismo radicalizar

sua ruptura com esse paradigma, o qual muitas vezes lhe serviu de caução histórico-filosófico

para a afirmação do socialismo como estágio mais avançado do progresso.

Tão interessante quanto ambiciosa, tal empreitada não está isenta, porém, como se pôde

ver, de algumas indagações e, no limite, de alguns problemas, que se vinculam, direta ou

indiretamente, às especificidades da leitura de Marx e dos marxistas efetuada por Löwy. Para

Alex Callinicos (destacado filósofo marxista, professor no King’s College e militante trotskista

radicado na Inglaterra), por exemplo, muito embora se alinhe – em sua afirmação da

necessidade de superação da ideia burguesa-iluminista do progresso – às exigências de uma

atualização da teoria marxista da história, Löwy recairia em uma concepção exageradamente

“antiprogressista”, no âmbito da qual a história se apresenta acima de tudo como uma catástrofe

permanente, e não como desenvolvimento dialético em que a possibilidade de um progresso

real convive com a ameaça da regressão à barbárie. Se, por um lado, a concepção de Löwy

confere legitimidade inegável à crítica romântica da modernidade, ela padeceria, por outro, de

uma espécie de déficit de dialética, de onde a incapacidade de se visualizar a emergência do

capitalismo como “um progresso e uma catástrofe ao mesmo tempo”, ou seja, “a melhor e a

pior coisa que jamais ocorreu à humanidade”, conforme observou Fredric Jameson, em

passagem citada, aliás, por Löwy778.

O debate entre ambos começou, de fato, após uma resenha de Michael Löwy, de resto

bem favorável, do livro Theories and narratives: reflections on the philosophy of history,

lançado em 1995 na Inglaterra, a qual foi prontamente replicada por Callinicos: em conjunto, a

777 Vincent Delecroix, “Le temps romantique de Michael Löwy”, op.cit., p.123. 778 Fredric Jameson, Pós-modernismo..., op.cit. 2007, p.73.

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contenda foi publicada em 1997 na revista Critique Communiste (França)779. Embora esteja de

acordo com a tomada de posição de Callinicos em defesa de uma concepção marxista da

história, na contramão do relativismo linguístico de tipo pós-estruturalista, Löwy se opõe à

tentativa do professor britânico de atribuir ao marxismo uma “teoria forte do progresso”, quer

dizer, “uma teoria que não se conforma em discernir o crescimento na história (o

desenvolvimento das forças produtivas), senão que afirma também que o crescimento pode

contribuir positivamente ao bem-estar”. Em nome de uma crítica radical – e por vezes unilateral,

deve-se dizer – das ideologias do progresso, Löwy rejeita toda tentativa de transformar o

marxismo em uma teoria “positiva” e trans-histórica do desenvolvimento histórico. Nas suas

palavras: “se acreditamos com Rosa que o socialismo não é inelutável e que a crise do

capitalismo pode conduzir à barbárie, se tomamos a sério (como disse Callinicos) as

advertências de Walter Benjamin de que a finalidade do progresso pode ser a catástrofe, como

é possível pretender que o progresso capitalista seja de alguma forma bem-vindo?”780.

Na ótica de Michael Löwy, a simples aceitação das premissas do progresso, tal como

formuladas à época da ascensão burguesa, pode conduzir à adesão a uma “espécie de teleologia

hegeliana para a qual a (inelutável) finalidade explica e justifica o curso da história”, e na qual

cada “regressão” é compreendida como momento necessário do “progresso” final. Não deveria

surpreender, portanto, na sua visão, que, buscando chancelar algo dessa perspectiva, o próprio

Callinicos tente justificar parcialmente os argumentos de Marx em defesa da colonização

britânica na Índia, em texto de 1853, entendendo-a como uma espécie de “instrumento

inconsciente da história” que, ao introduzir as forças de produção capitalistas, e a despeito dos

crimes e catástrofes infligidos à população local, teria impulsionado o dinamismo e o

desenvolvimento histórico naquele país.

Em resposta, Alex Callinicos sustenta que a mera aceitação da existência de um

“progresso” no desenvolvimento histórico, em particular sob o capitalismo moderno, o qual

assentaria as condições materiais para a emancipação socialista, não significa forçosamente a

subscrição de uma concepção fatalista e teleológica da história: uma coisa é a crítica

(necessária) das visões deterministas da história – como aquelas dos marxismos da II e da III

Internacional –, outra, sensivelmente diferente, é a recusa unilateral da própria ideia mais geral

de progresso. Para Callinicos, subdividindo os marxismos do passado em apenas duas tradições

779 Alex Callinicos, Theories and Narratives: Reflections on the Philosophy of History. Londres: Duke University

Press, 1995. 780 “Löwy/Callinicos: un debate importante”. Disponível em: http://www.herramienta.com.ar/print/revista-

herramienta-n-6/loewy-callinicos-un-debate-importante. Acesso em: 20/05/2008.

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divergentes, se não antagônicas – uma, teleológica, fechada e tendencialmente eurocêntrica; a

outra, crítica em relação à noção de “progresso”, não-teleológica, aberta, enfim, “romântica” –

Löwy acaba por reduzir a concepção marxista da história a duas posições que, na opinião do

intelectual radicado em Londres, são igualmente limitadas e insuficientes, quando não são

mesmo complementares em sua unilateralidade. De um lado, um determinismo fatalista que, se

pode se apoiar em algumas passagens ou textos de Marx, ganhou uma versão dogmática no

interior dos marxismos “oficiais” desde o final do século XIX; de outro, uma aposta subjetivista

na “revolução contra o progresso” – fórmula que ele atribui a Löwy.

Com isso, não restaria a Michael Löwy – apesar dos seus apelos em favor de uma

concepção dialética da história – senão a tendência a pensar a história “como uma catástrofe

pontuada de ocasiões revolucionárias heroicas”, diz Callinicos. Nessa perspectiva,

reivindicando, frente à hegemonia histórica das visões fatalistas no interior do marxismo, um

subjetivismo “pessimista”, Löwy não teria logrado – assim como seu inimigo ideal: os

determinismos marxistas – articular dialeticamente “os elementos de rechaço subjetivo do

capitalismo e de análise objetiva, sem perder de vista nenhum dos lados”. Além da crítica à

dimensão destrutiva do capitalismo, que suscita uma rejeição ético-política, seria necessária,

para Callinicos, uma análise objetiva do dinamismo potencialmente libertador do

desenvolvimento histórico, o qual mobiliza “efetivas forças capazes de gerar progresso aqui e

agora, e não só aumentam o potencial de uma liberação futura”. Aos olhos de Callinicos, é

somente apreendendo essa articulação dialética de progresso e regressão que se pode entrever

a possibilidade objetiva da transição socialista: “este elemento é central no conjunto da teoria

de Marx, para quem o capitalismo cria o proletariado como uma classe explorada, mas que

possui a capacidade, a curto prazo, de obter reformas e, a longo prazo, de superá-lo e construir

o socialismo”.

Essa tentativa de visualizar a dimensão “positiva” do desenvolvimento capitalista do

ponto de vista das condições de possibilidade da luta socialista distingue a teoria de Marx das

críticas românticas da modernidade, e tal distinção seria ainda mais fundamental hoje, na

opinião de Callinicos, na medida em que se vive “um momento no qual os pós-modernos nos

incitam a abandonar o grande ‘meta-discurso’ revolucionário de emancipação e de libertação

em troca de uma visão da história como um puro caos desprovido de sentido”. Ora, a crítica de

Callinicos à concepção da história de Löwy, embora feita a partir de uma perspectiva ortodoxa,

ajudar a jogar luz sobre a tendência deste último em sublinhar a dimensão “negativa”, por assim

dizer, da dialética, em detrimento das considerações “objetivas” em torno das potencialidades

libertadoras do progresso e do desenvolvimento das forças produtivas. Nesse sentido, tomadas

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os devidos cuidados, ela permite problematizar por contraste alguns dos possíveis limites da

visão löwyana da história, com sua ênfase “romântica” na dimensão destrutiva do progresso.

No plano teórico-interpretativo, um desses limites apresenta-se na tentativa de Löwy de

estabelecer uma relação direta entre a obra de Marx e a herança romântica. Para ele, “o

anticapitalismo romântico é a fonte esquecida de Marx, fonte tão importante para o seu trabalho

quanto o neo-hegelianismo alemão ou o materialismo francês”781. Ora, se a designação de um

componente ou de uma “dimensão” romântica se aplica bem a muitos autores marxistas ou

próximos do marxismo no século XX, impactados que estavam pelas catástrofes da

modernidade capitalista, o mesmo não se pode dizer seguramente sobre Marx. Na opinião de

Löwy, ao reconhecer a dimensão “progressista” do capitalismo, Marx acentua, ao mesmo

tempo, sob critérios dialéticos, a regressão social que decorre da acumulação capitalista da

riqueza produzida pelos homens: o capitalismo constitui, na ótica do filósofo alemão, um

sistema que “transforma todo progresso econômico em uma calamidade social”. É nessa crítica

das “calamidades sociais” provocadas pelo capitalismo industrial-moderno que, segundo Löwy,

seria possível encontrar argumentos similares aos dos românticos. Tratar-se-ia de uma crítica

“humanista” comum ao padrão civilizatório capitalista-moderno782.

Uma coisa, porém, é afirmar que, por não se limitar à crítica à propriedade privada dos

meios de produção, abrangendo a “totalidade das formas industriais de produção existentes e a

totalidade da sociedade burguesas”, a obra de Marx apresenta inegáveis similitudes com a

crítica romântica da modernidade, outra significativamente diferente, e bem mais questionável,

é tentar elevar essa crítica à condição de “quarta fonte do marxismo”, para além das três

tornadas clássicas através da pena de Lênin – a economia política clássica inglesa, o idealismo

filosófico alemão e o socialismo político francês. Se há uma inegável influência romântica em

Marx, em função sobretudo de um interesse por problemas comuns (a sociedade capitalista

moderna), isso não significa que o filósofo alemão tenha visualizado nos românticos uma

“fonte” fundamental para a elaboração da sua teoria crítica.

Nesse sentido, afirmar que o anticapitalismo romântico é a “fonte esquecida” do

pensamento de Marx constitui um exagero, uma vez que o filósofo alemão efetua, na verdade,

uma apropriação crítica, em chave dialética, de alguns temas e/ou autores românticos, no quadro

de uma leitura necessariamente seletiva e enviesada por suas próprias preocupações político-

intelectuais, tal como, aliás, o fez o próprio Löwy ao propor, por exemplo, o diálogo entre as

781 Michael Löwy, Revolta e Melancolia, op.cit., p.120, 121. 782 Cf. Michael Löwy, “L’humanisme romantique”, Revue d’Allemagne, tome XXV, n.3, juillet-septembre, 1993.

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obras de Marx e de Weber, à luz das contribuições dos marxistas-weberianos do século XX.

Como dizem muito bem Löwy e Sayre em Revolta e Melancolia, “as ideias de Marx não foram

nem românticas nem ‘modernizantes’, mas uma tentativa de Aufhebung dialética de ambas, em

uma visão do mundo nova, crítica e revolucionária”. Exatamente por isso, dizer que há uma

“dimensão” romântica em Marx seria o mesmo que afirmar a existência de uma “dimensão”

iluminista na obra do filósofo alemão, o que não é uma inverdade, mas que por si só não explica

o mais importante, a saber: a forma através da qual ele chegou à elaboração dessa “visão de

mundo nova, crítica e revolucionária” – algo que Löwy havia tentado fazer em sua tese de

doutorado sobre a evolução político-ideológica do jovem Marx, defendida em 1964.

O quadro se complica ainda mais porque, como se sabe, ao menos do ponto de vista

intelectual, Marx situava a si mesmo no âmbito do impulso iluminista, assentado no potencial

emancipatório e universalista da razão, em contraposição aos românticos “pequeno-burgueses”,

cujas críticas da modernidade encontrar-se-iam desprovidas de um projeto racional de uma

nova sociedade. Ora, é bem verdade que, em Marx, essa aposta racionalista ancorava-se em

uma aposta política no potencial libertador de uma nova classe social cujo “sofrimento

universal” lhe garantiria a possibilidade de lutar por uma universalidade concreta, nos termos

um tanto especulativos característicos de sua obra de juventude, em 1843. Seja como for, ao

menos em princípio, essa dinâmica iluminista, transmutada pelo idealismo objetivo hegeliano,

responsável pelo vínculo filosófico entre razão e história, estava na base do projeto intelectual

de Marx, o qual sofrerá seu impacto mais profundo e decisivo com o contato com a prática

política real do movimento operário independente, contato responsável pela abertura de

horizonte que tornaria possível a sua passagem do comunismo filosófico-especulativo ao

comunismo político-prático. Não surpreende, portanto, que os próprios Löwy e Sayre afirmem

que, no limite, Marx “deve mais à filosofia das Luzes e à economia política clássica do que às

críticas românticas da civilização industrial”, embora acrescentem: “Mas estas últimas o

ajudaram a perceber os limites e as contradições das primeiras”783.

Isso porque, para Marx, o proletariado poderia (e deveria, de um ponto de vista

normativo) assumir, com o desenvolvimento capitalista, a perspectiva racional que outrora

estava a cargo da burguesia ascendente. Em alguma medida, portanto, Marx buscava superar a

perspectiva iluminista metafísica através do recurso ao embate entre as classes sociais, a fim de

dar uma dimensão concreta à divisão filosófica entre os agentes de uma racionalidade que se

783 Michael Löwy, Revolta e Melancolia, op.cit., p.130.

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faz história. É inegável que, nessa empreitada, Marx muitas vezes acabou por recorrer a

argumentos constituídos sob os preceitos metafísicos dos quais ele buscava se desprender. Mas

esta era, em linhas gerais, a orientação do seu projeto político-filosófico, cujo destino ele

próprio vinculou à luta de uma classe social específica por uma outra sociedade,

qualitativamente distinta, embora parcialmente legatária, da ordem burguesa desde então

vigente.

No século XX, malgrado as catástrofes da época (contra a pior das quais, aliás, ele lutou

durante boa parte de sua vida), um autor como Lukács, em particular aquele que se perfila a

partir da virada para os anos 1930, reproduziu, com ainda mais densidade filosófica, esse

racionalismo marxiano – daí, talvez, sua insistência na necessidade de retornar a Marx, na

contramão das tentações irracionalistas que estariam rondando alguns autores e tendências do

marxismo no século XX, as quais, sob o pretexto da regressão à barbárie revelada por alguns

acontecimentos do século (guerras, nazi-fascismo etc.), teriam acabado por abandonar o projeto

de Marx baseado na busca pela reconciliação entre razão e história784. Seriam esses outros

marxistas, menos otimistas quanto ao destino da “razão”, em função do seu aliciamento em

benefício de uma “barbárie moderna”, que constatariam a falência dessa identificação realista

entre razão, proletariado e história, em um momento em que esta identificação era assimilada

a um regime político que, longe de ser a continuidade do impulso revolucionário de 1917, havia

se consolidado mediante uma contrarrevolução burocrática que aniquilou a esperança em uma

sociedade qualitativamente distinta daquelas vigentes nos países capitalistas modernos.

Atingidos pelo pessimismo crescente a partir do entre-guerras, muitos destes marxistas

“ocidentais” foram exatamente os que mais se aproximaram não apenas dos temas românticos,

senão também de algumas das soluções (ou da ausência delas) por eles propostas diante dos

problemas diagnosticados. Lembre-se, por exemplo, da identificação dialética entre cultura e

barbárie promovida por Benjamin no seu livro das Passagens e em suas “teses sobre o conceito

de história”: “a barbárie está escondida no conceito mesmo de cultura”, encontrando-se apenas

ocultada pela herança e reprodução, entre os dominantes, dos “bens culturais”. O progresso da

cultura encontra-se, segundo Benjamin, fundado na reprodução da barbárie e da catástrofe.

Trata-se, para Löwy, do princípio epistemológico para uma história dialética da cultura,

784 Para Lukács, “a história da filosofia, da mesma forma que a da arte e da literatura, não é [...] simplesmente a

história das ideias filosóficas ou das personalidades que a sustentam. É o desenvolvimento social, o

desenvolvimento da luta de classes, que coloca os problemas à filosofia e indica a esta os roteiros para a sua

solução”. In: El assalto a la razón: la trayectoria del irracionalismo desde Schelling hasta Hitler. Cidade do

México: Grijalbo, 1972, p.3.

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sintetizada na sexta tese sobre o conceito de história, mas de uma dialética “negativa”, em

sentido amplo, cuja ênfase recai sobre o reverso da modernidade burguesa, sobre o amontoado

de ruínas que o progresso deixa atrás de si e, mais geralmente, sobre os mais atingidos, os

vencidos do desenvolvimento mal combinado e bastante desigual da história785.

Mas a aproximação ao legado romântico, nesse caso, aparece mais como sintoma de um

impasse, em consequência de um estreitamento do horizonte político, do que como sinal de

uma reivindicação positiva por parte dos autores. Na trajetória do próprio Michael Löwy, aliás,

o resgate e a reinterpretação da herança romântica podem ser interpretados como resultado de

uma tentativa de contribuir para a superação dos impasses do marxismo diante da crise do

paradigma civilizatória capitalista-moderno. Nessa perspectiva, o próprio Löwy, ou marxistas

“ocidentais” como Benjamin, Adorno, Marcuse, Thompson, dentre outros, podem, de fato, ser

compreendidos como marxistas “românticos”, tanto pela crítica do presente quanto pelo recuo

em direção ao passado em face do bloqueio na luta pelo futuro. O mesmo não se pode dizer,

porém, de Marx, ou do velho Lukács.

A fim de vislumbrar as “afinidades eletivas” entre marxismo e romantismo, Löwy é

obrigado a atenuar as consequências ideológicas e mesmo políticas na análise do segundo,

preferindo compreendê-lo como “visão de mundo” que atravessa todo o espectro político-

ideológico, da esquerda à direita. Se com os românticos de esquerda o diálogo com o marxismo

parece inevitável, em relação aos de direita, trata-se de combatê-los recuperando seus

argumentos em chave “progressista”. Essa “elasticidade” ideológica do romantismo, associada

a uma “disposição” para o contato com outras visões de mundo, atua, em Löwy, como caução

para a afirmação da relevância desta cosmovisão para a renovação do marxismo. Em face da

crise deste paradigma, mesmo o romantismo reacionário adquiriria uma atualidade

intempestiva, desde que depurado das soluções políticas a que serviu de inspiração. Trata-se

então, para Löwy, de desviá-los na direção de uma crítica anticapitalista de esquerda da

modernidade capitalista, em um momento em que os argumentos romântico-reacionários

demonstrar-se-iam mais eficientes nessa tarefa do que algumas vertentes da esquerda

“modernista”, ansiosa em arrematar em chave progressista o projeto inacabado da

modernidade.

Do ponto de vista sociológico, tal “atenuação” político-ideológica baseia-se na ideia,

desenvolvida pelos autores em Revolta e Melancolia, de que a visão de mundo

785 Michael Löwy, “‘A contrapelo’. A concepção dialética na cultura nas teses de Walter Benjamin”, op.cit.

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romântica, embora originalmente mais próxima da pequena-burguesia e, no interior desta, da

intelligentsia (em si mesma, refratária aos valores quantitativos capitalistas), abarca um

conjunto de grupos sociais mais amplos, de onde a sua capacidade de apreender grandes

problemas globais da modernidade burguesa a partir de uma ótica que, a depender da

perspectiva política envolvida, seria capaz de alcançar a universalidade. Para os autores, a

relação entre o romantismo (assim como entre os intelectuais) e as classes sociais e grupos

sociais é apenas indireta. Ora, o problema é que, muitas vezes, essa “autonomia relativa” parece

transformar-se em uma autonomia quase absoluta, em um movimento no qual as considerações

propriamente políticas da luta de classes encontram-se rebaixadas ao segundo plano.

Ao destacá-lo como uma crítica aos efeitos negativos da modernidade que atingem, mais

que uma classe ou grupo social em particular, o conjunto da sociedade, ainda que sob formas

diferentes, Löwy e Sayre acabam por chancelar o romantismo como uma crítica unilateral e

“desencarnada” do capitalismo, recaindo assim no perigo que eles próprios buscam evitar: a

condenação em bloco da modernidade, condenação no interior da qual não há lugar para a

articulação dialética entre crítica do capitalismo e valorização das conquistas do mundo

moderno, na direção de uma concepção da transição revolucionária vista como “superação” da

ordem vigente, transição cuja descontinuidade em relação ao passado imediato não significa a

rejeição “principista” e sem lastro social e político concreto, do conjunto da modernidade

capitalista. Além disso, quando romântica, mesmo que em sua dimensão revolucionária, a

oposição ao capitalismo se alimenta muitas vezes nem tanto de suas contradições imanentes

quanto de uma oposição “externa”, assentada em um conflito extemporâneo e pouco dialetizado

entre o mundo do espírito, dos valores humanos qualitativos portados pelos intelectuais,

escritores e artistas, e o mundo quantitativo e desencantado regido pela lógica da economia

mercantil.

7.2. O espectro weberiano: distâncias e aproximações

Um dos eixos, a partir da década de 1990, da sua proposta de radicalização da crítica

marxista da modernidade, a obra de Weber, ou parte dela, acompanha como uma sombra a

trajetória intelectual de Michael Löwy desde muito antes, tendo sido mesmo decisiva, como

vimos, no final da década de 1970, para seu détour na direção da “sociologia da religião”. Em

1969, período em que lecionava sobre o sociólogo alemão em Manchester, Löwy publicou o

ensaio “Marx e Weber: notas sobre um diálogo implícito”, no qual, embora sob uma perspectiva

inequivocamente marxista, buscava realçar algumas afinidades entre os dois autores, afinidades

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que, no mais, reafirmariam o quanto as críticas weberianas ao suposto economicismo unicausal

de Marx não eram justificadas. Aqui, porém, o tom ainda é de demonstração da superioridade

do marxismo, superioridade que lhe proporcionaria condições de responder e subsumir certos

diagnósticos de teorias concorrentes, tal qual havia procedido Lukács, em HCC, em relação ao

mesmo Weber.

Um novo passo da apropriação löwyana de Weber foi dado, como efeito colateral, na

tese sobre Lukács realizada em meados dos anos 1970. Reconstituindo a atmosfera histórico-

social, política, cultural e intelectual da Alemanha/Europa Central do início do século XX, na

qual Lukács se formou, Löwy dedicou algumas páginas do texto à descrição e análise do

chamado Círculo Max Weber de Heidelberg, grupo de intelectuais e universitários que se

reuniam na casa de Weber entre 1906 e 1918. Ao lado de personagens já consagrados como

Ferdinand Tönnies, Werner Sombart, Georg Simmel, Alfred Weber, Robert Michels, dentre

outros, figuravam dois jovens “dostoievskyanos escatológicos”: Ernst Bloch e Georg Lukács,

de onde o interesse de Löwy, para quem pairava sobre esses intelectuais um “estado de espírito”

anticapitalista romântico786. Embora ressaltando que Max Weber “não pode ser classificado

como um neo-romântico”, o fato é que, para Löwy, já nesse momento, a aceitação resignada do

sistema capitalista como horizonte inevitável da época convivia, no repertório do sociólogo

alemão, com uma crítica algo nostálgica do “espírito do capitalismo”, crítica que é “próxima da

dos românticos”787.

Foi em função dessa descrição da atmosfera neo-romântica e carregada de religiosidade

(a mística russa, por exemplo, oriundas de Dostoievski e Tolstoi) da época, com a figura de

Weber no centro, que Löwy foi convidado por Jéan Séguy para expor e debater seus argumentos

em uma das reuniões do grupo de pesquisa de sociologia da religião, no final da década de

1970. O ingresso no grupo de pesquisa sobre sociologia das religiões seria, como já se observou,

o primeiro episódio de uma virada acadêmica que perduraria pelas décadas seguintes, e a qual

não deixaria de ter consequências teóricas e temáticas. Através de Weber, acessado via Lukács

e, agora, via Séguy, Löwy adentrava nos meandros dos estudos sobre religião, direcionando-se

para o que seria um dos seus temas prediletos: as religiosidades utópicas. Nesse processo, como

nem poderia deixar de ser, era a própria perspectiva interpretativa em relação à obra weberiana

que era transformada, abrindo-lhe novos horizontes de leitura, assim como estimulando-o a uma

reinterpretação das ideias marxistas sobre a questão.

786 Michael Löwy, A evolução política de Lukács, op.cit., p.51. 787 Idem, p.56.

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O mais weberiano dos sociólogos da religião franceses, Jean Séguy constituiu-se na

principal referência de Löwy no grupo de sociologia da religião, fixando um quadro analítico

no qual a sociologia das religiões inscrita na obra do sociólogo alemão é compreendida no

contexto de sua análise mais geral do desenvolvimento da racionalidade moderna788. No âmbito

da sociologia das religiões, a obra de Weber, reinterpretada por Séguy, continha um preceito

metodológico fundamental para a própria legitimidade do “objeto”: a atribuição de um papel

ativo às cosmovisões religiosas, bem como aos valores e à esfera de sentidos, na constituição

da realidade social, premissa convergente com uma leitura anti-mecanicista do marxismo. Para

Löwy, na esteira de Séguy, Max Weber “é um dos raros, senão o único, entre os grandes

sociólogos, a atribuir um papel central aos fatos religiosos na constituição da civilização e na

genealogia da racionalidade ocidental”. Por meio da análise das mais diversas religiões – o

judaísmo antigo, o taoísmo, o confucionismo, o hinduísmo, o budismo, o ascetismo protestante

–, o sociólogo alemão busca “determinar o papel das diferentes culturas religiosas como

estimulantes ou obstáculos ao desenvolvimento da civilização industrial/capitalista moderna”.

A ele interessam tanto as “afinidades” quanto as “tensões ou antagonismos” entre ética religiosa

e ethos econômico, “que às vezes se afrontam em uma espécie de guerra dos deuses (Kampf

der Götter) irreconciliável”789.

Em sua primeira pesquisa como “sociólogo da religião”, sobre os intelectuais judeus da

Europa Central, Löwy explorou amplamente essa pista metodológica, desenvolvendo o

conceito – de procedência goethiana, e apenas esboçado em Weber – de “afinidades eletivas”790.

Enquanto Weber destacava, em A ética protestante e o Espírito do capitalismo, sobretudo as

convergências entre uma ética religiosa (protestante) e um comportamento (ethos) ou

racionalidade econômica (pró-capitalista), Löwy ampliou o escopo de aplicação do conceito,

utilizando-o como instrumento para a compreensão das afinidades entre determinadas leituras

religiosas (o messianismo judaico e o cristianismo de libertação) e algumas utopias sociais

anticapitalistas (como as utopias libertárias e o marxismo), que se concretizam em um

determinado contexto histórico que as favorece.

Na contramão de alguém como Raymond Aron, que reduz a “afinidade eletiva” à

condição de “adequação significativa”, “afinidade espiritual” ou “conformidade intelectual e

788 Cf. Jean Séguy, “Max Weber et la sociologie historique des religions”, in: Archives de sociologie des relligions,

v.17, n.33, pp.71-104. Sobre a presença de Weber na sociologia das religiões na França, cf. Monique Hirschhorn,

Max Weber et la sociologie française, Paris: L’Harmattan, 1988, especialmente pp.153-161. 789 Em 2004, Löwy organizou, junto com H. Wismann, o dossiê “Max Weber, la religion et la construction du

social”, na revista do grupo de pesquisa, a célebre Archives de sciences sociales des religions, n.127. No dossiê,

Löwy publicou exatamente o artigo “Le concept d’affinité élective chez Max Weber”. 790 Cf. Michael Löwy, Redenção e Utopia, op.cit., cap.I.

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existencial”791, Löwy enxerga nesta noção uma dimensão ativa, que lhe confere um dinamismo

irredutível à relação ou adequação estática entre duas visões distintas de mundo. Como ele diria

mais recentemente, em livro dedicado a “Max Weber e o marxismo-weberiano”, “a afinidade

eletiva [...] comporta o elemento da seleção, da escolha ativa, da atração recíproca. Na

linguagem de Goethe, à qual Weber se refere explicitamente ao utilizar essa expressão, as duas

formas culturais ‘se procuram uma à outra, se atraem, se apreendem uma à outra’”792. Há

“afinidade eletiva” quando, estimuladas pelas “condições históricas e sociais concretas”, duas

formas culturais, religiosas, intelectuais, políticas ou econômicas, ou uma forma cultural e o

estilo de vida de um grupo social, estabelecem – a partir de certas analogias significativas ou

afinidades de sentido – uma “relação de atração e de influência recíprocas, de escolha ativa, de

convergência”793.

Muito além de Weber, Michael Löwy confere ao conceito de “afinidade eletiva” um

estatuto metodológico importante no âmbito da sociologia da cultura de matriz goldmanniana,

permitindo a compreensão da “conjunção entre fenômenos aparentemente díspares, dentro do

mesmo campo cultural (religião, filosofia, literatura) ou entre esferas sociais distintas: religião

e economia, mística e política etc.”794. Instrumento “indisciplinar” de pesquisa, tal conceito

tornaria possível, assim, enriquecer, nuançar e tornar mais dinâmica a análise das relações entre

fenômenos econômicos, políticos, religiosos e culturais”795. Por isso, aos olhos de Löwy, a

utilização dialética do conceito serviria como contrapeso à tendência, muito presente entre

parcelas significativas do marxismo, “de reduzir os processos (por exemplo) religiosos à

‘expressão’ de um conteúdo social ou político, do qual seriam apenas a manifestação exterior,

a aparência formal”796.

A bem dizer, a relevância teórico-metodológica do conceito de “afinidades eletivas”

situa-se, em Löwy, no fundo, nessa capacidade que, para ele, tal noção tem de – se não provocar

– estimular uma nova abordagem dos fenômenos culturais, em oposição aos determinismos

causais, sejam eles “materialistas” ou “espiritualistas”. Embora algumas vezes pareça

compartilhar uma orientação metodológica supostamente “espiritualista”, o preceito geral d’A

Ética protestante..., bem como de outros textos de Weber, remete a um pluralismo causal do

qual testemunha a noção de “afinidades eletivas”. Nas palavras de Löwy: “Trata-se para Weber

791 Cf. Raymond Aron, Les Étapes de la pensée sociologique, Paris: Gallimard, 1967, p.537, 539, 540, 542. 792 Michael Löwy, La Cage d’acier. Max Weber et le marxisme wébérien. Paris : Stock, 2013, p.92. 793 Idem, p.93. 794 Michael Löwy, Redenção e Utopia, op.cit., p.16. 795 Idem, p.13. 796 Michael Löwy, “Messianismo judeu e utopias libertárias na Europa Central (1905-1923)”. In: Romantismo e

Messianismo, op.cit., 1990, pp.131-188. (p.186).

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de superar a abordagem tradicional em termos de causalidade, contornando, assim, o debate

sobre o primado do ‘material’ ou do ‘espiritual’”797, como se vê na passagem seguinte d’A

Ética...: “Em face da enorme barafunda de influxos recíprocos entre as bases materiais, as

formas de organização social e política e o conteúdo espiritual das épocas culturais da Reforma,

procederemos tão-só de modo a examinar de perto se, e em quais pontos, podemos reconhecer

determinadas ‘afinidades eletivas’ entre certas formas de fé religiosa e certas formas da ética

profissional. Por esse meio e de uma vez só serão elucidados, na medida do possível, o modo e

a direção geral do efeito que, em virtude de tais afinidades eletivas, o movimento religioso

exerceu sobre o desenvolvimento da cultura material”798.

Para Löwy, “dialetizado”, por assim dizer, o conceito de “afinidade eletiva” contribui

para a elaboração de um marxismo crítico “aberto”, na contramão do (s) marxismo (s)

mecanicista/economicista, refratário à consideração do papel ativo da subjetividade, reduzindo-

a à condição de reflexo e/ou expressão de alguma infraestrutura determinante. Foi em grande

medida por meio dessa utilização “metodológica” de Weber que alguém como Gramsci, por

exemplo, teria reconstituído a importância das ideias, valores e representações na constituição

da história. “Até certo ponto, podemos considerar que, focalizando o papel produtivo das ideias

e representações através da história, Gramsci usou Weber para combater a abordagem

economicista do marxismo vulgar”, sustenta Löwy799. Nas análises de Weber, Gramsci teria

visualizado um exemplo paradigmático da passagem de uma concepção de mundo (a doutrina

calvinista da predestinação) a uma norma prática de comportamento.

Com esta abordagem relativamente nova dos fenômenos culturais e/ou ideológicos,

marxista heterodoxa tingida de certa tonalidade weberiana, Löwy encontrou a base e a

justificativa metodológicas para a busca incessante pelas “afinidades eletivas” entre “formas

culturais” distintas de crítica da modernidade capitalista, das mais “progressistas” às mais

“reacionárias”. O vínculo de muitas destas críticas da modernidade com grupos e interesses

sociais de classe “reacionários” não as impede de, em outro contexto, revelar afinidades

surpreendentes com as formas “progressistas” de crítica do capitalismo. Assim, articulada à

“desconstrução” benjaminiana da temporalidade histórica das ideologias do progresso, a

investigação löwyana sobre as mais diferentes formas de crítica da modernidade o leva à (re)

descoberta de homologias improváveis, que permaneceram sob a massa espessa das polêmicas

797 Michael Löwy, La Cage d’acier, op.cit., p.80. 798 Max Weber, A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p.83.

(tradução: José Marcos Mariani de Macedo; revisão técnica, edição de texto, apresentação: Antônio Flávio

Pierucci). 799 Michael Löwy, A guerra dos deuses. Religião e Política na América Latina, Petrópolis: Vozes, 2000, p.28.

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políticas do passado. Dentre essas “descobertas” destaca-se exatamente (menos pela proposta

geral, que não era novidade, e mais pela ênfase nela posta) a tentativa de Löwy de reinterpretar

o diagnóstico weberiano da modernidade em suas afinidades possíveis com uma leitura

heterodoxa do marxismo, inspirada em “marxistas-weberianos” do passado como Lukács,

Adorno, Marcuse etc.

Na ótica de Löwy, mesmo se, sob o impacto da atmosfera neo-romântica de cenário

intelectual da Alemanha na época, Weber sempre defendeu posições nacionalistas, quando não

francamente expansionistas, seu diagnóstico do capitalismo moderno contém um núcleo crítico

que, no presente, revela-se profícuo à revitalização de uma análise anticapitalista da

modernidade. Em um momento em que o próprio marxismo necessitaria resgatar sua fonte

oculta romântica, a fim de confrontar a crise civilizatória existente, as afinidades entre os

diagnósticos marxista e weberiano da modernidade podem ser visualizadas em todas as suas

consequências. Trata-se de condições históricas determinadas que “favorecem”, explica Löwy,

a retomada dessas afinidades entre Marx e Weber, ou, mais precisamente, entre as análises

marxistas e weberianas do processo de desenvolvimento e consolidação da modernidade

capitalista “ocidental”. “Marx e Weber são indispensáveis para compreender o mundo no qual

nós vivemos, este mundo que, no século XXI, permanece capitalista, mesmo se sob formas

diferentes daquelas do século XX”, diz Löwy, que acrescenta: “mais do que nunca, e mais do

que na época de Marx ou de Weber, nós estamos submetidos ao poder total de forças impessoais

– o mercado, as finanças, a dívida, a crise, o desemprego – que se impõem aos indivíduos como

um destino implacável”800.

Michael Löwy não desconhece as diferenças (e tampouco os antagonismos)

metodológicas e, sobretudo, políticas entre Marx e Weber: enquanto o primeiro analisa “a

origem do capitalismo moderno através do conceito de ‘acumulação primitiva do capital’”,

destacando o papel central dos fatores extra-econômicos, tais como a expropriação violenta dos

camponeses, o tráfico de escravos e a pilhagem brutal das colônias, Weber sustenta, em A Ética

Protestante e o Espírito do Capitalismo, a hipótese segundo a qual o desenvolvimento do

capitalismo, desde o século XVII, é o resultado da ética do trabalho, do esforço e da poupança

ascética de alguns capitalistas, impulsionados pelo puritanismo calvinista – uma explicação,

aliás, compatível com o discurso de autolegitimação dos proprietários de capital.

Mas, para Löwy, a despeito dessas divergências, hoje matizadas em relação às querelas

do passado, é possível visualizar afinidades e complementaridades entre os dois pensadores

800 Michael Löwy, La Cage d’acier, op.cit., p.192.

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alemães, em torno de uma análise comum do capitalismo que incorpora o papel das classes

sociais e do Estado para a compreensão da formação de um sistema no qual os indivíduos

encontram-se dominados por abstrações e relações “coisificadas”. Sublinhando o “pessimismo

cultural” que estaria impregnado nas análises weberianas, Löwy visualiza nas reflexões do

sociólogo de Heidelberg uma percepção (resignada, é bem verdade) das contradições, dos

paradoxos e dos limites da racionalidade e do seu caráter formal/instrumental, e, tão importante

quanto, da sua tendência a produzir efeitos que conduzem à reversão das aspirações

emancipadoras da modernidade. Em Weber, tanto quanto em Marx, seria possível antever assim

um “diagnóstico implacável da civilização burocrática – ‘dura como aço’ – e sua obscura

premonição do futuro que ela nos prepara”801.

Este diagnóstico crítico da civilização moderna aparece de forma notável nas últimas

páginas d’A Ética Protestante..., nas quais Max Weber – abandonando momentaneamente sua

reivindicação da ciência “livre de julgamentos de valor” – efetua uma espécie de “digressão

crítica” (nas palavras de Löwy) sobre o tema da “petrificação mecanizada” característica do

capitalismo consolidado. Para o sociólogo franco-brasileiro, nessas páginas notáveis,

“felizmente Weber não conseguiu ‘neutralizar’ suas opiniões e crenças”; bem ao contrário, ele

deu livre curso a “uma visão radicalmente crítica e bastante pessimista do presente e do futuro

da civilização moderna”, de tal modo que elas “contrastam fortemente com o resto do texto, por

seu caráter pessoal e axiologicamente engajado”802.

É nessas páginas que Weber elabora a conhecida alegoria da “gaiola de aço” (segundo

a inexata tradução popularizada por Talcott Parsons), ou do “habitáculo duro como aço”

(conforme prefere Löwy). Trata-se, para Löwy, não tanto de uma previsão das prováveis

consequências futuras do processo de burocratização, e sim de uma alegoria da civilização

capitalista industrial no presente, uma alegoria no sentido benjaminiano, na qual – tal como se

pode ver no livro Origem do Drama Barroco Alemão – “a facies hippocratica da história [...]

se apresenta para o espectador como uma paisagem primitiva petrificada”. Em outras palavras:

a “gaiola de aço” weberiana constitui uma espécie de “iluminação profana”, conforme a

expressão do mesmo Benjamin em seu ensaio sobre os surrealistas (1929), através da qual Max

Weber denuncia – à sua maneira – o capitalismo como um “destino trágico”, “sem porta de

saída”, em que toda a humanidade encontra-se aprisionada. Para o “liberal atípico” que foi

801 Michael Löwy, La Cage d’acier, op.cit., p.9. A propósito, cf. também: Michael Löwy, “Marx et Weber critiques

du capitalisme”, in: E. Kouvelakis (org.), Marx 2000. Paris : PUF, 2000. 802 Idem, p.58.

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Weber esta “gaiola” significava, como afirma Löwy, a perda de um valor que lhe era caro: a

liberdade individual803.

Baseando-se nessa perspectiva, Michael Löwy não hesitou em retomar a expressão

“marxismo-weberiano”, apenas esboçada, de passagem, por Merleau-Ponty em As aventuras

da dialética (1955), para designar os autores do “marxismo ocidental” influenciados por

algumas ideias de Weber, em particular Lukács e seus discípulos804. Desde 1992, em artigo

publicado na revista Actuel Marx, em dossiê sobre “Marx e Weber”, Löwy passara a defender

o caráter “intelectualmente produtivo” da fórmula “marxismo-weberiano”, desde que esta não

seja compreendida como uma “mistura eclética de dois métodos, mas sobretudo como

perspectiva fundamentalmente inspirada em Marx, com apropriação de alguns temas e

categorias de Weber”805.

Inspirando-se em HCC, Löwy propõe, portanto, a incorporação de aspectos da análise

weberiana da modernidade a partir de uma ótica marxista-dialética. Para ele, Lukács foi “o

primeiro marxista a levar Max Weber a sério e a se inspirar em suas ideias de forma

significativa”806. É o que se pode ver, por exemplo, no capítulo central de HCC, assentado na

crítica da reificação, no qual Lukács realiza uma “síntese potente e original da teoria do

fetichismo da mercadoria, e da teoria da racionalização de Weber”, escreve Löwy. Na sua visão,

ao “fusionar” a categoria weberiana de racionalidade formal – caracterizada pela abstração e

quantificação – com as categorias marxianas de trabalho abstrato e de valor de troca, “Lukács

reformulou a temática do sociólogo alemão na linguagem teórica marxista”, recuperando

algumas das contribuições pretensamente “neutras” de Weber sobre a civilização industrial

moderna a fim de colocá-las a serviço da crítica radical ao caráter desumano e reificado da

racionalidade puramente formal do capitalismo moderno. Malgrado os eventuais limites

metodológicos da obra weberiana807 – que remetem às antinomias kantianas –, Lukács visualiza

803 Idem, p.72. 804 Cf. Maurice Merleau-Ponty, Les Aventures de la dialectique. Paris: Gallimard, 1955, pp.42-80. 805 Michael Löwy, “ Figures du wébéro-marxisme”, in: Actuel Marx, n.11, 1992. Na apresentação do dossiê, pode-

se ler: “Após um longo predomínio de uma recepção ‘direitista’, a obra de Weber, resgatada nas heranças que

descobrimos em Bloch, Lukács e alguns outros, aparece hoje na sua proximidade em relação àquela de Marx. Se é verdade que encontramos em Weber uma crítica feroz do ‘socialismo real’, e se seu historicismo, articulado em

torno da racionalização como destino inelutável, é bem diferente daquele de Marx, pode-se discernir melhor o

quanto sua análise da sociedade moderna deve ao materialismo histórico, mesmo quando explora espaços teóricos

que escaparam àquele, e o quanto ela contribui a essa mesma tradição quando concentra a atenção na destruição

do sentido nas relações capitalistas e burocráticas. É uma releitura radical que é proposta aqui”. 806 Michael Löwy, La Cage d’acier, op.cit., p.152. 807 Em seus ensaios sobre a sociologia do conhecimento, Michael Löwy assinalou alguns dos limites

metodológicos de Weber, cuja teoria da ciência, ao mesmo tempo em que reconhece, ao modo historicista, a

presença dos valores na escolha do objeto e das questões teóricas nas ciências sociais, se aproxima – em sua defesa

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em Weber uma análise parcial, porém penetrante, de algumas características da racionalidade

da vida moderna. Na opinião do filósofo húngaro, “para a consideração do seu (de Weber)

material factual, é inteiramente indiferente se concordamos ou não com sua interpretação

causal”808.

Por meio de Weber e suas análises da vida moderna, impregnada pelo espírito capitalista

do cálculo, Lukács estende a análise marxista da forma mercantil e da “coisificação” a outros

domínios da sociedade e da cultura. Com o desenvolvimento do capitalismo, a reificação acaba

por englobar o conjunto das dimensões da vida social, inclusive e sobretudo o Estado, a

administração, a justiça e o direito. Assim, à racionalização do agir econômico burguês,

ancorado na quantificação e no cálculo racional, segue-se a racionalização reificada das

regulações “jurídicas” e burocráticas da vida social: o Estado burocrático torna-se ele próprio

calculável809. Com esta perspectiva, Lukács teria logrado elaborar as premissas para uma crítica

(“marxista-weberiana”) da civilização capitalista-moderna em sua totalidade, centrada na

crítica da reificação universalizante, uma crítica que, não por acaso, avança até a crítica das

“antinomias do pensamento burguês” e, mais importante ainda, das formas dominantes de

“racionalidade”.

Daí a filiação “marxista-weberiana” da crítica dos autores vinculados à chamada Escola

de Frankfurt à “racionalidade instrumental”, cujo desenvolvimento não apenas não significa a

superação da barbárie como muitas vezes implica na reemergência de uma barbárie

propriamente “moderna”. Inspirados na crítica lukacsiana da reificação, e, portanto, na

apropriação de Weber realizada por Lukács, autores como Adorno e Horkheimer, por exemplo,

foram responsáveis por um diagnóstico da civilização capitalista-moderna que, por seu

pessimismo algo sombrio – depois da catástrofe nazista –, reatava, em certa medida, com a

postura intelectual resignada do sociólogo alemão no início do século, em detrimento da

identificação lukacsiana do proletariado como síntese e possibilidade de resolução teórica e

política dos dilemas e antinomias da modernidade reificada.

Aos olhos de Michael Löwy, ainda que o nome de Weber apareça apenas uma única vez

em A dialética do esclarecimento (1944), o “diagnóstico pessimista” esboçado neste livro é

amplamente tributário das análises weberianas, em especial na caracterização da civilização

ocidental como o resultado de um processo milenar de desencantamento do mundo e de

da “neutralidade axiológica” na condução da pesquisa social – de uma démarche positivista. Michael Löwy, As

aventuras..., op.cit., 1994, pp.33-49. 808 Georg Lukács, História e Consciência de Classe, op.cit., p.382. 809 Idem, p.216.

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racionalização, que desagua na sua expressão mais acabada: o mundo industrial e burocrático

moderno, quando, paradoxalmente, a “racionalidade” (instrumental) se transforma no seu

contrário, o mito810. Amparados em Weber (além de Marx e Lukács, evidentemente), os

filósofos frankfurtianos elaboram uma crítica radical da racionalidade instrumental (abstrata e

formal, orientada a fins), em nome de uma racionalidade substancial, concreta. Em uma

entrevista que nos concedeu em 2008, Löwy afirmou que “o conceito weberiano de

‘racionalidade instrumental’, reinterpretado em termos marxistas por Adorno e Horkheimer,

permite uma crítica radical da civilização capitalista, uma civilização na qual esta racionalidade

estreita e mesquinha pode ser facilmente colocada a serviço de finalidades irracionais, desde a

acumulação ilimitada de capital, até as guerras imperiais ou os genocídios”811.

A racionalidade substantiva se torna, assim, muito mais do que o “proletariado” (como

em HCC), o ponto de referência “positivo”, por assim dizer, de suas críticas da civilização

moderna e de sua racionalidade puramente formal812. Tal esperança “humanista e socialista” na

possibilidade de uma racionalidade concreta – esperança que, segundo Löwy, é compartilhada

por Adorno e Horkheimer, ambos recusando a aceitar o capitalismo e a burocracia como

“destinos” inelutáveis da humanidade – constitui o ponto de separação entre os autores d’A

dialética do esclarecimento e Weber. “Mais hegelianos que Weber (que resta, no fundo, um

neo-kantiano), eles [Adorno e Horkheimer] defendem um racionalismo concreto, substancial,

‘objetivo’, dizendo respeito tanto aos meios quanto aos fins da ação”813.

Além de “marxistas-weberianos” propriamente ditos como Lukács, Adorno e/ou

Horkheimer, nas obras dos quais a presença de elementos oriundos do pensamento de Weber é

marcante, ainda que subordinados a um quadro geral marxista e dialético, Löwy destaca

também autores que, próximos do marxismo ou de alguma outra utopia revolucionária, judeus

de cultura alemã, produziram “um conjunto de leituras anticapitalistas – assim como, em ampla

medida, antiprotestantes ou anticalvinistes – do autor d’A Ética protestante”. Trata-se, nesse

tipo de interpretação, acima de tudo, de uma espécie de détournement: tais autores, dentre os

quais Benjamin, Bloch e Erich Fromm, se servem dos “argumentos ambivalentes de Weber a

810 “Com a extensão da economia burguesa mercantil, o horizonte sombrio do mito é iluminado pelo sol da razão

calculadora, cuja luz glacial fermenta a semente da barbárie”. Max Horkheimer & Theodor Adorno, Dialectique

de la raison. Paris: Gallimard, 1974, p.48. 811 Fabio Mascaro Querido, “As utopias indisciplinadas de um marxismo para o século XXI: o marxismo como

crítica da modernidade. Entrevista com Michael Löwy”, in: Lutas Sociais, São Paulo, n/21/22, 2009, p.183, 184. 812 Michael Löwy, “Leo Löwenthal (1900-1993). La dernière étincelle de l’Ecole de Francfort”. Revue Science

(s), Politique (s). Département de Science politique de l’Université de Paris VIII – Saint-Denis, n.2-3, maio 1993.

Paris: Editions KIMÉ, p.249.

813 Michael Löwy, La Cage d’acier, op.cit., p.164.

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fim de lançar um ataque frontal, de inspiração socialista/romântica, contra a religião capitalista

– um conceito novo que não figura na obra weberiana”814. De formas diferentes, pode-se

encontrar, em todos eles, uma crítica dos valores burgueses - do “espírito capitalista” - enquanto

parte de uma crítica mais ampla da civilização capitalista-moderna em seu conjunto, de onde a

dimensão romântica de suas reflexões. Como demonstrara Löwy em Redenção e Utopia, o

romantismo de tais autores assentava-se na atmosfera de pessimismo cultural na Alemanha das

primeiras décadas do século XX, culminando na emergência do nazismo em 1933.

Não é difícil perceber, assim, o quanto esse resgate do “marxismo-weberiano” inscreve-

se, em Löwy, no âmbito de suas proposições em torno de revitalização “romântica”, libertária

e, não por acaso, benjaminiana do marxismo. Esta articulação define a especificidade do seu

“marxismo-weberiano”, assim como o escopo de sua abordagem da questão. Para ele, é no

contexto de uma tal crítica de tonalidade romântica da modernidade que se pode, hoje,

apreender a convergência entre Weber e seus leitores marxistas. “Se Lukács e a Escola de

Frankfurt apelaram tão amplamente à teoria da racionalização moderna desenvolvida por

Weber, é [...] porque ambos compartilham um certo Kulturpessimismus e, mais

fundamentalmente, uma crítica de inspiração romântica da civilização industrial-capitalista”815.

Não por acaso, a releitura de Weber proposta por Löwy, na esteira de alguns autores do

passado, choca-se de modo frontal com interpretações que, tal como a de Jürgen Habermas,

criticam ou minimizam a dimensão “negativo-romântica” das análises weberianas, à procura de

alguma reconciliação possível com a modernidade realmente existente. Na visão de Löwy, ao

recusar toda forma de Kulturpessimismus e acreditar na possibilidade de restabelecer o projeto

original das Luzes, “Jürgen Habermas representa, na Escola de Frankfurt, a saída do marxismo

weberiano”. Se é verdade que suas reflexões têm como ponto de partida as análises de Weber

e de Marx, “seu objetivo é precisamente de se dissociar dessa herança, ‘superando-a’”817.

Ao monismo weberiano e da teoria crítica, Habermas opõe um quadro de reflexão

dualista (ou bidimensional), propondo uma distinção entre o trabalho - esfera da atividade

racional e instrumental, englobando os sistemas econômico e estático - e a interação, esfera da

atividade comunicativa que se desenrola no mundo da vida. Espaço de troca linguística e de

integração social, o mundo da vida constitui, para Habermas, enquanto resultado da

modernização cultural, o lugar das virtualidades emancipatórias da racionalização, para além

da racionalidade instrumental vigente no sistema. Por isso, por meio da apreensão e da defesa

814 Idem, p.127. 815 Idem, p.166. 817 Michael Löwy, La Cage d’acier, op.cit., p.176, 177.

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da autonomia do mundo da vida (contra a sua “colonização” pelo sistema), tornar-se-ia possível,

segundo Habermas, resgatar em novas bases o projeto inacabado da modernidade, escapando

do beco sem saída que tanto Marx, Weber, Lukács quanto Adorno e Horkheimer, teriam

submergido, circunscritos que restaram a uma generalização “unilateral” da racionalidade

instrumental e da reificação818.

Do ponto de vista habermasiano, nenhum desses autores rende justiça, em suas análises,

ao “conteúdo racional” da modernidade cultural, a qual não pode ser totalmente subsumida ao

domínio exclusivo da racionalidade instrumental819. Menosprezam, assim, os alicerces

universalistas dos subsistemas da modernidade (direito, moral, ciência, estética). Para

Habermas, diante das hipóstases da reificação (Lukács), da racionalidade instrumental

(Adorno), da “unidimensionalização” (Marcuse), enfim, da “perda de liberdade” (Weber), é

preciso reinterpretar o desenvolvimento da modernidade igualmente à luz da racionalidade

comunicativa, com seu potencial de “descolonização” das esferas da vida cotidiana, através de

um aprofundamento permanente dos mecanismos democráticos de regulação da vida social. Eis

aí o horizonte normativo da teoria crítica que, segundo Habermas, faltava aos seus

precursores820.

Na opinião de Löwy, com esta distinção entre sistema e mundo da vida, entre

racionalidade instrumental e racionalidade comunicativa, sistematizada na sua obra magna, A

Teoria da Ação Comunicacional, de 1981, Habermas “se afasta consideravelmente da tradição

webero-marxista”, atenuando o radicalismo da primeira geração da Escola de Frankfurt na

direção de uma espécie de reconciliação com as normas da modernidade vigente821. Ao

contrário de Habermas, Weber jamais acreditou – segundo Löwy – na possibilidade de

resolução racional-consensual dos conflitos de valores. “Como Nietzsche, ele não hesita em

arruinar a ilusão da reconciliação, insistindo no caráter insuperável das antinomias que definem

a condição histórica moderna”822.

A bem dizer, a suavização da feição mais negativa da obra weberiana insere-se no

âmbito do “projeto político-cultural de Habermas”, que, na ótica de Löwy, poderia ser resumido

818 Jürgen Habermas, “Concepções da modernidade. Um olhar retrospectivo sobre duas tradições”. In: A

constelação pós-nacional - Ensaios Políticos, tradução de Márcio Seligmann-Silva, São Paulo: Littera Mundi, 2001, p.180. 819 Jürgen Habermas, O discurso filosófico da modernidade. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p.162. 820 Para Habermas, os principais “pontos débeis” da primeira geração da teoria crítica são: 1) a ausência de sólidos

“fundamentos normativos”; 2) o apego ao “conceito hegeliano de verdade”, avesso à “falibilidade do trabalho

científico”; e, por fim, 3) a “subvalorização das tradições do Estado democrático de direito”. Cf. Habermas,

“Dialéctica de la racionalización”. In: Ensayos políticos. Barcelona: Ediciones Península, 1988, p.141. 821 Idem, p.180. 822 Michael Löwy, “Habermas e Weber”. In: Daniel Bensaïd & Michael Löwy, Marxismo, modernidade e utopia.

São Paulo: Xamã, 2000, p.221.

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“como uma tentativa de tornar a sociedade burguesa mais fiel à sua própria utopia

racionalista”823. O horizonte de expectativa de Habermas seria aquele da “utopia burguesa da

razão”, perspectiva que o levaria – como afirma Joel Whitebook – a “um hegelianismo no mau

sentido, a saber, [a] uma complacência em relação ao status quo, racionalizado como teoria da

modernidade”824. Assim, retomando o “projeto incompleto da modernidade”, como ele

sustentou em conferência de 1981, Habermas afastar-se-ia não apenas de Weber, com seu

irredutível antagonismo de valores, senão também de Marx, não por acaso os dois pilares da

teoria crítica de Adorno e Horkheimer. Para Marx, tanto quanto para Weber, embora por razões

e preocupações diferentes, sob a vigência do capitalismo moderno, não há reconciliação

possível: na perspectiva do filósofo alemão – escreve Löwy –, “a dominação generalizada do

valor de troca, a submissão de todas as relações sociais ao pagamento direto em moeda, a

dissolução de todos os sentimentos humanos nas ‘águas geladas do cálculo egoísta’ são

consequências necessárias e inevitáveis da economia capitalista de mercado”825.

Nessa perspectiva, a despeito do seu pessimismo inescapável, a “constatação brutal

Weber a respeito da contradição irredutível dos valores” (a guerra dos deuses), assim como a

“sua análise dos resultados alienantes da racionalidade instrumental”, constituem um “[...]

ponto de partida mais fecundo para a análise da sociedade moderna [do] que os sonhos de

reconciliação linguística dos valores de Habermas”826. Diante da acuidade crítica contida nos

diagnósticos weberiano e/ou marxiano da modernidade (“sintetizados” por Lukács e pela

Escola de Frankfurt), Habermas retrocede, então, ao horizonte de uma “utopia neorracionalista”

fundada em “ilusões tipicamente liberais acerca das virtudes miraculosas da ‘discussão pública

e racional dos interesses’, a produção consensual de ‘normas ético-jurídicas’, etc.”. Tudo se

passando “como se os conflitos de interesses e de valores entre classes sociais, ou a ‘guerra dos

deuses’ na sociedade atual entre posições morais, religiosas ou políticas antagônicas pudessem

ser resolvidas por um simples paradigma de comunicação intersubjetiva, da livre discussão

racional”827.

Almejando “reabilitar a ideia de progresso”, a fim de “fundar a pretensão da

modernidade em possuir uma significação normativa universal”, conforme escreveu Catherine

823 Idem, p.183. 824 Joel Whitebook, “Reconciling the irreconcilable? Utopianism after Habermas”, in: Praxis International, n.8,

1988, p.78. 825 Michael Löwy, “Habermas e Weber”, op.cit., p.220. 826 Idem, p.222, 223. 827 Michael Löwy, La Cage d’acier, op.cit., p.187.

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Colliot-Thèlène828, Habermas imuniza-se contra todo resquício romântico, cuja apreciação

poderia levar à incompreensão do caráter progressista da evolução histórica. Na visão de

Michael Löwy, mais do que as “divergências teóricas e filosóficas”, é este “antiromantismo de

princípio” que está na base das diferenças – “ao nível das estruturas de sensibilidade profundas”

– entre o pensamento de Habermas e aquele de Weber e/ou da primeira Escola de Frankfurt829.

Moldando-se em oposição a esse antagonista “modernista” e defensor do progresso que é

Habermas, a leitura weberiana proposta por Löwy não esconde sua predileção romântica, como

que buscando sinalizar a possibilidade de um outro caminho para a teoria crítica, reatando com

o que ele entende ser suas origens “marxista-weberianas”.

Em alguma medida, Löwy retoma os becos-sem-saídas de Marx, Weber, Lukács,

Adorno e congêneres, na medida em que, para ele, estes constituem antinomias da própria

modernidade, cuja superação requereria um salto que Weber, ele mesmo, não considerava senão

como uma hipótese perigosa: a crença ou aposta na possibilidade de ruptura com o capitalismo

moderno. Via Benjamin, ao mesmo tempo em que restituía a “negatividade crítica” inscrita no

pessimismo cultural de Weber ou da primeira geração frankfurtiana, Löwy reatava os vínculos

com as esperanças ético-políticas anticapitalistas revolucionárias de Marx e/ou do jovem

Lukács (de HCC). Com sua obra idiossincrática, entre resistência e utopia, Benjamin conferia-

lhe argumentos para a conciliação entre estas perspectivas politicamente divergentes,

conciliação assentada em sua releitura da visão de mundo romântica e, por essa trilha, em sua

interpretação específica do “marxismo-weberiano”830.

É bem verdade que, para levar adiante tal proposta, Löwy deve demonstrar mais uma

vez sua grande generosidade teórica, que não está imune do perigo da indulgência. Mais uma

vez, assim como em sua valorização do romantismo, Löwy retoma o diagnóstico da

modernidade desses autores “marxistas-weberianos” exatamente em um momento em que se

forma um certo consenso de que o capitalismo, desde meados da década de 1970, entrou em

uma nova “etapa” histórica, baseada no que Fredric Jameson denominou uma nova “lógica

cultural”, ainda mais capitalista, e por isso mesmo qualitativamente diferente do momento

828 Catherine Colliot-Thèlène, “Habermas, lecteur de Marx et de Max Weber”, in: Études wébériennes.

Rationalités, histoires, droits. Paris: PUF, 2001, p.69. 829 Michael Löwy, La Cage d’acier, op.cit., p.182. 830 Sobre as especificidades do “marxismo-weberiano” de Michael Löwy, permito-me mencionar: Fabio Mascaro

Querido, “Marx, Weber e a modernidade: capítulos de um (des) encontro histórico”, in: Revista Brasileira de

Ciências Sociais (ANPOCS), v.29, n.87, pp.170-174. Ou ainda, para uma abordagem mais ampla: Fabio Mascaro

Querido, “Crítica da modernidade e ‘marxismo-weberiano’: aspectos da trajetória indisciplinada de Michael

Löwy”, in: Perspectivas. Revista de Ciências Sociais, v.38, 2010, pp.113-141.

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anterior do desenvolvimento do sistema, marcado pelo processo de modernização e pela

tentativa de superação definitiva da “tradição”831. A esta acusação de anacronismo, Löwy

provavelmente responderia, como o faz em alguns dos seus textos, que esse avanço da

mercantilização capitalista torna ainda mais atual a crítica de Marx às “águas glaciais do cálculo

egoísta”, bem como a de Weber à “jaula de aço” capitalista-moderna. Por certo. Tal afirmação

de princípio não anula, porém, a necessidade de uma apreciação mais apurada das

transformações internas, especialmente na sua dimensão “simbólica”, do capitalismo,

inegavelmente mais dinâmico e flexível (e também mais destrutivo e violento) do que nos

tempos de Marx ou de Weber, ou mesmo de Lukács e/ou de Adorno.

Em O novo espírito do capitalismo, por exemplo, Luc Boltanski e Evè Chiapello

demonstram como o divórcio, desde meados dos anos 1970, entre a “crítica social” e a “crítica

artística” do capitalismo tornou possível a este “recuperar” e/ou integrar aspectos da segunda,

desprovendo-a da radicalidade política potencial da primeira. Após anos nos quais as duas

críticas (a “social” e a “artística”) caminharam juntas, sob o impulso da revolta social e das

lutas operárias então vigentes, a partir da segunda metade dos anos 1970, com o declínio dos

ganhos de produtividade, assim como com a manutenção da contestação social nas empresas,

impôs-se aos representantes do sistema a necessidade de modificações dos modelos de

organização no interior das fábricas, o que passava pela incorporação, para o bem do próprio

capitalismo, de algumas demandas da “crítica artística”, na contramão dos modelos

hierárquicos e autocráticos de funcionamento das empresas. Resgatando as reivindicações de

autonomia e de flexibilidade, características da “crítica artística”, o sistema conseguiu,

paradoxalmente, retomar o controle da organização do trabalho, em um momento em que esta

estava cada vez mais ameaçada pela contestação dos operários fatigados de um modelo de

funcionamento das empresas julgado demasiadamente centralizador832.

Esta capacidade de “recuperar as ideias daqueles que eram seus inimigos na fase

anterior”, foi fundamental para que o capitalismo tenha conseguido assumir um novo

dinamismo e, assim, superar a tendência então vigente da baixa da taxa de lucros833. Além disso,

em um nível que podemos denominar “ideológico”, esta recuperação conseguiu dissolver

parcialmente a potencialidade anticapitalista das demandas ligadas à “crítica artística”,

rompendo seus vínculos com a “crítica social” contestatória. Reduzida a si mesma, esta “crítica

831 Cf. Fredric Jameson, Pós-modernismo..., op.cit. 832 Cf. Luc Boltanski & Ève Chiapello, Le nouvel esprit du capitalisme, op.cit., especialmente o terceiro capítulo

“1968, crise et renouveau du capitalisme et le désarmement de la critique”, pp.259-316. 833 Idem, p.312.

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artística” (crítica da reificação e do desencantamento do mundo) poderia, deste modo, ser

destituída de sua radicalidade antisistêmica, a fim de ajudar o próprio sistema a “satisfazer”

algumas de suas demandas em favor de uma lógica mais adaptada às necessidades para a

retomada do crescimento capitalista na época.

Da incorporação de aspectos importantes desta “crítica artística” emergiu o que os

autores denominam “novo espírito do capitalismo”, enquanto “ideologia que justifica o

engajamento no capitalismo”, e, ao mesmo tempo, fornece “um ponto de apoio crítico

permitindo denunciar o hiato entre as formas concretas de acumulação e as concepções

normativas da ordem social”834. Trata-se, este “novo espírito”, do “terceiro espírito do

capitalismo”, que se segue ao primeiro (representado pela figura heroica do burguês

aventureiro) e ao segundo (aquele do compromisso taylorista-fordista que se forjou no entre-

guerras e se “generalizou” no pós-guerra europeu, sob o amparo do Welfare State). Sem

prescindirem completamente das formas precedentes, que a ele se mesclam, o “novo” (ou

“terceiro”) espírito do capitalismo corresponde à etapa mundializada do sistema, impulsionada

pelas novas tecnologias de informação e da eletrônica, baseando-se em uma nova escala de

valores, na qual o “homem conexionista”, o manager flexível e adaptável às circunstâncias,

suplantaria a rigidez hierárquica e excessivamente racionalista dos quadros administrativos e

das suas modalidades de planejamento835.

Ora, é exatamente nesse contexto que Michael Löwy começou a sublinhar a importância

da manutenção da dimensão anticapitalista e antisistêmica da “crítica artística”, buscando

integrá-la em uma perspectiva política e social radical, quer dizer, na contramão do divórcio

contemporâneo entre esta e a “crítica social”. Se, por um lado, o esforço löwyano de rearticular

“crítica artística” e “crítica social” é mais do que necessário a fim de revitalizar uma política

834 Idem, p.41, p.68. 835 Talvez um dos pontos mais problemáticos do livro de Boltanski e Chiapello seja a frágil articulação entre a

ambiciosa periodização dos três “espíritos do capitalismo” e as mutações do modo de produção, acumulação e

reprodução capitalista no seu conjunto, o que requeria uma atenção mais apurada à crítica da economia política.

Ademais, embora alertem para o fato de que a realidade das relações sociais “concretas” muitas vezes resiste ao

discurso ideológico (muitas vezes apologético) sobre as transformações do capitalismo contemporâneo, a

periodização proposta pelos autores, se interpretada de forma simplista, pode acabar por se constituir numa legitimação “crítica” da atual “etapa” do sistema, convergindo “pela negativa”, por assim dizer, com as teorias

apologéticas do caráter “libertário” do capitalismo recente, “pós-moderno”, ou como quer que se diga. O próprio

Boltanski, em debate com Olivier Besancenot publicado na revista Contretemps (“La revolte n’est pas um plaisir

solitaire. Entretien avec Luc Boltanski et Olivier Besancenot”, n.1, nova série. Paris: Syllepse, 2009), reconheceu

que, nos anos 2000, ocorreu um retorno significativo do taylorismo e da disciplina do trabalho, os quais, na

realidade, jamais deixaram de existir. Seja como for, ao enfatizar a necessidade de um exame das transformações

ideológicas e das formas de funcionamento do sistema, insistindo na especificada da fase contemporânea do

“espírito capitalista”, a periodização por eles sugerida permite problematizar o resgate löwyano da crítica

“marxista-weberiana” a um “espírito do capitalismo” que já não existiria mais na sua plenitude.

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radical de esquerda, ele corre o risco, por outro, de se tornar algo problemático, por assim dizer,

quando e na medida em que a ênfase posta na “crítica artística” signifique o resgate da crítica

de uma modernidade que já não é mais exatamente a mesma, crítica que, além do mais, pode

ter sido “recuperada” pelo próprio sistema contra o qual ela emergira outrora. Em certa medida,

Michael Löwy busca reativar o sentido original da “crítica artística”, colocando-a novamente a

serviço da crítica anticapitalista da modernidade. Daí o trânsito livre entre marxismo “clássico”

e marxismo “ocidental”, em outros termos, entre temas ligados à revolução político-social e

aqueles vinculados à reprodução e/ou transformação cultural, ideológica, se não

epistemológica836.

Resta saber se, hoje, re-projetadas sob a mesma perspectiva, esta detém a mesma força

crítica de outrora, ou se, pelo contrário, já não faz senão recusar uma “etapa” da modernidade

“superada”, mesmo que apenas parcialmente, pelo próprio capitalismo. Não parece que o

surrealismo, por exemplo, valorizado por Löwy como uma das formas mais radicais e criativas

de reencantamento do mundo e, portanto, como uma das mais potentes demolições romântico-

revolucionárias da “jaula de aço” moderna, detenha hoje a mesma atualidade crítica que detinha

no seu auge no entre-guerras. Em um momento em que o próprio sistema parece, muitas vezes,

“surreal”, tamanha a sua “irracionalidade” e seu flerte com um certo niilismo mercantil – no

qual o primado da mercadoria já não necessita das mesmas justificativas éticas/normativas que

necessitava na fase do seu desenvolvimento e consolidação –, as manifestações surrealistas em

oposição ao racionalismo positivista apologético não comungam mais da mesma atualidade,

uma vez que se contrapõem a um inimigo que não parece mais hegemônico no âmbito da

ideologia dominante837.

7.3. Crise civilizatória, questão ecossocialista e movimentos sociais: o marxismo na

berlinda

Desde pelo menos a sua “descoberta” de Benjamin, em 1979, e sua reinterpretação do

romantismo, na década seguinte, Michael Löwy começou a manifestar certa preocupação e

836 Hobsbawm emite um juízo bastante redutor quando afirma: “Nem os stalinistas nem os trotskistas sentiram

qualquer entusiasmo pelos surrealistas revolucionários que batiam às suas portas pedindo para serem admitidos.

Os que sobreviveram em política não o fizeram como surrealistas”. O próprio exemplo de Löwy, na vaga pós-68,

relativiza tal afirmação peremptória. Cf. Eric Hobsbawm, “Revolução e Sexo”, in: Pessoas extraordinárias. São

Paulo: Paz e Terra, 1999, p.328. 837 Para uma discussão mais aprofundada sobre essa questão, tomo a liberdade de remeter ao meu texto

“Romântico, moderno e revolucionário: o surrealismo e os paradoxos da modernidade”, in: Cadernos de Campo

(Unesp – Araraquara), n.14/15, 2010/11.

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interesse em relação à questão ecológica, compreendida no contexto da “crise civilizatória” que

para ele emergia, crise que escancarava a dimensão destrutiva do progresso capitalista.

Conforme vimos, já na introdução de Marxismo e romantismo revolucionário, coletânea de

ensaios publicada em 1979 na França, Löwy mencionara – como justificativa para a necessidade

de se “reencontrar a dimensão romântico-revolucionária do marxismo” – o perigo de uma

“ruptura catastrófica do equilíbrio ecológico do planeta”838. Esta sensibilidade ecológica

consolidou-se nas décadas de 1980 e 1990, simultaneamente à sua abertura à outras vertentes

da crítica da modernidade como a teologia da libertação ou aquela dos intelectuais judeus da

Europa Central de cultura alemã do início do século XX, fontes nas quais Löwy descobriria

achados importantes para estimular um debate, no âmbito do marxismo, sobre os novos desafios

(teóricos e políticos) surgidos com a crise ecológica. Em 1993, por exemplo, publicou o artigo

“Messianismo e natureza na cultura judaica romântica: Erich Fromm e Walter Benjamin”, em

que retraça a relevância da reflexão destes dois intelectuais sobre a questão, situando-os como

precursores do que, mais recentemente, se estabeleceu como perspectiva ecossocialista

(marxista e romântica) contemporânea839.

Seria apenas mais recentemente, porém, que Löwy se engajaria intelectual e

politicamente em defesa de um ponto de vista “ecossocialista”. Em 2001, tal engajamento daria

um salto com a co-redação, ao lado do norte-americano Joel Kovel, autor de importantes textos

e livros sobre a problemática ecológica, do Manifesto Ecossocialista Internacional, que serviu

como base programática para a reativação da nebulosa (heterogênea) ecossocialista,

recuperando-a desde uma perspectiva marxista-heterodoxa – evidentemente devedora, no seu

quadro geral, dos insights benjaminianos. Como escreve Arno Münster, ele também

diretamente envolvido no debate sobre o assunto, “o sociólogo marxista Michael Löwy,

auxiliado pelos militantes norte-americanos, canadenses e latino-americanos da Rede

ecossocialista internacional, logrou redinamizar e reatualizar a corrente ecossocialista, não

apenas no seu país natal, o Brasil, mas sobretudo na França”840.

Michael Löwy tornar-se-ia, desde então, uma das principais referências intelectuais do

debate sobre o ecossocialismo, participando diretamente da construção não exatamente de um

movimento, mas de uma “rede” de organizações políticas, sociais e culturais. No Fórum Social

838 Michael Löwy, “A crítica romântica...”, op.cit., 1990, p.33. 839 Michael Löwy, “Messianisme et nature dans la culture juive romantique: Erich Fromm et Walter Benjamin”,

in: D. Hervieu-Léger (org.), Religion et écologie. Paris: Cerf, 1993. 840 Arno Münster, “Michael Löwy ou le renouveau du courant écosocialiste au Brésil et en France”, in: Pour un

socialisme vert. Vers la société écologique par la justice sociale. Contribution à la critique de l’écologie politique.

Paris: Lignes, 2012, p.107.

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Mundial ocorrido em Porto Alegre, em janeiro de 2003, contribuiu para a fundação da Rede

Brasil de Ecossocialistas, ministrando, na ocasião, o painel “Marxismo e Ecologia”. Quatro

anos mais tarde, em outubro de 2007, participou da formação da Rede Ecossocialista

Internacional, em encontro em Paris, em que se elegeu uma comissão internacional com 16

nomes, dentre os quais ele próprio, e se definiu a necessidade de elaboração de um segundo

manifesto ecossocialista, que seria lançado no Fórum Social Mundial de Belém, em 2009.

Assim, ao mesmo tempo em que se estabelecia como principal figura intelectual da LCR na

questão, sendo um dos responsáveis por seu “comitê ecológico”, Löwy forjava um novo flanco

por onde intervir no campo intelectual e, em menor medida, no espaço “público” francês (mas

não apenas)841.

Em 2005, Löwy publicou seu primeiro (pequeno) livro sobre o ecossocialismo, uma

coletânea de ensaios intitulada Ecologia e Socialismo, na qual sistematizou, de forma bastante

introdutória, algumas ideias-forças esboçadas no manifesto de 2001, tomando-as como desafio

à reinterpretação do pensamento de Marx e dos marxistas do passado842. Na sua perspectiva, o

ecossocialismo pode ser definido, em sentido amplo (e um tanto vago), como “uma corrente de

pensamento e de ação ecológica que faz suas as aquisições fundamentais do marxismo”,

livrando-o, ao mesmo tempo, “das suas escórias produtivistas”843. Ele engloba, na sua

diversidade, “as teorias e os movimentos que aspiram a subordinar o valor de troca ao valor de

uso, organizando a produção em função das necessidades sociais e das exigências da proteção

do meio-ambiente”844. No plano teórico-intelectual, o ecossocialismo emergiu, nas últimas

quatro décadas, por meio das reflexões de figuras como Manuel Sacristan, Raymond Williams,

Rudolf Bahro e André Gorz, além dos mais contemporâneos James O’Connor (membro

fundador da revista Capitalism, Nature, Socialism), Barry Commoner, John Bellamy Foster,

John Clark e Joel Kovel nos EUA, Francisco Fernandez Buey, Jorge Riechman e Juan Martinez

Allier na Espanha, Jean-Paul Déléage e Jean Marie Harribey na França, Elmar Altvater e

Frieder Otto Wolf na Alemanha.

Malgrado a diversidade das abordagens, a perspectiva ecossocialista assenta-se no

pressuposto de que, sendo o capitalismo o verdadeiro responsável pela crise ecológica, esta não

841 A tal ponto que, em algumas ocasiões recentes, Löwy foi convidado pela esquerda dos Verdes (EELV) para

debater sua concepção do ecossocialismo. Olivier Besancenot, por outro lado, não escondeu sua irritação com a

“redução” do intelectual Michael Löwy à condição de especialista na questão ecossocialista, em detrimento de

suas outras contribuições à esquerda anticapitalista. Cf. Fabio Mascaro Querido. Entrevista com Olivier

Besancenot, Port-Leucate (França), op.cit. 842 Michael Löwy, Écologie et Socialisme. Paris: Syllepse, 2005. 843 Michael Löwy, Ecologia e Socialismo, op.cit., 2005, p.49. 844 Idem, p.49.

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pode ser resolvida nos limites daquele. No manifesto de 2001, o ponto de partida, anunciado

logo no início do texto, é inequívoco: “na nossa visão, as crises ecológicas e o colapso social

estão profundamente relacionados e deveriam ser vistos como manifestações diferentes das

mesmas forças estruturais. As primeiras derivam, de uma maneira geral, da industrialização

massiva, que ultrapassou a capacidade da Terra absorver e conter a instabilidade ecológica. O

segundo deriva da forma de imperialismo conhecida como globalização, com seus efeitos

desintegradores sobre as sociedades que se colocam em seu caminho. Ainda, essas forças

subjacentes são essencialmente diferentes aspectos do mesmo movimento, devendo ser

identificadas como a dinâmica central que move o todo: a expansão do sistema capitalista

mundial”. Não por acaso, pode-se ler em seguida: “nós entendemos que o atual sistema

capitalista não pode regular, muito menos superar, as crises que deflagrou”.

Sob formas renovadas, a alternativa posta na mesa seria aquela já anunciada por Rosa

Luxemburgo mais de um século atrás: (ecos) socialismo ou barbárie845. Nessa perspectiva, diz

o manifesto, o ecossocialismo “retém os objetivos emancipatórios do socialismo da ‘primeira

época’, ao mesmo tempo em que rejeita tanto os objetivos reformistas da social-democracia

quanto as estruturas produtivistas das variações burocráticas do socialismo”. Como sustenta

Joel Kovel, “o eco-socialismo é mais que o socialismo tal qual o conhecemos tradicionalmente.

Mas é também, definitivamente, socialista”846. Um (ecos) socialismo que, mais do que a

substituição de um modo de produção e de um sistema político por outro, se coloca como

ruptura e alternativa civilizatória à modernidade capitalista, cujos parâmetros teriam sido

incorporados mesmo pelas experiências “socialistas” na URSS e no leste europeu.

Implicando uma “radicalização da ruptura com a civilização material capitalista”, o

objetivo do projeto ecossocialista é, explica Löwy, construir não apenas “uma nova sociedade

e um novo modo de produção”, senão também “um novo paradigma de civilização”, baseado

em uma nova forma de relação entre os seres humanos e destes com a natureza847. Mais além

do fim da propriedade privada dos meios de produção, o ecossocialismo almeja, portanto, uma

“mudança da vida em sua totalidade”, ou seja – nas palavras de Isabel Loureiro, que assina o

manifesto de 2001, e que se destaca por sua visão luxemburguista-marcuseana da questão –, “a

emergência de uma outra civilização, a transformação da sensibilidade humana, em uma

845 Cf. Arno Münster, Réflexions sur la crise. Écosocialisme ou barbarie. Paris: L’Harmattan, 2009. 846 Joel Kovel, El enemigo de la naturaleza. El fin del capitalismo o el fin del mundo? Buenos Aires: Asociación

Civil Cultural Tesis 11, 2005, p.205. 847 Michael Löwy, “Progrès destructif. Marx, Engels et l’écologie”, in: Michael Löwy & Jean-Marie Harribey,

Capital contre nature. Paris: PUF, 2003, p.22. Para uma exposição mais detalhada dos principais argumentos dos

ecossocialistas, cf. Joel Kovel, El enemigo de la naturaleza, op.cit., especialmente a terceira parte, “Hacia el

ecosocialismo”, pp.157-261.

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palavra, o fim da reificação para a qual a condição prévia é o fim da “mercantilização” dos

homens e da natureza”848.

De onde a absoluta incompatibilidade, ao menos na versão defendida por Löwy, entre a

perspectiva ecossocialista e os movimentos e organizações ecologistas que visam a construção

de um “capitalismo verde”, sem alterar a lógica de funcionamento global do sistema vigente.

Não porque os ecossocialistas são contra a implementação de reformas “ecológicas”, mas sim

porque não enxergam nestas o horizonte último da luta pela salvaguarda das condições de vida

no planeta, ressalta Löwy. Para os ecossocialistas, a maioria dos “ecologistas políticos não

parecem tomar em consideração a contradição intrínseca [...] entre a dinâmica capitalista [...] e

a preservação do meio-ambiente”. Se criticam o produtivismo, tal crítica não o estimula a ir

além de “reformas ‘ecológicas’, derivadas da economia de mercado”849.

De uma perspectiva ecossocialista, na contramão de “certa vulgata marxista, que

concebe a mudança unicamente como supressão das relações sociais [de produção] capitalistas”

(compreendidas como obstáculos ao livre desenvolvimento das forças produtivas), é preciso,

afirma Löwy, “questionar a própria estrutura do processo de produção”850. Esta subversão do

aparato produtivo e industrial vigente é tanto mais importante porque, ao contrário do que se

acreditara, o “progresso” tecnológico não é neutro, estando apenas “a serviço” do capitalismo,

pronto a ser utilizado em um sentido socialista no futuro. Na realidade, o vínculo com o

progresso destrutivo capitalista define até mesmo os alicerces internos do avanço tecnológico.

Subordinada às relações e estruturas sociais dominantes, “a tecnologia desenvolvida pelo

capital, longe de ser neutra, é realmente, não importa quem opere, uma tecnologia

eminentemente capitalista”851.

Por isso mesmo, um marxismo ecologicamente renovado deveria, segundo Löwy, em

ruptura com o “fetichismo das forças produtivas” (Marcuse) cultivado por marxistas do passado

e do presente, analisar as implicações recíprocas e conversões de tais forças produtivas em

forças eminentemente destrutivas. Produtivas do ponto de vista do capital, estas se revelam

bastante destrutivas em relação ao porvir da humanidade, de onde a necessidade de abandonar

o esquema mecanicista da oposição entre o desenvolvimento das forças produtivas e as relações

848 Isabel Loureiro, “Le marxisme écologique de Herbert Marcuse: il faut changer le sens du progrès”, in: Michael

Löwy & Jean-Marie Harribey, Capital contre nature, op.cit., p.161. 849 Michael Löwy, Écosocialisme. L’alternative radicale à la catastrophe écologique capitaliste. Paris: Mille et

Une Nuit, 2011, p. 52. 850 Michael Löwy, Ecologia e Socialismo, op.cit., 2005, p.76.

851 Victor Wallis, “Progresso ou progresso? Definindo uma tecnologia socialista”, in: Crítica Marxista, São Paulo,

n.12, 2001, p.141.

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sociais de produção que a entravam. Com esta perspectiva, ressaltando o ímpeto destrutivo

subjacente ao desenvolvimento capitalista das forças produtivas, tornar-se-ia possível

reinterpretar a evolução histórica do capitalismo à luz das diversas formas de resistência

(malogradas, em sua maioria) ao “progresso destrutivo”, renunciando a confiná-las na vala

comum das rebeldias impotentes e reacionárias contra um progresso tomado como inevitável.

Na mesma toada, rompidas as amarras dos esquemas do progresso das forças produtivas,

abrir-se-ia a possibilidade de um questionamento não apenas do trabalho abstrato, mas também

da temporalidade fetichizada – “vazia e homogênea” – que o acompanha. Uma vez que, no

capitalismo moderno, a mensuração abstrata do trabalho implica a mensuração do tempo, este

perde “o seu caráter qualitativo, mutável e fluido”, fixando-se “num continuum delimitado com

precisão, quantitativamente mensurável”, como disse Lukács853. Transforma-se assim num

tempo fetichizado, tal qual uma mercadoria, um tempo que se impõe aos seres humanos como

algo que lhes escapa do controle, como algo que lhe é “exterior”854. À evidência, tal

temporalidade abstrata, ao subordinar o conjunto das esferas da vida social, revelou-se

profundamente destrutiva em relação à natureza, cuja temporalidade ecológica qualitativa é

simplesmente desautorizada em benefício dos imperativos da maximização quantitativa da

produção. Na contramão do tempo fetichizado dominante, uma transformação ecossocialista

implicaria, entre outras coisas, na reconquista da dimensão qualitativa da temporalidade. Por

estas e outras razões, para Michael Löwy e para os ecossocialistas, “uma ecologia que ignora

ou negligencia o marxismo e sua crítica do fetichismo da mercadoria está condenada a não ser

mais do que uma correção dos ‘excessos’ do produtivismo capitalista”855.

Ora, não é difícil perceber pairando aqui, uma vez mais, o espetro de Walter Benjamin,

como que pautando, no seu fundo filosófico, a empreitada de Löwy. E pour cause. Já em

meados dos anos de 1920, Benjamin problematizou, de modo pioneiro no interior do marxismo,

o vínculo deste com as ideologias e “fantasmagorias” do progresso, incapazes de apreender a

dimensão da catástrofe inscrita na evolução histórica capitalista-moderna e, portanto, inábeis

diante das ameaças cada vez mais frequentes que se colocavam à humanidade. Em oposição

direta ao marxismo “progressista”, Benjamin pensava o início do processo revolucionário como

interrupção de um progresso que caminhava na direção da catástrofe. “É preciso fundar o

853 Georg Lukács, História e Consciência de Classe, op.cit., p.205. Sobre as origens históricas desse processo, vale

mencionar o texto de E. P. Thompson, “Tempo, disciplina de trabalho e o capitalismo industrial”, in: Costumes

em Comum. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. 854 A expressão “tempo-mercadoria” é empregada por Guy Debord em A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro:

Contraponto, 1997. 855 Michael Löwy, Ecologia e Socialismo, op.cit., p.38.

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conceito de progresso na ideia de catástrofe. ‘Que as coisas continuem assim’, eis a catástrofe”,

diz ele nas Passagens856. Para Benjamin, por isso mesmo, “a sociedade sem classes não é o

objetivo final do progresso na história, e sim sua interrupção muitas vezes fracassada e

finalmente alcançada”857. Daí, segundo Löwy, a atualidade ecossocialista de Benjamin, esse

filósofo idiossincrático que, por razões outras, antecipou alguns dos desafios do pensamento

socialista diante da crise ecológica/civilizatória contemporânea858.

Tanto nas Passagens quanto nas “teses” de 1940, Benjamin criticou diretamente um dos

núcleos desta crença de parcela significativa do marxismo nas benesses do “progresso técnico”,

a saber: a secularização da velha moral protestante do trabalho, imbuída de pretensões

produtivistas, secularização que mal esconde seus laços íntimos com o “espírito do

capitalismo”, tal qual analisado por Max Weber. Referindo-se à socialdemocracia alemã,

Benjamin afirma: “Não há nada que tenha corrompido tanto o operariado alemão quanto a

crença de que ele nadava com a correnteza. O desenvolvimento técnico parecia-lhe o declive

da correnteza em cujo sentido ele acreditava nadar. Daí era um só passo até a ilusão de que o

trabalho fabril, que se inserisse no sulco do progresso técnico, representaria um feito político.

A velha moral protestante do obrar celebrava, em forma secularizada, a sua ressurreição entre

os operários alemães”.

Aos olhos do filósofo alemão, um tal conceito de trabalho – que “se resume na

exploração da natureza, que é, assim, com satisfação ingênua, contraposta à exploração do

proletariado” – “só quer se aperceber dos progressos da dominação da natureza, mas não dos

retrocessos da sociedade”859. Como sustenta no ensaio sobre Eduard Fuchs (1937), sem

reconhecer esses “retrocessos”, a socialdemocracia (neo-positivista) alemã “da virada do

século” ignora “o lado destrutivo desses desenvolvimentos”, em decorrência do alheamento “do

lado destrutivo da dialética”. Tornava-se impossível perceber que a “evolução da técnica” havia

sido “decisivamente determinada pelo capitalismo”. Explicar-se-ia, assim, “a desastrosa

recepção da técnica” nas fileiras do movimento operário e da esquerda política marxista.

“Desastre” que, na apreciação de Benjamin, exprimiram-se através de “ensaios entusiásticos e

856 Walter Benjamin, Passagens, op.cit., p.515. 857 Idem, p.30 (Exposé “Paris, capitale du XIXe siècle”). 858 Cf. o ensaio “La révolution est le frein d´urgence. Actualité politico-écologique de Walter Benjamin”. In:

Écosocialisme. L´alternative radicale à la catastrophe écologique capitaliste, op.cit., pp.103-114. Ou ainda

secundariamente, permito-me citar, Fabio Mascaro Querido, “Révolución y (critica del) progresso. La actualidad

ecosocialista de Walter Benjamin”, in: Herramienta, n.43, Buenos Aires, 2010 (artigo traduzido por Miguel

Vedda). 859 Walter Benjamin, “Teses sobre o conceito de história”, op.cit., p.100 (tese XI).

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sempre renovados que, sem exceção, tentaram passar por cima do fato de a técnica só servir a

essa sociedade para a produção de mercadorias”860.

A esta concepção neo-positivista da técnica e do trabalho, Benjamin contrapõe, num dos

momentos mais utópico-românticos de sua reflexão, “as fabulações de Fourier”, responsável

por uma concepção de trabalho que, sob o modelo do jogo, “longe de explorar a natureza, é

capaz de dar à luz as criações que dormitam como possíveis em seu seio”861. À diferença da

“concepção criminosa da exploração da natureza”, dominante desde o século XIX, Fourier

defende uma concepção do trabalho no qual este já não mais implica na dominação da natureza

pelo homem862. Para Benjamin, “um dos grandes méritos de Fourier é o de ter apresentado o

jogo como paradigma do trabalho que não é mais explorado. Um tal trabalho, efetuado no

espírito do jogo, não visa a produção de valores, mas o melhoramento da natureza”. Em um

mundo em que tais imagens poderão ser mais do que apenas projeções utópicas, “a ação [será

enfim] a irmã do sonho”, diz Benjamin parafraseando Baudelaire863.

No percurso intelectual de Michael Löwy, o engajamento nas questões referentes ao

ecossocialismo, do qual se tornou referência e divulgador essencial nos quatro cantos do

mundo, acompanha aquele mais geral de “observador participante” da vaga altermundialista e

dos movimentos sociais contemporâneos de feição potencialmente anticapitalista. A bem dizer,

a opção por um não se desvincula da escolha de outro, ambos os engajamentos derivando das

mesmas preocupações e interesses, compreendidos no quadro de uma mesma abordagem

teórica e política. Talvez por isso mesmo, algo dos mesmos dilemas da defesa de Löwy da

“utopia ecossocialista” se apresentam de forma ainda mais nítida na sua valorização de

movimentos sociais contemporâneos como os latino-americanos MST e EZLN. Tornando-se o

“horizonte prático”, por assim dizer, da profissão de fé anticapitalista mais recente de Löwy,

este acabaria por revelar certa condescendência em relação a estes movimentos, como se

coubesse aos intelectuais não o trabalho da crítica, mas acima de tudo o de acompanhar,

valorizar e sugerir – quando necessário – mudanças de rumo.

Assim como em seu engajamento ecossocialista, Michael Löwy tornou-se interlocutor

direto de muitos destes movimentos, transformando-se, ao mesmo tempo, em referência

860 Walter Benjamin, “Eduard Fuchs, colecionador e historiador”, in: O anjo da história, op.cit., p.135, 136. 861 Walter Benjamin, “Teses sobre o conceito de história”, op.cit., p.100 (tese XI). “Segundo Fourier, o trabalho

social bem organizado deveria ter por consequência que quatro luas iluminassem a noite terrestre, que o gelo se

retirasse dos polos, que a água do mar não fosse mais salgada e que os animais de rapina se pusessem a serviço do

homem”. Ibidem. 862 Em Rua de Mão Única, Benjamin condena como um “ensino imperialista” a ideia de dominação da natureza,

propondo um novo conceito da técnica como “dominação da relação entre natureza e humanidade”. Cf. Walter

Benjamin, “Rua de Mão Única”, in: Obras Escolhidas II. São Paulo: Brasiliense, 1987, p.69. 8 863 Walter Benjamin, Paris, capitale du XIXe siècle. Le livre des passages. Paris: Cerf, 1989, p.376, 377.

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intelectual de estudos acadêmicos sobre a questão. Sobre o ecossocialismo, pode-se destacar os

trabalhos do colombiano Renan Vega Cantor, enquanto que, no que se refere à análise de

movimentos sociais latino-americanos, sublinha-se a tese do mexicano (professor da

universidade de Puebla) Fernando Matamoros Ponce, ambos alunos de Löwy e ambos por ele

diretamente inspirados. Partindo das sugestões de Löwy sobre a nebulosa ecossocialista, Vega

Cantor busca aprofundá-las à luz de análises concretas da “crise civilizatória” contemporânea.

Fernando Matamoros, por sua vez, tomando como referência a visão benjaminiana da história

tal como remodelada por Löwy em sua concepção do romantismo, busca aplicá-la na análise

do caso concreto da formação do imaginário “neozapatista”, condensado no EZLN, que

irrompeu de forma espetacular em janeiro de 1994, no que seria visto retrospectivamente como

o primeiro ato de um ciclo de resistência anti-neoliberal que apenas começava a se abrir864.

Na perspectiva de ambos os autores, “discípulos” criativos de Löwy, o eixo de uma

renovação do marxismo, em especial na América Latina, encontra-se na necessidade de uma

outra concepção da temporalidade histórica, capaz de permitir uma nova relação do presente

com a “tradição dos oprimidos” da região. Especialista na questão ecológica e, tal qual Löwy,

nos desafios do marxismo frente a ela, Renan Vega Cantor propõe, diante da “crise

civilizatória” que vivemos, a articulação entre “dois tipos de críticas, a de Marx à exploração

dos trabalhadores, e outra, mais recente, do ecologismo anticapitalista, à destruição das

condições que permitem a reprodução da vida”865. No eixo desta articulação, perfila-se a

necessidade de uma transformação “radical da noção de progresso tecnológico, propondo um

programa político e econômico que questione a produção mercantil e todos seus efeitos

ambientais e energéticos”866. Um tal quadro impõe a questão da necessidade de um “projeto

anticapitalista de tipo ecossocialista”; afinal, afirma o autor: “como diria Walter Benjamin, hoje

a revolução é mais atual do que nunca, a fim de colocar os freios de emergência capazes de

864 Fernando Matamoros Ponce, Memória y utopia en México. Imaginários en la génesis del capitalismo. Buenos

Aires: Herramienta Ediciones, 2009. O livro é prefaciado, em textos separados, por Michael Löwy, orientador da

tese, e por John Holloway, colega de departamento (sociologia) de Matamoros na Universidade Benemérita de Puebla, no México, e com quem editou conjuntamente diversos livros, dentre os quais Zapatismo. Réflexion teórica

y subjetividades emergentes (Buenos Aires: Ediciones Herramienta, 2008) e Pensar a contrapelo. Movimientos

sociales y reflexión crítica (Buenos Aires: Ediciones Herramienta, 2009), ambos também organizados por Sergio

Tischler. A adesão, ao menos parcial, à defesa hollowayana de se “mudar sem tomar o poder”, à luz de certa leitura

da experiência neozapatista, talvez seja o elemento que mais distancia Matamoros das concepções de Löwy. 865 Renan Vega Cantor, “Crisis civilizatoria”, in: Herramienta, n. 42, Buenos Aires: Ediciones Herramienta, 2009,

p.50. Do autor, cf. também: El caos planetário. Ensayos marxistas sobre la miséria de la mundialización

capitalista. Buenos Aires: Édiciones Herramienta, 1999. 866 Idem, p.49.

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deter a queda no abismo e impedir que o capital nos afunde na loucura mercantil que nos conduz

à morte como espécie”867.

Acentuando a dimensão simbólica (religiosa ou não) dos conflitos sociais, Fernando

Matamoros se propõe, em seus trabalhos, a “colocar em evidência os elementos de construção

do imaginário coletivo e mostrar como a tradição e o mito formam parte da continuidade de

uma história da resistência na construção da nação, contra a conquista, a colonização e os

impérios na mundialização capitalista”868. Diante das resistências indígenas e/ou religiosas ao

progresso capitalista, presentes no imaginário zapatista, uma “renovação crítica do marxismo”

passaria, na opinião de Fernando Matamoros (em perspectiva nitidamente “löwyana”, como se

verá), “pela redescoberta de sua dimensão romântica e utópica, quer dizer, [pela] reintegração

de valores culturais, sociais (comunitários), religiosos e ecológicos do passado pré-capitalista

nos projetos por vir e a serem realizados”. Não se trata, continua o autor, “de perseguir um

eterno regresso ao passado”, como na “interpretação dos mitos pela extrema-direita, senão de

se apoiar em experiências de formas de vida anteriores a fim de se opor à dominação totalitária

do mercado”, tendo como objetivo “trabalhar para construir uma modernização alternativa ao

capital que coloque o ser humano em primeiro plano”869.

Como que chancelando o uso constante do aluno às alusões poéticas, às vezes levemente

impressionistas, Löwy afirma, no prefácio ao livro: “Sua [a de Matamoros] análise demonstra

de modo convincente a potência criativa da tradição: os indígenas nutrem-se em sua história

dos vencidos, em sua cultura ancestral, recursos de resistência à ‘modernização’ imposta pelo

Estado. [Fernando Matamoros] não se equivoca ao insistir na importância dos mitos na gênese

do imaginário rebelde dos neozapatistas. Ninguém havia previsto isso melhor do que esse

incorrigível romântico e heterodoxo marxista chamado José Carlos Mariátegui, profeta do

socialismo indo-americano”870. Em dissidência com o mundo desencantado pelo primado da

quantificação e da mercantilização universal, no contexto do avanço neoliberal, os zapatistas

867 Idem, p.48. Cf. Renan Vega Cantor, “El Manifesto Comunista y la urgencia de emprender una crítica marxista

del progreso”, in: Herramienta, n.8, Buenos Aires, 1998/1999. Vega Cantor foi orientado por Michael Löwy em

sua tese de doutorado em ciência política, defendida em 2002 na Universidade Paris VIII (Saint-Denis), com o

título Luttes ouvrières, socialisme et crise de l'hégémonie conservatrice en Colombie (1918-1929). 868 Fernando Matamoros Ponce, Memória y utopia en México, op.cit., p.90, 1. 869 Idem, p.320. 870 Michael Löwy, “Prefacio a la edición francesa”, in: Fernando Matamoros Ponce, Memória y utopia en México,

op.cit., p.25, 26. Para Mariátegui, os mitos revolucionários poderiam “penetrar na consciência profunda dos

homens com a mesma plenitude que os antigos mitos religiosos”. José Carlos Mariátegui, Siete ensayos de

interpretación de la realidad peruana. Cidade do México: Era, 1979, p.175. A bem dizer, neste elogio dos mitos

revolucionários, Löwy está sendo mais mariateguiano (e/ou sorealiano) do que propriamente benjaminiano. Tanto

em um trabalho de “juventude”, anterior à adesão ao marxismo, como o ensaio “Crítica da violência” (1921),

quanto nas Passagens (1935-1940), Benjamin quase sempre associou o “mito” à dominação e/ou à violência (física

ou simbólica).

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não hesitaram em recorrer aos “sonhos despertos”, como diria Ernst Bloch, antevendo na

imaginação romântico-revolucionária um aspecto decisivo na luta pela ruptura simbólica com

o racionalismo e o realismo apologéticos. O neozapatismo, diz Matamoros, “participa do

reencantamento do mundo ao enfrentar os mitos do progresso, do racionalismo do tempo

linear”871. Para Michael Löwy, como se depreende do trabalho de Matamoros, “esta capacidade

para reinventar o reencantamento do mundo é sem dúvida uma das razões da fascinação

exercida pelo zapatismo, muito além das fronteiras de Chiapas”872.

A partir da experiência latino-americana, sob o fulcro do caso mexicano, Fernando

Matamoros enfatiza, em suas análises, na linha löwyana, a presença da dimensão religiosa nas

formas e movimentos de resistência ancorados na dupla clivagem da memória e da utopia.

Também pesquisador do Centro de Estudos Interdisciplinares sobre Fatos Religiosos (CEIFR),

Matamoros interessa-se, tal como Löwy, pela faceta utópica das religiosidades. Em vários dos

seus textos, Matamoros almeja, conforme escreve, “verificar o sentido do religioso nos

processos de resistência de um tempo discordante”, nos quais “o passado [confere] sentido à

contemporaneidade dos movimentos sociais”. Por meio da religiosidade “se expressam”, na

América Latina, “os lugares de memória”, ativados através “de uma reapropriação coletiva,

fundada nas experiências da tradição e da cultura histórica, espaços de conflito e de

esperança”873.

Tanto quanto Michael Löwy, Matamoros acredita que a religiosidade constitui,

sobretudo na América Latina, uma esfera particularmente sensível à “guerra de memória”, isto

é, à disputa pelo sentido e pela narrativa de um “passado a um só tempo imaginário e real”874.

Trata-se, assim, de espaço para a atualização da tradição dos vencidos: “no presente, atualizado

pela memória de um passado reativado, as convicções e promessas de futuro, profecias e

messianismos conjugam os signos da história”875. Na América Latina, foi e é através da

religiosidade que se condensam momentos importantes da reativação da tradição, como

rememoração voltada à resistência às intempéries do presente. Isso explicaria, segundo

Matamoros, a persistência de uma dimensão religiosa (no sentido amplo) nos movimentos

sociais do passado e do presente da região, dimensão que compõe parte das lutas contra a

871 Fernando Matamoros Ponce, Memória y utopia en México, op.cit., p.94. 872 Michael Löwy, “Prefacio a la edición francesa”, op.cit., p.25, 26. 873 Fernando Matamoros Ponce, “Tradición y rebelión en el imaginario. Un acercamiento a las estructuraciones

simbólicas en el tiempo de la historia y lo religioso”, in: Pensar a contrapelo. Movimientos sociales y reflexión

crítica, op.cit., p.31, 32. 874 Idem, p.32. 875 Idem, p.39.

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hegemonia vigente, a qual “não é apenas dominação e consenso, senão também lutas ativas

exprimidas no espaço do político e nas tradições religiosas e suas representações”876.

Demonstração de resiliência, “a importância do fenômeno religioso e messiânico no

pensamento dos movimentos sociais se deve ao fato de que este fenômeno representa, no objeto

do pensável, a situação concreta do sofrimento”, afirma Matamoros em outro texto877. Numa

certa concepção da religiosidade, mesclada pelo sofrimento e pela utopia, tais movimentos (em

particular os zapatistas) encontrariam as fontes de uma “esperança escatológica no fim desta

desgraça”878. Eles exploram, então, o que Matamoros denomina, em mais uma de suas fórmulas

benjaminiana-löwyana, “a dialética romântica da energia da melancolia da desesperança”,

projetando, por sobre a “desgraça” do presente, um outro mundo possível, mas ainda apenas

vagamente imaginável879.

Após suas pesquisas sobre a religiosidade utópica nos intelectuais judeus da Europa

Central, assim como sobre o cristianismo de libertação na América Latina, os movimentos

sociais latino-americanos de resistência ao avanço neoliberal tornaram-se um dos lócus no qual

Löwy passou a projetar sua visão benjaminiana da relação entre política e religião, ou entre

modernidade e tradição. Na contemporaneidade, movimentos como o MST e o EZLN

constituem a ponta avançada da resistência à versão “neoliberal” do progresso. Mas ao fazê-lo,

em um momento marcado pelo “colapso da modernização”, questionam – à luz da história de

seus países, expressões da história latino-americana – não apenas a “etapa” atual do progresso,

senão também o conjunto das narrativas históricas que o sustentam. Daí o modo recorrente com

que vinculam, consciente ou inconscientemente, suas lutas no presente às resistências quase

sempre malogradas no passado a um processo histórico caracterizado pela continuidade da

mesma “linhagem” dos vencedores, de geração em geração.

Mesclando guevarismo e indigenismo, teologia da libertação e mitos fundadores da

nação – “uma síntese que deu um novo impulso para combater os mitos do capital não somente

no México senão no mundo inteiro”880 –, um movimento como o EZLN se destaca como

876 Fernando Matamoros Ponce, Memória y utopia en México, op.cit., p.280. 877 Fernando Matamoros Ponce, “Entre redención y utopía, el tiempo mesiánico. Consideraciones materialistas de

la historia de Walter Benjamin y Siegfried Kracauer”, in: Herramienta, n.43, Buenos Aires, 2010, p.73. 878 Fernando Matamoros Ponce, “Tradición y rebelión en el imaginario, op.cit., p.49. 879 Idem, p.33. Tendo sido aluno tanto de Matamoros quanto de Löwy, o jovem sociólogo mexicano Luiz Martinez

é outro cujos estudos sobre a relação entre religiosidade, conflitos sociais, história política e utopia inspiram-se

diretamente (embora a eles não se reduzam) nos trabalhos e na metodologia löwyanas. Estudioso de fenômenos

vinculados à Teologia da Libertação, Martinez defendeu, em 2014, sob orientação de Michael Löwy, uma tese de

doutorado sobre a obra e a trajetória do teólogo brasileiro Leonardo Boff. Do autor, cf. Religión sin redención.

Contradicciones sociales y sueños despiertos en América Latina . Zacatecas, Ediciones de Medianoche, 2011. 880 Fernando Matamoros Ponce, Memória y utopia en México, op.cit., p.200. Como escreve Benjamin nas

Passagens: “Enquanto houver um mendigo, ainda haverá mito”. Walter Benjamin, Passagens, op.cit., p.444.

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“herdeiro de cinco séculos de resistência indígena à Conquista, à Civilização e à Modernidade.

Não é por acaso que a sublevação havia sido originalmente planejada para 1992, a data do

Quinto Centenário da Conquista”881. Da cultura maia dos índios autóctones que resistiram ao

“descobrimento” à teologia da libertação, passando por Bartolomé de las Casas, os zapatistas –

até bem recentemente liderados pelo subcomandante Marcos – reatam o fio subterrâneo que

religa as lutas de ontem e de hoje contra a forma assumida pelo progresso no subcontinente.

Para Michael Löwy, se Mariátegui falava, de forma um pouco exagerada, do “comunismo inca”

que estaria inscrito na cultura indígena pré-colombiana no Peru, não seria nenhum absurdo

alcunhar a expressão “comunismo maia” a fim de referir-se às tradições comunitárias do

passado mexicano, apropriadas de maneira seletiva pelo imaginário neozapatista no presente882.

Igualmente herdeiro da teologia da libertação, cujo trabalho no campo havia sido

bastante relevante através das Comunidades Eclesiais de Base, o MST brasileiro também

estabeleceu, em seu imaginário político-simbólico, uma relação criativa com as resistências dos

“ancestrais escravizados” (Benjamin). Em luta contra um problema cujas raízes remontam à

formação histórica do Brasil (a má distribuição de terra), o MST questiona não apenas a forma

atual do “capitalismo dependente” no país, mas sim a forma como, da conquista até hoje, o

progresso por aqui se realizou, malgrado os discursos em contrário (que passavam por ideias

fora do lugar), a saber: à custa da exclusão de camadas sociais significativas das condições

mínimas para a reprodução social.

Em maio de 1989, o MST foi um dos promotores e organizadores do Encontro latino-

americano de organizações camponesas e indígenas, ocorrido em Bogotá, na Colômbia, com

a presença de cerca de trinta organizações representando dezessete países do continente.

Prenunciando a batalha memorial que teria lugar nas “comemorações” do quinto centenário da

conquista em 1992, os delegados afirmavam, no documento final aprovado, que se recusariam

a “celebrar a usurpação e o genocídio”, dispondo-se, ao contrário, “a estimular nossas lutas para

pôr fim aos 500 anos de opressão e de discriminação e abrir caminho para a construção de uma

nova sociedade, democrática e respeitosa em relação à diversidade cultural, fundada nos

interesses e aspirações do povo”. E concluem: “nós conclamamos todos os explorados e

oprimidos da América a participar da campanha dos 500 anos de resistência indígena e

881 Michael Löwy, “Prefacio a la edición francesa”, op.cit., p.28. Sobre a influência da teologia da libertação no

EZLN, cf.: Michael Löwy, “La théologie de la libération et le soulèvement zapatiste”, in: Tlaltipac. n.4, Paris,

fevereiro 1997. 882 Idem, p.28.

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popular”, intentando “recuperar nossa identidade e nosso passado histórico, porque a memória

dos povos é uma fonte de inspiração permanente para as lutas de emancipação e de libertação”.

O MST atualiza, assim, as resistências seculares das comunidades “tradicionais” ao

avanço violento do progresso capitalista, resistência contra um progresso visto como

insuportavelmente injusto, e com consequências sociais dramáticas, como revelara Rosa

Luxemburgo em seus estudos econômicos, frequentemente mobilizados por Löwy (assim como

por Isabel Loureiro) para analisar os movimentos sociais latino-americanos883. Em virtude desta

resistência obstinada, desde há séculos, movimentos como o MST não raro teriam assumido –

conforme demonstrou Eric Hobsbawm – uma forma “milenarista”884. Na opinião de Löwy, a

análise de Hobsbawm das Ligas camponeses sicilianas – que, entre 1891 e 1894, pregavam um

socialismo concebido como uma nova religião, a verdadeira religião de Cristo – “se aplica quase

palavra por palavra ao MST, fundado em 1985”, com a diferença que “o papel dos agitadores

socialistas sicilianos do século XIX é substituído aqui pelos agentes pastorais da Igreja católica

brasileira, inspirados por esta forma inédita de socialismo cristão que se chama teologia da

libertação”885. É impossível compreender a origem do MST sem evocar – argumenta Löwy – o

papel jogado por uma parte da Igreja brasileira, em particular pela Comissão Pastoral da Terra,

fundada em 1975, que estimulou a auto-organização dos trabalhadores rurais.

Movimento secular e não-confessional, de onde a sua autonomia progressiva em relação

à CPT (entre 1979 e 1985), o MST comungaria de uma versão específica do “milenarismo”

alcunhado por Hobsbawm: a “mística”, no sentido amplo a ela conferida por Charles Péguy,

uma “mística” que se materializa em torno da “utopia sócio-religiosa do cristianismo da

libertação”. Esta utopia “está presente – argumenta Löwy –, de modo implícito ou explícito, em

vários rituais que caracterizam a vida e os combates nos acampamentos do MST: celebrações,

883 Cf. Rosa Luxemburgo, A acumulação de capital. Contribuição ao estudo econômico do imperialismo. São

Paulo: Nova Cultural, 1985; e “Que és la economia?”, in: Obras escogidas, tomo II. Bogotá: Pluma, 1979. Sobre

as proximidades entre Rosa e Benjamin no que se refere às suas críticas do progresso, cf. Fabio Mascaro Querido,

“Rememoração revolucionária: Rosa Luxemburgo e Walter Benjamin numa era de crise civilizatória”, in: Margem

Esquerda, n.18, São Paulo: Boitempo Editorial, 2012. 884 Cf. Eric Hobsbawm, Rebeldes primitivos. Estudo de formas arcaicas de movimentos sociais nos séculos XIX e

XX. Rio de Janeiro: Zahar, 1978. Cf. também o texto do próprio Löwy sobre o historiador inglês: “Du capitaine

Swing à Pancho Villa: résistances paysannes dans l’historiographie d’Eric Hobsbawm”, in: Diogène. Revue internationale des siences humaines, n.189, 2000. 885 Michael Löwy, “Origines du Mouvement des Travailleurs ruraux sans terre (MST) du Brésil”, in: João Pedro

Stédile, Gens sans terre: la trajectoire du MST et la lutte pour la terre au Brésil. Paris: Les temps des cerises,

2003. Disponível em: http://www.europe-solidaire.org/spip.php?article777. Acesso em 22/08/2014. Baseado em

aproximações muitas vezes forçadas, Löwy exagera na comparação entre as Ligas camponesas sicilianas e o MST,

entre outras coisas porque o segundo, ao contrário das primeiras, não constitui um movimento camponês

“tradicional”, sendo antes parte do “problema agrário” de um país da periferia do capitalismo. Cf., por exemplo:

Eric Hobsbawm, “Os camponeses e a política”, in: Pessoas extraordinárias. Resistência, rebelião e jazz. São

Paulo: Paz e Terra, 2005, p.216.

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procissões, marchas, cantos, discursos”. Trata-se de uma “mística laica”, de um “milenarismo

profano”, que destaca “a intransigência moral, o engajamento emocional, a dedicação à causa

sob o risco da própria vida, a esperança em uma mudança social radical”886.

Na ótica de Michael Löwy, além de atestarem o peso da religiosidade na disputa

memorial pelo passado, movimentos como o EZLN e o MST encarnam, cada qual a seu modo,

a reivindicação benjaminiana de uma outra relação com a tradição e, subsequentemente, de uma

outra visão da temporalidade histórica. Em oposição às narrativas do progresso dos vencedores,

da colonização à modernização, eles procedem, sem que Benjamin seja uma influência

perceptível em suas concepções programáticas, ao que o filósofo alemão denominava como um

dos preceitos da crítica marxista à historiografia oficial, qual seja: a necessidade de “escovar a

história a contrapelo”, proclamada na sétima das teses de 1940. Nas palavras de Löwy,

“escovar a contrapelo” a história latino-americana implica no rechaço de “qualquer

‘identificação afetiva’ com os vencedores e ‘heróis’ exaltados nas proclamações oficiais do

Quinto Centenário [...]: “conquistadores e missionários, e as potências europeias que

pretendiam levar ‘religião, cultura e civilização aos índios selvagens’”887. Implica, portanto, tal

qual sugeriu Benjamin na tese mencionada, que todo “monumento da cultura” (colonial) –

como, por exemplo, as catedrais do México ou de Lima, ou o palácio de Cortez em Cuernavaca

– seja também visualizado como um “monumento da barbárie”, construído pelos vencidos para

os vencedores888.

Reconhecendo, então, o caráter político da abordagem do passado, os movimentos

latino-americanos de resistência ao avanço do progresso neoliberal – descartada qualquer

fetichização do sentido “positivo” do desenvolvimento das forças produtivas – não hesitaram

em reler a história à luz de uma “tradição dos oprimidos” forjada nas lutas contra os vencedores

de turno. É exatamente na reconstrução dessa “tradição dos oprimidos” que tais movimentos

potencializam a dimensão simbólico-cultural das lutas, no âmbito da qual estão presentes os

mitos, religiosidades e crenças que, em sentido reacionário/conservador ou potencialmente

886 Michael Löwy, “De la pastorale de la terre au MST”, in: La Terre, junho 2000. Disponível em:

http://www.europe-solidaire.org/spip.php?article4496. Acesso em 22/08/2014, s/p. 887 Michael Löwy, “Le point de vue des vaincus dans l’histoire de l’Amérique latine”, in: Cahiers d’anthropologie sociale, n.4. Paris: Éditions de L’Herne, 2008, p.66. 888 “Nunca há um documento de cultura que não seja, ao mesmo tempo, um documento da barbárie. E, assim como

ele não está livre da barbárie, também não o está o processo de sua transmissão, transmissão na qual ele passou de

um vencedor a outro. Por isso, o materialista histórico, na medida do possível, se afasta dessa transmissão. Ele

considera como sua tarefa escovar a história a contrapelo”. Walter Benjamin, “Teses sobre o conceito de história”,

op.cit., p.70 (tese VII). As traduções em português ora utilizam a expressão “monumento de cultura/barbárie”, ora

“documento de cultura/barbárie”, como nessa tradução de Jeanne Marie Gagnebin e Marcos Lutz Müller. Michael

Löwy, por sua vez, utiliza em seus textos (originalmente redigidos em francês) a expressão “monumento de

cultura”. Cf. Michael Löwy, Walter Benjamin: alarme de incêndio, op.cit., p.72,3,4.

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revolucionário, ajudam a modular o imaginário dos conflitos político-sociais até o presente.

Para estes movimentos, é como se na América Latina (mas não só), como disse Eduardo

Galeano – em termos bem próximos aos de Benjamin –, “a história [fosse] um profeta com o

olhar voltado para trás: pelo que foi, e contra o que foi, anuncia o que será”889. Neste cenário

em que já não há mais qualquer garantia de sucesso, um elemento de religiosidade, de crença,

de aposta “milenarista” (como diria Eric Hobsbawm), está sempre presente, na interpretação de

Löwy.

Na América Latina – por força, entre outras coisas, das características da formação

histórica da região –, o vínculo entre “oprimidos” do passado e do presente é mais do que nítido,

estimulando um rechaço da mitologia do proletariado como o sujeito revolucionário, para cuja

existência teria sido necessário o desenvolvimento das forças produtivas capitalistas – mitologia

abstrata tão bem denunciada por E. P. Thompson em seus estudos sobre a formação da classe

operária inglesa. Ora, segundo Löwy, embora às voltas com a figura do proletariado messiânico

de HCC, Benjamin foi quem mais enfaticamente denunciou o caráter complacente em relação

ao progresso capitalista da crença em uma classe operária cuja originalidade decorreria da sua

inscrição no coração da produção do valor, e, portanto, da sua distância diante das classes e

grupos sociais que, ainda que anticapitalistas no discurso, estariam fadados à decadência

histórica.

Alargando o escopo da reflexão benjaminiana, ao trazê-la sem muitas mediações ao

presente, Michael Löwy afirma: “Por ‘classes oprimidas’, Benjamin se refere a todas as classes

dominadas do passado, dos escravos antigos ao proletariado, passando pelos servos”. Mas

remete também, de acordo com Löwy, às opressões do presente: mesmo porque, se “utiliza esta

noção, é porque o proletariado não é a única categoria social oprimida. Os negros, judeus, as

mulheres, as minorias nacionais são também objeto de uma opressão. Estas categorias não

sofrem apenas a exploração econômica. Elas sofrem de uma dominação específica”. É por isso

que, para Benjamin, “o sujeito revolucionário não é, portanto, exclusivamente o proletariado,

ainda que este permaneça o elemento central da luta de classes”. Isso explicaria, ainda conforme

Löwy, mais um aspecto da “atualidade” de Benjamin: “hoje, não podemos mais falar de um

único sujeito revolucionário. Existe uma pluralidade de grupos sociais em luta: as mulheres, os

desempregados, os sem-terra, os indígenas...”890.

889 Eduardo Galeano, Las venas abiertas de América Latina. Montevideo: Ediciones del chanchito, 2004, p.22.

Galeano procede, neste livro, em acordo com os dispositivos benjaminianos, “escovando” a história latino-

americana “a contrapelo”. 890 Michael Löwy, “Walter Benjamin: messianisme et émancipation”, in: SolidaritéS, n.1 (nouvelle version), 10

jan. 2002, p.28.

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Em Michael Löwy, tal leitura se coaduna com a perspectiva “latino-americana” presente

de modo decisivo em sua interpretação da obra de Benjamin. Para o intelectual franco-

brasileiro, da teologia da libertação, passando pela revolução sandinista em 1979, até os

movimentos sociais “anti-sistêmicos” contemporâneos, é na América Latina que a articulação

benjaminiana entre marxismo/socialismo e teologia, entre sofrimento e utopia (profana e/ou

religiosa), atingiu seu “máximo de consciência possível”, iluminando aquilo que, em Benjamin,

sob o impacto da tragédia europeia do entre-guerras, apresentava-se de forma um tanto

hermética. Como diz Hugo Cabello, revelando que esta leitura latino-americanista de Benjamin

ultrapassou, recentemente, o escopo dos discípulos löwyanos: “As induções especulares

deformantes geradas nos países latino-americanas pelos países dominantes possuem

características que se aproximam ao que Benjamin descreve como cadeia de acontecimentos

catastróficos que ele visualizava na Europa da época imediatamente anterior à Segunda Guerra

Mundial”891.

De volta ao Brasil com cada vez mais frequência a partir do início dos anos 1980, após

o interlúdio obscuro da ditadura militar, Löwy engatilhou o giro latino-americano pelo qual

passou sua obra desde então, de início com as pesquisas sobre o “cristianismo de libertação”,

depois com a análise das especificidades do marxismo na região (J. C. Mariátegui)892, e,

finalmente, com o interesse intelectual/acadêmico e político pelos movimentos sociais

contemporâneos, em especial os dois acima mencionados: o EZLN e o MST. Nesse cenário –

argumenta Enzo Traverso –, a América Latina tornar-se-ia, na obra de Löwy, o “elo” que unifica

“a visão trágica de mundo (Lukács, Goldmann) e o messianismo judeu (Benjamin) em uma

nova teoria do romantismo revolucionário: uma crítica do capitalismo que se alimenta da

nostalgia em relação ao mundo pré-moderno, mas que, em vez de postular um retorno

conservador ao passado, se projeta na direção de um futuro utópico”893.

Especialmente nas décadas de 1990 e 2000, portanto, a América Latina se transformou

em uma espécie de reservatório de esperança para Michael Löwy, lócus a partir do qual ele se

proporia a reavaliar a relação entre resistência e utopia, no quadro da vaga altermundialista e

seu rechaço da “mundialização neoliberal”. Nessa relação entre negatividade e utopia reside

891 Hugo Cabello, “Argentina y Venezuela. Los mitos hegemónicos, violencia política y el poder de los oprimidos”,

in: Hugo Cabello & Susana Neuhaus (orgs.), El fantasma socialista y los mitos hegemónicos. Gramsci y Benjamin

en América Latina. Buenos Aires: Ediciones Herramienta, 2010, p.25. A propósito, ver também o artigo de Sergio

Tischler, “Tiempo y emancipación. Mijaíl Bajtín y Walter Benjamin en la Selva Lacandona”, in: Miguel Vedda

(org.), Constelaciones dialécticas. Tentativas sobre Walter Benjamin. Buenos Aires, 2008. 892 Cf. Michael Löwy, “Le marxisme en Amérique Latine, de José Carlos Mariátegui aux zapatistes du Chiapas”,

in: Actuel Marx, N.42, Paris: PUF, 2007. 893 Enzo Traverso, “Le marxisme libertaire de Michael Löwy”, op.cit., p.32.

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uma das mais flagrantes antinomias do elogio da resistência realizado por Löwy em suas

reflexões mais recentes. Na sua ótica, a força dos movimentos articulados em torno do

altermundialismo situa-se exatamente na “grande recusa” através da qual estes emergiram,

assentados em uma “negatividade radical, inspirada por uma profunda e irredutível

indignação”894. Sem este “sentimento radical de rechaço” provavelmente o movimento

altermundialista não existiria, acredita Löwy, razão pela qual é preciso recusar a “chantagem”

dos “analistas” e da mídia críticos do caráter excessivamente “negativo” e meramente

contestatório do movimento, desprovido de proposições alternativas “realistas”895.

Tão importante quanto esta resistência “negativa”, sintetizada na expressão do FSM: o

mundo não é uma mercadoria, Löwy visualiza a presença, nos movimentos altermundialistas,

de uma dimensão utópica radical, formulada na proclamação de que “um outro mundo é

possível”. Essa projeção utópica garante, na opinião de Löwy, a radicalidade do

altermundialismo, a despeito da tonalidade moderada e/ou reformista de parcela significativa

dos seus membros: quando se aborda a possibilidade de um outro mundo, trata-se menos de

apenas “corrigir os excessos do mundo capitalista/industrial e de suas monstruosas políticas

neoliberais”, e sim de “sonhar e lutar por outra civilização, outro paradigma econômico e social,

outra forma de viver no planeta”896. Esta seria uma utopia que, ainda segundo Löwy, se funda

em certos “valores comuns” como o humanismo (contra a mercantilização da vida), a

democracia radical (em oposição à ditadura dos mercados), a solidariedade (baseada no

primado do bem-comum) e a diversidade (“um mundo onde caibam vários mundos”, como

diriam os zapatistas).

Preocupado antes de tudo em acentuar a importância do momento do “negativo”, da

resistência como ponto de partido ético-político, Löwy não hesita em complementar esse

princípio da resistência com a vocação utópica que, para ele, paira sob a luta dos movimentos

supracitados. Ocorre que, nessa antinomia entre negatividade e utopia, o que não se vê é como

a resistência no aqui-agora poderia se articular – através de um eixo político-estratégico

coerente – à projeção de uma utopia efetivamente “concreta”, no sentido blochiano. Para Löwy,

a “utopia altermundialista” se elabora na própria “dinâmica transitória” das ações e

reivindicações “práticas” do movimento, formuladas por organismos internacionais como a

Marcha Mundial das Mulheres, a ATTAC, a Via Campesina, o Comitê pela abolição da dívida

894 Michael Löwy, “Negatividad y utopia en el movimiento altermundialista”, in: Herramienta, n.42. Buenos Aires,

2009, p.65. Cf. “Marxismo: resistência e utopia”, in: Michael Löwy & Daniel Bensaïd, Marxismo, modernidade e

utopia, op.cit. 895 Idem, p.65. 896 Idem, p.67.

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do Terceiro Mundo etc. Nas suas palavras: “cada FSM, cada experiência local de democracia

participativa, cada ocupação coletiva de terras pelos camponeses, cada ação internacional

contra a guerra, constitui uma prefiguração da utopia altermundialista, e está inspirada por seus

valores, que são os de uma civilização da solidariedade”897. Na sua apreciação, a pluralidade

programática, longe de ser uma debilidade, constitui umas das “fontes da força, crescimento e

expansão do movimento”898.

Ora, tal petição de princípio não anula as dificuldades reais que se colocam aos

movimentos que, muitas vezes mobilizados por uma questão “específica”, podem se orientar

na direção do questionamento de aspectos centrais do sistema, quando não do sistema em sua

totalidade. Ao valorizar, com certa complacência, e de forma acrítica, tais formas de resistência,

assim como as “utopias” que dela necessariamente emergiriam, Löwy acaba chancelando como

uma dimensão positiva um aspecto que, pelo instante, permanece um problema para os

movimentos sociais contemporâneos: o déficit político-estratégico, o qual decorre em grande

medida das próprias condições nas quais eles se mobilizam e reproduzem enquanto tal. Daí uma

valorização da resistência que, feita em detrimento da reflexão sobre as possibilidades concretas

do anticapitalismo, não escapa aos limites da profissão de fé em uma utopia anticapitalista que

haverá de nascer, mesmo se as indicações parecem ir em sentido contrário. Pouco se avança na

avaliação das possibilidades reais de tais movimentos sociais se articularem em torno de um

projeto contra-hegemônico, ancorado em uma política dos oprimidos capaz de estimular a

emergência de uma nova universalidade concreta.

Explica-se assim a frágil articulação, em Michael Löwy, entre a reivindicação do

“pessimismo revolucionário” à Benjamin e a manifestação de um “otimismo antropológico” no

que se refere à valorização das utopias e da esperança em um “outro mundo possível”899. Não

surpreendentemente, tal antinomia revela-se em todas as suas consequências exatamente na sua

interpretação de Benjamin. Para Löwy, a ruptura com as ideologias do progresso, assim como

com qualquer outra modalidade de teleologia histórica, bases da filosofia benjaminiana, supõe

a restituição da crítica marxista a partir do seu gesto básico e inaugural: a recusa ética radical

das bases sobre as quais se fundam a civilização capitalista-moderna. É desta recusa, e somente

dela, que podem emergir as utopias concretas de um novo mundo. Entre desconstrução das

897 Idem, p.69. 898 Idem, p.63. 899 Cf, a propósito, Enzo Traverso, “Le marxisme libertaire de Michael Löwy”, op.cit., p.30, 31. Para Traverso,

esse “otimismo antropológico”, forjado na esteira da revolução cubana e da vaga de radicalização política por ela

engendrada, constitui um “contrapeso” à “jaula de aço” weberiana, à “dialética negativa do marxismo ocidental”

e ao “anjo da história de Benjamin”.

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hipóstases históricas e utopia romântica de um futuro cujo único prelúdio é o passado

longínquo, Benjamin encarnava, desse modo, os dilemas e ambivalências vivenciados no

presente pelo próprio Löwy, razão pela qual o filósofo berlinense se transformou não apenas na

sua bússola, senão também – é possível acrescentar – no seu duplo: sombra projetada tanto da

ameaça da catástrofe quanto da necessidade de, apesar de tudo, continuar a acreditar na

possibilidade de acionar o “freio de emergência”, bifurcando o sentido da história.

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8. Daniel Bensaïd entre resistência intelectual e reposicionamento político

8.1. Ética e política da resistência

Passada a transição condensada nos anos entre 1989-1991, após o impacto causado por

variados fenômenos simultâneos (queda do Muro, descoberta da doença, início do trabalho

propriamente intelectual), Daniel Bensaïd se tornou, desde então, um filósofo preocupado em

demarcar o sentido ainda atual da indignação e, portanto, da resistência “irredutível” ao curso

do mundo. Refletir sobre as razões dessa resistência transformou-se em um dos fios condutores

da sua obra, com ênfase particular na década de 1990, momento de indefinição no qual

aparentemente não restava senão isso: resistir ao avanço da mercantilização da vida social e da

natureza. Nesse contexto, Daniel Bensaïd mobiliza o seu “capital militante” – conquistado no

batismo de fogo de 68 e nas décadas de engajamento na extrema-esquerda francesa – a fim

forjar boas condições para o inevitável reposicionamento intelectual diante das novas condições

que se impunham a ele e à sua organização política.

Foi assim que, por sua iniciativa, se formou em 1992 a SPRAT, Société pour la

résistance à l’air du temps, projeto ao qual se juntaram uma plêiade de intelectuais que

ultrapassavam em muito os círculos da extrema-esquerda militante, abarcando o conjunto da

esquerda intelectual. Além de Bensaïd, assinaram o chamado inicial, por exemplo, nomes como

Gilles Perrault, o célebre editor François Maspero, Jean-François Vilar, Alexis Violet, Hervé

Delouche, Georges Labica, o jornalista Edwy Plenel, o “velho” trotskista Michel Lequenne,

Enzo Traverso e Michael Löwy, dentre outros. A estes seguiu-se a adesão de vários outros e

outras intelectuais. Reunindo-se mensalmente, o objetivo da SPRAT era debater, sem

preocupação de grande visibilidade externa, questões diversas da atualidade da época, tais como

a construção europeia, o retorno das religiões, as figuras da cidadania, as guerras dos Balcãs e

do Golfo etc. A pretensão era, assim, bastante modesta: um grupo de discussão sobre a

atualidade de um mundo em plena transformação, “resistência paciente” diante do

estreitamento do horizonte histórico que então se vivia. Talvez por isso, após alguns anos de

existência, a SPRAT tenha sido progressivamente substituída por outros lócus de debates, mais

diretamente vinculados aos desafios surgidos após o movimento social antiliberal de 1995.

Nesses primeiros anos da década de 1990, Daniel Bensaïd dedicou-se, no plano teórico-

intelectual, ao trabalho de reflexão atualizadora sobre alguns aspectos da obra de Marx,

interpelando-a a partir de temas e questionamentos contemporâneos, que pretendiam na maioria

das vezes decretar a morte do marxismo, quando não da história em geral. Para Daniel Bensaïd,

a crise que então ocorria era menos aquela do marxismo tout court, do que de algumas leituras

específicas dele, as quais o teriam petrificado ora em uma razão de Estado (“marxismo-

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leninismo”), ora em um sistema filosófico fechado, subordinado a uma grande narrativa

teleológica. Por isso, em um texto de 1993, cujo título retomava em sinal invertido a pergunta

colocada por uma revista norte-americana: “Le grand Karl est mort?”, Bensaïd se demanda

retoricamente: “fim da história ou, mais simplesmente, fim de suas grandes ilusões?”. Em suas

palavras, que reafirmam sua posição de princípio inegociável, cláusula pétrea a partir da qual

ele elabora sua proposta de renovação do marxismo (ou melhor, de uma certa tradição

marxista): “acostumado às catástrofes, o século que se encerra não será aquele da morte do

marxismo e do comunismo, mas aquele do colapso da crença história e dos fetiches do

progresso”900.

Assim, o momento seria propício (e daí a dimensão “positiva” da ruptura de época em

curso) à “releitura de Marx”, a fim de colocá-lo à prova do presente. “Não para restaurar a

autenticidade de uma obra desfigurada. Mas para mergulhar nela a ponta do nosso presente”.

Ou seja, “não para restabelecer nos seus direitos uma verdade escondida. Mas para despertar as

virtualidades sepultadas sob o sono dogmático do marxismo ortodoxo”. Essa “libertação”

revelaria uma pluralidade de marxismos, que se associam à pluralidade da obra do próprio

Marx, pluralidade então admitida como pressuposto de releitura. Não é por acaso que, malgrado

as diferenças de fundo político, Bensaïd tenha recebido de muito bom grado a publicação, em

1993, de Spectres de Marx, do filósofo “pós-estruturalista” Jacques Derrida.

Como indica o título, são os “espectros” de Marx, no plural, que interessam a Derrida,

como se essa “desconstrução” da “onto-teologia” que estaria presente na obra do filósofo

alemão fosse uma pré-condição para o resgate de sua dimensão atual. Em uma época

caracterizada pelo declínio da importância outrora concedida a Marx e ao marxismo, o filósofo

francês – que jamais se identificara com a teoria marxista – afirma: “Será sempre um equívoco

não ler, reler e discutir Marx”. Ainda mais porque, “agora que a máquina de dogmas e os

aparelhos ideológicos ‘marxistas’ estão desaparecendo, nós não temos mais desculpa, somente

álibis, para nos desviar dessa responsabilidade. Não haverá futuro sem isso. Não sem Marx,

nenhum futuro sem Marx. Sem a memória e sem a herança de Marx: em todo caso de um certo

Marx, de seu gênio, de um ao menos dos seus espíritos”901. Já que um espectro nunca morre,

todos os homens e mulheres, “quer eles queiram e saibam ou não [...] são hoje em certa medida

900 Daniel Bensaïd, “Le grand Marx est mort?”, in: collectif Europe de l’Est, la fin du « socialisme », Quebec:

Vents d’Ouest, 1993. Uma versão modificada deste texto foi publicada em La Discordance des temps, essai sur

les crises, les classes, l’histoire. Paris: éditions de la Passion, 1995. 901 Jacques Derrida, Spectres de Marx. L’État de la dette, le travail du deuil et la nouvelle Internationale. Paris:

Galilée, 1993, p.35, 36.

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herdeiros de Marx e do marxismo”902. Mas, longe de uma recepção passiva, “uma herança é

sempre a reafirmação de uma dívida [...], uma reafirmação crítica, seletiva e filtrante”903.

Mesmo porque, “não se herda jamais sem se explicar com o espectro e, a partir de então, com

mais de um espectro”904.

Pouco mencionado pelos comentadores, talvez pela dificuldade em entender referência

tão iconoclasta para um “trotskista”, o livro de Derrida inspirou decisivamente a reflexão

filosófica de Daniel Bensaïd, em função, particularmente, da tentativa de despertar a

diversidade dos “espectros” de Marx e, assim, permitir uma interpretação realmente

atualizadora, ancorada em uma nova representação da temporalidade histórica. Para Derrida,

debatendo-se contra um presente marcado pela injustiça, Marx avança uma percepção

messiânica da história, baseada na exigência ético-política de justiça; assim, é como se, na ótica

do filósofo alemão, o tempo estivesse “fora dos eixos” (the time is out of joint, conforme o verso

hamletiano), de onde o caráter “impaciente e incondicional” dessa exigência, como uma “espera

sem horizonte de espera”, à diferença das concepções “onto-teleológicas” da história, nas quais

a política é reduzida à condição de efeito de uma evolução histórica pré-determinada.

A inspiração parece tanto mais evidente quanto se tem em conta o título dos dois livros

publicados por Bensaïd em 1995, ambos voltados à releitura de Marx e da tradição marxista:

Marx, o intempestivo e A discordância dos tempos. Se, no geral, os livros constituem

reinterpretações benjaminianas do marxismo, centradas na questão da temporalidade (e da

“racionalidade”) histórica, a presença de Derrida, mais sutil, não é menos visível, embora bem

menos essencial. Em Spectres de Marx, por exemplo, é recorrente a menção às “disjunções”

temporais, aos “contratempos” e, mais ainda, ao caráter “intempestivo” dos espectros de Marx.

Sem romper com a tradição do marxismo da luta de classes, Bensaïd visualiza na proposição

“desconstrutora” de Derrida mais uma oportunidade para estimular a ruptura do marxismo com

as metafísicas teleológicas do progresso.

Constituídos originalmente a partir das notas compiladas por Bensaïd durante seus

cursos sobre Marx na Universidade de Saint-Denis (Paris VIII), ministrados na segunda metade

da década de 1980, notas reformuladas nos primeiros anos da década de 1990, Marx, o

intempestivo e A discordância dos tempos concedem fundamento teórico-filosófico à inflexão

benjaminiana pela qual passara sua obra. Talvez o seu livro mais importante, por sua ambição

e coerência singulares, Marx, o intempestivo, em particular, aplica à obra do próprio Marx a

902 Idem, p.149. 903 Idem, p.150. 904 Idem, p.46.

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exigência benjaminiana de submeter os pensamentos do passado às condições do presente.

Como destaca Sebastian Budgen, trata-se de uma espécie de texto “pós-pós-moderno”, na

medida em que realiza uma releitura de Marx à luz dos questionamentos contemporâneos às

grandes narrativas905.

Até por isso, ao buscar resgatar o “atual ainda ativo” da teoria social fundada por Marx,

após mais de um século de controvérsias, Daniel Bensaïd a interpreta em negativo, destacando,

acima de tudo, aquilo que ela não é (ou não deveria ser). “Se não é fácil dizer em que consiste

a teoria de Marx, diz ele, podemos pelo menos lançar algumas luzes sobre aquilo que ela não

é”906. Para Bensaïd, a teoria de Marx não é, em primeiro lugar, uma filosofia especulativa da

História Universal. Ao contrário do que se supõe com frequência, Marx não funda uma nova

filosofia da história: crítico da “razão histórica”, ele explora, a bem dizer, os caminhos de uma

“nova escrita da história”, que se articula a uma “nova escuta do tempo”. Muito antes da

segunda Consideração Intempestiva de Nietzsche, de A Eternidade pelos Astros de Blanqui, de

Clio de Péguy, e das teses ‘Sobre o conceito de história’ de Walter Benjamin, ou do livro

póstumo de Siegfried Kracauer A História: as últimas coisas antes das últimas, Marx foi, na

opinião de Bensaïd, um dos primeiros a ter rompido categoricamente com as filosofias

especulativas da história universal: providência divina, teleologia natural ou odisseia do

Espírito.

Tampouco a teoria de Marx constitui, na ótica do filósofo francês, uma “sociologia

empírica das classes”. Na contramão da “razão sociológica” – “que ordena e classifica, organiza

inventário e repertório, apazigua e pacifica”907, Marx acentua o caráter dinâmico do conflito e

da luta social entre as classes. Por fim, a teoria fundada por Marx não é, e jamais pretendeu ser,

uma “ciência positiva”, ao estilo da física clássica então dominante. Resistindo à racionalidade

fragmentada e unilateral da divisão do trabalho científico, Marx acerca-se ao que ele próprio

chamou de “ciência alemã” (deutschen Wissenschaft), tradição que abre a possibilidade de

abordar “as lógicas não-lineares, as leis tendenciais, as necessidades condicionais daquilo que

Gramsci designará sutilmente como ‘uma nova imanência’”908. Em Marx, estas três grandes

“críticas” (da “razão histórica”, da “razão sociológica” e da “positividade científica”) articulam-

905 Cf. Sébastien Budgen, “The Red Hussar: Daniel Bensaïd, 1946-2010”. In: International Socialism, n.127, 2010. 906 Daniel Bensaïd, Marx, o intempestivo. Grandezas e misérias de uma aventura crítica. Rio de Janeiro:

Civilização Brasileira, 1999, p.13. 907 Ibidem. 908 Idem, p.14.

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se e complementam-se, sob as pressões do presente, no interior não de um “sistema

doutrinário”, senão de “uma teoria crítica da luta social e da mudança do mundo”909.

A fim de inscrever este “marxismo crítico” nas interrogações do presente, Daniel

Bensaïd confronta-o a teorias contemporâneas que, extra ou antimarxistas, desafiam algumas

das premissas básicas da teoria social fundada por Marx. Esta permanente confrontação crítica

do marxismo com teorias sociais da atualidade será, aliás, umas das características das reflexões

de Daniel Bensaïd após sua incorporação da obra de Benjamin. Pois, para ele, “a vitalidade de

uma teoria se prova pelas refutações que ela sofre e pelas mutações de que é capaz sem

desagregar-se”910. Em Marx, o intempestivo, especificamente, Bensaïd concentra-se no

“confronto” com a crítica de Karl Popper ao “historicismo marxiano” (crítica que “impregnou

a contraofensiva ideológica dos anos 70”), e com algumas das teses do “marxismo analítico”

anglo-saxão (Gerry Cohen, Jon Elster, John Roemer, Eric Olin Wright), cujos autores “tiveram

o mérito de levantar, ao longo de toda a década de 1980, questões fundamentais sobre a história,

o progresso e as classes sociais à luz das experiências trágicas do século XX”911. Em A

discordância dos tempos, por seu turno, os autores eleitos como “parâmetros” para a atualização

crítica do marxismo são Toni Negri, o próprio Jacques Derrida, dentre outros.

Na ótica de Daniel Bensaïd, a “crítica da razão histórica” – desenvolvida por Marx desde

pelo menos 1845, com a redação d’A Ideologia Alemã, em companhia de Engels – implica, em

primeiro lugar, uma rejeição da própria hipótese de uma História Universal dotada de um

sentido filosófico em si, “anterior” às contingências da ação humana. “A Sagrada Família e A

Ideologia Alemã dão [...] definitivamente as costas a qualquer ideia de transcendência

histórica”, afirma ele, de forma enfática e peremptória912. Para Marx, segundo defende Bensaïd,

a história, em si mesma, não é um ponto de partida explicativo, mas aquilo que deve ser

explicado. “A história não tem sentido filosófico”. Sua inteligibilidade é, antes, política,

dependendo do ponto de vista a partir do qual estamos situados913. Nas palavras de Bensaïd,

para Marx, “a história não é de modo algum universal por natureza e em todo o tempo. Ele se

torna universal por um processo de universalização real”914.

À diferença do “finalismo histórico” que lhe é atribuído por Karl Popper ou por Jon

Elster, Marx – por força das intermitências do seu objeto: o capital – esboça os contornos de

909 Ibidem. 910 Idem, p.16. 911 Ibidem. 912 Idem, p.35. 913 Idem, p.46. 914 Idem, p.44.

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uma “nova escrita da história”, na qual já não há uma “norma” transcendente, determinada pela

“escala de maturidade” do desenvolvimento das forças produtivas. Na história, “normalidade e

racionalidade são sempre parciais e provisórias”915. Por isso mesmo, a rejeição marxiana à ideia

de História Universal significa, ao mesmo tempo, um rechaço à noção de um “progresso”

percorrendo uma temporalidade linear em direção à meta final pré-estabelecida. Abstração do

progresso e História Universal encontram-se, portanto, indissociavelmente ligadas916.

Não por acaso, em Marx, a crítica de um progresso transcendente da História (e exterior

à história imanente dos homens) completa-se com a consideração dos contratempos, quer dizer,

dos “tempos discordantes” que se chocam ou se acomodam no interior de uma formação social

determinada – para além da “correspondência” mecânica entre forças e relações de produção.

Nesta concepção, deslegitimada a ideia de um “tempo homogêneo e vazio” definindo o

progresso da história, o presente impõe-se como “categoria temporal central de uma história

aberta”917, um presente que, conforme disse Benjamin na XVI tese sobre o conceito de história,

“não é transição, mas no qual o tempo estanca e fica imóvel”918. Um presente, enfim, que não

seja apenas um “simples elo na cadeia dos tempos, mas um momento de seleção dos

possíveis”919.

Absolutamente central após sua incorporação das reflexões de Walter Benjamin, a

abordagem de Marx como um “crítico da razão histórica” é tributária, igualmente, em Bensaïd,

embora em menor medida, da influência (não declarada) de Henri Lefebvre, cuja obra inspirou

sua leitura de Lênin – como pensador da política revolucionária pensada sob a forma da ruptura

da cadeia temporal. Em Introdução à modernidade, por exemplo, coletânea de ensaios

publicada em 1961, Lefebvre afirmou: “Contrariamente ao que se pensa em geral, Marx

colocou em questão a História, isto é, ele ‘questionou’ sua validez, sua essência. Depois de ter

mostrado a historicidade do ser humano, ele não hesitava em contestar a história que se

desenrola acima dele”920. Mais tarde, em Hegel, Marx, Nietzsche, ou reino das sombras (1975),

ele disse: “Marx não tomou como princípio e como hipótese de partida, como Hegel, o ‘real’,

o ocorrido, senão o possível. Desenvolveu as razões do possível revolucionário e de sua entrada

no real transformando-o”921.

915 Idem, p.60. 916 Idem, p.98. 917 Idem, p.86. 918 Walter Benjamin, “Teses sobre o conceito de história”, op.cit., p.128. 919 Daniel Bensaïd, Marx, o intempestivo, op.cit., p.109. 920 Henri Lefebvre, Introdução à modernidade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1969, p.291. 921 Henri Lefebvre, Hegel, Marx, Nietzsche (o el reino de las sombras). Cidade do México: Siglo XXI editores,

2010, p.65.

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Para Lefebvre, em oposição à racionalização hegeliana do real consumado, tanto Marx

quanto Nietzsche coincidem numa recusa da apologia dos fatos, o primeiro em nome da

possibilidade de uma nova concepção (revolucionária) da história, o segundo pelo retorno à

imediaticidade não-racionalizável do vivido922. Para um como para outro, tal qual

compreendera Benjamin, a despeito de suas significativas diferenças, a simples racionalização

dos fatos imediatos significa uma forma de legitimação do “eterno retorno do sempre igual”,

sob os imperativos de uma história guiada por uma temporalidade reificada. Sem se

comprometer com a liquidação nietzschiana de toda perspectiva emancipatória, a temática do

“eterno retorno” infernal se apresenta, em Daniel Bensaïd, na forma por ela assumida nas

reflexões do revolucionário francês Auguste Blanqui (L’Éternité par les astres), e, portanto,

malgrado o seu inegável pessimismo, articulada à busca pelas “bifurcações”, isto é, pelas

possibilidades de interrupção das atuais formas de reprodução da história. Através de Benjamin

(e de Lefebvre), tanto Nietzsche quanto Blanqui são mobilizados, por Bensaïd, para uma

releitura de Marx que, seletivamente, destaca seus elementos críticos do progresso e da razão

histórica, resgatando, simultaneamente, sua atenção permanente às brechas do possível.

Na medida em que não há um “progresso” abstrato e linear, não há, em Marx, uma

definição precisa de uma “classe” constrangida a cumprir sua “missão histórica”. Para Daniel

Bensaïd, não há, na obra do filósofo alemão, uma definição “sociológica”, normativa ou

descritiva, das classes sociais. Em vão buscar-se-ia em Marx uma definição definitiva e fixa

das classes; o que há é apenas uma aproximação conceitual dinâmica. Em oposição à “razão

sociológica”, estática e classificatória, o filósofo alemão acentua o caráter dinâmico da

constituição histórico-concreta das classes sociais em luta. Crítico da “positividade científica”,

sua reflexão escapa aos parâmetros da sociologia acadêmica. Com efeito, “exigir de Marx uma

‘sociologia segundo os critérios acadêmicos da disciplina é um contrassenso. Ninguém foi

menos sociológico (no sentido comum) que ele. Sua ‘sociologia crítica’ é uma sociologia

negativa ou uma ‘anti-sociologia’”923.

Os “fatos sociais” são, para ele, relações e não coisas. Não se trata, para Marx, de

“etiquetar as coisas”, senão de vislumbrar as relações entre os fenômenos sociais inscritos em

uma totalidade em movimento. Seu modo de pensar reflete, portanto, como diz Daniel Bensaïd

922 Nas palavras de Stéphane Mosès, “para Hegel, o julgamento da história é aquele pelo qual a história julga os

homens; para Benjamin, é aquele pelo qual os homens julgam a história”. Cf. L’ange de l’histoire. Rosenzweig,

Benjamin, Scholem, op.cit., p.216. 923 Ibidem.

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em A Discordância dos Tempos, o dinamismo do seu objeto específico: o capital924.

Pressionado por este “objeto estranho”, que escapa à lógica formal, Marx esboça os traços de

uma nova racionalidade, em tudo antagônica à razão instrumental seja do positivismo e/ou do

empirismo. “Como criminologista que investiga o assassino, o capital”, Marx vislumbra uma

“nova concepção da causalidade para compreender o estranho comportamento de seu inimigo”.

A lógica, então, é imanente ao objeto, não sendo passível de formalizações abstratas. Por isso,

muito além e muito aquém do intento de afirmação positiva de uma nova doutrina, Marx

concebe seu trabalho como uma “crítica da economia política”, ou seja, como um “saber

negativo que critica a ciência estabelecida”.

Nessa perspectiva, as relações de classe remetem, em Marx – segundo Bensaïd –, a um

sistema de relações estruturado pela luta, no âmbito de um antagonismo dinâmico que ganha

forma, em primeiro lugar, no processo de produção, em seguida, no processo de circulação e,

finalmente, no da reprodução. As “relações de classe” não se reduzem ao confronto entre patrão

e operário na empresa, em torno da extorsão (ou da resistência a ela) à mais-valia, tal como

descrito no livro I d’O Capital. Eles se revelam, ao contrário, no processo de produção global

do capital, cuja análise perpassa os três livros da obra máxima (e inacabada) de Marx. No que

se refere às classes sociais, “cada livro traz uma determinação específica”925. Cada nível

sobrepõe uma nova determinação, no âmbito de uma relação que não se concretiza efetivamente

senão no antagonismo dinâmico das classes em luta.

Enfocando a relação de exploração inscrita no “laboratório secreto da produção”, e

revelando, assim, a origem da mais-valia na extração do sobre-trabalho dos proletários, o livro

I decifra o enigma da mercadoria, destacando uma primeira (e provisória) abordagem das

classes sociais, ancorada na cisão entre exploradores e explorados. Esta abordagem

aproximativa pode ser visualizada no capítulo sobre a jornada de trabalho na terceira seção; no

capítulo “Divisão do trabalho e manufatura”, da quarta seção; bem como no capítulo sobre a

“Lei geral da acumulação capitalista”, na sétima seção. Mas, aos olhos de Bensaïd, “o livro I

não desenvolve uma concepção sistemática e acabada das classes. A relação de exploração entre

trabalho assalariado e capital não é outra coisa senão a primeira e mais abstrata de suas

determinações”926. No âmbito da produção, a relação de exploração é apenas o invólucro e o

esqueleto das relações de classe.

924 Daniel Bensaïd, La Discordance des temps. Essais sur les crises, les classes, l’histoire. Paris: Les Editions de

la Passion, 1995, p.15. 925 Daniel Bensaïd, Marx, o intempestivo, op.cit., p.158. 926 Idem, p.155.

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No livro II, por sua vez, desenvolvendo o ciclo das metamorfoses do capital, o processo

total se apresenta como “unidade do processo de produção e circulação”: o processo de

produção serve de meio ao processo de circulação e vice-versa927. Aqui, “a relação de

exploração” se dá “entre o operário enquanto assalariado que vende sua força de trabalho e o

capitalista enquanto detentor de capital monetário”. Nessa relação, “o que se acha em jogo [...]

é apreendido sob o ângulo não mais da divisão do tempo de trabalho, mas sob o ângulo da

negociação conflitual da força de trabalho enquanto mercadoria”928. O operário apresenta-se,

então, não como produtor explorado de mais-valia, mas, antes, como vendedor de sua força de

trabalho (quer dizer, do seu tempo) e como comprador potencial dos bens de consumo. O

processo de circulação, efetivando a relação de exploração, torna mais complexa as figuras da

produção apresentadas no livro I, razão pela qual não seria “menos legítimo procurar a

morfologia das classes antes no nível do livro II que ao nível do livro I, a que se apega a maioria

dos seus vulgarizadores”. Remetida à esfera da circulação, a relação de compra e venda de força

de trabalho “não é menos constitutiva da relação de classe que a relação de exploração revelada

no livro I”929.

É apenas no livro III d’O Capital, porém, dedicado à produção e reprodução global, que

as determinações constitutivas das classes se completam. Apenas nesse nível as relações de

classe aparecem como relações entre o “trabalhador global” e o “capitalista global”. Elas

emergem no limiar da articulação da relação de exploração na produção, da relação salarial e

da produtividade/não-produtividade do trabalho na circulação, e, enfim, da distribuição da

renda na reprodução global. Não por acaso, Marx havia programado para este livro o capítulo

inconcluso sobre as classes – o famoso capítulo LII: somente quando conquistadas as condições

teóricas de uma abordagem sistemática é que as classes poderiam ser objeto de um capítulo

específico.

Ademais, para Marx, além do processo de (re)produção global, outras determinações,

como a família, a educação, o Estado e, em particular, a luta política, condicionam – de acordo

com a interpretação de Daniel Bensaïd – o processo de formação das classes sociais. A incerteza

e o aleatório da luta invalidam, em Marx, as garantias da História Universal guiada pela

temporalidade linear do progresso. A especificidade da luta política é irredutível às relações

sociais. “A representação política não é a mera manifestação de uma natureza social”930, tal

927 Daniel Bensaïd, La Discordance des temps. Essais sur les crises, les classes, l’histoire, op.cit. 928 Daniel Bensaïd, Marx, o intempestivo, op.cit., p.157. 929 Ibidem. 930 Idem, p.167.

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como demonstra Marx em textos histórico-políticos como, por exemplo, As lutas de classes na

França e O 18 Brumário de Luís Bonaparte. “A luta política das classes” não é o reflexo

superficial de uma “essência” social. “Articulada como uma linguagem, ela opera”, diz Daniel

Bensaïd, “por deslocamentos e condensações das contradições sociais. Tem seus sonhos,

pesadelos e lapsos”. Daí seu “parentesco” com a psicanálise. “No campo específico do político,

as relações de classe adquirem um grau de complexidade irredutível ao antagonismo bipolar

que entretanto as determina”931.

Para Bensaïd, portanto, em Marx (ou mais precisamente em O Capital), a não

correspondência entre estrutura social e representação política não se resume à mera defasagem

entre a “classe-em-si”, como manifestação de uma “essência objetiva”, e a “classe-para-si”,

plenamente consciente do seu “papel histórico”. O seu “destino” corresponderia, aqui, ao seu

“ser”. A abordagem de Marx desautoriza “toda concepção mecânica da passagem necessária do

em-si ao para-si, do inconsciente ao consciente [...], entre os quais o tempo faria o papel de

mediador neutro”. Conforme se pode ver nas análises de Marx em O 18 Brumário, na luta

política, “consciência e inconsciência de classe entrelaçam-se num abraço perverso e não

cessam de enganar-se mutuamente”932

Daniel Bensaïd opõe-se, assim, às leituras “ontológicas” de Marx, como a do último

Lukács, na qual o proletariado apresentar-se-ia, segundo ele, “coagido” a “corresponder” à sua

essência histórica como classe revolucionária destinada – “de acordo com o que ele é” – a

suprimir o capitalismo agora decadente. Em Marx, segundo Bensaïd, a essência de classe dilui-

se nas relações de classe, e o ser “regride” às incertezas da luta. Nas palavras do filósofo francês:

“Os Grundrisse e O Capital apresentam-se ao contrário como um trabalho de luto da

ontologia”, quer dizer, “como uma desontologização radical”, depois da qual “não há mais lugar

para qualquer avesso-do-mundo que seja, para nenhum duplo fundo, para nenhum dualismo do

autêntico e do inautêntico”933. Nas palavras de Bensaïd: “Romper o círculo de ferro do

capitalismo depende, diz Marx, não da dialética formal da opressão e da liberação pelo trabalho,

mas da irrupção política”934.

Com esta perspectiva, Daniel Bensaïd afasta-se decididamente de qualquer concepção

“apriorística”, por assim dizer, das classes sociais e do sujeito revolucionário – tal qual ele havia

sustentado em sua dissertação sobre Lênin em 1968 –, acentuando o primado da luta na

931 Idem, p.164. 932 Idem, p.168. 933 Idem, p.170. 934 Idem, p.262.

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constituição política das classes. Agora, no lugar da mecânica transformação do “sujeito

teórico” em “sujeito prático-político”, ou da “classe-em-si” em “classe-para-si”, pela mediação

do partido, Bensaïd aproxima-se da concepção benjaminiana para a qual a “classe oprimida” se

forma no próprio processo de resistência aos opressores. O filósofo francês se aproxima, ao

mesmo tempo, como já se disse, da concepção de E. P. Thompson, para quem “classe e

consciência de classe são sempre o último e não o primeiro degrau de um processo histórico

real”935.

Para Bensaïd, agora, como demonstra em um “esquema de curso sobre as classes

sociais” dos seus arquivos pessoais, o grande “perigo” desta “dialética” entre o em-si e o para-

si, utilizada uma só vez por Marx na Miséria da Filosofia936, é que “se a luta econômica é o

domínio do em-si, a classe para-si tende a se identificar ao partido, de onde o fetichismo do

partido”. Na contramão desta perspectiva, a afirmação do primado da luta – cujo desenlace não

se pode prever – resiste à tendência, que predominou em parcela significativa do marxismo, em

definir os rumos da história a partir da hipóstase de uma classe social (o proletariado)

pressuposta.

De todo modo, Daniel Bensaïd continua professando a centralidade, nas sociedades

contemporâneas, das classes sociais, afirmando, ao mesmo tempo, a necessidade de

compreendê-las em sua interação dinâmica. Malgrado o avanço contemporâneo de

fragmentação das identidades coletivas, a luta de classes ainda constitui, para ele, uma forma

de conflitualidade que “desenvolve uma lógica de liberação superior a outras formas, religiosas

ou comunitárias, de confronto”937. Isso porque somente a luta de classes restitui a centralidade

da relação de exploração, elevando-a ao núcleo do conflito social. Em torno desta “diagonal de

classes” se articulam as diversas relações “específicas” de opressão e dominação.

Daí a vigência, ainda hoje, para Bensaïd, do programa marxista “clássico” que afirma a

necessidade da subversão e transformação revolucionária das relações de produção (e de

propriedade) hegemônicas, a partir da conquista do poder político. Não por acaso, em A

Discordância dos Tempos, Bensaïd rechaça a ideia – defendida por algumas feministas, por

Christine Delphy em particular – de um “modo de produção doméstico”, na qual as relações de

935 E. P. Thompson, “Algumas observações sobre classe e ‘falsa consciência’”. In: As peculiaridades dos ingleses

e outros artigos. São Paulo: Editora da Unicamp, 2001, p.274. 936 “As condições econômicas tinham a princípio transformado a massa da população do país em trabalhadores. A

dominação do capital criou para essa massa uma situação comum, interesses comuns. Assim, essa massa é já uma

classe diante do capital, mas não o é ainda para si mesma. Os interesses que defende tornam-se interesses de classe.

Mas a luta de classe com classe é uma luta política”. Karl Marx, Miséria da Filosofia. Resposta à “Filosofia da

Miséria” de Pierre-Joseph Proudhon. Rio de Janeiro: Editora Leitura, 1965, p. 136.

937 Daniel Bensaïd, Marx, o intempestivo, op.cit., p.250.

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sexo são alçadas ao primeiro plano. De acordo com Bensaïd, o trabalho doméstico das mulheres

no âmbito reprodutivo da família não possui, rigorosamente, um valor de troca, abstratamente

quantificável em sua realização no mercado. Com efeito, assim como o trabalho doméstico “não

é a fonte de uma nova categoria de valor (o valor doméstico), a produção doméstica de valores

de uso não define um modo de produção patriarcal (ou doméstico) sobreposto ao modo de

produção capitalista”938.

No capitalismo, relações de classe e relações de sexo se condicionam reciprocamente,

de tal forma que não se poderia lutar de maneira eficaz contra a opressão sem lutar também

contra a exploração. A exploração capitalista subsume e incorpora outras formas

(cronologicamente anteriores) de opressão. “Se a divisão sexual do trabalho atravessa os

diferentes modos de produção, a divisão capitalista do trabalho não reproduz simplesmente uma

opressão milenar. Ela a redefine, a remodela, a reorganiza, excluindo as mulheres do espaço

público em formação”940. Por essa razão, no capitalismo, os elementos da luta pela hegemonia

não são equivalentes: o conflito de classe é o núcleo de todo encadeamento. “O conflito de

classes não é um conflito entre outros”. No “modo de produção dominante, ele estrutura o

conjunto da socialização”941. É a própria lógica do capital e do fetichismo mercantil que afeta

as diferentes esferas da vida social, a ponto de forjar as condições de uma nova unificação

relativa das resistências. Apenas a luta de classes projeta, em potencial, as bases de uma

universalidade enraizada no cerne do sistema, ao passo que as lutas contra opressões

“específicas” podem facilmente ser integradas à reprodução da ordem.

No percurso de Daniel Bensaïd, particularmente importante foi a publicação de Le Pari

mélancolique. Métamorphoses de la politique, politique des metamorfoses, em 1997, seu

segundo livro editado pela prestigiada Fayard. Trata-se, este que constitui o livro “bensaïdiano”

preferido de Michael Löwy, da primeira vez que Bensaïd aborda diretamente os nexos causais

e as consequências políticas e intelectuais da crise contemporânea. Nas palavras do autor,

“alguma coisa se fecha com o século, sem que saibamos ainda o que emerge, nem mesmo se

algum nascer do sol brilhará novamente: uma certa ideia da revolução, da cidadania, da

democracia; uma representação datada do espaço e do tempo político”942. Para Bensaïd, a

ruptura de época em andamento sinalizava uma verdadeira “crise de civilização”, que se

manifesta através de “uma crise geral das condições espaciais e temporais nas quais se exerce

938 Daniel Bensaïd, La Discordance des temps, op.cit., p.132. 940 Idem, p.128. 941 Idem, p.144. 942 Daniel Bensaïd, Le pari mélancolique. Métamorphoses de la politique, politique des métamorphoses. Paris:

Fayard, 1997, p.20.

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a soberania, uma crise na qual se conjugam a dilatação infinita do espaço (mundialização e

escalas intergalácticas) e a histerização de um tempo acelerado pela ronda infernal das

mercadorias”943.

Daniel Bensaïd identifica, nesse livro, pela primeira vez de forma nítida, uma “crise”

que, para ele, aparece como altamente representativa da época, e sobre a qual ele não deixará

de refletir até o final de sua vida, a saber: a crise do espaço-tempo específico da política

entendida como esfera da ação humana na história, quer dizer, como campo de intervenção nos

tempos discordantes da vida social. É a função da política como “construção do espaço (cidade,

território, nação) e codificação do tempo (horários, datas, calendários) que se encontra hoje

contestada”944. Em um mundo caracterizado pela “discordância generalizada dos espaços e dos

tempos”, na qual “as esferas monetárias, econômicas, sociais, políticas e jurídicas se entrelaçam

sem se harmonizar”, a política perde seu fundamento espaço-temporal, submetendo-se ao

círculo vicioso da reprodução mercantil945. De onde o sentimento de impotência frente a

mecanismos ocultos e poderes anônimos, aparentemente incontroláveis, como o mercado

financeiro.

A “crise de representação” não constitui senão um sintoma da crise mais profunda do

político. Mesmo a chamada “crise do marxismo” não pode ser devidamente compreendida, aos

olhos de Bensaïd, sem ser inserida no contexto desta crise da política em seu conjunto. Por sua

condição de época de transição, na qual o novo se apresenta sem que o velho tenha perecido

completamente, o momento seria até mesmo semelhante, para Bensaïd, à atmosfera europeia

entre os anos de 1830 e 1848, momento imediatamente anterior à passagem simbólica para a

modernidade burguesa. Em ambos os casos, tratar-se-ia de “momentos utópicos”, marcados

pela indefinição e pela redefinição das forças históricas. Uma vez mais, o mundo estaria “fora

dos eixos” (out of joint), conforme a imagem hamletiana retomada por Derrida.

É em meio a esse diagnóstico da crise da política como elemento da crise civilizatória

em curso que Bensaïd recupera, em chave “positiva” – no que será um dos elementos mais

controversos de sua reflexão filosófica sobre a questão – a defesa de Hannah Arendt da política

como espaço da liberdade, espaço ameaçado pelas diversas lógicas totalitárias946. “Na

contramão dos discursos ordinários contra a política ou das fugas apolíticas, um elogio da

943 Idem, p.21. 944 Idem, p.72. 945 Idem, p.54. 946 Em fragmento de 1950, Hannah Arendt não esconde seu temor de um “desaparecimento completo da política”.

Hannah Arendt, Qu’est-ce que la politique. Paris: Éditions du Seuil, 1995, p.46.

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política é mais do que nunca necessário, tal como o compreendeu Arendt, como defesa de uma

liberdade”, afirma ele947. Apesar das limitações da abordagem de Arendt (para quem a política

sobrevoa o mundo ordinário dos conflitos sociais948), assim como dos equívocos de sua crítica

ao “determinismo” de Marx, Bensaïd resgata a caracterização positiva da política como

faculdade de julgar e de agir no presente, fundamento da liberdade humana949.

Em face do “totalitarismo econômico”, assim como dos retornos étnico-religiosos às

origens identitárias, corolários da mundialização capitalista, a defesa dessa “faculdade humana”

torna-se tanto mais necessária: “Para salvaguardar a política dos perigos que a ameaçam,

tornou-se necessário restituí-la como o lugar e o momento onde se entrelaçam uma pluralidade

humana de espaços e de tempos, ponto de encontro e de cruzamento entre territórios [e] práticas

heterogêneas”, escreve o autor950. Entendida como capacidade de antecipação racional, de

projeção no e a partir do presente – ou seja, como arte da decisão humana, capaz de rememorar

o passado e, ao mesmo tempo, intervir na constituição do futuro –, a política em sentido amplo

constitui, na ótica de Bensaïd, o momento decisivo na luta pela “reabertura” de uma história

que parecia circunscrita a um presente perpétuo. Nas palavras do autor: “A dupla relação a um

passado oprimido e um futuro ameaçador funda a temporalidade especificamente política do

presente enquanto momento e lugar de escolhas”951.

Com a incorporação de Hannah Arendt, em meados da década de 1990, Bensaïd

arrematou o caráter iconoclasta de seu “elogio da política”, associando-a na construção do seu

argumento às referências de sempre: Lênin, Gramsci e, mais recentemente, Benjamin. Todos,

a despeito de suas diferenças, são mobilizados por Bensaïd como defensores do espaço-tempo

específico da política, à medida que recusam a identificá-la mecanicamente seja ao nível

econômico-social (Lênin, Gramsci e Arendt), seja à História (ou o progresso) maiúscula

(Benjamin). A reflexão de Arendt, muitas vezes dirigida contra o marxismo (acusado de

reproduzir um pouco dos dois equívocos acima mencionados) é, assim, “desviada” por Bensaïd

na direção de um marxismo heterodoxo entre cujas características encontra-se o

reconhecimento da política enquanto “momento” por excelência da transformação e/ou ruptura

com o círculo vicioso da reprodução do presente.

947 Idem, p.110. 948 Muito embora valorize a atenção “positiva” conferida por Hannah Arendt à especificidade da política, Daniel

Bensaïd sustenta que a filósofa alemã – na ânsia de protegê-la contra a dissolução no social – tende a “autonomizar”

de forma demasiada a esfera política. 949 Como diz a filósofa alemã: “A política organiza seres absolutamente diferentes considerando sua igualdade

relativa e abstraindo sua diversidade relativa”. Idem, p.43. 950 Daniel Bensaïd, Le pari mélancolique, op.cit., p.129. 951 Idem, p.71.

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Em Le pari mélancolique, esse “elogio da política” aparece ainda sob uma feição

“negativa”, como constatação de um declínio. Bensaïd apenas anuncia, nesse sentido, o que

seria um tema recorrente na sua reflexão nos anos 2000, servindo como eixo de sua interlocução

com os movimentos sociais, qual seja: a ênfase na necessidade de revitalização de uma “política

dos oprimidos”, capaz de dar vazão política às resistências sociais contra a mundialização

neoliberal, que ganharam novo fôlego global a partir da emergência do chamado “movimento

altermundialista” em 1999, em Seattle. No livro publicado em 1997, se já há menções ao

“humor melancólico” do Subcomandante Marcos e à resistência zapatista em Chiapas no

México, que irrompera espetacularmente em 1994, estes são compreendidos mais como um

sintoma das transformações no espaço-tempo da política “moderna” do que como solução para

os seus enigmas. “Quando declara não querer se lançar ao assalto do poder, o ‘subcomandante’

Marcos não se contenta em registrar uma relação de forças e em fazer da necessidade virtude.

Ele exprime também novas relações [...] consecutivas a uma mutação das formas e espaços de

poder”952.

Daí, em decorrência desse rebaixamento do horizonte histórico, ao qual apenas se

começava a fazer frente, o caráter melancólico de uma aposta que, porém, é inescapável, já

que, como dizia Pascal, estamos todos “embarcados”. “Ela é melancólica, sem dúvida, essa

aposta na improvável necessidade de revolucionar o mundo”, diz Bensaïd na última frase do

livro953. Sem nenhuma garantia de vitória, ainda mais em uma época de reconstrução das forças

sociais e políticas subalternas, a aposta na possibilidade de superação do capitalismo não

poderia ser senão melancólica, como ensinara Benjamin, sob pena de recair nas certezas

dogmáticas de sempre, divorciadas do real. Trata-se, então, de uma melancolia “ativa”,

portanto, “antirromântica”, da qual fizeram prova em maior ou menor medida figuras como

Blanqui, Trotsky, Benjamin e Mariátegui. Uma melancolia, em suma, consciente do perigo (ou

mesmo da probabilidade) da derrota.

Na contramão do otimismo que marcara a tradição trotskista, e do qual ele próprio se

alimentou nas décadas anteriores, Daniel Bensaïd reivindica a herança do que ele denomina –

em mais uma das suas fórmulas deliberadamente paradoxais (elaboradas a fim de provocar uma

espécie de “estranhamento” brechtiano) – “razão profética”. Messiânica, condicional e,

portanto, assentada nas contingências do presente, e não na projeção apocalíptica do futuro,

essa profecia constitui, em linha benjaminiana, um “aviso de incêndio” acerca da catástrofe

provável, “a não ser que...”. Assim, à diferença das esperas escatológicas em um futuro pré-

952 Idem, p.184. 953 Idem, p.297.

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definido, uma profecia “racional” significa, no entendimento de Bensaïd, um convite à ação,

sendo esta a única forma de se desviar o curso da história.

Inequivocamente benjaminiana, essa ênfase na dimensão “melancólica” da aposta na

possibilidade improvável de um outro mundo apresenta-se em Bensaïd, nessa época, como

princípio de resistência à atmosfera da época e, ao mesmo tempo, elemento de inflexão em

relação ao otimismo incurável encarnado na figura de Ernest Mandel, cuja morte em 1996

representara, simbolicamente, o fechamento definitivo de um ciclo histórico-político. A esses

elementos de natureza política, acrescenta-se a condição precária do próprio Daniel Bensaïd:

em 1995/6, mais ou menos à mesma época do falecimento de Mandel, Bensaïd esteve à beira

da morte, segundo dão conta diversos relatos. Vivendo o esgotamento de um ciclo, assim como

a lenta e incerta transição para um novo período, sem saber se estaria vivo para observar o

resultado dessa passagem, não constitui exatamente uma surpresa a inclinação de Bensaïd ao

“marxismo melancólico” à Benjamin954.

8.2. Engajamentos intelectuais

O grande movimento social que sacudiu a França em novembro/dezembro de 1995

significou, para Daniel Bensaïd, do ponto de vista intelectual, a oportunidade de aquilatar a

intervenção nos debates intelectuais franceses que ele começara a ensaiar em 1989, com a

publicação de Moi, la révolution. A ampla convergência antiliberal contra o plano de reforma

da previdência e da seguridade social proposto pelo primeiro-ministro Alain Juppé (centro-

direita) possibilitou estabelecer as bases para uma interlocução até então improvável entre

setores da esquerda política radical (como a LCR de Bensaïd) e da intelectualidade “crítica”

que, depois de mais de uma década marcada pelo declínio do engajamento dos intelectuais,

irrompera na cena política, e cuja figura de destaque foi, como se sabe, Pierre Bourdieu. Embora

bastante atingido pelos efeitos da doença, à época, Bensaïd engajou-se na construção desse

diálogo, construção para a qual ele parecia particularmente habilitado, uma vez que, além de

membro conhecido de uma organização da esquerda política “radical”, aberta aos influxos das

lutas (antiliberais) do presente, ele estava consolidando sua reputação como “intelectual” capaz

de interpelar as questões do debate “público” francês.

Em dezembro de 1995, Bensaïd foi uma das figuras centrais da redação e divulgação do

“apelo dos intelectuais em apoio ao movimento grevista”, dentre cujos signatários

954 No Brasil, Leandro Konder dedicou um pequeno e interessante livro ao “marxismo melancólico” de Walter

Benjamin. Cf. Leandro Konder, Walter Benjamin, o marxismo da melancolia. Rio de Janeiro: Campus, 1989.

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encontravam-se, além de Bourdieu, nomes como os sociólogos “bourdieusianos” Luc Boltanski

e Bernard Lahire, o filósofo Etienne Balibar e a atriz Marina Vlady. Em seguida, o manifesto

foi assinado por Michael Löwy, Jacques Bidet, Jacques Derrida, Alain Bihr, Régis Debray,

Philliphe Corcuff, Michel Husson, dentre inúmeros outros e outras. Para os signatários do

manifesto, em face da “ofensiva lançada pelo governo”, havia chegado o momento de “afirmar

publicamente nossa plena solidariedade com aquelas e aqueles que, há algumas semanas,

entraram em luta ou se preparam para fazê-lo”.

Mais ainda, lê-se no texto: “Nós nos reconhecemos nesse movimento que não tem nada

de uma defesa de interesses particulares e menos ainda de privilégios, mas sim, efetivamente,

uma defesa das conquistas mais universais da República”. Nesse sentido, o movimento coloca

a questão de saber “em qual sociedade nós queremos viver”, e, mais, em qual Europa: “deve

ela ser a Europa liberal que nos é imposta, ou a Europa cidadã, social e ecológica que nós

queremos?”. Sobre essa base “programática”, os intelectuais signatários afirmam ao final do

manifesto: “Conclamamos todos nossos concidadãos a se associar a este movimento e à

reflexão radical que ele estimula sobre o futuro de nossa sociedade; vos conclamamos a apoiar

os grevistas material e financeiramente”955. No início de 1996, com Bourdieu novamente

ocupando um espaço de destaque, muitos dos signatários lançaram o chamado aos “États

généraux du mouvement social”, encontro de intelectuais para discutir os rumos do grande

movimento social que irrompera no ano anterior.

Nesse processo de diálogo e aproximação à intelectualidade crítica, no âmbito da

emergência dos movimentos sociais antiliberais e, mais tarde, altermundialistas, Daniel

Bensaïd contou com a importante mediação de Philliphe Corcuff, o qual havia conhecido em

1993 e com o qual estabeleceria uma interlocução frutífera até o final da vida. Cientista social

de formação, professor no “Instituto de Estudos Políticos” (Science Po) de Lyon, herdeiro

heterodoxo de Bourdieu e de Boltanski, discípulo de Merleau-Ponty e leitor de Wittgenstein,

“socialdemocrata libertário” (como ele se define) muito mais que marxista, cronista do jornal

satírico Charlie Hebdo, Corcuff (que entrou na LCR em 1999) se interpôs como uma passarela

955 Cf. “Appel des intellectuels en soutien aux grévistes”. Disponível em: http://www.liberation.fr/cahier-

special/1998/01/12/appel-des-intellectuels-en-soutien-aux-grevistes_544821. O retorno das “grandes petições”

intelectuais não ocorreu, porém, apenas contra os planos de reforma de Juppé. Inúmeros outros intelectuais,

articulados em torno da revista Esprit e da Fundação Saint-Simon, lançaram um manifesto, antes mesmo daquele

da esquerda antiliberal, em defesa das reformas propostas pelo governo, intitulado “Contre l'archaïsme. Pour une

réforme de fond de la Sécurité sociale”. Dentre os signatários, encontram-se inúmeras figuras saídas da esquerda,

e da qual ainda se reivindicavam, como Alain Touraine, Jacques Julliard, Jacques Le Goff, Paul Ricoeur, Pierre

Rosanvallon, dentre outros.

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permitindo a Daniel Bensaïd um acesso à dimensão mais politicamente engajada e radicalizada

de intelectuais acadêmicos como Bourdieu e seus escudeiros.

Não parece um acaso o fato de que boa parte dos textos de Bensaïd sobre a questão do

“engajamento” dos intelectuais dessa época (segunda metade dos anos 1990) tenha sido

redigido junto com Corcuff. É o caso, por exemplo, do texto “Le travail intellectuel au risque

de l’engagement”, publicado em 1998 na revista Agone, em dossiê sobre “engajamento e

neutralidade do conhecimento”, texto que constitui um diálogo implícito com os intelectuais

universitários “críticos”, que haviam se engajado no apoio ao movimento social grevista em

1995956. Tomando como ponto de partida a questão do “engajamento dos intelectuais”, que

voltou à cena em dezembro de 1995, simbolizada na figura de Bourdieu, os autores propõem,

nesse texto, um deslocamento em relação à forma habitual de se abordar o problema. Segundo

Bensaïd e Corcuff, todos, sejamos ou não intelectuais, estamos “engajados”. Embora portadores

de um “capital” específico, os intelectuais não gozam de nenhum privilégio a este respeito, ao

contrário do que supõe o mito escolástico do intelectual cujo acesso à universidade decorreria

unicamente do seu próprio conhecimento.

Nesse contexto, uma das condições para um bom “engajamento” dos intelectuais é o

abandono de toda arrogância intelectualista, a fim de deixar-se inserir, com seus conhecimentos

específicos, em uma ação coletiva transformadora. “Não como profetas, mas no meio dos

outros, com os outros, em interação com os outros”957. Assim os intelectuais lograriam manter

resguardada a autonomia relativa de suas produções de conhecimento e, ao mesmo tempo,

renunciariam a qualquer papel de vanguarda e/ou “expressão” teórica do ponto de vista da

classe ou do movimento social. Para isso, faz-se necessário, na opinião dos autores, o abandono

de qualquer pretensão à autossuficiência por parte das ciências sociais e da filosofia. Em diálogo

crítico com Bourdieu e sua ênfase na superioridade científica da sociologia, Bensaïd e Corcuff

afirmam que, a despeito do fato de terem conquistado certa autonomia, as ciências sociais não

“são completamente independentes”, não podendo responder sozinhas, “com os instrumentos

que eles forjaram, a todas as questões colocadas por suas análises”.

Os autores sustentam, então, a necessidade de um diálogo entre as ciências sociais e a

“filosofia política emancipadora”: “os recursos da filosofia podem ajudar a clarificar suas

lacunas axiológicas, assim como as ciências sociais podem ajudar a filosofia a melhor delimitar

956 Daniel Bensaïd & Philliphe Corcuff, “Le travail intellectuel au risque de l’engagement”, in: Agone, (Marseille),

n° 18-19, janeiro de 1998 (dossiê “ Engagement et neutralité du savoir”). 957 Idem, s/p.

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o domínio de validade de enunciados excessivamente gerais”. Se, por outro lado, inscrevendo-

se em uma “perspectiva de emancipação social”, as ciências sociais não podem evitar o contato

com uma “filosofia política emancipadora”, esta, por sua vez, não pode ser apenas uma

“filosofia universitária”, uma “filosofia de experts”: ela deve “imperativamente se alimentar

dos combates passados e presentes dos dominados, tanto quanto de suas próprias análises”958.

Em vários dos seus artigos do período, Bensaïd dedicou-se à reflexão sobre a questão

da relação entre intelectual e política, exprimindo posições que, em grande medida, servem

como legitimadoras de sua própria condição. Em outros termos, sua reflexão sobre os

intelectuais constitui, no limite, uma autorreflexão, enquanto “intelectual militante” ou

“militante intelectual”. Direta ou indiretamente, por força do contexto político da época, o

interlocutor inescapável era Pierre Bourdieu, símbolo do “renascimento” dos intelectuais

engajados à esquerda e, doravante, uma das principais figuras, na França, do amplo movimento

social de resistência à mundialização liberal. Papel que se amplificou em 1998 com o apelo do

coletivo Raisons d’agir, liderado por Bourdieu, “Pour une gauche de gauche”, que lhe valeu na

mesma proporção críticas violentas vindas de todo o espectro político e intelectual. Em especial

após a publicação do livro Le “décembre” des intellectuels français, redigido por discípulos de

Bourdieu959, no qual se abordava explicitamente as clivagens políticas que estruturavam o

campo intelectual, o sociólogo francês foi alvo de ataques virulentos tais como os da revista

Esprit, que lhe dedicou um número especial com o título Le populisme version Bourdieu ou la

tentation du mépris960.

Ainda que criticando a ilusão, presente em Bourdieu e em seus discípulos, de um

“partido dos intelectuais”, ancorado na autonomia e no monopólio da verdade científica, Daniel

Bensaïd não hesitou em defender publicamente o engajamento “tardio” do sociólogo francês

diante das críticas e acusações das quais passou a ser objeto após 1995. Em uma tribuna

publicada no jornal Libération, por exemplo, redigida ao lado de Corcuff, Bensaïd se opõe

àqueles que, contrários à militância intelectual de Bourdieu, atacam-o através de subterfúgios

pouco nobres, “diabolizantes”, acabando por estimular uma “violência cheia de ressentimentos”

alimentados no interior do microcosmo intelectual. Retoricamente, os autores se perguntam:

“As acusações ultrajantes contra Pierre Bourdieu não são elas também a expressão de um

958 Idem, s/p. 959 Julien Duval, Christophe Gaubert, Frédéric Lebaron, Dominique Marchetti e Fabienne Pavis. 960 Olivier Mongin e Joël Roman, “Le populisme version Bourdieu ou la tentation du mépris”. in: Esprit, n.244,

julho 1998.

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narcisismo recalcado, uma espécie de ódio de si, tão frequentemente acoplado ao amor de si

que assola os meios intelectuais?”961.

Aos olhos de Daniel Bensaïd, as críticas a Bourdieu são proporcionais à referência que

ele se tornou para a esquerda antiliberal que emergiu em 1995, uma esquerda situada à esquerda

do Partido Socialista – o qual havia, em 1997, após a vitória nas eleições legislativas, assumido

a chefia do governo, transformando Lionel Jospin em primeiro-ministro, em coabitação com a

direita, cujo principal líder, Jacques Chirac, continuava na presidência. Em grande medida,

visando Bourdieu, o verdadeiro alvo seria essa “esquerda de esquerda” em ascensão, cujo

desenvolvimento poderia transformar radicalmente as condições do cenário político francês. “É

mais fácil levar a cabo uma execução simbólica de Bourdieu do que enfrentar com seriedade a

legitimidade dos movimentos sociais que impedem a esquerda governamental de se felicitar e

de se apresentar como a esquerda única”962. Segundo Bensaïd, “se ele [Bourdieu] e seus

discípulos às vezes parecem tentados a se comportar como um Politburo fantasma de um

partido intelectual virtual, essa tentação é proporcional às renúncias e carências de uma

esquerda governamental que, das privatizações à adesão à Europa monetária e liberal, torna-se

uma esquerda do centro”963.

Do ponto de vista político, o engajamento de Bourdieu contra a “mercantilização

neoliberal” significava, para Bensaïd, a abertura de uma janela de oportunidade à esquerda do

PS, recusando tanto o social-liberalismo quanto a nostalgia nacional-republicana964. Nesse

cenário, Bourdieu aparece, na ótica de Bensaïd, “como um revelador”, um crítico da Europa

liberal de Maastricht que não é contrário ao projeto europeu, um crítico do “capital estatal” que

não hesitou em “tomar posição para a defesa do serviço público e contra a

desregulamentação”965. Por essas razões, Bensaïd revelou-se, entre 1995 e 1998/9, um dos mais

insistentes defensores de Bourdieu no espaço público/midiático francês: em uma entrevista de

março de 1999, o jornalista da revista Politis chega mesmo a dizer que Bensaïd se tornou nas

mídias “o defensor reconhecido de Bourdieu”966.

961 Daniel Bensaïd & Philliphe Corcuff, “Le diable et Bourdieu”, 1998, op.cit., s/p. 962 Daniel Bensaïd & Philliphe Corcuff, “Le diable et Bourdieu”, op.cit., s/p. 963 Daniel Bensaïd, “Bourdieu : les couacs de l’imprécateur. Débat avec Olivier Mongin, directeur d’Esprit”, in:

Le Nouvel Observateur, n° 1765, 3 de setembro de 1998. 964 Idem, s/p. 965 Daniel Bensaïd, “Bourdieu est un révélateur. Entretien avec Daniel Bensaïd”, in: Politis, n.540, 18 de março de

1999. 966 Idem, s/p.

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Do ponto de vista propriamente intelectual, por seu turno, através de Bourdieu, era todo

um diálogo que se abria entre marxistas “abertos”, sociólogos críticos e altermundialistas

libertários. Nesse processo, Daniel Bensaïd teve papel importante, o que acabou por projetá-lo

ainda mais no campo intelectual e no “espaço público” francês, ao mesmo tempo em que a

organização à qual pertencia (LCR) passava por um processo de renovação substancial. É nesse

contexto que se deve compreender a criação, por iniciativa do próprio Bensaïd, da revista

Contretemps, em 2001, cujo principal objetivo era exatamente estabelecer as bases de diálogo

entre o conjunto da esquerda intelectual francesa afinada com os movimentos de resistência à

mundialização liberal dentro e fora da França.

Canal de expressão das “correntes de radicalidade crítica que novamente emergiram nos

movimentos sociais, nas experiências alternativas ou na pesquisa universitária não-

conformista”, o objetivo da revista era, segundo explicam Bensaïd e Corcuff no editorial do

primeiro número, tornar-se um “espaço de trocas e de debates”, em um momento em que “as

lutas contra a mundialização mercantil chegam a um ponto de virada, no qual as recusas buscam

encontrar respostas, como o testemunha a recente iniciativa de Porto Alegre”967. Embora

animada essencialmente por militantes oriundos da LCR, tal como os próprios Bensaïd e

Corcuff968, a revista pretendia tornar-se um lugar de encontro entre “pensamentos críticos de

culturas e tradições diferentes”, entre “círculos militantes e pesquisas universitárias”, entre

“gerações formadas em contextos políticos diferentes” e, enfim, de “encontro com trabalhos

estrangeiros desconhecidos na França”969.

Não constitui um acaso o fato de que o dossiê do primeiro número, intitulado “O retorno

da crítica social. Marx e as novas sociologias”, organizado por Corcuff, tenha sido o resultado

de uma “jornada de estudos” ocorrida em outubro de 2000, sobre as “relações entre os marxistas

e as sociologias críticas”. Participaram dos debates filósofos, sociólogos e outros acadêmicos

se reivindicando de uma referência “marxista aberta” (além de Bensaïd, aparecem nomes como

Mateo Alaluf, Samuel Johsua, Pierre Rolle, Jean-Marie Vincent) e sociólogos ou historiadores

representantes das “novas ciências sociais críticas”, tais como Stéphane Beaud, Philippe

967 Daniel Bensaïd & Philippe Corcuff, “ContreTemps, présentation de la revue. À contretemps, au carrefour des

radicalités”, in: Contretemps, n.1, Paris: Textuel, 2001, p.7, 8. 968 No número inaugural, o comitê de redação da revista era composto por Gilbert Achcar, Christophe Aguiton,

Antoine Artous, Daniel Bensaïd, Carine Clément, Philippe Corcuff, Léon Crémieux, Jacques Fortin, Janette Habel,

Michel Husson, Samuel Johsua, Thiérry Labica, Ivan Lemaître, Claire Le Strat, Michaël Löwy, Lilian Mathieu,

Willy Pelletier, Marie Pontet, Alain Rebours, Catherine Samary, Francis Sitel, Josette Trat, Enzo Traverso,

Alexandra Weisgal. 969 Idem, p.8.

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Corcuff, Bernard Lahire, Gérard Mauger, Dominique Pestre, Michel Pialoux, boa parte dos

quais oriundos da tradição “bourdieusiana”.

Na jornada de estudos, organizada pela revista Critique Communiste (revista teórica da

LCR)970, em intervenção reproduzida no primeiro número, com o título “Exploração capitalista

e pluralidade das dominações. Crítica marxista e sociologias críticas”, Daniel Bensaïd

anunciava um campo comum de reflexão, para além das divergências inevitáveis e salutares.

Ao lado do texto de Corcuff – “Marx et les nouvelles sociologies: les voies d’un dialogue dans

l’après-décembre 1995” –, a intervenção de Bensaïd clarifica os termos nos quais, segundo ele,

o diálogo inédito entre marxismo aberto e sociologia crítica poderia acontecer, diálogo que se

tornou possível após os acontecimentos de 1995971.

Para Corcuff, tal diálogo deveria impulsionar, agora que as condições estavam postas,

uma espécie de oxigenação recíproca entre marxismo e sociologia crítica, revelando tanto seus

limites quanto seus pontos de convergência até então desconhecidos ou subestimados. “Longe

das veleidades hegemônicas sobre o pensamento crítico de muitos dos marxistas de outrora,

mas também das tentações cientificistas da sociologia, torna-se possível então redescobrir a

pluralidade das radicalidades intelectuais”972. Se assim fosse, tanto o marxismo quanto a

sociologia poderiam somar forças na direção do reconhecimento da pluralidade que envolve as

relações sociais, com sua pluralidade de formas de dominação e de esferas sociais autônomas

(ou “campos”, como diria Bourdieu).

Daniel Bensaïd, por sua vez, embora compartilhe do mesmo quadro de preocupações

gerais de Corcuff, insiste na centralidade renovada de aspectos “clássicos” de uma certa tradição

marxista, tal como, por exemplo, a necessidade de articulação e totalização analítica das esferas

plurais de dominação (e de resistência), articulação que pressupõe a visualização de um “fio

condutor” que perpassa as diferentes esferas sociais: a luta de classes, constituída não apenas

no âmbito das relações de produção, senão também nos níveis da circulação e da reprodução

global do capital. Aos olhos de Bensaïd, conforme observamos, no capitalismo, é o próprio

capital o principal agente unificador das diversas esferas sociais, o que implica a necessidade

970 O título da jornada de estudos era “Marx, marxismes et sociologies critiques: regards croisés”. 971 No momento em que as diferentes vertentes do marxismo tinham forte presença na esquerda intelectual, até

meados da década de 1970, as sociologias críticas “não-marxistas”, como aquela de Pierre Bourdieu, batalhavam

para conquistar uma autonomia intelectual, ancorada em critérios próprios de validade científica, relativamente

impermeáveis às normas cognitivas ditadas pelo campo político. De onde o distanciamento, quando não oposição

aberta, entre as duas formas de análise crítica da sociedade capitalista. Cf., a propósito, as considerações de

Philiphe Corcuff no texto “Marx et les nouvelles sociologies: les voies d’un dialogue dans l’après-décembre 1995”,

in: Contretemps, n.1, Paris: Textuel, 2001, p.15. 972 Idem, p.16.

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de uma reativação da “crítica da economia política”, na contramão de todo determinismo

econômico. A lógica do capital atravessa os diferentes “campos”, articulando-os de forma

complexa em uma totalidade sobredeterminada e formada por espaços e temporalidades

discordantes.

Por isso mesmo, para Bensaïd, se “a teoria da pluralidade dos campos (e dos capitais)

pode sem dúvida ajudar a pensar a pluralidade dos modos de dominação específicos e a

discordância dos tempos (os fenômenos de a-sincronia ou de não-contemporaneidade)”, todos

estes campos, com suas formas específicas de capital e de dominação, “não cumprem um papel

equivalente”973. Se, de fato, não há uma racionalidade (ou essência) única pressupondo todos

os campos, o que indica a existência de vários “regimes de verdade” (científica, política etc.),

nem por isso inexiste alguma articulação hierarquizante entre eles, implicando uma abordagem

“totalizante”, não no sentido de uma totalidade abstrata, sem mediações e ancorada em

pressupostos substancialistas, mascarando formas de dominação, mas sim no de uma

totalização efetivamente dialética, em outros termos, uma “totalização aberta”, como disse

Lefebvre, uma “totalização destotalizada”, conforme Sartre, uma “totalidade negativa”,

segundo a acepção adorniana, ou ainda, como sugeriu o próprio Bourdieu, uma “totalização

hipotética” ou “condicional”974.

Intervindo nessas discussões, Daniel Bensaïd adentrava no âmbito dos debates

intelectuais contemporâneos sobre o impacto das transformações do capitalismo recente no

pensamento crítico, que se viu obrigado a renovar – à luz do presente – o sentido de categorias

como universalidade, totalidade, razão, progresso etc. Esses temas, que estão presentes em

Benjamin, remetem diretamente aos debates epistemológicos e políticos inaugurados pela

emergência das teorias e/ou filosofias assim chamadas “pós-modernas”. Pensado como um

elogio da resistência diante da resignação estimulada pela retórica pós-moderna, o livro Os

irredutíveis. Teoremas da resistência para o tempo presente, publicado por Bensaïd em 2001,

sintetiza suas tomadas de posição política e intelectual no contexto desse debate975.

Neste pequeno opúsculo, dividido em cinco “teoremas”, o autor procede a um só tempo

à crítica do discurso pós-moderno (e, consequentemente, à defesa das potencialidades

emancipatórias vinculadas à razão), e ao reconhecimento de que muitas das questões postas por

973 Daniel Bensaïd, “Exploitation capitaliste et pluralité des dominations. Critique marxiste et sociologies

critiques”. In: Contretemps, n.1, Paris: Textuel, 2001, p.32 e p.45, respectivamente. 974 Cf. Idem, p.43. 975 Daniel Bensaïd, Os irredutíveis. Teoremas da resistência para o tempo presente. São Paulo: Boitempo

Editorial, 2008.

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este discurso traduzem, embora de forma “deslocada”, desafios e preocupações legítimas,

impondo, portanto, a necessidade de uma renovação heterodoxa do marxismo. Malgrado seus

efeitos político-ideológicos profundamente deletérios à esquerda, os debates sobre a “pós-

modernidade” sinalizariam uma janela de oportunidade para o necessário “acerto de contas” do

marxismo com aspectos problemáticos que percorreram parcela considerável das suas

expressões concretas. De fato, diz Bensaïd, “o jargão filosófico da pós-modernidade realmente

significa, em suas versões dominantes, um adeus à luta de classes e ao projeto de emancipação

comunista”. No entanto, completa ele, “um marxista heterodoxo e crítico deveria levar a sério

sua interpelação, insistindo em novos encargos relativos à dialética do universal e do singular,

da diferença e da alteridade”976.

Somente assim seria possível reativar uma “dialética da razão irredutível ao espelho

quebrado da pós-modernidade”, como ele defende no quinto teorema977. Diante das loucuras

nas quais o século XX foi pródigo, “não se trata de se recolher à Linha Magnot do racionalismo

clássico e ao seu ideal de verdade, mas de encarar o desafio da pós-modernidade admitindo sua

parte pertinente”; com isso, “as categorias razão, progresso, história ou universalidade têm tudo

a ganhar ao aceitar a prova da catástrofe e do desastre”978. Para Bensaïd “não se trata de

conservar piedosamente um capital doutrinário, mas de enriquecer e transformar uma visão de

mundo à prova de práticas renovadas”979.

Nos últimos anos da década de 1990, e nos primeiros da década seguinte, Daniel Bensaïd

reforçou o tema da “resistência” em face do niilismo pós-moderno, que legitima e racionaliza

o círculo da repetição infernal de um presente perpétuo. Além de Os irredutíveis. Teoremas da

resistência para o tempo presente (2001), publicou nessa época mais dois livros em cujos títulos

ou subtítulos encontra-se a palavra resistência: Éloge de la résistance à l’air du temps (1999) e

Résistances. Essais de taupologie générale (2001)980. Em Os irredutíveis, Bensaïd termina com

976 Idem, p.34. 977 Em uma resenha do livro, Michael Löwy afirma – definindo pela negativa (e de modo um pouco simplificador)

a sua divergência com Bensaïd sobre o assunto: “Este teorema é o que me suscita mais reservas. A defesa de Daniel

Bensaïd do racionalismo, da modernidade e das luzes contra o ‘reencantamento do mundo’ me parece um pouco

esquemática”. Michael Löwy, “Les irréductibles”, disponível em: http://danielbensaid.org/Les-

Irreductibles,691?lang=fr. Ora, embora defenda a “dialética da razão” contra o “irracionalismo new-age” da maioria dos discursos da pós-modernidade, Bensaïd passa longe de uma defesa simplista “do racionalismo, da

modernidade e das luzes” contra o “reencantamento do mundo”, como sugere Löwy. Se assim fosse, difícil seria

entender o significado de sua interpretação de Benjamin, sua defesa de uma “razão messiânica” ou da necessidade

de uma “aposta melancólica”; assim como entender as próprias afinidades entre Bensaïd e o próprio Löwy, embora

por certo a ótica do primeiro seja mais racionalista e menos romântica se comparada à do segundo. 978 Daniel Bensaïd, Os irredutíveis, op.cit., p.23. 979 Idem, p.2 980 Daniel Bensaïd, Éloge de la résistance à l’air du temps. Conversation avec Philippe Petit. Paris: Textuel, 1999

e Résistances. Essais de taupologie générale. Paris: Fayard, 2001.

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um chamado à resistência e à indignação diante das “águas mornas da resignação consensual”:

para além da modernidade e da pós-modernidade (“os dois polos magnéticos da acumulação do

capital”), resta-nos a “força irredutível da indignação”, por onde tudo começa, e um novo

possível pode tornar-se real.

Em Résistances. Essais de taupologie générale, este elogio da resistência

“intempestiva” se apresenta sob a égide da alegoria da toupeira, esse pequeno mamífero discreto

que simboliza o trabalho subterrâneo e paciente à espera do acontecimento. Pois “o eclipse do

acontecimento não elimina o obscuro trabalho de resistência no qual se preparam,

discretamente, quando tudo dorme, novas emergências”. Obstinada, “a toupeira renasce

incansavelmente de suas próprias derrotas”981. Inspirando-se no “discurso filosófico da

resistência” elaborado por Françoise Proust982, Bensaïd concebe a resistência como o começo,

o primeiro passo de uma revolta propriamente política, movida pela “paixão messiânica de um

mundo justo”. Assim, a relação entre resistência e acontecimento permite “inscrever na ordem

do dia uma ‘política profética’, em vez de dissolver a política no acontecimento milagroso de

um acontecimento sem história”983. É nesse sentido que, como diz Michael Löwy, “o espírito

de resistência [tal como formulado por Bensaïd] se inspira a um só tempo na paciência do

marrano e na impaciência messiânica de Franz Rosenzweig et Walter Benjamin”984.

O “novo espírito do comunismo” nascerá exatamente, segundo Bensaïd, das

“resistências reais à ordem intolerável das coisas, às injustiças e ao seu desencantamento”,

conforme ele escreve em Le sourire du spectre, livro publicado em 2000, e cujo título se inspira,

uma vez mais, nos “espectros de Marx” de Derrida985. Diante das catástrofes do século que

terminava, fazia-se necessário, diz Bensaïd, “começar por resistir ao irresistível, e por decretar

o estado de alerta no limiar da porta estreita onde, a todo instante, pode surgir o espectro

sorrindo”986. Na época, o “espectro sorridente” do comunismo revelava-se antes de tudo em seu

“momento negativo”, por assim dizer, como ideia que se projeta na e a partir da resistência,

981 Daniel Bensaïd, Résistances..., 2001, op.cit., p.16, 17. 982 Cf. Françoise Proust, De la résistance. Paris: Le Cerf, 1997. Ver também o livro L’Histoire à contretemps.

Paris: Le Cerf, 1994, que exerceu uma influência considerável em Daniel Bensaïd e suas reflexões sobre as “discordâncias dos tempos”. 983 Idem, p.45. 984 Michael Löwy, “Résistances”, disponível em: http://danielbensaid.org/Resistances,697?lang=fr. 985 Daniel Bensaïd, Le sourire du spectre. Nouvel esprit du communisme. Paris: Éditions Michalon, 2000. 986 Idem, p.231. O grifo na fórmula “resistir ao irresistível” é proposital, pois se trata exatamente de uma expressão

alcunhada por Françoise Proust. Não por acaso, Daniel Bensaïd utilizou-a para intitular a entrevista que fez com a

filósofa francesa em outubro de 1998, publicada dois anos mais tarde. Cf. Daniel Bensaïd, “Résister à l’irrésistible

– Entretien avec Françoise Proust”. In: Jean Marc Lachaud (org), Art, culture et politique. Paris: PUF, 2000,

pp.149-158.

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entendida como fidelidade ao passado dos oprimidos e como primeiro passo para um recomeço

necessário em meio à derrocada da aliança estratégica entre socialismo e crença no progresso.

Assim como os judeus sobreviveram à destruição do Templo e à expulsão da Espanha, o espírito

do comunismo sobreviverá ao triunfo atual da mundialização capitalista, desde que tenha

capacidade de se renovar à luz dos novos processos sociais e políticos de resistência.

A partir de meados da década de 1990, particularmente na virada para os anos 2000,

Daniel Bensaïd desenvolveu, portanto – como bem observa Stavros Tombazos –, “uma teoria,

uma estratégia, uma ética e uma estética da resistência. Ele não gostava muito de se caracterizar

como ‘filósofo’, mas ele é o filósofo da resistência à época neoliberal e pós-soviética”987. Ao

lado de figuras como Alain Badiou e/ou Françoise Proust, Bensaïd tornou-se um intelectual em

resistência, assim sendo reconhecido no campo intelectual e no espaço “público” francês: um

intelectual que, mantendo-se discretamente como a principal cabeça pensante de uma

organização originalmente “trotskista”, gabaritou-se como parte da ala esquerda da nova

intelectualidade crítica francesa.

Desde então, Bensaïd espreitou-se em um equilíbrio instável, pleno de tensões, entre o

“político” que não deixou de ser e o intelectual no sentido forte que, goste ou não, ele se

transformou, e para cujo “êxito” era imprescindível um mínimo de “distância” em relação às

contingências da vida política. Vários autores, em seus textos-homenagens e/ou entrevistas

sobre Daniel Bensaïd, abordam essa questão da relação entre o político e o intelectual, talvez

pela singularidade do caso: dirigente político de uma organização trotskista, cujas tentações

sectárias são conhecidas, Bensaïd transformou-se a partir dos anos 1990 em intelectual refinado,

capaz de abordar com desenvoltura – revelando seus impactos político-ideológicos concretos –

autores e querelas estranhas ao quadro de interesses dos marxistas militantes. Se quase todos

observam a dimensão inescapavelmente política da filosofia de Bensaïd, destacam também,

quase sempre, simultaneamente, a especificidade do intelectual, consciente da necessidade de

uma relação mediada e complexa entre “teoria” e “prática”.

Assim, por exemplo, o célebre filósofo René Schérer – professor em Vincennes e,

depois, em Saint-Denis – afirma que, quando leu tardiamente os trabalhos de Daniel Bensaïd,

no momento em que fora convidado a dirigir a sua tese de habilitação (2001), descobriu uma

“grandeza filosófica que a atenção demasiadamente direcionada à atividade política [do

987 Stavros Tombazos, “Daniel Bensaïd et l’éloge de la résistance”, in: Lignes, 32, op.cit., p.161. Originário do

Chipre, Tombazos foi aluno de Bensaïd em Saint-Denis (Paris VIII). Depois, tornou-se importante interlocutor do

filósofo francês sobre a questão do tempo em O Capital de Marx.

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Bensaïd membro da LCR] havia deixado submersa”. Para Schérer, embora não se deva

estabelecer, em Bensaïd, “uma distinção exclusiva entre política e filosofia”, uma vez que a sua

“filosofia [...] é de parte a parte política”, é importante destacar que “essa política é apoiada,

sustentada por uma filosofia; ele é ‘o filósofo’ de sua política, e essa filosofia é a justificação,

a lógica de suas escolhas, de seus engajamentos”988. Por isso, em Bensaïd, o intelectual não se

submete por inteiro às contingências da política, embora dela não esteja jamais completamente

apartado.

De fato, como reconhecia o próprio Bensaïd, o ritmo da política e aquele da reflexão e

da pesquisa teórica não coincidem. Eles não são incompatíveis, mas são diferentes, ancorados

que estão em temporalidades distintas. Essa tensão entre teoria e prática, à diferença da

proclamação abstrata de sua unidade, encontra-se no centro da “prática teórica” de Bensaïd a

partir da década de 1990, conforme observaram, em textos diferentes, Stathis Kouvélakis e

Isabelle Garo989. Nas palavras de Stathis Kouvélakis: “Figura chave, desde 1968, da política

revolucionária, acima de tudo na França [...], ele era também um intelectual no sentido habitual

da palavra, um universitário autor de dezenas de livros, com uma forte visibilidade no espaço

público do seu país”990. Foi no contexto dessa tensão inevitável, que remete às condições de

possibilidade da época, que Daniel Bensaïd “reinventou”, ao seu modo singular, “uma figura

do intelectual revolucionário em uma situação inédita, marcada pelo profundo recuo das forças

que moldaram os momentos emancipadores do século XX”991.

Em janeiro de 2001, bem tardiamente, se se toma em conta a relevância intelectual que

já havia conquistado à época, Daniel Bensaïd apresentou sua tese de habilitação na

Universidade Paris VIII, onde já era professor (maître de conférences) há mais de uma década.

Então com 54 anos, ele poderia enfim orientar teses de doutorado em filosofia, o que faria

proficuamente até sua morte em 2010. Para ser o supervisor e presidente do jury, Bensaïd

convidou René Schérer, especialista, entre outros temas, na questão das utopias, e na obra de

Charles Fourier em particular. Professor de Vincennes desde a formação do Centro

Universitário Experimental, no pós-68, ao lado de personalidades como Gilles Deleuze, Michel

Foucault, Félix Guattari ou François Châtelet, Schérer tornou-se um dos mais importantes

filósofos franceses no último quarto do século XX.

988 René Schérer, “Grandeur de Bensaïd”, in: Lignes, n.32, op.cit., p.156. 989 Stathis Kouvélakis, “Daniel Bensaïd: la dialectique du temps et de la lutte”, p.59, 60 e Isabelle Garo, “Un

marxisme profane. Daniel Bensaïd, penseur de la propriété et de la démocratie”, in: Lignes, n.32, op.cit., p.39, 40. 990 Stathis Kouvélakis, “Daniel Bensaïd: la dialectique du temps et de la lutte”, Lignes, n.32., 2010, p.59. 991 Idem, p.60.

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Companheiro de Guy Hocquenghem, de quem foi professor, Schérer foi militante por

algum tempo da Frente Homossexual de Ação Revolucionária (FHAR). Por sua defesa de uma

revisão da legislação sobre a sexualidade dos menores de menos de quinze anos, na década de

1970, no quadro da qual não hesitou em sustentar a legitimidade da pedofilia, sofreu duros

ataques nos meios intelectuais e midiáticos, além de ter sido implicado judicialmente992. Os

outros membros do jury da tese de Bensaïd eram os filósofos: 1) Jacques Derrida, então diretor

de pesquisas na EHESS; 2) Georges Labica, especialista em filosofia política marxista e

professor emérito da Universidade Paris X (Nanterre); 3) André Tosel, estudioso da história do

marxismo, professor da Universidade de Nice; e, enfim, 4) o “sociólogo” Michael Löwy, agora

igualmente “cúmplice” na ascensão acadêmica tardia do amigo.

Essa nova inserção acadêmica acentuava ainda mais a tensão entre reflexão teórica e

prática militante, alçando-a a um novo patamar, cuja ascensão seria proporcional ao aumento

irresistível de sua consagração intelectual. Mas, se para Kouvelakis ou Garo, Bensaïd

notabilizou-se precisamente pela capacidade de aquilatar em termos positivos e estimulantes

essa tensão, para alguém como Alain Brossat, ex-militante da JCR/LC/LCR, continuando a

pensar com a cabeça (potencialmente sectária) do político, Bensaïd teria angariado sua ascensão

filosófica “apenas” a fim de transformá-la em uma espécie de base de apoio para a legitimação

de uma perspectiva política (revolucionária) então em declínio. Assentada em concessões

meramente táticas, o filósofo não existiria, em Bensaïd, de acordo com a leitura de Brossat,

senão como “executor testamentário” da verdade de uma tradição política militante: a herança

trotskista.

Na ótica de Brossat, amigo próximo de Bensaïd nos anos 1960 e 1970, e grande

conhecedor de sua personalidade (suscetível, portanto, aos ressentimentos de camaradas que se

separaram nos planos político e pessoal), Bensaïd projetou-se, em particular a partir da década

de 1990, como “autoridade erudita”, em outros termos, como “administrador de bens do corpus

marxiano e marxista, colocando sua autoridade intelectual a serviço da ação e das ambições do

seu partido”. Com sua “hiperexposição” no espaço público francês, Bensaïd teria assumido de

bom grado o papel de “intelectual marxista da LCR/NPA”, cuja construção resultava da

“conjunção do interesse político de alguns (sua comunidade política) e dos efeitos de conjunto

de dispositivos como os da imprensa, dos medias, da edição, que promovem nomes de autores,

992 Sobre a obra e a trajetória de Schérer, cf. o livro Maxime Foerster, Penser le désir. À propos de René Schérer.

Saint-Martin-de-Londres: Éditions H&O, 2007.

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funcionando para a edição, o mercado e o público como fetiches e como marcas de

distinção”993.

Nesse “jogo” entre o militante político e o filósofo, Bensaïd buscava uma legitimação

recíproca, na qual o primeiro lustrava a condição “autoral” do segundo, enquanto este conferia

àquele uma áurea importante para a conservação da herança em perigo. Assim, a despeito da

retórica de “abertura” aos novos desafios do mundo, a obra “intelectual” de Bensaïd a partir

dos anos 1990 seria toda ela percorrida por um dogmatismo new look, aparentemente “pós-

trotskista”. Segundo Brossat, trata-se essencialmente, a obra “tardia” de Bensaïd, de “uma

filosofia de guardião do templo – uma posição cujo fundamento se detecta facilmente, quando

a época é tão reacionária como nosso presente, mas cuja singularidade situa-se no fato de

acompanhar o refluxo, de organizar a retirada nas melhores condições possíveis”. Daniel

Bensaïd seria mesmo “o agente mais intransigente dessa perseverança ‘leninista’ a

contratempo”994. Daí, de acordo com Brossat, a sua ignorância deliberada e oportunista das

“capacidades de domesticação da postura crítica, até mesmo ‘subversiva’, por parte dos

aparelhos cultural ou midiático”, como consequência inevitável da crença, que Bensaïd

compartilharia com Badiou, “na força própria das ‘verdades’, quaisquer que sejam as condições

[...] nas quais elas são anunciadas”995.

A posição de suposto “outsider” no campo intelectual, muitas vezes reiterada e

reivindicada por Bensaïd, não seria, assim, para Brossat, senão um atalho em busca de

notoriedade, ocupando, ao lado de alguém como Badiou, o estereótipo do filósofo

revolucionário resistente, com seu lugar cativo nas mídias de resto denunciadas, sem falar nos

filões do mercado intelectual. A boa promoção de Bensaïd junto às editoras, dentre as quais

algumas das mais prestigiadas na França, comprovaria o sucesso desse “projeto” de alçá-lo à

condição de nova face do marxismo francês. A “novidade” da sua perspectiva “intelectual”

vincular-se-ia muito mais a essa “construção” do “intelectual militante” do que à sua obra

filosófica propriamente dita: “não basta ser um escritor compulsivo e prolífico para se tornar

um autor, ainda mais, um autor de referência”.

Na realidade, diz Brossat, “Daniel Bensaïd é o NPA nas condições da filosofia

universitária e do Monde des livres, do mesmo modo que Olivier Besancenot é o NPA nas

993 Alain Brossat, “Alain Brossat sur Daniel Bensaïd”. Revue électronique dissidences [en ligne], n.4, 2012.

Disponível em: http://revuesshs.ubourgogne.fr/dissidences/document.php?id=2448. 994 Idem, s/p. 995 Idem, s/p.

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condições de Michel Drucker e da televisão do sábado à tarde”996. No fundo, muito mais do que

um “intelectual engajado”, um “filósofo erudito”, o Bensaïd personagem público era um

“homem de ação e de poder”. De ação, como o revela sua fascinação, nos anos 1960 e 1970,

pelo papel libertador da violência revolucionária (leninista ou guevarista). E “homem de poder”

porque, no âmbito do microcosmo da LCR e da esquerda revolucionária, Bensaïd teria sido

sempre uma figura do aparelho, “expert na arte de dirigir, de comandar – e também de ter entre

as mãos os fios das redes múltiplas, de cultivar a confiança e a amizade (no sentido político do

termo, já que ele não conhecia outro) de indivíduos, de grupos, de círculos de sensibilidade das

mais diversas, às vezes antagônicas”997. Nesse contexto, a retórica radical conviveria com uma

tentativa de inserção “realista” tanto nos círculos intelectuais quanto nos meandros da política

eleitoral, através da LCR. Em uma crítica visivelmente libertária das posições do ex-amigo,

Alain Brossat acusa-o de permanecer prensado entre uma “retórica da radicalidade em piloto

automático e uma política cujo fundo consiste em entrar nos jogos de forças entre partidos ‘de

esquerda’”998. Isso explicaria a convivência em Bensaïd da defesa de um comunismo hipotético

com a adesão ao ideário “democrático”, na qual os partidos seriam a mediação representativa

obrigatória.

Ora, é inegável que as críticas de Brossat, desde que depuradas de seus excessos (mais

pessoais que intelectuais), tocam em aspectos sensíveis da obra e da trajetória de Daniel

Bensaïd, razão pela qual elas servem para problematizá-las e, assim, submetê-las às

interrogações que escapam aos limites (auto) impostos pelo próprio autor. Tais crít icas não

estão isentas, porém, de confusões entre níveis diferentes e dos mal-entendidos que muitas

vezes decorrem da tendência de Brossat a reduzir o núcleo da querela a uma estratégia político-

intelectual consciente, sem sequer abordar efetivamente a forma como essa suposta “estratégia”

se manifesta no pensamento de Bensaïd. É como se tudo se restringisse ao primado do “homem

de partido” (“de ação e de partido”), que subordinaria o filósofo/intelectual, movendo-o de

acordo com suas necessidades.

O conteúdo propriamente dito dos textos de Bensaïd não seria, assim, senão uma

expressão dessa estratégia, no caso, da necessidade de – através de um marxismo aparentemente

“novo” e “aberto” – angariar posições no campo intelectual, necessárias a fim de sustentar as

perspectivas políticas do partido (LCR/NPA). Acontece que, ao reter as determinações apenas

996 Idem, s/p. 997 Idem, s/p. 998 Idem, s/p.

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dos jogos de poder do “homem de partido”, Brossat ignora deliberadamente o debate em torno

das tomadas de posição concretas de Daniel Bensaïd sobre questões políticas e intelectuais

fundamentais da época. Com isso, suas obras são desacreditadas a priori, em função das

necessidades da retórica militante, que o impediriam de se deslocar “livremente” na elaboração

das ideias. Alain Brossat replica, nesse sentido, com sinal invertido, a tendência (igualmente

unilateral) do próprio Bensaïd de afirmar a unidade do filósofo/intelectual e do militante

político, salvo que, ao contrário deste último, para o qual haveria sempre uma tensão entre

ambas as condições/situações, Brossat parece convencido de uma fusão sob o primado do

“soldado do partido”.

De fato, como argumenta Brossat, a “panteonização” do intelectual Bensaïd, por

interesses políticos ou não, mais atrapalha do que ajuda a compreensão crítica de seu percurso

político-intelectual. Do mesmo modo, não há dúvida de que Bensaïd foi, até mesmo após sua

retirada formal das funções de direção, um “homem de partido”, sempre preocupado com as

implicações políticas das querelas teóricas e/ou intelectuais. Um “homem de partido” que, como

tal, não teria hesitado em lançar mão de expedientes sectários contra adversários no interior da

LCR, conforme o acusa Gérard Filoche, para quem Bensaïd esteve por trás da “expulsão” de

sua tendência da organização em 1994. Além do mais, é bem verdade igualmente que Bensaïd

manteve “boas” relações com personagens politicamente duvidosos que, de resto, ele criticava

no plano dos debates intelectuais, tais como Alain Finkielkraut ou da jornalista/polemista

reacionária Élisabeth Lévy, que o reconhecia como legítimo representante do pensamento

francês contemporâneo. Sem mencionar suas participações em programas televisivos de debate

como Ce soir ou jamais.

Isso não significa, porém, que a sua obra, assim como as suas tomadas de posição

intelectuais, possa ser circunscrita à condição de adaptação às estratégias políticas do autor,

preocupado em “converter” a autoridade intelectual conquistada em capital político a ser

eleitoralmente explorado. Sua preocupação com a questão democrática, por exemplo, não pode

ser reduzida a uma mera racionalização da inserção da LCR na política eleitoral-parlamentar

(algo que de fato jamais ocorreu completamente); ela diz respeito muito mais a uma

problemática inescapável para as esquerdas políticas e intelectuais contemporâneas, após o

desastre stalinista e de seus congêneres. Inescapável, na ótica de Bensaïd, até mesmo e

sobretudo para aquelas forças políticas e sociais cujo horizonte “anticapitalista” extrapolava os

limites da democracia parlamentar, na direção de uma democracia “socialista”.

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Assim como a aparente ambivalência entre a reivindicação de uma perspectiva

revolucionária “maximalista” (de onde o resgate da ideia do “comunismo”) e a redução

imediata dessa perspectiva ao plano “minimalista” da defesa do bem comum e do primado do

direito à existência, a questão democrática se impõe como uma marca do tempo, diante da qual

os “revolucionários” devem se posicionar, nem que seja para “desviar” o debate para questões

fundamentais excluídas do horizonte politicista das teorias da democracia (democracia social,

propriedade, controle da produção e distribuição as riquezas etc.). Bem evidentemente, esse

debate está relacionado, em Bensaïd, com as perspectivas da organização da qual fazia parte,

mas mais importante do que esta constatação mais ou menos óbvia seria entender suas posições

nos seus próprios termos (no seu conteúdo), a fim de tornar possível a sua análise crítica. Em

si mesmo, não há nenhum problema que uma dada posição intelectual seja também

condicionada por uma perspectiva política implícita ou explícita. Mais vale discutir os impactos

dessa “unidade” no próprio conteúdo da obra, de forma a verificar se e em que medida tal

condicionamento prejudicou a abordagem ali efetuada. Caso contrário, seria quase impossível

verificar como e por que a produção teórica de Daniel Bensaïd, para além dos limites do

militante político, logrou tal influência e ressonância em alguns círculos intelectuais.

Se busca de legitimação e consagração há, como o comprova a aproximação a

personalidades filosóficas como René Schérer e Jacques Derrida – que participaram, ambos,

como vimos, da banca de sua defesa da tese de habilitação –, ela não se resume, ao menos não

necessariamente, a uma estratégia de preservação a todo custo da herança revolucionária.

Concorde-se ou não com a forma através da qual ele aquilata essa relação entre teoria e prática,

Bensaïd sempre se opôs à negação stalinista (e/ou maoísta) dos intelectuais. Em especial a partir

dos anos 1990, tornou-se uma espécie de figura do “entre-lugar”, um “filósofo não-filósofo”,

militante e engajado a contracorrente, e, ao mesmo tempo, preocupado em conquistar certa

respeitabilidade intelectual, a fim de se posicionar nos debates do “campo” filosófico e/ou

intelectual francês contemporâneo. Entre o filósofo hors-norme e o militante anticapitalista, se

não há efetivamente separação, existe a consciência inelutável da “discordância dos tempos”,

entre o tempo da produção teórica e o da luta política concreta. “A teoria não se resolve jamais

na política. Quando ela pretende entrar na ‘linha’ [do partido etc.], ela se degrada em ideologia

de legitimação”. A bem dizer, “não se trata de simplesmente evitar a subordinação da teoria ao

político, mais de pensar suas temporalidades conceituais respectivas”1000.

1000 Daniel Bensaïd, “’Chauds, froids’. Sur la onzième thèse sur Feuerbach”. Texto inédito, datado de 2000. Neste

ensaio, mantendo-se crítico ao “teoricismo” althusseriano – no qual o “tribunal científico” substitui aquele da

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Dessa disjunção frágil e parcial decorre o caráter bastante “inclassificável” do “estatuto

intelectual” de Bensaïd, como bem observa Enzo Traverso1001. Nem intelectual “universal” e

“legislador” como Sartre, nem intelectual “específico”, expert e conselheiro do príncipe,

tampouco um intelectual midiático no sentido estrito do termo, Bensaïd ocupava uma posição

singular no cenário intelectual francês, visto como “intelectual orgânico da LCR” por uns, e/ou

como o mais brilhante intelectual da esquerda radical por outros, ou ainda como um legítimo

representante da ala gauche do pensamento francês por alguns, ou um pouco de tudo isso ao

mesmo tempo. Por certo, o próprio Bensaïd logrou mobilizar essas ambiguidades, nas décadas

de 1990 e 2000 – ambiguidades que lhe conferiam feição bastante particular, quase única –, a

fim de galgar espaço nos debates intelectuais franceses e, ao mesmo tempo, dialogar com outras

vertentes do pensamento crítico. Assim, tal como sustentam dois de seus ex-alunos na

Universidade Paris VIII, ambos de sensibilidade libertária, “Daniel Bensaïd era um irredutível:

irredutível no papel de ‘intelectual orgânico da LCR’, tanto quanto àquele de professor”.

Incessantemente disponível, disposto ao diálogo e à descoberta, Bensaïd cultivaria, segundo

eles, um “certo senso do que os românticos alemães chamavam symphilosophie”, que supõe o

sentido do trabalho coletivo e plural, em que os diversos pontos de vistas iluminam a questão

global1002.

Analogamente, se Bensaïd foi, em alguma (e apenas alguma) medida, um “homem de

poder”, tanto quanto um “homem de ação”, tal formulação deve ser compreendida, ao contrário

do que supõe Brossat, no sentido amplo de alguém que, sempre envolvido nas querelas da

esquerda “revolucionária” francesa, jogou um papel determinante na configuração das relações

políticas no interior da LCR, bem como no plano das outras organizações a um só tempo

próximas e “concorrentes”. A tal ponto que, tendo em vista a desenvoltura com que participou

de diversas operações políticas ligadas à organização da qual fazia parte, parece um tanto

forçado a forma como, a posteriori, ele se demanda em sua “autobiografia” se a política era, de

fato, para ele, uma vocação. Seja como for, essa política jamais se resumiu, em Bensaïd, a julgar

pelas informações concernentes à sua trajetória, a um apetite de poder, tal qual parece sugerir

Brossat, que menciona a respeito uma suposta (e estranha!) fascinação bensaïdiana pelas

habilidades políticas de Mitterrand. Ao contrário: se compararmos o percurso político e

“história” -, Bensaïd se opõe às interpretações vulgares e simplistas da XI tese sobre Feuerbach, (em que Marx

critica a disposição dos filósofos de apenas interpretar o mundo, sem buscar transformá-lo), que pregam uma

subordinação instrumental da teoria à prática. 1001 Enzo Traverso, “Le passeur”, in: Lignes, n.32, op.cit., p.178. 1002 Charlotte Hess & Valentin Schaepelynck, “Daniel (Bensaïd) en symphilosophie”. In: Lignes, n.32, op.cit.,

p.51.

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intelectual de Bensaïd àquele de vários outros personagens de sua geração, não é difícil perceber

que, por seu talento e tato político (desgostos pessoais à parte), oportunidades não teriam faltado

para mais uma “conversão” de “capital militante” em recursos para a ocupação de cargos e

mandatos eletivos nas entranhas do campo político-institucional. Tanto quanto seu ex-camarada

Henri Weber, Bensaïd poderia, por exemplo, ter se transformado em um arguto “conselheiro

do príncipe”.

A eventual ausência de um arcabouço conceitual realmente novo, que corresponderia ao

nível do prestígio intelectual logrado por Bensaïd – ausência apontada por Brossat (mas

também, em outro registro, por Enzo Traverso, por exemplo1003) –, não se explica apenas pelo

predomínio do político partidário, mas por uma opção intelectual determinada, cujas grandezas

e misérias merecem ser analisadas nos seus próprios termos, relacionando-as não somente à

perspectiva política do autor, senão também aos dilemas do presente. Tal ausência de

“novidade” efetiva é reivindicada pelo próprio Bensaïd, em sua articulação complexa e nem

sempre exitosa entre a preservação do legado marxista “clássico” e a abertura heterodoxa dessa

tradição às implicações do presente. A “novidade”, nesse caso, encontra-se no próprio ato de

“abertura” de uma tradição política e intelectual que, muitas vezes, caracterizou-se exatamente

pelo fechamento dogmático em torno de suas próprias certezas. Essa “novidade” pode e deve

ser examinada de modo crítico, mas isso implica reconhecê-la na sua legitimidade própria,

legitimidade que o vínculo com uma posição política determinada (seja ela de uma organização

específica) não necessariamente anula – as verdadeiras instâncias de avaliação estando, na

realidade, no plano da análise das ideias e suas interações com o contexto histórico-social e

político.

8.3. Da “atualidade da revolução” à política profana dos oprimidos

Em particular nos anos 2000, depois de absorvidos os influxos da vaga aberta em 1995,

Daniel Bensaïd dirigiu o essencial de suas forças intelectuais para a reflexão em torno de uma

problemática que, para ele, sintetizava os dilemas que se colocavam ao pensamento crítico

contemporâneo, a saber: a questão do espaço-tempo específico da política, vinculando-a aos

tanto aos debates sobre os movimentos sociais contemporâneos (altermundialismo) quanto aos

1003 “Alguns dos seus livros me pareciam escritos de forma excessivamente rápida, não suficientemente maduros,

como o espelho de um pensamento fervilhante que não teve tempo de encontrar uma formulação definitiva. Seu

estilo flamejante (flamboyant) dava às vezes a impressão de preencher as fissuras deixadas por uma reflexão

demasiadamente apressada”. Traverso, “Le passeur”, op.cit., p.179.

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debates propriamente intelectuais internos e externos ao marxismo. Após o “retorno da questão

social” em novembro/dezembro de 1995, na França, e em vários outros países do mundo, na

onda da resistência às políticas neoliberais, Bensaïd começou a enfatizar, desde pelo menos o

final dos anos 1990, a necessidade do “retorno da questão político-estratégica”, sem a qual tais

protestos sociais manter-se-iam circunscritos à esfera reivindicativa, incapazes de tomarem

parte no processo de construção de uma alternativa político-hegemônica, imprescindível à

ruptura com o totalitarismo mercantil (sob a forma de um “despotismo liberal”1004) imperante.

Permanecendo assim, estes movimentos não fariam senão reproduzir pela negativa a crise

contemporânea da política, enquanto sinal eloquente da crise civilizatória pela qual

passaríamos. Reduzir-se-iam ao mero papel de loobing social, sem intervir deliberadamente no

âmbito das relações de força propriamente políticas.

Para Bensaïd, quanto mais avançava o início do século XXI, mais se tornava nítido o

esgotamento do ciclo de negação e de resistência utópica das lutas e movimentos sociais: mais

do que afirmar que um “outro mundo é possível”, tratava-se, na sua opinião, de se começar a

pensar (estratégica e não utopicamente) qual outro mundo é este, e, principalmente, como

alcançá-lo. Chegara o momento em que os “slogans simpáticos” do Fórum Social Mundial,

importantes para demonstrar o retorno do “negativo”, quer dizer, para revelar que a

mundialização capitalista não avançaria sem resistência, necessitavam ser superados. Assim,

embora valorize o impacto desta nova vaga de lutas na desmistificação do triunfalismo

neoliberal, bem como na constituição de um “novo internacionalismo”, Bensaïd é muito menos

indulgente do que Michael Löwy, criticando a ausência, nestes “novos” movimentos sociais,

de um horizonte estratégico fundado numa “política profana dos oprimidos”, a fim de

“contrabalancear o perigo de sua confiscação pelo Estado e de sua degradação plebiscitária”1005.

Aos olhos de Bensaïd, a expressão teórica mais acabada (“ideal-típica”, por assim dizer)

deste estado de espírito presente em alguns movimentos sociais contemporâneos são as teses

de John Holloway – intelectual escocês radicado em Puebla, no México – expostas no livro

Mudar o mundo sem tomar o poder, livro que, embora não tenha causado tanto impacto no

Brasil, seduziu parcela não desprezível das novas gerações de militantes e intelectuais críticos

em alguns países1006. Pretendendo-se um ensaio de teorização da experiência zapatista,

1004 Cf. Daniel Bensaïd, La sonrisa del fantasma. Cuando el descontento recorre el mundo. Madrid: Sequitur,

2012, p.114. 1005 Idem, p.119. 1006 Na Argentina, por exemplo, lançado pela editora Herramienta quase simultaneamente à crise de 2001 e,

portanto, à emergência de novas formas de protesto e movimentos sociais (como o dos piqueteros), o livro de John

Holloway encontrou larga repercussão, em meio à atmosfera de repúdio à política institucional simbolizada pela

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Holloway propõe uma pretensa “inversão copernicana” do pensamento revolucionário. Em

nome da crítica à “ilusão estatista” que, para ele, teria pautado, no passado, as tentativas

(reformistas ou revolucionárias) de superação do capitalismo, com a redução do socialismo à

mudança das relações de propriedade, o intelectual britânico reivindica a necessidade do

abandono completo de toda perspectiva hegemônica de “conquista do poder”, apostando antes

– em linha deleuziano-foucaultiana – na sua “dissolução”, através do que ele denomina

“antipoder”. Na perspectiva de Bensaïd, tal “ilusão de fazer desaparecer por encantamento o

que não se logra enfrentar realmente” constitui um sintoma da época1007.

Proposições político-intelectuais como a de Holloway, mimetizando algumas das

experiências de alguns dos movimentos sociais contemporâneos, padeceriam de uma certa

“ilusão social” (simétrica à “ilusão política” que Marx reprovava nos jovens hegelianos),

acreditando-se livres da necessidade de qualquer mediação e/ou representação política. Elas

constituem, portanto, expressões do estado dos debates intelectuais sobre os movimentos

sociais na virada para os anos 2000, e, por isso mesmo, são igualmente representativas “dos

limites deste debate em relação a questões tão cruciais como a dialética do instituinte e do

instituído”, ou a relação entre democracia direta e democracia representativa, dentre outras1008.

Não por acaso, em 2007, Bensaïd decretou, reforçando uma posição que já vinha cultivando há

cerca de uma década: “começa-se a se perceber que esse momento de ilusão, de acordo com a

qual os movimentos sociais constituem uma resposta suficiente para a crise da política, [...] de

acordo com a qual se trata, a partir de agora, de ‘mudar o mundo sem tomar o poder’, está

esgotado”1009.

A questão do poder e, mais ainda, da política em sentido amplo, para além do Estado,

permanece central, segundo Bensaïd, uma vez que nela se condensa a reprodução de uma

dimensão fundamental da sociedade capitalista, a saber: a propriedade privada, dimensão cuja

consigna que então aflorou: Que se vayan todos! Trata-se, segundo me contou Miguel Vedda, do livro mais

vendido da editora Herramienta. 1007 Daniel Bensaïd, “Et si o arrêtait tout? ‘L’illusion sociale’ de John Holloway et de Richard Day”, in: La politique

comme art stratégique. Paris: Syllepse, 2011, p.32. Artigo originalmente publicado em 2008, na Revue

internatioale des livres et des idées (n.3, janeiro-fevereiro 2008). 1008 Idem, p.36. Em uma correspondência mantida com John Holloway após a publicação de Mudar o mundo sem

tomar o poder, Michael Löwy criticou-o exatamente por sua perspectiva negativa em relação a toda reflexão sobre

a questão da democracia, recusa que se assentava em uma identificação desta às “objetivações” reificadas do

sistema, cujo “poder-sobre” sufocaria a livre manifestação do “poder-fazer” não-objetivado. Para Löwy, porém,

tanto quanto para Bensaïd, mesmo no âmbito dos movimentos sociais, sempre haverá a necessidade de algum nível

de delegação democrática e, portanto, de “objetivação” (que não se confunde com reificação) programática, por

assim dizer. 1009 Daniel Bensaïd, “Prefácio à edição brasileira. Os irredutíveis sete anos depois”, in: Os irredutíveis..., op.cit.,

p.12.

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“subversão” continuaria sendo imprescindível para qualquer projeto de transformação

estrutural da sociedade. “Se a propriedade de uns é a despossessão de outros”, escreve ele, “se

ela é mais-valia materializada, ela é também um poder, ao mesmo tempo disseminado e

concentrado”. A bem dizer, “ela é mesmo a força secreta do poder, mais efetiva hoje do que

nunca”. Assim, se o objetivo é “desfetichizar” o poder e/ou a propriedade, como propõe

Holloway, seria preciso não apenas contrapor-se à “sua sacralização, mas transformar as

relações de propriedade reais, replicando à privatização do mundo uma lógica do bem comum,

do serviço público, da apropriação social”. Não se trata aqui de “uma questão de racionalidade

econômica, mas de relações de forças políticas, das quais a questão do poder, goste ou não

Holloway, continua a pedra angular”1010.

É por estas razões que, na ótica de Bensaïd, em oposição ao “novo espírito do

capitalismo”, um “novo espírito do comunismo” deverá emergir, não como modelo abstrato –

tal qual o “comunismo lógico-filosófico” dos jovens Marx e Engels –, mas sim como “horizonte

estratégico” que surge na e a partir das resistências concretas à mercantilização social e natural,

questionando o controle do poder e da propriedade por uma classe social numericamente

ultraminoritária. Este “novo comunismo nascerá”, escreve Bensaïd, “das resistências reais

contra a ordem intolerável das coisas, contra suas injustiças e seu desencanto”1011. Enquanto

instituição do “controle da democracia política sobre a economia, [do] primado do bem comum

sobre o interesse egoísta, do espaço público sobre o espaço privado”1012, este “novo

comunismo” constitui um “espectro” que ronda as lutas contra as novas formas de “acumulação

por despossessão” (características do que David Harvey chamou de “novo imperialismo”), lutas

que, mesmo que indiretamente, restituem a atualidade da “contradição entre o direito à

propriedade e o direito à existência”, contradição politicamente explicitada pela primeira vez

na revolução francesa. Nas palavras de Bensaïd, a “rapina liberal do espaço público e o

desmantelamento sistemático dos direitos sociais agudizam [esta] contradição”, colocando na

ordem do dia a questão da apropriação social da riqueza e da efetiva democratização do

poder1013.

Nesta perspectiva, Daniel Bensaïd acredita que, apesar de todos os crimes cometidos

em seu nome, a expressão comunismo permanece aquela que melhor representa a necessária

radicalidade de uma perspectiva capaz de visualizar um horizonte para além do capitalismo.

1010 Daniel Bensaïd, “Et si on arrêtait tout?”, op.cit., p.35. 1011 Daniel Bensaïd, La sonrisa del fantasma, op.cit., p.138. 1012 Daniel Bensaïd, “Puissances du communisme”, in: La politique comme art stratégique, op.cit., p.137. 1013 Daniel Bensaïd, La sonrisa del fantasma, op.cit., p.107.

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Como afirma em seu último texto publicado em vida, intitulado “Potências do comunismo”:

“de todos os modos de nomear ‘o outro’ necessário e possível, do capitalismo, a palavra

comunismo é aquela que conserva mais de sentido histórico e de carga programaticamente

explosiva”. Ela constitui, ademais, “aquela que melhor evoca o comum e a igualdade, a

socialização do poder, a solidariedade em oposição ao cálculo egoísta e à concorrência

generalizada, a defesa dos bens comuns da humanidade, naturais e culturais, a extensão de um

domínio de gratuidade (desmercantilização) dos serviços de bens de primeira necessidade,

contra a predação generalizada e a privatização do mundo”1014.

Tal como o “espectro do comunismo” que, como disse Marx, assombrava a Europa no

ano-chave de 1848, o “novo” espectro do comunismo evocado por Bensaïd (em alusão aos

“espectros de Marx” de Derrida), mais do que uma doutrina abstrata, constrói-se concretamente

a partir das acumulações de experiências que, juntas, renovam a “esperança redobrada imposta

pela urgência de acabar com a ordem existente”1015. De onde a definição ampla (e vaga) do

“novo espírito do comunismo” tal como mobilizada por Bensaïd, como se se tratasse de uma

definição minimalista (defesa do bem comum, luta pela desmercantilização etc.) à procura de

uma fecundação político-estratégica capaz de transfigurar em sentido hegemônico as demandas

e reivindicações projetadas por movimentos sociais “contemporâneos” como o ecologismo ou

o feminismo. Não é por acaso que, em O sorriso do espectro (2000), além de propor uma

atualização “ecocomunista” do espectro, Bensaïd sustenta que “a mulher é o futuro do

espectro”, uma vez que da óptica de um feminismo “classista” se tornaria possível pensar “uma

igualdade não homogênea, uma igualdade que leve em conta a heterogeneidade e a infinita

singularidade”1016.

Porém, ao mesmo tempo em que propõe uma definição minimalista do “novo espírito

do comunismo”, a ser positivamente constituída pelas resistências concretas ao avanço da

mercantilização capitalista, Bensaïd insiste na necessidade de que estas lutas se revistam de um

horizonte regulador estratégico, capaz de mobilizar uma verdadeira política dos oprimidos,

com vocação hegemônico-universalista. E, para ele, apenas uma política dos oprimidos fundada

na luta de classes, ainda que aberta às demandas e autonomias dos movimentos sociais nas suas

1014 Daniel Bensaïd, “Puissances du communisme”, op.cit., p.135. O artigo foi originalmente publicado na revista

Contretemps, em 2009 (n.4, nova edição, Paris: Syllepse). Para Bensaïd, “ceder à identificação do comunismo

com a ditadura totalitária stalinista seria capitular diante dos vencedores provisórios, confundir a revolução e a

contrarrevolucionária burocrática [...]. Seria também cometer uma irreparável injustiça em face dos vencidos,

todos aqueles e aquelas, anônimos ou não, que vivenciaram apaixonadamente a ideia comunista e que a

mantiveram viva contra suas caricaturas”. Idem, p.135. 1015 Daniel Bensaïd, La sonrisa del fantasma, op.cit., p.11, 12. 1016 Idem, p.100.

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especificidades, seria capaz de articular um projeto hegemônico alternativo à ordem vigente,

para além, inclusive, do seu próprio horizonte estrito de classe. Na medida em que o próprio

capital constitui o principal agente unificador das resistências (“Qual é o grande fator de

unificação dos movimentos reunidos em torno nos FSMs ou nos movimentos antiguerra, se não

é o próprio capital?”), a luta de classes, como um “fio vermelho” que atravessa o conjunto dos

conflitos sociais, permanece uma mediação decisiva para a constituição de um projeto

hegemônico alternativo, não como inventário e/ou adição de antagonismos equivalentes, sem

determinação de classe, como defendem Ernesto Laclau e Chantal Mouffe1017, mas sim como

princípio de articulação destes no quadro de uma perspectiva “revolucionária” global, conforme

aparece em Gramsci1018.

Assim, em Bensaïd, entre estes dois polos – o da resistência ao avanço da

mercantilização e aquele da constituição de uma política estratégica – forma-se um hiato, difícil

de preencher apenas com petições de princípio, como se viu igualmente no caso de Löwy. Mas

enquanto este último se move na polaridade resistência/negatividade – utopia/positividade,

fiando-se a um elogio desmesurado dos movimentos sociais latino-americanos, símbolos dessa

antinomia, Bensaïd busca religar o polo da resistência à transfiguração política que haverá de

emergir, a fim de transformar o momento do negativo em ofensiva revolucionária.

Em um contexto caracterizado pela crise da política e pelo “eclipse da razão estratégica”,

tratava-se, aos olhos de Bensaïd, de se reavaliar a relação entre história e acontecimento,

estrutura e política, na direção de um marxismo radicalmente antideterminista, para o qual –

como disse Benjamin, numa das passagens mais citadas pelo intelectual francês – “a política

prima sobre a história”, quer dizer, para o qual a política, embora fundada na e pela história,

delimita o campo do possível não apenas no presente, senão também na definição do sentido

1017 Cf. E. Laclau e C. Mouffe, Hegemonia e estratégia socialista, publicado em 1985. Mais recentemente, em

função de suas proposições em torno da “radicalização da democracia”, assim como da revalorização da “razão

populista”, Laclau e Mouffe tornaram-se uma das grandes inspirações de Podemos, partido que emergiu, no Estado

espanhol, como expressão política do ciclo de lutas sociais aberto com o movimento dos Indignados, em 2011.

Em 2015, C. Mouffe publicou um livro de entrevistas/diálogos com Inigo Errejón, considerado “número 2” de

Podemos. Cf. C. Mouffe & I. Errejón, Construir pueblo. Hegemonia y radicalización de la democracia. Barcelona:

Icaria Editorial, 2015. Cf. Ernesto Laclau, La raison populiste. Paris: Seuil, 2008; cf. também, para uma abordagem

crítica dessa influência, Razmig Keucheyan e Renaud Lambert, “Ernesto Laclau, inspirateur de Podemos”, Le

Monde Diplomatique, setembro de 2015. 1018 Daniel Bensaïd, “Front unique et hégémonie”, in: La politique comme art stratégique, op.cit., p.102 e 105.

Neste texto, originalmente uma comunicação apresentada na Universidade de Verão da LCR em agosto de 2007,

Bensaïd defende uma leitura “revolucionária” da questão da hegemonia em Gramsci, em oposição tanto às

interpretações eurocomunistas dos anos 1970 quanto àquelas “democratizantes” dos anos 1980 e 1990, como a de

Laclau e Mouffe. Para Bensaïd, “ampliando o campo do pensamento estratégico [...], Gramsci articula a ditadura

do proletariado à problemática da hegemonia”. Idem, p.96. É curioso que, ao mesmo tempo em que critica o

“abandono sem séria discussão da ditadura do proletariado” pelos PCs atingidos pela onda eurocomunista nos

1970, Bensaïd silencia sobre a decisão de sua própria organização, a LCR, no congresso de 2002, de também se

desfazer de qualquer referência à noção de “ditadura do proletariado”.

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do passado. Pelo restabelecimento da política como “arte estratégica” passa, na opinião de

Bensaïd, a possibilidade de abertura do “capítulo das bifurcações” (Blanqui), em oposição ao

totalitarismo mercantil cuja naturalização da lógica capitalista torna aparentemente impossível

qualquer transformação histórica substancial.

Através deste tema, Daniel Bensaïd estabelece um parâmetro a fim de reler autores do

passado, assim como dialogar (ou polemizar) com os do presente, reavaliando, ao mesmo

tempo, a posição do marxismo diante de questões como o pluralismo democrático, a

representação política, a relação entre o social e o político etc. Desde o final dos anos 1960, em

sua dissertação de mestrado, como se observou na parte I deste trabalho, Bensaïd valorizou o

que ele entendia ser a principal contribuição de Lênin para o pensamento marxista: a apreensão

da “especificidade do campo político como um jogo de poderes e de antagonismos sociais

transfigurados, traduzidos em uma linguagem carregada de deslocamentos, de condensações e

de lapsos reveladores”, conforme ele reafirmaria mais tarde, em sua “autobiografia”1019. Mas,

se nas décadas de 1960 e 1970, na linha direta do modelo de Outubro 1917, a ênfase estava

posta no partido-vanguarda como mediação absolutamente indispensável à ascensão política da

classe social, a partir dos anos 1990 – ou seja, após a virada histórica dos 1980 e a incorporação

da obra de Benjamin – a abordagem da questão se amplia, de tal forma que o “gesto leninista”

em defesa do papel libertador da política é agora visto como defesa da pluralidade e da ação

humana na história em oposição ao duplo perigo da “naturalização da economia” e da

“fatalização da história”, imbricados na “mundialização liberal”1020.

Assim como o messianismo profano de Benjamin, a política leninista acenaria, segundo

Bensaïd, com a possibilidade de ruptura tanto com o “tempo vazio e homogêneo” do progresso

quanto com o “eterno retorno do mesmo” materializado no “fetichismo da mercadoria” – as

duas antíteses contra as quais deve lutar o pensamento dialético, como havia dito Benjamin1021.

Ambos cerrariam fileiras, a partir de então, na obra de Bensaïd, a fim de contrabalançar a

“aposta sociológica” que, por vezes, teria limitado a questão político-estratégica em Marx e

Engels (ou na tradição da II Internacional), como se o crescimento e a concentração do

proletariado engendrassem por si sós, mecanicamente, uma elevação de sua consciência de

1019 Daniel Bensaïd, Une lente impatience, 2004, op.cit., p.121. 1020 Daniel Bensaïd, “’Les sauts! Les sauts! Les sauts!’: Lénine et la politique”, in: La politique comme art

stratégique, op.cit., p.39. 1021 Não parece um acaso o fato de que Bensaïd trabalhava, no momento de sua morte, em um livro sobre a questão

do fetichismo da mercadoria (e do “círculo vicioso da dominação”, nas palavras de Marcuse), assim como das

formas de superá-lo - projeto que ele havia dado início em 2004 e que permaneceu inacabado. Cf. Daniel Bensaïd,

Le spectacle, stade ultime du fétichisme de la marchandise Marx, Marcuse, Debord, Lefebvre, Baudrillard. Paris:

Lignes, 2011.

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classe e dos seus modos de organização1022. Lênin e, depois, Benjamin, teriam sido

responsáveis, então, na ótica de Bensaïd, por uma “revolução na revolução”, conferindo à

reflexão da esquerda comunista uma dimensão propriamente estratégica, capaz de apreender as

possibilidades e intermitências do tempo pleno da política1023.

As especificidades (e ambivalências) de Daniel Bensaïd em relação a estas questões

explicita-se no seu diálogo crítico com autores contemporâneos (ou nem tanto) como o último

Althusser, Toni Negri e, em especial, Alain Badiou, com quem ele estabeleceu um rico

intercâmbio filosófico sobre as múltiplas facetas da relação entre história e acontecimento e

entre opinião e verdade, temas, aliás, que permeariam suas polêmicas intelectuais com as

correntes de pensamento ditas “pós-modernas”.

A recepção bensaïdiana do pensamento de Althusser ilustra de uma ótica bastante

singular as transformações pelas quais passou a obra do próprio Bensaïd, antes e depois da

virada para os anos 1990, quer dizer, antes e depois da leitura de Benjamin, em sintonia com a

tentativa de reabilitar a reflexão marxista sobre a política. Após condenar – sob o efeito da

atmosfera pós-68 e, em particular, da interpretação esquerdista e voluntarista que dela fazia sua

organização política1024 – a “primeira” filosofia althusseriana (Pour Marx) como uma “filosofia

da ordem”1025, na qual não haveria espaço para a ruptura e o sujeito revolucionários, Daniel

Bensaïd reavaliou, em textos da virada para os anos 2000, o legado do filósofo de origem

argelina, desta vez a partir de um ponto de vista afinado com suas preocupações benjaminianas.

Assim, embora tenha continuado a assinalar a “inquietante unilateralidade” da crítica

althusseriana do “humanismo antropológico”, Bensaïd passou a entrever aí a abertura de

“perspectivas fecundas para a crítica das filosofias especulativas da história que continuaram

assombrando o ‘marxismo’ bem além de Marx”1026. Em prefácio à reedição (1999) da coletânea

Contre Althusser (1975), Bensaïd afirmaria, em tom levemente autocrítico, que “o pensamento

1022 Daniel Bensaïd, “Stratégie et politique: de Marx à la III Internationale”, in: La politique comme art stratégique,

op.cit., p.53. 1023 Cf. Fabio Mascaro Querido, “Entre Lênin e Walter Benjamin: marxismo, história e temporalidade política em

Daniel Bensaïd”, in: Critica contemporánea (Uruguai), n.3, 2013. 1024 À época (final dos anos 1960 e início dos 1970), “nós éramos vigorosamente ‘anti’ [althusserianos].

Excessivamente”, reconheceria mais tarde Daniel Bensaïd. “La mort de Louis Althusser”, in: Rouge, n.1421, 1 de novembro, 1990. 1025 Para Jacques Rancière, ex-discípulo de Althusser, o marxismo althusseriano era uma “filosofia da ordem”, o

que a mantinha apartada do movimento de revolta que sacudiria o mundo burguês à época. Cf. Jacques Rancière,

La leçon d’Althusser. Paris: Gallimard, 1974. 1026 Daniel Bensaïd, “Louis Althusser et le mystère de la rencontre”, in: Résistances, op.cit., p.124. Na introdução

de Lire le Capital, Althusser sustenta a necessidade de “renunciar a toda teleologia da razão e de conceber a relação

histórica de um resultado às suas condições como uma relação de produção e não de expressão, o que pode ser

chamado, portanto [...], de a necessidade de sua contingência”. Louis Althusser, Lire le Capital. Paris: Maspero,

t. I, 1965, p.55.

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de Althusser”, tomado retrospectivamente, é “muito mais contraditório e movente do que nós

havíamos imaginado sob o fogo da luta política”1027.

Esta “crítica das filosofias especulativas” ganhou novo fôlego, segundo Bensaïd, com a

elaboração, por Althusser, do conceito de “processo sem sujeito nem fim” nos textos “Sur le

rapport de Marx à Hegel” (1968) e “Lénine devant Hegel” (1973), conceito “coerente com uma

concepção profana da história, sem origem nem Julgamento definitivo”. Para Althusser, porém,

se não há uma teleologia histórica, e tampouco um sujeito racional soberano, isso não significa

que não haja, por outro lado, um “motor”, uma “dinâmica não intencional” na (e não da)

história: a luta de classes1028. À diferença do racionalismo “idealista” e “metafísico”, ancorado

no pressuposto da identidade do real e do racional e na aposta em um sujeito empírico e, ao

mesmo tempo, transcendente, produto e produtor da História, Althusser ressalta, por exemplo

em sua Réponse à John Lewis (1973), que são as “massas” que, efetivamente, “fazem” – sem

qualquer garantia de ordem transcendente – a história, tendo como dinâmica central a luta de

classes. Em outras palavras: “a história não tem, no sentido filosófico do termo, um Sujeito,

mas um motor: a luta de classes”1029.

Em texto do início dos anos 2000, é o imanentismo spinozista radical de Althusser que

interessa a Bensaïd, imanentismo que, malgrado seus eventuais limites (como a ausência de

contradição), teria ao menos buscado uma saída para os impasses da “ontoteologia” – a qual,

segundo o filósofo franco-argelino, com seus conceitos de Origem, Sujeito, Sentido,

Necessidade e Liberdade, teria confinado parcela importante do marxismo aos limites da

tradição racionalista das Luzes e da metafísica ocidental. Não por acaso, Bensaïd dedica

especial atenção aos textos do último Althusser (1982) sobre o “materialismo do encontro e/ou

do aleatório”, textos que, para ele, são reveladores tanto das grandezas quanto das misérias (e

do “fracasso” relativo do seu projeto político-intelectual) do filósofo nascido na Argélia. Em

tal texto, na linha da desconstrução derridariana da “metafísica ocidental”, Althusser reivindica

um “materialismo do encontro, portanto, do aleatório e da contingência, que se opõe, como

pensamento totalmente outro, aos diferentes materialismos recenseados, inclusive o

materialismo correntemente atribuído a Marx, Engels e Lênin, o qual, como todo materialismo

1027 Daniel Bensaïd, “Un univers de pensée aboli. Avant-propos”, in: Contre Althusser. Paris: Éditions de la

Passion, 1999. 1028 Daniel Bensaïd, “Louis Althusser et le mystère de la rencontre”, op.cit., p.129, 130. 1029 Louis Althusser, Posições – 1 (“Resposta a John Lewis”, “Elementos de autocrítica” e “Sustentação de tese

em Amiens”). Rio de Janeiro: Graal, 1978, p.271. Sobre o assunto, cf.: André Tosel, “La rationalité dialectique à

l’épreuve de la déconstruction : la philosophie comme pratique du matérialise aléatoire (le dernier Althusser)”, in:

Le marxisme du XXe siècle, op.cit., p.43-46.

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da tradição racionalista, é um materialismo da necessidade e da teleologia, isto é, uma forma

transformada e disfarçada de idealismo”1030.

Para o último Althusser, essa tradição “subterrânea” encontrou seus máximos expoentes

nas figuras de Epicuro, Maquiavel, Spinoza, Rousseau e, de forma tensionada, de Marx, este

último “forçado a pensar dentro de um horizonte esfacelado entre o aleatório do Encontro e a

necessidade da Revolução”1031. Na ótica de Bensaïd, ao mobilizar as noções de encontro e de

conjuntura (através de Maquiavel) a fim de “pensar não só a realidade da história, mas

sobretudo a da política, não só a essência da realidade, mas sobretudo a essência da prática, e

a ligação entre estas duas realidades no momento do seu encontro: na luta”, como diz no texto

de 19821032, Althusser se aproxima da reversão benjaminiana da relação entre história e política,

em favor do primado desta última, caminhando na direção de uma rejeição (paradoxalmente)

anti-positivista radical das “apologias do fato consumado” contra as quais se opunha, por

exemplo, alguém como Blanqui, inspiração central na reflexão político-filosófica de Bensaïd.

Tal como para Benjamin ou Blanqui, para Althusser “não se raciocina dentro da

Necessidade do fato consumado, mas na contingência do fato a ser consumado”, de tal forma

que, tão importante quanto o que foi, é aquilo que poderia ter sido – as “causas perdidas” de

que fala o anti-althusseriano E. P. Thompson1033. Nas palavras de Althusser, que não deixa nada

a desejar à desconstrução pós-estruturalista do racionalismo “metafísico”: “A história não é

mais do que a revogação permanente do fato consumado por um outro fato indecifrável a

consumar-se, sem que se saiba antecipadamente nem onde, nem como o acontecimento de sua

revogação se produzirá. Simplesmente chegará um dia que as coisas serão redistribuídas e os

dados serão lançados novamente sobre a mesa vazia”1034.

Todavia, ao recusar em bloco a tradição “racionalista”, para ele irredutivelmente

idealista e metafísica, e, ao mesmo tempo, acertar contas com seu próprio passado

“estruturalista”, Althusser acabaria, na visão de Daniel Bensaïd, recaindo em uma perspectiva

tão unilateral quanto aquela por ele denunciada, na qual o acontecimento que bifurca a estrutura

consumada aparece desvinculado de seus condicionantes históricos, apresentando-se como

“contingência pura, como um milagre do clinamen”. Por isso mesmo, escreve Bensaïd,

Althusser busca “resolver a contradição que atribui a Marx, o dilaceramento entre o aleatório

1030 Louis Althusser, “A corrente subterrânea do materialismo do encontro (1982)”, in: Crítica Marxista, n.20. São

Paulo: Revan, 2005, p.9. 1031 Idem, p.24. 1032 Idem, p.24. 1033 Edward Palmer Thompson, A formação da classe operária inglesa. Vol.1. A árvore da liberdade. Rio de

Janeiro: Paz e Terra, 1987, p.13. 1034 Louis Althusser, “A corrente subterrânea do materialismo do encontro (1982)”, op.cit., p.14.

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do encontro e a necessidade da revolução, pela supressão pura e simples de um dos termos”, a

saber: a história concreta, perspectiva que tornaria impossível uma reflexão propriamente

althusseriana sobre a política na sua dimensão estratégica, nos interstícios da história e do

acontecimento, da necessidade e do aleatório, da estrutura e da conjuntura1035. Assiste-se,

assim, de acordo com Bensaïd, “uma reversão espetacular”, em Althusser, “do pessimismo

estruturalista em puro otimismo da vontade”1036.

Daí, na opinião de Bensaïd, “a impossibilidade de uma política althusseriana”, tanto

quanto este afirmava a “impossibilidade de uma política hegeliana”, mas por razões opostas:

enquanto a inexistência de uma “política hegeliana” decorre da sua subordinação a uma

teleologia histórica pré-definida, a de uma “política althusseriana” residiria na sua recusa em

reconhecer a historicidade não da História, mas na história, recusa que culminaria na defesa do

último Althusser de uma perspectiva “desconstrutivista”, na qual o acontecimento, resultado de

um encontro aleatório, encontra-se deslocado da história sob ou sobre a qual ele emergiu. Não

é por acaso que, em Althusser, a filosofia se apresenta como espécie de “garantia” da política,

sob a forma da “luta de classes na teoria”: no final das contas, a política, assim como as outras

práticas sociais, permaneceria sempre subordinada à filosofia.

Essa hipóstase da filosofia como instância “superior” da “prática teórica”, fundada na

valorização do “acontecimento” que escapa às amarras da história, encontra na reflexão mais

recente de Alain Badiou sua forma mais ambiciosa e radical, no limite do platonismo, com sua

defesa irredutível da “verdade” contra a “tirania das opiniões”. Para Daniel Bensaïd, do mesmo

modo que o último Althusser, Badiou recai em um “puro pensamento do acontecimento”,

chancelado pela “intervenção interpretante” da filosofia1038, pensamento no qual a história é a

notável ausente, impossibilitando, assim, uma vez mais, uma reflexão concreta sobre a política,

na sua tensão constitutiva entre “verdades” e “opiniões”, estrutura e conjuntura, história e

acontecimento. Aos olhos de Bensaïd, uma tal “ausência” da história, como no último

Althusser, constitui expressão, em Badiou, da recusa em fazer um balanço histórico do

stalinismo e, em especial no caso do último, do maoísmo, ao qual ele permaneceu vaga e

abstratamente fiel, particularmente através do elogio da “ideia” original que provocou a

emergência da revolução cultural chinesa, pouco importando o desfecho trágico do

1035 Daniel Bensaïd, “Louis Althusser et le mystère de la rencontre”, op.cit., p.137. 1036 Idem, p.139. 1038 Badiou define a “intervenção interpretante”, ato de nominação, como “procedimento pelo qual um múltiplo é

reconhecido como acontecimento”. Alain Badiou, L’Être et l’Événement. Paris: Le Seuil, 1988, p.202.

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“acontecimento”. O preço a ser pago em decorrência desse silêncio histórico é “exorbitante”:

ele torna a política, bem como a democracia, “impensável e impraticável”1039.

Colegas de departamento na Universidade Paris VIII (Saint-Denis), Bensaïd e Badiou

estabeleceram amistosa relação intelectual especialmente ao longo dos anos 2000. Filósofo

idiossincrático, acadêmico e midiático a um só tempo, defensor da fidelidade à ideia comunista

em um momento marcado pela contra-ofensiva neoliberal, Badiou encarnava, para Bensaïd, o

modelo contemporâneo da resistência intelectual, com os limites e dilemas por ela acarretados.

Concebendo a “verdade” como “pura fidelidade à abertura do acontecimento”, sem relação com

os condicionantes histórico-estruturais, Badiou comungaria de uma “política imaginária, em

levitação, reduzida à simples sucessão de acontecimentos incondicionados [...]. A história e o

acontecimento tornam-se assim milagrosos”, versão laicizada da revelação religiosa1040. Em

outros termos: “desvinculada de suas condições históricas, puro diamante de verdade, o

acontecimento, tal como o encontro absolutamente aleatório do último Althusser, se aparenta

ao milagre”1041.

Sem lastro histórico, o “sujeito” evocado por Badiou não existe senão no

“acontecimento de sua revolta”, razão pela qual, sustenta Bensaïd, o filósofo francês resvala no

elogio de uma “política pura”, anti-política, entre cujas consequências encontra-se a dificuldade

de conjugar a unidade dialética entre o instante do acontecimento e a durée histórica, entre ato

e processo – conforme aparece, por exemplo, na fórmula trotskiana da “revolução

permanente”1042. Reduzida a situações singulares e historicamente indeterminadas, a política se

limita à fidelidade do sujeito disposto a acolhê-la. Nas palavras do próprio Badiou: “uma

política é uma fidelidade arriscada (hasardeuse), militante e sempre parcialmente

imcompartilhada (impartagée), à singularidade do acontecimento (singularité

événementielle)”1043. Sem programa, nem partidos, tal “política anti-política” circunscrever-se-

ia, segundo Bensaïd, em prescrições morais vinculadas aos imperativos da resistência, de onde

uma certa combinação entre elitismo/aristocratismo teórico (a “verdade” do filósofo) e

moralismo prático1044.

1039 Daniel Bensaïd, “Alain Badiou et le miracle de l’événement”, in: Résistances, op.cit., p.166. 1040 Idem, p.154. Para Slavoj Zizek, cujas afinidades com o filósofo francês são conhecidas, a revelação religiosa

constitui o “paradigma inconfesso” da “política” de Alain Badiou. Cf. Slavoj Zizek, The Ticklish Subject. The

Absent Centre of Political Ontology. Londres: Verso, 1999. 1041 Daniel Bensaïd, “Alain Badiou et le miracle de l’événement”, op.cit., p.160. 1042 Cf., por exemplo: Alain Badiou, Théorie du sujet. Paris : Le Seuil, 1982 e L’Être et l’Événement, op.cit. 1043 Alain Badiou, Abrégé de métapolitique. Paris: Seuil, 1998, p.33. 1044 Daniel Bensaïd, “Alain Badiou et le miracle de l’événement”, op.cit., p.163, 164.

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Os elogios e as críticas de Daniel Bensaïd dirigidas a Alain Badiou iluminam de modo

bastante interessante algumas das próprias aporias de sua reflexão sobre a relação entre história

e política, tencionado que estava entre a afirmação da centralidade da política e a preocupação

marxista em fundar essa política nas condições históricas que delimitam o campo dos possíveis,

em outras palavras, entre a reivindicação do “acontecimento” que bifurca a estrutura, que

interrompe a marcha da história, e a consideração dos fatores histórico-sociais que, em última

instância, e através de mediações sutis, os condiciona sem determiná-los por completo. Para

Bensaïd, se “a política passa à frente da história”, como disse Benjamin, isso não quer dizer que

ela, enquanto lócus de irrupção do acontecimento, prescinda da história, produzindo-se a si

mesma.

Na contramão dos marxismos “deterministas”, que tendem a “substancializar” algum

elemento do “social” como portador da emancipação, em detrimento da luta política, Bensaïd

compartilhou, nas décadas de 1990 e 2000, algumas das preocupações das “filosofias do

acontecimento”, cujo acento na ação que produz uma bifurcação histórica ajuda-o a repensar a

dialética do tempo1045. Vem daí a afirmação da necessidade de uma reabilitação da política não

apenas como forma de compreensão das práticas do presente, senão também daquelas do

passado. Bensaïd radicalizou assim, em sentido filosófico, a sua antiga reivindicação

leninista/lukacsiana da política/partido contra as estruturas reificadas, no final dos anos 1960

até meados dos 1970. Com isso, porém, tal como se pode ver no messianismo benjaminiano

por ele reivindicado, ele próprio muitas vezes recaiu, nas últimas duas décadas de vida, na

mesma petição de princípio em defesa da possibilidade do “acontecimento” (da bifurcação

revolucionária) contra uma estrutura histórica tida como imutável e insuperável.

Imperativo de resistência intelectual diante da apologia positivista ou hegeliana do fato

consumado, a política bensaïdiana, por mais “estratégica” e, portanto, ancorada na história que

ela pretenda ser, carrega uma reserva que poderia ser chamada de “teológica”, resquício da

aposta pascaliana, ainda que se trate de uma “teologia profanizada”, ou de uma “religiosidade

ateia”, como diz Bloch. Quando busca a todo custo secularizar o pensamento político-filosófico

de Benjamin, Bensaïd parece estar tentando expiar os estilhaços teológicos que, “sem se deixar

ver”, como afirmou Benjamin, se inscrevem no seu próprio pensamento político-filosófico. Por

mais imanente que seja, em tese, a “política profana” a que se apega Bensaïd não está livre da

1045 Cf., a propósito, o artigo – redigido a quatro mãos: Darren Roso & Fabio Mascaro Querido, “Daniel Bensaïd,

une politique de l’opprimé. De l’actualité de la révolution au pari mélancolique”, especialmente a seção “La

dialectique entre événement, politique et histoire: à la recherche d’une ‘nouvelle immanence’”, in: Révue Période,

2015. Disponível em: http://revueperiode.net/daniel-bensaid-une-politique-de-lopprime-de-lactualite-de-la-

revolution-au-pari-melancolique/.

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necessidade de algum princípio “ético”, às vezes “transcendente”, capaz de se opor à atmosfera

paralisante da época, segundo ele mesmo revela em seu elogio da resistência como ponto de

partida para um recomeço não do zero, mas “do meio” – fórmula deleuziana por ele

frequentemente citada.

Mesmo porque, como argumenta o sociólogo Razmig Keucheyan, a presença de

numerosas referências religiosas (em especial cristãs ou judaicas) constitui um dos traços

distintivos dos “novos pensamentos críticos”1046. Pela primeira vez, longe de se circunscrever

a alguns autores específicos (Bloch, Benjamin, Goldmann), uma dimensão “teológica”, no

sentido amplo, percorre a reflexão de alguns dos principais intelectuais “críticos” (marxistas ou

não) contemporâneos, como Zizek, Negri, Agamben, além de Badiou, sem falar nos próprios

Michael Löwy e Daniel Bensaïd1047. A tal ponto que a forma através da qual os “novos

pensadores críticos” teorizam o religioso tornou-se uma “questão estrategicamente crucial”.

Para Keucheyan, em um contexto marcado por um certo “retorno do religioso” no campo

político, um aspecto comum que delimita o eixo das apropriações religiosas realizadas pelos

novos pensadores críticos é exatamente aquele da “crença”, ou seja, da necessidade de seguir

“apostando” quando as circunstâncias parecem “radicalmente hostis”. Afinal, “como continuar

a acreditar na viabilidade do socialismo quando os fatos invalidaram brutalmente, e por diversas

vezes, essa ideia?”. Na opinião de Keucheyan, “a teologia oferece relevantes recursos para

pensar esse problema – acreditar no inexistente é sua especificidade”, o que explicaria seu poder

de atração dentre os novos pensadores críticos, seja para explicitamente valorizar o seu aporte,

como Michael Löwy, ou para, participando da atmosfera comum, clamar por sua “profanação”,

como no caso de Bensaïd1048.

Posicionando-se em relação à filosofia de Badiou, em oposição à teologia que lhe estaria

implícita, Bensaïd parece ter em mente alguns dos “perigos” subjacentes à sua própria filosofia

política benjaminiana, focada, ela também, na valorização do “acontecimento” sob a forma da

“interrupção”. Tanto quanto Badiou, ou quase, Bensaïd reconheceu, particularmente após sua

inflexão benjaminiana, a dimensão contingente, imprevisível, da emergência do acontecimento

revolucionário, cuja preparação histórica não elimina o seu caráter intempestivo. Até mesmo o

1046 Razmig Keucheyan, Hémisphère Gauche. Une cartographie des nouvelles pensées critiques, op.cit., p.44, 45. 1047 Cf., por exemplo, Slavoj Zizek, Fragile absolu. Pourquoi l’héritage chrétien vaut-il d’être defendu?. Paris:

Flammarion, 2008 e Alain Badiou, São Paulo, a fundação do universalismo. São Paulo: Boitempo Editorial, 2009. 1048 Razmig Keucheyan, Hémisphère Gauche..., op.cit., p.47. Para Jameson, em comentários aos Espectros de

Marx, de Derrida, o messianismo constitui uma forma singular de esperança que “floresce nos períodos de

desesperança absoluta”, tal como após a apostasia de Sabataï Tsevi ou nos anos 1980, após o obscurecimento das

expectativas revolucionárias. Cf. Fredric Jameson, in: Jacques Derrida, Fredric Jameson, Antonio Negri, Terry

Eagleton et al, Ghostly Demarcations: A Symposium on Jacques Derrida's Specters of Marx (Radical Thinkers).

Londres: Verso, 1999, p.62.

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seu conceito coringa de “estratégia” exprime algo dessa percepção, na qual a política

revolucionária, longe de acompanhar as leis da história, se estabelece ao contrário como lócus

de preparação de um acontecimento porém irredutível na sua contingência relativa. Nessa

perspectiva, o próprio Lênin passa a ser visto como um dos mais brilhantes na arte estratégica

de aproveitar o momento oportuno, antever e preparar o acontecimento revolucionário. De

Benjamin a Lênin, a razão estratégica pregada por Bensaïd não escapa, assim, da sua “garantia”

messiânica, utopia que não diz seu nome.

É por isso que, às vezes, quando se lê a crítica de Bensaïd a Badiou, tem-se a impressão

de que alguns dos argumentos por ele imputados ao colega serviriam, guardadas as devidas

proporções, para questionar algumas de suas próprias fórmulas “benjaminianas”, também

percorridas, tanto quanto as de Badiou, pelo imperativo ético-político da “fidelidade” à “aposta”

na possibilidade improvável do “acontecimento”. Tanto que, em alguns momentos, a polêmica

parece um pouco forçada, artificial, como se se tratasse de uma divergência entre dois polos

conflitantes de um mesmo quadro geral de interesse1049. Como diz o próprio Alain Badiou, “ele

(Bensaïd) me acusava de ser um teólogo disfarçado do acontecimento milagroso, e eu o acusava

de ser um determinista endurecido da história monumental”. Mas, “ao mesmo tempo”, escreve

o filósofo francês, “ele sempre reconheceu que as coisas se produziam amplamente por acaso,

e eu sempre dediquei a maior atenção à lógica da história. Em suma, tratava-se de uma questão

de hierarquia no pensamento do tempo”1050.

O próprio Alain Badiou, aliás, no bonito discurso que realizou por ocasião das

homenagens pós-morte a Daniel Bensaïd, dá a entender que este exagerava algumas das

divergências filosóficas, como se buscasse demarcar a incompatibilidade política entre os dois,

um mantendo-se fiel a uma versão renovada da perspectiva marxista revolucionária, o outro

passando do voluntarismo maoísta a uma posição libertária idiossincrática. Aos olhos de

Badiou, porém, “para ele como para mim, a relação da filosofia com a política tem como

condição a própria política. As coisas não vão da filosofia à política, mas da política real à

filosofia”1051. A divergência, de fato existente, situar-se-ia, assim, na forma como, para cada

um deles, “a política se articula quando a visão geral é aquela da emancipação, quando a Ideia

é aquela do comunismo, mas os agentes históricos do processo real não estão claramente

1049 Tive a oportunidade de discutir exaustivamente esse ponto com Razmig Keucheyan, com quem muito aprendi,

na entrevista que com ele realizei em Paris, em agosto de 2014. 1050 Alain Badiou, “Le compagnon lointain”, in: Lignes, n.32 (Daniel Bensaïd), 2010, p.21, 22. Trata-se da

reprodução do discurso que Badiou realizou na homenagem a Daniel Bensaïd na Mutualité, em Paris, em janeiro

de 2010, dias depois da morte do colega. 1051 Idem, p.23.

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designados ou constituídos por uma análise objetiva”. Em outros termos, “qual o vínculo entre

a filosofia e a política quando se está convencido que ‘política’ quer dizer ‘política de

emancipação’ ou ‘política revolucionária’, pouco importam as palavras?”1052.

Como Badiou afirma em uma entrevista realizada pelo próprio Bensaïd, publicada na

revista Contretemps em 2006, “se se admite que a filosofia é a serva das verdades,

identificando-as na sua forma e examinando sua contemporaneidade, então é fato que ela é

também serva das verdades políticas”, razão pela qual “ela contribui à mudança do mundo”1053.

Para Bensaïd, aí reside um dos problemas da reflexão badiousiana: há uma reflexão sobre a

“verdade política”, mas jamais sobre a “opinião política”, relegada ao plano do sofismo típico

da política parlamentar. Aos olhos de Bensaïd, e este é um dos perigos da “política” de Badiou,

já que uma política democrática, em especial quando se trata de uma política radicalmente

transformadora, se move também no terreno das “verdades relativas” de que falava Lênin. É

como se, na ótica de Bensaïd, a relação entre filosofia e política, abertamente reivindicada, se

circunscrevesse, em Badiou, a uma relação abstrata, sempre sob o primado da primeira,

responsável por estabelecer o vínculo exato entre “verdade”, “acontecimento” e mundo “real”.

Ao menos em tese, a “razão estratégica” evocada por Bensaïd não “pensa” a política,

como o faz a filosofia de Badiou, ela já é, em si, política e histórica a um só tempo. A

emergência do acontecimento depende de suas próprias condições (históricas e políticas) de

possibilidade, e não da “intervenção interpretante” a posteriori do filósofo. Em Badiou, assim,

na opinião de Bensaïd, à recusa em conceber a possibilidade de uma “verdade histórica”

(política) segue-se o recurso a um universalismo platônico da Ideia pura portada por aqueles

poucos afortunados que lograram sair da caverna. Estabelecida “a ligação entre a graça do

acontecimento (grâce événementielle)” e “a universalidade da verdade”, o “acontecimento” se

aparenta, como argumenta Bensaïd, à “revelação”, através de um processo imanente de

subjetivação fundado sob o imperativo categórico de uma “fidelidade por injunção lógica”:

Badiou cederia, então, à tentação de substituir a ortodoxia política por uma ortodoxia

filosófica”1054.

Alain Badiou, por sua vez, sustenta que, apesar da utilização de metáforas religiosas, a

fim de evitar os jargões tradicionais da extrema-esquerda, o acontecimento não se encontra,

para ele, “desenraizado”: ele é “inteiramente atribuível ao mundo singular”. Segundo Badiou,

o que ele rechaça não é a historicidade singular do acontecimento e/ou da política, mas sim as

1052 Idem, p.25. 1053 “Entretien avec Alain Badiou par Daniel Bensaïd”, in: Contretemps, n°15 (Clercs et chiens de garde), 2006. 1054 Idem, s/p.

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tentativas de, através da noção de História, “totalizar as situações em uma visão de conjunto na

qual a política terá de se inscrever, às vezes mesmo dela derivar”. Para Badiou, era preciso

“libertar a política da tirania da história a fim de abri-la para o acontecimento”, porque “a

história não existe, mas somente a ocorrência periodizada dos apriori do acaso”1055. E não seria

exatamente esta – “libertar a política da tirania da história” – uma das tarefas centrais da

reflexão benjaminiana de Bensaïd, assentada no preceito de que “a política prima sobre a

história”, conforme afirma o filósofo alemão nas Passagens? Aos olhos de Benjamin, “não há

um só instante que não carregue consigo a sua chance revolucionária”, a qual “se confirma a

partir da situação política. Mas ela se lhe confirma não menos pelo poder-chave desse instante

sobre um compartimento inteiramente determinado, até então fechado, do passado. A entrada

nesse compartimento coincide estritamente com a ação política; e é por essa entrada que a ação

política, por mais aniquiladora que seja, pode ser reconhecida como messiânica”1056.

Messiânica também porque “liberta a política da teoria da história”.

A bem dizer, em seu diálogo crítico com Badiou, Bensaïd acaba explicitando sua relação

ambivalente, desde a passagem para os anos 1990, com a herança marxista “clássica” (leninista-

trotskista), a qual jamais renegou, buscando “oxigená-la” diante das questões da época. De

acordo com o próprio Badiou, um dos objetivos “políticos” do intelectual Bensaïd é desvincular

“o tema leninista do partido de sua imagem marxista-leninista e de seu mito stalinista”,

insistindo, para tanto, na “porosidade do acontecimento” e na “flexibilidade dispersiva sob o

fogo do imprevisível”1057. Com efeito, ao mesmo tempo em que se revelou “aberto” às

interpelações das filosofias contemporâneas do “acontecimento”, de Deleuze e Foucault a

Derrida e Badiou, bem como às sociologias críticas de Bourdieu e Corcuff, até por uma questão

de inserção nos debates à esquerda no campo intelectual francês, Bensaïd continuou a defender,

à luz da tradição clássica do marxismo, a necessidade da consideração das condições históricas

de possibilidade e, não por acaso, da preparação a longo prazo do “acontecimento”

revolucionário. Por isso, mesmo no final de sua vida, ainda leninista (“libertário”1058), Bensaïd

seguia vendo no conceito de crise revolucionária (analisado na sua dissertação de mestrado em

1968) uma noção estratégica capaz de articular o necessário e o contingente, as condições

históricas e o acontecimento imprevisível.

1055 Alain Badiou, Peut-on penser la politique?. Paris: Seuil, 1985, p. 1. 1056 Walter Benjamin, “Teses sobre o conceito de história”, op.cit., p.134 (tese XVIIa). 1057 Alain Badiou, Abrégé de métapolitique, op.cit., 89. 1058 Cf. Daniel Bensaïd, “La hipótesis de un “leninismo libertario” sigue siendo un desafío de nuestro tiempo.

Entrevista con Daniel Bensaïd por Jorge Sanmartino”, in: Democracia Socialista, 2006. Disponível:

http://www.democraciasocialista.org/?p=2562.

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Desta perspectiva relativamente “ortodoxa”, a “hipótese comunista” de Badiou aparece

como um “comunismo hipotético”, “que perde em precisão histórica e política o que ganha em

extensão (e em eternidade) filosófica”1059. Comunista “no sentido genérico”1060, como ele

próprio reivindica, Badiou não lograria, na ótica de Bensaïd, escapar aos impasses das

“antipolíticas do contrapoder” que emergiram simultaneamente ao tournant vers l’événement a

partir dos anos 1970, processo que teve nas figuras de Foucault e Deleuze suas expressões mais

célebres1061. A filosofia de Alain Badiou constituir-se-ia, assim, mais do que uma saída para as

crises contemporâneas da “historicidade moderna” e das “estratégias de emancipação”, em

expressão destas crises, de tal modo que alguns dos becos-sem-saída de sua reflexão seriam,

acima de tudo, limites da própria história da época, à qual, ao invés de confrontar, ele acabaria

por legitimar. Daí, segundo Bensaïd, a tentação antipolítica (ou antihistórica) da filosofia

badiousiana de sua fase pós-althusseriana.

Para o “intelectual militante” ou “militante intelectual” Daniel Bensaïd, uma “política

estratégica”, por mais “messiânica” e “profética” que seja ela, deve estar sempre fundada na

política “concreta”, para além do elogio místico ao “acontecimento” incondicionado. Ela não

deve se furtar, desde já, por exemplo, a refletir sobre o sentido do poder socialista-democrático,

em outras palavras, sobre a relação entre o “poder constituinte” e o “poder constituído”, antes

e depois de um processo de transformação revolucionária. É em função dessa preocupação com

a dialética entre poder constituinte/instituinte e poder constituído/instituído que Bensaïd dialoga

com Antonio Negri, apesar das divergências que, de resto, demarcam as posições dos dois

intelectuais. De acordo com Bensaïd, “na medida em que instala uma temporalidade específica,

a ‘liberdade constituinte’ excede a verdade efêmera do acontecimento”, movendo-se em meio

à “unidade contraditória do acontecimento e da história, do constituinte e do constituído”1062.

Neste “poder constituinte”, eixo da liberdade de uma política socializada, encontrar-se-ia, para

Negri, o “movimento real” do “comunismo”, enquanto “poder de resistência ao poder instituído

e tirânico do capital”1063.

O problema, para Bensaïd, é que, ao reproduzir o “discurso da subversão pós-moderna”,

Negri permanece “isomorfo” ao novo espírito, “flutuante e híbrido”, do capitalismo,

invalidando a possibilidade (e a “desejabilidade”) da política revolucionária. Assim, uma vez

1059 Daniel Bensaïd, “À propos de L’Hypothèse communiste”, in: Politis, n.1058, 25 junho de 2009. 1060 “Entretien avec Alain Badiou par Daniel Bensaïd”, op.cit., s/p. 1061 Daniel Bensaïd, “Grandeurs et misères de Deleuze et Foucault”, in: Arquivos pessoais, 2008. 1062 Daniel Bensaïd, “Antonio Negri et le pouvoir constituant”, in: Résistances, op.cit., p.193. 1063 Idem, p.197. Cf. Antonio Negri, Le pouvoir constituant. Essai sur les alternatives de la modernité. Paris: PUF,

1997.

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mais, à imanência radical autoproclamada segue-se uma profissão de fé em defesa da

emancipação aparentemente longe do horizonte real. Se, para Badiou, é o universalismo de São

Paulo que pode delimitar o novo “militante comunista”, pós-bolchevique, em Negri esta função

é ocupada pela figura de São Francisco de Assis. Em ambos os casos, escreve Bensaïd, “uma

política revolucionária não-encontrável tende a se transmutar em estranha mística sem

transcendência”1064. Mais estranha ainda porque seria perfeitamente possível “encaixar” o

próprio Bensaïd – com seu elogio da figura idealizada do “marrano” – nesta designação, para

além de qualquer juízo de valor.

Não surpreende que, no quadro desta reflexão sobre a política e, mais, sobre a

legitimidade imanente de uma política revolucionária, Daniel Bensaïd incorpore a obra de um

autor como Carl Schmitt, autor para o qual “todos os conceitos pregnantes da teoria moderna

do Estado são conceitos teológicos secularizados”1065. Um dos “neoschmittianos de esquerda”

contemporâneos, ao lado de Giorgio Agamben, Étienne Balibar e do próprio Toni Negri,

conforme a designação de Jean-Claude Monod, Bensaïd buscou em Schmitt argumentos para

uma legitimação especificamente política do “acontecimento” revolucionário, ou da

emergência de um novo poder constituinte1066. Imanente, a decisão política se funda na

“soberania [...] daquele que decide sobre a situação excepcional”. À diferença da “ditadura de

comissários” (que visa preservar a ordem existente), a “ditadura soberana” (visando à

constituição de uma nova ordem jurídica) implica a adoção da decisão “excepcional”: uma vez

que o novo direito não pode nascer do antigo, a revolução – momento de interrupção – exige

um desvio indispensável pelo “estado de exceção”, pelo “verdadeiro estado de exceção” de que

falava o também schmittiano de esquerda Walter Benjamin. Ocorre que, para Schmitt, e, em

certa medida, para Benjamin, “a situação excepcional tem para a jurisprudência o mesmo

significado que o milagre para a teologia”1067.

Mais uma vez, portanto, em seu “elogio da política profana”, eixo de suas críticas a

intelectuais “resistentes” e “convertidos” que, malgrado as diferenças entre si, acabam

contribuindo para o “retorno do sagrado” contemporâneo, Bensaïd não escapa à esperança em

uma interrupção “miraculosa” da história. Sua política “profana” não escapa, ela também, aos

influxos da esperança “teológica”, dada a imprevisibilidade do acontecimento entretanto

“preparado”. Ainda que articule essa esperança às preocupações tradicionais da esquerda

1064 Idem, p.211, 212. 1065 Carl Schmitt, Théologie politique (1922). Paris: Gallimard, 1988, p.46. 1066 Jean-Claude Monod, Penser l’ennemi, affronter l’exception. Réflexions critiques sur l’actualité de Carl

Schmitt. Paris: La Découverte, 2006. 1067 Carl Schmitt, Théologie politique (1922), op.cit., p.46.

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político-intelectual marxista, um elemento de “aposta” no (ainda, acredita-se) inexistente

permanece, aposta para a qual não existe nenhuma certeza ou garantia, razão pela qual a

“crença” assume papel fundamental.

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9. O despertar da esquerda radical

9.1. O novembro de 1995 francês e o renascimento da LCR

Nas fileiras da LCR, em grande medida pela iniciativa político-intelectual de Daniel

Bensaïd, passados os acontecimentos de 1989-1991, um ciclo se fecha, e mesmo que um novo

ainda não tenha sido aberto (o que ocorreria, de fato, a partir de 1995), era necessário começar

a enfrentar os novos dilemas, depois de uma década, os anos 1980, na qual a organização não

cessou de colher decepções. Por questão de sobrevivência política, se em um “novo período”

havíamos adentrado, um “novo programa” fazia-se necessário, cuja mise en œuvre resultaria na

formação de um “novo partido”, mais amplo, um “partido anticapitalista de massas”. Sob essa

consigna tripla (“novo período”, “novo programa”, “novo partido”), a LCR, no nível mais baixo

dos seus efetivos militantes, buscava preparar-se para um novo recomeço, que, naquele

momento, era ainda impossível vislumbrar.

Talvez em um dos momentos mais difíceis da Liga (e da vida de Bensaïd, que acabara

de descobrir sua doença), a direção da organização buscou reabrir o debate estratégico (qual

socialismo, qual democracia, qual revolução etc.), mais além da tradição leninista-trotskista,

permitindo, assim, um reposicionamento ainda frágil no cenário político francês, marcado,

como em boa parte do mundo, pela ofensiva neoliberal. Conforme se pode observar no

documento À gauche du possible – sem dúvida redigido por Daniel Bensaïd1068 –, este

reposicionamento implicava uma abertura ainda maior para os “novos movimentos sociais”,

numa postura que possibilitaria à organização estar relativamente bem preparada no momento

da eclosão das greves de novembro e dezembro de 1995. Desde então a LCR defendia um

“socialismo democrático, ecologista, feminista e autogestionário”. Se desde meados da década

de 1970, malgrado a retórica ultra-leninista, a Liga já se caracterizava, à diferença das outras

correntes trotskistas, por uma certa porosidade em face dos movimentos sociais, essa marca de

distinção (cuja flexibilidade valeu-lhe o epíteto de “pequeno-burguesa” por seus concorrentes)

se consolidou e se intensificou a partir do início dos anos 1990 e, particularmente, a partir de

1995.

O grande movimento social de 1995 significou, não apenas para a Liga, a abertura de

um novo ciclo de lutas e mobilizações sociais, essencialmente de resistência à ofensiva

1068 Há passagens desse documento quase idênticas a alguns trechos de livros/textos de Daniel Bensaïd. O próprio

título do texto (À gauche du possible) remete ao subtítulo do livro de Bensaïd sobre Walter Benjamin (Sentinelle

messianique), que havia sido publicado em 1990.

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neoliberal, estimulando, em todo caso, com a vitória das greves contra a reforma da previdência

proposta por Alain Juppé (primeiro-ministro de Jacques Chirac), a emergência política de uma

nova geração militante, a qual seria determinante para dar novo fôlego à organização então

combalida. Para a LCR, 1995 marcou igualmente o fim de uma verdadeira travessia no deserto

– ao longo da qual não poucos sucumbiram: desde o auge em 1976/77, quando quase atingiu a

barreira dos 4000 militantes, além de um número considerável de simpatizantes próximos nos

Cercles Rouge, a organização não cessara de diminuir em quantidade de membros. Não foi fácil

para a Liga enfrentar esse período, entre o final dos anos 1970 e toda a década de 1980,

culminando com os acontecimentos de 1989-1991, e se ela resistiu bem melhor do que as outras

organizações da extrema-esquerda francesa, isso se deveu em grande medida à inserção de seus

militantes nos movimentos sociais1069.

Após um período em que os militantes, esperançosos na atualidade (se não iminência)

da revolução, impregnados que estavam do sentido de urgência bem exprimido na fórmula de

Bensaïd: “A história nos mordia a nuca” (algo como o “Corram camaradas, o velho mundo está

atrás de vocês”, dos militantes de 68), o refluxo das perspectivas revolucionárias, consolidado

em 1983/41070, com a ausência de qualquer dinâmica de massa capaz de ocasionar um

“transbordamento” das direções reformistas, tornavam as coisas bastante difíceis para

militantes que, de repente, se viram sem profissão, sem emprego e, pior, sem a revolução que

tanto ansiavam1071. Nem todos podiam, ou queriam, seguir o caminho dos “ex” célebres da

Liga, muitos dos quais deixaram a organização nessa época, tais como, além do já mencionado

Edwy Plenel, que jamais renegou seu passado militante, Julien Dray e Harlem Désir, fundadores

do SOS Racismo em 1984 e membros do PS1072, sem falar em Henri Weber, François

Rebsamen, além de muitos outros integrados nas benesses mitterrandianas. Para vários dos

agora ex-militantes da LCR, o desengajamento era vivido de forma violenta, se não traumática,

em proporções inversas à dimensão das antigas esperanças. Para mais de uma dezena de ex-

1069 Florence Joshua, De la LCR au NPA (1966-2009)…, op.cit., p.55. 1070 O declínio começa, na verdade, alguns anos antes. Em 1980, por exemplo, longe dos 3800 militantes de 1976,

a organização contava com apenas 1800 membros. Mas a esperança de que a eleição de Mitterrand (a quem a Liga

apoiou no segundo turno), como efeito retardatário de 1968, poderia reavivar uma dinâmica de lutas para além das

direções reformistas, tal como formulada no V Congresso em 1981, manteve a organização em uma linha ofensiva, à espera da emergência de uma possível situação revolucionária. Essa orientação, sustentada pela maioria da

direção (Krivine e Bensaïd incluídos) seria explicitamente questionada no VI Congresso, em 1983/4. Nesse

momento, a desorientação é tamanha que se cria um consenso em torno da “crise organizacional” pela qual passava

a Liga. Cf. Florence Joshua, De la LCR au NPA (1966-2009)…, op.cit., p.123, 124. 1071 Com o fechamento de Rouge quotidien em 1979, por exemplo, dezenas de pessoas tiveram que ser dispensadas

dos efetivos profissionais da Liga. 1072 Cf. Juhen Philippe, “Entreprendre en politique. De l’extrême-gauche au PS : la professionnalisation de la

politique des fondateurs de SOS-Racisme”, Revue Française de Science Politique, n.1-2, 2001, pp.131-153. À

diferença dos maoístas, por exemplo, não houve dentre os ex-trotskistas um engajamento franco e direto à direita.

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militantes, a descrença na nova vida, associada à decepção com as irrealizações da antiga, gerou

uma reação drástica à reconversão necessária: o suicídio1073. O caso mais conhecido é o de

Michel Recanati (Ludo), em 1980, ao qual seu amigo Romain Goupil (também militante da

Liga) dedicou um belo filme, Mourir à trente ans1074.

Exatamente porque possibilitou um diálogo da organização com uma nova geração

militante, o ciclo aberto em 1995 significou o fim do calvário, por assim dizer, para a Liga,

depois de 15 anos de uma situação bastante difícil, na qual ela teve que contar, para sua

continuidade, não apenas com a “resistência” militante de algumas figuras que continuaram na

direção da organização (como Krivine, Bensaïd, Filoche até 1994, e outros) senão também da

disposição dessas figuras em “adaptar-se” (com ou sem sucesso, dependendo do ponto de vista),

ainda que com atraso, às novas realidades que se apresentavam. Foi isso que possibilitou à

organização tornar-se a corrente política que, no âmbito da esquerda radical, melhor expressou

os sentimentos de alguns setores combativos das novas lutas sociais que se desenvolviam.

Assim, a partir de 1995, dá-se início, no interior da Liga, ao que Florence Joshua

designa, em sua tese de doutorado (um estudo de sociologia política do engajamento), como

“metamorfose” do engajamento militante, em um processo que ganhou novo fôlego em 2002,

com a eleição presidencial na qual o candidato da organização, o jovem Olivier Besancenot

(então com apenas 27 anos), recolheu 4,25% dos sufrágios, ou seja, 1 milhão e duzentos mil

votos1075. Após a eleição, com o fenômeno Besancenot em alta midiática, a LCR dobrou seus

efetivos em apenas alguns meses, passando de 1500 para cerca de 3000 militantes. Formado

em história, mas carteiro de profissão, Besancenot, que havia aderido à Liga em 1988, exprimia

como nenhuma outra figura do momento os anseios de uma geração de jovens que, à diferença

daquela de Bensaïd, Krivine ou Löwy, caracteriza-se por uma mobilidade social descendente

tanto em relação à geração dos pais quanto em face do nível de estudos conquistado, acometida

1073 Cf. Florence Joshua, De la LCR au NPA (1966-2009)…, op.cit., p.126, 7. 1074 O suicídio de Ludo, porém, vincula-se a questões mais complexas do que a mera decepção com a revolução

que não veio. Membro do Serviço de Ordem da Liga em 1973, ao lado de Bensaïd, Ludo chegou a ser preso por

ocasião dos confrontos com a polícia e com os militantes da Ordem Nova no célebre meeting “contra a imigração

selvagem” na Mutualité. Desde então, entrou em uma espiral depressiva, retirando-se do CC da Liga em 1975 e

dela se afastando progressivamente. 1075 Na mesma eleição a eterna candidata de Lutte Ouvrière, Arlette Laguiller, obteve 5,72% dos votos. Em função

de sua ótica “obreirista”, LO não se tornou, como a LCR, um polo de atração para a nova juventude radicalizada.

A eleição do dia 21 de abril de 2002 ficou marcada, pelo lado negativo, pelos quase 5 milhões de votos (16,86%)

recolhidos pelo candidato da extrema-direita (Frente Nacional) Jean-Marie Le-Pen, levando-o ao segundo turno

contra Jacques Chirac (do Rassemblement pour la République). O candidato do PS, o outrora primeiro-ministro

Leonel Jospin (ex-trotskista-lambertista), recebeu 16,18% dos votos. No segundo turno, com o apoio consensual

mesmo de partes da extrema-esquerda, Chirac foi eleito com 82,21% dos votos. Em 1999, em uma lista conjunta,

LCR e LO conseguiram eleger 5 deputados para o Parlamento Europeu, dentre eles Laguiller pela LO e Alain

Krivine pela LCR. Ambos foram deputados europeus até 2004.

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que está pela precarização laboral e pelo desemprego estrutural. Após 2002, o percentual de

membros do partido com menos de 30 anos subiu a 40% e aqueles com menos de 40 anos a

60%! Em 2006, 67% dos militantes haviam ingressado na LCR depois de 1995, e 45% depois

de 20021076. A Liga, que nascera como uma organização fundamentalmente composta de

jovens, parecia, quase 4 décadas depois, voltar às origens, desta vez em um novo ciclo político,

o que não deixa de sublinhar a sua capacidade de se “reinventar” em face de um novo período

histórico. A diferença é que, agora, ao lado da manutenção da sobrerepresentação de

professores, intelectuais e assalariados “intermediários” (em especial do serviço público),

houve um nítido crescimento da adesão de militantes oriundos das categorias populares,

sobretudo empregados do setor privado.

A nova composição social daí resultante, marcada por uma maior heterogeneidade

social, política e cultural, acabou por criar uma sobreposição, no âmbito da Liga, como bem

demonstrou Florence Joshua, de estratos e gerações militantes diferentes – pela primeira vez,

após 2002, a geração de Krivine e de Bensaïd, os soixante-huitards, tornou-se minoritária

dentro da organização. Ora, como nem poderia deixar de ser, essa nova composição social e

geracional impactou diretamente a dinâmica militante da organização, estimulando

modificações importantes nas suas formas de recrutamento, nas formas de reprodução

ideológica do engajamento, bem como no modelo, nas práticas e nos habitus militantes etc.

Momento de reorientação estratégica, tratava-se também de um momento profícuo à atualização

e/ou renovação das referências “identitárias”, em meio ao seu reposicionamento no cenário

político francês.

Com a eleição presidencial de 2002, a LCR lograva se reinstalar na vida política francesa

– a tática de participação sistemática nas eleições, sob a consigna “100% à esquerda” havia

rendido, parcialmente, os seus frutos. A organização se consolidava, no plano político, como

um dos atores mais ativos e radicais da resistência antiliberal em curso, beneficiando-se

parcialmente do fracasso da esquerda social-liberal representada por Lionel Jospin/PS. A

despeito do (auto) triunfalismo, Alain Krivine apenas constata um fato quando diz que “o

resultado de Olivier Besancenot em 2002 – mais do que Robert Hue, candidato do PCF –

representou uma etapa importante uma vez que permitiu instalar a Liga na paisagem política e

confirmar sua credibilidade nos movimentos sociais”1077. Como disse François Sabado, outra

1076 Esses dados foram apresentados por Florence Joshua, em sua tese De la LCR au NPA (1966-2009)…, op.cit.,

p.76, 82. 1077 Alain Krivine, Ça te passera avec l’âge, op.cit., p.198.

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figura história da organização, em uma entrevista de dezembro de 2002 à revista Nouvel

Observateur, em exagero não sem alguma verdade: “antes de Olivier [Besancenot] éramos

russos, definidos pela revolução de outubro, pela URSS, por nossa oposição ao stalinismo. Com

ele [Besancenot], nos tornamos franceses. Pudemos nos inscrever de modo duradouro na

paisagem [política]”1078.

Um indício desse enraizamento na vida política francesa, em especial nos anos 2002,

pode ser conferido na reação provocada em alguns círculos intelectuais e jornalísticos liberais

e/ou conservadores, preocupados com essa “paixão francesa” que seria o trotskismo1079. Para

revistas tais como Le Débat, Communisme ou L’Histoire, essa resiliência do “enigma

trotskista”1080, particularmente da Liga, significava um perigo para o sistema democrático1081.

Em 2008, por exemplo, em um boletim da Fondation Jean Jaurès (cujo nome engana), o autor,

Jérome Fourquet, toma o cuidado de alertar para “a ameaça bem real” representada por Olivier

Besancenot1082. Philippe Raynaud, por sua vez, em L’extrême gauche plurielle. Entre

démocratie radicale et révolution, questiona se esse poder de resistência da extrema-esquerda

seria uma “exceção francesa”. Para ele, tal fenômeno se explica em ampla medida pela

vitalidade de uma cultura anticapitalista e antiliberal no país, vitalidade no seio da qual, nos

anos 1990 e 2000, a extrema-esquerda agora rebatizada de “esquerda radical” logrou se

reinventar, assim como pela produtividade “teórica” da extrema-esquerda, capaz de mobilizar

os mais diferentes temas, alcançando assim certa legitimidade cultural e intelectual para além

das suas fronteiras1083.

Nas palavras de Raynaud, a legitimidade dessa esquerda radical contemporânea,

inscrevendo-se na atmosfera de “desconfiança generalizada” em relação ao liberalismo,

“provém de sua capacidade em apresentar sob uma forma incandescente e violentamente

polêmica temas ou teses bastante difundidas para além dos seus círculos militantes, quer se trate

de política internacional ou de questões de costumes ou de sociedade”1085. Se, nos anos 1980,

1078 Entrevista com François Sabado. Le Nouvel Observateur, n.1987, 5-11 dezembro, 2002, p.57. 1079 Cf. Marc Lazar, “Le trotskisme, une passion française”, L’Histoire, n.285, 2004. 1080 Cf. a mesa redonda “L’enigme trotskiste” (Le Débat, n.123, janeiro-fevereiro 2003, pp.99-111), com a participação de Stéphane Courtois, Marcel Gauchet, Krysztof Pomian, Bernard Poulet, Philippe Raynaud. 1081 A reação poderia vir igualmente de ex da Liga convertidos à socialdemocracia, tal qual Henri Weber que, em

2004, publicou o opúsculo Lettre recommandée au facteur (Paris: Le Seuil, 2004), em que tecia fortes críticas ao

bolchevismo new-look de Besancenot e da Liga, que no fundo ainda estariam dentro de uma “lógica da década de

1930”, na qual as reivindicações mais diversas são agrupadas em torno de um objetivo mais ou menos invariável. 1082 Jérome Fourquet, “Une menace bien réelle. Évolution de la popularité et de l’implantation d’Olivier

Besancenot”, Fondation Jean Jaurès, n.12, 2008. 1083 Philippe Raynaud, L’extrême gauche plurielle. Entre démocratie radicale et révolution, op.cit., pp.7-13. 1085 Idem, p.10.

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a luta contra o racismo (e a ascensão da extrema-direita) e em defesa dos “sem-direitos” (os

sans-papiers, os sem teto, as minorias sexuais etc.) pautou grande parte das atividades dos

grupos da esquerda radical1086, o novo ciclo de mobilizações inaugurado em 1995, sinalizando

o retorno da “questão social”, no quadro da luta contra o neoliberalismo, permitiu-lhe, segundo

Raynaud, reapresentar-se na cena política através de temas mais bem adaptados ao novo

contexto, caracterizado pela ascensão do “altermundialismo”1087. Embora seja o conjunto da

“esquerda radical” que é aqui visado, trata-se sem dúvida de uma descrição que se aplica à Liga

mais do que a outra corrente. Dentre as organizações da esquerda radical francesa, a LCR (como

vimos através das reflexões de Löwy e de Bensaïd) foi aquela que mais se associou às frentes

de luta abertas pela vaga altermundialista – não por acaso, um dos seus principais quadros

intelectuais, Christophe Aguiton, tornou-se igualmente um membro eminente da ATTAC –

França.

Essa radicalidade antiliberal, que começara em 1995, atingiria seu ponto culminante na

vitória do “não de esquerda” no referendum sobre o Tratado Constitucional Europeu, em maio

de 2005, com 54,87% dos votos válidos. Defendido por quase todas as organizações

posicionadas à esquerda do PS1088, o “não de esquerda” impulsionou uma campanha bastante

militante e unitária, sobre a base dos comitês de luta, abrindo uma nova conjuntura, profícua à

recomposição política “à esquerda da esquerda”, conforme a fórmula que surgiu naquele

momento1089. Essas novas condições geraram enormes expectativas em torno da possibilidade

de uma candidatura comum à esquerda do PS nas eleições presidenciais de 2007, a partir da

base unitária dos comitês de luta. Na ausência de acordo entre as partes – fracasso para o qual,

segundo alguns, a direção da LCR acabou por contribuir, direta ou indiretamente, esperançosa

de que o “capital político-eleitoral” de Olivier Besancenot lhe possibilitaria dirigir sozinha a

recomposição em curso –, a esquerda radical, unida em 2005, lançou nada menos do que 5

candidatos: José Bové (esquerda dos Verdes), Marie-George Buffet (PCF), Gérard Schivardi

(apoiado pelo PT, lambertista), Arlette Laguiller (LO) e Olivier Besancenot (LCR).

1086 O próprio Olivier Besancenot, por exemplo, começou a militar com 14 anos após um episódio de racismo por

ele presenciado, em 1988, em Louviers. Membro de SOS Racismo, ele adere à LCR em 1991, tornando-se membro do seu comitê nacional 7 anos mais tarde. Cf. Fabio Mascaro Querido. Entrevista com Olivier Besancenot, Port-

Leucate (França), 26 de agosto de 2014. 1087 Cf. Christophe Aguiton & Daniel Bensaïd, Le Retour de la question sociale. Le renouveau des mouvements

sociaux en France. Lausanne: Éditions Page deux, 1997. 1088 No PS, à exceção de correntes e/ou personalidades da esquerda do partido (como Jean-Luc Mélanchon, por

exemplo, que deixaria o partido para formar o Parti de Gauche em 2009), apenas Laurent Fabius e sua trupe,

dentre eles Henri Weber, declararam-se, após hesitação inicial, favoráveis ao voto contrário ao TCE. 1089 Antoine Artous & Francis Sitel, “Qu’est donc la Ligue devenue?”, in: Contretemps, n.24 (nouvelle série).

Paris: Sillepse, 2015, p.65.

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Confirmando inicialmente a aposta da direção da Liga, Besancenot foi quem melhor se saiu na

disputa interna da esquerda da esquerda: obteve 4,08% dos votos (com aumento de 280 mil

sufrágios em relação a 2002, devido à alta taxa de participação, 85%), enquanto Buffet teve

apenas 1,9% (ratificando o declínio eleitoral do PCF), Bové e Laguiller 1,3% cada, e Schivardi

0,34%1090.

Nitidamente fortalecida, em meio a um declínio eleitoral relativo dos concorrentes da

esquerda, a LCR busca aproveitar a nova dinâmica para, enfim, concretizar em posição

vantajosa a ideia de um “novo partido”, um partido “anticapitalista amplo”, como se dizia,

capaz de galvanizar o vácuo político à esquerda do PS, vácuo que, para Bensaïd e a LCR, os

reformistas não estariam mais em condições de ocupar. Desse processo e dessa expectativa

nasceria o Nouveau Parti Anticapitaliste (NPA), em fevereiro de 2009, com mais de 9000

militantes, 3 vezes mais que a Liga. Apesar do grande número de militantes “fundacionais”,

além da LCR, que se autodissolveu simultaneamente à criação do novo partido, apenas algumas

outras pequenas organizações representantes do trotskismo mais “ortodoxo” (como alguns

“morenistas”, ou dissidentes da LO) juntaram-se ao chamado de formação do NPA.

Também em 2009, por iniciativa do PCF e do recém-criado Parti de Gauche, liderado

por Jean-Luc Mélanchon, ex-membro da esquerda do PS, é criado o Front de Gauche (FG), de

início como uma frente para a disputa das eleições europeias daquele ano. Em seu congresso de

fundação, o NPA rechaçou qualquer possibilidade de aderir à FG. Nas eleições europeias de

2009, a primeira decepção: o NPA recolhe 4,94% dos votos, poucos sufrágios abaixo da

cláusula de barreira (5%), não elegendo nenhum deputado para o parlamento europeu. Enquanto

isso, a FG conquista 6,47% dos votos, elegendo 6 deputados, e ocupando, assim, um espaço

“reformista” à esquerda do PS “social-liberalizado” que a LCR/NPA pensava estar esgotado.

Nas presidenciais de 2012, após a saída de diversos grupos que adeririam à FG (como o coletivo

Ensemble), e a recusa de Besancenot de se apresentar de novo como candidato, sob argumento

razoável da não personalização, o candidato do NPA, Philippe Poutou, operário e militante da

CGT, recebeu apenas 1,15% dos votos; o candidato da FG, Jean-Luc Mélanchon, por sua vez,

após beirar os 20% em algumas pesquisas, recolheu 11,1% dos sufrágios, tornando ainda mais

1090 Jean-Paul Salles, “Du nouveau pour l’extrême gauche du côté des élections ? La séquence électorale 1995-

2008”. Dissidences. Trotskysmes en France, vol.6, 2009, p.195. Em 2008, pesquisas indicavam Besancenot como

a segunda personalidade política mais apreciada pelos franceses.

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estreito o espaço no qual o NPA pretendia se mover politicamente1092. Nas eleições europeias

de 2014, o partido não recebeu senão 0,39% dos votos1093.

9.2. Passagem de gerações: de Löwy e Bensaïd a Olivier Besancenot

Desde a virada para os anos 1990, Daniel Bensaïd reivindicou a necessidade de se

começar a debater um “novo programa” para um “novo partido”. Adquirindo corpo após o

renascimento das lutas sociais em novembro/dezembro de 1995, o projeto de um novo partido

ganhou fôlego renovado com a irrupção público-eleitoral da figura de Olivier Besancenot em

2002, e, depois, com a confirmação do seu “capital político” em 2007. O jovem Besancenot,

expressão das novas radicalidades anticapitalistas (com suas inclinações libertárias), atuava

como caução à real novidade do processo, buscando fazer da LCR/NPA o porta-voz de todas

as revoltas contra todas as opressões, sob o efeito de um afrouxamento estratégico deliberado.

A bem dizer, tanto Michael Löwy quanto, mais diretamente, Daniel Bensaïd foram atores

importantes nesse processo de resistência e de abertura diante de uma nova época1094.

Ambos tentaram, na realidade, como pudemos ver, potencializar a dimensão

anticapitalista desse novo ciclo de mobilizações altermundialistas, almejando compreendê-las

a partir de uma perspectiva marxista “aberta”, renovada, única forma de se colocar à altura das

motivações e demandas das novas gerações militantes. Não por acaso, após reticência inicial

de Bensaïd quanto à possibilidade de uma candidatura de Olivier Besancenot em 2002, cioso

1092 O que não significa, por sua vez, que a FG tenha passado incólume à crise mais geral da esquerda francesa como um todo, simultaneamente à ascensão da extrema-direita (FN) remodelada por um discurso “social-nacional”

– a FN, por exemplo, foi o partido mais votado nas eleições europeias de 2014, com 25% dos votos válidos. 1093 Em artigo muito recente, Pierre Rousset chega a sugerir que a morte de Daniel Bensaïd, em janeiro de 2010,

acabou por explicitar a crise da recém-criada organização. Para Pierre (filho de David Rousset, conhecido

resistente à ocupação nazista e militante político que havia sido fundador do POI trotskista, ao lado de Pierre

Naville, em 1936), Bensaïd era “a árvore que, por sua envergadura, escondia a ausência de floresta”. Na sua

opinião, que testemunha a importância que tinha Bensaïd entre os seus e as suas camaradas, “a continuidade

evolutiva de um pensamento marxista e de um engajamento radical estava rompida na França, talvez mais ainda

do que em alguns outros países europeus. Um ano apenas após sua fundação, a morte de Daniel foi uma grande

perda para o NPA”. Pierre Rousset, “Le NPA, sept ans après : projet, réalités, interrogations”, 2016. Disponível

em: http://www.europe-solidaire.org/spip.php?article37073. 1094 Nos anos 1990 e 2000, Löwy e, em particular, Bensaïd continuaram seguindo (de perto e de longe) os

desdobramentos do PT, sobretudo da tendência que compunha o SU, a DS, no âmbito da qual se identificavam

com as tendências mais à esquerda. Em 2005, em meio à polêmica no interior da DS sobre a continuidade da

participação ativa - ocupando ministério e secretárias - ou não no governo Lula (por eles caracterizado como

“social-liberal”), ambos escreveram, junto com o português Francisco Louçã, a “Carta à DS”, em que se opunham

à orientação adotada pela maioria da corrente, favorável à participação – Miguel Rosseto, da DS, era ministro do

Desenvolvimento Agrário. Mais tarde, a corrente acabou se dividindo, a maioria permanecendo no PT e no

governo, enquanto uma minoria – apoiada por Löwy, Bensaïd e Louçã – optou por se juntar ao PSOL, continuando

como seção brasileira da IV Internacional (SU).

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que estava em relação à forma de passar o bastão para a nova geração, tanto ele quanto Löwy

estabeleceram relação de muita proximidade com o jovem carteiro – seja por uma preocupação

mais propriamente organizativa no caso de Bensaïd, ou por uma afinidade político-intelectual

(marxista-libertária), em se tratando de Löwy.

Através da figura de Besancenot, a LCR avançava em um processo de radicalização

política que, porém, não significava um retorno à ortodoxia trotskista. Tratava-se de uma

radicalização anticapitalista libertária, por assim dizer, bem representada pela figura do jovem

historiador/carteiro, pertencente a uma tendência minoritária da esquerda da LCR, chamada

Révolution! Ao longo de boa parte da década de 1990, tal tendência se opôs à linha política

relativamente “moderada” sustentada pela maioria da direção, com seus chamados na direção

da “esquerda plural”1095 e de outros membros “reformistas” da “esquerda da esquerda”1096. A

ascensão de Besancenot à condição de candidato, porta-voz e principal figura pública da LCR

representava, portanto, uma certa virada à esquerda da organização, inclusive nas participações

eleitorais, começando com a aliança bem-sucedida com a LO nas eleições europeias de 1999.

No âmbito da LCR, a tendência de Besancenot (Révolution!) defendia exatamente a unidade de

ação e eleitoral com a LO, na contramão de qualquer tentativa de aliança com a esquerda da

“esquerda plural”1097.

Encarnando essa nova radicalidade político-social, Besancenot significava, para

Michael Löwy tanto quanto para Daniel Bensaïd, uma forma privilegiada de acesso (e

transmissão de uma herança ativa, em movimento) às novas gerações militantes, seja aquela do

próprio Olivier (nascido em 1974) ou aquela(s) mais recentes, cujo batismo militante se realizou

nas campanhas e lutas do início dos anos 2000. Com Besancenot – que, estudante durante as

1095 “Esquerda plural” foi o nome atribuído à aliança de partidos da esquerda francesa (PS, PCF, Partido Radical

de Esquerda, Verdes e Movimento dos Cidadãos, de Jean-Pierre Chevènement) a partir das eleições legislativas

de 1997, na qual a esquerda saiu vitoriosa, obrigando o governo de Chirac a nomear Lionel Jospin primeiro-

ministro. Arquitetada por Jean-Christophe Cambadélis, ex-lambertista como Jospin, a “esquerda plural” deixou o

governo com um legado contraditório, no qual a ótica social-liberal dominante (vide, por exemplo, as privatizações

realizadas) não impediu a aprovação de medidas extremamente importantes como a redução da jornada semanal

de trabalho para 35 horas. Em 2002, com a aliança desfeita, cada partido da “esquerda plural” lançou seu próprio

candidato às eleições presidenciais. Jospin (PS) não foi sequer ao segundo turno, ficando atrás de Chirac e Jean Marie Le-Pen. 1096 Nas presidenciais de 1995, por exemplo, sem candidatura própria, a LCR sugeriu aos militantes e simpatizantes

o voto em Robert Hue (PCF), Dominique Voynet (esquerda dos verdes, apoiada pela Convention pour une

alternative progressiste, com a qual a LCR manteve relações), que depois seria ministra de Jospin, ou Arlette

Laguiller (LO). Enquanto Hue obteve 8,64% e Voynet 3,32%, Laguiller conseguiu expressivos 5,30%. 1097 Com esse propósito, a tendência mantinha relações com a fração pública da LO, L' Etincelle, igualmente

defensora da unidade entre LCR-LO. Expulsa da LO em setembro de 2008, L' Etincelle integrou-se ao processo

de formação do NPA. Cf. Jean-Guillaume Lanuque, “La nébuleuse trotskyste, ou le pullulement des micro-

organisations”, Dissidences. Trotskysmes en France, vol.6, 2009, p.180, 181.

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greves de 1995, dirigira a coordenação estudantil de Nanterre –, ambos, Löwy e Bensaïd,

estabeleceram essa ponte político-intelectual, a qual lhes permitiria jogar o papel de “passantes”

(passeurs) entre dois períodos, e entre várias gerações. De formas diferentes, embora sobre uma

base comum, Bensaïd e Löwy buscaram, tanto em suas análises do presente quanto em suas

abordagens do passado, reativar – contando, para isso, com o auxílio de Besancenot – um

anticapitalismo renovado, capaz de resgatar a atratividade do marxismo para as novas gerações

militantes, em grande parte receosas em relação às ortodoxias políticas, especialmente àquelas

do marxismo degenerado em razão de Estado.

Se Daniel Bensaïd conheceu, de fato, Besancenot, após a entrada deste no comitê

nacional da Liga em 1996, Löwy conhecera-o graças à solicitação do então jovem estudante

para que ele, em plena década de 1990, ministrasse uma conferência sobre Che Guevara em

Nanterre. Intelectual conhecido nas fileiras da Liga (e não só, evidentemente), Löwy foi

solicitado em função do seu livro sobre Guevara, publicado mais de uma década antes, do qual

o jovem Besancenot, em fuga da ortodoxia trotskista, muito gostava1098. Desse primeiro

encontro entre ambos nascera a ideia, que se concretizaria apenas em 2007, de escreverem

juntos um livro sobre o revolucionário de origem argentina, que se intitularia Che Guevara, une

braise qui brûle encore, em que exaltam o voluntarismo revolucionário do Che1099. Em 2009,

mesmo ano de formação do NPA – do qual eram ambos arquitetos teóricos e práticos –, Daniel

Bensaïd e Olivier Besancenot publicaram o livro Prenons parti. Pour un socialisme du XXIème

siècle. Espécie de programa que não se revela como tal, o livro constitui uma tentativa de

atualizar de forma didática o projeto anticapitalista, almejando ampliar as bases de audiência

da esquerda radical, na esteira do processo de construção do NPA1100. Defendendo a

“subversão” do “círculo vicioso da dominação” através de uma revolução social, os autores

acreditam, porém, que uma tal empreitada supõe um processo de radicalização da democracia

(“participativa” e “autogestionária”), na direção do primado da “lógica do bem comum”

necessária à perspectiva “ecossocialista” por eles reivindicada. De maneira sintomática, o nome

1098 Fabio Mascaro Querido. Entrevista com Olivier Besancenot, Port-Leucate (França), 26 de agosto de 2014.

Participação parcial de Michael Löwy. 1099 Paris: Éditions Mille et une nuits, 2007. O livro foi publicado no Brasil em 2009. Cf. Michael Löwy & Olivier Besancenot, Uma chama que continua ardendo. São Paulo: Editora Unesp, 2009. Coincidentemente, ou não, o

livro conta com um prefácio de Daniel Bensaïd. 1100 “Este livro – escrevem os autores – não é o manifesto do NPA. O NPA e seus militantes se dotarão de seu

próprio programa sobre a base de suas reflexões e de suas primeiras experiências. Ele não tem tampouco a

pretensão de ser breviário revolucionário apresentando um projeto definitivo sobre todos os assuntos. Trata-se de

uma contribuição sobre o que poderia ser o socialismo do século XXI que nós desejamos construir amanhã à luz

da situação atual. [Trata-se de uma contribuição] de dois membros da LCR na véspera de sua dissolução, um dos

seus fundadores, Daniel Bensaïd, e um dos seus três porta-vozes, Olivier Besancenot”. Daniel Bensaïd & Olivier

Besancenot, Prenons parti. Pour un socialisme du XXIème siècle. Paris: Mille et une nuits, 2009, p.26.

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de Trotsky não é mencionado sequer uma vez no livro, e, mais do que a revolução russa, é a

Comuna de Paris a inspiração mais frequente, revelando um “primado” do mais jovem, desde

sempre apaixonado pela figura de Louise Michel, sobre o velho “maître-à-penseur” soixant-

huitard leninista.

Na última parte desse inconfesso “programa mínimo” do anticapitalismo

contemporâneo, intitulada “C’est parti. Questions sur le NPA”, Bensaïd e Besancenot

desenvolvem de modo mais concreto as motivações subjacentes ao projeto de construção da

nova organização. Para além das explicações de praxe sobre a necessidade de um partido capaz

de dar expressão propriamente política às mobilizações sociais, o capítulo mais interessante é

sem dúvida aquele, intitulado “Militer autrement”, no qual os autores tocam em um ponto

central que distingue o “novo partido” em construção da herança leninista-trotskista, que é a

herança – apesar dos relativos distanciamentos precedentes – da LCR e, sobretudo, da geração

dos fundadores da organização, “revolucionários profissionais”, protótipos de bolcheviques à

francesa, como Krivine e o próprio Bensaïd. À diferença do “nosso próprio funcionamento no

passado, que era talvez demasiado elitista, às vezes excessivamente exigente, com seus códigos,

seus tiques de linguagem”, tratava-se para eles de se construir um “partido de militantes” que,

sem ser um partido de “aderentes passivos”, se distinguisse de um partido de “ativistas furiosos

deslocados da vida real”, disponíveis 24 horas por dia, “um partido de supermilitantes que leram

tudo, que se reúnem entre eles, que não vivem como todo mundo e que terminam por formar

seitas bizarras”1101.

É inegável que, conforme demonstrou Florence Joshua em sua tese, se trata aqui de dois

militantes “históricos” da Liga (nesse momento, em 2009, Besancenot já se tornara um membro

“lendário” no âmbito da organização) dirigindo-se às novas gerações que entraram na luta

política nas lutas antiliberais dos anos 2000, e que, embora socialmente radicais, nutriam uma

compreensível desconfiança em relação à militância e à política partidária, associada sem mais

à política politicienne, como se diz na França. À esquerda, ao lado da decepção com a linha

social-liberal hegemônica no PS, havia igualmente uma certa suspeição em relação à extrema-

esquerda leninista, cujo modelo militante “bolchevique”, viril e disciplinado, exercia pouca

atração para uma geração nada afeita ao sacrifício total a um objetivo (a revolução socialista)

aparentemente distante do horizonte. A bem dizer, com sua dedicação quase integral, suas

reuniões intermináveis, sua ascese e disciplina “necessárias” à conquista do objetivo final, tal

1101 Idem, p.351, 352.

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modelo militante chocava-se com a condição econômica, social e cultural de uma geração que

emergiu à adolescência sob o signo da crise, da precarização, da instabilidade laboral e do

desemprego de massa. Daí o esforço dos autores, capitaneado por Besancenot, em defender que

o “novo partido” seja um partido mais “flexível” na sua concepção do papel dos militantes,

favorecendo formas de funcionamento profícuas à livre “implicação concreta de cada um”, no

escopo de uma “luta permanente para criar [um] espaço coletivo o mais igualitário possível,

sem a ilusão de formar uma micro-sociedade perfeita, algo típico das seitas utopistas”1102.

Mais recentemente, em 2014, foi a vez de Michael Löwy escrever, em companhia de

Besancenot, um livro cuja tentativa de destacar as “afinidades eletivas” entre marxistas e

libertários buscava demarcar uma concepção atualizadora do socialismo, purgando-o de toda

deriva autoritária. Trata-se de Affinités révolutionnaires: Nos étoiles rouges et noires. Pour une

solidarité entre marxistes et libertaires, livro no qual Löwy e Besancenot, por meio da análise

de alguns acontecimentos históricos como a Comuna, a guerra civil espanhola, maio de 68 e o

altermundialismo, e de autores tais quais Walter Benjamin, André Breton, Rosa Luxemburgo,

Daniel Guérin, dentre outros, intentam reativar, a partir do presente, as afinidades entre as

sensibilidades marxistas e libertárias. Para isso, não hesitam em operar um retorno crítico à

tradição leninista-bolchevique, colocando-se diretamente a questão de se a política levada a

cabo por Lênin e pelos bolcheviques nos primeiros anos após a revolução russa, em especial

após a política do “comunismo de guerra”, não teria acabado por “servir de terreno para o

thermidor stalinista”, malgrado a ruptura representada pela contrarrevolução a partir de meados

da década de 1920.

Se a política de Lênin e Trotsky não se confunde com a regressão stalinista, nem por

isso ela se demonstrou isenta de derivas autoritárias, como na repressão, pelo Exército

Vermelho, aos marinheiros de Kronstadt sublevados reivindicando uma “terceira revolução

russa”, em março de 1921. Sem aderirem à versão anarquista do conflito, para a qual o episódio

marcara o início da contrarrevolução realizada pelos próprios bolcheviques, os autores

questionam a ideia de que a repressão fora, como disse Trotsky, uma “trágica necessidade”

diante da dinâmica potencialmente contrarrevolucionária do movimento. Para Löwy e

Besancenot, “o conflito entre Kronstadt e o poder bolchevique não é um combate entre

‘revolução e contrarrevolução’ – ponto comum nas duas narrativas, ainda que cada um inverta

o lugar dos protagonistas –, mas um afrontamento trágico e fraticida entre duas correntes

1102 Idem, p.353, 355.

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revolucionárias”. E, embora a responsabilidade do episódio seja compartilhada, “ela recai,

principalmente, sobre aqueles que detinham o poder”, ou seja, os bolcheviques1103. Na ótica dos

autores, não se pode nem mesmo excluir a hipótese de que o acontecimento tenha contribuído

para o posterior desenvolvimento burocrático da URSS, transformando em razão de Estado uma

desconfiança em relação aos movimentos de base.

A fim de precavê-lo das tentações autoritárias a que está sujeito, os autores propõem,

então, um détour pela nebulosa libertária como uma forma de “oxigenação” do marxismo

contemporâneo. Essa leitura marxista-benjaminiana – que interpreta o passado à luz das

necessidades e possibilidades do presente – da sensibilidade libertária se funda, segundo dizem,

na “esperança comum [de que] o futuro será vermelho e negro: o anticapitalismo, o socialismo

ou o comunismo do século XX deverá basear-se nessas duas fontes de radicalidade”1104.

Apelando a esse futuro “marxismo-libertário”, no quadro da luta anticapitalista, Löwy e

Besancenot afastam-se ainda mais da ortodoxia leninista-trotskista. Mais uma vez, trata-se de

uma forma de dois membros de duas gerações diferentes da LCR/NPA se dirigirem às novas

gerações, abrindo um flanco libertário por meio do qual seria possível aplanar a resistência não

apenas à tradição leninista vanguardista, senão também ao próprio marxismo como um todo,

acusado, pelos mais simplificadores, de estar na origem do goulag1105. O próprio Daniel

Bensaïd, muito menos entusiasmado com a tradição libertária do que Löwy e/ou Besancenot,

chegou a reivindicar, nos últimos anos de vida, um tal “leninismo libertário”, inspirado (não

apenas) no Lênin d’O Estado e a Revolução, sem avançar muito no conteúdo da formulação

paradoxal.

Michael Löwy e Daniel Bensaïd intentam, assim, estabelecer as pontes para a

transmissão de uma determinada herança militante, que outrora fazia parte da sensibilidade

coletiva de uma pequena parte politicamente bastante ativa de suas gerações. Maio de 68 não

tem o mesmo significado para Löwy e/ou Bensaïd em comparação com os outros próceres da

mesma geração, para os quais a participação nos acontecimentos daquele mês não passou de

1103 Michael Löwy & Olivier Besancenot, Affinités révolutionnaires: Nos étoiles rouges et noires. Pour une

solidarité entre marxistes et libertaires. Paris: Mille et une nuits, 2014, p.125, 126. 1104 Idem, p.10. Sobre a perspectiva “benjaminiana” implicada na releitura das relações entre marxistas e libertários

no passado, assim como sobre alguns dos “limites” do livro de Löwy e de Besancenot, me permito citar: Fabio

Mascaro Querido, “Transformer le monde et changer la vie: le marxisme libertaire entre le passé et l’avenir”.

Contretemps, n.24 (nova série), Paris: Syllepse, 2015. 1105 Não é por acaso que o livro é dedicado a Clément Méric, jovem militante antifascista, membro da Action

antifasciste Paris-Banlieue, morto por militantes do grupo de extrema-direita Jeunesses nationalistes

révolutionnaires no dia 5 de junho de 2013. Todo ano, desde então, grupos marxistas, anarquistas e antifascistas

em geral organizam, em junho, uma manifestação em memória de Méric, em Paris, a qual termina, como manda a

tradição, no cemitério Père Lachaise.

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um affaire de juventude, depois suplantado pela adesão à política profissional (no PS ou na

direita), lócus onde as coisas importantes realmente acontecem. É essa dimensão de resistência

e fidelidade à esperança associada a um acontecimento, para além das reproduções geracionais,

que é inaudível às análises centradas na noção de geração, uma vez que, em especial quando

se trata da fatídica “geração 68”, tendem a eclipsar as diferenças sociais, políticas e culturais

que se interpõem no interior de um mesmo conjunto geracional. Se “cada geração tem os

acontecimentos fundadores que pode”, como diz Jean-François Sirinelli1106, a forma de se

vivenciar antes, durante e depois esse acontecimento são suficientemente distintas para

desautorizar toda homogeneização político e/ou cultural.

1106 Cf. Jean-François Sirinelli, Les baby-boomers…, op.cit.

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Considerações finais

Afinidades e antinomias benjaminianas: Michael Löwy, Daniel Bensaïd e os dilemas do

marxismo contemporâneo

“A história é sempre história contemporânea, isto é, política”.

Antonio Gramsci1107

O objetivo desta tese foi, como vimos, analisar em chave comparativa a evolução das

obras e dos itinerários intelectuais de Michael Löwy e de Daniel Bensaïd, sublinhando a forma

pela qual ambos se defrontaram com as transformações histórico-políticas que se iniciaram no

final dos anos 1970, recorrendo, para tanto, a uma leitura seletiva e singular da filosofia política

de Walter Benjamin. Por isso mesmo, a investigação começou, na primeira parte, pela análise

dos primórdios de seus percursos intelectuais, em especial nas décadas de 1960 e 1970,

buscando compreender, assim, na segunda, tanto os condicionantes “externos” quanto as

motivações “internas” do processo cujo desdobramento levou a este “encontro” benjaminiano

(em suas convergências e divergências) no âmbito da transição de época então em curso.

Tornar-se-ia possível, deste modo, e este foi o objetivo da terceira e última parte, entender as

mudanças na obra e na trajetória intelectual de Löwy e de Bensaïd à luz do reposicionamento

intelectual e político daí resultante, levado a cabo particularmente nas décadas de 1990 e 2000.

É no quadro deste reposicionamento, afinal, que os percursos intelectuais de Michael

Löwy e, em especial, de Daniel Bensaïd, ganham a relevância analítica que hoje têm, uma vez

que revela as formas específicas pelas quais cada um deles, valendo-se da reflexão

benjaminiana (mas não só), “respondeu”, por assim dizer, às transformações da época –

transformações tanto mais impactantes por se tratarem de dois intelectuais cuja formação

marxista “clássica” se vincula diretamente ao ciclo histórico-político anterior. É porque

vivenciaram os impactos dessas mudanças, optando por uma terceira via entre a “conversão”

ao sistema aparentemente insuperável e o apego dogmático aos velhos esquemas, que a obra e

a trajetória de Löwy e de Bensaïd, se bem analisadas, são especialmente importantes para a

elaboração de uma sociologia marxista dos intelectuais críticos hoje.

Na figura de Benjamin, em particular, Löwy e Bensaïd encontraram um aliado para a

reivindicação – no plano das ideias propriamente ditas - da necessidade de uma renovação do

1107 Antonio Gramsci, Cadernos do Cárcere. Volume 1: Introdução ao estudo da filosofia. A filosofia de Benedetto

Croce. 5. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011, p.312.

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marxismo a partir do diálogo com outras tradições intelectuais e/ou políticas, na direção da

ruptura com toda teleologia histórica. É como se, para eles, em um contexto em que o axioma

marxiano, explanado no conhecido “Prefácio de 1859”, de que “a humanidade coloca sempre a

si mesma apenas as tarefas que pode resolver”, parece desautorizado pelos fatos, não houvesse

outra saída senão uma “abertura” do marxismo para tradições e temáticas até então desprezadas

e/ou reputadas como “superadas”, buscando nelas elementos para fazer frente à adversidade,

mas também para repensar o pensamento dialético1108.

É nesse contexto, por exemplo, que se torna possível compreender o recurso, presente

em ambos os autores, tanto quanto em Benjamin, a uma dimensão teológica, ainda que por

vezes esta dimensão apareça, sobretudo em Bensaïd (o mais “racional” e antirreligioso dos três),

sob uma roupagem “profana”. Tal como em Benjamin, a alusão à teologia ou, neste caso, ao

messianismo judaico, visa reafirmar a possibilidade de uma “interrupção” capaz de bifurcar a

história, em um momento em que tal possibilidade não pode mais ser sustentada apenas por

preceitos estritamente racionais. Em Löwy, essa invocação “teológica” se apresenta para

reativar a utopia concreta, em Bensaïd, a política profana. O recurso à teologia se apresenta,

em alguma medida, como uma forma de “preencher” o hiato entre a necessidade de resistir ao

aparentemente irresistível - quer dizer, ao avanço da mercantilização capitalista - e a ausência,

ao menos no plano imediato, de soluções “globais” à vista.

Em um momento em que o “horizonte de expectativa”, conforme a noção já mencionada

de Reinhart Koselleck1109, reduz-se à imediaticidade do “espaço de experiência”, isto é, em que

as perspectivas em relação ao futuro parecem restringidas a um presente perpétuo, Löwy e

Bensaïd recorrem ao que chamam de “heresias messiânicas” a fim de reativar em nova chave a

capacidade de “antecipação concreta” dos movimentos e intelectuais anticapitalistas, forjando

um novo “horizonte de expectativa”, baseado na imaginação de uma alternativa possível, mas

sem as garantias de um futuro que seria o resultado inevitável do “progresso” - tal qual nos

discursos filosóficos da modernidade, inclusive em suas versões marxistas. Esse horizonte

determina, em certa medida, a forma em que se reveste a esperança política e/ou utópica

1108 Para Marx, “a própria tarefa só aparece onde já existem, ou pelo menos estão no processo de se formar, as

condições materiais da sua resolução”. Nos Cadernos do Cárcere, Gramsci retomou essa passagem – por ele citada

de memória, sintomaticamente com alguns termos trocados – em uma perspectiva não-determinista, aberta às

contingências da política e, portanto, aos desafios que envolvem a formação de uma “vontade coletiva” necessária

à superação da ordem vigente e à construção de uma nova hegemonia. Cf. Alvaro Bianchi, “Estratégia do

contratempo: notas para uma pesquisa sobre o conceito gramsciano de hegemonia”, in: Cadernos CEMARX, n.4,

2007, especialmente pp.22-25. 1109 Cf. Reinhart Koselleck, Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos, op.cit.

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reivindicada por Löwy e por Bensaïd: ela explica a feição não apenas “messiânica”, mas

também “intempestiva”, irruptiva, apocalíptica, de suas “apostas” em outro mundo possível.

Mesmo porque, os próprios movimentos sociais e políticos (altermundialistas) que, de

uma forma ou de outra, constituem o horizonte prático-concreto à luz do qual Löwy e Bensaïd

elaboram suas perspectivas intelectuais e políticas nos anos 1990 e 2000, são indicadores desses

limites e impasses, sobretudo do ponto de vista “revolucionário” por eles reclamado. Não

surpreende que, mais afeito aos dilemas “práticos” deste ponto de vista nas sociedades

contemporâneas, seja Bensaïd, dentre os dois, o mais crítico em relação aos movimentos sociais

vinculados à nebulosa altermundialista. Para Bensaïd, intelectual e homem político a um só

tempo, muito mais do que para o intelectual engajado Michael Löwy, estes movimentos

constituem muito mais sintomas do que respostas satisfatórias aos desafios cujo enfrentamento

é necessário para a reconstrução da esquerda política radical. A própria reflexão de Bensaïd

nas décadas de 1990 e 2000, porém, ao insistir na necessidade de uma política estratégica por

ora inexistente, constitui ela também antes um testemunho ativo de uma lacuna do que uma

saída de um impasse cujos fundamentos são históricos.

A singularidade de Michael Löwy e de Daniel Bensaïd no âmbito da geração (ou das

gerações) à qual pertencem encontra-se na forma como lidam com esta transição de época e

com os desafios que ela acarreta. Tanto quanto Walter Benjamin, ambos fazem parte de uma

geração “vencida da história”, e, em função disso, empenharam-se nas últimas décadas em

trabalhar pela preservação e transmissão da herança do passado, não como algo a ser cultuado

como peça de museu, mas sim como parte de uma tradição que de alguma forma interpela o

presente, sendo sempre, portanto, “atualizada” a partir do contemporâneo. Eles sabem que a

transmissão de uma herança político-intelectual é sempre instável e está submetida às

intermitências de cada presente, na dependência, assim, do que dela farão os herdeiros. Toda

herança transmitida é uma herança “rememorada”, entre a fidelidade e a heresia, como revelam

as tradições trotskista e judaica.

Em um dos apêndices das “teses sobre o conceito de história”, Benjamin escreve:

“Como se sabe, era vedado aos judeus perscrutar o futuro. A Torá e a oração, em contrapartida,

os iniciavam na rememoração”, na qual se configura o primado de um tempo pleno, em que

“cada segundo [é] a porta estreita pela qual [pode] entrar o messias”, ou seja, em que cada

presente determina um campo de possibilidades cuja consumação ou não depende da ação1110.

1110 Walter Benjamin, “Teses sobre o conceito de história”, op.cit. p.142 [Apêndice B].

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Cada momento pode ser o instante em que o passado, modificado e rememorado, irrompe no

presente, condensando-se no que Benjamin denominava “tempo-de-agora”. Na linha desse

messianismo ativo, no qual se trata de provocar o retorno do messias e não de esperá-lo

passivamente, à diferença das tradições dominantes do judaísmo, Michael Löwy e Daniel

Bensaïd instalam-se na tensão entre a preservação do legado revolucionário do passado e a

rememoração crítica, atualizadora, quando não herética, desse legado, muitas vezes a melhor

forma de manter a fidelidade. Do presente, ambos pressentem a necessidade de um redespertar

“proustiano” das esperanças não-realizadas do passado, na contramão do “conformismo que

está na iminência de subjugá-la”, como disse Benjamin nas teses de 19401111.

Não constitui uma surpresa, assim, que Löwy e Bensaïd, ambos resultados intelectuais

de duas tradições então em declínio (os marxismos “clássico” e “ocidental”), tenham recorrido

a um autor como Benjamin a fim de se orientar nessa relação ativa e instável com a herança a

ser preservada e desenvolvida. Tal inflexão benjaminiana pela qual passaram suas obras pode

ser compreendida, conforme se buscou argumentar ao longo desta tese, através da análise

“simultânea” tanto dos condicionantes contextuais (históricos, políticos e culturais) quanto das

motivações político-intelectuais mediante as quais eles se situam em relação a esses

condicionantes. Em Benjamin, ambos buscaram uma fonte de legitimação de suas novas

perspectivas políticas e intelectuais. E, como poucos, o filósofo alemão revelava-se

particularmente profícuo à tarefa.

O caráter politicamente “impreciso” da reflexão benjaminiana lhes permitia adaptá-la à

necessidade de atualizar o programa “revolucionário” em um momento em que este também se

revelava vago, à procura de um “novo” sujeito capaz de encampá-lo. Com efeito, ao

proletariado algo mitologizado dos anos 1960 e 1970, Michael Löwy e Daniel Bensaïd

opuseram, nas décadas seguintes, a figura benjaminiana dos “oprimidos” – a um só tempo mais

ampla e incerta -, seja na forma do resgate do reservatório utópico da “tradição dos oprimidos”,

como no caso do primeiro, ou da construção de uma “política dos oprimidos”, em se tratando

do segundo. Diante do declínio relativo de uma política de classe, a noção de “oprimidos”

apresentava-se como forma de escapar ao espaço restrito do horizonte de expectativa do

presente, mantendo a radicalidade revolucionária discursiva e a aposta (“melancólica”) na

possibilidade de superação do capitalismo.

1111 Idem, p.65 [tese VI].

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Em função da alta ambição política implicada, tornou-se, então, quase inevitável nesse

contexto uma certa idealização dos oprimidos, que se concilia com a afirmação “clássica” da

centralidade das classes trabalhadoras em meio à pluralidade dos novos sujeitos anticapitalistas

em potencial. De modo semelhante ao que se apresentava em Benjamin, confrontado que estava

à ascensão simultânea do stalinismo e do nazismo, um proletariado revolucionário improvável

aparece em Löwy e em Bensaïd como eixo de uma libertação de todos os oprimidos, inclusive

aqueles do passado: os “ancestrais escravizados” (tese XII). Nas palavras de Benjamin: “O

sujeito do conhecimento histórico é a própria classe oprimida, a classe combatente. Em Marx

ela se apresenta como a última classe escravizada, a classe vingadora que, em nome de gerações

de derrotados, leva a termo a obra de libertação”1112.

Michael Löwy e Daniel Bensaïd se apropriam dessa consigna a fim de incorporar o

conjunto dos oprimidos do presente, os quais, muitas vezes vítimas de formas de opressão cujas

raízes são historicamente longínquas, permanecem submetidos a algum tipo de dominação,

doravante entrelaçada à lógica reprodutiva contemporânea do capitalismo. É no conjunto dos

“oprimidos”, sob a centralidade dos trabalhadores, que ambos depositam suas esperanças na

possibilidade de uma subversão ou “redenção” messiânica. Assim, na ausência de um horizonte

a curto prazo de transformação revolucionária, ausência que se explicita nos limites estratégicos

dos movimentos sociais contemporâneos, Löwy e Bensaïd articulam a esta valorização dos

“oprimidos” a aposta em uma (por ora) imprevisível irrupção “messiânica” capaz de subverter

a ordem existente. Se em Löwy tal perspectiva se anuncia tingida de elementos politicamente

“libertários” (e, “culturalmente”, românticos e utópicos), em Bensaïd ela assume a forma

paradoxal de um messianismo “profano” e “racional” (“razão messiânica”), espécie de antessala

para o ressurgimento de uma política estratégica, no sentido leninista, gramsciano e, na sua

visão, também benjaminiano: na obra do filósofo alemão estaria, na realidade, a chave para a

retomada crítica dessa tradição “clássica”1113.

Mas, como vimos, Benjamin lhes fornecia uma caução não apenas política, visando à

atualização/renovação da herança revolucionária, senão também uma caução propriamente

intelectual. Na imagem reconstruída do filósofo alemão, ambos enxergaram um modelo (real

ou imaginário) a partir do qual intentaram legitimar suas novas posições e escolhas intelectuais,

enquanto intelectuais anticapitalistas outsiders buscando ocupar, cada qual a seu modo e no seu

1112 Idem, p.108 [tese XII]. 1113 Considerado por Perry Anderson um dos primeiros representantes (junto com Lukács) do “marxismo

ocidental”, Gramsci permanece igualmente um “marxista clássico” em função de sua reflexão sobre a política e

sobre a estratégia.

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tempo, um espaço singular nos campos intelectual e acadêmico francês. Como se observou

neste trabalho, nesse exercício de desconstrução e reconstrução seletiva do pensamento e da

figura de Walter Benjamin, Michael Löwy e, em especial, Daniel Bensaïd, não hesitaram em

fazer com o filósofo alemão algo do que ele fizera com Baudelaire, a saber: a projeção, no autor

analisado, dos seus próprios dilemas intelectuais e políticos, ao preço do silêncio e/ou do

contornamento arbitrário das ambivalências que se interpõem no itinerário e na obra

benjaminiana.

Interpretando Benjamin, eles conjeturavam ao mesmo tempo sobre a sua própria

situação de intelectuais revolucionários sem revolução. Judeus internacionalistas, cosmopolitas

de coração, Benjamin, Löwy e Bensaïd constituem expressões, em momentos e gerações

diferentes, das derrotas sofridas pelos movimentos revolucionários no século XX, um “curto

século” que termina sob o signo do triunfo pretensamente incontestável das “sociedades de

mercado”, lustradas pela avalanche neoliberal. Cada um de uma forma, os três se caracterizaram

pela tentativa de responder a uma situação histórica adversa, encarando-a na sua gravidade,

bem como nas suas consequências teóricas e políticas (para não dizer epistemológicas).

Expressões significativas de um impasse histórico-político, mais do que respostas

prontas aos novos desafios que interpelam o marxismo contemporâneo, as obras de Michael

Löwy e de Daniel Bensaïd nos abrem algumas vias - e daí a relevância que possuem, a despeito

dos seus limites e/ou lacunas - para perscrutar uma saída cuja efetivação depende, em última

análise, da configuração das lutas e resistências concretas contra a lógica do sistema, e cuja

elaboração teórica será tarefa das novas gerações intelectuais direta ou indiretamente

implicadas nessas práticas. É como se, do presente, das insuficiências do presente, Löwy e

Bensaïd se dirigissem ao futuro, não a um futuro hipotético, mas a um futuro que pode ser

“precipitado” a qualquer instante. Como se, no presente, se jogasse, para eles, desde agora, o

que será este futuro, assim como se reinterpreta o que “foi” o passado - de onde uma certa

“impaciência”, em particular no caso de Bensaïd. Afinal, como disse Paul Valéry, em palavras

que poderiam ser dirigidas diretamente aos benjaminianos Löwy e a Bensaïd: “A todo

momento, vocês supõem um outro momento seguinte que não aquele que aconteceu: a todo

presente imaginário em que se colocam, imaginam um outro futuro que não aquele que se

realizou”1114.

1114 Paul Valéry, “Discurso sobre a história”, in: Variedades. São Paulo: Iluminuras, 2007, p.114.

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ANEXO

Breve biografia dos entrevistados e conteúdo das entrevistas

Sophie Bensaïd. Paris, diversas ocasiões. Companheira de Daniel Bensaïd desde 1972 até sua

morte em 2010, Sophie viveu com ele os mais importantes acontecimentos de sua vida,

testemunhando diretamente as mudanças – intelectuais, políticas e pessoais – que nela

ocorreram. Nos encontros com ela, abordou-se alguns aspectos centrais da vida de Bensaïd, o

que acabou nos ajudando muito a melhor compreender momentos importantes do percurso

intelectual do autor. Atualmente, Sophie é responsável pela edição do site danielbensaid.org,

no qual busca congregar e disponibilizar todos os textos de e sobre Daniel Bensaïd publicados

ou não.

André Tosel. Paris, 25 de maio de 2014. Filósofo, professor das Universidade de Nice e de

Paris I, seus trabalhos portam sobre autores como Spinoza, Hegel, Marx e Gramsci, Althusser,

Benjamin, Lefebvre e Lukács, além de muitos outros. Aluno de Louis Althusser na École

Normale Supérieure, Tosel tornou-se um dos mais importantes especialistas no marxismo do

XX século, através de uma reflexão que busca analisar as relações entre a produção teórica e as

transformações dos ciclos das lutas sociais, políticas e intelectuais. É autor notamente, dentre

muitos outros, de Les marxismes du XXe siècle (Syllepse, 2009). Na entrevista, abordamos

particularmente as transformações das condições de possibilidade da teoria marxista nos

séculos XX e XXI, buscando situar a importância e as especificidades da obra e da trajetória

intelectuais de Michael Löwy e de Daniel Bensaïd. Entrevista publicada na revista Crítica

Marxista (São Paulo: Ed. Unesp, n.40, 2015), com o título “Para uma história marxista do

marxismo: passado e presente – Entrevista com André Tosel”.

Alain Krivine. Port-Leucate (França), 26 de agosto de 2014. Membro fundador das Juventudes

Comunistas Revolucionárias (JCR) em 1965/66, da Liga Comunista, em 1969, da LCR em 1974

e, enfim, do Novo Partido Anticapitalista (NPA) em 2009, Krivine trabalhou e militou com

Daniel Bensaïd durante mais de 40 anos. Candidato às eleições presidenciais de 1969 e 1974, e

deputado europeu entre 1999 e 2004, Krivine participou ao lado de Bensaïd de alguns dos mais

importantes acontecimentos políticos da França nas últimas quatro décadas, tais como o “maio

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de 68”, as greves do início dos anos 1970, as campanhas eleitorais, as lutas sociais contra as

contrarreformas liberais de 1995, em defesa do “não de esquerda” no referendo sobre o tratado

constitucional europeu em 2005 etc. Sobre a sua vida militante, publicou o livro de memórias

Ça te passera avec l'âge (Flammarion, 2006); com Daniel Bensaïd, escreveu o livro Mai si!

1968-1988, rebelles et repentis (Éditions La Brèche, 1988). Com Krivine, conversou-se

especialmente sobre suas relações políticas e pessoais com Bensaïd, por exemplo, sobre a

participação deste último nos acontecimentos de maio de 68, nos debates internos da LCR e na

elaboração teórica da organização e/ou na direção da IV Internacional.

Olivier Besancenot. Port-Leucate (França), 24 de maio de 2014. Nascido em 1974, Besancenot

tornou-se um personagem célebre na cena política francesa após sua espetacular votação nas

eleições presidenciais de 2002, na qual teve – como candidato da LCR - 4,25% dos sufrágios

exprimidos (1210562 votos), votação que impulsionou o movimento pela construção de um

novo partido, que resultaria na criação do NPA em 2009. Carteiro de profissão, graduado em

história pela Universidade de Nanterre, Besancenot pertence a uma geração cuja militância

política nas fileiras da extrema-esquerda se realizou na contracorrente, a partir do fim da década

de 1980, quer dizer, em um contexto caracterizado pelo rebaixamento do horizonte histórico.

Na entrevista com ele realizada, abordou-se a importância de Michael Löwy e de Daniel

Bensaïd para as novas gerações, que começaram sua militância em um momento no qual muitos

daqueles da geração precedente estavam deixando a esquerda revolucionária. Olivier

Besancenot escreveu com Michael Löwy e Daniel Bensaïd diversos livros, dentre os quais Che

Guevara, une braise qui brûle encore (Éditions Mille et une nuits, 2007) et Affinités

révolutionnaires : Nos étoiles rouges et noires (Éditions Mille et une nuits, 2014), em

colaboração com Löwy; e Prenons Parti pour un socialisme du XXIe siècle (Éditions Mille et

une nuits, 2009), em colaboração com Daniel Bensaïd.

Edwy Plenel. Paris, 20 de outubro de 2014. Militante da LCR entre o fim dos anos 1970 e

meados da década de 1980, quando deixou a organização, Plenel tornou-se desde então um

importante jornalista francês, tendo sido diretor de redação do jornal Le Monde de 1996 até

novembro de 2004. Trabalhou com Daniel Bensaïd na redação do jornal Rouge quotidien (da

LCR) entre 1976 e 1979; mais tarde, Plenel teve um papel muito importante impulsionando –

ao lado de sua companheira editora, Nicole Lapierre, que também foi militante da LCR –

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Bensaïd a escrever, no fim dos anos 1980, os livros Moi, la révolution (1989) e, em seguida,

Jeanne de Guerre Laisse (1991), livros que, em conjunto com Walter Benjamin, sentinelle

messianique (1990), encontram-se na origem de um novo “capítulo” da obra de Bensaïd. Com

Nicole Lapierre, Plenel também estimulou Bensaïd a escrever sua “autobiografia”, Une lente

impatience, publicada em 2004. Na entrevista com Edwy Plenel, diversas questões foram

abordadas, sejam elas de ordem pessoal, política e/ou intelectual. Graças à sua proximidade

com ele, Plenel conheceu muito bem tanto a personalidade de Bensaïd quanto seu percurso

intelectual e político, o que lhe confere uma capacidade pouco comum de apreender a riqueza

e a complexidade do autor em questão. Edwy Plenel é autor de diversos livros, dentre os quais

Secrets de Jeunesse (Stock, 2001), no qual ele rememora os tempos de sua militância na LCR.

Lucien Sanchez. Port-Leucate, 25 de agosto de 2014. Nascido em Toulouse, Lucien Sanchez

foi amigo e camarada de organização de Daniel Bensaïd desde sua juventude. Ele nos fez um

testemunho muito interessante sobre suas relações com Bensaïd, nos contando inúmeros

episódios pessoais e/ou ligados à vida militante. Foi deputado pela LCR. Atualmente, é

militante do NPA.

Razmig Keucheyan. Paris, setembro de 2014. Sociólogo, professor na Universidade Paris IV

– Sorbonne, Razmig Keucheyan possui vários trabalhos sobre os pensamentos críticos e os

marxismos contemporâneos. É membro do comitê de redação da revista Contretemps, fundada

por Daniel Bensaïd, e diretor da coleção “Essais” nas edições “Les Prairies ordinaires”. Razmig

Keucheyan é autor notadamente de Hémisphère gauche. Une cartographie des nouvelles

pensées critiques (Paris, La Découverte, coll. "Zones", 2010), livro em que analisa tanto as

características mais gerais dos pensamentos críticos contemporâneos quanto alguns casos

concretos de autores representativos destes pensamentos. Na entrevista que fizemos,

conversou-se sobre a “sociologia do pensamento crítico contemporâneo”, sobre o lugar aí

ocupado por Michael Löwy e Daniel Bensaïd, assim como sobre algumas dificuldades

metodológicas da análise sociológica das ideias e/ou intelectuais contemporâneos.

Antoine Artous. Paris, 21 de janeiro de 2015. Doutor em Ciência Política, Artous foi militante

da JCR, da LC e, depois, da LCR durante várias décadas. Com Daniel Bensaïd, que ele conhecia

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desde quando eram muito jovens em Toulouse, Antoine Artous foi o responsável pela

elaboração das premissas do “ultra-leninismo” da LC no início dos anos 1970. Em conjunto, os

dois escreveram o texto do “Boletim Interior n.30”, intitulado “Le problème du pouvoir se pose,

posons-le nous!”, em 1972, no qual defendem a preparação do partido para a possibilidade de

uma crise revolucionária iminente. Após 1975, em seguida ao “tournant operário” da LCR, os

dois se engajaram em um processo de autocrítica em relação à lógica “substitucionista” que

havia caracterizado os primeiros anos da LC. Depois, mais tarde, tal como Daniel Bensaïd,

Antoine Artous dedicou-se em uma reflexão marxista sobre as questões da política, do Estado,

da democracia e da cidadania. Membro do comitê de redação da revista Contretemps, é autor

de Marx, l’État et la politique (Syllepse, Paris 1999), Marx et le fétichisme (Syllepse, 2008) e

Démocratie, citoyenneté, émancipation (Syllepse, 2010). Na longa entrevista com ele feita,

dentre os vários assuntos abordados, destacam-se as suas relações políticas e intelectuais com

Bensaïd, desde os anos 1970, quando convergiam em uma defesa da perspectiva leninista a

propósito do partido enquanto instrumento necessário para elevar a classe à condição de sujeito

prático, até os anos 1980, 1990 e 2000, momento no qual os dois se dedicaram a uma reflexão

mais aprofundada sobre a política em sua relação com as outras dimensões da vida social.

Jaime Pastor Verdú. Madrid, 17 de novembro de 2014. Exilado na França entre 1969 e 1973,

Jaime Pastor começou sua trajetória militante nas fileiras da LCR francesa. Atualmente,

membro da direção da corrente Izquierda Anticapitalista (componente do partido Podemos), é

professor de Ciência Política na UNED em Madrid, e editor da revista Viento Sur, na qual foram

publicadas em espanhol diversos textos de Daniel Bensaïd. Além de questões ligadas ao debate

teórico e político da esquerda na Europa, conversamos sobre a participação de Daniel Bensaïd,

desde o início dos anos 1970, no processo de formação da seção espanhola da IV Internacional.

Ao lado de Robert March, Bensaïd participou diretamente das negociações com o assim

chamado “ETA VI”, e com o grupo de espanhóis exilados em Paris, dentre os quais se

encontrava o próprio Jaime Pastor, em um processo cujo resultado foi a fundação da LCR

espanhola, também vinculada ao Secretariado Unificado da IV Internacional. Enfim,

conversamos igualmente sobre questões vinculadas à obra de Daniel Bensaïd, da qual ele é

grande conhecedor, assim como de sua influência no campo político e intelectual espanhol.

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Josep Maria Antentas. Barcelona, janeiro de 2015. Professor de sociologia na Universidade

Autônoma de Barcelona e membro do comitê editorial da revista Viento Sur, Josep Maria

Antentas escreveu numerosos textos sobre a obra de Daniel Bensaïd, em espanhol e em inglês.

Ele é, portanto, alguém com quem se pôde falar sobre diversos aspectos da reflexão de Bensaïd,

tal como sua abordagem da política, da modernidade e do papel do marxismo no pensamento

contemporâneo.

Alain Badiou. Paris, abril de 2014. Filósofo, romancista e dramaturgo, ex-militante maoísta,

de origem marroquina, Alain Badiou tornou-se nas últimas décadas um dos mais importantes

intelectuais franceses contemporâneos. É autor de uma grande quantidade de livros, artigos e

ensaios políticos e filosóficos, dentre os quais os volumes de L’Être et l’Événement. Colegas

no Departamento de Filosofia da Universidade Paris-VIII (Saint-Denis), Badiou e Bensaïd

tiveram um importante debate sobre a questão das relações entre acontecimento, política e

história. Na entrevista realizada, além desta questão, diversos assuntos foram abordados, em

particular no que se refere aos debates da filosofia crítica contemporânea.

Michael Löwy. 3 entrevistas. 1) Paris, 4 de agosto de 2014. Entrevista sobre sua trajetória

intelectual e sua obra. 2) Paris, 10 de dezembro de 2014. Entrevista realizada em companhia de

Alexis Cukier (doutor em filosofia política) e Razmig Keucheyan (mestre de conferência na

Universidade Paris IV – Sorbonne), sobre os anos que Löwy trabalhou como assistente de Nicos

Poulantzas na Universidade Paris VIII – Vincennes, entre 1970 e 1977. Essa entrevista foi

publicada em francês na revista Contretemps web, em espanhol na revista Viento Sur (Espanha)

e em inglês no blog da editora Verso (Inglaterra), e em grego no site left.gr. Ela foi concebida

por ocasião do colóquio internacional consagrado à obra de Nicos Poulantzas, que aconteceu

na Sorbonne nos dias 16 e 17 de janeiro de 2015. Na entrevista (anexada neste relatório), Löwy

nos falou sobre a atmosfera política e intelectual dos anos 1970 em Vincennes, e na França em

geral, na qual Poulantzas cumpriu um papel importante. 3) Paris, 21 de janeiro. Entrevista

realizada junto com Darren Roso (filósofo australiano) especificamente sobre a obra de Daniel

Bensaïd. Em especial, Löwy nos detalhou as divergências e convergências que, na sua opinião,

existem entre sua leitura de Marx e de Benjamin em relação àquela realizada por Bensaïd.

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Gérard Filoche. Correspondência por correio eletrônico. Nascido em 1945 em Rouen (França),

Filoche pertence à mesma geração de Daniel Bensaïd, tendo sido, como este, membro do PCF

e, depois da ruptura com este, da JCR, LC e, enfim, da LCR, organização da qual saiu, junto

com os cerca de 150 militantes de sua tendência, em 1994, aderindo à ala esquerda do PS.

Membro do Bureau Nacional da LCR, foi o principal crítico, ao lado de Michel Lequenne, da

linha ultraleninista defendida pela maioria da direção nos anos 1970. Atribui à ação sectária de

Daniel Bensaïd um dos motivos que levaram à exclusão de sua tendência (Democracia

Socialista) da Liga. Formado em filosofia, trabalhou como inspetor do trabalho de 1985 até

2010. Como deputado federal pelo PS, notabilizou-se pela defesa dos direitos do trabalho e da

seguridade social contra as reformas neoliberais. É autor de SOS Sécu !, Ed. Au bord de l’eau,

com Gérard Berthiot e Jean-Jacques Chavigné (2004), Comment résister à la démolition du

Code du travail (Éditions Le Vent se lève, 2014), além de suas memórias políticas, 68-98, une

histoire sans fin (Ed. Flammarion, 1998), em que expõe sua visão dos acontecimentos de maio

de 68 à virada neoliberal dos anos 1980 e 1990.

Paul Alliès. Correspondência por correio eletrônico, 2015. Professor de ciência política na

Universidade de Montpellier I, Alliès militou na LCR até o final dos anos 1980, quando decide

aderir ao PS, do qual se tornaria membro do Conselho Nacional. Desde 2009, é presidente da

Convenção pela VI República. É autor notadamente de Le grand renoncement. La gauche et

les institutions de la Ve République (Textuel, 2007) e Une Constitution contre la démocratie ?

Portrait d’une Europe dépolitisée (Climats, 2005). Além de camarada de organização, Paul

Alliès foi um dos avaliadores da tese de doutorado (« doctorat sur travail ») de Daniel Bensaïd,

defendida em junho de 1982 em Montpellier, com o título “Pouvoir politique et construction

du socialisme”, apresentação e recompilação dos textos e livros do autor redigidos até então.

Phillipe Corcuff. Entrevista por correio eletrônico. Argelino de origem, Corcuff foi membro

do PS entre 1977 e 1992, e dos Verdes entre 1994 e 1997, antes de aderir à LCR em 1999, por

influência de Bensaïd, a quem tinha conhecido em 1993. Em 2009, ainda militante da Liga,

participa da fundação do NPA, organização que ele deixaria em 2013, a fim de se juntar à

Federação Anarquista. Cientista social de formação, professor no Instituto de Estudos Políticos

(Science Po) de Lyon, herdeiro heterodoxo de Bourdieu e de Boltanski, discípulo de Merleau-

Ponty e leitor de Wittgenstein, cronista do jornal satírico Charlie Hebdo, Corcuff se interpôs

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como uma passarela permitindo a Daniel Bensaïd um acesso à dimensão mais politicamente

engajada e radicalizada de intelectuais acadêmicos como Bourdieu e seus escudeiros. Foi com

Corcuff que Bensaïd redigiu boa parte dos seus textos sobre a questão do engajamento dos

intelectuais, assim como sobre o diálogo entre marxismo aberto, sociologia crítica e filosofia

política radical. O cientista social participou ativamente, junto com Bensaïd, do processo de

debates que deu origem à revista Contretemps, em 2001. Continuou, malgrado as divergências

intelectuais e políticas, um dos principais interlocutores de Bensaïd até a morte deste em 2010.

Dentre as questões a ele formuladas, destacam-se, assim, aquelas que dizem respeito aos

engajamentos intelectuais de Bensaïd no pós-1995 e nos anos 2000, os quais Corcuff

acompanhou de perto.

Sameh Dellaï. Correspondência e encontros. De origem marroquina, Sami Dellaï foi aluna de

Daniel Bensaïd na Universidade Paris VIII, onde realizou seu doutorado em filosofia.

Recentemente, organizou um número especial da revista Cahiers critiques de philosophie (n.15,

Ed. Hermann, 2016), número para cuja composição entrevistou Edwy Plenel, Alain Krivine,

Olivier Besancenot e Sophie Bensaïd. A edição conta ainda com vários textos sobre Bensaïd, e

com uma entrevista inédita do autor, de 1991. Ademais de contribuir com um dos textos da

revista, contribui, a pedido de Dellaï, com a elaboração das questões das entrevistas de Plenel

e Krivine.

Darren Roso. Conversas informais. Jovem filósofo australiano, Darren Roso está empenhado

na divulgação da obra de Daniel Bensaïd para o público dos países anglo-saxões, onde ele é

bem menos conhecido do que nos países da Europa “latina”. É autor de um volumoso livro

sobre Daniel Bensaïd, a ser publicado pela editora Verso (Inglaterra).

Enzo Traverso. Correspondência eletrônica. Historiador italiano, Traverso realizou sua tese de

doutorado sob orientação de Michael Löwy na EHESS, em 1989. Desde então, como

especialista na questão dos intelectuais judeus, tornou-se um profundo conhecedor das obras de

Löwy e de Daniel Bensaïd, aos quais dedicou importantes ensaios. Atualmente, é professor de

ciência política da Universidade Cornell (EUA). Autor de vários livros, dentre os quais se pode

destacar: Les marxistes et la question juive. Histoire d’un débat 1843-1943 (PEC-La Brèche,

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1990), Siegfried Kracauer. Itinéraire d’un intellectuel nomade (La Découverte, 1994), Pour

une critique de la barbarie moderne. Écrits sur l’histoire des Juifs et de l’antisémitisme

(Cahiers libres, Éditions Page 2, Lausanne, 1997), L’Histoire déchirée. Essai sur Auschwitz et

les intellectuels (Éditions du Cerf, 1997), La pensée dispersée. Figures de l’exil judéo-allemand

(Éditions Leo Scheer, 2004) e La fin de la modernité juive : Histoire d'un tournant conservateur

(La Découverte, 2013).

Fernando Matamoros Ponce. Entrevista e conversas informais (Buenos Aires, 2012). De

origem mexicana, Matamoros fez sua tese de doutorado em sociologia na EHESS, sob

orientação de Michael Löwy, que ademais constituía uma das fontes de inspiração da pesquisa,

sobre a construção do imaginário político dos neozapatistas do EZLN. Professor de sociologia

na Universidade de Puebla (México), é autor ou coautor de inúmeros livros, tais como Memoria

y utopía en México. Imaginarios en la génesis del neozapatismo (Herramienta, BUAP, 2009)

e, ao lado de Sergio Tischler e John Holloway, Zapatismo, Reflexión teórica y subjetividades

emergentes (Herramienta, BUAP, 2015).

Luís Martinez Andrade. Conversas informais (Paris, 2014). Aluno de Fernando Matamoros,

em Puebla, no México, Luiz Martinez defendeu sua tese de doutorado em sociologia em 2014,

na EHESS, também sob orientação de Michael Löwy, sobre a obra e a trajetória do teólogo

brasileiro Leonardo Boff. Em seus trabalhos, pode-se notar a influência tanto de Matamoros

quanto, em especial, de Michael Löwy, em suas análises de autores e movimentos que se situam

na fronteira entre o político e o religioso. Autor de Religión sin redención. Contradicciones

sociales y sueños despiertos en América Latina (Ediciones de Medianoche, 2011), dentre outros

livros.

Renan Vega Cantor. Conversa informal (Buenos Aires, 2012). Colombiano, Vega Cantor foi

orientado por Michael Löwy em sua tese de doutorado em ciência política, defendida em 2002

na Universidade Paris VIII, com o título Luttes ouvrières, socialisme et crise de l'hégémonie

conservatrice en Colombie (1918-1929). A inspiração de Löwy foi muito importante, como ele

reconhece, para pensar a questão ecossocialista a partir de uma ótica latino-americana. Dentre

seus trabalhos, destaca-se El Caos Planetario (Herramienta, 1999), talvez seu livro em que a

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influência de Michael Löwy aparece de modo mais nítido. Integrante do conselho editorial da

revista Herramienta.

Sebastian Budgen. Conversa informal (Paris, 2014). Editor da Verso Books (Londres),

membro fundador do conselho editorial da revista Historical Materialism, Budgen vive em

Paris, onde acompanha as transformações da vida política e intelectual francesa. Autor do artigo

“The Red Hussar: Daniel Bensaïd, 1946-2010”, publicado na revista International Socialism

(n.127, 2010).