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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE CIÊNCIAS MÉDICAS BRUNO MARIANI DE SOUZA AZEVEDO A APOSTA NO ENCONTRO PARA A PRODUÇÃO DE REDES DE PRODUÇÃO DE SAÚDE CAMPINAS 2016

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

FACULDADE DE CIÊNCIAS MÉDICAS

BRUNO MARIANI DE SOUZA AZEVEDO

A APOSTA NO ENCONTRO PARA A PRODUÇÃO DE REDES DE

PRODUÇÃO DE SAÚDE

CAMPINAS

2016

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BRUNO MARIANI DE SOUZA AZEVEDO

A APOSTA NO ENCONTRO PARA A PRODUÇÃO DE REDES DE

PRODUÇÃO DE SAÚDE

Tese apresentada à Faculdade de Ciências Médicas da

Universidade Estadual de Campinas como parte dos requisitos

exigidos para a obtenção do título de Doutor em Saúde Coletiva,

na área de concentração Política, Planejamento e Gestão em

Saúde.

ORIENTADOR: SÉRGIO RESENDE CARVALHO

ESTE EXEMPLAR CORRESPONDE À VERSÃO

FINAL DA TESE DEFENDIDA PELO

ALUNO BRUNO MARIANI DE SOUZA AZEVEDO, E ORIENTADO PELO

PROF. DR. SÉRGIO RESENDE CARVALHO.

CAMPINAS

2016

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BANCA EXAMINADORA DA DEFESA DE DOUTORADO

BRUNO MARIANI DE SOUZA AZEVEDO

ORIENTADOR: SÉRGIO RESENDE CARVALHO

MEMBROS:

1. PROF. DR. SÉRGIO RESENDE CARVALHO

2. PROF. DR. RICARDO RODRIGUES TEIXEIRA

3. PROFA. DRA. LIANE BEATRIZ RIGHI

4. PROF. DR. RICARDO SPARAPAN PENA

5. PROF. DR. GUSTAVO TENÓRIO CUNHA

Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva da Faculdade de Ciências

Médicas da Universidade Estadual de Campinas.

A ata de defesa com as respectivas assinaturas dos membros da banca

examinadora encontra-se no processo de vida acadêmica do aluno.

Data: DATA DA DEFESA 18/02/2016

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A Meus Mestres:

O mestre transmite-lhe alguma

sabedoria com qual os anos o brindaram.

Não só isso, o mestre constrói contigo

um conhecimento útil a você. E mais, não

se apega a isso, deixa-o passar por seus

próprios caminhos, não exige filiação,

quer mais é que tenha suas próprias

pernas e suas próprias pérolas de saber.

A meus mestres Avô Souza, A Sérgio.

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Teria aqui, um s/cem número de pessoas a que agradecer, que passaram, de

alguma maneira, por essa pesquisa nesses 4 anos, que compuseram a vida vivida de

cada dia e também se tornaram autoras deste trabalho. Definitivamente, esses

parágrafos não são apenas meus…

A Julia, pelos anos de inocente paciência, amor e generosidade. Esse “livro”

também é teu. Papai te agradece muito.

Aos muitos familiares que de alguma maneira apoiaram este trabalho, pais,

avós, tias, tios, irmão, primos e primas.

Aos amigos de muitos anos e os de nem tantos anos assim, fundamentais na

caminhada da vida. Lorena, Mirela, Yuri, Milu, Israel, Claus, Gama, Dé, Ju, Mari, Elton,

Pedro, Ellen, Carina, Rachel, Nilton, Helga, Ana Luiza, Marcinha, Luís, Raphael, Bel,

Thaís, Henrique, Sarah, Fabrício, Cathana, Cecília, Michele, Camila, Fran, Julia,

Núbia, Ludimila, Marie, Mariana, Ari, Ana…

A Débora, pelo carinho, cuidado e amor, a força do Sprint final.

A Felipe e Tania, pela acolhida, carinho e cuidado tão generosos no tempo da

delicadeza.

A Nina, por tantos anos de companheirismo e amor.

Aos Conexões, que aqui passaram e aqui ficaram. Beth, Flávia, Yara, Ricardo

T., Ricardo P., Sabrina, Tadeu, Renato, Bruna, Gustavo N e os vários outros que

passaram mais temporariamente.

Aos professores e professoras e amigos com quem aprendi muito nestes anos

de Saúde Coletiva, Gustavo T., Juliana, Gastão, Rosana, Nelsinho, Solange, Heleno,

Ana, Herling, Silvia, Rita, Everardo, Liane, Emerson, Cecílio…

A Marga por haber hecho lo posible recibiendo un alumno brasileño un poco

loco, el soporte y generosidad. Marta y Marc por la gran compañía y ayuda.

A Marcela, mi hermana. ¡Un amor muy grande por ti cariño! ¡Siempre! Arnau,

mi hermano amigo querido! ¡Gracias a los dos por los grandes momentos en

Barcelona y por haberme presentado lo cuanto la Cataluña es linda! Enamoré de

Cataluña, de Barcelona y de vosotros.

A los amigos de Barcelona que me acompañaran en la locura. Lucía, Inés,

Núria, Alba, Saïda, Maria, Pere, Bea, Sergio, Diana, Giazú, Laura, Neus! ¡Gracias por

lo lindo que fue 2014!

A Du e Ana, diretores, professores, amigos, pelo carinho, cuidado, confiança,

pelos anos de inspiradora parceria criativa!

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Aos Insólitos Travessos, Amanda, Gabi, Matheus, Pati, Rodrigo e Valter pelo

intenso e lindo aprender conjunto nos palcos e salas de trabalho da vida.

Aos arakianos, que também passaram e também ficaram! Jeff, Lucas,

Carminha, Rodrigo, Glauco, Zé, Thaisa.

Aos muitos amigos e amigas conhecidos e construídos nos anos de Curso Livre

de Teatro! Grato pela confiança e amizade.

Aos colegas da Política Nacional de Humanização e Ministério da Saúde, que

também inspiraram o começo desse trabalho, em especial Cleusa, Pedro, Stela,

Ricardo, Cecília, Cathana, Tadeu, Laura, Daniel. E os vários parceiros e parceiras dos

trabalhos no território, de apoio.

Aos amigos e amigas de Consultório na Rua. Foi um ano de intenso trabalho e

estreitamento de amizades, conhecimento mútuo e cumplicidade. Alcyone, Carol,

Suzy, Tiago, Tina, Alice, Fran, Magna, Renata, Lívia, Gilson, Fabi, Chay, Flávio,

Impera, Karina, Rachel, Thaís, Felipe. Definitivamente esse doutorado não teria sido

possível sem vocês.

As alunas e alunos que também me inspiraram nesse trabalho ao longo desse

ano.

Aos moradores de rua de Campinas, excluídos dentre os excluídos, que me

incluíram em suas vivências e têm possibilitado experiências incríveis, encontros

potentes e alegres, ainda que que frequentemente com dor e no sofrimento. A máxima

intensidade da vida vivida a cada minuto!

Aos que certamente eu esqueci de citar, mas não menos importantes…

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RESUMO

Tese de Doutorado que explora o tema Redes de Saúde. Realiza-se uma revisão das

políticas públicas adotadas no Brasil para a constituição das Redes de Saúde e das

definições adotadas, fazendo-se uma problematização do arcabouço teórico-prático

ali implicado, a partir de experiências relativas à Política Nacional de Humanização e

à uma pesquisa do sistema de saúde catalão. Em seguida faz-se uma abordagem

cartográfica da equipe de Consultório na Rua de Campinas, com diários de campo e

oficinas, sistematizadas em fluxogramas analisadores, como um campo de práticas

que vem inserindo novos modos de fazer clínica e de fazer redes. Por fim, ante essas

experiências discute-se a ideia de redes a partir de teóricos como Spinoza, Deleuze e

Negri, em especial utilizando os conceitos de corpo, noção comum, amor, produção

do comum e rizoma operado por esses autores, propondo as redes-rizomas como

ferramenta metodológica para a construção de redes de produção de saúde.

Metodologicamente, para realizar a escrita exploramos a ideia de Interpolação de

Olhares, a partir de conceitos como cartografia, antropofagia e perspectivismo.

Palavras-chave: Sistemas de Saúde. Saúde Coletiva. População em Situação de Rua.

Filosofia. Pesquisa Qualitativa.

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ABSTRACT

Doctoral thesis that explores the theme of Health Networks. We do a review of public

policies adopted in Brazil for the creation of Health Networks and definitions adopted,

making a problematization of theoretical-practical aspects there involved, from

experiences of National Policy of Humanization from Brazil and a research of the

Catalan health system. Then we do a cartographic approach of Street’s Clinic in

Campinas, with workshops and field journals, systematized in flowcharts parsers, as a

field of practice that helps inserting new ways of doing clinical and creates networks.

Finally, revising these experiences we discuss the idea of networks from theorists like

Spinoza, Deleuze and Negri, in particular using the concepts of body, common idea,

love and common production and Rhizome operated by these authors, proposing the

health networks-like rhizomes methodological tool for building networks of health

production. Methodologically, to perform this thesis we explored the idea of

interpolation looks, from concepts such as cartography, Anthropophagy and

perspectivism.

Keywords: Health Systems. Public Health. Homeless Persons. Philosophy. Qualitative

Research.

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1 Detalhe Park Guell - http://www.aspasios.com/descubre-

barcelona/wp-content/uploads/2015/01/gaudi-architecture.png - Acessado em

25/01/16 .................................................................................................................... 64

Figura 2 Detalhe Casa Batlló - https://images.trvl-

media.com/media/content/shared/images/travelguides/destination/179992/Casa-

Batllo-52406.jpg - Acessado em 25/01/16 ................................................................. 67

Figura 3 Campo no Largo da Catedral - Acervo da Equipe ............................ 87

Figura 4 Campo na Linha do Trem - Acervo da Equipe .................................. 95

Figura 5- Mapa da Rede Construída pelo CnaR para 6 pessoas atendidas. As

setas pretas representam fluxos e relações predominantemente conflituosos. ...... 109

Figura 6 Campo no Largo do Pará - Acervo da Equipe ................................ 110

Figura 7 - Galathea de Esferas (1952), Salvador Dalí -

https://en.wikipedia.org/wiki/File:Galaofspheres.JPG - Acessado em 27/01/16 ...... 123

Figura 8 - Rachael from the Enchanted Forest (2012) - Instalação e fotografia

de Garth Knight -

http://www.garthknight.com/portfolios/2012enchantedforest/05red/08.html - Acessado

em 27/01/16 ............................................................................................................ 143

Figura 9 - Muchacha en la Ventana (1925), Salvador Dalí -

https://www.salvador-

dali.org/media/upload/gif/cache/f0046_noiaalafinestra_1411574278_1024.jpg -

Acessado em 27/01/16 ............................................................................................ 160

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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

AB – Atenção Básica

CAPS AD – Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Outras Drogas

CAPS III – Centro de Atenção Psicossocial 24 horas

CGR – Colegiado de Gestão Regional

CIR – Comissão Intergestores Regional

CnaR – Consultório na Rua

COAP – Contrato Organizativo de Ação Pública

CS – Centro de Saúde

DR – Doenças Raras

DRS – Departamentos Regionais de Saúde

DST – Doença Sexualmente Transmissível

INAMPS – Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social

NOAS – Norma Operacional da Assistência à Saúde

NOB – Normas Operacionais Básicas

PNDR – Política Nacional de Atenção integral às Pessoas com Doenças Raras

PNH – Política Nacional de Humanização

PNPR – Política Nacional para a População em Situação de Rua

PSR – População em Situação de Rua

PTS – Projeto Terapêutico Singular

RAS – Redes de Atenção à Saúde

SES – Secretaria Estadual de Saúde

SUDS – Sistema Unificado e Descentralizado de Saúde

SUS – Sistema Único de Saúde

UBS – Unidade Básica de Saúde

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SUMÁRIO

PRÓLOGO ...................................................................................................... 14

CAPÍTULO 1 – UM MODO E UM PERCURSO DO PESQUISAR:

Considerações éticas, estéticas e políticas ............................................................... 17

Pesquisa Intervenção, Cartografia e Antropofagia ...................................... 18

As Regras da Prudência ou sobre Ética em investigação ........................... 22

Levantamento Bibliográfico ......................................................................... 26

Diários de Campo........................................................................................ 28

Interpolação de olhares – a escrita como um registrar, intervir e pesquisar 31

As oficinas e o fluxograma analisador ......................................................... 39

CAPÍTULO 2 – REDES EM SAÚDE – A Construção de um Problema .......... 42

CAPÍTULO 3 – UMA REDE EM CONSTRUÇÃO E EM MOVIMENTO: A

Experiência do Consultório na Rua ........................................................................... 74

Mais alguns detalhes dos percursos éticos, estéticos e metodológicos do

pesquisar ............................................................................................................... 82

Caminhando pela rua e pensando a vida .................................................... 86

Considerações Finais ................................................................................ 114

CAPÍTULO 4 – SOBRE NOÇÕES COMUNS E REDES .............................. 119

Spinozando uma ontologia ........................................................................ 120

Corpos ....................................................................................................... 123

Afeto afeta ................................................................................................. 129

Comum? .................................................................................................... 133

Das redes de saúde e da produção de comum ......................................... 137

Tecnologias, necessidades e integralidade ............................................... 139

O Singular e o Coletivo nas Redes ........................................................... 143

A Gestão, o Comum e a Multidão ............................................................. 147

Redes rizomas .......................................................................................... 154

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EPÍLOGO ...................................................................................................... 161

BIBLIOGRAFIA ............................................................................................. 164

ANEXOS ....................................................................................................... 183

ANEXO 1: TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO .... 183

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PRÓLOGO

No final a gente escreve o começo. Após escrever toda essa tese volto ao

começo dela, não para fazer uma introdução, mas para fazer alerta ou um

manual de uso deste trabalho.

Não me ocupo, aqui, em responder a todas as questões por mim mesmo

abertas ou as que suponho que o leitor levantará. Também não pretendo explicar

todos os conceitos que tangencio, não minuciosamente e, na verdade, às vezes

não gasto nem uma palavra com alguns. Deixo que parte desses conceitos

apenas apareçam, instigam e partam. Conceitos são incríveis constelações e

seria muita pretensão achar-se capaz de descrever a todas as estrelas em

apenas uma tese de doutorado. Várias delas demandariam suas próprias teses.

A escrita aqui tem um papel fundamental. Não é apenas um relato de

pesquisa. Tem sua vida própria, seu ritmo, sua cadência e sua própria

investigação. Não me pretendo literato (e nem filósofo, há que se dizer), mas

também não tenho pudor em galantear essas linguagens, pensamentos,

inspirações, ideias.

Cada capítulo tem sua vida própria, mas dialogam entre si

constantemente. Se estiver muito apressado na leitura ou no entendimento de

um ou outro conceito ou expressão, alguns deles tem hiperlinks (benefício de

quem está lendo a versão virtual) para te fazer avançar no texto (ou até

retroceder caso já tenha se esquecido de algo). Pode se perder. Por sua conta

e risco.

Falando nisso, faça a leitura com calma, talvez a suposta ausência que

se anuncia em um parágrafo esteja explicada alguns tantos à frente. Talvez não,

mas não feche julgamentos a priori.

Aliás, a tese está recheada de vírgulas, de pontos de parada, de

divagações, até mesmo de tentativas minuciosas de explicação que derivam

para outros campos. Não são metáforas! Não são meras ilustrações! Nenhum

julgamento para quem as emprega, mas aqui, não são. São experiências. É a

pesquisa sendo vivida e a vida vivida sendo pesquisada. Uma pornográfica

transposição, permuta, entre os diversos aspectos da existência de um

pesquisador, supostamente separados.

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Os capítulos não começam nem terminam, vão pelo meio. Talvez com

alguma delicadeza de transição para não impactar muito ao leitor. Ainda assim,

eventualmente haja uma sensação de “opa, será que perdi um parágrafo inicial”

ou “acabou aqui? Comi uma página? ” Desculpa, eu mesmo não controlo bem

esse texto. Ele começa e termina quando quer, mas sempre no meio.

São quatro. Os capítulos. Encerrando-se com um Epílogo. Cada qual com

sua temporalidade, seu tema, seu tempo de escrita. Poderia dizer que alguns

chegam a ser bem datados. Outros totalmente atravessados pelos 2 anos de

mestrado e 4 de doutorado. Este é o caso do primeiro e do quarto, reflexo de

construções teóricas, metodológicas e filosóficas de todo esse tempo, a cada

momento marcadas, inflexionadas, agenciadas e modificadas… certamente, se

meu ponto final fosse daqui um ano, ainda teria o que falar nesses capítulos e

certamente seriam bem diferentes.

Começamos falando do caminho do pesquisar, das explorações

metodológicas. Uma escolha estratégica, pois talvez, só talvez, auxilie ao leitor

a cumprir o restante de sua função.

O segundo capítulo, o datado, traz revisões sobre nosso tema Redes de

Saúde, expressões governamentais e de experiências do pesquisador no

governo, cruzadas com experiências do pesquisador no próprio pesquisar.

O terceiro capítulo é aquele que não acaba. Tem mais e mais a ser dito,

poderia ele mesmo ser uma tese inteira e, no final, suas produções acabam

atravessando essa aqui mesma, por completo. É a rua. Eu sempre disse que

temos que sujar os sapatos de lama para viver, para aprender… pois aqui a lama

vem como todo o seu poder e deixa máculas em todas as suas roupas, mesmo

naquelas que você ainda não comprou! O trabalho com o Consultório na Rua, o

trabalho com a População em Situação de Rua, com as pessoas, é um trabalho

cheio de carinho, tensão, emoção. Um trabalho que inevitavelmente te arrebata

para dentro e modifica seu olhar sobre tudo, o mundo, as pessoas, os serviços,

as maneiras de fazer clínica, de cuidar, de produzir o mundo. Qualquer desenho

feito sobre esse trabalho é apenas uma foto, absolutamente temporária e que

encaixa como uma luva nessa maneira de proceder pesquisa, gestão, vida, que

venho propondo, tentando, experimentando…

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Por fim, o quarto capítulo, segue como uma provocação. Alimentado pelo

terceiro, mas absolutamente transversal a todo meu percurso como investigador.

Um capítulo marcado pelos amores na vida, pelas questões que me produzem

inquietação e potência. As relações, a produção de saúde, de vida, os amores,

o comum. A produção de outros possíveis, mais ou menos novos, mas possíveis.

Talvez apenas pequenas gotas, mas que me parecem de profunda capacidade

interventiva nas pessoas, nos modos elas se relacionam, na organização de

serviços e sistema de saúde, na organização da sociedade. No fim… tudo isso

fala da mesma coisa.

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CAPÍTULO 1 – UM MODO E UM PERCURSO DO

PESQUISAR: Considerações éticas, estéticas e políticas

De que valeria a obstinação do saber se ele assegurasse apenas a aquisição dos conhecimentos e não, de certa maneira e tanto quanto possível, o descaminho daquele que conhece? Existem momentos na vida onde a questão de saber se se pode pensar diferentemente do que se pensa, e perceber diferentemente do que se vê, é indispensável para se continuar a olhar ou a refletir (1)

Não lembro de nenhuma reportagem que não tivesse me dado medo. Sinto medo até hoje. Medo de não dar certo, medo de não ver nada, medo de não conseguir, medo. Tenho insônia e, quando durmo, pesadelos. Antes, durante, depois. (...) Medo é necessário, faz sentido. Só não dá para ter medo de ter medo, paralisar e deixar as histórias passarem sem encontrar quem as conte. Ficar escondido atrás de um computador, achando que o fato de escolher em que mundo virtual entrar, quando sair, quais e-mails responder e quais deletar é ter a vida sob controle configura, talvez, a grande ilusão contemporânea. Por mais que você escolha não viver, a vida te agarra em alguma esquina. O melhor é logo se lambuzar nela, enfiar o pé na jaca, enlamear os sapatos. Se quiser um conselho, vá. Vá com medo, apesar do medo. Se atire. Se quiser outro, não há como viver sem pecado. Então, faça um favor a si mesmo: peque sempre pelo excesso. (2)

Essa tese trabalha na perspectiva de uma atividade investigativa que

reconhece o contexto situacional, a localização e a implicação do observador, de

tal forma que lançará mão de um conjunto de práticas para dar visibilidade às

suas questões transformando a realidade na investigação. Iniciamos então com

um caráter desarticulador do próprio campo científico ao reconhecer a reversão

do esquema “conhecer para transformar” em um “transformar para conhecer” (3).

Entendemos que a presença do pesquisador no campo a ser pesquisado

já, por si só, produz interferências nos processos como um agente externo que

trará outras ideias e forças para os diagramas já ali instaurados. Além disso, o

pesquisador não se esquivará de opinar e intervir na medida que julgar

necessário. A coletividade do processo, seja na construção de uma

horizontalidade de participação dos outros envolvidos na pesquisa, seja no

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compartilhamento e discussão do produzido com o grupo de pesquisa, apoia a

formulação crítica da pesquisa e a análise das implicações do pesquisador.

De modo que, incorporados do desejo-composição, nos propomos a

experimentar a produção coletiva de forma bastante intensiva, um modo de fazer

que não só nos arranca do velejar solitário como também nos conecta com

outras questões, redirecionando problemas e colocando os tais corpos-

pesquisadores-jangadas num barco comum. Munidos de certo querer criar nos

deslocamos dos problemas únicos tangenciando problemas em comum (4).

Pesquisa Intervenção, Cartografia e Antropofagia

Como intervenção estamos nos vinculando a uma ideia de “interpor-se”,

de “vir entre”. Falamos também de uma “intervenção como um caminhar mútuo

por processos mutantes” (5). Tal caminhar, com um olhar para a processualidade

permite perceber conflitos, divergências, ações que produzem diferenças, certa

produção de sentidos junto ao grupo pesquisado (3).

Trabalhamos com uma noção de produção de subjetividade/sujeito em

que o sujeito seria uma “forma que dá passagem” a linhas de força/poder e de

produção de subjetividades que nos atravessam. Uma noção que nega o caráter

essencialista do sujeito afirmando, antes e principalmente, o processo dinâmico,

mutante, acontecimental e provisório que o constitui. Somos vários “sujeitos” e,

ao mesmo tempo, estamos deixando de ser aquilo que somos. Somos, portanto,

um “efeito de um entre”. Somos aquilo que se produz a partir de nossos

encontros com as coisas (homens e não homens).

Abordaremos isso em momento apropriado, agora fiquemos com essa

ideia de que os sujeitos são, portanto, implicados (6) e, através de nossa lente,

uma implicação que é profunda e mutante à medida que afirma que nos

encontros cotidianos intervimos sobre o mundo (cuidamos dos outros),

intervindo/cuidando de nós mesmos (7). Para o processo de investigação isso

tem uma consequência importante, pois evidencia a inseparabilidade entre

sujeito e objeto de pesquisa, que se engendram no ato de pesquisar, em um

processo de invenção de si e do mundo.

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A ação crítica e implicativa da pesquisa-intervenção produz, em potência,

desnaturalizações das práticas instituídas. Coloca-se em análise as práticas

cotidianas, as relações, produzindo desterritorialização e permitindo a criação de

novas práticas (3).

Entendemos, como Paulon (5) a partir de Nietzsche, que o acontecimento

implica sempre uma nova interpretação, um redirecionamento das questões

anteriores ao acontecimento. Interessa-nos essa espontaneidade rebelde, que

produz diferença, podendo colocar em questão inclusive a própria pesquisa. E é

aí que a pesquisa-intervenção interessa à Saúde Coletiva, pois, para operar no

plano dos acontecimentos, a pesquisa deve guardar a possibilidade do

ineditismo da experiência humana, valorizando as multiplicidades e diversidades

existenciais.

A análise é feita pelo analisador, ou seja, por aquilo que permite revelar a

estrutura da instituição, forçando-a a falar (8): “o analisador deve substituir o

analista” (6). Assim, a pesquisa-intervenção trabalha no sentido de produzir ou

identificar possíveis analisadores (9) para que a intervenção se dê.

Na pesquisa-intervenção, a relação pesquisador/objeto pesquisado é dinâmica e determinará os próprios caminhos da pesquisa, sendo uma produção do grupo envolvido. Pesquisa é, assim, ação, construção, transformação coletiva, análise das forças sócio-históricas e políticas que atuam nas situações e das próprias implicações, inclusive dos referenciais de análise. É um modo de intervenção, na medida em que recorta o cotidiano em suas tarefas, em sua funcionalidade, em sua pragmática – variáveis imprescindíveis à manutenção do campo de trabalho que se configura como eficiente e produtivo no paradigma do mundo moderno (10).

Assim, interessará à pesquisa-intervenção os movimentos e mudanças, o

acompanhamento de tal processo de diferenciação (11). Isso nos conduz às três

inversões no modo de se fazer pesquisa. Então, será necessário orientar-se pelo

próprio modo de se fazer pesquisa, o que nos leva a direcionar a pesquisa mais

para um fazer-saber do que um saber-fazer (12,13).

Contra o mundo reversível e as ideias objetivadas. Cadaverizadas. O stop do pensamento que é dinâmico. O indivíduo vítima do sistema. Fonte das injustiças clássicas. Das injustiças românticas (14).

Voltamos à ideia de que pesquisar é intervir, de forma que produzir

conhecimento é, indissociavelmente, também transformar a realidade e a nós

mesmo. Assim, a intervenção em saúde terá sempre um caráter clínico-político.

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E é isso o que interessa à cartografia, as relações de força e as forças liberadas

nessas relações, o que se produz a partir delas. Para isso o pesquisador, em

construção, também deve estar permissivo ao atravessamento pelo próprio

processo de pesquisar e de cuidar, dando condições de visibilidade e dizibilidade

ao que se passa individual e coletivamente nos processos de produção de

saúde, de cuidado e de vida (12).

Espera-se do cartógrafo que ele dê passagem aos afetos1, mergulhado

às intensidades de seu tempo, devorando qualquer linguagem que o encontre

para a composição de cartografias (15).

O cartógrafo é um verdadeiro antropófago: vive de expropriar, se apropriar, devorar e desovar, transvalorado. Está sempre buscando elementos/alimentos para compor suas cartografias. Este é o critério de suas escolhas: descobrir que matérias de expressão, misturadas a quais outras, que composições de linguagem favorecem a passagem das intensidades que percorrem seu corpo no encontro com os corpos que pretende entender. Aliás, "entender", para o cartógrafo, não tem nada a ver com explicar e muito menos com revelar (…) e o que ele quer é mergulhar na geografia dos afetos e, ao mesmo tempo, inventar pontes para fazer sua travessia: pontes de linguagem (15).

Sobre o “entender”: não existe teoria físico-matemática que lhe explique

o momento exato de furar ou de pegar uma onda. Também não existe explicação

físico-química que dê conta de explicar totalmente como você se apaixona por

estas ou por aquelas pessoas. O entendimento das relações não passa por

grandes teorias explicativas, passa pela experimentação do que pode um (e

cada um) corpo.

O antropófago, índio tupi, é aquele que se alimenta do guerreiro vencido,

mas não qualquer guerreiro, apenas os mais fortes e valorosos. Uma seleção

pela alteridade, uma ideia da decomposição de outro corpo para compor o seu

próprio ainda mais poderoso, com mais potência vital. A orgia alimentar

antropofágica deleita-se de quaisquer ingredientes, mas não sem um critério

ético imprescindível, apenas são aceitos aqueles que trazem inquietantes ideias

revigoradoras da mente. Não é nem adotar um padrão como certo, nem o negar,

1 “por afeto compreendo as afecções do corpo, pelas quais sua potência de agir é aumentada ou diminuída, estimulada ou refreada, e, ao mesmo tempo, as ideias dessas afecções” (37). Nesse sentido spinozano, não há como o cartógrafo nem qualquer outro ser vivo não dar passagem aos afetos.

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“apenas” desloca-lo, mudar de centro. Nos jogos teatrais de improvisação ou na

composição de cenas, sob certas perspectivas, não falamos em certo ou errado,

buscamos aquilo que funciona ou não como linguagem teatral e na relação com

o público, mil maneiras poderiam ser compostas de modo a funcionar. Essa é a

seleção do antropófago, vai para a mesa, sem conotação identitária ou hierarquia

de valor, qualquer coisa que funcione, que permita passar intensidades e

produzir sentidos (16).

Visibiliza-se outro movimento antropofágico caro à cartografia, e à

investigação, que o toma como modo de operar. Não existe uma verdade a ser

significada, explicada ou interpretada, mas sim mapas de sentido a serem

traçados e construídos com o território, com o campo de pesquisa (16). Quando

tomamos a construção de redes (da maneira como a hipotetisamos) e os campos

com os quais vamos trabalhar (como o Consultório na Rua, as ruas) essas duas

operações antropofágicas interessam-nos sobremaneira já que tomam como

linha de frente a afirmação da vida, em maiores ou menores graus (mesmo até

sua quase negação), movidas por diferentes vetores de força, atualizando

diferentes estratégias do desejo (16).

O trabalho e a pesquisa da construção de rede e cuidado na rua, como

veremos, demanda não temer contaminar-se, demanda enxergar e querer a

singularidade do outro (16). A produção afetiva, de boas relações, é

determinante para o que aqui queremos afirmar e é uma das pistas para a

construção dessas redes que as ruas apontam. É necessário ter um corpo para

ir a campo, um corpo capaz de vibrar às conexões, aos inusitados afetos

provocados, capaz de querê-los, enxerga-los e devorá-los, recriando a si mesmo

(16).

O cartógrafo, como antropófago, está em campo aberto às múltiplas

conexões, na emergência e contato entre os mundos agenciados. “Só me

interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago” (14). Guiado por

alianças e contatos rizomáticos, por uma mestiçagem, não teme perder a si,

resguardado pelos princípios éticos de seleção e pela regra de prudência.

“O desafio de uma subjetividade antropofágica é o de se lançar sempre em busca de novos encontros, novas experiências que possam potencializar modos de vida ainda não codificados em extratos dominantes das culturas” (17).

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No contexto do capitalismo, a aquisição de conhecimento e a formação

permanente aparecem como obrigação de cada um e conduzem à produção de

uma subjetividade e um modo de vida que se encaixa bem na estrutura do

mercado globalizado, uma prática antropofágica narcísica, que esvazia a

singularidade de quem é devorado, instrumentalizando-o a serviço de interesses

particulares (16). Ao tensionar essas práticas, em uma reengenharia dos modos

de produção de conhecimento, conferem-se, em potência, resistência aos

modelos de “produtividade”. Tal reversão política tensiona os limites de

pesquisas, práticas e políticas públicas atuais a uma mudança paradigmática

radical, pois se subjetividade é coletiva e cria territórios de vida, a maneira como

se expressam nossas relações, neste caso o modo de produção de pesquisas,

pode modificar radicalmente nossas redes de vida e trabalho (4).

O problema do antropófago, é o problema da composição. Eis então, que

o encontro passa, nesse caso, a ser também imperativo da pesquisa, com intuito

de experimentar outras formas de se produzir saberes. A nossa questão, passa

a encontrar e ativar uma zona de trocas que torne possível, de acordo com e em

diferentes contextos, outros modos de trabalho (4). Falamos aqui de práticas que

possam inserir barricadas no tempo, invadir espaços, e ocupar um espaço-tempo

intensivo do acontecimento, fazendo as intensidades afetivas atravessarem a

instituição, pegá-la no contrapé (18), como, por exemplo, fazer oficinas para

discussão dos processos de trabalho, fazendo parte da pesquisa, dentro do

próprio processo de trabalho da equipe, atuando como provocação às práticas

cristalizadas, colocando em questão modos de fazer e trazendo outras

possibilidades de atuação.

As Regras da Prudência ou sobre Ética em investigação

Rolnik (15) sintetiza bem a ética e o cuidado que devem ser adotados ao

orientar-se na cartografia como um modo de fazer pesquisa (e porque não, dizer,

que de uma ética de qualquer pesquisa?). Primeiro ter como critério “o grau de

abertura para a vida que cada um se permite a cada momento” (p.68), tendo

assim, um princípio extramoral, a expansão da vida como parâmetro básico e

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exclusivo do processo de pesquisa. De forma que situações e ações que

produzam decomposição, afetos de morte, precisam ser revistas e

redirecionadas. O que coloca uma regra fundamental: tem que se estar atento

ao “limite do quanto se suporta, a cada momento, a intimidade com o finito

ilimitado” (p.68), com a desterritorialização, com a intervenção. Há

Um limite de tolerância para a desorientação e a reorientação dos afetos, um ‘limiar de desterritorialização’. Ele [o cartógrafo] sempre avalia o quanto as defesas que estão sendo usadas servem ou não para proteger a vida. Poderíamos chamar esse seu instrumento de avaliação de ‘limiar de desencantamento possível’, na medida em que, afinal, trata-se, aqui, de avaliar o quanto se suporta, em cada situação, o desencantamento das máscaras que estão nos constituindo, sua perda de sentido, nossa desilusão. (...) A regra do cartógrafo, então, é muito simples: é só nunca esquecer de considerar esse ‘limiar’. Regra de prudência (15).

Regra ética essencial para os procedimentos de investigação e que, por

isso, merece algumas linhas a mais.

Era uma vez certo casal de irmãos. Orgulho dos pais e da cidade onde moravam. Sim, aprontavam lá suas molequices, para as quais todos faziam vistas grossas, afinal eram bons alunos, conseguiam boas notas. Estavam presentes nas mais diversas atividades, das esportivas às culturais, das beneficentes às festivas. Mas eles tinham um hábito, um hobby, um gosto, muito peculiar... criavam aranhas caranguejeiras! A maior parte das pessoas mal se atrevia a olhar para os terrários onde elas ficavam, quanto mais se aproximar ou alimentá-las. Certa vez, ele foi para uma cidade no interior do Amazonas desenvolver um projeto relativo à saúde. Era sua primeira vez na grande selva e o espanto que toda aquela vida lhe causou não foi pequeno. Inúmeros insetos incomuns ao seu habitual olhar atento. Inúmeras aranhas, seja na zona urbana, seja na mata. Inofensivas ou perigosas, pequenas ou grandes. E, finalmente, o encontro com uma caranguejeira! Um espécime bonito! Não se conteve! Seria o presente perfeito para sua irmã! Com muita habilidade capturou-a, ainda era pequena. Com uma garrafa de plástico fez uma pequena acomodação para transporta-la. Sim, ele a trouxe para casa e deu, para enorme felicidade de ambos, para a irmã. A amazônica aranha logo dominou o terrário em que foi colocada, matou as outras duas que já viviam ali calmamente. Seu apetite era voraz! Uma barata, dada às outras aranhas, passeava por um bom tempo pelo terrário antes de virar alimento para um dia inteiro. Para esta, uma barata não bastava, eram necessárias duas no dia, que tinham mortes rápidas sob sua voracidade. Uma aranha forte, com certos tons de agressividade, construiu uma densa teia por todo o seu espaço. E cresceu. Essas aranhas podem crescer muito! Bem, a menina, mais nova, talvez ainda não entendesse muito sobre a biologia

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desses aracnídeos, ou talvez apenas fosse tomada pelo afobamento próprio de sua jovialidade. Espantava-lhe e alegrava-lhe o crescimento de seu animal. Um dia, surpreendeu-se ao acordar e ver que sua aranha tinha feito uma muda. O velho e já pequeno exoesqueleto estava descartado em um canto do terrário. Mais do que rapidamente a voluntariosa menina providenciou um terrário maior. Sem teia, sem exoesqueleto, sem território, a aranha morreu em meio à confecção de seu novo habitat... exaurida no esforço2 (19).

Assim, Deleuze e Guattari, ao falar sobre a composição de um corpo-sem-

órgãos3 (CsO) e a necessidade de prudência, afirmam:

É necessário guardar o suficiente do organismo para que ele se recomponha a cada aurora; pequenas provisões de significância e de interpretação, é também necessário conservar, inclusive para opô-las a seu próprio sistema, quando as circunstâncias o exigem, quando as coisas, as pessoas, inclusive as situações nos obrigam; e pequenas rações de subjetividade, é preciso conservar suficientemente para poder responder à realidade dominante. Imitem os estratos. Não se atinge o CsO e seu plano de consistência desestratificando grosseiramente. Por isto encontrava-se desde o início o paradoxo destes corpos lúgubres e esvaziados: eles haviam se esvaziado de seus órgãos ao invés de buscar os pontos nos quais podiam paciente e momentaneamente desfazer esta organização dos órgãos que se chama organismo. Havia mesmo várias maneiras de perder seu CsO, seja por não se chegar a produzi-lo, seja produzindo-o mais ou menos, mas nada se produzindo sobre ele e as intensidades não passando ou se bloqueando. Isso porque o CsO não pára de oscilar entre as superfícies que o estratificam e o plano que o libera. Liberem-no com um gesto demasiado violento, façam saltar os estratos sem prudência e vocês mesmos se matarão, encravados num buraco negro, ou mesmo envolvidos numa catástrofe, ao invés de traçar o plano. O pior não é permanecer estratificado — organizado, significado, sujeitado — mas precipitar os estratos numa queda suicida ou demente, que os faz recair sobre nós, mais pesados do que nunca (20).

2 Ficcional, baseado em fatos reais. 3 “Eis então o que seria necessário fazer [um CsO]: instalar-se sobre um estrato, experimentar

as oportunidades que ele nos oferece, buscar aí um lugar favorável, eventuais movimentos de desterritorialização, linhas de fuga possíveis, vivenciá-las, assegurar aqui e ali conjunções de fluxos, experimentar segmento por segmento dos contínuos de intensidades, ter sempre um pequeno pedaço de uma nova terra. É seguindo uma relação meticulosa com os estratos que se consegue liberar as linhas de fuga, fazer passar e fugir os fluxos conjugados, desprender intensidades contínuas para um CsO. Conectar, conjugar, continuar: todo um "diagrama" contra os programas ainda significantes e subjetivos. Estamos numa formação social; ver primeiramente como ela é estratificada para nós, em nós, no lugar onde estamos; ir dos estratos ao agenciamento mais profundo em que estamos envolvidos; fazer com que o agenciamento oscile delicadamente, fazê-lo passar do lado do plano de consistência. É somente aí que o CsO se revela pelo que ele é, conexão de desejos, conjunção de fluxos, continuum de intensidades" (20).

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O Corpo-sem-Órgãos é um bom conceito-dispositivo para se discutir

pesquisa, clínica e construção de redes, poderia ter sido uma de nossas

escolhas conceituais. Está em nossa constelação de conceitos, ainda que não

seja central. De toda forma, vale notar que é disso que se trata: conectar,

conjugar, continuar, produzir fluxos, produzir um diagrama, significantes e

significados. Para a clínica, é refazer uma clínica, um passo para a Grande

Saúde (21). Para a pesquisa é conectar múltiplos elementos, não buscando

desvendar uma verdade primeira, mas fazendo ver múltiplas perspectivas sobre

o problema de manter-se na existência e todos os outros relacionados a esse.

Em todos esses âmbitos, também é um cuidar de si.

A questão da prudência é um cuidado primeiro da pesquisa-intervenção,

de uma cartografia. Há de se fazer uma permanente análise de qual o nível de

questionamento, problematização, enfim, até onde é possível intervir

provocando deslocamentos e desterritorialização. O que importa é, antes de

tudo, uma afirmação da vida, portanto, não nos interessam movimentos bruscos

que provoquem destruição dos parceiros de pesquisa (e de suas relações) que

já habitam aquele território investigativo.

Ao tratar sobre os cuidados éticos de uma pesquisa, Ferigato (22)

relaciona-os diretamente à cartografia ao atentar que ética em pesquisa tem a

ver como modo de produção de conhecimento, entendendo ética como encontrar

o melhor modo de viver e conviver. Assim, a pesquisa também é um cuidado.

Cuidado que também temos que ter com os liames burocráticos e

institucionais. De tal forma que o projeto deste doutorado foi aprovado em todas

as instâncias pertinentes da Secretaria Municipal de Saúde de Campinas, do

Serviço de Saúde Candido Ferreira e da Comissão de Ética em Pesquisa, sendo

aprovado, por esta, sob o parecer 1.028.025.

Tendo todo este arcabouço em consideração, reenfatizando a reversão

metodológica do primado do caminho sobre o das metas (13), a necessidade da

análise coletiva (8) e de metodologias coletivas como favorecedoras de

discussões e produção cooperativa (3) e o caráter antropofágico do cartógrafo

(15), propusemos um desenho, uma estratégia metodológica, para esta pesquisa

que também abre espaço para que ela própria seja colocada em questão.

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Por fim, há também um posicionamento ético-político a ser tomado pelo

investigador. E sobre isso, Foucault traduz com clareza de que posição falamos:

O que os intelectuais descobriram recentemente é que as massas não necessitam deles para saber; elas sabem perfeitamente, claramente, muito melhor do que eles; e elas o dizem muito bem. Mas existe um sistema de poder que barra, proíbe, invalida esse discurso e esse saber. Poder que não se encontra somente nas instâncias superiores da censura, mas que penetra muito profundamente, muito sutilmente em toda a trama da sociedade. Os próprios intelectuais fazem parte deste sistema de poder, a ideia de que eles são agentes da "consciência" e do discurso também faz parte desse sistema. O papel do intelectual não é mais o de se colocar "um pouco na frente ou um pouco de lado" para dizer a muda verdade de todos; é antes o de lutar contra as formas de poder exatamente onde ele é, ao mesmo tempo, o objeto e o instrumento: na ordem do saber, da "verdade", da "consciência", do discurso. E por isso que a teoria não expressará, não traduzirá, não aplicará uma prática; ela é uma prática. Mas local e regional, como você diz: não totalizadora (23).

Levantamento Bibliográfico

Para construir o processo investigativo lançamos mão de diversas

ferramentas metodológicas. Uma pesquisa bibliográfica inicial ajudou a

aprofundar conceitos e metodologia para ir a campo, o que se expressa neste

material desde o prólogo. Todo o processo investigativo é entremeado por uma

exploração bibliográfica que dialoga com o que a própria pesquisa e vai se

produzindo nessa relação entre pesquisador, parceiros de investigação e o

problema abordado. De forma que referências teóricas surgem do começo ao

final… pautadas numa ideia de caixa de ferramentas, ou seja, entram na

conversa na medida em que servem, funcionam, que dialogam com o campo de

pesquisa.

A exploração bibliográfica passa por produções, mas não se atendo a

eles, dos campos da Saúde Coletiva, da Psicologia, da Filosofia, da

Antropologia, da Análise Institucional e da Pesquisa Qualitativa.

Isso se dá colocando a leitura como gesto, como um exercício de

aproximação, de estudo, de aprofundamento nos temas de interesse. Uma

abordagem que coloca os textos em diálogo, talvez rizomaticamente, para a

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produção de outras leituras e novos textos (24). Antropofagamos tantas

referências, quanto nos sirva à pesquisa. Não buscamos uma repetição

identitária, uma saturação, mas sim explorar as diferenciações que se abrem

para nós no processo de investigação.

Exploramos, a frente, como entendemos a escrita como mais um

processo da pesquisa, como um pesquisar, um produzir conhecimento no próprio

momento de escrever. Desse modo, entendemos que o levantamento

bibliográfico, a construção de um certo caminho, um roteiro teórico, é também

prático. A revisão teórica não só a antecede, mas também é ela própria. Da

mesma maneira encaramos que tal procedimento apoia nossos impulsos

criativos, não permitindo que certa abordagem, considerada mais “prática”, se

torne demasiadamente autorreferente (25) e perca o reconhecimento em

aspectos mais abrangentes de pesquisa, incluindo o conhecimento já produzido

sobre o tema (26).

Consideramos, portanto, que, em consonância com nossos princípios

éticos-políticos anteriormente anunciados, que este levantamento bibliográfico-

teórico é também uma pesquisa empírica. Um entendimento que nos remete a

Foucault quando em seus trabalhos de campo filosóficos ao ‘invés de procurar

justificativas filosóficas abstratas’ em suas investigações busca ‘investigar

empiricamente as formas práticas e efetivas através das quais a filosofia produz

o nosso mundo’.

Ao tomarmos o texto como um corpo imaterial que encontra com o corpo

do investigador, ao ‘agarra-lo’ como uma caixa de ferramenta no qual buscamos

produzir bons encontros, nos afetamos e deixamos de ser aquilo que somos

afirmando um outro devir. Ao

”defrontarmo-nos com um exercício de aproximações e confrontos com os textos, nos aprofundando e mergulhando nas linhas do nosso interesse – produção-criação-re-criação no ato de ler e escrever” (24).

Trata-se de uma abordagem rizomática dos textos (27), que os coloca em

diálogo, em acoplamento. Um diálogo intercessor na qual a intercessão,

segundo Carvalho et al. (24).

Se dá quando a relação que se estabelece entre os termos que se intercedem é de interferência, de intervenção através do atravessamento desestabilizador de um domínio qualquer (disciplinar, conceitual, artístico, sócio-político, etc.) sobre outro.

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A relação de intercessão é uma relação de perturbação, e não de troca de conteúdos. Embarca-se na onda, ou aproveita-se a potência de diferir do outro para expressar (28).

Uma compreensão que convalida a afirmação de que a teoria – na qual o

texto escrito constitui uma de suas múltiplas concretudes - ‘não expressará, não

traduzirá, não aplicará uma prática; ela é uma prática’ (23)!. Uma prática

discursiva que nos transforma, um discurso-texto que é, em última instância, é

uma força (i)material que busca conduzir a conduta dos sujeitos em relação.

As relações de poder que se estabelecem entre o discurso escrito e o

leitor pesquisador constitui, em nosso entendimento, uma possibilidade de

exercício disciplinar e normatizador mas, também, de afirmação de práticas de

liberdade e linhas de fuga daquilo que barra, proíbe e invalida discursos e

saberes que afirmam a vida no limite de suas possibilidades.

Diários de Campo

A entrada no campo não é algo que possa ser feita levianamente, há

cuidados a serem tomados. Entendo que entrar no campo nunca é uma atitude

inerte que apenas recolhe dados para pesquisa. Essa entrada é interventora e

coprodutora do próprio campo. Reconhece-se aqui, que todos, de uma ou outra

maneira, estamos implicados em qualquer atividade que exerçamos (13). A ideia

de implicação (e sobreimplicação) deriva da Análise Institucional francesa.

Diante da noção de corpo e de singularidade com que trabalhamos nesta

pesquisa (abordada em outro momento), nos faz pouco sentido apoiar-nos em

uma ideia de implicação individualizante, calcada apenas nos movimentos do

pesquisador, aqui diferenciamos. O duplo estatuto pesquisador-trabalhador, o

pesquisador também tem uma inserção como médico na mesma equipe em que

ocorre parte do campo de pesquisa, por um lado garante a permeabilidade ao

cotidiano do trabalho, por outro acrescenta complexidade à tarefa de dar

visibilidade a certos processos. O que nos leva a lançar mão de discussões com

o grupo de pesquisa para fazer análise do material produzido a partir do diário

como parte do trabalho com este método.

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É fundamental que façamos uma análise de nossas implicações em

atividades como pesquisas e intervenções buscando refletir e assinalar o lugar

que se ocupa, que se busca ocupar e que somos designados a ocupar (11). A

despeito do que dialogamos acima, sobre o que entendemos por implicação,

cuja análise se dará ao longo dos capítulos, conforme cada situação de pesquisa

seja discutida, convém, também, dizer de onde escrevo e por onde passei para

chegar a este produto-tese.

Inicio esse doutorado em 2012, provocado pelo trabalho de apoiador da

Política Nacional de Humanização, pelo Ministério da Saúde, neste momento

desenvolvíamos trabalhos no estado de São Paulo visando o fortalecimento das

redes regionais intermunicipais, de tal forma que apoiávamos,

predominantemente, as áreas adscritas por Comissões Intergestoras Regionais.

Em seguida, buscando dedicar mais tempo ao doutorado, saio desta função e

passo a perceber uma rede municipal de saúde a partir de plantões dados em

um Pronto Socorro de Campinas. Daí parto rumo a um estágio sanduíche em

Barcelona/Espanha, buscando aprofundar a discussão sobre metodologia

qualitativa e sobre redes, experimentando um pouco de um outro tipo de

construção de rede municipal.

Por fim, ao retornar a Campinas, inicio trabalho com uma equipe de

Consultório na Rua, a partir da qual decidimos realizar um trabalho de campo

empírico deste doutorado. O referencial teórico aqui utilizado vem sendo

aprofundado desde a Residência Médica em Medicina Preventiva e Social,

quando já participava de investigação sobre Ensino Médico e de coletivo de

pesquisa que desenvolvia leituras e pesquisas baseadas na filosofia pós-

estruturalista.

Neste sentido, operando este cuidado, o diário de campo poderá servir

como ferramenta para expressar e dar visibilidade, a movimentos de

aproximação e de distanciamento do campo de pesquisa (29), podendo revelar

as implicações do investigador neste processo de trabalho/pesquisa, seja no

momento em que ele retoma suas anotações e faz o ordenamento daquilo que

escreveu, seja no momento em que torna público seu escrito(6).

Assim, vemos o uso do diário de campo como uma aposta de ter na escrita

uma forma de dar visibilidade, de fazer falar, de fazer contar, de trazer algo que

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é pessoal, mas que pode se extrapolar e trazer outras coisas à cena. Aparece

como uma ótima ferramenta, no referencial teórico-metodológico de pesquisa

qualitativa no qual estamos trabalhando, para fazer um acompanhamento de

processos na/da vida real na análise das linhas de forças (relações de poder e

vetores de produção de subjetividade) (30).

Observação, produção de dados e análise de implicação são movimentos

simultâneos que se entrelaçam, aqui, com especulações, projeções e

construções teóricas para conformar a existência do diário da pesquisa. Este

diário é, nas palavras de Lourau (6), uma “narrativa (...) ao mesmo tempo

anterior, presente e futura”, é a produção de um texto “erudito” com a projeção e

os esboços do que está para ser descoberto.

A possibilidade de releitura das notas do diário traz acréscimos à

autorreflexão e à auto avaliação a partir dessa (re) construção à distância em

relação ao vivido ou ao objeto de pesquisa. Ao realizá-la é que se pode fazer

uma reflexão sobre a prática e servir de fonte para trabalhar a congruência entre

teoria e prática – ainda que para nós teoria e prática não se dissociem – um

conceito só serve se ele opera na prática. É no momento em que se constrói

essa “distância” que o diário pode ser considerado um instrumento para a

pesquisa científica, tanto quanto serviria para a coleta de dados (31), ou,

poderíamos dizer, instrumento para a expressão da produção dos dados no

campo de pesquisa.

Sem negar a utilidade que o diário pode, em qualquer situação, ter para

seu autor, Hess afirma que a utilização do mesmo pode servir a outros sujeitos

e esferas da vida social. Assim, o diário pode tornar-se uma ferramenta coletiva

de análise de uma determinada situação ou problema. Para isto é importante

que o esforço de sua leitura seja empreendido por um grupo que busque, nas

suas reflexões, vivenciar e entender conflitos e contradições em oposição a uma

postura de recusa das mesmas (32). E é assim que o diário tem o potencial de

se caracterizar como dispositivo que explicite as linhas de força e de tensão, o

texto, o contexto e o extratexto de uma dada situação social que, ao serem

expostas, afetam e deixam-se afetar, produzem e transformam a realidade (33).

Escrever é a composição de paisagens e enunciados que se atualizam ao

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passarem pela mão do autor. É a tradução de histórias, da descoberta, do novo,

revelado em ato (34).

O trabalho da reescrita, ou seja, a tentativa de tornar compreensível para

outros leitores todas as anotações feitas no calor do vivenciado, é complexo. O

processo de criação que se dá ao se contar aqueles momentos não é isento de

“interpretações”, ao se escrever é inevitável a busca por explicações, tentativas

de compreensões, trazendo para fora puro devir (34). Escrever, ou refazer o

passado no presente, é uma ação de trazer à superfície certa vontade ou ato de

vir a ser, de transformação. Por sua vez é na (re) leitura, feita por aqueles que

não são autores do material, que se dá o processo de intervenção, de análise,

de clareamento das relações instituídas. É também na releitura que o método

pode se tornar coletivo, caso haja, neste processo, um esforço conjunto para

fazer saltar concepções coletivas sobre a instituição, um processo ativo de

compreensão, e não de recusa, das contradições postas às vistas (32).

Para nós a escrita não é “apenas” um modo de registro da investigação,

uma ferramenta, ela é mais um modo de pesquisar que se compõe com os

demais. É o correr por uma página para descobrir o que virá na seguinte, na

construção antropofágica dos diversos elementos que constituem a pesquisa e

o pesquisador. O conhecimento se produz no escrever, tanto quanto o

pesquisador e tanto quanto este mesmo se modificou e produziu reflexões na

vivência do campo. Esses diversos aspectos, na vida, não podem ser separados.

Interpolação de olhares – a escrita como um registrar, intervir e

pesquisar

"Por eso mi pluma se puso a correr en un determinado momento. Corría a su encuentro; sabía que no iba a tardar en llegar. La página tiene su bondad sólo cuando la pasas y está detrás la vida empujando y descomponiendo todas las hojas del libro. La pluma corre impulsada por el mismo placer que te hace correr los caminos. El capítulo que empiezas y aún no sabes qué historia contará es como la esquina que doblarás al salir del convento, que no sabes si te pondrá frente a un dragón, una banda berberisca, una isla encantada, un nuevo amor." sor Teodora. (35)

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Habitando esse território investigativo, em um plano de intensidades onde

pulam freneticamente experiências variadas anunciando um campo de forças em

torno do problema de pesquisa, fica sempre a questão sobre como dar letras e

linhas a esse furor vívido do vivido.

Encontramos na escrita performática um caminho, uma pista sobre como

escrever uma cartografia, ou mesmo uma pesquisa, diria talvez mesmo uma

literatura. A escrita precisa de movimento, tanto quanto a música de silêncio ou

a dança de pausas (36). É preciso que a escrita dê passagem a intensidades, a

afetos, a emoções do vivido. Sempre começamos nossa escrita, nos mais

diversos pontos, não apenas no começo, por aquilo que flui, por aquilo que dá

passagem ao que percebe nosso corpo vibrátil naquele momento.

Escrever significa então, também pensar sobre o movimento das

palavras, das letras, em uma variação relacional e gradual (36), prudentemente

não se pode compor-se apenas de “movimento” e, por outro lado, o próprio

movimento também é feito de pausas, estar em “perfeito descanso” ainda é

mover-se (25). Assim, a escrita também é um corpo (na definição de corpo que

veremos em outro capítulo), composto de relações que se fazem e desfazem-

se, variações de movimento e repouso, variações de intensidades (37–39).

Se vamos trabalhar nessa lógica, entendemos que o trabalho da escrita é

um trabalho conectivo permanente, a fazer-se e refazer-se. De tal forma, como

ainda reenfatizaremos várias vezes, consideraremos a escrita como, por si

mesma, fazendo parte da pesquisa. Terá um papel fundamental na investigação

seja como validação (40) ou como método da investigação que se produz a partir

de sucessivos movimentos de autorreflexão. Isso se coloca como um desafio ao

pesquisador, ao cartógrafo. Como tornar-se capaz de expressar a força da

experiência, que possibilidades de escrita poderemos explorar para fazer saltar

ao leitor a intensidade do vivido?

Muitas vezes, a escrita formal e a linguagem discursiva mostram-se

insuficientes, sendo necessária abertura para performances, vídeos, fotografias

e outras formas de linguagem (12). A escrita nos deixará saber a importante

questão: os afetos estão ou não podendo passar e como (15)?

“Não há modelo para se produzir a escrita literária de uma subjetividade antropofágica. Assim como não pode haver exemplo para se construir um modo de vida. A concepção de tal

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escrita só pode funcionar como uma sugestão, um convite para se entregar aos devires e escapar à representação” (17)

Sem nenhum pudor lançaremos mão, antropofagicamente, de qualquer

que seja o dispositivo, estímulo, que dê passagem a esses afetos, que nos apoia

a dar palavras ao que precisa ser dito e associado para a construção do

conhecimento, para dar expressão e produzir modos de vida.

A linguagem, enquanto força constitutiva, produz significado e cria

realidade social. Nesta concepção, o processo e o produto da escrita estão

profundamente imbricados, não podem ser separados, de maneira que o modo

de produção, o produtor e o método de conhecimento também não podem ser

separados (40). Retomamos a ideia de que intervimos para conhecer, ou melhor,

que intervir e conhecer são processos que se dão simultaneamente. Aqui

Deleuze e Guattari trazem-nos uma pista interessante ao afirmar que escrever

nada tem a ver com significado, mas com um cartografar, mesmo em se tratando

de regiões ainda por vir (27).

Escrever é um caso de devir, sempre inacabado, sempre em via de fazer-se, e que extravasa qualquer matéria vivível ou vivida. É um processo, ou seja, uma passagem de Vida que atravessa o vivível e o vivido. A escrita é inseparável do devir…(41).

Com as várias técnicas de investigação que uma cartografia pode lançar

mão, teremos a produção de vasto e rico material, não queremos aqui trabalhar

com uma ideia de interpretação destes “dados”. Queremos discutir como

trabalhar com o material produzido em campo e traduzir toda a processualidade

para um texto que não apenas possa dar retorno, ou continuar intervindo, ao

grupo participante da pesquisa, mas que também sirva (e force o sentido) aos

próprios requisitos acadêmicos. Um texto que seja investigação por si e que

também possa escapar por aquilo que não foi escrito através daquilo que foi

coletado, que seja um caminho para pensar e também para analisar (40).

Nesta perspectiva propomos a “Interpolação de Olhares” como uma

atividade de pesquisa e um modo de escrita. Uma forma de apresentar e

reconstruir uma narrativa a partir dos fragmentos de falas, opiniões e

apontamentos diversos, que se cruzam, inclusive, com as considerações feitas

pelo autor do texto.

A relatividade do espaço e do tempo tem sido imaginada como se dependesse da escolha de um observador. É perfeitamente legítimo incluir o observador, se ele facilita as explicações. Mas

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é do corpo do observador que precisamos, não da sua mente (42).

É uma escrita que percorre um caminho em que conexões fortuitas podem

acontecer, até mesmo fora de controle, já que o pensamento também ocorre no

ato de escrever. Qualquer ponto, qualquer fala, qualquer conversa pode se

conectar com qualquer outra, de diversas maneiras, em uma conexão singular,

no percurso da produção (ou contestação ou reafirmação ou negação…) de uma

ideia. Talvez um trabalho rizomático (40).

Exploraremos o conceito “rizoma” em outro texto, aqui cabe pontuar o que

nos interessa do rizoma enquanto método (ou anti-método). Este coloca o

pensamento remetendo-o à experiência, uma decisão que nos coloca três

consequências: pensamento não é representação, é efeito real que desloca vida

e pensamento; não tem relação com uma gênese, com um começo, o

pensamento dá-se no meio dos processos da vida; por fim, todo encontro é

possível e não pode ser desqualificado a priori, o que não significa que não será

selecionado pela experiência. Quer-se dizer que nem todo encontro é

interessantemente produtivo, faz parte da experiência do pensamento, da

exploração cega da experimentação, discernir entre o útil e o improdutivo. Não

se colam quaisquer coisas, quaisquer camadas, o rizoma tem a “crueldade do

real, e só cresce onde efeitos determinados têm lugar” (43).

Retomando, aquelas autoras já propuseram exercício semelhante, seria

o “texto em camadas”, no qual se produz uma pequena narrativa onde vai se

inserindo elementos teóricos, diferentes teorias, múltiplos interlocutores,

podendo-se produzir um texto em diferentes caminhos. “A escrita é um campo

de jogo onde qualquer coisa pode acontecer – e acontece” (40). Esse trabalho

de escrita pode desmistificar o próprio processo de investigação, em um trabalho

de aproximação e confrontação dos textos produzindo uma mudança

metodológica na qual não se busca representar o mundo, mas sim apresentá-lo

(24).

O Animal é um ser à espreita… O escritor está à espreita, o filósofo está à espreita (44).

Na “Pesquisa Avaliativa sobre a Gestão do Trabalho e a Formação de

Graduandos e Trabalhadores de Saúde: explorando fronteiras”, Carvalho (45) e

equipe indicam, em seu relatório final, o que queremos aqui dizer ao relatarem o

processo de construção de narrativas a partir das falas que emergiram dos

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grupos de discussão para retorna-la aos grupos participantes da pesquisa.

Lembram que era necessário um cuidado com a escrita para que o leitor não a

tomasse como uma interpretação dos pesquisadores sobre os argumentos

lançados na conversa, de forma que optaram por transcrição literal de diversos

trechos para a composição dessas narrativas. Escrever, pesquisar, é cuidar e

demanda certa prudência.

Talvez pensar uma triangulação metodológica não seja suficiente para

essas pesquisas. Desestruturando, vamos desconstruindo uma ideia de

validação dos achados, de um ponto fixo ou de um objeto no qual incidem luzes

advindos de três diferentes lados (40). Desconstruímos essa estrutura ao

pensarmos que talvez os objetos sejam múltiplos, assim como os problemas são

múltiplos. Não triangularemos, interpolaremos. Desdobrando… queremos trazer

para a pesquisa a ideia perspectivista de que não é um ponto de vista que cria

um objeto, mas sim o agenciamento sujeito-ponto de vista(46). Desmontamos a

ideia de uma questão a priori, de um conhecimento já dado, para habitar um

campo de investigação em que reconhecemos que os problemas postos à vida

são diferentes, ou, colocando na forma de pergunta, a que problema (e de quem)

o que percebemos está respondendo?

O que a antropologia, nesse caso, põe em relação são problemas diferentes, não um problema único (‘natural’) e suas diferentes soluções (‘culturais’). A “arte da antropologia”, penso eu, é a arte de determinar os problemas postos por cada cultura, não a de achar soluções para os problemas postos pela nossa (42).

Entendendo que o afeto experimentado por um corpo fala muito mais da

natureza do corpo afetado do que daquele que o afeta (37), uma fala expressa

a maneira como determinado corpo resiste ao que lhe ocorre, como ele resolve

um problema posto a sua existência. Assim, entendemos que cada fala expressa

a maneira como cada uma das posições (ou categorias) colocadas nesse estudo

resolve o problema de perseverar em ser diante da situação em que estão

inseridos (47).

Um encontro entre diversos trabalhadores, com usuários e/ou gestores,

de alguma maneira assumindo um desafio de produzir saúde (o que por si só

pode ter uma multiplicidade de significados para os envolvidos nesses processos

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produtivos) coloca diversos problemas para conversar, trata-se da criação de

conceitos para colocar em ressonância essa heterogeneidade.

De toda maneira, colocar essas pessoas em relação e colocar questões

sobre isso desestabiliza alguma formulação cristalizada abrindo espaço para

novas construções. Um momento de desmanchar e despir máscaras, para

descobrir não um rosto, qualquer verdade primeira, mas a necessidade de criar

novas máscaras. Descobrir que atrás da máscara só há um tipo de força e de

vontade: a de criar máscaras (15). Produção de outras formas de ser e de estar.

Conhecer para Espinosa é o caminho para aumentar nossa potência de

agir, saber mais sobre nós e estarmos mais ativos e criativos. Não conhecer

nossas causas internas nos distancia de nosso impulso espontâneo para

perseverar na existência, do movimento intrínseco a nós, e nos coloca numa

posição vulnerável, numa submissão às causas externas, diminuindo nossa

potência de agir, nos tornando passivos. Então somos um grau de potência,

definido por nosso poder de afetar e de ser afetado, e não sabemos o quanto

podemos afetar e ser afetados, é sempre uma questão de experimentação (37).

Assim, não queremos “desvendar” qualquer verdade geral ou genérica.

Entendemos que os problemas colocados pelos diversos envolvidos na

problemática estudada (neste caso, a produção de redes) são diversos. Não são,

necessariamente, pontos de vista diferentes sobre o mesmo problema, mas sim,

problemas diferentes (48).

Todos os serem veem ("representam") o mundo da mesma maneira - o que muda é o mundo que eles veem (49).

Viveiros de Castro traz esse debate a partir da discussão da Cosmologia

Ameríndia, do perspectivismo ameríndio, mas podemos trazer para “mais perto”

de nosso cotidiano esse debate. Ainda pegando extremos, não é difícil perceber,

em um dia de trabalho junto a uma equipe de Consultório na Rua, que o mundo

percebido por aqueles e aquelas que habitam praças, marquises, terminais de

ônibus, esgotos, prostíbulos, terrenos baldios, imóveis abandonados é

completamente diferente do percebido pelos que vivem em suas casas e

confortáveis camas. O problema da sobrevivência é outro, o problema do vício é

outro, da comida, do sono, da saúde, da vida.

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Em certa conversa, Márcia4, travesti, vivendo na rua desde os 8 anos de

idade, atualmente já passada dos 30 anos de idade, informa-nos outras nuances

disso: “uma coisa sou eu vivendo na rua. A única ideia de família que tenho é

essa aí, que tá na rua, outra coisa é seu Joaquim, que vem pra rua aos 50! Não

dá para vocês acharem que a gente vive na rua do mesmo jeito! ”. E se vamos

buscar detalhar as nuances, valorizar as diferenças, percebemos que, em muitos

aspectos, o mundo de uma pessoa com diabetes é diferente do de uma pessoa

com depressão, ou de uma considerada hígida e assim por diante. Seria, então,

a pesquisa (e a clínica) um aproximar de mundos, buscando visibilizar, valorizar,

a riqueza de suas diferenças para entender (ou sentir) os diferentes problemas

que os permeiam.

De tal forma que confiamos na metodologia apresentada para a

desestabilização destes problemas já que “O outrem para mim introduz o signo

do não-percebido naquilo que percebo, determinando-me a apreender o que não

percebo como perceptível para outrem” (50). Ou seja, tangenciamos aqui uma

ideia de que o sujeito não é causa, mas sim resultado de uma relação da qual

ele é interior, de forma que outrem não é um ponto de vista, mas sim o próprio

conceito de ponto de vista, a possibilidade de que ele exista (48). “Será sujeito

quem se encontrar ativado ou ‘agenciado’ pelo ponto de vista”(42). Mais do que

isso, outrem, como estrutura perceptiva também nos coloca outras

possibilidades de existências, um acontecimento por vir, todo um campo de

virtualidades e potencialidades a se atualizarem a qualquer momento (21).

Isso desloca-nos do procedimento de saber em que conhecer é objetivar

para um procedimento em que conhecer demanda personificar, tomar o ponto

de vista daquilo que precisa ser conhecido. Levando à necessidade não de

suprimir a intencionalidade, mas de apresentá-la ao máximo tornando cada fato

uma ação expressiva de estados ou predicados de algum agente (42).

Retornamos ao começo do capítulo reforçando a afirmação de que pesquisador

e objeto não são dissociáveis. E refazendo a pergunta de linhas acima, a que

problema posto a vida tais pontos de vista respondem?

4 Nome fictício

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38

Na interpolação de olhares vamos exercitar o constante cruzamento de

ideias, produzindo camadas não retilíneas, rizomáticas, entre os materiais de

pesquisa produzidos. Seguimos apresentando o outrem. Reafirmando não um

relativismo, mas um perspectivismo, em que “a verdade do relativo é a relação”

(48). Percebendo que não há apenas um objeto sobre o qual “lançar luzes”, mas

múltiplos problemas e que mesmo um objeto que recebe luzes de diversos

pontos, comportar-se-á como um cristal, refletindo fragmentos de luz para

lugares não pensados(40).

Existe somente um olhar respectivo, um conhecer perspectivo; e quanto mais afetos nós deixamos transparecer a respeito de uma coisa, quanto mais olhos diferentes sabemos empregar para uma e mesma coisa, tanto mais completa se torna a compreensão desta coisa, a nossa “objetividade”(51).

A escrita acompanha o processo de pesquisa, tentando produzir em si

mesma uma zona de trocas, colocando os diversos grupos de interesse para

dialogar através do texto e, quem sabe, começando a tangenciar conceitos em

comum para os distintos problemas ressaltados pela clareza da diferença posta

à mesa. O próprio texto produzirá um relacionamento entre as diversas

entidades, não uma ideia de análise ou de exame, também produzindo um efeito

de aproximação entre pretensos pesquisadores e supostos pesquisados (48).

Parece-nos bastante coerente com todo este referencial que todo o

material produzido, de uma escrita intuitiva e ao mesmo tempo comprometida

com a produção de conhecimento, deva ser apresentado aos participantes, ou

diria, coprodutores, da pesquisa. Um movimento que por si só produziria até

mesmo outras pesquisas – outros diários, oficinas etc. – outros textos…

Não temos o direito de viver isolados. Não nos é permitido enganar-nos isoladamente, nem encontrar isoladamente a verdade. Ao contrário, assim como é necessário que uma árvore dê frutos, assim nós frutificamos ideias, apreciações: e o nosso “sim” ou “não”, nossos porém e ser desenvolvem-se, aparentados e relacionados, como testemunhas de uma vontade, de uma saúde, de uma terra, de um sol (51).

O exercício de pesquisar escrevendo, aqui realizado, usa múltiplas fontes

de inspiração e de experiência, como já mencionamos. Buscamos, com a própria

pesquisa, conectar distintos saberes e posições, acionando diversos olhares

para problemas que vamos levantando no percurso investigativo. Isso não é feito

aleatoriamente, lançamos mão de diversas ferramentas. Uma delas é a revisão

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bibliográfica, em que enredamos experiências, ideias e conceitos que funcionem

à nossa investigação, reforçando-os ou questionando-os ou reconstruindo-os.

Outra foram os diários de campo, escritos na vivência intensiva do

presente, da experiência cotidiana que vibra no corpo do pesquisador e que lhe

fala de seu problema de pesquisa. Os diários, redigidos de múltiplas maneiras

ao longo desse tempo, são mais do que descritivos da experiência vivida, são

maneiras de conectar a experiência da vida do pesquisador com a experiência

presentificada na investigação. Falando de redação de diários, emendamos na

ideia do escrever como um ato de pesquisa e de análise, firmando a ideia

perspectivista na escrita, a qual nomeamos como interpolação de olhares

Por fim, falta discutir o instrumento coletivo de construção da investigação.

Por onde elaboramos e construímos a pesquisa com nosso campo de interesse,

com o plano onde se cruzam vivências e ideias que podem nos fazer

experimentar e sentir outros pontos relacionados ao tema da pesquisa. São as

oficinas com, no caso desse doutorado, os trabalhadores e trabalhadoras de uma

equipe de Consultório na Rua de Campinas.

As oficinas e o fluxograma analisador

Entendemos as oficinas como um espaço de intervenção e de produção

de conhecimento pelos participantes, visa ter um certo produto ao final de cada

momento ou de uma sequência de momentos. Aqui, no caso, sobre o

funcionamento da própria equipe e de seus processos de trabalho no sentido da

construção de uma rede. Vimos essa ferramenta metodológica operando como

um reforço à grupalidade, incluindo os vários trabalhadores, abrindo espaços

para a fala, para a visualização de problemas e para a criação de alternativas

para lidar com eles (52). As oficinas têm um caráter produtivo, além da circulação

de ideias, esses grupos trabalham na construção de algum produto para uso pelo

próprio grupo.

Na última fase deste doutorado, da pesquisa, a proposta foi realizar

oficinas com os trabalhadores do Consultório na Rua de Campinas para discutir

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o material produzido pelos diários de campo realizados a partir da vivência

pessoal, profissional e de investigação junto ao trabalho desta equipe. Propôs-

se sistematizar os processos de análise através da construção de fluxogramas

analisadores adaptados – mapas da rede acionada pela equipe a partir do

seguimento de um paciente real – para dar visibilidade à rede construída pela

equipe. O fluxograma consiste em mapear, em representação gráfica, os fluxos

e os processos de trabalho, fazendo disso uma ferramenta para reflexão da

equipe (53).

Na apresentação da pesquisa aos trabalhadores colocamos que a

construção desse mapa também serviria para identificar pontos críticos,

facilitadores, fluxos, em uma visão esquemática dos processos de trabalho do

serviço de saúde em relação com os outros equipamentos da saúde ou de outros

setores (54–56).

Esse traçado esquemático constrói uma imagem do processo de

trabalho que coletiviza as percepções dos trabalhadores acerca do tema,

permitindo-lhes a gestão do próprio trabalho e costuma servir-se a visibilizar o

processo de trabalho, pontuando seus nós críticos, dando elementos para seu

planejamento e reorganização; a analisar o modelo assistencial praticado pela

equipe; coletivizar processo de autoanálise na equipe e funcionando como

produção de memória dos trabalhadores (53).

Este diagrama é um “fluxograma-resumo”, uma primeira entrada no

processo produtivo básico do um serviço de saúde, acessando a abertura de

outros processos que podem ser detalhados, acionados, a partir dele, mediante

as questões que se façam com a análise desse trabalho (55). Assim,

Fazemos uma aposta na possibilidade de se constituir tecnologias da ação do trabalho vivo em ato e mesmo de gestão deste trabalho que provoquem ruídos, abrindo fissuras e possíveis linhas de fuga nos processos de trabalho instituídos, que possam implicar na busca de processos que focalizem o sentido da “captura” sofrido pelo trabalho vivo e o exponham às possibilidades de "quebras" em relação aos processos institucionais que o operam cotidianamente (55).

Espera-se, também, realizar uma análise, com esta ferramenta, das

relações estabelecidas entre os trabalhadores e deles com os usuários, além de

acessar as percepções a respeito das tecnologias utilizadas, seus modos de

operar e as dificuldades no processo de trabalho da equipe (57).O que faríamos

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aqui seria traçar um fluxograma, a partir do material propiciado pelos diários de

campo, mapeando o percurso da equipe entre os distintos serviços

(intersetorialmente, se for o caso) acionados na busca de constituir redes que

apoiem o cuidado integral de seus usuários. Nossa adaptação, então, foi colocar

a equipe do Consultório na Rua de Campinas no lugar do usuário cujo percurso

é acompanhado nos fluxogramas “tradicionalmente” utilizados. Assim,

esperávamos traçar um mapa da rede construída por esse serviço de saúde,

dando visibilidade aos seus processos tecnologias para realizar esse processo.

Ainda que reconheçamos a importância crucial da escuta do usuário

para fazer um projeto terapêutico e para olhar para as associações que ele

mesmo produz, o que nos interessou aqui, neste momento, foi as perspectivas

dos trabalhadores. Indicamos que as perspectivas dos usuários merecem uma

investigação específica (ainda que certamente pontos de tensão aparecerão

aqui também).

Entretanto, ao propormos esse trabalho investigativo para a equipe, o

caráter interventivo da pesquisa surge de maneira clara! Com a investigação

intervindo nos processos de trabalho e vice-versa. Reconheceu-se que o método

poderia também servir à gestão da clínica, à gestão de casos complexos, bem

como à visibilidade das práticas do serviço. Assim, a equipe apropriou-se do

método, contrapropondo que os casos fossem escolhidos por ela própria.

Avaliando o método, na última oficina, a equipe ponderou que ele permitiu

que os projetos terapêuticos fossem revisitados, olhando para o que já foi feito,

para o que “deu certo” e o que não e pensando novas possibilidades para o

seguimento dessas histórias. Também foi levantado que alguns dos casos

ficaram mais claros para a equipe como um todo. Por outro lado, apontam uma

limitação da construção do mapa: ele faz um retrato do acesso da rede, mas não

descreve, no esquema, os diversos momentos em que ela foi sendo construída,

ou que caminho exato foi percorrido pelo usuário dentro do sistema. Coloca-se

que o método também permitiu avaliar os movimentos dos trabalhadores e a

maneira, mais produtiva ou mais dolorida, como cada um está se relacionando

com seu trabalho.

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CAPÍTULO 2 – REDES EM SAÚDE – A Construção

de um Problema

A Constituição de 1988 traz importantes pontos para as políticas públicas,

especialmente para as políticas de saúde. Marcada pelo movimento da 8ª

Conferência Nacional de Saúde (1986), aquela considera a saúde como direito

de todo o cidadão e responsabiliza o Estado a prover as formas pelas quais ela

pode ser preservada, alcançada ou produzida, as quais devem ser equânimes e

abordar as pessoas e seus processos de saúde e doença integralmente. Assim,

a constituinte já prevê que ações e serviços de saúde devem integrar uma rede

regionalizada e hierarquizada (58).

Isso traz complexas implicações: expandiu-se o conceito de saúde,

reconhecendo diversos determinantes e a necessidade de bem-estar físico,

psíquico e social. O sistema de saúde passou a englobar, legalmente, além da

assistência à saúde de qualquer nível de complexidade a qualquer cidadão que

necessite, a prevenção de agravos e a reabilitação da saúde. E, ainda, a

vigilância sanitária, epidemiológica, nutricional, ambiental e de saúde do

trabalhador, a formulação de políticas, saneamento básico, formação de

recursos humanos e a assistência farmacêutica (59).

Para enfrentar esse desafio, a legislação previu diretrizes organizativas

para o sistema, dos trezes princípios e diretrizes elencados na lei 8080/90

destaquemos que a “descentralização político-administrativa, com direção única

em cada esfera de governo” já traz em claras letras a necessidade de

regionalização e hierarquização de uma rede de serviços de saúde. Dentro de

uma mesma esfera de governo fala-se em integração das ações de saúde, meio

ambiente e saneamento básico e a organização dos serviços públicos evitando

duplicidade de ofertas com o mesmo objetivo. Diretrizes que nos falam da

construção de relações entre serviços de saúde e entre entes federados (59).

E essa não é uma conversa tão recente, vale a pena destacar algumas

influências que permeiam essa construção. Em 1963, na 3ª Conferência

Nacional de Saúde, já se falava em descentralização e construção de rede entre

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os municípios e os serviços, na época com a criação de leis municipais para a

instituição de serviços sob gestão das cidades, como nos informa Wilson Fadul,

ministro da saúde à época, em entrevista à revista Saúde em Debate (60):

“a ideia fundamental era criar uma rede flexível, que a nível municipal se adequasse à realidade do município e que fosse se tornando mais complexa, à medida em que o próprio município se desenvolvesse”.

O relatório desta Conferência lembra-nos que a intenção de

descentralização remonta a primeira Constituição Federativa do Brasil, de 1891,

a qual estabelecia aos Estados a responsabilidade pela administração sanitária

e aos municípios autonomia na organização e administração dos serviços locais

de seu interesse. Este movimento deu-se de forma precária e pós Primeira

Guerra Mundial passou a ser entremeado por períodos em que movimentos que

pautavam uma ação mais centralizadora ganhavam mais força e com governos

autoritários. A Constituição de 1946 reestabelece a autonomia dos Estados e a

possibilidade de organização de serviços públicos locais pelos municípios. Já na

3ª Conferência se fala em uma cobertura ampla, do “total da população”,

municipalizando para “aproximar a saúde pública das populações”(61).

A necessidade de aproximar serviços de saúde da população já era citada

em 1920 no importante documento conhecido como Informe Dawson, um

relatório que influenciou sobremaneira a constituição do sistema de saúde inglês

e muitos dos sistemas públicos de saúde que surgiram ao longo do século XX,

inclusive a ideia de construção de redes no SUS (62). Nele coloca-se o médico

clínico geral como o primeiro contato do paciente em qualquer cadeia de

serviços. É a partir de um centro primário de serviços que se organizaria a

atenção ao usuário. Fala-se em uma organização de serviços hierarquizada, em

crescente grau de complexidade.

Para compor uma rede de serviços, Dawson considera importante que os

profissionais não fiquem isolados, mas que possam formar uma “corrente

intelectual e de camaradagem” entre profissionais de diferentes serviços, de

forma atuar na formação dos mesmos e na eficiência das unidades de saúde

(seja de atenção domiciliar, centros primários, secundários ou hospitais escola)

(63).

Ressalto aqui três pontos que são recorrentes nas discussões sobre

redes. Primeiro a lógica de organização da atenção e da gestão de maneira

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hierarquizada, como pirâmide. Essa é uma concepção ainda muito presente nos

diversos âmbitos da gestão em saúde, mas que tem sido desconstruída há anos,

como já comentamos. Continuaremos desconstruindo. Junto com isto

questionamos a necessidade, que também aparece repetidamente, de que a

Atenção Básica5 teria que ser, necessariamente – para todo e qualquer caso, o

centro ordenador da rede. Não pretendemos discutir a inquestionável

importância da chamada “rede básica” ser muito fortalecida para o mínimo bom

funcionamento do sistema, mas tomar, como a priori, de que este nível de

assistência deva coordenar o cuidado de todo e qualquer usuário parece-nos

mais um movimento de valorização da estrutura antes da singularização da

necessidade do usuário. A discussão sobre Doenças Raras, por exemplo, feita

com uma investigação sobre sua rede de atenção na Catalunha, aponta que, na

prática, outros pontos da rede fazem esse ordenamento e de maneira

interessante.

Por outro lado, o que o relatório Dawson chama de “corrente intelectual e

de camaradagem” parece-nos um aspecto indispensável da construção de

redes. O isolamento do profissional nas Unidades Básicas frequentemente

aparece como um dos motivos para que os médicos pretiram esse posto de

trabalho. Mas também, vimos importantes experiências desenvolvidas a partir da

construção dessas correntes, por exemplo, várias experiências de apoio

matricial têm sido marcantes para o profissional de Atenção Básica. Outra

experiência foi conhecer, em 2008, algumas Áreas de Saúde Integral e

Comunitária na Venezuela – um arranjo que reunia semanalmente os médicos

de família adscritos na região de determinados serviços secundários e de apoio

diagnóstico para discutir os fluxos dos pacientes, os problemas do território, a

integração entre venezuelanos e cubanos do programa Barrio Adentro

(reconhecendo a heterogeneidade na implantação desse arranjo). Por fim, já na

Política Nacional de Humanização vimos trabalhadores de diferentes municípios

produzirem uma rede de relações e de apoios mútuos intermunicipais, a partir

dos encontros provocados entre eles, que potencializou tanto a Educação

5 Neste trabalho não faremos distinção entre os termos Atenção Básica e Atenção Primária.

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Permanente em Saúde quanto a própria assistência mais diretamente. Esse é

um aspecto importante dessa pesquisa!

Aparte feito, temos, a partir de 1964, com os governos militares, um recuo

das intenções de descentralização. A assistência individual e as ações de saúde

pública (vacinação, prevenção e promoção de saúde) ficam em órgãos

separados, mas mesmo nesse período surgem várias experiências de

integração dessas atividades em unidades básicas de saúde. Uma lei criando o

Sistema Nacional de Saúde, em 1975, coloca como atribuição de nível local o

atendimento às urgências (por Pronto Socorro ou por transferência dos

pacientes) e, a partir de 1983, a incorporação da assistência médica individual

passa a ser importante estratégia em nível municipal para o cumprimento de

diretrizes políticas (64).

Através de medidas de controle de produtividade, focados na atenção

médica individual, ambulatorial e hospitalar, e pagamento por produção, o

INAMPS reforçou a universalização de uma modalidade de atenção por pronto-

atendimento. O repasse para custeio de serviços municipais aparece como uma

tendência com o programa Atenção Integrada à Saúde (AIS, em 1983), quando

também houve várias experiências de modelos de atenção e de gestão. A

descentralização de custeio ganha força com a implantação do SUDS (em 1985),

entretanto, governos federal e estaduais mantém a gerência da maior parte dos

hospitais e do recurso de investimento, de forma que as expansões nos

municípios só se davam mediante acordos políticos para a liberação de verbas

(64).

Essa lógica se mantém nos primeiros anos do SUS, transformando

Conselhos Interinstitucionais para a integração entre entes federados e a

elaboração de seus Planos Diretores em espaços, na maior parte das vezes,

meramente formais ou legais. A situação começa a se reverter com o

estabelecimento de critérios para o repasse de recursos (64). Neste quadro,

após um momento com tanta tendência ao controle, centralização e

uniformização, Campos, em 1991, faz interessante análise do que representaria

a Descentralização para SUS e para as políticas de saúde Brasil afora:

Essa autonomia relativa do nível local criou uma situação inusitada para os padrões brasileiros de administração pública. Ao menos enquanto possibilidade, estariam criando condições

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para a construção de experiências diferentes, conforme a linha política de cada governo local, o quadro epidemiológico prevalente em cada região, a sua disponibilidade financeira, ou ainda o grau de controle político que cada comunidade conseguia impor à direção do sistema local. Como tendência, pode-se prever com antecipação um desenvolvimento heterogêneo das várias regiões e municípios. (...) Ou seja, o SUS provavelmente não será um serviço nacional com características, normas e programas uniformes. Os modos de organização das unidades de saúde, política de recursos humanos e de gerência certamente serão distintos, dependendo do contexto local e de sua relação com as políticas mais globais (64).

E assim, ao longo dos anos 90 e 2000, repasses fundo a fundo cresceram

e municípios assumiram crescentes responsabilidades através de inúmeros

mecanismos de pactuação de gestão, os quais reconheciam a importância da

descentralização e da regionalização (nas NOB 01/93 e 01/96, nas NOAS 01/01

e 01/02 e no Pacto pela Saúde (2006) (65)). Tudo isso foi se dando com muitos

solavancos, avanços, retrocessos e resistências. Avalia-se que a instituição

constitucional do SUS, por si só, pouco contribuiu para a integração regional.

Para lidar com isso, entre outras coisas, instituiu-se as Normas Operacionais

Básicas e as Normas Operacionais de Assistência à Saúde. A rigidez de regras

muito parametrizadas e pouco contactuantes com a realidade dos municípios e

a falta de um sistema de governança regional e intermunicipal são apontados

como fatores relacionados à dificuldade de implantação dessas normas (66).

De toda forma, os municípios foram se tornando não apenas gestores e

ordenadores do sistema, mas também a esfera federativa que

proporcionalmente mais gasta com saúde (quase todos os municípios cumprem

com a Emenda Constitucional - 296 e muitos chegam a investir bem mais de 20%

de sua receita em saúde, quando o mínimo seria 15%), além de formuladores de

políticas de saúde a serem executadas localmente.

Esse processo tem sido conflituoso e com diversos paradoxos. Ainda que

a Constituição preveja que o sistema de saúde seja “único” também prevê que

os entes federados sejam autônomos conferindo excepcional complexidade na

relação entre os múltiplos modelos que cada unidade federativa pode adotar

(67). Tais modelos de atenção são

6 Emenda promulgada em 2000, que fixa percentuais mínimos de gastos em saúde para cada esfera federativa, além de especificar o que é considerado gasto em saúde.

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Formas de organização das relações entre sujeitos (...) mediadas por tecnologias (...), utilizadas no processo de trabalho em saúde, cujo propósito é intervir em problemas (...) e necessidades sociais de saúde historicamente definidas (68).

Assim, esses modelos resultam de uma complexa interação das relações

causais que conformam certa compreensão de saúde-doença e das respostas

tecnológicas que advém (69). Constituem os elementos que interditam ou

permitem que determinados assuntos sejam abordados ou mesmo elencados

como problemas que precisam de atenção das equipes (70). Esses autores

levantam distintas correntes tais como Ações Programáticas em Saúde,

Estratégia de Saúde da Família, Vigilância em Saúde, Cidades Saudáveis,

Promoção da Saúde e Defesa da Vida, entre outras. A definição do que será

adotado em cada ente federado vai além de avaliação de risco ou de

vulnerabilidade ou de necessidade da população. São vários os condicionantes,

como a vontade política do dirigente local, a pressão da sociedade civil (mais ou

menos corporativa), o clientelismo, as práticas políticas degradadas e as

múltiplas relações de poder que atravessam o município (71).

Ao passo em que a Descentralização surge como uma aposta na

autonomia dos entes federados para adequar as políticas às suas realidades

locais, também tem o rompimento da frágil linha que os mantém unidos para a

constituição de redes. O processo de descentralização foi tomado, muitas vezes,

como um movimento exclusivamente de municipalização, o que isolou o

município e dificultou o desenvolvimento de uma rede de cuidados (72). E, como

adiantado por Campos, cada cidade adotou um modelo de atenção, às vezes

com vários modelos coexistindo no mesmo município e até no mesmo serviço.

Santos e Andrade (67) colocam, em debate recente, que a construção de redes

(tratando em especial das redes interfederativas, mas também abordando redes

de serviços) é construção fundamental e inevitável para a correta operação do

SUS, à sua maturidade institucional “impõe-se” a institucionalização das redes.

Circulando pelo interior do Estado de São Paulo presenciamos várias

situações advindas dessa história. Na discussão interfederativa, ao fazer oficinas

sobre os dispositivos da PNH, sempre era necessário trazer formas deles

operarem nos distintos modelos de atenção existentes na região onde o trabalho

estava ocorrendo. Isso frequentemente gerava tensionamento entre os próprios

participantes das atividades e emperrava ações de apoio intermunicipal. Mas

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mesmo dentro de um mesmo município situações curiosas foram vistas, por

exemplo, as várias antigas unidades básicas de gestão estadual, que

dedicavam-se a tratamento de tuberculose e hanseníase ou a pronto

atendimento, foram municipalizadas mas muitas vezes a gestão do trabalho não

era modificada, com o tempo foram-se agregando “puxadinhos” como sala para

agente comunitário de saúde, para Programa de Saúde da Família etc, novas

necessidades programáticas foram sendo adicionadas produzindo múltiplas

equipes apartadas, de trabalho fragmentado em um mesmo prédio (às vezes até

o prontuário era diferente). Situação comum também é a baixa capacidade de

diálogo entre serviços de um mesmo território, em especial quando estão sob

gestões diferentes (municipal, estadual, filantrópica, privada). A construção e a

institucionalização das redes é um desafio não apenas para a cooperação entre

as esferas federativas, mas também entre serviços ou mesmo intra-serviços!

Como abordamos, o desenvolvimento dessa “descentralização” e da

construção de redes mostrou-se tarefa muito complexa, com avanços

insuficientes o que foi tornando o assunto cada vez mais pautado. Em âmbito

federal, o Ministério da Saúde, em 2006, no Pacto pela Saúde, publica o capítulo

denomidado Pacto de Gestão, o qual dedica sessões específicas à

descentralização, à regionalização e suas operacionalizações. Em suas

Diretrizes Operacionais (pactuadas com a Comissão Intergestores Tripartite e

aprovadas pelo Conselho Nacional de Saúde) institui os Colegiados de Gestão

Regionais que, ainda que não estejam plenamente implantados em sua

potencialidade, têm servido para buscar deliberações, planejamentos e metas

comuns na região adscrita, compromissos de gestão regionais, articulação entre

municípios e desses com o Estado etc. A instituição do Pacto também buscou

fortalecer o processo trabalhando com ferramentas como Plano Diretor Regional,

Programação Pactuada Integrada, Colegiado de Gestão Regional, Centrais

Reguladoras (73).

Ainda assim, considera-se que mudanças mais concretas no sentido da

integração regional, da pactuação entre os gestores, pouco ocorreram (66).

Outras avaliações colocam que ainda que o processo de descentralização tenha

tido uma grande importância para expansão da cobertura dos serviços de saúde,

induziu o aumento de gastos de municípios e estados, mas não resolveu as

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desigualdades no acesso, não deu eficiência à gestão, nem conduziu a arranjos

mais cooperativos (74). Tem-se proposto, para lidar com essa fragilidade

institucional, a instituição de contratos interfederativos que mediariam as

responsabilidades entre os entes federados, produzindo uma rede

interfederativa (75), o que começou a se concretizar em 2011, quando o decreto

7508 institui o Contrato Organizativo de Ação Pública (COAP) como um de seus

instrumentos.

As redes se tornaram cada vez mais presentes na formulação das

políticas públicas, de forma que, diante de avaliações que apontavam o pouco

avanço do Pacto pela Saúde na construção de Redes de Atenção à Saúde (75),

no final de 2010, foi publicada uma portaria (4.279, de 30/12/2010)

especificamente para estabelecer diretrizes para a organização de Redes de

Atenção à Saúde. Já em 2011, o decreto que regulamenta a lei 8080/90, nº

7.508/2011 (76), as define como conjunto de ações e serviços de saúde

articulados em níveis de complexidade crescente, com a finalidade de garantir a

integralidade da assistência à saúde (art. 2º, inciso VI), e, por sua vez, define

Região de Saúde como

O espaço geográfico contínuo constituído por agrupamentos de Municípios limítrofes, delimitado a partir de identidades culturais, econômicas e sociais e de redes de comunicação e infraestrutura de transportes compartilhados, com a finalidade de integrar a organização, o planejamento e a execução de ações e serviços de saúde (art. 2º, inciso I).

Na Seção I do Capítulo II deste decreto regulamenta-se, em consonância

com a Constituição, as Regiões de Saúde como aspecto organizativo essencial

do SUS, a serem pactuadas nas Comissões Intergestores. As Redes de Atenção

à Saúde estarão, então, contidas nas Regiões de Saúde ou articularão diversas

regiões.

O pleno funcionamento das Regiões de Saúde exige a instalação dos

Colegiados de Gestão Regional (CGRs – chamados, nesse decreto, de

Comissão Intergestores Regional - CIR). Desde sua criação, no Pacto pela

Saúde, em 2006, esta instância de gestão tem sido cada vez mais adotada, de

forma que mesmo os municípios que possam não ter aderido ao Pacto

participam do colegiado de sua região. Até 2011, dos 5.565 municípios

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brasileiros, 4.236 aderiram ao Pacto (76,12%) e 5.307 (95,36%) estavam

organizados em 415 Colegiados de Gestão Regional (77).

Esse tema da regionalização e da construção de redes ocupou importante

parte da agenda dos governos federal e estaduais iniciados em 2011 e, ainda

que a ênfase nisso, tenha esmorecido nos arranjos políticos das gestões

seguintes (2015 em diante), o tema segue na pauta. O governo federal trabalhou

com a discussão de construção de redes para todas as suas políticas prioritárias,

tendo iniciado com as diretrizes organizativas, de financiamento, etc., para

Redes de Saúde Materno-infantil, Urgência e Emergência, Atenção Psicossocial

e Atenção à Pessoa com Deficiência. Retornaremos a isso com um pouco mais

de atenção.

Nesse cruzamento de influências começamos a entender a necessidade

de se iniciar uma discussão sobre redes pela diretriz Descentralização, apenas

uma entrada. Santos e Andrade (67) tratam tal diretriz, em associação com o

princípio da Integralidade, como conduzindo inevitavelmente à discussão sobre

a produção de redes dentro da gestão pública, nomeando estas como Redes

Interfederativas, ou seja, redes de gestão intergovernamental, as quais contêm

redes de serviços e que operam por cogestão, buscando o consenso das

decisões, sendo capaz de garantir ao cidadão a integralidade da atenção à sua

saúde.

Ainda que, do ponto de vista desses autores, seja inevitável a produção

de redes para o cumprimento dos liames constitucionais, também a justificam

como sendo capaz de melhorar eficiência, reduzir custos, expandir acesso,

interligar políticas sociais intersetoriais. Tem em vista a obtenção de ganhos na

qualidade, eficiência, economicidade e alcance de seus fins (75). Motivos

semelhantes fariam com que o capitalismo também se organize em redes

financeiras, fabris, internacionais e globalizadas (abordaremos isso com mais

cuidado em momento oportuno), na área pública trocar-se-ia o interesse pelo

lucro pela “efetividade da garantia de direitos sociais” (67). Tais autores

assumem que, na arena pública, trabalhar na lógica de redes serviços tem

vantagens, mas também potenciais problemas, como:

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Vantagens: Riscos:

• Democratização do

conhecimento

• Descentralização integrada

• Processos administrativos

horizontais

• Cooperação

• Surgimento de novas lideranças

• Planejamento integrado

• Reconhecimento das

dependências e

interdependências

• Conhecimento das múltiplas

realidades

• Respeito às diversidades

socioculturais

• Fortalecimento contra pressões

externas

• Aumento da eficiência

administrativa e técnica

• Otimização dos recursos

• Negociação/consenso

• Valorização das relações de

confiança

• Solidariedade e

compartilhamento

• Descentralização concentrada

• Fragmentação da autoridade

• Desinteresse diante de novas

informações e conhecimentos

• Perda de controle dos

processos

• Perda da autonomia política dos

mais fracos

• Individualismo e personalismo

• Conflitos permanentes

• Negociação infindável

• Cooptação dos mais fracos

• Acomodação diante das

negociações

• Falta de capacidade gerencial

para novas atribuições

• Excesso de controles diante da

complexidade do sistema de

rede

• Desequilíbrio de poder

1Vantagens e Desvantagens do trabalho em rede (67,75)

Ou seja, e nunca é demais deixar claro, que não devemos encarar os

debates sobre redes de saúde de maneira leviana, seja como modismo ou como

panaceia. Apostamos que avançar nessa exploração conceitual (que também é

prática) pode impulsionar compromissos éticos de defesa da vida e dos

princípios dos SUS.

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Em Silva (75) enfatiza-se que as redes sempre serão de serviços de

saúde, definindo rede de serviços de saúde, ou de atenção à saúde, como:

Forma de organização das ações e serviços de promoção, prevenção e recuperação da saúde, em todos os níveis de complexidade, de um determinado território, de modo a permitir a articulação e a interconexão de todos os conhecimentos, saberes, tecnologias, profissionais e organizações ali existentes, para que o cidadão possa acessá-los, de acordo com suas necessidades de saúde, de forma racional, harmônica, sistêmica, regulada e conforme uma lógica técnico-sanitária. (75).

Estes autores fazem uma contribuição sistemática sobre rede que vale a

pena abordarmos devido à influência que esta publicação e seus autores

exercem no SUS nos últimos anos. Ressaltam a importância de construção de

redes como estratégia para lidar com o aumento da incidência e prevalência de

doenças crônicas e com os custos crescentes no tratamento das doenças, dando

maior perspectiva de avanços na integralidade e na construção de vínculos.

Atribuem à rede de serviços de saúde um conjunto de responsabilidades

relativas à relação entre os serviços, desses com seus usuários e ao fluxo dos

usuários entre os serviços:

1. Definir suas portas de entrada; 2. Ordenar o acesso por ordem cronológica e de risco; 3. Oferecer atendimento adequado às necessidades do

paciente; 4. Racionalizar a oferta de serviços e a incorporação

tecnológica; 5. Definir as linhas de cuidados; 6. Integrar os sistemas de informação; 7. Evitar a repetição de exames e de anamneses; 8. Permitir aos profissionais o acesso a prontuários e

exames de modo informatizado e integrado; 9. Permitir o monitoramento do paciente para evitar

complicações, quando for o caso; 10. Criar uma hierarquia de complexidade de serviços e

organizar os referenciamentos e contra-referenciamentos, de acordo com uma inteligência epidemiológica;

11. Oferecer educação sanitária ao paciente, para fomentar maior responsabilidade do cidadão com a própria saúde; e outros elementos que criem eficiência, resolubilidade dos serviços, melhoria da qualidade e coíbam a duplicidade de meios para o mesmo fim (75).

Tais responsabilidades implicam em um desafio concreto e complexo para

o cotidiano do trabalho nas redes, exige competências relacionais complexas

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daqueles que produzem encontros em cada nó das redes. Assim, ao longo deste

trabalho faremos sutis deslocamentos nessas responsabilidades,

problematizando-as. Por exemplo, ainda que seja imprescindível uma

inteligência epidemiológica para a organização do sistema, essa imagem não

pode anular as necessidades concretas e cotidianas de usuários e serviços de

saúde. Nesse mesmo item 10, precisaremos retirar a ideia de hierarquia, tão

tradicional, que remete à pirâmide. Afirmaremos que não são graus de

complexidade, mas sim, diferentes complexidades, todas igualmente

indispensáveis, essa hierarquização talvez obedeça mais uma necessidade de

controle do que a do usuário concreto. Enfim, o que ou quais necessidades

operam como conectivos das redes?

Esses autores consideram essencial não subdividir os sistemas de saúde

em subsistemas de cuidados crônicos e agudos sob o risco de reforço de um

modelo hospitalocêntrico pouco eficaz, pouco econômico e que não atinge ao

princípio da integralidade. Sobre Integralidade, devido à polissemia e

importância desse conceito nessa discussão, vale um aparte. Em Silva (75) ela

é abordada sob três sentidos: o vertical – um olhar sobre todas as necessidades

do usuário -, o horizontal – que trata da articulação de vários pontos de cuidado

– e na construção com outras políticas públicas, produzindo intersetorialidade.

Elencam quatro componentes para uma Rede de Atenção à Saúde: 1.

Espaço territorial definido e população adscrita; 2. Existência de serviços e ações

de saúde de diferentes densidades tecnológicas e com distintas características

instalados nesse território de forma articulada e integrada mediante critérios de

custo, benefício, oferta e necessidade; 3. Sistema logístico que contribua para

identificar e orientar os usuários em seu percurso entre os serviços de saúde e

4. Sistemas de regulação.

A partir desses componentes é necessário produzir modelos operacionais

de implantação que dialoguem com a definição de qual o território adscrito pela

mesma, vinculada a um diagnóstico situacional deste, tanto estrutural quanto

epidemiológico, que apoie a criação de sistemas logísticos de suporte, de

regulação e de governança, tendo em vista certa situação desejada para os

serviços que compõe essa rede. Toda essa construção leva em consideração

que a Atenção Primária em Saúde seria a ordenadora dessa rede, é a partir dela

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que o usuário se insere no serviço e é ela que coordena seu cuidado, tendo as

linhas de cuidado como uma estratégia para o enfrentamento de determinados

riscos, agravos ou outras condições específicas (75).

Como viemos argumentando, temos que tomar com precaução esse lugar

de ordenação da rede. Entendemos sim a necessidade de uma forte Atenção

Primária para um bom sistema público de saúde, entretanto, há que se cuidar

para colocá-la como porta de entrada preferencial do usuário no sistema, não

como exclusiva. Temos visto, por exemplo, que dentro de um contexto em que

serviços de urgência/emergência e pronto-atendimentos já são tão disseminados

e até acessados prioritariamente, essa pode sim ser uma importante porta de

entrada para o seguimento de determinados usuários. Um exemplo muito claro

é o serviço de urgência/emergência sendo o primeiro acesso ao sistema, ou o

único serviço acessado por moradores de rua e profissionais do sexo, essa pode

ser a porta de entrada deles a um sistema cuidador.

Também temos visto Centros de Atenção Psicossocial, Centros de

Referência de Saúde do Trabalhador e Centros de Referência em DST/AIDS

serem importantes pontos de primeiro acesso e de início do fluxo usuário no

sistema. Vários exemplos poderiam ser dados, mas chama-nos a atenção que

uma rede de saúde interessada nas necessidades dos usuários deve ser capaz

de produzir redes para as situações singulares, não se engessando em

pretensas soluções estanques. Em nossa prática, pudemos ver isso operando

ao reunir trabalhadores de diferentes serviços para discutir casos clínicos, gestão

e/ou os dispositivos e diretrizes da Política Nacional de Humanização.

Por outro lado, reconhece-se que

A rede fortalece os vínculos entre os envolvidos, por se associarem com a intenção de cooperar, e não de impor; de colaborar e compartilhar as atividades e os recursos, sem hierarquia; além de trazer para perto das autoridades centrais a realidade dos territórios (75).

Deixando, entretanto, pouco claro, concretamente, como isso se daria. A

avaliação de que o Pacto pela Saúde pouco avançou na construção de Redes

de Atenção à Saúde (RAS) transparece dificuldades na execução desses

processos: fala-se em falta de pactuação entre os entes federados ou

descompromisso com os mesmos, com dificuldade de planejamentos conjuntos

e grande heterogeneidade nos modos de operar, ou também, podemos dizer,

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dificuldades em fazer efetivamente acontecerem as Programações Pactuadas

Integradas, os Planos Diretores de Regionalização e os Planos Diretores de

Investimentos.

Analisando tais dificuldades Silva (75) faz um exercício analítico em que

se classifica os desafios e entraves para a construção de redes de atenção à

saúde em níveis macro, meso e microssociais. Uma análise interessante que

apenas nos reforça que tais dimensões estão absolutamente imbricadas, intervir

em uma é produzir intervenção em outra. Dessa forma eles colocam como

desafios macrossociais fortalecer a Atenção Básica como coordenadora do

cuidado e ordenadora da rede; implementar uma política de regulação e

fortalecer a capacidade de gestão regional, afirmando que “a construção de

coerência entre a formulação e a implementação de políticas, projetos e

programas é um grande desafio, especialmente em uma área tão complexa

como a política pública do SUS” (p. 122).

Sobre os desafios mesossociais problematizam a hegemonia de uma

cultura organizacional e de técnicos voltada para sistemas fragmentados;

apontam equipes técnicas insuficientemente capacitadas e lideranças não

motivadas para promover mudanças; com a inexistência ou insuficiência de

sistemas logísticos de suporte às redes; tendo que lidar com políticas de

investimento e custeio e marco jurídico-legal inadequados para o propósito de

consolidação de redes.

Dentre os desafios microssociais entendem que há imperiosa

necessidade de qualificar a Atenção Básica, para que a coordenação do cuidado

ao usuário e a ordenação de atenção em rede aconteçam. Assim, espera-se que

se abordem os problemas relacionados à organização do cuidado clínico, ao

vínculo com os usuários e à longitudinalidade da atenção, propiciando

consolidação para o trabalho em rede. Também ressaltam a necessidade

qualificação da gestão local, o trabalho com clínica ampliada e a adoção de

algumas estratégias organizativas como gestão colegiada, unidades de

produção, equipes de referência, apoio matricial e núcleos de saúde coletiva.

O gerenciamento das organizações de modo coletivo e a valorização do modelo usuário-centrado seriam as estratégias principais [para superar os nós críticos do micro] (...) implementação das políticas de educação permanente em saúde do SUS, cuja centralidade é a aprendizagem significativa

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com foco no processo de trabalho, com base em avaliação crítica feita pelos trabalhadores, que se incorporam ao processo como sujeitos da mudança (75).

Tudo isso foi escrito antes da portaria sobre Rede de Atenção à Saúde de

2010, da regulamentação da lei 8080 em 2011, que traz algumas definições,

seguranças jurídicas e instrumentos para a construção de redes interfederativas

(formulações, inclusive, influenciadas por esses autores), mas a questão é

complexa, um problema histórico e, em 2013, Campos (78) aponta construção

de redes e de regiões de saúde que garantam a integralidade como um dos seis

principais desafios do SUS.

Outro autor que logrou uma publicação sistemática sobre Redes, com

considerável influência no SUS hoje, é Mendes, que tem trabalhado com o termo

Redes de Atenção à Saúde, às quais define como:

organizações poliárquicas de conjuntos de serviços de saúde, vinculados entre si por uma missão única, por objetivos comuns e por uma ação cooperativa e interdependente, que permitem ofertar uma atenção contínua e integral a determinada população, coordenada pela atenção primária à saúde – prestada no tempo certo, no lugar certo, com o custo certo, com a qualidade certa, de forma humanizada e com equidade – e com responsabilidades sanitária e econômica e gerando valor para a população (79).

Fazendo uma análise a respeito das condições de saúde da população e

da organização do SUS, avalia que as RAS têm enorme potencial para lidar com

o que ele chama de crise dos sistemas de saúde do século XXI, decorrente de

sistemas voltados para o atendimento de condições agudas ou de agudizações

das condições crônicas, quando temos importante quadro de mudança na

situação epidemiológica. Isso é especialmente crítico no Brasil, com a chamada

tripla carga de doenças, ou seja, a ainda presença do combate a infecções,

desnutrição e problemas de saúde reprodutiva, somado ao aumento das

doenças crônicas e seus fatores de risco e o crescimento da morbimortalidade

por causas externas (80).

Assim, credita-se importância a uma organização dos sistemas de saúde

em rede de forma a superar uma fragmentação da atenção caracterizada por

pontos de assistência isolados, com fragilidade na comunicação e incapacidade

de seguir o paciente de modo a ter uma atenção contínua à população (80). Seria

uma forma de garantir acesso equitativo aos serviços de saúde (62). Diversos

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estudos têm demonstrado o impacto positivo de uma organização em rede sobre

os custos, o uso de recursos e resultados clínicos (79).

Em uma revisão na literatura internacional, feita por este autor, traz-se

discussões iniciadas nos Estados Unidos da América (EUA), no início dos anos

90, como disparadores deste movimento de organização de sistemas em rede

(79). Diversos termos são utilizados para comentar a implantação e

desenvolvimento de certa forma de fazer em rede no EUA, Canadá e diversos

países da Europa – Sistemas Integrados de Saúde, Serviços Integrados de

Saúde, Organizações Integradas de Atenção à Saúde, cadeias de cuidados,

Redes Regionais de Atenção. Conceitualmente, essas denominações

apresentam diversas pequenas variações e múltiplos descritivos são

empregados relacionando-se a processos integrativos, constituindo um espectro

de 175 definições e conceitos (62).

Em sua sistematização Mendes (79) coloca que os processos de

descentralização se definem por modos singulares de organizar as Redes de

Atenção à Saúde, estruturadas sobre uma rede de pontos de atenção à saúde,

os serviços de saúde, e que devem atender a alguns fundamentos visando

eficiência, eficácia e qualidade. Sobre Economia de Escala, pondera que os

serviços e sistemas precisam ter diferentes gradientes de concentração e

dispersão visando níveis ótimos de eficiência dos gastos, sem comprometer

acesso e qualidade dos serviços. Outro fundamento trata sobre o sentido da

integração da rede, Integração Horizontal e Vertical, a primeira se dá entre

unidades produtivas iguais, visando adensamento da cadeia produtiva para obter

ganhos de escala, maior eficiência e competitividade. Já a integração vertical se

dá pela unificação da gestão de diferentes unidades produtivas, comunicadas

através de sistemas de informação e logísticos.

Já os Processos de Substituição são para manter certa mobilidade dos

recursos dentro das redes, de forma que eles possam ser realocados na busca

de melhores resultados sejam econômicos, sejam sanitários (79).

Ainda que os Territórios Sanitários sejam colocados como fundamento

das RASs algumas podem prescindir desta articulação como o sistema privado

ou sistemas públicos baseados em competição gerenciada. Por outro lado,

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sistemas como o SUS e outros sistemas públicos necessariamente convocam

essa articulação territorial (79).

Por fim, Mendes coloca os Níveis de Atenção à Saúde como mais um

fundamento das RAS nos quais se conformam arranjos produtivos por

densidades tecnológicas, considerando a Atenção Primária à Saúde como a de

menor densidade e a atenção terciária a de maior densidade tecnológica. Com

outro nome, retoma-se aqui a discussão realizada anteriormente sobre a

hierarquização da rede. Entendemos que não existem maiores ou menores

densidades tecnológicas, mas sim densidades de tecnologias distintas, em

complexos arranjos. Podemos tomar a ideia de tecnologias leves, leve-duras e

duras, explicada mais à frente, para dizer, de maneira um pouco grosseira, que

a Atenção Básica tem alta densidade de tecnologias leves e um hospital terciário

de tecnologias duras e leve-duras (reconhecendo que se sairmos da

representação e analisarmos o cotidiano, encontraremos múltiplas combinações

dessas densidades tecnológicas em cada processo dos serviços de saúde).

Por outro lado este autor também afirma que as redes hierarquizadas

rígidas organizadas por pirâmides hierárquicas e modos de produção tayloristas

e fordistas tendem, em um “contexto de complexificação das questões sociais,

de processos de privatização, de descentralização acelerada, de globalização,

de proliferação de organizações não governamentais e de fortalecimento do

controle público” (p.79), a se modificarem em estruturas mais flexíveis,

compartilhadas e interdependentes em seus objetivos, informações,

compromissos e resultados. Ainda que termos como “compartilhada” e

“interdependente” possam nos remeter a uma ideia de multiplicidades, enfatiza-

se que redes eficazes são as produtoras de consensos, buscando “ganhos para

todos os atores”, “harmonizando decisores” políticos e administrativos, nas quais

as soluções são negociadas e os processos são permanentemente monitorados

e avaliados (79). Há que se reconhecer que em qualquer rede existem múltiplos

interesses em disputa, que vão de interesses privados a múltiplas concepções

sobre saúde, doença e vida, de modo que consensos, quando obtidos, são

absolutamente temporários. Talvez, mais do que consensos, seja necessário

estabelecer as bases éticas de trabalho a partir das quais esses múltiplos

interesses e perspectivas podem coexistir.

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A questão do comando único, de uma coadunação de objetivos, unidade

de ideias e propósitos não aparece apenas nestes referenciais mais recentes,

mas sim desde o Relatório Dawson. Assim como a ênfase na importância de a

Atenção Primária à Saúde ser a ordenadora, ou a organizadora, dessa rede de

saúde. De forma que a recomendação para a condução de processos de

mudança no sistema de atenção à saúde trazidas por Mendes (79) já tem quase

100 anos, como pode ser inferido das alíneas 24, 50, 93 do centenário relatório

(63).

As mudanças no sistema de atenção à saúde deverão fazer-se nas seguintes direções: voltar o sistema para a atenção às condições crônicas, fazer uso intensivo da tecnologia da informação, eliminar os registros clínicos feitos à mão, promover a educação permanente dos profissionais de saúde, coordenar a atenção ao longo da rede de atenção, incentivar o trabalho multidisciplinar e monitorar os processos e os resultados do sistema (79).

Parece-nos que tais operações conceituais ainda não escapam de um

modo de produzir preso em redes frias, ou seja, com efeitos de homogeneização

e de equivalência (81). Parece-nos que as comunicações, as linguagens, postas

em comum, ainda o fazem não para produzir potência, mas talvez, elas se façam

emergir para continuar trabalhando por um certo comando central (82), em prol

de uma unidade de ideias, ou de um “clima organizacional” como diriam algumas

correntes.

Não podemos nos pautar por um súbito ponto no tempo em que todo o

sistema esteja organizado de maneira ideal, assim que até lá temos que lidar

com afecções agudas e agudizações das crônicas. Isso é tema constante de

conflito mesmo dentro das equipes ao se pensar a organização do processo de

trabalho em que se polariza o atendimento do crônico ao agudo, o programático

à demanda espontânea. Entretanto, para dialogar com integralidade com as

necessidades de saúde dos grupos populacionais é imprescindível trabalhar na

articulação entre o espontâneo e o programado (83).

Mesmo com esses textos já nos trazendo referências a outros

pensamentos dentro da Saúde Coletiva, vale a pena agora olharmos para

algumas dessas institucionalizações recentes das redes pois já veremos muitos

elementos se cruzando.

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A Portaria 4.279, de 30 de Dezembro de 2010 (84), estabelece diretrizes

para as Redes de Atenção à Saúde no SUS definindo-as como “arranjos

organizativos de ações e serviços de saúde, de diferentes densidades

tecnológicas, que integradas por meio de sistemas de apoio técnico, logístico e

de gestão, buscam garantir a integralidade do cuidado” reconhecendo-as como

mecanismo adequado para superar a fragmentação sistêmica e enfrentar os

desafios do contexto socioeconômico, epidemiológico, sanitário e demográfico.

Considera que a reestruturação do sistema em rede representa o acúmulo e

aperfeiçoamento das políticas de saúde, avançando na consolidação do SUS,

possibilitando “a construção de vínculos de solidariedade e cooperação”.

A portaria traz os mesmos fundamentos já citados na obra de Mendes. Dá

especial atenção à gestão da clínica entendendo-a como a aplicação de

tecnologias de micro gestão visando padrões clínicos ótimos, eficiência,

efetividade, redução de riscos e melhoria da qualidade. Coloca-a em posição de

integrar verticalmente os pontos de atenção dando forma à RAS. Nesse escopo

são entendidas as Diretrizes Clínicas e as Linhas de Cuidado.

Também entende a Atenção Primária em Saúde como centro de

comunicação das redes, que também terão como componentes estruturadores

os pontos de atenção secundária e terciária; os sistemas de apoio; os sistemas

logísticos e o sistema de governança. Nesse contexto os Colegiados de Gestão

Regional são entendidos como fóruns privilegiados para o exercício da

governança, de negociação e construção de consensos.

Também é interessante notar que, apesar de não aparecer na definição

de redes utilizada, o texto da portaria traz a importância do trabalho e do

componente relacional para a construção de redes – “É necessário visualizar o

trabalho como um espaço de construção de sujeitos e de subjetividades, um

ambiente que tem pessoas, sujeitos, coletivos de sujeitos, que inventam mundos

e se inventam e, sobretudo, produzem saúde. (...) O foco do trabalho vivo deve

ser as relações estabelecidas no ato de cuidar que são: o vínculo, a escuta, a

comunicação e a responsabilização com o cuidado”.

Seis meses depois, o Decreto 7.508, de 28 de junho de 2011 (76) traz

uma definição bem mais sucinta de Redes de Atenção à Saúde: “conjunto de

ações e serviços de saúde articulados em níveis de complexidade crescente,

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com a finalidade de garantir a integralidade da assistência à saúde” (item VI, art.

2º), que estarão compreendidas ou farão a relação entre as Regiões de Saúde,

conforme pactuação da Comissões Intergestores. A pactuação da rede e a

relação entre os atores da mesma (entes federados) passam a ser feitas através

de Contratos Organizativos de Ação Pública da Saúde, junto com a definição de

responsabilidades, indicadores, metas, critérios de avaliação, recursos

financeiros e formas de controle e fiscalização.

Este decreto também ratifica o “acesso universal, igualitário e ordenado”

deve iniciar-se por Portas de Entrada previamente definidas e pactuadas e

estender-se nesta rede regionalizada e hierarquizada. Parece que o caminho já

está previamente traçado e acordado entre os gestores. O trabalho e os

trabalhadores não estão entrando nisso, tão pouco os usuários. Insiste-se

veemente (e com sua parcela de razão) que a Atenção Primária em Saúde deve

ser a coordenadora do cuidado e ordenadora das Redes de Atenção à Saúde,

sendo a base do sistema (85–87), do que não devemos discordar, mas

acrescentar nuances.

O que queremos chamar a atenção é que trabalho, solidariedade,

cooperação, cogestão são constantemente evocados nos textos de referência

para os aparatos legais, mas tanto uns quanto outros parecem carecer de uma

discussão prática sobre como isso se daria. Chama-se a atenção para o fato de

que propostas de constituição de redes pautadas por modelos prescritivos, sem

elementos contextuais e sem as estratégias para mudanças têm poucas chances

de produzirem avanços, reconhecendo-se que o arranjo piramidal e que os

clássicos instrumentos de referência e contra referência não são adequados

para os diferentes fluxos com elevados graus de interdependência que, na

prática, os serviços precisam traçar (66). Insistir nisso é aprofundar uma

segmentação dos serviços de saúde, que pouco logra aumentar produtividade.

Pelo contrário, o excesso de burocratização restringe o trabalho de cada equipe

ou trabalhador produzindo mais desestímulo, ceifando a capacidade produtiva e

criativa desses profissionais (64). Talvez um princípio importante fosse o de

instituir linhas de cuidado levando em conta a singularidade das demandas e

necessidades dos usuários, em torno dos quais estaria centrada a rede (66).

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Coloca-se a necessidade de se instituir redes com relações mais

horizontalizadas, entre os serviços, tendo a Atenção Básica como ponto central

a ser fortalecido, operando como centro ordenador, comunicador e articulador

do sistema. Um dispositivo importante, nesse sentido, seriam as cartas de

serviços e compromissos que clareariam fluxos e facilitariam a regulação.

Aproximando-se dessas formulações, desde 2011, foram sendo criadas redes

temáticas em uma pactuação entre Ministério da Saúde e gestores estaduais e

municipais tais como Rede Cegonha, Rede de Atenção à Saúde de Pessoas

com Doenças Crônicas, Rede de Urgência e Emergência, Rede de Atenção

Psicossocial e Rede de Cuidados à Pessoa com Deficiência. Para concretizar

tais redes foram instituídos grupos condutores regionais e/ou estaduais para

pactuações bi ou tripartites, formulação, apoio à implantação e monitoramento

das redes temáticas (85).

Nesse sentido, o que vimos, enquanto trabalhando pela Política Nacional

de Humanização no Estado de São Paulo (2010 a 2013), foi essa iniciativa de

construção de redes se desenvolvendo quase que exclusivamente em fóruns de

gestores. Isso não parecia estar sendo discutido com trabalhadores, exceto raras

exceções, tampouco com usuários. Seus planos de ação muitas vezes

obedeciam a uma lógica matemática de distribuição leitos, procedimentos e

serviços entre os municípios de forma que todos saiam ganhando o máximo

possível de recursos (financeiros e políticos) diante de suas próprias

possibilidades estruturais. Novamente, são redes que conectam ofertas de

serviços, mas que na prática não reúnem as pessoas responsáveis pelo cuidado,

pelo fluxo do usuário. Parecem pouco ouvir as necessidades dos próprios

usuários. Não negamos que há um avanço importante já que a construção dos

planos de ação demanda um esforço regional e uma negociação entre os entes

federados muito mais efetiva do que vimos sendo desenvolvida até então. Há

avanços e heterogeneidades no processo, mas paira a sensação de que uma

forma foi desenhada dentro da qual tudo deveria se encaixar, o que é pouco

provável que aconteça.

Da mesma maneira, é frequente o argumento de que a consolidação das

redes e sua articulação depende de um robusto sistema de informação clínica,

com protocolos assistenciais pactuados (85). Não negamos a importância de tal

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medida, ainda que a colocar como a solucionadora dos problemas (como vimos

sendo feito em diversos debates) é reduzir enormemente a complexidade da vida

real, da saúde e das doenças das pessoas, dos processos de trabalho dos

serviços, dos contextos locais e da permanente mutabilidade desses elementos

todos. Essas formulações que têm sido colocadas acabam por pautar uma rede

como se fosse algo homogêneo (ou homogeneizável), inteira, sólida e

controlável, totalmente previsível e manejável nessa lógica, mas o que temos

visto, se tomamos o cotidiano do trabalho como parâmetro, é uma rede

fragmentária, a despeito dos investimentos, que está em permanente

modificação, sempre se refazendo e se reconectando (88).

Meu diário de campo realizado no reconhecimento de serviços de saúde

em Barcelona, em 2014, por exemplo, registra um importante sistema

informatizado, que compartilha trechos de prontuários e receitas emitidas no

sistema público. A despeito das deficiências estruturais ainda presentes – como

por exemplo sistemas diferentes e que se comunicam deficitariamente a cada

entidade gestora do sistema (a gestão do sistema catalão inspira a Organizações

Sociais em Saúde brasileiras e tem o território dividido entre diferentes empresas

públicas e privadas gestoras dos serviços) – a conversa com os trabalhadores

deixa claro que tal informatização não substitui, por exemplo, as discussões de

caso realizadas presencialmente.

E aqui que concordamos com Merhy et (88):

Nos últimos anos, o debate tem crescido tanto no panorama brasileiro quanto na América Latina onde “a proliferação de redes de gestão é explicada por uma multiplicidade de fatores que atuam simultaneamente, conformando uma nova realidade administrativa”. (...) No entanto, o que prevalece nos discursos e práticas é uma forma de entender as redes como um conceito representação; retirando das mesmas aquilo que produz os seus sentidos: os sujeitos nas suas experiências vividas, no seu mundo de afecções em intensos processos de conexões a cada encontro (p.157).

Parece-nos que os modos de fazer das tais “Redes de Atenção à Saúde”,

do que depreendemos a partir desses textos, ainda precisam ser aprofundadas

teórica e praticamente, de forma que se faz necessário avançar no debate para

além de práticas e condutas formalizadas ou formalizadoras. Não podemos

deixar de reconhecer os avanços nestes 25 anos de SUS, entretanto, também

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devemos reconhecer que não há como prescrever um modelo organizacional

único para o SUS.

Mesmo nas normativas algo sobre isso já é reconhecido quando, por

exemplo, se coloca para a RAPS a existência de duas dimensões, uma

normativo-institucional e outra operacional, que se caracteriza pelas relações

efetivas e concretas entre as pessoas, sendo temporária, fazendo-se e

refazendo-se permanentemente, dependendo de projetos que mobilizam um

certo agir comum (89).

Em vários pontos do texto trazemos que é importante relativizar os lugares

que os serviços de saúde ocupam na rede. Que um desenho estabelecido a priori

obedece mais às necessidades da gestão do que as de saúde dos usuários,

incluindo nisso o lugar ocupado pela Atenção Primária em Saúde. Não, não

discordamos que, como orientação geral, ela deva ser o centro ordenador e

coordenador do cuidado e do sistema, mas que isso também precisa ser olhado

mediante o contexto e o caso-a-caso. Como exemplo prático podemos citar o

cuidado à pessoa com Doença Rara (DR).

Figura 1 Detalhe Park Guell - http://www.aspasios.com/descubre-barcelona/wp-content/uploads/2015/01/gaudi-architecture.png - Acessado em 25/01/16

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Em 2014 foi estabelecida a Política Nacional de Atenção Integral às

Pessoas com Doenças Raras (PNDR), construída na mesma lógica das redes

temáticas já citadas neste texto. Objetiva organizar a atenção às pessoas com

DR, reduzindo o sofrimento de pacientes e familiares e visando uma

racionalização de recursos (90).

Tal política e alguma literatura ressaltam a Atenção Básica como porta de

entrada dos pacientes, a partir de onde seriam disparados os processos de

diagnóstico e de cuidado. Estima-se que um médico de família, com seus 2000

pacientes, atenderia de 15 a 20 afetados por DR distintas, os quais teriam dentre

suas principais necessidades as de coordenação entre os níveis assistenciais e

acompanhamento (91), além de diversas outras, que mudam no transcurso da

enfermidade e da vida (92). Assim, tem-se considerado o profissional (médico)

da AB como o mais capacitado para as tarefas de coordenação do caso e

acompanhamento (90–92).

Tivemos acesso ao relatório de uma pesquisa catalã sobre a assistência

às pessoas com Doenças Raras que nos dão outra perspectiva sobre o assunto.

Nessa investigação observou-se que esta é uma rede centrípeta, sempre

acionada pelo usuário e/ou sua família e que, muitas vezes, é grandemente

apoiada pela associação de portadores da enfermidade em questão, a qual

desempenha um papel central de articulação, ativação e coordenação da rede.

São acionados de 23 a 31 atores diferentes! E ao se olhar para a densidade de

tais redes vemos que a AB tem uma posição periférica, sendo um dos pontos

menos acionados. Na prática, o que se nota é que, em termos gerais, nesse nível

do sistema, não se tem conseguido ofertar acolhimento e acompanhamento ao

enfermo e sua família. O desconhecimento das enfermidades e a dificuldade do

problema invisibilizam esses casos. Mesmo quando se trata da função de dar

entrada ao sistema, na prática, usuários e familiares relatam que frequentemente

se recorre muito mais a vias informais e aos serviços de Urgência e Emergência

para atendimento e devidos encaminhamentos. Existe também um vazio

estrutural na relação desta com a atenção especializada, que geralmente é

intermediada apenas através de documentos (54).

Diante disso, seria mesmo a Atenção Básica que deveria ter um papel tão

central na rede de cuidado da pessoa com DR? Quando olhamos para a

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densidade das redes desenhada pela pesquisa vemos uma grande importância

das associações de pacientes e familiares portadores destas patologias, que tem

um crucial papel de suporte ao paciente e sua família, sendo efetivamente uma

das principais articuladoras. Elas desempenham um papel de apoio aos

envolvidos informando sobre quais recursos estão disponíveis nessa rede, seja

em termos assistenciais, seja de suporte material ou de inserção escolar. Além

delas próprias cumprirem papéis de suporte afetivo e de questões para a vida

diária (54). O papel das associações como pilar na construção dos mapas de

cuidado que os usuários produzem para si merece um olhar mais detalhado, elas

têm cumprido um papel chave como nós multiplicadores e conectores (93).

Ainda que as associações tenham participado da formulação da PNDR,

perguntamo-nos se elas próprias não deveriam ter um reconhecido papel no

cuidado a ser produzido para cada paciente. Quando a PNDR explicita para cada

serviço suas “interfaces recomendadas” essas entidades não aparecem (1). Por

outro lado, sabemos que os mapas de cuidado criados pelos usuários são

móveis, contingentes e impermanentes, conectando seus pontos a partir de suas

necessidades. Talvez nesse diálogo entre equipes e

usuários/familiares/associações que pode residir um profundo avanço do SUS,

em uma experimentação radical de uma gestão conjunta do cuidado entre

equipes e usuários (94).

Diante disso podemos pensar em revisitar certas responsabilidades

atribuídas a AB na PNDR: não podemos inverter o fluxo do Apoio Matricial? Com

a AB matriciando seus saberes à especializada? Ou mudar o local onde se

conduzirá um Projeto Terapêutico Singular? Porque não o fazer a partir da

Atenção Especializada, por exemplo? Porque não produzir uma linha de cuidado

a partir do hospital de modo que a equipe especializada, que tem contato mais

frequente e tem mais prática com as especificidades desse tipo de enfermidade,

possa construir e coordenar de maneira mais protagonista os projetos

terapêuticos desses usuários? São pontos práticos para a construção de redes,

para o que se faz essencial esse fortalecimento das relações e de seus pontos.

Claro que não estamos tratando de uma legitimação de qualquer modelo

hospitalocêntrico, mas sim que cada caso é um caso e que o melhor local para

se operar a gestão da clínica pode variar de um para o outro, e no tempo, tendo

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em vista a necessidade concreta do usuário (95), implicando a responsabilização

de cada lugar da rede com cada caso.

Por fim, em se falando de dispositivos de gestão do trabalho e da clínica,

cabe comentar algo sobre as experiências que disparam as questões

instigadoras desse doutorado: o trabalho junto à Política Nacional de

Humanização (PNH) realizado de 2010 a 2013. Foram três anos como apoiador

do Ministério da Saúde no Estado de São Paulo, atuando junto a Secretaria

Estadual de Saúde (SES) e inúmeras secretarias municipais, acessadas via

Departamentos Regionais de Saúde (DRSs) e Comissões Intergestoras

Regionais (CIRs) do interior do estado e da capital.

Tal política advoga para si um trabalho com uma ideia de humanização

que não passa pela idealização do homem, mas sim a partir do "SUS que dá

certo", ou seja, de experiências nas quais se observa um reposicionamento dos

sujeitos implicados nas práticas de saúde. Desta forma pleiteia trabalhar com a

interferência nestas práticas, considerando que os sujeitos que dela participam,

quando mobilizados, são capazes de transformar a si mesmos e as suas

realidades. Pretendem investir naqueles que constituem, usufruem, transformam

o sistema de saúde, acolhendo e promovendo seus protagonismos (96).

Figura 2 Detalhe Casa Batlló - https://images.trvl-media.com/media/content/shared/images/travelguides/destination/179992/Casa-Batllo-52406.jpg - Acessado em 25/01/16

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Numa perspectiva de ruptura com a concepção de humanização a partir

de uma visão da benesse, a PNH busca a reflexão sobre a qualidade de serviços

prestados à população e fragilidades na rede de atenção em saúde, bem como

um novo olhar para as demandas dos trabalhadores da saúde, buscando nas

experiências concretas de um “SUS que dá certo” o referencial para a construção

dos princípios e diretrizes dessa política que entra no cenário nacional a partir

de 2003 (97), saída de formulações e experiências diversas da Saúde Coletiva

brasileira, para a institucionalidade da política pública, pretendendo “contagiar”

serviços de saúde, propagando certo modo de fazer o trabalho em saúde.

A PNH busca se construir como uma política transversal no sistema de

saúde, ou seja, ela intenciona se concretizar tanto nas rotinas dos serviços, como

também nas instâncias de gestão, fomentando rodas de conversa que busquem

a reflexão sobre os processos de trabalho, a produção de serviços, as trocas de

saberes e, principalmente, as mudanças de práticas de saúde (96). Tal política

se constitui por princípios e diretrizes, operando certo modo de fazer através de

dispositivos (98).

Aqui, por princípio, entende-se o que alavanca ações, dispara

movimentos no plano das políticas públicas. Neste caso, o movimento proposto

é o da mudança dos modelos de atenção e gestão fundados na racionalidade

biomédica (fragmentados, hierarquizados, centrados na doença e no

atendimento hospitalar) (99). Assim, afirma-se como política pública de saúde a

partir de: inseparabilidade entre clínica e política, implicando em inseparabilidade

entre atenção e gestão dos processos de produção de saúde; transversalidade,

ou o aumento do grau de abertura comunicacional nos grupos e entre os grupos,

isto é, a ampliação das formas de conexão intra e intergrupos, promovendo

mudanças nas práticas de saúde; e protagonismo dos sujeitos e dos coletivos

(98). As diretrizes, institucionalmente colocadas, são as orientações gerais da

política, tais como: clínica ampliada, cogestão, valorização do trabalho,

acolhimento, defesa dos direitos do usuário etc. Já os dispositivos atualizam

essas diretrizes através de estratégias construídas nos coletivos concretos para

promoção de mudanças nos modelos de atenção e de gestão em curso, sempre

que tais modelos estiverem na contramão do que preconiza o SUS. Desses

podemos citar: acolhimento com classificação de risco, colegiado gestor, visita

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aberta e direito a acompanhante, equipe de referência, projetos terapêuticos

singulares, apoio matricial etc. (99).

Com relação ao método, seu "modo de caminhar", diz que é o da "tríplice

inclusão": inclusão de diferentes sujeitos; dos analisadores sociais e inclusão dos

coletivos (98). Não é algo tão simples de se fazer, produz movimentos ambíguos

e contraditórios que precisam de práticas de gestão capazes de suportar o

convívio com a diferença produzindo comum e construindo projeto coletivo. Não

é fácil, mas é exatamente esse efeito desestabilizador que torna a inclusão tão

interessante. As tensões produzidas serão matéria-prima para a construção de

modos de gestão mais próximos de interesses coletivos e de práticas clínicas

mais ligadas à produção de vida. Incluir para reforçar a prática democrática,

ampliar as redes e potencializar serviços, equipes e sujeitos.

Trata-se da produção de novos sujeitos e novas práticas. Uma produção

que se advoga necessária para construir possibilidades para além dos limites de

saberes e práticas estanques. Parece-nos uma exigência para se produzir mais

e melhor saúde. Pode-se considerar esse um dos nós de uma rede, sujeitos em

produção que se encontram na diferença para produzir projetos comuns (100).

Ainda que as redes sejam compostas de sujeitos, também podemos

visualizar outros nós delas. As equipes são redes em si, precisam ser

fortalecidas e ousarem sair de seus lugares de saber e poder para encarar as

fronteiras disciplinares podendo ser capazes de expor suas fragilidades, de

compartilhar suas clínicas e seus cuidados, ampliando seus horizontes e

melhorando sua produção de saúde.

Serviços e redes de atenção se reinventam cotidianamente, mas para que

isso possa ocorrer precisam de seus espaços de compartilhamento de gestão,

pois assim espera-se que possam construir modos de trabalhar que promovam

maior impacto, melhores indicadores de saúde, soluções mais criativas, maior

satisfação com o trabalho, tanto por parte do trabalhador como dos usuários e

gestores. Os próprios territórios são nós da rede e para eles também deve ser

dada a atenção, pois também estão em reinvenção e afirma-se, então, a ideia

de que esse território deve abrigar redes sem hierarquia, espalhadas

horizontalmente e que propiciem bons encontros (100).

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Muitos desses nós seguem funcionando de formas mais ou menos

convenientes à produção de saúde de qualidade e de amplo acesso, diversas

vezes a reflexão sobre a produção dos fluxos, das conexões, dos encontros entre

esses nós provocou inquietude. Consideramos que o agenciamento, as tensões,

os conflitos, os acordos e os consensos produzidos a partir desses encontros

agem a favor da melhoria da qualidade da produção de saúde dos serviços de

saúde individualmente e de sua composição enquanto rede.

Nesta prática, encontramos no apoio matricial um potente dispositivo

nesse sentido. Dispositivo com a potencialidade de reforçar os nós e aproximar

as pessoas e as equipes. Uma estratégia para subverter a hierarquia piramidal

do sistema, reforçando conexões e apoiando o desenvolvimento do território

(72).

A personificação, presencial, da referência e da contra referência, através

do apoio matricial, com o compartilhamento do caso, pode ter uma diversidade

de efeitos interessantes. A abertura para intervenções multi e interprofissional, a

co-responsabilização das equipes pelos projetos terapêuticos e planos de

cuidado, a articulação dos diversos saberes clínicos e de saúde coletiva, o

clareamento da coordenação do cuidado etc. (101).

Em seu próprio termo, apoio matricial, carrega dois conceitos operadores.

O apoio, entendido como aquele que ampara, sustenta, apoia, empodera. E a

matriz, pensando na equação matemática, que permite operações na vertical e

na horizontal (102). Assim, conceitualmente, esse dispositivo se pretende (não

garante) superador de hierarquias.

Além de atuar na aproximação das equipes, como já dito, pode auxiliar a

organização e ampliação da oferta de ações de saúde, oferece retaguarda

assistencial e técnico-pedagógica às equipes e produz uma responsabilização

pactuada, reorganizando os fluxos e fortalecendo a rede de atenção (101). Ainda

assim, temos visto, diversas vezes, o local do apoio ser tomado como um local

de poder e produzir mais hierarquização ao invés da pretendida horizontalização.

Qualquer linha de fuga produzida, se institucionaliza em certo território e pode

voltar a compor um certo cenário capturado e vertical. Pode-se superar

hierarquias e/ou produzir novas.

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Tal dispositivo pode ser operado de diversas formas, seja o atendimento

conjunto de casos, a discussão de caso ou a construção de projetos terapêuticos

singulares e/ou coletivos. Muitas vezes atuando na perspectiva teórica da

educação permanente, mas também na das atividades de capacitação, se

necessário for. Pode abordar temas clínicos, de saúde coletiva ou de gestão do

sistema, da unidade ou da equipe (102).

A principal pauta desses 3 anos de trabalho na PNH foi justamente a

construção de redes e o fortalecimento da regionalização. De tal forma que o

dispositivo Apoio Matricial era constantemente colocado em debate. Chamava-

me atenção o quanto a produção de encontros entre os serviços, através desse

dispositivo era impactante. As discussões eram feitas através de oficinas, em

geral por CIR, envolvendo trabalhadores e gestores dos diferentes municípios.

As oficinas tornaram-se regulares por algum período de tempo, em cada DRS,

em geral mensais por pouco mais de um ano.

Verificávamos que trabalhadores que frequentavam as oficinas que

desenvolvíamos e posteriormente atuavam junto a suas redes como apoiadores

reforçavam as gestões locais colocando no debate a possibilidade de aumentar

a autonomia dos sujeitos e também de ampliar a capacidade de produção da

clínica e das ações coletivas, da produção de mudanças no desenho da rede de

atenção e no aumento da capacidade para dialogar com outros setores. Este se

colocava como um trabalho inventivo e criativo.

E então, para além dos efeitos que sentíamos de dispositivos como o

Apoio Matricial sendo implantados, começamos a notar outros movimentos

interessantes. Um comum começava a se produzir entre os trabalhadores que

participavam das oficinas com mais frequência. Os assuntos variavam entre o

compartilhamento das angústias geradas pelos casos difíceis até as dificuldades

com a gestão para implementar as ações que eram discutidas nas oficinas. E a

partir dessa troca sobre os problemas, variadas soluções eram construídas para

responde-los. Em cada contexto local, as possíveis soluções ganhavam novas

nuances.

Em vários desses espaços a reverberação municipal dos trabalhos

tornou-se pouca para os anseios dos participantes. Uma certa formalidade que

girava em torno da instauração de trabalhos de apoio matricial já não era

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suficiente para responder às demandas de gestão e processos de trabalho.

Nesse momento que vimos novos espaços sendo criados, sem a minha

presença (do apoiador do Ministério da Saúde), ou das referências do DRS para

o debate. Eram caminhos laterais, que conectavam iniciativas de cidades

vizinhas, em geral as menores, em um auxílio mútuo para processos formativos

ou para compartilhamento da agenda de profissionais especialistas.

Trazer o micropolítico é trazer os lugares onde as existências furam os muros institucionais, conectando relações com o fora que é constitutivo dos processos; processo este intensamente produtor de novos sentidos no viver e no conhecimento. É trazer o lugar dos processos de encontros e suas atualizações das relações de poder. É trazer a micropolítica do encontro e a produção viva das redes de conexões existenciais, multiplicidades em agenciamento (88).

Apostamos que esse movimento de produzir, com o coletivo, processos

de escuta, análise, construção de textos coletivos, definição de tarefas, redes de

responsabilização e avaliação resulta, efetivamente, em mudanças nas formas

de se gerir, em exigências sobre as condições de trabalho e de gestão, no

aumento da capacidade de manejo de casos complexos e em uma construção

sistêmica da rede de atenção à saúde (103).

A organização do SUS excessivamente normatizada impõe amarras ao

trabalho em rede e revela a ineficácia das estruturas de uma organização que

ignora a contribuição efetiva, micropolítica, de determinadas práticas de saúde

para além de uma rede de serviços de saúde. Construções conceituais e

operativas para qualificar a gestão de práticas de cuidado, uma gestão em rede,

exigem mais do que espaços que ofertem determinados serviços, exigem uma

produção singular, que passa pela mobilização de uma produção comum e que

por sua vez passa por outro modo de apreender o coletivo, que seja pela criação

e valorização de espaços coletivos nas práticas cotidianas de atenção e gestão.

Assim, se os espaços coletivos são conceitos, ou, arranjos que podem

tomar a forma de equipes de trabalho, entre outras, a ativação dessa rede

nesses espaços de construção de políticas públicas pode tensionar uma

organização social que tem aprisionado modos de produção coletiva. No

reconhecimento desses desafios de trabalho e gestão em saúde vem se

buscando construir certa institucionalização deste debate, através de diversas

políticas, programas, arranjos, iniciativas. Mas estes arranjos, para serem

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dispositivos de construção dessa rede, dependem do modo como serão

operados no cotidiano, da dinâmica coletiva do trabalho em saúde, do modo

como as redes se expressam nos encontros. E para além dos espaços coletivos,

como se tem gerenciados os encontros para a produção de redes? Ou, como

produzir redes, concretamente, poderia passar por arranjos mais do que

burocráticos ou de gestão, mas sim pautados nos encontros, nas dinâmicas

cotidianas, nas necessidades de trabalhadores e usuários?

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CAPÍTULO 3 – UMA REDE EM CONSTRUÇÃO E EM

MOVIMENTO: A Experiência do Consultório na Rua

É meu segundo dia de trabalho. Combino de encontrar a equipe e a Kombi

em uma praça no centro da cidade, perto da qual eu morava. Em cima da hora,

cruzo uns 5 quarteirões correndo. Perto da principal avenida do centro da cidade

está uma das redutoras de dano conversando com um homem alto, magro, de

cabelos curtos bastante cacheados, de castanho claros a brancos. Era Seu

Joaquim7, o primeiro paciente com o qual me vincularia (sim, me vinculo com

eles, não só eles comigo). Olhei ao redor, vi o que sempre havia visto sem

perceber… os oito bancos, tipo jardineiras, sob árvores, estavam ocupados por

pessoas maltrapilhas, de olhar baixo, conversando pouco animadamente

naquela manhã fresca. Seu Joaquim já estava bêbado. Para nós é pouco

importante o motivo, mas curioso contar que foi para a rua procurando um irmão

“boleiro” que sumiu. Encontrou apenas corpos, violência, roubo e cachaça…

mais de quinze anos e não tinha mais conseguido voltar (foi o que ele me disse…

talvez a história tenha sido um “pouco” diferente).

Ele estava sob investigação de um quadro pulmonar ainda pouco claro,

possivelmente uma tuberculose. A missão do momento era leva-lo para realizar

uma radiografia de tórax. Vamos com ele a um Pronto Atendimento da cidade, o

único, naquele momento, com serviço de imagem funcionando. Conversamos

com a recepção e somos colocados na fila de atendimento geral dos demais

usuários. Ficamos nós, e nossa manhã de trabalho, travados naquela sala de

espera. Fazemos sucessivas conversas com a recepção, com a enfermeira

responsável do plantão e não conseguimos sair do lugar. “Bruno, vai ter que dar

uma carteirada, senão a gente vai passar a manhã toda aqui” avisou-me uma

colega8. Os outros usuários do serviço já haviam se afastado de nós, um círculo

de proteção contra o mal cheiro. O desconforto do seu Joaquim era evidente.

Iríamos perder a oportunidade de fazer o exame e fragilizar o vínculo dele com

7 Todos os nomes utilizados são fictícios. 8 Para proteger a identidade dos trabalhadores participantes da pesquisa não referiremos sua categoria profissional, a gestora também será identificada como trabalhadora, também, com este propósito, não estaremos atentos ao gênero ao nos referir a trabalhadores e trabalhadoras.

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a equipe caso continuássemos naquela espera estéril. “Sou médico, de um

serviço do SUS, e quero falar com o responsável do plantão! ”.

A “carteirada” funcionou. Não foi a última.

Seu Joaquim segue na rua. Naquele momento, não estava adoecido por

tuberculose, já esteve, voltaria a estar… naquela mesma praça, dias depois,

identificamos uma agudização de icterícia e constatamos um quadro

consumptivo importante. Foi internado em hospital secundário9. Ao menor

esboço de melhora, ele “evade” do nosocômio. A terapêutica medicamentosa e

a investigação médica ficam incompletas, ainda que se tenha algum avanço. Na

nossa experiência só existem duas coisas que fazem com que uma pessoa, que

dorme sob o céu e cuja circulação é limitada apenas pelos cassetetes da Guarda

Municipal, fique em um quarto hospitalar por muitos dias, com horários

controlados para tudo... ou o afeto, ou a sedação. A semana da internação foi

atribulada, não foi possível visita-lo. Sem o vínculo com a equipe do hospital e

sem a nossa companhia ele, naturalmente, foi embora.

Conseguir uma contra referência mínima, ao menos os resultados dos

exames de imagem e dos laboratoriais especializados, foi um trabalho quase

hercúleo de várias semanas e que demandou a ativação de uma rede de

contatos interna ao hospital, ainda que totalmente externa ao caso e ao setor de

internação. Enquanto isso, Seu Joaquim, com fôlego renovado, suporta mais

algumas semanas na rua, antes de vir pedir-nos ajuda para manter-se

abstinente. Até então, também havia recorrido a entidades beneficentes

religiosas e a serviços da Secretaria de Assistência Social. Conseguiu caminhos

para investir na própria vida e fazer algo além de ‘manguear’, beber e ficar na

praça. Outros desejos, em especial o pela vida, haviam surgido. Outras

articulações são feitas e seguimos na “marcação homem-a-homem” dele e dos

serviços que o assistem ou deveriam fazê-lo…

Essa é uma dentre tantas outras histórias que nos instigam a pesquisar a

construção de rede realizada pela equipe do Consultório na Rua de Campinas.

9 Nesse capítulo nos referimos aos hospitais como “secundário” ou “terciário” para dar ao leitor uma ideia do porte da instituição e da complexidade tecnológica dura, sem querer voltar a um paradigma hierarquizado de rede.

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De imediato intuímos uma construção de rede pautada na construção de

relações entre pessoas, pouco protocolar e muito ligada à demanda do usuário

e, mais, que a construção de rede é indispensável para este trabalho (104–107).

O tema do Consultório na Rua, do cuidado à população em situação de

rua, da clínica de Redução de Danos é extremamente instigante e necessitamos

de um esforço para não abandonar a discussão da rede para ficar na discussão

sobre essas temáticas tão pouco estudadas e que ainda tem muito a nos dar em

reflexões sobre a clínica, a organização dos serviços, a política pública etc. De

uma maneira ou de outra, acabamos abordando isso ao longo do texto, mas o

foco é trazer o consultório na rua como um dispositivo para fazer ver e falar como

se constroem as redes de cuidado, as relações entre os serviços, no cotidiano,

claro que dentro de uma constelação de conceitos, de um diagrama de forças

que compõem essa ideia.

A Política Nacional para População de Rua (PNPR) foi criada em 2009,

definindo população em situação de rua como o grupo populacional heterogêneo

que possui em comum a pobreza extrema, os vínculos familiares interrompidos

ou fragilizados e a inexistência de moradia convencional regular, e que utiliza os

logradouros públicos e as áreas degradadas como espaço de moradia e de

sustento, de forma temporária ou permanente, bem como as unidades de

acolhimento para pernoite temporário ou como moradia provisória (108). Uma

situação, portanto, de vulnerabilidade social, programática e individual. Seus

princípios de integralidade, equidade, dignidade, convivência social, respeito à

vida e à cidadania, atendimento humanizado e respeito às diferenças se

atualizam em 10 diretrizes, para operar 14 objetivos. Achamos relevante citar

alguns deles aqui.

Art. 6º - São diretrizes da Política Nacional para a População em Situação de Rua: I - Promoção dos direitos civis, políticos, econômicos, sociais, culturais e ambientais; II - Responsabilidade do poder público pela sua elaboração e financiamento;

III - articulação das políticas públicas10 federais, estaduais,

municipais e do Distrito Federal; IV - Integração das políticas públicas em cada nível de governo;

10 Grifos nossos

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VIII - respeito às singularidades de cada território e ao aproveitamento das potencialidades e recursos locais e regionais na elaboração, desenvolvimento, acompanhamento e monitoramento das políticas públicas; X - Democratização do acesso e fruição dos espaços e serviços públicos. Art. 7º - São objetivos da Política Nacional para a População em Situação de Rua: I - Assegurar o acesso amplo, simplificado e seguro aos serviços e programas que integram as políticas públicas de saúde, educação, previdência, assistência social, moradia, segurança, cultura, esporte, lazer, trabalho e renda; II - Garantir a formação e capacitação permanente de profissionais e gestores para atuação no desenvolvimento de políticas públicas intersetoriais, transversais e intergovernamentais direcionadas às pessoas em situação de rua; IV - Produzir, sistematizar e disseminar dados e indicadores sociais, econômicos e culturais sobre a rede existente de cobertura de serviços públicos à população em situação de rua; VI - Incentivar a pesquisa, produção e divulgação de conhecimentos sobre a população em situação de rua, contemplando a diversidade humana em toda a sua amplitude étnico-racial, sexual, de gênero e geracional, nas diversas áreas do conhecimento; X - Criar meios de articulação entre o Sistema Único de Assistência Social e o Sistema Único de Saúde para qualificar a oferta de serviços;

Tais diretrizes e objetivos já nos dão a perceber que o cuidado à

População em Situação de Rua (PSR) é bastante complexo e que demanda o

acionamento de múltiplas variáveis e pontos de acesso. Tensiona-nos práticas

de saúde que vão além dos princípios e diretrizes do SUS, objetivando responder

às singulares demandas dessa população, atualizando, de passagem, estes

eixos que podem ser inspiradores das práticas de saúde.

“Articulação de políticas públicas”, “integração de políticas públicas”,

“Respeito às singularidades de cada território”, “assegurar o acesso amplo,

simplificado e seguro aos serviços e programas que integram as políticas

públicas de …”, “formação e capacitação permanente (…) para políticas públicas

intersetoriais, transversais e intergovernamentais”, “criar meios de articulação

entre o SUAS e o SUS” – essas são algumas das expressões contidas nesses

dois artigos que nos remetem à necessidade, e talvez inevitabilidade, da

construção de redes para o cuidado dessas pessoas.

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Acrescentamos à vulnerabilidade social, em complexidade para a

situação, a grande heterogeneidade dessa população e o espectro enorme de

condições de saúde e doença que a acomete (109,110). Podemos citar o senso

comum, em que encontramos uma grande população em uso nocivo de álcool e

outras drogas, mas sem esquecer que temos alta prevalência de outras

condições psiquiátricas, de leves a graves. Também encontramos com

frequência doenças infectocontagiosas como as sexualmente transmissíveis e a

tuberculose, enormemente mais prevalentes do que entre a população geral

(que chega a ser 57 vezes mais frequente (111)). Em um levantamento,

encontrou-se que os problemas de saúde mais prevalentes seriam: hipertensão

(10,1%), problema psiquiátrico/mental (6,1%), HIV/AIDS (5,1%) e problemas de

visão/cegueira (4,6%) (106). No frio, a hipotermia, no calor, a desidratação. Vale

ressaltar a condição delicada das mulheres que além de todas essas questões,

também precisam lidar com uma grande violência de gênero (somada à violência

da rua) e com as gravidezes (até 6 vezes mais frequente do que na população

geral (111)) – as quais costumeiramente recebem um “não” de serviços de

obstetrícia pelas condições psiquiátricas e um “não” dos serviços saúde mental

e psiquiatria devido à condição obstétrica.

Em se falando sobre portas fechadas, percebemos que a PNPR também

busca garantir o mínimo de direitos a essa população tão descriminada. No

cotidiano, verificamos frequentes situações de descaso, negligência e até

mesmo de agressividade contra a população em situação de rua, mesmo nos

serviços de saúde que frequentemente os recebem (104). Outro dia, um usuário

relatava um atendimento ocorrido em um Pronto Socorro, após cerca de 18 horas

de espera: “Aí a médica perguntou se eu usava droga. Uso! Se bebia. Bebo!

Então ela apertava aqui [seu tórax, com uma possível contusão de costela]. Ei,

dói! E aí ela apertou de novo! E de novo! ”. E em uma reunião de equipe relatam:

“Ligaram avisando que o Roberto fugiu do PA! ”, disse um trabalhador.

Interpelado por outro: “Mas ele mal consegue andar, bêbado e de andador! ”.

Esclarece o primeiro: “Deixaram ele ali na porta, umas horas. Aí ele foi né…”.

Conta-se que um dos trabalhos dos seguranças de determinado Pronto

Atendimento, alguns anos atrás, era, literalmente, jogar moradores de rua para

fora do serviço.

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Poderíamos preencher páginas e mais páginas de relatos cotidianos

sobre as violências contra essas pessoas, esses são apenas alguns muito

claros. Mesmo quando a assistência se dá, verifica-se que é muito pontual, sem

uma continuidade do cuidado (112). Assim, não é de se espantar que tal política

paute formação de trabalhadores para o atendimento delas, bem como a criação

de centro de defesa dos direitos humanos e serviços específicos para o

atendimento da PSR.

Diante da complexidade dos casos e da resistência dos serviços já

instituídos, a solução de criação de serviços de saúde específicos tem sido vista

como uma possibilidade de construção de saídas para essas problemáticas

(109). Isso também tem sido levantado como uma possibilidade diante das

inexistências de protocolos de atendimento a essa população, que esbarra em

muitas recusas à demanda por assistência (104). A resposta institucional do SUS

ante esse desafio passa, entre outras, pela criação de uma rede “especializada”

de atenção.

Criam-se os consultórios de rua, experiências heterogêneas no país, ora

como uma equipe de saúde da família específica de um centro de saúde que

tem em seu território grande população moradora de rua (Programas de Saúde

da Família sem Domicílio), ora como equipes com essa especificidade de

trabalho ligados a equipes de Saúde Mental. De um modo ou de outro sempre

trabalhando com a Redução de Danos como uma tecnologia de cuidado, e

operando técnicas de produção de conversa, essencial (106,113,114).

A Portaria 122, de 25/01/2011, consolida essas experiências com o

estabelecimento das diretrizes de organização e funcionamento de equipes de

Consultório na Rua (CnaR) na Atenção Básica. Aqui se estabelece uma atuação

itinerante – os trabalhadores vão até os usuários, com ações compartilhadas

com unidades básicas de saúde, centros de atenção psicossocial, urgência e

emergência etc. Prevê-se que as Unidades Básicas de Saúde que adscrevem

os territórios onde estão os usuários atendidos pelas equipes de CnaR disporão

de suas estruturas físicas para apoiar tal trabalho (115).

Na revisão da Política Nacional de Atenção Básica (PNAB), o Consultório

na Rua é colocado como uma equipe de Atenção Básica para população

específica. Reconhece-se que a responsabilidade pela atenção à PSR é de todo

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e qualquer profissional de saúde, mas que se faz necessário ampliar o acesso,

em situações específicas, à essa população, uma questão de equidade. Reforça-

se o caráter móvel e itinerante do trabalho e a necessidade do estabelecimento

de parcerias com os diversos pontos de atenção de rede de saúde e de

assistência social.

Recente texto sobre a Rede de Atenção Psicossocial reconhece:

A mudança de gestão do serviço Consultório de Rua da Saúde Mental para o Departamento de Atenção Básica, momento em que passa a se chamar Consultório na Rua, significa mais do que uma simples passagem de responsabilidade. O vínculo possibilitado entre profissionais e usuários, a partir da abordagem da equipe do consultório, cria condições de oferta de cuidado integral ao usuário, favorecendo, sobretudo, o acesso deste aos demais serviços do SUS, a depender de sua demanda em saúde. A compreensão de que a população em situação de rua possui necessidades de saúde que vão além do cuidado relacionado diretamente ao uso de álcool e outras drogas contribuiu para que se tomasse a decisão sobre a referida alteração (89).

O Manual Sobre o Cuidado à Saúde junto a População em Situação de

Rua, do Ministério da Saúde, prevê a necessidade de articulação com outras

Unidades Básicas de Saúde e de construção de espaços de gestão

(planejamentos, projetos terapêuticos, discussão de casos) Inter equipes e

articulado com os NASF. A reunião de equipe é importante momento de gestão

e de cuidado do trabalho e do trabalhador. Nesse sentido outros espaços

também podem ser criados seja dentro do próprio CnaR ou incluindo outros

serviços da rede, tais como grupo focais, rodas de conversa, grupos de apoio,

terapias comunitárias etc. (106). Em Campinas o CnaR foi criado em 2012

contando, hoje, com concepções, estratégias, tecnologias e práticas que

constituem, ou que deveriam constituir, uma rede de atenção à saúde de

usuários do SUS em condições extremas de marginalidade.

Atualmente o CnaR/Campinas opera com cerca de 20 trabalhadores e

trabalhadoras entre médicos e médicas, psicóloga e psicólogo, terapeuta

ocupacional, enfermeiras, técnicas de enfermagem, redutor e redutoras de dano,

motoristas, assistente social e a gerência (116). Em nossa experiência temos

visto a equipe lidando com usuários de alta complexidade clínica e social,

recorrendo à produção de uma rede para o atendimento integral dessas pessoas

feita no contato entre os trabalhadores de diferentes equipes, inclusive, e talvez

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principalmente, pessoalmente. Com uma sala (base) em um Centro de Atenção

Psicossocial Álcool e Drogas (CAPS AD) e uma Kombi para os deslocamentos

pelo município, vemos a equipe realizar, além de suas buscas ativas em diversos

espaços, o acompanhamento desses pacientes e a interlocução presencial com

diversos outros serviços da cidade. O caráter itinerante da equipe a municiou

com os recursos do encontro presencial, da conversa, da negociação e da

disputa com as diversas outras equipes buscando garantir a integralidade do

cuidado de sua população adscrita (116).

Ao conhecer o trabalho deste serviço e olhar para seu processo de

trabalho, essa itinerância logo chama a atenção. A equipe está em permanente

deslocamento. De sua base para locais onde tem campos fixos de atendimento

à PSR – pontos de referência onde essas pessoas podem encontrá-la sempre

nos mesmos horários da semana – ou para circular pela cidade buscando

gestantes, pessoas com tuberculose, respondendo a demandas de outros

serviços por atendimento de usuários em específico ou grupos de pessoas

ocupando determinado ponto (de casas abandonadas a bueiros, até mesmo a

marquise de um hospital, pelo qual só é visto da porta para fora, como um

mendigo que estende a mão impertinente).

Esse movimento também coloca a equipe com a possibilidade de

acompanhar os pacientes aos exames que precisam fazer ou às consultas com

especialistas, ou visita-los em internações. Encaminhar uma pessoa em alguma

situação de urgência, costumeiramente, significa ir com ela até os serviços de

referência e apresentar o caso, contar a história da pessoa, informar o que acha

que é necessário ser feito e perguntar pela opinião da equipe que está

recebendo.

Mas não estou cometendo nenhum spoiler. Isso se percebe em um

qualquer dia em que se acompanhe a equipe. E é isso que traz tal trabalho para

essa pesquisa. Como se dá, então, uma construção de rede no cotidiano, na

construção de relação entre usuários e trabalhadores e entre trabalhadores de

diferentes equipes? Pegando aqui casos que nos permitem produzir um

conhecimento a respeito das maneiras pelas quais uma rede de produção de

saúde pode ser construída. Discutir Seu Joaquim, e os demais que se seguirão,

e redes de cuidados em saúde é, portanto, uma oportunidade de contribuir para

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a qualificação da atenção a estas populações portadoras de “necessidades

especiais”.

E, não menos importante, uma oportunidade de invadir aquilo que

tomamos como natural, certa rede, certo cuidado, determinado modo de operar

a clínica e de operar os processos de trabalho em saúde.

Mais alguns detalhes dos percursos éticos, estéticos e

metodológicos do pesquisar

Essa pesquisa faz parte de um doutorado que tem como eixo central de

debate a produção de redes. Identificamos nesse campo de investigação a

potencialidade para verificar a construção de uma rede relacional, micropolítica,

em ato, em um curto espaço de tempo, com um acompanhamento feito em

grande intensidade – o intenso é do tempo do investigador implicado, é da

intensidade das vidas vividas. A equipe foi acompanhada por 12 horas semanais

em atividades de campo, além de mais 3 horas semanais da reunião da própria

equipe, por 6 meses. Outros espaços e reuniões também foram frequentados,

como reuniões de debate sobre a relação entre serviços ou discussões de casos

com a participação de mais de um serviço, espaços de matriciamento, reuniões

entre serviços para debater fluxos.

O trabalho de acompanhamento, com produção de diários de campo,

seguiu até os últimos momentos de construção desse texto, buscando

apreender, captar, a amplitude da rede acionada pela equipe do CnaR, dando

atenção aos casos atendidos, e às necessidades por eles evocadas, e à maneira

como, a partir destes, a rede é tecida. Aqui não demos atenção apenas a

contatos produtores de boas relações ou de relações de cuidado, mas também

às portas fechadas, às negativas, aos conflitos etc.

Aqui retomamos algo sobre o qual temos nos debruçado a respeito de um

referencial metodológico, o trabalho da escrita, que começa no registro dos

trabalhos de campo, o diário de campo. Vemos o uso desta ferramenta de

pesquisa como uma aposta de ter na escrita uma forma de dar visibilidade, de

fazer falar, de fazer contar, de trazer algo que é pessoal, mas que pode se

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extrapolar e trazer outras coisas à cena. Tem sido apontado como importante

meio para fazer um acompanhamento de processos na/da vida real enfatizando

não apenas os processos dos quais o pesquisador está tomando parte, mas

também ressaltando as linhas de forças (relações de poder e vetores de

produção de subjetividade) que neles se fazem presentes no campo e no

trabalho do investigador nele, suas implicações (30).

Em um segundo momento de escrita (já não presencialmente no campo

de pesquisa), a possibilidade de releitura das notas do diário traz acréscimos à

reflexão a partir dessa (re) construção à distância em relação ao experimentado.

Ao realizá-la pode-se produzir outras ideias sobre a prática e servir de fonte para

trabalhar a congruência entre teoria e prática – ainda que para nós teoria e

prática não se dissociem. Esse momento de construção “à distância” também

coloca o diário como um instrumento para a pesquisa, tanto quanto serviria para

a coleta de dados (31), ou, poderíamos dizer, instrumento para a expressão da

produção dos dados no campo de pesquisa.

Escrever é a composição de paisagens e enunciados que se atualizam ao

passarem pela mão do autor. É a tradução de histórias, da descoberta, do novo,

revelado em ato (34).

Como método de pesquisa e de escrita temos trabalhado com a ideia de

“interpolação de olhares”, desenvolvido e explicitado neste doutorado, um

trabalho rizomático em que qualquer ponto, qualquer fala, qualquer conversa

pode se conectar com qualquer outra, de diversas maneiras, em uma conexão

singular, no percurso da produção (ou contestação ou reafirmação ou

negação…) de uma ideia. É uma escrita que percorre um caminho em que

conexões fortuitas podem acontecer, até mesmo fora de controle, já que o

pensamento também ocorre no ato de escrever. O texto se dá em camadas (40),

de maneira a produzir uma narrativa que cruza elementos teóricos, diferentes

teorias, múltiplos interlocutores, a produção das diversas ferramentas de

pesquisa, antropofagando qualquer material que inspire e informe a pesquisa.

Pautados por Viveiros de Castro, Nietzsche, Espinosa, entre outros,

trabalhamos, dessa maneira, com um perspectivismo, colocando-se para

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conversar com os diversos problemas criadores de conceitos, tentando tomar

contato com os diversos mundos que apenas tangenciamos no cotidiano do

trabalho e de uma investigação. Não é um relativismo, mas sim um contato com

as diferentes perspectivas que compõem a vida, o mundo, as verdades,

reconhecendo que cada produção é a resposta para um problema diferente,

colocado diferentemente nos mundos. Quais camadas colocaremos para

conversar aqui? Serão os diários de campo do investigador – também um dos

médicos da equipe Consultório na Rua -, os diálogos e reflexões produzidas

dentro do grupo de pesquisa a partir do material de campo, as sínteses e

transcrições das oficinas de construção dos mapas das redes produzidas pela

equipe e das oficinas de retorno à equipe do material produzido.

Sobre as oficinas, as entendemos como um espaço de intervenção e de

produção de conhecimento pelos participantes sobre seu próprio funcionamento

enquanto equipe e processos de trabalho e sobre o tema a ser debatido. Vimos

essa ferramenta metodológica operando como um reforço à grupalidade,

incluindo os vários trabalhadores, abrindo espaços para a fala, para a

visualização de problemas e para a criação de alternativas para lidar com eles

(52). Outra característica das oficinas é seu caráter produtivo, além da circulação

de ideias, esses grupos trabalham na construção de algum produto para uso pelo

próprio grupo.

A proposta feita à equipe CnaR foi a de realizar oficinas com seus

trabalhadores e gerência para discutir o material produzido pelos diários de

campo, sistematizar os processos de análise, construindo uma adaptação de

fluxogramas analisadores – mapas da rede acionada pela equipe a partir do

seguimento de um paciente real. O fluxo seria desenhado a partir do CnaR

mediante o acionamento de rede demandado pelo caso. Propusemo-nos a

discutir o máximo de casos até que começássemos a ter uma saturação da

amplitude da rede, das possibilidades de conexões, cobrindo a maior parte da

rede de relações estabelecida pelo Consultório na Rua. Com as seis oficinas e

o compilado do diário de campo, sabemos que, atualmente, a equipe tem algum

grau de conversa com instituições da saúde, assistência social e jurídico, sendo,

no total, mais de 40. A construção dos mapas dos casos permitiu-nos discutir a

relação com a maior parte desses serviços.

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Explicamos a proposta da pesquisa e propusemos construir um

fluxograma analisador a partir do material compilado pelo diário de campo.

Colocamos que a construção desse mapa como uma ferramenta também serviria

para identificar pontos críticos, facilitadores, fluxos, em uma visão esquemática

dos processos de trabalho do serviço de saúde em relação com os outros

equipamentos da saúde ou de outros setores (54–56), além de ser um

provocador de mudanças nos processos de trabalho da equipe (117).

O que faríamos aqui seria traçar um fluxograma, a partir do material

propiciado pelos diários de campo, mapeando o percurso da equipe entre os

distintos serviços (intersetorialmente, se for o caso) acionados na busca de

constituir redes que apoiem o cuidado integral de seus usuários.

Resumindo, a ideia foi construir um mapa a cada oficina a partir da história

de um paciente acompanhado pelo CnaR, tomando por base as anotações do

diário de campo do pesquisador. Só que ao propormos isso para a equipe,

identificou-se que o método poderia também servir à gestão da clínica, à gestão

de casos complexos, bem como ao reconhecimento e mudança das práticas do

serviço. Assim, a equipe apropriou-se do método, contrapropondo que os casos

fossem escolhidos por ela própria, entre uma oficina e outra, variando entre

alguns tipos de casos comuns de serem atendidos:

Seu Joaquim – homem, 46 anos, dormia principalmente em uma

das praças do centro da cidade, usuário de álcool, histórico de

tuberculose tratada, em investigação de outra infecção por

micobactéria;

Carlos – homem, 38 anos, transita pelo centro da cidade,

ostomizado, com história nebulosa sobre a cirurgia, usuário de

álcool e eventual de outras drogas;

Angel – mulher, 24 anos, resistente a seguimento, itinerante,

usuária de múltiplas drogas, principalmente crack, gestante,

quadro de saúde mental a esclarecer;

Ângela – mulher, 41 anos, dorme na marquise de um banco, no

centro da cidade, resistente a seguimento, não usuária de qualquer

tipo de droga, em investigação de déficit cognitivo, tem uma relação

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com atividade sexual em troca de dinheiro, ainda que não se

coloque como profissional do sexo;

Antônio – homem, “idoso” – idade desconhecida, com dificuldade

de relatar história de vida, sem documentação, sem informações

precisas sobre idade, origem etc. Com colostomia, pneumopatia a

esclarecer e déficit cognitivo (demência?);

Pedro Ogro – homem, adulto, itinerante, histórico de seguimento

com diversas internações psiquiátricas e em hospital geral, uso de

bebida alcoólica, crack e cocaína, crises convulsivas com agitação

severa em pós-ictal, analfabeto, com dificuldade para

desenvolvimento de atividades da vida diária.

Produzimos, assim, importante material para a discussão a que nos

pretendemos. Encerramos esse momento de campo fazendo uma síntese das

oficinas que foi apresentada à equipe em mais um momento de oficina, em que

se pôde discutir o material produzido e avaliar o processo.

Caminhando pela rua e pensando a vida

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Seu Joaquim foi e voltou várias

vezes da rua. Entre internações em

hospitais e em CAPS, a rua era o lugar

certo. Na praça tinha seus camaradas.

“Seu Joaquim, o problema é sério, seu

fígado tá doente”. “Se alguém der corote

pro Seu Joaquim, tá fudido! ” – grita para

a praça toda ouvir, alguém a alguns

metros de mim. “Todo mundo” na rua

sabe que o fígado doente é culpa da

cachaça… e que isso mata. Depois

disso, passamos dias sem encontra-lo,

isso nos preocupou muito, teria piorado?

Quase um mês depois

recebemos um chamado de uma

entidade caritativa religiosa11, haviam recebido um morador de rua que não

estava passando bem. O caso era outro, mas ao chegar lá encontramos com

Seu Joaquim! Estava bem, almoçando, havia engordado. Diante da falta de

alternativas institucionais que garantissem a ele o direito a uma cama e a um

prato de comida, foi buscar seus próprios caminhos. Passava o dia nessa

entidade beneficente, o que lhe garantia as refeições, e um tempo de sossego

fora da rua. De noite voltava para aquela mesma praça onde dormia há anos.

Em que pese a importante divergência conceitual entre o trabalho da entidade e

o trabalho da saúde – uma na lógica do caritativismo religioso e da indução da

abstinência e a outra em uma lógica de redução de danos, tomando a assistência

como um direito da pessoa – a entrada da entidade na relação foi crucial para a

vida dele.

A população em situação de rua é especialista em redes. Sendo invisíveis

e sem direitos garantidos, sofrendo preconceitos da maior parte das pessoas,

criam seus caminhos para conseguir o que precisam para viver, seja um prato

de comida, seja um lugar para dormir, seja uma dose de cachaça ou uma pedra

11 Que trabalha com moradores de rua oferecendo refeições, roupas etc., as doações são feitas na rua, mas também recebem algumas pessoas em sua sede.

Figura 3 Campo no Largo da Catedral - Acervo da Equipe

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de crack. Ainda que tenham seus pontos preferenciais para dormir ou para

qualquer outra atividade, trata-se de um grupo profundamente nômade. No

limite, a cidade é seu território de vida. Uma equipe que vai atender a essa

população precisa se aproximar dela, assim, também precisa ser nômade, diz

um trabalhador: “a gente sofre um pouco dessa necessidade de acompanhar o

usuário nesse movimento, mas de poder acompanha-lo nessa experiência da

vida dele, da circulação dele”, enfatizando: “ou o consultório opera em rede ou

ele não existe”.

O território tomado como produção de agenciamentos, majoritariamente desconhecido pelas equipes de saúde, instaura uma rede rizomática não linear, que não se apresenta capturada em um território único, em um espaço geográfico definido. Como um nômade, o usuário produz e protagoniza, de forma singular, os acontecimentos, no seu processo de cuidado. Nômade na produção de sua vida e, por isso mesmo, capaz de circular em territórios muitas vezes imperceptíveis para as equipes de saúde, construindo múltiplas conexões na vida. Esta forma de circulação dos usuários, tecendo suas próprias redes de sociabilidades e cuidado, comporta movimentos de desterritorialização, que afetam e convidam as equipes a esta mesma experimentação desterritorializante (88).

Convite necessariamente aceito, nesse mimetismo que a equipe faz de

seus usuários, já aproveitamos para destacar um limite do estudo. Não

abordamos a perspectiva do usuário sobre a construção de redes. E é algo que

realmente vale uma pesquisa específica para esse fim. Os trabalhadores

anunciam constantemente: “A Bianca fez a rede dela. Ela criou a rede que ela

queria”, diz uma. “Acho que é movimento que o Pedro Ogro está fazendo”,

responde outra. “Talvez seja o que o Carlos está fazendo também”, completa a

terceira.

Também já se começa a anunciar de que rede estamos falando, sendo

uma atividade tão intrínseca à sobrevivência dessa população. Para Seu

Joaquim e, em geral, para todos aqueles que tivemos a oportunidade de

ouvir/cuidar no território das ruas, fazer rede não é algo controlável ou contível,

ela se dá a despeito de tentativas de ordenamento. A vida vai revirando projetos

e princípios ético-políticos de distintos projetos de cuidado a partir da invenção

dos sujeitos-pacientes. Os usuários criam seus movimentos na medida que lhes

faz sentido, na direção em que encontram alguma porta aberta. Na radicalidade,

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acabamos por reforçar o achado em investigação de Cecílio e grupo, em que

afirmam:

São os usuários, portanto, a partir das suas distintas experiências de encontro ou desencontro com os serviços de saúde, que vão construindo novos agenciamentos para conseguir o acesso à rede de serviços, fazendo usos variados da Atenção Básica em Saúde em função de suas singulares necessidades e as ofertas reais feitas por ela. Cabe-nos escutar esse saber assessor que vai sendo produzido de forma irreprimível pelos usuários, e utilizá-lo para o permanente e necessário aperfeiçoamento das redes de cuidado de saúde(118).

Aqui encontramos uma primeira pista importante. Construir redes é uma

atividade que precisaria ser necessariamente singular, pautada pela

necessidade de cada pessoa a cada momento. De uma maneira ou de outra elas

buscarão compor o que lhes é ofertado mediante o que lhes parece mais

significativo. Da mesma maneira que vivem em movimento, também estão o

tempo todo produzindo redes e novas possibilidades de “redes vivas de si

próprio”, descobrindo maneiras de sobreviver e, em alguma medida, cuidando

de si e daqueles com quem compartilham o dia a dia (88). Só que quando se

trata da PSR, muitas portas estão fechadas, notaremos que o CnaR acaba tendo

a importante função de abrir essas portas e garantir que permaneçam abertas

até que o usuário seja atendido.

Retomemos o caso do Seu Joaquim, ao escapar do hospital em que

estava internado, nota que sua situação de saúde é delicada. No hospital

haviam-lhe dito que precisaria iniciar seguimento no “postinho” e assim o faz.

Começa a frequentar o Centro de Saúde (CS) mais próximo de onde dorme,

passa por acolhimento, consultas e retorno com a médica. Ignora (ele e a equipe

que o atende) completamente o fato de que, teoricamente, sua equipe de

Atenção Básica de referência seria o CnaR. Acompanha em ambas. A conversa

entre os dois serviços: nula. Ainda que tenham vínculos burocráticos, já que é

essa mesma unidade a responsável por receber e dar destino para maior parte

do material de coleta de exame feito na rua, receber e agendar especialidades e

exames específicos e receber os insumos utilizados pelo CnaR. Inclusive, à

criação deste serviço, a base era neste mesmo Centro de Saúde.

Sobre essa relação uma trabalhadora comenta: “Começou a acontecer

uma coisa muito interessante. Tinha horário do dextro e horário da pressão [no

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fluxo do CS] e os nossos usuários não tinham. Aí os usuários do CS começaram

a burlar, dizendo que eram moradores de rua e aí os nossos técnicos de

enfermagem atendiam. (…) A gente começou a colocar as pessoas em situação

de rua dentro do CS, enfeiando o serviço, passando na frente, fedendo, aí eles

foram tirando a gente de dentro do CS.”

O fato era que aquele CS compunha uma rede construída pelo usuário,

não por sua equipe de referência e lhe funcionava bem, ainda que provocasse

uma duplicata de uso de recursos do sistema. Reconhecemos que certas

organizações, tomadas como mais burocráticas, podem ser úteis para evitar

essa duplicação de acesso a serviços e o gasto desnecessário de recursos

públicos. Entretanto, mais importante do que a “mera” economia de recursos

seria a efetiva comunicação entre as equipes, para que possa ser avaliado o que

pode ser feito, ainda que até mesmo seja necessário duplicar o uso de certos

recursos no caso de um paciente em específico. O puro bloqueio, por via sistema

de informática, por exemplo, responde apenas à necessidade da gestão e não

dialoga com a do usuário e do trabalhador (e é necessário dialogar com todas).

Neste caso vemos que tanto investimento em sua vida, incrementou sua

capacidade de perseverar na existência (37). Produzir saúde com ele estava

para além de trabalhar sobre a abstinência do álcool, estava em produzir

desejos, em produzir uma relação de cuidado com ele e que ele pudesse tê-lo

com sua própria vida. A abstinência foi uma consequência. E talvez tenha sido

importante, para esse processo, sentir-se acompanhado cotidianamente por

duas equipes, investimentos que talvez tenham se potencializado.

Nossos encontros eram alegres. Frequentes no momento em que estava

passando por um período de leito-noite no CAPS AD III, onde também fica a

sala-base do CnaR. Nessa época, pouco se conseguiu avançar nas

investigações clínicas ou na busca por alternativas junto à assistência social para

apoiar Seu Joaquim em seu desejo de sair das ruas. Estava estabelecida ali,

com aquele CAPS, tal relação de confiança que seus cuidados foram um pouco

deixados para segundo plano, “soltou-se a bola”. Tal confiança permite uns dias

de “respiro” para a equipe. Não dá para ficar no investimento intensivo sobre

todos os casos o tempo todo. A equipe avalia como importante essa parada para

respirar, o não ter que se preocupar permanentemente com todos os casos que

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estão sob sua responsabilidade e que estão sob a iminência de uma deterioração

do estado de saúde.

Por fim Seu Joaquim voltou para a rua uma última vez. Após algum tempo

dormindo naquela mesma praça foi levado por seus colegas para o Pronto

Atendimento da região com intensa falta de ar. Logo a equipe foi avisada da

situação grave em que ele se encontrava. A relação com este serviço aponta-

nos outra pista sobre a construção de redes no cotidiano dos serviços. Nos três

anos de existência do CnaR foram várias as cenas presenciadas que apontavam

uma incapacidade desse equipamento de urgência em atender morador de rua.

As fichas não eram abertas caso não possuíssem documentação,

costumeiramente os usuários recebiam uma atenção muito sumária e eram logo

dispensados. O uso do crack e do álcool colocavam-se como barreiras

importantes, pelos pré-conceitos. Não que a situação tenha melhorado

totalmente, ainda é frequente cena como a do Roberto, relatada algumas

páginas atrás, mas “no início [a relação] foi pessoa dependente, mas o nosso

fluxo forçou uma discussão municipal, quando a gente foi pra lá com o distrito foi

um novo olhar de gestão mediante a crise que a gente despencou lá dentro”.

Hoje existe um trabalhador de referência para o atendimento dessa população e

para a relação com o CnaR, tendo melhorado muito a comunicação, a

negociação sobre a manutenção de pacientes em observação, a transferência

para um leito de internação ou a alta. A presença de um trabalhador de referência

para fazer essa articulação de rede tem se mostrado muito importante, ainda que

sua ausência (como em férias) também signifique um rompimento quase total da

relação (104)

Outra pesquisadora, que ajuda a conduzir uma das oficinas, sintetiza:

“serviços que são difíceis de acessar, mas que tem alguma pessoa sensível,

alguma pessoa que é parceira, alguma pessoa que é referência. Parece que é

uma característica geral do caminho na rede”. Ao que os trabalhadores

complementam “também é função do consultório ser um agente instigador”, “a

partir desses encontros a gente vai criando esses protocolos de

encaminhamento”. “A gente estimula o que está engessado (…) consegue

acessar algumas pessoas que estão dentro de um equipamento engessado que

tem esse desejo também e tá ali, mas tá guardado”. O CnaR coloca a existência

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de outras possibilidades de funcionamento, de um processo de trabalho e de

uma relação de uma equipe com seus usuários. Produz uma relação de contágio.

Coloca-se na estrutura outrem (50), na estrutura do perceptível de outras

possibilidades, afetando o campo de possíveis percebidos pela equipe com a

qual se relaciona. Tensiona a rede de cuidados em seu próprio cotidiano de

trabalho (114).

As relações pessoais de trabalhadores de diferentes serviços ao mesmo

tempo em que estreita a rede e acaba por tornar-se elemento fundamental para

a coesão da mesma também se apresenta como um fator dificultador caso as

relações dessas equipes resumam-se a isso. Nas férias dessas pessoas, ou no

caso de demissão ou adoecimento, a relação acaba. Talvez seja preciso que os

serviços caminhem das necessárias relações de camaradagem interindividuais,

para a construção de trabalhadores de referência para a produção dessas redes.

E de aí, quem sabe, para fluxos mais institucionalizados, temporários, mas que

dão conta de colocar em questão os processos de trabalho visando o melhor

atendimento possível da população, reforçando as “correntes intelectuais e de

camaradagem”(63). Já vamos indicando, então, que uma pista para a construção

cotidiana de redes é a relação entre os trabalhadores das equipes para

discussão de casos concretos. Mas também, indicamos que é necessário

trabalhar na capacidade de afetar e ser afetado das equipes, isso potencializa a

existência das relações. Não se pode depender de poucos corpos na

constituição dessas relações, afinal de quantos mais corpos (trabalhadores,

equipes) um corpo (relação, rede, sistema) é composto, maior é sua capacidade

de perseverar na existência (37).

Seu Joaquim foi transferido para a UTI de um hospital municipal, hospital

secundário a terciário, de grande porte.

Um ou outro contato, amigos de trabalhadores, costuma facilitar a

circulação da equipe neste hospital, mas não dessa vez. Outra cadeia de

contatos que tende a dinamizar a discussão sobre pacientes do CnaR internados

é a comunicação entre as Assistentes Sociais. Tais profissionais têm facilitado a

entrada para discussão de caso tanto em hospitais próprios quanto nos

conveniados, com substantiva maior facilidade nestes do que naqueles. Nesses

meses foram frequentes as vezes que fomos debater a história, prognóstico,

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proposta terapêutica e alta de nossos pacientes nessas enfermarias de hospitais

secundários da cidade.

Cabe aqui uma pequena anedota, porque essa rede de comunicação

entre as Assistentes Sociais não é sem ruído, é paradoxal! Nas distintas

concepções de saúde e de cuidado que atravessam as composições de equipes

e trabalhos. Seu Geraldo foi internado em hospital secundário conveniado. Em

certo dia, a assistente social nos chamou, a conversa de bastidores nos

informava que ela precisava de nossa ajuda na conversa com a médica da

enfermaria para que ele não recebesse alta. Bem, ele estava quase dopado, mal

conseguia falar, de fralda e “contido ao leito” (amarrado). “Doutora, esse homem

receberá alta nesse estado, para a rua? Nós não nos responsabilizamos. E a

senhora? Não temos para onde enviá-lo, portanto, ele precisa sair daqui

andando e com capacidade de autocuidado, só assim apoiamos a alta! ” Ele

seguiu internado. Na semana seguinte já estava muito melhor e a Assistente

Social também queria sua alta. Duas possibilidades, alta para a rua, o que ela

não queria, ou para um abrigo municipal, em região especialmente vulnerável,

com tráfico de drogas em frente. Muitos moradores de rua se recusam

terminantemente a ir para lá. E a Assistente Social tenta convencê-lo: “Seu

Geraldo! O senhor já tem condições de alta! Já temos lugar para o senhor ir, o

senhor quem não quer! ”, ele responde: “Para lá não vou mesmo, me deixa na

rua”. Ela segue tentando: “Mas o senhor tem que entender que está segurando

vaga de quem tá precisando mais do que o senhor! ”. Ele acha graça (nós

também!), e intervém, apontando para o outro leito do quarto, vazio: “Eu não!

Morreram dois aí essa semana! ”.

Voltando à UTI, dessa vez não tivemos nenhum desses facilitadores. Mas

a mobilidade da equipe e a flexibilidade de seu processo de trabalho permitiu

que médico e assistente social fossem à UTI no horário das visitas familiares,

surpreendendo a médica de plantão, que de outra forma não os receberia.

Também foi surpreendida com a quantidade de detalhes que os dois

trabalhadores sabiam sobre o caso, ajudando-a a pensar a conduta que poderia

tomar. Foi patente o desconhecimento sobre o serviço e suas funções já que

perguntou por qual entidade beneficente fazíamos aquele “trabalho voluntário”.

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Tal discussão de caso reforça o caráter “atenção básica” do CnaR,

entendido como aquele serviço de referência que conhece sua população e seu

território (nesse caso se misturando com o próprio território – “a gente é o

território”, assevera um trabalhador). Cumpre com o colocado por vários teóricos

da Atenção Básica, um serviço que gerencia o cuidado e que defende seu

usuário. Há que se dizer, que segundo boatos, a equipe da UTI já estava

“desistindo” do paciente e pensando em “desligar os aparelhos” que o

mantinham com vida, as visitas e telefonemas do CnaR parece tê-los dissuadido

dessa ideia.

Seu Joaquim sobreviveu, melhorou, recebeu alta da UTI e a equipe do

hospital, com apoio da Polícia Militar, conseguiu descobrir o contato dos

familiares. Contato feito à revelia do usuário, mas que se mostrou crucial para o

desenrolar do caso. Ao receber alta ele foi embora com os irmãos para uma

cidade no norte do estado, saiu das ruas.

Aproveitando esse tema. A relação com a Segurança Pública é

interessante para se pensar sobre a construção de rede. Se por um lado a PM

foi importante nesse caso, bem como também foi acionada para se tentar

descobrir a identidade e a idade de Seu Antônio. Na maior parte do tempo a

relação se dá em uma exclusão voluntária – onde um está atuando o outro não

está. E “constantemente tem que refazer esse combinado”. A violência da

abordagem da Guarda Municipal (GM) também é sempre lembrada por

moradores de rua e por equipe. Ações são violentas, mas já se reconhece uma

melhora a partir de interferências na formação dos novos guardas junto aos

serviços de saúde. Assim, eles visitam os CAPS AD e passam uma tarde em

conversa com trabalhadores do CnaR. Não tem sido suficiente, mas tem

melhorado vagarosamente.

O contato com a família, feito contra a vontade do Seu Joaquim, produziu

importante inflexão, aparentemente positiva, em sua vida. Poderia não ter sido

assim. Aqui vamos que uma rede cuidadora, de produção de encontros

aumentativos de potência, e uma rede de captura se aproximam até se

confundirem. Até onde é cuidado e até onde é uma captura para levar o usuário

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a cumprir com algo que os trabalhadores acham que lhe é melhor e não a opinião

dele próprio?

A história da Angel, 24 anos, também nos coloca a refletir exatamente

sobre esse ponto. A equipe a acessa já no segundo trimestre de sua nona

gestação! Toma conhecimento dela ao ir visitar outra gestante em uma

maternidade, onde ela também está internada após ser agredida na rua. Faz-se

o contato, inicia-se o trabalho de se colocar à disposição e construir vínculos e

laços de confiança. Ela evade da internação. Nas semanas que se seguem,

equipe e ela jogam um jogo de gato e rato. Angel pede auxílio, ao chegarmos

com a Kombi ela já não está no lugar combinado. Movimento que se repete

diversas vezes.

Dois serviços da Assistência Social, que tem como foco o trabalho com a

PSR, também a buscam. Ficam atentos aos seus movimentos. Constitui-se, para

este caso, uma relação de parceria e troca de informação, quando um serviço

sabe notícias o outro é informado e demandado. Nem sempre essa parceria é

tão boa. Fica flagrante as divergências de concepções sobre o trabalho e sobre

Figura 4 Campo na Linha do Trem - Acervo da Equipe

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o que precisa ser feito com os moradores de rua. São questões que passam pelo

não entendimento da função de cada equipamento da saúde – o que foi

melhorando muito ao longo do semestre através de ações de campo e

atendimentos conjuntos – o CnaR costumava ser acionado como se fosse um

serviço de urgência e, sem uma avaliação de risco, demandava-se, muitas

vezes, atuação imediata para casos sem gravidade. As negativas, com poucas

explicações práticas, estressava as relações frequentemente. Uma trabalhadora

chega a afirmar “assistência social não respeita direitos” – ainda que essa fala

possa ser motivada por conflitos em casos específicos e não possa ser tão

generalizada assim, de fato os frequentes desentendimentos sobre o que seria

necessário fazer ou não para cada usuário alimenta tais disputas.

Processos de trabalho, mecanismos de defesa, limitações e fragilidades

de cada equipe são vistos com indignação pela outra – isso passa, por exemplo,

pela recusa por um serviço da assistência de levar pacientes a serviços da

saúde, ou pelo outro serviço bloqueando acesso de moradores de rua em

condições de higiene muito precárias que dificultam o uso do chuveiro pelos

usuários seguintes, ou pelas recusas da saúde de demandas dadas como

imediatas e a dificuldade de fazer um seguimento de alguns usuários.

Mas com a Angel, a relação entre os três serviços foi mais “azeitada” (e

isso também contribui para que a relação melhore ao longo do tempo) – o que

se faz essencial, visto que essa relação entre os dois setores é tida, em algumas

experiências, como fundamental para o cuidado da PSR (111). Só que a Angel

não queria assistência. Ou não queria a assistência que era ofertada para ela.

Usuária intensa de crack, colocava-se frequentemente em situação de risco.

A equipe móvel da assistência social a encontra, certo dia, em péssimas

condições. Aciona o resgate do Corpo de Bombeiros (era o que chegaria mais

rápido ao local) para leva-la a um serviço de saúde. Passa a noite em uma

maternidade da cidade. Não existe construção de rede com esse serviço, na

verdade, poucas vezes se viu tal serviço acolhendo moradoras de rua ou

usuárias de droga. Angel recebe alta no dia seguinte sem nenhuma articulação

com os serviços de referência. É encontrada pelo CnaR na calçada, do lado de

fora.

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A gestação avança e a percepção de urgência do caso começa a mobilizar

cada vez mais agentes da rede. Ela segue recusando e demandando

assistência. Ao ter contato com ela de novo, em condições clínicas ruins, a

Central de Regulação é acionada. De lá, um regulador parceiro, identificado

como sensível ao trabalho com morador de rua, briga por atendimento hospitalar,

por vaga de internação para ela. Acaba por conseguir leito em enfermaria de

psiquiatria de hospital secundário. O CnaR e a Assistência Social acompanham

cotidianamente a internação, sob diversas reclamações de que aquela

enfermaria e aquele hospital não são adequados para aquele tipo de paciente,

visto que não tinha serviço de obstetrícia, apesar do uso de crack altamente

prejudicial à saúde e da suspeita de outras afecções psiquiátricas associadas

(ou não) ao uso. A avaliação obstétrica, sempre sem sinais de complicações ou

trabalho de parto, é feita pelos médicos e enfermeiras do CnaR e, aos finais de

semana, por um hospital terciário próximo…

Em uma dessas transferências para avaliação, ela evade novamente.

Quando é reencontrada, é levada para um CAPS AD III. O problema está

colocado no sistema – o bode está na sala e o CnaR toca sinos ao redor dele!

Ninguém quer recebe-la! Os serviços de psiquiatria dizem que não estão aptos

a receber gestantes, os de obstetrícia advogam que não é um problema

obstétrico. Esferas de gestão são acionadas, a Central de Regulação, o SAMU.

As múltiplas evasões são mais um motivo para resistência em recebe-la.

A mobilidade do CnaR e a prática de ir com o paciente até o serviço para

o qual o está encaminhando, acompanhar a internação etc., faz com que se dê

visibilidade a problemas até então ignorados. Gestantes pariam na rua, sem pré-

natal, ou, na melhor das hipóteses, eram levadas pelo SAMU, no último minuto

antes do parto. O cuidado com elas não era um problema das maternidades, tão

pouco o manejo das questões relacionadas ao uso de drogas – fissura ou

abstinência. A intervenção do CnaR junto à PSR também produz uma

intervenção sobre a própria equipe, que precisa constantemente rever seus

processos de trabalho para dar conta desse tipo de caso. E essa dupla, CnaR-

usuário, fazem uma ponte com o resto da rede de saúde, sofrem intervenção e

intervém na maneira como a rede opera, talvez tornando mais públicas as

políticas (119).

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Uma das maternidades da cidade estava sendo, até então, porta

preferencialmente acionada pelo CnaR por não se recusar tão prontamente a

atender as gestantes nessa situação. A sobre demanda que isso provocou no

serviço estressou a relação. Afinal de contas, a cidade tem uma territorialização

das maternidades e apenas uma estava efetivamente assumindo esses casos.

Bloqueios nos fluxos pré-estabelecidos provocam um esgarçamento nas

relações que podem ser construídas no cotidiano, mas as gestantes precisavam

de atendimento, não importava onde. A construção da rede precisa obedecer a

necessidade do usuário, mas talvez acabe obedecendo mais à necessidade dos

serviços (algumas vezes coincidente com a do usuário). Por outro lado, a não

pactuação de fluxos mínimos ou o desrespeito a eles, também provoca

desassistência. Estabelecer linhas de referência e contra-referência pode não

ser suficiente, mas é indispensável, bem como cumpri-las.

A maternidade em questão chama uma reunião para debater essa rotina

de atendimento de gestantes moradoras de rua. Esses problemas são expostos,

é explicado o funcionamento do CnaR e a complexidade do atendimento e do

pré-natal, realizado na rua, mesmo em casos de pacientes de alto risco, já que

muitas vezes não era possível leva-las periodicamente para consultas nos

serviços de referência. As limitações da maternidade também são expostas. E é

colocado muito claramente, eles não sabem o que fazer com uma gestante que

começa a ficar agitada por abstinência ou por fissura, não sabem como contê-la

e reconhecem que esse é um saber mais específico do CnaR – este pode ser

um serviço de Atenção Básica, mas possui um saber singular importante (assim

como outras unidades básicas de saúde). Fica uma oferta de apoio, ainda pouco

utilizada, talvez a estrutura de gestão deste hospital pouco permita que os

trabalhadores de plantão tomem essas iniciativas.

No dia a dia notamos que o grande instrumento para contornar essas

crises é o vínculo. A relação de confiança com o usuário, um encontro e uma

clínica (de redução de danos, podemos dizer) que investem na potência do

usuário, na sua capacidade de perseverar na existência (37), na produção de

outros desejos além da droga, são um importante diferencial. De uma maneira

ou de outra, esta clínica busca apoiar o usuário a reconstruir redes relacionais

que ampliem sua capacidade de ser afetado e de afetar o mundo. Saúde, então,

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passa a ser um estado em movimento, que é construído constantemente nesse

reforço da capacidade de fazer variar o corpo para modificar e lidar com as

modificações postas pela vida. Se a rede não está dada, é constantemente

produzida, a saúde também – produção de redes de produção de saúde.

Essa relação feita com os usuários também é transmitida, algumas vezes,

para a relação com os outros serviços. “Chamem que nós viremos apoiá-los no

controle da crise”, dizem os trabalhadores presentes na tal reunião. Convidamos

a instituição hospitalar a abrir-se para um matriciamento cruzado (107). A rede

se constrói nessa troca de “favores”, de conhecimento e reconhecimento do

trabalho do outro, nessas relações de confiança, nessa aposta na potência.

Nesse sentido, produzir redes, também é produzir saúde da rede, dos serviços

e dos trabalhadores, também é uma clínica da aposta na potência do outro.

Seguimos com Angel e com a relação tensa e frágil entre os serviços.

Depois do CAPS AD III, ela acaba sendo transferida para a urgência da

psiquiatria de um hospital terciário. Fica nos melindres entre equipes de

obstetrícia e de psiquiatria, em idas e vindas, em tensões, em pedidos

protocolares de interconsultas, em negativas e confissões de incapacidades e

impossibilidades. A equipe de Atenção Básica, acompanha todos os movimentos

da internação e acaba por servir de intermediador de duas equipes distintas de

serviços hospitalares vizinhos.

A internação aparece como uma proteção. Sua relação tão intensa, cada

vez mais, com o crack a estava expondo a situações de muita violência. “Por

fim”, o parto acontece em segurança. A alta é programada e pactuada e ela vai

para um leito em um hospital psiquiátrico. A ideia é tentar “organiza-la”12 um

pouco, construir a relação com essa função de mãe (ainda em risco devido ao

acionamento da Vara da Infância por parte da maternidade) e buscar construir

uma outra relação com o crack, um pouco menos danosa. Após um mês de

internação, ela pede alta e volta para as ruas, ficando, em um primeiro momento,

em um abrigo da assistência social. Vale dizer que após o parto, não fica com a

12 Termo frequentemente utilizado nos serviços de saúde para referir-se a pessoas que não estão conseguindo lidar com as atividades da vida diária e de sobrevivência, seja devido ao agravamento de alguma questão psiquiátrica seja devido ao uso intenso de álcool e/ou outras drogas.

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criança, passa a usar menos crack (metade ou menos das pedras) e a colocar-

se em menos risco de violência e de vida do que durante a gestação.

A rede aqui, produziu diversos movimentos bastante paradoxais. Se por

um lado produziu cuidado e potência, por outro capturou a usuária dentro da

lógica de serviços de saúde e dentro de seus conflitos. Parece indiscutível que

se fazia necessário intervir para preservar a vida. Parece que, em um caso como

esse, é legítimo capturar o usuário nas teias de uma lógica de cuidado que pouco

respeita, em geral, seus desejos e sua lógica de produção de singularidade. Se,

para além do apagamento do incêndio, outros cuidados e outros caminhos não

estão sendo ofertados, não estaríamos produzindo apenas capturas? Ofertando

apenas formatações – as portas não estarão fechadas caso o usuário não se

enquadre? (E a PSR frequentemente não se enquadra) E quando se coloca em

questão pontos tão delicados como uma gestação e o desejo de se ficar com a

criança – poderíamos assumir, a despeito de valores morais muitíssimo

arraigados, que uma gestação “desorganiza” uma mulher e que a oferta

pertinente pode não ser trabalhar para que ela assuma a criança, mas, talvez,

justamente o contrário?

Os usuários produzem modos de existências que são, muitas vezes, julgados e cerceados pelas equipes de saúde, e estas ficam aprisionadas a um modo de saber tão preponderante, que não possibilita perceber que certas atitudes, comportamentos, expressões são modos de existência, ainda que se apresentem cheios de tensões e problemas (88).

Pois eis que aqui entramos em um tema caro e polêmico dentro da

filosofia. O que é e até onde vão desejo e liberdade? Não pretendo aqui detalhar-

me nessa questão, mas cabe anunciar que, a partir de Espinosa, entenderemos

que um ser é tão mais potente, mais capaz de criar alternativas para sua própria

vida e para preservá-la, quanto mais afetos é capaz de ter, ou seja modificar e

ser modificado por outros corpos sem mudar sua própria natureza. Explicitando

que afeto aqui, não é sentimento, é relação, a maneira espinosana (37,112).

Assim, um corpo que só se relaciona com o crack é pouco capaz de produzir

outras alternativas para sua própria vida. Nossa clínica, sobre esse território

empobrecido (120), pode pautar-se em apoiá-lo a construir outros desejos que

alavanquem sua capacidade de perseverar na existência, o que aqui estamos

identificando como a clínica da redução de danos, é entrar na vida dessas

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pessoas sem tirá-las de onde estão, mas oferecendo outras opções, com ou sem

o uso de drogas, simplesmente se relacionando com elas (121).

Analogamente, uma equipe que só se relaciona consigo mesma e com

determinadas ideias pré-concebidas sobre o usuário pouco será capaz de variar

seus modos de fazer para lidar com as singularidades de cada caso. Da mesma

forma, se esta fica presa apenas em suas próprias concepções morais, pouco

enxergará dos problemas que movem o usuário e as outras equipes, cuja

proximidade é essencial para se fazer uma clínica que investe na potência.

A clínica das ruas, da busca pela produção de desejo, também é a clínica

da produção de rede. Em sua itinerância, o Consultório na Rua acaba levando

novos problemas para as portas dos serviços, problemas e questões que não

podem mais ser ignorados. Outra clínica com esses usuários precisará ser

produzida, bem como outra clínica entre os serviços. Um cuidado com os

usuários, com os trabalhadores e com a rede. Como já dissemos, a produção de

saúde dos usuários, dos trabalhadores e da rede está profundamente imbricada.

E na fragilidade dessas redes, o CnaR acaba se tornando um dispositivo para a

problematização dos modos de cuidado que estão operando nessas redes (114).

Sobre isso mais uma nota, que trazemos de Espinosa:

Os homens enganam-se ao se julgarem livres, julgamento a que chegam apenas porque estão conscientes de suas ações, mas ignoram as causas pelas quais são determinados. É, pois, por ignorarem a causa de suas ações que os homens têm essa ideia de liberdade. Com efeito, ao dizerem que as ações humanas dependem da vontade estão apenas pronunciando palavras sobre as quais não tem a mínima ideia (37).

Como dizer que é a vontade de um usuário, que só se relaciona com o

crack, ser cuidado ou não? Até onde respeitamos essa vontade do usuário? Uma

questão ético-política! Mas… em igual teor, até onde respeitamos a vontade, ou

a liberdade, de um serviço em atender ou não, ou atender de certa forma estes

usuários, se ele se relaciona apenas consigo mesmo e está surdo para o grande

entremeado de forças que leva aquele usuário a estar ali daquela forma e àquele

outro serviço a encaminhar este usuário de determinada maneira? Se os

serviços não ofertam outra coisa, a rede que estão construindo não é uma rede

apenas de captura, deixando o cuidado em plano completamente secundário?

Uma questão ético-política!

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Uma trabalhadora faz uma reflexão interessante a esse respeito: “Ela

[coordenadora] esperava, espera, e respeita o limite de cada um. E a gente faz

isso com o usuário. A gente aprendeu a fazer isso com o usuário. Quando você

chega num trabalho formal você quer que todo mundo faça tudo igual e não é

assim… se respeitando aqui, a gente consegue levar isso para o nosso usuário.

(…) A gente exercita uma coisa que a gente busca fazer”. Então, estamos

anunciando que um sistema de saúde que cuida de seus usuários,

necessariamente, também cuida de seus trabalhadores. Um processo de

trabalho burocratizado provavelmente também criará uma assistência

burocratizada.

Uma cogestão apenas anunciada e pouco praticada, ainda produzirá uma

assistência autoritária. Se as ferramentas de controle são mais importantes do

que as ferramentas de produção de vida, tendencialmente buscaremos controlar

os usuários – se coagimos os trabalhadores a determinados processos de

trabalho, não conseguiremos sair da produção do medo, ou seja, da impotência,

para lidar com a adesão ao tratamento e com a gestão dos infinitos riscos que a

vida traz à vida… A rua demanda radicalidade nessa cogestão, é preciso ser

contaminado pela rua, é preciso manejar a lógica da rua para o cuidado, legitimá-

la, entende-la, habitá-la. Busca-se oferecer acesso a direitos e não impor

determinadas maneiras de se viver (122).

Se por um lado a extensa rede construída pela Angel suscitou intensas

conversas, por outro, a não-rede do Carlos fez o mesmo. A história dele é trazida

pela equipe sob o argumento de que seria um caso para o qual era necessário

construir outras alternativas. Ele é encontrado sempre bastante etilizado,

vagando pelas ruas do centro da cidade. Ao mesmo tempo em que desperta a

empatia de alguns transeuntes por sua louca simpatia etílica, também aflora o

asco e repulsa por estar constantemente sujo e malcheiroso pelo vazamento de

sua bolsa de ileostomia – sempre mal ajustada seja por estar etilizado, seja pela

irregularidade abdominal fruto de múltiplas cicatrizes de acidentes e abordagens

cirúrgicas.

O cuidado dele é permeado por muitos conflitos. Além de todos os

preconceitos que carrega como morador de rua, ainda desperta a repulsa das

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pessoas, inclusive trabalhadores, por seu estado de higiene. A equipe de certo

serviço da Assistência Social recusava-se em recebe-lo para o banho e para

cuidados de higiene. Argumentavam que o banheiro ficava inusável sem

seguida. O Pronto Atendimento, do qual já se esperava, nesse momento, um

tratamento mais empático com esse tipo de paciente, também chegou a

apresentar posturas mais agressivas e de rechaço.

Foram necessários muitos debates institucionais para se avançar em

alternativas de cuidado para essa pessoa. A construção do mapa da rede feita

pela equipe para o atendimento dele evidenciou que poucos equipamentos

haviam sido acionados.

Há que se afirmar uma gestão do cuidado e do trabalho em saúde que

busque superar práticas autoritárias e disciplinares, se contrapondo a

dispositivos que, em nome da dialética, minimizam diferenças, homogeneizando-

as, e que tendo a norma como pressuposto busca alcançar uma composição

afirmadora de uma identidade pouco afeita ao cuidado de si e do outro. Trata-

se, portanto, de resistir a relações de poder que nos submetem e nos produzem

como sujeitos sujeitados. E, indo além, delinear estratégias, tecnologias e

dispositivos que, na afirmação da diferença, produzam o comum no processo de

criação daquilo que somos enquanto coletivos. É a celebração da diferença na

produção de uma subjetividade que resista e rejeite discursos disciplinadores e

controlistas.

Em um momento de brecha, em que aceitou assistência, ele foi internado

em enfermaria de hospital psiquiátrico, para desintoxicação. Em um mês em que

estava recuperando o vigor físico, foi possível detalhar sua história e ir com ele

até uma unidade de saúde em cidade vizinha na qual estava seu histórico médico

cirúrgico, onde tem vínculo com uma enfermeira que lhe dispensa as bolsas de

ostomia mensalmente. Foi possível transferir essa relação de vínculo e de

cuidado daquela equipe para a do CnaR, que o acompanha mais

cotidianamente. Com esses dados também foi possível iniciar seguimento com

proctologista para avaliar reconstrução do trânsito intestinal – um caminho aberto

fora das vias protocolares institucionais, tal médico verbaliza entender a

necessidade de priorizar o momento de abertura do morador de rua ao cuidado.

As especificidades do atendimento à PSR colocam que uma brecha dada para

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o cuidado é sempre a oportunidade para produzir vínculo e começar a produção

de outras subjetividades na vida dessa pessoa. A abordagem precisa ser feita

no tempo oportuno (106).

Construiu-se um Projeto Terapêutico Singular (PTS) que incluía

enfermaria de psiquiatria, CAPS AD III, serviço da Assistência Social e

proctologia. Havia pressa, não era possível mantê-lo internado por muito tempo.

E, enquanto estava na sala de espera para colonoscopia, ele fugiu e voltou para

a rua.

Um caso como este deixa clara a necessidade de construção de projetos

de cuidado em rede. Apenas um serviço não daria conta disso tudo. A equipe de

Atenção Básica, Consultório na Rua, esteve como articulador do cuidado entre

os especialistas, buscando conectar as diferentes ofertas e demandas.

Acompanhando-o onde quer que fosse necessário. Uma estrutura de redes

previamente arranjada dificilmente preveria algo que pudesse dialogar com as

necessidades que esse caso evoca. Ir à cidade vizinha com o paciente, discutir

seu caso em um serviço fora do arranjo habitual fez-se essencial para construir

um Projeto Terapêutico para o mesmo, bem como para auxiliar nas definições

com relação às possibilidades de conduta cirúrgica.

Carlos voltou para a rua, voltou a beber, voltou a ficar imundo. Mas hoje,

Carlos está aderindo ao acompanhamento em um CAPS AD III e talvez seu PTS

volte a se constituir, coordenado por ele mesmo, dentro de seu tempo, não no

tempo institucional.

Outra rede pequena, discutida pela equipe, foi a construída em torno de

Ângela. Reativa a aproximações, é atendida pelo CnaR, por uma equipe móvel

da Assistência Social e, aparentemente, por uma unidade básica de saúde de

uma cidade vizinha, perto de onde mora uma tia. Acompanhada principalmente

através de oficinas de terapia ocupacional, a equipe supõe que ela sofra de

déficit intelectual.

A parca rede composta para sua assistência tem um motivo distinto da de

Carlos, sua equipe de referência não conhece equipamentos de saúde que

possam apoiar o seu cuidado e a sua produção de outras maneiras de viver a

vida. Não há serviços que atendam adultos com déficit intelectual, muito menos

sem estrutura familiar de suporte. Ou seja, também não há rede se não existem

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os nós, os pontos dessa rede. A falta de alternativa, de acesso a serviços

especializados necessários, também faz com que a rede possa ser pequena e

frágil. Ou estaria a equipe refém de um sentimento de impotência com relação à

situação desta usuária e assim, pouco capaz de criar outras alternativas para

ela? Uma ‘primeira alegria’ espinosana necessária a uma equipe é acreditar em

sua própria capacidade interventiva para poder produzir alternativas ao que não

se apresenta dentro de algum protocolo previamente estabelecido.

Mas quando há portas a serem abertas, os trabalhadores do CnaR

parecem tomar isso como um de seus trabalhos. As maneiras sobre como fazer

isso e em que radicalidade ainda é polêmica inconclusa (se é que demanda

alguma conclusão). Por um lado, se reconhece que a insistência na parceria com

serviços que estão resistentes à assistência ao morador de rua pode provocar

mudanças em suas práticas. Seja pelo incômodo, seja pelo constrangimento,

seja pelo convencimento, seja pela formação, seja pela contaminação de outros

possíveis nos modos de se trabalhar.

Entretanto, a equipe também, no cotidiano, acaba avaliando que esse ou

aquele serviço não é adequado para receber esse ou aquele usuário. E aí, o que

fazer? Responsabilizar o serviço que deveria receber tal encaminhamento,

buscar outra alternativa ou tentar assumir o que se supõe que tal serviço deixará

de fazer? Está claro que quando o apoio é solicitado e é necessário fazer

reuniões, discutir o caso, elaborar projetos terapêutico em conjunto, acompanhar

os profissionais, faz-se junto (122), o problema é quando existem poucas (ou

nenhuma) opções de encaminhamento e o serviço com o qual é necessário

dialogar não está aberto para conversar sobre as necessidades específicas dos

casos em questão.

Um exemplo de onde temos visto isso operar claramente é na Saúde

Mental. Atualmente Campinas conta com mais de 10 CAPS (entre infantis, álcool

e outras drogas e III), que têm um rodízio pactuado entre si para receber, acolher

e inserir no serviço, os moradores de rua. Existe importante heterogeneidade

nos processos de trabalho desses serviços e aberturas para acolher esses

usuários. Pouco se fala disso, mas no cotidiano podemos nos defrontar com

decisões como: “é aquele CAPS quem vai receber? Ih! É melhor internar no

hospital então! ” Ou “vamos tentar segurar para semana que vem, porque aí é

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aquele outro quem recebe, não esse dessa semana”. A equipe debate isso como

uma tentativa de dar a melhor resposta possível à necessidade do usuário, mas

também como uma maneira de se proteger dos problemas e sobre trabalhos que

imagina que terá com o encaminhamento para unidades que julga mais

problemáticas. A crítica que se fazem é, operando a rede dessa maneira, não

estão deixando de tencioná-la para melhorá-la?

Essa discussão é trazida na conversa sobre o caso de Pedro Ogro. Ele

tem uma importante dificuldade para lidar com as atividades diárias, para lidar

com dinheiro, além de ser analfabeto. Suas crises convulsivas e pós-ictais

bastante exuberantes (e às vezes violentas, por isso o apelido) colocam a ele e

outras pessoas em risco. Assim, discussões sobre o mesmo consideravam que

a melhor opção seria conseguir tirá-lo da rua o mais urgentemente possível. Não

bastaria um simples abrigamento, ele precisaria de algum suporte para lidar com

a vida. Foi então tencionado (e conseguida), de maneira bastante incisiva, uma

vaga para ele em uma unidade de acolhimento.

Apesar das preocupações, Pedro Ogro já estava vivendo nas ruas, entre

São Paulo e Campinas, há uns tantos anos. Ele não se adaptou às regras do

serviço e as regras do serviço não se adaptaram a ele. Acabou sendo desligado,

expulso. Um trabalhador revela “A gente, ele na rua, a gente morre de medo por

causa das convulsões. Então, vamos tentar. Ninguém apostou de verdade que

a unidade de acolhimento daria certo”. De alguma maneira já se sabia que o

processo de trabalho daquela unidade não daria conta dele. E assim, refletem:

“A gente tem que ver exatamente de qual usuário a gente tá falando, de qual

equipe a gente tá falando e como a gente constrói muito singularmente a rede

para aquele usuário”.

Forçou-se uma entrada até o limite do possível em um serviço e ainda

assim não deu certo. De modo que as questões do quanto forçar ou não um

serviço a receber determinado usuário, o quanto estar junto, o quanto

responsabilizar o outro ou assumir para si as omissões seguem em aberto. No

final das contas, essa conversa faz mais sentido se feita singularmente, caso a

caso, do que se pensada enquanto comportamento geral previamente

estabelecido.

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“Quando a gente faz isso [força a entrada], por exemplo com a unidade

de acolhimento, a gente também não vai garantir o cuidado do cara, entendeu?

Por que às vezes a gente fala, ‘é o CAPS AD III’ que tem que atender, então nós

vamos lá e vamos forçar pro cara atender goela abaixo, nós fizemos isso na

unidade de acolhimento e não foi o dos melhores”, reflete uma trabalhadora,

sobre essa questão.

Vários serviços se mobilizaram buscando tirar Pedro Ogro da rua, lidar

com sua polidependência e com sua suposta dificuldade para resolver as

atividades da vida cotidiana, foi-se ao ponto de nenhum desses serviços

seguirem investindo nas diversas morbidades ortopédicas advindas de

atropelamentos passados e não investigarem causas de base para as crises

convulsivas. Se por um lado o CnaR tensiona a rede, levando os problemas,

antes invisíveis (114), diretamente às portas de cada ponto da rede – e essa

tensão faz-se necessária para atender a PSR – por outro lado também é

importante que as equipes consigam dialogar e negociar mesmo diante de

concepções de cuidado muito distintas (mas, às vezes, não excludentes). Da

mesma maneira como é necessário se conectar com a diferença da lógica da

rua, também é necessário conectar-se com a diferença na relação entre as

equipes (122), assim, a redução de danos pode ser também uma diretriz para a

articulação de rede (113).

Discutia-se o caso entre vários serviços, com propostas variando entre

internações em CAPS AD III, hospital psiquiátrico e oficinas terapêuticas. A inicial

adesão sempre era seguida de evasão. A equipe CnaR começa a considerar um

caso de fracasso de atuação, visto que não consegue seguir com nenhuma

proposta realizada. As conversas entre os serviços, sobre ele, ocorriam com

facilidade, os trâmites não eram emperrados por burocracias, muita gente já o

conhecia e lhe abria as portas. Ainda assim, avalia-se que nada funcionou muito

bem. Uma trabalhadora reflete: “quando a gente vê que as setas funcionam para

gente e não funcionam para o usuário, a gente fala que é do nosso desejo e não

do desejo do usuário".

E completa: “E a gente constrói uma rede em cima do nosso desejo e não

do desejo dele. E a gente constrói uma rede que não é nem do nosso desejo, é

das nossas opções, das opções que a gente tem. Ou seja, não é rede, é um

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arranjo. Por mais que às vezes a gente possa falar que é rede”. Assim,

emendamos a necessidade de sair de uma esfera representacional e ir para a

vida das pessoas, concretas, fora de uma extrapolação generalizante. É a partir

daí que podemos construir noções comuns e sair de uma reatividade para a

produção de um conhecimento em ato, que responda a necessidade reais por

ser capaz de olhar para a cadeia de ações e efeitos da vida das pessoas e das

relações delas com os serviços e destes uns com os outros. Ou seja, saímos de

uma ideia abstrata para a construção de uma ideia de conveniência entre os

corpos, a produção de uma noção comum menos universal, mas que já nos

permite avançar no entendimento, na seleção de encontros e afetos para a

produção de potência de vida, de saúde (37,38).

Interessante dizer que o Pedro Ogro, apesar de monstro: "Como ele

sobreviveu na rua?", "Pelo afeto!". Construiu sua maneira de viver e de

sobreviver, na relação com os taxistas e engraxates da “sua” praça, que cuidam

dele e o apoiam a lidar com a vida. Essas pessoas também balizam o serviço

sobre o estado de saúde de Pedro e o quanto ele está usando de drogas, como

está manejando isso. As relações são tão estreitas e de confiança que ele recusa

ir para uma pensão, por exemplo, porque sabe que pode ser enganado e ter seu

dinheiro levado pois não perceberia mentiras quanto a valores e cobranças.

"Foi engraçado ouvir isso. O Pedro Ogro viveu na rua pelo afeto. Ele

conseguiu se colocar pelo afeto." Colocação que reforça a necessidade de

construção de autonomia trazida por grupo de pesquisadores do Rio, ou seja,

como sendo a capacidade de o indivíduo dialogar com a cidade e esta com ele,

uma capacidade de estabelecer relações. Uma ideia de que autonomia é coletiva

(122).

Abaixo temos uma composição dos mapas construídos nas oficinas sobre

essas pessoas. Interessante notar o tamanho e heterogeneidade da rede

acionada com apenas 6 usuários do serviço.

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Figura 5- Mapa da Rede Construída pelo CnaR para 6 pessoas atendidas. As setas pretas representam fluxos e relações predominantemente conflituosos.

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Vale levantar outros pontos e discussões bastante interessantes de serem

registradas, ainda que não tão diretamente vinculadas aos casos, mas que

aparecem no diário de campo e na oficina de fechamento.

Sobre alguns aspectos que dificultam a construção de redes, além do que

já foi mencionado ao longo do texto, a equipe ressalta algo relacionado com os

movimentos de apropriação das pessoas e dos espaços dentro dos serviços.

Estamos falando dos momentos em que determinado usuário é atendido por

algum outro serviço (da Saúde ou não) e a equipe deste local passa a considerar

a pessoa que estão atendendo como sendo quase uma propriedade, não

aceitam dialogar sobre as condutas, não estão abertos a interferências externas

no caso, tão pouco comunicam qualquer mudança relativa a ele. É encontrar

uma barreira quase intransponível. Não existe gestão coletiva se a outra parte

não deseja abrir espaço para diálogo ou até mesmo considera ao outro como

inimigo.

Tal qual narrada por Souza (113), o CnaR, por vezes, sofre da sensação

de isolamento na rede, tal qual os CAPS AD, por motivos muito semelhantes,

aqui transcritos:

i) política proibicionista que se intensificou a partir da disseminação do crack; ii) despreparo técnico e visão predominantemente moralista dos profissionais da rede básica; iii) política intersetorial pautada pela lógica da abstinência e criminalização do usuário, pautada pelo modelo de internação; iv) demanda familiar por cura do usuário a partir de internação de longa duração; v) sobreimplicação dos profissionais pela atenção integral dos usuários no CAPS AD (p.266).

Figura 6 Campo no Largo do Pará - Acervo da Equipe

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Como este autor, entendemos que estes aspectos se relacionam e se

fortalecem uns aos outros. Em acréscimo, ponderamos que o despreparo técnico

e a visão moralista é predominante em praticamente todos os serviços de saúde

(certo dia o residente de psiquiatria de um hospital terciário “confessou” à equipe

que naquela enfermaria não sabiam tratar usuários de drogas), a dificuldade na

produção de corresponsabilização é geral, ainda que as discussões de caso

acabem mudando pontualmente esse panorama frequentemente.

A despeito da falta de vagas, a pressão social e de outros serviços por

internação é usual, obrigando o CnaR a tomar decisões solitárias quanto ao

cuidado do usuário na rua. A solidão coloca o serviço a propor alternativas

criativas para dar conta das demandas cotidianas, algumas ousadas demais

para o moralismo reinante na rede, por vezes aprofundando mais a sensação de

isolamento.

Por outro lado, no cotidiano, pudemos verificar a composição, ainda que

mais intuitiva do que planejada, de equipes multirreferenciais para atender

alguns casos (113,123). Para tentar acompanhar o Leo, jovem de 18 anos, com

muita dificuldade de adesão a qualquer proposta, temos eu, as redutoras de

dano de nossa equipe, uma trabalhadora de equipe móvel da assistência social

e uma psicóloga de CAPS III. Ainda assim ele nos escapa entre os dedos e seu

cuidado segue sendo muito frágil. Vários casos têm referências compartilhadas

entre equipe CnaR e equipe móvel da Assistência Social buscando dar conta

das diferentes demandas que colocam. É uma experiência bastante concreta de

construção de redes vivas, caso a caso, pautadas pelas necessidades do

usuário.

Por fim, interessante trazer que houve uma polêmica durante a última

oficina. Seria mesmo o Consultório na Rua um equipamento da Atenção Básica?

Um trabalhador opina: “se me perguntasse assim, ‘você acha que é atenção

básica’, ‘não! ’, mas também não falaria que é da Saúde Mental, o consultório é

outra coisa. Talvez seja um serviço ponte, ora é mais uma coisa, horas é outra,

hora ele é meio assistência. Tem um tanto do instituinte daquilo que pulsa da

prática do consultório que extrapola seu campo formal no processo, eu acho que

isso é muito visível no consultório, talvez por ser um serviço meio nômade, por

circular, ser meio despojado dos protocolos, a gente consegue dizer de uma

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flexibilidade e de uma maleabilidade maior da gente furar os protocolos que em

outros lugares isso não é tão possível. Se transmuta né. As nossas questões

não passam por uma dificuldade de oferecer assistência de se relacionar com as

pessoas, isso é o motor dessa máquina, dessa máquina de produção”.

Outra dialoga: “A gente acessa muito equipamento da Assistência

[Social], a gente acessa mais que da Saúde Mental, e o quanto a gente não tem

parceria na Saúde Mental, ou poucos casos. Por mais tortuosos que tenham sido

ali em cima, os azuis13, são os que mais a gente acessa, então a gente é muito

atenção básica”

Mais uma trabalhadora emenda: “as relações conflituosas são as mesmas

que a atenção básica como unidade de saúde tem, porque o centro de saúde é

sempre visto como o postinho, o encaminhador, o que só encaminha os

problemas, o que não é resolutivo e os trabalhadores que estão na atenção

básica estão o tempo todo sendo cobrados e tem uma dificuldade enorme de

lidar com o secundário, a contra-referência que não volta, o feedback do hospital

que foi internado e não sai relatório de alta e ninguém sabe o que aconteceu.

Então a gente tem as mesmas dificuldades que a atenção básica e a gente acaba

ampliando o que Atenção Básica faz por conta de outros fatores. A gente tem

muita dificuldade também de conversar com os outros setores”. Só que, quando

a equipe de referência do usuário é o CnaR, devido à sua mobilidade, se a

contra-referência não é feita, a equipe vai buscar. Se a alta não é referenciada a

UBS “tradicional”, ser referenciada ao CnaR é, inclusive, uma solução para um

dos argumentos de negativa de vaga de internação – o leito ficaria “preso” por

não ter para onde dar alta ao usuário (110) – se a articulação de um abrigamento

não é possível, a garantia de que o cuidado será continuado na rua ajuda na

negociação da internação e do tempo ótimo para alta.

E se não é Atenção Básica, também não é a porta de entrada, ou o

encaminhador para ela, segundo outra trabalhadora: “A única [questão] que eu

defendo completamente no consultório. O Consultório não é ponte para a

Atenção Básica, [pensando] na Unidade Básica. E ouso dizer que a gente só

consegue fazer isso porque a gente trabalha no caso a caso. ”

13 A trabalhadora estava olhando para o mapa compilado das oficinas e os serviços especializados da saúde estavam em azul no quadro.

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113

E pensando sobre as diferenças com relação a Atenção Básica

“tradicional”, dizem:

“A gente é o território. O Agente de Saúde vai na casa das pessoas. A

gente vai na praça, vai na linha do trem, vai ali onde eles moram. E a gente tem

que resolver e dá maior resolutividade pro nosso trabalho. Tem essa

diferenciação mesmo da AB. A gente faz rede, a gente bate porta, a gente sai

quebrando porta quando é necessário, mas a gente tem um jeito diferente de

trabalhar”

Nesse sentido Souza e Carvalho pontuam, falando do redutor de danos,

mas também poderíamos pensar em um profissional de referência de qualquer

categoria:

Ao se colocarem como referência para os casos acessados em situação de rua, os redutores de danos passaram a ofertar um apoio em que a dimensão territorial do caso passou a ser incluído na rede. O território exerce, portanto, uma função sobre a rede, uma abertura que exige reconstrução de modos de atender e gerir. Para que a dimensão territorial da experiência com as drogas seja inserida como matéria para articulação da rede, é necessário que a ação inicial disparada pelos redutores de danos siga sendo apoiada em outros espaços. Se a equipe de Atenção Básica der seguimento à articulação do cuidado de um usuário de drogas nessa perspectiva, ou seja, em que o desejo e o modo existencial do usuário seja incluído, o território com suas características se presentificam na rede de serviços (123).

“A gente vê que o caráter itinerante da equipe dá uma outra perspectiva

sobre isso [construção de rede] (…). Facilita a construção de rede e facilita a

longitudinalidade do cuidado (...) e nenhum médico [de UBS] vai fechar a agenda

e falar 'vou lá acompanhar o paciente'”

Não encerrando, mas com um argumento de peso, outra trabalhadora

afirma categoricamente: “Mas eu discordo que a gente não é atenção básica. A

gente é o que a Atenção Básica deveria ser. A Atenção Básica se engessa em

tanta coisa… Eu acho que a questão da escuta, da porta aberta, que deveria ser

atenção básica, acaba não sendo”. O território também é uma singularidade

dessa equipe que a diferencia das demais de Atenção Básica. Produz-se aí,

nessa mistura com o território, saberes singulares, que dialogam diretamente

com a capacidade de construir redes e com seus nomadismos (112), saindo de

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um lugar em que é pura produção de demanda e a rede “só” uma oferta técnica

de cuidado que vai ao isolamento temático (123).

E sobre esses engessamentos, não dá para deixar de trazer relatos

importantes de duas trabalhadoras, da capacidade instituinte desse porta-a-

porta feito pelo Consultório na Rua:

“A gente estimula o que está engessado. A gente chega com pedidos que

a pessoa, na hora que você tá falando, você vê a cara dela de ‘não, isso é

impossível’, e aí por fim você acaba percebendo que ela vai também tentar um

jeito, ali meio subversivo, ‘vamos encaixar essa, vamos ver esse’ e aí consegue

atender aquele que a gente encaminhou. A gente consegue acessar algumas

pessoas que estão dentro de um equipamento engessado que tem esse desejo

também e tá ali, mas tá guardado”.

É nessa abertura de corpo para o outro que o próprio trabalhador do CnaR pratica novas formas de cuidado até então não visibilizadas e com as quais passa a processar encontros de maneira inventiva. É num acompanhar afetivo que se torna possível “ressignificar a existência do sujeito, criando modos de subjetivação inéditos”, ponto de inflexão entre os afetos do cuidador e do sujeito em situação de rua. Contato tomado em apreensão corporal que faz reverberar, um no outro, quantas de potência de vida, emergência de um bom encontro, troca afetiva que ponha os corpos em movimento de composição (114).

“A gente tem muito entusiasmo no que a gente faz. E isso acaba

contaminando. Tenho essa impressão que qualquer lugar que a gente vai, a

gente vai com muito entusiasmo, com muito tesão. Sabe, falar do usuário e você

não vai se contentar com um ‘não posso’, ‘não é dia de fazer tal coisa’, então

tem essa coisa”.

Parece que de maneira mais ou menos formal essa equipe acaba por

produzir um matriciamento cruzado (107,122) com os outros serviços com os

quais dialoga. Os tensionamentos da rede vão abrindo espaços de conversa e

de mútua formação, se a cada caso discutido incorpora-se um pouco do saber

daquele trabalhador especialista, também se coloca um pouco da rua para

dentro do funcionamento deste equipamento de saúde e da rede.

Considerações Finais

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Damos um ponto final temporário. Não que já tenhamos explorado tudo o

que a pesquisa produziu de intervenção e conhecimento, mas sim porque seriam

assuntos em demasia para abordar em apenas um capítulo e escaparíamos

sobremaneira do problema que nos levou à investigação.

A rua nunca dorme. Está sempre em movimento, mesmo quando parece

parada. Seus moradores são artistas na permanente criação de modos de se

levar a vida. A cada dia, a cada momento, uma nova invenção para dar conta

das necessidades do momento, mesmo que seja necessidade de morte.

Existências possíveis pelas conexões produzidas, mesmo que perversas,

sempre móveis e temporárias, carregadas aos sabores das marés. Ainda que os

laços temporários desenvolvidos, de alguma forma, sejam permanentes.

Esses pequenos territórios se fazem e desfazem são as redes vivas de

seus moradores, construídas por eles mesmos, em muito caracterizadas pela

incorporação das linhas de fuga em novos mapas de sobrevivência. A equipe de

Consultório na Rua precisa incorporar essa dinâmica para se aproximar dessas

pessoas. Invadida por esse nomadismo, repete o movimento para o resto da

rede, de saúde ou intersetorial, invadindo-a com a lógica da rua, do informal,

impermanente, sempre a se construir.

Trazer o micropolítico é trazer os lugares onde as existências furam os muros institucionais, conectando relações com o fora, que é constitutivo dos processos; processos estes intensamente produtores de novos sentidos no viver e no conhecimento. É trazer o lugar dos processos de encontros e suas atualizações das relações de poder. É trazer a micropolítica do encontro e a produção viva das redes de conexões existenciais, multiplicidades em agenciamento (88).

Percebemos que poucas coisas são tão eficazes quanto a conversa olho-

no-olho, em que se estabelecem relações bastante concretas entre os

trabalhadores e trabalhadoras da rede. É necessário que as equipes se

conheçam e se reconheçam, que conquistem legitimidade umas com as outras,

estabelecendo laços de confiança para que o trabalho se desenvolva da melhor

maneira possível.

Nesse sentido, a figura do trabalhador de referência para a relação de

rede mostra-se como fundamental para um fluxo mais fácil no cotidiano. Ainda

que, e necessário pontuar, isso deva ir permitindo a produção de uma nova

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configuração de rede formalizada e bem estabelecida, que reduza certa

fragilidade existente nas trocas dependentes de uma pessoa.

Assim, temos de maneira bastante clara e concreta a temporalidade dos

desenhos de rede. Se assim não for, estaremos falando sempre de um desenho

representacional, uma fotografia que não condiz com os movimentos das

necessidades dos usuários. As linhas de fuga ocorrem, permitidas ou não. Uma

virada, que talvez seja muito útil, seja a de dar visibilidade a estas linhas,

permitindo que tracem um novo plano de composição dessa rede.

Claro que isso traz um dificultador bastante importante, já que também

coloca frequentemente em questão o processo de trabalho dos serviços

envolvidos nessas redes, as quais estão em permanente tensão. Além das

múltiplas lógicas de trabalho que circulam e contagiam, também ganham

visibilidade problemas de saúde, vulnerabilidades que estavam fora do alcance

das equipes, muitas vezes excluídas até propositalmente. As equipes reagem a

isso, questões que também evidenciam suas próprias insuficiências, às vezes

de maneira pouco construtiva.

As diferentes concepções sobre o direito à saúde, a saúde, a vida, o

cuidado etc. podem ser importantes motivos de conflitos, mas também podem

atuar complementarmente. As diferenças devem ser incluídas, enriquecem as

redes do usuário e das próprias equipes. Ainda que ideias parecidas possam

agilizar e facilitar muito o diálogo (como, por exemplo, a linguagem comum das

Assistentes Sociais que facilitam nossa circulação pelos hospitais). O que é

importante frisar é que, ao contrário do que defendem alguns, não é necessário

“alinhamento” de objetivos e ideias para que a rede possa funcionar bem, o que

é sim necessário são espaços de negociação e conversa que permitam que as

diversas perspectivas possam se confrontar, se reconhecerem como válidas e

negociarem as medidas necessárias singulares a cada caso.

Para isso, nos parece importante falar de uma clínica para construção de

redes, tal qual a clínica da redução de danos. Ou seja, uma atividade pouco

atenta a prescrições morais, a normas comportamentais, a regras ou a normas.

A clínica para a construção de redes também precisa ser uma clínica atenta à

produção de potência das equipes em diálogo, à produção de saúde dos

trabalhadores tanto quanto à produção de saúde dos usuários. É necessário

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fomentar bons encontros, criar condições para que eles se deem, ou seja,

produzir espaços de conversa em que o comum possa ser construído a partir do

trabalho visando gradientes cada vez maiores de saúde dos usuários.

Estamos pesando nas cores da necessidade da inclusão de redes

informais, da mobilidade das equipes e da conversa entre elas sem, entretanto,

descartar a imprescindibilidade da construção de redes formais, como dito

parágrafos acima. O que é necessário reconhecer é que a vida vivida não cabe

em um desenho estruturado de rede e que, se queremos responder às

necessidades dos usuários tanto quanto às necessidades de gestores e/ou

trabalhadores, é crucial abrir esses desenhos. Anunciam Londero et al e,

acreditamos, que aqui esboçamos algumas pistas no sentido de responder

também as suas questões:

Como investir numa lógica de atenção em saúde que seja porosa à imprevisibilidade? Como provocar trabalhadores e serviços de maneira que a implicação com a prática de cuidado seja aberta à imprevisibilidade, conectada ao desejo e atenta às particularidades? São questões-desafio que perpassam o desenvolvimento desses trabalhadores e o acolhimento dessa população; questões cada vez mais anunciadas à rede de saúde (114).

Por fim, urge que a Atenção Básica revisite seus processos tomando as

experiências dos Consultórios na Rua como produtoras de novas tecnologias de

gestão do trabalho e do cuidado, para que se desburocratizem e se reencontrem

com os usuários, para que possa construir outro tipo de rede, menos engessada

e mais compromissada com o acompanhamento do usuário. Algumas pistas que

reconhecemos são: a necessidade de flexibilidade e mobilidade das equipes,

para que circulem em seus territórios e nas unidades de referência com as quais

precisam dialogar; a proposição de matriciamentos cruzados que contaminem

os especialistas com os saberes do território e que empoderem as equipes da

Atenção Básica; reconhecer e operar a função de intermediadora entre os

saberes, serviços de especialidades e suas disputas. Mas também é

fundamental reconhecer os limites dessa função de referência e cuidado

continuado do usuário. Se formos olhar singularmente mais às necessidades dos

usuários do que às formas colocadas a priori facilmente chegaremos a casos em

que talvez atue melhor uma equipe de especialista operando todas essas ideias

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do que uma equipe de atenção básica que encontra com o usuário apenas muito

ocasionalmente.

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CAPÍTULO 4 – SOBRE NOÇÕES COMUNS E REDES

O que são e como podemos construir redes de produção de saúde e de

vida? Essa dupla pergunta também subentende que precisamos explorar um

para quê das redes. Ou seja, para que os municípios, ou os serviços, ou as

pessoas, precisariam agrupar-se em rede? Que problemas postos à vida esse

tipo de organização busca responder? Respostas “oficiais”, colocadas em

portarias e outros documentos institucionais talvez tragam visibilidade para

motivos de alguma suposta praticidade político-gerencial, através dos quais

governos buscariam responder certos tipos de anseios populares, ou de grupos

politicamente dominantes. Essa discussão, digamos, governamental, foi

abordada em outro texto, evidentemente já contaminado pela discussão que

faremos aqui. Buscaremos, neste, a ousadia de surfar, de compor com a filosofia

para questionar e, quem sabe, redesenhar conceitos. Um trabalho que será

direcionado pelas questões: porque as pessoas se organizam em rede? A que

problema isso responde?

Para tentar acercarmo-nos de uma das tantas linhas de respostas

possíveis iremos iniciar recorrendo a Spinoza, desde sua ontologia, procurando

fazer os ganchos necessários com o campo da saúde e com o restante da

pesquisa. Sabemos que tal debate nos conduzirá a meandros complexos, uma

trama de conceitos vastamente interconectados. Procuraremos explorá-los da

melhor maneira possível sem, entretanto, abordar cada um deles em sua

complexidade e vastidão.

Todo conceito é irregular, abarca alguns tantos componentes, é uma

multiplicidade. Remete a um problema, ou a uma encruzilhada de problemas aos

quais se refere. Aqui procuraremos explicitar algo de sua endo-consistência,

traçando conceitos vizinhos (124) tentando percorrer a tênue linha entre uma

clara explicitação e a exaustão do texto.

É como uma viagem, com data marcada para início e para término, sem

a definição exata dos caminhos a serem percorridos, na qual resvalamos por

uma imensidade de pontos interessantes e na qual decisões difíceis devem ser

tomadas, pois a viagem não pode ser eterna ou o texto será exaustivamente

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longo. Certa vez viajamos pelo Sul do Brasil de carro. Sabíamos ter cerca de 20

dias para esse percurso e que uma parada era imprescindível, o Natal com

amigas perto de Porto Alegre. Dormir em Curitiba era crucial, uma visita familiar

inestimável. Passar por Florianópolis se fazia necessário (sempre se escuta

sobre o quão incrível é) e lá chegando nos disseram, “vocês têm que passar pela

Praia do Rosa”. E para lá fomos, ainda havia muito o que explorar para captar

algo sobre a história, cultura etc. de Floripa, mas partimos. A Praia do Rosa foi

o descanso necessário que ventilou as ideias e o coração, mas o Natal se

avizinhava e partimos. Nessa viagem toda não podíamos deixar de captar um

pouco mais dos sentidos da colonização alemã, passamos por Santa Cruz do

Sul, visitamos Joinville. Visitamos amigas em Porto Alegre e Santa Maria. Assim,

se compôs uma das várias viagens-conceito que fizemos. A viagem é seus 3000

quilômetros, não a explicação infindável de cada uma de suas paradas,

tampouco seu destino final. Chequem seus assentos e afivelem seus cintos.

Spinozando uma ontologia

Partimos da ideia que a Natureza (ou Deus) é uma substância

infinitamente infinita, que existe em si e por si, é causa de sua própria existência

(causa sui).

3. Por substância compreendo aquilo que existe em si mesmo e que por si mesmo é concebido, isto é, aquilo cujo conceito não exige o conceito de outra coisa do qual deva ser formado (37) (p. I, def. 3)14.

Da Natureza tudo se segue necessariamente15, em infinitos Atributos de

infinita variação qualitativa (38), cada um dos quais exprime uma essência, um

existir, eterna e infinita (37).

14 Ao citar literalmente a Ética, de Spinoza, diversos textos costumam citar o ponto do livro em

que a citação se encontra ao invés da página (as múltiplas edições levam a numerações diferentes), assim p. = Livro/Parte – numerado em algarismo romano, def. = Definição, ax. = Axioma, prop. = Proposição, cor. = Corolário, post. = Postulado. 15 Diz-se livre a coisa que existe exclusivamente de sua natureza e que por si só é determinada a agir [o que se diz apenas da Substância]. E diz-se necessária, ou melhor, coagida, aquela coisa que é determinada por outra a existir e a operar de maneira definida e determinada (37) (p. I, def.7).

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Nosso intelecto é capaz de perceber apenas dois Atributos, o Pensamento

e a Extensão, cujas naturezas nada têm em comum e são essências na

substância na medida em que seus conceitos não envolvem o conceito de nada

mais, ou seja, não demanda outras ideias para que existam.

Conhecemos apenas dois porque só podemos conceber como infinitas as qualidades que envolvemos em nossa essência: o pensamento e a extensão, na medida que somos espírito16 e corpo (38).

Disso se seguem os modos, ou seja, as modificações de uma substância

(37). Os modos diferem-se em existência e essência, sendo produzidos dentro

desses mesmos atributos que os constituem, de maneira que são efeitos não

separáveis de suas causas, não estão fora dos atributos nos quais são

produzidos (38), ou seja, aquilo que existe em outra coisa, por meio da qual é

também concebido (37) (p.I, def.5). Seguem sendo parte da Natureza.

Uma parada. Que queremos dizer com atributo, essência e modo? Vamos

tentar entender um pouco mais. Assim Spinoza os define:

4. Por atributo compreendo aquilo que, de uma substância, o intelecto percebe como constituindo a sua essência (37)(p.I, def.4).

Deleuze (38) entende que o Atributo é expressivo, se referindo ao

entendimento, e é imanente o que o coloca com uma característica unívoca, os

Atributos dizem da Substância a qual compõem na mesma medida que dos

Modos que contêm, ou seja, tudo o que há para ser expresso de um Atributo já

o é, não advém de um plano distinto, mas sim desse nosso mesmo plano de

experiência. Estando expresso, dele se pode entender características da

Substância, da qual são continentes, assim como se pode perceber

características dos modos que dele derivam.

Como dissemos, os Atributos são infinitos, mas percebemos apenas dois

(pensamento e extensão), os que se relacionam com nossa essência. Essência

é uma potência de existir, singular, cada indivíduo tem seu grau de potência.

O que constitui necessariamente a essência de uma coisa é aquilo que, se dado, a coisa é posta e que, se retirado, a coisa é retirada, ou aquilo sem o qual a coisa não pode existir nem ser concebida, e inversamente, aquilo que sem a coisa não pode existir nem ser concebido (37)(p.II, prop.10, esc.).

16 Algumas traduções preferem a expressão “mente”, a tradução de Tomaz Tadeu em Spinoza, 2008, na Proposição 1 da Parte II se refere a “ente pensante”, outras traduções usam “alma”.

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Não entenderemos, aqui, como essência, jargões do tipo “é da essência

do homem ser generoso” (ou ser egoísta, ser alegre, etc.), pois esses modos do

pensamento não são condição inequívoca para a existência do homem. Esses

qualificativos entenderemos como modos do pensamento ou afetos do ânimo,

não existem por si mesmo, nem necessariamente:

3. Os modos do pensar, tais como o amor, o desejo, ou qualquer outro que se designa pelo nome de afeto do ânimo, não podem existir se não existir, no mesmo indivíduo, a ideia da coisa amada, desejada etc. (37)(p.II, ax.3).

Sobre os modos, além do já dito, podemos acrescentar que os modos não

são separáveis por sua existência de suas causas nas diversas relações de

causa e efeito em que se implicam. Tampouco podem ser considerados

separados das diversas partes extensivas (corpos) a que possuem sob suas

relações constitutivas, ou das relações constitutivas de partes extensivas por

quais são possuídos.

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Corpos

O modo, ou corpo, passa a existência quando suas partes são

determinadas (externamente) a certas relações características que o compõe.

Essas relações exprimem certa essência, ou seja, um grau de potência. Um grau

Figura 7 - Galathea de Esferas (1952), Salvador Dalí - https://en.wikipedia.org/wiki/File:Galaofspheres.JPG - Acessado em 27/01/16

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de potência que mantém essas relações como tal, que fazem com que o corpo

persevere na existência - conatus.

São numerosas as partes que compõe um corpo, tanto para menor (mais

simples, compostos de menos partes), quanto tais corpos compõe outros

maiores (como um certo conjunto social, até toda a natureza). De maneira que

tão mais potente é um corpo quanto de mais partes é composto. Todavia, há de

se ter em consideração que ao encontrar outro corpo, este pode agir compondo

as relações daquele, ou seja, aumentando sua potência de existir, ou tomar

partes daquele, decompondo sua potência e até sua existência. Para uma

comparação simples e eficaz: os médicos dizem que é tão mais resistente um

coração a um infarto quanto mais vasos colaterais esse possuir, de modo que

uma obstrução em um vaso é rapidamente compensada pelos colaterais

reduzindo a área de isquemia miocárdica. Um coração é tão mais capaz de

preservar sua existência quanto mais vasos colaterais tiver e que sejam capazes

de substituir um que deixe de funcionar. Do mesmo modo, múltiplos trombos, ou

em locais críticos, podem fazer com que as partes que compõem um coração

abandonem suas relações, terminando com sua existência enquanto coração.

Sobre esse processo de individuação, a partir da composição de relações

que efetuam determinado grau de potência de existir, Deleuze explica:

Mas há duas individuações diferentes: a da essência, definida pela singularidade de cada grau de potência como parte intensiva simples, indivisível e eterna; a da existência, definida pelo conjunto divisível de partes extensivas que efetuam temporariamente a relação eterna de movimento e de repouso, na qual a essência de modo exprime-se (38).

Vamos nos deter um pouco mais nessa ideia de composição. Estamos

falando aqui da relação de partes, temporária – pelo tempo que permanecem

agrupadas, eterna – pela relação absolutamente singular que suas partes

desenvolvem. Átomos se compõem para formar alguma molécula química... um

Hidrogênio composto com dois Oxigênios sempre será água, ainda que o

Hidrogênio possa abandonar essa relação e compor com o Cloro para formar um

ácido. Um surfista compõe um corpo harmônico com sua boa onda, mas se

decompõe à menor distração. A composição de algumas sílabas formará uma

palavra, ainda que também possam rearranjar-se em outras. Que fique claro,

que falamos da relação que forma um corpo e não do retorno ao Uno

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125

transcendental – um casal de amantes tem uma relação singular, mas não são

eles mesmos um só e não estão impedidos de compor com outros corpos. Assim,

compor nos fala da ideia de relação de partes para formar outra qualitativamente

diferente que se caracteriza pela relação dessas partes. O corpo humano pode

aprender a estabelecer composições, relações que fortaleçam sua existência e

a evitar as relações que o enfraqueçam, decomponham, possam destruí-lo (125).

Dessa maneira entenderemos que o corpo humano é um dentre vários

corpos existentes, individualizado em função das relações de movimento e

repouso entre suas inúmeras partes que o compõem. E mantém suas relações

de movimento e repouso ao passar pelas relações de movimento e repouso

impostas por outros corpos, exprimindo certo grau de potência no esforço em

perseverar na existência, ao que Spinoza chama de conatus. Todo corpo,

inclusive os coletivos, esforçam-se por perseverar na existência. Essas

modificações provocadas por uns corpos em outros são chamadas de afecções

(37). Do que depreendemos que a potência de existir também diz da capacidade

de suportar essas afecções e de provoca-las, sem que suas relações

constitutivas se decomponham.

Cabe ter claro que, seguindo nessa linha, entenderemos que os corpos

humanos também conformam partes de outros corpos maiores que si. E que não

tomaremos um corpo somente pelas partes orgânicas de que é composto, mas

também pelas diversas afecções que o modificam constantemente. Assim como

poderemos tomar instituições (uma equipe de saúde, por exemplo) por corpos

com funcionamentos semelhantes aos aqui explicitados. De tal forma que

determinado processo de trabalho, por exemplo, tende a permanecer como está,

preservando certo funcionamento de equipe tal como seus membros

habituaram-se a vivenciá-lo.

Como Espinosa define um corpo? Um corpo qualquer, Espinosa o define de duas maneiras simultâneas. De um lado, um corpo, por menor que seja, sempre comporta uma infinidade de partículas: são as relações de repouso e de movimento, de velocidades e de lentidões entre partículas que definem um corpo, a individualidade de um corpo. De outro lado, um corpo afeta outros corpos, ou é afetado por outros corpos: é este poder de afetar e de ser afetado que também define um corpo na sua individualidade. (…) são duas proposições (…): uma é cinética, e a outra é dinâmica (38).

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126

A ideia que fazemos do nosso corpo é a ideia de um corpo existente em

ato, ou seja, de um corpo que está tomando parte de afecções. Assim,

conhecemo-lo a partir das ideias das afecções que constantemente o modificam.

Para entender melhor o que isso significa podemos olhar para a exploração

sobre o normal e o patológico feita por Canguilhem. Ele colocará que a doença

será a reveladora das funções normais de um corpo no momento em que o

impede de seguir com tais funções. Afirmando que a saúde é vida no silêncio

dos órgãos (p.39) e que a medicina existe porque há homens que se sentem

doentes (p.36), não o contrário. Assim, não há, portanto, nenhum paradoxo em

dizer que o anormal, que logicamente é o segundo, é existencialmente o primeiro

(126). Enfim, fazemos uma ideia do corpo pelas modificações que ele sofre o

tempo todo pelos encontros com outros corpos. A vida é inventada e criada em

ato, no próprio movimento do viver… a própria saúde é recriada a cada ruído

que nos arremata, que arremata nosso corpo, longe de ser um “estado de

completo bem-estar biopsicossocial” (isso existe?), vamos entendendo que

saúde é um contínuo movimento de produção, reinvenção, readaptação.

Aqui, um parêntesis, essa ideia de existir em ato é particularmente

interessante para o trabalho em saúde. Os leitores da Saúde Coletiva brasileira

não terão dificuldade de fazer a relação disso com a noção de trabalho vivo em

ato explorada por Merhy e por diversos outros investigadores, ainda que feita,

inicialmente, a partir de uma discussão dialética (conceito explorado desde Marx,

no qual não nos ateremos, apenas reconhecemos a complexidade do tema).

Dizer que algo existe em ato nos passa a ideia de que existe apenas quando em

relação. O trabalho vivo em ato é o trabalho criador de um produto novo,

relacionando diretamente o trabalhador com o produto de seu trabalho, o produto

do trabalho é consumido enquanto é produzido. É nesse plano relacional, onde

só o “em ato” pode atuar que se produzem relações, intercessões entre

trabalhador e usuário (127).

De maneira mais ampla, Virno (128) nos coloca que o elemento

constitutivo do trabalho pós-fordista é o compartilhamento de atitudes

linguísticas e cognitivas. A multidão contemporânea, e o trabalho, caracteriza-se

por essa fusão entre Política e Trabalho, ou seja, encontra seu próprio

comprimento em si mesma e sempre exige um aspecto relacional, demanda o

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127

outro, necessita de um público. O que diz mais do processo produtivo em si, do

que de um produto acabado, em sua própria potencialidade.

El trabajo vivo orientado a la producción de bienes inmateriales, como el trabajo cognitivo o intelectual, siempre excede los límites que se le imponen y plantea formas de deseo que no son consumidas y formas de vida que se acumulan (129).

Ora, essa conversa remete-nos de volta às leituras spinozanas. Quando

falamos que conatus, a capacidade de perseverar na existência, passa pela

capacidade de se relacionar mantendo as relações que o compõe e que o corpo

é relação, definido também na capacidade de afetar e ser afetado, podemos

chegar a entender que a potência é ativa e em ato. É necessário, então, abrir-se

a uma aptidão em ser afetado, que não se trata de deixar-se modificar

aleatoriamente, pois, como já vimos, existem relações que descompõem os

corpos, mas sim saber que relações são compositivas. As figuras de afetos-

sentimentos evidenciam-se quando o conatus é determinado a fazer algo,

quando uma afecção lhe sobrevém, tomamos consciência disso da mesma

maneira que do corpo, à medida que somos afetados e isso diz do desejo (38),

1. O desejo é a própria essência do homem, enquanto esta é concebida como determinada, em virtude de uma dada afecção qualquer de si própria, a agir de alguma maneira. (…) por afecção da essência humana compreendemos qualquer estado dessa essência, quer seja inato ou adquirido, quer seja concebido apenas pelo atributo do pensamento ou apenas pelo da extensão (…) [ou] a ambos os atributos. Compreendo, aqui, portanto, pelo nome de desejo todos os esforços, todos os impulsos, apetites e volições do homem, que variam de acordo com o seu variável estado (37) (p.III, def. dos afetos). O esforço pelo qual cada coisa se esforça em perseverar em seu ser nada mais é do que a sua essência atual (p. III, prop. 7).

Quanto mais um corpo é capaz de preservar sua existência e agir a partir

e sobre as modificações provocadas por um maior número de coisas, mais

claramente a mente será capaz de compreender distintamente um maior número

de coisas (37)(p.II, prop.13). De tal modo que a mente percebe tanto mais coisas

quanto mais maneiras pelas quais seu corpo pode ser afetado, segue-se que a

mente poderá fazer tantas mais ideias claras e distintas quanto mais esse corpo

seja capaz de afetar e afetado.

O quanto uma equipe de trabalhadores de saúde é capaz de suportar e

(re)existir diante das modificações que seus usuários lhes provocam, ou ainda,

quanto de intervenção é possível na relação entre duas equipes que interferem

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no trabalho uma da outra? E não seria essa interferência uma das importantes

ferramentas para estas equipes aumentarem seus graus de “compreensão” e,

portanto, sua capacidade de afetar (cuidando de seus usuários)? E uma rede de

saúde, uma rede de relações, não seria tão mais forte quanto mais conexões é

capaz de realizar?

O axioma 1 do corolário desta proposição nos faz uma consideração

importante para se pensar sobre encontro entre os corpos:

1. Todas as maneiras pelas quais um corpo qualquer é afetado por outro seguem-se da natureza do copo afetado e, ao mesmo tempo, da natureza do corpo que o afeta. Assim um só e mesmo corpo, em razão da diferença de natureza dos corpos que o movem, é movido de diferentes maneiras, e, inversamente, corpos diferentes são movidos de diferentes maneiras por um só e mesmo corpo (37)(p. II, prop. 13, Lema 3, ax. 1).

Os efeitos de um encontro entre dois corpos dizem respeito à natureza de

ambos, assim que a ideia que fazemos dos corpos exteriores também indicam o

estado do nosso próprio corpo (37)(p. II, props. 13 a 16). Segue-se disso que o

corpo pode arranjar-se com os exteriores de distintas maneiras, de tal forma que

se uma parte deixar de compor o conjunto de relações que caracteriza o corpo

humano, por exemplo, mas seja sucessivamente substituída por outra parte,

mantendo a natureza daquele corpo humano, este seguirá perseverando na

existência. Faça uma pilha de pedras e uma pilha de areia, despeje sobre ambas

a mesma quantidade de água, veremos desses encontros não apenas

propriedades da água, mas também da areia e da pedra. Uma praia segue sendo

praia, mesmo com uma onda puxando uma parte de sua areia se ainda a tiver

em quantidade suficiente e se for reposta em quantidade satisfatória na onda

seguinte.

Um corpo subjugado pela aleatoriedade dos encontros e reagindo aos

efeitos desses está exteriormente determinado a agir, ou seja, terá uma ideia

confusa de si e dos corpos que o afetam já que percebe a si e aos outros apenas

das modificações que lhes imprimem (37)(p. II, prop. 29). As partes disponíveis

para compor/decompor com seu conjunto de relações estão determinadas

externamente, de forma aleatória e este corpo simplesmente reage a elas.

Por outro lado, também entenderemos que os corpos estão em

concordância com relação a determinados elementos, ideias ou noções que lhes

são comuns. Supondo que um corpo seja afetado por outro, que lhe é exterior,

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por aquilo que têm em comum, segue-se que o primeiro terá um conhecimento

adequado de sua própria propriedade. De maneira que a mente é tanto mais

capaz de perceber as coisas adequadamente quanto mais propriedades em

comum com os outros corpos tem o seu corpo (37)(p.II, prop.39, cor.).

Afeto afeta

(Arte de Amar) Se queres sentir a felicidade de amar, Esquece a tua alma. A alma é que estraga o amor. Só em Deus ela pode encontrar satisfação. Não noutra alma. Só em Deus — ou fora do mundo. As almas são incomunicáveis. Deixa o teu corpo entender-se com outro Corpo. Porque os corpos se entendem, mas as almas não (130).

A partir dessa ideia de conhecimento adequado podemos dizer que se

age no momento em que se sucede algo do qual somos a causa adequada, do

contrário padecemos, ou seja, somos determinados a agir por causas

inadequadas ou exteriores (37)(p. III, def. 2). O corpo humano pode ser afetado

de inúmeras maneiras pelas quais sua potência de agir é aumentada ou

diminuída, ao que Spinoza chama de afeto (p. III, def.3 e post. 1).

Cada coisa esforça-se em perseverar na existência (conatus), sendo esse

esforço atingido por coisas ou ideias que aumentam ou refreiam a potência de

agir do corpo. As que aumentam essa capacidade são chamados de alegrias e

as que a diminuem, de tristezas (37)(p. III, props. 6, 7, 10 e 11). Facilmente

podemos supor que tanto mais tristeza experimente um corpo tanto mais ele se

esforçará por afastar o que o entristece de si, da mesma maneira tanto mais

desejará manter um afeto de alegria quanto mais seja afetado pelo mesmo (p.

III, prop. 37). E da mesma maneira que a uma ideia adequada se segue uma

ideia adequada, quando a mente considera a si própria como capaz de agir

(conhece a si própria pelas ideias das afecções), tanto mais é afetada de alegria,

sendo tanto mais capaz de imaginar a si própria e a agir por si mesma (p. III,

prop. 53) – uma alegria relacionada com a percepção de sua própria potência de

interferir no mundo e em si mesmo.

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A alegria é a prova dos nove (14).

Teremos, assim, que o desejo que surge da alegria é aumentado pelo

próprio afeto de alegria, e que a força do desejo proveniente da alegria é

exponencial, provém da própria potência humana e da potência da causa

exterior. Por outro lado, o desejo que surge da tristeza depende apenas da

potência humana (37)(p. IV, prop. 18). Se retomamos que para se conservar na

existência um corpo precisa de muitos outros para se reconstituir ou manter as

relações que o caracteriza (p. II, post. 4) e que a compreensão adequada de si

e das coisas depende das afecções a que um corpo está submetido (como dito

acima), logo teremos que existem muitas coisas úteis fora de nós, especialmente

aquelas que concordam com a nossa natureza (com a qual temos alguma noção

comum), de maneira que indivíduos de naturezas convenientes entre si tornam-

se duplamente mais potentes juntos do que o seriam separadamente (p. IV, prop,

18, esc.). Ao que decorre que:

Nada é mais útil ao homem que o próprio homem. (...) Disso se segue que os homens que se regem pela razão, isto é, os homens que buscam, sob a condução da razão, o que lhes é útil, nada apetecem para si que não desejem também para os outros (37)(p. IV, prop. 18, esc.)

Retomamos a ideia de composição explorada acima, quando se

estabelece uma relação cria-se um terceiro corpo, que não é nem um indivíduo

nem o outro, tampouco a simples soma de ambos. Ampliar as possibilidades de

relações disponíveis ou dadas é também criar novos modos de vida, possibilitar

o aprendizado de tornar-se diverso do que se é, ou olhar para o que estamos em

vias de nos tornar. Nessa ética da construção de modos de vida este terceiro

corpo virtual, o da relação, há de ser zelado e cuidado. Poderíamos chamar isso

de amizade, dotando-a de um sentido político, a qual é condição indispensável

do pensar (131).

Talvez algum leitor já tenha percebido, também podemos chamar isso

sobre o que estamos falando de amor. Não um amor romântico ao estilo contos

de fada de princesas da Disney, tampouco um amor bíblico. Por favor, esqueça

qualquer ideia de jargões como “a tampa da panela” ou a “outra metade da

laranja”, não o definiremos assim! Estamos falando de um amor político! Assim

Spinoza define:

6. O amor é uma alegria acompanhada da ideia de uma causa exterior. (…) a vontade do amante de unir-se à coisa amada não

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exprime sua essência, mas uma de suas propriedades. (…) por vontade compreendo a satisfação que a presença da coisa amada produz no amante, satisfação que fortalece a alegria do amante ou, ao menos, a intensifica (37)(p.III, def. dos afetos).

Ora, falamos aqui de uma força ontológica e política do amor, em que a

alegria produzida na constituição desse corpo relacional amoroso aumenta

nossa potência, nossa capacidade de agir, de produzir ideias adequadas – pela

alegria acompanhada da identificação de uma causa externa. Escapando do

identitário, o amor é produtor de singularidades e de comum.

El amor (…) es alegría, es el aumento de nuestra potencia de actuar y pensar, unida al reconocimiento de una causa exterior. Mediante el amor formamos una relación con esa causa y tratamos de repetir y ampliar nuestra alegría, formando cuerpos y mentes nuevos y más potentes. Dicho de otra manera, el amor es una producción del común que constantemente apunta hacia arriba17, tratando de crear más cada vez con más potencia, (…), el común en su forma más expansiva. Podríamos decir que todo acto de amor es un acontecimiento ontológico en la medida en que señala una ruptura con el ser existente y crea nuevo ser (…). Al fin y al cabo, el ser no es sino otra manera de decir lo que es ineluctablemente común, lo que niega a ser privatizado o cercado y permanece constantemente abierto a todos. (...). Así, pues, decir que el amor es ontológicamente constitutivo significa sencillamente que produce el común (129).

Ora, então aqui não estamos propondo nenhuma ideia piegas de que

todos têm que se amar, mas sim a ideia de que produzir relações potentes, ou

seja, que ampliam nossa capacidade de existir de intervir e de sermos

modificados, também é amor. Então, uma equipe que “permite” a intervenção do

usuário em si, ou que permite que outra equipe a questione em seu processo de

trabalho age amorosamente. Então, uma equipe que aposta na potência de seu

usuário e na potência da equipe com a qual precisa se relacionar também age

amorosamente. Amor político. E para que o amor dure é necessário reconhecer

a diferença, prezar ao outro justamente pela diferença, é preciso lidar com as

17 Apontar para cima não deve ser entendido como criação de “formas superiores”, mas como uma espiral crescente de produção de potência e comum. Quanto mais aumenta nossa potência de atuar, mais se produz comum e assim sucessivamente. De modo que também podemos descartar qualquer pretensão limitante da capacidade de amar, nesse sentido que aqui exploramos quanto mais amor há, mais se produz.

O homem amará com mais constância o bem que ama e apetece para si próprio se vê que outros também o amam. Portanto, ele se esforçará para que outros também o amem. E como esse bem é comum a todos os homens e todos podem desfrutá-lo, ele se esforçará, então, para que todos dele desfrutem; e tanto mais se esforçará quanto mais ele próprio desfruta desse bem (37)(p.IV, prop.37).

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132

espontaneidades e necessidades do outro, sendo que nessa composição que

vai se moldando a criação conjunta (132).

Da capacidade de produção de singularidade vamos diretamente, na

mesma linha, para a capacidade de composição dessas singularidades. Não é

busca do Uno transcendental, mas sim, de um ato político e material de produção

de subjetividades e comuns compondo-se em contínua variação. Produção e

composição (129). Entendemos que Spinoza dá uma utilidade bastante prática

e política ao amor, o aumento da nossa potência, da nossa capacidade de

perseverar na existência, ou seja, o amor reforça o desejo por e pela vida e apoia

a consolidação das instituições comuns que o desejo busca construir.

De forma muito clara e sintética Hardt e Negri falam da potência do amor:

En primer y principal lugar, la potencia del amor es la constitución del común y en última instancia la formación de la sociedad. (…) componer [las diferencias de las singularidades] en la relación social y de tal suerte constituir el común. (…) la potencia del amor debe ser también, en segundo lugar, una fuerza para combatir el mal. El amor cobra ahora la forma de la indignación, la desobediencia y el antagonismo. (…) estos dos primeros aspectos de la potencia del amor - sus potencias de asociación y rebelión, su constitución del común y su combate contra la corrupción - funcionan conjuntamente en el tercero: hacer la multitud. Este proyecto debe reunir el proceso de éxodo con un proyecto organizativo encaminado a la creación de instituciones del común. El despliegue del amor tiene que ser enseñado y han de formarse nuevos hábitos mediante la organización colectiva de nuestros deseos, un proceso de educación sentimental y política (129).

Estamos, então, afirmando, que a produção de comum, a constituição de

corpos relacionais amorosos tem algo de excedente, criativo, não capturável – e

não previsível – com capacidade de resistência e de êxodo. Ainda que se tente

capturar, controlar ou normatizar algo transbordará. Há que se guardar essa

ideia, voltaremos nela pois já nos deixa pistas do porquê desenhos

excessivamente normativos de rede são insuficientes para a produção de vida

(do usuário e do trabalhador de saúde). O amor poderá produzir outras formas

de convívio, de viver junto, afirmando a autonomia e a composição de

singularidades no comum (129). Amamos os entes que alegram, ou seja, que

aumentam nossa capacidade de existir, nossa potência de agir e pensar, nossa

capacidade de afetar e ser afetado, enfim, o amor é profundamente criativo

(132).

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Amo tanto mais quanto mais tenho potencial para me expressar ativamente; e menos nos momentos em que sou reativo. E como vimos, a atividade e a reatividade dependem da confiança em si mesmo, que vem diretamente da confiança no ambiente –na vida, na substância espinosiana (…). Em outras palavras, amo tanto mais quanto o amor que sinto vem do excesso, da confiança que trago em mim, que permite aceitar a diferença, sobreviver aos ataques, e permanecer criativo e espontâneo. (…). Amo porque tenho em excesso, porque transbordo; desejo se e porque minha capacidade de estabelecer vínculos espontâneos com os outros, com o objeto amado, é grande. Amo porque me enriqueço com o mundo e com a diferença (132).

Pedimos ao leitor a paciência de seguir na leitura e que não pense que

estamos procurando produzir algum conceito panaceico, reconhecemos, assim

como os autores a que recorremos, que tais produções não necessariamente

levam à produção de vida e de felicidade, mas que podem ser o caminho

necessário. Ainda que a cada página saltem novos conceitos, devemos lembrar

que nenhuma estrela deve ser considerada sem as forças gravitacionais e

magnéticas dos outros corpos celestes, assim, na medida do necessário, ao

longo deste capítulo, explicitaremos cada um destes conceitos.

Comum?

[Cósimo] Aprendió esto: que las asociaciones hacen al hombre más fuerte y ponen de relieve las mejores dotes de las personas aisladas, y dan una alegría que raramente se alcanza actuando por cuenta propia, la de ver cuánta gente honrada y valiente y capaz hay, para la que vale la pena querer cosas buenas (35).

Começamos a entender, aqui, a necessidade dos homens em se

associarem, se conectarem, formarem redes em que possam partilhar, trocar. É

necessário produzir relações e produzir comum. Seguimos conversando.

Entendemos que uma coisa não nos pode ser boa nem má se não tiver nada em

comum conosco, pois se assim não for tal coisa singular não será capaz nem de

estimular, nem de refrear, nossa própria potência (37)(p. IV, prop. 29). Ao passo

que ela será tão mais útil quanto mais concordar (ou tiver em comum) com nossa

própria natureza (p. IV, prop. 31). E é quando cada homem busca para si o que

lhe é de máxima utilidade que então cada um será de máxima utilidade para

outro (p. IV, prop. 35, cor. 2). Parece óbvio, mas é importante (e não sem

consequências) a conclusão de Spinoza acerca disso:

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Por meio da ajuda mútua, os homens conseguem muito mais facilmente aquilo de que precisam, e que apenas pela união de suas forças podem evitar os perigos que os ameaçam por toda parte (37)(p. IV, prop. 35, esc.).

Sobre a utilidade, Spinoza considera, diante desses pontos já expostos,

que é útil ao corpo aquilo que o dispõe a ser afetado de múltiplas maneiras ou

incrementa sua capacidade de afetar os corpos exteriores e é tanto mais útil

quanto mais aumenta essas capacidades (37) (p. IV, prop. 38). Assim o será,

também, aquilo que faz com que os homens vivam em concórdia, apoiem-se

mutuamente (p. IV, prop. 40). Ora, dessa maneira, tanto mais um homem esteja

de posse de sua própria potência (ou seja, para Spinoza, seja mais livre) tanto

mais poderá unir-se a outros homens pela amizade (e não pela troca de favores)

(p. IV, prop. 70), ou pelo amor. E tanto mais um homem possa viver a partir dessa

verdade relacional, ou seja, segundo o ditame da razão, se esforça por viver

livremente, tanto mais desejará manter o princípio da vida e da utilidade comuns

(p. IV, prop. 73).

Quanto mais nos associamos por aquilo que temos em comum, tanto mais

aumentamos nossa capacidade de agir. Como de ideias adequadas seguem-se

ideias adequadas, logo, é na exploração dessas propriedades comuns (a partir

das quais produzimos conhecimentos adequados daquilo que nos afeta e

afetamos) que tanto mais poderemos compreender e ocupar nossa mente com

conhecimentos adequados (37) (p. IV, prop.12). Esse conhecimento Spinoza

chamará de conhecimento de segundo gênero (p. II, prop. 40, esc.2)(133), no

qual, em termos práticos, partimos de noções comuns singulares (entre

corpos/ideias) para chegar a essas ideias adequadas (134).

Será adequada na mente, além disso, a ideia daquilo que o corpo humano e certos corpos exteriores pelos quais o corpo humano costuma ser afetado têm de comum e próprio, e que existe em cada parte assim como no todo de cada um desses corpos exteriores (37) (p. II, prop. 39)

A ideia desse “algo em comum” é a primeira ideia adequada que

formamos e é a formação dessa ideia que marca a posse de nossa potência de

atuar. O sentido de noção comum que estamos procurando abordar aqui é o

menos universal, por onde chegamos a ser ativos. Ainda que noção comum seja

sempre a ideia de similitude de composição entre os modos existentes, as menos

universais representam uma similitude de composição entre corpos que convém

entre si diretamente e a partir de seu próprio ponto de vista, elas não

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permanecem externas, mas sim encontram nessa similitude uma razão interna

e necessária da conveniência dos corpos (133).

Não abordaremos aqui que:

En el otro polo, las nociones comunes más universales representan una similitud o comunidad de composición, pero entre cuerpos que convienen desde un punto de vista muy general y no desde su propio punto de vista. Representan pues “lo que es común a todas las cosas”, por ejemplo, lo extenso, el movimiento y el reposo, es decir, la universal similitud en las relaciones que se componen al infinito desde el punto de vista de la naturaleza entera. Estas nociones tienen aún su utilidad; puesto que ellas nos hacen comprender las desconveniencias mismas, y nos dan una razón interna y necesaria. Ellas nos permiten en efecto determinar el punto de vista a partir del que cesa la conveniencia más general entre dos cuerpos; ellas muestran cómo y por qué la contrariedad aparece cuando nos situamos en el punto de vista “menos universal” de esos dos cuerpos mismos (133).

Reafirmamos que, com essa discussão, estamos em um plano de

concretude bastante importante. A ideia abstrata aqui é inadequada, ela é

representativa, fica em uma seleção de caracteres rasos, fáceis de se imaginar,

simplesmente separando os que os têm daqueles que não os têm. Assim, a ideia

abstrata engloba a nossa impotência, de não perceber as pequenas diferenças

que singularizam os corpos ficando dependente da variabilidade, da fortuidade

dos encontros (133). Ora percebemos isso muito cotidianamente, tratar de uma

generalidade “morador de rua” é assumir nossa incapacidade de perceber o

mundo de diferenças que existe nessa população, bem como falar

genericamente do “usuário de crack”, o “etilista”, o “paciente poliqueixoso”, a

“equipe de PSF pouco qualificada”, o “hospital pouco empático” etc. etc.

As noções comuns são ideias práticas, relacionadas a nossa própria

potência visto que a formação destas advém de um afeto de alegria que nos

afecta (aumenta nossa potência de ação). Assim, elas têm a ideia daquilo que

convém aos corpos, tomam por objeto relações de composição entre corpos

existentes. A ideia de uma composição deixa claro que é uma relação, não se

reduz à essência de um nem de outro, nem à essência de um todo (38), ela

abarca a própria multiplicidade das singularidades, as quais se constituem,

inclusive, na própria relação. Quando uma ou várias equipes se reúnem, para

compor, para discutir sobre um usuário, não está mais em jogo esta ou aquela

categoria profissional, a perspectiva deste ou daquele serviço, o que está em

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jogo é a construção de um conhecimento singular para lidar com a situação

singular em que estes trabalhadores se encontram na relação com o/a usuário/a

e seu mundo.

Então, seguindo com Deleuze, ele nos instiga, a partir destes pontos:

Trata-se de saber se relações (e quais?) podem se compor diretamente para formar uma nova relação mais "extensa", ou se poderes podem se compor diretamente para constituir um poder, uma potência mais "intensa". Não se trata mais das utilizações ou das capturas, mas das sociabilidades e comunidades. Como indivíduos se compõem para formar um indivíduo superior, ao infinito? Como um ser pode se apoderar de outro no seu mundo, conservando-lhe ou respeitando-lhe, porém, as relações e o mundo próprios? (38)

Um corpo busca produzir comum com o que o cerca, é afirmação da

potência e da finitude. Para os modos finitos a dificuldade primeira é a do limite,

então, busca-se produzir um corpo mais potente, ou produzir comum. A ideia da

composição é um problema posto à vida. Isso é um jogo vital cuja única regra

imanente é a de buscar compor corpos mais potentes que perseverem na

existência. A potência político-criativa do amor, como discutido acima, pode dar-

nos pistas sobre como enfrentar essa questão.

Quando certa maternidade se defronta com gestantes e puérperas

moradoras de rua, usuárias de crack, pouco afeitas às lógicas regradas da

instituição hospitalar, ela flerta com seu próprio limite, com o caos ao qual não

está habituada. O medo é da decomposição. Produzir um corpo mais potente

para afrontar essa situação depende da construção de outras relações que

ajudem a produzir novos saberes para lidar com a singularidade da situação.

Consultório na Rua e maternidade podem aliar-se (e nosso caso o fizeram –

ainda que de maneira instável) buscando o melhor cuidado possível a essas

mulheres. O “sucesso” de cada caso, a alegria produzida nas equipes, reforça

esses laços. A alegria pela alegria do outro (amor político), a produção de

potência pelo aumento da potência de existir do outro. Não temos o direito de

viver isolados…(135)

Novamente afirmamos que essa é uma questão prática. Que redes

estamos formando? Que oportunidades de produção de encontros potentes, de

produção de bons afetos nossas redes estão proporcionando? Se as redes

servem para não deixar o homem na solidão, para que se associem na

construção de uma produção mais potente (de saúde, de vida, de cuidado), será

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que nossas redes estão sendo construídas, concretamente, neste caminho?

Estaríamos avançando na construção de relações singulares, respeitosas da

diferença e produtoras de diferenciação, ou, para utilizar a linguagem desse

texto, para além de desenhos formais, nossas redes produzem relações

amorosas?

Das redes de saúde e da produção de comum

Temos o desafio de falar de redes reais, no que elas produzem de

interessante e no que elas aprisionam movimentos. Uma rede concreta que é

produzida e usada por usuários, trabalhadores e gestores, cada qual com seus

interesses postos mais, ou menos, claramente (136).

É necessário tornar visível o trabalho como um espaço de construção de

sujeitos e de subjetividades, de coletivos que inventam mundos, inventam-se e,

sobretudo, podem produzir alguma saúde. Os equipamentos devem se apropriar

deste lugar das relações de trabalho para encontrar modos efetivos de fazer

comunidade (137) e produzir redes, no que tange o permanente encontro de

zonas de trocas, ou seja produzir espaços em que as noções comuns possam

ser construídas entre os corpos, na experiência do trabalho.

Ao dizer isso, reconhecemos a necessidade de se pactuar minimamente

certo fluxo pré-estabelecido para os usuários em geral. É fundamental o

estabelecimento de protocolos de comunicação entre-serviços, mesmo que isso

seja apenas através de um formulário de Referência e Contrarreferência. É

necessário reconhecer que mesmo quando se trata da constituição de um

formato mínimo de rede, que permita o trânsito do usuário pelos serviços, o SUS

ainda tem muito no que avançar (138). O que queremos afirmar é que tais

formalizações, se conduzidas a um engessamento do trabalho e da vida, não

serão capazes de responder a esse incessante refazer das condições de vida. E

se retomamos a discussão que Deleuze faz sobre Spinoza poderemos entender

essas redes como estruturas, ou seja, um sistema de relação entre partes de um

corpo, de forma que se poderá buscar como as relações variam entre esses

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138

corpos e determinar diretamente o quanto de semelhança pode haver entre eles

(133).

De modo que ferramentas como Programações Pactuadas Integradas,

determinações de referências e contrarreferências de serviços, etc., ainda que

úteis, não dão conta de um cuidado integral, das necessidades concretas de um

território, pois:

necessidades não nos são sempre imediatamente transparentes e nem jamais estão definitivamente definidas, mas são e desde sempre têm sido objeto de um debate interminável, de uma experimentação continuada, em que o que se discute e refaz sem cessar é a nossa própria humanidade (139).

A demanda de um território se define pela sua rede de relações e, o tempo

todo, (re) cria territórios de vida, é coletiva, de modo que exige agenciamentos

coletivos: defendemos que o esforço do trabalho em saúde caminhe no sentido

de entrelaçar uma comunidade e encontrar zonas de trocas para que,

mobilizando o que produz em comum, possa acolher diferentes necessidades e

fortalecer redes sociais. De modo que ocorra certa flexibilização da rede

orientada pela necessidade do usuário no momento do seu atendimento, uma

pauta mais prioritária do que regras enredadas estabelecidas a priori (140).

É neste ponto que a rede enrijecida, formalizada e abstrata nos é pouco

útil, pois este acolhimento de trocas demanda uma rede maleável que sustente

diferentes trajetos produzidos, os quais demandarão, a partir do momento deste

encontro, a produção de outros movimentos, outras redes. Redes que nos

conduzam a outros encontros e assim por diante: redes de produção de redes

(139). Como aparece na primeira parte deste texto, a produção de relações

potentes, encontros alegres que aumentam nossa capacidade de atuar,

necessariamente resistem a formatos estabelecidos que possam limitar sua

criatividade. A rede que se compõe com pelo menos alguns destes movimentos

escapa dela mesma!

O estabelecimento de redes piramidais e hierarquizadas de serviços de

saúde não só não dá conta dessas questões, como não responde a um território

onde pulsam necessidades, demandas e desejos. Radicalizando, passamos a

apostar naquelas redes mais horizontais, constituídas por nós de diferentes

funções, que fazem o movimento preciso, conforme seja mais adequado para

cada situação. O movimento de desmontagem da pirâmide permite, a um só

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tempo, tirar o hospital do “topo” da rede e dessituar as portas de entrada ao

sistema, que devem ser múltiplas, conforme a conveniência de cada caso

singular (141). Não há um serviço em que, por excelência, concentre mais

tecnologia, o que há são diferentes tecnologias de cuidado. Da mesma forma,

seguindo este raciocínio, a Atenção Básica, ainda que seja a porta de entrada

preferencial não é nem a única e nem, necessariamente, a coordenadora da

rede, o que dependerá de cada usuário e de cada contexto loco regional, na

perspectiva da efetivação de uma rede de serviços funcionalmente integrada,

pautada pela integralidade do cuidado (140).

Dessa forma, a ideia de estrutura trazida por Deleuze nos é interessante.

Não se pensando em algo rígido, mas sim em algo que olha para o emaranhado

de relações entre os corpos que se produz a todo tempo, o que é,

necessariamente, móvel. E se essas relações são potentes, politicamente

amorosas, produzirão coisas que escaparão dos desenhos previamente

produzidos. O trabalho se dá em ato, a vida se produz em ato, as redes talvez

tenham que permitir que estes movimentos façam parte delas. Perceber e incluir

as linhas de fuga éticas que falam do cuidado ao usuário, dos afetos produzidos

entre equipes e dessas com seus usuários e que lhes permite, de alguma forma

e em alguma medida, colocar em questão seus próprios processos de trabalho.

Isso é mais do que simplesmente mudar modelos de gerência em saúde,

é uma plataforma reivindicatória social para a instituição da felicidade. Devemos:

exigir la igualdad contra la jerarquía, permitiendo que todo el mundo se vuelva capaz de participar en la constitución de la sociedad, el autogobierno colectivo y la interacción constructiva con otros. (...) Queremos un gobierno que no sólo esté abierto a la participación de todos, sino que capacite también a todo el mundo para participar en la toma de decisiones democrática, permitiendo a las personas atravesar las fronteras (129).

Tecnologias, necessidades e integralidade

Aqui cabe um breve aparte, o que estamos entendendo por “tecnologias”,

“necessidades” e “integralidade”?

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Brevemente, nesta tese trabalhamos com a ideia de tecnologia a partir da

empregada por Merhy18, através da qual não a entenderemos apenas como

equipamentos ou instrumentos de uma produção, mas também como saberes

tecnológicos e composições de processos de trabalho. Desta forma, o

predomínio do manejo de instrumentos em um trabalho previamente planejado

pode ser uma organização do processo de trabalho tal que capture as

possibilidades criativas do trabalho, é trabalho morto. Já este trabalho criador é

chamado de trabalho vivo e lida com certa autonomia e capacidade de

autogoverno dos trabalhadores. Esses trabalhos comporão “caixas de

ferramentas tecnológicas” que fazem sentido para cada finalidade e lugar que

ocupam. As “tecnologias duras” são os equipamentos e medicamentos utilizados

nas intervenções terapêuticas, consomem trabalho morto. As “leve-duras” são

composições singulares de trabalhos mortos e vivos a partir de saberes bem

definidos e operam no ato clínico. Já as “leves” são colocadas como aquelas

constituídas em ato, na relação intercessora entre profissional de saúde e

usuário, onde também o usuário tem maiores possibilidades de atuar (127).

Tais tecnologias devem ser acionadas, ou compor-se, mediante as

necessidades dos usuários. Tais necessidades podem ser organizadas em

quatro grandes conjuntos, um dos quais é justamente a necessidade de se ter

acesso e se poder consumir toda a tecnologia necessária para melhorar e/ou

prolongar a vida. Ter boas condições de vida é outra categoria, se traduz em

diferentes necessidades conforme a maneira como se vive, no que podemos

incluir condições de moradia, transporte, alimentação etc. O terceiro conjunto é

relativo à necessidade de se produzir vínculos entre as pessoas e as equipes, o

que demanda ser bem acolhido e perceber profissionais responsabilizados por

seu atendimento. Por fim, a necessidade de se produzir graus crescentes de

autonomia para conduzir seus próprios modos de levar a vida, sendo capaz de

reconstruí-los diante das necessidades (142).

Nesse caminho, tal autor entenderá que:

A integralidade da atenção, no espaço singular de cada serviço de saúde, poderia ser definida como o esforço da equipe de saúde de traduzir e atender, da melhor forma possível, tais

18 Reconhecemos outras definições de tecnologia, como a de Nikolas Rose, a partir de Foucault.

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141

necessidades, sempre complexas, mas, principalmente, tendo que ser captadas em sua expressão individual (142).

Tal princípio constitucional do SUS, além de emergir como princípio

organizador do processo de trabalho dos serviços de saúde em vistas das

necessidades dos usuários também pode ser compreendido dentro de mais dois

grandes grupos de sentidos, um relativo a atributos das práticas dos profissionais

de saúde, relacionado ao que poderia ser considerado como uma boa prática. O

outro grupo seria ligado às respostas governamentais aos problemas de saúde,

como princípio orientador das políticas (83).

De toda forma a Integralidade nunca se dá em um só lugar, ela passa pela

articulação de cada serviço de saúde a uma rede complexa composta por outros

serviços e instituições não só de saúde. A Integralidade demanda organização

para múltiplas entradas na rede, com múltiplos fluxos e circuitos, pautada pelas

necessidades reais das pessoas (142).

Essa rede é a que novamente coloca em questão o paradigma

hierarquizado e piramidal. Righi (143) problematiza a constituição de rede

afirmando que diante da indefinição e mutabilidade dos nós fica o desafio do

estabelecimento das conexões das redes, de como criar arranjos e dispositivos

que permitam o encontro, o contato e o acordo entre os diferentes nós. Este

encontro entre sujeitos identificados com diferentes saberes, com diferentes

ângulos sobre determinadas questões, pode permitir a construção de novas

questões e propor intervenções diferentes (muitas vezes mais eficazes, há que

se dizer), enfim, efetivas redes de produção de vida. Buscando sair de uma ideia

abstrata de rede entendendo, aqui, por exemplo, que os municípios que

constituirão uma região, um espaço concreto de existência de rede de saúde

(143) são municípios-multiplicidades, ou seja, compostos por múltiplos serviços,

gestores, trabalhadores e usuários, partes que necessitam compor no

movimento democrático e criativo no qual estamos apostando. Ou seja,

simplesmente um desenho de rede, rígido, feito de fora do trabalho vivo

cotidiano, é uma mera abstração representativa e acaba dizendo mais de uma

incapacidade de captar e dar passagem às singularidades, aos múltiplos

movimentos potentes que podem surgir a cada momento.

É importante uma atuação não apenas no campo macroestrutural, mas

também nas microesferas, nas relações de trabalho, com uma qualificação

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142

contínua da gestão e incorporação de novos sujeitos nas lutas pelas mudanças

sociais. Pois, ainda que histórica e analiticamente tendamos a separar as macro

das microestruturas de rede, não existe “A” rede de antemão (pré-formatada,

pronta ou ideal). O que não quer dizer que existam dois tipos de rede, e sim

redes possíveis. Produzir permanentemente outros arranjos de rede exige,

então, produção de espaços coletivos que encontrem de fato zonas de trocas,

que ampliem os processos colaborativos. Assim, também reconhecemos que as

redes existentes são uma expressão de possível e que nenhuma forma será

suficiente ou acabada, sobre qualquer forma de rede poderá recair críticas, mas

é necessário olhar para o que determinado desenho está produzindo – produz

efetivos encontros entre os corpos para a produção das tais “noções comuns”?

De forma alguma, “rede” por si só, deve ser considerada um conceito, ou prática,

solucionador de todo e qualquer problema.

Uma criança, apaixonada por borboletas lamenta a perda das flores de seu jardim para a voracidade de um formigueiro. Impotente, chora vendo pétalas caírem na saudade daquelas cores dançantes no ar. Um mês depois, as formigas pareciam ter desaparecido. O que aconteceu pai? A aranha filha! Espantou as formigas. A pequena festejou a presença das finas teias entre os ramos das plantas. Algumas semanas depois, ela foi levada a um passeio no rio. Caçavam borboletas! Não para coleta-las, mas apenas para admira-las. Flutuavam, azuis, amarelas, brancas, coloridas, fluorescentes, grandes ou pequenas, às margens d’água. Algumas aranhas tinham suas teias nos limites da trilha e isso não lhe chamava a atenção. Até que, em alguns galhos pendentes sobre as pedras da margem armava-se uma grande e poderosa teia, nela uma larga borboleta morta. Tal cenário enredou a criança em pavor, que, com as pernas bambas, era capaz apenas de um choro profuso…

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143

O Singular e o Coletivo nas Redes

Faz-se necessário o fortalecimento de uma democracia institucional que

incorpore ao usuário como sujeito da mudança - valorizando seu papel no

cotidiano de sua própria vida e dos serviços e sua atuação nos conselhos de

saúde e outras instâncias ditas de controle social -, e ao trabalhador, produzindo

seu espaço de autogestão, de autonomia e de criatividade (70). Incorporar o

trabalhador dessa forma passa por um entendimento do trabalho em saúde que,

inserindo-se em um contexto organizacional, estimule o compromisso das

equipes com a produção de saúde, facilitando, também, a satisfação profissional

e pessoal dos trabalhadores (144).

É nesse plano micropolítico, por exemplo, que podemos reconhecer uma série de experiências que, já há algum tempo,

Figura 8 - Rachael from the Enchanted Forest (2012) - Instalação e fotografia de Garth Knight - http://www.garthknight.com/portfolios/2012enchantedforest/05red/08.html - Acessado em 27/01/16

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vêm criando algumas possibilidades reais de (...) efetivamente ampliarmos as chances de participação de todos nas escolhas que mais diretamente afetam a “poética social” que produzimos e que é, afinal, o modo como realizamos individual e coletivamente uma dada estética da existência (145).

Assim, a produção de rede pode vir a se constituir enquanto uma

democracia viva em ato, pois é imanente no processo de trabalho em saúde

(146), um trabalho que é potencialmente vivo (147), produz a vida,

necessariamente produz e reproduz afetos, cria linhas de contato entre agentes

sociais (146) e, logo, tem enorme potencial de ação biopolítica (148). E para que

essas redes de trabalho afetivo (121) possam ser efetivas precisam encontrar

zonas de singularização (o espaço de realização das potências individuais), o

que passa pelo encontro de zonas de comunidade (o espaço de realização das

potências “comunitárias”)(139).

O entendimento disso passa pela ideia de que a singularidade recusa

qualquer ideia de pertencimento ou de identidade, pensar uma zona de

comunidade é pensar em um comum imanente e em permanente construção

(82), é pensar a produção de noções comuns, que nos propicie um conhecimento

adequado do mundo neste corpo coletivo eterno e temporário. E todo tipo de

grupo, comunidade, sociedade é fruto de uma árdua e constante negociação

entre preferências e desejos “individuais” – sem esquecer que, via de regra, as

preferências ditas individuais são na verdade fruto dessa construção coletiva

(137).

E quando estamos falando de indivíduo aqui, falamos de um movimento,

de um processo de individuação que guarda em si todo um aparato pré-

individual. Assim, em que pese que esse entendimento de coletivo valorize toda

uma carga individual considera-se uma individualidade em processo que provém

de um universal e de um comum. Um primeiro campo pré-individual é o fundo

biológico da espécie, seu aparato sensitivo, motor e perceptivo. Um segundo é

a língua, em seu uso interpsíquico, cultural e público, ela é de todos e não é de

ninguém. Por fim, o terceiro lugar é o conjunto das forças produtivas. É a

cooperação social como tarefa, conjunto de relações poiéticas, cognitivas e

emotivas (44,128). De toda forma isso é redundante e coloca-se apenas para

dar mais uma abordagem dessa linha de pensamento sobre o indivíduo já

explicada acima através de Spinoza e que não é demais recordar… uma dada

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coisa singular é um modo finito do pensamento ou extensão e um corpo se

caracteriza por uma mistura de partes extensivas organizadas sob dadas

relações. Um corpo é composto por infinitas partes menores e compõem infinitos

corpos maiores que ele mesmo.

Portanto, mesmo aqueles espaços coletivos que são lugares de práticas

planejadas, projetadas, programadas, como serviços de saúde, são, sobretudo,

lugares de encontro, de trocas, abertos a movimentos imprevistos, o que os

define, os articula, são redes de relações. Há uma reversão política: são os

lugares de encontro que dão a dinâmica dos espaços, constituindo territórios de

vida. Assim, é a ampliação de zonas de trocas, de graus de comunicação, de

construções conjuntas que confere resistência a esses espaços e seus usos

(149).

Estimular os coletivos (…) é procurar torná-los, nesse processo, sujeitos desejantes, capazes de atuar no mundo conforme os preceitos de um projeto de mudança, pautado pela ética do cuidado, em condições de revolucionar o que se impõe atualmente, como uma realidade que vive na repetição (146).

Esse plano coletivo, imanente, plano de criação, tem um poder instituinte

no coengendramento de formas individuais e sociais. Espaços que podem ser

formalmente instituídos, ou não, onde podem operar dispositivos (e experiências,

ideias, afetos etc.) que podem produzir um plano de afetabilidade coletiva, um

plano relacional (150), a produção de noções comuns. Aqui passamos por uma

ideia de agenciamento coletivo, ou seja, a produção de algo que está na relação,

nem em um, nem em outro, mas em certo espaço-tempo comum, impessoal e

partilhável. E assim poder-se-á produzir um espaço relacional que explicita

relações de poder e saber, transversalizam corporações profissionais, usuários

e territórios. Uma experiência coletiva permanente de problematizações,

identificações de perigos e escolhas ético-políticas (150). É a produção do

“terceiro corpo”, o relacional, que também precisa de atenção e cuidado, a linha

constitutiva das redes. Na aposta da construção de redes espera-se criar uma

malha de cuidados ininterruptos, organizados de forma progressiva, ampliando

o universo e a natureza dos serviços de saúde/nós conectados nessa rede (151).

Fica também, como desafio, oportunizar esses encontros de forma que

produzam laços de confiança a ponto desse trabalho tornar-se algo

intercomplementar, resolutivo, produtor de autonomia, com capacidade criativa

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e gerador de responsabilização. As equipes precisarão desenvolver a

capacidade de criar alianças e de produzir um comum ante as divergências, há

um deslocamento sutil: são os pontos críticos comuns que fazem aparecer os

diferentes pontos de vista em torno de uma mesma questão (47). Produzimos,

assim, um deslocamento da ideia de que uma rede precisa de um único objetivo,

um pensamento uniforme que a conduza, passa também pela inclusão da

diferença e pela produção de diferenciação.

O caráter principal do sistema a-centrado é que as iniciativas locais são coordenadas independentemente de uma instância central, fazendo-se cálculo no conjunto da rede (multiplicidade)(27).

Estamos tratando da produção de sujeitos e práticas. Uma produção

necessária para construir possibilidades para além dos limites de saberes e

práticas estanques. Parece-nos uma exigência para se produzir, de mais a mais,

uma melhor saúde. Podemos considerar esse um dos nós e um dos desafios

para a constituição de uma rede produtora de vida: sujeitos em produção que se

encontram na diferença para produzir projetos comuns (100).

A construção de redes se apresenta como uma tarefa complexa, exigindo

a implementação de tecnologias que qualifiquem os encontros entre diferentes

serviços, especialidades e saberes. Ter mais serviços e mais equipamentos é

fundamental, mas não basta. É preciso também garantir que a ampliação da

cobertura em saúde seja acompanhada de uma ampliação da comunicação

entre os serviços, resultando em processos de atenção e gestão mais eficientes

e eficazes, que construam a integralidade da atenção. São estes processos de

interação entre os serviços e destes com outros movimentos e políticas sociais

que fazem com que as redes de atenção possam ser19 produtoras de saúde num

dado território (100).

A assimilação do conceito de rede representaria uma inovação importante para a organização da atenção no campo da saúde: responsabilidades diferentes, diferentes tipos de poder, diferentes funções sem hierarquizar complexidades ou importância no processo de produção do cuidado em processos mais flexíveis. É, portanto, diferente da organização em pirâmide, com sua base e sua cúpula. Não há hierarquia de

19 “Possam ser” porque, como explorado acima, não é possível dizer que a constituição de qualquer rede de atenção seja produtora de saúde, ela pode ser, por exemplo, endurecida a ponto de aprisionar o usuário ao invés de deixa-lo percorrê-la ou coconstruí-la, certamente prejudicando a continuidade de seu cuidado de forma integral.

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importância estável ou permanente entre os que compõem a rede. Ou seja, na rede, a complexidade não tem endereço fixo (143).

Ou seja, as redes são singulares e suas conformações variam no tempo,

no espaço, no contexto e no diagrama de forças nos quais estão inseridas. Isso

passa pela concepção de que rede é um conjunto de nós interconectados, cuja

definição depende de que tipo de rede concreta se fala. Assim, nessa

concepção, a ideia de produção de redes de saúde sempre carrega certa

provisoriedade e inacabamento (143).

Romper com uma estrutura abstrata de rede possibilita pensar que

quando essa rede se rompe é para se refazer. E uma ruptura em certo lugar

pode ser abertura de linhas de fuga para construções não previstas

anteriormente, não dadas de antemão, o que pode aumentar a capacidade de

produção de si (146), de instituições sociais, como serviços de saúde,

providenciarem um modo de fazer rede, que é próprio de noção de rede que aqui

se pretende explorar. Estamos também falando, em outras palavras, em um

aumento da capacidade das equipes de afetar e serem afetadas pelo mundo.

Seria então a rede, além de um conector de pontos, uma aposta na potência (e

na produção dela) das pessoas e de seus corpos-equipes. Produzir redes é

também fazer uma clínica de redução de danos com os usuários, com as equipes

e com a própria rede.

Uma rede que funciona de acordo com processos produtivos, que são

políticos, operativos, subjetivos, um trabalho que se dá por comunicação

coletiva:

Nesse esquema a imagem é de uma rede da qual todos participam, entregue à deformação e ao esgarçamento. O sentido não flui de um ponto ao outro, é “o-que é-com”, o contexto, que está sempre em jogo, permanece alvo dos atos de comunicação (152).

A Gestão, o Comum e a Multidão

Há que se fazer uma torção semântica na discussão em torno da rede de

serviços de saúde ou de atenção à saúde, não estamos falando do

gerenciamento de pontos de atenção à saúde, estamos falando de um campo

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de práticas que integrará uma rede, para além de serviços específicos, e de

zonas de saúde fixas, para encontrar zonas de produção de comum.

Estamos escapando de uma dicotomia entre a dimensão coletiva e a

individual, de relações de oposição, para retomar a organização do trabalho

interessada em tornar visível “os modos efetivos que temos encontrado de fazer

comunidade” (137), focando o fortalecimento de redes de vida, de redes sociais.

Entendemos esta manobra de visibilidade como uma reversão política que,

radicalmente, ou seja, fazendo os movimentos precisos, possa sustentar os

princípios do SUS, outras relações de trabalho e outros modos de se articular a

rede de serviços em saúde.

Apostamos que esse movimento de produzir, com o coletivo, processos

de escuta, análise, construção de textos coletivos, definição de tarefas, redes de

responsabilização e avaliação resulta, efetivamente, em mudanças nas formas

de se gerir, em exigências sobre as condições de trabalho e de gestão, no

aumento da capacidade de manejo de casos complexos e em uma construção

sistêmica da rede de atenção à saúde (103). Consideramos que o agenciamento,

as tensões, os conflitos, os acordos e os consensos produzidos a partir desses

encontros poderão agir a favor da melhoria da qualidade da produção de saúde

dos serviços de saúde individualmente e de sua composição enquanto rede.

Aportando esses conceitos-dispositivos ao campo da gestão podemos

passar a entendê-la também como uma prática democrática possível de ser

praticada colocando os atores que a fazem cotidianamente frente a frente.

Assim, entendo que a cogestão deixa de ser uma parte da gestão (em que se

partilha o gerenciamento de alguns projetos, de algumas áreas, de alguns

assuntos, mas não do todo ou do cotidiano em si), para ser a gestão. Uma radical

aposta na construção coletiva, na democracia institucional (e na democracia

direta), na corresponsabilização. Meio para o fortalecimento de uma rede, para

a produção de uma rede de produção de saúde, de produção de vida. Não

qualquer rede, mas sim uma que reconheça na diferença a potência da produção

coletiva. É uma plataforma revolucionária na direção da instituição da felicidade,

a reivindicação do acesso ao comum contra todas as barreiras que a propriedade

privada possa colocar (129).

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Assim, é interessante pensar essa postura ético-política de gestão como

uma política dos encontros, afinal não é possível se partilhar gestão sem os

atores envolvidos se encontrarem. Esses encontros podem construir um comum,

podem ser potencializadores ou decompositores de sujeitos e coletivos, de

produção de vida e de alegrias ou de morte e tristezas.

Esses espaços e esses encontros podem tornar evidentes os ruídos, os

incômodos que atravessam as instituições. Esse “barulho” pode ser uma forma

de oprimir os anseios latentes, provocando imobilidade, mas também podem ser

percebidos como a existência de processos com uma potência instituinte, que

não estão tendo espaço para seu aparecimento. Neste sentido seria importante

lançar mão de ferramentas-dispositivos que deem voz a esses processos

instituintes, criando “olhares analisadores ruidosos”. Entendendo que essas

ferramentas precisariam ter a capacidade e a sensibilidade de dar visibilidade e

dizibilidade para o “como” se trabalha naquela equipe/instituição, analisando “o

quê” se está produzindo com essa forma de trabalhar e permitindo-se questionar

“para quê” se está trabalhando (147).

Vamos além! Não estamos falando apenas de práticas de cogestão,

estamos falando de uma atitude reivindicatória que seja capaz de exigir

igualdade, de exigir rompimento de hierarquias reconhecendo o autogoverno de

cada trabalhador, mas também o autogoverno dos coletivos. Estamos falando

de uma política do amor como sendo crucial para a construção de redes

produtivas de vida. É habitar dispositivos para além de ferramentas de gerência,

mas para a produção de subjetividade atentos ao processo de devir outro.

Produzir redes é produzir comum! O que podemos vir a ser se temos tal ousadia?

Todos esses apontamentos vão nos direcionando para construção do

nosso campo problemático: a que respondem os arranjos, desenhos, de nossas

redes de trabalho? O que os espaços coletivos estão produzindo – encontros

alegres e potentes ou um labirinto fantasmagórico em que as pessoas se

encontram, mas não conseguem cuidar e serem cuidadas percorrendo um

caminho de decomposição, de esgotamento? Os espaços coletivos produzem

zonas de trocas – uma produção de comum na linguagem, na produção de

conhecimento, no cuidado, nos afetos? Como transformar redes duras em redes

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maleáveis, não fixas, que se arranjem mediante a produção singular que é

apresentada em cada território?

Acredito que com estes questionamentos radicais é que poderemos

mudar relações de poder, processos de trabalho e produzir outra lógica de

produção de subjetividade que leve em consideração essa produção de vida

(tanto do usuário, mas também do trabalhador e do gestor). E ao longo desta

pesquisa, acabamos mudando os questionamentos, passando de um “o que” –

que demandaria desenhar várias experiências e fazer consolidados, pois não há

uma rede ideal, não há um padrão de organização ou de comportamento -, para

um “como” – que nos levou a olhar para experiências e pensar como se estava

produzindo ali, no cotidiano concreto do trabalho em saúde.

Que tipo de rede estariam produzindo aquelas experiências concretas, ou

como elas estavam operando? Vimos a formulação de uma ideia de redes mais

abstrata (ainda que necessária), operando por ideias feitas a priori ao trabalho,

tendendo à burocratização e à não inclusão do trabalhador e, em especial, da

necessidade do usuário. Mas também vimos redes sendo produzidas em ato e

quebrando vários fluxos pré-estabelecidos para produzir novos e abrindo trilhas

onde antes só havia mato alto. Ainda que mais atenta à necessidade do usuário,

esse modo de fazer carrega-se de toda a frágil provisoriedade possível. De um

modo ou de outro, esse segundo modo de fazer, parece-me mais interessante

para a produção de saúde e de vida, um modo que sai de desenhos abstratos

representativos e passa à produção de mapas impermanentes, abertos, que

criam e capturam linhas de fuga constantemente, mas, sobretudo, que aposta

na potência de existir de usuários e equipes para criar e cuidar. Enfim, estamos

reafirmando que a produção de redes de produção de saúde precisa passar pela

afirmação da vida, da diferença, da produção de potência, da ampliação da

capacidade de afetar e ser afetado, da produção de noções comuns entre os

corpos.

Neste movimento de “pôr em comum”, de fazer comum, vamos

experimentando abrigar uma multiplicidade de singularidades associadas em

redes de afetos, instaurando uma guerrilha no/do sensível, numa exploração de

veredas de outros mundos possíveis. Partilhar alguma coisa é remar junto, é

estar no mesmo barco. Praticamos uma ética ao exercer composições nas quais

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aqueles que estão envolvidos se mantêm diferentes, do começo ao fim da

relação. Descobrindo o desconhecimento de ser comunidade podemos esboçar

zonas de vizinhança e convergência na produção de novas questões em comum.

Neste campo pulsam forças afetivas que traçam linhas diagonais no tecido

social, escapando aos laços legais ou normalizadas pelas instituições (4).

Falar em “redes de vida” será quase redundante aqui quando entendemos

vida como o poder de afetar e ser afetado, a composição de uma sinergia

coletiva, cooperação social e subjetiva. Questões que passam pelas produções

de variações nos arranjos instituídos de modo a ampliar o grau de conexão entre

rede de serviços de saúde e territórios existenciais singulares e assim ampliar a

porosidade dos serviços para a potência inventiva gerada pelo encontro de

corpos e territórios singulares na aposta da potência do homem (82). Então

nesse sentido, produzir comunidade se relaciona à possibilidade de se produzir

esse corpo que, em não sabendo dos afetos de que é capaz (37), terá que saber

quais são as relações que o compõe na direção de uma “potência mais intensa”,

de tal forma que o comum se dá em um constante construir-se, engendrar-se

(82). Seguimos com a ideia espinosana de que tanto mais potente é um corpo

quanto mais ele é capaz de fazer variar suas relações e que, nesse sentido

produzir comum é produzir potência.

Nesse movimento de construção permanente interessa-nos a imagem da

espiral trazida por Hardt e Negri (153) ao afirmarem que

A subjetividade é produzida através da cooperação e da comunicação e, por seu turno, esta subjetividade produzida produz ela própria novas formas de cooperação e de comunicação, as quais por sua vez produzem de novo subjetividade, e assim por diante. Nesta espiral, cada momento da cadeia que parte da produção da subjetividade para a produção do comum é uma inovação que tem por resultado uma realidade mais rica. Talvez neste processo de metamorfose e constituição devamos reconhecer a formação do corpo da multidão, uma espécie fundamentalmente nova de corpo, um corpo comum, um corpo democrático (153).

Assim, a subjetividade carrega-se de força viva, uma potência política que

é a própria potência de vida da multidão. A multidão não é uma massa uniforme

(povo), mas um conjunto heterogêneo de subjetividades que, em sua

complexidade e multidirecionalidade, produz um corpo mais potente(82). Para

Pelbart se constitui, então, o comum como um espaço produtivo por excelência,

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que é posto para trabalhar e apropriado pelo privado no movimento do

capitalismo pós-fordista.

Seria o caso de postular o comum mais como premissa do que como promessa, mais como um reservatório compartilhado, feito de multiplicidade e singularidade, do que como uma unidade atual compartida, mais como uma virtualidade já real do que como uma unidade ideal perdida ou futura. Diríamos que o comum é um reservatório de singularidades em variação contínua, uma matéria a-orgânica, um corpo-sem-órgãos, um ilimitado apto às individuações as mais diversas (82).

Se colocar a trabalhar aquilo que é comum torna fictícia divisões técnicas

impessoais do trabalho (o produto é inseparável do ato de produzir na multidão),

não tornar o comum público, apropria-lo, é provocar os mais elevados graus de

submissão (128). Por outro lado, para Negri e Hardt (153), justamente a

produção biopolítica da multidão mobiliza o que ela tem de comum e o que

produz em comum contra o capital imperial global. Seria a própria multidão o

único sujeito social capaz de realizar a democracia, fazer o governo de todos por

todos. Aqui o conceito de comum aparece enquanto atividade produtiva das

singularidades presentes na multidão, tendo por base a comunicação entre

essas e expressando seus processos sociais colaborativos. O comum é

produzido e é também produtivo (153). Trata-se, sobretudo, de defender uma

democracia não-representativa e as experiências plurais (128).

E Virno assevera e pondera:

A multidão é um modo de ser, o modo de ser prevalecente hoje em dia: mas como todo modo de ser é ambivalente, já contém, em si mesmo, perda e salvação, aquiescência e conflito, servilismo e liberdade. O ponto crucial, no entanto, é que essa possibilidade alternativa possui uma fisionomia peculiar, distinta daquela com a qual a comparamos na constelação povo/vontade geral/Estado (128).

É necessário reconhecer que toda estrutura de cooperação também pode

ser de controle e de comando, assim, não há milagre ou panaceia:

Os grupos e os indivíduos contêm microfascismos sempre à espera de cristalização. (…) O bom o mau são somente o produto de uma seleção ativa e temporária a ser recomeçada (27).

Ou seja, e nunca é demais dizer que, ainda que entendamos essa

construção como potente na afirmação da vida, nem todas as suas produções

são interessantes, nem todas as linhas de fuga asseveram isso… elas ainda

podem ser castradoras, aprisionadoras, excludentes…

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Diante do estreitamento das possibilidades de vida, nos mais distintos

âmbitos, morando na rua, bebendo, usando crack e traficando, um grupo ocupa

um barracão em região próxima ao centro da cidade. É algo bem diferente do

que seria uma “crackolandia” alardeada pela mídia. Ali cada um tem sua função

no cuidado do espaço, “mangueando” (conseguindo dinheiro ou alimentos),

cozinhando, limpando, cuidando um do outro, fazendo festa. Assim, são mais

capazes de resistir às intempéries de uma vida marginal, à violência da polícia e

da sociedade. Não romantizemos, também produzem seus fascismos, tornam

possível seus tráficos (para o qual cada um também tem sua função), sua própria

violência uns com os outros (dentro dos códigos de condutas bem conhecidos e

adotados por ali) etc.

Cabe trazer mais um excerto do último livro de Negri e Hardt onde se

define muito claramente o comum:

Una democracia de la multitud es imaginable y posible sólo porque todos compartimos y participamos en el común. Por “el común” entendemos, en primer lugar, la riqueza común del mundo material – el aire, el agua, los frutos de la tierra y toda la munificencia de la naturaleza (…) Pensamos también que el común son también y con mayor motivo los resultados de la producción social que son necesarios para la interacción social y la producción ulterior, tales como saberes, lenguajes, códigos, información, afectos etc. Esta idea del común no coloca a la humanidad como algo separado de la naturaleza, como su explotador o su custodio, sino que se centra en las prácticas de interacción, cuidado y cohabitación en un mundo común que promueven las formas beneficiosas del común y limitan las perjudiciales (129).

Então, o que temos trabalhado por comum nesse texto vai para além da

ideia de algo que usamos em comum, ou que todos usam, mas fala,

principalmente, de algo que produzimos em comum. O comum está no produtivo

das relações que continuamente se fazem e desfazem, está em uma zona de

trocas, em um trabalho vivo em ato necessariamente coletivo. O comum está

neste corpo que não é um ou outro, mas a relação produzida entre estes corpos

‘primeiros’, singular e continuamente a refazer-se e modificar-se em sua

capacidade de afetar e ser afetado (o terceiro corpo virtual, da amizade, do

amor).

As subjetivações, as totalizações, as unificações são, ao contrário, processos que se produzem e aparecem nas multiplicidades. Os princípios característicos das multiplicidades concernem a seus elementos, que são singularidades; a suas

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relações, que são devires; a seus acontecimentos, que são hecceidades (quer dizer, individuações sem sujeito); a seus espaços-tempos, que são espaços e tempos livres; a seu modelo de realização, que é o rizoma (por oposição ao modelo da árvore); a seu plano de composição, que constitui platôs (zonas de intensidade contínua); aos vetores que as atravessam, e que constituem territórios e graus de desterritorialização (27).

Redes rizomas

Por fim, e se entendemos corpo, novamente à maneira de Espinosa, como

uma multiplicidade constituída por inúmeros outros corpos e que se define,

enquanto a singularidade da relação estabelecida entre estes corpos (37) parece

também fazer sentido entender Redes como rizomas. O encontro entre mundos

diferentes e as conexões entre estes corpos (de usuário, de profissional, de

gestor) são encontros singulares que dão sustentação à constituição de redes

que operam enquanto rizomas. Neles quaisquer pontos podem se conectar, de

forma que a análise da rede-rizoma se desloca dos pontos para a relação entre

eles (incluindo-os nisso), de modo que se um desenho de rede se estabelece é

apenas mais uma marca em um plano de consistência que também reconhece

suas linhas de fuga, de maneira que a rede opera atenta a seu rompimento

nestas linhas para se refazer remetendo-se a elas mesmas (ao invés de ignorá-

las ou tentar suprimi-las). Constituem territórios e graus de desterritorialização.

Um rizoma o é, mesmo sem um aparato que o centralize e organize (27).

A ideia de uma rede-rizoma parece-nos interessante, pois o rizoma

guarda sempre as diferenças, a multiplicidade, sendo assim regido pela

heterogeneidade. Importam menos as possibilidades de sentidos e mais as

possibilidades de linhas de fuga, de criação. A conexão de heterogêneos, pode,

por si só, ser produtora de outras formas inesperadas e inéditas, aí que

pensaremos o rizoma, a rede-rizoma, não por sua forma, mas pelas conexões

estabelecidas, feitas e desfeitas (154).

Um rizoma não começa nem conclui, ele se encontra sempre no meio, entre as coisas, inter-ser, intermezzo. A árvore é filiação, mas o rizoma é aliança, unicamente aliança. A árvore impõe o verbo "ser", mas o rizoma tem como tecido a conjunção "e… e…

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e…" Há nesta conjunção força suficiente para sacudir e desenraizar o verbo ser (27).

Ao longo desse texto fomos explorando entradas para a discussão de

redes que nos parece interessante por estar inserida no mundo concreto da vida

de trabalhadores e usuários de saúde e que diante disso pode inventar-se e (re)

construir-se para atender às suas próprias necessidades. Franco (146) já

explorou a relação de uma ideia de rede com um funcionamento rizomático,

entendendo que dessa forma seria possível, potencialmente, ter sujeitos

desejantes pautados por uma ética do cuidado. De uma maneira ou outra já

abordamos/descrevemos as características do rizoma colocadas por Deleuze e

Guattari ao longo do texto, mas cabe explicitar em detalhes.

Tomando a rede por rizoma não temos um nível superior (nem o hospital,

nem a Atenção Básica), não estabelecemos uma hierarquia entre serviços,

buscamos descentrar a rede de saúde sem adotar um centro fixo, mas múltiplos

centros que se realçam mediante suas funções à necessidade de cada caso.

Dessa forma, qualquer ponto da rede pode se conectar a qualquer outro e deve

fazê-lo (1º Princípio – de Conexão) (27). Os corpos dos trabalhadores, das

diversas equipes, de seus usuários estabelecem corpos de relações singulares

buscando cuidado e produção de vida e quanto mais relações interessantes

estabelecerem, mais potentes serão seus corpos.

Um rizoma não cessaria de conectar cadeias semióticas, organizações de poder, ocorrências que remetem às artes, às ciências, às lutas sociais. Uma cadeia semiótica é como um tubérculo que aglomera atos muito diversos, linguísticos, mas também perceptivos, mímicos, gestuais, cogitativos: não existe língua em si, nem universalidade da linguagem, mas um concurso de dialetos, de patoás, de gírias, de línguas especiais (27).

É na diferença, (de práticas, de ideias, de objetivos etc.) que tais corpos

poderão compor, afetar e serem afetados, e constituir uma trama potente o

suficiente para lidar com a complexidade da vida e do sofrimento. Não existe

trabalhador ideal, tampouco usuário ideal para tal complexa atividade (2º

Princípio – de Heterogeneidade) (27). Novamente, é afirmar a diferença e

apostar na potência, na capacidade de afetar e ser afetado.

Assim, também não se faz necessário dar cabo de um frequente discurso

que apela à necessidade de homogeneidade da rede de serviços, de condutas

alinhadas e planificadas uniformemente, ou de uma missão única. As

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multiplicidades são rizomáticas, nos rizomas esses corpos podem e devem

determinar-se, mudar de dimensão. É quanto mais crescem que mais são

capazes de múltiplas combinações. É transformar um sistema de pontos de

atenção em linhas de conexão de cuidado. Conforme ocupem-se mais e mais de

suas funções, alterem de dimensão e aumentem de potência, agenciem-se uns

com os outros, mais a capacidade criativa desses corpos será capaz de produzir

outras linhas, de fuga ao que já está pré-estabelecido e que podem responder

melhor às múltiplas situações singulares (3º Princípio – de Multiplicidade) (27).

Ora, quem já nadou em um rio ou em uma represa talvez perceba o que

estamos dizendo. Um rio não é suas margens, tampouco seu leito, nem as

árvores de suas matas ciliares ou as milhares de formas orgânicas que o habita.

O rio está entre, e ganha velocidade no meio, que não necessariamente é na

metade, é onde as águas se revoltam, esculpem o leito e movimentam as

margens fazendo um circular sem-fim do que ali existe.

Nesse momento muitas pessoas, inclusive as democraticamente “bem”

intencionadas, talvez estejam tendo síncopes imaginando a perda de controle e

o caos na “Rede” (já presenciamos alguns desses ataques de pânico frente a tão

“incerto” panorama). Alguns pontos precisam sim ser pactuados, entretanto, não

são os de condutas detalhadas, mas sim de uma ética, largamente explorada ao

longo deste texto, de produção de vida e felicidade (não só dos usuários, mas

também de trabalhadores e gestores). Claro, diante de tudo que já foi exposto,

estamos também pressupondo que é necessário criar e fomentar espaços de

linguagem, de comunicação, de conversa, ou seja, em que a produção de

comum seja possível. Importante ressaltar que se faz necessário uma atitude

profundamente democrática de apoiar e valorizar a potência criativa destes

corpos. Não podemos ter a pretensão e a ilusão de um controle absolutista

central, seja na ânsia pelo poder seja pelo medo da falha e do descontrole. É

necessário investir e confiar, apostar na potência.

Tão pouco é suficiente pautar-se na institucionalização de alguns espaços

coletivos pretensamente democráticos, na “garantia” de espaços de reunião

formalizados (e muitas vezes burocráticos e muitas vezes espaços de tentativa

de controle das conversas, tentativa de controle e apreensão do que pode ser

produzido), os encontros precisam e podem ser múltiplos, incontroláveis e,

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inclusive, ter sua produção legitimada. Na cozinha, no corredor, na Kombi, na

rua, se faz tanta cogestão e se produz tanta rede (e às vezes até mais) quanto

numa reunião de equipe ou de matriciamento.

Fomentando a potência criativa e o trabalho vivo em ato perceberemos

uma rede capaz de produzir suas ações, de produzir as tais linhas. Mas não

tenhamos ansiedade em sedimentá-las como um novo desenho, é sabido e é

necessário aprender a lidar com isso, que as linhas se rompem! Movimentos de

territorialização, desterritorialização e re-territorialização fazem-se sem cessar!

Se uma linha se rompe é, necessariamente para traçar outra, uma linha de fuga.

E que se deixe as linhas variarem, produzirem outras rotas, outras conexões,

estender-se, conjugar-se (4º Princípio – de Ruptura a-significante) (27).

Estejamos atentos, como já dito, contra os microfascismos prontos a irromper-

se e a cristalizar-se que podem corromper e obstaculizar a produção do comum

e das relações político-amorosas.

Primeiro, caminhe até tua primeira planta e lá observe atentamente como escoa a água de torrente a partir deste ponto. A chuva deve ter transportado os grãos para longe. Siga as valas que a água escavou, e assim conhecerá a direção do escoamento. Busque então a planta que, nesta direção, encontra-se o mais afastado da tua. Todas aquelas que crescem entre estas duas são para ti. Mais tarde, quando estas últimas derem por sua vez grãos, tu poderás, seguindo o curso das águas, a partir de cada uma destas plantas, aumentar teu território (27).

Por fim, a rede-rizoma também fala de mais uma importante prática

metodológica. A rede de saúde, por exemplo, seu sistema de referência e contra-

referência, é um decalque, uma foto, um desenho, de um momento desta trama

de relações entre-serviços. Esse decalque organiza e expressa o rizoma em

determinado momento, dá-lhe estrutura, raízes e troncos, entretanto, reproduz

nada que não seja ele mesmo. É um instante, não mais a vida praticada e vivida.

Por isso é necessária a operação de ligar o decalque ao mapa, relacionar raízes

ou árvores ao rizoma. O mapa não reproduz um sistema fechado sobre ele

mesmo, ele o constrói, é voltado para a experimentação calcada no real, é

aberto, multiplamente conectável, reversível, rasgável, adaptável (5º e 6º

Princípios – de cartografia e decalcomania) (27).

Um mapa tem múltiplas entradas contrariamente ao decalque que volta sempre "ao mesmo". Um mapa é uma questão de

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performance, enquanto que o decalque remete sempre a uma presumida "competência" (27).

Esse é um movimento crucial para a pragmática de um sistema de saúde,

por exemplo. As dificuldades e os impasses são múltiplos e constantes, é

necessário ressituá-los sobre o mapa, abrindo espaço para que as linhas de fuga

surjam, operem e sejam reconhecidas (pois seu movimento de criação e captura

não pode ser contido, ainda que possa buscar-se aprisiona-lo). Ainda assim, há

que cuidar, pois dentro do rizoma também operam linhas produtoras de

fenômenos de massificação, de burocracia, de fascistização etc.

Importante ressaltar que o decalque também tem sua função crucial,

servirá sempre e a todo momento de ponto de apoio para alcançar-se as

múltiplas entradas do mapa, ainda que também se possa apoiar-se diretamente

em linhas de fuga em algumas situações. Das árvores, dos decalques, a todo

momento podem saltar mapas-rizomas (27). De toda forma, como já pautamos,

fujamos do pensamento hierarquizado, arborescente, não julguemos a priori qual

é o caminho bom para o pensamento, recorramos à experimentação (43).

Saltemos das copas das árvores nos amores rizomórficos.

Cabe retomar que o problema do comum é um problema posto pela vida.

Conatus, uma questão de perseverar na existência. Sobretudo é uma aposta na

arte da composição, na possibilidade de uma real e efetiva democracia. É

necessário enfrentar o desafio de colocar a produção do comum no centro

constitutivo da esfera pública (das cidades, das redes de saúde, das redes de

vida…), uma prioridade política, uma afirmação ética.

Podemos considerar, então, que a essência das redes é produzir comum,

que aumentam ou diminuem a potência de seus corpos, mas que o interessante

seria as ver como produtoras de amor político, para o que demandaria operar

como um rizoma! Redes de encontros, que produzem e incluem a diferença,

interessadas nas pessoas que as constituem, em suas necessidades, redes que

apostam na potência para a permanente produção de saúde e de vida.

A cada movimento, novas composições. Cada nova relação que fazemos,

um mundo de possíveis que se abre e que pede acolhimento e envolvimento

para que possa ser desenvolvido. Sabendo que a efetuação de possíveis é, ao

mesmo tempo, um processo imprevisível, aberto e arriscado. Não podemos nos

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furtar a este desafio. Nosso trabalho é vital e diz respeito às obras inerentes à

viagem que é a nossa vida (4).

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Figura 9 - Muchacha en la Ventana (1925), Salvador Dalí - https://www.salvador-dali.org/media/upload/gif/cache/f0046_noiaalafinestra_1411574278_1024.jpg - Acessado em 27/01/16

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EPÍLOGO

Dar um ponto final em uma tese é uma das coisas mais difíceis a se fazer

em um doutorado. Pelo menos quando se trabalha com este referencial e com

esta metodologia. Ainda há, sempre há, muito o que ser dito sobre o tema.

Certamente nossas revisões bibliográficas não deram conta de abarcar todas as

correntes de uma vasta produção sobre as Redes de Saúde (também não se

pretendia isso). E nem era necessário dar conta disso tudo.

Sempre fica a sensação de incompletude, natural do processo. Estamos

falando de uma pesquisa implicada na vida. Ela vai se fazendo enquanto a vida

vai acontecendo. E os movimentos da vida, mais ou menos rápidos, não cessam.

Permanentemente se estão criando novas maneiras para se resolver as

questões cotidianas, para lidar com os novos problemas que se apresentam. Da

mesma maneira a todo tempo também se cristalizam modos de operar que em

algum momento tornam-se apenas representativos de uma realidade que já não

é, um esboço do passado. E diante de cada nova realidade, novos problemas

são formulados.

Então a gente escolhe, ou o prazo decide, o momento de dar um basta à

escrita que reflete algumas camadas desse processo todo. E se a gente não

chega a conclusões, já que o processo não acaba, pode-se ao menos indicar

algumas pistas, algumas ideias.

O Sistema Único de Saúde permanece em uma disputa feroz pela sua

sobrevivência e pela sobrevivência de seus princípios. Os passos são lentos e

às vezes pequenos, mas consistentes. Parte dessa consistência vem da crítica

criativa e produtiva a esses mesmos passos. Assim, é indispensável reconhecer

o grande avanço conquistado com o debate sobre Redes de Atenção à Saúde

no Brasil. Na mesma medida, sabemos que tal avanço não é suficiente. Nem

dentro de si mesmo, como uma tecnologia de gestão do sistema, nem quando o

colocamos para dialogar com a clínica.

Costumeiramente vemos a construção dessas redes ficarem em uma

pauta de gestão. Como resultados organizam-se teias que pretendem mais

manter um certo fluxo, e as pessoas, sob controle do que olhar para as

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necessidades dos usuários. Um fluxo é necessário, mas sua cristalização pode

produzir mais desassistência do que racionalização do sistema.

É aqui que essa pesquisa vem contribuir. Não que já tenhamos construído

regionalizações, fluxos de referência o suficiente. Tão pouco podemos esperar

que isso aconteça para pensar como estamos tecendo nossas redes.

Sejamos objetivos. Se vamos tomar por pauta as necessidades concretas

das pessoas, suas singularidades, sejam usuários, trabalhadores ou gestores do

sistema, não poderemos nos satisfazer com modelos preestabelecidos à vida

vivida. Precisaremos ousar para arranjos também mais singulares.

O Consultório na Rua nos alerta da importância do trabalho pautado na

aposta na potência, na composição coletiva de seres mais capazes de

perseverar na existência. Uma aposta que implica a percepção da composição

destes corpos relacionais, ela nos fala que essa clínica também precisa operar

na própria produção de rede.

Ora, estamos dizendo que redes concretas e interessadas nos usuários e

em seus trabalhadores tem um componente crucial que precisa ser cuidado, as

relações. Quando colocamos dois corpos em relação, criamos um terceiro, um

corpo afetivo relacional, que pode compor ou descompor com os corpos que o

constituem. É um corpo virtual e que precisa ser cuidado.

Podemos chamar isso de amizade ou de amor. Amor aqui como um ato

político, constitutivo de relações potentes, interessadas na produção de potência

que alimenta a si mesma. O amor como uma alegria provocada por algo externo

a si, que nos torna mais potente tanto quanto mais alegres, portanto mais

capazes de perseverar na existência, de afetar e ser afetado e, logo, de amar

mais.

A redução de danos nos aparece como uma tecnologia clínica e

relacional, profundamente imbricada com a capacidade das equipes e das

pessoas em apostar na potência do outro, na capacidade do outro de construir

(com apoio e cuidado) outras formas de ser e de estar no mundo que também

sejam mais potentes. O amor investindo na produção de amor. A necessidade

da constante e permanente produção de comum entre os corpos.

Em um mundo-momento investido de ferramentas de controle do corpo,

tais como a prevenção e promoção de saúde pautadas no medo, de controle da

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urbe pautado pelo medo, a repressão e a violência policial, as estatísticas de

criminalidade que pautam mais repressão, mais violência e mais exclusão,

parece-me revolucionário esse investimento no amor, na redução de danos (cujo

nome aqui até começa a me parecer pouco adequado). É pautar uma rede

menos pelo controle burocrático e mais pela produção de saúde e de vida. Ou,

não tomar certo controle burocrático, certa necessária racionalização do sistema,

como o centro da vida e das práticas. Novamente, aproximamos a construção

de redes da clínica: se protocolos para o cuidado de pessoas com determinadas

enfermidades são úteis, tornam fácil o acesso à informação, eles também não

podem ser colocados entre profissional de saúde e a singularidade do usuário,

sob o risco de desassistência e condutas inadequadas.

Sem, necessariamente, criar palavras de ordem que nos produzam

bandeiras obnubilantes, mas que, pelo contrário, valorizem a diferença e a

produção coletiva, parece-me crucial, avançarmos na produção do comum, de

redes amorosas, para a produção de redes de produção de saúde! Tendo o

rizoma como uma pista da maneira como essas redes poderiam operar de modo

a incluir esses conceitos, essas pistas, aqui exploradas.

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183

ANEXOS

ANEXO 1: TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO Esta pesquisa tem como objetivo cartografar saberes e práticas sobre a construção

de Redes de Produção de Saúde em busca da melhora da eficácia do SUS e da coordenação do cuidado.

Para isso, serão objetivos específicos da pesquisa os seguintes: 1. Cartografar a produção de espaços construídos para o encontro entre

trabalhadores e/ou gestores de distintos serviços de saúde em vistas à construção de Redes de Produção de Saúde;

2. Desenvolver e/ou mapear dispositivos democráticos para a produção de redes; 3. Fomentar a discussão sobre Redes de Saúde, produzindo conhecimento apara

apoiar a implementação das mesmas. Uma das fases da coleta de dados será o acompanhamento deste espaço

enquanto fórum de reunião de trabalhadores e gestores de distintos serviços. O pesquisador participará das reuniões, fazendo anotações do que for discutido.

Será utilizado um gravador de áudio para garantir que os debates realizados pelos participantes da reunião (e sujeitos da pesquisa) possam ser recuperados e analisados posteriormente.

É compromisso do pesquisador assegurar o sigilo, a identidade e a privacidade dos sujeitos da pesquisa, quando da transcrição das falas e incorporação das informações em textos acadêmicos.

Os sujeitos têm liberdade para se recusarem a participar ou retirar seu consentimento em qualquer fase da pesquisa, sem que tenham nenhum tipo de prejuízo.

Os pesquisadores comprometem-se também a prestar qualquer tipo de elucidação sobre os procedimentos e outros assuntos relacionados à pesquisa, antes do seu início e durante seu desenvolvimento.

Sendo assim, pelo presente instrumento que atende às exigências legais, o Sr.

(a) __________________________________________________________________, portador (a) da cédula de identidade ___________________________, após leitura minuciosa das informações sobre a pesquisa e ciente dos objetivos e procedimentos da mesma, não restando quaisquer dúvidas a respeito do lido e explicado, firma seu CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO, concordando em participar da pesquisa proposta.

E, por estarem de acordo, assinam o presente termo. Campinas/ SP, _______ de ________________ de _____.

________________________________ ________________________________ Assinatura do Sujeito Assinatura do Pesquisador

Pesquisador: Bruno Mariani de Souza Azevedo

Médico sanitarista Doutorando do Departamento de Saúde Coletiva – FCM – Unicamp

Orientador: Prof. Dr. Sérgio Rezende Carvalho Telefone para contato: (19) 9742-1043

E-mail para contato: [email protected] A sua participação em qualquer tipo de pesquisa é voluntária. Em caso de dúvida, entre em contato com o Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp – telefone: (19) 3521 8936.